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Series & Trilogias Literarias
O comandante Jack Aubrey e seu companheiro de aventuras, o doutor Stephen Maturin, embarcam no Surprise para uma missão dificílima: destruir um navio americano que está ameaçando toda a frota baleeira britânica. Mas para conseguir destruí-lo, antes será necessário encontrá-lo. O que não é tarefa fácil, já que a embarcação inimiga pode estar em qualquer lugar do vasto do Oceano Pacifico.
A perseguição é emocionante. Mas, às vezes, é dentro do próprio HMS Surprise que se encontram os maiores problemas. Para levar a cabo sua missão, Jack Aubrey terá de lidar com uma tripulação formada por loucos, assassinos e marinheiros inexperientes. Homens que podem colocar toda a operação em risco.
Um romance de aventura inesquecível que conquistou milhões de leitores em todo o mundo, e inspirou o diretor Peter Weir a realizar um dos maiores épicos marítimos da história do cinema.
Foi mantido o sistema de medidas da Armada Real Inglesa, na obra, como forma de expressão habitual da terminologia náutica.
1 galão = 4,5460 litros
1 onça = 28,3495 gramas
1 quartilho = 0,6655 litros
1 pé = 0,305 metros
1 milha = 1,609 quilômetros
1 polegada = 2,54 centímetros
1 jarda = 0,914 metros
1 pedra = 6,3503 quilos
1 libra = 28,3495 gramas
1 légua (marítima) = 5.559 metros
1 légua (terrestre) = 4.828 metros
1 milha marítima ou nó = 1.853 metros
CAPÍTULO UM
— Mensagem para o comandante Aubrey, mensagem para o comandante Aubrey — gritou uma sequência de vozes, no início da escuridão, distante e amortecida da seção mais de ré do convés principal da nau capitânia, depois aumentando e se tornando mais clara, com a chamada fluindo acima do tombadilho; de lá, seguindo ao longo do talabardão{2} até o castelo de proa, onde se encontrava o comandante Aubrey a boroeste, parado ao lado de uma peça de artilharia, uma caronada{3} de trinta e duas libras, contemplando a galé púrpura do sultão do Marrocos, que atravessava ao largo de Jumper’s Bastion{4}, tendo o enorme cinza-fulvo do rochedo de Gibraltar aflorando atrás dela, ao mesmo tempo que o sr. Blake, outrora um insignificante habitante do camarote dos aspirantes de Marinha, já agora um alto e robusto tenente, quase tão enorme quanto o seu ex-comandante, explicava o funcionamento do novo reparo de canhão que ele inventara, um reparo que permitia disparar duas vezes mais depressa, sem o risco de a peça emborcar, ao alcance do tiro duas vezes maior, com perfeita precisão e, assim praticamente colocando um ponto final na guerra.
Somente um almirante de esquadra poderia "enviar uma mensagem" para um capitão de mar e guerra [*, e Jack Aubrey vinha temendo essa convocação desde a chegada do Caledonia, pouco depois do amanhecer; em questão de minutos, após receber o chamado, ele teria de explicar ao comandante em chefe porque sua ordem não fora cumprida.
*] no original em inglês, post-captain; ver Referências. (N. do E.)
Ao saber que a pequena e envelhecida, mas boa de navegação, a fragata Surprise de Aubrey, estava voltando de Malta para a Inglaterra, onde ficaria de molho ou seria vendida, deixando o serviço, ou mesmo enviada ao estaleiro para ser desmontada, o almirante Sir Francis Ives, o comandante em chefe do Mediterrâneo, ordenara-lhe que no caminho passasse em Zambra, na costa da Barbária, e ali tentasse argumentar com o dei de Mascara, o governante daquelas bandas, que parecia propenso a se juntar aos franceses e havia proferido ameaças de atos hostis, se não lhe fosse entregue uma enorme soma de dinheiro: se o dei se mostrasse inflexível, Aubrey deveria embarcar o cônsul britânico e informar a Sua Alteza que, no momento em que qualquer uma das ameaças fosse concretizada todos os navios de bandeira mascarense seriam apresados, queimados, afundados, ou seja, destruídos, e os portos do dei, bloqueados.
Aubrey navegava em companhia do Pollux, um navio de sessenta peças de artilharia, ainda mais antigo, que transportava o contra-almirante Harte de volta à Inglaterra como passageiro, mas a missão junto ao dei seria somente dele. Após cumpri-la, teria de se apresentar ao comandante em chefe em Gibraltar. A ele parecia uma tarefa bastante simples, principalmente porque tinha um consultor político extraordinariamente bem qualificado na pessoa do seu cirurgião, o dr. Maturin e, ao largo da desembocadura da baía de Zambra, deixou o Pollux com a mente tranquila, ou pelo menos com a mente tão tranquila como seria normal em alguém que passara a maior parte da vida no mar, esse elemento perigoso e totalmente inseguro, com mais nada além de uma prancha entre ele e a eternidade.
Mas eles tinham sido traídos.
De algum modo, o plano do comandante em chefe tornara-se conhecido do inimigo, e um navio francês de linha juntamente com duas fragatas surgiram a barlavento{5}, em evidente conluio com os mascarenes. As fortalezas do dei dispararam contra o Surprise. Assim, Aubrey não teve um encontro com o governante, nem embarcou o cônsul, sr. Eliot. O Pollux, combatido de perto pelo navio francês de oito canhões, foi a pique com perda de toda a tripulação.
Devido às suas brilhantes qualidades de navegação a vela, o Surprise conseguiu escapar, mas a verdade é que Jack Aubrey não se desincumbiu do que lhe fora ordenado. Sem dúvida, poderia alegar que durante as manobras destroçara uma pesada fragata francesa, atraindo-a para um recife, e que o Pollux danificara tanto o adversário na batalha, e o despedaçara tanto com a própria explosão, que havia pouca probabilidade de que este tornasse a alcançar Toulon. Fosse como fosse, não tinha nada de palpável para mostrar, e — embora sua mente se contentasse com a ideia de que materialmente a Marinha Real ganhara mais do que perdera no enfrentamento —, de modo algum tinha certeza de que o comandante em chefe veria aquilo da mesma forma. E passou a ficar ainda mais apreensivo desde que ventos adversos haviam retardado sua viagem da baía de Zambra para Gibraltar, onde esperava encontrar o comandante em chefe, e porque não sabia dizer se os barcos que enviara para Malta e Port Mahón tinham alcançado o almirante a tempo para que este lidasse com os franceses estropiados.
Sir Francis tinha uma reputação assustadora não apenas como um rígido disciplinador e uma pessoa intratável, mas também como alguém capaz de arruinar sem remorsos um subordinado que fracassasse. Sabia-se, ainda, que Sir Francis ansiava por vitória muito mais do que a maioria dos comandantes em chefe; por vitória evidente e positiva que agradasse à opinião pública e ainda mais ao atual ministério, a verdadeira fonte de honrarias. Jack não conseguia ver de que modo a ação em Zambra se encaixaria na expectativa do seu superior. "Mais alguns minutos e logo me dirão", falou para si mesmo ao se apressar em direção à popa, na esteira de um jovem nervoso e inaudível, mantendo sua melhor malha branca e meias de seda bem distantes dos baldes de breu que iam carregados à sua frente.
Mas se enganava; a convocação partira de outro almirante embarcado, o comandante da divisão da esquadra, que estava confinado em sua câmara por causa de um surto de gripe, e apenas desejava que Jack soubesse que a esposa dele alugara uma casa não muito distante de Ashgrove Cortage e que ela ficaria muito feliz em manter relações de amizade com a sr.ª Aubrey. Os filhos de ambos tinham quase a mesma idade, informou; e então, por gostarem muito de suas famílias e estarem há tanto tempo longe de casa, cada qual fez ao outro um relato detalhado de sua prole, enquanto o comandante da divisão da esquadra mostrava as cartas das filhas felicitando-o pelo aniversário, recebidas uns dois meses atrás, e um pequeno e reles limpador de penas de escrever roído por ratos, feito, sem ajuda, pelas mãos do seu mais velho.
Durante esse tempo, o comandante em chefe prosseguia cuidando do que restava de sua correspondência, uma tarefa que iniciara antes do sol nascer.
— Para o comandante Lewis e suas malditas palavras sobre uma inquirição — disse ele: — "Senhor, sua carta não contribuiu nem um pouco para mudar a opinião que formei sobre ter resolvido utilizar-se dessa gripe a fim de trazer novamente o Gloucester ao porto. A acusação mais séria contra o senhor é a selvagem grosseria feita ao dr. Harrington no tombadilho do Gloucester, totalmente inconveniente ao caráter de seu comandante, e particularmente repreensível em razão do estado de falta de confiança no qual a sua conduta imprópria colocou a tripulação do navio de Sua Majestade sob o seu comando. Se continuar a solicitar uma inquirição nos moldes da carta a que estou respondendo, ele será feito mais cedo do que espera. Sou, senhor, o seu mais obediente criado". Maldito velhaco, tentando intimidar-me.
Os dois escreventes não reagiram ao impropério e continuaram manejando rapidamente suas penas; o primeiro passando a limpo a carta anterior, e o segundo rascunhando a última, embora os demais ocupantes da grande câmara, o sr. Yarrow, secretário do almirante, e o sr. Pocock, seu consultor político, reagissem com pequenos estalidos com a língua.
— Para o Comandante Bates — disse Sir Francis assim que uma pena parou de ranger: — "Senhor, o estado de completa desordem do navio de Sua Majestade sob o seu comando obriga-me a ordenar que nem o senhor nem qualquer um de seus oficiais devam ir a terra para o que é chamado de diversão. Sou, senhor etc.".
Agora, um memorando. "Há bons motivos para suspeitar que um certo número de mulheres tem sido trazido clandestinamente da Inglaterra em vários navios, mais particularmente naqueles que chegaram ao Mediterrâneo no último e no presente ano. Seus respectivos capitães estão intimados pelo almirante a advertir essas senhoras sobre o desperdício de água e outras desordens cometidas por elas, e a fazer com que saibam todas que, a primeira evidencia de água obtida do barril de água potável para ser usada em lavagem de roupa ou algo de semelhante natureza sob falsos pretextos, cada mulher na esquadra, que não tenha sido admitida através da autoridade do almirantado ou do comandante em chefe será embarcada de volta à Inglaterra no primeiro comboio. Desde já, ficam os oficiais encarregados de vigiar seu comportamento e cuidar para que no futuro não haja desperdício ou consumo impróprio de água".
Dirigiu-se ao segundo escrevente, já pronto para escrever:
— Para os respectivos comandantes: "O almirante tem observado uma certa irreverência no comportamento de oficiais quando vão ao tombadilho do Caledonia, e que, às vezes, ao receberem ordens de um oficial mais antigo, não tiram os chapéus e alguns sequer os tocam; é de sua orientação direta que, no futuro, qualquer oficial que esqueça esse dever essencial de respeito e subordinação seja advertido em público; e ele espera que os oficiais do Caledonia deem o exemplo, tirando os chapéus, e não os toquem com um ar de negligência". — Dirigiu-se ao sr. Pocock e observou: — Os jovens de agora chegam aqui petulantes e exibidos. Como gostaria de poder reviver a velha escola. — Em seguida, prosseguiu:
— Para os respectivos comandantes: "o comandante em chefe, tendo visto em terra vários oficiais da esquadra vestidos como lojistas, com roupas coloridas, e outros usando chapéus redondos com seus uniformes, em clara transgressão à recente ordem dos ilustres lordes comissários do almirantado, determina que no futuro qualquer oficial que transgredir esse regulamento salutar e necessário seja preso, devendo comparecer diante do almirante e, seja qual for a sentença da corte marcial, os transgressores não terão mais permissão para ir a terra enquanto estiverem sob o comando de Sir Francis Ives".
Enquanto as penas deslizavam, ele apanhou uma carta e dirigiu-se ao sr. Pocock:
— Eis J. S. implorando-me que interceda novamente junto ao rei. Isso me admira, e não posso deixar de pensar que esse tipo de solicitação deverá receber resposta desfavorável. Isso me admira, repito, pois certamente, com tamanho propósito e altas pretensões, não é bem um pariato{6} o que ele tem em mente.
O sr. Pocock ficou um pouco constrangido para dar uma resposta, principalmente por saber que os escreventes, apesar de ocupados com suas penas, ouviam com atenção. Afinal, era do conhecimento de toda a esquadra que Sir Francis ansiava por ser um lorde e poder, desse modo, rivalizar com seus irmãos. Ele lutara com inigualável ferocidade pelo comando do Mediterrâneo com os mais adequados meios para esse fim.
— Talvez — começou ele, mas foi interrompido pela estridência de bárbaras trombetas bem próximas, e, seguindo para a plataforma de popa, comentou: — Minha nossa, o enviado do sultão já desembarcou.
— Que Deus amaldiçoe e dizime esse homem— berrou o almirante, olhando raivosamente para o relógio. — Que ele vá e... Não, não devamos ofender os mouros. Não terei tempo para Aubrey. Por favor, diga-lhe isso, sr. Yarrow... Apresente minhas desculpas... force majeure{7}... Faça a coisa educada... convide-o para jantar, e que ele traga o dr. Maturin; ou que eles venham amanhã de manhã, se isso não lhes convier.
E não convinha.
Aubrey estava infinitamente preocupado, mas não estava em seus planos jantar com o comandante em chefe naquele dia, já estava comprometido, comprometido com uma dama. Com as primeiras palavras de desculpa de Jack ao sr. Yarrow, as sobrancelhas do comandante de divisão da esquadra fecharam-se sob o barrete de dormir; com as últimas, a única desculpa que, num contexto naval, poderia inocentá-lo de ser um pernicioso, insolente, descontente e obstinado cão amotinado, as sobrancelhas reapareceram no lugar habitual, e o comandante de divisão da esquadra falou:
— Eu gostaria de ter um compromisso para jantar com uma dama. Posso receber o salário de um contra-almirante, mas desde Malta não tenho visto nenhuma, a não ser a mulher do mestre do navio; e, com esta maldita gripe e tendo que dar o exemplo, não poderei ver outra até fundearmos novamente no Grand Harbour. Infelizmente. Há algo maravilhosamente agradável em ter as pernas de uma dama sob a mesa da gente, Aubrey.
Por princípio, Aubrey foi todo concordância; em terra ele era totalmente dedicado às mulheres — aliás, uma dedicação que já estivera perto de ser sua destruição — e adorava demais ter as pernas delas sob a sua mesa. Mas, no caso daquelas pernas em particular (um par notavelmente elegante), e daquele jantar em particular, sua mente estava longe de se sentir tranquila. Aliás, a intranquilidade de um tipo ou de outro abarrotava completamente sua cabeça naquele dia, deixando pouco espaço para o seu habitual bom humor.
Ele dera a Laura Fielding, a dama em questão, uma carona de Valletta para Gibraltar e, em circunstâncias normais, era perfeitamente comum levar a esposa de um colega oficial de um porto para outro. Tais circunstâncias, porém, estavam longe de ser normais: a sr.ª Fielding, uma dama italiana com cabelos fortemente ruivos, surgira no meio de um aguaceiro noturno, sem bagagem, sob a proteção de Stephen Maturin. Stephen não deu qualquer explicação para a presença dela, frisando apenas que, em nome do comandante Aubrey, ele lhe havia prometido uma passagem para Gibraltar. Jack sabia muito bem que o seu amigo íntimo Maturin estava profundamente envolvido com a inteligência e a política navais e não fez perguntas, apenas aceitou a situação como um mal necessário.
Um mal, porém, bastante considerável, já que um certo boato já ligara o nome de Jack ao de Laura na época em que o marido era um prisioneiro de guerra nas mãos dos franceses. Nessa ocasião, o boato fazia jus ao seu nome e, embora Jack estivesse em determinada ocasião muito disposto a lhe dar veracidade, Laura não estava. Mesmo assim, o boato alcançou o Adriático, e ali o marido em fuga, o capitão-tenente Charles Fielding, da Marinha, tomou conhecimento dele a bordo do HMS Nymphe. Ciumento como era, acreditou de imediato no boato. Havia seguido o Surprise até Gibraltar e desembarcado do possante Hecla na noite anterior. Ao saber da notícia, Jack enviou imediatamente ao casal um convite para jantar no dia seguinte, mas, apesar do gentil bilhete de Laura, aceitando, ele de modo algum se convencera de que não tinha nas mãos uma situação extremamente constrangedora, às duas e meia da tarde, quando deveria receber seus convidados no hotel Reid’s.
Ao desembarcar no Ragged Staff pouco antes do meio-dia, mandou a baleeira de volta para o Surprise, com as muitas instruções repetidas desnecessariamente para o seu timoneiro sobre o traje, a limpeza e a diligência dos tripulantes que serviriam o jantar, porquanto a Marinha, ainda que frequentemente reduzida a carne de cavalo salgada e bolacha, comia em alto estilo, cada oficial e convidado com um criado atrás de sua cadeira, um estilo que poucos hotéis podiam igualar. Então, vendo que a Parade estava quase vazia, caminhou ao longo dela em direção aos jardins da Alameda, pretendendo sentar-se no banco debaixo da dracena.
Não tencionava retornar logo ao seu navio, pois não só lhe era doloroso vê-lo, sabendo que estava condenado, como também, apesar de seus esforços, a notícia do destino do navio espalhara-se e, junto com ela, a tristeza, e por isso o Joyful Surprise (Alegre Surpresa), como era conhecido no serviço, agora não passava de um lugar desolado. A fechada e compacta comunidade formada por cerca de duzentos homens estava para se fragmentar, e ele era o reflexo da tristeza que todos sentiam, do desperdício. Uma tripulação de marujos de primeira escolhidos a dedo, muitos dos quais haviam navegado com ele durante anos, e alguns, como os seus patrões de embarcações miúdas, despenseiro e quatro da guarnição da baleeira, estavam com ele desde o primeiro comando que assumira. Estavam acostumados uns com os outros, acostumados com seus oficiais — uma tripulação de navio na qual o castigo era extremamente raro e a disciplina não precisava ser imposta, pois surgia naturalmente —, e ele não conhecia nada igual ao seu pessoal de artilharia e marinharia.
Esse inestimável grupo de homens seria dispersado por uma porção de navios, ou mesmo, no caso dos oficiais, despejados em terra, desempregados, simplesmente porque o Surprise, de quinhentas toneladas e vinte oito peças de artilharia, era uma fragata pequena demais para as exigências modernas. Em vez de receber reforços e ser transferidos como um todo para um navio maior, como o Blackwater, de mil toneladas e trinta e oito peças, que fora prometido a Jack, a tripulação seria dispersada, visto que a promessa seguira o caminho de tantas outras promessas.
O influente comandante Irby recebera o Blackwater, e Jack, cujos negócios estavam em um estado de terrível confusão, não tinha absolutamente certeza de outro navio, nem certeza de coisa alguma, a não ser o meio soldo de meio guinéu por dia e uma montanha de dívidas. Não saberia calcular a altura da montanha, apesar de todas as suas habilidades em navegação e astronomia, já que isso dizia respeito a vários advogados, cada qual com uma ideia diferente do caso, ou melhor, dos casos.
Esses pensamentos foram interrompidos por uma tosse e um tímido "Comandante Aubrey, senhor. Bom dia, senhor". Erguendo os olhos, viu um homem alto e magro, entre trinta e quarenta anos, com o chapéu levantado da cabeça. Vestia uniforme naval, o uniforme surrado de um aspirante à Marinha, os remendos brancos amarelados pelo sol.
— Não se lembra de mim, senhor; meu nome é Hollom, e tive a honra de servir sob o seu comando no Lively.
Claro. Jack fora comandante interino do Lively, durante alguns meses, no início da guerra, e nos primeiros dias de seu comando ele notara algo de não muito eficiente e não muito empreendedor num aspirante com aquele nome, um aspirante já avançado em anos e qualificando como ajudante de navegação; não foi um bom negócio, visto que Hollom, adoecendo, foi logo removido para o navio-hospital, e ninguém particularmente pareceu lamentar, a não ser talvez o mestre-escola, outro aspirante envelhecido, e o grisalho escrevente do comandante, os quais formavam com ele um pequeno grupo isolado durante o rancho, bem diferente dos mais costumeiros e mais turbulentos aspirantes adolescentes.
Pelo que Jack conseguia lembrar, Hollom não linha vícios, mas obviamente tampouco tinha qualidades; era o tipo de aspirante que não progredira na profissão, que não possuía nenhum entusiasmo evidente pela marinharia, artilharia ou navegação e nenhum dom para lidar com marujos, o tipo de aspirante que os comandantes ficam felizes em passar adiante.
Muito antes de Jack conhece-lo, uma junta benevolente atestara que Hollom estava capacitado a ser promovido a capitão-tenente; mas a comissão propriamente dita nunca surgiu. Isso acontecia frequentemente com jovens sem nenhuma habilidade em particular ou sem patrono nem família para interceder por eles. Entretanto, resistindo por mais alguns anos, a maioria desses infelizes consegue um grau de mestre-arrais{8}, se sua habilidade em matemática e navegação for suficientemente boa, ou deixa de vez o serviço. Hollom e muitos outros como ele continuam tendo esperança, até ser tarde demais para fazer qualquer mudança, e permanecem perpetuamente aspirantes, perpetuamente jovens cavalheiros, com uma renda aproximada de trinta libras anuais, quando conseguem um comandante que os admita no seu tombadilho, e não recebem nada quando não conseguem esse capitão providencial, pois aspirantes não têm direito a meio soldo.
A situação deles era talvez a menos invejável de todo o serviço, e Jack tinha muita pena desse pessoal mesmo assim, endureceu o coração contra o pedido que fatalmente viria — alguém com quarenta anos não tinha possibilidade de se encaixar no seu grupo de aspirantes. Além disso, era evidente que Hollom era um sujeito de má sorte, um sujeito que levava o azar para o navio; a tripulação, um grupo de homens extremamente supersticiosos, desgostaria dele e talvez o tratasse com desrespeito, o que significaria iniciar novamente toda a odiosa rotina de castigos e ressentimentos.
Era óbvio, pelo próprio relato de Hollom, que este vinha encontrando cada vez mais comandantes com essa opinião: seu último navio, o Leviathan, fora excluído do serviço sete meses antes, e ele tinha ido a Gibraltar na esperança de uma vaga motivada por morte ou um encontro com um dos seus muitos ex-comandantes, que poderia estar necessitado de um experiente ajudante de navegação. Nenhuma das duas coisas ocorrera, e agora Hollom estava numa situação extrema.
— Lamento muito dizer isso, mas receio que seja impossível para mim conseguir uma vaga para você no meu tombadilho — disse Jack. — Em todo o caso, não adiantaria mesmo, já que o navio deverá ser desarmado nas próximas semanas.
— Mesmo algumas semanas seriam infinitamente bem-vindas, senhor — disse Hollom, lividamente animado. Em seguida, desesperado, acrescentou: — Eu me contentaria em armar a minha maca na proa, Senhor, se me considerar apto para embarcar.
— Não, não, Hollom, não adianta — afirmou Jack, sacudindo a cabeça. — Mas aqui está uma nota de cinco libras, que poderá pagar com o dinheiro da sua próxima presa, se é que isso vai ser de alguma utilidade para você.
— É uma pessoa muito boa, senhor — disse Hollom, colocando as mãos para trás —, mas não sou... — O que ele não era nunca deixou transparecer; o rosto, ainda mantendo algo da artificial expressão animada, contorceu-se estranhamente, e Jack temeu uma eclosão de lágrimas. — De qualquer medo, agradeço sua bondosa intenção. Passar bem, senhor.
"Maldito seja, maldito seja", disse Jack a si mesmo, enquanto Hollom se afastava, parecendo anormalmente empertigado. "É a maldita de uma chantagem infernal". A seguir, em voz alta, disse:
— Sr. Hollom, sr. Hollom, tome. — Escreveu na sua caderneta, arrancou a página e falou: — Apresente-se a bordo do Surprise, para o serviço antes do meio-dia, e mostre isso ao oficial de quarto.
Passos e mais passos adiante, encontrou o comandante Sutton, Billy Sutton, do Namur, um velhíssimo amigo, ainda da época em que estiveram juntos quando rapazes a bordo do HMS Resolution.
— Céus, Billy — bradou Jack —, nunca pensei em encontrá-lo aqui... Não vi o Namur chegar. Onde está ele?
— Bloqueando Toulon, o pobre coitado, e Ponsonby está cuidando dele em meu lugar. Fui declarado vencedor nas eleições suplementares de Rye. O Stopford vai me levar para casa em seu iate.
Jack parabenizou-o. Após uma troca de palavras sobre o Parlamento, iates e comandantes interinos. Sutton observou:
— Você parece extremamente preocupado, Jack, como uma gata que perdeu os filhotes.
— Imagino que sim. O Surprise vai ser recolhido para ser desarmada ou ser destruída, e tenho passado umas semanas realmente miseráveis, fazendo preparativos, mandando embora barcos carregados de gente, que quer uma carona para si, para suas famílias ou os amigos. Agora mesmo acabei de fazer uma coisa realmente idiota, claramente contra os meus princípios: tirei de terra um ajudante de navegação de meia-idade, porque parecia terrivelmente magro, o pobre-diabo. Foi por puro sentimentalismo e uma tola indulgência. Afinal, não fará nenhum bem a ele; não me será grato, nem útil, vai corromper os meus rapazes e perturbar a guarnição. Ele tem "Jonas" escrito na testa. Graças a Deus, o Caledonia chegou, finalmente, Posso fazer meu relatório e ir embora, assim que o meu escaler retornar de Mahón, antes que mais alguém vá para bordo. O comandante do distrito naval, um almirante, tentou me impingir uma porção de pessoas horríveis e levar os meus melhores homens, utilizando um ou outro golpe sujo. Até agora tenho resistido muito bem. Afinal de contas, o navio pode ser colocado em atividade entre aqui e o canal, e quero que ele faça bonito. Mesmo assim...
— Que coisa mais triste, essa na baía de Zambra, Jack —, comentou Sutton, que não estivera prestando atenção.
— Realmente — confirmou Jack, balançando a cabeça. Após um momento: — Quer dizer que sabe de tudo?
— Claro que sei, o seu escaler encontrou o vice-almirante em Port Mahón, e ele mandou o Alacrity diretamente para o comandante em chefe ao largo de Toulon.
— Como torço para que o alcance a tempo. Com sorte, ele conseguirá pegar o grande francês. Houve algo muito sujo nesse incidente, Billy. Navegamos direto para uma armadilha.
— É o que todos dizem. E um navio de transporte de gênero, que voltou, informou sobre um distúrbio em Valletta... Alguns civis de alto escalão tiveram a garganta cortada e um bocado de gente foi fuzilado. Mas isso tudo é informação de segunda ou terceira mão.
— Não houve notícias do meu cúter{9}, suponho. Eu o enviei a Malta, com o meu segundo oficial, assim que o vento soprou direto para ele, portanto não há esperança de chegar tão cedo a Gibraltar.
— Não foi o que ouvi dizer. Mas soube que o seu escaler foi colocado a bordo do Berwick, já que o navio tinha um encontro aqui com o comandante em chefe. Navegamos juntos até ontem à tarde, quando ele perdeu o mastaréu{10} do velacho{11} numa rajada de vento, e, como Bennet não ousa enfrentar o almirante, senão com tudo perfeitamente em Ordem, fez sinal para seguirmos em frente. Mas com o vento rondando desse modo —, observou Sutton, olhando para o alto cume do rochedo de Gibraltar — ele vai acabar se atrasando, se não recuperar a velocidade.
— Billy — disse Jack —, você conhece o almirante muito melhor do que eu. Ele continua muito feroz?
— Bastante feroz — confirmou Sutton. — Soube o que ele fez com o aspirante que pilhou o navio corsário?
— Não.
— Pois bem, alguns barcos do esquadrão abordaram um corsário de Gibraltar, verificaram que seus documentos estavam em ordem e o deixaram em paz. Algum tempo depois, um aspirante do Cambridge, um cabeludo de dezesseis anos que adorava ser estimado pela tripulação, voltou lá e fez com que dessem cerveja preta a ele e à guarnição da embarcação miúda em que estava; em seguida, tendo perdido totalmente o juízo suponho, vestiu a jaqueta azul do mestre-arrais, com um relógio de prata no bolso, e foi embora às gargalhadas. O mestre-arrais apresentou queixa, e o relógio foi encontrado na maca dele. Eu participei da corte marcial.
— Foi demitido do serviço, naturalmente.
— Não, não. Não teve essa sorte. A sentença foi: "Ser degradado do posto de aspirante à Marinha, da maneira mais infame, tendo as costas do uniforme rasgadas no tombadilho do Cambridge, e ser multado no valor do salário devido a ele", e para ser lida a bordo de todos os navios do comando... Teriam vindo até o seu, se não estivesse em Zambra. Mas isso não foi o bastante. Sir Francis escreveu para Scott, do Cambridge e eu vi a carta: "Senhor, por meio desta, receba a ordem e a instrução para executar a sentença da corte marcial imposta a Albert Tompkins. Deverá mandar que sua cabeça seja raspada e um cartaz afixado às suas costas, exibindo o crime vergonhoso que ele cometeu. E deverá se ocupar doravante da limpeza da latrina até segunda ordem".
— Meu Deus — bradou Jack, pensando na latrina de um navio de linha com oitenta canhões, a cloaca ou privada comum utilizada por mais de quinhentos homens. — O coitado do rapaz tem família, possui alguma instrução?
— É filho de um advogado de Malta, Tompkins, da corte do almirantado.
Deram alguns passos em silêncio, e Sutton falou:
— Eu devia ter lhe dito que o Berwick tinha também o seu ex-imediato, o que foi promovido por causa de sua batalha contra os turcos. O pobre coitado estava voltando para casa para tentar conseguir um navio.
— Pullings — mencionou Jack. — Como eu ficaria feliz em vê-lo... nunca houve um imediato igual. Mas, quanto a um navio... —Ambos sacudiram a cabeça, pois sabiam que a Marinha tinha mais de seiscentos comandantes, e nem a metade desse número de chalupas, as únicas embarcações que podiam comandar. — Espero que o navio também estivesse com o seu capelão a bordo — disse Jack. — Um sacerdote caolho chamado Martin, um excelente sujeito e grande amigo do meu cirurgião. — Hesitou um instante, e perguntou: — Billy, você faria a gentileza de jantar comigo? Darei uma recepção um tanto quanto difícil esta tarde, e um sujeito espirituoso como você tagarelando seria uma grande vantagem. Não sou lá essas coisas numa conversa, como sabe, e Maturin tem a mania horrível de se fechar como uma ostra se o assunto não for do interesse dele.
— Que tipo de recepção? — Quis saber Sutton.
— Conheceu a sr.ª Fielding, em Valletta?
— A bela sr.ª Fielding, que dá aulas de italiano? — Indagou Sutton, piscando um olho para Jack. — Sim, é claro.
— Pois bem, eu lhe dei uma carona até Gibraltar, mas por causa de um boato tolo... falso, Billy, dou-lhe minha palavra de honra, totalmente falso... parece que o marido deu para ter suspeitas a meu respeito. São os Fielding, os convidados para este jantar e, embora o bilhete dela me garanta que eles ficarão encantados em vir, mesmo assim ainda sinto que não faltará uma certa ameaça de mal-entendido. Céus, Billy, ouvi você discursando para os eleitores de Hampshire, do modo mais destemido... brincadeiras, gracejo, anedotas, comentários... Puxa, quanta eloquência.
Os temores do comandante Aubrey mostraram-se infundados. Entre a chegada do marido, na tarde anterior, e a hora do jantar, Laura Fielding encontrara meios de convencê-lo de sua perfeita fidelidade e imutável dedicação, e ele adiantou-se com uma expressão sorridente no rosto para apertar a mão de Jack e agradecer novamente pela gentileza que tivera com Laura. Mesmo assim, a presença de Sutton de modo algum foi indesejável. Tanto Jack quanto Stephen, que gostavam muito da sr.ª Fielding, sentiam-se desconfortáveis na presença do marido dela; nem conseguiam entender o que ela via nele — um homem pesado e moreno com uma testa grossa e pequenos olhos profundamente engastados —, e ambos se ressentiam da óbvia afeição dela. Isso, de alguma forma, a depreciava na opinião deles, e tampouco sentiam como antes uma propensão tão forte para ser sociáveis. Quanto ao próprio Fielding, limitou-se a fazer um breve relato de sua fuga de uma prisão francesa, e depois nada mais teve a dizer. Ficou sentado ali, sorrindo e acariciando a esposa por baixo da toalha da mesa.
Só então Sutton mostrou o seu valor. Sua principal qualidade como membro do Parlamento era a habilidade de falar demoradamente, de uma maneira sorridente e alegre sobre praticamente qualquer assunto, frisando verdades universalmente aceitas com o máximo de sinceridade e boa índole; também era capaz de recitar de cor projetos de lei e discursos de outros membros com perfeita exatidão; e, claro, oficial e oficiosamente, defendia a Marinha sempre que a instituição era criticada de alguma forma.
Assim que viu uma oportunidade, Laura Fielding, perfeitamente ciente das limitações do marido e dos sentimentos de seus admiradores, tentou animar a conversa (que agora se tornara monstruosamente insípida) reclamando do comandante em chefe pelo seu tratamento ao infeliz Albert Tompkins, que era filho de uma conhecida sua em Valletta, uma dama cujo coração se despedaçara ao saber a respeito do cabelo do filho, "que caía com tão lindos cachos, mal precisando de grampos". Sir Francis era pior do que Atila: era um grosseiro, um desprezível.
— Ora, madame — conciliou Sutton. — Ele pode ser um pouco rigoroso às vezes, mas onde estaríamos se todos os aspirantes usassem o cabelo como Absalão{12} e passassem todo o seu tempo livre roubando relógios de prata? Em primeiro lugar, mal conseguiriam subir até o topo do mastro, e, em segundo, o serviço atrairia uma péssima reputação. De qualquer modo, Sir Francis é capaz de grandes gentilezas, de espantosa magnanimidade, de uma leniência jupiteriana. Lembra-se do meu primo Cumby, Jack?
— Cumby do Bellerophon, aquele que foi promovido a mar e guerra{13} depois de Trafalgar?
— Esse mesmo. Pois bem, madame, alguns anos atrás, quando Sir James era comandante em chefe perante Cádiz e havia uma grande quantidade de reclamações e descontentamento na esquadra, com indisciplina e até mesmo navios semiamotinados saindo do canal, Sir Francis ordenou aos fuzileiros que formassem para a parada às dez da manhã a bordo de cada navio de batalha... execução do hino nacional... apresentação de armas... todo mundo presente... chapéus fora da cabeça... e ele sempre comparecia, vestido com o uniforme completo, azul e dourado; tudo isso para promover a disciplina e um senso de ordem, o que foi eficazmente conseguido.
Lembro-me que certa vez o gajeiro{14} da gávea{15} do grande{16} se distraiu e continuou com o chapéu na cabeça após o hino ter começado. Sir Francis mandou açoitá-lo de imediato, e depois disso todos os homens se mantiveram tão descobertos quanto a palma da minha mão. Mas os rapazes às vezes são imprudentes, madame, pois, como disse o frade Bacon, não se podem esperar cabeças velhas em ombros jovens. Meu primo escreveu uma peça irreverente, bastante engraçada, sobre o comandante em chefe e a cerimônia.
— Escreveu mesmo, o cachorro — confirmou Jack, dando uma gargalhada com prazerosa antecipação.
— E alguém pegou uma cópia da peça e a entregou ao almirante, que convidou meu primo para jantar. Cumby não fazia a menor ideia do que estava acontecendo, até o final da refeição, quando foi trazida uma cadeira de espaldar alto, o almirante mandou que ele se sentasse e lesse aquilo para uma enorme plateia, toda formada de almirantes ou capitães de mar e guerra. O pobre Cumby ficou aturdido, como podem imaginar, mas não havia saída. Quando o almirante falou novamente "desembuche", num tom de voz ríspido, ele começou. Devo reproduzir, Jack?
— Sim, reproduza. Isto é, se não for desagradável para a sr.ª Fielding.
— De modo algum, senhor — retrucou Laura. — Eu gostaria muito de ouvir.
Sutton tomou um gole de vinho, endireitou-se na cadeira, adotou uma voz de tribuna e começou:
— A Primeira Lição para o serviço matinal faz parte do terceiro capítulo da Disciplina.
1. Sir Francis Ives, o comandante em chefe, fez uma imagem em azul e dourado, cuja altura era cerca de dois metros, e a sua largura tinha cerca de cinquenta centímetros. Todos os dias, às dez horas, ele a instalava no tombadilho do Queen Charlotte, diante de Cádiz.
2. Sir Francis Ives, o comandante em chefe, mandava reunir o comandante, os oficiais, o vigário, os marujos e os fuzileiros, para a consagração da imagem que Sir Francis Ives, o comandante em chefe, havia instalado.
3. O comandante, os oficiais, o vigário, os marujos e os fuzileiros, reunidos dedicavam-se à consagração da imagem que Sir Francis Ives havia instalado; e eles ficavam diante da imagem que Sir Francis Ives havia instalado.
4. O comandante gritava bem alto: "A vós é ordenado, ó oficiais, vigário, marujos e fuzileiros, que, ao ouvirdes o som do clarim, da flauta, da corneta, da clarineta, do tambor, do pífaro, e todos os tipos de música, deveis tirar os chapéus e adorar a imagem azul e dourada que Sir Francis Ives, o comandante em chefe, instalou; e vós, que não tirardes os chapéus e não adorardes, sereis certamente castigados por causardes aborrecimento ao comandante em chefe".
5. Assim, quando todos ouviram o som do clarim, da flauta, da corneta, da clarineta, do tambor, do pífaro, e todos os tipos de música, tiraram os chapéus e adoraram a imagem azul e dourada que Sir Francis Ives, o comandante em chefe, havia instalado.
6. Porém, certa manhã, depois disso, um certo oficial aproximou-se e denunciou um marujo que não seguira à risca a determinação.
7. Ele falou, e disse a Sir Francis Ives: "Ó comandante em chefe, que tenhais vida eterna"!
8. "Vós, ó comandante em chefe, decretastes que todo homem que ouvir o som do clarim, da flauta, da corneta, da clarineta, do tambor, do pífaro, e todos os tipos de música, deverá tirar o chapéu e adorar a imagem azul e dourada; e aqueles que não tirarem o chapéu e não adorarem certamente serão castigados por causar o vosso aborrecimento.
9. "Há um certo marujo, a quem vós tornastes sargento e o deixastes a cargo do serviço da gávea do grande; esse homem, ó comandante em chefe, não vos respeitou esta manhã; ele não tirou o chapéu e não adorou a imagem que vós instalastes".
10. Sir Francis Ives, irado, ordenou que lhe fosse trazido o gajeiro da gávea do grande. E esse homem foi levado à presença do comandante em chefe.
11. Então Sir Francis Ives encheu-se de fúria, e a forma de sua face mudou, diante do gajeiro da gávea do grande.
12. Consequentemente, ele falou e ordenou que montassem o estrado, leu os Artigos de Guerra e chamou os marujos da faxina do mestre do navio; e ordenou que a faxina do mestre pegasse o chicote de nove tiras do chefe deles.
13. E ordenou aos homens mais fortes que havia no seu navio que agarrassem e amarrassem o gajeiro da gávea do grande, e que este fosse castigado com uma dúzia de chibatadas.
14. Então o gajeiro da gávea do grande, só de calças, meias e sapatos, mas sem a jaqueta e a camisa, foi amarrado no gradil e açoitado com uma dúzia de chicotadas.
15. O gajeiro da gávea do grande foi castigado por ter aborrecido Sir Francis Ives, o comandante em chefe.
— E aqui termina a Primeira Lição. E agora, madame — disse Sutton, voltando a falar novamente mais parecido com um ser humano —, vamos à minha questão, pois, quando Cumby chegou ao fim, o almirante, que o tempo todo permanecera rígido como um juiz enforcador, e todos os demais oficiais também, desatou numa gargalhada, e mandou que o meu primo tirasse três meses de licença na Inglaterra e ordenou que fosse jantar na nau capitania no dia em que retornasse. Essa é a minha questão, veja... Sir Francis pode ser brutal ou pode ser bondoso, e não há como saber qual.
"Não há como saber qual", disse Jack Aubrey a si mesmo, enquanto a baleeira o levava pelo mar em direção à nau capitania, bem cedo, na manhã seguinte. Seu sinal não fora disseminado na costumeira hora despropositada do comandante em chefe, pois o Avon chegara ao amanhecer com despachos e com a correspondência, incluindo um malote bem cheio para o Surprise.
A parte de cartas que cabia ao seu comandante ou, para ser mais exato, a parte que lidava com negócios deixava claro que era essencial que ele conseguisse um navio — de preferência uma fragata com chance de obter dinheiro de presas —, a fim de enfrentar o problema em casa; portanto, agora, a opinião de Sir Francis sobre ele era muito mais importante do que tinha sido antes. As outras cartas, as de Sophie e das crianças, carregava no bolso, para ler novamente enquanto firasse esperando pelo almirante.
Bonden, que conduzia a baleeira, tossiu de modo significativo, e Jack, seguindo seu olhar, viu o Edinburgh fundeado; um navio comandado por Heneage Dundas, um amigo particular. Olhou para Stephen, mas este estava mergulhado em pensamentos, sério e desligado. Ele também levava cartas no bolso para ler depois. Uma delas era de sua esposa, Diana, que ouvira uma história absurda de que ele estaria tendo um caso, bastante público, com uma ruiva italiana; só podia ser absurda, dizia ela, porque Stephen sabia muito bem que, se a humilhasse diante de pessoas do mundo deles, ela se ressentiria amargamente. Não era nenhum tipo de moralista, prosseguia ela, mas não engoliria uma afronta explícita de ninguém neste mundo, homem, mulher ou hermafrodita.
— Preciso cuidar disso imediatamente —, observou Stephen, que sabia que a esposa, apesar de extraordinariamente bela, também era extraordinariamente passional e determinada.
As outras cartas eram de Sir Joseph Blaine, o chefe da inteligência naval, e a primeira delas, com redação oficial, parabenizava o seu "caro Maturin" pelo que descreveu como "um golpe brilhante", esperando que isso levasse à total eliminação dos agentes franceses em Malta.
Durante muito tempo as ações dos ingleses pelo Mediterrâneo e pelas suas costas africanas e asiáticas vinham sendo rebatidas pelos franceses, praticamente antes de serem realizadas, e era evidente que informações secretas estavam sendo enviadas de Malta para a França. A situação era tão séria, que o almirantado enviara o seu segundo-secretário interino, o sr. Wray, para uma observação; o golpe em questão, porém, foi a descoberta, feita independentemente por Maturin, do mais importante agente francês em Valletta e seu principal colega ou cúmplice, um funcionário graduado do governo britânico, um inglês das Ilhas do Canal chamado Boulay, um homem muito bem situado para saber de fatos, planos e movimentos de grande importância para o inimigo.
Essa descoberta seguiu-se a uma longa e complexa operação realizada por Maturin, com a ajuda involuntária de Laura Fielding; mas ocorrera apenas poucas horas antes de ele ser obrigado a deixar Valletta e, portanto, Maturin foi forçado a transmitir a informação ao sr. Wray e ao comandante em chefe para providências da ação, só que o sr. Wray estava passando uns dias na Sicília e o almirante encontrava-se afastado de Toulon. Ele relutara em fazê-lo, porque as cartas necessariamente revelariam a sua condição como um dos colegas de Sir Joseph, uma condição que ele preferiria manter em segredo — tanto que, de fato, ele se recusara a colaborar com Wray ou com o sr. Pocock, o secretário e consultor para assuntos do Oriente do almirantado.
Wray, que viera da Fazenda, era um novato no mundo da inteligência naval, e Maturin achava a questão muito delicada para mãos inexperientes. Além do mais, sabia que Wray não desfrutava da total confiança de Sir Joseph, o que não era de surpreender, visto que, embora Wray fosse certamente capacitado e inteligente, era também um homem elegante, dispendioso, muito dado a jogar alto e não muito notável por sua discrição.
A mesma objeção de inexperiência aplicava-se a Pocock, conquanto, por outro lado, se saísse muito bem como chefe do serviço de inteligência local do almirantado. Contudo, mesmo se houvesse muito mais objeções a Wray e Pocock, mesmo se fossem completos idiotas, ainda assim Maturin lhes teria escrito; sua descoberta era muito importante, e o primeiro dos dois homens a chegar a Valletta só precisaria utilizar sua exata e detalhada informação para, em meia hora, eliminar a organização francesa com a ajuda de apenas um cabo da guarda. Mesmo se isso tivesse significado revelar dez vezes a sua verdadeira identidade, certamente teria escrito, acima de tudo para Wray, o qual, com toda a probabilidade, retornaria a Malta bem antes do almirante, pois, ainda que Maturin tivesse uma experiência bastante considerável do trabalho de inteligência, e posto que tivesse suficiente cautela, discernimento e acuidade para ter sobrevivido a várias campanhas, nas quais muitos de seus colegas tinham morrido (alguns sob tortura) ele não era, de modo algum, onisciente; era passível de cometer erros e não desconfiava do fato de que Wray era um agente francês, um homem que admirava Bonaparte na mesma medida em que Maturin o detestava. Stephen via Wray como um sujeito meio vaidoso, inseguro e de extrema habilidade; não sabia que era um traidor e sequer desconfiava disso.
Desde que deixara Valletta, Stephen ficara ansioso e impaciente para saber o resultado de suas cartas, e certamente teria ido a bordo da nau capitania assim que ela aparecesse, não fosse a etiqueta naval o próprio fato de que uma visita extemporânea e inusitada de um cirurgião ao sr. Pocock necessariamente suscitaria comentários. De certo modo, isso reduziria sua situação incógnita e sua utilidade como agente, para não falar da própria segurança pessoal.
Havia também outras cartas de Sir Joseph, cartas pessoais, mas certamente com alguns trechos que exigiam igualmente decodificação literal e simbólica —, cartas nas quais Sir Joseph falava em termos velados sobre as rivalidades em Whitehall e mesmo dentro do departamento, influências ocultas agindo na Junta, procedimentos ardilosos, seus amigos e seguidores sendo transferidos ou tendo promoções negadas; e, atualmente, Sir Joseph parecia desencorajado.
O bilhete mais recente, porém, fora escrito às pressas e em outro tom: falava com veemente aprovação sobre o trabalho de uma pessoa nos Estados Unidos, que enviara notícias de que um plano, sempre adiado pelo Departamento Naval americano, seria agora posto em execução, um projeto que, em nome da concisão, foi chamado de Felicidade e que tratava das atividades americanas no Pacífico. "Não vou incomodá-lo com os detalhes já que tomará conhecimento deles a bordo da nau capitania", escreveu Sir Joseph, "mas a mim me parece que neste momento oportuno há muito a ser dito sobre a observação dos coleópteros do outro lado do mundo, até a tempestade soprar; muita coisa a ser dita sobre a busca da Felicidade".
"A caça mais fútil que já existiu", refletiu Stephen, mas só com um fragmento da mente, pois o resto dela estava tomado pelo intenso desejo de saber o que havia acontecido em Malta e a preocupação de como se justificaria para Diana no menor espaço de tempo possível antes que ela fizesse um daqueles impulsivos atos passionais tão característicos dela.
— Vocês da embarcação —, gritaram do Caledonia.
— Surprise— respondeu Bonden, e a nau capitania logo se preparou para a cerimônia de recepção de um capitão de mar e guerra.
Embora já tivesse passado muitos anos no mar, o dr. Maturin não adquirira a mínima habilidade de um marujo. Era useiro e vezeiro em cair na água entre a embarcação que o transportava e quase todo tipo de navio ou vaso da Marinha Real; também caíra entre um dghaisa{17} maltês e o maciço cais de pedra, e entre a Wapping Old Stairs e a barcaça do Tâmisa, sem falar de embarcações menos estáveis; e agora, apesar de o Caledonia ter arriado uma ampla escada de portaló, uma espécie de escada elegante, com corrimão e degraus de cabos de portaló com baeta vermelha, e ainda que o mar estivesse perfeitamente calmo, ele quase conseguiu mergulhar através da estreita abertura entre o primeiro e o segundo degraus, e de lá para baixo do casco da nau capitania. Mas Bonden e Doudle, na voga, estavam acostumados às extravagâncias de Stephen; eles o agarraram imediatamente e o colocaram de volta nos degraus, praguejando, com não mais do que uma meia rasgada e o queixo levemente esfolado.
No tombadilho, onde Jack já estava conversando com o comandante do Caledonia, viu o dr. Harrington, o médico da esquadra, que se adiantou e, após a mais cordial das saudações e algumas palavras sobre o atual surto de gripe, convidou-o a examinar dois casos de febre tifoide, os mais curiosos que já vira, ocorrendo em pares e perfeitamente simétricos.
Ainda contemplavam os pacientes cheios de pequenas manchas, quando chegou a mensagem: "poderia o dr. Maturin conceder alguns momentos ao sr. Pocock quando estivesse livre"?
No instante em que o olhar ansioso de Stephen avistou o rosto do sr. Pocock, percebeu que alguém havia cometido um erro.
— Não me diga que Lesueur não foi apanhado — observou em voz baixa, pousando a mão na manga de Pocock.
— Receio que ele tenha sido avisado da aproximação do sr. Wray — respondeu Pocock. — Sumiu sem deixar vestígios. Mas cinco cúmplices italianos ou malteses foram apanhados, e Boulay se matou antes de ser preso. Pelo menos, é o que dizem.
— Os malteses e os italianos revelaram alguma coisa ao serem interrogados?
— Ao que parece, mesmo com a maior boa vontade do mundo, nada tinham a revelar. Eram sujeitos sem importância, mensageiros e assassinos de segunda trabalhando para homens cujos nomes eram inexpressivos. O sr. Wray contentou-se com o fato de que nada puderam dizer a ele, antes de entregá-los ao pelotão de fuzilamento.
— Ele lhe entregou alguma mensagem para mim?
— Enviou as mais efusivas felicitações pelo seu sucesso e lamentou infinitamente a sua ausência, mas pediu que o perdoasse por não lhe escrever no momento, por estar um tanto quanto em mau estado, principalmente por eu ser capaz de lhe fazer um relato de sua conduta. Deplorou a fuga de André Lesueur mais do que podia expressar, mas estava confiante em que ele logo seria apanhado, já que o governo está oferecendo cinco mil libras pela sua cabeça. Também acreditava que, com a morte de Boulay, toda comunicação traiçoeira entre Malta e França chegaria ao fim.
Depois de um curto silêncio, Maturin falou:
— Parece ter alguma dúvida a respeito da morte de Boulay.
— Tenho, sim — afirmou Pocock, simulando uma pistola com os dedos e levando-os à têmpora. — Ele foi encontrado com os miolos estourados. Mas Boulay era canhoto em tudo que fazia, e a pistola foi disparada do lado direito da cabeça.
Stephen assentiu; mortes suspeitas eram um lugar-comum nos níveis mais brutais da inteligência.
— Pelo menos posso supor que a absolvição da sr.ª Fielding foi ratificada... que ela está livre de um ato importuno de qualquer espécie?
— Ah, sim — assegurou Pocock. — O sr. Wray não perdeu tempo quanto a isso. Disse que era o mínimo que podia fazer, depois do seu extraordinário esforço. Também me encarregou de informar que estava indo para casa, por terra, e colocou à disposição para qualquer serviço. Um mensageiro irá até ele esta noite.
— É muita gentileza do sr. Wray — comentou Stephen. — Talvez eu me aproveite de sua bondade. Sim. Vou confiar a ele uma carta que gostaria que a minha esposa recebesse o mais depressa possível.
Ambos meditaram por um momento, depois passaram ao assunto seguinte.
— Leu o relato oficial do comandante Aubrey sobre Zambra, é claro — disse Stephen. — Seria impróprio de minha parte comentar o aspecto naval, mas, já que me compete o aspecto político, gostaria de saber de que modo agora devemos lidar com o dei.
— Ah, nisso pelo menos me encontro em terreno mais seguro — alegou Pocock. — Com os agentes franceses em Valletta, imagino que não teria feito nada melhor do que o sr. Wray, mas o Oriente é o meu campo, e em Mascara... — Puxou a cadeira para mais perto, contorceu o rosto cabeludo e feio, formando um arco, e, com um olhar até mesmo malicioso, afirmou: — O sr. cônsul Eliot e eu planejamos o mais hábil parricídio que possa imaginar, e creio, no momento, ser capaz de prometer um novo e mais bem-intencionado dei.
— Sem dúvida — frisou Stephen —, um parricídio é obtido com muito mais facilidade, quando um homem tem muitas esposas, muitas concubinas e uma prole numerosa.
— Exatamente. Trata-se de um elemento habitual na política oriental. Mas no Ocidente ainda há um certo preconceito contra sua utilização, e talvez você tenha a bondade de não mencionar isso especificamente quando falar com o almirante. "Uma repentina mudança na dinastia" é a expressão que tenho usado.
— O sr. Wray afirmou que estava um tanto quanto em mau estado — disse Stephen, depois de fungar. — Foi apenas uma força de expressão, meramente descrevendo uma relutância em redigir novamente tudo o que ocorreu, ou se baseava em fato? É possível que tenha ficado profundamente abalado com a morte do almirante Harte no Pollux? Provavelmente devia haver mais ligação entre eles do que poderia parecer ao observador eventual.
— Ah, quanto a isso — declarou Pocock —, ele observou o luto adequado por um sogro, é claro; porém não creio que não tenha ficado mais abalado do que um pobre ao herdar subitamente trezentas ou quatrocentas mil libras, como era de esperar. Ele estava em mau estado, muito mesmo, mas me pareceu que era o efeito da extrema tensão nervosa e da exaustão espiritual, e talvez pelo calor opressivo. Aqui entre nós, colega, não creio que ele tenha uma boa dose de dignidade.
— Em todo caso, alegro-me com que ele tenha uma boa dose de dinheiro — comentou Stephen com um sorriso, pois Wray perdera uma soma absurda para ele, ao jogarem piquê{18}, dia após dia, em Malta.
— Acredita que o almirante vai querer falar comigo? Estou extremamente ansioso para chegar ao topo do rochedo, assim que cessar o vento do Leste.
— Ah, tenho certeza que sim. Há uma questão relacionada a um certo plano americano que ele deseja discutir com você. Aliás, não sei por que não nos convocou antes. Ele hoje está um pouco estranho.
Os dois entreolharam-se. Além do "plano americano", que certamente era o mencionado na carta de Sir Joseph, Stephen queria muito saber a opinião do almirante sobre a conduta de Jack na baía de Zambra; Pocock queria muito saber o que Stephen faria ao meio-dia nas alturas do rochedo de Gibraltar. Ambas as perguntas eram impróprias, mas a de Pocock era muito menos importante, e, após um momento, ele arriscou:
— Você devia ter um encontro nas alturas do rochedo, não?
— Também tenho, por assim dizer — devolveu Stephen. — Pois nesta época do ano, a não ser que haja um levantino soprando, uma fabulosa quantidade de aves passa pelo Estreito. A maioria de rapina, e elas, como tenho certeza que você sabe, geralmente escolhem a passagem mais curta sobre a água. Desse modo, temos milhares e milhares de busardos, milhafres, abutres, as águias menores, falcões, tartaranhões e gaviões fazendo a travessia num único dia. Mas não há apenas aves de rapina, outros pássaros se juntam a elas. Miríades de cegonhas comuns, é claro, mas também, segundo uma informação digna de crédito, as eventuais cegonhas negras, um pássaro que felizmente nunca observei, um habitante das florestas pantanosas do remoto Norte.
— Cegonhas negras, senhor? — Disse, admirado, Pocock, com um ar desconfiado. — Já ouvi falar em cisnes negros, mas... Bem, na ocasião devida eu lhe darei um resumo desse plano americano.
— Comandante Aubrey, senhor — disse o Yarrow —, o almirante vai recebe-lo agora.
A primeira impressão de Jack ao penetrar na grande câmara foi a de que o comandante em chefe estava bêbado. O pálido rosto coriáceo do homenzinho tinha um rosado rubor, as costas arqueadas estavam eretas, os costumeiros olhos frios e enevoados brilhavam com uma centelha de juventude.
— Aubrey, estou encantado em vê-lo — afirmou ao se levantar, debruçando-se sobre a mesa repleta de papéis, para o apertar das mãos.
"Que bom, isso foi bastante educado", pensou Jack, suavizando um pouco a expressão reservada e sentando-se na cadeira indicada pelo superior.
— Estou encantado em vê-lo — repetiu Sir Francis, e eu parabenizo pelo que considero uma vitória colossal. Sim, uma vitória, embora ninguém perceba isso, pelo seu comunicado oficial. Seu problema, Aubrey — observou o almirante, olhando-o cordialmente —, é que não é nada bom em fazer autopromoção; nem, consequentemente em fazer a minha. Sua carta —, meneou a cabeça em direção às trabalhosas páginas do comunicado que Jack deixara no dia anterior — é toda escusatória, em vez de triunfante; cheia de preocupo-me em dizer e lamento informar. Yarrow terá de dar um jeito nisso. Ele costumava redigir discursos para o sr. Addington e sabe como tirar partido de um fato. Não se trata de mentir, nem de se exibir ou de autoelogiar-se, mas apenas de evitar chamar muito a atenção para as coisas mais desagradáveis. Quando ele acabar de reformular sua carta, ficará evidente, até mesmo para o mais medíocre público de terra, que conquistamos uma vitória, evidente até mesmo para o mais medíocre dos quitandeiros que leiam jornal, e não apenas para os profissionais. Acompanha-me numa taça de espumante de Sillery?
Jack respondeu que ficaria muito feliz — justamente a coisa perfeita para uma manhã quente — e, enquanto aguardavam a garrafa, o almirante falou:
— Não pense que não lamento pelo pobre Harte e o Pollux, mas, na prática da política, um comandante em chefe sempre dará um navio gasto por um novo com a metade da potência. O dois-conveses francês era o Mars, como sabe, saído novinho da carreira. Conseguiram rebocá-lo para a proteção dos canhões de Zimbra... e o Zealous e o Spitfire o viram ali, junto com a sua grande fragata queimando até a linha d’água no recife... mas nunca mais conseguirão rebocá-lo... Mars uma ova, hein? Hein? ... Mesmo que sua traseira não estivesse rompida, o que está, porque os nossos políticos enganaram o dei.
O despenseiro, um sujeito mais atraente do que o Killick de Jack, mas ainda um marujo com brincos de ouro nas orelhas, sacou a rolha com a seriedade de um garçom londrino, e Sir Francis brindou:
— Aubrey, à sua saúde e felicidade.
— E à sua, senhor — disse Jack, saboreando o vinho frio, borbulhante e agradável — Céus, como desce bem.
— Não é mesmo? — Concedeu o almirante. — Bem, ficamos assim: proporcionalmente, levamos vantagem em pelo menos meio navio de linha e, é claro, toda a sua fragata; e o insolente dei levou na cabeça. A reformulação de Yarrow tornará isso perfeitamente claro para quem tiver a menor das percepções, e sua carta terá uma excelente aparência quando o meu despacho aparecer na Gazette. Cartas... Deus me perdoe — disse o almirante, servindo-se de mais uma taça e acenando com a mão para a montanha de correspondência —, às vezes desejo que ninguém tivesse inventado a arte de redigir cartas. Foi Tubal-Caim{19}, não?
— Foi o que eu sempre soube, senhor.
— Mas às vezes elas são toleravelmente bem-vindas. Esta aqui chegou pela manhã. — Sir Francis segurou-a, hesitou e depois disse: — Eu não tinha a menor esperança de recebê-la. Não a mencionei para ninguém. Quero que as pessoas que respeito no serviço sejam as primeiras a tomar conhecimento... Afinal, é assunto do serviço. — Entregou a carta.
Jack leu:
Caro senhor:
O enorme empenho, habilidade e entusiasmo que demonstrou durante o seu comando no Mediterrâneo — não apenas no efetivo funcionamento da esquadra sob suas ordens, mas também na organização e disciplina internas que adotou e manteve, com tal resultado para o serviço de Sua Majestade — foi visto com tamanha aprovação por sua Alteza Real, que ele graciosamente fez o favor de declarar Sua intenção de honrar o senhor com o sinal característico do favorecimento real, consequentemente, ordenaram-me que o inteirasse de que Sua Alteza Real lhe conferirá a distinção de Par do Reino da Grã-Bretanha assim que tomarmos conhecimento do título que deseja ostentar...
Sem terminar de ler, ele levantou-se e, apertando a mão do Almirante, bradou:
— Desejo-lhe felicidades de todo o coração, senhor, ou melhor, milorde, como devo chamá-lo agora... eminentemente bem merecido... isso honra todo o serviço. Estou tão feliz.
Realmente, seu rosto resplandecia um tal prazer sincero, ao permanecer ali, radiante, à frente do almirante, que Sir Francis o fitou com mais afeto do que o velho rosto endurecido havia demonstrado em muitos anos.
— Trata-se talvez de uma vaidade — disse por sua vez —, mas confesso que me agrada sobremaneira. Uma honra para o serviço, como disse acertadamente. E você é parte disso: se continuar lendo, verá que ele menciona a nossa expulsão dos franceses de Marga. Sabe Deus que não tive participação nisso... Foi uma ação inteiramente sua, se bem que, legalmente, ocorreu durante a minha época no comando; portanto, como vê, você me fez merecer pelo menos uma das bolas da minha pequena coroa, ha, ha, ha!
Terminaram a garrafa, conversando sobre coroas, imperiais e de outros tipos, folhas de morangueiro, de quem era merecedor, títulos que se originavam da linhagem feminina, e o constrangimento de ser casado com uma fidalga pelos próprios méritos.
— Isso me lembra — observou o almirante — que não pode jantar ontem a bordo por causa de um compromisso com uma dama.
— Sim, senhor — confirmou Jack —, com a sr.ª Fielding. Eu lhe dei uma carona desde Valletta. O marido, que chegou no Hecla, encontrou-se com ela aqui, e convidei os dois.
Sir Francis parecia inteirado de tudo, mas disse apenas:
— Sim, ouvi falar que ela foi a bordo do Surprise. Alegro-me com que tudo tenha acabado bem, mas em geral mulheres num navio são uma coisa muito ruim. No máximo, a esposa de um artilheiro-chefe, para cuidar dos mais modernos, talvez a de um ou dois oficiais auxiliares subtenentes, e nada mais. Além do aspecto moral, você não acredita na quantidade de água que elas gastam. Água potável, para lavar as roupas miúdas que usam, e fazem qualquer coisa para consegui-la, corrompem sentinelas, cabos da guarda, até mesmo oficiais... aliás, a tripulação inteira de um navio. Contudo espero que você possa vir amanhã. Pretendo me permitir uma pequena comemoração particular, e depois partirei de volta para o bloqueio de Toulon.
Jack disse que nada lhe daria maior prazer do que festejar tal notícia, e o almirante prosseguiu:
— Agora preciso mudar completamente de assunto. Temos uma informação de que os americanos estão enviando uma fragata ao Pacífico para atacar os nossos navios-baleeiros: o Norfolk, de 32. É comparativamente leve, como imagino que saiba, embora tenha uma artilharia muito mais pesada que a do Surprise, transporta apenas quatro canhões de longo alcance, os demais são caronada; portanto, à distância, os dois podem ser considerados parelhos. A pergunta é: um homem com o seu tempo de serviço aceitaria tal comando?
Jack controlou o sorriso de prazer que fazia de tudo para se espalhar pelo seu rosto e, ordenando ao coração que batesse mais devagar, respondeu:
— Bem, senhor, como sabe, prometeram-me o Blackwater, para combater em águas norte-americanas; mas, em vez de ficar sentado em casa, sem fazer nada, até que os senhores me arrumem um equivalente, terei prazer em proteger os nossos navios-baleeiros.
— Ótimo. Excelente. Sabia que diria isso: detesto um homem que recusa o serviço ativo em tempos de guerra. Bem —, apanhou um maço de papéis da mesa; — o Norfolk suspendeu ferros de Boston no dia doze do mês passado, mas precisou escoltar alguns navios mercantes para San Martin, Oropesa, San Salvador e Buenos Aires, por isso, espera-se que você tenha tempo de interceptá-lo antes do Horn. No entanto, se não der, terá de fazer uma perseguição e isso significa seis meses de provisões. O relacionamento com as autoridades espanholas, do jeito como andam as coisas, provavelmente será difícil, e é uma sorte você contar com o dr. Maturin. Perguntaremos a opinião dele sobre a ocasião apropriada da partida, mas, antes de ele vir, diga-me se há algum homem merecedor no Surprise. Estou com disposição de ânimo para promover homens, inclinado a espalhar a felicidade, e, apesar de promoções ao posto de capitão-tenente apto ao comando no mar estarem fora de cogitação, pode ser que haja a possibilidade de eu conceder algumas patentes de oficiais-auxiliares ou movimentar seu pessoal para navios de classe mais elevada.
— Oh, senhor, é muita bondade sua, muita benevolência — comentou Jack, terrivelmente dividido entre o senso de justiça em relação aos colegas de bordo e uma forte má vontade para enfraquecer sua tripulação. — Os meus mestre-arrais e artilheiro-chefe estão aptos para um navio de linha e tenho dois ou três jovens sargentos muito promissores, perfeitamente qualificados para serem promovidos a mestre de um navio sem classificação.
— Muito bem —, disse o almirante. — Dê os nomes ao meu assistente esta tarde, e verei o que pode ser feito.
— E, senhor — volveu Jack —, embora promoções ao posto de capitão-tenente estejam fora de questão, no presente momento, permita-me mencionar William Honey, um ajudante de navegação, que levou a notícia de Zambra para Mahón na lancha, e o Sr. Rowan, meu segundo-oficial, que seguiu para Malta no cúter.
— Não os esquecerei — assegurou o almirante. Tocou uma sineta, e quando Pocock conduziu Stephen para a câmara, falou: — Bom dia, doutor. Imagino que o senhor e o sr. Pocock estiveram estudando esse plano americano.
— Em parte, senhor. Traçamos a derrota{20} do Norfolk pela costa sul-americana do Atlântico, mas não entramos no Pacífico. Ainda não atingimos o Chile ou o Peru.
— Não — concordou o almirante. — Nem a nossa inteligência foi tão longe. Temos uma derrota razoavelmente detalhada até o Horn, e depois nada. Daí a importância de interceptá-lo antes, digamos, na altura das ilhas Falklands; não há um momento a perder. Mas antes queria a sua opinião sobre a situação política dos vários portos que devemos percorrer... se é aconselhável pararmos para recolher informações ou se enfrentaremos obstruções ou mesmo uma franca hostilidade.
— Como sabe, senhor, as possessões espanholas estão num estado de extrema confusão, mas confio em que possamos entrar nos portos de San Martin. Oropesa e, claro, no brasileiro de São Salvador. Entretanto sou muito menos otimista em relação a Buenos Aires e ao rio da Prata. Desde os primórdios, a região foi colonizada pela escória das piores regiões da Andaluzia, aos poucos substituída por alguns navios carregados com criminosos; e, nos anos recentes, os mestiços descendentes desses malfeitores semimouros têm estado sob o governo tirânico de uma série de demagogos baratos, indecentes até mesmo pelos padrões sul-americanos.
Ainda existe uma grande inimizade em relação a nós, por causa da recente batalha e da humilhante derrota deles; e como a posição de um tirano se torna um pouco menos insegura se o descontentamento puder ser direcionado a um estrangeiro, quem sabe que crimes imaginários não poderão ser imputados ao nosso povo? O que há de inventado para nos iludir o que existe de planejado para retardar o nosso avanço e que informações são enviadas por todos os modos possíveis aos nossos inimigos? A não ser que tenhamos lá um dedicado representante, não posso recomendar uma visita a Buenos Aires.
— Concordo inteiramente com a sua opinião — exclamou o almirante. — O meu irmão esteve lá quando tomamos a cidade, em 1806, e ele nunca tinha visto um lugar mais sórdido e imundo, nem um povo mais sórdido e imundo; e ele foi feito prisioneiro lá, quando um oficial francês voltou a assumir o comando... Ele foi tratado barbaramente, barbaramente. Mas não vou me alongar sobre isso. — Alcançou a pena e escreveu vigorosamente. — Aubrey, aqui está o documento com a autorização para os seis meses de suas provisões e não permita que aqueles vilões trapaceiros das docas de tanoaria deixem você ficar para lá e para cá. Como disse, não há um momento a perder.
CAPÍTULO DOIS
Era totalmente verdade que não havia um momento a perder, visto que, mesmo no espaço entre o desjejum e o jantar, o Norfolk poderia estar um grau de latitude mais distante ao Sul, se tivesse tido alguma sorte com os ventos alísios de nordeste e, desse modo, muito mais próximo da vasta extensão do Pacífico, onde facilmente conseguiria nunca mais ser encontrado. No entanto, desde o início desse estado de emergência, o comandante Aubrey foi obrigado a perder uma porção deles: momentos, minutos, horas e até mesmo dias, que escaparam para o passado e nunca mais seriam recuperados.
Em primeiro lugar, a decência comum exigiu que ele recebesse as visitas cerimoniais do sr. Gill, o mestre-arrais, e do sr. Borrell, seu artilheiro-chefe, que foram se despedir, por terem sido promovidos para o Burford de 74, e pronunciar discursos particularmente penosos, em agradecimento pela bondosa recomendação que ele fizera. Em seguida, vieram Abel Hames e Amos Day, seus gajeiros, da gávea do grande e da gávea do traquete respectivamente, o primeiro agora mestre de navio do brigue de guerra Fly, e o segundo, do Eclair, que encontraram grande dificuldade para começar a expressar sua gratidão, mas tendo começado ficaram deploravelmente embaraçados para acabar. Depois disso, ele viu todos os quatro saírem pela borda, calorosamente saudados pelos companheiros de bordo, o Berwick chegou e enviou imediatamente de volta ao escaler do Surprise, patroneado por William Honey, o ajudante de navegação que Jack despachara ao largo da costa da África para informar sobre o incapacitado dois-conveses francês, percorrendo as quatrocentas milhas razoavelmente perigosas até Port Mahón; e Honey estava tão justificadamente feliz com o seu sucesso, que seria desumano não ouvir o seu relato sobre a viagem.
Mal Honey acabou, outra embarcação miúda, do Berwick, trouxe o reverendo sr. Martin, seu capelão, um naturalista e grande amigo de Stephen, e o comandante Pullings, o ex-imediato extremamente competente de Jack, agora promovido — um comandante sem navio ou qualquer perspectiva real de conseguir um, e aliás comandante apenas por cortesia, já que a sua patente oficial (e, é claro, seu escasso meio soldo) era a de capitão-tenente. Ambos muito satisfeitos e metidos nas suas melhores roupas, vieram apresentar seus cumprimentos ao comandante Aubrey, que precisou ser chamado do porão de carga e teve de conversar bastante sobre missões anteriores realizadas em um sem-número de navios. O comandante Aubrey cumprimentou-os com um sorriso peculiarmente artificial e, assim que Martin saiu para mostrar a Stephen um argonauta{21}, um argonauta-fêmea, disse a Pullings:
— Tom, me desculpe, se pareço inospitaleiro, mas acabei de receber ordens para embarcar seis meses de provisões com a maior urgência. Gill foi transferido para o Bufford, e nenhum mestre-arrais me foi indicado, Borrell também se foi, Rowan está em algum lugar entre aqui e Malta e Maitland está no hospital para extrair um dente... Estamos com vinte e oito homens a menos do total... e, a não ser que eu faça com que aqueles malditos cães da tanoaria se mexam, ficaremos aqui até gastarmos todos os ossos da carne.
— Oh, senhor — exclamou Pullings, para quem o significado de provisões urgentes para seis meses ficou logo aparente —, é essa a questão?
— Bem, senhor —, falou o despenseiro de Jack, entrando sem qualquer cerimônia — eu preciso daquela camisa ali. — Então, vendo Pullings, seu azedo rosto de dona de casa abriu-se num sorriso; bateu com um nó do dedo na testa e disse: — É o meu tipo de serviço, senhor, e espero que esteja passando bem.
— Maravilhosamente, Killick, maravilhosamente — reagiu Pullings, apertando-lhe a mão e tirando em seguida o excelente casaco azul com as dragonas douradas. — Seja um bom camarada, dobre isto direitinho e me traga uma camisa. — E para Jack: — Se acredita que não perturbará Mowett, senhor, terei prazer em cuidar do porão de carga, do grupo de aguada ou dos apetrechos do artilheiro-chefe, como sabe, ando meio desocupado.
— Ele vai pular de alegria e lhe dar bênçãos— afirmou Jack —, e eu também, se me substituir no porão enquanto corro até aquele infernal... enquanto corro até o comandante do distrito naval e a tanoaria. Nunca houve um tal Beemonte{22} de maldade quanto naquele mestre tanoeiro. Nem no próprio Lúcifer.
Deixando o covil do Beemonte mais pobre em cinco guinéus, mas com o coração aliviado pela promessa de diligência, Jack apressou-se em direção ao portão da Waterport, agarrado a um maço de papéis que consultava de vez em quando e comentava sobre eles com o aspirante de pernas curtas que trotava a seu lado.
Até mesmo um navio de guerra de sexta classe necessitava de uma impressionante quantidade de material dos depósitos navais, pois a cada guerreiro que transportava eram fornecidas sete libras de bolachas por semana, sete galões de cerveja, quatro libras de carne de vaca e duas de porco, um quarto de galão de ervilhas, um quartilho e meio de aveia, seis onças de açúcar e o mesmo de manteiga, doze onças de queijo e meio quartilho de vinagre, sem falar do suco de lima, da necessariamente colossal quantidade de água potável para pôr de molho a carne salgada e das duas libras de tabaco por mês lunar, pelas quais, contudo, era preciso pagar à razão de uma libra e sete pence — um volume gigantesco, quando multiplicado por duzentos.
Os marujos eram. além disso, muito conservadores e bastante apegados aos seus direitos, e, apesar de abrirem mão de sua cerveja, sua parca, bem parca cerveja, aceitando felizes e até mesmo com avidez, no lugar dela, um quartilho de vinho, se estivessem no Mediterrâneo, ou meio quartilho de rum, transformado em grogue, em todas as distantes águas estrangeiras, e concordando que o pudim com frutas secas podia ser considerado equivalente à carne em determinadas ocasiões, praticamente qualquer outra mudança levaria à confusão, e comandantes sensatos evitavam inovações a todo o custo.
Felizmente Jack tinha um eficiente intendente na pessoa do sr. Adams, mas mesmo o sr. Adams não conseguia que os lacaios do escritório local da Repartição de Provisões esticassem mais pano de vela do que eles queriam; em todo caso, Jack desconfiava que o comissário e o contramestre talvez estivessem um pouco mal-humorados, um pouco menos dispostos a apressar as coisas em terra, pois Jack recomendara o mestre-arrais e o artilheiro-chefe para promoção, mas não o sr. Adams, nem o sr. Hollar.
A verdade era que o Surprise atingira um tal nível de excelência, com seus grandes canhões e caronadas, que praticamente podia prescindir de um artilheiro-chefe, mas não de quem cuidava de suas provisões; e Jack pessoalmente podia muito bem cuidar da parte dos deveres do mestre-arrais relativa à navegação (aliás, podia fazê-lo muito melhor do que o sr. Gill). Entretanto, no estágio em que se encontravam, um intendente habilidoso e relativamente honesto era de suma importância, ao mesmo tempo que um excelente mestre de navio era essencial em todas as ocasiões, principalmente agora que Jack havia perdido aqueles esplêndidos marujos, os gajeiros da gávea do grande e da gávea do traquete. Na cabeça do comandante Aubrey houvera um conflito entre a lealdade a seus companheiros de bordo e a lealdade ao seu navio; o navio vencera, é claro, mas uma certa sensação de culpa perseguia sua consciência, ainda, no mínimo, sensível a essas coisas.
Do outro lado do convento encontrou Jenkinson, o imediato oficial da capitania de Sir Francis. Até então, ele só o cumprimentara com um gesto de cabeça ou aceno de mão, nos vários momentos em que se haviam visto rapidamente, mas dessa vez parou e, após uma breve troca de amabilidades, comentou:
— Como sabe, sr. Jenkinson, o comandante em chefe foi muito gentil comigo ontem, tão gentil que preferi não mencionar que o Surprise está com vinte e oito homens a menos, o senhor acha que será possível levantar esse assunto hoje, antes de zarparmos?
— Duvido muito, senhor — retrucou Jenkinson, sem qualquer hesitação. — Duvido muito que seja oportuno. — Em termos respeitosos, ele disse que se tratava de uma questão pela qual Jack devia pelejar sozinho com o comandante do distrito naval e, tendo deixado isso bem claro, observou: — Ficou entendido que o dr. Maturin também jantará hoje na capitania, não? Creio que há mais alguns assuntos que o sr. Pocock queira traçar, e o almirante receia que o convite dele não tenha ficado muito claro. Eu pretendia passar a bordo do seu navio na volta.
— Confesso que eu não tinha entendido que o doutor havia sido convidado — disse Jack. — Mas cuidarei para que ele vá visitar Sir Francis. — Escreveu na caderneta, arrancou a folha, entregou-a ao aspirante e falou: — Calamy, corra de volta até o navio e entregue isto ao doutor, sim? Se ele não estiver a bordo, terá que encontrá-lo, mesmo que isso signifique ir até a torre de O’Hara{23}, embora o mais provável seja o hospital.
Cem metros mais adiante, Jack viu-se frente a frente com o velho amigo Dundas, do Edinburgh, um amigo que certamente não podia ser cumprimentado com um gesto de cabeça ou aceno de mão.
— Ora, Jack —, exclamou Dundas. — Você parece perturbado. O que está havendo? E por que anda por aí com um chapéu redondo e essas desprezíveis pantalonas? Se o almirante o vir, vai mandar prendê-lo por estar pouca coisa melhor do que um lojista.
— Caminhe comigo, Hen, que eu lhe explico — pediu Jack. — A verdade é que eu estou perturbado. Ontem recebi ordens para pegar provisões para seis meses e desde então ando correndo de um lado para o outro, do meio densas, lentas, cuidadosas e ardilosas criaturas, sem conseguir de modo algum me adiantar... Perdi meu mestre-arrais e o artilheiro-chefe e dois sargentos, tenho apenas um capitão-tenente a bordo... Estão me faltando vinte e oito homens. Quanto a estas roupas, é tudo o que tenho. Killick levou o resto para as lavadeiras de Gibraltar lavarem, em água doce, tudo quanto é roupa, menos o traje de gala para o jantar esta tarde com o almirante, que Deus nos ajude... Horas perdidas, me abarrotando de comida que não quero, numa ocasião em que não posso me dar o luxo de perder cinco minutos, quando me daria por feliz, em comer um pedaço de carne fria e ter pão com manteiga na mão.
— Mesmo assim — disse Dundas—, me alegro por você não estar indo para casa, para desarmar o Surprise, ou coisa pior. Posso perguntar qual é o seu destino ou seria indiscrição?
— Não me importo em lhe contar — afirmou Jack, com um tom de voz baixo —, mas gostaria que não se tornasse do conhecimento geral. Vamos proteger navios-baleeiros. E isso me faz lembrar que você sempre navegou com uma boa reserva de livros. Tem alguma coisa sobre pesca de baleia? Sou quase analfabeto no assunto.
— Do Norte ou do Sul?
— Do Sul.
— Eu tinha o livro de Colnett{24}, mas caí na besteira de emprestá-lo. Mas posso fazer algo melhor do que isso... Por Deus, Jack, posso fazer algo muito melhor. Aqui no Rochedo há um homem chamado Allen, Michael Allen, que foi mestre-arrais do Tiger até meses atrás, quando ficou inválido, um autêntico homem do mar. Certa vez fomos companheiros de bordo e não faz meia hora que trocamos um alô na Parade. Agora já está recuperado e ansioso para embarcar num navio. E ele navegou com Colnett!
— Quem foi Colnett?
— Por Deus, Jack, não sabe quem foi Colnett?
— Eu perguntaria, se soubesse?
— Ora, certamente, até mesmo você deve conhecer Colnett. Todo mundo conhece Colnett.
— Você é mesmo um tagarela espirituoso, Hen — observou Jack com um tom de voz desagradável.
— Não saber quem é Colnett. Meu Deus! Pense. É claro que você deve se lembrar de Colnett. Pouco antes da última guerra, em noventa e dois, creio eu, alguns comerciantes pediram um barco ao almirantado para procurar lugares onde navios-baleeiros do Sul poderiam se abastecer de madeira, água e se reaparelhar. O almirantado deixou que levassem a chalupa Rattler e concedeu uma longa licença a Colnett para que a comandasse. Ele havia sido um aspirante no navio de Cook e levou a chalupa para contornar o Horn e entrar no Pacífico...
— Com sua licença, Hencage — disse Jack. — Mas preciso ir ao escritório do comandante do distrito naval. Seja um bom amigo, e vá para a Richardson’s — cabeceou na direção da porta aberta de uma fresca taberna à sombra — e espere lá por mim com uma garrafa. Prometo que não vou demorar.
E não demorou. Entrou no grande salão arenoso, curvando-se sob a verga{25} da porta, o rosto naturalmente um tanto mais vermelho do que o normal e os reluzentes olhos azuis ainda mais brilhantes de raiva. Sentou-se, tomou um copo de cerveja clara e assobiou uma estrofe.
— Conhece a letra que cantam com essa música? — Perguntou, e Dundas respondeu:
— Cachorro velho, nós vamos te xingar,
Comandante do distrito naval, vá se danar.
— Exatamente — disse Jack.
Quase ao mesmo tempo, Stephen dizia a Martin:
— Com essa, são mais oito cegonhas negras; dezessete no total, creio eu.
— Isso mesmo, dezessete. — Confirmou Martin, verificando a lista sob os joelhos. — Que ave menor era aquela, mais abaixo, à esquerda?
— Apenas um limoso de cauda listrada — disse Stephen.
— Apenas um limoso de cauda listrada —, repetiu Martin, rindo prazerosamente. — O paraíso deve ser muito parecido com isto.
— Talvez um pouco menos áspero e menos angular — retrucou Stephen, cujas coxas magras repousavam sobre uma pontuda horda de calcário. — Mandeville{26} relata que o paraíso tem as paredes musgosas. Mas não vai ser por isso que eu vou reclamar — acrescentou... e de fato seu rosto, normalmente retraído e reservado, resplandecia de visível prazer.
Os dois estavam sentados empoleirados na própria crista ou cume do Gibraltar, sob um imenso e suave céu azul sem nuvens, com os rochedos cinzentos à esquerda inclinando-se quase perpendicularmente para o Mediterrâneo; à direita, ficava a distante baía com toda a sua frota de navios e, diretamente à frente, os indistintos picos da África elevavam-se de uma névoa azulada. Uma brisa suave de sudoeste refrescava suas faces, e ali, através do estreito, passava um comprido e indefinido préstito de pássaros, planando tranquilamente e sem pressa, às vezes em fila, às vezes em grupos mais compactos, mas sempre passando, o céu nunca vazio. Alguns, como os negros abutres e cegonhas, eram enormes; outros, como o cansado tagarote, pousado numa pedra a não mais que dez metros de distância, e alisando a cauda vermelha, eram bem pequenos; contudo, grandes ou pequenos, todos planavam juntos sem o menor sinal de animosidade, às vezes girando em compactas espirais para ganhar altura, mas a maioria voando bem baixo, acima da cabeça, tão baixo que, numa ocasião, eles enxergaram o olho carmesim do abutre barbudo, o laranja do milhafre.
— Eis ali outra águia-imperial — observou Martin.
— É mesmo — exclamou Stephen. — Benza-o Deus.
Havia muito tinham desistido de contar as cegonhas brancas e os vários tipos de búteos e tartaranhões, as águias menores, os milhafres e os abutres comuns, e agora se concentravam no mais raro do raro. À esquerda, além do tagarote, em uma fenda que se projetava para o mar, um falcão-peregrino sustentava o seu forte canto áspero e intermitente, possivelmente uma expressão de desejo; e, à direita, mais abaixo, podiam-se ouvir perdizes da Barbária; o ar estava repleto do odor de lavanda e lentisco e de uma centena de outros arbustos aromáticos, ardendo sob o sol.
— Ali, ali — gritou Stephen. — Abaixo das cegonhas... à direita... Aquele é um abutre de papada, meu caro senhor. Meu abutre-de-papada, finalmente. Dá para ver as pálidas coxas redondas, quase brancas.
— Que satisfação — exclamou Martin, seguindo a ave com o seu único olho, cuidadosamente abrigado da luz, e alguns minutos depois ela desapareceu. — Há uma criatura quase exatamente sobre o seu navio.
Stephen localizou-a com o seu binóculo de algibeira e falou:
— Acredito que seja uma garça, uma garça solitária. Que curioso. — Ele também localizou Jack Aubrey no tombadilho do Surprise, caminhando a passos largos para lá e para cá, como Ajax, e agitando os braços. — Ora, ele parece estar bastante irritado — murmurou, indulgente; estava acostumado à irritação dos comandantes durante o período de preparativos para uma viagem.
Mas não estava acostumado àquele grau de irritação. O comandante Aubrey acabara de receber a mensagem, entregue por um amedrontado, ofegante e corado Calamy, informando que o dr. Maturin enviava seus cumprimentos, mas "preferia não comparecer".
— Ele prefere não comparecer — bradou o comandante Aubrey. — Diabos! Mas que inferno!
— Ele disse que não pretendia mesmo jantar hoje — garganteou Calamy.
— E traz essa mensagem, menino desgraçado? Não sabe que num caso desses é preciso insistir, é preciso explicar?
— Eu lamento muito, senhor — desculpou-se Calamy
Aos doze anos de idade, Calamy era sensato o suficiente para não protestar que tinha insistido, tinha explicado, até ser realmente esbofeteado e ameaçado com coisa pior, se não fosse embora e parasse de assustar os pássaros — sua desnecessária gesticulação veemente já sobressaltara três codornizes andaluzas prestes a pousar —, e onde ele fora criado para tagarelar daquele jeito com os mais velhos? Não sabia o que era vergonha ou decência? Ele agora estava de cabeça baixa, e o comandante lhe perguntava se não sabia que um militar não podia ser dissuadido por respostas como aquelas, dadas por pessoas que, por maior que fossem o seu saber e suas virtudes, eram essencialmente civis?
Jack, porém, não era desses de se prolongar em lições de moral, e muito menos naquela ocasião, em que cada minuto contava; afastou-se, olhou de proa a popa, tentando lembrar-se quem estava e quem não estava no navio.
— Chamem o sargento fuzileiro naval James — ordenou, e para o sargento: — Escolha quatro dos seus mais velozes fuzileiros e sigam Bonden até o cume do Rochedo, com toda a rapidez. O sr. Calamy mostrará o caminho. Bonden, vá na frente e deixe clara a situação, mesmo para civis, se conseguir; de qualquer modo, quero ver o doutor aqui, às duas. Killick terá o traje número um dele pronto para vestir.
Às quatro badaladas de 12:00 às 16:00, ou duas pelos relógios da cidade, Jack estava sentado diante de um pequeno espelho em seu camarim de dormir, com um plastrão recém-lavado, do tamanho de um cutelo do joanete{27}, estendido e pronto para ser dobrado em seu pescoço, quando ouviu no convés um confuso ruído de batidas surdas e correria, seguido pela voz guinchada, indignada e rabugenta de Killick, algo como o cruzamento entre uma experiente e aborrecida ama-seca com um ajudante de mastro do traquete mascador de tabaco usando um chapéu de oleado excepcionalmente áspero, e por algumas imprecações indistintas.
Um pouco antes das cinco badaladas, ele foi ao convés, em toda a glória de um uniforme completo, com a medalha da Batalha do Nilo na botoeira da lapela, sua condecoração turca, um diamante chelengk, resplandecendo no chapéu com galões dourados, e a espada de cem guinéus do Fundo Patriótico ao lado; e ali encontrou Stephen, parecendo apertado e emburrado, no raramente usado casaco bom, uma roupa surrada, em comparação.
A baleeira da fragata estava ao lado da mesa das enxárcias{28} de boreste, a guarnição da baleeira reluzente em calças e blusas brancas e largos chapéus de palha, o patrão da embarcação do comandante de pé diante da cana do leme, com o sr. aspirante Williamson e os grumetes do costado esperando na amurada, enquanto o mestre do navio e sua faxina mantinham os apitos prontos, suspensos no ar; era tudo um escandaloso desperdício de tempo; mas desperdício altamente cerimonial, como comemorar a Restauração do rei Carlos e a Conspiração da Pólvora{29}, e era, sem dúvida, necessário para o bem das tradições da Marinha. Jack olhou em volta do porto e viu embarcações convergindo de todos os navios do rei para o Caledonia, e a baleeira do comandante do distrito naval já tinha partido da terra. Ele sorriu para Stephen, que lhe lançou um olhar implacável, e disse:
— Vamos lá, Macbeth.
Macbeth saltou instantaneamente do talabardão de bombordo, onde estava de pé ao lado do tirador de uma talha, pronto para prosseguir com as urgentes tarefas do navio, assim que a cerimônia tivesse acabado. Postado diante do comandante, com seus enormes e ossudos pés vermelhos nus e chanfrados perfeitamente juntos, tirou a boina azul e perguntou:
— Para onde, senhor?
— Não, não, Macbeth — disse Jack. — Não me referi a você; e, em todo caso, eu devia ter dito Macduff...
— Macduff, Macduff. — O grito percorreu o navio. — Sawny Macduff para o tombadilho, em acelerado.
— Parem com isso — bradou Jack. — Esqueçam. O que eu quis dizer foi: os oficiais podem ser licenciados assim que desejarem.
Sem se sentir enternecido com aquilo, Stephen foi conduzido para baixo, resmungando, até a embarcação, depois dos aspirantes, e Jack o seguiu ao som dos apitos de prata.
O súbito acesso de benevolência do comandante em chefe reunira um surpreendente número de convidados, e Stephen viu-se comprimido e entalado na ponta da mesa, entre o capelão do Caledonia e um cavalheiro vestido de preto, o qual, como se soube depois, atuava por delegação como auditor de guerra em um certo caso particularmente delicado da corte marcial. Contudo, o grupo, embora um pouco numeroso demais para estar à vontade, tinha as suas vantagens; as pessoas mais humildes ficaram separadas dos almirantes por uma compacta legião de capitães de mar e guerra, de modo que podiam conversar com tranquilidade, praticamente como se não houvesse deuses do Olimpo presentes; e logo já estavam fazendo uma excelente bulha de convívio social.
O auditor parecia ser um homem instruído, disposto a conversar, e Stephen perguntou-lhe de que modo, em um tribunal naval, poderia ser instaurado um processo por tirania e opressão, no caso de uma grande disparidade de postos hierárquicos; tomando-se um exemplo totalmente hipotético, se um obstinado comandante em chefe e seu cúmplice com grau de mar e guerra que perseguissem um subordinado inocente, deveriam ser levados diante de oficiais de mesmo nível hierárquico ou se a questão seria remetida à alta corte do almirantado, ao Conselho Privado ou ao próprio regente?
— Bem, senhor — explicou o auditor —, se a opressão foi prejudicial, e se aconteceu do mar, ou mesmo em água doce ou em terra razoavelmente úmida, a alçada sem dúvida é da corte do almirantado.
— Por favor, senhor — quis saber Stephen —, qual deve ser exatamente o grau de umidade da terra?
— Ah, muito úmida, muito úmida, creio eu. A prerrogativa do juiz lhe dá poderes para lidar com assuntos no, sobre e pelo mar, ou canais públicos, ou portos de água doce, rios, recantos e lugares entre a vazante e a enchente da maré, e sobre praias e bancos de areia adjacentes... tudo razoavelmente úmido.
Neste momento Stephen percebeu que o dr. Harrington, alguns lugares adiante da mesa, e do lado oposto, sorria-lhe, levantando uma taça.
— Uma taça de vinho com o senhor, dr. Maturin — brindou, com uma mesura cortês.
Stephen, com muito boa vontade, retribuindo o sorriso e a mesura, bebeu do vinho que um fuzileiro com respiração pesada despejara em sua taça, enchendo-a até a borda. Tratava-se do mesmo espumante que Jack havia tomado no dia anterior e desceu ainda mais agradavelmente.
— Que vinho delicioso — comentou Stephen com ninguém em particular. — Mas, sem dúvida, nada inocente — acrescentou, bebendo lentamente o resto da taça.
Por causa da confusão total que havia na fragata, ele só tinha tomado uma xícara de café no desjejum. O embrulho com sanduíches e o frasco com negus{30} frio, que ele esquecera de levar para o Rochedo, ainda continuavam em seu camarote, aos cuidados de uma crescente multidão de ratos e baratas. Costumava jantar duas horas mais cedo do que aquilo. A última parte da manhã fora intensamente frustrante, quente, poeirenta e apressada, e até aquele instante nada havia comido além de uma migalha de pão. Sentiu o efeito do vinho muito antes de a taça ser esvaziada — uma leve tontura, o débil começo de uma certa complacência, uma disposição de se deleitar com sua companhia.
— Quo me rapis{31}? — Murmurou. — Certamente isso destrói o senso de livre-arbítrio de alguém. Júpiter tornou Heitor corajoso e covarde, covarde e corajoso, ora uma coisa, ora outra, para que não houvesse mérito pessoal em seu heroísmo nem vergonha em sua fuga. De um misantropo, Baco tornou-me sociável... Mas, por outro lado, eu já havia feito uma mesura e sorriso. Executei, pelo menos, os movimentos da afabilidade, e quão frequentemente não tenho observado que a imitação gera a realidade.
Seu vizinho, percebeu então, já há algum tempo lhe falava sobre as sutis diferenças encontradas no direito inglês.
— ... ocorre quase o mesmo com os deodands,{32} os confiscos, para doação à caridade, de um bem móvel que tenha sido a causa da morte de alguém — prosseguiu. — Se um homem salta para uma carroça em movimento, por menor que este último seja, perde o equilíbrio e quebra o pescoço, a carroça e todo o seu conteúdo são confiscados pelo rei. Mas no caso de uma carroça estar totalmente parada, e um homem, ao subir nela pela roda, cair e morrer, somente a roda é confiscada. Do mesmo modo, se um navio atracado causar a morte de um homem, apenas o casco é confiscado, ao passo que, se estiver navegando, a carga também é tomada, desde que ela esteja sob o domínio do direito comum, pois em alto-mar, meu caro senhor, aplica-se um conjunto de regras bem diferentes.
— Deodands — falou a capelão à direita de Stephen. — O patrono do meu irmão, que vive em Kent, tem a concessão de todos os deodands no solar de Dodham. Ele me mostrou um tijolo que caiu na cabeça de um pedreiro, uma arma que explodiu ao disparar e um touro bastante furioso, cujo dono preferiu não fazer a indenização com um pagamento em dinheiro; e ele me falou de um outro excelente aspecto da lei... Se uma criança cai de uma escada e morre, a escada não é confiscada; por outro lado, se isso acontecer com o pai, a escada é confiscada. Ou seja, a escada torna-se um deodand no segundo caso, mas não no primeiro.
— É verdade —, confirmou o auditor. — E Blackstone explica isso com o fato de que na época da superstição papista se julgava que as crianças, por serem incapazes de pecar, não tinham necessidade de pagar o deodand com uma missa propiciatória, ou seja, a sua redenção. Porém outros estudiosos...
A atenção de Stephen ficou à deriva, até o vigário tocar na sua manga e avisar:
— O dr. Harrington está lhe dirigindo a palavra, senhor.
— Concordará comigo, colega, tenho certeza — falou alto Harrington do outro lado da mesa —, se eu afirmar que somente um, em dez de nossos homens, é morto diretamente pelo inimigo ou morre de ferimentos recebidos em batalha. Doenças ou acidentes liquidam a maioria deles.
— Certamente que sim — concedeu Stephen. — E talvez, se possa dizer que esses números sugerem a importância relativa dos oficiais combatentes e dos não-combatentes.
— Ou talvez se possa dizer — exclamou um oficial dos fuzileiros, bastante espirituoso e com o rosto bastante vermelho — que, para cada homem que o inimigo mata, os médicos matam nove! Ha, ha, ha!
— Ora vamos, Bowers, comporte-se — ralhou o almirante. — Dr. Harrington, dr. Maturin, uma taça de vinho com os senhores.
A essa altura já tinham mudado para o nobre Hermitage (pois, em homenagem à ocasião, o almirante havia praticamente despojado a sua adega no Rochedo) e, enquanto saboreava o vinho, Stephen disse a si mesmo: "Preciso me lembrar de solicitar um ajudante a Harrington".
Ele fez isso em meio à multidão alegre, rosada e farta, reunida no tombadilho e na popa, com xicrinhas de café nas mãos, durante o intervalo entre o final do jantar e a chegada das embarcações miúdas, dizendo:
— Caro colega, posso pedir-lhe que me ajude a conseguir um assistente? Em geral, como sabe, prefiro navegar sem um deles, a não ser que esteja em um navio de dois conveses, pois ajudantes de cirurgião são uns vagabundos fanfarrões e tristemente ignorantes. Mas, com a perspectiva de uma longa viagem diante de mim, sinto que vou precisar de um jovem forte com habilidade para arrancar dentes. Raramente tenho sido feliz na prática de arrancar um dente. Na minha juventude, isso era considerado muito abaixo da dignidade de um médico; nunca peguei o jeito, e recentemente tenho tido umas experiências bem desastrosas. Com tempo, é claro, consigo fazê-lo; mas frequentemente o dente sai muito mais devagar do que o paciente gostaria, e em pequenos pedaços. Se temos um barbeiro no navio, que faça isso, costumo deixar por conta dele ou, quando posso, mando o paciente para o hospital.
— Isso é estranho — comentou o dr. Harrington —, pois já vi o senhor executar todas as importantes amputações com extraordinária rapidez e aparente facilidade.
— Mas é isso que ocorre — disse Stephen. — Quem é capaz de mais, não é necessariamente capaz de menos, como costumava dizer a minha velha babá. Eu lhe ficaria muito agradecido por um jovem notavelmente hábil com as mãos.
— Para o caso de simples extração — observou Harrington —, conheço um sujeito cuja atuação o deixará abismado. Olhe. — Abriu bem a boca, inclinou-a na direção do sol e apontou. — Olhe — repetiu, apontando para uma lacuna e falando com uma voz sufocada e inarticulada, por causa da boca aberta — segundo molar, maxilar superior à direita. — Em seguida, mais para si mesmo: — Apenas cinco dias atrás, e já não há quase ferida, como vê. E ele fez isso só com os dedos; impressionante. Mas não é jovem e, para lhe dizer a verdade, Maturin —, comentou o dr. Harrington, chegando mais para perto e colocando a mão sobre a boca —, ele é um bocado charlatão. Não sei como a Junta o aprovou. Ele não parece entender muito do latim.
— Se ele consegue extrair um dente desse modo, por mim pode fazê-lo até mesmo em inglês — disse Stephen. — Por favor, onde ele pode ser encontrado?
— No hospital, e seu nome é Higgins. Mas não respondo pela sua perícia. Ele não passa de um simples curandeiro ou algo pior.
— Dr. Maturin, por favor, senhor — interrompeu um mensageiro, e Stephen foi levado embora, para a cabine do secretário, onde o sr. Yarrow e o sr. Pocock estavam à sua espera.
O sr. Pocock informou que recebera a carta do dr. Maturin para o mensageiro levá-la ao sr. Wray, e que ela fora enviada. Stephen agradeceu, observando que provavelmente muito tempo seria poupado, uma questão de verdadeira importância para ele. Então, seguiu-se um breve silêncio.
— Sinto-me um pouco constrangido em começar — disse Pocock —, já que a informação que devo transmitir me foi comunicada de uma forma intencionalmente obscura, de modo que sou obrigado a falar como se estivesse ocultando muitos dos fatos, o que, para o sr. Maturin, deverá parecer estranho e talvez até mesmo ofensivo.
— Pelo contrário— retrucou o dr. Maturin. — Se, como suponho, envolve assuntos confidenciais, prefiro conhecer apenas os detalhes que me dizem respeito. Desse modo, será materialmente impossível qualquer asneira ou inadvertência de minha parte para revelar o resto.
— Muito bem — prosseguiu o sr. Pocock. — Ao que parece, o governo enviou um cavalheiro a uma ou mais colônias espanholas da América do Sul, com uma grande quantia em dinheiro; ele viaja sob o nome de Cunningham, no paquete Danaë, no cabo da boa Esperança, um brigue bem veloz. Mas agora o ministro está muito preocupado com a possibilidade de o Danaë ser apresado pelo Norfolk. Se o Surprise se encontrar com o paquete, deverá alertá-lo do perigo e, se isso puder ser feito com pouca perda de tempo, escoltá-lo até um porto da América do Sul. Mas se isso não for possível, ou ser um porto no Leste ou na costa do Atlântico, então outras medidas precisam ser tomadas. O cavalheiro leva dois baús com dinheiro em espécie, e disso ele ficará encarregado; mas seu camarote também contém uma enorme soma em faturas, promissórias e assim por diante. Ele não sabe disso, embora eu suponha que a pessoa a quem elas são consignadas certamente deva ter recebido instruções de como encontrá-las. De qualquer modo, eis as instruções — entregou uma folha de papel —, e elas serão suficientes para o senhor retirar o pacote, E eis aqui um bilhete para assegurar que o cavalheiro ementa a situação. Pronto. Já disse tudo o que me pediram que dissesse.
Durante algum tempo, o Caledonia se enchera dos sons familiares, as batidas de pés de algumas centenas de homens nos cabrestantes e vários apitos e gritos normais no levantar de ferros de um navio. Houve uma pausa do alarido, e Yarrow comentou:
— Imagino que vão rebocar o gato antes de fisgar o peixe.
— Talvez o amarrem a um cão — rebateu Pocock.
— Eu creio que criaram um rato — retrucou Stephen —, mas como o prenderam com uma raposa vão botar as mãos num lagarto.
— Meu Deus, que jargão as pessoas honestas têm inventado, palavra de honra — exclamou Pocock, rindo pela primeira vez com entusiasmo desde que Stephen o conheceu. — Os seus termos são autênticos?
— São, é claro — afirmou Stephen. — E há também cães de caça em algum lugar dos mastros.
— E também o meu gato e o peixe — disse Yarrow. — Ainda ontem o mestre me explicou o seu significado, além de também mencionar cavalos, golfinhos, moscas, abelhas, uma verdadeira arca, ha, ha, ha! [*
*] no original em inglês, respectivamente: cat (aparelho do turco de ferro), fish (labareiro), dog (linguete), mouse (barbela), fox (recesso, ressalto no costado onde é estivada a âncora), lizard (sapatilho), hounds (romã), horse (estribo), dolphin (cabeço de amarração), fly (rosa dos ventos) e beesblock of the bowpriz (concha do gurupé). (N. do E.).
— Com sua licença, senhores —, interrompeu o primeiro-oficial da capitania à porta, e imediatamente todos os três civis pararam com os risos —, o almirante aguarda sua visita.
A embarcação do Surprise há muito tinha transportado o seu comandante, a guarnição tinha retornado às suas tarefas, e a escada de portaló da nau capitânia também sumira. Da segunda coberta, Stephen contemplou a íngreme e perigosa descida, o mar impaciente, agitado pela refrescante brisa do Sudoeste, e a pequena barca do porto, guarnecida por dois estranhos anfíbios, balouçando lá embaixo como uma rolha. Ele hesitou, e Pocock, que compreendia muito bem sua hesitação, sugeriu:
— Se der um passo para baixo, agarrar a minha mão, enquanto o sr. Yarrow segura a outra, firmando-se por sua vez nessa argola, acredito que poderemos avançar juntos, numa espécie de corrente humana, sem muito risco.
Foi talvez uma cena ridícula, mas serviu ao seu propósito, e enquanto a nau capitânia, à bolina{33} cerrada com amuras a boroeste, deslizava esplendidamente em direção a Europa Point{34}, largando pano atrás de pano, a barca do porto entregava o dr. Maturin ao extremamente atarefado Surprise, praticamente seco da cabeça aos pés, seu relógio ainda funcionando (este geralmente sofria quando o dono caia no mar), e os curiosos documentos com letra apertada, que acabara de receber, imaculados, livres da ação da água salgada. Rastejou para bordo pela escada de popa e viu-se no meio de uma intensa atividade.
Jack já trocara suas belas roupas e estava de pé ao lado do cabrestante, gritando ordens para aqueles que estavam para recolher dois quartéis de amarras do navio a barlavento, ao mesmo tempo que homens sírios e concentrados corriam de cada lado dele, ao longo dos talabardões, para baixo, no convés entre castelos e por todo o castelo de proa.
— Aí está você, doutor — bradou, ao avistar Stephen. — Lamento por tê-lo desertado mas, sabe como é, temos de colher os botões de rosas enquanto podemos. Estamos suspendendo para Dirty Dick’s... para pegar sebo, carvão, breu, alcatrão de Estocolmo... Portanto, se tiver algo a fazer em terra, o momento é este. Sem dúvida, já providenciou o seu baú de medicamentos, sopa desidratada{35}, talas e assim por diante, não?
— Preciso ir imediatamente ao hospital —, disse Stephen. E assim o fez logo que a fragata tocou no cais.
— Por favor, dr. Edwardes — perguntou ao médico-chefe —, sabe quem é o sr. Higgins?
— Conheço um sr. Higgins que nos ajuda de vez em quando, extraoficialmente, sempre que temos algo para ele fazer. O sr. Oakes frequentemente o utiliza para extração de dentes, o que, aqui entre nós, deixa o barbeiro bastante aborrecido. Mas ele parece ter um verdadeiro dom para isso. E corta calos também — disse, soltando uma risada de desdém. — Se está precisando dos serviços dele, ele já fez uma extração em ninguém menos do que o dr. Harrington. Mandarei chamá-lo. No momento está trabalhando na lavanderia.
— Prefiro vê-lo em ação. Não o chame, por favor. Conheço o caminho.
Mesmo que Stephen não conhecesse o caminho, o som do tambor o teria guiado. Abriu a porta da lavanderia no momento em que as batidas começaram a ficar mais rápidas e viu o sr. Higgins, em mangas de camisa, debruçado sobre um marinheiro, enquanto um banco repleto de outros pacientes observava com extrema e aflita atenção. A batida do tambor tornou-se mais rápida, mais alta, e mais alta ainda; o marinheiro articulou um guincho sufocado, involuntário, e Higgins ergueu-se, o dente na mão. Todos os pacientes soltaram um suspiro de alívio e, ao se virar, Higgins viu Stephen parado ali.
— A que devo a honra, senhor? — Perguntou com uma reverência muito respeitosa, pois de imediato reconhecera o uniforme de Stephen; o casaco de um cirurgião de modo algum era tão suntuoso quanto o de um comandante, mas, para um assistente de cirurgião desempregado, parecia infinitamente mais interessante, já que quem o vestia podia estar precisando de um ajudante.
— Por favor, senhor, prossiga — pediu Stephen. — Eu gostaria de olhar.
— Peço perdão pelo barulho de feira, senhor— disse Higgins com uma risada intranquila, ao mesmo tempo que providenciava uma cadeira para o dr. Maturin. Ele era um rijo homenzinho de meia-idade, com o cabelo cortado rente, e seus modos de bem-educada afabilidade contrastavam estranhamente com o rosto sujo e a barba por fazer.
— De modo algum, de modo algum — falou Stephen. — Qualquer estrondo em benefício do paciente é legítimo, se não louvável. Eu mesmo já usei tiros de canhão.
Higgins catava nervoso e talvez isso tenha afetado o seu estilo, mas mesmo assim seu desempenho foi notável. Logo que se certificou do dente que devia extrair, fez um sinal com a cabeça para o tocador do tambor — havia um excelente entendimento entre eles — e, quando as batidas começaram, curvou-se sobre o paciente, passou a falar alto em seu ouvido, puxar os seus cabelos ou beliscar a bochecha, com uma das mãos, enquanto com a outra manipulava a gengiva e o dente. Em seguida, com outro gesto de cabeça, o tambor tocou furiosamente e, à altura de um crescendo, com os sentidos do paciente anestesiados, ele passou a usar a força necessária, ora com o fórceps, ora somente com os dedos, com gestos suaves, eficientes e experientes.
— Sou o cirurgião do Surprise — começou Stephen, depois que os pacientes se foram, todos agora radiantes, cada qual com um lenço limpo pressionado ritualmente ao rosto.
— Ora, senhor, todos aqui da equipe médica conhecem o dr. Maturin — exclamou Higgins —, e as valiosas publicações do dr. Maturin — acrescentou com certa hesitação.
Stephen fez uma vênia e prosseguiu:
— E estou à procura de um assistente com habilidade em cirurgia dental. O dr. Harrington e meu colega de bordo, o sr. Maitland, falaram muito bem de seus talentos, e eu mesmo acabo de vê-lo operando. Se quiser, posso pedir ao comandante Aubrey que o contrate para servir ao navio.
— Eu ficaria por demais feliz em servir sob suas ordens, senhor — declarou Higgins. — Posso perguntar qual o destino do Surprise?
— Isso ainda não foi revelado publicamente — respondeu Stephen — Mas acredito que seja para o outro lado do mundo. Tenho ouvido mencionar a Batávia.
— Oh! — Fez Higgins, sua exultação momentaneamente reprimida, pois a Batávia era mais do que notoriamente insalubre, ainda pior do que as Índias Ocidentais, onde a tripulação inteira de um navio podia morrer de febre amarela. — Mesmo assim, ficarei feliz, com a perspectiva de fazer a minha fortuna em um navio comandado por tão famoso capturador de presas.
Era verdade. Em sua carreira, Jack Aubrey apresara uma porção de navios, tantos que na Marinha era chamado de Jack Sortudo. Como o jovem comandante do pequeno e canhestro brigue Sophie, de quatorze canhões, ele enchera o porto de Port Mahón com navios mercantes franceses e espanhóis, pilhando o comercio inimigo do modo mais renhido; e, quando uma fragata-xaveco de trinta e dois canhões chamada Cacafuego foi enviada em uma missão especial para pôr fim às suas atividades, ele também a capturou, acrescentando-a ao resto.
Depois, como comandante de uma fragata, apreendera, entre outras coisas, um navio de valores espanhol e, dentre as presas mais ricas que havia no mar, recebera uma grande parte dos espólios da ilha de Mauritius, juntamente com os seus mercantes das Índias recapturados. Na verdade, o almirantado tomara o tesouro espanhol de Jack, sob o pretexto de que a guerra não fora declarada oficialmente, ao mesmo tempo que, com sua ingenuidade, ele possibilitara que vários compatriotas desonestos o trapaceassem em relação a uma grande parte da fortuna da ilha de Mauritius, e isso envolveu também o que sobrara de sua fortuna, de modo que nem ele, nem seus advogados conseguiam saber se ele conseguiria ficar com alguma parte dela; apesar disso, continuava a manter a aura de Sortudo Jack Aubrey, como também o apelido.
O sr. Higgins não estava sozinho no desejo de tornar-se rico. Quando se espalhou a notícia da perspectiva de uma longa viagem para o Surprise, muita gente ofereceu-se para ir junto, pois, naquele estagio da guerra, apenas as fragatas podiam ter a esperança de um daqueles gloriosos encontros nos quais um homem poderia obter em apenas uma tarde o equivalente a um ano de salário. Ao mesmo tempo, um grande número de parentes e outros conhecidos demonstraram uma forte inclinação para colocar seus filhos no tombadilho de um dos mais destacados comandantes de fragatas — um homem com uma extraordinária folha de serviço e conhecido por seu carinho em formar aspirantes à Marinha —, um forte desejo de enviá-los paira a bordo do Surprise, mesmo se este fosse para os fétidos pântanos repletos de febre de Java.
Quando Jack comandou o navio pelo Mediterrâneo, praticamente não foi importunado, porquanto era sabido que se tratava apenas de um comando interino, para uma ou duas missões específicas; entretanto, mesmo agora que a história era diferente (pelo menos em determinado nível), não era o caso de uma daquelas longas comissões durante as quais ele podia se dedicar à formação de jovens cavalheiros.
Com uma sorte razoável, poderia interceptar o Norfolk bem antes do cabo Horn, e, ainda que não o fizesse, esperava estar de volta dentro de poucos meses; teria, portanto, recusado todos os rapazes, se não fosse pelo fato de ele mesmo ter um filho, o jovem George, cujo futuro havia assegurado ao fazer com que vários comandantes prometessem aceitá-lo a bordo quando chegasse o momento certo; e agora, quando esses comandantes ou os seus parentes próximos lhe pediam que fizesse a mesma coisa, não poderia de modo algum recusar. Nem podia, com toda a honestidade, alegar a insalubridade da Batávia, porque sabia muito bem que não ia para lá — essa história era um leve artifício da parte de Stephen, visando a disfarçar suas intenções dos prováveis agentes estrangeiros no ou próximo ao Rochedo e de certos navios neutros que subiam e desciam o estreito, geralmente atrás de provisões e mexericos.
O resultado foi que ele agora tinha quatro garotos, além de Calamy e Williamson, quatro crianças alegres, razoavelmente limpas, filhos bem-educados de famílias do mar, mas, ainda assim, uma pesada provação para ele.
— Sabe de uma coisa? — Comentou com Stephen em um de seus raros encontros na cidade, quando foram comprar cordões, resina e pautas musicais. — Vou ter de contratar um mestre-escola para o navio. Com Calamy e Williamson, são seis os pirralhos e, embora eu possa lhes ensinar navegação quando as coisas estiverem mais calmas e dar-lhes umas boas palmadas quando necessário, parece-me uma coisa vergonhosa e indigna soltá-los no mundo sem uma noção de história, de francês ou de hic haec hoc{36}. A marinharia é uma boa coisa, mas não é a única qualidade de que precisam, principalmente em terra, e eu mesmo frequentemente sinto falta desse tipo de educação.
Como gostaria de ser como esses sujeitos capazes de redigir uma elegante carta oficial, tagarelar em francês e fazer citações em latim, ou mesmo, com a ajuda de Deus, em grego... sujeitos que sabem quem foi Demóstenes e John o’Groats. Você é capaz de me desconcertar imediatamente com uma citação retórica em latim. E não é nada bom mandar um menino normal e saudável sentar-se sozinho com o seu Polite Education, de Gregory, ou o Abridgment of Ancient History, de Robinson. A menos que ele seja um prodígio como St. Vincent ou Collingwood, precisa de um mestre-escola para orienta-lo.
— Receio que os seus oficiais de Marinha não tenham a literatura em tão alta conta — observou Stephen. — Se bem que certamente tenho conhecido alguns simplórios do mar capazes de conduzir seus navios às Antípodas{37} e voltar com suas velas belamente ajustadas, mas são incapazes de fazer um relato oral coerente de seus procedimentos, e ainda menos por escrito. Isso é vergonhoso.
— Exatamente, e é isso que eu quero evitar. Mas os dois mestres-escola que andei vendo são meros matemáticos e, além do mais, dois desgraçados beberrões.
— Já pensou em convidar o sr. Martin? Ele não é muito bom em matemática, embora eu acredite que agora entenda os fundamentos da navegação; mas fala muito bem o francês, seu latim e grego são o que se poderia esperar de um vigário, e é um homem de vasta leitura. Está infeliz no seu navio atual, e quando lhe disse que íamos para o outro lado do mundo... pois não fui mais exato do que isso... ele disse que daria as orelhas para ir conosco. Sim, "eu daria as minhas duas orelhas" foi a expressão que usou.
— Ele é um vigário, claro, e os marujos acham que essa gente dá azar — lembrou Jack, refletindo. — E a maioria dos vigários que se fazem ao mar gosta muito de rum. Mas o pessoal está acostumado com o sr. Martin; gostam dele como homem. Eu também, claro, pois ele é um companheiro distinto... e eles gostam de ter um culto religioso regularmente. Nunca embarquei um vigário de livre e espontânea vontade, mas Martin é diferente. Sim, Martin é bem diferente. Pode ser cheio de si, mas nunca força a gente a engolir alguma coisa; e nunca o vi bêbado. Se ele estava falando sério, Stephen, por favor diga-lhe que a transferência é possível e que eu ficaria muito feliz em ter a companhia dele, no lado mais distante do mundo.
"O lado mais distante do mundo", repetiu para si mesmo, sorrindo, enquanto caminhava na direção do velho molhe.
No outro lado da rua, ele viu uma jovem mulher notavelmente bela. Um rosto bonito sempre atraía rapidamente o olhar do Jack, mas ela o tinha avistado antes e o olhava com particular interesse. Não era certamente uma das muitas prostitutas de Gibraltar (embora os pensamentos dela fossem realmente lúbricos) e, quando seus olhos se encontraram, a moça baixou o olhar com recato, mas sem deixar intimamente de esboçar um sorriso discreto. Teria sido aquele primeiro olhar insistente um sinal de que de ele não seria repelido energicamente, se a abordasse? Não tinha certeza, embora ela não parecesse uma mocinha inocente. Mais jovem, quando enfrentava qualquer desafio que se apresentava e também os que não se apresentavam, ele teria atravessado a rua para descobrir, mas agora, como um capitão de mar e guerra com um compromisso a cumprir, permaneceu na sua própria calçada e apenas lhe endereçou um penetrante olhar de aprovação quando passaram um pelo outro.
Uma excelente jovem de olhos negros, e havia algo diferente no seu modo de andar, como se ela estivesse um pouco rija, de cavalgar. "Talvez eu volte a vê-la", pensou, e nesse momento foi saudado por outra jovem, não tão bonita, mas bem rechonchuda e animada: era a sr.ª Perkins, que costumava navegar com o capitão Bennet no Berwick quando o capelão do navio não se encontrava a bordo. Apertaram-se as mãos, e ela lhe disse que "Harry esperava que o velho e carrancudo vigário tirasse uma longa, longa licença, para eles poderem novamente escoltar o comercio do Smyrna pelo Mediterrâneo, por entre todas aquelas deliciosas e adoráveis ilhas". Mas quando ela o convidou para jantar com eles, Jack foi obrigado a recusar; infelizmente não estava em seu poder, pois já tinha um compromisso. Aliás, naquele mesmo instante teria de sair correndo como uma lebre.
Heneage Dundas era o compromisso, e eles jantaram juntos, muito à vontade, num pequeno aposento do andar de cima do Reid’s, olhando para a Waterport Street e fazendo comentários sobre seus amigos e conhecidos quando estes passavam lá embaixo.
— Lá vai o imbecil do Baker — comentou Dundas, acenando com a cabeça em direção ao comandante do Íris. — Ele ontem esteve a bordo do meu navio para levar um dos meus tripulantes, um homem do castelo de proa chamado Blew.
— Por que ele fez isso? — Indagou Jack.
— Porque veste a guarnição de sua baleeira com todas as cores do arco-íris e gosta que tenham nomes apropriados. Ele já tem um Green, um Brown, um Black, um White, um Gray, e até mesmo um Scarlet, e ansiava pelo azul do meu John Blew. Ofereceu-me um canhão de nove libras de bronze, que havia tomado de um corsário francês. Alguém deve ter dito a ele que Íris significa arco-íris em grego — acrescentou Dundas, vendo que Jack parecia intrigado, se não com um perfeito ar ignorante.
— É mesmo? — Disse Jack. — Eu não fazia ideia, mas talvez ele soubesse disso antes. É um sujeito bastante instruído e ficou na escola até os quinze anos. O que será que ele faria, se tivesse o Amazon? — Perguntou, dando uma gargalhada — Mas detesto esse modo de ridicularizar os homens, sabe. Ele está acenando para alguém deste lado da rua.
— Para a sr.ª Chapel — informou Dundas —, a esposa do chefe dos serventuários. — E, após uma pausa, exclamou: — Olhe! Lá está o homem de quem lhe falei, Allen, que sabe tudo sobre pesca de baleia. Mas imagino que já tenha falado com ele.
— Eu, não — negou Jack. — Mandei procura-lo onde estava alojado, mas ele não estava lá. O pessoal da casa disse que tinha ido a Cádiz por uns dias. — Enquanto falava, olhava atentamente para Allen, um homem de meia-idade alto e aprumado, com um rosto bem marcado, que vestia o uniforme comum de um mestre-arrais da Marinha Real e, quando ele tirou o chapéu para um oficial mais antigo, um capitão tenente de meros vinte anos, Jack viu que seus cabelos eram grisalhos. — Gostei da aparência dele — declarou. — Meu Deus, como é importante ter um grupo bem variado de oficiais, homens que entendem de seu ofício e não reclamam.
— Claro — concordou Dundas. — Faz toda a diferença entre uma missão feliz e outra infeliz. Você já conseguiu resolver algo em relação aos seus capitães-tenentes?
— Sim, já — respondeu Jack —, e creio que solucionei o problema. Tom Pullings sugeriu graciosamente seguir como voluntário, como imaginei que faria; e, mesmo que Rowan não se junte a ele vindo de Malta, antes de partirmos, posso colocar Honey ou Maitland como interino; afinal de contas, nós dois, antes da idade deles, fomos tenentes interinos e cumpríamos quartos.
— Que tal o Comandante de distrito naval e seu jovenzinho?
— Eu me recuso terminantemente a ter aquele afetado desprezível no meu tombadilho — bradou Jack — O comandante do distrito naval que se dane.
— Gostaria de ver você dizendo isso para ele, ha, ha, ha! — Observou Dundas.
Felizmente, não houve necessidade disso. Assim que Jack entrou na sala do almirante Hughes, este exclamou:
— Oh, Aubrey, receio que vá desapontá-lo em relação ao jovem Metcalf. A mãe dele lhe conseguiu um posto na Guarda Nacional Marítima. Mas sente-se, sente-se, você parece exausto. — E, estava mesmo. Jack Aubrey era um homem alto e robusto, e o trabalho de movimentar os seus cem quilos pelo reverberante Rochedo banhado de sol desde o amanhecer até o anoitecer, e mais além, tentando apressar lentos oficiais a uma movimentação igualmente rápida, estava se manifestando nele. — Por outro lado — continuou o almirante —, tenho exatamente o mestre de que precisa. Ele navegou com Colnett... Sabe a respeito de Colnett, Aubrey?
— Ora, senhor, acredito que a maioria dos oficiais que se dedica à sua profissão está razoavelmente inteirada do comandante Colnett e do seu livro — retrucou Jack.
— Navegou com Colnett — repetiu o almirante, assentindo — e é um marujo de primeira, de acordo com qualquer padrão. — Tocou um sino. — Peça ao sr. Allen que entre — disse ao atendente.
Ainda bem que Dundas falara elogiosamente de Allen, caso contrário, Jack o teria tratado com pouco caso. Allen não fazia justiça a si mesmo. Desde a juventude Jack era uma pessoa aberta, amistosa, que esperava agradar e ser agradado e, embora não fosse de modo algum atrevido ou superconfiante, não era dado ao acanhamento; portanto, achava difícil conceber que a emoção ainda fosse capaz de deixar paralisado um homem de cinquenta anos ou mais, enchendo-o de uma reservada frieza, de modo que não reagia a nenhuma sugestão cortês, não sorria nem falava, a não ser para responder a uma pergunta direta.
— Muito bem. Então é isso — falou o Almirante, que parecia igualmente decepcionado. — O sr. Allen vai embarcar, assim que sua ordem for expedida. O seu novo a artilheiro-mestre já deve ter se apresentado. Isso é tudo; não vou detê-lo por mais tempo. — Tocou o sino.
— Desculpe-me, senhor — disse Jack, levantando-se —, mas ainda há a questão da guarnição. Estou com um número reduzido, bastante reduzido do meu total. E também, é claro, há o caso do capelão.
— Guarnição? — Exclamou o almirante, como se fosse a primeira vez que ouvia tocar no assunto. — O que espera que eu faça em relação a isso? Não posso movimentar o pessoal que está em terra. Não sou o maldito de um Cadmus{38}.
— Ah, não, senhor —, bradou Jack, com a mais profunda sinceridade. — Nunca pensei que fosse.
— Bem —, fez o almirante, um pouco mais apaziguado. — Venha me ver amanhã. Não. Amanhã, não. Vou tomar remédio. Depois de amanhã.
Allen e seu novo comandante saíram para a rua.
— Então o verei amanhã, sr. Allen? — Perguntou Jack, parando na calçada. — Que seja bem cedo, por favor. Estou muito ansioso para me fazer ao mar o mais depressa possível.
— Com sua permissão, senhor — pediu Allen —, prefiro ir para bordo imediatamente. Se eu não cuidar da estiva da carga do porão desde o início, nunca saberei onde estão as coisas.
— É verdade, sr. Allen — bradou Jack —, e o alvaçuz{39} de proa está precisando de bastantes cuidados. O Surprise é um excelente navio, não há melhor navegador à bolina na Marinha. Pode até mesmo superar o Druid ou o Amethyst com os joanetes do grande à bolina cerrada, mas precisa ser trimado{40} adequadamente para dar o melhor de si. O navio apopado{41} é equivalente a meia fiada de chapas, e nada exercendo pressão sobre o pé da roda de proa.
— Entendo, senhor — disse Allen. — Estive conversando com o sr. Gill no Burford, e ele me disse que não conseguia descansar direito no seu beliche, só de pensar nesse velho pique de vante{42}.
Agora que estavam ao ar livre, cercados por uma grande quantidade de gente e falando sobre assuntos de grande importância para ambos, como a tendência do navio de orcaçar{43} e os efeitos prováveis de se reforçar a sua estrutura, o retraimento de Allen cessou e, enquanto seguiam na direção do navio, ele falou:
— Senhor, posso lhe perguntar o que significa Cadmus?
— Bem, quanto a isso, sr. Allen — disse Jack —, talvez não fique bem para mim dar-lhe a definição assim num lugar público, com senhoras por perto. Talvez fosse melhor o senhor consultar o Domestic Medicine, de Buchan{44}.
Foram recebidos a bordo por um Mowett mais perturbado do que o habitual. O intendente recusara-se a aceitar um grande número de barricas com carne, que já haviam feito duas vezes a viagem de ida e volta às Índias Ocidentais; disse que estavam com peso de menos, e muito, muito velhas para consumo humano, e Pullings tinha ido Escritório de Gêneros para ver o que poderia ser feito. O dr. Maturin jogara os seus tabletes de sopa desidratada no mar, sob a alegação de que não passavam de uma cola comum, uma impostura e um péssimo produto; e o cozinheiro do comandante, que acusara, irrefletida e falsamente, o despenseiro do comandante de ter vendido o vinho de Jack por trás dos panos e, apavorado com o que Killick lhe faria assim que estivessem no mar, desertara e rumara para o exterior com um cargueiro da Guiné.
— Mas pelo menos, senhor, o novo artilheiro-chefe se incorporou e acredito que vai ficar contente com ele. Seu nome é Horner, oriundo do Belette, e serviu sob o comando de Sir Philip. Conhece toda a teoria sobre artilharia, isto é, tem os nossos conceitos, senhor. No momento está no paiol. Devo mandar chama-lo?
— Não, não, Mowett, não vamos incomodá-lo por enquanto — alegou o comandante do Surprise, olhando ao longo do convés do seu navio, que mais parecia ter saído de uma batalha particularmente dilacerante, com gêneros, cordame, vergas, toros e pano de vela jogados aqui e ali, amontoados.
A desordem, porém, era mais aparente do que verdadeira, e, com um mestre-arrais eficiente, já atarefado no porão (pois o sr. Allen havia desaparecido quase que imediatamente) e um artilheiro-chefe treinado por Broke já ocupado no paiol, não era impossível que o navio se fizesse ao mar a tempo, sobretudo se Jack conseguisse convencer o almirante Hughes a lhe conseguir mais tripulantes.
Ao olhar, viu uma figura familiar aproximar-se pelo talabardão de vante, a ampla e contente sr.ª Lamb, a mulher do carpinteiro, carregando um cesto e um par de galinhas amarradas pelos pés, programadas para fazer parte do suprimento particular dos Lamb para a viagem. Mas ela vinha acompanhada por outra figura, de certa forma familiar, mas nem ampla, nem contente, a jovem que Jack vira na Waterport Street. Estava perfeitamente ciente do olhar do comandante concentrado nela e, ao subir a bordo, fez uma ligeira mesura antes de seguir a sr.ª Lamb para baixo, pelo escotilhão de vante, segurando seu cesto de um modo particularmente recatado e submisso.
— Quem é essa? — Perguntou Jack.
— A sr.ª Horner, senhor, a esposa do artilheiro-chefe. E aquele é o leitão dela, logo à ré do novo galinheiro.
— Meu Deus! Não está dizendo que ela vai viajar conosco, está?
— Ora, senhor, vai, sim. Quando Horner pediu, eu lhe dei permissão imediatamente, ao lembrar o que o senhor disse sobre termos alguém para cuidar de todos esses meninos. Mas se cometi um erro...
— Não, não — disse Jack, sacudindo a cabeça.
Ele não podia desautorizar o seu imediato, e, em todo caso, a presença da sr.ª Horner estava perfeitamente de acordo com os costumes da Marinha, embora suas formas não estivessem. Seria tirania e opressão mandá-la de volta à terra, agora que já havia se instalado, e isso significaria navegar com um artilheiro-chefe inteiramente descontente.
O comandante Aubrey e o dr. Maturin, no âmbito particular, jamais comentavam sobre os outros oficiais, os colegas de Maturin de camarote ou da praça d’armas, conforme fosse o caso; quando, porém, Stephen foi à cabine de Jack, à noitinha, para a habitual ceia de queijo tostado e uma ou duas horas de música — ambos eram músicos dedicados, se bem que não muito bem-dotados e, por sinal, a amizade dos dois começara em um concerto em Minorca durante a última guerra —, a regra não impediu que Jack lhe dissesse que o amigo comum Tom Pullings ia, mais uma vez, navegar com eles, como voluntário. Jack não propusera isso, sequer o insinuara, embora fosse excelente do ponto de vista do navio; mas, de fato, fora um lance perfeito, aprovado por todos os amigos de terra de Pullings. Não havia a menor possibilidade de ele comandar um navio num futuro imediato, e, em vez de ficar sentado na praia, abatido, durante o próximo ano ou mais, ele teve sensibilidade bastante para seguir em uma viagem que lhe daria muito mais força para reivindicar uma comissão, quando retornasse, sobretudo se a viagem fosse bem-sucedida.
— Em Whitehall, eles adoram a dedicação — observou Jack —, principalmente quando isso não lhes custa nada. Lembro-me que quando Philip Broke foi promovido a mar e guerra, ao largar o terrivelmente velho Shark e ser deixado em terra, formou uma espécie de milícia com os arrendatários do seu pai e os treinava dia e noite; logo o almirantado lhe deu o Druid de 32, um navio extremamente veloz. Tom não tem camponeses para treinar, mas o fato de proteger nossos navios-baleeiros mostra igual dedicação ou até muito mais.
— Não espera nenhum inconveniente em ter a bordo dois capitães-tenentes com antiguidade para serem imediatos do navio?
— Esperaria em outro navio e com outra tripulação, mas Pullings e Mowett navegam juntos desde meninos... São amigos íntimos. Eles vão entrar num acordo.
— Creio ter ouvido dizer que o imediato é aquele que é casado com o seu navio; portanto, isso será um exemplo de poliandria.
— O que disse, irmão?
— Refiro-me a uma pluralidade de maridos. Lemos que no Tibete uma mulher se casa com vários irmãos, ao passo que, em algumas partes da Índia, é considerado abjeto se os maridos têm algum grau de parentesco.
— Um excelente rum vai bem em ambos os casos — falou Jack, refletindo —, e não acho que devo me preocupar muito com isso. — Ao afinar o violino, a imagem da sr.ª Horner surgiu em sua mente, e ele acrescentou: — Espero sinceramente que este seja o único caso de poliandria que veremos durante esta missão.
— Não sou partidário disso — observou Stephen ao apanhar seu violoncelo. — Nem mesmo de uma pluralidade de esposas. Mas há momentos em que me pergunto se seria possível uma relação satisfatória entre homens e... — Ele se conteve, e prosseguiu. — Afinal, falou com o comandante do distrito naval sobre o sr. Martin?
— Sim, falei. E sobre os tripulantes que nos estão faltando, pelo amor de Deus. Vou vê-lo novamente depois de amanhã.
Levantou o arco, bateu três vezes com o pé no assoalho, e ambos então, na terceira batida, atacaram a sua frequentemente executada, mas sempre renovada peça de Corelli em dó maior.
— Bem, Aubrey — disse o comandante do distrito naval, quando um calorento e exausto comandante Jack entrou em seu gabinete, na hora marcada, depois de ter corrido todo o caminho desde a fábrica de cabos e seu excepcionalmente obstinado superintendente —, acredito que solucionei o seu problema, e ao mesmo tempo decidimos fazer-lhe uma grande homenagem.
Ao longo de sua vida Jack já fora passado para trás por mais de um trapaceiro, em terra, os quais, com uma facilidade deplorável, o privaram do seu dinheiro de presas, ganho com grande dificuldade e perigo, mas em questões que se relacionavam ao mar ele era muito mais esperto e por isso não deu crédito algum ao ar de sorridente benevolência do almirante.
— Como deve saber — disse o almirante —, tem havido uma enorme quantidade de problemas no Defender. —Jack sabia disso muito bem: o Defender, um navio pessimamente comandado e completamente desventurado, estivera próximo de um motim ao largo de Cádiz. — Pensou-se em trazer os desordeiros para cá, para uma corte marcial: estão todos no navio-prisão Venus. Mas alguém alegou que o julgamento seria muito demorado, e o Ministério não está nada disposto a ver mais notícias nos jornais sobre desordens na Marinha, levando um dos cavalheiros presentes a sugerir: "Mandem todos para o comandante Aubrey! Aubrey é o homem indicado para situações desse tipo. Não há nada como um navio em perfeita ordem para reformar as nossas ovelhas desgarradas, como costumava dizer Sr. Vincent, quando enviava tripulantes empedernidos para Collingwood". Eis a relação deles.
Jack pegou-a, com uma atitude fria e desconfiada. Após um instante. Exclamou:
— Mas são praticamente marinheiros de primeira viagem, senhor!
— Imagino que sim — rebateu o almirante, indiferente. — O Defender fez recentemente um recrutamento. Mas qualquer um é capaz de empurrar a barra de um cabrestante e passar o lambaz{45} no convés; todo navio precisa de homens de marujos recrutados.
— E não há um número suficiente para completar o total da tripulação do Surprise —, frisou Jack.
— Não. Mas temos vários homens prestes a ter alta do hospital, e você também poderá ficar com eles. Nada como o ar marinho para convalescer uma pessoa. Antes de você alcançar a linha do equador eles estarão mais ativos do que abelhas numa garrafa. De qualquer modo, é isso: ou você os aceita ou terá de esperar mais um mês até o próximo recrutamento. Na minha época qualquer jovem comandante agarraria essa oferta com ambas as mãos. Isto mesmo, e também se mostraria grato em vez de mal-agradecido e emburrado.
— Oh, senhor — disse Jack. — Creia-me que estou plenamente consciente de sua bondade, e sou-lhe grato por isso. Só estou imaginando se os tripulantes que estão para ter alta do hospital não são os tais o meu cirurgião viu na... como direi? ... na terrível ala de confinamento.
— Sim — confirmou o almirante —, são eles. Mas isso não quer dizer muita coisa. A maioria dos lunáticos apenas fingem para se livrar do trabalho, e esses não são do tipo alucinado e perigoso. Eles não mordem, do contrário não receberiam alta. Seja razoável. Tudo que tem a fazer é colocá-los a ferros e açoitá-los com vontade quando tiverem os seus acessos, exatamente como fazem em Bedlam{46}. Já esteve em Bedlam, Aubrey?
— Não, senhor
— Meu pai costumava nos levar lá. É melhor do que uma peça de teatro. — O almirante deu uma risadinha, ao recordar, e prosseguiu: — E tem mais uma coisa que precisa me agradecer, Aubrey, consegui convencer o comandante Bennet a lhe ceder o tal capelão.
— Obrigado, senhor, sou-lhe muito grato. Mandarei imediatamente meu aspirante ir buscá-lo. Com certeza está no cume do Rochedo com o dr. Maturin e não temos tempo a perder.
Saindo do gabinete para o calor do dia, encontrou seu aspirante, o jovem que estava com ele desde o desjejum, seguindo-o de perto para levar recados, se necessário, e quase correndo para acompanhar as largas passadas de Jack. Encontrou-o sentado nos degraus, com os sapatos fora dos pés.
— Williamson — ordenou—, o doutor e o sr. Martin devem estar em algum lugar lá em cima do monte Miséria. As sentinelas da bateria superior vão lhe mostrar onde. Diga-lhes, com os meus cumprimentos, que se apressem, pois talvez nos façamos no mar mais cedo do que eu imaginava. Diga-lhes que o sr. Martin deverá ir para bordo com toda a sua bagagem e que eu gostaria que o doutor me ajudasse com alguns dos novos tripulantes.
— Sim, senhor — disse Williamson.
— Ei, o que há de errado? — Indagou Jack, olhando para o rosto pálido e empoeirado do ajudante.
— Nada, senhor — respondeu Williamson. — A pele esfolou um pouco nos calcanhares, mas ficarei perfeitamente bem se colocar meias nos pés.
Jack viu que o interior dos sapatos dele estava vermelho de sangue; as últimas milhas deviam ter sido extremamente dolorosas.
— Bem — falou cordialmente —, isso demonstra um espírito correto. Fique aqui. Passarei ao Anselmo, a caminho do navio, e mandarei um jumento para levá-lo. Sabe montar um jumento, Williamson?
— Sei, sim, senhor. A gente tinha um em casa, um asno.
— Pode galopar, se quiser. Já corremos tanto que a esta altura seria burrice "estragar o navio todo para economizar meio penny de alcatrão"{47}. Lembre-se: transmita os meus cumprimentos e que eu gostaria de encontrar o doutor daqui a uma hora. Quanto ao capelão, ele deve se aprontar para embarcar de imediato. E não deixe que eles usem evasivas com você por causa dos pássaros. Precisa ser respeitoso, é claro, mas firme.
— Serei respeitoso, mas firme, senhor — prometeu Williamson.
Jack tinha duas demoradas e importantes visitas a fazer antes de retornar ao navio e, pela primeira vez desde o início de seu violento impulso de se fazer ao mar, ambas foram animadoras: o pessoal do Arsenal, que, em vez de trocar por novos, dois dos seus canhões de doze libras levemente perfurados, tinha demonstrado até ali a forte intenção de apenas manter a bordo os quatro, agora era todo condescendente e até lhe ofereceu um belo par de quadrantes de bronze de artilharia; já o supervisor da fábrica de cubos, recuperado do seu mau humor, mostrou-lhe dois novos cabos de quinze polegadas, inteiramente à sua disposição desde que mandasse um bote buscá-los.
Chegou ao Surprise bem animado e otimista, muito mais inclinado a ver com melhor disposição a perspectiva de admitir um grupo de amotinadores em seu navio. Pullings e Mowett também aceitaram a situação filosoficamente, pois embora muitos dos recrutados à força que eles haviam conhecido fossem pessoas bastante decentes, no conjunto o sistema de quotas às vezes parecia um remanejamento das cadeias do interior do país, e em certa ocasião tiveram de enfrentar alguns sujeitos realmente bem malvados.
— Collingwood costumava dizer que um motim era sempre culpa do comandante e dos seus oficiais —, lembrou Jack —, portanto talvez nós os achemos tão inocentes quanto cordeirinhos mansos, que foram simplesmente caluniados. Quanto ao pessoal do hospital, prefiro que o doutor de uma olhada antes. Espero que ele chegue logo. Quanto mais coisas resolvermos, mais perto estaremos de nos fazer ao mar.
— Mas, senhor — informou Pullings. —, o doutor já está aqui. Faz uma hora que os dois vieram correndo ao longo do cais, ofegantes, cobertos de poeira e pedindo que a gente não suspendesse nem largasse as velas para partir, pois estavam chegando. Estão agora lá embaixo, no porão, deitados em macas e tomando vinho branco e água mineral gasosa. Parece que não entenderam direito o seu recado.
— Vamos deixá-los descansar até vermos os novos recrutas. Então pediremos ao doutor que dê uma olhada na turma do hospital, pois parece que são todos malucos. Eu ficaria contente se houvesse pelo menos uns dois capazes de alar um cabo, mas há limites, até mesmo na Marinha.
— Ouvi dizer que há doidos diabolicamente astutos — comentou Pullings —, que se fingem de sãos para poder entrar furtivamente no paiol e explodir todo o navio e a si mesmos.
Os recrutados do navio-presídio chegaram, pálidos devido à falta de sol e de ar livre, barba por fazer, e com marcas vermelhas nos pulsos e tornozelos por causa dos grilhões; poucos carregavam sacos ou baús, visto que o Defender, um navio pessimamente comandado, era também um antro de ladrões, e a maior parte das posses deles havia sumido, assim que foram colocados nas grilhetas.
Não se pareciam em nada com cordeirinhos inocentes. Alguns eram tripulantes de navios de guerra: com camisa de marinheiro listrada, chapéu encerado, rosto retorcido, pescoço vermelho, longos rabos de cavalo balouçantes. A julgar por respostas durante o registro nos livros do navio, alguns eram também perfeitos encrenqueiros. Outros, sombrios marujos ressentidos, recentemente recrutados à força de navios mercantes, mas a maioria era formada por marinheiros de primeira viagem.
Pareciam dividir-se em duas classes: a primeira, o que na Marinha chamavam de "auxiliar de pedreiros", homens com certa instrução que diziam ter tido melhores dias e cuja conversa impressionava os simplórios marujos do mastro do traquete; a segunda, formada de tipos independentes e resolutos, provavelmente dados à caça clandestina e ladrões de veados ou seus equivalentes urbanos, que achavam qualquer disciplina difícil de suportar, muito menos o revezamento entre o relaxamento e a tirania do Defender. E havia, é claro, aqueles que eram simplesmente idiotas, débeis mentais. Não se tratava de um grupo que alguém se dispusesse a aceitar, e o pessoal do Surprise encarou-os com os lábios franzidos e uma fria reprimenda. Ainda assim, todos os oficiais já tinham visto coisa muito pior.
— Nagel serviu comigo durante um tempo, no Ramillies — informou Pullings, depois que eles foram despachados para apanhar roupas. — Ele manteve o posto de contramestre até acharem que andava respondão demais. Não faz mal a ninguém, só é teimoso e gosta de discutir.
— Certa vez eu vi Compton, o barbeiro — disse Mowett. — Fui a uma reunião, uma festa, a bordo do Defender, quando o comandante Ashton comandava o navio, ele se revelou um ventríloquo. Lembro-me que havia uns excelentes dançarinos, tão bons quanto em Sadler’s Wells{48}.
— Agora vamos ver os homens do hospital — anunciou Jack. — Por favor, sr. Pullings, veja se o doutor já recuperou o fôlego.
Stephen já respirava normalmente, mas pelo fogo que queimava em seus olhos, era óbvio que ainda não havia recuperado a serenidade.
— Eu estava trabalhando —, foi sua única resposta às gentis perguntas de Jack. —Tragam os pacientes liberados.
Os poucos do Surprise que naquele momento não tinham tarefas urgentes a desempenhar se reuniram para a diversão, e todos os que podiam fazer uma pausa no seu trabalho pararam para vê-los embarcar; no entanto, o clima geral de contente antecipação sumiu quando primeiro surgiu, cambaleante pelo passadiço, um marujo de aparência comum, mas que chorava amargamente, o rosto cinzento voltado para o céu e as lágrimas escorrendo. Ninguém era capaz de duvidar de sua extrema infelicidade. Os outros também não eram nada divertidos. Stephen reteve um deles, cujo único problema era um limitado conhecimento de inglês e uma extrema dificuldade de falar, por causa de uma fenda palatina, o que tornava muito estranhas as respostas dadas por aquele enorme homem gentil e acanhado de County Clare; três tinham ferimentos na cabeça causados por quedas de moitões{49} ou vergas; e um genuíno mendigo louco.
— Vou ficar com o grandalhão para meu criado, com a sua permissão — disse ele, em particular, a Jack. — É completamente analfabeto e me servirá muito bem. Os outros três, tanto faz estarem em mar como em terra, não antecipo nenhum grande perigo da parte deles. Matthews está certamente fingindo loucura e vai recobrar o juízo à medida que nos afastarmos da terra. Mas o resto não deveria ter tido alta e precisa voltar.
E voltaram; e, no instante mesmo que alcançaram o cais, chegou uma mensagem do comandante do distrito naval.
— Valha-me Deus — disse Jack, depois de ler. — Vou acabar num estado tal, que terei de ir com eles. Toda a nossa pressa arriscada, toda a nossa arrumação do porão à luz de velas, todo o meu trabalho infernal, me estafando para cima e baixo desta Sodoma e Gomorra de cidade, tudo foi absolutamente desnecessário. Nem precisava ter abarrotado o navio com amotinadores e malucos, não precisava tê-los tirado de onde estavam. O Norfolk ficou um mês retido no porto... Tomos todo o tempo do mundo... e aquele velho sacana perverso soube disso dias atrás.
CAPÍTULO TRÊS
Pelo menos uma vez, durante sua longa carreira naval, o HMS Surprise tinha tempo de sobra, e Jack estava sinceramente contente com aquilo. Ele não o teria manobrado da forma como o fizera com frequência anteriormente, fizera antes ostentando os joanetes e os sobrejoanetes o quanto o navio podia aguentar, e depois marcando-os novamente um momento antes de se romperem; poderia poupar suas vergas, cordame e pano de vela, um grande conforto em qualquer circunstância para a mente de um marujo, porém muito mais no caso de alguma eventualidade depois que o navio dobrasse o cabo Horn e navegasse em direção oeste ao grande mar do Sul, onde não haveria a chance de encontrar um mastaréu sobressalente por milhares e milhares de milhas.
A eventualidade era remota, com o Norfolk retardado por um mês inteiro, principalmente porque em Gibraltar o Surprise estava localizado mais favoravelmente do que a sua presa para alcançar o Atlântico Sul, e Jack achava mais provável que, seguindo para o cabo de São Roque, e de lá, amarando e mantendo um rumo constante, a encontraria rumando para o Sul ou pelo menos teria notícias dela.
Era ali que a costa do Brasil se inclinava para Leste, e Jack já passara mais de uma vez pela costa proeminente, a caminho do cabo da Boa Esperança; e muitas vezes avistara o comércio com destino ao rio da Prata e pontos do Sul, passando bem junto a São Roque, navegando próximo ao litoral por causa dos ventos predominantes perto da costa às vezes havia mais de vinte navios mercantes ao mesmo tempo, todos seguindo a mesma derrota habitual.
Jack, porém, frequentava o mar havia bastante tempo para saber que a única coisa confiável nele era a sua total falta de confiabilidade; não confiava no Cabo de São Roque, nem em qualquer outro cabo, mas estava inteiramente preparado para ir até Van Diemen’s Land{50} ou Bornéu, se fosse preciso.
Contudo, estava contente com aquela folga. Ela não apenas daria tempo à tripulação para respirar, depois da impetuosa atividade da preparação para se fazer ao mar, como também lhe permitiria fazer alguma coisa para transformar os novos tripulantes no tipo de marujos de que o navio precisaria, se tivesse de se engalfinhar com o Norfolk. Quando estivera preso em Boston, Jack o viu, como também outros navios de guerra americanos, e, ainda que o Norfolk mal pudesse ser comparado a fragatas como a President ou a United States, com suas peças de artilharia de vinte e quatro libras, e a seus poucos navios de linha, ele seria um osso duro de roer. Achava-se certamente equipado com uma tripulação toda formada por marinheiros de escol, e era comandado por oficiais que aprenderam sua profissão nas águas implacáveis do Atlântico Norte, homens cujos colegas haviam derrotado a Marinha Real na primeira batalha com três fragatas em que se enfrentaram. Uma após outra, a Guerrière, a Macedonian e a Java foram batidas pelos americanos.
Sabendo-se que o comandante Aubrey havia sido um passageiro na última dessas três, é de imaginar que ele tinha uma excelente opinião sobre a Marinha dos Estados Unidos; por outro lado, a vitória do HMS Shannon sobre o USN Chesapeake mostrara que os marinheiros americanos não eram invencíveis, mas, mesmo assim, o respeito que Jack tinha por eles podia ser avaliado pelo fervor com que os novos tripulantes eram agora treinados nas manobras com os canhões longo alcance e armas portáteis. A maioria deles parecia não ter aprendido nada a bordo do Defender, a não ser esfregar o convés e polir os metais, e tão logo o Surprise deixou o estreito, com o Cabo de Trafalgar assomando a boreste e o mouro cabo Spartel a bombordo, um bando de alegres golfinhos brincando pela proa e uma brisa de Nor-noroeste na vela do joanete impulsionando o navio, os oficiais assumiram a responsabilidade sobre eles.
Agora, no terceiro dia de viagem, suas costas estavam curvadas, as mãos pustuladas e até mesmo em carne viva por içarem os canhões nas talhas, e, em alguns casos, os dedos das mãos e dos pés estavam beliscados por causa do coice das peças; ainda assim, o sr. Honey, o terceiro-oficial interino, acabara de liderar um grupo deles até uma das caronadas do tombadilho, e o guincho do movimento de seu berço, logo acima de sua cabeça, fez com que o comandante Aubrey levantasse a voz até um tom incomumente alto para poder chamar o seu despenseiro. Ou melhor, para tentar chamar o seu despenseiro, pois Killick jogava conversa fora com um amigo do outro lado da antepara e, por ser um homem obstinado e obtuso, não iria nem poderia dar atenção a duas coisas ao mesmo tempo — ele começara a contar uma anedota sobre um irlandês, membro da guarda de ré, chamado Teague Reilly, e teria de terminar a anedota.
— "Pois Killick", ele falou para mim, daquele jeito antiquado com que eles falam lá no porto de Cork, que nem parecem cristãos, coitados, "você não passa de um maldito crente e não entende o que estou dizendo, mas assim que a gente chegar a Gran Canaria, vou direto nos franciscanos fazer uma boa confissão". Por que, colega? Perguntei, "Por que"? replicou ele...
— Killick — gritou Jack com um tom de voz que fez o anteparo vibrar.
Killick abanou a mão impaciente, em direção à câmara e continuou:
— "Porque", respondeu ele, "porque, em primeiro lugar, o barco embarcou um Jonas; em segundo, um vigário; e, em terceiro, a menina do mestre do navio colocou um gato no camarote dela; o que vem coroar a maldição".
Ao terceiro chamado, Killick obedeceu, irrompendo na câmara com a aparência de quem tinha vindo correndo desde o castelo de proa.
— Alguma sorte? — Indagou Jack.
— Bem, senhor — disse Killick—, Joe Plaice disse que pode arriscar um lobscouse, e Jemmy Ducks acredita que consegue fazer uma torta de ganso.
— E o pudim? Perguntou à sr.ª Lamb sobre o pudim? E o manjar dela?
— De maneiras que ela está arrotando tanto e vomitando a gente mal se ouve falando — explicou Killick, rindo alegremente. — E está assim desde que a gente partiu de Gib. Devo perguntar à esposa do artilheiro-chefe?
— Não, não — exclamou Jack. Ninguém com as formas da esposa do artilheiro-chefe seria capaz de fazer um manjar, um pudim de sebo com passas ou um creme de leite com cidra, e ele não queria ter nada a ver com ela. — Não, não, o resto do bolo de Gibraltar vai servir. E queijo tostado. Abra a torta de Estrasburgo e o presunto de javali, e qualquer outra, coisa que sirva de acompanhamento. Um tinto para começar, depois o vinho do Porto com o selo amarelo.
Na pressa de se fazer ao mar, Jack só se lembrou na última hora de conseguir um substituto para o cozinheiro, e o desgraçado do homem deixou-o na mão. Para não perder um vento favorável, deu ordem de suspender sem cozinheiro, contando em conseguir outro em Tenerife.
Permanecia, porém, aquele sério problema: por um lado, ele desejava recepcionar reservadamente os seus oficiais, logo no início da viagem, em parte para lhes revelar seu verdadeiro destino e em parte para ouvir o que o sr. Allen tinha a dizer sobre pesca da baleia, sobre contornar o Horn e sobre as distantes águas além dele; mas, por outro lado, havia a bem antiga tradição naval que exigia que um comandante oferecesse aos seus convidados uma refeição diferente da que comiam na praça d’armas, de modo a tornar a recepção uma festividade, pelo menos em relação à comida.
Mesmo nas viagens mais longas, quando os estoques particulares não passavam de uma lembrança, e toda a guarnição tinha de lançar mão das provisões do navio, o cozinheiro do comandante esforçava-se ao máximo por preparar a carne de cavalo salgada, as linguiças e as bolachas um pouco diferente das da cozinha da praça d’armas; e Jack Aubrey, um tory{51}, um homem que gostava dos velhos métodos o dos velhos vinhos, praticamente um dos poucos oficiais com seu tempo de serviço que ainda usava o cabelo comprido preso atrás do pescoço e o chapéu empinado de través, à maneira de Nelson, em vez de horizontalmente, de popa a proa, seria o último a sucumbir em virtude da tradição.
Não podia, portanto, lançar mão dos serviços de Tibbets, o cozinheiro dos oficiais, e foi obrigado a pesquisar os possíveis talentos culinários presentes no navio, já que os dons de Killick não iam além de queijo tostado, café e pratos de desjejum, e Orrage, o cozinheiro oficial do Surprise era uma enorme insignificância no plano gastronômico. Aliás, não era de modo algum um cozinheiro, no sentido de gente de terra, pois se limitava a pôr de molho a carne salgada em tinas com água doce e depois cozinha-la em grandes caldeirões de cobre, enquanto um membro do cada grupo de rancheiros executava o trabalho mais refinado. Fosse como fosse, ele não tinha percepção de sabor ou odor — havia recebido seu certificado não porque tivesse afirmado que sabia cozinhar, mas porque perdera um braço na Batalha do Camperdown —, mas era muito querido a bordo por ser uma criatura afável com um infindável repertório de baladas e canções e extraordinariamente generoso com o seu refugo, a gordura que subia à superfície dos caldeirões com a carne que ficara de molho.
Retirado o necessário para untar mastros e vergas, o refugo era uma gratificação do cozinheiro; contudo Orrage era tão liberal em distribuí-la que frequentemente deixava os companheiros de bordo pegarem uma caneca cheia para nela fritarem suas bolachas esmigalhadas ou um peixe apanhado por acaso, embora, em qualquer porto, os fabricantes de velas de sebo pudessem lhe pagar doze libras por barril.
Ao mesmo tempo que o sol escalava acima de um céu azul-claro e um mar cintilante, a reduzida brisa rondava para nordeste, vindo direto para a popa. Normalmente Jack teria largado os sobrejoanetes e mesmo os sobrinhos; agora contentava-se em carregar a vela ré e a bujarrona{52}, içar a vela grande, reduzir a área exposta da verga do velacho e seguir viagem com cevadeira, traquete, cutelo do velacho e varredoura, gávea e joanete do grande com seus cutelos em ambos os bordos.
A fragata seguiu suavemente com popa arrasada, quase em total silêncio — um pouco mais do que a canção da água no costado e o rítmico rangido dos mastros, vergas e incontáveis poleames{53}, enquanto o navio sustentava o restante do longo marulhar vindo do Oeste, com aqueles estimulantes caturro{54} e balanço que o seu comandante conhecia tão bem. Mas também navegou através de uma pequena e estranha nevasca localizada, esparsa, porém persistente o bastante para levar Maitland, que estava de serviço, a chamar repetidamente o grupo de limpeza para varrê-la.
Era Jemmy Ducks, que depenava gansos na proa; as plumas voaram das suas mãos durante os primeiros metros, já que o Surprise não havia de fato ultrapassado a intensidade do vento (embora tivesse dado a impressão de tê-lo feito), e então foram colhidas pelo turbilhão da cevadeira, rodopiaram, rodaram várias vezes nas correntes criadas pelas outras velas, pararam acima do convés e caíram silenciosamente como se fossem neve. E tudo isso enquanto Jemmy Ducks murmurava para si mesmo: "Nunca vai ficar pronto a tempo. Oh, oh, esta maldita plumagem"!
Em meio ao silêncio, Jack estava parado, observando, as mãos para trás, oscilando automaticamente com o balanço, observando esse padrão com a mais aguçada atenção, porquanto eram um reflexo direto da verdadeira propulsão das velas, um conjunto de variáveis extremamente difíceis de ser definidas matematicamente. Ao mesmo tempo podia ouvir Joe Plaice fazendo estardalhaço na cozinha.
Plaice, um idoso tripulante de castelo de proa, que navegava com Jack desde tempos imemoriais, começara a se arrepender de sua oferta para preparar um lobscouse, um ensopado de carne, verduras e biscoito, quase no mesmo instante que ela fora aceita; com o passar do tempo, ele estava ficando terrivelmente aflito e, em meio à aflição, agora amaldiçoava o primo, Barret Bonden, seu ajudante naquela ocasião, com ofensiva veemência e (ele se tornara meio surdo) uma voz muito alta.
— Calma, Joe, calma — pediu Bonden, empurrando-o para o lado e apontando com o polegar, por cima do ombro, para onde a sr.ª James, a esposa do sargento dos fuzileiros, e a sr.ª Horner tinham levado o seu tricô. — Há damas presentes.
— Danem-se você e suas damas — retrucou Plaice, embora um pouco mais baixo. — Se tem uma coisa que detesto mais do que qualquer outra é uma mulher. Mulher embarcada em navio.
A cada meia hora soava, o sino do navio, o quarto das 08:00 às 12:00 terminara, aproximava-se a passagem meridiana do sol. O sol atingiu o seu apogeu, os oficiais e os aspirantes verificavam a sua altura ou executavam gestos de estar a fazê-lo, e tocou o apito de reunir para o rancho. Entretanto, em meio aos urros da multidão no rancho e da barulheira do rancho dos meninos, Plaice e Jemmy Ducks continuavam obstinadamente cuidando de suas tarefas na cozinha, parados ali, no meio da maré, bloqueando a passagem, fundeados no meio do canal. Uma hora, depois continuavam lá, irritando Tibbets enquanto este cozinhava e servia o jantar na praça d’armas— um compartimento bastante reduzido, com apenas dois oficiais presentes, Howard, o fuzileiro naval, e o intendente, com todos os demais membros caminhando famintos pelo convés, metidos no melhor uniforme, pois tinham sido convidados para jantar na câmara.
Os dois marujos continuavam no mesmo lugar, agora com a aparência pálida, ao se ouvirem os quatro sinos do quarto de 12:00 às 16:00, quando logo à primeira badalada os oficiais, liderados por Pullings, entraram na câmara, enquanto da cozinha Killick e o corpulento garoto negro que o ajudava bateram na travessa que continha o compacto lobscouse.
O comandante Aubrey tinha um grande respeito pelo clero e colocou o capelão sentado à sua direita, com Stephen depois dele, e Pullings na extremidade da mesa, Mowett ao lado de Pullings, e depois Allen, entre Mowett e o capitão.
— Sr. Martin — anunciou Jack, após o capelão ter dado graças —, ocorreu-me que o senhor talvez ainda não tenha visto um lobscouse. Trata-se de um dos pratos mais antigos de marinheiros e muito saboroso quando é bem preparado; quando eu era jovem, gostava imensamente dele. Permita-me que lhe sirva um pouco.
Só que quando Jack era jovem também era pobre, não raro sem um tostão no bolso, e aquele era um lobscouse de rico, um lobscouse de almirante. Orrage fora excepcionalmente generoso com seu refugo, e a gordura líquida ocupava um centímetro de profundidade por toda a superfície, enquanto as batatas e as bolachas trituradas, que normalmente eram o grosso do prato, mal podiam ser detectadas, subjugadas pela carne gorda, as cebolas fritas e os fortes temperos.
— Valha-nos Deus! — Exclamou Jack para si mesmo, depois de uns bocados. — Está gorduroso demais, gorduroso demais para mim. Devo estar ficando velho. Gostaria de ter convidado alguns aspirantes. — Olhou aflito em volta da mesa, mas quase todos os presentes tinham sido forjados no serviço árduo; haviam suportado o calor e o frio extremos, umidade e secura, naufrágios, ferimentos, fome e sede, a fúria dos elementos, a maldade dos inimigos do rei; haviam suportado tudo isso e conseguiam suportar aquilo... sabiam o que era esperado deles, como convidados do comandante.
Quanto ao sr. Martin, quando era um vigário sem vencimentos, trabalhara para livreiros de Londres —, de muitos modos um aprendizado ainda bem mais cruel. Todos comiam, e não apenas comiam como aparentavam estar gostando. "Talvez estejam mesmo", pensou Jack, ainda mais relutante em conter os seus convidados do que enfiar comida pelas suas goelas abaixo. "Talvez eu ande comendo demais e fazendo pouco exercício, o que tem me tornado suscetível".
— Um prato deveras interessante —, comentou o heroico Martin. — Creio que vou importuná-lo para que me sirva um pouquinho mais, se me permite.
Pelo menos não houve a menor dúvida de que apreciavam inteiramente o vinho. Por um lado, porque, ao tomá-lo, ajudava a descida dos bocados viscosos e, por outro, porque Plaice e Bonden haviam salgado o prato, o que provocava uma sede anormal, mas também pelo vinho ser inteiramente agradável por si mesmo.
— Então este é o tinto —, disse o sr. Martin, levantando a taça púrpura contra a luz. — Não é muito diferente do vinho de altar da nossa terra, porém mais robusto, mais encorpado, mais...
Ocorreu a Jack que poderia haver algo muito bom a ser dito sobre Baco, vinho, sacrifícios e altares, mas ele estava por demais ocupado em encontrar alguns pequenos assuntos de conversa para desenvolver (para ele, um chiste raramente surgia espontaneamente, o que era uma pena, visto que nenhum homem se encantava mais com isso do que ele, mesmo em doses infinitesimais, tanto em si quanto nos outros). Precisava encontrar pequenos assuntos, dado que, pela convenção, todos os marujos permaneciam sentados iguais a fantasmas. Só falando quando lhes dirigiam a palavra, pois aquela era uma ocasião formal e, pelo menos em tese, com a presença de estranhos. Felizmente, se ficasse sem assunto, sempre poderia recorrer à bebida para embriagá-los.
— Sr. Allen, uma taça de vinho com o senhor — brindou, sorrindo para o mestre-arrais e pensando, ao mesmo tempo que fazia uma reverência: "Talvez a torta de ganso esteja melhor".
Há dias, porém, em que a esperança surge apenas para morrer. A torta alta chegou; entretanto, mesmo enquanto explicava as características do prato a Martin, a faca de Jack não sentiu a firme resistência das camadas internas de massa, mas sim a submissão de algo pastoso, Da incisão brotou um sangue ralo em vez de molho.
— Tortas no mar — frisou — são feitas à moda náutica, é claro. São bem diferentes das tortas de terra, Primeiro, coloca-se uma camada de massa, depois uma de carne, outra de massa, outra de carne, e assim por diante, de acordo com o número de conveses que se deseja. Esta, como podem ver, é de três conveses: convés superior, segunda coberta e terceira coberta.
— Mas isso dá quatro conveses, meu caro senhor — observou Martin.
— Ah, sim — explicou Jack. — Todos os navios de linha, todos os de três conveses têm quatro. E, se contar com o porão, são cinco; ou mesmo seis, com o tombadilho. Nós apenas os chamamos de três conveses, entende? Se bem que agora, pensando melhor, quando dizemos convés na verdade queremos nos referir ao espaço entre dois deles. Receio que isto ainda não esteja bem assado — observou, hesitante, perto do lugar de Martin.
— De modo algum, de modo algum — exclamou Martin. — Ganso é muito melhor malpassado. Lembro-me que traduzi um livro do francês que afirmava, com grande autoridade, que o pato sempre deve estar sangrando; se é verdade para o pato, é mais verdade ainda para o ganso.
— O que é molho para pato... — tentou ainda dizer Jack, mas ele estava deprimido demais para prosseguir.
Contudo, a tempo, a torta de Estrasburgo, a língua defumada, os outros acompanhamentos, um nobre queijo minorquino, sobremesa e um sublime vinho do Porto toldaram a infeliz e mesmo vulturina{55} lembrança do ganso. Brindaram ao rei, às esposas e namoradas e à desgraça para Bonaparte.
— Bem, cavalheiros — disse Jack logo em seguida, empurrando para trás a cadeira e folgando o colete vão me perdoar se falo de questões relacionadas ao navio. Alegro-me em informar-lhes que o nosso destino não é Java. Nossas ordens são para cuidarmos de uma fragata que os americanos estão enviando para pilhar os nossos navios-baleeiros nos mares do Sul: Norfolk, de 32 peças, todas caronadas, além de quatro canhões de cano longo alcance de doze libras. Foi retardado um mês no porto, e espero que possamos interceptá-lo no caminho, ao sul do cabo de São Roque ou, se não ali, em outro ponto da costa do Atlântico. Mas sempre haverá a possibilidade de termos de segui-lo pelo Pacífico, e como nenhum de nós ainda contornou o Horn, e já que sei que o sr. Allen conhece essas águas, pois navegou com o comandante Colnett, agradeceria se ele nos dissesse o que devemos esperar. E imagino que ele também possa nos contar muita coisa sobre pesca de baleias, um assunto sobre o qual sou vergonhosamente ignorante. É possível, sr. Allen?
— Bem — começou Allen, com um leve rubor, a timidez superada pela adaptação ao ambiente e uma incomum quantidade de vinho do Porto —, meu pai e dois tios meus foram baleeiros em Whitby. Eu fui criado com gordura de baleia, como se poderia dizer, e fiz uma porção de viagens com eles antes de entrar para a Marinha. Mas isso foi na região de pesca da Groenlândia, como a chamamos, ao largo de Spitzbergen ou no estreito de Davis, indo atrás da baleia-franca e da baleia-piloto da Groenlândia, inclusive as singulares baleias-brancas, morsas e narvais{56}; aprendi muito mais quando fui com o comandante Colnett à região de pesca meridional, que, tenho certeza que sabe, senhor, é importante por causa do cachalote; e todos os navios saem de Londres.
— Sim — interrompeu Jack, ao perceber que Allen estava saindo da rota, e acrescentou. — Talvez fosse melhor se nos fizesse um relato de sua viagem com o comandante Colnett; isso trataria de navegação e da pesca da baleia, tudo na sua devida ordem. Mas falar é uma tarefa sedenta. Vamos tomar o nosso café aqui mesmo.
Uma pausa, durante a qual o cheiro de café encheu a câmara, e todo o ser de Stephen ansiou por tabaco, mas só se podia fumar ao ar livre, no tombadilho — alguns navios eram tão severos que só era permitido na cozinha —, e isso significaria perder a história de Allen.
Stephen era apaixonadamente interessado em baleias; também estava bastante ansioso por ouvir sobre o possível contorno do Horn, notoriamente o mais perigoso dos cabos, por ser incessantemente açoitado pelas fortes ventanias ocidentais, por uma chance há muito protelada, escorbuto, e a derradeira frustração. Ele reprimiu sua ânsia e permitiu que o mestre-arrais começasse.
— Bem, senhor — volveu Allen —, os americanos de Nantucket andaram pescando cachalotes ao largo de sua própria costa e bem mais adiante, ao Sul, e antes da última guerra eles e alguns ingleses foram ainda mais para o Sul, ao golfo da Guiné e ao largo do Brasil, até mesmo descendo até as ilhas Falklands. Mas fomos nós os primeiros a contornar o Horn, para ir atrás de cachalotes. Foi o sr. Shields, um amigo do meu pai, quem levou a Amelia, em oitenta e oito, e voltou no ano noventa com cento e trinta e nove toneladas de óleo. Cento e trinta e nove toneladas de espermacete, cavalheiros! Com a recompensa no máximo, isso deu perto de sete mil libras. Então, é claro, outros baleeiros foram atrás deles e pescaram nas costas do Chile e do Peru e mais ao Norte. Mais o senhor sabe o ciúme que os espanhóis sempre tiveram de quem navega por aquelas águas, e na ocasião foram piores ainda, se isso é possível... Deve se lembrar de Nootka Sound.
— Claro que sim — retrucou Jack, que devia toda a sua atual felicidade àquele remoto estreito úmido e incômodo na ilha de Vancouver, muito mais ao Norte da última colônia espanhola na costa Oeste da América, onde alguns navios ingleses, que comerciavam peles com os índios, foram capturados pelos espanhóis, em 1791, uma época de paz total, levando desse modo ao grande rearmamento da Marinha, conhecido como a perturbação espanhola, o que, por sua vez, provocou a primeira de suas esplêndidas metamorfoses, transformando-o de um mero (apesar de talvez merecido) ajudante de navegação em tenente, com uma delegação de Sua Majestade e um chapéu com galões dourados para os domingos.
— Pois bem, senhor — prosseguiu Allen —, os baleeiros ficaram não muito relutantes em atracar em qualquer lugar do lado do Pacífico, não apenas porque os espanhóis, de qualquer modo, eram vaidosos e ofensivos, mas também porque, estando tão longe, nunca poderiam saber se estavam em guerra ou em paz, e podiam não apenas perder os seus navios, além do produto da pescaria, como também serem mortos ou mantidos em uma prisão espanhola até morrerem de fome ou de febre amarela. Entretanto, quando se permanece fora, durante todas as estações, por dois ou três anos, é justo que a gente precise se reabastecer e reaparelhar.
Todos os oficiais concordaram com a cabeça, e Killick falou:
— Isso mesmo — encobrindo o seu comentário com uma tossida.
— Então, o sr. Enderhy, o mesmo que enviou Shields no Amélia, e alguns outros proprietários recorreram ao governo, solicitando que se fizesse uma expedição capaz de descobrir portos seguros e fontes de suprimentos, a fim de que a pesca meridional pudesse prosseguir e melhor do que antes. O governo foi favorável, mas, com uma coisa e outra, isso acabou se tornando o que eu poderia chamar de viagem hermafrodita, meio baleeira e meio exploradora, a primeira pagando pela segunda. Primeiramente, o Almirantado disse que cederia a Rattler, uma excelente chalupa de 374 toneladas com mastreação de navio, mas depois mudou de ideia e a vendeu para os proprietários, que a transformaram num navio-baleeiro, com um mestre-baleeiro e uma tripulação de vinte e cinco ao todo, ao contrário do total de cento e trinta homens quando era utilizada como navio de guerra; porém o almirantado designou o sr. Colnett, que dera a volta ao mundo com Cook, no Resolution, e que navegara pelo Pacífico em navios mercantes, quando vivia a meio soldo entre as guerras... Aliás, ele estava no próprio Nootka Sound, e os seus navios que estavam lá foram capturados! Portanto ele se tornou o comandante da expedição e teve a bondade de me levar junto.
— Quando foi isso exatamente, sr. Allen? — Quis saber Jack.
— Logo no início da Corrida Espanhola, senhor, no inverno de noventa e dois. Foi uma infelicidade para nós, porque a Marinha já tinha cancelado a recompensa para marujos, perdemos parte do nosso pessoal e só conseguimos colocar marinheiros de primeira viagem ou garotos no lugar; e isso nos retardou até janeiro de noventa e três, e por isso também perdemos a recompensa para o nosso baleeiro e o tempo excelente. Mas finalmente conseguimos partir e chegamos à Ilha, se minha memória não folha, dezoito dias depois.
— Que ilha? — Indagou Martin.
— Ora, da Madeira, é claro — disseram juntos todos os oficiais de Marinha.
— Na Marinha sempre chamamos a Madeira de a Ilha — explicou Stephen, com grande complacência.
— Em seguida, Ferro, nove dias depois. E tivemos sorte com o vento. Quando perdemos os alísios de nordeste, uma brisa nos inclinou direto através dos ventos variáveis... bastante reduzidos naquele ano... até conseguirmos pegar os alísios de sudeste, em 4º Norte, eles nos carregaram para 19º Sul, e atravessamos a linha do equador em 25º 30’ Oeste. Não. Minto. Em 24º 30’ Oeste. Duas semanas depois atingimos o Rio e permanecemos um pouco por lá, para ajeitar o cordame e a calafetação; e me recordo que o sr. Colnett arpoou no porto uma tartaruga com duzentos quilos. Depois disso navegamos à procura de uma ilha chamada Grande, que diziam ficar a 45º Sul, mas ninguém sabia qual era a longitude. Encontramos uma grande quantidade de peixes-pretos... é assim que chamamos as pequenas baleias-francas, senhor — disse isso, dirigindo-se a Martin —, mas nenhuma ilha, Grande ou Pequena; então partimos para o Sul e Oeste, até encontrarmos águas com profundidade de sessenta braças ao largo da extremidade Oeste das Falklands. Durante alguns dias o tempo esteve fechado demais para qualquer observação, e assim nos afastamos bem e seguimos para a Isla de los Estados.
— Quer dizer que passaram pelo estreito de Le Maire? — Perguntou Jack.
— Não senhor — respondeu Allen. — O sr. Colnett sempre disse que ali as marés e as correntes deixam o mar tão pesado que não vale a pena. Então, à meia-noite, chegando novamente a águas profundas, com profundidade de noventa braças... O sr. Colnett mantinha sempre o prumo grande mergulhado, mesmo com uma tripulação tão pequena... Ele achava que estávamos muito perto, então aproamos ao vento e, pela manhã, perdemos a noção de profundidade às cento e cinquenta braças; desse modo nós arribamos para o Cabo Horn, fizemos o contorno o mais ao largo possível que o sr. Colnett poderia conseguir. Ele quis se manter bem distante da terra por causa dos ventos mais variáveis, e no dia seguinte avistamos as ilhas de Diego Ramirez, três ou quatro léguas a Norte quarta nordeste. E isso lhe interessará, senhor — dirigindo-se a Stephen —, pois vimos corvos brancos. Tinham o tamanho e a forma daqueles que os compatriotas do Norte chamam de pegas, só que brancos. Depois pegamos um tempo muito fechado, com o vento rondando Oeste e Sudoeste, e o mais incomum dos mares agitados; mas mesmo assim bordejamos a Terra do Fogo e depois, ao largo do Chile, tivemos um tempo excelente e um vento sul. Cerca de 40º Sul, começamos a ver cachalotes e, ao largo da ilha Mocha, abatemos oito.
— Diga-me, por favor, como fizeram isso? — Indagou Stephen.
— Ora, é quase igual à baleia-franca —, respondeu Allen.
— Isso é o mesmo que o senhor me perguntar como amputamos uma perna e eu responder que não há diferença da remoção cirúrgica de um braço. Eu gostaria de um relato mais detalhado — pediu Stephen, e seguiu-se um murmúrio geral de concordância.
Allen olhou rapidamente em volta. Era difícil acreditar que tantos homens crescidos — marinheiros, de posse de suas faculdades mentais — nunca tivessem visto uma baleia ser morta ou pelo menos ouvido falar como isso é feito, mas o interesse deles, seus rostos atentos mostraram-lhe que esse era realmente o caso, e então começou:
— Bem, senhor, nós sempre temos homens nos cestos das gáveas, e quando eles avistam uma baleia, gritam "Lá está ela esguichando". Todo mundo vai para o topo dos mastros, como se suas vidas dependessem disso, pois tripulantes de navios-baleeiros não trabalham por salário, mas por quotas. Se o esguicho seguinte é o correto, isto é, se é o esguicho grosso, baixo e dirigido para a frente de um cachalote, os botes baleeiros são baixados, botes para pesca de baleia, é claro, compridos em ambas as extremidades. São baixados rapidamente, os homens pulam para dentro, a palamenta{57} é jogada para eles, duzentas braças de arpoeira{58} numa barrica, arpões, lanças, âncoras flutuantes, e eles logo partem, o mais depressa possível. Quando estão perto, vão mais devagar e bem quietos, porque, se não for uma baleia viajante, ela costuma voltar ao mesmo lugar, após umas cem jardas, se mergulhou e você não a assustou.
— Quanto tempo costumam ficar mergulhadas? — Quis saber Stephen.
— Cerca de uma ampulheta e meia... uns três quartos de hora; algumas mais, outras menos. Então sobe e respira por talvez uns dez minutos, e se você toma cuidado, e rema silenciosamente, consegue chegar perto dela enquanto ela está respirando. O timoneiro da embarcação, que esteve esse tempo todo na proa, joga o arpão no alvo. A baleia mergulha imediatamente, às vezes rompendo o casco do bote, ao levantar a cauda ou agitar a pata, como dizemos, e desce e desce, o cabo correndo tão depressa que sai fumaça do cabeço de amarração, e é preciso jogar água nele, o timoneiro e o patrão mudam de lugar e, quando a baleia volta a emergir, finalmente o patrão usa a lança... uma lâmina de dois metros, atrás da barbatana, se possível. Já vi um patrão velho e experiente matar uma baleia quase que imediatamente, na hora da sua agitação nervosa, como dizemos, no momento em que poderia facilmente furar o casco do bote, açoitando violentamente com a cauda. Mas em geral leva bastante tempo; lança e mergulho, lança e mergulho, até ela ser morta. Os machos de quarenta barris de óleo são os piores, pois são muito ágeis: creio que só conseguimos ser bem-sucedidos uma ocasião em três, e às vezes elas rebocam a gente por dez milhas a barlavento, e ainda assim podem até mesmo levar tudo embora. O velho e enorme macho de oitenta barris dá muito menos trabalho, e foi um deles que vi ser morto com o primeiro golpe de lança. Mas a gente nunca tem uma baleia garantida até ela estar amarrada. Quer que eu conte como fazemos isso, senhor? — Perguntou, olhando para Jack.
— Por favor, sr. Allen.
— Bem, rebocamos a baleia a contrabordo do navio e começamos a retalhação: nós a amarramos e cortamos fora a parte da frente, o lado de cima da cabeça, que chamamos de estojo, porque é onde está o espermacete, e o içamos para o convés se for uma baleia pequena, ou a posicionamos à ré, em caso contrário, para esperar até acabarmos de tirar a camada de gordura, ou pelar, como preferem alguns. E fazemos isso dando um corte acima da barbatana, levantando a gordura e enfiando nela um pino de madeira, preso a uma estralheira{59} da gávea do grande; em seguida, uns homens vão até a carcaça, com pás compridas e afiadas, e cortam uma faixa em espiral na gordura com cerca de um metro de extensão. Num peixe bom, tem perto de trinta centímetros de espessura e se desprende facilmente da carne; a talha a suspende, ao mesmo tempo que inclina e gira a baleia, sabe... Aliás, chamamos isso de talha de inclinação. No convés, retalham a gordura e a jogam na fornalha, que é um caldeirão, a meia nau, com fogo embaixo, que retira o óleo com a fritura: os pedaços que sobram servem de combustível, após a primeira fritura. Depois, quando toda a gordura está a bordo, passamos a cuidar da cabeça, abrindo o estojo e retirando o espermacete, a substância da cabeça, com uma concha: a princípio é um liquido, mas se solidifica no barril.
— É uma verdadeira cera, não é mesmo? — Perguntou Martin.
— Sim, senhor, uma verdadeira e pura cera branca, depois de separado o óleo, e tão bonita quanto se poderia desejar.
— Para que serve?
Ninguém tinha sugestões a dar, e Allen continuou:
— Mas, como eu ia dizendo, nunca se tem uma baleia garantida, até ela ser amarrada e colocada em barris no porão. Das oito que matamos ao largo da ilha Mocha, só aproveitamos três e uma cabeça, porque o tempo ficou borrascoso, e elas se soltaram ou do reboque ou do costado. Depois da Mocha, navegamos ao longo da costa do Chile, até cerca de 26º Sul, quando guinamos para as ilhas de São Félix e Santo Ambrósio, que ficam umas cento e cinquenta léguas para Oeste. Lugares miseráveis, sem mais do que cinco milhas de extensão: sem água, sem comida, sem quase nada crescendo, e praticamente impossível de se aterrar: perdemos um ótimo tripulante na arrebentação. Então retornamos ao continente e ao longo da costa do Peru, com tempo agradável, repousando durante a noite e procurando navios ingleses durante o dia. Mas não avistamos nenhum. Chegando a Point St. Helena, em 2º Sul, com o vento nos empurrando para Oeste, partimos para as ilhas Galápagos...
O sr. Colnett levou a Rattler para as ilhas, observou duas delas, Chatham (San Cristóbal) e Hood (Española), sem muito entusiasmo, retornou ao continente com um vento do Oeste, em meio a uma constante garoa, e desse modo seguiu para o Norte do equador, perdendo as focas e os pinguins que tinham estado tanto tempo com eles e sofrendo a crueldade do calor opressivo.
Na ilha Cocos, bem servida de água e recoberta de vegetação, habitada por mergulhões e fragatas, um descanso muito bem-vindo, apesar da chuva ofuscante e até mesmo neblina— continuou para o litoral da Guatemala, de lá para a inóspita ilha de Socorro, até a Roca Partida, onde os tubarões são tão ferozmente audaciosos e vorazes, que a pescaria é praticamente impossível —, eles comeram quase tudo o que o anzol pegou, inclusive a talha, e um deles saltou para abocanhar a mão de um homem acima da amurada.
No golfo da Califórnia fartaram-se de tartarugas, e ali o cabo de San Lucas era o seu ponto mais extremo ao Norte. Viajaram algumas semanas ao largo das Três Marias, mas, embora tivessem avistado muitas baleias, mataram apenas duas; então, como o pessoal do navio começou a ficar doente, aproaram para o Sul, voltando praticamente pelo mesmo caminho pelo qual tinham vindo, só que passaram muito mais tempo nas Galápagos, onde encontraram um navio inglês prestes a sucumbir por falta de água — só lhe restavam sete barris.
Allen falou das esplêndidas tartarugas de James’ Island (San Salvador) com um tom algo próximo à rapsódia — não existe melhor carne no mundo — e forneceu uma descrição exata, detalhada, própria de um marujo, das correntes curiosamente fortes, as direções das correntes de marés, a natureza dos poucos e indiferentes ancoradouros, os escassos locais para aguada e o melhor modo de cozinhar um iguana; em seguida, sobre as medidas que deviam ser adotadas ao se lidar com as fasquias do toldo, que se partiram nas extremidades após uma forte ventania em 24º Sul, não muito distante, mais uma vez, de Santo Ambrósio e São Félix. Falou de mais algumas baleias avistadas e perseguidas — geralmente com pouco sucesso e uma das vezes, com a perda de duas embarcações miúdas e então, tendo levado novamente a Rattler a contornar o Horn, dessa vez com um tempo muito melhor, e subido até St. Helena, levou sua narrativa a um brusco final:
— Alcançamos Eddystone, depois Portland, durante a noite, permanecemos ao largo até amanhecer e seguimos para fundear em Cower Road, ilha de Wight.
— Obrigado, sr. Allen — disse Jack. — Agora tenho uma ideia mais clara do que existe adiante. O relatório do comandante Colnett foi fornecido aos navios-baleeiros, imagino.
— Ah, sim, senhor, e eles seguiram as recomendações dele em relação às ilhas, principalmente a James, nas Galápagos, e a Socorro e a Cocos. Mas atualmente, quando o sol atravessa a linha do equador, levando tempo ruim para o largo da costa do México, os baleeiros tendem a guinar em direção oeste, para as Society Island, ou mais distante ainda, para a Nova Zelândia.
Houve muitas outras perguntas, principalmente sobre as fasquias{60} do toldo, as curvas do beque e as tábuas do quebra-mar de bordo, que fascinaram bastante os marinheiros, e então Stephen perguntou:
— E como passou o seu pessoal, em questões de saúde, durante essa longa viagem?
— Ah, senhor, nós tínhamos o melhor dos cirurgiões a bardo, uma alegria para todos nós, o sr. Leadbetter. Com exceção de James Bowden, que morreu quando um bote virou na arrebentação, ele trouxe todos de volta para casa sãos e fortes, apesar da propensão, algumas vezes, a ficarem desanimados e desgostosos, por tantas decepções que tivemos com as baleias, e aqueles que, lamentavelmente, adoeceram de escorbuto entre o Horn e St. Helena; mas o sr. Leadbetter os curou com pó de James{61}.
Após fazer alguns comentários acerca de depressão e escorbuto, espírito e matéria e a influência que uma batalha normal de esquadra tem sobre a constipação, o resfriado comum e até mesmo a catapora, Stephen pediu:
— Por favor, senhor, poderia nos falar algo sobre a anatomia do cachalote?
— Ora, mas é claro, senhor — disse Allen. — Por acaso, posso lhe falar um pouco. O sr. Leadbetter era um homem muito ansioso por conhecimento, e, já que sempre inspecionávamos as entranhas das baleias, atrás de âmbar gris...
— Âmbar gris? — Exclamou Pullings. — Sempre pensei que era encontrado flutuando no mar.
— Ou largado na praia — emendou Mowett. — Quem não conhece / Aquela ilha feliz, onde o enorme limão cresce, / Onde a brilhante pérola e o coral louvamos / Sobre a rica praia onde o âmbar gris encontramos?
— O nosso primeiro-imediato é poeta — avisou Jack ao ver o olhar surpreso de Allen. — E, se Rowan tivesse conseguido vir de Malta, nós teríamos dois. Rowan compõe no estilo moderno.
Allen disse que realmente teria ficado bastante encantado e continuou:
— Certamente podemos encontrá-lo na praia, se tivermos sorte... John Roberts, por exemplo, do Thurlow, um mercante das Índias Orientais, caminhando ao longo da costa, na ilha de São Tiago, enquanto o seu navio recebia aguada, encontrou uma pelota pesando duzentas e sete libras, seguiu direto para casa, vendeu-a em Mincing Lane, comprou uma propriedade do outro lado de Sevenoaks e seguiu imediatamente para lá em sua carruagem.... Mas isso foi devido primeiro à baleia.
— Nesse caso — quis saber Pullings —, por que o âmbar gris nunca é encontrado nas altas latitudes, onde há baleias tão gordas quanto pudim de farinha?
— Porque somente os cachalotes se interessam pelo âmbar gris — explicou Allen —, e eles não sobem tão ao Norte das águas. As baleias que se vêem por lá são algumas poucas francas, e todo o resto é formado por aqueles velhos perversos rorquais{62}.
— Talvez os cachalotes encontrem o âmbar gris no leito do mar e o comam — sugeriu Jack. — As baleias-francas ou os rorquais nunca conseguiriam fazer tal coisa, com toda aquela barbatana no caminho.
— Talvez, senhor — concedeu Allen. — Mas o nosso cirurgião era de opinião que isso se originava nas próprias baleias, embora não conseguisse imaginar como —, o fato é que era ceroso e, como ele diria, não pertencia ao reino animal, e isso o intrigou até o fim.
— E o senhor encontrou algum ao inspecionar intestinos de baleias? — Perguntou Stephen.
— Só um pouquinho, receio — disse Allen —, e isso só em uma. Era difícil fazer uma busca mais completa, já que as pelávamos todas, ou quase, no mar.
— Eu nunca vi âmbar gris — falou Mowett. — Com que parece?
— Uma massa lisa arredondada, sem uma forma particular — explicou Allen. — Mosqueada de preto ou cinza marmóreo, assim que é retirada, um tanto cerosa e com um cheiro forte, não muito pesada. Depois de algum tempo, a cor fica mais clara, ela endurece e o cheiro se torna suave.
— Ovos e âmbar gris era o prato favorito de Carlos II — observou Martin.
— Aposto como vale seu peso em ouro — disse Pullings.
Refletiram um pouco sobre isso, lentamente passando em volta a decantadeira{63} de brandy{64}, e então Allen prosseguiu.
— Pois bem, quando abríamos uma baleia e o tempo permitia, o sr. Leadbetter aproveitava a oportunidade para olhar sua anatomia.
— Excelente. Muito bem — exclamou Stephen.
— E, como éramos amigos íntimos, eu o ajudava. Gostaria de poder me lembrar de um décimo das coisas que ele me explicou, mas isso já faz muito tempo. Dentes apenas na maxila inferior, disso eu me recordo; as duas narinas unidas e formando um único buraco valvulado de exalação e, portanto, um crânio assimétrico; apenas mais do que um vestígio de pélvis, sem clavículas, sem vesícula biliar, sem ceco...{65}
— Sem ceco? — Estranhou Stephen.
— Não, senhor, nenhum mesmo! Lembro-me que, num dia tranquilo, com a baleia flutuando calmamente ao lado do navio, enfiamos a mão por toda a extensão do intestino, no todo, cento e seis braças...
— Oh, não — murmurou Jack, empurrando o cálice para longe.
— ... sem mesmo encontrar um vestígio dele. Nada de ceco; mas, por outro lado, um coração enorme, noventa centímetros de comprimento. Lembro-me de como colocamos um numa rede e o içamos para bordo; ele mediu e calculou que bombeava cinquenta litros de sangue em cada batida... a aorta tinha trinta centímetros de largura. E lembro que, em pouco tempo, nos acostumamos a ficar de pé no meio das entranhas imensas e quentes, e que certo dia abrimos uma que tinha dentro um filhote, e ele me mostrou o cordão umbilical, a placenta e...
Jack abstraiu a mente do relato de Allen. Ele tinha visto mais sangue derramado em meio ao ódio do que a maioria dos homens e não era injustificadamente melindroso, mas não conseguia suportar a carnificina serena. Pullings e Mowett tinham quase a mesma disposição de espírito, e logo Allen se deu conta de que no geral o seu discurso não estava agradando ao pessoal na câmara, e mudou de assunto.
Jack emergiu do devaneio ao ouvira palavra "Jonas" e por um confuso momento pensou que estiverem falando de Hollom. Mas percebeu que Allen acabara de dizer que, em vista de sua anatomia, não havia dúvida de que fora um cachalote que engolira o profeta... eles, às vezes, são encontrados no Mediterrâneo.
Os marinheiros, felizes por terem sido libertados da trompa de Falópio e das secreções biliares, comentaram sobre cachalotes que haviam visto no estreito, dos Jonas que conheceram, do terrível destino de navios nos quais Jonas viajaram, e a recepção de Jack terminou de uma maneira mais civilizada, indo do mar para a terra — peças a que assistiram, bailes a que compareceram, e um relato, passo a passo, de uma caça à raposa, na qual Mowett e os cães de caça do sr. Ferncy certamente acabariam apanhando sua presa, se ele não tivesse mergulhado num escoadouro da campina depois que escureceu.
Mas, embora a câmara tivesse escapado de detalhes mais horríveis, a praça d’armas, não: ali o mestre-arrais livre da presença do comandante e apoiado — aliás, estimulado — pelo cirurgião e pelo capelão, contra a desaprovação dos companheiros de rancho, pôde recitar toda a anatomia que sua considerável memória retivera; e, em todo caso, o sr. Adams, o comissário, que tinha predisposição para a hipocondria, gostou de ouvir; ao passo que qualquer coisa que, mesmo remotamente, tocasse em assuntos sexuais fascinava Howard dos fuzileiros.
Nem todos os detalhes, porém, eram horríveis e nem mesmo anatômicos.
— Tenho lido relatos de viagens para o Norte e de caça à baleia — declarou o sr. Martin —, mas nunca consegui formar uma ideia clara sobre a economia da pesca da baleia. Desse ponto de vista, como o senhor compararia as pescas dos mares do Norte e do Sul?
— Quando eu era jovem — começou Allen —, antes da pesca nas águas da Groenlândia minguar, costumávamos achar que cinco bons peixes pagavam a viagem. Em média, podíamos conseguir treze toneladas de óleo de cada e perto de uma tonelada de barbatana; e, naqueles dias, uma tonelada de barbatana alcançava cerca de quinhentas libras. O óleo valia vinte libras a tonelada, ou pouco mais, e ainda havia a recompensa para o navio de duas libras por tonelada, e você acabava com, talvez, quatro mil e quinhentas libras. Isso era para ser dividido entre cerca de cinquenta pessoas, e, é claro, o navio tinha a parte dele; mesmo assim, era uma viagem razoavelmente lucrativa. Mas agora, embora o óleo tenha subido para trinta e duas libras, a barbatana caiu para não mais do que noventa, as baleias são menores e em número menor e estão mais distantes, portanto são necessárias quase vinte para a viagem não ser perdida.
— Não fazia ideia de que barbatana era tão caro — comentou o intendente. — Para que era usada?
— Roupas elegantes — respondeu Allen. — Roupas elegantes feitas por modistas e costureiras. E guarda-chuvas.
— E qual é a comparação que existe com a pesca feita no Sul? — Quis saber Martin. — Pois, se a única presa é o cachalote, a barbatana está fora de questão no Sul. A viagem deve ser feita exclusivamente por causa do óleo.
— E é —, confirmou o mestre-arrais. — E quando se leva em conta que, em média, cachalotes não fornecem mais do que duas toneladas de óleo, ao passo que uma boa baleia da Groenlândia fornece dez vezes mais, e também barbatana de primeira, isso parece um empreendimento insensato; pois, embora o óleo do cachalote alcance algo como o dobro do óleo comum, e o material da cabeça, o espermacete, cinquenta libras a tonelada, isso não compensa pela falta de barbatana. Oh, maldita a minha... Digo, puxa vida.
— Por favor, explique a aparente contradição — pediu Stephen.
— Bem, doutor — disse Allen, sorrindo para ele com toda a benevolência de um conhecimento superior; não, sabedoria superior —, não percebe que isso é devido ao tempo disponível? No oceano Ártico, na área de pescada Groenlândia, partimos no início de abril, para atingir a margem de gelo um mês depois. Em meados de maio as baleias chegam e em meados de junho vão embora, deixando para trás nada mais do que os malditos rorquais e alguns poucos golfinhos, que não permanecem nem aqui nem ali.
Se você não encheu metade dos barris, precisa rumar em direção a Oeste pela costa da Groenlândia e tentar a sorte, em meio ao gelo flutuante, por algo que valha a pena, até agosto, mas a esta altura, já está tão frio e escuro que você tem de voltar para casa. É quase a mesma coisa no estreito de Davis, embora você consiga se demorar um pouco mais no estreito, se não ligar para o risco de ficar congelado ali até o ano seguinte, o seu navio ser esmagado e talvez você ser devorado por ursos polares. Por outro lado, o cachalote vive em águas temperadas e tropicais, como sabe, e pode caçá-lo à vontade. Hoje em dia a maioria dos baleeiros do Sul planeja ficar fora três anos, matam talvez duzentas baleias e voltam para casa com o navio cheio.
— Claro, claro — exclamou Stephen batendo com a mão na cabeça. — Que bobagem a minha. — Virou-se para o criado atrás de sua cadeira e falou — Pode apanhar a minha charuteira, Padeen? — E para o mestre-arrais; — Sr. Allen, não deseja dar uma volta pelo convés? O senhor mencionou duas vezes o rorqual com grande desaprovação, e o sr. Martin e eu ficaríamos gratos se aprofundasse mais esse seu ponto de vista.
— Estarei com os senhores dentro de cinco minutos —, prometeu o mestre —, logo após eu passar a limpo a minha observação da passagem meridional do sol e plotar a posição na carta.
Esperaram por ele perto da mesa das enxárcias de boroeste, e, após algum tempo, Stephen comentou:
— Se houvesse ao menos uma folha de grama à vista ou uma ovelha, poderíamos talvez chamar isto de uma cena pastoral.
Exalou um bafejo de fumaça, que flutuou adiante, uma massa coerente acima do poço do navio, pois a brisa continuava em direção à popa, soprando com tão invariável alento que o número incontável de camisas, calças, jaquetas e lenços, pendurados no complicado sistema de cabos, montado de proa a popa, inclinava-se todo em direção ao Sul, ao mesmo tempo e de modo ordenado, como soldados formados em parada, sem oscilação arbitrária, sem irregularidade.
Com uma sobriedade bem semelhante, seus proprietários estavam sentados aqui e ali no castelo de proa e em meio aos canhões do convés principal; era uma tarde de reparos e remendos e, para os novos tripulantes, isso pelo menos significava transformar em roupas para clima quente, os metros e metros de brim que lhes haviam entregue naquela manhã. Tampouco eram apenas os marujos do mastro do traquete que estavam ocupados com suas agulhas.
No talabardão de bombordo, um dos novos meninos, William Blakeney, filho de Lord Garron, aprendia a cerzir suas meias, sob os olhares da senhora da praça d’armas, um tripulante barbudo que havia servido com seu pai e, seguindo o curso natural das coisas, agora agia como seu papai no mar, um excelente cerzidor que, em sua época, cuidara das toalhas de mesa do almirante. Enquanto isso, Hollom, sentado na escada de bombordo, mostrava a um outro pirralho a melhor maneira de cerzir um bolso, cantando baixinho para si mesmo, enquanto o fazia.
— Que bela voz tem aquele jovem — observou Martin.
— Tem mesmo — concordou Stephen, ao ouvir mais atentamente; era de fato admiravelmente melodiosa e afinada, e baladas cansadas e velhas soavam frescas, novas e comoventes. Curvou-se para adiante e identificou o cantor. "Se ele continuar progredindo desse modo", refletiu, "os homens logo vão parar de chamá-lo de Jonas".
Nos primeiros dias, Hollom havia comido vorazmente, engordando com espantosa rapidez; não mais aparentava uma magreza tumular, nem parecia absurdamente velho para um ajudante de navegação; — aliás, poderia inclusive ser considerado bonito por aqueles que não exigem uma grande dose de determinação e energia masculinas —, e a pobreza e a má sorte não mais transpareciam de suas roupas. Recebera um adiantamento sobre o salário, o suficiente para tirar do prego o seu sextante e comprar um casaco bastante bom, e como aquela era a latitude para pantalonas de brim e jalecos — os oficiais não usavam uniforme, exceto para visitas à câmara ou para cumprir quarto — ele se parecia exatamente como qualquer outro, já que era excepcionalmente hábil com a agulha.
Ranchava com Ward, o consciencioso, calado e um tanto desinteressante escrivão de Jack, um homem que vinha economizando havia anos para depositar a fiança exigida antes de poder se tornar um intendente, sua máxima ambição, e com Higgins, o novo assistente de Jack. Hollom não se destacara por qualquer demonstração extraordinária de habilidade ou atividade válida durante os impetuosos dias de aparelhagem do navio, mas em compensação nada fizera para que Jack se arrependesse de tê-lo aceitado a bordo. Cantou All in the lowland sea, ho, fazendo o último verso e a costura terminarem juntos.
— Pronto — disse ele ao menino —, você termina agora fazendo seis voltas e dando um nó na última. — Cortou a linha e entregou o carretel e a tesoura ao garoto, dizendo: — Corra até o artilheiro-chefe e devolva isto à sr.ª Horner, com os meus melhores cumprimentos e agradecimento.
Stephen sentiu uma leve fuçada na mão e, ao olhar para baixo, viu que era Aspásia, a cabra da praça d’armas, que veio lembrá-lo do seu dever.
— Está bem, está bem —, disse ele, irritado, dando uma última tragada no charuto. Apagou a ponta incandescente numa malagueta{66}, limpou-a com uma esfregadela e deu o toco a Aspásia. Esta caminhou silenciosamente de volta para a sombra dos galinheiros perto da roda do leme, mastigou-a, os olhos semicerrados e, ao avançar, cruzou o caminho do mestre-arrais, que vinha chegando apressado.
— Lamento tê-los feito esperar — disse ele. — Tive de ajeitar a minha pena.
— Não foi nada — disseram os dois.
— Bem —, retomou ele o assunto—, quanto aos velhos rorquais, cavalheiros, existem quatro tipos principais, e nada de bom se pode dizer de nenhum deles.
— Por que, sr. Allen? — Indagou Martin, com um tom de censura; ele não gostou de ouvir uma parte tão grande da criação sendo condenada.
— Porque, se você enfiar o arpão num rorqual, ele é capaz de transformar o seu bote em palitos de fósforos, ou mergulhar tão fundo e correr tão depressa que ou carrega você para o fundo ou leva toda a sua linha; nunca houve uma criatura tão grande e tão veloz... Já vi um deles correr a trinta e cinco nós, cavalheiros! Trinta metros de comprimento e sabe Deus quantas toneladas correndo a trinta e cinco nós, duas vezes mais rápido do que um cavalo a galope! Só acredita quem vê com os próprios olhos, E se, por uma sorte extraordinária, você matar um deles ou, o que é mais plausível, pegar um que esteja encalhado, sua barbatana é tão curta, ordinária e quase toda preta que os comerciantes sequer lhe farão uma oferta; e o peixe nem vai lhe render mais do que cinquenta barris de óleo medíocre.
— Ele não pode ser culpado por se ofender com um arpão — observou Martin.
— Lembro-me da minha terceira viagem — prosseguiu Allen, sem escutar. — Estivamos próximo da costa da Groenlândia, perto do final do ano, pois não tínhamos completado nem a metade do nosso porão. Tempo ruim, vagalhões vindos do Norte, fazendo o gelo quebrar ruidosamente, uma noite de frio terrível se aproximando, e uma das nossas embarcações arpoou um rorqual. Porque foram fazer aquilo, não consigo imaginar. Edward Norris, o arpoador, era um baleeiro experiente, e mesmo um marinheiro de primeira viagem é capaz de identificar um rorqual pelo esguicho... bem diferente da baleia-franca. E você pode ver sua barbatana traseira, quando ele aflora e mergulha novamente. Do qualquer modo, você o vê claramente, quando está perto o bastante para enfiar-lhe o ferro.
Mas, seja lá o que aconteceu, por causa de neblina ou das ondas, ou do vento nos olhos do arpoador, lá estavam eles, pegando um rorqual. Levantaram a bandeira, pedindo mais arpoeiras, e as agarraram, uma após outra; uma manobra complicada, com a linha correndo tão depressa que fez o cabeço chamuscar e chiar enquanto você despeja água nele. O rorqual levou embora quatro barris cheios de arpoeiras e parte de um quinto, quase 1,6 quilômetros de linha; e ficou mergulhado uma porção de tempo, talvez meia hora. Quando emergiu, o velho Bingham, o patrão, enfiou-lhe imediatamente a lança, e isso foi o fim. Ele deu um esguicho vermelho, jogou a cauda para cima e disparou para Sul uma quarta Oeste, como um cavalo de corrida.
Todos eles gritaram por socorro... Vimos a embarcação disparar à frente, espirrando espuma de ambos os lados e ir cada vez mais depressa no meio das trevas... O que havia acontecido com eles, não soubemos dizer... Talvez uma coca da linha tenha se enroscado na perna de um dos homens, e ele estivesse meio corpo para fora da borda, e por isso não ousaram cortá-la, ou talvez um nó se prendeu na fenda de uma tábua do costado... De qualquer modo, um momento depois, lá foram eles mergulhando, rebocados para baixo do gelo, seis homens, e nunca mais vimos sequer vestígios deles, nem mesmo um chapéu de pele flutuando.
— O cachalote não é tão veloz nem tão formidável, creio eu — observou Stephen, após uma pausa.
— Não. Poderia ser, com aquela mandíbula terrivelmente grande. Poderia quebrar em dois um bote-baleeiro num piscar de olhos. Mas raramente faz isso. Às vezes faz você em pedaços com a cauda, ao se debater ou se agitar em sua agonia de morte; mas não faz isso de propósito. Não há maldade nele. Ora, nos primórdios, quando os navios-baleeiros pouco navegavam nos grandes mares do Sul, eles ficavam ali, boiando, olhando para você, de forma bondosa e curiosa, com aqueles olhinhos. Já toquei num, há muito tempo, toquei-o com as minhas mãos.
— Baleias não atacam, se não forem provocadas? — Quis saber Martin.
— Não. Talvez se choquem com você e a deixem assustada, mas isso é porque estão dormindo.
— O que sente quando mata uma criatura tão enorme... quando tira uma vida tão grande?
— Bem, eu me sinto mais rico — disse Allen, dando uma gargalhada. Em seguida: — Não, eu entendo o que quer dizer. Tenho pensado às vezes...
— Terra à vista — gritou o vigia lá do alto. — Ó do convés. Terra alta a uma bochecha{67} a través de boreste.
— Deve ser o pico — observou o mestre-arrais.
— Onde? Oh, onde? — Exclamou Martin. Saltou para a mesa de malaguetas{68}, mas, inseguro, caiu para trás, com o calcanhar e grande parte do seu peso sobre o dedão e o dedo médio do pé esquerdo de Stephen.
— Siga a direção do gurupés{69} — orientou o mestre-arrais, apontando —, e um pouco mais à direita, entre duas camadas de nuvens, poderá ver a parte do meio do pico, um branco brilhante.
— Estou avistando a Gran Canária! — Exclamou Martin, seu único olho cintilando com um brilho suficiente para dois. — Meu caro Maturin — com o mais solícito dos olhares —, espero não tê-lo machucado.
— De modo algum, de modo algum. Não há nada na vida de que eu goste mais. Mas permita-me dizer-lhe que não é a Gran Canária, mas Tenerife, e que não havia necessidade de você dar um salto daqueles. Se conheço alguma coisa do serviço, você não terá permissão de ir a terra. Não verá o pássaro canário, grande ou pequeno, no seu urzal{70} nativo.
Profetas do Juízo Final quase sempre estão certos, e Martin viu da ilha apenas o que era possível enxergar da gávea do grande, com o Surprise permanecendo ao largo, enquanto a lancha ia e voltava, através da aglomeração de navios mercantes, para trazer um homem pardo, gordo e jovial, carregado de suas próprias panelas de cobre, com a garantia de competência para fazer pudins de Natal e tortas de picadinho de carne para o comandante Aubrey, da parte do seu velho amigo, o atual governador da cidade.
— Não se preocupe — disse Stephen. — Há a grande probabilidade de nos reabastecermos de aguada em uma das ilhas de Cabo Verde. Como gostaria que fosse em São Nicolau ou Santa Luzia. Entre elas há uma ilhota desabitada chamada Branco, que tem um papagaio-do-mar próprio dela. Um papagaio-do-mar diferente de todos os outros papagaios-do-mar, e nunca vi um desses vivo.
Martin animou-se.
— Quanto tempo acha que levaremos até chegar lá? — Perguntou.
— Ah, não mais de uma semana, mais ou menos, assim que sofrermos a influência do alísio. Sei que ele às vezes começa a soprar ao Norte das Canárias, e nos impele para o Sul, com escota{71} folgada através da linha do trópico e quase ao próprio equador; algo em torno de duas mil milhas, com escota folgada!
— O que é uma escota folgada?
— O que é realmente? Segundo me recordo, Johnson define uma escota como o maior cabo de um navio, e talvez seja desejável que esse cabo não fique retesado. Ou talvez essa não passe de uma das expressões poéticas usadas pelos marujos; em todo caso, sua utilização dá a impressão geral de um excelente e livre progresso, sem esforço. A linguagem deles geralmente é altamente figurativa. Quando chegam à imensa zona de calmarias e ventos variáveis, que fica em alguma parte ao Norte do equador, entre os alísios de nordeste e de sudeste, a zona que o marinheiro francês chama tão enfaticamente de pot-au-noir, pote de breu, dizem que o navio se encontra na doldrums, a zona de calmarias equatoriais, como se estivesse deprimido, profundamente melancólico, e ele permanece ali, indolente com as velas panejando, em meio à umidade e ao calor opressivo, sob um céu nublado.
Nessa ocasião, no entanto, o céu estava perfeitamente claro, e o Surprise, embora sem ter recuperado de todo a sua natureza alegre, pois que ainda havia muitos patifes verdadeiramente ineptos para se lidar, estava longe da tristeza e do desânimo. Em 28º 15’ N, ele passou a receber a influência do vento alísio, e, apesar do fato de que este absolutamente não fosse vigoroso, toda a tripulação passou a antegozar as modestas delícias de Cabo Verde, aquelas ilhas crestadas, enegrecidas, insuportavelmente áridas e quentes.
O navio mantinha-se na firme rotina de navegação em mar aberto. O sol, elevando-se um pouco a ré do través de bombordo e um pouco mais quente a cada dia, secou os recém lavados conveses no instante em que nasceu e depois ficou observando a sequência dos eventos — toques de apitos para ferrar as macas, toques de reunir para o desjejum, a coberta-dormitório lavada e arejada, os novos tripulantes direcionados para o exercício com os canhões de longo alcance ou rizar{72} as velas da gávea, os demais para embelezar o navio, a altitude dos astros observada regularmente, a latitude e o seu avanço determinados, a passagem meridiana do sol calculada, o toque de reunir para o rancho, a cerimônia da mistura do grogue pelo ajudante de navegação — três partes de água, uma de rum, e as devidas proporções de suco de limão e açúcar —, a batida de tambor, uma hora mais tarde, pana o rancho da praça d’armas, depois uma tarde mais tranquila, com ceia e mais grogue às seis badaladas, e o guarnecimento dos postos de combate um pouco depois, o navio pronto para ação e toda a guarnição em seus postos.
Isso raramente se encerrava sem pelo menos um disparo de canhão, pois, ainda que a manobra habitual de levar e retirar os canhões à posição fosse de grande valia, Jack estava convencido de que nada seria capaz de se igualar a um estrondo de verdade e ao coice de um disparo para preparar os homens para batalha, sem falar que lhes ensinava a apontar a boca na conteira{73} certa. Ele acreditava piamente na ciência da artilharia: dispunha de um estoque particular de pólvora (a quota oficial era por demais escassa para um treinamento de verdade), a fim de manter treinadas suas guarnições de canhões; e, como poucos dos egressos do Defender conheciam alguma coisa do assunto, a maior parte de sua pólvora ia para eles, de modo que, geralmente ao final do quarto de 16:00 às 20:00, o crepúsculo era iluminado por furiosas línguas de fogo, o navio, uma pequena tempestade solitária, perdida na vasta face do sereno, tranquilo e encantador oceano, uma pequena tempestade que produzia nuvens, estrondos e luz laranja.
Um oceano sereno demais para o gosto do comandante Aubrey, Ele teria preferido duas ou três fortes rajadas de vento Norte do início da viagem — rajadas de uma violência curta o suficiente para derrubar qualquer vergoneta{74} importante, é claro —, e isso por muitos motivos: primeiro porque, conquanto tivesse pelo menos um mês ou mais, provavelmente umas seis semanas disponíveis, queria ainda mais, pois estava convencido de que no mar nunca se tinha tempo disponível de sobra; segundo, por causa de seu singelo amor por tempo borrascoso, ventos tempestuosos, mares monstruosos, e o navio enfrentando tudo com uma ínfima seção de pano de temporizado nas últimas; e terceiro, porque uma forte e estrondosa rajada, com mastaréus derrubados no convés e o navio equipado com cabos-guia de proa a popa, com duração de dois ou três dias, era quase tão boa quanto uma batalha para que uma tripulação heterogênea se unisse.
E ela precisava se unir, refletiu; aquele foi o último quarto de serviço do dia e, como o exercício havia sido excepcionalmente bom, a guarnição teve permissão para dançar e brincar. Brincavam agora de rei Arthur no castelo de proa: um homem usando uma tigela do rancho à guisa de coroa, enquanto vários outros lhe jogavam baldes de água, até que, com gestos grotescos, caretas ou ditos chistosos, conseguisse fazer um deles rir, e o risonho, por sua vez, era obrigado a tomar o seu lugar. Tratava-se de uma brincadeira muito antiga e popular, quando o clima esquentava, e causava uma infinita hilaridade entre aqueles que não eram penalizados por terem rido; mas depois que Jack, seguido por Pullings, avançou alguns passos pelo talabardão, em parte para observar a diversão e em parte para raspar um brandal{75} na esperança de sentir um aumento na débil brisa (um gesto bárbaro tão antigo ou mais do que a brincadeira), notou que quase ninguém do pessoal do Defender participava, nem mesmo das risadas. Numa pausa entre as baldadas, o rei Arthur avistou o comandante ali perto, empertigou-se e bateu com o nó do dedo na coroa; era um jovem e esperto gajeiro chamado Andrews, a quem Jack conhecia desde que ele era aluno da Marine Society.
— Prossigam, prossigam — disse Jack.
—Antes preciso tomar fôlego, senhor — retrucou Andrews amavelmente. — Nessa última ampulheta ou mais, andei esguichando mais do que uma orca.
Em meio ao silêncio momentâneo, um guincho bastante curioso e uma voz inumana, em nada diferente da de Punch ou Judy{76}, falou:
— Eu vou lhe dizer o que há de errado com este navio. As pessoas não são amigáveis. E o pessoal do Defender é eternamente o escolhido. Serviço extra, exercício extra, jornadas duplas de trabalho: são sempre eles os escolhidos, dia e noite. Tom Pipes{77} tripudia da gente; e as pessoas não são cordiais.
A tradição de não denunciar era tão forte que todos, exceto os homens do mastro do traquete{78} muito estúpidos, baixaram a vista ou olharam além da amurada, ou acima, para o céu escuro, com intencionais rostos inexpressivos, e até os muito estúpidos, após olharem boquiabertos por um momento para o orador, fizeram o mesmo. O orador era obviamente Compton, o ex-barbeiro do Defender, sua boca mal se moveu, e ele olhava além da amura, com uma expressão abstrata, mas o som veio diretamente dele; e, quase que imediatamente Jack lembrou-se que ele era ventríloquo — o tom de voz extraordinário, sem dúvida, fazia parte do número. As palavras pretendiam ser anônimas, impessoais; a ocasião não era oficial, como bem poderia ser qualquer coisa a bordo; e, apesar do óbvio desejo de Pullings de esganar o sujeito, era melhor que o incidente fosse deixado de lado.
— Prossigam — repetiu para os que estavam ao redor do rei Arthur e olhou meia dúzia de baldes serem despejados antes de caminhar de volta para o tombadilho em meio à crescente escuridão.
Na cabine, naquela noite, enquanto afinavam as cordas, Jack perguntou:
— Você já ouviu um ventríloquo, Stephen?
— Já. Foi em Roma. O sujeito fez a estátua de Júpiter Amon falar, e você seria capaz de jurar que as palavras vinham do deus, se pelo menos o latim dele fosse um pouco melhor. O pequeno aposento escuro, as palavras proféticas pronunciadas com uma profunda voz solene... Foi excelente.
— Talvez o lugar tenha que ser fechado, talvez se aplique o princípio da galeria acústica. Em todo caso, não funciona num convés. Mas o sujeito achou que funcionava. Foi a experiência mais estranha: ali estava ele, dizendo coisas na minha cara, como se fosse invisível, e eu conseguindo vê-lo tão evidente como...
— Um às de espada?
— Não. Não tanto assim. Tão evidente como... Diacho! Tão evidente como a palma da minha mão? Uma barreira de pedágio?
— A esfera celestial de Salisbury? Um arenque defumado?
— Talvez? Em todo caso, o pessoal do Defender deu-me a entender que está infeliz.
O gato do mestre do navio desceu pela gaiúta{79} aberta: era um gato franzino jovem, de temperamento indiferente, de certo modo indecoroso e, imediatamente, começou a se roçar nas pernas deles, ronronando.
— Isso me faz lembrar — disse Jack, distraidamente puxando a cauda do bicho. — Hollar vai lhe pedir a sugestão de um nome para ele, que seja de fato excelente, um nome clássico, de acordo com a fama do navio. Ele acha Bichano ou Gatinho muito fraco.
— O único nome possível para o gato de um mestre de navio é Açoite — retrucou Stephen.
A compreensão manifestou-se bem depressa no comandante Aubrey, e sua potente e sonora gargalhada estrondeou, levando o pessoal do quarto de bombordo a sorrir até o distante salto do castelo de proa.
— Ó meu Deus — exclamou, finalmente, enxugando os reluzentes olhos azuis —, como eu gostaria de ter dito isso. Dê o fora, criatura tola — isso para o gato, que agora tinha rastejado para o peito dele e esfregava os bigodes em seu rosto, os olhos fechados num êxtase louco. — Killick, aqui, Killick. Tire este gato daqui. Leve-o de volta para seu camarote. Sabe como é o nome dele, Killick?
Killick detectou o leve tremor na voz do seu comandante e, já que para variar estava se sentindo relativamente bondoso, respondeu que não, não sabia.
— O nome dele é Açoite — disse Jack, explodindo novamente numa gargalhada. — O nome do gato do mestre do navio é Açoite, oh, ha, ha, ha, ha!
— É perfeito — declarou Stephen —, mas em sã consciência, o instrumento em si é algo desprezível e de modo algum é motivo de gargalhadas.
— Martin afirma também isso — disse Jack. — Se dependesse de vocês dois, ninguém seria açoitado e ninguém morreria o ano inteiro, e isto aqui seria um belo lugar de tumultos. Oh, puxa vida, minha barriga está doendo. Mas nem mesmo você pode afirmar que este é um navio onde se açoita; desde Gib não montamos o estrado. Tenho aversão ao açoite tanto quanto qualquer outro homem, só que às vezes é preciso ordenar um castigo.
— Bah! — Fez Stephen. — De qualquer forma, a não ser em uma instituição servil, isso nunca seria permitido. Como é, não vamos tocar a nossa música agora? Vou ter um dia atarefado amanhã.
Amanhã era o dia em que, com toda a probabilidade, o Surprise, mesmo na atual velocidade contida, cruzaria a linha do trópico, um ponto no qual Stephen queria sangrar todos aqueles sob seus cuidados, como precaução contra calenturas e os efeitos do consumo exagerado de carne e da ingestão exagerada de grogue sob um sol quase perpendicular; fosse ele o comandante, toda a guarnição teria de observar uma dieta, de papa e água de aveia entre as latitudes 23º 28’ N e 23º 28’ S.
A sangria iria ocorrer no tombadilho, onde as pessoas seriam reunidas como numa mostra de pessoal, e uma por uma seria marcada para que nenhuma escapasse, saindo de fininho para trás da fileira de cabos ou mesmo se escondendo dentro das próprias aduchas{80} enormes: pois havia alguns que, embora dispostos a derramar sangue em uma batalha, ou mesmo perder o seu próprio, não suportavam a ideia ou a visão de uma incisão proposital.
A tarde seria a ocasião para isso, mas, de manhã bem cedo, ambos os cirurgiões já se ocupavam em deixar seus bisturis e lancetas com um excelente fio. Higgins estava excessivamente desconfiado de seu chefe, como se temesse que, a qualquer momento, o doutor se dirigisse a ele em latim. O conhecimento de Higgins dessa língua e, aliás, como também de boa parcela dos termos médicos em inglês, era tão insignificante que Stephen achava não ser improvável o fato de ele ter tomado emprestado o nome e os diplomas de alguma pessoa habilitada, provavelmente um ex-empregador. Ainda assim, não se arrependia de tê-lo trazido: Higgins já exercitara sua inegável, se bem que não habilitada, perícia dental em duas ocasiões, quando Stephen relutou em operar.
Os homens o viam como uma espécie de prodígio e vários dos velhos e contumazes hipocondríacos do Surprise, marujos totalmente saudáveis que alegavam doença uma vez por semana e tinham de ser consolados com pílulas feitas de greda, corante cor de rosa e açúcar, haviam desertado Stephen. Consultavam Higgins particularmente e, posto que Stephen não se importasse nem um pouco com isso, ficava ligeiramente perturbado por causa de algumas histórias que haviam chegado até ele: o caso da enguia viva supostamente removida dos intestinos de John Hales, por exemplo, não parecia nada ortodoxo, e talvez, no tempo devido, a tendência deveria ser a de refrear. No momento, porém, ele não tinha muita coisa a dizer a Higgins, e Higgins não tinha o que quer que fosse a dizer a ele; os dois remoíam em silêncio.
Três conveses acima de suas cabeças (pois, por mais absurdo que pudesse parecer, trabalhavam à luz de lampião, ao lado do baú de medicamentos, bem abaixo da linha-d’água), o comandante Aubrey caminhava de um lado para o outro sob o sol brilhante, com Pullings a seu lado. Embora o vento ainda fosse fraco, mais fraco do que já vira em alísios do Nordeste, havia um ar de contentamento em seu rosto.
Os conveses lindamente limpos estendiam-se para longe diante dele e estavam repletos de uma moderada e perceptível atividade, enquanto mostravam aos ex do Defender como laborar as talhas dos canhões e, desse modo, ter acesso às suas peças. Do camarote de vante vinha o coro de hic haec hoc dos meninos, e sua hilaridade, brandamente refreada pelo sr. Martin, ao final dos seu seu seu, seu seu seu; após o rancho deles, mas antes do seu.
Jack repassaria com os meninos a tarefa do dia, ou seja, o relatório em separado de cada um sobre a posição do navio na metade do dia, determinada pela altura do sol e a diferença da passagem meridiana do sol no local e em Greenwich, mostrada pelos cronômetros, verificando-se a posição obtida ao compará-la com a posição da navegação estimada. As respostas, às vezes, eram bem absurdas: alguns dos meninos pareciam incapazes de entender os princípios básicos e tentavam improvisar o seu trabalho lançando mão do palpite ou da pura e simples cola; e Boyle, de qualquer modo (apesar de família naval), nunca sabia a tabuada de multiplicar além do cinco.
No todo, porém, era um agradável grupo de garotos, e embora desagradasse a Calamy e Williamson voltar aos livros, depois de terem navegado tanto tempo sem um mestre-escola, e embora tendessem a se gabar e a se exibir diante dos novatos, ele não os achava despóticos. Parecia um alegre alojamento de aspirantes, e o artilheiro-chefe e sua esposa cuidavam muito bem deles. Certamente a sr.ª Horner lavava suas camisas, para ocasiões cerimoniosas como jantar na câmara, melhor do que Killick; ele suspeitava que ela usava água potável.
O coro dos jovens cavalheiros mudou. Estavam agora entoando autos autee auto, e o sorriso de Jack alargou-se.
— É isso que eu gosto de ouvir —, falou. — Eles não serão levados a sotavento{81}, como somos levados, quando alguém nos faz uma citação em grego. Eles responderão de imediato: "Autos, autee, auto{82} para você, amigo velho, Kyrie eleison{83}". E uma educação clássica também e bom para a disciplina, a guarnição respeita isso maravilhosamente.
Pullings não parecia inteiramente convencido, mas Jack estava dizendo o que certamente Mowett pensava do mundo de Homero, quando o gato, que ainda não aprendera a respeitar a santidade do tombadilho, cruzou a sua proa, evidentemente querendo acariciar e ser acariciado.
— Sr. Hollar — chamou Jack, a voz transportada facilmente para o castelo de proa, onde o mestre do navio virava uma bigota{84}. — Sr. Hollar, tenha a bondade de levar o seu Açoite para vante e colocá-lo sob prisão domiciliar; ou coloque-o num saco.
O chiste de Stephen havia muito correra pelo navio, tornando-se ainda mais chistoso com a repetição, a explicação para os burros e a elaboração, e o animal foi levado pelo passadiço sob muitos gritos de "Vamos lá, Açoite"! E muitos sorrisos, pois o Surprise não era um daqueles navios rígidos e sinistros onde um homem não podia falar no convés sem ser chamado à atenção por um superior.
Jack ainda estava sorrindo, quando lembrou que aquele era o dia habitual em que se aplicavam os castigos no navio. Havia algo sério?
— Ah, não, senhor — informou Pullings. — Apenas duas brigas, um bêbado e incapacitado para o trabalho, mas era o aniversário dele, senhor... e umas palavras reprováveis. Nada que um grogue com seis partes de água não resolva. Pensei em deixar isso de lado, já que esta tarde haverá a sangria.
— Estava mesmo para sugerir isso — concordou Jack, e ia determinar algumas modificações na tabela de serviço, para uma melhor integração dos novos tripulantes com os mais antigos do Surprise, a fim de tornar a vida deles um pouco mais fácil, quando deparou com uma visão tão horrível, que isso deteve as palavras em sua boca. Hollom avançava pelo talabardão de bombordo; Nagel, um marinheiro de primeira, mas dos mais rabugentos, empedernidos e dado a discussões do Defender; vinha em direção à popa pela mesma estreita passagem. Ficaram frente a frente, e Nagel passou direto pelo outro, sem tomar o menor conhecimento dele, a não ser por um olhar de estudada indiferença.
— Mestre d’armas — berrou Jack. — Mestre d’armas. Leve esse homem, Nagel, conveses abaixo. Ponha-o a ferros na coberta da guarnição.
Ele estava excessivamente irritado. Era capaz de qualquer coisa para ter um navio feliz, mas nem por um momento aceitaria a deliberada indisciplina; nem por um momento, mesmo que isso significasse administrar a fragata como um navio-presídio para toda a guarnição. Ele ouvira o impetuoso grito de St. Vincent, proferido durante a ocasião de um incipiente motim que ameaçava toda a esquadra: "Eu os farei saudar o uniforme de um aspirante, enfiados num espeque", e ele concordava plenamente com esse princípio. Disse a Pullings:
— Castigaremos os faltosos às seis badaladas, como de costume. — O olhar em seu rosto realmente chocou Howard, fuzileiro, que nunca o tinha visto de outro modo a não ser alegre ou, na pior das hipóteses, impaciente com os atrasos do estaleiro.
Enquanto isso, um mensageiro foi lá embaixo perguntar quando seria conveniente o artilheiro-chefe visitar o dr. Maturin.
— Imediatamente, se ele preferir — disse Stephen, limpando o óleo da última de suas lancetas. — Sr. Higgins, talvez seja melhor o senhor ir cuidar da enfermaria. — Era autorizado, e um privilégio dos oficiais auxiliares consultar o cirurgião em particular, e Stephen tinha poucas dúvidas de que, embora o artilheiro-chefe fosse um homem grande, de ombros largos, moreno, aparência ameaçadora, e com cicatrizes de batalha ele era um daqueles que não gostariam de ser sangrados e estavam dispostos a implorar para se livrar.
De certo modo, ele estava certo, dado que a visita de Horner tinha mesmo a ver com a sangria. Mas, ainda antes de mandar o homem se sentar, Stephen deu-se conta de que havia muito mais do que a simples relutância. Principalmente porque a voz de Horner nada tinha daquele tipo suave, arfante e de autocompaixão, que os marujos achavam dever a si mesmos, ao doutor e à situação, quando vinham consulta-lo como pacientes. De modo algum: o tom de voz de Horner era brusco e tinha uma forte ferocidade subjacente.
Confrontá-lo não adiantaria, pois até agora ninguém no navio havia feito isso. Após alguns comentários genéricos e uma pausa embaraçosa, ele disse que não gostaria de ser sangrado se a perda de sangue o impedisse de fazer aquilo. Achava que nas últimas noites estivera muito perto de fazer aquilo, e se a perda mesmo que fosse de meio quartilho o levasse a falhar mais uma vez, bem... Mas, se a sangria não causasse nenhum problema, bem, o doutor podia até me tirar cinco litros, se quisesse.
Stephen já vinha clinicando havia bastante tempo entre homens que eram igualmente humildes e inarticulados, para não saber os vários significados que "aquilo" podia adotar, e poucas perguntas confirmaram a sua intuitiva compreensão inicial. Homer era impotente. Mas o que perturbou Maturin, fazendo-o temer que era mais do que improvável poder ajudar o seu paciente, foi o fato do este ser impotente somente com a esposa. Horner já havia violentado bastante os seus próprios sentimentos ao fazer essa revelação, e Stephen não quis pressioná-lo para saber a natureza exata das relações entre os dois, no entanto depreendeu que a sr.ª Horner não era particularmente compreensiva; ela nada dizia — eles nunca falavam a respeito —, mas parecia contrariada e dava respostas monossilábicas. Horner tinha quase certeza de que alguém lhe jogara um feitiço e já estivera com dois benzedeiros diferentes, imediatamente após o casamento, para tentar tirá-lo; pagou quatorze libras, mas aqueles sacanas não conseguiram nada.
— Por Deus — exclamou, interrompendo o que dizia —, estão reunindo a guarnição para testemunhar o castigo. Pensei que hoje não houvesse transgressores. Preciso me apressar e vestir o meu melhor casaco. O senhor também deve fazer o mesmo, doutor.
Foi nos seus melhores casacos que eles se enfiaram em seus lugares no tombadilho, um tombadilho todo azul e dourado, com os uniformes de gala, enquanto por ante-a-ré do mastro da gata, e ao longo de ambas as amuradas, os fuzileiros formavam filas roxas, o sol luzindo nos seus brancos alamares e nas baionetas caladas.
Jack já havia dispensado os brigões, o aniversariante bêbado e as palavras reprováveis, com a sentença "Com seis até esta hora da próxima semana", pois, apesar de em todos esses anos Stephen ter-lhe garantido, repetidas vezes, que era a quantidade de álcool que contava, e não a de água, intimamente (como todos os demais a bordo) ele ainda acreditava que o grogue, uma lavagem sem gosto, mais diluída ainda, era muito menos embriagador — e parecia lógico. Agora estava lidando com Nagel.
— O que você fez? Sabe muito bem o que fez — afirmou Jack com uma cólera fria, concentrada e totalmente impassível. — Você passou pelo sr. Hollom no talabardão sem cumprir sua obrigação. Você, um antigo tripulante de navio de guerra... não foi por não saber. O desrespeito, o desrespeito intencional, está a um passo do motim, e motim significa forca, sem sombra de dúvida. Isto não acontecerá neste navio, Nagel. Você sabia o que estava fazendo. Os oficiais dele têm algo a dizer a seu favor?
Não tinham. Hollom, o único que, em nome da decência, poderia ter falado, achou que não seria conveniente fazê-lo.
— Muito bem —, disse Jack. — Montem o estrado. Cabo da guarda, mande as mulheres para baixo.
Aventais brancos sumiram pelo escotilhão de vante, e Nagel tirou lentamente a camisa, com um ar emburrado, ameaçador, perigoso.
— Amarrem-no — ordenou Jack.
— Está amarrado, senhor — informou o contramestre um momento depois.
— Sr. Ward — falou Jack para o seu escrevente —, leia o trigésimo sexto Artigo de Guerra.
Quando o escrevente abriu o livro, todos os presentes tiraram os chapéus.
— Trigésimo sexto — leu, com entonação oficial. — Todos os crimes, fora o capital, cometidos por qualquer pessoa ou pessoas na esquadra, não mencionados neste ato, ou para os quais nenhum castigo e imposto por meio deste, deverão ser punidos de acordo com as leis e costumes utilizados no mar para tais casos.
— Duas dúzias — ordenou Jack, enfiando de volta o chapéu na cabeça. — Faxina do mestre do navio, cumpra o seu dever.
Harris, o principal homem da faxina do mestre, recebeu o açoite das mãos de Hollar e cumpriu seu dever: objetivamente, sem animosidade, no entanto com toda a terrível força que era habitual na Marinha. A primeira chibatada arrancou um "Oh, meu Deus" de Nagel, mas depois disso os únicos sons, além da contagem solene, foram o do sibilar e o do impacto.
"Devo me lembrar de usar a Pomada Patenteada de Mullins", refletiu Stephen. Perto dele, os meninos, que nunca tinham visto ser infligido um sério castigo de açoite, pareciam amedrontados e apreensivos, e mais adiante, no meio da marujada, ele viu o enorme Padeen Colman chorando abertamente, lágrimas piedosas escorrendo pelo seu rosto simplório e bondoso. No geral, porém, as pessoas permaneceram imóveis; para o comandante Aubrey, aquela era de fato uma sentença muito pesada, mas na maioria dos outros navios ela seria ainda mais severa, e a opinião geral era a de que duas dúzias foram justas o bastante — se um sujeito gostava de navegar tão à bolina e sem prestar respeito a um oficial, mesmo se este fosse apenas um infeliz ajudante de navegação sem um centavo no bolso, talvez um Jonas também e, certamente, um péssimo marujo, ora, ele não podia reclamar se fosse apanhado. Essa também parecia ser a opinião de Nagel. Depois que seus pulsos e tornozelos foram desamarrados, apanhou a camisa e foi adiante, até a bomba de proa, para que os companheiros pudessem lavar o sangue de suas costas, antes de vesti-la. A expressão do seu rosto, apesar de sombria, não era de modo algum a de um homem que acabara de sofrer uma afronta intolerável, ou uma injustiça.
— Como odeio esse espancamento — declarou Martin um pouco depois, quando se encontravam parados diante da grinalda de popa, observando os dois tubarões que se haviam juntado ao navio alguns dias antes e que seguiam firmemente ao longo da esteira deste ou sob sua quilha: espertos, experientes e velhos tubarões, que comiam toda a sujeira que lhes era ofertada, mas que desdenhavam terminantemente todos os anzóis com iscas, que eram mantidos, de modo provocador, fundos apenas o bastante para a identificação exata de sua espécie, fundos apenas o bastante para as balas de mosquete que eram despejadas neles, sem efeito, todas as tardes, durante o exercício com as armas portáteis, e os quais estragavam o mergulho matinal do comandante Aubrey. Um só ele até conseguia tolerar, mas se tornara medroso com o passar dos anos, e dois já achava excessivo, principalmente após um incidente muito desagradável com tintureiras do mar Vermelho que fizera recentemente com que mudasse de ideia sobre a raça inteira.
— Eu também — concordou Stephen. — Mas você tem de ver isso de acordo com as leis e os costumes do mar, um lugar razoavelmente brutal. Acredito que, se tivermos a nossa cantoria esta noite, você também vai se alegrar, como se o estrado não tivesse sido montado.
O estrado em questão fora desmontado, e o convés muito bem esfregado, pelo menos meia hora antes disso, pois as oito badaladas estavam apenas a poucos grãos de areia frente, e por todo o convés, logo à ré do mastro do grande, os oficiais e os jovens cavalheiros tinham firmemente o sol em seus quadrantes e sextantes, à espera do momento em que ele deveria atravessar o meridiano. O momento chegou, todos estavam cientes dele. Entretanto, seguindo o antigo ritual, o mestre-arrais falou primeiro para Mowett, e Mowett, aproximando-se do comandante Aubrey, tirou o chapéu e informou-lhe que a hora local parecia ser meio-dia.
— Que assim seja — disse Jack e, portanto, por lei, tornou-se meio-dia. Logo em seguida, ecoaram no navio as oito badaladas, e a guarnição foi reunida para o rancho, mas Stephen abriu caminho por entre o rebuliço em direção ao mestre-arrais, pediu a posição e correu de volta para Martin.
— Saúde este dia, meu caro — disse ele. — Acabamos de cruzar a linha do trópico.
— É mesmo? — Exclamou Martin, enrubescendo de prazer. — Ha, ha! Então estamos nos trópicos, finalmente; e uma de minhas ambições na vida foi satisfeita.
Olhou ansiosamente para o mar e para o céu, como se tudo agora fosse completamente diferente; e por uma daquelas felizes coincidências que recompensam os naturalistas, talvez mais frequentemente do que aos outros homens, um pássaro tropical surgiu voando velozmente com a brisa e descreveu um círculo acima do navio, um pássaro branco acetinado com o peito de um rosa perolado e duas penas de cauda imensamente compridas seguindo-o bem atrás.
Ele continuava ali — ainda observado por Martin, que recusara o jantar para não perder um só instante de sua presença —, algumas vezes fazendo extensas voltas em torno do navio, outras, pairando no alto, e outras, até mesmo pousando na borla do mastro principal, quando Stephen e Higgins começaram a sangrar os tripulantes. Extraíram apenas 30 ml de cada, mas isso, tigela após tigela, totalizou nove bons baldes com uma espuma de extraordinária beleza: eles, porém, tiveram muito mais idiotas, além da quota, que desmaiaram, porque, com a diminuição do vento e o aumento do calor, um repugnante cheiro de matadouro espalhou-se pelo convés; e um deles (um jovem fuzileiro), ao cair, inclusive arremessou-se contra um balde cheio até a borda, fazendo com que mais três derramassem, irritando de tal modo o dr. Maturin, que a meia dúzia seguinte de pacientes foi drenada até ficar quase pálida, como carne de vitela, ao mesmo tempo que eram colocados guardas em volta dos baldes restantes.
Tudo, porém, terminou em uma hora e quinze minutos, pois ambos os cirurgiões eram rápidos com suas lancetas; os desfalecidos foram arrastados para longe, pelos companheiros, para serem reanimados com água salgada ou vinagre, de acordo com o gosto; e, finalmente, fazendo justiça, os cirurgiões sangraram um ao outro. Em seguida, Stephen foi até Martin, cujo pássaro a essa altura já voara para longe, mas não sem antes ter-lhe revelado o bico amarelo e os pés totipalmados{85}, e disse:
— Bem, senhor, creio que devo mostrar-lhe algo que gratificará a mente especulativa, e talvez determine a espécie.
Pediu a Honey que estava de quarto, meia dúzia de anzóis de tubarão com linha bem resistente e, ao mestre do navio, dois pedaços de carne salgada, cada qual do tamanho de um bebê normal. Até esse momento, todo mundo, inclusive o comandante Aubrey e seus oficiais, estivera segurando os braços feridos, com uma aparência grave e preocupada, mas agora Jack se aproximou com muito mais vivacidade nos olhos e perguntou;
— Ora, doutor, o que pretende fazer?
— Espero que o mordedor morda — respondeu Stephen, alcançando as adriças{86} da gata{87}, às quais os anzóis para pesca de tubarão e suas correntes estavam presos. — Mas, acima de tudo, espero determinar a sua espécie; carcharídeo é o gênero, claro, mas a espécie... Onde está Padeen, aquele negro ladrão? Bem, Padeen, amarre os bebês nos anzóis, cuide deles como se fossem os seus e deixe que fiquem embebidos do sangue bom e vermelho, enquanto vou enganar esses vilões lá atrás... à ré... à popa...
Pegou um balde e derramou-o lentamente no embornal mais a boreste; tanto Mowett quanto Pullings emitiram um grito desesperado, ao verem a sua sagrada pintura manchada, mas as mãos que a limpariam seguiram em bandos para ré, com excitados rostos expectantes. E não se decepcionaram: assim que a mancha de sangue (apesar de infinitamente diluída) alcançou os peixes, eles vieram para a superfície, jogando-se rapidamente de um lado a outro da esteira da fragata, as negras barbatanas bem acima da água espumosa. Mais dois baldes, seguindo para ré como uma nuvem rosada, tornaram-nos furiosamente excitados. Foram adiante, para o costado do navio, deixando de lado toda a cautela, atravessaram por baixo da quilha, cruzaram rapidamente a esteira e voltaram, com velocidade e agilidade assustadoras, num momento com a metade do corpo fora da água, no outro, logo abaixo da superfície, deixando-a revolta e espumante.
— Joguem o primeiro bebê — mandou Stephen — e deixem que ele seja fisgado. Pelas suas almas, não a arranquem de sua boca.
O homem que guarnecia a extremidade da linha mal teve tempo de dar uma volta na abita{88}, quando a robusta linha zuniu ao se retesar, o anzol atingindo o alvo em cheio, e o tubarão agitando-se violentamente na alheta{89} de boreste, enquanto o outro, com fúria cega, arrancava grandes pedaços de sua barriga e cauda.
— Próximo bebe! — Gritou Stephen, e despejou o resto do sangue. O puxão do segundo tubarão foi ainda mais forte do que o do primeiro, e os dois juntos deslocaram o Surprise três quadras do seu rumo original.
— E agora, o que faremos? — Indagou Martin, olhando para suas monstruosas e pavorosamente perigosas presas. — Vamos soltá-los? Se os puxarmos, com essa pressão que estão fazendo, certamente destruirão o navio.
— Bem, isso eu não sei dizer — retrucou Stephen. — Mas imagino que o sr. Aubrey saberá.
— Alivie — falou Jack para o timoneiro, que prestava atenção à diversão, distraído do seu trabalho, e para o mestre do navio: — Sr. Hollar, passe duas lais{90} de guia de correr nos laises da verga seca, e espero que os traga para bordo sem estragar as enxárcias.
Consequentemente, foi tamanho o extremo zelo de todos no navio que as enormemente poderosas, muito pesadas e muito ferozes criaturas foram trazidas costado acima sem qualquer dano, e ficaram estendidas ali, no convés, parecendo monumentais e muito mais selvagens, estalando suas terríveis mandíbulas com um som parecido com a batida da tampa de um baú. Todos os marujos que Stephen conhecera tinham um ódio ancestral e arraigado aos tubarões, e aqueles não eram exceção. Exultaram diante dos monstros moribundos e abusaram deles; mesmo assim, Stephen ficou surpreso ao ver um homem tão recentemente açoitado, como Nagel, chutar o maior dos dois e insultá-lo com toda a disposição de que dispunha. E mais tarde, depois que o pessoal do castelo de proa havia cortado a única cauda intacta para decorar a roda de proa da fragata a fim de dar sorte, e quando ele e Martin estavam ocupados com a dissecação, Nagel retornou e perguntou, muito acanhado, se podia ficar com um pedaço, um pedacinho, da espinha dorsal, algo como apenas o osso do final; ele prometera um pedacinho à sua filhinha.
— Claro — disse Stephen. — E pode levar estes também — voltou a dizer, retirando três dentes triangulares (necessários para a identificação da espécie) do bolso.
— Oh, senhor! — Exclamou Nagel, imediatamente envolvendo-os num lenço. — Agradeço a sua gentileza. — Enfiou-os no peito, estremecendo ao fazê-lo, bateu na testa com o nó do dedo e foi avançando com dificuldade, movendo-se com o corpo teso. A meio caminho do talabardão, virou-se o gritou: — Ela vai ficar encantada, excelência.
Nesse dia, pelo menos, Stephen foi exato como profeta. Por ocasião da cantoria da noite, após a batida puramente formal para os postos de combate, a sangria coletiva e a emoção dos tubarões tinham feito esquecer completamente o castigo da manhã.
O cozinheiro os obsequiou com uma balada com oitenta e uma estrofes sobre Barton, o pirata escocês, acompanhada por três berimbaus de boca, e o nascente coro do sr. Martin atacou de forma digna uma parte do oratório que ele esperava apresentar antes de retornarem a águas domésticas. Como passageiro de um dos primeiros navios comandados por Aubrey, um navio de linha, ele levara a parte mais musical da tripulação à pronúncia perfeita e, quase sempre, às notas impecáveis no Messias, e, no Surprise, havia muitos de seus ex-cantores. Ele próprio tinha uma voz desinteressante e não tocava bem nenhum instrumento, mas era um excelente professor, e o pessoal gostava dele. E, depois que o concerto propriamente dito terminou, muitos permaneceram no convés para desfrutar o ar noturno.
Hollom foi um deles; sentou-se no talabardão de bombordo, com as pernas pendendo sobre a meia nau, e de vez em quando dedilhava umas notas no violão de Honey. Procurava uma melodia e, quando a encontrou, cantou a letra duas vezes, bem baixinho, em seguida ajustou o tom e cantou com uma voz clara e suave, como poderia desejar um perfeito tenor. Stephen não prestou atenção à letra até Hollom chegar ao estribilho: Mais tarde ou mais cedo, não sei / a minha rosa em junho desfrutarei, que cantou três ou quatro vezes, com algumas sutis variações, e num curioso tom, que poderia ser descrito como uma divertida certeza. "Uma voz dourada", pensou Stephen, olhando para ele. Observou que, embora Hollom estivesse encarando a amurada oposta, seus olhos estavam, de fato, discretamente voltados para a proa, e, seguindo sua direção, ele viu a sr.ª Horner dobrar sua costura e levantar-se, durante a terceira repetição, com uma expressão desgostosa e revoltada, e dirigir-se para conveses abaixo.
CAPÍTULO QUATRO
Os navios mercantes das Índias foram avistados de manhã cedo, enquanto Jack se encontrava nadando no mar de um puro verde, sem nada abaixo dele ao longo de mil braças, e nada de cada lado de profundidade, além da costa africana a algumas centenas de milhas distante à esquerda, e a ainda mais remota costa americana à direita. Nadava e mergulhava, nadava e mergulhava, deliciando-se com o frescor e o toque estimulante da água pelo seu corpo nu e através dos cabelos flutuantes; sentia-se extremamente bem, ciente de sua força e sentindo prazer nela.
E, durante aquele breve intervalo, enquanto não estava no navio, não precisava pensar nos inúmeros problemas relacionados com o seu pessoal, seu porão, aparelho e avanço, e na escolha do rumo sensato a ser adotado problemas que, a bordo, habitavam perpetuamente sua cabeça; ele amava o Surprise mais do que qualquer outro navio que tivera, mas mesmo assim meia hora de férias dele tinha um certo encanto.
— Venha — gritou para Stephen, que estava de pé no turco{91} do lambareiro{92}, parecendo atormentado e mal-humorado. — A água parece champanhe.
— Você sempre diz isso — murmurou Stephen.
— Vá, senhor — insistiu Calamy. — Não vai demorar muito. O senhor vai gostar, assim que entrar na água.
Stephen benzeu-se, inspirou fundo, segurou o nariz com uma das mãos, tapou um ouvido com a outra, fechou os olhos e saltou, caindo de bunda no mar. Por causa de sua curiosa falta de poder de flutuação, permaneceu mergulhado um tempo considerável, mas finalmente emergiu, e Jack lhe disse:
— Agora o Surprise não conta com ninguém para o gerir verbal ou fisicamente, e nem mesmo para cuidar de suas questões espirituais, ha, ha, ha!
Isso era verdade, pois as embarcações do Surprise estavam todas sendo rebocadas à popa, para que o calor não abrisse suas costuras, e no último vinha o sr. Martin; estavam à beira do mar de Sargaços, e ele já recolhera uma excelente coleção de algas, além de três cavalos-marinhos e sete espécies de caranguejos pelágicos{93}.
— Navio à vista — gritou o vigia, quando a distante neblina clareou com a subida do sol. — Ó do convés: uma vela a duas quartas da bochecha do boreste... duas velas. Um comboio de três navios, sobrejoantes içados.
— Stephen — avisou Jack. — Preciso voltar imediatamente. Consegue alcançar as embarcações, não?
Estavam nadando (se essa podia ser a palavra para o trabalhoso e espasmódico progresso de Stephen, quase sempre sob a superfície) longe do navio, e o lento movimento deste último acrescido ao dos dois fazia com que algo em torno de vinte e cinco ou mesmo trinta jardas separasse o comandante do seu comando, uma distância não longe do limite de Stephen.
— Ah —, disse ele, mas uma ondulação encheu sua boca. Tossiu, engoliu mais água, submergiu e começou a se afogar.
Como de hábito, Jack mergulhou atrás dele, agarrou seu cabelo ralo e puxou-o para a superfície; e, como de hábito, Stephen cruzou os braços, fechou os olhos e deixou-se rebocar, flutuando de costas, Jack abandonou-o na embarcação de Martin, nadou rapidamente para a escada de popa, subiu rapidamente pelo costado e, parando apenas para calçar os sapatos, foi para o topo do mastro. Momentos depois gritou pedindo uma luneta e confirmou sua primeira impressão de que eram mercantes das Índias voltando para casa; em seguida, ao ouvir o gritinho agudo e metálico da sr.ª sargento James, mandou que suas calças fossem mandadas através da gávea do grande.
De volta ao convés, traçou uma derrota para interceptá-los — isso só desviaria o Surprise uma insignificância de sua rota original — e correu para baixo, para participar do cheiro de café, torradas e coisas fritas, bacon entre elas. Stephen já estava lá, levando uma injusta vantagem com as salsichas; e, assim que Jack se sentou, seus outros convidados apareceram, Mowett e o jovem Boyle. De vez em quando aspirantes eram enviados lá para baixo a fim de informar sobre a aparência e o comportamento dos estranhos, e, antes que o festim terminasse, um inconsolável Calamy chegou para dizer que "são apenas mercantes das Índias, senhor; e o comandante Pullings falou que o mais próximo é o Lushington".
— Alegro-me em ouvir isso — disse um exultante Jack. — Por favor, Killick, diga ao cozinheiro que ele hoje precisa fazer um esforço extra: teremos três comandantes da Companhia das Índias para jantar. E pode apanhar uma caixa de champanhe, para o caso de nos encontrarmos cedo. Amarre meia dúzia num cobertor molhado e pendure na verga seca, logo abaixo do lado de barlavento do toldo.
Cedo eles vieram e tarde se foram, rosados e animados, depois de um jantar que se encerrou com o pudim de Natal pelo qual o novo cozinheiro de Jack, com justiça, era tão famoso e com quantidades desmedidas de vinho. Foi um jantar alegre, já que dois dos capitães, Muffit e M’Quaid, em certa ocasião tinham se envolvido numa batalha contra uma esquadra francesa no oceano Índico, juntamente com Jack Aubrey, Pullings e Mowett naquele mesmo navio, e eles tinham muito o que conversar, lembrando um ao outro como o vento mudara de direção e como, em determinado momento, M. de Linois conseguira virar para sotavento e colocá-lo à popa.
Um jantar alegre sem dúvida, mas enquanto os navios se separavam lentamente Jack caminhava de um lado a outro do tombadilho, com uma expressão grave e pensativa no rosto. Muffit, um marujo das Índias Orientais altamente experiente, dissera-lhe que nunca em sua vida tinha visto uma faixa tão vasta de calmarias e ventos variáveis, entre os alísios sudeste e nordeste. Ele e seus companheiros haviam perdido os ventos do sudeste na latitude de 2º N, e isso lhes custara mais de quinhentas milhas de navegação lenta e andar a reboque antes de apanharem o primeiro nordeste de verdade, e este não mais do que medianamente forte.
A pergunta que pesava em sua cabeça era se, em vista do avanço regular do Surprise, ele deveria agora rumar em direção oeste, abandonando as ilhas de Cabo Verde e sua água potável, e contar com a chuva torrencial que costumava cair tempestuosamente entre nove e três graus ao Norte da linha do equador. A água colhida pelas velas e toldos tinha um terrível gosto de cânhamo e breu, e a princípio mal se conseguia tomá-la; mas a vantagem de vários dias poderia ser de suma importância, visto que de modo algum havia a certeza de que o Norfolk pegaria o mesmo vento desprezível. As tempestades naquela faixa, embora às vezes quase inacreditavelmente fortes, eram limitadas em tamanho; antes, ele já havia passado pelos ventos variáveis sem sequer ter-se molhado uma só vez, embora tivesse visto grandes volumes negros de nuvens em ambos os horizontes, ou pequenas tempestades isoladas, aqui e ali, em três ou quatro lugares ao mesmo tempo, com milhas de água desimpedida entre elas; e era horrível pensar no destino de um navio sem água numa calmaria. Por outro lado, o clima daquela região, apesar de quente como o fogo do inferno, era sempre intensamente úmido; não se sentia muita sede, e muito mais água potável era usada para pôr de molho a carne salgada do que para beber.
Sua mente continuava tão envolvida com essas coisas que, quando ele e Stephen estavam tocando naquela noite, seus dedos, que deveriam estar executando um suave pizicato de fundo para o longo solo do violoncelo, num vagaroso (e talvez um tanto enfadonho) movimento que ambos conheciam tão bem, vaguearam até o ponto de uma fácil transição para um outro adágio do mesmo compositor, e só se detiveram por causa de uma chocante dissonância e dos gritos indignados de Stephen: Aonde Jack pensava estar indo? O que pretendia?
— Mil perdões — disse Jack. — Estou na peça em ré menor... andei matutando... mas já me decidi. Com sua licença, um instante. — Foi para o convés, alterou o rumo do estimado navio para sudoeste quarta ao Sul e, ao retornar, declarou com uma expressão alegre: — Pronto. Talvez a gente morra de sede se não chover nas próximas semanas, mas pelo menos não perderemos o Norfolk. Isto é — acrescentou, batendo com a mão na madeira da sua cadeira — agora é menos provável que a gente o perca. Mas, por outro lado, receio que terá de informar ao pobre sr. Martin que ele não verá Cabo Verde.
— O pobre coitado ficará tristemente decepcionado. Ele conhece muito mais insetos do que eu e, ao que parece, em Cabo Verde pulula uma variedade de tetrâmeros{94}, embora possam parecer ameaçadores para a mente pobre, superficial. Eu lhe darei a notícia brandamente. Mas quer que eu lhe diga uma coisa, Jack? Nossos corações não estão na música esta noite. Sei que o meu não está, e acho melhor pegar um pouco de ar e ir dormir.
— Não ficou ofendido com a minha estupidez, ficou? — Quis saber Jack.
— Nossa! De modo algum — exclamou Stephen. — Eu mesmo estava com a cabeça desassossegada no momento em que nos sentamos. Pela primeira vez, a música não foi a solução.
Era bem verdade. Naquela tarde Stephen estivera cuidando da papelada que se acumulava em seu camarote jogando fora a maior parte e colocando algum tipo de ordem no restante. Entre os papeis rejeitados estava a mais recente de uma série de cartas de um anônimo, que ele recebia regularmente, alertando-o de que sua esposa lhe era infiel. Geralmente essas cartas apenas lhe causavam uma leve curiosidade, um leve desejo de saber quem se daria esse trabalho. Agora, porém, em parte por causa de um sonho e em parte porque sabia que as aparências estavam contra ele — que com certeza parecia que andara flanando com Laura Fielding —, isso intensificava a aflição que permanecia dentro dele desde que a carta chegara ao Surprise em Gibraltar.
Ainda que, pela maioria dos padrões, o casamento deles nem de longe pudesse ser chamado de bem-sucedido, ele era profundamente afeiçoado à esposa, e a ideia de que estava zangada com ele, juntamente com a frustração de não poder se comunicar com ela, subjugava igualmente a sua habitual tranquilidade mental e a convicção de que a carta levada por Wray a convenceria de seu inalterado respeito por ela, a despeito do fato de sua explicação sobre a presença da sr.ª Fielding ter sido necessariamente incompleta. Sob alguns aspectos, era bastante falsa, E agora, no seu atual estado depressivo, reforçava-se nele a ideia de que a falsidade às vezes possuía a mesma qualidade penetrante da verdade: ambas eram percebidas intuitivamente, e Diana era a filha predileta da intuição.
Fez uma pausa a meia nau, com a forte brisa turbilhonando à sua volta, antes de tatear o caminho escada acima para o tombadilho. A noite estava tão escura quanto uma noite podia ser, um cálido veludo negro sem uma estrela sequer; podia detectar o movimento do navio pela urgente elevação e impulsão, a viva vibração da madeira sob sua mão, e o ranger do poleame, cordagem{95} e panos acima, mas não conseguia enxergar nenhuma vela ou cabo, nem mesmo os degraus adiante do nariz, enquanto rastejava acima.
Estava completamente desprovido do sentido da visão, e foi somente quando levou o nariz acima do salto do tombadilho que seus olhos voltaram a si, com o brilho do contramestre na manobra, um homem grisalho chamado Richardson, e de Walsh, o muito mais jovem timoneiro. Bem próximo, ele percebeu a insinuação de uma forma mais escura assomando ao lado do mastro grande.
— Boa noite, sr. Honey — disse então para essa forma —, o capelão está a bordo?
— Sou eu, senhor — disse Mowett com uma risadinha. — Troquei com Honey. Sim, o sr. Martin ainda está acordado. Encontra-se no escaler, a reboque na popa; duvido que ele volte antes da alvorada, já que está excepcionalmente escuro e complicado. Pode enxergá-lo, se olhar por cima da amurada. — Stephen olhou. Não havia muita fosforescência no mar, embora estivesse tão quente, mas era o suficiente para que a agitada esteira se revelasse enquanto turbilhonava em torno das embarcações miúdas a reboque e, do mais distante, ele apenas conseguiu distinguir a subida e a descida da pequena rede de Martin. — O senhor gostaria de se juntar a ele? — Sugeriu Mowett. — Eu lhe dou uma ajuda para transpor a grinalda da popa, se quiser.
— Não, não quero — retrucou Stephen, contemplando a extensão de água levemente iluminada e a crescente irregularidade do comboio de embarcações: baleeira, guiga{96}, bote e os dois cúteres, todos bem distantes uns dos outros, e que teriam de ser transpostos antes de o escaler ser alcançado. — Más notícias sempre podem esperar. Mas, escute, James Mowett, as embarcações não estão sacudindo de um modo terrível? Há algum perigo de elas serem sugadas para o fundo, tragadas pela corrente da esteira, e o sr. Martin se perder?
— Minha nossa, não, senhor — exclamou Mowett. — Não há perigo algum. E se houver uma rajada, uma rajada digna desse nome, eu aquartelo a gávea, puxo o escaler para contrabordo e passo uma espia para ele. Não é agradável a gente estar finalmente em movimento? É a primeira vez, desde que deixamos o Rochedo, que fazemos mais de cinco nós: este barquinho começou a se pronunciar desde o início do quarto, e de agora deve estar levantando um belo bigode na proa; se ao menos a gente conseguisse ver. Corria firme o barco, e nem a alada agilidade, / o falcão, era capaz de o superar em velocidade.
— São versos seus, sr. Mowett?
— Não, infelizmente, não. São de Homero. Meu Deus, que sujeito era ele! Desde que comecei a ler sua obra, desisti da ideia de escrever, pois ele é tão... — A voz do Mowett foi morrendo na admiração.
— Não fazia ideia de que você era grego. — Atalhou Stephen.
— E não sou, senhor — retrucou Mowett. — Eu o li numa tradução, num livro que uma jovem dama me deu de lembrança, em Gibraltar, feita por um sujeito chamado Chapman, um sujeito esplendido. Comecei a ler porque estimava a dama, porque esperava liquidar com o pobre Rowan, tem algumas belas imagens e rimas, quando a gente se reencontrasse, mas não consegui parar de ler. O senhor o conhece?
— Não — disse Stephen. — Mas já dei uma olhada, certa vez, na versão do sr. Pope e na de Madame Darcier. Espero que a sua, essa do sr. Chapman, seja melhor.
— Oh, é magnífica... Às vezes é um verdadeiro estrondo, como um mar grosso, a Ilíada composta de versos em quatorze estrofes; e tenho certeza que é bem parecido com o grego. Preciso mostrar ao senhor, mas imagino que já deve ter lido no original.
— Não tive escolha. Quando eu era menino, era Homero e Virgílio, Homero e Virgílio, de cabo a rabo, e muitas palmadas e lágrimas entre um e outro. Mas passei a amá-lo, apesar disso, e concordo plenamente com você... Ele é o príncipe dos poetas. A Odisseia, claro, é uma excelente narrativa, mas nunca consegui gostar de Ulisses. Ao que me parece, ele mentia excessivamente, e, se um homem mente além de um determinado ponto, uma triste falsidade se apodera dele e não é mais uma pessoa agradável. — Stephen falava com sentimento. Seu trabalho como agente de inteligência exigia uma grande dose de duplicidade, talvez até demais... — Não é mais uma pessoa agradável. E não discuto com aqueles que afirmam que Homero não tinha grande habilidade na poesia. Mas a Ilíada, que Deus o abençoe, jamais houve um livro como a Ilíada.
Mowett berrou, dizendo que o doutor tinha razão, e passou a declamar um trecho que estimava em particular. Mas logo se perdeu. Stephen, porém, mal ouviu; sua mente incandesceu com a recordação, e ele exclamou:
— E a verdadeira medida heroica, que nos faz, a todos, parecermos tão humildes e pálidos; e a infinita arte, do início ao nobre fim, com Aquiles e Príamo conversando tranquilamente na noite, ambos condenados e ambos sabendo que estavam condenados... o nobre fim e seu total encerramento, pois não considero as pompas fúnebres como algo além de uma formalidade necessária, quase um apêndice. O livro está repleto de morte, mas... quanta vivacidade.
Quatro badaladas os interromperam e por todo o navio surgiram nítidos, os gritos dos vigias e das sentinelas: "Boia salva-vidas, tudo safo". "Talabardão de boreste, tudo safo". "Amura de boreste, tudo bem’", seguidos pelo resto. O ajudante de carpinteiro, segurando uma lanterna, informou onze polegadas de alagamento no poço — meia hora de bombeamento no alvorecer —, e o aspirante do quarto, depois de se atrapalhar um pouco com a lanterna e a ampulheta, falou: "Sete nós e uma braça, senhor, com sua licença".
Mowett anotou a informação na tabela de rumos e milhas navegadas: a lanterna sumiu conveses abaixo, a escuridão retornou, ainda mais densa do que antes.
— Houve um tolo de Limpsaco de nome Metrodoro — disse Stephen —, que explicou os deuses e os heróis como personificações disso e daquilo, do fogo e da água, do céu e do sol, e assim por diante... Agamenon era a atmosfera, se me lembro bem... Em seguida, surgiu uma porção de sujeitos intrometidos que encontrou uma porção de significados ocultos em Homero, e alguns até mesmo afirmaram que a Odisseia, em particular, era uma imensa metáfora empolada e que quem a escreveu devia ser visto como um excelente autor de acrósticos. Mas, pelo que me consta, nenhum desses escritores simplórios jamais enxergou o que é tão claro quanto o sol do meio-dia... que, além de ser o grande épico da humanidade, a Ilíada é o incessante clamor contra o adultério. Centenas, não, milhares de jovens heroicos mortos, a cidade de Tróia em sangue e em chamas, o bebê de Andrômaca lançado de cima da muralha, e ela levada para carregar água para as mulheres gregas, a grande cidade arrasada e despovoada, tudo, tudo por causa de um simples adultério. E ela, afinal, nem mesmo gostava daquele sujeito inútil. James Mowett, não há nada a se dizer a favor do adultério.
— Não senhor —, concordou Mowett sorrindo no escuro, em parte por causa de lembranças próprias, em parte porque, como todos os a bordo... ou melhor, todos os antigos do Surprise —, ele tinha certeza do contato criminoso do dr. Maturin com a sr.ª Fielding, como se os tivesse visto se beijando e se agitando nus em uma cama. — Não senhor, de modo algum. E às vezes penso em alertá-lo, mas essas coisas são muito delicadas, e duvido que adiantaria. Sim, Boyle, o que foi?
"Alertar quem"? Perguntou-se Maturin.
— Peço que me desculpe, senhor — disse Boyle —, mas creio que houve um chamado da lancha.
— Então vá à popa e veja o que está havendo. Leve o meu megafone e fale forte e claro.
Boyle falou forte e claro, depois voltou para informar:
— Pelo que pude entender, senhor, o capelão deseja saber se receamos qualquer piora da tempestade.
— É para isso, afinal de contas, que temos andado rezando durante este último século — observou Mowett. — Mas talvez seja melhor trazermos a lancha para baixo da almeida{97}, talvez ele esteja um pouco apreensivo. Pule lá para baixo e ajude-o a subir pela escada de popa. Ali haverá luz suficiente vindo da câmara.
— Foi muita bondade sua —, agradeceu a Martin, sentando-se no cabrestante para recuperar o fôlego após a subida. — A embarcação estava saltando para cima e para baixo de um modo alarmante, e não consegui sequer fazer qualquer observação nesta última meia hora.
— O que estava observando, senhor?
— Organismos luminosos, na maioria minúsculos crustáceos pelágicos, copépodes{98}; mas para isso preciso de uma água mais calma, a boa e calma água que temos tido quase toda a viagem. Rezo para que ela possa se acalmar novamente antes de deixarmos o sargaço bem para trás.
— Não sei quanto ao sargaço — observou Mowett —, mas creio que poderá ter certeza de um tempo tranquilo antes de atravessarmos a Linha.
E realmente, muito, muito antes de atravessarem a linha do equador, o alísio se extinguiu na esteira da fragata e deixou flácidas suas altas velas, toda a majestosa extensão de pano que ostentara para colher a mais leve brisa pendia ali, desencorajada, e o navio balançava terrivelmente sobre o imenso e plácido marulho.
— Então é esta a zona de calmarias equatoriais, o doldrums — comentou Martin, indo para o convés com o seu melhor casaco, o casaco usado para visitas à câmara, e olhando com grande satisfação o céu quente e baixo, e o mar apático. — Eu sempre quis vê-la. Mesmo assim, creio que tirarei meu casaco e ficarei sem ele até o jantar.
— Não faz a menor diferença — afirmou Stephen, cujo espírito de contradição estava mais ativo do que o habitual, por causa de uma noite insone, a maior parte dela preenchida com a ânsia pelo seu vício particular, a tintura alcoólica de láudano, uma forma de ópio líquido, que durante muitos anos o consolou de aflição, infelicidade, privação, dor e insônia, vício que por sinal havia abandonado (exceto medicinalmente) depois do casamento com Diana. — O casaco protege você do calor radiante do sol, e o mecanismo do seu corpo o mantém numa temperatura constante. Como sabe, os árabes do deserto se cobrem da cabeça aos pés. O alivio aparente é mera ilusão, um erro vulgar.
Martin, porém, não era homem de ser subjugado; tirou o casaco, dobrou-o cuidadosamente sobre o oleado das macas e rebateu:
— Mesmo assim, o erro vulgar é esplendidamente refrescante.
— Quanto ao doldrums — prosseguiu Stephen —, creio que talvez você use o termo erroneamente. Pelo que me consta, em linguagem náutica, o doldrums é uma condição, um estado, não uma região. É análogo ao acesso de raiva. Uma criança e, valha-me Deus, infelizmente, um homem adulto podem ter um acesso de raiva em qualquer lugar. Do mesmo modo, um navio pode estar no doldrums, onde quer que se encontre paralisado por uma calmaria. Posso estar enganado, mas o comandante Aubrey certamente saberá nos dizer.
O comandante Aubrey sabia mas, já que eram seus convidados, ele deu um jeito de concordar com ambos, se bem que um pouco mais inclinado a favor do capelão. Segunda entendia, de acordo com a gíria ou jargão do homem do mar, doldrums tornara-se um termo genérico em terra, usado, na acepção dada pelo sr. Martin, para o que se costumava denominar ventos variáveis. Ele tinha grande apreço pelo sr. Martin, estimava-o, mas não o convidava tão frequentemente quanto achava que deveria. Agora, para corrigir isso, Jack não apenas enchia-lhe a taça seguidamente e servia-lhe os melhores pedaços do pernil de carneiro, como também forçava a verdade para o seu lado.
O fato era que ele se sentia constrangido na presença de Martin. Jack conhecera poucos clérigos, e seu respeito pelo hábito fazia com que achasse que uma expressão grave e um discurso sóbrio, de preferência sobre tópicos de natureza moral, eram uma exigência na presença deles; e, ainda que não gostasse muito de indecências — aliás, nunca falava essas coisas, a não ser na companhia de pessoas indecentes, quando se comportar do modo oposto pareceria ofensivamente virtuoso —, o decoro compulsório era um peso sobre ele. Além disso, apesar de o sr. Martin adorar música, era um músico medíocre e, após uma ou duas noites dissonantes, repletas de desculpas, ele nunca mais foi convidado novamente para tocar na câmara.
Jack, portanto, foi mais do que atencioso com o seu convidado, não apenas o parabenizando (sinceramente) pelo seu sermão daquela manhã, não apenas o alimentando e entupindo de uma quantidade tal de vinho a que poucos homens teriam resistido numa temperatura de 40º C, com uma umidade relativa de oitenta e cinco por cento, mas revelando-lhe alguns detalhes sobre a vela que seria colocada n’água, naquela tarde, para que os homens nadassem nela; aqueles homens, melhor dizendo, que não tinham coragem de entrar no mar propriamente dito, com medo de se afogar. Isso levou a uma observação sobre a relutância dos homens do mar, principalmente os pescadores, em aprender a nadar; e, na extremidade da mesa, Pullings que, como um comandante por cortesia, tinha permissão para pipilar sua concordância, recordou:
— Já faz muito tempo que não salva ninguém, senhor.
— Suponho que sim — admitiu Jack.
— O comandante costuma salvar pessoas? — Perguntou Martin.
— Minha nossa, sim. Uma ou duas em cada comissão, ou mais. Ouso dizer que o senhor seria capaz de tripular uma baleeira com os homens que salvou, não é mesmo, senhor?
— Talvez — respondeu Jack, distraído, e em seguida, sentindo que não estava cumprindo o seu dever em relação ao seu outro convidado, comentou: — Espero que o vejamos dentro d’água, esta tarde, sr. Hollom. O senhor nada?
— Nem uma só braçada, senhor — respondeu Hollom, falando pela primeira vez, mas acrescentou após uma breve pausa: — Mas me juntarei aos outros para me debater na lona. Será um raro prazer sentir-se refrescado.
Um raro prazer, realmente. Mesmo à noite, o calor parecia emanar da lua sanguínea, e, durante os opressivos e sufocantes dias, o sol, mesmo por trás das frequentes nuvens baixas, fazia o breu borbulhar nas costuras do convés, e o alcatrão derretia tanto que pingava do aparelho superior, ao mesmo tempo que a resina amolecia por baixo da tinta e escorria pelos costados, enquanto o navio era lentamente rebocado para Sul e Oeste, todas as embarcações miúdas a vante e os remadores revezados a cada virada da ampulheta.
Às vezes, uma brisa quente e caprichosa franzia o mar oleoso, e todos os tripulantes corriam para bracear as vergas, a fim de tirar vantagem dela; mas isso raramente fazia o Surprise navegar mais do que uma milha antes da brisa fraquejar ou cessar inteiramente, deixando-o sem vida sobre a onda, balançando tanto que, a despeito de suas enxárcias reforçadas e recém-tesadas e dos brandais{99} duplos, seus mastros corriam perigo de cair borda afora, mesmo com os joanetes baixados para o convés; e não apenas a sr.ª Lamb, mas também alguns novatos do Defender recolheram-se novamente ao leito, prostrados totalmente pelo enjoo.
Era um tempo fatigante e parecia durar para sempre. A observação da passagem meridiana do sol feita hoje só podia ser distinguida da de ontem por excelentes instrumentos usados com grande habilidade; o calor agia nos lugares mais recônditos do navio, fazendo com que a água acumulada no porão fedesse da forma mais detestável, de modo que aqueles com camarotes nas coberturas inferiores, Stephen e o capelão entre eles, conseguiam dormir muito pouco. Quando iam ao convés durante os quartos da noite, estendendo rolos de lona para se Defender do breu mole das costuras, levavam cruéis encontrões, em um lugar ou outro, quando os tripulantes, geralmente com ordens urgentes do seu comandante, corriam para colher o último bafejo.
Era um tempo em que todas as teorias iam por água abaixo: embora fosse infenso no calor, como uma salamandra — aliás, deleitava-se com ele—Stephen deixava de lado o casaco acolchoado, os calções de tecido de lã, as meias boas de lã, e aparecia com uma baniana branca, geralmente aberta no peito magro, folgadas pantalonas de nanquim e um chapéu de abas largas de palha trançada, feito para ele por Bonden, a quem ensinara a ler muitos anos antes naquelas mesmas águas, por então muito mais amáveis, e um caminho muito mais rápido, incalculavelmente mais barato no tocante às despesas com bebidas.
Do mesmo modo, a opinião de Jack sobre umidade não o impediu de consumir todo o seu estoque particular de cerveja clara das Índias Orientais, nem de avançar sobre o suprimento de água, com o mestre-arrais, repetidamente, somando o que restara nos vasilhames de 159 galões da fileira inferior de barris de água do porão, nas pipas de 108, nas quartolas de 54 e nas semiquartolas, que ficavam nas áreas laterais, tampados e livres da água acumulada no fundo do navio, e checando ao resultado mais desalentador. Mesmo com a quota do intendente de um quarto por cabeça — bem longe do galão de cerveja normal em águas domésticas —, o estoque diminuía perto de meia tonelada por dia, e isso sem contar com a enorme quantidade absolutamente necessária para tornar comestível a carne salgada.
Chegaram à periferia de um temporal em 6º 25’ N, mas isso lhes serviu pouco mais do que para prepararem os toldos e velas estendidos, limpando-as para o próximo hipotético aguaceiro. A água das poucas pipas que recolheram era tão escura e acaltroada e cheia de fiapos dos novos panos de vela que não podia ser ingerida em seu — àquela altura —, estado de necessidade moderada. Jack, contudo, mandou que fosse guardada em barris. Se a situação perdurasse, eles dariam dez anos de salário por um copo de uma beberagem bem pior.
Certamente ele estava preocupado sobretudo com a falta de água, mas também porque não avançavam muito. Conhecia o Norfolk, e sabia que, se estivesse sendo comandado por qualquer um dos oficiais americanos que conhecera no Constitution ou como prisioneiro de guerra em Boston, estaria navegando para o Sul com a maior velocidade de que era capaz, por causa de seus mastros e cordame. Poderia até mesmo compensar o mês de retardo e passar pelo cabo de São Roque antes dele.
O pessoal do navio também o preocupava, os tripulantes do Surprise tinham aceitado e absorvido os lunáticos de Gibraltar, tratavam-nos com amabilidade, cortavam a carne deles e gritavam em seus ouvidos quando eles não conseguiam entender as coisas direito; mas, apesar do árduo trabalho compartilhado de rebocar as embarcações miúdas e das mudanças que Jack introduzira na tabela de serviço, a maioria do pessoal do Defender não aguentava.
Quase todo o castigo aplicado era por causa de brigas entre os dois lados, e Jack aguardava com verdadeira ansiedade a eventual travessia da linha do equador; na costumeira rude diversão, a animosidade poderia assumir uma forma terrível. Ele já vira antes homens impopulares serem desfigurados, e um deles, inclusive, ser afogado durante uma brincadeira grosseira. Foi quando Jack era ajudante de navegação no Formidable. E sua ansiedade era aumentada pelo fato de que o equilíbrio mental se tornava perigosamente tênue por causa da contínua labuta sob o tremendo calor opressivo e da comida racionada. Claro que, por ser o único senhor depois de Deus, ele podia abolir o cerimonial, mas sentiria vergonha de ser um comandante de um navio governado desse modo.
Por outro lado, havia algo no ar, algo que ainda não conseguia definir. Jack tivera sorte em questão de trabalho, tendo passado no mar a maior parte da vida, e isso lhe dera mais experiência em relação a tripulações de navios do que a maioria dos oficiais mais antigos; e sua experiência também havia sido mais extensa, desde que um irascível comandante rebaixara o sr. aspirante Aubrey no cabo da Boa Esperança, mandando-o para o convés, como um simples marinheiro, para ali viver, comer, dormir e trabalhar com o resto dos tripulantes. Isso lhe dera um íntimo conhecimento dos modos e humores dos marujos, do significado de seus olhares, gestos e silêncios; e agora tinha certeza de que algo estava em ação, algo oculto, mas de entendimento geral. Tinha quase certeza de que não se tratava da germinação de um motim e toda a certeza de que não se tratava da jogatina pesada que ele conhecera em alguns navios ricos de dinheiro e presas, visto que atualmente os do Surprise mal possuíam quatro pence para dividir entre si; havia, porém, uma certa excitação e uma certa dissimulação que poderiam ser motivadas por uma das duas coisas.
Ele tinha toda a razão, e tratava-se de algo que era do conhecimento de todos no navio, exceto do comandante, do capelão e, é claro, do artilheiro-chefe. Em um apinhado navio de guerra, em difícil fazer qualquer coisa secretamente, e todo mundo sabia o que o sr. Hollom andava fazendo com a sr.ª Horner. Ele estava situado num local ideal para tal empreendimento, já que pendurava a sua maca no camarote dos aspirantes, e os domínios do artilheiro-chefe, onde a sr.ª Horner cuidava dos meninos, ficava ao lado. Poucos homens do navio, além dele, poderiam transitar por aquelas bandas sem causar comentários instigantes e, agora que estava razoavelmente bem-alimentado, Hollom fazia uso total de suas oportunidades.
Era do conhecimento geral que ele fazia uso total delas; que, após um discreto início, se tornara superconfiante; e que em breve ficaria em apuros... companheiro, em apuros bem dolorosos. Hollom não era homem de intimidar os tripulantes, nem indicá-los para uma punição e, portanto ninguém antipatizava totalmente com ele, mas, como não era lá essas coisas como marujo, tampouco era respeitado; além disso, apesar de sua sorte momentânea, sua sorte invejada por todos, havia sempre a possibilidade de ser um Jonas. Ele continuava sendo um estranho para o navio, e o mesmo se podia dizer de Horner, cujo temperamento taciturno e ferocidade subjacente não lhe angariaram amigos a bordo, embora fosse respeitado como um eficiente artilheiro-chefe e, se zangado, temido como um sacana bem desagradável.
Havia, portanto, esses dois estranhos a serem observados, observados com o mais vivo interesse, nos intervalos em que se tentava arrastar o navio para fora dos ventos variáveis. A cautela do casal tornava-se cada vez menor, e, para os espectadores interessados, parecia que a explosão estava se aproximando. Tais conjecturas, porém, apesar de trocadas livremente, nunca chegavam à câmara e, na sua praça d’armas, eram reprimidas quando o capelão estava presente.
Jack, portanto, continuava a ignorar o motivo específico dos olhares intencionais que observava de seu posto habitual perto das malaguetas a barlavento, mas, ainda que ele soubesse, mesmo assim teria ordenado que as embarcações miúdas largassem quando os bonitos apareceram. Ao amanhecer, foram encontrados peixes-voadores em grande número no convés, e logo que o sol surgiu os seus perseguidores puderam ser vistos deslizando em cardumes logo abaixo da superfície. As embarcações, manejando redes e linha com extraordinário zelo, trouxeram vários carregamentos de peixes, peixes que não precisavam ficar de molho na preciosa água potável. Segundo observou Stephen para Martin, o bonito, como o seu primo mais parrudo, o atum, não apenas era um peixe de sangue quente, mas também um grande agente indutor da atividade sexual.
Todo mundo, exceto a sr.ª Lamb, comeu tanto bonito quanto conseguia aguentar e, após o festim, a adorável Rosa em junho de Hollom pôde ser ouvida vindo lá de baixo, já que ele estava de folga. O artilheiro-chefe foi ao convés para dar uma olhada numa das caronadas do castelo de proa: a música parou bruscamente. No castelo de proa, o artilheiro-mestre bateu as mãos nos bolsos, sentiu falta do lenço e começou a se dirigir de volta ao seu camarote.
O casal só foi salvo por causa do toque de apito convocando toda a tripulação, quando Jack decidiu que a porção de nuvens vermelho-escuras com relâmpagos cintilando abaixo delas, no distante nordeste, possivelmente traria para cima deles a borda de uma borrasca errante, e, consequentemente, seria melhor acachapar o mastaréu do joanete apesar de ter sido içado apenas poucas horas antes, para apanhar o último bafejo da brisa dos peixes-voadores.
Ainda bem que fez isso, porquanto a borrasca se revelou mais forte do que ele, Pullings ou o mestre-arrais esperavam. Depois de várias evoluções, ela veio sibilando pela alheta de bombordo através do mar tranquilo, uma linha branca avançando a trinta e cinco milhas por hora, seguida por uma impenetrável escuridão e precedida por três pequenos pássaros esbranquiçados que atravessaram velozes à sua frente. Atingiu o navio com um uivo crescente, adernando-o para boroeste e derrubando Stephen e Martin para dentro dos embornais a sotavento, pois, descuidados, eles haviam largado o apoio que seguravam para identificar os pássaros com seus binóculos. Mesmo antes de mãos gentis os terem arrancado, todo o ar se tornou uma uivante massa de chuva, quente e tão compacta, com pingos grossos e com vapor de água perfeitamente perceptível, que mal conseguiram respirar ao rastejarem pelo convés inclinado. Os embornais já escoavam a água aos borbotões.
— Como disse? — Gritou Martin em meio ao onipotente e onipresente estrondo.
— Eu apenas gritei "Carniceiro" para o doutor — berrou Jack no ouvido dele. — É isso que dizemos no mar, de brincadeira, quando alguém cai, pois deve estar precisando de uma sangria. Aqui, segure-se na mesa de malaguetas.
Durante dez minutos o Surprise avançou com o velacho rizado{100} nas últimas, assim que o vento acalmou um pouco, eles passaram a estender os vários panos para a chuva e a trazer os barris. Infelizmente o aguaceiro já havia quase todo sido consumido na inútil inundação do convés, e parte do que foi recolhido sobrejanete do grande, estendido entre os balaústres do castelo de proa e peiado com balas de canhão, perdeu-se quando o sr. Hollom desfez o nó errado, perdido que estava, de certo modo, em conjecturas com os seus próprios botões.
Mesmo assim, no curto espaço de duração da chuva, armazenaram água para oito dias, água pura; e as mulheres a bordo, inclusive a quase paralítica sr.ª Lamb, encheram todas as tinas e baldes possíveis — e suas roupas íntimas já estavam de molho. E, o que foi ainda melhor, à borrasca seguiu-se uma brisa constante, talvez o primeiro bafejo dos alísios de sudeste.
Essas coisas, porém, tiveram seu preço, é claro. Os conveses, assados pelo sol, vazaram abominavelmente, e o Surprise (embora correndo ao largo, alegremente) ecoava com o ruído de goteiras sobre o bailéu{101} e no próprio porão, molhando todas as despensas, exceto o paiol do pão, revestido de folhas de flandres, todos os camarotes e todos beliches suspensos em seus interiores. Mesmo antes do sol vespertino se pôr, de seu modo abrupto, tropical, o ar quente aprisionado encheu-se do cheiro de mofo: mofo, azul ou verde, ou às vezes mosqueado de cinza, brotava de livros, roupas, sapatos, espécimes marinhos, sopa desidratada, e, é óbvio, dos vaus sob os quais todos dormiam e contra os quais, menos o comandante, de vez em quando batiam as cabeças. Isso não acontecia porque Jack Aubrey fosse mais baixo do que os demais — na verdade, ele tinha mais de 1,80 m de altura — mas porque sua câmara tinha mais espaço. Ou melhor, as suas câmaras, pois tinha três: o camarote, a bombordo, que incluía a parte inferior do mastro da gata e uma caronada de trinta e duas libras, e onde fazia as refeições, a menos que houvesse mais de quatro ou cinco convidados; o seu camarim de dormir, a boreste; e, bem à popa, a grande câmara nobre, estendendo-se por toda a boca do navio e iluminada pela esplendida janela de sete vidraças, recurvada e inclinada para dentro, o lugar mais arejado, claro e desejado do navio, os domínios de Killick, perpetuamente lavada, esfregada, raspada e polida, cheirando a cera de abelha, água fresca do mar e pintura imaculada.
— Que tal um pouco de música esta noite? — Sugeriu Stephen ao sair de sua fétida masmorra.
— Oh, Deus, não — bradou Jack de imediato. — Enquanto durar esse agradável zéfiro, preciso fazer o navio navegar. Devo permanecer no convés.
— Mas ele vai navegar estando ou não no convés. Ora, faça-me o favor, você tem oficiais capacitados, e eles estarão lá de qualquer modo, pois os quartos deles se sucedem normalmente.
— Essa é a pura verdade — concordou Jack. — Mas, numa situação de pouco seguimento, é dever de um comandante estar no convés, manobrando o seu navio através da água, com os esforços combinados de sua vontade e músculos da barriga. Você diria que é como comprar um cachorro e você mesmo ficar latindo para a porta do estábulo...
— A porta do estábulo depois de trancada — completou Stephen, levantando a mão.
— Exatamente, a porta do estábulo depois de trancada, por você mesmo. Porém, como sabe, há mais coisas do que o céu e a terra. Por que não vai para a câmara e toca sozinho, ou convida Martin, ou transcreve o Scarlatti para violino e violoncelo?
— Não farei isso — afirmou Stephen, que detestava qualquer manifestação de favoritismo.
Desapareceu na fedorenta praça d’armas para ali jogar uíste a meio penny, com Martin, o sr. Adams e o mestre-arrais, um jogo no qual a concentração estava mais difícil do que o normal, visto que Howard, o fuzileiro, aprendia a tocar flauta de acordo com um método que, embora se dissesse estar adaptado para os mais pobres de compreensão, o deixava extremamente intrigado, enquanto Mowett lia trechos da Ilíada para Honey. Em voz baixa, naturalmente, mas com tal ênfase que o dr. Maturin não lamentou nem um pouco quando o enfermeiro o chamou para fazer a sua ronda noturna com o sr. Higgins.
No convés, o comandante Aubrey, comendo um pedaço frio ou pelo menos morno de pudim de ervilhas com ovos com uma das mãos e segurando-se com a outra no brandal mais de ré do joanete do grande, realmente impelia o seu navio com contrações dos músculos da barriga e o esforço continuado de sua vontade. Mas também fazia muito mais do que isso, Era totalmente verdade que tinha oficiais competentes, e Pullings e Mowett, em particular, conheciam muito bem a querida fragata. Jack, porém, a conhecia muito melhor — suas iniciais na pega do mastaréu do velacho foram entalhadas ali quando ele era um indisciplinado vigia da gávea do traquete — e, sem favor, navegava melhor do que qualquer outro de seus homens.
Era como se cavalgasse um cavalo altamente temperamental, cujos humores e movimentos lhe eram tão familiares quanto os seus, pois, ainda que não alasse um cabo nem colocasse a mão na roda do leme (exceto ocasionalmente, para sentir a vibração do timão e o grau preciso de sua "mordida"), ele tinha uma tripulação altamente responsável, homens com quem navegara a fragata em perseguição a esplêndidas presas, ou fugindo desesperadamente de uma força muito superior. Através deles, tinha um contato íntimo com ela. Havia muito abandonara a cautelosa exposição de pano, as tímidas gáveas rizadas dos primeiros dias de viagem, e agora o Surprise corria pela noite com as varredouras e cutelos, no máximo que podiam suportar.
Quanto aos tripulantes, a maioria estava perfeitamente ciente de que aquela era outra das ocasiões em que o navio fugia desesperadamente de uma força muito superior: tinham observado a retenção feita pelo comandante dos primeiros barris da ruidosa água da chuva; através dos taifeiros{102} onipresentes, tomaram conhecimento de todas as conversas sobre o assunto na câmara e na praça d’armas e, por pura e simples bisbilhotice, todas aquelas no tombadilho. E os poucos do contra ou os simplórios empedernidos, que não foram convencidos pela retórica dos companheiros de bordo, foram inteiramente persuadidos pela sucessão de timoneiros de escol sendo chamados à roda do leme fora de seus turnos, pela continua presença do comandante, quarto após quarto, e pela sua insistência em largar com rapidez sobrenatural as bujarronas e velas de estai{103}.
Ao amanhecer, ele ainda estava lá, tirando proveito de cada ondulação do oceano ou impulso do vento, para impelir o navio um pouco mais adiante, um pouco mais depressa. A brisa rondara para o Sul, e a essa altura o Surprise navegava no máximo que conseguia à bolina cerrada, suas testas de velas tremulando a barlavento; ela soprou muito mais forte com o sol nascente, e então o navio mostrou realmente do que era capaz de fazer à bolina — sua mesa das enxárcias do traquete a sotavento sob a esplêndida espuma do bigode de proa, uma linha branca correndo por toda a extensão do costado, formando uma curva tão profunda, que o seu revestimento de cobre aparecia à altura da meia nau, e uma larga esteira que corria rapidamente em linha reta atrás dele, uma milha marítima a cada cinco minutos. Com o pessoal de folga convocado, e ambos os quartos de serviço no convés, ele os amontoou a todos ao longo da amurada a barlavento, para deixar o navio pouco adernado, rijo de borda, largou o sobrejoanete do grande, e ficou ali, apoiado contra a inclinação do convés, molhado pelos borrifos flutuantes, o rosto cansado e coberto por brilhantes pelos amarelos da barba por fazer, aparentando estar em estado de deleite total.
Continuava ali ao meio-dia, quando a brisa, mais moderada, porém soprando com graciosa constância de Les-sudeste, se manifestou como um verdadeiro vento alísio; e, com infinita satisfação, ele, o mestre-arrais e todos os demais oficiais verificaram, quando o sol atravessou o meridiano, que entre essa observação e a anterior, o Surprise percorrera 192 milhas, livrando-se da zona de calmarias e ventos variáveis.
Após um rancho antecipado, passou a tarde no seu beliche, deitado de costas e roncando num tal volume e persistência que os homens, que se encontravam distantes, próximos ao sino, na proa, piscaram uns para os outros, sorrindo, e a sr.ª Lamb, falando a meia voz e sacudindo a cabeça, disse à esposa do sargento dos fuzileiros que, do fundo do coração, sentia pena da sr.ª Aubrey, Mas ele acordou e logo estava o postos; e, como ambos os quartos tinham sido convocados à noite, deixou que a tarde transcorresse sem nada mais além do bastante popular e pouco penoso exercício com as armas portáteis, no qual todo mundo, inclusive os fuzileiros, disparava em garrafas penduradas no lais da verga de vante. E quando, finalmente, o tambor deu o sinal de recolher, ele causou espanto em Pullings e Mowett, ao observar que talvez no dia seguinte começariam a pintar o navio; ainda não fazia sentido raspar os conveses, já que o piche estava muito mole, mas eles lamentariam muito se algum mercante ou navio de guerra português visse o Surprise no seu atual estado de abismal imundície.
O que disse era totalmente verdadeiro. Ainda que uma embarcação miúda o rodeasse todas as manhãs, quando era exequível, com o grupo de limpeza passando esfregões em tudo que podia ser esfregado, a resina, o alcatrão, o piche e a sujeira oleosa do mar haviam ofuscado o brilho do "enxadrezado de Nelson"{104} da fragata, e seus adornos não eram exatamente o que os olhos de um carinhoso imediato teriam desejado.
Essas coisas, porém, eram geralmente providenciadas no fim de uma viagem, quando havia certa probabilidade de o efeito revigorado deixar os espectadores admirados e sem fala; na ocasião, o Surprise estava a mais de quinhentas milhas do porto mais próximo do Brasil. Além disso, pintar um navio quase sempre significava retardar o avanço, e embora, é claro, isso tivesse de ser feito antes de chegarem às águas pouco profundas, Pullings esperava que Jack não se demorasse do lado de cá da linha do equador por coisa alguma, a não ser uma tempestade, para encher suas fileiras e fileiras de barris vazios. Entretanto, como ele e Mowett haviam sido criados desde meninos no serviço naval, isso não incentivava o questionamento de Ordens, e o "Sim, Senhor" deles surgiu com não mais do que uma hesitação que mal podia ser mensurável.
O dr. Maturin não linha tais inibições. Ao entrar na câmara naquela noite, esperou até que Jack terminasse um pequeno e encantador rondó e perguntou:
— Quer dizer que não vamos nos apressar e cruzar a linha amanhã?
— Não — respondeu Jack, sorrindo-lhe. — Se o vento se mantiver, e é quase certo considerar que esse seja o seu dever como um verdadeiro vento alísio, espero fazer a travessia no domingo, a um pouco mais de vinte e nove graus Oeste de longitude. Portanto, amanhã você estará bem perto de seus velhos amigos, os penedos de São Paulo.
— É mesmo? Que alegria. Preciso contar ao pobre Martin. Diga-me, de quem é esse rondó que estava tocando?
— De Molter.
— Molter?
— Sim. Você sabe, Molter Vivace. Deve ter ouvido falar de Molter Vivace{105}. Oh, ha, ha, ha! — Quando finalmente parou de rir, enxugou os olhos e falou ofegante: — Isso me ocorreu de repente, uma brilhante iluminação, como quando você acende um gás. Por Deus, não foi hilariante? Ainda serei um sujeito espirituoso e farei fortuna. Molter Vivace. Preciso contar a Sophie. Estou escrevendo uma carta para ela que deixarei na semana que vem a bordo de algum navio mercante de volta para casa, se encontrarmos algum ao largo do Brasil, o que é provável. Molter Vivace, oh, essa foi muito boa.
— Trocadilho é coisa de pulha — observou Stephen —, e essa bobagem desprezível nem mesmo é um trocadilho, mas uma abominável idiotice. Quem é esse Molter? — Perguntou, apanhando a partitura recém-escrita.
— Johann Melchior Molter, um alemão do século passado — informou Jack. — O nosso vigário o admira demais. Copiei essa peça, perdi-a e encontrei-a dez minutos atrás, enfiada atrás do nosso Corelli em dó maior. Vamos tentar agora o Corelli neste dia triunfal?
Ninguém chamaria o dia seguinte de triunfal. O Surprise tinha guindolas{106} suspensas em ambos os costados, e toda a guarnição se ocupou em raspar a madeira e arrancar a marteladas a ferrugem das ferragens, para depois passar tinta e vários tipos de alcatroamento.
Pela manhã, Stephen tinha contado a Martin sobre a aproximação dos penedos do São Paulo, os quais, na estação apropriada do ano, abrigavam não apenas uma grande variedade de andorinhas-do-mar, mas também dois esteganópodes{107}, o castanho e muito mais, raramente o mergulhão branco-grande; aquela não era a estação apropriada, no entanto havia alguma esperança de haver alguns errantes, e, assim que suas tarefas permitiram, eles levaram cadeiras para vários pontos mais vantajosos, nos quais poderiam apoiar os binóculos à procura de mergulhões e talvez avistar os próprios penedos, erigindo-se solitários do oceano.
Mas raramente ficavam instalados por dez minutos sem que lhes pedissem que mudassem de lugar — cuidado com a pintura, senhor, pelo amor de Deus, cuidado com a pintura; e, quando pairavam próximo da grinalda de popa e do elegante entalhe dourado, disseram-lhes que poderiam ficar um pouco mais, desde que não tocassem em nada. Em hipótese alguma, porém, deviam respirar perto da folha dourada, até que a clara de ovo tivesse secado, e certamente não podiam, em momento algum, apoiar os binóculos no corrimão. Até mesmo nas embarcações seria melhor do que aquilo, embora, ao nível do mar, o horizonte parecesse estar a apenas três milhas; logo, porém, elas também foram içadas para raspagem e pintura. Quando eles mostravam alguma impaciência, o pessoal lhes dizia que "eles não iam querer que um bando de portugueses confundisse o barquinho com um navio carvoeiro de Newcastle, nem as suas embarcações miúdas com barcos de transporte de lama".
Foi Calamy quem sugeriu que eles deviam ir para a gávea do traquete, de onde (já que a vela do traquete estava carregada) poderiam ver quase todo o círculo do mundo e também a uma imensa distância; ele ajudou-os a subir, a se acomodar confortavelmente nos cutelos que tinham sido mantidos ali e levou-lhes as suas lunetas, um chapéu de palha de aba larga para cada um a fim de preservar-lhes os miolos da fornalha quase vertical do enorme sol e um punhado das pontas quebradas das bolachas, conhecidas como nozes dos aspirantes contra a fome, visto que o almoço provavelmente ia atrasar.
Foi dessa elevada plataforma que avistaram pela primeira vez um indiscutível tesourão e depois, seguindo o grito do vigia na verga do joanete do grande, a branca incisão no horizonte, enquanto os penedos de São Paulo se erguiam a sudoeste.
— Oh, oh — fez Martin, colocando o óculo de alcance no seu único olho e focando com todo o cuidado. — Será...?
Uma grossa fileira intencional de aves surgiu voando na direção do navio, bem veloz, não muito alta. A uma centena de metros na amura de boreste, detiveram o voo, planaram e mergulharam, uma após outra, como mergulhões, um mergulho de cabeça que fez a água esguichar. Subiram, voaram em círculo, mergulharam por mais alguns minutos, e em seguida afastaram-se para nordeste, com igual intenção.
Martin descontraiu-se, baixou a luneta e voltou o rosto radiante para Stephen.
— Eu vi o mergulhão branco-grande — disse ele, apertando-lhe a mão.
Muito antes disso, o pessoal das sete badaladas tinha ido para o seu rancho com gosto de aguarrás, seguido, uma ampulheta depois, pelo resto da guarnição, com a sua costumeira gritaria. Agora, Coração de Carvalho{108} estava dando o toque para anunciar o banquete na praça d’armas, e logo chegou um mensageiro para informar que os cavalheiros estavam sendo esperados.
— Os meus melhores cumprimentos ao comandante Pullings — disse Stephen —, e rogo que ele me desculpe.
Martin disse mais ou menos a mesma coisa e voltaram à sua contemplação daquelas ilhas estéreis, agora já bem próximas.
— Nem uma só erva, nem uma só folha de grama — observou Stephen. — Nem sequer uma gota de água, a não ser as que caem do céu. Receio que pássaros à esquerda sejam apenas andorinhas-do-mar. Por outro lado, na abóbada mais alta, há um mergulhão, meu caro senhor, um mergulhão-pardo. Ele está num lamentável estado de muda de penas, coitado; mesmo assim, um verdadeiro mergulhão castanho. Todo aquele branco é excremento de pássaros, claro; em alguns lugares, tem muitos centímetros de grossura e emite um cheiro tão forte de amoníaco que não dá para respirar. Certa vez estive em terra quando os pássaros estavam chocando; mal havia um pé de solo sem um ovo, e as aves eram tão mansas, que você podia segurá-las.
— Acredita que o comandante faria uma parada de apenas meia hora? — Indagou Martin — Imagine os besouros que deve haver por lá. Não podia expor a ele que...
— Meu pobre amigo — interrompeu-o Stephen —, se há algo capaz de superar a estúpida indiferença de um oficial do mar às aves, só mesmo a sua estúpida indiferença aos besouros. E olhe só as embarcações pintadas de novo com a sua tinta fresca. Eu só consegui ir porque pegamos uma calmaria, ao passo que agora estamos navegando a cinco nós, porque era domingo e porque um oficial muito amável me levou até lá, remando o bote. James Nicolls era seu nome.
Sua mente recuou até esse homem profundamente infeliz, o qual, quase certamente, teria se deixado afogar ao largo daquela mesma rocha que agora deslizava suavemente à popa a uma milha de distância: ele brigara com a esposa, tentara fazer as pazes e não houve paz.
Os pensamentos de Stephen desviaram-se de James Nicolls para o casamento em geral, aquela difícil condição. Ele ouvira dizer que uma espécie de lagartos do Cáucaso se reproduzia por partenogênese, sem nenhum tipo de ato sexual, nenhuma complicação sexual: Lacerta saxicola era o nome deles.
O casamento — suas mágoas e pesares, suas frágeis alegrias — inundou sua mente, e ele não ficou nem um pouco surpreso quando Martin, falando num tom de voz baixo e confidencial, confessou-lhe que havia muito tempo era afeiçoado à filha de um vigário, uma jovem com cujo irmão costumava estudar plantas quando cursaram juntos a universidade. O nível dela era consideravelmente acima do dele na mundana importância social, e seus amigos o olhavam com desaprovação; contudo, em vista de sua situação atual de muito mais fartura, com uma renda anual de £ 211.80, estava pensando em pedi-la em casamento. Havia, porém, muitas coisas que o perturbavam; uma, era que os amigos dela talvez nem mesmo considerassem £ 211.80 uma fortuna; a outra, era a sua aparência — Maturin, sem dúvida, havia notado que ele só tinha um olho —, o que, necessariamente, depunha contra ele; e, ainda uma outra, era a dificuldade de concentrar os pensamentos para escrever uma carta, Martin não estava desacostumado à redação, mas não conseguira fazer nada melhor do que aquilo; esperava que Maturin fosse bondoso o bastante para passar uma vista, nela e lhe dar a sua opinião sincera.
O sol batia lá de cima do mastaréu do velacho. O papel encrespava-se na mão de Stephen e sua depressão aumentava aos poucos. Martin era um homem inteiramente cordial, um homem de vasta leitura, mas, quando se tratava de escrever, ele trepava num par de pernas de pau, pernas de pau extraordinariamente elevadas, e, cambaleante, dava as passadas mais desgraciosas, com ocasionais guinadas deselegantes para o coloquialismo, dando uma surpreendente falsa impressão de si mesmo. Stephen devolveu a carta e comentou:
— Está colocado de forma muito elegante, com algumas imagens notavelmente belas; e tenho certeza que tocaria o coração de qualquer dama. Mas, meu caro Martin, permita-me dizer-lhe que acho a sua abordagem completamente equivocada. Você se desculpa do princípio ao fim; do início até o final, você é excessivamente humilde. Há uma citação, que paira muito além do alcance da minha lembrança, juntamente com o nome do seu autor, que diz que mesmo a mulher mais virtuosa despreza um homem impotente; e, certamente, toda essa autodepreciação não segue o mesmo caminho? Estou convencido de que o melhor modo de se fazer um pedido de casamento é o mais curto: uma carta simples e de leitura perfeitamente legível. Minha cara senhora, peço-lhe que me dê a honra de se casar comigo. Subscrevo-me, cara senhora, como máximo respeito, o ser mais humilde e obediente servo. Isso vai direto ao assunto. Em uma meia folha separada, você poderia, talvez, acrescentar o valor de sua renda, para consideração dos amigos da dama, juntamente com a declaração de que está disposto a fazer qualquer acordo que eles achem conveniente.
— Talvez — disse Martin, dobrando a sua folha. —Talvez. Sou muito grato pela sua sugestão.
Mas não era necessário um grande discernimento para perceber que ele não estava convencido, que ainda se agarrava aos seus parágrafos cuidadosamente ponderados, suas comparações, suas metáforas e sua conclusão. Mostrara a folha a Maturin, em parte como um sinal de confiança e estima, já que lhe era sinceramente afeiçoado, e em parte porque Maturin talvez elogiasse a carta e possivelmente acrescentasse algumas frases bem-elaboradas pois, como a maioria dos autores de alguma importância, Martin não tinha serventia para qualquer opinião sincera que não fosse totalmente favorável.
— Que voz maravilhosa tem mesmo o sr. Hollom — comentou, empinando o ouvido na direção do convés, após uma pausa silenciosa. — Uma grande bênção para qualquer coral. Daí passaram a conversar sobre a vida dos capelães embarcados, os cirurgiões navais e o Surprise.
— Ele é bem diferente de qualquer outro navio em que já estive — disse Martin. — Não existe isso do forçar homens com bastões e cabos com nós, nada de chutes, poucas palavras realmente duras; e, se não fossem esses infelizes do Defender e sua briga com os homens do Surprise, quase não haveria dias reservados para castigos. Ou, pelo menos, não haveria açoitamentos violentos e, creio, desumanos. Um navio bem diferente daquele em que eu estava, onde o estrado era montado quase todos os dias.
— Justamente— replicou Maturin —, mas precisa levar em conta que os homens do Surprise têm servido juntos há anos. São todos guerreiros, sem haver entre eles marinheiros de primeira viagem recém-recrutados à força, nem homens de Lorde Mayor. São todos marujos razoavelmente experientes, que trabalham juntos e não há necessidade de ninguém os forçar ao trabalho. E nem sustos, injúrias ou ameaças tão comuns em navios menos felizes. Infelizmente, porém, o Surprise não pode, de modo algum, ser visto como algo típico na Marinha.
— Não, realmente — falou Martin. — Contudo mesmo aqui, às vezes, há uma veemência nas repreensões que eu acharia difícil suportar se fossem dirigidas a mim.
— Está se referindo ao "ora, seus malditos cães amotinadores, filhos de eternas prostitutas" — disse Maturin.
Em determinado momento particularmente atarefado, Awkward Davis e seus ajudantes, esquivando-se de seus jovens cavalheiros, tentaram passar um cabo fino em direção à popa, para as guindolas dos pintores — não que isso lhes tivesse sido ordenado, mas por vontade própria, e esse grito veemente anunciou a ruptura do pau da varredoura que acabou emaranhado no cabo.
— São palavras duras, claro — voltou a dizer Maturin —, mas, por Deus, eles aguentariam palavras muito mais duras do sr. Aubrey e mesmo assim dariam apenas um sorriso tolerante e uma sacudidela divertida com a cabeça. Ele é um dos mais decididos dos comandantes combatentes, e esta é uma qualidade que eles valorizam acima de tudo. Ainda o valorizariam ao extremo, mesmo se ele fosse severo, injusto, tirânico, lúgubre, vingativo e cheio de maldade; e ele não é nada disso.
— Certamente. É uma pessoa a mais cavalheiresca e estimável — concordou Martin, debruçando-se sobre o arco da gávea para ver os últimos vestígios dos penedos, agora bem distantes, à popa, quase perdidos em meio ao calor tremeluzente. — Mesmo assim, tal inflexibilidade... cinco mil milhas de oceano, e nem cinco minutos de pausa para contemplação. Mas não pense que me queixo... isso seria uma pecaminosa ingratidão, depois de contemplar o mergulhão branco grande, seis mergulhões brancos grandes. Lembro-me perfeitamente de você ter-me alertado que a vida de um naturalista na Marinha era composta de noventa e nove por cento de oportunidades perdidas, e que ele talvez aproveitasse um por cento. Mas o tinhoso está me lembrando que amanhã vamos atravessar e permanecer à deriva, sabe Deus por quanto tempo, para a cerimônia de travessia da linha.
Foi uma cerimônia muda, porém, pois excepcionalmente ocorreu num domingo, quando o templo foi montado, e mais excepcionalmente ainda porque teve lugar num navio recém-pintado, com toda a guarnição; por um lado, tomando cuidado com suas melhores roupas e, por outro, com a tinta fresca, o alcatrão acabado de ser colocado e o ainda úmido enxadrezado preto logo acima da cintada. Além disso, o sr. Martin leu um pesado sermão de autoria do deão Donne, e o coral cantou alguns hinos e salmos particularmente comoventes.
Havia africanos, poloneses, holandeses (uma categoria numerosa), letões, malaios, e até mesmo um mudo e solitário finlandês nos livros de registro do Surprise, porém a maioria do seu pessoal era formada por ingleses e, portanto, anglicanos, e o serviço trouxe muitas lembranças de casa. Em geral, o ânimo permanecia sendo de seriedade, mesmo depois do pudim de frutas secas e do grogue de domingo, e os poucos espíritos voláteis dados a gracejos eram constantemente advertidos — "Cuidado com a pintura, companheiro", "Olhe onde pisa, porta" — por aqueles que precisariam fazer tudo de novo se alguma coisa fosse lambuzada.
O Surprise tinha carregado o velacho e permanecido praticamente na linha propriamente dita; o Badger-Bag{109} surgiu a bordo com seu séquito, trocando os usuais cumprimentos e chistes com o comandante do navio e conclamando quem nunca havia antes cruzado o equador a dar uma compensação ou do contrário seria barbeado. Martin e os meninos pagaram suas prendas, e os demais, todos ex-Defender, foram levados para o banho de imersão; não houve, porém, muito entusiasmo no barbear — repetidamente, o estilo do Badger-Bag era afetado pelos gritos de "Cuidado com a pintura, Joe", e sua habitual folia obscena não podia realmente fluir com liberdade num domingo, na presença de um vigário —, e logo tudo acabou, sem nenhum dano, apenas uma certa sensação de insipidez. Mas mesmo isso foi remediado por um concerto à noite, o primeiro do navio no hemisfério Sul, com todos cantando, e Orrage, o cozinheiro, atacando com potência The British Tars (Os marujos britânicos) ...
A todos vocês, rapazes impulsivos, um aviso vou lhes dar:
Nunca deixem seus lares felizes para singrar o enfurecido mar.
O sr. Martin não visitara as Canárias, nem Cabo Verde, tampouco os penedos de São Paulo, e logo pareceu que também ficaria de fora do Novo Mundo.
Cinco dias depois, ao amanhecer, o Surprise avistou, no horizonte, o cabo de São Roque: um obscuro e remoto promontório; e então arribou para as rotas de navegação mais frequentes, onde as correntes e os ventos locais traziam a maioria dos barcos provenientes da América do Norte e das Índias Ocidentais para bem perto da costa ao Sul de Recife, ao largo do vasto estuário do rio São Francisco.
Bem perto da costa (melhor dizendo do ponto de vista dos marinheiros, já que a terra podia ser avistada se alguém subisse no topo de mastro), havia uma linha fina, um tanto mais compacta e um pouco mais irregular do que uma nuvem. Lá, Jack pretendia amarrar e manter o rumo com a baleeira ao largo, e o escaler além dela, à espera do Norfolk. Não ficara no local escolhido mais do que poucas horas, quando o sol matinal lhe mostrou o Amiable Catherine de Londres voltando para casa, vindo do rio da Prata.
O Catherine não tinha a menor intenção de entrar em contato com o Surprise, pois sabia muito bem que a fragata poderia recrutar à força seus melhores marujos, mas não teve escolha. Jack tinha a vantagem de barlavento, um navio muito mais veloz e dez vezes mais gente para largar pano.
O comandante do Catherine veio a bordo com uma expressão carrancuda e os documentos do seu navio; partiu com uma aparência mais feliz e um tanto quanto bêbado, pois Jack, naturalmente, por gosto e por norma, sempre tratava muito civilizadamente comandantes de navios mercantes. O Catherine não vira nem ouvira falar do Norfolk, nem de qualquer outro navio de guerra americano em águas do Sul; nenhum comentário sobre tal coisa em Montevidéu. Santa Catarina, Rio ou Bahia. Ele cuidaria muito bem das cartas do Surprise e as colocaria imediatamente no correio; e desejou-lhes um feliz regresso.
Mais quatro navios ou barcas deram a mesma notícia durante aquele dia; o mesmo fez um barco de um prático, que apareceu para saber se eles queriam subir o rio para Penedo. Ao subir a bordo, o prático chocou o tombadilho, ao emitir um gritinho de satisfação e beijar o sr. Allen em ambas as faces — outrora, o mestre-arrais passara um tempo considerável na casa do pai do prático, no porto de Penedo, recuperando-se de cólicas —, mas logo obteve um bom conceito de todos que estavam ao alcance de sua voz, ao garantir ao comandante que não haveria a possibilidade de qualquer navio de guerra ter passado pelo promontório sem o seu conhecimento. A aflição, que vinha crescendo na mente de Jack Aubrey, dissipou-se, deixando uma deliciosa sensação de puro alívio; apesar de ele ter gasto um tempo despropositado para chegar ali, ainda estava à frente do americano.
— Isto é sublime —, declarou para Pullings e Mowett. — Creio que não deveremos ficar por aqui mais do que uma semana, mesmo que o Norfolk tenha apanhado todos os ventos fracos. Se permanecermos bem ao largo, mantendo a colina de dois cumes no nosso través, ele deverá passar próximo à costa, o que nos dará a vantagem da corrente e do barlavento, e então será a Hay de Saffron Walden{110}. Não que eu ache que ele vá fugir da luta, mesmo estando a barlavento de nós.
— A água... —começou Pullings.
— Sim, sim, há o problema da água — cortou Jack. — Mas, racionando as quotas, temos o suficiente para cerca de uma semana, e, nestas latitudes e nesta época do ano, sei que não passa uma semana sem desabar uma chuva; ficaremos com os nossos barris e toldos preparados para as primeiras gotas. E, se não chover, bem, podemos dar uma arribada rápida... o mestre-arrais conhece um bom lugar, no acima, para receber aguada... deixando as embarcações miúdas vigiando. Mesmo se ele escapar, não terá muita distância de vantagem, e conseguiremos alcançá-lo, navegando a todo o pano, antes que ele perceba.
Os longos dias se passaram, furiosamente quentes, terrivelmente sedentos. O calor agradava a alguns, Stephen entre eles, e o finlandês, que pela primeira vez desde Gibraltar retirou silenciosamente o seu chapéu de pele, já o sr. Adams era todo arquejos e suores, forçado a entregar os pontos em uma maca sob os toldos a barlavento, e a sr.ª Horner perdeu inteiramente sua beleza, tornando-se amarelada e franzina. Observou-se também que o seu pássaro canoro perdera a voz: não havia mais Colher de flores em maio, não havia mais a Rosa em junho, nem tampouco o ardente violão no talabardão. O casal pecaminoso não mais despertava qualquer grande interesse, em parte porque os dois pareciam ter ficado mais cautelosos, em parte porque a ligação deles vinha durando tantos milhares de milhas que agora era algo quase respeitável, porém muito mais porque toda a guarnição estava envolvida em exercícios de artilharia tão vigorosos, e em tal calor, que não restava energia a ninguém para o adultério, para se ocupar com adultério.
Era então que o suprimento particular de pólvora do comandante Aubrey entrava em ação. Hora após hora, Horner e seus ajudantes enchiam os cartuchos, e todas as noites, nos exercícios de postos de combato, o Surprise explodia com mortal determinação, as compridas e selvagens chamas e a fumaça jorrando dos costados em ondulantes bandas dos canhões de proa a popa, disparando em barris vazios de carne rebocados a uma distância de quinhentas jardas, quase sempre com efeito despedaçante e com algo próximo à velha rapidez do Surprise, de um minuto e dez segundos entre duas descargas de cada peça de artilharia, apesar de quase cada guarnição conter um ex-Defender ou um lunático de Gibraltar.
Na tarde do quinto dia, o vento soprou de terra, carregando consigo o cheiro de lama de rio tropical e floresta verdejante, mas nada de chuva; infelizmente, só um besouro crisomelídeo{111} que veio voando, o primeiro sul-americano de verdade que Martin já vira. Desceu correndo para mostrar a Stephen, mas Higgins lhe informou que o doutor estava ocupado: o sr. Martin não gostaria de se sentar e comer uma das bolachas finas do comandante servidas para os inválidos e tomar um tantinho do brandy da enfermaria? Martin mal teve tempo de recusar — uma bolacha naquele árido calor era fisicamente impossível, a não ser que fosse acompanhada por algo mais molhado, muito mais copioso do que brandy — antes de ver o artilheiro-chefe sair, com a cara fechada, tenebrosa.
— Talvez seja indefinível — observou Stephen, perscrutando o besouro através de uma lente de aumento. — Certamente nunca vi um antes e mal consigo imaginar o seu gênero. — Colocou de volta a criatura na mão de Martin e disse: — Ah, sr. Martin, lembrei-me da citação, juntamente com o seu autor: Sénac de Meilhan. Receio tê-lo feito se expressar com mais ênfase do que eu devia. O que ele realmente disse foi; "Mesmo as mulheres mais recatadas... les plus sages... têm uma aversão pelo impotente", e prossegue: "e homens velhos são desprezados; portanto, devemos dissimular nossas feridas e ocultar as deficiências que incapacitam a vida... pobreza, infortúnios, doenças, fracassos. As pessoas começam por se tocar e se comover até a ternura por causa das aflições dos amigos; logo isso muda para a piedade, que tem em si algo de humilhante; em seguida, para um desejo arbitrário de dar conselhos; e, finalmente, para o desprezo". É claro que estas últimas considerações nada têm a ver com o assunto que estivamos discutindo, mas a mim elas parecem... Meu caro tenente Mowett, em que lhe posso ser útil?
— Peço-lhes desculpas por interrompê-los assim tão de repente como o voo de um besouro — disse Mowett —, mas o comandante deseja saber se o corpo humano é capaz de aguentar isto. — Entregou-lhe um caneco com água de chuva colhida há algum tempo, ao Norte da linha.
Stephen cheirou-a, despejou um pouco era um frasco e olhou-a com a lente. A alegria brotou em seu rosto sério, pensativo, e espalhou-se totalmente.
— Quer dar uma olhada nisto? — Falou, passando-a para Martin. — Talvez a mais excelente sopa de tribonemas{112} que já vi, e creio que vejo algumas da espécie africana.
— Há também uns pólipos de péssima aparência e algumas criaturas que, sem dúvida, são parentes próximas dos hidrozoários{113} — comentou Martin. — Eu não beberia isso nem por um deado{114}.
— Por favor, diga ao comandante que isto não serve — pediu Stephen — e que ele será obrigado a arribar, demandando aquele majestoso curso d’água, o São Francisco, e encher os nossos barris em suas límpidas e saudáveis ondas, que correm entre ribanceiras cobertas por luxuriante vegetação de exótico sortimento, nas quais ecoam os berros do tucano, da onça, de vários símios, de uma centena de variedades de papagaios, que voam por entre orquídeas deslumbrantes, enquanto imensas borboletas de incomparável esplendor flutuam sobre um solo repleto de castanhas e jiboias.
Martin deu um pulinho involuntário, mas Mowett retrucou:
— Ele receava que o senhor dissesse isso; e, se dissesse, era para eu me dirigir ao sr. Martin e perguntar a ele, com todo o tato e de uma maneira bem discreta, se as orações pedindo chuva, que costumamos fazer em casa, podem ser empregadas em um navio no mar. Pois, como sabe, não temos nenhuma vontade de deixar o nosso posto para apanhar água, se a água, como o senhor diria, puder ser induzida a vir até nós.
— Orações para chover no mar? — Exclamou o capelão. — Duvido que isso seja ortodoxo. Mas vou consultar os meus livros e amanhã lhe direi o que descobri.
— Não creio que precisaremos esperar até amanhã — disse Jack quando a mensagem chegou até ele. — Olhe em direção a sotavento.
Lá, bem distante, no vento da tarde, nuvens negras reuniam-se no horizonte, e, apesar do sol brilhante no ocidente, relâmpagos podiam ser vistos tremeluzindo sob elas. Mesmo ali o ar estava carregado de eletricidade, e o gato do mestre do navio saltava pelo cordame do castelo de proa num alto estado de excitação, o pelo eriçado.
— Talvez não seja desafiar o destino, se arrumarmos funis e toldos limpos — disse Pullings.
— Talvez o destino entenda desta vez — retrucou Jack. — Ele não nos tem tratado muito bem ultimamente, creio eu. E tem mais: acho mais aconselhável baixar os mastaréus para o convés e montar as talhas de balanço nas vergas. As vagas estão aumentando de tamanho.
Pullings fez essas coisas e, quando as embarcações voltaram de sua distante patrulha, mandou que fossem içadas para bordo e peiadas nos vasos dos picadeiros, em vez de serem rebocadas pela popa. Tudo isso pareceu trabalho perdido, até chegar o quarto das 12:00 às 16:00 horas, quando Maitland, Hollom e o pessoal do turno de bombordo substituíram Honey.
— Você é uma excelente rendição, Maitland — afirmou Honey e, em seguida, num tom de voz mais formal: — Eis o navio, gáveas e bujarrona de dentro rizadas nas últimas; rumo Les-sudeste até as duas badaladas, depois virar em roda e governar para Oes-noroeste até o final do quarto. Se chover, tome as medidas apropriadas.
— Les-sudeste e depois virar em roda: medidas apropriadas — repetiu Maitland.
— Nossa, que bolas de luz! — Berrou Hollom, o ajudante de quarto, apontando adiante para o fogo de santelmo que bruxuleava perto do pau da bujarrona e da verga da cevadeira, brilhante contra o débil luar.
— Não aponte para elas, pelo amor de Deus! — Pediu Honey. — Isto traz má sorte. Os toldos estão a meia nau, a mangueira está estendida, e as lanternas de combate estão arrumadas no castelo de proa. Se é que existe justiça, deveremos ter algo parecido com o dilúvio de Noé antes de amanhecer, pela aparência do céu a sotavento.
— Acha que devemos contar ao doutor sobre as bolas de fogo? — Perguntou Maitland. — Elas são extraordinariamente curiosas.
— Bem... — fez Honey, refletindo. — Eu pensei nisso, mas, sabe, elas são apenas eletricidade, e não sei se ele nos agradeceria por acordá-lo só para ver essas descargas elétricas se fazendo de tolas. Se elas tivessem penas e botassem ovos, eu já teria mandado chamá-lo há muito tempo.
Stephen, portanto, nada soube do fogo de santelmo; bem lá embaixo, oscilando num arco continuamente crescente mas sempre tranquilo, enquanto a ondulação crescia, os ouvidos tapados com bolas de cera e a mente — e a mente até então bastante atormentada por pensamentos sobre Diana e pelo ar opressivo e irrespirável — agora confortada por uma criteriosa dose de láudano, ele nada soube da chuva torrencial que quase inunda o navio durante o quarto de 00:00 às 04:00 horas, nem do subsequente quase-tornado que arremessou o Surprise de forma tão violenta de um lado a outro, ou dos vociferantes trovões não mais altos do que os e de um quase contínuo fulgor azul e laranja do relampejar.
Ao láudano ele retornou, afinal, porque, após uma madura, completa e objetiva reflexão, fora levado a concluir que, como médico, necessitava dormir suficientemente bem para executar o seu dever no dia seguinte; além do mais, a papoula não foi criada à toa, e a rejeição a um bálsamo natural era uma injuriosa arrogância, por mais herética que fosse a afirmação, isso porque uma coisa que era agradável era também pecaminosa; e, em todo caso, aquele era dia de St. Abdon{115}.
Após a longa abstinência, aquilo agiu maravilhosamente. Mas nem mesmo meio quartilho de láudano (ele não chegara nem perto do seu antigo excesso) pôde evitar o estrondo do impacto, quando um raio atingiu o Surprise, derreteu a haste de seu melhor ferro de proa, margeou os sete canhões de bombordo mais de vante, disparando-os, mas, acima de tudo, lacerando e despedaçando da maneira mais extraordinária, o gurupés reforçado com anéis de ferro.
"A esquadra francesa está atacando" pensou Stephen, três quartos acordado. "Preciso pegar os meus instrumentos... ir para o meu posto... Deus entre nós e o demônio". Então, despertando um pouco mais, quando os pés mas mergulharam na água da chuva que enxaguava de um lado a outro sob seu beliche: "Disparate. Este é o Novo Mundo, e estamos em guerra com os americanos, por mais ridículo isso possa parecer".
Contudo não ouviu mais tiros de canhão e, após uma boa dose de reflexão e algumas tentativas malsucedidas de acender uma luz, foi para o convés, que se encontrava iluminado com lanternas de proa a popa. O navio estava aproado ao vento, e a bomba de incêndio foi acionada contra os fumegantes destroços do gurupés; aquela última explosão colossal havia exaurido a tempestade e, embora o mar ainda estivesse alto, o céu sobre a terra clareava. Por intermédio das figuras em roupas de dormir, ele soube que não fora um combate, que ninguém havia sido ferido e que a situação estava sob controle; retirou-se para o tombadilho quase deserto e sentou-se sobre a carreta de uma caronada. Ouviu o grito de "Lá vai ele", quando os quarenta pés externos do gurupés mergulharam do mar, com um ruído despedaçante e um esguicho, seguido por uma boa porção de ordens; em seguida, os oficiais vieram retornando para, a popa, Martin estava entre eles e, ao ver Stephen, foi para perto e disse em voz baixa;
— Parece que perdemos o nosso gurupés. O comandante parece extremamente preocupado.
— É — fez. Stephen. — Eles dão muito valor a essa coisa, pois é essencial para voltar a proa para a linha do vento ou talvez para se afastar dela.
— Sr. Allen — disse Jack —, a brisa está boa, e o senhor conhece estas águas. Consegue levar o navio até Penedo?
— Não, senhor — respondeu o mestre-arrais—, nem com ou sem gurupés. Os bancos de areia do estuário estão sempre mudando de lugar, e o rio é para ser navegado com prático, quanto o é em Hugli. Em sã consciência, não posso me aventurar por ele, mesmo se tivéssemos uma bússola em que pudéssemos confiar — o que não temos —, e nem mesmo se fosse dia claro. Mas, se puder pegar um escaler, navegarei até a cidade, mandarei um prático para cá e cuidarei para que o estaleiro de Lopez providencie uma verga o mais depressa que conseguirem. Com essa brisa e a virada da maré, chegarei lá pouco antes do amanhecer. Talvez o navio consiga velejar em direção a terra, cautelosamente, e largar o ferro, digamos, em vinte braças de água a cerca de duas ou três milhas da barra.
— Muito bem, sr. Allen — concordou Jack. — Faça isso.
Dado que o suporte principal do mastro do traquete tinha ido com o gurupés, levaram pouco tempo para arriar pelo costado o rápido escaler com o fundo revestido de cobre, e, enquanto isso era feito, Stephen falou, para o mestre-arrais:
— Sr. Allen, posso ser de alguma utilidade em terra para o senhor? Sou moderadamente fluente em português.
— Oh, céus, não, doutor, se bem que agradeço a sua gentileza. Sou como um membro da família dos Lopez e dos Moreira. Mas lhe digo uma coisa: se não se importar em se molhar um pouco, e se quiser ir comigo, acho que posso lhe mostrar algo incomum no gênero botânico, se as enchentes não tiverem carregado, o que não seria improvável. O vigário Martin também é bem-vindo, se desejar; ninguém pode me chamar de supersticioso.
O escaler era uma excelente embarcação, mas não era de ficar seco. Deslizou através da água, embarcando grandes quantidades de água a cada mergulho nos vagalhões, dois marujos esgotando a água e o mestre-arrais na cana do leme, guiando-se pelo Cruzeiro do Sul. Todos estavam encharcados e quase gelados quando chegaram ao estuário, a barra forçando a arrebentação das ondas e o mestre-arrais frequentemente largando a escota, ao escolher o canal navegável, esticando-se à vante para ver as elevações da terra, em meio à mortiça luz cinza, o primeiro indício do alvorecer. Por duas vezes o escaler encalhou ligeiramente, mas com um marujo de cada bordo com a água na altura das suas coxas, logo o desencalharam; e, finalmente, avistando uma estaca alta com um trapo no topo, Allen afirmou:
— É por aqui — e conduziu a embarcação em um rumo oblíquo em relação à corrente em direção a uma comprida ilha interior, fez com que ela parasse delicadamente na areia de sua praia, e, quando Macbeth saltou, carregando a prancha para o desembarque de Stephen e Martin, ele falou: — Agora subirei até Penedo, para combinar tudo com o estaleiro, e mandarei o prático trazer um desjejum para vocês, quando ele vier por aqui, a caminho do navio. Larga Macbeth! — E, quando o escaler estava a alguma distância, deslizando pela água macia, ele gritava de lá: — Cuidado com os jacarés, cavalheiros.
Eles estavam parados sobre uma firme praia branca, e já havia luz suficiente para enxergar uma trilha que subia pela ribanceira, onde começavam as árvores de um bosque; mas certamente eram muito altas e encorpadas demais para serem árvores. A lua aumentou, e eram mesmo árvores, palmeiras de altura e grossura quase inacreditáveis, as enormes folhas em forma de leque abrindo-se em uma explosão vegetal bem mais acima de uma centena de metros sobre suas cabeças, e seu contorno marcado de modo pronunciado contra o céu acinzentado.
— Seria a Mauritia vinífera? — Perguntou Martin, com um sussurro.
— É alguma espécie de Mauritia, com certeza; mas não posso afirmar — retrucou Stephen.
Caminharam de modo lento e reverente pelo bosque. Não havia vegetação rasteira, e marés grandes ou talvez enchentes mantinham o solo totalmente limpo, para que as árvores grandiosas ascendessem absolutas, cada qual a dez metros uma da outra, formando um enorme renque cinzento.
Seus pés não faziam ruído algum enquanto caminhavam, mas foi na escuridão que logo penetraram, pois as densas frondes se entrelaçavam bem acima; e, exceto nas fímbrias, o bosque ainda estava repleto de noite cálida e silenciosa, os troncos pálidos elevando-se bem alto na escuridão. Viraram à direita, de comum acordo, e, ao chegarem novamente à outra extremidade, diante do rio e da praia, o sol erguera-se do Leste do mar, enviando um brilho instantâneo através da água até a outra margem, que não ficava muito distante.
A luz refletida e a cor da outra ribanceira resplandeciam na direção deles, enquanto permaneciam parados ali, à sombra das árvores remanescentes, uma ribanceira com uma faixa de areia brilhante, e depois uma grande parede do mais vivo e intenso verde, quase um verde berrante, com palmeiras de vinte ou trinta espécies diferentes pairando acima dela, tudo em meio ao silêncio total de um sonho. Martin bateu as mãos ao contemplar aquilo, proferindo algumas exclamações particulares; e Stephen, tocando no cotovelo dele, gesticulou com a cabeça em direção a três árvores mais adiante, rio acima, três cúpulas enormes, como de catedrais, que se elevavam sessenta metros acima das demais, uma delas completamente coberta por flores de um intenso vermelho.
Deram mais alguns passos por entre as palmeiras, alcançando a praia branca em sombra; para a esquerda, à margem da água, jazia um caimão de seis metros de comprimento, contemplando a suave corrente e, para a direita, plena sob o sol reluzente, descansava uma íbis encarnada.
CAPÍTULO CINCO
A fragata mutilada, tão indecente e irreconhecível quanto um homem sem nariz, avançou com infinita precaução, pelos bancos de areia e atoleiros do estuário, durante a preamar, guiada pelo solene prático, que enviara seu pessoal à frente para indicar com estacas, as curvas do canal. O navio manobrou dolorosamente rio acima, a proa deslocada por embarcações ao final de cada bordejo — cada curto bordejo, pois, à altura de Penedo o São Francisco estreitava-se para não mais do que uma milha. Contudo penetraram nele, finalmente, à luz de tochas, com apenas uma espera pela vazante no meio do canal. Para sua grande satisfação, Jack descobriu que Allen e Lopez, o dono do estaleiro, já tinham escolhido um excelente pedaço de madeira para o novo gurupés, que os carpinteiros já haviam desbastado uma esplêndida pega de beberu{116} para ele e que os guindastes de mastro para extrair o toco despedaçado seriam montados logo pela manhã.
— Esse Lopez para mim, é o tipo de homem perfeito — disse ele a Stephen. — Entende a importância do tempo e de se revestir totalmente com couro o orifício do pau de gira, e tenho poucas dúvidas de que domingo já estaremos no mar.
— Apenas três dias —, observou Stephen. — Infelizmente para o pobre Martin; eu lhe disse que o período seria mais longo, e ele ansiou por avistar a jiboia, a onça e o macaco-da-noite com cara de coruja, como também juntar uma coleção razoavelmente completa de besouros locais, mas não se pode esperar tanta coisa em tão pouco tempo. Contudo, concordo com você em relação ao senhor Lopez. É também um homem bastante amável e hospitaleiro e convidou-me a passar a noite e conhecer um cavalheiro peruano, um grande viajante, que também é um convidado. Esse cavalheiro, creio, atravessou os Andes e necessariamente deve ter visto uma boa parte do interior.
— Tenho certeza que viu — concordou Jack. — Mas imploro-lhe, Stephen, que não mantenha Lopez por muito tempo longe da cama dele. Não há um momento a perder... imagine os parvos que iremos parecer, se a Norfolk passar enquanto estivermos sentados aqui... e precisamos começar a trabalhar um pouco antes do amanhecer; será a maior pena do mundo se você o deixar entorpecido, sonolento e exausto. Você não poderia lhe dar uma indireta, dizendo que ficaria feliz em entreter o cavalheiro peruano se ele achar melhor se recolher cedo?
Em todo caso, Lopez não precisou de indiretas. Falava espanhol com grande dificuldade e, vendo que os seus convidados eram fluentes na língua, enormemente fluentes até, e se entendiam muito bem, pediu licença, alegando que tinha trabalho cedo, deu boa-noite e deixou-os numa ampla varanda, com vários animais domesticados: três espécies diferentes de micos, um tucano velho e calvo, uma fileira de papagaios sonolentos, algo peludo mais ao fundo, que devia ser uma preguiça ou um tamanduá, ou até mesmo um capacho, que peidava de vez em quando e olhava em volta, censurador, em cada ocasião, e uma pequena garça azul de notável elegância que entrava e saia. Havia duas garrafas do vinho do Porto branco entre eles, duas redes armadas atrás, e Lopez retornou por um instante para pedir que usassem os mosquiteiros.
— Não que tenhamos mosquitos em Penedo, cavalheiros — alegou —, mas devo confessar que na mudança da lua os morcegos-vampiros ficam um pouco mais importunos.
Estes, porém, não importunaram os seus convidados, já que os morcegos-vampiros na verdade precisam de presas adormecidas, e aqueles dois (apesar de ansiosamente observados lá das vigas) não foram se deitar. Passaram a noite toda sentados, conversando, contemplando o prateado da lua nova baixar e a procissão de estrelas enormes e brilhantes atravessar o céu. Morcegos de uma espécie mais amistosa, a meio metro de distância, mostraram-se brevemente sob a luz estelar, e no rio, a apenas alguns metros abaixo, podiam se ver o rastro cintilante das tartarugas e um ou outro jacaré. O mico-leão no colo de Stephen roncava baixinho, dormindo profundamente, apesar do contínuo fluxo de conversa. Comentaram a infame carreira de Bonaparte (sem um final à vista, infelizmente) o melancólico registro da Espanha como um poder imperial no Novo Mundo e a quase certa libertação de suas colônias.
— Embora, quando vejo os répteis subirem ao poder, em lugares como Buenos Aires — comentou o peruano; — às vezes temo que o nosso novo governo venha a ser pior do que o antigo.
E agora, no finalzinho da noite, retornaram à geologia, dos Andes e à dificuldade que era atravessá-los.
— Eu nunca teria conseguido se não fosse por isso — afirmou o peruano, gesticulando com a cabeça na direção do pacote pela metade de folhas de coca que estava sobre a mesa entre eles. — Quando estivamos perto do cume do desfiladeiro, o vento aumentou, carregando pelotas de neve congelada e impedindo a respiração, já tão limitada àquela altura, quando cada passo exigia duas ou três inalações ofegantes. Meus companheiros estavam nas mesmas condições, e duas de nossos lhamas morreram. Eu achava que devíamos voltar, mas o guia nos conduziu a uma espécie de abrigo entre as tochas, pegou sua bolsa de coca e a caixa de cal e distribuiu para todos. Cada um de nós mastigou um bolo, um acullico, como chamamos, e então, retomando nossas cargas com a maior facilidade, subimos mais rapidamente o terrível aclive através da neve inclemente, até o topo, e descemos para um clima mais ameno.
— Não me surpreende — disse Stephen —, desde o primeiro acullico, que teve a bondade de oferecer-me, tenho sentido a mente incandescer e aumentarem tanto os meus poderes mentais, quanto os físicos. Tenho poucas dúvidas de que conseguiria nadar no rio que há diante de nós. Contudo não o farei. Prefiro desfrutar sua conversa e o meu presente estado de notável bem-estar... não sinto fadiga, fome, nem perplexidade mental, mas sim uma capacidade de apreensão e síntese que raramente conheci antes. A sua coca, senhor, é a planta medicinal mais virtuosa com que já me deparei. Já tinha lido a respeito em Garcilaso de la Vega e no relato de Faulkner, mas não fazia ideia de um centésimo de sua eficácia.
— Esta, lógico, é a melhor coca de folhas achatadas da montanha — esclareceu o peruano. — Foi-me ofertada pelo plantador, um amigo íntimo, e sempre viajo com um pacote de tamanho razoável da colheita mais recente. Permita-me que lhe sirva um cálice de vinho, ainda tem um pouco na outra garrafa.
— É muita bondade sua, mas o vinho será desperdiçado comigo. Desde que cessou o agradável formigamento, depois do primeiro bolo, meu senso de paladar sumiu completamente.
— Mas que barulheira é essa? — Exclamou o peruano, pois uma zoeira de apitos podia ser ouvida do Surprise, junto com os rugidos de "É sair ou cair, é sair ou cair. Vamos acordar e levantar. Lá vou eu, com uma lâmina afiada e a consciência tranquila: é sair ou cair. Vamos levantar, vamos levantar, vamos levantar", enquanto os marujos da faxina do mestre do navio despertavam a adormecida coberta da guarnição, e todas as vigias abertas da fragata ficavam douradas no meio da escuridão.
— São apenas os marujos sendo chamados ao seu dever — explicou Stephen. — Eles gostam de limpar o convés antes do amanhecer, o sol não deve ser ofendido com a visão da poeira. Trata-se de um ritual muito supersticioso, creio eu.
Pouco depois as estrelas começaram a empalidecer, surgiu uma claridade no oriente e em questão de minutos o sol enfiou seu limbo superior acima da fímbria mais distante do mar. Um breve alvorecer, e o dia instalou-se de pronto. O comandante Aubrey saiu de sua câmara, o senhor Lopez, de sua casa, e ambos se encontraram no cais, o segundo acompanhado por um inoportuno e inútil macaco-aranha, que precisou ser ameaçado com assobios para voltar para casa. Jack tinha ao seu lado o mestre-arrais, por causa do idioma, e o mestre do navio para as questões técnicas, se alguma houvesse.
Por volta da metade da manhã, todos os homens estavam firmes no trabalho; isto é, os homens que havia, pois Pullings no escaler e Mowett na baleeira, com suas respectivas guarnições, tinham ido para além da barra a fim de manter vigilância e colher notícias. Mas havia restado muitos no Surprise, a fragata atracara com espias ao longo dos guindastes de mastro, e os operários do estaleiro estavam ocupados na proa; ao longo do cais, as enormes lascas plainadas voavam, enquanto os carpinteiros manipulavam suas enxós nos novos gurupés, pega e pau da giba{117}; o mestre do navio, sua faxina e um grande grupo de marinheiros extraordinariamente capazes desaparelhavam quase completamente os cabos fixos, a fim de refazer o aparelhamento à moda de Bristol para quando chegasse a nova verga; e um exército de calafetadores enxameava os conveses e os bordos. Poucos do Defender puderam ter alguma utilidade nessas tarefas especializadas, mas agora todos pareciam capazes de remar, e eles e os fuzileiros foram enviados mais adiante, para atestar de água o navio em uma nascente um pouco mais no acima.
— Sinto-me excessivamente culpado ao ver todo esse pessoal tão envolvido no trabalho, e eu sem fazer nada — observou Martin.
— Eu nem ligo para a culpa — retrucou Stephen, animado e satisfeito, apesar da noite inteira sem dormir. — Vamos dar uma caminhada para olhar a região. Disseram-me que há um caminho que passa por trás do mangue, atravessa a floresta e vai dar numa clareira a céu aberto, onde cresce certa espécie de palmeira. Esqueci o nome, mas o seu fruto é redondo e encarnado. Temos tão pouco tempo. Seria uma pena desperdiçá-lo ociosamente se lamentando.
Pouco tempo, de fato. De todo modo, mais do que suficiente para Martin ser mordido por um macaco-da-noite com cara de coruja, perigosamente mordido, até o osso. Caminharam por trás do mangue, ao longo da larga trilha da floresta, com a vegetação elevando-se em brilhantes paredes verdes de ambos os lados, uma parede formada por árvores e seus poderosos troncos, e também um incontável emaranhado de plantas rasteiras, trepadeiras, arbustos, cipós e parasitas preenchendo todas as frestas, de modo que, nas partes mais cerradas, nada, além de uma serpente, conseguiria penetrar. Caminharam com um sorriso tolo estampado no rosto, pasmados com as borboletas, as inúmeras borboletas de tantas espécies diferentes, e pelo ocasional beija-flor; e, após o impregnante som dos estridulosos insetos ter durado dez ou vinte minutos, este deixou de repente do ser ouvido e pareceu que eles caminhavam em meio a total silêncio — havia muitos poucos pássaros, e estes poucos, mudos. Mas, ao chegarem à clareira, onde as árvores ficavam bem mais distantes umas das outras e o solo era limpo, assustaram um bando misto de papagaios; e ali, numa trilha de chão batido, viram uma coluna em marcha de formigas carregando folhas, medindo trinta centímetros de largura, e tão comprido o cortejo que sumia em ambas as direções.
Stephen contemplou as formigas, distinguindo as formas das guerreiras e das operárias. Por ser aficionado em cálculos, deduziu seu número em pés quadrados e o peso provável da carga, pretendendo desse modo fazer uma estimativa do todo o exército que era capaz de ver. Sua aritmética, porém, sempre foi lenta, hesitante e escassa, e ainda rabiscava os números com um graveto numa folha larga, quando ouviu o grito assustado de Martin, perto de uma árvore oca do outro lado da clareira.
— Shh — fez ele, franzindo a testa. — Dão três, vão sete. — Mas agora o grito também continha aflição. Virando-se, viu sangue escorrendo da mão de Martin. Correu em sua direção, o pequeno canivete já retirado e a postos, e gritou: — Uma serpente, afinal? Algum tipo de cobra?
— Não — respondeu Martin, com um misto de prazer e dor no rosto. — Foi um macaco-da-noite com cara de coruja. Ele estava ali — apontou para um orifício no tronco da árvore — olhando. Tinha um rostinho listrado inquisitivo com olhos tão redondos que me arrisquei...
— Até o osso — exclamou Stephen. — E com certeza vai perder a unha se sobreviver. Deixe sangrar, amigo, deixe sangrar. Não tenho dúvida do que o macaco era raivoso, e o sangramento, com a bênção de Deus, pode livrado de um pouco do veneno. Pronto, vou amarrar e vamos correndo de volta ao navio. Precisa ser cauterizado o mais depressa possível. Onde está o macaco?
— Lamento dizer que ele saiu correndo imediatamente. Eu devia ter chamado você mais cedo.
— Vamos imitá-lo. Não há um momento a perder. Pela margem do rio à mais rápido do que pelo mangue. Mantenha a mão sobre o peito; e quero lembrá-lo de que esse lenço é meu.
Enquanto corriam sob o sol forte, Martin comentou:
— Não é todo mundo que pode exibir um ferimento causado por um macaco-da-noite com cara de coruja.
Uma faixa de bambus emplumados para atravessar, e chegaram à margem do rio, agora uma larga faixa de areia, com o recuo da maré; e ali, diante deles, surgiram dois marujos, Awkward Davis e Fat-Arse Jenks, carregando porretes de madeira flutuante, e uma terrível cara de mau.
— Ora, é o doutor— berrou Davis, o mais esperto dos dois. — A gente pensou que eram índios... selvagens... canibais.
— Tigres — completou Jenks —, correndo pelos juncos e sedentos de sangue.
— O que fazem aqui? — Quis saber Stephen, já que ambos pertenciam à guarnição do escaler.
— Ora, não ouviu a notícia, senhor? — Perguntou Davis.
— Que notícia?
— Ele ainda não soube da notícia — disse Davis, dirigindo-se a Jenks.
— Então conte você, companheiro —, pediu Jenks.
A notícia, liberta de sua teia de detalhes irrelevantes e corrigida aqui e ali de seus minuciosos pontos circunstanciais, era que a Norfolk havia passado rumo Sul-sudoeste com velas de cruzeiro; que o comandante Pullings havia imediatamente partido com o escaler para Penedo; que ele tivera grande dificuldade em encontrar o canal e que aquela fora a mais baixa das marés de sizígia{118}, ou perto disso; e que o escaler encalhara tantas vezes no último trecho, que Davis e Jenks, extraordinariamente pesados e impossibilitados de remar por causa do forte vento, receberam ordens de seguir o resto do caminho a pé, mas devendo tomar cuidado com os tigres. O sr. Mowett na baleeira, por seu lado, foi levado pela corrente e logo encalhou num banco de areia e terá de esperar lá até o navio passar.
— O escaler já deve ter chegado há uma hora — disse Davis. — Oh, puxa vida, eles agora devem estar mais atarefados do que abelhas.
Abelhas, de fato, e abelhas sob as ordens de um capataz excepcionalmente diligente. As refeições, proibidas na câmara, na praça d’armas e no camarote dos aspirantes, foram reduzidas a um bocado de dez minutos para toda a tripulação; todo o serviço de embelezamento foi abandonado; e havia tantos carpinteiros extras, contratados à custa do bolso de Jack, trabalhando no gurupés que mal tinham espaço entre si para manejar as ferramentas. Depois do anoitecer, o que podia ser feito, sob a luz de enormes fogueiras queimando no cais, foi feito, e embora ainda houvesse uma boa quantidade de serviço de acabamento que devia esperar pelo sol, Jack estava totalmente confiante em que conseguiriam suspender com a maré da noite do dia seguinte.
— Não vai se importar por ser sexta-feira? — Perguntou Stephen.
— Sexta-feira? — Bradou Jack, que perdera a conta dos dias em meio à fúria do impetuoso trabalho. — Valha-nos Deus, é mesmo. Mas isso não importa, sabe. Não fazemos isso voluntariamente, somos obrigados. Não e não. Mas deixe isso de lado... e, por favor, não o mencione para ninguém mais, Stephen. Há duas coisas a nosso favor: a primeira é que o Norfolk está progredindo apenas com velas de cruzeiro, quando poderia facilmente até agora ter aberto muito mais pano; portanto é provável que, com todo o pano, a gente o alcance. A outra é que estamos na maré de sizígia, ela nos levará daqui muito mais depressa do que quando viemos.
Uma terceira coisa foi a chegada de Mowett e a guarnição da baleeira, os quais, tendo executado prodígios no conserto, apareceram, um pouco antes do alvorecer. Com a ajuda deles — e alguns dos mais habilidosos aparelhadores se encontravam entre os membros da guarnição da baleeira — o trabalho avançou com um ritmo esplêndido. O novo gurupés estava no lugar por volta das dez e meia, trincado e atado firmemente às onze, e o novo pau da giba disparado com todos os estais{119} e ovéns{120} ajustados por volta da baixa-mar.
Jack deu a ordem para distribuir uma ração dupla de rum para os homens pelo bom trabalho realizado e, virando-se para Pullings, falou:
— Vamos deixar a pintura e os enfeites para quando estivermos no mar, pois é claro que o navio não está com uma boa aparência, mas nunca imaginei que pudéssemos fazer tanto em tão pouco tempo. Por favor, peça ao mestre-arrais que diga ao sr. Lopez que, afinal, teremos prazer em aceitar o seu convite; ele sabe que teremos de deixá-lo com a virada da maré. Puxa, como gostaria do meu jantar e de um cálice de vinho, por Deus!
Cálices de vinho não faltaram no festivo banquete, nem uma excelente comida (pois a tartaruga contou como se fosse peixe), ou mesmo canções; aliás, Jack achou que o prático foi agudo demais nas cantigas de marujos que aprendera a bordo de navios mercantes ingleses e americanos. Mas, ao mesmo tempo, a cabeça de Jack estava por demais ocupada com a enchente da maré para poder se deliciar com a música e, assim que o menino que ele havia mandado guarnecer os cronômetros veio informar-lhe que chegara o momento oportuno, levantou-se, agradeceu ao sr. Lopez da forma mais sincera e saiu, seguido por Stephen e o mestre, fazendo pouco caso do apelo do prático para um último brinde a São Pedro.
A maré, agora na estofa de preamar, estava excepcionalmente alta, tão alta que pequenas ondas lambiam o cais, porquanto a maior parte da enchente fora em direção a sotavento, só que, agora o vento rondara convenientemente para sudoeste. Assim que esse enorme volume de água começasse a baixar, refletiu Jack, olhando para o limite do banco de areia mais distante, arrastaria o Surprise direto para o mar a uma esplêndida velocidade; e, até mesmo com uma pequena ajuda da brisa, estariam fora do estuário antes da virada da maré, principalmente porque, com tal volume d’água no rio, não precisariam acompanhar toda a sinuosidade das águas navegáveis durante a vazante.
A altura incomum também teve outra vantagem: Stephen entrou direto na embarcação do prático e sentou-se lá, tranquilamente, sem ter caído para o fundo ou sido arremessado para a outra extremidade, ou mesmo esfolado as canelas, enquanto o prático e seu ajudante remavam em direção ao Surprise, que já estava no canal, amarrada por duas ancoretas flutuantes do próprio estaleiro e apenas esperando o seu comandante para ser manobrado.
— Estamos indo embora — comentou Martin, fitando a brilhante parede verde iluminada pelo sol a boreste, enquanto ela deslizava para longe.
— Se esta fosse uma viagem de pesquisa civilizada, poderíamos ter ficado umas três semanas — observou Stephen. — Como está sua mão?
— Muito bem, graças a você — disse Martin. — E, mesmo que tivesse sido cinquenta vezes mais grave, em vista daquelas poucas horas, eu ainda acharia que não foi nada... Quanta opulência... Maturin, se voltar a sua luneta na direção daquela árvore enorme, além do promontório, e olhar um pouco mais à direita, não verá algo bem parecido com um bando de macacos?
— Exatamente. E parecem bugios, bugios-pretos.
— Bugios, foi o que disse? Sim, sem dúvida. Eu gostaria — acrescentou em voa baixa para não ser ouvido pelo prático —, bem que eu gostaria que esse sujeito fizesse menos barulho.
— Ele está cada vez mais animado — concordou Stephen. — Vamos mais para a frente.
Mas mesmo na proa a animação do prático os perseguia, junto com sua imitação do rugido da onça, um grosseiro Buu-Buu; e, ainda mais decepcionante, foi o fato de ele levar a embarcação para o meio do rio, de modo que nenhuma das duas margens podia ser vista em detalhe.
A maré começara a baixar e o navio corria surpreendentemente veloz, com um vento pela alheta nas gáveas e bujarrona. Veloz, isto é, até parar totalmente, com uma suave, mas repentina freada, sobre um banco de areia, o convés inclinado de proa a popa, e uma imensa onda de lama e areia escorrendo dele para a rápida corrente.
Imediatamente a guarnição acionou as escotas, e agora, enquanto carregavam o pano, Jack surgiu correndo para fora de sua câmara, aos gritos: "Lançar o prumo, lançar o prumo n’água". Curvou-se sobre a balaustrada de proa, olhando abaixo para a água, enquanto esta clareava: o navio sulcara um caminho tão longo no banco de areia que o leito estava a um metro das portinholas de bombordo.
— Lançar a prumada ao largo — ordenou ao contramestre, na esperança de que o chumbo talvez pudesse revelar espraiado estreito para conseguirem arrastar o navio pelos bordos. Mas ele nada revelou disso; e, enquanto a sonda de chumbo era girada para um segundo arremesso a bombordo, ele descobriu arbustos e juncos sob o pé da roda de proa da fragata. Ela estava num banco tão raso que raramente ficava oculto. Correndo à popa, para verificar como as coisas estavam à ré, viu que Pullings e Mowett já arriavam as embarcações miúdas pelo costado. "Passar um cabo pela abertura da vigia da praça d’armas", gritou ao passar.
A popa estava anormalmente afundada na água, e o leme, provavelmente, perdido, mas isso não importava no momento.
— Simplesmente deixe-o cair abaixo da almeida — falou, e o prumo de mão espirrou na água.
— Na marca dois, senhor — informou o contramestre com a voz abalada. —E mal chegando a isso.
Era, de fato, muito ruim, mas não impossível.
— O melhor ferro de serviço no escaler — gritou. — Ancorete e cabo de reboque no cúter vermelho. — Olhou acima do corrimão da popa para ver ser o movimento da corrente lhe dava alguma pista dos limites do banco de areia e notou que o prático e seu ajudante já estavam a duzentos metros de distância no seu pequeno esquife, puxando furiosamente.
Disse o mestre-arrais: — Jogue a água potável pela borda — e mergulhou conveses abaixo, para onde o mestre do navio e uma turma de fortes marinheiros de convés de ambos os quartos passavam de um para o outro, em direção à popa, um dos novos cabos de quinze polegadas, com uma cantiga ritmada: "Puxa um, puxa dois, puxa para lá, e vai".
Tudo ali estava bem. Seguindo com rapidez, enquanto corria de volta para o convés pedindo aos gritos o bote e uma boia cilíndrica para amarração, alguma parte de sua mente teve tempo de agradecer a Deus pelos excelentes oficiais e uma tripulação de perfeitos marujos.
Quando saltou para dentro do bote, o ancorete já havia sido baixado para o cúter vermelho. O ferro de serviço principal estava pendurado no aparelho do turco do lambareiro, suspenso bem acima do escaler, e água potável jorrava pelo costado, aliviando bastante o peso do navio.
O bote arremessava-se para lá e para cá, como um cão impaciente, em busca de profundidade e de uma boa base de apoio. No primeiro lugar razoável, Jack lançou a boia por cima da amurada e gritou para o escaler, agora remando o mais depressa que conseguia, com a âncora a bordo e o cabo arrastado à ré, remando o mais depressa que conseguia contra o vento, e a agora muito mais forte corrente de vazante remando com tanta força, que o rosto dos homens estava vermelho, enquanto os remos se curvavam perigosamente nas toleteiras{121}. Pois agora não havia um momento, nem um só momento a perder, agora mais do que nunca, visto que, como cada marujo sabia, aquela maré baixaria dez metros.
Mesmo nos últimos dez minutos, quinze centímetros de preciosa profundidade haviam vazado do banco de areia e em volta do navio e, se eles não tirassem daquela maré, haveria pouca esperança de o fazerem na próxima, porque ela não subiria tão alto. Além do mais, havia o temor de o navio romper a quilha depois que a água o abandonasse. "Força, força", rugia Pullings na lancha, e "Força, força", rugia Mowett no cúter.
Alcançando a boia cilíndrica, o escaler manobrou o perigoso ferro de serviço por cima do costado. O cúter seguiu para onde o bote sinalizava uma razoável profundidade e deixou cair o ancorete, assim fundeando o próprio ferro. Jack levantou-se e gritou para o navio: "Içar. Içar aí". Imediatamente, o cabrestante do tombadilho da fragata começou a girar.
No momento em que as embarcações retornaram, algo como pressão total estava em curso; o cabrestante ainda girava, porém muito lentamente, com os homens curvados sobre as barras, arfando. Stephen e Martin empurravam a barra lado a lado, mas quando as guarnições das embarcações saltaram para bordo do navio e correram para as barras do cabrestante, Jack empurrou Stephen para o lado, tomou o seu lugar e disse;
— Eu sou mais pesado. — Em seguida, num tom de voz mais potente: — Içar com vontade. Içar com vontade. Içar com presteza.
As barras agora estavam todas sendo guarnecidas, e o cabrestante deu uma volta completa, os linguetes de ferro fazendo clique clique clique. A pressão chegou algo perto do ponto de ruptura, e Stephen, olhando em direção à popa, via o cabo como se fosse uma linha quase reta. Ele havia sido reduzido a menos da metade de sua bitola.
— Areia nas garras — gritou Jack, já rouco com o esforço do incentivo. — Içar com presteza. Içar, vamos içar.
O cabrestante mal se movia. Um clique, uma demorada pausa esforçada, outro clique relutante. "Içar com presteza". Então o som dos linguetes ficou mais rápido: clique clique clique clique: o cozinheiro gritou; "Estamos livres", e alguns dos que não encontraram lugar nas barras do cabrestante começaram a dar vivas. Mas eram os ferros que estavam garrando e regressando. Além de afundar um pouco mais na lama, o Surprise não se mexera, e agora a maré havia baixado sessenta centímetros.
— Parem — ordenou Jack, erguendo-se da barra. — Comandante Pullings — falou, depois de olhar para o rio e suas ribanceiras. — Creio que o navio vai adernar para boreste, na baixa-mar. Portanto, precisamos colocar alguns apoios. Ao mesmo tempo, precisamos encontrar um solo duro, perto da ribanceira, para os canhões, para que o navio talvez consiga flutuar no auge da próxima preamar.
"Ou", acrescentou para si mesmo, "na preamar da próxima maré de sizígia: oh, Deus, envie-nos amanhã uma preamar com a altura apropriada".
"‘Houve ocasiões, minha queridíssima", escreveu Stephen para Diana, em uma carta datada "das margens do São Francisco", "em que você não ficou nem um pouco contente com Jack Aubrey, mas, se o tivesse visto nessas duas últimas semanas, creio que lhe reconheceria uma certa qualidade heroica, uma certa grandeza de alma. Como ia dizendo, um prático bêbado conduziu o navio para um banco de areia no meio desse rio, exatamente na preamar da maré de sizígia, a maré de maior amplitude e, apesar de o termos puxado com toda a nossa força, não o conseguimos desencalhar; tampouco se mexeu com a maré seguinte, que, embora alta, não foi suficiente para içá-lo do seu leito lodoso.
"Depois disso, não havia esperança, até a mudança da lua, que traria outra maré de sizígia; foi um momento de confortante reflexão, mas cada dia que passava colocava outras cem ou duzentas milhas entre nós e a nossa presa, uma presa da qual dependem toda a felicidade de Jack, sua própria carreira profissional e reputação. Além do mais, não é totalmente garantido que a próxima maré alta atinja a altura extraordinária da maré que causou a nossa ruína. Contudo, desde aquele instante até este, não ouvi Jack reclamar ou gritar ‘Ora, que se f... tudo’, nem qualquer uma daquelas calorosas expressões tão frequentemente usadas no mar, que ele utiliza livremente em ocasiões levianas.
"Certamente ele tem exigido que todos trabalhem bem arduamente, o dia inteiro, visto que todos os canhões tiveram de ser levados para a praia, juntamente com incontáveis toneladas de mantimentos e provisões e, com a baixa-mar, um canal teve de ser escavado, para ficar mais fácil arrancar o navio quando chegar o momento, e o leme também precisou ser remontado; mas, diante de tudo isso, não me lembro de ter ouvido uma imprecação, uma repreensão. E o curioso é que essa frieza choca completamente os homens; eles o olham, nervosos, e vão fazer suas tarefas com notável diligência.
"Aconteceu o mesmo com Martin e comigo. Durante os primeiros dias, quando o navio precisava ser aliviado de peso, a uma grande velocidade, para evitar que o casco alquebrasse ou a quilha se rompesse, por ficar suspenso pelo meio nas marés de quadratura, as marés de quarto de lua, todos os marujos habilidosos foram empregados para lidar com os canhões; Martin, o intendente e eu ficamos encarregados do bote (um engenho desprezível) para rebocar os pesados tonéis para terra; e eu lhe asseguro que ficamos perpetuamente cientes daquele olhar impassível, determinado e autoritário; nós o sentíamos sobre nós em todas as nossas idas e vindas, e éramos submissos como alunos de escola.
"Depois dos primeiros dias, contudo, fomos liberados, as mãos sangrando e, sem dúvida, com a espinha bem avariada, já que não havia mais qualquer outro trabalho não-especializado a fazer. Devo confessar que a última semana foi excepcionalmente agradável. Este é o único rio tropical que conheço que não é infestado por mosquitos, embora haja alguns ótimos pântanos bem próximos, com uma profusão de aves pernaltas — imagine, minha querida, uma ‘colhereira roseate’ se for capaz — e, claro, há uma profusão botânica infinitamente grande por todo lado.
"Raramente tenho visto um homem tão feliz quanto o meu colega Martin. Na opinião dele, só os coleópteros teriam feito a viagem valer a pena, mas, ao mesmo tempo que montava uma coleção de besouros bastante curiosos, ele também viu uma jiboia, o que era uma de suas ambições.
"Caminhávamos por uma parte da floresta a céu aberto, conversando sobre onças, quando ambos fomos derrubados ao chão por algo que, a princípio, pensei se tratar de um galho pesado, ou mesmo um cipó; entretanto o cipó se contorcia com tanta força que logo percebi que era de fato uma enorme serpente que caíra da árvore. Mas uma serpente tão terrivelmente assustada que quase perdeu a cabeça: enquanto se esforçava por escapar, serpenteava em todas as direções. Vi que Martin segurava em seu pescoço com ambas as mãos e o repreendi, dizendo que aquilo era temerário, negligente e imprudente.
"Devia tê-lo lembrado de Laocoonte{122}, mas uma volta da serpente comprimiu abaixo do meu queixo e não pude falar. Ofegante, ele retrucou que se tratava de uma jiboia — jiboias são notoriamente afáveis —, ele só queria ver suas vestigiais pernas traseiras, depois a largaria, não ia machucá-la. A essa altura, a pobre criatura tinha recuperado a destreza; arremessou-se (se a palavra pode ser usada para um réptil tão imenso, grosso, grosso, e quase interminável) de seu aperto com um decidido bote, correu árvore acima como uma torrente invertida, e não a vimos mais. Pela sua aparência brilhante e o confuso estado mental, penso que ela devia ter trocado de pele recentemente.
"Mas a grande profusão de cada dia, obviamente, era a botânica, e isso me lembrou a coca ou folhas de coca que um viajante peruano me presenteou; quando mastigadas com um pouco de cal, elas estimulam a mente a um nível magnífico, induzem a uma sensação de bem-estar e extinguem a fome e a fadiga. Tenho guardado um estoque bastante considerável, porque acredito que poderão me ajudar a eliminar um hábito um tanto desagradável; você deve ter notado que, para a insônia e uma variedade de outras indisposições, eu tomo uma tintura de láudano, e isso tende a se tornar um pouco habitual demais.
"Não creio que se trate de uma questão de abuso, muito menos de vício, mas isso cria uma certa necessidade, não muito diferente da do tabaco; ficarei muito feliz em livrar-me disso, e estou confiante em que essas valiosas folhas se mostrarão eficazes. Seus poderes realmente me surpreendem, e estou enviando algumas com a minha carta para que você possa experimentar. Durante esse período de extremo trabalho árduo e ansiedade, eu as sugeri a Jack, mas disse-me que, se tirassem o sono e a fome, não eram indicadas; para ele — durante essa crise precisava de sono e tinha de fazer suas refeições —, em suma, não tomaria nenhum remédio até que o navio estivesse flutuando; não, nem pelo resgate de um rei.
"O navio agora está flutuando, equipado, enfeitado, praticamente incólume, após ter sido arrancado do banco de areia, ou melhor, da ilha, durante a preamar da maré de sizígia de ontem à noite; mas com isso perdemos um ferro, e recuperá-lo demorou tanto que fomos obrigados a esperar pela próxima preamar, quando o excelente sr. Lopez (que Deus o abençoe), nos guiará até o mar aberto. Estava para acrescentar a ressalva ‘se ele nos alcançar a tempo’, mas ao pousar a pena vi o seu barco surgir na margem do rio. Ele agora está a bordo; e, quando nos deixar depois de levar o navio além da barra, eu lhe confiarei esta carta".
— Será que devo? — Perguntou em voz alta, após reler a carta.
O tom estava errado, talvez ofensivamente errado. A carta admitia que nada havia de errado entre os dois, e a percepção dessa admissão conferia-lhe impropriamente uma falsidade, uma discordante artificialidade. Lentamente, amassou o papel na mão, enquanto olhava em direção ao rio para o barquinho elegante, deslizando ali nas águas navegáveis, adequadamente, deste lado da maldita ilha; mas então, ao ver o barco se distanciar do costado, o barco que trouxera o Sr. Lopez a bordo, e lembrar que talvez não houvesse mais terra até o distante Pacífico, ele alisou o papel e escreveu: "Sabe Deus quando esta chegará até você, mas, cedo ou tarde, leva todo o meu amor".
O Surprise tinha dezesseis dias de navegação para compensar; e, posto que o Norfolk estivesse provavelmente seguindo para o Sul com não mais do que velas abrandadas, a fim de preservar seus aparelhos, vergas e panos, mal devia estar fazendo cinco nós nos constantes alísios de sudeste, mesmo com rizes duplos nas gáveas durante a noite, e isso o colocaria duas mil milhas à frente.
O Surprise, portanto, estava numa pressa desatada, e, assim que desembarcou o prático, abriu uma enorme quantidade de pano. Mas nada havia de incomum nessa situação; o navio e seu comandante sempre foram pressionados pelo tempo praticamente na totalidade de suas carreiras e agora a pressa era quase um estado normal. — O ócio no mar tinha algo de incômodo, uma espécie de calmaria anormal.
Apesar da pressa, porém, Jack não tinha intenção de levá-lo ao extremo de suas possibilidades, com tudo no próprio limite do desmastreamento, como ele frequentemente fizera quando, numa perseguição, sua presa estava à vista no horizonte e ele podia arriscar de sã consciência rachar um mastaréu. De qualquer forma, pretendia chegar o mais próximo possível da velocidade exigida por essa perseguição extremada, tendo em mente que agora o distante mar do Sul estava diante dele sem qualquer fornecedor de gêneros para o navio, muito menos um estaleiro, em suas praias; e, mais uma vez agradeceu à Providência por lhe ter fornecido dois oficiais de manobra como Pullings e Mowett, que manteriam o navio navegando, noite e dia, com igual energia e determinação.
— Agora podemos voltar a nos ocupar com os verdadeiros trabalhos de marujos — disso ele, com grande satisfação, ao manter o seu rumo pelo Atlântico Sul, à bolina cerrada, com uma brisa nordeste que não trazia consigo nenhum cheiro de terra, um puro vento marítimo. — E talvez possamos fazer o navio parecer um pouco menos como algo pronto para o estaleiro de desmonte. Como detesto ficar muito próximo da terra — acrescentou, olhando para o Brasil, uma tênue faixa avultando no horizonte ocidental, mas ainda assim demasiadamente perto para um marujo de mar aberto, cujo maior inimigo era uma costa sotavento. — Mas com suficiente espaço de mar{123} para manobrar, se o oceano e os vagalhões beijassem a lua, eu não ia me importar — observou, tirando as palavras da boca de Mowett; em seguida, porém, refletindo que o destino pudesse encarar isso como um desafio, agarrou uma malagueta e disse: — Estou falando apenas metaforicamente, é claro.
Jack não era um desses comandantes modernos, dados ao exagero da arrumação e da limpeza, cuja ideia de um navio excelente era aquele capaz de alterar a posição dos mastaréus cinco segundos mais depressa do que os outros no porto, no qual grandes quantidades de latão brilhavam excessivamente ao sol o tempo todo e em todas as condições de tempo, no qual os aspirantes usavam calções brancos justos, chapéus enfiados até as orelhas e botas hessenianas com tranças e borlas douradas, excepcionalmente bem-treinados para rizar as gáveas, e no qual as balas de canhão, nas prateleiras e braçolas, eram cuidadosamente pintadas de preto, enquanto o preto natural dos arcos das bandejas do rancho era areado até atingir uma brancura prateada.
Mas ele gostava que o pouco latão exposto que o Surprise possuía brilhasse e que a sua pintura parecesse razoavelmente limpa; seu imediato gostava ainda mais e, por mais curioso que pareça, o pessoal que precisava fazer todo esse trabalho concordava plenamente com eles.
Era ao que estavam acostumados e prezavam aquilo a que estavam acostumados, mesmo que precisassem começar o dia, com areia e pedras de esfregar o convés molhado, muito antes de o sol nascer e muitíssimo antes do desjejum, mesmo que precisassem pintar partes expostas do navio, enquanto este se precipitava e quebrava as ondas, através das vagas do Atlântico, com quatro homens na roda do leme e a maioria do pessoal de quarto a postos para largar todo o pano durante a singradura.
Não que isso acontecesse com frequência, já que em geral os ventos não eram tão bondosos para o navio, quanto o tinham sido na primeira parte da viagem; e Hollom recebia muitos olhares de esguelha pelas costas, as costas de um Jonas devorador de ventos, a despeito de todo o seu sucesso nas águas particulares do artilheiro-chefe.
O Surprise, portanto, prosseguia em direção ao Sul, com toda a celeridade possível, espalhando a sotavento o cheiro de tinta fresca; e, tão logo a tinta mais vulnerável secava, também o forte odor embriagador de pólvora. Era raro passar um quarto, sem que pelo menos armas portáteis fossem disparadas, e mais raro ainda que não fossem feitas manobras com os canhões de longo alcance — "quanto mais tempestuoso o tempo, melhor o exercício", dizia Jack —, visto que não havia garantia de que enfrentariam o inimigo num mar suave e plácido, e era melhor aprender como içar os duzentos quilos por homem, na descendente de um convés jogando impiedosamente, antes que a destreza para isso fosse necessária.
Havia dois motivos principais para esses constantes preparativos; o primeiro era que Jack Aubrey adorava plenamente a vida, tinha uma disposição alegre e confiante, o fígado e os intestinos estavam em excelentes condições; e, a não ser que o mundo o maltratasse demais, como ocorria de vez em quando, ele costumava acordar sentindo-se satisfeito e cheio de intensas expectativas de desfrutar o dia.
Como tinha muito prazer em viver, consequentemente pretendia continuar vivendo o máximo que pudesse, e para ele a melhor maneira de garantir isso, em uma batalha naval, era disparar três bandas para duas do inimigo e dispará-las com pontaria mortal. O segundo motivo, estritamente associado ao primeiro, era que sua ideia de um navio excelente era aquele dotado de uma tripulação forte e altamente habilidosa, capaz de superar o oponente em manobras e disparos, um navio tenso, mas feliz, um eficiente navio de guerra. Em suma, um navio capaz de vencer em quaisquer situações em que houvesse probabilidades razoáveis.
Em direção ao Sul, portanto, passo a passo; em direção ao Sul, com a morna corrente do Brasil; e não passaram pelo trópico de Capricórnio antes da habitual e costumeira rotina de bordo, pontilhada por badaladas de sinos, que poderia ter transcorrido em uma época perdida na memória.
O navio agora estava tão belo quanto a tinta poderia deixá-lo, o latão fora esfregado durante o seu involuntário período em doca seca, tinha largado o seu conjunto de velas brancas para tempo bom, e era uma visão notavelmente elegante, ao seguir sempre adiante com as asas abertas, deixando o sol para trás.
Os meninos tinham sido apresentados ao primeiro aoristo{124}, ao ablativo absoluto e aos elementos da trigonometria esférica; nesta aplicaram-se com pouco entusiasmo, até serem liberados para aprender com Bonden a dar a volta boca de lobo, ou outros nós incomuns, com Faster Doodle, um homem que nunca explicava coisa alguma por total falta de articulação, mas que mostrava como fazer, várias e várias vezes, com infindável paciência; era capaz de dar dez vezes um nó de escota estilo bigota, sem uma só palavra.
Durante o resto do dia, viam pouco o sr. Martin, e às vezes parecia que este ficava tão ansioso, quanto os seus alunos, para abandonar os senos, tangentes e secantes; aliás, estava organizando a sua coleção de coleópteros brasileiros, juntados às pressas e só agora revelando a grande profusão de novas espécies, novos gêneros e até novas famílias. Ele e Stephen aguardavam com ansiedade os vários meses felizes e tranquilos, classificando essas criaturas; apesar de Stephen não ter grandes paixões por besouros e apesar de seus deveres (como também sua indisposição em perder qualquer pássaro ou baleia que passasse) frequentemente o afastarem dali.
Stephen estava cada vez mais e mais insatisfeito com Higgins como assistente de cirurgião. O homem, sem qualquer sombra de dúvida, era um excelente extrator de dentes, embora profundamente ignorante da medicina e da cirurgia, e não apenas ignorante, mas imprudente e estouvado. Aproveitava-se também da credulidade dos marinheiros do traquete. Havia um limite para feitiços, como havia para placebos, no entanto Higgins ia muito além do que poderia ser justificado como útil para um paciente; além disso, estava começando a extrair honorários ilícitos (como também enguias, camundongos e lacraias) daqueles que ficavam doentes e daqueles que desejavam fingir doença para tirar um tempo de folga na enfermaria.
Stephen, então, resolveu cuidar pessoalmente de cada paciente, confinando Higgins aos dentes deles. Sabia, porém, que isso não acabaria inteiramente com a prática particular ou antes secreta do homem, por serem os marujos o que eram, mas pelo menos poderia verificar se não estavam sendo envenenados, pelo menos poderia trancar as suas drogas mais perigosas.
Atendia o pessoal do traquete pela manhã e novamente quando fazia sua ronda pela enfermaria, no final do dia, geralmente acompanhado por Jack. Os oficiais, por seu turno, normalmente marcavam uma consulta através do atendente da enfermaria, o grumete-enfermeiro. Isso, porém, de modo algum era invariável, principalmente com seus companheiros de praça d’armas, e Stephen não ficou nada surpreso ao ouvir uma batida em sua porta alguns dias após terem deixado Penedo... — havia vários estômagos de oficiais de bordo que ainda sofriam de indigestão de tartarugas e frutas tropicais.
Mas não se tratava disso: era a sr.ª Horner, que veio num momento em que todos estavam no convés, pois o Surprise havia atravessado para falar com um mercante proveniente do rio da Prata. Quando sugeriu examiná-la no camarote do artilheiro-chefe, na presença do marido, ela se recusou. Tampouco quis que a sr.ª Lamb ou a esposa do sargento estivessem presentes. Aliás, nem foi necessário um exame mais demorado ou minucioso; a sr.ª Horner estava grávida, como ela sabia perfeitamente, desde a última mudança da lua. Quando Stephen lhe disse isso, ela confirmou:
— Sim, e não é de Horner. O senhor conhece o problema dele, doutor, ele me contou. Não é dele, mas quando descobrir vai me matar. É um homem terrível. Se não me livrar disso, vai me matar.
No demorado silêncio que se seguiu, ela sussurrou "Ele vai me matar" para si mesma.
— Lamento muito —, disse Stephen. — Não pretendo saber o que deseja que eu faça, mas isso não é possível. Farei tudo o que puder para ajudá-la, mas isso não. Precisa tentar... — Sua faculdade inventiva falhou, a voz murchou, e ele ficou olhando para o chão, sentindo o peso da dolorosa aflição dela e de sua imediata decepção.
— Eu o conheço, conheço — repetiu a sr.ª Homer, num tom de voz apático. — Ele vai me matar.
Após alguns momentos ela recuperou pelo menos uma aparência de compostura e levantou-se, alisando o avental, parecendo lastimavelmente jovem e enferma.
— Antes de ir — disse Stephen —, preciso esclarecer-lhe duas coisas: a primeira é que qualquer interferência com o curso natural dessa questão é extremamente perigosa; e a segunda que a própria natureza costuma interferir, já que mais de uma gravidez em dez tendem a se encerrar com um aborto natural. Espero que venha me ver pelo menos uma vez por semana. Talvez se sinta um pouco indisposta e talvez seja necessário ajustar o seu temperamento.
Ficou evidente que ela mal o ouviu, embora tenha feito uma reverência quando ele acabou de falar. Ao passar pela porta, murmurou para si mesma: "Ele vai me matar".
"Talvez ele a mate mesmo", pensou Stephen alguns minutos depois. Ele tinha ido ao convés a fim de se livrar da dolorosa impressão daquela entrevista e para saber o que o mercante tinha a dizer, e ali, no talabardão, a apenas alguns pés dele, estava o artilheiro-chefe, sombrio, raivoso, perigoso, prestes a estourar por alguma coisa, um homem possante com compridos braços pendentes.
Stephen chegou tarde demais para qualquer coisa além das corteses despedidas, trocadas à distância de um quarto de milha de um balouçante mar água-marinha salpicado de branco, enquanto os navios seguiam em rumos opostos. Entretanto Pullings lhe disse que a notícia era das mais decepcionantes: o Norfolk não entrara no rio da Prata, o que permitiria ao apressado Surprise ganhar pelo menos algumas centenas de milhas, mas seguira adiante. Uma barca de Montevidéu havia informado sua posição a cerca de 40º S, o que significava, com quase toda a certeza, que aumentara sua distância, ao encontrar ventos mais favoráveis.
— Nossa única esperança agora — disse ele — é encontrar um navio que o tenha visto fazendo reparos, digamos, em Puerto Deseado, antes de contornar o Horn; caso contrário, certamente teremos de fazer o contorno para segui-lo. E sabe Deus se ainda conseguiremos encontrá-lo.
— Mas o sr. Allen sabe que ele está atrás dos baleeiros ingleses, e o objetivo principal do Norfolk não é persegui-los?
— Sim, com certeza. Mas nesses últimos anos a área de pesca espalhou-se mais para Sul e Oeste e, se não a alcançarmos ao longo da costa, nas águas que o mestre conhece, ao longo do Chile, Peru, Galápagos, México e Califórnia... E, se ele navegou para Oeste, afastando-se três mil milhas ou mais, como vamos encontrá-lo nesse mar todo? Não há rotas de comércio naquelas bandas, nem navios mercantes para o verem passar, nem um porto onde poderíamos ter notícias dele. Será preciso uma sorte incomum, e sorte é algo que não temos tido muita nesta maldita viagem.
Em direção ao Sul e mais ainda para o Sul, porém sem encontrar navio algum. Dia após dia, semana após semana, o tranquilo mar continuava totalmente vazio em suas bordas, uma imensa solidão; e durante todo esse tempo o vento era fraco, inconstante e, por vezes, borrascoso; mas, acima de tudo, fraco. Por três noites seguidas Jack teve seu sonho recorrente de cavalgar um cavalo que encolhia e definhava, até seus pés tocarem no solo, de ambos os lados, e as pessoas o olhavam com firme desaprovação, até com desprezo; e sempre acordava com a mesma sensação de suada aflição.
Imperceptivelmente, o ar ficava mais frio... e o mar; e, a cada dia, o sol ficava pelo menos um grau distante do zênite, durante a observação da sua passagem meridiana. Por essa ocasião, todos os jovens cavalheiros já conseguiam medir a sua altura com tolerável competência; Jack via seus cálculos da posição do navio ao Sul da linha do equador e Oeste de Greenwich com verdadeira satisfação, e às vezes os convocava para ouvir parte de uma ode em latim (por agora vinham mutilando lentamente o pobre Horácio) ou a declinação de um substantivo em grego.
— Se todos se afogarem amanhã — comentou com Stephen —seus pais não poderão dizer que não cumpri o meu dever em relação a eles. Quando eu era um pirralho, ninguém dava uma gota de mel coado para o fato de eu ter feito certo ou errado as minhas tarefas, e quanto a rogar praga em latim e grego...
Ele também os alimentava quase todos os dias, alternando-os, e costumava convidar o menino do turno da manhã para tomar o desjejum com ele, e outro, ou mesmo dois, para jantar.
Durante essa travessia, demorada e lenta, houve tempo, muito tempo para os convites habituais retomarem sua invariável sequência e inclusive se tornarem um tanto quanto monótonos: o comandante jantando com os seus oficiais na praça d’armas, os membros da praça d’armas jantando em sistema de rodízio, na câmara e um ou dois aspirantes com ambos. E quanto mais o navio viajava para o Sul, mais pobre se tornava a comida: ambos os cozinheiros faziam o melhor que podiam, mas os estoques particulares escasseavam, e embora Pôncio Pilatos, o cozinheiro da praça d’armas, ainda exultasse cada manhã, quando os galinheiros eram levados para o tombadilho, e embora suas galinhas ainda botassem um ovo eventual, enquanto Aspásia, a cabra, fornecia leite para o sagrado café da câmara, a última ovelha tinha morrido um pouco ao Sul do paralelo quarenta — fora tosquiada, não escanhoada, para o seu próprio bem, por causa do equador, e depois não conseguiu resistir ao frio crescente — e a carne de porco salgada tomou o seu lugar na mesa do comandante no dia em que o capelão estava jantando com ele.
Jack desculpou-se pela mudança, já que o convite fora para "compartilhar sua carne de carneiro", mas Martin disse:
— Que nada, que nada. Esta foi a melhor carne de porco salgada que já comi... Que sutil combinação de especiarias das Índias Orientais... E, mesmo que tivesse sido um negro mingau penitencial, ainda assim teria sido um festim. Esta manhã, senhor, às oito e meia, vi o meu primeiro pinguim! Um pinguim do cabo, segundo me garantiu o doutor, nadando com extraordinária velocidade e graça bem perto do navio, voando, por assim dizer, no seu elemento.
O Surprise estava, de fato, no limite das águas onde os oceanos Pacífico, Atlântico e Índico davam volta ao mundo dum fluxo contínuo comum a um grande número de animais do extremo sul; o mar tinha mudado abruptamente de cor, temperatura e até mesmo personalidade e, posto que talvez fosse cedo demais para se esperar pelos grandes albatrozes, havia uma grande probabilidade de fulmares, pretéis-azuis, príons e, é claro, muito mais pinguins.
No dia seguinte a essa mudança, tanto ele quanto Stephen deixaram seus quentes beliches, assim que ouviram o familiar rilhar das pedrinhas no distante convés acima de suas cabeças — um som que era mais sentido do que ouvido, surgindo como uma vibração através do madeirame e do teso cordame — e seguiram direto para a praça d’armas, onde o despenseiro deu a cada um deles uma tigela de burgoo quente, uma espécie de mingau liquefeito.
Por essa altura — pois Martin havia se lavado e até mesmo barbeado sob a luz de uma lamparina —, um tênue cinza aparecia no oriente, e Honey desceu, descalço e as pernas vermelhas, do convés frio e fumegante para calçar os sapatos e as meias na quentura. Disse-lhes que em cinco minutos o pior da molhadeira logo acabaria, afastada pelos lambazes{125}, e que cessara a garoa noturna:
— Vento a nordeste e mar calmo. Mas seu precioso frio permanece; por que não esperam até depois do desjejum? Vamos ter peixe salgado, a julgar pelo cheiro de cola.
Não, disseram, prefeririam estar ao ar livre antes de ser dado o toque de apito para as macas serem ferradas e entrincheiradas naquelas coisas ao longo dos costados, os quais obstruíam tristemente a vista. Subiriam dentro de cinco minutos, assim que os conveses estivessem razoavelmente...
— Oh, senhor, oh, senhor — gritou Calamy, correndo descalço para baixo. — Uma imensa baleia enorme de grande... bem pelo través.
Bem ao lado, de fato, e imenso um cachalote, a enorme cabeça quadrada com a ponta rombuda, no alinhamento da mesa das enxárcias do traquete, o corpo negro deslizando e projetado para ré do tombadilho, talvez vinte a vinte e dois metros de maciça criatura, dando uma tal impressão de força tranquila que o navio parecia frágil perto dele. Ia com a parte superior da cabeça à mostra, todo o resto de sua irregular extensão sendo carregada pelas ondas, e esguichou um grosso jato branco que jorrou acima e adiante, enquanto um homem conseguia contar até três. Então, após uma breve pausa, intencionalmente mergulhou duas vezes a cabeça naquele momento; ergueu-a e voltou a esguichar, respirava e esguichava, respirava e esguichava, o tempo todo mantendo-se ao lado do navio, com ligeiro movimento ondulante da imensa e longa cauda horizontal. Estava à distância de uma pedrada, em meio à cinzenta água transparente. Podia ser visto acima e abaixo desta, e eles ficaram olhando-o, extasiados, todos em silêncio, ao longo da amurada.
— Este é um dos velhos grandes de oitenta barris — observou o mestre-arrais, ao lado de Stephen. — Talvez noventa. Do tipo que chamamos de chefe de cardume, embora elos costumem nadar sozinhos.
— Ele não parece nem um pouco assustado —, cochichou Stephen.
— Não. Imagino que seja surdo. Conheci uns velhos surdos e é também cego dos dois olhos, apesar de parecerem se safar muito bem. Talvez ele esteja querendo companhia; às vezes parecem fazer isso, os solitários, como os golfinhos. A qualquer momento irá embora, pois já deu os seus esguichos e...
O terrível estampido de um mosquete em meio ao silencio interrompeu-o. Correndo a vista peta amurada, Stephen viu o oficial dos fuzileiros, ainda com o barrete de dormir, a fumegante arma em suas mãos e um largo riso de idiota no rosto. A cabeça da baleia mergulhou numa agitação de água, as enormes costas arquearem e a cauda ficou visível, equilibrando-se ali, por um instante, acima da superfície, antes de desaparecer baixando em linha reta.
Stephen desviou a vista para evitar que sua extrema ira aflorasse e no talabardão teve a visão mais incomum para aquela hora do dia ou, aliás, para qualquer hora: a sr.ª Lamb, a mulher do carpinteiro. Ela estivera esperando que o silêncio cessasse e agora corria em direção a ele.
— Oh, doutor, por favor, pode vir imediatamente? A sr.ª Horner está passando muito mal.
Muito mal, realmente, curvada em cima do seu beliche, o rosto amarelo, suando, os cabelos grudados nas faces e prendendo a respiração por causa da dor extrema. O artilheiro-chefe estava ali, a um canto, perturbado, A mulher do sargento ajoelhou-se ao lado da cama e falou:
— Calma, calma, meu bem, calma, calma.
A sr.ª Horner estivera muito distante dos pensamentos de Stephen naquela manhã, mas, no instante em que entrou no camarote, teve certeza do que havia acontecido, como se a própria lhe tivesse contado: ela provocara um aborto; a sr.ª Lamb sabia; os outros, não; e, entre os acessos de agonia convulsiva, a primeira preocupação da sr.ª Horner foi tirá-los do aposento.
— Preciso de luz e ar, duas bacias com água quente e várias toalhas — disse ele com um tom de voz autoritário. — A sr.ª Lamb me ajudará. Não há espaço para mais ninguém.
Após um exame rápido e cuidadoso dos problemas mais imediatos, desceu correndo para apanhar o baú de medicamentos. No caminho, lá embaixo, encontrou o seu assistente e, como não havia saída, Higgins afastou-se para deixá-lo passar, Stephen, porém, segurou-o pelo cotovelo, levou-o para baixo de um xadrez a fim de que um pouco de luz caísse sobre seu rosto e falou:
— Sr. Higgins, sr. Higgins, será enforcado por causa disso se eu não a salvar, o senhor é um idiota imprudente, perverso, inábil, ignorante e criminoso.
Não faltavam arrogância, confiança e desembaraço a Higgins, quando ele cumpria os seus turnos de serviço, mas havia tamanha ferocidade reptiliana nos olhos claros de Stephen, que ele se limitou a baixar a cabeça, sem tentar qualquer tipo de reação.
Um pouco depois, na enfermaria vazia, um dos poucos lugares no navio onde era possível se falar sem que mais alguém escutasse, Stephen encontrou-se com o artilheiro-chefe, que lhe perguntou qual era o problema, qual era a natureza da doença.
— Trata-se de uma enfermidade feminina — respondeu Stephen —, e não é nada incomum, mas receio que desta vez seja muito grave. Nossa maior esperança está no poder de recuperação da juventude... Quantos anos tem a sr.ª Horner?
— Dezenove.
— Mesmo assim, o senhor deve ficar preparado: ela pode ou não superar a febre.
— Não foi por minha causa, foi? — Indagou o artilheiro-chefe, a meia voz. — Não foi por causa daquilo que o senhor sabe, foi?
— Não — afirmou Stephen —, isso não tem nada a ver com a senhor.
Olhou para o rosto sombrio e selvagem de Horner; "Haverá algum sentimento ali"? Perguntou-se. "Afeto? Alguma espécie de ternura? Ou apenas orgulho e preocupação com a propriedade"?
Não conseguia ter certeza, mas bem cedo na manhã seguinte, quando precisou contar ao artilheiro-chefe que a esposa não tinha melhorado nada, teve a sensação de que a emoção principal daquele homem, agora que o choque inicial e angústia haviam passado, era a raiva: raiva do mundo em geral, e raiva dela também, por ter adoecido. Isso não o surpreendeu muito. Durante a sua carreira profissional em terra, ele tinha visto muitos e muitos maridos, e mesmo alguns amantes, furiosos por causa da doença de suas mulheres, impacientes e cheios de culpa, mas desprovidos de piedade, e raiva era o que se devia esperar deles.
Foi um lento alvorecer, com chuviscos de nordeste perambulando pelo mar. Quando a luz aumentou e o véu da chuva no Sudoeste se abriu, o vigia berrou;
— Ó do convés. Navio à vista pela bochecha de boreste.
Parte do grito alcançou Jack na câmara, quando ele levantava sua primeira xícara de café. Colocou-a rapidamente de volta na mesa, espirrando a metade fora, e correu para o convés.
— Topo do mastro —, gritou. — A que distância?
— Não dá para saber no momento, senhor — veio a resposta do topo do mastro. — Talvez uma quarta pela bochecha de boreste, o casco começando a se elevar no horizonte. À bolina cerrada, com amuras a bombordo, creio.
— Coloque isto, senhor — gritou Killick, irritado, correndo atrás dele e segurando um capote com capuz, uma capa impermeável. — Coloque isto. De maneiras que fiz isso com alguma finalidade, não foi? Trabalhei a noite inteira, costurando, costurando, cortando, cortando — resmungou, descontente.
— Obrigado, Killick — disse Jack, distraído, colocando o capuz sobre a cabeça nua, Em seguida, forte e claro: — À enxárcia, quem larga! Joanetes, cutelos e varredouras a barlavento.
Nada mais era necessário. Com a ordem, os gajeiros do Surprise correram para cima, as enxárcias de cada lado escureceram com tantos homens. Algumas breves notas do apito do mestre do navio, e as velas foram largadas, descaíram, foram caçadas, içadas, marcadas e enfunadas com extraordinária rapidez. E, quando o Surprise saltou para adiante, seu bigode de proa acentuando-se a cada momento, o vigia gritou novamente que a vela estava ali, mas tinha virado em roda; agora seguia em direção sul.
— Sr. Blakeney — falou Jack para um menino, encharcado pela chuva, mas com um rosado brilhante no rosto, de emoção, suba até a barra, do topo do mastro de traquete com uma luneta e diga-me o que vê.
"Sim, ele virou em roda", veio o grito lá de cima; o sr. Blakeney podia ver a esteira do barco. "Está navegando a um largo".
Mesmo do tombadilho, Jack e todos os que se aglomeravam na amurada a sotavento conseguiam vê-lo assomar à distância em meio ao cinzento, mas era apenas um borrão, nada mais.
— Consegue ver um cesto de vigia? — Perguntou.
— Não, senhor. — Respondeu após um longo e observador minuto. — Tenho certeza que não há.
Todos os oficiais sorriram ao mesmo tempo. Naquelas águas, qualquer vela estranha seria quase certamente um navio-baleeiro ou um navio de guerra. Nenhuma baleeira, porém, se faria ao mar sem um cesto de vigia: tratava-se de uma parte essencial e a mais óbvia de seu equipamento. Então era um navio de guerra; possivelmente o Norfolk também se defrontara com algum acidente ou com um tempo borrascoso; possivelmente precisou fazer um reparo em alguma desolada baía do distante Sul; possivelmente aquela era a presa deles, a apenas poucas milhas a sotavento.
— Ó do convés — avisou o primeiro vigia, com um tom de voz abatido, insatisfeito, apesar de tremendamente alto. — É apenas um brigue.
A feliz tensão cessou de repente. Claro, claro, havia também o paquete, o brigue Danaë, a lembrança refluiu imediatamente. Ele também devia ter feito um avanço terrivelmente lento para estar naquele trecho do caminho. Claro que havia girado a roda do leme, e claro que fugiria o mais depressa possível, até saber quem de fato era o Surprise.
— Ora, maldito seja — falou Jack para Pullings. — Sem dúvida, iremos nos comunicar com ele em breve. Vamos içar apenas o galhardete com as nossas cores, assim que elas puderem ser avistadas. Mas não antes disso, não vale a pena desperdiçar valioso pano de bandeira num ar deserto. — Dito isso, retornou ao seu café e, ao saber que o dr. Maturin estava ocupado com um paciente, passou do café para um solitário desjejum.
Havia, porém, algo esquisito em relação ao Danaë. Obviamente, não confiou à primeira vista nas cores do Surprise, e era um evidente dever dele não confiar nelas; mas também era estranho o fato de ele não ter dado uma resposta satisfatória e inegável ao sinal secreto, embora, àquela altura, o dia já estivesse razoavelmente claro; o mais estranho, ainda, era ele continuar aproando um pouco ao vento, como se quisesse aproveitar a vantagem de barlavento, ao mesmo tempo que, a longos intervalos, sinais obscuros fossem içados no topo do seu mastro da gata. Era, de fato, um barco muito veloz, como se poderia esperar de um paquete, e, em pouco tempo, largando uma grande quantidade de pano, seguia para longe do Surprise.
Pullings foi à câmara para dizer que não estava gostando do aspecto atual das coisas, e Jack retornou ao convés. Fez uma avaliação do barco, um pedaço de torrada na mão, e refletiu, o barco fizera corretamente o seu procedimento ao içar as cores corretas e agora exibia o sinal de "Transportando despachos", o que significava que não podia parar nem devia ser parado. No entanto ainda havia aquele dúbio sinal secreto; ele não fora exibido claramente, tendo sido arriado antes de o içamento completo ficar visível.
— Repita o sinal — ordenou — e dê uma salva a barlavento.
Pousou cuidadosamente a torrada sobre a carreta de uma caronada e observou o Danaë através do telescópio de Mowett. Hesitação a bordo do barco; embaraço; a bandeira subiu e desceu novamente; a adriça emperrou; e, novamente, as bandeiras essenciais sumiram antes que o todo pudesse ser visto claramente. Jack usara todos esses truques, muitas e muitas vezes, para ganhar alguns preciosos minutos durante uma perseguição. Num barco que navegava tão bem como Danaë isso não era de todo convincente; aquilo devia ter sido acompanhado de uma manobra extravagante, alguns rizados nas velas ou deixar as bichas soltas. Não, não; não adiantava. Ele tinha sido tomado: estava em mãos inimigas e pretendia se safar, se pudesse.
Jack refletiu por um instante sobre a força do vento, a corrente, a aproximação por barlavento do paquete, e disse:
— Que o pessoal faça o desjejum e depois guinaremos para interceptá-lo. Se ele for o que estou pensando que é, e se o capturarmos, você o levará de volta para casa.
— Obrigado, senhor —, exclamou Pullings, um enorme sorriso no rosto.
Do ponto de vista profissional, nada poderia ser mais lisonjeiro para ele. Não haveria a glória da batalha — de modo algum o armamento do paquete poderia competir com o da fragata e certamente nem seria utilizado —, mas isso não queria dizer nada, visto que a glória sempre era creditada ao comandante e seu imediato. Para um voluntário, levar de volta uma valiosa presa recapturada seria um testemunho mais do que evidente e importante do seu zelo, e de sua boa sorte também, e essa qualidade de maneira nenhuma seria negligenciada quando surgisse uma oportunidade de emprego.
— Mas ele vai dar trabalho para ser alcançado — comentou Jack, olhando para o barco com a mão sombreando os olhos. — É melhor avisar o doutor. Ele adora uma boa caçada.
Algum tempo depois, quando o Surprise disparou em direção ao Sul, com uma exibição de panos perfeitamente surpreendente, o vento de traveis para ré, ele perguntou:
— Onde está o doutor?
— Bem, senhor —, começou Pullings. — Parece que ele ficou acordado a noite toda. A mulher do artilheiro-chefe adoeceu... mas agora ele e o capelão finalmente estão tranquilos, ao lado da estufa da praça d’armas, cuidando dos besouros deles. Mas de disse que, se lhe for dada uma ordem direta para vir desfrutar da forte chuva fria, se não do granizo também ou de um temporal, é claro que tem prazer em obedecer.
Jack pôde facilmente imaginar a enorme corrente, o fluente jorro de expressões cáusticas e claramente insubordinadas que Pullings achou por bem não transmitir. E disse apenas:
— Preciso pedir a Killick que faça um casaco impermeável para ele também; o taifeiro dele não tem habilidade com a agulha. A mulher do artilheiro-chefe, você disse? Pobre mulher. Imagino que ela deve ter comido algo que lhe fez mal. Mas não podia estar em melhores mãos. Você se lembra como ele abriu os miolos do sr. Day no tombadilho do velho Sophie depois ajeitou tudo direitinho? Aí na proa: caçar meia braça a escota do estai do traquete.
O Surprise agora estava por inteiro dedicado à caçada. Era algo que ele, seu comandante e seus tripulantes conseguiam fazer supremamente bem; trabalhavam juntos em perfeito harmonia; raramente era necessário que fosse dada uma ordem, e tiravam vantagem de cada corrente do mar, de cada mudança na brisa; bujarronas e velas de estai em contínuo movimento, os braços perpetuamente manobrados por mãos sagazes e atentas.
Os homens do Surprise sempre gostaram muito de uma presa; tinham mais experiência em capturá-las do que a maioria, e o seu apetite crescera com cada sucessivo mercante, navio de guerra ou recaptura, e agora todo o lado pirático de sua personalidade revelava-se ávido, total e intensamente. E, embora pudesse parecer que nada poderia ser acrescentado ao efeito combinado do instinto de caça e o forte desejo de conseguir algo de graça, nesse caso havia, ainda, um sincero desejo de fazer o bem para o comandante Pullings, pois a promessa de Jack, é claro, fora ouvida. Pullings era muito querido a bordo e, com esse incentivo a mais, todos cumpriram suas tarefas com muito mais fervor, de modo que, embora o Danaë fosse tão veloz e bem-manobrado, fazendo com que suas cinco milhas de vantagem lhe dessem a esperança de manter-se à frente até ficar sob a proteção da noite, o sol pálido ainda estava bem acima do horizonte quando o paquete foi obrigado a atravessar e permanecer parado ali, com as gáveas aquarteladas, a sotavento da fragata.
— Diga ao doutor que ele precisa vir ao convés e deleitar-se, queira ou não —, ordenou Jack; e, quando Stephen apareceu: — Este é o paquete de que lhe falei. Mas o Norfolk deve tê-lo capturado, já que está sendo tripulado por uma guarnição de apresamento. Aquele que está vindo aí é o oficial americano. Tem alguma observação a fazer?
— Será que podemos conversar depois de você falar com ele? — Perguntou Stephen, que não tinha observações a fazer em público. — Estou contente por você tê-lo recapturado, sem tiros de canhão; não fazia ideia de que a caçada estava indo tão bem. O sr. Martin e eu tínhamos antecipado uma grande quantidade de explosões e correria antes de tudo acabar.
Olhou em direção ao Danaë, o pequeno grupo de homens no castelo de proa, dando tapinhas nas costas uns dos outros e gritando para os sorridentes Surprise, obviamente, eram prisioneiros que haviam conseguido uma inesperada liberdade; os outros, a meia nau, que pareciam desesperadamente desanimados e deprimidos, exaustos do dia inteiro içando e orçando, largando e carregando o pano, eram claramente a tripulação atual.
O comandante, um tenente novato, adotou a melhor expressão que pôde ao subir pelo costado, fez continência para o tombadilho e ofereceu a espada a Jack.
— Não, senhor, pode ficar com ela — disse Jack, sacudindo a cabeça. — Dou-lhe minha palavra, o senhor nos conduziu em uma dança elegante.
— Creio que teríamos escapado — observou o tenente —, se não tivéssemos perdido tanto pano ao Sul do Horn e se tivéssemos uma tripulação maior e mais disposta. Mas pelo menos tivemos a satisfação de ser capturados por um famoso navio veloz.
— Imagino que nós dois estejamos precisando de um refrigério —, disse Jack, conduzindo-o na direção da câmara; e, por cima do ombro, disse: — Capitão Pullings, prossiga.
O comandante Pullings prosseguiu com grande eficiência, trazendo o paquete o mais próximo que conseguiu, para que a transferência pudesse ser efetuada antes do dia desvanecer, com o quase certo tempo borrascoso; e, durante algum tempo, antes de retornarem à estufa, Stephen e Martin observaram as embarcações indo e vindo pela crescente ondulação, levando os homens do Surprise e os fuzileiros, e trazendo de volta os ex-prisioneiros e os americanos, juntamente com um aspirante de pernas compridas e os livros e documentos do Danaë.
— Aqui está a papelada dele — mostrou o comandante Aubrey quando Stephen chegou para a conversa. — Não nos dizem muita coisa, é claro, pois o registro inglês para depois da captura e o resto é apenas um relato trivial dos rumos e do tempo a partir daí; quase sempre um tempo terrivelmente desagradável. Mas os prisioneiros, e me refiro às pessoas que foram capturadas e recrutadas no Danaë para velejá-lo, foram mais informativos. Visto que foram apanhados deste lado do Horn, como o paquete, eles não sabem se de fato o Norfolk já está no Pacífico, mas sabem que no Atlântico Sul ele tomou dois de nossos navios-baleeiros que voltavam para casa, e um deles era um navio que estava fora havia mais de três anos e enchera de óleo cada barril que tinha. Mas eis o meu rascunho da carta oficial que Tom Pullings vai levar de volta com ele. Os dados estão todos aí, e talvez você possa colocar um pouco de estilo, apenas aqui e ali, onde achar que for necessário.
Stephen passou os olhos na abertura familiar
Surprise ao mar
(vento N quarta a NE com tempo moderado)
49º 35’ S, 63º 11 W
Milorde.
Tenho a honra de informar a Vossa Excelência que no...
E falou:
— Ouça. Antes de eu ler a carta, pode me dizer uma coisa? Suponha que houvesse um tesouro a bordo do paquete, estaria ele mais seguro conosco ou com Tom?
— Ora, quanto ao tesouro, receio que o Norfolk o tenha pegado imediatamente. Dois baús de ferro cheios de ouro, benza Deus! Não se pode achar que eles o deixariam lá. Eu não deixaria, ha, ha, ha!
—Vamos supor que haja documentos, documentos valiosos ocultos na estrutura — prosseguiu Stephen, pacientemente, ainda no mesmo tom baixo de voz, a cadeira puxada para perto de Jack —, estariam mais sujeitos a serem perdidos com ele ou conosco?
Jack empinou detidamente um olho para ele e explanou:
— Os corsários é que são o problema. Naquele barco, Tom pode superar em velocidade qualquer navio de guerra, exceto num tempo muito ruim, mas terá de passar por um corredor polonês de corsários das Índias Ocidentais, tanto franceses quanto americanos. Alguns deles são muito velozes, e ele terá apenas alguns canhõezinhos e mosquetes, e poucos e preciosos homens para manejá-los. Ele não correrá um risco muito grande em tão imensa quantidade de água salgada, mas mesmo assim eu diria que seus documentos hipotéticos estariam mais seguros conosco.
— Então, antes que escureça, poderia fazer a gentileza de ir até o paquete comigo, ao aposento onde os baús foram encontrados?
— Está bem — concordou Jack. — Ademais, quero dar uma olhada no barco. Devamos levar um saco?
— Acho que não — disse Stephen —, mas uma régua precisa seria aconselhável.
Sua mente estava inquieta. O dinheiro sempre tinha um efeito doentio sobre a inteligência, geralmente confundindo o resultado; e isso às vezes se revela uma substância muito perigosa com que lidar. Ele não gostou do modo como lhe fora revelado o esconderijo que havia no Danaë, uma lembrança das cartas nas quais Sir Joseph dissera-lhe que a sombria e perturbada atmosfera de Londres o fazia gostar cada vez menos daquilo, e nessas situações complicadas ele era tentado a deixar tudo de lado. As instruções não se referiam à atual situação, e o que quer que ele fizesse poderia dar errado. Entretanto, se nada fizesse, e o paquete fosse tomado, ele ficaria parecendo um idiota incompetente ou coisa pior. Mas e se encontrasse o esconderijo vazio? E se os ratos tivessem roído os documentos? E se a captura do sr. Cunningham fosse parente dos ratos?
Esses pensamentos percorriam sem parar sua cabeça, enquanto remexia por baixo de uma comprida reentrância na antepara do camarote outrora habitado pelo Sr. Cunningham e seus baús — os buracos dos parafusos que os prendiam ali ainda podiam ser vistos —, e não foi sem um certo alívio que ele finalmente se virou para Jack e falou:
— Os insensatos e cruéis deram-me as indicações erradas, foi isto que aconteceu. Não há nada aqui. Talvez tenha sido melhor assim.
— Quer que eu leia novamente o papel? — Perguntou Jack.
— Sem dúvida. Mas está mais do que claro. "Pressione a terceira cabeça de parafuso sob a prateleira de bombordo, a um metro do anteparo".
— Stephen — alertou Jack —, creio que é a prateleira de boreste que você está olhando.
— Ora, mas que diabos, Jack — exclamou Stephen. — Esta é a minha mão esquerda, ou não? — Levantou-a. — E o que fica do lado esquerdo, ou aziago, ou sinistro, é o bombordo.
— Está esquecendo que nós demos meia-volta — lembrou Jack. — Saiba que agora estamos de frente para a popa, o terceiro parafuso, foi o que disse? — Pressionou-o, e instantaneamente, e com um surpreendente e estrondoso ruído, uma caixa de metal caiu da fenda, bateu com uma das quinas no chão e abriu-se. Ele abaixou-se para recolher os feixes espalhados de cédulas e de outros papéis, pousou a lanterna e, ao enxergar o primeiro deles, bradou: — Valha-nos Deus! O que...? — Mas, contendo-se, juntou os maços em silêncio e entregou-os a Stephen, que lhes lançou um olhar superficial, sacudiu a cabeça, com uma expressão de preocupação e desagrado, e colocou tudo de volta na caixa.
— A melhor coisa que posso fazer é lacrar isto imediatamente e entregar a você para ser colocado em lugar seguro. Talvez seja melhor você mesmo levá-lo para o Surprise. Eu já escorreguei algumas vezes do bote para a água.
Na grande câmara, mais uma vez, Stephen derreteu a cera, pressionou nela o seu curiosamente entalhado relógio de algibeira e entregou-lhe a caixa, juntamente com um pequeno pedaço de papel, informando:
— Esta folha tem o nome do destinatário adequado, no caso de algum acidente acontecer comigo.
— É uma tremenda responsabilidade, um peso enorme — afirmou Jack, solene, ao recebê-la.
— Há coisas muito mais pesadas, meu caro —, rebateu Stephen. — Preciso fazer as minhas rondas.
— Isso me faz lembrar — disse Jack. — Soube que a esposa do artilheiro-chefe está na sua relação de doentes. Espero que ela já esteja melhor.
— Melhor? Não está mesmo —, afirmou Stephen enfaticamente.
— Lamento muito — disse Jack. — Uma visita seria apropriada, ou uma das galinhas ou uma garrafa de vinho do Porto? Ou, talvez, as três coisas?
— Ouça — falou Stephen. — Eu não sei se ela vai sobreviver.
— Céus — bradou Jack. — Não fazia ideia... Estou extremamente preocupado... Espero que haja algo que você possa fazer por ela.
— Quanto a isso — retrucou Stephen —, estou colocando quase toda a minha confiança no poder de recuperação da juventude. Ela tem apenas dezenove anos, a pobre criança, e aos dezenove as pessoas são até capazes de enfrentar o inferno e o purgatório e sobreviver. Diga-me: Tom Pullings não vai nos deixar de imediato, vai?
— Não. Ele dará serviço até amanhã de manhã. Ainda preciso cuidar de muita papelada.
— Também preciso escrever pelo menos uma carta — disse Stephen. — E, se for possível, virei ajudá-lo com as cartas capturadas — acrescentou, sabedor da extrema relutância de Jack em ler a correspondência de outras pessoas, mesmo havendo a possibilidade de conter informações inestimáveis. — Teremos uma noite atarefada.
Uma noite atarefada e insone, em cujo transcorrer encontraram, porém, uma carta escrita por um oficial de nome Caleb Gill, que fornecia uma clara relação dos movimentos planejados do Norfolk até o distante arquipélago das Galápagos; dali deveria rumar em direção oeste, "para o paraíso particular do meu tio Palmer, para o qual temos um bando de colonos que deseja ficar o mais longe possível dos seus conterrâneos". Tio Palmer, obviamente, era o comandante do Norfolk e seu paraíso particular devia ser algum lugar nos mares do Sul.
Mas, ao comparar datas e posições e o que os baleeiros disseram sobre as qualidades de navegação do Norfolk, Jack ficou razoavelmente confiante em que conseguiria alcançá-lo bem antes das Galápagos, provavelmente na ilha de Juan Fernández, onde deveria parar para abastecer-se de madeira e água, ou nas imediações de Valparaíso, onde deveria fazer reparos; e Stephen estaria bastante feliz, se não fosse por dois pacientes que pesavam em sua mente: seu velho amigo Joe Plaice, que batera a cabeça contra uma cavilha de arganéu{126} durante uma queda banal de uma escada e fraturara o crânio, e a sr.ª Horner, que de modo algum vinha reagindo ao tratamento.
— Fico pasmado com o fato de nossos marujos serem transferidos de um navio para o outro e conseguirem navegá-lo sem nenhuma experiência — comentou Martin, enquanto observavam a partida do Danaë, que descreveu uma longa e perfeita curva, até a proa apontar para nor-nordeste, ao mesmo tempo que o Surprise continuava a Oeste quarta sudoeste.
— A complexidade do aparelho é praticamente a mesma em todos eles, segundo me disseram —, explicou Stephen. — Do mesmo modo que vemos uma clara analogia entre os esqueletos dos vertebrados, assim faz o homem do mar com os seus barcos. Num brigue, creio eu, alguns cabos são aparelhados em direção à proa, ao passo que num três-mastros eles são aparelhados em direção à popa; isso, porém, não é mais motivo de confusão para o marinheiro do que a multiplicidade de estômagos do ruminante para um anatomista ou o osso hióide anômalo do bugio.
Mas o que eu queria lhe dizer era isto: sei que se trata de uma amável intenção de sua parte querer visitar a esposa do artilheiro-mestre, mas, em vista do seu atual estado de agitação mental e extrema angústia física, quero implorar-lhe que só faça isso depois que houver alguma melhora... nem seu marido tem permissão minha para visitá-la.
Por outro lado, ficarei agradecido se me ajudar numa operação razoavelmente delicada que farei assim que houver luz suficiente: uma fratura com afundamento. Preciso realizar uma trepanação no pobre Plaice e gostaria de fazer isso hoje; disseram-me que vem mau tempo pela frente, e obviamente precisaremos de um convés estável por baixo e um paciente imóvel. Tenho um trépano aperfeiçoado de Lavoisier, um magnífico instrumento com um extraordinário poder de perfuração. Se você quiser, poderá girar a manivela!
Os tripulantes do Surprise, como a maioria dos marinheiros, eram no todo um bando de revoltantes carniceiros hipocondríacos e adoravam uma operação quase tanto quanto adoravam uma presa. Mas, se, por um lado, a amputação do braço ou da perna de um companheiro de bordo tinha suas desvantagens, a que eles eram totalmente sensíveis, por outro lado, uma trepanação não implicava tantos riscos: o paciente precisava apenas sobreviver para ter todas as suas faculdades recuperadas — ficar novo em folha, a glória de uma placa de prata e uma anedota que duraria para ele e seus amigos até a sepultura.
Tratava-se de uma operação que o dr. Maturin já realizara antes no mar, sempre com o máximo possível de luz, portanto no convés, e por isso mesmo muitos deles o tinham visto executá-la. Agora estes e todos os seus companheiros o viram fazer novamente a operação: viram o escalpo de Joe Plaice ser retirado, seu crânio exposto, um disco de osso ser audivelmente serrado e retirado, a manivela girando solenemente; um pedaço do tamanho de uma moeda de três shillings martelado para dentro de uma cúpula achatada pelo armeiro, aparafusada sobre o buraco; e o escalpo recolocado, caprichosamente costurado pelo reverendo.
Foi extremamente gratificante, não obstante a inelutável palidez do comandante e de Barret Bonden, o primo do paciente: sangue escorrendo pelo pescoço de um indiferente Joe, miolos claramente à vista, algo que, além de instrutivo, não se poderia perder nem mesmo por rios de dinheiro, e eles aproveitaram o máximo daquilo. Ainda bem, pois foi a última coisa gratificante que tiveram por um longo tempo; era certo sentido, a última que jamais teriam, o tempo tempestuoso — prenunciado pela longa e intensa ondulação comprida de sudoeste, a queda do barômetro e o mais medonho dos céus — atingiu-os muito mais cedo e muito mais duramente do que haviam esperado.
O Surprise, porém, era um navio bem equipado, bolineiro, e aparelhou volantes brandais, braços, ovéns e, é claro, estais por todos os lados, como também talhas de balanço, um jogo completo de panos de tempo, envergado adequadamente, e seus mastaréus do joanete foram baixados para o convés. Embora fosse realmente um violento temporal, com uma ofuscante chuva de granizo, e embora a princípio tivesse soprado contra a direção das vagas e tornado o mar péssimo, não foi borrascoso, e a fragata, com gáveas rizadas nas últimas, seguia para o Sul com uma incrível velocidade, meio sufocada pela água em suspensão, embarcando mares verdes em minutos alternados, de forma que os conveses inundavam e os homens não conseguiam andar sem se agarrar aos cabos-guia estendidos de proa a popa.
Soprou dois dias e três noites, as nuvens de tempestade tão baixas quanto o topo de mastro, mas no terceiro dia clareou, e eles puderam fazer uma boa observação da passagem meridiana do sol; para seu grande prazer, Jack descobriu que estavam mais distantes ao Sul do que havia esperado — mais distante ao Sul do que previsto pelo cálculo da posição do navio — e que estavam a uma surpreendente distância da Isla de los Estados.
Ele e Allen fizeram uma longa reunião, com as cartas náuticas espalhadas diante dos dois, cartas que forneciam longitudes diferentes para uma boa quantidade de perigosas ilhas, recifes e promontórios; e o tempo todo conversaram no convés, caminhando o máximo para ré, até a grinalda de popa, adejante com roupas encharcadas pelo mar tentando secar sob o pálido sol vespertino. Jack questionou o mestre-arrais repetidas vezes sobre a exatidão do comandante Colnett e repetidas vezes o mestre-arrais afirmou que em relação a isso jurava sobre o Evangelho.
— Ele foi pupilo do comandante Cook, senhor, e carregava um par de cronômetros de Arnold{127}. Ficavam com ele o tempo todo, sempre dando corda, e nunca pararam, fazendo observações em espaços de dez segundos, até sermos levados de vento em popa ao Sul de Santa Helena, de volta para casa.
— Um par de cronômetros de Arnold? Muito bem, então, sr. Allen — disse Jack, finalmente satisfeito —, vamos traçar a derrota para o cabo de São João. E no caminho, por favor, diga ao doutor que poderei acompanhá-lo em suas inspeções desta tarde.
Quando o doutor veio buscá-lo, disse-lhe:
— Bem, Stephen, vejo que hoje você tem uma lista de doentes terrivelmente longa.
— As habituais luxações de articulações, dedos esmagados e ossos fraturados — comentou Stephen. — Eu digo sempre a eles: "Vocês têm de ter uma das mãos para o navio e a outra para si mesmos; e precisam jogar o maldito grogue nos embornais, se quiserem permanecer no alto por umas duas horas", mas eles não me ouvem. Saltam pelo cordame, incentivados pelo mestre do navio, como se fossem polvos, com caudas preênseis de lambuja. Por isso é claro que toda vez que há uma tempestade minha enfermaria lota.
— Claro, mas me fale sobre a sr.ª Horner. Pensei muito nela durante esse período em que sacudimos e jogamos violentamente.
— A maior parte do tempo nem se deu conta disso, pois estava delirando. De qualquer modo, o beliche suspenso é notavelmente adaptado para pacientes em alto-mar. Creio que posso afirmar que ela superou a febre... raspei a cabeça dela{128}... e, embora ainda haja um alto grau de debilidade, o poder de recuperação da juventude, do qual já falei, talvez consiga fazer com que se recupere. Isso talvez a faça se recuperar, com as graças de Deus.
Jack Aubrey viu bem pouco sinal de poder de recuperação, ou de juventude, quando foi conduzido sem aviso ao camarote do artilheiro-chefe. Não fosse pelas palavras de Stephen, ele teria afirmado que o rosto cinzento dela e as enormes olheiras revelavam sinais de morte. A sr.ª Homer teve apenas força suficiente para apanhar um lenço e cobrir a cabeça calva, lançando um olhar de censura a Stephen, e para murmurar "Obrigada, senhor", quando Jack lhe disse que estava contente por vê-la com uma aparência muito melhor e que ela precisava ficar logo boa novamente por causa dos meninos, que sentiam demais a sua falta e, claro, por causa do Sr. Horner. Estava para dizer algo sobre "a Juan Fernández restituir as rosas às suas faces", quando notou que Stephen colocara o dedo sobre os lábios e deu-se conta de que, no seu constrangimento, estivera se dirigindo à sr.ª Horner como se ela estivesse em um navio a uma considerável distância a barlavento.
Sentiu-se muito mais à vontade na enfermaria, onde sabia exatamente o que dizer a cada homem ou menino — o menino, um dos seus aspirantes, John Nesbit, com a clavícula fraturada. Aliviado, falou para Plaice:
— Bem, Plaice, pelo menos houve algo bom nisso tudo. Ninguém vai poder dizer: "Coitado do Plaice, ficou até sem seu último shilling".
— Porquê, senhor? — Indagou Plaice, fechando um olho e sorrindo, na expectativa.
— Ora, porque há três deles parafusados na sua cabeça, ha, ha, ha! — Respondeu o seu comandante.
— Você não é muito diferente de Shakespeare — observou Stephen ao caminharem de volta para a câmara.
— É o que costumam me dizer os que leem as minhas cartas e despachos — comentou Jack —, mas o que levou você a dizer isso neste momento em particular?
— Porque os palhaços dele fazem gracejos desse calibre, cheios de grossura. Precisa apenas acrescentar marry, come up ou go to, wish a pox on it, e será um puro canastrão ou coisa que o valha.
— Isso é apenas inveja sua — rebateu Jack. — O que me diz de um pouco de música esta noite?
— Gostaria imensamente. Não deverei tocar bem, pois estou esfalfado, como diz o nosso prisioneiro americano.
— Mas, Stephen, nós também dizemos esfalfado.
— É mesmo? Eu não tinha percebido. De qualquer modo, não o dizemos com aquele patético som nasal dos colonos, como a trompa de uma vendedora de moluscos do cais de Dublin. Ele é parente próximo daquele mais do que amável comandante Lawrence, que conhecemos em Boston, se não me engano.
— Sim, o mesmo que capturou Mowett no Peacock, e foi muito bom para ele. Pretendo dar ao jovem sujeito toda a atenção que estiver ao meu alcance. Já o convidei e ao seu aspirante para jantarem comigo amanhã. Stephen, não vai se importar se ficarmos sem o nosso habitual queijo tostado, vai? Só há o suficiente para fazer um prato apresentável para os nossos convidados.
Tocaram sem o queijo; tocaram pela noite adentro, até a cabeça de Stephen curvar-se sobre o seu violoncelo, entre dois movimentos. Desculpou-se e saiu se arrastando, ainda meio adormecido, Jack pediu um copo de grogue, tomou, colocou um cachecol de lã tricotado pela esposa, ainda repleto de ternura e amor, embora um tanto mutilado pelos camundongos brasileiros, vestiu a jaqueta impermeável e foi para o convés. Já passava um pouco das sete badaladas do quarto de 16:00 às 20:00, uma noite garoenta; e Maitland cuidava do convés. Assim que seus olhos se acostumaram à escuridão, Jack verificou o livro de quarto e a tábua do ponto. O Surprise vinha mantendo o seu rumo exato, no entanto navegara com mais velocidade do que ele havia esperado. Em algum lugar ali na escuridão, a sotavento, estava a Isla de los Estados; ele vira estampas de sua costa rochosa, em Anson’s Voyage{129}, e não gostaria de dar contra ela, nem de ser rodopiado nas correntes fortes e violentas marés que varriam a ponta da América do Sul, através do estreito de Le Maire.
— Carregar o traquete e lançar a tinha do prumo grande — disse ele.
Poucos minutos depois começou o inalterável ritual de medição da profundidade: o espirro do pesado prumo lá adiante, o grito de "Atenção aí, atenção" vindo da popa, enquanto cada um dos homens ao longo da borda largava o resto das aduchas de linha de prumo, até esta alcançar o contramestre na mesa das enxárcias da gata, que informou a profundidade ao aspirante do quarto gritando: "Preparar ao longo". Depois disso o prumo foi jogado avante e a sequência recomeçou.
— Parar — ordenou Jack quando bateram as oito badaladas, e os rosados e sonolentos homens das bolinas e o mestre-arrais renderam o quarto da meia-noite. — Boa noite, sr. Maitland. Sr. Allen, creio que estamos ao largo do cabo de São João. Temos um pouco mais de cem braças de profundidade, tornando-se raso aos poucos. O que me diz?
— Bem, senhor — respondeu o mestre-arrais —, acho que devemos usar o prumo e seguir medindo até atingirmos, digamos, noventa braças, com tença{130} de conchas brancas.
Uma badalada, duas badaladas. Então:
— Noventa braças, e tença de areia branca com conchas, senhor — informou finalmente o contramestre, segurando o prumo junto à lanterna. Com uma grande sensação de alívio, Jack deu ordens para subir no vento. Com o Surprise afastando-se daquela coisa abominável, uma costa a sotavento, mas ainda rumando para o Sul, ele podia descer e dormir em paz.
Estava novamente no convés, à primeira luz: um dia claro, com o vento concentrado e soprando com estranhas e inquietantes rajadas, mar e céu agitados, sem um padrão coerente, mas nada de terra a sotavento, terra nenhuma, o mestre-arrais, por ter dado serviço no quarto de 00:00 às 03:00, devia estar dormindo, mas não estava e, juntos traçaram uma derrota que deveria levar o navio em torno da Horn não muito ao largo, apenas o suficiente para deixar suas mentes descansadas, ao mesmo tempo que poderiam tirar vantagem dos ventos variáveis próximos à costa, que no momento sopravam de Norte a Nordeste, tão favoráveis quanto poderiam ser.
Ainda tiravam proveito deles, quando os convidados na câmara terminaram o resto do derradeiro queijo de Jack, observados por Killick e seu ajudante cor de carvão, este com um ar de desaprovação; a desaprovação num rosto negro, geralmente iluminado por um sorriso branco, é uma desaprovação e tanto. Não tinha sido uma recepção agradável. Em primeiro lugar, as circunstâncias obviamente não condiziam com um convívio festivo, e também porque o otimista, agradável e conversador Jack, que seus amigos conheciam, era uma pessoa bem diferente do alto, imponente e esplendidamente uniformizado comandante Aubrey, o rosto moldado por anos de uma autoridade quase absoluta, que recebeu os dois americanos muito mais jovens do que ele — muito mais diferentes do que ele havia suposto. Foi, portanto, com uma sensação de alívio, ainda que decentemente dissimulada, que eles se despediram, os prisioneiros retornaram à praça d’armas, com Mowett e Martin, seus companheiros convidados para o jantar, e Jack foi caminhar pelo tombadilho.
Ali verificou que o Surprise mantinha o rumo, embora, pela aparência do céu, fosse improvável que o mantivesse por muito mais tempo. O mestre-arrais também estava no convés e de vez em quando varria o horizonte com a sua luneta da amura de boreste até o través; havia outros com ele, pois se espalhara a notícia de que se o céu continuasse claro o próprio Horn poderia aparecer por volta daquela hora.
Tampouco fora uma notícia falsa. Jack, ao andar de cima a baixo os dezessete metros do seu tombadilho, não percorrera um oitavo de uma milha das três que Stephen insistia em que ele andasse diariamente, a fim de controlar o que ele tachava "de repulsiva obesidade do comandante", quando o vigia deu o grito de terra à vista. Maitland, Howard e todos os aspirantes sãos subiram correndo para a gávea do grande para ver, e logo ela foi avistada do convés; não se tratava de muita terra, o horrível final do mundo, uma alta escuridão na borda do mar, que continuamente esguichava uma cor branca quando as ondas quebravam a seus pés e eram impelidas acima para o rochedo altaneiro.
Mais pessoas vieram para o convés, inclusive o doutor e o pastor. "Como parecem marinheiros de água doce, os coitados", pensou Jack, sacudindo a cabeça, complacentemente. Chamou-os, garantiu-lhes que era mesmo o cabo Horn e mostrou-o a eles através de sua luneta, Martin ficou encantadíssimo. Fitando o distante precipício mortal, com a espuma elevando-se a uma altura absurda, ele exclamou:
— Ora, esse borrifo, essa água se rompendo, é o Pacífico!
— Alguns o chamam de Grande Mar do Sul — comentou Jack; — e só admitem que é realmente o Pacífico depois do paralelo quarenta, mas acho que é tudo a mesma água.
— Em todo caso, senhor — observou Martin —, o que existe além dele é o outro lado do mundo, outro oceano, outro hemisfério, que alegria!
— Por que estão todos tão decididos a contorná-lo hoje? — Perguntou Stephen.
— Porque temem que o tempo possa mudar — explicou Jack. — Esta é uma região de vento Oeste, como deve se lembrar muito bem de nossa viagem no Leopard; mas, se conseguirmos contornar o Horn, contornar Diego Ramirez, e avançar alguns graus de longitude, o vento Oeste pode soprar impiedoso, se quiser... Mesmo assim, ainda podemos arribar para costa do Chile, mesmo assim conseguiremos fazer o contorno. Mas bem sabe que antes disso um vento Sudoeste, ou mesmo um forte vento Oeste, pode muito bem bloquear o nosso avanço. Neste ponto tememos consideravelmente um vento Sudoeste.
O sol mergulhou atrás de uma barreira de nuvens púrpuras. A brisa esmoreceu totalmente. Entre a mudança de um vento para o outro, a corrente do cabo Horn agarrou o navio e carregou-o velozmente em direção leste; e, no início do quarto da noite, o vento Sudoeste chegou com um guinchado.
O guinchado raramente diminuiu nos dias e semanas subsequentes. Às vezes elevava-se a uma altura enlouquecedora, que ameaçava os próprios mastros, mas nunca descia a um nível que, em épocas normais, seria considerado excepcionalmente alto, se bem que agora já fosse considerado uma coisa habitual.
Nos três primeiros dias, Jack pelejou o máximo que pôde para preservar tudo o que podia ser preservado do seu precioso desvio para Oeste, flanqueando de través para o vento, bem nos sessenta graus de latitude, onde as pessoas sofriam a crueldade do gelo do convés, gelo no cordame, gelo nas vergas, o pano de vela duro como uma prancha, por causa do congelamento dos borrifos, e os cabos presos nos moirões. Sul e ainda mais ao Sul, a despeito do perigo do gelo, da mortal colisão com um iceberg durante a noite, Sul na esperança de uma mudança.
Quando, porém, esta ocorreu, foi para pior: o abundante vento Oeste ficou mais forte, as ondas enormes, que varriam em direção leste, ficaram ainda mais monstruosas, suas cristas brancas, agitadas pelo vento, a um quarto de milha uma da outra, com um profundo vale cinza esverdeado entre elas, e o Surprise, na melhor das hipóteses, nada mais podia fazer além de captar, durante um dia totalmente infame, quando a superfície inteira do mar — ondas montanhosas, vales e tudo o mais — era uma mistura volante de ar e água fragmentada, e o navio sendo obrigado a correr com o tempo, com o velacho nos calções, perdendo uma distância enorme.
Cada hora daquele pesadelo de correr com o tempo significava um dia de trabalhoso: bordejar ao vento para recuperar o perdido desvio para Oeste; e embora o Surprise e a maioria do seu pessoal estivessem acostumados aos mares grossos das altas latitudes do Sul, aos notórios quarenta graus e aos muito piores cinquenta, não estavam acostumados a navegar ou tentar navegar de encontro a eles. A velocidade de propagação das ondas era tão grande, que a fragata, oposta a elas, comportava-se mais como um esquife; posto que tivesse trinta e seis metros de comprimento, não tinha a menor possibilidade de galgar duas ondas consecutivas de forma regular, e o resultado era um violento caturro indefinível como se estivesse numa montanha-russa.
Isso quase causou o fim do dr. Maturin.
Ele estava indo para conveses abaixo — relutante, pois havia nada menos que sete albatrozes em volta do navio —, quando percebeu o gato do mestre se lambendo no segundo degrau. Desde que o bicho descobriu que não o deixariam passar fome, não seria maltratado, nem jogado borda fora, abandonou todos os seus modos agradáveis e acariciantes; lançou um olhar insolente a Stephen e continuou a se limpar.
— Este é o gato mais pretensioso que já conheci — exclamou, irritado, levantando bem a perna para passar por cima dele.
O gato deu um salto de lado e, no mesmo instante, o Surprise investiu a proa contra a parede verde de uma onda que avançava, apontou o gurupés para o céu e arremessou à frente o já desequilibrado Stephen. Infelizmente havia uma grade aberta na coberta inferior, e ele desabou uma grande altura, até uma pilha de carvão prestes a ser guinchada para as estufas dependuradas.
Nada foi quebrado, mas ele ficou miseravelmente contundido, abalado, abatido, moído; e isso aconteceu numa ocasião das mais infelizes. Naquela mesma tarde, em uma bonança entre duas tempestades de granizo, que investiam horizontalmente com a força de chumbinhos para aves, Jack deu ordem para caçar o velacho e a gávea. Os dois quartos estavam no convés e acionaram ao mesmo tempo os estingues, os brióis{131} e as escotas de ambas; e, em ambos os casos, os estingues e os brióis romperam-se, quase no mesmo instante. Como as escotas estavam semifolgadas, as velas instantaneamente abriram-se na costura, a gávea sacudiu com tanta fúria que o topo do mastro teria ido embora se não fosse por Mowett, o mestre do navio, Bonden, Warley, o gajeiro do mastaréu da gávea, e três dos seus homens terem ido lá em cima, dispostos na verga coberta de gelo e tendo cortado a vela rente aos rizes. Warley estava no lais de verga a sotavento, quando o estribo cedeu sob ele, que caiu, mergulhou bem além do costado e instantaneamente desapareceu no terrível mar.
Ao mesmo tempo, o velacho foi reduzido a pedaços, enquanto a vela grande, solta, foi impelida pelo vento, com uma força terrível, destruindo à direita e à esquerda. Arriaram a verga até a apostura, esforçando-se mais do que se poderia dizer que era possível homens se esforçarem, frequentemente com a água turbilhonante até a cintura; depois, baixaram também a verga do traquete e ocuparam-se em peiar as embarcações miúdas, que estavam a ponto de se soltar, nos paus de carga{132} —, todo esse tempo o Surprise navegando com vela ré. Tiveram êxito, finalmente, e começaram a dar nós e costurar o aparelho avariado, além de carregar para baixo os companheiros machucados.
Jack desceu para a enfermaria quando o barco estava razoavelmente preparado.
— Como está Jenkins? — Perguntou.
— Duvido que sobreviva — respondeu Stephen. — Toda a caixa torácica está... E Rogers provavelmente vai perder o braço. O que foi isso? — Indagou, apontando para a mão de Jack, enrolada em um lenço.
— Apenas alguns pregos soltos. Não percebi na hora.
Do ponto de vista dos marujos, as coisas melhoraram depois disso. À custa de incessante labuta, conseguiam fazer algum progresso, e embora o vento se mantivesse firme no Oeste, havia dias em que ele permitia que o navio virasse por d’avante em vez, de virar em roda, com a sofrida perda de distância compensando o desgaste exigido por tal corrente e tal vento.
Mas do ponto de vista médico, não. As roupas dos homens ficavam permanentemente molhadas e estes, terrivelmente resfriados e abatidos. Com grande preocupação, Stephen viu em vários deles os primeiros sinais de escorbuto. Havia apenas suco de lima a bordo em vez de limão, mas mesmo assim possivelmente adulterado.
Cuidou dos seus doentes, amputou com sucesso o braço despedaçado do Roger e lidou com os vários novos casos que surgiam, mas, ainda que Martin, Pratt, o enfermeiro (um pederasta amável e sem prática) e a sr.ª Lamb o ajudassem bastante na enfermagem — Higgins, quase nada —, achava que as coisas iam mal. Via muito pouco Jack, que estava quase sempre no convés ou dormindo profundamente, e ficou surpreso em descobrir o quanto sentia saudades dos modestíssimos jantares na praça d’armas — toda a criação, menos a imortal Aspásia, havia morrido, todas as provisões particulares haviam sido comidas ou destruídas, e estavam sujeitos às rações do navio, comidas rapidamente e no desconforto; e, às vezes, quando os fogões da cozinha não podiam ser acesos, comiam apenas bolachas e carne salgada crua cortada em fatias finas.
As coisas iam mal, com a dor contínua e o contínuo triste desânimo em relação a Diana — premonições, pesadelos, presságios. Felizmente tinha suas folhas de coca, aquele virtuoso arbusto que o fazia seguir em frente durante o dia, extinguindo a fome, e o láudano à noite, que no mínimo tornava a escuridão um refúgio.
Passava uma boa quantidade de tempo com a sr.ª Horner. No início, quando ela precisava ser cuidada hora após hora fora necessário, e acabara se tornando um hábito em parte, porque o artilheiro-chefe tinha uma cadeira de balanço de corda trançada, o único assento no navio que não machucava os membros e o corpo doloridos, moídos e contundidos de Stephen, e em parte porque passara a simpatizar com ela. Havia poucas coisas em uma mulher que ele admirava mais do que coragem, e ela a tinha em alto grau, e firmeza; sem autocompaixão em nenhum momento, sem reclamações e, no pior da dor, nada mais do que um arfar furioso, um ruído totalmente involuntário, quase um rugido.
Bem cedo passara a confiar nele, falando do seu afeto por Hollom; iam fugir juntos e abrir uma escola de matemática náutica; ela cozinharia, cuidaria da casa e dos remendos, como fazia para os jovens cavalheiros. A princípio, supondo que suas palavras, quase um sonho sussurrado, fossem a expressão de um delírio, ele as havia tolerado, respondendo amavelmente, para amenizar a agitação da sua mente. Depois, ao proibir rispidamente essa impropriedade, Stephen descobriu que havia muito ela percebera sua simpatia e que suas palavras ásperas faziam pouco efeito.
Quanto ao próprio Hollom, desde o início havia demonstrado uma intensa aflição. Não podia falar abertamente, mas os meninos podiam, e diariamente um ou outro deles perguntava a Stephen como estava a sr.ª Horner, logo retransmitindo suas palavras ao amante dela. E este, apesar de ter vergonha de Stephen, por duas vezes se declarou doente, a fim de poder perguntar por ela e talvez conversar sobre ela, mas não adiantou. Stephen dispensou-o com uma meia pílula azul e um purgante, disse-lhe que não podia comentar a respeito de seus pacientes, exceto dizer que estavam bem, bem mal ou mortos, e desencorajou qualquer aproximação de tipo confidencial.
Com o passar do tempo, porém, e enquanto o Surprise avançava lentamente para Oeste e Norte, em águas um tanto quanto mais dóceis, e o poder de recuperação da juventude afirmava-se, o que, após um recuo hesitante, ocorreu com espantosa velocidade, ficou evidente que Hollom estabelecera seus próprios canais de comunicação. Tornou-se muito mais alegre, e às vezes era possível ouvi-lo cantando no pequeno e acanhado reservado triangular que ele dividia com o escrivão do comandante, Higgins e o aspirante americano, ou tocando o violão de Honey.
No segundo dia em que o navio pôde largar papafigos e gáveas cheias, o artilheiro-chefe, uma mão mortal e impiedosa com um arpão, matou uma foca que ficava olhando do mar para ele. Stephen pegou seu fígado para dar aos pacientes com escorbuto e, tendo reservado um pequeno pedaço, levou-o à sr.ª Horner, chegando um pouco antes da sua ronda habitual, vespertina. Encontrou-os fortemente abraçados, beijando-se na boca, e falou com um tom de voz excessivamente irritado:
— Saia do aposento, senhor. Saia do aposento imediatamente, já disse. — E, para a sr.ª Horner, que parecia um menino assustado, com o cabelo curto espetado por toda a volta da cabeça, e mais rosada do que a tinha visto desde que tivera febre alta: — Coma isto, madame. Coma imediatamente. — Bateu com o prato na barriga dela e saiu.
Hollom estava do outro lado da porta, e Stephen disse-lhe: — Os riscos que preferem correr é problema de vocês, desde que não afetem a minha paciente. Não permitirei que a saúde dela corra perigo. Vou relatar isto ao comandante.
Mal pronunciava tais palavras, sentiu-se envergonhado pelo justo tom indignado delas e surpreso pelo ciúme desnudado. Quase sem transição entre um e outro instante, notou a pálida expressão de horror de Hollom por algo que este via atrás do médico. Virando-se, viu o corpanzil de Jack preenchendo totalmente o talabardão — como muitos homens grandes, fortes e imponentes, Jack pisava macio.
— O que vai relatar ao comandante? — Indagou ele, sorrindo.
—Que a sr.ª Horner está muito melhor, senhor — respondeu Stephen.
— Isso me deixa muito contente — declarou Jack. — Estava mesmo à sua procura, pois queria fazer uma visita a ela. Tenho uma boa notícia para todos os inválidos. Finalmente, colocamos a proa para Nor-noroeste; temos a brisa pela alheta de bombordo e estamos desenvolvendo onze nós, de acordo com o cordel da barquinha. Se não posso lhes prometer gafanhotos e mel de imediato, pelo menos há toda a probabilidade, para breve, de calor e camas secas.
E na câmara, enquanto Stephen lentamente afinava o seu violoncelo pensando "Foi puro ciúme, não tenho dúvida, mas também desaprovação — o sujeito não é digno dela —, um pobre pé-rapado, vox et praeterea nihil (apesar de uma excelente voz); de qualquer modo, os homens raramente são dignos de suas mulheres", Jack disse:
— Não quero alimentar muito as esperanças do pessoal, mas se continuar assim, e pelos relatos que li é bem provável que continue, chegaremos a Juan Fernández em duas semanas. Tem sido uma travessia lenta e difícil, admito, mas não é impossível que o Norfolk a tenha feito com mais dificuldade e lentidão. Não é impossível — frisou, tentando convencer a si mesmo — que ainda possamos encontrar o navio por lá, com o seu pessoal se reabastecendo e à vontade.
CAPÍTULO SEIS
O Surprise repousava fundeado com fenos de popa e proa sobre quarenta braças de água do lado Norte da ilha, na baía de Cumberland, o único ancoradouro abrigado, e Jack Aubrey estava sentado em uma poltrona, no seu tombadilho, com um toldo sobre a cabeça para proteger-se do sol, digerindo o jantar — sopa de lagosta, três tipos de peixe, um quarto dianteiro de cabrito assado, filé de elefante-marinho grelhado ao ponto — e contemplando o agora familiar litoral de Juan Fernández.
A não mais de dois cabos de distância começava o majestoso gramado, um verde suave e agradável, com dois córregos fluindo por ele, sobre o qual a sua barraca estivera montada até aquela manhã, um palco verde orlado por uma verde floresta e, além da floresta, agrestes colinas rochosas erguiam-se em formas abruptas e fantásticas — penhascos negros, em geral, porém vestidos de verde onde quer que as folhagens conseguiam ocupar, e não como os viçosos renques de excessiva exuberância dos trópicos, mas como o elegante verde do condado de Clare.
Em um dos precipícios mais próximos, podia ver Stephen e Martin arrastando-se por uma trilha de cabras, ansiosamente pastoreadas por Padeen — taifeiro de Stephen e intrépido alpinista, cuja enorme corpulência fora conseguida com a ingestão de ovos de aves marinhas durante toda a infância —, por Bonden (com uma aducha de cabo de trinta centímetros a tiracolo) e por Calamy, que obviamente os aconselhava, pedindo que tomassem cuidado, observassem onde ele mesmo colocava os pés e não olhassem para baixo. Tinham ouvido falar de um beija-flor próprio daquela ilha, o macho de um cor de rosa vivo e a fêmea de um verde vivo. Desde que os inválidos começaram a convalescer, gastavam todas as horas acordadas de que dispunham com os fetos e epífetos{133} de Juan Fernández e para vasculhar o campo à procura de um ninho.
De uma ravina na direção leste da baía veio o estampido de uma arma de fogo: eram Howard dos fuzileiros, os oficiais americanos e um grupo de marujos de licença que perambulavam pela ilha com espingardas de caça, atirando em tudo que se mexia. Apenas um pequeno grupo, e formado por esses homens particularmente habilidosos que até então mal haviam tido uma hora livre, da urgente tarefa de reparar o navio.
Um pequeno grupo, porque a folga da maioria do pessoal da fragata chegara ao fim com a salva de canhão da tarde anterior, e tinham passado esta manhã levantando acampamento — a barraca-hospital fora um grandioso empreendimento, com amplos espaços para todos os casos graves de escorbuto e os demais inválidos — e levando água, madeira, peixe seco e outras provisões para bordo. Ainda devia haver uma vintena de homens na ilha, além dos vigias que ele havia instalado no Pão de Açúcar, que dominava uma bela vista do Pacífico, mas lhes restava apenas pouco tempo; teriam de estar de volta antes do término do quarto das 12:00 às 16:00, quando ele pretendia içar os ferros, deixar o ancoradouro abrigado com o pouco de maré que havia (pois o vento soprava constante de Su-sueste) e seguir direto e o mais depressa possível para as ilhas Galápagos.
Não haviam encontrado o Norfolk em Juan Fernandez, o que talvez tenha sido melhor, com tanta gente do Surprise incapacitada para a ação; tampouco encontraram vestígios da sua passagem por ali, mas isso não significava grande coisa, já que poderia perfeitamente ter recebido aguada em Mas-a-Fuera, uma centena de milhas a Oeste, ou seguido para Valparaíso, onde poderia fazer os reparos necessários. Não haviam encontrado o Norfolk. Jack fizera uma travessia muito lenta e foi obrigado a passar muito tempo na ilha, para que os inválidos se recuperassem e seu navio fosse reparado, mas estava satisfeito. A óbvia missão do Norfolk — sempre supondo que ele estava no Pacífico, não nas altas latitudes do Sul, ainda enfrentando os ventos do Oeste — era seguir constantemente pela costa do Chile e do Peru, ficando à deriva à noite e procurando navios-baleeiros britânicos durante o dia; portanto, se ele seguisse rapidamente para as Galápagos, haveria uma grande possibilidade de chegar lá primeiro, encontrá-lo nas regiões de pesca de baleia ou, no mínimo, descobrir algo sobre seu destino.
Jack tinha outros motivos para estar satisfeito: embora mal tivesse sobrado uma peça de pano de vela ou dez pence de pregos depois que ele a deixou nova em folha, a fragata agora estava em perfeitas condições e maravilhosamente seca; estava bem suprida de água potável, combustível, peixe seco e salgado e carne de foca em salmoura, e os tripulantes sentiam-se notavelmente saudáveis.
Haviam despachado para o além apenas dois, e isso fora no mar, ao largo de Diego Ramirez; os demais haviam reagido maravilhosamente bem aos legumes frescos, à carne fresca, ao calor e ao puro e simples alívio depois da excessiva umidade e do incessante frio dos sessenta graus de latitude. Além do mais, tinham enfrentado tantas coisas juntos que agora formavam um grupo harmonioso, e a pavorosa travessia tornara algo parecido com marujos, mesmo os menos promissores homens oriundos do Defender. Inconscientemente haviam adotado a postura da tripulação do Surprise — a antiga discriminação, a antiga animosidade tinha sumido — e não era apenas, de longe, mais eficiente, como também mais agradável de se comandar; o estrado não fora montado desde a época remota do Atlântico Sul.
Só havia um sujeito que ainda resistia, o tal homenzinho Compton, o tolo barbeiro ventríloquo, que continuava tagarelando. Havia também o artilheiro-chefe. Não era um ex-Defender, mas também era um novato e não se adaptava. Bebia muito e provavelmente estava enlouquecendo. Jack já vira muitos bons oficiais de Marinha enlouquecerem.
Apesar de o comandante de um navio de guerra ter imensos poderes, havia muito pouco que podia fazer para impedir que um homem, protegido por uma patente do oficial comissionado, apto para concorrer a um comando no mar, ou uma patente de oficial auxiliar, destruísse a si mesmo, desde que ele não cometesse nenhuma violação contra os Artigos de Guerras e o tal Horner jamais cometia; embora fosse um brutamontes melancólico e desumano, era uma pessoa conscienciosa e sempre cumpria o seu dever. Mesmo assim, Jack não conseguia gostar dele.
Com os pirralhos, era o contrário — como gostava deles e que grupo de meninos agradáveis! Dificilmente conhecera um camarote de aspirantes mais divertido, mais alegre. Talvez fosse por causa do grego. Eles haviam se comportado excepcionalmente bem durante o contorno do Horn, ainda que Boyle tivesse acabado com três costelas fraturadas, a destruição dos tecidos pelo congelamento tivesse levado dois dedos do pé de Williamson e as pontas de suas orelhas, e o escorbuto, ao atingir o couro cabeludo de Calamy, o tivesse deixado calvo como um ovo; e agora eles divertiam-se imensamente em Juan Fernández, caçando cabras com uma enorme matilha de cães selvagens, que mais ou menos domesticaram. Ele sorriu, mas seus agradáveis pensamentos foram interrompidos por um disparo de mosquete e a voz de Blakeney, o sinaleiro de serviço.
— Com sua licença, senhor, o Pão de Açúcar está sinalizando- Um navio, creio eu.
Era um navio, mas o turbilhão de ar, lá em cima, afastou da direção do navio a sinalização que foi içada; e, em vez de esperar que esta ficasse direita, Jack correu para o castelo de proa, encheu os pulmões e gritou com toda a força na direção do Pão de Açúcar: "Um baleeiro"? Uma combinação de gritos de "Não" desceu de lá, juntamente com gestos negativos, no entanto a resposta ao seu "Onde está"? Não conseguiu ser ouvida, embora eles esticassem os braços apontando enfaticamente em direção a sotavento; mandando que Blakeney o seguisse com uma luneta, Jack trepou nos vaus do joanete de proa. Vasculhou a enevoada borda de mar ao Norte, mas nada encontrou além de um cardume de baleias esguichando às vintenas, distante cerca de cinco milhas.
— Senhor — gritou Blakeney, de pé na verga do joanete —, o sinal ficou visível. Consigo entender a maioria, sem o livro. Navio posição nor-nordeste não-sei-o-quê léguas... não consigo decifrar os números, senhor... navegando a Oeste.
Havia homens responsáveis lá em cima: Whateley, um contramestre, e dois velhos marinheiros de primeira. Para marinheiro, navio só significava uma coisa: um barco de três mastros com velas redondas. Uma fragata era, claro, um navio, e como esse navio sobre o qual sinalizavam e que estava em algum lugar além de seu alcance não era um baleeiro — e baleeiros podiam ser reconhecidos de imediato por causa do ninho de pega —, poderia ser o Norfolk. Poderia muito bem ser o Norfolk.
— Sr. Blakeney — ordenou —, corra até o Pão de Açúcar com uma luneta. Pegue todas as informações que puder sobre que velas estão içadas, o rumo e a marcação. Em seguida, desça com os homens e os seus pertences. Espero que venham o mais depressa que puderem, a não ser que prefiram passar o resto dos seus dias nesta ilha. Com esta brisa, jamais conseguiremos bordejar de volta para ela assim que formos para sotavento. — Em seguida, elevando a voz e dirigindo-a para a popa: — Sr. Honey. Guarnecer postos de suspender, por favor.
Cada homem a bordo e vários em terra esperavam por essa ordem desde que o Pão de Açúcar respondera ao grito do comandante, e, antes mesmo de o mestre do navio levantar o seu apito, o convés estava mais movimentado do que um formigueiro virado de cabeça para baixo. Propositadamente movimentado, porém, com as barras do cabrestante sendo levadas às pressas para serem alojadas, presas e giradas, gajeiros de mastro correndo para largar a amarra de proa, homens do castelo de proa desaparecendo conveses abaixo, no paiol dos cabos, para alojar a amarra de popa, enquanto o cabo monstruoso, molhado, duro e pesado era recolhido; era preciso mais do que uma ordem repentina de suspender para fazer o Surprise perder a cabeça e, por mais atarefado que parecesse, ou mesmo para o olhar distraído de quem vive em terra, houve bastante tempo para içar na proa a bandeira azul, o sinal de partida, e disparar uma salva de canhão, chamando a atenção para ela.
O canhão fez com que Stephen e Martin parassem instantaneamente e, antes que conseguissem reunir as faculdades mentais e começassem a refletir sobre os motivos do aviso, foram virados para o outro lado e empurrados trilha de cabra abaixo, perdendo, em cinco minutos, meia hora de laboriosa escalada. Nem Bonden nem Calamy prestaram atenção a qualquer especulação, a qualquer comentário sobre beija-flores, sobre pressa desnecessária, ou os besouros deixados por um instante entre as samambaias; e, apesar de haver um longo caminho a percorrer através dos pés de sândalo e por trás da angra dos elefantes-marinhos — "o único lugar da ilha onde se encontra a Venus mercenaria", berrou Martin, aflito, enquanto passava por ali, carregado, em trote rápido —, eles levaram suas cargas até a praia no momento em que os últimos três inválidos (uma perna quebrada que não calcificou; um antebraço amputado, gangrenado após a destruição dos tecidos pelo congelamento; e uma sífilis terciária, perfeitamente irrelevante, adquirida anos antes, atrás de uma sebe em Hampshire e agora seguindo para a sua fase terminal de paralisia) eram colocados no cúter vermelho, por Higgins.
Quando cessou o som de pífaro do cabrestante, estando o Surprise pairando diretamente sobre seu ferro de popa, chegou o momento em que eram pronunciadas as palavras rituais: "Ferro a pique, senhor" e, em seguida, "Preparar para içar ferros".
Isso foi seguido por um momento de ansiedade, pois o ferro havia agarrado um pouco e havia perigo de estar entocado no fundo. O som de pífaro atacou, e os homens içaram com vontade, mas o cabrestante se movia cada vez mais lentamente. O grupo de atiradores chegou, abarrotando uma única embarcação, e os homens que estavam de licença correram para as barras.
"Içar o ferro", gritou o mestre do navio, ao sentir um tremor de algo cedendo vindo das profundezas, e o cabrestante começou a girar com um excelente clique clique de suas linguetas, içando o ferro de serviço em meio a uma nuvem turva de sedimentos. "Ferro a olho". O ferro de serviço, porém, havia fundeado a fragata pela popa, com o cabo passando por uma abertura da vigia da praça d’armas, e, embora os homens do Surprise ficassem felizes em ver o seu ferro pendurado ali, ele ainda precisava ser passado para vante.
Era em si mesma uma tarefa difícil, pois o ferro de serviço pesava cento e cinquenta quilos, e mais difícil agora, já que ao mesmo tempo eles teriam de entrar com a outra amarra, levando o navio através da baía para içar o ferro reserva, unhado mais adiante. Seguiu-se um período de intensa atividade, com o cabrestante girando constantemente ao som de All Aboard for Cuckold’s Reach, e o mestre do navio e sua faxeira{134} saltando de um lado para o outro, para dentro e fora do navio, como um bando de macacos agitados.
Passou-se algum tempo até Jack ter uma folga para dizer:
— Aí está você, doutor. Aí está você, sr. Martin. Lamento tê-los arrancado de suas pesquisas, mas estou feliz por vê-los a bordo. Pode ser que o inimigo esteja a nosso sotavento... Precisamos partir imediatamente e, com o vento Sul tão firme, qualquer um que for deixado para trás tem toda a probabilidade de permanecer aqui uma porção de tempo, Sr. Mowett, estão todos a bordo, creio eu.
— Não, senhor — afirmou Mowett. — O artilheiro-chefe, a esposa e Hollom ainda estão em terra.
— O sr. Horner? — Bradou Jack. — Pelo amor de Deus, eu poderia jurar que ele tinha vindo no escaler. Dê para ele outra salva de canhão.
Deram-lhe três salvas, em longos intervalos, enquanto o Surprise se movimentava serenamente através da baía. Mas só quando estava para terminar com o ferro de reserva, com o cabo inclinado esticando-se, ele foi avistado, sozinho no desembarcadouro.
— O que, diabos, ele quer? O que, diabos, eles pretendem? Colher buquê de flores? — Exclamou Jack, olhando irritado acima do mar imaculado, apenas franzido agora por uma mais do que bem-vinda brisa soprando da direção da maré. — Mandem o bote buscá-los. Sim, sr. Hollar, o que foi?
— Com sua licença, senhor — disse o mestre do navio. — O cabrestante voltou a fazer a sua velha travessura.
— Mas que inferno! — Bradou Jack. —Soleca{135} o cabo virador.
Aliviaram a tensão do cabo, e Jack rastejou por baixo das barras até o arco das linguetas de ferro. Realmente, uma das linguetas já perdera a ponta, e a outra estava tão torta que acabaria se perdendo a qualquer minuto; se ela cedesse, com a amarra tão retesada, qualquer subida do mar ou qualquer elevação do navio seriam transmitidas às barras com uma força impressionante, girando o cabrestante ao contrário e espalhando os homens como se fossem pinos de boliche, pinos de boliche sangrentos.
— Devo acender a forja, senhor? — Perguntou Mowett.
Isso teria de ser feito mais cedo ou mais tarde; novas linguetas teriam de ser moldadas, marteladas, temperadas e depois encaixadas; mas levaria horas, e eles perderiam não apenas a maré, mas ainda o ventinho promissor que agitava a galhardete.
— Não — disse Jack. — Vamos içar o ferro; um cabo virador no cabrestante pequeno.
Enquanto falava, viu uma expressão de horror espalhar-se pelo rosto do mestre de navio, o sr. Hollar sempre servira em navios modernos e nunca içara ferros em um virador; essa, de fato, era uma prática antiquada. Quando jovem, porém, Jack navegara sob o comando de alguns comandantes muito conservadores e antiquados; e também acontecia no seu primeiro navio, o Sophie, um brigue antiquado (se é que isso existe), de se usar um cabo virador. Quase sem pausa, Jack chamou os aspirantes.
— Vou mostrar-lhes como se iça o ferro com um virador — disse ele. — Prestem atenção. Não é costume se ver isso, mas talvez poupe vocês de uma maré de problemas. — Seguiram-no para baixo do quebra-mar, onde ele observou: — Este é um virador diferente, use o estilo Sophie, Bonden — pois Bonden já tinha trazido a enorme calha de roldana única. — Agora, observem. Ele vai prendê-la à amarra... gurnir{136} o tirador por ele... e o tirador é levado para o cabrestante, com a arreigada fixa nas abitas. Portanto, agora vocês têm um aparelho de suspender mediante o emprego de talha em vez de uma amarra amichelada, entenderam?
Eles entenderam, mas o poleame do virador, havia muito tempo sem uso, rompeu com a tensão. Precisou ser substituído por várias improvisações, e, quando afinal a amarra estava a pique e Jack novamente no convés, o bote estava atracado a contrabordo, vazio, seus tripulantes já ocupados em seus vários postos. Ao se encaminhar à popa, viu Maitland conversando com Mowett, que se adiantou para encontrá-lo, tirou o chapéu e informou, com um estranho tom de voz formal:
— O artilheiro-chefe já está a bordo, senhor. Veio sozinho. Disse que Hollom desertou, não vai voltar para o navio, e que a sr.ª Horner vai ficar com ele. Disse que pretendem permanecer na ilha. Ele machucou a perna no mato e foi lá para baixo.
A atmosfera estava muito estranha. Jack conteve sua primeira reação e correu os olhos pelo tombadilho. A maioria dos oficiais estava lá: nenhum deles tinha no rosto uma expressão inteiramente natural. Dois da guarnição do bote estavam por perto, afastando as talhas, e pareciam profundamente perturbados, aflitos e até mesmo amedrontados.
Obviamente havia algo que todos no navio sabiam e obviamente ninguém lhe contaria; até o rosto de Maturin estava fechado. A decisão tinha de ser tomada imediatamente, e ele teria de tomá-la. Normalmente um desertor tem de ser capturado; o exemplo era de suma importância. Aquele, porém, era um caso especial. Vasculhar a ilha, com todas as suas cavernas e profundas cavidades, talvez levasse uma semana — uma semana, numa ocasião em que um possível inimigo estava à vista! Enquanto sua mente virava de um lado para o outro, foi tentado a perguntar: "O artilheiro-chefe não prestou queixa para irmos atrás deles, para recuperar sua esposa"? —, quando se deu conta de que a resposta estava implícita no relato feito por Mowett. A pergunta era sem sentido; em todo caso, sua mente estava clara e determinada. Ordenou:
— Içar o ferro — e acrescentou: — Cuidaremos da questão da deserção em outra ocasião, se for possível. Prossiga, sr. Maitland.
— A enxarcia, quem larga — gritou Maitland, e os homens correram para as vergas.
— Acima e fora — e eles soltaram as bichas, mantendo as velas debaixo dos braços.
— Largar o pano. Caça a beijar!
As velas caíram: os do quarto de bombordo caçaram as escotas do velacho, os do quarto de boreste, as da gávea, e os meninos e os ociosos, as da mezena. Então, um pouco antes da ordem, caçaram a ostaga{137} e içaram as vergas; a seguir, os joanetes e as velas foram mareadas diante da brisa, e quando o Surprise, avançando tranquilamente sobre o ferro reserva, arrancou-a sem maiores empecilhos, eles correram de volta ao cabrestante e içaram a amarra. Os marujos fizeram todos esses movimentos com a irrefletida tranquilidade de uma longa prática, mas com algo próximo de um silêncio mortal; nada havia da alegre emoção de se fazer ao mar mais apressadamente, com a possibilidade de uma batalha não muito distante dali.
A maioria deles vira o artilheiro-chefe subir a bordo, o rosto pálido e encovado, as roupas salpicadas de sangue. Alguns tinham ouvido a voz mecânica e inumana com que se apresentara ao oficial do quarto, e a tripulação do bote contou que ele lavara as mãos e a cabeça, ajoelhado bem ali, à beira do mar.
Assim que o navio se afastou do sotavento da ilha, largou as varredouras e cutelos e navegou em uma derrota determinada para interceptar o estranho. Blakeney assumira a manobra com todo o cuidado e verificara que estava com amuras a bombordo, pelo menos com uma quarta de folga, com papa figos{138} e gáveas. O Surprise desenvolvia agora oito nós, e Jack esperava aumentar a velocidade durante a tarde e, então, carregar todo o pano, menos as velas de estai, até o anoitecer, e continuar espreitando o horizonte para, com pressão nas velas, intercepta-lo ao amanhecer.
Lá em cima, nos vaus do joanete, ele esquadrinhou o mar distante com a luneta esquadrinhando vinte graus de superfície a partir da testa do joanete a boreste e, abaixo, ouviu os homens na gávea do traquete, inconscientes de sua presença, conversarem num tom de voz baixo e urgente, um pouco mais do que um cochicho. Estavam perturbados, mais perturbados do que se poderia ficar por um ajudante de navegação ter fugido com a esposa de um artilheiro-chefe para uma ilha cálida e agradável. Baleias novamente; um primoroso e enorme cardume, esguichando a não mais do que uma milha de mar; ele jamais vira tantas juntas, certamente mais de duzentas.
— Sangue inocente derramado — disse uma voz na gávea do traquete. Era de Vincent, um pastor leigo de West Country.
— Sangue inocente, uma ova — disse outra, talvez o velho Phelps.
E, além das baleias, muito além das baleias, um fraco lampejo, que certamente não era um esguicho: focou a lente e firmou-a — o estranho, navegando firmemente adiante, mantendo o seu rumo, o casco encoberto pelo horizonte, claro, mas, com toda a certeza ali. Virou a cabeça, curvou-se e gritou para o convés: um grito tolamente moderado, como se o navio distante fosse capaz de ouvi-lo.
— Ó do convés. Velas do joanete.
Desceu lentamente, deu as ordens que manteriam o Surprise fora de vista, mas ainda avançando num rumo paralelo ao do estranho, e foi para a sua câmara. Ele era bem uma criatura do seu navio e, ainda que sua vida fosse isolada em comparação à de outros, tinha plena consciência da atmosfera a bordo e também estava sintonizado com ela, uma vez que sua ansiosa espera pela manhã seguinte agora se reduzira a um nível surpreendente. Obviamente, isso não o impedia de tomar todas as medidas apropriadas; ele e o mestre-arrais haviam estabelecido uma derrota calculada com exatidão; foram providenciados postigos para as vigias antes de escurecer para que luz alguma pudesse ser vista a bordo; e, meia hora após o ocaso, o navio guinou cinco quartas e meia a Norte, aumentando a velocidade para sete nós, diante da regular e invariável brisa, com dois, talvez, de reserva, se precisasse largar mais pano.
— Seria desumano importunar o pobre Horner esta noite. —Disse ele a Mowett. — Vamos fazer de conta que ele adoeceu e que pediu ao seu ajudante mais antigo que se apresentasse... Wilkins, não é mesmo? Um homem íntegro. Não tenho dúvidas a respeito dos canhões, mas talvez precisemos encher mais cartuchos, principalmente se tivermos sorte amanhã.
Então, com o navio navegando inalteravelmente através da noite sem luar, nas demoradas e tranquilas subidas e descidas das sucessivas vagas, e com o zunido normal do cordame transmitido para a câmara, como um onipresente som consolador, combinado com o correr da água pelo costado, ele retornou à sua carta em episódios para Sophie.
"Embora um comandante seja casado com o seu navio, ele é igual aos outros maridos: há certas coisas que ele é o último a saber. Com certeza, existem mais coisas do que um olho é capaz de enxergar, pelo menos mais do que o meu. As pessoas estão chocadas, e direi até mesmo angustiadas, e isso não foi causado simplesmente pelo que foi dito que aconteceu — a esposa de um oficial-auxiliar deixou-o e um ajudante de navegação desertou. Detesto e desconfio de mexeriqueiros, e não faço bom juízo de comandantes que lhes dão ouvidos, muito menos eu os incentivo; e, apesar de ter absoluta certeza de que Mowett, Killick e Bonden, para citar apenas três que são meus companheiros de bordo desde quando nem faço mais ideia, sabem muito bem o que está acontecendo, tenho igualmente certeza de que nenhum deles me contará sem que eu lhes faça uma pergunta direta, o que não farei. Só há uma pessoa com quem posso falar decentemente, como amigo, e essa pessoa à Stephen; mas, se ele me diria ou não, não sei dizer".
Fez uma pausa — uma longa, longa pausa — e chamou:
— Killick. Ah, Killick. Transmita os meus cumprimentos ao doutor, e, se ele desejar um pouco de música, estarei a seu dispor.
Dito isso, tirou o violino do estojo e passou a afiná-lo, com uma série de silvos, rangidos e gemidos que criaram um padrão próprio curiosamente agradável e começaram a transportar sua mente para um outro nível.
O velho Scarlatti, em ré menor, e uma série de variações sobre um tema de Haydn, que eles percorreram de trás para a frente, com algumas agradáveis improvisações, a transportaram para muito mais além; nenhum dos dois, porém, estava com disposição para ser possuído totalmente pela música, e, quando Killick chegou com vinho e biscoitos, Jack anunciou:
— Precisamos nos recolher cedo; não é impossível que encontremos o Norfolk amanhã. É improvável, mas não impossível. Mas, antes de me recolher, gostaria de lhe perguntar uma coisa. Se for inoportuno, não acharei impróprio se você achar que não deve responder. Qual é a sua opinião sobre essa deserção?
— Ouça, meu caro — retrucou Stephen. — Trata-se de algo deselegante perguntar a um cirurgião de navio sobre qualquer uma das pessoas que há nele, porque quase todas, em uma ocasião ou outra, foram seus pacientes, e médicos não têm permissão para fazer comentários sobre os seus pacientes, do mesmo modo que Deus proíbe que um padre comente sobre os seus penitentes. Portanto não lhe direi o que penso dessa deserção, nem o que penso sobre as pessoas envolvidas nela. Mas, se desejar, posso lhe dizer qual é o pensamento geral a respeito, embora sem lhe dar qualquer garantia de sua verdade ou falsidade, e sem juntar qualquer opinião minha ou qualquer informação privada que eu possa ter.
— Por favor, faça isso, Stephen.
— Bem, a suposição generalizada é de que Hollom, há já bastante tempo, é amante da sr.ª Horner e que Horner descobriu isso há mais ou menos uma semana...
— É o suficiente para enlouquecer qualquer homem — comentou Jack.
— ... e que ele aproveitou a oportunidade para levá-los ao outro lado da ilha, sob o pretexto de terem uma conversa particular, e ali os golpeou até a morte. Ele tinha um porrete e é terrivelmente forte. Dizem que levou os corpos até um rochedo e os jogou lá de cima. O pessoal lamenta pela sr.ª Horner, tão jovem; e ela era também muito afável, bondosa e conformada. Lastimam até certo ponto por Hollom, mas acima de tudo lamentam por acharem que eles um homem agourento, que jamais deveria ter vindo para bordo. Contudo acham que Horner foi provocado de uma maneira intolerável e, apesar de não gostarem dele, acreditam que era seu direito.
— Imagino que acreditam — concedeu Jack. — E, se eu conheço alguma coisa da Marinha, jamais o denunciariam. Não haveria um só fragmento de prova; um inquérito seria totalmente inútil. Obrigado, Stephen. Era isso o que eu queria saber e imagino que, se fosse um pouquinho mais esperto, não precisaria ter perguntado. Terei de aceitar isso pelo que aparenta, colocar um R ao lado do nome de Hollom e encarar Horner do melhor modo possível.
No caso, não houve dificuldade em encarar Horner. Ao final do quarto de 00:00 à 04:00, as luzes da caça foram avistadas, um pouco, apenas um pouquinho, mais a Oeste do que deveriam estar; e, ao alvorecer, ali estava ela, placidamente mantendo seu rumo sob o céu baixo e cinzento. Jack foi para o convés, de camisão de dormir, mas Horner estava lá muito antes dele. O artilheiro-chefe vestia calças limpas de pano de vela branco e uma camisa nova de xadrez; uma perna ferida ou torcida tornava seus movimentos desajeitados, mas manquejava em volta de seus canhões inspecionando o equipamento, miras e retrancas, com a habitual rude competência. Foi até a popa para ver as caronadas do tombadilho, espalhando em volta um intenso constrangimento, mas aparentemente não sentindo nenhum; tocou o chapéu em cumprimento ao comandante, parado ali, o binóculo na mão baixada.
O coração e alma inteiros de Jack estavam voltados para a perseguição — havia mais de vinte anos envolvia-se em batalhas navais, e era muito mais uma espécie de predador dos mares, perfeitamente determinado quando havia a mínima possibilidade de uma ação violenta —, e agora, com a voz mais natural do mundo, falou:
— Bom dia, artilheiro-chefe. Receio que não haverá muita chance de gastar os seus estoques esta manhã.
O sol nascente provou que ele estava certo: mostrou uma fileira de figuras debruçadas sobre a amurada do estranho, em tranquila atitude, algumas de bigode, outras fumando charutos. A Marinha dos Estados Unidos, embora descontraída e até mesmo, em algumas ocasiões, tendendo à democracia, jamais chegaria àquele extremo; e, afinal, a caça acabou se revelando como o Estrella Polar, um navio mercante espanhol vindo de Lima para o rio da Prata e a Velha Espanha.
Ele se dispôs a atravessar e passar parte do dia ali, é, apesar de não poder fornecer nada ao Surprise além de alguns metros de pano de vela em troca de uma barra de ferro, foi generoso com informações; certamente o Norfolk tinha passado para o Pacífico, depois de uma tranquila travessia do Horn; recebera aguada em Valparaíso e mal precisara fazer reparos, o que foi bom para eles, pois Valparaíso tinha a fama de nada possuir, e esse nada era da pior qualidade, além de exorbitantemente caro e entregue apenas depois de um atraso intolerável. Havia partido assim que atestara de água e capturado vários baleeiros ingleses.
O Estrella ouviu dizer que um deles ardera no mar, ao largo dos rochedos de Lobos, como uma enorme tocha no meio da noite, e conversou com outro navio, de nome Acapulco, que estava sendo levado para os Estados Unidos com uma tripulação de presa, um navio robusto, mas, como a maioria dos baleeiros, uma lesma: o Estrella poderia dar-lhe de vantagem os joanetes do traquete e do grande e, ainda assim, navegar duas milhas para uma dele: o encontro acontecera abaixo da linha dos trópicos, duzentas léguas nor-nordeste, longe demais.
O Estrella teria prazer em levar as cartas do Surprise para a Europa e desejava-lhe uma feliz; viagem; os dois navios enfunaram suas gáveas braceadas e separaram-se trocando amabilidades aos gritos. As últimas palavras audíveis do espanhol, a uma distância de meia milha de mar, foram "Que no haya novedad".
— O que ele quis dizer com isso? — Perguntou o comandante Aubrey.
— Que não surjam novidades — respondeu Stephen. — Novidades do tipo ruim.
Os tripulantes do Surprise ficaram contentes por ter suas cartas levadas para o Velho Mundo; agradeceram pelo meio corte de pano de vela, e despediram-se do Estrella com verdadeira boa vontade. No entanto, após uma noite da mais intensa expectativa e o triunfo de terem avistado suas luzes durante o quarto de 00:00 às 04:00, aquilo não poderia ser nada além de um anticlimax, uma amarga decepção. Havia também o grande tormento pelo fato de o Norfolk ter feito a travessia do Horn muito antes deles e pela tomada dos baleeiros britânicos, que tinham como missão proteger.
Muitos dos homens do Surprise tinham amigos ou parentes na indústria da pesca do mar do Sul e sentiram profundamente; o sr. Allen mais do que todos. Ele sempre se mantinha um oficial austero, sisudo, quando dava serviço; não era exatamente um oficial tirânico, visto que nunca insultava ou atormentava os homens injustificadamente, mas rígido, bastante rígido, aliás; e agora ainda mais. Estava de serviço na tarde naquele dia, quando o céu baixou e começou a chorar uma chuva fina; a brisa aumentou caprichosamente, por vezes desconcertante, e ele manteve o pessoal em constante atividade, largando velas, mareando-as, carregando-as novamente tudo com um vociferar áspero e furioso.
Tivera uma demorada conversa com Jack, e decidiram que, em vista das informações do Estrella, a melhor alternativa era seguir com a vela grande, aproximando-se o máximo possível da rota dos baleeiros que rumavam de volta para casa; não era a derrota direta do Surprise para as Galápagos mas, insistiu o mestre-arrais, eles só perderiam pouco tempo — era uma rota quase tão larga quanto comprida — por causa da corrente fria que corria para o Norte ao longo da costa, carregando focas e pinguins até quase o equador, por toda a extensão do Chile e do Peru. O argumento de Allen e sua experiência naquelas águas pareceram conclusivos para Jack, e o navio agora rumava o mais próximo que conseguia de Les-nordeste, através da garoa melancólica.
Um navio melancólico e ansioso: eles haviam se livrado de um homem azarado, o pobre Hollom, como agora o chamavam, mas tinham ganhado algo pior, um sujeito que certamente fez baixar uma maldição sobre todos eles. Os meninos foram lamentavelmente afetados: a sr.ª Horner sempre fora bondosa com eles, e além disso, como homenzinhos, também eram sensíveis à sua bela aparência. — Jack, abruptamente, trocara seus alojamentos, tornando-os colegas de camarote de Ward, seu escrivão, Higgins e o aspirante americano alto. Ward não gostava da companhia deles (embora agora eles vivessem sonolentos e tão silenciosos quanto camundongos), mas era intolerável que continuassem com Horner.
O artilheiro-chefe festejou a liberdade embebedando-se. Forçou um dos seus ajudantes a sentar-se com ele e o bem menos relutante barbeiro Compton, único a bordo que poderia, esticando-se o significado da palavra, ser chamado de seu camarada. Horner era bem fornido de provisões, tinha três barriletes de conhaque espanhol, e eles beberam até o quarto da noite, quando o pessoal do convés, horrorizado, ouviu sua voz grossa e dissonante cantar Mais tarde ou mais cedo, não sei / a minha rosa em junho desfrutarei.
Dia após dia o Surprise navegava por mares agitados, com o navio em pesada labuta, e todas as noites Horner sentava-se para beber com o barbeiro, cuja voz aguda de ventríloquo podia ser ouvida repetidamente atacando seu repertório, seguida pelo timbre estrondoso do semiembriagado Horner, cada vez mais íntimo. Isso chocava os homens no convés; chocava os homens cobertas abaixo. Mesmo depois que o navio alcançou as frescas águas turquesa da corrente do Peru, num dia claro, ao meio-dia, e avistou o contorno denteado da cordilheira dos Andes, um branco cintilando contra o céu limpo, nas distantes, distantes amuras de boreste, quando guinou para o Norte, o clima a bordo continuou o mesmo.
Os tripulantes sentiam-se molestados e viviam taciturnos. Achavam que Compton era louco em beber na companhia do artilheiro-chefe e não se surpreenderam quando, certa noite, houve o ruído de uma briga, e ele chegou correndo ao convés, o rosto coberto de sangue, o artilheiro-chefe em seu encalço. Horner tropeçou e caiu; eles o levantaram, completamente bêbado, e o carregaram para baixo. Compton tinha apenas um corte na boca e um nariz sangrando, mas estava tão apavorado que mal conseguia manter-se de pé. Enquanto o ajudavam a limpar-se, explicou:
— Eu só disse para ele que ela estava com um bebê.
No dia seguinte o artilheiro-chefe mandou dizer que desejava consultar-se com o dr. Maturin, que o recebeu em seu camarote. O homem tinha os movimentos perfeitamente serenos, mas não havia nenhum contato humano com ele; estava tão pálido que o seu bronzeado parecia ocre, um ocre baço, e Stephen teve a impressão de que ele estava repleto de uma ira quase incontrolável.
— Eu precisava vê-lo, doutor — disse ele. Stephen inclinou a cabeça, mas não falou nada. — Ela ia dar cria, quando adoeceu — disparou de repente o artilheiro-chefe.
— Ouça, sr. Horner — começou Stephen. — Está falando de sua esposa, e devo dizer-lhe que não posso comentar com ninguém a respeito dos meus pacientes.
— Ela ia dar cria, e o senhor usou instrumento nela.
— Nada tenho a lhe dizer sobre esse assunto.
Horner levantou-se, curvando-se sob as vigas, e repetiu, num tom muito mais rude:
— Ela ia dar cria, e o senhor usou um instrumento nela.
A porta abriu-se. Padeen entrou rapidamente e agarrou Horner por trás, rodeando seus braços; Padeen era um homem bem maior e, de longe, muito mais forte.
— Largue-o, Padeen — mandou Stephen. — Sr. Horner, sente-se nessa cadeira. Sua mente está abalada, o senhor está perturbado, com toda a razão, diante de tanta emoção. Precisa de um remédio. Beba isto. — Serviu meio cálice de vinho de sua própria tintura e o passou a ele, dizendo: — Não vou fingir que não sei o que está querendo dizer, mas precisa entender que nunca usei um instrumento desse tipo em toda a minha vida e jamais usarei. — Falou com autêntica amabilidade, e isso, mais do que a evidente verdade, tocou o coração; o artilheiro-chefe bebeu do cálice.
Era uma dose que teria acalmado uma dúzia de homens desacostumados à droga; entretanto, naquela tarde, Higgins foi procurar Stephen num estado não tanto de alarme, mas de abjeto terror.
— Ele disse que eu usei um instrumento nela... Oh, senhor, precisa me proteger... sou seu assistente... sou seu ajudante... precisa me proteger. Ele respeita o senhor, ele não tem nenhum respeito por mim.
Era pura verdade: a tagarelice de Higgins fora por demais repetida, sua avidez tornara-se por demais evidente, e ele fora um tolo em tiranizar o enfermeiro, um oráculo médico de grande reputação nas cobertas abaixo, que revelou muitas das suas atividades ilegais e mostrou suas sujas lacrainhas e o envelhecido lucano{139}. E, em todo caso, a trepanação de Stephen feita em Plaice eliminara em grande parte os pequenos triunfos que Higgins teria obtido com a extração de dentes.
— É melhor ficar fora de seu caminho até ele se acalmar — aconselhou Stephen. — Pode se instalar na enfermaria e ler para os inválidos. Pedirei a Padeen que o acompanhe durante um ou dois dias. Precisa cativar a boa vontade dele, que de certo modo foi prejudicada de forma irrefletida, conversando com ele educadamente, talvez lhe ofertando um pequeno presente.
— Oh, senhor, eu lhe darei meio guinéu... um guinéu inteiro... eu lhe darei dois guinéus, juro... e não sairei da enfermaria, a não ser para dormir, e aí não terá o que temer, senhor, pois estou cercado de macas por todos os lados. O aspirante americano grandalhão fica entre mim e a porta.
Na sexta-feira, porém, aquele dia nublado e desgraçado, quando Stephen e Martin estavam dissecando um pelicano, um dos muitos animais que Howard, o fuzileiro, abatera enquanto o navio seguia ao longo da abundante corrente — muito frequentada por pinguins, golfinhos e todos os tipos de focas, leões-marinhos e ursos brancos, como também cardumes inacreditavelmente imensos de peixes miúdos, como anchovas, e sua comitiva de aves acima —, Martin perguntou:
— O que eles querem dizer com carona de Jonas?
Antes que Stephen conseguisse responder, Howard chegou lá embaixo e disse-lhe que uma coisa estranha e enorme, parecida com um elefante-marinho, fora avistada; ele havia disparado mas acertara apenas o mais jovem que estava em sua companhia, porque uma cortina de neblina se colocou entre ele e o alvo no momento crucial; era algo prodigioso como um ser humano, só que maior, e poderia dizer que sua cor era cinzenta. Queria muito que os dois vissem aquilo.
— Estou certo de que sua intenção é amável, sr. Howard — disse Stephen. — Mas quero lhe rogar, por tudo que é mais sagrado, que não mate mais animais do que conseguimos colecionar ou dissecar, ou mais do que os homens conseguem comer.
— Ora, o senhor nunca foi um desportista, doutor — retrucou Howard, com uma risada. — Pois nestas águas, se fosse um desportista, poderia passar o dia todo atirando. Agora mesmo fiquei na melhor das posições entre uma revoada de corvos-marinhos. Estou indo direto de volta para lá. Tenho dois homens recarregando para mim.
— Carona de Jonas, foi o que perguntou? — Disse Stephen. — Creio que é um termo que eles utilizam para se referir a um homem impopular ou azarado, quando é empurrado borda fora.
— Ora, certamente que não — rebateu Martin, que ignorava os recentes acontecimentos. — Ouvi usarem o termo em relação ao sr. Higgins.
— Foi mesmo? — Disse Stephen, surpreso. — Por favor, mantenha a pele esticada. Volto em instantes.
Higgins não estava na enfermaria nem no dormitório, e, enquanto Stephen procurava por ele, captou alguns olhares significativos trocados entre alguns dos homens. Levou o enfermeiro para um lado e indagou:
— Ouça, Jamie Pratt, quando o viu pela última vez?
— Bem, senhor — respondeu Jamie —, ele não ousava ir a latrina, sabe. Ele se segurava ou usava um pote. Mas ontem à noite teve uma diarreia daquelas furiosas e foi até a proa, já que estava tudo escuro. De maneiras que não vejo ele desde então. Pensei que talvez estivesse com o senhor, talvez no alojamento dele ou talvez no paiol dos cabos. Ouvi dizer que ele tinha um esconderijo lá, por estar com muito medo de um certo cavalheiro, como se poderia dizer.
— Certamente estará em seu posto durante o exercício de postos de combate, se andou escondido lá por baixo —, deduziu Stephen.
O tambor soou, as anteparas sumiram, a fragata revelou uma extensão desimpedida, de proa a popa, pronta para ação, e toda a guarnição correu para seus postos de combate. Mowett fez uma rápida inspeção para se reportar ao comandante.
—Todos presentes e sóbrios, senhor, com sua licença.
Encontrou o mestre do navio no castelo de proa, é claro, o carpinteiro e sua equipe nas bombas e nas laterais do porão, e o artilheiro-chefe, seu paioleiro e seus ajudantes em suas posições no paiol de pólvora; mas, ao mergulhar nas sombrias profundezas, onde Stephen, Martin e o enfermeiro se mantinham a postos para cuidar dos feridos, Stephen falou:
— Senhor, quero informar a ausência do meu assistente, o sr. Higgins.
Os quartos terminaram sem exercício com os canhões de grosso calibre. O homem do tambor bateu a volta aos postos, e Jack ordenou uma busca minuciosa nas cobertas inferiores e no porão. Higgins poderia estar doente no interior de uma das enormes aduchas de cabos no paiol ou poderia ter caído por um escotilhão.
Os homens acenderam suas lanternas em meio à rápida escuridão que se formava — nuvens baixas já flutuavam próximo ao cordame superior — e começaram a fazer a necessária movimentação, o ânimo deles, porém, não estava naquilo. Claro que o ânimo deles não estava naquilo, pois sabiam, como um fato evidente, que Higgins pegara uma Carona de Jonas; aliás, não fora uma grande perda.
E, quando começou a lamúria, todos correram para o convés e ficaram parados ali, amontoados.
Era um gemido, um alto longo triste desesperado gemido de imenso volume, às vezes elevando-se a um guincho, diferente de qualquer som que vinha do mar, de acordo com a experiência dos mais velhos a bordo, e aquilo contornava o navio, chegando bem perto de ambos os bordos; às vezes podia-se distinguir uma forma, mas não claramente. Em todo caso, houve poucos que ousaram olhar.
— O que pode ser? — Perguntou Jack.
— Não sei dizer — respondeu Stephen —, mas suponho que se trata da criatura cujo filhote levou um tiro. Talvez tenha ficado ferido e talvez tenha morrido agora.
A voz ficou ainda mais alta, quase intolerável, antes de irromper num soluço moribundo.
— Sr. Mowett —, indagou Jack, com um tom de voz dos mais apreensivos —, o navio foi minuciosamente revistado?
— Não tenho certeza, senhor — respondeu Mowett, elevando a voz acima do lamento, agora pelo través de bombordo. — Vou verificar imediatamente.
Houve a mesma resposta, a todas as suas perguntas: sim, tudo fora vistoriado; e não, não adiantava procurar novamente lá embaixo. Foram oficiais auxiliares e sargentos responsáveis que falaram, às vezes olhando direto em seu rosto, e ele sabia que eles sabiam que não haveria modo de fazer o pessoal voltar às remotas, mais escuras e mais solitárias partes do navio.
— Por Deus! — Bradou Jack, a ampulheta escoada captando os seus olhos, a ampulheta de meia hora, que era religiosamente virada mesmo no calor de uma batalha, mesmo quando o navio ficou encalhado, a quilha perfurada. — Por Deus. O que, diabos, está pensando? Vire a ampulheta e toque o sino.
O fuzileiro de serviço virou a ampulheta e, relutante, foi mais à frente: oito badaladas hesitantes, e o bramido por todos os lados.
— Reunir o quarto — ordenou Jack. — Com os diabos, o que fazem todos vocês parado aí? Sr. Mowett, serão permitidas lanternas esta noite, na coberta dormitório, depois que as luzes se apagarem. Mestre d’armas, lembre-se disso.
Fez uma pausa para ver se o quarto tinha sido mesmo reunido. Por um momento pensou que não conseguiriam, pois embora estivesse acostumado a ver marujos inquietos, alarmados, agitados, nunca os tinha visto tão apavorados daquele jeito, nem tão completamente perturbados; mas a maioria dos oficiais estava no convés, e a impassível e inteiramente monótona presença do sr. Adams, discutindo zelosamente sobre a estocagem de cerveja engarrafada com Stephen e Martin, ajudava Maitland com sua tarefa. Assim que o último nome foi chamado, Jack voltou para sua câmara, onde ficou caminhando para lá e para cá, ao través, as mãos atrás das costas; e o tempo todo o terrível grito agudo movendo-se em torno do navio.
— Chamem o doutor — disse ele finalmente e, quando Stephen chegou: — Ouvi dizer que o tal Martin perguntou sobre uma Carona de Jonas; eu sei que isso foi comentado entre as pessoas e estive pensando. Isso não pode continuar. Diga-me, já que é do conhecimento geral que o artilheiro-chefe tem cometido monstruosidades, você poderia atestar que ele é louco e que deve ser mantido encarcerado?
— Não poderia. Muitos homens têm feito o que dizem que ele fez, e mesmo assim são reconhecidos como sãos. Não poderia atestar que um homem é louco, baseado em suposições, nem diante da mais veemente suposição, ou mesmo fornecer uma prova legal, sem examinar o que pode estar acontecendo com sua mente, para saber se age racionalmente. Saber, com a mínima luz de compreensão, que pode surgir do falível exame feito por um homem.
— Exame? — Disse Jack. — Está bem. — Tocou a sineta e ordenou: — Chamem o artilheiro-chefe.
Ficaram sentados ali, perdidos em pensamentos, enquanto o grito seguia para vante, o bramido lá fora diminuiu, enquanto os dois conversavam, mas agora aumentou para um guincho ainda mais alto do que antes.
— O que pode ser? — Voltou a perguntar Jack, profundamente perturbado.
— Não sei dizer com certeza — retrucou Stephen, benzendo-se.
— De um modo concebível, seria algo da espécie do peixe-boi, embora inacreditável a esta latitude. Que Deus nos livre do mal.
— Amém — completou Jack, e a porta abriu-se.
Killick, assustado, mal conseguiu falar:
— Se enforcou o artilheiro-chefe — desembuchou, ofegante.
— Vocês o baixaram? — Gritou Jack.
Stephen viu a resposta no olhar obtuso de Killick, empurrou-o para o lado e correu adiante, chamando Bonden e um marujo da faxina do mestre, pelo caminho.
— Mantenham-no levantado até eu cortar a corda — disse ele.
Deitaram-no no seu beliche, e foi ali que Martin o encontrou, com Stephen sentado próximo à sua cabeça.
— Há esperança ou não? — Quis saber Martin, olhando para aquele inexpressivo rosto escuro, em sufusão{140}. — Não houve deslocamento, certo?
— Não há desnível, nem deslocamento —, informou Stephen.
— Então há alguma esperança. Conheci um homem que ficou vinte minutos pendurado pelo pescoço e que mesmo assim foi reanimado com medidas adequadas. Ora, ele ainda está quente. Sentiu alguma pulsação?
— Creio que sim.
— Quando vai sangrá-lo? Não pretendo ensinar-lhe, Maturin, mas ele não deveria ser submetido imediatamente a uma sangria?
— Não creio que neste caso uma sangria resolva — observou Stephen. Após um momento, prosseguiu: — Você já trouxe de volta à vida um suicida determinado? Já viu o desespero em seu rosto ao se dar conta de que fracassou... e que terá de fazer tudo outra vez? A mim me parece algo estranho ter de decidir por outro. Certamente, viver ou morrer é um assunto entre um homem e seu Criador ou Destruidor.
— Não posso dizer que esteja certo —, rebateu Martin, apresentando um ponto de vista contrário.
— Sei que de sua parte você fala com grande autoridade —, admitiu Stephen. Levantou-se e inclinou o ouvido até o peito do artilheiro-chefe, depois abriu-lhe os olhos e examinou-os à luz de uma vela. — Mas em todo caso ele agora está além da minha interferência, que Deus tenha sua alma.
— Infelizmente — disse Martin, sacudindo a cabeça —, não poderei lhe dar um enterro cristão — e, após um momento: — O lamento cessou.
— Cessou há cinco minutos, enquanto você falava — observou Stephen. — Creio que a melhor coisa a fazer é chamar os ajudantes dele, que vão costurá-lo dentro de uma maca e colocar uma bala de canhão a seus pés. Vigiarei o corpo até de manhã, quando poderá ser lançado pela borda, bem cedo, sem que haja mais aflição para os tripulantes. Pois lhe digo uma coisa, Martin, os mais supersticiosos entre eles são capazes de enlouquecer sob esse tipo de pressão, como os negros, quando são alvo de uma praga.
Entretanto a primeira coisa pela manhã, ou melhor, antes disso, foi também a ocasião em que o Surprise enviou homens ao topo do mastro para verificar o que poderia haver na superfície do oceano recém-iluminado. Raras, raras eram as dádivas que este ofertava, mas ainda assim os homens permaneceram no alto, ansiosos, pois antes, mesmo em ocasiões como aquela, a fragata havia descoberto um oponente ou uma presa, bem ali, ao alcance de seus canhões. Trezentas e sessenta e quatro manhãs do ano podiam não mostrar coisa alguma ou apenas um pescador distante, mas sempre havia a possibilidade de um amanhecer excepcional, e aquele era um deles. O grito agudo de "Navio à vista" interrompeu do imediato toda a estrondosa atividade das pedras de esfregar convés e das esteiras de fibras.
— Onde? — gritou o mestre-arrais, que estava de quarto.
— Bem na direção do vento, senhor — informou o vigia. — Apenas as gáveas largadas, e acho que é um navio baleeiro.
Poucos minutos depois, com a luz espalhando-se rapidamente e as últimas estrelas apagando-se no ocidente, Jack foi arrancado de um sono agitado e aflito, pela mudança de rumo do navio em sessenta e quatro graus e pela voz do jovem Boyle, bem alta no seu ouvido, transmitindo;
— O sr. Allen está de serviço, senhor, e uma vela foi avistada a Su-sudoeste, parece que é um baleeiro, nós achamos.
Ao chegar ao convés, ele encontrou uma manhã fresca e luminosa, o Surprise à bolina cerrada com a muras a bombordo e um mestre-arrais um tanto quanto nervoso, que disse;
— Tomei a liberdade de alterar o rumo, senhor, já que pode ser o americano ou uma presa voltando para casa.
— Fez bem, sr. Allen — concordou Jack, focalizando as gáveas da caça que cortavam o claro horizonte. — Fez bem. Não há um momento a perder... será bordejo após bordejo, o máximo que conseguirmos, para compensar tamanho abatimento.
— Outra coisa, senhor — ajuntou o sr. Allen em voz baixa. — Pearce e Upjohn... dois dos lunáticos de Gibraltar, que levaram a maca-mortalha do artilheiro-chefe para o talabardão... não entendem direito dessas coisas e jogaram o sr. Horner borda afora, quando o navio aproou ao vento.
— Talvez tenha sido melhor — concedeu Jack, sacudindo a cabeça. — Talvez tenha... Aí na frente. Força nessa bolina da gávea. Sr. Allen, acredito que ele vai largar os joanetes de proa e do grande.
Com o sol a um palmo acima do horizonte, ele estava de volta ao convés, ali ficando, com um braço preso em volta do brandal da gata a barlavento; o Surprise encerrara os seus ritos matinais, e agora toda a guarnição e seu comandante dedicavam-se à tarefa de fazê-lo navegar mais depressa do que nunca, sem arriscar excessivamente suas vergas, velas e cordame. A caça navegava com meias gáveas, treze ou quatorze milhas distante e, se tivesse continuado com o vento a um largo, a fragata provavelmente a alcançaria por volta da hora do jantar; mas os dois deviam ter passado um pelo outro durante a noite, e ela agora estava diretamente a barlavento. O Surprise, portanto, teria de bordejar contra um mar de proa, na presença de um vento duro e vigoroso e compensar essa distância antes do sol se pôr e a noite sem luar ocultar da vista o baleeiro. Era possível, mas exigiria uma boa dose de habilidade marinheira, um estudo aprofundado das capacidades do navio e um mareio de velas bem particular para carregar com precisão o leme a barlavento.
Isso não foi em vão. O Surprise se utilizava de todas as manobras possíveis a um navio a vela para tomar o vento da caça; os mais hábeis timoneiros estavam em duplas na roda do leme, determinados a não ceder um centímetro de abatimento, sempre de olho em uma área mais suave, para subir o navio mais ao vento, enquanto mãos expectantes executavam os mais leves mareios de vela exigidos por Jack, com a instantânea perfeição da longa prática e do mais vivo entusiasmo. De sua parte, ele sentia-se em perfeito contato com o seu navio: navegar à bolina cochada era algo que tanto ele quanto a fragata conseguiam fazer admiravelmente bem, e enquanto ele permanecia ali, oscilando com o balançar do convés, tinha a percepção das leves guinadas ou quebras no seguimento que esta realizava.
Vestia um velho casaco azul, pois fazia uma fresca manhã, embora estivessem tão próximo da linha dos trópicos, e o borrifo e até mesmo a água compacta que varria a popa, cada vez que o Surprise ombreava um dos mares mais íngremes, eram ainda mais frescos, deixando com um brilhante rosado o seu rosto recém-barbeado.
Do topo do mastro, ele vira que o baleeiro era de fabricação britânica; estava convencido de que era uma presa americana e, sem que houvesse palavras, essa convicção foi transmitida à tripulação; todos os antigos do Surprise sabiam que, se um navio inglês ficasse vinte e quatro horas em poder do inimigo, não seria devolvido aos antigos donos com uma educada vênia e a esperança de uma placa de prata em reconhecimento, mas se tornava um salvamento, a segunda melhor coisa depois de uma presa ou, em alguns casos, até a primeira e mais imediata.
Quando Stephen subiu para o íngreme convés, já bem avançado o dia — ele fora acordado pelo pífaro tocando Nancy Dawson,{141} pois era hora do grogue do meio-dia do pessoal —, teve a impressão de um azul que a tudo impregnava: céu azul com poucas nuvens brancas altas, após todos aqueles dias de nuvens cinzentas baixas; um mar azul-escuro, salpicado de branco; até mesmo um ar azul, nas grandes convexidades sombreadas das velas enfunadas.
— Boa tarde, doutor — bradou Jack, casaco azul e claros olhos azuis reluzentes. — Venha dar uma olhada na nossa caça.
Stephen seguiu lentamente em direção à popa, passado de mão em mão pelos pândegos fuzileiros e todos os marujos, os quais, sem nada de imediato para fazer, estavam enfileirados na amurada de barlavento, a fim de que seu peso tornasse o navio um pouco mais estável, e, enquanto passava, sentiu a total mudança de ânimo; os corações e mentes estavam completamente tomados por perseguição, propósito, ânsia, animação, o passado e até mesmo os acontecimentos do dia anterior deixados para trás, bem para trás, com a esteira que desvanecia.
— Ele está ali — disse Jack com um gesto da cabeça para além do través de bombordo, onde o baleeiro podia ser avistado, seguindo veloz, para sudeste com velas de joanete e com amuras a boreste.
— Mas você está indo quase diretamente para ele — exclamou Stephen. — Que tipo de perseguição é esta, afinal?
— Ora, ele está muito preocupado em manter seu rumo Sul — observou Jack — e vira em roda a cada duas horas mais ou menos. Atualmente, está com amuras a boreste, como vê. Mas virar um navio de bordo leva tempo, e em todo caso não me importo em levantar suspeitas dele; portanto, não vamos virar... Vamos o mais próximo do Sul que pudermos, mas na outra amura. Acredito que ele é tão inocente quanto um bebe por nascer; está achando que somos espanhóis. Colocamos toda aquela sujeira lá em cima para levá-lo a pensar que somos. — Stephen olhou com atenção e, depois de procurar um pouco, viu um pequeno pedaço de fustão, do tamanho de uma razoável bandeja de chá, adejando no cruzamento de dois cabos e alguns pontos de rizes malfeitos. — Mas da próxima vez que virar de borda nós estaremos aparentemente em rumos paralelos, embora na verdade convergindo, já que estamos muito perto e navegando com mais velocidade. Acredito que se tudo continuar bem... se não perdermos pano... em quatro hora de viradas dele e uma ou talvez duas das nossa, teremos a vantagem do barlavento.
— Pretende tomá-lo, suponho.
— Esta é a intenção.
— O que faz você pensar que se trata de uma presa legítima?
— Para começar, um baleeiro de construção britânica e, apesar de seu comandante navegá-lo toleravelmente bem, não o faz como alguém que já a navega por um ano ou mais. Também tem uma tripulação fraca, ao passo que os baleeiros têm tripulações fortes; levam muito tempo para virar de bordo. Observe pela minha luneta a próxima vez que ele fizer uma volta. Tudo leva a crer que se trata uma presa, provavelmente o navio sobre o qual nos falaram os honrados espanhóis do Acapulco.
— E quando pretende ataca-lo?
— Ora — fez Jack —, não vamos desafiar o destino. Eu disse apenas que se tudo sair bem... se não perdermos vela, e o vento aumentar de intensidade, como vê...
—Já está parecendo mais uma tempestade do que uma brisa.
— ...então poderemos, com sorte, falar com ela antes do anoitecer.
Nesse momento o tambor bateu para o rancho da praça d’armas, e eles separaram-se, visto que Jack pretendia permanecer no convés e comer os sanduíches trazidos por Killick. O rancho foi uma refeição apressada, com a maioria dos oficiais, incluindo o tenente americano, engolindo sem mastigar, pois não queriam perder um só momento da perseguição.
Mesmo assim, houve algumas conversas, através das quais ficou aparente que o Surprise não havia içado os sobrejoanetes por volta das três badaladas, quando o baleeiro largou as velas dos joanetes, em parte por temor de perdê-los, porém muito mais para não parecer que estavam em perseguição — que o baleeiro certamente estava com seu casco sujo, rolando terrivelmente para sotavento —, que o pessoal que o manobrava não era adestrado — e que nada deixou Mowett mais feliz, do que recordar os dias que, sabiamente, haviam passado em Juan Fernández, virando o casco do barquinho de querena{142} e limpando o seu fundo de cobre até o máximo onde conseguiam atingir, algo doloroso na ocasião, porém maravilhosamente agradável na recordação.
Logo o intendente, o capelão e o cirurgião foram deixados sozinhos, com o maior pedaço de um comprido chouriço de cor parda, feito com sebo de elefante-marinho e recheado com frutas silvestres de Juan Fernández, e Stephen comentou;
— Tenho visto muitos exemplos da volatilidade dos homens do mar, mas nenhuma igual a esta. Quando se recorda a semana passada, que culminou com os acontecimentos de ontem... não mais distantes do que ontem... quando nos lembramos dos rostos silenciosos, aflitos, e diria mesmo assombrados, a ausência não apenas das risadas habituais, mas inclusive dos gracejos e dos pequenos chistes, e o senso coletivo de uma ruína iminente e inevitável, e quando se compara isso com a intensa alegria de hoje, os olhos animados, os pulinhos para lá e para cá, bem, você fica tentado a se perguntar se não se trata apenas de mera frivolidade infantil...
— Frivolidade, uma ova — murmurou o taifeiro da praça d’armas do outro lado da porta, onde estava, com Killick, terminando o vinho dos oficiais.
— ... ou coisa de maria-vai-com-as-outras. Mas aí você lembra que essas mesmas pessoas circunavegam{143} todo o globo terrestre, por vezes em circunstâncias penosas, e demonstram uma certa estabilidade.
— Ouvi dizer que são tão levianos que a única coisa que os separa da eternidade é apenas uma prancha de trinta centímetros debaixo deles — comentou Martin.
— Trinta centímetros? — Exclamou o intendente, gargalhando vigorosamente. — Ora, se fossem necessários vinte centímetros debaixo de um leviano, quanto seria preciso numa velha fragata de construção leve? Um balão de gás, sem dúvida. Meu Deus... Puxa vida, há partes no fundo do Surprise onde se consegue enfiar facilmente um canivete. Trinta centímetros! Meu Deus, ha, ha, ha!
— Senhor, senhor — gritou Calamy, ao entrar correndo e parar ao lado da cadeira de Stephen —, o baleeiro colheu as velas de joanete... Vamos virar por d’avante a qualquer minuto e vamos alcançá-la perto do final do quarto, com certeza absoluta. Por favor, senhor — com um olhar carinhoso —, posso pegar uma fatia de chouriço? Uma caçada é um trabalho que dá uma fome danada.
Como era esperado, o Surprise alcançou-o bem antes do fim do quarto. O baleeiro, o desventurado Acapulco, totalmente iludido pela bandeira espanhola que Jack içara quando estavam separados por menos de duas milhas, aquartelou o velacho e atravessou. Enquanto os marujos prisioneiros americanos permaneciam em silenciosa agonia, o Surprise assumiu uma posição de ataque pelo través da proa do Acapulco, numa rápida ação disparou uma descarga com os seus canhões, substituiu a bandeira falsa pela verdadeira e exigiu a rendição.
Não havia a menor possibilidade de resistência, e o comandante do baleeiro apareceu, sem maiores objeções, um consternado jovem de óculos. Chamava-se Caleb Gill, e era sobrinho do comandante do Norfolk, que havia capturado tantos baleeiros que, apesar de ter incendiado várias, havia recrutado oficiais para levar as outras.
Os homens do Surprise foram muito gentis com o sr. Gill, como teriam de ser, já que ele não lhes causara qualquer tipo de dano, e também porque, como era de natureza crédula, entregara-lhes, sem maiores problemas, uma presa carregada com óleo puro e espermacete, a maior parte proveniente dos outros navios e cujo valor o sr. Allen calculou em cem mil dólares.
— Isso é muito bom, com toda a certeza — alegrou-se Jack Aubrey, sorrindo diante o relatório dele —, e sabe Deus que não sou de deixar fora cem mil dólares, e a cavalo dado não se olham os dentes. Mas, de certo modo, o carpinteiro e o mestre do navio terão uma notícia ainda melhor... o Acapulco está recheado, recheado de vergas, cordame e pano de vela, o suficiente para um cruzeiro de três anos. Como só esteve fora seis meses, não usou quase nada do material.
A praça d’armas foi gentil com o sr. Gill, e os demais do Surprise foram gentis com sua tripulação, que incluía alguns homens do Acapulco, os quais, aflitos para evitar a acusação de alistamento no estrangeiro ou de ajudar os inimigos do rei, contaram tudo o que sabiam sobre os movimentos do Norfolk, passados e futuros. Mas foi Caleb Gill quem deu a informação que aliviou a mente de Jack da mais atormentadora ansiedade.
Gill era um homem de leitura, um parente mais próximo de Stephen e Martin do que da maioria dos outros marujos. Seus interesses, contudo, tinham mais a ver com homens, homens primitivos, e menos com botânica ou os animais irracionais daqueles dois. Era fascinado pela ideia do bom selvagem, já havia feito uma viagem para manter contato com os nativos americanos e aprendera tudo o que podia sobre sua ordem social na paz e na guerra, suas leis, costumes e história.
Certa tarde, enquanto o Surprise ainda despia o Acapulco de tudo que podia ser amontoado entre conveses, e o sr. Lawrence jantava com Jack, os três demoravam-se na praça d’armas, diante de uma garrafa de Madeira.
— Fiquei, é claro, extremamente mortificado por ter sido feito prisioneiro — comentou Gill —, mas, de um modo pessoal e particular, talvez tenha ficado mais profundamente mortificado por receber a ordem de assumir o comando do desventurado Acapulco, visto que, desde o início da viagem, meu coração estava inclinado a observar as Marquesas: os seus pés de upas, senhor, o seu bicho preguiça, o dodó e o solitário eram mais improváveis para o senhor do que as Marquesas para mim, particularmente a ilha Huahiva, que o meu tio sempre descreveu como um paraíso.
— Um paraíso, realmente? — Perguntou Stephen, lembrando-se de uma carta encontrada num pacote do Danaë, que usava exatamente essa frase.
— Sim, senhor. Talvez não exatamente um ortodoxo paraíso presbiteriano, mas tão agradável, que meu tio pretende instalar ali uma colônia. Aliás, leva até mesmo alguns colonos consigo. Tenho ouvido opiniões divergentes e geralmente confusas sobre a organização social dos ilhéus, mas todos concordam que ela dá muita atenção a várias proibições ou tabus e aos laços de parentesco; e todos concordam que as pessoas são notavelmente amáveis e bonitas, e seus únicos defeitos são o canibalismo e a fornicação ilimitada. Mas nenhuma dessas coisas é baseada num sistema religioso, ah, não: as oferendas divinas são invariavelmente suínas, o canibalismo é uma simples questão de gosto ou tendência e a fornicação não tem nada de cerimonial ou compulsório.
— Seu tio pretende reformar os ilhéus? — Quis saber Stephen.
— Ah, não, de modo algum — respondeu Gill. — Ele acha que não poderiam ser melhorados. É para ser uma colônia bastante utópica... Liberty Hall, em maior escala... Mesmo assim, desejo ver o modo de vida das pessoas antes de ser modificado de alguma forma. E já que não posso vê-la como um homem livre, bem, espero poder vê-la como um prisioneiro. O comandante Aubrey pretende navegar até as Marquesas, não? Bem, talvez essa minha pergunta seja indiscreta.
— De modo algum — retrucou Stephen. — Não estou inteirado totalmente das intenções dele, mas perguntarei; e confio em que pisaremos, nós três, nas praias de Huahiva antes dos ilhéus terem sido corrompidos.
— Também espero. Oh, como espero — exclamou Gill, batendo as mãos em ansiosa expectativa.
Entretanto, após o comandante Aubrey ter digerido sua informação, e o seu navio ter apanhado toda a carga que conseguia conter, chamou o mestre-arrais e falou;
— Sr. Allen, ainda há pouco observou que Butterworth e Kyle, os proprietários do Acapulco, tem agentes em Valparaíso.
— Sim, senhor, e acho que também em Pisco. A maioria das firmas envolvidas na pesca do mar do Sul tem agentes no Chile ou no Peru.
— Alegro-me em ouvir, porque acredito que eles possam resolver uma de nossas dificuldades. Não posso abrir mão de oficiais e marujos para levarem o Acapulco para casa, mas não me disponho a decepcionar o pessoal em relação ao seu dinheiro. Portanto, penso em mandar o baleeiro para Valparaíso, entregá-la aos agentes com a promessa de salvamento; ao mesmo tempo, poderei colocar em liberdade condicional os nossos prisioneiros americanos. São criaturas decentes, mas os considero um estorvo infernal, e a perspectiva de abrigá-los e alimentá-los indefinidamente pesa sobre mim. Pesa também sobre o sr. Adams. Logo, isso seria matar dois coelhos... — Fez uma pausa, meditou sobre "com uma cajadada" e prosseguiu: — Bem, não importa... isso seria um modo próprio de um homem do mar lidar com a situação em vez de colocá-los para andar na prancha.
— Verdade, senhor.
— Mas a questão, sr. Allen, é que o oficial que levar a baleeira precisa correr o risco de ser deixado para trás. Não tenho intenção de ficar detido por ventos contrários naquela baía; não tenho intenção de trocar intermináveis trivialidades com capitães dos portos, generais, governadores, e mesmo bispos, que Deus me perdoe. Tudo isso pode ser evitado com um oficial subordinado sob o pretexto de ordens urgentes. Portanto, vou escoltar o Acapulco até certo ponto, com terra a vista, e ficar ao largo um dia e uma noite. O oficial terá de levá-lo com os prisioneiros apenas e, digamos, a tripulação de um cúter fazer a negociação do modo mais rápido e voltar imediatamente para o mar, juntando-se ao navio com o cúter, sem a mínima perda de tempo. Pelo que entendi, é provável que o Norfolk até o fim do mês siga para a área de pesca de baleias das Galápagos, e talvez o encontremos ali se nos apressarmos. De todo modo, creio que essa questão com a presa e os prisioneiros vale a perda de vinte e quatro horas. Vinte e quatro horas, e nem um minuto a mais; o oficial terá de voltar a tempo. De acordo com o seu conhecimento local, sr. Allen, acha o plano exequível?
— Sim, senhor, acho. E, apesar de não gostar de me favorecer, permita-me mencionar que conheço Valparaíso, falo a língua toleravelmente bem e, nesses vinte anos, tenho me relacionado com o sr. Metcalfe, o agente.
— Muito bem, sr. Allen, façamos desse modo. Escolha seus homens e assuma imediatamente o comando da presa. Para não chegarmos às Galápagos depois do fim da feira, não há um momento a perder. Killick! Killick, transmita os meus cumprimentos aos americanos e diga que quero vê-los imediatamente.
CAPÍTULO SETE
Num dia sufocante e sob um céu baixo e agitado, o Surprise seguiu sua rota pelo canal entre Albemarle (Isabella) e Narborough (Fernandina), as ilhas mais ocidentais das Galápagos; encontrava excepcional dificuldade, porque, ainda que a presente brisa inconstante fosse favorável, ele tinha de lutar contra uma forte maré que, surpreendentemente, vinha do Norte — surpreendentemente, pois, como observou o sr. Allen, uma corrente ainda mais forte, além da Roca Redonda e na extremidade do estreito, corria na direção oposta, a quatro e até mesmo cinco milhas por hora, enquanto a maré entre Albemarle e James Island (San Salvador), apenas um pouco mais a Leste;, estava totalmente em harmonia com ela.
Em seu movimento para lá e para cá por entre as Galápagos, o Surprise acostumara-se a correntes muito fortes e irracionais e a um clima irracional... — neblina abaixo do equador, convenhamos... pinguim piando na neblina na própria linha! —, mas essa corrente em particular revelava toda a tendência em tornar-se uma extremamente perigosa corredeira de maré, e, como o canal infestado de rochedos era um daqueles que o mestre-arrais não conhecia, Jack teve de assumir pessoalmente a condução do navio.
Era o tipo de navegação de que ele não gostava de modo algum, mas se tratava da última chance de encontrar o Norfolk no arquipélago: ele devia estar atravessado em qualquer uma das três ou quatro baías abrigadas adiante, abastecendo-se de tartarugas (as de Narborough, pesando entre cem e cento e cinquenta quilos, eram particularmente boas de comer) e do máximo de água e de madeira de que o local pudesse dispor, e o Surprise poderia aproximar-se sem ser notado.
O canal, portanto, precisava ser navegado, apesar de ser realmente uma travessia complicada, com um vento incerto enfraquecendo e uma corrente se fortalecendo, pouco espaço de manobra para o navio, uma costa rochosa de ambos os lados e —, o máximo da injustiça —, algo muito parecido com duas costas a sotavento, já que o vento no costado da fragata a impulsionava em direção aos rochedos de Narborough, enquanto a maré e a corrente transversais tendiam a arremessá-lo contra os de Albemarle, e certamente o fariam se o vento confirmasse sua ameaça de rondar.
A atmosfera no convés era de tensão, com toda a guarnição em seus postos, uma embarcação de cada bordo carregando uma ancoreta com um cabo grosso como amarra, e um homem continuamente na mesa da enxarcia lançando o prumo de mão e continuamente entoando "Sem sondagem com esta linha, nada de sondagem, nada, nada".
O canal estreitava-se constantemente, e a Jack parecia que, quase com certeza, teria de fundear até a subida da maré, ainda que isso significasse largar o ferro de serviço a uma profundidade de cem braços.
— Lancem o prumo grande —, disse ele.
De fato, algumas vezes as margens estiveram a menos da distância de um tiro de mosquete e agora estavam muito mais perto, aumentando a força da corrente, Toda a guarnição olhava intrigada — uma arrebentação perversa martelava rochedos negros de ambos os lados e, dos dois lados, uma vasta extensão fendida de uma exposta lava preta fosca elevava-se a uma altura indistinta coberta de neblina, a lava esparramada com grandes amontoados de escória vulcânica, a maioria preta, mas por vezes de um vermelho doentio, como os resíduos de uma imensa fundição; aqui e ali, uma cratera — uma paisagem desumana.
Mas, na verdade, nem toda a guarnição: o cirurgião e o capelão, ambos ignorantes das implicações da corredeira de maré, profundezas insondáveis, brisa incerta e carência de espaço para manobra, ou antes pairando acima dessas coisas, estavam instalados na amurada a sota-vento, focando suas lunetas com ansiedade e, até mesmo, as mãos trêmulas. Mais cedo haviam feito uma tentativa de observar ambas as margens, para não perder nada, gritando suas descobertas um para o outro através do convés, mas o oficial do quarto colocara um fim nessa extravagante irregularidade no momento em que Jack apareceu, já que o barlavento era o lado sagrado do comandante; e agora eram obrigados a contentar-se apenas com Narborough. Mesmo assim, segundo admitiram, havia o suficiente para ocupar uma vintena de naturalistas.
Logo descobriram que a miserável esterilidade das encostas abaixo era mais aparente do que verdadeira; vários arbustos mirrados desprovidos de folhas, quase certamente aparentados das euforbiáceas, salientavam-se entre os montes naturais de escória, ao passo que figueiras da Índia de excepcional altura, juntamente com altos cactos colunares, eram quase comuns três encostas acima; no entanto, por mais interessante, sem dúvida, que fosse a terra, o mar ainda era muito mais.
À medida que o canal se estreitava, a vida também parecia tornar-se mais concentrada: ambas as margens — e não apenas as pequenas praias de areia negra e seixos, mas inclusive as inacessíveis bordas dos rochedos — estavam apinhadas de focas, lobos-marinhos, leões-marinhos e ursos brancos, deitados de bruços, de costas, de lado, dormindo, ou fazendo amor ou simplesmente gritando, enquanto outros brincavam na arrebentação ou nadavam ao lado do navio, esticando os pescoços e olhando com intensa curiosidade. E onde as focas deixavam algum espaço, os rochedos mais altos estavam cobertos com iguanas-marinhos pretos, cristados, e com um bom metro de comprimento de comprimento. Pinguins e cormorões{144} que não podiam voar dividiam a água, nadando com grande velocidade um pouco abaixo da superfície, costurando os cardumes de peixes prateados semelhantes à sardinha; e, na esteira do Surprise, um bando de cachalotes fêmeas com seus filhotes vinha esguichando pela superfície.
Sobre o convés voavam quantidades de aves marinhas, o que era bastante natural; menos natural, porém, era o número reunido no cordame, nas trincheiras de macas e no suporte do sino, enlouquecendo os marujos, que precisavam limpar a copiosa sujeira delas — sujeira que rapidamente corroía o metal dos canhões.
Vários arremedos de golpes com o lambaz receberam as aves maiores, quando o doutor não estava olhando, mas embalde: elas continuavam obstinadamente mansas, instalando-se nas bordas das embarcações miúdas ao lado, e até mesmo em seus remos.
A maioria eram mergulhões, mergulhões-mascarados, mergulhões-pardos, mergulhões-malhados, mas, acima de tudo, mergulhões brancos-grandes, aves estúpidas, com um olhar indolente e inexpressivo.
Outrora, no distante Atlântico, tinham sido a maior raridade do mundo, mas agora, posto que a proximidade de sua época de acasalamento lhes tivesse dado mais inteligência e tornado as membranas natatórias dos pés um uniforme e adorável turquesa, não eram nada em comparação com as aves de terra — pequenos tentilhões tisnados ou frangos d’água — que passavam por eles. As aves terrestres eram, pelo que podiam verificar de longe, de espécies desconhecidas do mundo instruído.
Entretanto, a despeito de o mergulhão ser tão comum, um casal atraiu a atenção de Stephen. Estava empoleirado nas costas de uma tartaruga adormecida, um par amoroso com pés brilhantes, e tão grandes eram sua necessidade e urgência (o dia estava incomumente cálido e propício para mergulhões) que executaram o ritual de namoro com uma pressa extraordinária, e não havia dúvida de que o mergulhão macho teria conseguido seu objetivo se a tartaruga não tivesse mergulhado antes do tempo, deixando-o visivelmente desconcertado.
O mestre-arrais parou atrás dos dois, apontou para a ilha de Narborough e disse:
— Eis Sodoma e Gomorra, cavalheiros, segundo creio. Mas não é tão ruim mais acima da encosta. Se as nuvens se dissipassem, veriam algum verde lá em cima, arbustos e árvores, todos cobertos com uma espécie de barba de velho.
— Ah, estamos bastante confiantes — exclamou Martin, virando um rosto contente em sua direção. — Esta é a primeira vez que nos encontramos perto o bastante para ver a terra com toda a nitidez... para ver a planície dos iguanas.
— Eu, particularmente, admiro os cactos altos e eretos —, declarou Stephen.
— Nós os chamamos de cardos-santos — informou o mestre-arrais —, e têm uma espécie de sumo, quando são cortados, que pode ser ingerido, mas dá dor de barriga e diarreia.
E o navio navegava, A negra e escamosa margem passava lentamente: e, em meio aos gritos de ordens usando termos náuticos, o tamborilar de pés descalços, o rangido de vergas e a habitual música do vento no cordame, parte da mente de Stephen vagueou. Um passarinho empoleirado na sua luneta ergueu a cabeça, lançou-lhe um olhar inquisitivo e alisou um pouco as penas pretas com o bico antes de voar para a ilha, onde sumiu, em contraste com a lava.
— Esse era certamente um indefinível — disse ele, e prosseguiu: — Estive ponderando sobre as cerimônias de acasalamento de nossa própria espécie. Às vezes são quase tão breves quanto as dos mergulhões, como quando dois de inclinações semelhantes trocam olhares e, depois de uma breve parlamentação, somem de vista. Estive pensando no relato de Heródoto sobre os guerreiros gregos e as amazonas, durante a pausa após a trégua para o jantar, quando indivíduos de ambos os exércitos perambulavam por entre os arbustos, e em alguns dos exemplos mais recentes que mereceram a minha observação. Em outras épocas, contudo, a evolução da dança cerimonial, com seus fingidos avanços e recuos, suas oferendas rituais e simbólicos, era protelada além das medidas, durando talvez anos, antes do justo e verdadeiro objetivo ser alcançado; se é que era alcançado realmente e não danificado inteiramente por causa da longa demora. Há infindáveis variações, de acordo com a época, país e classe social, e descobrir traços comuns existentes entre elas é uma atividade fascinante.
— Sim, realmente — concordou Martin —, e sem dúvida é de suma importância para a raça; imagino se algum autor não tornou isso o seu estudo particular. Quer dizer, a cerimônia, não o ato em si, que é desagradável, brutal e curto. — Refletiu por um instante, depois sorriu e continuou: — Entretanto, um navio de guerra não é um lugar apropriado para as suas pesquisas. Ou seja...
O sorriso sumiu e a voz desfaleceu, ao recordar a sexta-feira passada, quando, de acordo com o costume do mar, os objetos de Horner foram postos a leilão diante do mastro, e no meio dos quais foram vistos alguns lastimáveis xales e anáguas: um leilão no qual ninguém achou adequado dar um lance, nem mesmo Wilkins, agora o artilheiro-chefe interino da fragata.
— Olhe só, doutor — disse Howard, passando por ele com um chapéu contendo vários passarinhos mortos — não fui um bom menino? Nenhum é igual ao outro.
Diante do peso da opinião pública, Howard desistira de atirar nas coisas e, além de fisgar peixes e arpoar tartarugas e golfinhos, que davam excelentes salsichas quando misturados com a carne de porco salgada do navio, seu esporte agora consistia em matar aves que pousavam no cordame. Mergulhões, corujas, fragatas, pelicanos e falcões, ele os estrangulava; os pássaros menores, matava-os com uma varada. Stephen aceitou-os, porque não gostava de matar pessoalmente os espécimes, mas, com toda a energia de que dispunha, insistiu em que o fuzileiro fosse mais moderado, não matasse mais do que poucos da mesma espécie e evitasse que o seu pessoal causasse qualquer dano às aves.
— É muito atencioso, sr. Howard —, disse Stephen. — E sou particularmente agradecido por esta carriça de papo amarelo, uma ave que eu nunca...
— Oh, oh —, fez Martin. — Estou vendo uma tartaruga gigante! Vejo duas tartarugas gigantes. Céus, que tartarugas!
— Onde? Onde?
— Perto da figueira-da-Índia.
A alta figueira-da-Índia tinha um tronco parecido com o de uma árvore: uma tartaruga, esticando-se na ponta dos pés, havia agarrado um galho e o puxava com toda a força de seu pescoço retrátil e do imenso corpo abobadado; a outra também o tinha agarrado e também o puxava, só que numa direção diferente. Martin interpretou aquilo como um exemplo de ajuda mútua ligeiramente equivocada; Stephen, como um exemplo de interesse próprio; mas, antes que um acordo pudesse ser estabelecido, o galho, ou melhor, a série de palmas rompeu-se em duas, e cada réptil foi embora com o seu pedaço.
— Como anseio pisar em pelo menos uma destas ilhas — disse Martin. — Quantas descobertas a serem feitas em cada região! Se a ordem reptiliana é capaz de alcançar tal extremo esplendor, o que poderemos esperar dos coleópteros? Das borboletas, dos fanerógamos? Mas estou atormentado pela ideia de que o navio seguirá navegando, navegando, eternamente, sem parar.
Nesse momento a cabra Aspásia correu para Stephen em busca de proteção. Desde quando o navio atingira a costa de Albemarle, pequenos tentilhões cinza-escuros de bico preto a vinham perseguindo, pousando em suas costas e arrancando pelo para os seus ninhos. Ela enfrentara os elementos, trovões, relâmpagos, duas batalhas navais, quatro entre dois navios; enfrentara aspirantes, grumetes e uma grande variedade de cães. Aquilo, porém, ela não conseguia suportar, e toda vez que ouvia a bordo o leve trinado deles corria para Stephen.
— Ora, ora — disse ele. — Uma cabra grande como você, mas que vergonha. — Afugentou os tentilhões e continuou falando para Martin: — Pode ficar tranquilo. O comandante Aubrey prometeu que, assim que terminar sua procura pelo Norfolk, o navio ficará atravessado, ou coisa semelhante, e teremos licença de ir a terra.
— Como você alivia a minha mente, eu não poderia aguentar... Olhe, olhe, outra tartaruga... uma Golias, e mais próximo ainda, descendo a encosta. Caminha pesadamente!
Focaram as lunetas na tartaruga gigante, que parou e ficou plenamente à vista, e tão virada para a luz que eles até conseguiram contar os desenhos do casco e compará-los com os das Testudo aubreii do oceano Índico, que Maturin descobrira, descrevera e batizara, dando a Jack sua única possibilidade de imortalidade terrena, de casco mais fino e mais leve, embora uma ainda respeitável tartaruga Rodriguez{145}. Reflexões sobre as tartarugas insulares; sua origem — tartarugas em geral, quanto à emissão de sons — voz raramente ouvida — capacidade para produzir gritos dissonantes, como também silvos, o mais habitual — todas ovíparas, indiferentes aos filhotes — os crocodilos são mais diligentes como pais— mas tartarugas, em geral, são mais simpáticas — perfeitamente capazes de afeto — exemplos de afeição de tartarugas.
— O que significa essa gritaria toda? — Indagou Stephen, sem tirar os olhos da luneta: uma tropa inteira de tartarugas entrara no seu campo de visão, todas caminhando calmamente colina acima por uma trilha visivelmente marcada.
— Creio que avistaram algum tipo de barco... houve menção a um barco — explicou Martin. — Acha que há sapos nesta ilha? Há poucos répteis que prefiro ao sapo, e o sapo tem uma tal dimensão heroica.
— Se há tartaruga, por que não sapo? Mas agora me recordo de uma coisa: não encontrei batráquios de qualquer espécie na Rodrigues; e não consegui fazer com que um nativo inteligente entendesse o que eu queria dizer por rã, embora tivesse imitado seus movimentos de uma forma bem evidente e o seu coaxar.
— Com licença, senhor, com licença — vociferou o capitão da guarda de ré, abrindo caminho entre eles, a cotoveladas e sem a menor cerimônia, enquanto os apitos assobiavam "a seus lugares para virar por d’avante", e os marujos corriam para seus lugares.
— Ei, Beckett, o que está havendo? — Indagou Stephen.
Antes, porém, que Beckett pudesse responder, o Surprise iniciou sua suave curva: o familiar grito de "Leme de ló" foi seguido por "Folgar amuras e escotas" e, depois, por "Alar os braços do grande". O navio virou tranquilamente de bordo, apesar da sobrecarga dos cúteres, e nesse instante, olhando adiante, Stephen viu uma embarcação distante, um barco baleeiro, seguindo na direção deles, com toda a velocidade que conseguia contra a corrente.
O Surprise seguiu com amuras a bombordo, e, embora a maré estivesse na estofa — a pausa entre o fim da enchente e o começo da vazante—, em um quarto de hora ele perderia a distância que levara três para conseguir. A cada minuto o barco ficava mais visível, um barco baleeiro com seis homens a bordo; mas a ansiedade deles era tão grande que, mesmo já estando a cem metros e a distância diminuindo a cada sopro de vento, ainda remavam com toda a força que conseguiam; ainda gritavam "Ó do navio" o mais alto que conseguiam berrar.
Suas vozes quase tinham sumido inteiramente quando embarcaram sorridentes pela borda, transbordando de felicidade; mas, num rouco sussurro, entremeado com uma risada gutural, e lubrificado por dois baldes de água potável que beberam, o porta-voz deles, o arpoador-chefe, parado ali no convés, logo esclareceu toda a sua história.
Pertenciam à Intrepid Fox de Londres, comandada por James Holland; tinham partido havia mais de dois anos, e, embora não tivessem sido bem-sucedidos até chegarem às Galápagos, tudo então indicava que voltariam para casa com o porão cheio, pois ali encontraram baleias em abundância. Mataram três no primeiro dia, e os botes saíram atrás de mais três, quando baixou a neblina; iam rápidos atrás de um jovem e vigoroso macho de quarenta barris de óleo, que os levou numa roda-viva ao Norte de Roca Redonda, longe de seus companheiros, que não conseguiam vê-los nem tampouco dar-lhes mais arpoeiras. No final das contas, ele acabou levando arpoeiras e arpões e tudo o mais, deixando-os, durante uma noite e um dia cruéis, remando contravento e corrente, sem uma gota para beber, não mesmo, nem uma migalha para comer.
E, quando chegaram de volta, o que viram? Bem, viram o pobre e velho Fox sendo feito totalmente em pedaços por uma fragata americana, que não só tinha tomado o seu novo mastaréu do velacho, como também estava transferindo todo o óleo e espermacete que haviam conseguido — o porão de vante e talvez metade do principal cheios, não mais do que isso — para outro baleeiro, o Amélia, também de Londres. Felizmente era noitinha, e eles estavam a caminho de terra, descendo pela costa, e não foram vistos; o arpoeiro-chefe tinha estado antes naquelas águas — conhecia a ilha — e conseguiram remar para o interior de um estreito canal, esconder o bote debaixo de madeira flutuante e subir para o velho abrigo dos bucaneiros. Havia um pouco de água lá em cima, apesar de salobra e evaporando rapidamente: havia tartarugas e iguanas terrestres, e os mergulhões tinham começado a botar ovos; portanto, no frigir dos ovos, conseguiram se sair muito bem apesar de empoleirados.
Logo viram o Amélia partir, saudado pela fragata americana; já com a bandeira americana e seguia um pouco a Leste quarta a sudeste. Então, no dia seguinte, os americanos levaram umas duzentas tartarugas para a praia, transportaram de bote a ré o navio, tocaram fogo na Fox, tomaram seu ferro, deixaram o canal e seguiram para Oeste. O pessoal desceu disparado para tentar apagar o fogo, mas não adiantou; meia dúzia de barris de óleo de baleia tinham se rompido, o óleo escorreu por todo o convés, e o fogo era tão alto, que não havia como se aproximar. O comandante tentou poupar parte do casco enegrecido, seguindo pelo estreito; a Fox ficou fazendo água no porão, em um recife ao Norte da baía de Banks, logo depois do ancoradouro.
— Depois que o americano deixou o canal, seguiu para Oeste? — Perguntou Jack.
— Bem, senhor — respondeu o arpoeiro-chefe —, talvez uma quadra Sul a Oeste. Moses Thomas e eu subimos novamente até o abrigo e vimos o navio no horizonte, claramente, indo um pouco ao Sul uma quarta a sudeste, com joanetes de proa e do grande.
— Para as Marquesas, arpoeiro-chefe?
— Exatamente, companheiro. Há uma meia dúzia dos nossos por lá e alguns ianques também, agora que as Sanduíches não são mais o que eram e a Nova Zelândia é uma decepção, com o povo massacrando você assim que pisa na praia.
— Bom, muito bom. Sr. Mowett, esses homens vão constar dos livros do navio. São ótimos marinheiros, tenho certeza, para serem classificados como de primeira. O sr. Adams fornecerá macas, roupas de cama, roupas para vestir; e serão dispensados do trabalho durante dois dias, para se recuperar. Sr. Allen, vamos deixar o estreito com a mudança da maré e traçar uma derrota para as Marquesas.
— Nada de tartarugas, senhor? — Indagou Mowett.
— Nada de tartarugas. Temos sido bastante econômicos com as provisões do navio e poderemos passar sem a iguaria das tartarugas. Não, não, ele está dezoito dias à nossa frente e não há tempo a perder com tartarugas, caviar ou creme no nosso chá. — Dito isso, foi para baixo, aparentando total felicidade.
Poucos minutos depois Stephen entrou correndo na câmara.
— Quando vamos parar? — Gritou. — Você prometeu que íamos parar.
— As promessas estão sujeitas às exigências do serviço, ouça, Stephen, aqui temos a minha maré, a minha corrente e o meu vento, tudo combinado... Meu inimigo tem uma excelente dianteira, e, portanto, não há um minuto a perder... Não posso, em sã consciência, atrasar-me por causa de um iguana ou um besouro... São interessantes, sem dúvida mas têm alguma aplicação imediata numa guerra? Sinceramente, têm?
— Banks foi levado a Otaheite para observar o trânsito de Vênus, algo que não tinha nenhuma aplicação imediata.
— Está esquecendo o que Banks pagou pelo Endeavour e que na ocasião não estávamos envolvidos em uma guerra. O Endeavour não perseguia coisa alguma, a não ser o conhecimento.
Stephen não sabia disso. Ficou ainda mais irritado, mas se conteve e falou:
— Pelo que soube, pretende contornar a extremidade desta comprida ilha à esquerda e iniciar a sua viagem... fazer a sua viagem... a partir do outro lado. — Jack assentiu descompromissadamente. — Pois bem, se Martin e eu a atravessarmos a pé, chegaremos ao outro lado bem antes do navio. A relação entre largura e comprimento é de uma para dez, isso mesmo; e um bote poderia nos deixar em terra, sem qualquer problema, e nos apanhar. Faremos uma caminhada rápida, parando apenas para medições importantes e, com quase toda a certeza, fazer valiosas descobertas sobre nascentes de água potável, minérios de ferro, vegetais antiescorbuto, coisas assim...
— Stephen — alegou Jack —, se o vento e a maré estivessem contra nós, eu diria que sim, mas não estão. Sou obrigado a dizer não. Levá-los para terra através da arrebentação seria difícil; recolhê-los do lado Oeste talvez fosse impossível; e a "caminhada rápida" de dois estupefatos filósofos naturalistas através de uma remota ilha oceânica repleta de plantas e animais desconhecidos da ciência talvez durasse até a fragata afundar no ancoradouro ou encalhar seu esqueleto —, ele já vira Maturin em terra, com nada além de um bicho de conta da ilha da Madeira para fazê-lo perder a noção do tempo.
Mas lamentou a decepção do amigo, muito mais intensa do que havia esperado em razão daquela estéril aparência das ilhas; lamentou ainda mais ao ver uma maré de ira aumentar no rosto normalmente impassível de Stephen e ouvir o áspero tom de voz com o qual ele se expressou:
— Está bem, senhor, constato que devo submeter-me a uma força superior. Devo contentar-me em fazer parte de uma expedição meramente beligerante, que passa correndo por pérolas inestimáveis, dedicando-se apenas à destruição, negligenciando qualquer descoberta... incapaz de gastar cinco minutos em descobertas. Nada direi sobre a corrupção do poder ou seu abuso, apenas observarei que, de minha pane, entendo uma promessa como um compromisso e até o presente devo confessar que nunca me havia ocorrido que o senhor não pudesse ser da mesma opinião... que o senhor talvez tivesse duas palavras.
— Minha promessa foi necessariamente condicional — rebateu Jack. — Comando um navio do rei, não um iate particular. Está esquecendo isso. — Então, um pouco mais afável, e com um sorriso: — Mas vou lhe dizer uma coisa, Stephen: me manterei o mais próximo possível da margem, e poderá observar os animais com a minha melhor luneta acromática. —Alcançou um esplêndido Dollond de cinco lentes, um instrumento que Stephen jamais tivera permissão para usar por causa de sua tendência a deixar instrumentos caírem no mar.
— Pode pegar a sua luneta acromática e... — começou Stephen, mas conteve-te, e, após uma ligeira pausa, prosseguiu: — O senhor é muito bondoso, mas tenho o meu. Não o incomodarei mais.
Ele estava extremamente irritado. Sua solução — um pequeno lado de um triângulo oposto a dois de grandes dimensões — parecia-lhe incontestavelmente lógica; e ficou mais irritado ainda quando todos a bordo — e não apenas velhos amigos como Bonden, Killick e o privilegiado Joe Plaice (que praticamente devia a vida ao homem que abrira o seu crânio e vivia em permanente hostilidade com Rogers, que tivera apenas um braço amputado), mas ainda Padeen, gente nova do Defender e até as crianças do alojamento dos aspirantes — o cercaram de uma excepcional afabilidade e particular atenção. Sempre se orgulhara de manter o volto sciolto, pensieri stretti{146} mais do que a maioria dos homens, e ali estavam marujos iletrados consolando-o de uma aflição que, seria capaz de jurar, estava perfeitamente dissimulada.
Com aborrecida satisfação, verificou que, apesar da mudança da maré, o Surprise fez uma travessia muito lenta do seu percurso, pois a brisa soprou duas vezes ao contrário; passaram vagarosamente por duas praias, onde um bote poderia tê-los desembarcado e embarcado, a primeira em uma angra além do recife onde estava a carcaça enegrecida do baleeiro; e ficou evidente que ele e Martin poderiam ter atravessado a ilha até de gatinhas que ainda chegariam a tempo.
— Na metade do tempo —, murmurou, socando a amurada, no extremo da frustração.
Observou as indistintas Galápagos, cobertas de nuvens, desaparecerem à ré, recolheu-se mais cedo, encerrando suas preces habituais com a mente menos rancorosa, e ficou deitado ali, no seu beliche, com o De Consolatione Philosophiae, de Boécio, e sessenta gramas de láudano.
Não obstante, ainda continuava extraordinariamente mal-humorado às duas da madrugada, quando Padeen o despertou e muito lentamente e com grande dificuldade disse-lhe em irlandês e inglês, que o sr. Blakeney tinha engolido uma metralha de dois quilos.
— Isso é materialmente impossível —alegou Stephen. — Esse quadrúpede malvado está mentindo... exibindo-se... quer se passar por um prodígio... tornar-se interessante. Vai ver só a dose que vou lhe dar... O sofrimento de Munster{147} não significará nada para ele.
Encontrou, porém, o pobre quadrúpede pálido, amedrontado, culpado e colocado sentado perto de uma lanterna no tombadilho, e quando soube que a metralha em questão era apenas uma das nove que compunham a carga do projétil de dois quilos imediatamente mandou que ele fosse levantado pelos calcanhares, acionou a bomba estomacal e forçou para dentro do seu corpo uma enorme quantidade de água salgada tépida, temperada com rum, refletindo com prazer, ao ouvir em meio ao vômito agonizante o retinir da bola na bacia, que havia curado o paciente não apenas de uma provável obstrução mortal mas também de qualquer paladar para bebidas alcoólicas por algum tempo no futuro.
Mesmo assim, apesar desse triunfo físico e moral, o dia seguinte ainda o encontrou completamente sem humor e, quando Adams observou que o comandante seria o convidado de honra do rancho da praça d’armas — que esse rancho também seria de uma notável excelência, exatamente como um banquete de Lorde Mayor —, ele comentou:
— Oh, não diga — mas isso num tom que não revelava prazer algum. "Sei o que aquele sujeito faz em terra", disse a si mesmo, olhando de soslaio para Jack, do talabardão a sotavento, enquanto o Surprise deslizava suavemente pelo vasto mar do Sul, agora de um puro azul de um lado a outro inimaginavelmente distante.
"Sei que se comporta da maneira mais vergonhosa, quando se trata de uma prostituta... Nelson também e muitos post captains, muitos almirantes, quando se trata de adultério... Nessas ocasiões, não há escrúpulos em relação ao navio do rei. Não, não, não há nenhum escrúpulo pela filosofia natural ou por qualquer descoberta útil. Ao diabo com a alma desse cão hipócrita e falso; mas provavelmente é inconsciente de sua falsidade... pravum est cor omnium, o coração, acima de tudo, é perverso e insondável. Quem o conhece"?
Ainda que Stephen fosse de temperamento melancólico e vingativo, fora educado com uma alta noção de hospitalidade. O comandante era o convidado da praça d’armas, e o cirurgião do navio não podia ficar sentado à mesa num obstinado silêncio ressentido. Forçando bastante a si mesmo, Stephen proferiu quatro palavras educadas e, após um intervalo adequado, sugeriu, numa mesura:
— Uma taça de vinho com o senhor.
— Quero parabenizá-lo efusivamente, doutor, pela salvação do jovem Blakeney — disse Jack, retribuindo a mesura. — Não sei como faria para dizer ao nosso antigo companheiro de bordo que deixamos o filho dele morrer de metralha. Quer dizer, uma metralha nessas circunstâncias, não uma francesa ou americana.
— Como foi possível ele ter engolido uma coisa dessas? — Estranhou Martin.
— Quando eu era um colhedor de rizes, e qualquer um dos aspirantes falava demais, costumávamos enfiar uma em sua boca — lembrou Jack. — Chamávamos isso de tampão de matraca. Imagino que foi o que aconteceu.
— Posso passar-lhe um pedaço de bonito, senhor? — Perguntou Howard, no meio da mesa.
— Por favor. Um peixe sublime, o bonito, sublime. Poderia comê-lo para sempre.
— Pesquei sete esta manhã, senhor, sentado na mesa da enxárcia do mastro da gata e pescando ao longo da borda da esteira. Mandei um para a enfermaria, outro para o alojamento dos aspirantes, três para os meus fuzileiros e separei os melhores para nós.
— Sublime, sublime— repetiu Jack.
Aliás, foi realmente um jantar sublime: a melhor tartaruga-do-mar, as delicadas lulas gigantes que saltavam à noite para bordo, uma variedade de peixes, torta de golfinho, e, para coroar tudo, uma enorme travessa de marrequinho, marrequinho das Galápagos, indistinguível do sabor do marreco europeu, que fora apanhado com uma rede pelo sargento de Howard, um outrora caçador clandestino. E Stephen notou, não sem irritação, que enquanto comia e bebia sua polidez ficava cada vez menos artificial, sua deliberada expressão educada aproximando-se quase de um sorriso espontâneo, e que corria perigo de sentir prazer.
— ...contemplem as velas enfileiradas
conduzir o vento invisível e rastejante,
impelir as imensas naus através do mar sulcado,
encrespando a vaga altaneira. —
Recitou Mowett no silêncio momentâneo em que as decantadeiras eram renovadas. — Ele e Martin vinham há algum tempo conversando sobre poesia. — Isso o tipo de coisa a que me refiro.
— Foi você que escreveu isso, Mowett? — Indagou Jack.
— Não, senhor — respondeu Mowett. — Foi... fui um outro sujeito.
— O vento invisível e rastejante — repetiu Maitland. — Dizem que porcos conseguem enxergar o vento.
— Esperem, cavalheiros — exclamou Howard, levantando a mão e olhando em volta com o rosto corado e o olhar cintilante. — Os senhores vão me perdoar, mas as coisas boas não costumam me ocorrer no momento certo. Não me aconteceu nesta comissão, creio, embora tenha chegado perto, certa vez, ao largo do rio da Prata. Portanto, com sua licença senhor — fazendo uma vênia para Jack —, havia uma velha senhora em Cork, que vivia numa cabana com apenas um cômodo, nada mais; ela comprou um porco... um porco, hein, é essa a questão, é o que torna isso tão apropriado... e perguntaram a ela: "O que vai fazer em relação ao cheiro"? Pois ele tinha que dividir com a dona o mesmo aposento, se é que estão prestando atenção; o porco tinha que ficar no mesmo aposento da velha. "Por Deus", respondeu ela, "ele vai ter que se acostumar"... equivocando-se, como veem...
Mas a explicação de Howard foi afogada num temporal de gargalhadas liderado por Killick, atrás da cadeira de Jack. O próprio Jack repetiu:
— Ele vai ter que se acostumar — e jogou-se para trás, a gargalhada explodindo, o rosto rubro e os olhos de um azul mais brilhante do que o normal. — Puxa vida, puxa vida — disse finalmente, enxugando os olhos com o lenço. — Neste vale de lágrimas, faz bem um homem dar uma gargalhada de vez em quando.
Depois que se acalmaram, o intendente examinou seus vizinhos em volta, mirou o imediato e indagou:
— A obra que citou ainda há pouco era poesia? O trecho antes do porco.
— Sim, era — confirmou Mowett.
— Mas não rima — observou Adams. — Eu a repeti para mim mesmo e não rimou. Se Rowan estivesse aqui, daria, uma paulada na cabeça do seu poeta. A poesia dele sempre rima. Lembro-me, como se fosse ontem, de uma peça de autoria dele:
É tremendo o ruído de quilha e botaló{148} a rilhar
com um movimento incomum faz a tripulação rodopiar.
— Creio que há tantos tipos de poesia quantos há de cabos — comentou o mestre.
— E há mesmo — afirmou Stephen. — Vocês se recordam daquele caro Ahmed Smyth, o secretário oriental do sr. Stanhope, quando estávamos indo para Kampong? Ele me falou de uma curiosa forma de verso malaio, cujo nome me escapa, embora eu tenha memorizado um exemplo;
O pé de pimpol{149} cresce na beira da floresta.
Na rede encalhada do pescador reina a desalentadora confusão;
é verdade que estou sentado em seu joelho
mas você, por causa disso, não deve supor que pode
tirar qualquer outra liberdade.
— Isso rima em malaio? — Quis saber o intendente, após um silêncio.
— Rima — disse Stephen. — O primeiro e o terceiro...
A chegada do pudim interrompeu-o, um pudim inusitadamente esplêndido, carregado com orgulho consciente e recebido com aplausos.
— O que... o que e isso? — Bradou Jack.
— Acreditávamos que ia se surpreender, senhor — afirmou Mowett. — Trata-se de um merengue, uma ilha flutuante, ou melhor, um arquipélago flutuante.
— São as próprias Galápagos — observou Jack. — Eis Albemarle, Narborougb, Chatham e Hood... Não fazia ideia de que havia alguém a bordo capaz de tal coisa, uma obra-prima, dou-lhes minha palavra de honra, digna de uma nau capitania.
— Foi um dos baleeiros que preparou, senhor. Antes de se fazer ao mar, foi confeiteiro em Danzig.
— Eu coloquei as linhas de longitude e latitude — informou o mestre-arrais. — São feitas de algodão-doce; e também o equador, porém mais grosso e colorido com vinho do Porto.
— As Galápagos — disse Jack, fitando-as. O grupo todo delas: tem a ré mesmo a Roca Redonda e a Ilha Encantada de Cowly, nos locais exatos. E pensar que não pisamos em nenhuma delas... Às vezes nossa profissão é por demais exigente...
— Filha rigorosa da voz de Deus! Ó Dever! — Exclamou Mowett.
Jack, porém, matutando sobre o arquipélago, que sacudia com o movimento do navio, não o escutou e prosseguiu:
— Mas vou lhes dizer uma coisa, senhores: se voltarmos por este caminho, depois de ter feito o que devemos fazer, ficaremos alguns dias na angra do sr. Allen na James Island, e todos ficarão de licença para perambular à vontade.
— Não vai comer um pouco das Galápagos, senhor, antes delas ficarem à deriva? — Sugeriu Mowett.
— Hesito em estragar tal obra de arte — lamentou Jack. — Mas, a não ser que a gente passe sem o nosso pudim — disse isso com um olhar bem intencional, ao levantar a colher sobre o equador do doce —, creio que devo cortar a linha.
A linha, a linha, dia após dia navegaram em direção oeste, ao longo da linha do equador ou um pouco ao Sul dela. Deixaram para trás os pinguins e as focas quase imediatamente, todas as aves que habitam a costa e quase todos os peixes; deixaram também a escuridão, a água fria e as nuvens pendendo baixo, e velejaram por um disco azul-escuro, perpetuamente renovado, sob uma abóbada azul-clara, ocasionalmente pontilhada com círios brancos bem altos.
De modo algum, porém, velejavam com velocidade. Apesar da esplêndida exposição das velas de tempo bom do Surprise —, cutelos acima e varredouras abaixo, sobrejoanetes e até mesmo cutelos de sobrejoanetes e sobrinhos—, este raramente registrava mais do que uma centena de milhas entre uma observação astronômica e a seguinte.
Quase todos os dias a brisa dormitava durante duas ou três horas depois do meio-dia, ou mesmo caía em sono profundo, deixando as pirâmides de vela bambas e abatidas, enquanto enormes extensões de inerte calmaria se espalhavam pelo mar, rompidas apenas pelo desfile de baleias, cachalotes, que às vezes passavam em grande número, em espaçadas fileiras com duzentas e até mesmo trezentas, seguindo para o Peru. E todo final de tarde, no início do quarto, o Surprise preparava-se para o tempo apenas com as gáveas: não dava para confiar nas repentinas rajadas noturnas, a despeito da dócil inocência do dia.
Essas eram águas totalmente desconhecidas da Marinha Real — Byron, Wallis e Cook tinham se mantido muito mais ao Sul ou muito mais ao Norte —, e esse lento rastejar por um mar aparentemente infinito teria inquietado e desanimado Jack, se ele não tivesse sabido por intermédio do mestre-arrais que sempre havia o caso em que o sol começava a se mover ao oposto do trópico; e isso seria igualmente ruim para o Norfolk, ou pior.
Allen tivera muitas conversas com o arpoeiro-chefe, um homem de meia-idade chamado Hogg, que fizera três vezes a viagem até as Marquesas e duas até as Sanduíches e sua experiência, tanto de primeira quanto de segunda mão, era um grande alívio para todos a bordo. Navegavam o mais depressa que sensatamente conseguiam, mas não como se estivessem com uma presa à vista, sem molhar as velas com a total pressa diária, pois sabiam que o Norfolk estaria avançando com uma velocidade ainda mais moderada; e, quando chegasse às Marquesas, gastaria bastante tempo navegando por entre as ilhas, à procura de baleeiras britânicas que estivessem pescando por ali. Não havia um momento a perder, é verdade; mas, por outro lado, nem todo momento tinha de ser fustigante.
Novamente, e com surpreendente rapidez, o navio retomou sua perfeitamente normal existência, autossuficiente; bem depressa, isso se tornou mais uma vez o modo de vida natural, e os do Surprise recordavam-se dos dias remotos e terrivelmente gelados ao Sul do Horn, e mesmo a assombrosa travessia da costa do Chile e do Peru como se fossem eventos pertencentes a uma outra vida.
A cada manhã, o sol nascia exatamente na esteira da fragata; reluzia nos conveses recém-lavados, mas estes logo eram ocultados pelos toldos, pois, embora não fizesse o calor do golfo da Guiné, com o piche borbulhando nas emendas e o alcatrão pingando do alto, e menos ainda o do mar Vermelho, de infame memória, a temperatura beirava os trinta graus, e à sombra era agradável, Todos usavam calças de algodão grosso, exceto quando convidados à câmara, e até mesmo os aspirantes foram dispensados de seus grossos coletes de casimira.
Contado estes foram talvez os únicos a não ficarem muito contentes com a volta à adequada água azul de marinheiro, com tudo nos lugares e em forma, à maneira de Bristol. Grego e latim, aliás, nunca tinham sido deixados de lado inteiramente, exceto nos piores dias das latitudes cinquenta e sessenta graus, mas agora ambos estavam de volta com força redobrada; e agora o comandante Aubrey tinha tempo de conduzi-los através dos labirintos da navegação, e à noite fazia com que aprendessem o nome, a declinação e a ascensão reta versa de uma grande quantidade de estrelas, além de calcular a distância angular entro elas e vários planetas ou a lua.
Ele e Mowett também tinham tempo de cuidar do moral deles, o que, no contexto naval, significava deixar as confortáveis macas bem cedo para render o quarto muito antes da batida do sino, jamais ficar com as mãos nos bolsos, debruçar-se na amurada ou apoiar-se nas carretas das caronadas, e sempre ajudar nas gáveas quando as velas fossem rizadas.
— Vocês são chamados de colhedores de rizes —, disse-lhes Mowett certo dia. — Receberam um camarote suntuoso, são alimentados como galos de briga, e tudo que lhes pedem é que ajudem nas gáveas quando as velas são rizadas. Mas o que vejo? A vela do joanete do grande sendo supervisionada da proa...
— Oh, senhor — exclamou Nesbitt, atormentado pela injustiça.
— Desta vez fui apanhado de surpresa.
— ...e o velacho, aparentemente, sendo rizado por si mesmo, enquanto os aspirantes estão dormindo e roncando como porcos em algum lugar lá embaixo. Tenho pena de uma Marinha que precise contar com criaturas iguais a vocês como oficiais, que não pensam em nada, a não ser comer e dormir, e negligenciam o dever. Nunca vi antes coisa parecida num navio e não desejo ver nunca mais.
— Esses meninos pensam demais em sua comodidade — comentou Jack. — Não passam de um bando de hilotas{150}.
— Por favor, hilotas tem algum significado náutico em especial, como cães, camundongos, peixes e assim por diante? — Perguntou Stephen.
— Ah, não, apenas o significado normal de jovens diabinhos indolentes, sabe... braços de Satã. É preciso instigá-los, tornar a vida deles uma miséria.
Fossem quais fossem as tentativas que poderiam ser feitas, elas não foram bem-sucedidas. O Surprise tinha um camarote alegre, animado, sem alguém mais velho de verdade para tiranizar o resto; e, pelo menos até então, seus membros tinham bastante para comer. Havia muito já tinham se recuperado das privações do distante Sul, e, embora nada tivesse trazido de volta os dedos do pé de Williamson, nem as pontas de suas orelhas, as costelas de Boyle fundiram-se perfeitamente, enquanto uma leve penugem começava a cobrir não apenas o couro cabeludo de Calamy, como também o seu queixo de menina.
A despeito do trabalho árduo e das árduas lições, e a despeito da melhora das condições morais, eles continuavam alegres; além disso, aprendiam a nadar. À tarde, quando o navio ficava à deriva, quase todos mergulhavam do costado, a maioria em uma piscina rasa feita com uma vela afundada, mas alguns se arriscavam no próprio mar aberto, pois não se viam tubarões desde que tinham deixado as Galápagos, pelo menos nenhum seguira o navio.
Essa era uma das delícias da sua rota em direção oeste; outra era a competição de tiro, com os canhões de longo alcance ou com as armas portáteis, quase todos os finais de tarde, durante os postos de combate; havia, porém, muito mais, e a surpresa mais agradável e intensamente apreciada, durante as primeiras semanas, era o comportamento dos baleeiros, particularmente de Hogg, o chefe deles.
Ele nunca estivera na Marinha Real. Embora a guerra viesse prosseguindo com poucas interrupções desde sua juventude, nunca fora recrutado à força; como um baleeiro e arpoeiro do mar do Sul, tinha proteção, mas nunca precisou usá-la. Nem a tropa de recrutamento nem o seu oficial jamais o incomodaram, e aliás, ele nunca pisara em um navio de guerra antes do Surprise. Sua vida fora passada inteiramente em baleeiros, um grupo de barcos particularmente democráticos, nos quais os homens trabalhavam não por salários, mas por quotas do que o navio conseguisse obter, e nos quais, apesar de haver a mínima disciplina necessária, havia pouco senso de hierarquia entre as trinta e tantas pessoas — certamente nada que lembrasse a da Marinha, com o seu número bem maior, seus diferentes mundos entre marinheiros e oficiais, suas diferentes essências de humanidade.
Ele era um homem inteligente — sabia navegar —, mas visivelmente simplório; e, por ter passado a infância nas favelas pagãs de Wapping e o resto da vida em baleeiros, tivera pouco contato com a civilização. Na primeira manhã, por exemplo, ao encontrar o oficial do quarto, ele saudou: "Como está passando, companheiro? Excelente, espero, excelente". E, depois que montaram o templo, foi difícil fazer com que ele se mantivesse no lugar apropriado. "Bem, já vão servir o rum", falou em voz baixa, quando finalmente se viu instalado diante de uma bandeja de rancho virada de cabeça para baixo; e observou atentamente, durante a cantoria dos hinos, batendo palmas depois que terminavam.
Quando o sr. Martin vestiu a sobrepeliz, seu vizinho disse-lhe, em algo parecido a um cochicho:
— Agora o pastor vai fazer um sermão.
— Vai mesmo? — Berrou Hogg, inclinando-se para a frente com ambas as mãos sobre os joelhos e observando o capelão com grande interesse. — Eu nunca ouvi um sermão. — Então, poucos minutos depois: — Você virou duas páginas. Ei, você aí. Você virou duas páginas.
E era verdade, pois Martin, um pregador indiferente, geralmente doutrinava com as palavras de homens mais dotados, como South e Barrow, e agora, aturdido por causa de seus novos paroquianos, cometera realmente uma lamentável e óbvia asneira.
— Silêncio de vante à ré — gritou Mowett.
— Mas ele virou duas páginas — insistiu Hogg.
— Bonden — disse Jack, à parte, como um frequentador de igreja —, leve Hogg para a proa e diga a ele como fazemos na Marinha.
Bonden disse-lhe, mas não conseguiu deixar o princípio exatamente claro, pois no dia seguinte, quando Nesbitt, o menor dos colhedores de rizes, vociferava ordens para alguns homens na gávea do traquete, usou uma expressão chula, e Hogg virou-se subitamente, levantou-o com uma das mãos, deu-lhe uma palmada na bunda com a outra e disse que ele devia se envergonhar de falar daquele modo com um homem com idade bastante para ser seu pai.
Qualquer corte marcial que julgasse o crime de Hogg seria forçada a sentenciá-lo à morte, visto que o Vigésimo Segundo Artigo de Guerra não prevê penalidade menor. Jack pediu que Mowett e Allen conversassem bastante com ele, e estes dois conseguiram fazer com que entendesse a enormidade do seu ato; mesmo assim, o resto da tripulação do navio mantinha a esperança de ver os baleeiros dizerem ao sr. Adams o que pensavam de sua desonestidade, por exemplo, ou aborrecerem o comandante ao pedir um copo do seu melhor brandy quando estivessem com vontade de beber; e sempre os incentivavam a fazer essas coisas: "Vá lá, companheiro", diziam, "não seja acanhado. O comandante gosta de um marinheiro de traquete, e sempre lhe dá um copo se ele pedir educadamente". Não que desgostassem dos novos companheiros de bordo, longe disso, pois os baleeiros eram não só são afáveis como também marujos completos; mas a inocência deles era uma tentação irresistível e, por princípio, quando os homens do Surprise eram tentados, caíam em tentação.
Antes do templo ser montado novamente, os baleeiros já se tinham tornado mais cautelosos; embora ainda continuassem saltando semiadormecidos de suas macas ao ouvir o grito de "Esguicho à vista" não iam mais ao ajudante do carpinteiro pedir um pica-pau, nem ao paioleiro da artilharia para providenciar meia légua de linha de tiro; mesmo assim, forneceram uma boa dose de prazer inocente, quando um baleeiro americano apareceu a uma imensa distância a barlavento, seguindo pura Leste, uma embarcação reconhecida instantaneamente por causa de seu cesto da gávea com plataforma dupla no mastro grande. Hogg e os amigos correram em grupo para a popa, cheios de raiva, e de um desenfreado desejo de vingança; e quando Honey que estava de quarto, não aproou ao vento imediatamente, eles começaram a berrar para baixo, através da claraboia, para Jack, e tiveram de ser removidos pelos fuzileiros.
Um momento de ponderação revelou a Jack que perseguir o americano significaria uma perda muito grande de tempo. Mandou chamar o arpoeiro-chefe e disse;
— Hogg, temos sido muito pacientes com você e seus companheiros, mas se continuar agindo desse modo serei obrigado a castigá-lo.
— Eles queimaram o nosso barco — murmurou Hogg.
Jack fingiu que não ouviu, mas, ao ver as lágrimas quentes de raiva e decepção do sujeito, falou:
— Não se preocupe, homem, o Norfolk não deve estar muito longe, e vocês poderão se vingar nele.
Mesmo que já estivesse nas Marquesas, nau estaria muito longe agora, que assim se calculavam essas coisas na prodigiosa expansão do Pacífico, onde algo em torno de mil milhas parecia ser a unidade normal. Outra unidade podia ser um poema: Stephen estava lendo a Ilíada de Mowett e reservava um dia para cada canto, não mais, a fim de prolongar o seu prazer; começara logo após a partida das Galápagos e agora estava no canto doze; calculava assim, pela atual velocidade de cruzeiro do navio, que terminaria pouco antes de chegarem às Marquesas. Fazia a leitura durante a tarde, pois, agora que os dias eram tranquilos e imperturbáveis, com as necessárias semanas da travessia ocidental já deixadas para trás, como um todo independente, ele e Jack preenchiam as noites com a música que tinham sido obrigados a abandonar em águas mais exigentes.
Noire após noite, tocavam ali, na grande câmara, com as janelas de popa abertas e a esteira do navio escorrendo para longe, bem longe, na escuridão. Poucas coisas lhes davam mais prazer e, ainda que fossem desiguais em nacionalidade, educação, religião, aparência e mentalidade, como dois homens poderiam ser, eram um só quando se tratava de improvisar, fazer variações em torno de um tema, conduzindo-as de um lado para o outro, dialogando com violino e violoncelo; se bem que essa fosse a linguagem na qual Jack se mostrava muito mais articulado do que o amigo, mais espirituoso, mais original e até mesmo mais instruído. Eram semelhantes no gosto musical, no razoavelmente alto nível de habilidade amadorística e no incansável prazer.
Entretanto, na noite do dia em que Stephen conciliou Aquiles e Agamenon, e quando a esteira da fragata tinha mais de duas mil milhas de extensão, eles não tocaram. Em parte, porque o navio passava por uma imensa população de organismos marinhos fosforescentes, e vinha passando por ela desde que o sol vermelho-escuro se pôs no mar nevoento, seu disco claramente dividido pelo gurupés, mas sobretudo porque os tripulantes se puseram a cantar e a dançar no castelo de proa e faziam mais barulho do que o habitual. A ordem foi puramente formal, visto que os homens já estavam ali, dançando e cantando como sempre faziam nas noites agradáveis, quando o navio velejava tranquilamente, e sua única função foi deixar que eles soubessem que poderiam continuar, já que aquele era o dia particular de festividades dos baleeiros.
— Ainda bem que cancelei a lição dos meninos — disse Jack, olhando pela gaiúta aberta. — Mal se enxerga uma estrela, Júpiter nada mais e do que um borrão, e creio que nem mesmo ele durará mais cinco minutos.
— Talvez na quinta-feira — retrucou Stephen, na janela de popa, esticando-se para fora e para baixo.
— Eu disse que Júpiter não duraria mais cinco minutos — repetiu Jack, num tom de voz calculado para superar a ruidosa alegria à vante; mas foi muito mal calculado, pois não levou em conta os baleeiros, que tinham acabado de começar "Vamos lá, rapazes, vamos lá, está na hora de partir", com vozes que poderiam fazer frente às próprias baleias.
— Eu disse: talvez na quarta-feira — respondeu Stephen, com uma voz bem impaciente. — Como é, não vai me passar a rede com cabo comprido? Já lhe pedi três vezes, e ali há uma criatura que não consigo alcançar com esta miserável...
Jack achou a rede bem depressa, mas quando foi entregá-la não havia nenhum Stephen na janela de popa, uma voz abafada vindo da esteira:
— Um cabo, um cabo...
— Segure-se no cúter! — Gritou Jack, e mergulhou imediatamente. Não gritou para o navio nem foi para cima, porque sabia que o cúter vermelho estava sendo rebocado à popa, Stephen o agarraria ou seria rebocado até ele, e depois poderiam retornar pela janela de popa, sem que fosse preciso parar o navio ou o seu cirurgião ser mais uma vez ridicularizado pelo que era de fato: o marinheiro de água doce mais incorrigível que já existira.
Nada de cúter; alguém devia ter puxado a embarcação para contrabordo. Nada de Stephen também; naquele instante, porém, ele viu e ouviu uma borbulha arfante, que emergiu e afundou na água agitada e fosforescente. Voltou a mergulhar, mais e mais fundo, até enxergar o amigo contra a superfície luminosa.
Stephen ficara estranhamente emaranhado na própria rede, a cabeça e um cotovelo presos em suas malhas, o cabo enfiado nas costas de sua camisa. Jack livrou-o; mas quebrar o robusto cabo, rasgar a camisa e ao mesmo tempo segurar Stephen para que sua cabeça ficasse acima da água levou algum tempo. Quando, finalmente, ele recuperou o fôlego e gritou "´Ó do Surprise", o grito coincidiu com o coro trovejante de Esguicho à vista, esguicho à vista, esguicho à vista cantado por toda a tripulação do navio.
Ele colocara Stephen para flutuar de costas, coisa que este conseguia fazer toleravelmente bem quando o mar estava calmo; mas uma desventurada marola bateu em seu rosto exatamente quando inspirava, afundando-o novamente; novamente teve de ser carregado para cima, e agora o "Ó do Surprise" de Jack, emitido com toda a potência de sua voz, carregou junto um pouco de aflição, pois, embora o navio não estivesse navegando velozmente, a cada minuto avançava mais de cem metros, e suas luzes já começavam a sumir na escuridão.
Grito após grito, o bastante para despertar os mortos. Mas quando o navio não era mais do que um borrão, como o do planeta que avistara mais cedo naquela noite, ele silenciou, e Stephen comentou:
— Estou extremamente preocupado, Jack, que a minha falta de jeito tenha feito você correr um perigo tão sério.
— Valha-me Deus — exclamou Jack —, não é tão sério assim. Killick deverá ir à câmara daqui a mais ou menos meia hora, e Mowett vai inverter o rumo imediatamente.
— Mas acredita que vão nos enxergar com esta neblina, e sem lua, sem lua nenhuma?
— Talvez tenham um pouco de dificuldade, embora seja espantoso como uma coisa que flutua fica evidente no mar à noite, quando se está à procura dela. Em todo caso, para ajudá-los, gritarei de vez em quando, como um canhão sinalizador. Mas, sabe, não fará nenhum mal se tivermos de esperar até amanhecer. A água está morna como leite, não há agitação no mar, além da marola, e se você esticar os braços, colocar a barriga para cima e jogar a cabeça para trás, até mergulhar os ouvidos, verá que consegue flutuar com tanta facilidade quanto eu respiro.
Os gritos repetidos sucederam-se um ao outro, em demoradas sequências, como num canhão sinalizador. Stephen flutuava com facilidade, e eles ficaram à deriva, carregados em direção oeste pela corrente equatorial, em direção oeste e, provavelmente, um pouco ao Norte. Jack refletiu sobre a relatividade do movimento, sobre a dificuldade de se medir a velocidade ou o rumo de uma corrente, se o seu navio se movimenta com ela e você não consegue fundear nem observar qualquer ponto fixo em terra. Ficou imaginando o que Mowett faria para iniciar a busca depois que o alarme fosse dado.
Se as observações tivessem sido feitas de maneira conscienciosa, e a barquinha cuidadosamente lançada, lida e registrada, então não seria difícil para ele retornar à bolina cerrada, ou mesmo com o vento com uma quarta de folga, desde que a brisa permanecesse firme a sudeste quarta Sul e que sua estimativa da corrente estivesse correta — cada grau de erro em relação a isso, no curso de uma hora de navegação a quatro nós e meio, resultaria em... Em meio aos cálculos, percebeu que Stephen, estirado ali duro como uma tábua, estava ficando aflito.
— Stephen — chamou, empurrando-o, pois sua cabeça estava tão afundada que não conseguiria ouvir —, Stephen, vire de frente, ponha os braços em volta do meu pescoço, e vamos nadar um pouco. — Então, ao sentir os pés de Stephen atrás de suas pernas: — Você não chutou fora os sapatos. Não sabe que precisa chutar fora os sapatos? Mas que sujeito você é, Stephen.
E assim prosseguiram, as vezes nadando mansamente, às vezes flutuando no mar tépido, subindo e descendo em cada vaga comprida e regular. Não conversaram muito, embora Stephen tivesse observado que tudo parecia muito mais fácil depois que lhe foi permitido mudar de posição de tempos em tempos; mesmo o ato de flutuar, com a prática, passou a ser mais natural.
— Creio que já posso me considerar um tritão. — E, em outro momento, afirmou; — Estou profundamente em débito com você, Jack, por me auxiliar dessa maneira.
Em dado momento, Jack achou que ele devia ter adormecido por algum tempo. Depois, foram sacudidos por uma repentina irrupção na água bem perto, um assomar na vaga, e ficaram na presença imensa de uma baleia. Pelo que puderam enxergar em meio à fosforescência, tratava-se de um macho velho, com bem mais do que vinte metros de comprimento: ficou por ali talvez uns dez minutos, esguichando a intervalos regulares — conseguiam enxergar o jato branco e ouvi-lo vagamente —, até que, inspirando fundo, mergulhou a cabeça, elevou a cauda e desapareceu silenciosamente.
Pouco depois disso a neblina começou a dissipar-se, as estrelas apareceram através dela, a princípio indistintamente, em seguida claras e brilhantes, e, para o seu alívio, Jack percebeu que a alvorada estava mais próxima do que supunha. Não que ele tivesse mais esperança de ser agora resgatado. Isso dependia de Killick ter ido olhar a sua câmara antes de se recolher; não havia qualquer motivo em particular para que ele fosse lá olhar e obviamente não o fez, do contrário Mowett teria virado o navio bem antes do final do quarto das 16:00 às 20 horas, teria parado, usando todo o pano de que dispunha, e, com todas as embarcações miúdas enfileiradas à distância de um grito, dispostas em ambos os bordos, teria vasculhado uma ampla extensão de mar e recolhido os dois muito antes, durante o quarto de 00:00 às 04:00 horas; e este quarto já se fora.
Se, porém, Mowett só fosse informado da ausência deles pela manhã, obviamente o querido Surprise teria navegado muito mais distante para Oeste e não poderia ser trazido de volta muito antes do anoitecer. A probabilidade de um erro, por causa da corrente, seria muito, muito maior, e em todo caso ele não achava que conseguiriam aguentar muito mais além do alvorecer — com toda a certeza, não até o final da tarde. Embora, a princípio, o mar tivesse parecido tão cálido, agora ambos tremiam convulsivamente, estavam encharcados. Jack, para variar, sentia-se dominado por uma fome colossal, e ambos estavam tomados pelo medo de tubarões. Nenhum dos dois havia falado por um longo tempo, além das breves palavras quando mudavam de posição ou quando Jack, por alguns momentos, rebocava Stephen nos ombros.
Havia pouca esperança agora, ele admitia; mesmo assim, ansiava pela luz. O calor do sol talvez os reanimasse esplendidamente; e não era de todo inconcebível que pudesse aparecer uma ilha de coral. Embora as cartas não mostrassem nenhuma por mais trezentas ou quatrocentas milhas, aquelas eram águas largamente inexploradas. Hogg falara de ilhas conhecidas apenas por baleeiros e exploradores de sândalo, e estes mantinham em segredo os lugares que descobriam.
Mas ele torcia mesmo era por um pedaço de madeira flutuante: troncos de palmeiras eram quase indestrutíveis, e durante os últimos dias tinha visto várias seguindo com a corrente, vindas talvez das praias da Guatemala; e, com uma delas para os dois boiarem, conseguiriam aguentar o dia inteiro ou mais, muito mais. Revolveu isso na mente — os modos de lidar com o tronco de uma palmeira e como dar a ela algum tipo de equilíbrio com um estabilizador lateral, ao estilo dos mares do Sul.
Uma reflexão seria praticamente inútil, mas ainda assim melhor do que os arrependimentos perfurantes, estéreis e fora de propósito que o haviam atormentado durante as últimas horas, arrependimento por ter deixado Sophie cercada de processos judiciais, arrependimento por não ter lidado com as coisas com mais esperteza, um amargo arrependimento por ter de deixar a vida para trás e todos a quem ele amava.
A terra girou, e o oceano junto com ela; a água em que nadavam virou na direção do sol. Para o ocidente, havia o final da noite e, no oriente, a barlavento, o começo do dia; e ali, clara contra o céu se iluminando, estava uma embarcação, já bem próximo, uma enorme canoa de casco duplo, dois mastros, com uma enorme plataforma ou convés sobreposto aos dois cascos e uma casa de telhado de palha sobre ela e a embarcação tinha duas velas latinas avantajadas, ambas orientadas para vante. Essas coisas, contudo, eram detalhes que Jack só notou conscientemente depois de emitir um forte e estrondoso grito, isso acordou Stephen, que se encontrava num estado não muito longe do coma.
— Uma embarcação dos mares do Sul — mostrou Jack, apontando; e gritou novamente. O barco era muita parecido com o que o capitão Cook chamou de pahi.
— Será que vão nos recolher? — Perguntou Stephen.
— Claro — garantiu Jack, e viu uma estreita canoa tipo anterrique{151} largar de contrabordo do barco, içar uma vela triangular e aproximar-se velozmente na direção deles.
Uma jovem sentada na popa manobrava; outra, montada nos braços que ligavam o frágil casco ao estabilizador lateral, equilibrava-se com admirável graciosidade. Segurava uma lança e, quando a outra moça folgou a escora, levando a canoa a parar quase totalmente a duzentos metros dos dois, ela assumiu a posição de lançamento. Mas, vendo o que era, hesitou e franziu a testa, surpresa; a outra riu, revelando um belo brilho de dentes alvos.
Eram ambas jovens de uma incrível beleza, morenas, pernas compridas, vestidas com pequenos saiotes e nada mais. Normalmente Jack era dado a contemplar uma figura elegante, um busto elegante, uma forma bem-arredondada, mas em tais circunstâncias podiam mesmo ser babuínos velhos que ele não se importava, contanto que levassem ele e Stephen para bordo. Levantou as mãos e emitiu um grasnido suplicante; Stephen fez o mesmo; mas as moças, rindo, viraram e voltaram rapidamente por onde tinham vindo, navegando com extraordinária habilidade e velocidade, incrivelmente à bolina cerrada. Enquanto se afastavam remando, porém, sorriram e fizeram gestos que talvez significassem que o estabilizador lateral era frágil demais para aguentar mais peso e que Jack e Stephen poderiam nadar até a canoa de dois mastros.
Foi assim que a mente predisposta de Jack as interpretou; e, de fato, quando eles alcançaram a canoa dupla, que em todo caso se aproximava deles, as mesmas moças e várias outras os ajudaram a subir para o convés coberto de esteiras. Parecia ser realmente um grupo composto por jovens mulheres e de muitas outras, mais velhas e mais robustas, mas não era o momento para refinadas observações.
— Obrigado, obrigado madame — disse Jack com toda a seriedade para a sorridente timoneira que lhe oferecera a mão particularmente cordial e olhou para as demais com toda a sua gratidão, enquanto o próprio Stephen afirmava:
— Senhoras, sou imensuravelmente agradecido.
Então sentaram-se, as cabeças abaixadas, apenas cientes de sua satisfação, e ficaram pingando no convés, tremendo de um modo incontrolável. Havia uma boa quantidade de falatório acima; duas ou três mulheres mais velhas certamente dirigiam a eles, interrogando-os, e algumas vezes mãos morenas deram puxões em seus cabelos e roupas, mas prestaram pouca atenção a isso, até Jack sentir o vigor do sol aquecendo-o cada vez mais, à medida que ascendia. Seu tremor cessou; fome e sede o atacaram tom uma força redobrada e, dirigindo-se às mulheres, que continuavam a observá-los atentamente, fez gestos pedindo comida e bebida. Seguiu-se alguma discussão, e duas das mulheres de meia-idade pareceram desaprovar, porém algumas das mais jovens foram abaixo do casco à boreste, apanharam cocos verdes, uma pequena enfiada de peixes secos e dois cestos, um deles contendo papa fermentada de fruta-pão, e o outro, bananas-passa.
Com que rapidez a benevolência e o prazer por estar vivo refluíram com comida, bebida e calor do sol! Olharam em volta para elas, sorriram e renovaram os agradecimentos. A garota de ombros largos com a lança, da popa, e sua risonha colega de certo modo pareciam vê-los como sua propriedade. A primeira abriu os cocos e passou-os para eles e a outra, os peixes secos, um por um. Mas não uma propriedade muito valiosa; a lanceira, cujo nome parecia ser Taio, olhou para as pernas brancas, cabeludas, ensopadas e com a pele enrugada de Jack, onde a calça tinha sido enrolada, e emitiu um ruído de sincera e franca aversão, enquanto a outra, Manu, agarrou um cacho de seus longos cabelos louros, agora soltos e caindo pelas costas, arrancou alguns fios, esfregou-os nos dedos, jogou-os fora, sacudiu a cabeça e, em seguida, lavou meticulosamente as mãos.
A essa altura a cena mudou, quase; como se estivessem num navio de guerra, embora sem um sinal evidente, sem apito, sem sino. Parte da tripulação começou a se lavar, muito escrupulosamente, primeiro flutuando na água, depois mergulhando e nadando como golfinhos: não ligavam de modo algum para a nudez. Outras recolheram as esteiras que cobriam o convés, sacudiram-nas a sotavento, amarraram-nas de volta, ao modo dos marujos, e ergueram os estais de proa, agora mais frouxos por causa do calor do sol, enquanto um terceiro grupo trazia leitões, cães chow-chow comestíveis e aves, em cestos, a maioria do casco de bombordo, e os arrumaram na parte de vante do convés, onde todos ficaram comportados e quietos, como costumam permanecer animais criados a bordo.
Durante toda essa atividade ninguém teve muito tempo para vigiá-los, e Stephen, cujo ânimo teve uma fabulosa recuperação, foi ficando menos discreto na observação. Contemplou primeiramente a apressada tripulação, que parecia consistir em cerca de vinte moças e nove ou dez entre velhas e jovens, juntamente com um número indefinido, que se ouvia, mas não se via, na casa de telhado de palha na popa. Uma dúzia das jovens eram criaturas alegres, simples, bonitas, embora quase sempre com uma grande quantidade de tatuagens, cheias de curiosidade, tagarelice e risadas, e razoavelmente amistosas, ainda que estivesse claro que consideravam Jack e Stephen fisicamente sem atrativos ou coisa pior. O restante das jovens e a maioria das que tinham trinta ou quarenta anos eram mais reservadas, se não totalmente hostis.
Stephen desconfiava que estas não tinham aprovado o resgate, muito menos terem alimentado os sujeitos salvos do mar. Entretanto, fosse qual fosse a opinião delas, todas as mulheres falavam o tempo todo, numa língua melíflua, que ele supôs ser da Polinésia em geral; as mulheres todas, ou melhor, exceto quatro das jovens, que permaneciam sentadas mascando a raiz da qual era feita a kava e cuspindo a polpa fibrosa numa tigela. Stephen sabia que, depois que a água de coco fosse acrescentada, e a mistura ficasse descansando um pouco, estaria pronta para beber. Ele lera alguns relatos sobre as ilhas, mas como não fizera ideia de visitá-las naquela comissão, não aprendera nada sobre sua língua e conservara na memória apenas uma ou duas palavras de seus livros, das quais kava era uma delas.
Ficou, portanto, sentado ali, alheio à fala inteligível, e logo sua, mente derivou daquela curiosa comunidade — um convento em alto mar? — Para a embarcação. Obviamente estava abastecida para uma longa viagem, uma daquelas longas viagens polinésias das quais ouvira falar, e o barco certamente parecia capaz, de realizar uma; admirou os dois cascos lisos sobre os quais repousavam a casa e a plataforma, o casco de barlavento funcionando como um contrapeso para um vento de través, a fim de que houvesse uma maior estabilidade lateral, como também muito menos atrito, um aperfeiçoamento que poderia muito bem ser introduzido na Marinha A ideia de a Marinha levar em consideração, por um instante, um navio de guerra com dois cascos, depois do clamor havido contra uma ligeira modificação na popa tradicional fez com que ele sorrisse, e seus olhos percorreram proas ascendentes onde terminavam esses cascos, suas rodas de proas, por assim dizer, ou figuras de proas.
E ali, algumas indistintas lembranças daquele sujo, mas engenhoso ladrão de terras cromwelliano, Sir William Petty, e seu barco de casco duplo, emergiram em sua mente, pois, amarrada à proa de boreste, estava uma escultura com cerca de dois metros de altura, uma escultura perfeita de três homens: o primeiro tinha o segundo de pé sobre seus ombros, e o segundo, o terceiro; e os três estavam ligados pelo enorme pênis que se elevava dos quadris do primeiro, passava pelo segundo, prosseguia altaneiro até um ponto acima da cabeça do terceiro e, ao ascender, todos os três o seguravam.
Era colorida de vermelho e roso, e sem dúvida elevava-se ainda muito mais, porém fora bastante talhado e mutilado, e agora não dava para saber se era comum a todos, embora isso parecesse provável, todas as figuras tinham sido castradas, e, a julgar pelo viço e pela áspera textura da madeira lascada, isso fora feito bem recentemente e com um instrumento rombudo.
"Caramba"! Murmurou, e voltou a atenção para a outra proa. Esta continha um alto pedaço de madeira aplainada com enxó em suas duas faces, com o lado entalhado ou crenulado em quadrados regulares; tinha algo da aparência e presença de um poste totêmico e era encimado por uma caveira. A caveira não surpreendeu muita Stephen — já havia notado uma rolando no meio dos baldes com cocos e sabia que elas não tinham muito significado nos mares do Sul —, mas foi com grande preocupação que viu e após um instante reconheceu os pequenos objetos murchos e parecidos com bolsas fixadas na placa, como talvez ficassem os animais daninhos expostos na porta de um couteiro{152} europeu.
Estava para revelar a Jack sua descoberta e suas conclusões, a fim de alertá-lo contra o menor mau humor e aconselhar submissão, humildade, atitude respeitosa e, acima de tudo, nenhuma insinuação de galanteio, por mais inocente que fosse, quando percebeu que se encontrava sozinho. Jack o deixara quando a segunda parte da tripulação iniciava seu banho e a primeira passava a arrumar os cabelos, tudo daquele lado a barlavento da plataforma.
Caminhou, portanto, em direção à popa para o outro lado, prestando grande atenção às tábuas moldadas, fixadas, extremidade com extremidade, e calafetadas com o que lhe pareceu ser fibra de coco misturada com algo pegajoso, ao cordame e às velas, feitas de finas esteiras e com um pedaço bastante comprido de trepadeira ou cana flexível à guisa de tralha; e, contornando a casa, na qual várias mulheres falavam ao mesmo tempo, com um tom de voz, alto e briguento, ele chegou ao leme. Tratava-se de um grande remo de pá larga e, para sua surpresa, verificou que não se movia de um lado para o outro, nos moldes de um timão, mas era enfiado para baixo, para o barco cair a sotavento e, levantado para demandar barlavento.
A mulher que o manejava tinha um ar sensível, varonil, pelo que se podia perceber em meio às complexas linhas e espirais de sua tatuagem; ela o entendeu de imediato, demonstrou o manejo do remo e mostrou-lhe que o barco podia ir toleravelmente à bolina, embora, é claro, fosse necessário calcular uma boa quantidade de abatimento — ela mostrou o ângulo separando os dedos e soprou para indicar o aumento da força do vento. Mas nada conseguiu entender das outras indagações, que tinham a ver com as estrelas, navegação noturna e o destino da embarcação, apesar de ele ilustrá-las com gestos.
Jack tentava fazer-se entender, quando três corpulentas mulheres de meia-idade, tipo da faxina do mestre, dobraram a esquina da casa, ofegaram com indignação e o empurraram apressadamente em direção à proa, uma delas ajudando-o com um pontapé sonoro de fazer inveja a um Spithead nightingale{153}. As três, e mais algumas das outras mulheres, pareciam muito zangadas; ralharam e xingaram durante um quarto de hora, e depois foi entregue a Jack um almofariz, com algumas raízes desidratadas e um pesado pilão, enquanto Stephen foi colocado para tomar contar de um leitão. Este, como a maioria dos animais do convés, se encontrava em um cesto; entretanto, ao contrário dos outros, estava agitado e doente. Precisava ser alimentado, mas não parava quieto.
Por algum tempo, as mulheres da faxina do mestre ficaram logo atrás deles, beliscando-os e dando-lhes tapas, se o leitão se lamuriava ou se as raízes escorregavam para fora do almofariz, e às vezes sem motivo algum. Logo, porém, outras tarefas as mantiveram afastadas, e a meia voz Jack disse:
— Eu não devia ter ido à popa. Claramente, somos marujos de traquete, e nada mais, e não devemos sair daqui a não ser que nos ordenem.
Stephen estava para concordar e acrescentar as recomendações sobre o comportamento dos dois, suas hipóteses a respeito da natureza daquela comunidade e o motivo da sua viagem, além de algumas observações sobre a preponderância do canibalismo nos mares do Sul, quando Jack o interrompeu para perguntar:
— Não está sentindo uma sede infernal, Stephen? Eu estou. Acho que foram aqueles peixes secos. Mas, sabe, parece que elas não gostaram da minha aparência, ao passo que você é quase tão moreno quanto elas.
— Isso eu atribuo ao meu hábito de me aquecer ao sol — retrucou Stephen, olhando com alguma complacência para sua barriga nua. Era verdade, Stephen gostava de sentar-se nos cestos de gávea, sem nenhuma roupa, e nada tinha daquela palidez desagradável e cadavérica de um europeu nu. — Tenho poucas dúvidas de que para elas você parece um leproso ou, de algum modo, algo doentio, nocivo. A cor do seu cabelo é repulsiva. Isto é, para quem não está acostumado a ela.
— Sim —concordou Jack —, mas, por favor, seja um bom camarada e chame aquela moça ali na frente, no meio dos cocos.
O primeiro chamado amável de Stephen, acompanhado por um tímido gesto de beber, foi malsucedido, ela franziu os lábios e friamente desviou o olhar com uma expressão afrontada. O segundo teve mais sorte. Manu ia passando por ali, apanhou quatro cocos e furou as cascas com um dente de tubarão enfiado num cabo; e, enquanto bebiam a delicada água, ela falou com eles de um modo bastante severo, sem dúvida dizendo-lhes algo para o próprio bem deles. A certa altura juntou as mãos, como numa prece, e olhou enfaticamente em direção à popa; eles não conseguiram entender coisa alguma, mas ambos assentiram gravemente e disseram:
— Sim, madame. Certamente. Somos muito agradecidos senhora.
Mais uma vez Stephen estava para contar a Jack sobre suas íntimas convicções, deduzidas não apenas a partir das figuras de proa mas também de muitos outros pequenos sinais, formas de comportamento, carícias, rixas e reconciliações, de que estavam a bordo de uma embarcação pertencente a mulheres que não gostavam de homens, que haviam se rebelado contra a tirania dos homens e que navegavam para alguma ilha, talvez a uma grande distância, a fim de estabelecer uma comunidade feminina; e dizer que temia a possibilidade de Jack ser castrado, levar uma pancada na cabeça e ser devorado.
Antes, porém, que pudesse faze-lo, seu leitão agitou-se, guinchou e emporcalhou o convés; ao mesmo tempo, Jack foi visto ocioso com o seu almofariz, e as da faxina do mestre avançaram. Depois que a sujeira foi limpa e as calças de Stephen também — isso, por insistência delas, já que seu padrão de limpeza era excessivamente alto: fizeram com que ele as despisse e as torcesse várias vezes, até ficarem satisfeitas —, cessaram todos os gritos, socos, beliscões, bofetadas e repreensões, e Jack anunciou:
— Aí vem a comandante, creio eu, e as oficiais.
Tratava-se de uma mulher larga e atarracada, muito mais escura do que a maioria delas, com um tronco comprido e as pernas curtas; tinha um belo nariz arrebitado, mas um rosto excessivamente severo e autoritário; e, enquanto fazia seu passeio pela embarcação, ia acompanhada por duas mulheres mais altas, obviamente obtusas e obviamente dedicadas a ela. Ambas portavam as mesmas armas, uma tala de palmeira medindo trinta metros, encimada por uma saliência arredondada com olhos de madrepérola de cada lado de um bico de obsidiana{154}, possivelmente um sinal hierárquico, visto que as carregavam com certa porção de pompa. Ela não tinha, qualquer sinal hierárquico; longe disso, mordiscava despreocupadamente algo que vinha segurando, mas, enquanto avançava, os membros da tripulação mantinham as mãos unidas e as cabeças abaixadas.
— Talvez a gente deva assumir a mesma atitude de respeitosa submissão —, murmurou Stephen.
Quando a comandante chegou mais perco, ele viu que o que ela estava roendo era uma mão, uma mão defumada ou conservada em salmoura. Ela olhou para Jack e Stephen, sem qualquer prazer ou interesse e sem qualquer reação às reverências ou aos seus "Sou o seu mais humilde servo, madame" e "É a maior honra e felicidade estar a bordo com a senhora, madame". E, tendo dado uma olhada neles, dedicou-se a uma demorada e desagradável discussão com Taio e Manu, as quais, apesar das mãos juntas, falavam alto bem livremente com suas vozes claras e jovens. Stephen presumiu que elas pertenciam a uma classe privilegiada — eram mais altas, tinham a cor mais clara, e suas tatuagens eram bem diferentes; e a atitude da comandante em relação a Manu, em particular, era mais cortês do que às demais.
A comandante e suas oficiais seguiram caminhando em direção à popa por boreste; e, pouco depois, Jack girou o almofariz para poder ver e disse;
— Creio que estão montando um templo.
Realmente, algo muito parecido com um altar surgiu no meio da plataforma, e seis discos de madrepérola e uma faca de obsidiana foram colocados sobre ele, além de uma variedade de armas dispostas na parte da frente. Novamente Jack e Stephen relaxaram um pouco a atenção no trabalho e novamente uma espécie de cabo da guarda do barco, com um rugido furioso, fez com que recobrassem o senso do dever; em seguida, ela ficou bastante tempo arengando, com gestos, e, embora uma só palavra não fizesse sentido, ficou claro pela entonação que às vezes ela descrevia a conduta dos virtuosos e às vezes a dos inúteis.
E atrás dela Taio, Manu e meia dúzia das jocosas moças imitavam seus gestos e expressões com tal perfeição, que finalmente Jack não conseguiu se conter e explodiu numa áspera gargalhada reprimida. A cabo da guarda disparou para a fileira de armas e voltou para ele com um daqueles porretes com bico que as oficiais portavam, um instrumento projetado para furar um crânio com apenas um golpe; mas em vez disso apenas lhe deu um chute na barriga. Mal acabou de fazê-lo, e tudo cessou: todo mundo começou a gritar e apontar além da borda, onde Manu avistara um tubarão perto do través de boreste.
Tratava-se de uma fera de tamanho médio, de três metros e meio a quatro metros de comprimento, mas de uma espécie que Stephen não sabia determinar; nem teve tempo de ponderar, pois Manu apanhou a faca no altar e escorregou para o mar, entre os dois cascos. O que aconteceu a seguir, ele não conseguiu entender, mas seguiu-se um furioso alvoroço convulsivo a poucos metros de boreste, e depois, as moças e a cabo da guarda riram desbragadamente, enquanto Manu retornava a bordo, pingando, e o tubarão desprendia-se à ré, estripado, mas ainda se debatendo com desmedida força.
Claramente ninguém, a não ser Jack e Stephen, ficou impressionado; as outras continuaram os preparativos do altar, como se nada de importante tivesse acontecido, exceto por duas delas que ajudaram Manu a ajeitar os cabelos molhados. Uma mulher da faxina do mestre, agora usando uma veste listrada com franjas, mal teve tempo de jogar mais raízes para Jack triturar e, de passagem, dar-lhe um golpe com a ponta de uma corda, antes que tambores começassem a bater.
A cerimônia teve início com uma dança. Duas filas de mulheres, diante da comandante, ritmicamente avançavam, recuavam, oscilando suas armas, enquanto ela cantava e, no final de cada verso, todas gritavam "Wahu". As armas eram lanças, instrumentos de pau-ferro capazes de rachar um crânio, chamados pattoo-pattoo, um nome que ocorreu a Stephen assim que as viu, e porretes, alguns enfeitados com dentes humanos, outros, com dentes de tubarão; e todas as mulheres, inclusive as mascadoras de kava, os manipulavam de forma bastante convincente.
A dança seguia e seguia e seguia, a batida do tambor adquirindo uma qualidade hipnótica.
— Stephen —, cochichou Jack —, preciso ir à latrina.
— Está bem —, disse Stephen, acalmando o seu leitão. — Ji vi as mulheres fazerem isso várias vezes. A maioria faz por cima do costado.
— Mas vou ter de tirar as calças — alegou Jack.
— Então, sem dúvida, será mais decente mergulhar entre os dois flutuadores e segurar-se na plataforma, porque, embora elas pareçam tão inocentes quanto Eva antes da maçã, pelo menos no que se refere à nudez, pode ser que não encarem do mesmo modo as vergonhas de um homem.
— Acho que foi aquele peixe seco — frisou Jack. — Mas talvez eu consiga esperar. Para lhe dizer a verdade, aquela megera carrancuda — baixou a voz e acenou com a cabeça na direção da comandante — está me dando medo. Não sei o que ela está pretendendo fazer.
— Vá lá, Jack... vá enquanto pode... talvez depois seja pior... Vá imediatamente... acredito que elas já estejam atingindo o clímax.
Dificilmente Stephen poderia ter dado um conselho melhor. Mal tinham se passados cinco minutos que Jack retornara ao seu pilão, com um profundo ar de alivio no rosto, quando a dança parou, e a megera carrancuda pronunciou um demorado discurso, durante o qual apontava frequentemente para os homens, tornando-se cada vez mais veemente.
O discurso chegou ao fim, e a assembleia levantou-se e ficou andando por ali; aquilo, porém, foi apenas o início da verdadeira cerimônia. O fogareiro, que Jack notara a caminho da popa, foi trazido para a frente — brasas em uma tigela que flutuava dentro de outra — e colocado diante do altar. Imediatamente o cheiro de carne grelhada fez-se presente, juntamente com gritos rituais; mas, olhando discretamente em volta, Stephen observou que a comandante e suas oficiais estavam na verdade bebendo a kava preparada naquela manhã. A carne era apenas formal naquela fase.
— Algumas pessoas dizem que kava, a rigor, não embriaga — comentou Stephen —, que não contém álcool. Espero que tenham razão.
Contendo álcool ou não, a comandante, suas oficiais e as enormes mulheres de meia-idade estavam obviamente afetadas, quando afinal avançaram dançando pesadamente atrás da líder, que portava a faca de obsidiana. O efeito teria sido grotesco, se não fosse pelo fato de os ossos maxilares, que agora traziam pendurados nos pescoços, não fossem, em muitos casos, bastante frescos, e que, embriagadas ou não, manejavam suas armas com grande destreza.
O humor da comandante fora desagradável de início; estava agora muito pior, muito mais feroz e agressivo. Postou-se diante dos homens, os joelhos curvados, a cabeça esticada para a frente, despejando palavras que soavam repletas de censura, de profundo ódio, aliás. Não arrebanhou, porém, toda a tripulação com ela; as mulheres mais velhas estavam claramente do seu lado e muitas vezes repetiam suas últimas palavras quando ela parava para respirar, mas várias das mais jovens não estavam. Pareciam intranquilas, indispostas, descontentes, e Manu e a lanceira obviamente falavam por elas quando se manifestavam durante as pausas, ou até mesmo interrompiam abertamente a copiosa fluência e, em dado momento, peto menos três delas ficaram falando ao mesmo tempo. Era principalmente Manu quem fazia as interrupções, e Stephen ficou ainda mais convencido de que havia uma relação especial entre ela e a comandante, o que lhe dava uma confiança mais do que normal.
Ela continuava apontando para além, para a bochecha de boreste, na direção de uma pequena nesga de imóveis nuvens brancas, mas todas as vezes a comandante punha de lado suas palavras com o mesmo conjunto de frases e um movimento brusco com a faca de obsidiana. No entanto, a despeito da veemência da capitã — veemência que aumentou com as últimas interrupções —, Stephen sentiu que ela percebera que já não tinha o controle total, que fora longe demais, que o clímax lhe escapava; e ele temeu que ela fizesse algo excepcionalmente violento para voltar a tomar pé da situação. De fato, ela bradou algumas ordens, e as maiores das mulheres aproximaram-se, algumas com laços, outras com porretes; mais uma vez, porém, Manu interrompeu e, antes que a comandante pudesse retrucar, Stephen deu um passo à frente e, apontando para os quadris de Jack, falou:
— Bah, bah, bah. Taboo —, sua terceira palavra polinésia.
Isso teve um efeito instantâneo. "Taboo"? Disseram "Taboo"! Em todos os tons de afirmação, espanto e preocupação, todos os tons, menos o de ceticismo. A tensão cedeu imediatamente: as portadoras de porretes recuaram, e Stephen voltou a sentar-se com o seu leitão, que começou a grunhir. Deu pouca atenção à discussão subsequente, que prosseguiu num tom mais normal, embora ele notasse acusações, lágrimas e repreensões.
Por um bom tempo Jack e Stephen tinham achado mais prudente, mais discreto, não falar, mas então Jack cochichou: "Elas alteraram o rumo", e Stephen observou que a embarcação estava se dirigindo para a nesga de nuvens brancas.
Logo a conversa extinguiu-se. A comandante e as oficiais retiraram-se para a casa. O leitão de Stephen foi-lhe tirado, como também o almofariz de Jack. Colocaram-nos sentados no casco de boreste, entre os cocos verdes, e ali, perto do meio da tarde, foram alimentados com cestinhos separados contendo peixe cru, papa de fruta-pão e inhame.
Já não havia, porém, contentamento, alegria, curiosidade. Insipidez e melancolia tinham-se abatido sobre a tripulação do pahi, antes tão animada; e, apesar do seu grande alívio, isso afetou até mesmo Jack e Stephen, enquanto permaneciam sentados ali, observando as nuvens, e depois a ilhota, abaixo delas, se aproximar. Quando Manu trouxe a canoa com o estabilizador lateral, para levá-los a terra, percebia-se claramente que estivera chorando.
Era uma ilhota encantadora, não mais que dez acres num mar infinito, verde no meio, com um bosque de palmeiras, uma praia brilhante em volta e, circundando tudo, um extenso recife de coral com duzentos metros de distância. Manu obviamente conhecia a ilha; enfiou a canoa por uma brecha no recife, tão estreita que o braço lateral arrancou ervas do lado mais afastado. Aproximou-se alguns metros da praia e, enquanto Jack permanecia com água até a cintura, virando a canoa de volta, ela lhe deu dois anzóis de madrepérola e um pedaço de linha fina. Içou a vela, Jack deu-lhe um empurrão, e, com a forte brisa de través, a canoa voltou veloz pela brecha, com Manu de pé, abraçada à vela, uma cena mais adorável do que se poderia imaginar. Ficaram acenando até ela se distanciar no mar, mas Manu não retribuiu os acenos.
CAPÍTULO OITO
O mar cresceu durante a noite, tanto que ao alvorecer o recife que cercava a ilhota estava ainda mais branco, com a água arrebentando alta, principalmente a barlavento, e o solene e compassado estrondo das ondas enchia o ar. Jack estava ciente disso antes do abrir os olhos e tinha igualmente toda a certeza de que a brisa também ficara mais forte, mudando quase uma quadra inteira para a direção contrária, e isso se confirmou depois que saiu silenciosamente do abrigo deles sob as palmeiras, deixando Stephen dormindo encaracolado, e sentou-se na areia branca, bocejando e se espreguiçando.
A cena diante dele era de uma extraordinária beleza, o sol ainda não estava alto o bastante para fazer a areia de coral resplandecer e ofuscar, mas realçava o verde-claro da laguna em toda a sua glória, a brancura da arrebentação, o azul-oceano além dela e as várias purezas do céu, estendendo-se, através de imperceptíveis gradações, de um violeta no extremo Oeste a algo inteiramente celestial onde o sol ascendia. Ele tinha plena consciência daquilo, que, junto com o vigoroso frescor do dia, deliciava aquela parte de sua mente que não se ocupava em avaliar o rumo do pahi, enquanto estavam a bordo, e a atual posição em que eles se encontravam em relação ao provável caminho de retorno do Surprise.
Antes disso, fizera tentativas, é claro, e muitas, mas na ocasião suas faculdades estavam por demais embotadas para fornecer-lhe uma resposta convincente. Havia simplesmente assegurado a Stephen que tudo estava bem, sublime, sob controle, e fora dormir, dormir profundamente, com ondas de números subindo e descendo em sua mente.
Acontecera tanta coisa na véspera, que ele não prestara tanta atenção quanto devia à velocidade ou à direção do pahi, mas lembrou que o barco mantinha o vento entre duas e três quartas de través para ré, fora o último trecho, e, quanto à velocidade, duvidava que em qualquer momento tivesse excedido quatro nós. "Uma embarcação notavelmente engenhosa e bem-projetada", refletiu, "mas necessariamente frágil, e mais dada a bolinar do que navegar em alto-mar; não me surpreenderia se tivesse atravessado, durante a noite, quando o mar começou a subir, e não ficaria surpreso se neste momento ainda estivesse à capa, a algumas horas a sotavento".
Quatro milhas em cada hora, portanto, e o rumo, levando-se em conta o abatimento é o último trecho em direção ao Norte, provavelmente aproximando-se meia quarta a Oes-noroeste. Desenhou duas linhas na areia, a primeira indicando a viagem do pahi desde o local onde foram recolhidos até a ilha, a outra, o prosseguimento do Surprise em direção oeste e seu retorno à bolina cerrada. O navio agora estaria novamente navegando para Oeste, tendo atravessado durante a noite em algum ponto a Leste de onde os dois tinham se perdido, e no momento devia estar em algum lugar perto do meridiano inteiro a Leste deles. Traçou uma perpendicular da ilha até essa segunda linha e adotou uma expressão grave; conferiu os cálculos e adotou uma expressão mais grave ainda. Mesmo com as suas embarcações miúdas espalhadas, em todas as direções, até o limite extremo, era praticamente impossível que o navio pudesse localizar aquela ilha tão ao Norte, uma pinta de terra numa imensidão de mar, uma pinta que não apareceria em nenhuma carta; por isso, ninguém esperaria por ela.
— Praticamente impossível —, falou.
Súbito, porém, um jorro de esperança e lembrou-se que as velas do pahi tinham afrouxado durante a montagem do altar, quase ao ponto de ficarem panejando. Isso encurtava a perpendicular da embarcação: não muita coisa — talvez uma milha e meia ou mesmo duas para cada hora de dança e arenga —, mas o suficiente para afrouxar um pouco o frio aperto que ele sentia no coração.
A pergunta era: por quanto tempo Mowett insistiria na busca, com todas as embarcações ao mar e a fragata navegando lentamente, talvez num rumo em ziguezague para percorrer mais área de oceano? Jack era sabidamente um bom nadador, mas nenhum homem conseguiria ficar flutuando indefinidamente. Tendo de se dedicar à missão da fragata, de perseguir o Norfolk, durante quanto tempo Mowett ficaria vasculhando um mar aparentemente vazio? Já teria abandonado a busca? Havia as histórias de Hogg sobre ilhas mantidas em segredo, mas mesmo assim...
— Bom dia, Jack — cumprimentou Stephen. — Não é um dia gracioso? Espero que tenha dormido tão bem quanto eu, um profundo mergulho restaurador na confortadora escuridão. Já avistou o navio?
— Não, ainda não. Diga-me, Stephen, quanto tempo acha que duraram as cerimônias de ontem? A igreja delas, como diria.
— Ah, não muito tempo, tenho certeza.
— Mas certamente, Stephen, o sermão demorou horas.
— Foram o enfado e o medo que o fizeram parecer tão demorado.
— Bobagem —, exclamou.
— Ora, amigo — notou Stephen —, está me parecendo um tanto furioso... Estragou o seu desenho na areia. Está irritado por não ter visto o navio? Ele logo aparecerá, tenho certeza. Sua explicação ontem à noite convenceu-me plenamente. Nada poderia ser mais razoável, nem mais convincentemente exposto. — Coçou-se um pouco. — Ainda não nadou, presumo. Isso não daria um jeito em você, não iria corrigir os humores?
— Talvez — concedeu Jack, sorrindo —, mas sinceramente já andei nadando por muito tempo. Ainda me sinto todo encharcado, como um focinho de porco em salmoura.
— Então, nesse caso — retrucou Stephen —, creio que não achará inadequado se eu sugerir que você suba num coqueiro para fazermos o nosso desjejum. Fiz repetidas e enérgicas tentativas, mas não consegui subir mais do que seis, talvez dois metros, antes de cair, geralmente com dolorosas e talvez perigosas escoriações. Há parcelas da vida marinha nas quais ainda sou um pouco deficiente, ao passo que você é um marinheiro completo.
Completo ele era, mas Jack Aubrey não trepava num coqueiro desde as Índias Ocidentais, quando era um magro e ágil colhedor de rizes; ainda era toleravelmente ágil, mas atualmente pesava mais de cem quilos, e olhou pensativo para as altíssimas palmeiras, o tronco mais grosso não tinha mais de cinquenta centímetros de lado a lado, embora se elevasse uma centena de pés{155}; não havia um só que se mantivesse parado, mesmo numa calmaria, e agora, que soprava uma excelente brisa para gáveas, eles balançavam de uma maneira, a mais graciosa e elástica.
Não era o balançar que deixava Jack pensativo — afinal de contas, movimentos irregulares e imoderados eram-lhe razoavelmente familiares —, mas sim imaginar o que o peso de dezesseis pedras poderia fazer na extremidade de uma alavanca como aquela, seu movimento livre de enxárcias, estais e brandais, e a força imensa que exerceria na parte mais baixa do tronco e sobre as raízes enfiadas um pouco mais além da areia de coral e um pouquinho de entulho vegetal.
Caminhou pelo disperso bosque, à procura do mais robusto de todos. "Pelo menos", observou, fitando a explosão de verde lá em cima, "pelo menos a copa espalhada vai amortecer a queda, se o coqueiro desabar". E houve momentos, durante sua longa e demorada jornada acima, em que parecia que a palmeira ia descer, ia ceder sob a grande e crescente superioridade mecânica de seu corpo pesando sobre ela, às vezes em um ângulo de quarenta e cinco graus, quando o vento empurrava a árvore mais à frente; mas não, depois de cada mergulho, a palmeira oscilava novamente para cima, tão rapidamente e bem além da vertical que ele precisava agarrar-se com toda a força, e finalmente se viu em meio à grande fronde, preso firmemente e respirando com mais facilidade após a subida, ele e o cume da palmeira sacudindo para lá e para cá, na agora trajetória familiar, uma espécie de vaivém invertido, de certo modo bastante engraçado, mesmo para alguém que estivesse intensamente aflito, faminto e sedento. E, quando a palmeira ficou aprumada, no seu décimo deslocamento para trás, bem distante, a sotavento, ele avistou o pahi, à capa.
— Stephen — chamou.
— Sim?
— Estou vendo o pahi, talvez doze milhas a sotavento, à capa.
— É mesmo? Escute, Jack, vai comer sozinho um coco aí em cima e beber a água, enquanto definho aqui de privação e humilhação?
A palmeira curvou-se com uma lufada e depois voltou a se erguer, lenta, lentamente, até sua altura, e Jack, agora empoleirado ainda mais alto em meio à fronde, soltou um berro estrondoso;
— Lá está ele, lá está ele, lá está ele! — Pois, claramente no horizonte mais distante do que a canoa dupla e bem mais ao Sul, avistou as gáveas e as vergas inferiores do Surprise.
O navio estava com amuras a boreste e dirigia-se ao pahi, com o vento quase ao largo. Esclareceu isso para Stephen, de alguma forma, enquanto a palmeira balançava para lá e para cá.
— Há algo que você possa fazer a essa altura? — Perguntou Stephen, com um grito moderado superando o trovejar do mar, o barulho do vento e o alto ruído fragoroso das próprias palmeiras.
— Ora, não. — Respondeu Jack, com o mesmo forte tom de voz. — Ele deve estar a sete ou oito léguas de distância. Não há nada que eu possa fazer por enquanto, até ele poder enxergar um sinal.
— Então lhe imploro que pare de se sacudir desse modo temerário e irrefletido. Agora jogue alguns cocos para cá, por favor, e, pelo amor de Deus, vamos fazer o nosso desjejum.
— Saia daí debaixo —, alertou Jack, despejando uma chuva mortal de cocos. E, voltando a pisar no chão, minutos depois: — Nenhum viva? Nenhuma cambalhota?
— Por que eu daria vivas ou cambalhotas?
— Por causa do navio, é claro.
— Mas você sempre afirmou que ele estaria aqui perto. Por que não escolheu cocos verdes? Estes são duros como balas de canhão, coisas velhas peludas. Valha-me Deus e Maria, você consegue diferençar um do outro, o bom do ruim? Quer que eu abra um para você beber?
— Por favor. Estou exausto, por causa da subida e de tanto gritar... Stephen, você tem uma faca!
— Que nada, é a minha lanceta de algibeira. Tive de usá-la para lidar com um maldito nó no cadarço dos meus sapatos... os valiosos sapatos que me fez chutar fora... e tinha me esquecido dela, até ontem à noite, ao machucar a minha coxa quando me deitei. Disso eu me arrependo. Se tivesse me lembrado dela, poderíamos ter retribuído de alguma forma a gentileza daquela cara jovem de ombros largos. Penso nela com grande afeição.
Jack concordou sinceramente, dizendo com cordialidade que teria sido bastante apropriado e acrescentou:
— Mas, por outro lado, abre muito bem um coco velho e será de extraordinária utilidade para abrir buracos, quando mais tarde eu for fazer uma espécie de sinal.
O sinal ocupou-o toda a manhã e um pouco mais. Tratava-se de um tripé montado com compridas talas de folhas de palmeira, amarradas com fios de suas folhagens que passavam por orifícios feitos com a lanceta, o conjunto preso ao cume da árvore mais alta e desfraldando a camisa do comandante Aubrey. Isso se manteve bastante bem em sua base elástica, criando uma evidente e estranha forma angular entre todas aquelas curvas ondulações. Mas, ao ficar pronto, e tendo ele feito a última das incontáveis viagens de descida daquele elevado tronco, seu coração estava abatido. Tinha de fato pouca ou nenhuma fé no seu tripé ou sua camisa.
Por toda a manhã, nos intervalos entre o acabamento do trabalho, ele observara que o céu ficava desfigurado no Leste, o vento aumentando e recuando ainda mais o mar encrespando; mas, muito mais do que isso, observara os movimentos da fragata e do pahi com ardente intensidade; para seu espanto, tinha visto a casa do convés do pahi ser desmontada e o barco navegar à popa arrasada, com as velas em calções e uma vela redonda de esteira colocada entre os mastros, um tipo de armação que ele não sabia de que a embarcação era capaz e que a carregou rapidamente em direção oeste, com o vento soprando forte. O Surprise arribou, para interceptá-lo, e desse modo ambos seguiam rápidos e para longe, em rumos cruzados a uma grande distância a sotavento da ilha.
Estavam no momento a uma tal distância que, sob o céu nublado ele só conseguia ver de vez em quando o brilho das velas da fragata na elevação da vaga, ao passo que o pahi praticamente sumira. Não saberia dizer se a fragata havia ou não se encontrado com o pahi; tudo que sabia era que tanto o vento quanto o mar tinham aumentado de intensidade e ainda que, por uma sorte extraordinária, o Surprise tivesse obtido qualquer informação do pahi, esta seria fragmentada, incerta, totalmente falível.
Com aquele vento, aquelas ondas em sentido oposto ao vento e aquela corrente, um navio com velas redondas poderia bordejar uma semana para a ilha e, afinal, não conseguir caminho algum em direção ao Leste, uma perda de tempo que não se poderia justificar pela vaga indicação de uma tripulação de mulheres monoglotas e totalmente hostis, mesmo supondo que dessem alguma indicação. O dever exigiria que Mowett prosseguisse para as Marquesas.
— Não fique tão aflito, amigo — sugeriu Stephen. — Sente-se comodamente no chão e ouça o majestoso estrondo do mar, como ele troveja.
— Sim, troveja — concordou Jack. — O vento certamente anda soprando muito forte em algum lugar para levantar essa vaga onipotente. Mas vou lhe contar uma coisa, Stephen, receio que o tempo também deve mudar por estas bandas; e, mesmo se não mudar, talvez seja melhor decidirmos passar um bom tempo nesta ilha... A pesca é sublime, imagino, e há caramujos como petisco, se conseguirmos ir até o recife.
Stephen objetou que o navio estava perto; Jack retrucou que ele tinha ido distante demais para sotavento; Stephen falou que, nesse caso, ele deveria navegar diligentemente para barlavento; e, mais uma vez, Jack esteve a ponto de explicar o aumento do grau de abatimento, que mesmo os navios mais bolineiros precisam fazer, quando o aumento da força do vento obriga que as velas sejam rizadas ou carregadas, mas concluiu que tal explicação de nada adiantaria. A invencível ignorância não podia ser esclarecida; e embora, sem dúvida, ele pudesse ser bem-sucedido em deixar Stephen aflito e infeliz, isso não melhoraria em nada a situação deles.
Ouviu, portanto, em silencio, o amigo garantir que: "Mowett certamente encontraria meios de superar essas dificuldades... impossível não era uma palavra associada à Marinha... nada seria capaz de superar o desvelo dos marinheiros... e, se houvesse alguma demora, isso permitiria que ele completasse o seu estudo da flora e da fauna da ilha... mas apenas um pequeno atraso seria necessário, já que a terra se revelava tão lamentavelmente escassa".
— Mas —, disse Stephen, após essas palavras de consolo — estive contemplando um coral, e minha mente está tonta de perplexidade com a ideia das incontáveis miríades de animálculos separando industriosamente partículas de calcário da água do mar por uma enorme sequência de gerações, e em tão prodigiosas quantidades que chegaram a formar esta ilha, este recife, sem falar dos outros incontáveis que existem. E tudo assentado sobre o que? Sobre os esqueletos de outros pólipos de corai, os esqueletos calcários externos de outros pólipos de coral, em quantidades a respeito das quais não conseguimos ter noção, é isso que acontece.
Pois lhe asseguro, Jack, que tudo aqui, exceto esses insignificantes vegetais adventícios — gesticulando em direção às palmeiras —, é coral, vivo ou morto, areia de coral ou sólida acumulação coralina. Não há nenhuma rocha subjacente. Como isso pode ter se iniciado neste mar profundamente tempestuoso? A força dessas ondas é imensa: o animálculo é desgraçadamente frágil. Como surgem essas ilhas? Não sei lhe dizer: não consigo formular o início de uma hipótese.
— Você disse que não tem uma base de rocha?
— Absolutamente nenhuma, amigo. Coral, tudo Coral, e nada além de coral— fez uma pausa, sacudiu a cabeça e mergulhou fundo em pensamentos, enquanto Jack olhava além da laguna verde para a saltitante parede de espuma no lado mais distante do recife, refletindo que logo poderia tentar encontrar algo como uma isca e depois vadear por ali com a linha de Manu na extremidade de uma tala de palmeira. Pensava num modo de fazer uma fogueira, quando Stephen recomeçou:
— E, sendo as coisas assim, estou convencido de que aquele grande objeto redondo do tamanho de uma tartaruga média, porém mais disforme, ali na praia à sua direita, onde a água está lambendo, não pode ser uma pedra. Não. Estou mais do que quase convencido de que se traia de um enorme pedaço de âmbar-gris trazido pelo mar.
— Não foi dar uma olhada?
— Não. A associação com raridade, riqueza, e assim por diante, instantaneamente trouxe à minha mente aquela desventurada caixa de latão, a mais do que indesejável caixa do paquete Danaë, que agora está a bordo do Surprise e, diante dessa lembrança, tornei-me perfeitamente convencido, como se fosse uma revelação, de que ratos ou baratas ou traças ou vários fungos estiveram devorando o seu conteúdo, para a nossa completa ruína... devorando-o com avidez tropical, um milhão em dinheiro. Só de pensar nisso, parece que a terra sumiu de baixo dos meus pés, e desde então tenho permanecido sentado aqui.
— Aposto mil contra um como não vamos precisar da caixa de latão, nem do âmbar-gris, a não ser que ele possa ser comido — quase murmurou Jack para si mesmo. — E, se o tempo continuar mudando... se o vento soprar mesmo forte e o Surprise for levado a um grande abatimento, então aposto dez mil contra um, ou mais, muito mais. — Em voz alta, porém dando a mão para ajudar Stephen a se levantar: — Vamos lá dar uma olhada. Se for âmbar-gris, estamos feitos. Só precisaremos levá-lo ao negociante mais próximo e trocá-lo pelo seu peso em ouro, ha, ha, ha!
Não era âmbar-gris, tratava-se de um pedaço de calcário cristalino sarapintado e em parte translúcido, que deixou Maturin visivelmente estupefato.
— Como isso é possível? — Indagou, fitando em direção ao mar alto. — Não há absolutamente geleiras, icebergs... Como tais coisas poderiam aparecer aqui? Ali está a embarcação miúda. Já sei! — Exclamou. — Esta pedra foi trazida enroscada às raízes de uma árvore, uma grande árvore varrida para longe, por alguma remota enchente ou tornado, para cá lançada após derivar sabe Deus por quantos milhares de milhas, e aqui apodreceu, deixando incorruptível a sua carga. Venha, Jack, ajude-me a virá-la... Olhe — gritou, o rosto luminoso, ao deslocá-la — nestas reentrâncias ainda há vestígios de minhas raízes.
— O que quis dizer quando se referiu à embarcação miúda?
— Ora, a nossa embarcação miúda, é claro. A grande, o escaler que vem nos apanhar, como você sempre afirmou que viria. Minha nossa, Jack — disse ele, olhando para cima, com uma expressão completamente diferente —, como, em nome de Deus, eu vou encarar o pessoal?
Ele ainda estava ali, sentado na pedra, quando a lancha do Surprise, seguindo a direção dada pelo seu comandante no alto da palmeira, arremeteu pela perigosa brecha no recife, atravessou a laguna e aproou para a praia.
— Oh, senhor! — Exclamou Honey, saltando da proa e abraçando calorosamente seu comandante —, como estou contente em vê-lo! Avistamos o sinal há cerca de duas horas, mas tínhamos poucas esperanças de que fosse o senhor. Como está, senhor? E o doutor? — Esta última frase com uma sacudida de cabeça indecisa e ansiosa.
— Ele está ótimo, obrigado, Honey, e eu também. — Respondeu Jack, apertando-lhe a mão; e em seguida, mais alto, para a guarnição do escaler, que olhava em volta nos seus bancos de remadores assentindo, acenando e sorrindo, contra todas as Ordens navais de decência: — Que bom recebê-los, companheiros de bordo. São mais do que bem-vindos. Remaram por muito tempo?
— Cerca de oito horas, senhor. — Disse Bonden, rindo, como se aquilo tivesse sido um chiste espirituoso.
— Então arrastem a lancha mais alguns metros e desembarquem. Imagino que precisaremos partir com a mudança da maré, mas terão tempo de molhar a garganta com um ou dois cocos. Sr. Calamy, vai encontrar o doutor sentado numa pedra, do outro lado da ilha, na marca da baixa-mar. Diga-lhe... Há algo na embarcação para comer ou beber?
— De maneiras que Killick colocou um pouco de ponche de leite e de foca em salmoura, se por acaso o senhor não estivesse morto — explicou Bonden. — E temos as nossas rações.
— Diga-lhe então que temos ponche e foca. Avise que vamos beber e comer, e pergunte-lhe se quer se juntar a nós. Em todo caso, ele deve ficar pronto para partir em breve, pois receio que vá ventar muito. Agora, sr. Honey, por favor, conte-me o que aconteceu.
Deram pela falta deles pouco antes do amanhecer, quando um marujo dos lambazes da guarda de ré viu as janelas de popa escancaradas. Ao ser informado, Mowett gritou imediatamente: "É o doutor"! E virou o navio em roda. Todos os oficiais calcularam uma derrota que levaria o Surprise de volta ao ponto onde o comandante fora visto a bordo pela última vez. Seguiram esse rumo por várias horas, avistando quatro vezes madeiras flutuantes, até chegarem à posição que fora determinada, o que fizeram com perfeita exatidão, verificando tudo, mas com os corações arrasados e os olhos quase cegos de tanto olhar fixamente, por tanto tempo, em vão.
Então ficaram à deriva, para passar a noite, tendo tomado todo o cuidado de avançar um pouco para contrabalançar a corrente. Todos os oficiais permaneceram no convés ou nos topes, e o clima a bordo era semelhante ao de uma barcaça funerária com uma tripulação de mudos. Antes do amanhecer desceram as embarcações miúdas, como antes, e à primeira luz do dia iniciaram sua varredura em direção oeste. Quase ao mesmo tempo, alegraram-se ao avistar mais dois troncos, danificados, mas não prestes a naufragar, flutuando bastante alto, o que renovou suas esperanças; e, pouco depois disso, o bote que estava mais ao Norte, um dos cúteres...
— O cúter azul, às sete badaladas do quarto d’alva, com sua licença, excelência — acrescentou Bonden.
— ... avistou algo bem promissor e aproou ao vento; no entanto era apenas um barril vazio, mas era um barril de carne da Marinha dos Estados Unidos e bem recente.
— Um barril de carne, hein? — Matutou Jack, com intensa satisfação. — Prossiga, sr. Honey.
— Então, na mudança de quarto, Hogg, o arpoeiro-chefe do baleeiro, foi à popa e informou que havia uma ilha mais distante, ao Norte: ao lhe perguntarem como sabia disso, apontou para uma mancha de nuvens brancas e um reflexo verde no céu. Sua informação teve o apoio dos demais baleeiros do mar do Sul, os quais disseram que os ilhéus sempre navegavam baseados naqueles sinais. Indagaram-no sobre a distância, e ele respondeu que dependia do tamanho dela: cerca de trinta quilômetros, se fosse uma pequena, e muito mais para uma maior. Havia uma porção de ilhas que não constavam das cartas.
Se os náufragos tivessem encontrado um pedaço de madeira flutuante, teriam conseguido chegar até ela? Qual era a verdadeira velocidade da corrente? Poderia tê-los levado tanto assim em direção ao Norte? Estas eram as perguntas que atormentavam o tombadilho. Seria correto abandonar o rumo estabelecido?
Ficou decidido que a distância era grande demais para justificar uma mudança, a não ser que a existência da ilha fosse realmente certa, mas o cúter azul recebeu ordens para seguir a direção nor-nordeste durante uma hora, a todo o pano possível, enquanto o navio e as outras embarcações continuariam em sua varredura: isso baseado no raciocínio de que, se a ilha existisse, provocaria um fluxo em direção a terra, atraindo madeira flutuante de uma grande distância ao largo.
O tempo correu lentamente, mas afinal o cúter foi avistado retornando velozmente; foi difícil entender os seus sinais, porque na ocasião o Surprise tinha ido mais ainda para Oeste e só conseguia enxergar as pontas das bandeiras, e além disso havia mais nuvens no céu, prejudicando a luminosidade. Só quando o barco estava quase à distância de um grito, entenderam que seu pessoal avistara não apenas uma ilhota, mas também uma embarcação de dois mastros, bem distante dela, a Oes-noroeste. A essa altura, o vento ganhava força e rondava para Leste ou mesmo para Nordeste, o mar encapelava-se e com certeza estava a caminho um tempo borrascoso.
Hogg e os outros baleeiros informaram que haviam enfrentado uma tempestade violenta naquelas águas, logo depois de o mar engrossar. Aquela, provavelmente, seria a última chance deles, deduziram, então chamaram as embarcações e alteraram o rumo, "sentindo-se extremamente esquisitos". Foram em frente, e logo o vigia na barra do grande mastro avistou uma vela.
— Fui eu, senhor — exclamou Calamy. — Com a luneta do velho Boyle, ha, ha, ha!
Hogg foi para cima e avisou que se tratava de uma embarcação nativa, uma canoa dupla, bem parecida com um pahi das ilhas Tuamotu, embora não fosse exatamente igual em algumas particularidades; e, enquanto pensava nisso, avistou também a ilha, bem distante, a Leste.
Imediatamente Mowett guarneceu a lancha com tripulantes e provisões e mandou que Honey seguisse para a ilha com toda a pressa possível pois, de sua parte, ia ver se o pahi os tinha recolhido ou se o seu pessoal podia dar alguma informação — Hogg entendia a língua dos ilhéus —, e então ficaria atravessado até a lancha retornar. Marcou um ponto de encontro nas Marquesas, no caso de o tempo ficar borrascoso.
A lancha estava equipada como uma escuna, e era um barco bem bolineiro. Mas desde o início ficara claro que não daria para bordejar para ganhar barlavento; por isso, eles levaram os remos, e desse modo ela ficou praticamente invisível para quem estivesse na ilha. Após algumas horas o pessoal estava bastante esgotado e exausto, remando no que agora era um mar de proa ou perto disso; então, de pé com sua luneta, Honey viu a camisa de Jack esvoaçando no alto de uma palmeira, e depois disso desdobraram-se como heróis —, tanto Davis, quanto Padeen Colman, o criado de Stephen, chegaram a quebrar os seus remos.
— Lembre-me de descontar o valor dos remos do pagamento deles, sr. Honey — pediu Jack. Quando as risadas cessaram (pois aquele foi talvez o seu chiste mais intensamente apreciado desde Gibraltar), continuou: — Pelo menos as mãos feridas terão um descanso depois que sairmos da laguna. Estou vendo o nosso barquinho a sotavento e, com esta brisa, tornaremos a nos reunir antes do sol se pôr, sem ser preciso tocar num remo. Bonden, corra até o doutor — pois Stephen enviara de volta um recado por Calamy, informando que não estava com fome; que tinha uma última pesquisa a fazer; que voltaria logo — e diga-lhe que estamos de partida. Ajude-o a instalar-se na popa do escaler, enquanto os mastros estiverem sendo colocados. E acho aconselhável —, elevou o tom de voz —, que ninguém o felicite ou pergunte como se sente. Ele não está nada bem, após ter ficado tanto tempo molhado e ter engolido água salgada.
Jack não precisava ter feito o alerta, pelo menos não para marujos; em sua sensibilidade, eles jamais fariam a mínima observação sobre o infortúnio de Stephen, nem o fariam perceber a enorme quantidade de problemas que causara; e, de fato, quando ele veio, desajeitado, caminhando de lado pela praia, os homens revelaram o que poderia ser considerado uma brutal indiferença, abrandada apenas pela singular delicadeza com que foi erguido e instalado no bote, com um avental de pano de vela sobre os joelhos e um velho casaco azul de alguém sobre os ombros.
Durante a rápida viagem em direção oeste, com o escaler sendo impelido por mares favoráveis e um vento ainda mais forte, o ânimo de Stephen recuperou-se um pouco, principalmente depois que Jack fez um relato sobre o tempo que passaram a bordo do pahi. Não poderia ter tido uma plateia mais atenta ou mais receptiva — como riram de sua quase castração, e do terror do doutor quando o seu leitão se comportou mal e as mulheres da faxina do mestre estavam bem atrás dele —, e depois disso Stephen acrescentou mais alguns detalhes, sentindo-se bem mais à vontade. Quando, por fim, o navio surgiu à vista — quando chegou tão perto que as pessoas podiam ser vistas contra o céu no ocaso, correndo pelo convés e acenando com os chapéus —, ele voltou a emudecer.
Mas a acolhida cordial, sem fingimentos, e a afabilidade subjacente tão característica na Marinha, embora, por vezes brutal, teriam lidado com um temperamento bem mais rabugento do que o de Stephen. Em todo caso, sua habilidade profissional foi exigida de imediato; o grupo de abordagem enviado ao pahi fora repelido com assustadora ferocidade. Martin e Hogg, ao se aproximarem com presentes e palavras gentis, foram quase instantaneamente agredidos a pauladas, e os marinheiros, que os arrastaram de volta para a embarcação, atacados com lanças, agredidos com pesadas lâminas de madeira e estocados com espetos de bambu, tudo em meio a um terrível tumulto e gritaria. Havia cinco homens na enfermaria, com ferimentos além da competência do enfermeiro, todos feridos poucos instantes após a tentativa de abordagem, enquanto a chuva de pedras, lançadas por fundas, e de flechas, quando o pahi se afastou, respondia por outra meia dúzia de baixas menos graves.
— Não ligaram a mínima para os tiros de canhão — contou Mowett na câmara. — Não creio que saibam do que se trata. Toda vez que mandávamos um disparo perto do barco ou sobre suas cabeças, pulavam de um lado para o outro e agitavam as lanças. Eu poderia ter derrubado uma ou duas vergas, à claro, mas num mar como este... Em todo caso, conseguimos ver que o senhor não estava a bordo. Quanto a informação, não nos dariam nenhuma, tenho certeza.
— Agiu muito bem, Mowett — disse Jack. — No seu lugar, eu teria ficado apavorado com a possibilidade de que pudessem atacar o navio.
— Extraí o vilão — avisou Stephen, na enfermaria, onde operava com o resto da luz do dia e dezessete velas do intendente. — Está aqui na minha pinça. Um dente de tubarão, como supus, separado do porrete e enfiado no gluteus maximus{156} a uma surpreendente profundidade. Mas a pergunta é: que espécie de tubarão?
— Posso vê-lo? — Pediu Martin, com um tom de voz razoavelmente firme. Ele já tinha trinta e seis pontos no couro cabeludo, enquanto nove centímetros quadrados de emplastro de seda cobriam seus ombros lacerados, mas se tratava de um homem de uma certa resistência e, acima de tudo, um filósofo da natureza. — Um tubarão, sem dúvida —, concordou, segurando o dente para baixo em direção ao chão, pois estava deitado de bruços; a maioria dos homens do Surprise fora vergonhosamente ferida por trás, visto que tinham saído correndo o mais depressa que podiam. — Mas que espécie de tubarão, não sei dizer. Contudo vou guardá-lo no meu estojo de rape, e olhá-lo toda vez que pensar em matrimônio. Aliás, sempre que pensar em mulheres. Meu Deus, nunca mais tirarei o chapéu para uma delas, sem me lembrar do dia de hoje. Sabe, Maturin, quando pus os pés naquela coisa flutuante, o tal pahi, cumprimentei a mulher que me recebeu, fiz uma vênia, baixando a cabeça, e ela instantaneamente aproveitou-se disso e agrediu-me.
— Este é o outro lado do mundo — lembrou Stephen. — Agora a sua panturrilha, por favor. Receio que tenhamos de cortá-la em cheio. Esperava poder fazer uma extração, mas a tíbia está no caminho.
— Talvez seja melhor deixarmos para amanhã — sugeriu Martin, cuja resistência tinha limites.
— Uma ponta de lança farpada não pode esperar — retrucou Stephen. — Não quero ver inchaço, nem mesmo de orgulho, tecido morto resultante de gangrena, ou gangrena espalhando-se para cima. Pratt, acredito que o sr. Martin gostaria de ser amarrado; caso contrário, pode sobressaltar-se involuntariamente, e eu corro o risco de atingir uma artéria.
Com dedos rápidos e experientes, passou uma corrente revestida de couro pelo tornozelo de Martin e outra por trás dos seus joelhos. Pratt prendeu-as em uma cavilha de arganéu, imobilizando com eficiência, tanto o membro quanto o seu proprietário. Aqueles eram movimentos que Stephen executara várias e várias vezes e lhe eram tão familiares, quanto a relutância dos pacientes em ser operados, como também todos os seus transparentes artifícios.
Sentia-se muito à vontade em seu lugar, com os instrumentos familiares, o cheiro de sebo, da água acumulada no porão, estopa, compressas, o rum e a tintura de láudano com os quais derrubava aqueles a quem era obrigado a cortar fundo; e, quando terminou de enfaixar a perna —, Martin agora estava em silêncio, finalmente à deriva sob o efeito da droga —, sentiu-se mais uma vez totalmente parte do navio.
Levantou-se; jogou o jaleco de cirurgia para o seu canto habitual, lavou as mãos e foi para a câmara, Jack escrevia num livro. Ergueu a vista e disse:
— Aí está você, Stephen — com um sorriso, e voltou a escrever, a pena arranhando diligentemente.
Stephen sentou-se na sua cadeira particular e olhou em volta do belo aposento. Tudo estava em seu. lugar, as lunetas de Jack na prateleira, a espada pendurada ao lado do barômetro, os estojos do violoncelo e do violino pousados onde sempre ficavam, e o particularmente magnífico estojo de toalete engastado em ouro, com uma porta-partitura — presente de Diana para o marido —, ali de pé, onde sempre permanecia, e a desventurada caixa de bronze do Danaë, com o lacre intacto, escondida atrás da escoa{157}, como ele sabia muito bem; mas havia algo errado, e de repente notou que vigias de combate haviam sido adaptadas nas janelas de popa, já não havia a possibilidade de alguém conseguir cair por elas.
— Não, não foi por isso — disse Jack ao perceber o olhar do outro. — Seria o mesmo que trancar o cavalo depois de arrombada a porta do estábulo, algo idiota de fazer.
— Mesmo assim, receio que haja alguns cavalos que precisam ser controlados.
— Não, é que eu pensei que podemos pegar uma tempestade e não quero perder novamente as vidraças.
— É mesmo? Eu supunha que o mar estivesse mais calmo.
— E está, mas o barômetro tem caído de um modo horrível... Desculpe-me, Stephen, mas preciso terminar esta página.
O navio subiu e desceu, subiu e desceu, um puro mar de popa, favorável, sem jamais um vestígio de balanço nele. A pena de Jack continuou rangendo. A alguma distância, a voz desagradável de Killick podia ser ouvida cantando Heave and ho; rumbelow, e logo o cheiro de queijo tostado alcançou a câmara.
Aquele era o prazer particular deles à tardinha; no entanto, na grande câmara não houvera queijo, costado ou de outra maneira, por algumas milhares de milhas. Existiriam as tais ilusões olfativas? Perguntou-se Stephen, piscando diante da lanterna que balançava para vante e para ré. Era concebível. Afinal de contas, não havia qualquer limite para o erro. Por outro lado, porém, refletiu, a ideia que Killick fazia de suas prerrogativas tinha uma certa atmosfera naval: ele roubava de um modo tão constante e consciencioso quanto o mestre do navio, mas enquanto o mestre, por um costume imemorial, podia vender seus ganhos sem pensar no pior —, desde que não fosse apanhado ou a não ser que, criminosamente, prejudicasse o navio —, o mesmo não se aplicava ao despenseiro do comandante, e Killick nunca levava coisa alguma para além do costado.
Suas prerrogativas serviam a ele mesmo e aos seus amigos, e era possível que ele tivesse guardado um pedaço dos quase imperecíveis manchego{158} ou parmesão de algum banquete seu particular: um queijo físico, material, objetivo, com certeza tostava a uma distância não muito grande dali. Stephen estava ciente de que sua boca se enchia de água, mas ao mesmo tempo seus olhos se fechavam. "Realmente, uma combinação curiosa". Ouviu Jack dizer que seguramente haveria uma tempestade e, pensando nisso, adormeceu rapidamente.
CAPÍTULO NOVE
Jack Aubrey estava deitado no beliche, saboreando sua ressurreição: era manhã de domingo e, de acordo com um antigo costume naval, a vida diária começava meia hora mais cedo do que o habitual — o toque de apito para o recolhimento das macas cru dado seis badaladas em vez das sete — para que o pessoal do navio pudesse lavar-se, barbear-se e ficar pronto para a parada e o culto.
Normalmente levantava-se com os demais, mas naquele dia, deliberadamente, ficou à vontade, cedendo à perfeita e descontraída indolência, no conforto de sua cama, infinitamente macia e bem-feita, comparada às ásperas e escamosas copas de palmeiras, e infinitamente quente e seca, comparada ao mar aberto. Os habituais lambazes e pedras que roçavam o convés poucos pés acima de sua cabeça não o tinham acordado, visto que Mowett não permitira nada além de uma silenciosa, basicamente simbólica limpeza à ré do mastro do grande. Apesar, porém, de todo o cuidado de Mowett, Jack estava plenamente ciente da hora do dia: a intensidade da luz e o cheiro de café torrado eram por si mesmos um relógio; ainda assim, continuou deitado, desfrutando o prazer consciente de estar vivo.
Por fim, o cheiro do café desvaneceu, cedendo lugar ao odor cotidiano de mar fresco, alcatrão, madeira e cordame aquecidos, a distante água acumulada no porão, e seu ouvido captou o clique clique do pilão do ajudante de Killick triturando os grãos no almofariz pertencente à enfermaria; pois Stephen era ainda mais exigente com seu café do que Jack e, como aprendera o verdadeiro método árabe de prepará-lo, quando estiveram no mar Vermelho (caso contrário teria sido uma viagem infrutífera), ele proibira o trivial moedor. Os ouvidos de Jack também captaram o agudo insulto de Killick quando seu ajudante deixou que alguns grãos saltassem para fora; tinha o mesmo tom de justa indignação das terríveis faxinas do mestre a bordo do pahi ou da mãe de Sophie, a sr.ª Williams. Sorriu novamente. Como era bom estar vivo.
A sr.ª Williams fora ficar com eles; seu velho e terrivelmente vigoroso pai, o general Aubrey, um membro do parlamento da ala mais radical, parecia empenhado em destruir a carreira de Jack; mesmo independentemente dos motivos políticos, o almirantado o tratara com notável injustiça, desde que era um mestre e comandante, prometendo-lhe navios e depois dando-os a outros, deixando de promover seus subordinados, embora infinitamente merecedores, frequentemente questionando uma ou outra das terrivelmente complicadas prestações de contas que era obrigado a fazer, e constantemente ameaçando-o de desemprego, de deixá-lo largado em terra, para ali viver na miserável ociosidade, recebendo meio soldo. Contudo, como essas coisas eram totalmente insignificantes, inclusive as ações judiciais, em comparação a estar vivo! Stephen, um católico, já realizara sua ação de graças; a mente feliz e agradecida de Jack fazia agora quase a mesma coisa, ainda que de uma maneira menos formal, satisfazendo-se e deleitando-se com o que lhe fora restituído.
Rápidos cascos tamborilantes podiam ser ouvidos acima; Aspásia, acabando de deixar a ordenha. Observou que era mais tarde do que pensara e sentou-se; Killick, obviamente, estivera escutando do outro lado da porta do camarote de dormir, pois esta se abriu imediatamente, deixando penetrar uma enchente de luz oriental.
— Bom dia, Killick — disse Jack.
— Bom dia, senhor — retribuiu Killick, segurando uma toalha. — Vai dar um mergulho?
Naquelas águas Jack costumava nadar antes do desjejum, mesmo se fosse apenas um mergulho da mesa das enxárcias de proa e voltar pela escada de popa, para não retardar o avanço do navio, mas naquele momento respondeu que não, preferiria um pote de água quente. Sua pele e principalmente o aro de gordura em volta da cintura ainda estavam estranhamente ensopados, e no momento um banho de mar não tinha qualquer atrativo para ele.
— O doutor já levantou? — Gritou, detendo a navalha.
— Não, senhor — respondeu Killick da grande câmara, onde punha a mesa para o desjejum. — Ele foi chamado durante a noite, de maneiras que o sr. Adams teve um acesso de strong fives{159}, em consequência de ter comido e bebido demais, por comemorar o retorno do doutor. Mas um clister logo deu um jeito na complicação, Como gostaria ter eu mesmo enfiado aquilo no filho da...—acrescentou Killick, num tom de voz mais baixo, por ter certeza de que Jack não o ouviria, pois o intendente fazia objeção ao fato de Killick roubar os marinheiros, os fuzileiros, os oficiais auxiliares, o camarote dos aspirantes e o rancho da praça d’armas com o propósito de manter a câmara bem abastecida.
Com suas vozes abafadas pela distância e o vento concentrado, Hollar e seus ajudantes conseguiram ouvir o chamado sob as vigias.
— Estão ouvindo aí, de vante à ré? Camisa limpa para a formatura da parada, às cinco badaladas. Camisas de algodão e calças brancas. Estão ouvindo? Camisa limpa e barbeados para a parada, às cinco badaladas.
— Camisa limpa, senhor — entregou Killick, de passagem.
— Obrigado, Killick —, disse Jack.
Vestiu o segundo melhor calção branco, observando com pesar que, a despeito do tempo que passara encharcado e das privações, este ainda lhe apertava tanto a cintura que a casa do botão de cima tinha de ser deixada aberta. Contudo, o comprido colete cobriria a abertura.
— Não falta muito para as três badaladas, senhor — informou Killick. — É tarde para convidar mais alguém, de maneiras que é muito bom, já que Aspásia foi muito parcimoniosa com o leite dela esta manhã.
Pão torrado era o suficiente para acompanhar ovos e bacon ou bife acebolado, mas o cozinheiro de Jack apareceu com um prato bem condimentado e apetitoso de peixe seco e salgado da Juan Fernandez, bem tostado por fora, e Killick exibiu um dos poucos remanescentes vidros de geleia de laranja de Ashgrove Cottage, que ia muito bem com o pão do navio.
— Como gostaria que Sophie estivesse aqui — disse em voz alta, olhando o rótulo que ela havia escrito fazia tanto tempo.
Soaram três badaladas. Tomou o resto do café, levantou-se, pendurou o cimo da espada no ombro e vestiu o esplêndido casaco azul que Killick segurava para ele, um casaco de singular elegância, com as pesadas dragonas douradas e a fita da medalha da Batalha do Nilo em uma botoeira, só que feito de um tecido grosso mais apropriado para o inverno do canal da Mancha do que para o equador. "Contudo", refletiu, ao sentir a temperatura subir, "não preciso abotoá-lo. É pior para os outros"... e, com o coração alegre, acrescentou: "ll faut souffrir pour être beau", ao enfiar o chapéu de dois bicos na cabeça.
— Bom dia, Oakes —, cumprimentou a sentinela dos fuzileiros à sua porta, e "Bom dia, cavalheiros" ao chegar ao tombadilho. Em meio ao coro de "Bom dia, senhor", chapéus foram tirados e, imediatamente depois, uma dúzia de coletes desapareceu parcialmente por baixo de casacos abotoados até em cima.
Automaticamente, ergueu a vista para as velas, o cordame e o céu; tudo estava como ele poderia desejar — uma perfeita brisa de vela de gávea, durante a qual poderia soltar a joanete de proa, se o navio exigisse, o mar, porém, de modo algum estava como ele poderia desejar. A forte ventania — que fizera com que ele mandasse instalar vigias de combate na noite anterior —, não havia virado, e a vaga do mar de popa não diminuíra sua força — aliás, o caturro tornou difícil para a marujada arrumar seus sacos e levá-los acima, para a costumeira pirâmide nos paus de carga, a fim de que as cobertas pudessem ser limpas, pois o mar era atravessado por um curioso marulho cruzando na diagonal, que fendia a superfície de um modo aflitivo e inquietante; um mar perigoso e ao qual ele não estava acostumado, apesar de toda a sua experiência. A cerimônia que seguiria, porém, era algo que conhecia de cor; era realizada uma vez por semana em todos os navios de guerra bem-ordenados, exceto sob tempo extremamente ruim, e ele já vira aquilo pelo menos mil vezes.
A conversa amortecida a sotavento do tombadilho cessou. O contramestre no governo do navio pigarreou e, quando o último grão de terra caiu na parte inferior da ampulheta de meia hora, de gritou:
— Virar a ampulheta e bater o sino.
O fuzileiro de serviço avançou, caminhando com todo o cuidado por causa da arfagem{160} e, com toda a tripulação do navio olhando para ele, deu cinco badaladas.
— Sr. Boyle — disse Maitland, o oficial do quarto, ao aspirante que servia como ajudante do quarto. — Dê o toque do reunir divisões para a parada.
Boyle virou-se para o homem do tambor, que estava ali parado com as baquetas a postos, e falou:
— Bater o reunir divisões para a parada.
O tambor rugiu instantaneamente à ordem geral.
Os marujos, que estavam por ali em grupos amorfos, tomando excessivo cuidado com suas melhores roupas, perfeitamente lavadas, passadas a ferro e quase sempre bordadas, agora apressavam-se em formar fileiras de acordo com suas várias divisões — apenas homens do castelo de proa, gajeiros, artilheiros e a guarda de ré, uma vez que o Surprise não tinha recrutas —, enfileirando-se sobre as bem-conhecidas junções de cada bordo do tombadilho, nos talabardões e no castelo de proa.
Os fuzileiros já estavam formados mais distante, à ré, perto da grinalda de popa. Os aspirantes inspecionaram os marujos de suas divisões, tentaram fazer com que ficassem empertigados, em sentido e parassem de falar, e depois dirigiram-se aos tenentes e ao mestre-arrais; os tenentes e o mestre-arrais voltaram a inspecioná-los, tentaram fazer com que parassem de olhar para os lados e puxassem as calças para cima, e informaram para Mowett que os homens estavam "presentes e adequadamente vestidos e limpos", o qual atravessou o convés até onde estava o comandante Aubrey, tirou o chapéu e disse;
— Todos os oficiais deram o pronto, senhor.
— Então vamos inspecionar a tripulação, sr. Mowett, por favor — comandou Jack, e virou-se para a popa, onde os fuzileiros, metidos em seus casacos vermelhos, mantinham-se eretos como aríetes: as cartucheiras atravessadas no peito e branqueadas com argila reluziam, os mosquetes e baionetas também brilhavam, os cabelos estavam empoados com perfeição, os colarinhos de couro tão apertados quanto colarinhos poderiam estar, prejudicando a circulação do sangue; e, posto que os toldos tivessem sido montados, o sol oriental, mesmo sem estar no apogeu, agredia suas costas com terrível força. Talvez não estivessem belos, mas certamente estavam sofrendo.
Acompanhado por Howard, a espada desembainhada, e por Mowett, Jack passou em revista as fileiras de rostos, muitos até agora sem nome para ele, e todos impessoais, fitando o espaço além do comandante, totalmente inexpressivos.
— Bastante dignos, sr. Howard — disse Jack. — Creio que já pode dispensar os seus homens. Eles podem vestir jaquetas de algodão e esperar em silêncio, sob o castelo de proa, até a hora do culto. — Em seguida, ainda com Mowett e com cada um dos oficiais encarregados de divisão por vez, passou em revista o resto do navio.
Foi uma cerimônia bem diferente. Ali ele conhecia cada homem, a maioria deles — aliás, quase todos — intimamente, sabia de suas virtudes, defeitos, habilidades particulares, deficiências particulares. E ali nada houve do fitar remoto e impassível, nada de olhos treinados para evitar a acusação de familiaridade ou muda insolência. Longe disso, sentiam-se felizes em vê-lo, sorriam e assentiam enquanto Jack passava ... Davis até mesmo riu alto. Além disso, era perfeitamente óbvio para todos os presentes que um comandante resgatado, acabado de retornar ao seu navio por uma combinação de extraordinária sorte e esforço extraordinário, não poderia, com toda a honestidade, encontrar falhas na tripulação de seu navio. Seu giro, à guisa de inspeção era, portanto, uma simples questão de pura e cordial formalidade; e quase se transformou numa farsa, quando o gato do mestre do navio se juntou a eles e marchou imperturbável diante do comandante, a cauda para cima.
Embaixo, sob o gratificante frescor de um ventilador de lona, Stephen estava sentado junto ao seu paciente, Martin. Não estavam exatamente brigando, mas em ambos o espírito da contradição estava claramente presente e ativo; presente no capelão, por causa de seus ferimentos, e em Stephen, por causa de uma noite mais miserável do que habitualmente, a culminância de dois dias realmente penosos.
— Pode-se dizer —, afirmou ele —, que na mente do público a Marinha ainda é geralmente associada a embriaguez, sodomia e castigos brutais.
— Frequentei uma grande escola pública inglesa — observou Martin —, e os vícios a que se refere não eram, de modo algum, incomuns por lá; são, creio eu, bastante comuns, quando há uma quantidade muito grande de homens reunidos. Mas o que é incomum no serviço, e que não encontrei em qualquer outro lugar, é a fundamental camaradagem. Nem falo da coragem e do altruísmo do homem do mar, que não necessitam de comentários de minha parte, embora nunca vá esquecer aqueles generosos camaradas que me arrastaram do pahi de volta para o bote...
Stephen, por mais mal-humorado que estivesse naquela manhã, não poderia discordar. Esperou até Martin terminar e perguntou:
— Não notou, por acaso, uma jovem alta, magra e de ombros largos, com uma lança, bem parecida com uma Atena descoberta?
— Não — respondeu Martin. — Nada vi além de uma tripulação morena formada por mulheres selvagens mal-encaradas, cheias de fúria virulenta, uma desgraça para o sexo delas.
— Imagino que essas criaturas tenham sido maltratadas —, aventou Stephen.
— Talvez —, concedeu Martin. — Mas alimentar ressentimentos ao ponto da emasculação, como você disse, parece-me inumano e profundamente cruel.
— Ora, no que diz respeito à assexualização, quem somos nós para atirar pedras? No nosso mundo, qualquer moça que não consegue marido é assexsualizada. Se é de classe muito alta ou muito baixa, pode até se ajeitar por conta própria, com os riscos associados a isso, mas, em caso contrário, ou fica sem fazer sexo ou cai em desgraça. Ela se consome e é ridicularizada por se consumir. Sem falar na tirania masculina... uma esposa ou filha são meros bens móveis na maioria das leis ou costumes... e a força bruta... sem falar disso, em cada geração, centenas de milhares de moças são efetivamente assexualizadas: e mulheres estéreis são tão desprezadas quanto eunucos. Asseguro-lhe, Martin, que, se eu fosse mulher, marcharia com uma tocha flamejante e uma espada; castraria a torto e a direito. Quanto às mulheres do pahi, fico abismado com a moderação delas.
— Ficaria ainda mais abismado com a força das pancadas delas.
— É a perversa vergonha do mundo que elas devam ser privadas dos prazeres do amor. Tirésias{161} disse que os prazeres delas eram dez vezes maiores do que os desfrutados pelos homens, ou seria trinta? ... deixando de lado os prazeres mais duvidosos da maternidade e da manutenção do lar.
— Tjrésias representa nada mais do que as acaloradas ideias de Homero: mulheres decentes não têm prazer no ato, mas procuram apenas...
— Disparate.
— Concordo plenamente com você na aversão que tem por ser interrompido, Maturin — afirmou Martin.
— Peço-lhe perdão. — Stephen empinou o ouvido para a boca do ventilador de lona e indagou: — Que vivas serão esses que estão dando lá no convés?
— Sem dúvida, devem ter tomado pahi, e agora você poderá pôr em prática suas caridosas teorias — sugeriu Martin, mas sem qualquer evidente mau humor.
Ambos ficaram ouvindo atentamente, e, enquanto escutavam, pés saíram correndo em direção à popa. Padeen abriu a porta e ficou ali, emitindo sons indistintos, apontando o polegar por cima do ombro.
— Ele mesmo? — Perguntou Stephen, Padeen sorriu e anuiu e passou o casaco para Stephen. Stephen vestiu-o, abotoou-o e levantou-se quando o capitão e o imediato entraram.
— Bom dia, doutor — cumprimentou Jack. — Como vão os seus pacientes?
— Bom dia, senhor —, retribuiu Stephen. — Alguns estão um pouco impacientes e irritados, mas uma reconfortante infusão viscosa ao meio-dia cuidará disso. Os outros estão indo toleravelmente bem e ansiosos pelo seu pudim de frutas secas de domingo.
— Fico muito contente em saber disso. E creio que ficará contente em saber que recolhemos outro barril do Norfolk. Desta vez, um barril de carne de porco, recente, e flutuando bem alto, com indicações Boston e dezembro do ano passado.
— Isso significa que estamos perto dele?
— Não dá para dizer que estamos separados por uma semana ou mais, mas significa que provavelmente estamos no mesmo oceano.
Após alguns comentários sobre barris, a maneira como flutuam e seus sinais de desgaste, Martin falou:
— Acredito, senhor, que pretende ler um dos sermões do deão Donne esta manhã. Disse a Killick onde poderá encontrá-lo.
— Sim, Senhor, obrigado, e ele encontrou. Mas, agora que o li, sinto que seria mais apropriado que fosse lido por um homem letrado, um pastor de verdade. Eu me limitarei aos Artigos de Guerra, que entendo e que, em todo caso, sou obrigado a ler uma vez por mês.
E assim o fez; na pausa que se seguiu à cantoria do Old Hundredth, Ward, que, além de escrivão do capitão, atuava nessas ocasiões como sacristão, deu um passo à frente, retirou de baixo da Bíblia o fino fólio dos Artigos de Guerra e entregou-o a Jack, que começou a leitura, com uma voz potente e ameaçadora (embora não sem algum prazer):
— Para regulamentar e bem conduzir os navios, naus de guerra e forcas do mar de Sua Majestade, dos quais, sob a boa providencia de Deus, a riqueza, a segurança e a potência de seu reino dependem principalmente, é decretado pela maior Superioridade Majestática do Rei, por e com o conselho, e o consentimento espiritual e temporal dos lordes, e dos comuns, reunidos neste Parlamento...
Suas palavras desciam pelo ventilador de lona, em frações, à medida que a brisa aumentava de imensidade na crista das ondas e diminuía quando o Surprise deslizava no cavado, e fragmentos dos Artigos de Guerra misturaram-se com a conversa de Stephen e Martin, que agora mudara de assumo, por causa do falaropo{162}, a menos perigosa das aves terrestres.
— Afinal, você já viu um falaropo? — Perguntou Stephen.
— Vivo, não, infelizmente. Apenas nas páginas de um livro e com uma gravura bem medíocre.
— Quer que eu o descreva para você?
— Se lhe aprouver.
... "Todos os almirantes, e todas as pessoas em ou pertencentes aos navios ou belonaves de Sua Majestade, sendo culpados de juramentos profanos, blasfêmias, execrações, embriaguez, imoralidade, ou outros atos escandalosos em depreciação da honra de Deus, e corrupção das boas maneiras..."
— Mas a fêmea é muito maior e mais esperta; trata-se de uma criatura que não acredita que o dever de uma fêmea é meramente cuidar do ninho, chocar os ovos e criar os pintinhos. Certa vez tive a felicidade de observar um casal, da cabine de um pesqueiro, na ponta mais extrema de County Mayo. Havia um grupo deles nas vizinhanças, mas foi esse casal em particular que observei, estavam bem próximo à cabine.
... "Se qualquer navio ou embarcação for tomado como presa, nenhum dos oficiais, marinheiros ou outras pessoas a bordo deverá ser despojado de suas roupas ou de qualquer modo saqueado-, agredido ou tratado com maldade..."
— Na noite em que botou seus últimos ovos...
— Perdoe-me — disse Martin, pousando a mão no joelho de Stephen —, mas quantos ovos?
— Quatro; pontudos e praticamente com a mesma cor. Na mesma noite, ela se afastou, e o pobre macho teve de tomar conta deles. Fiquei com receio de que pudesse acontecer algo de ruim com ela, mas, que nada, lá estava ela... Eu a reconheci por causa da cara e da estranha faixa branca do lado do peito... nadando no mar e no laguinho do lado de cá dele, brincando com as outras fêmeas e os machos disponíveis. E tudo isso enquanto o pobre sujeito chocava os ovos, bem ali, num torrão de grama, a menos de quinze metros de mim, protegendo-os da chuva o melhor que conseguia, sem sair o dia todo para comer, a não ser por uns cinco minutos. Foi pior depois que os ovos chocaram, porque obviamente os pintinhos tinham de ser alimentados um a um, os quatro berrando e gritando o dia todo; e ele também não era muito hábil com a limpeza dos filhotes. Começou a ficar aflito, franzino e parcialmente pelado, e ela ali, no laguinho, perseguindo os outros falaropos e sendo caçada por eles, piando plip, plip, plip, sem querer meter o bico no trabalho. Era uma ave que sabia se arranjar sozinha, creio eu.
— Mas certamente, Maturin, como um homem casado, não pode aprovar o falaropo fêmea.
— Bem, quanto a isso — alegou Stephen, com a repentina e vivida imagem de Diana dançando uma quadrilha —, talvez ela leve as coisas um pouco longe demais, mas isso de algum modo serve para equilibrar uma balança que sempre pende vergonhosamente somente para um lado.
... "Qualquer pessoa da esquadra, que, ilicitamente, queimar ou incendiar qualquer paiol de pólvora, ou navio, embarcação, brigue, batelão ou vaso, equipamento ou mobília pertencentes eles, e não pertencente a um inimigo, pirata ou rebelde... sofrerá a morte".
Essas palavras desceram pelo ventilador com uma força inusitada e, após uma pausa solene, Martin perguntou:
— Como se define exatamente um batelão, Maturin?
— Tão certo quanto hoje é domingo, eu lhe direi francamente que eu não sei — respondeu Stephen. — Mas já ouvi a palavra ser usada como repreensão, deste modo: "Seu batelão holandês infernal" ou "A casa está toda imunda, como o convés do batelão de Gravesend".
Apenas pouco depois, Jack usou essas mesmas palavras, tão certo quanto hoje é domingo, ao recusar um pedido dos marinheiros, feito a ele pelo chefe dos gajeiros através do mestre do navio, por intermédio deste para o imediato, e por Mowett para o comandante. A ideia era: como o doutor estava muito curioso para assistir a uma luta de pugilismo, seu retorno ao navio poderia ser comemorado com uma série de disputas no castelo de proa, naquela tarde, já que os fuzileiros e até mesmos os baleeiros havia muito vinham tagarelando sobre suas extraordinárias habilidade e coragem num ringue.
— Não — disse Jack. — Tão certo quanto hoje é domingo, não posso permitir lutas. Tenho certeza que o sr. Martin vai concordar que o domingo não é dia para uma quase carnificina, uma luta de verdade, uma briga de socos com as mãos nuas. Mas, se eles quiserem pedir a Sails que lhes faça luvas acolchoadas apropriadas e usá-las para boxear como cristãos, sem derrubadas criminosas, sem corpo a corpo, sem tombos com os traseiros, nem dedo no olho ou estrangulamento, sem gravata ou puxadas no rabo de cavalo, bem, não vejo por que o próprio arcebispo de Canterbury faria alguma objeção. — Então, virando-se para Stephen: — Não sabia que você era interessado em pugilismo.
— Você nunca me perguntou — retrucou Stephen. — Já assisti a várias brigas sujas, é claro, muitas delas na Feira de Donnybrook, mas, como eu dizia outro dia a Bonden, embora isso faça parte da vida moderna, nunca assisti ao peculiar pugilato inglês. Certa vez estive bem perto disso. Conheci numa diligencia um jovem particularmente amável, um pugilista chamado Henry Pearce{163}...
— O Game Chicken? — Exclamaram juntos Jack e Mowett.
— Imagino que sim. Disseram-me que era um homem famoso. E ele me convidou para vê-lo lutar contra outro herói... Thomas Cribb, é isso? Mas na última hora tive de abrir mão desse divertimento.
— Quer dizer então que conheceu o Game Chicken — surpreendeu-se Mowett, olhando para Stephen com um respeito renovado. — Eu o vi lutar contra o Wapping Slasher em Epsom Downs, até os dois ficarem cambaleantes e quase cegos com o sangue. Depois de uma hora e dezessete minutos e quarenta e um assaltos, Pearce foi o único que conseguiu manter-se de pé, embora tivesse sido derrubado por cinco socos e o Slascher tivesse caído duas vezes em cima dele, esmagando-o com todo aquele peso, do jeito como alguns brigões fazem quando está em jugo uma valiosa bolsa.
— Não entendo como nesse tempo todo não conseguiu ver uma luta —, estranhou Jack, que muitas vezes viajara cinquenta milhas para ver Mendoza, Belcher ou Dutch Sam, os quais haviam frequentado o estabelecimento de Gentleman Jackson, o qual, por sua vez, perdera dois dentes em lutas amistosas. — Mas pelo menos isso pode ser corrigido esta tarde. Temos brigões potenciais a bordo; Bonden ganhou o cinturão em Pompey, com oito navios de linha e três fragatas competindo; Davis é um lutador capaz de permanecer de pé, como um troiano, até cortarem suas pernas, e dizem que um dos baleeiros é muito perigoso. Mowett, a pele que usamos para cobrir os colhedores será melhor do que pano de vela, se tivermos alguma que seja bastante maleável.
— Vou verificar, senhor.
— Deus do céu, Stephen — exclamou Jack, quando ficaram a sós —, como à bom estar de volta a bordo, não acha?
— Claro —, concordou Stephen. — Ainda esta manhã eu estava pensando como está certo quem diz que é melhor ser um cavalo morto do que um leão vivo. — Olhou pela vigia, obviamente repassando as palavras na mente. — Não, eu quis dizer açoitar um cavalo morto do que um leão vivo.
— Concordo plenamente.
— Mesmo assim, também não está muito certo. Sei que tem um cavalo morto em alguma parte, mas receio que desta vez tenha sido apanhado de sotavento, embora me orgulhe de conhecer provérbios, sabe, citando-os adequadamente, e no momento exato.
— Não se aflija, amigo, garanto-lhe que não há nada errado. Trata-se de um ditado precioso que nos adverte para nunca subestimar o inimigo, pois se açoitar um cavalo morto é brincadeira de criança; fazer a mesma coisa com um leão é potencialmente perigoso, mesmo que se use uma raqueta bem comprida.
No caso, o inimigo era a ondulação, e na ânsia pela diversão, todos os envolvidos a tinham subestimado e continuavam a fazê-lo, a despeito dos elevados indícios em seus sentidos e, na verdade, além do último momento possível; mesmo quando ela cresceu a tal ponto que o navio baixava, arfando até a figura de proa, e um homem mal conseguia manter-se de pé sem se segurar, havia aqueles que juravam ser apenas uma lufada que se extinguiria bem antes do sol se pôr. Certamente teriam a sua briga, e qualquer sacana metido a valentão que dissesse o contrário era um agourento, um maldito corvo, um idiota, não um marujo.
— Creio que ficará novamente decepcionado, sem o seu divertimento —, previu Jack. — Mas se o mar se aquietar e o trabalho do navio permitir, você o terá amanhã.
A ondulação, que até então era enorme, regular acima e abaixo, certamente diminuiu. Entretanto, pela manhã, deitado e acordado, Stephen sentiu um movimento inquietante, que não era nem o de um forte arfar, nem o de uma onda mais violenta, mas um tipo rápido e brusco de balanço sem uma direção definida, diferente de qualquer coisa que ele já conhecera, o balanço fazia com que o madeiramento do navio se alterasse, e isso obviamente continuou por algum tempo, já que havia uma boa quantidade de água correndo para lá e para cá pela sua câmara e seus sapatos flutuavam.
— Padeen — chamou várias vezes e, após uma pausa para escutar:
— Onde está esse negro ladrão? Que sua alma vá para o inferno.
— Que Deus e Maria estejam com o senhor, cavalheiro — disse Padeen, abrindo a porta e deixando entrar mais água.
— Que Deus e Maria esteja com você — devolveu Stephen —, e Patrick.
Padeen apontou para cima, em direção ao convés, e, após ofegar um pouco, disse em inglês:
— O diabo está a bordo.
— Imagino que esteja — concordou Stephen. — Escute, Padeen, apenas me alcance aqueles sapatos secos na redinha pendurada na parede, sim?
Seu camarote não ficava distante do centro de gravidade do navio, e, à medida que subia as escadas, o movimento aumentava, de modo que por duas vezes quase foi arremessado para fora delas, uma para o lado, outra para trás. A única pessoa na praça d’armas era o taifeiro de Howard, o fuzileiro, que informou com um ar apavorado:
— Todos os cavalheiros estão no convés, excelência.
E estavam mesmo, até o intendente e até Honey, que dera serviço no quarto da noite e deveria estar dormindo profundamente; entretanto, apesar do ajuntamento, havia pouca conversa e, além dos bons dias, o próprio Stephen não deu mais uma palavra.
O horizonte por toda a volta era de uma púrpura enegrecida e por todo o céu agitavam-se grandes massas de nuvens cor de cobre escuro, movendo-se em todas as direções, com uma estranha e incomum velocidade; relâmpagos lampejavam quase continuamente de todos os lados, e o ar estava repleto do tremor dos retumbantes trovões, distantes à popa, mas chegando cada vez mais perto.
O mar erguia-se grosso, irregular, explodindo numa tremenda arrebentação, como se impulsionado por uma forte ventania; o vento, porém, não passava de moderado. No entanto, apesar da moderação, era surpreendentemente frio e assobiava através do cordame, com um tom singularmente lamentoso e estridente.
Os mastaréus do joanete já haviam sido baixados para o convés, e todos os marujos estavam agora ocupados em amarrar, com peias duplas, as embarcações miúdas nos paus de carga, subir os contra-estais, ovéns, braços e brandais, reforçar os cabos dos canhões, acunhar e cobrir com lona o escotilhão de proa e as vigias. Aspásia apareceu e fuçou sua mão, pressionando a corpo contra a sua perna, como um cachorro aflito: um repentino solavanco quase o derrubou, mas se salvou agarrando-se nos chifres dela.
— Cuidado, doutor — gritou Jack da amurada a barlavento. — Hoje o barquinho está caprichoso.
— Diga-me, por favor: o que significa tudo isso? — Pediu Stephen.
— Uma espécie de rajada — disse Jack. — Aí no castelo de proa. Sr. Boyle, aguentar o cabo no turco do lambareiro{164}. Eu lhe conto durante o desjejum. Viu o pássaro?
— Não. Não tenho visto nenhum pássaro há muitos dias. Que tipo de pássaro?
— Uma espécie de albatroz ou talvez uma gaivota prodigiosamente grande. Ele tem seguido o navio desde então... Lá está ele, atravessando a esteira... vai aparecer acima do costado.
Stephen vislumbrou umas asas, asas enormes, e correu à vante, pelo talabardão para, da bochecha, ter uma visão melhor. A queda do talabardão para a meia nau não tinha mais do que dois metros, mas Stephen foi arremessado para fora dele com uma força invulgar e deu com a cabeça na culatra de ferro de um canhão.
Eles o carregaram em direção à ré e o deitaram no beliche de Jack, morto, a não ser por uma respiração mal perceptível e uma pulsação muito fraca. Foi ali que Martin o encontrou, depois de se arrastar das profundezas.
— Que bom que veio, sr. Martin — bradou Jack. — Mas certamente não deveria estar de pé, com essa sua perna... Apenas mandei perguntar se o senhor achava que devia ser feita uma sangria nele, já que entende de medicina. Não conseguimos fazê-lo voltar a si.
— Não aconselho uma sangria — disse Martin, apalpando a cabeça de Stephen, mole e impassível. — Nem brandy —, continuou, ao olhar para as duas garrafas, uma da cabine, a outra trazida da praça d’armas. — Conheço alguma coisa de medicina e estou convencido de que se trata de uma concussão cerebral... não um coma pleno, já que não há respiração difícil... e precisa ser tratada com repouso, silencio e escuridão. Consultarei os livros do doutor, se me for permitido, mas creio que eles não vão me contradizer nisso, nem quando afirmo que ele ficará muito melhor lá embaixo, onde o balanço é muito menor.
— Estou certo de que tem toda a razão — concordou Jack e, para Killick: — Chame Bonden. Bonden, você e Colman e, digamos, Davis, conseguem, carregar o doutor lá para baixo, sem sacudi-lo, ou precisarão usar uma talha?
— Uma talha também, senhor, por favor. Não vou querer que ele escorregue, nem por uma montanha de ouro.
— Então cuido disso, Bonden — ordenou Jack; e enquanto a talha era providenciada: — O que acha, sr. Martin? Ele está mal? Corre perigo?
— Minha opinião não vale muita coisa, mas essa obviamente foi muito mais do que uma queda normal de deixar a pessoa atordoada. Li que estados comatosos desse tipo duram dias, às vezes agravam-se e acabam em morte, e às vezes cedem e desaparecem, como se a pessoa acordasse de um sono normal. Quando não há um osso fraturado, creio que a hemorragia interna é com frequência um fator decisivo.
— Tudo pronto, senhor — avisou Bonden.
Os homens mais fortes do navio vieram junto e, entre eles, entalado entre balaústres e anteparas, Stephen foi baixado, centímetro por centímetro, como se sua pele fosse feita de casca de ovo, até estar de volta ao seu próprio beliche, com Padeen ao lado para impedir sua oscilação. O camarote era pequeno e de certo modo abafado, mas escuro, sossegado, ficava na parte menos agitada do navio, e ali as horas passavam por ele num silêncio negro.
No convés, o inferno abriu as portas quando eles estavam descendo o mastaréu da gávea meia hora depois; o amante de reforço, que gurnia pela casa da cunha do mastaréu, partiu-se no exato momento em que um dilúvio de chuva morna se abateu sobre o navio, tão grossa que mal conseguiam respirar, muito menos enxergar.
Daquele instante até a escuridão total e depois, houve uma incessante batalha contra enlouquecidas rajadas de vento vindas de todas as direções, relâmpagos e trovões bem acima de suas cabeças, um mar incrivelmente grosso, que não fazia qualquer sentido, explodindo com tal força, que ameaçava tragar o navio... explodindo como se eles estivessem sobre um recife, embora não conseguissem sondar qualquer profundidade, por mais linha de prumo que o navio possuísse. Tudo isso e mais aberrações como uma tromba d’água, que desabou sobre suas cabeças atônitas, fazendo o convés principal ficar ao mesmo nível da superfície durante vários minutos; e, sem parar, trovões vociferavam a toda a volta, enquanto o fogo de santelmo bruxuleava e luzia no gurupés e nos turcos.
Era um espaço de tempo, ou melhor — já que o tempo normal tinha ido pela borda —, uma sucessão de eventos e expedientes instantâneos, de sobrevivência a um atordoante rimbombar e a uma invasão de água a seguir, e, entre eles, peiar coisas tais como o escaler, a própria bitácula{165} e os paus de carga que haviam sido carregados para longe.
E o tempo todo, as bombas a funcionar furiosamente, despejando para fora toneladas de água que o mar ou o céu despejavam imediatamente de volta. Ainda assim, os homens nas bombas eram os menos atormentados. Embora tivessem de trabalhar até não se aguentarem de pé, geralmente com água pela cintura, quase sufocados pelo borrifo do mar ou por mais chuva, quantidades incomensuráveis de chuva, pelo menos sabiam exatamente o que fazer.
Os outros, porém, permaneciam num estado de emergência perpetuamente renovado, durante o qual tudo podia acontecer — coisas sem precedentes, acidentes perigosamente surpreendentes, como o tronco de palmeira com vinte metros, que o mar excêntrico arremessou em cheio para bordo. Levando a sua extremidade a se entalar na enxárcia do grande, enquanto o resto ficou açoitando criminosamente de um lado para o outro, varrendo os talabardões e o castelo de proa, justamente quando uma rajada igualmente excêntrica levou o pouco pano de tempo que o navio ousara abrir à ré, detendo-o, como se ele tivesse batido num recife, e fazendo-o adernar de tal modo que muitos pensaram que afinal tudo estava perdido. Realmente, se um canhão de barlavento tivesse se soltado nessa ocasião de extrema distensão, com certeza teria atravessado diretamente o costado.
Somente após o pôr do sol o vento passou a ter uma direção e algum tipo de sentido. As disforme e mutantes rajadas rodopiantes rondaram para o Norte e depois a Oeste, e eles conseguiram algum êxito com o concentrado vento Sudeste, o qual, apesar de cheio de falhas e rajadas laterais, soprava com enorme força, eventualmente levantando o mar —, que rivalizava com aquele que haviam enfrentado nas latitudes cinquenta, no tão distante Sul.
Era uma ventania muito, muito forte, com um perigoso mar de popa; mas era ao que estavam acostumados em sua profissão e, em comparação ao dia enlouquecido, foi um inegável alívio. O reunir para o rancho foi tocado durante a metade do quarto, e uma metade do quarto ingeriu sua ceia bastante atrasada. Jack ordenou uma ração extra de grogue e foi para baixo. Passou primeiro na enfermaria, onde sabia que haveria alguns homens feridos, e ali encontrou Martin entalando o braço fraturado de Hogg do modo mais primoroso; Pratt estava parado ao lado, segurando ataduras e compressas, e ficou claro que Martin assumira o controle.
— É muita bondade sua, sr. Martin —, bradou. — Espero que o senhor mesmo não esteja sentindo muitas dores. Há sangue nas suas ataduras.
— De modo algum — retrucou o pastor. — Tomei a poção de Maturin, a tintura. — Por favor, segure esta ponta um instante... e sinto-me muito leve. Acabei de vir de lá, não vi nenhuma mudança. A sr.ª Lamb está com ele neste momento.
— Darei uma olhada nos seus outros pacientes e depois, se não houver problema, irei vê-lo.
Levando-se em consideração o extraordinário rigor daquele dia, houve surpreendentemente poucas baixas e, fora o braço quebrado, ninguém se machucara seriamente; ele sentiu-se animado ao descer a escada e bastante esperançoso ao abrir a porta do camarote. Mas ali, sob a lanterna oscilante, Stephen parecia um morto — suas têmporas estavam afundadas, as narinas, contraídas, os lábios, descoloridos; estava deitado de costas, e o rosto cinzento fechado, totalmente imóvel, tinha uma inumana carência de expressão.
— Não faz cinco minutos pensei que ele tivesse nos deixado —comentou a sr.ª Lamb. — Talvez com a mudança da maré...
Não havia mudança, às duas badaladas do quarto de 00:00 h às 04:00 h, quando Jack desceu para sentar-se um pouco ao lado dele, antes de se recolher. Não havia mudança quando Martin subiu mancando para dar uma primeira respirada do ar da manhã no devastado tombadilho, desolação de popa a proa, e ali permaneceu um tempo, a observar o navio deslizando com não mais do que velas de gávea rizadas nas últimas e bujarrona sobre um mar índigo-escuro bordado com listras brancas de espuma e água agitada, deslizando com pontas desfiadas de cabos flutuantes, vergas partidas em toda a volta, e o cordame produzindo um som genérico dois tons mais baixo do habitual, deslizando logo adiante do grande mar de popa que se elevava à altura do mastro da gata.
— O que vocês vão fazer agora? — Quis saber ele, durante o desjejum na praça d’armas, após ter respondido a todas as perguntas sobre Stephen.
— Fazer? — Surpreendeu-se Mowett. — Ora, o que qualquer navio faz depois de uma borrasca... correr com o tempo com pouca vela e rezar para não sermos apanhados por um vagalhão pela popa, e que a noite não albaroemos nada pela nossa proa. Correr com o tempo, dar nós e costurar, enquanto seguimos em frente.
Não havia mudança, quando Martin foi compartilhar um jantar improvisado na câmara. Jack observou:
— Não quero ensinar-lhe nada sobre medicina, sr. Martin, mas me ocorreu que o ferimento foi muito parecido com o de Plaice e que talvez o mesmo tipo de operação resolvesse.
— Andei pensando nisso — disse Martin —, e já tive tempo de ler nos livros dele sobre o assunto. Embora neste caso não tenha havido fratura de afundamento, cuja solução habitual é a trepanação, receio que no ponto de impacto tenha ocorrido a ruptura de um vaso que transbordou sangue para os tecidos em volta, formando um coágulo, e o efeito foi o mesmo.
— Não vai tentar a operação? Não aliviaria o cérebro?
— Não ouso realizá-la.
— O senhor girou a manivela na operação de Plaice.
— Sim, mas eu tinha um especialista a meu lado. Não, não, há muitas coisas a se considerar... preciso ler muito mais... muito do assunto me é obscuro. Em todo o caso, nenhum amador teria possibilidade de operar, estando o navio com esses solavancos violentos.
Jack foi obrigado a admitir a verdade daquilo; seu rosto, porém, tornou-se grave, e ele bateu sua bolacha na mesa durante alguns momentos antes de forçar um sorriso e afirmar:
— Prometo informá-lo sobre o tempo, quando tivermos tempo de respirar; aparentemente, estávamos do lado Sul e próximo da cauda de um tufão que viaja ao largo para Noroeste. Isso explicaria os redemoinhos e a agitação das ondas em todos os quadrantes, não concorda, Mowett?
— Sim, senhor — respondeu Mowett. — E, com toda certeza, estamos agora em águas diferentes, já notou a quantidade de tubarões finos e claros em volta do navio? Um deles abocanhou a pele de boi que vínhamos rebocando sob a mesa de enxárcias para amaciá-la. Quando desci para perguntar a Hogg como estava passando, ele disse que costumava vê-los ao se aproximar das Marquesas. Disse também que não acredita que o vento tenha se desvanecido todo... nada disso, muito longe disso.
O jantar terminou naquele tom. Quando Martin pediu licença para retirar-se, disse que passaria a tarde lendo e observando muito atentamente os sintomas do paciente, e talvez praticando com o trépano em alguns dos crânios de foca que ele e Maturin possuíam.
Mais tarde, naquela noite, revelou que estava cada vez mais e mais próximo de se convencer de que a operação era necessária, principalmente porque a respiração de Stephen começava a ficar ligeiramente difícil; e mostrou trechos em Pott e La Faye que sustentavam a sua opinião. Mas, perguntou, de que adiantava a sua crescente convicção, se o navio continuava a mergulhar daquela maneira? Numa operação tão delicada, o menor solavanco, a menor falta de equilíbrio e do exato controle poderiam significar a morte do paciente. Não seria possível atravessar o navio?
— Isso não faria nenhuma diferença no movimento em geral — alegou Jack. — Aliás, faria com que o balanço e o caturro ocorressem com mais intensidade. Não, a única esperança é o mar se acalmar, o que, a não ser por um milagre, não ocorrerá em menos de três ou quatro dias, ou então ficarmos protegidos a sotavento de algum recife ou ilha. Mas não há recifes nem ilhas, indicados na carta, até alcançarmos as Marquesas. Claro que há a alternativa se o senhor... como direi? ... se preparar fisicamente para a operação. Afinal, cirurgiões navais não podem esperar por tempo calmo. Se me lembro bem, Plaice foi operado durante um vento de vela de gávea rizada nas últimas.
— É verdade, embora o mar estivesse bastante calmo. Mesmo assim, devemos fazer distinção entre timidez e temeridade; e, em todo caso, ainda que se tivesse certeza de que era a coisa a fazer, em vista da minha inexperiência e dúvidas remanescentes, com certeza não conseguiria operar sem a luz plena do dia.
Entretanto, mesmo quando veio a luz plena do dia, esta não lhe trouxe nenhuma convicção maior. Martin ainda se angustiava com a incerteza.
— Não posso suportar ver Maturin simplesmente se esvaindo desse modo, por falta de cuidados... por falta de uma ação arrojada — disse Jack. A pulsação de Stephen, sob seus dedos atentos, estava agora tão fraca que ele só podia ter a certeza de haver apenas uma em cinco minutos.
— Não posso suportar a ideia de Maturin ser morto por minha falta de habilidade ou por algum maldito solavanco no convés a meus pés — disse Martin, cujo improvisado trépano de Lavoisier fizera alguns terríveis mergulhos nos crânios em que praticava. — Tolos avançam onde anjos temem pisar.
O Surprise deslizava em direção oeste sobre o mesmo excessivamente encapelado mar azul-escuro, sob um céu brilhante repleto de altas nuvens brancas, reaparelhado, recordoado e chumeado{166} o mastro da gata rachado. A enxárcia do grande do lado de barlavento, despedaçada pelo tronco de palmeira, já fora trocada, ajustada e enfrechada{167}, e o comandante do navio retomara sua caminhada habitual. O tombadilho tinha apenas cinquenta pés de comprimento e, indo até uma cavilha de arganéu em particular, agora afinada pelo desgaste e com um brilho prateado, ele podia dar cinquenta de suas voltas para vante e para ré, o que equivalia a percorrer uma milha por terra.
Ia para lá e para cá, em meio ao atarefado ruído do navio e da constante e onipresente voz do vento e da poderosa força do mar; com a cabeça baixa e a expressão grave, parecia tão absorto que as outras pessoas no tombadilho falavam bem baixinho e mantinham-se bem a sotavento, mas estava de fato perfeitamente ciente do que acontecia à vante que, ao primeiro grito de "Terra à vista" vindo do mastaréu da gávea do grande, ele saltou para a enxárcia. Tratava-se de uma subida extremamente difícil, com o vento forte empurrando-o lateralmente, a fralda da camisa exposta, assobiando em volta de suas orelhas, e ele ficou contente pelo vigia não ter sido mandado para mais alto.
— Onde, Sims? — Perguntou, entrando pela clara da gávea.
— Três quartas pela bochecha de boreste, senhor. — Respondeu Sims, apontando; e realmente, quando o navio subiu na crista da onda, lá estava terra, terra bem alta com uma insinuação de verde, uma ilha a umas onze ou doze léguas de distância.
— Muito bem, Sims — disse Jack, e voltou a escorregar para baixo pela clara da gávea. Mesmo antes de chegar ao convés, começou a gritar para o mestre, que estava ocupado no castelo de proa. — Deixe isso por enquanto, sr. Hollar — ordenou—, e leve-me cabos finos para o topo do mastro.
— Sim, senhor — falou Hollar, sorrindo.
Tratava-se de um velho truque do comandante, horrível na aparência, mas maravilhosamente eficaz. Os cabos finos, feios e peludos, e cabos calabroteados{168} permitiam que ele seguisse arvorando velas, que de outro modo arrancariam os mastros do navio. Isso já conquistara muitas presas atraentes para a fragata ou possibilitara que se safasse de uma força bem superior.
— Sr. Mowett — ordenou —, quatro homens bons na roda do leme, que deverão ser rendidos a cada ampulheta. Vamos largar o pano. Sr. Allen, por favor, assuma a manobra do navio: rumo a Noroeste quarta a Oeste e meia Oeste.
E, meia hora depois, avistando Hogg no passadiço, amparado pelos companheiros, ele avançou e perguntou:
— E então, arpoeiro-chefe, está vendo alguma coisa?
— Sim, companheiro, estou — respondeu Hogg. — Se olhar debaixo daquelas nuvens que não se movem, bem na base delas, não vê uma área brilhante redonda, com um escuro no meio?
— Creio que sim. Sim, estou vendo.
— O brilha é arrebentação e recifes de coral, e o escuro são árvores. Aparentemente, não há águas protegidas, uma laguna, entre os recifes de coral e a praia.
— Como sabe disso?
— Ora, porque uma laguna reflete o verde, numa sucessão regular. Uma ilha bem alta, pela quantidade de nuvens. Acho que você nunca a viu, Bill — dirigindo-se para um dos que o amparavam. — Isso é mais do que evidente.
— Todos prontos e à espera, senhor — informou o mestre do navio.
— Muito bem, sr. Hollar — disse Jack e, elevando a voz: — Toda a tripulação a postos para navegar.
O novo rumo levou o vento forte do través para ré da fragata, e metodicamente Jack passou a largar o pano. Havia muito tinham içado os mastaréus da gávea, exceto, é claro, os joanetes, e primeiro ele deu ao navio um pouco de altura na vela polaca, depois na vela de estai do grande, e depois, em vez das velas de gávea rizadas nas últimas, a vela de estai da gávea. A cada momento fazia uma pausa para o Surprise absorver a força total do novo impulso; e a fragata o fazia com grande ânimo, com uma viva graciosidade flutuante, que o deixava comovido —, nunca houve um navio parecido. Quando este avançou, talvez com mais velocidade do que jamais avançara, seu turco a sotavento logo abaixo do bigode das ondas de proa, Jack pousou uma das mãos nas malaguetas, sentindo o profundo tom do casco, como podia sentir as vibrações do seu violino, e a outra num brandal, avaliando a medida exata da tensão.
Estavam acostumados com o comandante. Quase todos já o tinham visto excitado e resoluto, e tinham quase certeza de que ele não havia terminado. Nenhum, porém, esperava sua ordem para largar o traquete, e foi com rostos graves e ansiosos que se apressaram em sua tarefa. Eram necessários cinquenta e sete homens para caçar as escotas e a muras do traquete, e regular a posição dos punhos; e, ao mesmo tempo que aumentava a tensão, o Surprise adernava mais uma fiada de tábuas de costado, outra e mais outra, até revelar uma larga faixa de cobre a barlavento, enquanto o bramido do cordame tornava-se cada vez mais e mais agudo, quase uma nota sustentada. E ali o navio estabilizou-se, deslizando pelo mar e ostentando um bigode de proa no pronunciado a sotavento que o sol projetava um arco-íris duplo. Urras discretos iniciaram-se à vante e espalharam-se à ré: todos no tombadilho sorriam.
— Atenção ao anemômetro{169} — disse Jack ao timoneiro. — Se deixar o navio cair para sotavento, nunca mais verá novamente Portsmouth Point. Sr. Howard, por favor, coloque seus homens em formatura no talabardão de barlavento.
Quatro badaladas, Boyle caminhou cautelosamente pelo convés adernado, com a barquinha e o carretel debaixo do braço, seguido pelo contramestre com a pequena ampulheta.
— Dobrar a esteira do cordel! — Gritou Jack, que queria uma medição exata, com a barquinha bem distante da esteira, antes de os nós serem contados.
— O dobro de linha, senhor — devolveu Boyle, num tom de voz mais grosso que sua frágil constituição física era capaz de produzir.
Depois que a borla vermelha se deslocou quinze braças, Jack retornou ao seu posto perto da amurada e perguntou:
— Sua ampulheta esvaziou? — E teve como resposta:
— Ampulheta esvaziada, senhor.
Deitou a barquinha, segurou o carretel bem alto na mão esquerda.
— Virar ampulheta — gritou ao terminar o cordel.
A areia escorreu para baixo, o carretel girou, os nós passaram rapidamente, observados atentamente pelos marinheiros que tinham um olho de sobra. O oficial de navegação abriu a boca para gritar "aguentar", mas antes que os últimos grãos escoassem Boyle emitiu um guincho, e o carretel disparou de sua mão.
— Sinto muito, senhor — falou para Mowett após um instante de aturdimento. — Larguei o carretel.
Mowett encaminhou-se até Jack e disse:
— Boyle sente muito, senhor, mas soltou o carretel. O cordel correu solto e suponho que a malagueta estava dura: isso o pegou de surpresa.
— Não tem importância — volveu Jack, que, apesar de toda a sua ansiedade subjacente, estava profundamente comovido por causa daquela esplêndida medida de fantástica velocidade. — Mande-o tentar com uma ampulheta de quatorze segundos às seis badaladas.
Por volta das seis badaladas, a parte de cima da ilha ficou visível para quem estava no convés, uma ilhota montanhosa, com nuvens bem em cima dela; e, da gávea do grande, podia-se ver a tremenda arrebentação contra sua praia. Não havia laguna no seu lado barlavento, mas parecia haver recifes seguindo por alguma parte a Nordeste e a Sudoeste. Com uma água de cor mais clara além deles.
A essa altura, o vento diminuíra, e o Surprise não atingiu um espantoso número de nós, mas havia aquela indelével memória, cara a todas as pessoas, de um total de 150 braças que haviam saído direto do carretel antes da areia esgotar-se na ampulheta; e, de qualquer modo, o navio continuava a trazer a terra, uma milha mais perto a cada quatro ou cinco minutos.
— Sr. Martin — falou Jack na enfermaria —, alcançamos uma ilha, como imagino que já deve saber, e dentro de uma hora estaremos a sotavento dela; ou talvez, seja possível desembarcarmos. Em qualquer uma das hipóteses, peço que fique de prontidão para operar.
— Vamos dar uma olhada nele —, sugeriu Martin.
Padeen Colman estava sentado lá, as contas do rosário na mão. Sacudiu a cabeça, sem falar, querendo dizer "Nenhuma mudança".
— Trata-se de uma tremenda decisão — disse Martin, enquanto balançavam com o movimento do navio, olhando abaixo para aquela máscara rígida. — Sobretudo por que os sintomas não correspondem a nenhum dos que estão nos livros.
Novamente, e dessa vez com mais detalhes, ele explicou o que considerava que fosse a natureza daquele caso.
Ainda estava nisso quando Mowett entrou e falou baixinho:
— Desculpe, senhor, mas há um sinal içado na ilha.
A ilha chegara muito mais perto, durante o tempo em que Jack passou lá embaixo, e o sinal surgiu claro na sua luneta: uma bandeira azul e branca rasgada sobre uma alta pedra perpendicular. Jack subiu na gávea do traquete com o seu imediato, e de lá o contorno da terra revelou-se o mais claro possível: rochedos com ondas estourando nas suas alturas, no lado Leste, e em seguida um recife estendendo-se para Sul e Oeste.
Gritou para baixo as ordens que colocaram o navio com o vento à popa arrasada, com as velas da gávea e do traquete rizadas nas últimas, chegando ao extremo do recife e orçando ao seu redor, chegando ao limite do sotavento da ilha. Ali, o recife continha uma laguna de tamanho considerável e, no lado da praia, intensamente branco sob aquele céu esplendido, ele viu uma quantidade de homens, provavelmente brancos, por causa das calças e de uma ou outra camisa; alguns corriam de um lado para o outro, mas a maioria fazia gestos enfáticos em direção ao Norte.
O Surprise, agora indo com pouco mais que a velocidade que permitiria ao navio obedecer à ação do leme, avançava cautelosamente ao longo da parte externa do recife; bom próximo, mas ainda em águas profundas de acordo com o que gritava o homem na mesa das enxárcias: "Nenhuma sondagem com esta linha; nenhuma sondagem, não, não".
Embora ainda houvesse um forte marulho, o vento era muito, muito mais fraco ali, e seu quase silêncio dava ao lento deslizamento do navio a sensação de um sonho. O recife ia passando, às vezes com pequenas ilhas de palmeiras crescidas nele, coqueiros, geralmente caídos ou arrancados; e, além do recife, a tranquila laguna; além dela, a praia reluzente, margeada primeiramente por palmeiras, e depois por uma folhagem que se elevava por todos os lados, cujo estado de devastação causado pelo vento só podia ser visto com a lente; e, na praia, os homens brancos corriam e cabriolavam e apontavam. Não estavam a mais de uma milha de distância, mas o deslocamento de ar a sotavento da ilha não transportava suas vozes, que eram reduzidas a um fraco e ocasional "Ó do navio" ou a um confuso balbuciar.
— Acredito que aquilo é uma brecha, senhor — avisou Mowett, apontando para adiante do largo recife: e logo depois de uma ilha com três palmeiras arrancadas pelas raízes e três ainda de pé, havia realmente um canal até a laguna.
— Casco soçobrado adiante — gritou Jack, olhando atentamente; e, enquanto o Surprise margeava para se aproximar da brecha, ele ouviu um berro, emitido em conjunto, vindo da praia, sem dúvida um alerta, pois havia um navio naufragado bem visível no canal navegável.
Um alerta desnecessário, porém; naquela água clara, e com a maré vazante era visível desde a proa, encravada logo abaixo da superfície nos corais da pequena ilha, até a popa, mais distante, nas pedras do outro lado, o gurupés e os mastros tinham caído pela borda, sua popa estava fraturada., as portinholas de meia nau estavam destroçadas, e havia um buraco enorme, que ia da mesa das enxárcias de boreste ao ornato da alheta, um buraco pelo qual passavam compridos tubarões de cor clara, obscurecidos pela ondulação e pela vaga; mas dava para reconhecer perfeitamente que se tratava do Norfolk. Imediatamente Jack gritou:
— Içar o pavilhão e a nossa bandeira.
Isso pareceu provocar algum tipo de consternação em terra. A maioria dos homens correu em direção norte; poucos permaneceram olhando; a cabriolagem{170} cessou, e não havia mais acenos. Jack retornou ao tombadilho, e o navio prosseguiu suavemente adiante, seguindo o recife. A costa recuou, abrindo-se numa pequena angra, na qual havia um bando de barracas e abrigos onde um riacho corria do bosque pela areja. Ali havia mais pessoas, mais distantes agora, já que a laguna era mais larga, e igualmente inaudíveis; agora, por fim, evidentemente sob ordens, todos apontavam seus braços direitos na direção norte, para o lugar onde o riacho fluía através de um longo canal serpeante no recife, um quarto de milha mais largo naquele ponto.
Não havia arrebentação ali, em sua parte mais ao abrigo da costa, no entanto, mesmo assim, a ondulação ainda subia bem alto sobre o coral reluzente e recuava com uma enorme arfada.
— Que o diabo me carregue, se eu arriscar o navio ali, numa maré vazante, sem sondagem — exclamou Jack, olhando para o canal verde claro, e ordenou que fosse baixado um bote.
Podia ser feito, informou Honey, retornando, mas seria por pouco, até a enchente; e as rochas de coral em ambos os lados e no fundo eram afiadas como navalhas. Não havia uma corrente forte no momento perto da estofa de baixa-mar; mas a maré devia subir com uma corrente muito forte, para manter o fundo tão limpo, a não ser que aquilo fosse o efeito de uma violenta borrasca. Se o navio fosse demandar o canal, seria melhor talvez marcar com boias um ou dois dos piores locais.
— Não — disse Jack. — Isso não importa. Estamos em quarenta braças de água com tença favorável, podemos fundear, se quisermos. Sr. Mowett, enquanto manobramos, pegue minha baleeira e um número adequado de fuzileiros, vá para terra... com bandeira de trégua, é claro. Apresente os meus cumprimentos ao comandante do Norfolk, diga-lhe que se apresente a bordo sem demora e se entregue como prisioneiro.
A baleeira do comandante não fora pintada desde que haviam saído do rio da Prata; sua guarnição não havia tido tempo de reformar seus chapéus de gaxeta{171} de aba larga; os uniformes do tenente, do aspirante e dos fuzileiros não pareciam tão viçosos quanto eram antes de suportarem o frio antártico e o calor equatorial; mas mesmo assim os homens do Surprise tinham muito orgulho de sua aparência, tão distantes de casa e depois de tão selvagem e incomum tempestade.
Observaram a baleeira seguir pelo canal e atravessar a larga e suave laguna e, durante a longa remada, muitos dos que se encontravam de serviço passaram de mão em mão um pequeno binóculo particular, à procura de mulheres na praia; apesar da chocante experiência com o pahi, ainda procuravam por mulheres, procuravam com grande ansiedade, aliás. Os que haviam estado antes no mar do Sul tinham ouvintes silenciosos atentos:
— Ela era livre e amorosa, como a facilidade com que se respira — comentou Hogg, referindo-se à primeira que conheceu, na ilha de Oahua. — E as outras também.
Alguns dos homens tiveram de ser amarrados e carregados para bordo presos a um mastro; caso contrário, teriam pulado do navio, apesar de terem quarenta ou cinquenta libras a receber da quota deles.
— Não tem nenhuma mulher —, disse Plaice a um jovem gajeiro, após uma olhada demorada e abrangente. — Também não tem homem nenhum. É uma ilha deserta, e só tem aqueles Boston beans{172} andando de um lado para o outro. Mas aquilo ali, abrigando a grande barraca à beira do riacho, aposto como é um pé de fruta-pão.
— Pode pegar sua fruta-pão e... — falou com amargura o jovem gajeiro.
— Isso não são modos de falar com um homem que tem a idade de ser seu pai, Ned Harris — repreendeu o capitão do castelo de proa.
— Que jovem sacana insolente —, comentaram outros dois.
— Eu só quis fazer uma piada — disse Harris, enrubescendo. — Falei de brincadeira.
— Você quer é ficar com a bunda vermelha — observou o sinaleiro.
— Tem uma porção enorme de tubarões por aqui — informou Harris, para mudar de assunto. — São diferentes, compridos, finos e cinza.
— Não interessa que sejam cinza ou cor de rosa com listras laranja — retrucou o capitão do castelo de proa. — É melhor você educar essa sua língua, Ned Harris, só isso.
— Estão trazendo o comandante americano, senhor —, avisou Killick na câmara.
— Desate esse maldito laço para mim, sim, Killick? — Pediu Jack, que vestia o uniforme. — Devo estar mais gordo.
Verificou sua câmara de jantar, onde uma leve refeição fria fora servida para dar boas-vindas ao capitão do Norfolk, comeu um dos pequenos biscoitos salgados e afivelou a espada. Não queria parecer muito ansioso, caminhando pomposamente pelo tombadilho durante a aproximação do seu prisioneiro — de qualquer modo, tratava-se de algo terrivelmente desagradável ter de se render, como ele sabia por experiência própria, sem pessoas triunfantes à sua volta —, mas por outro lado também não queria parecer indiferente, como se a rendição de um post-captain não fosse de grande importância.
Esperou até lhe parecer que o momento era o mais adequado possível, colocou o chapéu armado e foi para o convés. Uma rápida olhada revelou que Honey providenciara tudo; aspirantes bastante respeitáveis, boys de cabos lavados e com suas luvas brancas a postos — agora boys de ossos grandes e um tanto cabeludos —, fuzileiros alinhados, e o navio, que ficara em idas e vindas, no momento pairava suavemente, apenas aprovando a corrente de mare, para receber a baleeira.
Ele iniciou a caminhada habitual; na terceira volta, porém uma rápida olhada para a pequena figura sentada entre Calamy e Mowett, na popa da embarcação, fez com que olhasse novamente, com mais intensidade. Era tarde demais para começar a olhar com uma luneta, mas, por causa da época em que passara como prisioneiro de guerra em Boston, conhecia muito bem os uniformes navais americanos, e ali havia algo errado.
Quando a embarcação chegou mais perto, falou para o fuzileiro de sentinela:
— Trollope, interrogue a baleeira.
O fuzileiro esteve a ponto de alegar: "Mas o bote é nosso, senhor", quando um olhar frio e disciplinado dominou seus olhos. Fechou a boca, inspirou fundo e chamou:
— Ó da baleeira.
— Não, não — veio a resposta de Bonden, forte e clara, querendo dizer que nenhum oficial comissionado estava indo para o Surprise.
— Prossiga, Sr. Honey — ordenou Jack, recuando para o corrimão de popa: os boys de cabos enfiaram as luvas nos bolsos, os aspirantes abandonaram o olhar reverente, e Howard dispensou seus homens. A embarcação atracou, e Mowett subiu pelo costado. O rosto estava bastante consternado ao apressar-se à popa em direção a Jack.
— Lamento muito, senhor — exclamou —, mas a guerra acabou.
Ele era imediatamente seguido por um animado homem baixote, gordo e de cabeça redonda, metido num casaco de um uniforme comum, que forçou passagem por Honey e aproximou-se de Jack com um sorriso radiante, a mão estendida.
— Meu caro comandante Aubrey, ofereço-lhe a alegria da paz — disse ele. — Estou feliz em revê-lo e como está o seu braço? Muito bem, como vejo, e praticamente do mesmo tamanho do outro, de acordo com a minha previsão. Não se lembra de mim, senhor, embora, sem querer vangloriar-me, eu possa dizer que me deve o seu braço direito. O sr. Evans já estava afiando os dentes de sua serra, mas eu lhe disse: não, vamos esperar mais um dia... Sou Butcher, ex-assistente de cirurgião do Constitution, e atualmente cirurgião do Norfolk.
— Claro que me lembro, sr. Butcher — exclamou Jack, a mente repleta de recordações daquela dolorosa viagem a Boston, como prisioneiro ferido, depois que o americano Constitution apresou o britânico Java. — Mas onde está o comandante Palmer? Ele sobreviveu ao naufrágio do Norfolk?
— Ah, sim, sim. Ficou ferido, mas não se afogou. Não perdemos muita gente, levando-se em conta o que aconteceu. Todas as nossas roupas, porém, se foram, e sou o único homem que possui um casaco respeitável. Foi por isso que me enviaram... O comandante Palmer não suportaria a ideia de vir a bordo de um navio de guerra britânico com a camisa rasgada e sem chapéu... Ele envia os seus melhores cumprimentos, é claro... teve o prazer de conhecê-lo em Boston, com o comandante Lawrence... e espera que o senhor e os seus oficiais ranchem com ele, com o que a ilha pode oferecer, amanhã, às três horas.
— Falou em paz, sr. Butcher?
— Ah, sim, e ele lhe contará a respeito disso, com mais detalhes do que sou capaz. Primeiro, tivemos a notícia por intermédio de um baleeiro britânico... Como ficamos frustrados por ter de deixá-lo ir, uma presa esplêndida... Depois, por um navio de Nantucket. Mas, diga-me, senhor, que história é essa que ouvi sobre o dr. Maturin... Desejam abrir a cabeça dele?
— Sofreu uma queda feia, e o nosso capelão, que entende de medicina, acredita que isso talvez possa salvá-lo.
— Se é questão de trepanação, sou a pessoa indicada. Trata-se de uma operação que já realizei várias... não, uma centena de vezes, sem perder um só paciente. A não ser, é claro, os pouquíssimos casos de grave caquexia, nos quais a operação foi realizada apenas para agradar aos parentes. Fiz uma trepanação na sr.ª Butcher por causa de uma enxaqueca persistente, e desde então ela não se queixou mais. Tenho a maior fé na operação; ela já trouxe muitos homens de volta da beira da sepultura, e não apenas em casos de fratura com afundamento do crânio. Posso ver o paciente?
— Um instrumento realmente excelente. — Comentou Butcher para Martin, revirando várias vezes nas mãos o trépano de Stephen. — Com muitos aperfeiçoamentos que desconheço. Francês, não? Lembro-me de nosso amigo — gesticulando com a cabeça na direção de Maturin — contar que havia estudado na França. Uma pitada de rapé, senhor?
— Obrigado, mas não aspiro isso.
— É a minha única indulgência — alegou Butcher. — Um excelente instrumento, mas não me admiro de que o senhor tenha hesitado em usá-lo. Eu também hesitaria, mesmo num mar tão moderado como este, quanto mais num mar como o que descreveu. Vamos leva-lo imediatamente para terra; não podemos permitir que essa pressão continue por mais uma noite ou não responderei pelas consequências.
— Ele pode ser removido em segurança?
— Claro que pode. Enrolado em cobertores presos a uma prancha acolchoada, de seis por dois, enfaixado em bandagens... e um travessão para os pés, é claro... e içado e arriado verticalmente com talhas, não sofrerá dano, dano algum, E, se o comandante Aubrey puder mandar o carpinteiro construir uma cabana um pouco mais firme do que as nossas de lona, bem, o paciente estará tão bem quanto em qualquer hospital naval.
— Sr. Mowett — avisou Jack —, vou à terra com o doutor. Estará muito escuro, na estofa de preamar, para o senhor tentar seguir pelo canal; portanto, ancore o navio e coloque n’água um comprimento extra de vinte braças de filame{173} de amarra. Com toda a probabilidade, voltarei quando as coisas estiverem sob controle, mas, se eu não voltar, vá até lá na tardinha de amanhã. Não esqueça de aumentar o comprimento da amarra, Mowett.
Stephen, parecendo ainda mais cadavérico, o rosto amortalhado por causa do Sol, foi arriado para a embarcação miúda — o escaler, dessa vez, por ser mais espaçoso do que a baleeira —, logo desatracada, lotada com o carpinteiro, sua equipe, um grupo de trabalho, uma boa quantidade de material, além de algumas provisões que Jack achou que seriam bem acolhidas por náufragos.
O comandante Palmer fora mancando para cumprimentá-lo no local de desembarque, uma pequena margem de areia dura do lado esquerdo do riacho, distante das barracas. Fizera o possível para melhorar a aparência, mas era um homem extraordinariamente peludo por natureza, e uma barba grisalha, juntamente com as roupas esfarrapadas e os pés descalços davam-lhe a aparência de um vagabundo: também fora miseravelmente contundido e arranhado por ocasião do naufrágio, e estava coberto de emplastros e ataduras improvisadas nos lugares onde as rochas de coral o limaram até os ossos. O cabelo e os emplastros tornavam difícil de interpretar a expressão do rosto, mas suas palavras foram igualmente corteses e agradecidas.
— Espero, senhor — convidou —, que venha beber o que temos a oferecer, enquanto tudo estiver sendo providenciado, pois concluo que o cavalheiro na prancha sob o toldo é o seu cirurgião, que veio a terra para ser operado pelo sr. Butcher.
— Exatamente. O sr. Butcher teve a gentileza de oferecer os seus serviços. Mas, se me der licença, senhor, preciso antes procurar alguma espécie de abrigo, enquanto há luz. Não se incomode, eu imploro — falou, quando Palmer fez menção de acompanhá-lo. — No caminho, notei uma clareira que talvez satisfaça perfeitamente.
— Esperarei ansioso por sua visita, para logo depois que se instalar e der as suas ordens — declarou Palmer, com uma cortês reverência.
Esse foi quase o único sinal de apreço entre os dois lados. O pequeno grupo atrás de Palmer, presumivelmente seus oficiais remanescentes, não pronunciou palavra alguma, e os marujos sobreviventes do Norfolk, cerca de oitenta ou noventa, permaneceram parados a uma certa distância no lado direito do riacho; os homens do Surprise instalaram-se no esquerdo, e eles entreolhavam-se duramente através da água, como dois rebanhos de gado estranhos e potencialmente hostis.
Jack ficou surpreso. Naquela absurda e desnecessária guerra houvera muito poucos sentimentos adversos, exceto por parte dos civis, e ele havia esperado muito mais prazer espontâneo, muito mais interação entre os marujos. Contudo tinha pouco tempo para essas considerações; o local com bom escoamento, a céu aberto, iluminado e arejado para o seu abrigo não fora de modo algum tão fácil de achar como imaginara.
O furacão entulhara o solo com galhos, alguns enormes; havia árvores grandes desenraizadas e outras perigosamente oscilantes; e só ao final do crepúsculo, depois de uma dura labuta, o telhado ficou pronto e o paciente deitado na sólida e cheirosa mesa recém construída de viçosa madeira de sândalo.
— Espero que a falta de luz não o prejudique, sr. Butcher.
— De modo algum —, afirmou Butcher. — Estou tão acostumado a operar cobertas abaixo que realmente prefiro luz de lanterna. Sr* Martin, se colocar uma ali, pendurada na viga, enquanto instalo a outra aqui, acredito que teremos o benefício dos raios convergentes. Comandante Aubrey, se sentar no barril perto da porta, terá uma excelente visão. O senhor não precisará esperar muito; assim que acabar de afiar este bisturi, farei a primeira incisão.
— Não —, disse Jack. — Preciso visitar o comandante Palmer e depois devo voltar ao navio. Por favor, avise-me quando a operação tiver terminado, Colman, aqui, vai esperar lá fora e me levará a informação.
— Certamente — afirmou Butcher. — Mas quanto a voltar ao navio esta noite, nem pensar, senhor. A enchente da maré penetra pelo canal como a água que movimenta um moinho; uma embarcação miúda não consegue remar contra ela, e o vento é borrascoso.
— Venha comigo, Blakeney —, falou Jack para o seu aspirante.
Fechou a porta e afastou-se rapidamente: seu estômago era forte o bastante para muitas coisas, mas não para ver o couro cabeludo de Stephen ser virado para cima do rosto, ao contrário, e um trépano cortar deliberadamente o próprio osso.
Na parte mais baixa da clareira, puderam ver os homens do Surprise cearem a sotavento da lancha, uma majestosa fogueira queimando diante deles.
— Vá lá comer alguma coisa — mandou Jack. — Diga-lhes que está tudo encaminhado. Quando acabarem a ceia, peça a Bonden que leve os suprimentos que separei para os americanos.
Caminhou lentamente, ouvindo o mar no recife distante, e às vezes olhando a lua acima, em fase decrescente. Não gostava do som de um, nem da aparência da outra. Nem do clima reinante na ilha.
Atravessou o riacho, ainda mergulhado em meditação.
— Alto —, gritou uma sentinela. — Quem vem lá?
— Amigo — respondeu Jack.
— Passe, amigo —, volveu a sentinela.
— Aí está o senhor — exclamou Palmer, conduzindo-o para a sua barraca, iluminada com a luz bem suave de uma lanterna de tope recuperada. — Parece ansioso. Espero que tudo esteja bem.
— Também espero — disse Jack. — Estão operando neste momento. Mandarão avisar-me assim que terminar.
— Tenho certeza que tudo sairá bem. Nunca soube de uma ocasião em que Butcher tivesse perdido seu doente; é tão hábil quanto qualquer cirurgião do serviço.
— Alegro-me ouvi-lo dizer isso — observou Jack. — Não vai demorar muito, creio. — Seus ouvidos já estavam empinados, para qualquer aproximação de passos.
— Entende de marés sr. Martin? — Perguntou Butcher, raspando lentamente os pelos de seu antebraço com o bisturi.
— Eu, não. — Respondeu Martin.
— Um estudo fascinante —, afirmou Butcher. —Aqui elas são particularmente curiosas, pois não são nem semidiurnas nem propriamente diurnas. Há um imenso recife a Oeste desta ilha, e creio que é ele quem confina a corrente e causa a anomalia. Mas, seja por isso ou todo um punhado de outros fatores, uma maré de sizígia como a desta noite vem com uma força enorme, uma força torrencial, e a enchente dura nove horas ou mais. Não haverá preamar até a manhã, e o seu comandante ficará, por assim dizer, ilhado durante a noite, ha, ha! Aceita um rapé?
— Obrigado, senhor— retrucou Martin. — Não aspiro isso.
— O meu estava numa caixa à prova d’água, graças a Deus — comentou Butcher, volvendo-se para a cabeça de Stephen e examinando-a com os lábios apertados. — Sempre me revigoro antes de uma operação. Alguns cavalheiros fumam um charuto. Eu prefiro rapé.
Abriu a caixa e apanhou uma pitada tão grande que a maior parte dela caiu no peito da camisa e mais ainda sobre o paciente; limpou ambas com batidas de seu lenço, e Stephen soltou um leve espirro. Em seguida, penosamente, inspirou fundo, espirrou como um cristão, murmurou algo sobre colhereiras{174}, levantou a mão para cobrir os olhos e exclamou:
— Jesus, Maria e José — com a habitual voz áspera e rascante, posto que bem baixinho. — Segure-o! — Berrou para Martin —, ou ele vai se sentar. — E, através da porta, para Padeen: — Você aí, vá pegar um cabo.
— Maturin! — Alegrou-se Martin, curvando-se sobre ele —, você voltou a si! Como estou feliz. Como rezei por isso. Sofreu uma queda séria, mas agora se recobrou.
— Apaguem essa maldita luz! — Vociferou Stephen.
— Calma, senhor, fique deitado e se acalme — pediu Butcher. Precisamos aliviar a pressão no seu cérebro... Haverá um leve incômodo, um leve estorvo... mas terminará logo... — Pediu sem muita esperança. Quando Stephen se sentou, disse para Padeen que não ficasse parado ali na porta como um grande bovino idiota e fosse apanhar para ele um gole de boa água fresca, pelo amor de Deus. Butcher guardou o bisturi e observou mansamente:
— Não terei mais a chatice de usar o novo trépano francês.
Após silenciosa pausa, o comandante Palmer perguntou:
— Bem, senhor, e como foi que o seu navio atravessou aquela tempestade?
— Muito bem, obrigado, de um modo geral, a não ser por algumas vergas perdidas e um mastro da gata rachado, mas acho que grande parte da tempestade já havia se deslocado para algum lugar do Norte. Pegamos apenas a beirada da parte Sul ou a cauda.
— Nós ficamos no olho dela, ou melhor, na testa, já que não tivemos nenhum alerta; e nos atingiu durante a noite. Foi um momento terrível, como pode imaginar, principalmente por estarmos com carência de marinheiros, pois mandamos muita gente de volta...
Palmer quase quis dizer "com as presas", mas repetiu "mandamos muita gente de volta", meramente mudando a ênfase. Era evidente pelo seu relato que o tufão apanhara o Norfolk muito antes do Surprise e que também arrastara o navio americano muito ao Norte de sua posição calculada, de modo que na manhã da quinta-feira, quando enfrentavam um mar encapelado com não mais do que um fragmento de vela num toco de mastro do traquete; para sua surpresa e horror, avistaram a aprazível Ilha do Velho Sodbury pela bochecha de boreste.
— Esta ilha, senhor? — Perguntou Jack. Palmer fez que sim. —Então já a conhecia?
— Eu conhecia a respeito dela senhor. Os navios baleeiros às vezes vêm aqui... aliás, foi batizada por Reuben Sodbury, de Nantucket... mas geralmente a evitam, por causa dos compridos e perigosos bancos de areia a poucas milhas a Oeste... bancos que estavam bem a nosso sotavento. Por isso, em vez de seguirmos diretamente para eles, que não restava outra alternativa, aproamos para a Velho Sodbury. Dois dos meus homens, baleeiros de New Bedford, já tinham estado aqui e conheciam o canal navegável. — Sacudiu a cabeça, e prosseguiu: — Mesmo assim, fomos colhidos pelo próprio rabo de maré, e a maioria de nós conseguiu arrastar-se da proa para a ilhota, e ir de lá pelo recife até a praia. Mas não conseguimos salvar nada... nenhum bote, provisões, roupas, quase nenhuma ferramenta, nenhum tabaco...
— Não conseguiram mergulhar para recuperar alguma coisa?
— Não, senhor. Não. Aquele lugar é repleto de tubarões, do tipo cinzento, tubarões da ilha do Velho Sodbury. Meu imediato e um aspirante tentaram na vazante: não sobrou o bastante deles para enterrarmos, embora não fossem peixes tão grandes assim.
Ouviram o "Alto! Quem vem lá"? Da sentinela, seguido por um estranho ofegar, depois pelo som de socos e o possante: "Ei, companheiro, por que o empurrou? Não sabe que ele é mudo"? De Bonden.
— Por que ele não disse, então? — Retrucou a sentinela, com a voz sufocada. — Me deixe levantar.
Padeen surgiu e tocou a testa com o nó do dedo sangrando; não emitiu nenhuma palavra distinguível, mas a mensagem estava clara em seu rosto reluzente e, em todo caso, Bonden estava ali para interpretá-la:
— Ele quer dizer que o doutor não foi operado, afinal de contas, Senhor... Ele se recobrou sozinho, levantou-se como por encanto, praguejou contra todos em volta, pediu água fresca, pediu água de coco, e agora está dormindo, e não são permitidas visitas. De maneiras que eu trouxe as provisões, senhor. E, senhor, o tempo pode ficar tempestuoso lá fora.
— Obrigado a vocês dois. Não podiam ter trazido uma notícia melhor. Logo estarei com você, Bonden. Agora, senhor — abrindo o baú —, aqui estão umas coisinhas que trouxemos. Receio que não haja caviar nem champanhe, mas isto é foca defumada, isto é carne de porco salgada, isto é salsicha de golfinho...
— Rum, vinho do Porto e tabaco! — Exultou Palmer. — Bendito seja, comandante Aubrey! Algumas vezes cheguei a pensar que nunca mais voltaria a ver isso. Permita-me que eu revigore a sua água de coco com um pouco deste excelente rum. Depois, se me permitir, chamarei os meus oficiais, os poucos que me restaram, para apresentá-los ao senhor.
Jack sorriu enquanto Palmer desarrolhava a garrafa; não era o que ele estava para dizer que o deixava tão contente, mas pensar em Stephen se levantando e xingando. O rum foi despejado, e a mistura, agitada. Ao recompor a expressão do rosto, Jack falou:
— Há algo que se poderia considerar quase sagrado em relação ao vinho ou grogue ou mesmo talvez à cerveja, que a água doce ou a água de coco não possuem; portanto, antes de beber com o senhor, é apropriado que eu lhe diga que deve se considerar um prisioneiro de guerra. Claro que não recorrerei a extremos. Não vou insistir, por exemplo, que volte comigo esta noite para o navio ou qualquer coisa desse tipo. Nada de algemas, ferros ou grilhetas. — Disse isso com um sorriso, embora o Constitution tenha algemado os marinheiros capturados do Java. — Contudo, quero deixar essa atitude clara.
— Mas, meu caro senhor, a guerra acabou —, exclamou Palmer.
— Foi o que ouvi — disse Jack após uma ligeira pausa, num tom de voz menos cordial. — Mas não fui comunicado oficialmente, e suas fontes podem estar equivocadas. Como sabe, as hostilidades continuam até que se receba uma contraordem de um oficial mais antigo.
Mais uma vez Palmer falou sobre o baleeiro britânico, o Vega, de Londres, que se encontrara com ele e lhe falara da paz — mostrara-lhe um jornal recente de Nova York, comprado em Acapulco, com uma notícia sobre o tratado de paz; e falou sobre o navio de Nantucket, cujos oficiais e marinheiros, todos eles, falaram disso como um fato consumado. Narrou tudo com grandes detalhes e do modo mais sério.
— Obviamente — observou —, não posso argumentar contra vinte e oito canhões de grosso calibre, mas espero persuadir o oficial que os comanda, a não ser que só esteja preocupado com derramamento de sangue e destruição.
— Certamente — volveu Jack. — Mas deve saber que mesmo ao mais humano dos oficiais exige-se que cumpra o seu dever, e que o seu dever às vezes desagrada em muito os seus sentimentos.
— Também se exige dele que use discernimento —, alegou Palmer.
— Todo mundo ouviu falar das terríveis matanças nas partes remotas do mundo, muito tempo depois da paz ser assinada, mortes que cada homem decente deve lastimar. Navios afundados ou incendiados também, ou capturados, para serem devolvidos depois de infindáveis protelações e perdas. Aubrey, não percebe que, se usar sua força superior para nos levar de volta à Europa, justamente na ocasião em que essa guerra infeliz e miserável teria sido encerrada, sua ação será amargamente ressentida nos Estados Unidos, como o foi a do Leopard, quando atirou no Chesapeake?
Um golpe de astúcia. Na época Jack comandava aquele navio infeliz, um dois conveses dotado de cinquenta peças de artilharia, e sabia muito bem que um dos seus predecessores, Salusbury Humphreys, recebera ordem de reaver alguns desertores da Marinha Real do Chesapeake, de bandeira americana, uma fragata de trinta e seis canhões; o comandante americano impediu que o seu navio fosse revistado, e o Leopard disparou nele três salvas de artilharia, matando ou ferindo vinte e um de seus marinheiros. Conseguiu reaver alguns dos desertores, mas o incidente quase provocou uma guerra, e de fato fechou todos os portos americanos para os navios de guerra britânicos. Isso também significou permanecer em terra, para a maioria dos oficiais envolvidos, incluindo o almirante.
— Compreensivelmente, o comandante Humphreys estava dentro do seu direito legal de disparar contra o Chesapeake — admitiu Palmer. — Não sei, não sou advogado. E, compreensivelmente, o senhor estará cumprindo estritamente suas ordens, se nos levar para a Europa como prisioneiros. Mas não creio que essa vitória desprezível sobre homens desarmados e naufragados seria muito honrada para o seu serviço ou lhe daria muita satisfação. Não, senhor, o que espero e que use os seus amplos poderes de discernimento e nos leve para Huahiva, nas Marquesas e não uma centena de léguas além, onde tenho amigos e posso cuidar de mim mesmo e dos meus homens; se não achar isso uma boa solução, espero que pelo menos nos deixe aqui e faça saber aos nossos amigos onde poderão nos encontrar. Pois presumo que agora voltará para casa pelo cabo, passando perto das Marquesas. Podemos aguentar aqui por um ou dois meses, embora a comida esteja escassa por causa do furacão. Pense nisso, senhor, medite bem, lhe imploro. E, nesse meio tempo, brindemos à. saúde do dr. Maturin.
Após tais palavras, o maior dos sorrisos relampejantes iluminou seu rosto angustiado.
— Com todo o coração. — Brindou Jack, esvaziou sua casca de coco e levantou-se. — Preciso voltar ao navio.
Demorados e impetuosos trovões abafaram o início da réplica de Palmer, mas Jack captou as palavras:
— ...eu devia ter-lhe informado antes... nove ou dez horas de maré, é impossível remar em direção contrária do canal. Por favor, aceite este leito... — apontando para um monte de folhas coberto com pano de vela.
— Obrigado, mas preciso ir e ter notícias de Maturin.
Deixando as árvores, ele olhou além da linha branca do recife à procura da luz de fundeio do Surprise e, depois que os seus olhos se acostumaram à escuridão, conseguiu enxergá-la, bem fraca, a Oeste, como uma estrela se extinguindo.
— Tenho certeza que Mowett vai largar mais filme de amarra — disse ele.
O escaler fora arrastado para um local além da marca da preamar e virado de cabeça para baixo sobre troncos de palmeiras destroçados, formando desse modo uma casa baixa, mas espaçosa; o cobre do fundo podia ser visto reluzindo ao luar e por baixo da amurada derivava a fumaça acre de dezenas de cachimbos. A alguma distância, Bonden caminhava de um lado para o outro, à sua espera.
— Tempo borrascoso, senhor — comentou.
— Sim — confirmou Jack, e ambos ficaram a olhar para a lua, a qual vez por outra espiava por entre as nuvens que corriam e rodopiavam, embora lá embaixo não houvesse mais do que uma brisa mutável e inconstante. — Parece muito com a combinação que houve antes. Deve ter ouvido falar da corrente de maré de nove horas de duração, creio.
— Sim, senhor. Um sujeito muito desagradável veio ao meu encontro, quando eu voltava da barraca. Um inglês: foi o que disse. Também disse que era um tripulante do Hermione, e que havia muito mais no Norfolk, uns vinte ou mais, fora os outros desertores. Disse que os indicaria, se o senhor o levasse em segurança e lhe garantisse uma recompensa. Eles ficaram apavorados quando viram o Surprise... Primeiro, pensaram que era um navio russo e deram vivas, mas depois ficaram apavorados quando viram quem realmente ele era.
— Tenho certeza que sim. O que você disse a esse do Hermione?
— Que ia falar com o senhor.
O céu iluminou-se de ponta a ponta, revelando um vasto negror que avançava do Sudeste. Ambos correram para os abrigos, mas antes que Jack conseguisse alcançar o dele a parede de chuva apanhou-o e o deixou todo encharcado. Com ridícula precaução, abriu e fechou silenciosamente a porta, e ficou ali parado, pingando no interior da cabana, enquanto o rugido sibilante da água que caia e o estrondo dos trovões enchia o mundo exterior; do mesmo modo absurdo, Martin, que lia um livro à luz de uma lanterna sombreada, colocou um dedo sobre os lábios e com outro apontou para Stephen, deitado ali, de lado e encaracolado, dormindo pacífica e naturalmente, e sorrindo de vez em quando.
Ele dormiu a noite toda, apesar da violenta noite, mais violenta do que Jack já vira, e mais barulhenta. Pois, quando a ventania começou de verdade, o que fez com um repentino guinchado à uma da madrugada, ela não tinha apenas os mastros e o cordame de um navio para produzir o seu bramido, mas todas as árvores e os arbustos restantes da ilha; ao mesmo tempo, a tremenda arrebentação, vindo mais do Sul do que antes, produzia um som grave no solo de semelhante enormidade, mais para ser sentido por todo o ser de uma pessoa do que realmente ouvido através do vento uivante e do estrondo das árvores viradas de ponta-cabeça.
— O que foi isso? — Perguntou Martin quando a cabana reverberou com pancadas como marteladas, durante uma lufada particularmente violenta.
— Cocos — respondeu Jack. — Graças a Deus, Lamb fez um excelente serviço no telhado. Numa ventania dessas eles são mortais.
Stephen dormiu enquanto os cocos martelavam, dormia enquanto surgia a primeira luz turva do alvorecer, mas abriu um olho durante a calmaria que veio com o nascer do sol, disse "Um bom dia para você, Jack" e voltou a fecha-lo.
Com a mesma precaução de antes. Jack saiu devagarinho pela porta para a paisagem transbordante de destruição causada pelo vento. Correu até a praia, com água pelos tornozelos, onde verificou que a lancha não fora deslocada, e ali, de pé no largo tronco de uma árvore caída e apoiado em uma palmeira ainda intacta, examinou com o binóculo o branco oceano aguado. Varreu o horizonte de um lado a outro, observando atentamente até a vaga se erguer; perto e longe, Norte e Sul; mas não havia um navio no mar.
CAPÍTULO DEZ
Dois pensamentos me ocorrem — disse Jack Aubrey, sem tirar os olhos do buraco na parede que dominava o lado ocidental da ilha, as águas varridas pela chuva onde o Surprise talvez pudesse aparecer. — O primeiro é que, de longe, levando ludo em consideração, nunca tive uma comissão com tanto temporal.
— Nem mesmo no terrível velho Leopard? — Perguntou Stephen.
— Eu não lembro de tais pés-d’água, de tais imensuráveis vagalhões...
Também lembrava de uma remota baía antártica cercada de terras sem acesso ao mar, onde passaram semanas e semanas em reparos, em meio a albatrozes, gaivotas, petréis{175} gigantes, corvos marinhos de olhos azuis e uma variedade de pinguins, todos eles mansos.
— No Leopard foi muito rigoroso — lembrou Jack —, e também quando eu era aspirante, no Namur, e fazíamos a escolta do comércio de Archangel. Eu acabara de lavar o cabelo na água doce, que o meu colega e eu tínhamos conseguido derretendo gelo, e tínhamos trançado o rabo de cavalo um do outro... Sabe, a gente costumava usá-los bem compridos, como os marujos daquela época, e não amarrados para cima, exceto em batalhas... Nesse instante todos os homens foram chamados para a redução do pano, o vento soprava forte de nor-nordeste, com cristais de gelo caindo espessos e compactos. Fui acima para ajudar a rizar a gávea, e passamos um mau bocado, o vento forte soprando sem parar na direção sotavento, e um dos cabos se partiu... eu estava no lais da verga a barlavento.
Contudo conseguimos dar um jeito no final e, quando estávamos para nos pôr à capa, o meu chapéu voou da cabeça e ouvi um forte estalido bem atrás do ouvido: era o meu rabo de cavalo, que fora arremessado contra a talha. Ele tinha congelado e quebrado bem no meio. Palavra de honra, Stephen, ele havia simplesmente quebrado, como um graveto seco. O pessoal o recolheu no convés, e o guardei para dar a uma moça a quem eu era afeiçoado na ocasião, de Keppel’s Knob, em Pompey, achando que ela ia gostar, mas não gostou. — Uma pausa. — Ele estava molhado, entende, e foi por isso que congelou.
— Creio que entendo — disse Stephen. — Mas, meu caro, não está se desviando um pouco do assunto?
— O que eu quero dizer é que, embora tenha havido outras pelejas mais duras enquanto duraram, esta comissão leva o prêmio em relação ao mau tempo, quantidade e quase que sou levado a dizer magnitude de mau tempo. A outra coisa que me ocorreu — falou, virando-se — é que é extremamente constrangedor conversar com um homem com pelo por todo o rosto. Não dá para perceber o que ele está pensando, o que está realmente querendo dizer, se está ou não sendo falso. Às vezes as pessoas usam óculos com lentes azuis, e é quase a mesma coisa.
— Refere-se ao comandante Palmer, sem dúvida.
— Exatamente. Durante este último período, amontoado aqui com Martin e Colman, e você tão indiferente, não quis falar a respeito dele. — Com este "último período", ele se referia aos três dias de tempestade excessivamente violenta que os mantivera presos na cabana, com praticamente nem uma hora de intervalo.
O temporal no momento baixara para uma ventania moderada, e, conquanto a chuva tivesse recomeçado, não possuía mais a característica sufocante e ofuscante do dilúvio anterior, e as pessoas já caminhavam com lentidão pela ilha, recolhendo as frutas-pães derrubadas, principalmente as que tinham sementes semelhantes à castanha, e cocos, muitos deles rachados, apesar do grosso folhelho.
— Pois bem. Não sei mesmo o que dizer dele. Minha primeira impressão foi que era verdade o que Butcher havia dito e o que Palmer afirmou... que a guerra acabou. Não imagino que um oficial possa contar uma mentira descarada.
— Ora, vamos, Jack, pelo amor de Deus! Você é um oficial e já o ouvi mentir inúmeras vezes, como Ulisses. Tenho visto você içar bandeiras dizendo que é holandês, um navio mercante francês, um navio de guerra espanhol... que era amigo, um aliado... qualquer coisa para iludir. Ora, não tardaríamos a viver num paraíso terrestre, se o governo, monárquico ou republicano, desse a um homem uma comissão que o isentasse da mentira... do orgulho, inveja, preguiça, gula, avareza, ira e luxúria.
O rosto de Jack, que obscurecera diante da palavra mentira, iluminou-se diante da luxúria.
— Ora — bradou —, são apenas ruses de guerre e perfeitamente legítimos; não são mentiras descaradas, como dizer que estamos em paz, quando se sabe muito bem que há a maldita guerra. Isso seria como se aproximar de um inimigo sob falsa bandeira, o que é perfeitamente apropriado, e atirar antes de baixá-la e hastear a verdadeira, no último instante, o que é profundamente desonroso, o ato de um reles pirata, e pelo qual quem o fizesse deveria ser enforcado.
Talvez para um civil seja uma distinção muito tênue, mas lhe asseguro que é perfeitamente clara para homens do mar. De qualquer modo, não creio que Palmer seria capaz de mentir, e a minha primeira ideia foi levá-los até as Marquesas e soltá-los, os oficiais em liberdade condicional, impossibilitados de servir novamente até serem transferidos, no caso de ter havido um engano... o tratado não ter sido ratificado, ou algo do gênero. No entanto, embora a captura, no meu modo de ver, não passasse de uma formalidade, quis deixar isso bem claro imediatamente; não quis prosseguir com as cortesias, jantares para cá e para lá, beber juntos e depois dizer: "A propósito, gostaria que me entregasse a sua espada".
Por isso, no primeiro encontro, disse-lhe que era um prisioneiro de guerra. Não falei isso exatamente com leviandade... Fora de qualquer coisa, trata-se de um homem muito mais velho, um ancião... mas com algum exagero óbvio; disse-lhe que não seria obrigado a voltar comigo para o navio naquela mesma noite e que o seu pessoal não seria algemado. Para meu espanto, levou isso muito a sério, o que me fez pensar que havia algo errado; lembrei-me que assim que desembarquei achei estranho os homens do Norfolk não ficarem mais contentes em nos ver, pois, se a guerra tivesse acabado, seriamos nós os seus salvadores; e senti que a coisa toda estava desafinada, terrivelmente desafinada.
— Diga-me, Jack, de que modo esperava que ele reagisse à sua afirmação de que em um prisioneiro?
— No meu entender, esperaria que qualquer oficial naval retrucasse praguejando, de um modo educado, é claro, ou batendo as mãos e implorando para que não fossem todos confinados no porão, nem fossem açoitados mais de duas vezes ao dia. Isto é, se ele realmente acreditasse que estamos em paz.
— Talvez o cetáceo jocoso, que tantas vezes observei na Marinha Real, ainda não tenha atravessado o Atlântico. E, por outro lado, se há algum engano, não teria ele, talvez, origem no baleeiro inglês? O Vega, afinal de contas, usaria de toda a persuasão para escapar captura.
— O Vega também deve ter tentado isso, é claro. Contudo depois disso fiquei tão desconfiado que não falei para Palmer sobre liberdade condicional. Marquesas ou qualquer coisa desse tipo; porque, se a guerra está mesmo prosseguindo, certamente terei de encarcerar todos eles. Seria uma grave negligência não fazer isso.
Não foi apenas a seriedade dele que me deixou desconfiado, mas uma centena de coisinhas obscuras, na verdade todo o clima que há aqui; se bem que o motivo para isso me escapasse. Mas, no caminho de volta à cabana, soube que Palmer tinha a bordo alguns homens do Hermione, além de vários desertores comuns. Certamente já lhe falei do Hermione não? — Quis saber, ao ver o rosto inexpressivo de Stephen.
— Acredito que não, amigo.
— Bem. Talvez não tenha. Foi a coisa mais horrenda da minha época, fora o seu glorioso final. Em resumo, foi o seguinte: um homem que nunca deveria ter sido promovido a post... que de modo algum deveria ser um oficial... recebeu o Hermione, uma fragata de trinta e duas peças de artilharia, e transformou-a num inferno em alto-mar, Nas Índias Ocidentais, a tripulação amotinou-se e matou-o, o que, para algumas pessoas, foi algo muito justo; mas eles também mataram os três tenentes e o oficial dos fuzileiros de um modo horrível, o intendente, o cirurgião, o escrivão, o mestre do navio e um colhedor de rizes, caçando-o por todo o navio; em seguida, levaram a fragata para La Guayra e a entregaram aos espanhóis, com quem estávamos em guerra na ocasião.
Uma coisa medonha, do princípio ao fim. Mas algum tempo depois os espanhóis levaram-na para Puerto Cabello e ali, Ned Hamilton, que na época comandava o querido Surprise e também uma tripulação danada de boa, foi com os botes durante a noite e largou as espias do navio, embora este estivesse atracado com a popa e a proa entre duas baterias bem possantes, e os espanhóis mantivessem sentinelas em barcos a remo. O cirurgião de Ned, lembro-me bem, comandou uma guiga, um homem esplêndido chamado Mac’Mullen.
Os homens do Surprise mataram uma porção de espanhóis, mas a maioria dos amotinados escapou; e, quando a Espanha se juntou a nós contra a França, muitos deles mudaram-se para os Estados Unidos. Alguns viraram tripulantes de navios mercantes, o que foi uma tolice, pois esses barcos costumam ser revistados e, sempre que encontravam um deles, era preso e enforcado sem piedade: a descrição exata deles, com tatuagens e tudo o mais, andava circulando por todas as bases navais, e havia um preço formidável pelas suas cabeças.
— E havia alguns desses infelizes na tripulação do Norfolk?.
— Sim. E um deles se ofereceu para denunciar os demais, desde que se tornasse testemunha do rei e recebesse a recompensa.
— Delatores... Meu Deus, o mundo está repleto deles, se está.
— Pois bem, isso agora faz a coisa toda mudar de figura. Palmer tinha a bordo mais ou menos uma vintena de homens do Hermione, como também outros desertores; estes estão sujeitos à forca assim que forem apanhados, embora, se forem estrangeiros, possam ser deixados de lado, após um castigo de quinhentas chibatadas, mas para o pessoal do Hermione é morte certa; e, apesar de serem, sem nenhuma dúvida, um bando desprezível, o claro dever de Palmer é protegê-los; são seus comandados.
Mesmo como prisioneiros de guerra comuns, eles teriam de ser reunidos, inspecionados e registrados nos livros do navio, e seriam quase certamente reconhecidos e colocados a ferros e deixados ali, apodrecendo, até serem enforcados; mas, se fossem simplesmente pessoas salvas de um naufrágio em tempo de paz, seriam levados para bordo e deixados juntos com os outros. Esse me parece ser o raciocínio dele.
— Talvez esses homens sejam a turma citada na carta do ingênuo sr. Gill, que tomamos no paquete. Cito de memória: "O paraíso particular do meu tio Palmer, para o qual remos um bando de colonos, que desejam ficar o mais longe possível dos seus conterrâneos".
— Posso entrar? — Perguntou Martin à porta. Trajava uma jaqueta de pano alcatroado, com uma mão afobada portava um arco de barril, também coberto com alcatrão, que servia como um guarda-chuva primitivo, enquanto com a outra mantinha fechada a parte de cima da camisa, o peito estufado com cocos e frutas-pão. — Por favor, peguem estes frutos antes que caíam — pediu. Quando Jack tirou a vista do buraco: — O senhor ainda não avistou o navio, presumo.
— Ah, não — disse Jack. — Não haveria possibilidade de estar hoje aqui. Estou apenas ajeitando a minha luneta para poder vasculhar o máximo possível o horizonte de noroeste, quando chegar a ocasião.
— É possível fazer uma estimativa de quanto tempo ele levará para retornar? — Indagou Stephen.
— Há muitos fatores envolvidos — alegou Jack —mas, se eles conseguiram seguir somente um pouco ao Norte, ao final do primeiro dia, quando desabou a força total da tempestade, e depois colocar o vento, digamos, duas quartas de través para ré, a fim de diminuir o abatimento o máximo possível até poderem determinar um curso para a ilha, depois do terceiro dia, então creio que poderemos começar a procurar por eles dentro de uma semana, Sr. Martin, posso pedir-lhe a jaqueta? Vou me encontrar com o pessoal.
— Encontrei o sr. Butcher durante a minha caminhada, ou melhor, durante o meu arrastar comentou Martin, enquanto as passadas chapinhantes do Comandante Aubrey se afastavam pela clareira encharcada de chuva. — Ele também tem sapatos e seguiu riacho acima até quase sua nascente. Perguntou por você, com muito interesse, disse ter ficado encantado com o meu relato e que poderia atendê-lo a qualquer momento, se houver um retorno da pressão ou algum desconforto. Mas também falou sobre o navio de um modo que me deixou, bastante intranquilo. Ao que parece, há uma cadeia de recifes e ilhas submersas um pouco para Oeste, uma cadeia de grandes dimensões, estendendo-se talvez por uma centena de milhas, e que é quase impossível o Surprise não ter sido arrastado para alguma parte dela.
— O sr. Butcher pode ser um excelente cirurgião, mas não é um marujo.
— Talvez não, mas disse-me que essa é a refletida opinião dos oficiais do Norfolk.
— Não prefiro a opinião deles à do comandante Aubrey. Ele conhece esses recifes... mencionou-os quando estivemos comentando sobre a curiosa maré... E ainda assim falou com bastante confiança sobre o retorno do navio.
— Ah, eu não sabia que ele tinha conhecimento deles. Isso é um grande conforto para a minha mente, um profundo conforto. Estou tranquilo novamente. Deixe-me contar sobre a minha caminhada. Consegui chegar ao terreno despojado mais alto; foi ali, onde o riacho pode ser atravessado e corre sobre um incômodo leito de obsidiana e traquito{176} despedaçados, que encontrei o sr. Butcher, o qual concordou que a ilha, obviamente, é vulcânica; e foi ali que eu avistei o que pensei ser um frango d’água que não voa, se bem que poderia estar apenas molhado.
Molhada. A ilha inteira estava encharcada, saturada de água; no lugar onde as árvores, as enormes samambaias e a vegetação rasteira ficavam nas encostas íngremes houvera deslizamentos, deixando a rocha nua, e o riacho que descia até o local de desembarque era agora um rio caudaloso, despejando lama espessa e entulho na laguna.
O caminho de Jack levou-o ao longo de sua margem esquerda, coberta de troncos de árvores e vegetação destruída e emaranhada e, no outro lado, ele avistou o comandante Palmer. Jack tirou o chapéu e gritou:
— Bom dia, senhor. — E Palmer fez uma vênia e disse algo sobre "o vento rondando... mais chuva, talvez".
Esses cumprimentos, às vezes repetido duas vezes por dia, foram toda a comunicação que tiveram na semana subsequente. Foi, em si mesma uma semana sombria, com uma boa quantidade de chuva, que manteve o riacho cheio; uma semana na qual as esperanças de pescaria foram frustradas. O alimento vegetal de fácil alcance já fora catado, a maioria dos cocos rachados e as frutas-pães esmagada: estragavam-se rapidamente com o calor úmido, e os homens do Surprise padeceram com o esforço de destrancar cabos e preparar linhas de pesca o mais depressa possível. A laguna, porém, estava num estado de sujeira sem precedentes, e quase todos os seus habitantes a haviam abandonado, e alguns, aliás, tinham sido arremessados mortos para e fedorenta faixa que marcava a maré cheia.
Os esguios tubarões cinzentos, no entanto, continuavam lá e tornavam surpreendentemente perigosa a pratica da pesca de arrasto, já que davam um jeito de chegar à água bem rasa; mas, em todo caso, a pesca de arrasto nada produzia além de troncos flutuantes. Mesmo depois que desviraram o escaler — uma tarefa bem árdua — e remaram mais além, as coisas não foram muito melhores: a maioria dos peixes que apanharam foi roubada com anzol e tudo pelos tubarões, e os poucos que conseguiram preservar eram umas criaturas de cor violeta, inchadas e de aparência doentia, com a espinha roxa, que Edwards, um dos baleeiros e velho marinheiro do mar do Sul, disse que eram venenosos... as espinhas eram venenosas, um peixe nocivo.
Pescar no recife, com a maré baixa, foi um pouco mais compensador, entretanto isso também tinha as suas desvantagens: havia grandes trechos de coral pinicante e muitos ouriços-do-mar com cruéis espinhos, que quebravam bem na base quando pisados, furando profundamente pés descalços, o que era muito doloroso; dois homens foram atacados e mordidos por moreias, enquanto apalpavam à procura de mariscos, e um peixe de aparência inofensiva, não muito diferente do bacalhau da Juan Fernández, causou urticária em todos os que o comeram, acompanhada de vômitos e perda temporária da visão; ao mesmo tempo, contavam-se aos montes os marinheiros que mancavam, pois, embora estivessem acostumados a correr descalços pelo convés, a madeira lisa não exigia muito da sola de seus pés — normalmente calçavam sapatos quando subiam nos mastros, por exemplo —, e os espinhos, as rochas vulcânicas e o coral logo os deixaram machucados.
A despeito da chuva, da vegetação emaranhada e por vezes quase impenetrável, e das trepadeiras espinhosas que tornavam tão desagradável andar descalço, os homens andavam por toda a ilha, impelidos pela fome e, em um caso, pelo medo. Na quinta-feira Bonden disse a Jack:
— Aquele tal de Haines, senhor, o do Hermione, que quer delatar os companheiros, está com medo de que eles tenham descoberto e o estrangulem; ele pergunta se pode passar para o nosso lado.
Jack conteve sua imediata reação violenta, refletiu e respondeu:
— Não há nada que o impeça de montar um abrigo no mato, em algum lugar atrás de nós, cuidar de si mesmo e esconder-se até o navio chegar.
Para os que tinham sapatos, caminhar era menos doloroso, é claro, e Martin e Butcher encontravam-se com frequência.
Butcher era um homem amistoso, bastante loquaz e, por conta desses encontros, o capelão soube que os homens do Norfolk haviam alimentado a esperança da visita de um navio de guerra russo, que se sabia estar em viagem de exploração pela parte central do Pacífico, ou por uma ou outra da meia dúzia de baleeiras de New Bedford ou de Nantucket, que pescavam naquelas águas ou passavam por elas.
Mesmo essa esperança, porém, ainda que razoável era necessariamente indefinida, também tinham tentado fazer um bote com a madeira do navio naufragado que fora dar na praia, um bote no qual um oficial e dois ou três dos melhores marinheiros pudessem navegar até Huahiva para pedir ajuda. Assim que o vento alísio tivesse retornado à sua estabilidade habitual, a viagem, mesmo com a longa curva fechada para evitar os temidos recifes do lado oeste, seria de apenas quatrocentas milhas, um nada, comparado às quatro mil que o comandante Bligh fizera naquele mesmo oceano. Mas eles careciam de ferramentas — apenas uma pequena caixa, que alguma onda caprichosa jogara sobre o recife —, o casco naufragado mal começara a se romper; até e então não rendera mais do que as tampas das escotilhas, com as quais haviam feito as quase inúteis balsas para pesca.
Por volta do fim da semana, a chuva diminuiu. Atravessar a parte mais alta do riacho tornou-se mais fácil, e mais homens de ambos os lados passaram a entrar em contato uns com os outros. Isso levou ao primeiro problema. Como todos os demais baleeiros, Edwards ressentia-se amargamente do incêndio do Intrepid Fox e, ao encontrar um americano, disse-lhe que era um estivador filho da puta, não um marujo, um negro sacana sifilítico, e deu-lhe uma pancada com o porrete que carregava, o americano não respondeu, mas de imediato tacou-lhe um chute nas partes íntimas. Foram separados a tempo pelo carpinteiro e um dos seus ajudantes, e o americano recuou, acompanhado por gritos de "cão d’água ianque" e "fique do seu lado da porra do riacho", pois os homens do Surprise tinham consciência, por uma verdade autoevidente, de que todo o território daquele lado era seu. Aparentemente ficou estabelecida uma fronteira natural, visto que, no mesmo dia, um pouco mais abaixo, Blakeney foi perseguido de volta, através da água, por um aspirante americano alto com a barba vermelha, que lhe disse que, se fosse apanhado outra vez caçando clandestinamente na reserva deles, seria feito em pedaços é usado como isca.
Esses incidentes, porém, não despertaram grande atenção, pois todas as mentes estavam voltadas para o domingo, o primeiro dia em que, segundo o comandante, o navio poderia ser avistado; o tempo, durante quase toda a semana, apesar de molhado acima da cabeça e sob os pés, estivera favorável para o seu retorno, com um vento moderado mantendo-se um pouco ao Sul do Sudeste, e o enorme e estremecedor estrépito da arrebentação no recife diminuíra para um trovejar regular, quase inaudível.
Domingo, a navalha de Jack fazia sua ronda pelos oficiais, enquanto os dois instrumentos cirúrgicos aparavam os marinheiros do traquete, aparavam e raspavam dolorosamente, porque nenhum era experiente em barbear — esse serviço era do barbeiro do navio —, mas a dor foi suportada alegremente, pois corria uma teoria paga de que, quanto mais sofressem, com mais certeza veriam o navio.
O templo foi montado a sotavento da lancha, com um toldo estendido e um púlpito, feito com uma padiola e um banco de remador amarrado, em vez de pregado. Jack enviou um bilhete ao capitão Palmer, dizendo que, se ele, seus oficiais e marinheiros desejassem participar, seriam bem-vindos, mas Palmer declinou do convite, alegando que poucos do seu pessoal pertenciam à comunidade anglicana, e nenhum destes estava em condições de poder aparecer num a cerimônia pública. A resposta, porém, foi cortes e bem-elaborada; foi necessariamente verbal, porquanto os do Norfolk careciam de papel e pena, como de tudo o mais, e foi transmitida pelo sr. Butcher; este ficou para o serviço religioso, o qual, apesar da falta de livros, foi respeitosamente levado até o fim. Os do Surprise em terra incluíam cinco dos mais legítimos e determinados cantores do navio e os demais os acompanharam nos hinos e salmos familiares, num convincente volume sonoro que ultrapassou a laguna e foi além do recife.
O sr. Martin não arriscou um sermão de sua autoria, antes voltou a recorrer ao deão Donne, citando-o diretamente, até onde conseguia confiar em sua memória e parafraseando-o quando não o conseguia. Todos os presentes, com exceção dos cerca de vinte americanos, sentados aqui e ali na outra margem, já tinham ouvido o tema, uma verdadeira vantagem para uma congregação tão profundamente conservadora. Eles o aprovaram, admiraram e ouviram com algo do mesmo fervor com que os olhos vasculhavam o horizonte, concentrados para avistar a menor nesga de vela de gávea contra o céu de puro azul.
Era estranho, entre tantos homens do mar, acostumados às incertezas do oceano e à imprevisibilidade de qualquer coisa relacionada a uma viagem, que tal importância fosse atribuída ao primeiro dia da previsão de Jack, como se esta tivesse alguma propriedade mágica; no entanto era esse o caso em ambos os lados do riacho, e, quando a fragata não foi avistada naquele domingo, pelo menos os do Surprise ficaram abatidos.
Ela não foi vista na segunda-feira, nem na terça, nem na quarta, apesar de o tempo estar tão bom e, com o passar da semana, Jack notou que a reverência de Palmer era cada dia menos profunda, até que na sexta-feira não passou de um descuidado assentir.
Muita coisa pode ser transmitida por uma saudação, e não foi necessária muita perspicácia para notar que os do Norfolk tinham plena consciência de que superavam em número os do Surprise de quatro para um, que a cada dia aumentavam a sua confiança e o seu ânimo e que seria difícil obrigar Palmer a lidar com a crescente quota de hostilidade de seu pessoal, com brigas e conflitos isolados, que ameaçavam descambar para a violência generalizada.
Jack culpava-se extremamente. Devia ter ficado em seu navio; sua presença em terra não favorecera a operação de Stephen em nada mais do que a de qualquer outro oficial, Comportara-se como uma velha ansiosa ou, se se tivesse sentido incondicionalmente obrigado a ir a terra para lidar com Palmer, deveria, em primeiríssimo lugar, ter levado em conta a mar, pois, apesar da obliteração{177} parcial causada pelo furacão, o olhar inteligente de um marujo teria detectado os sinais de sua estranha periodicidade e a grande força exercida no canal; e, em segundo lugar, deveria certamente ter trazido uma tropa de fuzileiros; até mesmo, talvez, a caronada do escaler. De qualquer modo, todas as armas que os do Surprise possuíam eram a sua espada, a adaga e a pistola de algibeira de Blakeney, e o croque da lancha; todos os marinheiros, claro, tinham suas facas; mas também as tinha, a maioria dos do Norfolk.
— Temo que você esteja se afligindo por causa do Surprise, amigo —, observou Stephen, quando estavam sentados sozinhos do lado de fora da cabana, olhando abaixo para o mar do anoitecer. — Espero que não venha a perder a esperança que nossos amigos retornem.
— Perder a esperança? Céus, não. — Bradou Jack. — Ele é um navio bolineiro, confiável e bastante satisfatório, e Mowett tem uma tripulação de legítimos marujos. Mesmo que não soubesse daquele maldito recife, tenho certeza que, quando as amarras se partiram, seu instinto primordial teria sido evitar o máximo possível que o navio desviasse muito para sotavento; e, pelo que me lembro da mudança da direção do vento e de tudo que posso saber da posição do banco de areia, ele deve ter se colocado a barlavento de sua extremidade norte. Não, o que receio é o desgraçado daquele mastro da gata chumeado. O sr. Lamb é da mesma opinião. Como ele se arrepende de não ter colocado uma arreatadura dupla quando teve tempo!
— A perda do mastro da gata seria grave demais?
— Não para navegar à popa arrasada, já que o vento entrando diretamente pela popa não força tanto as velas, mas para bordejar, para virar a barlavento... em suma, para retornar à ilha, ele é absolutamente essencial. Se o mastro da gata chumeado se foi, então claramente o Surprise teria de arribar. Teria, necessariamente, de seguir em direção oeste, e Mowett rumaria para Huahiva.
— E poderia voltar, entretanto, depois de conseguir um novo mastro?
— Sim. Mas teria de procurar um e, com Lamb todos os seus ajudantes aqui, levaria algum tempo para a montagem, o encaixe e o ajuste; mas, acima de tudo, ele seria forçado, dia após dia, a bordejar contra o alísio e a corrente. Não conseguiria chegar aqui antes de um mês.
— Xiii! — Fez Stephen, com um olhar significativo.
— Exatamente. A situação aqui não vai permanecer calma por um mês, não por tanto tempo assim.
Ouviram-se vozes atrás da cabana e, embora o comandante Aubrey tivesse em alta conta a guarnição do escaler, como colegas de bordo e marujos, sabia muito bem que eram dados a bisbilhotar — os compartimentos teoricamente impermeáveis de um navio de guerra eram perfurados constantemente por essa prática universal e grande parte dos planos chegava ao conhecimento dos homens que os executariam muito antes de a ordem ser dada, ao mesmo tempo que muitas das questões domésticas dos homens também eram assunto de discussões abalizadas.
Claro que isso tinha as suas vantagens e dava ao navio um certo caráter familiar, mas no caso presente Jack não queria que a sua opinião fosse amplamente conhecida, pois o contato entre os dois lados não era, em absoluto, apenas hostil, e os homens mais pacificadores de ambos os navios, que se encontravam na parte mais alta do bosque, a indefinida terra de ninguém além do limite da enchente do riacho, costumavam conversar, principalmente se fossem de países neutros.
Um finlandês, por exemplo, contou ao polonês do Surprise, Jackruski, que havia um grande grupo liderado por dois marujos encrenqueiros, que sustentavam que os oficiais do Norfolk, tendo perdido seus dois navios e suas comissões, tinham, ao mesmo tempo, perdido a autoridade, e isso tornava difícil a manutenção da disciplina, principalmente porque o mestre do Norfolk e seu tirânico imediato, temidos por todos, haviam morrido afogados.
As tais vozes pertenciam, na verdade, a Martin e Butcher, que vinham descendo juntos a trilha. Butcher estava indo visitar o dr. Maturin e dar ao comandante Aubrey um recado do comandante Palmer. O comandante Palmer transmitia os seus melhores cumprimentos e pedia para lembrar o comandante Aubrey sobre o acordo de que o riacho marcava a fronteira entre os dois territórios, com exceção da faixa frontal de praia no lado da água dos do Surprise, a qual os do Norfolk poderiam atravessar sem que se impusessem obstáculos, a fim de alcançar o início do lado leste do recife.
O comandante Palmer, contudo, estava preocupado e mandava avisar que naquela manhã um pequeno grupo de seus homens fora obrigado a retornar de lá, escarnecido e apedrejado; e ele confiava em que o comandante Aubrey tomaria imediatamente as medidas adequadas.
— Por favor, transmita ao capitão Palmer, com os meus cumprimentos — volveu Jack —, que se isso não se tratou apenas de uma rude brincadeira os culpados serão castigados e, se ele desejar, poderá vir ou enviar um oficial para testemunhar o castigo. De qualquer moda, transmita a expressão do meu pesar e a garantia de que isso não voltará a acontecer.
Quando voltaram a ficar sozinhos, disse ao amigo:
— Agora, Stephen, deixe-me ajudá-lo a subir até o topo da ilha. Ali há um lugar plano, no rochedo negro, que fornece uma excelente vista. Você ainda não esteve lá.
— Mas é claro —, exclamou Stephen. — E no caminho talvez de para avistar o frango d’água incapaz de voar, de Martin. Mas talvez você precise me trazer para baixo em suas costas. Minhas pernas continuam miseravelmente fracas.
O frango d’água rastejou lentamente para o meio de um arbusto, ao som da aproximação das pesadas passadas arfantes do comandante Aubrey, mas o despojado terraço vulcânico, aonde acabaram chegando, proporcionou-lhes uma extensão de cerca de trinta milhas de oceano salpicado de branco, a Oeste e, do outro lado, dois cardumes de baleias separados, um ao Norte e o outro ao Sul, e a visão mergulhante de todo o lado de sotavento da ilha, com o riacho correndo escuro e agitado para a ainda turva laguna, a linha branca dos corais e as pessoas miniaturizadas caminhando na areia.
O sr. Lamb e dois de seus ajudantes estavam dando os retoques finais em uma casinha que haviam começado a fazer para eles já no dia seguinte àquele agourento domingo em que o navio não apareceu.
Por eles, saindo do meio das árvores, passou o jovem carpinteiro do Norfolk, que fez uma amigável saudação:
— Saudações, companheiros.
— Saudações. — Responderam, num tom de voz reservado, baixaram suas ferramentas e o olharam com uma intencional inexpressividade.
— Pode ser que vente esta noite, mas até agora temos tido um excelente dia claro, e não posso me queixar. — Os do Surprise também não quiseram se comprometer com aquilo, e, após uma pausa, o do Norfolk continuou: — Não poderia emprestar uma travadeira de serra para um homem, pois não? A minha foi para o fundo com o navio.
— Não, companheiro, não posso — retrucou o sr. Lamb. — Por que? Porque, primo, não empresto ferramentas, de modo algum e, secondo, porque isso seria ajudar os inimigos do rei, o que é morte certa no lais de verga, e que Deus tenha piedade da sua alma, amém.
— Mas a guerra acabou! — Berrou o do Norfolk.
— Diga isso para os fuzileiros, seu trouxa —, devolveu o sr. Lamb, passando a ponta do dedo indicador direito pelo nariz. — Eu não nasci ontem.
— Eu me encontrei com o seu ajudante, quinta-feira, no bosque —, disse o do Norfolk, apontando para Henry Choles, da turma da carpintaria —, debaixo de um pé de fruta-pão.
— Foi, sim, debaixo de um pé de fruta-pão — confirmou Choles, assentindo solenemente. — De maneiras que eu tinha perdido três galhos da grossura de um mastro principal. Até comentei a respeito na ocasião.
— E desejamos um ao outro as alegrias da paz. Portanto, ele acredita que estamos em paz. Claro que estamos em paz.
— Henry Choles é um artesão toleravelmente bom, e é tão honesto quanto o dia longo —, comentou o sr. Lamb, olhando-o com imparcialidade. — Mas o problema dele é que nasceu do lado de Surrey, e não faz muito tempo. Não, meu jovem camarada — isso para o do Norfolk, amavelmente —, eu já era um sujeito vivido antes de você deixar de cagar amarelo e nunca vi um bando de gente se comportar como vocês durante uma época de paz. Para mim, tudo isso não de uma porção de mentiras, para vocês irem para casa, livres de graça, e por coisa alguma, e a gente ficar sem o dinheiro da nossa recompensa.
—Stephen — observou Jack, passando-lhe o seu pequeno binóculo de algibeira —, se olhar atentamente para o lado do horizonte onde estou afrontando, creio que verá uma linha mais firme de espuma tendendo para a direita. Presumo que sejam os bancos de areia de que eles falam. Uma maldita coisa desagradável de se encontrar à noite no seu sotavento. Daqui você teria de navegar quase sempre em direção ao Norte, durante a metade de um dia. Com uma brisa como esta. — A "brisa como esta" era o morno e firme alísio, redemoinhando em volta deles naquele terraço abrigado, mas cantando firmemente acima da alta crista atrás, um excelente vento de joanetes. — Mas o que eu queria dizer realmente era isto: pretendo ampliar a lancha para levá-la até Huahiva. Isso deve ser feito imediatamente ou não teremos lancha para ampliar. Os maus sentimentos estão se tornando mais fortes e, quando a ilha ficar completamente sem comida, obviamente aumentarão ainda mais. Não creio que Palmer tenha um firme controle sobre os seus homens, e os do Hermione têm um motivo ainda maior para nos agredir do que os outros, acima de tudo porque agora Haines os desertou, e eles sabem que serão denunciados. E cada dia sem que o Surprise apareça os torna mais audaciosos.
— Por que precisamos ampliar a lancha?
— Para colocar todo mundo dentro. Ela veio locada até as bordas quando trouxemos você para certa. Precisa ser ampliada para poder enfrentar o alto-mar.
— Seria uma tarefa demorada, não?
— Dentro de uma semana, creio.
— Não ia perguntar, mas já pensou que eles podem tomá-la de nós, quando estiver pronta, ou mesmo antes? Sei que querem ir para Huahiva, para pegar de volta um baleeiro de seus amigos, que Deus me livre.
— Isso ji me ocorreu. Não creio que se animem muito para tentar tomá-la antes de começarmos a trabalhar; e acho que se formos espertos o suficiente conseguiremos encontrar meios de dissuadi-los, quando tudo estiver pronto. Não, a minha preocupação principal é com os mantimentos, mantimentos para o que pode ser uma viagem bem longa, já que não temos instrumentos. Quanto à água, temos barris suficientes para duas semanas, com rações controladas, e espero ainda poder encontrar uns cem cocos com bastante água; mas o problema é a comida. Agora que os peixes nos deixaram na mão... e eu já tinha habilidade em secá-los, como fizemos em Juan Fernández; eu gostaria de saber se existe algo que você possa sugerir. A medula do feto arbóreo? Raízes? Casca de árvore? Folhas trituradas?
— Certamente passamos por uma espécie de inhame raquítico no caminho de subida: um Dioscorea, sem dúvida... Eu o chamei para ver, mas estava bem mais adiante, bufando, e não ouviu... Contudo eles não medram aqui muito mais do que o caranguejo terrestre, infelizmente, e eu colocaria minha principal esperança no tubarão. EIe pode não ser muito saboroso; sua aparência não é muito recomendável; mas a carne, como a da maioria dos seláquios, é razoavelmente salutar e nutritiva. E é fácil de ser apanhado; e recomendo que seus flancos superiores sejam cortados em tiras finas, secadas e defumadas.
— Mas, Stephen — alegou Jack, olhando em direção aos destroços do Norfolk—, imagine do que eles andam se alimentando.
— Não nos deixemos melindrar, meu caro. Todas as plantas da terra, de um certo modo, compartilham os incontáveis mortos, desde a época de Adão, e todos os peixes do mar desfrutam em primeira, segunda ou centésima mão todos os afogados. Em todo caso — acrescentou ao ver o ar de desagrado de Jack —, tubarões são muito parecidos com tordos, sabe, defendem seu território com o mesmo zelo, e se pegarmos os nossos na parte mais distante do canal ninguém poderá nos censurar por antropofagia, em nenhum grau.
— Bem disse Jack. — Estou mesmo muito gordo. Por favor, mostre-me os seus inhames.
Os inhames alastravam-se abaixo por uma ladeira de cascalho, que descia do ponto mais alto da ilha. O caminho para o terraço margeava a borda inferior do declive, e ali Stephen mostrou os caules de trepadeira, as folhas típicas e um único disforme tubérculo, que encontrou levantando algumas pedras.
— Não estão felizes aqui, pobres coisinhas raquíticas, não é uma ladeira de cascalho que desejam, mas uma profunda terra úmida. Entretanto, se subir ali, há uma grande possibilidade de encontrar os pais destes anões, um excelente e próspero sortimento, com grandes e robustas raízes crescendo numa cratera há muito preenchida, no topo desta ladeira de cascalho, um território no qual esses miseráveis superabundam. Esperarei aqui por você, pois me sinto fraco. Se, por acaso, encontrar algum besouro na subida, envolva-o delicadamente com o seu lenço, por favor.
Stephen sentou-se; e logo, com o coração batendo e aquela intensa e vigorosa felicidade muito particular, que não mudara desde sua infância, avistou o frango d’água caminhar por um pequeno pedaço de terra árido, estender uma asa inútil, mas decorativa, coçar-se, bocejar e seguir adiante, possibilitando que ele voltasse a respirar.
Jack subiu, margeando a ladeira de cascalho e apanhando amostras de inhame aqui e ali. Eles começavam muito mais raquíticos e deformados, em nada diferentes das batatas que ele cultivava em casa; mas, estimulado pela esperança da cratera de Stephen e a lembrança dos monstruosos tubérculos que vira em tempos idos, coisas grandes e insípidas que alimentariam a tripulação de uma embarcação miúda por um dia, continuou a subir.
O cume ficava muito mais distante do que imaginara, e um recente dilúvio lhe bloqueara a passagem para a cratera, transformou-a num lago, com os sem dúvida enormes inhames apodrecendo sob três metros de água fétida. A grande altura, porém, deu-lhe a visão de uma extensão maior ainda de oceano e, ao sentar-se para recuperar o fôlego, fitou o distante recife a Oeste, ou cadeia de ilhas submersas. O horizonte agora ficava muito mais além dela, e ele tinha uma visão muito mais clara de sua extensão e largura; realmente, um baixio formidável, sem uma abertura ou canal para se navegar. E, forçando a mente a ser o mais fria, objetiva e analítica possível, avaliou as chances do Surprise tê-lo montado, nas condições exatas daquela noite cruel. Não mais do que uma em três, foi a conclusão, e seus olhos encheram-se de lágrimas.
Uma série de atóis, no distante Norte, era o lugar mais perigoso, refletiu; e, enquanto os mirava, em todo o seu campo de visão a olho nu, pareceu-lhe ver algo escuro além deles, e pegou sua lente. Era escuro, era um navio. Posicionou-se, pousou o telescópio sobre uma pedra e cobriu a cabeça com o casaco, para proteger-se de toda a luminosidade externa. Soube de imediato que não era o Surprise, mas levou dez minutos, um quarto de hora, focando e olhando cuidadosamente para certificar-se de que era um navio baleeiro americano dirigindo-se para o Sul.
Ele estava no lado ocidental daquele batido imensamente comprido. Se pretendesse alcançar a ilha, teria de contorná-la em segurança e então bordejar para ganhar barlavento, mas, a menos que o vento aumentasse, poderia fazê-lo facilmente em uma semana. Fixou na mente a posição do navio e desceu correndo a ladeira. — Perdoe-me, Stephen — disse ele —, preciso apressar-me para ir ao acampamento, não há um momento a perder. Siga-me, mesmo devagar.
— Sr. Lamb — falou, em seguida, com um tom de voz normal, após ter recuperado o fôlego —, preciso lhe falar. — Caminharam ao longo da marca da preamar. — Quero que aumente o escaler em oito pés para que ela possa nos levar a Huahiva e lá, provavelmente, reencontrar o navio. Consegue fazer isso com as ferramentas e os materiais disponíveis?
— Oh, céus, sim, senhor. Podemos cortar adoráveis pranchas e vigas naturais a não mais de cinquenta metros da praia.
— Quero dizer imediatamente, com a madeira que tem. Não há um momento a perder.
— Bem, senhor, creio que consigo. Mas isso significaria demolir imediatamente a casa do doutor.
— Ele ficará numa barraca. Mas antes de ampliar a embarcação precisamos nos armar. O que consegue transformar em espadas ou piques de abordagem sem prejudicar o seu trabalho?
— Em relação a cutelos ou sabres de abordagem — disse o carpinteiro depois de refletir —, não consigo fazer muita coisa, já que preciso poupar minhas serras, mas para piques de abordagem, Deus o abençoe, senhor — sorrindo muito alegremente —, posso armar as hostes midianitas{178}, se assim desejar. Joguei no escaler um barrilete cheio de cravos de dez polegadas e Henry Choles, achando que eu tinha esquecido, jogou outro. E um cravo de dez polegadas, com a cabeça achatada e retorcida no bico da bigorna, o corpo moldado e todo ele temperado em fogo alto e esfriado em água do mar, dá um pique bastante útil. Não é um trabalho de uma Torre de Londres, como dizem, mas depois que fabricarmos piques com seis polegadas haverá pouca dúvida se foi trabalho da Torre ou daqui mesmo.
— Está com sua forja e bigorna aqui?
— Não, senhor, mas era pouco tempo posso improvisar um par de foles, e há todas essas velhas pedras pretas para servirem de bigorna. Sam Johnson, o ajudante do armeiro, que rema na proa, é o homem indicado. Ele trabalhou uns tempos para um cuteleiro, e é notavelmente habilidoso.
—Sublime, sublime. Então vamos logo fazer isso, juntamente com o preparo das aduelas. Vinte serão suficientes; tenho minha espada, o sr. Blakeney tem uma adaga e uma pistola... em todo caso, ele mal conseguiria manejar um pique... e suponho que o sr. Martin não acharia isso adequado. Também vamos precisar de três anzóis para tubarão, presos ao máximo de cabo de amarração de que pudermos dispor. Aliás, é melhor fazê-los antes dos piques, e eles vão avivar mais o fogo da forja. Mas, sr. Lamb, que tudo seja feito o mais secretamente possível, lá no meio das árvores. O escaler vai sair para pescar, assim que os anzóis estiverem prontos, e será necessária uma espécie de armação leve para secar e defumar cerca de trinta pedras de carne de tubarão em tiras. Ao mesmo tempo, é bom verificar se os nossos barris são impermeáveis. E não preciso recomendar firmemente, sr. Lamb, que não há um momento a perder. Todos os marujos deverão trabalhar em turnos duplos.
Todos os marujos ficaram bastante chocados com aquilo. Durante as semanas em terra na ilha do Velho Sodbury, com pouco mais da manutenção de um esboço da rotina formal do navio e com uma boa quantidade de perambulação à vontade pela mata ou sobre o recife, à procura de comida ou pescando com linha, de cima das pedras, eles tinham perdido o hábito da rápida mobilização e da inquestionável obediência; e também viviam mal-humorados pela falta de tabaco e grogue, e foi com indignação e um sentimento de ultraje que ouviram o seu comandante "mugir como um touro num arbusto", como disse Plaice, insistindo em que tudo fosse feito em trabalho dobrado se não triplicado, e até mesmo manejando a ponta de um cabo — uma arma que muito poucos o tinham visto usar, exceto no seu aspirante, na privacidade da câmara — com terrível força e pontaria.
— É como estar num navio-prisão — queixou-se George Abel, remador de proa, na ausência de Johnson —, só que pior. "Vamos com isso, seu marinheiro de água doce indolente. As ordens serão rápidas e seguidas ao pé da letra, malditos sejam". O que deu nele para se tornar um feitor de escravos?
— Talvez isso vá pacimolificar{179} ele — disse Plaice, cuspindo na direção de um tubarão de tamanho mediano, que vinha atrás, a reboque, perseguido pelos seus parentes.
— Remos ao alto! — Gritou Bonden, e a lancha correu esmagando a areia.
Abel saltou imediatamente e guarneceu não a boça da embarcação{180}, mas o forte cabo amarrado em volta da cauda do tubarão, com o qual ele e mais meia dúzia puxaram a criatura do mar, seus seguidores nadando, tão próximo para uma última dentada, que estavam apenas à flor d’água.
Abel e seus ajudantes cortaram fora a cabeça do tubarão com o machado do carpinteiro e ergueram os olhos à espera de louvores — um peixe do tamanho exigido e com muito poucas mordidas. Não era ocasião de perder tempo se embasbacando, foi o que lhes disseram. Ali não era a Feira de Bartolomeu, deviam juntar-se ao grupo de sr. Blakeney e correr, correr e não se arrastar, para a ponta nordeste da ilha, onde ainda se conseguiam achar cocos. Quem não trouxesse vinte ia amaldiçoar o dia em que nascera.
Partiram a passo dobrado, passando pela forja no meio das árvores, onde os foles chiavam, e o armeiro suado martelava, nu, a não ser por um avental; e encontraram filas de homens: preocupados descendo às pressas das ruínas da cabana, com carregamentos de madeira, enquanto outros, igualmente afobados, traziam montes de pregos para os piques, a maior quantidade dos mais lisos e sem nós que conseguiam encontrar.
E assim passaram o dia, sem se sentar, e nunca simplesmente caminhando; mas não foi o bastante. Foram divididos em quartos, como se estivessem a bordo e cada quarto passou parte da noite virando as longas tiras de carne de tubarão sobre a armação perto da fogueira e cardando{181} as fibras das cascas dos cocos para transformar em estopa, a fim de calafetar a parte ampliada do escaler; e foi impressionante observar o quanto suas mentes adormecidas retornaram a rotina de bordo do navio e seu ritmo de quatro horas — cada quarto rendido com a mesma regularidade como se o sino tivesse tocado no meio da noite. Ainda bem que havia uma espécie de quarto no convés, pois, às duas da madrugada iniciou-se um estranho vento que, por três ou quatro horas soprou forte de noroeste, erguendo um mar abrupto contra a ondulação e colocando em risco a fogueira, a insípida comida fedendo a cola e as barracas recém-montadas.
Era um mar que investia direto para a laguna através dos dois canais; subia junto com a enchente da maré, sibilando na praia distante, e não havia um marujo que não soubesse que causaria algum efeito na fragata naufragada. Os próprios homens do Norfolk, em geral, não eram muito de acordar cedo, mas um pouco depois do raiar do dia, quando os do Surprise faziam o desjejum; um pequeno grupo deles atravessou o riacho e correu ao longo da linha da maré, a caminho de onde começava o recife. Embora houvesse a combinação entre ambos os lados de que tinham o direito de passagem, eles não o faziam na presença de muitos do Surprise e seus oficiais, e a maioria fingiu não os perceber, se bem que dois dos mais amistosos, dos mais sociáveis, emitissem um discreto bramido e fizessem um gesto com o polegar.
Embora o navio naufragado ainda não tivesse sido de fato rompido em uma extensão significativa, e posto que o aspirante de barba ruiva o tivesse informado ao comandante Palmer, mais homens passaram pelo caminho naquela manhã; mas somente às onze e meia eles voltaram, vinte e cinco ou trinta deles, arrastando o lado de bombordo da amurada de proa e parte do tabuado do convés do castelo de proa do Norfolk.
A essa altura, a maioria dos do Surprise estava espalhada pela ilha, envolvida em várias tarefas urgentes, e os carpinteiros encontravam-se praticamente sozinhos, ocupados em serrar o escaler ao meio; o próprio sr. Lamb recolhera-se reservadamente para o meio de uma moita.
O outro único homem que estava na praia era Haines, tanoeiro de profissão, que obtivera uma espécie de semiaceitação por ser útil ao sr. Martin e que agora cuidava dos incômodos barris. Saiu correndo assim que avistou os do Norfolk, perseguido por gritos de "Judas", mas não havia ex-Hermione no grupo e não o seguiram por distância alguma —, alguns fizeram menção de apanhá-lo, mas só por diversão.
Outro grupo se aproximou dos carpinteiros e perguntou o que estavam fazendo — elogiaram suas ferramentas, sua habilidade manual —, disseram que em breve também iam construir suas próprias embarcações, agora que o naufrágio estava se rompendo, e continuaram falando por bastante tempo, apesar das rudes respostas ou nenhuma. Então, de repente, o líder deles gritou "Olhem! Olhem"! apontando em direção à terra. Os carpinteiros viraram as cabeças. Os do Norfolk apanharam um serrote de ponta, uma folha de cobre do escaler, um punhado de cravos, um par de torqueses, uma pequena verruma e uma lima, e saíram correndo, às gargalhadas.
Foi motivo de piada por mais ou menos cem metros; um homem tropeçou e perdeu a lima, outro jogou fora a incômoda folha de cobre, para correr mais depressa. Quando Choles, porém, alcançou o que levava o serrote, este já estava entre os seus colegas do Norfolk. Choles tentou pegar o serrote, mas foi derrubado no chão. Os amigos de Choles foram em sua ajuda, um deles desferiu um golpe com um malho de carpinteiro, quebrando imediatamente um braço, e o sr. Lamb saiu correndo do meio do meio do mato com uma dúzia de homens do Surprise.
Diante disso, todos os do Norfolk se juntaram, brandindo pedaços de madeira, e recuaram calmamente através da água para o seu território, deixando na ribanceira a maior parte da sua madeira; os do Surprise tinham dois machados de carpintaria e um enxó, e teriam conseguido recuperar as ferramentas se não tivessem sido impedidos deste lado da água por um estrondoso rugido de "parados aí" emitido pelo comandante Aubrey, que se encontrava mais acima, na colina.
Correram de volta, em sua direção, os carpinteiros falando ao mesmo tempo, exigindo uma imediata incursão com os piqueiros, para recuperar as ferramentas.
— Sr. Lamb — indagou ele —, qual a necessidade das ferramentas perdidas para o serviço imediato que está sendo feito?
Mas foi forçado a sacudir o carpinteiro pelos ombros até que o rosto pálido de fúria de Lamb exibisse alguma compreensão, e sacudi-los novamente antes que ele desse uma resposta coerente, afirmando que o serrote de ponta seria necessário no dia seguinte.
— Então — prosseguiu Jack —, continue com o seu trabalho até a hora do jantar. Cuidarei disso esta tarde.
Comeu o seu jantar — um desanimador pedaço de carne de tubarão, grelhado, e coco de sobremesa — em companhia de Stephen e Martin. Conversaram de um modo geral sobre aves incapazes de voar e a colonização de remotas ilhas oceânicas, e ele acompanhou razoavelmente bem a conversa; mas, de longe, a maior parte de sua mente estava ocupada com a reunião que teria com Palmer.
Era preciso lidar com o incidente daquela manhã, sobre isso não havia dúvida. Algo mais daquela espécie levaria a uma batalha aberta e sangrenta, se bem que, com os seus piqueiros e machados, ele possivelmente conseguisse sustenta-la, mas a continuidade de uma violência aberta poderia atrasar de modo intolerável o lançamento da embarcação e quem sabe até mesmo torna-lo impossível.
Não era apenas o caso de ampliar o escaler, mas também de reaparelhar, calafetar, arranjar mantimentos e milhares de outras coisas.
Um ataque final, uma tentativa de tomar o escaler assim, que estivesse pronto — essa era outra questão, e, se não pudesse ser evitada através dos vários estratagemas que ele tinha em mente, estava razoavelmente confiante em que poderia ser enfrentada com a força física, principalmente se os piques continuassem mantidos em segredo, por causa do intimidador efeito surpresa.
O que ele precisava conseguir era uma razoável tranquilidade por três dias, e então, antes que o escaler estivesse obviamente pronto, poderiam arrastá-lo pela praia, antes do nascer da lua, na quinta-feira à noite, colocá-la na laguna, fundeá-lo com uma fateixa{182}, içar os mastros, completar o reaparelhamento e o tombadilho, fora do alcance da margem, e fazer-se ao mar com a maré da noite.
A pergunta era: qual o poder de comando que Palmer tinha sobre os seus homens? Ele perdera quase todos os oficiais, ou por afogamento, ou por terem sido mandados de volta com presas — e, sem dúvida, muitos dos seus melhores marinheiros —, e estava sozinho, sem apoio. Quantos ex-Hermione eram parte integral da tripulação do Norfolk? Conseguiriam eles atrair muitos dos outros para o seu lado? Até que ponto Palmer era influenciado pelos oficiais remanescentes, o cirurgião e o obscuro mestre-arrais ou o tenente que se mantinha constantemente fora de vista? Essas eram perguntas cujas respostas ele teria de ler, naquela tarde, no enigmático rosto peludo de Palmer.
Terminado o jantar, deu algumas voltas no nivelado gramado diante da barraca e então chamou o patrão do escaler.
— Bonden —avisou —, vou falar com o comandante do Norfolk. Dê uma sacudidela no meu chapéu e no meu casaco, sim?
— Pois não, senhor — disse Bonden, que estava inteiramente preparado para a visita. — De maneiras que afiei a sua espada, peguei a pistola do sr. Blakeney, saquei e sequei as cargas e britei as pederneiras.
— Isso seria perfeito para um ataque, Bonden — comentou Jack —, mas esta será uma visita matinal cortês.
— Visita matinal, uma ova — murmurou Bonden, sacudindo com veemência o casaco do comandante, um pouco a sotavento. — Como eu queria que tivéssemos uma caronada.
Enfiou a pistola no bolso, já havia uma comprida, fina e perigosa lâmina, do tipo que chamam de estilete, enfiada no cinto, e um canivete preso num cordão pendurado em seu pescoço. Entregou o chapéu e seguiu o seu comandante.
Foi de fato um aspecto social que Jack deu à sua visita, e Palmer, um homem de boas maneiras, reagiu com trivialidades da mesma espécie. Mas enquanto a conversa finda seguia o seu suave e insípido curso, Jack observou que o homem com quem conversava mudara muito desde o último encontro que haviam tido. Palmer estava obviamente doente, parecia muito mais velho, encolhera, estava sob grande tensão, e Jack teve a impressão de que durante as últimas horas andara discutindo furiosamente.
— Bem, senhor — disse Jack finalmente —, parece que alguns de nossos homens armaram uma tola confusão esta manhã. Não creio que pretendessem causar algum dano, mas é o tipo de brincadeira rude que pode se transformar em algo muito desagradável.
— E se transformou em algo muito desagradável. O braço de John Adams foi fraturado, o sr. Butcher está cuidando disso agora.
— Lamento muito, mas o que quis dizer por desagradável é que meia dúzia de homens quase morreram por causa de um miserável serrote... por uma tola brincadeira de jovens marujos. Consegui controlar os meus carpinteiros... tinham machados, sabe... mas não foi fácil, e não gostaria de ter de fazer isso novamente. Talvez o senhor tenha notado que marinheiros em terra, se o navio não está por perto, são difíceis de controlar.
— Nada tenho notado desse gênero — retrucou Palmer, com rispidez, dardejando um olhar desconfiado por baixo das bastas sobrancelhas.
— Pois eu tenho — afirmou Jack. — E a mim me parece, comandante Palmer, que há um tal estado de hostilidade entre os nossos homens que é como estar sentado sobre um paiol de pólvora com uma lanterna desguarnecida. A menor coisa pode provocar uma explosão. Portanto, eu lhe imploro que dê ordens rigorosas para que esse perigoso tipo de brincadeira não se repita; e, por falar nisso, gostaria que me devolvesse o meu serrote. Não suponho que tenha havido qualquer intenção de roubá-lo realmente.
A parede da barraca abaulou ligeiramente para o lado de dentro, e ficou bem evidente que Palmer estava em contato, por meio de cochichos ou de cutucadas, com alguém do lado de fora.
— O senhor terá o seu serrote — disse ele. — Mas devo dizer-lhe, comandante Aubrey, que estava a ponto de enviar-lhe uma intimação...
— Enviar-me uma intimação? — Exclamou Jack, gargalhando. — Ah, não, não, não. Disparate, Capitães de mar e guerra não enviam intimações uns aos outros, meu caro senhor. E, mesmo que eles se comportassem desse modo impróprio, devo lembrá-lo de que, no mínimo, é meu prisioneiro de jure.
— Do desejo que viesse aqui, então, para que eu pudesse informar-lhe oficialmente que esta ilha é território americano, por direito de descoberta, e ordenar que leve seus homens para o lado mais distante, ao Norte do recife, para que eles não impeçam a recuperação das madeiras e das provisões do Norfolk.
— Nem por um momento posso aceitar sua alegação de soberania — retrucou Jack. — Em todo caso, trata-se de uma questão política que foge à minha competência. Mas em relação à ideia de colocar uma maior distância entre nossos homens concordo inteiramente. O senhor deve ter notado, tenho certeza, que estamos ampliando a nossa lancha. Quando o trabalho terminar, levarei meu pessoal para tão longe que não haverá a mínima probabilidade de encrencas. Para isso, porém, preciso das minhas ferramentas de volta.
— O senhor as terá — afirmou Palmer e sem transição, bradou uma saudação que começou muito bem, mas esmoreceu no mais lamentável garganteio. — O senhor as terá — repetiu, num murmúrio, passando a mão pelos olhos.
Elas vieram enroladas num pedaço de pano de vela, os cravos, as torqueses e o serrote de ponta, trazidas pelo aspirante ruivo, e, enquanto Jack declarava polidamente sua satisfação, Palmer irrompeu num forte tom de voz:
— Finalmente, comandante Aubrey, já que sustenta que ainda existe um estado de guerra, deve estar preparado para assumir as consequências lógicas de suas palavras.
— Não estou entendendo, senhor — disse Jack, mas Palmer, obviamente indisposto, reagiu apenas com uma desculpa sufocada e saiu correndo da barraca. Jack ficou parado um momento do lado de fora, em seguida pediu ao aspirante que perguntasse ao sr. Butcher se ele gostaria de consultar o dr. Maturin, entregou as ferramentas a Bonden e despediu-se.
O caminho da barraca até o riacho era margeado com apinhados fetos arbóreos; à sua grande sombra estavam homens, mais ou menos uma dúzia de cada lado, e podia-se adivinhar que havia mais atrás dos troncos. Ficaram em silencio quando Jack se aproximou, mas depois que ele passou suas vozes puderam ser ouvidas, baixas e urgentes, discutindo — vozes falando em inglês. "Vamos estrangular logo o sacana", berrou uma delas, e uma pedra atingiu o ombro de Jack. Quase imediatamente, o forte e metálico grito com sotaque de Boston do aspirante ecoou através das árvores. Jack seguiu seu caminho e atravessou o riacho no lugar habitual.
— Sr. Lamb — falou ao aproximar-se do escaler desmontado —aqui estão suas ferramentas. Maneje-as como um herói, e acredito que ainda poderemos nos fazer ao mar no dia previsto. Pode usar todos os marinheiros que desejar, para fixar as tábuas ou talhar cavilhas de pau.
Naquela noite e no dia seguinte a lancha começou novamente a tomar forma e na quarta-feira estava praticamente coberta de homens encaixando, juntando, ajustando, raspando e martelando, sob as vistas ansiosas do seu comandante, pois agora os mantimentos, àquela altura, já haviam sido reunidos: rede após rede com cocos estavam à espera de ser carregadas; a carne ressequida e malcheirosa de tubarão encontrava-se ali perto, em planos fardos de pano de vela; e somente os barris de água permaneciam à distância, ainda vazando terrivelmente.
O escaler estava protegido da vista do público por velas casualmente estendidas, e Jack achava improvável que os do Norfolk soubessem exatamente que etapa fora atingida. Dissera a Martin que, embora a embarcação pudesse ficar pronta no final da sexta-feira, ele só a colocaria no mar no dia seguinte, por causa da superstição dos marinheiros do traquete; e essa informação, Martin transmitiu de boa-fé a Butcher. Além disso, Jack sentia-se razoavelmente confiante em que não haveria qualquer tentativa de tomada do barco até o alvorecer da sexta-feira, no mínimo, e se isso realmente viesse a ocorrer. A essa altura, ele já estaria há algumas horas flutuando na lagoa. Por precaução, porém, mandou que os piques fossem armazenados por perto e à mão e deu um ou dois tiros ocasionais com a pistola para mostrar que lá havia bastante munição.
Durante todo o período, desde o remoto avistamento do baleeiro americano, ele dedicara-se à mais intensa e incansável atividade, mas aquela quarta-feira superou todo o resto. Ainda que os mastros da embarcação não tivessem sido encaixados, com o propósito de enganá-los grande parte do aparelho poderia ser preparada de antemão; naquela tarde, portanto, não houve uma só mão que não se envolvesse no trabalho árduo — carpinteiros, aparelhadores, veleiros, calafetadores, cordoeiros, mas da cintura para cima, labutando sob a sombra das frondes das palmeiras, com tal concentração que raramente falavam.
Nessa questão, nem o capelão nem o cirurgião poderiam ser considerados mãos hábeis, e mandaram-nos, com redes, apanhar inhames. Encheram conscienciosamente seus sacos, mas passaram a maior parte do tempo perseguindo o frango d’água, rastejando atrás da ave por entre os arbustos, até ela disparar velozmente para a parte a céu aberto da ladeira de cascalho, correndo tão depressa quanto uma perdiz e saltando de uma altura de três metros com um grito desesperador. Agora, antes de descerem para visitar o sr. Butcher e saber do comandante Palmer, descansavam no alto do terraço. Deitados de costas, as cabeças sobre os inhames, fitavam a nuvem que pairava sobre a ilha, perpetuamente carregada para sotavento e perpetuamente renovada pelo lado sudeste.
— Gmelin diz que o frango d’água siberiano dorme enterrado na neve —, observou Martin.
— Onde encontrou isso?
— Em Darwin{183}. Ao falar do precoce florescimento primaveril do Muschus corallinus, ele diz:
Colinas brancas abaixo torrentes liquefeitas jorram
O verde da relva salta, e flores violeta brotam;
Sua dormente asa o frango d’água exultante experimenta.
Brinca a branda ventania no céu, e aumenta...
E justifica numa nota, citando a autoria de John Georg Gmelin.
— Claro, eu respeito o Gmelin; mas há algo sobre frangos d’água que desafia a credulidade. Na minha parte da Irlanda, diz-se que o frango de terra, o codornizão, muda para frango d’água com a aproximação do outono, e depois muda de volta novamente na primavera. Não creio que Darwin acreditasse realmente nessa hibernação; ele é um homem respeitável.
— Já deu uma olhada na sua Zoonomia?
— Não. Mas lembro-me de algumas linhas de sua Origem da Sociedade, que um lascivo primo meu costumava recitar:
"Vejam"! Exclama ele. "Terra! Oceano! Acima, o ar.
E as Divindades do Amor Sexual devemos saudar!
Todas as formas de vida esse querido par devem regozijar,
E sexo pelo sexo o mundo prontamente vai desejar"!
Você acha, Martin, que é isso que estão fazendo ali embaixo, na praia? Isto é saudando as divindades? De acordo com a minha experiência, sei que homens do mar são notavelmente devotados a elas.
— Certamente estão fazendo a mais prodigiosa das algazarras.
— Parecem jubilosos.
— Enlouquecidos.
— Vou olhar da borda — avisou Stephen, levantando-se. — Oh, meu Deus! — Exclamou, pois ali, à sua esquerda, a não mais de duas milhas da praia, encontrava-se um navio baleeiro americano.
Ele havia contornado o promontório ao Sul e estava a plena vista da praia, apinhada de marujos do Norfolk, urrando e dando vivas, completamente foras de si. O aspirante ruivo e outro jovem já haviam corrido ao longo do recife, com incrível velocidade, para avisar da perigosa passagem com o naufrágio nela atravessado.
Alguns corriam a esmo de um lado para o outro, berrando e acenando, mas uma vintena de homens, um grupo compacto e ávido corria atrás de Haines metido em sua camisa xadrez; ele esquivou-se por entre os barris, pelo meio dos montes de lenha, entre as provisões; seguiu para longe do abrigo das árvores, seguiu para longe do escaler, caçado velozmente à beira-mar. Foi derrubado na margem do riacho, estripado, e o corpo jogado na água.
Um número ainda maior enxameou em volta do escaler, que os do Surprise tentavam desesperadamente arrastar pela dura areia em direção ao mar. Alguns arrancaram os deslizadores, outros arremessaram para longe seus preciosos mantimentos ou quebraram os barris de água com enormes pedras, numa desvairada destruição, e outros ainda, totalmente sem medo dos piques ou de qualquer outra coisa, davam tropeções nos homens que os exibiam ou jogavam neles o que estivesse à mão na marca da preamar — algas marinhas, madeira flutuante, pelotas de coral — ou mesmo os empurravam em outra direção.
Alguns tinham sido colocados fora de ação — o braço de Jack que empunhava a espada estava vermelho até o cotovelo —, mas de nada adiantou; e logo a embarcação estava irremediavelmente afundada na areia seca. Assim que isso ocorreu, assim que a fuga se tornou impossível, os atacantes recuaram para a linha da maré saudaram seu longamente esperado baleeiro. Todos os do Surprise estavam agora no interior do escaler, eriçado com piques, uma fortaleza inexpugnável, por enquanto. Mas por quanto tempo?
O coração de Stephen estava para estourar de dor por causa de toda aquela violência. Entretanto, quando olhou distraidamente de um lado para o outro, sua mente alertou-o de que havia algo errado, sobretudo porque agora a algazarra cessara quase totalmente.
O baleeiro tinha uma grande quantidade de pano a bordo, vinha com enorme pressão de vela, e seria impossível para ele entrar na laguna: avançou levantando um grande bigode de proa e passou direto pela desembocadura do canal mais distante. À distância de um cabo além da entrada, seus mastaréus do joanete de proa e do grande foram visivelmente levados embora, como se derrubados por um tiro de canhão, e ela instantaneamente aproou ao vento ao mesmo tempo arriou sua bandeira, rendendo-se.
Seu perseguidor surgiu rapidamente à vista, contornando o cabo do lado Sul, varredouras e cutelos envergados em ambos os bordos — silêncio mortal entre os petrificados homens do Norfolk lá embaixo —, disparou uma plena e exuberante banda de artilharia a sotavento, arriou uma embarcação e começou a reduzir vela, vibrando como um navio com a mente aliviada pelo prazer.
— O Surprise — exclamou Stephen, e murmurou: — O jubiloso Surprise. Que Deus e Maria o protejam.
Patrick O brian
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