Biblio VT
15
Cordas de segurança
A primeira metade da descida acontece numa precipitação cegante. Permanecemos adiante de nossos
inimigos, a madeira deslizando suavemente sobre a areia. Ajustando a pressão com os pés e pernas,
controlamos nossa direção e velocidade. Meus músculos seguem um ritmo familiar, distraindo-me da
altura em que estamos.
O vento faz meu cabelo trançado esvoaçar. Por baixo da minha pulsação errática, uma sensação de
esperança me impulsiona — quieta, calma e forte. É a isso que Morfeu se referia quando falou em
encontrar a tranquilidade em meio à loucura?
Meu sorriso hesitante se abre para Jeb, e ele pisca, me estimulando. O cabelo dele se debate em
ondas pretas em volta da cabeça. A luz do sol brilha entre seus cabelos, formando uma auréola. Ele
se parece com algum anjo da guarda rebelde.
— Vamos nos lançar ao mesmo tempo — orienta ele. — Quando atingirmos o outro lado, vamos
soltar a corrente para rolarmos sem nos emaranhar.
Concordo com a cabeça. Um puxão no meu cinto me certifica de que estou segura... De que
estamos presos um ao outro.
Atrás de nós, o galope e os guinchos disparam. Os nervos me pressionam o peito. Inalo os vapores
da areia e reprimo a tosse, vendo o abismo se aproximar.
O vale do outro lado tem uma clareira de grama macia antes de se transformar em um matagal. Isso
deve amortecer nossa aterrissagem e reduzir nosso impulso o suficiente para ficarmos logo de pé e
encontrarmos a segurança.
Podemos conseguir sem o uso de mágica. Só temos que cuidar da nossa aceleração nesta última
parte... Pegar velocidade suficiente para fazermos um ollie que nos lance pelo espaço.
O que equivale a dizer que tem que ser uma manobra perfeita a partir de agora.
Preparo os pés, posicionando meu tornozelo traseiro para pisar forte no fim da prancha e meus
dedos dianteiros subirem no nariz quando chegar o momento. Sinto um solavanco debaixo da
prancha, e balanço um pouco, guinando e perdendo velocidade preciosa. Jeb se aproxima para me
colocar de volta no curso. Em seguida, o mesmo acontece com ele, e sua prancha sacode tanto que
ele quase perde o equilíbrio.
Ele volta para o lugar. — Tem alguma coisa se movendo debaixo da areia! — grita ele.
Outro solavanco faz meus pés tremerem. O alerta de Morfeu sobre as areias movediças me vem à
cabeça. Enquanto Jeb e eu lutamos para ficar nas nossas pranchas, os quadrados brancos e pretos
sobre os quais deslizamos mudam, colidem e convergem — quebrando o terreno e transformando-o
num quebra-cabeças de peças pontudas, como se mil terremotos pequeninos estivessem apertando a
paisagem. Tenho uma sensação de déjà vu. É igual ao meu sonho.
Nossas pranchas param completamente onde os quadrados se unem e dobram. Desmoronamos no
lugar, arfantes. O exército da rainha avança em nossa direção, os pássaros gigantes escolhendo o
melhor caminho em torno da superfície irregular.
O sol começa a se pôr. Estamos totalmente expostos, sem ter para onde correr. Acima de nós, o
exército... Abaixo, um abismo largo demais para ser cruzado com um salto. A primeira fileira de
cavaleiros chega ao alto da crista e levanta um rodamoinho de areia que se enfuna para formar um
cogumelo e em seguida nos envolve. Cubro a boca e o nariz. Os pássaros estão bem perto, e seu
galopar ribomba pela madeira sob meus pés.
— Pegue a prancha e use como arma quando a poeira baixar! — O comando de Jeb mal sai de sua
boca quando me recordo da flauta. Morfeu disse para usá-la se precisássemos ganhar chão.
Ele sabia que isso iria acontecer...
Ele está nos bastidores, mexendo os pauzinhos como sempre.
Tiro o instrumento e levo o bocal aos lábios, soprando e colocando os dedos sobre os buracos em
um padrão que toca a melodia de seu acalanto. Embora eu nunca tenha tentado usar uma flauta — e
instrumentos de sopro sejam completamente diferentes dos de cordas —, as notas me vêm sem
esforço nenhum.
Jeb fica boquiaberto, tão estarrecido quanto eu. Se ele soubesse da missa a metade... Por quanto
tempo esta melodia esteve dormente dentro de mim.
O som ecoa sobre o caos — alto e mágico. Assim que a última nota desvanece, um chocalhar
irrompe por trás de nossos perseguidores. Em uma onda de cinza encardido, milhares de mariscos
vêm correndo feito uma avalanche sobre a crista, carregando o exército da rainha no vagalhão.
A flauta escorrega de minhas mãos e desaparece. Pássaros Jubjub que perderam o equilíbrio e,
guardas caídos que tentam escalar os mariscos como cabras montanhesas trepando nas saliências,
também são pegos pelo dilúvio ruidoso. As conchas se abrem feito o Mar Vermelho em ambos os
lados de Jeb e de mim, deixando-nos intactos. Eles ainda se lembram do que fizemos por eles.
Não seremos capturados, mas já perdemos nossa chance de aceleração. Nunca chegaremos do
outro lado do abismo, e a subida de volta — com o terreno tão irregular — pode levar horas. Já
perdi a noção do tempo com tanta agitação. Podemos estar aqui há horas.
— Suba na prancha! — Jeb se posiciona na minha frente, gritando sobre a dissonância. — Vamos
pular por cima dos mariscos; de alguma maneira, eles estão abrindo caminho para o abismo... E
vamos pegar uma carona para o cemitério.
Observo os mariscos voarem sobre a fenda usando aquela física torta do País das Maravilhas em
sua vantagem. Eles pegam o exército Vermelho em seu impulso e pelo uso da força, entortam suas
conchas para atirar os pássaros Jubjub e os guardas nas profundezas feito lixo jogado da janela de
um carro. Por um segundo, me pergunto se não vão fazer o mesmo conosco. Mas acredito que não.
Eles vieram em resposta à flauta e estão aqui para ajudar.
Jeb dobra as pernas como se fosse fazer agachamento. Ele está se preparando para pular sobre
eles. — Quando eu contar até três — diz ele. Depois, Jeb alça sua prancha vários centímetros acima
dos mariscos e apoia seu pé esquerdo sobre ela enquanto equilibra o pé direito sobre o chão.
— Um... — Sua voz me incita à ação. Seguro minha tábua no alto com uma mão e imito sua
postura, equilibrada sobre um pé e pronta para largar a prancha quando ele o fizer. — Dois... —
Minha mão livre se enrola na corrente que pende da presilha do cinto de Jeb. — Três!
Simultaneamente, como se tivéssemos praticado essa manobra centenas de vezes, jogamos as
pranchas sobre os mariscos que avançam, com um pé já posicionado, e empurramos com o outro para
pegar velocidade. Desta vez, não é nada parecido com surfar na areia. Minha prancha pula de um
marisco para o outro, saltando sobre um guarda de carta aqui e ali. Cada impacto sacoleja a corrente
e sacode meus ossos. Meu esqueleto não vai demorar muito para ficar tão escarpado quanto a
paisagem.
Nossa velocidade aumenta quando o abismo se aproxima. Meu coração está na garganta, batendo
contra a laringe.
— Agarre a prancha e não olhe para baixo! — Jeb grita para trás.
Apanho a tábua com a mão que está livre e recolho os joelhos quando somos lançados. Estou
apertando tanto os elos da corrente que meus dedos parecem feitos de metal também.
Com os olhos fechados, engulo o ar com cheiro de peixe que nos rodeia, tentando aplacar meu
medo.
— Uh-huuuu! — O uivo de Jeb me força a abrir os olhos.
Por um instante, acredito no impossível. Estamos planando — agachados em nossas pranchas — a
poucos metros da margem do vale, e parece que vamos conseguir. Nem estou usando nenhuma
mágica. Deve ter algo a ver com a curvatura das conchas e a curvatura das pranchas, porque o mesmo
lapso gravitacional bizarro que permite que os mariscos pairem no ar está nos favorecendo também.
A madeira está literalmente flutuando sozinha. O vento passa por mim e eu levanto o queixo para o
céu, mergulhando no azul que nos rodeia. Estou flutuando, e é incrível.
— Uh-huuu! — imito o grito triunfante de Jeb. Ele lança um olhar para trás, sorrindo.
Respondo com outro sorriso, agora sem medo, até Jeb parar de olhar para mim e olhar adiante
enquanto a minha atenção se volta para baixo.
O abismo não é infinito. Seria tão melhor se fosse, pois eu não veria os corpos lá em baixo.
Estamos a uns vinte andares de altura, na fila da frente para todo aquele sangue e carnificina. Os
perseguidores que sobraram estão aos pedaços ao longo dos espigões rochosos que emergem onde os
lados do cânion se estreitam, na direção do fundo.
Tudo à minha volta começa a girar. Meu equilíbrio fica fora de controle e eu despenco da minha
prancha levitadora.
Inalo um grito silencioso. Jeb ainda não percebeu. Uma lamúria se aloja em minha garganta
enquanto eu desajeitadamente tento soltá-lo do meu cinto, determinada a não matar ambos. O fecho
da corrente não se move, e Jeb é puxado para baixo. Ele passa por mim gritando.
Tento retribuir o grito, mas meus pulmões seguram todo o ar dentro de mim. O peso de Jeb puxa a
minha cintura, e as laterais do cânion passam em uma sucessão de pedras pontiagudas. Ele larga a
mochila para tentar diminuir a velocidade de nossa queda.
Parece que estamos caindo em câmera lenta. Vejo nossas mortes em detalhes excruciantes. Jeb
será o primeiro a atingir o solo, seus membros e torso sendo rasgados enquanto ele quica de um
afloramento escarpado a outro. Depois, minha cabeça atingirá uma pedra e explodirá feito um melão
maduro.
Revolta e arrependimento quase me incapacitam, até que alguma ficha cai dentro de mim... Uma
percepção indescritível.
Eu. Posso. Voar.
A lembrança do pulo que minha avó Alícia deu da janela do hospital surge em um lampejo na
minha mente. Talvez ela não tivesse pulado de uma altura suficiente. Suas asas não tiveram tempo
para irromper de sua pele.
Como se deflagrado pelo pensamento, sinto uma comichão nas escápulas. E, depois, uma sensação
de lâminas me rasgando a pele. Os gritos antes presos em minha garganta se soltam conforme algo
irrompe atrás de cada ombro, como guarda-chuvas se abrindo.
Jeb dá um puxão na corrente e grita: — Al! Você tem asas! Use-as!
Lembro-me das palavras de Morfeu durante o banquete. “Pare de pensar com sua cabeça,
Alyssa.”
Então, decido pensar com minhas entranhas. Retesando os ombros e arqueando a espinha, controlo
o impulso dos meus novos apêndices. Dois segundos antes de Jeb atingir a primeira rocha que o teria
estilhaçado completamente, paramos em pleno ar.
Uau.
Jeb brada sua gratidão de lá de baixo: — Você é linda, amor! — Ele está tão aliviado que acaba
rindo. Eu também rio, até começar a perder altitude. Seguro a corrente com as duas mãos e bato as
asas com mais força para compensar o peso de Jeb. Minha cintura parece que vai quebrar ao meio.
— Me deixe lá embaixo. — A voz dele fica séria. — Sou pesado demais para você. — Sua calça
está coberta de poeira, e a cruz em sua coxa já perdeu tantas joias que mais parece um L invertido. O
tecido de sua camisa está escancarado nos cotovelos, onde há cortes com sangue e vergões por ele
ter tomado impulso nas paredes do cânion para não ser atingido pelas rochas pontudas.
O abismo fica mais estreito, e é obvio que minhas asas não caberão lá. Temos que nos separar
antes que os pés dele atinjam o chão. Não é mais alto do que os tombos das árvores nas quais
costumávamos subir quando crianças, mas não posso deixá-lo. Não quero.
— Posso nos levar para cima... — Eu paro, tentando visualizar que as correntes estão vivas... Que
elas se enrolam nele e o elevam sozinhas. Ou estou nervosa demais para que a mágica funcione ou
ele é muito pesado, porque não obtenho sucesso.
— Uh-hu — dispara ele. Jeb se balança para a esquerda e apoia os pés em uma pedra para ajudar
a sustentar seu peso. — Larguei a mochila e o dinheiro. Temos que pegá-la. Minha namorada não vai
passar as férias de verão no reformatório para jovens.
Namorada dele. Ouvir isso me faz tentar com mais força ainda. Tento pegar as pranchas que
flutuam lá em cima com a minha mente. Se eu pudesse agarrar uma, poderia jogá-la para Jeb usar
como apoio.
Elas flutuam na direção do vale, como se me ignorassem propositalmente. Minhas novas asas se
distendem com o esforço de pegá-las, e minha coluna se curva e estende. Eu uivo de dor.
— Pare de se machucar! — Jeb perde o equilíbrio e balança abaixo de mim de um lado para o
outro, feito um pêndulo. — Ou você me abaixa ou tiro a corrente e caio sozinho. Você escolhe. — Os
dedos dele rodeiam sua cintura.
— Mas eu não posso ir com você!
— Então você vai me deixar aqui e depois vai buscar alguma coisa. Uma corda, uma trepadeira...
Uma extensão para a corrente, algo que possa me puxar. Está bem?
— Tudo bem — respondo, desejando que estivesse realmente tudo bem.
Ele balança a cabeça, concordando, e eu o ajudo a descer, oferecendo um cabo de ancoragem,
como nas vezes em que fomos fazer rapel.
Abaixá-lo é a coisa mais difícil que eu já fiz. Não somente por causa da espiral gélida de terror
em meu peito, mas porque minhas asas têm que se alternar entre a rigidez de uma asa-delta e as
relaxadas investidas de um pássaro para nos guiar pelo labirinto de rochas.
— Está se aguentando bem? — Tento soar despreocupada.
— Além da cueca colossal? — ele guincha, em voz deliberadamente estridente. — Ela deve ter
aumentado uns quatro números.
Lanço um riso forçado. — Está pagando o carma pelos escoteiros que você nocauteou na sétima
série.
Ele ri, provocando um eco vazio no abismo.
Minhas asas titubeiam e eu agarro a corrente com as duas mãos para compensar seu peso.
— Estamos quase lá. — Suas palavras têm um tom sério agora. — Estou muito pesado?
— Estou bem — consigo responder. O suor pinga do meu rosto enquanto o posiciono na abertura
estreita no fundo. Ele ganhou mais alguns arranhões no caminho, mas não reclama.
Chegamos ao ponto máximo em que consigo chegar. Mesmo havendo somente cerca de um metro
entre nós, para mim parece um campo de futebol. Não podemos nos tocar. Não consigo ir mais baixo
sem arranhar minhas asas nas paredes do desfiladeiro, e ele está equilibrado entre duas rochas que o
mantêm no centro da fenda. Daqui, a queda parece menos assustadora. Mas não é a queda que me
preocupa. E se eu não encontrar um modo de içá-lo de volta?
— Al... — Nossos olhares se encontram, e vejo algo novo nos olhos dele. Surpresa misturada com
reverência. Ele balança a cabeça. — Suas asas são incríveis. Elas doem?
— Não. — Tremulando no lugar, estendo a mão e toco uma escápula através do rasgo na blusa. —
Nem estou sangrando. Mas elas são pesadas. Parece que estou usando uma mochila enorme.
— Mas parece que você está sentindo dor.
Agarro as correntes esticadas, nossa única ligação sólida, desejando que fossem seus dedos nos
meus. Meus olhos ardem. — Jeb, e se eu não conseguir resgatar você?
— Não vai acontecer. — Ele enrola os dedos nos elos da corrente. — Você lembra quando meu
pai morreu... Aquela noite?
Eu faço que sim.
— Nós fomos para a sua casa. Seu pai fez chocolate quente. Ele foi para a cama depois de um
tempo. Jen e mamãe adormeceram no sofá. Mas eu e você ficamos sentados na cozinha conversando
até as cinco da manhã.
Não estou bem certa de onde ele quer chegar com aquilo. Não está fazendo com que eu me sinta
nada melhor por ter que deixá-lo. Ser lembrada do quanto ele estava sofrendo faz minhas entranhas
ficarem pesadas feito tijolos.
— Você me levantou na noite mais sombria da minha vida — acrescenta ele. — Mesmo depois,
foi você que me fez seguir adiante. Você ia andar de skate comigo todo dia, me mandava torpedos a
toda hora.
— Eu ficava vendo você trabalhar na sua bicicleta e pintar.
Nossos olhares se tocam de uma maneira que não podemos, e o rude e forte Jebediah Holt parece
vulnerável. — Você é a melhor amiga que eu já tive. Mesmo que as coisas não deem certo, você vai
encontrar uma maneira de me ajudar.
A confiança que ele tem em mim me emociona. — Não quero fazer isso sem você.
Ele olha para minhas asas e sua boca se aperta, um traço rígido. É óbvio que ele está lutando
contra o desejo de me puxar para ele. — Sobre uma coisa Morfeu não mentiu...você sabe cuidar de si
mesma. Eu devia ter percebido isso, já que você cuidou de mim por tantos anos. Então, seja forte,
Alyssa Victoria Gardner.
Meu peito infla de esperança. Ele realmente acredita que vou conseguir. — Está bem.
— E, Al — acrescenta ele, com o queixo duro. — Aconteça o que acontecer, nós vamos nos achar.
Você é a minha corda de segurança. Sempre será.
O sentimento incita uma reação muito estranha em meu coração — ele o parte e o cura, tudo na
mesma respiração. Antes que eu possa responder, Jeb solta a corrente. Eu estava batendo as asas
com tanta força para manter nós dois no ar que, com o peso diminuído, sou catapultada para cima do
abismo como se estivesse em uma corda de bungee jump.
A propulsão me força contra o vento. Minhas tranças me chicoteiam o rosto, trazendo de volta a
imagem de Alison lutando com o seu cabelo no pátio da clínica. Mas não serei vítima como ela.
Aceitarei o poder do qual ela sempre fugiu. É a única coisa que pode me manter viva e me fazer
reencontrar Jeb.
Jogo o cabelo para o lado e ajusto minhas asas para dar uma guinada na direção do vale. Meu
medo de altura retorna, e eu mergulho muito, e muito depressa. O chão de grama vem ao meu
encontro, e eu grito.
Fecho os olhos com força. Um impacto violento chacoalha meus ossos e enrolo o corpo numa bola
para aproveitar o impulso. Minhas asas e a corrente se enroscam e me prendem — com tanta força
que mal consigo mover os braços e pernas quando paro de rolar.
Sacudindo-me para verificar se nada está quebrado, estico as palmas das mãos contra as asas,
fazendo força para libertar meu rosto. As mesmas coisas que salvaram a minha vida e a de Jeb agora
me sufocam feito uma camisa de força. Cada respiração empurra a membrana leitosa com mais força
contra minhas narinas e lábios.
O ar ainda adentra, mas, encolhida num casulo, não consigo ver o que se passa à minha volta. Sinto
um cheiro de ranço, como se eu tivesse caído dentro de uma usina de tratamento de esgoto. Bufadas
quentes de respiração circundam meu corpo. Alguma coisa está me rodeando... Me cheirando. O
pânico encolhe meus pulmões.
Finjo que estou morta enquanto cordas envolvem meus tornozelos e me arrastam. Um grito implora
para sair. Eu o reprimo, e ele queima dentro do meu peito.
Estou descendo uma ladeira, o que significa que estou sendo puxada para fora do abismo, na
direção dos arbustos do cemitério no lado mais baixo do vale.
Três coisas estão erradas neste cenário; estou presa sem poder lutar e nem ver quem está me
arrastando; estou sendo rebocada para mais longe de Jeb; e, por último, mas não menos importante,
estou prestes a ficar sozinha, bem no meio do jardim das almas do País das Maravilhas, e sem nada
além de coisas mortas para me fazer companhia.
16
Silêncio
Tentar escapar é inútil. Não importa o quanto eu me concentre nas correntes e na corda que me
amarram, não consigo animá-las. A claustrofobia me distrai.
Tento dizer a mim mesma que estou envolta em um cobertor aconchegante, mas minha mente não
acredita. Quando finalmente paramos, minhas asas doem e minhas costas e cóccix latejam por causa
do terreno irregular que atravessamos para chegar aqui.
Respiro bem baixinho enquanto uma discussão estranha acontece acima de mim.
— Estúpidisss! Estúpido, estúpido! Ela não tem cheiro di morrrta!
— Mas parece morrrta. Papa pere pece.
A má notícia é que eles perceberam que estou viva e a notícia pior é que não estou muito certa
quanto a eles. Seu fedor de decomposição queima minha garganta. Pela voz, não devem ser muito
grandes. Talvez sejam zumbis pigmeus.
Arrasto-me para fora com este pensamento e tenho que reprimir um gemido.
As cordas se soltam dos meus tornozelos. Eles vão me tirar do casulo logo, logo. E então, terei de
enfrentá-los, seja lá o que forem. A apreensão faz meu coração disparar.
— Nus deve trazer só mortosss. Twids não gosssta errar — diz uma das criaturas, em voz
esganiçada.
— Pee posrros não sssão o mais piorrrr dos nossos pro pleble pasmas.
— É sssimm. Errar não nossa pulcul papa. Irmã Um pepe piudiu trazer ela paa piqui.
— Pepe piudiu ou não, Irmã Dois pavai ponos enforcar! Nada de pivi posvos aqui. Nada qui res
pipi ra ou fa pala. Nada, nada, nada!
A língua deles é uma mistura da língua do P com algo absolutamente maluco. Só consigo entender
que eles trabalham para as Irmãs Twid recolhendo coisas mortas. Estão preocupados que a Irmã
Dois não gostará de saber que alguma coisa viva foi trazida para este solo sagrado. Parece que ela
pode enforcá-los pelo erro. Se eles continuarem prevendo isso, podem decidir me tornar morta para
salvar sua pele.
Cerro os dentes para conter uma pontada de medo. Talvez a Irmã Um não deixe que me
machuquem, pois foi ela quem mandou me pegar. O que levanta uma nova questão: por que ela me
quer aqui?
O ribombar de um trovão penetra em meus ossos. Me forço a respirar, inalando o cheiro de terra
molhada mais que o de meus captores. O cemitério deve ser impermeável, porque a chuva está
batendo no que parecem ser folhas acima de mim, mas eu não estou ficando molhada.
E se Jeb estiver no meio da tempestade? E se ele for surpreendido por um deslizamento de terra?
Tenho que voltar para ele. Posso usar a corda em volta dos tornozelos como uma extensão para a
corrente.
Meus captores ainda estão discutindo o que fazer comigo, e a realidade é que ninguém virá me
resgatar daqui. Dependo só de mim mesma.
A insegurança crava seus dentes em mim, bem fundo, cruel e cortante.
Mas espere. Eu não sou uma estranha neste mundo — conheço seus segredos. Talvez tenha sido
somente em meus sonhos, mas aprendi coisas que me salvaram mais de uma vez nesta jornada. Não
sou a menininha indefesa e vulnerável que era quando brincava aqui.
Não sou nem a mesma garota que era quando cheguei à toca do coelho com Jeb. Estou mais forte.
Para começar, agora tenho asas; e, como observei com Morfeu, elas podem ser usadas para mais
do que somente voar. Elas podem ser armas e escudos.
Esperando ter o benefício da surpresa, sacudo as pernas onde as cordas estão soltas. As criaturas
voam longe com os meus chutes, não mais pesados do que porquinhos-da-índia.
Eles gritam quando fico de lado e a corrente retine no chão. Solto-a do meu cinto e minhas asas se
enfunam. Arfando, encho os pulmões de ar, estendo as pernas e me coloco de pé, destemida, caso as
criaturas sejam como cães e possam farejar o medo. Até consigo emitir um rugido decente enquanto
equilibro meu peso com os acessórios.
As criaturas correm apressadas em volta dos meus pés, sibilando. Estão usando pequeninos
capacetes de mineiro, e as luzes balançam para todos os lados, como um globo estroboscópico, me
desorientando.
Imediatamente os reconheço do site do País das Maravilhas. Eles são como as pinturas de duendes
presos em gaiolas, chorando lágrimas de prata — macabros, mas fascinantes.
Suas caudas longas e caras de primata me lembram macacos-aranha, exceto por seu traseiro
pelado. Lodo prateado goteja de sua pele nua, a origem do cheiro nocivo que me sufoca. Seus olhos
bulbosos são prateados também, sem pupilas nem íris, então eles brilham feito moedas molhadas —
quase cintilantes, mesmo sob a luz mortiça.
Gotículas oleosas seguem suas pegadas. Um olhar para meus pés revela o mesmo resíduo
escorregadio em volta de minhas botas. Eles devem ter usado suas trilhas para me arrastar até aqui,
não cordas, o que significa que precisarei encontrar outra maneira de fazer um cabo para Jeb.
Alguns dos duendes param aos meus pés e olham da corrente para mim, deliberando se vale a pena
o esforço de me acorrentar novamente. Pego os elos e em seguida agito minhas asas num rasante para
impressionar as criaturas, batendo o pé com mais força do que o necessário. Os duendes se
contorcem para entrar em algumas moitas onde os outros já haviam se escondido.
Um choramingar sacode as folhas, junto com o piscar das luzes de seus capacetes. As criaturas
parecem mais assustadas do que imagino.
Estou em um jardim coberto, escuro e bolorento. À minha esquerda, vislumbro um punhado de
itens brilhantes — de braceletes e colares a joias desmembradas — e uma pilha de ossos junto a
vários rolos do tamanho de pneus de bicicleta cheios de fios dourados e tremeluzentes. Isso me
recorda da escadaria assustadora que eu e Jeb descemos para entrar no coração do País das
Maravilhas; pode ser que ela tenha sido construída com esses materiais. Talvez as joias sejam o
pagamento dos duendes por suas criações.
Pego um rolo de ouro e dou um puxão no fio. Embora ele pareça elegante e frágil, é forte como um
fio de telefone. Forte o bastante para aguentar o peso de Jeb.
Quando passo a corrente pelo buraco do meio do carretel para confeccionar uma funda, alguns dos
duendes saem apressadamente para arrastar os carretéis restantes, os ossos e as joias para seu
esconderijo, silvando para mim.
Eu os avalio, buscando na memória o que Morfeu me ensinou sobre eles, tentando descobrir se as
criaturas são uma ameaça. Lembro-me de um esboço que ele fez. De como seus dedos longos e
elegantes apontavam para as imagens deles. Morfeu disse que são dóceis e tímidos e adoram tudo
que brilha. Como cobras, eles trocam de pele ao crescer, mas ao contrário das cobras, sua pele se
decompõe em pedaços gordurentos antes de cair, conferindo-lhes uma estranha conexão com os
mortos. Na verdade, eles se sentem mais à vontade entre cadáveres do que entre seres vivos.
Não sou nada além de uma novidade para eles. Eles não têm motivo para me machucar. O ritmo
staccato em meu coração diminui.
Viro-me, buscando uma saída. As asas se emaranham debaixo de minhas botas, fazendo com que
eu pise nelas. Ferroadas de dor me percorrem a espinha e os ombros, prova de que os apêndices
estão presos ao meu esqueleto.
Alguns risinhos voluntariosos chacoalham os arbustos e eu olho para minha audiência invisível
enquanto me liberto. Minhas asas não podem se esticar totalmente para cima por causa das
trepadeiras e dos arbustos espinhosos que pendem do teto.
Estendo uma asa por sobre o ombro direito para me certificar de que não a machuquei. O contato
com a textura parecida com veias manda vibrações pela minha espinha. É como tocar a luz do sol e
teias. Quente, etérea, mas não pegajosa... Finamente tecida.
Me impressiona como algo tão delicado pode me dar tanta sensação de poder. Minhas asas não
são pretas como as de Morfeu. Elas são quase da cor de vidro fosco branco com pontos de joias
brilhantes que piscam todas as cores do arco-íris, como as joias sob seus olhos. O padrão faz
lembrar borboletas.
Borboleta. Que ironia, todos esses anos papai ter me chamado assim. Agora sou uma de verdade.
Uma borboleta presa.
Olho à minha volta novamente. O ar aqui embaixo é inerte e sufocante. A julgar pelas sebes de
cantos quadrados, estou bem no meio de um labirinto de jardim digno de qualquer romance gótico de
suspense. Três aberturas se ramificam a partir daqui. Uma delas é minha rota de fuga.
A chuva cai mais forte sobre as folhas acima de mim. Tenho que me apressar.
Arremessando a corrente e o carretel sobre o ombro e debaixo da minha asa, lanço um alerta para
os duendes com bastante veemência: — Eu não me entregarei sem luta — e em seguida escolho a
abertura à minha direita, onde um brilho suave irradia. Avanço dando voltas no labirinto, parando
para soltar a corrente da vegetação rasteira sempre que ela fica presa.
Logo o caminho se ramifica de novo, desta vez com cinco opções — todas igualmente luminosas.
Pego a opção do meio e sigo em frente.
Dez passos à frente e atravesso um arco, terminando onde comecei. Os duendes saíram de seu
esconderijo. Seus capacetes de mineiro jogam luz em todos os cantos enquanto eles soltam risos de
escárnio. Olho para eles e eles voltam correndo para os arbustos, deixando pegadas oleosas.
Talvez seja hora de barganhar por algumas respostas.
Ao tirar o meu cinto, eu o agito diante dos arbustos para que a luz mortiça atinja os rubis. — Darei
isto a quem me mostrar a saída do labirinto.
Ouço murmúrios, mas ninguém se candidata. Eu me ajoelho e afasto as folhas na base da sebe mais
próxima. Um par de olhos refletivos me olha das profundezas. A luz do capacete da criatura está
desligada.
— Olá. — Eu amplifico o charme, tentando ser diplomática como fui com a criatura com
aparência de furão no banquete de Morfeu. Não é fácil quando o indivíduo cheira a carne podre.
Passo o cinto pelas folhas, permitindo que o duende veja as joias de perto. — Bonitas, não?
Ele toma o cinto da minha mão e veste o acessório feito uma echarpe. Afagando os rubis
faiscantes, ele ronrona.
— Você sabe por que a Irmã Um me quer aqui? — pergunto.
O duende pisca os longos cílios com recato. Suas pálpebras são verticais, fechando lado a lado
como cortinas de palco para depois voltarem a abrir. Simplesmente assustador.
— Nós não sabe — murmura ele.
— Está bem. — Acredito. — Mas a Irmã Dois não me quer aqui, certo?
A criatura estremece como resposta.
— Então me ajude a sair e a grande irmã má nunca vai saber. Você não vai ser enforcado. Faz
sentido?
O duende faz que sim. — Usa pacha peve, brilhante faladora — sussurra ele antes de se retirar
para dentro das folhas.
— A chave? — pergunto em voz alta. Ele não pode estar falando da chave que Jeb deixou na porta
da toca do coelho. Mas existe alguma outra chave?
Em meu sonho, Morfeu chamou minha marca de nascença de chave quando me mostrou como abrir
a árvore de diamantes.
Afasto minhas asas do caminho para sentar, tirar as duas botas e esticar os dedos, esfregando as
solas doloridas dos pés. Estou usando plataformas há tempo demais. Dois dias, direto. É isso
mesmo?
Não consigo lembrar.
Franzindo a cara, enrolo a perna esquerda do legging até ver a marca de nascença. Lembro-me de
como minha pele reagiu ao toque de Jeb quando ele acariciou meu tornozelo na sala de estar. E em
seguida como me senti no momento em que Morfeu pressionou sua carne contra a minha para me
curar.
Jeb é estável, forte e genuíno — meu cavaleiro em sua armadura reluzente. Morfeu é egoísta,
suspeito e sublime — o caos encarnado. Impossível comparar.
E aqui estou eu, a união de tudo isso. A luz e a escuridão ao mesmo tempo. Caso eu cedesse a um
de meus lados, será que eu teria que abdicar do outro? Meu coração dói ao pensar nisso. De alguma
maneira, sinto que preciso dos dois para estar completa.
Estudo a marca de nascença e me fecho para outros pensamentos. É possível que ela seja um mapa
do labirinto no qual me encontro. A pigmentação segue uma curva contínua à direita e se enrola em si
mesma. Presumindo que estou no meio do labirinto, precisarei virar à esquerda várias vezes para
sair.
A não ser que eu esteja olhando a coisa de cabeça para baixo.
A desorientação faz minha cabeça rodar. A sensação de estar presa volta a contrair meu peito.
Fico de pé, segurando as botas pelos cadarços em uma mão e a corrente e o carretel na outra. Se eu
continuar virando à esquerda, vou avistar algum lugar. Espero...
— Vocês vêm comigo? — pergunto aos duendes. Por mais estranho que eles se pareçam, a
companhia deles me conforta. Folhas farfalham atrás de mim quando me dirijo para a abertura da
esquerda. Dou passos largos para evitar partes espinhentas da vegetação rasteira. Meus
companheiros seguem meus passos, as luzinhas saltitando, e eu imagino como deve parecer cômica
nossa caravana. Se Jeb estivesse aqui, inventaria algum apelido engraçado para os duendes.
Esboço um sorriso amarelo ao pensar nele. Fique bem, Jeb. Estou chegando.
Está silencioso demais, há apenas o barulho da chuva batendo acima de nós, e penso em conversar
com meus companheiros duendes, talvez até com as sebes. O silêncio não é tudo aquilo que eu
pensava que seria. Durante toda a minha vida de adolescente, tentei silenciar insetos e plantas, na
ânsia de me encaixar. Mas estou começando a pensar que poderei precisar daquelas outras vozes
para poder me encaixar na minha própria pele. Para ser eu mesma novamente.
Sinto o mesmo sobre minhas asas...
Eu voei.
Eu. Voei.
Eu não tive medo. Eu estava no controle, forte, livre. Viva.
Como se estivesse respondendo aos meus pensamentos, minha asa esquerda desfalece e bate na
minha cabeça. Eu a empurro para trás, depois me viro e olho para meus acompanhantes, analisando-
os. — Por que quanto mais tempo eu fico aqui, mais sinto que este é meu lugar? — pergunto-lhes.
Eles diminuem o passo, mas não respondem. O que está usando o cinto como echarpe dá um
sorriso macabro, e trinta e poucos outros pares de olhos metálicos brilham de curiosidade debaixo
dos capacetes.
O comentário de Morfeu sobre a infância perdida de Alice incomoda feito uma torneira gotejando
na minha cabeça. Duas coisas não se encaixam: Alice alegar que foi mantida prisioneira em uma
gaiola por todos aqueles anos, e a ausência de sua marca de nascença quando ela ficou velha. Morfeu
está escondendo alguma coisa. Se eu tivesse tempo para parar e raciocinar...
Um trovão a distância me faz virar novamente. Já perdi a conta de quantas vezes eu e meu séquito
viramos à esquerda, mas este caminho parece mais longo do que os outros. Paro em um arco — o
maior e mais luminoso que já cruzei. Tem que ser a saída.
As luzes de mineiro dos duendes desaparecem nas sebes. Não importa se eles vêm ou não. Nada
me impedirá de deixar este lugar.
Minha determinação titubeia no instante em que cruzo o arco. As botas, a corrente e o carretel
caem das minhas mãos, produzindo um som abafado.
Um túnel de teias maciças se curva adiante, cheio de pontos de luz âmbar.
Uma vez, em Pleasance, depois de uma tempestade de verão, encontrei uma teia de aranha em uma
árvore com fileiras e fileiras de gotas de orvalho em cada raio. A luz do sol, cortando uma nuvem,
iluminou as gotículas como se estivessem em fogo. Foi incrível, água... Sobre fogo.
É isso que este lugar parece — ampliado milhares de vezes. Mas não são gotas de orvalho que
pendem da gigantesca teia. São rosas: cristalinas e do tamanho de repolhos. Seu cheiro é diferente
das rosas de casa. É picante, com um toque de fermentação queimada, feito folhas de outono.
Sigo adiante. As luzes pulsam feito um coração, hipnóticas. Outro estrondo de trovão lá em cima.
Neblina se move pelo chão — um tapete de névoa, assustador o bastante para estar em um filme de
horror.
Aproximo-me mais, cativada pelas flutuações elétricas no centro de cada rosa vítrea. A
consciência me toma, aquele mesmo saber que me tomou quando minhas asas brotaram. A luz dentro
destas flores é o resíduo da vida. Este é o jardim onde a Irmã Um planta e cuida dos espíritos. E eu
estou bem no meio dos falecidos do País das Maravilhas.
O solo aqui é sagrado. Por isso os duendes não me seguiram para cá. Nervosa, recuo.
“Nada tema. Aproxime-se, linda criança. Eu tenho o que você procura.” O sussurro me faz
parar.
— Chessie? — murmuro. Não é possível que a tarefa seja tão fácil assim.
“Você não encontrará aquela criatura traiçoeira nesta teia. Mas posso servi-la melhor do que
ele.”
A voz está vindo de uma das rosas. Um rodamoinho vermelho doura suas pétalas transparentes,
lembrando um vitral. Inclino-me bem baixinho e abro o centro da flor, esperando uma superfície dura
e escorregadia. Mas meus dedos encontram uma penugem aveludada, incandescente, que reveste as
pétalas como uma inovação em fibra óptica.
Como se respondesse ao meu toque, a luz fica mais intensa, e depois assume a forma de um rosto,
assustadoramente real, como os convidados que Morfeu materializou com suas baforadas no narguilé.
“Ele finalmente encontrou você, a pessoa que carrega meu grampo”, sussurra o rosto. Uma
carranca estica suas feições. “Eu imaginava que seu cabelo seria ruivo... Bem, não importa.
Podemos consertar a cor. Você vai servir lindamente.”
Toco no grampo de rubi, com as palavras congeladas em minha garganta. Os olhos tatuados da
mulher parecem os meus, e eu a reconheço vagamente, mas não consigo precisar. Antes que eu possa
me afastar das pétalas, a luz se separa do botão e se lança sobre meus dedos, causando uma onda de
choque. Uma sensação de efervescência me percorre as veias e as ilumina por baixo da pele das
minhas mãos, fazendo com que pareçam verdes — como clorofila. De minhas veias brotam folhas em
cada canto, fazendo-as parecerem mais com trepadeiras do que com condutores de sangue.
E então, tão rapidamente quanto se acenderam, minhas veias voltam a se fundir em minha carne,
como se nada tivesse acontecido.
Talvez tenha sido minha imaginação. Mas uma coisa que eu não imaginei foi a sensação de
intrusão. Por um instante, alguém mais compartilhou do meu corpo.
Com um estalo, a rosa se quebra e murcha sob minha mão.
No instante em que a rosa morre, os milhares de botões ao redor se sacodem em suas treliças de
teia, todos suspirando juntos.
A cacofonia pressiona fortemente meus tímpanos. Tampo as orelhas.
Seus lamentos se elevam a um guincho angustiante, como se alguém pegasse um arco de violoncelo
e o arranhasse em um quadro-negro — para trás e para a frente, repetidamente —, alimentando a
vibração através de caixas de som no volume máximo dentro da minha cabeça. Caio de joelhos,
gritando.
— Você ganhou um quadrado. — Uma voz cantada de mulher se eleva em meio ao caos. Ao passar
por mim, suas saias tocam minha manga.
Seus dedos longos e pálidos puxam a teia que envolve a rosa despedaçada, tocando as primeiras
notas com a mestria de uma harpista. Os outros botões — ainda tremendo e murmurando — vão
ficando mais calmos até que seus sussurros se tornam novamente toleráveis.
Olho para o rosto dela, olhos azuis luminosos e lábios da lavanda do crepúsculo de novembro.
Sua pele é tão translúcida que ela parece um desenho sobre um pedaço de papel — bruxuleante e
tênue, com o cabelo da cor de madeira clara. Um vestido listrado vermelho e branco, justo no peito
mas com uma saia fluida com armação, dando a ilusão de que ela é da Regência Britânica.
Começo a tremer e me afasto. Ela me segue. A bainha de renda de sua saia sobe e varre a névoa
em torno de seus pés. Se ela tivesse tornozelos e canelas, eles seriam visíveis. Em vez deles, oito
membros articulados, pretos e brilhantes como os de uma aranha, brilham por baixo. É como se
tivessem pegado seu torso e o colado em cima do tórax de uma viúva-negra.
Engulo um gemido. A saia de armação deve esconder um abdômen globular e as fiandeiras usadas
para construir este túnel de teias. Controlo o desejo de sair correndo e salvar minha vida. Não
adiantaria. O teto é baixo demais para eu usar minhas asas e não tenho como superar tantas pernas.
— Irmã Um? — digo, grasnando, surpresa ao perceber que minha caixa torácica ainda consegue
exprimir algum som.
— Como vai? — Ela estende a palma da mão aberta para mim. Não consigo fazer o mesmo, por
medo que ela me envolva em uma teia e me guarde para um lanchinho noturno.
Ela abaixa a mão. — Você ganhou um quadrado, mas perdeu a rainha. — Ela fica mais alta com
um movimento suave, como se fosse erguida por uma plataforma mecânica. — Isso não estava na
minha negociação com Morfeu. — As mãos dela pousam na cintura.
— Morfeu? — A desconfiança vence o horror. Ele é a razão pela qual ela me arrastou até aqui?
Será que foi para garantir que eu encontrasse a cabeça de Chessie? Mas ele disse que ela guardava
algum ressentimento, então por que o está ajudando?
— Você roubou a rainha? Ou ela está à solta? — Os olhos da Irmã Um cintilam, os cílios macios
se estreitando.
— Hum. — Arrisco um olhar de soslaio para a rosa que quebrei, agora estilhaçada feito o espelho
de meu quarto. E então compreendo por que a silhueta branca e nebulosa me pareceu familiar. — Era
a Rainha Vermelha! — A intraterrena que jogou a maldição sobre minha família. — Eu não sabia
que ela estava morta...
— Sim, estava. — A Irmã Um inclina-se para agitar um dedo diante de meu nariz. — E isso não
era parte do trato.
As rosas na teia começam a se mover novamente, mais voláteis desta vez. O movimento afeta meu
equilíbrio, como se eu estivesse rodando dentro de um carrossel. A Irmã Um me estende a mão.
— Você as acordou! Deve ajudar-me a aquietá-las para que voltem a dormir! — Ela começa a
cantar uma melodia conhecida... Não o acalanto de Morfeu, mas algo de minha infância.
“Ciranda...”
Suas oito patas marcam o ritmo, esperando um parceiro para dançar. Tentando não pensar nas
fiandeiras debaixo de sua saia, pego a mão dela. Sua pele é macia e cheira a luz do sol e poeira.
Logo, estamos rodando em círculos feito crianças. Uma cena da versão de Lewis Carroll do País
das Maravilhas me vem à mente... Quando Tweedledee e Tweedledum dançam com Alice ao som de
“Todos em torno da amoreira”.
Mas a Irmã Um é parcial com a canção da rosa — por razões óbvias. Porém, trata-se de uma
versão diferente da que cresci ouvindo:
Numa ciranda de roda/podre o corpo se torna.
Shhh! Shhh! Shhh! Shhh!/Vocês todas vão rolar.
Rolar, rolar e bem fundo parar/Às irmãs Twids suas almas vão dar.
Numa teia calmamente repousar/Nem a cabeça irão virar.
Se acordar a Primeira virá/E para adormecê-las ela cantará.
Shhh! Shhh! Shhh! Shhh!/Todas nós já adormecemos.
Giramos em círculos estonteantes sob a teia que balança. Levanto o queixo e rio, realmente
começando a desfrutar do clamor à minha volta. É tão libertador, minhas asas rodopiando feito
nuvens, macias e acetinadas quando roçam minha cabeça e ombros. Rodamos e rodamos até que
finalmente as rosas cessam seus lamentos e se juntam a nós em nossa melodia. A Irmã Um se solta de
mim para encarar suas funções espirituais. Apoio o cotovelo nos joelhos para recuperar o fôlego.
As vozes das flores convergem para terminar o último verso. A Irmã Um as conduz, os braços
levantados e marcando o ritmo, feito o maestro de uma orquestra:
Se o sono não nos achar/A Irmã Dois virá nos atacar.
Como brinquedos descartados iremos viver/Que nenhuma criança irá querer;
E repouso não mais teremos/Pois trancadas e tristes ficaremos.
Shhh! Shhh! Shhh! Shhh!/Iremos todas rolar.
No fim, a quietude toma conta do jardim. O único som é o ruído produzido pelas pernas finas da
Irmã Um ao roçar na grama enquanto ela vai de um canto a outro da teia para envolver as flores na
gaze pegajosa.
A euforia cessa e sou enviada a um tempo em que Alison me envolvia nos cobertores e me dava
um beijo de boa-noite na cabeça... Momentos antes de eu dormir e encontrar Morfeu. A lembrança
começa a rodar e vira um borrão, como gotas de corante na água.
Não consigo lembrar há quanto tempo estou aqui... Minutos, dias, semanas?
Tenho que encontrar Jeb.
Correndo para o arco, meus pés descalços esmagam a grama a cada passo.
— Espere! — grita a Irmã Um do limite do túnel. — Você precisa pegar o sorriso que roubei para
você!
Ao abaixar a cabeça, pulo sobre a corrente e a corda que deixei cair antes e continuo em frente. O
medo fez morada em meu coração, e eu não sei como isolá-lo.
Saias farfalham atrás de mim. A aranha me persegue.
Aos tropeços, entro em uma trilha e ganho velocidade. Meus pulmões doem de tanto arfar. O peso
de minhas asas me atrasa. Eu as embrulho em volta de mim, feito um xale.
Chegando ao único arco que falta, mergulho através dele. Um olhar em volta e caio de joelhos.
É como no pesadelo de Alice... Parece que estou morta.
17
Sorrisos roubados
e brinquedos quebrados
Ajoelho, aterrorizada demais para me mexer.
Acabei vindo parar no covil de almas desesperadas da Irmã Dois. É a única explicação para os
gemidos e lamentos que fazem minha espinha tremer. Um calafrio paira no ar e gruda em mim feito
uma segunda pele — seco e rançoso, suavizado por uma pitada de neve.
Apertando minhas mãos, forço-me a ficar de pé. Os gritos e lamentos silenciam. Cada pelo da
minha nuca se eriça. Partículas de pó granulado branco com pedacinhos de gelo cobrem meus pés
descalços e entram nos dedos dos pés. É fria, mas não cortante como a neve de casa.
A passagem se alarga num amplo vazio cheio de chorões mortos — ramos pensos, sinuosos e
finos, por todo o chão, todos secos e escorregadios de gelo. O teto do bosquete é alto e filtra o pouco
de luz existente. Ele confere à cena um tom amarronzado. À primeira vista, poderia ser a frente de um
cartão de Natal em sépia, com ornamentos pendurados nos ramos serpenteantes.
Só que não são ornamentos. Uma infinita variedade de ursinhos e animais de pelúcia, palhaços de
plástico e bonecas de porcelana pendem dos ramos em cordas de teia. No reino humano diríamos que
são brinquedos usados — que foram abraçados e beijados por uma criança até que o estofamento
caiu ou os olhos de botão pularam para fora. Brinquedos que foram amados até a morte.
Estendo a mão e dou uma batidinha na perna de um carneiro de pelúcia rasgado a quem falta uma
orelha. O brinquedo balança num laço de seda de aranha. O movimento é tão silencioso e tranquilo
que chega a perturbar meu âmago.
Tranquilidade. Isso me incomoda... O fato de que, no instante em que me levantei, tudo silenciou.
Um silêncio tumbal. Depois de todos esses anos ansiando pelo silêncio, por que parece que me sinto
mais à vontade em meio à desordem e ao barulho agora?
Ao encontrar uma boneca dorminhoca que é assustadoramente parecida com uma que eu adorava
quando era criança — com pele de vinil amarelada pelo tempo e cílios comidos de traça sobre olhos
que abrem e fecham —, toco seu pé. A perna balança, presa por um fio ao corpo estofado.
Os olhos da boneca se abrem, levando minha coragem para longe. Alguma coisa em seu olhar
vazio implora para sair... Algo que está preso e inquieto, ansiando para libertar-se. O brinquedo
abriga uma alma. Todos eles abrigam.
Fico esperando, com a boca drenada de qualquer umidade, que a boneca grite ou chore toda a dor
que vejo em seus olhos. Mas o movimento diminui e seus olhos voltam a se fechar.
Algo se mexe atrás de mim. Um calafrio me sobe a espinha, espalhando-se por meus ombros até a
ponta de minhas asas.
Talvez a Irmã Um tenha seguido meus passos na neve.
Por favor, que seja a boazinha... Por favor, por favor, por favor, que seja a boazinha.
Relutante, dou meia-volta. Uma cara sombria inclina-se para perto da minha.
— Por que pisais neste solo sagrado? — A voz, como galhos batendo em uma vidraça gelada no
meio da noite, me toma de surpresa. Seu hálito cheira a covas recém-abertas e solidão, mandando
arrepios de terror dos meus pés às pontas das mãos.
— Posso explicar — sussurro.
— Excelente seria. — Ela se afasta. Suas roupas, corpo e pernas são réplicas de sua irmã. Mas, no
rosto, cicatrizes e lacerações recentes pingam sangue. Na mão esquerda, um par de tesouras de
jardinagem no lugar de dedos. Ela deve ter cortado a si mesma.
Comparada a ela, a Irmã Um é uma fada adorável.
As chances de eu sair daqui com a cabeça acima dos ombros mergulharam para quase zero. —
Eu... peguei o caminho errado.
— Eu diria que pegastes. — Ela tira com cuidado a outra mão de trás da saia com armação,
coberta por uma luva preta de borracha. Ela carrega três brinquedos rasgados em uma teia, como
peixes em uma linha de pescar. A tesoura com as pontas deformadas aproxima-se de meu pescoço —
corta, corta. Baforadas de ar arranham a minha pele enquanto as lâminas abrem e fecham. — Este
não é vosso lugar. — Corta, corta, corta.
— Não quero que este seja meu lugar. — As atrocidades de pelúcia em sua mão causam nova
onda de terror e me borbulham no peito. Dou um passo para trás e quase escorrego na neve. Abrindo
as asas na parte de baixo, consigo equilibrar-me.
— E não será. Não enquanto estiverdes respirando.
— Certo — respondo, ansiosa para certificar-me de ainda estar.
— É quando parais de respirar que sois minha. — Suas tesouras remexem a costura de minha
manga. — Quando eu cortar vossos pulmões, sereis como eles.
A autopreservação entra em ação, e eu recuo mais dois passos, atravessando uma cortina de galhos
e me aproximando do tronco da árvore. Repleta de brinquedos decrépitos, seus membros se curvam
sobre mim e chegam quase ao chão, como um mórbido guarda-sol que atenua a luz.
A silhueta da Irmã Dois se move do outro lado, deslocando-se em volta da circunferência.
Respirando fundo, viro-me para ela, mantendo-a em vista através das aberturas entre os galhos.
No instante em que ela afasta as cortinas para entrar, envolvo-me em minhas asas, observando por
meio de uma estrutura translúcida.
Ela ri — um som estridente, porém abafado. — A linda borboleta agora é um casulo. Não é o
contrário do ritmo natural das coisas?
Como se alguma coisa fosse natural aqui. Encosto-me no tronco da árvore para proteger as costas.
A ponta das lâminas roça a junção onde minhas asas escondem minha traqueia. Por intermédio do
tecido diáfano das asas, posso sentir o metal frio comprimindo minha passagem de ar.
— Ah, vossas asas são jovens ainda. Finas como papel. Posso cortá-las em pequenos pedaços e
dançar sobre elas. Encare-me ou cumpra seu destino.
Ela se afasta. Considerando o quanto doeu pisar nas asas antes, deixo que elas pendam dos lados e
fico encostada no tronco da árvore.
Sorrindo, com a tesoura ela corta o ar diante do meu rosto, soprando tufos à minha volta. —
Vamos lá. Roubastes algo que me pertence. Devolvei, ou vos sangrarei feito um porco até
guinchardes.
— Eu não roubei nada!
As pontas de tesoura escorregam para o meu abdômen, deixando um rastro frio sobre as minhas
roupas. Asas dobradas ao lado do tronco, enfio a espinha na casca gelada da árvore e meu estômago
dá um nó.
O rosto dela chega mais perto. Uma visão horrível e sangrenta. — Conte-me o que fizestes com o
sorriso de Chessie. — Corta, e um pedaço de renda vermelha cai de minha túnica sobre meus pés
nus.
Meu coração quase para. — Eu... Eu não sei do que a senhora está falando.
— Mentirosa. — Corta, corta, e uma chuva de tecido amarfanhado se junta à minha volta enquanto
a minha túnica de baby-doll se abre na cintura, deixando somente a blusa para me cobrir. — Vossos
pulmões devem estar em algum lugar por aqui — diz ela, vasculhando o tecido.
Grunhindo, estico um joelho, batendo em sua saia armada e desequilibrando-a. Suas oito pernas se
reagrupam antes que eu consiga escapar, e ela aproxima a cabeça até nossos narizes se tocarem.
A ponta fria e cortante da lâmina enruga a pele nua acima da minha garganta. — Eu sei por que
estais aqui. Buscais o próximo quadrado. O que vos fará ganhar a coroa.
Quadrado? Coroa? Minha mente pula de um lado para o outro, presa entre a confusão e a vontade
de viver. Engulo em seco, e a ponta da tesoura penetra mais fundo na pele. — Não — sussurro,
escorregando os dedos em torno de sua mão-tesoura para aliviar a pressão. Dou-lhe um empurrão. —
Não vou tornar as coisas fáceis para você.
— Bom. Gosto de um desafio. — Sua língua encaroçada roça os lábios enquanto ela desliza as
lâminas na direção do meu esterno, pressionando com mais força. — A menos que desejeis ver-me
descascar vosso coração feito uma noz, dizei-me onde escondestes o sorriso... Agora.
Fecho os olhos, ordenando que minha pulsação disparada se acalme, para ficar estável e confiante.
Só há uma maneira de fazer isso. Só confio em uma coisa.
Pandemônio.
Visualizo os ramos em torno de nós se enchendo de seiva hidrófoba — uma energia feroz
percorrendo cada galho. O movimento acorda os brinquedos e eles emitem um uivo lamentoso. Cada
galho de cada árvore no covil uiva e se retorce, os espíritos inquietos despertos e raivosos.
— Filha do diabo! — A Irmã Dois guincha e levanta a mão de tesoura para me apunhalar.
Encurralada entre ela e a árvore, grito e levanto os braços para me proteger do golpe.
A boneca que provoquei antes se interpõe entre nós e agarra a tesoura, lutando com a Irmã Dois.
Ao perceber uma chance, escapo por entre os galhos que balançam. Brinquedos raivosos estendem
suas garras para mim enquanto eu fujo, pegando meu cabelo e asas. Corro a toda a velocidade para a
entrada, colidindo com a Irmã Um.
Ela me empurra para trás de si no momento em que sua irmã gêmea se liberta da árvore, com uma
carranca sedenta de sangue em sua cara defeituosa. — Saia do meu caminho! A pequena ladra é
minha.
— Espere! — dispara a Irmã Um, arfando. — Eu peguei o sorriso!
Relaxo de alívio, resfolegando e desmoronando contra a parte de trás de sua saia armada.
— Como assim o pegastes? — pergunta a Irmã Dois. — Não deveis tocar em nada da minha ala!
— Ela gesticula com os brinquedos de pelúcia em sua mão sadia, silenciando todas as árvores em
torno de nós, que se acovardam.
— Morfeu me fez um juramento — explica a gêmea boa. — Se eu ajudasse a menina a entrar no
jardim e atravessar até os últimos dois quadrados, ele colocaria os espíritos das mariposas sob
minha guarda.
— Nunca tivestes juízo, absolutamente! — guincha a irmã assassina. — Eu vos disse para ficar
fora disso. Não é da vossa competência.
— Pelo contrário! Nós precisamos dos espíritos. Uma alma em troca de mil. Um preço justo para
manter os mortos que aqui estão, para que eles não tomem os vivos. É o propósito que juramos
seguir! — A Irmã Um me empurra pela arcada de volta ao labirinto.
— Para onde a está levando? — pergunta a Irmã Dois, os olhos azuis faiscando cheios de suspeita
e fúria.
— Para o espelho. — A Irmã Um pega meu cotovelo e me conduz pelo caminho. Eu quase
escorrego na neve, mas ela me equilibra. — Ela ainda tem um jogo a vencer. E você tem uma rainha
a pegar.
A Irmã Dois nos segue, suas oito pernas abrindo caminho entre a poeira enquanto suas longas saias
marcam o solo por onde passa. — O que quereis dizer com isso?
— A Rainha Vermelha escapou de sua inércia. Ela está à solta e inquieta. É melhor nos
apressarmos antes que ela encontre um modo de voltar ao castelo. — Tendo dito isso, a Irmã Um me
guia de volta ao labirinto, deixando sua irmã a gritar de revolta. Os espíritos engrossam a birra,
voltando ao seu lamento.
Eu me desligo de tudo. A Rainha Vermelha estava morta e aprisionada, mas agora está solta. Isso
significa que libertei a bruxa que lançou uma maldição sobre a minha família há quase um século. O
que ela fará conosco agora que está livre? — A senhora conseguirá encontrá-la? — pergunto,
engolindo seco com um nó na laringe.
— Ela não trará consequências para você. — A Irmã Um agora me agarra pelo pulso, deslizando
pelas curvas do labirinto com tamanha velocidade que mal consigo acompanhá-la. — A rainha
sempre foi um problema. Fico contente de não ter mais nada a ver com ela. Agora a responsável é
minha irmã. Ela vai capturar a alma inquieta e contê-la. Para sempre.
Os gemidos e lamentos do covil da Irmã Dois vão cessando com a distância. — Por que existem
tantas almas infelizes no País das Maravilhas? — pergunto.
— Algumas tinham assuntos ainda a resolver ou amores perdidos. Mas as mais infelizes morreram
aprisionadas pela maldição de seu nome ser falado.
— Mas eu disse o nome de Morfeu várias vezes.
Ela ri, e parece o chilrear de um pássaro canoro. — O verdadeiro nome dele não é Morfeu. Ele é a
glória e a reprovação, a luz do sol e as sombras, o escapulir de um escorpião e a melodia de um
rouxinol. A respiração do mar e a canhonada de uma tempestade. É possível confiar no canto de um
pássaro, no som do vento ou no rastejo de uma criatura pela areia? Pois os nomes próprios dos
intraterrenos são tirados das forças de vida que os definem. Você pode falar essas coisas com sua
língua?
Um borrão de arbustos verdes passa por mim. Aperto o passo para manter o ritmo. Meus pés, que
tinham sido lavados pela neve, ficam cada vez mais sujos de grama. — Alguém pode? — pergunto.
— Só um intraterreno no fim de sua vida pode falar a língua necessária. Ela deve ser falada no
último suspiro.
— Língua... — A descrição na parte de trás do relatório sobre Alice. — Língua dos mortos —
sussurro, aturdida e confusa.
— Sim, é uma coisa volátil — responde a Irmã Um. — A vítima pronuncia a Língua dos Mortos
junto com um desafio que aquele que a prejudicou deve cumprir. Qualquer intraterreno que morre sob
a maldição da Língua dos Mortos e é incapaz de cumprir o desafio é deixado como um espírito
alquebrado, eternamente infeliz e buscando a fuga. Até que a Irmã Dois acabe com isso.
Eu me contraio, pensando em como passei perto de ficar presa dentro de um de seus brinquedos.
— Como é que um brinquedo vazio pode abrigar um espírito? Não faz sentido.
— Muito pelo contrário. Faz todo o sentido do mundo. Somente brinquedos do reino humano
podem ser escolhidos, e apenas os mais amados. Os acostumados a se encherem de esperanças e
sonhos e toda a afeição que as crianças derramam sobre eles. Pois essa é a essência de uma alma.
Esperanças, sonhos e amor. Quando os brinquedos mais queridos são abandonados no lixo, ficam
privados daquelas coisas que lhes preenchiam e confortavam. Eles ficam solitários e vorazes e
anseiam pela essência da vida que um dia tiveram. Então, mandamos nossos escravos duendes
através dos portais para pegarem os brinquedos e os trazerem para nós, e minha irmã os enche com o
que mais eles desejam — almas. Como esponjas sedentas, eles se apegam a elas com cada pedacinho
de sua força e desejo.
Camisas de força para espíritos. Perturbada demais por tal imagem, não profiro mais nenhuma
palavra até chegarmos a uma casinha cercada de sebes e hera por todos os lados. Ela parece ser feita
de folhas.
— Entre, aqueça seus pés, e coma — insiste a Irmã Um. — Depois, eu lhe darei o que veio buscar
e lhe mostrarei o caminho.
— Estou com pressa. — Aquela confusão toda me deixou com dor de cabeça. Comida poderia
ajudar, mas não do tipo servido no País das Maravilhas.
— Mas antes você vai tomar um chá, pelo menos.
Como posso discutir? Ela tem um espelho escondido em algum lugar e uma chave pendurada no
pescoço. Até que esteja pronta para me mandar pelo portal, sou sua refém.
Lá dentro, só há um cômodo — mobiliado como uma cozinha, só que tudo está forrado com tecido
estofado, até os utensílios. Uma pia branca estofada, mesa e cadeiras, e um fogão bem macio do
mesmo tom, tudo arrumado sobre um piso branco felpudo que é flexível e quente sob meus pés, feito
marshmallow. Ao longo das quatro paredes almofadadas há janelas circulares com cortinas leitosas.
É estranho que haja janelas, pois não há nada para olhar exceto folhas.
A esterilidade da sala me lembra tanto uma cela almofadada que tenho vontade de sair correndo
novamente. Mas não posso perder a oportunidade de usar o portal da Irmã Um e encontrar Jeb.
A cor mais vívida da sala é a de uma tigela de maçãs bem vermelhas sobre a mesa ao lado de um
tabuleiro de xadrez prata e vermelho.
— Também está esperando pelo chá? — pergunta a Irmã Um, dirigindo-se a uma criatura com a
forma de um grande ovo sentada em uma cadeira. Dou um pulo quando ele se move. Ele se mescla
tão bem com o fundo que eu não o veria se não fossem seus olhos amarelo gema, nariz vermelho e
boca larga. A criatura tem uma tira de tecido amarrada na parte mais larga, sob sua boca, e logo
acima de seus braços espichados e pernas, que são articuladas e verdes, feito os apêndices de um
louva-a-deus. Dois pedaços de pano triangulares e em xadrez azulado servem como uma espécie de
colar improvisado. Um farrapo de linho laranja ocupa o espaço onde poderia ter havido uma gravata.
— Não é muito inteligente perguntar se alguém está esperando pelo chá — lança ele — quando se
está sentado à mesa com xícaras de chá e com um guardanapo pendurado no pescoço. — Sua boca se
inclina para o lado numa expressão azeda, enquanto ele lustra uma colher com a beira do guardanapo.
Humpty Dumpty? Isso tudo está ficando cada vez mais estranho.
Ao jogar as asas para trás de uma cadeira, acomodo-me no lugar à frente do homem-ovo, fascinada
pelas fraturas na testa, perto do cabelo, em sua pele perolada.
Ele desvia o olhar. — Algumas pessoas não tinham que comparecer a um chá respeitável. Ficam
olhando estupidamente como se meu lugar fosse em um zoológico, quando são elas que possuem
todos os modos e trejeitos de um macaco.
— Me desculpe. — Aliso os trapos que visto e estendo a mão para pegar uma maçã do tamanho de
uma ameixa. Estou faminta, mas ainda um pouco temerosa quanto à comida. — O que isso aqui vai
me fazer? Tornar-me invisível? Ou talvez faça brotar um galho e algumas folhas?
— Que palerminha ingrata. — O homem-ovo me olha com raiva. — Aranha dada não se olha as
presas. Vai ver se a convidarão novamente para um chá.
A Irmã Um sorri. — Não faço brincadeiras com minha comida... A menos que esteja presa na
minha teia — destaca ela.
Eu me retraio com o que espero ser uma tentativa de fazer uma piada, e em seguida dou uma
mordida na fruta fresca e mastigo-a enquanto olho para meus pés todos manchados de grama. Em
questão de segundos elevo meu olhar novamente. Não consigo resistir. — Então, você é o Humpty,
certo?
— Humphrey. — Ele sorri com desdém. — A juventude de hoje em dia não consegue nem se
apresentar de forma apropriada.
Dou outra mordida na fruta, estimulada por ela ter o mesmo gosto das maçãs do meu mundo. —
Sua casca. Você caiu do...
— Muro? — Humphrey arremata o final da minha pergunta. — Na verdade, não. Isso foi da
primeira vez. Na segunda, tropecei na cabeça de Chessie, que rolava. A gentil Rainha Grenadine me
colou novamente, quando todos os cavalos e homens do rei fracassaram. E, se houver qualquer outra
pergunta sobre o assunto, rogo que as faça sem a boca cheia de maçã.
Engulo a maçã. — O rei tentou ajudá-lo? Achei que ele fosse um ditador ganancioso.
— Ganancioso? — A Irmã Um estala a língua, apertando o cordão do avental em volta da cintura e
depois tirando uma caçarola com biscoitos perfumados do fogão. — Isso é totalmente ridículo. Ele é
muito solidário. Ele trouxe este aqui para que eu o mantivesse acolchoado a fim de evitar que
quebrasse mais, caso a cola não funcionasse. Não podemos deixar o espírito do Humphrey vazar
para causar estragos nos comuns do País das Maravilhas.
País das Maravilhas e comum... Duas palavras que nunca deveriam estar na mesma sentença.
— E, então, Humphrey está aqui porque está parcialmente morto — concluo depois de terminar o
resto da maçã. — Parcialmente morto, como Chessie.
— Sim. — A Irmã Um passa os biscoitos para uma travessa. — De fato, Grenadine em pessoa
trouxe a cabeça de Chessie para cá. Muitos anos atrás, quando sua meia-irmã, Vermelha, estava num
alvoroço sangrento. Mas ela seguramente já deve ter esquecido que ele está aqui.
Espere. Morfeu fez parecer que Chessie veio até aqui sozinho... Que encontrou conforto aqui. Ele
nunca mencionou que Grenadine tentou ajudar a manter o gato vivo. Seco a boca com o guardanapo.
— Parcialmente morto... — murmuro, com a mente rodopiando, confusa.
— De que lhe interessa quão morto me encontro? — Em um ataque de nervos, Humphrey bate a
colher no piso acolchoado. O utensílio quica de volta feito um bumerangue e bate ao lado dele.
Seguindo um som de estalar, as fissuras em sua casca se ramificam e formam novas rachaduras. Um
líquido pegajoso e claro pinga das fissuras. Suas bochechas ficam rosa escuro, e ele olha
furiosamente para mim. A substância viscosa começa a borbulhar e endurecer, virando clara de ovo
cozida.
— Você está cozinhando suas entranhas de novo — ralha a Irmã Um.
— Agora você conseguiu! — Humphrey aponta a acusação para mim. — Qual é a glória em
melhorar um ovo, hein? Você vai me usar em um suflê ou talvez me cozer em fogo brando?
— Como assim? — pergunto, confusa.
Ele se retorce na cadeira até que suas pernas curtas fiquem quase suspensas na borda, fazendo as
novas rachaduras aumentarem ainda mais. — Cozer na água, coisinha ínfima. Cozinhar abaixo do
ponto de fervura até que meu cérebro fique embaralhado. Que tipo de cabeça oca é você? Não possui
um vocabulário apropriado? E por que você está aqui, afinal? Não vejo nenhuma rachadura na sua
casca.
A Irmã Um estala a língua novamente, tira algo do bolso do avental e oferece o tubo de cola. —
Você deve ser agradável com ela. Ela é a Escolhida. — Ela aponta com o queixo para mim enquanto
o auxilia a aplicar o adesivo. — Ela acordou os mortos.
Ele fica olhando, com a boca larga escancarada quase até o chão.
Minhas bochechas enrubescem inevitavelmente. — Morfeu disse que o rei é mau. Que ele quer as
coroas dos dois reinos para sua esposa, Grenadine, e fará tudo para consegui-las.
— Ah! — exclama Humphrey. — Visto pelos olhos de um assassino.
— Um assassino?
— Não há provas — diz a Irmã Um, dando tapinhas na casca de Humphrey para a cola aderir. —
Morfeu levou o corpo da Vermelha para mim muitos anos depois de ela ter sido banida. Mas ele não
revelou nada acerca das circunstâncias envolvendo seu falecimento, e nem onde a encontrou. Não me
surpreende que ele ataque Grenadine e seu rei. Ele sempre guardou rancor por causa do que
aconteceu a Alice depois que Grenadine a escondeu. As intenções da rainha eram boas: manter a
criança em segurança até que eles pudessem capturar a Vermelha. Mas, depois que a Vermelha foi
banida para a floresta, Grenadine perdeu a fita na qual havia sussurrado o paradeiro de Alice e
esqueceu onde a havia escondido. Alice tornou-se uma lenda de advertência contada para as crianças
intraterrenas antes de dormirem. A criança foi esquecida. Por todos, exceto Morfeu. Setenta e cinco
anos em um casulo e ele ainda se lembrava dela quando acordou.
— Espere. — Eu aperto a mesa, as unhas franzindo o tampo estofado. — Nada disso faz sentido.
Alice voltou para o seu mundo. Para o meu mundo. Ela tinha que...
— Ah, não. Ela ficou aqui. Depois de sua metamorfose, Morfeu moveu céus e terra à sua procura.
Ele a encontrou escondida nas cavernas dos picos mais altos do País das Maravilhas. Ela havia sido
capturada e mantida em uma gaiola por um pássaro velho e recluso, o Sr. Dodo. Mas a preciosa
amiga de Morfeu não era mais uma criança. Já era uma mulher velha, triste e confusa.
O pânico sufoca qualquer reação. Se Alice realmente passou a vida aqui, em uma gaiola, como eu
pude nascer? Como todos os Liddell puderam nascer?
Debandando para o fogão, a Irmã Um produz água do ar, de uma pia sem torneira, e enche a
chaleira. — Algum de vocês poderia fazer a gentileza de mover a Rainha Vermelha para o próximo
quadrado no tabuleiro?
Humphrey executa o pedido com as bochechas rosa abalonadas de concentração. — Falta mais um
para terminar — sussurra ele, batendo com força no último quadrado prateado restante com sua mão
em forma de garra.
O tabuleiro tem 64 quadrados, sendo metade vermelha e metade prateada, com peões, bispos e
torres em posições que não fazem sentido para o verdadeiro xadrez. Sua distribuição me recorda o
tabuleiro do quarto de Morfeu.
Saindo dos 32 quadrados prateados, uma linha diagonal de sete brilha feito metal polido — aquela
na qual Humphrey centralizou a Rainha Vermelha, e seis outras que a precedem. Em cada quadrado
brilhante, uma inscrição aparece em letras flutuantes e curvas — mais uma vez, igual ao tabuleiro de
Morfeu.
Desta vez, nada me impede de lê-las:
Emergir da Pedra com uma Pluma; Cruzar uma Floresta com um só Passo; Pegar um Mar na
Palma da Mão; Alterar o Futuro com a Ponta de um Dedo; Derrotar um Inimigo Invisível;
Esmagar um Exército sob Seus Pés; Despertar os Mortos.
Ainda há um quadrado prateado na fileira de trás, aguardando ser iluminado. Desconfio de que, até
isso acontecer, as palavras finais permanecerão escondidas. — Você sabe o que é o último?
— Aproveitar o Poder de um Sorriso — responde Humphrey, surpreendentemente cooperativo.
— Não compreendo — digo, sentindo-me cada vez mais fraca.
— Você não vê? — A Irmã Um chega com uma bandeja com a chaleira e serve três xícaras de chá.
Uma fragrância confortadora e cítrica é trazida com o vapor. — É um registro de tudo que você
realizou. Dos testes pelos quais passou.
— Testes? — Olho para eles novamente, incapaz de encontrar uma ligação com alguma coisa que
eu tenha feito, exceto acordar os mortos.
Então me lembro do que Morfeu disse em seu quarto instantes antes de eu animar as peças do
xadrez: — Está tudo na interpretação. — A iluminação vem ao meu encontro, fluindo devagar na
minha mente.
Estou sentada ao lado de Morfeu no cogumelo gigante onde eu o encontrei depois que Jeb e eu
secamos o mar, mas sou uma criancinha de quatro anos. Meu guia, que tem sete anos, posiciona
um livro de fotografias diante de mim. Ele está me ensinando a decifrar charadas.
— Isto — diz ele, apontando para a imagem de uma mulher com bochechas inchadas. — Algo
que você pode prender, mas não guardar. — Ele lê as palavras sob a imagem.
Eu não deveria conseguir compreendê-las. Sou uma criancinha. Mas não importa. Pois cada
vez que eu o visito em sonho, de algum modo, sinto-me mais velha. Mais sábia. Superdotada.
— Você sabe a resposta — diz Morfeu, sua voz jovem ralhando. — Você é a melhor dos dois
mundos.
Ele respira fundo e prende o ar nos pulmões. Levanto a palma de minha mão à sua boca, ele
solta o ar devagar, fechando meus dedos em torno do ar quente. Quando abro minha mão, não há
nada lá.
— Respiração! — Eu sorrio e bato palmas.
Morfeu sorri e faz um sinal positivo com a cabeça, e o orgulho cintila em seus olhos de tinta. —
Sim. Podemos prendê-la, mas sempre temos que soltá-la.
De volta ao presente, a compreensão me cega como um raio de sol através de pupilas acostumadas
somente à escuridão, dilatando minha percepção para uma clareza perfeita: Eu sou o melhor dos dois
mundos...
Com a lógica intraterrena desperta, vejo minhas conquistas impressas no tabuleiro ao lado de seus
resumos, como uma lista de checagem:
Emergir da Pedra com uma Pluma — Usei uma pluma para empurrar a estátua do relógio de sol
para o lado e abrir a toca do coelho.
Cruzar uma Floresta com um só Passo — Andei nos ombros de Jeb enquanto ele pisava sobre a
“floresta” do jardim de flores.
Pegar um Mar na Palma da Mão — Equilibrei a esponja em minha mão depois de ela ter
absorvido as lágrimas de Alice.
Alterar o Futuro com a Ponta de um Dedo — Dei a partida para o futuro da turma do chá secando
e reprogramando os ponteiros do relógio de bolso.
Derrotar um Inimigo Invisível — Enfrentei meu lado negro e o controlei com a ajuda das frutilhas
da Árvore Tumtum.
Esmagar um Exército sob Seus Pés — Cavalguei sobre os guardas de cartas em uma onda de
mariscos.
Despertar os Mortos — Não necessita de explicação...
Meu lado negro está emocionado com as minhas conquistas, e o orgulho me infla o peito.
E então, meu outro lado assume a liderança. — Não — digo em voz alta para mim mesma. — Não
são minhas conquistas. São de Morfeu. — O temor se enreda em meu coração, esvaziando-me.
Jeb estava certo o tempo todo. As coisas que estou fazendo não eram para consertar os erros de
minha tataravó. Eram testes complicados. Por que não dei ouvidos a ele?
— Para quê estou sendo testada? — Pego minha xícara de chá e a seguro nas mãos trêmulas,
desejando que o calor me invada e expulse o frio do meu coração.
O olhar de Humphrey encontra o da Irmã Um quando ela lhe entrega um biscoito polvilhado com
canela e açúcar.
— Aquela lista representa os critérios para uma rainha — responde ela. — As exigências foram
escritas depois que Grenadine assumiu o trono. O Rei Vermelho ouviu rumores de que sua antiga
esposa havia escapado das florestas do País das Maravilhas e casado novamente. Temendo a
possibilidade de uma cria feminina, ele insistiu que, se aparecesse alguém alegando ser da linhagem
Vermelha e tentasse tomar a coroa de Grenadine, teria primeiro que passar por oito testes
impossíveis para provar seu valor. A Corte Vermelha concordou em fazer dos testes um decreto real.
Você é a primeira a passar em todos... Bem, quase todos. Naturalmente, você é a primeira cria da
Rainha Vermelha a se apresentar e tentar.
Estou prestes a me opor e dizer que é impossível porque não sou da linhagem real. Estou prestes a
ficar de pé em minha cadeira e bater o pé como uma menininha de dois anos, recusar-me a acreditar
que existe algo de real nisso tudo...
Até os acalantos de Morfeu me permearem a mente, finalmente completos: “Vermelha e branca, a
florzinha, descansando a cabecinha; cresça e floresça, seja forte e espertinha, pois um dia você
vai ser rainha... Pêssego e cinza, cresceu a florzinha, forte ficou e seu caminho encontrou; duas
coisas ainda há que fazer, até finalmente rainha ser”.
Calafrios percorrem minhas asas feito uma garoa gelada. — Não, não, não. Eu não sou — na
verdade, eu não passei em nada — digo à minha anfitriã. — Eu nem sei como fiz isso tudo... Foi
acidental, de verdade.
Ela e Humphrey não tecem comentários. Estão ocupados demais contando os quadrados e
bebericando sua infusão.
Eles sabem, assim como eu, que nada do que fiz foi por acidente. Morfeu orquestrou tudo —
montou cenários conhecidos do País das Maravilhas usando o livro de Lewis Carroll e pedindo a
ajuda de outros intraterrenos, depois sumiu de cena e ficou observando eu completar cada um dos
“testes”.
No chá, ele disse que queria me devolver ao meu lugar apropriado, meu lar. Que reino ele pensa
ser meu lar? Um desconforto áspero me enche a garganta, como se eu tivesse engolido um deserto
inteiro. Engulo metade do meu chá.
Jeb...
Preciso que ele me abrace e prometa que tudo vai ficar bem; preciso dele para me sentir humana
novamente.
— Quero usar o espelho para encontrar meu namorado. — Me levanto tão depressa que uma das
minhas asas bate na mesa e derruba a chaleira de chá.
Humphrey enxuga os respingos ferventes com seu guardanapo antes que caiam em seu colo. — Eu
tinha razão! Você quer mesmo me cozer!
A Irmã Um me conduz para o aparador mais alto e abre a porta esquerda, revelando um espelho.
— Seu companheiro mortal já está no lugar para onde você vai. Meus duendes do abismo que
estavam reunindo os mortos do exército de Grenadine viram seu mortal partir acorrentado com
Morfeu e os cavaleiros élficos. Graças à sua ajuda derrotando os guardas de cartas, o exército
Branco atacou e conseguiu tomar o castelo Vermelho esta noite, em busca da Rainha de Marfim.
Meus batimentos cardíacos quase param. — Morfeu aprisionou Jeb no castelo Vermelho?
Sem responder, ela dá um tapinha na minha mão. — Vai precisar disso. — De uma das prateleiras
do aparador, ela tira um ursinho de pelúcia desgastado. Ela não precisa explicar. Eu já sei que ele
contém a parte de Chessie que será meu teste final, seu sorriso, embora eu não tenha ideia de como
aproveitá-lo.
— Lembre a Morfeu que minha parte do acordo está cumprida — diz a Irmã Um, passando a mão
sobre o espelho. Ele se parte feito gelo, revelando uma câmara em um castelo com tapetes vermelhos
luxuosos e cortinas douradas. Há uma cama com dossel e uma lareira; uma cadeira alta em estilo
vitoriano está de costas para mim e de frente para o fogo. Um chapéu fedora prateado adornado com
mariposas vermelhas está pendurado em um braço da cadeira. Há fumaça no ar, e posso ver uma mão
enluvada e a mangueira de um narguilé aninhado elegantemente entre dois dedos.
Morfeu.
Se eu me recusar a trazer o ursinho de pelúcia, isso significa que estraguei os planos dele? E Jeb?
Como ele voltará para casa? Mordo o lábio e enfio o bichinho debaixo do braço esquerdo,
apertando-o contra minhas costelas.
A Irmã Um tira uma pequenina chave e a vira para que a superfície se abra para o portal. Ela bate
os oito pés no chão com impaciência.
Todos neste lugar têm uma intenção escusa. Em troca de seus preciosos espíritos, ela está me
entregando diretamente nas mãos daquele que me manipulou e me usou durante toda esta jornada.
Durante toda a minha vida.
Lágrimas me cegam os olhos ao atravessar o espelho.
Se eu não tivesse atravessado o primeiro portal; se eu não tivesse encontrado a toca do coelho...
Se eu nunca tivesse nascido...
18
Xeque-mate
Aterrisso no castelo Vermelho, bem perto da cadeira que vi no portal. Meus calcanhares penetram
silenciosamente no tapete macio, e Morfeu não mexe um músculo, ainda dando baforadas diante do
fogo. O perfume de alcaçuz de seu fumo acende uma chama dentro de mim... Uma necessidade
urgente de ultrapassá-lo neste jogo distorcido.
Aperto o ursinho debaixo do braço.
— Não foi a pequena Alice que voltou para o reino dos mortais, foi? — pergunto, olhando para as
costas da cadeira.
— Não. — A resposta de Morfeu vem de trás de mim e eu me viro, quase caindo. Suas asas o
cobrem como um eclipse e ele se curva para me firmar.
Eu o rechaço.
Ao arquear uma sobrancelha, ele alisa seu terno de risca-de-giz prata e preto. Com aquele terno e
o cabelo estilo punk, Morfeu parece um gângster emo.
— Você estava esperando que eu atravessasse o portal? — acuso. — E então, quem... — Não é
preciso terminar. Rábido Branco rola sobre o braço da cadeira com os olhos cor-de-rosa brilhando.
É claro. Ele é da turma de Morfeu, o que significa que só estava fingindo ser meu inimigo. Os dois
me manipularam o tempo todo.
A criatura cadavérica coloca a mangueira do narguilé de lado e faz uma reverência para mim. —
Às suas ordens estou eu, linda rainha. — Sua voz esganiçada passa sinceridade.
Solto o ar para estabilizar minhas vísceras inquietas. — Não sou a rainha. E não quero nada de
você. — Volto-me para Morfeu.
— Acredito que está sendo dispensado, Sir Rábido. — Morfeu mantém seu olhar insondável
colado em mim. — Não há dúvida de que ela o chamará em breve, como fez Grenadine um dia.
Quando ela for oficialmente rainha, cobiçará seus talentos de conselheiro devotado e experiente.
— Majestade. Lealdade e sempre, sempre seu. — Rábido faz uma reverência tão baixa ao sair que
suas galhadas o desequilibram e ele quase cai. Ele se apruma e em seguida cruza a soleira aos pulos,
um saco de ossos chacoalhando dentro de um colete.
A porta se fecha e fico a sós com Morfeu em uma sala cheia de sombras e da luz crepitante do
fogo.
— Seu espião —disparo.
— Sim — responde Morfeu. — Ele nunca aceitou muito bem o que Grenadine e a Corte Vermelha
fizeram com a Vermelha. Ele quer ver a herdeira da Vermelha no trono quase tanto quanto eu, para
reparar a injustiça feita à sua verdadeira rainha.
A dança da luz do fogo sobre o cabelo desgrenhado de Morfeu e seu rosto etéreo e lindo me
remete de volta às minhas memórias. Ele estava me treinando para ser rainha. A Rainha Vermelha. E
agora aqui estou, vulnerável, aprisionada por sentimentos que ele inspirou em meus sonhos de
juventude: felicidade e conforto, afeição e admiração. Mas a nostalgia é enganosa, e eu a coloco de
lado. Porque era tudo mentira.
— O que você fez com Jeb? — pergunto, reprimindo o desejo de dar um bote e atacá-lo.
Os lábios de Morfeu se curvam num meio sorriso. — Ele está aqui no palácio, em segurança.
Permitirei que você o veja em breve. Ele queria que eu lhe desse isto. — Enfiando os dedos
enluvados no bolso do casaco, Morfeu tira uma pequena conta de cristal e a levanta para que reflita a
luz do fogo.
Meu desejo. Estico a mão para pegá-lo. Desta vez não hesitarei. Desejarei nunca ter vindo, como
Jeb sugeriu... e então estaremos ambos a salvo novamente.
Morfeu se afasta, segurando-a firme. — Isso ficará comigo até que chegue o momento certo. — Ele
joga a conta no ar e a apanha com uma virada hábil de punho, em seguida a joga no bolso do peito.
A fúria explode dentro de mim. Mas espero pacientemente. Tenho que jogar o jogo dele ou
perderei tudo.
— Sente-se, Alyssa, minha princesa. — Morfeu aponta para a cama.
— Se eu me sentar em algum lugar, não será na cama. — Abraço o ursinho, meu único trunfo para
uma negociação.
— Certamente não acha que quero seduzi-la. Eu não teria me aproveitado de sua inocência em
minha casa, enquanto a observava dormir?
A lembrança daquele momento de intimidade, quando sua marca de nascença tocou a minha,
deflagra um calor desconfortável em meu abdômen. — Toda essa jornada tem sido uma sedução,
Morfeu. É hora de ser sincero.
Ele levanta a ponta de sua gravata vermelha e a analisa, depois esfrega uma mancha invisível. —
Não há sinceridade na traição, querida. E é aí que a história começa, como você bem sabe. A corte
da Rainha Vermelha se amotinou contra ela, seu próprio marido juntou-se aos traidores a fim de
casar com sua meia-irmã, e isso subverteu o equilíbrio do reino. Mas você irá restaurar este
equilíbrio. — Ele coloca a gravata no lugar.
— Porque eu sou a herdeira dela — murmuro, quase sufocando com as palavras.
O sorriso cheio de orgulho em seu rosto é luminoso. — Você descobriu, não é?
Reprimo a dor na minha garganta. — Eu nunca tive que consertar nada. Minha família não foi
amaldiçoada pelos erros de Alice. Nós não somos amaldiçoados. Somos mestiços.
Ele abre as asas e braços. — Não é uma glória?
— Você me trouxe aqui... Armou as cenas para encaixar Alice na história. Foi tudo um jogo.
Todos desempenharam um papel. É por isso que a maioria deles era diferente dos personagens do
livro. Todos o ajudaram... Foram seus cúmplices.
— Sim. Personagens desempenhando os papéis escritos para eles em um livro do reino humano.
Alguns, pelo menos. Outros atuaram inconscientemente.
— O octobenus.
Morfeu aquiesce. — Desprezível. Assassinou o melhor amigo para aplacar uma onda de gula. Ele
mereceu o que teve. E os guardas de cartas? São sempre descartáveis. Agora, satisfaça minha
curiosidade, queridinha. — Ele aponta para a cadeira atrás de mim. — Fique à vontade, me
esclareça como você acabou sendo uma princesa intraterrena.
Recuso-me a sentar. Um gosto amargo me queima a língua. — Um baile de máscaras.
Ele franze a cara. — Como?
Torço uma orelha do ursinho. Com os dedos dos pés enfiados no tapete para me apoiar, revelo a
teoria que imaginei quando vi o tabuleiro de xadrez da Irmã Um. — O site. Ele dizia que alguns
intraterrenos têm a aparência de mortais que já existem. Depois que a Rainha Vermelha foi exilada,
ela atravessou furtivamente o portal do castelo Vermelho e foi para o reino humano.
— Diga-me, como ela conseguiu fazer isso? — A voz dele é provocadora, com o intuito de
instigar-me.
— Ela compartilha da minha magia... Encontrou um modo de distrair os guardas de cartas. Tirou a
fita da mão de Grenadine, animando-a; a fita que continha o lembrete do paradeiro de Alice. Depois,
a Vermelha entrou no reino mortal se passando por ela. Ela cresceu como Alice, apaixonou-se por
um homem mortal como Alice, casou-se e teve filhos como Alice. Filhos meio mágicos, meio
humanos, e herdeiros para seu trono perdido. As características dos intraterrenos só passam para as
fêmeas, porque o País das Maravilhas é regido por rainhas. — Estou abraçando o ursinho com tanta
força que consigo sentir a essência de Chessie usando as garras para escapar... Implorando para ser
libertado. Ou talvez seja a minha própria.
— Conte-me mais. Você tem um ouvinte cativo. — A voz de Morfeu mudou, o tom provocador foi
substituído por algo mais voraz e exposto.
Não consigo olhar para sua expressão de fascínio, então fico olhando para as chamas. — A
Vermelha voltou para o País das Maravilhas alguns meses antes de a verdadeira Alice morrer. De
alguma maneira, elas trocaram de lugar novamente. É por isso que a Alice mais velha na fotografia
não tinha marca de nascença, e a mais jovem tinha. É por isso que ela não se lembrava de nada de
sua vida mortal. Ela lhe foi roubada. Ela não teve infância, como você mesmo disse. — Meu peito se
contrai com uma tristeza quase tão poderosa quanto a que senti quando gritei meu desejo. — Pobre
Alice.
— Sim. Pobre querida Alice.
Analiso a expressão dele. Sua reverência parece sincera.
Uma ternura pungente e dolorosa aquece seus olhos. — Tentei mandá-la de volta para casa quando
era idosa. Achei que estava fazendo o que era certo para ela, permitindo que morresse entre os de
sua espécie. Penetrei na casa dos Liddell bem tarde certa noite, esperando convencer a Vermelha de
que isso era a coisa certa a ser feita... Esperando que, com a família dormindo nos outros cômodos,
poderíamos fazer a mudança sem sermos percebidos. A Vermelha concordou, disse que estava
cansada de ser velha e frágil. — Um sorriso suave levanta um lado de sua boca. — Enfiei Alice na
cama onde ela acordaria entre aqueles que sempre deveriam ter sido sua família. Eles eram estranhos
para ela, então tentei prepará-la, mas sua mente estava muito distante para compreender tudo aquilo.
Segurei a mão dela até ela concordar, e então parti com a Vermelha para o País das Maravilhas.
Quando chegamos à abertura da toca do coelho, a miserável mudou de ideia e virou-se contra mim,
recusando-se a deixar a família para trás. Ela pretendia assassinar Alice e depois arrastar todos os
Liddells para o País das Maravilhas. Usar sua linhagem para reconquistar o trono que havia perdido.
Morfeu olha para as chamas, arqueando os cantos da boca para baixo. — Eu não permiti que ela
fosse. Nós lutamos ao lado do relógio de sol, depois nas árvores. A Vermelha me pendurou nos
galhos mais altos de uma, e queria cortar meu pescoço. Eu a rechacei e ela caiu com força, empalada
na cerca de ferro logo abaixo de nós. O metal atravessou seu coração e envenenou seu sangue. Eu a
carreguei para a toca do coelho. Tentei desculpar-me. Mas ela não me perdoou. E ela conseguiu que
eu nunca mais me perdoasse ao dar seu último suspiro.
Língua dos Mortos — sussurro.
O olhar dele volta-se para mim com uma surpresa visível em seu rosto. A luz bruxuleante expõe o
remorso em seus olhos.
Volto a olhar para a lareira. — Foi por isso que você me arrastou até aqui. Não foi para salvar seu
amigo Chessie. Não foi para libertar a Marfim. O amaldiçoado é você. Você precisa de mim para
salvar seu espírito de uma eternidade como um brinquedo carcomido no covil da Irmã Dois.
— Seu julgamento é muito rígido. Eu quero salvar meus amigos. Mas acontece que posso salvar a
mim mesmo no processo. Estou escravizado há muitos anos, correndo contra o tempo. Agora, por
fim, posso parar os ponteiros. Posso destronar Grenadine e instalar a legítima herdeira em seu lugar.
— Mesmo se a herdeira não quiser.
Um silêncio pesado paira entre nós.
Gentilmente, Morfeu pega meu queixo, fazendo com que eu olhe para ele. — E quanto ao livro
escrito pelo bardo Carroll que eu usei como meu storyboard? O que pensa sobre isso?
Ele é incansável e me faz penetrar ainda mais fundo num lugar de escuridão e também de luz. —
Carroll inventou a história. Mas o País das Maravilhas, o lugar, os personagens e nomes... Acho que
a Vermelha, como a pequena Alice, o inspirou com as meias-verdades que usou para explicar sua
breve ausência. A família dela presumiu que ela havia se perdido e sonhado ao dormir sob uma
árvore. — Franzo as sobrancelhas. — A Vermelha tornou-se uma criança sob todos os aspectos,
assim como você o fez uma vez. A mente dela se tornou inocente novamente. É bom que sua
imaginação de menina tenha assumido o controle. Se ela tivesse sido completamente sincera com
relação às criaturas sombrias e deformadas daqui, teria sido trancada em um manicômio no seu
primeiro dia como humana. — Minha tentativa de sarcasmo é vã, porque sou uma dessas criaturas
sombrias e deformadas. Sempre fui. Só que agora pareço uma.
— Esplendidamente narrado — diz Morfeu. — E cada detalhe exatamente como aconteceu. — Ele
bate de leve no meu nariz. — Você se pergunta como os detalhes lhe ocorrem com tanta facilidade?
Minhas respostas eram mais do que palpites felizes. É como se as palavras estivessem inscritas na
minha língua. Em minha mente, percorro rapidamente cada sonho que tive com Morfeu para ver se
ele já me contou aquilo, mas ele não o fez.
Morfeu me guia para mais perto da lareira, analisando meu grampo de cabelo sob a luz. Ele o
percorre com o polegar. — Algo de interesse especial aconteceu no cemitério além de você ter
recuperado o sorriso de Chessie?
Toco no meu grampo, relembrando meu encontro com a rosa. — O espírito da Rainha Vermelha...
ele me percorreu as veias antes de escapar para o jardim. Ela deve ter deixado algumas de suas
lembranças comigo! Aquilo era parte da Língua dos Mortos, não era? Você tinha que libertá-la, e me
usou para isso.
Com um som que pode ter sido tanto um riso quanto um pranto, Morfeu me puxa para seus braços e
afaga meu cabelo. Seu cheiro me envolve, seu peito é sólido e quente. Quando criança, seu toque me
fazia sentir segura quando ele me pegava por baixo dos braços durante as aulas de voo. Mas agora
não. Me reteso por um momento e depois percebo que estou cara a cara com sua lapela. Nada além
de uma camada de tecido com listras prateadas e pretas se interpõe entre mim e meu desejo. Em vez
de rechaçá-lo, aninho-me mais — erguendo as mãos entre nós.
Um tremor percorre todo o corpo dele em resposta, os dedos enfiados entre as tranças na minha
nuca. — Adorável Alyssa. Que grande pupila você foi — diz ele suavemente, sua boca no alto da
minha cabeça. — Mas você me ensinou mais do que eu lhe ensinei. Você é muito mais digna de usar
a coroa do que qualquer outra. Coragem, compaixão e sabedoria. A tríade das majestades. Você tem
algo que eu pude ver mesmo por meio dos olhos de uma criança. Você tem o coração de uma rainha.
— Sua voz falha no fim da afirmação, como se ele tivesse ficado triste ao dizê-la.
Dedos enluvados — sedosos e confiantes — deslizam dos meus ombros para os meus pulsos. Eu o
amaldiçoo em silêncio por mover minhas mãos enquanto ele as levanta para estudar as cicatrizes.
Morfeu as beija, seus lábios um pincel fluido pela pele sensível, e depois coloca minhas palmas em
seu rosto.
Com a boca a centímetros da minha, ele sussurra. — Me perdoe por envolvê-la nisso. Não havia
outra forma. — A pele dele é mais macia do que as nuvens devem ser, e as lágrimas que se reúnem
nas pontas dos meus dedos são quentes e tangíveis. Mas serão sinceras?
Nossas respirações redemoinham entre nós, e seus olhos negros me engolem inteira. Meu coração
bate contra o peito dele. Sei o que virá a seguir. E temo. Mas é o modo mais certo de distraí-lo e
pegar o desejo. E, se isso tem que acontecer, sou eu que devo provocá-lo.
Esticando os dedos dos pés, aperto minha boca contra a dele. Ele geme, liberta meus pulsos e me
envolve em seus braços — prendendo o ursinho entre nós. Meus tornozelos balançam na altura de
suas canelas, e minha mão se arrasta na direção de sua lapela. Estou no controle.
Mas é mentira, porque agora eu provei dele. Seus lábios são salgados e doces com o riso de
ontem... Afundando nas areias pretas sob o sol do País das Maravilhas, brincando de pula-carniça
nos chapéus de cogumelos, e descansando à sombra de asas negras de cetim.
Tento me livrar do feitiço, mas ele inclina a cabeça e aprofunda o beijo. “Me abrace... Abrace seu
destino.” Ele quebra a barreira dos meus lábios, tocando minha língua com a sua, uma sensação
deliciosa demais para recusar. Conforme nossas línguas se entrelaçam, seu acalanto vibra através do
meu sangue e ossos, me levando até as estrelas.
Atrás dos olhos fechados, estou flutuando num céu de veludo com os pulmões cheios do ar da
noite. Em algum nível, sei que estou no meio de uma sala aquecida pelo fogo, mas minhas asas
imitam um voo numa brisa fresca. Estou dançando com Morfeu no céu, não mais prisioneira da
gravidade.
Batendo nossas asas em uníssono, nos retorcemos numa valsa flutuante entre as estrelas que se
enrolam e desenrolam em centelhas emplumadas bem acima das paisagens distorcidas e lindas do
País das Maravilhas. Cada vez que giramos e depois voltamos aos braços um do outro, eu rio,
porque finalmente posso ser eu.
Sou a pessoa que desejei ser em minhas fantasias mais íntimas — espontânea, impetuosa e
sedutora.
Morfeu promete uma vida de danças, um mundo onde tudo obedece aos meus comandos. Ele me
mostra cada pedaço e quinhão do País das Maravilhas, que é meu. Lá embaixo, depois das estrelas e
do céu noturno, posso me ver sentada em um trono à cabeceira da mesa, como anfitriã de um
banquete com o malho na mão, preparada para abater o prato principal. Um riso insano ecoa nos
corredores de mármore, doce aos meus ouvidos.
A cena me deixa inebriada de poder. Eu o beijo uma vez mais. Ele me aperta com mais força.
Sob meus pés, as estrelas explodem em mil cores diferentes: fogos de artifício silenciosos, como
os que Jeb e eu vimos no barco na nossa primeira noite aqui.
Jeb...
A imagem de seu sorriso com covinha me toma com violência, como uma lufada de ar gelado. As
lembranças de minha vida mortal intensificam o frio: o orgulho e satisfação de terminar um mosaico,
o aroma de mel das panquecas de papai nas manhãs de domingo, a risada estridente de Alison, que
me faz sentir em casa, Jenara brincando comigo na Fios de Borboleta, e Jeb... sua lealdade, seus
beijos, tão mágicos e ao mesmo tempo tão reais.
Os rodopios em minha cabeça diminuem, como uma tampa que para de rodar e cai. Estou de volta
ao castelo, colada a Morfeu num abraço apaixonado.
Tenho que terminar o que comecei ou corro o risco de me tornar o que ele é.
Enfio a mão em sua lapela, procurando meu desejo, retribuindo seus beijos fervorosos. — Xeque-
mate, seu filho da mãe — digo em sua boca dois segundos antes de meus dedos se depararem com um
bolso vazio.
— Que destreza nas mãos, florzinha — responde ele. — Na verdade, está no bolso da calça, se
quiser procurar lá.
Eu o empurro e jogo-me no chão, limpando minha boca. — É meu!
— E você o receberá quando chegar a hora. — Os lábios dele, tudo que consigo ver agora, se
curvam naquele sorriso apertado que aprendi a detestar. Ele indica a cadeira. — Sente-se. Você
acaba de ser beijada decentemente. Não me admiro que esteja sem ar.
— Não se gabe desse jeito — rebato, bufando, numa tentativa de ocultar uma golada de ar e
segurar o ursinho contra o peito. — Esse beijo não significou nada. Estava cheio de segundas
intenções.
— Ah, por certo. O beijo foi motivado por segundas intenções.
Talvez seja só meu desejo, mas sua tez pálida parece ruborizada quando ele vira a cadeira de
costas para o fogo. Considerando que meu estômago está um pêndulo a todo vapor, espero que ele
esteja pelo menos um pouco perturbado.
Com o rosto fervendo, sento-me nas almofadas quentes, minhas asas ornamentando os braços como
toalhinhas de crochê cravejadas de joias. Não consigo definir minhas emoções. Eu não deveria tê-lo
beijado. Como pude fazer isso com Jeb? Mas fiz por nós, então ele vai compreender, certo? Desde
que eu não mencione como isso me afetou, como quase me afoguei na sedução de Morfeu, em meus
próprios desejos sombrios...
— Eu comentei como você está adorável esta noite? — pergunta Morfeu, me forçando a olhar para
ele. Seus olhos seguem as linhas de meus diáfanos apêndices. — Há algo de especial em uma dama
com asas. Você as ostenta bem. Está requintada, na verdade. Como deve ser uma princesa
intraterrena.
A atração de seu olhar desperta todos os meus nervos, forçando-me a lembrar de seus lábios nos
meus. Um toque de sua mão teria me afetado menos. Estendo a mão para pegar seu chapéu,
equilibrado no braço da cadeira, e balanço as mariposas vermelhas, que dançam. — Chega de
bobagem, Morfeu. Minhas roupas estão em farrapos e parece que um marshmallow explodiu nas
minhas costas.
Ele dá risada, um riso masculino e profundo. — Você sempre fica irresistível quando está irritada.
— Ele se senta no chão diante de mim, as pernas cruzadas e vestidas com risca-de-giz feito um
escoteiro. Pena que Jeb não esteja aqui para fazer picadinho dele.
Dou um tapa na aba do chapéu, exasperada.
Morfeu encolhe-se, como se eu tivesse batido nele. — Cuidado. Este é o meu Chapéu da
Insurreição. Nunca houve uma ocasião em que eu pudesse usá-lo, até hoje. O vermelho representa as
batalhas e o sangue derramado, caso esteja se perguntando.
— Não tenho o mínimo interesse — respondo, atirando-o ao chão.
Sibilando entre os dentes, ele recolhe seu prêmio. — Bah! Você é descendente da Rainha
Vermelha. Anseia pelo caos. Fica mais feliz quando o mundo está em alvoroço. Você prospera na
loucura. Até sua magia fica melhor quando é a catalisadora da confusão. Ainda não consegue admitir
isso?
Balanço a cabeça, desejando que aquilo não seja verdade.
Ele coloca o chapéu no joelho e dá de ombros, como se estivesse ocupado demais para tirar e
verdade de mim. — Você vai tomar banho e mudar de roupa. Escolhi um conjunto deslumbrante para
você. Uma rainha deve vestir-se de modo apropriado para a sua coroação.
— Eu não serei rainha — resmungo.
— Talvez não para sempre, mas será temporariamente. É a condição da Língua dos Mortos da
Vermelha. Você deve ser coroada com a tiara de rubis. Ah, cheguei a mencionar que é a única
maneira de libertar seu cavaleiro mortal?
Meu peito se contrai com uma culpa esmagadora. Jeb.
— Leve-me até ele. Agora. — Começo a me levantar, mas minhas asas se recusam a cooperar.
Meus músculos exaustos demonstram não ser páreo para o peso delas, que repentinamente fica
assustador. Deixo-me cair, em resignação, e solto um grunhido.
Morfeu cruza as mãos sobre o colo. — Você precisa de um banho quente e de um pouco de
descanso. Como eu já disse, seu pseudoelfo está a salvo. Por quanto tempo ele permanecerá assim,
entretanto, depende inteiramente do seu desempenho esta noite.
— Você não pode tocá-lo! — As únicas coisas que me impedem de arrancar aquelas pedras
brilhantes dos olhos dele são minhas asas pesadas. — Você fez um voto de não feri-lo. Um voto. Se
o quebrar, perderá suas asas, o poder de manipular os sonhos... Tudo que faz de você quem é.
— É verdade. Eu não desejaria perder meus poderes em tal conjuntura precária. — A luz do fogo
pisca sobre suas roupas em tons de laranja e púrpura, intensificando a imagem aberratória de
gângster. — Mas havia uma estipulação, não havia? Que eu não o machucaria desde que ele
permanecesse leal à sua digna causa. Bem, ele provou ser um obstáculo. Ele e eu discutimos o seu
destino há algum tempo, e ele não deseja vê-la como rainha. Na verdade, ele ficou um tanto
incontrolável ao ouvir essa sugestão. — Morfeu afasta o cabelo da testa, exibindo um ferimento do
tamanho de um ovo de ganso. — Imagine... A maioria dos homens daria pulos com a oportunidade de
dividir a cama com a realeza.
— Cale a boca. — Um soluço fica preso na minha traqueia.
Seja forte, Alyssa Victoria Gardner. Quase posso ouvir a voz de Jeb, quase posso ver a fé sincera
em seus olhos verdes. Não irei desapontá-lo novamente.
Dando tapinhas na pele de urso, que cheira a mostarda, respiro fundo para me estabilizar. — Você
disse que eu poderia ser rainha temporariamente. Explique.
Morfeu relaxa com os cotovelos nos joelhos. — Quero a espada vorpal para libertar meus amigos.
Mas precisamos coroar você como rainha para cumprir minha Língua dos Mortos. Acontece que o
Rei Vermelho mantém o frumioso bandersnatch guardando a espada e a coroa, porque sua rainha
distraída colocava a maldita tiara sempre no lugar errado. Então, para pegarmos os dois, você deve
dominar a criatura.
A peça de xadrez de jade com a boca escancarada e faminta e a cauda cheia de espinhos está
cravada em minha memória. Ela insuflou o terror em meu coração quando criança, e era somente uma
brincadeira. Frumioso. Qualquer coisa que inspire um adjetivo exclusivamente para si é uma força a
ser temida. — Espere. Não. Já que você tem o controle deste castelo e a cooperação dos guardas,
por que não pode simplesmente forçar o rei a ponta de espada para entregar essas coisas para nós?
— Grenadine é a única que sabe o comando que o bandersnatch foi treinado para obedecer. É
uma palavra passada de rainha para rainha. Mas, na confusão de nossa invasão, Grenadine perdeu a
fita que continha esse segredo.
Mordo minha bochecha, certa de que há alguma maneira de pularmos esse passo. — Muito bem,
mas, se o sorriso de Chessie pode domar o animal, então podemos simplesmente tirá-lo do brinquedo
aqui e libertar Chessie no covil do bandersnatch. Podemos aguardar fora de perigo até que ele seja
dominado.
— Idealmente, sim. — Morfeu arrebata o ursinho do meu colo. Puxando com força, ele rasga os
pontos. Antes que eu possa piscar, os fios voltam a se recompor, fechando a abertura. — Está vendo?
— explica ele. — Como os brinquedos da Irmã Dois abrigam o resíduo do amor inocente de uma
criança, a magia mais poderosa do mundo, a única ferramenta que pode cortar esses pontos de modo
permanente é...
— A espada vorpal — retruco, esfregando o estômago para desatar o nó que o amarra. Pego o
ursinho de volta e corro o dedo sobre os buracos onde eram seus olhos. — O que vai acontecer...
depois que eu domar a besta?
— O exército Branco concordou em deixar o castelo sob a condição de que a Corte Vermelha
coroe uma nova rainha e liberte a Marfim. As duas cortes aceitarão você como a legítima herdeira,
um vez que cumpriu o teste final e aproveitou o poder do sorriso. — Um sorriso arrogante toma seus
lábios. — Desconfio de que o Rei Vermelho tenha escrito isso com uma intenção diplomática em
mente. Mas essa interpretação atinge todos os pontos importantes. Ninguém pode dizer que não.
A apreensão me percorre o corpo ao pensar em ser julgada por duas cortes. — Então, eu serei
coroada. E depois Jeb e eu poderemos partir?
— Quando você for rainha, poderá forçar o Rei Vermelho e Grenadine a libertar a Marfim. O País
das Maravilhas voltará ao seu equilíbrio. Os dois portais estarão abertos para você. E então... —
Morfeu percorre a aba do chapéu com um dedo — ... você poderá usar seu desejo para limpar seu
sangue de qualquer resquício intraterreno, o que salvará sua mãe e seus futuros filhos. A Corte
Vermelha escolherá uma nova rainha depois que você e seu soldadinho de brinquedo voltarem ao
reino humano.
Alguma coisa neste último passo não parece se encaixar. Para começar, quem seria coroada
rainha? Em segundo lugar, como, exatamente, uma parte de mim — a metade intraterrena —
simplesmente desapareceria? Ela seria apagada por alguma borracha mágica?
Antes que eu possa expressar minhas reservas, Morfeu me atinge com as únicas palavras que me
fariam esquecer todo o resto: — Gostaria de ver seu cavaleiro mortal agora?
Estou sentada na ponta da cadeira, prestes a me levantar, mas Morfeu se ajoelha diante de mim,
sempre um obstáculo no meu caminho.
— Não precisa se levantar, querida. Você pode vê-lo de onde está. — Ao lado de minha perna
direita, ele enfia a mão entre o estofamento e a estrutura da cadeira. Os terminais nervosos em minha
coxa crepitam. Com os olhos fixos nos meus, Morfeu tira um pequeno espelho de mão com moldura
de prata trabalhada. Ele vira o objeto em minha direção.
Em algum lugar escuro e úmido, Jeb bate a cabeça contra as barras de ferro da prisão. O sangue
jorra e cai pelo seu rosto, e ele cambaleia para trás, tonto.
Meu coração se parte ao meio, uma dor tão aguda que poderia lançar mil desejos e encher um mar
de lágrimas. — Jeb, pare...
— Para sua informação — diz Morfeu, estudando minha reação —, é uma gaiola de pássaro.
Nosso pseudoelfo está do tamanho de um pardal. Uma palavra minha e os guardas o servirão para a
famigeradamente faminta gata da Rainha Grenadine, Diná.
— Não! — Deslizo os dedos sobre o vidro frio, e a imagem se esvai. Agora só vejo meu próprio
reflexo. A menina cujos desejos egoístas trouxe Jeb para dentro desta jornada, para começo de
conversa. Tudo porque eu o queria para mim. Mas eu nunca desejei isso.
O soluço que até então eu estava reprimindo se solta. Eu estava delirando quando pensei que
poderia virar este jogo a meu favor. O xeque-mate já foi dado. Morfeu venceu.
— E então, Alyssa?
O fogo crepita atrás de mim e o gato de nove caudas estala suas pontas de luz sobre uma expressão
impiedosa. Enxugo minhas lágrimas e levanto os olhos, encarando-o. Não é preciso mais nenhuma
palavra entre nós, porque ele já sabe.
Farei tudo que ele quiser.
19
Chessie
Morfeu me acompanha por um corredor longo e escuro no primeiro andar. Velas em candeeiros
iluminam as paredes vermelhas resplandescentes. A renda e as saias armadas de meu vestido de
coroação varrem o mármore negro aos meus pés. É exatamente por isso que eu não quis ir ao baile de
formatura. Detesto me exibir, principalmente vestindo alguma coisa que eu mesma nunca escolheria.
Das mãos até os pés, jorro veludo carmim, rendas marfim e rubis. As mangas, na altura do
cotovelo, e a saia, que vai até o chão, têm enchimento que lembra os vestidos de baile das princesas
dos contos de fadas que eu lia quando era criança, e as luvas são feitas de um tecido aveludado que
estica.
Meu cabelo também está enfeitado; longos cachos se empilham sobre minha cabeça, com
prendedores cravejados de joias que ladeiam o grampo da minha tataravó. Morfeu instruiu as fadas
camareiras para que os ornamentos da Rainha Vermelha fossem o ponto focal.
Estou a personificação da realeza. Eu até cheiro a realeza — perfumada com sândalo, rosas e um
toque de âmbar. Mas eu preferia ser a Irmã Um, esparramada no cheiro da empoeirada luz do sol e
ocultando fiandeiras sob minha saia, para poder prender Morfeu em uma teia e pendurá-lo.
Como se intuísse meus pensamentos, ele aperta minha mão de veludo contra a sua mão acetinada,
travando nossos dedos com força. Seu queixo tem a mesma expressão severa que ele tinha antes —
logo depois que as fadas me exibiram para sua aprovação —, quando eu lhe disse como eu odiava
até mesmo sua imagem.
Ele pareceu magoado. Não pensei que ele se importaria. Afinal, sou apenas seu peão.
Nossas asas acidentalmente roçam uma na outra, e eu reposiciono o ursinho enfiado debaixo do
braço para aplacar minha raiva.
Cinco guardas de Corte Vermelha vão à frente, e cinco cavaleiros élficos da corte Branca seguem
logo depois, suas botas militares fazendo eco em meus tímpanos. Não consigo parar de olhar para as
joias vermelhas que cintilam em desenhos mínimos em suas têmporas e queixos, da mesma cor que o
piercing de Jeb. Exceto pelas orelhas pontudas, eles guardam uma inquietante semelhança com ele,
no tamanho e na cor da pele. Quase humanos, exceto pela falta de emoção.
Todos vieram oferecer proteção e reportar-se aos seus respectivos grupos depois que
testemunharem meu teste final. Como disse Morfeu, a Corte Vermelha concordou com minha
coroação, mas não pode simplesmente me ceder essa honra. Tenho que provar que sou digna dela.
Aproveitar o Poder de um Sorriso: dominar o bandersnatch com a cabeça de Chessie.
Sempre que minhas pernas viram geleia ao pensar nisso, só preciso me lembrar de Jeb sofrendo
em sua gaiola, tentando chegar até mim, e minha força retorna. Eu farei isso — por ele, por Alison e
pelo papai. Colocarei um fim neste pesadelo insano e ganharei nossa ida para casa.
Minha comitiva e eu viramos à direita, chegando a uma porta de madeira em arco pintada de
vermelho com entalhes em latão no formato dos naipes de cartas: ouros, espadas, copas e paus.
Antes de abrir a porta, Morfeu se vira. Ele segura minhas mãos. A aba de seu chapéu fedora lança
uma sombra em semicírculo sobre a metade superior de seu rosto. — Temos que manter a câmara
escura. A visão fraca do bandersnatch é uma vantagem para nós. Ele demorará mais para
compreender o que acontece, mas seu instinto ficará mais rápido. Da nossa parte, devemos ser
furtivos e agir oportunamente. Teremos somente alguns minutos antes que a besta nos registre com
seus outros sentidos. Ele ataca com as línguas... como um sapo captura sua presa. Você precisará
ficar atrás de mim, e é mais fácil fazer isso quando se está no chão, então resista ao desejo de alçar
voo.
Talvez eu devesse ficar lisonjeada por ele estar me protegendo tanto. Mas minha segurança vem
em segundo plano. Ele só não quer perder seu trunfo.
— Quando pegarmos a espada vorpal, você pode libertar a cabeça de Chessie. Depois disso,
prepare o arco do violoncelo. Chessie irá dizer-lhe o que fazer. Entendeu nossa estratégia, Alyssa?
Eu não respondo, recusando-me a olhá-lo nos olhos. Aceitei meu lado negro nas últimas horas,
abracei-o porque ele me ensinou a manipular Morfeu. A indiferença o afeta mais do que a raiva. Pena
eu não ter percebido isso antes.
A compreensão tardia é para os perdedores.
— Por favor, olhe para mim... — a voz dele suplica.
Mais uma vez, ele cai na minha armadilha — um pouco tarde demais.
— Tanto quanto você, quero que tudo isso acabe — dispara ele, com uma doce sinceridade que
poderia derreter toda a Groenlândia. Levantando meu queixo para que meu olhar encontre o seu, ele
pega o arco do violoncelo que lhe foi oferecido por um cavaleiro élfico e o estende para mim. —
Vamos trocar pelo brinquedo?
Lanço um olhar azedo para ele e para o cavaleiro e pego o arco, dando-lhe o ursinho. A primeira
vez em que peguei um arco, Alison estava ajoelhada diante de mim, segurando um violoncelo que era
três vezes maior do que eu. Ela pegou meu pulso para conduzir o arco sobre as cordas. O instrumento
soou lindamente, o som mais profundo e tocante que já ouvi. Isso aconteceu alguns dias antes do
incidente que mandou Alison para o sanatório. Graças a Morfeu.
— Nosso plano vai dar certo — promete Morfeu, roçando as costas da mão em minha têmpora,
sem ligar para os nossos acompanhantes. Ele deve sentir a tristeza em mim, porque está sendo muito
gentil. — O corpo de Chessie quer se reunir. Você está simplesmente permitindo que isso aconteça.
Pense em si mesma como uma ponte.
Eu não respondo. Dou ao arco minha total atenção. Ele é mais largo e tem uma curvatura maior do
que o que tenho em casa. Giro o parafuso para aumentar a tensão, bato-o levemente no chão e
encontro o olhar ansioso de Morfeu. — Pronta.
Minhas mãos suam dentro das luvas, e mal consigo afastar os tremores em cada músculo do corpo.
Agarro o pulso de Morfeu antes que ele vire a chave dentro da fechadura. — Meu desejo?
Ele tateia o bolso da calça, com o resíduo de um sorriso ávido lhe curvando os lábios. Morfeu está
se lembrando de nosso beijo, mas minha mente escapa na direção oposta, desesperada para não cair
nas lembranças junto a ele.
— Você vai dá-lo para mim? — pergunto.
— Eu juro pela magia na minha vida. Quando chegar a hora.
Posiciono-me atrás dele. Em resposta a um sinal de Morfeu, os soldados se espalham numa
formação em V à minha esquerda e à minha direita.
A porta se abre, cortando a escuridão com luz. Um fedor de umidade nos recebe, como se alguém
tivesse preparado um guisado de ostra com chucrute dentro de uma sauna fechada. A definição de
frumioso fica absolutamente clara. Tampando o nariz, reprimo a ânsia de vomitar.
Conforme a abertura se amplia, nossas sombras bloqueiam a luz diante de nós. Mesmo assim
posso ver que o teto tem quase a mesma altura do teto do Submundo, e a sala tem o dobro do tamanho
daquela enorme estação de skate. Uma série de janelas perfila a parte mais alta do teto em abóbada,
deixando penetrar uma luz tênue e difusa, suficiente apenas para diferenciar os contornos e sombras,
mas não para ver qualquer coisa com clareza.
Tenho uma vaga ideia do recinto por causa da descrição dada por Morfeu. Uma corrente grossa
prende o bandersnatch à parede dos fundos. É comprida o bastante para que ele tenha acesso ao seu
cercado e à área do palco que abriga a coroa e a espada, mas este é o limite de seu alcance. Isso
permite que os cuidadores da criatura lhe joguem comida da porta e permaneçam fora do alcance de
suas línguas. Meus olhos se ajustam e consigo ver o formato do palco. Há um pódio centralizado no
meio e um buraco esculpido dentro dele. Há uma luz enfiada dentro da base, permitindo que um
suave raio amarelo se irradie do centro para dentro do recipiente de vidro no alto dele, um pequeno
farol na escuridão. Lá dentro, uma coroa vermelha e uma lâmina de prata brilhante se encontram
aninhadas sobre uma almofada. De onde estamos, a arma parece pequena, do tamanho de uma
faquinha que papai usa para preparar peixe fresco; a lâmina e o cabo não devem ter mais do que uns
20 centímetros de comprimento. Parece mais uma faca do que uma espada.
Uma pesada corrente se arrasta pelo chão em algum lugar em meio à escuridão atrás do palco.
Fungadas enchem o ar e depois aumentam, virando um rosnado grave de gelar a espinha.
Um pavor terrível me engasga. Morfeu segue adiante, chamando-me para ficar atrás dele. Minha
mente implora para eu virar as costas e sair correndo. Em vez disso, forço-me para segui-lo. Os
guardas e cavaleiros andam de lado, grudados à parede, com as costas contra as pedras, lanças e
espadas em punho, se é que isso adianta alguma coisa. O couro de um bandersnatch é indestrutível.
Se a criatura atacar, a única esperança é enrolar suas línguas e conseguir algum tempo para escapar.
Morfeu e eu chegamos furtivamente bem perto do palco. Agarrando o arco, aguardo minha deixa...
O coração aos pulos. O bandersnatch deve ouvir minha pulsação, porque lança uma língua para
averiguar. O órgão escorregadio e serpenteante vai deslizando e deixando um rastro cintilante de
muco.
As asas de Morfeu se dobram em volta de mim, e juntos despistamos a língua, que se retrai. Com
as juntas dos dedos pressionando as costas de Morfeu, sinto seus músculos se retesando.
— Calma, Chess, meu velho... Calma — sussurra Morfeu. Ele está enfrentando mais do que o
próprio medo. Está lutando com o espírito ansioso do gato. Chessie deve ter sentido sua outra metade
e está lutando para encontrá-la.
Chegamos ao palco, e Morfeu iça a mim e ao meu vestido desajeitado no mesmo instante em que o
bandersnatch emerge da escuridão, encontrando um raio de luar. Um dos guardas de cartas solta um
gemido e a criatura vai cambaleando em sua direção, tão desajeitada e errática quanto um vagão que
se solta do trem e descarrilha — só que três vezes maior.
Tenso, Morfeu nos aproxima da caixa de vidro no pódio. A besta move a cabeça em nossa
direção, as correntes ressoando. Congelamos, mãos dadas.
Olhos leitosos passam sobre mim, incapazes de focar. Nada poderia ter me preparado para o que
estou vendo: o couro de um rinoceronte cinza, esburacado e cheio de caroços, a cabeça triangular e
felina com caninos, como um tigre dente-de-sabre reptiliano. As pernas de lagarto gigante da criatura
se movem para fora, e sua cauda espinhosa sacode de um lado para o outro conforme ele balança a
cabeça. Um dos cavaleiros élficos estala a língua para distraí-lo. Rosnando, o bandersnatch vira-se
naquela direção, com a baba escorrendo de seu focinho e formando um rastro.
Morfeu solta um pouco a minha mão quando chegamos perto do recipiente de vidro e me passa o
ursinho. Ele enfia uma chave na fechadura de latão na parte da frente, virando-a para acionar o
mecanismo. Por algum reflexo instintivo, minhas asas se abrem. Recuo e vejo o olhar preocupado de
Morfeu, mas é tarde demais.
O movimento atrai a atenção do bandersnatch para mim e ele ruge — seu hálito pútrido me
atingindo com todo o calor, o estrondo e a umidade de uma terrível tempestade de verão. Sem a
proteção das asas de Morfeu, minha reação é gritar, e quase viro meus pulmões do avesso.
Morfeu me empurra para trás dele quando as três línguas se lançam sobre nós. Na ponta de cada
apêndice, uma cara parecida com a de uma serpente abre mandíbulas desdentadas e sibila. São como
enguias gigantes, embora não tão pacíficas e charmosas quanto meus bichinhos de estimação. Cada
gota de saliva evapora de minha boca quando uma língua chega a alguns centímetros do rosto de
Morfeu. Ele se esquiva, mas as línguas atacam novamente, enrolando-se em seu tornozelo e cintura.
Elas o derrubam e o arrastam, de joelhos, para perto do palco.
— Morfeu!
Quero acreditar que só estou preocupada por causa do meu desejo. Mas vê-lo capturado desperta
aquela criança que um dia o amou. Atormentada pelo terror, ela encontra seu caminho, sai das
reentrâncias de meu coração, livra-se do arco de violoncelo e me empurra para a frente a fim de
alcançá-lo.
Aterrisso de barriga em uma poça de lodo fétido, com a saia armada borbulhando acima de mim.
— Pegue minhas mãos! — Estico os braços e entrelaço seus dedos nos meus, mas ele os afasta.
— Não, Alyssa! O teste! Pegue a espada vorpal... Liberte o sorriso...
As línguas o arrastam para fora do palco e o levam na direção da boca salivante. Suas asas
murcham nas costas, presas no apêndice enrolado em sua cintura. Seu chapéu voa e aterrissa no chão.
Luto para conseguir ficar de pé com a geringonça debaixo de minha saia, balançando para um lado
e para o outro até que pego um impulso e consigo me equilibrar. Assim que fico de pé, dou meia-
volta e levanto a tampa de vidro. Sinto o calor do cabo da espada vorpal, mesmo através das minhas
luvas. Em todo lugar que toco, deixo impressões azuis cintilantes no metal prateado.
Um grito atrai minha atenção de volta para a luta. Graciosos e letais, os cavaleiros élficos se
catapultam para as costas do bandersnatch, golpeando sua pele com as espadas, em vão. Os guardas
de cartas entram em ação. Eles desempenham acrobacias elaboradas para construir uma torre de
cartas acima da cabeça da besta. Depois, eles caem e espetam as lanças em suas línguas.
Seus esforços combinados ajudam Morfeu a escapar da língua em sua cintura. Ele mergulha no
chão, batendo as asas para obter impulso e se livrar dos outros dois apêndices ainda em seus
tornozelos. O bandersnatch revida. Os guardas de cartas voam feito folhas ao vento e se chocam
contra as paredes. A besta investe novamente, derrubando três elfos. Eles atingem o chão,
desacordados, suas espadas girando ao lado deles ruidosamente.
A urgência se instaura em mim. Com os dedos em torno do cabo da espada vorpal, abro a costura
da barriga do ursinho. O enchimento pula para fora e a costura se abre, pois algo está lutando para se
libertar.
Morfeu emite um lamento. Os cavaleiros e os guardas de cartas cobrem o chão, todos
inconscientes, feridos ou mortos. Sinuosas e escorregadias, as línguas se enrolam em Morfeu,
segurando-o de cabeça para baixo. A mandíbula inferior do bandersnatch se escancara, um abismo
pronto para engolir sua presa inteira.
Chessie ainda não emergiu de sua prisão estofada. Enfiando o ursinho em meu corpete, pego o arco
de violoncelo e a espada vorpal, e em seguida bato as asas e ganho o ar. Eu nem sei a altura em que
estou. Pairando sobre a rosnenta massa monstruosa, grito para Morfeu lá em baixo: — Pegue! —
Equilibro a espada bem acima de sua mão levantada e a solto.
Com reflexos rapidíssimos, ele agarra o cabo e desfere três golpes, cortando fora a cabeça de uma
língua. A criatura solta um gemido alto e solta Morfeu, que se une a mim no ar. Lá embaixo, nosso
agressor esgueira-se para seu cercado, uivando.
Com o cabelo desgrenhado e as roupas amarrotadas e cheias de baba, Morfeu enfia a espada
vorpal em sua lapela e faz um sinal com a cabeça, agradecendo. Juntos, descemos. Meus pés mal
tocaram o chão quando o ursinho em meu corpete começa a me puxar, arrastando-me na direção do
covil da besta.
— Chessie está tentando pegar sua outra metade! — grita Morfeu.
É como se alguém me tivesse fisgado em uma linha de pesca e a estivesse recolhendo. Morfeu
tenta me agarrar, mas é tarde demais. Sou empurrada para dentro do cercado do bandersnatch. Meus
joelhos começam a ceder quando ele me rodeia, aproximando-se e rosnando, com sua língua
incapacitada arrastando no chão e pingando sangue verde.
— Liberte o sorriso, Alyssa! — Morfeu investe contra o cercado para distrair o animal.
Tremendo dos pés à cabeça, tiro o brinquedo do meu corpete e o largo no chão. Um brilho
alaranjado se eleva da costura rasgada. O bandersnatch diminui o rosnado, fascinado pela luz.
Apertando o arco de violoncelo na mão, aguardo, duvidando...
O brilho alaranjado cresce, do tamanho e forma de uma moeda para o tamanho de uma bola de
futebol. Olhos verdes esmeralda com pupilas verticais aparecem, e um nariz bulboso surge no centro.
Por último, emerge um sorriso — brilhante como o da enfermeira Poppins, da clínica — com
bigodes esticados nos dois lados.
Outra luz laranja responde de dentro do estômago da criatura. Ela ilumina as vítimas não
digeridas. As silhuetas de seres alados, grandes e pequenos, flutuam em seu interior como um móbile
mórbido, lançando sombras sobre a parede de suas entranhas.
A besta abaixa a cabeça em silêncio, de algum modo consciente da mudança que acontece dentro
dele. A cabeça laranja de Chessie se vira para me encarar e se metamorfoseia em uma ampulheta, os
bigodes esticados verticalmente sobre os dentes para formar as cordas de um instrumento.
Um violoncelo...
— Seja a ponte — instrui Morfeu. — Domine a besta.
Alcanço o instrumento laranja que flutua e o trago para baixo. Apoiando-me em uma parede,
deslizo o arco sobre os bigodes, escolhendo uma melodia simples que costumávamos tocar na banda
como aquecimento. Mas não são minhas notas que se desprendem do sorriso. A voz de Chessie canta
uma melodia melancólica e contagiante, e logo eu me pego cantarolando-a enquanto continuo a
acompanhá-lo — embora eu nunca tenha ouvido aquela música.
Os olhos do bandersnatch ficam pesados. Suas pernas se curvam, incapazes de sustentar seu peso.
Com um som alto e preguiçoso, ele rola para o lado, roncando. A luz dentro de seu estômago sobe
para seu esôfago, abandonando as silhuetas flutuantes em sua prisão.
Morfeu aterrissa e me envolve com um braço. Ainda dormindo, o bandersnatch soluça, deixando
escapar a bolha brilhante e alaranjada. Meu “violoncelo” se solta e vai ao encontro de sua outra
metade, e, quando a bolha estoura, Chessie está inteiro, pairando no ar. Ele muda sua forma para uma
pequena criatura com listras laranja e cinza — mais uma mistura de guaxinim e beija-flor do que um
gato. O sorriso em sua cara se alarga e ele pisca para mim, faz um sinal com a cabeça para Morfeu e
depois desaparece com um zunido de sua cauda peluda e listrada.
Minhas pernas estão bambas e meu corpo está completamente entorpecido. Morfeu me acompanha
para fora do cercado do bandersnatch, fechando e trancando o portão para deixar a criatura lá
dentro. — Depois de tamanha batalha com a magia, ele deve dormir até amanhã de manhã, eu acho.
Os guardas e cavaleiros sobreviventes aplaudem.
Morfeu volta-se para eles, com um braço segurando na minha cintura. — Cuidem de seus feridos.
Deixem os mortos por enquanto. Vou preparar Alyssa e a coroa. Reúnam as cortes e testemunhas na
sala do trono. Faremos a coroação em pouco tempo.
Os que ainda conseguem andar carregam os feridos e fecham a porta, deixando-nos na sala
abobadada com seus mortos. Não consigo olhar para os corpos, pois me sinto mal por eles terem
morrido por mim.
Sentindo minhas emoções em frangalhos, Morfeu abre os braços. Sem hesitação, viro-me para ele
e o abraço sob a luz da lua. O cabo da espada vorpal pressiona minhas costelas sob seu casaco, e
tento refrear a tentação de arrebatá-la e cortar-lhe a garganta. Não posso fazer isso. Não depois do
que ele fez.
— Você pulou na minha frente — sussurro. — Podia ter morrido.
— Você me salvou a vida. Então estamos quites. — Ele diz a última palavra com sua voz mais
humilde, como quando eu costumava derrotá-lo nos jogos na época em que éramos crianças.
Aperto seu casaco e o puxo contra mim, o nariz enfiado em seu peito. Não sei como colocar em
palavras o que estou sentindo. Raiva pelo que ele fez comigo e com Jeb misturada com a afeição que
minha porção criança tem por ele. Só que não estou mais convencida de que é somente a criança em
mim que está presa a ele.
— Eu te odeio — disparo, o sentimento abafado contra seu coração, esperando fazer dele uma
verdade.
— E eu te amo — responde ele sem hesitação, com a voz decidida e inflamada, e me abraça com
mais força para eu não me afastar e reagir. — Uma encruzilhada, minha linda princesa, que era
inevitável dada a nossa situação.
Isso me atinge, e eu nem sei por quê. Estou à deriva na confusão e descrença sobre tudo: nosso
beijo, sua confissão, meu confronto com o bandersnatch; acima de tudo, que Jeb e eu estejamos
prestes a voltar para casa.
Afastando-me até onde seu braço alcança, Morfeu olha para mim, em silêncio.
— Então, agora você me coroa — arrisco, precisando quebrar o intenso magnetismo entre nós. —
E eu fico livre.
Ele olha para os sapatos. — Sim. Você fica livre. — Sem mais uma palavra, Morfeu acende várias
tochas ao longo da parede, iluminando o recinto. Depois, ele recupera seu chapéu e o arruma na
cabeça.
Suas roupas estão aos farrapos, como as minhas. Olho para o bandersnatch adormecido e
trancado dentro de seu cercado. Por que Morfeu me fez usar o vestido da coroação para fazer uma
coisa que o estragaria? Uma pontada de suspeita renasce quando ele volta com a coroa de rubis nas
mãos.
— Se você quiser — diz ele —, eu posso coroá-la aqui e agora, em particular. Chega de exibição.
Isso tudo pode acabar em questão de minutos.
Suas palavras acabam com minhas suspeitas. Ele não soa muito convincente, mas gosto da ideia de
fazer isso sem todo o País das Maravilhas assistindo. — Sim.
Sua mão livre se abre para exibir meu desejo. — Quando estiver pronta, aperte-o e pense no
desejo mais profundo de seu coração. Mas certifique-se de escolher as palavras com cuidado. Diga
que deseja se libertar da Rainha Vermelha e sua influência para sempre. É a única maneira de
libertar sua família.
Eu aquiesço.
Por alguma razão, ele não me olha nos olhos. — Eu só peço que me espere coroá-la antes de fazer
o desejo. — Seus cílios cobrem os olhos, e as joias em seu rosto piscam em três tons diferentes de
azul — como se ele estivesse indeciso sobre alguma coisa.
Tiro as luvas e pego a conta que ainda está por estar em seu bolso.
Ele me surpreende ao oferecer algo mais — a estátua de jade da lagarta que estava em seu quarto.
— Desse modo você nunca me esquecerá, e nem do seu melhor lado.
Eu a pego, reprimindo a dúvida na minha garganta.
Ele eleva a coroa de rubi sobre minha cabeça.
Aperto os dedos em torno do desejo gelatinoso, esperando a minha deixa, ensaiando para
encontrar as palavras perfeitas na minha mente.
— Eu a coroo, Rainha Alyssa, a legítima herdeira da Corte Vermelha.
Morfeu acaba de colocar o pequeno círculo em minha cabeça quando a porta se abre. Guardas de
cartas e cavaleiros élficos enchem a sala, com as expressões severas e solenes. Dois elfos apontam
as espadas para Morfeu e o forçam a ficar de joelhos. Gossamer paira sobre a cabeça de um dos
cavaleiros e Morfeu levanta a cabeça e olha para ela.
— Você deu com a mágica língua nos dentes, não é, animal traiçoeiro? — pergunta, ele com
maldade.
Um pedido de desculpas brilha nos olhos cor de cobre de Gossamer. — A culpa o teria devorado
vivo — sua voz de campainha recita. — Tomar uma menina inocente e colocá-la em um mundo
estranho, longe dos amigos e da família. Tão cego pelo medo, você não conseguiu ver que estava
repetindo o que aconteceu com Alice. O senhor é o meu mestre mais amado... Não desejo vê-lo
fenecer de arrependimento. É melhor que encare seu destino com nobreza.
Morfeu sibila para ela. — Nobreza? Não foi algo nobre eu salvar sua vida? Agora você me
condena à morte! Eu devia ter deixado que fosse comida por aquele sapo com presas anos atrás. —
Os elfos apertam o cerco contra ele, e Gossamer abaixa a cabeça, envergonhada.
Os cavaleiros e guardas à minha volta abrem caminho para alguém que está entrando pela porta.
— O que está acontecen...? — Minha última palavra é cortada enquanto uma mulher vestida de
renda cor de marfim — a pele e o vestido cintilando como cristais de gelo — se adianta. Suas asas
brancas se arqueiam, altas e graciosas, como as de um cisne, completando o adorável contorno de
seu longo pescoço por baixo do cabelo prateado que chega até a cintura. Seu rosto é familiar por sua
beleza e solidão, e ela carrega a caixa de peltre que a aprisionava.
A Rainha de Marfim.
Como ela saiu? A Rainha Grenadine e o Rei Vermelho a libertaram?
Um olhar para as rosas na caixa e essa hipótese cai por água abaixo. As rosas eram brancas.
Agora são da cor de...
Sangue.
A Marfim aproxima-se, ficando bem perto de onde Morfeu está ajoelhado.
— Você me seduziu — acusa ela, com voz rascante. Apesar da amarga frieza que emana de seus
olhos branco-azulados, lágrimas rolam por seu rosto.
— Recobrou suas lembranças, estou vendo — comenta Morfeu, arrogante mesmo diante das
espadas apontadas para ele.
— E também minha coroa. — Ela toca a tiara cintilante de diamantes em sua cabeça. — Você usou
palavras tão bonitas. — Ela soluça. — Todas as noites que passamos juntos. Você me fez pensar que
gostava de mim... Usou a minha afeição para me aprisionar naquela caixa. — Seus delicados dedos
enxugam o líquido do rosto. — E depois culpou o Rei Vermelho e colocou minha corte contra ele,
tudo para poder fechar meu portal e segurar a jovem princesa aqui até ela completar seu plano! Você
já contou a ela toda a verdade? O que você pretendia tirar dela?
Olho para Morfeu. A culpa em seu rosto me enoja. — Ele me disse que eu poderia ir embora
depois de ser coroada rainha. — Atiro a estátua da lagarta aos seus pés. — O que você está
escondendo?
Morfeu olha para a peça de xadrez perto de seu joelho. — Nada. Para expiar todos os erros
cometidos com ela, eu queria ver a herdeira de sangue da Rainha Vermelha coroada como regente da
Corte Vermelha.
Uma rainha em trajes cor de rubi, com fitas nos dedos dos pés e das mãos que combinam com seu
cabelo cor de fogo e com seu rei e guardas ladeando-a, avança. É a Rainha Grenadine. — Há mais...
A fada nos contou... — Ela leva a mão adornada com fitas ao ouvido, escutando os sussurros. —
Sim... havia outra estipulação para a sua maldição, sabe? Uma que a trancará para sempre neste
lugar.
— Ele nunca pretendeu deixá-la partir — me conta Marfim.
Aperto a lágrima cristalizada nas mãos. Se for verdade, então por que a charada com o desejo?
— A sua corrida desvairada pela liberdade — diz a Marfim, com a atenção voltada novamente
para Morfeu — custou a vida de um nobre homem mortal e você traiu as duas cortes. Serão tomadas
providências contra a sua heresia.
As palavras homem mortal gelam meu coração. Volto-me para a caixa linguardarte e as rosas
tingidas de sangue. Meu peito fica apertado com uma intuição terrível. — Onde está Jeb?
A Rainha de Marfim abre a tampa da caixa, com a compaixão suavizando sua expressão.
Meu estômago se revolve antes mesmo de eu ver o cabelo castanho em meio à água negra, antes de
ele se virar e revelar-me um rosto tão familiar que deixa minha alma desnuda.
20
Sacrifícios
— Jeb... não, não, não. — Rios de lágrimas quentes queimam minha face.
Ele parece confuso ao me observar de dentro da caixa linguardarte; em seguida, um lampejo de
percepção ilumina seus olhos. — Al. — Seus lábios pronunciam meu nome em uma explosão de
bolhas. As palavras mudas me cortam ao meio. Eu devia ser sua corda de segurança... Como pude
deixar isso acontecer?
— Ah, seu idiota! — grita Morfeu para Jeb. — Você tinha que bancar o herói, não é?
— O culpado pelo estado dele é você. — O Rei Vermelho adianta-se para falar. — Suas ações
forçaram este jovem terreno a fazer uma escolha... Uma escolha irreversível.
— Quem é você para falar em culpa? — retruca Morfeu de pronto, arrogante como sempre. Um
cavaleiro o golpeia na cabeça com a mão enluvada.
A culpa escava tão fundo dentro de mim que quase me curvo de dor. Beijei outro homem, e Jeb
deu seu sangue por mim. — Isso não pode estar acontecendo — digo à Marfim, secando as lágrimas.
A expressão dela se enternece. — Sinto muito. Minha corte nunca teria dado ouvidos às alegações
de que armaram um golpe para incriminar o Rei Vermelho. Eles só acreditariam na sua própria
rainha. Morfeu planejava me libertar, mas somente depois que conseguisse prendê-la aqui. Gossamer
contou tudo ao seu jovem mortal e ele se ofereceu para tomar meu lugar para que eu pudesse impedir
Morfeu de completar seu plano. Ele não suportou a ideia de vê-la trancada em nosso mundo para
sempre.
— Mas agora é ele que está — murmuro. Jeb me observa através do líquido. A dor me apunhala o
coração — como se o órgão estivesse sendo comido por aves de rapina.
Um oceano vermelho de laços de amor, e pinte os corações das rosas... Foi o amor de Jeb por
mim que abriu a caixa. O mesmo amor que é tão vivo em seus olhos, transpassa as barreiras entre nós
— atravessando a água escura e o vidro para lembrar-me de sua fé: “Você é a melhor amiga que eu
já tive. Mesmo que as coisas não deem certo, você encontrará uma maneira de me ajudar.”
Ele tem razão. Não vai terminar assim. Não permitirei.
A conta transparente cintila em minha mão. Meu desejo não pode ser usado diretamente para ele,
mas ainda pode salvá-lo.
Por entre minhas lágrimas, cravo os olhos em Morfeu. — Você me disse uma vez que, se eu o
ajudasse, estaria ajudando a mim mesma. Que consertar as coisas no País das Maravilhas libertaria a
mim e minha família para sempre.
Ele cutuca a estátua da lagarta com um dedo. Ela rodopia no chão de mármore. — Você nunca
ouviu aquele ditado “A verdade o libertará?”. Eu lhe dei isso. Um lampejo de quem você realmente
é.
Morfeu não se importa que eu não possa ouvir a voz de Jeb. Que eu não possa tocar sua pele. Ele
não se importa que Jeb esteja com muito medo de perder o controle de sua vida, mas ainda assim ele
abdicou de todo o controle só para me salvar.
O pior é que logo, logo, Jeb não se lembrará mais de mim. Ele não lembrará nem de si mesmo.
Morfeu não se importa com nada disso. Ele só quer cumprir o desafio da Língua dos Mortos da
Rainha Vermelha.
Eu me inclino à altura do seu ouvido. — Se eu pudesse, faria com que você tomasse o lugar dele.
Morfeu tensiona o queixo. — A magia é definitiva. Seu cavaleiro mortal sabia disso. Uma troca
de almas a porta fechará, e para todo o sempre o sangue a selará.
Cada músculo de meu corpo se reprime, me impedindo que eu o ataque. Em vez disso, toco as
rosas manchadas de vermelho. — Eu poderia juntar-me a ele. O desejo pode ser usado para colocar-
me lá dentro.
— Não permitirei! — Morfeu tenta se levantar, mas os cavaleiros colocam as pontas de suas
espadas em seu esterno.
— Será um desejo desperdiçado. — Gossamer se ilumina em meu ombro. — A caixa só pode
abrigar uma alma de cada vez. Ademais, o portal nunca mais se abrirá. Nem para sair, nem para
entrar.
Jeb pronuncia as palavras: — Vá para casa.
O arrependimento se agarra a mim, por cima de um ódio avassalador. Ele não tinha o direito de
fazer esse sacrifício. Não tinha o direito de abdicar de sua vida por mim. Não tinha o direito de me
deixar aqui sozinha.
Tateio o vidro diante de seu rosto, memorizando cada traço. Se eu tivesse desejado nunca termos
vindo, nenhum de nós estaria aqui para isso acontecer.
Morfeu luta com seus captores, ainda de joelhos, lembrando-me do motivo pelo qual vim aqui. Se
eu colocar tudo de volta onde estava, ele também ficará livre novamente. Livre para atormentar
minha família até que alguém o impeça de uma vez por todas.
Só há uma solução, e ela se torna clara como o céu azul em que Jeb e eu voamos para atravessar o
abismo em nossas pranchas flutuantes.
Beijo o vidro frio e duro que nos separa, lembrando-me dos lábios dele como estavam no
Corredor dos Espelhos. Macios, quentes, generosos e vivos. Aqueles primeiros beijos serão nossos
últimos.
— O que você renunciou por mim — digo-lhe. — Tudo que você fez enquanto estivemos aqui foi
incrível. Se eu voltar para casa, passarei a vida pensando em você.
A boca de Jeb se escancara. Ele balança a cabeça, forçando as bolhas a se agitarem em torno dele.
Seu cabelo rodopia feito musgo negro flutuando na água.
— Não, Alyssa! — Os gritos de Morfeu saem em estranha sincronia com os gritos mudos de Jeb.
Mas é tarde demais. Já apertei a lágrima e o líquido escorre por meu pulso, quente e com o perfume
de salmoura e da saudade.
Em minha mente, invoco o mais profundo desejo do meu coração: que eu nunca tivesse atendido a
porta para Jeb na noite do baile de formatura e que eu tivesse atravessado o espelho sozinha.
Atrás de meus olhos fechados, um relógio de bolso gigante rodopia, seus ponteiros girando no
sentido anti-horário. Tudo acontece de trás para a frente: minhas asas mergulham de volta na pele;
nossa viagem sobre os mariscos que nos ajudaram a atravessar o tabuleiro de xadrez, que termina em
um platô de areia; surfando para cima em vez de para baixo e pulando para trás na mesa da Lebre
Careca, cara a cara com as estátuas geladas; os beijos no corredor espelhado, todos eles retirados —
guardados em algum lapso de tempo para não serem lembrados por ninguém além de mim; vejo o mar
voltando a encher, nós dois pulando no barco a remo e depois o octobenus voltando para a água
enquanto voltamos a adormecer para acordarmos nas praias de areias brancas; eu sendo carregada no
ombro de Jeb enquanto ele caminha para trás, encolhendo para ficar do meu tamanho enquanto
lutamos com as flores, depois recuamos para a pequena porta. Entramos na toca do coelho, subimos,
subimos, subimos e encontramos a luz do sol. Até que, por fim, Jeb desaparece e volto a cair na toca
do coelho — eu e mais ninguém.
Meus pulmões arquejam, pois fui arrastada por baixo d’água. Abro os olhos.
Todas as lembranças permanecem e tudo está igual: Morfeu parado no lugar sob as espadas dos
cavaleiros; as rainhas, lado a lado; os guardas olhando ansiosos; e Gossamer em meu ombro.
O pior de tudo... a caixa linguardarte. As rosas ainda estão vermelhas. A Marfim segura o cubo de
peltre. Estou prestes a gritar, porque o desejo não funcionou e eu fracassei.
As lágrimas nos olhos da Rainha Grenadine me detêm.
Chego mais perto da caixa. Do outro lado da tampa aberta, o Rei Vermelho olha fixamente através
da água escura. Sem Jeb aqui para se sacrificar, o rei usou seu amor por Grenadine para trocar de
lugar com a Marfim, salvando os dois reinos. Talvez de alguma maneira isso o redima por ter partido
o coração de minha tataravó tantos anos atrás.
Me pergunto se alguém se recorda de Jeb. A confusão em seus olhos me diz que não. Mas aposto
que Morfeu, sim. Ele sempre foi capaz de penetrar em minha mente.
— Que escolha insensata — diz ele, confirmando minha suspeita. — Sendo a mártir, nunca mais
verá sua família. Como acha que a frágil mamãezinha se sentirá?
— Ah, eu os verei — respondo. — A maldição de minha família nunca foi do feitio dos
intraterrenos. A maldição era você. Hoje, estou quebrando você. Agora sou rainha. Os portais estão
abertos para mim. Então, voltarei para casa e minha família finalmente ficará livre.
Ele olha para seus sapatos, as joias piscando em tons de preto e azul, como um machucado. — Que
lindos delírios, queridinha. Lindos para um conto de fadas. — Uma rouquidão arranha sua voz,
tingindo-a de remorso.
Cansada de seus jogos mentais, começo a erguer a coroa de Grenadine.
Meus dedos ficam presos na base dos rubis, incapazes de se mexer. Por baixo do grampo de
cabelo da Rainha Vermelha, meu couro cabeludo queima. Gavinhas incandescentes descem do meu
crânio e penetram na minha espinha, grudando meu corpo inteiro no lugar.
A sensação migra para meus braços, incendiando minhas veias. Elas têm um brilho verde, como no
jardim dos espíritos, brotando em heras. A mesma sensação me sobe pelas pernas debaixo da saia
ampla. Aqui, as trepadeiras não entram na minha pele. Elas crescem, se expandem com a minha
respiração — me transformo em uma planta viva que respira.
Grito quando as trepadeiras atacam, feito serpentes folhosas, expulsando Gossamer de meu ombro
e chicoteando todos à minha volta.
— O que está acontecendo? — Grenadine geme, todas as fitas de seus dedos cochichando ao
mesmo tempo.
— O sacrifício de seu marido foi em vão! — grita a Marfim. — O espírito da Vermelha estava no
grampo de cabelo... Ela está unida a esta menina... Elas são apenas um ser?
Os cavaleiros e guardas, temendo por sua rainha, viram suas armas contra mim.
Morfeu usa essa distração para fechar as asas sobre o peito, derrubando os cavaleiros que ainda o
encurralavam. Com uma virada de calcanhar, ele faz uma manobra por trás da Marfim e a pega pela
cintura, levando a espada vorpal ao seu pescoço. — Afastem-se da Rainha Alyssa ou cortarei a
Marfim ao meio e acordarei o bandersnatch para um lanchinho.
Todos ficam parados. Até Gossamer estanca em pleno ar. Quero correr para a porta, mas não
consigo me mexer. A Rainha Vermelha está lutando para controlar meu corpo, e preciso de toda a
concentração e força para contê-la.
— Todos vocês — Morfeu faz um sinal para a porta —, saiam. Isso é entre nós três. Ou nós
quatro, se contarmos a rainha que você esfaqueou pelas costas uma vida atrás.
Gossamer é a primeira a sair, com os ombros verdes caídos. Grenadine pega a caixa linguardarte
da Marfim e anda para trás na direção da entrada junto com os guardas, quase tropeçando em alguns
soldados mortos ao sair. Os cavaleiros élficos ficam a postos, aguardando um comando da Marfim.
— Não me teste. — Morfeu abre as asas bem alto e pressiona a lâmina sobre a jugular dela até a
pele enrugar.
— Vão — comanda ela, com voz estridente.
Uma onda de frustração invade os cavaleiros, que recuam com as espadas abaixadas. Mas a
emoção só pode ser sentida, não vista; seus rostos permanecem impassíveis. A porta se fecha atrás
deles.
Arrastando a Marfim consigo, Morfeu tranca a porta com uma barra de ferro e depois se volta para
mim, estreitando os olhos para a coroa em minha cabeça. — Minha parte está feita, bruxa malvada.
Agora estou livre de você.
— Muito bem... — A resposta da Vermelha ressoa pela minha cabeça e força sua saída de minha
boca em uma lufada de ar. — Mas eu ampliei minhas expectativas. Por ter ficado presa tanto
tempo, mereço uma retribuição. Aproxime sua prisioneira. Quero a magia de sua coroa também.
Faça-o, e lhe oferecerei um lugar ao meu lado como rei, governando todo o País das Maravilhas.
A Marfim se debate, mas Morfeu mantém a espada firme em sua garganta. Enfrentando meu olhar,
ele faz uma cara triste. — Por que não me ouviu? — pergunta ele, com a voz embargada. — O desejo
que eu lhe dei... Se você o tivesse usado como instruí... Teria se poupado deste fim. Meu desafio era
para você sentar no trono com a Vermelha possuindo seu corpo. Tentei lhe oferecer uma saída.
Se a rainha não estivesse me sustentando, eu desmaiaria. Meu destino é ser um veículo — só
metade de mim mesma — amarrado ao País das Maravilhas para toda a eternidade? Quero dizer a
ele mais uma vez que o odeio, para ser sincera desta vez. Quero cuspir nele e gritar que ele é um
covarde no pior sentido da palavra, por me sacrificar para salvar sua alma imprestável.
Mas desvio o olhar, usando aquela tática que funcionou tão bem antes, para poder dobrá-lo.
Porque ele é o único que tem o poder de me salvar.
— Por favor, você tem que entender. — Sua voz assume aquela qualidade de súplica, e meu
coração, a única parte do meu corpo que nunca deixarei a Vermelha tomar, retoma sua batida,
esperançoso. — Eu não sou covarde. — Ele tenta me convencer, como se eu já o tivesse acusado de
ser. — Não foi o medo da morte que me moveu... Foi a prisão. Como você, meu espírito não pode
ser contido. Preciso ser livre. Você compreende, não?
Abstenho-me de responder, contraindo-me devido ao esforço de lutar contra a Vermelha.
— Quer andar logo e vir aqui, seu idiota? Preciso do poder extra da coroa da Marfim para
vencer esta menina. Esta aqui é muito poderosa. — Há um tom de orgulho nessa afirmação, que só
alimenta minha decisão de derrotá-la. Tenho que deixar de lado os laços de família. Não pertenço a
ela e ela não tem o direito de se orgulhar de mim.
Morfeu adianta-se alguns metros com sua refém. A Vermelha lança um ramo como uma serpente dá
seu bote. Ele derruba a coroa da cabeça da Marfim; ela grita e desmaia.
Amortecendo sua queda, Morfeu a deita num canto, com o pé prendendo a coroa incrustada de
diamantes. A corda de trepadeira da Vermelha tenta se aproximar, mas não consegue se mover sem
que eu dê um passo à frente. E eu me recuso.
A Vermelha manipula a conexão entre seus ramos e minhas veias como cordas de marionetes. Luto
contra a dor dilacerante, a mandíbula quase quebrando de tanto cerrar os dentes. Mesmo assim, não
cedo.
— Poderia ser tão perfeito! — Morfeu quase grita as palavras, concentrado somente em mim. —
Seu pretendente mortal já esqueceu esta viagem. Mas eu e você compartilhamos lembranças de uma
infância que eu nunca esquecerei. Você é a dona do meu coração. Somos o par perfeito em todos os
sentidos. Eu teria ficado ao seu lado assim que baníssemos a Rainha Vermelha, nunca deixando que
você governasse sozinha. Poderíamos ter dançado todas as noites nas estrelas no céu de seu reino.
Por você, eu teria abdicado de minha vida solitária... Teria sido seu lacaio leal e a adorado
eternamente.
A Vermelha força o meu rosto na direção dele, mas mantenho os olhos no chão.
— Eu deveria transformá-lo em meu tamborete depois de tal admissão de heresia. Mas dar-lhe-
ei uma última chance. Traga a coroa se deseja alguma parte da menina. Estou compartilhando
metade da mente dela. Posso oferecer seu corpo, forçá-la a render-se aos seus desejos. Use-a à
sua vontade. Case com ela, durma com ela. Seja seu marido. Mas dê-me a coroa da Marfim.
Com os sapatos, ele arrasta o aro coberto de joias no chão na direção dela. Repensando, Morfeu o
puxa de volta, afastando-o do alcance dela.
Uma centelha de esperança se acende em mim, até que levanto os olhos. Ele está concentrado,
analisando seriamente a proposta.
Ela não pode fazer isso, pode? Forçar meu corpo a cumprir sua vontade? Como se estivesse
respondendo, meu cabelo escapa de vários grampos e se agita à minha volta, os fios não mais loiros
platinados, mas vermelho-fogo. Eles se estendem na direção de Morfeu, incitando-o feito braços
abertos.
— Você a quer para si?
— Muito... — A voz dele irrompe.
— Então faça como eu mando. Ela será sua fisicamente, e depois o coração e a alma virão a seu
tempo. Com romance, você pode conquistar suas graças. Terá a eternidade para ganhá-la.
A expressão no rosto de Morfeu está dividida entre o desejo e uma luta pela honra. As pedras
preciosas que decoram seus olhos faíscam nas cores rosa e roxa. — A eternidade para ganhá-la. —
Ele está quase em transe. Então, Morfeu se agacha para levantar a coroa, mas hesita.
— Ora, pelo amor de Fennine! Se é fraco demais para entregá-la, simplesmente vá embora. A
menina permanece forte só porque você está lhe dando esperança. Saia e eu a superarei. E
pegarei a coroa para mim.
Morfeu fica ali parado, lança um último olhar prolongado para mim e começa a caminhar na
direção da porta.
Um grito irrompe de minha garganta, ao recuperar minha voz. — É isso? Você conseguiu o que
queria e agora vai virar as costas para mim como fez com Alice? Vai me deixar nesta gaiola de hera?
Por que não? Não pode ser pior do que viver em uma camisa de força, e você já forçou muitas
mulheres a usarem uma.
Ele para no meio do caminho.
— Não dê ouvidos a ela! Ela será sua para admirar e estimar dentro em pouco. Poderá secar
seu pranto, fazer de toda essa dor uma lembrança distante.
Como se estivesse em câmera lenta, ele recomeça a andar, os ombros largos tensos e as asas
caídas.
— Você fez um voto! — berro, lutando pelo controle de minha mente. — De não partir meu
coração novamente! Você vai perder tudo!
Morfeu se detém na soleira, de costas e cabeça baixa. — Eu daria todos os meus poderes para tê-
la em meus braços. Seu amor é a única magia de que preciso.
A Vermelha me força a dar um passo à frente... E mais um.
— Serei um cadáver na sua cama! — Tento tocá-lo mais uma vez. — Você está matando tudo que
faz de mim o que sou. A menina que você ensinou, sua parceira... A pessoa que você alega amar vai
desaparecer, e uma marionete ocupará seu lugar.
As veias folhosas nas minhas pernas me puxam para mais um passo indesejado, como se fizessem
uma demonstração.
No momento em que Morfeu estende a mão para tirar a barra de ferro da porta, a Vermelha estica
os ramos e alcança a coroa.
— Adeus, Alyssa — enuncia a minha última esperança, com as asas murchas de resignação. —
Receio que nenhum de nós seja forte o bastante para derrotá-la.
— Isso é o que vamos ver, Morfeu — retruco e volto minha atenção para as trepadeiras que me
paralisam.
Estou cansada de deixar que todo mundo fique ditando o que acontece com a minha vida. Prefiro
morrer a ser um eterno peão.
Ao empregar o que resta de minhas forças, tento agarrar os ramos que arrastam a coroa na minha
direção. Despencando sobre os joelhos, puxo a hera, mantendo-a retesada onde ela se une à minha
pele. O grito da Rainha Vermelha atordoa minha mente. Ela larga a coroa para se concentrar em mim.
Sua hera se enrosca em minhas mãos e dedos até cobri-los com uma luva de folhas. Ela força meus
braços a se juntarem, amarrando-os, e em seguida fazendo o mesmo com minhas pernas e torso,
deixando-me incapacitada, como as flores fizeram no início de minha jornada, só que a dor é
incomparável. Qualquer resistência a esses grilhões faz cada osso do meu corpo parecer que vai
quebrar.
A única maneira de acabar com a dor é soltar o corpo... Desistir. Ela venceu. Estou acabada...
Fecho os olhos e lamento.
Penso em Jeb, em Jenara, em mamãe e papai — todos tendo que viver sem mim. O pensamento me
trespassa o coração com uma dor mais aguda do que qualquer outra que eu tenha sentido. Por isso,
sinto-me contente. A intensidade da emoção prova que ainda estou viva... Que sou um indivíduo. Que
sou eu.
A Vermelha detém meu corpo, mas ainda não controla meu coração nem minha mente. E é aí que
reside a magia.
Três corpos de cavaleiros élficos encontram-se a alguns metros. O braço de um está arrancado, o
pescoço de outro está quebrado e a perna de um terceiro está torcida, tudo fruto de seu confronto com
o bandersnatch. Eles podem estar fora de combate, mas eu ainda posso usá-los.
Concentrando-me em seus corpos, imagino-os vivos: seus cérebros se tornam computadores
ligados aos meus pensamentos; seus corações feitos de betume pulsam coordenados ao meu; suas
pernas e braços são flexíveis como limpadores de cachimbo, movendo-se ao meu comando.
Trôpegos e desajeitados, eles se levantam. Mancando e balançando, os cavaleiros se arrastam na
minha direção. Seus dedos agarram os ramos e lutam contra a Rainha Vermelha.
Meu casulo de hera se desenrola, rodopiando-me no chão. Os ramos se retesam em meus
tornozelos, pulsos e mãos, onde eles se uniram ao meu corpo. Os cavaleiros continuam a atacar com
todo o seu peso e os ramos rasgam minha pele ao saírem, como fios elétricos sendo puxados de uma
parede de gesso. Uma dor aguda me dilacera — uma lâmina giratória que remói meus órgãos.
Ensaio um grito e me sufoco no gosto de sangue, perdendo o controle de minhas marionetes
macabras. Eles murcham, quase soltando os ramos. Motivada pelo desejo de me libertar, comando
que os cavaleiros invistam com mais força.
Rios rubros jorram de minhas feridas e formam poças no chão. Cerro os dentes, usando a aflição
de meu corpo para me mover, para dar a minhas criações força para lutar até terem arrancado a
Vermelha, até que ela esteja ligada somente à ponta de meus dedos por um fio de hera.
Desmorono, e meu trio de cavaleiros se amontoa em uma pilha, inanimados e mortos novamente.
Estou tão fraca que quase não percebo que Morfeu está ao meu lado. Com a espada vorpal nas
mãos, ele corta os talos folhosos que saem de meus dedos e em seguida remove os ramos. Mais um
guincho cortante sacode meu crânio quando Morfeu puxa a coroa e o grampo para me desligar
completamente de minha titereira.
Sem um corpo para habitar, o espírito da Vermelha murcha na hera jogada, morrendo feito uma
massa de enguias fora da água.
Morfeu guarda a espada vorpal em seu casaco. Desabo em posição fetal, esgotada de sangue e
energia. Meus pulsos e tornozelos têm cortes abertos, mil vezes piores do que as feridas que
cortaram minhas mãos quando criança. Me pergunto se estou morrendo...
Uma névoa negra apaga tudo à minha volta.
— Bravo, menina teimosa — sussurra Morfeu em meu ouvido ao me aninhar docemente em seus
braços, levantando meu corpo. — Só você podia se libertar da possessão dela e conquistar a coroa.
Eu sabia que você venceria. Você só precisava de um empurrão para ficar com raiva. E quem melhor
do que eu para deixá-la no limite da fúria?
— Mentiroso — murmuro, nadando em náusea e cuspindo sangue. Meus braços e pernas parecem
pesados, e um fluxo pegajoso jorra das aberturas em minha pele. — Você me abandonou.
— Mas ainda estou aqui, não estou? — Morfeu me leva até a Marfim e mostra a marca de
nascença dela, juntando-a à minha. Um calor invade meu corpo. — Sempre acreditei no seu poder.
Na rainha que eu vi ainda criança... Na mulher que você nunca viu em si mesma. Minha fé é tão
imutável quanto minha idade.
— Não acredito em você — murmuro, semiconsciente. Minhas veias voltam a se encher, curando
minha pele. As lacerações agonizantes tanto dentro quanto fora do meu corpo param de doer.
Ele afaga meu cabelo. — É claro que não. Eu não lhe dei razões para acreditar.
Escancaro os olhos ao ouvir um rugido vindo do cercado do bandersnatch. As dobradiças do
portão estouram, o cadeado é amassado e o monstro surge atrás de Morfeu, com as heras da Rainha
Vermelha iluminando suas veias. Ela encontrou outro corpo para habitar...
— Morfeu!
Ele pula na direção do monstro para me defender. Duas línguas e um laço de trepadeiras enredam
seu pescoço, apertando-o até ele ficar sem ar. Seu chapéu cai.
Ainda fraca, esforço-me para ficar de pé. — Revide!
Mas tudo acaba antes que eu termine de falar.
Morfeu leva as mãos à garganta. — É melhor eu provar do meu remédio, querida — diz ele,
engasgado. — Se você tenta passar a perna na magia, há sempre um preço a pagar.
A criatura o engole inteiro. Suas asas entram por último — um lampejo negro de beleza.
Bandersnatch está prestes a me atacar, mas cai no chão e fica rolando, lutando contra si mesmo.
Morfeu ainda me defende de dentro dele.
Quando a criatura se levanta novamente, vai se chocar contra a parede mais próxima. Batendo seu
corpo enorme contra a pedra até ela desmoronar e se abrir, o monstro se liberta das correntes e pula
pelo buraco, fugindo para as florestas do País das Maravilhas.
Fico sentada olhando para a gigantesca fenda na parede do castelo — meu vestido armado
envolvendo minha cintura feito um globo de veludo — pelo que parece uma eternidade. Ao inspirar o
ar da noite, percebo que não se passaram mais de alguns segundos.
Os duendes chegam para recolher os mortos. Eles surgem a distância, as luzes de mineiro
sacudindo na escuridão, e depois entram escalando as ruínas de pedras e se lançam ao trabalho.
Apresso-me a recolher a pequenina estátua da lagarta do chão e a guardo no corpete do meu
vestido. Paro para olhar para o chapéu fedora de Morfeu, e uma pontada de remorso me pinça o
coração.
Arrasto-me até a Marfim e dou tapinhas em seu rosto para acordá-la para que ela não seja tomada
como morta.
A brigada de duendes passa por nós, cheirando tudo. — Não cheiram mortassss. Em frente vamos.
Enquanto eles recolhem os corpos, Marfim e eu ajudamos uma à outra a ficar de pé. Eu lhe conto
tudo o que aconteceu enquanto ela estava inconsciente.
Sinto-me entorpecida... Minhas emoções foram tão exigidas que é como se eu estivesse
anestesiada. — Não faz sentido — sussurro, com a mão no peito onde a estátua, fria e sem vida,
pressiona meu coração. — Morfeu derrotou a Língua dos Mortos da Vermelha, depois entregou-se ao
bandersnatch, o mesmo destino do qual ele estava fugindo...
— Para salvar você. — A Marfim completa meu pensamento. — Parece que ele era mesmo capaz
de um amor desapegado, afinal. Só que não era por mim.
Esfrego as lágrimas e o sangue que secou no meu rosto, arrasada com a destruição que nos cerca.
— Vim para consertar as coisas. Em vez disso, acabei estragando tudo.
A Marfim arruma meu vestido e minhas asas. Seus olhos demonstram bondade quando ela pega
alguns fios de meu cabelo solto, observando a cor vermelho-fogo. — Às vezes uma chama deve
nivelar uma floresta às cinzas antes que algo novo possa crescer. Acredito que o País das Maravilhas
precisava de uma limpeza.
Olho para minhas roupas esfarrapadas e sujas de sangue. — E agora?
Ela coloca a coroa de rubis em minha cabeça e reposiciona a sua. — Você é a legítima herdeira da
Corte Vermelha. Passou em todos os testes e recebeu a coroa. O decreto de sua própria corte exige
que Grenadine abdique. Qualquer comando que você der aos seus súditos agora, eles o tomarão
como lei.
— Qualquer coisa? — pergunto.
Ela faz um sinal afirmativo com a cabeça e a porta se abre com a ajuda de aríete. As duas cortes
entram pelo corredor externo. Até os mariscos e as flores zumbis conseguiram entrar pelo buraco na
parede.
Logo, estou cercada por uma comemoração de criaturas aladas e ardilosas, e devo decidir meu
próprio destino pela primeira vez na minha vida.
— O que será então, Rainha Alyssa? — pergunta a Marfim.
Eu me agacho para pegar o chapéu de Morfeu e o coloco em minha cabeça, sobre a coroa,
inclinando-o um pouco. — Vamos festejar.
21
Pendências
No reino dos humanos, um chá da tarde seria mais apropriado para as negociações de paz entre dois
reinos, mas, ao observar meu amigo furão albino bater e dominar o pato assado e ver todos os meus
convidados atacarem o risonho prato principal, atrás de sua suculenta e perfumada carne, sei que fiz
a escolha certa.
O riso insano, os lábios que estalam e a conversa nem um pouco civilizada fornecem um pano de
fundo reconfortante enquanto ajusto a situação com meus novos amigos da realeza. Ocupo a
cabeceira da mesa, com a Marfim à minha direita e Grenadine à esquerda, e apanho uma garrafa
flutuante de vinho enviada na minha direção pelos intraterrenos de cabeça lanosa à outra ponta da
mesa. Sirvo-me um copo, brindo com eles e tomo um longo gole. O sabor de frutas vermelhas e
ameixas me desce pela garganta, espesso e doce como mel.
Papai não aprovaria, embora este não seja nada parecido com o vinho de casa. Só sei que preciso
de algo para aquecer o frio no peito que me atinge cada vez que vejo o chapéu de Morfeu no braço da
cadeira — as mariposas vermelhas flutuando com o movimento à minha volta.
As fadas de Morfeu compartilham do meu pesar. Elas balançam e voam em zigue-zague sobre a
mesa como abelhas sem colmeia, inquietas. Gossamer está empoleirada no lustre acima de nós,
murcha, chorando, inconsolável.
Rábido Branco entretém Grenadine com uma piada enquanto passa uma travessa de biscoitos do
raio lunar. As fitas em seus dedos que a lembravam do paradeiro do rei e da traição do esquelético
intraterreno desapareceram misteriosamente assim que sentamos para comer. Enfiei as fitas
vermelhas debaixo da perna para destruí-las depois.
Rábido fez um juramento de lealdade a mim e a quem quer que eu escolha para ocupar meu lugar
quando eu me for. Grenadine precisará de um conselheiro experiente, e não tenho motivos para
duvidar da devoção dele depois de tudo que ele fez para me ver coroada.
— Está mesmo certa de sua decisão? — me pergunta a Rainha de Marfim.
— Será melhor assim — respondo, tocando o colar em meu pescoço. Esta chave é minha e vou
guardá-la. Um rubi a adorna, em homenagem ao meu reino.
— Você precisa saber... — A Marfim ergue um doce cristalizado, chupando uma das pontas. —
Como você é mestiça, assumirá a forma do reino em que viver. Suas asas e manchas nos olhos
aparecem aqui, mas lá irão desaparecer em questão de horas. Seus poderes são eternos, mas se
tornarão latentes se não utilizados. Quanto mais você evitar lembrar de sua estada no reino interior,
mais humana se tornará.
Ao concordar num gesto com a cabeça, tomo mais um gole de vinho para acalmar a dor em meu
estômago. Aliso o vestido que Grenadine me deu depois que me limpei — vermelho de alcinhas com
ases, espadas, ouros e paus em negro aplicados logo acima da barra, na altura do joelho. A anágua
preta farfalha debaixo de minhas mãos. Ela me ofereceu botas, mas as solas de meus pés estão me
matando, então vim descalça.
Comparecer a um jantar político importante vestida pela metade. Eu não poderia fazer isso no
mundo humano.
Nunca pensei que me sentiria tão dividida em relação a voltar para casa. E nunca pensei que
poderia me sentir tão em casa neste lugar. — Quero experimentar tudo que Alice perdeu —
finalmente respondo à Marfim.
— Compreendo. Seu coração pertence ao reino humano por enquanto, onde se encontra o
cavaleiro do qual me falou. Ele parece muito corajoso e nobre. — Um ar sonhador passeia por seu
rosto.
Uma pontada de compaixão me toma. Ela sempre viveu tão isolada. Morfeu deve ter sido um
sonho que virou realidade. Mesmo que ela não consiga encontrar o homem certo, há outras maneiras
de aplacar o vazio, com amizades que ela pode fazer. Talvez ela só precise de um empurrão na
direção certa.
Olho para Grenadine, cuja boca brilha com raios lunares enquanto ela ri, alheia a nós. — Enquanto
eu estiver fora, você e Grenadine se verão uma vez por semana? Comerão juntas, jogarão croqué, o
que for. Sabe, para manter as relações exteriores equilibradas. Vocês podem se alternar na
hospedagem...
As feições lindas e frias da Marfim se aquecem com a ideia. — Naturalmente.
— E você pode levar as fadas para o seu castelo. Elas ficarão perdidas sem Morfeu.
A rainha sorri com tristeza. — Sim. Ficarão. Terei prazer em acolhê-las.
Nós duas paramos de falar, pois a conversa à nossa volta gira em torno do mau comportamento de
Morfeu durante toda a vida. Os convidados do jantar riem com desdém e sorriem depois de cada
episódio — um estratagema que claramente serve para encobrir sua dor.
Olho para meu prato.
A Marfim dá um tapinha em minha mão. — Ele sempre falava de você. Sua infância com você foi
sagrada para ele. Tão poucos de nós chegam a viver esse tipo de inocência.
Minhas asas pesam mais em minhas costas quando penso em nosso curto tempo juntos. As
lembranças que me esforcei tanto para recuperar agora me assombrarão para sempre.
Pensar no inevitável adeus a esses seres maravilhosamente excêntricos — e no adeus a uma parte
maravilhosa de mim mesma — me deixa ainda mais desolada. Mastigo uma coxa. O pato mutilado
deita e rola de rir em sua travessa, como se pudesse sentir minhas mordidas do outro lado da mesa.
— Precisamos discutir sua viagem de volta. — A Marfim coloca seu doce de lado. — O tempo é
sorrateiro quando se volta pelo portal que liga os reinos. A menos que visualize uma hora específica,
o relógio anda ao contrário.
Então era isso que a flores queriam dizer quando falaram que o tempo anda para trás no País das
Maravilhas. — Quanto para trás?
— Ele a levará para o exato momento em que você o atravessou. Isso pode ser uma vantagem para
você. Se visualizar o seu quarto, pode criar a ilusão de nunca ter saído.
Ao limpar os lábios com um guardanapo, olho-a nos olhos. — Não. Tenho outro lugar em mente.
Tem uma coisa que preciso fazer antes de minhas asas desaparecerem, antes de recomeçar minha
vida.
De acordo com o funcionamento do portal, devo visualizar onde quero aterrissar, mas tem que ser um
recinto com um espelho grande o bastante para que eu o atravesse. A magia é mais rígida no reino
humano. Como os únicos três lugares que conheço bem na clínica são a recepção, o saguão e o
banheiro, aperto a pequenina chave na corrente em meu pescoço e escolho o mais óbvio.
Agachada, rastejo pelo portal e acabo ajoelhada em uma pia imaculada, com as mãos segurando as
bordas para me equilibrar. Quase colido com a enfermeira Jenkins, que estava inclinada vasculhando
seu estojo de maquiagem. Um lápis de sobrancelha cai no chão, tilintando. Ela cambaleia para trás e
cai com o traseiro no chão, ao lado do vaso sanitário, boquiaberta. Um pequeno som, algo entre uma
lamúria e um suspiro, emerge de sua garganta.
Talvez eu possa explicar a decoração em meus olhos e as asas dizendo que é uma fantasia, mas e
sair de um espelho? O melhor a fazer é sair e deixá-la convencer a si mesma de que anda trabalhando
demais. É improvável que ela me reconheça, afinal.
Enfio a chave em meu corpete e respiro fundo, com o cheiro de desinfetante me pinicando o nariz.
Minhas anáguas se enrugam quando pulo da pia. O piso frio recém-limpo encontra meus pés
descalços.
A caminho da porta, ouço a enfermeira Jenkins grasnar. Detenho-me. Ela ainda se encontra
esparramada no chão, em tal estado de choque que está praticamente babando. Uma seringa cheia
caiu de seu bolso, junto com suas chaves. Quase fico com pena dela, até ver o nome de Alison na
etiqueta da seringa.
Ajoelho-me ao seu lado e prendo as chaves entre os dedos. — Tenho que pegar isso aqui
emprestado.
A enfermeira me encara, perplexa.
Um sentimento de desforra toma conta de mim, e cedo ao meu lado malvado. — Sabe, você parece
um pouco alterada hoje. — Rolo a seringa para perto dela com os dedos do pé e me levanto. —
Talvez deva tomar alguma coisa para... dormir.
Dou um toque no chapéu fedora de Morfeu, viro-me para a porta e sacudo as asas para esticá-las.
Verificando se o corredor está vazio, saio, contendo um sorriso.
Os corredores estéreis que costumavam me intimidar não me assustam agora. Agacho-me nos
cantos e procuro as sombras, quase sendo pega uma ou duas vezes, mas, como somente o pessoal da
noite está aqui, logo me encontro no terceiro andar, onde ficam as celas acolchoadas — sozinha. Não
preciso tentar adivinhar em qual ela está. Pode ser intuição intraterrena, mas eu sei. Destranco a
fechadura, entro de fininho e fecho a porta.
Enrolada em um canto, Alison vira a cabeça raspada e aperta os olhos em minha direção. —
Allie? — Sua voz parece pequena e abafada.
Tiro o chapéu e o largo de lado. A luz tênue a faz parecer frágil e fraca. Meu coração encolhe.
Talvez Alison ainda esteja sedada demais para isso. Ela demonstra que estou errada ao se levantar,
apoiando-se na parede acolchoada, lutando com a camisa de força.
— A... asas? — Sua expressão denota compreensão. — Você encontrou a toca do coelho.
— Terminou, mamãe — sussurro, aproximando-me cuidadosamente dela pelo chão acolchoado.
Quando termino de abrir os fechos de velcro que mantêm seus braços amarrados, ela me puxa para
um abraço. Nos ajoelhamos, nos apertando com força.
— Mas você é como eles — soluça ela em meu pescoço. — A maldição...
— Não existe mais maldição — murmuro, roçando o rosto na penugem em sua cabeça. — Nunca
houve maldição. Tenho muita coisa para contar.
Acordo com o estômago roncando. O ruído ambiente me envolve e a luz do sol é filtrada pelas
cortinas. Ainda grogue, verifico o calendário na mesa de cabeceira. Sábado, 1º de junho. A manhã
depois do baile de formatura.
A hora perfeita. Quando usei o espelho do banheiro da clínica para voltar para casa, voltei no
tempo para mudar de roupa e passar algumas horas na cama. Embora eu não lembre de quase nada
depois que saí do meu espelho giratório.
Talvez porque eu não o tenha atravessado. Talvez eu nem tenha ido ao País das Maravilhas, para
começo de conversa. Talvez tudo aquilo tenha sido um sonho...
Em pânico, livro-me das cobertas e giro os pés para fora da cama. Alguma coisa cai no chão: a
lagarta de jade. Ela vai parar ao lado do chapéu de Morfeu.
Coloco a mão no pescoço e encontro o colar com a pequena chave.
O alívio desfaz os nós no meu estômago.
Pegando a estátua da lagarta, olho diretamente para o meu espelho — intacto e liso como cristal —
e encaro meu reflexo.
Lá está: a prova definitiva de que andei sobre uma onda de mariscos e capturei um mar em uma
esponja. A pele brilhante e os fios cor de fogo em meu cabelo platinado ainda estão lá. As tatuagens
em volta dos olhos sumiram, assim como as asas — embora, ao virar o braço, possa sentir a pele em
relevo nas omoplatas. Botões prontos para abrir, caso eu precise deles.
Dou meia-volta e olho para as enguias no aquário. A lembrança das línguas do bandersnatch me
faz tremer. Então, olho para meu violoncelo e reconto outra lembrança... A canção de Chessie,
deformada e estranha. Até olhar para a minha escrivaninha e para o mosaico de aranhas secas me
remete às incríveis constelações em espiral que vi durante a viagem no barco a remo.
Lembranças, reais e insubstituíveis, todas elas. As felizes, as amargas, as terríveis e as pungentes.
Dois homens dispostos a sacrificar suas vidas por mim.
Morfeu, que ficará aprisionado para sempre na barriga de um bandersnatch. E Jeb, que
provavelmente passou a noite de ontem em um hotel com Taelor depois do baile de formatura. É
possível que eles não tenham terminado nesta realidade. Como não atendi a porta quando Jeb
apareceu, ele não estava na minha casa no momento em que Taelor veio pegá-lo.
Corro para fora do quarto, esquecendo de vestir um robe por cima da camisola e calção de flanela.
Chego ao corredor meio pulando e meio correndo. Preciso ir até o vizinho, ver por mim mesma que
ele saiu da caixa linguardarte. Ver em que pé estão as coisas entre nós.
— Eeei, espera aí, Borboletinha. — Papai me pega quando minhas meias macias perdem tração e
eu escorrego pelo chão de madeira.
É tão bom ver o rosto dele novamente que rio para não chorar. — Tentando andar de skate sem
prancha. — Aponto para o chão escorregadio.
Ele me dá aquele seu sorriso à la Elvis. — Só tenha cuidado ou vai machucar o outro tornozelo
também.
Em me atiro contra seu peito, num abraço.
Um de seus braços me envolve, e ele segura o outro entre nós. — Ei... Você está bem?
Faço que sim, sem conseguir falar por causa da torrente de emoções. Deixo meu abraço dizer tudo
por mim. Senti saudade. Eu amo você. E me desculpe por brigar com você.
O braço que papai mantém entre nós se mexe. Ele está com o telefone sem fio contra seu esterno.
Me afasto.
Meu primeiro pensamento é Taelor. Ela descobriu que roubei o dinheiro. Talvez Perséfone tenha
encontrado a bolsa no lixo. Não consigo acreditar que eu não tenha pensado em usar os espelhos da
loja para colocar o dinheiro de volta antes de voltar para casa.
Errei ao roubar o dinheiro, para começar. Então suponho, como Morfeu disse antes de o
bandersnatch engoli-lo, que terei que provar do meu remédio. Terei que dizer a ela que fui eu que
roubei e esperar que ela não dê queixa.
Aperto a estátua da lagarta entre os dedos para me dar coragem. — Com quem está falando?
Papai pestaneja e leva o telefone ao ouvido. — Olá, querida. Quer dar bom dia para nossa filha?
— Ele estende o telefone.
Fico aliviada que não seja Taelor, mas franzo o rosto, numa expressão confusa. Tenho um papel a
desempenhar.
— Os pacientes da ala de Alison nunca podem usar o telefone — digo, fazendo minha voz tremer
para dar um efeito dramático.
Papai dá de ombros e sorri.
Coloco o telefone frio junto à orelha. — Alison?
— Está dando certo, Allie. — A voz dela soa forte e clara.
— É? — pergunto, ainda dissimulando surpresa.
— O papai vai te contar os detalhes. Venha me visitar mais tarde, está bem?
— Eles deram alguma coisa para você hoje?
— Não — responde ela. — Eu fiz o que nós combinamos. Estou deixando eles verem que sou sã.
Por alguma razão, eles acham que foram os sedativos que causaram meus delírios. Que ironia, não?
Sorrio. — É tão bom ouvir sua voz.
— A sua também. Quero ver você novamente, abraçá-la... Dizer o quanto estou orgulhosa. Eu amo
você... — A voz dela some.
Desato a chorar, e desta vez não estou fingindo. — Eu também te amo... Mamãe.
Fico lá com os pés plantados no chão. Papai solta o telefone com cuidado e se despede antes de
me conduzir para o sofá da sala.
— Ligaram da clínica hoje de manhã, ainda de madrugada. — Seus olhos ficam marejados,
emoldurados por um sorriso. — Fui visitá-la logo depois, enquanto você ainda estava dormindo. Ela
está lúcida... De verdade. Ela não está mais falando com nada além de pessoas. E ela comeu uma
omelete em um prato. Um prato, Allie! E tudo sem medicação. Os médicos estão em conferência...
Eles acham que talvez tenha sido uma reação aos remédios que exacerbou os sintomas todo esse
tempo. A coisa mais estranha é como eles chegaram a essa conclusão. Sabe a enfermeira Jenkins?
Faço um sinal afirmativo. Da última vez que a vi, ela estava roncando no chão do banheiro com um
sorriso elétrico no rosto e uma seringa vazia na mão. Parece que ela seguiu meu conselho.
— Bem, um empregado da manutenção a encontrou no banheiro bem tarde ontem à noite. Ela tinha
se aplicado o mesmo sedativo que estão dando para a sua mãe. Quando acordou, ficou falando sobre
fadas entrando pelos espelhos e roubando as chaves. Acontece que as chaves estavam lá, do lado
dela. O médico acha que tem alguma coisa errada com a marca de sedativo que eles estão usando...
Eles vão mandá-la para análise. — Ele suspira e ri ao mesmo tempo. — E pensar que todo esse
tempo podia ser o remédio que a fazia piorar. Fico tão feliz por termos descoberto isso antes de
começar o tratamento que estava programado para segunda-feira.
— Eu também. — Pego a mão dele e a coloco contra meu rosto.
— E aí? — Ele puxa um cacho vermelho do meu cabelo. — Aplique novo?
— É — respondo mecanicamente, sem nem me dar conta de que estou mentindo.
— Gostei. Bom, tem rosquinhas na mesa. Vou passar o dia inteiro na clínica. Você passa lá depois
do trabalho?
— Nada neste mundo me impedirá de ir — prometo.
De repente me dou conta de que papai não perguntou sobre sua poltrona. Olho para a cadeira,
esperando ver os apliques rasgados e retorcidos. Mas eles estão como sempre foram. O que não faz
nenhum sentido, porque essa era mais uma coisa que esqueci de consertar...
Papai sai pela porta da frente, e volta para trás. — Ah, dê uma olhada nas suas armadilhas.
Encontrei uma mariposa gigante em uma delas. Deve ter aparecido para se abrigar da tempestade de
ontem à noite. Vai ser uma grande contribuição para os seus mosaicos. Nunca vi uma tão grande.
Mariposa gigante... Um tijolo enfiado em minha garganta doeria menos do que essas palavras.
Largo a lagarta de jade sobre a mesa do café e tenho que me esforçar para esperar a caminhonete
de papai sair da garagem e ir embora.
Na garagem, abro três baldes antes de encontrá-lo, deitado sobre uma pilha de insetos variados. O
mau cheiro do granulado para gatos e da casca de banana fere meu nariz. Eu o retiro de lá — o corpo
azul cintilante e as asas de cetim negro inertes e sem vida.
De alguma maneira, ele escapou... Ele escapou da barriga do bandersnatch e voltou para cá, só
para ser sufocado por mim.
Aninhando-o, caminho entorpecida pela sala, fraquejando com uma sensação de culpa e perda. Eu
o coloco sobre a mesa do café ao lado da estatueta de seu sósia e cutuco as asas com o dedo trêmulo.
— O que você estava pensando? — murmuro. — Por que entrou pelo tubo? Você sabia. — Me dói
vê-lo, antes tão pomposo e cheio de vida, agora vazio como a estátua de lagarta. Afago seu frio
corpo azul. — Eu acredito em você agora, está bem? Eu acredito que você se importava. E não
esquecerei o que você fez por mim... No final.
Não deixarei que esqueça. A voz de Morfeu penetra em minha mente. Dou um pulo para trás
quando a mariposa começa a vibrar.
As asas se dobram e crescem, abrindo-se para revelar Morfeu avultando-se em cima da mesa, em
toda a sua estranha glória. Ele está usando um terno moderno de cetim safira que combina com suas
lágrimas de pedras preciosas. E, é claro, um espetacular e excêntrico chapéu.
Fico de pé, procurando controlar minha felicidade. Um sorriso surge contra minha vontade.
— Eu sabia que sentiria minha falta. — Ele pousa no chão e se aproxima, me prendendo contra a
parede com seu corpo.
— Como você escapou?
— Parece... — ele seca minhas lágrimas com sua manga — que o couro do bandersnatch é
indestrutível de fora para dentro. Não de dentro para fora.
Compreendo tudo. — Ah, meu Deus... você estava com a espada vorpal no casaco.
— De fato. — Ele lustra as unhas da mão na lapela. — Naturalmente, todas as outras vítimas
escaparam comigo. Agora me seguem por todo canto feito cãezinhos vagabundos. Eles mostraram ser
úteis. Consertando coisas. Mandei um deles devolver o dinheiro roubado e colocar a bolsa debaixo
do balcão da loja enquanto você dormia.
— Você... O quê?
Morfeu aponta para a poltrona atrás dele. — Depois, deixei vários deles encarregados de
remendar as margaridas na poltrona.
Uma onda de incredulidade e gratidão me invade. — Obrigada.
— Ah, mereço mais do que um agradecimento. — Seus olhos negros fervilham de sedução.
Cruzo os braços sobre o peito. — Sei! Você me deve pelo menos isso. Ficou assombrando a minha
cabeça quando eu era criança. Forçou minha mãe a largar a família e se internar em uma clínica para
me proteger. Depois, me atraiu para o País das Maravilhas para que eu consertasse tudo para você,
mas foi embora sem dar nada em troca.
Ao levantar uma mão, ele inclina o chapéu daquele jeito sexy. — Você me quer. Admita.
Mesmo que ele esteja parcialmente certo, nunca admitirei. — Por que eu deveria querer você?
Ele levanta três dedos para contar. — Misterioso. Rebelde. Problemático. Todas as qualidades
que as mulheres acham irresistíveis.
— Sempre otimista.
— Meu copo sempre está meio cheio.
— Pena que sua mente seja vazia. — As palavras ferem, mas meu sorriso afetuoso as suaviza.
Seu sorriso de resposta é desdenhoso, mas permeado de respeito. — Então... — Ele corre os
dedos pela corrente em meu pescoço, acendendo pequenas fagulhas em minha pele nua. — Você
deixou Grenadine cuidando da loja?
— Com o Rábido como seu conselheiro. Eu disse a todos que tinha assuntos pendentes aqui.
— Tais como?
— Família e amigos. O último ano da escola, formatura. Minha arte.
Morfeu levanta uma sobrancelha. — E seu cavaleiro?
Abaixo os olhos. — Neste momento, ele pertence a outra pessoa.
Morfeu roça a ponta do dedo em minha têmpora. — Por mais que me aqueça as entranhas ouvir
isso, não acredito. O sangue já venceu.
— Como assim?
— O jovem sangrou por você — sangue de um corpo inteiro. Não há amor maior do que esse. Ele
agora pertence só a você.
As palavras dele são surpreendentemente lindas e doces, e, em algum lugar de meu coração, sei
que ele está certo. Mas quanto tempo ainda terei que esperar para que Jeb tenha coragem de admitir
isso para si mesmo?
Morfeu toca as cicatrizes em minha mão. — Mas não esqueçamos que você sangrou por mim.
Então, a quem você pertence, Alyssa?
Essa lembrança evoca um emaranhado de emoções. Ele é profissional quando se trata de me
desequilibrar. — Escolhi o reino mortal.
— Está sendo evasiva.
— Aprendi com o mestre.
Ele dá risada; depois, seu olhar sujo de tinta me mede de cima a baixo. — Muito bem, então.
Brinque com seu soldadinho. Mas você é uma mulher agora, com o fogo do reino inferior correndo
em suas veias. Seu coração é selvagem e você já provou o gosto do poder. Um dia, vai querer voar
novamente. Fique tranquila, pois estarei aguardando. Entenda como quiser. — Suas asas se
precipitam sobre nós, envolvendo-me em um casulo negro e me puxando para ele.
Não estou certa se é a mulher que ele despertou ou a impetuosidade do País das Maravilhas que
floresce em minha alma, mas me rendo ao abraço. Sua boca quente roça meu nariz, deixando um quê
de alcaçuz. Preparo-me para empurrá-lo antes que ele possa provar de meus lábios — não trairei Jeb
novamente, mesmo que não estejamos juntos —, mas, em vez disso, Morfeu me beija a testa,
carinhoso, casto e gentil. Depois, me solta.
Um silêncio constrangedor se instaura entre nós. Tirando um par de luvas do bolso, ele as veste.
Sinto que o adeus está próximo. Minhas entranhas se retorcem numa mistura de emoções.
— Antes de partir — diz Morfeu, como se lesse minha mente —, você precisa saber. Quando
matei o bandersnatch, não vi sinal da Vermelha.
Meu coração parece parar. — Você acha que ela vai ficar por aí procurando por mim...
— É possível que ela tenha saído dele e definhado em algum lugar, sem ter outro corpo para
habitar. Mas, caso tenha encontrado alguém, os portais estão fortemente vigiados agora. Eu nunca
teria vindo até aqui se não fosse a consciência pesada de Gossamer. Ela e as outras fadinhas
distraíram os cavaleiros élficos para mim. Alertei as Irmãs Twid e eu mesmo ficarei de olho. Já
enfrentei a bruxa uma vez por você. Se necessário, o farei novamente.
Não tenho dúvida de que ele o faria. Coloco a palma da mão em seu peito. Seu coração bate
rápido contra minha pele. — Eu nunca teria adivinhado.
— Do que está falando? — pergunta ele, num sussurro rouco.
— Que você é um daqueles intraterrenos que têm uma rara propensão à bondade e à coragem.
— Tsc, tsc. — Ele pressiona a luva sobre minha mão. — Só quando há benefícios adicionais.
Sorrindo, fico nas pontas dos pés, agarro suas lapelas e beijo cada uma de suas joias até elas
mudarem para um fascinante púrpura escuro — a cor da fruta da paixão. Volto a pisar no chão. —
Tão lindas — sussurro, batendo o dedo em uma das pedras.
Morfeu pega minha mão e beija suas cicatrizes. — Não poderia estar mais de acordo.
Ficamos nos olhando, uma corda invisível amarrada com força entre nós — um laço estreitado.
A campainha toca, me assustando. Olho rapidamente para o relógio da cozinha a caminho da porta.
Fazendo um sinal para que Morfeu fique quieto, dou uma olhadela pelo olho mágico.
— Jeb! — Meu coração acelera enquanto enfio a chave no colar para dentro da blusa e me apresso
a abrir o trinco. — Você pode — gesticulo para as asas de Morfeu —, sabe?
Ele se coloca atrás de mim, sua respiração quente em minha nuca. — Vou ficar cuidando de você.
Nós mudamos as regras. Fomos mais espertos que a magia.
— E agora há um preço a ser pago? — sussurro, sentindo uma pontada de náusea em meu
estômago.
— Talvez. Então pode ser que já estejamos pagando o preço. — Há uma pitada de tristeza nessas
palavras. Ele recua e faz uma reverência, as asas formando um belo arco. — Seu eterno lacaio, bela
rainha. — Morfeu me lança um olhar derradeiro e em seguida se transforma na mariposa, pairando ao
lado da porta, em espera.
No instante em que abro a porta, ele a atravessa voando, tentando levar embora a cabeça de Jeb.
Jeb se esquiva. — Ei! — Ele olha para a mariposa que flutua atrás dele. — Não é o inseto do
aromatizador do seu carro?
Incrível. Ele não se lembra de nada... Mesmo.
— Quer que eu pegue ele para você? — pergunta Jeb quando eu não respondo.
— Não. Espero que ele bata em algum para-brisa.
Mentirosa, Morfeu sussurra em minha mente, e depois se afasta em uma brisa cálida. Contenho um
sorriso.
— Um inseto assim daria um grande ponto focal para um mosaico — diz Jeb, sua voz demandando
minha total atenção. Aquele timbre aveludado e profundo é como música para mim, ciente de que eu
poderia tê-lo perdido para sempre. Tenho que controlar o desejo de pular em seus braços.
A brisa espalha seu perfume à minha volta. Ele está usando uma camiseta puída e bermudas
manchadas de óleo que vão até as canelas. Seu cabelo está puxado para trás com uma bandana
rasgada, e seu rosto está imundo. Ele veio para trabalhar no Gizmo. Cuidando de mim, como sempre.
Meu cavaleiro élfico.
Analiso seus braços bronzeados, absorvendo suas cicatrizes. A noite no barco, o que senti me
aninhando para dormir em seu abraço forte. Todas essas memórias são só minhas agora. É algo que
tenho que esconder dele, e não me sinto mais à vontade tendo segredos entre nós.
Beije-o, beije-o, beije-o. Você sabe que quer beijá-lo... Um gafanhoto pousa no meu ombro.
Sintonizo o ruído ambiente que vem do pátio, pegando sussurros onde consigo. Todos eles dizem a
mesma coisa.
Beije-o... Mas não posso, porque quero fazer a coisa certa. Quero ter certeza de que ele terminará
com a Taelor primeiro. Que ele será meu em todos os sentidos.
— Al? — Jeb pega o gafanhoto de mim e o liberta.
O movimento me tira do meu estupor. — Ah, desculpe.
— É, você estava bem compenetrada mesmo. Tá tudo bem?
Levanto os ombros. — Eu estava pensando nos meus mosaicos. Vou parar de matar coisas. Está na
hora de mudar de meio. Pedras e vidro quebrado, quem sabe. Contas, fios, fitas. — Por que não?
Tenho uma grande reserva de paisagens do País das Maravilhas reavivada em minha memória que
aguarda ser imortalizada.
— Parece ótimo — opina Jeb. — Eu também estou pronto para mudar. — Ele tira algo das costas:
um buquê de rosas brancas embaladas em papel crepom cor-de-rosa. Ele devia tê-las enfiado na
cintura. Um sorriso doce emoldura seu incisivo torto quando ele as estende para mim.
— Obrigada. — Sinto o perfume delicado. — Onde encontrou uma floricultura aberta tão cedo?
Ele mete as mãos nos bolsos. — Ah, eu meio que peguei emprestado da roseira do Sr. Adams,
logo ali. — Seu cotovelo aponta para o dúplex do outro lado da rua, onde uma roseira apresenta
óbvios pontos vazios.
Dou risada. — Você é tão mau.
— Ah, eu podo o gramado dele de graça ou algo assim. Ei... — Ele levanta o polegar e o esfrega
no meu pulso. Meu corpo inteiro se acende com essa sensação. — Vim te ver antes do baile de
formatura ontem. Ninguém atendeu.
— Ah... É sobre o Hitch?
— Ontem à noite, era. Como não consegui falar com você, fiz o Hitch jurar que me avisaria se
você aparecesse. Como você não apareceu, a Jen me contou o que tinha acontecido com a sua mãe na
clínica. Daí, as rosas.
— Brancas — sussurro, com os olhos cheios de lágrimas.
As sobrancelhas dele se apertam de preocupação. — Por favor, não chore. Se você não gosta de
rosas brancas, eu pinto de vermelho.
— Não, nunca faça isso. — Meu sangue corre depressa demais pelas veias; sinto-me tonta.
— Eu quis dizer que nem na história de Alice. — Ele recua. — Sinto muito. Foi uma idiotice. Sei
que você detesta esse livro.
Seguro o braço dele. Nós dois ficamos olhando para o ponto de contato quando seu músculo se
contrai. — Na verdade, estou começando a perceber algum charme nele. E as rosas são perfeitas.
— Que bom. — Ele arrasta os tênis na varanda. — Então, estou perdoado por causa daquela
história de Londres, por esconder de você a parte da Tae?
Ótimo. Eu tinha esquecido que ainda não tínhamos resolvido isso.
Como não respondo, ele continua. — Porque tem uma coisa que eu preciso falar para você, uma
coisa que mudou. — Ele reposiciona o nó da bandana na nuca, e parece nervoso.
Antes que ele possa dizer mais uma palavra, o Mustang conversível da Taelor aparece na frente de
casa e para, zunindo, como se tivesse se materializado à menção de seu nome.
Jeb resmunga e pressiona a cabeça contra o batente da porta.
Ao bater a porta do carro, ela sobe na varanda, pisando forte. Taelor escorrega os óculos Fendi
para o alto da cabeça. Dizem por aí que esses óculos custam duzentos dólares. Mais do que todas as
minhas roupas de segunda mão juntas.
— Adivinhei que você estaria aqui. — Ela mede Jeb de cima a baixo depois de notar as rosas na
minha mão. — O quê, você passou a noite com a sua virgenzinha depois da nossa briga?
Meu queixo despenca. O baile de formatura obviamente não acabou bem.
— Acabei de chegar aqui, então não saia espalhando boatos, Tae. — Ele esfrega o piercing de
ferro em seu queixo. Eu não havia notado até agora que ele não estava usando o de cor granada. Meu
pulso começa a acelerar o ritmo, batendo contra a chave em meu esterno.
Taelor bate a sandália no piso, os pés com as unhas bem feitas. — Então, você ainda não contou a
ela? — Seus olhos movem-se rapidamente para os meus. — Ele terminou comigo ontem à noite. No
baile. E me deixou lá sozinha. Legal, né?
Há um quê de dor na voz dela, o que me provoca uma estranha mistura de piedade e empatia.
Jeb pressiona as juntas dos dedos contra um ponto onde a argamassa que une os tijolos está se
desfazendo. — O motorista estava lá.
— Ah, e eu devia dançar com ele? O cara tem tipo noventa anos de idade. — Ela aperta a bolsa de
grife verde-limão contra o vestido combinando. — Você não estava em casa depois do baile, porque
passamos por lá. Se você não estava aqui, onde estava?
— Fui até a casa do Sr. Mason.
— Nosso professor de arte? — Taelor e eu perguntamos simultaneamente. Trocamos olhares
corrosivos enquanto aguardamos a resposta.
— Você me disse que eu estava despedido do Submundo — responde Jeb, estudando o ponto onde
seus dedos roçam os tijolos. — O Sr. Mason uma vez me disse que podia me conseguir um emprego
naquela galeria de arte da Rua Kenyon. Ele é muito amigo do proprietário.
— Espere aí, por que você precisa de um emprego? — pergunto, confusa. — Achei que ia para
Londres no verão.
— Ele não pode, agora que recusou a oferta do meu pai de alugar um apartamento para ele. Ele
tem que guardar dinheiro se quiser ter um lugar para morar. — Taelor sorri para mim, desdenhando.
— Por sua causa, ele vai abdicar da carreira.
Jebediah Holt, o determinado, está alterando seu plano de vida por minha causa? — Não pode
fazer isso — digo, forçando-o a olhar para mim.
A apreensão tensiona os músculos do seu rosto e o sentimento de resolução também. — É só um
pequeno desvio de curso. Não vou abdicar de nada. Quando eu conseguir o emprego na galeria —
ele dá um olhar de soslaio para Taelor —, que está praticamente certo, vou conseguir colocar alguns
quadros lá para vender. Vou fazer contatos no mundo artístico, ajudar mamãe e Jen com as despesas
da formatura e ainda vai dar para economizar enquanto estudo na faculdade comunitária. — Depois,
seu foco se concentra em mim. — Até você se formar. Depois, vamos para Londres juntos.
Ir para Londres juntos....
Amasso o papel crepom entre meus dedos, incapaz de distinguir as emoções maravilhosas que me
invadem.
— Ah, que amor. — A voz de Taelor treme. — Talvez você possa vender aquela porcaria que
encontrei no seu carro outro dia para comprar um anel de noivado para ela no brechó. —
Vasculhando a bolsa, Taelor atira três rolos de papel aos meus pés, cilindros presos com elástico. —
Fique de olho nele, Alyssa. Ele é um filho da mãe, igualzinho ao cretino do pai dele. Não dá para
confiar.
Ela começa a sair.
Os ombros de Jeb murcham, as pontas de suas orelhas ficam vermelhas. Meu sangue pega fogo.
Não vou deixar ela falar com ele daquele jeito de modo algum. Não vou deixar que ela diga a ele
quem ele é.
Atirando as rosas no chão, saio da varanda e a pego pelo cotovelo.
Ela dá um puxão, se libertando, e vira o corpo.
Taelor está no chão e eu no primeiro degrau, então nossos olhos estão na mesma altura. Ela
começa a abrir a boca. Eu a calo. — É a minha vez de falar. E você vai ouvir. E depois eu não quero
ouvir nenhuma palavra de você sobre o Jeb e nem sobre nada.
O queixo de Taelor se retesa, mas ela espera.
— Eu confiaria a minha vida ao Jeb. Ele é tudo que o pai dele nunca foi. E você sabe disso, ou não
estaria tão arrasada por perdê-lo. Ele a tratou com respeito... E ele nunca teve a intenção de magoá-
la. Por que mais você acha que ele aguentou o seu jeito por tanto tempo?
O olhar dela fica mais intenso por trás de um brilho de lágrimas.
Jeb fica lá parado, completamente perplexo.
— E sabe de uma coisa? — continuo, sem conseguir parar o que eu mesma desencadeei. —
Nenhum de nós tem uma família perfeita. Nós podíamos ser amigas, ou pelo menos ter tentado ter um
bom relacionamento. Mas você não deixa. As coisas são um saco para você às vezes, eu entendo.
Mas não pode usar isso como desculpa para tratar as pessoas como você trata. — Minhas bochechas
queimam ao purgar emoções que contive por tantos anos. — Demolir o resto do mundo não vai fazer
você feliz. Olhe para dentro de você. Que tal encontrar sua razão de ser? Para quê você foi colocada
nesse mundo? É isso que preenche o vazio. É a única coisa que pode preencher.
O silêncio é tumbal, quebrado somente pelo chilrear de alguns pássaros. Até o ruído ambiente
ficou mudo, como se os insetos e flores tivessem parado para me ouvir, pelo menos uma vez.
Olhando para o chão, Taelor funga e passa a mão no rosto. Ela me olha nos olhos, e neste momento
percebo algo. Uma conexão. Consegui atingi-la. Pensativa e em silêncio pela primeira vez, ela vai
aos tropeços para o carro e parte sem fazer ruído algum.
— Caramba! — Jeb murmura.
Dou meia-volta e estamos cara a cara. Sozinhos... Enfim.
Olhando fixamente para mim com aquela mesma expressão reverente de quando ele viu minhas
asas pela primeira vez, ele mexe os lábios para dizer alguma coisa. Uma porta de tela se abre do
outro lado da rua e o interrompe. O Sr. Adams pega sua mangueira para regar o jardim. O velho faz
uma careta quando vê os pontos vazios em sua roseira.
— Jeb, você está prestes a se ferrar.
Ele me dá um sorriso sexy, de lado.
Pegando-o pelo pulso, eu o empurro para dentro antes que o Sr. Adams olhe na nossa direção.
Fecho a porta e aperto as costas contra a madeira para esconder minhas asas.
— Espere um pouco. — Jeb pega um dos meus fios de cabelo vermelho, torcendo-o entre o
polegar e o indicador. — Isso aqui não é aplique. Você tingiu mesmo. O que deu em você?
— Acho que finalmente encontrei meu lado fogoso.
— Gosto disso. — Ele inclina a cabeça, como se avaliasse um quadro. — E essa coisa brilhante
que parece que você esteve nadando em poeira de fadas... — Seus dedos roçam meu rosto. — Está
por todo o seu corpo? — Sua avaliação atenta de meu pijama me esquenta dos pés à cabeça.
— Uhhh... — Seu toque é o suficiente para me fazer gaguejar, mas o comentário sobre as fadas me
tirou do sério. Quase solto um urro quando ele se afasta.
— Obrigada por dizer aquelas coisas para a Tae.
— Era tudo verdade. — Porque eu te amo. Não consigo dizer em voz alta, mas é verdade. Não é
algo que tenha acontecido de repente, do nada; foi um despertar gradual. Meio como uma
metamorfose...
— Bem, parece que você pode se cuidar sozinha. Depois de ver o modo como me defendeu. —
Ele apoia um ombro na parede, fechando mais uma vez o espaço entre nós. — É estranho. Sonhei
com isso essa noite, que você estava cuidando de mim.
A confissão me deixa novamente atenta. — Nós estávamos no País das Maravilhas?
Ele ri. — Ah, não. Estávamos em uma casa no campo, e você estava sentada em uma mesa jogando
xadrez enquanto eu pintava quadros com uma pena e um pouco de mel colorido. Um enxame de
abelhas bateu na janela, gritando comigo por ter roubado o mel delas. Gritando de verdade, com
vozes de gente. Depois, você criou asas e voou para fora e espantou-as. Estranho, não?
Contenho um pigarro. — É, estranho.
— Mas, de alguma maneira, se encaixa. — Ele pega um dos cilindros que Taelor atirou em minha
direção, remove o elástico e o entrega para mim.
Eu o desenrolo e fico perplexa ao ver a mim mesma desenhada a lápis com sombras — uma
interpretação incrível de uma fada gótica completa, com asas diáfanas e tatuagens nos olhos —,
exatamente como eu era no País das Maravilhas. Como, tecnicamente, ele nunca esteve lá, não pode
ser uma lembrança. Então, só existe uma explicação: este cara vê dentro da minha alma. Sempre viu.
Eu o olho nos olhos, sem fala.
— Tem mais umas cem que nem essa. Você é a minha musa, Al. Minha inspiração. Eu esperava
que... Talvez... Você quisesse ser...
Antes que ele termine, agarro sua camiseta e o puxo para um beijo. Seus olhos se arregalam a
princípio, depois se fecham, os braços envolvendo meus quadris para me elevar à sua altura. Ele me
pressiona contra a parede com seu corpo.
Sorrio nos lábios dele, inebriada.
Quantas garotas conseguem dar o primeiro beijo duas vezes? Mas desta vez não estou em choque.
Desta vez não esqueço de envolver meus braços em seu pescoço e o puxar para mais perto. Desta vez
sou eu que abro os lábios dele e descubro sua língua.
O desenho cai no chão ao lado das rosas espalhadas. Jeb geme, coloca minhas pernas em sua
cintura e me abraça com força. Ele se afasta só o tempo suficiente para sussurrar: — Onde você
aprendeu a beijar assim?
— Você me ensinou. — Recobro meus sentidos e percebo o que disse. — Em meus sonhos.
— Ah, é? — Ele roça o nariz na covinha em meu queixo. — Andou sonhando comigo também, é?
— Desde o dia em que nos conhecemos. — Finalmente, a verdade.
Ele mostra as suas covinhas. — Acho que é hora de realizarmos alguns sonhos, menina do skate.
Mal sabe ele que já realizamos; fomos para o País das Maravilhas e voltamos, afinal. Sorrio e
depois dou-lhe um beijo que ele jamais esquecerá, para compensar todos os outros dos quais ele nunca se lembrará.
A.G. Howard
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