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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O LADRÃO DE CORPOS - P.2 / Anne Rice
O LADRÃO DE CORPOS - P.2 / Anne Rice

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O LADRÃO DE CORPOS

Segunda Parte

 

Porque ela era formosa, porque se estava morrendo, porque quis ver se dava resultado. Porque ela estava aí e ninguém a queria; então a elevei, tive-a em braços. Porque era algo que eu podia fazer, como a velita da igreja que serve para acender outra sem perder sua própria luz. Era minha maneira de criar, minha única maneira, não o vê? Em um momento dado fomos dois, e imediatamente fomos três. Vi-o tão triste, de pé aí com sua larga capa negra, e entretanto ele não podia lhe tirar os olhos de cima à menina; não podia deixar de olhar suas bochechas de marfim, suas diminutas bonecas. imaginam !Uma menina vampiro! Una as nossas.

-Compreendo.

Quem falou? Sobressaltou-me, mas não era Louis a não ser David, David, que estava aí perto com sua exemplar da Bíblia. Louis levantou lentamente o olhar. Não sabia quem era David.

-Parecemo-nos com Deus quando criamos um pouco de um nada, quando fingimos ser a llamita e produzimos outras chamas?

David meneou a cabeça.

-Crasso engano -sentenciou.

-Então o mundo também é um engano. Ela é nossa filha...

-Não sou sua filha. Sou filha de minha mamãe.

-Não, querida, já não. -Elevei os olhos para o David. -Bom, me responda

-por que alega tão altos fins para justificar o que fez? -perguntou, mas era tão compassivo, tão bom. Louis seguia contemplando-a horrorizado, olhando seus piececitos brancos. Piececitos tão sedutores.

-Então resolvi fazê-lo. Não me importou o que faria ele com meu corpo, com tal de que me pusesse dentro desta forma humana durante venticuatro horas, já que isso me permitiria ver a luz do sol, sentir Como sentam os mortais, conhecer seus pontos débeis, sua dor. -Ao falar, apertava-lhe a mão. Ela assentiu, voltou a me enxugar a frente, tomou o pulso com seus dedos firmes e mornos.

...então decidi fazê-lo, sem mais. Sim, sei que me equivoquei, que foi um engano lhe ceder todas minhas faculdades, mas você se imagina... e agora não posso morrer neste corpo. Meus companheiros não devem nem saber o que foi de mim. Se soubessem, viriam...

-Outros vampiros -murmurou.

-Sim. -Então lhe contei tudo o deles, falei-lhe de como tinha procurado os outros comprido tempo atrás, pensando que, se conhecia a história das coisas, isso esclareceria o mistério... Falei-lhe e lhe falei, expliquei-lhe o que fomos, minha viagem através dos séculos, depois a tentação que foi a música de rock, perfeito teatro para mim, o que quis fazer, mencionei ao David, a Deus e o diabo no bar de Paris, David junto ao fogo do lar com a Bíblia na mão assegurando que Deus não é perfeito. Às vezes mantinha os olhos fechados, às vezes os abria, e todo o tempo ela me sustentava a mão. Entrava e saía gente. Os médicos discutiam. Uma mulher chorava. Fora voltava a haver luz. Vi-a quando se abriu a porta e uma rajada de ar cruel se precipitou pelo corredor. "Como vamos banhar a todos estes pacientes?", perguntou uma enfermeira. "A essa mulher terei que isolá-la. Chama o doutor e lhe diga que temos um caso de meningite no piso."

-De novo é de amanhã, verdade? Deve estar muito cansada... esteve comigo toda a tarde e a noite. Tenho muito medo, mas também sei que você se tem que ir.

Estavam trazendo mais doentes. O médico lhe aproximou para lhe avisar que deviam devolver todas essas macas, de modo que suas cabeças se recortavam contra a parede. Também lhe aconselhou que se fora a sua casa, que lhe convinha descansar. Além disso, tinham entrado de serviço várias enfermeiras mais. Estava chorando eu? A agujita do braço me fazia doer; que seca tinha a garganta... e os lábios.

-Não podemos sequer dar entrada oficial a todos esses doentes.

-Ouça-me, Gretchen? -perguntei-lhe-. Entendeu o que lhe estive contando?

-Não faz mais que me perguntar isso e todas as vezes lhe hei dito que sim, que lhe entendo. Empresto-lhe atenção. Não o vou deixar.

-Doce Gretchen. Irmana Gretchen.

-Quero tirar o daqui e me levar isso -Sí, es cierto. Pero usted es como Claudia. No le tiene miedo a nada

-O que disse?

-levar-me isso a minha casa. Agora está muito melhor, baixou-lhe bastante a febre. Mas se ficar neste lugar... -Confusão em seu rosto. Voltou a me aproximar o copo e bebi vários sorvos.

-Compreendo. Sim, me leve, por favor. -Tratei de me incorporar. -Tenho medo de ficar.

-Ainda não -disse, me insistindo a voltar a me tender na maca. Logo me tirou a cinta adesiva do braço e extraiu a perversa agulha. Deus santo, tinha vontades de urinar! É que não terminariam alguma vez essas repugnantes necessidades físicas? Que demônios era a condição de mortais? Cagar, mijar, comer, e de novo todo o ciclo! Vale a pena passar por isso só para poder ver a luz do sol? Não era suficiente estando morrendo. Além disso, tinha que urinar, mas não suportava a idéia de ter que usar novamente esse frasco, embora quase nem recordava como era.

-por que não me tem medo, irmã? Não acredita que estou louco?

-Faz mal às pessoas somente quando é vampiro -disse com simplicidade-, quando está em seu verdadeiro corpo, não é assim?

-Sim, é certo. Mas você é como Claudia. Não lhe tem medo a nada

-Está-a tomando por tola -disse Claudia-. vais fazer machuco a ela também.

-Tolices. Ela não crie -repus. Sentei-me no divã da sala do hotelito, examinei a habitação me sentindo muito cômodo com esses velhos móveis dourados. O século XVIII, meu século. O século do pícaro e do homem racional. Minha época mais perfeita. Floresça em petit-point. Brocato. Espadas douradas e risadas de bêbados abaixo, na rua. David estava de pé junto à janela, olhando por sobre os tetos baixos da cidade colonial. Alguma vez tinha estado neste século?

-Não, nunca! -exclamou sobressaltado-. Todas as superfícies estão trabalhadas à mão; todas as medidas são irregulares. Que tênue o cabo que têm as coisas criadas sobre a natureza, como se esse cabo pudesse voltar facilmente para a terra.

-Vete, David -disse Louis-. Seu lugar não está aqui. Nós temos que ficar. Nada podemos fazer.

-Isso sim que é melodramático -opinou Claudia. Tinha a suja camisola do hospital posto. Bom, isso eu o solucionaria logo. Saquearia as lojas para lhe conseguir cintas e encaixes. Compraria-lhe sedas, pulseritas de prata e anéis de pérolas. Rodeei-a com meu braço.

-OH, que formoso ouvir que alguém diz a verdade -sustentei um cabelo tão fino, que agora será fino para sempre. Tentei voltar a me incorporar mas me pareceu impossível. Pelo corredor estavam entrando depressa a um paciente de emergência, com duas enfermeiras a cada lado; alguém golpeou a maca e a vibração a senti dentro de mim. Logo houve silêncio, e as mãos do relógio avançaram dando um saltito. O homem que tinha ao lado se queixou e voltou a cabeça. Vi-lhe uma enorme vendagem branca sobre os olhos. Que nua me pareceu sua boca.

-Temos que confinar a estas pessoas -disse uma voz.

-Vamos, levo-o a casa.

E Molho? O que tinha passado com Molho? E se vieram a reclamá-lo? Este era um século em que se encarcerava aos cães só por ser cães. Tive que explicar-lhe ao Gretchen. Ela me estava incorporando, ou tratando de fazê-lo, me passando o braço sob os ombros. Molho ladrando na casa do Georgetown. Estaria lá, encerrado? Louis estava triste.

-Há uma peste na cidade -disse.

-Mas isso não te pode fazer mal, David -repus.

-Tem razão. Mas há outras coisas...

Claudia riu.

-Sabe uma coisa? Está apaixonada por ti.

-Teria-te morrido pela peste -disse-lhe.

-Ao melhor não tinha chegado a hora.

-Crie que cada qual tem sua hora?

-Não, em realidade não -respondeu-me-. Possivelmente o mais fácil foi te jogar a culpa de tudo. Confesso que nunca soube a diferença entre o bom e o mau.

-Teve tempo de aprendê-lo -disse-lhe.

-Também você, muito mais do que jamais tive eu.

-Graças a Deus que me leva -murmurei. Estava de pé. -Tenho medo, Lisa e sinceramente medo.

-Uma carga menos para o hospital -disse Claudia com uma risada lhe tilintem, enquanto seus piececitos se balançavam sobre o bordo da cadeira. De novo tinha o posto vestido dos bordados. Agora sim estava melhor de aspecto.

-Gretchen a formosa -disse-. Lhe avermelham as bochechas quando o digo.

Sorriu ao calçar meu braço esquerdo sobre seu ombro enquanto com o seu direito me sustentava da cintura.

-Eu o cuidarei -sussurrou-me ao ouvido-. Não é muito longe.

junto a seu automóvel, sob o vento inclemente, tive que sustentar aquele pestilento membro, e observei como o amarelo arco de pis produzia vapor quando caía sobre a neve já branda.

-Deus santo -disse-. Causa-me uma sensação quase agradável! O que é o ser humano que pode encontrar prazer em coisas tão imundas?

 

Em algum momento comecei a entrar e sair do sonho, tomei consciência de que íamos em um automóvel pequeno, que Molho vinha conosco, ofegando ao lado de minha orelha, e que percorríamos colinas boscosas cobertas de neve. Eu estava envolto em uma manta e me sentia terrivelmente chateado pelo movimento do carro. E além disso, estava tremendo. Logo que sim recordava que tínhamos ido à casa do Georgetown, onde encontramos a Molho aguardando pacientemente. Tive a vaga certeza de que podia morrer nesse veículo se outro nos chocava. Senti-o como algo perigoso e real, tão real como a dor que me oprimia o peito. E o Ladrão de Corpos me tinha enganado. Gretchen tinha o olhar fixo no caminho sinuoso. O sol formava uma auréola ao redor de sua cabeça com todas esses pelitos que escapavam de seu grosso coque e o cabelo brandamente ondeado que lhe crescia da têmpora. Era uma formosa monja, pensei, ao tempo que meus olhos se abriam e fechavam como por própria vontade. Mas, por que é tão boa comigo? Porque é monja? Tudo era quietude em nosso redor. Havia casas entre as árvores, sobre colinas, em pequenos vales, muito perto umas de outras. Um bairro rico, possivelmente, com essas mansões de madeira em pequena escala que às vezes preferem os mortais enriquecidos em lugar das residências palacianas do século passado. Finalmente, internamo-nos pelo atalho de acesso próximo a uma de tais casas, passamos por um bosquecillo de árvores cortadas e nos detivemos junto a um pequeno chalé, sem dúvida uma casa para serventes ou para hóspedes, localizada-se a certa distância da residência principal. As habitações eram acolhedoras e estavam esquentadas. Queria me atirar na cama limpa, mas estava muito sujo e insisti em que me permitisse banhar este desagradável corpo. Gretchen se opôs tenazmente aduzindo que estava doente, que não devia me banhar Mas eu não quis lhe fazer caso. Encontrei o banho e não saí dali em um momento comprido.

Depois voltei a ficar dormido, apoiado contra os azulejos enquanto Gretchen enchia a banheira. O vapor me resultou prazenteiro. Alcançava a ver molho junto à cama, essa esfinge lobuna que me observava pela porta aberta. Acreditava ela que Molho se parecia com o diabo? em que pese a que me sentia extremamente fraco falava com o Gretchen, tratava de lhe explicar como foi que cheguei a me encontrar nessa situação, por que tinha que ir a Nova Orleáns a procurar o Louis para que me brindasse o sangue potente. Em voz baixa, contei-lhe muitas coisas em inglês; usava o francês só quando, por alguma razão, não me saía a palavra que queria; espraiei-me sobre a França de minha época, sobre a pequena colônia de Nova Orleáns onde residi depois, sobre o maravilhosa que me parecia a era atual e a decisão que tomei aquela vez de ser músico de rock durante um tempo, porque acreditava que, ao me apresentar como símbolo do mal, poderia fazer algum bem. Era humano esse desejo de que me compreendesse, o medo a morrer em seus braços, a que ninguém se inteirasse jamais de quem tinha sido eu nem o que tinha acontecido? Ah, mas meus companheiros sabiam, e não tinham ido em minha ajuda. Também lhe falei disso. Descrevi aos antigos e sua desaprovação. O que ficou sem lhe contar? Mas ela tinha que entender, monja deliciosa como era, quanto tinha querido eu fazer o bem enquanto fui cantor de rock.

-Essa é a única maneira que tem o diabo literal de fazer o bem -disse-. Representar-se a si mesmo em um cenário para deixar o mal ao descoberto. A menos que a gente cria que está fazendo o bem quando está fazendo o mal, mas então Deus seria um monstro, não? O diabo simplesmente é parte do plano divino.

Ela dava a impressão de me escutar com atenção crítica. Mas não me surpreendeu quando me respondeu que o demônio não formava parte do plano de Deus. Sua voz era baixa e estava cheia de humildade. À medida que falava ia tirando a roupa úmida, e não acredito que tenha querido falar absolutamente mas sim só tratava de me tranqüilizar. O diabo tinha sido o mais capitalista dos anjos, disse, e rechaçou a Deus por soberba. O mal não podia formar parte do plano divino. Quando lhe perguntei se conhecia todos os argumentos que se opunham a essa teoria, e o ilógica que era, quão ilógico era todo o cristianismo, respondeu-me muito serena que não importava. O importante era fazer o bem. Isso era tudo. Muito singelo.

-Ah, então compreende.

-Perfeitamente -disse-me. Mas me dava conta de que não entendia.

-Você é muito boa comigo -disse. Dava-lhe um beijo suave na bochecha quando me ajudou a entrar na água quente. Tendi-me na tina, observei como me banhava e notei o bem que me sentia, como eu gostava da água morna contra o peito, o suave roce da esponja sobre minha pele, possivelmente o melhor de tudo o que tinha suportado até esse momento. Mas, que comprido me parecia o corpo humano! Que estranhamente largos os braços. Veio-me à memória uma imagem de um velho filme, do monstro Frankenstein caminhando com estupidez, agitando as mãos como se seu lugar não fosse o extremo desses braços. Senti-me como esse monstro. De fato, dizer que como humano me sentia totalmente monstruoso era a pura verdade. Acredito que disse algo a respeito. Ela me pediu que me calasse. Disse que meu corpo era belo, forte e natural. Parecia muito preocupada. Eu me senti um pouco envergonhado de que me lavasse o cabelo e a cara, mas ela disse que as enfermeiras viviam fazendo essas coisas. Contou-me que se passou a vida cuidando doentes em missões no estrangeiro, em lugares tão sujos e carentes de todo que, em comparação, até o mais abarrotado hospital de Washington era um paraíso. Vi que seus olhos percorriam meu corpo, que se ruborizava, e notei a forma em que me olhava, cheia de vergonha e confusão. Que estranhamente inocente era. Sorri para meus adentros, mas me deu medo de que sofresse devido a seus próprios desejos camales. Que brincadeira cruel para ambos que este corpo lhe resultasse tentador. Mas não cabia dúvida de que assim era, o qual, esgotado e febril como estava, revolveu-me o sangue, o sangue humano. OH, esse corpo sempre estava brigando por algo. Logo que sim podia me ter em pé enquanto ela me secava com um toallón, mas pus toda minha vontade. Dava-lhe um beijo no cocuruto; ela elevou o olhar devagarzinho, intrigada, perplexa. Me deu vontade de voltar a beijá-la, mas não tinha forças. Com supremo cuidado me secou o cabelo, e com especial suavidade, a cara. Fazia muito tempo que ninguém me tocava dessa maneira. Disse-lhe que a amava por sua enorme bondade.

-Ódio este corpo. É um inferno estar aqui dentro.

-Tão insuportável lhe resulta ser humano?

-Não me faça brincadeiras. Sei que não crie as coisas que lhe contei.

-OH, mas nossas fantasias são como nossos sonhos -disse, franzindo o sobrecenho-. Têm um significado.

de repente me vi refletido no espelho do estojo de primeiro socorros: um homem alto, de pele cor caramelo e espesso cabelo castanho, e a seu lado a mulher de ossos grandes e pele suave. Foi tanto o shock, que quase me paralisa o coração.

-Deus santo, me ajude -murmurei-. Quero recuperar meu corpo.

-Senti desejos de chorar. Fez-me recostar na cama e apoiar a cabeça nos travesseiros. A tibieza da habitação me dava prazer. Começou a me barbear, graças a Deus! Odiava essa sensação de ter cabelo na cara. Contei-lhe que, quando morri, estava bem barbeado como todos os homens elegantes, e que, logo depois de nos fazer vampiros, mantínhamo-nos iguais eternamente. Voltávamo-nos cada vez mais brancos, é verdade, e mais fortes, e a cútis nos alisava. Mas o cabelo seguia sempre do mesmo comprido, quão mesmo as unhas e a barba. Além disso, eu era bastante imberbe por natureza.

-Foi dolorosa a transformação? -quis saber.

-Doeu-me porque resisti. Não queria que ocorresse. Não sabia realmente o que me estavam fazendo. Tinha a impressão de que uma espécie de monstro medieval me tinha apressado e tirado da cidade civilizada. Não esqueça que nessa época Paris era uma cidade maravilhosamente culta. Ah, se você fosse ali agora lhe pareceria selvagem em grau supremo, mas para um latifundiário de um imundo castelo era muito tentadora com seus teatros, com a ópera e os bailes na corte. Não se imagina. E depois, a tragédia, esse demônio que surgiu da noite e me levou a sua torre. Mas o ato mesmo, o Truque Misterioso, não dói; é o êxtase. Depois a gente abre os olhos e toda a humanidade lhe resulta formosa de um modo que antes não conhecia.

Pu-me a camisa de dormir que me deu, meti-me na cama e deixei que me subiera as mantas até o pescoço. Tinha a sensação de estar flutuando. Para falar a verdade, era uma das sensações mais agradáveis que experimentava desde que me tinha convertido em mortal, algo semelhante à embriaguez. Tomou o pulso e me tocou a frente. Vi medo em seu rosto, mas resistia a acreditá-lo. Comentei-lhe que, para mim, como ser malvado que era, o verdadeiro sofrimento estava em que compreendia a bondade e a respeitava. Sempre tive consciência. Mas durante toda minha vida, inclusive quando era um moço mortal, me pediu que fora contra minha consciência se queria obter algo de valor.

-Mas, como? A que se refere?

Contei-lhe que, de jovem, tinha-me escapado com uma companhia de atores, cometendo com isso um evidente pecado de desobediência

Também forniquei com uma das moças do grupo. Entretanto, nesses dias atuar no teatro do povo e fazer o amor pareciam coisas de inestimável valor.

-Isso ocorreu quando estava vivo, simplesmente vivo. Os pecados corriqueiros de um jovencito!

depois de morrer, cada um dos passos que dava na vida foi de submissão ao pecado, mas a cada instante captava o formoso e o sensual. Perguntei-lhe como podia ser isso. Quando converti a Claudia em uma menina vampiro, e ao Gabrielle, minha mãe, em uma beldade vampiro, fiz-o também procurando um sentimento intenso! Pareceu-me irresistível. E naqueles momentos não lhe encontrava sentido a nenhum conceito de pecado. Espraiei-me sobre o tema; voltei a mencionar ao David e a visão que de Deus e o diabo teve em um bar; disse que para ele Deus não era perfeito mas sim estava aprendendo todo o tempo, que de fato o diabo aprendeu tanto que chegou a desprezar seu trabalho e a suplicar que o liberasse dele. Mas sabia que já lhe tinha contado todo isso no hospital, quando ela ficava me tendo a mão. Havia momentos em que deixava de me acomodar os travesseiros, de me trazer comprimidos e copos de água, e se limitava a me olhar. Que sereno seu rosto, que enfática sua expressão, as pestanas grosas e escuras que rodeavam seus olhos claros, sua boca grande e suave tão eloqüente de bondade.

-Sei que é boa e a amo por isso -disse-. Entretanto, daria-lhe o Sangue Misterioso para convertê-la em imortal, para tê-la comigo na eternidade porque é tão enigmática comigo, tão forte.

Rodeava-me um manto de silêncio, havia um rugido afogado em meus ouvidos e um véu sobre meus olhos. Observei-a, imóvel, enquanto levantava uma seringa, provava-a fazendo sair uma gotita de líquido e logo me cravava isso na carne. Experimentei uma tênue sensação de ardor, mas foi muito remota, muito pouco importante. Quando me alcançou um copo grande de suco de laranja, bebi com fruição. Hmmm. Isso sim que eu gostei de saborear, algo espesso como sangue mas cheio de doçura, que de uma estranha maneira me dava a sensação de estar devorando a luz mesma.

-Tinha esquecido estas coisas -confessei-. Que delicioso; muito melhor que o vinho. Teria que havê-lo bebido antes. E pensar que podia me haver voltado sem conhecê-lo. -Afundei-me nos travesseiros e contemplei os suspensórios do teto em pendente. Era uma habitação garota e bonita muito branca, muito singela, sua cela de monja. Nevava do outro lado da ventanita. Contei doze pequenos painéis de vidro.

Entrava e saía do sonho. Tenho uma leve lembrança de que ela tratava de fazer tomar sopa e eu não podia. Tremia da cabeça aos pés e me aterrava que pudessem me voltar os pesadelos. Não queria que viesse Claudia. A luz da habitação me queimava os olhos. Contei-lhe que Claudia me perseguia, falei-lhe do reduzido hospital.

-Cheio de meninos -disse. Não tinha comentado algo sobre isso antes? O que desconcertada a notei. Falou-me brandamente sobre seu trabalho nas missões... com meninos, na selva da Venezuela e no Peru.

-Não fale mais -sugeriu-me. Sabia que a estava assustando. De novo flutuava, entrava e saía da escuridão, sentia um pano frio na frente, voltava a rir por essa sensação de ingravidez. Disse-lhe que com meu corpo de sempre podia voar pelo ar. Relatei-lhe que me tinha internado na luz do sol sobre o deserto do Gobi. de vez em quando abria sobressaltado os olhos, impressionado por me encontrar aí, em sua pequena habitação branca. À luz brunida vi um crucifixo com um Cristo lhe sangrem na parede, e sobre uma repisita uma estátua da Virgem María, conhecida-a imagem da Intercessora de Todas as Obrigado, com a cabeça inclinada e as mãos estendidas. Aquela outra, que tinha a ferida vermelha na frente, era Santa Rita? OH, velhas crenças... E pensar que estavam vivas no coração dessa mulher. Entrecerré os olhos tratando de ler os títulos maiores dos livros: Santo Tiram do Aquino, Maritain, Teilhard do Chardin. O enorme esforço que me insumió interpretar esses nomes de filósofos católicos me deixou exausto. Não obstante, li também outros títulos, já que minha mente febril era incapaz de descansar. Havia livros sobre enfermidades tropicais, enfermidades infantis, psicologia infantil. Sobre a parede, perto do crucifixo, alcancei a distinguir uma foto de várias monjas com seus hábitos, talvez em alguma cerimônia. Não pude me dar conta de se ela era uma das do grupo, não com esses olhos mortais e na forma em que me doíam. Levavam hábitos de saia curta cor azul, e véus azuis e brancos. Tinha-me a mão. Uma vez mais lhe disse que devia ir a Nova Orleáns. Tinha que me curar para encontrar a meu amigo Louis, quem me ajudaria a recuperar meu antigo corpo. Descrevi ao Louis: contei-lhe que vivia afastado do mundo moderno em uma casa diminuta e sem luz, detrás de um ruinoso jardim. Expliquei-lhe que era débil, mas não obstante podia me dar seu sangue, a qual me permitiria voltar a ser vampiro; que logo sairia a caçar ao Ladrão de Corpos para que me devolvesse minha antiga forma. Falei-lhe de que Louis era muito débil, de que não me daria muita força vampírica, mas que jamais poderia achar ao Ladrão se não contava com um corpo preternatural.

-De modo que, quando me der o sangue, este corpo morrerá. Você o está curando para a morte. -Tinha-me posto a chorar. Tomei consciência de que estava falando em francês, mas ao parecer ela me entendeu, porque me disse nesse mesmo idioma que descansasse, que estava delirando.

-Eu fico com você -disse lentamente em francês- para protegê-lo. Sua mão morna e carinhosa estava sobre a minha. Com supremo cuidado me retirou o cabelo da frente. Caiu a noite em volto da casita. Havia um fogo aceso na chaminé, e Gretchen se tendeu a meu lado. Antes se tinha posto uma camisola comprido muito grosso e branco. soltou-se o cabelo e abraçava meu corpo tremente. Eu gostava de sentir seu cabelo contra meu braço. Aferrei a ela, com medo de lhe fazer mau. Uma e outra vez me enxugava a cara com um pano frio. Obrigava-me a beber suco de laranja ou água fria. Passavam as horas da noite, e meu medo ia em aumento.

-Não o deixarei morrer -sussurrou-me ao ouvido. Mas notei um medo que ela não conseguia dissimular. Dormi com um sonho leve, de modo que a habitação reteve sua forma, sua luz, sua cor. Convoquei novamente aos outros, implorei ao Marius que me ajudasse. Comecei a pensar em coisas terríveis: que todos estavam aí como outras tantas estatuetas brancas da Virgem María e Santa Rita, me observando, negando-se a me ajudar. Em algum momento da noite ouvi vozes. Tinha vindo um médico, um homem jovem, de aspecto cansado, pele cítrica e olhos avermelhados. Uma vez mais me cravaram uma agulha no braço. Bebi com vontades quando me aproximaram água geada. Não pude seguir o murmúrio do doutor, nem tampouco era a intenção que eu escutasse. Mas a cadência das vozes era serena, tranqüilizadora. Pesquei as palavras "epidemia", "nevada" e "condições impossíveis". Uma vez que ele partiu, roguei a ela que voltasse.

-Quero estar perto dos batimentos do coração de seu coração -disse, quando se tendeu a meu lado. Que agradável sensação, que brandos seus braços robustos, seus seios grandes e informe contra meu peito, sua perna suave contra a minha. Estava tão doente que não podia sentir medo?

-Agora durma e trate de não preocupar-se. -Por fim me invadiu um sonho profundo, profundo como a neve da rua, como a escuridão.

-Não te parece que já é hora de que te confesse? -perguntou Claudia-. Sabe que está pendendo do proverbial fio. -achava-se sentada em meu regaço, me olhando, com as mãos apoiadas em meus ombros, seu carita a escassos centímetros da minha. O coração me encolheu, explorou de dor, mas não houve uma adaga, só essas manitas que me aferravam e o aroma de rosas que subía de seu cabelo resplandecente.

-Não, não posso me confessar -respondi-lhe. Como me tremia a voz. -OH Deus, o que pretende de mim!

-Não está arrependido! Nunca o esteve! Diga-o. Dava a verdade! Merecia-te a adaga com que transpassei seu coração, e você sabe. Sempre o soubeste!

dentro de mim algo se quebrou quando a contemplei, quando olhei o rosto delicado dentro de seu marco de fino cabelo. Elevei-a e me levantei; logo a pus sobre a cadeira, ante mim, e caí de joelhos a seus pés.

-Claudia, me escute. Eu não o comecei. Eu não fiz o mundo! O mal esteve sempre. encontrava-se nas trevas e se apoderou de mim, fez-me parte dele, e eu fiz o que acreditei que devia. Não te ria, por favor; não olhe a outro lado. Eu não inventei o mal! Não me fiz mesmo!

Que perplexa estava quando me olhava, observava-me; logo seu boquita se distendeu e formou um precioso sorriso.

-Não foi todo angústia -disse, aferrando a de seus pequenos ombros-. Não foi um inferno. me diga que não foi. me diga que também houve felicidade. Podem ser felizes os demônios? meu deus, não compreendo.

-Não compreende, mas sempre faz algo, não?

-Sim, e não o lamento. Não. Gritaria-o dos tetos até o topo mesma do céu. Claudia, voltaria a fazê-lo! -Lancei um grande suspiro e repeti as palavras, com maior volume. -Voltaria a fazê-lo!

Silencio na habitação. Nada alterou sua serenidade. Estava zangada? Surpreendida? Impossível sabê-lo, olhando esses olhos inexpressivos.

-É perverso, meu pai -sentenciou em voz baixa-. Como pode suportá-lo?

David se deu volta da janela e se deteve junto à Claudia. Eu seguia de joelhos, e ele me olhava de acima.

-Sou o ideal de minha espécie -disse-, o vampiro perfeito. Quando me olha está olhando ao vampiro Lestat. Ninguém eclipsa a esta silhueta que vê ante ti... ninguém! -Lentamente me pus de pé. -Não sou o parvo de todos os tempos, nem um deus calejado pelos milênios. Não sou um embusteiro de capa negra nem um vagabundo triste. Tenho consciência. Sei distinguir o bem do mal. Sei o que faço e sim, faço-o. Sou o vampiro Lestat. Esta é minha resposta. Faz com ela o que queira.

O alvorada. Incolor e brilhante sobre a neve. Gretchen dormia, me embalando. Não despertou quando me incorporei e tomei o copo de água. Insípida, mas fresca. Logo abriu os olhos, endireitou-se de um salto e o cabelo ao cair rodeou a cara, seca e poda e cheia de débil luz. Beijei sua bochecha morna e senti seus dedos em meu pescoço; depois, sobre minha frente.

-Conseguiu me fazer passar -disse com voz tremente, rouca. Depois voltei a me tender sobre o travesseiro e uma vez mais senti lágrimas em minhas bochechas. Fechei os olhos e murmurei: -Adeus, Claudia -esperando que não me ouvisse Gretchen. Quando voltei a abri-los, havia me trazido um tigela grande de caldo, que bebi e encontrei quase saboroso. Sobre um prato havia maçãs e laranjas abertas, lustrosas. Comi-as com vontades, surpreso pela consistência das maçãs e quão fibrosas eram as laranjas. Logo veio um líquido quente, mescla de licor forte, mel e limão, e foi tanto o que eu gostei que correu a me preparar mais. Pensei outra vez em quanto se parecia com as mulheres gregas do Picasso. Suas sobrancelhas eram de um marrom escuro e seus olhos claros, quase verde pálido, o que conferia a seu rosto uma expressão de abnegação e inocência. Não era jovem, e para mim isso também realçava sua beleza. Havia em seu semblante um não sei quanto entrega e abstração pela forma em que assentia e dizia que estava melhorando cada vez que o perguntava. Parecia eternamente absorta em seus pensamentos. Um comprido instante passou me olhando como se eu a desconcertasse; depois, muito devagar, agachou-se e apertou seus lábios contra meus. Uma vibrante emoção me percorreu o corpo. Voltei a ficar dormido. E não tive sonhos.

Foi como se sempre houvesse sido humano, sempre tivesse estado nesse corpo e, ah, tão agradecido por essa cama branda e poda. A tarde. Emplastros de azul depois das árvores. Como em transe, vi-a avivar o fogo. Observei o resplendor em seus pés descalços. Molho tinha o cabelo cinza talher de um polvillo de neve enquanto comia tranqüilamente de um prato que sujeitava entre as patas, me olhando de tanto em tanto. Meu pesado corpo humano fervia ainda de febre, mas menos, melhor, com suas dores menos pronunciados, já sem tremer. OH, por que ela tinha feito todo isso por mim? por que? E o que posso fazer eu por ela?, pensei. Já não me assustava a idéia de morrer. Mas quando pensava no que me esperava -apreender ao Ladrão de Corpos- sentia uma pontada de pânico. Além disso, durante uma noite mais ia estar tão doente que não poderia ir dali. Voltamos a dormitar abraçados, deixando que fora se obscurecesse a luz. O único som era a trabalhosa respiração de Molho. O pequeno fogo ardia vivamente. A habitação estava cálida e silenciosa. O mundo inteiro parecia achar-se quente e em silêncio. Começou a cair a neve e muito em breve caiu também a desumana penumbra da noite. Uma quebra de onda de sentimentos protetores cruzou por meu interior quando olhei seu rosto dormido, quando pensei no olhar abstraído que tinha visto em seus olhos. Até sua voz estava tinta de uma profunda melancolia. Algo havia nela que sugeria uma funda resignação. Passasse o que acontecer, não a ia abandonar, pensei, até que soubesse como poderia lhe retribuir. Além disso, ela me agradava. Eu gostava de sua tristeza interior, sua recôndita qualidade humana, a simplicidade de seus movimentos e sua linguagem, a candura de seus olhos. Quando voltei a despertar, tinha vindo de novo o médico, o mesmo moço jovem de pele cítrica e cara de esgotamento, embora o notei mais descansado e com sua jaqueta branca agora muito limpa. Tinha-me posto no peito um pedacinho de metal frio, e evidentemente me auscultava o coração ou algum outro ruidoso órgão interno para obter alguma informação importante. Tinha nas mãos umas horríveis luvas plásticas e, como se eu não estivesse ali, em voz baixa lhe falava com o Gretchen sobre os problemas que continuavam no hospital. Gretchen se tinha posto um singelo vestido azul, parecido a um hábito de monja só que mais curto, e debaixo levava meias negras. Seu cabelo belamente desordenado, murcho e limpo, fez-me pensar no feno que a princesa fiou e converteu em oro no conto do Rumpelstiltskin.

Uma vez mais foi a minha memória Gabrielle, minha mãe, e o momento fantasmal em que a converti em vampira, quando lhe cortei o cabelo loiro, que lhe voltou a crescer no término de um dia enquanto ela dormia o sonho de morte na cripta, como quase se voltou louca quando o advertiu. Lembrança que gritou e gritou até que alguém pôde acalmá-la. Não sei por que me veio ela à memória, salvo que fora porque eu adorava o cabelo do Gretchen. Não se parecia em nada ao Gabrielle. Em nada. Por último, o médico terminou de me tocar, me apertar e me auscultar, e saiu para conferenciar com ela. Maldito seja meu ouvido mortal. Mas sabia que estava quase curado. E quando ele voltou e se parou junto à cama e me disse que agora ia estar "bem", que só precisava descansar uns dias mais, eu lhe comentei que todo o devia aos cuidados do Gretchen. O homem reagiu com um enfático gesto de assentimento e uma série de murmúrios ininteligíveis; logo partiu, afundando-se na neve. Chegou-me o ruído tênue de seu automóvel quando se afastava. Sentia-me tão espaçoso e bem que me deu vontade de chorar. Em troca, bebi mais desse delicioso suco de laranja e comecei a pensar em coisas... a evocar coisas.

-Tenho que deixá-lo solo um ratito para ir comprar alguns mantimentos.

-Sim, e isso o pago eu -disse. Apoiei minha mão em sua boneca. Embora a voz ainda me saía rouca e débil, contei-lhe o do hotel, que ainda estava meu dinheiro ali, dentro do sobretudo. ia alcançar para lhe pagar a atenção e a comida e lhe pedi que fora para buscá-lo. A chave tinha que estar em minha roupa, expliquei-lhe. Ela tinha pendurado tudo em cabides e, efetivamente, a chave estava no bolso da camisa.

-Vê? Tudo o que lhe disse é verdade.

Sorriu-me com calidez. Disse que iria ao hotel a procurar o dinheiro se lhe prometia que me ia calar. Não era conveniente deixar dinheiro atirado por qualquer parte, nem sequer em um hotel elegante. Quis lhe responder, mas estava muito dormitado. Depois, pela ventanita a vi partir, cruzar a neve para seu automóvel. Vi que subía. Que figura forte, robusta, mas com pele clara e uma suavidade que a voltava encantada para olhar, e formosa para abraçar. Entretanto me deu medo que me deixasse. Quando voltei a abrir os olhos estava parada com meu sobretudo no braço. O dinheiro era muito, disse, e o trouxe tudo. Jamais tinha visto tanto tudo junto, em maços. Que pessoa estranha era eu. Em total eram uns vinte e oito mil dólares. Tinha fechado minha conta no hotel.

Eles perguntaram por mim. Tinham-me visto fugir em meio da neve. Fizeram-lhe assinar recibo por tudo. O papelito me deu isso, como se fora importante. Tinha meus outras pertences, a roupa que tinha comprado, que seguia em suas bolsas e caixas. Quis lhe dar as obrigado mas, onde estavam as palavras? Agradeceria-lhe quando voltasse para meu próprio corpo. depois de guardar tudo os objetos, preparou um jantar simples de caldo, pão e manteiga. Comemos juntos, com uma garrafa de vinho da que bebi uma quantidade muito superior a que ela considerava sensata. Devo dizer que esse pão, manteiga e vinho foram a melhor comida humana que tinha provado até esse momento, e o comentei. Pedi-lhe por favor mais vinho, porque essa bebedeira era absolutamente sublime.

-por que me trouxe aqui? -perguntei-lhe. sentou-se no bordo da cama de frente ao fogo, sem me olhar, e brincou com seu cabelo. Começou a me explicar de novo o da epidemia e o hospital repleto.

-Não. por que o fez? Havia outras pessoas ali.

-Porque você não se parece com ninguém que eu conheça. Faz-me acordar a um conto que li alguma vez..., sobre um anjo obrigado a baixar à terra dentro de um corpo humano.

Com súbita dor recordei o que Raglan James me havia dito de que eu pare,cía... um anjo. Pensei em meu outro corpo, poderoso, que perambulava pelo mundo sob seu odioso domínio. Lançou um suspiro e me olhou. Estava intrigada.

-Quando terminar isto, virei a vê-la com meu corpo verdadeiro. Descobrirei-me ante você. Possivelmente lhe interesse comprovar que não a enganei. E como é uma mulher tão forte, suspeito que a verdade não lhe fará mal.

-A verdade?

Expliquei-lhe que, quando nos descobríamos ante alguns mortais, freqüentemente os voltávamos loucos, porque fomos seres antinaturais e não conhecíamos a existência de Deus ou do diabo. Em soma, fomos como uma visão religiosa sem revelação. Uma experiência mística mas sem um núcleo de verdade. Evidentemente ficou subjugada. Uma luz sutil entrou em seus olhos. Pediu-me que lhe explicasse como foi que apareci em minha outra forma. Descrevi-lhe como me tinha feito vampiro aos vinte anos. Eu era alto para aquela época, loiro, de olhos claros. Contei-lhe de novo que me tinha queimado a pele no Gobi. Temia que o Ladrão de Corpos planejasse ficar com meu corpo para sempre, certamente se tinha partido a alguma parte, ocultando do resto da tribo, e estava tratando de aperfeiçoar o uso de meus poderes. Pediu-me que lhe contasse como era voar.

-parece-se mais a flutuar. A gente simplesmente sobe a vontade, se autoimpulsa em uma direção ou em outra. É um desafio à gravidade que não se parece com o vôo dos seres naturais. Dá medo. É a mais lhe atemorizem com nossas faculdades; acredito que nos faz mais danifico que nenhuma outra, nos cheia de desesperança, pois é a prova definitiva de que não somos humano. Temos medo de que algum dia vamos da terra e nunca mais voltemos a tocá-la.

Imaginei ao Ladrão de Corpos usando esse dom. Eu o tinha visto usá-lo.

-Não sei como cometi a tolice de lhe permitir levar um corpo tão potente como o meu. Cegou-me o desejo de ser humano.

Ela me olhava, com as mãos entrelaçadas e uma grande serenidade em seus grandes olhos.

-Você acredita em Deus? -perguntei-lhe, e assinalei o crucifixo da parede-. Acredita nesses filósofos católicos, os dos livros da biblioteca?

Pensou-o um comprido instante.

-Não da maneira em que me pergunta isso.

Sorri.

-Como, então?

-levei uma vida sacrificada desde que tenho memória. Nisso acredito. Acredito que devo fazer tudo o que esteja a meu alcance para aliviar o sofrimento. Isso é quão único posso fazer, e é algo imenso. trata-se de um grande dom, como o seu de voar.

Desconcertou-me. Nunca tinha pensado que o trabalho de enfermeira tivesse que ver podendo algum. Mas a entendi perfeitamente.

-Tratar de conhecer deus pode tomar-se como um pecado de orgulho, ou um enguiço da imaginação -disse-. Mas quando vemos o sofrimento, todos sabemos o que é. Conhecemos a fome, a privação. Eu trato de aliviar esses maus. Essa é a medula de minha fé. Mas para lhe responder com sinceridade..., sim, acredito em Deus e no Jesucristo. Igual a você.

-Não, eu não acredito.

-Quando estava com febre falava sobre Deus e o diabo como nunca ouvi falar com ninguém.

-Falava de aborrecidos argumentos teológicos.

-Não; dizia que não eram pertinentes.

-Seriamente?

-Sim. Você, quando vê o bem, sabe reconhecê-lo. Ao menos isso disse. Eu também. Dedico minha vida a tratar de fazê-lo.

Suspirei.

-Compreendo. me diga, me teria morrido se não me tirava do hospital?

-Pode ser. Sinceramente não sei.

Dava-me muito prazer o solo feito de olhá-la. Seu rosto era amplo, de poucos contornos e sem nada de beleza elegante nem aristocrática. Mas beleza tinha em abundância. E os anos tinham sido generosos com ela. Não estava desgastada pelas preocupações. Pressenti que aninhava em seu interior uma tenra sensualidade, sensualidade em que ela não confiava, como tampouco alimentava.

-explique-me isso de novo. Disse que queria ser cantor de rock para fazer o bem? Pretendia ser bom convertendo-se em símbolo do mal? me conte um pouco mais sobre isso.

Contei-lhe, claro. Disse-lhe como o tinha feito, que reuni a uma pequena banda, "A noite de Satanás", e converti a seus integrantes em profissionais. Disse-lhe que fracassei, que houve conflitos entre os de minha espécie, que eu mesmo tinha sido retirado pela força e toda a derrota tinha acontecido sem rasgá-la tecido racional do mundo mortal. Tinha-me visto forçado a voltar para a invisibilidade.

-Não há lugar para nós sobre a terra. Talvez antes o houve, não sei. O fato de que existamos não é nenhuma justificação. Os caçadores erradicaram aos lobos do mundo. Pensei que, se dava a conhecer nossa existência, os caçadores nos erradicariam também . Ninguém acredita em nós. E assim deve ser. Possivelmente seja necessário que morramos na desesperança, que nos esfumemos do mundo muito lentamente, sem produzir som algum. "Só que não posso suportá-lo. Não suporto estar calado e não ser nada, tirar a vida com prazer, lombriga rodeado por toda parte pelas criações e os lucros dos mortais e não poder ser um deles, a não ser ser Caín. O solitário Caín. Esse é o mundo para mim, o que os mortais fazem e têm feito. Não é absolutamente o grandioso mundo natural. Se fosse o mundo natural, possivelmente, sendo imortal, o teria passado melhor do que o passei. São as proezas dos mortais. Os quadros do Rembrandt, os mausoléus na cidade capital sob a neve, as grandes catedrais. E nós estamos eternamente afastados dessas coisas -e com toda razão-, embora as vemos com nossos olhos de vampiros.

-por que intercambiou seu corpo com um humano?

-Para poder caminhar ao sol durante um dia. Para pensar, respirar e sentir como mortal. Talvez para pôr a prova uma crença.

-Qual?

-Que o único que queremos é voltar a ser mortais, que lamentamos ter renunciado a isso, que não valia a pena perder nossa alma humana para alcançar a imortalidade. Mas agora sei que estava equivocado.

De repente pensei na Claudia. Recordei os pesadelos. Uma enorme quietude se apoderou de mim. Quando voltei a falar, foi um calado ato de vontade.

-Prefiro toda a vida ser vampiro. Eu não gosto de ser mortal. Não me agrada me sentir débil, doente, frágil nem sentir dor. É horrível. Quero recuperar quanto antes meu corpo.

Notei-a um tanto espantada.

-Apesar de que quando está no outro corpo mata e bebe sangue; embora o odeia e se odeia a si mesmo.

-Não o odeio. Tampouco me odeio mesmo. Não vê? Essa é a contradição. Jamais me odiei.

-Você me disse que era o diabo, que quando eu o ajudava estava ajudando ao demônio. Não diria essas coisas se não o odiasse.

Não lhe respondi.

-Minha major pecado -disse logo- foi sempre que me divirto muito comigo mesmo. Sempre sinto culpa, aversão moral para mim mesmo, mas assim e todo o passo bem. Sou forte; sou uma criatura de grandes paixões e muito voluntariosa. Precisamente esse é o núcleo do dilema que me apresenta: como posso desfrutar tanto sendo vampiro, se for algo mau? Ah, é uma velha história. Os homens resolvem quando vão à guerra. convencem-se de que existe uma causa. Logo experimentam a emoção de matar, como se fossem meras bestas. E as bestas a conhecem, claro que sim. Os lobos a conhecem. Conhecem a fascinação pura de despedaçar a sua presa. Eu a conheço.

Durante comprido momento pareceu perdida em seus pensamentos. Estirei um braço e lhe toquei a mão.

-Venha, deite-se e durma. Deite-se de novo a meu lado. Não lhe farei mal. Não posso. Estou muito doente. -Soltei uma risada. -Você é muito formosa -disse-. Jamais me ocorreria lhe fazer danifico. Só quero tê-la perto. Está voltando a noite e quero que se loja aqui ao lado.

-Tudo o que diz o diz a sério, verdade?

-É obvio.

-dá-se conta de que é como um menino? Tem uma grande simplicidade. A simplicidade de um santo.

Ri-me.

-Minha querida Gretchen, me esta entendendo mal em um pouco muito importante... embora ao melhor não. Se eu acreditasse em Deus, se acreditasse na salvação, suponho que teria que ser um santo.

Refletiu comprido momento; logo me contou em voz baixa que fazia apenas um mês tinha tomado licença nas missões do estrangeiro. Veio da Guyana Francesa ao Georgetown a estudar na universidade, e no hospital só trabalhava de voluntária.

-Sabe a verdadeira razão pela qual pedi licença?

-Não. diga-me isso Con voz soñolienta agregó:

-Queria conhecer um homem, a tibieza de estar perto de um homem. Queria saber como era, uma só vez. Tenho quarenta anos e nunca estive com um homem. Você falou de aversão moral; essas foram as palavras que usou. Eu sentia aversão por minha virgindade, pela perfeição absoluta da castidade. Com independência do que acredito, parecia-me algo covarde.

-Entendo-lhe. Certamente fazer o bem nas missões à larga não tem nada que ver com a castidade.

-Pelo contrário, estão muito relacionados, mas porque o trabalho intenso é possível só se a gente tiver a mente posta em uma só coisa e não está casado com ninguém, salvo com Cristo.

Admiti saber o que me queria dizer.

-Mas se o renunciamiento se converte em um obstáculo para o trabalho -disse-, é melhor conhecer o amor de um homem, verdade?

-Isso é o que pensei. Sim. Viver a experiência e logo retornar ao trabalho de Deus.

-Exato.

Com voz sonolenta adicionou:

-estive procurando o homem. No momento.

-Então essa é a resposta a por que me trouxe aqui.

-Talvez. Deus sabe muito bem que todos outros me causavam muito medo. A você não tenho medo. -Olhou-me como surpreendida de suas próprias palavras.

-Venha, deite-se e durma. Já vou ter tempo de me curar, e você de estar segura do que deseja. Jamais me ocorreria forçá-la, lhe fazer nada que pudesse ser cruel.

-Mas, por que, se for o diabo, fala com tanta bondade?

-Já lhe disse: esse é o mistério. Ou é a resposta, uma coisa ou a outra. Venha, deite-se a meu lado.

Fechei os olhos. Senti-a meter-se sob as mantas, a pressão morna de seu corpo contra o meu, seu braço que me cruzava o peito.

-Sabe uma coisa? Este aspecto de ser humano é prazenteiro.

Estava médio dormido quando a ouvi sussurrar:

-Acredito conhecer a razão pela qual você pediu licença -disse- Possivelmente não saiba.

-Imagino que não me crie -murmurei. As palavras foram saindo lentamente. Que formoso foi voltar a rodeá-la com meu braço, colocar sua cabeça contra meu pescoço. Beijei-lhe o cabelo, encantado com essa suave elasticidade sobre meus lábios.

-Há uma razão secreta para que tenha baixado à terra e entrado no corpo de um humano. A mesma razão pela qual o fez Jesucristo.

-Qual?

-A redenção.

-Ah, ser salvado. Isso sim que seria lindo, não?

Quis dizer algo mais, quão impossível era pensar sequer em semelhante costure, mas me estava deslizando para o sonho. E soube que não me ia encontrar com a Claudia. Possivelmente depois de tudo não tivesse sido um sonho a não ser só uma lembrança. Eu estava com o David no Rijksmuseum, contemplando o grande quadro do Rembrandt. Ser salvado. Que idéia, que idéia atrativa, extravagante e impossível... Que estupendo ter encontrado à única mortal sobre a face da terra que acreditasse seriamente em semelhante costure. E Claudia já não ria. Porque estava morta.

 

Primeira hora do alvorada, quando está por sair o sol. A hora em que, no passado, freqüentemente me encontrava meditando, cansado, meio apaixonado por cambiante céu. Banhei-me lentamente, com esmero, no quartinho de banho cheio de luz tênue e vapor. Tinha a mente limpa e sentia regozijo, como se o fato de que a enfermidade me tivesse dado trégua fosse uma forma de felicidade. Barbeei-me com cuidado até que a pele ficou totalmente suave e depois, registrando no pequeno estojo de primeiro socorros depois do espelho, encontrei o que procurava: as funditas de borracha que a poriam a salvo de mim, da possibilidade de que lhe plantasse um bebê em suas vísceras, para que este corpo não lhe acontecesse nenhuma outra semente sombria e pudesse prejudicar a de formas que eu não podia prever.

Estranhos esses objetos, luvas para o membro. Me teria gostado de atirá-los, mas estava decidido a não cometer os enganos de antes. Fechei a puertita-espelho tratando de não fazer ruído. Só então vi um telegrama pego com cinta na parte superior, um retângulo de papel amarelado com letras algo confusas:

 

               GRETCHEN, RETORNA, NECESSITAMO-LHE

               NÃO FAREMOS PERGUNTAS. ESPERAMO-LHE

 

A data era muito recente, de apenas uns dias antes. E o lugar de origen, Caracas, Venezuela. Aproximei-me da cama com supremo cuidado para não fazer ruído, e coloquei os pequenos dispositivos de segurança sobre a mesita, preparados. Voltei a me deitar a seu lado e comecei a beijar sua boca dormida. Lentamente beijei suas bochechas, seus olhos. Quis sentir suas pestanas com meus lábios. Quis sentir a carne de seu pescoço. Não para matar: para beijar; não por posse a não ser para essa breve união física que não roubaria nada a nenhum dos dois; pelo contrário, uniria-nos em um prazer muito agudo, semelhante à dor. Pouco a pouco foi despertando sob minhas carícias.

-Confia em mim -murmurei-. Não te farei mal.

-Mas é que quero que me faça mal -disse-me ao ouvido. Com muita suavidade lhe tirei a grossa camisola. Ficou deitada de barriga para cima, me olhando, seus peitos formosos como toda ela, as auréolas dos mamilos muito pequenas e rosadas, e os mamilos mesmos, duros. Seu ventre era suave, seus quadris largos. Uma encantadora sombra de cabelo marrom entre as pernas, reluzindo à luz que se filtrava pelas janelas. Inclinei-me e beijei esse cabelo. Beijei suas coxas, separei suas pernas com a mão, até que se abriu para mim a carne morna do interior, e senti meu membro rígido, preparado. Contemplei seu lugar secreto, coberto, pudico, e um rosa escuro em seu tenro véu de penugem. Uma excitação aguda me percorreu, endurecendo mais meu membro. Podia havê-la forçado, tão urgente era a sensação que me alagava. Mas não, esta vez não. Subí, pus a seu lado, dava-lhe volta a cara e aceitei seus beijos, lentos, torpes, inexperientes. Senti sua perna apertada contra a minha, suas mãos sobre mim, procurando a tibieza de minhas axilas, o úmido cabelo inferior desse corpo de homem, escuro, grosso. Era meu corpo, e estava preparado para ela, à espera. Foi meu assumo o que tocou, aparentemente agradada com sua dureza. Meus braços, os que beijou como se valorasse sua força. A paixão que havia em mim diminuiu levemente, mas imediatamente voltou a crescer, logo se apagou de novo, e uma vez mais aumentou. Não veio a minha mente nenhuma idéia de beber sangue; nada que tivesse que ver com a possante vida dela que em outra época eu podia ter consumido. Pelo contrário, o momento esteve perfumado com o suave calor de seu corpo vivente. E me pareceu uma baixeza que algo pudesse danificá-la, que algo pudesse arruinar seu mistério elementar, o mistério de sua confiança, de seu desejo, de seu medo profundo e também elementar. Deslizei minha mão até a puertita; que pena que essa união fora a ser tão parcial, tão breve. Depois, quando meus dedos mediram a virginal passagem, o fogo dominou seu corpo. Seus seios se incharam contra mim, e a senti abrir-se, pétala a pétala, ao tempo que sua boca, dura, pegava-se contra a minha. Mas, e os perigos? Não a inquietavam? Parecia despreocupada em sua paixão, totalmente sob meu domínio. Fiz um esforço para me deter, abrir o sobrecito e envolver meu órgão com a pequena capa, enquanto seus olhos passivos seguiam cravados em mim, como se já não tivesse vontade própria. Era essa entrega a que necessitava, a que seu próprio ser se exigia. Uma vez mais me pus a beijá-la. Estava úmida, lista para mim e não podia me conter mais, e quando me subí sobre seu corpo, notei a estreita passagem apertada, quente e enloquecedor, banhado em seus próprios sucos. Vi que o sangue subía a suas bochechas e o ritmo se acelerava; inclinei meus lábios para lamber seus mamilos, para reclamar novamente sua boca. Quando deixou escapar o gemido final, foi como um gemido de dor. E aí estava outra vez o mistério: que algo pudesse ser tão perfeito, consumado, e ter durado tão pouco, um instante invalorable. Tinha sido união? Fundimo-nos um com o outro no clamoroso silêncio? Não acredito que tenha sido união. Pelo contrário, pareceu-me a mas violenta das separações: dois seres opostos que se jogavam em braços um do outro, em zelo, torpemente, desconhecendo os sentimentos insondáveis do outro, uma vivencia de doçura terrível como sua brevidade, de uma solidão hiriente como seu inegável fogo

Nunca ela me tinha parecido tão frágil como me pareceu nesse momento, com os olhos fechados, a cabeça volta contra o travesseiro, seus peitos já aquietados. Pareceu-me uma imagem para provocar violência, para produzir a mais desenfreada crueldade no coração masculino. Isso a que se devia? Não queria que nenhum outro mortal a tocasse! Não queria que sua própria culpa a tocasse. Não queria que o remorso a afetasse, que a roçasse nenhum dos outros males da mente humana. Só então voltei a pensar no Dom Misterioso, e não na Claudia a não ser no doce esplendor palpitante que foi fazer ao Gabrielle. Armada de fortaleza e certeza, ela tinha iniciado seu perambular sem sentir jamais tortura moral algum quando começaram a rodeá-la-as infinitas complexidades do grande mundo. Mas, quem podia saber o que era capaz de brindar o Sangue Misterioso a qualquer alma humana? E essa mulher, uma pessoa virtuosa, que acreditava em deuses antigos e implacáveis, bebia o sangue de mártires e o embriagador sofrimento de mil Santos. Ela por certo nunca ia pedir nem aceitar o Dom Misterioso, como tampouco o faria David. Mas, o que importavam essas questões ela minta não soubesse com certeza que o que eu dizia era verdade? E se alguma vez podia lhe demonstrar minha sinceridade? E se alguma vez voltava a ter o Sangue Misterioso dentro de mim para dar-lhe a ninguém, e ficava eternamente encerrado dentro dessa carne mortal? Permaneci calado, olhando como a habitação se ia enchendo de claridade. Vi chegar a luz ao corpo do Cristo crucificado que havia sobre a biblioteca; vi-a cair sobre a cabeça inclinada da Virgem. Acurrucados um contra o outro, voltamos a dormir.

 

Meio-dia. Tinha-me posto a roupa nova que comprei o último desgraçado dia de meu perambular: pulôver branco de mangas largas, modernas calças de denim desbotados. Armamos uma espécie de pic nic frente ao fogo crepitante, para o qual estendemos uma manta sobre o tapete. Sobre ela nos sentamos a comer juntos o café da manhã tardio, enquanto Molho devorava o seu no piso da cozinha. O menu foi uma vez mais pão francês com manteiga, suco de laranja, ovos duros e fruta atalho, em grosas fatiadas. Eu me alimentava com vontades, sem emprestar atenção às advertências do Gretchen de que ainda não estava curado de tudo. Sentia-me muito bem, e até seu pequeno termômetro digital assim me indicava isso. Tinha que viajar a Nova Orleáns. Se o aeroporto estava aberto, talvez pudesse estar ali ao anoitecer. Mas não queria deixá-la nesse momento. Pedi-lhe vinho, Queria falar. Queria compreendê-la, e também tinha medo de deixá-la, de estar sozinho, sem sua companhia. A perspectiva da viagem em avião introduziu em minha alma um temor covarde. Além disso, agradava-me estar com ela... Tinha-me estado falando sobre sua vida nas missões, do muito que lhe tinha gostado sempre. Os primeiros anos os passou no Peru, e dali foi ao Yucatán. Seu último destino tinha sido na selva da Guyana Francesa, um lugar de primitivas tribos indígenas. A missão se chamava Santa Margarida María e ficava a seis horas de viagem, subiendo pelo rio Maroni em canoa a motor, da cidade do St. Laurent. junto com as outras monjas havia reacondicionado a capela de material, a escuelita grafite de branco e o hospital. Mas freqüentemente tinham que deixar a missão e ir visitar às pessoas das aldeias. Esse trabalho adorava, disse. Mostrou-me muitas fotos, pequenas imagens coloridas das humildes construções da missão, dela e suas irmãs, e do sacerdote que ia oficiar missa. Nenhuma dessas monjas usava hábitos nem véu; levavam roupa de algodão branco ou cor cáqui e o cabelo solto (eram verdadeiras monjas de trabalho, explicou). E aí estava ela, radiante, feliz, sem essa expressão meditativa que lhe notava agora. Em uma das tomadas aparecia rodeada de índios de tez moréia, diante de uma estranha edificação com complicados gravados em suas paredes. Em outra estava aplicando uma injeção a um ancião espectral, e este sentado em uma cadeira grafite de chamativa cor. A vida nessas aldeias selvagens era a mesma desde fazia séculos, disse. Esses povos existiam desde muito antes de que os franceses ou espanhóis tivessem posto um pé sobre a Sudamérica. Não era fácil conseguir que confiassem nos médicos e os sacerdotes. Não lhe importava se aprendiam ou não as orações, mas sim se preocupava com as vacinas e por uma adequada higiene das feridas infectadas. Preocupava-lhe acomodar ossos quebrados para que essa gente não ficasse entrevada para sempre. Certamente, queriam que ela retornasse. Tinham tido muita paciência com seu pedido de licença. Necessitavam-na. O trabalho a aguardava. Mostrou-me o telegrama, que eu já tinha visto pego na parede do banho.

-Estranhas isso, é evidente -disse. Estava-a observando, esperando ver signos de culpa pelo que tínhamos feito juntos. Mas não lhe vi nenhum. Tampouco a notava angustiada pelo telegrama.

-É obvio, vou retornar -declarou com simplicidade-. Possivelmente te pareça absurdo, custou-me sair daí. Mas a questão da castidade se transformou em uma obsessão destrutiva.

Como não a ia entender. Olhou-me com seus olhos grandes, serenos.

-E agora já sabe -disse- que não é importante absolutamente que te deite ou não com um homem. Não é isso o que averiguou?

-Possivelmente -admitiu com uma sonrisada. Que forte parecia, sentada ali sobre a manta, as pernas castamente dobradas para um lado, o cabelo solto ainda, mais semelhante a um véu de monja aí nessa habitação que em nenhuma das fotos.

-Como começou tudo em ti? -quis saber.

-Pensa que é importante? Não acredito que aprove minha história se lhe a conto.

-Eu gostaria de conhecê-la.

Era filha de um casal católico, a mãe professora e o pai contador na zona do Bridgeport, Chicago, e desde pequena demonstrou talento para o piano. Toda a família se sacrificou para lhe pagar as classes com um famoso professor.

-Já vê, o renunciamiento -disse, com a mesma sonrisada de antes- sempre. Só que nesse então era pela música, não pela medicina. Mas já naquela época era extremamente religiosa, lia as vistas dos Santos e sonhava sendo Santa, trabalhando em missões no estrangeiro. Fascinava-lhe principalmente Santa Rosa de Lima, a mística, quão mesmo São Martín do Porres, que tinha trabalhado mais no mundo. E Santa Rita. Algum dia queria dedicar-se aos leprosos, encontrar um trabalho que fora absorvente, heróico. De menina tinha construído um pequeno oratório detrás de sua casa, onde passava horas ajoelhada ante um crucifixo esperando que se abrissem em suas mãos e seus pés as feridas de Cristo, o estigma.

-Essas histórias me tomava muito a sério. Os Santos eram reais para mim. Atrai-me a possibilidade do heroísmo.

-Heroísmo -repeti. Minha palavra. Mas que distinta era a definição que eu lhe dava. Não quis interrompê-la.

-Dava-me a impressão de que o piano se opunha a minha espiritualidade. Eu queria renunciar a tudo pelo próximo, o qual incluía renunciar também ao piano, especialmente ao piano. Isso me entristeceu.

Pareceu-me que não tinha relatado essa história freqüentemente, e falava com voz muito apagada.

-Mas, e a felicidade que produzia em outros quando tocava? -perguntei-lhe-. Isso não valia nada?

-Agora posso dizer que sim -reconheceu baixando ainda mais a voz. As palavras lhe saíam com penosa lentidão. -Mas nesse então... Não estava segura. Não era pessoa para esse talento. Não me incomodava que me escutassem, mas não queria que me vissem. -ruborizou-se ao me olhar. -Ao melhor, se houvesse meio doido no coro de uma igreja, ou detrás de um biombo, teria sido distinto.

-Entendo. Há muitos humanos que sentem o mesmo.

-Mas você não, verdade?

Disse-lhe que não movendo a cabeça. Explicou-me quanto tinha sofrido quando a faziam vestir-se de encaixe branco para tocar diante de público. O fazia para agradar a seus pais e professores. Participar dos certámenes a mortificava, mas quase sem exceção ganhava. Aos dezesseis anos sua carreira se converteu em uma empresa familiar.

-Mas, a música mesma, desfrutava-a?

Pensou-o um momento.

-Punha-me em êxtase. Quando tocava estando sozinha..., sem ninguém que me olhasse, entregava-me totalmente. Era quase como estar sob a influência de uma droga. Algo... quase erótico. Às vezes as melodias me obcecavam, davam-me voltas continuamente pela cabeça. Perdia a noção do tempo quando estava ao piano. Até o dia de hoje não posso escutar música sem me sentir transportada. Aqui nesta casa não vê rádios nem gravadores. Não posso ter essas coisas nem sequer hoje.

-Mas, por que lhe nega isso? -Olhei em redor. Tampouco havia um piano. Sacudiu a cabeça para lhe subtrair importância.

-O efeito é muito substância absorvente, não te dá conta? Sou capaz de me esquecer de tudo. E quando me ocorre isso, não consigo fazer nada. Sotaque a vida em suspense, por assim dizê-lo.

-Mas, Gretchen, acaso é verdade? Para alguns de nós, esses sentimentos tão intensos som a vida! Nós procuramos o êxtase. Nesses momentos..., transcendemos toda a dor, a mesquinharia, a luta. Assim sentia eu quando estava vivo. Assim sinto agora.

ficou lhe reflita, o rosto sereno, relaxado. Quando falou, fez-o com convicção.

-Quero mais que isso -disse-. Quero algo mais evidente e construtivo. Para dizê-lo de outro modo, não posso desfrutar desse prazer se souber que há outros que sofrem fome e enfermidades.

-Mas no mundo sempre haverá padecimentos. E a gente necessita a música, Gretchen, da mesma maneira que necessita o alimento.

-Não sei se concordar contigo. De fato, estou segura de que não. Tenho que dedicar minha vida a aliviar a dor. me acredite que todos estes argumentos já os analisei muitas vezes.

-OH, mas preferir cuidar doentes antes que a música -disse-. Não o posso entender. Claro que o trabalho da enfermeira é louvável. -Estava tão pesaroso que me custava continuar. -Como foi que tomou a decisão? Não se opôs sua família?

Seguiu contando. Quando tinha dezesseis anos, a mãe caiu doente durante meses e se ignorava a causa. A mãe estava anêmica, vivia com febre e chegou um momento em que já foi óbvio que se estava consumindo. Lhe fizeram estudos, mas os médicos não davam na tecla. Todos estavam seguros de que ia morrer. O clima da casa estava infectado de dor, inclusive de rancor.

-Pedi-lhe um milagre a Deus -disse-. Prometi-lhe que, se salvava a minha mãe, jamais ia voltar a tocar as teclas de um piano. Prometi entrar em um convento apenas me permitissem isso, assim poderia dedicar minha vida a cuidar doentes e moribundos.

-E sua mãe se curou.

-Sim. Ao cabo de um mês se recuperou totalmente. Na atualidade vive. aposentou-se e dá classes a alunos particulares... em um bairro de negros de Chicago. Após nunca teve a mais mínima enfermidade.

-E você cumpriu a promessa?

Assentiu.

-Entrei na ordem das Irmãs Missionárias aos dezessete, e elas me fizeram seguir estudos terciários.

-Também cumpriu a promessa de não voltar a tocar o piano?

-Assim é -limitou-se a dizer, sem manifestar nostalgia nem arrependimento algum. Tampouco parecia ansiosa por contar com minha compreensão ou aprovação. Em realidade, eu sabia que captava minha tristeza, e além disso estava um pouco preocupada comigo.

-Foi feliz no convento?

-OH, sim. Não o vê? As pessoas como eu não podem levar uma vida comum. Tenho que fazer algo difícil, tenho que correr riscos. Entrei nessa ordem porque tinham missões nos lugares mais remotos e perigosos da Sudamérica. Não te posso dizer o que eu gostei dessas selvas! -Sua voz se fez mais baixa, quase premente.

-Não me importam o calor nem os perigos. Há momentos em que estamos todos ultrapassados de trabalho, com o hospital abarrotado, e temos que deitar aos enfermitos fora, sob um abrigo e em redes, e eu sinto tanta vida interior! Não te dá uma idéia. Interrompo-me apenas para me secar o suor da cara, me lavar as mãos e possivelmente beber um copo de água, penso: estou viva, estou aqui, fazendo coisas importantes.

Novamente sorriu.

-É outro tipo de intensidade -sustentei-, um pouco totalmente distinto que fazer música. Vejo a diferença fundamental.

Recordei as palavras do David quando me contou sua vida, como tinha procurado a emoção no perigo. Ela estava procurando a emoção no renunciamiento total. Ele procurou o perigo do oculto no Brasil. Gretchen procurou o duro desafio de restabelecer a saúde de milhares de seres anônimos, eternamente pobres. Isso me perturbou até o mais fundo.

-Há também um pouco de vaidade nisso, certamente -reconheceu-. A vaidade sempre é inimizade. Isso era o que mais me incomodava de mi... minha castidade: o orgulho com que a vivia. Mas até o fato de voltar deste modo aos Estados Unidos constituía um risco. Estava aterrada quando desci do avião, quando me dava conta de que estava aqui, no Georgetown, e nada me impediria de estar com um homem se o desejava. Acredito que foi o medo o que me levou a hospital a trabalhar. Deus sabe muito bem que a liberdade não é fácil.

-Essa parte a compreendo. Mas, como reagiu sua família ante sua promessa de renunciar à música?

-No primeiro momento não se inteiraram, não o contei a ninguém. Anunciei minha vocação e me mantive firme. Houve muitas recriminações. depois de tudo, meus irmãos tinham tido que vestir-se com roupa de segunda mão para que eu pudesse tomar classes de piano. Mas isso passa com freqüência. Nem sequer em uma boa família católica se recebe com tambores grandes e pires a notícia de que uma filha queira fazer-se monja.

-Sofreram pelo talento que tinha.

-Sim, sim -disse, arqueando levemente as sobrancelhas. Que sincera e tranqüila parecia. Não dizia nada com dureza, com frieza. -Mas eu tinha uma visão de algo imensamente mais importante que tocar o piano em um concerto ou me levantar do tamborete para receber um ramo de rosas. Passou muito tempo até que por fim lhes contei o da promessa.

-Anos?

Assentiu sem palavras.

-Entenderam-no -disse logo-. Viram o milagre. Não podiam menos. Fiz-lhes notar que me sentia mais afortunada que todas as que tinham entrado em convento. Tinha recebido um sinal evidente de Deus. Ele havia resolvido os conflitos a todos.

-Crie nisso.

-Sim, acredito. Mas em certo sentido não importa que seja certo ou não. E se houver alguém que deveria compreendê-lo, é você.

-por que?

-Porque falas de verdades religiosas e idéias religiosas e sabe que importam embora só sejam metáforas. Isso foi o que te ouvi quando delirava.

Lancei um suspiro.

-Alguma vez te dá vontade de voltar a tocar o piano? Não quer... digamos, encontrar um salão vazio, com um grande piano no cenário, e te sentar A...?

-claro que sim, mas não o posso fazer e não o farei. -Seu sorriso era verdadeiramente formoso.

-Gretchen, esta história tem algo tremendo. por que, sendo uma garota católica, não podia tomar seu talento musical como um dom de Deus, um dom que não devia desperdiçar-se?

-Eu sabia que me mandava isso Deus, mas vi uma bifurcação em meu caminho. Sacrificar o piano foi a oportunidade que Deus me deu de servir o de uma maneira especial. Lestat, o que podia significar a música em comparação com o fato de ajudar a pessoas, a centenas de pessoas?

Meneei a cabeça.

-Acredito que se pode considerar igualmente importante à música.

Meditou comprido momento antes de responder.

-Eu não podia continuar. É possível que tenha usado a enfermidade de minha mãe... Tinha que ser enfermeira. Não via outro caminho para mim. A pura verdade é que... não posso viver quando me enfrento com a miséria do mundo. Não posso justificar o conforto ou o prazer quando há outra gente que sofre. Não sei como outros podem.

-Não pensará que pode trocar tudo, Gretchen.

-Não, mas posso viver minha vida produzindo um efeito sobre muitas, muitas vidas individuais. Isso é o que conta.

A história me afetou tanto, que não pude ficar aí sentado. Levantei-me para estirar as pernas intumescidas e fui até a janela a olhar o campo de neve. Me teria sido fácil desprezar tudo se ela tivesse sido uma pessoa queixosa ou deficiente mental, ou uma pessoa afligida pelos conflitos e a instabilidade. Mas nada mais longe da verdade. Gretchen me era quase insondável. Era o contrário de mim, como tantas décadas atrás o tinha sido meu amigo mortal Nicolás. Não porque se parecesse com ele mas sim porque no cinismo do Nicolás, em sua eterna rebelião, havia certa renúncia de si mesmo que jamais pude compreender. Meu Nicki, tão cheio de aparente excesso e excentricidade..., que entretanto desfrutava com o que fazia, mas só porque causava ardência a outros. Renunciar a gente mesmo: nisso se resumia tudo. Voltei-me. Ela estava me olhando. Uma vez mais tive a sensação de que não lhe importava muito o que eu dissesse. Não me pedia compreensão. Em certo sentido, era uma das pessoas mais fortes que tinha conhecido em minha larga vida. Com razão me tirou do hospital; outra enfermeira não teria querido semelhante carrega.

-Gretchen, alguma vez teme ter esbanjado sua vida? Alguma vez pensa que o sofrimento e a enfermidade seguirão existindo muito tempo depois de que vá desta terra, e que sua obra não significará nada no intuito geral?

-O intuito geral é o que não significa nada. O ato pequeno o é tudo. É obvio que o sofrimento continuará quando eu já não esteja, mas o importante é que fiz tudo o que pude. Esse é meu triunfo, minha vaidade. Essa é minha vocação e meu pecado de orgulho. Essa é minha classe de heroísmo.

-Mas, chérie, estaria no certo só se houvesse alguém que levasse a conta, algum Ser Supremo que ratificasse sua decisão, se te recompensasse por suas obras ou ao menos as defendesse.

-Não. Nada mais longe da verdade -contradisse-me, escolhendo com cuidado as palavras-. Pensa um pouco: isto que te hei dito evidentemente é novo para ti. Talvez é um segredo religioso.

-por que o diz?

-Muitas noites fico acordada pensando que talvez não exista um Deus pessoal, que sempre vão existir meninos que sofrem, como se vê diariamente em nossos hospitais. Penso nos eternos dilemas, como por exemplo, por que Deus permite que um menino sofra. Dostoievski expôs esse interrogante, quão mesmo Albert Camus, o escritor francês. Nós mesmos o estamos expondo. Mas em definitiva não importa. Deus pode existir ou não, mas a miséria é real, totalmente real e inegável e meu compromisso é para com essa realidade: esse é o nó de minha fé. Tenho que fazer algo por solucioná-la!

-E quando te chegar o momento da morte, se não existir Deus...

-Não importa. Saberei o que fiz o que estava a meu alcance. A hora de minha morte poderia ser este instante. -encolheu-se de ombros. -Não me faria trocar minha maneira de pensar.

-Por isso é que não sente culpa de que tenhamos tido relações ontem.

Pensou-o.

-Culpa? Sinto alegria quando penso nisso. Não te dá conta do que tem feito por mim? -Lentamente seus olhos se encheram de lágrimas. -Vim aqui a te conhecer, a estar contigo. Agora já posso voltar para a missão.

Inclinou a cabeça uns instantes até que recuperou a compostura. Logo levantou o olhar e retomou a palavra.

-Quando me contava que a essa menina, Claudia, tinha-a feito... quando falava de ter feito entrar no Gabrielle, sua mãe, em seu mundo... disse estar procurando algo. Poderia chamá-lo transcendência? Quando eu trabalho na missão até ficar exausta, transcendo. Transcendo a dúvida e algo... um pouco possivelmente sombrio e irremediável que levo em meu interior. Não sei.

-Sombrio e irremediável, sim; é isso, não? A música não lhe remediava isso.

-Sim, o fazia; mas era falso.

-por que falso? por que diz que era falsa uma atividade boa, como tocar o piano?

-Porque não fazia muito pelos outros, por isso.

-claro que sim. Dava-lhes prazer, isso é seguro.

-Prazer?

-Perdoa, escolhi um término inadequado. A vocação te tem feito esquecer de ti mesma. Quando tocava o piano, foi você mesma, não o vê? Foi a Gretchen única! Esse é precisamente o significado da palavra "virtuoso". E você queria te perder, a ti mesma.

-Acredito que tem razão. A música não era meu caminho.

-Gretchen, assusta-me.

-Não deveria te assustar. Não estou dizendo que o outro caminho estivesse equivocado. Se você fazia o bem com sua música, durante esse breve período como cantor de rock que me contou, essa era sua maneira de fazer o bem. A minha é outra, nada mais.

-Não; em ti há um renunciamiento feroz. Está faminta de amor, do mesmo modo que eu de noite tenho fome de sangue. Com seu trabalho de enfermeira te está castigando, nega seus desejos carnais, seu gosto pela música e por todas as coisas do mundo que são como a música. É como um virtuoso, não há dúvida; um virtuoso de seu próprio sofrimento.

-Está equivocado, Lestat -repôs ela com outro sorriso-. Sabe que não é verdade. Isso é o que quer acreditar de uma pessoa como eu. me escute: se tudo o que me houver dito é certo, à luz dessa verdade, não é óbvio que seu destino era me encontrar?

-Como é isso?

-Vêem, sente-se aqui comigo e conversemos.

Não sei por que vacilei, que medos tinha. Por último, retornei à manta e me sentei apoiando as costas contra o flanco da biblioteca com as pernas cruzadas.

-Não te dá conta? Eu represento um caminho oposto, um caminho que jamais te ocorreu pensar e que possivelmente te traria o consolo que buscas.

-Gretchen, não me irás dizer que crie tudo o que te hei dito sobre minha pessoa. Não espero que o cria.

-Acredito-te até a última palavra! E não importa a verdade literal. Está procurando algo que os Santos procuravam quando renunciavam a sua vida normal, quando entravam em serviço de Cristo. E não importa que não cria no Jesucristo. O que importa é que sofreste muito na vida que levou até agora, que sofreu ao ponto da loucura, e que minha opção te oferece uma possibilidade distinta.

-Propõe-me isto ?

-É obvio. Não vê como foi tudo? Entra neste corpo, cai em minhas mãos, brinda-me o momento de amor que eu procuro. Mas, o que te dei eu a ti? O que significo eu para ti?

Levantou a mão para que não a interrompesse.

-Não, não volte a me falar de grandes intuitos. Não pergunte se existir um Deus literal. Pensa em tudo o que te hei dito. Hei-o dito refiriéndome a mim, mas também a ti. Quantas vistas tiraram nessa existência teu sobrenatural? Quantas vistas salvei eu -concretamente- nas missões?

Estive a ponto de negar toda a possibilidade, quando de repente me ocorreu esperar, ficar calado, refletir. Estremeci-me de só pensar, uma vez mais, que ao melhor nunca recuperaria meu corpo preternatural e ficaria por sempre aprisionado nessa carne. Se não capturava ao Ladrão de Corpos, se não conseguia que meus companheiros me ajudassem, a morte que disse desejar chegaria a seu devido momento. Tinha retrocedido no tempo. E se havia um intuito para isso? E se existia um destino e me passava a vida mortal trabalhando como o fazia Gretchen, dedicando a totalidade de meu ser físico e espiritual a outros? E se voltava com ela a essa missão da selva? Não como seu amante, certamente. Essas coisas não eram para ela, evidentemente. Mas, e se ia como ajudante ou colaborador dele? E se enterrava minha vida mortal nesse marco de abnegação? É obvio, existia uma aptidão mais que ela desconhecia: a riqueza que eu podia derrubar na missão. E embora a fortuna era tão enorme que alguns homens não poderiam havê-la calculado, eu sim podia. Podia, em uma grande visão incandescente, vigiar seus limites, seus efeitos. Populações inteiras vestidas e alimentadas, hospitais equipados com todos os medicamentos, escola com livros, pizarrones, rádios e pianos. Sim, pianos. OH, era uma velha história. Um sonho antigo, muito antigo. Permaneci em silêncio enquanto refletia. Imaginei cada momento de minha vida mortal, minha possível vida mortal, dedicando minha fortuna a esse sonho. Vi-o como se fossem minúsculos grãos deslizando-se pelo centro de um relógio de areia. Bom, nesse preciso minuto, enquanto estávamos sentados nessa limpa habitação, havia gente morrendo de fome no Oriente, no África. Em todo mundo morriam seres humanos por enfermidades e catástrofes. As inundações arrasavam com suas moradias, as secas ressecavam seu mantimentos e suas esperanças. Até a miséria de um só país era mais do que a mente podia suportar, se a descrevia embora fosse entrar em detalhes. Mas até se eu investia nesta empresa tudo o que tinha, o que teria conseguido na análise final? Como podia saber sequer que em um pueblito da selva era melhor a medicina moderna que a situação de antes? Como podia saber se o fato de brindar educação a um menino da selva lhe traria aparelhada a felicidade? Como podia saber se valia a pena meu renunciamiento em altares de todo isso? Como podia fazer para me preocupar com essas coisas? Esse era o horror. Não me importava. Podia, sim, chorar pelo indivíduo que sofria, mas não tinha desejos de sacrificar minha vida pelos milhões de seres anônimos do mundo! De fato, tal possibilidade me enchia de pavor. Era extremamente triste. Não me parecia vida. Parecia-me, além disso, o contrário da trascendencia. Fiz gestos de negação com a cabeça. Em voz baixa, hesitante, expliquei-lhe por que me atemorizava tanto essa possibilidade.

-Séculos atrás, a primeira vez que saí ao cenário no pequeno teatro de Paris -quando vi as caras felizes e ouvi os aplausos- tive a sensação de que meu corpo e minha alma tinham encontrado seu destino. Era como se, por fim, tivessem começado a cumprir-se todas as promessas de minha infância.

"Ah, havia outros atores, piores e melhores; outros cantores, outros palhaços; houve um milhão após e haverá um milhão depois de agora. Mas cada um de nós brilha com sua própria energia inimitável; cada um de nós cobra vida em seu momento único e deslumbrante; cada um de nós tem sua oportunidade de derrotar aos outros para sempre na mente do espectador, e essa é a única classe de lucro que posso entender em forma cabal: a classe de lucro em que o ser -este ser, se o desejar- é totalmente íntegro e triunfante.

"Sim, pude ter sido um santo, tem razão, mas teria que ter encontrado uma ordem religiosa ou levar um exército à batalha. Teria que ter feito milagres de tal magnitude como para que o mundo inteiro caísse de joelhos. Sou eu o que deve atrever-se embora esteja equivocado, completamente equivocado. Gretchen, Deus me deu uma alma individual e não posso enterrá-la.

Surpreendeu-me ver que ainda me sorria com doçura, sem questionamentos, e que seu rosto seguia cheio de serena perplexidade.

-É melhor reinar no inferno -perguntou com cuidado- que emprestar serviços no céu?

-Não, não. Eu, se pudesse, faria o céu e o inferno. Mas devo levantar minha voz, devo brilhar. E devo tratar de obter o êxtase que você te negaste, essa intensidade da qual fugiu. Para mim, isso é transcender! Quando fiz ao Gabrielle, por perverso que pareça, sim, isso foi transcender. Foi um ato único, poderoso e horripilante, que me obrigou a usar toda minha audácia e esse dom único que possuo. Elas não morrerão, disse, possivelmente as mesmas palavras que usa você com os meninos das aldeias.

"Mas as pronunciei para as introduzir em meu mundo não natural. O objetivo não era tão somente salvar, a não ser as converter no que era eu: um ser único, terrível. Era lhes conferir precisamente a individualidade que tanto valoro. Nós vamos viver, inclusive no estado que se denomina da morte viva, vamos amar, a sentir, a desafiar a quem julga e nos destroem. Essa é meu trascendencia. E nisso não intervêm para nada o renunciamiento nem a redenção.

OH, o que te frustrem era não poder comunicar-lhe não poder fazer acreditar em um sentido literal. Não vê que pude sobreviver a tudo o que me passou precisamente porque sou o que sou? Minha fortaleza, minha vontade, esse não querer me entregar... são os únicos componentes de meu coração E minha alma que de verdade posso identificar. Este ego, se quer chamá-lo assim, é minha força. Sou o vampiro Lestat, e nada..., nem sequer este corpo mortal, me vai derrotar.

Chamou-me muito a atenção vê-la assentir, notar sua expressão de aceitação total.

-E se viesse comigo, o vampiro Lestat pereceria em sua própria redenção, não é assim?

-Sim. Morreria uma morte lenta, horrível, entre pequenas e ingratas tarefas, ocupando-se das hordas intermináveis de seres anônimos, os eternamente carentes.

de repente senti tal tristeza, que não pude continuar. Estava cansado de uma maneira mortal e desagradável, pois a alquimia da mente tinha influenciado sobre o corpo. Pensei em meu sonho e em minhas palavras a Claudia, que agora havia tornado a dizer para o Gretchen, e me conheci mesmo como antes jamais. Encolhi as pernas, apoiei sobre elas os braços, e a frente sobre os antebraços.

-Não posso fazê-lo -disse pelo baixo-. Não posso me enterrar vivo no tipo de existência que leva você. E não quero -isso é o tremendo-, não quero fazê-lo! Não acredito que isso pudesse salvar minha alma. Não acredito que importasse.

Senti suas mãos em meus braços. Estava-me acariciando de novo o cabelo, apartando-me o da frente.

-Compreendo-te -disse-, em que pese a que está equivocado.

Soltei uma risada no momento em que elevei o olhar para ela. Tomei um guardanapo, passei-me isso pelos olhos, soei-me o nariz.

-Mas não comovi sua fé, não?

-Não. -Esta vez seu sorriso foi distinta, mais cálida, radiante.

-Serviu-me para confirmá-la -assegurou em um murmúrio-. Que estranho é, e que grande milagre que te tenha cruzado comigo. Quase me atrevo a acreditar que sua opção é a mais adequada para ti. Quem outro poderia ser você? Ninguém.

Joguei-me para trás e bebi um sorbito de vinho. havia-se posto morno pelo fogo, mas seguia sendo saboroso e enviou uma quebra de onda de prazer a minhas pernas indolentes. Bebi outro sorvo, deixei o copo e a olhei.

-Quero te fazer uma pergunta, e que me responda isso de coração. Se ganhar a batalha e recupero meu corpo, quer que venha a verte? Quer que te demonstre que tudo o que te disse é verdade? Pensa-o bem antes de responder.

"Eu quero fazê-lo, sinceramente lhe digo isso. Mas não sei se for o que mais te convém. Sua vida é quase perfeita. Nosso pequeno episódio carnal não poderia te afastar dessa vida. Tinha razão, não?, quando te disse que agora sabe que o prazer erótico não é importante para ti, que logo, se não imediatamente, retornará a seu trabalho na selva.

-É verdade. Mas há algo mais que também deveria saber. Esta manhã houve um momento em que pensei que podia abandoná-lo tudo... só para ficar contigo.

-Não, você não pode ter pensado isso, Gretchen.

-Sim, eu. Senti-me alagada por essa sensação, tal como antes me ocorria com a música. E até agora, se me dissesse "Vêem comigo", talvez iria. Se esse teu mundo existir realmente... -interrompeu-se para encolher-se de ombros. retirou-se o cabelo e o alisou atrás do ombro. -A castidade significa não apaixonar-se -acrescentou, centrando o olhar em mim-. Poderia me apaixonar por ti. Sei que poderia. -Logo adicionou em voz baixa, turvada: -Poderia te converter em meu deus, sei.

Isso me assustou, e ao mesmo tempo me produziu um desavergonhado prazer, um triste orgulho. Tratei de não ceder à excitação física que ia invadindo. Ao fim e ao cabo, ela não sabia o que estava dizendo Não podia sabê-lo. Mas havia algo muito convincente em sua voz, em suas maneiras.

-Volto-me -anunciou com a mesma voz, cheia de certeza e humildade- Talvez vá dentro de uns dias. Mas se vontades sua batalha, se recuperar sua antiga forma, pelo amor de Deus sim, quero que venha para ver-me. Quero saber!

Não lhe respondi. Estava muito desconcertado, e logo expressei esse desconcerto.

-Quando for verte e te revele minha verdadeira personalidade, possivelmente te desiluda horrivelmente.

-por que?

-Considera-me um ser humano sublime pelo conteúdo espiritual de tudo o que te hei dito. Vê-me como se fora uma espécie de louco bendito que revela verdades com engano como poderia fazê-lo um místico. Mas não sou humano. E quando o souber, possivelmente me aborreça.

-Não. Nunca poderia te aborrecer. E quanto a que tudo o que há dito fora verdade, isso seria um milagre.

-Quem sabe, Gretchen, quem sabe. Mas recorda o que disse. Somos uma visão sem revelação. Somos um milagre sem significação. Sinceramente quer essa cruz junto com tantas outras?

Não me respondeu, pois estava sopesando minhas palavras. Eu não imaginava o que podiam significar para ela. Estirei a mão, ela me tomou e apertou com suavidade meus dedos entre os seus, sem apartar os olhos de mim.

-Não existe Deus, não, Gretchen?

-Não, não existe -murmurou.

Me deu vontade de rir e de chorar. Voltei a apoiar as costas, ri brandamente para meus adentros e a olhei, olhei sua figura de estátua, o brilho de fogo em seus olhos castanhos.

-Não sabe quanto tem feito por mim -disse-. Não sabe quanto significou. Agora estou lista para retornar.

Assenti sem separar os lábios.

-Então, minha formosa, não importa se voltarmos para a cama, verdade? Certamente, acredito que devemos fazê-lo.

-Sim, eu também acredito -respondeu-me.

Quase tinha escurecido quando me levantei, levei o telefone com seu comprido cabo até o pequeno quarto de banho e me encerrei para chamar a meu agente de Nova Iorque. Uma vez mais soou e soou. Já ia dar por vencido e tentar me comunicar com meu representante de Paris, quando alguém atendeu e me contou lenta, dificultosamente, que meu agente já não vivia. Tinha sofrido uma morte violenta uns dias atrás, em seu escritório da avenida Madison. dizia-se que o móvel do crime foi o roubo, pois desapareceram todos seus arquivos e seu computador. Fiquei tão aniquilado que não pude articular resposta alguma. Por último, reuni um pouco de valor para formular umas perguntas. O crime tinha ocorrida na quarta-feira por volta das oito da noite. Ninguém conhecia a magnitude do dano causado pelo roubo dos arquivos. E infelizmente o homem tinha sofrido.

-É uma situação muito, muito penosa -disse a voz-. Se você se encontrasse em Nova Iorque não poderia não inteirar-se porque se publicou em todos os jornais. O chamou um assassinato vampírico, já que o cadáver ficou sem uma gota de sangue.

Cortei, e durante um comprido momento permaneci em rígido silêncio. Logo chamei Paris, e ao cabo de uma breve demora atendeu meu representante. Graças a Deus que o tinha chamado, disse, e também me pediu que me identificasse. As contra-senhas não lhe bastaram. Propu-lhe então mencionar conversações que tínhamos tido no passado, e aceitou. Fale, disse-me. No ato lhe recitei uma letanía de secretos que só ele e eu conhecíamos, e notei com que alívio se tirava um grande peso de cima. Contou-me que tinham estado acontecendo coisas muito estranhas. Em duas oportunidades o chamou uma pessoa que disse ser eu mas evidentemente não o era. Esse indivíduo conhecia duas das contra-senhas que tínhamos usado no passado e brindou uma explicação complicada a respeito de por que não conhecia as últimas. Enquanto isso, tinham ingressado eletronicamente várias ordens para a transferência de recursos, mas em todos os casos as contra-senhas foram incorretas. Embora não de tudo. De fato, tudo parecia indicar que essa pessoa estava a ponto de decifrar nosso sistema.

-Além senhor, direi-lhe o mais singelo: esse homem não fala o mesmo francês que você! Não leve a mal, mas o francês que você fala é... como dizê-lo?..., em desuso. Emprega palavras antigas, e ordena as frases de uma maneira que não é a habitual. Eu me dou conta quando é você.

-Compreendo-o -disse-. Agora me escute bem o que vou dizer lhe: não fale mais com essa pessoa, porque sabe ler a mente e está tratando de lhe arrancar telepáticamente as contra-senhas. Você e eu vamos idear outro sistema. Quero que agora me faça uma transferência... a meu banco de Nova Orleáns. Mas depois, todo o resto ficará imobilizado. E quando eu volte a chamá-lo, utilizarei três palavras antiquadas. Não as digo já... mas serão palavras que alguma vez me ouviu usar, e as reconhecerá.

Certamente, isso era arriscado. Mas esse homem me conhecia! Logo lhe assegurei que o ladrão de que falávamos era extremamente perigoso. E que, como tinha atacado a meu representante de Nova Iorque, ele devia utilizar tudo meio possível de amparo pessoal. Eu ia pagar tudo..., a quantidade necessária de custódios as vinte e quatro horas do dia. Preferível pecar por excesso.

-Muito em breve vai voltar a ter minhas notícias. Recorde que serão palavras antiquadas. Você se vai dar conta quando for eu o que fale.

Cortei. Tremia de indignação. Ah, esse monstro! Não contente apoderando do corpo do deus, também tinha que saquear os armazéns do deus. Descarado! E eu tinha sido tão tolo, que não pensei que pudesse passar isso!

-É que és humano -disse-me-. É um humano idiota! -Não queria nem pensar nas acusações que me faria Louis antes de acessar a me ajudar. E se Marius se inteirou? OH, era muito terrível para imaginá-lo sequer. Devia me pôr quanto antes em contato com o Louis. Tinha que conseguir uma valise e me dirigir ao aeroporto. Molho sem dúvida deveria viajar em uma jaula especial, que também terei que conseguir. Minha despedida do Gretchen não seria o adeus prolongado e belo que tinha imaginado. Mas certamente me ia entender. Estavam passando muitas coisas no complexo mundo alucinatorio de seu misterioso amante. Era hora de nos separar.

 

A viagem ao sul foi um suplício. O aeroporto, que acabava de abrir-se logo depois de repetidas tormentas, transbordava de ansiosos mortais que esperavam seus vôos longamente demorados, ou que foram receber a seus seres queridos.

Gretchen deixou escapar as lágrimas, e eu também. deu procuração se dela um medo terrível a não voltar para ver-me nunca mais, e tratei da tranqüilizar lhe assegurando que iria à selva da Guyana Francesa, a visitar a à missão da Santa Margarida María. Guardei no bolso a direção escrita, junto com os números da casa matriz que a ordem tem em Caracas, de onde as irmãs me poderiam orientar para que encontrasse o lugar por meus próprios meios. Ela já tinha reservado um vôo para empreender essa mesma noite o primeiro lance de seu retomo.

-De algum jeito tenho que voltar a verte! -disse, com uma voz que me partiu a alma.

-Me vais ver, MA chère. Prometo-lhe isso. vou procurar a missão. Encontrarei-te.

O vôo foi um inferno. Viajei médio atordoado, esperando a cada momento que explorasse o avião e meu corpo mortal estalasse em mil pedaços. Beber grandes quantidades de gim tonic não conseguiu aliviar meu medo, e quando obtinha não pensar nisso uns instantes, era só para me obcecar com as dificuldades que deveria enfrentar. Em meu departamento, localizado-se em um terraço de Nova Orleáns, por exemplo, tinha muchísima roupa que não ia. Além disso estava acostumado a entrar diretamente por uma porta que havia no terraço, e não tinha chave da porta de rua. De fato, a chave se achava em meu lugar de descanso noturno, uma câmara secreta do cemitério do Lafayette a que não era possível acessar com apenas a força de um mortal, já que estava bloqueada por vários portões que nenhuma banda de vários humanos poderia ter aberto.

E se o Ladrão de Corpos tinha andado antes que eu por Nova Orleáns? E se tinha saqueado meu departamento e se levou todo o dinheiro que eu ocultava ali? Não era muito provável, não. Mas tinha roubado todos os arquivos de meu desventurado agente de Nova Iorque... OH, melhor pensar em que explorasse o avião. Também estava o problema do Louis. E se não o encontrava? E se...? Assim segui durante quase as duas horas.

Por último realizamos o descida, difícil, estrepitoso, aterrador, em meio de uma chuva de proporções bíblicas. Recolhi a Molho, desprezei a jaula e audazmente o subí comigo a um táxi. E aí partimos em plena tormenta. O chofer correu todos os riscos que lhe apresentaram, pelo qual a cada instante Molho e eu terminávamos arrojados um em braços do outro, por assim dizê-lo.

Era perto de meia-noite quando por fim chegamos às ruas mastreadas do setor alto da cidade. Chovia tanto que apenas sim se distinguiam as moradias depois das cercas de ferro. Quando vi no terreno do Louis a casa lôbrega e esquecida, dissimulada depois das árvores escuras, paguei ao condutor, tomei a valise e nos baixamos com Molho no meio do dilúvio.

Fazia frio, sim, muito frio, mas não incomodava tanto como o ar gélido do Georgetown, pois a espessa folhagem de gigantescas magnólias e pinheiros parecia alegrar o ambiente, voltá-lo mais suportável. Por outra parte, jamais tinha contemplado com olhos mortais uma moradia mais calamitosa que esse imenso casarão abandonado que se erigia diante da oculta choça do Louis.

Enquanto me punha a mão sobre os olhos para reparar os da chuva, observei as janelas negras, vazias, e senti um medo irracional de que ali não vivesse ninguém, medo de estar eu louco e condenado a permanecer eternamente dentro desse corpo humano.

Molho deu um salto e passou ao outro lado da perto no mesmo instante em que o fazia eu. Juntos avançamos por entre o pasto crescido, rodeamos as ruínas do velho alpendre e chegamos ao jardim. Preponderava na noite o ruído da chuva retumbando em meus mortais ouvidos, e quase chorei quando por fim divisei a choça, um trambolho de trepadeiras empapadas que surgia ante meus olhos.

Pronunciei o nome do Louis em forte sussurro. Aguardei, mas não ouvi ruído algum no interior. Esse lugar dava a impressão de estar por vir-se abaixo pela deterioração. Lentamente me aproximei da porta.

-Louis -voltei a articular-. Louis, sou eu, Lestat!

Entrei com cuidado, pois havia pilhas de objetos poeirentos. Impossível ver! Entretanto, vislumbrei o escritório, a brancura do papel, a vela e uma cajita de fósforos a seu lado.

Com dedos trementes procurei acender um fósforo, coisa que obtive ao cabo de vários intentos. Por último, aproximei-o do pavio e uma pequena luz resplandecente iluminou a poltrona de veludo cotelê vermelho que era meu, além de outros objetos, velhos e descuidados.

Alagou-me um alívio profundo. Tinha chegado! Podia me considerar quase a salvo! E não estava louco. Esse era meu mundo, esse lugar horrível, cheio de coisas! Louis certamente não se atrasaria. Devia estar por vir. Desabei-me sobre a poltrona, de puro esgotamento. Acariciei a Molho, arranhei-lhe a cabeça.

-Chegamos, moço -disse-lhe-. Logo sairemos a perseguir a esse canalha. Já vamos ver o que fazemos com ele. -Tinha-me posto de novo a tremer; de fato, sentia a mesma congestão no peito. -Deus santo, que não me passe outra vez. Louis, pelo amor de Deus, retorna! Volta já, em qualquer lugar que esteja. Necessito-te.

Estava por procurar no bolso um dos muitos lenços de papel que me tinha dado Gretchen, quando adverti uma silhueta parada a minha esquerda, a escassos centímetros do braço da poltrona, e uma mão muito branca que tentava me alcançar. No mesmo instante, Molho deu um salto, lançou um de seus grunhidos mais aterradores e quis equilibrar-se sobre essa sombra.

Tratei de gritar para me dar a conhecer, mas não pude nem abrir a boca, pois fui arrojado ao piso em meio dos latidos ensurdecedores de Molho. Uma bota de couro me esmagou com tal força a garganta, os ossos mesmos do pescoço, que pouco faltou para que me quebrasse isso.

Não podia falar, nem tampouco me liberar. O cão lançou um lamento penetrante; logo ele também se calou de repente e ouvi os sons apagados que produzia seu enorme corpo ao cair. Ao sentir seu peso sobre minhas pernas, debati-me freneticamente presa de pânico. Toda sensatez me abandonou enquanto tratava de aferrar o pé que me tinha sujeito ao piso, golpeava essa forte perna, boqueaba em busca de ar; só conseguia emitir gemidos inarticulados.

Louis, sou Lestat. Estou dentro deste corpo humano.

O pé apertava cada vez com mais intensidade. Estava-me estrangulando, um pouco mais e me quebraria os ossos, e eu não podia pronunciar nenhuma sílaba para me salvar. Vi seu rosto na penumbra, a brancura resplandecente da carne que não parecia ser carne, os ossos primorosamente simétricos, a mão delicada, ao meio fechar, que se abatia no ar em perfeita atitude de indecisão ao tempo que os olhos afundados, de um verde incandescente, olhavam-me de acima sem a menor emoção.

Voltei a gritar as palavras com toda minha alma, mas acaso ele alguma vez pôde adivinhar o pensamento de suas vítimas? Eu sim podia fazê-lo; ele não! OH Deus, me ajude; Gretchen, me ajude, gritava mentalmente.

Quando o pé aumentou a pressão possivelmente por última vez, deixando de lado toda indecisão, girei com esforço a cabeça para a direita, aspirei desfalecido um pouco de ar e alcancei a pronunciar a palavra "Lestat!" ao tempo que com o polegar me assinalava desesperadamente mesmo.

Foi o único gesto que pude fazer. Estava-me asfixiando, e uma negrume total se abateu sobre mim. De fato sentia umas enormes náuseas também, e justo no instante em que, presa de um agradável enjôo, deixei de me preocupar, a pressão cedeu. Dava-me volta de barriga para baixo e me incorporei me apoiando nas mãos, tossindo sem cessar.

-Pelo amor de Deus -clamei, cuspindo as palavras enquanto me engasgava com as inalações de ar-, sou Lestat. Lestat, dentro deste corpo! Não podia me dar a oportunidade de falar? Matas a qualquer desventurado mortal que por acaso entre em sua casa? Onde ficaram as eternas leis da hospitalidade, idiota? por que diabos não põe grades nas portas? -Com esforço me pus de joelhos, e nesse momento me dominaram as náuseas, por isso vomitei uma imundície de comida podre sobre o pó e a imundície; logo recuei, me sentindo desventurado, com frio, e o olhei do piso.

-Matou ao cão, não? Monstro! -Equilibrei-me sobre o corpo inerte de Molho. Mas não estava morto a não ser só inconsciente, e no ato senti os batimentos do coração de seu coração. -Graças a Deus, porque se o matava, jamais, jamais te teria perdoado.

Molho soltou um gemido; moveu a mão esquerda e logo devagarzinho a direita. Apoiei-lhe a mão entre as orelhas. Sim, recuperava-se, e estava ileso. Mas que experiência funesta! Ter estado a ponto de morrer justamente nesse lugar! De novo me indignei e olhei ao Louis com fúria.

Que imóvel estava aí parado, em silêncio, perplexo. O ruído da chuva, os misteriosos sons da noite invernal... tudo pareceu esfumar-se repentinamente no instante em que o olhei. Nunca o tinha visto com olhos mortais. Jamais tinha contemplado essa beleza pálida de fantasma. Quando os mortais posavam nele seus olhos, como lhes ocorria pensar que fora um humano? Ah, as mãos, semelhantes às dos Santos de gesso que cobravam vida em lôbregas cavernas. E que desprovido de sentimento esse rosto. Os olhos não eram as janelas da alma a não ser só chamarizes de iluminaram semelhantes a pedras preciosas.

-Louis, ocorreu o pior. O pior. O Ladrão de Corpos fez a mudança, mas me roubou o corpo e não tem intenção de me devolver isso -Dios mío -musitó-. ¡Qué has hecho ahora!

Não adverti nele reação alguma. Em realidade, parecia tão inanimado e ameaçador que, de repente, lancei uma corrente de palavras em francês, mencionei todas as imagens e detalhes que pude recordar em meu afã por obter que me reconhecesse. Falei da última conversação que tínhamos mantido nessa mesma casa, do breve encontro na catedral, sua advertência de que não devia falar com o Ladrão de Corpos. Confessei-lhe que não tinha podido resistir ao que esse homem me oferecia, e que viajei ao norte a me encontrar com ele, para aceitar sua proposta.

Seu rosto desalmado seguia sem denotar nada vital, e me calei de repente. Molho tratava de levantar-se soltando de tanto em tanto um gemido. Lentamente lhe aconteceu o braço direito pelo pescoço, apoiei-me contra ele lutando por não perder o fôlego e tratei de tranqüilizá-lo lhe dizendo que tudo estava bem, que nos tínhamos salvado. Já não lhe ia acontecer nada mau.

Louis posou seus olhos no animal; logo voltou a me olhar a mim. Depois notei que se afrouxava um pouco o gesto de sua boca. Estirou uma mão e me fez levantar, sem meu consentimento nem minha colaboração.

-Seriamente é você -afirmou com um áspero sussurro.

-Maldita seja, claro que sou eu. E por pouco me matas, não sei se te dá conta. Quantas vezes pensa executar esse truquito teu enquanto sigam funcionando os relógios da terra? Necessito que me ajude, maldita seja! E uma vez mais trata de me matar! E agora, por favor, a ver se fechar alguma persiana que fique nestas janelas de porcaria, e acende algum fogo nesta miserável chaminé.

Voltei a me desabar em minha poltrona de veludo cotelê vermelho com a respiração ainda forçada, quando um estranho ruído a lengüetazos distraiu. Levantei os olhos. Louis não se moveu; mais ainda, olhava-me como se me considerasse um monstro. Mas Molho estava pacientemente lambendo meu vômito do piso.

Lancei uma gargalhada divertida que ameaçou convertendo-se em ataque de histeria.

-Por favor, Louis, acende o fogo -pedi-lhe-. Estou-me congelando neste corpo mortal. te apresse!

-meu deus -murmurou-. O que tem feito agora!

 

Por meu relógio bracelete soube que eram as duas. A chuva tinha amainado depois dos portinhas de portas e janelas e eu estava acurrucado na poltrona vermelha, desfrutando de do fueguito. Mas de novo tinha frio e me davam ataques de tosse. Certamente já chegaria o momento em que não tivesse que me preocupar mais por isso.

Tinha-lhe contado tudo, com luxo de detalhes.

Em um arranque de mortal ingenuidade, descrevi cada experiência com todos seus pormenores, desde minhas conversações com o Raglan James até a triste despedida do Gretchen. Falei de meus sonhos, da Claudia no pequeno hospital de antigamente, da conversação que tivemos na sala de fantasia do hotel dieciochesco, da tremenda solidão que senti ao amar ao Gretchen porque sabia que no fundo ela me considerava louco, que só por essa razão me queria. Tomava por uma espécie de idiota bondoso, nada mais.

Preparado. Já estava. Não tinha idéia de onde achar ao Ladrão de Corpos, mas tinha que encontrá-lo. E só poderia empreender a busca quando voltasse a ser vampiro, quando este físico alto e poderoso recebesse sangue preternatural.

Embora ficaria fraco porque só contaria com o sangue do Louis, de todos os modos seria vinte vezes mais forte que nesse momento e talvez poderia requerer a ajuda do resto dos companheiros. Uma vez que o corpo se transformasse, certamente possuiria alguma voz telepática. Poderia implorar ajuda ao Marius, ao Armand e inclusive ao Gabrielle -ah, sim, minha querida Gabrielle- porque já não estaria dominada por mim e me poderia ouvir, o qual, no intuito corrente das coisas -se é que se podia usar tal palavra-, não podia fazer.

Ele seguia sentado a seu escritório como o esteve todo o tempo, sem reparar nas correntes de ar, é obvio, nem na chuva que tamborilava contra as madeiras dos portinhas, escutando sem abrir a boca tudo o que lhe dizia, me observando com expressão de dor e desconcerto quando comecei a me passear enquanto continuava meu aceso relato.

-Não me julgue por minha estupidez -roguei-lhe. Voltei a lhe contar o tortura que vivi no Gobi, minha estranha conversação com o David, a visão do David no café de Paris. -Achava-me em um estado de desespero. Você sabe por que o fiz. Não lhe preciso dizer isso Mas agora terá que voltar atrás.

Já a essa altura davam constantes ataques de tosse e me soava o nariz como louco com esses miseráveis pañuelitos de papel.

-Não sabe quão repugnante é estar neste corpo. Bom, por favor, faz-o agora mesmo, rápido, o melhor que possa. Cem anos passaram da última vez que o levou a cabo. Terá que lhe agradecer a Deus que não lhe tenham desvanecido os poderes. Já estou preparado. Não fazem falta preparativos. Quando recuperar minha forma, penso colocá-lo a ele aqui dentro e queimá-lo até deixá-lo feito cinzas.

Nada me respondeu.

Levantei-me e voltei a me passear, esta vez para entrar em calor e porque um medo horrível se estava dando procuração de mim. Ao fim e ao cabo estava por morrer, não é assim? E renascer, tal como tinha ocorrido fazia mais de duzentos anos. Ah, mas não sentiria dor. Não, nada de dor... só alguns mal-estares, que não eram nada comparados com a opressão no peito que sentia nesse instante, ou o frio que me atenaceaba mãos e pés.

-Louis, pelo amor de Deus, sei rápido -disse. Olhei-o. -O que te passa?

Respondeu-me com voz baixa, insegura.

-Não posso fazê-lo.

-O que!

Olhei-o tratando de decifrar o que tinha querido dizer, que dúvidas podia ter, que possível dificuldade terei que resolver. Então me dava conta da mudança assombrosa que se operou em seu rosto enxuto, perdida agora toda seu tersura e convertido, de fato, em uma perfeita máscara de pesar. Uma vez mais compreendi que o estava vendo como o viam os humanos. Um tênue brilho avermelhado velava seus olhos verdes. Todo seu corpo, de aparência tão forte e sólida, tremia.

-Não posso te ajudar, Lestat -repetiu, pondo toda sua alma nas palavras-. Não posso!

-O que está dizendo, Por Deus? -clamei-. Eu te fiz. Hoje existe graças a mim! Ama-me, você mesmo me assegurou isso. Claro que me ajudará.

Precipitei-me para ele, apoiei com força as mãos sobre o escritório e o olhei fixo.

-Louis, me responda! O que é isso de que não pode?

-Não te culpo pelo que fez. Mas, é que não vê o que aconteceu, Lestat? Renasceu e agora é mortal.

-Não é momento para sentimentalismos sobre a transformação. Não me responda com minhas mesmas palavras! Eu estava equivocado.

-Não, não o estava.

-O que quer dizer, Louis? Estamos perdendo tempo. Tenho que sair a perseguir a esse monstro que me roubou meu corpo!

-Outros se encarregarão dele, Lestat. Ao melhor já o fizeram.

-O que é isso de que já o fizeram?

-Crie que não sabem o que aconteceu? -Estava profundamente comovido, mas também furioso. Era notável como, ao falar, lhe formavam e apagavam na carne as rugas humanas da expressão. -Como vai passar semelhante coisa sem que eles se inteirem? -disse, quase me rogando que compreendesse-. Disse que esse tal Raglan James era um feiticeiro, mas nenhum feiticeiro pode ocultar-se totalmente e não ser descoberto por seres poderosos como Maharet ou sua irmã, como Khayman e Marius, ou inclusive Armand. Além disso, que torpe: ter assassinado a seu representante de maneira tão sangrenta e cruel. -Sacudiu a cabeça, e de repente se apertou os lábios. -Lestat, sabem! Têm que sabê-lo. Bem poderia ser que já tivessem destruído seu corpo.

-Isso não o fariam.

-por que não? Você entregou a esse demônio uma máquina de destruição...

-Mas ele não sabia usá-la. Eram só trinta e seis horas de tempo mortal! Louis, seja como for, tem que me dar o sangue. me exorte depois. Faz funcionar o Truque Misterioso e já encontrarei as respostas a todos estes interrogantes. Estamos desperdiçando minutos muito valiosos.

-Não, Lestat. O tema do ladrão e o que fez com seu corpo não nos incumbe. O importante é o que agora te está passando a ti, a sua alma, dentro desse corpo.

Está bem. Como quer. me converta, pois, em vampiro.

-Não posso. Ou melhor dizendo, não o farei.

Não pude resistir e me equilibrei sobre ele. Imediatamente o tinha obstinado com ambas as mãos das lapelas desse saco negro, sujo e puído. Tironeé do tecido, preparado para tirá-lo da poltrona, mas permaneceu inamovible me olhando sem falar, com expressão de tristeza. Zangado mas impotente, soltei-o e fiquei parado, tratando de aquietar o desassossego de meu coração.

-Não pode dizê-lo a sério! -exclamei, e dava um golpe de punho contra o escritório-. Como me pode negar isso?

-por que não me deixa te querer bem? -perguntou, com voz transida de emoção e rosto extremamente pesaroso-. Não o faria por grande que fora sua dor, por muito que me suplicasse isso, por impressionante que fora a letanía de feitos que me apresentasse. Nego-me, porque de maneira nenhuma vou fazer a outro como nós. O que me contaste não são grandes tragédias! Não lhe estão ocorrendo calamidades! -Sacudiu a cabeça, como se estivesse tão afetado que não pudesse continuar. Logo disse: -Nisso triunfaste como só você podia fazê-lo.

-Não, não, você não entende...

-Sim, claro que sim. Tenho que te levar frente a um espelho? -Com gestos lentos ficou de pé e me olhou fixamente aos olhos-. Devo te obrigar a analisar as morais do conto que acabo de ouvir de seus próprios lábios? Lestat, realizaste nosso sonho! É que não o vê? conseguiste renascer como mortal. Um mortal belo e forte!

-Não. -Dava uns passos atrás fazendo gestos de negação ao tempo que levantava as mãos em gesto suplicante.

-Está louco. Não sabe o que diz. Ódio este corpo! Odeio ser humano. Se ficar um pingo de compaixão, Louis, deixa de lado esses delírios e me escute!

-Já te ouvi. Já o ouvi tudo. por que não o crie? Lestat, ganhou. Liberaste-te que o pesadelo. tornaste a ter vida.

-Sofro horrores! meu deus, o que devo fazer para te convencer?

-Nada. Sou eu quem tem que te convencer a ti. Quanto tempo leva já nesse corpo? Três dias? Quatro? Falas de mal-estares como se fossem enfermidades de morte; falas de limites físicos como se se tratasse de perversas restrições punitivas.

"Não obstante, em suas largas lamentações você mesmo me pediste que não te faça conta, que não acesse a seus rogos. Para que, se não, contou-me a história do David Talbot e sua obsessão com Deus e o diabo? Para que me contou tudo o que te disse a monja Gretchen? Para que descreveu o pequeno hospital que viu em sonhos? Sei que não foi Claudia a que te apareceu. Não digo que Deus tenha posto ao Gretchen em seu caminho, mas sim que te apaixonaste por ela. Você mesmo o reconhece. Essa mulher está esperando que retorne. Em definitiva, possivelmente ela seja quem te guie para que aprenda a tolerar as moléstias e dores da vida humana...

-Não, Louis. Entendeste-o todo mal. Não quero que ela me guie. Não quero esta vida mortal!

-Não te dá conta da oportunidade que te brinda? Não adverte o caminho que se abre ante ti e a luz ao final do caminho?

-Me vou voltar louco se segue dizendo essas coisas...

-Lestat, o que pode fazer qualquer de nós para redimir-se? E quem era sempre o que se obcecava com estes temas? Você.

-Não, não! -Levantei os braços e os cruzei repetidas vezes, como tratando de deter esse caminhão carregado de filosofia insensata que ameaçava me atropelar. -Não! Digo-te que isto é falso. É a pior das mentiras.

Deu-me as costas e eu voltei a me lançar sobre ele, incapaz de me conter. O teria obstinado pelos ombros para sacudi-lo, mas, com um gesto muito rápido para meu olho, empurrou-me para trás e me mandou contra a poltrona.

Surpreso, dobrei-me o tornozelo e caí sobre os almofadões. Com o punho direito me golpeei a palma da mão esquerda.

-Ah, não, não. Nada de sermões agora. -Quase me saltavam as lágrimas. -Nada de conselhos nem perogrulladas.

-Volta com ela.

-Está louco!

-Imagina-o -prosseguiu, como se eu não tivesse falado, me dando as costas, possivelmente com os olhos fixos na janela e voz quase inaudível. Sua figura se recortava contra o prateado contínuo da chuva. -Renasce depois de tantos anos de apetites desumanos, de sinistro e desalmado sugar. E nesse hospital da selva poderá salvar uma vida humana por cada uma que tenha segado. OH, não sei que anjos da guarda lhe protegem. por que são tão misericordiosos? Roga-me que te leve de novo ao horror, mas cada tua palavra realça o esplendor de tudo o que viu e sofrido.

-Nua minha alma e a usa contra mim!

-Não, Lestat. Trato de te fazer mergulhar em seu interior. Está-me rogando que te conduza de volta ao Gretchen. Serei eu, talvez, o único anjo da guarda? Sou o único que posso confirmar esse destino?

-Filho de puta! Se não me der o sangue...

Girou em redondo. Seu rosto era o de um fantasma; seus olhos, estavam muito abertos, asquerosamente irreais em sua beleza.

-Não o farei agora, amanhã nem nunca. Volta com ela, Lestat. Vive a vida mortal.

-Como te atreve a escolher por mim! -Pu-me novamente de pé, decidido a terminar com as súplicas e lamentos.

-Não devas peça me o de novo; se vier, farei-te mal. E não desejo fazê-lo.

-Mataste-me! Isso é o que tem feito. Pensa que acredito todas suas mentiras! Condenaste a este corpo enfermo e podre, isso é o que tem feito. Crie que não sei o ódio que sente? Crie que não me dou conta de que buscas te desforrar? Por Deus, dava a verdade.

-Não, não é verdade. Quero-te. Mas está cego de impaciência, angustiado por dores pouco importantes. É você quem não me perdoará nunca se te roubar este destino, mas te levará um tempo poder valorar meu gesto.

-Não, não, por favor. -Aproximei-me dele, mas não já com indignação. Caminhei devagar, até que pude apoiar as mãos em seus ombros e aspirar a tênue fragrância de pó e tumba que tinha aderida à roupa. Deus santo, era nossa pele a que atraía tão delicadamente a luz? E nossos olhos. Ah, me olhar em seus olhos.

-Louis, quero que tome. Peço-lhe isso por favor. Deixa que eu faça as interpretações sobre meu relato. me olhe, Louis; tome. -Sustentei sua mão fria, inerte, e a apoiei contra minha cara. -Sente o sangue que há em mim, sente o calor. Deseja-me, Louis, não pode negá-lo. Deseja-me, quer me ter em seu poder como te tive eu a ti faz tanto tempo. Serei sua criação, sua vergôntea, Louis. Faz-o, por favor. Não me obrigue a implorar-lhe o de joelhos.

Notei uma mudança nele, a repentina expressão depredadora que tingiu seus olhos. Mas, havia algo mais forte que sua sede? Sua força de vontade.

-Não, Lestat -sussurrou-. Não posso. Embora eu esteja equivocado e você não... por mais que careçam de sentido todas suas metáforas, não posso fazê-lo.

Tomei em meus braços, ah, que frio, que resistente este monstro que eu tinha criado com carne humana. Beijei-o na bochecha, tremendo e meus dedos se deslizaram até seu pescoço.

Não se afastou. Não teve valor. Senti que seu peito se inchava contra o meu.

-Formoso meu, faz o que te peço -murmurei em seu ouvido-. Leva este calor a suas veias e me devolva todo o poder que em uma oportunidade te dava. -Apertei meus lábios contra sua boca fria, descolorida. -me brinde o futuro, Louis. me dê a eternidade. Libra me desta cruz.

Vi pela extremidade do olho que levantava a mão, e a seguir senti seus dedos sedosos contra minha bochecha. Acariciou-me também o pescoço.

-Não posso, Lestat.

-Sim, claro que pode -murmurei lhe beijando a orelha enquanto lhe falava, contendo as lágrimas, lhe passando o braço pela cintura-. Não me abandone neste sofrimento, por favor.

-Não me peça isso mais. De nada vale. Agora vou. Não voltará para ver-me nunca mais.

-Louis! -Aferrei-o. -Não me pode negar isso!

-Sim que posso, e o tenho feito.

Notei que ficava rígido e tratava de apartar-se sem me ferir. Eu o aferrei com mais força ainda.

-Não me voltará a encontrar aqui. Mas sim sabe onde encontrá-la a ela, que te está esperando. Não aprecia sua própria vitória? tornaste a ser mortal, e tão jovem... Mortal, e tão belo. Mortal, com todo seu conhecimento e sua mesma indomável vontade.

Com firmeza se soltou de meu abraço, apartou-me me apertando as mãos enquanto o fazia.

-Adeus, Lestat. Talvez outros vão te buscar quando passar o tempo, quando criam que já pagaste o suficiente.

Lancei um último lamento enquanto procurava liberar minhas mãos para sujeitá-lo, porque sabia o que ele pensava fazer.

Com um movimento súbito e misterioso desapareceu, e eu fiquei tendido no piso.

A vela estava apagada, pois tinha cansado sobre o escritório. A única iluminação era a do fogo mortiço. E os portinhas da porta estavam abertos, e a chuva caía, fina e silenciosa mas contínua. E me dava conta de que estava totalmente sozinho.

Tinha-me desabado estirando as mãos para amortecer o golpe. No momento de me levantar, gritei-lhe, rogando que pudesse me ouvir por longe que já estivesse.

-Louis, me ajude. Não quero estar vivo. Não quero ser mortal! Louis, não me deixe aqui! Não quero isto! Não quero salvar minha alma!

Não sei quantas vezes repeti os mesmos argumentos. Ao momento, fiquei tão esgotado que não pude continuar; além disso, o som dessa voz mortal e seu tom de desespero feriam meus próprios ouvidos.

Sentei-me no piso, uma perna dobrada sob meu corpo e o cotovelo apoiado sobre o joelho, e me passei a mão pelo cabelo. Molho se tinha aproximado, temeroso, e se tendeu junto a mim. Agachei-me e apertei a frente contra seu cabelo.

O fogo quase se consumou. A chuva vaiava, suspirava, redobrava seus brios, mas caía em linha reta do céu, sem um pingo de odioso vento.

Por último, levantei o olhar e contemplei essa habitação lúgubre, com sua confusão de livros e velhas estátuas, a sujeira por toda parte e as brasas que irradiavam luz do lar. O que cansado estava, o que insensibilizado pela fúria, que próximo ao desespero.

Alguma vez tinha estado tão carente de toda esperança?

Meus olhos se posaram na porta, repararam na incessante chuva, na penumbra ameaçadora. Sim, sal e te interne na escuridão com Molho, e certamente adorará como adorou a neve. Tem que sair e te internar nela. Tem que sair desta choça e procurar um refúgio cômodo onde descansar.

Meu departamento do terraço... certamente poderá achar a forma de entrar nele. Sim, alguma forma. O sol ia sair ao cabo de umas horas, não? Ah, minha preciosa cidade sob a morna luz do sol.

Por Deus, não ponha de novo a chorar. Precisa descansar e pensar.

Mas antes de ir, por que não lhe incendeia a casa? Não toque a casa grande. Ele não a quer. lhe queime a choça!

Dava-me conta de que esboçava um sorriso malicioso mesmo que as lágrimas se amontoavam a meus olhos.

Sim, reduz-a a cinzas! O merece. Seguro que se levou seus escritos, sim, claro, mas seus livros se farão fumaça! Nem mais nem menos que o que se merece.

Imediatamente recolhi os quadros -um esplêndido Monet, dois pequenos Picasso e uma témpera do período medieval, tuda em estado de deterioração, certamente-, corri à mansão vitoriana e os guardei em um rincão que me pareceu seco e seguro.

Logo retornei à choça, tomei a vela e a aproximei dos restos do fogo. No ato as cinzas brandas exploraram com chispitas alaranjadas que se aderiram ao pavio.

-Ah, isto lhe merece isso, canalha, traidor. -Presa de furor levei a chama aos livros que tinha empilhados contra a parede, e com cuidado movi as folhas para que se queimassem. Desde aí passei a um casaco velho que havia sobre uma cadeira de madeira e que ardeu como se fora palha; também aos almofadões de veludo cotelê vermelho de que tinha sido minha poltrona. Sim, tudo, queimo-o tudo.

Chutei uma pilha de revistas mofadas sob o escritório e lhes prendi fogo. Fui apoiando a chama libero por livro, que logo jogava em todos os rincões do barracão.

Molho esquivou as pequenas fogueiras, até que por último saiu à intempérie e se deteve grande distancia, sob a chuva. Olhava-me pela porta aberta.

OH, mas avançava muito lentamente. E Louis tem uma gaveta cheia de velas. Como pude as esquecer... maldito seja este cérebro mortal... Tirei-as, então -eram umas vinte-, acendi diretamente a cera sem me preocupar com a mecha e as joguei sobre a poltrona de veludo cotelê para armar uma grande fogueira. Lancei outras sobre as pilhas de escombros que ficavam, atirei livros ardendo contra os portinhas úmidos e prendi fogo às partes de antigas cortinas que penduravam aqui e lá de velhos lhes gradeie esquecidos. A chutes fiz buracos no gesso podre e arrojei velas acesas ao enlistonado. Logo prendi fogo às gastos tapetes, mas primeiro as enruguei para permitir que o ar circulasse por debaixo.

Ao cabo de uns minutos o lugar era presa das chamas, mas o que ardia com mais intensidade eram a poltrona vermelha e o escritório. Saí à chuva e vi as lingüetas de fogo entretanto das pranchas rotas.

Uma fumaça horrível e densa se elevou quando as chamas consumiram os portinhas úmidos, quando as viu sair pelas janelas e torrar as trepadeiras. Maldita chuva! Mas no momento em que a fogueira do escritório e a poltrona se fez mais intensa, toda a choça estalou em labaredas cor laranja! Os portinhas voaram de uma vez que se abria uma enorme brecha no teto.

-Sim, sim, te queime! -gritei. A chuva me caía na cara, nas pálpebras. Eu virtualmente dava saltos de alegria. Molho retrocedeu para a mansão em sombras, com a cabeça encurvada. -te queime, te queime! Louis, oxalá pudesse te queimar a ti também! Como eu gostaria de fazê-lo! Ah, se soubesse onde jaz durante o dia!

Entretanto, pese ao júbilo me dava conta de que estava chorando. Passava-me o dorso da mão pela boca e clamava: "Como pôde me deixar assim! Como pôde fazê-lo! Amaldiçôo-te." Feito muito lágrimas, voltei a cair de joelhos sobre a terra molhada.

Sentei-me me apoiando nos talões, com as mãos pregadas ante mim, desventurado, e contemplei a grande fogueira. Algumas luz começaram a acender-se em casas distantes. Alcancei para ouvir o ulular de uma sereia ao longe. Compreendi que devia ir.

Entretanto, seguia aí, como embotado, quando de repente Molho me sobressaltou com um de seus grunhidos mais aterradores. Adverti que se parou a meu lado, que apertava sua pele úmida contra meu rosto e tinha o olhar perdido na casa incendiada.

Movi-me para tomá-lo do colar quando compreendi o motivo de seu medo. Não se tratava de um humano serviçal mas sim mas bem de uma silhueta branca e fantasmal, uma sorte de horripilante aparição que havia perto da casa incendiada, iluminada pelo resplendor do fogo.

Até com meus olhos mortais me dava conta de que era Marius! Também notei a expressão de ira de seu rosto. Jamais tinha visto eu tal reflexo de fúria, e não me coube dúvida de que isso era precisamente o que quis que eu visse.

Abri os lábios, mas a voz tinha morrido em minha garganta. Quão único pude fazer foi lhe tender os braços, lhe enviar do coração um mudo pedido de ajuda, de piedade.

Uma vez mais o cão lançou sua feroz advertência e pareceu a ponto de saltar.

E enquanto eu observava, indefeso, tremendo de pés a cabeça, a figura girou lentamente e, me dirigindo um último olhar de irritação e desprezo, partiu.

Só então reagi.

-Marius, não me deixe aqui! me ajude! -Elevei os braços ao céu. -Marius -clamei com voz gutural.

Mas era inútil, já sabia.

A chuva me empapava o casaco, me colocava pelos sapatos. Tinha o cabelo molhado e já não importava se tinha estado chorando, porque a água tinha miserável minhas lágrimas.

-Crie que me venceste -murmurei. Que necessidade tinha que chamá-lo os gritos? -Crie ter emitido seu julgamento e que com isso se termina tudo. Sim, pensa que é tão singelo. Bom, está equivocado. Nunca serei vingado pelo de hoje. Mas me verá de novo. Já me verá.

Agachei a cabeça.

A noite se encheu de vozes mortais, de passos que corriam. Um potente ruído de motor se deteve na esquina longínqua. Tive que fazer um esforço para pôr em movimento estas miseráveis pernas humanas.

Fiz-lhe gestos a Molho de que me seguisse. Deixamos atrás as ruínas da casita, que seguiam ardendo alegremente; saltamos um tapial baixo, cruzamos por um beco coberto de malezas e fugimos.

Só mais tarde me pus a pensar que provavelmente estivemos a ponto de que nos pescassem: o pirómano e seu temível cão.

Mas, isso o que importava? Louis me tinha jogado, quão mesmo Marius... Marius, que podia encontrar meu corpo preternatural antes que eu e destrui-lo no ato. Marius, que possivelmente já o tivesse aniquilado para me deixar eternamente ancorado neste esqueleto mortal.

Ah, se em minha juventude mortal alguma vez tinha padecido tal desdita, não o recordava. E embora a tivesse sofrido, de pouco consolo me servia. Meu medo era inenarrável! Não o podia vencer com a razão. Dava voltas e mais voltas com minhas esperanças e meus planos ineficazes.

"Tenho que encontrar ao Ladrão de Corpos. Tenho que encontrá-lo, e você deve me dar tempo, Marius. Se não me ajudar, ao menos me conceda isso."

Repetia-o uma e outra vez como o Ave María do rosário, enquanto partia com dificuldade sob a chuva inclemente.

Uma ou duas vezes até gritei minhas preces na escuridão, parado sob um velho carvalho que jorrava, tratando de ver a luz que chegava através do céu úmido.

Quem no mundo podia me ajudar?

Minha única esperança era David, embora vá um ou seja o que podia fazer para me ajudar. David! E se também ele me dava as costas?

 

Achava-me sentado no Café du Pode quando saiu o sol, e me perguntava como faria para entrar em meu departamento do terraço. O fato de analisar esse pequeno problema me impedia de perder a razão. Seria essa a chave da sobrevivência humana? Hmmm. Como entrar pela força em meu luxuoso departamento? Eu mesmo tinha colocado um portão infranqueável na entrada do jardim do terraço. Eu mesmo tinha instalado complexas fechaduras em todas as portas. As janelas tinham grades para que os mortais não pudessem passar, embora nunca me tinha posto a pensar como nenhum mortal podia subir até ali.

Bom, terei que ingressar pelo portão. Pensarei em algum tipo de magia verbal para usar com outros moradores do edifício, todos inquilinos do Lestat do Lioncourt; que os trata muito bem, permita me acrescentar. Convencerei-os de que sou um primo francês do proprietário, enviado a ocupar-se da penthouse em sua ausência, e direi que me deve franquear a entrada a toda costa. Embora tenha que usar uma alavanca ou uma tocha! Ou uma serra elétrica. Apenas um detalhe técnico, como dizem nesta era. Tenho que entrar.

Depois, o que faço? Tomo uma cuchilla de cozinha -porque há ali costure pelo estilo, embora jamais tive necessidade de uma cozinha- e me degola?

Não. Chamo o David. Não há ninguém neste mundo a quem pode recorrer, e pensa nas coisas terríveis que ele te vai dizer!

Quando deixei de discorrer sobre tudo isso, imediatamente me atacou um desânimo demolidor.

Marius e Louis me tinham jogado. Na pior de minhas loucuras, negaram-se a me ajudar. Certo é que me tinha burlado do Marius. Não quis aceitar sua sabedoria, sua companhia, suas normas.

Sim, me tinha merecido isso, como tão freqüentemente dizem os mortais. Tinha cometido o friável ato de soltar ao Ladrão de Corpos com meus poderes. Verdade. Também era culpado de espetaculares experimentos e desacertos. Mas nunca imaginei como ia sentir me privado por completo de minhas faculdades, olhando-o tudo de fora. Outros sabiam; certamente sabiam. E permitiram que Marius emitisse seu julgamento e me fizesse saber que, em castigo por meu ato, decidiam me jogar!

Mas Louis, meu formoso Louis, como pôde me menosprezar. Eu teria desafiado até aos céus para ajudá-lo! Tinha contado tanto com ele, despertando esta noite e ter a velha, poderoso sangue correndo por minhas veias.

OH, Deus, já não era um deles. Agora não era mais que esse mortal que estava aí sentado, na sufocante calidez do bar, bebendo um café -de rico sabor, isso sim-, comendo uma rosquinha doce, sem esperanças de recuperar jamais seu lugar.

Ah, como os odiava. Que vontades me davam de lhes fazer danifico! Mas, quem tinha a culpa de tudo? Lestat, agora um homem de um metro noventa, olhos castanhos, pele bastante escura e espessa cabeleira ondulada. Lestat, de braços musculosos e pernas fortes, e outro resfrio mortal que o debilitava. Lestat, com seu fiel cão Molho. Lestat, que queria saber como fazer para capturar ao demônio que tinha fugido levando-se não sua alma, como está acostumado a ocorrer, a não ser seu corpo, um corpo que bem podia estar já destruído.

A prudência me disse que ainda era muito em breve para planejar nada. Além disso, nunca me tinha interessado muito a vingança. A vingança é para quem em algum momento resultam vencidos. Eu não estou vencido, disse-me. E é muito mais interessante analisar a vitória que a desforra.

Melhor pensar em coisas pequenas, coisas que possam ser trocadas. David tinha que me escutar. Pelo menos que me desse seu conselho! Mas, que mais podia dar? O que podiam fazer dois mortais para perseguir o desprezível ser? Ahhh...

Molho tinha fome e me observava com seus ojazos inteligentes. Como o olhava a gente do bar; como esquivavam a esse funesto animal peludo de focinho escuro, orelhas de bordo rosado e enormes patas. Imprescindível lhe dar de comer. Ao fim e ao cabo, era certo o típico lugar comum: esse imenso cão era meu único amigo!

Satanás tinha um cão quando o jogaram no inferno? De ser assim, o cão teria que ter ido com ele.

-Como o faço, Molho? -perguntei-lhe-. Como faz um simples mortal para capturar ao vampiro Lestat? Ou acaso meus companheiros reduziram meu formoso corpo a cinzas? Foi esse o sentido da visita que me fez Marius? me fazer saber que já o tinham consumado? meu deus... O que diz a bruxa nesse horrendo filme? Como pôde lhe fazer isso a minha formosa perversidade. Tornou-me a febre, Molho. As coisas vão se ter que arrumar sozinhas. ME VOU MORRER!

OH Deus, contempla o sol que invade silenciosamente as ruas sujas, olhe como minha formosa Nova Orleáns acordada sob a bela luz do Caribe.

-Vamos, Molho. Hora de entrar. Depois poderemos descansar ao calor.

Passei pelo restaurante que fica frente ao velho Mercado Francês e comprei uma porção de ossos e carne para ele. A amável garçonete me encheu uma bolsa com sobras do dia anterior e comentou que ao cão lhe foram encantar. Logo me perguntou se eu não queria o café da manhã, se não tinha fome nessa formosa manhã invernal.

-Depois, querida. -Entreguei-lhe um bilhete grande. Ficava o consolo de que seguia sendo rico. Ou ao menos isso acreditava. Não saberia com certeza até que não sentasse ao computador e averiguasse as atividades do vil estelionatário.

Molho consumiu sua comida na sarjeta sem emitir nenhuma protesto. Isso era um cão. por que não terei nascido eu cão?

Agora bem, onde diabos ficava meu departamento? Tive que me deter pensar, perambular duas quadras e voltar atrás para encontrá-lo -me enfiando mais a cada instante em que pese a que o céu estava azul e havia um sol intenso-, porque quase nunca entrava em edifício da rua.

Ingressar no edifício foi fácil. De fato, foi singelo forçar a porta da rua Dumaine e voltar a fechá-la. Ah, mas esse portão vai ser o pior, pensei, enquanto arrastava minhas pesadas pernas pela escada, piso detrás piso. Molho esperava amavelmente nos descansos a que eu chegasse detrás dele.

Por último divisei os barrotes do portão, a preciosa luz do sol que caía sobre o poço de ventilação do jardim do terraço, e o movimento das imensas begônias, que só tinham alguns borde queimados pelo frio.

Mas, como ia abrir essa fechadura? Achava-me calculando que ferramentas ia necessitar -uma pequena bomba?- quando me dava conta de que a porta de meu departamento, cinco metros mais à frente, não estava fechada.

-meu deus, o canalha esteve aqui! -sussurrei-. Maldita seja. Molho, saquearam-me minha cova.

Certamente, também isso podia considerar-se como um signo positivo: queria dizer que o delinqüente ainda vivia, que meus companheiros não o tinham ultimado. Ou seja que ainda podia prendê-lo! Chutei o portão, com o qual só consegui uma dor fenomenal no pé e a perna.

Logo aferrei o portão e o sacudi sem piedade, mas estava firme, agarrado a suas antigas dobradiças que eu mesmo lhe tinha feito pôr. Um fantasma débil como Louis não poderia havê-lo transposto, e muito menos um mortal. Indubitavelmente o ser abjeto não o havia meio doido mas sim tinha entrado como estava acostumado a fazê-lo eu: descendo dos céus.

Bom, basta já. Busca lhe umas ferramentas e faz-o depressa. Averigua logo que grau de dano te causou.

Girei sobre meus talões, mas nesse preciso instante Molho ficou em posição de alerta e lançou seu grunhido de advertência. Alguém se movia dentro do departamento. Uma parte de sombra saltou sobre a parede do hall.

Não era o Ladrão de Corpos. Isso era impossível, graças a Deus. Mas, quem?

Imediatamente resolveu o mistério. Apareceu David! Vestido com traje escuro de tweed e sobretudo, meu querido David me estudou com sua característica expressão de curiosidade do extremo do atalho que cruzava o jardim. Não acredito que nunca em minha larga vida me tenha alegrado tanto o ver outro mortal.

Pronunciei seu nome no ato. Logo disse em francês que era eu, Lestat, que por favor me abrisse o portão.

Não me respondeu em seguida. Acredito que jamais o vi tão senhorial e dono de si mesmo, o verdadeiro gentleman inglês que me olhava sem demonstrar em seu rosto enrugado nada mais que mudo espanto. Olhou também ao cão. Logo voltou a me estudar. E outra vez ao cão.

-David, juro-te que sou Lestat! -clamei em inglês-. Este é o corpo do mecânico! Recorda a fotografia! James conseguiu fazer a mudança. Estou detento dentro deste físico. O que posso te dizer para que me cria? me deixe entrar, por favor.

Seguiu imóvel. Mas de repente se adiantou até o portão com passo decidido e rosto insondável.

Quase me deprimo da alegria. Eu continuava obstinado com ambas as mãos aos barrotes, como se estivesse preso; depois me dava conta de que o estava olhando aos olhos, que pela primeira vez fomos da mesma altura.

-Não sabe quanto me alegro de verte, David -exclamei, novamente em francês-. Como fez para entrar? David, sou Lestat. Sou eu. Crie-me, verdade? Reconhece minha voz. David, Deus e o diabo no bar de Paris! Quem sabe isso mais que eu?

Entretanto, não reagiu a minha voz; olhava aos olhos com a expressão de quem cria ouvir ruídos longínquos. Mas logo trocou toda sua atitude e vi nele evidentes signos de reconhecimento.

-Graças ao céu -exclamou com um pequeno e muito britânico suspiro.

Tirou um estojo do bolso e dele uma fina peça de metal que introduziu na fechadura. Eu, que conhecia bastante o mundo, dava-me conta que se tratava de um implemento de ladrões. Abriu-me o portão e logo me tendeu os braços.

Demo-nos um abraço comprido, quente e silencioso, e me custou um grande esforço não soltar alguma lágrima. Não com muita freqüência havia meio doido a esse homem. E a emoção do momento tomou um tanto despreparado. Recordei dormitada tibieza de meus abraços com o Gretchen e por um instante, possivelmente, não me senti tão sozinho.

Mas não havia tempo para desfrutar desse distração. Separei-me sem muitas vontades e uma vez mais pensei que esplêndido estava David. Tão impressionante me era, que quase me acreditava jovem como o corpo onde me achava. Necessitava muito a meu amigo.

Tudo os pequenos rastros da idade, que antes lhe via com meus olhos vampíricos, eram invisíveis. As profundas rugas pareciam ser parte de sua expressiva personalidade, quão mesmo a luz serena de seus olhos. O via muito vigoroso aí parado, com seu traje característico e a cadenita de ouro do relógio sobre seu colete de tweed. Muito aplomado, muito inteligente, muito solene.

-Sabe o que fez o filho de puta? Jogou-me sujo e me abandonou. E meus companheiros também me abandonaram. Louis, Marius. Voltaram-me as costas. Estou prisioneiro neste corpo, David. Vêem, tenho que comprovar se o monstro roubou em meus aposentos.

Corri para a porta do departamento quase sem ouvir as poucas palavras que me respondeu David, no sentido de que não acreditava que tivesse entrado ninguém.

Tinha razão. O canalha não me tinha roubado! Tudo estava exatamente no mesmo lugar, até meu velho sobretudo de veludo cotelê pendurado de um perchero. Estava o block de papel amarelo onde tinha feito umas notas antes de partir. E o computador. Ah, tinha que acendê-la imediatamente para apreciar a magnitude do roubo. Ao melhor meu agente de Paris, pobre, ainda corria perigo. Devia me comunicar em seguida com ele.

Mas me distraiu a luz que entrava pelas paredes de vidro, o apacible esplendor do sol ao derramar-se sobre poltronas e sofás escuros, sobre o suntuoso tapete persa com suas grinaldas de rosas, inclusive sobre os poucos quadros modernos de grande tamanho -todos abstratos furiosos- que fazia muito tinha eleito para essas paredes. Estremeci-me ao contemplar todo isso, me maravilhando uma vez mais de que a iluminação elétrica não pudesse produzir nunca a particular sensação de bem-estar que nesse momento me alagava.

Também adverti que havia um fogo aceso na ampla chaminé revestida de cerâmicos brancos -obra do David, sem dúvida-, e me chegou aroma de café da cozinha, habitação em que estranha vez tinha entrado durante os anos que habitei essa casa.

No ato, David balbuciou uma desculpa. Nem sequer tinha ido a seu hotel, pelo ansioso que estava de me encontrar. Tinha vindo diretamente do aeroporto, e só saiu a comprar umas mínimas provisões para passar a noite de vigília no caso de eu dava sinais de vida.

-Fantástico. Que sorte que veio -disse, e me fez graça sua cortesia britânica. Alegrava-me muito de vê-lo, e ele se desculpava por haver ficado cômodo.

Tirei-me o sobretudo úmido e me sentei ante o computador.

-Isto me levará apenas um minuto -anunciei, ao tempo que apertava as teclas pertinentes-; em seguida lhe conto todo. Mas, por que veio? Suspeitava o que aconteceu?

-É obvio. se inteirou do crime cometido por um vampiro em Nova Iorque? Só um monstro pôde ter destroçado esses escritórios. Lestat, por que não me chamou? Como não me pediu ajuda?

-Um momento. -Já saíam em tela as letras e números. Minhas contas estavam em ordem. Se o descarado tivesse entrado no sistema, me teriam aparecido sinais preprogramadas por toda parte. Certamente, não havia maneira de saber com certeza que não tivesse atacado minhas contas em bancos europeus até que eu não pudesse entrar em seus sistemas. E maldição, não me lembrava das chaves; mais ainda, estava-me custando dirigir até os comandos mais simples.

-Nisso ele tinha razão -murmurei-. Advertiu-me que meus processos do pensamento não seriam iguais. -Saí do programa financeiro e passei ao Wordstar, o processador que usava para escrever, e redigi uma nota para meu agente de Paris, que imediatamente lhe enviei mediante o modem telefônico. Em lhe pedia um imediato relatório financeiro e lhe recordava que tomasse as maiores precauções para proteger sua vida. Preparado.

Joguei-me contra o respaldo, respirei fundo -o qual no ato me produziu um acesso de tosse- e notei que David me olhava como se lhe custasse acreditar o que via. De fato, era quase cômico ver como me olhava. Logo posou seus olhos no cão, que inspecionava o lugar perezosamente e de tanto em tanto me olhava para pedir ordens.

Chamei-o com um estalo de dedos e lhe dava um forte abraço. David presenciou a cena como se fora a coisa mais estranha do mundo.

-Deus santo, está realmente dentro desse corpo; não solto aí dentro, a não ser amarrado a cada célula.

-me diz isso -lamentei-me-. É horrível. Além disso, os outros se negam a me ajudar. Jogaram-me. -Apertei os dentes com indignação. -Jogaram-me! -Lancei um resmungo que inadvertidamente excitou a Molho, motivando-o para vir a me lamber a cara.

-Claro que me mereço isso -disse, acariciando a Molho-. Isso tem o trato comigo. Sempre me faço credor ao pior! A pior deslealdade, a pior traição, o pior abandono. Lestat o vilão. Bom, a este vilão o deixaram totalmente liberado a seus próprios recursos.

-Tornei-me louco tratando de me comunicar contigo -assegurou David com tom de uma vez discreto e medido-. Seu agente de Paris jurou que não podia me ajudar. Já tinha decidido provar sorte nessa direção do Georgetown. -Assinalou o block de papel amarelo. -Graças a Deus que está aqui.

-David, meu pior temor é que outros tenham aniquilado ao James e, junto com ele, a meu corpo. Ao melhor este físico é o único que fica.

-Não, não acredito -repôs com convincente equanimidade-. Seu ladrão deixou um rastro muito visível. Mas vêem, te tire essa roupa molhada, que te está resfriando.

-A que te refere com isso de "rastro"?

-Você sabe que nos mantemos informados desses crímenes. Por favor, me dê a roupa.

-Mais crímenes depois do de Nova Iorque? -perguntei-lhe, interessado. Deixei que me levasse para a chaminé, feliz de sentir o calorcito. Tirei-me o suéter e a camisa úmidos. É obvio, nos diversos placares não havia roupa que me fora bem de tamanho. Além disso, caí na conta de que a valise me tinha esquecido isso a noite anterior no do Louis. -o de Nova Iorque foi na quarta-feira de noite, verdade?

-Minha roupa te vai andar -disse David, me distraindo de meus pensamentos, e se dirigiu a uma gigantesca mala que havia em um rincão.

-O que aconteceu? por que supõe que foi James?

-Tem que ser -respondeu. Abriu a mala, tirou vários objetos dobrados e logo um traje de inverno muito parecido ao que tinha posto e ainda em seu cabide, que colocou sobre a cadeira mais próxima. -Toma, ponha isto. Se não, te vais morrer.

-OH, David -disse, terminando de me despir-, estive a ponto de morrer em mais de uma oportunidade. Em realidade, minha breve vida de mortal a passei sempre ao bordo da morte. O cuidado deste corpo me produz asco. Não sei como vocês agüentam este ciclo interminável de comer, urinar, escorrer, defecar e voltar a comer! Se tiver febre, dor de cabeça, ataques de tosse e um nariz que te jorra, converte-se em um inferno! E os profiláticos, Por Deus. te tirar essas coisas horríveis é pior que ter que lhe pôr isso Não sei como me pôde ocorrer que queria me embarcar nisto! Os outros crímenes... quando foram? É mais importante quando que onde.

De novo me olhava fixo, tão impressionado que não podia responder. Molho agora paquerava com ele -digamos que o estava qualificando-, e lhe lambeu amigavelmente a mão. David o acariciou com carinho, mas seguiu com o olhar estalagem em mim.

-David -disse, me tirando as meias úmidas-, me fale dos outros crímenes. Diz que James deixou rastros.

-É tudo tão louco. Tenho uma dúzia de fotos desta tua cara, mas verte a ti para dentro dela... Nunca o pude imaginar. Absolutamente.

-Quando atacou por última vez, esse depravado?

-OH... A última notícia provém da República Dominicana. Isso foi... me deixe ver... faz duas noites.

-República Dominicana! Que diabos foi fazer aí?

-O mesmo queria saber eu. Antes atacou perto do Bal Harbour, na Florida. Em ambas as oportunidades foi em um edifício alto, ao que ingressou da mesma maneira que em Nova Iorque: atravessando uma parede de vidro. Nos três sítios destroçou os móveis. Arrancou caixas de segurança embutidas e se levou ouro, pedras preciosas, bônus. Matou a um homem em Nova Iorque; o cadáver ficou sangrado é obvio. Duas mulheres sugadas na Florida e uma família morta no São Domingo, mas ali sugou só ao pai.

-Não pode dominar sua força! Atua com a estupidez de um robô.

-Exatamente o que pensei eu. O primeiro que me chamou a atenção foi essa mescla de destructividad com força bruta. Esse ser é incrivelmente inepto! Todo o assunto é muito estúpido. Mas não me explico por que escolheu esses três sítios para seus roubos. -de repente deixou de falar e me deu as costas, quase com acanhamento.

Dava-me conta de que já me tinha tirado toda a roupa e estava nu, o qual o voltou estranhamente reservado, a tal ponto que quase se ruborizou.

-Aqui tem meias secas -disse-. Não te ocorre nada melhor que andar com a roupa empapada? -Arrojou-me as médias sem levantar o olhar.

-Eu não sei muito de nada. Isso é o que tenho descoberto. Agora entendo por que te chama a atenção o dos distintos lugares geográficos. Que necessidade de viajar ao Caribe se pode roubar tudo o que lhe dê a vontade nos bairros residenciais de Boston ou Nova Iorque?

-Sim, a menos que lhe esteja incomodando muito o frio. Pode ser isso?

-Não. Ele não o sente tanto. Não é o mesmo.

Agradou-me me pôr a camisa e as calças secas. Esses objetos sim foram bem, embora eram um pouco amplas, de um estilo passado de moda, não entalhadas como as usavam os jovens. A camisa era grosa e as calças pinzados, mas o colete o sentia cômodo, abrigado.

-Não posso me atar o nó com estes dedos mortais. Mas, por que me visto assim, David? Alguma vez usa roupa mais informal, como se diz agora? Deus santo, parece que vamos a um enterro. por que tenho que me fazer um laço ao redor do pescoço?

-Porque ficaria muito mal que não o usasse se te põe traje -respondeu-me-. Vêem, que te ajudo. -Uma vez mais lhe notei certo acanhamento ao aproximar-se. Compreendi que sentia uma grande atração por meu corpo. Meu antigo físico o assombrava; este, em troca, acendia sua paixão. Enquanto o observava atentamente e sentia o movimento de seus dedos me fazendo o nó da gravata, tomei consciência de que eu também experimentava uma profunda atração por ele.

Recordei quantas vezes tinha querido tomá-lo, estreitá-lo em meus braços, lhe cravar lenta, meigamente os incisivos no pescoço, lhe beber o sangue. Agora talvez poderia o ter em certo sentido sem possui-lo, mediante o simples ato humano de me enredar com suas pernas, em qualquer combinação de gestos e abraços íntimos que a ele pudessem lhe gostar de. E a mim também.

A idéia me paralisou e uma sensação de frio correu por minha pele humana. Sentia-me unido a ele, unido como o tinha estado com a desafortunada jovem a que violei, com os turistas que passeavam pela nevada cidade capital, meus irmãos, unido como o tinha estado com minha querida Gretchen.

Era tão forte essa percepção -a de ser humano e estar com um humano- que, de repente, e face à beleza da sensação, deu-me medo. Então compreendi que o medo era parte da beleza.

OH, sim, eu era mortal como ele. Flexionei os dedos e lentamente endireitei as costas, com o qual o estremecimento se tornou em uma sensação erótica ao máximo.

Alarmado, David se desprendeu bruscamente de mim, tomou o saco da cadeira e me ajudou a me pôr isso Encontró el teléfono junto al sofá y durante unos cinco minutos conversó con alguien que estaba del otro lado del océano. Aún no había novedades.

-Tem que me contar tudo o que te passou -disse-. E talvez dentro de uma hora já nos confirmem de Londres se o filho de puta tornou a atacar.

Estirei o braço, tirei-o do ombro com meu débil emano mortal, atraí-o para mim e lhe dava um beijo suave na cara. Uma vez mais ele deu um coice.

-Deixa de tolices -exclamou, como quem admoesta a um menino-. Quero que me conte tudo. Agora bem, tomou já o café da manhã? Necessita um lenço. Aqui tem.

-Como vamos receber a comunicação de Londres?

-Por fax da Casa Matriz ao hotel. Vêem, vamos comer algo. Temos todo um dia por diante para fazer planos.

-Se é que ele já não está morto -manifestei com um suspiro-. Duas noites atrás, no São Domingo... -Uma vez mais me alagou uma lhe esmaguem sensação de desesperança. O delicioso impulso erótico corria perigo.

David tirou um cachecol largo de lã da mala e me pôs isso ao pescoço.

-Não pode falar com Londres agora? -quis saber.

-É um pouco cedo, mas posso tentá-lo.

Encontrou o telefone junto ao sofá e durante uns cinco minutos conversou com alguém que estava do outro lado do oceano. Ainda não havia novidades.

Ao parecer, as policiais de Nova Iorque, Florida e São Domingo não estavam em comunicação entre si, pois ainda não se estabeleceu uma relação entre os crímenes.

-Enviarão a informação ao hotel por fax, apenas a recebam -fez-me saber assim que cortou-. Vamos ali. Estou que morro de fome. Passei-me toda a noite aqui, esperando. Ah, o cão... O que vais fazer com esse animal tão esplêndido?

-Ele já tomou o café da manhã; vai se ficar muito contente no jardim do terraço. Está ansioso por ir daqui, não? por que não nos deitamos juntos? Não entendo.

-Diz-o a sério?

Encolhi-me de ombros.

-É obvio. -Se o dizia a sério? Já me estava começando a obcecar com essa simples possibilidade: fazer o amor antes de que ocorresse nenhuma outra coisa. A idéia me parecia fantástica!

De novo ficou me olhando como em transe.

-Dá-te conta de que tem um físico estupendo? Quer dizer... suponho que te terá dado conta de que lhe deixaram um... muito formoso corpo de homem.

-Não esqueça que o revisei muito bem antes de aceitar a mudança. por que não quer...?

-estiveste com uma mulher, verdade?

-Eu não gosto que me as os pensamentos. É má educação. Além disso, isso o que te importa?

-Uma mulher a que amava.

-Sempre amei a homens e mulheres por igual.

-É um uso ligeiramente distinto do verbo "amar". Olhe, agora não podemos fazê-lo, assim te controle. Tem-me que contar tudo o desse tal James. Levará-nos certo tempo preparar o plano.

-O plano. Sinceramente pensa que podemos freá-lo?

-Certamente que sim! -Fez-me gestos de que fôssemos.

-Mas, como? -Já íamos saindo.

-Temos que observar a conduta desse ser para saber quais são seus pontos fortes e débeis. Recorda também que somos dois contra um, e que lhe levamos uma enorme vantagem.

-Qual?

-Lestat, estorva de sua mente essas imagens eróticas e vamos já. Não posso pensar com o estômago vazio, e é evidente que você não está raciocinando como corresponde.

Molho se aproximou do portão com a intenção de nos seguir, mas lhe disse que ficasse.

Dava-lhe um beijo carinhoso no flanco de seu narigudo negro. É-l se tendeu sobre o chão úmido e se limitou a nos olhar com cara de desilusão enquanto baixávamos a escada.

 

O hotel ficava a escassas quadras de distância, e caminhar sob o céu azul não era desagradável pese ao vento gelado. Entretanto, tinha tão frio que não quis começar o relato. Além disso, o espetáculo da cidade à luz do dia me distraía de meus pensamentos.

Uma vez mais me impressionou a atitude despreocupada da gente que se via de dia. Todo mundo parecia bento por essa luz, com independência da temperatura. E ao contemplar todo aquilo senti que em mim aparecia certa tristeza, já que eu não queria permanecer nesse mundo iluminado, por formoso que for.

Não; preferia recuperar minha visão sobrenatural. A mim que me dêem a misteriosa beleza do mundo noturno. me devolvam minha fortaleza e resistência preternaturales, e com gosto renuncio para sempre a este espetáculo. O vampiro Lestat... c'est moi.

David avisou na zeladoria do hotel que íamos estar no comilão, que imediatamente lhe alcançassem ali algo que lhe chegasse por fax.

Instalamo-nos em uma tranqüila mesa com toalha branca, localizada-se em uma esquina do imenso salão antigo, com seus recarregados tetos de gesso e cortinados de seda, e começamos a devorar o abundante café da manhã de Nova Orleáns, que incluía ovos, bolachas, carnes fritas e gordurosos cereais.

Tive que confessar que o problema da comida tinha melhorado com a viagem ao sul. Também me estava resultando mais fácil comer, não me engasgava tanto nem me raspava a língua contra meus próprios dentes. O café açucarado de minha cidade natal superava toda perfeição. E a sobremesa de bananas assadas com açúcar era para subjugar a qualquer mortal.

Mas apesar de tantas tentadoras aprimoramentos, e do desejo desesperado de receber logo notícias de Londres, nesse momento o que mais queria era lhe relatar ao David meu lamentável historia. A cada momento me exigia detalhes, interrompia-me com perguntas, de modo que resultou um relatório muito mais pormenorizado que o que dava ao Louis, e que também me fez sofrer muitíssimo mais.

Resultou muito penoso para mim reviver a ingênua conversação que tive com o James na casa do Georgetown, confessar que não tive a precaução de desconfiar dele, que tinha tido a vaidade de acreditar que nenhum mortal podia burlar-se de mim.

Logo veio a vergonhosa violação, o agudo relato do tempo que estive com o Gretchen, os pesadelos terríveis da Claudia, a separação do Gretchen para voltar a procurar o Louis, que entendeu mal tudo o que lhe contei, preferiu dar crédito a sua própria interpretação, e não me fez o favor que lhe pedi.

Grande parte de meu sofrimento radicava em que já não sentia irritação a não ser um enorme pesar. Pensei no Louis, mas já não como a imagem do amante carinhoso ao que dava vontade de abraçar, a não ser a de um anjo insensível que me impedia de pertencer ao Misterioso Séquito.

-Entendo por que se negou -disse, me sentindo quase incapaz de tratar esse tema-. Suponho que teria que havê-lo previsto. E te digo com sinceridade: não acredito que persista eternamente nessa atitude para comigo. O que passa é que se entusiasmou com a sublime idéia de que devo salvar minha alma. É o que ele faria. Entretanto, em certo sentido ele jamais faria isso. E nunca me compreendeu. Nunca. Por isso é que em seu livro me descreveu tantas vezes sem chegar ao fundo de mim. Se seguir detento neste corpo, se ele chegasse a entender que não penso ir à selva da Guayana Francesa a me reunir com o Gretchen, acredito que com o tempo vai ceder. Apesar de que lhe incendiei a casa. Ao melhor demora anos... Anos dentro deste miserável...!

-Está-te enfurecendo de novo. Tranqüilo. E o que é isso de que lhe incendiou a casa?

-Estava zangado! -exclamei em um nervoso sussurro-. Indignado. Não, nem sequer essa é a palavra.

Pensei que naquela ocasião não era zango o que senti mas sim mas bem um grande sofrimento, mas me dava conta de que não era assim. Pu-me tão triste que não quis seguir refletindo sobre o tema. Bebi como melhor pude outro te vigorizem sorvo de espesso café negro, e passei a narrar que tinha visto o Marius à luz das chamas. Marius tinha querido que o visse. Ele já tinha emitido seu julgamento, mas eu sinceramente não sabia qual era.

Uma fria desesperança me dominou, apagou todo rastro de irritação em mim, e fiquei apático olhando o prato, o restaurante já meio vazio, com seus talheres reluzentes e os guardanapos dobrados como sombreritos em cada lugar. Meus olhos seguiram de comprimento e se posaram nas luzes silenciosas do hall, com essa desagradável tenebrosidad que se abatia sobre todas as coisas, e logo no David, que em que pese a seu caráter, sua comiseração e seu encanto, não era o ser maravilhoso ao que teria visto com meus olhos vampíricos a não ser tão somente um mortal mais, frágil, que vivia ao bordo da morte como eu.

Sentia-me abatido, triste. Não podia seguir falando.

-Escuta, Lestat. Não acredito que Marius tenha destruído a esse ser. Não teria ido mostrar se ante ti, se tivesse cometido esse ato. Não posso imaginar o que pensa nem o que sente alguém como ele; não imagino sequer o que pensa você, e isso que é um de meus amigos mais queridos de toda a vida. Mas não acredito que o tenha feito. apresentou-se aí para te mostrar sua indignação, para te negar ajuda, e esse foi o julgamento que emitiu. Mas arrumado a que te está dando tempo para recuperar seu corpo. E recorda que, qualquer seja a expressão que lhe tenha visto, percebeu-a com seus olhos humanos.

-Isso já o pensei -repus, desanimado-. O que outra coisa posso acreditar, salvo que meu corpo ainda existe e posso recuperá-lo? Não sei me dar por vencido.

Obsequiou-me um encantador sorriso cheia de carinho.

-Teve uma estupenda aventura -disse-. Agora, antes de que pensemos como apreender ao ladrão, quero te fazer uma pergunta. E por favor, não perca os estribos. Dou-me conta de que não sabe quanta força tem neste corpo, como tampouco sabia do outro.

-Força? Que força? Isto não é mais que um montão de nervos e gânglios repulsivos, fofos. Nem menções a palavra "força".

-Tolices. É um robusto e saudável moço de uns noventa quilogramas, sem um grama de graxa. Ficam por diante cinqüenta anos de vida mortal. Pelo amor do céu, toma consciência de seus privilégios.

-Está bem, está bem. É formoso estar vivo! -sussurrei, para não gritar-. E hoje ao meio dia poderia me atropelar um caminhão pela rua! Não vê, David, que me desprezo mesmo por não poder suportar estas simples tribulações? Ódio ser esta criatura débil e covarde!

Apoiei-me no respaldo e dirigi meus olhos ao teto tratando de não tossir, chorar nem espirrar, como tampouco de fechar a mão direita em um punho porque corria o risco de romper a mesa ou golpear alguma parede.

-Ódio a covardia! -murmurei.

-Sei -conveio de bom grau. Observou-me uns instantes em silêncio; logo se secou os lábios com o guardanapo e agarrou a taça do café. -Caso que James ainda ande por aí com seu velho corpo -disse logo-, está totalmente seguro de que quer recuperá-lo e voltar a ser Lestat dentro desse outro corpo?

Ri-me para meus adentros.

-Como quer que lhe demonstre isso? Como diabos vou fazer para efetuar de novo a transformação? Disso depende que conserve a saúde mental.

-Bom, primeiro temos que se localizar ao James. O primitivo é encontrá-lo.. Não nos daremos por vencidos até que não tenhamos a certeza de que não o pode achar.

-Dito por ti parece tão fácil! Como se faz semelhante coisa?

-Shhh, está chamando a atenção sem necessidade -arreganhou-me, com autoridade-. Bebe o suco de laranja, que te fará falta. Peço-te outro.

-Não necessito o suco de laranja e tampouco necessito mais cuidados. Seriamente sugere que há possibilidades de apanhar a esse delinqüente?

-Como te disse antes, Lestat, pensa na limitação mais importante que tinha em seu antigo estado: os vampiros não podem andar à luz do dia; mais ainda, de dia são seres completamente indefesos. Certo é que possuem o reflexo de machucar a quem quer que se atreva a perturbar seu descanso. Mas, salvo isso, acham-se indefesos. E durante umas dez ou doze horas devem permanecer em um mesmo lugar. Isso nos dá uma grande vantagem, principalmente porque é muito o que sabemos sobre o ser em questão. Quão único precisamos é a oportunidade de enfrentamos com ele e confundi-lo bastante como para que se possa fazer a mutação.

-O pode obrigar?

-Sim. O pode fazer sair desse corpo o tempo necessário como para que te você coloque nele.

-Tenho que te contar algo, David. Com este corpo não tenho nem um solo poder extrasensorial. Tampouco os tinha quando era um moço mortal. Não acredito que possa... me elevar e sair deste corpo. Tentei-o uma vez no Georgetown e não pude mover a carne.

-Qualquer pode fazer esse truque, Lestat; só estava atemorizado. E ainda leva dentro de ti algo de tudo o que sabia quando foi vampiro. Tinha a vantagem das células preternaturales, sim, mas a mente propriamente dita não esquece. É óbvio que James transladou os poderes mentais de um corpo ao outro, mas certamente você também ficou com parte desse conhecimento.

-Sim, reconheço que estava atemorizado... Depois não quis tentá-lo mais por medo a não poder voltar a entrar no corpo.

-Eu te vou ensinar a sair do corpo e efetuar um ataque consertado sobre o James. Recorda que somos dois, Lestat. O ataque o faremos juntos você e eu. E eu sim tenho notáveis dons parapsicológicos, para definir os de uma maneira singela. Posso fazer muitas coisas.

-David, em troca disto serei seu escravo toda a eternidade. Darei-te o que me peça. Irei até os limites do universo por ti, com tal de que isto se cumpra.

Titubeou como se queria fazer algum pequeno comentário jocoso, mas o pensou melhor e não disse nada. Logo prosseguiu.

-Começaremos com a preparação quanto antes. Mas agora que o penso, parece-me que o melhor é obrigá-lo a sair de repente. Eu, isso o posso fazer inclusive antes de que se dê conta de que está você ali. Quando me vir , não suspeitará. Além disso, posso lhe ocultar meus pensamentos. E essa é outra coisa que deve aprender: a dissimular seus pensamentos.

-Mas, e se te reconhece, David? Ele sabe quem é, recorda-te. Falou-me de ti. O que lhe vai impedir que te queime vivo no instante em que te veja?

-O lugar onde se realize o encontro. Não vai se arriscar a originar um grande incêndio muito perto de sua pessoa. Além disso, vamos atrair o a um lugar onde não se atreva a demonstrar seus dons, para o qual terá que pensá-lo tudo muito bem. Mas isso pode esperar até tanto saibamos como fazer para encontrá-lo.

-Podemos nos aproximar dele em uma multidão.

-Ou quando estiver por amanhecer, porque não poderá correr o risco de produzir um incêndio perto de sua cova.

-Exato.

-Bom, façamos um cálculo aproximado de seus poderes a partir da informação com que contamos.

Deixou de falar um momento quando o garçom chegou à mesa com uma dessas formosas cafeteiras banhadas em prata que há nos hotéis de categoria. Sempre têm uma pátina distinta da de qualquer platería, e muito pequenos amolgaduras. Observei a beberagem negra que saía pelo pico.

Em realidade eu observava várias coisas enquanto estava aí sentado, face ao desventurado que me sentia. O só feito de estar com o David me dava esperanças.

David bebeu um sorvo do café recém servido quando o garçom já partia; logo colocou a mão no bolso de seu saco e entregou um bollito de folhas de papel.

-São as crônicas que tiraram os jornais a respeito dos assassinatos. as leia com supremo cuidado e me diga algo que te cruze pela mente.

A primeira, titulada "Homicídio vampírico no centro", indignou-me. falava-se ali da injustificável destruição que me tinha mencionado David. Tinha que ser estupidez, destroçar mobiliários tão bobamente. E o roubo... que insensatez atroz. A meu representante tinha quebrado o pescoço no ato de lhe beber o sangue. Mais inépcia.

-Chama-me a atenção que até possa usar o dom de voar -disse, zangado-. Entretanto, neste caso atravessou a parede no piso trinta.

-Isso não significa que possa usar esse poder em grandes distancia.

-Mas então, como fez para chegar de Nova Iorque ao Bal Harbour em uma noite? E o que é mais importante, por que? Se utilizar vôos comerciais, que sentido tem ir ao Bal Harbour em vez de Boston, Os Anjos ou Paris? Pensa em quanto poderia roubar em um museu importante ou um imenso banco. o do São Domingo não o entendo. Embora domine a arte de voar, não pode lhe resultar fácil. Então, para que ir a esses sítios? Quererá atacar em lados muito distintos para que ninguém relacione os fatos?

-Não. Se só procurasse o segredo, não atuaria de maneira tão espetacular. Está cometendo disparates. comporta-se como se estivesse drogado!

-Assim é. E para falar a verdade, essa é a sensação que alguém experimenta ao princípio. Alguém se intoxica com os efeitos magnificados dos sentidos.

-Poderia ser que voasse pelo ar e atacasse simplesmente em qualquer lugar aonde o levasse o vento, que não existisse um plano determinado? -perguntou David.

Pensei na pergunta enquanto lia as demais crônicas, muito frustrado por não poder as escrutinar como poderia ter feito com meus olhos de vampiro. Sim, mais estupidez, mais estupidez. Corpos humanos esmagados com "um instrumento pesado", que certamente só era seu punho.

-Gosta de romper vidros, né? -disse-. Agrada-lhe surpreender a suas vítimas. Deve desfrutar vendo seu medo. Não deixa testemunhas. Rouba tudo o que lhe parece de valor. E nada disso é muito valioso. Como o odeio. E entretanto... eu também cometi atos igual de terríveis.

Recordei as conversações com esse depravado. Como me deixei enganar por suas maneiras de cavalheiro! Mas também me vieram à mente as descrições dele que me tinha feito David, tudo o que disse sobre sua estupidez e seu autodestructividad. E sua estupidez. Como pude esquecê-lo.

-Não -respondi por fim-. Não acredita que possa percorrer semelhantes distancia. Não imagina quão aterrador pode chegar a ser o dom de voar. Vinte vezes mais lhe atemorizem que a viagem fora do corpo. Todos nós o odiamos. Até o rugir do vento produz uma sensação de impotência, um abandono perigoso, por assim dizê-lo.

Fiz uma pausa. Nós conhecemos esse vôo em sonhos, possivelmente porque antes de nascer o conhecemos em algum reino celestial que está além desta terra. Mas não podemos concebê-lo como criaturas mortais, e só eu podia saber até que ponto me tinha esmigalhado o coração.

-Prossegue, Lestat, estou-te escutando. Eu te compreendo.

Lancei um pequeno suspiro.

-Eu aprendi esse dom só porque me encontrava em mãos de um vampiro audaz, que não temia a nada. Alguns de nós nunca o aprendem. Não, não acredito que domine a arte. Está viajando por qualquer outro meio, e só se desagrade pelo ar quando está perto da vítima.

-Sim, isso parece quadrar com as provas. Se soubéssemos...

Algo o distraiu de improviso. Um ancião empregado do hotel, de aspecto amável, tinha aparecido em uma porta longínqua e com enloquecedora lentidão enfiava para nós trazendo um sobre grande na mão.

David tirou imediatamente um bilhete, e o teve preparado.

-Um fax, senhor. Acaba de chegar.

-Ah, muitíssimas obrigado.

Abriu o sobre.

-Leio-te -anunciou-me-. Cabo de notícias proveniente de Miami. Uma residência no alto de uma colina, na ilha do Curaçao. Hora provável: ontem de noite, mas não o descobriu até as 4 da manhã. Cinco pessoas encontradas mortas.

-Onde carajo fica Curaçao?

-Isso é mais desconcertante ainda. trata-se de uma ilha holandesa... bem ao sul do Caribe. Não lhe vejo sentido absolutamente.

Leímos juntos a notícia. Uma vez mais, ao parecer o móvel tinha sido o roubo. O malfeitor rompeu uma clarabóia para entrar e demoliu o conteúdo de duas habitações. Morreu uma família íntegra. A perversidade com que atuou deixou aterrada a toda a ilha. Foram achados dois cadáveres sem sangue, um deles pertencente a um garotinho.

-Este canalha não está só viajando ao sul!

-Até no Caribe há lugares mais interessantes -comentou David-. Passou por cima toda a costa da América Central! Vêem, vamos procurar um mapa para analisar seus movimentos. Pareceu-me ver um escritório de turismo no hall central. Aí certamente têm mapas. Depois levamos tudo a sua casa.

O agente de viagens, um senhor maior de voz refinada, com soma amabilidade procurou uns mapas na desordem de seu escritório. Curaçao? Sim, em alguma parte tinha uns folhetos. De todas as ilhas do Caribe, não lhe parecia uma das mais atrativas.

-por que vai a gente aí? -perguntei.

-Bom, em geral não vai muito -confessou, arranhando-a calva-. Salvo nos cruzeiros, é obvio. Nos últimos anos estiveram fazendo escala nesse porto. Aqui estão. -Pô-me na mão um folheto de um navio pequeno chamado Coroa dos Mares, muito bonito na foto, que percorria todas as ilhas e fazia sua última escala no Curaçao antes de empreender a volta.

-Cruzeiros! -murmurei olhando a ilustração. Meus olhos se posaram logo nos enormes pôsteres de navios que havia nas paredes do escritório. -Em sua casa do Georgetown tinha muitíssimas fotos de navios -comentei-. David, está viajando por mar! Recorda o que me disse a respeito de que seu pai trabalhava para uma empresa naval? Também me mencionou algo assim como que queria viajar a América do Norte em algum transatlântico.

-Talvez tem razão! Nova Iorque, Bal Harbour... -Olhou ao agente. -Os cruzeiros revistam fazer escala no Bal Harbor?

-No Port Everglades, que fica muito perto. Mas não muitos zarpam de Nova Iorque.

-Não param no São Domingo?

-OH, sim, esse é um lugar habitual. Todos variam seu itinerário. Em que tipo de navio está pensando?

David anotou rapidamente as diversas localidades e as noites em que tinham ocorrido os homicídios; sem dar nenhuma explicação, certamente.

Mas logo se mostrou abatido.

-Não -disse-, vejo que é impossível. Que cruzeiro poderia cobrir o trajeto desde a Florida até o Curaçao em três noites?

-Bom, há um -interveio o agente-, que casualmente zarpou esta última quarta-feira de Nova Iorque. É o casco de navio insígnia da Linha Cunard, o Queen Elizabeth II.

-Esse mesmo -confirmei eu-. O Queen Elizabeth II, David, o mesmo navio que me mencionou. Você disse que seu pai...

-Acreditava que o usava para cruzes transatlânticos.

-Não no inverno -repôs afablemente o senhor-. Percorre o Caribe até março. E é possivelmente o mais veloz que existe, pois alcança vinte e oito nós. Mas olhe, podemos revisar já mesmo o itinerário.

Empreendeu outra dessas buscas, ao parecer inúteis, de papéis em seu escritório, até que por último achou um folheto belamente impresso, que abriu e alisou com a mão.

-Sim, partiu de Nova Iorque na quarta-feira. Atracou ao Port Everglades na sexta-feira pela manhã, zarpou antes de meia-noite e prosseguiu rumo ao Curaçao, aonde chegou ontem às cinco da manhã. Mas não fez escala na República Dominicana, assim não sei o que lhe dizer.

-Não importa; passou por ali! -exclamou David-. Passou pela República Dominicana de noite seguinte! Olhe o mapa. Não há dúvida. Ah, o muito tolo. Virtualmente lhe antecipou isso, Lestat, com tudo esse bate-papo obsessivo. Vai a bordo do Queen Elizabeth, o mesmo navio que foi tão importante para seu pai, o navio onde o velho passou sua vida.

Agradecemos calorosamente ao homem seus mapas e folhetos, e logo saímos a procurar um táxi.

-É tão típico dele! -comentou David no automóvel, caminho a meu departamento-. Tudo o que faz esse demente é simbólico. Contei-te que o tinham despedido do Queen Elizabeth em meio de um escândalo? Ah, esteve tão acertado. O sua é uma obsessão, e ele mesmo te deu a pista.

-Sim, claro que sim. A Talamasca não o quis enviar a América no Queen Elizabeth II. E isso nunca lhe perdoou isso, David.

-Odeio-o -articulou, com um ardor tal que me surpreendeu, ainda tendo em conta as circunstâncias nas quais estávamos envoltos.

-Mas em realidade não é uma tolice tão grande, David. Não vê que é uma coisa ardilosa, diabólica? É verdade, sem dar-se conta me deu a chave nesses bate-papos que tivemos no Georgetown, e isso podemos atribuir-lhe a seu autodestructividad, porque não acredito que tenha suposto que eu ia dar conta. Além disso, honestamente, se você não me tivesse mostrado as notícias que publicaram os jornais sobre os outros assassinatos, ao melhor nunca me teria ocorrido essa possibilidade.

-Pode ser. me dá a impressão de que quer que o pesquem.

-Não, David. está-se escondendo. De ti, de mim, de meus companheiros. OH, é muito inteligente. Digamos que é um bruxo abominável, capaz de ocultar-se por completo. E onde se oculta? No atestado mundo de mortais que viaja nas vísceras de um casco de navio veloz. Olhe seu itinerário! Um navio que navega todas as noites. Só de dia fica nos portos.

-Como quer -admitiu David-, mas para mim segue sendo um idiota. E vamos capturar o! Agora bem. Contou-me que lhe tinha dado um passaporte, não?

-Em nome do Clarence Oddbody, mas certamente não o usou.

-Logo saberemos. Eu suspeito que ao casco de navio em Nova Iorque da maneira habitual. Para ele tem que ter sido muito importante que o recebesse com a devida pompa, reservar a suíte mais cara e chegar até a coberta superior com os ajudantes lhe fazendo reverências. Essas suítes são enormes, pelo qual não seria nada chamativo ter aí um baú imenso onde esconder-se de dia. Nenhum garçom o tocaria.

Já tínhamos chegado de novo a meu edifício. David tirou uns bilhetes para pagar o táxi e em seguida subimos.

Assim que entramos no departamento, sentamo-nos com os folhetos e os recortes dos jornais, e deduzimos o cronograma com que se perpetraram os crímenes.

Era óbvio que o malfeitor tinha matado a meu agente de Nova Iorque escassas horas antes de zarpar a nave. Teve tempo de sobra para embarcar antes das onze da noite. O homicídio próximo ao Bal Harbour se cometeu poucas horas antes de amarrar o casco de navio. Evidentemente utilizava sua capacidade de voar para trajetos curtos, e retornava a seu camarote ou outro lugar de esconderijo antes da saída do sol.

Para o crime do São Domingo possivelmente tinha abandonado o navio durante uma hora e o alcançou mais adiante, no trajeto para o sul. Uma vez mais, essas distâncias não eram nada. Nem sequer necessitava uma visão sobrenatural para localizar ao gigantesco paquete que sulcava o mar. Os assassinatos do Curaçao se levaram a cabo pouco depois de llevar âncoras. Provavelmente ele voltou para navio menos de uma hora depois, carregado com sua bota de cano longo.

O casco de navio estava viajando agora rumo ao norte. Apenas duas horas antes tinha ancorado em La Guaira, sobre a costa venezuelana. Se essa noite cometia algum crime em Caracas ou seus arredores, saberíamos com certeza que o tínhamos se localizado, mas não tínhamos intenção de esperar essa ulterior confirmação.

-Bom, pensemos um plano -disse-. Atreveríamo-nos a nos embarcar nós mesmos nesse navio?

-Temos que fazê-lo, é obvio.

-Então terá que conseguir passaportes falsos. É possível que armemos um grande revôo. David Talbot não deve ficar comprometido e eu não posso utilizar o passaporte que ele me deu. Além disso, nem sequer sei onde o deixei. Talvez esteja ainda na casa do Georgetown. Só Deus sabe por que pôs seu próprio nome nesse documento, possivelmente queira me causar problemas a primeira vez que me ocorresse passar por uma alfândega.

-Exato. Eu posso me ocupar da documentação antes de ir de Nova Orleáns. Agora bem, não podemos chegar a Caracas antes das cinco, hora de partida do casco de navio. Não. Teremos que abordá-lo amanhã na Grenada. Fica tempo até as cinco. É muito provável que haja camarotes disponíveis, porque sempre se produzem cancelamentos de último momento e às vezes até mortes. De fato, em um navio tão caro como o Queen Elizabeth II sempre há mortes. Isso James deve sabê-lo seguro. Ou seja que, tomando as necessárias precauções, pode saciar seu apetite no instante que lhe ocorra.

-Mas, por que tem que haver mortes?

-Pelos passageiros anciões -respondeu David-. É algo que ocorre nessas viagens. O casco de navio leva um hospital grande para emergências. Não esqueça que um navio de semelhante envergadura é um mundo flutuante. Mas não importa. Nossos investigadores esclarecerão tudo. Em seguida me comunico com eles. Será fácil chegar a Grenada desde Nova Orleáns, e ainda nos vai ficar tempo para nos preparar.

"Bom, Lestat, analisemos tudo em detalhe. Suponhamos que enfrentamos a este ser desprezível antes do alvorada, que conseguimos colocar o de volta neste corpo e que depois não podemos controlá-lo. Necessitamos um lugar onde te esconder a ti... um terceiro camarote, reservado sob outro nome que não tenha nada que ver com nenhum de nós.

-Sim, algo que esteja no meio do casco de navio, em alguma das cabines inferiores. Não na de mais abaixo porque seria muito evidente, mas sim mas bem na metade, eu diria.

-Mas, com que velocidade pode te mover? Poderia descer em questão de segundos até essa coberta?

-Sem dúvida. Por isso não se preocupe. E no camarote tem que caber um baú grande. Embora, em realidade, isso não é fundamental se de antemão pude colocar uma boa fechadura na porta, mas não seria má idéia.

-Ah, já vejo, já vejo o que temos que fazer. Você, descansa, bebe seu café, date uma ducha, faz o que queira. Eu vou ao outro quarto e faço os chamados necessários. Como isto tem que ver com a Talamasca, deve me deixar sozinho.

-Não o dirá a sério. Quero escutar o que...

-me faça caso. Ah, e busca quem te possa cuidar esse belo cão (cão) teu. Impossível levá-lo conosco! E um cão desse caráter, não pode ficar abandonado.

Rapidamente se encerrou em meu dormitório para poder fazer por sua conta os enigmáticos chamados.

-Justo quando eu começava a desfrutá-lo... -lamentei.

Saí a procurar a Molho, que estava dormindo no frio e úmido jardim do terraço como se fora a coisa mais natural do mundo. Levei-o a casa da mulher da planta baixa. De todos meus inquilinos, era a mais afável, e certamente lhe viriam bem duzentos dólares por alojar a um cão manso.

Apenas o sugeri, mostrou-se fora de si de alegria. Disse que Molho podia usar o pátio traseiro do edifício, que o fazia falta o dinheiro e a companhia, e que eu era muito bom. Tanto como minha primo, o senhor do Lioncourt, uma espécie de anjo guardião dele que nunca se incomodava em cobrar os cheques com que lhe pagava o aluguel.

Subí de novo ao departamento e me encontrei com que David seguia com seu trabalho e não me deixava escutar. Pediu-me que preparasse café, coisa que é obvio eu não sabia fazer. Bebi o café velho e chamei Paris.

Atendeu-me meu representante. Disse que estava a ponto de me enviar o relatório por mim solicitado. Tudo andava bem. Não tinha havido mais intentos de roubo por parte do ladrão misterioso. O último tinha ocorrido a noite da sexta-feira. Ao melhor se deu por vencido. Uma cuantiosa soma de dinheiro me aguardava em meu banco de Nova Orleáns.

Reiterei-lhe todas as precauções que devia tomar e lhe disse que logo o voltaria a chamar.

Noite da sexta-feira: queria dizer que James fazia o último intento de roubo antes de que o Queen Elizabeth II zarpasse dos Estados Unidos. Enquanto ia a bordo, não tinha modo de roubar por computador. E sem dúvida não planejava fazer machuco a meu agente de Paris. Isso, se é que se contentava com suas breves férias no Queen Elizabeth. Nada lhe impedia de abandonar o navio quando quisesse.

Voltei para o computador e tentei ingressar nas contas do Lestan Gregor, a pessoa que supostamente lhe tinha girado os vinte milhões ao banco do Georgetown. Tal como supunha, Gregor ainda existia mas virtualmente não ficava nem um centavo. Saldo de sua conta: zero. Os vinte milhões girados ao Georgetown para que os usasse Raglan James de fato tinham retornado ao senhor Gregor na sexta-feira ao meio dia, mas imediatamente foram retirados de sua conta. A extração se organizou a noite anterior. na sexta-feira às titee o dinheiro já se foi por algum caminho impossível de rastrear. Toda a operação figurava aí, gravada em diversos códigos numéricos e terminologia bancária, que qualquer parvo podia ver.

E por certo havia um parvo olhando a tela nesse preciso instante.

O abjeto indivíduo me tinha advertido que sabia roubar mediante o computador. Sem dúvida lhe tinha surrupiado informação às pessoas do banco do Georgetown, ou tinha violado suas mentes confiadas valendo-se da telepatia, com o fim de averiguar as chaves cifradas que lhe faziam falta.

Fosse como for, ele agora contava com uma fortuna que antes era minha, pelo qual o odiava muito mais. Odiava-o porque tinha matado a meu agente de Nova Iorque. Odiava-o porque no mesmo ato destroçou meus móveis, e por roubar-se todo o resto do escritório. Odiava-o por sua mesquinharia e seu intelecto, sua crueldade e sua ousadia.

Fiquei bebendo o café velho e pensando no que nos esperava.

É obvio, compreendia o que tinha feito James, por estúpido que parecesse. Soube do primeiro momento que, em seu caso, o fato de roubar tinha que ver com ânsias não saciadas de sua alma. E o Queen Elizabeth II tinha sido o mundo de seu pai, o mundo de onde, por haver o surpreso roubando, o tinha expulso.

OH, sim, expulso, tal como meus companheiros fizeram comigo. E que ansioso por retornar com seus novos poderes e sua nova riqueza deve ter estado. Provavelmente o tinha planejado com luxo de detalhes assim que fixamos data para efetuar a transmutação. Sem dúvida, se eu o tivesse feito esperar, ele teria tomado o navio em algum porto mais adiante. Em troca assim, pôde iniciar a viagem a escassa distância do Georgetown e aproveitou para dar morte a meu representante antes de zarpar.

Ah, recordo-o sentado nessa escura cozinha do Georgetown, olhando com freqüência seu relógio. Quer dizer, este relógio.

David saiu por fim do dormitório, anotador em mão. Estava tudo arrumado.

-Não viaja nenhum Clarence Oddbody no Queen Elizabeth, mas um misterioso inglês jovem, de nomeie Jason Hamilton, reservou a luxuosa suíte Reina Vitória apenas dois dias antes de que o casco de navio zarpasse de Nova Iorque. No momento devemos supor que se trata de nosso homem. Receberemos mais informação antes de chegar a Grenada. Nossos detetives já se encontram trabalhando.

"Para nós temos duas suítes reservadas na mesma coberta que o amigo misterioso. Embarcaremo-nos amanhã antes das dezessete, que é a hora de zarpar.

"O primeiro dos vôos que deveremos tomar parte de Nova Orleáns dentro de três horas. Pelo menos uma dessas horas a necessitamos para conseguir os passaportes. Proporcionará-nos isso um senhor que foi extremamente recomendado e já nos está esperando. Aqui está a direção.

-Excelente. Eu tenho aqui suficiente dinheiro em efetivo.

-Muito bem. Bom, um de nossos investigadores se reunirá conosco na Grenada. trata-se de um homem muito hábil, que durante anos trabalhou comigo. Ele reservou o terceiro camarote, interno, na coberta cinco. E as vai engenhar para entrar no camarote modernas armas de fogo, como também o baú que vamos necessitar depois.

-Essas armas não são nada para um homem que habite em meu velho corpo. Mas depois, é obvio...

-Exato -disse David-. depois de fazer a mudança, fará-me falta uma arma para me proteger deste formoso corpo jovem que está aqui. -Assinalou-me com um gesto. -Seguindo com o plano, logo depois de embarcar-se com todas as da lei, meu investigador sairá subrepticiamente mas nos deixará as armas no camarote. Nós cumpriremos com o procedimento de rigor para nos embarcar, usando os novos documentos de identidade. Ah, e já escolhi nossos nomes, não ficou mais remédio. Espero que não te incomode. Você será Sheridan Blackwood, um norte-americano. Eu, um cirurgião inglês aposentado, Alexander Stoker. Nestas pequenas missões, sempre o melhor é passar por médico. Já vais ver.

-Me alegro de que não tenha eleito H.P. Lovecraft -disse, exagerando um suspiro de alívio-. Temos que ir já?

-Sim. Já pedi o táxi. antes de partir devemos comprar alguma roupa veraniega; se não, vamos parecer ridículos. Não há um minuto que perder. E agora, se com esses fortes braços me ajuda com esta mala, ficarei eternamente agradecido.

-Que desilusão.

-por que? -deteve-se, olhou-me e quase no ato se ruborizou, como lhe tinha acontecido antes. -Lestat, não temos tempo para essas coisas.

-Caso que nos saia tudo bem, possivelmente esta seja nossa última oportunidade, David.

-De acordo; esta noite teremos tempo de sobra para falar desse tema no hotel da praia da Grenada. Segundo o rápido que aprenda suas lições sobre projeções astrais, é obvio. E agora, mostra por favor um pouco de vigor juvenil de tipo construtivo e me ajude com a mala. Tenho setenta e quatro anos.

-Esplêndido. Mas antes de partir quero saber algo.

-O que?

-por que me está ajudando?

-Mas se sabe, pelo amor do céu.

-Não, não sei.

Olhou-me com ar severo um comprido instante.

-Porque te tenho carinho -respondeu logo-. Não me importa em que corpo esteja. Na verdade lhe digo isso. Mas te confesso que esse atroz Ladrão de Corpos, como você lhe chama, aterra-me enormemente.

"É um néscio e sempre provoca sua própria ruína. Mas esta vez acredito que tem razão. Não tem tantas vontades de que o capturem, se é que alguma vez as teve. Conta com que todo lhe vai sair bem e possivelmente logo se canse do Queen Elizabeth. Por isso devemos atuar. Bom, recolhe já a mala. Eu quase me Mato subiéndola pela escada.

Obedeci-lhe.

Mas suas palavras carregadas de afeto me abrandaram, entristeceram-me um pouco, e no ato minha mente se povoou com uma série de imagens fragmentárias de todas as pequenas coisas que podíamos ter feito na cama grande e mole do outro quarto.

Mas, se o Ladrão de Corpos já tinha saltado do navio? E se já o tinha destruído essa mesma manhã, depois de me haver cuidadoso Marius com tal desprezo?

-Depois seguiremos viagem a Rio -anunciou David, que já se dirigia para o portão-. Chegaremos justo para o carnaval. Será uma linda férias para os dois.

-Morro se tiver que viver tanto! -exclamei, enquanto me punha diante dele para baixar a escada-. O que passa contigo é que acostumaste a ser humano porque o é há tanto tempo.

-Já estava habituado quando tinha dois anos de idade -foi seu comentário.

-Não te acredito. Faz séculos que venho observando aos seres humanos de dois anos e te digo que são infelizes, David. Correm por toda parte, caem, vivem gritando. Odeiam ser humano! A essa altura já sabem que se trata de uma espécie de jogo sujo que lhes têm feito.

riu para seus adentros mas não me respondeu. Tampouco queria me olhar.

Quando, chegamos à rua já estava esperando o táxi.

 

A viagem em avião teria sido outro pesadelo, mas como estava tão cansado, dormi. Tinham passado vinte e quatro horas da última vez que descansei em braços do Gretchen, e o certo é que caí em um sonho tão profundo que, quando David despertou para trocar de avião em Porto Rico, não sabia onde estávamos nem o que fazíamos. E até houve um momento em que me pareceu totalmente normal estar dentro deste físico grande e pesado, em estado de confusão e irrefletida obediência às ordens do David.

Saímo-nos à parte exterior do aeroporto para a mudança de aviões e mais tarde, ao aterrissar por fim no pequeno aeródromo da Grenada, surpreendeu-me a deliciosa calidez do Caribe e o céu esplendoroso do entardecer.

Todo mundo parecia trocado pelo suave bálsamo das brisas que nos receberam. Alegrei-me de ter feito a incursão pelos negócios da rua Canal de Nova Orleáns, porque a grosa roupa de lã que tínhamos era inadequada. Enquanto o táxi nos levava por um caminho estreito e desigual para o hotel situado na praia, deslumbraram-me os hibiscos vermelhos depois das pequenas cercas das casas, o bosque luxuriante que nos rodeava, os elegantes coqueiros inclinados sobre as desmanteladas casas das ladeiras, e senti ânsias de ver, não já com a limitada visão mortal, a não ser com a luz mágica do sol da manhã.

Sem lugar a dúvidas, ter efetuado a transformação no frio espantoso do Georgetown tinha tido um pouco de penitência. Não obstante, se rememorava a experiência, a muito belo neve branca, a tibieza da casa do Gretchen, não me podia queixar. Mas essa ilha do Caribe me parecia o mundo verdadeiro, o mundo para os que realmente estavam vivos. E me maravilhei, como sempre me ocorria nessas ilhas, de que pudessem ser tão formosas, tão cálidas, tão extremamente pobres.

A pobreza se via em qualquer parte, nos barracões de madeira construídas sobre pilote, nos pedestres aos flancos do caminho, nos automóveis velhos e enferrujados, na carência total do menor signo de riqueza, todo o qual contribuía a criar uma impressão estranha para o visitante e era sinal de uma existência dura para os nativos, que nunca tinham podido reunir dinheiro para sair desse lugar nem sequer por um só dia.

O céu da noite era de um azul intenso, como está acostumado a sê-lo nessa parte do mundo, incandescente como o é às vezes o de Miami, enquanto no longínquo bordo do mar fulgurante as nubecitas brancas dão ao panorama o mesmo aspecto puro e espetacular. Fascinante, e isso não era mais que uma mínima partícula do grande o Caribe. Como me pôde ocorrer alguma vez habitar em outros climas?

O hotel era apenas uma poeirenta casa de hóspedes de estuque branco com oxidados tetos metálicos. Conheciam-no só uns poucos britânicos, era muito tranqüilo e contava com uma asa de antiquadas habitações que davam às areias da praia Grand Anse. Desculpando-se porque os aparelhos de ar condicionado de ar estivessem chateados, e pelo escasso tamanho das habitações -deveríamos compartilhar um quarto com camas as gema (quase me dá um ataque de risada, enquanto David levantava os olhos ao céu como queixando de sua sorte)-, o proprietário nos mostrou que o ruidoso ventilador de teto levantava uma formosa brisa. Nas janelas, velhos portinhas com persianitas. Os móveis eram de vime branco, e o piso, de velhas cerâmicas.

me pareceu simpático, mas sobre tudo pelo calor doce do ar que nos rodeava, pela parte de selva que crescia ao redor da edificação, com suas inevitáveis folhas de bananero e coroas de noivas. Ah, que bela trepadeira. Eu deveria ter por norma não viver em nenhuma parte do mundo onde não crescesse essa trepadeira.

No ato começamos a nos trocar a roupa. Tirei-me os objetos de lã e me pus a camisa e a calça finas que antes de partir tinha comprado em Nova Orleáns. Pu-me também um par de sapatilhas brancas e decidi não perpetrar um atentado sexual na pessoa do David, que se trocava me dando as costas. Logo saí, internei-me sob os coqueiros arqueados e baixei à praia.

A noite era extremamente plácida. Voltou-me todo o amor pelo Caribe e recuperei também lembranças alegres e dolorosas. Mas ansiava ver essa noite com meus velhos olhos, ver além da penumbra cada vez mais densa e o manto de sombra que cobria as colinas. Desejava fervientemente contar com meu sentido preternatural da audição e captar as suaves canções da selva, passear com velocidade vampírica pelo alto das montanhas para achar as pequenas cascatas e vales secretos como só podia fazê-lo o vampiro Lestat.

Experimentei uma tristeza entristecedora. E possivelmente pela primeira vez compreendi que tudo o que tinha sonhado sobre a vida mortal tinha sido mentira. Não era que a vida não fosse mágica, que a criação não fosse um milagre, que o mundo não fosse fundamentalmente bom. O problema era que sempre tomei com tanta naturalidade meus poderes misteriosos, que não me dava conta do privilégio que significavam. Não avaliei minhas faculdades em sua justa importância. E agora as queria recuperar.

Tinha fracassado, não é assim? A vida mortal teria que ter sido suficiente! Elevei o olhar e contemplei as estrelinhas, tão cruéis como indignas guardianas, e orei aos deuses enigmáticos que não existem para compreender.

Pensei no Gretchen. Teria chegado já às selvas e estaria com todos quão doentes tinham saudades o consolo de suas carícias? Que pena não saber onde se encontrava.

Ao melhor já estava trabalhando no dispensário, com brilhantes frasquitos de medicamentos, ou deslocando-se a aldeias vizinhas carregada de milagres em sua mochila. Recordei a felicidade com que me descreveu a missão. Evoquei o ardor desses abraços, a sonolenta sensação de doçura, o consolo que me brindou essa pequena habitação. Uma vez mais vi cair a neve depois dos vidros das janelas. Vi os ojazos castanhos posados em mim, ouvi o ritmo pausado das palavras femininas.

E de novo reparei no azul intenso do céu noturno sobre minha cabeça. Senti a brisa que avançava sobre mim quão mesmo sobre a água, e pensei no David; no David que estava aí, comigo.

Chorava quando me tocou o braço.

Por um instante não pude distinguir suas facções. A praia estava às escuras e era tão imponente o ruído das ondas, que nada parecia me funcionar como devia. Depois me dava conta de que era David o que me olhava. Vestido com camisa branca de algodão, calças veraniegos e sandálias, conseguia estar sempre elegante até com esse traje. Amavelmente me pediu que voltasse para a habitação.

-Chegou Jake -disse-, nosso homem do México. Acredito que deveria retornar.

O ventilador de teto produzia ruído ao funcionar, e o ar atravessava os portinhas quando entram no opaco quartinho. Os coqueiros deixavam escapar um tamborilar agradável, som que subía e baixava com a brisa.

Jake estava sentado em uma das estreitas e vencidas camitas. tratava-se de um indivíduo alto, magro, de calças curtas cor cáqui e remadora branca, que fumava um cheiroso charuto. Tinha a pele muito bronzeada, e um arbusto relatório de denso cabelo loiro grisalho. Sua pose era totalmente relaxada mas, depois dessa fachada, advertia-se um ser extremamente atento e desconfiado. Sua boca formava uma perfeita linha reta.

Demo-nos a mão e ele logo que dissimulou o fato de que me estava olhando de cima abaixo. Olhos rápidos, sigilosos, parecidos com os do David embora mais pequenos. Só Deus sabe o que viu.

-Bom, as armas não serão problema -declarou com evidente acento australiano-. Nos portos como este não há detectores de metal. Eu me embarcarei por volta das dez da manhã; deixo-lhes o baú e as armas em seu camarote da coberta cinco e me reúno com vocês no Café Centaur, do St. George. Espero que saiba o que está fazendo, David, com isto de fazer entrar armas de fogo ao Queen Elizabeth II.

-É obvio que sei -respondeu David cortesmente, com uma sonrisada divertida-. Bem, o que averiguou sobre nosso homem?

-Ah, sim, Jason Hamilton. Um e oitenta de estatura, tez escura, cabelo loiro mas bem comprido, olhos azuis, penetrantes. Um tipo misterioso. Muito britânico, muito gentil. correm-se muitos rumores sobre sua verdadeira identidade. Deixa cuantiosas gorjetas, dorme de dia e ao parecer não baixa do navio quando este toca porto. Todas as manhãs entrega ao garçom uns paquetitos para que envie por correio. Isso o faz muito cedo e depois já desaparece por todo o dia. Não pudemos averiguar a que casinha de correio os remete, mas logo saberemos. até agora nunca apareceu a comer pelo restaurante do navio. comenta-se que está gravemente doente, mas do que, não se sabe. Por outra parte, é a imagem da saúde, o qual só contribui a afundar o mistério. É um homem de boa planta, e usa roupa muito chamativa, ao parecer. Joga forte à roleta e dança durante horas com as mulheres. Mais concretamente, parecem lhe gostar das velhas. Por esse só dado poderia despertar suspeitas, se não fora tão rico. Passa muito tempo percorrendo o navio e nada mais.

-Excelente. É justo o que me interessava saber -demarcou David-. Tem nossos ingressos, não?

O homem assinalou um sobre de couro negro sobre a cômoda de vime. David revisou seu conteúdo e fez logo um gesto de assentimento.

-Mortes que tenha havido até agora no navio? -quis saber.

-Ah, isso é sugestivo. produziram-se seis desde que partiu de Nova Iorque, o que é um pouco mais do habitual. Todas mulheres maiores e, ao parecer, de insuficiência cardíaca. É este o tipo de dados que queria?

-Por certo -respondeu David.

O "traguito", pensei eu.

-Agora teria que jogar uma olhada a estas armas -prosseguiu Jake- e saber as dirigir. -Tomou uma gasto bolsa de lona que havia no piso, o tipo de bolsa no que alguém guardaria armas caras, supus. Tirou dele um revólver grande Smith & Wesson e uma pistolita automática do tamanho da palma de minha mão.

-Sim, a este o conheço -assegurou David, tomando o revólver e apontando ao chão-. Nenhum problema. -Tirou-lhe o carregador e logo voltou a ficar o Mas roga que não tenha que usá-lo. Faria um ruído infernal.

Logo me passou isso.

-Apalpa-o, Lestat -disse-. Infelizmente não haverá tempo para praticar. Eu pedi um que tivesse gatilho sensível.

-E este o tem -afirmou Jake, me olhando sem simpatia-, assim tomem cuidado.

-Que objeto desumano -comentei. Era muito pesado. Um objeto de destructividad. Fiz girar o tambor. Seis balas. Notei-lhe um aroma estranho.

-Ambos os som calibre trinta e oito -explicou o homem com certo desdém. Logo me mostrou uma cajita de cartão.- Aqui têm munição suficiente para o que seja que vão fazer neste navio.

-Não te aflija, Jake -manifestou David em tom firme-. As coisas sairão à perfeição. E obrigado por sua habitual eficiência. Agora vê e passa uma velada agradável na ilha. Vejo-te no Café Centaur antes do meio-dia.

O tipo me dirigiu um olhar de desconfiança, assentiu com um gesto, recolheu as armas e as munições -que voltou a guardar na bolsa- e nos deu a mão, primeiro a mim e logo ao David. Ato seguido partiu.

Aguardei até que se fechou a porta.

-Acredito que não lhe caio bem -disse-. Culpa-me de que te tenha envolto em uma espécie de crime sórdido.

David deixou escapar uma breve risada.

-estive em situações muito mais comprometidas que esta -expressou-. E se me preocupasse com o que pensam de nós nossos detetives, faz muitíssimo que me teria aposentado. Agora bem que conclusões podemos tirar desta informação?

-Bom, que se está alimentando com as anciãs, e as roubando também. Envia o bota de cano longo em encomendas pequenas para não despertar suspeitas. O que faz com os objetos de mais tamanho nunca saberemos. Ao melhor os joga no mar. Eu suponho que deve ter mais de uma casinha de correio, mas isso não nos concerne.

-Correto. Agora joga chave à porta, que já é hora de praticar um pouco de bruxaria. Depois virá um régio jantar. Tenho que te ensinar a ocultar seus pensamentos. Jake pôde te ler com toda facilidade. O mesmo posso eu. Se não, o Ladrão de Corpos advertirá sua presença embora esteja duzentas milhas mar dentro.

-Eu o fazia mediante um ato de vontade quando era Lestat -aduzi-. Agora não tenho nem a mais mínima idéia de como se faz.

-Da mesma forma. vamos praticar até que já não possa te ler nenhuma só imagem ou palavra. Depois nos dedicaremos ao tema de viajar fora do corpo. -Olhou a hora, gesto que de repente me fez recordar ao James naquela cozinha. -Ponha o ferrolho. Não quero que depois apareça nenhuma garçonete.

Obedeci-lhe. Tomei assento na cama frente a David, que tinha adotado uma atitude serena embora dominante. arregaçou-se os punhos da camisa engomada e pude lhe ver o pêlo escuro dos braços. Pelo pescoço desprendido da camisa também aparecia pêlo escuro, matizado apenas por algo de cinza, como ocorria com sua barba. Resultou-me impossível acreditar que tivesse setenta e quatro anos.

-Isso lhe pesquei isso -comentou, arqueando as sobrancelhas-. Adivinho-te muito. Bom, escuta o que te digo. te faça à idéia de que seus pensamentos não devem sair de ti, que não tentará te comunicar com outros seres por meio de gestos faciais, nem linguagem do corpo de tipo algum. te crie a imagem de sua mente fechada, se for preciso. Sim, assim está bem. puseste a mente totalmente em branco. Até te trocou um tanto a expressão dos olhos. Perfeito. Agora vou tratar de te ler. Segue igual.

Ao cabo de quarenta e cinco minutos já dominava bastante bem a técnica, mas não podia ler absolutamente os pensamentos do David por mais que ele tratasse de me projetar isso dentro deste corpo, eu não tinha as faculdades parapsicológicas de antes. Mas ao menos tinha conseguido ocultar meus, e isso era vital. Seguimos praticando a noite inteira.

-Agora estamos preparados para começar com a viagem imaterial -anunciou logo.

-Isso vai ser um inferno. Não acredito que possa sair deste corpo. Como vê, não tenho seus dons.

-Frescuras. -distendeu-se um pouco, cruzou os tornozelos e ficou mais cômodo na poltrona. Mas de algum jeito, com independência do que fizesse, nunca perdia o tom de professor, de autoridade, de sacerdote. Estava implícito em sua gesticulação, mas sobre tudo em sua voz.

-te deite na cama, fecha os olhos e escuta bem o que te digo.

Fiz o que me indicava. E imediatamente me senti dormitado. Sua voz, face à suavidade, adquiriu um tom mais peremptório, como a de um hipnotizador que me insistia a me relaxar, a visualizar um dobro espiritual desta forma humana.

-Devo me representar a imagem de mim mesmo dentro deste corpo?

-Não; não faz falta. O que importa é que você, sua mente, sua alma, seu eu se vinculem com a forma que visualiza. Agora imagina-a acorde com seu corpo, e logo imagina que desejas tirar a de seu corpo, que você quer te elevar!

Durante trinta minutos continuou com suas pausadas instruções, reiterando em seu próprio estilo as lições que durante milênios ensinaram os sacerdotes aos iniciados. Eu conhecia a velha fórmula, mas também conhecia a total vulnerabilidade mortal, uma te esmaguem conscientiza de minhas próprias limitações e um medo lhe paralisem.

Levávamos possivelmente quarenta e cinco minutos praticando, quando por fim alcancei o sutil estado vibratório na cúspide do sonho. De fato, tive a sensação de que meu corpo inteiro se convertia nesse estado vibratório e nada mais! E justo quando me dava conta disso, quando poderia ter feito algum comentário, senti de repente que me desprendia e começava a me elevar.

Abri os olhos, ou ao menos pensei que o fazia. Vi que flutuava justo em cima de meu corpo; depois não vi nem sequer o corpo de carne e osso. "Sube!", disse-me, e imediatamente cheguei ao teto com a leveza e a rapidez de um globo cheio de gás! Não me custou nada me dar volta e olhar para baixo, toda a habitação.

Tinha chegado mais acima dos sinais de multiplicação do ventilador! E lá abaixo se encontrava dormida a forma humana onde com tanto sofrimento tinha arroxeado todos esses dias. Tinha os olhos fechados, quão mesmo a boca.

Vi o David sentado na poltrona de vime, seu tornozelo esquerdo apoiado sobre o direito, as mãos lassas sobre suas coxas enquanto contemplava ao homem dormido. teria se dado conta de que o obtive? Não alcançava para ouvir as palavras que ele pronunciava. O certo é que eu parecia estar em uma esfera totalmente distinta da dessas duas silhuetas sólidas, embora me sentia total e absolutamente eu mesmo.

Que prazenteira sensação! parecia-se tanto à liberdade de que gozava como vampiro, que me deu vontade de chorar. Senti pena pelas duas figuras solitárias de lá abaixo. Quis transpassar o teto e me internar na noite.

Lentamente ascendi, atravessei o teto do hotel, desloquei-me e fui ficar sobre a areia branca.

Mas já era suficiente, não? O medo me atenaceó, o medo que me invadia antes, quando realizava o mesmo truque. O que era o que me mantinha vivo nesse estado! Necessitava meu corpo! No ato me desabei às cegas e retornei à carne. Despertei com um intenso comichão e olhei ao David, que me devolveu o olhar.

-Fiz-o -declarei. Encheu-me de espanto lombriga outra vez rodeado de carne e pele, sentir que os dedos de meus pés cobravam vida dentro dos sapatos. Deus santo, que experiência! E tantos mortais tinham tratado de descrevê-la. E tantos mais, em sua ignorância, não acreditavam que semelhante coisa pudesse ocorrer.

-te lembre de ocultar seus pensamentos -advertiu-me ele de improviso-. Te esqueça do entusiasmo, e fecha sua mente com chave!

-De acordo.

-Agora façamo-lo de novo.

A meia-noite -umas duas horas depois- já tinha aprendido a me elevar a vontade. Em realidade, isso era como um vício: a sensação de obscenidade, a ascensão como uma exalação! A deliciosa capacidade de atravessar paredes e tetos; e depois, o repentino retorno. Produzia um prazer palpitante, puro, luminoso, como o erotismo da mente.

-por que não pode o homem morrer desta maneira, David? Quer dizer, por que não pode simplesmente abandonar a terra e elevar-se assim até os céus?

-É que viu alguma porta aberta, Lestat?

-Não -repus amargamente-. Vi este mundo. Tão belo, tão claro. Mas era este mundo.

-Agora vêem, que deve aprender a realizar o ataque.

-Pensei que disso te encarregaria você. Que de um golpe o foste obrigar a sair do corpo Y...

-Sim, mas se me detecta antes, não me dá tempo de fazê-lo e me converte em uma formosa fogueira? O que aconteceria? Não; você também deve aprender o ardil.

Isso foi muito mais difícil, pois requeria o contrário da passividade e relaxação que tínhamos empregado antes. Tinha que orientar toda minha energia sobre o David com o declarado propósito de obrigá-lo a sair de seu corpo -fenômeno que não me permitiria ver realmente- e logo entrar eu nele. A concentração que me exigia era pavorosa. O cálculo do tempo, fundamental. E os repetidos esforços me produziram um nervosismo tão exaustivo como o da pessoa mão direita que trata de escrever à perfeição com a esquerda.

mais de uma vez estive a ponto de derramar lágrimas de ira e frustração. Mas David se mostrou inflexível: devíamos continuar porque isso se podia fazer. Não, de nada serviria uma medida dobro de uísque. Não, não comeríamos até mais tarde. Tampouco podíamos suspender para ir caminhar pela praia ou nos dar um mergulho de cabeça.

A primeira vez que o consegui fiquei estupefato. Avancei a toda velocidade para o David e senti o impacto da mesma maneira puramente mental em que sentia a liberdade do vôo. Depois já estive dentro dele, e durante uma fração de segundo me vi mesmo através das lentes escuras dos olhos de meu amigo.

Logo experimentei uma estremecedora desorientação e um golpe invisível, como se alguém me tivesse apoiado uma mão enorme sobre o peito. Compreendi que ele havia tornado e me jogava. Encontrei-me revoando no ar e por fim de volta em meu próprio corpo banhado em transpiração, soltando risadas histéricas da emoção e a fadiga total.

-Isso é tudo o que necessitamos -disse-. Agora sei que podemos levar a cabo o plano. Vamos, outra vez! Faremo-lo vinte vezes, se for necessário, até que nos saia sem enganos.

Ao quinto ataque que saiu bem, permaneci dentro de seu corpo durante trinta segundos inteiros, totalmente fascinado pelos diversos sentimentos concomitantes que me invadiram: as pernas mais livianas, a visão mais defeituosa e o som peculiar de minha voz ao sair de sua garganta. Baixei o olhar, vi suas mãos -magras, sulcadas por venitas- e eram minhas mãos! Que difícil me era as dominar. Inclusive uma delas tinha um marcado tremor que antes jamais lhe tinha notado.

Logo veio a sacudida e me encontrei voando para cima; logo a queda em picada e entrar de volta no corpo de vinte e seis anos.

Teremo-lo feito umas doze vezes antes de que David me anunciasse que tinha chegado o momento de que ele resistisse meu embate.

-Agora deve me atacar com muito mais decisão. Seu objetivo é recuperar o corpo! E certamente lhe oporão resistência.

Lutamos por espaço de uma hora, até que por fim, quando pude fazê-lo sair de seu corpo e mantê-lo fora durante dez segundos, assegurou que já era suficiente.

-Ele não te mentiu nisso de que suas células lhe foram reconhecer. Receberão-lhe e tratarão de te reter. Qualquer humano adulto sabe usar seu próprio corpo muito melhor que o intruso. E certamente, você sabe usar esses dons preternaturales de formas que ele nem se imagina. Acredito que poderemos fazê-lo. É mais, estou seguro.

-Mas me diga uma coisa. antes de que suspendamos, não quer me tirar deste corpo e te colocar você aqui, embora seja para ver o que se sente?

-Não -repôs serenamente-. Não quero.

-Não sente curiosidade? Não deseja saber...?

Dava-me conta de que eu estava pondo a prova sua paciência.

-Para falar a verdade, não temos tempo. E ao melhor tampouco quero me inteirar. Lembrança bem minha juventude; quase te diria que muito bem. Isto não é um jogo. O que importa é que já está em condições de atacá-lo. -Olhou a hora.- São quase as três. vamos comer algo e logo a dormir. Espera-nos um dia intenso, pois terá que explorar o navio e confirmar nossos planos. Devemos estar descansados e em pleno uso de nossas faculdades. Vêem, vamos ver o que podemos conseguir para comer e beber.

Saímos e tomamos o atalho que levava a pequena cozinha, uma habitação estranha, úmida, um pouco desordenada. O amável proprietário nos tinha deixado dois pratos dentro da oxidada e ruidosa geladeira, como deste modo uma garrafa de vinho branco. Sentamo-nos à mesa e começamos a devorar até o último bocado de arroz, batata-doces e carne amadurecida, sem nos importar absolutamente que estivessem muito frios.

-Pode me ler os pensamentos? -perguntei-lhe logo depois de ter apurado dois copos de vinho.

-Não; já tomou a mão.

-E como o faço quando estiver dormido? O Queen Elizabeth II deve estar a menos de cento e cinqüenta quilômetros daqui. vai amarrar dentro de duas horas.

-Igual a quando estiver acordado: fecha-te totalmente. Porque, você sabe, nunca estamos dormidos de tudo. Não o estão nem sequer quem se acha em estado de vírgula. Sempre pode funcionar a vontade. E estas coisas dependem precisamente da vontade.

Observei-o, e embora o vi cansado, não o notava ojeroso nem em maneira alguma debilitado. Sua abundante cabeleira escura acentuava é obvio a impressão de vitalidade, e seus grandes olhos castanhos possuíam a mesma luz ardente de toda a vida.

Terminei rapidamente, deixei os pratos na pileta e saí à praia sem lhe dizer o que me propunha fazer. Seguro me ia dizer que agora tinha que descansar, e eu não queria me privar dessa última noite como ser humano sob as estrelas.

Caminhei até o bordo do mar, despi-me e me meti na água. Pareceu-me fria mas tentadora; logo estirei os braços e comecei a nadar. Não me resultou fácil, é obvio, mas tampouco difícil uma vez que me resignei ao feito de que os mortais o faziam dessa maneira, braçada por braçada contra o impulso das ondas, deixando que a água mantivera a flutuação essa mole de corpo, coisa que este estava totalmente disposto a fazer.

Nadei até muito longe; logo fiz a prancha e contemplei o firmamento, encho ainda de nubecitas brancas. Tive uma sensação de paz pese ao frio de minha pele nua, face à penumbra do entorno e à estranha sensação de insegurança que me produzia flutuar no mar traiçoeiro. Quando pensei em voltar para meu antigo corpo não pude menos que me sentir feliz, e uma vez mais me convenci de que em minha aventura humana tinha fracassado.

Não tinha sido o herói de meus próprios sonhos. A vida humana me tinha resultado muito difícil.

Por último, voltei para a praia e saí. Recolhi minha roupa, sacudi-a para lhe tirar a areia, pendurei-me isso ao ombro e retornei à habitação.

Havia um único abajur aceso sobre a cômoda. David estava sentado em sua cama, a mais próxima à porta. Tinha posto só um comprido tiro pijama e fumava um de seus pequenos charutos. Eu gostava desse aroma misterioso, adocicado.

O via senhorial como sempre, com os braços pregados e os olhos plenos de uma normal curiosidade enquanto olhava como eu tomava uma toalha do banho e me secava a pele e o cabelo.

-Acabam de chamar de Londres.

-Novidades? -Sequei-me a cara; logo pendurei a toalha no respaldo de uma cadeira. Era um gosto sentir o ar sobre minha pele nua, agora que estava seca.

-Houve um roubo nas colinas de Caracas. Muito similar aos crímenes do Curaçao. Uma enorme residência com múltiplos objetos de arte, jóias, quadros. Muitas coisas foram destroçadas. Só se levaram o portátil. Três mortos. Devemos agradecer aos deuses a pobreza da imaginação humana -pelo mesquinhas que são as ambições desse homem- e que nos tenha apresentado tão logo a oportunidade de apreendê-lo. Com o tempo, teria tomado consciência de seu monstruoso potencial. Agora, em troca, é para nós um néscio de conduta predecible.

-Acaso algum ser utiliza tudo o que possui? -perguntei-. Possivelmente uns poucos gênios conhecem seus verdadeiros limites. E outros, o que fazemos além de protestar?

-Não sei -respondeu-me, e por seu rosto cruzou uma sonrisada. Sacudiu a cabeça como dizendo que não, e desviou o olhar. -Uma destas noites, quando tudo tenha terminado, me conte de novo como te resultou a experiência, como pôde estar dentro desse belo corpo jovem e odiar tanto este mundo.

-Direi-lhe isso, mas não o compreenderá nunca. Está do outro lado do vidro escuro. Só os mortos sabem quão terrível é estar vivo.

Tirei uma camiseta de algodão de minha pequena mala, mas não me pus isso. Sentei-me na cama, a seu lado. Logo lhe dava um beijo suave na cara, como tinha feito em Nova Orleáns, e desfrutei da sensação áspera de sua barba mau barbeada, tal como eu gostava dessas coisas quando era realmente Lestat e estava a ponto de beber o forte sangue masculino.

Aproximei-me mais, mas de repente tomou a mão e senti que me apartava brandamente.

-por que, David?

Não me respondeu. Levantou a mão direita e me retirou o cabelo dos olhos.

-Não sei -pronunciou em sussurros-. Não posso. Honestamente não posso.

levantou-se com elegância e saiu de noite.

Eu estava tão furioso de pura paixão refreada, que por um instante não pude reagir. Logo saí atrás dele. afastou-se um trecho pela areia e se deteve, como um momento antes tinha feito eu.

Aproximei-me por detrás.

-me diga por que não.

-Não sei -repetiu-. Quão único sei é que não posso. me acredite que quero, mas não posso. Meu passado... está muito afresco. -Deixou escapar um comprido suspiro, e durante uns momentos voltou a ficar em silêncio. Depois prosseguiu. -Tenho tão afresco a lembrança daqueles dias... Sinto-me como se estivesse de novo na Índia, ou em Rio. Sim, em Rio. Como se fora outra vez um homem jovem.

Sabia que a culpa disso era minha, e que de nada valia pronunciar palavras de desculpa. Também percebi algo mais: eu era um ser malvado, e mesmo que me achasse dentro deste corpo, David captava essa maldade. David percebia minha intensa voracidade vampírica. tratava-se de uma velha e terrível perversidade. Gretchen não a havia sentido porque a enganei com o corpo morno e sorridente. Mas quando David me olhava, via o demônio loiro de olhos azuis ao que tão bem conhecia.

Nada disse. Limitei-me a contemplar o mar. Quero recuperar meu corpo, pensei. A mim, que me deixem ser esse diabo. me afastem desta classe de mesquinho desejo, desta debilidade. me levem de volta aos céus misteriosos, que é onde devo estar. de repente me pareceu que minha solidão e meu sofrimento se voltavam mais insuportáveis do que eram antes do experimento, antes de dever habitar em carne mais vulnerável. Sim, me deixem sair, por favor. Quero ser um espectador. Como pude ser tão tolo!

Ouvi que David dizia algo, mas não entendi as palavras. Elevei os olhos com lentidão, deixei atrás meus pensamentos, vi que se deu volta para me olhar à cara e senti que apoiava brandamente a mão sobre meu pescoço. Quis reagir com irritação, dizer por exemplo, "Saca essa mão daí", "Não me atormente", mas não abri a boca.

-Não, não é malvado -murmurou-. O problema sou eu, não te dá conta? É meu medo! Não sabe o que significou esta aventura para mim! Poder estar de novo nesta parte do grande mundo, e contigo! Amo-te. Amo-te desesperadamente, como louco. Amo a alma que leva dentro, e que não é má. Não é voraz, mas é imensa. Aflige inclusive a esse corpo jovem porque é tua alma, feroz, indomável e atemporal, a alma do verdadeiro Lestat. Eu não posso me entregar a ela. Não posso... Se o fizesse, deixaria de ser eu para sempre, como se... como se...

Não pôde seguir; estava muito comovido. Fez-me muito dano a dor que trasuntaba sua voz, o leve tremor que escavava a firmeza de seu tom. Eu não me poderia perdoar isso nunca. Fiquei sentado muito quieto, com o olhar perdido na trevas. Os únicos sons eram o ruído das ondas, o tamborilar tênue dos coqueiros. Que incomensuráveis eram os céus; que agradáveis e serenas as horas prévias ao amanhecer.

Recordei o rosto do Gretchen. Ouvi sua voz.

Esta manhã houve um momento em que pensei que podia abandoná-lo tudo... só para ficar contigo... Senti-me alagada por essa sensação, tal como antes me ocorria com a música. E até agora, se me dissesse "Vêem comigo", talvez iria... A castidade significa não apaixonar-se... Poderia me apaixonar por ti. Sei que poderia.

Depois, depois dessa imagem ardente, tênue mas inegável, vi o rosto do Louis, e ouvi palavras pronunciadas com essa sua voz que preferia esquecer.

Onde estava David? Permita despertar destas lembranças. Não os quero. Levantei os olhos e o vi outra vez, e nele vi a mesma dignidade de sempre, a moderação, a fortaleza imperturbável. Mas também a dor.

-Perdão -pediu-me em um sussurro. Sua voz seguia vacilante pois lutava por manter a fachada bela e distinguida. -Quando bebeu o sangue do Magnus abrevaste na Fonte da Juvencia, pelo qual nunca vai ou seja o que significa ser velho como eu. Que Deus tenha piedade de mim: ódio a palavra velho, mas isso é o que sou.

-Compreendo-te -disse-. Não se preocupe. -Inclinei-me para frente e voltei a beijá-lo. -Não te vou incomodar. Vamos, que nos convém dormir. Prometo-te que te vou deixar em paz.

 

-Deus santo, David, olha-o! -Acabávamos de descer do táxi no concorrido mole. Pintado de cor azul e branca, o Queen Elizabeth II era tão imenso que não podia entrar naquele pequeno porto. Por isso estava ancorado a uns dois ou três quilômetros de distância -custava-me precisá-lo-, e o via tão monstruosamente grande que parecia um navio saído de um pesadelo, ancorado, imóvel, em uma baía. Só as fileiras e mais fileiras de diminutas ventanitas impediam que parecesse o navio de algum gigante.

Com suas reduzidas dimensões, suas colinas verdes e sua costa curva, a ilha se estirava para a nave como se queria esgotá-la e atrai-la, mas em vão.

Vê-lo aí me produziu uma súbita excitação. Jamais havia subido a uma motonave moderna. Essa parte ia ser divertida.

Enquanto olhávamos, enfiou para o mole uma lanchita de madeira, com o nome do transatlântico pintado em letras destacadas, que transportava um carregamento de seus numerosos passageiros.

-Aí na proa vem Jake -anunciou David-. Vêem, vamos ao bar.

Caminhamos sem pressa sob o sol ardente, cômodos com nossas camisas de manga curta e calças veraniegos -turistas ao fim-, e passamos pelos postos onde pessoas de pele escura vendiam conchas marinhas, muñequitas de trapo e outras lembranças. Que bonita era a ilha e suas colinas boscosas tachonadas de pequenas moradias. As construções mais sólidas da cidade do St. George se apinhavam em um pendente escarpado, para a esquerda e longe do porto. Toda a paisagem possuía um matiz quase italiano, com essas paredes escuras, avermelhadas, e os enferrujados tetos de metal corrugado que sob o sol candente enganavam a vista, pois pareciam tetos de telhas. Era um precioso lugar para explorar... em outro momento.

O interior do lôbrego bar estava fresco; havia umas poucas mesas e cadeiras pintadas de cores gritões. David pediu garrafas de cerveja fria, e ao cabo de uns minutos entrou Jake -vestido com a mesma remadora branca e calças curtas- escolhendo de propósito uma cadeira de onde pudesse controlar a porta aberta. Lá fora, o mundo parecia feito de água brilhante. A cerveja tinha sabor a malte e era bastante boa.

-Missão cumprida -anunciou em voz baixa, imperturbável, como se não estivesse conosco a não ser absorto em seus pensamentos. Bebeu um sorvo da garrafa marrom e logo aconteceu com David duas chaves sobre a mesa. -Transporta mais de mil passageiros. Ninguém vai se precaver de que o senhor Eric Sampson não volta a embarcar. O camarote é diminuto, no setor interior como me pediu, metade do navio, saindo do corredor. Coberta Cinco, como sabe.

-Excelente. E conseguiu dois jogos de chaves. Muito bem.

-O baú está aberto e a metade do conteúdo esparramado pelo piso. Os revólveres os pus no baú, dentro de dois livros que eu mesmo cavei. Aqui estão os ferrolhos. Teria que poder colocar na porta o maior, sem muita dificuldade, mas não sei se lhes vai cair muito bem aos garçons quando o virem. Desejo-te a melhor das sortes uma vez mais. Ah, se inteirou do roubo que houve esta manhã nas serras, não? Parece que temos um vampiro na Grenada. Talvez devesse pensar em ficar aqui, David, já que tanto lhe atraem estas coisas.

-Esta manhã?

-Às três. No topo dessas colinas. Foi em uma casa grande, de propriedade de uma australiana. Todos mortos. Um grande desastre. Não se fala de outra costure na ilha. Bom, vou.

Só depois de que Jake se foi, voltou a falar David.

-Isto é mau, Lestat. Às três da madrugada estávamos os duas na praia. Se ele percebeu embora seja em mínimo grau nossa presença, possivelmente não esteja no navio. Ou talvez se apronte para nos fazer frente quando ficar o sol.

-Esta manhã ele estava muito ocupado. Além disso, se se tivesse precavido de nossa presença, nos teria incendiado o quartinho do hotel. Salvo que não saiba fazê-lo, mas isso não o podemos saber. nos embarquemos de uma vez, que já estou cansado de esperar. Olhe, está começando a chover.

Recolhemos nossa bagagem, inclusive a monstruosa valise que David havia trazido de Nova Orleáns, e nos encaminhamos depressa à lancha. de repente apareceu uma multidão de mortais velhos e débeis -saindo de táxis, abrigos e pequenas lojas dos arredores-, por isso demoramos uns minutos em subir a instável lanchita e tomar assento no banco de plástico, sob a chuva.

Assim que pôs proa para o Queen Elizabeth II, experimentei a lhe embriaguem emoção de ir navegando nesse mar quente, em uma embarcação tão pequena. eu adorei o movimento quando cobramos velocidade.

Ao David o vi muito nervoso. Abriu seu passaporte, leu a informação por enésima vez e voltou a guardá-lo. Essa manhã, depois do café da manhã, tínhamos estudado nossos dados de identidade, mas esperávamos não ter que usar nunca os diversos detalhes.

Se por acaso fizesse falta, o doutor Stoker, aposentado já, estava de férias no Caribe, mas se achava muito preocupado por seu querido amigo Jason Hamilton, que viajava na suíte Reina Vitória. Faria-lhes saber aos garçons da Coberta Insigne que estava ansioso por vê-lo, mas por favor, que não lhe transmitissem sua preocupação.

Eu era simplesmente alguém a quem ele tinha conhecido a noite anterior no hotel, com o qual tinha cercado amizade como resultado de que ambos íamos viajar no mesmo casco de navio. Não devia haver nenhuma outra relação entre nós, porque, uma vez feito a mudança, James voltaria para este corpo e possivelmente David tivesse que danificá-lo de algum jeito se não o podia dominar.

Havia mais dados, para o caso de que nos interrogassem se se produzia algum revôo. Mas a impressão geral era que não se chegaria até tal ponto.

Por último, a lancha ficou ao mesmo tempo do navio e atracou junto a uma ampla abertura no meio mesmo do imenso casco azul. Que disparate, quão enorme parecia visto desde esse ângulo! Sinceramente, deixava-me pasmado.

Quase não o adverti quando entregamos os ingressos ao tripulante encarregado de recolhê-los. Alguém se ocuparia de nossa bagagem. Recebemos indicações algo imprecisas sobre como chegar à Coberta Insigne, e nos internamos por um corredor interminável, de teto muito baixo e inumeráveis leva a ambos os lados. Aos poucos minutos, tínhamo-nos perdido.

Seguimos caminhando até que de repente chegamos a um amplo lugar aberto com o piso em desnível e -nada menos- um grande piano de cauda que parecia preparado para um concerto. Todo isso no ventre sem janelas do navio!

-É o Salão do Meio -informou-me David ao tempo que assinalava um grande diagrama em cores do navio que pendurava da parede-. Agora já sei onde estamos. me siga.

-Que absurdo é tudo isto -comentei, observando o tapete de intensas cores, os plásticos e cromados que havia em qualquer parte-. Que espanto me parece ver tudo sintético.

-Shh, olhe que para os ingleses é um grande orgulho; poderia ofender a alguém. Já não se permite usar madeira... por certa disposição que tem que ver com os incêndios. -deteve-se ante um elevador e apertou o botão. -por aqui vamos a subir à Coberta de Botes. Não disse o homem que procurássemos ali o Bar da Rainha?

-Não tenho idéia -repus. Subí ao elevador como um zombi. -Isto não tem nome!

-Lestat, as motonaves gigantescas existem desde princípios de século. vê-se que estiveste vivendo no passado.

Na Coberta de Botes me encontrei com toda uma série de maravilhas. Havia ali um enorme teatro e um entrepiso inteiro de elegantes tenda. Debaixo do entrepiso havia uma pista de baile, com um pequeno estrado para a orquestra e um setor de mesitas de bar e cômodas poltronas de couro. Os negócios tinham fechado porque o navio estava em porto, mas se via muito bem a mercadoria por entretanto das grades de amparo. Nas pequenas cristaleiras, tinha exposta roupa cara, jóias finas, porcelana, smokings, camisas de peitilho engomado, presentes diversos.

Por todos lados se via passear aos passageiros, em sua maioria homens e mulheres de avançada idade com breves trajes peixeiros, e muitos se reuniram no tranqüilo salão de abaixo, iluminado pelo sol.

-Vamos às habitações -disse David, me levando ao rastro.

Ao parecer, as suítes superiores, para onde nos dirigíamos, ficavam um tanto separadas do corpo do navio. Tivemos que entrar no Bar da Rainha, um local comprido e estreito, de agradável mobiliário, reservado com exclusividade para os passageiros da coberta principal, e logo procurar um elevador quase secreto para chegar às habitações. O bar contava com grandes ventanales que permitiam ver a maravilha do mar azul e o céu limpo.

Esse setor correspondia à primeira classe no cruzamento transatlântico, e embora aí, no Caribe, não lhe dava tal denominação, o certo é que o salão e o restaurante ficavam isolados do resto desse mundo flutuante.

Por último, aparecemos na coberta superior e entramos em um corredor de decoração mais recarregada que os de abaixo. notava-se certo tom art déco nos abajures de plástico, na bela terminação das portas. A iluminação também era mais generosa e alegre. Um afável garçom -de uns sessenta anos- saiu de uma cocinita e nos orientou para chegar a nossos camarotes, quase no final do corredor.

-Onde fica a suíte Reina Vitória? -perguntou-lhe David.

O garçom lhe respondeu no ato, com similar acento britânico, que ficava aí nomás, e até lhe assinalou a porta.

Ao olhá-la, senti que me arrepiava. Eu sabia, sem indício de dúvida, que o ser desprezível estava dentro. Que necessidade tinha de buscar um sítio mais difícil onde ocultar-se? Ninguém me tinha isso que dizer. Nessa suíte íamos encontrar um baú grande perto da parede. Tomei leve conscientiza de que David desdobrava todo seu encanto e aprumo com o garçom, para lhe explicar que ele era médico e desejava jogar uma olhada quanto antes a seu querido amigo Jason Hamilton. Mas não queria alarmar ao amigo.

Claro que não, conveio o alegre garçom, quem informou, sem que o perguntassem, que o senhor Hamilton dormia todo o dia. Mais ainda, nesse preciso momento estava dormindo, como o indicava o cartelito de "Não incomodar" pendurado do trinco. Mas, não queríamos ir já a nossos quartos? Casualmente aí chegava a bagagem.

Os camarotes me surpreenderam. Vi ambos quando nos abriram as portas, antes de entrar no meu.

Uma vez mais me chamou a atenção que só houvesse materiais sintéticos, posto que não tinham a calidez da madeira. Mas as habitações eram amplas, evidentemente luxuosas, e se conectavam por uma porta para converter-se em uma suntuosa suíte. Nesse momento a porta estava fechada.

Ambos quartos tinham uma decoração idêntica, salvo pequenas diferenças de detalhe na cor, e pareciam habitações de hotéis modernos, com camas baixas de dois lugares, colchas em tons bolo e cômodas estreitas embutidas nas paredes cobertas de espelhos. Estava o obrigado televisor gigantesco e havia inclusive um pequeno setor para sentar-se, com um elegante sofá menino, mesita e poltrona estofada.

Entretanto, a verdadeira surpresa foram as terraços. Uma grande porta corrediça de cristal dava a um pequeno alpendre privado, de um largo suficiente para dar capacidade a uma mesa e cadeiras. Que luxo poder sair, parar-se junto ao corrimão e contemplar a formosa ilha na baía! E certamente, isso queria dizer que a suíte Reina Vitória também tinha terraço, por onde devia entrar a resplandecente luz da manhã.

Tive que rir para meus adentros ao recordar as velhas motonaves do século passado, com seus diminutos olhos de boi. E embora me desagradavam as cores pálidas, desbotados, da decoração, e a falta total de revestimentos antigos, começava a compreender porquê ao James sempre tinha fascinado esse pequeno reino tão especial.

Enquanto isso, alcançava para ouvir claramente ao David falando com o garçom; animada-a entonação britânica parecia agudizarse cada vez que um lhe respondia ao outro, até que o ritmo da conversação se voltou tão rápido que me perdi e já não entendi tudo o que falavam.

Ao parecer o tema era o pobre doente, e que o doutor Stoker desejava entrar silenciosamente para controlá-lo enquanto ele dormia, mas o garçom sentia muito não poder permiti-lo. O que o doutor queria era conseguir a chave adicional dessa suíte e ficar com ela para poder seguir de perto a evolução do doente...

Pouco a pouco, enquanto ia desempacotando, caí na conta de que a conversação, com toda sua poesia lírica amabilidade, ia desembocar em um suborno. Por último, David expressou com seu tom mais cortês que compreendia o incômodo que se sentia o garçom, pelo qual queria lhe dar dinheiro para que se pagasse um bom jantar no primeiro porto que tocassem. E se as coisas saíam mau e o senhor Hamilton se chateava, David assumiria toda a culpa, diria que a chave a tinha tirado ele da cozinha para não complicar absolutamente ao garçom.

Parecia que a batalha estava ganha, já que David estava usando seu poder de persuasão quase hipnótico. Entretanto, o diálogo prosseguiu com tolices tais como que o senhor Hamilton estava muito doente, que o doutor Stoker tinha sido enviado pela família para que o cuidasse, e que era de soma importância que pudesse lhe olhar a pele. Ah, sim, a pele. O garçom então deveu pensar que se tratava de alguma enfermidade que punha em perigo a vida e por último confessou que seus companheiros estavam almoçando, que ele era o único que ficava nessa coberta e que, de acordo, aceitaria olhar para outro lado se o doutor lhe dava a segurança de que...

-Meu estimado amigo, eu me faço responsável por tudo. Ah, e tome isto pelas moléstias que lhe causei. Vá jantar em algum lugar lindo... Não, não proteste. Agora deixe tudo em minhas mãos.

Aos poucos segundos o corredor tinha ficado vazio. Com um sorriso triunfal, David me fez gestos de que fora a me reunir com ele. Mostrou-me a chave da suíte Reina Vitória, logo cruzamos o corredor e ele a pôs na fechadura.

A suíte era imensa, em dois níveis separados por uns quatro ou cinco degraus atapetados. A cama se achava no nível inferior e a via muito desordenada; havia travesseiros colocados entre os lençóis para dar a impressão de que alguém dormia com a cabeça tampada pelas mantas.

No nível superior estavam as poltronas e as portas que davam a terraço. As grosas cortinas estavam corridas, de modo que quase não havia luz. Entramos em silêncio, acendemos a luz de acima e fechamos a porta.

Os travesseiros dentro da cama eram um ardil excelente para qualquer que espiasse do corredor, mas se alguém se aproximava advertia que não havia tal truque a não ser só uma cama revolta.

E onde se achava o demônio? Onde estava o baú?

-Ah, aí, no extremo da cama -disse. Tinha-o confundido com uma espécie de mesa pois estava totalmente talher com um tecido decorativo. Vi então que se tratava de um roupeiro negro de metal com borde de bronze, de tamanho suficiente para albergar a um homem tendido de lado, com as pernas flexionadas. A grosa tecido que o envolvia sem dúvida se mantinha firme sobre a tampa com um poquito de adesivo. Eu mesmo tinha usado o mesmo sistema no velho século.

Todo o resto estava imaculado, embora os armários transbordavam literalmente de roupa fina. Revisei rapidamente as gavetas da cômoda mas não encontrei documentos importantes. Era evidente que os poucos papéis que necessitava os levava sobre sua pessoa, pessoa que nesses instantes estava oculta dentro do baú. Não havia jóias nem jóias escondidas que pudéssemos encontrar. O que sim achamos foi uma quantidade de envelopes grossos e grandes, já franqueados, que o pérfido utilizava para desprender-se dos tesouros roubados.

-Cinco casinhas de correio -disse, enquanto os revisava. David anotou todos os números em seu libretita com tampas de couro; logo voltou a guardar-lhe no bolso e olhou o baú.

Adverti-lhe em sussurros que tomasse cuidado, porque até dormido ele podia pressentir o perigo. Que nem lhe ocorresse tocar a fechadura.

David assentiu. ajoelhou-se em silêncio junto ao baú, apoiou brandamente a orelha contra a tampa, e em seguida a retirou com uma expressão feroz no rosto.

-Está aí dentro com segurança -declarou, sem tirar os olhos do baú.

-O que ouviu?

-Os batimentos do coração de seu coração. Vê e escuta-os você mesmo. É seu coração.

-Quero vê-lo -disse-. Ponha deste lado, para não estorvar.

-Acredito que não deveria.

-Quero fazê-lo. Além disso, tenho que conhecer essa fechadura no caso de. -Aproximei-me do baú, e assim que vi a fechadura me dava conta de que nunca tinha sido usada. Ou não a podia fechar telepáticamente ou nunca se tomou a moléstia. Parei a um flanco, agachei-me, tomei a tampa sujeitando-a por seu bordo de bronze e a levantei até apoiá-la contra a parede.

Ao golpear contra o painel produziu um som afogado, manteve-se aberta, e eu me dava conta de que estava contemplando um suave tecido negro pregado de maneira tal de ocultar o que havia debaixo. Nada se moveu sob o tecido.

Não saltou nenhuma mão branca para me agarrar por pescoço!

Parei-me o mais longe possível, estirei o braço, gesticulei o tecido e a retirei produzindo uma grande revoada de brillosa seda negra. Meu coração mortal pulsava desordenadamente e quase perco o equilíbrio quando pus um trecho de distância entre o baú e eu. Mas o corpo que ali jazia, totalmente visível, com as pernas encolhidas tal como tinha imaginado e os braços pregados ao redor dos joelhos, não se moveu.

Em realidade, o rosto bronzeado parecia o de um manequim, com os olhos fechados e o conhecido perfil destacado contra o mortuário acolchoado de seda branca. Meu perfil, meus olhos, meu corpo vestido com traje negro de etiqueta -negro vampiro, se se quiser-, com peitilho duro e lustrosa gravata negra. Meu cabelo, solto, abundante, dourado sob a tênue luz.

Meu corpo!

E eu, de pé aí dentro do físico mortal e tremente, com esse cilindro de seda negra que me pendurava da mão qual capa de toureiro.

-depressa! -murmurou David.

No mesmo instante em que essas palavras se formavam em seus lábios, adverti que, dentro do baú, começava a mover o braço dobrado. O cotovelo ficou rígido. A mão estava soltando o joelho que tinha obstinada. Imediatamente voltei a arrojar o tecido sobre o corpo e vi que caía da mesma maneira relatório que antes. E com um rápido movimento de minha mão esquerda soltei a tampa apoiada na parede, de modo que se fechou produzindo um ruído surdo.

Graças a Deus, o tecido que recubría o baú não se enganchou mas sim ficou bem colocada, cobrindo a fechadura intacta. Afastei-me, quase decomposto de medo e assombro, mas foi um alívio sentir que David me apertava o braço.

Comprido momento ficamos aí em silêncio, até que tivemos a certeza de que o corpo preternatural descansava outra vez.

Eu já tinha conseguido me dominar e pude jogar uma última olhada em redor. Ainda estava tremendo, embora muito motivado pelas tarefas que ainda faltavam.

face aos grossos revestimentos de materiais sintéticos, esses aposentos eram desde todo ponto de vista suntuosos e representavam o tipo de luxo e privilégio aos que muito poucos mortais podiam acessar. E ele, como devia havê-lo desfrutado. Tanta roupa fina, de etiqueta... Até se tinha dado o gosto de ter sacos de vestir de veludo cotelê negro, outros do estilo que é mais conhecido, e inclusive uma capa de teatro. Havia quantidade de lustrosos sapatos no piso do placard, e uma grande variedade de custosos vinhos e licores no móvel-bar.

Convidava às mulheres ali, a tomar uma taça, enquanto ele bebia seu "traguito"?

Olhei a ampla parede de vidro, que chamava a atenção por causa da franja de luz que se filtrava pelos bordos superior e inferior do cortinado. Só nesse momento me dava conta de que esse quarto olhava ao sudeste.

David me apertou o braço. Queria saber se não podíamos partir já sem perigo.

Abandonamos imediatamente a Coberta Insigne sem nos topar de novo com o garçom. David levava a chave no bolso.

Baixamos a Cinco, que era a última coberta de camarotes, embora não do navio propriamente dito, e encontramos a pequena cabine do inexistente Eric Sampson, onde aguardava outro baú destinado ao corpo de acima quando voltasse a me pertencer.

tratava-se de um ambiente reduzido, sem janelas. Certamente, tinha o ferrolho habitual mas, e os outros, os que lhe tínhamos pedido ao Jake que trouxesse? Eram muito visíveis para nossos fins; entretanto, notei que a porta ficaria infranqueável com apenas apoiar o baú contra ela. Isso bastaria para impedir a entrada de algum garçom fastidioso, ou do James se as engenhava para andar por aí logo depois de realizá-la transformação. De maneira nenhuma poderia empurrar a porta. É mais, se eu calçava o baú entre a porta e o extremo do beliche, ninguém poderia movê-la. Excelente. Essa parte do plano já estava preparada.

Faltava organizar a volta da suíte Reina Vitória até essa coberta, o qual não seria difícil posto que em todos os salões, grandes e pequenos, havia diagramas do navio.

Rapidamente adverti que o melhor caminho interno o brindava a escada A, possivelmente a única que ia da coberta inferior à nossa até a Cinco sem interrupção. Assim que chegamos ao pé dessa escada comprovei que não me custaria nada me lançar do ponto mais alto utilizando os corrimões, contínuas e arredondadas. Subí logo à Coberta de Esportes para ver como chegar a ela da nossa.

-OH, você pode ir caminhando, meu jovem amigo -disse David-. Eu, os oito pisos os subo pelo elevador.

Quando voltamos a nos encontrar na serena luz natural do Bar da Rainha, eu já tinha o plano completo calculado. Pedimos dois gim tonics -bebida que me era passível- e repassamos o projeto até o último detalhe.

De noite nos ocultaríamos até a hora em que James decidisse retirar-se a passar o dia. Se vinha cedo, aguardaríamos até o momento crucial antes de abrir o baú e encará-lo.

David o estaria apontando com o Smith & Wesson enquanto ambos tentávamos desalojar seu espírito do corpo, momento que eu aproveitaria para me colocar dentro. O cálculo do tempo estava fundamental. Ele já estaria sentindo o perigo da luz solar; já saberia que não tinha possibilidades de permanecer dentro do corpo vampírico. Mas não devíamos lhe dar a oportunidade de nos causar danifico.

Em caso de que o primeiro ataque fracassasse, mostraríamo-lhe quão insegura era sua posição. Se tratava de eliminar a qualquer dos dois, bastariam nossos alaridos para que imediatamente alguém fosse em nossa ajuda. E se ficava um cadáver, o deixaria no camarote do James. Além disso, com o tempo tão contado, aonde poderia ir o próprio James? Provavelmente não soubesse quanto tempo podia permanecer consciente, posto que já estaria saindo o sol. Atreveria-me a afirmar que nunca se estendeu até a hora limite, como mais de uma vez o fiz eu.

Dada sua confusão, um segundo ataque daria resultado com toda segurança. E enquanto David seguisse lhe apontando ao corpo mortal do James com o revólver grande, eu cruzaria -com velocidade sobrenatural- o corredor da Coberta Insigne, desceria pela escada interna até a coberta de abaixo, percorreria-a inteira, atravessaria o pasillito e sairia a um mais largo que há atrás do Bar da Rainha; ali encontraria o início da escada A e me lançaria oito Pisos abaixo até a Coberta Cinco. Ao chegar, correria pelo corredor, entraria no camarote pequeno e trancaria a porta. O próximo passo seria empurrar o baú até calçá-lo entre a cama e a porta, me colocar dentro e baixar a tampa.

Mesmo que me topasse com uma horda de mortais que me obstaculizassem o caminho não demoraria mais que uns segundos, e a maior parte desse tempo me acharia a salvo no interior do navio, isolado da luz do sol.

James -de novo dentro deste físico, e sem dúvida furioso- não teria a menor idéia de meu paradeiro. Por mais que reduzira ao David, não poderia localizar meu camarote sem praticar uma busca minuciosa, coisa que não estaria em condições de realizar. Além disso, David dirigiria aos guardas de segurança contra ele, acusando o de todo tipo de sórdidos crímenes.

É obvio, meu amigo não tinha intenções de deixar-se reduzir. Seguiria apontando ao James com o Smith & Wesson até que o navio atracasse em Barbados, momento no qual o acompanharia até a engomada e o convidaria a baixar a terra. Logo controlaria que não lhe ocorresse retornar. Ao entardecer eu me levantaria do baú para me reunir com o David, e juntos desfrutaríamos de da viagem até o porto seguinte.

David se tornou para trás em sua poltrona, ao tempo que apurava o resto de seu gim tonic. Era evidente que estava analisando o plano.

-Dará-te conta, é obvio, de que não posso matar a esse indivíduo -disse-. Eu tenha um revólver ou não.

-Bom, claro, não pode fazê-lo a bordo -respondi- porque se ouviria o disparo.

-E se ele se dá conta e tráfico de me desarmar?

-acharia-se na mesma situação. Suponho que será inteligente e saberá.

-Estou disposto a lhe disparar se não ficar mais remédio. Esse será o pensamento que me lerá com seus dons parapsicológicos. Se tiver que fazê-lo, o vou fazer e depois formularia as devidas acusações, como por exemplo que o encontrei roubando em seu camarote, que eu estava aí te esperando quando ele entrou.

-E se fizéssemos a transmutação antes do amanhecer, assim fica tempo para jogá-lo no mar?

-Não convém. Há passageiros e oficiais por toda parte. Certamente alguém o veria, gritaria "Homem à água" e se armaria um grande revôo.

-Também posso lhe partir o crânio.

-Então eu teria que esconder o cadáver. Não; esperemos que o monstro se dê conta de sua boa sorte e baixe a terra de boa vontade. Não quero lombriga obrigado A... Não me atrai a idéia de...

-Sei, sei, mas poderia te limitar a colocá-lo no baú. Total, ninguém o encontraria.

-Lestat, não quero te assustar, mas há razões de peso para que não tentemos lhe dar morte! Ele mesmo lhe explicou isso, recorda? Ameaça-o, e sairá desse corpo para te atacar de novo. De fato, não lhe estaríamos deixando outra saída, e por outra parte, prolongaríamos a batalha parapsicológica no pior momento. Não é inconcebível pensar que pudesse te seguir à Coberta Cinco e procurasse voltar a entrar no corpo. Certamente, seria uma tolice que o fizesse se não ter um lugar onde ocultar-se... mas suponhamos que conta com um esconderijo substituto. Pensa-o.

-Nisso possivelmente tenha razão.

-Tampouco conhecemos o alcance de seus poderes paranormais. E não esqueça que sua especialidade é precisamente essa: mudança de corpos e posse! Não, não tente afogá-lo nem matá-lo a golpes. Deixa-o que volte a entrar nesse corpo mortal, e eu o manterei mirado até que tenha tido tempo de desaparecer do panorama. Logo ele e eu vamos conversar sobre o futuro.

-Entendo o que quer dizer.

-Depois, se não ter mais remedeio que matar o de um tiro, o Mato. Logo o meto no baú e confio em que ninguém ouça o disparo. Quem te diz... Ao melhor não o ouvem.

-meu deus, dá-te conta de que vou deixar te solo com esse monstro, David? por que não o atacamos juntos apenas fique o sol?

-De maneira nenhuma. Isso implicaria uma luta sem quartel! E ele pode aferrar-se denodadamente ao corpo, sair voando e nos deixar a bordo deste navio, que estará navegando a noite inteira. Já o tenho tudo pensado, Lestat. Cada parte do plano é fundamental. Temos que encará-lo em seu momento mais débil, pouco antes do amanhecer, e aproveitar quando o casco de navio esteja por atracar, porque ele vai estar muito contente de poder desembarcar. Confia em que vou poder me ocupar dele. Não sabe quanto o odeio! Se soubesse, talvez não se preocuparia tanto.

-Tenha por seguro que quando o encontrar, o Mato.

-Razão de mais para que prefira baixar a terra. vai querer te tirar vantagem e eu, além disso, aconselharei-lhe que fuja depressa.

-A caça maior. Me vai encantar. Encontrarei-o embora se oculte em outro corpo. Que formoso jogo vai ser.

David permaneceu um momento em silêncio.

-Lestat, existe outra possibilidade, é obvio...

-Qual? Não te entendo.

Desviou o olhar como tratando de escolher as palavras mais adequadas. Logo olhou aos olhos.

-Poderíamos destruir a esse ser, já sabe.

-David, está louco...?

-Entre os dois poderíamos fazê-lo. Há formas. antes de ficar o sol poderíamos aniquilá-lo, e você ficaria...

-Não siga! -irritei-me. Mas ao ver seu semblante triste, sua inquietação, sua evidente confusão moral, lancei um suspiro e prossegui em um tom mais calmo. -David, sou o vampiro Lestat. Esse corpo ao que te refere é o meu, e vamos recuperar o.

Não me respondeu imediatamente. Logo assentiu com energia e murmurou:

-Sim, correto.

Fizemos uma pausa, que eu aproveitei para repassar cada passado do plano.

Quando voltei a olhá-lo, notei-o tão pensativo como antes; mais ainda, muito absorto.

-Acredito que tudo vai sair bem -sustentou-, principalmente quando recordo as descrições que me deu dele nesse corpo. Disse que se sentia incômodo, torpe. E, é obvio, não devemos nos esquecer da classe de ser humano que é: sua verdadeira idade, seu antigo modus operandi, por assim dizê-lo. Hmmm. Não me vai tirar o revólver. Sim, penso que tudo sairá como o planejamos.

-O mesmo digo.

-E tomando em conta todos os fatores -adicionou-, é a única oportunidade que temos!

Durante as duas horas seguintes seguimos explorando o navio. Era de capital importância que pudéssemos nos esconder dentro dele de noite, hora em que James andaria passeando pelas diferentes cobertas. Tínhamos que percorrê-lo por esse motivo, embora deva confessar que, de todos os modos, o navio me inspirava uma enorme curiosidade.

Saímos do estreito Bar da Rainha e retornamos ao corpo principal do casco de navio, para o qual tivemos que passar frente a numerosas portas de camarotes antes de chegar ao entrepiso circular com sua cidadela de elegantes boutiques. Logo descemos por uma escada de caracol, cruzamos uma ampla pista de baile e atracamos a outros bares e salões, todos atapetados e com ensurdecedora música eletrônica; passamos por uma piscina coberta ao redor da qual almoçavam centenas de pessoas em grandes mesas redondas; saímos a outra piscina, esta vez ao ar livre, onde um sinnúmero de viajantes tomavam sol em reposeras, dormitavam ou liam o jornal ou pequenos livros encadernados em rústica.

Passamos frente a uma pequena biblioteca, cheia de silenciosos leitores, e um cassino que não ia abrir enquanto o casco de navio não zarpasse. Havia ali máquinas caça-níqueis, apagadas e sombrias, e mesas para jogar blackjack e à roleta.

Continuando, um salão e outro mais, um com janelas, o outro na penumbra total, e um formoso restaurante para passageiros de média categoria ao que se acessava por escadas de caracol. Um terceiro salão -também muito atrativo- estava destinado a viajantes das cobertas inferiores. Para baixo fomos, deixando atrás o camarote que era meu esconderijo secreto. Descobrimos também não um, a não ser dois centros de estética corporal, com suas máquinas para tirar músculos e salas para limpar os poros com jorros de vapor.

Encontramos um pequeno hospital, com enfermeiras de branco e minúsculas habitações muito iluminadas; em uma esquina, um amplo recinto sem janelas e, em seu interior, várias pessoas trabalhando ante computadores. Havia uma barbearia e salão de beleza para mulheres, e outro local similar para homens. Também vimos um escritório de turismo e, em outro momento, algo que parecia ser um banco.

E sempre caminhávamos por corredores estreitos que davam a impressão de não ter fim. Rodeavam-nos eternamente paredes e tetos de um aborrecido tom bege. A seguir de um tapete aparecia outra de distinta cor, tão horrível como aquela; os gritões desenhos modernos se juntavam nos lugares de acesso com tanta violência que dava vontade de rir. Perdi a conta das numerosas escadas de degraus pouco profundos e atapetados. Custava-me distinguir entre um grupo de elevadores e outro. Em qualquer lugar que posava os olhos via portas numeradas de camarotes. Os quadros de adorno eram insossos e impossíveis de distinguir um de outro. Com freqüência tinha que consultar os diagramas para ter sabor de ciência certa onde tinha estado e para onde me dirigia, ou para sair de algum caminho circular pelo que acontecia quarta ou quinta vez.

A David tudo isso era extremamente divertido, sobre tudo quando em cada curva nos encontrávamos com outros passageiros perdidos. Pelo menos em seis oportunidades ajudamos a pessoas de muita idade a encontrar determinado sítio. E depois voltávamos a nos perder outra vez.

Por último, não sei por que milagre pudemos nos orientar, cruzamos o estreito Bar da Rainha, subimos a secreta Coberta Insigne e chegamos a nossos camarotes. Faltava apenas uma hora para o crepúsculo, e as gigantescas máquinas já se puseram em funcionamento.

Assim que me tive trocado para a noite -com remadora branca e traje do verão-, encaminhei a terraço para ver sair a fumaça da enorme chaminé. Todo o navio tinha começado a vibrar pela potência das máquinas. E a tênue luz caribenha se apagava depois das serras longínquas.

Um medo atroz me atenaceó, como se a vibração dos motores me tivesse apressado as vísceras. Mas não tinha nada que ver com isso. Simplesmente pensava que nunca mais ia voltar a ver essa intensa luz natural. No futuro veria a luz de escassos momentos -o entardecer-, mas nunca um manchón de sol sobre a água, nunca esse brilho áureo em janelas distantes nem o céu azul tão limpo em sua última hora, depois das nuvens movediças.

Quis me aferrar imediatamente, saborear cada mudança leve, sutil. E ao mesmo tempo não o queria. Séculos atrás, não tinha havido um adeus às horas do dia. Aquele último dia fatídico, o sol se estava pondo, e até este momento não me tinha ocorrido pensar que não o veria nunca mais. Nem me tinha passado pela mente!

Era o mais lógico que queria ficar aí, sentindo seu doce tibieza, desfrutando desses apreciados instantes de luz cabal.

Mas em realidade não o queria. Não me importava. Tinha visto a luz em momentos mais prodigiosos. Aquilo ia terminar, não? Logo voltaria a ser Lestat, o vampiro.

Entrei e cruzei lentamente o camarote. Olhei-me no espelho grande. Ah, esta ia ser a noite mais larga de minha existência, pensei; mais larga inclusive que aquela terrível noite de frio e enfermidade passada no Georgetown. Nem queria imaginar o que aconteceria algo saía mau!

David me esperava no corredor com traje de linho branco, característico nele. Disse que devíamos sair daí antes de que o sol se ocultasse sob as ondas. Eu não estava tão ansioso, porque não me parecia que esse ser incompetente fora a saltar do baú e se internasse no ardente crepúsculo, como tanto eu gostava de fazer . Pelo contrário, seguro que, por medo, aguardaria um momento dentro do baú antes de sair.

O que faria depois? Abrir as cortinas de seu terraço, descer do casco de navio por essa via para ir roubar lhe a alguma pobre família da costa longínqua? Mas como já tinha roubado na Grenada, talvez tinha pensado descansar.

Impossível sabê-lo.

Baixamos de novo ao Bar da Rainha e saímos à ventosa coberta. Muitos passageiros estavam fora para ver quando o navio se afastasse do porto. A tripulação se aprontava. Uma grosa coluna de fumaça cinza brotava da chaminé, mesclando-se com a luz minguante do céu.

Apoiei os braços na amurada e dirigi o olhar para a curva de terra. As ondas, sempre cambiantes, captavam e retinham a luz com mil diferentes matizes e graus de opacidade. Mas quanto mais variada e translúcida me pareceria amanhã de noite! Entretanto, ao contemplá-la agora, me apagou toda idéia de futuro. Abandonei-me à majestade pura do mar, à luz de um vermelho ígneo que banhava e alterava o azul do céu infinito.

A meu redor, os mortais pareciam aplacados. conversava-se pouco. A gente se reunia na ventosa popa para render comemoração a esse instante. A brisa ali era sedosa, fragrante. O sol laranja escuro, simples olho que parecia nos espiar do horizonte, de repente se afundou, não o viu mais. Uma gloriosa explosão de luz amarela tingiu o bordo inferior das cuantiosas nuvens, enquanto um resplendor rosado subía e subía, internando-se nos céus infinitos e brilhantes. E através dessa sublime névoa de cor apareceram as primeiras piscadas das estrelas.

A água se tornou escura; as ondas se chocavam com força contra o casco. Dava-me conta de que a nave já se movia. E de improviso deixou escapar um potente assobio, um grito que arrancou medo e excitação de minhas vísceras. Tão lento e uniforme era seu movimento, que me vi obrigado a não apartar os olhos da costa para medi-lo. Estávamos girando para o oeste, nos internando na luz que morria.

David tinha o olhar vidriosa. Sua mão direita aferrava o corrimão. Contemplava o horizonte, as nuvens e, mais à frente, o rosa intenso do céu.

Quis lhe dizer algo, algo importante que lhe transmitisse o profundo amor que me embargava. de repente tive a sensação de que o coração me partia, voltei-me lentamente para ele e apoiei minha mão esquerda sobre sua direita, apoiada no parapeito.

-Sei -disse em sussurros-. Me acredite que sei. Mas agora tem que ser inteligente. guarda-lhe isso em seu interior.

OH, sim, baixar o véu, me converter em um dos tantos centenas que estão isolados, em silêncio. Ficar sozinho. E esse, meu último dia de mortal, havia meio doido a seu fim.

Outra vez soou a vibrante sereia. O navio quase tinha terminado de dar a meia volta e avançava por volta de mar aberto. O céu se obscurecia depressa, aproximava-se a hora de baixar a alguma das cobertas inferiores e de procurar um rinconcito em algum salão ruidoso onde ninguém reparasse em nós.

Joguei um último olhar ao céu, notei que tinha desaparecido toda a luz, total e irremediavelmente, e me entrou frio no coração. Mas eu não podia lamentar a falta de luz; não podia. Quão único minha alma monstruosa desejava era recuperar minhas faculdades vampíricas. Não obstante, a terra mesma parecia me exigir algo melhor: que chorasse por aquilo ao que tinha renunciado.

Não pude fazê-lo. Sentia tristeza, e me pesava o fracasso lhe esmaguem de minha aventura humana enquanto seguia aí parado sentindo a brisa morna.

A mão do David me tironeó brandamente do braço.

-Sim, entremos -aceitei, e lhe dava as costas ao delicado céu do Caribe. Já tinha cansado a noite. E meus pensamentos se achavam com o James, só com ele.

OH, como desejava poder vê-lo levantar-se de seu esconderijo de seda. Mas seria muito perigoso. Não existia nenhum sítio de onde pudéssemos observá-lo sem correr riscos. Quão único podíamos fazer era nos ocultar.

Com a chegada da noite, o navio mesmo trocou.

Vimos o passar, nas pequenas lojas rutilantes do entrepiso, uma atividade ruidosa e febril. Abaixo, homens e mulheres embelezados com tecidos resplandecentes já foram ocupando seus lugares no teatro.

No cassino, as máquinas caça-níqueis tinham cobrado vida com luzes cintilantes, e uma multidão se amontoava entorno à roleta. Os casais de anciões dançavam ao ritmo de uma música suave e lenta interpretada por uma orquestra no sombrio salão da Rainha.

Uma vez que encontramos um rinconcito apropriado no lôbrego Clube Lido, e que pedimos algo de beber, David me ordenou que ficasse aí enquanto ele se ia sozinho à Coberta Insigne.

-por que? O que é isso de que fique sozinho? -reagi indignado.

-Se ele te chegar a ver, reconhece-te no ato -disse, como lhe subtraindo importância, com a atitude de quem lhe fala com um menino. Logo, calçando um par de óculos negros, adicionou: -Em mim não vai reparar.

-Está bem, chefe -aceitei com chateio. Incomodava-me ter que esperar aí enquanto ele saía de aventura!

Voltei-me a jogar para trás na poltrona, bebi outro anti-séptico sorvo de meu gim tonic e me esforcei por ver em meio da molesta escuridão aos casais jovens que se moviam contra as luzes titilantes da pista iluminada eletricamente. O elevado volume da música me era insuportável. Mas a vibração sutil do gigantesco paquete, deliciosa. Já estávamos avançando. Em realidade, quando olhei além desse poço de sombras artificiais, através de uma das numerosas portas de vidro, alcancei a ver que o céu cheio de nuvens, luminoso ainda pelo resplendor do entardecer, passava veloz junto à nave.

Um navio extraordinário, pensei; isso devia admiti-lo. Apesar de seus lucecitas chillonas e seus horríveis atapeta, não obstante seus tetos baixos, opressivos, e os numerosos e aborrecidos salões, seguia sendo um navio maravilhoso.

Achava-me refletindo a respeito, tratando de não enlouquecer de impaciência -mais ainda, de vê-lo tudo da óptica do James-, quando me distraiu ao longe a aparição de um moço loiro, belamente bronzeado. Levava roupa de etiqueta, salvo um incongruente par de óculos de cor violeta. Fiquei um momento contemplando com deleite sua aparência quando de repente, horrorizado, caí na conta de que me estava olhando mesmo!

Era James, com seu traje negro de etiqueta e camisa engomada, que esquadrinhava o lugar depois de uns modernos óculos e lentamente se encaminhava ao salão onde eu me encontrava.

A dor que me oprimia o peito foi intolerável. Em minha ansiedade, comecei a sentir que me tremiam todos os músculos. Levantei a mão para me sustentar a frente e inclinei um pingo a cabeça, ao tempo que voltava a olhar para a esquerda.

Mas como não ia divisar me com esses poderosos olhos preternaturales! A escuridão não era um obstáculo para ele. Com segurança perceberia o aroma a medo que emanava de mim, já que nesse momento estava transpirando.

Mas não me viu. De fato, sentou-se no bar me dando as costas e moveu a cabeça à direita. Eu só alcançava a lhe ver a linha da bochecha e a mandíbula. Quando vi que adotava um ar de tranqüilidade total, notei também que estava posando, com o cotovelo esquerdo apoiado sobre a madeira lustrada, o joelho direita logo que flexionada, e o taco calçado no apoyapiés de bronze de sua banqueta alta.

Movia levemente a cabeça seguindo o ritmo da música. E emanava dele um grande orgulho, a satisfação genuína de ser o que era e estar onde estava.

Respirei fundo. Do outro lado do amplo salão, longe dele, vi que a figura inconfundível do David se detinha um instante na porta aberta e logo seguia seu caminho. Graças a Deus tinha divisado ao monstro, que a todo mundo devia lhe parecer já tão absolutamente normal como a mim (salvo por sua chamativa beleza).

Quando voltei a sentir medo, obriguei-me a imaginar um emprego que não tinha, uma cidade em que nunca tinha vivido. Pensei em uma noiva de nome Bárbara, muito belo e cativante, e em uma briga entre nós que certamente nunca teve lugar. Enchi minha mente com tais imagens e um milhão de coisas mais: peixes tropicais que algum dia eu gostaria de ter em um aquário, decidir se me convinha, ou não, ir ver o espetáculo do teatro.

O ser não se precaveu de mim; quase diria que não reparava em ninguém. Havia algo quase conmovedor em sua forma de sentar-se, com o rosto um pouco levantado, ao parecer desfrutando desse pequeno salão escuro, comum e por certo que bastante feio.

adora, disse-me. Estes salões públicos, com seu plástico e seu oropel, representam o pináculo da elegância e lhe fascina a só idéia de estar aqui. Nem sequer deseja que se fixem nele. Não repara em ninguém que pudesse lhe emprestar atenção. É um pequeno mundo em si mesmo, do mesmo modo que o é este navio, que avança raudamente por quentes mares.

em que pese a meu medo, aquilo me pareceu de repente algo conmovedor e trágico. E me perguntei se eu não teria dado também uma impressão de fracasso a outros quando tinha essa outra forma. Não me viam os outros como um ser igualmente triste?

Tremendo com todo o corpo, tomei o copo e apurei a bebida como se fora remedeio. Ocultei-me de novo depois das imagens fabricadas, usei-as para disfarçar meu temor e até me pus a cantarolar um pouco ao compasso da música, enquanto observava com ar quase ausente o jogo das luzes coloridas sobre essa formosa cabeleira loira.

De repente se desceu da banqueta e, enfiando para a esquerda, atravessou muito devagarzinho o escuro bar, passou a meu lado sem lombriga e se encaminhou para as luzes mais intensas que rodeavam a piscina coberta. Levantava o queixo e dava passos lentos e prudentes como querendo fazer ver que lhe custavam, e girava a cabeça a mão direita e sinistra enquanto observava o espaço que ia atravessando. Depois, da mesma maneira cautelosa -mais indicativa de debilidade que de força- empurrou a porta de vidro que comunicava com a coberta e se inundou na noite.

Eu tinha que segui-lo! Sabia que não devia, mas sem me dar conta já me tinha levantado, a cabeça cheia da mesma nuvem de falsa identidade, e o segui, isso sim, detive-me do lado de dentro da porta. Alcancei a vê-lo muito longe, no extremo mesmo da coberta,, com os braços apoiados no corrimão enquanto o vento impetuoso lhe desordenava o cabelo. Estava olhando o firmamento e uma vez mais o notava cheio de orgulho e satisfação, feliz com o vento e a escuridão, possivelmente, e balançando-se levemente como revestem fazê-lo-os músicos cegos quando interpretam sua música, como se apreciasse cada instante que transcorria dentro desse corpo, cheio de simples e puro regozijo.

De novo me alagou a sensação de que o reconhecia. Lhes teria parecido eu o mesmo parvo imprestável a quem tinha conhecido e condenado? OH, o que ser lamentável, ter passado sua vida preternatural neste sítio tão artificioso, com seus passageiros velhos e tristes, em camarotes de gritã elegância, isolados do grande universo de verdadeiros esplendores que jazia mais à frente.

Só ao cabo de um comprido momento inclinou em tanto a cabeça e percorreu com sua mão direita a lapela de seu saco, tranqüilo, agradado como gato que lambe seu próprio cabelo. Com quanto carinho acariciava essa parte de tecido sem importância! Gesto que, mais que nenhum outro dos seus, transmitia com absoluta eloqüência a totalidade da tragédia.

Depois olhou a direita e esquerda, e ao ver só a duas pessoas que, ao longe, esquadrinhavam em outra direção, de repente se elevou pelos ares e desapareceu!

Certamente, não é que tivesse desaparecido, a não ser simplesmente que ia deslocando-se pelos ares. E eu fiquei tremendo depois da porta de vidro, observando o lugar que tinha ficado vazio, sentindo o suor que me corria pela cara e as costas. David me sussurrou algo ao ouvido.

-Vêem, amigo; vamos jantar ao restaurante da Rainha.

Girei e vi a expressão forçada de seu rosto. É obvio, James ainda estava a uma distância da que podia nos ouvir, captar algo fora do comum sem ter sequer que propor-lhe deliberadamente.

-Sim, o restaurante da Rainha -disse, fazendo esforços para não pensar no que ontem à noite nos havia dito Jake, no sentido de que o tipo tinha que apresentar-se a uma comida nesse mesmo lugar-. Não tenho muita fome, mas é aborrecido ficar aqui, verdade?

David tremia igual a eu. Mas também lhe notava um grande entusiasmo.

-Você conto -disse-me, seguindo com o mesmo tom falso enquanto voltávamos a cruzar o salão rumo à escada-. Estão todos de rigorosa etiqueta, mas a nós têm que nos servir igual porque acabamos de embarcamos.

-Não me importa nem que estejam todos nus. vai ser uma noite infernal.

O famoso restaurante de primeira classe era um pouco mais tranqüilo e civilizado que os outros recintos que tínhamos passado. Estava tudo posto com estofos brancos e laca negra, e me pareceu muito agradável o caudal de cálida luz. A decoração me pareceu algo fria, a mesma impressão que me causava todo o do navio; entretanto não se podia dizer que fosse feia. E a comida era excelente.

Passados vinte e cinco minutos desde que o pássaro levantasse vôo, atrevi-me a deslizar vários comentários.

-Não pode usar nem dez por cento de sua força porque lhe aterra!

-Estou de acordo. Está tão assustado que até caminha como se estivesse ébrio.

-Em efeito; você o há dito. Não estava nem a três metros de mim, David, e não se precaveu de minha presença.

-Sei, me acredite que sei. Ai, Lestat, quantas coisas não te ensinei. Faz um momento te estava observando, apavorado de que te ocorresse praticar alguma picardia telekinésica, vendo que eu não te tinha dado instruções para te defender dele.

-David, se de verdade ele queria usar suas faculdades, eu não poderia fazer nada para impedir-lhe Mas já vê que não as sabe usar. E se o tivesse tentado, eu me teria fechado por instinto, porque precisamente isso é o que me esteve fazendo praticar.

-É verdade. Tudo é questão de usar as mesmas estratagemas que sabia e compreendia quando te achava dentro da outra forma. Ontem à noite me deu a sensação de que seus maiores êxitos os obteve quando se esquecia de que foi mortal e voltava a te comportar como antes.

-Pode ser, mas te confesso que não sei. O que foi vê-lo dentro de meu corpo!

-Shh, termina sua última comida e não levante a voz.

-Minha última comida. -Contive uma risada. -Vou dar um festim com ele quando o agarrar. -Logo calei, porque tomei a desagradável conscientiza de que estava falando de minha própria carne. Olhei a mão larga, de pele moréia, que sustentava a faca de prata. Sentia eu o menor afeto por esse corpo? Não. Queria recuperar o meu, e não suportava a idéia de que deveria esperar umas oito horas para que voltasse a ser meu.

Não o vimos mais até passada a uma.

Sabia que me convinha evitar o pequeno Clube Lido pois era o melhor lugar para dançar, coisa que lhe gostava, e o ambiente era bastante escuro. Preferi perambular pelos salões maiores, sempre com óculos escuros e o cabelo engominado com um fixador que um jovem garçom me conseguiu. Não me incomodava ter arruinado assim minha aparência, mas isso me dava um aspecto anônimo, e em conseqüência ganhava em tranqüilidade.

Quando voltamos a divisá-lo-se achava em um dos corredores externos, a ponto de entrar no cassino. Essa vez foi David o que não agüentou e foi atrás dele para olhar o de perto.

Me deu vontade de lhe recordar que não devíamos seguir a esse monstro. Quão único tínhamos que fazer era nos dirigir à suíte Reina Vitória à hora adequada. O pequeno jornal da bordo, que já tinha tirado a edição do dia seguinte, trazia a hora exata em que sairia o sol: as 6,21. Ri-me ao vê-la, mas também é verdade que já não podia determinar essas coisas tão facilmente como antes. Bom, às 6,21 da manhã voltaria a ser o que sempre fui.

Por último David retornou a sua poltrona e tomou o jornal que tinha estado lendo sem cessar.

-encontra-se na roleta, e está ganhando. O muito parvo usa seus poderes parapsicológicos para jogar!

-Sim, segue dizendo isso. por que não falamos agora de nossos filmes preferidos? Ultimamente não vi nada do ator holandês Rutger Hauer, e o estranho.

David soltou uma risada.

-Também eu gosto de muito -confessou.

Às três e vinte e cinco, seguíamos conversando pausadamente, quando de repente vimos passar de novo ao arrumado senhor Jason Hamilton. Tão lento, tão sonhador, tão destinado ao fracasso. David insinuou levantando-se e segui-lo, mas apoiei minha mão sobre a sua.

-Não faz falta, amigo. Faltam três horas nada mais. A ver, me conte a trama de Corpo e alma, esse velho filme -recorda?- que tratava sobre aquele boxeador... não era ali que se mencionava ao tigre do Blake?

Às seis e dez, a luz leitosa já tingia o firmamento. Era o momento exato no que eu estava acostumado a procurar meu lugar de descanso, e me custava acreditar que ele não tivesse procurado o seu ainda. Tínhamos que encontrá-lo dentro de seu lustroso baú negro.

Não o víamos das quatro e pico, hora em que se achava na pequena pista do Clube Lido, dançando a sua típica maneira de bêbado com uma diminuta mulher grisalha de vestido vermelho. Localizamos a certa distância, fora do bar, apoiando as costas contra a parede, e de ali escutamos o ritmo ágil de sua voz, OH, tão britânica. Depois nos partimos depressa.

aproximava-se o momento. Já não fugiríamos mais dele. A larga noite estava a ponto de concluir. Várias vezes pensei que em poucos minutos podia morrer, mas semelhante reflexão jamais na vida me tinha dissuadido de nada. Se tivesse pensado que podia passar algo ao David, então sim, teria perdido o valor.

Nunca tinha visto tão decidido a meu amigo. Acabava de tirar o revólver grande do camarote da Coberta Cinco e o levava no bolso do saco. Deixamos aberto o baú, preparado para mim, e na porta já colocado o cartelito de "Não incomodar" para evitar que acudissem os garçons. Também resolvemos que, logo da mudança, eu não devia me levar o revólver negro pois então ficaria em mãos do James. Não jogamos chave à porta do pequeno camarote. Em realidade as chaves estavam dentro, porque tampouco podia me arriscar às levar em cima. Se algum garçom comedido travava a porta por fora, obrigaria-me a acionar a fechadura com minha mente, coisa não muito difícil para o velho Lestat.

O que sim levava no bolso era o passaporte falso em nome do Sheridan Blackwood, e dinheiro suficiente como para que o parvo fugisse ao lugar do mundo que quisesse. O navio já estava entrando no porto de Barbados. Deus mediante, não o insumiría muito tempo atracar.

Tal como esperávamos, não havia ninguém no largo corredor iluminado da Coberta Insigne. Me ocorreu que o garçom estava dormitando depois das cortinas da cocinita.

Em silêncio avançamos até a porta da suíte Reina Vitória, David colocou a chave e em seguida entramos. O baú estava aberto e vazio. As luzes, todas acesas. O descarado não havia tornado ainda.

Sem articular palavra, fui as apagando uma por uma, caminhei até a porta que dava a terraço e abri as cortinas. O céu tinha ainda a cor azul da noite, mas a cada instante se voltava mais claro. Uma bela e suave luminosidade alagou a habitação, que sem dúvida lhe queimaria nos olhos apenas ele a visse e lhe causaria uma grande dor em sua pele exposta.

Devia estar por retornar, a menos que tivesse outro esconderijo que nós ignorávamos.

Voltei para a porta de entrada e parei a sua esquerda. Ali ele não me veria, porque quando empurrasse a porta ela mesma me tamparia. David havia subido os degraus até a salita elevada, achava-se com as costas para a parede de vidro e de frente à porta do camarote, sustentando a arma fortemente com ambas as mãos.

de repente ouvi passos rápidos que se aproximavam. Não fiz gestos ao David porque notei que ele também os tinha ouvido. Vinha quase correndo. Surpreendeu-me sua audácia. Então David levantou o revólver e apontou à porta quando a chave já girava na fechadura.

abriu-se a porta contra meu corpo, e James a fechou de um golpe ao tempo que entrava cambaleando-se na habitação. Com o braço se tampava os olhos para proteger-se da luz que entrava pela parede de vidro, enquanto murmurava uma maldição contra os garçons que não tinham fechado as cortinas como lhes tinha ordenado.

Com sua estupidez característica, enfiou para os degraus e se parou em seco ao ver que David o apontava de acima.

-Já! -gritou meu amigo.

Lancei-me sobre ele com todo meu ser; a parte invisível de mim se elevou de meu corpo mortal e se precipitou com força incalculável sobre minha antiga forma, mas no ato fui arrojado para trás. Voltei a entrar no corpo mortal, mas o fiz com tanta rapidez que o corpo mesmo, derrotado, açoitou-se contra a parede.

-De novo! -gritou David, mas uma vez mais saí repelido com lhe esmaguem rapidez e me custou um esforço voltar a dominar as pesadas pernas humanas para ficar erguido.

Vi que sobre mim aparecia meu velho rosto de vampiro, avermelhados os olhos azuis, entrecerrándose a causa do resplendor cada vez mais intenso da habitação. OH, eu sabia o que estava sofrendo! Conhecia esse estado de confusão. O sol queimava sua pele tenra, que nunca tinha cicatrizado de tudo da experiência no Gobi. Provavelmente já sentisse fracos as pernas com o intumescimento inevitável do dia nascente.

-Bem, James, o jogo terminou -clamou David com evidente fúria. Use o cérebro!

Para ouvir a voz do David, o ser se voltou como se se quadrasse; logo se acovardou, sempre protegendo-os olhos da luz, caiu sobre a mesita de luz, cujo material plástico, ao desfazer-se, produziu um ruído horrível. Quando se deu conta do destroço que tinha causado, tentou voltar a olhar ao David, que dava as costas ao sol.

-Agora o que pensa fazer? -exigiu saber David-. Aonde pode ir? Onde pode esconder-se? Se nos matar, registrarão este camarote assim que encontrem os cadáveres. acabou-se, meu amigo. Renda-se.

James deixou escapar um profundo grunhido e agachou a cabeça como um touro cegado que se prepara a lançar-se à carga. Vi que fechava os punhos e me alagou o desespero.

-Entregue-se, James -insistiu-o David.

Aproveitei que o indivíduo soltava uma surriada de insultos para me arrojar novamente sobre ele, movido não só pela coragem e a humana vontade mas também pelo pânico. O primeiro raio quente de sol cruzou pela água! meu deus, era agora ou nunca, e não podia me dar o luxo de falhar. Investi-o com força, senti uma sacudida elétrica lhe paralisem ao atravessá-lo e logo não pude ver nada mais. A sensação era como se uma gigantesca aspiradora me chupasse, me obrigando a baixar e baixar, me afundando nas trevas enquanto gritava "Sim, me coloco dentro dele, dentro de mim mesmo! dentro de meu corpo, sim!" Fiquei, então, olhando de frente uma labareda de luz áurea.

A dor nos olhos me era insuportável. Era o calor do Gobi. Era a grande iluminação final do inferno. Mas tinha conseguido meu propósito! Estava dentro de meu próprio corpo! E essa luminosidade era o sol que saía e escaldava minhas mãos e cara maravilhosas, apreciadas, preternaturales.

-David, triunfamos! -gritei, e as palavras me saíram com um estranho volume. Levantei-me de um salto do piso, ao que me tinha cansado, em posse uma vez mais da gloriosa força e rapidez de outrora. Cegado, corri para a porta e tubo uma última visão fugaz de meu antigo corpo humano quando, em quatro patas, tratava de chegar aos degraus.

Chegado ao corredor, a habitação virtualmente explorou de luz e calor. Não podia ficar ali nem um minuto mais, embora ouvi o disparo ensurdecedor do potente revólver.

-Deus te ajude, David! -murmurei. Imediatamente me achava ao pé do primeiro lance de escada. Por sorte a luz do sol não penetrava até essa passagem interior, mas minhas pernas já se estavam debilitando. Quando se disparou o segundo tiro, eu já tinha saltado o corrimão da escada A e me joguei até a Coberta Cinco, onde pus-se a correr.

Alcancei para ouvir um disparo mais antes de chegar ao reduzido camarote, mas, OH, tão débil. Bronzeada-a mão que abriu a porta quase não pôde fazer girar o trinco. Já me enfrentava de novo ao perigo de um resfrio, como se estivesse passeando pelas neves do Georgetown. Mas a porta se abriu e caí de joelhos dentro da habitação. Embora me tivesse desabado, já estava a salvo da luz.

Com um último esforço de vontade fechei a porta, corri o baú até seu lugar e me derrubei em seu interior. Depois, quão único pude fazer foi me estirar para aferrar a tampa. Senti que caía e se fechava, mas já não pude sentir nada mais. Permaneci imóvel, enquanto um áspero suspiro partia de meus lábios.

-Deus te ajude, David! -repeti. por que tinha aberto fogo? por que? E por que tantos disparos de uma arma tão potente? Como podia o mundo não ouvir os tiros de um revólver tão ruidoso?

Mas não havia força que me permitisse ir em sua ajuda. Me estavam fechando os olhos, até que por fim fiquei flutuando na escura penumbra de veludo que tinha deixado de habitar desde aquele fatídico encontro no Georgetown. Tudo tinha terminado, eu era de novo o vampiro Lestat, e nenhuma outra coisa importava já. Nenhuma.

Acredito que meus lábios formaram novamente a palavra "David", como se fora uma prece.

Assim que despertei, pressenti que David e James não estavam no navio. Não sei muito bem como sabia, mas o certo é que sabia.

Logo depois de me acomodar um pouco a roupa e desfrutar de uns momentos de frívola felicidade ao me olhar no espelho e flexionar meus maravilhosos dedos de mãos e pés, saí para me certificar de que nenhum dos dois estava no navio. Ao James não pensava encontrá-lo, mas ao David... o que lhe tinha acontecido logo depois de disparar o revólver?

Com segurança que três balas tinham que ter matado ao James! E certamente, tudo tinha ocorrido em meu camarote -de fato encontrei em meu bolso meu passaporte em nome do Jason Hamilton-, de modo que me encaminhei à Coberta Insigne com a maior cautela.

Os garçons foram daqui para lá para entregar bebidas e arrumar as habitações dos que já se aventuraram a sair de noite. Utilizei toda minha habilidade para me mover rapidamente entre a passagem e entrar sem, que me vissem, na suíte Reina Vitória.

notava-se às claras que já a tinham ordenado. O baú negro que James usava de ataúde estava fechado e coberto com o tecido alisado. Tinham retirado a mesa de luz rota, mas ficou uma marca na parede.

Não havia sangre no tapete. É mais, não se via o menor rastro da horrenda luta que tinha tido lugar. E através dos vidros da terraço pude advertir que estávamos saindo do porto de Barbados sob um glorioso véu crepuscular, e avançávamos por volta de mar aberto.

Apareci um instante a terraço, só para contemplar a noite infinita e sentir uma vez mais a alegria de minha velha visão vampírica. ao longe, na costa, distingui um milhão de minúsculos detalhes que jamais teria podido ver um mortal. Tanto me fascinou experimentar a antiga leveza física, a sensação de graça e destreza, que me deu vontade de me pôr a dançar. Me teria encantado fazer um sapateado americano em um flanco do casco de navio, logo no outro, todo o tempo cantando e fazendo estalar os dedos.

Mas não tinha tempo para essas coisas. Primeiro devia averiguar o que tinha passado com o David.

Abri a porta, cruzei o corredor e rápida, silenciosamente, destravei a fechadura do camarote do David. Depois, com um repentino arranque de velocidade sobrenatural, entrei sem que me vissem quem andava por ali.

Tudo tinha desaparecido. Inclusive haviam higienizado já o camarote para um novo passageiro. Obviamente tinham obrigado ao David a abandonar o casco de navio. Ao melhor agora estava em Barbados! De ser assim, encontraria-o em seguida.

Mas, e o outro quarto, que pertencia a minha antiga identidade mortal? Abri a porta de comunicação sem tocá-la, e comprovei que também a tinham esvaziado e limpo.

O que fazer. Não desejava permanecer nesse navio mais do necessário, já que apenas me descobrissem me converteria por certo no centro da atenção geral. A derrota se produziu em meu camarote.

Ouvi o passo facilmente identificável do garçom que tanto nos tinha ajudado antes, e abri a porta justo quando ele passava por ali. Notei que à lombriga se enchia de excitação e perplexidade. Fiz-lhe gestos para que entrasse.

-Senhor, estão-o procurando! Pensaram que tinha descido em Barbados! Devo dar aviso imediatamente a segurança.

-OH, me conte o que aconteceu -disse, olhando-o fixo aos olhos. Notei que o feitiço sortia efeito, pois adotou uma atitude de entrega e confiança total.

Ao amanhecer se produziu um desagradável incidente em meu camarote. Um britânico de idade avançada -que, dito seja de passagem, antes tinha assegurado ser meu médico- efetuou vários disparos, sem que nenhum desse no branco, contra um jovem assaltante que -declarou- tinha tentado matá-lo. Em realidade, não se tinha podido localizar ao assaltante mas, pela descrição que brindou o cavalheiro inglês, pôde-se estabelecer que o jovem tinha ocupado precisamente o camarote esse onde nos encontrávamos, e que se embarcou utilizando um nome falso.

Mas o mesmo tinha feito o cavalheiro inglês. A confusão de nomes era parte importante do embrulho. O garçom não sabia todo o acontecido, salvo que tinham detido ao cavalheiro, obrigando-o a baixar a terra.

O garçom estava intrigado.

-Acredito que foi um alívio para todos que o fizessem baixar. Mas devemos chamar o chefe de segurança, senhor. Estão muito preocupados com você. Sente saudades que não o tenham detido quando voltou a embarcar-se em Barbados. Estiveram-no procurando o dia inteiro.

Eu não estava muito seguro de querer suportar olhadas incisivas por parte dos funcionários de segurança, mas o tema ficou rapidamente decidido quando na porta da suíte apareceram dois homens de uniforme branco.

Dava as graças ao garçom, aproximei-me dos dois senhores e os convidei a passar, feito o qual me localizei na zona mais escura, como era meu costume em encontros dessa natureza. Além disso, pedi-lhes que me desculpassem por não acender os abajures, mas a luz que entrava pela porta da terraço era suficiente, expliquei, tendo em conta o mal estado de minha pele doente.

A ambos os notei muito desconfiados, por isso tive que voltar a utilizar a persuasão de meu feitiço ao falar.

-O que aconteceu o doutor Alexander Stoker? -perguntei-. É meu médico pessoal, e me preocupa sua sorte.

Foi evidente que o mais jovem, homem de rosto muito avermelhado e acento irlandês, não acreditou o que eu lhe dizia e pressentiu algo estranho em minha forma de falar e me conduzir. Minha única esperança era poder sumi-lo na confusão para que ficasse calado.

Mas o outro, um inglês alto e instruído, foi muito mais fácil de enganar, e começou a me contar tudo sem segundas intenções.

Parece ser que o doutor Stoker não era tal, a não ser um inglês de nome David Talbot, que se negou a confessar por que tinha usado um nome falso.

-Imagine, esse senhor Talbot levava uma arma no navio! -exclamou o alto, enquanto seu companheiro seguia me olhando com suspicacia-. Claro que essa organização de Londres, a Talamasca ou como se chamo, pediu muitas desculpas e quis emendar tudo. Por último, o assunto o arrumou o capitão com umas pessoas do escritório central do Cunard. Como o senhor Talbot empacotou suas coisas e acessou a que o acompanhasse a tomar um avião que partia imediatamente aos Estados Unidos, não lhe fez uma denúncia penal.

-A que lugar dos Estados Unidos?

-A Miami, senhor. Casualmente eu mesmo o levei. A toda costa quis lhe enviar uma mensagem a você: que se reunisse com ele em Miami, a sua conveniência. Acredito que no hotel Park Central... Repetiu-me várias vezes o recado.

-Entendo. E o homem que o atacou, que o obrigou a disparar sua arma?

-Não o pudemos encontrar, senhor, embora seja indubitável que várias pessoas o tinham visto antes a bordo acompanhado pelo senhor Talbot! Casualmente aquele era seu camarote, e acredito que você estava aí conversando com o garçom quando chegamos.

-Tudo isto me desconcerta muito -expressei com meu tom mais convincente-. Você acredita que esse moço de cabelo castanho já não está a bordo?

-Quase poderíamos assegurá-lo, senhor, embora, é obvio, é impossível praticar uma busca minuciosa em um casco de navio como este. As pertences desse senhor estavam ainda no camarote quando o abrimos. Tivemos que abri-lo porque o senhor Talbot insistia em que tinha sido atacado por esse jovem, e além disso disse que este último também viajava com nome suposto! Temos sua bagagem em custódia, certamente. Se me acompanhar ao despacho do capitão, talvez poderia nos esclarecer...

Apressei-me a afirmar que não sabia nada do assunto, pois não tinha estado em meu quarto no momento do fato. No dia anterior tinha descido na Grenada, e não me inteirei nunca de que se embarcaram nenhum desses dois homens. E essa manhã tinha saído a passear por Barbados, por isso não soube nada sobre o tiroteio.

Mas toda essa minha conversação foi uma tela para seguir usando com eles a persuasão, e convencer os de que deviam me deixar solo para eu poder me trocar e descansar um momento.

Quando fechei a porta, logo depois de que partiram, soube que se dirigiam ao escritório do capitão e que retornariam em questão de minutos. Em realidade não importava. David estava a salvo, pois abandonou o casco de navio e viajou a Miami, onde devia me reunir com ele. Isso era quão único queria saber. Graças a Deus tinha podido partir de Barbados em seguida. Porque só Deus sabia onde podia estar James nesses momentos.

Quanto ao senhor Jason Hamilton, cujo passaporte levava eu no bolso, ainda ficava um roupeiro cheio de objetos nessa suíte, e minha intenção era me apropriar rapidamente de algumas. Tirei-me o enrugado traje de etiqueta e o resto de meu traje para a noite, e me pus calça, camisa de algodão e um saco decente de linho. Certamente, tudo estava feito à medida perfeita para esse corpo. Até os sapatos de lona me resultaram muito cômodos.

Levei comigo o passaporte e uma considerável soma de dólares norte-americanos que tinha encontrado na velha roupa.

Logo voltei a sair a terraço e permaneci imóvel sob a carícia da brisa, enquanto meus olhos sonolentos percorriam o mar, de um azul intenso e luminoso.

O Queen Elizabeth II avançava aos famosos vinte e oito nós, e as ondas transparentes se estrelavam contra sua proa majestosa. A ilha de Barbados tinha desaparecido por completo da vista. Levantei o olhar e contemplei a grande chaminé negra, que por ser tão imensa parecia a chaminé do próprio inferno. Era todo um espetáculo a espessa fumaça cinza que saía dela, descrevia um arco e baixava até o nível mesmo do mar empurrado pelo vento incessante.

Voltei a olhar o longínquo horizonte. Todo o universo estava impregnado de uma luz bela e azulada. Depois de uma fina bruma que os mortais jamais poderiam perceber, vi as minúsculas constelações titilantes, como também os planetas luminosos que avançavam lentamente. Estirei minhas extremidades, contente das sentir, fascinado com o comichão que me percorria ombros e costas. Sacudi-me inteiro e eu gostei do roce do cabelo contra o pescoço; depois apoiei os braços sobre o corrimão.

-Te vou encontrar, James -murmurei-; disso não te caiba a menor duvida. Mas agora tenho outras coisas que fazer. Em vão poderá seguir tramando pequenos ardis.

Logo ascendi devagar, o mais devagar que pude, até que estive muito alto, em cima do navio, e o olhei de acima. Admirei suas numerosas cobertas empilhadas uma sobre a outra, festoneadas por mil e uma lucecitas amarelas. Que festivo o via, que despreocupado. Valorosamente avançava, mudo e poderoso, pelo mar ondulante, levando seu pequeno reino de seres que dançavam, jantavam e conversavam, de atarefados oficiais de segurança, de pressurosos garçons, de centenas e centenas de pessoas felizes que nada suspeitavam de que tivéssemos estado ali para as perturbar com nosso pequeno drama, nem de que nos tivéssemos ido com a mesma rapidez com que chegamos, deixando só uma mínima seqüela de alvoroço. Que reine a paz no Queen Elizabeth II, pensei, e uma vez mais soube por que o Ladrão de Corpos se afeiçoou com essa nave, por que se escondeu nela, por triste e de mau gosto que fosse.

Ao fim e ao cabo, o que é todo nosso mundo para as estrelas do firmamento? O que pensam elas de nosso planeta diminuto, perguntei-me, um planeta cheio de amalucadas justaposições, de ocorrências fortuitas, lutas intermináveis e delirantes civilizações esparramadas sobre sua face, unidas não por vontade, fé nem ambição comunitária mas sim por certa nebulosa capacidade de seus milhões de habitantes de não pensar nas tragédias da vida e lançar uma e outra vez à felicidade, tal como o faziam os passageiros desse barquito, como se a felicidade fosse para todos os seres tão natural como a fome, o sonho, a necessidade de amor ou o medo ao frio. Elevei-me cada vez mais alto até que já não pude ver a nave. interpunham-se nuvens entre mim e o mundo de abaixo. E acima ardiam as estrelas em sua fria majestuosidad, e por uma vez na vida não as odiei. Não, não podia as odiar, não podia odiar nada. Sentia-me muito cheio de júbilo e de sombrio triunfo amargo. Eu era Lestat, que me deslocava entre o céu e o inferno, contente de sê-lo possivelmente por primeira vez.

 

Selva tropical da Sudamérica. Um profundo matagal de bosque e selva através de quilômetros e quilômetros de moderado; que cobre com seu manto ladeiras de montanhas e se congrega nos vales; que só se interrompe para dar passo a rios rutilantes e lagos resplandecentes; suave, e viçosa, e frondosa, e aparentemente inofensiva quando a vê desde muito acima, por entre as nuvens.

A penumbra é total quando um se detém sobre a terra branda, molhada. Tão altos som as árvores, que o céu não se vê sobre suas taças. Ali a criação não é nada mais que luta e perigo em meio dessas profundas sombras úmidas. É o triunfo final do Jardim Selvagem, e jamais os cientistas do mundo poderão classificar todas as espécies de mariposas, de leopardos, de peixes carnívoros e serpentes gigantes que habitam o lugar.

Pássaros com asas cor do céu estival ou do sol ardente passam velozes entre os ramos. Chiam os macacos ao tempo que estiram seus manecitas inteligentes para aferrar-se de trepadeiras grosas como piruetas. Mamíferos lustrosos e sinistros, de mil tamanhos e formas, buscam-se uns aos outros sem piedade sobre raízes monstruosas e tubérculos semienterrados, sob folhas enormes e susurrantes, sobem-se pelos troncos retorcidos de árvores jovens que morrem na fétida trevas, enquanto absorvem seu último alimento do chão pestilento.

Insensato e imensamente vigoroso é o ciclo de fome e saciedade, de morte violenta e dolorosa. Répteis de olhos implacáveis e brilhantes como opalas se alimentam eternamente com o lhe serpenteiem universo de insetos duros e rangentes, como o têm feito das épocas em que ainda não havia criaturas de sangue quente sobre a terra. E os insetos -com asas, com aguilhões, lojas de comestíveis de letal veneno, deslumbrantes por sua beleza horrenda e atrozmente sagazes- à larga se fazem um festim com todos.

Não há piedade nesse bosque. Não há misericórdia, justiça, veneração por sua beleza nem admiração pela formosura de suas chuvas. Até o ardiloso macaco é no fundo um idiota moral.

Quer dizer, não havia tal coisa até que chegou o homem.

Ninguém tem sabor de ciência certa quantos milhares de anos atrás ocorreu. A selva devora os ossos. Silenciosamente se traga manuscritos sagrados, corrói as pedras mais obstinadas do templo. Produtos têxteis, cestas tecidas, cacharros decorados e até adornos de ouro terminam disolvidos em seus fauces.

Mas os habitantes de corpo pequeno e tez escura estão ali há séculos -sobre isso não há dúvida-, criando suas frágeis aldeias de choças construídas com folhas de palmeira e fumegantes fogões, caçando os animais abundantes e letais com suas toscas lanças e seus dardos mortíferos. Em alguns lugares levantam, como o têm feito sempre, granjas pequenas onde cultivam grosas batata-doces, enormes abacates, pimientos tintos e milho. Muito milho amarelo, doce e tenro. Galinhas de reduzido tamanho bicam o exterior das moradias, feitas com esmero. Amontoados em seus chiqueiros, sopram, porcos gordos e lustrosos.

São estes humanos, que sempre lutaram uns contra outros, o melhor do Jardim Selvagem? Ou acaso tão somente uma parte não diferenciada dele, não mais complexa que a centopéia, que o furtivo jaguar de pele arrasada ou a silenciosa rã de olhos saltados, tão tóxica que só tocar sua pele salpicada conduz a morte?

O que têm que ver as innúmeras torres da grande Caracas com esse mundo que se estende e chega até tão perto dela? De onde saiu essa metrópoles sul-americana, com seus céus poluídos e seus subúrbios superpoblados nas ladeiras das serras? A beleza é beleza em qualquer lugar se encontre. De noite, até esses ranchitos3, como lhes dizem -milhares e milhares de choças que cobrem as ladeiras em pendente, a ambos os lados das modernas auto-estradas- são formosos, porque, embora não têm água nem deságües cloacales e ali a gente vive apinhada transgredindo todo conceito moderno de saúde e conforto, igualmente ostentam festões de brilhantes lucecitas elétricas.

Às vezes parece que a luz pode transformar algo! Que é uma inegável e irredutível metáfora da graça. Mas a gente dos ranchitos, sabe isto? Fazem-no assim porque é mais belo? Ou acaso só procuram uma iluminação cômoda em suas pequenas moradias?

Não importa.

Não podemos deixar de criar beleza. Não podemos deter o mundo.

Miro de acima o rio que passa pelo St. Laurent, uma cinta de luz que de tanto em tanto se entrevé em meio das taças das árvores, enquanto se interna cada vez mais na selva até chegar por fim à pequena missão da Santa Margarida María, um punhado de moradias em um claro a cujo ao redor aguarda pacientemente a selva. Não é bonito esse cacho de edificações com tetos de lata, com paredes pintadas à cal e toscas cruzes, com ventanitas iluminadas e o som de uma única rádio pela que se ouça uma melodia de letra a Índia e alegre ritmo de tambores?

Que formosos os alpendres largos das casas, onde se vêem redes, cadeiras e poltronas de madeira grafite. Os tecidos metálicos das janelas conferem às habitações uma beleza amodorrada ao desenhar diminutas grades de linhas finas sobre as numerosas cores e formas, com o qual conseguem acentuá-los, voltá-los mais visíveis e vibrantes, fazer que pareçam mais premeditados, como os interiores de uma pintura do Edward Hopper ou as ilustrações de um colorido livro de figuras infantis.

É obvio, não há maneira de deter a desenfreada propagação da beleza. Isso é questão de regras, da concordância, a estética da composição e o triunfo do funcional sobre o impensado.

Mas ali tampouco há muito disso!

Este é o destino do Gretchen, do qual todas as sutilezas do mundo moderno desapareceram: um laboratório para um único e reiterativo experimento moral: fazer o bem.

Em vão entoa a noite seu canto de caos, fome e destruição ao redor do reduzido acampamento. O que ali importa é o cuidado de um número limitado de humanos que vieram em busca de vacinas e antibióticos, a que lhe pratiquem cirurgias. Como disse a mesma Gretchen, pensar em um panorama mais amplo é mentir.

Durante horas me passeei descrevendo um grande círculo em meio da selva densa, despreocupado, me abrindo passo entre a folhagem infranqueável. Subi pelas fantásticas raízes altas das árvores, detive-me aqui e lá para escutar o coro profundo e emaranhado da noite selvagem. Muito tenras eram as flores úmidas que crescem nos ramos mais altas e luxuriantes e dormitam na promessa da luz matinal.

Uma vez mais, não senti o mais mínimo temor ante a fealdade molhada e corrompida do processo natural. O fedor da podridão no atoleiro. As coisas escorregadias não podem me fazer danifico, e por fim não me desgostam. Ah, que venha para mim a sucuri; eu adoraria sentir esse abraço estreito, de rápido movimento. Quanto me agradou o guincho dos pássaros, cuja intenção era sem dúvida causar terror a um coração mais simples. Que pena que os pequenos macacos de braços peludos estivessem dormindo nesse instante, pois me teria gostado de caçá-los, os ter um momento comigo para beijá-los em suas frentes franzidas, em seus parlanchinas bocas sem lábios.

E esses pobres mortais que dormiam dentro dos numerosos barracões, junto a seus campos prolijamente lavrados, na escola, o hospital e a capela, pareciam um milagre divino de criação até em seus detalhes mais nimios.

Hmmm. Sentia saudades a Molho. por que não estava ali, rondando comigo pela selva? Tinha que treiná-lo para que se convertesse em cão de vampiro. De fato, imaginava custodiando meu ataúde durante as horas do dia, sentinela ao estilo egípcio, com ordem de despedaçar a qualquer intruso mortal que conseguisse descender as escalinatas do santuário.

Mas já logo o ia ver. O mundo inteiro esperava atrás desses bosques. Quando fechava os olhos e convertia meu corpo em agudo receptor, alcançava para ouvir através dos quilômetros o ruído intenso do trânsito de Caracas, suas vozes amplificadas, o pulso da música nessas covas com ar condicionado para onde atraio aos assassinos, como mariposas à luz da vela, para poder me alimentar.

Na selva, em troca reinava a paz enquanto foram acontecendo as horas de te ronronem silencio tropical. Um resplendor de chuva caía do céu nuboso com tapinhas suaves sobre os tetos de metal, calcando o pó e salpicando os degraus já varridos da escola.

apagaram-se as luzes nos pequenos dormitórios e nas casitas distantes. Só seguiu titilando uma luminosidade vermelha no interior da capela às escuras, com sua torre baixa e seu enorme sino reluzente e silencioso. Lucecitas amarelas com minúsculas telas metálicas iluminavam os atalhos limpos, as paredes branqueadas à cal.

apagaram-se as luzes na primeira das construções do hospital, onde Gretchen trabalhava sozinha.

de vez em quando alcançava a ver seu perfil contra as janelas. Vi que estava do lado de dentro da porta, que levava o cabelo recolhido na nuca e se sentava uns instantes a um escritório para escrever umas notas inclinando a cabeça.

Por último me aproximei em silencio à porta, entrei no escritório reduzido, desordenada, iluminada por um único abajur, e enfiei para a entrada do pavilhão.

Hospital de meninos! Localizada-se em duas fileiras, as camas eram diminutas, singelas, toscas. Estava vendo visões nessa semipenumbra profunda? Ou é que as camas eram feitas de madeira ordinária, atadas nas uniões, e tinham mosquiteiros? E sobre a mesa descolorida, não havia um resto de vela em um platito?

de repente me senti enjoado; abandonou-me a grande claridade da visão. Este hospital, não! Pisquei, tratando de separar os elementos eternos daqueles que tinham sentido. Bolsitas plásticas de soro endovenoso que brilhavam penduradas de seus suportes junto às camas, leves tubos de nylon que descendiam até as agulhas cravadas em bracitos magros, frágeis!

Isso não era Nova Orleáns. Não era aquele pequeno hospital! E entretanto, olhem as paredes! Não som de pedra? Enxuguei-me a pátina de suor sanguinolento da frente e olhei a mancha que ficou no lenço. A que estava lá, na camita do fundo, não era uma garotinha loira? Uma vez mais me dominaram as náuseas. Pareceu-me ouvir uma risada aguda, zombadora mas cheia de felicidade. Não, não, devia ser um pássaro fora, na grande penumbra. Não havia uma mulher de idade, de batón caseiro até os tornozelos e lenço ao redor dos ombros. Fazia séculos que não existia mais; tinha desaparecido junto com aquele edifício pequeno.

Mas a criatura gemia; a luz brilhava sobre seu cabecita. Vi sua mão gordinha contra a manta. Tratei de esclarecer novamente minha visão. Uma sombra larga caiu no piso, a meu lado. Sim, olhem o indicador de apnea com seus diminutos números luminosos e os estojos de primeiro socorros de remédios com puertitas de vidro. Não aquele hospital, a não ser este.

Assim vieste a me buscar, papai? Certo que disse que o voltaria a fazer.

-Não, não lhe vou fazer mal! Não quero lhe fazer danifico. -Estava eu sussurrando em voz alta?

Vi-a ao longe, ao final da estreita habitação, sentadita em sua cadeira alta. Sacudia os pés e os cachos de cabelo lhe chegavam até as mangas abullonadas

vieste a procurá-la! Sabe que é assim!

-Shh, vai despertar aos meninos. Vá-se. Está louco!

Todos sabiam que foste triunfar. Sabiam que derrotaria ao Ladrão de Corpos. E aqui está, vieste... para lhe levar isso Yo estaba parado contra la luz que venía de la oficina. Me abrumaba el olor femenino, en el que se mezclaba la sangre con el perfume limpio de un ser vivo. Dios mío, verla con esa visión, ver la belleza resplandeciente de sus mejillas. Pero yo tapaba la luz, ¿verdad?, porque la puerta era muy pequeña. ¿Veía ella mis facciones con suficiente nitidez? ¿Notaba el color fantasmal de mis ojos?

-Não para lhe fazer danifico a não ser para deixar a decisão em suas mãos.

-Senhor? Que deseja?

Levantei o olhar e vi o médico que tinha ante meus olhos, um homem de idade, de costeletas descoloridas e minúsculos anteojitos. Não, esse doutor não! De onde tinha saído? Olhei-lhe a cartela do nome. Estávamos na Guyana Francesa; por isso ele falava em francês. E não há uma menina sentada em uma sillita alta, ao final do pavilhão.

-Ver o Gretchen. A irmã Marguerite. -Tinha-me parecido vê-la aí dentro, através das janelas. Sabia que estava aí.

Ruídos apagados no extremo mais distante da sala. Ele não pode ouvi-los, mas eu sim. Gretchen vem para cá. de repente percebi seu aroma, misturado com o dos meninos e o do ancião.

Mas nem sequer com esses meus olhos pude ver em semelhante penumbra. De onde vinha a luz deste lugar? Ela acabava de apagar a lamparita do fundo; percorreu a sala inteira, foi deixando atrás cama detrás cama, andando rápido e a cabeça agachada. O médico fez um gesto de cansaço e se afastou.

Não lhe olhe as costeletas desbotadas, os anteojitos nem a giba de suas costas arredondada. Já lhe viu o cartelito plástico com o nome. Não é um fantasma!

A porta com tecido metálico golpeou brandamente atrás do homem, quando ele já se afastava.

Gretchen se achava parada na leve penumbra. Que formoso o cabelo ondulado, que levava para trás da tersa frente, e seus grandes olhos de olhar firme. Viu-me os sapatos antes de lombriga a mim. de repente, tomou consciência do estranho, de sua silhueta esbranquiçada, calada -não deixei escapar nem um suspiro- na quietude total da noite, em um lugar ao que não pertencia.

O médico se esfumou. Pareciam haver o tragado as sombras, mas sem dúvida andava por aí fora, nas trevas.

Eu estava parado contra a luz que vinha do escritório. Afligia-me o aroma feminino, no que se mesclava o sangue com o perfume limpo de um ser vivo. meu deus, vê-la com essa visão, ver a beleza resplandecente de suas bochechas. Mas eu tampava a luz, verdade?, porque a porta era muito pequena. Via ela minhas facções com suficiente nitidez? Notava a cor fantasmal de meus olhos?

-Quem é você? -Foi um sussurro baixo, cauteloso. Estava longe de mim, desamparada, me contemplando com expressão receosa.

-Gretchen, sou Lestat. Vim a verte, como te prometi.

Nada se agitou no pavilhão comprido e estreito. As camitas pareciam congeladas depois do tul dos mosquiteiros. Porém, a luz se movia nas rutilantes bolsitas de líquido, à maneira de infinitas lamparitas chapeadas quando brilham na penumbra opaca. Alcancei para ouvir a respiração leve, regular, dos corpos dormidos. E um som afogado, rítmico, como o de um menino que joga a tamborilar uma e outra vez a pata de uma cadeira com o taco do sapato.

Gretchen elevou lentamente sua mão direita e com instintivo ar protetor a apoiou sobre seu peito, sob o pescoço. Lhe acelerou o pulso. Notei que seus dedos se fechavam como aferrando um relicário, e logo vi a luz que se refletia na magra cadenita de ouro.

-O que é isso que leva a pescoço?

-Quem é você? -voltou a perguntar com lábios trementes. Seu murmúrio pode dizer-se que tocou fundo. A luz tênue do escritório, a minhas costas, ressaltava em seus olhos. Olhou-me a cara, as mãos.

-Sou eu, Gretchen. Não te farei mal. Nem me ocorreria te fazer o menor dano. Vim porque lhe tinha prometido isso.

-Não... não lhe acredito. -Retrocedeu uns passos; seus reveste de borracha logo que rasparam o piso de madeira.

-Não me tenha medo, Gretchen. Queria que soubesse que é verdade tudo o que te disse. -Falava eu com soma suavidade. Ela me estaria ouvindo?

Dava-me conta de que tratava de esclarecer sua vista, como segundos antes eu também tinha tido que fazê-lo. O coração lhe pulsava com força, os seios lhe moviam delicadamente sob o rígido tecido de algodão enquanto o delicioso sangue subía de repente a seu rosto.

-Estou aqui, Gretchen. Vim a te dar as obrigado. Toma, isto é para a missão.

Como um estúpido coloquei a mão no bolso, tirei um montão de bilhetes do Ladrão de Corpos e os tendi. Meus dedos tremiam; os dela também. O dinheiro parecia sujo e absurdo, como uma pilha de lixo.

-Toma-o, Gretchen; servirá para os meninos. -Dava-me volta e outra vez vi a vela... a mesma vela! por que essa? Deixei o dinheiro a seu lado e ouvi ranger as madeiras do piso sob meu peso quando me adiantei até a mesita.

Quando me voltei para olhá-la, ela me aproximou, temerosa, com os olhos muito abertos.

-Quem é você? -murmurou pela terceira vez. Que grandes seus olhos, que escuras suas pupilas quando percorreram minha figura como dedos que se retiram de algo que os pode queimar. -Peço-lhe que me diga a verdade!

-Lestat, a quem curou em sua própria casa, Gretchen. pude recuperar minha forma verdadeira, e vim porque lhe tinha prometido isso.

Já me estava resultando árduo suportar o ressurgimento de minha velha ira, à medida que nela se intensificava o medo, que seus ombros ficavam rígidos, que seus braços se juntavam e a mão que aferrava a cadenita do pescoço começava a tremer.

-Não lhe acredito -espetou-me com o mesmo sussurro estrangulado, tornando-se atrás com todo o corpo embora, em realidade, não se tinha movido nem um passo.

-Não, Gretchen. Não me olhe com desprezo. O que te fiz para que me olhe assim? Conhece minha voz. Sabe o que fez por mim. Vim a te dar as obrigado.

-Mentiroso!

-Isso não é certo. Vim porque... porque queria verte de novo.

Deus santo, me estavam escapando umas lágrimas? Eram agora minhas emoções tão voláteis como meu poder? E ela veria sulcar por meu rosto as lágrimas de sangue, o qual a atemorizaria mais ainda. Não me atrevi a olhá-la aos olhos.

Dava-me volta e contemplei a velita. Dirigi minha vontade ao pavio e comprovei que a chama, uma lengüita amarela, aumentava de tamanho. Mon Dieu, o mesmo jogo de sombras na parede. Ela conteve o fôlego ao olhá-la; logo me olhou de novo , ao tempo que aumentava a iluminação que nos rodeava, e por primeira vez pôde ver clara e inconfundiblemente os olhos que estavam fixos sobre ela, o marco de cabelo do rosto que a olhava, as unhas brillosas de minhas mãos, os dentes brancos, visíveis apenas, possivelmente, entre meus lábios entreabiertos.

-Gretchen, não me tenha medo. Em nome da verdade, me olhe. Fez-me prometer que ia vir. Não te menti, Gretchen. Você me salvou. Estou aqui, e não existe Deus, disse-me. Vindo de qualquer outra pessoa não me teria importado, mas você mesma o disse.

levou-se as mãos aos lábios, no mesmo instante retrocedeu, e à luz da vela pude ver então que o que pendurava da cadenita era uma cruz de ouro. OH, Deus, obrigado por ser uma cruz e não um relicário! Retrocedeu de novo, ao parecer sem poder evitar um movimento impulsivo.

Suas palavras foram um sussurro vacilante.

-te afaste de mim, espírito maligno! Sal desta casa de Deus!

-Não te vou fazer mal!

-te afaste destes pequenos!

-Gretchen, não vou fazer nenhum mal aos meninos.

-Em nome de Deus, te afaste de mim... Vete. -Com a mão direita voltou a aferrar a cruz e a levantou em direção a mim, com o rosto aceso, os lábios úmidos, frouxos e trementes em sua histeria, seus olhos privados de razão quando voltou a falar. Adverti que se tratava de um crucifixo com o diminuto corpo retorcido do Cristo morto.

-Sal desta casa, que está protegida Por Deus. Ele vela por estes meninos. Vete.

-Em nome da verdade, Gretchen -respondi em voz baixa como a dela, prenhe de sentimento como era a sua também. -Deitei-me contigo! E vim.

-Mentiroso! -sentenciou-. Mentiroso! -Seu corpo se estremecia com tanto ímpeto, que parecia a ponto de perder o equilíbrio e cair.

-Não, é verdade, totalmente verdade. Gretchen, não vou fazer nada de mau aos meninos. Não te farei mal a ti.

Um instante mais e certamente ia perder a razão por completo, lançaria alaridos de impotência, e a noite toda a ouviria. Todos os habitantes do complexo sairiam a atendê-la, unindo-se talvez no mesmo grito.

Mas permaneceu aí, tremendo com todo o corpo, e de sua boca aberta só escapou um pranto seco.

-Vou, Gretchen. Deixo-te, se isso for o que quer. Mas cumpri minha promessa! Há algo mais que possa fazer?

De uma das camitas partiu um resmungo, logo, um gemido da outra, e ela olhou ansiosa por volta de um e outro lado.

Pôs-se a correr e atravessou o pequeno escritório, enquanto a seu passo saíram voando uns papéis do escritório. Quando se internou na noite, a porta de tecido metálico golpeou atrás dela.

Ouvi seus soluços longínquos e, aturdido, girei em redondo.

Vi cair a chuva em calada garoa. Vi que, do outro lado do claro, Gretchen corria para as portas da capela.

Disse-te que lhe foste fazer mal.

Dava meia volta e percorri todo o pavilhão com o olhar.

-Não está aqui. Já terminei contigo! -murmurei.

À luz da vela vi com toda claridade à menina em que pese a que permanecia no outro extremo da sala. Seguia sacudindo a perna, golpeando com o taco a pata da cadeira.

-Vete -disse o mais brandamente que pude-. Tudo terminou.

Em efeito, caíam-me lágrimas, lágrimas de sangue pela cara. As teria visto Gretchen?

-Vete -repeti-. Tudo acabou, e eu também vou.

Pareceu-me que sorria, mas não sorria. Seu rosto se converteu na imagem da inocência, a cara do relicário do sonho. E na quietude, enquanto eu ficava paralisado olhando-a, toda a imagem se manteve em sua totalidade, mas deixou de mover-se. Logo se dissolveu.

E só vi uma cadeira vazia.

Muito devagar, voltei-me para a porta. Uma vez mais me enxuguei as lágrimas, com desagrado, e guardei o lenço.

As moscas zumbiam contra o tecido metálico da porta. Que clara era a chuva, que seguia caindo, persistente. Logo chegou o suave ruído do toró mais intenso, como se o céu tivesse aberto lentamente a boca para suspirar. De algo me esquecia. O que era? Ah, a vela; de apagar a vela, não fora que provocasse um incêndio e fizesse mal a esses pequenos.

E fixa lhe lá no fundo, a garotinha loira sob a carpa de oxigênio, o envoltório de plástico rangente lançando brilhos como se estivesse feita com vestígios de luz. Como pôde ser tão tolo e acender uma chama nessa habitação?

Apaguei a luz fazendo estalar os dedos. Tirei tudo o que tinha nos bolsos e deixei aí os bilhetes enrugados e sujos, centenas e mais centenas de dólares, e inclusive algumas moedas.

Depois me parti, passei muito devagar ante as portas abertas da capela. Em meio da chuva que aumentava ouvi suas rezas, seus murmúrios rápidos, vi-a ajoelhada ante o altar; e atrás de seus braços estendidos em cruz, divisei o fogo avermelhado de uma vela que titilava.

Senti desejos de ir. No mais profundo de minha alma ferida, deu-me a sensação de que era isso o que queria. Mas, uma vez mais, algo me reteve. Tinha percebido o inconfundível aroma do sangue.

Provinha da capela, e não era o sangue que corria pelas veias do Gretchen, a não ser sangue que emanava de uma nova ferida.

Aproximei-me mais, tratando de não fazer nem o menor ruído, até que fiquei junto à porta do templo. O aroma se voltou mais intenso. Então vi o sangue que lhe gotejava de suas mãos estendidas. Vi-a no piso, correndo em magros fios que partiam de seus pés.

-Libra me do mal, OH Deus, me leve contigo, Sagrado Coração do Jesus, me estreite em seus braços...

Não me viu nem ouviu me aproximar. Um suave brilho afluiu a suas bochechas, brilho feito da luz palpitante da vela e o resplendor que provinha de seu interior, o grande arroubo que nesse instante a embargava, separando a de todo o entorno, inclusive da silhueta escura que havia a seu lado.

Olhei o altar. Vi no alto o enorme crucifixo e, debaixo, o brilhante sagrario e a vela acesa em seu vasito vermelho, o qual indicava que ali estava o Muito santo Sacramento. Uma rajada de ar entrou pelas portas abertas, chegou até a campainha e lhe arrancou um leve tangido, apenas audível por sobre o som da brisa mesma.

Voltei a olhar ao Gretchen, seu rosto erguido, os olhos entrecerrados, a boca muito lassa em que pese a que ainda debulhava palavras.

-Jesucristo, meu amado Jesucristo, tome em seus braços.

E em meio da bruma de minhas lágrimas, vi o sangue vermelho, espessa, que fluía copiosa de sua Palmas abertas.

No complexo se ouviram vozes sossegadas. Portas que se abriam e fechavam. Ruído de gente que corria sobre a terra. Quando girei, vi silhuetas escuras reunidas na entrada, um cacho de ansiosas figuras femininas. Ouvi uma palavra sussurrada em francês, que queria dizer "desconhecido". E logo um grito afogado:

-O demônio!

Pelo corredor central enfiei para eles, obrigando-os possivelmente a dispersar-se, por mais que em nenhum momento os toquei nem os olhei; passei rapidamente a seu lado e saí à chuva.

Logo me detive e girei em redondo. Ela seguia de joelhos e outros a rodeavam. Houve exclamações reverentes de "Milagre!" e "Estigma!". Todos se faziam o sinal da cruz e caíam de erva-doces enquanto, como em transe, Gretchen continuava articulando monótonas preces.

-E o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus, e o Verbo se fez carne.

-Adeus, Gretchen -murmurei.

Depois ingressei, livre e sozinho, no morno abraço da noite selvagem.

 

Devi haver ido a Miami essa mesma noite. David podia me necessitar... E é obvio, não tinha nem idéia de onde poderia estar James.

Mas não fui capaz -estava muito comovido-, e antes da manhã encontrei a grande distancia da pequena Guyana Francesa, embora ainda na selva voraz, sedento e sem possibilidades de me saciar.

Uma hora antes do amanhecer cheguei a um antigo templo -um grande retângulo de pedra gasta- tão talher de trepadeiras e outras retorcidos folhagens, que possivelmente resultasse invisível até para quão mortais acertassem a passar a escassos centímetros dali. Mas como não havia caminho, nem sequer um caminho que atravessasse esse setor da selva, supus que fazia séculos que não era transitado por ninguém. Esse lugar era meu segredo.

Com exceção dos macacos, claro, que se tinham despertado com a luz do alvorada. Uma verdadeira tribo deles tinha sitiado o tosco edifício em meio de chiados, reunidos em enxames por todo o teto plano e os flancos em declive. Com relutância e um esboço de sorriso em meu rosto os observei pular. Em toda a selva se iniciou um renascimento. O coro dos pássaros tinha muito mais volume que nas horas de penumbra total e, à medida que esclarecia, fui percebendo em redor inumeráveis tonalidades de verde. Aniquilado, tomei consciência de que não ia ver o sol.

Minha estupidez quanto a esse tema surpreendeu um pouco. Quão certo é que somos filhos do costume. Ah, mas não era suficiente essa luz temprana? Que prazer voltar a estar em meu velho corpo...

...salvo se recordava a expressão de asco total que pôs Gretchen.

Uma bruma espessa se elevava do chão, captava essa muito belo iluminação e a difundia até as gretas e curvas mais minúsculas, debaixo de folhas e flores.

Olhei em torno e minha tristeza aumentou, ou melhor dizendo, senti-me em carne viva, como se me tivessem esfolado. A palavra "tristeza" é muito suave e doce. Pensei muitas vezes no Gretchen, mas só em imagens sem palavras. E quando evocava a Claudia sentia um embotamento, uma lembrança silenciosa e inexorável das palavras que lhe disse em meu sonho febril.

Como um pesadelo, o velho médico de costeletas grisalhas. A menina-boneca em seu sillita. Não, aí não. Aí não. Aí não.

E o que importava se tivessem estado ali? Não importava absolutamente.

Baixo essas profundas emoções, não me sentia desventurado; e tomar consciência disso, sabê-lo a ciência certa foi possivelmente o mais maravilhoso. OH, sim, voltava a ser o de sempre.

Tinha que lhe contar ao David o dessa selva! David tinha que viajar a Rio antes de retornar a Inglaterra. Eu o acompanharia, possivelmente.

Possivelmente.

No templo encontrei duas portas. A primeira estava travada com pesadas pedras irregulares, mas a outra não, já que fazia tempo que as pedras se cansado e jaziam amontoadas em uma pilha relatório. Subi por elas, encontrei uma levantada escada pela que baixei, percorri várias passagens até chegar a recintos onde não entrava a luz. Foi em um desses âmbitos, frio, totalmente isolado dos ruídos da selva, onde me tendi a dormir.

Habitavam ali diminutos seres escorregadios. Quando apoiei a cara contra o piso, frio e úmido, senti que essas criaturas me caminhavam pelas gemas dos dedos. Logo o peso sedoso de uma serpente cruzou por meu tornozelo. Todo isso me arrancou um sorriso.

Como se teria arrepiado meu antigo corpo mortal. Mas também é certo que meus olhos humanos não teriam podido ver dentro desse lugar recôndito.

de repente comecei a tremer, a chorar uma vez mais, muito fico, pensando no Gretchen. Sabia que jamais voltaria a sonhar com a Claudia.

-O que pretendia de mim? -murmurei-. Sinceramente acreditava que podia salvar minha alma? -Vi-a tal como em meu delírio, nesse velho hospital de Nova Orleáns onde a tirei dos ombros. Ou acaso tínhamos estado no velho hotel? -Disse-te que o voltaria a fazer. Adverti-lhe isso.

Algo se tinha salvado naquele momento. A sinistra condenação do Lestat se salvou, e se manteria intacta para sempre.

-Adeus, meus seres queridos -murmurei.

Depois dormi.

Miami, ah, minhas bela metrópoles sulina que jaz sob o céu brilhante do Caribe, digam o que digam os mapas! O ar me pareceu mais doce ainda que nas ilhas e soprava, suave, sobre as multidões de rigor do bulevar Ocean.

À medida que transpunha rapidamente o hall art déco do Park Central caminho às habitações que ali tenho, ia me tirando a roupa que usei na selva. Tirei de meu placard uma remadora branca, jaqueta cor cáqui com cinturão, calça e um par de finas botas marrons de couro. Agradou-me a sensação de não ter que usar mais a roupa do Ladrão de Corpos, por bem que ficasse.

Ato seguido chamei zeladoria; inteirei-me assim de que David Talbot se achava desde no dia anterior no hotel e nesses momentos me aguardava não longe de ali, no pátio dianteiro do restaurante Bailey.

Não tinha ânimo para estar em lugares muito concorridos. Trataria de convencer o de que voltássemos para meus aposentos. Com toda segurança ele devia estar esgotado por todo o vivido. A mesa e poltronas que havia frente às janelas seriam um ambiente ideal para conversar, como certamente íamos fazer.

Saí à lotada calçada, tomei para o norte e divisei Bailey e seu inevitável letreiro de néon sobre belos toldos brancos. Embelezadas com toalhas rosadas e velas, as mesitas já estavam ocupadas pelos primeiros contingentes noturnos. No rincão mais afastado do pátio vi a elegante figura do David, vestido com o mesmo traje de linho que tinha usado no navio. Aguardava minha chegada com sua habitual expressão alerta.

Pese ao alívio que senti, a propósito tomei por surpresa: sentei-me com tanta velocidade na cadeira do lado, que o sobressaltei.

-Ah, demônio -sussurrou. Vi um duro rictus como se realmente estivesse vexado em sua boca, mas logo sorriu. -Graças a Deus está bem.

-Parece-te?

Quando apareceu o garçom lhe pedi uma taça de vinho, para que não seguisse me insistindo se deixava passar o tempo. Ao David já tinham servido uma bebida exótica, de aspecto asqueroso.

-Que diabos passou? -perguntei, me aproximando um pouco mais para poder tampar o ruído do ambiente.

-Foi um caos total. Ele tratou de me atacar e não ficou mais remedeio que usar a arma. fugiu-se pela terraço porque eu não pude sustentar firmemente o maldito revólver. Era muito grande para estas mãos velhas. -Suspirou. O via exausto, piorado. -Depois, só tive que me comunicar com a Casa Matriz e pedir que pagassem minha fiança. Chamadas que foram e vinham à sede do Cunard, do Liverpool. -Subtraiu importância ao assunto com um gesto. -Ao meio dia abordei um avião para Miami. Não queria te deixar desprotegido no casco de navio, mas não pude fazer outra coisa.

-Não corri o menor perigo. Mas bem temia por ti. Disse-te que por mim não se preocupasse.

-Sim, isso foi o que pensei. Enviei-os detrás o James, certamente, com a esperança de desalojá-lo do navio. Era evidente que não podiam empreender uma quarto busca por quarto. Por isso supus que não lhe incomodariam. Estou quase seguro de que James baixou a terra logo da animação. Do contrário, o teriam apreendido. Dava-lhes uma descrição fiel, é obvio.

interrompeu-se, bebeu cautelosamente um gole de sua estranha bebida e a deixou.

-vê-se que isso você não gosta -disse-lhe-. por que não pediu o horrível uísque de sempre?

-É a bebida das ilhas e tem razão, eu não gosto, mas não importa. Como foi a ti?

Não lhe respondi. Posto que, certamente, via-o com minha antiga capacidade visual, sua pele aparecia mais translúcida e ficavam em evidência todos seus pequenos achaques. Entretanto, possuía esse halo de quão maravilhoso os vampiros vêem em todos os mortais.

Notei-o cansado, afligido pela tensão. Até tinha os olhos avermelhados, e uma vez mais adverti certa rigidez em sua boca. Haveria-o avejentado mais o suplício vivido? Não suportava ver isso nele. Mas, quando me olhou, distingui preocupação em seu rosto.

-Aconteceu-te algo mau -disse, ao tempo que estirava um braço e apoiava uma mão sobre a minha. Que morna senti. -Noto-o em seus olhos.

-Não quero falar aqui. por que não vamos a minha habitação do hotel?

-Não, prefiro ficar -pediu-me com suavidade-. Estou muito ansioso depois de tudo o que aconteceu. Sinceramente foi um pesadelo para um homem de minha idade. Sinto-me esgotado. Supus que foste chegar ontem à noite.

-me perdoe; teria que ter vindo. Imagino quão difícil deve te resultar, face ao muito que o desfrutava enquanto acontecia.

-Isso te pareceu? -Dirigiu-me uma sonrisada cansada. -Necessito outro gole. O que disse? Uísque?

-O que disse eu? Pensei que era sua bebida preferida.

-de vez em quando. -Fez gestos ao garçom. -Às vezes me resulta muito aborrecido. -Perguntou por uma única marca, que não tinham; então aceitou um Dedura Regal. -Obrigado por me dar o gosto. Agrada-me este lugar, o ambiente agitado, o estar à intempérie.

Até sua voz soava cansada, carecia de uma faísca que lhe desse vida. Não era, absolutamente, o momento para lhe propor uma viagem a Rio. E a culpa era minha.

 

-Como gosta -aceitei.

-Agora me conte o que aconteceu. Vejo que o vive como uma grande carrega em seu interior.

Então tomei consciência de quanto queria lhe falar do Gretchen, que essa era a razão pela que estava eu aí, não só porque ele me preocupasse. Senti-me envergonhado, e entretanto não pude deixar de dizer-lhe Girei para olhar para a praia, com o cotovelo ainda apoiado sobre a mesa, e me nublou a vista, de modo que as cores da noite me pareceram mais luminosos que antes. Contei-lhe que tinha ido ver o Gretchen porque o tinha prometido, embora no profundo do coração tinha a esperança de poder trazê-la a meu mundo. Logo lhe expliquei o do hospital, quão peculiar era, o parecido do médico com o outro, o de séculos atrás, o pequeno pavilhão mesmo, a idéia louca de que Claudia se encontrava aí.

-Fiquei desconcertado -murmurei-. Jamais imaginei que Gretchen pudesse me rechaçar. Sabe o que pensei? Agora me parece uma tolice. Que eu lhe resultaria irresistível! Pensei que as coisas tinham que ser assim, que não podiam ser de outra maneira, que quando olhasse aos olhos -os de agora, não aqueles olhos mortais!- veria a alma verdadeira que ela amou. Nunca pensei que fora a sentir asco, uma repulsão tão total -no físico como no moral-, que no mesmo instante de compreender o que somos fora a tornar-se atrás tão por completo. Não entendo como pude ser tão tolo, por que ainda insisto com minhas ilusões! Será por vaidade? Ou acaso estou louco? Alguma vez te dava asco, verdade, David? Ou nisso também me engano?

-É formoso -respondeu em voz baixa, com palavras carregadas de emoção-. Mas também é monstruoso, e isso foi o que viu ela. -O que perturbado o notei. Jamais o tinha visto tão solícito em seus pacientes conversa comigo. De fato, parecia sentir o mesmo sofrimento que eu, de uma maneira aguda e total. -Não era uma companheira adequada para ti, não te dá conta? -adicionou serenamente.

-Sim, dou-me conta, claro que sim. -Apoiei a frente na mão. Que pena que não estivéssemos no silêncio de minhas habitações, mas não quis forçá-lo. Voltava a ser meu amigo, como não o tinha sido nunca nenhum outro ser da terra, e me propus lhe dar o gosto. -Sabe que você é o único -exclamei de repente, e a meus próprios ouvidos minha voz soou discordante, cansada-. O único que não me dá volta a cara quando fracasso.

-por que o diz?

-Meus companheiros me condenam por meu temperamento, por minha impetuosidade. Desfrutam-no, mas quando mostro alguma debilidade, fecham-me a porta. -Pensei no rechaço do Louis, em que muito em breve voltaria a vê-lo, e me alagou uma insalubre satisfação. OH, ia se surpreender tanto. Logo se apoderou de mim certo temor. Como faria para perdoá-lo? Como poderia dominar meu temperamento e não explorar?

-Nós voltaríamos superficiais a nossos heróis -respondeu lentamente, quase com pesar-. Voltaríamo-los frágeis. São eles quem deve nos recordar o verdadeiro significado da fortaleza.

-Você crie? -Dava-me volta, cruzei os braços sobre a mesa e cravei o olhar na fina taça de vinho branco. -Sou realmente tão forte?

-Sim, claro, sempre o foste. Por isso lhe invejam, desprezam-lhe e se zangam tanto contigo. Mas não faz falta que te diga todas estas coisas. Esquece a essa mulher. Teria sido um engano, um engano muito grande.

-E você, David?. Contigo não teria sido um engano. -Levantei o olhar e, surpreso, vi que tinha os olhos úmidos e outra vez a rigidez da boca. -O que acontece, David?

-Não, não teria sido um engano. Agora não acredito que o fora, absolutamente.

-Quer dizer que...?

-me faça ingressar, Lestat -pediu em sussurros; logo se fez para trás, transformado em distinto cavalheiro inglês que censura suas próprias emoções e olhou, depois da multidão, o mar longínquo.

-Diz-o a sério, David? Está seguro? -Honestamente, não queria perguntá-lo. Não queria falar nenhuma palavra mais. Mas, por que? O que o tinha feito tomar a decisão? O que lhe tinha produzido eu com minha absurda escapada? Se não fora por ele, eu não teria tornado a ser o vampiro Lestat. Mas que preço deveu ter pago.

Recordei o episódio na praia da Grenada, quando se negou ao simples ato de fazer o amor. Estava sofrendo igual a naquela oportunidade. E de repente não me pareceu um mistério que tivesse chegado a essa decisão. Tinha-o levado eu a ela com a aventura que compartilhamos para enfrentar ao Ladrão de Corpos.

-Vêem -disse-, agora sim chegou o momento de ir, de poder estar sozinhos. -Estremeci-me. Quantas vezes tinha sonhado com esse instante.

Mas tinha chegado muito rápido, e ficavam muitas perguntas que me parecia necessário formular.

De improviso me dominou um terrível acanhamento. Não podia olhá-lo. Pensei na intimidade que logo íamos experimentar, e não pude olhá-lo aos olhos. meu deus, estava-me comportando como o tinha feito ele em Nova Orleáns, acossando-o com meu desejo desenfreado quando eu habitava o corpo mortal.

O coração me pulsava de emoção. David, David em meus braços. Seu sangue que se mesclaria com a minha, a meu com a dele. Logo iríamos juntos à borda do mar, qual misteriosos irmãos imortais. Custava-me falar, e até pensar.

Levantei-me sem olhá-lo, cruzei o pátio, baixei a escalinata. Sabia que ele me seguia. Senti-me como Orfeo: bastaria um olhar atrás para que ficasse sem ele. Talvez as luzes intensas de algum automóvel iluminariam de tal maneira meu cabelo, meus olhos, que de repente ele ficaria paralisado de terror.

Percorri o caminho de volta, deixei atrás o desfile de mortais com traje peixeiro, as mesitas ao ar livre dos bares. Fui direito ao Park Central, cruzei o hall de pomposa elegância, e subí a minhas habitações.

Ouvi que entrava e fechava a porta detrás de mim.

Parei-me ante os ventanales e de novo me pus a olhar o reluzente sol do anoitecer. Quieto, meu coração! Não apresse as coisas. É importante poder dar cada passo com cuidado.

Olhe as nuvens, como correm afastando do paraíso. As estrelas, meros puntitos resplandecentes lutando sob a corrente da clara luz crepuscular.

Tinha que lhe dizer algumas costure, lhe explicar outras. Dado que ele ia conservar eternamente o aspecto que tinha nesse momento, perguntei-lhe se queria realizar alguma mudança física, como por exemplo, barbear-se melhor, recortar o cabelo.

-Nada disso me importa -repôs com seu típico acento de britânico culto-. O que te passa? -Muito amável, como se fosse eu o que necessitava que o tranqüilizassem. -Não era o que queria?

-Sim, claro que sim. Mas você também tem que estar seguro de querê-lo -respondi-lhe, e só então me voltei.

Estava de pé nas sombras, muito sereno, vestido com seu traje de linho branco e gravata de seda corretamente atada. A luz da rua brilhava sobre seus olhos, e em um momento dado se refletiu sobre o minúsculo alfinete de sua gravata.

-Não posso explicá-lo -murmurei-. Tudo foi tão rápido, tão repentino, e justo quando já acreditava que você não o desejava. Tenho medo por ti, medo de que cometas um engano.

-Eu quero fazê-lo -reconheceu, mas o que forçada sua voz, que carente de seu habitual matiz lírico-. Quero-o mais do que imagina. Faz-o agora, por favor. Não prolongue minha agonia. Vêem mim. O que posso fazer para te convidar, para que esteja seguro? tive mais tempo que você para meditá-lo. Recorda quanto faz que conheço seus segredos, sem exceção.

Que estranho me pareceu seu rosto, que duro seu olhar, que azedo o rictus de sua boca.

-David, algo anda mau. Sei. me escute. Devemos falá-lo. Possivelmente seja a conversação mais importante que tenhamos jamais. O que aconteceu como para que tivesse desejos de fazê-lo? O que foi? O tempo que estivemos juntos na ilha? diga-me isso porque tenho que compreendê-lo.

-Está perdendo tempo, Lestat.

-OH, para isto terá que tomar-se tudo o que seja necessário. Será a última vez que o tempo importe.

Aproximei-me deliberadamente a ele para me impregnar de seu aroma, para que despertasse em mim esse desejo que não reparava em quem era ele nem o que era eu, o apetite voraz que só podia saciar-se com sua morte.

Retrocedeu uns passos e vi medo em seus olhos.

-Não, não te assuste. Crie que te faria mal? Jamais poderia ter derrotado a esse estúpido Ladrão de Corpos, de não ter sido por ti!

Seu rosto ficou rígido, os olhos ficaram mais pequenos, a boca formou uma espécie de careta. Que horrível o vi, que distinto ao que era sempre. Deus santo, o que é o que cruzava por sua mente? Essa decisão, esse momento, estava saindo todo mal! Não havia alegria, intimidade. Assim não devia ser.

-te abra a mim! -clamei.

Fez gestos de negação, e seus olhos voltaram para entrecerrarse.

-Não vai se produzir quando fluir o sangue? -Que frágil sua voz. -me dê uma imagem para guardar em minha mente, Lestat! Uma imagem que me proteja do medo.

Eu estava desconcertado. Não sabia o que queria dizer.

-Parece-te que pense em ti, no belo que é -propôs com ternura-, em que vamos ser companheiros para sempre?

-Pensa na Índia. Pensa no bosque de mangas, na época em que mais feliz foste...

Quis dizer mais, quis dizer não, nisso não, mas não sabia por que. E dentro de mim surgiu a fome, mesclada com uma ardente solidão, e uma vez mais vi o Gretchen, vi sua expressão de horror. Aproximei-me mais. David, David por fim... Faz-o! e deixa já de falar, o que importam as imagens, faz-o! O que te passa? Acaso tem medo?

Esta vez o abracei com força.

De novo vi medo nele, foi algo súbito, e por um instante saboreei a exuberante intimidade física, o corpo alto e majestoso entre meus braços. Meus lábios percorreram seu cabelo cinza escuro, aspiraram a conhecida fragrância, meus dedos sustentaram sua cabeça, embalaram-na. Logo, meus dentes quebraram a superfície de sua pele incluso antes de que me propor fazê-lo, e o sangue quente, salgada, fluiu sobre minha língua, encheu-me a boca.

David, David por fim.

As imagens me vieram como uma avalanche, os grandes bosques da Índia, os elefantes cinzas que aconteciam, os joelhos levantados torpemente, as gigantescas cabeças que se moviam, as orelhas muito pequenas tamborilando como folhas soltas. A luz do sol que caía sobre o bosque. Onde está o tigre? OH, Deus, Lestat, o tigre é você! Finalmente o fez! Com razão não queria que pensasse nisso! Tive uma visão fugaz dele me observando no claro do bosque, o David de anos atrás, esplêndido, juvenil, sorridente, e de repente, durante uma fração de segundo, apareceu outra figura, a imagem superpuesta de outro homem, ou surgindo de dentro como uma flor que se abre. Era um ser magro, gasto, grisalho, de olhos sagazes. E antes de que se esfumasse uma vez mais dentro da imagem inerte do David, soube que tinha sido James!

O homem que tinha em meus braços era James!

Joguei-o para trás, e com a mão me limpei o sangue que me jorrava dos lábios.

-James! -gritei.

Caiu contra o flanco da cama, aturdido, com gotas de sangue no pescoço da camisa e uma mão em alto.

-Não seja atropelado! -clamou, com a velha entonação própria, suarento seu rosto.

-Que te apodreça no inferno! -vociferei, olhando esses olhos frenéticos que habitavam na cara do David.

Equilibrei-me sobre ele, que no desespero deixou escapar risadas de louco e mais palavras, pressurosas, balbuciadas.

-Idiota! É o corpo do Talbot! Como vais fazer lhe danifico ao corpo do Talbot!

Infelizmente, foi muito tarde. Tratei de me conter, mas o aferrei do pescoço e o joguei contra a parede.

Horrorizado, vi que se estrelava contra o gesso. Vi que lhe saía sangue da nuca, ouvi o rangido espantoso da parede rota e, quando me estirei para menosprezá-lo, caiu diretamente em meus braços. Olhou-me com olhos bovinos, ao tempo que sua boca lutava com frenesi tratando de articular alguma palavra.

-Olhe o que fez, imbecil. Olhe... o que...

-Fique dentro desse corpo, monstro! -disse, apertando os dentes-. Manten com vida!

Boqueaba. Um hilillo de sangue lhe saía do nariz e entrava em sua boca. Lhe deram volta os olhos. Sustentei-o, mas lhe penduravam os pés, como se estivesse paralítico.

-Idiota, chama a minha mãe, chama-a... mamãe, mamãe... Raglan te necessita... Não chame o Sarah. Não o diga ao Sarah. Chama a minha mãe... -Logo perdeu o conhecimento, a cabeça lhe caiu para um lado, e então o tendi sobre a cama.

Pu-me frenético. O que ia fazer! Podia lhe curar as feridas com meu sangue? Não, o dano era interno, dentro da cabeça, do cérebro! meu deus! O cérebro do David!

Gesticulei o telefone, gaguejei o número da habitação dizendo que era uma emergência. Havia um homem muito ferido gravemente produto de uma queda. Tinha tido um acidente cerebral! Deviam chamar imediatamente uma ambulância.

Cortei e voltei aonde ele estava. O corpo e o rosto do David seguiam aí, inertes! Pestanejou, abriu e fechou a mão esquerda.

-Mamãe... -murmurou-. Lhe avise a mamãe. lhe diga que Raglan a necessita... Mamãe.

-Já vem. Tem que esperá-la! -Brandamente lhe fiz girar a cabeça a um lado. Mas, na verdade, o que importava? Que saísse dali se podia! Esse corpo não ia se curar! Esse corpo nunca mais seria apto para albergar ao David! '

E onde diabos estava David?

O sangue se esparramava por toda a colcha. Mordi-me a boneca. Deixei cair as gotitas nas mordidas de seu pescoço. Talvez vinha bem lhe pôr além outras gotitas nos lábios. Mas o que podia fazer pelo cérebro! meu deus, por que o fiz...

-Idiota! -murmurou-. Mamãe.

Sua mão esquerda começou a agitar-se de lado a lado sobre a cama. Logo vi que todo o braço se sacudia e, mais ainda, que também o flanco esquerdo da boca ia a um lado uma e outra vez. Os olhos olhavam para cima com fixidez, e as pupilas deixaram de mover-se. Seguiu lhe saindo sangre do nariz, lhe entrando na boca, lhe sujando os brancos dentes.

-OH, David, não quis te fazer isto. meu deus, vai se morrer!

Acredito que ele articulou uma vez mais a palavra "mamãe". Mas já se ouviam as sereias pelo bulevar Ocean. Alguém golpeava a porta. Coloquei a um flanco quando a abriram, de modo que pude fugir sem que me vissem. Outros mortais subían pressurosos pela escada. Quando passei ao lado deles, não viram mais que uma sombra fugaz. Detive-me um instante no hall e, aturdido, olhei aos empregados que corriam em qualquer parte. O espantoso ulular da sereia se ouvia cada vez mais forte. Girei sobre meus talões e saí à rua aos tombos.

-meu deus, David, o que tenho feito?

Uma buzina de automóvel me sobressaltou; logo outra me tirou de meu estupor. Estava parado no meio do tráfico. Retrocedi e me afastei em direção à areia.

De repente se deteve frente ao hotel uma ambulância de grandes dimensione. Um moço robusto desceu do assento dianteiro e ingressou no hall, enquanto o outro ia abrir as portas de atrás. Alguém gritou algo no interior do edifício. Vi uma silhueta acima, na janela de minha habitação.

Afastei-me mais ainda. As pernas me tremiam como se eu fora mortal; com as mãos me aferrava bobamente a cabeça, enquanto contemplava a tremenda cena através dos óculos defumados, enquanto via congregá-la inevitável multidão, enquanto muitos se levantavam das mesas de restaurantes próximos para dirigir-se à entrada do hotel.

Já não podia ver nada de maneira normal, mas de todos os modos reconstruí o espetáculo tirando imagens das mentes humanas: a maca que cruzava pelo hall tendo pacote o corpo inerte do David, os ajudantes apartando aos curiosos.

fecharam-se as portas da ambulância e a sereia reiniciou seu ameaçador ulular. E partiu a toda velocidade, levando o corpo dê David quem sabe aonde.

Tinha que fazer algo, mas, o que? Entrar no hospital e realizar a mudança com esse corpo! O que outra coisa o pode salvar? E depois ter ao James dentro dele? Onde está David? meu deus, me ajude. Mas, por que teria que fazê-lo?

Por último, entrei em ação. Corri velozmente pela rua aproveitando que os mortais quase não podiam lombriga, encontrei uma cabine Telefónica de vidro, meti-me nela e fechei a porta.

Indiquei a quão operadora queria falar com Londres, ao número da Talamasca, a cobrar. por que demorava tanto? Impaciente, golpeei o vidro com o punho, sem tirar o auricular da orelha. Por fim, uma das gentis vozes da Talamasca aceitou o chamado.

-me escute -disse, soletrando primeiro meu nome completo-. Isto possivelmente lhe resulte estranho, mas é muito importante. O corpo do David Talbot acaba de ser levado de urgência a um hospital da cidade de Miami. Nem sequer sei a qual! Mas sei que esse corpo está muito ferido gravemente e pode morrer. Peço-lhe que compreenda que David não se acha dentro desse corpo... Escuta-me? Está em outra parte...

Deixei de falar.

Uma silhueta escura tinha aparecido frente a mim, do outro lado do vidro. Meus olhos a olharam sem interesse, dispostos a ignorá-la -depois de tudo, o que me importava que um mortal pretendesse me apurar para cortar?-, mas então vi que et que estava aí era meu ex-corpo humano, jovem e moreno, o mesmo no qual tinha habitado o tempo suficiente para conhecê-lo muito bem. Estava contemplando a mesma cara que apenas dois dias antes tinha visto o me olhar no espelho! Só que agora era uns cinco centímetros mais alto que eu. Estava contemplando esses olhos tão conhecidos.

O corpo vestia o mesmo traje que lhe tinha posto eu a última vez. É mais, inclusive a mesma remadora branca. E uma dessas mãos se levantou em um gesto, sereno como a expressão do rosto, para me dar a ordem inconfundível de que cortasse.

Deixei o tubo em seu suporte.

Com um fluido movimento, o corpo deu a volta até o fronte da cabine e abriu a porta. A mão esquerda aferrou meu braço e, com minha total colaboração, tirou-me a calçada, ao vento suave.

-David -disse-, sabe o que tenho feito?

-Acredito que sim -repôs, arqueando as sobrancelhas. Da boca jovem saía o conhecido acento britânico. -Vi a ambulância no hotel.

-Foi um engano, David! Um engano horrível, espantoso!

-Vamos, vamos daqui. -Essa sim, era a voz que eu recordava, tranqüilizadora em extremo, gentil, convincente.

-Mas, David, não entende. Seu corpo...

-Vêem, já me contará tudo.

-está morrendo, David.

-Então não é muito o que podemos fazer.

E ante meu total assombro, rodeou-me com seu braço, inclinou-se para mim com seu sabido estilo peremptório, e me urgiu para que fora com ele até a esquina a procurar um táxi.

-Não sei em que hospital -confessei. Seguia tremendo como uma folha. Não podia aquietar minhas mãos. E o fato de que me olhasse com tanto aprumo me comoveu sobremaneira, sobre tudo quando desse rosto bronzeado partiu a mesma voz de sempre.

-Não vamos ao hospital -disse, como se tentasse acalmar a um menino histérico. Fez-lhe um gesto a um táxi. -Vamos, sube.

sentou-se a meu lado e deu ao chofer a direção do hotel Grand Bay, do Coconut Grove.

Achava-me ainda em um estado de shock como o que sofrem os mortais, quando entramos em amplo hall de pisos de mármore. Em meio de uma espécie de bruma reparei no mobiliário suntuoso, nos imensos vasos com flores, nos turistas de traje elegante que circulavam por ali. Com toda paciência, o homem alto de pele moréia que antes tinha albergado a meu antigo eu conduziu ao elevador, e juntos subimos em silencio até o piso alto.

Não podia apartar meus olhos dele, mas o coração seguia me pulsando com força devido ao acontecido um momento antes. Se até sentia ainda na boca o gosto ao sangue do corpo ferido!

Entramos em uma suíte ampla, decorada em tons apagados, com amplos ventanales do piso ao teto que davam de noite, às iluminadas torres da apacible Biscayne Bay.

-Não entende o que estive tratando de te dizer -sustentei, contente por fim de estar a sós com ele. Olhei-o se localizar-se frente a mim, ante a mesita redonda de madeira. -Machuquei-o muito, David. Presa de fúria, feri-o. O... esmaguei contra a parede.

-Sempre o mesmo temperamento, né, Lestat? -disse, mas com a voz que alguém usa para tranqüilizar a um menino superexcitado.

Um sorriso carinhoso acendeu o rosto de finas linhas, belamente cinzelado, e a boca larga, serena: o inconfundível sorriso do David.

Não pude reagir. Lentamente baixei os olhos, separei-os de sua cara radiante para posá-los em seus ombros robustos que nesse momento se apoiavam contra o respaldo da cadeira, em toda sua figura distendida.

-Fez-me acreditar que foi você! -clamei, tratando de voltar a me concentrar-. Fez-se passar por ti. E eu lhe contei todas minhas desventuras. Emprestou-me atenção, atirou-me da língua. Depois pediu o Dom Misterioso. Disse que tinha trocado de opinião. Até me enrolou para que subiera às habitações e o desse! Foi horripilante, David! Era o que sempre quis e, entretanto, havia algo estranho! Um pouco de sinistro que ele tinha. Houve certos indícios, sim, mas não os vi. Que parvo fui.

-Gênio e figura -disse o aplomado jovem que tinha diante. tirou-se o saco, jogou-o sobre uma poltrona próxima, voltou a sentar-se e cruzou os braços sobre o peito. O tecido da remadora destacava seus músculos, e o fato de que fora branca fazia ressaltar a cor intensa de sua pele, de um marrom quase dourado.

-Sim, já sei -adicionou, com fluido acento britânico-. É muito chocante. Eu vivi a mesma experiência faz uns dias em Nova Orleáns, quando o único amigo que tenho no mundo me apresentou dentro deste corpo! Compreendo-te perfeitamente. E também entendo, não me precisa repetir isso que meu antigo corpo está por morrer. O que passa é que não sei o que podemos fazer nenhum dos dois.

-Bom, o que não pode fazer de maneira nenhuma é te aproximar, porque James poderia advertir sua presença e realizar um esforço de concentração para sair deste corpo.

-Parece-te que ainda está dentro? -perguntou, voltando a arquear as sobrancelhas como fazia sempre David ao falar, inclinando apenas a cabeça para frente e com um indício de sorriso nos lábios.

David atrás dessa cara! O timbre de sua voz era quase exatamente o mesmo.

-Ah... o que..., ah, sim, James. Sim, James está no corpo! David, o golpe o atirei na cabeça! Recorda aquela vez que falamos e me disse que se queria matá-lo tinha que lhe dar um golpe rápido na cabeça? Ficou gaguejando... disse algo sobre a mãe. Pediu por ela. Não fazia mais que repetir: "lhe digam que Raglan a necessita." Quando saí da habitação seguia dentro desse corpo.

-Entendo. Isso significa que o cérebro lhe funciona, mas está muito deteriorado.

-Exato! Não vê? Pensou que eu não o ia agredir porque o corpo onde mora é o teu. refugiou-se ali! Ah, mas calculou mau! Muito mal! E querer me seduzir para que executasse o Truque Misterioso! Que vaidade! Teria que haver-se dado conta. Teria que me haver confessado seu ardil apenas me viu. Maldito seja. David, se não matei seu corpo, seguro que lhe produzi danos irreparáveis.

ficou-se abstraído, tal como estava acostumado a fazê-lo em meio de uma conversação; seus olhos, muito abertos, olhavam à distância pelos ventanales.

-Tenho que ir ao hospital, não te parece? -perguntou em um sussurro.

-Por Deus, não. Arriscará-te a que volte a te colocar dentro do outro corpo justo quando está por morrer? Suponho que não o diz a sério.

ficou de pé com movimento ágil e se aproximou da janela. Ali se parou a contemplar a noite, e vi a inconfundível expressão reflexiva do David no novo rosto.

Que milagre total era ver esse ser com todo seu tino e sabedoria brilhando dentro do físico jovem. Ver seu apacible inteligência depois dos olhos juvenis que me voltavam a olhar.

-Está-me esperando a morte, verdade? -perguntou com voz fica.

-Que espere. Foi um acidente, David. Não é uma morte inevitável. É obvio, existe outra possibilidade, e ambos sabemos qual é.

-Qual?

-Que vamos juntos. Procuramos a forma de entrar na habitação, por exemplo enfeitiçando a várias pessoas de filas diversos do ambiente médico. Você o obriga a sair do corpo e te coloca dentro, e logo eu te dou o sangue. Não há ferida nem dano imaginável que não se possa sanar com uma infusão total de sangue.

-Não, amigo. Já deveria saber que não deve nem sugeri-lo. Não o posso fazer.

-Sabia que foste responder isso. Então não te aproxime do hospital. Não faça nada que possa fazê-lo sair de seu embotamento!

Ficamos calados, nos olhando. Rapidamente me estava indo o medo. por agora já não tremia, e de repente me dava conta de que ele nunca tinha sentido temor.

Não o sentia tampouco nesse momento. Nem sequer o notava triste. Olhava-me como me pedindo sem palavras que compreendesse. Ou ao melhor não pensava em mim absolutamente.

Tinha setenta e quatro anos! E tinha passado de um corpo cheio de achaques senis a esse outro físico jovem, belo, resistam.

Em realidade, eu podia não ter nem idéia do que estava sentindo! Para estar aí dentro, eu tinha tido que entregar o corpo de um deus. Ele, em troca, entregou o corpo de um velho a um passo da morte, vale dizer o de um homem para quem a juventude era uma coleção de lembranças dolorosas, um homem tão comovido por essas lembranças que sua paz de espírito se deteriorava rapidamente, ameaçando deixando-o amargurado nos poucos anos que ficavam.

E tinha recuperado a juventude! Poderia viver outra vida inteira! Além disso, esse corpo lhe agradava, parecia-lhe belo, até magnífico. Um corpo que tinha despertado nele desejos carnais.

E eu tinha estado chorando por um corpo ancião, tudo golpeado, que perdia sua vida gota a gota em uma cama de hospital.

-Sim -disse-. Penso que essa é exatamente a situação. E entretanto acredito que eu deveria ir a esse corpo! Sei que é o templo indicado para esta alma. Sei que cada minuto de demora significa um risco inimaginável... que o corpo mora, que deva ficar dentro de este. Mas fui eu o que te trouxe aqui. E aqui é onde penso permanecer.

Estremeci-me tudo, e tive que piscar para despertar de um sonho. Por último deixei escapar uma risada e o convidei:

-Sente-se, te sirva um desses asquerosos whiskies e me conte como ocorreu tudo.

Ainda não tinha ânimo para rir. Parecia desconcertado, ou simplesmente em um grande estado de apatia ao tempo que me olhava e analisava o problema do interior desse físico maravilhoso.

Permaneceu um instante mais ante o ventanal, percorrendo com o olhar os altos edifícios, tão brancos, de aspecto tão limpo com suas centenas de balconcitos, e logo a água que se estendia até o céu.

dirigiu-se ao bar, que estava em um rincão, sem um sotaque de estupidez no andar; tomou a garrafa de uísque um copo, e os trouxe para a mesa. serve-se uma medida dobro da beberagem, bebeu a metade, fez a simpática careta de sempre mas com essa cútis nova, de pele fresca, tal como antes o fazia com o outro, e por último voltou a posar em mim seus olhos irresistíveis.

-É verdade: fez-o, tal como diz, para procurar refúgio -começou-. Eu teria que havê-lo imaginado! Mas não me ocorreu, maldito seja. Dedicamo-nos por inteiro ao problema da transmutação e nunca pensei que fora a te seduzir para que executasse o Truque Misterioso. Como pôde acreditar que podia te enganar uma vez que começasse a fluir o sangue?

Fiz um gesto de desalento.

-me conte tudo -pedi-lhe-. Obrigou-te a sair de seu corpo?

-Totalmente. E ao princípio não captei o que tinha passado! Não imagina o poder que tem! É obvio, está desesperado, como estamos todos! Tratei de recuperar meu corpo mas me repeliu, e logo começou a te disparar a ti com o revólver!

-A mim? A mim não poderia me haver feito mal, David!

-Mas isso eu não sabia com certeza. E se te tivesse encravado uma bala no olho? Pensei na possibilidade de que um disparo fizesse impacto em seu corpo, coisa que lhe permitiria voltar a meter-se dentro! Além disso, não sou um perito em viagens imateriais; por certo, não estou à mesma altura que ele. Achava-me totalmente dominado pelo pânico. Depois foi, eu seguia sem poder recuperar meu corpo, e para encho ele apontou com sua arma ao outro, que estava tendido no piso.

"Eu nem sabia se podia tomar posse desse corpo; jamais o tinha feito. Nem sequer quis tentar fazê-lo quando você me propôs isso. A idéia de dar procuração de outro corpo me resulta moralmente repulsiva, tanto como lhe tirar a vida a alguém. Mas ele estava a ponto de lhe voar a tampa dos miolos a esse corpo... se é que conseguia dominar a arma. E onde ficava eu? O que me ia passar? Esse corpo era minha última possibilidade de reingresar no mundo físico.

"Entrei nele tal como te tinha feito praticar a ti. E em seguida consegui me pôr de pé, de um golpe o mandei ao piso e quase o Quito a arma. A essa altura o corredor de fora estava cheio de atemorizados viajantes e membros do pessoal. Disparou outra bala quando eu já fugia pela terraço e me lançava à coberta inferior.

"Acredito que não tomei consciência do acontecido até que me choquei com a madeira do piso. Se tivesse seguido dentro de meu velho corpo, a queda me teria feito quebrar o tornozelo, possivelmente até a perna. Aprontei-me para sentir uma dor intolerável, mas me dava conta de que não me tinha feito nada. Levantei-me quase sem esforço, percorri todo o comprido da coberta e entrei no Bar da Rainha.

"É obvio, não devi ter ido ali. Os funcionários de segurança passavam justo nesse momento rumo à escada da Coberta Insigne. Não tive dúvidas de que o foram capturar. E ele atuou com tanta estupidez com esse revólver, Lestat. É como você disse: não sabe mover-se dentro dos corpos que rouba. Segue sendo sempre o mesmo!

Fez silêncio, bebeu outro uísque e voltou a encher o copo. Eu o olhava como enfeitiçado, escutando essa voz, vendo esses maneiras peremptórios unidos a uma cara inocente. De fato, esse físico jovem acabava de terminar a última etapa da adolescência, mas antes nunca tinha reparado nisso. Era, em todo sentido, algo recém terminado, como a moeda recém gravada, sem o mais mínimo rasponcito pelo uso.

-Neste corpo não te embebeda tanto, não?

-É verdade -respondeu-. Nada é o mesmo. Nada. Mas me deixe seguir. Eu não queria te deixar no navio. Punha-me louco pensar em sua segurança. Mas não ficou mais remédio.

-Já te disse que por mim não se preocupasse. meu deus, quase as mesmas palavras que disse a ele... quando pensava que foi você. Bom, prossegue. O que passou depois?

-Voltei para hall que há atrás do Bar da Rainha, de onde podia ver o interior pela ventanita. Supus que teriam que trazê-lo por esse caminho; além disso, não conhecia outro. E tinha que saber se o tinham detido. me compreenda, eu ainda não tinha decidido o que fazer. Aos poucos segundos apareceu um contingente completo de oficiais, comigo -David Talbot- no meio, e rapidamente o levaram -a meu antigo eu- para a parte dianteira do casco de navio. OH, o que foi vê-lo lutar para conservar a dignidade, como lhes falava animadamente, quase com alegria, como se fora um cavalheiro de grande fortuna e influência surpreso em algum asuntito sórdido.

-Imagino.

-Mas o que é o que pretende, dizia-me para meus adentros. Não me dava conta, é obvio, de que ele pensava no futuro, em como refugiar-se de ti. Logo me ocorreu que os ia enviar detrás de minha pista. E que me jogaria toda a culpa do incidente, é obvio.

"No ato revisei meus bolsos e encontrei o passaporte em nome do Sheridan Blackwood, o dinheiro que tinha posto você para ajudá-lo a fugir do navio e a chave de seu camarote. Pensei o que me convinha fazer. Se ia ao camarote, iriam ali para me buscar. Ele não sabia o nome que figurava no passaporte, mas os garçons tirariam conclusões, sem dúvida.

"Seguia indeciso quando de repente ouvi que mencionavam seu nome pelos alto-falantes. Uma voz pedia que o senhor Raglan James se apresentasse imediatamente ante qualquer oficial da bordo. Isso queria dizer que me tinha comprometido, acreditando que eu tinha o passaporte que te tinha dado a ti. E não ia passar muito até que relacionassem o nome do Sheridan Blackwood com o assunto. Provavelmente James já estivesse lhes dando uma descrição minha física.

"Não me atrevi a baixar à Coberta Cinco para constatar se tinha conseguido chegar são e salvo a seu esconderijo, já que corria o risco de conduzi-los a eles até aí. Podia fazer uma só coisa: me esconder em alguma parte até que soubesse com certeza que ele já não estava no casco de navio.

"O lógico era que o detiveram em Barbados pelo assunto da arma. Além disso, provavelmente não soubesse que nome figurava em seu passaporte, e as autoridades o controlariam antes de que ele pudesse retirá-lo.

"Baixei à Coberta Lido, onde a maioria dos passageiros estava tomando o café da manhã, bebi uma taça de café, fiquei em um rincão, e aos poucos minutos compreendi que isso não ia funcionar. Apareceram dois oficiais em atitude de estar procurando a alguém, e por pouco me descobrem. Pu-me a falar com duas mulheres muito amáveis que tinha ao lado, e mais ou menos consegui me dissimular no grupito.

"Aos poucos segundos de haver partido, passaram outro anúncio pelos falantes. Essa vez já disseram corretamente o nome. Que o senhor Sheridan Blackwood por favor se apresentasse imediatamente ante qualquer oficial. Então tomei consciência de outra coisa terrível: achava-me dentro do corpo do mecânico londrino que tinha assassinado a toda sua família e fugido de um psiquiátrico. As impressões digitais desse corpo estariam sem dúvida arquivadas. James era capaz de fazer saber isso às autoridades. E justo estávamos por atracar em Barbados britânica! Se me detinham, nem a Talamasca ia poder fazer que liberassem a este corpo. Por muito que temesse te deixar sozinho, tinha que tratar de desembarcar.

-Você sabia que eu não ia ter problemas... Mas, como foi que não lhe detiveram na engomada?

-OH, quase me detêm, mas foi por pura confusão. O porto do Bridgetown é bastante grande e tínhamos atracado como corresponde, contra o mole, ou seja que não houve necessidade de usar a lanchita. E como os funcionários da alfândega demoraram muito em autorizar o desembarque, havia centenas de pessoas aguardando nos corredores da coberta inferior para baixar a terra.

"Os funcionários controlavam os cartões de embarque o melhor que podiam, mas eu me mesclei de novo com um grupo de senhoras inglesas, comecei a falar em voz muito alta sobre os lugares de interesse que há em Barbados e seu clima maravilhoso, e assim consegui passar.

"Baixei diretamente ao mole de cimento e dali ao edifício de alfândegas. Logo comecei a sentir medo de que ali me revisassem o passaporte e não me permitissem seguir.

"Além, não esqueça que não fazia nenhuma hora que eu estava dentro deste corpo! Cada passo que dava me era estranho. A cada instante via as mãos e me assustava... Quem sou?, perguntava-me. Espiava as caras da gente e era como estar olhando por dois agujeritos de uma parede cega. Não podia imaginar o que eles viam!

-Não sabe como te compreendo.

-Ah, mas a força, Lestat... Isso não pode sabê-lo. Foi como se tivesse ingerido um muito poderoso estimulante. E estes olhos jovens, OH, que longe vêem, com que claridade.

Assenti.

-Bom, para te ser justifico, nesse momento já não raciocinava bem. O edifício de alfândegas estava repleto. Havia vários cruzeiros ancorados. O Wind Song, o Rotterdam e acredito que também o Royal Viking Sun, que amarrou justo frente ao Queen Elizabeth II. O certo é que havia turistas por toda parte, e logo caí na conta de que lhes revisavam os passaportes só a quem retornava aos navios.

"Entrei em uma dessas boutiques... já sabe como são... cheias de mercadorias horríveis, e me comprei um par de óculos para sol espejados, como os que usava você quando tinha a pele tão clara, e uma camiseta espantosa, com o desenho de um louro.

"Tirei-me a remadora e o saco, pu-me a camiseta espantosa, os óculos, e me localizei em um lugar de onde podia ver todo o comprido do mole através das portas abertas. Não sabia o que outra coisa fazer. Aterrava-me que pudessem começar a revisar os camarotes! O que foram fazer quando não pudessem abrir a puertita da Coberta Cinco? Ou se chegavam a encontrar seu corpo no baú? Mas, por outra parte, como foram poder efetuar esse registro? E o que podia impulsioná-los a fazê-lo, posto que já tinham ao homem com a arma?

Fez uma nova pausa para beber outro sorvo de uísque. Em sua aflição, ao fazer o relato parecia inocente, de uma maneira que nunca poderia havê-lo obtido com seu antigo físico.

-Estava louco, absolutamente louco. Tratei de usar meus velhos poderes telepáticos, e me levou um tempo descobri-los. Além disso, isso tinha mais relação com o corpo do que tivesse pensado.

-Não me surpreende.

-Quão único pude recolher foram diversas imagens e pensamentos de quão passageiros tinha mais perto. Não me serve de nada. Mas por sorte meus padecimentos terminaram de improviso.

"Fizeram desembarcar ao James. Acompanhava-o o mesmo contingente de oficiais que o tinha rodeado. Devem havê-lo considerado o criminoso mais perigoso do mundo ocidental. E se tinha ficado com minha bagagem. Ostentava uma magnífica imagem de decoro britânico, de dignidade, conversando com uma alegre sonrisada, embora era óbvio que os oficiais desconfiavam enormemente e se sentiram muito incômodos quando tiveram que acompanhá-lo ao escritório de migrações e apresentar seu passaporte.

"Dava-me conta de que o obrigavam a abandonar o casco de navio para sempre. Inclusive lhe revisaram a bagagem antes de deixar passar a todo o grupo.

"E todo esse tempo me mantive pego à parede do edifício. Com o saco e a camiseta no braço, parecia um vagabundo que olhava com esses óculos espantosos meu nobre corpo velho. Que intenções terá?, pensei. Para que quer esse corpo? Repito-te: não compreendia ainda quão ardilosa tinha sido sua decisão.

"Saí depois do pequeno batalhão. Fora esperava um patrulheiro, onde puseram toda a bagagem enquanto ele seguia conversando e estreitando a mão aos oficiais, agora que não o teriam que acompanhar.

"Aproximei-me o suficiente e pude lhe escutar profusão de agradecimentos e desculpas, atrozes eufemismos, frases vazias e comentários entusiastas sobre o muito que tinha desfrutado de da breve viagem. Parecia gozar o inexprimível com toda essa birutice.

-Sim -convim, com ar lúgubre-. Não cabe dúvida de que é ele.

-Depois houve um momento muito estranho. Quando lhe sustentavam a porta do automóvel para que subiera, voltou-se e me olhou fixo como se soubesse que eu tinha estado aí todo o tempo. Mas o dissimulou com muita inteligência passeando o olhar pela multidão que entrava e saía pelos enormes portões, olhou-me de novo muito fugazmente e sorriu.

"Só quando o veículo partiu, dava-me conta do que tinha passado. levou-se meu velho corpo com toda premeditação, me deixando com este outro, de vinte e seis anos.

Levantou seu copo uma vez mais, bebeu um sorvo e me observou.

-Pode que tivesse sido impossível realizar a transformação nesse momento -prosseguiu-. Sinceramente, não sei. Mas o certo é que ele queria esse corpo e que eu fiquei aí, frente ao edifício de alfândegas, e que havia tornado a ser um homem jovem!

Tinha o olhar cravado no copo embora era evidente que não o via; logo voltou a posá-la sobre mim.

-cumpriu-se o do "Fausto", Lestat. Tinha comprado juventude, mas o estranho era que... não tinha vendido minha alma!

Guardou silêncio, meneou um tanto a cabeça, deu a impressão de que estava por retomar o relato. Por último, disse:

-Perdoa-me que te tenha abandonado? Não tinha forma de voltar para navio. E certamente, James ia caminho ao cárcere, ou ao menos isso acreditava eu.

-Claro que te perdôo. David, ambos sabíamos que isto podia acontecer. Calculamos que lhe foram prender, e isso fizeram com ele! Não tem a menor importância. Ao final o que fez? Aonde foi?

-Ao Bridgetown. Em realidade não foi nem sequer uma decisão. Me aproximou um taxista negro muito simpático, pensando que eu era passageiro do navio, e efetivamente o era. Ofereceu-me me fazer bom preço para dar um passeio pela cidade. Tinha vivido muitos anos na Inglaterra. Tinha uma voz agradável. Acredito que nem lhe respondi. Limitei-me a afirmar com a cabeça e subí ao autito. Percorremos a ilha durante horas. Deve me haver considerado um tipo muito estranho.

"Lembrança que atravessamos umas muito belos plantações de cano de açúcar. Ele me contou que o caminito se construiu para carros e cavalos. Eu pensava que provavelmente esses campos tinham o mesmo aspecto que faz duzentos anos. Lestat me poderá dizer isso; ele deve sabê-lo, pensava. Depois me olhava as mãos, movia um pé, flexionava os braços, fazia qualquer movimento e sentia a força, o vigor deste corpo! Então começava de novo a me maravilhar e não emprestava atenção à voz do homem nem aos lugares que íamos passando.

"Por último, chegamos a um jardim botânico. O afável condutor estacionou e me convidou a conhecê-lo. A mim, que mais me dava? Comprei a entrada com o dinheiro que com tanta gentileza tinha deixado nos bolsos para o Ladrão de Corpos, entrei e me encontrei com um dos lugares mais formosos do mundo.

"Aquilo era um sonho, Lestat. Tenho que te levar a esse lugar, tem que vê-lo... você, que tanto desfruta das ilhas. Em realidade, não podia pensar em outra coisa que em ti!

"E devo te explicar algo. Desde a primeira vez que nos vimos, jamais olhei aos olhos nem ouvi sua voz, jamais pensei sequer em ti sem sentir pena. É a pena que se relaciona com a mortalidade, com o fato de tomar consciência da idade que alguém tem, dos próprios limites, de tudo o que não voltaremos a ser nunca mais. Entende-me?

-Sim. Quando percorria o jardim botânico pensava em mim. E não sentiu a pena.

-Assim é. Não a senti.

Esperei. David bebeu com avidez outro sorvo de uísque; logo afastou o copo. Seu corpo alto, fornido, refletia sua elegância de espírito, movia-se com gestos moderados, e uma vez mais pude ouvir o tom plano, moderado, de sua voz.

-Temos que ir aí -disse-, nos parar nessa colina sobre o mar. Recorda o som dos ramos dos coqueiros na Grenada, essa espécie de rangido que produziam ao balançar-se no vento? Jamais ouviste uma música como a que se ouça naquele jardim de Barbados. E as flores... que flores amalucadas, impetuosas. É seu Jardim Selvagem, mas ao mesmo tempo tão apacible, tão pouco perigoso! Vi a gigantesca palmeira dos mendigos, com seus ramos que se trancam assim que saem do tronco! E a "tenaz de lagosta", uma coisa branda, monstruosa; e as açucenas... ah, tem que as ver. Também deve ser muito belo à luz da lua, belo para seus olhos.

"Por mim, me teria ficado aí para sempre. Mas um contingente de turistas me tirou de meu ensoñación. E sabe uma coisa? Eram de nosso navio. Passageiros do Queen Elizabeth. -Soltou uma risada alegre. Todo seu corpo se estremeceu com seus risadas. -Então me parti imediatamente.

"Saí, encontrei a meu chofer e lhe pedi que me levasse a costa oeste da ilha, passando a zona dos hotéis suntuosos. Muitos ingleses de férias. Luxo, solidão... quadras de esportes de golfe. Mas depois encontrei um sítio... um hotel que dá ao mar e é exatamente o que sempre desejo quando quero me afastar de Londres, cruzar o mundo e chegar a algum lugar quente, encantador.

. "Pedi-lhe que subiéramos por esse caminito para ir olhar. tratava-se de uma construção irregular revestida em gesso, de cor rosada, com um precioso comilão coberto de palha e aberto à frente, sobre a praia branca. Enquanto passeava por ali refleti sobre tudo o ocorrido, ou ao menos o tentei, e resolvi ficar no momento nesse hotel.

"Paguei-lhe ao taxista, despedi-o e me alojei em uma pequena habitação que dá ao mar. Para chegar a ela tive que atravessar jardins e entrar em uma construção cujas portas davam a um alpendre coberto. De ali, um senderito baixava diretamente à praia. Não havia nada entre mim e o Caribe azul mais que coqueiros e algumas matas de hibiscos, cobertas de muito formosos pimpolhos vermelhos.

"Lestat, comecei a me perguntar se não me teria morrido, se todo aquilo não seria mais que a miragem que alguém vê quando está por cair o pano de fundo!

Indiquei-lhe com um gesto que compreendia.

-Atirei-me na cama e, sabe o que passou? Fiquei dormido. Deitei-me com este corpo e dormi.

-Não sente saudades -repus com uma sonrisada.

-Bom, a mim, sinceramente, sim. Mas como você adoraria essa habitação! Quando despertei no meio da tarde, o primeiro que vi foi o mar.

"Logo veio o shock de comprovar que seguia dentro deste corpo! Descobri que no fundo sempre pensava que James me ia encontrar e obrigar a sair dele, que ia terminar vagabundeando, invisível, incapaz de encontrar um físico onde me alojar. Estava seguro de que ia ser mais ou menos assim. Até me ocorreu que ficaria solto, desprendido de mim mesmo.

"Entretanto, aí estava eu, e eram mais das três segundo este horrível teu relógio. Chamei no ato a Londres. É obvio, quando horas antes James lhes tinha falado fazendo-se passar por mim, acreditaram-lhe, e só ao escutar atentamente o relato que eles me fizeram pude atar cabos e saber o que tinha passado: que nossos advogados se dirigiram imediatamente à sede central da linha naval Cunard e aplainaram o caminho ao James, e que ele nesses momentos se achava viajando rumo aos Estados Unidos. Em realidade, os da Casa Matriz pensaram que eu falava do hotel Park Central, de Miami Beach, para lhes avisar que tinha chegado bem e recebido os recursos por eles girados.

-Teríamos que ter previsto que ele ia pensar nisso.

-Sim, claro, e que soma! Além disso, a enviaram no ato porque David Talbot segue sendo o Superior General. Bom, eu escutei pacientemente e logo pedi falar com meu secretário, um homem de soma confiança, e lhe contei mais ou menos o que estava ocorrendo: que um homem de meu mesmo aspecto e capaz de imitar minha voz me estava personificando. Esse monstro era Raglan James, e se por acaso voltava a chamar, não deviam lhe dizer que já estavam a par da verdade mas sim mas bem fingir que faziam tudo o que ele lhes indicava.

"Não acredito que exista no mundo inteiro outra organização onde se aceitasse semelhante historia, nem sequer vindo do Superior General. Devo dizer que, embora me custou bastante convencê-los, foi muito mais singelo do que poderia supor-se. Havia muitos detalhes mínimos que só conhecíamos meu secretário e eu, ou seja que a identificação não foi problema. Não lhe disse, certamente, que estou muito bem resguardado dentro do corpo de um homem de vinte e seis anos.

"O que sim lhe disse foi que necessitava imediatamente um passaporte novo. Não ia fazer a prova de sair de Barbados com o nome do Sheridan Blackwood estampado sobre minha foto. Meu secretário devia comunicar-se com nosso velho amigo Jake, do México, e este me faria saber o nome de alguém que pudesse me realizar o trabajito no Bridgetown essa mesma tarde. Também me fazia falta um pouco de dinheiro.

"Estava a ponto de cortar quando meu assistente me contou que o impostor tinha deixado uma mensagem para o Lestat do Lioncourt: que devia reunir-se quanto antes com ele no Park Central de Miami. O impostor havia dito que Lestat do Lioncourt ia chamar para perguntar pela mensagem, que o dessem sem falta.

Novamente se interrompeu, mas esta vez com um suspiro.

-Sei que eu teria que ter viajado a Miami; que teria que te haver advertido que o Ladrão de Corpos estava aí, mas me ocorreu quando recebi essa informação. Eu sabia que, se me punha em movimento sem demora, podia chegar ao Park Central e me enfrentar com ele possivelmente antes que você.

-Mas não quis fazê-lo.

-Não, não quis.

-É perfeitamente compreensível, David.

-Parece-te? -Estudou-me com o olhar.

-A um pequeno demônio como eu o pergunta?

Esboçou um pálido sorriso, voltou a sacudir a cabeça e prosseguiu.

-Passei a noite em Barbados, e meio-dia de hoje. O passaporte esteve preparado ontem, de modo que nada me impedia de tomar o último vôo a Miami. Mas não o fiz. Fiquei nesse precioso hotel, jantei aí, passeei pelo Bridgetown. E hoje ao meio dia me parti.

-Já te disse que te compreendo.

-Sim? E se o ser vil te tivesse atacado de novo?

-Impossível! Ambos sabemos. Se tivesse podido fazê-lo pela força, o teria obtido também a primeira vez. Deixa de te atormentar, David. Eu tampouco vim ontem à noite, e isso que pensei que podia me necessitar. Estive com o Gretchen. Bom, deixa de preocupar-se por coisas sem importância. Você sabe o que é o que importa: o que lhe está passando a seu antigo corpo neste preciso momento. Não registraste a idéia, amigo. Atirei-lhe um golpe de morte! Não, vejo que não o capta. Crie que sim, mas segue aturdido. Minhas palavras devem ter constituído um duro golpe.

Partiu-me o coração ver a expressão de dor de seus olhos, e as rugas de preocupação nessa pele nova, tersa. Mas uma vez mais, essa mescla de alma antiga e física jovem me pareceu tão sedutora, que fiquei olhando-o, recordando talvez a maneira em que ele me tinha cuidadoso em Nova Orleáns e quão impaciente isso me tinha posto .

-Tenho que ir a esse hospital, Lestat. Tenho que ver o que aconteceu.

-Eu também vou. Pode me acompanhar. Mas na habitação do hospital entrarei nada mais que eu. Bom, onde está o telefone? Quero chamar o Park Central e averiguar aonde levaram a senhor Talbot! E te repito: é muito provável que me estejam procurando, porque o episódio se produziu em meu quarto. Ao melhor conviria chamar diretamente ao hospital.

-Não! -Tocou-me a mão. -Não chame. É preferível ir. Teríamos que... ver... com nossos próprios olhos. Eu tenho que vê-lo. Tenho... certo pressentimento.

-Eu também. -Mas era algo mais que um pressentimento. depois de tudo, eu tinha visto esse velho de cabelo cinza resistente sacudir-se com silenciosas convulsões sobre a cama manchada de sangue.

 

Tratava-se de um imenso hospital aonde se derivavam todos os casos de emergência, e inclusive a essa hora da noite havia um grande movimento de ambulâncias nas diversas entradas, enquanto médicos de chaquetilla branca trabalhavam afanosamente com vítimas do trânsito guia de ruas, de enfartes, de sangrentas navalhadas ou do sabido revólver.

Mas ao David Talbot o tinham levado longe das luzes resplandecentes e do ruído implacável, ao silencioso âmbito de um piso superior que se chamava, simplesmente, Unidade de Cuidados Intensivos.

-me espere aqui -ordenei ao David, ao tempo que lhe assinalava uma asséptica salita, com lúgubre mobiliário moderno e um punhado de revistas muito gastas-. Não te mova daqui.

Reinava um silêncio total no largo corredor. Encaminhei-me para as portas do fundo.

Apenas um segundo mais tarde retornei. David tinha o olhar perdido, suas largas pernas cruzadas por adiante, os braços uma vez mais pregados sobre o peito.

Olhou-me como se despertasse de um sonho.

Eu comecei de novo a tremer, e a serena quietude de seu rosto só piorou meu medo e meu terrível remorso.

-David Talbot -sussurrei, lutando por usar palavras singelas- morreu faz meia hora.

Não demonstrou reação alguma, como se eu não tivesse aberto a boca. O único que me ocorreu pensar foi: a decisão tomei por ti! Fiz entrar em Ladrão de Corpos em seu mundo embora me advertiu dos perigos. E fui eu o que ultimou ao outro corpo! Só Deus sabe o que vais pensar quando tomar consciência do ocorrido. Ainda não te dá conta.

Lentamente ficou de pé.

-Claro que me dou conta -afirmou com voz pausada. aproximou-se e me apoiou as mãos nos ombros; sua maneira de atuar era tão parecida com a do antigo Talbot, que me dava a impressão de estar olhando a dois seres conjugados em um sozinho. -Pensa em Fausto, meu estimado amigo. Mas você não foi Mefistófeles, a não ser só Lestat, que reagiu com fúria. Além disso, já parece!

afastou-se uns passos, voltou a ficar com o olhar ausente, e no ato seu rosto perdeu todo rastro de angústia. Estava absorto em seus pensamentos, isolado de mim, que seguia tudo tremente procurando me tranqüilizar, tratando de acreditar que isso era o que ele queria.

Depois analisei uma vez mais a questão da perspectiva dela. Como podia David não querer isso? Também cheguei a outra conclusão: que tinha perdido a meu amigo para sempre. Já nunca mais aceitaria estar comigo. Qualquer indício de possibilidade tinha desaparecido, ante esse milagre. Não podia ser de outra maneira. A idéia foi me penetrando calada, profundamente. Voltei a pensar no Gretchen, na expressão de seu rosto. E durante um instante fugaz estive de novo na habitação com o falso David, que me olhava com seus belos olhos marrons e me pedia o Dom Misterioso.

Um leve sofrimento me percorreu; logo, o que começou como um débil resplendor se converteu em um pouco mais intenso e luminoso, como se um fogo atroz consumisse meu corpo.

Não disse nada. Passeei o olhar pelas desagradáveis luz fluorescentes embutidas no teto de azulejos, pelos móveis insossos, manchados e com fiapos soltos, por uma revista alhada que em sua tampa mostrava a um menino sorridente. Olhei-o a ele. Pouco a pouco a dor foi cedendo e se transformou em uma moléstia surda. Aguardei. Nesse momento não teria podido pronunciar nenhuma palavra, por nenhum motivo.

Ao momento de estar refletindo, ele deu a impressão de despertar de um feitiço. A graça felina de seus movimentos voltou a me encantar como do primeiro momento. Afirmou com voz apagada que devia ver o cadáver, porque isso sem dúvida se podia fazer.

Respondi-lhe que sim com a cabeça.

Logo colocou a mão no bolso e tirou um passaporte britânico -o forjado, que certamente tinha conseguido em Barbados- e ficou a olhá-lo como tratando de decifrar um mistério importante. Ato seguido me entregou isso, embora não imaginava para que. Vi esse rosto arrumado e juvenil, que exibia todos os atributos da inteligência. por que me mostrava a foto? Mas no mesmo ato de olhá-la vi, sob a cara nova, o velho nome.

David Talbot.

Tinha usado seu nome verdadeiro no documento falso, como se...

-Sim -explicou-, como se soubesse que jamais vou voltar a ser o David Talbot de antes.

Os restos do senhor Talbot ainda não tinham sido levados ao necrotério porque um íntimo seu amigo de Nova Orleáns, de nomeie Aaron Lightner, estava por chegar de um momento a outro em seu avião particular.

O corpo jazia em um quartinho imaculado. Era um ancião de espessa cabeleira cinza e parecia dormido, com a cabeça apoiada sobre um travesseiro e os braços aos flancos. Já tinha as bochechas um tanto afundadas, o qual lhe alargava a cara; sob a luz amarela do abajur, o nariz parecia um pouco mais afiada do que era, e além dura, como feita não de cartilagem mas sim de osso.

Tinham-lhe tirado o traje de linho; logo o lavaram e vestiram com uma singela túnica de algodão. Sobre ele estenderam a colcha, mas deram volta o bordo do lençol celeste por cima da manta branca e estiraram tudo muito bem sobre o peito. As pálpebras pareciam muito amoldados aos olhos, como se a pele já se estivesse afrouxando, e inclusive consumindo. Para os agudos sentidos de um vampiro, já se percebia a fragrância da morte.

Mas isso David não ia ou seja, como tampouco perceberia esse aroma.

Estava parado junto à cama contemplando o cadáver, seu próprio rosto inerte, com a pele amarelada e a barba enchente, que lhe dava um aspecto desprolijo. Com mão insegura tocou seu próprio cabelo grisalho, acariciou um instante suas ondas. Logo a retirou e ficou cometido, olhando simplesmente, como se estivesse apresentando seus respeitos em um enterro.

-Está morto -murmurou-. Morto de verdade. -Lançou um profundo suspiro e seus olhos percorreram o teto do quartinho, as paredes, a janela com suas cortinas fechadas, o aborrecido linóleo do piso. -Não percebo que haja vida nele nem perto dele -adicionou com o mesmo tom apagado.

-Não, nada -concordei-. Já começou o processo de decomposição.

-Pensei que ele ia estar aqui! -adicionou-. Supus que o ia sentir perto de mim, lutando por voltar a meter-se dentro.

-Talvez está aqui e não pode fazê-lo. Que horripilante, até para ele.

-Não, aqui não há ninguém -insistiu. Logo seguiu olhando seu antigo corpo como se não pudesse lhe tirar os olhos de cima.

Passavam os minutos. Vi um pouco de tensão em seu rosto, sua pele tensa que refletia alguma emoção e logo voltava a distender-se. Já se tinha resignado? Estava fechado a mim como nunca, e nesse novo corpo parecia mais desorientado, embora seu espírito se transparentara com tão fina luz.

Uma vez mais suspirou, retrocedeu um passo e juntos abandonamos a habitação.

No hall pintado de bege nos detivemos sob as luzes fluorescentes. Do outro lado do ventanal, protegido com seu tecido metálico, Miami resplandecia e titilava; um rumor afogado chegava da auto-estrada próxima, e a catarata de faróis acesos acontecia roçando a perigosa distância até onde a rota girava e voltava a elevar-se sobre suas largas patas de concreto.

-Como compreenderá, perdeu Talbot Manor -disse-lhe-, porque pertencia ao homem que morreu.

-Sim, já o pensei -respondeu-me, desanimado-. Sou da classe de ingleses que lhe dá importância a essas coisas. Pensar que irá parar à mãos de um primo, e este quão único vai fazer será pô-la em venda quanto antes!

-Compro-a eu e lhe volto isso a dar.

-Talvez o faça a ordem: em meu testamento os nomeio herdeiros de quase todos meus bens.

-Não esteja tão seguro. Pode ser que nem a Talamasca esteja preparada para isto! Além disso, os humanos revistam transformar-se em feras quando há dinheiro de por meio. Chama a meu agente de Paris. Eu lhe vou deixar instruções para que te dê absolutamente tudo o que deseje. Me vou encarregar de que te restitua até a última libra de sua fortuna, e por certo a casa. Tudo o que eu possa dar, é teu.

Notei-o um pouco assombrado, e profundamente comovido.

Não pude menos que me perguntar se eu tinha chegado a me mover com tanta soltura dentro desse corpo alto e flexível. Meus movimentos por certo tinham sido impulsivos e até um tanto violentos. Em realidade, tinha tomado com bastante indiferença todo esse vigor físico. Ele, pelo contrário, dava a impressão de ter adquirido um grande conhecimento de cada osso e tendão.

Mentalmente recreei a imagem do velho David que caminhava a passo vivo pelas ruas pavimentadas do Amsterdam, esquivando as bicicletas. Já naquele tempo naquele tempo tinha o mesmo garbo.

-Lestat, já não é responsável por mim. Isto não aconteceu porque você o causasse.

Que fundo pesar senti nesse instante. Mas havia palavras que deviam ser pronunciadas.

-David -comecei, tratando de não demonstrar minha amargura, -eu não teria podido vencê-lo se não tivesse sido por ti. Em Nova Orleáns te disse que seria seu escravo para sempre com tal de que me ajudasse a recuperar meu corpo, coisa que fez. -Tremia-me a voz. Mas, por que não dizê-lo tudo? Para que prolongar o sofrimento? -Sei que te perdi para sempre, David. Sei que agora já nunca vais aceitar o Dom Misterioso.

-por que diz que me perdeste, Lestat? -perguntou, com ansiedade na voz-. por que tenho que morrer para te amar? -Apertou os lábios tentando deter um estalo de afeto. -por que esse preço, sobre tudo agora que estou vivo como não o estava antes? meu deus, suponho que compreende a magnitude do que ocorreu! renasci.

Apoiou a mão em meu ombro; seus dedos tentaram apertar esse corpo estranho que logo que sim sentiu o roce, ou mas bem o sentiu de uma maneira muito distinta, que ele nunca ia conhecer.

-Quero-te, meu amigo -murmurou com ardor-. Por favor, não me deixe agora. Esta experiência nos aproximou tanto...

-Não, David. Estes últimos dias nos sentíamos perto porque os dois fomos mortais. Víamos o mesmo sol e o mesmo entardecer, sentíamos a mesma atração da terra sob nossos pés. Bebíamos juntos e compartilhávamos o pão. Pudemos ter feito o amor se o tivesse permitido, mas agora tudo trocou. Você tem sua juventude, sim, e toda a maravilha embriagadora que acompanha ao milagre, mas quando lhe Miro, sigo vendo a morte, David. Vejo alguém que caminha sob o sol e a morte que lhe pisa nos talões. Sei que não posso ser seu companheiro, nem você o meu. Produz-me muito dor.

Agachou a cabeça em silêncio, lutando corajosamente por dominar-se.

-Não me deixe ainda -pediu-. Quem outro neste mundo pode entender?

de repente quis lhe suplicar. Pensa, David: obter a imortalidade dentro desse formoso corpo jovem. Quis lhe mencionar todos os lugares aonde podiam ir juntos, como imortais, e os prodígios que podíamos ver. Quis lhe descrever o templo misterioso que tinha descoberto nas vísceras do bosque tropical, lhe contar o que me tinha parecido percorrer a selva, intrépido, ter uma visão capaz de penetrar até nos rincões mais recônditos... OH, estive a ponto de soltar toda essa corrente de palavras, e não fiz esforços por dissimular nem meus pensamentos nem sentimentos. Sim, claro, tornaste a ser jovem e agora pode sê-lo para sempre. É o melhor veículo que ninguém pudesse ter ideado para sua viagem às trevas; como se tudo isto o tivessem feito os espíritos misteriosos para te preparar! Tem em suas mãos beleza e sabedoria. Nossos deuses realizaram o feitiço. Vêem, vêem comigo agora.

Mas não articulei palavra; não lhe implorei. De pé ali no corredor, permiti-me aspirar o aroma de sangue que emanava dele, esse aroma que despedem todos os mortais mas que em cada um é distinto. Quanto me fez sofrer reparar nessa nova vitalidade, esse calor mais intenso, e o pulsar de seu coração, agora mais lento, mais seguro, que me chegava como se o corpo me estivesse falando de uma maneira em que não podia lhe falar com ele.

Naquele bar de Nova Orleáns, eu tinha aspirado a mesma fragrância de vida que agora despedia este físico, mas não tinha sido o mesmo. Não, absolutamente.

Não me custou nada me fechar a todo isso, e assim o fiz. Encerrei-me na calada solidão do homem comum. Fugi seu olhar. Não queria ouvir mais palavras imperfeitas e de desculpa.

-Verei-te logo -disse-. Sei que me vais necessitar. Precisará a sua única testemunha quando o horror e o mistério já sejam muito. E eu virei, mas me dê tempo. E recorda: chama a meu agente de Paris. Não confie na Talamasca. Suponho que não pensará lhes deixar também esta vida, verdade?

Quando girei para partir, ouvi o ruído longínquo das portas do elevador. Tinha chegado seu amigo, um hombrecito miúdo, grisalho, vestido de traje e colete, tal como estava acostumado a fazê-lo David. O que preocupado o via quando caminhava para nós com passo ágil; logo seus olhos se posaram em mim, e diminuiu o ritmo.

Afastei-me depressa, sem dar importância ao feito de que o homem me reconheceu, soube o que e quem era eu. Tão melhor, pensei, porque então lhe vai acreditar no David quando este comece seu singular relato.

A noite me aguardava, como sempre. E minha sede não podia esperar mais. Detive-me um instante sentindo essa sede, ansiando rugir como besta faminta. Sim, outra vez sangre quando não há outra coisa, quando o mundo em toda sua beleza parece vazio e insensível, quando me sinto completamente perdido. Quero a minha velha amiga a morte, e o sangue que com ela flui. Aqui está Lestat, o vampiro, padecendo sede, e esta noite entre todas as noites, não lhe negará.

Entretanto, quando enfiava para as sujas callecitas laterais em busca das vítimas cruéis que tanto eu gostava, compreendi que tinha perdido minha bela cidade de Miami. Ao menos por um tempinho.

Segui vendo com o olho da mente o quarto do Park Central com suas janelas abertas ao mar, e ao falso David me pedindo o Dom Misterioso. E ao Gretchen. Alguma vez pensaria que nesses momentos não recordava ao Gretchen; recordaria que lhe contei a história do Gretchen ao homem que eu supunha era David antes de que ambos os subiéramos a esse quarto, sentindo que o coração me dava um tombo, pensando: Por fim! Por fim!

Amargurado, zangado, vazio, não quis voltar a ver nunca mais os bonitos hotéis do South Beach.

 

Duas noites depois, retornei a Nova Orleáns. Tinha estado passeando pelos recifes de Ronda, percorrendo pitorescos pueblitos do sul, caminhando horas e horas pelas praias, inclusive afundando meus pés nus na areia branca.

Por fim estava de volta, e os inevitáveis ventos se levaram o tempo frio. O ar voltava a ser quase balsâmico -minha Nova Orleáns-, o céu se via alto e reluzente por sobre as nuvens que corriam velozes.

Imediatamente fui ver meu inquilino e chamei a Molho, que estava dormindo no pátio de atrás porque o departamento lhe era muito caloroso. Não deu amostras de alegria quando me viu, mas me reconheceu para ouvir minha voz. Assim que pronunciei seu nome já foi meu uma vez mais.

Veio para mim, levantou as manazas para as apoiar em meus ombros e me lambeu toda a cara. Esfreguei meu nariz contra ele, beijei-o, afundei minha cara em seu cabelo brilloso. Impressionou-me nele o mesmo que lhe tinha visto aquela primeira noite no Georgetown: sua força e seu bom temperamento.

Existiu alguma vez uma besta de aspecto tão aterrador e ao mesmo tempo tão doce e cheia de afeto? A combinação me parecia maravilhosa. Ajoelhei-me sobre os velhos ladrilhos, brinquei com ele pondo-o patas acima, afundei minha cabeça na pelame de seu peito. Soltou todos esses grunidos que emitem os cães quando o querem a um. E quando um lhes paga com a mesma moeda.

Meu inquilino, a simpática viejita que tinha presenciado tudo da porta da cozinha, chorava por ter que separar-se de Molho, de maneira que no ato fizemos um trato: ela o ia cuidar, e eu ia entrar pelo jardim para buscá-lo cada vez que quisesse. Pareceu-me perfeito, porque não era justo pretender que dormisse comigo em uma cripta; além disso, eu não necessitava semelhante guardião, verdade?, por atrativa que de vez em quando me resultasse a idéia.

Despedi-me da mulher com um beijo rápido e carinhoso, não fora que sentisse a cercania de um demônio, e me afastei em seguida com Molho pelas formosas callecitas do bairro francês. Ria-me para meus adentros pela forma em que os mortais olhavam a Molho e, aterrados, davam um rodeio para esquivá-lo, quando... adivinhem quem era de temer?

A parada seguinte foi no edifício da rua Royale onde Claudia, Louis e eu tínhamos passado juntos cinqüenta esplêndidos e luminosos anos de existência terrena na primeira metade do velho século, um sítio parcialmente em ruínas, como já hei dito.

Tinha que me encontrar ali com um moço jovem, que se tinha feito fama convertendo lôbregas casas em mansões palacianas. Juntos subimos a escada até o ruído departamento.

-Quero que fique como estava faz cem anos -expliquei-lhe. -Mas lhe advirto: que não haja nada norte-americano, inglês nem Vitoriano. Tudo deve ser exclusivamente francês. -Logo fomos percorrendo peça por peça, e ele ia anotando em uma caderneta -embora quase não podia ver na penumbra- o que empapelado queria aí, que tom de verniz naquela porta, que classe de bergére podia pôr neste rincão, que estilo de tapete, Índia ou persa, devia adquirir para tal ou qual piso.

Que fiel era minha memória.

A cada instante o insistia a escrever tudo o que eu ia assinalando.

-Procure um vaso grego; não, uma reprodução não; deve ser assim de alto e ter figuras de bailarinos. -Ah, não era a ode do Keats a que me tinha inspirado para adquiri-lo, faz tanto tempo? Aonde tinha ido parar o vaso? -Essa chaminé daí não é a original. Procure um frente de mármore branco, com esculpido de volutas, arqueado sobre o oco do lar. Ah, e aquelas outras terá que as reparar para que funcionem a carvão.

"Penso me vir a viver assim que você termine, assim apresse-se. Ah, e algo mais: algo que encontre no edifício, tampada pelo gesso, me deverá entregar isso –Não é assim, Claudia? -murmurei. Nada me respondeu. Não se ouviu o som de nada, contudo , de novo se tinha pássaros sonoros cantando a música de Haydn e Mozart.

Que prazer estar baixo esses tetos altos, e que felicidade ia ser quando as ruídas molduras estivessem restauradas. Que livre e tranqüilo me sentia. O passado estava aí, mas ao mesmo tempo não o estava. Já não havia fantasmas sussurrando coisas, se é que alguma vez os houve.

Lentamente descrevi as aranhas que queria. Quando não me saía o término que necessitava, desenhava com palavras ilustrações do que estava ali antes. Queria pôr abajures de azeite aqui e lá, embora, certamente, deveria haver eletricidade em abundância. Dissimularíamos os televisores dentro de formosos móveis para não arruinar o efeito. Ali haveria um armário para minhas fitas de vídeo e discos laser. Os telefones iriam dissimulados também.

-Ah, e um aparelho de fax! Quero ter uma dessas maravilhas! Procure a maneira de escondê-lo. Poderia usar esse quarto como escritório, sempre que ficar elegante. Não deve ficar nada à vista que não seja de bronze lustrado, lã fina, boa madeira ou encaixe de seda. Quero um mural nesse dormitório. Venha que lhe mostro. Vê o empapelado? Esse é o mural mesmo. Traga para um fotógrafo para que registre até a última polegada na placa e depois comece a restauração. Trabalhe a consciência, mas rápido.

Por último, terminamos com o interior escuro e úmido e chegou o momento de falar do jardim traseiro com sua fonte rota, e sobre como restaurar a cozinha. Pedi que houvesse buganvilias e coroas de noiva -como eu gostava dessa planta-, e enormes hibiscos, sim, como os que acabava de ver no Caribe, e campainhas tropicais, é obvio. Bananeros... me ponha também bananeros. OH, os velhos tapiales se estão caindo. Remende-os, escore-os. E no alpendre de acima quero samambaias de todo tipo. Está voltando a fazer calor, não?, assim vão andar bem.

De novo acima, cruzando o comprido oco marrom da casa até o alpendre de adiante.

Abri a porta-janela e saí. A madeira do piso estava podre. O elegante corrimão de ferro não estava tão enferrujada. O teto terei que refazê-lo, sem dúvida, mas logo me poderia sentar ali como fazia nos velhos tempos, a olhar a gente que passava pela calçada de em frente.

Certamente, meus fiéis e ciumentos leitores me encontrariam aí de vez em quando. Os leitores das memórias do Louis, se chegassem a encontrar o departamento onde tínhamos vivido, com segurança reconheceriam a casa.

Não importa. Tomaram por certo, o qual é distinto de acreditar nisso. E o que era esse outro homem jovem, de tez pálida, que lhes sorria de um balcão alto com os braços apoiados no corrimão? Eu não deveria me alimentar jamais com esses tenros inocentes mesmo que despissem seu pescoço e me pedissem: "Lestat, aqui!" (Isto aconteceu, estimado leitor, na praça Jackson, e mais de uma vez).

-Deve apressar-se -indiquei ao jovem, que seguia anotando, tomando medidas, murmurando para seus adentros a respeito de tecidos e cores, e sobressaltando-se a cada instante pois de repente encontrava a Molho a seu lado, frente a ele ou a seus pie-. Quero-o terminado antes do verão. -Quando nos despedimos, achava-se em um estado de grande agitação. Eu não fui; fiquei sozinho, com Molho, no vetusto edifício.

A água-furtada. Nos velhos tempos, nunca subía ali. Mas perto do alpendre traseiro havia uma antiga escada oculta que levava a habitação onde em uma oportunidade Claudia atravessou minha fina pele branca com uma adaga enorme. Subí, então, até as habitações que havia sob o teto em pendente. OH, tinha a altura necessária como para que pudesse caminhar por ali um homem de um metro oitenta, e as mansardas deixavam entrar a luz da rua.

Aí instalaria minha cova, pensei, dentro de um duro sarcófago com uma tampa que nenhum mortal poderia levantar. Não seria difícil construir uma pequena câmara sob o gablete, e lhe instalar duas grosas portas de bronze que eu mesmo desenharia. E quando me levantar, baixarei à casa e a encontrarei tal como estava naquelas décadas maravilhosas, só que viverei rodeado de todos os prodígios tecnológicos que me façam falta. Não se resgatará o passado: será perfeitamente eclipsado.

-Não é assim, Claudia? -murmurei. Ninguém me respondeu. Não se ouviu o som de um clavicordio, nem o canário trilando em sua jaula. Mas de novo ia ter pássaros cantores, sim, e a casa se encheria com a soberba música do Haydn e Mozart.

OH, minha querida, quanto eu gostaria que estivesse aqui!

E meu espírito sinistro volta a alegrar-se, porque não sabe sentir-se de outro modo durante muito tempo, e porque a dor é um mar escuro e profundo no que me afogaria se não remasse arduamente em minha pequena embarcação, rumo a um sol que nunca terá que sair.

Já era mais de meia-noite e ouvia meu redor o tênue cantarolo da cidade, com um coro de vozes misturadas, o estalo continuado suave de um trem distante, a palpitante sereia de algum navio pelo rio, o rugir do trânsito pela rua Esplanade.

Entrei na velha sala e fiquei olhando os emplastros de luz que entravam pelos vidros das portas. Tendi-me sobre a madeira nua e Molho se tornou a meu lado. E ficamos dormidos.

Não sonhei com ela. Então, por que me pus a chorar brandamente quando chegou o momento de procurar a segurança de minha cripta? E onde estava meu Louis, meu traiçoeiro e teimoso Louis? Ah, que sofrimento. E se voltaria mais intenso quando logo voltasse a vê-lo, não?

Sobressaltado, comprovei que Molho estava me lambendo as lágrimas de sangue das bochechas.

-Não, isso não deve fazê-lo nunca! -disse, e com uma mão lhe apertei a boca-. Nunca; esse sangue, esse sangue maligno, nunca. -Afetou-me muitíssimo. E no ato ele me obedeceu, afastou-se apenas um tanto de mim, com seu nobre estilo pausado.

Que diabólicos me pareceram seus olhos ao me contemplar! Que decepção! Voltei a beijá-lo debaixo dos olhos, a parte mais tenra de sua cara peluda.

De novo pensei no Louis, e a dor foi como se me tivessem atirado um potente golpe no peito.

Minhas emoções eram tão amargas, tão fora de meu controle, que me assustei, a tal ponto que não pude sentir outra coisa que essa dor.

Mentalmente fui rememorando a outros. Evoquei cada rosto como se fora a bruxa do Endor parada junto à caldeira, invocando as imagens dos mortos.

Observei juntos ao Maharet e Mekare, os gêmeos ruivos, que possivelmente nem se teriam informado de meu dilema, tão remotos se achavam em sua grande sabedoria, tão envoltos em preocupações inevitáveis e eternas; evoquei ao Eric, Mael e Khayman, que me interessavam pouco e nada em que pese a que voluntariamente se negaram a ir em minha ajuda. Nunca os considerei companheiros. Logo vi o Gabrielle, minha querida mãe, que sem dúvida não se inteirou do perigo que tinha deslocado e devia andar perambulando por algum longínquo continente, qual deusa esfarrapada que, como sempre, só confraternizava com o inanimado. Eu não sabia se se seguia alimentando de humanos; assaltou-me uma leve lembrança dela enquanto descrevia o abraço de não sei que besta sinistra dos bosques. tornou-se louca minha mãe, em qualquer lugar que estuviere? Parecia-me que não. Que ainda existia, disso estava seguro. Que nunca poderia encontrá-la, disso não me cabia dúvida.

A seguir me representei a imagem da Pandora. Pandora, a amante do Marius, possivelmente tinha perecido tempo atrás. Feita pelo Marius na época dos romanos, a última vez que a vi a encontrei ao bordo do desespero. Anos atrás ela se partiu de nossa última cova sem avisar. Foi primeira em partir.

Quanto ao Santino, o italiano, dele não tinha notícias nem esperava nada. Era jovem. Ao melhor nunca chegaram meus lamentos. E se lhe tivessem chegado, por que teria que escutá-los?

Logo imaginei ao Armand, meu velho inimigo e amigo Armand. Meu velho adversário e companheiro Armand, o menino angélico que tinha criado Ilha Noturna, nosso último reduto.

Onde estava agora? Tinha-me deixado ex-professo sacado a meus próprios recursos? E por que não?

Permita retornar ao Marius, o grande professor de antigamente, que faz tantos séculos tinha criado ao Armand com amor e ternura; Marius, o verdadeiro filho dos dois milênios, que me fez baixar até as profundidades de nossa história sem sentido e me ordenou adorar o mausoléu dos que Devem Ser Conservados.

Os que Devem Ser Conservados. Mortos, vades já como Claudia. Porque os reis e rainhas que há entre nós podem perecer ao igual a nossas tenras vergônteas.

Entretanto, eu sigo adiante. Estou aqui. Sou forte.

E Marius, quão mesmo Louis, tinha sabido de meu sofrimento! inteirou-se, mas se negou a me ajudar.

Minha indignação se voltou mais forte, mais perigosa. Estava Louis por aí perto, nessas mesmas ruas? Apertei os punhos para conter a fúria, lutando contra sua forçosa expressão.

Marius, deu-me as costas, o qual em realidade não me surpreendeu. Sempre foi o professor, o progenitor, o supremo sacerdote. Não te desprezo por isso. Mas Louis! Eu não poderia te negar nada nunca, e você me rechaça!

Sabia que não podia ficar aí. Não confiava em mim mesmo se chegava a vê-lo. Ainda não.

Uma hora antes do amanhecer, levei de retorno a Molho a seu jardincito, despedi-me dele com um beijo e parti depressa para os arredores da cidade velha. Quando por fim cheguei à zona dos pântanos, elevei os braços ao céu e ascendi, deixei atrás as nuvens, segui subiendo e subiendo até que, balançado pela canção do vento, comecei a revolearme com as correntes mais tênues; a alegria de poder contar com meus dons me embargava o coração.

 

Devo ter acontecido uma semana inteira percorrendo o mundo. Primeiro fui a nevosa Georgetown e procurei a essa moça jovem, frágil e patética a quem, em minha experiência de humano, tinha violado imperdonablemente. Como pássaro exótico me olhou, fazendo um esforço por ver bem na cheirosa penumbra do pequeno restaurante de mortais, e não quis reconhecer que tinha vivido esse episódio com "meu amigo francês"; logo a desconcertei quando pus em sua mão um antiquísimo rosário de brilhantes e esmeraldas. "Vende-o, se quiser, chérie", disse-lhe. "Ele me pediu que lhe entregasse isso para que o empregue como quer. Mas me diga uma coisa: concebeu um filho?".

Sacudiu a cabeça ao tempo que murmurava um "não". Me deu vontade de beijá-la pois voltava a vê-la formosa, mas não me atrevi, não só porque a teria assustado, mas sim porque o desejo de matá-la era muito intenso. Certo instinto feroz puramente masculino me fazia desejá-la tão somente porque antes a tinha desejado de outra maneira.

Às poucas horas já tinha partido do novo mundo, e noite detrás noite vagabundeei, consegui presas nos transbordantes subúrbios da Ásia -em Bangkok, em Hong Kong, em Singapura- e logo na congelada cidade de Moscou, como também em Viena e Praga, preciosas cidades antigas. Passei um breve período em Paris, mas a Londres não fui. Avançava ao máximo de minha velocidade; elevava-me e mergulhava na penumbra, e às vezes descia em cidades que nem sabia como se chamavam. Alimentei-me sem cessar de malvados, e de vez em quando, dos loucos ou os puramente inocentes que caíam sob meu olhar.

Tratava de não matar. Tratava. Salvo quando a pessoa me era irresistível, quando era um delinqüente do pior. Então lhe provocava uma morte lenta e selvagem e, transcorrido o momento, ficava com tanta fome como antes, e aí nomás partia para saciá-la antes de que saísse o sol.

Jamais me havia sentido tão satisfeito com meus poderes. Nunca me tinha elevado tão por cima das nuvens, nem viajado a tanta velocidade.

Caminhei durante horas, misturado entre os mortais, pelas velhas callecitas do Heidelberg, de Lisboa e de Madrid. Passei por Atenas, Cairo e Marrocos. Percorri as costas do Golfo Pérsico, do Mediterrâneo e o Adriático.

O que estava fazendo? O que pensava? Sentia verdadeira a tão debulhada frase: o mundo era meu.

E aonde quer que fosse, fazia sentir minha presença. Deixava emanar meus pensamentos de meu interior, como se fossem notas interpretadas por uma lira.

Aqui está o vampiro Lestat. Aqui vem o vampiro Lestat. Abram passo.

Não queria ver meus companheiros. Em realidade não os busquei, não abri minha mente nem meus ouvidos para ver se os sentia. Não tinha nada que lhes dizer. Só queria lhes fazer saber que tinha andado por aí.

Em alguns lugares captei os sons de alguns companheiros, vagabundos desconhecidos, seres da noite sobreviventes da última massacre com os de nossa espécie. Às vezes era apenas um pantallazo mental de um ser poderoso, que no ato ocultava seus pensamentos. Em outras ocasiões me chegavam os passos nítidos de algum monstro que caminhava pela eternidade sem artifícios, sem história nem propósito. Ao melhor isso sempre vai existir!

Tinha toda a eternidade para me encontrar com tais criaturas, se alguma vez chegava a necessitá-lo. O único nome que pronunciavam meus lábios era o do Louis.

A ele não pude esquecê-lo nem por um instante. Era como se outra pessoa murmurasse todo o tempo seu nome em meu ouvido. O que faria se o voltava a encontrar? Poderia dominar minha reação? Tentaria-o sequer?

Por último, senti-me cansado. Tinha a roupa feita farrapos. Não podia seguir perambulando mais. Queria voltar para casa.

 

Encontrava-me sentado na catedral às escuras. Embora a tinham fechado horas antes, pude entrar subrepticiamente por um dos acessos do frente e anulei os alarmes. Além disso, deixei a porta aberta para ele.

Cinco noites tinham passado desde minha volta. O trabalho avançava estupendamente no departamento da rua Royale e ele é obvio sabia, já que o tinha visto parado no alpendre de em frente, olhando para cima; por isso apareci em balcão apenas um instante, um tempo que ao olho mortal não lhe alcançava para ver.

Pode dizer-se que estávamos jogando gato e o camundongo.

Hoje de noite deixei que me visse perto do antigo mercado francês. E que susto se levou a posar seus olhos em mim, ao ver molho e comprovar, pela piscada que lhe fiz, que realmente era Lestat a quem via.

O que pensou nesse instante? Que era Raglan James dentro de meu corpo que tinha vindo a aniquilá-lo? Que James se estava fazendo uma casa na rua Royale? Não: do primeiro momento soube que era Lestat.

Logo me encaminhei lentamente para a igreja, com Molho sempre a meu lado. Molho, meu cabo a terra.

Eu queria que me seguisse, mas não ia me dar volta para comprovar se vinha ou não.

Era uma noite morna. A chuva de um momento antes tinha escurecido as paredes rosadas das casas do velho bairro francês, fazia mais intenso o marrom dos tijolos e deixado uma fina e brilhante pátina sobre ladrilhos e paralelepípedos. Uma noite perfeita para caminhar por Nova Orleáns. Úmidas e fragrantes, as flores reluziam depois dos tapiales dos jardins.

Mas para voltar a me encontrar com ele, necessitava a quietude da igreja em penumbras.

Tremiam-me um pouco as mãos, como me acontecia de tanto em tanto desde que tinha recuperado minha antiga forma. Não havia uma causa física que o explicasse, a não ser só os acessos de irritação que me atacavam, seguidos por períodos de satisfação, e logo um vazio terrível a meu redor; por último recuperava uma alegria total, embora frágil, uma sorte de verniz superficial. Podia dizer que não conhecia o estado real de meu espírito? Recordei como a fúria incontrolada me levou a lhe destroçar a cabeça ao corpo do David, e não pude a não ser me estremecer. Ainda me afetava o medo?

Hmmm. Olhe esses dedos bronzeados pelo sol, com suas unhas lustrosas. Senti seu tremor quando apoiei as gemas contra meus lábios.

Achava-me sentado vários bancos mais atrás do primeiro, contemplando as estátuas escuras, os quadros, os adornos dourados.

Já era mais de meia-noite. O ruído da rua Bourbon era o mesmo de sempre. Quanta carne mortal por ali. Tinha-me alimentado cedo, e voltaria a fazê-lo depois.

Mas os sons da noite eram sedativos. Nas ruelas do bairro francês, em seus pequenos departamentos, em seus botequins de clima misterioso, em seus elegantes salões de coquetel e seus restaurantes, mortais felizes conversavam e riam, beijavam e abraçavam.

Pu-me cômodo no banco e até estirei os braços sobre o respaldo como se se tratasse de um banco de praça. Molho já se pôs-se a dormir por aí perto, no corredor.

por que não posso ser você, meu amigo, um ser que parece o muito mesmo demônio mas de uma grande bondade. OH, sim, bondade. Bondade foi precisamente o que captei quando o abracei e afundei minha cara em seu cabelo.

Nesse instante senti que ele entrava na igreja.

Percebi sua presença embora não pude lhe ler o mais mínimo pensamento ou sentimento, nem sequer consegui ouvir seus passos. Não tinha ouvido se abrir nem fechá-la porta da rua mas igualmente soube que estava aí. Logo vi uma sombra pela extremidade do olho. Chegou e se sentou a meu lado, embora a uma pequena distância.

Comprido momento permanecemos calados, até que por fim ele falou.

-Incendiou minha casa, verdade? -perguntou com voz vibrante.

-Acaso me culpa? -repus com um sorriso, sem tirar os olhos do altar-. Além disso, no momento em que o fiz eu era humano. Foi uma debilidade humana. Quer dever viver comigo?

-Isso significa que me perdoou?

-Não; significa que estou jogando contigo. Possivelmente até te destrua em castigo. Ainda não o decidi. Não te dá medo?

-Não. Se tivesse intenção de me eliminar, já o teria feito.

-Não esteja tão seguro. Não sou o de sempre, e entretanto o sou, e logo volto a não ser o.

Comprido silêncio, só quebrado pela pesada respiração de Molho, que dormia profundamente.

-Me alegro de verte -disse-. Sabia que foste ganhar, mas não sabia como.

Não lhe respondi porque de repente senti que fervia por dentro. por que se usavam minhas virtudes e defeitos contra mim?

Mas, realmente tinha sentido fazer acusações, agarrá-lo por pescoço e sacudi-lo, lhe exigir respostas? Talvez o melhor era não saber.

-me conte o que aconteceu, Lestat.

-Não o farei. Além disso, o que é o que quer saber?

Nossas vozes apagadas produziam suaves ecos na nave da igreja. A luz lhe titilem das velas bailoteaba sobre os capiteis dourados das colunas, sobre os rostos das estátuas. Ah, como eu gostava desse silêncio e esse frio. E do fundo de meu coração devia reconhecer que estava muito contente de que ele tivesse vindo. Às vezes o amor e o ódio servem exatamente para o mesmo propósito.

Girei e o olhei. Ele se tinha posto de cara a mim, com um joelho flexionado sobre o banco e um braço apoiado no respaldo. Vi-o esbranquiçado como sempre, como um brilho sagaz na penumbra.

-Tinha razão no do experimento -disse, acredito que com voz firme.

-A que te refere? -Nada de maldade nem desafio em seu tom; só o sutil desejo de saber. E que reconfortante era ver sua cara, sentir o tênue aroma de pó de sua roupa gasta, o hálito de chuva ainda fresca aderido a seu cabelo escuro.

-Ao que me disse, meu velho e querido amigo e amante: que eu em realidade não desejava ser humano, que não era mais que um sonho situado na mentira, na fátua ilusão, no orgulho.

-É que não o entendia. Tampouco o entendo agora.

-Claro que o entendeu muito bem; sempre o tem feito. Talvez viveste o necessário ou possivelmente tenha sido sempre o mais forte, mas o certo é que sabia. Eu não queria a debilidade, as limitações, não queria as necessidades repugnantes nem a eterna vulnerabilidade; não queria me empapar de suor nem morrer de frio. Não queria a escuridão enceguecedora, os ruídos que me impediam de ouvir nem a culminação rápida, frenética, da paixão erótica. Não queria as banalidades, a fealdade. Não queria o isolamento, a fadiga constante.

-Isso me explicou isso antes. Tem que ter havido algo... embora seja pequeno... que você gostasse.

-O que supõe você?

-A luz solar.

-Exato. A luz do sol sobre a neve, sobre a água... a luz do sol sobre a cara, sobre as mãos, descobrindo as dobras recônditas do mundo inteiro como se se tratasse de uma flor, como se todos formássemos parte de um grande organismo ofegante. A luz do sol sobre a neve...

Interrompi-me. O certo era que não desejava dizer-lhe até sentia que me tinha traído mesmo.

-Houve outras coisas -prossegui-. Sim, houve muitas. Só um parvo não as teria notado. Alguma noite, quando de novo nos sentirmos cômodos como se nada tivesse passado, contarei-lhe isso.

-Mas não lhe bastaram.

-Não. A mim não.

Silêncio.

-Possivelmente essa parte, a do descobrimento, tenha sido o melhor. E o fato de que já não vivo enganado... Agora sei que eu adoro ser o pequeno diabo que sou.

Voltei-me e lhe obsequiei a mais formosa e maligna de meus sorrisos.

Mas ele era tão preparado que não caiu na armadilha. Lançou um comprido suspiro quase silencioso, entreabriu um instante as pálpebras e voltou a me olhar.

-Ninguém mais que você poderia ter ido ali... e retornado.

Quis lhe dizer que não era certo, mas o que outro teria sido tão parvo de confiar no Ladrão de Corpos? Quem se teria arrojado à aventura com semelhante grau de audácia? E quanto mais o pensava, mais me precavia de algo que já deveria ter descoberto: que eu sabia o risco que ia correr, mas considerei que era o preço. O ser vil me advertiu que era mentiroso e trapaceiro. Mas eu igualmente me embarquei porque não vi outro caminho.

Sem dúvida, não era isso o que queria dizer Louis com suas palavras, ou possivelmente, em certo sentido, sim. Era a verdade mais profunda.

-Sofreu em minha ausência? -perguntei-lhe, voltando a posar meus olhos no altar.

Com a maior tranqüilidade me respondeu:

-Foi um inferno.

Não lhe respondi.

-Sofro cada vez que corre esses riscos, mas isso é meu enguiço.

-por que me ama? -perguntei.

-Isso sabe; sempre o soubeste. Oxalá pudesse ser como você, viver a felicidade que vive constantemente.

-E o sofrimento... também quer vivê-lo?

-Seu sofrimento? -Sorriu. -Por certo. Essa classe de dor, em qualquer momento.

-Filho de puta presumido, cínico e mentiroso -murmurei, sentindo que de repente crescia minha indignação, tanto que até me o sangue à cara-. Necessitava-te e me voltou as costas! Fechou-me a porta em meio da noite mortal. Abandonou-me!

sobressaltou-se ante minha paixão. Sobressaltei-me eu também. Mas foi algo sincero, e uma vez mais começaram a me tremer as mãos, as mesmas mãos que se descontrolaram e atacaram ao falso David, em que pese a que pude dominar todo o restante poder letal que levo dentro.

Não pronunciou nenhuma palavra. Seu rosto registrou essas pequenas mudanças que produz o shock: o ínfimo tremor de uma pálpebra, a boca que se estira e logo se afrouxa, uma sutil expressão ácida que se apaga assim que aparece. Todo o tempo me sustentou o olhar, até que lentamente foi desviando.

-Foi David Talbot, seu amigo mortal, quem te ajudou, verdade?

Respondi-lhe que sim sem palavras.

Mas à só menção do nome foi como se me houvessem meio doido os nervos com um arame quente. Muito sofria já. Não pude falar mais sobre o David. Tampouco queria falar do Gretchen. E de repente tomei consciência de que o que mais queria fazer na vida era me dar volta, rodeá-lo com meus braços e chorar em seu ombro como não o tinha feito nunca.

Que vergonha. Que predecible! Que insípido. E que tenro.

Não o fiz.

Permanecemos em silêncio. A suave cacofonia da cidade e caiu depois dos vitraux que captavam o brilho tênue dos faróis guias de ruas. Havia tornado a chover, essa chuva morna de Nova Orleáns que permite seguir caminhando tranqüilamente como se não fora mais que uma bruma.

-Quero que me perdoe, Lestat. Quero que compreenda que não foi por covardia, não foi fraqueza. O que te disse naquele momento era certo: não podia fazê-lo. Não podia arrastar a alguém a esta vida! Nem que esse alguém fora um mortal contigo em seu interior. Simplesmente não podia.

-Já sei.

Tratei de pôr ponto final ao assunto, mas não pude. Não se acalmava meu ânimo, meu prodigioso temperamento, o mesmo que me tinha levado a esmagar a cabeça ao David Talbot contra a parede.

Voltou a falar:

-Algo que me diga, mereço-me isso.

-OH, mais que isso! -exclamei-. Mas o que quero saber é isto. -Girei para olhá-lo à cara e falei apertando os dentes. -Teria-te negado eternamente? Se outros -Marius, ou quem quer que se inteirou- tivessem destruído meu corpo me deixando apanhado dentro desse físico mortal, e eu te tivesse seguido implorando, teria-te negado eternamente? Teria-te mantido em seus treze?

-Não sei.

-Não me responda tão depressa. Busca a verdade em seu interior. Claro que sabe. Usa sua asquerosa imaginação. Claro que sabe. Teria-me rechaçado?

-Não sei a resposta!

-Desprezo-te! -reagi com um murmúrio áspero-. Teria que te destruir... terminar isso que comecei quando te fiz. te reduzir a cinzas e as sacudir entre meus dedos. Sabe que o poderia fazer! Assim de fácil! Como estalar os dedos para os humanos! te queimar como te queimei a casa. E nada te poderia salvar, nada.

Olhei com olhos furiosos os planos agraciados de seu rosto imperturbável que ressaltava, com um pouco de fosforescência, contra as sombras mais escuras da igreja. Que formosa a forma de seus olhos, com suas espessas pestanas negras. Que perfeita a curva de seu lábio superior.

A fúria era um ácido que corroía as mesmas veias pelas que fluía, que consumia meu sangue preternatural.

Entretanto, não podia lhe fazer danifico. Não podia sequer conceber a idéia de cumprir tão terríveis e covardes ameaça. Jamais poderia haverfeito mal a Claudia. OH, fazer toda uma questão por algo sem importância, sim. Mas pensar em vingança... o que é para mim a vingança repugnante e árida?

-Medita-o -disse-. Poderia criar outro, depois de tudo o que aconteceu? -Com serenidade afundou mais no tema: -Voltaria a executar o Truque Misterioso? Tome você o tempo antes de responder. Busca as verdades em seu interior, como me disse . E quando as encontrar, não me precisa dizer isso Mantén tu vigilia, pequeña vela, en las tinieblas y a la luz del día.

Logo se inclinou para frente cortando a distância entre ambos, e apertou seus lábios sedosos contra o flanco de minha cara. Minha intenção foi retroceder, mas ele usou toda sua força para me sujeitar e eu o permiti, permiti esse beijo frio, desapaixonado, até que foi ele quem por fim se apartou, como uma quantidade de sombras que caem uma dentro da outra. Só deixou sua mão em meu ombro, e eu seguia com o olhar posto no altar.

Ao final me levantei sem pressa, passei a seu lado, despertei a Molho e lhe fiz gestos de que me seguisse.

Caminhei pelo corredor central em direção às portas do frente. Encontrei o rinconcito escuro onde ardem as velas votivas sob a estátua da Virgem, um sítio cheio de bela luz lhe titilem.

Vieram-me à memória o aroma e o som da selva tropical, a escuridão impenetrável dessas árvores imponentes. Logo a imagem da capillita branca no claro do bosque com suas portas abertas, o som fantasmal do sino na brisa vagabunda. E o aroma de sangue que partia das mãos feridas do Gretchen.

Tomei a larga mecha que havia para acender as velas, aproximei-a de uma llamita, dava vida a outra, amarela e movediça, que finalmente se estabilizou ao tempo que despedia um forte aroma de cera queimada.

Estive a ponto de dizer: "Pelo Gretchen", quando me precavi de que não era por ela que a tinha aceso. Levantei meu rosto para a Virgem. Recordei o crucifixo que havia sobre o altar do Gretchen. Uma vez mais me senti alagado pela paz da selva tropical e vi esse pequeno pavilhão com cainitas. Pela Claudia, minha preciosa Claudia? Não, tampouco por ela, por muito que a amasse...

Sabia que essa vela era por mim.

Era pelo homem de cabelo castanho que tinha amado ao Gretchen no Georgetown. Era pelo triste demônio de olhos azuis que fui me transformar naquele homem. Era pelo moço mortal de séculos atrás, que fugiu a Paris com as jóias de sua mãe no bolso e só a roupa que levava posta. Era pelo ser impulsivo e malvado que tinha sustentado em seus braços à a Claudia agonizante.

Era por todos esses seres e pelo demônio que nesses instantes estava ali, porque lhe gostavam das velas, e gostava de criar luz a partir da luz. Porque não havia um Deus em quem acreditasse, não havia Santos nem Rainha do Céu.

Porque pôde dominar seu mau gênio e não aniquilou ao amigo.

Porque estava sozinho, face ao próximo que pudesse ser esse amigo. Também porque havia lhe tornado a felicidade como se fora uma doença que nunca pôde vencer de tudo, porque o sorriso travesso já lhe desenhava nos lábios, porque o coração saltava dentro de seu peito, porque surgia em seu interior o desejo de voltar a sair, de passear pelas resplandecentes ruas da cidade.

Sim, a velita prodigiosa e minúscula, que aumenta nessa mesma quantidade a luz existente no universo, é pelo Lestat. E ficará acesa toda a noite junto às demais. Continuaria acesa à manhã seguinte, quando chegassem os fiéis, quando entrasse a luz do sol por essas portas.

Mantén sua vigília, pequena vela, nas trevas e à luz do dia.

Por mim, sim.

 

Acreditava você que aqui termina o relato? Que a quarta entrega das Crônicas de Vampiros tinha chegado a seu fim? Sim, o livro deveria concluir. Honestamente deveria ter concluído quando acendi a velita, mas não foi assim. Disso me dava conta de noite seguinte, logo que abri os olhos.

Se quer inteirar-se do que passou depois, siga por favor até o capítulo trinta e três. Mas se o deseja, pode abandonar aqui. Possivelmente até lamente não havê-lo feito.

 

Barbados. Fui buscá-lo e o encontrei ainda ali, em um hotel frente ao mar.

Tinham transcorrido várias semanas, embora não sei por que deixei passar tanto tempo. Por amabilidade não foi; tampouco por covardia, mas o certo é que esperei. Pude ir vendo, passo a passo, como restauravam o esplêndido departamento da rua Royale até que estiveram elegantemente acondicionadas pelo menos algumas habitações, onde podia rememorar todo o acontecido e pensar no que ainda podia acontecer. Louis tinha retornado para instalar-se comigo, e andava muito ocupado procurando um escritório igual ao que havia na salita faz mais de cem anos.

David tinha deixada muitas mensagens a meu representante de Paris: que estava por viajar ao carnaval de Rio, que sentia saudades, que por que não nos reuníamos no Brasil.

O tema de seus bens se resolveu muito bem. Agora ele era David Talbot, primo do senhor maior morto em Miami, e novo proprietário da mansão ancestral. Os membros da Talamasca lhe restituíram a fortuna que ele lhes tinha deixado e lhe lembraram uma generosa aposentadoria. Embora não era mais o Superior General, seguia tendo seus aposentos na Casa Matriz e contaria sempre com o amparo da organização.

Tinha um presente para mim, se é que eu o queria: o relicário com a miniatura da Claudia. Um retrato muito delicado, com uma fina cadeia de ouro. Tinha-o encontrado, tinha-o consigo e estava disposto a me enviar isso se esse era meu desejo, salvo que preferisse ir visitar o e receber o de suas próprias mãos.

Barbados. Evidentemente se havia sentido obrigado a voltar para lugar do crime, por assim dizê-lo. Escreveu-me me contando que o clima era uma maravilha, que estava lendo o "Fausto". Tinha muitas perguntas que me fazer, e queria saber quando ia eu a ir.

Não havia tornado a ver deus nem ao diabo, em que pese a que antes de partir da Europa tinha percorrido diversos bares de Paris. Tampouco estava disposto a passá-la vida buscando-os. "Só você pode saber o homem que sou agora -dizia-. Você estranho, quero conversar contigo. por que não recorda que te ajudei e me perdoa todo o resto?"

Escrevia-me do hotel peixeiro do que me tinha falado, esse que estava pintado de rosa, tinha grandes bangalôs com tetos de palha, belos jardins fragrantes, e uma vista panorâmica da areia branca e o mar transparente.

antes de ir ali passei pelos vergeles das montanhas e me parei nos mesmos escarpados que davam às montanhas boscosas, onde tinha estado ele, escutando o rumor do vento nos ramos dos ruidosos coqueiros.

Tinha-me mencionado as montanhas? Havia dito que ao olhar para baixo se viam os vales apacibles, e que as ladeiras vizinhas pareciam tão próximas que dava a impressão de que se podia as tocar, embora em realidade estavam muito, mas muito longe?

Acredito que não, mas me descreveu muito bem as flores, as "tenazes de lagostas" e seus casulos, as orquídeas, as açucenas, sim, essas açucenas de pétalas suaves, palpitantes; as samambaias acurrucados nos claros do bosque, a "flor pássaro" e os altos salgueiros, os pimpolhos diminutos de jasmim.

Temos que caminhar por aí, havia dito.

Sim, claro que o íamos fazer. Suave o rangido do cascalho. Ah, nunca vi ramos oscilantes de coqueiros mais formosas que as desses ravinas.

Aguardei até meia-noite para descender ao hotel. O jardim era como me tinha pintado isso, com azaleas rosadas e grandes maciços de begônias.

Atravessei o comilão deserto e baixei até a praia. Internei-me na zona não muito funda, para poder girar e olhar de ali as habitações com suas galerias cobertas. Em seguida o localizei.

As portas que davam ao patiecito estavam totalmente abertos, e a luz amarela se derramava sobre o pequeno lugar e suas poltronas pintadas. Dentro, como em um cenário iluminado, David se achava sentado a um escritório, de frente à noite e ao mar, escrevendo em um computador portátil de reduzidas dimensões. O tamborilar das teclas se ouvia no silêncio e até tampava o sussurro indolente das suaves cheire espumosas.

Tinha posto um pantaloncito curto e nada mais. Pelo dourado bronze de sua pele parecia que passava os dias dormindo ao sol. Tinha umas nervuras amarelas no cabelo escuro, e certo brilho em seus ombros nus e em seu peito imberbe. Músculos muito firmes na cintura. Notei também a pátina dourada que criava o pêlo em suas coxas e pernas, e uma leve pelusita no dorso das mãos.

Eu não me tinha fixado nesse cabelo quando estive vivo. Ou possivelmente eu não gostei; não sei. Agora sim eu gostava. Também me agradou vê-lo mais esbelto do que tinha sido eu dentro desse físico. Sim, lhe notavam mais os ossos, o qual acatava, suponho, os ditados de um estilo moderno de saúde: a moda de ser elegantemente desnutrido. lhe sentava, e ao corpo também.

A suas costas, a habitação muito prolixa e rústica no estilo típico das ilhas, com teto de vigas à vista e piso de ladrilhos rosados. A colcha era de um tecido alegre, com desenhos geométricos indígenas. O roupeiro e a cômoda eram brancos, com flores pintadas. Os abajures, singelas, davam abundante luz.

Tive que sorrir, entretanto, ao vê-lo em meio desse luxo, escrevendo em seu computador. David o intelectual, de olhar vivaz produto das idéias que povoavam sua mente.

Ao me aproximar notei que estava bem barbeado, que suas unhas se achavam prolijamente cortadas e polidas, possivelmente por obra de uma manicura. O cabelo, abundante e ondulado, seguia sendo o mesmo que tive eu quando habitei esse corpo, mas também o tinha recortado, por isso agora tinha mais forma. A seu lado se achava o exemplar do "Fausto", aberto, e sobre ele uma lapiseira. Muitas de suas folhas estavam dobradas, ou marcadas com pequenos clipes metálicos.

Eu seguia inspecionando tudo sem pressa -tomei nota da garrafa de uísque que havia a seu lado, do pesado copo de cristal e o pacote de cigarros-, quando de repente ele levantou a cabeça e me viu.

Achava-me na areia, longe do pequeno alpendre com seu corrimão de cimento, mas totalmente visível.

-Lestat -sussurrou, e lhe iluminou a cara. Ao mesmo tempo ficou de pé e vinho por volta de mim com seu elegante andar de sempre. -Graças a Deus que veio.

-Parece-te? -disse. Rememorei o momento em que tinha visto o Ladrão de Corpos escapulir do Café du Pode, em Nova Orleáns, e pensei que esse corpo, agora que tinha dentro a outra pessoa, podia mover-se como uma pantera.

Quis tomar em seus braços, mas como eu fiquei rígido e retrocedi um passo, permaneceu imóvel com os braços pregados contra o peito, gesto que em minha opinião pertencia a esse corpo novo, já que antes de nos encontrar em Miami não o tinha visto nunca. Esses braços eram mais grossos que os anteriores. O peito, mais largo também.

Que nu me pareceu. Que escuros seus bicos da mamadeira. Que ardentes e claros seus olhos.

-Senti saudades -confessou.

-Ah, sim? Imagino que aqui não terá levado vida de recluso.

-Não, vi a outros com excessiva assiduidade. Muitas jantares no Bridgetown. E meu amigo Aaron veio várias vezes a me visitar, quão mesmo outros membros da organização. -Fez uma pausa. -Não suporto estar rodeado por eles, Lestat. Não suporto estar no Talbot Manor, com os serventes, e fingir que sou um sobressaio de meu antigo eu. Há algo arrepiante no que aconteceu. Às vezes não tolero me olhar no espelho. Mas não quero falar desse aspecto.

-por que não?

-Este é um período de adaptação. Com o tempo, já não me vai impressionar tanto. E tenho muitas coisas que fazer. Quanto me alegro de que tenha vindo. Tinha a sensação de que foste vir. Esta manhã, estive a ponto de partir para Rio, mas não fui porque tive o pressentimento de que esta noite te ia ver.

-Não me diga.

-O que te passa? A que se deve essa expressão sombria? por que está zangado?

-Não sei. Ultimamente me zango sem muito motivo. E deveria estar contente. Logo o vou estar. Ocorre-me freqüentemente; ao fim e ao cabo, é uma noite importante.

Olhou-me fixo tratando de desentranhar o significado de minhas palavras ou, mas bem, o que devia responder a elas.

-Vêem, entremos -disse por fim.

-por que não ficamos aqui, na penumbra da galeria? Eu gosto da brisa.

-Como quer.

Foi à habitação, serve-se um uísque e o trouxe para a mesa de fora. Eu acabava de me sentar em uma das poltronas e contemplava o mar.

-E bem? O que andaste fazendo, David?

-Por onde começo? Estive escrevendo sem cessar, tratando de explicar até as sensações mais pequenas, tudo o que vou descobrindo.

-Acaso fica alguma dúvida de que está firmemente enraizado dentro desse corpo?

-Não. -Bebeu um comprido sorvo de uísque. -E ao parecer não há nenhum menoscabo físico. Disso tinha medo, inclusive quando foi você o que o habitava, mas não queria dizê-lo. Muito tínhamos já para nos preocupar, verdade? -voltou-se para me observar, e sorriu. -Está olhando a um homem ao que conhece do direito e do reverso.

-Não, nem tanto -repliquei-. A ver, me diga, como lhe percebem os estranhos... os que não sabem nada? As mulheres convidam a seus dormitórios? E os homens jovens?

Posou os olhos no mar, e de repente lhe notei certa amargura na cara.

-Você sabe a resposta. Esses encontros não são minha vocação, não significam nada para mim. Não digo que não tenha desfrutado de umas quantas incursões pelas quartos, mas tenho coisas mais importantes que fazer, Lestat, muito mais importantes.

"Quero viajar a terras e cidades que sempre sonhei conhecendo. Rio é só a primeira. Há mistérios que devo resolver, costure por averiguar.

-Sim, imagino.

-A última vez que nos vimos disseram algo que me pareceu importante: "Certamente não irás dar de presente lhe esta vida também à a Talamasca". Bom, não, não a vou dar de presente. O que tenho claro é que não devo desperdiçá-la, que devo fazer um pouco de valor com ela. Sem dúvida não vou ou seja em seguida o rumo. Tem que haver um período de viagens, de aprendizagem, de avaliação, antes de decidir o curso. E à medida que vou estudando, escrevo, anoto tudo. Às vezes o objetivo parece a escritura mesma.

-Sei.

-Quero te perguntar muitas coisas.

-Que tipo de coisas?

-Referentes ao que viveu esses poucos dias, e se lamentar que tenhamos posto fim tão logo à experiência.

-Que experiência? Refere a minha vida de mortal?

-Sim.

-Não o lamento.

ia retomar a palavra mas se deteve. Logo voltou a falar.

-O que tirou limpo? -perguntou com supremo interesse.

Voltei-me para olhá-lo. Sim, decididamente o rosto parecia mais angular. Era a personalidade a que o tinha afiado, lhe dando mais definição? Perfeito.

-Perdão, David, mas me distraí. O que me perguntou?

-O que tirou limpo? -repetiu com sua eterna paciência- Qual foi a lição?

-Não sei se foi uma lição. E se aprendi algo, pode que me leve um tempo compreendê-lo.

-Sim, claro.

-Posso-te dizer que advirto novas ânsias de aventuras, de passeios, muito similar ao que acontece com ti. Quero voltar para a selva tropical. Pude vê-la muito pouco quando fui visitar o Gretchen. Havia um templo ali, que quero percorrer.

-Nunca me contou o que aconteceu.

-OH, sim, disse-lhe isso, mas nesse momento foi Raglan James. O Ladrão de Corpos foi testemunha dessa pequena confissão. por que lhe terá ocorrido roubar semelhante coisa? Mas me estou indo do tema. Há outros muitos lugares que desejo visitar.

-Sim.

-Volto a sentir um desejo de futuro, de conhecer os mistérios do mundo natural, de ser o espectador em que me converti aquela longínqua noite em Paris, quando me obrigou a entrar nisto. Perdi minhas ilusões. Perdi minhas mentiras preferidas. Poderíamos dizer que revivi naquele momento e renasci às trevas de meu próprio livre-arbítrio. E que arbítrio!

-Compreendo-te.

-OH, que bem.

-por que falas assim? -Baixou a voz e prosseguiu lentamente: -Necessita minha compreensão tanto como eu necessito a tua?

-Você jamais me entendeste, David. OH, não lhe digo isso como acusação. Faz-te ilusões sobre mim, o qual te permite me visitar, falar comigo, até me dar cubro e me ajudar. Não poderia fazer todo isso se realmente soubesse o que sou. lhe tentei dizer isso quando falava de meus sonhos...

-Está equivocado. Fala por vaidade. você adora fazer acreditar que é pior do que realmente é. A que sonhos te refere? Não recordo que me tenha falado nunca de sonhos.

Sorri.

-Ah, não? Faz memória, David. O sonho do tigre, que me fazia sentir medo por ti. E agora se cumprirá a ameaça desse sonho.

-O que quer dizer?

-Que lhe vou fazer isso, David. vou fazer te de meus.

-O que? -Sua voz se converteu em um sussurro. -O que me está dizendo? -inclinou-se para frente tratando de ver com claridade a expressão de minha cara. Mas a luz nos vinha de atrás, e sua vista humana não era o bastante aguda.

-Acabo de lhe dizer isso Lhe vou fazer isso.

-por que o diz?

-Porque é verdade. -Levantei-me e com a perna empurrei a poltrona a um flanco.

Ele me olhou sem levantar-se. Só então seu corpo tomou consciência do perigo. Vi que ficavam tensos os músculos de seus braços. Seus olhos estavam fixos em meus.

-por que falas assim? Não pode me fazer isso.

-É obvio que sim, e o farei. Sempre te disse que era malvado, que era o muito mesmo diabo. O diabo de seu Fausto, o de suas visões, o tigre de meus pesadelos!

-Não, não é verdade. -ficou de pé e, ao fazê-lo, volteou a poltrona e quase perde o equilíbrio. Retrocedeu uns passos. -Não é o diabo, sabe bem que não. Não me faça isto! Você o prohíbo! -Apertou os dentes ao pronunciar as últimas palavras. -No fundo do coração é tão humano como eu. E não o fará.

-claro que sim! -Ri-me porque não pude evitá-lo. -David, o Superior General! David, o bruxo do candomblé.

Retrocedeu ainda mais pelo piso de ladrilhos. A luz iluminava totalmente sua cara e os músculos tensos de seus braços.

-Pretende lutar comigo? Não há força na terra que possa me impedir de fazê-lo.

-Antes prefiro morrer -expressou com voz afogada. Seu rosto estava mais escuro, avermelhado pelo sangue. OH, o sangue do David.

-Não te vou deixar morrer. por que não recorre a seus velhos espíritos brasileiros? Não recorda como se faz, verdade?

-Não pode me pagar desta maneira. -David lutava por manter a calma.

-Pois assim é como pagamento o diabo a quem o ajuda!

-Lestat, eu te ajudei a enfrentar ao Raglan! Ajudei-te a recuperar esse corpo! E não me tinha prometido lealdade? Quais foram suas palavras?

-Menti-te, David. Menti-me mesmo e a outros. Isso me ensinou minha pequena aventura pela carne. Assombra-me, David. Está zangado, muito zangado, mas não tem medo. É como eu, David... você e Claudia... quão únicos realmente têm minha mesma força.

-Claudia -articulou, e fez um gesto de assentimento-. Ah, sim, Claudia. Tenho algo para ti, meu amigo. -afastou-se, e a propósito me deu as costas para destacar a audácia de seu gesto. Muito devagar se encaminhou até a cômoda. Quando girou sobre seus talões vi que tinha um pequeno relicário nas mãos. -Traga-o da Casa Matriz. O relicário que me descreveu.

-Ah, sim. dêem-me isso -¡No lo harás! -clamó, pero su voz fue un rugido gutural. Se abalanzó sobre mí como si creyera que podía derribarme, me golpeó el pecho con ambos puños, pero yo no me moví. Atrás cayó, dolido por el esfuerzo, y me miraba con indignación en sus ojos lacrimosos. Una vez más le había subido la sangre a las mejillas, oscureciendo todo su semblante. Sólo entonces, cuando comprendió que era inútil defenderse, trató de huir.

Só então, enquanto lutava com o estuchecito ovalado, vi que lhe tremiam as mãos. Não sabia dirigir bem os dedos. Ao final conseguiu abri-lo e me tendeu isso. Eu contemplei a miniatura grafite: o rosto da Claudia, seus olhos, seus cachos dourados. Uma menina que me olhava depois de uma máscara de inocência. Era uma máscara?

E lentamente, de entre o torvelinho de minha memória, extraí o momento em que pela primeira vez tinha posado meus olhos nessa quinquilharias, em sua cadeia de ouro quando me achava na lôbrega rua de terra e acertei a passar pela choça onde a mãe jazia morta por causa da peste e sua filhinha mortal, convertida em alimento do vampiro, era um corpinho branco que tremia, indefeso, nos braços do Louis.

Como me ri dele nesse momento! Tinha-o famoso com o dedo, logo levantei da cama pestilenta o corpo da morta -a mãe da Claudia-, e bailoteé com ela pela habitação. E no pescoço da difunta estava a cadenita com o relicário, porque nem o mais audaz dos ladrões se teria atrevido a entrar nessa choça para roubar essa bagatela das fauces mesmas da peste.

Tomei com a mão esquerda, enquanto a direita deixava cair o pobre cadáver. O broche se quebrado e fiz oscilar a cadeia em alto como exibindo um troféu. Logo o guardei no bolso, passei por cima do corpo moribundo da Claudia e saí à rua em detrás do Louis.

Passaram vários meses, até que um dia encontrei o relicário no mesmo bolso e o olhei à luz. Quando o retrato tinha sido pintado, ela era uma criatura viva, mas o Sangue Misterioso lhe conferiu a doce perfeição do pintor. Era minha Claudia, e o relicário ficou logo dentro de um baú. Agora bem: como foi parar à a Talamasca, não sei.

Sustentei-o na mão. Levantei a vista. Tive a sensação de haver remontado a aquele sítio ruinoso, e de estar de volta de repente, olhando ao David. David me tinha estado falando, mas não o ouvi.

-Seria capaz de me fazer isso perguntava, peremptório. O timbre de sua voz o traía, tal como minutos antes o tinha deixado em evidência o tremor das mãos. -Olha-a. Faria-me isso ?

Contemplei o diminuto rosto feminino; logo o olhei a ele.

-Sim, David. lhe adverti que voltaria a fazê-lo. E lhe farei isso.

Arrojei o relicário fora da habitação, e o vi cruzar o alpendre, passar sobre a areia e cair ao mar. A cadenita desenhou um risco dourado sobre o tecido do firmamento e imediatamente desapareceu, como internando-se na luz resplandecente.

Com uma velocidade que me surpreendeu, David retrocedeu e ficou pego à parede.

-Não o faça, Lestat.

-Não resista, meu amigo. Perde o tempo. Tem por diante uma larga noite de descobrimentos.

-Não o fará! -clamou, mas sua voz foi um rugido gutural. equilibrou-se sobre mim como se acreditasse que podia me derrubar, golpeou-me o peito com ambos os punhos, mas eu não me movi. Atrás caiu, doído pelo esforço, e me olhava com indignação em seus olhos lacrimosos. Uma vez mais lhe havia subido o sangue às bochechas, obscurecendo todo seu semblante. Só então, quando compreendeu que era inútil defender-se, tratou de fugir.

Agarrei-o por pescoço antes de que chegasse ao alpendre. Com os dedos massageei sua carne ao tempo que ele se debatia com selvageria, como faz o animal para soltar-se. Muito devagar o levantei e, sustentando sua cabeça com minha mão esquerda, perfurei com meus dentes a pele fina, fragrante e jovem de seu pescoço, com o qual recebi a primeira fervura de sangue.

Ah, David, meu amado David. Nunca me tinha arrojado em uma pessoa a quem conhecesse tanto. Que fortes e prodigiosas as imagens que me envolveram: a suave luz do sol que penetrava no bosque de mangles, o rangido do pasto alto no estepe africano, o estampido de uma arma larga, o tremor da terra amassada pelas patas do elefante. Todo isso senti: as chuvas estivais que banham eternamente as selvas, a água que chega até o nível dos pilote e cobre as madeiras do alpendre, o céu iluminado pelos relâmpagos... e no fundo, o coração do David pulsando com rebeldia, com recriminação, traiu-me, traiu-me, toma contra minha vontade, e o calor salobre do sangue mesma.

Empurrei-o para trás. Foi suficiente como primeiro gole. Olhei-o fazendo esforços por incorporar-se. O que tinha visto durante esses segundos? Sabia agora o tenebroso e obstinado que era meu coração?

-Ama-me? -perguntei-lhe-. Sou seu único amigo deste mundo?

Avançou engatinhando pelos ladrilhos. aferrou-se do respaldo da cama e se levantou, mas imediatamente voltou a cair, enjoado, e uma vez mais fez o esforço.

-OH, me permita te ajudar! -disse. Fiz-o girar em redondo, levantei-o e voltei a lhe cravar as presas nas mesmas feridas muito pequenos.

-Pelo amor de Deus, Lestat, não siga mais. Suplico-lhe isso.

Suplica em vão, David. OH, que delicioso esse corpo jovem, essas mãos que me afastavam, que vontade que tem, meu belo amigo. E agora estamos no velho o Brasil, não é certo?, na pequena habitação, e ele pronuncia os nomes dos espíritos do candomblé, invoca-os. Virão os espíritos?

O solto, volta a cair de joelhos e se dá volta sobre um flanco, olhando fixo para frente. Suficiente, para ser um segundo ataque.

ouviram-se uns tapinhas na habitação.

-Ah, temos companhia? Pequenos amigos invisíveis? Sim, olhe, o espelho se está bamboleando. vai se cair! -Em efeito, caiu ao piso, e se desprenderam do marco infinidade de vestígios de luz.

David tentava voltar a ficar de pé.

-Sabe como os sinto eu, David? Alcança para me ouvir? São como muitas bandeirolas de seda que se estendem a meu redor. Assim de débeis.

Uma vez mais ficou de joelhos e engatinhou pela habitação. De repente se levantou e se lançou para frente. Gesticulou o livro que estava junto ao computador, deu meia volta e me arrojou isso, mas caiu a meus pés. Ele já cambaleava. Apenas sim se podia ter em pé, e tinha a vista nublada.

Logo girou e quase cai de boca na galeria; conseguiu logo que transpor o corrimão e avançou para a praia.

Fui atrás dele, que baixava aos tombos pelo pendente de areia branca. Minha sede aumentava, pois tinha recebido segundos sangue antes e necessitava mais. Quando chegou à água se deteve, vacilante, a ponto de desabar-se.

Sujeitei-o do ombro com ternura, estreitei-o com meu braço direito.

-Não, maldito seja! Que vá ao inferno! -reagiu. Com toda sua força, já minguada, atirou-me um murro na cara, mas se rasgou os nódulos ao se chocar contra minha pele inamovible.

Fiz-o girar em redondo e vi que me chutava as pernas, que voltava a me golpear com essas mãos impotentes, e uma vez mais me inclinei sobre seu pescoço, passei-lhe a língua, cheirei-o, até que lhe cravei os dentes pela terceira vez. Hmmm... isto é o êxtase. O antigo corpo do David, gasto pelo passado do tempo, me teria brindado tal festim? Senti o impacto de sua mão contra minha cara. Ah, tão, mas tão forte. Sim, resista, resista como fiz eu com o Magnus. Que formoso que me ataque. Eu gosto, eu adoro.

E o que ouvi em meio de tanta emoção? A mais pura das preces que partia de seus lábios, mas não dirigida a esses deuses em quem não acreditava, não a um Cristo crucificado nem a uma antiga Virgem Mãe. Rezava-me . "Lestat, meu amigo, não me tire a vida. me solte, por favor."

Hmmm. Apertei-o com mais força pelo peito. Logo me joguei para trás, lambi-lhe as feridas.

-Não sabe escolher seus amigos, David -murmurei, me passando a língua pelo sangue dos lábios, olhando o de frente. Estava quase morto. Que belos esses dentes brancos deles, a carne tenra de seus lábios. Sob suas pálpebras só aparecia o branco de seus olhos. E como brigava seu coração, esse coração mortal jovem, são. Um coração que tinha bombeado o sangue a meu cérebro. Um coração que vacilou e se deteve quando eu tive medo, quando vi aproximá-la morte.

Apoiei a orelha contra seu peito para escutar. Pareceu-me ouvir o ulular da ambulância no Georgetown. "Não me deixe morrer".

Vi-o naquela habitação de hotel sonhada faz muito tempo, com o Louis e com a Claudia. É que não somos mais que seres fortuitos nos sonhos do demônio?

O coração diminuía seu ritmo. Já estava por chegar o momento. Um traguito mais, amigo.

Elevei-o e assim me levei isso pela praia, de volta à habitação. Beijei as minúsculas feridas, passei-lhes a língua, suguei delas e por último voltei a lhes cravar os dentes. Seu corpo sofreu uma convulsão, e um grito sufocado escapou de seus lábios.

-Amo-te -articulou.

-E eu também a ti -respondi-lhe, minhas palavras afogadas contra sua carne, ao tempo que o sangue voltava a fluir, irresistível.

Os batimentos do coração eram muito débeis. Sua mente se povoava de lembranças que se remontavam até o berço. Não articulava sílabas claras, precisas: gemia sozinho, como rememorando a velha melodia de alguma canção.

Seu corpo pesado, morno, estava apertado contra o meu; os braços lhe caíam frouxos. Tinha os olhos fechados e a cabeça ainda sustentada por minha mão esquerda. O gemido se apagou, e o coração se acelerou de repente com pulsados pequenos, afogados.

Mordi-me a língua até que não pude agüentar mais a dor. Voltei a me cravar repetidas vezes minhas próprias presas, movi a língua de um lado a outro; logo apertei minha boca contra a sua, obriguei-o a separar os lábios e deixei fluir meu sangue sobre sua língua.

O tempo parecia haver-se detido. Senti o sabor inconfundível de meu próprio sangue me enchendo a boca antes de passar à sua. Mas de improviso seus dentes se fecharam em minha língua, morderam-me com toda a força mortal que ainda tinham suas mandíbulas, rasparam a carne preternatural, arrastaram o sangue que emanava do corte que eu mesmo me tinha feito, morderam, digo, com tanta intensidade para me sugar a língua, se tivessem podido.

Um violento espasmo o atacou. Suas costas se arqueou contra meu braço. E quando me apartei, com a boca cheia de sofrimento e a língua dolorida, ele se deteve, faminto, seus olhos ainda cegos. Fiz-me uma incisão na boneca. Já vai sair, meu amado. Aí sai, não em gotitas, mas sim do caudal mesmo de minha existência. E esta vez, quando sua boca se apertou contra mim, senti uma dor que chegou até a raiz de meu ser, enredando meu coração em sua malha ardente.

Para ti, David. Bebe até o mais fundo, para que seja forte.

Isto agora não podia me destruir, por muito que se prolongasse.

Eu sabia, e as lembranças daquelas épocas passadas em que o tinha feito, embargado de medo, pareceram-me tolos e torpes e até se foram apagando à medida que os evocava, me deixando a sós, com ele.

Ajoelhei-me, sustentando-o, e a dor me chegou até a última de minhas veias e minhas artérias, como tinha que ser. E a dor se fez tão intenso em mim, que me tendi no piso com ele em meus braços, minha boneca aderida a sua boca, minha mão ainda sob sua cabeça. Invadiu-me um grande enjôo. Os batimentos do coração de meu coração se voltaram perigosamente lentos. Ele seguia sugando, e na negrume brilhante de meus olhos fechados vi os milhares de milhares de minúsculos copos sangüíneos já vazios, contraídos, pendurando como magros fios negros de uma telaraña desprendida pelo vento.

De novo nos achávamos no quarto do hotel de Nova Orleáns, e ali estava Claudia, calladita, sentada em uma poltrona. Fora a cidade pestanejava com seus abajures opacadas. Que escuro e lôbrego o firmamento, sem rastros de que estivesse por chegar a grande aurora das cidades.

-Adverti-te que voltaria a fazê-lo -disse a Claudia.

-por que te incomoda em me explicar isso respondeu-me-. Sabe muito bem que nunca te fiz perguntas nisso. Faz muitíssimos anos que estou morta.

Abri os olhos.

Achava-me tendido sobre as frite ladrilhos da peça e ele estava de pé, me olhando de acima, e a luz elétrica brilhava sobre seu rosto. Seus olhos já não eram marrons; estavam plenos de uma deslumbrante luz áurea. Um brilho sobrenatural tinha invadido sua pele escura, esclarecendo-a apenas, confiriéndole um dourado mais perfeito. Seu cabelo já tinha adquirido o maravilhoso brilho diabólico; toda a iluminação se concentrava nele, refratava-se e partia dele, dançava a seu redor como se considerasse irresistível a esse homem alto, angélico, de expressão perplexa, aturdida.

Não falou. E eu, em que pese a que não pude interpretar seu semblante, compreendia as maravilhas que ia captando com seus olhos. Soube o que foi o que viu quando olhou em redor, quando reparou no abajur, nas partes quebradas do espelho, no céu sobre a praia.

Novamente dirigiu seus olhos a mim.

-Está ferido -disse em um murmúrio.

Ouvi o sangue em sua voz!

-Está ferido? -insistiu.

-Pelo amor de Deus -repliquei com voz destemperada-, não entendo como se preocupa que possa estar ferido.

afastou-se de mim com olhos exagerados, como se a cada segundo que passava se ampliasse sua visão; logo se voltou e foi como se se esqueceu de que eu estava aí. Seguia olhando com a mesma expressão de entusiasmo. Depois, dobrado em duas pela dor, girou, encaminhou-se à galeria e saiu por volta do mar.

Incorporei-me. Vi a habitação envolta em um brilho tênue. Tinha-lhe dado até a última gota de sangue que ele podia receber. A sede me paralisava e logo que sim podia me manter assine. Abracei-me o joelho e tratei de permanecer sentado, sem cair ao piso de puro fraco.

Estirei o braço esquerdo para ver-me a mão à luz. No dorso, as venitas estavam levantadas mas já, enquanto as olhava, notei que se foram alisando.

Meu coração bombeava com brios. E por intensa e terrível que fora a sede, eu sabia que podia esperar. Não sei por que já me estava repondo, mas algum motor sinistro que levava em meu interior trabalhava laboriosa, silenciosamente, por minha restauração, como se terei que lhe curar até a última frouxidão a essa excelsa máquina de matar que era eu, para que pudesse voltar a sair de caçada.

Quando por fim consegui me pôr de pé, já era o de sempre. Tinha-lhe dado mais sangue da que dava a todos outros que tinha criado. Já tinha terminado e o tinha feito bem. David ia ser tão forte! OH Deus, muito mais potente que os outros.

Mas tinha que ir buscá-lo, pois devia estar morrendo. Terei que ajudá-lo, quando tratasse de me fazer a um lado.

Encontrei-o fundo na água até a cintura. Tremia e era tanto sua dor, que ofegava lentamente, como querendo não fazer ruído. Tinha o relicário, e a cadenita enlaçada no punho.

Rodeei-o com o braço para sustentá-lo. Disse-lhe que isso não ia durar muito. E quando lhe passasse, seria para sempre. Moveu a cabeça para me dizer que entendia.

Ao ratito senti que seus músculos se afrouxavam. Impulsionei-o a que voltasse comigo para a praia, onde não custava tanto caminhar com independência da fortaleza que alguém tivesse, e juntos retornamos à areia.

-vais ter que te alimentar -disse-lhe-.Parece-te que poderá fazê-lo sozinho?

Fez um movimento de negação com a cabeça.

-Bom, levo-te eu e te ensino tudo o que terá que te ensinar. Mas primeiro terá que ir a uma cascata que acredito que há lá encima. Eu a ouço, e você? Ali te poderá higienizar.

Assentiu e me seguiu com a cabeça encurvada, sujeitando-a cintura com um braço; seu corpo cada tanto ficava tenso com as últimas cãibras violentas que a morte sempre traz aparelhados.

Quando chegamos à cascata, subiu sem dificuldade pelas rochas traiçoeiras, tirou-se o short e se parou, nu sob o jorro, que banhou seu corpo inteiro. Tinha os olhos muito abertos. Em um momento dado se sacudiu, cuspiu a água que acidentalmente lhe tinha entrado na boca.

Eu o observava, e à medida que passavam os segundos ia me sentindo cada vez mais forte. Logo dava um salto que me levou até o alto da cascata, e aterrissei sobre o escarpado. De lá o via, pequena silhueta envolta nas salpicaduras, que olhava para cima.

-Pode vir até aqui? -disse em voz baixa.

Fez um gesto afirmativo. Excelente que me tivesse ouvido. inclinou-se para trás e, da água, deu um grande salto que o levou até o topo do escarpado, embora uns metros mais abaixo de onde estava eu. Não teve problemas em sujeitar-se com as mãos das rochas escorregadias. Logo completou o salto sem olhar para baixo, e chegou a meu lado.

Assombrou-me enormemente seu poderio. Mas não só sua força, mas também sua audácia extrema. E parecia ter esquecido todo o episódio, pois se limitou a contemplar as nuvens errantes, o brilho suave do céu. Dirigiu seus olhos às estrelas, logo a terra firme, à selva que descia pelo despenhadeiro.

-Sente a sede? -perguntei-lhe, e me respondeu que sim sem palavras, me olhando só de passada. Logo observou o mar. -Bem, agora voltamos para sua habitação, veste-te para ir em busca de presas e baixamos à cidade.

-Tão longe? -perguntou, e assinalou o horizonte-. Há um barquito por lá.

Busquei-o e pude vê-lo através dos olhos de um homem que ia a bordo, um ser desagradável e cruel. tratava-se de um contrabando, e o sujeito ia molesto porque seus cúmplices, ébrios, tinham-no abandonado e ele devia fazer tudo sem ajuda.

-De acordo -disse-. Vamos juntos.

-Não. Acredito que devo ir eu sozinho.

Girou sem esperar minha resposta e descendeu depressa, grácilmente, à praia. afastou-se como um raio de luz, internou-se nas ondas e começou a nadar com poderosas braçadas.

Eu caminhei até o bordo do escarpado, encontrei um senderito rústico e por ali baixei até a habitação. Ao chegar observei os despojos: o espelho desfeito, a mesa dada volta, o computador tiragem de flanco, o livro cansado no piso. A cadeira tombada na galeria.

Dava meia volta e saí.

Voltei a subir até os jardins. A lua estava muito alta e subí pelo caminho até o bordo mesmo do topo. Ali permaneci olhando a cinta estreita de branca praia, o mar liso, calado.

Por último me sentei contra o tronco grosso de uma árvore cujos ramos me cobriam formando uma marquise aérea. Apoiei o braço no joelho, e a cabeça no braço.

Passou uma hora.

Dava-me conta de que já voltava. Ouvi-o subir pelo atalho com passo ágil, com umas pegadas que não poderia ter mortal algum. Quando levantei a vista comprovei que se banhou e trocado, que até se penteou e ficava ainda o aroma do sangue bebida, possivelmente lhe saindo dos lábios. Não era um ser débil como Louis, OH, não; era muito mais forte. E o processo ainda não tinha concluído. Já lhe tinham terminado os dores de morte, mas seguia robustecendo-se -coisa que notei a simples vista-, e era um prazer contemplar o brilho dourado de sua pele.

-por que o fez? -exigiu saber. Uma máscara me pareceu esse rosto, que se acendeu de zango ao falar. -por que o fez?

-Não sei.

-Vamos, não me venha com essas. E não quero verte lágrimas! por que o fez!

-Digo-te honestamente: não sei. Poderia te dar muitíssimas razões, mas confesso que não sei. Fiz-o porque queria fazê-lo, porque me deu a vontade, porque queria ver o que acontecia... queria... e não podia não fazê-lo. Isso soube quando retornei a Nova Orleáns. Esperei e esperei, mas não podia deixar de fazê-lo. E agora já parece.

-Filho de puta, mentiroso! Fez-o por malvado e perverso! Fez-o porque te fracassou o experimento com o Ladrão de Corpos! Porque produto desse experimento foi o milagre que me aconteceu , esta juventude, este renascimento, e te indignou que isto passasse, que eu saísse beneficiado sendo que você tinha sofrido tanto!

-Talvez é verdade!

-É verdade; reconhece-o. Reconhece sua mesquinharia. Não podia permitir que eu avançasse ao futuro com este corpo que você não teve a coragem de suportar!

-Pode ser.

aproximou-se e tratou de me levantar pela força me barbeando do braço, mas, é obvio, não o conseguiu. Não pôde me mover nem um centímetro.

-Não tem ainda a força que faz falta para essas mutretas -disse-lhe-. Se não acabar já com isto, dou-te um golpe que te deixo convexo no chão, e não te vai gostar. É muito digno para isso, assim, se me fizer o favor, termina com essa vulgaridade humana dos punhos.

ficou de costas, cruzou os braços e agachou a cabeça. Até mim chegavam os pequenos sons de desespero que deixava escapar. afastou-se, e eu voltei a afundar a cara em meu braço.

Então ouvi que retornava.

-por que? -repetiu-. Quero que me diga algo, um reconhecimento de qualquer tipo.

-Não.

Estirou uma mão, enredou os dedos em meu cabelo e me obrigou a levantar a cabeça de um puxão que me doeu em todo o couro cabeludo.

-A verdade é que te está excedendo, David -recriminei-lhe, e no ato me soltei-. Um truquito mais destes, e te juro que te jogo no precipício.

Mas quando o olhei, quando vi todo o sofrimento que havia dentro dele, fiquei calado.

ficou de joelhos ante mim, de modo que ficamos quase à mesma altura.

-por que, Lestat? -murmurou, e sua voz afligida me partiu a alma.

Arrasado de vergonha e desdita, fechei os olhos e voltei a apertá-los contra meu próprio braço direito, enquanto com o esquerdo me tampava a cabeça. E não houve nada -nem seus rogos, nem suas maldições, nem à larga sua partida em silêncio- que me fizesse levantar o olhar outra vez.

Saí para buscá-lo antes do amanhecer. O quartinho já estava em ordem, e sua mala na cama. O computador estava fechada e, sobre seu estojo de plástico, o exemplar do "Fausto".

Mas ele não estava. Busquei-o por todo o hotel, sem sorte. Registrei os jardins, os bosques em uma e outra direção, e nada.

Por último achei uma pequena cova no alto da montanha, introduzi-me até o fundo e ali dormi.

Para que descrever a aflição ou a dor surda que me afligiam? Que sentido tem assegurar que tinha consciência do grau de injustiça, desonra e crueldade de meu ato? Sabia a enormidade do que lhe tinha feito.

Eu me conhecia, e conhecia perfeitamente minha maldade; portanto não esperava nada do mundo, salvo que me pagasse com a mesma moeda.

Despertei assim que o sol descendeu até o mar. De um ravina alto contemplei o crepúsculo; logo baixei a caçar às ruas urbanas. Não passou muito momento até que aconteceu o habitual: um ladrão tentou me pôr as mãos em cima e me roubar. Transportei-o então até um beco, e ali me deleitei sugando-o sem pressa, a passos apenas de onde abundavam os turistas. Escondi o cadáver nas trevas do beco e segui meu caminho.

Qual era meu caminho?

Retornei ao hotel. Seguiam ali seus pertences, mas não ele. Busquei-o de novo, tratando de conter um medo espantoso de que tivesse querido destruir-se. Depois pensei que David era muito forte, que embora se exposto à fúria do sol -coisa que duvidava-, não podia ter sido destruído por completo.

Mas me atormentava todo tipo de temores: que estivesse muito queimado e impossibilitado de mover-se, que os mortais o tivessem descoberto, que meus companheiros o tivessem seqüestrado. Ou, que reaparecesse e voltasse a me amaldiçoar. Também temia isso.

Por último retornei ao Bridgetown, mas era incapaz de partir da ilha sem saber que sorte tinha deslocado.

Continuava ainda ali uma hora antes do amanhecer.

Essa noite não o encontrei. Tampouco a seguinte.

Ao final, doído na mente e o coração, convencido de que todo esse sofrimento me merecia isso, resolvi retornar.

A tibieza da primavera tinha chegado por fim a Nova Orleáns e pululavam nela os turistas, sob o céu cor púrpura da noite. Primeiro dirigi a minha casa, a procurar a Molho na da mulher, que não se alegrou absolutamente de me entregar isso embora se notava que ele me tinha sentido saudades muito.

Ambos partimos logo para a rua Royale.

antes de terminar de subir a escada do fundo, soube que o departamento não estava vazio. Detive-me um instante para contemplar de acima o pátio restaurado, com seus grandes ladrilhos polidos, a romântica fuentecilla a que não lhe faltavam nem querubins e carapaças marinhos em forma de cornucopia despedindo jorros de água pura em uma vasilha.

Contra o velho tapial de tijolo tinham plantado um trabalhador de pedreira de flores; em um rincão já prosperava um grupo de bananeros, e suas grácis folhas faziam gestos de assentimento balançadas pela brisa.

Ver isso alegrou sobremaneira meu corazoncito egoísta.

Entrei. Terminada por fim, a sala de atrás luzia as belas poltronas de antiquário que eu tinha eleito, assim como a grosa atapeta persa de um tom vermelho pálido.

Percorri o corredor com o olhar, revisei o empapelado a raias brancas e douradas, o atapetado escuro, e vi o Louis parado na porta do salão de adiante.

-Não me pergunte onde estive nem o que fiz -antecipei-me. Enfiei para ele, fiz-o a um lado e entrei na habitação. OH, aquilo superava todas minhas expectativas. Havia entre as janelas uma réplica exata de seu antigo escritório, estava também o sofá estofado em tecido de damasco e a mesa ovalada com incrustações de mogno.

-Sei onde estiveste -disse-, e o que fez.

-Ah, sim? E agora o que vem? Um ridículo sermão? diga-me isso já, assim posso ir a dormir.

Voltei-me para olhá-lo e ver que efeito lhe produzia esse desplante -se é que lhe produzia algum-, e vi o David a seu lado, vestido de veludo cor negra, com os braços pregados no peito, apoiado contra o marco da porta.

Ambos me olhavam com cara inexpressiva; David era o mais alto e escuro dos dois, mas o que parecidos os vi. Demorei um pouco em tomar consciência de que Louis se vestiu para a ocasião e que, por uma vez na vida sua roupa não parecia recém tirada de um baú do mezanino.

Foi David quem falou primeiro.

-Amanhã começa o carnaval de Rio -disse, com voz ainda mais sedutora do que era em sua vida mortal-. Pensei que podíamos ir.

Olhei-o fixo, e por força suspeitei. Pareceu-me notar uma luz sórdida em sua expressão, certo brilho duro em seus olhos. Mas a boca era tão tenra, sem rastros de malevolência, ou de maldade. Não emanava dele ameaça alguma.

Logo Louis despertou de seu sonho e em silêncio se afastou pelo corredor rumo a seu antigo quarto. O que conhecido me resultou o tênue ranger da madeira a seu passo!

Sentia-me extremamente confundido e um pouco sufocado.

Tomei assento no divã e lhe fiz gestos a Molho de que se aproximasse; veio e se sentou frente a mim, apoiando todo seu peso contra minhas pernas.

-Diz-o a sério? -perguntei-. Quer que vamos juntos?

-Sim. E depois daí, às selvas tropicais. Você gostaria?

nos internar nos bosques. -Baixou os braços, agachou a cabeça e começou a passear-se a grandes limiares. -Disse-me algo, não me lembro muito bem quando... talvez foi uma imagem que obtive de ti antes de que acontecesse tudo... algo sobre um templo que os mortais não conheciam, perdido em meio da selva. OH, pensa em tudo o que se pode descobrir ali.

Que genuíno o sentimento, que sonora sua voz.

-por que me perdoou, David?

Deixou de passear-se e me olhou, mas eu estava tão absorto observando como o sangue lhe tinha trocado o cabelo e a pele, que por um instante não pude pensar. Levantei uma mão para lhe pedir que não falasse. por que não me habituava alguma vez a essa magia? Soltei a mão e lhe permiti, não, convidei-o a prosseguir.

-Você sabia que te ia perdoar -repôs, adotando seu antigo tom moderado-. Quando o fez, já sabia que de todos os modos eu te ia seguir querendo, que te necessito. Que te ia procurar e ia aferrar a ti, mais que a ninguém neste mundo.

-Não, não. Juro que não sabia -murmurei.

-Afastei-me a propósito, para te castigar. Pôs a prova minha paciência. É o ser mais maldito, como lhe definiram outros mais inteligentes que eu. Mas sabia que eu ia voltar, que ia estar aqui.

-Jamais me cruzou pela mente.

-Não comece a chorar de novo, Lestat.

-Eu gosto de chorar. Devo fazê-lo. Se não, por que choro tanto?

-Bom, basta!

-OH, vamos divertir nos, verdade? Agora te crie o chefe deste reduto, e que pode começar a mandonearme, não?

-O que disse?

-Já nem sequer parece o major dos dois, e nunca foi! Deixa-te enganar da maneira mais parva por meu aspecto belo e irresistível. O chefe sou eu. Esta é minha casa. Eu decidirei se for a Rio.

Prorrompeu em risadas, lentas ao princípio, logo mais profundas e livres. Se é que algo havia nele de ameaçador, eram só suas notáveis mudanças de expressão, o brilho enigmático de seus olhos. Mas tampouco estava seguro de que houvesse alguma ameaça, depois de tudo.

-É você o chefe? -perguntou, com desdém. A velha autoridade.

-Sim. E você fugiu para me demonstrar que podia prescindir de mim, que não necessitava ajuda para caçar, que foi capaz de encontrar onde te esconder de dia. Não me precisava, e entretanto, aqui está!

-Vem, ou não, a Rio conosco?

-Disse "nós"?

-Assim é.

encaminhou-se até o extremo que ficava mais perto do divã e se sentou. Tomei consciência então de que já estava em pleno uso de suas novas faculdades. E, certamente, impossível determinar com apenas olhá-lo quão forte realmente era. O tom escuro de sua pele enganava muito. Cruzou as pernas em uma postura cômoda, mas sem menoscabo da dignidade que sempre tinha tido.

Talvez tenha sido porque permaneceu muito erguido contra o respaldo da poltrona, ou pela forma em que colocou uma mão sobre seu tornozelo e a outra sobre o apoyabrazos.

Só o abundante cabelo anelado traiu em algo seu aspecto digno, pois lhe caía tanto sobre a frente que sacudiu por fim a cabeça.

Mas o certo é que, de repente, desvaneceu-se sua compostura; em seu rosto se pintaram todas as rugas de uma repentina perplexidade e, logo, de angustia Lisa e plaina.

Custou-me suportá-lo, mas me propus manter o silêncio.

-Tratei de te odiar -confessou, e seus olhos se abriram mais à medida que a voz se ia perdendo-. Não pude, simplesmente não pude. -Houve um momento em que vi a ameaça, a imensa fúria preternatural que fluía dele, mas logo a cara mostrou dor e, por último, simples tristeza.

-por que não?

-Não jogue comigo.

-Jamais joguei contigo! Tudo o que te digo o digo a sério. Não entendo como não me odeia.

-Se te odiasse, estaria cometendo o mesmo engano que você -respondeu, arqueando as sobrancelhas-. Não vê o que tem feito? Deu-me o dom, mas me evitou ter que capitular. Deu-me, para ingressar, todas suas aptidões e sua fortaleza, mas não exigiu minha derrota moral. Economizou-me a decisão, e me deu o que eu não podia a não ser desejar.

Fiquei sem palavras. Tudo era certo, mas era a mentira mais maldita que jamais tinha ouvido.

-Então o homicídio e a violação nos levarão a glória! Não aceito sua versão. Estamos todos condenados, e agora você também: isso é o que te tenho feito.

Suportou a surriada como se fossem leves tapinhas que apenas sim o alteravam; logo voltou a fixar seus olhos em mim.

-Demorou duzentos anos em saber que o queria -disse-. Eu soube logo que saí do embotamento e te vi tendido no piso. Pareceu-me uma velha casca vazia. Dava-me conta de que tinha ido muito longe com o experimento e senti terror por ti. E te estava vendo com esses olhos novos.

-Sim.

-Sabe a idéia que me cruzou? Que tinha encontrado uma forma de morrer. Tinha-me entregue até a última gota de seu sangue, e estava morrendo ante meus olhos. Então compreendi que te amava, e te perdoei. E soube, com cada respiração, com cada forma ou cor novos que via, que desejava isso que me tinha dado, a nova visão e a vida que nenhum de nós acerta a descrever! Ah, não podia reconhecê-lo. Tinha que te amaldiçoar, fingir indignação durante um momento. Mas à larga foi nada mais que isso: algo que durou um momento,

-É muito mais inteligente que eu -sustentei, em tom suave.

-Mas certamente. O que supunha?

Suspirei.

-Ah, isso é o Truque Misterioso -murmurei-. Quanta razão tiveram os de antes em lhe dar esse nome. Pergunto-me se estará operando o truque em mim, porque tenho ante minha vista um vampiro, um bebedor de sangue de grande poder, criado além por mim mesmo, e o que são agora para ele as velhas emoções?

Olhei-o, e uma vez mais me encheram os olhos de lágrimas.

Ele franzia o sobrecenho e tinha os lábios levemente separados; então pensei que realmente lhe tinha atirado um golpe terrível. Mas não me disse nada. Parecia sobressaltado; logo sacudiu a cabeça como se não fora capaz de responder.

Compreendi que o que via nele não era vulnerabilidade mas sim mas bem compaixão, uma grande inquietação por mim.

levantou-se de improviso, ajoelhou-se frente a mim e apoiou as mãos em meus ombros sem preocupar-se com meu fiel Molho, que o olhou com indiferença. Sabia David que essa era a pose em que me tinha enfrentado a Claudia em meu sonho febril?

-É o mesmo de sempre -disse-. Igual a sempre.

-Igual a que?

-Cada vez que vinha para ver-me, comovia-me, inspirava-me um profundo sentimento de amparo. Fazia-me sentir amor. E agora é o mesmo, só que parece mais confundido, mais necessitado de mim. Eu te vou levar para frente: isso o vejo com claridade. Sou seu elo com o futuro. Através de mim verá os anos do futuro.

-Você também segue sendo o mesmo. Um inocente, um idiota total. -Tratei de tirar sua mão de meu ombro mas não tive êxito. -Esperam-lhe grandes problemas. Já vais ver.

-OH, que emocionante. Vêem, vamos já a Rio. Não terá que perder-se nada do carnaval. Embora, é obvio, poderemos seguir indo ano detrás ano... Mas vêem.

Fiquei muito quieto, observando-o um comprido instante, até que finalmente voltou a preocupar-se. Senti a fortísima pressão de seus dedos em meus ombros. Sim, tinha-me saído bem, tinha-o feito muito bem em todo sentido.

-O que acontece? -perguntou com acanhamento-. Sente pena por mim?

-Talvez... um poquito. Tal como disse, não sou tão inteligente como você, não sei tão bem o que quero. Mas agora quero me gravar este momento para recordá-lo sempre... quero recordar como é agora, aqui, comigo, antes de que as coisas comecem a andar mau.

ficou de pé e me forçou a me levantar de repente, sem o menor esforço. Minha cara de assombro lhe produziu um sorriso vitorioso.

-Esta luta vai ser todo um espetáculo -vaticinei.

-Pode brigar comigo em Rio, enquanto dançamos pelas ruas.

Fez-me gestos de que o seguisse. Eu não sabia o que íamos fazer a seguir nem como realizaríamos a viagem, mas me sentia muito entusiasmado e não me interessavam absolutamente os detalhes corriqueiros.

É obvio, terei que convencer ao Louis para que nos acompanhasse, mas o atacaríamos entre os dois e de algum jeito o tentaríamos para que aceitasse, por relutante que se mostrasse.

Já estava por sair atrás dele da sala, quando de repente vi algo sobre o velho escritório do Louis.

Era o relicário. A cadeia, enrolada, captava a luz com seus minúsculos elos de ouro e o relicário mesmo estava aberto e apoiado contra o tinteiro. A carita da Claudia parecia estar me olhando diretamente .

Tomei, olhei atentamente o retrato e constatei algo que me produziu tristeza.

Claudia já não estava nas lembranças reais: transformou-se naqueles delírios febris. Era ela a imagem que vi no hospital da selva, uma figura recortada contra o sol no Georgetown, um fantasma que perambulava entre as sombras do Notre me Dê. Em vida, nunca tinha sido minha consciência! Não. Nunca Claudia, minha desumana Claudia. Que sonho! Puro sonho.

Uma risada secreta apareceu em meus lábios quando a olhei, amargurado, a ponto de soltar as lágrimas uma vez mais. Porque nada tinha trocado quando compreendi que eu lhe tinha dado as palavras de acusação. A coisa mesma era verdade. Tive a oportunidade de me salvar... e disse que não.

Enquanto sustentava o relicário na mão quis dizer algo a Claudia, ao ser que ela tinha sido, a minha própria debilidade, ao ser perverso e ambicioso que há em mim e que uma vez mais tinha triunfado. Porque tinha triunfado.

Sim, deram-me tantas vontades de dizer algo! E oxalá esse algo estivesse cheio de poesia, de significação profunda, e liberasse meu ambicioso coração de toda sua maldade. Porque partia a Rio, não?, e com o David, e com o Louis, e começava uma nova era...

Sim, dizer algo -pelo amor do céu e o amor da Claudia-, e mostrar o que realmente é. meu deus, abri-lo e mostrar o horror que há no centro.

Mas não pude.

Que mais se pode dizer, realmente?

O conto terminou.

 

                                                                                Anne Rice  

 

                      

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