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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O LADRÃO DE RAIOS / Rick Riordan
O LADRÃO DE RAIOS / Rick Riordan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Sem querer, transformo em pó minha professora de iniciação à álgebra
Olhe, eu não queria ser um meio-sangue.
Se você está lendo isto porque acha que pode ser um, meu conselho é o seguinte: feche este livro agora mesmo. Acredite em qualquer mentira que sua mãe ou seu pai lhe contou sobre seu nascimento, e tente levar uma vida normal.
Ser um meio-sangue é perigoso. É assustador. Na maioria das vezes, acaba com a gente de um jeito penoso e detestável.
Se você é uma criança normal, que está lendo isto porque acha que é ficção, ótimo. Continue lendo. Eu o invejo por ser capaz de acreditar que nada disso aconteceu.
Mas, se você se reconhecer nestas páginas — se sentir alguma coisa emocionante lá dentro —, pare de ler imediatamente. Você pode ser um de nós. E, uma vez que fica sabendo disso, é apenas uma questão de tempo antes que eles também sintam isso, e venham atrás de você.
Não diga que eu não avisei.
Meu nome é Percy Jackson.
Tenho doze anos de idade. Até alguns meses atrás, era aluno de um internato, na Academia Yancy, uma escola particular para crianças problemáticas no norte do estado de Nova York.
Se eu sou uma criança problemática?
Sim. Pode-se dizer isso.
Eu poderia partir de qualquer ponto da minha vida curta e infeliz para prová-lo, mas as coisas começaram a ir realmente mal no último mês de maio, quando nossa turma do sexto ano fez uma excursão a Manhattan — vinte e oito crianças alucinadas e dois professores em um ônibus escolar amarelo indo para o Metropolitan Museum of Art, a fim de observar velharias gregas e romanas.
Eu sei, parece tortura. A maior parte das excursões da Yancy era mesmo.
Mas o sr. Brunner, nosso professor de latim, estava guiando essa excursão, assim eu tinha esperanças.
O sr. Brunner era um sujeito de meia-idade em uma cadeira de rodas motorizada. Tinha o cabelo ralo, uma barba desalinhada e usava um casaco surrado de tweed que sempre cheirava a café. Talvez você não o achasse legal, mas ele contava histórias e piadas e nos deixava fazer brincadeiras em sala. Também tinha uma impressionante coleção de armaduras e armas romanas, portanto era o único professor cuja aula não me fazia dormir.
Eu esperava que desse tudo certo na excursão. Pelo menos tinha esperança de não me meter em encrenca dessa vez.
Cara, como eu estava errado.
Entenda: coisas ruins me acontecem em excursões escolares. Como na minha escola da quinta série, quando fomos para o campo da batalha de Saratoga, e eu tive aquele acidente com um canhão da Revolução Americana. Eu não estava apontando para o ônibus da escola, mas é claro que fui expulso do mesmo jeito.
E antes disso, na escola da quarta série, quando fizemos um passeio pelos bastidores do tanque dos tubarões do Mundo Marinho, e eu, de alguma forma, acionei a alavanca errada no passadiço e nossa turma tomou um banho inesperado. E antes disso... Bem, já dá para você ter uma ideia.

 


 


Nessa viagem, eu estava determinado a ser bonzinho.

Ao longo de todo o caminho para a cidade aguentei Nancy Bobofit, aquela cleptomaníaca ruiva e sardenta, acertando a nuca do meu melhor amigo, Grover, com pedaços de sanduíche de manteiga de amendoim com ketchup.

Grover era um alvo fácil. Ele era magrelo. Chorava quando ficava frustrado. Devia ter repetido o ano muitas vezes, porque era o único no sétimo ano que tinha espinhas e uma barba rala começando a nascer no queixo. E, ainda por cima, era aleijado. Tinha um atestado que o dispensava da Educação Física pelo resto da vida, porque tinha algum tipo de doença muscular nas pernas. Andava de um jeito engraçado, como se cada passo doesse, mas não se deixe enganar por isso. Você precisava vê-lo correr quando era dia de enchilada na cantina.

De qualquer modo, Nancy Bobofit estava jogando bolinhas de sanduíche que grudavam no cabelo castanho cacheado dele, e ela sabia que eu não podia revidar, porque já estava sendo observado, sob o risco de ser expulso. O diretor me ameaçara de morte com uma suspensão “na escola” (ou seja, sem poder assistir às aulas, mas tendo de comparecer à escola e ficar trancado numa sala fazendo tarefas de casa) caso alguma coisa ruim, embaraçosa ou até moderadamente divertida acontecesse durante a excursão.

— Eu vou matá-la — murmurei.

Grover tentou me acalmar.

— Está tudo bem. Gosto de manteiga de amendoim.

Ele se esquivou de outro pedaço do lanche de Nancy.

— Agora chega. — Comecei a levantar, mas Grover me puxou de volta para o assento.

— Você já está sendo observado — ele me lembrou. — Sabe que será culpado se acontecer alguma coisa.

Quando me lembro daquilo, preferiria ter acertado Nancy Bobofit no ato. A suspensão na escola não teria sido nada em comparação com a encrenca em que eu estava prestes a me meter.

O sr. Brunner guiou o passeio pelo museu.

Ele foi na frente em sua cadeira de rodas, conduzindo-nos pelas grandes galerias cheias de ecos, passando por estátuas de mármore e caixas de vidro repletas de cerâmica muito velha preta e laranja.

Eu ficava alucinado só de pensar que aquelas coisas tinham sobrevivido por dois mil, três mil anos.

Ele nos reuniu em volta de uma coluna de pedra com quatro metros de altura e uma grande esfinge no topo, e começou a explicar que aquilo era um marco tumular, uma estela, feita para uma menina mais ou menos da nossa idade. Contou-nos sobre as inscrições laterais. Estava tentando ouvir o que ele tinha a dizer, porque era um pouco interessante, mas todos ao meu redor estavam falando, e cada vez que eu dizia para calarem a boca, a outra professora que nos acompanhava, a sra. Dodds, me olhava de cara feia.

A sra. Dodds era aquela professorinha de matemática da Geórgia que sempre usava um casaco de couro preto, apesar de ter cinquenta anos de idade. Parecia má o bastante para entrar com uma moto Harley bem dentro do seu armário. Tinha chegado em Yancy no meio do ano, quando nossa última professora de matemática teve um colapso nervoso.

Desde o primeiro dia, a sra. Dodds adorou Nancy Bobofit e concluiu que eu tinha sido gerado pelo diabo. Ela me apontava o dedo torto e dizia: “Agora, meu bem”, com a maior doçura, e eu sabia que ia ficar detido depois da aula por um mês.

Certa vez, depois que ela me fez apagar as respostas em antigos livros de exercícios de matemática até meia-noite, disse a Grover que achava que a sra. Dodds não era gente. Ele olhou para mim, muito sério, e disse:

— Você está certíssimo.

O sr. Brunner continuou falando sobre arte funerária grega.

Finalmente, Nancy Bobofit, abafando o riso, falou algo sobre o sujeito pelado na estela, e eu me virei e disse:

— Quer calar a boca?

Saiu mais alto do que eu pretendia.

O grupo inteiro deu risada. O sr. Brunner interrompeu sua história.

— Sr. Jackson — disse ele —, fez algum comentário?

Meu rosto estava completamente vermelho. Eu disse:

— Não, senhor.

O sr. Brunner apontou para uma das figuras na estela.

— Talvez possa nos dizer o que esta figura representa.

Olhei para a imagem entalhada e senti uma onda de alívio, porque de fato a reconhecera.

— É Cronos comendo os filhos, certo?

— Sim — disse o sr. Brunner, e obviamente não estava satisfeito. — E ele fez isso porque...

— Bem... — eu quebrei a cabeça para me lembrar. — Cronos era o deus-rei e...

— Rei? — perguntou o sr. Brunner.

— Titã — eu me corrigi. — E... ele não confiava nos filhos, que eram os deuses. Então, hum, Cronos os comeu, certo? Mas sua esposa escondeu o bebê Zeus e deu a Cronos uma pedra para comer no lugar dele. E depois, quando Zeus cresceu, ele enganou o pai, Cronos, e o fez vomitar seus irmãos e irmãs...

— Eca! — disse uma das meninas atrás de mim.

— ...e então houve aquela grande briga entre os deuses e os titãs — continuei —, e os deuses venceram.

Algumas risadinhas do grupo.

Atrás de mim, Nancy Bobofit murmurou para uma amiga:

— Como se fôssemos usar isso na vida real. Como se fossem falar nas nossas entrevistas de emprego: “Por favor explique por que Cronos comeu seus filhos.”

— E por que, sr. Jackson — disse sr. Brunner —, parafraseando a excelente pergunta da srta. Bobofit, isso importa na vida real?

— Se ferrou — murmurou Grover.

— Cale a boca — chiou Nancy, a cara ainda mais vermelha que seu cabelo.

Pelo menos Nancy também foi enquadrada. O sr. Brunner era o único que a pegava dizendo algo de errado. Tinha ouvidos de radar.

Pensei na pergunta dele, e encolhi os ombros.

— Não sei, senhor.

— Entendo. — O sr. Brunner pareceu desapontado. — Bem, meio ponto, sr. Jackson. Zeus, na verdade, deu a Cronos uma mistura de mostarda e vinho, o que o fez vomitar as outras cinco crianças, que, é claro, sendo deuses imortais, estavam vivendo e crescendo sem serem digeridas no estômago do titã. Os deuses derrotaram o pai deles, cortaram-no em pedaços com sua própria foice e espalharam os restos no Tártaro, a parte mais escura do Mundo Inferior. E com esse alegre comentário, é hora do almoço. Sra. Dodds, quer nos levar de volta para fora?

A turma foi retirada, as meninas segurando a barriga, os garotos empurrando uns aos outros e agindo como bobões.

Grover e eu estávamos prestes a segui-los quando o sr. Brunner disse:

— Sr. Jackson.

Eu sabia o que vinha a seguir.

Disse a Grover para ir andando. Então me voltei para o professor.

— Senhor?

O sr. Brunner tinha aquele olhar que não deixa a gente ir embora — olhos castanhos intensos que poderiam ter mil anos de idade e já ter visto de tudo.

— Você precisa aprender a responder à minha pergunta — disse ele.

— Sobre os titãs?

— Sobre a vida real. E como seus estudos se aplicam a ela.

— Ah.

— O que você aprende comigo — disse ele — é de uma importância vital. Espero que trate o assunto como tal. De você, aceitarei apenas o melhor, Percy Jackson.

Eu queria ficar zangado, aquele sujeito me pressionava demais.

Quer dizer, claro, era legal em dias de torneio, quando ele vestia uma armadura romana, bradava “Olé!” e nos desafiava, ponta de espada contra giz, a correr para o quadro-negro e citar pelo nome cada pessoa grega ou romana que já viveu, o nome de sua mãe e que deuses cultuavam. Mas o sr. Brunner esperava que eu fosse tão bom quanto todos os outros a despeito do fato de que tenho dislexia e transtorno do déficit de atenção, e de que nunca na vida tirei uma nota acima de C-. Não — ele não esperava que eu fosse tão bom quanto; ele esperava que eu fosse melhor. E eu simplesmente não podia aprender todos aqueles nomes e fatos, e muito menos escrevê-los direito.

Murmurei alguma coisa sobre me esforçar mais, enquanto o sr. Brunner lançava um olhar longo e triste para a estela, como se tivesse estado no funeral daquela menina.

Ele me disse para sair e comer meu lanche.

A turma se reuniu nos degraus da frente do museu, de onde podíamos assistir ao trânsito de pedestres pela Quinta Avenida.

Acima de nós, uma imensa tempestade estava se formando, com as nuvens mais escuras que eu já tinha visto sobre a cidade. Imaginei que talvez fosse o aquecimento global ou qualquer coisa assim, porque o tempo em todo o estado de Nova York estava esquisito desde o Natal. Tivemos nevascas pesadas, inundações, incêndios nas florestas causados por raios. Eu não teria ficado surpreso se fosse um furacão chegando.

Ninguém mais pareceu notar. Alguns dos garotos estavam jogando biscoitos para os pombos. Nancy Bobofit tentava afanar alguma coisa da bolsa de uma senhora e, é claro, a sra. Dodds não via nada.

Grover e eu nos sentamos na beirada do chafariz, longe dos outros. Pensamos que, se fizéssemos isso, talvez ninguém descobrisse que éramos daquela escola — a escola para esquisitões lesados que não davam certo em nenhum outro lugar.

— Detenção? — perguntou Grover.

— Não — disse eu. — Não do Brunner. Eu só gostaria que ele às vezes me desse um tempo. Quer dizer, não sou um gênio.

Grover não disse nada por algum tempo. Então, quando achei que ele ia me brindar com algum comentário filosófico profundo para me fazer sentir melhor, ele disse:

— Posso comer sua maçã?

Eu não estava com muito apetite, então a entreguei a ele.

Observei os táxis que passavam descendo a Quinta Avenida e pensei no apartamento de minha mãe, na área residencial próxima ao lugar onde estávamos sentados. Eu não a via desde o Natal. Tive muita vontade de pular em um táxi e ir para casa. Ela me abraçaria e ficaria contente de me ver, mas também ficaria desapontada. Imediatamente me mandaria de volta para Yancy e me lembraria de que preciso me esforçar mais, ainda que aquela fosse minha sexta escola em seis anos e que, provavelmente, eu seria chutado para fora de novo. Não conseguiria suportar o olhar triste que ela me lançaria.

O sr. Brunner estacionou a cadeira de rodas na base da rampa para deficientes. Comia aipo enquanto lia um romance. Um guarda-chuva vermelho estava enfiado nas costas da cadeira, fazendo-a parecer uma mesa de café motorizada.

Eu estava prestes a desembrulhar meu sanduíche quando Nancy Bobofit apareceu diante de mim com as amigas feiosas — imagino que tivesse se cansado de roubar aos turistas — e deixou seu lanche, já comido pela metade, cair no colo de Grover.

— Oops. — Ela arreganhou um sorriso para mim, com os dentes tortos. As sardas eram alaranjadas, como se alguém tivesse pintado o rosto dela com um spray de Cheetos líquido.

Tentei ficar calmo. O orientador da escola me dissera um milhão de vezes: “Conte até dez, controle seu gênio.” Mas estava tão furioso que me deu um branco. Uma onda rugia nos meus ouvidos.

Não me lembro de ter tocado nela, mas quando dei por mim Nancy estava sentada com o traseiro no chafariz, berrando:

— Percy me empurrou!

A sra. Dodds se materializou ao nosso lado.

Algumas das crianças estavam sussurrando:

— Você viu...

— ...a água...

— ...parece que a agarrou...

Eu não sabia do que elas estavam falando. Tudo o que sabia era que estava encrencado outra vez.

Assim que se certificou de que a pobre Nancy estava bem, prometendo dar-lhe uma blusa nova na loja de presentes do museu etc. e tal, a sra. Dodds se voltou para mim. Havia um fogo triunfante em seus olhos, como se eu tivesse feito algo pelo qual ela esperara o semestre inteiro:

— Agora, meu bem...

— Eu sei — resmunguei. — Um mês apagando livros de exercícios.

Não foi a coisa certa para dizer.

— Venha comigo — disse a sra. Dodds.

— Espere! — guinchou Grover. — Fui eu. Eu a empurrei.

Olhei para ele perplexo. Não podia acreditar que estivesse tentando me proteger. Ele morria de medo da sra. Dodds.

Ela lançou um olhar tão furioso que fez o queixo penugento dele tremer.

— Acho que não, sr. Underwood — disse ela.

— Mas...

— Você... vai... ficar... aqui.

Grover me olhou desesperadamente.

— Tudo bem, cara — disse a ele. — Obrigado por tentar.

— Meu bem — latiu a sra. Dodds para mim. — Agora.

Nancy Bobofit deu um sorriso falso.

Lancei-lhe meu melhor olhar de “vou acabar com a sua raça”. Então me virei para enfrentar a sra. Dodds, mas ela não estava lá. Estava postada à entrada do museu, lá no alto dos degraus, gesticulando impaciente para mim.

Como ela chegou lá tão depressa?

Tenho milhares de momentos desse tipo — meu cérebro adormece ou algo assim e, quando me dou conta, vejo que perdi alguma coisa, como se uma peça do quebra-cabeça desaparecesse e me deixasse olhando para o espaço vazio atrás dela. O orientador da escola me disse que isso era parte do transtorno do déficit de atenção, era meu cérebro que interpretava tudo errado.

Eu não tinha tanta certeza.

Fui atrás da sra. Dodds.

No meio da escadaria, olhei para Grover lá atrás. Ele parecia pálido, movendo os olhos entre mim e o sr. Brunner, como se quisesse que o sr. Brunner reparasse no que estava acontecendo, mas o professor estava absorto em seu romance.

Voltei a olhar para cima. A sra. Dodds desaparecera de novo. Estava agora dentro do edifício, no fim do hall de entrada.

Certo, pensei. Ela vai me fazer comprar uma blusa nova para Nancy na loja de presentes.

Mas aparentemente não era esse o plano.

Eu a segui museu adentro. Quando finalmente a alcancei, estávamos de volta à seção greco-romana.

A não ser por nós, a galeria estava vazia.

A sra. Dodds estava postada de braços cruzados na frente de um grande friso de mármore com os deuses gregos. Ela fazia um ruído estranho com a garganta, como um rosnado.

Mesmo sem o ruído, eu teria ficado nervoso. É esquisito estar sozinho com uma professora, especialmente a sra. Dodds. Algo no modo como ela olhava para o friso, como se quisesse pulverizá-lo...

— Você está nos criando problemas, meu bem — disse ela.

Fiz o que era seguro. Disse:

— Sim, senhora.

Ela ajeitou os punhos de seu casaco de couro.

— Você achou mesmo que ia se safar desta?

A expressão em seus olhos era mais que furiosa. Era perversa.

Ela é uma professora, pensei, nervoso. Não é provável que vá me machucar.

Eu disse:

— Eu... eu vou me esforçar mais, senhora.

Um trovão sacudiu o edifício.

— Nós não somos bobos, Percy Jackson — disse a sra. Dodds. — Seria apenas uma questão de tempo até que o descobríssemos. Confesse, e você sentirá menos dor.

Eu não sabia do que ela estava falando.

Tudo o que pude pensar foi que os professores haviam descoberto o estoque ilegal de doces que eu estava vendendo no meu dormitório. Ou talvez tivessem descoberto que eu pegara meu trabalho sobre Tom Sawyer na Internet sem ter nem lido o livro, e agora iam retirar minha nota. Ou pior, iam me obrigar a ler o livro.

— E então? — exigiu.

— Senhora, eu não...

— O seu tempo se esgotou — sibilou ela.

Então algo muito estranho aconteceu. Os olhos dela começaram a brilhar como carvão de churrasco. Os dedos se esticaram, transformando-se em garras. O casaco se fundiu em grandes asas de couro. Ela não era humana. Era uma bruxa má e enrugada, com asas e garras de morcego e com uma boca repleta de presas amareladas — e estava prestes a me fazer em pedaços.

Então as coisas ficaram ainda mais esquisitas.

O sr. Brunner, que estava na frente do museu um minuto antes, foi com a cadeira de rodas até o vão da porta da galeria, segurando uma caneta.

— Olá, Percy! — gritou ele, e lançou a caneta pelo ar.

A sra. Dodds deu um bote para cima de mim.

Com um gemido agudo, eu me esquivei e senti as garras cortando o ar ao lado do meu ouvido. Agarrei a caneta esferográfica no alto, mas quando ela atingiu minha mão já não era mais uma caneta. Era uma espada — a espada de bronze do sr. Brunner, que ele sempre usava em dias de torneio.

A sra. Dodds virou-se na minha direção com uma expressão assassina nos olhos.

Meus joelhos ficaram bambos. As mãos tremiam tanto que quase deixei a espada cair.

Ela rosnou:

— Morra, meu bem!

E voou para cima de mim.

Um terror absoluto percorreu meu corpo. Fiz a única coisa que me ocorreu naturalmente: desferi um golpe com a espada.

A lâmina de metal atingiu o ombro dela e passou direto por seu corpo, como se ela fosse feita de água: Zaz!

A sra. Dodds era um castelo de areia debaixo de um ventilador. Ela explodiu em areia amarela, reduziu-se a pó, sem deixar nada além do cheiro de enxofre, um grito estridente que foi sumindo e um calafrio de maldade no ar, como se aqueles olhos vermelhos incandescentes ainda estivessem me olhando.

Eu estava sozinho.

Havia uma caneta esferográfica na minha mão.

O sr. Brunner não estava lá. Não havia ninguém lá além de mim.

Minhas mãos ainda estavam tremendo. Meu lanche devia estar contaminado com cogumelos mágicos ou coisa assim.

Será que eu havia imaginado tudo aquilo?

Voltei para o lado de fora.

Tinha começado a chover.

Grover estava sentado junto ao chafariz com um mapa do museu formando uma tenda em cima de sua cabeça. Nancy Bobofit ainda estava lá, encharcada do banho no chafariz, resmungando para as amigas feiosas. Quando me viu, disse:

— Espero que a sra. Kerr tenha chicoteado seu traseiro.

— Quem? — respondi.

— Nossa professora. Dãã!

Eu pisquei. Não tínhamos nenhuma professora chamada sra. Kerr. Perguntei a Nancy de quem ela estava falando.

Ela simplesmente revirou os olhos e me deu as costas.

Perguntei a Grover onde estava a sra. Dodds.

— Quem? — respondeu ele.

Mas Grover primeiro fez uma pausa, e não olhou para mim, portanto, pensei que estivesse me gozando.

— Não tem graça, cara — disse a ele. — Isso é sério.

Um trovão estourou no alto.

Vi o sr. Brunner sentado embaixo do guarda-chuva vermelho, lendo seu livro, como se nunca tivesse se mexido.

Fui até ele.

Ele ergueu os olhos, um pouco distraído.

— Ah, é a minha caneta. Por favor, traga seu próprio instrumento de escrita no futuro, sr. Jackson.

Entreguei a caneta ao sr. Brunner. Não tinha notado que ainda a estava segurando.

— Senhor — disse eu —, onde está a sra. Dodds?

Ele olhou para mim com a expressão vazia.

— Quem?

— A outra professora que nos acompanhava. A sra. Dodds. Professora de iniciação à álgebra.

Ele franziu a testa e se inclinou para a frente, parecendo ligeiramente preocupado.

— Percy, não há nenhuma sra. Dodds nesta excursão. Até onde sei, nunca houve uma sra. Dodds na Academia Yancy. Está se sentindo bem?


DOIS

Três velhas senhoras tricotam as meias da morte

Eu estava acostumado a uma ou outra experiência esquisita, mas normalmente elas passavam depressa. Aquela alucinação vinte e quatro horas por dia e sete dias por semana era mais do que eu podia encarar. Durante o resto do ano escolar o campus inteiro parecia estar me pregando algum tipo de peça. Os alunos agiam como se estivessem completa e totalmente convencidos de que a sra. Kerr — uma loira alegre que eu nunca tinha visto na vida até o momento em que ela entrou no nosso ônibus no fim da excursão — era nossa professora de iniciação à álgebra desde o Natal.

De vez em quando eu soltava uma referência à sra. Dodds para cima de alguém, só para ver se conseguia fazê-los titubear, mas eles me olhavam como se eu fosse louco.

Acabei quase acreditando neles: a sra. Dodds nunca tinha existido.

Quase.

Mas Grover não conseguiu me enganar. Quando eu mencionava o nome Dodds ele hesitava, depois alegava que ela não existia. Mas eu sabia que ele estava mentindo.

Alguma coisa estava acontecendo. Alguma coisa havia acontecido no museu.

Eu não tinha muito tempo para pensar no assunto durante o dia, mas, à noite, visões da sra. Dodds com garras e asas de couro me faziam acordar suando frio.

O tempo maluco continuou, o que não ajudava meu humor. Certa noite, uma tempestade de raios arrebentou a janela do meu dormitório. Alguns dias depois, o maior tornado jamais visto no vale do Hudson tocou o chão a apenas trinta quilômetros da Academia Yancy. Um dos eventos correntes que aprendemos na aula de estudos sociais era o número inusitado de pequenos aviões que caíram em súbitos vendavais no Atlântico naquele ano.

Comecei a me sentir mal-humorado e irritado a maior parte do tempo. Minhas notas caíram de D para F. Entrei em mais atritos com Nancy Bobofit e suas amigas. Era posto para fora da sala e tinha de ficar no corredor em quase todas as aulas.

Finalmente, quando nosso professor de inglês, o sr. Nicoll, me perguntou pela milionésima vez por que eu tinha tanta preguiça de estudar para as provas de ortografia, eu explodi. Chamei-o de velho dipsomaníaco. Não sabia direito o que aquilo queria dizer, mas soou bem.

O diretor mandou uma carta para a minha mãe na semana seguinte, tornando oficial: eu não seria convidado a voltar para a Academia Yancy no ano seguinte.

Ótimo, disse a mim mesmo. Simplesmente ótimo.

Eu estava com saudades de casa.

Queria ficar com minha mãe no nosso pequeno apartamento no Upper East Side, mesmo que tivesse de frequentar uma escola pública e aturar meu padrasto detestável e seus jogos de pôquer estúpidos.

E no entanto... havia coisas em Yancy de que eu sentiria falta. A vista da minha janela para os bosques, o rio Hudson a distância, o cheiro dos pinheiros. Sentiria falta de Grover, que tinha sido um bom amigo, mesmo com seu jeito meio estranho. Fiquei pensando como ele iria sobreviver ao próximo ano sem mim.

Também sentiria falta da aula de latim — os dias malucos de torneio do sr. Brunner e sua confiança em que eu poderia me sair bem.

Quando a semana de exames foi se aproximando, latim era a única prova para a qual eu estudava. Não tinha me esquecido do que o sr. Brunner falara, sobre essa matéria ser questão de vida ou morte para mim. Não sabia muito bem por quê, mas começara a acreditar nele.

Na noite anterior ao meu exame final, fiquei tão frustrado que joguei o Guia Cambridge de mitologia grega do outro lado do dormitório. As palavras tinham começado a flutuar para fora da página, dando voltas na minha cabeça, as letras fazendo manobras radicais como se estivessem andando de skate. Não havia jeito de eu me lembrar da diferença entre Quíron e Caronte, ou Polidectes e Polideuces. E conjugar aqueles verbos latinos? Nem pensar.

Fiquei indo de um lado para outro no quarto, com a sensação de que havia formigas andando por dentro da minha camisa.

Lembrei a expressão séria do sr. Brunner, de seus olhos de mil anos. De você, aceitarei apenas o melhor, Percy Jackson.

Respirei fundo. Peguei o livro de mitologia.

Eu nunca havia pedido ajuda a um professor antes. Se falasse com o sr. Brunner, quem sabe ele me daria algumas dicas. Poderia, pelo menos, pedir desculpas pelo grande F que ia tirar na prova. Não queria sair da Academia Yancy deixando-o pensar que eu não tinha me esforçado.

Desci a escada para os gabinetes dos professores. A maioria estava vazia e escura, mas a porta do sr. Brunner estava entreaberta e a luz que vinha da sua janela se estendia ao longo do piso do corredor.

Eu estava a três passos da maçaneta da porta quando ouvi vozes dentro da sala. O sr. Brunner tinha feito uma pergunta. Uma voz que, sem sombra de dúvida, era a de Grover disse: “...preocupado com Percy, senhor.”

Eu gelei.

Normalmente não sou bisbilhoteiro, mas desafio alguém a não tentar ouvir quando seu melhor amigo está falando sobre você com um adulto.

Cheguei um pouquinho mais perto.

— ...sozinho nesse verão — Grover estava dizendo. — Quer dizer, uma Benevolente na escola! Agora que sabemos com certeza, e eles também sabem...

— Só vamos piorar as coisas se o apressarmos — disse o sr. Brunner. — Precisamos que o menino amadureça mais.

— Mas ele pode não ter tempo. O prazo final do solstício de verão...

— Terá de ser resolvido sem ele, Grover. Deixe-o desfrutar sua ignorância enquanto ainda pode.

— Senhor, ele a viu...

— Imaginação dele — insistiu o sr. Brunner. — A Névoa sobre os alunos e a equipe será suficiente para convencê-lo disso.

— Senhor, eu... eu não posso fracassar nas minhas tarefas de novo. — A voz de Grover estava embargada de emoção. — Sabe o que isso significaria.

— Você não fracassou, Grover — disse o sr. Brunner gentilmente. — Eu deveria tê-la visto como ela era. Agora vamos apenas nos preocupar em manter Percy vivo até o próximo outono...

O livro de mitologia caiu da minha mão e bateu no chão com um ruído surdo.

O sr. Brunner silenciou.

Com o coração disparado, peguei o livro e voltei pelo corredor.

Uma sombra deslizou pelo vidro iluminado da porta da sala de Brunner, a sombra de algo muito mais alto do que meu professor de cadeira de rodas, segurando alguma coisa suspeitamente parecida com o arco de um arqueiro.

Abri a porta mais próxima e me esgueirei para dentro.

Alguns segundos depois ouvi um lento clop-clop-clop, como blocos de madeira abafados, depois um som como o de um animal farejando bem na frente da minha porta. Um grande vulto escuro parou diante do vidro e depois seguiu adiante.

Uma gota de suor escorreu por meu pescoço.

Em algum lugar no corredor, o sr. Brunner falou.

— Nada — murmurou ele. — Meus nervos não andam muito bons desde o solstício de inverno.

— Nem os meus — disse Grover. — Mas eu podia ter jurado...

— Volte para o dormitório — disse-lhe o sr. Brunner. — Você tem um longo dia de provas amanhã.

— Nem me lembre.

As luzes se apagaram na sala do sr. Brunner.

Aguardei no escuro pelo que pareceu uma eternidade.

Por fim, me esgueirei para o corredor e subi de volta para o dormitório.

Grover estava deitado na cama, estudando as anotações para a prova de latim como se tivesse estado lá a noite inteira.

— Ei! — disse ele, com olhar de sono. — Vai estar preparado para a prova?

Não respondi.

— Está com uma cara horrível. — Ele franziu a testa. — Tudo bem?

— Só estou cansado.

Virei-me para que ele não pudesse perceber minha expressão e comecei a me preparar para dormir.

Não entendi o que tinha ouvido lá embaixo. Queria acreditar que havia imaginado aquilo tudo.

Mas uma coisa estava clara: Grover e o sr. Brunner estavam falando de mim pelas costas. Achavam que eu corria algum tipo de perigo.

Na tarde seguinte, quando estava saindo da prova de latim de três horas, atordoado com todos os nomes gregos e romanos que tinha escrito errado, o sr. Brunner me chamou de volta.

Por um momento, fiquei preocupado achando que ele descobrira minha bisbilhotice na noite anterior, mas não parecia ser esse o problema.

— Percy — disse ele. — Não fique desanimado por deixar Yancy. É... é para o seu bem.

Seu tom era gentil, mas ainda assim as palavras me deixaram sem graça. Embora ele estivesse falando baixo, os que terminavam a prova podiam ouvir. Nancy Bobofit me lançou um sorriso falso e, sarcasticamente, fez pequenos movimentos de beijo com os lábios.

Eu murmurei:

— Está bem, senhor.

— Quer dizer... — O sr. Brunner andou com a cadeira para trás e para a frente, como se não tivesse certeza do que falar. — Este não é o lugar certo para você. Era apenas uma questão de tempo.

Meus olhos ardiam.

Ali estava meu professor favorito, na frente da classe, me dizendo que eu não era capaz. Depois de falar o ano todo que acreditava em mim, agora me dizia que eu estava destinado a ser expulso.

— Certo — disse eu, tremendo.

— Não, não — disse o sr. Brunner. — Ah, que droga. O que eu estava tentando dizer... é que você não é normal, Percy. Não é nada ser...

— Obrigado — soltei. — Muito obrigado, senhor, por me lembrar.

— Percy...

Mas eu já tinha ido.

No último dia de aulas, enfiei minhas roupas na mala.

Os outros garotos estavam fazendo piadas, falando sobre os planos para as férias. Um deles ia fazer trilha na Suíça. Outro faria um cruzeiro de um mês pelo Caribe. Eram delinquentes juvenis como eu, mas delinquentes juvenis ricos. Os papais eram executivos, embaixadores ou celebridades. Eu era um joão-ninguém, de uma família de joões-ninguém.

Eles me perguntaram o que ia fazer no verão, e eu disse que voltaria para a cidade.

O que não lhes contei foi que ia arranjar um trabalho de verão passeando com cachorros ou vendendo assinaturas de revistas, e passar o tempo livre pensando em onde iria estudar no outono.

— Ah — disse um dos garotos. — Legal.

Eles voltaram à conversa como se eu não existisse.

A única pessoa de quem tinha medo de me despedir era Grover, mas do jeito como as coisas aconteceram, eu nem precisei. Ele havia comprado uma passagem para Manhattan no mesmo ônibus Greyhound que eu, então lá estávamos nós, juntos outra vez, indo para a cidade.

Durante toda a viagem de ônibus, Grover olhava nervoso para o corredor, observando os outros passageiros. Ocorreu-me que ele sempre agia de modo nervoso e inquieto quando saíamos de Yancy, como se esperasse que algo ruim fosse acontecer. Antes, eu achava que ele tinha medo de que o provocassem. Mas não havia ninguém para fazer isso no Greyhound.

Finalmente, não pude mais aguentar.

— Procurando Benevolentes?

Grover quase pulou do assento.

— O que... o que você quer dizer?

Confessei ter ouvido a conversa dele com o sr. Brunner na noite anterior ao dia da prova.

O olho de Grover estremeceu.

— Quanto você ouviu?

— Ah... não muito. O que é o prazo final do solstício de verão?

Ele se esquivou.

— Olhe, Percy... Eu só estava preocupado com você, entende? Quer dizer, tendo alucinações com professoras de matemática demoníacas...

— Grover...

— E eu estava dizendo ao sr. Brunner que talvez você estivesse muito estressado, ou coisa assim, porque não havia uma pessoa chamada sra. Dodds e...

— Grover, você mente muito mal mesmo.

As orelhas dele ficaram cor-de-rosa.

Do bolso da camisa, ele pescou um cartão de visitas encardido.

— Pegue isto, certo? Para o caso de você precisar de mim neste verão.

O cartão tinha uma escrita floreada, que era um terror para os meus olhos disléxicos, mas por fim consegui identificar alguma coisa como:

Grover Underwood

Guardião

Colina Meio-Sangue

Long Island, Nova York

(800) 009-0009

— O que é Colina Meio...

— Não fale alto! — ganiu. — É meu, ah... endereço de verão.

Meu coração desabou. Grover tinha uma casa de veraneio. Eu nunca imaginara que a família dele poderia ser tão rica quanto as dos outros em Yancy.

— Certo — falei, mal-humorado. — Tá, se eu quiser fazer uma visita à sua mansão.

Ele assentiu.

— Ou... ou se você precisar de mim.

— Por que iria precisar de você?

Saiu mais rude do que eu pretendia.

Grover ficou com a cara toda vermelha.

— Olhe, Percy, a verdade é que eu... eu tenho, de certo modo, que proteger você.

Olhei fixamente para ele.

Durante o ano inteiro me meti em brigas para manter os valentões longe dele. Perdi o sono temendo que, sem mim, ele fosse apanhar no ano que vem. E ali estava Grover agindo como se fosse ele a me defender.

— Grover — disse eu —, do que exatamente você está me protegendo?

Houve um tremendo barulho de algo sendo triturado embaixo dos nossos pés. Uma fumaça preta saiu do painel e o ônibus inteiro foi tomado por um cheiro de ovo podre. O motorista praguejou e levou o Greyhound com dificuldade até o acostamento.

Depois de alguns minutos fazendo alguns sons metálicos no compartimento do motor, o motorista anunciou que teríamos de descer. Grover e eu saímos em fila com todos os outros.

Estávamos em um trecho de estrada rural — um lugar que a gente nem notaria se não tivesse enguiçado lá. Do nosso lado da estrada não havia nada além de bordos e lixo jogado pelos carros que passavam. Do outro lado, depois de atravessar quatro pistas de asfalto que refletiam uma claridade trêmula com o calor da tarde, havia uma banca de frutas como as de antigamente.

As coisas à venda pareciam realmente boas: caixas transbordando de cerejas e maçãs vermelhas como sangue, nozes e damascos, jarros de sidra dentro de uma tina com pés em forma de patas, cheia de gelo. Não havia fregueses, só três velhas senhoras sentadas em cadeiras de balanço à sombra de um bordo, tricotando o maior par de meias que eu já tinha visto.

Quer dizer, aquelas meias eram do tamanho de suéteres, mas, obviamente, eram meias. A senhora da direita tricotava uma delas. A da esquerda tricotava a outra. A do meio segurava uma enorme cesta de lã azul brilhante.

As três mulheres pareciam muito velhas, com o rosto pálido e enrugado como fruta seca, cabelo prateado preso atrás com lenço branco, braços ossudos espetados para fora de vestidos de algodão pálido.

A coisa mais esquisita era que elas pareciam olhar diretamente para mim.

Encarei Grover para comentar isso e vi que seu rosto tinha ficado branco. O nariz tremia.

— Grover? — disse eu. — Ei, cara...

— Diga que elas não estão olhando para você. Estão, não é?

— Estão. Esquisito, não? Você acha que aquelas meias serviriam em mim?

— Não tem graça, Percy. Não tem graça nenhuma.

A velha do meio pegou uma tesoura imensa — dourada e prateada, de lâminas longas, como uma tosquiadeira. Ouvi Grover tomar fôlego.

— Vamos entrar no ônibus — ele me disse. — Venha.

— O quê? — disse eu. — Lá dentro está fazendo quinhentos graus.

— Venha! — Ele forçou a porta e subiu, mas eu fiquei embaixo.

Do outro lado da estrada, as velhas ainda olhavam para mim. A do meio cortou o fio de lã, e posso jurar que ouvi aquele ruído cruzar as quatro pistas de trânsito. As duas amigas dela enrolaram as meias azuis e me fizeram imaginar para quem seria aquilo — o Pé Grande ou o Godzilla.

Na traseira do ônibus, o motorista arrancou um grande pedaço de metal fumegante do compartimento do motor. O ônibus estremeceu e o motor voltou à vida, roncando.

Os passageiros aplaudiram.

— Tudo em ordem! — gritou o motorista. Ele bateu no ônibus com o chapéu. — Todo o mundo para dentro!

Quando já estávamos a caminho, comecei a me sentir febril, como se tivesse pego uma gripe.

Grover não parecia muito melhor. Estava tremendo e batendo os dentes.

— Grover?

— Sim?

— O que me diz?

Ele enxugou a testa com a manga da camisa.

— Percy, o que você viu lá atrás, na banca de frutas?

— Você quer dizer, aquelas velhas? O que há com elas, cara? Elas não são como... a sra. Dodds, são?

A expressão dele era difícil interpretar, mas tive a sensação de que as velhas da banca de frutas eram algo muito, muito pior do que a sra. Dodds. Grover disse:

— Só me diga o que você viu.

— A do meio pegou a tesoura e cortou o fio.

Ele fechou os olhos e fez um gesto com os dedos parecido com o sinal da cruz, mas não era isso. Era outra coisa, algo um tanto... mais antigo.

Ele disse:

— Você a viu cortar o fio.

— Sim. E daí? — Mas mesmo enquanto dizia isso, já sabia que era algo importante.

— Isso não está acontecendo — murmurou Grover. Ele começou a morder o dedão. — Não quero que seja como na última vez.

— Que última vez?

— Sempre o sétimo ano. Eles nunca passam do sétimo.

— Grover — disse eu, porque ele estava realmente começando a me assustar —, do que você está falando?

— Deixe que eu vá com você da estação do ônibus até sua casa. Prometa.

Aquele me pareceu um pedido estranho, mas prometi.

— É uma superstição ou coisa assim? — perguntei.

Nenhuma resposta.

— Grover... aquele corte no fio. Significa que alguém vai morrer?

Ele olhou para mim com tristeza, como se já estivesse escolhendo o tipo de flores que eu gostaria mais de ter em meu caixão.


TRÊS

Grover de repente perde as calças

Hora da confissão: descartei Grover assim que chegamos ao terminal rodoviário.

Eu sei, eu sei. Foi rude. Mas Grover estava me deixando fora de mim, me olhando como se eu fosse um homem morto, murmurando: “Por que sempre tem de ser no sétimo ano?”

Sempre que Grover ficava nervoso, sua bexiga entrava em ação, portanto não fiquei surpreso quando, assim que descemos do ônibus, ele me fez prometer que o esperaria e foi direto para o banheiro. Em vez de esperar, peguei minha mala, saí discretamente e tomei o primeiro táxi saindo do Centro.

— Cento e quatro Leste com Primeira Avenida — disse ao motorista.

Uma palavra sobre a minha mãe, antes que você a conheça.

Seu nome é Sally Jackson e ela é a melhor pessoa do mundo, o que apenas prova minha teoria de que as melhores pessoas são as mais azaradas. Os pais morreram em um desastre de avião quando ela estava com cinco anos, e então foi criada por um tio que não lhe dava muita bola. Queria ser escritora, assim passou o curso de ensino médio trabalhando e economizando dinheiro para pagar uma faculdade com um bom programa de oficinas literárias. Então o tio teve câncer e ela precisou abandonar a escola no último ano para cuidar dele. Depois que ele morreu, ela ficou sem dinheiro nenhum, sem família e sem diploma.

A única coisa boa que lhe aconteceu foi conhecer meu pai.

Não tenho nenhuma lembrança dele, apenas essa espécie de sensação calorosa, talvez o mais leve resquício de seu sorriso. Minha mãe não gosta de falar sobre ele porque isso a deixa triste. Ela não tem fotografias.

Veja bem, eles não eram casados. Ela me contou que ele era rico e influente, e o relacionamento deles era um segredo. Então um dia ele zarpou pelo Atlântico em alguma jornada importante, e nunca mais voltou.

Perdido no mar, minha mãe me contou. Não morto. Perdido no mar.

Ela vivia de trabalhos esporádicos, estudava à noite para tirar o diploma de ensino médio e me criou sozinha. Nunca se queixava ou ficava zangada. Nem uma só vez. Mas eu sabia que não era uma criança fácil.

Acabou se casando com Gabe Ugliano, que foi simpático nos primeiros trinta segundos em que o conhecemos e depois mostrou quem realmente era, um imbecil de marca maior. Quando eu era pequeno apelidei-o de Gabe Cheiroso. Sinto muito, mas é a verdade. O cara fedia a pizza de alho embolorada enrolada num calção de ginástica.

Em nosso fogo cruzado, tornávamos a vida da minha mãe bem difícil. O modo como Gabe Cheiroso a tratava, o jeito como ele e eu nos relacionávamos... bem, um bom exemplo é minha chegada em casa.

Entrei em nosso pequeno apartamento, esperando que minha mãe já tivesse voltado do trabalho. Em vez disso, Gabe Cheiroso estava na sala de estar, jogando pôquer com seus cupinchas. Na televisão, o canal de esportes estava no volume máximo. Havia batatinhas e latas de cerveja espalhadas pelo tapete.

Mal erguendo os olhos, ele disse com o cigarro na boca:

— Então você está em casa.

— Onde está a minha mãe?

— Trabalhando — disse ele. — Você tem alguma grana?

E foi isso. Nada de Bem-vindo ao lar. Bom ver você. O que fez nos últimos seis meses?

Gabe tinha engordado. Parecia uma morsa sem tromba com roupas de brechó. Tinha uns três fios de cabelo na cabeça, todos penteados por cima da careca, como se isso o deixasse bonito ou coisa assim.

Era gerente do Hipermercado de Eletrônica, no Queens, mas passava a maior parte do tempo em casa. Não sei por que ainda não tinha sido demitido. Ele só fica recebendo o pagamento, gastando o dinheiro em charutos que me dão náuseas e em cerveja, é claro. Sempre cerveja. Toda vez que eu estava em casa ele esperava que eu lhe fornecesse fundos para jogar. Chamava isso de nosso “segredo de homem”. Isto é, se eu contasse para a minha mãe, ele me quebrava a cara.

— Não tenho grana nenhuma — falei.

Ele ergueu uma sobrancelha oleosa.

Gabe era capaz de farejar dinheiro como um cão de caça, o que era surpreendente, já que seu próprio cheiro deveria encobrir qualquer outro.

— Você pegou um táxi no terminal de ônibus — disse ele. — Provavelmente pagou com uma nota de vinte. Recebeu seis ou sete dólares de troco. Alguém que espera viver embaixo deste teto devia ser capaz de se sustentar. Estou certo, Eddie?

Eddie, o síndico do prédio, olhou para mim com uma pontinha de solidariedade.

— Vamos, Gabe — disse ele. — O garoto acabou de chegar.

— Estou certo? — repetiu Gabe.

Eddie fez uma careta para sua tigela de pretzels. Os outros dois caras soltaram juntos seus gases.

— Tudo bem — disse eu. Tirei um maço de dólares do bolso e joguei o dinheiro em cima da mesa. — Tomara que você perca.

— Seu boletim chegou, geninho! — gritou ele às minhas costas. — Eu não ficaria tão metido!

Bati a porta do meu quarto, que na verdade não era meu. Durante os meses de aulas era a “sala de estudos” de Gabe. Ele não “estudava” coisa nenhuma lá, exceto revistas de automóveis, mas adorava socar as minhas coisas no armário, largar as botas enlameadas no peitoril da janela e fazer o possível para deixar o lugar com o cheiro de sua colônia detestável, charutos e cerveja choca.

Larguei a mala em cima da cama. Lar doce lar.

O cheiro de Gabe era quase pior que os pesadelos com a sra. Dodds ou o som da tesoura daquela velha enrugada cortando o fio de lã.

Mas assim que pensei naquilo minhas pernas bambearam. Lembrei-me da expressão de pânico de Grover — de como ele me fizera prometer que não iria para casa sem ele. Um calafrio repentino me percorreu. Era como se alguém — alguma coisa — estivesse procurando por mim naquele momento, talvez subindo pesadamente a escada, com garras compridas e horrendas crescendo.

Então ouvi a voz da minha mãe.

— Percy?

Ela abriu a porta do quarto, e meus medos se foram.

A simples entrada de minha mãe no quarto já consegue me fazer sentir bem. Seus olhos brilham e mudam de cor com a luz. O sorriso é quente como uma manta. Ela tem alguns poucos fios grisalhos misturados com os longos cabelos castanhos, mas nunca penso nela como uma pessoa velha. Quando me olha, é como se estivesse vendo todas as coisas boas em mim, nenhuma das ruins. Nunca a ouvi levantar a voz ou dizer uma palavra indelicada para ninguém, nem mesmo para mim ou Gabe.

— Ah, Percy. — Ela me abraçou apertado. — Eu não acredito. Você cresceu desde o Natal!

O uniforme vermelho, branco e azul, da Doce América, tinha o cheiro das melhores coisas do mundo: chocolate, alcaçuz e tudo o mais que ela vendia na doceria da Grande Estação Central. Tinha levado para mim um belo saco de “amostras grátis”, como sempre fazia quando eu ia para casa.

Sentamos juntos na beirada da cama. Enquanto eu atacava os doces de mirtilo, ela passava a mão no meu cabelo e queria saber tudo o que eu não havia escrito nas cartas. Nada mencionou sobre o fato de eu ter sido expulso. Não parecia se importar com isso. Mas eu estava o.k.? Seu menininho estava bem?

Eu disse a ela que estava me sufocando, pedi que desse um tempo e tal, mas, secretamente, estava feliz demais em vê-la.

Do outro cômodo, Gabe berrou:

— Ei, Sally! Que tal um pouco de pasta de feijão, hein?

Eu rangi os dentes.

Minha mãe é a mulher mais gentil do mundo. Devia ter se casado com um milionário, não com um imbecil como Gabe.

Por ela, tentei parecer otimista em relação aos meus últimos dias na Academia Yancy. Disse-lhe que não estava muito chateado com a expulsão. Dessa vez, conseguira durar quase o ano inteiro. Eu havia feito novos amigos. Tinha me saído muito bem em latim. E, honestamente, as brigas não tinham sido tão ruins como dissera o diretor. Eu tinha gostado da Academia Yancy. De verdade. Enfeitei tanto os acontecimentos do ano que quase convenci a mim mesmo. Comecei a ficar com a voz embargada só de pensar em Grover e no sr. Brunner. Até Nancy Bobofit de repente não pareceu assim tão má.

Até aquela excursão ao museu...

— O quê? — perguntou minha mãe. Seus olhos puxaram pela minha consciência, tentando arrancar os segredos. — Alguma coisa assustou você?

— Não, mamãe.

Eu me senti mal por mentir, queria contar a ela sobre a sra. Dodds e as três velhas com o fio de lã, mas achei que aquilo pareceria bobagem.

Ela apertou os lábios. Sabia que eu estava escondendo alguma coisa, mas não quis me pressionar.

— Tenho uma surpresa para você — disse ela. — Nós vamos à praia.

Meus olhos se arregalaram.

— Montauk?

— Três noites... no mesmo chalé.

— Quando?

Ela sorriu.

— Assim que eu me trocar.

Mal pude acreditar. Minha mãe e eu não tínhamos ido a Montauk nos últimos dois verões porque Gabe dissera que não havia dinheiro suficiente.

Gabe apareceu no vão da porta e rosnou.

— Pasta de feijão, Sally. Você não ouviu?

Tive vontade de dar-lhe um soco, mas meus olhos encontraram os da minha mãe e entendi que ela estava me oferecendo um acordo: ser gentil com Gabe só um pouquinho. Só até ela estar pronta para ir para Montauk. Então sairíamos dali.

— Eu já estava a caminho, meu bem — disse ela a Gabe. — Estávamos só conversando sobre a viagem.

Os olhos de Gabe se apertaram.

— A viagem? Você quer dizer que estava falando disso a sério?

— Eu sabia — murmurei. — Ele não vai nos deixar ir.

— É claro que vai — disse minha mãe calmamente. — Seu padrasto só está preocupado com o dinheiro. É tudo. Além disso — acrescentou —, Gabriel não terá de se contentar com pasta de feijão. Vou fazer para ele uma pasta de sete camadas suficiente para todo o fim de semana. Guacamole. Creme azedo. Serviço completo.

Gabe amaciou um pouco.

— Então esse dinheiro para a viagem... vai sair do seu orçamento para roupas, certo?

— Sim, meu bem — disse minha mãe.

— E você não vai com meu carro para lugar nenhum, só vai usar na ida e na volta.

— Seremos muito cuidadosos.

Gabe coçou seu queixo duplo.

— Talvez se você andar logo com essa pasta de sete camadas... E talvez se o garoto pedir desculpas por interromper meu jogo de pôquer...

Talvez se eu chutar você no seu ponto sensível, pensei. E fizer você cantar com voz de soprano por uma semana.

Mas os olhos da minha mãe me advertiram para não deixá-lo zangado.

Por que ela aturava aquele cara? Eu quis gritar. Por que ela se importava com o que ele pensava?

— Desculpe — murmurei. — Sinto muito ter interrompido seu importantíssimo jogo de pôquer. Por favor, volte a ele agora mesmo.

Os olhos de Gabe se estreitaram. O cérebro minúsculo provavelmente estava tentando detectar o sarcasmo na minha frase.

— Está bem, seja lá o que for — convenceu-se.

E voltou para o jogo.

— Obrigada, Percy — disse minha mãe. — Depois que chegarmos a Montauk, vamos conversar mais sobre... o que quer que você tenha se esquecido de me contar, certo?

Por um momento, pensei ter visto ansiedade nos olhos dela — o mesmo medo que vira em Grover na viagem de ônibus —, como se minha mãe também estivesse sentindo um estranho calafrio no ar.

Mas então o sorriso dela voltou e concluí que devia estar enganado. Ela despenteou meu cabelo e foi fazer a pasta de sete camadas para Gabe.

Uma hora depois estávamos prontos para partir.

Gabe interrompeu o jogo de pôquer por tempo suficiente para me observar arrastando as malas da minha mãe para o carro. Ficou se queixando e se lamentando por ficar sem a comida dela — e mais importante, sem seu Camaro 78 — durante todo o fim de semana.

— Nem um arranhão nesse carro, geninho — advertiu-me quando eu estava carregando a última mala. — Nem um arranhãozinho.

Como se eu fosse dirigir aos doze anos. Mas isso não importava para Gabe. Se alguma gaivota fizesse cocô na pintura, ele arranjaria um jeito de me culpar.

Observando-o voltar em seu passo desajeitado para o prédio, fiquei tão zangado que fiz uma coisa que não consigo explicar. Quando Gabe chegou à porta de entrada, fiz um gesto com a mão que tinha visto Grover fazer no ônibus, uma espécie de gesto para afastar o mal, a mão em garra sobre o coração e depois um movimento de empurrar na direção de Gabe. A porta de tela bateu tão forte que o acertou no traseiro e o mandou voando até a escada, como se tivesse sido disparado por um canhão. Talvez tenha sido apenas o vento, ou algum acidente maluco com as dobradiças, mas não fiquei lá tempo suficiente para descobrir.

Entrei no Camaro e disse para a minha mãe pisar fundo.

Nosso chalé alugado ficava na margem sul, lá na ponta de Long Island. Era uma pequena cabana de cor clara com cortinas desbotadas, quase enterrada nas dunas. Havia sempre areia nos lençóis e aranhas nos armários, e na maior parte do tempo o mar estava gelado demais para nadar.

Eu adorava o lugar.

Íamos para lá desde que eu era bebê. Minha mãe ia ainda havia mais tempo. Ela nunca disse exatamente, mas eu sabia por que a praia era especial. Era o lugar onde conhecera meu pai.

À medida que nos aproximávamos de Montauk, ela parecia ir ficando mais jovem, os anos de preocupação e trabalho desaparecendo do rosto. Os olhos ficavam da cor do mar.

Chegamos lá ao pôr do sol, abrimos todas as janelas do chalé e passamos por nossa rotina de limpeza. Caminhamos pela praia, demos salgadinhos de milho às gaivotas e mascamos jujubas azuis, caramelos azuis e todas as outras amostras grátis que minha mãe levara do trabalho.

Acho que eu devia explicar a comida azul.

Veja bem, Gabe uma vez disse à minha mãe que isso não existia. Eles tiveram uma discussão, que pareceu uma coisinha de nada na época. Mas, desde então, minha mãe fez tudo o que era possível comer em azul. Ela assava bolos de aniversário azuis. Batia vitaminas com mirtilos azuis. Comprava tortilhas de milho azul e levava para casa balas azuis da loja. Isso — junto com o fato de conservar o nome de solteira, Jackson, em vez de se chamar sra. Ugliano — era prova de que ela não tinha sido totalmente domada por Gabe. Tinha uma inclinação para a rebeldia, como eu.

Quando escureceu, acendemos uma fogueira. Assamos cachorro-quente e marshmallows. Minha mãe contou histórias sobre quando ela era criança, antes de os pais morrerem no acidente de avião. Contou-me sobre os livros que queria escrever um dia, quando tivesse dinheiro suficiente para largar a doceria.

Finalmente, reuni coragem para perguntar sobre o que sempre me vinha à cabeça quando íamos para Montauk — meu pai. Os olhos dela ficaram cheios d’água. Imaginei que iria me contar as mesmas coisas de sempre, mas nunca me cansava de ouvi-las.

— Ele era gentil, Percy — disse ela. — Alto, bonito e forte. Mas gentil também. Você tem o cabelo preto dele, você sabe, e os olhos verdes.

Mamãe pescou uma jujuba azul do saco de doces.

— Gostaria que ele pudesse vê-lo, Percy. Ficaria muito orgulhoso.

Eu me perguntei como ela podia dizer aquilo. O que havia de tão bom a meu respeito? Um menino disléxico, hiperativo, com um boletim D+, expulso da escola pela sexta vez em seis anos.

— Que idade eu tinha? — perguntei. — Quer dizer... quando ele se foi?

Ela olhou para as chamas.

— Ele só ficou comigo por um verão, Percy. Bem aqui nesta praia. Neste chalé.

— Mas... ele me conheceu quando eu era bebê.

— Não, meu bem. Ele sabia que eu estava esperando um bebê, mas nunca o viu. Teve de partir antes de você nascer.

Tentei conciliar isso com o fato de que eu parecia me lembrar de... alguma coisa sobre o meu pai. Uma sensação calorosa. Um sorriso.

Sempre presumira que ele havia me visto quando bebê. Minha mãe nunca dissera exatamente isso, mas ainda assim eu achava que tinha acontecido. Saber agora que ele nunca me viu...

Fiquei com raiva de meu pai. Talvez fosse uma bobagem, mas eu me ressenti por ele ter partido naquela viagem oceânica, por não ter tido coragem para se casar com minha mãe. Ele nos deixara e agora estávamos presos ao Gabe Cheiroso.

— Você vai me mandar embora de novo? — perguntei a ela. — Para outro internato?

Ela puxou um marshmallow do fogo.

— Eu não sei, meu bem. — Sua voz soou muito séria. — Acho... acho que teremos de fazer alguma coisa.

— Por que você não quer me ver por perto? — Eu me arrependi das palavras assim que elas saíram.

Os olhos da minha mãe ficaram marejados. Ela pegou minha mão e apertou com força.

— Ah, Percy, não. Eu... eu preciso, meu bem. Para seu próprio bem. Eu tenho de mandar você para longe.

Suas palavras me lembraram o que o sr. Brunner tinha dito — que era melhor para mim deixar Yancy.

— Porque eu não sou normal? — disse eu.

— Você diz isso como se fosse uma coisa ruim, Percy. Mas não se dá conta do quanto você é importante. Pensei que Yancy seria bastante longe. Pensei que você finalmente estaria em segurança.

— Em segurança por quê?

Os olhos dela encontraram os meus, e me veio uma enxurrada de lembranças — todas as coisas esquisitas, assustadoras que sempre me aconteciam, algumas que eu tentara esquecer.

No quarto ano, um homem de capa de chuva preta me seguiu no recreio. Quando os professores ameaçaram chamar a polícia, ele foi embora resmungando, mas ninguém acreditou em mim quando contei que, embaixo do chapéu de aba larga, o homem tinha um olho só, bem no meio da cabeça.

Antes disso — uma lembrança realmente antiga. Eu estava na pré-escola, e uma professora acidentalmente me pôs para dormir em um berço para dentro do qual uma cobra se arrastara. Minha mãe gritou quando foi me buscar e me encontrou brincando com uma cobra flácida cheia de escamas, que eu de algum modo conseguira estrangular até a morte com as minhas mãos gorduchas de bebê.

Em cada uma das escolas, algo de horripilante acontecera, algo perigoso, e fui forçado a sair.

Eu sabia que devia contar à minha mãe sobre as velhas na banca de frutas e a sra. Dodds no museu de arte, sobre a estranha alucinação em que eu havia transformado a professora de matemática em pó com uma espada. Mas não consegui me forçar a contar. Tinha a sensação esquisita de que a notícia iria acabar com nossa viagem a Montauk, e isso eu não queria.

— Tentei manter você tão perto de mim quanto pude — falou minha mãe. — Eles me disseram que isso era um erro. Mas só havia uma outra opção, Percy... o lugar para onde seu pai queria mandá-lo. E eu simplesmente... simplesmente não poderia aguentar ter de fazer isso.

— Meu pai queria que eu fosse para uma escola especial?

— Não uma escola — disse ela suavemente. — Um acampamento de verão.

Minha cabeça estava girando. Por que meu pai — que nem sequer ficara por perto tempo suficiente para me ver nascer — teria falado com minha mãe sobre um acampamento de verão? E, se isso era tão importante, por que ela nunca mencionara antes?

— Desculpe, Percy — continuou ela ao ver a expressão em meus olhos. — Mas não posso falar sobre isso. Eu... eu não podia mandar você para aquele lugar. Significaria dizer adeus a você para sempre.

— Para sempre? Mas se é apenas um acampamento de verão...

Ela se voltou para o fogo, e eu percebi pela sua expressão que, se fizesse mais perguntas, ela começaria a chorar.

Naquela noite eu tive um sonho muito real.

Havia uma tempestade na praia, e dois belos animais, um cavalo branco e uma águia dourada, estavam tentando matar um ao outro à beira-mar. A águia mergulhou e fez um talho no focinho do cavalo com suas garras enormes. O cavalo empinou e escoiceou as asas da águia. Enquanto eles lutavam, o chão retumbou e uma voz monstruosa riu em algum lugar embaixo da terra, incitando os animais a lutarem mais arduamente.

Corri até eles, sabendo que tinha de impedir que se matassem, mas eu corria em câmera lenta. Sabia que iria chegar tarde demais. Vi a águia mergulhar, o bico apontado para os grandes olhos do cavalo, e gritei: Não!

Acordei assustado.

Do lado de fora, havia realmente uma tempestade, o tipo de tempestade que racha árvores e derruba casas. Não havia nenhum cavalo nem águia na praia, somente relâmpagos que criavam uma falsa luz do dia e ondas de seis metros golpeando as dunas como artilharia.

Com o trovão seguinte, minha mãe acordou. Ela sentou na cama, os olhos arregalados, e disse:

— Furacão.

Eu sabia que aquilo era loucura. Nunca houve furacões em Long Island tão cedo no verão. Mas o oceano parecia ter esquecido isso. Por cima dos rugidos do vento, ouvi um bramido distante, um som furioso, torturado, que fez meus cabelos se arrepiarem.

Depois um ruído muito mais próximo, como de malhos na areia. Uma voz desesperada — alguém gritando, esmurrando a porta do nosso chalé.

Minha mãe pulou da cama de camisola e abriu a porta de um safanão.

Grover estava lá, emoldurado no vão da porta contra um fundo de chuva torrencial. Mas ele não era... ele não era exatamente o Grover.

— Procurei a noite toda — arquejou ele. — O que você estava pensando?

Minha mãe olhou para mim aterrorizada — não com medo de Grover, mas da razão de sua chegada.

— Percy — disse ela, gritando para se fazer ouvir mais alto que a chuva. — O que aconteceu na escola? O que você não me contou?

Fiquei paralisado olhando para Grover. Não conseguia entender o que estava vendo.

— O Zeu kai alloi theoi! — gritou ele. — Está bem atrás de mim! Você não contou a ela?

Eu estava chocado demais para registrar que ele acabara de praguejar em grego antigo, e eu tinha entendido perfeitamente. Estava chocado demais para me perguntar como Grover chegara ali sozinho no meio da noite. Porque Grover não estava usando calças — e onde deveriam estar as pernas dele... Onde deveriam estar as pernas dele...

Minha mãe olhou para mim com expressão severa e falou em um tom que jamais usara antes:

— Percy. Conte-me agora!

Eu gaguejei algo sobre velhas senhoras na banca de frutas e a sra. Dodds, e minha mãe ficou olhando para mim, o rosto mortalmente pálido aos clarões dos relâmpagos.

Ela agarrou sua bolsa, jogou para mim a minha capa de chuva e disse:

— Vão para o carro. Vocês dois. Vão!

Grover correu para o Camaro — mas ele não estava exatamente correndo. Estava trotando, sacudindo seu traseiro peludo, e de repente sua história sobre um distúrbio muscular nas pernas fez sentido para mim. Entendi como ele podia correr tão depressa e ainda assim mancar quando andava.

Porque onde deveriam estar seus pés não havia pés. Havia cascos fendidos.


QUATRO

Minha mãe me ensina a tourear

Arrancamos noite adentro por estradas rurais escuras. O vento golpeava o Camaro. A chuva açoitava o para-brisa. Eu não sabia como minha mãe conseguia ver alguma coisa, mas ela mantinha o pé no acelerador.

Toda vez que um relâmpago produzia um clarão, eu olhava para Grover sentado ao meu lado no banco de trás e me perguntava se tinha ficado louco ou se ele estava usando algum tipo de calça felpuda. Mas não, o cheiro era o mesmo que eu lembrava das excursões do jardim de infância para o zoológico infantil — lanolina, como o de lã. O cheiro de um animal molhado de estábulo.

Tudo o que pude dizer foi:

— Então, você e minha mãe... se conhecem?

Os olhos de Grover moveram-se rapidamente para o espelho retrovisor, embora não houvesse carro nenhum atrás de nós.

— Não exatamente — disse ele. — Quer dizer, nunca nos encontramos pessoalmente. Mas ela sabia que eu estava observando você.

— Observando a mim?

— Estava de olho em você. Cuidando que estivesse bem. Mas eu não estava fingindo ser seu amigo — acrescentou apressadamente. — Eu sou seu amigo.

— Ahn... o que é você, exatamente?

— Isso não importa neste momento.

— Não importa? Da cintura para baixo, o meu melhor amigo é um burro...

Grover soltou um agudo e gutural:

— Bééééé!

Eu já o tinha ouvido fazer aquele som antes, mas sempre achei que era um riso nervoso. Agora me dava conta de que era mais um berro irritado.

— Bode! — exclamou.

— O quê?

— Eu sou um bode da cintura para baixo.

— Você acaba de dizer que isso não importa.

— Béééé! Alguns sátiros poderiam pisoteá-lo por causa de tamanho insulto!

— Opa. Espere. Sátiros. Você quer dizer como... os mitos do sr. Brunner?

— Aquelas velhas na banca de frutas eram um mito, Percy? A sra. Dodds era um mito?

— Então você admite que havia uma sra. Dodds!

— É claro.

— Então por que...

— Quanto menos você soubesse, menos monstros atrairia — disse Grover, como se aquilo fosse perfeitamente óbvio. — Nós pusemos a Névoa diante dos olhos humanos. Tínhamos esperança de que você achasse que a Benevolente era uma alucinação. Mas não adiantou. Você começou a perceber quem você é.

— Quem eu... espere um minuto, o que você quer dizer?

O estranho rugido ergueu-se novamente em algum lugar atrás de nós, mais perto do que antes. O que quer que estivesse nos perseguindo ainda estava na nossa cola.

— Percy — disse minha mãe —, há muito a explicar e não temos tempo suficiente. Precisamos pôr você em segurança.

— Em segurança como? Quem está atrás de mim?

— Ah, nada demais — disse Grover, obviamente ainda ofendido com o comentário sobre o burro. — Apenas o Senhor dos Mortos e alguns dos seus asseclas mais sedentos de sangue.

— Grover!

— Desculpe, sra. Jackson. Poderia dirigir mais depressa, por favor?

Tentei envolver minha mente no que estava acontecendo, mas não consegui. Sabia que aquilo não era um sonho. Eu não tinha imaginação. Jamais poderia sonhar algo tão estranho.

Minha mãe fez uma curva fechada para a esquerda. Desviamos para uma estrada mais estreita, passando com velocidade por casas de fazenda às escuras, colinas cobertas de árvores e placas que diziam “COLHA SEUS PRÓPRIOS MORANGOS” sobre cercas brancas.

— Aonde estamos indo? — perguntei.

— Para o acampamento de verão de que falei. — A voz de minha mãe estava tensa; por mim, ela estava tentando não parecer assustada. — O lugar para onde seu pai queria mandá-lo.

— O lugar para onde você não queria que eu fosse.

— Por favor, querido — implorou ela. — Isso já é bem difícil. Tente entender. Você está em perigo.

— Porque umas velhas senhoras cortaram um fio de lã.

— Aquilo não eram velhas senhoras — disse Grover. — Eram as Parcas. Você sabe o que isso significa... o fato de elas aparecerem na sua frente? Elas só fazem isso quando você está prestes a... quando alguém está prestes a morrer.

— Epa! Você disse “você”.

— Não, eu não disse. Eu disse “alguém”.

— Você quis dizer “você”. Ou seja, eu.

— Eu quis dizer você como quem diz “alguém”. Não você, Percy, mas você, qualquer um.

— Meninos! — disse minha mãe.

Ela puxou o volante com força para a direita e eu tive um vislumbre de um vulto do qual ela se desviara — uma forma escura e ondulada, agora perdida na tempestade atrás de nós.

— O que foi aquilo? — perguntei.

— Estamos quase lá — disse minha mãe ignorando a pergunta. — Mais um quilômetro e meio. Por favor. Por favor. Por favor.

Eu não sabia onde era lá, porém me vi inclinando-me para a frente na expectativa, querendo que chegássemos logo.

Do lado de fora, nada além de chuva e escuridão — o tipo de campos vazios que a gente vê quando vai para o extremo de Long Island. Pensei na sra. Dodds e no momento em que ela se transformou naquela coisa com dentes pontiagudos e asas de couro. Meus membros ficaram amortecidos de choque retardado. Ela realmente não era humana. E pretendia me matar.

Então pensei no sr. Brunner... e na espada que ele jogara para mim. Antes que eu pudesse perguntar a Grover sobre aquilo, os cabelos da minha nuca se arrepiaram. Houve um clarão ofuscante, um Bum! de fazer bater o queixo, e o carro explodiu.

Lembro-me de ter me sentido sem peso, como se estivesse sendo esmagado, frito e lavado com uma mangueira, tudo ao mesmo tempo.

Descolei minha testa do encosto do assento do motorista e disse:

— Ai.

— Percy! — gritou minha mãe.

— Estou bem...

Tentei sair do estupor. Eu não estava morto. O carro não explodira de verdade. Tínhamos caído em uma vala. As portas do lado do motorista estavam enfiadas na lama. O teto se abrira como uma casca de ovo e a chuva se derramava para dentro.

Relâmpago. Era a única explicação. Tínhamos voado pelos ares, para fora da estrada. Ao meu lado no assento traseiro havia uma grande massa informe e imóvel.

— Grover!

Ele estava caído de lado, com sangue escorrendo do canto da boca. Sacudi seu quadril peludo, pensando: Não! Mesmo que você seja metade animal de quintal, ainda é meu melhor amigo, e não quero que morra!

Então ele gemeu:

— Comida — e eu soube que havia esperança.

— Percy — disse minha mãe —, temos de... — Ela titubeou.

Olhei para trás. Num clarão de relâmpago, através do para-brisa traseiro salpicado de lama, vi um vulto andando pesadamente na nossa direção no acostamento da estrada. Aquela visão fez minha pele formigar. Era a silhueta escura de um sujeito enorme, como um jogador de futebol americano. Parecia estar segurando uma manta por cima da cabeça. A metade superior dele era volumosa e indistinta. As mãos erguidas davam a impressão de que ele tinha chifres.

Engoli em seco.

— Quem é...

— Percy — disse minha mãe, extremamente séria. — Saia do carro.

Ela se jogou contra a porta do lado do motorista. Estava emperrada na lama. Tentei a minha. Emperrada também. Desesperado, ergui os olhos para o buraco no teto. Poderia ser uma saída, mas as bordas estavam chiando e fumegando.

— Saia pelo lado do passageiro! — disse minha mãe. — Percy, você tem de correr. Está vendo aquela árvore grande?

— O quê?

Outro clarão de relâmpago e pelo buraco fumegante no teto eu vi a árvore a que ela se referia: um enorme pinheiro, do tamanho de uma árvore de Natal da Casa Branca, no topo da colina mais próxima.

— Aquele é o limite da propriedade — disse minha mãe. — Passe daquela colina e verá uma grande casa de fazenda no fundo do vale. Corra e não olhe para trás. Grite por ajuda. Não pare enquanto não chegar à porta.

— Mamãe, você também vem.

O rosto dela estava pálido, os olhos tristes como quando ela olhava para o oceano.

— Não! — gritei. — Você vem comigo. Ajude-me a carregar o Grover.

— Comida! — gemeu Grover, um pouco mais alto.

O homem com a manta na cabeça continuou indo em nossa direção, grunhindo e bufando. Quando ele chegou mais perto, percebi que não podia estar segurando uma manta acima da cabeça porque as mãos — enormes e carnudas — balançavam ao seu lado. Não havia manta nenhuma. O que queria dizer que a massa volumosa e indistinta que era grande demais para ser sua cabeça... era sua cabeça. E as pontas que pareciam chifres...

— Ele não nos quer — disse minha mãe. — Ele quer você. Além disso, não posso ultrapassar o limite da propriedade.

— Mas...

— Não temos tempo, Percy. Vá. Por favor.

Então fiquei zangado — zangado com a minha mãe, com Grover, o bode, com a coisa chifruda que se movia pesadamente em nossa direção, de modo lento e calculado como... como um touro.

Passei por cima de Grover e empurrei a porta, que se abriu para a chuva.

— Nós vamos juntos. Venha, mãe.

— Eu já disse que...

— Mamãe! Eu não vou abandonar você. Ajude aqui com Grover.

Não esperei pela resposta dela. Eu me arrastei para fora do carro, puxando Grover comigo. Ele era surpreendentemente leve, mas eu não poderia tê-lo carregado para muito longe se minha mãe não tivesse ido me ajudar.

Juntos, pusemos os braços de Grover em nossos ombros e começamos a subir a colina aos tropeções, com o capim molhado na altura da cintura.

Ao olhar de relance para trás, tive minha primeira visão clara do monstro. Tinha, fácil, mais de dois metros, e os braços e pernas pareciam algo saído da capa da revista Músculos — bíceps e tríceps saltados e mais um monte de outros ceps, todos estufados como bolas de beisebol embaixo de uma pele cheia de veias. Ele não usava roupas, a não ser cuecas — branquíssimas, da marca Fruit of the Loom —, o que teria sido engraçado não fosse o fato de a parte superior de seu corpo ser tão assustadora. Pelos marrons e grossos começavam na altura do umbigo e iam ficando mais espessos à medida que chegavam aos ombros.

Seu pescoço era uma massa de músculos e pelos que levavam à enorme cabeça, que tinha um focinho tão comprido quanto meu braço, narinas ranhentas com um reluzente anel de bronze, olhos pretos cruéis e chifres — enormes chifres preto e branco com pontas que você não conseguiria fazer nem num apontador elétrico.

Reconheci o monstro muito bem. Tinha sido uma das primeiras histórias que o sr. Brunner nos contara. Mas ele não podia ser real.

Pisquei os olhos para desviar a chuva.

— Aquele é...

— O filho de Pasífae — disse minha mãe. — Gostaria de ter sabido antes o quanto desejam matar você.

— Mas ele é o Min...

— Não pronuncie o nome — advertiu ela. — Os nomes têm poder.

O pinheiro ainda estava longe demais — pelo menos cem metros colina acima.

Dei outra olhada para trás.

O homem-touro se curvou por cima do nosso carro, olhando pelas janelas — ou não exatamente olhando. Era mais como farejar, fuçar. Eu não sabia muito bem por que ele se dava a esse trabalho, já que estávamos a apenas quinze metros de distância.

— Comida? — gemeu Grover.

— Shhh — fiz eu. — Mamãe, o que ele está fazendo? Não está nos vendo?

— Sua visão e sua audição são péssimas — disse ela. — Ele se orienta pelo cheiro. Mas vai perceber onde estamos logo, logo.

Como que na deixa, o homem-touro bramiu de raiva. Ele agarrou o Camaro de Gabe pela capota rasgada, o chassis rangia e gemia. Ergueu o carro acima da cabeça e atirou-o na estrada. Aquilo se chocou contra o asfalto molhado e deslizou em meio a um chuveiro de fagulhas por cerca de quinhentos metros antes de parar. O tanque de gasolina explodiu.

Nem um arranhão, lembrei-me de Gabe dizendo.

Oops.

— Percy — disse minha mãe. — Quando ele nos vir, vai atacar. Espere até o último segundo, depois saia do caminho. Ele não consegue mudar de direção muito bem quando já está atacando. Você entendeu?

— Como você sabe tudo isso?

— Estou preocupada com um ataque há muito tempo. Devia ter esperado por isso. Fui egoísta, mantendo você perto de mim.

— Mantendo-me perto de você? Mas...

Outro bramido de raiva e o homem-touro começou a subir pesadamente a colina.

Tinha nos farejado.

O pinheiro estava a apenas mais alguns metros, mas a colina era cada vez mais íngreme e escorregadia, e Grover ficava mais pesado.

O homem-touro se aproximava. Mais alguns segundos e estaria em cima de nós.

Minha mãe devia estar exausta, mas carregou Grover.

— Vá, Percy! Vá sozinho! Lembre-se do que eu disse.

Eu não queria me separar, mas tive a sensação de que ela estava certa — era nossa única chance. Pulei para a esquerda, virei-me e vi a criatura avançando em minha direção. Os olhos pretos brilhavam de ódio. Fedia a carne podre.

Ele inclinou a cabeça e atacou, aqueles chifres afiados como navalhas apontados diretamente para o meu peito.

O medo no meu estômago me deu vontade de disparar, mas isso não daria certo. Eu jamais poderia correr mais que aquela coisa. Então fiquei parado e, no último momento, saltei para o lado.

O homem-touro passou por mim a toda como um trem de carga, depois bramiu de frustração e se virou, mas dessa vez não contra mim, mas contra minha mãe, que estava acomodando Grover sobre a grama.

Tínhamos chegado ao topo da colina. Embaixo, do outro lado, pude ver um vale, bem como minha mãe dissera, e as luzes de uma casa de fazenda tremeluzindo amarelas através da chuva. Mas estava a oitocentos metros de distância. Nunca conseguiríamos chegar lá.

O homem-touro roncou, escarvando o chão. Ficou olhando para minha mãe, que recuava lentamente colina abaixo, de volta para a estrada, tentando afastar o monstro de Grover.

— Corra, Percy! — disse ela. — Não posso passar daqui. Corra!

Mas fiquei lá parado, paralisado de medo, enquanto o monstro a atacava. Ela tentou sair de lado, como me dissera para fazer, mas o monstro tinha aprendido a lição. Jogou a mão para a frente e agarrou-lhe o pescoço quando ela tentou escapar. Ele a ergueu enquanto ela lutava, chutando e dando murros no ar.

— Mamãe!

Então, com um rugido furioso, o monstro fechou os punhos em volta do pescoço da minha mãe e ela se dissolveu diante dos meus olhos, fundindo-se em luz, uma forma dourada tremeluzente, como uma projeção holográfica. Um clarão ofuscante, e ela simplesmente... se foi.

— Não!

A raiva substituiu o medo. Uma nova força ardeu em meus membros — a mesma onda de energia que me veio quando a sra. Dodds mostrou as garras.

O homem-touro foi na direção de Grover, que estava deitado na grama, indefeso. O monstro se curvou, fungando meu melhor amigo como se estivesse prestes a erguê-lo dali e fazê-lo se dissolver também.

Eu não podia permitir aquilo.

Tirei minha capa de chuva vermelha.

— Ei! — gritei, agitando a capa e correndo para um lado do monstro. — Ei, estúpido! Monte de carne moída!

— Raaaarrrrr! — O monstro virou-se para mim sacudindo seus punhos carnudos.

Eu tive uma ideia — uma ideia boba, porém melhor do que não pensar em nada. Encostei as costas no grande pinheiro e agitei a capa vermelha na frente do homem-touro, pensando em pular fora do caminho no último momento.

Mas não foi assim que aconteceu.

O homem-touro atacou depressa demais, os braços estendidos para me agarrar qualquer que fosse o lado para onde eu tentasse me esquivar.

O tempo começou a passar mais devagar.

Minhas pernas travaram. Eu não podia pular para o lado, assim saltei direto para cima, usando a cabeça da criatura como trampolim, girei o corpo no ar e caí sobre seu pescoço.

Como eu fiz aquilo? Não tive tempo para descobrir. Um milissegundo depois a cabeça do monstro chocou-se contra a árvore e o impacto quase fez meus dentes saltarem da boca.

O homem-touro cambaleou de um lado para outro tentando se livrar de mim. Segurei com força em seus chifres para não ser arremessado. Os trovões e os relâmpagos ficavam mais fortes. A chuva caía em meus olhos. O cheiro de carne podre queimava minhas narinas.

O monstro se sacudia e corcoveava como um touro de rodeio. Poderia simplesmente ter chegado para trás e me esmagado completamente na árvore, mas eu começava a perceber que aquela coisa só tinha uma direção: para a frente.

Enquanto isso, Grover começou a gemer na grama. Quis gritar para ele ficar calado, mas do jeito que estava sendo jogado de um lado para o outro, se abrisse a boca deceparia minha própria língua com uma mordida.

— Comida! — gemeu Grover.

O homem-touro virou-se para ele, escarvou o chão novamente e se preparou para atacar. Pensei em como ele havia espremido a vida para fora de minha mãe, como a fizera desaparecer num clarão de luz, e a raiva me abasteceu como um combustível de alta potência. Agarrei um dos chifres com ambas as mãos e puxei para trás com toda a minha força. O monstro se retesou, soltou um grunhido de surpresa, e então... pléc!

O homem-touro berrou e me atirou pelos ares. Aterrissei de costas na grama. Minha cabeça bateu contra uma pedra. Quando me sentei, minha visão estava embaçada, mas eu tinha um chifre nas mãos, um osso partido do tamanho de uma faca.

O monstro atacou.

Sem pensar, rolei para o lado e me levantei de joelhos. Quando ele passou a toda a velocidade, enterrei o chifre quebrado bem na lateral de seu corpo, logo abaixo da caixa torácica peluda.

O homem-touro urrou em agonia. Debateu-se, rasgando o peito com suas garras, e depois começou e se desintegrar — não como minha mãe, em um clarão dourado, mas como areia se esfarelando, carregada pelo vento aos pedaços para longe, do mesmo modo como a sra. Dodds se desintegrara.

O monstro se fora.

A chuva tinha parado. A tempestade ainda rugia, mas somente a distância. Eu cheirava a gado e meus joelhos tremiam. Minha cabeça parecia que ia se partir ao meio. Estava fraco, assustado e tremia de tristeza. Acabara de ver minha mãe se desvanecer. Queria me deitar e chorar, mas havia Grover, precisando de minha ajuda, portanto consegui erguê-lo e descer cambaleando para o vale em direção às luzes da casa. Eu estava chorando, chamando minha mãe, mas me agarrei a Grover — eu não ia deixá-lo partir.

Minha última lembrança é ter desmaiado numa varanda de madeira, olhando para um ventilador de teto que girava acima de mim, mariposas voando em volta de uma luz amarela, e as expressões austeras e familiares de um homem barbudo e uma menina bonita, com cabelos loiros encaracolados como os de uma princesa. Os dois olharam para mim e a menina disse:

— É ele. Tem de ser.

— Silêncio, Annabeth — disse o homem. — Ele ainda está consciente. Traga-o para dentro.


CINCO

Eu jogo pinochle com um cavalo

Tive sonhos estranhos, cheios de animais de estábulo. A maioria queria me matar. O restante queria comida.

Devo ter acordado várias vezes, mas o que ouvi e vi não fazia sentido, então adormecia de novo. Lembro-me de estar deitado em uma cama macia, sendo alimentado com colheradas de alguma coisa que tinha gosto de pipoca com manteiga, só que era pudim. A menina com o cabelo loiro encaracolado pairava acima de mim com um sorriso afetado enquanto limpava as gotas de meu queixo com a colher.

Quando ela viu meus olhos abertos, perguntou:

— O que vai acontecer no solstício de verão?

Eu consegui resmungar:

— O quê?

Ela olhou em volta, como se estivesse com medo de que alguém ouvisse.

— O que está acontecendo? O que foi roubado? Nós só temos algumas semanas!

— Desculpe — murmurei. — Eu não...

Alguém bateu à porta, e a menina rapidamente encheu minha boca de pudim.

Quando acordei novamente, a menina tinha ido embora.

Um sujeito loiro e forte, como um surfista, estava no canto do quarto me vigiando. Tinha olhos azuis — pelo menos uma dúzia deles — nas bochechas, na testa, nas costas das mãos.

Quando finalmente voltei a mim de vez, não havia nada de estranho com o lugar ao meu redor, a não ser que era mais agradável do que eu estava acostumado. Estava sentado numa espreguiçadeira em uma enorme varanda, olhando ao longo de uma campina para colinas verdejantes a distância. A brisa tinha cheiro de morangos. Havia uma manta sobre as minhas pernas, um travesseiro atrás do pescoço. Tudo isso era ótimo, mas minha boca me dava a sensação de ter sido usada como ninho por um escorpião. A língua estava seca e pegajosa, e todos os dentes doíam. Sobre a mesa ao lado havia bebida num copo alto. Parecia suco de maçã gelado, com um canudinho verde e um guarda-chuva de papel enfiado em uma cereja.

Minha mão estava tão fraca que quase derrubei o copo quando passei os dedos em volta dele.

— Cuidado — disse uma voz familiar.

Grover estava apoiado no gradil da varanda, e parecia não dormir havia uma semana. Embaixo de um braço, segurava uma caixa de sapatos. Estava usando jeans, tênis Converse de cano alto e uma camiseta laranja-claro com os dizeres ACAMPAMENTO MEIO-SANGUE. Apenas o velho Grover. Não o menino-bode.

Quem sabe não tive um pesadelo? Talvez minha mãe estivesse bem. Ainda estávamos de férias e tínhamos parado ali naquela grande casa por alguma razão. E...

— Você salvou minha vida — disse Grover. — Eu... bem, o mínimo que eu podia fazer... voltei na colina. Achei que você poderia querer isto.

Reverentemente, ele colocou a caixa de sapatos em meu colo.

Dentro havia um chifre de touro branco e preto, a base irregular por ter sido quebrada, a ponta salpicada de sangue seco. Não tinha sido um pesadelo.

— O Minotauro — disse eu.

— Ahn, Percy, não é uma boa ideia...

— É assim que o chamam nos mitos gregos, não é? — perguntei. — O Minotauro. Meio homem, meio touro.

Grover mudou de posição, pouco à vontade.

— Você ficou desacordado por dois dias. Do que se lembra?

— Minha mãe. Ela está mesmo...

Ele abaixou os olhos.

Olhei ao longo da campina. Havia pequenos bosques, um riacho sinuoso, campos de morangos espalhados embaixo do céu azul. O vale era cercado por colinas ondulantes, e a mais alta, bem na nossa frente, era a que tinha o grande pinheiro no topo. Mesmo isso parecia bonito à luz do sol.

Minha mãe se fora. O mundo inteiro deveria estar escuro e frio. Nada devia parecer bonito.

— Desculpe — fungou Grover. — Eu sou um fracasso. Eu... eu sou o pior sátiro do mundo.

Ele gemeu, batendo o pé com tanta força que ele saiu, quer dizer, o tênis Converse saiu. Dentro, estava recheado de isopor, a não ser por um buraco em forma de casco.

— Oh, Estige! — murmurou ele.

Um trovão ecoou no céu claro.

Enquanto ele lutava para pôr o casco de volta no falso pé, pensei: Bem, isso resolve as coisas.

Grover era um sátiro. Podia apostar que, se raspasse o cabelo castanho cacheado, encontraria pequenos chifres em sua cabeça. Mas eu me sentia infeliz demais para me importar com a existência de sátiros ou mesmo minotauros. O importante era que minha mãe realmente tinha sido espremida para o nada, dissolvida em luz amarela.

Eu estava sozinho. Um órfão. E teria de viver com... Gabe Cheiroso? Não. Isso jamais iria acontecer. Preferia viver nas ruas. Fingiria ter dezessete anos e me alistaria no exército. Faria alguma coisa.

Grover ainda estava fungando. O pobre garoto — pobre bode, ou sátiro, ou o que for — parecia estar esperando levar um murro.

— Não foi sua culpa — disse eu.

— Foi, sim. Eu devia protegê-lo.

— Minha mãe pediu para você me proteger?

— Não. Mas é isso que faço. Sou um guardião. Pelo menos... eu era.

— Mas por que...

De repente senti uma vertigem, minha visão rodando.

— Não se esforce demais — disse Grover. — Aqui.

Ele me ajudou a segurar o copo e eu levei o canudinho aos lábios.

Recuei com o gosto, porque estava esperando suco de maçã. Não tinha nada a ver com isso. Era gosto de biscoito com pedacinhos de chocolate. Biscoito líquido. E não qualquer biscoito — os biscoitos azuis da minha mãe com pedacinhos de chocolate, amanteigados e quentes, o chocolate ainda derretendo. Ao beber aquilo, meu corpo inteiro se sentiu bem, aquecido e cheio de energia. Minha tristeza não foi embora, mas era como se minha mãe tivesse acabado de acariciar minha bochecha e me dar um biscoito, como costumava fazer quando eu era pequeno, e tivesse dito que tudo ia ficar bem.

Antes de me dar conta, já tinha esvaziado o copo inteiro. Olhei para dentro dele e, com certeza, não era uma bebida quente, pois os cubos de gelo não tinham nem derretido.

— Estava bom? — perguntou Grover.

Fiz que sim com a cabeça.

— Que gosto tinha?

Ele pareceu tão suplicante que me senti culpado.

— Desculpe. Devia ter deixado você provar.

Os olhos dele se arregalaram.

— Não! Não foi isso que eu quis dizer. Eu só... fiquei curioso.

— Biscoitos com pedacinhos de chocolate — disse eu. — Os da minha mãe. Feitos em casa.

Ele suspirou.

— E como se sente?

— Como se fosse capaz de jogar Nancy Bobofit a cem metros de distância.

— Isso é bom — disse ele. — Isso é bom. Não acho que você deva se arriscar a tomar mais disso aí.

— O que quer dizer?

Ele pegou meu copo com cautela, como se fosse dinamite, e o colocou de volta na mesa.

— Vamos. Quíron e o sr. D estão esperando.

A varanda circundava toda a casa da fazenda.

Senti as pernas trêmulas tentando andar toda aquela distância. Grover se ofereceu para carregar o chifre do Minotauro, mas eu me agarrei a ele. Tinha pago um preço alto por aquele suvenir. Não iria largá-lo.

Quando demos a volta até o lado oposto da casa, parei para recuperar o fôlego.

Devíamos estar na costa norte de Long Island, porque daquele lado da casa o vale seguia até a água, que cintilava a cerca de um quilômetro de distância. Da casa até lá, eu simplesmente não consegui processar tudo o que estava vendo. A paisagem era pontilhada de construções que lembravam a arquitetura grega antiga — um pavilhão a céu aberto, um anfiteatro, uma arena circular —, só que pareciam novos em folha, as colunas de mármore branco reluzindo ao sol. Em uma quadra de areia próxima, uma dúzia de crianças e sátiros em idade escolar jogavam voleibol. Canoas deslizavam por um pequeno lago. Crianças de camiseta laranja-claro como a de Grover corriam umas atrás das outras em volta de um agrupamento de chalés no meio do bosque. Algumas praticavam arco e flecha em alvos. Outras montavam cavalos em uma trilha arborizada e, a não ser que eu estivesse tendo alucinações, alguns cavalos tinham asas.

Na extremidade da varanda, dois homens estavam sentados frente a frente em uma mesa de carteado. A menina de cabelos loiros que me alimentara com colheradas de pudim com sabor de pipoca estava apoiada no gradil da varanda, ao lado deles.

O homem de frente para mim era pequeno, mas gorducho. Tinha nariz vermelho, grandes olhos chorosos e cabelo cacheado tão preto que era quase roxo. Parecia uma daquelas pinturas de anjos-bebês, como se chamam mesmo... surubins? Não, querubins. É isso. Ele parecia um querubim que chegou à meia-idade em um acampamento de trailers. Usava uma camisa havaiana com estampa de tigre, e teria se encaixado perfeitamente em uma das rodas de pôquer de Gabe, só que eu tive a sensação de que esse cara poderia ter ganhado até do meu padrasto.

— Aquele é o sr. D — murmurou Grover para mim. — Ele é o diretor do acampamento. Seja educado. A menina é Annabeth Chase. Ela é só uma campista, mas está aqui há mais tempo que quase todo mundo. E você já conhece Quíron...

Ele apontou para o cara que estava de costas para mim.

Primeiro, percebi que ele estava sentado em uma cadeira de rodas. Depois reconheci o casaco de tweed, o cabelo castanho ralo, a barba desalinhada.

— Sr. Brunner! — exclamei.

O professor de latim voltou-se e sorriu para mim. Os olhos estavam com aquele brilho travesso de quando ele fazia uma prova-surpresa e todas as respostas da múltipla escolha eram B.

— Ah, bom, Percy — disse ele. — Agora já temos quatro para o pinochle.

Ele me ofereceu uma cadeira à direita do sr. D, que olhou para mim com olhos injetados e soltou um grande suspiro.

— Ah, suponho que devo dizer isto. Bem-vindo ao Acampamento Meio-Sangue. Pronto. Agora, não espere que eu esteja contente em vê-lo.

— Ahn, obrigado. — Logo me afastei um pouco dele, porque, se havia uma coisa que eu tinha aprendido convivendo com Gabe, era reconhecer quando um adulto andou tomando umas e outras. Se o sr. D era um abstêmio, eu era um sátiro.

— Annabeth? — o sr. Brunner chamou a menina loira.

Ela avançou e o sr. Brunner nos apresentou.

— Esta mocinha cuidou de você até que ficasse bom, Percy. Annabeth, minha querida, por que não vai verificar o beliche de Percy? Vamos instalá-lo no chalé 11 por enquanto.

Annabeth disse:

— Claro, Quíron.

Ela provavelmente tinha a minha idade, talvez fosse uns cinco centímetros mais alta, e tinha a aparência muitíssimo mais atlética. Com seu bronzeado intenso e o cabelo loiro cacheado, era quase exatamente como eu imaginava uma típica menina da Califórnia, a não ser pelos olhos, que arruinavam essa imagem. Eram surpreendentemente cinzentos, como nuvens de tempestade; bonitos, mas também intimidadores, como se ela estivesse analisando o melhor modo de me derrubar em uma luta.

Ela deu uma olhada para o chifre de minotauro em minhas mãos, então de novo para mim. Imaginei que fosse dizer: Você matou um minotauro! ou Uau, você é tão assustador! ou algo do tipo. Em vez disso, ela disse:

— Você baba quando está dormindo.

Depois saiu correndo pelo gramado, os cabelos loiros esvoaçando atrás dela.

— Então — disse, ansioso por mudar de assunto —, o senhor, ahn, trabalha aqui, sr. Brunner?

— Sr. Brunner não — disse o ex-sr. Brunner. — Lamento, era um pseudônimo. Você pode me chamar de Quíron.

— Combinado. — Totalmente confuso, olhei para o diretor. — E sr. D... significa alguma coisa?

O sr. D parou de embaralhar as cartas. Olhou para mim como se eu tivesse acabado de arrotar alto.

— Rapazinho, os nomes são coisas poderosas. Você simplesmente não sai por aí os usando sem motivo.

— Ah. Certo. Desculpe.

— Devo dizer, Percy — interrompeu Quíron-Brunner —, que estou contente em vê-lo com vida. Já faz um bom tempo desde que fiz um atendimento domiciliar a um campista em potencial. Detestaria pensar que tinha perdido meu tempo.

— Atendimento domiciliar?

— O ano que passei na Academia Yancy para instruí-lo. Temos sátiros de prontidão na maioria das escolas, é claro. Mas Grover me alertou assim que o conheceu. Ele sentiu que você era especial, então decidi ir lá. Convenci o outro professor de latim a... ahn, tirar uma licença.

Tentei me lembrar do começo do ano escolar. Parecia tanto tempo atrás, mas eu tinha uma vaga lembrança de outro professor de latim na minha primeira semana em Yancy. Então, sem explicação, ele desapareceu e o sr. Brunner assumiu a turma.

— Você foi a Yancy só para me ensinar? — perguntei.

Quíron assentiu.

— Honestamente, de início eu não tinha muita certeza a seu respeito. Contatamos sua mãe, informamos que estávamos de olho em você, para o caso de estar pronto para o Acampamento Meio-Sangue. Mas você ainda tinha muito a aprender. Não obstante, chegou aqui vivo, e esse é sempre o primeiro teste.

— Grover — disse o sr. D com impaciência —, vai jogar ou não?

— Sim, senhor! — Grover tremeu quando se sentou na quarta cadeira, embora eu não soubesse por que ele deveria ter tanto medo de um homenzinho gorducho de camisa havaiana com estampa de tigre.

— Você sabe jogar pinochle? — indagou o sr. D olhando para mim com desconfiança.

— Infelizmente não — disse eu.

— Infelizmente não, senhor. — disse ele.

— Senhor — repeti. Estava gostando cada vez menos do diretor do acampamento.

— Bem — ele me disse —, este é, juntamente com as lutas de gladiadores e o Pac-Man, um dos melhores jogos já inventados pelos seres humanos. Imaginava que todos os jovens civilizados conhecessem as regras.

— Estou certo de que o menino pode aprender — disse Quíron.

— Por favor — disse eu —, o que é este lugar? O que estou fazendo aqui? Sr. Brun... Quíron, por que iria à Academia Yancy só para me ensinar?

O sr. D bufou.

— Fiz a mesma pergunta.

O diretor do acampamento deu as cartas. Grover se encolhia a cada vez que uma caía na sua pilha.

Quíron sorriu para mim de um modo compreensivo, como costumava fazer na aula de latim, como para me dizer que qualquer que fosse minha nota, eu era seu aluno mais importante. Ele esperava que eu tivesse a resposta certa.

— Percy — disse ele —, sua mãe não lhe contou nada?

— Ela disse... — Lembrei-me dos seus olhos tristes, olhando para o mar. — Ela me contou que tinha medo de me mandar para cá, embora meu pai quisesse que ela fizesse isso. Disse que, uma vez aqui, provavelmente não poderia sair. Queria me manter perto dela.

— Típico — disse o sr. D. — É assim que eles normalmente são mortos. Rapazinho, você vai fazer um lance ou não vai?

— O quê? — perguntei.

Ele explicou, impacientemente, como se faz um lance em pinochle, e eu fiz.

— Lamento, mas há coisas demais a contar — disse Quíron. — Receio que nosso filme de orientação não seja suficiente.

— Filme de orientação? — perguntei.

— Não — concluiu Quíron. — Bem, Percy. Você sabe que seu amigo Grover é um sátiro. Você sabe — ele apontou para o chifre na caixa de sapatos — que você matou o Minotauro. E não é um pequeno feito, rapaz. O que você pode não saber é que grandes forças estão em ação na sua vida. Os deuses, as forças que você chama de deuses gregos, estão muito vivos.

Olhei para os outros em volta da mesa.

Aguardei que alguém gritasse, Não! Mas tudo o que ouvi foi o sr. D gritando:

— Oh, um casamento real. Truco! Truco! — Ele gargalhou enquanto contava os pontos.

— Sr. D — perguntou Grover timidamente —, se não for comê-la, posso ficar com sua lata de Diet Coke?

— Hein? Ah, está bem.

Grover mordeu um grande pedaço da lata de alumínio vazia e mastigou tristemente.

— Espere — eu disse a Quíron —, está me dizendo que existe algo como Deus.

— Bem, vamos lá — disse Quíron. — Deus, com D maiúsculo: Deus. Isso é outro assunto. Não vamos lidar com o metafísico.

— Metafísico? Mas você estava falando sobre...

— Ah, deuses, no plural, grandes seres que controlam as forças da natureza e os empreendimentos humanos: os deuses imortais do Olimpo. Essa é uma questão menor.

— Menor?

— Sim, muito. Os deuses que discutimos na aula de latim.

— Zeus — disse eu. — Hera. Apolo. Você quer dizer, esses.

E, de novo, uma trovoada distante em um dia sem nuvens.

— Rapazinho — disse o sr. D —, se eu fosse você, seria menos negligente quanto a ficar soltando esses nomes por aí.

— Mas são histórias — disse eu. — São... mitos, para explicar os relâmpagos, as estações e tudo o mais. Era nisso que as pessoas acreditavam antes de surgir a ciência.

— Ciência! — zombou o sr. D. — E diga-me, Perseu Jackson — eu me encolhi quando ele disse meu nome verdadeiro, que nunca contara a ninguém —, o que as pessoas pensarão da sua “ciência” daqui a milhares de anos? Humm? Irão chamá-la de baboseiras primitivas. É isso o que irão pensar. Ah, eu adoro os mortais... eles não têm a menor noção de perspectiva. Acham que já chegaram tãããão longe. E chegaram, Quíron? Olhe para esse menino e diga-me.

Eu não estava gostando muito do sr. D, mas havia algo no modo como ele me chamou de mortal, como se... se ele não fosse. Foi o bastante para me dar um nó na garganta, para sugerir por que Grover estava zelosamente atento às suas cartas, mascando sua lata de refrigerante e mantendo a boca fechada.

— Percy — disse Quíron —, você pode escolher entre acreditar ou não, mas o fato é que imortal significa imortal. Pode imaginar isso por um momento, não morrer nunca? Existir, assim como você é, para toda a eternidade?

Eu estava prestes a responder, assim sem pensar, que parecia um negócio muito bom, mas o tom de voz de Quíron me fez hesitar.

— Você quer dizer, quer as pessoas acreditem em você ou não — disse eu.

— Exatamente — concordou Quíron. — Se você fosse um deus, gostaria de ser chamado de mito, de uma velha história para explicar os relâmpagos? E se eu contasse a você, Perseu Jackson, que um dia as pessoas vão chamar você de mito, criado apenas para explicar como menininhos podem sobreviver à perda de suas mães?

Meu coração disparou. Ele estava tentando me deixar zangado por alguma razão, mas eu não ia permitir que o fizesse. Eu disse:

— Eu não gostaria disso. Mas não acredito em deuses.

— Oh, é melhor mesmo — murmurou o sr. D. — Antes que um deles o incinere.

Grover disse:

— P-por favor, senhor. Ele acaba de perder a mãe. Está em estado de choque.

— Uma sorte, também — resmungou o sr. D, jogando uma carta. — Ruim mesmo é estar confinado a esse trabalho deprimente, com meninos que nem mesmo têm fé!

Ele acenou e uma taça apareceu sobre a mesa, como se a luz do sol tivesse momentaneamente se encurvado e transformado o ar em vidro. A taça se encheu de vinho tinto.

Meu queixo caiu, mas Quíron mal ergueu os olhos.

— Senhor D — advertiu —, as suas restrições.

O sr. D olhou para o vinho e fingiu surpresa.

— Ora vejam. — Ele olhou para o céu e gritou: — Velhos hábitos! Desculpe!

Mais trovões.

O sr. D acenou outra vez e a taça de vinho se transformou em uma nova lata de Diet Coke. Ele suspirou, infeliz, abriu a lata e voltou ao seu jogo de cartas.

Quíron piscou para mim.

— O sr. D irritou o pai dele tempos atrás, sentiu-se atraído por uma ninfa dos bosques que tinha sido declarada inacessível.

— Uma ninfa dos bosques — repeti, ainda olhando para a Diet Coke como se tivesse vindo do cosmos.

— Sim — confessou o sr. D. — O pai adora me castigar. Na primeira vez, Proibição. Horrível! Dez anos absolutamente terríveis! Na segunda vez... bem, ela era mesmo linda, não consegui ficar longe... na segunda vez, ele me mandou para cá. Colina Meio-Sangue. Acampamento de verão para moleques como você. “Seja uma influência melhor”, ele me disse. “Trabalhe com os jovens em vez de arrasar com eles.” Ah! Que injustiça.

O sr. D parecia ter seis anos de idade, como uma criancinha fazendo pirraça.

— E... — gaguejei — o seu pai é...

— Di immortales, Quíron — disse o sr. D. — Pensei que você tinha ensinado o básico a este menino. Meu pai é Zeus, é claro.

Repassei os nomes começados em D da mitologia grega. Vinho. A pele de um tigre. Os sátiros que pareciam estar todos trabalhando aqui. O modo como Grover se encolhia de medo, como se o sr. D fosse seu senhor.

— Você é Dioniso — disse eu. — O deus do vinho.

O sr. D revirou os olhos.

— Como eles dizem hoje em dia, Grover? As crianças dizem, “fala sério”?

— S-sim, sr. D.

— Então, fala sério, Percy Jackson. Achou o quê; que eu fosse Afrodite?

— Você é um deus.

— Sim, criança.

— Um deus. Você.

Ele se virou para olhar diretamente para mim, e vi uma espécie de fogo arroxeado nos seus olhos, um indício de que aquele homenzinho reclamão e gorducho só estava me mostrando uma minúscula parte da sua verdadeira natureza. Tive visões de vinhas estrangulando descrentes até a morte, guerreiros bêbados insanos com o entusiasmo da batalha, marinheiros gritando enquanto suas mãos se transformavam em nadadeiras, os rostos se alongando em focinhos de golfinho. Eu sabia que, se o pressionasse, o sr. D iria me mostrar coisas piores. Iria plantar uma doença no meu cérebro que me levaria a usar camisa de força pelo resto da vida.

— Gostaria de me testar, criança? — disse em voz baixa.

— Não. Não, senhor.

O fogo diminuiu um pouco. Ele voltou ao jogo de cartas.

— Acho que ganhei.

— Não exatamente, sr. D — disse Quíron. Ele baixou uma sequência, contou os pontos e disse: — O jogo é meu.

Achei que o sr. D fosse transformar Quíron em pó em sua cadeira de rodas, mas ele apenas suspirou pelo nariz, como se estivesse acostumado a ser batido pelo professor de latim. Pôs-se de pé, e Grover levantou-se também.

— Estou cansado — disse o sr. D. — Acho que vou tirar uma soneca antes da cantoria desta noite. Mas primeiro, Grover, precisamos conversar de novo sobre seu desempenho para lá de imperfeito nessa missão.

O rosto de Grover cobriu-se de gotículas de suor.

— S-sim, senhor.

O sr. D voltou-se para mim.

— Chalé 11, Percy Jackson. E cuidado com seus modos.

Ele se afastou para dentro da casa, com Grover o seguindo arrasado.

— Grover vai ficar bem? — perguntei a Quíron.

Quíron assentiu, embora parecesse um pouco perturbado.

— O velho Dioniso não está realmente zangado. Ele apenas detesta seu trabalho. Ele foi... ahn, confinado à Terra, pode-se dizer, e não pode aguentar ter de esperar mais um século antes de ser autorizado a voltar ao Olimpo.

— O Monte Olimpo — disse eu. — Você está me dizendo que realmente existe um palácio ali?

— Bem, agora há o Monte Olimpo na Grécia. E há o lar dos deuses, o ponto de convergência dos seus poderes, que de fato costumava ser no Monte Olimpo. Ainda é chamado de Monte Olimpo, por respeito às tradições, mas o palácio muda de lugar, Percy, assim como os deuses.

— Você quer dizer que os deuses gregos estão aqui? Tipo... nos Estados Unidos?

— Bem, certamente. Os deuses mudam com o coração do Ocidente.

— O quê?

— Vamos, Percy. O que vocês chamam de “civilização ocidental”. Você acha que é apenas um conceito abstrato? Não, é uma força viva. Uma consciência coletiva que ardeu brilhantemente por milhares de anos. Os deuses são parte dela. Você pode até dizer que eles são sua fonte ou, pelo menos, que estão ligados tão intimamente a ela que possivelmente não vão deixar de existir, a não ser que toda a civilização ocidental seja destruída. A chama começou na Grécia. Então, como você bem sabe... ou espero que saiba, já que foi aprovado no meu curso... o coração da chama se mudou para Roma, e assim fizeram os deuses. Ah, com nomes diferentes, talvez: Júpiter em vez de Zeus, Vênus em vez de Afrodite, e assim por diante; mas as mesmas forças, os mesmos deuses.

— E então eles morreram.

— Morreram? Não. O Ocidente morreu? Os deuses simplesmente se mudaram, para a Alemanha, para a França, para a Espanha, por algum tempo. Aonde quer que a chama brilhasse mais, lá estavam os deuses. Eles passaram vários séculos na Inglaterra. Tudo o que você precisa é olhar para a arquitetura. As pessoas não esquecem os deuses. Em todos os lugares onde reinaram, nos últimos três mil anos, você pode vê-los em pinturas, em estátuas, nos prédios mais importantes. E sim, Percy, é claro que agora eles estão nos seus Estados Unidos. Olhe para o símbolo do país, a águia de Zeus. Olhe para a estátua de Prometeu no Rockefeller Center, para as fachadas dos edifícios governamentais em Washington. Eu o desafio a encontrar qualquer cidade americana onde os olimpianos não estejam proeminentemente expostos em vários locais. Goste ou não — e acredite, uma porção de gente não gostava muito de Roma também —, os Estados Unidos são agora o coração da chama. São a grande potência do Ocidente. E, portanto, o Olimpo é aqui. E nós estamos aqui.

Aquilo tudo foi demais para mim, especialmente o fato de que eu parecia estar incluído no nós de Quíron, como se fizesse parte do mesmo clube.

— Quem é você, Quíron? Quem... quem sou eu?

Quíron sorriu. Ele mudou de posição, como se fosse levantar da cadeira de rodas, mas eu sabia que era impossível. Era paralítico da cintura para baixo.

— Quem é você? — ele ficou pensativo. — Bem, essa é a pergunta que todos queremos ver respondida, não é? Mas, por enquanto, temos de lhe arranjar um beliche no chalé 11. Ali haverá novos amigos para conhecer. E tempo à vontade para as aulas amanhã. Além disso, haverá guloseimas em volta da fogueira esta noite, e eu simplesmente adoro chocolate.

E então ele se levantou da cadeira de rodas. Mas havia algo de estranho no modo como fez isso. A manta caiu de cima das pernas, mas elas não se moveram. A cintura foi ficando mais longa, erguendo-se acima do cinto. De início, pensei que estivesse usando roupas de baixo muito compridas de veludo branco, mas à medida que ele foi se erguendo da cadeira, mais alto que qualquer homem, percebi que a roupa de baixo de veludo não era roupa de baixo; era a parte da frente de um animal, músculos e tendões sob um pelo branco e áspero. E a cadeira de rodas não era uma cadeira. Era algum tipo de recipiente, uma enorme caixa sobre rodas, e devia ser mágica, porque não havia como ela contê-lo inteiro. Uma perna saiu, comprida e com joelho saliente, com um grande casco polido. Depois outra perna dianteira, depois a parte traseira, e depois a caixa ficou vazia, nada além de uma casca de metal com um par de pernas humanas acoplado.

Olhei para o cavalo que acabara de pular da cadeira de rodas: um enorme corcel branco. Mas, onde devia estar seu pescoço, estava a parte de cima do corpo do meu professor de latim, suavemente enxertada no tronco do cavalo.

— Que alívio — disse o centauro. — Fiquei tanto tempo confinado lá dentro que minhas juntas adormeceram. Agora venha, Percy Jackson. Vamos conhecer os outros campistas.


SEIS

Minha transformação em Senhor Supremo do Banheiro

Depois que assimilei o fato de meu professor de latim ser um cavalo, fizemos um passeio agradável, embora tivesse tido o cuidado de não andar atrás dele. Havia participado algumas vezes das rondas com pazinhas para recolher cocô de cachorro na Parada do Dia de Ação de Graças da loja Macy’s e, lamento dizer, não confiava na parte de trás de Quíron tanto quanto confiava na da frente.

Passamos pela quadra de vôlei. Diversos campistas se cutucaram. Um deles apontou para o chifre de minotauro que eu carregava. Um outro disse:

— É ele.

A maioria dos campistas era mais velha que eu. Seus amigos sátiros eram maiores que Grover, todos trotando de um lado para outro de camisetas cor de laranja do ACAMPAMENTO MEIO-SANGUE, sem nada para cobrir os traseiros peludos à mostra. Eu normalmente não era tímido, mas o modo como olhavam para mim me deixou pouco à vontade. Era como se esperassem que eu desse um salto mortal ou coisa assim.

Olhei para a casa da fazenda atrás de mim. Era muito maior do que eu pensara — quatro andares, azul-céu com acabamento em branco, como um hotel de veraneio de primeira classe à beira-mar. Eu estava conferindo o cata-vento de latão em forma de águia no topo quando algo me chamou a atenção, uma sombra na janela mais alta do sótão. Alguma coisa havia mexido na cortina, só por um segundo, e tive a nítida impressão de que estava sendo observado.

— O que há lá em cima? — perguntei a Quíron.

Ele olhou para onde eu estava apontando e seu sorriso desapareceu:

— Apenas o sótão.

— Mora alguém lá?

— Não — disse em tom definitivo. — Nem uma única coisa viva.

Tive a sensação de que ele falava a verdade. Mas também tinha certeza de que algo havia mexido naquela cortina.

— Venha, Percy — disse Quíron, o tom despreocupado agora um pouco forçado. — Há muito para ver.

Caminhamos pelos campos de morangos, onde campistas colhiam alqueires de morangos enquanto um sátiro tocava uma melodia numa flauta de bambu.

Quíron me contou que o acampamento cultivava uma bela safra para exportar para os restaurantes de Nova York e para o Monte Olimpo.

— Paga as nossas despesas — explicou. — E os morangos não exigem esforço quase nenhum.

Ele disse que o sr. D produzia esse efeito sobre plantas frutíferas: elas simplesmente enlouqueciam quando ele estava por perto. Funcionava melhor com as vinhas, mas o sr. D estava proibido de cultivá-las, portanto, em vez delas eles plantavam morangos.

Observei o sátiro tocando a flauta. A música fazia com que filas de insetos saíssem dos canteiros de morangos em todas as direções, como se fugissem de um incêndio. Imaginei se Grover podia fazer esse tipo de mágica com música. Imaginei se ainda estava dentro da casa, levando broncas do sr. D.

— Grover não vai ter muitos problemas, vai? — perguntei a Quíron. — Quer dizer... ele foi um bom protetor. Sem dúvida.

Quíron suspirou. Tirou o casaco de tweed e jogou-o por cima de seu lombo de cavalo, como uma sela.

— Grover sonha alto, Percy. Talvez mais alto do que seria razoável. Para atingir seu objetivo, ele precisa primeiro demonstrar uma grande coragem tendo sucesso como guardião, encontrando um novo campista e trazendo-o em segurança à Colina Meio-Sangue.

— Mas ele fez isso!

— Eu poderia concordar com você — disse Quíron. — Mas não cabe a mim julgar. Dioniso e o Conselho dos Anciãos de Casco Fendido devem decidir. Receio que possam não ver essa missão como um sucesso. Afinal, Grover perdeu você em Nova York. Depois, há o desventurado... ahn... destino da sua mãe. E o fato de que Grover estava inconsciente quando você o arrastou até os limites da propriedade. O conselho pode questionar se isso demonstra alguma coragem da parte de Grover.

Eu quis protestar. Nada do que acontecera havia sido por culpa de Grover. Também me sentia muito, muito culpado. Se não tivesse escapado de Grover na estação de ônibus, ele poderia não ter se envolvido em encrenca.

— Ele vai ter uma segunda chance, não vai?

Quíron retraiu-se.

— Infelizmente aquela era a segunda chance de Grover, Percy. Além disso, o conselho não estava muito ansioso em lhe dar outra oportunidade depois do que aconteceu na primeira vez, cinco anos atrás. O Olimpo sabe, eu o aconselhei a esperar mais tempo antes de tentar de novo. Ele ainda é muito pequeno para a sua idade...

— Que idade ele tem?

— Ah, vinte e oito.

— O quê! E ainda está no sétimo ano?

— Os sátiros amadurecem no dobro do tempo dos seres humanos, Percy. Grover teve idade equivalente à de um aluno de escola secundária nos últimos seis anos.

— Que coisa horrível.

— De fato — concordou Quíron. — De qualquer modo, Grover está atrasado, mesmo pelos padrões de sátiro, e ainda não avançou muito em magia dos bosques. O pobre estava ansioso por perseguir o seu sonho. Talvez agora encontre alguma outra carreira...

— Isso não é justo! — disse eu. — O que aconteceu na primeira vez? Foi mesmo assim tão ruim?

Quíron desviou os olhos depressa.

— Vamos andando?

Mas eu ainda não estava pronto para mudar de assunto. Uma coisa me ocorrera quando Quíron falou sobre o destino de minha mãe, como se estivesse intencionalmente evitando a palavra morte. O princípio de uma ideia — uma pequenina e esperançosa chama — começou a se formar em minha cabeça.

— Quíron — disse eu. — Se os deuses, o Olimpo e tudo isso são reais...

— Sim, criança?

— Isso significa que o Mundo Inferior também é real?

A expressão de Quíron se fechou.

— Sim, criança. — Ele fez uma pausa, como se estivesse escolhendo as palavras cuidadosamente. — Há um lugar para onde vão os espíritos após a morte. Mas por ora... até que saibamos mais... eu recomendaria que tirasse isso de sua cabeça.

— O que quer dizer com “até que saibamos mais”?

— Venha, Percy. Vamos ver os bosques.

Quando nos aproximamos, me dei conta de como a floresta era enorme. Tomava pelo menos um quarto do vale, com árvores tão altas e largas que a impressão era de que ninguém entrara lá desde os nativos americanos.

Quíron disse:

— Os bosques têm provisões, se você quiser tentar a sorte, mas vá armado.

— Provisões de quê? — perguntei. — Armado com o quê?

— Você verá. O jogo Capture a Bandeira é na sexta-feira à noite. Você tem a sua própria espada e escudo?

— Minha própria...?

— Não — disse Quíron. — Não creio que tenha. Acho que o tamanho cinco vai servir. Mais tarde vou visitar o arsenal.

Quis perguntar que tipo de acampamento de verão tem um arsenal, mas havia muito mais a pensar, portanto o passeio continuou. Vimos a linha de tiro com arco e flecha, o lago de canoagem, os estábulos (dos quais Quíron parecia não gostar muito), a linha de lançamento de dardo, o anfiteatro para cantoria e a arena onde Quíron disse que eles realizavam lutas de espadas e lanças.

— Lutas de espadas e lanças? — perguntei.

— Desafios entre chalés e coisas assim — explicou ele. — Não são letais. Normalmente. Ah, sim, e há também o refeitório.

Quíron apontou para um pavilhão ao ar livre emoldurado por colunas gregas brancas sobre uma colina que dava para o mar. Havia uma dúzia de mesas de piquenique de pedra. Sem telhado. Sem paredes.

— O que vocês fazem quando chove? — perguntei.

Quíron me olhou como se eu tivesse ficado meio maluco:

— Ainda assim temos de comer, não temos?

Resolvi deixar para lá.

Finalmente, ele me mostrou os chalés. Havia doze deles aninhados no bosque junto ao lago. Estavam dispostos em U, dois na frente e cinco enfileirados de cada lado. E eram, sem dúvida, o mais estranho conjunto de construções que já vi.

A não ser pelo fato de cada um ter um grande número de latão acima da porta (ímpares do lado esquerdo, pares do direito), eram totalmente diferentes um do outro. O número 9 tinha chaminés, como uma minúscula fábrica. O número 4 tinha tomateiros nas paredes e uma cobertura feita de grama de verdade. O 7 parecia feito de um ouro sólido que reluzia tanto à luz do sol que era quase impossível de se olhar. Todos davam para uma área comum mais ou menos do tamanho de um campo de futebol, pontilhada de estátuas gregas, fontes, canteiros de flores e um par de cestos de basquete (o que era mais a minha praia).

No centro do campo havia uma enorme área de pedras com uma fogueira. Muito embora fosse uma tarde quente, o fogo ardia de modo lento. Uma menina com cerca de nove anos estava cuidando das chamas, cutucando os carvões com uma vara.

O par de chalés à cabeceira do campo, números 1 e 2, pareciam mausoléus casadinhos, grandes caixas de mármore branco com colunas pesadas na frente. O chalé 1 era o maior e mais magnífico dos doze. As portas de bronze polido cintilavam como um holograma, de tal modo que, vistas de ângulos diferentes, raios pareciam atravessá-las. O chalé 2 era de certo modo mais gracioso, com colunas mais finas encimadas com romãs e flores. As paredes eram entalhadas com imagens de pavões.

— Zeus e Hera? — adivinhei.

— Correto — disse Quíron.

— Os chalés parecem vazios.

— Diversos chalés estão vazios. É verdade. Ninguém jamais fica no 1 ou no 2.

Certo. Então cada chalé tinha um deus diferente como mascote. Doze chalés para os doze olimpianos. Mas por que alguns estariam vazios?

Parei na frente do primeiro chalé da esquerda, o número 3.

Não era alto e imponente como o chalé 1, mas comprido, baixo e sólido. As paredes externas eram de pedras cinzentas rústicas salpicadas de pedaços de conchas e coral, como se as pedras tivessem sido cortadas diretamente do fundo do oceano. Espiei para dentro da porta aberta e Quíron disse:

— Ih, eu não faria isso!

Antes que ele pudesse me puxar de volta, senti o odor salgado do interior, como o vento na praia de Montauk. As paredes internas brilhavam como madrepérola. Havia seis beliches vazios com lençóis de seda virados para baixo. Mas não havia indício de que alguém já tivesse dormido lá. O lugar parecia tão triste e solitário que fiquei contente quando Quíron pôs a mão no meu ombro e disse:

— Vamos, Percy.

A maioria dos outros chalés estava abarrotada de campistas.

O número 5 era vermelho vivo — uma pintura muito malfeita, como se a cor tivesse sido jogada a esmo com baldes e mãos. O telhado era forrado de arame farpado. Uma cabeça de javali empalhada estava pendurada acima da porta e seus olhos pareciam me seguir. Dentro pude ver um bando de meninos e meninas mal-encarados, disputando queda de braço e discutindo enquanto o rock tocava às alturas. A mais barulhenta era uma menina de talvez treze ou catorze anos. Usava uma camiseta do ACAMPAMENTO MEIO-SANGUE tamanho GGG embaixo de um casaco camuflado. Ela mirou em mim e lançou um maldoso olhar de desprezo. Fez lembrar Nancy Bobofit, só que a menina do acampamento era muito maior e de aparência mais cruel, seu cabelo era comprido, esticado e castanho, em vez de vermelho.

Continuei andando, tentando ficar longe dos cascos de Quíron.

— Ainda não vimos outros centauros — observei.

— Não — disse Quíron chateado. — Infelizmente, meus parentes são uma gente selvagem e bárbara. Você pode encontrá-los no mato ou em eventos desportivos importantes. Mas não verá nenhum aqui.

— Você disse que seu nome é Quíron. Você é mesmo...

Ele sorriu para mim.

— O Quíron das histórias? Instrutor de Hércules e tudo aquilo? Sim, Percy, eu sou.

— Mas você não devia estar morto?

Quíron fez uma pausa, como se a pergunta o intrigasse.

— Honestamente, não sei nada sobre o devia. A verdade é que eu não posso estar morto. Entenda, há muitas eras os deuses concederam meu desejo. Pude continuar o trabalho que adorava. Pude ser um mestre de heróis enquanto a humanidade precisasse de mim. Ganhei muito com aquele desejo... e renunciei a muito. Mas ainda estou aqui, portanto só posso presumir que ainda sou necessário.

Pensei sobre ser um professor por três mil anos. Isso não estaria na minha lista das Dez Coisas Mais Desejadas.

— Isso nunca fica chato?

— Não, não — disse ele. — Horrivelmente deprimente às vezes, mas nunca chato.

— Por que deprimente?

Quíron pareceu ficar com alguma deficiência auditiva de novo.

— Ah, olhe — disse ele. — Annabeth está esperando por nós.

A menina loira que eu conhecera na Casa Grande estava lendo um livro na frente do último chalé da esquerda, o número 11.

Quando nos aproximamos, ela olhou para mim com um ar crítico, como se ainda estivesse pensando em como eu babava.

Tentei ver o que ela estava lendo, mas não consegui distinguir o título. Achei que fosse minha dislexia em ação. Então me dei conta de que o título não era sequer em inglês. As letras pareciam grego para mim. Quer dizer, literalmente grego. Havia figuras de templos e estátuas e diferentes tipos de colunas, como em um livro de arquitetura.

— Annabeth — disse Quíron — eu tenho aula de arco e flecha para mestres ao meio-dia. Você cuidaria de Percy a partir daqui?

— Sim, senhor.

— Chalé 11 — disse Quíron para mim, fazendo um gesto em direção à porta. — Sinta-se em casa.

Entre todos os chalés, o 11 era o que mais parecia um velho chalé comum de acampamento de verão, com ênfase no velho. A soleira estava desgastada, a pintura marrom, descascando. Acima do vão da porta havia um daqueles símbolos de médico, um bastão alado com duas serpentes enroscadas nele. Como é mesmo que chamavam aquilo...? Um caduceu.

Dentro, estava abarrotado de gente, meninos e meninas, em muito maior número que os beliches. Sacos de dormir estavam espalhados por todo o piso. Parecia um ginásio onde a Cruz Vermelha estabelecera um centro de refugiados.

Quíron não entrou. A porta era muito baixa para ele. Mas quando os campistas o viram, todos se puseram em pé e fizeram uma reverência respeitosa.

— Então tudo bem — disse Quíron. — Boa sorte, Percy. Vejo você no jantar.

Ele partiu a galope rumo à linha de arco e flecha.

Fiquei em pé no vão da porta, olhando para a garotada. Não estavam mais se curvando. Olhavam para mim, medindo-me com os olhos. Conheço essa rotina. Havia passado por ela em muitas escolas.

— Tudo bem? — instigou Annabeth. — Vá em frente.

Então, naturalmente, tropecei ao passar pela porta e fiz um completo papel de bobo. Houve algumas risadinhas dos campistas, mas nenhum deles disse nada.

Annabeth anunciou:

— Percy Jackson, apresento-lhe o chalé 11.

— Normal ou indeterminado? — perguntou alguém.

Eu não sabia o que dizer, mas Annabeth disse:

— Indeterminado.

Todos gemeram.

Um cara que era um pouco mais velho que o restante chegou para a frente.

— Vamos, vamos, campistas. É para isso que estamos aqui. Bem-vindo, Percy. Você pode ficar com aquele ponto no chão, logo ali.

O cara tinha cerca de dezenove anos e parecia muito legal. Era alto e musculoso, com cabelo com cor de areia aparado curto e um sorriso amigável. Usava uma camiseta regata laranja, calças cortadas, sandálias e um colar de couro com cinco contas de argila em cores diferentes. A única coisa perturbadora na sua aparência era uma grossa cicatriz branca que corria desde logo abaixo do olho direito até o queixo, como um antigo corte de faca.

— Este é Luke — disse Annabeth, e sua voz pareceu mudar um pouco. Dei uma olhada nela e poderia ter jurado que estava ficando vermelha. Ela me viu olhando e sua expressão endureceu de novo. — Ele é seu conselheiro por enquanto.

— Por enquanto? — perguntei.

— Você é indeterminado — explicou Luke pacientemente. — Eles não sabem em que chalé acomodá-lo, então você está aqui. O chalé 11 recebe todos os recém-chegados, todos os visitantes. Naturalmente. Hermes, o nosso patrono, é o deus dos viajantes.

Olhei para o minúsculo espaço de chão que eles me deram. Eu não tinha nada para pôr ali e marcá-lo como meu, nenhuma bagagem, nenhuma roupa, nenhum saco de dormir. Apenas o chifre do Minotauro. Pensei em colocá-lo ali, mas então lembrei que Hermes era também o deus dos ladrões.

Corri os olhos pelos rostos dos campistas, alguns mal-humorados e desconfiados, outros com um sorriso idiota, alguns me olhando como se esperassem uma oportunidade de limpar os meus bolsos.

— Quanto tempo vou ficar aqui? — perguntei.

— Boa pergunta — disse Luke. — Até você ser determinado.

— Quanto tempo isso vai levar?

Todos os campistas riram.

— Venha — disse Annabeth. — Vou lhe mostrar o pátio de vôlei.

— Eu já vi.

— Venha.

Ela agarrou meu pulso e me arrastou para fora. Pude ouvir o pessoal do chalé dando risadas atrás de mim.

Quando estávamos a poucos metros de distância, Annabeth disse:

— Jackson, você precisa fazer melhor do que isso.

— O quê?

Ela revirou os olhos e murmurou baixinho:

— Não posso acreditar que achei que você fosse o cara.

— Qual é o seu problema? — Eu agora estava ficando zangado. — Tudo o que sei é que matei um sujeito-touro...

— Não fale assim! — disse Annabeth. — Você sabe quantos neste acampamento gostariam de ter tido a sua chance?

— De ser mortos?

— De enfrentar o Minotauro! Para que você acha que nós treinamos?

Eu sacudi a cabeça.

— Olhe, se a coisa contra a qual eu lutei era realmente o Minotauro, o mesmo das histórias...

— Sim.

— Então só existe um.

— Sim.

— E ele morreu, tipo um zilhão de anos atrás, certo? Teseu o matou no labirinto. Portanto...

— Monstros não morrem, Percy. Eles podem ser mortos. Mas eles não morrem.

— Ah, obrigado. Agora entendi tudo.

— Eles não têm alma, como você e eu. Você pode bani-los por algum tempo, talvez até por toda uma vida, se tiver sorte. Mas eles são forças primitivas. Quíron os chama de arquétipos. No fim, eles se reconstituem.

Pensei na sra. Dodds.

— Você quer dizer que se eu matei um, acidentalmente, com uma espada...

— A Fúr... Quer dizer, a sua professora de matemática. Está certo. Ela ainda está lá fora. Você apenas a deixou muito, muito zangada.

— Como você sabe da sra. Dodds?

— Você fala dormindo.

— Você quase a chamou de alguma coisa. Uma Fúria? Elas são torturadoras do Hades, certo?

Annabeth olhou nervosamente para o chão, como se esperasse que ele se abrisse e a engolisse.

— Você não deve chamá-las pelo nome, mesmo aqui. Se acabamos tendo de falar nelas, nós as chamamos de as Benevolentes.

— Puxa, existe alguma coisa que se possa dizer sem que haja trovões? — Eu soei reclamão, até para mim mesmo, mas naquele momento não me importei. — Por que tenho de ficar no chalé 11, afinal? Por que fica todo mundo tão amontoado? Há uma porção de beliches vazios logo ali.

Apontei para os primeiros chalés e Annabeth empalideceu.

— A gente não escolhe simplesmente um chalé, Percy. Depende de quem são seus progenitores. Ou... o seu progenitor.

Ela olhou fixamente para mim, esperando que eu entendesse.

— Minha mãe é Sally Jackson — disse eu. — Trabalha na doceria da Grande Estação Central. Pelo menos trabalhava.

— Sinto muito por sua mãe, Percy. Mas não é isso que eu quis dizer. Estou falando sobre seu outro progenitor. Seu pai.

— Ele está morto. Não cheguei a conhecê-lo.

Annabeth suspirou. Era claro que já tivera aquela conversa com outras crianças:

— Seu pai não está morto, Percy.

— Como pode dizer isso? Você o conhece?

— Não, é claro que não.

— Então como você pode dizer...

— Porque eu conheço você. Você não estaria aqui se não fosse um de nós.

— Você não sabe nada a meu respeito.

— Não? — Ela ergueu uma sobrancelha. — Aposto que você ficou passando de escola em escola. Aposto que foi expulso de uma porção delas.

— Como...

— Teve diagnóstico de dislexia. Provavelmente transtorno do déficit de atenção também.

Tentei engolir meu constrangimento.

— O que isso tem a ver?

— Tudo junto, é quase um sinal certo. As letras flutuam para fora da página quando você lê, certo? Isso é porque a sua mente está fisicamente programada para o grego antigo. E o transtorno do déficit de atenção... você é impulsivo, não consegue ficar quieto na classe. Isso são os seus reflexos de campo de batalha. Numa luta real, eles o manterão vivo. Quanto aos problemas de atenção, isso é porque enxerga demais, Percy, e não de menos. Seus sentidos são mais aprimorados que os de um mortal comum. É claro que os professores querem que você seja medicado. Eles são em maioria monstros. Não querem que você os veja como são.

— Você parece... você passou pelas mesmas coisas?

— A maioria das crianças daqui passou. Se você não fosse um de nós, não poderia ter sobrevivido ao Minotauro, e muito menos à ambrosia e ao néctar.

— Ambrosia e néctar.

— A comida e a bebida que estávamos dando a você para curá-lo. Aquilo teria matado um garoto normal. Teria transformado seu sangue em fogo e seus ossos em areia e você estaria morto. Encare os fatos. Você é um meio-sangue.

Um meio-sangue.

Minha cabeça estava girando com tantas perguntas que eu não sabia por onde começar.

Então uma voz rouca gritou:

— Ora, ora! Um novato!

Eu dei uma olhada. A menina grandalhona do chalé feio e vermelho vinha andando lentamente em nossa direção. Havia três outras meninas atrás dela, todas grandes, feias e de aparência malvada como ela, todas usando casacos camuflados.

— Clarisse — suspirou Annabeth —, por que você não vai polir sua lança ou coisa assim?

— Claro, srta. Princesa — disse a grandalhona. — Para poder atravessar você com ela na sexta-feira à noite.

— Erre es korakas! — disse Annabeth, o que eu de algum modo entendi que era “Vá para os corvos!” em grego, embora tivesse a sensação de que devia ser uma praga pior do que parecia. — Você não tem chance.

— Vamos transformá-la em pó — disse Clarisse, mas seu olho se crispou. Talvez ela não tivesse certeza de poder cumprir a ameaça. Voltou-se para mim. — Quem é esse nanico?

— Percy Jackson — disse Annabeth —, esta é Clarisse, filha de Ares.

Eu pisquei.

— Tipo... o deus da guerra?

Clarisse sorriu desdenhosa.

— Você tem algum problema com isso?

— Não — disse eu, recobrando minha presença de espírito. — Isso explica o mau cheiro.

Clarisse rosnou.

— Nós temos uma cerimônia de iniciação para novatos, Persiana.

— Percy.

— Seja o que for. Venha, vou lhe mostrar.

— Clarisse... — Annabeth tentou dizer.

— Fique fora disso, espertinha.

Annabeth pareceu ofendida, mas ficou de fora, e eu realmente não queria a ajuda dela. Eu era o novato. Tinha de construir minha própria reputação.

Entreguei a Annabeth meu chifre de minotauro e me preparei para a luta, mas antes que eu percebesse Clarisse tinha me segurado pelo pescoço e me arrastava na direção de um edifício de blocos de concreto que percebi imediatamente que era o banheiro.

Eu chutava e dava murros no ar. Já tinha estado em muitas brigas antes, mas aquela Clarisse grandalhona tinha mãos de ferro. Arrastou-me para dentro do banheiro das meninas. Havia uma fileira de vasos sanitários de um lado e uma fileira de chuveiros do outro. Cheirava como qualquer banheiro público, e eu estava pensando — tanto quanto podia pensar com Clarisse me arrancando os cabelos — que se aquele lugar pertencia aos deuses, eles deviam poder comprar privadas melhores.

As amigas de Clarisse estavam todas rindo, e eu tentava encontrar a força que usara para enfrentar o Minotauro, mas ela simplesmente não estava lá.

— Como se ele fosse dos “Três Grandes” — disse Clarisse, me empurrando em direção a um dos vasos. — Certo. O Minotauro provavelmente caiu na risada, de tão bobo que ele parecia.

As amigas abafaram o riso.

Annabeth ficou no canto, com as mãos na frente do rosto, observando através dos dedos.

Clarisse me forçou sobre os joelhos e começou a empurrar minha cabeça para dentro do vaso sanitário, que fedia a canos enferrujados e, bem, ao que vai para dentro de vasos sanitários. Fiz esforço para manter a cabeça erguida. Estava olhando para a água imunda e pensando: eu não vou enfiar a cabeça naquilo. Não vou.

Então algo aconteceu. Senti uma pressão violenta na boca do estômago. Ouvi os encanamentos roncando, os canos estremeceram. A mão de Clarisse no meu cabelo afrouxou. A água pulou para fora do vaso, formando um arco por cima da minha cabeça, e em seguida me vi estatelado sobre os ladrilhos do piso do banheiro com Clarisse berrando atrás de mim.

Eu me virei bem no momento em que a água explodiu para fora do vaso outra vez, atingindo Clarisse bem no rosto com tanta força que a fez cair de traseiro no chão. A água continuou jorrando em cima dela como o jato de uma mangueira de incêndio, empurrando-a para trás, para dentro de um boxe de chuveiro.

Ela se debateu, esbaforida, e as amigas começaram a ir em sua direção. Mas então os outros vasos também explodiram, e mais seis jorros de água de privada as empurraram de volta. Os chuveiros também entraram em ação e, em conjunto, todos os dispositivos lançaram as meninas camufladas para fora do banheiro, fazendo-as rodopiar como pedaços de lixo sendo removidos com jatos d’água.

Assim que elas foram postas porta afora, senti a pressão nas minhas entranhas se aliviar, e a água parou de jorrar tão depressa quanto começara.

O banheiro inteiro estava inundado. Annabeth não tinha sido poupada. Estava toda molhada e pingando, mas não fora empurrada para fora. Estava em pé exatamente no mesmo lugar me olhando em estado de choque.

Olhei para baixo e me dei conta de que estava sentado no único ponto seco em todo o recinto. Havia um círculo de piso seco em volta de mim. Não havia nem uma gota d’água nas minhas roupas. Nada.

Levantei com as pernas trêmulas.

Annabeth disse:

— Como você...

— Eu não sei.

Caminhamos até a porta. Do lado de fora, Clarisse e as amigas estavam prostradas na lama e um bando de outros campistas se reunira em volta para olhar, perplexos. O cabelo de Clarisse estava colado no rosto. O casaco camuflado estava encharcado e ela cheirava a esgoto. Ela me lançou um olhar de ódio absoluto.

— Você está morto, novato. Está totalmente morto.

Talvez eu devesse ter deixado pra lá, mas disse:

— Quer gargarejar com água de privada de novo, Clarisse? Cale essa boca.

As amigas tiveram de segurá-la. Arrastaram-na para o chalé 5, enquanto os outros campistas abriam caminho para evitar seus braços e pernas que esperneavam.

Annabeth olhou para mim. Eu não sabia dizer se ela estava apenas enojada ou zangada comigo por encharcá-la.

— O que foi? — perguntei. — O que está pensando?

— Estou pensando — disse ela — que quero você no meu time para capturar a bandeira.


SETE

Meu jantar se esvai em fumaça

A notícia do incidente no banheiro se espalhou na mesma hora. Aonde quer que eu fosse, os campistas apontavam para mim e murmuravam algo sobre água de vaso sanitário. Ou talvez apenas olhassem para Annabeth, que ainda estava bastante encharcada.

Ela me mostrou mais alguns lugares: a oficina de metais (onde as crianças forjavam as próprias espadas), a sala de artes e ofícios (onde sátiros jateavam com areia uma estátua gigante de um homem-bode) e a parede para escalada, que na verdade consistia em duas paredes que se sacudiam violentamente, deixavam cair rochas, espalhavam lava e colidiam uma com a outra se a gente não chegasse ao topo bem depressa.

Finalmente retornamos ao lago de canoagem, de onde a trilha levava de volta aos chalés.

— Tenho treinamento — disse Annabeth secamente. — O jantar é às sete e meia. Você só tem de seguir o pessoal do chalé até o refeitório.

— Annabeth, desculpe pelos sanitários.

— Não importa.

— Não foi minha culpa.

Ela me olhou com ar cético e me dei conta de que tinha sido minha culpa. Eu havia feito a água jorrar no banheiro. Não entendia como. Mas os vasos tinham respondido a mim. Era como se eu fosse um dos canos.

— Você precisa falar com o Oráculo — disse Annabeth.

— Quem?

— Não quem. O quê. O Oráculo. Vou pedir a Quíron.

Olhei para o lago, desejando que alguém me desse uma resposta direta pelo menos uma vez.

Eu não esperava que alguém estivesse olhando de volta para mim do fundo, portanto meu coração deu um pulo quando notei duas meninas adolescentes sentadas de pernas cruzadas na base do píer, cerca de seis metros abaixo. Vestiam jeans e camisetas verdes cintilantes, e os cabelos castanhos flutuavam soltos em volta dos ombros enquanto peixinhos passavam por entre eles. Elas sorriram e acenaram como se eu fosse um amigo há muito perdido.

Eu não sabia que outra coisa fazer. Acenei de volta.

— Não as encoraje — advertiu Annabeth. — As náiades são flertadoras incontroláveis.

— Náiades — repeti, sentindo-me completamente estupefato. — Já chega. Quero ir para casa agora.

Annabeth franziu as sobrancelhas.

— Você não percebe, Percy? Você está em casa. Este é o único lugar na terra seguro para crianças como nós.

— Você quer dizer crianças mentalmente perturbadas?

— Eu quero dizer não humanas. Não totalmente humanas, de qualquer modo. Meio humanas.

— Meio humanas e meio o quê?

— Acho que você sabe.

Eu não queria admitir, mas sabia, sim. Senti um formigamento nos membros, uma sensação que às vezes me tomava quando minha mãe falava sobre meu pai.

— Deusas — disse eu. — Meio deusas.

Annabeth assentiu.

— Seu pai não está morto, Percy. Ele é um dos olimpianos.

— Isso é... loucura.

— Será? Qual é a coisa mais comum que os deuses faziam nas velhas histórias? Eles andavam por aí se apaixonando por seres humanos e tendo filhos com eles. Você pensa que eles mudaram os hábitos nos últimos poucos milênios?

— Mas isso são apenas... — Eu quase disse mitos de novo. Então me lembrei do aviso de Quíron de que daqui a dois mil anos eu poderia ser considerado um mito. — Mas se todos aqui são meio deuses...

— Semideuses — disse Annabeth. — Esse é o termo oficial. Ou meio-sangues.

— Então quem é seu pai?

As mãos dela se apertaram em volta da balaustrada do píer. Tive a sensação de que acabara de tocar em um assunto delicado.

— Meu pai é um professor em West Point — disse ela. — Não o vejo desde que era muito pequena. Ele ensina história americana.

— Ele é humano.

— O quê? Está pensando que tem de ser um deus homem encontrando uma mulher humana atraente, e não o contrário? Sabe que isso é machismo?

— Então quem é sua mãe?

— Chalé 6.

— O que significa?

Annabeth endireitou o corpo.

— Atena. Deusa da sabedoria e da guerra.

Certo, pensei. Por que não?

— E meu pai?

— Indeterminado — disse Annabeth —, como eu lhe contei antes. Ninguém sabe.

— A não ser minha mãe. Ela sabia.

— Talvez não, Percy. Os deuses nem sempre revelam sua identidade.

— Meu pai teria revelado. Ele a amava.

Annabeth me deu uma olhada cautelosa. Ela não queria acabar com as minhas ilusões.

—Talvez você esteja certo. Talvez ele vá enviar um sinal. Esse é o único modo de saber com certeza: seu pai tem de mandar a você um sinal reclamando você como filho. Às vezes isso acontece.

— Quer dizer que às vezes não acontece?

Annabeth correu a palma da mão pela balaustrada.

— Os deuses são atarefados. Eles têm uma porção de filhos, e nem sempre... Bem, às vezes eles não se importam conosco, Percy. Eles nos ignoram.

Pensei em algumas das crianças que tinha visto no chalé de Hermes, adolescentes que pareciam mal-humorados e deprimidos, como se estivessem esperando por um chamado que nunca viria. Conhecera crianças assim na Academia Yancy, descartadas para internatos por pais ricos que não tinham tempo para lidar com elas. Mas os deuses deviam se comportar melhor.

— Então eu estou encalhado aqui — disse eu. — É isso? Pelo resto da minha vida?

— Depende — disse Annabeth. — Alguns campistas só ficam no verão. Se você é filho de Afrodite ou Deméter, provavelmente não é uma força realmente poderosa. Os monstros podem ignorá-lo, e então você pode se arranjar com alguns meses de treinamento de verão e viver no mundo mortal pelo resto do ano. Mas, para alguns de nós, sair é perigoso demais. Temos de ficar o ano inteiro. No mundo mortal, atraímos monstros. Eles percebem nossa presença. Vêm nos desafiar. Na maioria das vezes eles nos ignoram até termos idade suficiente para causar problemas, cerca de dez ou onze anos, mas depois disso muitos dos semideuses vêm para cá ou são mortos. Alguns conseguem sobreviver no mundo exterior e se tornam famosos. Acredite, se eu lhe contasse os nomes você os conheceria. Alguns nem sequer se dão conta de que são semideuses. Mas poucos, muito poucos são assim.

— Então os monstros não podem entrar aqui?

Annabeth sacudiu a cabeça.

— Não, a não ser que sejam intencionalmente mantidos nos bosques ou convocados por alguém de dentro.

— Por que alguém ia querer convocar um monstro?

— Para a prática de lutas. Para pregar peças.

— Pregar peças?

— A questão é que as fronteiras são fechadas para manter os mortais e os monstros de fora. Do lado de fora, os mortais olham para o vale e não veem nada de inusitado, apenas plantações de morangos.

— Então... você é uma campista de ano inteiro?

Annabeth assentiu. De dentro da gola da camiseta ela puxou um colar de couro com cinco contas de argila de cores diferentes. Era exatamente como o de Luke, só que o de Annabeth também tinha um grande anel de ouro enfiado, como um anel de faculdade.

— Estou aqui desde que tinha sete anos — disse ela. — Todo mês de agosto, no último dia da sessão de verão, a gente ganha uma conta por sobreviver mais um ano. Estou aqui há mais tempo que a maioria dos conselheiros, e eles estão todos na faculdade.

— Por que veio tão jovem?

Ela girou o anel no colar.

— Não é da sua conta.

— Ah. — Fiquei ali por um minuto em um silêncio constrangedor. — Então... Eu poderia simplesmente sair andando daqui agora mesmo, se quisesse?

— Seria suicídio, mas você poderia, com a permissão do sr. D ou de Quíron. Mas eles não dariam permissão até o final da sessão de verão, a não ser...

— A não ser?

— Que lhe seja concedida uma missão. Mas isso dificilmente acontece. Na última vez...

A voz dela foi sumindo. Pude perceber pelo seu tom de voz que a última vez não tinha ido muito bem.

— Antes, quando estava doente no quarto — disse eu —, quando você me dava de comer aquela coisa...

— Ambrosia.

— É. Você me perguntou algo sobre o solstício de verão.

Os ombros de Annabeth se contraíram.

— Então você sabe alguma coisa?

— Bem... não. Na minha antiga escola, ouvi por acaso Grover e Quíron conversando sobre isso. Grover mencionou o solstício de verão. Ele disse algo como não termos muito tempo, por causa do prazo final. O que isso queria dizer?

Ela apertou os punhos.

— Eu gostaria de saber. Quíron e os sátiros, eles sabem, mas não contam para mim. Algo está errado no Olimpo, algo muito importante. Na última vez em que estive lá, parecia tudo tão normal.

— Você esteve no Olimpo?

— Alguns de nós, campistas de ano inteiro... Luke, Clarisse, eu e poucos outros... fizemos uma excursão durante o solstício de inverno. É quando os deuses fazem sua grande assembleia anual.

— Mas... como chegou lá?

— Pela Ferrovia de Long Island, é claro. Você desce na Estação Penn. Empire State, seiscentésimo andar. — Ela me olhou como quem tinha certeza de que eu já sabia disso. — Você é nova-iorquino, certo?

— Ah, com certeza. — Até onde eu sabia, havia apenas cento e dois andares no Empire State, mas decidi não comentar isso.

— Logo depois da visita — continuou Annabeth —, o tempo ficou esquisito, como se os deuses tivessem começado a brigar. Uma ou duas vezes desde então, ouvi sátiros conversando. O máximo que posso deduzir é que algo importante foi roubado. E, se não for devolvido até o solstício de verão, vai haver problemas. Quando você veio, eu estava esperando... quer dizer... Atena pode se entender com quase qualquer um, a não ser Ares. E, é claro, ela tem uma rivalidade com Poseidon. Mas, quer dizer, fora isso, pensei que poderíamos trabalhar juntos. Pensei que você pudesse saber alguma coisa.

Sacudi a cabeça. Gostaria de poder ajudá-la, mas estava com fome, cansado e mentalmente sobrecarregado demais para fazer mais perguntas.

— Preciso conseguir uma missão — murmurou Annabeth consigo mesma. — Eu não sou jovem demais. Se eles ao menos me contassem qual é o problema...

Senti cheiro de churrasco vindo de algum lugar por perto. Annabeth deve ter ouvido meu estômago roncar. Disse-me para ir em frente, que me alcançaria depois. Eu a deixei no píer, correndo o dedo pela balaustrada como se estivesse desenhando um plano de batalha.

De volta ao chalé 11, todo mundo estava falando e se divertindo, esperando o jantar. Pela primeira vez, notei que muitos campistas tinham feições parecidas: narizes pontudos, sobrancelhas arqueadas, sorrisos maliciosos. Eram o tipo de criança que os professores classificariam como encrenqueiros. Felizmente, ninguém prestou muita atenção em mim quando fui até meu lugar no chão e me deixei cair com o chifre de minotauro.

O conselheiro, Luke, se aproximou. Ele também tinha a aparência familiar de Hermes. Estava desfigurada pela cicatriz na face direita, mas o sorriso estava intacto.

— Arranjei um saco de dormir para você — disse ele. — E, aqui, furtei para você alguns artigos de toalete da loja do acampamento.

Não deu para saber se ele estava brincando quanto àquela parte de furtar.

Eu disse:

— Obrigado.

— Sem problemas. — Luke sentou-se ao meu lado, descansando as costas contra a parede. — Primeiro dia difícil?

— Meu lugar não é aqui — disse eu. — Nem mesmo acredito em deuses.

— É — disse ele. — Foi assim que todos nós começamos. E depois que você começa a acreditar neles? Não fica nem um pouco mais fácil.

A amargura em sua voz me surpreendeu, porque Luke parecia ser o tipo de cara despreocupado. Parecia capaz de lidar com qualquer coisa.

— Então seu pai é Hermes? — perguntei.

Ele puxou um canivete de mola do bolso de trás e, por um segundo, pensei que fosse me destripar, mas ele apenas raspou o barro da sola da sandália.

— É, Hermes.

— O mensageiro com asas nos pés.

— É ele. Mensageiros. Medicina. Viajantes, mercadores, ladrões. Qualquer um que use as estradas. É por isso que você está aqui, desfrutando a hospitalidade do chalé 11. Hermes não é exigente com relação a quem apadrinha.

Entendi que Luke não queria me chamar de joão-ninguém. Apenas tinha muita coisa na cabeça.

— Você já encontrou seu pai? — perguntei.

— Uma vez.

Esperei, pensando que, se ele quisesse me contar, contaria. Aparentemente não. Imaginei se a história tinha alguma coisa a ver com como ele conseguira aquela cicatriz.

Luke ergueu os olhos e conseguiu sorrir.

— Não se preocupe com isso, Percy. A maioria dos campistas aqui é boa gente. Afinal, somos uma grande família, certo? Cuidamos uns dos outros.

Ele parecia entender o quanto me sentia perdido e eu estava grato por isso, porque um cara mais velho como ele — mesmo sendo um conselheiro — devia estar evitando um secundarista chato como eu. Mas Luke me dera as boas-vindas ao chalé. Até mesmo furtara alguns artigos de toalete, o que era a coisa mais simpática que alguém fizera por mim o dia inteiro.

Decidi fazer a minha última grande pergunta, aquela que vinha me incomodando a tarde toda.

— Clarisse, de Ares, debochou sobre eu ser um dos “Três Grandes”. Depois, Annabeth... ela falou duas vezes que eu poderia ser “o cara”. Disse que devo falar com o Oráculo. O que quer dizer tudo isso?

Luke fechou o canivete.

— Odeio profecias.

— O que quer dizer?

Seu rosto deu uma estremecida em volta da cicatriz.

— Digamos apenas que eu compliquei as coisas para todos os outros. Nos últimos dois anos, desde quando me dei mal em minha viagem ao Jardim das Hespérides, Quíron não autorizou mais nenhuma missão. Annabeth está morrendo de vontade de sair para o mundo. Ela importunou tanto Quíron que ele finalmente disse que já conhecia seu destino. Recebera uma profecia do Oráculo. Não quis contar tudo a ela, mas disse que Annabeth ainda não estava destinada a sair numa missão. Tinha de esperar até... alguém especial vir para o acampamento.

— Alguém especial?

— Não se preocupe com isso, garoto — disse Luke. — Annabeth quer pensar que todo campista novo que chega aqui é o presságio que ela está esperando. Agora vamos, é hora do jantar.

No momento em que ele disse isso, uma trombeta soou a distância. De algum modo eu sabia que era feita com uma concha de caramujo, apesar de nunca ter ouvido uma antes.

Luke gritou:

— Onze, reunir!

O chalé inteiro, cerca de vinte de nós, formou fila no pátio. Enfileiramo-nos por ordem de antiguidade, portanto é claro que eu era o último. Vieram campistas também dos outros chalés, com exceção dos três vazios no fim e do chalé 8, que parecia normal durante o dia mas agora começava a ter um brilho prateado à medida que o sol se punha.

Marchamos colina acima até o pavilhão do refeitório. Sátiros vieram da campina e juntaram-se a nós. Náiades emergiram do lago de canoagem. Algumas outras meninas brotaram dos bosques — e quando digo brotar, quero dizer brotar mesmo. Vi uma menina de nove ou dez anos formar-se a partir da lateral de um bordo e vir saltitando colina acima.

Ao todo, havia talvez uma centena de campistas, algumas dúzias de sátiros e uma dúzia de ninfas e náiades variadas.

No pavilhão, tochas ardiam em volta das colunas de mármore. Um fogo central queimava em um braseiro de bronze do tamanho de uma banheira. Cada chalé tinha sua própria mesa, coberta com uma toalha branca com detalhes em roxo. Quatro mesas estavam vazias, mas a do chalé 11 era superlotada. Tive de me espremer na ponta de um banco, com metade do traseiro para fora.

Vi Grover sentado à mesa 12, e um par de meninos loiros gorduchos bem parecidos com o sr. D. Quíron ficou em pé ao lado, pois a mesa de piquenique era muito pequena para um centauro.

Annabeth sentou-se à mesa 6 com um bando de crianças atléticas de aparência séria, todas com olhos cinzentos e cabelo loiro da cor do mel.

Clarisse sentou-se atrás de mim à mesa de Ares. Parecia recuperada do banho, pois estava rindo e arrotando ao lado das amigas.

Finalmente, Quíron bateu o casco contra o piso de mármore do pavilhão e todos se calaram. Ele ergueu um copo.

— Aos deuses!

Todos ergueram os copos.

— Aos deuses!

Ninfas do bosque avançaram com bandejas de comida: uvas, maçãs, morangos, queijo, pão fresco e, sim, churrasco! Meu copo estava vazio, mas Luke disse:

— Fale com ele. Qualquer coisa que queira. Não alcoólica, é claro.

— Cherry Coke — falei.

O copo se encheu de líquido espumante cor de caramelo.

Então tive uma ideia.

— Cherry Coke azul.

O refrigerante assumiu um tom berrante de cobalto.

Tomei um gole cauteloso. Perfeito.

Fiz um brinde à minha mãe.

Ela não se foi, disse a mim mesmo. De qualquer modo, não para sempre. Ela está no Mundo Inferior. E, se ele é um lugar real, então algum dia...

— Vai, Percy — disse Luke, me passando uma travessa de peito defumado.

Enchi meu prato e estava prestes a dar uma grande garfada quando notei que todos se levantavam, levando os pratos para o fogo no centro do pavilhão. Imaginei se estavam indo buscar a sobremesa ou coisa assim.

— Venha — disse-me Luke.

Quando cheguei mais perto, vi que todos estavam pegando algo do prato e jogando no fogo, o morango mais maduro, a fatia mais suculenta de carne, o pão mais quente e mais amanteigado.

Luke murmurou ao meu ouvido:

— Oferendas queimadas para os deuses. Eles gostam do cheiro.

— Fala sério!

O olhar dele me advertiu a não debochar daquilo, mas não pude deixar de me perguntar por que um ser imortal, todo-poderoso, gostaria do cheiro de comida queimada.

Luke aproximou-se do fogo, inclinou a cabeça e atirou um cacho de uvas gordas e vermelhas.

— Hermes.

Eu era o próximo.

Eu gostaria de saber o nome de qual deus devia dizer.

Acabei fazendo um pedido silencioso. Quem quer que seja, conte-me. Por favor.

Empurrei uma grande fatia de peito para as chamas.

Quando inalei um pouco da fumaça, não engasguei.

Não parecia nem um pouco cheiro de comida queimada. Cheirava a chocolate quente e brownies recém-assados, hambúrgueres grelhados e flores silvestres, e uma centena de outras coisas boas que não deviam combinar, mas combinavam. Dava até para acreditar que os deuses podiam viver daquela fumaça.

Depois que todos voltaram aos lugares e terminaram de comer, Quíron bateu novamente o casco para chamar nossa atenção.

O sr. D levantou-se com um enorme suspiro.

— Sim, suponho que deva dizer olá a todos vocês, moleques. Bem, olá. Nosso diretor de atividades, Quíron, diz que a próxima captura da bandeira será na sexta-feira. Atualmente, o chalé 5 detém os lauréis.

Um monte de aplausos disformes se ergueu da mesa de Ares.

— Pessoalmente — continuou o sr. D —, não me importo nem um pouco, mas congratulações. Também devo lhes dizer que temos um novo campista hoje. Peter Johnson.

Quíron murmurou alguma coisa.

— Ahn, Percy Jackson — corrigiu o sr. D. — Está certo. Viva, e tudo o mais. Agora vão correndo para a sua fogueira boba. Andem.

Todos aplaudiram. Dirigimo-nos para o anfiteatro, onde o chalé de Apolo liderou a cantoria. Cantamos canções de acampamento sobre os deuses, comemos besteiras e nos divertimos, e o engraçado foi que não senti ninguém mais olhando para mim. Era como estar em casa.

Mais à noite, quando as fagulhas da fogueira se enroscavam em um céu estrelado, a trombeta de caramujo soou de novo, e todos nós formamos filas para voltar aos nossos chalés. Não me dei conta de como estava exausto até desmoronar em meu saco de dormir emprestado.

Meus dedos se fecharam em volta do chifre do Minotauro. Pensei em minha mãe, mas tive bons pensamentos: o sorriso dela, as histórias que lia para mim antes de dormir quando eu era pequeno, o jeito como me dizia para não deixar os percevejos me morderem.

Quando fechei os olhos, adormeci instantaneamente.

Assim foi meu primeiro dia no Acampamento Meio-Sangue.

Queria de ter sabido antes que em tão pouco tempo passaria a gostar de meu novo lar.


OITO

Nós capturamos uma bandeira

Em poucos dias me acomodei em uma rotina que parecia quase normal, se descontarmos o fato de que eu tinha aulas com sátiros, ninfas e um centauro.

Todas as manhãs estudava grego antigo com Annabeth e conversávamos sobre deuses e deusas no presente, o que era um pouco estranho. Descobri que Annabeth estava certa a respeito da minha dislexia: o grego antigo não era tão difícil de ler. Pelo menos, não mais difícil que inglês. Depois de algumas manhãs eu já conseguia ler sem muita dor de cabeça algumas linhas de Homero, tropeçando aqui e ali.

No resto do dia eu alternava atividades ao ar livre, procurando alguma coisa em que fosse bom. Quíron tentou me ensinar arco e flecha, mas descobrimos bem depressa que eu não dava para aquilo. Ele não reclamou nem mesmo quando teve de arrancar de suas ancas uma flecha perdida.

Corrida? Eu também não era bom. As instrutoras, as ninfas do bosque, me faziam comer poeira. Disseram-me para não me preocupar com isso. Tiveram séculos de prática fugindo de deuses apaixonados. Mas ainda assim era meio humilhante ser mais lento que uma árvore.

E as lutas? Esqueça. Toda vez que ia para a esteira, Clarisse acabava comigo.

“E vem mais por aí, seu mané”, murmurava ao meu ouvido.

A única coisa em que eu era mesmo excelente era canoagem, e esse não era o tipo de habilidade de herói que as pessoas esperavam do cara que venceu o Minotauro.

Sabia que os campistas mais velhos e os conselheiros me observavam, tentando concluir quem era meu pai, mas não estava sendo fácil para eles. Eu não era tão forte quanto os garotos de Ares, nem tão bom em arco e flecha quanto os garotos de Apolo. Não tinha a perícia de Hefesto com metais ou — os deuses me livrem — o jeito de Dioniso com as vinhas. Luke me disse que eu podia ser filho de Hermes, uma espécie de pau para toda obra, mestre nada. Mas eu tinha a sensação de que ele só estava tentando me fazer sentir melhor. Na verdade, também não sabia o que fazer comigo.

A despeito disso tudo, eu gostava do acampamento. Eu me acostumei com a neblina matinal sobre a praia, com o cheiro dos campos de morangos à tarde e até com os ruídos esquisitos dos monstros nos bosques à noite. Eu jantava com o chalé 11, empurrava parte da minha refeição para o fogo e tentava sentir alguma conexão com meu verdadeiro pai. Não vinha nada. Apenas aquela sensação morna que eu sempre tive, a lembrança do seu sorriso. Tentei não pensar demais na minha mãe, mas ficava matutando: se deuses e monstros eram reais, se todas aquelas coisas mágicas eram possíveis, certamente haveria algum jeito de salvá-la, de trazê-la de volta...

Comecei a entender o ressentimento de Luke e como ele parecia magoado com o pai, Hermes. Certo, talvez os deuses tivessem tarefas importantes a fazer. Mas não poderiam fazer uma visita de vez em quando, trovejar ou alguma coisa? Dioniso podia fazer Diet Coke aparecer do nada. Por que meu pai, quem quer que fosse, não podia fazer aparecer um telefone?

Quinta-feira à tarde, três dias depois de chegar ao Acampamento Meio-Sangue, tive minha primeira aula de esgrima. Todos do chalé 11 se reuniram na grande arena circular, onde Luke seria nosso instrutor.

Começamos com estocadas e cutiladas básicas, usando bonecos recheados de palha com armaduras gregas. Acho que fui bem. Pelo menos entendi o que devia fazer e meus reflexos foram bons.

O problema era que eu não conseguia encontrar uma lâmina que se adaptasse às minhas mãos. Eram pesadas demais, leves demais ou compridas demais. Luke fez o melhor que pôde para me ajudar, mas concordou que nenhuma das lâminas de prática parecia funcionar para mim.

Passamos adiante, para duelo em duplas. Luke anunciou que seria meu parceiro, já que era a minha primeira vez.

— Boa sorte — disse um dos campistas. — Luke é o melhor espadachim dos últimos trezentos anos.

— Talvez ele pegue leve comigo — comentei.

O campista riu, desdenhoso.

Luke me mostrou as estocadas, paradas e defesas com escudo do jeito difícil. A cada golpe eu estava um pouco mais surrado e contundido.

— Mantenha a guarda alta, Percy — dizia ele, e então me atingia com força nas costelas usando a parte chata da lâmina. — Não, não tanto assim! — Plaft! — Ataque! — Plaft! — Agora, recue! — Plaft!

Quando ele pediu um tempo, eu estava empapado de suor. Todos correram para o isopor de bebidas. Luke despejou água gelada em cima da própria cabeça, o que me pareceu uma ótima ideia. Fiz a mesma coisa.

Na mesma hora me senti melhor. A força percorreu novamente os meus braços. A espada não parecia mais tão difícil de manejar.

— O.k., todo mundo em círculo! — ordenou Luke. — Se Percy não se importar, vou fazer uma pequena demonstração.

Incrível, pensei. Vamos todos assistir enquanto Percy é triturado.

Os garotos de Hermes se reuniram em volta. Estavam todos contendo o riso. Imaginei que já tinham passado por aquilo e mal podiam esperar para ver Luke me usar como saco de pancadas. Ele disse a todos que ia mostrar uma técnica para desarmar o oponente: como girar a lâmina do inimigo com a parte chata da própria espada para que ele não tenha alternativa a não ser deixar a arma cair.

— Isso é difícil — enfatizou. — Já usaram contra mim. Não riam de Percy agora. A maioria dos espadachins precisa trabalhar anos para dominar essa técnica.

Ele demonstrou o movimento para mim em câmara lenta. Como previsto, a espada pulou da minha mão.

— Agora, em tempo real — disse ele depois que recuperei minha arma. — Vamos fazer o movimento até que um de nós tenha sucesso. Pronto, Percy?

Eu assenti, e Luke veio para cima de mim. De algum modo, eu o impedi de golpear o cabo da minha espada. Meus sentidos se aguçaram. Vi seus ataques chegando. Eu rebati. Dei um passo à frente e tentei minha própria estocada. Luke a desviou facilmente, mas notei uma mudança em seu rosto. Seus olhos se estreitaram, e ele começou a me pressionar com mais força.

A espada estava pesando em minha mão. Mal equilibrada. Eu sabia que era apenas uma questão de segundos antes que Luke me derrubasse, então decidi: Que se dane!

Tentei a manobra para desarmar.

Minha lâmina atingiu a base da de Luke e eu a girei, pondo todo o meu peso em um golpe para baixo.

Plem!

A espada de Luke retiniu contra as pedras. A ponta da minha lâmina estava a dois centímetros do seu peito desprotegido.

Os outros campistas ficaram em silêncio.

Baixei minha espada.

— Ahn, sinto muito.

Por um momento, Luke ficou perplexo demais para falar.

— Sinto muito? — Seu rosto marcado abriu-se num sorriso. — Pelos deuses, Percy, você sente muito? Mostre-me aquilo de novo!

Eu não queria. A rápida explosão de energia maníaca me abandonara completamente. Mas Luke insistiu.

Dessa vez, não houve disputa. No momento em que nossas espadas entraram em contato, Luke atingiu o cabo da minha, que saiu deslizando pelo chão.

Depois de uma longa pausa, alguém do público disse:

— Sorte de principiante?

Luke enxugou o suor da testa. Ele me avaliou com um interesse totalmente novo.

— Talvez — disse. — Mas fico pensando o que Percy poderia fazer com uma espada equilibrada...

Sexta-feira à tarde. Eu estava sentado com Grover perto do lago, descansando de uma experiência quase fatal no muro de escalada. Grover subira até o topo como um bode montanhês, mas a lava por pouco não me atingiu. Minha camisa ficou com buracos fumegantes. Os pelos dos meus antebraços ficaram chamuscados.

Sentamos no píer, olhando as náiades que teciam cestos embaixo d’água, até que reuni coragem para perguntar a Grover como tinha sido a conversa com o sr. D.

Seu rosto assumiu um tom doentio de amarelo.

— Ótima — disse. — Legal mesmo.

— Então sua carreira ainda está nos trilhos?

Ele me lançou um olhar nervoso.

— Quíron c-contou a você que eu quero uma licença de buscador?

— Bem... não. — Eu não tinha ideia do que era uma licença de buscador, mas aquele não parecia o momento certo para perguntar. — Ele só disse que você tinha grandes planos, sabe... e que precisava de reconhecimento por completar uma tarefa. Então você conseguiu?

Grover baixou os olhos para as náiades.

— O sr. D suspendeu o julgamento. Disse que ainda não fracassei nem tive sucesso com você, portanto nossos destinos ainda estão ligados. Se você ganhar uma missão, eu for junto para protegê-lo e nós dois voltarmos vivos, então talvez ele considere a tarefa concluída.

Meu ânimo melhorou.

— Bem, isso não é mau, certo?

— Bééé-é-é! Ele poderia igualmente ter me transferido para o serviço de limpeza de estábulos. As chances de você ganhar uma missão... e mesmo se ganhasse, por que haveria de querer que eu fosse junto?

— É claro que eu ia querer você junto!

Grover continuou olhando melancolicamente para a água.

— Tecer cestas... Deve ser bom ter uma habilidade útil.

Tentei convencê-lo de que ele tinha uma porção de talentos, mas isso só o fez parecer ainda mais infeliz. Conversamos sobre canoagem e esgrima por algum tempo, e então debatemos os prós e os contras dos diferentes deuses. Por fim, perguntei-lhe sobre os quatro chalés vazios.

— O número 8, o prateado, pertence a Ártemis — disse ele. — Ela jurou ser virgem para sempre. Portanto, é claro, sem filhos. O chalé é honorário, entende? Se ela não tivesse um, ficaria zangada.

— Sim, certo. Mas os outros três, os que ficam no fim. São os Três Grandes?

Grover ficou tenso. Estávamos chegando perto de um assunto delicado.

— Não. Um deles, o de número 2, é de Hera — disse ele. — É outra coisa honorária. Ela é a deusa do casamento, portanto é claro que não iria sair por aí tendo casos com mortais. Isso é serviço do marido dela. Quando falamos dos Três Grandes, queremos dizer os três irmãos poderosos, os filhos de Cronos.

— Zeus, Poseidon, Hades.

— Certo. Você sabe. Depois da grande batalha com os Titãs, eles tomaram o mundo do pai e tiraram a sorte para decidir quem ficava com o quê.

— Zeus ficou com o céu — lembrei. — Poseidon, com o mar, Hades, com o Mundo Inferior.

— A-hã.

— Mas Hades não tem um chalé aqui.

— Não. Também não tem um trono no Olimpo. Ele, bem, fica na dele lá embaixo no Mundo Inferior. Se tivesse um chalé aqui... — Grover estremeceu. — Bem, isso não seria agradável. Vamos deixar assim.

— Mas Zeus e Poseidon... os dois tinham zilhões de filhos nos mitos. Por que os chalés deles estão vazios?

Grover se balançou de um casco para outro, pouco à vontade.

— Há cerca de sessenta anos, depois da Segunda Guerra Mundial, os Três Grandes combinaram que não iriam procriar mais nenhum herói. Os filhos deles eram poderosos demais. Estavam interferindo muito no curso dos eventos humanos, causando muitas carnificinas. A Segunda Guerra Mundial, sabe, foi basicamente uma luta entre os filhos de Zeus e Poseidon, de um lado, e os filhos de Hades do outro. O lado vencedor, Zeus e Poseidon, obrigou Hades a fazer um juramento junto com eles: nada de casos com mulheres mortais. Todos juraram sobre o rio Estige.

Um trovão.

— Esse é o juramento mais sério que se pode fazer — disse eu.

Grover assentiu.

— E os irmãos mantiveram a palavra, sem filhos?

O rosto de Grover se anuviou.

— Há dezessete anos, Zeus retornou aos maus hábitos. Havia uma estrela da tevê com um penteado alto e armado, estilo anos 80... Ele simplesmente não conseguiu evitar. Quando o bebê nasceu, uma menininha chamada Thalia... Bem, o rio Estige é sério no que diz respeito a promessas. Zeus se safou com facilidade porque é imortal, mas causou um destino terrível para sua filha.

— Mas isso não é justo! Não foi culpa da menininha.

Grover hesitou.

— Percy, os filhos dos Três Grandes são mais poderosos que os outros meios-sangues. Eles têm uma aura forte, um odor que atrai monstros. Quando Hades descobriu a respeito da criança, não ficou muito feliz com o fato de Zeus ter quebrado o juramento. Hades libertou os piores monstros do Tártaro para atormentar Thalia. Um sátiro foi designado para ser guardião dela quando completou doze anos, mas não havia nada que pudesse fazer. Ele tentou escoltá-la para cá com outros meios-sangues com quem ela fizera amizade. Eles quase conseguiram. Chegaram até o topo da colina.

Ele apontou para o outro lado do vale, para o pinheiro onde eu enfrentara o Minotauro.

— As três Benevolentes estavam atrás deles com um bando de cães infernais. Estavam quase sendo alcançados quando Thalia disse a seu sátiro que levasse os outros dois meios-sangues para um lugar seguro enquanto ela tentava conter os monstros. Estava ferida e cansada, e não desejava viver como um animal caçado. O sátiro não queria deixá-la, mas não conseguiu fazê-la mudar de ideia e tinha de proteger os outros. Assim, Thalia defendeu-se no final sozinha, no topo daquela colina. Quando ela morreu, Zeus se apiedou dela. Transformou-a naquele pinheiro. Seu espírito ainda ajuda a proteger as fronteiras do vale. É por isso que a colina é chamada Colina Meio-Sangue.

Olhei para o pinheiro distante.

A história me fez sentir oco, e também culpado. Uma menina da minha idade se sacrificara para salvar os amigos. Enfrentara todo um exército de monstros. Perto disso, minha vitória sobre o Minotauro não parecia grande coisa. Perguntei a mim mesmo se agindo diferente poderia ter salvado minha mãe.

— Grover, os heróis realmente partiram em missões para o Mundo Inferior?

— Algumas vezes — disse ele. — Orfeu. Hércules. Houdini.

— E chegaram a trazer alguém de volta da morte?

— Não. Nunca. Orfeu chegou perto... Percy, você não está pensando mesmo em...

— Não — menti. — Estava só imaginando. Então... um sátiro é sempre designado para guardar um semideus?

Grover me estudou cauteloso. Eu não o tinha convencido de que desistira da ideia do Mundo Inferior.

— Nem sempre. Vamos disfarçados para uma porção de escolas. Tentamos farejar os meios-sangues que tenham atributos de grandes heróis. Se encontramos um com uma aura muito forte, como uma criança dos Três Grandes, alertamos Quíron. Ele tenta ficar de olho neles, já que podem causar problemas realmente enormes.

— E você me encontrou. Quíron disse que você achava que eu poderia ser algo especial.

Grover soou como se eu acabasse de atraí-lo para uma armadilha.

— Eu não... Ora, escute, não pense assim. Se você fosse... você sabe... jamais lhe permitiriam uma missão, e eu jamais teria a minha licença. Você provavelmente é filho de Hermes. Ou talvez até de um dos deuses menores, como Nêmesis, a deusa da vingança. Não se preocupe, tá?

Percebi que ele estava tentando tranquilizar mais a si mesmo que a mim.

Naquela noite após o jantar havia muito mais agitação que de costume.

Finalmente, era hora da captura da bandeira.

Quando os pratos foram levados embora, a trombeta de caramujo soou e todos nos postamos junto às nossas mesas.

Os campistas gritaram e aplaudiram quando Annabeth e dois de seus irmãos entraram correndo no pavilhão, carregando um estandarte de seda. Tinha cerca de três metros de comprimento, reluzindo em cinza, com a pintura de uma coruja em cima de uma oliveira. Do lado oposto do pavilhão, Clarisse e as amigas entraram correndo com outro estandarte, de tamanho idêntico, mas vermelho-berrante, com a pintura de uma lança sanguinolenta e uma cabeça de javali.

Virei-me para Luke e gritei por cima do barulho:

— Aquelas são as bandeiras?

— Sim.

— Ares e Atena sempre lideram as equipes?

— Nem sempre — disse ele. — Mas frequentemente.

— Então, se um outro chalé capturar uma delas, o que vocês fazem, pintam de novo a bandeira?

Ele sorriu ironicamente.

— Você vai ver. Primeiro temos de conseguir uma.

— De que lado nós estamos?

Ele me deu uma olhada astuta, como se soubesse algo que eu não sabia. A cicatriz em seu rosto o fazia parecer quase mau à luz das tochas.

— Fizemos uma aliança temporária com Atena. Esta noite, tiraremos a bandeira de Ares. E você vai ajudar.

As equipes foram anunciadas. Atena tinha feito uma aliança com Apolo e Hermes, os dois chalés maiores. Aparentemente, haviam sido trocados privilégios — horários de chuveiro, escala de deveres, as melhores posições nas atividades — a fim de ganhar apoio.

Ares tinha se aliado a todos os outros: Dioniso, Deméter, Afrodite e Hefesto. Pelo que eu tinha visto, os campistas de Dioniso eram na verdade bons atletas, mas havia apenas dois deles. Os de Deméter tinham ligeira vantagem em habilidades na natureza e atividades ao ar livre, mas não eram muito agressivos. Com os filhos e filhas de Afrodite eu não estava muito preocupado. Eles, na maioria das vezes, esperavam sentados todas as atividades acabarem e iam conferir seus reflexos no lago, penteavam os cabelos e fofocavam. Os de Hefesto não eram bonitos, e havia apenas quatro deles, mas eram grandes e corpulentos de tanto trabalhar na oficina de metais o dia inteiro. Poderiam ser um problema. Com isso, é claro, restava o chalé de Ares: uma dúzia dos maiores, mais feios e mais perversos garotos e garotas de Long Island, ou de qualquer outro lugar no planeta.

Quíron bateu o casco no mármore.

— Heróis! — anunciou. — Vocês conhecem as regras. O riacho é o limite. A floresta inteira está valendo. Todos os itens mágicos são permitidos. A bandeira deve ser ostentada de modo destacado e não deve ter mais de dois guardas. Os prisioneiros podem ser desarmados, mas não podem ser amarrados ou amordaçados. Não é permitido matar nem aleijar. Servirei como juiz e médico do campo de batalha. Armem-se!

Ele estendeu as mãos e as mesas subitamente se cobriram de equipamentos: capacetes, espadas de bronze, lanças, escudos de couro de boi recobertos de metal.

— Uau! — falei. — Temos mesmo que usar isso?

Luke olhou para mim como se eu estivesse louco.

— A não ser que você queira ser espetado pelos seus amigos do chalé 5. Aqui... Quíron achou que estes devem lhe servir. Você ficará na patrulha da fronteira.

Meu escudo era do tamanho de uma tabela de basquete da NBA, com um grande caduceu no meio. Pesava cerca de um milhão de quilos. Eu poderia muito bem usá-lo como prancha de snowboard, mas tinha esperanças de que ninguém tivesse expectativas reais de que eu corresse com aquilo. Meu capacete, como todos os capacetes do lado de Atena, tinha um penacho de crina azul no topo. Ares e seus aliados tinham penachos vermelhos.

Annabeth gritou:

— Equipe azul, para a frente!

Aplaudimos e agitamos nossas espadas, e a seguimos para baixo pelo caminho para os bosques do sul. A equipe vermelha gritou nos provocando enquanto seguia em direção ao norte.

Consegui alcançar Annabeth sem tropeçar em meu próprio equipamento.

— Ei!

Ela continuou marchando.

— Então, qual é o plano? — perguntei. — Tem alguns itens mágicos para me emprestar?

A mão dela se desviou para o bolso, como se estivesse com medo de que eu roubasse alguma coisa.

— Só digo para ter cuidado com a lança de Clarisse. Você não vai querer que aquela coisa toque em você. Fora isso, não se preocupe. Vamos tomar a bandeira de Ares. Luke determinou sua tarefa?

— Patrulha de fronteira, seja lá o que isso for.

— É fácil. Fique junto ao riacho, mantenha os vermelhos longe. Deixe o resto comigo. Atena sempre tem um plano.

Ela seguiu adiante, me deixando na poeira.

— Certo — murmurei. — Fico contente por me querer na sua equipe.

Era uma noite quente e úmida, grudenta. Os bosques estavam escuros, com vaga-lumes aparecendo e sumindo. Annabeth me designou para um pequeno regato que rumorejava por cima de algumas pedras, depois ela e o restante da equipe se espalharam entre as árvores.

Ali sozinho, com meu grande capacete de penacho azul e meu enorme escudo, me senti um idiota. A espada de bronze, como todas as espadas que eu experimentara até então, parecia mal equilibrada. O cabo de couro pesava em minha mão como uma bola de boliche.

Não havia como alguém me atacar de verdade, não é? Quer dizer, o Olimpo tinha de ter responsabilidade, certo?

Longe, a trombeta de caramujo soou. Ouvi brados e gritos nos bosques, metais chocando-se, gente lutando. Um aliado de Apolo de penacho azul passou por mim correndo como um cervo, pulou o regato e desapareceu em território inimigo.

Essa é boa, pensei. Vou ficar de fora da diversão, como sempre.

Então ouvi um som que me deu um calafrio na espinha, um rosnado canino grave em algum lugar por perto.

Ergui o escudo instintivamente; tinha a sensação de que alguma coisa estava me espreitando.

Então o rosnado parou. Senti a presença recuando.

Do outro lado do regato, a vegetação rasteira explodiu. Cinco guerreiros de Ares saíram gritando e berrando da escuridão.

— Acabem com o mané! — berrou Clarisse.

Seus olhos feios de porco faiscaram nas fendas do capacete. Ela brandiu uma lança de um metro e meio de comprimento, a ponta de metal farpado lançando chispas de luz vermelha. Seus irmãos só tinham espadas de bronze comuns — não que isso me fizesse sentir melhor.

Eles atacaram cruzando o regato. Não havia ajuda à vista. Eu podia correr. Ou podia me defender contra metade do chalé de Ares.

Consegui me esquivar do golpe do primeiro garoto, mas aqueles caras não eram estúpidos como o Minotauro. Eles me cercaram, e Clarisse investiu contra mim com sua lança. Meu escudo desviou a ponta, mas senti um formigamento doloroso em todo o corpo. Meus cabelos se eriçaram. O braço que segurava o escudo ficou dormente e o ar queimou.

Eletricidade. Aquela lança estúpida era elétrica. Eu recuei.

Outro cara de Ares me golpeou no peito com a parte mais grossa da espada e eu caí.

Eles podiam ter me chutado até eu virar geleia, mas estavam muito ocupados rindo.

— Façam um corte no cabelo dele — disse Clarisse. — Agarrem o cabelo dele.

Consegui me pôr de pé. Ergui a espada, mas Clarisse a jogou violentamente para o lado com sua lança, e fagulhas voaram. Agora meus braços estavam dormentes.

— Ah, uau! — disse Clarisse. — Estou com medo desse cara. Realmente apavorada.

— A bandeira está para lá — disse a ela. Queria parecer zangado, mas acho que não consegui.

— É — disse um dos irmãos dela. — Mas, veja bem, nós não nos importamos com a bandeira. A gente se importa com um cara que fez o pessoal do nosso chalé de idiota.

— Vocês não precisam de mim para isso. — Provavelmente não foi a coisa mais esperta a dizer.

Dois deles vieram para cima de mim. Recuei em direção ao regato, tentei erguer meu escudo, mas Clarisse era muito rápida. Sua lança me pegou bem nas costelas. Se eu não estivesse usando uma armadura blindada, teria virado churrasco no espeto. Do jeito que foi, a ponta elétrica quase fez meus dentes saltarem da boca com o choque. Um de seus colegas de chalé desferiu a espada contra o meu braço, fazendo um bom talho.

Ver meu próprio sangue me deixou zonzo — quente e frio ao mesmo tempo.

— Sem aleijar — consegui dizer.

— Oops — disse o cara. — Acho que perdi meu direito à sobremesa.

Ele me empurrou para o regato e eu caí espalhando água. Todos riram. Calculei que assim que acabassem de se divertir eu iria morrer. Mas então algo aconteceu. A água pareceu despertar meus sentidos, como se eu tivesse acabado de comer um saco duplo das jujubas da minha mãe.

Clarisse e seus companheiros de chalé entraram no regato para me pegar, mas eu me pus em pé para recebê-los. Sabia o que fazer. Desferi a parte chata da minha espada contra a cabeça do primeiro cara e arranquei seu capacete. Atingi-o com tanta força que pude ver seus olhos tremendo enquanto ele desmoronava na água.

O Feio Número 2 e o Feio Número 3 vieram para cima de mim. Golpeei um no rosto com o escudo e usei a espada para decepar o penacho da crina do outro. Os dois recuaram depressa. O Feio Número 4 não pareceu muito ansioso por atacar, mas Clarisse continuava vindo, a ponta da lança crepitando de eletricidade. Assim que ela investiu, peguei a vara da lança entre a borda do meu escudo e a minha espada, e a parti como se fosse um graveto.

— Ah! — berrou ela. — Seu idiota! Seu verme com bafo de cadáver!

Ela provavelmente ainda teria dito coisas piores, mas eu a golpeei entre os olhos com a base da espada e a joguei cambaleando de costas para fora do regato.

Então ouvi gritos exultantes, e vi Luke correndo em direção à linha limite com o estandarte da equipe vermelha erguido alto. Vinha flanqueado por alguns garotos de Hermes, cobrindo sua retirada, e alguns Apolos atrás deles, combatendo os garotos de Hefesto. O pessoal de Ares se levantou e Clarisse resmungou uma praga estupefata.

— Uma armadilha! — berrou. — Foi uma armadilha.

Eles saíram cambaleando atrás de Luke, mas era tarde demais. Todo mundo convergiu para o regato enquanto Luke atravessava para território amigo. Nosso lado explodiu em vivas. O estandarte vermelho tremulou e ficou prateado. O javali e a lança foram substituídos por um enorme caduceu, o símbolo do chalé 11. Todos da equipe azul ergueram Luke nos ombros e começaram a carregá-lo. Quíron saiu a meio galope do bosque e soprou a trombeta de caramujo.

O jogo terminara. Tínhamos vencido.

Eu estava prestes a me juntar à comemoração quando a voz de Annabeth, bem a meu lado no regato, disse:

— Nada mau, herói.

Eu olhei, mas ela não estava lá.

— Onde diabo aprendeu a lutar assim? — perguntou ela. O ar tremulou e Annabeth se materializou, segurando um boné de beisebol dos Yankees como se tivesse acabado de tirá-lo da cabeça.

Senti que estava ficando zangado. Não fiquei nem mesmo perturbado com o fato de ela estar invisível um segundo antes.

— Você armou isso para mim — disse eu. — Você me pôs aqui porque sabia que Clarisse viria atrás de mim, enquanto você mandava Luke dar a volta pelos flancos. Já tinha tudo preparado.

Annabeth encolheu os ombros.

— Eu disse para você. Atena sempre, sempre tem um plano.

— Um plano para que eu fosse reduzido a pó.

— Eu vim o mais rápido que pude. Estava pronta para entrar na briga, mas... — Ela encolheu os ombros. — Você não precisava de ajuda.

Então ela reparou no meu braço ferido:

— Como arranjou isso?

— Corte de espada — disse eu. — O que você acha?

— Não. Era um corte de espada. Olhe só.

O sangue se fora. No lugar do rasgo enorme havia uma longa cicatriz branca, e mesmo esta estava desaparecendo. Enquanto eu olhava, ela se transformou em uma cicatriz pequena e sumiu.

— Eu... eu não entendo — disse.

Annabeth raciocinava com empenho. Eu quase podia ver as engrenagens girando. Ela baixou os olhos para os meus pés, depois para a lança quebrada de Clarisse e disse:

— Saia da água, Percy.

— O que...

— Apenas saia.

Saí do regato e logo me senti extremamente cansado. Meus braços começaram a ficar dormentes de novo. Minha descarga de adrenalina me abandonou. Quase caí, mas Annabeth me segurou.

— Oh, Estige — praguejou ela. — Isso não é bom. Eu não queria... Eu pensei que podia ser Zeus...

Antes que eu pudesse perguntar o que ela queria dizer, ouvi o rosnado canino de novo, porém muito mais perto. Um uivo cortou a floresta.

A comemoração dos campistas cessou imediatamente. Quíron bradou alguma coisa em grego antigo que eu, só mais tarde me daria conta, tinha entendido perfeitamente:

— Preparem-se! Meu arco!

Annabeth sacou a espada.

Sobre as pedras, logo acima de nós, havia um cão preto do tamanho de um rinoceronte, com olhos vermelhos como lava e presas que pareciam punhais.

Estava olhando diretamente para mim.

Ninguém se moveu exceto Annabeth, que gritou:

— Percy, corra!

Ela tentou se interpor entre mim e o cão, mas o bicho foi rápido demais. Pulou por cima dela — uma enorme sombra com dentes — e, assim que me atingiu, quando cambaleei para trás e senti as garras afiadas como navalhas rasgando minha armadura, houve uma cascata de sons de pancadas, como quarenta pedaços de papel sendo rasgados um após o outro. Um amontoado de flechas brotou no pescoço do cão. O monstro caiu morto aos meus pés.

Por algum milagre eu ainda estava vivo. Não quis olhar embaixo das ruínas da minha armadura esfrangalhada. Meu peito parecia morno e molhado, e eu sabia que estava gravemente ferido. Mais um segundo e o monstro teria me transformado em quarenta e cinco quilos de carne fatiada.

Quíron trotou para perto de nós com um arco na mão, a expressão soturna.

— Di immortales! — disse Annabeth. — Aquilo é um cão infernal dos Campos de Punição. Eles não... eles não deveriam...

— Alguém o convocou — disse Quíron. — Alguém de dentro do acampamento.

Luke se aproximou, o estandarte esquecido em sua mão, o momento de glória acabado.

Clarisse berrou:

— É tudo culpa do Percy! Percy o convocou!

— Fique quieta, criança — ordenou-lhe Quíron.

Nós assistimos enquanto o cão infernal se dissolvia em sombra e era absorvido pela terra até desaparecer.

— Você está ferido — disse-me Annabeth. — Rápido, Percy, entre na água.

— Eu estou bem.

— Não, você não está — disse ela. — Quíron, veja isto.

Eu estava cansado demais para discutir. Voltei para dentro do regato, o acampamento inteiro reunido à minha volta.

No mesmo instante me senti melhor. Pude perceber os cortes em meu peito se fechando. Alguns dos campistas sufocaram um grito.

— Olhem, eu... eu não sei por quê — falei, tentando me desculpar. — Sinto muito...

Mas eles não estavam olhando minhas feridas cicatrizarem. Olhavam para algo acima da minha cabeça.

— Percy — disse Annabeth apontando. — Ahn...

Quando olhei para cima, o sinal já estava desaparecendo, mas ainda pude distinguir o holograma de luz verde, girando e cintilando. Uma lança de três pontas: um tridente.

— Seu pai — murmurou Annabeth. — Isso realmente não é bom.

— Está determinado — anunciou Quíron.

Por toda a minha volta, os campistas começaram a se ajoelhar, até mesmo o chalé de Ares, embora não parecessem muito felizes com isso.

— Meu pai? — perguntei, completamente perplexo.

— Poseidon — disse Quíron. — Senhor dos Terremotos. Portador das Tempestades. Pai dos Cavalos. Salve, Perseu Jackson, Filho do Deus do Mar.


NOVE

Oferecem-me uma missão

Na manhã seguinte, Quíron me mudou para o chalé 3.

Não tive de compartilhá-lo com ninguém. Tinha espaço à vontade para todas as minhas coisas: o chifre do Minotauro, um conjunto de roupas de reserva e uma sacola de artigos de toalete. Ia me sentar à minha própria mesa de jantar, escolhia todas as minhas atividades, determinava o “apagar das luzes” sempre que tinha vontade e não ouvia a mais ninguém.

E me sentia totalmente infeliz.

Bem quando começava a me sentir aceito, a sentir que tinha um lar no chalé 11 e poderia ser um garoto normal — ou tão normal quanto é possível quando se é um meio-sangue —, fui separado como se tivesse alguma doença rara.

Ninguém mencionou o cão infernal, mas tive a sensação de que estavam todos falando sobre isso pelas minhas costas. O ataque assustara todo mundo. Ele mandou duas mensagens: a primeira, que eu era filho do deus do mar; a segunda, que os monstros não mediriam esforços para me matar. Podiam até invadir um acampamento que sempre foi considerado seguro.

Os outros campistas mantinham distância de mim na medida do possível. O chalé 11 estava agitado demais para receber aula de esgrima junto comigo depois do que eu fizera com o pessoal de Ares no bosque, e assim minhas aulas com Luke passaram a ser particulares. Ele me exigia mais do que nunca, e não tinha medo de me machucar.

— Você vai precisar de todo o treinamento que puder obter — prometeu, enquanto trabalhávamos com tochas flamejantes e espadas. — Agora vamos tentar de novo aquele golpe de decapitar víboras. Mais cinquenta repetições.

Annabeth ainda me ensinava grego pela manhã, mas parecia distraída. A cada vez que eu dizia alguma coisa, ela fechava a cara, como se eu tivesse acabado de lhe dar um soco.

Depois das aulas, ela ia embora resmungando consigo mesma:

— Missão... Poseidon?... Grande porcaria... Preciso de um plano...

Até Clarisse mantinha distância, embora os olhares venenosos deixassem claro que queria me matar por ter quebrado sua lança mágica. Queria que ela simplesmente gritasse, me desse um soco ou coisa assim. Era melhor me meter em brigas todos os dias a ser ignorado.

Soube que alguém no acampamento andava ressentido comigo, porque uma noite entrei no meu chalé e achei um jornal horrível jogado porta adentro, um exemplar do New York Daily News, aberto na página Metrópole. Levei quase uma hora para ler a matéria, porque quanto mais ficava zangado mais as palavras pareciam flutuar na página.

MENINO E SUA MÃE AINDA DESAPARECIDOS

DEPOIS DE ESTRANHO ACIDENTE DE CARRO

POR EILEEN SMYTHE

Sally Jackson e seu filho Percy ainda não foram encontrados uma semana depois de seu misterioso desaparecimento. O carro da família, um Camaro 1978, totalmente queimado, foi descoberto no último sábado em uma estrada ao norte de Long Island com o teto arrancado e o eixo dianteiro quebrado. O carro havia capotado e derrapado por várias centenas de metros antes de explodir.

Mãe e filho tinham ido passar um fim de semana em Montauk, mas saíram às pressas, sob circunstâncias misteriosas. Pequenos sinais de sangue foram encontrados no carro e perto da cena do desastre, mas não havia outros indícios dos Jackson desaparecidos. Residentes da área rural declararam não ter visto nada de inusitado por volta da hora do acidente.

O marido da sra. Jackson, Gabe Ugliano, alega que o enteado, Percy Jackson, é uma criança problemática que foi expulsa de inúmeros internatos e demonstrou tendências violentas no passado.

A polícia não diz se o filho Percy é suspeito do desaparecimento da mãe, porém não descarta a hipótese de crime. Abaixo estão fotografias recentes de Sally Jackson e Percy. A polícia solicita a qualquer pessoa que tenha alguma informação que ligue gratuitamente para o disque-denúncia de crimes, a seguir.

O número do telefone estava circulado com marcador preto.

Amarrotei o jornal e joguei fora, depois me joguei em meu beliche no meio do chalé vazio.

“Apagar das luzes”, disse para mim mesmo, arrasado.

Naquela noite, tive meu pior pesadelo até então.

Eu corria pela praia no meio de uma tempestade. Dessa vez, havia uma cidade atrás de mim. Não Nova York. O panorama era diferente: os edifícios eram mais afastados uns dos outros, havia palmeiras e colinas baixas a distância.

Cem metros adiante, na arrebentação, dois homens estavam brigando. Pareciam lutadores da tevê, musculosos, com barbas e cabelos compridos. Ambos usavam túnicas gregas esvoaçantes, uma guarnecida de azul, a outra, de verde. Atracavam-se, lutavam, chutavam e davam cabeçadas — e, a cada vez que se tocavam, caíam raios, o céu escurecia e ventos sopravam.

Eu precisava detê-los. Não sabia por quê. Mas, quanto mais eu corria, mais o vento me empurrava de volta, até eu correr sem sair do lugar, os calcanhares se enterrando inutilmente na areia.

Por cima do rugido da tempestade, pude ouvir o de túnica azul gritando para o de túnica verde: Devolva! Devolva! Era como se uma criança de jardim de infância estivesse brigando por causa de um brinquedo.

As ondas ficaram maiores, arrebentando na praia e me borrifando com sal.

Eu gritei: Parem com isso! Parem de brigar!

O chão estremeceu. Risadas vieram de algum lugar embaixo da terra, e uma voz profunda e maligna me gelou o sangue.

Venha para baixo, pequeno herói, a voz sussurrou. Venha para baixo!

A areia se abriu embaixo de mim numa fenda que ia direto ao centro da Terra. Meus pés escorregaram e as trevas me engoliram.

Acordei, certo de que estava caindo.

Ainda estava na cama, no chalé 3. Meu corpo me dizia que já era manhã, mas estava escuro lá fora e o trovão ribombava pelas colinas. Uma tempestade estava se formando. Isso eu não havia sonhado.

Ouvi um som oco à porta, o som de um casco batendo na soleira.

— Entre.

Grover trotou para dentro, parecendo preocupado.

— O sr. D quer vê-lo.

— Por quê?

— Ele quer matar... quer dizer, é melhor deixar que ele conte.

Eu me vesti, agitado, e fui, certo de que estava em uma grande encrenca.

Havia dias eu estava esperando uma convocação para a Casa Grande. Agora que tinha sido declarado filho de Poseidon, um dos Três Grandes deuses que não deveriam ter filhos, imaginei que o simples fato de estar vivo já fosse um crime. Os outros deuses provavelmente haviam debatido sobre o melhor jeito de me punir por existir, e agora o sr. D estava pronto para dar seu veredicto.

Acima do estreito de Long Island, o céu parecia uma sopa de tinta em ponto de fervura. Uma cortina brumosa de chuva vinha em nossa direção. Perguntei a Grover se precisávamos de um guarda-chuva.

— Não — disse ele. — Aqui nunca chove, a não ser que queiramos.

Apontei para a tempestade.

— Então que diabo é aquilo?

Ele olhou, preocupado, para o céu.

— Vai passar em volta de nós. O mau tempo sempre faz isso.

Percebi que ele estava certo. Fazia uma semana que estava ali e nunca vira o tempo fechado. As poucas nuvens de chuva que tinha notado contornaram os limites do vale.

Mas aquela tempestade... aquela era imensa.

Na arena de vôlei as crianças do chalé de Apolo jogavam uma partida matinal contra os sátiros. Os gêmeos de Dioniso caminhavam em volta dos campos de morangos fazendo as plantas crescerem. Todos estavam cuidando de suas tarefas normais, mas pareciam tensos. Estavam de olho na tempestade.

Grover e eu caminhamos até a varanda da frente da Casa Grande. Dioniso estava sentado à mesa de pinochle com sua Diet Coke, usando a camisa havaiana com listras de tigre, exatamente como no meu primeiro dia. Quíron estava do outro lado da mesa em sua falsa cadeira de rodas. Jogavam contra oponentes invisíveis — duas mãos de cartas flutuavam no ar.

— Bem, bem — disse o sr. D sem erguer os olhos. — Nossa pequena celebridade.

Eu aguardei.

— Chegue mais perto — disse o sr. D. — E não espere que eu me prostre diante de você, mortal, só porque o velho Barbas de Craca é seu pai.

Uma rede de raios brilhou através das nuvens. Um trovão fez tremerem as janelas da casa.

— Bla-bla-blá — disse Dioniso.

Quíron fingiu interesse em suas cartas de pinochle. Grover se encolheu junto ao gradil, os cascos batendo para a frente e para trás.

— Se as coisas fossem do meu jeito — disse Dioniso —, eu faria suas moléculas irromperem em chamas. Nós varreríamos as cinzas e estaríamos livres de um monte de problemas. Mas Quíron parece achar que isso seria contra a minha missão neste acampamento maldito: manter vocês, moleques, a salvo do mal.

— Combustão espontânea é uma forma de mal, sr. D — interveio Quíron.

— Bobagem — disse Dioniso. — O menino não sentiria nada. No entanto, eu concordei em me conter. Estou pensando em transformar você em um golfinho em vez disso, e mandá-lo de volta para seu pai.

— Sr. D... — advertiu Quíron.

— Ora, está bem — cedeu Dioniso. — Há mais uma opção. Mas é uma insensatez descomunal. — Dioniso levantou-se, e as cartas dos jogadores invisíveis caíram sobre a mesa. — Estou indo ao Olimpo para uma reunião de emergência. Se o menino ainda estiver aqui quando eu voltar, vou transformá-lo em um nariz de garrafa do Atlântico. Entendeu? E Perseu Jackson, se você for mesmo esperto, verá que se trata de uma escolha muito mais sensata do que aquela que Quíron imagina.

Dioniso pegou uma carta, torceu-a e ela se transformou em um retângulo de plástico. Cartão de crédito? Não. Um passe de segurança.

Ele estalou os dedos.

O ar pareceu se dobrar e se curvar em volta dele. Ele transformou-se em um holograma, depois em um vento e depois desapareceu, deixando para trás apenas o cheiro de uvas recém-prensadas.

Quíron sorriu para mim, mas parecia cansado e tenso.

— Sente-se, Percy, por favor. Grover também.

Nós obedecemos.

Quíron pôs suas cartas na mesa. A mão vencedora que ele não chegara a usar.

— Diga-me, Percy — disse ele. — O que você fez com o cão infernal?

Só de ouvir o nome, eu estremeci.

Quíron provavelmente queria que eu dissesse: Ora, aquilo não foi nada. Costumo comer cães infernais no café da manhã. Mas eu não estava com vontade de mentir.

— Ele me apavorou — falei. — Se vocês não o tivessem acertado, eu estaria morto.

— Você vai enfrentar coisas piores, Percy. Muito piores, antes de terminar.

— Terminar... o quê?

— Sua missão, é claro. Você vai aceitá-la?

Dei uma olhada para Grover, que estava cruzando os dedos.

— Ahn, senhor, ainda não me contou qual será.

Quíron fez uma careta.

— Bem, essa é a parte difícil, os detalhes.

Um trovão irrompeu pelo vale. As nuvens de tempestade haviam agora chegado ao limite da praia. Até onde eu podia ver, o céu e o mar estavam fervendo juntos.

— Poseidon e Zeus — disse eu. — Eles estão lutando por algo valioso... algo que foi roubado, não estão?

Quíron e Grover trocaram olhares.

Quíron inclinou-se para a frente em sua cadeira de rodas.

— Como você sabe disso?

Senti o rosto quente. Desejei não ter aberto meu bocão.

— Desde o Natal o tempo está esquisito, como se o mar e o céu estivessem brigando. Então falei com Annabeth, e ela tinha ouvido alguma coisa sobre um roubo. E... também andei sonhando umas coisas.

— Eu sabia — disse Grover.

— Quieto, sátiro — ordenou Quíron.

— Mas essa é a missão dele! — Os olhos de Grover estavam brilhantes de excitação. — Tem de ser!

— Só o Oráculo pode determinar. — Quíron alisou a barba eriçada. — No entanto, Percy, você está correto. Seu pai e Zeus estão tendo sua pior disputa em séculos. Estão lutando por uma coisa valiosa que foi roubada. Para ser preciso: um relâmpago.

Eu ri de nervoso.

— Um o quê?

— Não brinque com isso — advertiu Quíron. — Não estou falando de um zigue-zague recoberto de papel-alumínio como você vê em peças da escola. Estou falando de um cilindro de bronze celestial de alto grau, com sessenta centímetros de comprimento, arrematado em ambos os lados com explosivos de nível deífico.

— Ah.

— O raio-mestre de Zeus — disse Quíron, agora ficando emocionado. — O símbolo de seu poder, conforme o qual todos os outros raios são moldados. A primeira arma feita pelos Ciclopes para a guerra contra os Titãs, que decepou o cume do Monte Etna e arremessou Cronos para fora do seu trono; o raio-mestre, que acumula potência suficiente para fazer as bombas de hidrogênio dos mortais parecerem fogos de artifício.

— E ele desapareceu?

— Roubaram — disse Quíron.

— Quem roubaram?

— Quem roubou — corrigiu Quíron. Uma vez professor, sempre professor. — Você.

Meu queixo caiu.

— Pelo menos — Quíron ergueu uma das mãos —, é isso que Zeus pensa. Durante o solstício de inverno, na última assembleia dos deuses, Zeus e Poseidon tiveram uma discussão. As tolices de sempre: “A Mãe Reia sempre gostou mais de você”, “Os desastres aéreos são mais espetaculares que os desastres marítimos” etc. Mais tarde, Zeus se deu conta de que o seu raio-mestre havia desaparecido, levado da sala do trono bem debaixo do seu nariz. No mesmo instante culpou Poseidon. Agora, um deus não pode usurpar diretamente o símbolo de poder de outro deus — isso é proibido pela mais antiga das leis divinas. Mas Zeus acredita que seu pai convenceu um herói humano a pegá-lo.

— Mas eu não...

— Paciência, e escute, criança — disse Quíron. — Zeus tem boas razões para suspeitar. As forjas dos Ciclopes ficam embaixo do oceano, o que dá a Poseidon alguma influência sobre os fabricantes dos raios do seu irmão. Zeus acredita que Poseidon pegou o raio-mestre e está agora mandando os Ciclopes construírem secretamente um arsenal de cópias ilegais, que poderiam ser usadas para derrubar Zeus do seu trono. A única coisa de que Zeus não tinha certeza era qual herói Poseidon usara para roubar o raio. Agora Poseidon declarou abertamente que você é filho dele. Você estava em Nova York nas férias de inverno. Poderia facilmente ter se infiltrado no Olimpo. Zeus acredita que encontrou o seu ladrão.

— Mas eu nunca estive no Olimpo! Zeus está maluco!

Quíron e Grover olharam nervosamente para o céu. As nuvens não pareciam estar se separando à nossa volta, como Grover prometera. Estavam vindo para cima do nosso vale, fechando-nos dentro dele como uma tampa de caixão.

— Ahn, Percy...? — disse Grover. — Nós não usamos essa palavra que começa com m para descrever o Senhor do Céu.

— Paranoico, quem sabe — sugeriu Quíron. — Mas, por outro lado, Poseidon já tentou derrubar Zeus antes. Acredito que essa foi a pergunta 38 da sua prova final... — Ele olhou para mim como quem realmente esperava que eu me lembrasse da pergunta 38.

Como podia alguém me acusar de roubar a arma de um deus? Eu não conseguia nem furtar um pedaço de pizza da mesa de pôquer de Gabe sem ser pego. Quíron estava esperando por uma resposta.

— Alguma coisa a ver com uma rede de ouro? — adivinhei. — Poseidon, e Hera, e alguns outros deuses... eles, tipo, prenderam Zeus numa armadilha e não o deixaram sair até ele prometer ser um soberano melhor, certo?

— Correto — disse Quíron. — E Zeus nunca mais confiou em Poseidon desde então. Poseidon, é claro, nega ter roubado o raio-mestre. Ele se ofendeu com a acusação. Os dois vêm discutindo o tempo todo há meses, com ameaças de guerra. E agora você apareceu — a famosa gota d’água.

— Mas eu sou apenas uma criança!

— Percy — interveio Grover —, se você fosse Zeus, e já achasse que o seu irmão estava planejando derrubá-lo, e então o seu irmão subitamente admitisse que havia quebrado o juramento sagrado que fizera depois da Segunda Guerra Mundial e que era pai de um novo herói mortal que poderia ser usado como uma arma contra você... Isso não o deixaria com a pulga atrás da orelha?

— Mas eu não fiz nada. Poseidon, meu pai, realmente não mandou roubar esse raio-mestre, mandou?

Quíron suspirou.

— A maioria dos observadores inteligentes concordaria que o roubo não faz o estilo de Poseidon. Mas o deus do mar é orgulhoso demais para tentar convencer Zeus disso. Zeus exigiu que Poseidon devolva o raio até o solstício de verão. Isso será em 21 de junho, dez dias a contar de agora. Poseidon quer um pedido de desculpas por ser chamado de ladrão até essa mesma data. Eu tinha esperanças de que a diplomacia prevalecesse, que Hera ou Deméter ou Héstia fariam os dois irmãos verem a razão. Mas a sua chegada inflamou o gênio de Zeus. Agora nenhum dos dois deuses quer recuar. A não ser que alguém intervenha, a não ser que o raio-mestre seja encontrado e devolvido a Zeus antes do solstício, haverá guerra. E você sabe como poderia ser uma guerra total, Percy?

— Ruim? — adivinhei.

— Imagine o mundo em caos. A natureza em guerra consigo mesma. Os olimpianos forçados a escolher lados entre Zeus e Poseidon. Destruição. Carnificina. Milhões de mortos. A civilização ocidental transformada em um campo de batalha tão grande que fará a Guerra de Troia parecer uma luta de balões d’água.

— Ruim — repeti.

— E você, Percy Jackson, será o primeiro a sentir a ira de Zeus.

Começou a chover. Os jogadores de vôlei interromperam o jogo e olhavam em silêncio perplexo para o céu.

Eu havia trazido a tempestade para a Colina Meio-Sangue. Zeus estava punindo o acampamento inteiro por minha causa. Eu estava furioso.

— Então eu tenho de encontrar aquele raio estúpido — disse. — E devolvê-lo a Zeus.

— Que melhor oferenda de paz — disse Quíron —, do que fazer o filho de Poseidon devolver o que é de Zeus?

— Se não está com Poseidon, onde está essa coisa?

— Eu creio que sei. — A expressão de Quíron era soturna. — Parte da profecia que recebi anos atrás... bem, algumas frases fazem sentido para mim, agora. Mas, antes que eu possa dizer mais, você precisa aceitar oficialmente a missão. Você precisa procurar o conselho do Oráculo.

— Por que você não pode dizer de antemão onde está o raio?

— Porque, se eu fizer isso, você ficará assustado demais para aceitar o desafio.

Eu engoli em seco.

— Boa razão.

— Então você concorda?

Olhei para Grover, que assentiu encorajadoramente.

Fácil para ele. Era a mim que Zeus queria matar.

— Está bem — disse eu. — É melhor do que ser transformado em um golfinho.

— Então é hora de você consultar o Oráculo — disse Quíron. — Vá para cima, Percy Jackson, para o sótão. Quando descer de novo, presumindo que ainda esteja lúcido, conversaremos mais.

Quatro lances acima, a escada terminava embaixo de um alçapão verde.

Puxei o cordão. A porta se abriu e uma escada de madeira caiu ruidosamente no lugar.

O ar morno que vinha de cima cheirava a mofo, madeira podre e mais alguma coisa... um cheiro que me lembrou a aula de biologia. Répteis. O cheiro de serpentes.

Prendi a respiração e subi.

O sótão estava atulhado de sucata de heróis gregos: suportes de armaduras cobertos de teias de aranha; escudos outrora brilhantes cheios de adesivos dizendo ÍTACA, ILHA DE CIRCE e TERRA DAS AMAZONAS. Sobre uma mesa comprida estavam amontoados potes de vidro cheios de coisas em conserva — garras peludas decepadas, enormes olhos amarelos e diversas outras partes de monstros. Um troféu empoeirado na parede parecia ser uma cabeça de serpente gigante, mas com chifres e uma arcada completa de dentes de tubarão. Uma placa dizia: CABEÇA N. 1 DA HIDRA, WOODSTOCK, N.Y., 1969.

Junto à janela, sentado em uma banqueta de madeira com três pernas, estava o suvenir mais pavoroso de todos: uma múmia. Não do tipo enfaixada em panos, mas um corpo humano feminino, ressecado até ficar só a casca. Usava um vestido de verão estampado em batique, com uma porção de colares de contas e uma bandana por cima de longos cabelos pretos. A pele do rosto era fina e parecia couro por cima do crânio, e os olhos eram fendas brancas vítreas, como se os olhos de verdade tivessem sido substituídos por bolas de gude; devia estar morta fazia muito, muito tempo.

Olhar para ela me deu arrepios nas costas. E isso foi antes de ela se endireitar na banqueta e abrir a boca. Uma névoa verde jorrou da garganta da múmia, serpenteando pelo chão em anéis grossos, sibilando como vinte mil cobras. Tropecei em mim mesmo tentando chegar até o alçapão, mas ele se fechou com uma batida. Dentro da minha cabeça, ouvi uma voz, deslizando por um ouvido e se enroscando por meu cérebro: Eu sou o espírito de Delfos, porta-voz das profecias de Febo Apolo, assassino da poderosa Píton. Aproxime-se, você que busca, e pergunte.

Eu quis dizer: Não, obrigado, porta errada, só estava procurando o banheiro. Mas me forcei a respirar fundo.

A múmia não estava viva. Era algum tipo de receptáculo horripilante para uma outra coisa, o poder que girava em espiral à minha volta na névoa verde. Mas sua presença não parecia maligna, como a da professora demoníaca de matemática, a sra. Dodds ou a do Minotauro. Era mais como as Três Parcas que eu tinha visto tricotando o fio de lã ao lado da banca de frutas da rodovia: antiga, poderosa e, sem dúvida, não humana. E também não parecia especialmente interessada em me matar.

Reuni coragem para perguntar:

— Qual é o meu destino?

A névoa rodopiou, mais densa, juntando-se bem na minha frente e em volta da mesa com os potes que continham partes de monstros em conserva. De repente, havia quatro homens sentados à volta da mesa, jogando cartas. Os rostos ficaram mais nítidos. Era Gabe Cheiroso e seus cupinchas.

Meus punhos se contraíram, embora eu soubesse que aquele jogo de pôquer não podia ser real. Era uma ilusão, feita de névoa.

Gabe voltou-se para mim e falou na voz rouca do Oráculo: Você irá para o oeste, e irá enfrentar o deus que se tornou desleal.

O cupincha da direita ergueu os olhos e disse com a mesma voz: Você irá encontrar o que foi roubado, e o verá devolvido em segurança.

O da esquerda colocou três fichas na mesa, depois disse: Você será traído por aquele que o chama de amigo.

Por fim Eddie, o zelador do nosso edifício, proferiu a pior sentença de todas: E, no fim, irá fracassar em salvar aquilo que mais importa.

As figuras começaram a se dissolver. De início fiquei atordoado demais para dizer alguma coisa, mas quando a névoa recuou, enrolando-se como uma enorme serpente verde e deslizando de volta para dentro da boca da múmia, eu gritei:

— Espere! O que quer dizer? Que amigo? O que não vou conseguir salvar?

A cauda da serpente de névoa desapareceu na boca da múmia. Ela se reclinou de volta contra a parede. A boca fechou-se bem apertada, como se não tivesse sido aberta em cem anos. O sótão ficou silencioso de novo, abandonado, nada além de uma sala cheia de suvenires.

Tive a sensação de que poderia ficar lá parado até juntar teias de aranha também, e não ficaria sabendo mais nada.

Minha audiência com o Oráculo estava encerrada.

— E então? — Quíron me perguntou.

Desabei em uma cadeira à mesa de pinochle.

— Ela disse que eu devia recuperar o que foi roubado.

Grover se inclinou para a frente, mascando animado os restos de uma lata de Diet Coke.

— Isso é ótimo!

— O que foi que o Oráculo disse exatamente? — pressionou Quíron. — Isso é importante.

Meus ouvidos ainda estavam tinindo com a voz reptiliana.

— Ela... ela disse que eu iria para o oeste e enfrentaria um deus que se tornou desleal. Recuperaria o que foi roubado e devolveria em segurança.

— Eu sabia — disse Grover.

Quíron não pareceu satisfeito.

— Mais alguma coisa?

Eu não queria contar a ele.

Que amigo iria me trair? Eu não tinha tantos assim.

E a última sentença — eu fracassaria em salvar o que mais importa. Que tipo de Oráculo me mandaria em uma missão e me diria, Ah, a propósito, você vai se dar mal.

Como eu poderia confessar aquilo?

— Não — falei. — Isso é tudo.

Ele estudou meu rosto.

— Muito bem, Percy. Mas saiba disto: as palavras do Oráculo frequentemente têm duplo sentido. Não se fie demais nelas. A verdade nem sempre fica clara até que os eventos aconteçam.

Tive a sensação de que ele sabia que eu estava escondendo algo ruim, e tentava fazer com que eu me sentisse melhor.

— Certo — falei, ansioso por mudar de assunto. — Então, aonde vou? Quem é esse deus no oeste?

— Ah, pense, Percy — disse Quíron. — Se Zeus e Poseidon enfraquecem um ao outro numa guerra, quem tem a ganhar com isso?

— Algum outro que queira tomar o poder? — adivinhei.

— Sim, exatamente. Alguém que guarda um ressentimento, alguém que está infeliz com a parte que lhe coube desde que o mundo foi dividido eras atrás, cujo reinado se tornará poderoso com a morte de milhões. Alguém que odeia os irmãos por forçá-lo a um juramento de não ter mais filhos, um juramento que ambos agora quebraram.

Pensei nos meus sonhos, na voz maligna que falara do fundo da terra.

— Hades.

Quíron assentiu.

— O Senhor dos Mortos é a única possibilidade.

Grover babou um pedaço de alumínio pelo canto da boca.

— Opa, espere aí. O-o quê?

— Uma das Fúrias veio atrás de Percy — lembrou Quíron. — Ela observou o rapaz até ter certeza da sua identidade, e então tentou matá-lo. As Fúrias obedecem a um só senhor: Hades.

— Sim, mas... mas Hades odeia todos os heróis — protestou Grover. — Especialmente se tiver descoberto que Percy é filho de Poseidon...

— Um cão infernal conseguiu entrar na floresta — continuou Quíron. — Eles só podem ser convocados dos Campos da Punição, e ele tinha de ser convocado por alguém de dentro do acampamento. Hades deve ter um espião aqui. Ele deve suspeitar que Poseidon tentará usar Percy para limpar seu nome. Hades gostaria muito de matar esse jovem meio-sangue antes que ele possa assumir a missão.

— Boa — murmurei. — São dois dos deuses mais importantes querendo me matar.

— Mas uma missão para... — Grover engoliu em seco. — Quer dizer, o raio-mestre não poderia estar em algum lugar como o Maine? O Maine é muito agradável nesta época do ano.

— Hades enviou um protegido para roubar o raio-mestre — insistiu Quíron. — Ele o escondeu no Mundo Inferior, sabendo muito bem que Zeus culparia Poseidon. Não pretendo entender perfeitamente os motivos do Senhor dos Mortos ou por que ele escolheu esta época para começar uma guerra, mas uma coisa é certa: Percy precisa ir ao Mundo Inferior, encontrar o raio-mestre e revelar a verdade.

Um fogo estranho queimou em meu estômago. O mais esquisito era que não se tratava de medo. Era expectativa. O desejo de vingança. Hades tentara me matar três vezes até agora, com a Fúria, o Minotauro e o cão infernal. Por sua culpa minha mãe desaparecera em um clarão. Agora ele tentava enquadrar eu e meu pai por um roubo que não tínhamos cometido.

Eu estava pronto para enfrentá-lo.

Além disso, se minha mãe estava no Mundo Inferior...

Epa, rapaz!, disse a pequena parte do meu cérebro que ainda estava lúcida. Você é um garoto. Hades é um deus.

Grover estava tremendo. Tinha começado a comer cartas de pinochle como se fossem batatinhas fritas.

O pobre sujeito precisava completar uma missão comigo para obter sua licença de buscador, o que quer que fosse isso, mas como poderia lhe pedir que participasse daquilo, principalmente sabendo que o Oráculo dissera que eu ia fracassar? Era suicídio.

— Olhe, se nós sabemos que é Hades — disse a Quíron —, por que não podemos simplesmente contar aos outros deuses? Zeus ou Poseidon poderiam descer ao Mundo Inferior e fazer rolar algumas cabeças.

— Suspeitar e saber não são o mesmo — disse Quíron. — Além disso, mesmo que suspeitem de Hades... imagino que Poseidon suspeite... os outros deuses não poderiam recuperar o raio por si mesmos. Deuses não podem entrar nos territórios um do outro a não ser que sejam convidados. Essa é outra regra muito antiga. Heróis, por outro lado, têm certos privilégios. Podem ir a qualquer lugar, desafiar qualquer um, desde que sejam corajosos e fortes o bastante para fazê-lo. Nenhum deus pode ser responsabilizado pelos atos de um herói. Por que acha que os deuses sempre agem por intermédio de seres humanos?

— Você está dizendo que estou sendo usado.

— Estou dizendo que não é por acaso que Poseidon o assumiu agora. É uma jogada muito arriscada, mas ele está em uma situação desesperadora. Precisa de você.

Meu pai precisa de mim.

As emoções giraram dentro de mim como pedaços de vidro em um caleidoscópio. Eu não sabia se sentia ressentimento, gratidão, alegria ou raiva. Poseidon me ignorara por doze anos. Agora, de repente, precisava de mim.

Olhei para Quíron.

— Você sabia o tempo todo que eu era filho de Poseidon, não é?

— Tinha minhas suspeitas. Como eu disse... também falei com o Oráculo.

Tive a sensação de que havia muita coisa que ele não estava me contando sobre sua profecia, mas percebi que não poderia me preocupar com aquilo naquela hora. Afinal, eu também estava sonegando informações.

— Então, deixe-me entender direito — falei. — Preciso ir para o Mundo Inferior e confrontar o Senhor dos Mortos.

— Confere — disse Quíron.

— Para encontrar a arma mais poderosa do universo.

— Confere.

— E levá-la de volta ao Olimpo antes do solstício de verão, daqui a dez dias.

— Isso mesmo.

Olhei para Grover, que engoliu o ás de copas.

— Cheguei a mencionar que o Maine é muito agradável nesta época do ano? — perguntou ele de um jeito cansado.

— Você não precisa ir — disse a ele. — Não posso lhe exigir isso.

— Ah... — Ele se balançou de um casco para outro. — Não... é só que os sátiros, e os lugares embaixo da terra... bem...

Ele respirou fundo, depois se pôs de pé, sacudindo os pedaços de cartas e alumínio da camiseta.

— Você salvou a minha vida, Percy. Se... se está falando sério em querer que eu vá junto, não vou deixá-lo na mão.

Fiquei tão aliviado que tive vontade de chorar, embora não achasse isso muito heroico. Grover era o único amigo que já tivera por mais que alguns meses. Não sabia muito bem o que um sátiro poderia fazer contra as forças dos mortos, mas me senti melhor sabendo que ele estaria comigo.

— Juntos até o fim, homem-bode. — Eu me virei para Quíron. — Então, para onde vamos? O Oráculo só disse para ir para oeste.

— A entrada para o Mundo Inferior fica sempre no oeste. Muda de lugar de era em era, como o Olimpo. Atualmente, é claro, fica nos Estados Unidos.

— Onde?

Quíron pareceu surpreso.

— Pensei que fosse óbvio. A entrada para o Mundo Inferior fica em Los Angeles.

— Ah — falei. — Claro. Então é só pegar um avião...

— Não! — gritou Grover. — Percy, o que está pensando? Alguma vez na vida já esteve em um avião?

Sacudi a cabeça, sem graça. Minha mãe nunca me levara para lugar algum de avião. Ela sempre dizia que não tínhamos dinheiro para isso. Além disso, os pais dela tinham morrido em um desastre de avião.

— Percy, pense — disse Quíron. — Você é filho do deus do mar. O rival mais rancoroso do seu pai é Zeus, Senhor do Céu. Sua mãe sabia muito bem que não podia confiar você a um avião. Você estaria nos domínios de Zeus. Jamais desceria com vida.

Acima de nós, relâmpagos estalaram. O trovão ribombou.

— Certo — disse eu, determinado a não olhar para a tempestade. — Então, viajarei por terra.

— Certo — disse Quíron. — Dois parceiros poderão acompanhá-lo. Grover é um. O outro já se apresentou como voluntário, se você aceitar a ajuda dela.

— Puxa — falei, fingindo surpresa. — Quem mais seria bastante estúpido para se apresentar para uma missão como essa?

O ar tremulou atrás de Quíron.

Annabeth se tornou visível, enfiando o boné dos Yankees no bolso de trás.

— Eu estava esperando há muito tempo por uma missão, cabeça de alga — disse ela. — Atena não é fã de Poseidon, mas se você vai salvar o mundo, sou a melhor pessoa para impedir que estrague tudo.

— Se é você quem diz. Tem algum plano, sabidinha?

As bochechas dela coraram.

— Você quer minha ajuda ou não?

A verdade é que eu queria. Precisava de toda a ajuda que pudesse encontrar.

— Um trio — disse eu. — Isso vai dar certo.

— Excelente — disse Quíron. — Esta tarde podemos levar vocês no máximo até o terminal de ônibus em Manhattan. Depois disso, estarão por conta própria.

Um relâmpago. A chuva desabou sobre as campinas que jamais deveriam ver um temporal violento.

— Não há tempo a perder — disse Quíron. — Acho que todos vocês devem fazer as malas.


DEZ

Eu destruo um ônibus

Não precisei de muito tempo para fazer as malas. Decidi deixar o chifre do Minotauro no meu chalé, então só restaram uma muda extra de roupas e uma escova de dentes para enfiar numa mochila que Grover encontrara para mim.

A loja do acampamento me emprestou cem dólares em dinheiro mortal e vinte dracmas de ouro. Essas moedas eram grandes como um biscoito gigante, tinham imagens de diversos deuses gregos estampadas de um lado e o Edifício Empire State do outro. Os dracmas dos mortais antigos eram de prata, Quíron nos contou, mas os olimpianos nunca usavam nada menos que ouro puro. Quíron disse que as moedas poderiam vir a calhar para transações não mortais — o que quer que isso significasse. Ele deu a Annabeth e a mim um cantil de néctar e um saco hermético cheio de quadradinhos de ambrosia, para usar somente em emergências, se fôssemos gravemente feridos. Aquilo era o alimento dos deuses, Quíron lembrou. Iria nos curar de qualquer ferimento, mas era letal para mortais. Em excesso, poderia deixar um meio-sangue com muita, muita febre. Uma overdose nos faria pegar fogo, literalmente.

Annabeth carregava seu boné mágico dos Yankees, que era, ela me contou, um presente da mãe pelo seu décimo segundo aniversário. Ela levou um livro sobre a famosa arquitetura clássica, escrito em grego antigo, para ler quando estivesse entediada, e carregava uma comprida faca de bronze escondida na manga da camisa. Eu tinha certeza de que a faca ia nos causar problemas na primeira vez em que passássemos por um detector de metais.

Grover estava com seus pés falsos e calças para passar por humano. Usava uma touca verde estilo rastafári, porque, quando chovia, seu cabelo encaracolado se achatava, deixando aparecer a ponta dos chifres. Sua mochila berrante, alaranjada, estava cheia de sucata de metal e maçãs para o lanche. Em seu bolso havia um conjunto de flautas de bambu que o papai-bode esculpira para ele, muito embora ele só conhecesse duas músicas: o Concerto para Piano n. 12, de Mozart, e So Yesterday, de Hilary Duff, e ambas soassem muito mal em flautas de bambu.

Acenamos em despedida para os outros campistas, demos uma última olhada para os campos de morangos, o oceano e a Casa Grande, depois subimos a Colina Meio-Sangue até o alto pinheiro que outrora fora Thalia, filha de Zeus.

Quíron nos esperava em sua cadeira de rodas. Ao lado dele estava o surfista que eu tinha visto quando me recuperava no quarto de doente. De acordo com Grover, o cara era chefe de segurança do acampamento. Supostamente, tinha olhos espalhados pelo corpo inteiro para jamais ser pego de surpresa. Naquele dia, no entanto, usava uniforme de chofer, então só pude ver os olhos extras das mãos, do rosto e do pescoço.

— Este é Argos — disse Quíron. — Vai levar vocês de carro até a cidade e, ahn, bem, ficar de olho em tudo.

Ouvi passos atrás de nós.

Luke veio correndo colina acima, carregando um par de tênis de basquete.

— Ei! — ofegou ele. — Ainda bem que alcancei vocês.

Annabeth corou, como sempre acontecia quando Luke estava por perto.

— Só queria desejar boa sorte — disse ele para mim. — E pensei... ahn, quem sabe você poderia usar isso.

Ele me entregou os tênis, que pareciam bastante normais. Tinham até cheiro de normais.

Luke disse:

— Maia!

Asas brancas de ave brotaram dos calcanhares, deixando-me tão surpreso que os deixei cair. Os tênis bateram as asas no chão até que estas se dobraram e desapareceram.

— Impressionante! — disse Grover.

Luke sorriu.

— Ajudaram muito quando eu estava na minha missão. Presente do papai. É claro, eu não os uso muito hoje em dia... — Sua expressão tornou-se triste.

Eu não sabia o que dizer. Já era bem legal o fato de Luke ter ido se despedir. Tinha receio de que ele estivesse magoado comigo por ter ganho tanta atenção nos últimos dias. Mas ali estava ele, com um presente mágico... Aquilo me fez corar quase tanto quanto Annabeth.

— Ei, cara, obrigado.

— Escute, Percy... — Luke pareceu sem graça. — Todos esperam muito de você. Então, apenas... mate alguns monstros por mim, o.k.?

Trocamos um aperto de mãos. Luke afagou a cabeça de Grover entre os chifres e depois deu um grande abraço em Annabeth, que pareceu que ia desmaiar.

Depois que Luke se foi, eu disse a ela:

— Você está com a respiração acelerada.

— Não estou, não.

— Você o deixou capturar a bandeira em seu lugar, não foi?

— Ai... por que mesmo eu quero ir a algum lugar com você, Percy?

Ela desceu batendo os pés para outro lado da colina, onde um utilitário esportivo branco esperava no acostamento da estrada. Argos a seguiu, balançando as chaves do carro.

Peguei os tênis voadores e tive uma súbita sensação ruim. Olhei para Quíron.

— Eu não vou poder usar isso, não é?

Ele sacudiu a cabeça.

— A intenção de Luke foi boa, Percy. Mas subir para o ar... não seria muito inteligente de sua parte.

Eu assenti, desapontado, mas então tive uma ideia.

— Ei, Grover. Você quer um apetrecho mágico?

Seus olhos se iluminaram.

— Eu?

Rapidamente, amarramos os tênis por cima dos seus falsos pés, e o primeiro menino-bode voador do mundo estava pronto para o lançamento.

— Maia! — bradou.

Ele se ergueu do chão muito bem, mas então tombou de lado e sua mochila arrastou-se pela grama. Os tênis alados ficaram corcoveando para o alto e para baixo como minúsculos cavalos selvagens.

— Prática — gritou Quíron para ele. — Você só precisa de prática!

— Aaaaaa! — Grover saiu voando de lado colina abaixo, como um cortador de grama ensandecido, em direção à van.

Antes que eu pudesse segui-lo, Quíron segurou meu braço.

— Eu devia tê-lo treinado melhor, Percy — disse ele. — Se ao menos tivesse tido mais tempo. Hércules, Jasão... todos receberam mais treinamento.

— Tudo bem. Só queria...

Eu me interrompi pois estava prestes a soar como uma criança mimada. Queria que meu pai tivesse me dado uma coisa mágica legal para ajudar na missão, algo tão bom quanto os tênis voadores de Luke ou o boné invisível de Annabeth.

— Onde estou com a cabeça? — exclamou Quíron. — Não posso deixar você ir embora sem isto.

Ele puxou uma caneta do bolso do casaco e me entregou. Era uma esferográfica descartável comum, tinta preta, tampa removível. Custava provavelmente trinta centavos.

— Puxa — disse eu. — Obrigado.

— Percy, isto foi um presente de seu pai. Guardei durante anos, sem saber que era você que eu estava esperando. Mas a profecia agora está clara para mim. Você é o escolhido.

Lembrei-me da excursão ao Metropolitan Museum of Art, quando reduzi a pó a sra. Dodds. Quíron me jogara uma caneta que se transformou em espada. Será que aquilo era...?

Tirei a tampa, e a caneta ficou mais comprida e pesada em minha mão. Em meio segundo eu estava segurando uma reluzente espada de bronze com lâmina de fio duplo, cabo envolvido em couro e uma guarda chata rebitada com pinos de ouro. Era a primeira arma que realmente parecia equilibrada em minha mão.

— A espada tem uma história longa e trágica, sobre a qual não precisamos falar — contou-me Quíron. — Seu nome é Anaklusmos.

— Contracorrente — traduzi, surpreso que o grego antigo me tenha vindo tão fácil.

— Só a use para emergências — disse Quíron, e apenas contra monstros. Nenhum herói deve ferir mortais, só se for absolutamente necessário, é claro, mas esta espada não os feriria em nenhum caso.

Olhei para a lâmina cruelmente afiada.

— Como assim, não feriria mortais? Como ela pode não ferir?

— A espada é de bronze celestial. Forjada pelos Ciclopes, temperada no coração do monte Etna, resfriada no rio Lete. É mortífera para monstros, para qualquer criatura do Mundo Inferior, desde que não matem você primeiro. Mas a lâmina passará através de mortais como uma ilusão. Eles não são bastante importantes para serem mortos pela lâmina. E devo avisá-lo: como um semideus, você pode ser morto tanto por armas celestiais quanto por armas normais. Você é duas vezes mais vulnerável.

— Bom saber.

— Agora recoloque a tampa na caneta.

Encostei a tampa da caneta na ponta da espada e instantaneamente Contracorrente encolheu e se transformou de novo em uma esferográfica. Enfiei-a no bolso um pouco nervoso, porque na escola tinha a fama de perder canetas.

— Não há risco — disse Quíron.

— De quê?

— De perder a caneta — disse ele. — É encantada. Sempre vai reaparecer no seu bolso. Experimente.

Eu estava desconfiado, mas atirei a caneta o mais longe que pude colina abaixo e a vi desaparecer na grama.

— Pode levar alguns instantes — disse Quíron. — Agora verifique o bolso.

Sem dúvida, a caneta estava lá.

— Certo, isso é muito legal — admiti. — Mas e se um mortal me vir puxando uma espada?

Quíron sorriu.

— A Névoa é algo poderoso, Percy.

— A Névoa?

— Sim. Leia a Ilíada. Está cheia de referências a isso. Sempre que elementos divinos ou monstruosos se misturam com o mundo mortal, eles geram a Névoa, que tolda a visão dos seres humanos. Você verá as coisas exatamente como são, sendo um meio-sangue, mas os seres humanos interpretarão tudo de modo muito diferente. É realmente incrível até que ponto os seres humanos podem ir para adaptar as situações à sua concepção de realidade.

Pus Contracorrente de volta no bolso.

Pela primeira vez, senti a missão como algo real. Eu estava de fato deixando a Colina Meio-Sangue. Estava indo para oeste sem nenhuma supervisão de adulto, sem um plano B, nem mesmo um telefone celular. (Quíron disse que os telefones podiam ser rastreados por monstros; se usasse um, seria pior do que lançar um foguete de sinalização.) Eu não tinha nenhuma arma mais poderosa do que uma espada para combater monstros e chegar à Terra dos Mortos.

— Quíron... — falei. — Quando você diz que os deuses são imortais... quer dizer, havia um tempo antes deles, certo?

— Quatro eras antes deles, na verdade. O Tempo dos Titãs foi a Quarta Era, às vezes chamada de Era de Ouro, o que sem dúvida é um nome impróprio. Esta época, a época da civilização ocidental e reinado de Zeus, é a Quinta Era.

— Então como era... antes dos deuses?

Quíron contraiu os lábios.

— Nem mesmo eu sou bastante velho para me lembrar disso, criança, mas sei que era um tempo de trevas e selvageria para os mortais. Cronos, o Senhor dos Titãs, chamou seu reinado de Era de Ouro porque os homens viviam em inocência e livres de todo o conhecimento. Mas isso era mera propaganda. O rei Titã não se importava nada com sua espécie a não ser para servir de aperitivo, ou como fonte de entretenimento. Foi só no início do reinado do Senhor Zeus, quando Prometeu, o bom Titã, trouxe o fogo para a humanidade, que sua espécie começou a evoluir, e mesmo então Prometeu foi estigmatizado como pensador radical. Zeus o castigou severamente, como você deve lembrar. É claro, por fim os deuses se interessaram pelos seres humanos, e nasceu a civilização ocidental.

— Mas agora os deuses não podem morrer, certo? Quero dizer, enquanto a civilização ocidental estiver viva, eles estarão vivos. Assim... mesmo se eu fracassar, nada pode acontecer de tão ruim a ponto de estragar tudo, certo?

Quíron me deu um sorriso melancólico.

— Ninguém sabe quanto tempo a Era do Ocidente irá durar, Percy. Os deuses são imortais, sim. Mas os Titãs também eram imortais. Eles ainda existem, trancados em suas várias prisões, forçados a suportar dores e castigos infinitos, com o poder reduzido, mas ainda muito vivos. Que as Parcas não permitam que os deuses sofram tal maldição, ou que retornemos às trevas e ao caos do passado. Tudo o que podemos fazer, criança, é seguir nosso destino.

— Nosso destino... presumindo que saibamos qual é.

— Relaxe — disse-me Quíron. — Mantenha as ideias no lugar. E lembre-se, você pode estar a ponto de evitar a maior guerra da história humana.

— Relaxe — disse eu. — Estou muito relaxado.

Quando cheguei ao pé da colina, olhei para trás. Sob o pinheiro que outrora era Thalia, filha de Zeus, Quíron estava em plena forma de homem-cavalo, segurando no alto seu arco em saudação. Uma típica despedida do acampamento de verão pelo seu típico centauro.

Argos nos levou para fora da zona rural em direção ao oeste de Long Island. Era esquisito estar novamente em uma autoestrada, com Annabeth e Grover sentados ao meu lado como se fôssemos caronas normais. Depois de duas semanas na Colina Meio-Sangue, o mundo real parecia uma fantasia. Surpreendi-me olhando para cada McDonald’s, cada criança no banco traseiro do carro dos pais, cada cartaz e cada shopping center.

— Até agora, tudo bem — disse a Annabeth. — Quinze quilômetros e nem um único monstro.

Ela me lançou um olhar irritado.

— Falar desse jeito traz má sorte, cabeça de alga.

— Ajude-me a lembrar: por que você me odeia tanto?

— Eu não odeio você.

— Posso estar enganado.

Ela dobrou o boné de invisibilidade.

— Olhe... é só que não deveríamos nos dar bem, o.k.? Nossos pais são rivais.

— Por quê?

Ela suspirou.

— Quantas razões você quer? Uma vez minha mãe pegou Poseidon com a namorada dele no templo de Atena, o que é superdesrespeitoso. Outra vez, Atena e Poseidon competiram para ser o deus patrono da cidade de Atenas. Seu pai criou uma estúpida fonte de água salgada como presente. Minha mãe criou a oliveira. As pessoas viram que o presente dela era melhor, portanto deram à cidade o nome dela.

— Elas realmente devem gostar de azeitonas.

— Ah, deixa pra lá.

— Agora, se ela tivesse inventado a pizza... isso eu poderia entender.

— Eu disse: deixa pra lá.

No assento dianteiro, Argos sorriu. Ele não disse nada, mas um olho azul na sua nuca piscou para mim.

O trânsito ficou lento no Queens. Quando nós chegamos a Manhattan já era pôr do sol e começava a chover.

Argos nos largou na Estação Greyhound no Upper East Side, não longe do apartamento de minha mãe e Gabe. Em uma caixa de correio, preso com fita adesiva, havia um folheto encharcado com meu retrato: VOCÊ VIU ESTE MENINO?

Eu o arranquei antes que Annabeth e Grover pudessem vê-lo.

Argos descarregou nossas malas, certificou-se de que havíamos conseguido as passagens de ônibus e então foi embora, o olho nas costas de sua mão se abrindo para nos observar enquanto tirava o carro do estacionamento.

Pensei em como estava perto do meu velho apartamento. Em um dia normal, minha mãe estaria chegando em casa da doceria mais ou menos naquela hora. Gabe Cheiroso provavelmente estava lá, jogando pôquer, sem nem sentir a falta dela.

Grover pôs sua mochila nos ombros. Olhou rua abaixo, na direção em que eu estava olhando.

— Quer saber por que ela se casou com ele, Percy?

Olhei para ele.

— Você está lendo a minha mente ou coisa assim?

— Só as suas emoções. — Ele encolheu os ombros. — Acho que me esqueci de contar que os sátiros podem fazer isso. Você estava pensando na sua mãe e no seu padrasto, certo?

Eu assenti, me perguntando o que mais Grover teria esquecido de contar.

— Sua mãe se casou com Gabe por você — Grover me contou. — Você o chama de “Cheiroso”, mas não tem ideia. O cara tem essa aura... Eca, eu posso sentir o cheiro dele daqui. Posso sentir vestígios do cheiro dele em você, e já faz uma semana que você esteve perto dele.

— Obrigado — falei. — Onde fica o chuveiro mais próximo?

— Você devia ser grato, Percy. Seu padrasto tem um cheiro tão repulsivamente humano que pode mascarar a presença de qualquer semideus. Assim que inalei o ar dentro do seu Camaro, eu soube: Gabe esteve encobrindo seu cheiro por anos. Se você não tivesse morado com ele durante todos os verões, provavelmente teria sido encontrado por monstros muito tempo atrás. Sua mãe ficou com ele para proteger você. Era uma senhora esperta. Devia amar muito você para aturar aquele cara... se é que isso o faz se sentir melhor.

Não fazia, mas me forcei para não demonstrar. Eu a verei de novo, pensei. Ela não se foi.

Fiquei imaginando se Grover ainda podia ler as minhas emoções, confusas como estavam. Estava grato por ele e Annabeth estarem comigo, mas me sentia culpado porque não fora sincero com eles. Não lhes contara a verdadeira razão de ter dito sim para aquela missão maluca.

A verdade era que eu não me importava em recuperar o relâmpago de Zeus, em salvar o mundo ou mesmo em ajudar meu pai a sair da encrenca. Quanto mais pensava nisso, mais me ressentia de Poseidon por nunca ter me visitado, nunca ter ajudado minha mãe, nunca ter sequer mandado uma droga de cheque de pensão alimentícia. Ele só me reconhecera porque tinha um serviço a ser feito.

Eu só me preocupava com minha mãe. Hades a levara injustamente, e Hades iria devolvê-la.

Você será traído por aquele que o chama de amigo, sussurrou o Oráculo em minha mente. E, no fim, irá fracassar em salvar aquilo que mais importa.

Cale a boca, respondi.

A chuva continuava caindo.

Ficamos impacientes esperando o ônibus e decidimos brincar de footbag com uma das maçãs de Grover. Annabeth foi incrível. Ela era capaz de arremeter a maçã com o joelho, com o cotovelo, com o ombro, ou o que fosse. Eu mesmo não era de todo ruim.

O jogo terminou quando arremessei a maçã para Grover e ela chegou perto demais da sua boca. Em uma megamordida de bode, nossa footbag desapareceu — miolo, pedúnculo e tudo.

Grover enrubesceu. Ele tentou se desculpar, mas Annabeth e eu estávamos muito ocupados dando risada.

Finalmente o ônibus chegou. Enquanto estávamos na fila para embarcar, Grover começou a olhar em volta, farejando o ar do jeito como farejava seu lanche favorito na cantina da escola — enchiladas.

— O que foi? — perguntei.

— Não sei — disse ele, tenso. — Talvez não seja nada.

Mas eu podia perceber que era alguma coisa. Também comecei a olhar para trás por cima do ombro.

Fiquei aliviado quando afinal embarcamos e encontramos lugar juntos na parte de trás do ônibus. Guardamos nossas mochilas. Annabeth batia nervosamente seu boné dos Yankees na coxa.

Quando os últimos passageiros subiram, Annabeth apertou com força o meu joelho. “Percy.”

Uma senhora acabava de embarcar no ônibus. Usava vestido de veludo amarrotado, luvas de renda e chapéu laranja, tricotado e disforme, que encobria seu rosto, e carregava uma grande bolsa de lã estampada. Quando ergueu a cabeça seus olhos pretos faiscaram, e meu coração deu um pulo.

Era a sra. Dodds. Mais velha, mais enrugada, mas sem dúvida a mesma cara maligna.

Eu me encolhi no assento.

Atrás dela subiram mais duas senhoras: uma de chapéu verde, outra de chapéu roxo. A não ser por isso, eram parecidíssimas com a sra. Dodds — as mesmas mãos encarquilhadas, as mesmas bolsas de lã, os mesmos vestidos de veludo enrugados. Um trio de avós demoníacas.

Elas se sentaram na fileira da frente, logo atrás do motorista. As duas no corredor cruzaram as pernas bem na passagem, formando um X. Aquilo era bastante normal, mas enviava uma mensagem clara: ninguém sai.

O ônibus partiu da estação e seguimos pelas ruas escorregadias de Manhattan.

— Ela não ficou morta muito tempo — disse eu, tentando impedir minha voz de tremer. — Achei que você tivesse dito que eles podem ser afastados por toda uma vida.

— Eu disse, se você tiver sorte — disse Annabeth. — Você obviamente não tem.

— Todas as três — choramingou Grover. — Di immortales!

— Está tudo bem — disse Annabeth, obviamente se empenhando em pensar. — As Fúrias. Os três piores monstros do Mundo Inferior. Sem problemas. Sem problemas. Vamos simplesmente saltar pelas janelas.

— Não abrem — gemeu Grover.

— Uma saída nos fundos? — sugeriu ela.

Não havia nenhuma. E, mesmo que houvesse, não teria ajudado. Àquela altura, estávamos na Nona Avenida, em direção ao Túnel Lincoln.

— Elas não vão nos atacar com testemunhas em volta — disse eu. — Ou vão?

— Os mortais não têm bons olhos — lembrou-me Annabeth. — Seus cérebros só podem processar o que eles veem através da Névoa.

— Eles vão ver três velhas nos matando, não vão?

Ela pensou a respeito.

— Difícil dizer. Mas não podemos contar com a ajuda de mortais. Talvez uma saída de emergência no teto...?

Chegamos ao Túnel Lincoln, e o ônibus ficou às escuras a não ser pelas luzes do corredor. Estava assustadoramente silencioso sem o ruído da chuva.

A sra. Dodds se levantou. Com uma voz inexpressiva, como se tivesse ensaiado aquilo, ela anunciou para o ônibus inteiro:

— Preciso usar o toalete.

— Eu também — disse a segunda irmã.

— Eu também — disse a terceira irmã.

Todas elas começaram a se aproximar pelo corredor.

— Já sei — disse Annabeth. — Percy, pegue meu chapéu.

— O quê?

— É você que elas querem. Fique invisível e siga pelo corredor. Deixe que elas passem por você. Talvez você possa chegar até a frente e escapar.

— Mas vocês...

— Há uma pequena possibilidade de que elas não reparem em nós — disse Annabeth. — Você é filho de um dos Três Grandes. Seu cheiro deve encobrir o nosso.

— Não posso abandonar vocês.

— Não se preocupe conosco — disse Grover. — Vá!

Minhas mãos tremiam. Eu me senti um covarde, mas peguei o boné dos Yankees e pus na cabeça.

Quando olhei para baixo, meu corpo não estava mais ali.

Comecei a me esgueirar pelo corredor. Consegui passar dez fileiras, depois me esquivei para um assento vazio bem quando as Fúrias passaram.

A sra. Dodds parou, farejando, e olhou diretamente para mim. Meu coração estava disparado.

Parecia não ter visto nada. Ela e as irmãs continuaram andando.

Eu estava livre. Cheguei até a frente do ônibus. Já estávamos quase saindo do Túnel Lincoln. Estava a ponto de apertar o botão de parada de emergência quando ouvi lamentos abomináveis vindos da fileira do fundo.

As velhas não eram mais velhas. Os rostos ainda eram os mesmos — acho que seria impossível ficarem mais feios —, mas os corpos haviam murchado e tinham o aspecto de um couro marrom sobre formas de bruxas, com asas de morcego e mãos e pés como garras de gárgula. As bolsas viraram chicotes chamejantes.

As Fúrias cercaram Grover e Annabeth estalando os chicotes e sibilando:

— Onde está? Onde?

As outras pessoas no ônibus estavam gritando, escondendo-se em seus bancos. Certo, elas viram alguma coisa.

— Ele não está aqui! — gritou Annabeth. — Saiu!

As Fúrias ergueram os chicotes.

Annabeth sacou a faca de bronze. Grover agarrou uma lata da sua sacola de lanches e se preparou para jogá-la.

O que eu fiz a seguir foi tão impulsivo e perigoso que eu merecia ser o rei do transtorno do déficit de atenção do ano.

O motorista do ônibus estava distraído, tentando enxergar o que estava acontecendo pelo espelho retrovisor.

Ainda invisível, agarrei o volante e dei um tranco para a esquerda. Todos gritaram ao serem jogados para a direita, e ouvi o que esperava ser o som das três Fúrias esmagadas contra as janelas.

— Ei! — gritou o motorista. — Ei! Oaaa!

Ele lutou para segurar o volante. O ônibus chocou-se com a lateral do túnel, o metal arrastado pela parede lançando fagulhas um quilômetro atrás de nós.

Saímos de lado do túnel, de volta à tempestade, com pessoas e monstros arremessados de um canto a outro do ônibus e carros jogados de lado como se fossem pinos de boliche.

De algum modo o motorista achou uma saída. Arremessamo-nos para fora da autoestrada, passamos meia dúzia de semáforos e acabamos disparando por uma daquelas estradas rurais de New Jersey, nas quais não dá para acreditar que exista tanto nada do outro lado do rio quando se deixa Nova York. Havia bosques à nossa esquerda e o rio Hudson à direita, e o motorista parecia se desviar na direção do rio.

Outra grande ideia: aperto o freio de emergência.

O ônibus gemeu, traçou um círculo completo sobre o asfalto molhado e se chocou contra as árvores. As luzes de emergência se acenderam. A porta se abriu. O motorista foi o primeiro a sair, com os passageiros gritando enquanto fugiam em pânico atrás dele. Subi no assento do motorista e deixei-os passar.

As Fúrias retomaram o equilíbrio. Estalaram os chicotes para Annabeth enquanto ela brandia a faca e gritava em grego antigo que recuassem. Grover atirava latas.

Olhei para a porta aberta. Eu estava livre para partir, mas não podia abandonar meus amigos. Tirei o boné invisível.

— Ei!

As Fúrias se viraram, mostrando as presas amareladas para mim, e a saída de repente me pareceu uma excelente ideia. A sra. Dodds avançou de modo arrogante pelo corredor, como costumava fazer em classe, pronta para entregar meu F na prova de matemática. Cada vez que ela estalava o chicote, chamas vermelhas dançavam pelo couro farpado.

Suas duas irmãs horrorosas pularam para cima dos assentos de ambos os lados e se arrastaram na minha direção como dois lagartos enormes e asquerosos.

— Perseu Jackson — disse a sra. Dodds com um sotaque que vinha de algum lugar mais distante do que o sul da Geórgia. — Você ofendeu os deuses. Você deve morrer.

— Eu gostava mais de você como professora de matemática — falei.

Ela rosnou.

Annabeth e Grover se aproximavam com cautela por trás das Fúrias, procurando uma passagem.

Tirei a esferográfica do bolso e a destampei. Contracorrente se alongou e virou uma reluzente espada de fio duplo.

As Fúrias hesitaram.

A sra. Dodds já havia sentido a lâmina de Contracorrente antes. Obviamente não gostou de vê-la de novo.

— Renda-se agora — sibilou. — E não sofrerá o tormento eterno.

— Boa tentativa — disse a ela.

— Percy, cuidado! — gritou Annabeth.

A sra. Dodds lançou seu chicote em volta da mão com a qual eu segurava a espada, enquanto as Fúrias em cada lado pularam em cima de mim.

Era como se minha mão estivesse envolta em chumbo derretido, mas consegui não soltar Contracorrente. Atingi a Fúria da esquerda com o cabo e a mandei cambaleando de costas para a poltrona. Virei e fiz um corte na Fúria da direita. Assim que a lâmina entrou em contato com o pescoço dela, ela gritou e explodiu em pó. Annabeth agarrou a sra. Dodds em um golpe de luta e a atirou para trás, enquanto Grover arrancava o chicote de suas mãos.

— Ai! — gritou ele. — Ai! Quente! Quente!

A Fúria que eu havia atingido com o cabo da espada veio de novo para cima de mim, garras à mostra, mas desferi um golpe com Contracorrente e ela estourou como um saco cheio de bolinhas de isopor.

A sra. Dodds estava tentando tirar Annabeth das costas. Ela esperneou, arranhou, sibilou e mordeu, mas Annabeth se agarrou firme enquanto Grover amarrava suas pernas com seu próprio chicote. Depois os dois a empurraram de costas para o corredor. A sra. Dodds tentou se erguer, mas não havia espaço para ela bater as asas de morcego, portanto continuou caindo.

— Zeus o destruirá! — prometeu ela. — Hades terá a sua alma!

— Braccas meas vescimini! — gritei.

Eu não sabia muito bem de onde viera o latim. Acho que queria dizer: “Coma as minhas calças!”

Um trovão sacudiu o ônibus. Os cabelos se eriçaram na minha nuca.

— Fora! — gritou Annabeth para mim. — Agora!

Não era necessário.

Corremos para fora e encontramos os outros passageiros andando de um lado para o outro, atordoados, discutindo com o motorista ou correndo em círculos e gritando: “Nós vamos morrer!” Um turista de camisa com estampa havaiana e uma câmera bateu uma foto minha antes que eu pudesse pôr a tampa na minha espada.

— Nossas malas! — Grover se deu conta. — Nós deixamos nossas...

BUUUUUUUM!

As janelas do ônibus explodiram enquanto os passageiros corriam para se abrigar. Um relâmpago rasgara uma enorme cratera no teto, mas um lamento furioso lá dentro me disse que a sra. Dodds ainda não estava morta.

— Corram! — disse Annabeth. — Ela está chamando reforços! Temos de sair daqui!

Mergulhamos para dentro dos bosques enquanto a chuva despencava torrencialmente, com o ônibus em chamas atrás de nós e nada à frente a não ser trevas.


ONZE

Nossa visita ao Empório de Anões de Jardim

De certo modo, é bom saber que há deuses gregos lá fora, porque aí temos alguém para culpar quando as coisas dão errado. Por exemplo, quando você está se afastando a pé de um ônibus que acaba de ser atacado por bruxas monstruosas e explodido por um relâmpago, e ainda por cima está chovendo, a maioria das pessoas acha que na verdade isso é apenas muita falta de sorte — quando se é um meio-sangue, a gente sabe que alguma força divina está tentando estragar o nosso dia.

Então lá estávamos nós, Annabeth, Grover e eu, andando pelos bosques ao longo da margem do rio, em New Jersey, as luzes de Nova York tornando o céu amarelo atrás de nós e o fedor do rio Hudson entrando por nosso nariz.

Grover estava tremendo e balindo, e seus grandes olhos de bode, cujas pupilas haviam se transformado em fendas, estavam cheios de terror.

— Três Benevolentes. As três de uma vez.

Eu mesmo estava em estado de choque. A explosão das janelas do ônibus ainda ecoava em meus ouvidos. Mas Annabeth nos fazia seguir, dizendo:

— Vamos! Quanto mais longe chegarmos, melhor.

— Todo o nosso dinheiro ficou lá atrás — lembrei. — Nossa comida e nossas roupas. Tudo.

— Bem, quem sabe se você não tivesse decidido entrar na briga...

— O que queria que eu fizesse? Deixasse vocês serem mortos?

— Você não precisava me proteger, Percy. Eu ia ficar bem.

— Fatiada como pão de forma — interveio Grover —, mas bem.

— Cale a boca, garoto-bode — disse Annabeth.

Grover baliu, triste.

— As latas... Uma sacola de latas perfeitamente boa.

Nós chapinhamos pelas terras lamacentas, por entre horríveis árvores retorcidas que tinham um cheiro azedo de roupa suja.

Depois de alguns minutos, Annabeth veio para o meu lado.

— Olhe, eu... — sua voz vacilou. — Eu gostei de você ter voltado para nos defender, o.k.? Aquilo foi realmente corajoso.

— Somos uma equipe, certo?

Ela ficou em silêncio por mais alguns passos.

— É só que, se você morresse... além do fato de que seria realmente uma droga para você, isso significaria o fim da missão. Esta pode ser minha única chance de ver o mundo real.

A tempestade havia finalmente acalmado. As luzes da cidade diminuíram atrás de nós, deixando-nos em uma escuridão quase total. Não conseguia ver nada de Annabeth a não ser um reflexo de seu cabelo loiro.

— Você não sai do Acampamento Meio-Sangue desde que tinha sete anos? — perguntei-lhe.

— Não... apenas excursões rápidas. Meu pai...

— O professor de história.

— É. Não deu certo morar em casa. Quer dizer, o Acampamento Meio-Sangue é a minha casa. — Ela agora estava despejando as palavras como se tivesse medo de que alguém a interrompesse. — No acampamento a gente treina, treina. E é legal e tudo mais, mas o mundo real é onde os monstros estão. É onde a gente descobre se serve para alguma coisa ou não.

Se não a conhecesse bem, poderia ter jurado que ouvi dúvida em sua voz.

— Você é muito boa com aquela faca — falei.

— Você acha?

— Qualquer um que seja capaz de montar nas costas de uma Fúria, para mim, é muito bom.

Não pude ver direito, mas acho que ela deu um sorrisinho.

— Sabe — disse ela —, talvez eu deva lhe contar... Uma coisa engraçada lá no ônibus...

O que quer que ela quisesse dizer foi interrompido por um piado estridente, como o som de uma coruja sendo torturada.

— Ei, as minhas flautas de bambu ainda funcionam! — exclamou Grover. — Se ao menos eu pudesse me lembrar de uma melodia de “achar caminho”, poderíamos sair desses bosques!

Ele soprou algumas notas, mas a semelhança da melodia com a de Hilary Duff ainda era questionável.

Em vez de achar um caminho, imediatamente colidi com uma árvore e arranjei um galo de bom tamanho na cabeça.

Adicionar à lista de superpoderes que eu não tenho: visão infravermelha.

Depois de tropeçar, praguejar e, de modo geral, me sentir infeliz por mais um quilômetro ou algo assim, comecei a ver luzes à frente: as cores de um letreiro de neon. Senti cheiro de comida. Comida frita, gordurosa, excelente. Percebi que não havia comido nada que não fosse saudável desde que chegara à Colina Meio-Sangue, onde vivíamos de uvas, pão, queijo e churrasco light preparado por ninfas. O garoto aqui precisava de um cheeseburger duplo.

Continuamos andando até que vi por entre as árvores uma estrada deserta de duas pistas. Do outro lado havia um posto de gasolina fechado, um cartaz de um filme dos anos 90 e uma loja aberta, que era a fonte da luz de neon e do cheiro gostoso.

Não era um restaurante de fast-food como eu esperava. Era uma dessas estranhas lojas de curiosidades de beira de estrada, que vendem flamingos de jardim, índios de madeira, ursos-pardos de cimento e coisas do gênero. A construção principal era um armazém comprido e baixo, cercado por quilômetros de estátuas. O letreiro de neon acima do portão era para mim impossível de ler, pois, se existe coisa pior para a minha dislexia do que inglês normal, é inglês em letras cursivas, vermelhas, em neon.

Para mim, parecia MEOPRÓI ED NESÕA ED JIDARN AD IAT MEE.

— Que diabo quer dizer aquilo? — perguntei.

— Não sei — disse Annabeth.

Ela gostava tanto de ler que eu esquecera que ela também era disléxica.

Grover traduziu:

— Empório de Anões de Jardim da Tia Eme.

Nas laterais da entrada, conforme anunciado, havia dois anões de jardim de cimento, uns nanicos feios e barbados, sorrindo e acenando como se estivessem posando para uma fotografia.

Atravessei a rua, seguindo o cheiro dos hambúrgueres.

— Ei... — avisou Grover.

— As luzes estão acesas lá dentro — disse Annabeth. — Talvez esteja aberto.

— Lanchonete — falei, ansioso.

— Lanchonete — concordou ela.

— Vocês dois estão loucos? — disse Grover. — Este lugar é esquisito.

Nós o ignoramos.

O terreno da frente era uma floresta de estátuas: animais de cimento, crianças de cimento, até um sátiro de cimento tocando as flautas, o que deixou Grover arrepiado.

— Béééé! — baliu. — Parece meu tio Ferdinando!

Paramos diante da porta do armazém.

— Não bata — implorou Grover. — Sinto cheiro de monstros.

— Seu nariz está congestionado com as Fúrias — disse-lhe Annabeth. — O único cheiro que estou sentindo é de hambúrgueres. Você não está com fome?

— Carne! — disse ele, desdenhoso. — Sou vegetariano.

— Você come enchiladas de queijo e latas de alumínio — lembrei-o.

— São vegetais. Venham, vamos embora. Essas estátuas estão... olhando para mim.

Então a porta se abriu rangendo, e diante de nós estava uma mulher alta, do Oriente Médio — eu pelo menos presumi que fosse de lá, porque usava um longo vestido preto que escondia tudo menos as mãos, e sua cabeça estava totalmente coberta por um véu. Seus olhos brilhavam embaixo de uma cortina de gaze preta, mas isso foi tudo o que pude distinguir. As mãos cor de café pareciam velhas, mas bem cuidadas e elegantes, portanto imaginei que se tratasse de uma avó que fora outrora uma bonita dama.

O sotaque dela também tinha um quê do Oriente Médio. Ela disse:

— Crianças, já é muito tarde para estarem sozinhas na rua. Onde estão seus pais?

— Eles estão... ahn... — Annabeth começou a dizer.

— Nós somos órfãos — falei.

— Órfãos? — disse a mulher. A palavra soou estranha em sua boca. — Mas meus queridos! Certamente não!

— Nós nos perdemos da caravana — disse eu. — A caravana do nosso circo. O mestre de cerimônias nos disse para encontrá-lo no posto de gasolina se nos perdêssemos, mas ele pode ter esquecido, ou talvez se referisse a outro posto de gasolina. De qualquer modo, estamos perdidos. Esse cheiro é de comida?

— Ah, meus queridos — disse a mulher. — Vocês precisam entrar, pobres crianças. Eu sou a tia Eme. Vão direto para os fundos do armazém, por favor. Ali há um lugar para refeições.

Agradecemos e entramos.

Annabeth murmurou para mim:

— Caravana do circo?

— Sempre há uma estratégia, certo?

— Sua cabeça está cheia de algas.

O armazém era abarrotado de mais estátuas — pessoas, todas em poses diferentes, usando roupas diferentes e com expressões diferentes no rosto. Fiquei imaginando que era preciso ter um jardim bem grande para alojar ainda que uma única estátua daquelas, porque eram todas em tamanho natural. Mas eu estava mesmo era pensando em comida.

Vá em frente, pode me chamar de idiota por ir entrando na loja de uma senhora estranha como aquela só porque estava com fome, mas às vezes faço as coisas por impulso. Além disso, você nunca sentiu o cheiro dos hambúrgueres da tia Eme. O aroma era como gás hilariante na cadeira do dentista — fazia sumir todo o resto. Mal reparei nos soluços nervosos de Grover, nem no modo como os olhos das estátuas pareciam me seguir ou no fato de que a tia Eme trancara a porta atrás de nós.

Tudo o que me preocupava era achar o lugar das refeições. E, sem dúvida, lá estava, no fundo do armazém, um balcão de sanduíches com uma grelha, uma máquina de refrigerantes, uma estufa de pretzels e uma máquina de queijo nacho. Tudo o que poderíamos querer, mais algumas mesas de piquenique de aço na frente.

— Por favor, sentem-se — disse a tia Eme.

— Fantástico — comentei.

— Hum — disse Grover com relutância —, não temos nenhum dinheiro, senhora.

Antes que eu pudesse dar uma cotovelada nas costelas dele, a tia Eme disse:

— Não, não, crianças. Nada de dinheiro. Esse é um caso especial, certo? Para órfãos tão simpáticos, é por minha conta.

— Obrigada, senhora — disse Annabeth.

Tia Eme enrijeceu-se, como se Annabeth tivesse dito algo de errado, mas depois, com a mesma rapidez, relaxou. Portanto achei que estivesse imaginando coisas.

— Não tem de quê, Annabeth. Você tem uns olhos cinzentos tão bonitos, criança. — Só depois me perguntei como ela sabia o nome de Annabeth, já que não tínhamos nos apresentado.

Nossa anfitriã desapareceu atrás do balcão e começou a cozinhar. Antes que eu me desse conta, ela nos tinha trazido bandejas de plástico com cheeseburgers duplos, milk-shakes de baunilha e porções gigantes de batatas fritas.

Eu já tinha comido metade do meu sanduíche quando me lembrei de respirar.

Annabeth sorveu ruidosamente seu milk-shake.

Grover beliscou as batatas fritas e olhou para o papel-toalha da bandeja como quem poderia experimentar aquilo, mas ainda parecia nervoso demais para comer.

— O que é esse chiado? — perguntou ele.

Prestei atenção, mas não ouvi nada. Annabeth sacudiu a cabeça.

— Chiado? — perguntou tia Eme. — Talvez você esteja ouvindo o óleo de fritura. Você tem bons ouvidos, Grover.

— Eu tomo vitaminas. Para os ouvidos.

— Admirável — disse ela. — Mas, por favor, relaxe.

Tia Eme não comeu nada. Ela não descobrira a cabeça nem para cozinhar, e agora estava sentada com os dedos entrelaçados, observando enquanto comíamos. Era um pouco incômodo ser observado por alguém cujo rosto eu não conseguia ver, mas me sentia satisfeito depois do sanduíche, e um pouco sonolento, e imaginei que o mínimo que podia fazer era puxar um pouco de conversa com nossa anfitriã.

— Então, você vende anões — falei, tentando parecer interessado.

— Ah, sim — disse tia Eme. — E animais. E pessoas. Tudo para o jardim. Sob encomenda. As estátuas são muito populares, sabe.

— Muito movimento nesta estrada?

— Não, nem tanto. Desde que a autoestrada foi construída... a maioria dos carros já não passa por este caminho. Preciso cuidar bem de cada cliente que recebo.

Senti um formigamento na nuca, como se alguém estivesse me observando. Virei-me, mas era apenas a estátua de uma garotinha segurando uma cesta de Páscoa. Os detalhes eram incríveis, muito melhores que os vistos na maioria das estátuas de jardim. Mas havia algo de errado com seu rosto. Ela parecia assustada, até apavorada.

— Ah! — disse tia Eme com tristeza. — Você pode notar que algumas das minhas criações não dão muito certo. Elas são defeituosas. Não vendem. O rosto é a parte mais difícil de sair perfeito. Sempre o rosto.

— Você mesma faz estas estátuas? — perguntei.

— Ah, sim. Já tive duas irmãs para me ajudar no negócio, mas elas faleceram, e a tia Eme ficou sozinha. Só tenho as minhas estátuas. É por isso que as faço, sabe? São minha companhia. — A tristeza na voz dela parecia tão profunda e tão real que não pude deixar de sentir pena.

Annabeth tinha parado de comer. Ela se inclinou e disse:

— Duas irmãs?

— É uma história terrível — disse Tia Eme. — Não é para crianças, na verdade. Veja, Annabeth, uma mulher má estava com inveja de mim, muito tempo atrás, quando eu era jovem. Eu tinha um... um namorado, sabe, e essa mulher má estava determinada a nos separar. Ela provocou um acidente terrível. Minhas irmãs ficaram do meu lado. Compartilharam a minha má sorte enquanto foi possível, mas por fim morreram. Elas se esvaíram. Só eu sobrevivi, mas a um preço. Que preço.

Não entendi muito bem o que ela queria dizer, mas senti pena. Minhas pálpebras estavam cada vez mais pesadas, o estômago cheio me deixara sonolento. Coitada da velha senhora. Quem ia querer fazer mal a alguém tão gentil?

— Percy? — Annabeth me sacudia para chamar minha atenção. — Acho que devemos ir. Quer dizer, o mestre de cerimônias do circo deve estar esperando.

A voz dela pareceu tensa. Eu não sabia muito bem por quê. Grover estava comendo o papel encerado da bandeja, mas se tia Eme estranhou aquilo, não disse nada.

— Que olhos cinzentos bonitos — disse ela, outra vez, para Annabeth. — Ah, mas faz muito tempo que não vejo olhos cinzentos como esses.

Ela estendeu o braço como se fosse acariciar o rosto de Annabeth, mas Annabeth se levantou abruptamente.

— Precisamos mesmo ir.

— Sim! — Grover engoliu o papel encerado e pôs-se de pé. — O mestre de cerimônias está esperando! Isso!

Eu não queria ir. Estava satisfeito e contente. Tia Eme era muito gentil. Queria ficar um pouco com ela.

— Por favor, queridos — implorou a tia Eme. — É tão raro eu estar com crianças... Antes de ir, não gostariam pelo menos de posar para uma foto?

— Uma foto? — perguntou Annabeth com cautela.

— Sim, uma fotografia. Vou usá-la como modelo para um novo conjunto de estátuas. Crianças são muito populares, sabem? Todo o mundo ama crianças.

Annabeth se balançou de um pé para o outro.

— Acho que não podemos, senhora. Vamos, Percy...

— Claro que podemos — disse eu. Estava irritado com Annabeth por ser tão mandona, tão mal-educada com uma velha senhora que acabara de nos dar comida de graça. — É só uma foto, Annabeth. Qual é o problema?

— Sim, Annabeth — a mulher murmurou. — Não há mal nenhum.

Percebi que Annabeth não tinha gostado, mas deixou que tia Eme nos levasse para fora pela porta da frente, para o jardim de estátuas.

Tia Eme nos conduziu até um banco de jardim perto do sátiro de pedra.

— Agora — disse ela — vou posicionar vocês corretamente. A mocinha no meio, acho, e os dois jovens cavalheiros em cada lado.

— Não há muita luz para uma foto — observei.

— Ah, é o suficiente — disse tia Eme. — Suficiente para enxergarmos um ao outro, não é?

— Onde está sua câmera? — perguntou Grover.

Tia Eme deu um passo atrás, como que para admirar a foto.

— Agora, o rosto é o mais difícil. Vocês podem sorrir para mim, por favor, todo mundo? Um grande sorriso?

Grover deu uma olhada para o sátiro de cimento a seu lado e murmurou:

— Parece mesmo com o tio Ferdinando.

— Grover! — ralhou tia Eme. — Olhe para este lado, querido.

Ela ainda não tinha nenhuma câmera nas mãos.

— Percy... — disse Annabeth.

Algum instinto me advertiu a dar ouvidos a Annabeth, mas eu estava lutando contra a sensação de sono, a agradável moleza induzida pela comida e pela voz da velha senhora.

— Não vai demorar nem um segundo — disse tia Eme. — Sabe, não consigo vê-los muito bem por causa deste maldito véu...

— Percy, alguma coisa está errada — insistiu Annabeth.

— Errada? — disse tia Eme, erguendo as mãos para remover o véu em volta da cabeça. — De modo algum, querida. Estou em tão nobre companhia esta noite. O que poderia estar errado?

— Aquele é o tio Ferdinando! — disse Grover, arfando.

— Não olhem para ela! — gritou Annabeth. Num piscar de olhos, ela enfiou o boné dos Yankees na cabeça e desapareceu. Suas mãos invisíveis empurraram Grover e eu para fora do banco.

Eu me vi caído no chão, olhando para as sandálias nos pés de tia Eme.

Pude ouvir Grover correndo para um lado e Annabeth para outro. Mas eu estava aturdido demais para me mexer.

Então ouvi um som estranho, um chiado, acima de mim. Meus olhos se ergueram para as mãos de tia Eme, que se tornaram enrugadas e cheias de verrugas, com afiadas garras de bronze no lugar das unhas.

Quase olhei mais para o alto, mas em algum lugar à minha esquerda Annabeth gritou:

— Não! Não olhe!

Mais chiados — o som de pequenas serpentes, logo acima de mim, que vinham de... de onde deveria estar a cabeça da tia Eme.

— Corra! — baliu Grover.

Ouvi-o correndo pelos pedregulhos, gritando “Maia! ” para dar partida em seus tênis voadores. Eu não conseguia me mexer. Fiquei olhando fixamente para as garras encarquilhadas de tia Eme, e tentei lutar contra o transe entorpecedor em que a velha me pusera.

— Que pena ter de destruir um jovem rosto tão bonito — disse-me em tom confortador. — Fique comigo, Percy. Tudo o que tem a fazer é olhar para cima.

Combati o ímpeto de obedecer. Em vez disso, olhei para o lado e vi uma daquelas bolas de vidro que as pessoas põem nos jardins — uma esfera espelhada. Pude ver o reflexo escuro de tia Eme no vidro alaranjado; seu véu se fora, revelando o rosto como um círculo pálido tremeluzente. Os cabelos se mexiam, se contorcendo como serpentes.

Tia Eme.

Tia “M”.

Como pude ser tão estúpido?

Pense, disse a mim mesmo. Como foi que a Medusa morreu no mito?

Mas eu não conseguia pensar. Algo me dizia que a Medusa do mito estava dormindo quando foi atacada por meu xará, Perseu. Agora, não estava nem um pouco sonolenta. Se quisesse, poderia usar aquelas garras ali mesmo e rasgar meu rosto.

— A dos Olhos Cinzentos fez isso comigo, Percy — disse a Medusa, ela não soava como um monstro. Sua voz me convidava a olhar para cima, a simpatizar com a pobre vovó velhinha. — A mãe de Annabeth, a maldita Atena, transformou a bela mulher que eu era nisto aqui.

— Não dê ouvidos a ela! — gritou a voz de Annabeth, de algum lugar entre as estátuas. — Corra, Percy!

— Silêncio! — rosnou a Medusa. Depois sua voz voltou a ser um murmurar tranquilizante. — Você está vendo por que preciso destruir a menina, Percy. Ela é filha de minha inimiga. Vou esmagar sua estátua até virar pó. Mas você, querido, você não precisa sofrer.

— Não — murmurei. Tentei fazer minhas pernas se mexerem.

— Você quer mesmo ajudar os deuses? — perguntou a Medusa. — Entende o que o espera nessa missão boba, Percy? O que acontecerá se chegar ao Mundo Inferior? Não seja um peão dos olimpianos, meu querido. Você estará melhor como estátua. Menos dor. Menos dor.

— Percy!

Atrás de mim, ouvi um zumbido, como o de um beija-flor de cem quilos dando um mergulho. Grover gritou:

— Abaixe-se!

Eu me virei, e lá estava ele, Grover, no céu noturno, vindo bem na minha frente, com os tênis voadores batendo as asas, segurando um galho de árvore do tamanho de um bastão de beisebol. Seus olhos estavam fechados com força, a cabeça se agitando de um lado para outro. Guiava-se só com os ouvidos e o nariz.

— Abaixe-se! — gritou ele de novo. — Vou pegá-la!

Aquilo por fim me acordou para a ação. Conhecendo Grover, tinha certeza de que ele ia errar a Medusa e me acertar. Mergulhei para um lado.

Plaft!

De início pensei que fosse o som de Grover atingindo uma árvore. Então a Medusa rugiu de raiva.

— Seu sátiro miserável — rosnou. — Vou acrescentá-lo à minha coleção!

— Essa foi pelo tio Ferdinando! — gritou Grover de volta.

Saí correndo aos tropeções e me escondi entre as estátuas enquanto Grover mergulhava para mais um ataque.

Pimba!

— Aaargh! — berrou a Medusa, as serpentes do cabelo sibilando e cuspindo.

Bem ao meu lado, a voz de Annabeth disse:

— Percy!

Pulei tão alto que meus pés quase derrubaram um anão de jardim.

— Ai! Não faça isso!

Annabeth tirou o boné dos Yankees e se tornou visível.

— Você tem de cortar a cabeça dela.

— O quê? Está louca? Vamos dar o fora daqui.

— A Medusa é uma ameaça. Ela é má. Eu mesma a mataria, mas... — Annabeth engoliu em seco, como se estivesse prestes a admitir algo difícil. — Mas você tem a melhor arma. Além disso, nunca vou conseguir chegar perto dela. Ela me faria em pedacinhos por causa de minha mãe. Você... você tem uma chance.

— O quê? Eu não posso...

— Olhe, você quer que ela transforme mais gente inocente em estátua?

Ela apontou para as estátuas de um casal apaixonado, um homem e uma mulher abraçados, transformados em pedra pelo monstro.

Annabeth agarrou uma esfera espelhada verde de um pedestal próximo.

— Um escudo espelhado seria melhor. — Ela estudou a esfera com um ar crítico. — A convexidade causará uma certa distorção. O tamanho do reflexo estará distorcido por um fator de...

— Quer falar numa língua que eu entenda?

— Estou falando! — Ela me jogou a bola de vidro. — Só olhe para a Medusa pelo espelho. Nunca olhe diretamente para ela.

— Ei, gente! — gritou Grover em algum lugar acima de nós. — Acho que ela está inconsciente!

— Grrraaaurrr!

— Talvez não — corrigiu ele. E mergulhou para mais um ataque.

— Depressa — disse Annabeth para mim. — Grover tem um excelente nariz, mas vai acabar caindo.

Peguei minha caneta e tirei a tampa. A lâmina de bronze de Contracorrente se alongou em minha mão.

Segui os sons de silvos e cuspidas do cabelo da Medusa.

Mantive os olhos cravados na esfera espelhada para ver somente o reflexo do monstro, e não a coisa real. Então, no vidro tingido de verde, eu a enxerguei.

Grover vinha descendo para mais um assalto com o bastão, mas dessa vez voou um pouco baixo demais. A Medusa agarrou o bastão e o desviou do curso. Ele deu uma cambalhota no ar e tombou nos braços de um urso-pardo de pedra com um dolorido “Uummmpff!”.

A Medusa estava a ponto de pular em cima dele quando eu gritei:

— Ei!

Avancei na direção dela, o que não foi fácil, segurando uma espada e uma bola de vidro. Se a Medusa atacasse, seria difícil me defender.

Mas ela deixou que eu me aproximasse — seis metros, três metros.

Agora era possível ver o reflexo de seu rosto. Certamente não era assim tão feio. As curvas verdes da bola espelhada deviam estar distorcendo a imagem, tornando-a ainda pior.

— Você não machucaria uma velhinha, Percy — sussurrou ela. — Sei que não faria isso.

Hesitei, fascinado pelo rosto que vi refletido no vidro — os olhos que pareciam arder refletidos no tom esverdeado, fazendo meus braços fraquejarem.

De cima do urso-pardo de cimento, Grover gemeu:

— Percy, não lhe dê ouvidos!

A Medusa gargalhou.

— Tarde demais.

Ela se lançou até mim com suas garras.

Dei um golpe com a espada, ouvi um plof! nauseante, e então um chiado como o de vento escapando de uma caverna — o som de um monstro se desintegrando.

Algo caiu no chão ao lado do meu pé. Precisei reunir toda a minha força de vontade para não olhar. Pude sentir uma secreção morna empapando minha meia e pequenas serpentes agonizantes puxando os cadarços dos meus sapatos.

— Ah, eca! — disse Grover. Seus olhos ainda estavam bem fechados, mas imagino que conseguisse ouvir aquilo gorgolejando e fumegando. — Megaeca.

Annabeth se aproximou de mim, os olhos fixos no céu. Estava segurando o véu preto da Medusa.

— Não se mova — disse ela.

Com muito, muito cuidado, sem olhar para baixo, ajoelhou-se e embrulhou a cabeça do monstro no pano preto, depois a ergueu. Ainda estava pingando um suco verde.

— Tudo bem com você? — perguntou-me com a voz trêmula.

— Sim — concluí, embora sentisse vontade de vomitar meu cheeseburger duplo. — Por que... por que a cabeça não evaporou?

— Depois que você a decepa, ela se torna um troféu de guerra — disse ela. — Como o chifre do Minotauro. Mas não a desembrulhe. Ainda pode petrificá-lo.

Grover gemeu enquanto descia da estátua do urso-pardo. Estava com um grande vergão na testa. O boné rastafári verde estava pendurado em um dos pequenos chifres de bode e os pés falsos haviam sido arrancados dos cascos. Os tênis mágicos voavam sem rumo em volta de sua cabeça.

— Nosso grande aviador — disse eu. — Bom trabalho, cara.

Ele conseguiu dar um sorriso envergonhado.

— Se bem que, na verdade, não foi nada divertido. Bem, a parte de acertá-la com o pau, isso foi bom. Mas me arrebentar contra um urso de concreto? Nada divertido.

Ele agarrou os tênis no ar. Eu pus a tampa em minha espada. Juntos, nós três voltamos cambaleando para o armazém.

Encontramos alguns sacos plásticos velhos atrás do balcão de lanches e embrulhamos duas vezes a cabeça da Medusa. Com um plop, largamos a coisa em cima da mesa onde havíamos jantado e nos sentamos em volta, exaustos demais para falar.

Por fim eu disse:

— Então temos de agradecer a Atena por esse monstro?

Annabeth me lançou um olhar irritado.

— A seu pai, na verdade. Medusa era namorada de Poseidon. Eles combinaram um encontro no templo de minha mãe. Foi por isso que Atena a transformou em um monstro. A Medusa e suas duas irmãs, que a ajudaram a entrar no templo, se transformaram nas três Górgonas. É por isso que ela queria me picar em pedacinhos, mas ia conservar você como uma bela estátua. Ainda gosta de seu pai. Você deve tê-la feito se lembrar dele.

Meu rosto estava ardendo.

— Ah, então a culpa de termos encontrado a Medusa é minha?

Annabeth endireitou o corpo. Em uma péssima imitação de minha voz, disse:

— “É só uma foto, Annabeth. Qual é o problema?”

— Deixa para lá — falei. — Você é impossível.

— Você é insuportável.

— Você é...

— Ei! — Interrompeu Grover. — Vocês dois estão me dando enxaqueca. E sátiros nem têm enxaqueca. O que vamos fazer com a cabeça?

Eu olhei para aquilo. Uma pequena serpente estava pendurada para fora de um buraco no plástico. As palavras impressas no saco diziam: AGRADECEMOS SUA VISITA!

Eu estava zangado, não só com Annabeth ou a mãe dela, mas com todos os deuses por causa daquela missão, por nos terem tirado da estrada e pelas duas grandes batalhas logo no primeiro dia fora do acampamento. Nesse ritmo, jamais chegaríamos vivos a Los Angeles, muito menos antes do solstício de verão.

O que a Medusa tinha dito? Não seja um peão dos olimpianos, meu querido. Você estará melhor como estátua.

Eu me levantei.

— Volto já.

— Percy — chamou Annabeth. — O que você...

Vasculhei os fundos do armazém até encontrar o escritório da Medusa. Seu livro-caixa mostrava as seis vendas mais recentes, todas remessas para o Mundo Inferior para decorar o jardim de Hades e Perséfone. De acordo com uma nota de embarque, o endereço de cobrança do Mundo Inferior era Estúdios de Gravação M.A.C. — Morto ao Chegar —, West Hollywood, Califórnia. Dobrei a nota e a enfiei no bolso.

Na caixa registradora encontrei vinte dólares, uns dracmas de ouro e algumas guias de remessa do Expresso Noturno de Hermes, cada qual com uma pequena bolsa de couro anexa, para moedas. Vasculhei o restante do escritório até encontrar uma caixa do tamanho certo.

Voltei para a mesa de piquenique, encaixotei a cabeça da Medusa e preenchi uma guia de remessa:


— Eles não vão gostar disso — advertiu Grover. — Vão achá-lo impertinente.

Coloquei alguns dracmas de ouro na bolsa anexa. Assim que a fechei, veio um som como o de uma caixa registradora. O pacote flutuou para fora da mesa e desapareceu com um pop!

— Eu sou impertinente — disse.

Olhei para Annabeth, desafiando-a a me criticar.

Ela não criticou. Parecia resignada com o fato de eu ter um talento especial para chatear os deuses.

— Vamos — murmurou ela. — Precisamos de um novo plano.


DOZE

Um poodle é o nosso conselheiro

Estávamos nos sentindo superinfelizes naquela noite.

Acampamos no bosque, a cem metros da estrada principal, em uma clareira pantanosa que as crianças do lugar obviamente vinham usando para festas. O chão estava repleto de latas de refrigerante amassadas e embalagens de fast-food.

Tínhamos pego um pouco de comida e cobertores da tia Eme, mas não ousamos acender uma fogueira para secar nossas roupas molhadas. As Fúrias e a Medusa já haviam proporcionado animação suficiente para um dia. Não queríamos atrair mais nada.

Decidimos dormir em turnos. Prontifiquei-me a ser o primeiro a ficar de guarda.

Annabeth enroscou-se sobre os cobertores e já estava roncando quando sua cabeça tocou o chão. Grover subiu com seus tênis voadores para o galho mais baixo de uma árvore, encostou-se no tronco e ficou olhando para o céu da noite.

— Vá em frente e durma — disse a ele. — Acordo você se houver problemas.

Ele assentiu, mas ainda assim não fechou os olhos.

— Isso me deixa triste, Percy.

— O quê? Ter se juntado a essa missão estúpida?

— Não. Isso me deixa triste. — Ele apontou para todo aquele lixo no chão. — E o céu. Não dá nem para ver as estrelas. Eles poluíram o céu. Esta é uma época terrível para ser um sátiro.

— Ah, sim. Acho que você seria um ambientalista.

Ele me lançou um olhar penetrante.

— Só um ser humano não seria. Sua espécie está entulhando o mundo tão depressa que... Ora, não importa. É inútil fazer sermões para um ser humano. Do jeito que as coisas vão, nunca encontrarei Pã.

— Que Pã?

— Pã! — bradou, indignado. — P-Ã. O grande deus Pã! Acha que eu quero uma licença de buscador para quê?

Uma brisa estranha fez farfalhar a clareira, encobrindo por um momento o fedor de lixo e putrefação. Trazia o cheiro de frutas e flores selvagens, e de água limpa de chuva, coisas que devem ter existido algum dia naqueles bosques. De repente, senti saudades de algo que jamais conhecera.

— Fale-me sobre a busca — disse eu.

Grover olhou para mim com receio, como se temesse que eu estivesse apenas me divertindo à custa dele.

— O deus dos lugares selvagens desapareceu há dois mil anos — contou. — Um marinheiro vindo da costa de Éfeso ouviu uma voz misteriosa gritando na praia: “Conte a eles que o grande deus Pã morreu!” Quando os seres humanos ouviram a notícia, acreditaram. Estão pilhando o reino de Pã desde então. Mas, para os sátiros, Pã era o nosso senhor e mestre. Era nosso protetor, e também dos lugares selvagens da Terra. Não acreditamos que tenha morrido. A cada geração, os sátiros mais valentes empenham a vida para encontrar Pã. Eles esquadrinham o planeta, explorando todos os locais mais selvagens à espera de encontrar o lugar onde ele se esconde e despertá-lo de seu sono.

— E você quer ser um buscador.

— É o sonho da minha vida — disse ele. — Meu pai era um buscador. E meu tio Ferdinando... a estátua que você viu lá...

— Ah, certo, desculpe.

Grover sacudiu a cabeça.

— Tio Ferdinando sabia dos riscos. Meu pai também. Mas eu terei sucesso. Serei o primeiro buscador a retornar com vida.

— Espere... o primeiro?

Grover tirou suas flautas de bambu do bolso.

— Nenhum buscador jamais voltou. Depois que partem, eles desaparecem. Nunca mais são vistos vivos de novo.

— Nem uma vez em dois mil anos?

— Não.

— E seu pai? Você não tem ideia do que aconteceu com ele?

— Nenhuma.

— Mas ainda assim quer ir — falei, admirado. — Quer dizer, você realmente acha que será você quem vai encontrar Pã?

— Preciso acreditar nisso, Percy. Todo buscador acredita. É a única coisa que nos impede de ficar desesperados quando olhamos para o que os seres humanos fizeram com o mundo. Tenho de acreditar que Pã ainda pode ser despertado.

Olhei para o nevoeiro alaranjado do céu e tentei entender como Grover podia perseguir um sonho que parecia tão impossível. Mas, por outro lado, será que eu era melhor?

— Como vamos entrar no Mundo Inferior? — perguntei. — Quer dizer, que chances temos contra um deus?

— Eu não sei — admitiu ele. — Mas antes, na casa da Medusa, quando você estava vasculhando o escritório dela, Annabeth me disse...

— Ah, esqueci. Annabeth sempre tem um plano todo esquematizado.

— Não seja tão duro com ela, Percy. Annabeth teve uma vida difícil, mas é boa pessoa. Afinal, ela me perdoou... — ele se interrompeu.

— O que quer dizer? — perguntei. — Perdoou o quê?

De repente, Grover pareceu muito interessado em tirar notas das suas flautas.

— Espere um minuto — disse eu. — Seu primeiro trabalho de guardião foi cinco anos atrás. Annabeth está no acampamento há cinco anos. Ela não era... quer dizer, a sua primeira tarefa que deu errado...

— Não posso falar sobre isso — disse Grover, e o tremor em seu lábio inferior me sugeriu que ele começaria a chorar se eu o pressionasse. — Mas como eu estava dizendo, lá na casa da Medusa Annabeth e eu achamos que há algo de estranho com esta missão. Algo que não é o que parece.

— Ah, novidade. Estou sendo acusado de roubar um relâmpago que foi Hades quem pegou.

— Não me refiro a isso. As Fú... as Benevolentes pareciam estar se segurando. Como a sra. Dodds na Academia Yancy... por que ela esperou tanto tempo para tentar matá-lo? Depois, no ônibus, elas não foram tão agressivas quanto poderiam.

— Elas me pareceram bastante agressivas.

Grover sacudiu a cabeça.

— Estavam guinchando para nós: “Onde está? Onde?”

— Perguntavam sobre mim — falei.

— Talvez... mas tanto eu como Annabeth tivemos a sensação de que não estavam perguntando sobre uma pessoa. Elas perguntaram apenas “Onde está?”, e não onde ele ou ela está. Pareciam falar de um objeto.

— Isso não faz sentido.

— Eu sei. Mas, se tivermos entendido mal alguma coisa a respeito desta missão, e só temos nove dias para encontrar o raio-mestre... — Ele olhou para mim como se estivesse esperando por respostas, mas eu não tinha nenhuma.

Pensei no que a Medusa dissera: eu estava sendo usado pelos deuses. O que me aguardava era pior que a petrificação.

— Não fui sincero com você — contei a Grover. — Eu não me importo com o raio-mestre. Concordei em ir para o Mundo Inferior para poder trazer de volta a minha mãe.

Grover soprou uma nota suave nas suas flautas.

— Eu sei, Percy. Mas você tem certeza de que esse é o único motivo?

— Não estou fazendo isso para ajudar meu pai. Ele não se importa comigo. Eu não me importo com ele.

Do seu galho, Grover olhou atentamente para baixo.

— Olhe, Percy. Não sou tão esperto quanto Annabeth. Não sou tão valente quanto você. Mas sou muito bom em ler emoções. Você está contente porque seu pai está vivo. Sente-se bem pelo fato de ele o ter assumido como filho, e parte de você quer que ele fique orgulhoso. Foi por isso que você despachou a cabeça da Medusa para o Olimpo. Você queria que ele visse o que você fez.

— É mesmo? Bem, talvez as emoções dos sátiros funcionem de um jeito diferente das emoções humanas. Porque você está errado. Não me importo com o que ele pensa.

Grover puxou os pés para cima do galho.

— Certo, Percy. Tanto faz.

— Além disso, não fiz nada demais para me vangloriar. Mal saímos de Nova York e já estamos aqui encalhados sem dinheiro e sem ter como ir para o oeste.

Grover olhou para o céu noturno, como se estivesse pensando no problema.

— Que tal eu ficar com o primeiro turno, heim? Vá dormir um pouco.

Eu quis protestar, mas ele começou a tocar Mozart, suave e doce, e eu me virei para o outro lado, os olhos ardendo. Depois de alguns compassos do Concerto para Piano n. 12 eu estava dormindo.

Em meus sonhos, eu estava em uma caverna escura à beira de um enorme abismo. Criaturas cinzentas de névoa se revolviam à minha volta, sussurrando tiras de fumaça que eu, de algum modo, sabia que eram os espíritos dos mortos.

Eles puxavam as minhas roupas, tentando me empurrar de volta, mas eu me sentia compelido a andar para a frente, para a beira.

Olhar para baixo me dava vertigens.

O abismo se abria tão voraz e tão largo, e era tão completamente negro, que eu sabia que não devia ter fundo. Contudo tinha a sensação de que algo tentava emergir dali, algo enorme e maligno.

O pequeno herói, ressoou uma voz em deleite, vinda lá de baixo, das trevas. Fraco demais, jovem demais, mas talvez você sirva.

A voz parecia ancestral — fria e pesada. Envolveu-me como lençóis de chumbo.

Eles o enganaram, menino, disse ela. Faça comigo uma troca. Eu lhe darei o que quer.

Uma imagem tremeluzente pairou acima do vazio: minha mãe, congelada no momento em que se dissolveu em uma chuva de ouro. Seu rosto estava distorcido de dor, como se o Minotauro ainda apertasse seu pescoço. Os olhos me encaravam, implorando: Vá!

Tentei gritar, mas minha voz não saiu.

De dentro do abismo, um riso frio ecoou.

Uma força invisível me puxou para a frente. Ia me arrastar para o precipício se eu não aguentasse firme.

Ajude-me a subir, menino. A voz ficou mais ávida. Traga-me o raio. Desfira um golpe contra os deuses traiçoeiros!

Os espíritos dos mortos sussurravam à minha volta: Não! Acorde!

A imagem da minha mãe começou a sumir. A coisa no abismo apertou sua garra invisível em volta de mim.

Percebi que ela não queria me puxar para dentro. Estava me usando para erguer-se para fora.

Bom, a coisa murmurou. Bom.

Acorde!, sussurraram os mortos. Acorde!

Alguém estava me sacudindo.

Meus olhos se abriram, e era dia.

— Ah! — disse Annabeth. — O zumbi volta à vida.

Eu tremia por causa do sonho. Ainda podia sentir o aperto do monstro do abismo em volta do meu peito.

— Quanto tempo estive dormindo?

— O suficiente para eu preparar o café da manhã — Annabeth me jogou um saco de flocos de milho sabor nacho, da lanchonete da tia Eme. — E para Grover sair e explorar. Olhe, ele encontrou um amigo.

Tive dificuldade em focalizar o olhar.

Grover estava sentado de pernas cruzadas em um cobertor com alguma coisa felpuda no colo, um bicho de pelúcia sujo e de um cor-de-rosa artificial.

Não. Aquilo não era um animal de pelúcia. Era um poodle cor-de-rosa.

O poodle latiu para mim, desconfiado. Grover disse:

— Não, ele não é.

Eu pisquei.

— Você está... falando com essa coisa?

O poodle rosnou.

— Esta coisa — avisou Grover — é nossa passagem para o oeste. Seja simpático com ele.

— Você pode falar com animais?

Grover ignorou a pergunta.

— Percy, apresento-lhe Gladiola. Gladiola, Percy.

Olhei para Annabeth, calculando que ela fosse rir da peça que eles estavam me pregando, mas ela pareceu extremamente séria.

— Não vou dizer olá para um poodle cor-de-rosa — falei. — Esqueça.

— Percy — disse Annabeth —, eu disse olá para o poodle. Diga olá para o poodle.

O poodle rosnou.

Eu disse olá para o poodle.

Grover explicou que havia encontrado Gladiola no bosque e que começaram a conversar. O poodle tinha fugido de uma família endinheirada do lugar, que oferecera duzentos dólares de recompensa para quem o devolvesse. Gladiola na verdade não queria voltar para a família, mas estava disposto a fazê-lo, se isso fosse ajudar Grover.

— Como Gladiola sabe da recompensa? — perguntei.

— Ele leu os avisos — disse Grover. — Óbvio...

— É claro — retruquei. — Que bobagem a minha.

— Então nós entregamos Gladiola — explicou Annabeth, em seu melhor tom de estrategista —, recebemos o dinheiro e compramos passagens para Los Angeles. Simples.

Pensei no sonho — as vozes sussurrantes dos mortos, a coisa no abismo e o rosto de minha mãe, tremeluzindo enquanto se dissolvia em dourado. Tudo aquilo podia estar esperando por mim no oeste.

— Não em outro ônibus — disse, cauteloso.

— Não — concordou Annabeth.

Ela apontou colina abaixo, para os trilhos de trem que eu não conseguira ver na noite anterior, no escuro.

— Há uma estação da Amtrack a um quilômetro naquela direção. De acordo com Gladiola, o trem para o oeste parte ao meio-dia.


TREZE

Meu mergulho para a morte

Passamos dois dias no trem, rumo a oeste pelas colinas, por cima de rios, atravessando ondas de trigo cor de âmbar.

Não fomos atacados nem uma vez, mas não relaxei. Sentia que estávamos viajando em uma vitrine, sendo observados de cima e, talvez de baixo, que alguma coisa estava aguardando o momento certo.

Tentei ser discreto, pois meu nome e fotografia estavam estampados nas primeiras páginas de vários jornais da Costa Leste. O Trenton Register-News publicou uma foto tirada por um turista quando desci do ônibus da Greyhound. Estava com uma expressão ensandecida nos olhos. Minha espada era um borrão metálico em minhas mãos. Poderia ser um taco de beisebol ou de lacrosse.

A legenda da foto dizia:

Percy Jackson, 12 anos, procurado para interrogatório sobre o desaparecimento em Long Island de sua mãe há duas semanas, aparece aqui fugindo do ônibus onde abordou diversas passageiras idosas. O ônibus explodiu no acostamento de uma rodovia a leste de New Jersey logo depois que Jackson fugiu da cena do crime. Com base em relatos de testemunhas, a polícia acredita que o menino possa estar viajando com dois cúmplices adolescentes. O padrasto, Gabe Ugliano, ofereceu uma recompensa em dinheiro para qualquer informação que leve à sua captura.

— Não se preocupe — disse-me Annabeth. — A polícia dos mortais nunca nos encontraria.

Mas não pareceu muito segura.

Passei o resto do dia alternando entre andar de uma ponta a outra do trem (pois para mim era difícil ficar sentado) e olhar pelas janelas.

Numa oportunidade avistei uma família de centauros galopando por um campo de trigo, arcos de prontidão, como se estivessem caçando o almoço. O menininho centauro, que era do tamanho de uma criança do terceiro ano montada em um pônei, percebeu que eu estava olhando e acenou. Olhei em volta no vagão de passageiros, porém mais ninguém reparou. Os passageiros adultos estavam todos com a cara enterrada em laptops ou revistas.

Em outra, mais ao anoitecer, vi algo muito grande se movendo pelo bosque. Poderia jurar que era um leão, só que não há leões vivendo soltos nos Estados Unidos, e aquilo era do tamanho de um tanque de guerra. O pelo tinha reflexos dourados à luz do entardecer. Ele então saltou por entre as árvores e desapareceu.

O dinheiro da recompensa por devolver o poodle Gladiola só foi bastante para comprar passagens até Denver. Não pudemos comprar leitos no vagão-dormitório, então cochilamos nos assentos. Meu pescoço ficou duro. Tentei não babar enquanto dormia, já que Annabeth estava sentada bem a meu lado.

Grover ficou roncando e balindo, e me acordava. Num momento ele se agitou demais e um de seus pés falsos caiu. Annabeth e eu tivemos de enfiá-lo de volta antes que algum dos outros passageiros notasse.

— E então — Annabeth me perguntou depois que recolocamos o tênis de Grover —, quem quer a sua ajuda?

— O que quer dizer?

— Quando estava dormindo agora mesmo, você murmurou “Não quero ajudar você”. Com quem estava sonhando?

Estava em dúvida sobre dizer alguma coisa. Era a segunda vez que sonhava com a voz maligna do abismo. Aquilo me incomodava tanto que, por fim, contei a ela.

Annabeth ficou em silêncio por um bom tempo.

— Não parece ser Hades. Ele sempre aparece sentado em um trono negro, e nunca ri.

— Ele ofereceu minha mãe em troca. Quem mais poderia fazer isso?

— Eu acho... se ele queria dizer “Ajude-me a subir do Mundo Inferior”... Se ele quer guerra com os olimpianos... Mas por que pedir a você o raio-mestre, se ele já o tem?

Sacudi a cabeça, desejando saber a resposta. Pensei no que Grover havia contado, que as Fúrias no ônibus pareciam estar procurando alguma coisa.

Onde está? Onde?

Talvez Grover tivesse sentido as minhas emoções. Ele bufou dormindo, resmungou algo sobre vegetais, e virou a cabeça.

Annabeth ajeitou o boné dele para cobrir os chifres.

— Percy, você não pode negociar com Hades. Sabe disso, certo? Ele é enganador, cruel e ganancioso. Não me importo se suas Benevolentes não foram tão agressivas dessa vez...

— Dessa vez? — perguntei. — Você quer dizer que já cruzou com elas antes?

A mão dela deslizou até o colar. Ela manuseou uma conta branca vitrificada, na qual estava pintada a imagem de um pinheiro, um dos seus marcos de fim de verão, em argila.

— Digamos apenas que não morro de amores pelo Senhor dos Mortos. Você não pode ficar tentado a negociar sua mãe.

— O que faria se fosse seu pai?

— Essa é fácil — disse ela. — Eu o deixaria apodrecer.

— Sério?

Os olhos cinzentos de Annabeth se fixaram em mim. Estavam com a mesma expressão que vi no bosque, no acampamento, no momento em que ela puxou a espada contra o cão infernal.

— Meu pai me detestou desde o dia em que nasci, Percy — disse ela. — Ele nunca quis um bebê. Quando me ganhou, pediu a Atena que me levasse de volta e me criasse no Olimpo, porque estava muito ocupado com seu trabalho. Ela não ficou contente com isso. Disse a ele que os heróis têm de ser criados por seu parente mortal.

— Mas como... quer dizer, você não nasceu em um hospital...

— Apareci na porta do meu pai, em um berço de ouro, trazido do Olimpo por Zéfiro, o Vento Ocidental. Daí você imaginaria que meu pai se lembrasse disso como um milagre, não é? Como se, quem sabe, tivesse feito algumas fotos digitais ou algo do tipo. Mas ele sempre falou sobre minha chegada como se fosse a coisa mais inconveniente que já lhe acontecera. Quando eu tinha cinco anos, ele se casou e esqueceu totalmente Atena. Arranjou uma esposa mortal “normal” e teve dois filhos mortais “normais”, e tentou fazer de conta que eu não existia.

Olhei pela janela do trem. As luzes de uma cidade adormecida estavam passando. Quis fazer Annabeth se sentir melhor, mas não sabia como.

— Minha mãe se casou com um cara horroroso demais — contei a ela. — Grover disse que ela fez isso para me proteger, para me esconder no cheiro de uma família humana. Quem sabe seu pai não estava pensando nisso?

Annabeth continuou focada em seu colar. Apertava o anel de formatura de ouro que estava pendurado entre as contas. Ocorreu-me que o anel devia ser do pai dela. Fiquei imaginando por que ela o usava se o odiava tanto.

— Ele não liga para mim — disse ela. — A mulher dele... minha madrasta... me tratava como uma aberração. Ela ia me deixar brincar com os filhos dela. Meu pai concordava. Sempre que acontecia alguma coisa perigosa... sabe, algo a ver com monstros... os dois me olhavam com raiva, do tipo “Como você ousa pôr nossa família em perigo”. No fim, entendi a indireta. Eu não era querida. Eu fugi.

— Que idade você tinha?

— A mesma idade com que comecei no acampamento. Sete.

— Mas... você não ia conseguir chegar até a Colina Meio-Sangue sozinha.

— Não, sozinha não. Atena me protegeu, me guiou em direção à ajuda. Fiz amigos inesperados que cuidaram de mim, bem, por pouco tempo.

Quis perguntar o que havia acontecido, mas Annabeth parecia perdida em lembranças tristes. Então ouvi o som dos roncos de Grover e fiquei olhando para fora, pelas janelas do trem, enquanto os campos escuros de Ohio iam passando.

Perto do fim do nosso segundo dia no trem, em 13 de junho, oito dias antes do solstício de verão, passamos por algumas colinas douradas e sobre o rio Mississippi, e entramos em St. Louis.

Annabeth esticou o pescoço para ver o Portal em Arco, que me pareceu uma enorme alça de sacola de compras fincada na cidade.

— Eu quero fazer aquilo — suspirou ela.

— O quê? — perguntei.

— Construir algo como aquilo. Você já viu o Partenon, Percy?

— Só em fotos.

— Algum dia eu vou vê-lo em pessoa. Vou construir o maior monumento aos deuses que já foi feito. Algo que vai durar mil anos.

Eu ri.

— Você? Uma arquiteta?

Não sei por quê, mas achei aquilo engraçado: a ideia de Annabeth tentando ficar sentada em silêncio desenhando o dia inteiro.

As bochechas dela coraram.

— Sim, uma arquiteta. Atena espera que seus filhos criem coisas, não apenas as derrubem, como um certo deus dos terremotos.

Observei as águas marrons e turbulentas do Mississippi embaixo.

— Desculpe — disse Annabeth. — Isso foi maldoso.

— Não dá para trabalharmos juntos? — implorei. — Quer dizer, Atena e Poseidon não poderiam colaborar um com o outro?

Annabeth teve de pensar a respeito.

— Eu acho... a carruagem — disse ela, hesitante. — Minha mãe a inventou, mas Poseidon criou os cavalos saídos das cristas das ondas. Então eles tiveram de trabalhar juntos para torná-la completa.

— Então nós também podemos colaborar um com o outro. Certo?

Entramos na cidade. Annabeth olhava enquanto o Arco desaparecia atrás de um hotel.

— Acho que sim — disse, afinal.

Entramos na estação da rede ferroviária no centro da cidade. O alto-falante nos avisou que teríamos uma parada de três horas antes de partir para Denver.

Grover se espreguiçou. Ainda despertando, disse:

— Comida.

— Vamos, menino-bode — disse Annabeth. — Vamos dar um passeio.

— Passeio?

— Até o Portal em Arco — disse ela. — Pode ser a minha única oportunidade de subir até o topo. Você vem ou não?

Grover e eu nos entreolhamos.

Eu queria dizer não, mas concluí que, se Annabeth ia, não poderíamos deixá-la sozinha.

Grover encolheu os ombros.

— Desde que haja uma lanchonete sem monstros.

O Arco ficava a cerca de um quilômetro e meio da estação. No fim do dia, as filas para entrar não eram tão longas. Seguimos cautelosamente pelo museu subterrâneo, olhando para vagões cobertos e outras sucatas do século XIX. Não era assim tão empolgante, mas Annabeth ia contando fatos interessantes sobre como o Arco fora construído e Grover me passava jujubas, portanto, para mim estava bom.

Mas fiquei olhando em volta, para as outras pessoas na fila.

— Está sentindo algum cheiro? — murmurei para Grover.

Ele tirou o nariz do saco de jujubas por tempo suficiente para farejar.

— Subterrâneo — disse ele enojado. — O ar embaixo da terra sempre tem cheiro de monstros. Provavelmente não quer dizer nada.

Mas eu tinha a sensação de que algo estava errado. Tinha a sensação de que não devíamos estar ali.

— Gente — disse eu —, vocês conhecem os símbolos de poder dos deuses?

Annabeth estava no meio da leitura sobre o equipamento de construção usado para erigir o Arco, mas deu uma olhada.

— Sim?

— Bem, Hades...

Grover pigarreou.

— Estamos em local público... Você quer dizer, o nosso amigo do andar de baixo?

— Ahn, certo — falei. — Nosso amigo do andar muito de baixo. Ele não tem um chapéu como o de Annabeth?

— Você quer dizer o Elmo das Trevas — disse Annabeth. — Sim, é seu símbolo de poder. Eu o vi junto ao assento dele durante a assembleia do solstício de inverno.

— Ele estava lá? — perguntei.

Ela assentiu.

— É a única ocasião em que ele tem permissão de visitar o Olimpo — o dia mais escuro do ano. Mas, se o que ouvi é verdade, o elmo é muito mais poderoso que meu boné da invisibilidade...

— Permite que ele se transforme em trevas — confirmou Grover. — Ele pode se fundir com as sombras ou passar através de paredes. Não pode ser tocado nem visto nem ouvido. E pode irradiar um medo tão intenso que é capaz de enlouquecer você, ou fazer seu coração parar de bater. Por que acha que todas as criaturas racionais têm medo de escuro?

— Mas então... como sabemos se ele não está aqui agora mesmo, nos observando? — perguntei.

Annabeth e Grover se entreolharam.

— Nós não sabemos — disse Grover.

— Obrigado, agora me sinto muito melhor — falei. — Ainda sobrou alguma jujuba azul?

Tinha quase controlado meu desespero quando vi o minúsculo elevador no qual iríamos subir até o topo do Arco, e percebi que estava encrencado. Odeio espaços confinados. Eles me deixam doido.

Fomos espremidos dentro do elevador junto com uma senhora grande e gorda e seu cão, um chihuahua com uma coleira de falsos brilhantes. Calculei que talvez chihuahua fosse um cão-guia, porque nenhum dos guardas disse uma palavra a respeito.

Começamos a subir dentro do Arco. Eu nunca havia estado em um elevador que subia em curva, e meu estômago não gostou muito.

— Sem os pais? — perguntou-nos a senhora gorda.

Tinha olhos pequenos, redondos e brilhantes; dentes pontudos e manchados de café; um chapéu mole de jeans e um vestido de jeans armado demais. Parecia um dirigível jeans.

— Eles estão lá embaixo — disse Annabeth. — Têm medo de altura.

— Ah, pobrezinhos.

O chihuahua rosnou. A mulher disse:

— Vamos, vamos, filhinho. Comporte-se. — O cão tinha olhos pequenos, redondos e brilhantes como os da dona, inteligentes e malvados.

Eu disse:

— Filhinho. É o nome dele?

— Não.

Ela falou e sorriu, como se aquilo esclarecesse tudo.

No topo do Arco, a plataforma de observação me lembrou uma lata acarpetada. Fileiras de janelinhas davam para a cidade, de um lado, e para o rio, do outro. A vista era legal, mas se existe uma coisa de que gosto ainda menos que lugar fechado, é um lugar fechado a duzentos metros de altura.

Annabeth seguiu falando sobre suportes estruturais e sobre como teria feito as janelas maiores e projetado um piso transparente. Ela poderia ter ficado lá em cima horas a fio, mas, para minha sorte, o guarda anunciou que a plataforma de observação seria fechada em poucos minutos.

Guiei Grover e Annabeth em direção à saída, enfiei-os no elevador e estava quase entrando quando me dei conta de que já havia outros dois turistas lá dentro. Não tinha espaço para mim.

O guarda disse:

— Próximo carro, senhor.

— Vamos sair — disse Annabeth. — Vamos esperar com você.

Mas aquilo ia atrapalhar todo mundo e levar ainda mais tempo, então eu disse:

— Não, tudo bem. Vejo vocês lá embaixo.

Grover e Annabeth pareceram nervosos, mas deixaram a porta do elevador se fechar. O carro desapareceu rampa abaixo.

Agora as únicas pessoas que restavam na plataforma de observação éramos eu, um garotinho com os pais, o guarda e a senhora gorda com o chihuahua.

Sorri pouco à vontade para a senhora gorda. Ela sorriu de volta, a língua bifurcada tremulando entre os dentes.

Espere um minuto.

Língua bifurcada?

Antes que eu pudesse concluir se tinha realmente visto aquilo, o chihuahua pulou no chão e começou a latir para mim.

— Vamos, vamos, filhinho — disse a senhora. — Não está divertido? Temos todas essas pessoas simpáticas aqui.

— Cachorrinho! — disse o menino. — Olhe, um cachorrinho!

Os pais o puxaram de volta.

O chihuahua arreganhou os dentes para mim, a espuma pingando dos lábios negros.

— Bem, meu filho — suspirou a senhora gorda. — Se você insiste.

Meu estômago começou a gelar.

— Ahn, você chamou esse chihuahua de filho?

— Quimera, querido — corrigiu a senhora gorda. — Não é um chihuahua. É um engano muito comum.

Ela arregaçou as mangas de jeans, mostrando que a pele de seus braços era escamosa e verde. Quando sorriu, vi que seus dentes eram presas. As pupilas dos olhos eram fendas verticais, como as dos répteis.

O chihuahua latiu mais alto, e a cada latido ele crescia. Primeiro ficou do tamanho de um doberman, depois de um leão. O latido se transformou em rugido.

O menininho gritou. Os pais o puxaram para a saída, bem na direção do guarda, que estava paralisado, de olhos arregalados para o monstro.

A Quimera estava tão alta que suas costas tocavam o teto. Tinha cabeça de leão, com a juba untada de sangue, o corpo e os cascos de um bode gigante e uma serpente no lugar da cauda, losangos de três metros de comprimento brotavam do traseiro peludo. Ainda tinha no pescoço a coleira de falsos brilhantes e a placa, do tamanho de um prato, era agora fácil de ler: QUIMERA — RAIVOSA, HÁLITO DE FOGO, VENENOSA — SE ENCONTRADA, FAVOR LIGAR PARA O TÁRTARO — RAMAL 954.

Percebi que não havia sequer tirado a tampa da minha espada. Minhas mãos estavam amortecidas. Eu estava a três metros da bocarra sangrenta da Quimera, e sabia que assim que me mexesse a criatura iria investir.

A mulher-cobra fez um som sibilante que poderia ter sido uma risada.

— Sinta-se honrado, Percy Jackson. O Senhor Zeus raramente me permite pôr um herói à prova com um de minha prole. Pois eu sou a Mãe de Monstros, a terrível Equidna!

Olhei para ela. Tudo o que pude pensar em dizer foi:

— Isso não é o nome de bicho que come formigas?

Ela uivou, a cara de réptil ficou marrom e verde de raiva.

— Detesto quando as pessoas dizem isso! Detesto a Austrália! Dar meu nome àquele animal ridículo. Por causa disso, Percy Jackson, meu filho o destruirá!

A Quimera avançou, os dentes de leão rangendo. Consegui pular para o lado e me esquivar da mordida.

Fui parar junto da família e do guarda, que agora estavam todos gritando, tentando abrir à força as portas da saída de emergência.

Não podia deixar que eles fossem feridos. Tirei a tampa da espada, corri para o outro lado da plataforma e gritei:

— Ei, chihuahua!

A Quimera se virou mais depressa do que eu achava possível.

Antes que eu pudesse erguer a espada, ela abriu a boca, soltando um mau cheiro como o da maior churrasqueira do mundo, e lançou uma coluna de chamas bem em cima de mim.

Mergulhei através da explosão. O carpete explodiu em chamas; o calor foi tão intenso que quase queimou minhas sobrancelhas.

O lugar onde eu estava um momento antes se tornara um buraco esfarrapado na lateral do Arco, com metal derretido fumegando nas bordas.

Essa é boa, pensei. Acabamos de soldar um monumento nacional.

Contracorrente era agora uma lâmina de bronze reluzente em minhas mãos, e quando a Quimera se virou, eu a golpeei com violência no pescoço.

Foi um erro fatal. A lâmina faiscou sem efeito contra a coleira de cachorro. Tentei recuperar o equilíbrio, mas estava tão preocupado em me defender da boca chamejante de leão que me esqueci completamente da cauda de serpente, até que ela fez uma volta e cravou as presas na minha panturrilha.

Minha perna inteira ardeu em fogo. Tentei enfiar Contracorrente na boca da Quimera, mas a cauda de serpente enrolou-se nos meus tornozelos e me desequilibrou, e a espada voou de minha mão, saiu rodopiando pelo buraco no Arco e caiu no rio Mississippi.

Consegui ficar em pé, mas sabia que tinha perdido. Estava desarmado. Podia sentir o veneno letal subindo por meu peito. Lembrei-me de Quíron dizendo que Anaklusmos sempre voltaria para mim, mas não havia nenhuma caneta em meu bolso. Talvez tivesse caído longe demais. Ou só voltasse quando estava em forma de caneta. Eu não sabia, e não ia viver o bastante para descobrir.

Recuei para o buraco na parede. A Quimera avançou, rosnando e soltando espirais de fumaça pelos lábios. A mulher-serpente, Equidna, gargalhou.

— Já não se fazem mais heróis como antigamente, heim, filho?

O monstro rosnou. Parecia não estar com pressa de acabar comigo, agora que eu estava derrotado.

Dei uma olhada para o guarda e a família. O menininho se escondia atrás das pernas do pai. Eu tinha de proteger aquelas pessoas. Não podia simplesmente... morrer. Tentei pensar, mas meu corpo inteiro estava em fogo. Minha cabeça girava. Eu não tinha espada. Estava enfrentando um monstro imenso, que cuspia fogo, e sua mãe. E estava apavorado.

Não havia outro lugar para ir, portanto subi na beira do buraco. Muito, muito embaixo, o rio brilhava.

Será que se eu morresse os monstros iriam embora? Deixariam os humanos em paz?

— Se você é o filho de Poseidon — sibilou Equidna —, então não tem medo da água. Pule, Percy Jackson. Mostre-me que a água não lhe fará mal. Pule e recupere a espada. Prove a sua linhagem.

Sim, certo, pensei. Eu tinha lido em algum lugar que pular na água da altura de alguns andares era como se atirar em asfalto. Dali, eu ia me desfazer em pedaços com o impacto.

A boca da Quimera estava vermelha, incandescente, preparando uma nova rajada de fogo.

— Você não tem fé — disse a Quimera. — Não confia nos deuses. Não posso culpá-lo, pequeno covarde. Melhor que morra agora. Os deuses são infiéis. O veneno está no seu coração.

Ela estava certa: eu estava morrendo. Podia sentir a respiração falhando. Ninguém poderia me salvar, nem mesmo os deuses.

Recuei e olhei para a água lá embaixo. Lembrei-me do calor do sorriso de meu pai quando eu era um bebê. Ele deve ter me visto. Deve ter me visitado quando eu estava no berço.

Lembrei-me do tridente verde que aparecera girando acima da minha cabeça na noite da captura da bandeira, quando Poseidon me reconheceu como seu filho.

Mas aquilo não era o mar. Aquilo era o Mississippi, bem no meio dos Estados Unidos. Ali não havia nenhum deus do mar.

— Morra, infiel — disse a voz rouca de Equidna, e a Quimera mandou uma coluna de fogo na direção de meu rosto.

— Pai, me ajude — implorei.

Virei-me e pulei. Minhas roupas em chamas, o veneno correndo por minhas veias, mergulhei no rio.


CATORZE

Eu me torno um fugitivo conhecido

Eu adoraria contar que tive alguma revelação profunda enquanto caía, que aprendi a aceitar minha própria mortalidade, que ri em face da morte etc.

A verdade? Meu único pensamento foi: Aaaaarggghhhhh!

O rio vinha em minha direção na velocidade de um caminhão. O vento arrancou o fôlego dos meus pulmões. Torres, arranha-céus e pontes giravam entrando e saindo do meu campo de visão.

E então...

Cata-puuuum!

Um turbilhão de bolhas. Afundei nas trevas, certo de que acabaria engolido por trinta metros de lama e perdido para sempre.

Mas meu impacto com a água não doeu. Eu estava agora descendo lentamente, com bolhas passando por entre meus dedos. Fui parar no fundo do rio, em silêncio. Um peixe-gato do tamanho do meu padrasto se afastou com uma guinada para a escuridão. Nuvens de lodo e lixo nojento — garrafas de cerveja, sapatos velhos, sacos plásticos — giravam ao meu redor.

Àquela altura me dei conta de algumas coisas. Primeiro: eu não tinha sido achatado como uma panqueca. Não havia sido assado como churrasco. Não sentia nem mesmo o veneno da Quimera fervendo em minhas veias. Eu estava vivo, o que era bom.

Segundo: eu não estava molhado. Quer dizer, conseguia sentir a friagem da água. Podia ver onde o fogo em minhas roupas tinha sido apagado. Mas, quando toquei minha camisa, parecia perfeitamente seca.

Olhei para o lixo que passava flutuando e agarrei um velho isqueiro.

Sem chance, pensei.

Risquei o isqueiro. Uma faísca saltou. Uma chama pequenina apareceu, bem ali, no fundo do Mississippi.

Agarrei uma embalagem ensopada de hambúrguer na corrente e o papel secou imediatamente. Queimei-o sem problemas. Assim que o soltei, as chamas bruxulearam e se apagaram. A embalagem voltou a se transformar em um trapo viscoso. Esquisito.

Mas a ideia mais estranha me ocorreu por último: eu estava respirando. Estava embaixo d’água e respirava normalmente.

Fiquei de pé, afundado até as coxas na lama. Sentia as pernas trêmulas. As mãos tremiam. Eu devia estar morto. O fato de não estar parecia... bem, um milagre. Imaginei uma voz de mulher, uma voz que parecia um pouco com a da minha mãe: Percy, como é que se diz?

— Ahn... muito obrigado. — Embaixo d’água, minha voz soava como em gravações, idêntica à de um garoto muito mais velho. — Muito obrigado... pai.

Nenhuma resposta. Apenas o fluir escuro do lixo rio abaixo, o enorme peixe-gato que passava deslizando, o brilho do sol poente na superfície da água muito acima, deixando tudo da cor de doce de leite.

Por que Poseidon me salvara? Quanto mais eu pensava nisso, mais envergonhado me sentia. Então, eu tivera sorte algumas vezes. Contra algo como a Quimera, eu não tinha a menor chance. Aquela pobre gente no Arco provavelmente virara torrada. Não consegui protegê-los. Não era nenhum herói. Talvez devesse simplesmente ficar ali embaixo com o peixe-gato, juntar-me aos comensais do fundo do rio.

Plof-plof-plof. As pás da hélice de um barco agitaram a água sobre mim, revirando o lodo ao redor.

Ali, não mais de cinco metros à frente, estava minha espada, a guarda de bronze brilhando, espetada na lama.

Ouvi aquela voz de mulher outra vez: Percy, pegue a espada. Seu pai acredita em você. Dessa vez percebi que a voz não estava em minha cabeça. Eu não a estava imaginando. As palavras pareciam vir de toda parte, ondulando pela água como o sonar de um golfinho.

— Onde está você? — perguntei em voz alta.

Então, nas sombras, eu a vi — uma mulher da cor da água, um fantasma na corrente, flutuando logo acima da espada. Tinha longos cabelos ondulantes, e os olhos, pouco visíveis, eram verdes como os meus.

Um nó se formou em minha garganta.

— Mamãe?

Não, criança, apenas uma mensageira, embora o destino de sua mãe não seja tão inevitável como você acredita. Vá para a praia em Santa Monica.

— O quê?

É a vontade de seu pai. Antes de descer para o Mundo Inferior, deve ir a Santa Monica. Por favor, Percy, não posso ficar muito tempo aqui. O rio é sujo demais para a minha presença.

— Mas... — Eu não sabia muito bem se a mulher era a minha mãe ou, bem, uma visão dela. — Quem... como você...

Havia muita coisa que eu queria perguntar, as palavras se amontoavam em minha garganta.

Não posso ficar, meu valente, disse a mulher. Ela estendeu a mão, e senti a corrente roçar meu rosto como uma carícia. Você precisa ir a Santa Monica! E, Percy, cuidado com os presentes...

A voz dela sumiu.

— Presentes? — perguntei. — Que presentes? Espere!

Ela tentou falar novamente, mas o som se fora. Sua imagem se desfez. Se era a minha mãe, eu a tinha perdido de novo.

Senti vontade de me afogar. O único problema: eu era imune a isso.

Seu pai acredita em você, ela dissera.

Ela também me chamara de valente... a não ser que estivesse falando com o peixe-gato.

Fui me arrastando até Contracorrente e a agarrei pela guarda. A Quimera ainda podia estar lá em cima com sua mãe gorda e peçonhenta, esperando para acabar comigo. Na melhor das hipóteses, a polícia mortal estaria chegando, tentando descobrir quem havia aberto um buraco no Arco. Se me achassem, teriam algumas perguntas a fazer.

Pus a tampa na espada e enfiei a esferográfica no bolso.

— Muito obrigado, pai — disse de novo para a água escura. Então dei um impulso para cima, através da sujeira, e nadei até a superfície.

Emergi ao lado de um McDonald’s flutuante.

A um quarteirão de distância, todos os veículos de emergência de St. Louis cercavam o Arco. Helicópteros da polícia circulavam no alto. A multidão de curiosos me lembrou Times Square no dia de ano-novo.

Uma menininha disse:

— Mamãe! Aquele menino saiu andando do rio.

— Que bom, querida — disse a mãe, esticando o pescoço para ver as ambulâncias.

— Mas ele está seco!

— Que bom, querida.

Uma repórter estava falando para a câmera:

“Tudo leva a crer, pelo que soubemos, que não se trata de um ataque terrorista, mas as investigações ainda estão muito no começo. Os danos, como podem ver, são muito sérios. Estamos tentando obter acesso a alguns sobreviventes para questioná-los a respeito de testemunhos de que alguém teria caído de cima do Arco.”

Sobreviventes. Senti uma onda de alívio. O guarda e a família tinham escapado ilesos. Eu esperava que Annabeth e Grover estivessem bem.

Tentei abrir caminho na multidão para ver o que estava acontecendo depois da barreira policial.

“...um adolescente”, outro repórter estava dizendo. “O Canal 5 soube que as câmeras de vigilância mostram um adolescente enlouquecido na plataforma de observação, detonando de algum modo aquela estranha explosão. É difícil acreditar, John, mas é isso que estamos ouvindo dizer. Mais uma vez, não há nenhuma fatalidade confirmada...”

Recuei, tentando manter a cabeça baixa. Tinha de dar uma volta enorme para contornar o perímetro policial. Havia policiais e repórteres por toda parte.

Estava quase perdendo a esperança de encontrar Annabeth e Grover quando uma voz familiar baliu:

— Perrr-cy!

Virei-me e dei com o abraço de urso de Grover — ou abraço de bode. Ele disse:

— Pensamos que tivesse ido para o Hades pelo pior caminho!

Annabeth estava atrás dele, tentando fazer cara de zangada, mas até ela parecia aliviada por me ver.

— Não podemos deixar você cinco minutos sozinho! O que aconteceu?

— Foi como um tombo.

— Percy! Cento e noventa e dois metros?

Atrás de nós, um policial gritou:

— Abram passagem! — A multidão se dividiu e uma dupla de paramédicos avançou empurrando uma mulher numa maca. Eu a reconheci imediatamente como a mãe do menininho que estava na plataforma. Ela dizia:

— E então aquele cachorro enorme, aquele chihuahua enorme cuspindo fogo...

— Certo, minha senhora — disse o paramédico. — Acalme-se por favor. Sua família está bem. O medicamento está começando a fazer efeito.

— Eu não estou louca! Aquele menino pulou pelo buraco e o monstro desapareceu. — Então ela me viu. — Lá está ele! É aquele menino!

Virei rapidamente e puxei Annabeth e Grover atrás de mim. Desaparecemos na multidão.

— O que está acontecendo? — perguntou Annabeth. — Ela estava falando do chihuahua do elevador?

Contei a eles a história inteira da Quimera, Equidna, meu show de mergulho e a mensagem da moça embaixo d’água.

— Uau — disse Grover. — Temos de levá-lo a Santa Monica! Não pode ignorar uma ordem de seu pai.

Antes que Annabeth pudesse responder, passamos por outro repórter que gravava um boletim informativo, e quase fiquei paralisado quando ele disse:

— Percy Jackson. É isso mesmo, Dan. O Canal 12 soube que o menino que pode ter causado essa explosão se encaixa na descrição de um rapazinho procurado pelas autoridades por um sério acidente com um ônibus em New Jersey três dias atrás. E acredita-se que o menino esteja viajando para oeste. Para os nossos espectadores de casa, esta é a foto de Percy Jackson.

Nós nos abaixamos atrás do carro de reportagem e nos esgueiramos para um beco.

— Primeiro o mais importante — disse a Grover. — Temos de sair da cidade!

De algum modo conseguimos voltar à estação ferroviária sem sermos vistos. Embarcamos no trem bem no momento em que estava saindo para Denver. O trem seguiu para oeste enquanto a noite caía, com as luzes da polícia ainda piscando contra a silhueta de St. Louis atrás de nós.


QUINZE

Um deus compra cheeseburgers para nós

Na tarde seguinte, 14 de junho, sete dias antes do solstício, nosso trem entrou em Denver. Não comíamos nada desde a noite anterior no vagão-restaurante, em algum lugar de Kansas. Não tomávamos banho desde que saímos da Colina Meio-Sangue, e eu tinha certeza de que isso era óbvio.

— Vamos tentar entrar em contato com Quíron — disse Annabeth. — Quero contar a ele sobre sua conversa com o espírito do rio.

— Não podemos usar telefones, certo?

— Não estou falando de telefones.

Perambulamos pelo centro da cidade por cerca de meia hora, embora eu não soubesse muito bem o que Annabeth estava procurando. O ar estava seco e quente, o que era estranho depois da umidade de St. Louis. Aonde quer que fôssemos, as Montanhas Rochosas pareciam me olhar, como um tsunami prestes a quebrar sobre a cidade.

Finalmente encontramos um lava-jato vazio. Fomos para o boxe mais afastado da rua, atentos a carros de polícia. Éramos três adolescentes sem automóvel em um lava-jato; qualquer policial que se prezasse deduziria que não estávamos tramando nada de bom.

— O que exatamente estamos fazendo? — perguntei quando Grover pegou a mangueira de um compressor.

— São setenta e cinco centavos — resmungou. — Só me restaram duas moedas de vinte e cinco. Annabeth?

— Não olhe para mim — disse ela. — O vagão-restaurante me deixou lisa.

Pesquei o meu último restinho de trocados e passei uma moeda de vinte e cinco centavos para Grover, o que me deixou com duas de cinco e um dracma da Medusa.

— Excelente — disse Grover. — Poderíamos fazer isso com qualquer spray, é claro, mas a conexão não fica boa, e meus braços cansam de tanto bombear.

— Do que está falando?

Ele depositou as moedas e ajustou o botão para ESGUICHO FINO.

— M.I.

— Mensagem instantânea?

— Mensagem de Íris — corrigiu Annabeth. — A deusa do arco-íris transmite mensagens aos deuses. Se a gente souber como pedir, e ela não estiver atarefada demais, fará o mesmo para meios-sangues.

— Você convoca a deusa com um compressor?

Grover apontou o bico da mangueira para o ar e a água saiu chiando em uma espessa névoa branca.

— A não ser que conheça um meio mais fácil de fazer um arco-íris.

De fato, a luminosidade do fim de tarde se filtrou através da névoa e se decompôs em cores.

Annabeth estendeu a palma da mão para mim.

— Dracma, por favor.

Eu o entreguei.

Ela ergueu a moeda acima da cabeça.

— Ó deusa, aceite nossa oferenda.

Jogou o dracma no arco-íris. Ele desapareceu em um tremeluzir dourado.

— Colina Meio-Sangue — solicitou Annabeth.

Por um momento, nada aconteceu.

E então eu estava olhando através da névoa para campos de morangos e o Estreito de Long Island a distância. Era como se estivéssemos na varanda da Casa Grande. Em pé, de costas para nós junto à cerca, estava um cara de cabelos da cor da areia, de short e camiseta regata laranja. Segurava uma espada de bronze e parecia olhar atentamente para algo na campina.

— Luke! — chamei.

Ele se virou, os olhos arregalados. Poderia jurar que ele estava na minha frente, a um metro de distância, atrás de uma cortina de névoa, só que eu via apenas a parte dele que aparecia no arco-íris.

— Percy! — O seu rosto marcado pela cicatriz se abriu em um sorriso. — E Annabeth também? Graças aos deuses! Vocês estão bem?

— Estamos... ahn... ótimos — gaguejou Annabeth. Ela tentava desesperadamente alisar a camiseta suja e tirar os cabelos soltos da frente do rosto. — Nós pensamos... Quíron... quer dizer...

— Ele está lá embaixo nos chalés. — O sorriso de Luke se apagou. — Estamos tendo alguns problemas com os campistas. Escute, está tudo legal com vocês? Grover está bem?

— Estou bem aqui — gritou Grover. Ele virou o esguicho para um lado e entrou no campo de visão de Luke. — Que tipo de problemas?

Bem naquele momento um grande Lincoln Continental entrou no lava-jato com o rádio tocando hip-hop no último volume. Quando o carro entrou no boxe ao lado, os alto-falantes vibraram tanto que sacudiram o calçamento.

— Quíron teve de... que barulho é esse? — gritou Luke.

— Deixe que eu cuido disso! — gritou Annabeth de volta, parecendo muito aliviada por ter uma desculpa para sair de vista. — Grover, venha!

— O quê? — disse Grover. — Mas...

— Dê a mangueira a Percy e venha! — ordenou ela.

Grover resmungou qualquer coisa sobre as meninas serem mais difíceis de entender do que o Oráculo de Delfos, depois me entregou a mangueira e seguiu Annabeth.

Eu reajustei o esguicho para manter o arco-íris e ainda ver Luke.

— Quíron teve de separar uma briga — gritou Luke, mais alto que a música. — A situação anda um bocado tensa por aqui, Percy. A questão-impasse entre Zeus e Poseidon vazou. Ainda não sabemos direito como... provavelmente, foi o mesmo sujeito nojento que convocou o cão infernal. Agora os campistas estão começando a tomar partido. As coisas estão ficando como na Guerra de Troia, tudo de novo. Afrodite, Ares e Apolo estão de certo modo apoiando Poseidon. Atena está apoiando Zeus.

Estremeci só de pensar que o chalé de Clarisse pudesse estar do lado de meu pai para alguma coisa. No boxe ao lado, ouvi Annabeth e algum cara discutindo, e então o volume da música abaixou drasticamente.

— Então, qual é a sua situação? — perguntou Luke para mim. — Quíron vai lamentar muito não ter podido falar com você.

Contei-lhe praticamente tudo, inclusive meus sonhos. Era tão boa a sensação de vê-lo, de sentir que eu estava de volta ao acampamento, mesmo que fosse por alguns minutos, que não percebi por quanto tempo havia falado até que o alarme do compressor disparou. Percebi que só tinha mais um minuto antes que a água desligasse.

— Queria poder estar aí — disse Luke. — Não podemos ajudar muito daqui, infelizmente, mas escute... com certeza foi Hades quem pegou o raio-mestre. Ele estava lá no Olimpo no solstício de inverno. Eu estava supervisionando uma excursão e nós o vimos.

— Mas Quíron falou que os deuses não podem tomar diretamente os itens mágicos um do outro.

— É verdade — disse Luke, parecendo perturbado. — Ainda assim... Hades tem o elmo das trevas. Como alguém mais poderia se esgueirar para dentro da sala do trono e roubar o raio-mestre? É preciso estar invisível.

Ficamos os dois em silêncio até que Luke pareceu se dar conta do que dissera.

— Ei — protestou ele. — Não quis dizer Annabeth. Ela e eu nos conhecemos há uma eternidade. Ela jamais iria... quer dizer, ela é como uma irmã para mim.

Pensei comigo mesmo se Annabeth iria gostar daquela descrição. No boxe ao lado, a música parou. Um homem gritou aterrorizado, portas de carro bateram e o Lincoln saiu a toda do lava-jato.

— É melhor você ir ver o que foi aquilo — disse Luke. — Escute, está usando os tênis voadores? Eu me sentiria melhor se soubesse que lhe serviram de alguma coisa.

— Ah... ahn, sim! — Tentei não soar como parecer um mentiroso culpado. — Sim, foram úteis.

— É mesmo? — sorriu. — Serviram e tudo o mais?

A água cessou. A névoa começou a dispersar.

— Bem, cuide-se lá em Denver — gritou Luke, a voz ficando mais baixa. — E diga a Grover que dessa vez será melhor! Ninguém será transformado em pinheiro se ele apenas...

Mas a névoa se foi, e a imagem de Luke desapareceu. Eu estava sozinho em um boxe molhado e vazio de lava-jato.

Annabeth e Grover apareceram no canto, rindo, mas pararam quando viram minha cara. O sorriso de Annabeth sumiu.

— O que aconteceu, Percy? O que Luke disse?

— Quase nada — menti, sentindo o estômago tão vazio quanto um chalé dos Três Grandes. — Venham, vamos procurar alguma coisa para jantar.

Poucos minutos depois, estávamos sentados num reservado de um pequeno e reluzente restaurante todo cromado. À nossa volta, famílias comiam hambúrgueres e bebiam cerveja e refrigerantes.

Finalmente, a garçonete veio. Ela ergueu uma sobrancelha com um ar cético.

— Então?

Eu disse:

— Nós, ahn, queremos pedir o jantar.

— Têm dinheiro para pagar, crianças?

O lábio inferior de Grover tremeu. Tive medo de que ele começasse a balir, ou, pior, começasse a comer o linóleo. Annabeth parecia prestes a desmaiar de fome.

Eu estava tentando pensar em uma história comovente para a garçonete quando um forte ronco sacudiu o edifício inteiro; uma motocicleta do tamanho de um filhote de elefante havia encostado no meio-fio.

Todas as conversas cessaram. O farol da motocicleta brilhava em vermelho. Tinha labaredas pintadas sobre o tanque de gasolina e um coldre de cada lado, com espingardas de caça. O assento era de couro — mas um couro que parecia... bem, pele, humana, caucasiana.

O cara da moto podia fazer lutadores profissionais saírem correndo chamando a mamãe. Vestia uma camiseta justa vermelha, que ressaltava os músculos, jeans pretos e um casaco comprido de couro preto, com um facão de caça preso à coxa. Usava óculos escuros vermelhos, presos na nuca, e tinha a cara mais cruel, mais brutal que eu já tinha visto — boa-pinta, eu acho, porém mau —, com cabelo negro como petróleo aparado à máquina, o rosto marcado por cicatrizes de muitas, muitas brigas. O estranho era que parecia que eu já tinha visto aquele homem em algum lugar.

Quando ele entrou no restaurante, um vento quente e seco soprou no ambiente. Todos se levantaram, como se estivessem hipnotizados, mas o motociclista acenou a mão com desdém e eles sentaram de novo. Todos voltaram às suas conversas. A garçonete piscou, como se alguém tivesse apertado o botão de retroceder em seu cérebro. Ela perguntou novamente:

— Têm dinheiro para pagar, crianças?

O cara da moto disse:

— É por minha conta. — Escorregou para dentro do nosso reservado, pequeno demais para ele, e espremeu Annabeth contra a janela.

Encarou a garçonete, que olhava para ele de olhos arregalados, e disse:

— Ainda está aí?

Ele apontou para ela, e ela ficou rígida. Virou-se como se alguém a tivesse girado e marchou de volta para a cozinha.

O homem da moto me olhou. Não pude ver seus olhos atrás dos óculos vermelhos, mas sentimentos ruins começaram a fervilhar no meu estômago. Raiva, ressentimento, amargor. Tive vontade de bater na parede. Tive vontade de comprar briga com alguém. Quem aquele cara pensava que era?

Ele me deu um sorriso maldoso.

— Então você é o garoto do Velho das Algas, ahn?

Eu devia ter ficado surpreso, ou assustado, mas em vez disso era como se estivesse olhando para o meu padrasto, Gabe. Quis arrancar a cabeça do cara:

— O que você tem com isso?

Os olhos de Annabeth me lançaram um alerta.

— Percy, este é...

— Tudo bem — disse ele. — Não me incomodo com um pouco de petulância. Desde que você lembre quem manda. Sabe quem eu sou, priminho?

Então me veio à cabeça por que o cara me parecia familiar. Ele tinha o mesmo olhar cruel de algumas crianças do Acampamento Meio-Sangue, os do chalé 5.

— Você é o pai de Clarisse — disse eu. — Ares, deus da guerra.

Ares arreganhou um sorriso e tirou os óculos. Onde deveriam estar os olhos havia apenas fogo, órbitas vazias brilhando com miniexplosões nucleares.

— Certo, mané. Ouvi que quebrou a lança de Clarisse.

— Ela estava pedindo isso.

— Provavelmente. Tranquilo. Não me meto nas brigas dos meus filhos, sabia? Estou aqui porque ouvi dizer que estava na cidade. Tenho uma pequena proposta para você.

A garçonete voltou trazendo bandejas com montes de comida — cheeseburgers, batatas fritas, anéis de cebola empanados e milk-shakes de chocolate.

Ares entregou-lhe alguns dracmas de ouro.

Ela olhou nervosa para as moedas.

— Mas estas não são...

Ares puxou seu enorme facão e começou a limpar as unhas.

— Algum problema, benzinho?

A garçonete engoliu em seco e se afastou com o ouro.

— Não pode fazer isso — disse a Ares. — Não pode ameaçar as pessoas com uma faca.

Ares riu.

— Está brincando? Eu adoro este país. Melhor lugar, depois de Esparta. Você não anda armado, otário? Pois devia. O mundo lá fora é perigoso. O que me traz de volta à minha proposta. Preciso que me faça um favor.

— Que favor eu poderia fazer para um deus?

— Algo que um deus não tem tempo de fazer ele mesmo. Nada demais. Larguei meu escudo em um parque aquático abandonado aqui na cidade. Estava no meio de um... encontro com minha namorada. Fomos interrompidos. Deixei o escudo para trás. Quero que vá buscá-lo para mim.

— Por que não volta lá e pega você mesmo?

O fogo nas órbitas dele ficou um pouco mais incandescente.

— Por que não transformo você em uma marmota e o atropelo com minha Harley? Porque não estou com vontade. Um deus está dando a você a oportunidade de se pôr à prova, Percy Jackson. Você vai mostrar que é um covarde? — Ele se inclinou para a frente. — Ou, quem sabe, você só luta quando há um rio para mergulhar dentro, para que seu papai possa protegê-lo?

Queria dar um murro naquele cara, mas, de algum modo, sabia que ele esperava por isso. O poder de Ares estava causando a minha raiva. Ele adoraria se eu o atacasse. Eu não queria lhe dar esse gostinho.

— Não estamos interessados — falei. — Já temos uma missão.

Os olhos ardentes de Ares me fizeram ver coisas que eu não queria — sangue, fumaça e corpos no campo de batalha.

— Eu sei de tudo sobre sua missão, seu imprestável. Quando aquele item foi roubado, Zeus enviou seus melhores para procurá-lo: Apolo, Atena, Ártemis e, naturalmente, eu. Se eu não consegui farejar uma arma tão poderosa... — Ele lambeu o beiço, como se a própria ideia do raio-mestre o tivesse deixado com fome. — Bem... se eu não consegui encontrá-lo, você não tem nenhuma chance. Entretanto, estou tentando lhe dar o benefício da dúvida. Seu pai e eu nos conhecemos há muito tempo. Afinal, fui eu quem lhe contou minhas suspeitas sobre o velho Bafo de Cadáver.

— Você disse a ele que Hades roubou o raio?

— Claro. Acirrar os ânimos para uma guerra. O truque mais antigo de todos. Eu o reconheci imediatamente. De certo modo, você tem de agradecer a mim por sua missãozinha.

— Obrigado — resmunguei.

— Ei, sou um cara generoso. Faça meu servicinho e eu o ajudarei em sua viagem. Vou arranjar uma carona para oeste para você e seus amigos.

— Estamos indo muito bem sozinhos.

— Sim, certo. Sem dinheiro. Sem rodas. Sem nenhuma pista do que vão enfrentar. Ajude-me, e talvez eu lhe conte algo que precisa saber. Algo sobre sua mãe.

— Minha mãe?

Ele sorriu.

— Isso despertou sua atenção. O parque aquático fica um quilômetro e meio a oeste, na Delancy. Não há como errar. Procurem o Túnel do Amor.

— O que interrompeu seu namoro? — perguntei. — Alguma coisa o assustou?

Ares arreganhou os dentes, mas eu já tinha visto aquela cara ameaçadora antes, em Clarisse. Havia nela algo de incerto, quase um nervosismo.

— Você tem sorte de ter me encontrado, imprestável, e não um dos outros olimpianos. Eles não são tão indulgentes com a grosseria quanto eu. Encontrarei você aqui novamente quando tiver terminado. Não me desaponte.

Depois disso eu devo ter desmaiado, ou entrado em um transe, pois quando voltei a abrir os olhos Ares havia desaparecido. Podia ter pensado que toda a conversa fora um sonho, mas a expressão de Annabeth e Grover me dizia outra coisa.

— Nada bom — disse Grover. — Ares o procurou, Percy. Isso não é nada bom.

Olhei pela janela. A motocicleta havia desaparecido.

Será que Ares realmente sabia algo sobre minha mãe, ou estava apenas jogando comigo? Agora que ele se fora, toda a minha raiva passara. Percebi que Ares devia adorar bagunçar as emoções das pessoas. Era esse o seu poder — exacerbar tanto as paixões que elas atrapalhavam nossa capacidade de pensar.

— Deve ser algum tipo de truque — falei. — Esqueçam Ares. Vamos embora e pronto.

— Não podemos — disse Annabeth. — Olhe, detesto Ares tanto quanto qualquer um, mas não é possível ignorar os deuses a não ser que se deseje um azar tremendo. Ele não estava brincando sobre transformar você em um roedor.

Baixei os olhos para o meu cheeseburger, que de repente não parecia mais tão apetitoso.

— Por que ele precisa de nós?

— Talvez seja um problema que requeira inteligência — disse Annabeth. — Ares tem força. É tudo o que tem. Mesmo a força às vezes tem de se curvar à sabedoria.

— Mas esse parque aquático... ele agiu quase como se estivesse apavorado. O que faria um deus da guerra fugir desse jeito?

Annabeth e Grover se entreolharam nervosamente.

Annabeth disse:

— Acho que teremos de descobrir.

Quando encontramos o parque aquático, o sol estava se pondo atrás das montanhas. A julgar pela placa, ele outrora se chamava A Q U A L Â N D I A, mas agora algumas letras haviam sido arrancadas, então ela dizia AQU L D A.

O portão principal estava fechado com cadeado e tinha no alto arame farpado. Dentro, enormes escorregadores, tubos e canos se retorciam por toda parte, secos, desembocando em piscinas vazias. Velhos ingressos e folhetos subiam do asfalto com o vento. Com a noite chegando, o lugar parecia triste e arrepiante.

— Se Ares traz a namorada aqui para um encontro — falei, olhando para o arame farpado —, não ia gostar de ver como é a aparência dela.

— Percy — advertiu Annabeth —, tenha mais respeito.

— Por quê? Pensei que você detestasse Ares.

— Ainda assim, ele é um deus. E a namorada dele é muito temperamental.

— Não queremos ofendê-la — acrescentou Grover.

— Quem é? Equidna?

— Não, Afrodite — disse Grover, um pouco sonhador. — A deusa do amor.

— Pensei que ela fosse casada com alguém — disse eu. — Hefesto.

— E daí? — perguntou ele.

— Ah. — De repente, senti que era preciso mudar de assunto. — Então, como fazemos para entrar?

— Maia! — Os tênis de Grover criaram asas.

Ele voou por cima da cerca, deu um mortal involuntário no ar, depois pousou cambaleando no lado oposto. Sacudiu o pó dos seus jeans, como se tivesse planejado tudo aquilo.

— Vocês vêm?

Annabeth e eu tivemos de escalar à moda antiga, empurrando o arame farpado um para o outro enquanto nos arrastávamos por cima do topo.

As sombras se alongaram enquanto caminhávamos pelo parque, conferindo as atrações. Havia a Ilha dos Pequeninos, o Por Cima da Cabeça e o Cara, Cadê o Meu Calção?

Nenhum monstro chegou para nos pegar. Nada fazia o menor barulho.

Encontramos uma loja de lembrancinhas que fora deixada aberta. Ainda havia mercadorias enfileiradas nas prateleiras: globos de neve, lápis, cartões-postais, e prateleiras de...

— Roupas — disse Annabeth. — Roupas limpas.

— É — completei. — Mas você não pode simplesmente...

— Observe.

Ela agarrou uma fileira inteira de artigos das prateleiras e desapareceu dentro do provador. Poucos minutos depois saiu vestindo short estampado de flores da Aqualândia, uma grande camiseta vermelha da Aqualândia e sapatilhas de surfe temáticas da Aqualândia. Pendurada no ombro, uma mochila da Aqualândia, obviamente recheada de outras coisinhas.

— Ora, que se dane. — Grover encolheu os ombros.

Logo nós três parecíamos anúncios ambulantes do parque temático fantasma.

Continuamos procurando pelo Túnel do Amor. Eu tinha a sensação de que o parque inteiro estava prendendo a respiração.

— Então Ares e Afrodite — falei, só para afastar os pensamentos da escuridão que aumentava — estão tendo um caso?

— É uma fofoca velha, Percy — disse Annabeth. — Uma fofoca de três mil anos.

— E o marido de Afrodite?

— Bem, você sabe — disse ela. — Hefesto. O ferreiro. Ele ficou aleijado quando bebê, atirado de cima do Monte Olimpo por Zeus. Então não é exatamente lindo. Habilidoso com as mãos e tudo, mas Afrodite não curte inteligência e talento, entende?

— Ela gosta de motoqueiros.

— Ou isso.

— Hefesto sabe?

— Ah, com certeza — disse Annabeth. — Uma vez ele os pegou juntos. Quer dizer, pegou mesmo, em uma rede de ouro, e chamou todos os deuses para ver e rir da cara deles. Hefesto está sempre tentando constrangê-los. É por isso que eles se encontram em lugares escondidos, como...

Ela se interrompeu, olhando em frente.

— Como aquilo.

Diante de nós havia uma piscina vazia que teria sido sensacional para andar de skate. Tinha pelo menos cinquenta metros de largura e forma de bacia.

Em volta da beira, uma dúzia de estátuas de Cupido montavam guarda de asas abertas e arcos prontos para disparar. Do outro lado abria-se um túnel, provavelmente para onde a água escoava quando a piscina estava cheia. A placa acima dele dizia: EMOCIONANTE PASSEIO DE AMOR: ESTE NÃO É O TÚNEL DO AMOR DOS SEUS PAIS!

Grover se arrastou até a borda.

— Gente, olhe.

Abandonado no fundo da piscina havia um barco de dois lugares rosa e branco, com coraçõezinhos pintados por toda parte. No assento da esquerda, brilhando na luz pálida, estava o escudo de Ares, um círculo polido de bronze.

— Fácil demais — disse eu. — Então é só descer até lá e pegá-lo?

Annabeth correu os dedos pela base da estátua de Cupido mais próxima.

— Há uma letra grega entalhada aqui — disse ela. — Eta. Imagino...

— Grover — falei —, sente cheiro de algum monstro?

Ele farejou o vento.

— Nada.

— Nada do tipo no-Arco-você-não-sentiu-o-cheiro-de-Equidna ou realmente nada?

Grover pareceu ofendido.

— Disse a você, aquilo foi num subterrâneo.

— Certo, desculpe. — Eu respirei fundo. — Vou descer até lá.

— Vou com você. — Grover não pareceu muito entusiasmado, mas tive a impressão de que ele estava tentando compensar pelo que acontecera em St. Louis.

— Não — disse a ele. — Quero que fique no alto com os tênis voadores. Você é nosso ás da aviação, está lembrado? Vou contar com você para dar apoio, caso alguma coisa dê errado.

Grover estufou um pouco o peito.

— Claro. Mas o que poderia dar errado?

— Não sei. Só uma sensação. Annabeth, venha comigo...

— Está brincando? — Ela olhou para mim como se eu tivesse acabado de cair da Lua. Suas bochechas estavam num tom vermelho vivo.

— Qual o problema agora? — perguntei.

— Eu... ir com você para um... um “Emocionante Passeio de Amor”? Que coisa mais embaraçosa! E se alguém me vir?

— Quem é que vai ver? — Mas agora a minha cara também estava queimando. Só mesmo uma menina para complicar as coisas. — Ótimo — disse a ela. — Vou fazer isso sozinho. — Mas quando comecei a descer pela lateral da piscina, ela me seguiu, resmungando sobre como os meninos sempre complicam as coisas.

Chegamos ao barco. O escudo estava apoiado em um banco, e ao lado havia um lenço feminino de seda. Tentei imaginar Ares e Afrodite ali, um casal de deuses se encontrando em um brinquedo de parque de diversões sucateado. Por quê? Então notei algo que não tinha visto de cima: espelhos por toda a volta da borda da piscina, voltados para aquele ponto. Podíamos nos ver, não importa em que direção olhássemos. Tinha de ser isso. Enquanto Ares e Afrodite estavam se agarrando, podiam ver suas pessoas favoritas: eles mesmos.

Peguei o lenço. Tinha um brilho rosado, e o perfume era indescritível — rosas, ou louro. Alguma coisa boa. Sorri, um pouco sonhador, e estava quase passando o lenço no rosto quando Annabeth o arrancou da minha mão e enfiou em seu bolso.

— Ah, não, não faça isso. Fique longe dessa magia de amor.

— O quê?

— Apenas pegue o escudo, Cabeça de Alga, e vamos dar o fora daqui.

No momento em que toquei o escudo, vi que estávamos encrencados. Minha mão arrebentou algo que o conectava ao para-brisa. Uma teia de aranha, pensei, mas então olhei para um fio na minha palma e vi que era algum tipo de filamento metálico, tão fino que era quase invisível. Uma armadilha.

— Espere — disse Annabeth.

— Tarde demais.

— Há uma outra letra grega na lateral do barco, um outro eta. Trata-se de uma armadilha.

Um ruído irrompeu a nossa volta, um milhão de engrenagens rangendo, como se a piscina inteira estivesse se transformando em uma máquina gigante.

Grover gritou:

— Gente!

Lá em cima na borda, as estátuas de Cupido armavam os arcos. Antes que eu pudesse sugerir que nos abaixássemos, elas dispararam, mas não contra nós. Dispararam uma contra a outra, atravessando a piscina. Cabos de seda foram levados pelas flechas, fazendo um arco por cima da piscina e fincando-se no chão para formar um imenso asterisco dourado. Então fios metálicos menores começaram a se tecer magicamente por entre os principais, formando uma rede.

— Temos de dar o fora — disse eu.

— Ah, é mesmo? — disse Annabeth.

Agarrei o escudo e corremos, mas subir pela inclinação da piscina não era tão fácil quanto descer.

— Venham! — gritou Grover.

Ele estava tentando manter uma seção da rede aberta para nós, mas onde quer que a tocasse, os fios dourados começavam a envolver suas mãos.

A cabeça dos Cupidos se abriu de repente. De lá, saíram câmeras de vídeo. Luzes se ergueram por toda a volta da piscina, cegando-nos com a claridade, e um alto-falante soou:

— Ao vivo para o Olimpo em um minuto... Cinquenta e nove segundos, cinquenta e oito...

— Hefesto! — gritou Annabeth. — Como eu sou estúpida! Eta é “H”. Ele fez essa armadilha para pegar a mulher dele com Ares. Agora vamos ser transmitidos ao vivo para o Olimpo e parecer completos idiotas!

Estávamos quase conseguindo chegar à borda quando a fileira de espelhos se abriu como escotilhas e milhares de... coisinhas metálicas jorraram para fora.

Annabeth gritou.

Era um exército de bichos rastejantes de corda: corpo de engrenagens de bronze, pernas compridas e finas, bocas em pequenas pinças, todos correndo em nossa direção em uma onda de metal estalando e zumbindo.

— Aranhas! — disse Annabeth. — Ar... ar... aaaaaaaah!

Eu nunca a tinha visto daquele jeito. Ela caiu para trás aterrorizada e quase se rendeu às aranhas-robôs antes que eu a puxasse para cima e a arrastasse de volta em direção ao barco.

Aquelas coisas vinham de todos os lados, milhões delas, inundando o centro da piscina, cercando-nos completamente. Disse a mim mesmo que não estavam programadas para matar, apenas para nos encurralar, nos morder e nos fazer parecer idiotas. Mas, por outro lado, era uma armadilha para deuses. E não éramos deuses.

Annabeth e eu subimos para o barco. Comecei a chutar as aranhas para longe quando se acumulavam a bordo. Gritei para Annabeth me ajudar, mas ela estava paralisada demais para fazer qualquer coisa além de gritar.

— Trinta, vinte e nove — anunciou o alto-falante.

As aranhas começaram a cuspir fios de metal, tentando nos amarrar. De início os fios eram fáceis de romper, mas havia muitos deles, e as aranhas simplesmente continuavam a chegar. Tirei uma da perna de Annabeth com um chute, e suas pinças arrancaram um pedaço da minha nova sapatilha de surfista.

Grover pairava acima da piscina com seus tênis voadores, tentando soltar a rede, mas ela não cedia.

Pense, disse a mim mesmo, pense.

A entrada para o Túnel do Amor ficava embaixo da rede. Podíamos usá-la como saída, mas estava bloqueada por um milhão de aranhas-robôs.

— Quinze, catorze — anunciou o alto-falante.

Água, pensei. De onde vem a água para o passeio?

Então vi: enormes canos atrás dos espelhos, de onde tinham vindo as aranhas. E acima da rede, perto de um dos Cupidos, uma cabine com janelas de vidro que devia ser a estação de controle.

— Grover! — gritei. — Entre naquela cabine! Encontre o botão de ligar!

— Mas...

— Faça isso! — Era uma esperança louca, mas era a nossa única chance. As aranhas já estavam por toda a proa do barco. Annabeth gritava sem parar. Eu tinha de nos tirar dali.

Grover estava agora na cabine de controle, malhando os botões.

— Cinco, quatro...

Ele olhou para mim desamparado, erguendo as mãos. Estava sinalizando que já tinha apertado todos os botões, mas nada acontecia.

Fechei os olhos e pensei em ondas, água correndo, o rio Mississippi. Senti um aperto familiar na garganta. Tentei imaginar que estava arrastando o oceano até Denver.

— Dois, um, zero!

A água explodiu para fora dos canos. Entrou rugindo na piscina, varrendo as aranhas para longe. Puxei Annabeth para o banco ao lado do meu e prendi seu cinto de segurança bem quando a onda gigante atingiu o barco, de cima, expulsando as aranhas e nos encharcando completamente, mas sem virar o barco. Ele girou, erguido pela inundação, e circulou no redemoinho.

A água estava cheia de aranhas em curto-circuito, algumas colidindo contra a parede de concreto da piscina com tamanha força que explodiam.

As luzes brilharam sobre nós. As câmeras dos Cupidos estavam transmitindo ao vivo para o Olimpo.

Mas eu só podia me concentrar em controlar o barco. Desejei que ele seguisse a corrente, que ficasse afastado da parede. Talvez fosse minha imaginação, mas o barco pareceu reagir. Pelo menos não se quebrou em um milhão de pedaços. Circulamos uma última vez, e o nível da água já era quase suficiente para nos retalhar contra a rede de metal. Então o nariz do barco se virou para o túnel e disparamos como um foguete para dentro das trevas.

Annabeth e eu nos seguramos com força, os dois gritando enquanto o barco se atirava em curvas e rodeava cantos e dava mergulhos de quarenta e cinco graus, passando por figuras de Romeu e Julieta e montes de outras bugigangas de Dia dos Namorados.

Então estávamos fora do túnel, o ar da noite assobiando em nossos cabelos enquanto o barco seguia em alta velocidade para a saída.

Se o brinquedo estivesse em perfeito funcionamento, teríamos navegado por uma rampa entre os Portões Dourados do Amor e caído em segurança na piscina de saída. Mas havia um problema. Os Portões do Amor estavam fechados com correntes. Dois barcos que haviam sido arrastados para fora do túnel antes de nós estavam empilhados contra a barricada — um submerso e o outro partido ao meio.

— Solte seu cinto de segurança — gritei para Annabeth.

— Está maluco?

— A não ser que queira morrer esmagada. — Prendi o escudo de Ares no braço. — Vamos ter de pular. — Minha ideia era simples e insana. Quando o barco colidisse, íamos usar a força do impacto como um trampolim para pular por cima do portão. Ouvi falar de pessoas que sobreviveram a desastres de automóvel desse jeito, lançadas a dez ou vinte metros de distância do acidente. Com sorte, cairíamos na piscina.

Annabeth pareceu entender. Ela apertou minha mão quando os portões se aproximaram.

— Quando eu der o sinal — falei.

— Não! Quando eu der o sinal — corrigiu ela.

— O quê?

— Física básica! — gritou ela. — A força multiplicada pelo ângulo da trajetória...

— Está bem! — gritei. — Quando você der o sinal!

Ela hesitou... hesitou... e então gritou:

— Agora!

Crack!

Annabeth estava certa. Se tivéssemos pulado quando eu achava que devíamos, teríamos nos arrebentado contra os portões. Ela conseguiu o máximo de impulso.

Por azar, foi um pouco maior do que precisávamos. Nosso barco foi atirado na pilha e fomos lançados para o ar, por cima do portão, por cima da piscina, e na direção do asfalto duro.

Alguma coisa me segurou por trás.

Annabeth gritou:

— Aaai!

Grover!

Em pleno ar, ele tinha me agarrado pela camisa, e agarrado Annabeth pelo braço, e tentava impedir que nos arrebentássemos no chão, mas Annabeth e eu ainda estávamos com toda a energia do impulso.

— Vocês são pesados demais! — disse Grover. — Estamos caindo!

Descemos em espiral, com Grover fazendo o que podia para reduzir a velocidade da queda.

Batemos contra um painel de fotografia. A cabeça de Grover entrou bem no buraco onde os turistas enfiavam a cara, fingindo ser Nu-Nu, a Baleia Camarada. Annabeth e eu desmoronamos no chão, machucados, porém vivos. O escudo de Ares ainda estava preso ao meu braço.

Depois que recuperamos o fôlego, Annabeth e eu tiramos Grover do painel e agradecemos a ele por salvar nossa vida. Olhei para o Emocionante Passeio de Amor atrás de nós. A água estava baixando. Nosso barco em pedaços, esmagado contra os portões.

A cem metros, na piscina de entrada do túnel, os Cupidos ainda filmavam. As estátuas tinham se virado de modo que as câmeras estavam apontadas para nós, os holofotes em nossos rostos.

— Acabou o show! — gritei. — Obrigado! Boa noite!

Os Cupidos voltaram às posições originais. As luzes se apagaram. O parque ficou novamente em silêncio e no escuro, a não ser pelo brilho fraco da água na piscina da saída do Emocionante Passeio de Amor. Imaginei se o Olimpo estaria em um intervalo comercial, e se nossos índices de audiência haviam sido bons.

Eu detestava ser provocado. Detestava ser enganado. E tinha vasta experiência de lidar com valentões que gostavam de fazer isso comigo. Levantei o escudo em meu braço e me virei para os meus amigos.

— Precisamos ter uma conversinha com Ares.


DEZESSEIS

A ida de uma zebra para Las Vegas

O deus da guerra nos esperava no estacionamento do restaurante.

— Bem, bem — disse ele. — Você conseguiu não ser morto.

— Você sabia que era uma armadilha — retruquei.

Ares me deu um sorriso malvado.

— Aposto que aquele ferreiro aleijado ficou surpreso quando pegou na rede um par de crianças estúpidas. Você ficou bem na tevê.

Empurrei o escudo para ele.

— Você é um imbecil.

Annabeth e Grover pararam de respirar.

Ares agarrou o escudo e o girou no ar como massa de pizza. O escudo mudou de forma, transformando-se em um colete à prova de balas. Ele o pendurou nas costas.

— Estão vendo aquele caminhão logo ali? — Apontou para um caminhão de dezoito rodas estacionado do outro lado da rua. — É a carona de vocês. Vai levá-los direto a Los Angeles, com uma parada em Vegas.

O caminhão tinha uma placa na parte de trás, que eu só pude ler porque estava pintada ao contrário, em branco sobre preto, uma boa combinação para a dislexia: CARIDADE INTERNACIONAL: TRANSPORTE HUMANITÁRIO DE ZOOLÓGICO. CUIDADO: ANIMAIS SELVAGENS VIVOS.

Eu disse:

— Fala sério!

Ares estalou os dedos. A porta traseira do caminhão se destrancou.

— Carona grátis para oeste, imprestável. Pare de reclamar. E aqui está uma coisinha por ter feito o serviço.

Ele suspendeu uma mochila de náilon azul do seu guidom e a jogou para mim.

Dentro havia roupas limpas para todos nós, vinte dólares em dinheiro, uma bolsa cheia de dracmas de ouro e uma embalagem de biscoito Oreo recheado.

Eu disse:

— Não quero a porcaria do seu...

— Obrigado, Senhor Ares — interrompeu Grover, me fuzilando com seu melhor olhar de alerta vermelho. — Muito obrigado.

Rangi os dentes. Devia ser um insulto mortal recusar algo de um deus, mas eu não queria nada que Ares tivesse tocado. Pendurei a mochila no ombro relutando. Sabia que minha raiva era causada pela presença do deus da guerra, mas ainda sentia uma vontadezinha de lhe dar um murro no nariz. Ele me lembrou de todos os valentões que já havia enfrentado: Nancy Bobofit, Clarisse, Gabe Cheiroso, professores debochados — todos os imbecis que me chamaram de estúpido na escola ou riram de mim quando fui expulso.

Olhei para o restaurante atrás de mim, que tinha agora apenas um ou dois clientes. A garçonete que nos servira o jantar olhava, nervosa, pela janela, como se tivesse medo de que Ares nos machucasse. Ela arrastou o cozinheiro de dentro da cozinha para ver. Disse algo a ele. Ele assentiu, ergueu uma pequena câmera descartável e tirou uma foto de nós.

Boa, pensei. Amanhã vamos estar de novo nos jornais.

Imaginei a manchete: CRIMINOSO DE DOZE ANOS ESPANCA MOTOCICLISTA INDEFESO.

— Você me deve mais uma coisa — disse a Ares, tentando manter o volume de minha voz. — Você me prometeu informações sobre minha mãe.

— Tem certeza de que é capaz de suportar a notícia? — Ele deu a partida no pedal da moto. — Ela não está morta.

O chão pareceu girar embaixo de mim.

— O que quer dizer?

— Quero dizer que ela foi levada pelo Minotauro antes de morrer. Foi transformada em uma chuva de ouro, certo? Isso é metamorfose. Não morte. Ela está sendo mantida presa.

— Presa. Por quê?

— Você precisa estudar guerra, coisinha imprestável. Reféns. Você prende alguém para controlar outro alguém.

— Ninguém está me controlando.

Ele riu.

— Ah, não? A gente se vê por aí, garoto.

Cerrei os punhos.

— Você é bem convencido, Senhor Ares, para um cara que foge de estátuas de Cupido.

Atrás dos óculos escuros, o fogo brilhou. Senti um vento quente nos cabelos.

— Nós nos encontraremos novamente, Percy Jackson. Na próxima vez em que estiver numa briga, cuide de sua retaguarda.

Ele pôs a Harley em movimento e saiu roncando pela rua Delancy.

Annabeth disse:

— Isso não foi muito inteligente, Percy.

— Não estou nem aí.

— Você não quer um deus como inimigo. Especialmente esse deus.

— Ei, gente — disse Grover. — Detesto interromper, mas...

Ele apontou na direção do restaurante. No caixa, os dois últimos clientes estavam pagando suas contas, dois homens de macacões pretos idênticos, com uma logomarca branca nas costas que combinava com a do caminhão da CARIDADE INTERNACIONAL.

— Se vamos pegar o expresso do zoológico — disse Grover —, precisamos nos apressar.

Eu não tinha gostado daquilo, mas não havia opção melhor. Além disso, já tinha visto o suficiente de Denver.

Atravessamos a rua correndo e subimos na traseira do veículo enorme, fechando as portas atrás de nós.

A primeira coisa que percebi foi o cheiro. Era como a maior caixa de areia para cocô de gato do mundo.

O interior da carreta estava escuro até eu tirar a tampa de Anaklusmos. A lâmina lançou uma leve luz de bronze sobre uma cena muito triste. Em uma fileira de jaulas metálicas imundas havia três dos mais patéticos animais de zoológico que eu já vira: uma zebra, um leão albino e um tipo estranho de antílope, cujo nome eu não sabia.

Alguém jogara para o leão um saco de nabos que ele obviamente não queria comer. A zebra e o antílope tinham ganhado uma bandeja de isopor de carne de hambúrguer cada um. A crina da zebra estava toda emaranhada em goma de mascar, como se alguém ficasse cuspindo nela nas horas vagas. O antílope tinha um estúpido balão de aniversário amarrado em um dos seus chifres que dizia PASSEI DA IDADE!

Tudo indicava que ninguém quisera chegar perto o bastante do leão para mexer com ele, mas o pobre andava de um lado para outro em cima de cobertores sujos, em um espaço que era mais do que muito pequeno para ele, arfando com o ar abafado da carreta. Moscas zumbiam em volta de seus olhos cor-de-rosa, e as costelas apareciam no pelo branco.

— Isso é caridade? — gritou Grover. — Transporte humanitário de zoológico?

Ele provavelmente teria saído de volta para bater nos caminhoneiros com suas flautas de bambu, e eu o teria ajudado, mas bem naquele momento o motor roncou, a carreta começou a chacoalhar e fomos forçados a nos sentar ou cair.

Nós nos amontoamos no canto em cima de alguns sacos de ração embolorados, tentando ignorar o cheiro, o calor e as moscas. Grover falou com os animais em uma série de balidos de bode, mas eles apenas olharam tristemente para ele. Annabeth era a favor de arrombar as jaulas e soltá-los ali mesmo, mas argumentei que isso não ia adiantar muito até o caminhão parar de se mover. Além disso, tinha a sensação de que, para o leão, poderíamos parecer bem mais apetitosos do que aqueles nabos.

Achei um jarro de água e reabasteci as tigelas deles, depois usei Anaklusmos para puxar os alimentos trocados para fora das jaulas. Dei a carne ao leão e os nabos para a zebra e o antílope.

Grover acalmou o antílope enquanto Annabeth usava sua faca para tirar o balão preso ao chifre. Pensou também em cortar a goma de mascar da crina da zebra, mas concluímos que seria muito arriscado com o caminhão aos solavancos. Pedimos a Grover para prometer aos animais que os ajudaríamos mais pela manhã, e então nos acomodamos para a noite.

Grover se enrodilhou sobre um saco de nabos; Annabeth abriu nosso pacote de Oreos e mordiscou um deles sem muito entusiasmo; tentei ficar animado com a ideia de que estávamos a meio caminho de Los Angeles. Próximo de nosso destino. Ainda era 14 de junho. O solstício só aconteceria no dia 21. Tínhamos tempo de sobra.

Por outro lado, não tinha ideia do que nos esperava. Os deuses estavam brincando comigo. Pelo menos Hefesto teve a decência de ser honesto quanto a isso — instalou câmeras e me anunciou como entretenimento. Mas até quando não havia câmeras filmando eu tinha a sensação de que a minha missão estava sendo observada. Eu era uma fonte de diversão para os deuses.

— Ei — disse Annabeth. — Sinto muito por ter me apavorado lá no parque aquático, Percy.

— Tudo bem.

— É só que... — Ela estremeceu. — Aranhas.

— Por causa da história de Aracne — adivinhei. — Ela foi transformada em aranha por desafiar sua mãe para uma competição de tecelagem, certo?

Annabeth assentiu.

— Os filhos de Aracne têm se vingado nos filhos de Atena desde então. Se houver uma aranha a um quilômetro de distância de mim, ela me encontrará. Eu odeio aquelas coisinhas rastejantes. De qualquer jeito, lhe devo uma.

— Somos uma equipe, está lembrada? Além disso, Grover fez aquele voo fantástico.

Pensei que estivesse dormindo, mas ele murmurou do seu canto:

— Fui o máximo, não fui?

Annabeth e eu demos risada.

Ela separou as duas partes do biscoito recheado e me deu uma.

— Na mensagem de Íris... Luke realmente não disse nada?

Mastiguei meu biscoito e pensei em como responder. A conversa via arco-íris me incomodara a noite toda.

— Luke disse que você e ele se conhecem há muito tempo. Também disse que Grover não iria fracassar dessa vez. Ninguém seria transformado em pinheiro.

Na pálida luz de bronze da lâmina da espada, era difícil ler a expressão deles.

Grover soltou um balido lamentoso.

— Eu devia ter contado a verdade a você desde o começo. — Sua voz tremia. — Pensei que, se soubesse o fracasso que eu era, não iria querer que eu viesse junto.

— Você era o sátiro que tentou salvar Thalia, a filha de Zeus.

Ele assentiu, com tristeza.

— E os outros dois meios-sangues que Thalia protegeu, os que chegaram ao acampamento em segurança... — Olhei para Annabeth. — Eram você e Luke, não é?

Ela pôs seu biscoito de lado, intocado.

— Como você disse, Percy, uma meio-sangue de sete anos de idade não teria chegado muito longe sozinha. Atena me guiou até a ajuda. Thalia tinha doze anos. Luke, catorze. Os dois haviam fugido de casa, como eu. Ficaram contentes em me levar com eles. Eram... fantásticos combatentes de monstros, mesmo sem treino. Viajamos da Virgínia para o norte sem nenhum plano de verdade, nos defendemos dos monstros por cerca de duas semanas antes de Grover nos encontrar.

— Eu devia escoltar Thalia até o acampamento — disse ele, fungando. — Somente Thalia. Tinha ordens estritas de Quíron: não faça nada que atrase o resgate. Sabíamos que Hades estava atrás dela, entende, mas eu não podia simplesmente abandonar Luke e Annabeth. Achei... achei que conseguiria levar todos os três até um lugar seguro. Foi minha culpa as Benevolentes nos alcançarem. Eu fiquei paralisado. Fiquei apavorado no caminho de volta ao acampamento e peguei alguns desvios errados. Se tivesse sido um pouco mais rápido...

— Pare com isso — disse Annabeth. — Ninguém culpa você. Thalia também não o culpou.

— Ela se sacrificou para nos salvar — disse ele, desconsolado. — Sou culpado pela morte dela. O Conselho dos Anciãos de Casco Fendido disse isso.

— Porque você não deixou outros dois meios-sangues para trás? — disse eu. — Isso não é justo.

— Percy tem razão — disse Annabeth. — Eu não estaria aqui hoje se não fosse por você, Grover. Nem Luke. Não estamos nem aí para o que diz o conselho.

Grover continuou fungando no escuro.

— É a minha sina. Sou o mais fraco dos sátiros, e encontro os dois meios-sangues mais poderosos do século, Thalia e Percy.

— Você não é fraco — insistiu Annabeth. — Tem mais coragem do que qualquer sátiro que já conheci. Cite outro que se atreveria a ir para o Mundo Inferior. Aposto que Percy está muito contente por você estar aqui agora.

Ela me chutou na canela.

— Sim — falei, o que teria feito mesmo sem o chute. — Não foi por sina que você encontrou Thalia e eu, Grover. Você tem o maior coração entre todos os sátiros. Você é um buscador natural. É por isso que é você quem vai achar Pã.

Ouvi um suspiro profundo e satisfeito. Esperei que Grover dissesse algo, mas sua respiração só ficou mais pesada. Quando o som se transformou em ronco, percebi que ele tinha caído no sono.

— Como ele faz isso? — maravilhei-me.

— Não sei — disse Annabeth. — Mas foi realmente legal o que você disse a ele.

— Eu fui sincero.

Viajamos em silêncio por alguns quilômetros, sacudindo em cima dos sacos de ração. A zebra mascou um nabo. O leão lambeu o que restara da carne de hambúrguer dos lábios e olhou para mim esperançoso.

Annabeth esfregou seu colar como se estivesse bolando grandes estratégias.

— Essa conta do pinheiro — disse eu. — É do seu primeiro ano?

Ela olhou. Não havia percebido o que estava fazendo.

— É — falou. — Todo mês de agosto os conselheiros escolhem o evento mais importante do verão, e o pintam nas contas daquele ano. Eu fiquei com o pinheiro de Thalia, uma trirreme grega em chamas, um centauro vestido para um baile... bem, aquele foi um verão estranho...

— E o anel de formatura é do seu pai?

— Isso não é da sua... — Ela se interrompeu. — Sim. Sim, é.

— Você não precisa me contar.

— Não... tudo bem. — Ela respirou fundo, vacilante. — Meu pai o mandou para mim dentro de uma carta, há dois verões. O anel era, bem, sua maior recordação de Atena. Ele não teria conseguido terminar o doutorado em Harvard sem ela... É uma longa história. De qualquer modo, ele disse que queria que eu ficasse com o anel. Desculpou-se por ser um idiota, disse que me amava e sentia saudades de mim. Queria que eu fosse para casa e vivesse com ele.

— Isso não parece tão ruim assim.

— É, mas... o problema é que eu acreditei nele. Tentei ir para casa naquele ano escolar, mas minha madrasta era a mesma de sempre. Não queria ver seus filhos em perigo por viver com uma aberração. Monstros atacavam. A gente brigava. Monstros atacavam. A gente brigava. Não aguentei nem mesmo até as férias de inverno. Chamei Quíron e voltei direto para o Acampamento Meio-Sangue.

— Você acha que vai tentar viver com seu pai de novo?

Ela não me olhou nos olhos.

— Por favor. Não estou a fim de me autoflagelar.

— Você não devia desistir — falei. — Devia lhe escrever uma carta, ou coisa assim.

— Obrigada pelo conselho — disse ela, friamente —, mas meu pai escolheu com quem quer viver.

Passamos mais alguns quilômetros em silêncio.

— Então, se os deuses brigarem — falei —, as coisas vão ficar como na Guerra de Troia? Será Atena contra Poseidon?

Ela encostou a cabeça na mochila que Ares nos dera e fechou os olhos.

— Não sei o que a minha mãe vai fazer. Só sei que vou lutar junto com você.

— Por quê?

— Porque você é meu amigo, cabeça de alga. Mais alguma pergunta boba?

Não consegui pensar em uma resposta para aquilo. Felizmente, não precisei. Annabeth estava dormindo.

Tive dificuldade em seguir o exemplo dela, com Grover roncando e um leão albino me olhando com ar esfomeado, mas por fim fechei os olhos.

Meu pesadelo começou como um milhão de vezes antes: eu sendo forçado a fazer um teste usando uma camisa de força. Todas as outras crianças estavam saindo para o recreio, e o professor ficava dizendo: Vamos, Percy. Você não é burro, não é? Pegue seu lápis.

Então o sonho tomou um rumo diferente.

Olhei para a carteira ao lado e vi uma menina sentada, que também usava uma camisa de força. Tinha a minha idade, com um cabelo preto rebelde, estilo punk, delineador escuro em volta dos olhos verdes tempestuosos, e sardas no nariz. De algum modo, eu sabia quem era. Thalia, filha de Zeus.

Ela se debateu na camisa-de-força, olhou para mim com raiva e frustração, e disparou: E então, cabeça de alga? Um de nós precisa sair daqui.

Ela tem razão. Vou voltar para aquela caverna. Vou dizer o que penso na cara de Hades, pensei no sonho.

A camisa de força se dissolveu e fiquei livre. Caí através do piso da sala de aula. A voz do professor mudou até ficar fria e maligna, ecoando das profundezas de um grande abismo.

Percy Jackson, disse. Sim, a troca foi bem, estou vendo.

Eu estava novamente na caverna escura, com os espíritos dos mortos flutuando à minha volta. De dentro do poço, sem ser vista, a coisa monstruosa falava, mas não se dirigia a mim. O poder entorpecedor de sua voz parecia dirigir-se a outro lugar.

E ele não suspeita de nada?, perguntou.

Outra voz, uma que quase reconheci, respondeu junto ao meu ombro: Nada, meu senhor. Ele é tão ignorante quanto o resto.

Olhei, mas não havia ninguém lá. Quem falara estava invisível.

Mentira em cima de mentira, refletiu em voz alta a coisa no poço. Excelente.

Na verdade, meu senhor, disse a voz ao meu lado, o nome O Trapaceiro lhe foi muito bem aplicado, mas aquilo foi de fato necessário? Eu poderia ter trazido o que roubei diretamente para o senhor...

Você?, escarneceu o monstro. Você já mostrou seus limites. Teria falhado completamente sem minha intervenção.

Mas, meu senhor...

Por favor, pequeno servo. Nossos seis meses nos renderam muito. A ira de Zeus cresceu. Poseidon jogou sua cartada mais desesperada. Agora devemos usá-la contra ele. Logo você terá a recompensa que deseja, e sua vingança. E assim que ambos os itens forem entregues em minhas mãos... mas espere. Ele está aqui.

O quê?

O servo invisível de repente pareceu tenso.

Acaso o convocou, meu senhor?

Não.

Toda a força da atenção do monstro agora se despejava sobre mim, paralisando-me.

Maldito seja o sangue de seu pai — ele é inconstante demais, imprevisível demais. O menino trouxe a si mesmo para cá.

Impossível!, exclamou o servo.

Para alguém fraco como você, talvez, rosnou a voz. Depois sua força gélida se voltou de novo para mim. Então... você quer sonhar com sua missão, meio-sangue? Pois vou atendê-lo.

O cenário mudou.

Eu estava numa vasta sala com um trono, com paredes de mármore negro e piso de bronze. O horripilante trono vazio era feito de ossos humanos fundidos. Postada ao pé do degrau estava minha mãe, uma estátua de luz dourada tremeluzente, os braços estendidos.

Tentei avançar em sua direção, mas minhas pernas não se moviam. Estendi a mão para ela, apenas para perceber que minhas mãos haviam murchado até os ossos. Esqueletos sorridentes de armadura grega se juntavam ao meu redor, vestindo-me com mantos de seda, coroando-me com louros que fumegavam com veneno da Quimera, queimando-me o couro cabeludo.

A voz maligna começou a rir. Vivas ao herói conquistador!

Acordei assustado.

Grover sacudia meu ombro.

— O caminhão parou — disse ele. — Achamos que eles vêm checar os animais.

— Escondam-se! — Annabeth falou baixinho.

Para ela foi fácil. Pôs na cabeça seu boné mágico e desapareceu. Grover e eu tivemos de mergulhar atrás dos sacos de ração e torcer para parecermos dois nabos.

As portas da carreta se abriram com um rangido. A luz e o calor do sol entraram.

— Cara! — disse um dos caminhoneiros, abanando a mão na frente do nariz feio. — Queria estar transportando eletrodomésticos. — Ele trepou para dentro e despejou um pouco d’água nas vasilhas dos animais.

— Com calor, garotão? — perguntou ao leão, e então esvaziou o resto do balde direto na cara do animal.

O leão rugiu de indignação.

— Certo, certo, certo — disse o homem.

Ao meu lado, embaixo dos sacos de nabos, Grover se retesou. Para um herbívoro amante da paz, ele parecia absolutamente sanguinário.

O caminhoneiro jogou um saco meio esmagado de McLanche Feliz para o antílope. E arreganhou um sorriso para a zebra:

— Tudo em cima, Listradona? Ao menos nos livraremos de você nesta parada. Gosta de shows de mágica? Vai adorar este. Vão serrar você no meio!

A zebra, com os olhos arregalados de medo, olhou diretamente para mim.

Não houve som nenhum, mas claro como o dia, eu a ouvi dizer: Liberte-me, senhor. Por favor.

Fiquei perplexo demais para reagir.

Houve um forte toque-toque-toque na lateral da carreta.

O caminhoneiro que estava dentro, conosco, gritou:

— O que você quer, Eddie?

Uma voz do lado de fora — deve ter sido a de Eddie — gritou de volta:

— Maurice? O que você disse?

— Por que está batendo?

Toque-toque-toque.

De fora, Eddie gritou:

— Quem está batendo?

O nosso cara, Maurice, revirou os olhos e voltou para fora, xingando Eddie por ser tão idiota.

Um segundo depois, Annabeth apareceu ao meu lado. Devia ser ela quem fez as batidas, para tirar Maurice da carreta. Ela disse:

— Esse negócio de transporte não deve ser legal.

— Mentira?! — disse Grover. Ela fez uma pausa, como se estivesse escutando. — O leão diz que esses caras são contrabandistas de animais!

É verdade, disse a voz da zebra dentro da minha cabeça.

— Temos de libertá-los! — disse Grover. Ele e Annabeth olharam para mim, esperando meu comando.

Eu tinha ouvido a zebra falar, mas não o leão. Por quê? Talvez fosse mais uma deficiência de aprendizado... Será que eu só podia entender zebras? Então pensei: cavalos. O que Annabeth dissera sobre Poseidon criar cavalos? Uma zebra seria próxima o bastante de um cavalo? Será que era por isso que eu podia entendê-la?

A zebra disse: Abra minha jaula, senhor. Por favor. Ficarei bem, depois disso.

Do lado de fora, Eddie e Maurice ainda estavam gritando um com o outro, mas eu sabia que eles entrariam a qualquer minuto para atormentar os animais. Agarrei Contracorrente e cortei com um golpe a tranca da gaiola da zebra.

A zebra disparou para fora. Virou-se para mim e inclinou a cabeça. Obrigada, senhor.

Grover ergueu as mãos e disse algo a ela em sua fala de bode, como uma bênção.

No momento em que Maurice enfiava a cabeça para verificar que barulho era aquele lá dentro, a zebra saltou por cima dele para a rua. Houve berros, gritos e carros buzinando. Corremos para as portas da carreta a tempo de ver a zebra galopando por uma larga avenida ladeada por hotéis, cassinos e letreiros de neon. Tínhamos acabado de soltar uma zebra em Las Vegas.

Maurice e Eddie correram atrás dela, com alguns policiais correndo atrás deles e gritando:

— Ei! Vocês precisam de permissão para isso!

— Agora seria um bom momento para dar o fora — disse Annabeth.

— Primeiro os outros animais — disse Grover.

Cortei as trancas com minha espada. Grover ergueu as mãos e falou a mesma bênção de bode que usara para a zebra.

— Boa sorte — disse aos animais. O antílope e o leão dispararam para fora das jaulas e foram juntos para as ruas.

Alguns turistas gritaram. A maioria recuou e tirou fotos, provavelmente pensando que se tratasse de algum tipo de show de um dos cassinos.

— Os animais vão ficar bem? — perguntei a Grover. — Quer dizer, o deserto e tudo...

— Não se preocupe — disse ele. — Eu lhes dei uma bênção de sátiro.

— O que quer dizer isso?

— Quer dizer que chegarão à floresta em segurança — disse ele. — Encontrarão água, comida, sombra, e o que mais precisarem até acharem um lugar seguro para viver.

— Por que você não pode fazer uma oração dessas para nós? — perguntei.

— Só funciona com animais.

— Então só iria afetar Percy — ponderou Annabeth.

— Ei! — protestei.

— Brincadeirinha — disse ela. — Venha. Vamos sair desse caminhão imundo.

Cambaleamos para fora, para a tarde do deserto. Fazia quarenta e três graus, fácil, e devíamos estar parecendo vagabundos fritos, mas todos estavam interessados demais nos animais selvagens para prestar muita atenção em nós.

Passamos pelo Monte Carlo e pela MGM. Passamos por pirâmides, por um navio pirata e pela Estátua da Liberdade, que era uma réplica bem pequena, mas ainda assim me deixou com saudades de casa.

Não sabia muito bem o que estávamos procurando. Talvez apenas um lugar para fugir do calor por alguns minutos, achar um sanduíche e um copo de limonada, bolar um novo plano para chegar ao oeste.

Provavelmente, entramos numa rua errada, pois chegamos em um beco sem saída, em frente ao Hotel e Cassino Lótus. A entrada era uma enorme flor de neon, as pétalas acendendo e piscando. Ninguém entrava nem saía, mas as reluzentes portas cromadas estavam abertas, espalhando ar condicionado com cheiro de flores — flor-de-lótus, quem sabe. Eu nunca cheirara uma, por isso não tinha certeza.

O porteiro sorriu para nós.

— Ei, crianças. Vocês parecem cansados. Querem entrar e sentar?

Tinha aprendido a ser desconfiado, mais ou menos na última semana. Imaginava que qualquer um poderia ser um monstro ou um deus. Não dava para saber. Mas aquele cara era normal. Era só olhar. Além disso, fiquei tão aliviado de ouvir alguém que parecia simpático que assenti e disse que adoraríamos entrar. Dentro, demos uma olhada em volta e Grover disse:

— Uau.

O saguão inteiro era uma sala de jogos gigante. E não estou falando de joguinhos vagabundos como o velho Pac-Man ou os caça-níqueis. Havia um toboágua serpenteando em volta do elevador de vidro, que subia pelo menos quarenta andares. Havia uma parede de escalada ao lado de um edifício, e uma ponte interna para bungee-jumping. Trajes de realidade virtual com pistolas laser que funcionavam. E centenas de videogames, cada qual do tamanho de uma tevê widescreen. Basicamente, o que você disser, o lugar tinha. Havia algumas outras crianças jogando, mas não muitas. Não havia espera para nenhum dos jogos. Garçonetes e lanchonetes estavam por toda parte, servindo todo tipo de comida que se possa imaginar.

— Ei! — disse um mensageiro. Pelos menos achei que fosse um mensageiro. Usava uma camisa havaiana branca e amarela com desenhos de lótus, short e sandálias de dedo. — Bem-vindos ao Cassino Lótus. Aqui está a chave do seu quarto.

Eu gaguejei:

— Ahn, mas...

— Não, não — disse ele, rindo. — A conta já foi paga. Sem taxas extras, sem gorjetas. Vocês só precisam subir para o último andar, quarto 4001. Se precisarem alguma coisa, como mais espuma para a banheira quente ou alvos para tiro ao prato, ou o que for, é só ligar para a recepção. Aqui estão os seus cartões GranaLótus. Eles funcionam nos restaurantes e em todos os jogos e brinquedos.

Ele entregou a cada um de nós um cartão de crédito de plástico verde.

Eu sabia que devia haver algum engano. Obviamente ele pensava que éramos crianças milionárias. Mas peguei o cartão e disse:

— Quanto tem aqui?

Ele juntou as sobrancelhas.

— O que quer dizer?

— Quero dizer quanto temos de crédito?

Ele riu.

— Ah, é uma piada. Ei, legal. Aproveitem sua estada.

Subimos de elevador e conferimos nosso quarto. Era uma suíte com três dormitórios separados e um bar cheio de doces, refrigerantes e salgadinhos. Uma linha direta para o serviço de quarto. Toalhas fofas e camas-d’água com travesseiros de penas. Uma televisão enorme com satélite e Internet banda larga. A varanda tinha sua própria banheira quente e, de fato, uma máquina de lançar pratos e uma espingarda — dava para lançar pombos de louça sobre a paisagem de Las Vegas e acertá-los com a espingarda. Não entendi como aquilo podia ser permitido, mas achei muito legal. A vista para a Vegas Boulevard e o deserto era maravilhosa, muito embora eu duvidasse que teríamos tempo para admirar a paisagem com um quarto como aquele.

— Ah, deuses — disse Annabeth. — Este lugar é...

— Maravilhoso — disse Grover. — Supermaravilhoso.

Havia roupas no armário, e cabiam em mim. Franzi a testa, achando um pouco estranho.

Joguei a mochila de Ares na lata de lixo. Não precisaria mais daquilo. Quando fôssemos embora, poderia comprar uma nova na loja do hotel.

Tomei um banho, o que foi uma sensação ótima depois de uma semana de viagem suja. Troquei de roupa, comi um saco de salgadinhos, bebi três Cocas e não me sentia tão bem havia muito tempo. Bem no fundo da cabeça, um probleminha me incomodava. Eu tivera um sonho, ou coisa assim... Precisava falar com meus amigos. Mas certamente aquilo podia esperar.

Saí do quarto e vi que Annabeth e Grover também tinham tomado banho e trocado de roupa. Grover estava comendo batatinhas até se fartar, enquanto Annabeth sintonizava o National Geographic Channel.

— Todos esses canais — disse a ela —, e você liga no National Geographic. Está maluca?

— É interessante.

— Eu me sinto bem — disse Grover. — Adoro este lugar.

Sem que ele se desse conta, as asas apareceram nos seus tênis e o suspenderam a trinta centímetros do chão, depois o desceram de novo.

— Então, o que fazemos agora? — perguntou Annabeth. — Dormimos?

Grover e eu nos entreolhamos e sorrimos. Ambos erguemos os nossos cartões GranaLótus de plástico verde.

— Hora do recreio — falei.

Não conseguia me lembrar da última vez em que me divertira tanto. Eu vinha de uma família relativamente pobre. Para nós esbanjar era comer fora no Burger King e alugar um vídeo. Um hotel cinco estrelas em Vegas? Nem pensar.

Pulei de bungee-jump no saguão cinco ou seis vezes, andei no toboágua, fiz snowboard na rampa de neve artificial, joguei lasertag e atirador de elite do FBI em realidade virtual. Vi Grover algumas vezes, indo de jogo em jogo. Ele tinha gostado mesmo daquela coisa do caçador às avessas — em que os cervos saem e atiram contra os caipiras. Vi Annabeth jogando trívia e outros jogos de cabeçudos. Havia um Sim enorme em 3D, no qual você podia construir sua própria cidade e realmente ver os edifícios holográficos subirem no tabuleiro. Não dei muita importância para esse, mas Annabeth adorou.

Não sei muito bem quando percebi que algo estava errado.

Provavelmente, foi quando reparei no cara que estava em pé ao meu lado no jogo dos atiradores de elite virtuais. Tinha cerca de treze anos, eu acho, mas suas roupas eram esquisitas. Achei que fosse filho de algum dublê do Elvis Presley. Usava jeans boca de sino e uma camiseta vermelha com enfeites pretos, e o cabelo era cacheado e cheio de gel, como o de uma garota de New Jersey em noite de reunião de ex-alunos.

Brincamos juntos no jogo de atiradores, e ele disse:

— Joinha, bicho. Estou aqui há duas semanas e os jogos estão cada vez melhores.

Joinha, bicho?

Mais tarde, enquanto conversávamos, eu disse que alguma coisa era “irada” e ele me olhou meio surpreso, como se nunca tivesse ouvido a palavra ser usada daquele jeito antes.

Disse que seu nome era Darrin, mas assim que comecei a fazer perguntas ele se aborreceu e fez menção de voltar para a tela do computador.

Eu disse:

— Ei, Darrin?

— O quê?

— Em que ano estamos?

Ele franziu a testa para mim.

— No jogo?

— Não. Na vida real.

Ele precisou pensar.

— Mil novecentos e setenta e sete.

— Não — falei, começando a ficar um pouco assustado. — De verdade.

— Ei, bicho. Vibrações ruins. Estou no meio de um jogo.

Depois disso ele me ignorou totalmente.

Comecei a falar com as pessoas e descobri que não era fácil. Elas estavam grudadas na tela da tevê ou no videogame ou na comida ou no que fosse. Achei um cara que me disse que era 1985. Outro cara me disse que era 1993. Todos alegavam não estar ali há muito tempo, alguns dias, algumas semanas no máximo. Realmente não sabiam, nem se importavam com isso.

Então me ocorreu: havia quanto tempo eu estava ali? Pareciam apenas algumas horas, mas seriam mesmo?

Tentei lembrar por que estávamos ali. Íamos para Los Angeles. Deveríamos encontrar a entrada para o Mundo Inferior. Minha mãe... por um momento apavorante, tive dificuldade de lembrar o nome dela. Sally. Sally Jackson. Eu tinha de encontrá-la. Precisava impedir Hades de desencadear a Terceira Guerra Mundial.

Achei Annabeth ainda construindo sua cidade.

— Vamos — disse a ela. — Precisamos sair daqui.

Nenhuma resposta.

Eu a sacudi.

— Annabeth?

Ela ergueu os olhos, aborrecida.

— O quê?

— Escute. O Mundo Inferior. A nossa missão!

— Ora, vamos, Percy. Só mais alguns minutos.

— Annabeth, há gente aqui desde 1977. Crianças que nunca cresceram. Quando você entra, fica para sempre.

— E daí? — perguntou ela. — Você pode imaginar lugar melhor?

Agarrei o pulso dela e a arranquei do jogo.

— Ei! — ela gritou e me bateu, mas ninguém sequer se incomodou em olhar. Estavam ocupados demais.

Eu a fiz olhar em meus olhos. Falei:

— Aranhas. Grandes aranhas peludas.

Aquilo mexeu com ela. Sua visão clareou.

— Ah, meus deuses — falou. — Há quanto tempo nós...

— Não sei, mas temos de encontrar Grover.

Saímos à procura dele, e o encontramos ainda jogando Caçador de Cervos Virtual.

— Grover! — gritamos juntos.

Ele disse:

— Morra, ser humano! Morra, pessoa tola e poluente!

— Grover!

Ele apontou a arma de plástico para mim e começou a clicar, como se eu fosse apenas mais uma imagem na tela.

Olhei para Annabeth e juntos pegamos Grover pelos braços e o arrastamos para longe. Os tênis voadores despertaram e começaram a puxar as pernas dele na direção oposta, enquanto ele gritava:

— Não! Acabei de passar de nível! Não!

O mensageiro do Lótus correu até nós.

— E então, estão prontos para os seus cartões platinum?

— Estamos indo embora — disse a ele.

— Que pena — disse ele, e tive a sensação de que ele estava sendo sincero, de que íamos despedaçar seu coração partindo. — Acabamos de anexar um novo andar cheio de jogos para portadores de cartões platinum.

Ele mostrou os cartões, e eu queria um. Sabia que, se pegasse, jamais iria embora. Ficaria ali, feliz para sempre, jogando para sempre, e logo esqueceria minha mãe, e minha missão, e talvez até meu próprio nome. Ficaria jogando Atirador Virtual com o bicho joinha Darrin Discoteca para sempre.

Grover estendeu a mão para o cartão, mas Annabeth puxou o braço dele e disse:

— Não, obrigada.

Fomos andando em direção à porta, e quando fizemos isso, o cheiro de comida e os sons dos jogos pareceram ficar mais e mais convidativos. Pensei em nosso quarto lá em cima. Podíamos só passar a noite, dormir em uma cama de verdade para variar...

Então disparamos pelas portas do Cassino Lótus e saímos correndo pela calçada. A sensação era de meio de tarde, mais ou menos a mesma hora que havíamos entrado no cassino, mas algo estava errado. O tempo mudara completamente. Estava tempestuoso, com raios de calor relampejando no deserto.

A mochila de Ares estava pendurada em meu ombro, o que era estranho, pois eu tinha certeza de que a jogara na lata de lixo do quarto 4001. Mas naquele momento eu tinha outros problemas com que me preocupar.

Corri para o jornal mais próximo e li o ano primeiro. Graças aos deuses, era o mesmo ano de quando entramos. Então reparei na data: 20 de junho.

Tínhamos ficado no Cassino Lótus por cinco dias.

Restava-nos só um dia até o solstício de verão. Um dia para completar nossa missão.


DEZESSETE

Vamos comprar camas-d'água

A ideia foi de Annabeth.

Ela nos meteu no banco de trás de um táxi de Las Vegas como se realmente tivéssemos dinheiro, e disse ao motorista:

— Los Angeles, por favor.

O taxista mascou seu charuto e nos mediu com os olhos.

— São quatrocentos e oitenta e dois quilômetros. Para isso, vocês têm de pagar adiantado.

— Aceita cartão de débito de cassinos? — perguntou Annabeth.

Ele deu de ombros.

— Alguns. Funcionam como os cartões de crédito. Preciso passar o cartão primeiro.

Annabeth estendeu o cartão GranaLótus verde para ele.

O motorista olhou com ar desconfiado.

— Passe o cartão — convidou Annabeth.

Ele fez isso.

O taxímetro começou a crepitar. Luzes se acenderam. Por fim, um símbolo do infinito apareceu ao lado do cifrão.

O charuto caiu da boca do motorista. Ele olhou para nós de olhos arregalados.

— Em que lugar de Los Angeles... ahn... Sua Alteza?

— O píer Santa Monica. — Annabeth endireitou um pouco o corpo. Dava para perceber que ela gostara daquilo de “Sua Alteza”. — Leve-nos depressa, e pode ficar com o troco.

Talvez ela não devesse ter dito aquilo.

O velocímetro do táxi não caiu nem por um instante abaixo de cento e sessenta ao longo de todo o percurso pelo deserto de Mojave.

Na estrada, tivemos tempo à vontade para conversar. Contei a Annabeth e Grover sobre meu último sonho, mas, quanto mais tentava me lembrar, mais imprecisos foram ficando os detalhes. O Cassino Lótus parecia ter causado um curto-circuito na minha memória. Eu não conseguia me lembrar de como era o som da voz do servo, embora tivesse certeza de que era de alguém que eu conhecia. O servo chamara o monstro no abismo de algum outro nome além de “meu senhor”... Algum nome ou título especial...

— O Silencioso? — sugeriu Annabeth. — O Rico? Ambos são apelidos de Hades.

— Talvez... — falei —, embora nenhum dos dois parecesse muito certo.

— A sala do trono parece ser a de Hades — disse Grover. — É assim que costumam descrevê-la.

Eu sacudi a cabeça.

— Alguma coisa está errada. A sala do trono não era a parte principal do meu sonho. E aquela voz no abismo... Eu não sei. Simplesmente não parecia a voz de um deus.

Os olhos de Annabeth se arregalaram.

— O que foi? — perguntei.

— Ah... nada. Eu estava só... Não, tem de ser Hades. Talvez ele tenha mandado esse ladrão, essa pessoa invisível, para pegar o raio-mestre, e algo tenha dado errado...

— Tipo o quê?

— Eu... eu não sei — disse ela. — Mas se ele roubou o símbolo do poder de Zeus do Olimpo, e os deuses o estavam caçando, quer dizer, uma porção de coisas poderia dar errado. Então esse ladrão teve de esconder o raio, ou ele o perdeu de algum modo. De qualquer jeito, não conseguiu levá-lo até Hades. Foi isso o que a voz disse no seu sonho, certo? O cara fracassou. Isso explicaria o que as Fúrias estavam procurando quando vieram atrás de nós no ônibus. Talvez achem que recuperamos o raio.

Não sabia muito bem o que estava errado com ela. Parecia pálida.

— Mas se eu já tivesse recuperado o raio — falei —, por que estaria viajando para o Mundo Inferior?

— Para ameaçar Hades — sugeriu Grover. — Para suborná-lo ou chantageá-lo para devolver sua mãe.

Eu assobiei.

— Você tem pensamentos perversos para um bode.

— Ora, obrigado.

— Mas a coisa no abismo disse que estava esperando dois itens — falei. — Se o raio-mestre é um, qual é o outro?

Grover sacudiu a cabeça, claramente perplexo.

Annabeth olhava para mim como se soubesse qual seria a minha próxima pergunta e estivesse desejando silenciosamente que eu não a fizesse.

— Você tem ideia do que poderia estar naquele abismo, não tem? — perguntei a ela. — Quer dizer, se não for Hades.

— Percy... não vamos falar sobre isso. Porque se não for Hades... Não. Tem de ser Hades.

A desolação passava por nós. Passamos por uma placa que dizia DIVISA DO ESTADO DA CALIFÓRNIA, VINTE QUILÔMETROS.

Tive a sensação de que estava deixando de notar alguma informação simples e crucial. Era como quando eu olhava para uma palavra que deveria conhecer, mas ela não fazia sentido porque uma ou duas letras estavam flutuando fora do lugar. Quanto mais eu pensava sobre minha missão, mais certeza tinha de que confrontar Hades não era a verdadeira resposta. Havia algo mais acontecendo, algo ainda mais perigoso.

O problema era: estávamos disparados na direção do Mundo Inferior a cento e sessenta quilômetros por hora, apostando que Hades tinha o raio-mestre. Se chegássemos lá e descobríssemos que estávamos errados, não teríamos tempo para corrigir o erro. O prazo do solstício passaria e a guerra começaria.

— A resposta está no Mundo Inferior — assegurou Annabeth. — Você viu os espíritos dos mortos, Percy. Só há um lugar onde isso é possível. Estamos fazendo a coisa certa.

Ela tentou levantar o nosso moral sugerindo estratégias engenhosas para entrar na Terra dos Mortos, mas meu coração não estava naquilo. O fato é que havia muitos fatores desconhecidos. Era como estudar loucamente para uma prova sem saber qual é o assunto. E, acredite em mim, isso eu já fizera muitas vezes.

O táxi ia a toda para oeste. Cada rajada de vento no Vale da Morte parecia um espírito dos mortos. Cada vez que os freios chiavam atrás de um caminhão de dezoito rodas, aquilo me lembrava da voz reptiliana de Equidna.

Ao pôr do sol, o táxi nos deixou na praia de Santa Monica. Era exatamente como as praias de Los Angeles que se veem nos filmes, só que o cheiro era pior. Havia carrosséis de parque de diversão ao longo do píer, palmeiras nas calçadas, sem-teto dormindo nas dunas e surfistas esperando a onda perfeita.

Grover, Annabeth e eu caminhamos até a beira-mar.

— E agora? — perguntou Annabeth.

O Pacífico estava ficando dourado ao sol poente. Pensei em quanto tempo se passara desde que estivera na praia de Montauk, do outro lado do país, olhando para um mar diferente.

Como podia haver um deus capaz de controlar aquilo tudo? O que meu professor de ciências dizia — dois terços da superfície da Terra são cobertos de água? Como eu podia ser filho de alguém tão poderoso?

Entrei na arrebentação.

— Percy? — disse Annabeth. — O que está fazendo?

Continuei andando, até a água chegar à minha cintura, depois ao peito.

Ela gritou para mim:

— Tem ideia de quanto essa água está poluída? Há todos os tipos de coisas tóxicas...

Foi quando minha cabeça submergiu.

De início, prendi a respiração. É difícil inalar água de propósito. Por fim não pude mais aguentar. Inspirei. De fato, eu conseguia respirar normalmente.

Desci andando até os bancos de areia. Não deveria conseguir enxergar naquelas águas escuras, mas de algum modo podia dizer onde tudo estava. Conseguia sentir a textura ondulada do fundo. Podia distinguir colônias de estrelas-do-mar pontilhando os bancos de areia. Podia até ver as correntes, quentes e frias, rodopiando juntas.

Senti algo roçando a minha perna. Olhei para baixo e quase pulei para fora da água como um míssil. Deslizando ao meu lado, havia um tubarão-sombreiro de um metro e meio de comprimento.

Mas ele não estava atacando, apenas esfregava o nariz em mim. Estava nos meus calcanhares como um cachorro. Vacilante, toquei sua barbatana dorsal. Ele resistiu um pouco, como se estivesse me convidando a segurar mais forte. Agarrei a barbatana com as duas mãos. Ele partiu, me puxando. O tubarão me arrastou para o fundo, para a escuridão, e me largou à beira do oceano propriamente dito, onde o banco de areia despencava em um imenso abismo. Era como estar na beira do Grand Canyon à meia-noite, sem conseguir ver muita coisa mas sabendo que o vazio estava bem ali.

A superfície tremeluzia a uns cinquenta metros. Eu sabia que devia ter sido esmagado pela pressão. Mas, por outro lado, o natural era que também não respirasse. Fiquei imaginando se haveria um limite até o qual eu poderia avançar, e se era possível descer direto até o fundo do Pacífico.

Então vi algo reluzindo na escuridão abaixo, ficando maior e mais brilhante à medida que subia na minha direção. Uma voz de mulher, como a da minha mãe, chamou:

— Percy Jackson.

Quando ela chegou mais perto, sua forma ficou mais clara. Tinha cabelos pretos soltos e usava um vestido de seda verde. A luz tremeluzia a seu redor, e os olhos eram tão perturbadoramente bonitos que mal notei o cavalo-marinho do tamanho de um corcel que ela estava montando.

Ela desmontou. O cavalo-marinho e o tubarão-sombreiro se afastaram rapidamente e começaram uma brincadeira que parecia esconde-esconde. A dama submarina sorriu para mim.

— Você chegou longe, Percy Jackson. Muito bem!

Eu não sabia muito bem o que fazer, então me curvei.

— Você é a mulher que falou comigo no rio Mississippi.

— Sim, criança. Eu sou uma nereida, um espírito do mar. Não foi fácil aparecer tão longe, rio acima, mas as náiades, minhas primas da água doce, ajudaram a sustentar minha força vital. Elas honram o Senhor Poseidon, embora não sirvam em sua corte.

— E... você serve na corte de Poseidon?

Ela assentiu.

— Muitos anos se passaram desde que nasceu uma criança do deus do mar. Nós o observamos com grande interesse.

De repente me lembrei dos rostos nas ondas perto da praia de Montauk quando eu era pequeno, reflexos de mulheres sorridentes. Como aconteceu com tantas coisas estranhas em minha vida, nunca havia pensado muito naquilo.

— Se meu pai se interessa tanto por mim — falei —, por que não está aqui? Por que não fala comigo?

Uma corrente fria subiu das profundezas.

— Não julgue o Senhor do Mar tão duramente — disse-me a nereida. — Ele está prestes a lutar em uma guerra indesejada. Tem muito com que ocupar seu tempo. Além disso, está proibido de ajudá-lo diretamente. Os deuses não podem demonstrar tal favoritismo.

— Mesmo com seus próprios filhos?

— Especialmente com estes. Os deuses só podem agir por influência indireta. É por isso que lhe dou um aviso, e um presente.

Ela estendeu a mão aberta e três pérolas brancas brilharam.

— Sei de sua jornada aos domínios de Hades — disse. — Poucos mortais já fizeram isso e sobreviveram: Orfeu, que possuía grande talento musical; Hércules, que tinha grande força; Houdini, que podia escapar até mesmo das profundezas do Tártaro. Você tem esses talentos?

— Ahn... não, senhora.

— Ah, mas você tem algo mais, Percy. Possui dons que está apenas começando a descobrir. Os oráculos vaticinaram um grande e extraordinário futuro para você, desde que sobreviva até a idade adulta. Poseidon não aceitará que morra antes do tempo. Portanto pegue estas pérolas, e quando estiver em apuro, esmague uma delas a seus pés.

— O que vai acontecer?

— Depende do apuro. Mas lembre-se: o que pertence ao mar sempre retornará ao mar.

— E o aviso?

Os olhos dela brilharam com uma luz verde.

— Faça o que seu coração manda, ou perderá tudo. Hades se alimenta de dúvidas e desesperança. Ele o enganará se puder, o fará desconfiar de seu próprio julgamento. Depois que estiver nos domínios dele, Hades jamais permitirá voluntariamente que você parta. Mantenha a fé. Boa sorte, Percy Jackson.

Ela chamou seu cavalo-marinho e partiu para o vazio.

— Espere! — gritei. — No rio, você disse para não confiar em presentes. Que presentes?

— Adeus, jovem herói — gritou ela de volta, a voz desaparecendo nas profundezas. — Você deve ouvir seu coração. — Ela se transformou em um ponto verde luminoso e depois desapareceu.

Eu quis segui-la para as profundezas escuras. Quis ver a corte de Poseidon. Mas ergui os olhos para o crepúsculo que se transformava em noite na superfície. Meus amigos estavam esperando. Tínhamos tão pouco tempo...

Tomei impulso para cima em direção à arrebentação.

Quando cheguei à praia, minhas roupas secaram instantaneamente. Contei a Grover e a Annabeth o que acontecera, e mostrei as pérolas a eles.

Annabeth fez uma careta.

— Nenhum presente vem sem um preço.

— Elas foram de graça.

— Não. — Ela sacudiu a cabeça. — “Não existe almoço grátis.” É um antigo ditado grego que se aplica perfeitamente hoje em dia. Haverá um preço. Aguarde.

Com esse pensamento feliz, demos as costas para o mar.

Tomamos o ônibus para West Hollywood com um pouco dos trocados que sobraram na mochila de Ares. Mostrei ao motorista o recibo com o endereço do Mundo Inferior que eu pegara no Empório de Anões de Jardim da Tia Eme, mas ele nunca ouvira falar nos Estúdios de Gravação M.A.C. — Morto ao Chegar.

— Você me lembra alguém que vi na tevê — falou. — É um ator infantil, ou coisa assim?

— Ahn... eu sou dublê... de uma porção de atores infantis.

— Ah! Está explicado.

Agradeci e desci rapidamente na parada seguinte.

Perambulamos por quilômetros à procura do M.A.C. Ninguém parecia saber onde era. Não constava da lista telefônica.

Duas vezes nos esquivamos para becos, para evitar viaturas de polícia.

Fiquei paralisado na frente da vitrine de uma loja de eletrodomésticos porque uma televisão mostrava uma entrevista com alguém que pareceu muito familiar — meu padrasto, Gabe Cheiroso. Ele estava falando com Barbara Walters — parecendo uma grande celebridade. Ela o entrevistava em nosso apartamento, no meio de um jogo de pôquer, e havia uma jovem loira sentada ao lado dele, afagando-lhe a mão.

Uma lágrima falsa brilhou na bochecha dele enquanto dizia:

— Honestamente, sra. Walters, se não fosse aqui pela Fofinha, minha conselheira nas horas tristes, eu estaria um caco. Meu enteado levou tudo o que me era caro... Minha esposa... meu Camaro... Eu... me desculpe. Sinto dificuldade em falar sobre isso.

— Aí está, América. — Barbara Walters voltou-se para a câmera. — Um homem destroçado. Um menino adolescente com sérios problemas. Deixem-me mostrar agora a última foto desse problemático jovem fugitivo, tirada há uma semana em Denver.

A tela cortou para uma foto granulada em que eu, Annabeth e Grover do lado de fora do restaurante Colorado estávamos falando com Ares.

— Quem são as outras crianças nesta foto? — perguntou Barbara Walters com dramaticidade. — Quem é o homem que está com elas? Percy Jackson é um delinquente, um terrorista ou uma vítima da lavagem cerebral de uma nova e assustadora seita? Quando voltarmos, vamos conversar com uma renomada psicóloga infantil. Fique conosco, América.

— Vamos — disse-me Grover. Ele me arrastou para longe antes que eu abrisse um buraco na vitrine da loja de eletrodomésticos com um murro.

Anoiteceu, e personagens de aparência esfomeada começaram a sair para as ruas para representar seus papéis. Não me entendam mal. Sou nova-iorquino. Não me assusto facilmente. Mas estar em Los Angeles era bem diferente de estar em Nova York. Onde eu morava tudo parecia perto. Embora fosse uma grande cidade, era possível se chegar a qualquer lugar sem se perder. O padrão das ruas e o metrô faziam sentido. Havia um critério de funcionamento das coisas. Desde que não fosse bobo, um garoto podia se sentir seguro lá.

Los Angeles não era assim. Era espalhada, caótica, ficava difícil se locomover. Fazia lembrar Ares. Para Los Angeles, não bastava ser grande; era preciso também provar-se grande sendo barulhenta, estranha e difícil de navegar. Eu não sabia como iríamos encontrar a entrada para o Mundo Inferior até o dia seguinte, o solstício de verão.

Passamos por gangues, vagabundos e camelôs, que nos olhavam como se tentassem avaliar se nos atacar seria um bom negócio.

Quando passamos apressados pela entrada de um beco, uma voz disse no escuro:

— Ei, você.

Como um idiota, parei.

Antes que nos déssemos conta, estávamos cercados. Uma gangue de garotos estava ao nosso redor. Seis ao todo — garotos brancos com roupas caras e expressão perversa. Como os garotos da Academia Yancy; moleques ricos brincando de ser malvados.

Por instinto, destampei Contracorrente.

Quando a espada apareceu do nada, eles recuaram, mas seu líder ou era muito estúpido ou muito valente, porque continuou avançando em minha direção com um canivete de mola.

Cometi o erro de desferir um golpe.

O garoto deu um grito agudo. Mas ele devia ser cem por cento mortal, porque a lâmina passou inofensiva por seu peito. Ele olhou para baixo.

— Mas que...

Calculei que teria mais ou menos três segundos antes que o choque dele se transformasse em raiva.

— Corram! — gritei para Annabeth e Grover.

Empurramos dois deles para fora do caminho e disparamos pela rua, sem saber aonde estávamos indo. Dobramos uma esquina numa curva bem fechada.

— Ali! — gritou Annabeth.

Somente uma loja do quarteirão parecia aberta, as vitrines brilhando em neon. O letreiro acima da porta dizia algo como LACIÁPO ADS MASCA Á’GDUS OS SCRATO.

— Palácio das Camas-d’Água do Crosta? — traduziu Grover.

Não parecia o tipo de lugar onde eu entraria a não ser em uma emergência, mas sem dúvida era essa a situação.

Irrompemos pelas portas, corremos para trás de uma cama-d’água e nos abaixamos. Uma fração de segundo depois, a gangue de garotos passou correndo do lado de fora.

— Acho que os despistamos — ofegou Grover.

Uma voz atrás de nós retumbou:

— Despistaram quem?

Nós três pulamos.

Logo atrás, em pé, estava um cara que parecia um tiranossauro em trajes de passeio. Tinha pelo menos dois metros e tanto de altura, completamente careca. A pele era cinzenta e curtida como couro, olhos de pálpebras grossas e sorriso frio, reptiliano. Aproximava-se lentamente, mas tive a sensação de que poderia se mover depressa se precisasse.

Seu traje parecia saído do Cassino Lótus. Era dos gloriosos anos 70. A camisa era de seda estampada, desabotoada até a metade do peito sem pelos. As lapelas do casaco de veludo eram largas como pistas de pouso. Eram tantas correntes de prata no pescoço que nem consegui contar.

— Eu sou o Crosta — disse com um sorriso amarelo de tanto tártaro.

Resisti ao impulso de dizer, Sim, está na cara.

— Desculpe a invasão — falei. — Estamos só, ahn, dando uma olhada.

— Você quer dizer, se escondendo daqueles garotos mal-encarados — resmungou ele. — Eles ficam vadiando por aqui todas as noites. Entra uma porção de gente na loja, graças a eles. Digam, querem ver uma cama-d’água?

Eu já ia dizer Não, obrigado quando ele pôs uma pata enorme em meu ombro e me empurrou mais para dentro do salão da loja.

Havia todos os tipos de camas-d’água que você possa imaginar: diferentes tipos de madeira, lençóis de padronagens variadas; queen-size, king-size, gigantescas.

— Este é meu modelo de maior sucesso. — Crosta passou as mãos orgulhosamente sobre uma cama coberta com lençóis de cetim preto, com lâmpadas de lava embutidas na cabeceira. O colchão vibrava, e a coisa ficava parecendo gelatina de petróleo.

— Massagem de um milhão mãos — disse Crosta. — Vão em frente, experimentem. Tirem uma soneca, mandem ver. Eu não me importo. Tem pouco movimento hoje.

— Ahn — falei. — Não acho que...

— Massagem de um milhão de mãos! — exclamou Grover, e mergulhou na cama. — Ah, gente! Isso é legal.

— Hummm — disse Crosta, coçando o seu queixo de couro. — Quase, quase.

— Quase o quê? — perguntei.

Ele olhou para Annabeth.

— Faça-me um favor e experimente aquela lá, meu bem. Pode servir.

Annabeth disse:

— Mas o que...

Ele lhe deu algumas palmadinhas tranquilizadoras no ombro e a levou para o modelo Safári Deluxe, com leões de teca entalhados na armação e um acolchoado de leopardo. Como Annabeth não quis deitar, Crosta a empurrou.

— Ei! — protestou ela.

Crosta estalou os dedos.

— Ergo!

Cordas pularam das laterais da cama e envolveram Annabeth como chicotes, prendendo-a ao colchão.

Grover tentou se levantar, mas cordas pularam também de sua cama de cetim preto, e o prenderam.

— N-não é l-l-legal! — gritou ele, a voz vibrando com a massagem de um milhão de mãos. — N-n-nada l-l-legal!

O gigante olhou para Annabeth, voltou-se para mim e arreganhou um sorriso.

— Quase. Droga.

Tentei me afastar, mas a mão dele se arremessou e me agarrou pela nuca.

— Opa, garoto. Não se preocupe. Vamos achar uma para você em um segundo.

— Solte meus amigos.

— Ah, certamente, eu vou. Mas vou ter de ajustá-los primeiro.

— O que quer dizer?

— Todas as camas têm exatamente um metro e oitenta, sabia? Seus amigos são baixinhos demais. Tenho de ajustá-los para servir nas camas.

Annabeth e Grover continuaram se debatendo.

— Não tolero medidas imperfeitas — resmungou Crosta. — Ergo!

Um novo conjunto de cordas pulou dos pés e da cabeceira da cama, enrolando-se nos tornozelos e axilas de Grover e Annabeth. As cordas começaram a se esticar, puxando meus amigos pelas duas extremidades.

— Não se preocupe — disse Crosta para mim. — É um serviço de estiramento. Talvez uns oito centímetros a mais nas colunas deles. Podem até sobreviver. Agora, por que não achamos uma cama de que você goste, heim?

— Percy! — gritou Grover.

Minha cabeça estava a mil. Sabia que não conseguiria dominar sozinho aquele gigante vendedor de camas-d’água. Ele quebraria meu pescoço antes mesmo que eu pegasse a espada.

— Seu nome de verdade não é Crosta, é? — perguntei.

— Na certidão é Procrusto — admitiu ele.

— O Esticador.

Lembrei-me da história: o gigante que tentara matar Teseu com excesso de hospitalidade a caminho de Atenas.

— Sim — disse o vendedor. — Mas quem é capaz de pronunciar Procrusto? É ruim para os negócios. Agora, “Crosta” qualquer um pode dizer.

— Tem razão. Soa muito bem.

Os olhos dele se iluminaram.

— Acha mesmo?

— Ah, sem dúvida — disse eu. — E o acabamento dessas camas? Fabuloso!

Ele abriu um enorme sorriso, mas os dedos não afrouxaram em meu pescoço.

— Digo isso aos meus fregueses. Sempre. Ninguém se preocupa em examinar o acabamento. Quantas lâmpadas de lava embutidas você já viu?

— Não muitas.

— Claro!

— Percy! — gritou Annabeth. — O que está fazendo?

— Não ligue para ela — disse eu a Procrusto. — Ela é impossível.

O gigante riu.

— Todos os meus fregueses são. Nunca têm um metro e oitenta exato. Muito desatencioso. E depois se queixam do ajuste.

— O que você faz quando eles têm mais de um metro e oitenta?

— Ora, isso acontece sempre. É um ajuste simples.

Ele soltou meu pescoço, mas antes que eu pudesse reagir esticou o braço para trás de um balcão próximo e de lá tirou um enorme machado de bronze com lâmina dupla. Ele disse:

— É só centralizar o freguês o melhor possível e aparar o que estiver sobrando nas duas extremidades.

— Ah — falei, engolindo em seco. — Sensato.

— Estou tão satisfeito em cruzar com um freguês inteligente!

Agora as cordas estavam realmente esticando meus amigos. Annabeth estava ficando pálida. Grover fazia sons gorgolejantes, como um ganso estrangulado.

— Então, Crosta... — falei, tentando manter a voz despreocupada. Olhei de relance para a cama Lua de Mel Especial, em forma de coração. — Esta aqui tem mesmo estabilizadores dinâmicos para compensar o movimento ondulatório?

— É claro. Experimente.

— Sim, talvez eu experimente. Mas funcionaria também para um cara grande como você? Sem nenhuma ondulação?

— Garantido.

— Não acredito.

— Pode acreditar.

— Mostre.

Ele sentou com vontade na cama e deu uma palmadinha no colchão.

— Nenhuma ondulação. Viu?

Estalei os dedos.

— Ergo.

As cordas saltaram em volta de Crosta e o achataram contra o colchão.

— Ei! — gritou ele.

— Centralizar bem — falei.

As cordas se reajustaram ao meu comando. A cabeça inteira de Crosta ficou para fora da cabeceira. Os pés ficaram para fora na outra ponta.

— Não! — disse ele. — Espere! É só uma demonstração.

Destampei Contracorrente.

— Alguns ajustezinhos...

Não tive nenhum escrúpulo quanto ao que estava prestes a fazer. Se Crosta não fosse humano, eu, de qualquer jeito, não poderia feri-lo. Se fosse um monstro, merecia ser transformado em pó por algum tempo.

— Você negocia duro — disse-me ele. — Dou-lhe trinta por cento de desconto nos modelos em exposição!

— Acho que vou começar com a parte de cima. — Ergui a espada.

— Sem entrada! Financiamento em seis meses sem juros!

Desci a espada. Crosta parou de fazer ofertas.

Cortei as cordas nas outras camas. Annabeth e Grover puseram-se em pé, gemendo e se encolhendo e me xingando muito.

— Vocês parecem mais altos — falei.

— Muito engraçado — disse Annabeth. — Da próxima vez seja mais rápido.

Olhei para o quadro de avisos atrás do balcão de Crosta. Havia uma propaganda do Serviço de Entregas Hermes e outra do Guia Completo dos Monstros na Área de Los Angeles — “As únicas Páginas Amarelas Monstruosas de que você vai precisar!”. Embaixo daquilo, um panfleto em laranja vivo dos Estúdios de Gravação M.A.C. oferecendo comissões por almas de heróis. “Estamos sempre à procura de novos talentos!” O endereço estava logo abaixo, com um mapa.

— Vamos — disse a meus amigos.

— Espere só um minuto — queixou-se Grover. — Fomos praticamente esticados até a morte!

— Então estão preparados para o Mundo Inferior — falei. — Fica a apenas uma quadra daqui.


DEZOITO

Annabeth usa a aula de adestramento

Estávamos nas sombras da Valencia Boulevard, olhando para as letras douradas gravadas no mármore negro: ESTÚDIOS DE GRAVAÇÃO M.A.C.

Embaixo, impresso nas portas de vidro, PROIBIDA A ENTRADA DE ADVOGADOS, VAGABUNDOS E VIVENTES.

Já era quase meia-noite, mas o saguão estava iluminado e cheio de gente. Atrás do balcão da segurança estava sentado um guarda de aparência agressiva, com óculos escuros e um fone de ouvido.

Virei-me para meus amigos.

— Certo. Vocês se lembram do plano.

— O plano — Grover engoliu seco. — Isso. Adoro o plano.

Annabeth disse:

— O que vai acontecer se o plano não funcionar?

— Sem pensamentos negativos.

— Certo — disse ela. — Estamos entrando na Terra dos Mortos e eu não devo ter pensamentos negativos.

Tirei as pérolas do bolso, as três esferas cor de leite que a nereida me dera em Santa Monica. Elas não pareciam um grande recurso para o caso de algo dar errado.

Annabeth pôs a mão em meu ombro.

— Desculpe, Percy. Você tem razão, vamos conseguir. Vai dar tudo certo.

Ela deu uma cutucada em Grover.

— Ah, está certo! — concordou ele. — Chegamos até aqui. Vamos encontrar o raio-mestre e salvar sua mãe. Sem problemas.

Olhei para os dois e me senti realmente grato. Alguns minutos antes, eu quase os tinha feito ser esticados até a morte em camas-d’água de luxo, e agora eles tentavam bancar os corajosos por minha causa, tentavam fazer com que me sentisse melhor.

Enfiei as pérolas de volta no bolso.

— Vamos chutar alguns traseiros no Mundo Inferior.

Entramos no saguão do M.A.C.

Alto-falantes embutidos tocavam uma música ambiente suave. O carpete e as paredes eram cinza-chumbo. Cactos cresciam nos cantos como mãos de esqueletos. Os móveis eram de couro preto, e todos os assentos estavam ocupados. Havia gente sentada em sofás, gente em pé, gente olhando pela janela ou aguardando o elevador. Ninguém se mexia, nem falava, não faziam nada. Com o canto do olho, eu podia vê-los muito bem, mas, se me concentrasse em qualquer um em particular, eles começavam a parecer... transparentes. Dava para ver através dos seus corpos.

O balcão da segurança ficava em cima de um degrau, portanto tínhamos de olhar para o alto para falar com o guarda.

Ele era alto e elegante, com pele na cor de chocolate e cabelo tingido de loiro, cortado em estilo militar. Usava óculos com armação de casco de tartaruga e um terno de seda italiano que combinava com o cabelo. Uma rosa negra estava presa à lapela, embaixo de um crachá de prata.

Li o nome no crachá e olhei para ele perplexo.

— Seu nome é Quíron?

Ele se inclinou por cima da mesa. Não consegui ver nada em seus óculos exceto meu próprio reflexo, mas seu sorriso era doce e frio, como o de uma jiboia exatamente antes de devorar você.

— Que rapaz mais engraçadinho. — Ele tinha um sotaque estranho... inglês, talvez, mas como se tivesse aprendido inglês como segunda língua. — Diga-me, parceiro, eu pareço um centauro?

— N-não.

— Senhor — acrescentou ele suavemente.

— Senhor — falei.

Ele segurou o crachá e correu o dedo embaixo das letras.

— Consegue ler isto, parceiro? Aqui diz C-A-R-O-N-T-E. Diga comigo: CA-RON-TE.

— Caronte.

— Fantástico! Agora: senhor Caronte.

— Senhor Caronte — disse eu.

— Muito bem. — Ele se recostou. — Detesto ser confundido com aquele homem-cavalo. E agora, como posso ajudá-los, pequenos defuntos?

A pergunta dele me acertou o estômago como uma bola de beisebol. Olhei para Annabeth em busca de ajuda.

— Queremos ir para o Mundo Inferior — disse ela.

A boca de Caronte repuxou-se.

— Bem, isso é revigorante.

— É mesmo? — perguntou ela.

— Direto e honesto. Sem gritos. Sem “Deve haver algum engano, sr. Caronte”. — Ele nos olhou de cima a baixo. — Então, como vocês morreram?

Cutuquei Grover.

— Ah — disse ele. — Ahn... afogados... na banheira.

— Os três? — perguntou Caronte.

Nós assentimos.

— Que banheira grande. — Caronte pareceu levemente impressionado. — Suponho que vocês não têm moedas para a passagem. Com adultos, vocês sabem, eu poderia debitar no cartão de crédito, ou acrescentar o preço da travessia na sua última conta de telefone. Mas com crianças... infelizmente, vocês nunca morrem preparadas. Acho que terão de ficar sentados por alguns séculos.

— Ah, mas nós temos moedas. — Pus três dracmas de ouro sobre o balcão, parte da provisão que eu encontrara na mesa do escritório de Crosta.

— Ora vejam... — Caronte umedeceu os lábios. — Dracmas de verdade. Não vejo uma dessas faz...

Seus dedos pairaram avidamente sobre as moedas.

Estávamos muito perto.

Então Caronte me olhou. O olhar frio atrás dos óculos pareceu abrir um buraco em meu peito.

— Mas você não conseguiu ler meu nome direito. Você é disléxico, rapaz?

— Não. Sou um morto.

Caronte inclinou-se para a frente e deu uma cheirada.

— Você não está morto. Eu devia saber. É um filhote de deus.

— Temos de chegar ao Mundo Inferior — insisti.

Caronte rosnou no fundo da garganta.

No mesmo instante, todas as pessoas na sala de espera se levantaram e começaram a andar de um lado para outro, agitadas, acendendo cigarros, passando as mãos pelos cabelos ou olhando para os relógios de pulso.

— Vão embora enquanto podem — disse-nos Caronte. — Vou ficar com estas moedas e esquecer que os vi.

Ele começou a esticar a mão para as moedas, mas eu as puxei de volta.

— Sem serviço, sem gorjeta. — Tentei parecer mais valente do que me sentia.

Caronte rosnou de novo — um som profundo, de gelar o sangue. Os espíritos dos mortos começaram a bater nas portas do elevador.

— É uma pena — suspirei. — Tínhamos mais para oferecer.

Ergui a sacola inteira com o tesouro de Crosta. Tirei um punhado de dracmas e deixei as moedas escorregarem entre os dedos.

O rosnado de Caronte se transformou em algo mais parecido com um ronronar de leão.

— Acha que pode me comprar, filhote de deus? Ahn... só por curiosidade, quanto você tem aí?

— Muito — falei. — Aposto que Hades não lhe paga o bastante por um trabalho tão duro.

— Ah, você não sabe nem da metade. Iria gostar de ser babá desses espíritos o dia inteiro? Sempre com “Por favor, não me deixe ficar morto” ou “Por favor, deixe-me atravessar de graça”. Não tenho um aumento há três mil anos. Acha que ternos como este custam barato?

— Você merece coisa melhor — concordei. — Algum reconhecimento. Respeito. Bom salário.

A cada palavra, eu empilhava outra moeda de ouro no balcão.

Caronte baixou os olhos para o paletó de seda italiana, como se estivesse se imaginando com algo ainda melhor.

— Devo dizer, rapaz, que a gente está começando a falar a mesma língua. Um pouco.

Empilhei mais algumas moedas.

— Eu poderia mencionar um aumento de salário quando estiver falando com Hades.

Ele suspirou.

— Bem, o barco já está quase cheio. Poderia muito bem encaixar vocês três e zarpar.

Ele se pôs de pé, pegou nosso dinheiro e disse:

— Venham comigo.

Abrimos caminho entre a multidão de espíritos que aguardavam, os quais começaram a puxar nossas roupas como o vento, as vozes sussurrando coisas que eu não podia distinguir. Caronte empurrou-os do caminho, resmungando:

— Parasitas.

Ele nos escoltou até o elevador, que já estava apinhado de almas dos mortos, todos segurando um cartão de embarque verde. Caronte agarrou dois espíritos que tentavam entrar conosco e os empurrou de volta para o saguão.

— Muito bem. Agora, ninguém comece a ter ideias enquanto eu estiver fora — anunciou ele para a sala de espera. — E se alguém tirar minha estação de música de sintonia novamente, farei vocês ficarem aqui por outro milênio. Entendido?

Ele fechou as portas. Enfiou um cartão-chave em uma fenda no painel do elevador e começamos a descer.

— O que acontece com os espíritos que ficam esperando no saguão? — perguntou Annabeth.

— Nada — disse Caronte.

— Por quanto tempo?

— Para sempre, ou até eu me sentir generoso.

— Ah — disse ela. — Isso é... justo.

Caronte ergueu uma sobrancelha.

— Quem disse que a morte era justa, mocinha? Espere até chegar a sua vez. Você vai morrer em pouco tempo, no lugar aonde está indo.

— Vamos sair vivos — falei.

— Ah.

Tive de repente uma sensação de vertigem. Não estávamos mais indo para baixo, mas para a frente. O ar ficou enevoado. Os espíritos à minha volta começaram a mudar de forma. Suas roupas modernas tremiam e se transformavam em mantos cinzentos com capuz. O piso do elevador começou a oscilar.

Pisquei com força. Quando abri os olhos, o terno creme italiano de Caronte fora substituído por um longo manto negro. Seus óculos de tartaruga haviam desaparecido. Onde deviam estar os olhos havia órbitas vazias — como os olhos de Ares, só que os de Caronte eram totalmente escuros, repletos de noite, trevas e desespero.

Ele me viu olhando e disse:

— O quê?

— Nada — consegui dizer.

Achei que ele estivesse sorrindo, mas não era isso. A pele de seu rosto estava ficando transparente, deixando que eu visse até o crânio.

O chão continuou oscilando.

Grover disse:

— Acho que estou ficando enjoado.

Quando pisquei de novo, o elevador não era mais um elevador. Estávamos dentro de uma barcaça de madeira. Caronte usava uma vara para nos mover ao longo de um rio escuro, cheio de óleo, com ossos, peixes mortos e outras coisas estranhas girando na superfície... bonecas de plástico, cravos esmagados, diplomas encharcados com bordas douradas.

— O rio Estige — murmurou Annabeth. — É tão...

— Poluído — disse Caronte. — Há milhares de anos vocês, seres humanos, quando o atravessam, jogam tudo nele... esperanças, sonhos, desejos que jamais se tornaram realidade. Um modo irresponsável de tratar seu lixo, se querem saber.

A névoa subia em espirais da água imunda. Acima de nós, quase perdido nas sombras, havia um teto de estalactites. À frente, a costa distante brilhava com uma luz esverdeada, a cor do veneno.

O pânico obstruiu minha garganta. O que eu estava fazendo ali? Aquelas pessoas ao meu redor... estavam mortas.

Annabeth agarrou minha mão. Em circunstâncias normais, isso teria me embaraçado, mas entendi como ela se sentia. Queria se assegurar de que mais alguém estava vivo naquele barco.

Percebi que eu murmurava uma oração, embora não soubesse bem para quem estava rezando. Ali embaixo só um deus importava, e era ele que eu fora confrontar.

A praia do Mundo Inferior surgiu à vista. Rochas escarpadas e areia vulcânica negra se estendiam terra adentro por cerca de cem metros até um muro alto de pedra, que se prolongava para os lados até onde a vista podia alcançar. De algum lugar por perto nas sombras verdes, veio um som, reverberando nas pedras — o uivo de um grande animal.

— O velho Três-Caras está com fome — disse Caronte. Seu sorriso se tornou esquelético à luz esverdeada. — Má sorte para vocês, filhotes de deuses.

O fundo do nosso barco deslizou sobre a areia preta. Os mortos começaram a desembarcar. Uma mulher segurando a mão de uma menininha. Um casal de idosos capengando lentamente, de braços dados. Um menino em seu manto cinzento, aparentando não ser mais velho que eu, arrastava os pés em silêncio.

Caronte disse:

— Eu lhe desejaria sorte, parceiro, mas isso não existe por aqui. Lembre-se, não deixe de mencionar meu aumento de salário.

Ele contou nossas moedas de ouro em sua bolsa, depois pegou a vara. Gorjeou algo que parecia uma canção de Barry Manilow enquanto empurrava a barcaça de volta através do rio.

Seguimos os espíritos por um caminho já muito percorrido.

Não sei muito bem o que estava esperando — os Portões do Céu, uma ponte levadiça grande e escura ou coisa assim. Mas a entrada para o Mundo Inferior parecia uma mistura de segurança de aeroporto com a autoestrada de New Jersey.

Havia três entradas separadas embaixo de um enorme arco negro que dizia VOCÊ ESTÁ ENTRANDO EM ÉREBO. Em cada entrada havia um detector de metais com câmeras de segurança instaladas no alto. Depois disso, havia cabines de pedágio operadas por ghouls como Caronte.

Os uivos de animal faminto eram agora muito altos, mas eu não conseguia ver de onde vinham. O cão de três cabeças, Cérbero, que deveria guardar a porta do Hades, não estava em lugar nenhum.

Os mortos formaram três filas, duas identificadas como ATENDENTE DE SERVIÇO e uma como MORTE EXPRESSA. A fila MORTE EXPRESSA estava avançando sem parar. As outras duas se arrastavam.

— O que você imagina? — perguntei a Annabeth.

— A fila rápida deve ir diretamente para os Campos de Asfódelos — disse ela. — Sem contestação. Eles não querem se arriscar ao julgamento do tribunal, porque pode ir contra eles.

— Existe um tribunal para gente morta?

— Sim. Três juízes. Eles se revezam na magistratura. O rei Minos, Thomas Jefferson, Shakespeare... pessoas assim. Às vezes olham para uma vida e concluem que aquela pessoa precisa de uma recompensa especial: os Campos Elísios. Às vezes decidem por um castigo. Mas a maioria das pessoas, bem, elas apenas viveram. Nada de especial, nem bom nem mau. Então vão para os Campos de Asfódelos.

— E fazem o quê?

Grover disse:

— Imagine-se em um campo de trigo no Kansas. Para sempre.

— Dureza — disse eu.

— Não tanto quanto aquilo — murmurou Grover. — Olhe.

Uma dupla de ghouls de mantos negros havia puxado um espírito para o lado e o estava revistando junto à mesa da segurança. O rosto do morto parecia vagamente familiar.

— Ele é o pregador que saiu no noticiário, está lembrado? — perguntou Grover.

— Ah, sim — eu lembrava. Nós o tínhamos visto na tevê uma ou duas vezes no dormitório da Academia Yancy. Era um tele-evangelista chato do norte do estado de Nova York que arrecadara milhões de dólares para orfanatos e depois foi pego gastando o dinheiro em artigos para a sua mansão, como assentos de privada folheados a ouro e um campo de minigolfe. Morrera numa perseguição da polícia quando seu “Lamborghini abençoado” despencou de um penhasco.

— O que estão fazendo com ele? — perguntei.

— Castigo especial de Hades — adivinhou Grover. — As pessoas realmente más recebem atenção particular dele quando chegam. As Fúr... as Benevolentes vão preparar uma tortura eterna para ele.

Pensar nas Fúrias me fez estremecer. Percebi que naquele momento estava no território delas. A velha sra. Dodds devia estar lambendo os beiços de expectativa.

— Mas se ele é um pregador — falei —, e acredita em um inferno diferente...

Grover encolheu os ombros.

— Quem disse que ele está vendo este lugar do mesmo modo que nós? Os seres humanos veem o que querem ver. Vocês são muito teimosos... ahn, persistentes, nisso.

Chegamos mais perto dos portões. Os uivos ali eram tão altos que sacudiam o chão embaixo de meus pés, mas ainda assim eu não conseguia perceber de onde vinham.

Então, cerca de quinze metros à nossa frente, a névoa verde tremulou. Exatamente no lugar onde o caminho se dividia em três estava um monstro enorme e indistinto.

Eu não o tinha visto antes porque ele era meio transparente, como os mortos. Até se mexer, sua imagem se fundia com o que quer que estivesse atrás dele. Somente os olhos e os dentes pareciam sólidos. Ele estava me encarando.

Meu queixo caiu. Tudo o que pude pensar em dizer foi:

— É um rottweiler.

Sempre imaginara Cérbero como um grande mastim preto. Mas ele era obviamente um rottweiler de raça pura, a não ser, é claro, por ter duas vezes o tamanho de um mamute, ser quase invisível e ter três cabeças.

Os mortos andavam na direção dele — sem nenhum medo. As filas das placas ATENDENTE EM SERVIÇO se separavam, cada uma para um lado do monstro. Os espíritos de MORTE EXPRESSA caminhavam direto por entre as patas da frente e por baixo da barriga, o que podiam fazer sem sequer se abaixar.

— Estou começando a vê-lo melhor — murmurei. — Por que será?

— Acho... — Annabeth umedeceu os lábios. — Sinto muito, mas acho que é porque estamos mais perto de ser pessoas mortas.

A cabeça do meio do cão se esticou em nossa direção. Ele farejou o ar e rosnou.

— Ele consegue farejar os vivos — falei.

— Mas está tudo bem — disse Grover, trêmulo ao meu lado. — Porque temos um plano.

— Certo — disse Annabeth. Nunca tinha ouvido a voz dela soar tão baixa. — Um plano.

Avançamos na direção do monstro.

A cabeça do meio rosnou para nós, depois latiu tão alto que minhas pupilas chacoalharam.

— Você consegue entender? — perguntei a Grover.

— Ah, sim — disse ele. — Eu consigo entender.

— O que ele está dizendo?

— Não acredito que os seres humanos possuam um palavrão tão grande assim.

Peguei um pedaço de madeira que tinha na mochila — um pé de cama que eu tinha arrancado de um modelo em exposição de Crosta, a Safári Deluxe. Segurei-o no alto e tentei canalizar pensamentos caninos felizes para o Cérbero — comerciais de ração, cães engraçadinhos, postes. Tentei sorrir, como se não estivesse prestes a morrer.

— Ei, garotão — gritei. — Aposto que eles não brincam muito com você aqui.

“GRRRRRRRRRAU!”

— Bom menino — falei, fraquejando.

Acenei o bastão. A cabeça do meio do cão acompanhou o movimento. As outras duas fixaram os olhos em mim, ignorando completamente os espíritos. Eu tinha toda a atenção de Cérbero. Não sabia muito bem se isso era bom.

— Vá buscar! — atirei o bastão para as sombras, um lançamento perfeito. Ouvi o tibum! no rio Estige.

Cérbero me olhou, feroz, nada impressionado. Os olhos eram cheios de ódio e frios.

Fim do plano.

O monstro agora produzia um novo tipo de rosnado, mais profundo nas suas três gargantas.

— Ahn — disse Grover. — Percy?

— Sim?

— Apenas achei que você gostaria de saber.

— Sim?

— Cérbero... Ele está dizendo que temos dez segundos para rezar para o deus que escolhermos. Depois disso... bem... ele está com fome.

— Espere! — disse Annabeth. Ela começou a revirar sua mochila.

Epa, pensei.

— Cinco segundos — disse Grover. — Corremos agora?

Annabeth surgiu com uma bola de borracha vermelha do tamanho de uma grapefruit. A etiqueta dizia PARQUE AQUÁTICO AQUALÂNDIA — DENVER, COLORADO. Antes que eu pudesse impedi-la, ergueu a bola e marchou na direção de Cérbero.

Ela gritou:

— Está vendo a bola? Quer a bola, Cérbero? Senta!

Cérbero parecia tão perplexo quanto nós.

As três cabeças se inclinaram de lado. Seis narinas se dilataram.

— Senta! — gritou Annabeth outra vez.

Eu tinha certeza de que a qualquer momento ela se transformaria no maior biscoito para cachorro do mundo.

Em vez disso, porém, Cérbero lambeu seus três pares de lábios, sacudiu o traseiro e sentou, esmagando imediatamente uma dúzia de espíritos que passavam por baixo dele na fila MORTE EXPRESSA. Os espíritos produziram um chiado abafado ao se dissipar, como ar escapando de pneus.

— Bom menino! — disse Annabeth.

E atirou a bola para Cérbero.

Ele a agarrou com a boca do meio. A bola mal tinha tamanho suficiente para ele morder, e as outras cabeças começaram a avançar na do meio, tentando pegar o novo brinquedo.

— Solta! — ordenou Annabeth.

As cabeças de Cérbero pararam de brigar e olharam para ela. A bola estava presa entre dois dos seus dentes como um pedacinho de chiclete. Ele soltou um lamento alto e assustador, depois largou a bola, gosmenta e quase rasgada no meio, aos pés de Annabeth.

— Bom menino. — Annabeth pegou a bola, ignorando a baba de monstro.

Ela se virou para nós.

— Vão, agora. Fila da MORTE EXPRESSA... essa anda mais rápido.

— Mas... — argumentei.

— Agora! — ordenou ela, no mesmo tom que estava usando com o cão.

Grover e eu avançamos devagarzinho, cautelosos.

Cérbero começou a rosnar.

— Fica! — ordenou Annabeth ao monstro. — Se quer a bola, fica!

Cérbero ganiu, mas ficou onde estava.

— E você? — perguntei a Annabeth quando passamos por ela.

— Sei o que estou fazendo, Percy — murmurou ela. — Pelo menos, tenho quase certeza...

Grover e eu seguimos por entre as pernas do monstro.

Por favor, Annabeth, eu rezei. Não o mande sentar de novo.

Conseguimos passar. Cérbero não era menos assustador visto de trás.

— Bom cachorro! — disse Annabeth.

Ela ergueu a bola vermelha esfrangalhada e, provavelmente, chegou à mesma conclusão que eu — se recompensasse Cérbero, não restaria nada para mais um truque.

Assim mesmo, ela jogou a bola. A boca esquerda do monstro a agarrou imediatamente, só para ser atacada pela cabeça do meio enquanto a cabeça da direita gemia em protesto.

Enquanto o monstro estava distraído, Annabeth marchou energicamente por baixo da barriga dele e juntou-se a nós perto do detector de metais.

— Como fez aquilo? — perguntei, admirado.

— Aula de adestramento — disse ela sem fôlego, e fiquei surpreso ao ver que havia lágrimas em seus olhos. — Quando eu era pequena, na casa do meu pai, nós tínhamos um dobermann...

— Não tem importância — disse Grover puxando minha camisa. — Vamos!

Estávamos a ponto de disparar pela fila de MORTE EXPRESSA quando Cérbero gemeu de dar dó, com todas as três bocas. Annabeth parou.

Cérbero arfava ansioso, a pequenina bola vermelha despedaçada em uma lagoa de baba a seus pés.

— Bom menino — disse Annabeth, mas sua voz pareceu melancólica e insegura.

As cabeças do monstro se inclinaram, como se ele estivesse preocupado com ela.

— Logo vou trazer uma bola nova para você — prometeu Annabeth, insegura. — Você quer?

O monstro choramingou. Eu não precisava falar língua de cachorro para saber que Cérbero ainda estava esperando a bola.

— Bom cachorro. Venho logo visitar você. Eu... eu prometo. — Annabeth virou-se para nós. — Vamos.

Grover e eu passamos pelo detector de metais, que imediatamente soou e disparou a piscar luzes vermelhas.

“Pertences não autorizados! Mágica detectada!”

Cérbero começou a latir.

Nós nos lançamos pelo portão MORTE EXPRESSA, o que disparou ainda mais alarmes, e corremos para dentro do Mundo Inferior.

Alguns minutos depois, estávamos nos escondendo, sem fôlego, no tronco apodrecido de uma imensa árvore negra, enquanto os espíritos da segurança passavam correndo, berrando pela ajuda das Fúrias.

Grover murmurou:

— Bem, Percy, o que aprendemos hoje?

— Que cães de três cabeças preferem bolas de borracha a pedaços de pau?

— Não — disse Grover. — Aprendemos que seus planos são muito, muito ruins!

Eu não tinha essa certeza. Talvez fosse o caso de eu e Annabeth termos tido a ideia certa. Mesmo ali, no Mundo Inferior, todo mundo — até mesmo os monstros — precisa de um pouco de atenção de vez em quando.

Pensei nisso enquanto esperávamos que os ghouls passassem. Fingi que não vi Annabeth enxugar uma lágrima ao ouvir o lamento triste de Cérbero a distância, sentindo falta da nova amiga.


DEZENOVE

De certa forma, descobrimos a verdade

Imagine a maior aglomeração de gente que você já viu em um show, um campo de futebol lotado com um milhão de fãs.

Agora imagine um campo um milhão de vezes maior do que esse, lotado, e imagine que a energia elétrica falhou e não há barulho, não há luz, nem aquelas bolas gigantes quicando por cima da multidão. Algo de trágico aconteceu nos bastidores. Uma massa sussurrante de gente fica simplesmente vagueando nas sombras sem direção, esperando um show que nunca vai começar.

Se é capaz de imaginar isso, tem uma boa ideia de como são os Campos de Asfódelos. A grama preta tinha sido pisoteada por eras de pés mortos. Um vento morno e úmido soprava como o hálito de um pântano. Árvores negras — Grover me disse que eram choupos — cresciam em grupos aqui e ali.

O teto da caverna era tão alto acima de nós que poderia passar por uma massa de nuvens de tempestade, a não ser pelas estalactites, que brilhavam em um cinza pálido e pareciam malvadamente pontudas. Tentei não imaginar que poderiam cair sobre nós a qualquer momento, mas havia várias delas salpicadas ao redor, que caíram e empalaram a si mesmas na grama preta. Acho que os mortos não precisavam se preocupar com pequenos riscos como ser espetados por estalactites do tamanho de foguetes.

Annabeth, Grover e eu tentamos nos misturar com a multidão, permanecendo de olho nos ghouls da segurança. Não pude deixar de procurar rostos familiares entre os espíritos de Asfódelos, mas é difícil olhar para os mortos. Seus rostos tremulam. Todos parecem ligeiramente zangados ou confusos. Eles até nos veem e falam, mas a voz soa como trepidações, como o chiado de morcegos. Depois que eles percebem que você não consegue entendê-los, fecham a cara e se afastam.

Os mortos não são assustadores. São apenas tristes.

Arrastamo-nos, seguindo a fila de recém-chegados que serpenteava desde os portões principais em direção a uma grande tenda negra com uma faixa que dizia:

JULGAMENTOS PARA O ELÍSIO E PARA A DANAÇÃO ETERNA

Bem-vindos, Recém-Falecidos!

Do fundo da tenda saíam duas filas muito menores.

À esquerda, espíritos flanqueados por espíritos malignos de segurança marchavam por um caminho pedregoso rumo aos Campos de Punição, que incandesciam e fumegavam a distância, uma vastidão desértica e rachada com rios de lava e campos minados, e quilômetros de arame farpado separando as diferentes áreas de tortura. Mesmo de longe, pude ver pessoas sendo perseguidas por cães infernais, queimadas na fogueira, forçadas a correr nuas por plantações de cactos ou ouvir música de ópera. Pude apenas distinguir uma colina minúscula com o vulto do tamanho de uma formiga de Sísifo lutando para empurrar sua pedra até o topo. E vi também torturas piores — coisas que nem quero descrever.

A fila que vinha do lado direito do pavilhão dos julgamentos era muito melhor. Dava num pequeno vale cercado de muros — uma comunidade com portões, que parecia ser a única parte feliz do Mundo Inferior. Além do portão de segurança havia belas casas de todos os períodos da história, vilas romanas, castelos medievais e mansões vitorianas. Flores de prata e ouro floresciam nos campos. A grama ondulava nas cores do arco-íris. Dava para ouvir os risos e sentir o cheiro de churrasco.

Elísio.

No meio daquele vale havia um brilhante lago azul, com três pequenas ilhas como um hotel de lazer nas Bahamas. As Ilhas dos Abençoados, para pessoas que escolheram renascer três vezes, e três vezes conquistaram o Elísio. No mesmo instante eu soube que era para lá que queria ir quando morresse.

— É isso mesmo — disse Annabeth como se estivesse lendo meus pensamentos. — Este é o lugar para os heróis.

Mas percebi como havia poucas pessoas no Elísio, como era minúsculo em comparação com os Campos de Asfódelos ou até os Campos da Punição. Portanto, poucas pessoas se davam bem em suas vidas. Era deprimente.

Deixamos o pavilhão dos julgamentos e nos aprofundamos mais nos Campos de Asfódelos. Ficou mais escuro. As cores se esvaíram das nossas roupas. As multidões de espíritos tagarelas começaram a rarear.

Depois de alguns quilômetros de caminhada, passamos a ouvir guinchos familiares a distância. Agigantando-se longe estava um palácio de obsidiana negra, brilhante. Acima dos baluartes rodopiavam três criaturas escuras semelhantes a morcegos: as Fúrias. Tive a sensação de que nos aguardavam.

— Talvez seja tarde demais para voltar atrás — disse Grover com tristeza.

— Vai dar tudo certo. — Tentei parecer confiante.

— Talvez devêssemos procurar em alguns dos outros lugares primeiro — sugeriu Grover. — Como o Elísio, por exemplo...

— Venha, menino-bode. — Annabeth agarrou-lhe o braço.

Grover ganiu. Seus tênis criaram asas e as pernas saltaram para a frente, puxando-o para longe de Annabeth. Ele aterrissou de costas na grama.

— Grover — ralhou Annabeth. — Pare de embromar.

— Mas eu não...

Ele ganiu de novo. Os tênis estavam agora batendo as asas como loucos. Levitaram do chão e começaram a arrastá-lo para longe de nós.

— Maia! — gritou ele, mas a palavra mágica parecia não fazer mais efeito. — Maia, agora mesmo! Um-nove-zero! Socorro!

Eu me refiz da perplexidade e tentei agarrar a mão de Grover, mas era tarde demais. Ele estava ganhando velocidade, escorregando colina abaixo como um trenó.

Corremos atrás dele.

Annabeth gritou:

— Desamarre os tênis!

Foi uma ideia esperta, mas acho que isso não é tão fácil quando os seus sapatos o estão arrastando para a frente a toda a velocidade. Grover tentou sentar, mas não conseguiu alcançar os cadarços.

Continuamos correndo atrás dele, tentando mantê-lo à vista enquanto disparava por entre as pernas dos espíritos que matraqueavam para ele, aborrecidos.

Eu tinha certeza de que Grover iria passar direto dos portões do palácio de Hades, mas de repente os tênis desviaram para a direita e o arrastaram na direção oposta.

A ladeira ficou mais íngreme. Grover ganhou velocidade. Annabeth e eu tivemos de correr a toda para acompanhá-lo. As paredes da caverna se estreitaram dos dois lados, e me dei conta de que estávamos entrando em algum tipo de túnel lateral. Não havia mais grama preta nem árvores, apenas pedras sob os pés, e a luz pálida das estalactites acima.

— Grover! — gritei, minha voz reverberando. — Segure em alguma coisa!

— O quê? — gritou ele de volta.

Estava agarrando os pedregulhos, mas não havia nada grande o bastante para reduzir sua velocidade.

O túnel ficou mais escuro e frio. Os pelos dos meus braços se arrepiaram. O cheiro ali embaixo era nauseabundo. Me fez pensar em coisas que eu nem devia saber — sangue derramado sobre um antigo altar de pedra, o hálito fétido de um assassino.

Então vi o que estava à nossa frente e, de repente, estanquei.

O túnel se alargava para uma enorme caverna escura, e no meio havia um abismo do tamanho de um quarteirão da cidade.

Grover estava escorregando direto para a borda.

— Venha, Percy! — gritou Annabeth, puxando-me pelo pulso.

— Mas aquilo...

— Eu sei! — gritou ela. — O lugar que você descreveu, de seu sonho! Mas Grover vai cair se não o pegarmos. — Ela estava certa, é claro. O apuro de Grover fez com que me mexesse de novo.

Ele estava gritando, arranhando o chão, mas os tênis alados continuavam a arrastá-lo em direção ao poço, e não parecia possível chegar até ele a tempo.

O que o salvou foram seus cascos.

Os tênis voadores sempre ficaram folgados nele, e quando Grover chocou-se com uma grande pedra, seu tênis esquerdo saiu voando e disparou para as trevas, abismo abaixo. O tênis direito continuou a puxá-lo, mas não tão depressa. Grover conseguiu reduzir a velocidade agarrando-se à grande pedra e usando-a como âncora.

Estava a três metros da borda do abismo quando nós o pegamos e o puxamos de volta ladeira acima. O outro tênis alado se desprendeu, circulou em volta de nós furiosamente e chutou nossas cabeças em protesto antes de voar para dentro do abismo a fim de juntar-se a seu par.

Todos desabamos exaustos sobre os pedregulhos de obsidiana. Meus membros pareciam feitos de chumbo. Até minha mochila parecia mais pesada, como se alguém a tivesse enchido de pedras.

Grover estava muito arranhado. Suas mãos sangravam. As pupilas dos olhos se transformaram em fendas, no estilo dos bodes, como sempre acontecia quando ele estava aterrorizado.

— Eu não sei como... — arquejou ele. — Eu não...

— Espere — falei. — Escute.

Eu tinha ouvido algo. Um sussurro profundo na escuridão.

Mais alguns segundos, e Annabeth disse:

— Percy, este lugar...

— Psiu. — Fiquei em pé.

O som estava ficando mais alto, uma voz murmurante, malévola, vinda de longe, muito longe abaixo de nós. Vinda do abismo.

Grover sentou-se.

— O... o que é esse ruído?

Agora Annabeth também ouvira. Pude ver em seus olhos.

— Tártaro. A entrada para o Tártaro.

Destampei Anaklusmos.

A espada de bronze se expandiu, brilhando no escuro, e a voz maligna pareceu vacilar, só por um momento, antes de retomar seu canto.

Eu agora quase conseguia distinguir palavras, palavras muito, muito antigas, ainda mais antigas que o grego. Como se...

— Mágica — falei.

— Temos de dar o fora daqui — disse Annabeth.

Juntos, arrastamos Grover pelos cascos e começamos a voltar pelo túnel. Minhas pernas não se moviam depressa o bastante. Minha mochila pesava. A voz ficou mais alta e irada atrás de nós, e desandamos a correr.

Bem na hora.

Uma rajada fria de vento nos aspirou pelas costas, como se o abismo inteiro estivesse inalando. Por um momento aterrorizante eu perdi o controle, e meus pés começaram a escorregar nos pedregulhos. Se estivéssemos mais perto da borda, teríamos sido sugados para dentro.

Continuamos fazendo força para a frente e finalmente chegamos ao topo do túnel, onde a caverna se abria para os Campos de Asfódelos. O vento parou. Um lamento de indignação ecoou no fundo. Alguma coisa não estava feliz por termos escapado.

— O que era aquilo? — ofegou Grover quando desabamos na relativa segurança de um bosque de choupos negros. — Um dos bichinhos de estimação de Hades?

Annabeth e eu nos entreolhamos. Eu podia ver que ela acalentava uma ideia, provavelmente a mesma que tivera durante a viagem de táxi a Los Angeles, mas estava apavorada demais para dividi-la comigo. Isso já era o bastante para me aterrorizar.

Pus a tampa na minha espada, pus a caneta de volta no bolso.

— Vamos andando. — Olhei para Grover. — Consegue andar?

Ele engoliu em seco.

— Sim, com certeza. Nunca gostei muito daqueles tênis mesmo.

Ele tentou parecer valente, mas estava tremendo tanto quanto Annabeth e eu. O que quer que estivesse naquele abismo, não era bichinho de estimação de ninguém. Era indizivelmente velho e poderoso. Nem mesmo Equidna me dera aquela sensação. Fiquei quase aliviado de dar as costas para aquele túnel e me dirigir para o palácio de Hades.

Quase.

As Fúrias rodeavam os baluartes, lá no alto, nas trevas. As muralhas externas da fortaleza brilhavam em negro e os portões de bronze com dois andares de altura estavam escancarados.

De perto, vi que as gravações nos portões eram cenas de morte. Algumas de tempos modernos — uma bomba atômica explodindo sobre uma cidade, uma trincheira cheia de soldados usando máscaras de gás, uma fila de africanos vítimas da fome aguardando com tigelas vazias —, mas todas pareciam ter sido gravadas no bronze havia milhares de anos. Fiquei pensando se estava olhando para profecias que se tornaram realidade.

Dentro do pátio havia o jardim mais estranho que já vi. Cogumelos multicoloridos, arbustos venenosos e plantas luminosas fantasmagóricas cresciam sem a luz do sol. Gemas preciosas supriam a falta de flores, pilhas de rubis grandes como meu punho, aglomerados de diamantes brutos. Aqui e ali, como convidados de uma festa que foram congelados, havia estátuas de jardim da Medusa — crianças, sátiros e centauros petrificados —, todos sorrindo grotescamente.

No centro do jardim havia um pomar de romãzeiras, suas flores alaranjadas brilhando como neon no escuro.

— O jardim de Perséfone — disse Annabeth. — Continue andando.

Entendi por que ela quis seguir andando. O cheiro ácido daquelas romãs era quase irresistível. Tive um súbito desejo de comê-las, mas então me lembrei da história de Perséfone. Uma mordida de um alimento do Mundo Inferior e nunca mais poderíamos sair. Puxei Grover para longe, para impedi-lo de colher uma delas, grande e suculenta.

Subimos os degraus do palácio, entre colunas negras, passando por um pórtico de mármore negro, para dentro da casa de Hades. O vestíbulo tinha um piso de bronze polido que parecia ferver à luz refletida das tochas. Não havia teto, apenas o teto da caverna muito acima. Acho que eles nunca precisaram se preocupar com chuva aqui embaixo.

Todas as portas laterais eram guardadas por um esqueleto com trajes militares. Alguns usavam armaduras gregas, outros, uniformes ingleses de casacas vermelhas, e havia ainda os que vestiam roupas camufladas com bandeiras americanas esfarrapadas nos ombros. Carregavam lanças, mosquetes ou fuzis. Nenhum deles nos incomodou, mas suas órbitas ocas nos seguiram enquanto andávamos pelo vestíbulo em direção ao grande conjunto de portas no extremo oposto.

Dois esqueletos de fuzileiros navais americanos guardavam as portas. Eles sorriram para nós, com lançadores de granadas atravessados no peito.

— Sabem de uma coisa — murmurou Grover —, aposto que Hades não tem problemas com vendedores de porta em porta.

Minha mochila agora pesava uma tonelada. Eu não conseguia imaginar por quê. Quis abri-la, verificar se por acaso havia recolhido alguma bola de boliche perdida, mas aquele não era o momento.

— Bem, gente — disse. — Acho que devemos... bater?

Um vento quente soprou pelo corredor e as portas se abriram. Os guardas deram um passo para o lado.

— Acho que isso significa entrez-vous — disse Annabeth.

Lá dentro a sala era exatamente como em meu sonho, só que dessa vez o trono de Hades estava ocupado.

Era o terceiro deus que eu conhecia, mas o primeiro que realmente me impressionava como deus.

Para início de conversa, ele tinha pelo menos três metros de altura, e usava mantos de seda preta e uma coroa de ouro trançado. Sua pele era branca como a de um albino, o cabelo comprido até os ombros era preto-azeviche. Não era corpulento como Ares, mas irradiava força. Reclinava-se em seu trono de ossos humanos fundidos parecendo flexível, elegante e perigoso como uma pantera.

No mesmo instante tive a sensação de que ele deveria dar as ordens. Sabia mais do que eu. Devia ser meu mestre. Então disse a mim mesmo para dar o fora.

A aura de Hades estava me afetando, assim como acontecera com a de Ares. O Senhor dos Mortos lembrava retratos que eu tinha visto de Adolf Hitler, ou Napoleão, ou dos líderes terroristas que controlam os homens-bomba. Hades tinha o mesmo olhar intenso, o mesmo tipo de carisma hipnotizador e maligno.

— Você é corajoso de vir até aqui, Filho de Poseidon — disse ele com uma voz untuosa. — Depois do que me fez, você é muito valente, sem dúvida. Ou talvez seja simplesmente muito tolo.

Um entorpecimento se insinuou nas minhas juntas, tentando-me a deitar e tirar uma pequena soneca aos pés de Hades. Queria me enroscar ali e dormir para sempre.

Lutei contra a sensação e dei um passo à frente. Sabia o que tinha de dizer.

— Senhor e tio, trago dois pedidos.

Hades ergueu uma sobrancelha. Quando ele chegou mais para a frente em seu trono, rostos sombrios apareceram nas dobras de suas vestes negras, rostos atormentados, como se o traje fosse feito de almas dos Campos da Punição pegas ao tentarem escapar, costuradas umas às outras. Minha porção “transtorno do déficit de atenção” se perguntou se o resto das roupas dele era feito do mesmo modo. Que coisas horríveis alguém teria de fazer em vida para merecer ser parte da roupa de baixo de Hades?

— Só dois pedidos? — disse Hades. — Criança arrogante. Como se você já não tivesse recebido o bastante. Fale, então. Acho divertido esperar um pouco para fulminar você.

Engoli em seco. Aquilo estava indo mais ou menos tão bem quanto eu temia.

Relanceei para o trono menor, vazio, ao lado do de Hades. Tinha a forma de uma flor negra, decorada em ouro. Desejei que a rainha Perséfone estivesse ali. Lembrei-me de algo nos mitos sobre como ela podia acalmar os humores do marido. Mas era verão. É claro que Perséfone estaria acima no mundo de luz com sua mãe, a deusa da agricultura, Deméter. Suas visitas, e não a inclinação do planeta, criavam as estações.

Annabeth pigarreou. Seu dedo me cutucou nas costas.

— Senhor Hades — disse eu. — Olhe, senhor, não pode haver uma guerra entre os deuses. Isso seria... ruim.

— Realmente ruim — acrescentou Grover, querendo ajudar.

— Devolva o raio-mestre de Zeus para mim — disse eu. — Por favor, senhor, deixe-me levá-lo para o Olimpo.

Os olhos de Hades brilharam perigosamente.

— Você se atreve a continuar com essa farsa, depois de tudo o que fez?

Dei uma olhada para os meus amigos atrás de mim. Pareciam tão confusos quanto eu.

— Ahn... tio — falei. — Você fica dizendo “depois de tudo o que você fez”. O que foi, exatamente, que eu fiz?

A sala do trono tremeu com tanta força que, provavelmente, o impacto foi sentido lá em cima, em Los Angeles. Fragmentos de rocha caíram do teto da caverna. Portas se abriram violentamente em todas as paredes, e guerreiros esqueléticos marcharam para dentro, centenas deles, de todas as épocas e nações da civilização ocidental. Enfileiraram-se nos quatro cantos da sala, bloqueando as saídas.

Hades urrou:

— Você acha que eu quero a guerra, filhote de deus?

Tive vontade de dizer, Bem, esses caras não se parecem muito com ativistas pela paz. Mas achei que poderia ser uma resposta perigosa.

— Você é o Senhor dos Mortos — falei com cautela. — Uma guerra iria expandir seu reino, certo?

— É bem característico dos meus irmãos dizerem uma coisa dessas! Acha que preciso de mais súditos? Não está vendo a grandeza dos Campos de Asfódelos?

— Bem...

— Você tem ideia de quanto meu reino inchou só neste último século, quantas subdivisões tive de criar? — Abri a boca para responder, mas Hades agora estava embalado.

— Mais espíritos de segurança — queixou-se. — Problemas de trânsito no pavilhão de julgamentos. Horas extras em dobro para o pessoal. Eu era um deus rico, Percy Jackson. Controlo todos os metais preciosos embaixo da terra. Mas as minhas despesas!

— Caronte quer um aumento de salário — despejei, acabando de me lembrar do fato. Assim que falei, pensei que perdera uma ótima chance de ficar calado.

— Não me fale de Caronte! — gritou Hades. — Ele está impossível desde que descobriu os ternos italianos! Problemas em toda parte, e eu tenho de lidar com todos eles pessoalmente. O tempo de viagem entre o palácio e os portões já é suficiente para me deixar insano! E os mortos continuam chegando. Não, filhote de deus, eu não preciso de ajuda para arranjar súditos! Não pedi essa guerra.

— Mas você pegou o raio-mestre de Zeus.

— Mentiras! — Mais estrondos. Hades ergueu-se do trono, ficando da altura de uma trave de futebol. — Seu pai pode enganar Zeus, menino, mas eu não sou tão estúpido. Enxergo o plano dele.

— O plano dele?

— Você foi o ladrão no solstício de inverno — disse ele. — Seu pai pensou em mantê-lo como seu pequeno segredo. Ele o mandou para a sala do trono no Olimpo. Você pegou o raio-mestre e meu elmo. Se eu não tivesse enviado minha Fúria para descobri-lo na Academia Yancy, Poseidon talvez tivesse conseguido esconder o plano para desencadear uma guerra. Mas agora você foi forçado a aparecer. Será exposto como o ladrão de Poseidon, e eu terei meu elmo de volta!

— Mas... — falou Annabeth. Pude perceber que a cabeça dela estava a um milhão de quilômetros por hora. — Senhor Hades, seu elmo das trevas também desapareceu?

— Não banque a inocente comigo, menina. Você e o sátiro estiveram ajudando este herói, que veio aqui me ameaçar sem dúvida em nome de Poseidon, a me trazer um ultimato. Poseidon acha que posso ser chantageado para apoiá-lo?

— Não! — falei. — Poseidon não... eu não...

— Não falei nada do desaparecimento do elmo — rosnou Hades — porque não tenho ilusões de que alguém no Olimpo me faça justiça, que me dê alguma ajuda. Não posso permitir que vaze a notícia de que minha arma mais poderosa está desaparecida. Portanto procurei por você eu mesmo, e quando ficou claro que você vinha a mim para fazer sua ameaça, não tentei detê-lo.

— Você não tentou nos deter? Mas...

— Devolva meu elmo agora, ou vou interromper a morte — ameaçou Hades. — Esta é a minha contraproposta. Abrirei a terra e mandarei os mortos se despejarem de volta em seu mundo. Transformarei suas terras em um pesadelo. E você, Percy Jackson... o seu esqueleto liderará o meu exército para fora do Hades.

Todos os soldados esqueléticos deram um passo à frente, com as armas de prontidão.

A essa altura, eu deveria ter ficado aterrorizado. O estranho foi que eu me senti ofendido. Nada me deixa mais zangado do que ser acusado de algo que não fiz. Já tivera uma porção de experiências com isso.

— Você é tão mau quanto Zeus — disse eu. — Acha que roubei você? É por isso que mandou as Fúrias atrás de mim?

— É claro — disse Hades.

— E os outros monstros?

Hades franziu o lábio.

— Não tive nada a ver com eles. Eu não queria uma morte rápida para você; queria você diante de mim, vivo, para enfrentar todas as torturas dos Campos da Punição. Por que acha que o deixei entrar no meu reino tão facilmente?

— Facilmente?

— Devolva o que me pertence!

— Mas eu não tenho o seu elmo. Vim buscar o raio-mestre.

— Que você já possui! — bradou Hades. — Você veio aqui com ele, pequeno idiota, achando que poderia me ameaçar!

— Não é verdade!

— Então abra a sua mochila.

Um pensamento horrível me assaltou. O peso da minha mochila, como uma bola de boliche... Não podia ser...

Tirei a mochila dos ombros e abri o zíper. Dentro havia um cilindro de metal de sessenta centímetros de comprimento, com uma ponta de cada lado, zumbindo de energia.

— Percy — disse Annabeth. — Como...

— Eu... eu não sei. Não entendo.

— Vocês, heróis, são sempre iguais — disse Hades. — Seu orgulho os torna tolos, achando que podem trazer uma arma assim diante de mim. Eu não pedi o raio de Zeus, mas já que ele está aqui, você o entregará a mim. Tenho certeza de que será um excelente instrumento de barganha. E agora... o meu elmo. Onde está?

Eu estava sem fala. Não tinha elmo nenhum. Não tinha ideia de como o raio-mestre fora parar na minha mochila. Quis pensar que Hades estava armando algum tipo de truque. Hades era o vilão. Mas de repente o mundo virara de lado. Percebi que havia sido usado. Alguém fizera Zeus, Poseidon e Hades quererem a caveira um do outro. O raio-mestre estava na minha mochila, e eu recebera a mochila de...

— Senhor Hades, espere — disse eu. — Isso tudo é um engano.

— Um engano? — rugiu Hades.

Os esqueletos apontaram as armas. Lá no alto houve um bater de asas coriáceas, e as três Fúrias voaram para baixo para empoleirar-se nas costas do trono do seu senhor. A que tinha as feições da sra. Dodds arreganhou um sorriso ávido para mim e estalou o seu chicote.

— Não há engano nenhum — disse Hades. — Sei por que você veio, e sei a razão real por que trouxe o raio. Você veio negociar por ela.

Hades soltou uma bola de fogo dourado da palma de sua mão. Ela explodiu nos degraus diante de mim, e lá estava a minha mãe, congelada em uma chuva de ouro, exatamente como no momento em que o Minotauro começou a apertá-la até a morte.

Não pude falar. Estendi a mão para tocá-la, mas a luz era quente como uma fogueira.

— Sim — disse Hades com satisfação. — Eu a tomei. Eu sabia, Percy Jackson, que você por fim viria barganhar comigo. Devolva o meu elmo, e talvez eu a deixe ir. Ela não está morta, você sabe. Ainda não. Mas, se você me desagradar, isso irá mudar.

Pensei nas pérolas no meu bolso. Talvez elas pudessem me safar daquilo. Se ao menos eu conseguisse libertar a minha mãe...

— Ah, as pérolas — disse Hades, e meu sangue gelou. — Sim, meu irmão e os seus truquezinhos. Apresente-as, Percy Jackson.

Minha mão se moveu contra a vontade e eu apresentei as pérolas.

— Apenas três — disse Hades. — Que pena. Você sabe que cada qual protege uma só pessoa. Tente levar a sua mãe, então, filhotinho de deus. E qual dos seus amigos você deixará para trás, para passar a eternidade comigo? Vá em frente. Escolha. Ou me dê a mochila e aceite as minhas condições.

Olhei para Annabeth e Grover. Suas expressões eram soturnas.

— Fomos enganados — disse-lhes. — Pegos numa armadilha.

— Sim, mas por quê? — perguntou Annabeth. — E a voz no abismo...

— Ainda não sei — disse eu. — Mas pretendo perguntar.

— Decida, menino! — gritou Hades.

— Percy. — Grover pôs a mão no meu ombro. — Você não pode lhe entregar o raio.

— Eu sei disso.

— Deixe-me aqui — disse ele. — Use a terceira pérola para a sua mãe.

— Não!

— Eu sou um sátiro — disse Grover. — Nós não temos almas como os seres humanos. Ele pode me torturar até a morte, mas não ficará comigo para sempre. Eu reencarnarei em uma flor, ou alguma outra coisa. É o melhor jeito.

— Não. — Annabeth sacou a sua faca de bronze. — Vocês dois continuam. Grover, você tem de proteger Percy. Você tem de conseguir a sua licença de buscador e começar a sua missão por Pã. Tire a mãe dele daqui. Eu darei cobertura a vocês. Planejo cair lutando.

— Nem pensar — disse Grover. — Eu vou ficar para trás.

— Pense de novo, menino-bode — disse Annabeth.

— Parem, vocês dois! — Era como se o meu coração estivesse sendo rasgado ao meio. Ambos passaram por tanta coisa comigo. Lembrei-me de Grover bombardeando a medusa no jardim de estátuas, e de Annabeth nos salvando de Cérbero; nós sobrevivemos ao Parque Aquático de Hefesto, ao Arco de St. Louis, ao Cassino Lótus. Passei milhares de quilômetros preocupado porque seria traído por um amigo, mas aqueles amigos jamais fariam isso. Eles não fizeram nada a não ser me salvar, vezes e vezes seguidas, e agora queriam sacrificar suas vidas pela minha mãe.

— Eu sei o que fazer — disse eu. — Segurem isto.

Entreguei uma pérola a cada um deles.

Annabeth disse:

— Mas, Percy...

Virei-me e encarei minha mãe. Queria desesperadamente me sacrificar e usar a última pérola para ela, mas sabia o que ela iria dizer. Ela jamais permitiria isso. Eu tinha de levar o raio de volta para o Olimpo e contar a verdade a Zeus. Tinha de impedir a guerra. Ela jamais me perdoaria se eu a salvasse em vez disso. Pensei na profecia feita na Colina Meio-Sangue, que parecia ter sido um milhão de anos atrás. No fim você não conseguirá salvar aquilo que mais importa.

— Desculpe — disse a ela. — Eu voltarei. Vou encontrar um jeito.

A expressão presunçosa na cara de Hades se apagou. Ele disse:

— Filhote de deus...?

— Vou encontrar o seu elmo, tio — disse a ele. — Vou devolvê-lo. Lembre-se do aumento de salário de Caronte.

— Não me desafie...

— E não faria mal brincar com Cérbero de vez em quando. Ele gosta de bolas de borracha vermelhas.

— Percy Jackson, você não vai...

Eu gritei:

— Agora!

Esmagamos as pérolas aos nossos pés. Por um momento apavorante, nada aconteceu.

Hades gritou:

— Destruam-nos!

O exército de esqueletos avançou, espadas desembainhadas, fuzis engatilhados no modo totalmente automático. As Fúrias mergulharam, os chicotes explodindo em chamas.

Exatamente quando os esqueletos abriram fogo, os fragmentos de pérola aos meus pés explodiram em luz verde e em uma rajada de ar fresco do mar. Eu fui encapsulado em uma esfera branca leitosa, que começava a flutuar para fora do chão.

Annabeth e Grover estavam bem atrás de mim. Lanças e balas centelharam inofensivamente nas bolhas de pérola enquanto flutuávamos para cima. Hades gritou com tamanha raiva que a fortaleza inteira se sacudiu e eu soube que aquela não seria uma noite tranquila em Los Angeles.

— Olhem para cima! — gritou Grover. — Vamos bater!

Sem dúvida, estávamos indo direto para as estalactites, as quais imaginei que iriam estourar as nossas bolhas e nos espetar.

— Como se controla essa coisa? — gritou Annabeth.

— Acho que não se controla! — gritei de volta.

Gritamos quando as bolhas colidiram com o teto e... Escuridão.

Será que estávamos mortos?

Não, eu ainda tinha a sensação de velocidade. Estávamos indo para cima, através da rocha sólida, tão facilmente quanto uma bolha de ar na água. Aquele era o poder das pérolas, eu me dei conta — o que pertence ao mar sempre retornará ao mar.

Por alguns momentos, não vi nada além das paredes macias da minha esfera, então minha pérola irrompeu no fundo do oceano. As outras duas esferas leitosas, Annabeth e Grover, me acompanharam enquanto disparávamos para cima através da água. E... pimba!

Explodimos na superfície, no meio da baía de Santa Monica, jogando um surfista para fora da sua prancha com um indignado “Ei, cara!”.

Agarrei Grover e o arrastei até uma boia salva-vidas. Peguei Annabeth e a arrastei também. Um tubarão curioso dava voltas em torno de nós, um grande tubarão branco com cerca de três metros e meio de comprimento.

Eu disse:

— Cai fora!

O tubarão se virou e fugiu apressado.

O surfista gritou alguma coisa sobre cogumelos estragados e se afastou de nós patinhando o mais rápido que podia.

De algum modo, eu sabia que horas eram: início da manhã, 21 de junho, o dia do solstício de verão.

A distância, Los Angeles estava em chamas, nuvens de fumaça subindo de bairros por toda a cidade. Tinha havido um terremoto, sem dúvida, e a culpa era de Hades. Provavelmente estava mandando um exército de mortos atrás de mim naquele instante.

Mas, naquele momento, o Mundo Inferior não era o meu maior problema.

Eu tinha de chegar até a praia. Tinha de levar o raio de Zeus de volta para o Olimpo. Mais que tudo, eu precisava ter uma conversa séria com o deus que me enganara.


VINTE

A luta contra o meu parente imbecil

Um barco da Guarda Costeira nos recolheu, mas eles estavam ocupados demais para ficar conosco por muito tempo, ou para querer saber por que três crianças com roupas casuais foram parar no meio da baía. Havia um desastre para cuidar. Seus rádios estavam entupidos de chamados de emergência.

Eles nos largaram no píer Santa Monica com toalhas em volta dos ombros e garrafas d’água que diziam EU SOU UM GUARDA-COSTEIRO MIRIM! e saíram às pressas para salvar mais gente.

Nossas roupas estavam encharcadas, inclusive as minhas. Quando o barco da Guarda Costeira apareceu, eu implorei baixinho que eles não me tirassem da água e me achassem perfeitamente seco, o que teria feito algumas sobrancelhas se erguerem. Então desejei ficar encharcado. Sem dúvida, minha mágica à prova d’água me abandonara. Eu também estava descalço, porque entregara meus sapatos a Grover. Era melhor a Guarda Costeira se perguntar por que um de nós estava descalço do que se perguntar por que um de nós tinha cascos.

Depois de chegar a terra firme, saímos cambaleando pela praia, vendo a cidade queimar contra um lindo pôr do sol. Era como se tivesse acabado de retornar do mundo dos mortos — o que era verdade. Minha mochila estava pesada, com o raio-mestre de Zeus. Meu coração estava ainda mais pesado por ter visto minha mãe.

— Eu não acredito — disse Annabeth. — A gente passou por tudo aquilo e...

— Foi um truque — disse eu. — Uma estratégia digna de Atena.

— Ei — avisou.

— Você entendeu, não é?

Ela baixou os olhos, a raiva murchou.

— Sim. Entendi.

— Bem, eu não entendi! — reclamou Grover. — Será que alguém poderia...

— Percy... — disse Annabeth. — Eu sinto muito pela sua mãe. Sinto tanto...

Fiz que não estava ouvindo. Se eu falasse sobre a minha mãe, ia começar a chorar como uma criancinha.

— A profecia estava certa — disse eu. — “Você deve ir para o oeste, e enfrentar o deus que se tornou desleal.” Mas não era Hades. Hades não queria guerra entre os Três Grandes. Algum outro executou o roubo. Alguém roubou o raio-mestre de Zeus, e o elmo de Hades, e tramou contra mim porque sou filho de Poseidon. Poseidon será culpado por ambos os lados. Ao pôr do sol de hoje, haverá uma guerra tríplice. E eu a terei causado.

Grover sacudiu a cabeça, desconcertado.

— Mas quem seria tão fingido? Quem iria querer uma guerra tão ruim?

Parei bruscamente, olhando para a praia.

— Puxa, deixem-me pensar.

Ali estava ele, aguardando por nós, em seu casaco preto de couro, e óculos escuros, um bastão de beisebol de alumínio ao ombro. A motocicleta roncava ao seu lado, o farol deixando a areia vermelha.

— Ei, garoto — disse Ares, parecendo genuinamente contente em me ver. — Você devia estar morto.

— Você me enganou — disse eu. — Você roubou o elmo e o raio-mestre.

Ares arreganhou um sorriso.

— Bem, mas eu não os roubei pessoalmente. Deuses tirando símbolos de poder uns dos outros, nã-nã-nã, isso é inaceitável. Mas você não é o único herói do mundo que pode dar recados.

— Quem você usou? Clarisse? Ela estava lá no solstício de inverno.

A ideia pareceu diverti-lo.

— Não importa. A questão, garoto, é que você está impedindo o esforço de guerra. Entenda, você precisa morrer no Mundo Inferior. Então o Velho Alga do Mar vai ficar furioso com Hades por matá-lo. O Hálito de Cadáver ficará com o raio-mestre de Zeus, e assim Zeus ficará furioso com ele. E Hades ainda está procurando por isto...

Ele tirou do bolso um capuz de esqui — do tipo que os ladrões de banco usam — e o colocou no meio do guidão da sua moto. Imediatamente, o capuz se transformou em um elaborado capacete de guerra em bronze.

— O elmo das trevas — arfou Grover.

— Exatamente — disse Ares. — Mas onde é mesmo que eu estava? Ah, sim, Hades ficará furioso com ambos, Zeus e Poseidon, porque ele não sabe quem pegou isto. Logo logo teremos uma bela pancadariazinha tríplice em andamento.

— Mas eles são a sua família! — protestou Annabeth.

Ares encolheu os ombros.

— O melhor tipo de guerra. Sempre a mais sangrenta. Nada como ficar olhando seus parentes lutarem, eu sempre digo.

— Você me deu a mochila em Denver — disse eu. — O raio-mestre estava lá o tempo todo.

— Sim e não — disse Ares. — Provavelmente é complicado demais para o seu pequeno cérebro mortal acompanhar, mas a mochila é a bainha do raio-mestre, apenas um pouco adaptada. O raio está conectado a ela, tipo aquela sua espada, garoto. Ela sempre volta para o seu bolso, certo?

Não estava bem certo de como Ares sabia disso, mas acho que um deus da guerra precisa tratar de conhecer tudo sobre armas.

— De qualquer modo — continuou Ares —, eu modifiquei a mágica um pouquinho, para que o raio só retornasse à bainha depois de você chegar ao Mundo Inferior. Chegou perto de Hades... Bingo! Você recebeu um e-mail. Se você morresse no caminho, não haveria perda. Eu ainda teria a arma.

— Mas por que você simplesmente não ficou com o raio para você? — disse eu. — Por que mandá-lo para Hades?

O queixo de Ares crispou-se. Por um momento, foi quase como se ele estivesse ouvindo uma outra voz, bem no fundo da cabeça.

— Por que eu não... sim... com esse tipo de poder de fogo...

Ele manteve o transe por um segundo... dois segundos...

Troquei olhares nervosos com Annabeth.

A cara de Ares clareou.

— Porque eu não queria ter problemas. Melhor você ser pego em flagrante, segurando a coisa.

— Você está mentindo — disse eu. — Mandar o raio para o Mundo Inferior não foi ideia sua, foi?

— É claro que foi! — Fumaça escapou por baixo dos seus óculos escuros, como se eles estivessem a ponto de pegar fogo.

— Você não ordenou o roubo — adivinhei. — Alguém mais enviou um herói para roubar os dois itens. Então, quando Zeus mandou você caçá-lo, você pegou o ladrão. Mas você não o entregou a Zeus. Alguma coisa o convenceu a deixá-lo ir. Você guardou os itens até que outro herói pudesse vir e completar a entrega. Aquela coisa no abismo está dando ordens a você.

— Eu sou o deus da guerra! Não aceito ordens de ninguém! Eu não tenho sonhos!

Eu hesitei.

— Quem foi que disse alguma coisa sobre sonhos?

Ares pareceu agitado, mas tentou encobrir isso com um sorriso forçado.

— Vamos voltar ao problema em pauta, garoto. Você está vivo. Eu não posso deixar que leve aquele raio para o Olimpo. Pode ser que consiga convencer aqueles idiotas cabeças-duras a ouvi-lo. Portanto preciso matá-lo. Não é nada pessoal.

Ele estalou os dedos. A areia explodiu aos seus pés e surgiu um javali feroz investindo, ainda maior e mais feio que aquele cuja cabeça estava pendurada acima da porta do chalé 7 do Acampamento Meio-Sangue. A besta escarvou a areia, olhando furiosamente para mim com olhos pequenos e brilhantes enquanto abaixava as presas afiadas como navalhas e aguardava a ordem para matar.

Eu entrei na arrebentação.

— Enfrente-me você mesmo, Ares.

Ele riu, mas ouvi um pouco de tensão na sua risada... um certo constrangimento.

— Você só tem um talento, garoto, que é fugir. Você fugiu da Quimera. Você fugiu do Mundo Inferior. Não tem coragem para me enfrentar.

— Com medo?

— Só nos seus sonhos de adolescente. — Mas seus óculos escuros estavam começando a derreter com o calor dos olhos. — Nada de envolvimento direto. Sinto muito, garoto. Você não está no meu nível.

Annabeth disse:

— Percy, corra!

O javali gigante atacou.

Mas eu já estava cansado de correr de monstros. Ou de Hades, ou de Ares, ou de qualquer um.

Quando o javali investiu contra mim, eu destampei minha caneta e dei um passo para o lado. Contracorrente apareceu nas minhas mãos. Dei um golpe para cima. A presa direita decepada do javali caiu aos meus pés, enquanto o animal desorientado investia contra o mar.

Eu gritei:

— Onda!

Imediatamente uma onda surgiu do nada e engolfou o javali, enrolando-se nele como um cobertor. A besta guinchou uma vez, aterrorizada. E então se foi, engolida pelo mar.

Voltei-me novamente para Ares.

— Você vai lutar comigo agora? — perguntei. — Ou vai se esconder de novo atrás de um porquinho de estimação?

A cara de Ares estava roxa de raiva.

— Tome cuidado, garoto. Eu poderia transformá-lo em...

— Uma barata — disse eu. — Ou uma lombriga. Sim, eu tenho certeza. Isso o salvaria de ter o seu divino couro chicoteado, não é mesmo?

Chamas dançaram por cima dos seus óculos.

— Ah, você realmente está pedindo para ser esmagado até virar uma poça de gordura.

— Se eu perder, me transforme no que quiser. Fique com o raio. Se eu vencer, o elmo e o raio são meus, e você tem de ir embora.

Ares me olhou com uma expressão de escárnio.

Ele brandiu o bastão de beisebol que trazia ao ombro.

— Como gostaria de ser esmagado: modo clássico ou moderno?

Eu lhe mostrei a minha espada.

— Legal, menino morto — disse ele. — Modo clássico então. — O bastão de beisebol transformou-se em uma enorme espada de duas mãos. A guarda era uma grande caveira de prata com um rubi na boca.

— Percy — disse Annabeth. — Não faça isso. Ele é um deus.

— Ele é um covarde — disse eu para ela.

Ela engoliu em seco.

— Use isto pelo menos. Para dar sorte.

Ela tirou o seu colar, com cinco anos de contas do acampamento e o anel do pai dela, e colocou em volta do meu pescoço.

— Reconciliação — disse ela. — Atena e Poseidon juntos.

Meu rosto ficou um pouco quente, mas consegui sorrir.

— Obrigado.

— E pegue isto — disse Grover. Ele me entregou uma lata achatada que parecia estar no seu bolso há mil quilômetros. — Os sátiros lhe dão respaldo.

— Grover... eu não sei o que dizer.

Ele me deu uma palmadinha no ombro. Enfiei a lata no meu bolso de trás.

— Vocês já se despediram? — Ares veio em minha direção, o comprido casaco de couro preto se arrastando atrás dele, a espada faiscando como fogo ao nascer do sol. — Eu venho lutando há uma eternidade, garoto. Minha força é ilimitada e eu não posso morrer. O que você tem?

Um ego menor, pensei, mas não disse nada. Mantive os pés na arrebentação, recuando na água até os tornozelos. Pensei no que Annabeth havia dito no restaurante de Denver, tanto tempo atrás: Ares tem força. É tudo o que ele tem. Mesmo a força às vezes tem de se curvar à sabedoria.

Ele desceu a espada, tentando rachar ao meio a minha cabeça, mas eu não estava lá.

Meu corpo pensava por mim. A água pareceu me empurrar para o ar e eu me lancei para cima dele, golpeando para o lado com a espada ao descer. Mas Ares foi igualmente rápido. Torceu o corpo e o golpe que deveria tê-lo pego diretamente na espinha foi desviado para fora pela guarda da sua espada.

Ele sorriu.

— Nada mau, nada mau.

Ele atacou de novo e fui forçado a pular para a terra seca. Tentei sair de lado, para voltar à água, mas Ares parecia saber o que eu queria. Ele foi mais habilidoso, me pressionando tanto que tive de me concentrar totalmente em não ser cortado em pedaços. Continuei recuando para longe da arrebentação. Não conseguia achar nenhuma abertura para atacar. O alcance da espada dele era bem maior que o de Anaklusmos.

Chegue perto, Luke me dissera uma vez, em nossa aula de esgrima. Quando a sua lâmina é a mais curta, chegue perto.

Avancei com uma estocada, mas Ares estava esperando por isso. Ele arrancou a espada das minhas mãos e me chutou no peito. Eu saí voando — cinco, talvez dez metros. Teria quebrado as costas se não tivesse desabado sobre a areia fofa de uma duna.

— Percy! — gritou Annabeth. — Polícia!

Estava vendo tudo dobrado. Parecia que o meu peito tinha sido atingido por um aríete, mas consegui me pôr em pé.

Eu não podia desviar os olhos de Ares por medo de que ele me cortasse ao meio, mas com o canto do olho vi as luzes vermelhas piscando na avenida beira-mar. Portas de carros batiam.

— Ali, guarda! — gritou alguém. — Está vendo?

Uma voz brusca de policial:

— Parece aquele garoto da tevê... que diabo...

— Aquele cara está armado — disse outro policial. — Peça reforços.

Rolei para o lado e a lâmina de Ares cortou a areia.

Corri para a minha espada, peguei-a e desferi um golpe contra o rosto de Ares, apenas para ver a minha lâmina desviada de novo.

Ares parecia saber exatamente o que eu ia fazer um momento antes.

Recuei para a arrebentação, forçando-o a me seguir.

— Admita, garoto — disse Ares. — Você está perdido. Estou só brincando com você.

Meus sentidos estavam fazendo hora extra. Agora eu entendia o que Annabeth dissera sobre como o transtorno do déficit de atenção pode manter você vivo na batalha. Eu estava totalmente desperto, notando cada pequeno detalhe.

Eu podia ver onde Ares estava se retesando. Podia dizer de que lado ele ia atacar. Ao mesmo tempo, tinha consciência de Annabeth e Grover, dez metros à minha esquerda. Vi uma segunda viatura parando, a sirene uivando. Espectadores, pessoas que perambulavam pelas ruas por causa do terremoto, começavam a se juntar. No meio da multidão, pensei ver alguns andando com aquele estranho passo de trote de sátiros disfarçados. Havia também vultos rebrilhantes de espíritos, como se os mortos tivessem se erguido do Hades para assistir à batalha. Ouvi o bater de asas coriáceas circulando em algum lugar acima.

Mais sirenes.

Avancei mais para dentro da água, mas Ares foi rápido. A ponta da sua espada rasgou a manga da minha roupa e roçou o meu antebraço.

A voz de um policial no megafone disse:

— Larguem as espingardas! Coloquem na areia. Agora!

Espingardas?

Olhei para a arma de Ares, e ela parecia estar tremeluzindo; às vezes parecia uma espingarda, às vezes uma espada de duas mãos. Eu não sabia o que os seres humanos estavam vendo nas minhas mãos, mas tinha certeza de que não os faria gostar de mim.

Ares virou-se para olhar ferozmente para os nossos espectadores, o que me deu um momento para respirar. Havia cinco viaturas de polícia agora, e uma fileira de policiais abaixados atrás delas, com pistolas apontadas para nós.

— Este é um assunto particular! — berrou Ares. — Vão embora!

Ele fez um movimento circular com a mão, e uma parede de chamas vermelhas passou através das viaturas. Os policiais mal tiveram tempo de mergulhar para se proteger antes de os carros explodirem. A multidão se dispersou aos gritos.

Ares soltou uma gargalhada retumbante.

— Agora, heroizinho. Vamos acrescentar você ao churrasco.

Ele golpeou. Eu desviei da lâmina. Cheguei perto o bastante para atacar, tentei enganá-lo com uma ginga, mas o meu golpe foi rechaçado. As ondas agora estavam me atingindo nas costas. Ares estava mergulhado até as coxas, avançando atrás de mim.

Senti o ritmo do mar, as ondas ficando maiores enquanto a maré avançava, e de repente tive uma ideia. Ondas pequenas, pensei. E a água atrás de mim pareceu recuar. Eu estava segurando a maré com a força da minha vontade, mas a tensão se acumulava, como gás carbônico atrás de uma rolha.

Ares avançou, sorrindo confiante. Eu abaixei a minha lâmina, como se estivesse exausto demais para prosseguir. Aguarde, eu disse para o mar. A pressão agora estava quase me levantando acima dos pés. Ares ergueu a espada. Eu liberei a maré e pulei, subindo como um rojão em uma onda, passando diretamente por cima de Ares. Uma parede de dois metros de água o atingiu em cheio no rosto, e ele ficou praguejando e cuspindo com a boca cheia de algas. Caí em pé atrás dele, espirrando água, e simulei um ataque em direção à cabeça dele, como já havia feito. Ele se virou a tempo de erguer a espada, mas dessa vez estava desorientado e não previu o truque. Mudei de direção, investi para o lado e mandei Contracorrente diretamente para baixo na água, enfiando a ponta no calcanhar do deus.

O rugido que se seguiu fez o terremoto do Hades parecer um evento menor. O próprio mar explodiu para longe de Ares, deixando um círculo de areia molhada com quinze metros de diâmetro.

Icor, o sangue dourado dos deuses, jorrou de um talho profundo na bota do deus. A expressão no seu rosto ia além do ódio. Era dor, choque, incredulidade total por ter sido ferido.

Ele veio mancando na minha direção, resmungando antigas pragas gregas.

Alguma coisa o deteve.

Era como se uma nuvem tivesse encoberto o sol, mas pior. A luz foi sumindo. Sons e cores se extinguiram. Uma presença fria e pesada passou sobre a praia, retardando o tempo, diminuindo a temperatura até o congelamento, e fazendo-me sentir que a vida não valia a pena, que lutar era inútil.

As trevas se dissiparam.

Ares parecia aturdido.

As viaturas da polícia ardiam atrás de nós. A multidão de espectadores fugira. Annabeth e Grover estavam plantados na praia, em choque, observando a água se derramar de volta em torno dos pés de Ares, e o seu luminescente icor dourado se diluindo na maré.

Ares abaixou a espada.

— Você fez um inimigo, filhote de deus — disse-me ele. — Você selou o seu destino. A cada vez que erguer a sua lâmina em batalha, a cada vez que você esperar sucesso, sentirá a minha maldição. Cuidado, Perseu Jackson. Cuidado.

Seu corpo começou a brilhar.

— Percy! — gritou Annabeth. — Não olhe!

Virei-me enquanto o deus Ares revelava sua verdadeira forma imortal. De algum modo eu sabia que, se olhasse, iria me desintegrar em cinzas.

A luz se extinguiu.

Olhei para trás. Ares se fora. A maré recuou para revelar o elmo de bronze das trevas de Hades. Eu o recolhi e fui andando na direção dos meus amigos.

Mas, antes de chegar lá, ouvi o bater de asas de couro. Três vovós de aparência maligna com chapéus de renda e chicotes flamejantes desceram do céu e pousaram diante de mim.

A Fúria do meio, a que tinha sido a sra. Dodds, deu um passo à frente. Seus caninos estavam expostos, mas pela primeira vez não tinha um aspecto ameaçador. Parecia mais desapontada, como se tivesse planejado me comer na ceia, mas percebera que eu poderia lhe dar indigestão.

— Nós vimos tudo — sibilou ela. — Então... realmente não foi você?

Joguei o capacete para ela, e ela o agarrou, surpresa.

— Devolva isto ao Senhor Hades — disse eu. — Conte-lhe a verdade. Diga-lhe para cancelar a guerra.

Ela hesitou, depois passou uma língua bifurcada pelos lábios coriáceos verdes.

— Viva bem, Percy Jackson. Torne-se um verdadeiro herói. Porque, se você não o fizer, se algum dia cair nas minhas garras de novo...

Ela cacarejou, saboreando a ideia. Então ela e as irmãs levantaram voo em suas asas de morcego, pairaram no céu cheio de fumaça e desapareceram.

Juntei-me a Grover e Annabeth, que olhavam para mim assombrados.

— Percy... — disse Grover. — Aquilo foi tão... incrivelmente...

— Aterrorizante — disse Annabeth.

— Legal! — corrigiu Grover.

Eu não me sentia aterrorizado. Certamente não me sentia legal. Estava cansado, doído e sem nenhuma energia.

— Vocês sentiram aquele... o que era aquilo? — perguntei.

Os dois assentiram, constrangidos.

— Devem ser as Fúrias lá no alto — disse Grover.

Mas eu não tinha tanta certeza. Alguma coisa impedira Ares de me matar, e o que quer que pudesse fazer isso era muito mais forte do que as Fúrias.

Olhei para Annabeth, e tivemos a mesma sacação. Agora eu sabia o que estava naquele abismo, o que havia falado da entrada do Tártaro.

Resgatei a minha mochila com Grover e olhei dentro dela. O raio-mestre ainda estava lá. Uma coisa tão pequena quase causara a Terceira Guerra Mundial.

— Temos de voltar a Nova York — disse eu. — Esta noite.

— É impossível — disse Annabeth —, a não ser que nós...

— Fôssemos voando — completei.

Ela arregalou os olhos para mim.

— Voando, tipo num avião, coisa que avisaram você para nunca fazer, para que Zeus não o fulmine para fora do céu, e ainda por cima carregando uma arma que tem mais poder destrutivo do que uma bomba nuclear?

— É — disse eu. — Mais ou menos isso. Vamos.


VINTE E UM

Meu acerto de contas

É gozado como os seres humanos são capazes de enrolar a sua mente em volta das coisas e encaixá-las na sua versão de realidade. Quíron me contara isso muito tempo atrás. Como de costume, eu só dei bola para sua sabedoria muito tempo depois.

De acordo com as notícias de Los Angeles, a explosão na praia de Santa Monica tinha sido causada quando um sequestrador enlouquecido disparou uma espingarda contra uma viatura da polícia. Ele acidentalmente atingiu um tubo principal de gás que se rompera durante o terremoto.

Esse sequestrador enlouquecido (também conhecido como Ares) era o mesmo homem que me abduzira com dois outros adolescentes em Nova York e nos trouxera até o outro lado do país em uma odisseia de terror que durara dez dias.

O pobrezinho do Percy Jackson, afinal, não era um criminoso internacional. Ele causara uma comoção naquele ônibus da Greyhound em New Jersey tentando escapar do seu sequestrador (e depois, testemunhas chegaram a jurar que tinham visto o homem de roupa de couro no ônibus — “Por que não me lembrei dele antes?”). O homem enlouquecido causara a explosão no Arco de St. Louis. Afinal, nenhum garotinho poderia ter feito aquilo. Uma garçonete preocupada de Denver vira o homem ameaçar seus sequestrados do lado de fora do seu restaurante, chamara um amigo para tirar uma foto, e notificara a polícia. Finalmente, o bravo Percy Jackson (eu estava começando a gostar desse menino) subtraíra uma espingarda do seu sequestrador em Los Angeles e lutara contra ele, espingarda contra rifle, na praia. A polícia chegara bem a tempo. Mas, na espetacular explosão, cinco viaturas da polícia foram destruídas e o sequestrador fugira. Não houve mortes. Percy Jackson e seus dois amigos estavam em segurança, sob custódia da polícia.

Os repórteres nos forneceram essa história inteira. Nós apenas assentimos e nos fizemos de chorosos e exaustos (o que não foi difícil), e representamos o papel de crianças vitimizadas para as câmeras.

— Tudo o que eu quero — disse eu, contendo as lágrimas —, é ver o meu adorado padrasto de novo. Toda vez que o via na tevê me chamando de punk delinquente, eu sabia... de algum modo... que tudo ia dar certo. E eu sei que ele vai querer recompensar uma por uma todas as pessoas desta linda cidade de Los Angeles com um eletrodoméstico grátis, dos grandes, da sua loja. Aqui está o número do telefone. — A polícia e os repórteres ficaram tão comovidos que passaram o chapéu e levantaram dinheiro para três passagens no próximo avião para Nova York.

Eu sabia que não havia escolha senão voar. Esperava que Zeus me desse algum tempo de lambuja, consideradas as circunstâncias. Mas ainda assim foi difícil me forçar a embarcar no voo.

A decolagem foi um pesadelo. Cada momento de turbulência era mais assustador que um monstro grego. Eu não larguei dos braços da poltrona até pousarmos em segurança no aeroporto de La Guardia. A imprensa local aguardava por nós do lado de fora da segurança, mas conseguimos escapar graças a Annabeth, que os atraiu para longe com o seu boné dos Yankees invisível, gritando:

— Eles estão lá, perto da sorveteria! Venham! — e depois se juntou a nós na área de retirada de bagagem.

Separamo-nos no ponto de táxi. Eu disse a Annabeth e Grover para voltar à Colina Meio-Sangue e contar a Quíron o que acontecera. Eles protestaram, e era difícil deixá-los partir depois de tudo o que passamos juntos, mas eu sabia que tinha de cumprir essa última parte da minha missão sozinho. Se as coisas dessem errado, se os deuses não acreditassem em mim... eu queria que Annabeth e Grover sobrevivessem para contar a verdade a Quíron.

Embarquei em um táxi e segui para Manhattan.

Trinta minutos depois, entrei no saguão do Edifício Empire State.

Devo ter parecido uma criança abandonada, com minhas roupas esfarrapadas e minha cara toda arranhada. Eu não dormia havia pelo menos vinte e quatro horas.

Fui até o guarda na mesa da recepção e disse:

— Seiscentésimo andar.

Ele estava lendo um livro enorme com a figura de um feiticeiro na capa. Eu não curto muito fantasia, mas acho que o livro era bom, porque o guarda levou algum tempo para erguer os olhos.

— Esse andar não existe, garoto.

— Eu preciso de uma audiência com Zeus.

Ele me deu um sorriso vago.

— O quê?

— Você me ouviu.

Eu já estava quase concluindo que aquele cara era apenas um mortal comum, e era melhor eu correr antes que ele chamasse a patrulha da camisa de força, quando ele disse:

— Sem hora marcada, nada de audiência, garoto. O Senhor Zeus não atende ninguém sem aviso prévio.

— Ah, eu acho que ele vai abrir uma exceção. — Tirei a mochila das costas e abri o zíper.

O guarda olhou para o cilindro metálico lá dentro sem entender o que era por alguns segundos. Então seu rosto empalideceu.

— Isto não é...

— Sim, é — garanti. — Você quer que eu o tire e...

— Não! Não! — Ele se ergueu atabalhoadamente da sua cadeira, tateou em volta da mesa procurando um cartão-chave, e o entregou para mim. — Insira na fenda de segurança. Certifique-se de que ninguém mais esteja no elevador com você.

Fiz o que ele me disse. Assim que as portas do elevador se fecharam, enfiei o cartão na fenda. O cartão desapareceu e um novo botão apareceu no quadro, um botão vermelho que dizia 600.

Apertei e esperei, e esperei.

Havia música tocando. “Raindrops keep falling on my head...”

Finalmente, plim. As portas se abriram. Saí e quase tive um ataque do coração.

Eu estava em um estreito caminho de pedra no meio do céu. Abaixo de mim se encontrava Manhattan, como se a visse de um avião. Diante de mim, degraus de mármore branco subiam em espiral pelo meio de uma nuvem até o céu. Meus olhos seguiram a escada até o fim, e então meu cérebro simplesmente não pôde aceitar o que vi.

Olhem outra vez, disse meu cérebro.

Estamos olhando, meus olhos insistiram. Está realmente lá.

Do topo das nuvens se erguia o pico decapitado de uma montanha, o cume coberto de neve. Na encosta da montanha havia dúzias de palácios com vários níveis — uma cidade de mansões —, todos com pórticos de colunas brancas, terraços dourados e braseiros de bronze brilhando com mil fogos. Estradas se enroscavam de um jeito maluco até o pico, onde o maior dos palácios resplandecia contra a neve. Jardins precariamente encarapitados floresciam com oliveiras e roseiras. Pude distinguir um mercado a céu aberto cheio de tendas coloridas, um anfiteatro de pedra construído em um lado da montanha, um hipódromo e um coliseu do outro. Era uma cidade grega antiga, só que não estava em ruínas. Era nova, limpa e colorida, como Atenas deve ter sido há dois mil e quinhentos anos.

Este palácio não pode estar aqui, disse para mim mesmo. A ponta de uma montanha pendurada em cima da cidade de Nova York como um asteroide de um bilhão de toneladas? Como podia uma coisa assim estar ancorada acima do Edifício Empire State, a plena vista de milhões de pessoas, e não ser notada?

Mas aqui estava. E aqui estava eu.

Minha viagem pelo Olimpo foi deslumbrante. Passei por algumas ninfas das florestas que deram risadinhas e me atiraram azeitonas do seu pomar. No mercado, mascates se ofereceram para vender ambrosia no palito, um escudo novo e uma réplica genuína do Velocino de Ouro em tecido cintilante, conforme anunciado na tevê Hefesto. As nove musas afinavam seus instrumentos para um concerto no parque enquanto uma pequena multidão se reunia — sátiros, náiades e um bando de adolescentes de boa aparência que talvez fossem deuses e deusas menores. Ninguém parecia preocupado com uma guerra civil iminente. De fato, todo mundo parecia estar num estado de ânimo festivo. Vários se voltaram para me ver passar e cochicharam entre si.

Subi pela estrada principal rumo ao grande palácio no pico. Era uma cópia invertida do palácio no Mundo Inferior. Lá, tudo era preto e bronze. Aqui, tudo rebrilhava em branco e prata.

Percebi que Hades deve ter construído o seu palácio para se parecer com este. Ele não era bem-vindo no Olimpo, exceto no solstício de inverno, então construiu seu próprio Olimpo embaixo da terra. A despeito da minha má experiência com ele, senti pena do cara. Ser banido deste palácio parecia realmente injusto. Era de deixar qualquer um amargo.

Degraus levavam a um pátio central. Além dele, a sala do trono.

Sala não é exatamente a palavra certa. O lugar fazia a Grande Estação Central parecer um armário de vassouras. Colunas maciças se erguiam até um teto abobadado, que era decorado com constelações que se moviam.

Doze tronos, construídos para seres do tamanho de Hades, estavam arrumados em um U invertido, exatamente como os chalés do Acampamento Meio-Sangue. Uma enorme fogueira crepitava no braseiro central. Os tronos estavam vazios com exceção de dois no fim: o trono principal à direita e um imediatamente à sua esquerda. Ninguém precisou me dizer quem eram os dois deuses que estavam sentados lá, esperando que eu me aproximasse. Cheguei à frente deles com as pernas tremendo.

Os deuses estavam em forma humana gigante, como Hades estivera, mas eu mal podia olhar para eles sem sentir um formigamento, como se o meu corpo estivesse começando a queimar. Zeus, o Senhor dos Deuses, usava um terno risca de giz azul-escuro. Estava sentado em um trono simples de platina maciça. Tinha uma barba bem-aparada, cinza-mármore e preta, como uma nuvem de tempestade. Seu rosto era orgulhoso, belo e severo, os olhos tinham o tom cinzento da chuva.

Quando me aproximei dele, o ar estralejou e senti cheiro de ozônio.

O deus sentado ao lado dele era seu irmão, sem dúvida, mas estava vestido de modo muito diferente. Lembrou-me um catador de praia de Key West. Usava sandálias de couro, bermudas cáqui e uma camisa marca Tommy Bahama toda estampada de coqueiros e papagaios. Sua pele tinha um bronzeado escuro e as mãos eram marcadas de cicatrizes como as de um velho pescador. O cabelo era preto, como o meu. Seu rosto tinha o mesmo ar taciturno que sempre me fez ser rotulado de rebelde. Mas os olhos, verde-mar como os meus, eram rodeados de rugas que me diziam que ele também sorria muito.

Os deuses não estavam se movendo nem falando, mas havia tensão no ar, como se tivessem acabado de discutir.

Aproximei-me do trono do pescador e me ajoelhei aos seus pés.

— Pai. — Não ousei olhar para cima. Meu coração estava disparado, eu podia sentir a energia que emanava dos dois deuses. Se eu dissesse a coisa errada, não havia dúvida de que eles poderiam me reduzir a pó.

À minha esquerda, Zeus falou:

— Você não deveria se dirigir primeiro ao senhor desta casa, menino?

Mantive a cabeça baixa e esperei.

— Paz, irmão — disse por fim Poseidon. Sua voz mexeu com as minhas lembranças mais antigas: aquela sensação morna de que me lembrava, de quando eu era bebê, a sensação da sua mão de deus sobre a minha testa. — O menino submete-se ao seu pai. Está certo.

— Então você ainda o reclama como seu? — perguntou Zeus, ameaçadoramente. — Você reclama esta criança que procriou contrariando o nosso sagrado juramento?

— Eu admiti a minha transgressão — disse Poseidon. — E agora vou ouvi-lo falar.

Transgressão.

Senti um nó na garganta. Era isso tudo o que eu era? Uma transgressão? O resultado do erro de um deus?

— Eu já o poupei uma vez — resmungou Zeus. — Ousando voar através dos meus domínios... bah! Eu devia tê-lo mandado pelos ares, para fora do céu pelo seu atrevimento.

— E correr o risco de destruir seu próprio raio-mestre? — perguntou Poseidon calmamente. — Vamos ouvi-lo, irmão.

Zeus resmungou mais um pouco.

— Ouvirei — resolveu. — E então decidirei se atirarei ou não este menino para fora do Olimpo.

— Perseu — disse Poseidon. — Olhe para mim.

Fiz isso, e não sei ao certo o que vi no seu rosto. Não havia sinal claro de amor ou aprovação. Nada para me encorajar. Era como olhar para o oceano: em alguns dias, era possível dizer como estava o seu humor. Na maioria dos dias, no entanto, era impossível de ler, misterioso.

Tive a sensação de que Poseidon na verdade não sabia o que pensar de mim. Não sabia se estava feliz por ter-me como filho ou não. De um modo estranho, eu estava contente por Poseidon estar tão distante. Se ele tivesse tentado se desculpar, ou dito que me amava, ou mesmo sorrido, teria parecido falso. Como um pai humano, dando alguma desculpa pouco convincente por não estar presente. Eu poderia viver com isso. Afinal, eu mesmo também não estava muito seguro a respeito dele.

— Dirija-se ao Senhor Zeus, menino — disse-me Poseidon. — Conte a ele a sua história.

Então contei tudo a Zeus, exatamente como havia acontecido. Tirei da mochila o cilindro de metal, que começou a fagulhar na presença do deus do céu, e o pus aos seus pés.

Houve um longo silêncio, quebrado apenas pelo crepitar do fogo no braseiro.

Zeus abriu a palma da sua mão. O raio voou para dentro dela. Quando ele fechou o punho, os pontos metálicos fulguraram com eletricidade, até ele ficar segurando o que parecia mais um relâmpago clássico, um dardo de seis metros feito de energia com centelhas chiantes que fez os meus cabelos se eriçarem.

— Sinto que o menino diz a verdade — murmurou Zeus. — Mas não é nada típico de Ares fazer uma coisa assim.

— Ele é orgulhoso e impulsivo — disse Poseidon. — É coisa de família.

— Senhor? — chamei.

Ambos disseram:

— Sim?

— Ares não agiu sozinho. Outra pessoa, ou outra coisa, teve a ideia.

Descrevi os meus sonhos e a sensação que tive na praia, o momentâneo hálito do mal que parecera parar o mundo e fizera Ares desistir de me matar.

— Nos meus sonhos — disse eu —, a voz me disse para levar o raio ao Mundo Inferior. Ares insinuou que também estava tendo sonhos. Acho que ele estava sendo usado, assim como eu, para começar uma guerra.

— Você está acusando Hades, afinal? — perguntou Zeus.

— Não — disse eu. — Quer dizer, Senhor Zeus, eu estive na presença de Hades. A sensação na praia foi diferente. Era a mesma coisa que senti quando cheguei perto daquele abismo. Aquela era a entrada para o Tártaro, não era? Alguma coisa poderosa e maligna está se agitando lá embaixo... alguma coisa ainda mais antiga que os deuses.

Poseidon e Zeus se entreolharam. Eles tiveram uma rápida e intensa discussão em grego antigo. Só peguei uma palavra. Pai.

Poseidon fez algum tipo de sugestão, mas Zeus o cortou. Poseidon tentou discutir. Zeus ergueu a mão, zangado.

— Não vamos mais falar disso — disse Zeus. — Preciso ir pessoalmente purificar este raio nas águas de Lemnos, para remover a mácula humana do seu metal. — Ele se levantou e olhou para mim. Sua expressão se suavizou ligeiramente.

— Você me prestou um serviço, menino. Poucos heróis poderiam ter conseguido tanto.

— Eu tive ajuda, senhor — disse eu. — Grover Underwood e Annabeth Chase...

— Para demonstrar minha gratidão, pouparei sua vida. Não confio em você, Perseu Jackson. Não gosto do que a sua chegada significa para o futuro do Olimpo. Mas, em nome da paz na família, eu o deixarei viver.

— Ahn... obrigado, senhor.

— Não ouse voar de novo. Não me deixe encontrá-lo aqui quando eu voltar. Ou irá provar este raio. E será a sua última sensação.

Um trovão sacudiu o palácio. Com um clarão ofuscante, Zeus se foi.

Eu estava sozinho na sala do trono com meu pai.

— O seu tio — suspirou Poseidon —, sempre teve um talento especial para saídas teatrais. Acho que ele teria se saído bem como o deus do teatro.

Um silêncio constrangedor.

— Senhor — disse eu —, o que havia naquele abismo?

Poseidon olhou atentamente para mim.

— Você não adivinhou?

— Cronos — disse eu. — O rei dos Titãs.

Mesmo na sala do trono do Olimpo, longe do Tártaro, o nome Cronos escureceu o ambiente, e fez o fogo no braseiro não parecer mais tão quente nas minhas costas.

Poseidon segurou o seu tridente.

— Na Primeira Guerra Mundial, Percy, Zeus cortou o nosso pai Cronos em mil pedaços, exatamente como Cronos fizera com seu próprio pai, Uranos. Zeus lançou os restos de Cronos no mais escuro abismo do Tártaro. O exército dos Titãs foi dispersado, sua fortaleza na montanha sobre o Etna, destruída, seus monstruosos aliados foram expulsos para os cantos mais distantes da Terra. E, contudo, Titãs não podem morrer, não mais que nós, deuses. O que resta de Cronos ainda vive de algum modo hediondo, ainda consciente em seu sofrimento eterno, ainda com fome de poder.

— Ele está se curando — disse eu. — Ele vai voltar.

Poseidon sacudiu a cabeça.

— De tempos em tempos, no decorrer das eras, Cronos se agita. Ele entra nos pesadelos dos homens e exala pensamentos malignos. Desperta monstros inquietos das profundezas. Mas sugerir que ele pode erguer-se do abismo é outra coisa.

— É o que ele pretende, pai. É o que ele disse.

Poseidon ficou em silêncio por um bom tempo.

— O Senhor Zeus encerrou a discussão sobre o assunto. Ele não permitirá que se fale de Cronos. Você completou a sua missão, criança. É tudo o que precisa fazer.

— Mas... — eu me interrompi. Discutir não iria adiantar nada. Muito possivelmente, irritaria o único deus que eu tinha do meu lado. — Como... como queira, pai.

Um leve sorriso brincou nos lábios dele.

— A obediência não lhe vem naturalmente, não é?

— Não... senhor.

— Devo ter alguma culpa por isso, imagino. O mar não gosta de ser contido. — Ele se ergueu em toda a sua altura e pegou seu tridente. Então tremeluziu e ficou do tamanho de um homem normal, em pé diante de mim. — Você precisa ir, criança. Mas primeiro saiba que sua mãe retornou.

Olhei para ele, completamente perplexo.

— Minha mãe?

— Você a encontrará em casa. Hades a enviou quando recuperou seu elmo. Até mesmo o Senhor da Morte paga as suas dívidas.

Meu coração disparou. Eu mal podia acreditar.

— Você... você vai...

Eu queria perguntar se Poseidon viria comigo para vê-la, mas então percebi que isso era ridículo. Imaginei-me embarcando com o deus do mar em um táxi e levando-o para o Upper East Side. Se durante todos aqueles anos ele tivesse desejado ver minha mãe, teria visto. E também era preciso pensar que Gabe Cheiroso estava lá.

Os olhos de Poseidon ficaram um pouco tristes.

— Quando você voltar para casa, Percy, precisará fazer uma escolha importante. Irá encontrar um pacote esperando por você no seu quarto.

— Um pacote?

— Você entenderá quando o vir. Ninguém pode escolher o seu caminho, Percy. Você terá de decidir.

Assenti, embora sem saber o que ele queria dizer.

— Sua mãe é uma rainha entre as mulheres — disse Poseidon saudosamente. — Não conheci nenhuma mulher mortal igual a ela em mil anos. Ainda assim... sinto muito por você ter nascido, criança. Eu trouxe para você um destino de herói, e um destino de herói nunca é feliz. Não passa de um destino trágico.

Tentei não me sentir magoado. Ali estava o meu próprio pai, dizendo que sentia muito por eu ter nascido.

— Eu não me importo, pai.

— Ainda não, talvez — disse ele. — Ainda não. Mas foi um erro imperdoável da minha parte.

— Vou deixá-lo, então. — Eu me inclinei, desajeitado. — Não... não vou incomodá-lo de novo.

Eu estava a cinco passos de distância quando ele chamou:

— Perseu.

Eu me virei.

Havia uma luz diferente em seus olhos, um tipo flamejante de orgulho.

— Você se saiu bem, Perseu. Não me entenda mal. O que quer que ainda faça, saiba que você é meu. Você é um verdadeiro filho do deus do mar.

Enquanto eu caminhava de volta pela cidade dos deuses, as conversas se interromperam. As musas pararam seu concerto. Pessoas, sátiros e náiades, todos se voltavam para mim, os rostos plenos de respeito e gratidão, e quando eu passava eles se ajoelhavam, como se eu fosse algum tipo de herói.

Quinze minutos depois, ainda em transe, eu estava de volta às ruas de Manhattan.

Peguei um táxi para o apartamento da minha mãe, toquei a campainha, e lá estava ela — minha linda mãe, cheirando a hortelã e alcaçuz, e o cansaço e a preocupação se evaporaram do seu rosto assim que ela me viu.

— Percy! Oh, graças a Deus! Oh, meu querido.

Ela me apertou até não poder mais. Ficamos no vestíbulo enquanto ela chorava e passava as mãos pelos meus cabelos.

Eu admito — meus olhos também ficaram um pouco nublados. Eu tremia, de tão aliviado que estava por vê-la.

Ela me contou que simplesmente aparecera no apartamento naquela manhã, deixando Gabe meio fora de si de tão apavorado. Não se lembrava de nada desde o Minotauro, e não pôde acreditar quando Gabe lhe disse que eu era um criminoso procurado, viajando pelo país e explodindo monumentos nacionais. Ficara louca de preocupação o dia inteiro porque não ouvira as notícias. Gabe a forçara a ir trabalhar, dizendo que ela precisava compensar um mês de salário, e era melhor começar.

Engoli a raiva e contei-lhe minha própria história. Tentei fazer que parecesse menos apavorante do que fora, mas não era fácil. Estava justamente chegando à luta com Ares quando a voz de Gabe irrompeu da sala de estar.

— Ei, Sally! Aquele bolo de carne já está pronto ou não?

Ela fechou os olhos.

— Ele não vai ficar muito feliz em vê-lo, Percy. A loja recebeu um milhão de telefonemas de Los Angeles hoje... alguma coisa sobre eletrodomésticos grátis.

— Ah, sim. Quanto a isso...

Ela conseguiu sorrir fracamente.

— Só não o deixe ainda mais zangado, certo? Venha.

No mês em que estive fora, o apartamento se transformara em Gabelândia. Havia lixo no tapete até a altura dos tornozelos. O sofá tinha sido reestofado com latas de cerveja. Meias e roupas de baixo sujas estavam penduradas nos abajures.

Gabe e três dos seus amigos cretinos estavam sentados à mesa jogando pôquer.

Quando Gabe me viu, o charuto caiu da boca. A cara dele ficou mais vermelha que lava.

— Você é muito descarado de vir aqui, seu delinquentezinho. Eu pensei que a polícia...

— Ele não é um fugitivo, afinal — interrompeu minha mãe. — Não é maravilhoso, Gabe?

Gabe olhou alternadamente para nós. Não parecia achar que a minha volta para casa fosse assim tão maravilhosa.

— Já não basta ter de devolver o dinheiro do seu seguro de vida, Sally — rosnou ele. — Me dê o telefone. Vou chamar a polícia.

— Gabe, não!

Ele ergueu as sobrancelhas.

— Você disse não? Acha que eu vou ter de aguentar esse delinquente de novo? Ainda posso registrar queixa contra ele por destruir o meu Camaro.

— Mas... — Ele levantou a mão e minha mãe se encolheu.

Pela primeira vez me dei conta de uma coisa. Gabe já tinha batido na minha mãe. Não sei quando, nem quanto. Talvez estivesse acontecendo há anos, quando eu não estava por perto.

Um balão de raiva começou a se expandir no meu peito. Avancei para Gabe, instintivamente tirando minha caneta do bolso.

Ele apenas riu.

— O que foi, bandidinho? Vai escrever em mim? Encoste em mim, e irá para a cadeia para sempre, entendeu?

— Ei, Gabe — seu amigo Eddie interrompeu. — Ele é só uma criança.

Gabe olhou para ele irritado e macaqueou em voz de falsete:

— Ele é só uma criança!

Seus outros amigos riram como idiotas.

— Eu vou ser bonzinho com você, delinquente. — Gabe mostrou os dentes manchados de tabaco. — Vou lhe dar cinco minutos para pegar suas coisas e dar o fora. Depois disso, chamo a polícia.

— Gabe! — implorou minha mãe.

— Ele fugiu — disse Gabe a ela. — Que continue foragido.

Eu estava sentindo uma comichão para destampar Contracorrente, mas mesmo que fizesse isso, a lâmina não podia ferir seres humanos. E Gabe, segundo a mais vaga das definições, era um ser humano.

Minha mãe segurou meu braço.

— Por favor, Percy. Venha. Vamos para o seu quarto.

Deixei que ela me puxasse, as mãos ainda tremendo de raiva.

Meu quarto tinha sido completamente abarrotado com o lixo de Gabe. Havia pilhas de baterias velhas de carro, um buquê apodrecido de flores de solidariedade com um cartão de alguém que assistira à sua entrevista com Barbara Walters.

— Gabe está apenas chateado, querido — disse minha mãe. — Vou falar com ele mais tarde. Tenho certeza de que vai dar certo.

— Mamãe, nunca vai dar certo. Não enquanto Gabe estiver aqui.

Ela torceu as mãos nervosamente.

— Eu posso... vou levar você comigo para o trabalho durante o resto do verão. No outono talvez haja algum outro internato...

— Mamãe.

Ela baixou os olhos.

— Estou tentando, Percy. Eu só... só preciso de algum tempo.

Um pacote apareceu em cima da minha cama. Pelo menos, eu poderia jurar que não estava lá um momento antes.

Era uma caixa de papelão surrada mais ou menos do tamanho certo para conter uma bola de basquete. O endereço na etiqueta estava na minha própria caligrafia:


No topo da caixa, em marcador preto, na caligrafia clara e forte de homem, estava o endereço do nosso apartamento, e as palavras: RETORNAR AO REMETENTE.

De repente entendi o que Poseidon me dissera no Olimpo.

Um pacote. Uma decisão.

O que quer que ainda faça, saiba que você é meu. Você é um verdadeiro filho do deus do mar.

Olhei para a minha mãe.

— Mãe, você quer se livrar do Gabe?

— Percy, não é tão simples. Eu...

— Mãe, apenas me diga. Aquele cretino está batendo em você. Você quer que ele se vá ou não?

Ela hesitou, depois assentiu quase imperceptivelmente.

— Sim, Percy. Eu quero. E estou tentando reunir coragem para dizer a ele. Mas você não pode fazer isso por mim. Você não pode resolver os meus problemas.

Eu olhei para a caixa.

Eu podia resolver o problema dela. Queria abrir aquele pacote, botá-lo sobre a mesa de pôquer e tirar o que havia dentro. Podia começar o meu próprio jardim de estátuas bem ali na sala de estar.

É o que um herói grego faria nas histórias, pensei. É o que Gabe merece.

Mas a história de um herói sempre termina em tragédia. Poseidon me dissera isso.

Lembrei-me do Mundo Inferior. Pensei no espírito de Gabe à deriva nos Campos de Asfódelos, ou condenado a alguma tortura horrível atrás do arame farpado dos Campos da Punição — sentado em um eterno jogo de pôquer, mergulhado até a cintura em óleo fervente ou ouvindo música de ópera. Será que eu tinha o direito de mandar alguém para lá? Mesmo Gabe?

Um mês atrás, eu não teria hesitado. Agora...

— Eu posso fazer isso — disse à minha mãe. — Uma espiada para o que há dentro desta caixa, e ele nunca mais a incomodará de novo.

Ela deu uma olhada para o pacote e pareceu entender imediatamente.

— Não, Percy — disse ela afastando-se. — Você não pode.

— Poseidon chamou você de rainha — contei-lhe. — Ele disse que não conheceu nenhuma mulher como você em mil anos.

Suas faces coraram.

— Percy...

— Você merece coisa melhor do que isso, mãe. Você devia ir para a faculdade, tirar o seu diploma. Podia escrever o seu romance, conhecer um cara legal, quem sabe, e viver numa bela casa. Você não precisa mais me proteger ficando com Gabe. Deixe que eu me livre dele.

Ela enxugou uma lágrima do rosto.

— Você se parece tanto com o seu pai — disse ela. — Uma vez ele propôs parar a maré por mim. Propôs também construir um palácio no fundo do mar para mim. Achava que podia resolver todos os meus problemas com um aceno de mão.

— O que há de errado nisso?

Seus olhos multicoloridos pareceram investigar dentro de mim.

— Eu acho que você sabe, Percy. Eu acho que você é parecido o bastante comigo para entender. Se é para a minha vida ter algum significado, tenho de vivê-la eu mesma. Não posso deixar que um deus cuide de mim... ou meu filho. Eu preciso... encontrar a coragem sozinha. A sua missão me fez lembrar disso.

Ouvimos o som das fichas de pôquer e pragas, e a ESPN na televisão da sala de estar.

— Vou deixar a caixa — disse eu. — Se ele a ameaçar...

Ela empalideceu, mas assentiu.

— Aonde você vai, Percy?

— Colina Meio-Sangue.

— Passar o verão... ou para sempre?

— Ainda não sei.

Nossos olhos se encontraram, e eu senti que tínhamos um acordo. Veríamos como estariam as coisas no fim do verão.

Ela beijou a minha testa.

— Você será um herói, Percy. O maior de todos.

Passei os olhos pelo quarto pela última vez. Tinha a sensação de que nunca mais o veria de novo. Então fui com minha mãe até a porta da frente.

— Indo embora tão cedo, delinquente? — gritou Gabe atrás de mim. — Já vai tarde!

Senti uma última ponta de dúvida. Como eu podia rejeitar a oportunidade perfeita para me vingar dele? Eu estava indo embora daqui sem salvar a minha mãe.

— Ei, Sally! — berrou ele. — E aquele bolo de carne, heim?

Uma expressão de raiva, dura como aço, brilhou nos olhos da minha mãe, e eu pensei, quem sabe, talvez eu a estivesse deixando em boas mãos afinal. As dela mesma.

— O bolo de carne já está saindo, meu bem — disse ela a Gabe. — Um bolo de carne surpresa.

Olhou para mim e piscou.

A última coisa que vi quando a porta se fechou foi minha mãe olhando para Gabe com jeito de quem imagina que ele daria uma ótima estátua de jardim.


VINTE E DOIS

A profecia se cumpre

Fomos os primeiros heróis a retornar vivos à Colina Meio-Sangue desde Luke, portanto é claro que todos nos trataram como se tivéssemos ganho algum prêmio de reality show na tevê. De acordo com a tradição do acampamento, usamos coroas de louros em um grande banquete preparado em nossa honra, depois lideramos um cortejo até a fogueira, onde queimamos as mortalhas que tinham sido feitas para nós na nossa ausência.

A mortalha de Annabeth era lindíssima — seda cinzenta com corujas bordadas —, e eu disse que era uma pena não poder enterrá-la com ela. Ela me deu um soco e me mandou calar a boca.

Por ser filho de Poseidon, eu não tinha nenhum companheiro de chalé, e assim o chalé de Ares se ofereceu para fazer a minha mortalha. Eles pegaram um lençol velho e pintaram carinhas sorridentes nas bordas, com XX no lugar dos olhos, e a palavra PERDEDOR no meio, em tamanho realmente grande.

Foi divertido queimá-la.

Enquanto o chalé de Apolo liderava a cantoria e passava as guloseimas, fui rodeado pelos meus companheiros do chalé de Hermes, pelos amigos de Annabeth de Atena e pelos colegas sátiros de Grover, que estavam admirando a licença de buscador nova em folha que ele recebera do Conselho dos Anciãos de Casco Fendido. O conselho chamara o desempenho de Grover na missão de “Bravo a ponto de dar indigestão. Chifres e barba acima de tudo o que já vimos no passado.”

Os únicos que não estavam com um espírito festivo eram Clarisse e seus companheiros de chalé, cujos olhares venenosos me diziam que jamais me perdoariam por envergonhar o pai deles.

Por mim, tudo bem.

Até mesmo o discurso de boas-vindas de Dioniso foi insuficiente para abafar o meu bom humor.

— Sim, sim, o molequinho não se deixou matar e agora vai ficar ainda mais presunçoso. Bem, um viva para isso. Entre outros comunicados, não haverá corridas de canoas neste sábado...

Mudei-me de volta para o chalé 3, mas ele não parecia mais tão solitário. Tinha os meus amigos para treinar durante o dia. À noite, ficava acordado e ouvia o mar, sabendo que meu pai estava lá fora. Talvez ele ainda não se sentisse muito seguro a meu respeito, talvez ainda não quisesse que eu tivesse nascido, mas estava observando. E, até agora, estava orgulhoso do que eu havia feito.

Quanto à minha mãe, ela teve chance de uma vida nova. A carta dela chegou uma semana depois que voltei ao acampamento. Ela me contou que Gabe partira misteriosamente — desaparecera da face do planeta, de fato. Ela deu queixa do desaparecimento dele à polícia, mas tinha uma sensação engraçada de que jamais o encontrariam.

Mudando completamente de assunto, ela tinha vendido a sua primeira escultura de concreto em tamanho natural, intitulada O jogador de pôquer, para um colecionador, através de uma galeria de arte do Soho. Recebera tanto dinheiro pela peça que dera entrada em um novo apartamento e fizera o pagamento do primeiro semestre do seu curso na Universidade de Nova York. A galeria do Soho estava clamando por mais trabalhos dela, que eles chamaram de “um grande passo do neorrealismo do superfeio”.

Mas não se preocupe, escreveu a minha mãe. Para mim, chega de escultura. Livrei-me daquela caixa de ferramentas que você deixou para mim. Já é hora de eu voltar a escrever.

No fim, ela escreveu um P.S.: Percy, encontrei uma boa escola particular aqui na cidade. Fiz um depósito para reservar um lugar para você, caso queira se matricular no oitavo ano. Você poderá morar em casa. Mas, se quiser ficar o ano inteiro na Colina Meio-Sangue, vou entender.

Dobrei a carta cuidadosamente e a pus na minha mesa de cabeceira. Todas as noites antes de dormir eu a leio de novo, e tento decidir como responder a ela.

No Quatro de Julho, o acampamento inteiro se reuniu na praia para um espetáculo pirotécnico por conta do chalé 9. Como filhos de Hefesto, não iriam se contentar com explosões comuns em vermelho, branco e azul. Eles ancoraram uma barcaça longe da costa e a carregaram com foguetes do tamanho de mísseis Patriot. De acordo com Annabeth, que já tinha visto o espetáculo antes, as explosões seriam tão bem sequenciadas que pareceriam quadros de animação no céu. O final deveria ser um par de guerreiros espartanos de trinta metros de altura que iriam crepitar para a vida acima do oceano, travar uma batalha e então explodir em um milhão de cores.

Enquanto Annabeth e eu estendíamos toalhas de piquenique, Grover apareceu para se despedir de nós. Usava os jeans, a camiseta e os tênis de sempre, mas nas últimas semanas começara a parecer mais velho, quase com idade de secundarista. Seu cavanhaque ficara mais espesso. Ganhara peso. Seus chifres haviam crescido pelo menos três centímetros, de modo que agora tinha de usar o seu boné rastafári o tempo todo para passar por ser humano.

— Estou de partida — disse ele. — Vim só dizer... bem, vocês sabem.

Tentei me sentir feliz por ele. Afinal, não era todo dia que um sátiro conseguia permissão para procurar o grande deus Pã. Mas era difícil dizer adeus. Eu só conhecia Grover fazia um ano, e no entanto ele era o meu amigo mais antigo.

Annabeth deu-lhe um abraço. Ela lhe disse para usar sempre os seus pés falsos.

Perguntei-lhe onde iria procurar primeiro.

— Tipo segredo — disse ele, parecendo embaraçado. — Gostaria que vocês pudessem vir comigo, mas seres humanos e Pã...

— A gente entende — disse Annabeth. — Você tem latas suficientes para a viagem?

— Sim.

— E se lembrou das suas flautas de bambu?

— Puxa, Annabeth — resmungou ele. —Você parece uma velha mamãe-cabra.

Mas ele não pareceu aborrecido de verdade.

Ele agarrou sua bengala e jogou uma mochila por cima dos ombros. Parecia um caroneiro desses que se veem nas estradas — nada parecido com o menino baixinho que eu costumava defender dos valentões na Academia Yancy.

— Bem — disse ele —, desejem-me boa sorte.

Ele deu outro abraço em Annabeth. Bateu no meu ombro, e então retornou através das dunas.

Fogos de artifício explodiram acima de nós: Hércules matando o leão da Nemeia, Ártemis perseguindo o javali, George Washington (que, aliás, era um filho de Atena) cruzando o rio Delaware.

— Ei, Grover — chamei.

Ele se voltou à margem do bosque.

— Aonde quer que esteja indo, espero que façam boas enchiladas.

Grover sorriu, e se foi; as árvores se fechando em volta dele.

— Nós o veremos de novo — disse Annabeth.

Tentei acreditar nisso. O fato de que nenhum buscador jamais voltara em dois mil anos... bem, decidi não pensar nisso. Grover ia ser o primeiro. Tinha de ser.

Julho se foi.

Eu passava os meus dias bolando novas estratégias para a captura da bandeira e fazendo alianças com os outros chalés para manter o estandarte fora das mãos de Ares. Cheguei até o topo da parede de escalada pela primeira vez sem ser tostado pela lava.

De tempos em tempos, eu passava pela Casa Grande, dava uma olhada nas janelas do sótão e pensava no Oráculo. Tentei convencer a mim mesmo que a sua profecia se completara.

Você deve ir para o oeste, e enfrentar o deus que se tornou desleal.

Estive lá, fiz isso — mesmo que no fim o deus traidor fosse Ares, e não Hades.

Você deve encontrar o que foi roubado e devolver em segurança.

Confere. Um raio-mestre entregue. Um elmo das trevas de volta na cabeça untuosa de Hades.

Você será traído por aquele que o chama de amigo.

Essa linha ainda me incomodava. Ares fingira ser meu amigo e depois me traíra. Devia ser isso que o Oráculo queria dizer...

E no fim não conseguirá salvar aquilo que mais importa.

Eu não conseguira salvar minha mãe, mas só porque eu a deixara se salvar sozinha, e sabia que era a coisa certa a fazer.

Então por que ainda estava incomodado?

A última noite da sessão de verão chegou depressa demais.

Os campistas fizeram uma última refeição juntos. Queimamos parte do nosso jantar para os deuses. Junto à fogueira, os conselheiros mais velhos entregaram as contas de fim de verão.

Ganhei o meu próprio colar de couro, e quando vi a conta pelo meu primeiro verão, fiquei contente porque a luz da fogueira encobriu o vermelho na minha cara. O desenho era preto como piche, com um tridente verde-mar cintilando no centro.

— A escolha foi unânime — anunciou Luke. — Esta conta comemora o primeiro filho do deus do mar neste acampamento, e a missão que ele assumiu em direção à parte mais escura do Mundo Inferior para impedir uma guerra!

O acampamento inteiro se pôs de pé e aplaudiu. Mesmo o chalé de Ares se sentiu na obrigação de levantar. O chalé de Atenas empurrou Annabeth para a frente para que ela pudesse compartilhar os aplausos.

Acho que nunca na vida me senti ao mesmo tempo tão feliz e tão triste como naquele momento. Finalmente encontrara uma família, gente que se preocupava comigo e achava que eu tinha feito alguma coisa de modo certo. E, pela manhã, a maior parte deles ficaria fora o resto do ano.

Na manhã seguinte encontrei uma carta padronizada na minha mesa de cabeceira.

Soube que devia ter sido preenchida por Dioniso, pois ele insistia teimosamente em errar o meu nome:
Caro Peter Johnson ,
Se você pretende permanecer no Acampamento Meio-Sangue o ano inteiro, precisa informar a Casa Grande até o meio-dia de hoje. Caso não anuncie suas intenções, presumiremos que você vagou o seu chalé ou morreu de uma morte horrível. Harpias da limpeza começarão seu trabalho ao pôr do sol. Elas estarão autorizadas a comer qualquer campista não registrado. Todos os artigos pessoais deixados para trás serão incinerados no poço de lava.
Tenha um bom dia!
Sr. D (Dioniso)
Diretor do Acampamento, Conselho Olimpiano nº 12

Essa é mais uma questão do transtorno do déficit de atenção. Os prazos simplesmente não existem para mim até que não tenha mais jeito. O verão acabara, e eu ainda não havia respondido para a minha mãe, nem para o acampamento, se iria ficar. Agora tinha apenas algumas horas para decidir.

A decisão tinha tudo para ser fácil. Quer dizer, nove meses treinando para herói, ou nove meses sentado numa sala de aula — fala sério!

Mas havia a minha mãe para considerar. Pela primeira vez eu tinha oportunidade de morar com ela por um ano inteiro, sem Gabe. Tinha chance de estar em casa e perambular pela cidade nas horas livres. Lembrei-me do que Annabeth dissera tanto tempo atrás sobre a nossa missão: O mundo real é onde os monstros estão. É onde a gente aprende se serve para alguma coisa ou não.

Pensei no destino de Thalia, filha de Zeus. Fiquei pensando quantos monstros me atacariam se eu deixasse a Colina Meio-Sangue. Se eu ficasse em um só lugar durante todo um ano escolar, sem Quíron e meus amigos em volta para me ajudar, será que minha mãe e eu sobreviveríamos até o próximo verão? E isso presumindo que os testes de ortografia e os ensaios de cinco parágrafos não me matassem. Decidi ir até a arena e praticar um pouco de esgrima. Talvez isso me clareasse a cabeça.

A área do acampamento estava deserta na maior parte, tremeluzindo no calor de agosto. Todos os campistas estavam nos seus chalés fazendo as malas, ou correndo de um lado para outro com vassouras e esfregões, preparando-se para a inspeção final. Argos estava ajudando algumas filhas de Afrodite a carregar suas malas e estojos de maquiagem Gucci para o outro lado da colina, onde o ônibus do acampamento estaria esperando para levá-las ao aeroporto.

Não pense em partir ainda, disse para mim mesmo. Apenas treine.

Cheguei à arena dos espadachins e descobri que Luke tivera a mesma ideia. Sua sacola estava jogada na beirada da arena. Ele estava treinando sozinho, investindo violentamente contra bonecos com uma espada que eu nunca tinha visto antes. Devia ser uma espada toda de aço, pois decepava de um golpe as cabeças dos bonecos e atravessava com estocadas as suas tripas recheadas de palha. Sua camisa laranja de conselheiro pingava de suor. A expressão dele era tão intensa que dava para pensar que sua vida estava realmente em perigo. Eu assisti, fascinado, enquanto ele destripava toda a fileira de bonecos, cortando fora os membros e basicamente os reduzindo a uma pilha de palha e armaduras.

Eram apenas bonecos, mas ainda assim eu não podia deixar de ficar assombrado com a habilidade de Luke. O cara era um guerreiro incrível. Aquilo me fez pensar, novamente, como ele podia ter falhado em sua missão.

Por fim ele me viu e interrompeu-se no meio de um golpe.

— Percy.

— Ahn, desculpe — disse eu, embaraçado. — Eu só...

— Tudo bem — disse ele, abaixando a espada. — Estava só dando uma treinada de último minuto.

— Aqueles bonecos nunca mais vão incomodar ninguém.

Luke encolheu os ombros.

— Nós fazemos novos todo verão.

Agora que a espada não estava mais rodopiando de um lado para outro, pude ver algo de estranho nela. A lâmina era feita com dois tipos de metal diferentes — um fio de bronze, o outro de aço.

Luke reparou que eu estava olhando.

— Ah, isso? Brinquedo novo. Esta é a Mordecostas.

— Mordecostas?

Luke virou a lâmina na luz, e a fez brilhar de um jeito maligno.

— Um lado é de bronze celestial. O outro é de aço temperado. Funciona tanto em mortais como em imortais.

Pensei no que Quíron tinha me dito quando eu comecei a minha missão — que um herói jamais deve ferir mortais a não ser que seja absolutamente necessário.

— Eu não sabia que eles podiam fazer armas como esta.

— Eles provavelmente não — concordou Luke. — Esta aqui é única.

Ele me deu um sorrisinho mínimo e então enfiou a espada na bainha.

— Escute. Eu estava indo procurar por você. O que me diz de irmos até a floresta uma última vez, para procurar algo para enfrentar?

Não sei por que hesitei. Devia ter me sentido aliviado por Luke estar sendo tão amigável. Desde que eu voltara da missão ele vinha agindo de modo um pouco distante. Estava com medo de que ele estivesse ressentido com toda a atenção que eu recebera.

— Você acha que é uma boa ideia? — perguntei. — Quero dizer...

— Ora, vamos. — Ele remexeu na sua sacola e tirou de lá uma embalagem de seis Cocas. — Bebidas por minha conta.

Olhei para as Cocas, me perguntando onde diabo as teria conseguido. Não havia refrigerantes mortais comuns na loja do acampamento. Não havia como consegui-los a não ser que a gente falasse com um sátiro, talvez.

Naturalmente, as taças mágicas do jantar se encheriam com qualquer coisa que a gente quisesse, mas não tinham exatamente o mesmo gosto de uma Coca de verdade, saída da lata.

Açúcar e cafeína. Minha força de vontade desmoronou.

— Claro — decidi. — Por que não?

Fomos andando até a floresta e perambulamos sem rumo à procura de algum tipo de monstro para enfrentar, mas estava quente demais. Todos os monstros com um mínimo de bom senso deviam estar fazendo a sesta nas suas cavernas agradáveis e frescas.

Encontramos um lugar à sombra junto ao regato onde eu quebrara a lança de Clarisse durante meu primeiro jogo de captura da bandeira. Sentamo-nos em uma grande pedra, bebemos as nossas Cocas e ficamos olhando para a luz do sol na floresta.

Depois de algum tempo, Luke disse:

— Sente falta de estar em uma missão?

— Com monstros me atacando a cada passo? Fala sério!

Luke ergueu uma sobrancelha.

— Sim, eu sinto falta — admiti. — E você?

Uma sombra passou pelo seu rosto.

Eu estava acostumado a ouvir as meninas dizerem como Luke era bonito, mas naquele momento ele pareceu cansado, zangado e nem um pouco bonito. Seu cabelo loiro estava cinzento à luz do sol. A cicatriz no rosto parecia mais funda que de costume. Parecia estar vendo um velho.

— Vivo na Colina Meio-Sangue o ano inteiro desde que tinha catorze anos — contou-me. — Desde que Thalia... bem, você sabe. Treinei, treinei e treinei. Nunca cheguei a ser um adolescente normal, lá fora no mundo real. Então eles me jogaram numa missão, e quando voltei, foi tipo, “Certo, o passeio acabou. Passe bem”.

Ele amarrotou a sua Coca e a atirou no regato, o que realmente me chocou. Uma das primeiras coisas que a gente aprende no Acampamento Meio-Sangue é: não jogue lixo no chão. Você será repreendido pelas ninfas e náiades. Elas ajustarão as contas. Você cai na cama uma noite e encontra os lençóis cheios de centopeias e lama.

— Para o diabo com as coroas de louros — disse Luke. — Não vou terminar como aqueles troféus empoeirados no sótão da Casa Grande.

— Você está parecendo alguém que vai embora.

Luke me deu um sorriso torto.

— Oh, eu estou indo embora, sem dúvida, Percy. Trouxe você aqui para dizer adeus.

Ele estalou os dedos. Um pequeno fogo queimou um buraco no chão aos meus pés. De lá, saiu se arrastando alguma coisa preta e brilhante, mais ou menos do tamanho da minha mão. Um escorpião.

Comecei a procurar a minha caneta.

— Eu não faria isso — advertiu Luke. Escorpiões das profundezas podem pular até cinco metros. Seu ferrão pode perfurar as suas roupas. Você estaria morto em sessenta segundos.

— Luke, o que...

Então caiu a ficha.

Você será traído por aquele que o chama de amigo.

— Você — disse eu.

Ele se levantou calmamente e sacudiu o pó dos seus jeans.

O escorpião não lhe deu atenção. Seus olhos pequenos e brilhantes continuavam fixos em mim, apertando as pinças enquanto se arrastava para cima do meu sapato.

— Eu vi muita coisa lá fora no mundo, Percy — disse Luke. — Você não sentiu... a escuridão se acumulando, os monstros ficando mais fortes? Não percebeu como tudo é inútil? Todos os feitos heroicos... Nós não passamos de peões dos deuses. Eles já deviam ter sido derrubados há milhares de anos, mas persistem, graças a nós, meios-sangues.

Eu não podia acreditar no que estava acontecendo.

— Luke... você está falando dos nossos pais — disse eu.

Ele riu.

— E por isso eu preciso amá-los? A sua preciosa “civilização ocidental” é uma doença, Percy. Ela está matando o mundo. O único meio de detê-la é queimá-la completamente e começar tudo de novo com algo mais honesto.

— Você é tão louco quanto Ares.

Seus olhos flamejaram.

— Ares é um tolo. Ele nunca percebeu quem é o verdadeiro mestre a quem está servindo. Se eu tivesse tempo, Percy, poderia explicar. Mas infelizmente você não vai viver tanto.

O escorpião se arrastou para cima da perna das minhas calças.

Tinha de haver um meio de sair dessa. Eu precisava de tempo para pensar.

— Cronos — disse eu. — É a ele que você serve.

O ar ficou mais frio.

— Você devia ter cuidado com nomes — avisou Luke.

— Cronos fez você roubar o raio-mestre e o elmo. Ele falou com você nos seus sonhos.

O olho de Luke se contraiu.

— Ele falou com você também, Percy. Devia ter ouvido.

— Ele está fazendo uma lavagem cerebral em você, Luke.

— Você está errado. Ele me mostrou que os meus talentos estão sendo desperdiçados. Você sabe qual foi a minha missão dois anos atrás, Percy? Meu pai, Hermes, queria que eu roubasse um pomo de ouro do jardim das Hespérides e o levasse ao Olimpo. Depois de todo o treinamento que fiz, aquilo foi o melhor em que ele pôde pensar.

— Essa não é uma missão fácil — disse eu. — Hércules fez isso.

— Exatamente — disse Luke. — Onde está a glória em repetir o que outros já fizeram? Tudo o que os deuses sabem fazer é repetir o passado. Meu coração não estava naquilo. O dragão do jardim me deu isto — ele apontou para a cicatriz —, e quando voltei, tudo o que ganhei foi piedade. Eu queria destruir o Olimpo pedra por pedra naquele momento, mas esperei pelo momento certo. Comecei a sonhar com Cronos. Ele me convenceu a roubar alguma coisa que valesse a pena, algo que nenhum herói jamais tivera a coragem de pegar. Quando fomos naquela excursão do solstício de inverno, enquanto os outros campistas dormiam, entrei furtivamente na sala do trono e peguei o raio-mestre de Zeus bem em cima da cadeira dele. O elmo das trevas de Hades também. Você não tem ideia de como foi fácil. Os olimpianos são tão arrogantes; eles nunca nem sonharam que alguém se atrevesse a roubá-los. A segurança deles é horrível. Eu já estava a meio caminho através de New Jersey antes de ouvir as tempestades troando, e soube que eles tinham descoberto o meu roubo.

O escorpião agora estava parado no meu joelho, me olhando com seus olhos brilhantes. Tentei manter a voz no mesmo nível.

— Então por que não levou os objetos para Cronos?

O sorriso de Luke vacilou.

— Eu... eu fiquei confiante demais. Zeus mandou seus filhos e filhas para encontrar o raio roubado: Ártemis, Apolo, meu pai, Hermes. Mas foi Ares quem me pegou. Eu podia tê-lo vencido, mas não fui bastante cuidadoso. Ele me desarmou, tomou de mim os objetos de poder, ameaçou devolvê-los ao Olimpo e me queimar vivo. Então a voz de Cronos veio a mim e me falou o que dizer. Pus na cabeça de Ares a ideia de uma grande guerra entre os deuses. Disse que tudo o que ele teria de fazer seria esconder os objetos por algum tempo e ficar assistindo enquanto os outros lutavam. Um brilho perverso surgiu nos olhos de Ares. Eu sabia que ele estava fisgado. Ele me deixou ir, e eu voltei ao Olimpo antes que alguém notasse a minha ausência. — Luke sacou a sua nova espada. Ele correu o polegar pela parte achatada da lâmina, como se estivesse hipnotizado por sua beleza. — Depois, o Senhor dos Titãs... e-ele me castigou com pesadelos. Eu jurei não falhar outra vez. De volta ao Acampamento Meio-Sangue, em meus sonhos, me foi dito que um segundo herói chegaria, um que poderia ser enganado para levar o raio e o elmo o resto do caminho, de Ares até o Tártaro.

— Você convocou o cão infernal aquela noite na floresta.

— Tínhamos de fazer Quíron pensar que o acampamento não era seguro para você, e assim ele iria dar início à sua missão. Tínhamos de confirmar seus temores de que Hades estava atrás de você. E funcionou.

— Os tênis voadores estavam amaldiçoados — disse eu. — Eles deveriam me arrastar com a mochila para dentro do Tártaro.

— E teriam, se você os estivesse usando. Mas você os deu ao sátiro, o que não era parte do plano. Grover bagunça tudo o que ele toca. Confundiu até a maldição.

Luke baixou os olhos para o escorpião, que estava agora parado na minha coxa.

— Você devia ter morrido no Tártaro, Percy. Mas não se preocupe. Vou deixá-lo com o meu pequeno amigo para corrigir as coisas.

— Thalia deu a vida dela para salvá-lo — disse eu rangendo os dentes. — E é assim que você retribui?

— Não fale de Thalia! — berrou ele. — Os deuses a deixaram morrer! Essa é uma das muitas coisas pelas quais eles pagarão.

— Você está sendo usado, Luke. Você e Ares, os dois. Não dê ouvidos a Cronos.

— Eu estou sendo usado? — A voz de Luke ficou estridente. — Olhe para você mesmo. O que o seu pai já fez por você? Cronos se erguerá. Você apenas retardou os seus planos. Ele irá lançar os olimpianos no Tártaro e mandará a humanidade de volta para as cavernas. Todos menos os mais fortes; aqueles que o servem.

— Chame de volta o seu bicho rastejante — disse eu. — Se você é tão forte, lute comigo você mesmo.

Luke sorriu.

— Boa tentativa, Percy. Mas eu não sou Ares. Você não pode me engabelar. Meu senhor está esperando, e ele tem muitas missões para mim.

— Luke...

— Adeus, Percy. Uma nova Idade do Ouro está chegando. Você não será parte dela.

Ele traçou um arco com a espada e desapareceu numa onda de escuridão.

O escorpião deu o bote.

Eu o joguei de lado com a mão e destampei a espada. A coisa pulou em cima de mim e eu a cortei ao meio no ar.

Estava a ponto de me congratular quando olhei para a minha mão. Na palma havia um enorme vergão vermelho, que destilava uma secreção amarela e fumegante. A coisa me pegara, afinal.

Meus ouvidos latejavam. Minha visão ficou embaçada. A água, pensei. Ela já me curara antes.

Cambaleei até o regato e mergulhei a mão, mas nada pareceu acontecer. O veneno era forte demais. Minha visão estava escurecendo. Eu mal conseguia ficar em pé.

Sessenta segundos, Luke me dissera.

Eu tinha de voltar ao acampamento. Se desmaiasse aqui, meu corpo seria o jantar de algum monstro. Ninguém jamais saberia o que aconteceu.

Minhas pernas pareciam feitas de chumbo. Minha testa queimava. Fui cambaleando até o acampamento, e as ninfas despertaram de suas árvores.

— Socorro — grasnei. — Por favor...

Duas delas seguraram os meus braços e me puxaram para frente. Lembro-me de chegar até a clareira, de um conselheiro gritando por ajuda, de um centauro tocando uma trombeta de concha.

Então tudo escureceu.

Acordei com um canudinho na boca. Estava bebendo alguma coisa que tinha gosto de biscoitos de flocos de chocolate líquidos. Néctar.

Abri os olhos.

Estava reclinado na cama no quarto de doentes da Casa Grande, a mão direita enfaixada como um pedaço de pau. Argos montava guarda no canto. Annabeth estava sentada ao meu lado, segurando o copo de néctar e enxugando a minha testa com uma toalha.

— Aqui estamos nós outra vez — disse eu.

— Seu idiota — disse Annabeth, e foi como eu percebi que ela estava radiante por me ver consciente. — Você estava verde e ficando cinzento quando o encontramos. Se não fosse o tratamento de Quíron...

— Vamos, vamos — disse a voz de Quíron. — A constituição de Percy merece parte do crédito.

Ele estava sentado perto do pé da minha cama em forma humana, e foi por isso que eu não o notara antes. Sua parte inferior estava magicamente compactada na cadeira de rodas, e a parte superior usava casaco e gravata. Ele sorriu, mas seu rosto parecia cansado e pálido, como quando passava a noite em claro corrigindo provas de latim.

— Como está se sentindo? — perguntou.

— Como se as minhas entranhas tivessem sido congeladas e depois assadas no micro-ondas.

— Apropriado, considerando que foi veneno de escorpião das profundezas. Agora você tem de me contar, se puder, exatamente o que aconteceu.

Entre goles de néctar, contei-lhes a história.

O quarto ficou em silêncio por um longo tempo.

— Eu não posso acreditar que Luke... — A voz de Annabeth vacilou. Sua expressão ficou zangada e triste. — Sim. Sim, eu posso acreditar. Que os deuses o amaldiçoem... Ele nunca mais foi o mesmo depois da sua missão.

— Isso deve ser relatado ao Olimpo — murmurou Quíron. — Irei imediatamente.

— Luke está lá fora agora — disse eu. — Preciso ir atrás dele.

Quíron sacudiu a cabeça.

— Não, Percy. Os deuses...

— Nem mesmo falam sobre Cronos — disparei. — Zeus declarou o assunto encerrado!

— Percy, eu sei que é difícil. Mas você não deve correr atrás de vingança. Você não está preparado.

Eu não gostei, mas parte de mim suspeitava que Quíron estava certo. Bastava uma olhada para a minha mão e dava para ver que não haveria lutas de espada tão cedo.

— Quíron... a sua profecia do Oráculo... era sobre Cronos, não era? Eu estava nela? E Annabeth?

Quíron olhou nervosamente para o teto.

— Percy, não cabe a mim...

— Você recebeu ordens de não falar comigo sobre isso, não foi?

Seus olhos eram solidários, mas tristes.

— Você será um grande herói, criança. Darei o melhor de mim para prepará-lo. Mas se estou certo quanto ao caminho à sua frente... — O trovão ribombou acima, chacoalhando as janelas. — Está certo! — gritou Quíron. — Perfeito! — Ele suspirou com frustração. — Os deuses têm suas razões, Percy. Saber demais sobre o próprio futuro nunca é uma boa coisa.

— Não podemos simplesmente ficar sentados sem fazer nada — disse eu.

— Nós não vamos ficar sentados — prometeu Quíron. — Mas você precisa ter cuidado. Cronos quer que você seja destruído. Ele quer a sua vida interrompida, os seus pensamentos obscurecidos por medo e raiva. Não dê a ele o que ele quer. Treine pacientemente. O seu momento chegará.

— Presumindo que eu esteja vivo até lá.

Quíron pousou a mão no meu tornozelo.

— Você terá de confiar em mim, Percy. Você viverá. Mas primeiro precisa decidir seu caminho para o próximo ano. Não posso dizer a você qual é a escolha certa... — Tive a impressão de que ele tinha uma opinião muito bem definida, e estava usando toda a sua força de vontade para não me aconselhar. — Mas você precisa decidir se vai ficar no Acampamento Meio-Sangue o ano inteiro, ou se vai voltar ao mundo mortal para o oitavo ano e ser um campista de verão. Pense nisso. Quando eu voltar do Olimpo, você terá de me contar a sua decisão.

Eu quis protestar. Quis lhe fazer mais perguntas. Mas sua expressão me disse que não haveria mais discussão; ele já dissera tudo o que podia.

— Estarei de volta assim que puder — prometeu Quíron. — Argos o protegerá.

Ele lançou um olhar para Annabeth.

— Ah, e minha querida... quando estiver pronta, eles estão aqui.

— Quem está aqui? — perguntei.

Ninguém respondeu.

Quíron rodou para fora do quarto. Ouvi o som metálico abafado das rodas da sua cadeira descendo cautelosamente os degraus da frente, dois de cada vez.

Annabeth estudou o gelo na minha bebida.

— O que está errado? — perguntei a ela.

— Nada. — Ela pôs o copo sobre a mesa. — Eu... apenas aceitei o seu conselho sobre algo. Você... ahn... precisa de alguma coisa?

— Sim. Ajude-me a levantar. Quero ir para fora.

— Percy, não é uma boa ideia.

Arrastei as pernas para fora da cama. Annabeth me agarrou antes que eu desabasse no chão. Uma onda de náusea me acometeu.

Annabeth disse:

— Eu falei...

— Estou ótimo — insisti. Eu não queria ficar deitado na cama como um inválido enquanto Luke estava lá fora planejando destruir o mundo ocidental.

Consegui dar um passo para a frente. Depois outro, ainda me apoiando pesadamente em Annabeth. Argos nos seguiu para fora, mas manteve distância.

Quando chegamos à varanda, meu rosto estava molhado de suor. Meu estômago se contorcia em nós. Mas eu conseguira ir até a cerca.

Estava anoitecendo. O acampamento parecia completamente deserto. Os chalés estavam escuros e a quadra de vôlei, silenciosa. Nenhuma canoa cortava a superfície do lago. Além dos bosques e dos campos de morangos, o estreito de Long Island brilhava com os últimos raios do sol.

— O que você vai fazer? — perguntou-me Annabeth.

— Eu não sei.

Disse a ela que tinha a sensação de que Quíron queria que eu ficasse o ano inteiro, para ter mais tempo de treinamento individual, mas eu não tinha certeza de que era isso o que queria. Porém admiti que me sentia mal por deixá-la sozinha, com Clarisse por companhia...

Annabeth apertou os lábios e então disse baixinho:

— Eu vou passar o ano em casa, Percy.

Eu olhei para ela.

— Você quer dizer, com o seu pai?

Ela apontou para o cume da Colina Meio-Sangue. Junto ao pinheiro de Thalia, bem no limite das fronteiras mágicas do acampamento, havia uma família em silhueta — duas crianças pequenas, uma mulher e um homem alto de cabelos loiros. Pareciam estar aguardando. O homem segurava uma mochila parecida com a que Annabeth pegara no Parque Aquático em Denver.

— Eu escrevi uma carta para ele quando voltamos — disse Annabeth. — Como você sugeriu. Eu disse a ele... que sentia muito. Que iria para casa passar o ano escolar se ele ainda me quisesse. Ele respondeu na mesma hora. Nós decidimos... que íamos tentar de novo.

— Foi preciso coragem para isso.

Ela apertou os lábios.

— Você não vai tentar nada de estúpido durante o ano escolar, vai? Pelo menos... não sem me mandar uma mensagem de Íris?

Consegui sorrir.

— Não vou procurar encrenca. Normalmente eu não preciso.

— Quando eu voltar no próximo verão — disse ela —, vamos caçar Luke. Vou pedir uma missão, mas se não tivermos aprovação, vamos sair escondidos e fazer isso do mesmo jeito. De acordo?

— Parece um plano digno de Atena.

Ela estendeu a mão. Eu a apertei.

— Cuide-se, Cabeça de Alga — disse Annabeth. — Mantenha os olhos abertos.

— Você também, Sabidinha.

Fiquei olhando enquanto ela subia a colina para se juntar à família. Ela deu um abraço meio sem jeito no pai e olhou para o vale atrás dela uma última vez. Tocou o pinheiro de Thalia e então se deixou levar por cima do cume e para dentro do mundo mortal.

Pela primeira vez no acampamento, me senti verdadeiramente só. Olhei para o estreito de Long Island e me lembrei do meu pai dizendo: O mar não gosta de ser contido.

Tomei minha decisão.

Fiquei pensando: se Poseidon estivesse vendo, ele aprovaria a minha escolha?

— Estarei de volta no próximo verão — prometi a ele. — Sobreviverei até lá. Afinal, eu sou seu filho. — Pedi a Argos para me levar até o chalé 3, para eu arrumar as minhas coisas antes de ir para casa.

 

 

                                                   Rick Riordan         

 

 

 

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