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QUANDO Hell abandonou o comboio, acabara de chover. Até então, vira-se tudo turvo, através as janelas lacrimejantes do compartimento, a paisagem estava afogada em listrada humidade e as montanhas pareciam espetadas em nuvens de algodão.
Mas agora que Hell caminhava entre os sarmentos gotejantes da vinha virgem, que embelezava o edifício da estação, sentia-se um alvor de prata a despontar por trás do cinzento nevoeiro: dir-se-ia que era um raio de sol modesto e tímido, a dar o seu passeio. Hell parou, alargou as narinas e aspirou o ar fresco. Este ar era puro, frio, acre, cheirava a humidade, a fumo do bosque, talvez mesmo a neve. Juntavam-se-lhe também odores de alcatrão... sim, sem dúvida era uma brisa vinda do lago que trazia um cheiro a quilhas de canoas, alcatroadas de fresco. Hell sorriu de contentamento. Meteu o polegar direito na correia do seu saco tirolês, apertou debaixo do braço uma caixa de cartão de modestas dimensões e saiu da estação.
- Quer que lhe leve alguma coisa, senhor? - perguntou um garoto, que estava na estrada, de pés descalços nos sulcos amolecidos pelas rodas.
Hell parou. Nunca passava por crianças sem lhes prestar atenção.
- Tu queres ganhar dinheiro, an? - perguntou Eu também, sabes ? E não to dou porque não o tenho. Esperai -disse, vendo que o pequeno se preparava para se retirar.
E procurou nos bolsos.
- Não coleccionas selos, pois não? Podes dizer-me qual é o caminho para o balneário?
- Eu levo-o até lá. - disse o rapazinho.
Hell apertou a caixa entre os joelhos, exumou das profundezas de uma algibeira um pedacito de chocolate, limpou-o e deu-o à criança.
- Aqui tens um presente que te faço. - disse, não sem certa importância.
O garoto meteu o chocolate na boca, sem cerimónia, gesto que Hell seguiu com um olhar interessado, quási invejoso. Assim que voltou a pôr-se em marcha, o garoto seguiu-o de perto; com o nariz no ar, caminhava atrás de Hell na rua molhada pela chuva, pondo os pés nas marcas que os sapatos castanhos de Hell deixavam - grandes e nítidas. O próprio Hell, que andava a grandes passadas, sentia com certo prazer, as fortes solas novas sob os pés; patinhava corajosamente na lama e pôde, emfim, avançar a passo firme e seguro sobre as raízes e as pedras chistosas do pinhalzinho e sentiu finalmente prazer em pisar o saibro do passeio, do lago. Isto não foi pequeno trabalho para os seus sapatos novos, em que ele tinha empregado os últimos recursos. Levantou o queixo e, como um cão de caça, procurou orientar-se pelo cheiro da paisagem velada. De súbito, dois castanheiros afastaram-se e encontrou-se em frente do lago. Este era grande, de tom cinzento-ferro e parecia divertir-se com o ruído das suas pequenas vagas, que avançavam até ao dique do passeio. Muitos pontões de embarque balouçavam-se, presos por correntes, o vento soprava da margem oeste que, ao longe, flutuava, indistinta, num mar de nevoeiro e passava, como mão húmida, pelos cabelos claros de Hell. Ele que tinha sempre a cabeça nua, por princípio, e também porque não possuía chapéu, pôs-se a rir sem
bem saber porquê. O prazer de estar à borda de água enchia os seus membros de uma espécie de tremor suave, de uma embriaguez de frescura.
- Não há canoas cá fora? -perguntou, espantado.
- O tempo está mau, ninguém se atreve. - disse o pequeno -O lago é manhoso, parece que está calmo e, de-repente, vem uma tempestade que nem se pode remar. A semana passada houve quem quási se afogasse. É um manhoso, um sonso.
Hell assobiou um pouco.
- E esses medrosos, ao menos, tomam banho ? perguntou ele, de toda a sua altura loira, ao pequeno que se lhe tinha ligado como um cão.
- Ah, como hão-de tomar banho? Está muito frio. Um instante depois, Hell encontrou-se deitado de
barriga para baixo, no dique, com a metade do corpo debruçada para fora, deixando pender as mãos na água que lhe mordia os dedos com um frio subtil - água estranha, na qual se lançavam torrentes glaciais e, no entanto, elemento familiar. Hell tinha dentes de negro, largos e de uma brancura brilhante; cerrou-os um pouco, pensando resoluto: "Eu os ensinarei a banharem-se". Emquanto ali estava deitado de barriga, tal como uma tartaruga, por baixo do seu saco tirolês, avançavam pessoas no passeio vazio. Quatro pés contornaram Hell, deitado; dois eram masculinos, dois femininos e os quatro tinham artelhos finos e calçavam grossos sapatos sobre os quais desciam meias de lã. Hell voltou a cabeça e, na sua perspectiva, não pôde ver senão as pernas da rapariga, que se perdiam juntamente acima dos joelhos finos, na sombra de uma saia de sport; pôs-se em pé, de um salto, e um leve rubor invadiu-lhe o rosto, por baixo do loiro claro dos seus cabelos. Pôde ouvir o que a rapariga dizia: "Que quere, gosto mais do que é amargo"-e dizia-o numa voz grave de adolescente. Hell, Deus sabe porquê, achou estranhas estas palavras e preocuparam-no emquanto continuou o caminho, com o seu satélite, para o lado oposto. "E uma das duas" disse o rapaz, enigmático, fazendo um sinal atrás dele,
com o polegar sujo. Hell voltou-se e viu que os dois tinham parado também para o seguirem com o olhar. Uma canoa automóvel corria sobre o lago. Trazidas pelo ar puro e fresco da tarde, as vozes chegavam claras até ele. "Ora até que aparece uma criatura bonita -disse o senhor. E a rapariga replicou: "Precisamos de o apanhar para o torneio de tennis".
Furioso, Hell continuou o seu caminho. Estava farto de ser um bonito rapaz e não queria ser considerado como um objecto de luxo por cavalheiros orgulhosos, de camisolas às riscas. De-resto, estes minutos tinham-lhe tirado todo o prazer que podia sentir com os seus sapatos novos, tão caros. Assim, no Lago do Amor não usavam calf castanho, mas sapatorras grossas, botas de montanha e, no bom tempo, brancas sandálias de praia. À noite, punham, sem dúvida, calçado de verniz. Ele, tinha nos pés uma forma intermediária, dois sapatos de múltiplas aplicações que, em rigor, podiam servir para todas as ocasiões, mas nunca de uma forma absolutamente perfeita. Pois bem, o seu guarda-roupa traria o cunho da originalidade!
A sua caixa de cartão continha uma camisa branca e um fato azul. No saco tirolês, estava uma camisa de cor e o seu fato de banho ao lado da farmácia ambulante. Tinha vestida uma camisa de flanela, colete e calça de sport. Pronto. Acabou-se. Tivera uma vez um smoking que, agora, as traças estavam, sem dúvida, em via de roer no Montepio de Viena. Hell assobiou uma ariazinha para se consolar. Uma nuvem, azul de chuva, aproximou-se. Primeiro foi vista do outro lado, por cima da inclinação da margem oeste, depois, fez jorrar pequenas cabeças de espuma branca à superfície do lago, e já a chuva batia nos lábios de Hell com o seu pingar húmido. Os bancos do passeio estavam vazios, e, por baixo do telhado de madeira da galeria de cura, viam-se sentados alguns infelizes banhistas, vestidos de lã e com impermeáveis, que tinham o aspecto de estarem ali a gelar. Vinte canoas balouçavam-se sobre a água com os seus narizes molhados, por baixo
de uma nuvem baixa e quási negra. Já a chuva se punha em fuga do outro lado, para lá da aldeia ao longo do vale, transpondo as montanhas, de que se viam só os sopés arborizados. E, de súbito, por um rasgão de um azul de genciana, apareceu um canto do céu que se reflectia no meio do lago. No mesmo instante e com o primeiro sorriso de sol aconteceu que uns olhos castanhos se abriram em qualquer parte em Hell e o olharam. Isto não aconteceu sem certo terror, misturado de encantamento. Era como se esses olhos castanhos se encontrassem no fundo dos seus próprios olhos cinzentos e, ao mesmo tempo, o olhassem de fora. Nunca Hell tinha sentido coisa semelhante, embora fosse nos seus vinte e seis anos, por isso ficou surpreendido, tanto mais que isto era acompanhado por uma sensação desconhecida e dolorosa, de agrado, na boca do estômago.
De-resto, não sabia onde tinha visto semelhantes olhos, com uma tal expressão, e se existiam na realidade, ou somente atrás das suas pálpebras. Emquanto Hell franzia a sobrancelha esquerda de um loiro pálido e a reflexão lhe enrugava a testa, uma voz em si associou-se aos olhos. "Que quer, gosto mais do que é amargo", dizia ela. Hell bateu com as mãos molhadas da chuva no ar e riu a essa recordação. De súbito, a sua boca ficou cheia de água e esta sensação não lhe pareceu nem incómoda nem tão estranha como a de ainda agora. Rapidamente, esforçou-se por evocar qualquer coisa amarga de que gostava: chocolate amargo. Depois, café, café com muito leite e um bocado de pão de aveia com manteiga; toucinho fumado. Esta evocação do toucinho foi tão nítida, que se demorou a gozá-la. Por fim, aspirou o cheiro do bosque que andava no ar misturado com odores de cozinha imagináveis ou reais provindos dos diversos hotéis e pensões. O lugar, as casas, as pessoas, encontravam-se agora mais próximas do passeio do lago. "Tenho uma fome de lobo", dizia Hell a si mesmo, pensando numa carne de porco, assada, imaginária, rodeada de choucroute e de bolinhos de massa.
Diante do posto metereológico estavam algumas pessoas que batiam esperançadamente no vidro do barómetro; o azul do céu tinha-se acentuado. A margem fronteira iluminava-se e parecia aproximar-se com os seus arcos verdes, de canas, e a grinalda das suas árvores por cima das casas, pequenas como brinquedos. O passeio desembocava na praça com casas pintadas de branco. Sobre uma língua de terra, os hotéis avançavam no lago. De janelas iluminadas em pleno dia, vinha uma música de grande cidade e o ventilador, girando, cuspia o ar de café-concêrto para a rua da aldeia.
- A Praça. - explicou o rapaz, que entretanto Hell tinha esquecido por completo, mas que trotava fielmente a seu lado, julgando-se sem dúvida obrigado a uma dedicação absoluta por causa do resto de chocolate, que Hell lhe havia sacrificado - A Praça. Os hotéis. O grande Petermann, o tennis.
O tennis ficava perto do lago e os courts estavam inundados, quási afogados na água. Hell abanou a cabeça.
- Que tempo costuma haver aqui ? - perguntou ele, levantando para o céu um olhar cheio de censura.
- O mais frequente é a chuva torrencial. - respondeu o rapazinho.
Nesse momento, de uma forma absolutamente imprevista, a rapariga apareceu à porta do Petermann, parou no último dos três degraus de grés vermelho e pôs-se a inspeccionar as nuvens. Era a mesma rapariga que "gostava do que era amargo", e que, com pernas altas e joelhos finos tinha desaparecido, havia um quarto de hora apenas, numa direcção diferente acompanhada por um senhor altivo, de pull-over. Hell parou, o espanto fez-lhe subir o sangue à cabeça, avermelhando-lhe às orelhas, que tinha pequenas e bem feitas. O olhar que recebeu desta vez integralmente e com um franzir nas sobrancelhas claras, era agradável, mas no entanto, um pouco decepcionante. Os joelhos da rapariga não eram assim tão altos, tão finos, tão incomparavelmente elegantes, como ele tinha pensado. A sua figura alta,
bem feita e ágil, não era tão cheia de atractivos, nem tão nobre e tão alada.
Tinha os olhos castanhos, efectivamente. Muito abertos, fixavam Hell com uma espécie de espanto. No entanto, não era verdadeiramente o olhar nem o castanho encantador que Hell trazia em si, este jogo de topázio e ouro escuro numa taça de esmalte azul. Hell suspirou. Â rapariga voltou a cabeça, desceu as escadas e atravessou a praça. Do outro lado, um automóvel esperava, no qual estava sentado um senhor de certa idade com ar cuidado e paternal. Hell, que tinha deixado cair a sua caixa de cartão, aprumou-se. "Aqui está uma que tem a bacia bem colocada, o que é raro", pensou ele bruscamente, estranhamente perturbado. A longa viagem, o ar vivo da montanha, a fome devoradora depois de vinte e quatro horas de jejum, foram causa de uma fraqueza que lhe apertou as fontes. Teve uma vertigem e os seus ouvidos zumbiram. Assobiou qualquer marcha militar a que se agarrou. Já a bandeira vermelha do balneário, igualmente vermelho, flutuava diante dele.
- Esta era a outra. - notou despercebidamente o garoto, que tinha acompanhado até ali Urbano Hell.
O sr. Alois Birnde, proprietário do balneário, que era ao mesmo tempo escola de natação, praia e solariam, tinha ido visitar o seu amigo, o porteiro Eggenhofer, do Grande Petermann e fazia um discurso. Encostava o seu grande ventre, lindamente ornamentado de berloques de dentes de veado, contra a mesa da casa do porteiro. Na sua frente, tinha espetados os dez dedos vermelhos e grossos como polegares, que serviam para sublinhar os pormenores do discurso. Usava para esse efeito o dialecto do Lago do Amor, dialecto que, embora privativo da região, não podia, no entanto, negar a influência muito acentuada da invasão anual de estrangeiros cultos.
- O novo mestre de natação - dizia mais ou menos o sr. Birnde -é um rapagão, com os demónios! Se houver bom tempo, e quando as raparigas o tiverem visto, vão fazer bicha diante da caixa, juro-to eu. Tu verás se ele não será a atracção de toda a aldeia, meu rapaz. Não é como com o maluco do Adolfo que faleceu, esse tinha umas grandes patas e estava sempre a beber; estragou-se com isso, Deus lhe dê a vida eterna... Sabes tu, o que é este agora? Um sportman, digo-to eu. Exactamente: um sportman Ganhou um desafio de natação, foi contra Rademacher, pelo seu clube,
digo-to eu, que o reconheci no seu melhor fato onde estava escrito: desafio de duzentos metros. Vi-o com os meus olhos. É prata verdadeira, diz ele, mas eu não acredito, porque ele não percebe nada disso. Mas no que respeita a nadar! Santo Deus!
Dizendo isto, o sr, Birndl deu um murro na mesa do sr. Eggenhofer que era todo ouvidos.
- É ver como ele salta do alto da prancha e como se mexe na água! É inacreditável! "É o meu estilo, sr. Birndl", diz ele a rir. Porque é muito delicado, sabes, é um tipo da alta, doutor ou engenheiro, segundo afirma. com esta falta de trabalho, despediram-no, diz ele, e "é preciso que um homem viva", diz ele... e então fêz-se mestre de natação durante o verão. "É preciso apertar os dentes", diz ele, e aperta-os, para que não os ouçam bater. É vaidoso, é muito vaidoso: "Sou um sportman, sou um amador;-diz ele-é verdade que não tenho diploma de mestre de natação, mas é porque, de mim, ninguém faria um profissional". Vê tu como fala bem!
A estas palavras, o sr. Eggenhofer abanou a cabeça, admirado. Mas o sr. Birndl agora estava lançado. De um jacto, disse o que tinha a dizer a respeito do mestre de natação.
- A minha velha, que está já de sete meses, passa a noite de pé, a ouvi-lo. Usa umas calças de banho que não têm dez centímetros de comprido, quer dizer, apenas um triângulo, mas deixa-o lá... que é o que agrada às senhoras. Vai para a cozinha... e eu digo à patroa: "passarias toda a noite a ouvir o mestre de natação". "Pois é,-diz ela-quando se está como eu, deve ter-se qualquer coisa de bonito diante dos olhos; em ti não vejo nada de especial". Ontem ela deu-lhe ovos estrelados, porque ele estava com uma destas fomes! Também é verdade que, desde que chegou, chove a potes e ainda não pôde ganhar para se encher. Dou-lhe trinta groschen por lição. Fazendo bom tempo, ainda pode fazer os seus cinco schillings por dia. Mas o malvado tempo que faz, há três semanas, é de se bater com a cabeça nas paredes! E depois está instalado de borla,
a patroa alojou-o na pequena divisão que fica ao pé da cabine trinta e seis, é tudo quanto ele precisa, não é verdade? E assim, sempre temos quem vigie de noite para que não roubem nada; a ele não lhe custa e eu poupo um guarda. Não há que dizer, é um tipo extraordinário. O Adolfo deixava ir tudo sem se importar, é preciso que vejas o novo, como ele arranjou a areia da praia com a pá e como consertou todas as estacas atrás, sabes?. no larguito ao lado do tennis... preparou-o para a gimnástica e trouxe consigo um monstro de uma bola e agora lá está à espera do bom tempo. Até agora ainda não teve senão aquele saxão, que vai todos os dias, tem uma avença e quer aproveitá-la, ainda que só façam três graus. É claro que ele tem de vigiar os banhos com todo o tempo, ainda que gele; para isso é que é mestre de natação. Lá anda com o seu triângulo e o seu roupão de banho, a tiritar, porque não está habituado ao nosso clima. Todos os dias, que Deus manda ao mundo, ele corre três vezes ao correio para ver se há, por acaso, qualquer coisa para ele. "Você tem noiva, com certeza?", perguntei-lhe eu. "Não; - disse - quando me treino, quero paz: que vão para o diabo as histórias de amor". Porque ele treina-se, sabes? Em Setembro deve nadar os 1.500 metros em Berlim, pelo seu clube. "Espero que o correio me traga qualquer coisa de bem mais importante, disse ele, devo receber uma carta quê vale milhões, sr. Birndl, porque fiz uma descoberta grandiosa". Eu não sou tolo que o acredite; pensei e vi logo que é alguém que se quer dar ares, simplesmente porque é formado em engenharia e, como não tem nada que comer, conta coisas assim aumentadas. Ele é orgulhoso. Ontem, fêz-me pena; como tinha chovido sem parar, eu disse-lhe assim: "Aqui tem um schilling de gorjeta, sr. Hell, por ter arranjado a praia tão bem". Devias vê-lo então, pouco faltou para me dar um estalo. "Tu não tens delicadeza nenhuma", disse-me a patroa, que tem tacto, visto que dantes serviu em casa do maluco do barão Dobbersberg. "Então, digo-lhe: sr. Hell,-digo-lhe eu -está entendido, vamos a casa do Schawoisshackel
comer carne de porco fumada com choucroute. "Obrigado, já jantei". E, dizendo isto, tinha a fome escrita nos olhos. "Convido-o, sr. Hell", disse eu, visto a minha velha ter-me acusado de falta de tacto. E assim, lá fomos ao Schwoisshackel. Quando a Vefi nos veio servir, eu disse: "Vefi, é o novo mestre de natação, traz-lhe uma dose bem farta, pois há três dias que ele tem a barriga vazia, digo-to eu. Sou eu que pago". Eis que o sr. Hell se levantou de um salto, saiu e não comeu nessa noite. Não é fácil tratar com um sportman! Então, a velha levou-lhe ovos estrelados ao quarto e ele comeu sem dizer nada, não deixando no prato nem uma migalha. Mas agora o tempo parece compor-se, já se viu hoje o Dente de Ferro deitar o nariz fora das nuvens, durante um quarto de hora. É sempre bom sinal. Então, pensei: Tu vais pendurar um cartaz no teu vestíbulo, Eggenhofer, com esse bilhete postal onde Hell, com as suas calças pequenas, está de pé, ao lado de Rademacher porque, se foi Rademacher que ganhou, pelo menos foi uma grande honra para ele, segundo diz, e todos os que se interessam pela natação o devem compreender, diz ele. E depois escrever-se-á por baixo: lições de natação, saltos em todos os estilos, etc. lições de aperfeiçoamento, sob a direcção dum célebre nadador. E depois, será preciso falar da gimnástica, da praia consertada" depois "marcaremos uma temperatura falsa ao lado da entrada" diz ele "dezoito graus por exemplo, que é bastante agradável e então, há-de haver quem venha... eu nasci optimista, sr. Birndl", diz ele, e tem muita razão. Quando as senhoras o descobrirem, então virão banhar-se mesmo debaixo de neve e de chuva. Dentro de meia hora ele deve aparecer por aqui para conversar contigo a respeito do anúncio; neste momento, está no lago, ao largo, a treinar-se. "Hoje nado até ao lado de lá-disse ele-são mais de mil e quinhentos metros e Matz pode vir buscâr-me à outra margem, com a canoa de salvação". Porque é preciso dizer-te que o Matz não abandona o mestre de natação durante todo o dia; ligou-se a ele logo que
o viu descer do comboio. Eu não sei, na verdade, se Matz com os seus seis anos tem força bastante para remar no lago, porque se levantou uma brisa do oeste. E quando em seguida ele vier ver-te, o mestre nadador, é preciso não falar em doutor, em engenheiro e em que ele não tem que comer. Não gosta de contar as suas coisas particulares, o que é natural, porque é um sportman. com a breca! Vai fazer outra vez mau tempo...
Tal foi o discurso do sr. Birndl, que era interrompido, nos bons momentos, pelo grunhido admirado e aprovador do porteiro. Havia alguns minutos que uma rapariga estava à escuta; tinha sido atirada pelo vento para o vestíbulo do hotel, com a capa de borracha a escorrer. Os seus olhos eram castanhos e sob um boné redondo, como usam em França certos soldados alpinos, cabelos castanhos, claros, desgrenhados pelo vento, caíam-lhe para o rosto.
- Quem está lá adiante, no lago ? Quem quer alcançar a outra margem? - perguntou ela com uma voz grave de rapaz, pouco firme, mas de timbre agradável.
- É o novo mestre de natação, minha menina! respondeu o sr. Birndl.
- com este vento oeste? Mas olhe para o lago!- disse a rapariga - É preciso que esse homem seja doido! Emfim, ele voltará para trás, se não puder continuar.
- Ah! Ele, voltar? Não olhou para ele, minha menina l Está a treinar-se.
A rapariga tirou o seu boné, sacudiu os cabelos curtos, cor de bronze, gesto que fez saltar gotinhas como dum fogo de artifício e foi-se embora, atravessando o salão de leitura e a casa de jantar. Chegou ao terraço coberto que dava sobre o lago. Este, àquela hora do crepúsculo, estava abandonado e tranquilo, com as mesas abandonadas onde havia restos de comida. A rapariga dirigiu-se para o telescópio que, como diante da maior parte das casas do Lago do Amor, estava instalado
num eixo móvel, assestado para o céu, ?Como se quisesse procurar por trás das nuvens, o cume branco do Dente de Ferro. com gesto impaciente, dirigiu a lente para o Lago que se tinha posto a ferver, sob a tempestade. De Olho contra a lente do telescópio, ficou imóvel, até que tudo desapareceu na tempestade e na escuridão.
Hell estava lá muito longe, ao largo, estendido na água, leve como uma apara de madeira, e nadava, num crawl a quatro tempos, pelo lago. Os seus braços trabalhavam regularmente como pás de uma roda em movimento; o elástico e flexível bater de pés empurravam-no para a frente, um sulco espumoso marcava o caminho que tinha seguido. O picar da água nos olhos, nas orelhas, na mucosa do nariz, o crepúsculo verde nas ondas que murmuravam à sua volta, eram-lhe familiares. O ar afluía-lhe facilmente à boca; depois de cada braçada, saía um pouco de água, atirando a cabeça para cima do ombro esquerdo. Era bem mais quente do que a água, esse ar, e havia em si como que uma espectativa inquieta, uma tempestuosa tensão. Mesmo quando uma bátega de grossas gotas caía de uma nuvem pesada, o ar não se tornava nem mais fresco nem mais leve. Só o lago começou a acentuar o seu balanço, opondo aos braços uma resistência mais forte. O lago estava frio e profundo. Hell abriu os olhos debaixo da água, vendo, em vez do verde-cinzento habitual, um estranho castanho-escuro, através do qual corriam peixes singularmente grandes. O frio tornou-se mais mordente no meio do lago, alimentado por torrentes dos glaciários; às vezes, apertava os flancos do nadador como um tomilho,
tornando-lhe a respiração mais difícil. O frio mordia-o nos calcanhares, nos dedos, tornando-os rígidos, o que fez com que Hell, arreliado, emitisse na água o som de uma trombeta. Julgava ter atingido o meio do lago, quando se sentiu um pouco fatigado, estado que o contrariou, inquietando-o. Ergueu-se e, mantendo-se em pé na água, percorreu com o olhar o percurso feito. Não foi sem desilusão. A margem do Lago das Damas não estava muito distante, podiam reconhecer-se todos os pormenores confortáveis e sedutores que valiam a boa reputação de que gozava o Grande Hotel Petermann, no seu promontório. No jardim, no terraço, os criados, de avental branco, fechavam os grandes guarda-sóis vermelhos e retiravam-nos um a um. Isto significava chuva prolongada. Na parte do edifício onde ficava o Café, um saxofone sentimental modelava os seus ritmos. Isto agradou a Hell que tinha a paixão da dança. No tennis e na praia, ninguém; nada de canoas no lago, aparte uma que se baloiçava, pesada e aparentemente sem destino. Hell reconheceu-a imediatamente: era a velha e larga canoa de salvamento do balneário, dirigida pelo pequeno Matz que não parecia ter força para se defender contra o vento crescente. Hell levantou os braços e lançou um grito de apelo tirolês, o "iuhu" dos montanheses: não pôde adivinhar a resposta, pois o vento contrário levou-a. Hell sorriu, não sem um pouco de inquietação. Eis o pequeno que chegava na sua canoa metendo água, e com o cronômetro, que venerava como um talismã.
E o lago mostrava uma face inquietante, as vagas passavam constantemente sobre a cabeça de Hell e a margem do lado de Wurmtal, para a qual ele se dirigia, estava velada por vapores indecisos. Só havia o pequeno castelo de Dobbersberg com as paredes brancas e as árvores negras, que se distinguia nitidamente, no cimo de um promontório que avançava sobre o lago. Hell retomou a direcção de Wurmtal, para a estação da canoa a motor que apitava em qualquer parte, sem se poder ver. Esse som familiar tornou
um tanto mais amigável o vazio e a extensão do lago. Hell soltou um outro "iuhu" para Matz que se tinha afastado dele: o pequeno parecia voltar para a praia. Mas talvez fosse apenas o vento oeste que o afastasse da sua direcção, a menos que não tentasse marchar em diagonal.
Durante um curto instante, Hell pensou também no regresso, mas não tomou a sério este pensamento e, afastando-o logo, estendeu-se na água e atirou-se para a frente como para uma corrida. No entanto, não pôde manter a cadência, pois as vagas tornavam-se cada vez mais altas, de forma que era obrigado a cavalgá-las para cima e para baixo, à medida que elas se apresentavam, no que gastava mais respiração do que anteriormente. Encontrou-se um instante sobre uma água calma e negra que, como uma pegajosa mancha de óleo, se estendia no meio do lago agitado, o que segundo a experiência dos habitantes do Lago do Amor significava tempestade. Estava calor e Hell, levantando a cabeça, teve o rosto atacado por um enxame de grandes mosquitos doidos. Continuou o seu crawl rítmico a quatro tempos, como numa ligeira embriaguez, meio inconsciente.
Podia ter nadado assim dez minutos quando, de novo, se sentiu fatigado e não pôde avançar. Parecia-lhe que o corpo tinha de abrir uma passagem, não através da água, mas através de espessa massa gelatinosa, uma lava de fogo e de gelo. Levantou um braço fora da água e olhou-o; parecia-lhe alheio, hirto, e, ao mesmo tempo, ardente pelo esforço. Sobre a sua pele queimada e oleosa, a água formava gotas como que de transpiração.
De resto, o momento era mal escolhido para criancices desse género. O lago estava transformado, era uma montanhosa massa tendo, entre as vagas, vales turbilhonantes. O céu mostrava-se pesado e inquietante, atrás das nuvens negras, de rebordos metálicos. Nem vestígios da margem. Um barulho furioso de trovoada, de tempestade, de graniso, desencadeava-se, batendo na
cabeça de Hell. Uma avalanche de água quebrou-se contra o seu rosto levantado, meteu-se-lhe pela boca e inundou-lhe a garganta. Foram-lhe precisos uns segundos para lutar contra a tosse e contra a asfixia. Uma vaga levantou-o, como que sentado sobre qualquer mão molhada. Quando reabriu os olhos estava cercado pela obscuridade. Onde estava, já não sabia: não sabia donde vinha o vento nem para que lado se devia dirigir.
Fez prancha durante um momento, reflectiu, abandonando-se ao sabor das ondas: mas não era como num rio ou no mar, em que a corrente tem um fim e uma direcção. O lago enlouquecera sob a tempestade, tinha convulsões e lançava uma contra a outra as vagas que turbilhonavam. Hell servia-lhes de bola, voava para a direita, voava para a esquerda e a custo conseguia esquivar-se às pancadas, graças ao instinto do seu corpo. Aconteceu-lhe pensar no pequeno Matz; perguntava a si próprio se ele poderia ter regressado a tempo com o seu barco e se o cronômetro estaria em segurança, esse cronômetro que, com tantos sacrifícios, tinha salvo da casa de penhores. Depois, não pensou em nada pois tinha perdido a respiração. De-repente, teve consciência do perigo que corria. "com a breca", disse, tentando pòr-se de lado. "com a breca, mais uma vez!" E, ofegante, com o coração a bater contra as costelas, pôs-se a nadar com uma força que, irresistivelmente, se lhe apoderou dos membros rígidos. Isto durou muito tempo.
Por fim, logo que compreendeu que era uma questão de vida ou de morte, o furor frenético do lago contaminou-o também. Lutou. Bateu na água com os braços, com hostilidade. Gritava, o que não era nem razoável nem útil, pois só servia para gastar a respiração. Mas era-lhe preciso gritar a raiva de se sentir enfraquecer, de sentir aumentar a sua impotência. A-pesar-do clamor da tempestade, ouvia a sua respiração. Por fim, tudo se tornou negro, sem o menor vestígio de uma margem ou de uma direcção. Talvez ele andasse à roda desse maldito lago. Agora declarava-se vencido.
Fez prancha, como fazia no clube, nos exercícios de salvamento. Fechou os olhos e uma grande fraqueza
se apoderou dele.
Tinha a impressão de dormir emquanto era assim precipitado de uma vaga para a outra, como nas montanhas russas. Mas tinha provavelmente perdido a consciência. Coisa estranha: de-repente, viu uma grande estrela tranquila por uma nesga límpida do céu. Depois, os seus olhos foram ainda submergidos pela água. Retiniu todas as forças e agarrou-se à sua vontade como a uma corda; o esforço despertou-o. Tinha um estranho sentimento de vácuo no coração, mas continuava a nadar. Notou mesmo que fazia outra vez o crawl, que ia no ritmo habitual de quatro tempos na direcção da corrente. Deus sabia onde poderia chegar! As vagas eram ainda altas, mas mais ordenadas, menos furiosas. A tempestade continuava a fazer ouvir os seus silvos, mas com mais força do que histeria. E lá em cima, no meio de um rasgão das nuvens que parecia ir dar directamente ao céu e ao calmo crepúsculo, encontrava-se, realmente, uma grande estrela. E eis que, de repente e de uma forma imprevista, uma luz apareceu na água aproximando-se de Hell que flutuava, quási a desmaiar. Tentou chamar, soltando o seu "iuhu" de que se serviam no Lago das Damas para se fazerem ouvir. Não chegou a emitir um som, os maxilares e os lábios estavam como que cerrados, deixando-lhe apenas sair a respiração. Desespero! Os seus braços caíram paralisados, e só as pernas continuaram o trabalho rítmico. Mais uma vez a água se precipitou por cima da sua cabeça, entrando-lhe pela boca aberta. Sufocações, espasmos respiratórios.
Depois, houve uma lanterna que se balouçou por cima do lago, e um remo enorme, grande como uma pá, apareceu muito perto de Hell, um desses remos de que se servem os camponeses do Lago do Amor. Bateu na água, mesmo ao lado da cabeça de Hell. Ele estendeu a mão. A seu lado, ficava o bosque sombrio, uma quilha, um remo, uma borda de canoa.
Também havia uma voz. "Sobe, rapaz.-dizia ela, através do ruído dos elementos desencadeados - Segura-te bem. Vou-te puxar, mas não agarrado à canoa, senão mergulhamos. Vem, rapaz, ainda tens forças?"
Hell distinguiu diante de si um círculo de luz no meio do escuro. Ao clarão da lanterna viu distintamente a espuma branca da água deslizar diante dele. Depois, encontrou uma mão que lhe pareceu enorme à força de estar perto e depois ainda os olhos sob um capuz de fazenda molhada. Tudo o mais era obscuro e vago. Uma singular teimosia subiu subitamente por ele, dando-lhe forças. Respirou profundamente, retomando alento.
O instinto formado na escola de treino e de concursos, manifestou-se. "Ainda é longe?", perguntou. Gaguejava como um ébrio, com a boca contraída. E, no entanto, foi compreendido. "Ainda trinta metros", responderam do outro lado da lanterna. "Isso ainda aguento" suspirou Hell, estendendo-se. O remo acompanhou-o fielmente, ele venceu as vagas, cuja força enfraquecia cada vez mais. "Não deves ter medo, meu rapaz", disseram por cima dele e isso pareceu-lhe cómico e consolador ao mesmo tempo. "Não tenho medo", pensava, fazendo ouvir sob a água um som de trombeta, nascido do ennervamento, da fraqueza e de uma certa alegria que, de súbito, o invadia. O lago deixou de o levar, tornou-se plano, limos enrolavam-se em torno das suas pernas retezadas.
"Cá estamos" disseram. Içaram-no sobre uma coisa compacta, limosa e dura que, primeiro, parecia oscilar, mas que se via depois ser um desembarcadoiro. Cheirava a casa de guardar canoas, a lanterna projectava uma luzinha, havia estacas, canoas em repouso, a chuva batia sobre um teto de ripas. A corrente do barco foi atada com ruído; um pouco mais tarde, Hell estava estendido sem se mexer, ouvindo a sua própria respiração.
- Meu Deus, como estou cansado! - notou, não sem satisfação. Parecia-lhe ter nadado e saído vencedor.- Afinal, alcancei o meu fim!-pensou-A tempestade não me venceu. Galguei todas as dificuldades.
E, no estado de leve embriaguez em que se encontrava, isso parecia-lhe de feliz agoiro, mesmo para outras coisas muito importantes, que nada tinham que ver com o lago, vasto e mau.
Passados alguns minutos, assim deitado de costas sobre as tábuas do desembarcadoiro, pôs-se a bater os dentes. Só então sentiu como estava transido de frio. Dos seus cabelos colados à testa, caía água que gotejava em seguida, do desembarcadoiro para baixo. Depois, uma sombra caiu sobre ele, mesmo por cima do estômago, que continuava a cavar-se e a encher-se como
um fole.
-Isso vai melhor?-perguntou a rapariga da canoa. Ele fez sinal que sim. Até então tinha julgado que era um rapaz, mas via agora que era uma rapariga que estava ajoelhada a seu lado.
- És teimoso, an? - perguntou ela, rindo. Ele abanou a cabeça mais uma vez e olhou-a. Ela parecia ser uma jovem camponesa, calçava botas grosseiras, muito ordinárias, e tinha um vestido de grosso algodão. Tudo estava encharcado e colado ao corpo. A sua capa de fazenda tirolesa arrastava, amarrotada, no desembarcadoiro; parecia um cão molhado. Do seu corpo um doce calor emanava até ele. Ela pegou numa das suas tranças entre os dentes e, com ar sério, pôs-se a entrançar os cabelos molhados e desfeitos, como uma corda cerrada. Depois, pousou-lhe a mão sobre o coração e perguntou:
- Queres que te ajude a respirar ?
Pegou-lhe nas duas mãos e levantou-lhas acima da
cabeça.
- Eu não estou como morto! -disse ele, sem
poder reprimir um sorriso, pois ela tinha-o agarrado com mão firme e quente para provocar uma espécie de
respiração artificial.
E, efectivamente, o rapaz sentiu um certo alívio no
coração e nos pulmões.
- Está quieto, - disse ela - bem vês que não podes falar de tanto que tremes. Os teus pais
deixam-te fazer destas coisas, meu rapaz? Tu ainda não conheces o lago, an? Eu logo pensei que havia tolice quando te vi cá fora esta tarde. E depois, perdi-te de vista no campo do meu telescópio, foi então que peguei na canoa e vim procurar-te. Não foi tão fácil como julgas, com uma tempestade destas, sabes? Diz-me lá: afogavas-te se eu não te fosse buscar?
- Não me parece. Eu cá me arranjaria. Não me rendo tão facilmente.
- Bem. - disse ela.
Ficou ali sentada sem falar, com as mãos enlaçadas em volta dos joelhos, olhando-o com ar pensativo, como se se tratasse de resolver um grave problema. Os seus olhos eram de um negro-mate e opaco; o clarão da lanterna fazia reflexos. Ela era pequena, muito criança e ao mesmo tempo, muito mulher, de expressão e de formas, como um fruto leve, redondo e meio maduro.
- E como te chamas? - perguntou Hell. Tinha grande desejo de encostar a cabeça contra o
coletinho molhado e adormecer.
- Puck. - respondeu a rapariga, agarrando os cabelos e torcendo-os para fazer escorrer as últimas gotas de água.
- Como? Puck? - perguntou ele, afastando um pouco a sua pele azulada pelo frio, do calor que emanava dela.
Mas, confiante, ela aproximou-se.
- Puck, porquê? Ora porque?
A mamã é actriz, sabes? A mamã é espantosa. És de Viena? Então deves conhecê-la, representa no Burgtheater. A mim não me deixam lá ir, mas deve ser bonito. Ela chama-se Camila Bojan; é o seu nome de teatro.
- A Bojan. Já sei... E eu que te tomei por uma camponezita.
- E não te enganaste. Sou um pouco maluca, sabes? Prefiro viver no campo. Aqui no verão, e no inverno em HornhUbel. Não podes imaginar como é bonito. Neva, sabes? -mas eu não posso explicar-te. Umas vezes tenho vontade de me enterrar toda na terra, e
outras queria correr, correr, fugir para longe! O papá chama-me doninha. O papá é muito bom. Também um pouco maluco. A mamã também. A mamã é noutro género. E tu como és? - perguntou, batendo com um gestosinho significativo na testa de Hell.
Ele estremeceu, os seus nervos enfraqueceram a este leve contacto.
- Que hei-de fazer agora de ti, meu pequeno? perguntou Puck - Vais adoecer, se andas por aqui nu. Não posso levar-te para casa, porque temos visitas. O papá lê-lhes o seu último livro. Filosofia. Percebes alguma coisa? Não, não é verdade? Eu também não. Se te levasse como estás, em fato de banho, enchias-te de ridículo. Quanto a passar-te para o outro lado do lago a remos, é impossível, estou muito cansada. E tu neste momento não prestas para nada. Primeiro tens que aquecer. Daqui a duas horas teremos o mais belo tempo e então empresto-te a minha canoa. Sabes remar?
- Onde estamos? - perguntou Hell. Tiritava mais fortemente e continuava deitado no chão com os braços nus e abertos - Estamos realmente na outra margem do rio?
- Sim. Estamos na outra margem. Isto soa bem, não achas? A outra margem! Podia-te cantar uma canção sobre isto.
Puck soltou uns pequenos sons parecidos com os das aves, colocou o remo na canoa, desprendeu a corrente e limpou as mãos molhadas ao vestido molhado. Parecia uma criaturinha de sonho, assim na casa da arrecadação das canoas, a saltitar de um lado para o outro, nas trevas, entre a superfície da água e o clarão da lanterna. Hell fechou os olhos.
- Como sabes que estará bom tempo daqui a pouco? És uma mulherzinha engraçada! - disse ele, meio adormecido.
Ela agarrou-o pelos ombros.
- Levanta-te, levanta-te! - disse-lhe em voz forte
- Aqui não se dorme. Não quero que apanhes uma
pneumonia. Vamos, a pé! Quanto ao tempo, tenho faro. Conheço o lago como os meus dedos. Quando as canas cheiram assim tanto, como agora, é que o tempo vai melhor. Vem, esperemos na salinha de banho, queres?
Passaram debaixo das árvores agitadas pelo vento, atravessaram os prados, escalaram colinas para chegar a uma escada de madeira molhada. Como tudo isto era estranho: na outra margem, num parque desconhecido e sombrio, ser guiado pela mão molhada, quente e firme de uma graciosa rapariga! Acendeu um velho candeeiro, a lanterna apagou-se e a chuva não deixou de cair sobre o telhado. Cheirava a madeira e a banho, agradável e familiarmente. A saleta era uma casa feita de troncos de árvores, um aposento baixo, de teto quadrado, com esteiras de palha no chão, e aos cantos, cadeiras de dobrar. Contra a parede, um sofá fora de moda, em madeira clara e seda às riscas, uma mesa baixa, cadeiras de verga. Sandálias japonesas espalhadas pelo chão, da parede pendiam fatos diáfanos e multicores; um perfume suave de mulher, de cigarros de luxo e de mistério, flutuava no ar. Urbano HeJI, que conhecia mal a vida, achou a atmosfera cada vez mais estranha. Puck desapareceu atrás de um tabique; parecia haver ali cabines. Um roupão chegou em voo pelo ar.
- Põe isso de-pressa e manda-me os teus calções para secar. - disse Puck, atrás do tabique.
Um instante depois, reapareceu; com os pés nus, um pano na cabeça, vestia um fato exótico cor de cobre, que lhe dava um ar de criada japonesa. Hell, que não possuía grandes conhecimentos do mundo, lembrou-se duma imagem semelhante que vira num jornal ilustrado.
- Estava molhada até aos ossos! - disse ela, como resposta ao seu olhar admirado.
E pôs-se a friccionar-lhe as costas, o peito, as coxas com o tecido esponjoso do roupão em que ele estava envolvido.
- Isso vai melhor agora, vai? -perguntou cheia de zelo e ofegante pelo esforço.
De-facto, ao fim de alguns minutos, passou-lhe aquele maldito tremor e respirou duas ou três vezes, profunda e sistematicamente. Estendeu os braços e
disse:
- Espantosa! Tu és espantosa, Puck!
Ela sentou-se, com as pernas cruzadas, sobre as esteiras e pôs-se a esfregar-lhe os pés; ele estava estendido numa cadeira de dobrar e sentiu uma sensação deliciosa de alívio e de calor. Ela pegou nos seus dedos dos pés um após outro, e fez-lhes maçagens de uma forma muito sua, original e enérgica. Depois pôs o pé direito de Hell no seu joelho, olhou-o longamente, pensativa.
- És um rapaz honesto. - disse, por fim.
- Suficientemente. - concordou Hell - Notaste?
- com certeza. O papá diz que as pessoas honestas têm os pés bonitos. O papá diz que todos os horrores que as pessoas escondem durante a vida, se vêem nos pés. Todas as vezes que temos hóspedes, no verão, reparo para os pés, quando tomam banho. Não. Obrigada. Não valem nada para mim. Não há um só que seja honesto!
Levantou o pé de Hell até à cara e soprou-lhe como se fosse um objecto para polir.
- Tens calor agora? com certeza? Porque me olhas assim?
Hell, confuso, sorriu tolamente. Não sabia comportar-se com as mulheres; faltava-lhe o hábito. De-repente acontecem coisas com elas em que um homem se comporta como um pateta.
Quando tinha dezasseis anos, uma viúva, membro do seu clube ciclista, tinha-o beijado num fosso da estrada durante uma excursão, quando lhe rebentara um pneumático. Uma criada arrastara-o, como um despojo, para certo sótão que cheirava a fechado, facto de que guardava uma péssima lembrança. No instituto de química tivera uma espécie de camaradagem com uma colega
feia; passavam as noites no Café, em discussões científicas. Isto acabou em lágrimas, em histeria, em pretensões irrealizáveis aos seus sentimentos. Depois, veio Annerl, a pequena dançarina do Sezessionbar, que lhe deu uma primavera de embriaguez amorosa e, de súbito, desapareceu. A princesa de Terck-Wriedt tinha-o abraçado depois de um tnatch de water-polo, em Worthersee; foi bem incomodativo, a pingar como estava e diante de toda a gente. Uma senhora, que ele não conhecia, tinha-lhe enviado cartas incompreensíveis e um senhor pálido, fabricante de tapetes, viera com uma bengala à pequena casinha de sua mãi, querendo bater-lhe por causa de infundados ciúmes.
Que agora uma escrava javanesa, chamada Puck, lhe acariciasse os pés, era novo, muito agradável, mas um pouco inquietante. Deus sabe o que isto queria dizer e o que daqui podia resultar! A lembrança da mãi dela, a Bojan, acudiu-lhe ao pensamento: tinha-a visto representar a Lulu no Espírito da Terra.
O céu da boca contraiu-se-lhe estranhamente ao pensar naquela mulher e olhou para Puck, de coração confrangido. Ela estava enroscada diante dele como um animalzinho que espera, com um olhar opaco, com olhos de cão fiel. Hell, opresso e percorrido pelo calor, quis dizer algumas palavras ternas, que já se formavam na sua garganta. com grande surpresa, foram outras que saíram, envergonhadas, enrouquecidas, difíceis de exprimir.
- Tenho uma fome que nem calculas! - ouviu-se ele dizer.
E, ao mesmo tempo, não apenas as mãos, mas também os pés, de dedos longos, se crisparam. Puck contentou-se em rir.
- Eu também.
Pôs o pé dele em cima da esteira e desapareceu um instante. A sua mão mostrara-se pela porta entreaberta num sinalzinho de amizade; ouviu-se anunciar fora que deixara de chover. Efectivamente, o silêncio reinava agora sobre o telhado e, no meio do silêncio, Hell ouviu
a sua respiração e as pulsações do seu coração. A garganta contraiu-se-lhe de novo e um gosto doce e amargo encheu ao mesmo tempo a sua boca. Sentia na fronte um suor frio, teve uma leve náusea, como num exame. As narinas arredondaram-se-lhe e um desfile imaginário de coisas de comer atravessou-lhe o espírito.
É uma coisa esquisita a fome. E havia quem não a conhecesse, o mais primitivo e natural dos sentimentos do animal e do homem. Há quem tenha necessidade de tratamentos, de medicamentos, de curas nas águas, para conseguir um pouco mais de apetite. Havia outros, os burgueses, os homens de ordem, que têm fome e comem a horas certas. A sua fome é tão insignificante como o resto da sua existência. Mas os fora da lei, os vagabundos, os criminosos, os artistas independentes, os inventores, os mendigos, eis as pessoas que a conhecem, a verdadeira, a grande fome, a fome monumental, aquela que produz os assassinos e as grandes obras. Quanto a Hell não era um vagabundo. Tinha tido pouca sorte, mas não se deixaria cair.
Aprendera a conhecer a fome, forçoso era confessar, e havia verificado, não sem espanto, que conseguia à maravilha suprimir qualquer outro interesse e que a sua influência era um pouco degradante. Fazia do homem o colega do lobo, das raposas e dos animais perigosos como estes. Urbano Hell, rapaz de carácter, probo e íntegro, de normalidade agradável, defendia-se à sua maneira contra a fome. "Por nada do mundo me deixaria desqualificar", pensava ele, empregando uma expressão desportiva. "Se é absolutamente preciso ser mestre de natação, ao menos que os outros não percebarn que é a fome que me obriga a isso."
Aquele que tem dinheiro para pagar uma refeição, pode, sem acanhamento algum, falar da sua fome. O sr. Birndl podia, se lhe apetecesse, dar murros numa das mesas do restaurante Schwoisshackel. Rapazes de camisolas às riscas podiam proclamar a sua fome como uma amável franqueza da juventude desportiva. O facto de ter falado nela à pequena Puck, equivalia a uma
declaração de amor. Desde que ela tinha saído do pavilhão, não conseguia compreender como se tinha deixado arrastar, sem vergonha, a essa confidência. Mas, mal ela voltou, apressada, rodeando-o de gestos singularmente humildes e doces e fixando-o com um olhar perscrutador e sério, de novo tudo foi confiança e simpatia.
Seguiam-na dois satélites: uma mulher extraordinariamente gorda e ágil que, depois de ter, sem dizer palavra, posto a mesa rapidamente, saiu a correr, voltou, levantou tampas de prata e apresentou os pratos fumegantes.
-É Lenitschka, a gorda boémia.-explicou PuckFoi ela que me amamentou quando eu vim ao mundo. É a minha querida velha do país das tulipas. E este é o Tigre. - disse, acariciando a cabeça do bull-dog malhado-E preciso dizer-lhe como te chamas para que ele te reconheça.
- Chamo-me Urbano. - disse Hell, dirigindo-se amavelmente ao cão que, depois de o ter farejado, lhe pôs sobre o ombro uma grossa e pesada pata.
- Agrada-nos, Tigre, não é verdade? Havemos de gostar de brincar com ele. - disse Puck.
Olhava para Hell e sentiu um certo receio. Ele tinha empalidecido à vista das travessas e no nariz apareceu-lhe uma transpiração fina.
- Agora come e não fales. - aconselhou, baixando as pálpebras. - Muito estranho foi o seu olhar fugitivo no momento em que se pôs a comer. Sentia-se nele súbita compreensão e muda compaixão. A gorda criatura retirou-se. Mas, antes de sair, parou atrás de Puck, fez uma careta, sacudiu a cabeça, juntou as mãos, bateu na testa e depois de ter deixado por isso Urbano Hell num estado de perturbação e de perplexidade, agarrou numa bandeja e saiu.
Hell comeu. Comeu uma sopa quente na qual flutuavam pequenos tubos desconhecidos, muito saborosos. Comeu uma espécie de guisado, pouco consistente para a sua avidês e muito picante: pareciam pastilhas excitantes.
Já não tinha nada no prato; lançou o
olhar para Puck, pegou no pão branco e molhou-o no molho de creme, no qual nadavam os pequenos e preciosos fragmentos do toucinho. Puck não olhava.
Estava na sua posição de escrava javanesa e segredou ao ouvido do cão toda a espécie de coisas que ele acolheu, movendo a cauda com ar compreensivo.
- Fruta ou queijo? - perguntou ela, sem o olhar, no instante preciso em que Hell depunha o garfo e
a faca.
- As duas coisas. Tudo. - disse ele.
E pôs-se subitamente a rir. Estava reanimado. Já não tinha vergonha. Puck riu igualmente. A mulher gorda emergiu da sombra do jardim e trouxe a sobremesa. Dir-se-ia que ela estava de guarda diante do pavilhão. Levantou os olhos ao céu, torceu os braços por trás de Puck, levantou a mesa e saiu.
Puck descascou um pêssego para ele e sentou-se ao seu lado no velho canapé, metendo-lhe na boca o fruto sumarento. Isto excitou-o singularmente: teve a sensação de que todo ele era uma boca.
- Animal! - disse a si próprio, indignado. Engoliu o pêssego e, ao mesmo tempo, também o
desejo confuso dos lábios de Puck ou de outros quaisquer que um vago sentimento exigia.
- Agora estás contente? - perguntou Puck, muito amável, quási humilde, ao pé dele.
- Não completamente. - respondeu ele, sincero.
- Que mais queres? Vinho? Licores? Charutos?
- Não, não gosto disso. Desabituei-me por causa
dos treinos.
- Então tens imaginação. O papá diz que as pessoas sem imaginação é que precisam de estimulantes. Queres estender-te e repousar um pouco ?
- com a cabeça nos teus joelhos. - disse Hell, de-repente, e espantado de si mesmo.
Mas Puck não ficou nada espantada. Cruzou as pernas e deitou-lhe a cabeça na concavidade estreita, percorrida por um calor suave. Hell, em roupão de banho, estendeu-se e respirou profundamente. Depois, veio o silêncio. Um pouco mais tarde, Tigre levantou-se e pôs-se a farejar para o lado da porta.
- Passou a tempestade. Podes voltar quando quiseres. Voltas?
- Assim o creio.
- Agradas-me. E eu, também te agrado?
- Sim.
- Não nos queres contar, ao Tigre e a mim, de onde vens? Gostávamos de saber qualquer coisinha a teu respeito.
- Eu também não sei nada, Puck,
-Espera, eu faço-te perguntas. Tens mãi? Como é ela?
- Sim, tenho mãi, é muito baixinha, já há onze anos que a minha cabeça passa acima da dela. Meu pai morreu antes de eu nascer, por isso a minha mãi teve de me criar sozinha, ajudou-me a fazer o meu caminho na vida, assim pequenina como é. Mas agora vou ser rico, muito rico. É um segredo, más a ti, posso dizer tudo. Fiz um invento extraordinário e isso vai dar-me muito dinheiro. Talvez me torne director de fábrica ou talvez possa comprar uma. Mas isto não te interessa, com certeza.
- Mas sim. É o país das tulipas, meu pequeno. Compreendo bem.
- Au 1... -rosnou o Tigre, atravessando-se diante da porta.
Fora, ouviu-se um afastar de ramos e um riso saiu do bosque.
- Ah! É a mamã! - disse Puck.
Passos fizeram ranger a areia e subiram os degraus. Hell apertou o roupão à sua volta e acordou, de súbito, daquela sonolência.
- Espera, aqui há luz. Estás a tomar banho, Puck?
- perguntou uma voz de fora, a famosa voz da Bojan.
Ao mesmo tempo, entrou. Estava de pé, branca, de encontro à porta negra. Trazia um casaco vaporoso por cima do vestido que cintilava. Na mão, tinha uma chibata de sabugueiro, que Hell viu muito bem. Hell viu distintamente cada botão do seu casaco. As biqueiras dos sapatos brancos embebidos em água, pareciam sombrios e ele também o notou. Ela tinha o pescoço fino e o mento delicado de uma rapariga. Os olhos eram negros, sob pálpebras azues. Em cima flutuava a massa indomável dos seus cabelos vermelhos, não como cabelos, mas como flores exóticas. Tal era a Bojan.
- Ah perdão... tens gente ? - perguntou ela, em voz um pouco cantante, um pouco irónica, olhando para Hell, no seu roupão de banho.
E começou o exame nos pés para acabar na boca onde o seu olhar se demorou com insistência, olhar indiferente em expressão e, ao mesmo tempo, sem se dominar completamente.
- O pequeno veio do outro lado. Esteve no lago durante a tempestade, fui lá buscá-lo e dei-lhe de comer. Tinha muita fome, à força de nadar. - disse Puck, segurando o Tigre pela coleira.
Os olhos do cão tornaram-se fosforescentes e rosnou surdamente.
- Sim? -disse a Bojan, que se pôs a sorrir E como se chama o rapaz?
- Dr. Hell - declarou ele, numa voz enrouquecida e unindo os calcanhares, o que, com a sua ligeira vestimenta, fez medíocre impressão.
- Espere, já vi o seu retrato em qualquer parte. disse a Bojan - Não figurámos já, um ao lado do outro, em qualquer jornal ilustrado? Não se lembra? Já não sei de que se tratava para si, mas lembro-me da sua cara. E também estava em roupão de banho.
- Bati o record da Áustria, de 200 metros, a nadar de bruços. - disse ele.
A Bojan, pensativa, estava perdida na contemplação dos seus dentes.
- Quer passar a noite cá em casa ? -perguntou, distraída - É certo que estão tomados quási todos os quartos de hóspedes e não se trata senão de literatura, nada de sport. Mas se quere contentar-se com um sótão...
- Obrigado. - disse Hell.
- Obrigado para sim ou para não? - perguntou a Bojan.
- Não, obrigado. - replicou Hell.
Ele era mestre de natação, nada tinha a fazer ali. Puck meteu-se de permeio:
- O pequeno pode servir-se da nossa canoa para a travessia. Amanhã vou buscá-la. - disse.
- O pequeno está muito crescido, ainda não deste por isso ? - troçou a Bojan - É preciso ser indulgente com Puck, doutor. Ela é uma planta pura dos bosques.
- Au... - manifestou-se o Tigre, que Puck teve de segurar com mais força.
- Não quero que sejas mau com a mamã, quantas vezes queres que to diga? - zangou-se ela a meia voz.
A Bojan aconchegou o casaco:
- Bem, então adeus, doutor, trate de fazer com que Puck se deite cedo, senão estará doente amanhã.
Estendeu a mão a Hell, que lhe pegou, hesitante. A mão era ardente, quási febril, extremamente lisa e esperava qualquer coisa. Emquanto Hell, desajeitadamente segurava na sua a desconcertante mão célebre, ela elevou-se sozinha até aos seus lábios. Exalava um perfume acre e excitante e, quando Hell, confuso, quis pousar-lhe os lábios, falhou e o beijo perdeu-se suspenso no ar perfumado.
- Não mordas a mamã, Tigre.-disse Puck, quando a Bojan saiu.
E, dizendo isto, a sua boca tremia um pouco, o que lhe dava uma expressão infantil. Os seus olhos estavam agora velados e faiscantes. De súbito, ela largou o cão que, impacientemente estivera preso, ladrando com voz rouca. Ele atirou-se como um traço branco e furioso para o parque, soltando um forte latido.
Puck, num gesto rápido e inesperado, atraiu a mão de Hell à boca e mordeu-o na cabeça do polegar. Sob o império da dor, Hell soltou um grito.
- Que tens? Que me queres tu? - perguntou ele,
sacudindo a mão.
Aproximou-a da luz e viu as marcas dos dentes desenharem-se, num pequeno oval que começava a tornar-se azul. Hell estava zangado. Puck ficou ali de braços pendidos, considerando com ar sério esta mão grande e forte com as pontas dos dedos enrugados
pela água.
- Não sei o que tenho, estou encolerizada. -
murmurou ela.
E foi-se para um canto, onde ficou de cara contra
a parede.
-Vai-te.-gritou, como que falando para a parede
- Vai-te, mas volta; ou não, não venhas. Não sei mesmo o que quero.
Hell não gostava de cenas; desconcertavam-no. Veio colocar-se atrás de Puck e, pondo-lhe a mão no ombro, fê-la voltar-se. Tinha grossas lágrimas a correrem-lhe pelas faces. Hell debruçou-se para ela, beijou-a e encostou-lhe a cabeça contra o peito. Foi tudo muito simples, muito natural. Puck ficou encostada, sentindo o seu hálito, ouvindo o bater do seu coração. Era um lugar repousante, o peito de Hell. Ela fechou os olhos e suspirou profundamente. Hell, pelo seu lado, não estava muito à vontade nesta situação, mas não sabia como a devia mudar.
Estavam agora encostados ao tabique, quando um senhor entrou e lhes desejou boa noite, em voz de timbre elevado e agradável. Hell empurrou Puck um pouco para o lado e inclinou-se. Tinha tanto o hábito de andar em fato de banho e em roupão e era tão ingénuo, que os estranhos encontros dessa noite não o espantaram. Hell olhou para o senhor e esperou. O senhor era de uma excessiva magreza e tinha a cor amarelada de um doente; parecia contrafeito sem, na verdade, o estar. A fronte e as mãos eram de uma
finura extraordinária, de tal maneira que Urbano Hell ficou impressionado.
- Barão Dobbersberg. - disse o senhor.
- Dr. Hell. - replicou Hell.
Puck julgou dever acrescentar uma explicação:
- É o papá. - disse - E este rapaz é aquele que eu fui buscar na canoa no meio da tempestade, lembras-te ?
- A doninha tem a paixão de salvar vidas humanas. - disse o barão, com a sua voz agradável Inúmeras pessoas lhe devem a vida. É a sua grande paixão. Quedas do Dente de Ferro, avalanches, mordeduras de víbora, tempestades no lago, epidemias de escarlatina, eis o elemento da doninha. Espero que já tenha repousado do seu esforço. A-propósito: sabe a que o lago deve o seu nome ? Parece que na Idade-Média, vinte e quatro virgens de Wurmtal lá se afogaram juntas, para escaparem ao perigo, ainda maior, de que as ameaçava um povo guerreiro. E agora, no fundo do lago, elas espreitam os rapazes que o atravessam a nado; já fica avisado, dr. Hell! Olha, Puck, a mamã ordenou-me que acompanhasse o teu convidado à canoa. Esperam-te em casa. O Tigre está muito malcriado, é preciso que o vás ensinar a ter juízo.
Puck pegou na mão de Hell que tinha mordido e esfregou-a contra as faces; era uma carícia de animalzinho.
Hell balbuciou palavras confusas e indistintas. Apertou mais à sua volta o roupão de banho emprestado e saiu do pavilhão atrás do barão. Fora, era um encanto. O ar estava puro e tépido, como um vapor prateado, sobre os bosques sonolentos e húmidos. Uma lua inverosimilmente grande parecia nadar na sua própria claridade; não havia estrelas no céu. O lago vinha bater docilmente, com pequenos ruídos sonhadores, na colina, sobre a qual se erguia, branco sob os cimos sombreados, o pequeno castelo. Viam-se as correntes de luzes da outra margem. Era o Lago das Damas. Dançavam no Grande Petermann. Tocavam. Os reflexos
das janelas do Café tremiam na superfície lisa do lago. Na velha torre romana da Igreja das Damas, uma pancada soou. Hell estremeceu. As últimas semanas tinham tornado um pouco anémica a sua pele morena. O barão lançou um olhar para a alta figura do seu vizinho, apontando com o dedo a sua própria sombra curvada que os precedia através dos campos e disse:
- Não posso, infelizmente, emprestar-lhe um fato. O nosso formato é muito diferente. De-resto, a desvantagem é minha.
Hell, oprimido pela necessidade de conversar com o autor célebre de obras filosóficas, replicou:
- É muito amável.
E viu a sua sombra fazer uma reverência que lhe pareceu muito elegante.
- Tenho que lhe pedir perdão pela minha doninha, caso ela tenha cometido alguma incorrecção. - disse Dobbersberg, depois de um curto silêncio - Ela surpreende à primeira vista. Está longe dos moldes vulgares.
- Isso não. - disse Hell, pondo-se a rir docemente à lua flutuando no seu clarão.
- A culpa ou o mérito é da minha educação. Vivi muito tempo nos trópicos, sabe? Trouxe, além da malária, uma incompatibilidade absoluta com os homens da Europa. Ataco-os nas minhas obras, mas já alguém conseguiu modelar os homens com livros? Meu Deus, eu não tenho ilusões sobre a força criadora dos pensamentos escritos. Mas Puck, a minha doninha, eduquei-a segundo as minhas idéas. Não a eduquei de todo, meu caro doutor, não de todo. Queria ver se esta mulher meiga e natural dos trópicos, esta criatura fascinante e de instintos simples e não corrompidos, não poderia desenvolver-se igualmente entre nós. Eis-nos em face do resultado. Ela é encantadora, a pequena; não a acha encantadora?
Isto tinha sido dito num tom interrogativo. Hell apressou-se a responder:
- Encantadora.
Estava bem disposto. Tinha comido. Sentia uma ligeira dor na base do polegar. Mas sentia o coração leve e aliviado. E, levantando os olhos, ficou surpreendido de ver, pela primeira vez, o cume do Dente de Ferro, desenhar-se, a branco, no céu negro. Eis que chegavam os bons dias.
- Podem evidentemente objectar que uma rapariga deste género está muito exposta, muito mais exposta do que as outras quando os seus sentidos despertarem. Ela já é uma mulherzinha de dezasseis anos. Nela, qualquer coisa espera. Só tem que se entregar ao seu instinto. É dele que tudo depende. Ele é que tem que dar a prova. Nós vemos, diariamente, de que espécie de homens se compõe esta geração despida de instinto. Olha-me espantado, doutor? O espírito é pertença dos homens mal favorecidos. É fácil pregar a religião do corpo precisamente quando não a possuímos. Creia-me, a grande produção nasce sempre da insuficiência.
Dobbersberg teve um sorriso um pouco forçado, o mesmo de há pouco ao contemplar a sua sombra. Hell, consternado por uma tal fluência de palavras, guardou silêncio.
- Exerce qualquer profissão científica, ou o seu título de doutor é apenas um ornamento?
- Sou químico. - replicou Hell, sentindo terreno sólido debaixo dos pés-Fui sempre muito atraído pela prática; em teoria não sou forte. Fui sempre um experimentador. Por isso me especializei cedo na fotoquímica. Estive nas fábricas Oluma. Não tive sorte. Os últimos empregados foram todos despedidos, quando se fez uma fusão. Agora é preciso ter paciência.
- Ah! - disse amavelmente o barão -E tem qualquer outra coisa em vista?
- Sim, naturalmente; tenho espectativas maravilhosas, mas ainda não quis falar delas. Mas espero todos os dias uma decisão, uma carta.
- Sim?-disse o barão, distraído e com certo aborrecimento - Muito bem. Ora escute: é a doninha que canta lá em cima. Ela canta como cantam as crianças
negras. Tudo o que lhe acontece é transformado num canto. Ouve?
Hell prestou atenção e sorriu. Ouviu a voz que era doce e duma singular facilidade. Teria querido distinguir as palavras, mas elas perdiam-se no murmúrio das ramadas e só se ouvia a doce série de vogais. Emquanto Hell sorria de boca aberta, à força de atenção, o barão Dobbersberg desprendeu a canoa do pilar.
- Prefiro dar-lhe um vulgar barco de remos. Só os selvagens, como Puck, remam de pé. - disse o barão - Traga-o amanhã. Teremos muito prazer em o vermos mais vezes entre nós.
Hell fez um vago sinal de adeus que se perdeu na noite clara e cheia de harmonias; depois, meteu-se na canoa. Daí a pouco as pancadas do seu remo deixavam cair gotas de água no lago transparente. O barão Dobbersberg, pensativo, voltou para casa atrás da sua sombra pensativa.
Assim se passou a noite memorável no decurso da qual Hell, pela primeira vez no Lago das Damas, tivera uma refeição quente.
BOM tempo no Lago do Amor, um soberbo tempo de verão, inverosímil, ardente, feito de azul e de ouro. As montanhas, de perfil claro e distinto, rodeavam o lago: o Dente de Ferro, os Bons Irmãos, a Cabeça de Mel e a Muralha Alta. Viam-se ainda uma vez reflectidas no lago, dir-se-ia que tomavam banho. Hell, cá fora desde as seis da manhã, tomou a temperatura da água: 16 graus. Foi à frente, ao lado da bilheteira e marcou a temperatura, aumentada para 19.QR, em letras grandes, no quadro negro, parando com um pequeno resmungar diante do cartaz com o seu retrato. Em seguida, pôs-se ao trabalho.
Matz, que do albergue das crianças abandonadas passara a empregado de balneário, estava a preparar-se para varrer a praia com uma grande vassoura. O senhor saxão já lá estava com os seus calções de -banho, às riscas; era o primeiro a estender-se ao sol e o último a partir quando fazia bom tempo, para aproveitar o mais possível a sua assinatura. O sr. Birndl, com a sua maciça presença, barrou a passagem diante da porta da cabine, onde estava a roupa, onde uma criatura contrafeita, chamada Resi, cumpria as suas funções, transpirando. A sr.a Birndl, duas vezes feliz, pela perspectiva de dar uma progenitura muito breve aos Birndl e por
afluírem em massa os dinheiros de entrada, conservava-se na bilheteira.
Na praia havia gente estendida, jogava-se a bola e fazia-se gimnástica. A sr.a Paulina Mayreder, que pesava três quilos a mais, tentava zelosamente fazer flexões do corpo, o que não conseguia inteiramente. Lançava os braços ao ar, contorcionava as ancas em todos os sentidos, segundo um método complicado. Sentava-se no chão e esforçava-se por fazer passar as pernas por cima da cabeça. Não conseguia. A sr.a Mayreder estava um pouco azul com este esforço. Sentou-se na areia, com as pernas estendidas para diante, como uma criancinha. Hell, passando diante dela, franziu as sobrancelhas claras. A sr.a Mayreder seguiu-lhe as costas com o olhar. Algumas pessoas intrépidas estavam já na água, nadando com ar sério; vinte tempos para o largo, vinte para o regresso. Pequenas bandeiras delimitavam um espaço limitado aos não nadadores, que Hell tinha de deslocar todos os dias, segundo o nível da água. Gritava-se, soltavam-se "iuhus" endiabrados. Hell, que no seu clube só tinha instruído pessoas que sabiam nadar, andava em perpétua irritação contra esse canto dos não nadadores. Todos os cinco minutos ia cuidadosamente verificar se cada um deles não estava em risco de se afogar. Apitava de vez em quando com o seu pequeno assobio, e saltava em seguida ao pontão onde dava as suas lições.
O pontão avançava sobre estacas, por cima do lago; estava cheio de curiosos que vinham ver o novo mestre de natação, tão elegante; o pontão, que cheirava a madeira aquecida pelo sol, a água e a corpos molhados.
Hell, que nessa manhã friccionara o corpo com óleo de maçagem, brilhava com o calor que irradiava a manhã que avançava. Apertou entre os joelhos a prancha, à qual, um após outro, estavam agarrados os infelizes principiantes e ordenava a manobra num ritmo: "Um, dois, três. Um, dois, três. Um, dois, três". Era um ganho insignificante o que lhe davam esses dias de bom tempo. Ele não sabia já da cabeça, limpava com o braço o suor da testa e tentava calcular quantas vezes
podia ter já ganho trinta "groschen". Gordos e magros pendiam da sua prancha, medrosos e corajosos, crianças e adultos. Ensinava rapazes sardentos a fazerem um mergulho de cabeça e fazia engolir água a senhoras ridículas e sem nenhum talento. Dava gratuitamente inúmeras informações ao senhor saxão. É que o senhor saxão embalava-se na esperança de aprender a nadar sem mestre, como aprendera o inglês e o espanhol. O senhor saxão afastava-se do lado dos nadadores, estendia-se de barriga na água e, quási a seguir, mergulhava. Gritos. Chamadas de socorro. Hell tinha de correr a pescar o senhor que perdia a respiração.
- É preciso conhecer o truc. - dizia o senhor saxão, assim que podia respirar - Se me puder indicar o truc, mestre, terá uma boa gorjeta.
Hell apertava os dentes. Ia direito a Matz que reunia as toalhas húmidas.
- Matz, corre de-pressa ao correio e pergunta se há alguma coisa para mim.
Matz corria, já estava habituado a ser mandado ao correio três vezes ao dia.
Hell volta ao seu pontão, através duma fila de olhares; com um sorriso, ao mesmo tempo vago e interessado, parando uns momentos ao pé do tennis. Ali, dois jovens bem feitos disputam um single encarniçado. Um, tem cabelos castanhos-claros; o outro, lisos e negros, parece barbeado e pulverizado de fresco. Várias senhoras estão sentadas como espectadoras. Um senhor de certa idade, com fato de sport às riscas, raquette em cima dos joelhos, está escarranchado numa cadeira e acompanha o jogo com aclamações. Ao castanho, chama "Boby" simplesmente; ao outro, que joga um pouco pior, chama-lhe "Conde" com certa afectação. Hell vê-os jogar, até que o castanho-claro faz game. E o jovem senhor com quem Hell cruzou no dia da sua chegada, quando estava deitado de barriga para baixo.
Hell passeia pela areia, pensando vagamente nos olhos castanhos e nos joelhos finos. A bola da
ginástica bate-lhe na testa com o ruído surdo do coiro retezado. Ele reenvia-a com uma pancada certa. Partem aplausos das cadeiras de repouso, onde há gente que dormita ao sol, com a cabeça enrolada em panos húmidos.
Uma rapariga alta e elegante corre pela areia atrás da pesada bola e apanha-a. Um cinto branco cinge na cintura o seu fato de banho em malha preta. Tem o belo corpo de um adolescente. Tem os olhos castanhos e pousa um olhar sério sobre Hell, emquanto a bola vem para ele. Hell assobia. Não, ela não lhe agrada tanto como isso, não aceita a bola.
Dirige-se para o lado do óculo e regula-o até ver na pequena lente oscilante o pavilhão de banho dos Dobbersberg. Lá está Puck na prancha, ao longe, na outra margem, tão afastada e, contudo, tão próxima, mercê do óculo. Tem uma camisola vermelha, brilhante, e balouça os pés no ar. Parece presa às árvores do parque, por cima do parque, por cima da água, como se fosse uma cereja ou um morango.
Hell tem na boca o gosto a morangos, emquanto olha para ela, sorrindo. Parece-lhe que está um pouco apaixonado por Puck. Embala esse sentimentozinho nascente. E agradável: enche os seus dias de espera e dá um motivo de meditação às suas noites. E de qualquer maneira é mais bonito fazer um treino até à outra margem por causa de uma rapariga, do que pela ceia, que é a consequência natural desta expedição. A sombra do sr. Birndl estende-se sobre a areia.
- Sr. Hell, esquece o trabalho... - disse ele, com toda a delicadeza que lhe parecia dever ter com um sportman.
O sangue subiu à cabeça de Hell, que voltou ao pontão onde Matz já o esperava.
- Não há carta?
- Nada.
Hell suspirou. O pontão estava cheio de gente, a água corria das suas pernas por cima das tábuas. Estava muito quente. Da prancha e da torre de cinco
metros de altura, corpos estendidos atiravam-se para a água que se cobria de espuma. Hell franziu as sobrancelhas, com inúmeras rugas na testa e acabou por ter o ar de um pequeno basset preocupado.
- De quem é a vez ? - perguntou, engolindo o seu desgosto.
Era a vez de Pamperl Mayreder, que devia tomar a sua primeira lição. Pamperl Mayreder, que tinha seis anos e um ventresinho em forma de bola, que nenhum calção podia segurar, é empurrado por sua mãi para o sr. Hell. Os seus joelhos, ligeiramente metidos para dentro, tremem de medo, o lábio inferior, também. A sr.a Mayreder com as mãos nos ombros do seu rebento, dá uma pequena explicação. O sr. Mayreder que não sabe nadar, está a seu lado, preocupado, cheio de pena da criança. Mayreder é gordo e tem uns braços extremamente curtos, uma boa cabeça grossa e areia colada na parte posterior do seu fato de malha, já seco. Hell dá a mão a Pamperl, tranquiliza Pamperl, põe-se à frente de Pamperl e ensina-lhe o movimento dos braços. O sr. Hell é muito grande e Pamperl muito pequenino. O sr. Hell tem soberbos músculos, sob a pele elástica; o seu tórax é digno de admiração, os largos ombros de nadador rolam, ágeis e redondos, nas articulações. O seu corpo está coberto de minúsculos pelinhos claros, fenómeno que a sr.a Mayreder fixa com o olhar agradado. Põe Pamperl numa espécie de quadro de madeira muito engenhoso; as suas pernitas agitam-se em todos os sentidos. Muito sério, Hell está todo entregue ao que faz. "Delicioso!", murmura uma senhora em roupão de banho raiado como uma pele de zebra, que se encontra um pouco à frente do círculo de espectadores. Sobre a fronte húmida de Hell uma veia azul inchava. "Queiram conservar livre o pontão", disse com decisão. Elevaram-se murmúrios de descontentamento. As atracções no Lago das Damas não são tão numerosas que se renuncie sem revolta ao prazer de ver o novo mestre de natação. Hell cerrou os dentes e assobiou. Agora Pamperl deve entrar na água.
com as suas pernitas vacilantes, desce um degrau, depois outro e, chegando ao terceiro, põe-se a berrar. Hell desce até Pamperl, dá-lhe a mão e leva-o para a água que, nesse lugar, é de pouca profundidade. Torna-se divertido, dando mostras de uma paciência de velha ama quando se trata de crianças. Ao lado de Pamperl ele bate na água, mostra-lhe um pequeno peixe que corre como uma seta e mergulha as mãos de Pamperl, depois os braços e toda a sua pessoa. Pamperl, assustado, respira fundo mas agora o pior está passado e estende-se docilmente à superfície da água, emquanto Hell sobe e agarra na vara. A sr.a Mayreder que viu tudo isto com encantamento, começa de-repente a desejar tomar nos seus braços o mestre de natação, apertando-o contra si, contra o seu peito, contra o seu maillot demasiado cingido. A sr.a Mayreder aflige-se até ao mais profundo do seu ser com a impetuosidade de um sentimento que nunca sentiu. Tem trinta e seis anos, a sr.a Mayreder. "Uma linda mulher, de facto"! diziam as pessoas. Mas pesava três quilos a mais e, meu Deus, o seu maillot era muito justo, as suas pernas um tanto curtas de mais, toda a sua pessoa um pouco atarracada e larga de proporções. Viu-se de súbito em pleno sol, no pontão, ao lado do mestre de natação, essa encarnação do sport, esse belo rapaz, e passou-se nela qualquer coisa que não chegou a compreender. Desceu, correndo, a escada que ia dar à água e pôs-se a nadar ao lado de Pamperl. Ela nadava pelo sistema antigo, ficando quási de pé ao cimo da água; as pernas em profundidade, os ombros quási fora de água não conseguindo avançar com os movimentos de cisne cheios de dignidade; e, além disto, as suas costas dobravam-se como o espinhaço dum mau cavalo. Pelo decote do maillot Hell, de cima, via-lhe o peito redondo e já um pouco flácido, o que lhe era muito desagradável. Emquanto ele comandava a manobra, e, com o joelho, equilibrava a vara da qual suspendia Pamperl, emquanto o esguichar da água escumosa, os gritos e os risos, numa palavra,
o ruído especial de um balneário no verão, o rodeavam, ele ouvia, de súbito, e muito distintamente, uma conversa que se travara por detrás dele.
- Pois cá o temos, emfim, ao nosso Adónis. Podem gozar a sua vista à vossa vontade e de perto. Principalmente não se acanhem. - disse um senhor arrogante.
- De quem falas tu, Boby? - replicou uma rapariga.
com um prazer misturado de cólera, Hell reconheceu a voz hesitante de adolescente que ouvira quando estava estendido no passeio do lago. Uma tremura singularmente agradável e estranha fez eriçar a penugem clara que lhe cobria o corpo.
- Eu cá me entendo... Como se vocês não estivessem horas inteiras no vestíbulo diante do cartaz a admirar o retrato do mestre de natação! -disse o insuportável Boby.
- Naturalmente você confundiu-me com a Carla.
- replicou a voz - eu não me inclino para os homens belos.
- Pois bem, admitindo que a do vestíbulo seja realmente Carla, é com certeza você que todas as noites assesta o telescópio do terraço, quando o tipo atravessa o lago a nado para ir ter com a baronesazita maluca.
- Que tipo? Que telescópio? Que baronesazita? Quem é que é maluca? Palavra que você tem venetas, Boby!
- Ora vamos, todo o Lago das Damas, fala do nosso belo Leandro. Não se faça tola, May.
- Parece-me que o rapaz faz o seu treino. É evidente que isso interessa-me. De vez em quando, olho. Parece-me que ele tem um movimento de braços espantoso, principalmente para a direita. Ontem notei o tempo que lhe levou a atravessar: menos de vinte e dois minutos; é muito interessante. Quando a água estiver mais quente eu também hei-de atravessar o lago.
- Combinado. Ofereço-me para treinador, embora não seja mestre de natação.
A cólera subiu em Hell: o seu sangue parecia que tinha pimenta. Passou as mãos pelos cabelos. A vara inclinou-se e Pamperl engoliu água duma forma lamentável.
- Cuidado, mestre! - exclamou a seu lado o sr. Mayreder, agitado visivelmente, exagerando os perigos mortais de uma lição de natação. De-repente, Hell tirou Pamperl da água. Em voz trémula de cólera, gritou:
- Queiram evacuar a ponte, preciso de espaço. No momento em que Hell libertava Pamperl,
trémulo, do cinto, aconteceu-lhe o que nunca lhe tinha acontecido: recebeu um choque como um homem recebe uma só vez na vida. Ao pé de si, encostado à balaustrada, viu um braço do qual, ao sol do meio-dia, a água se evaporava num delicado vapor de prata. Desse braço, uma corrente de força e de calor passou ao seu, com pulsações tais que ele levantou os olhos e viu diante de si o olhar castanho, o olhar de uns olhos que ele julgava só ter visto em sonhos: ouro e topázio, numa taça de esmalte azul-celeste. Hell ficou no mesmo lugar segurando o cinto a pingar água, na sua grande mão que se tornou flácida. A voz da adolescente dizia:
- Desculpe-me, quero saltar a balaustrada.
- Por favor. - disse Hell, afastando-se uns passos. Num segundo, o corpo da rapariga, ao lado do seu,
estendia-se, tomava impulso, mergulhava. A balaustrada tremeu ligeiramente; em baixo, a água espumou com o mergulho bem executado. Hell respirou profundamente, o peito alargou-se e encheu-se de ar; precipitou-se para a prancha e, com um mergulho fabuloso como para uma partida de concurso, picou na água e lançou-se pelo lago, como uma flecha, tão longe quanto pôde ir sem movimentos. Regressando, viu a rapariga que, rindo, o esperava na escada. Ele saiu da água atrás dela e, de mais perto, notou-lhe os artelhos que, incomparavelmente direitos, se ligavam ágeis, à perna. Então ela subiu a correr os degraus que levavam à prancha. Hell ficou ali gotejando; dos cabelos
molhados escorria-lhe água para os olhos; não se sentia bem.
- Cá estão as nossas belas gémeas que ainda saltam da prancha de cinco metros!-disse ao lado dele o sr. Mayreder que pôs uma luneta que - coisa estranha! pendia sobre o seu maillot, presa a um fio.
Hell levantou os olhos para a prancha e, de-repente, compreendeu.
Lá em cima estavam duas raparigas de uma grande semelhança, quási iguais; colocavam as mãos no ombro uma da outra, punham-se na ponta dos pés, na borda da prancha; os seus calcanhares frios eram como molas, de modo que se atiravam para o ar e caíam na água, verticalmente.
O senhor de pull-over, que dava pelo nome de Boby, disse ao conde do tennis que, em roupão de banho verde-Nilo, encostava à balaustrada o seu fino corpo de galgo:
- Que lindas raparigas, as duas Lyssenhop, as mais belas do Lago das Damas. É impossível distinguir uma da outra. É, na verdade, engraçado.
- É verdade: o velho Lyssenhop disse-me que até ele é incapaz de distinguir as filhas. Elas, às vezes, servem-se dessa semelhança para fazerem partidas. Se um homem tem a desgraça de se apaixonar, nunca saberá a qual se dirige. - disse o conde, que usava um monóculo até em fato de banho.
Boby concluiu:
- É melhor dirigir-se às duas.
Alguma coisa se passou em Hell. Os seus olhos voltaram-se para as duas raparigas, que acabavam de sair da água e passavam pela areia, como numa corrida divertida. Meteu-se na conversa, de forma muito inconveniente. A sua testa estava coberta de pequenas rugas infantis. Sentimentos imprecisos oprimiam-no e, cheio de animação, quási gritou:
- Não entendo como as possam confundir?! São completamente diferentes. Primeiro, uma delas é infinitamente mais bonita, mas sem comparação! Também
tem melhor treino e é mais bem feita. A outra até tem as pernas em X. E depois, uma nada o trudgeon e a outra de bruços e ainda por cima medíocremente. Não há possibilidade de enganos.
Os dois senhores voltaram-se para o mestre de natação; Boby, não sem marcar um certo espanto. O conde pegou no monóculo com a sua longa mão fria e disse, altivo:
- Bravo! Isso é interessante ! Julga debaixo do ponto de vista profissional! Muito interessante!
Hell notou, de súbito, que a longa manhã na praia o tinha queimado. Talvez tivesse mesmo uma ligeira insolação. Ardia-lhe a cabeça, e zunia-lhe duma forma curiosa. Mostrava todos os dentes cerrados.
- Não sou um profissional. - disse - Sou um engenheiro. Chamo-me Dr. Hell.
Juntou os calcanhares nus e inclinou-se friamente. Os dois senhores, assombrados, retribuíram-lhe, com reserva, o cumprimento.
É formidável como tu me prendes. Já não existo! disse Urbano Hell a May Lyssenhop. E May respondeu incrédula e radiante:
- Sério ?
Cada geração faz a sua experiência de amor à sua maneira e fala o seu calão particular. Nos romances e nas poesias, a tinta de impressão preta sobre o papel branco, a declaração: "Amo-te", não vai mal de todo. Mas que um rapaz dos nossos dias, diga a uma rapariga dos nossos dias, palavras tão patéticas, é pouco provável. É uma questão de pudor, este novo pudor estranho e subtil de que estão animadas as pessoas novas. Fazem juntos gimnástica e natação, flertam, dançam, beijam-se, ávidos de prazer e sem escrúpulo. Mas não dizem nunca: "Amo-te". Teriam vergonha.
- É formidável como tu me prendeste! - dizia Urbano Hell - Desde que te vi pela primeira vez no passeio do lago, e quando depois te tornei a encontrar no pontão, a meu lado, foi um assunto resolvido.
- Sério, pequenino ? - replicou May, passando sobre ele os olhos abertos, embora estivesse tão escuro que ela não visse senão um pouco de claridade na direcção dos dentes, quando ele ria.
Eram onze horas da noite. No Grande Petermann dançava-se ainda. Hell e May deixaram a sala de baile. Primeiro, aventuraram-se simplesmente até ao terraço do lago, para respirarem um pouco de ar tépido, às vezes animado por uma rajada de vento fresco, vindo do Dente de Ferro. Depois, docemente e de braços já enlaçados, foram até ao passeio do lago. Por fim, evitando instintivamente os bancos nos quais estavam banhistas, desapareceram num pequeno bosque onde as agulhas dos pinheiros formavam debaixo dos seus pés um tapete macio e discreto. A conversa parou bruscamente. Na fontezinha de Julia, trocaram o primeiro beijo, tímido e acanhado; não foi um beijo perfeito. Depois, puseram-se a conversar sobre qualquer coisa, fosse o que fosse, só para falar, e as suas palavras iam perder-se nas ramadas. Seguindo o caminho de Júlia, que, sombrio e deserto, entrava no vale, murmurava um pequeno regato.
As brancas umbelas das plantas aquáticas que, ao luar, deslizavam húmidas e orvalhadas entre as mãos de May, exalavam um perfume violento, doce e amargo. Esta vozinha secreta da natureza impunha-lhes silêncio. Urbano Hell sentia-se pronto a abafar ou a estalar, de tal forma nele tudo era plenitude e ardor.
Na primeira das voltas da estrada, que subia docemente entre a sombra e o perfume dos pinheiros, beijaram-se de novo. Desta vez empalideceram ambos e Hell sentiu uma fraqueza nos joelhos, como depois de um salto muito violento.
- Estás a tremer? - murmurou May.
Esse beijo tinha-o iluminado como um relâmpago em céu sombrio. Ela estava ali, ardente, transformada, com os braços pendentes, os olhos fechados, os membros pesados de desejo.
- É verdade, estou a tremer um pouco. - disse Urbano Hell, admirado.
- Como é bom. - murmurou May.
Era bom, realmente, que esse grande rapaz cheio de vigor se encontrasse ali numa floresta e tremesse logo
que se lhe tocasse. May quebrou a última resistência que ainda a prendia, lançou-se nos braços de Hell e naqueles lábios que buscavam e bebiam os seus.
Davam onze horas, quando eles transpuseram as cinco voltas da estrada e chegaram, sem fôlego, a Zirbitzplatte. A Zirbitzplatte era uma pequena saliência de montanha, ponto de vista que uma Comissão de Iniciativa tinha dotado de um banco que cheirava a pinheiros cortados de fresco, e sujava de resina os vestidos de verão. May e Hell, de mãos estreitamente enlaçadas, quási a fazer doer, sentaram-se e falaram de toda a espécie de coisas com as vozes ensurdecidas pela emoção. O que eles disseram não tinha nada de extraordinário: falavam de umas coisas e de outras, mas por detrás das palavras vibrava a sua suprema e inteira felicidade.
- Tantas estrelas! - dizia May, por exemplo. E Hell respondia, sonhador:
- Amanhã vamos ter 18 graus.
Em baixo, no Grande Petermann, dois saxofones, um novo e outro velho, soluçavam a sua comovedora tristeza de pretos. Ao cimo da Zirbitzplatte os chocalhos das vacas tilintavam como num sonho.
- Como é que isto começou entre nós? - perguntava May mordendo levemente o ombro de Hell como um animalzinho que quer brincar.
Hell tirara o casaco, o belo casaco do seu fato azul-marinho e tinha-o posto no banco da Comissão de Iniciativa. May estava sentada em cima. Ele vestia a camisa branca e os dentes de May atravessaram, com a sua doçura aguda, o tecido e a pele, até ao coração.
- Tens um cheiro esquisito ... - murmurou May, em quem no fim do caminho das cinco voltas a rapariga tinha começado a transformar-se na verdadeira mulher.
- Cheiras a quê?... sim... a pão fresco e a garoto pequeno. E a banho de sol. E ainda a qualquer outra coisa.
- É o Peritol; faço todos os dias maçagem com Peritol. Tu também devias fazer. Evita que o sol faça mal.
- Nunca me fez: a primeira vez que jogo o tennis, de verão, queimo-me, mas depois acabou-se.-disse May.
- Ah! sim, tu - concordou Hell, encantado.
E depois pôs-se a contar como aquilo tinha começado com ele, como aquilo havia aumentado e como agora o agarrara definitivamente. E depois foi a vez de May; com ela também aquilo não tinha demorado, só havia aumentado e agora, era uma coisa que a fizera perder também a cabeça e um assunto intrincado. Sim, era assim que se exprimia a bela May Lyssenhorj, tão bem feita; e estavam sentados os dois, petrificados e sem defesa, contra a intensidade do seu sentimento. Santo Deus, como eles estavam apaixonados, loucos um pelo outro, o sangue correndo em grandes ondas, vindo bater ruidosamente através das veias, de encontro à pele.
Do pequeno Pettermann a que o sr. Birndl tinha chamado a "dependência", a música começava igualmente a fazer-se ouvir; esta casa era habitada por estrangeiros de distinção, embora de segunda ordem. Contentavam-se com um gramofone que, naquele momento, se pôs a lançar a voz do Caruso em plena noite de verão. Caro mio ben, cantava ele numa cantilena lânguida. Longe dali, em qualquer parte do vale, uma bomba gemeu, ouviu-se distintamente através do ar puro.
Uma pequena e fraca lanterna andava de um lado para o outro sobre o lago e, do lado de Wurmtal, algumas janelas estavam iluminadas no pequeno castelo de Dobbersberg.
- É Puck que está à minha espera. -pensou Hell, sem nenhum remorso.
May adivinhou o seu pensamento e disse:
- Carla contou-me que tu vais ter todas as noites com a pequena baronesa maluca. É preciso não tornares a ir. Não o deves fazer mais. Talvez já tenhas estado com a actriz. Eu não quero isso.
- Ora vamos, não tem importância. - disse Hell e, com um gesto de mão, atirou com Puck para debaixo do banco - Ela já não existe, nem mesmo nunca existiu.
- Que te atrai então lá? Uma ligação? Um flirt?
- Nenhum flirt, May, asseguro-te.
- Carla tem faro para este género de coisas e ela tem um ciúme louco de ti.
- Carla? E porquê, Carla?- perguntou Hell, ingenuamente.
- Porquê? Ora por isso mesmo. Tu agradas-lhe, evidentemente, ela tem ciúmes... Todas têm ciúmes de ti. A pequena gorda do hotel Seespitz só me diz coisas desagradáveis por tua causa e, em geral, no banho todas estão doidas por ti. Na verdade, quantas lições dás tu?
- Ontem dei vinte e três. Estava como paralizado à força de segurar a eterna vara.
- Vês? Aposto que metade sabe nadar, dão lições por maluqueira. - disse May, encolerizada.
E, pegando numa agulha de pinheiro, mordeu-a.
- Boa maluqueira! - disse Hell, que não pôde deixar de rir. Veio-lhe uma idea luminosa:-Serás tu também ciumenta? -perguntou, julgando-se muito malicioso.
- Eu? Nem nada! Não sou antiga a esse ponto. Eu... mas que idea! Serás tu presunçoso?
- Não reparei nisso até agora.
De-repente, May sentiu virem-lhe aos olhos duas lágrimas quentes. Pestanejou.
- Chegas assim, sem mais nada e beijas-me... é preciso não acreditar, Hell, não ... Eu não quero que tu penses... isto comigo não é assim tão simples. Bem sei que é tolice... mas para mim ... não é para me rir nem para me divertir... pelo contrário, é muito sério, arrisco tudo por ti. E aí está como te disse tudo ... é aborrecido, não é verdade?
Afastou-se um pouco dele, implorando com o olhar através da obscuridade da floresta. Ficou à espera. Por cima deles um pássaro abriu docemente as asas e, em baixo, minúsculo como um brinquedo, o comboio das onze e vinte entrou ruidosamente na gare.
- É que eu não sou o flirt de uma estação... isso não ... isso não ... - acrescentou May.
E a sua voz de adolescente quebrou-se em duas, encostou a cabeça ao ombro vestido de branco, de Hell, e chorou. Hell, silencioso, batia devagarinho nas costas de May com a sua grande mão direita. Os soluços, que escutava com emoção, comoviam-no até ao fundo do seu ser. Lembrava-se de ter sentido esta sensação uma vez na vida, quando, depois de três anos de experiências falhadas, de ensaios vãos, uma esperança de triunfo surgira para a sua invenção, vindo provar, pela primeira vez, que estava no bom caminho. E, de-repente, pareceu-lhe ver muito distintamente a estreita fita de metal, intacta. Ele tinha-a retirado do fogo: estava azulada e tremia ligeiramente nos seus dedos.
com o outro braço, rodeava May, em via de se assoar; fechou-a assim num círculo quente e sólido e compreendeu quanto de sério se ocultava nas suas lágrimas um pouco pueris.
- Tudo está combinado entre nós dois. Tudo está em regra. Flirt de uma estação! Ah! Ah! - riu ele com os dentes cerrados - Não, minha menina, nós dois, é para sempre. Tive a certeza desde o princípio.
- Tens agora uma voz de velho. - notou May Entristeci-te? Eu bem sei que gostas bem de mim. És o único que me diferenças de Carla. Os outros não se importam que seja ela ou eu. Foi por isso que vi logo que entre nós tudo era verdadeiro ... Vem ...
Estendeu a Hell a sua boca entreaberta, consolada e cheia de espectativa. A sua pele tinha o perfume delicado dos pêssegos, como a pele de um bebé. Hell atirou-se para aqueles lábios como para um precipício.
Em baixo, no lago, uma canoa desolada esperava. Um remo desenhava um sulco prateado para a margem de Wurmtal. Diante do Grande Petermann estava o sr. Lyssenhop em companhia do conde Sztereny, espreitando o passeio do lago.
- Se ao menos soubesse onde está a Carla? dizia ele.
- A menina Carla está neste momento no terraço.- elucidou o conde.
- Ah! julguei que fosse a May. Mas então onde está a May?
- Dança lá em cima com o Boby. - disse o conde
- Como sabe, minha mulher espera ao pé das canoas, sr. Lyssenhop? Querendo dar um passeio pelo lago...
O sr. Lyssenhop lançou ainda um olhar à sua volta sobre a praça.
- Pode acreditar-me, caro conde, - disse ele, e um profundo suspiro pareceu sair do seu impecável peitilho branco de smoking - é um trabalho de cão vigiar estas endiabradas gémeas!
DUAS vezes por dia o correio passava ao pé do balneário, agitando as suas enormes mãos vazias, num gesto desolado, para o mestre de natação que o esperava. Três a quatro vezes por dia Matz era mandado a trote até ao correio, subtraindo-se assim um quarto de hora ao trabalho das toalhas molhadas. Tristemente, ele mostrava de longe as patitas cor de terra: "Não há nada, senhor doutor!" De manhã, antes das sete horas, o próprio Hell dava um salto até lá, pois às
5 e 23 chegava um combóio-correio. E à noite, antes de se encontrar com May, voltava ainda. "Nada!"dizia a empregada, gratificando-o com um olhar compadecido até à indiscrição. Hell simulava indiferença, assobiando e afastando-se com as suas calças brancas para o passeio do lago, já no crepúsculo.
Sim, Hell possuía agora umas calças brancas; era o acontecimento do dia, um símbolo do seu amor, uma bandeira, graças à qual se manifestava o ardor dos seus sentimentos, uma faísca da sua paixão. Acham que ele podia, dia e noite, passear ao lado da mais bonita e da mais elegante de todas as raparigas do Lago do Amor, usando eternamente as mesmas calças azues, um pouco curtas, do seu melhor fato, emquanto que todos os condes, Boby e os outros exibiam soberbas calças de
praia ? Hell pegou em nove schillings e vinte e quatro groschen e comprou umas calças brancas que a corcunda Resi podia lavar ao mesmo tempo que a roupa de banho. Hell mandou cortar o cabelo. Hell espetou uma ponta de lenço no bolso do casaco azul. Se o tempo continuar a estar bom e as lições a serem numerosas, Hell acabará por se arrumar, comprando um par de sapatos de tennis. Emquanto espera, não pode senão murmurar vagas desculpas ininteligíveis, quando May o convida para uma partida, fora das suas horas de trabalho.
"Preferia que me arrancassem os olhos a ter que lhe dizer como sou pobre!"-pensa ele.
À sua bem-amada apresenta o facto de dar lições de natação, por um amável capricho. E May, que possue um sólido fundo de bondade e inteligência por detrás da sua fachada mundana, aceita esta ficção com uma terna delicadeza.
- Parece-me que ele é terrivelmente pobre - disse May, à noite, a Carla, escovando os seus cabelos curtos, alternadamente para trás e para a frente, durante cinco minutos, até que cada cabelo se transformasse num fio de seda brilhante como ouro.
- Ele é pobre a um ponto que nem podemos imaginar. Por isso é que se me impôs. Que dizes tu?
Carla, com a boca cheia de espuma da pasta dentífrica, veio em pijama colocar-se na moldura da porta aberta dos dois quartos, e murmurou uma aprovação indistinta, que sublinhou, com a escova de dentes na mão.
- Sabes, - continuou May, fazendo dançar uma pantufa na ponta do pé - é que ele só pode contar consigo. Não tem papá director de um Banco, nem tio administrador, como todos os Boby, e dr. Klein e director Wucherpfennig. Ele é pobre, é qualquer coisa diferente, não é verdade? Já dançaste com ele? Como o achas? Espantoso, an?
- De primeira ordem. Ora vamos: ele podia ganhar bem como dançarino de sala. Para que trabalha
tanto a dar banho a esses garotos desastrados e a essas mulheres gordas?
- Que é que tu imaginas ? Um bailarino de sala não conta. Não me faltava mais nada. Dançarino de sala.
- Então um mestre de natação conta ? - perguntou Carla, mordaz.
- Para mim, sim. É um sport, não é ? E se o Clube Áustria S. e R. não tem nada a dizer...
- É precisamente o caso... se não tem nada a dizer...
- Ora vamos: tu bem sabes que a 4 de Setembro ele representa a Áustria nos 1.500 metros livres, em Berlim. E não me aborreças, Carla, peço-te...
- Eu, aborrecer-te?-retorquiu Carla, com violência, avançando para a balaustrada da varanda, sob a qual o lago se estendia calmo e sombrio - Eu, aborrecer-te? Fiz toda a noite de parva, para que tu pudesses divertír-te à vontade com o rapaz, e depois sou eu que te aborreço! Tu desapareces durante horas e eu tenho que representar toda a noite o papel de May e de Carla para o Tat não dar por nada...
- Deixa-o dar pelo que ele quiser. - disse May, que se ofendeu.
- Não te aflijas, ele há-de acabar por ver tudo. E há-de ser bonito. Colérico como ele é, o Tat.
- Não sei porquê ? Tat só me pode felicitar pelo meu gosto. Tat também começou por baixo e não faz senão pregar o mérito pessoal e a independência. Assim é que ele gosta. Mas Tat descobriu em si uma certa inclinação para a nobreza, desde que o conde Sztereny se dignou honrá-lo com a sua amizade. Parece-me que Tat arma em lord inglês.
- Por causa do conde ou por causa da condessa?
Nós nem sequer vemos o automóvel desde que ele dá
passeios com o nobre casal. De-resto, penso que tu não quererás casar com o mestre de natação. Sendo assim, que pode importar ao Tat que ele seja rico ou pobre ?
- Mas sim, penso casar com ele. - disse May, apoiando a sua afirmação com um gesto de cabeça.- Pois com certeza que conto casar. Conheces algum melhor ? Mesmo com o seu fato coçado e os seus sapatos comprados feitos, parece um príncipe ao pé dos outros. Esta é que é a minha opinião. E depois é engenheiro. Tat só tem que o empregar na fábrica onde precisa de gente competente. Eu também posso ganhar ordenado, se fizer toda a correspondência inglesa para o Tat. As grandes casas já não são modernas, alugaremos uma só com cinco divisões para nós. com isso e um carrito e talvez uma canoa no Wannsee, fico satisfeita. É-me indiferente ser pobre.
- Mas ele é realmente competente, May ?
- Creio que sim. Ele fala-me sempre de uma invenção que fez, mas não diz do que se trata. Espera uma carta. Às vezes, ennerva-se tanto que até tem vontade de morder. Eu não faço grande caso desta história. Parece-me que ele mente um bocado. Naturalmente quer deslumbrar-me. Mas isso não impede que o julgue competente. E depois, quero casar com ele, e isso basta.
Carla, pensativa, passou a mão pelos lençóis frescos e húmidos. Os seus olhos escureceram ligeiramente. May contemplava no espelho os lindos braços castanhos.
- Realmente, isso basta. Tu casas com ele. E para mim, fica-me o Boby ou outro qualquer nesse género, não é verdade ? És uma egoísta, May, é o que tu és. Emquanto não era a sério, cedeste-mos todos. Mas a primeira vez que aparece um homem, um verdadeiro homem, e nós não brincamos, és tu que agarras esse homem: "Tem cuidado que o Tat não dê por nada, Carla" recomendas-me e foges. "Caso com um homem" dizes tu. "Isso me basta". E eu ?
Carla, desencorajada, levantou a mão suplicante acima da almofada, repetindo:
- E eu?
May deixou de-pressa o espelho e correu;
levantou, entre as mãos, a cabeça de Carla, até ela. Não, não há lágrimas, ela não chora.
Contentam-se com uma troca de olhares.
- Pois bem, isto é bonito ... - disse May, depois de curto silêncio - Não sabia que tu também... que íu o... mas é natural. Nós amamos sempre o mesmo homem. Apenas desta vez, minha filha, não somos nós que dispomos. Não nos compete a escolha. Este fez uma diferença entre nós. É a mim que ele quer. E isso é o que mais encanta. Desta vez não posso ajudar-te. Também há-de chegar a tua hora. Não há só o Boby no mundo. Se bem que o Boby também tenha qualidades...
Eram estas conversas que tinham as gémeas, antes de se deitarem. Durante esse tempo, Hell, com o coração ofegante, errava por baixo da varanda, emquanto a luz amarelada se via através das cortinas; depois, cheio de sentimentos muito fortes, ia até ao número 26 para o refúgio que o sr. Birndl tinha posto à sua disposição.
Ao entrar, batia regularmente com a cabeça na porta, com um ruído surdo; depois tornava a si e entrava no aposento baixando-se, atitude a que era forçado pelas suas dimensões.
No interior havia uma cama de campanha, uma mesa e uma cadeira. Pendurados no cabide, ficavam os objectos que compunham o guarda-roupa de Hell. Em cima da mesa estava uma caneca de leite e um prato com frutas, que enchiam o aposento com o seu perfume estival. Um canto era habitado por uma grande aranha. Hell encontrava-a todas as noites, com prazer. "Aranha à noite, traz felicidade e graças" pensava ele. Tornara-se muito supersticioso nestes últimos tempos; era por esperar essa maldita carta que nunca chegava. Aquele negócio fora sempre importante para ele, mais do que importante; mas agora... mas agora tornara-se tudo para si, pois tratava-se de ganhar May Lyssenhop, a menina amimada do rico sr. Lyssenhop. Dessa carta dependia agora tudo, absolutamente tudo. Hell
suspirou, sentando-se na cama, que suspirou igualmente. Pegou no seu livro e, à luz da vela, anotou cuidadosamente as despesas. As curvas da sua existência no Lago do Amor encontravam-se claramente reflectidas nesse caderno coberto de oleado, entre as receitas e os gastos.
Nos dias de chuva, nenhuma receita. As despesas corriam sempre. Figuravam nelas dois pãis pequenos, meio litro de leite, um quilo de pêras. Depois, dois dias sem receita nem despesa. Um schilling emprestado pelo sr. Birndl. Depois, ceia no Schwoisshackel:
80 groschen; confissão de uma fome indomável. Uma cruz significava a visita aos Dobbersberg e uma refeição grátis. Depois, vinham os dias de sol com as receitas de 4 schillings e 20 e de 5 schillings e 40. O dia de vinte e três lições tinha sido ainda o mais lucrativo: 6 schillings e 90; depois, estavam as despesas: café com My: 3 schillings e 20. A partir daí, dessa noite no Café, que terminara no passeio a Zirbitzplatte, a partir dessa noite radiosa de lua e de amor, a desordem entrou nas colunas dos algarismos de Hell. A calça branca fora compensada por três dias sem almoço. Na coluna especial estavam marcadas as economias destinadas à compra dos sapatos de tennis. As cruzes Dobbersberg tornavam-se raras e as ceias no Schwoisshackel faltavam, mesmo nos dias de grande receita, pois Hell nem tempo tinha de comer quando May já estava no terraço do lago, à espera. Metia então alegremente um pedaço de chocolate no bolso e mastigava-o, quando o estômago o reclamava. A profissão de mestre de natação era, na verdade, mais do que qualquer outra, de molde a despertar a fome. No laboratório, no meio das exalações de cloro, o apetite não se desenvolvia como no Lago do Amor ou das Damas como indistintamente lhe chamavam-de tão bom ar, ao qual o Guia dos Estrangeiros consagrava muito especialmente seis linhas elogiosas.
Não lhe valia de nada pensar no laboratório: este pensamento tornava-o sentimental. Era como uma
pátria perdida. Hell apertou os dentes até fazer bossas nas fontes. Saindo do seu quarto, avançou, tateando na obscuridade, atravessou a praia húmida de orvalho e foi até ao duche; deixou correr água fria pelo corpo, num jacto reconfortante. Seguiu-se uma corrida: divertiu-se em dar dez vezes a volta à praia até que o ar lhe secou o corpo todo. Em seguida, batendo com a cabeça como de costume, entrou no abrigo e deitou-se. Como Hell era grande e a cama pequena, tinha inventado um método especial para dormir. Deixava cair as pernas pela borda do leito. Assim, adormeceu imediatamente, emquanto um sonho lhe dava volta à cabeça, como se fosse um parafuso.
Embora a carta em questão, com tanta impaciência esperada, não chegasse, Hell recebeu ainda assim algum correio, no decurso dos últimos dias. Entre outro, um postal com a vista de um jardim-restaurante, de Linz; estava coberto em todos os sentidos de assinaturas e continha a notícia que a equipe de water-polo do Clube Áustria S. e R. tinha batido o de Linz por 8 a 3. Saúde e vitória!
Em seguida, Hell adquiriu, sem hesitar, um postal ilustrado, em que felicitava o seu amigo Hõpfner da direcção do clube e lhe participava que ele estava bem, se treinava sem descanso e que o seu último tempo para os 1.500 metros fora 21:36. Em nota bene acrescentava que tinha conhecido uma nadadora, que saltava muito bem, do Berliner H. S. C. Saúde e vitória.
Recebeu igualmente uma carta de sua mãi, que Matz lhe trouxe, radiante, na certeza de lhe entregar a verdadeira. Ela escrevia o que em geral as mãis costumam escrever:
"Meu querido filho. Estou contente por saber que passas bem e que convives com gente tão fina. Talvez um dos teus conhecimentos possa ajudar-te a arranjar um emprego. Peço-te que não apanhes frio quando nadares e não entres na água fria, estando quente. Eu vou muito bem e não tens razão para estar preocupado. Paguei três schillings de juros no Montepio para que a
tua biciclete não seja vendida. Estou um pouco atrazada no aluguer do mês de Julho; em todo o caso, todas as semanas a Liga dos Capitalistas me dá algum trabalho: coser vestidos para bonecas. Passo melhor dos meus olhos mas, por azar, parti os óculos. Abraça-te e beija-te a tua mãi."
Esta carta tornou Hell taciturno e pensativo durante dois dias. Fez contas e consultou o seu caderno. Infelizmente o tempo não ia tão bom, não que chovesse, mas um nevoeiro húmido e frio caía das montanhas sobre o lago e a praia não secava. Matz trouxe as cadeiras de lona e instalou-as de uma forma convidativa: mas ninguém veio; jogavam de preferência o tennis, com um tempo assim, porque ao menos aquecia. Hell, de génio sombrio, ficou encostado à grade a olhar fixamente para o lado do tennis. Estava envolto no seu roupão de banho, desbotado pelo sol e que não o impedia de ter frio. Havia dois dias que voltara à cozinha fria: ovos cozidos, leite, maçãs ácidas e baratas. No tennis, May pôs um beijo na raquette e mandou-lho. Ele ficou um pouco mais quente. Hell voltou-se devagar e pôs-se a vigiar, sem interesse, o senhor saxão que chapinhava no local indicado aos não nadadores, ficando perpetuamente em perigo de se afogar. Depois, Pamperl Mayreder e sua mãi, chegaram, a-pesar-do frio e do tempo brumoso: ambos recebiam lições.
Sim, a senhora Mayreder aprendia agora a nadar, embora, no fundo, já soubesse. Desejaria aperfeiçoar o seu estilo, disse ela ao marido, assim como ao sr. Hell e, depois, passou a fazer a sua aparição todos os dias e com qualquer tempo. Tinha-se munido de um fato de banho, novo; um soutien-gorge cingia-lhe o busto e, emquanto secava, uma graciosa capa de malha de seda branca e preta envolvia-a. É certo que na água tudo isto se descompunha, enrodilhando-se em volta das pernas, entravando-as e colando-se indiscretamente na parte posterior, quando a senhora Mayreder subia a escada.
Hell não podia vê-la sem que uma das suas sobrancelhas, dum castanho pálido, se erguesse e sem que a sua testa se franzisse. Pobre senhora Mayrederl Era um pouco hidrófoba, tinha um secreto medo da humidade, do frio, da profundeza inquietante do lago; o seu banho diário comportava sacrifício e heroísmo. Aparecia diante do mestre de natação com o seu novo fato de banho pesando-lhe como uma confissão, e era um suplício vê-lo escolher o mais largo cinto para lhe pôr. Mas era preciso. O chão queimava-lhe os pés na Pensão Seespitz, onde estava alojada, mesmo no extremo sul do Lago, fora da localidade. Não tinha sossego até ao momento em que dizia a Pamperl:
- Vem, Pamperl, vamos ao banho.
Eis porque lhe convinham a sr.a Mayreder e os
30 groschen que ela dava por dia - pois Pamperl só pagava metade e tinha uma assinatura de criança, cuja importância estava há muito gasta em comidas, em casa
de Schwoisshackel.
Mas o que era desolador era faltar à sr.a Mayreder talento para melhorar o seu estilo desastroso: pelo contrário, os seus erros habituais iam aumentando por causa da emoção e da falta de fôlego.
No terceiro dia, depois de Hell ter recebido a carta de sua mãi, choveu, e o próprio tennis foi abandonado. Hell saiu do balneário e arriscou uma visita até ao hall do Grande Petermann. Os banhistas estavam instalados em grandes poltronas, liam velhas ilustrações ou entretinham-se a fazer paciências. Cheirava a lã húmida e a botas de montanha recentemente engraxadas. Hell, que tinha vestido o seu impermeável e que, com os cabelos molhados pela chuva, estava um pouco pálido de frio, dirigiu-se para um par de meias de sport cinzentas e finas, mas vendo que se tratava apenas das pernas de Carla, deu logo meia volta.
- Diga lá, Hell, anda à procura da May? - exclamou Carla, atravessando o hall-Venha cá, sente-se ao pé de mim. May foi à aldeia comprar films. Hell hesitou.
- Queria ... preciso também ... - gaguejou. Carla olhava-o, a esse gentil rapaz, que pertencia
inteiramente a sua irmã.
- É pena!-disse em voz baixa e deixando cair a mão com que lhe fizera sinal.
- Desculpe-me...- murmurou ele, fazendo o gesto de bater em retirada.
Justamente nesse momento em que Hell se dispunha a sair do hall, encontrou-se em frente de uma senhora que estava ao lado do porteiro Eggenhofer, a quem entregava uma chave.
Era uma mulher muito nova, de estatura mediana e extremamente graciosa, que voltou para ele o rosto cinzelado, delicadamente pintado, de bondoso ídolo chinês. Os seus cabelos negros colavam-se como uma touca até às sobrancelhas finamente desenhadas; o espanto abriu-lhe a boca num pequeno círculo vermelho. Hell parou, como se tivesse dado com a cabeça contra uma parede.
- Anica... - disse ele - Anikuschka!
- bom dia.-respondeu a senhora, olhando-o com uma singular expressão feita de enternecimento e de graça.
O porteiro Eggenhofer que estava de pé, ao fundo, deu o seu recado:
- O senhor conde manda dizer à senhora condessa que está de volta do cabeleireiro daqui a uma hora.
- Bem. - disse a senhora, distraída - Que meu marido me espere no hall. vou ao correio.
- Eu também, eu também vou ao correio.-exclamou vivamente Hell.
E, já fora, desceram os três degraus e atravessaram a praça. A senhora abriu o guarda-chuva, que Hell imediatamente agarrou, cobrindo ambos.
- Ouviste ? - perguntou a senhora - O senhor conde é meu marido; a senhora condessa sou eu. Por isso, um pouco de respeito, heim, Bulli, e nada de deixar sair dessas Anikuschka.
- Mas, Aninhas, Anica, diz-me então...
- Já sabia que acabava por te encontrar, assim que vi o teu retrato. Tu andas pespegado em todos os bilhetes postais ilustrados: elas compram-nos como malucas. Então, pensei: se Bulli me vê, vai ser bonito. Felizmente que não aconteceu nada. Portanto, senhora condessa, se fazes favor. E tu, meu velho Bulli, como vais ? Tens pensado um pouco em mim ? Ou esqueceste-me ?
- De todo não, Anica. Como podes imaginar isso? Fiquei muito triste, quando me deixaste sem dizer nada e quis-te um pouco de mal por isso. Não foi divertido, como deves pensar, pois eu a... estava muito ... emfim, estava habituado a ti...
- Ah! Bulli...-murmurou a condessa, baixando os olhos para os seus grossos sapatos castanhos que chapinhavam nas poças de água -Então o pobre Bulli ficou triste. Não, não foi engraçado, para mim também não. Mas é preciso viver. Que futuro podíamos esperar se dois pobres diabos como nós, nos ligássemos um ao outro ? Nesse momento, um senhor levou-me a Paris. Depois tive um contrato para Zurik, qualquer coisa de bom no "Rouge et Noir. Por fim, representei numa revista, era um trabalho de cão, posso dizê-lo: por nada no mundo recomeçaria. Pois bem, e agora ...
- Estás casada com o conde Sztereny? Creio que é um tipo desagradável. Eu não o posso suportar.
- Porquê, Bulli?
- Porque tem qualquer coisa de um galgo. Peço-te perdão, mas um homem não devia ter um ar daqueles.
- Ah, os galgos são bonitos; a mim agrada-me. Hell pegou na mão de Anica e olhou-a de perto.
- Mostra-me... onde está a tua aliança?
A condessa tinha uma pequena mão, de dedos um pouco curtos, mas bonitos e cheios de anéis. As unhas estavam arranjadas como garrasitas, rosadas e brilhantes. O dedo mínimo estava afastado e tudo cheirava a creme de violetas.
- Ah! - disse Hell - Conheço este anel: é falso. É só para a viagem.
Teve um riso satisfeito. Anica tomou um ar muito digno e depois começou a rir também.
- Pois é..-disse, com a incomparável resignação vienense - Mas não me traias, todos acreditam na minha nobreza. Chegamos ao correio, demoras-te?
- Não. - disse Hell, entristecendo -Só quero saber se chegou uma carta e mandar um pouco de dinheiro a minha mãi. É de-pressa. Espera-me, Anikuschka ... voltamos juntos. Foi bom a gente encontrar-se, não achas?
i Na pequena sala do correio, a atmosfera estava horrível. Pequenos mares formavam-se em redor dos guarda-chuva e das botas, e os banhistas, levados pelo aborrecimento, acumulavam-se diante dos postigos. Não havia carta para Hell. Ele ficou um instante com os olhos vazios de expressão, hesitante. Depois, foi a uma escrivaninha a um canto e encheu, com uma caneta rebelde que arranhava, um vale de 14 schillings, tirou-os do bolso e entregou-os no postigo. Era o ganho de uma semana de bom tempo. Era a importância destinada à compra dos sapatos de tennis. E eis que lá iam continuar o seu caminho, miserável montão de notas e de dinheiro.
- A seguir, se faz favor. - disse a empregada.
E Hell que, com o olhar fixo seguia a sua fortuna, foi empurrado.
Anica esperava-o à porta. Os seus olhos brilhavam como se retivessem lágrimas e torcia o lencinho. Hell conheceu estes indícios.
- Estás aborrecida? Zangada? Furiosa? Tens vontade de morder? - perguntou ele, bondoso, esquecendo o seu próprio desgosto.
- Não é nada. Esperávamos qualquer coisa pelo correio e nunca mais chega!
O seu estranho rosto de boneca não podia estar sério durante muito tempo. Dilatou as narinas que tinham, cada uma, um toquezinho de rouge e aspirou avidamente o ar fresco. Tinha deixado de chover.
- Ah! É bom. - disse ela, rindo com todas as
covinhas que marcavam em cinco lugares diferentes o seu pequeno rosto.
Hell contemplou-a e recordou-se. Cada covinha daquelas tivera dantes o seu nome próprio, assim como cada ponta de dedo e cada bico de seio. Tornou a ver o quartozito com o candeeiro de pé alto e a sua decoração à cigana, feita de leques e chalés, e o canário burguês que era preciso tapar para que não se pusesse a cantar durante a noite.
Anica tirou-o desta ligeira embriaguez de doces recordações, à qual ele se abandonava, de boca aberta,
- Conta-me um pouco de onde vens tu, como passas, Bulli? Já te doutoraste?-perguntou ela, dando-lhe uma cotovelada.
- Pois já. Não te lembras?
- Não. Só assisti aos preparatórios. Séria, levantou para ele o narizito pequeno:
- E a tua invenção? Tinhas sempre os dedos sujos à força de trabalhares. Que resultou?
- Imagina que triunfei. Já tenho a minha invenção.
- E então? Devias ficar milionário, graças a ela?! E afinal estás no Lago das Damas, armado em mestre de natação?
- Efectivamente, estou no Lago das Damas como mestre de natação. Milionário?! Falas bem! Estou tão pobre que nem posso sequer comprar uns sapatos de tennis. Não tenho que comer, com a minha famosa invenção. E isto já dura há um ano! A semana passada diminuí um quilo. Mas espero que isto não dure muito.
Anica ficou um tempo silenciosa.
- Pobre Bulli. - disse, passando meigamente a mão pela manga do seu impermeável.
- Entreguei o caso a um agente de patentes, sabes? Um homem muito hábil e muito honesto. Não tinha outra coisa a fazer. E agora espero uma resposta. É evidente que posso ficar rico de um dia para o outro...
- disse Hell, com uma expressão de cão batido.
- Coitado!-pensou Anica e calou-se entristecida O pobre rapaz não está bom da cabeça. - disse para
consigo - Agente de patentes! E, emquanto espera, vai morrendo de fome, este pobre Bulli.
Se ela não fosse uma condessa, tê-lo-ia tomado nos seus braços ali, na praça. Mas, em vista das circunstâncias, limitou-se a beijá-lo com os olhos, sinal familiar que ele compreendeu. Um pequeno tremor percorreu-lhe a espinha. Caminharam ao lado um do outro, a compasso; os seus corpos estavam afeitos um ao outro por uma centena de danças, por uma centena de abraços. No fundo de si mesmo, Hell percebia que este encontro com Anikuschka era uma coisa bonita mas extremamente perigosa, feita para perturbar os seus sentimentos. Colocou uns centímetros] de ar entre os dois, emquanto que, instintivamente, se dirigiam para o posto metereológico. Mas Anica aproximou-se dele inconscientemente e deu-lhe mesmo o braço.
- Como me achas? Há curto-circuito?- perguntou ela, em voz baixa - Parece-me bem que nos estamos a comprometer em plena praça.
Hell respirou entre os dentes cerrados. Pararam ambos diante do higrómetro, verificando os diagramas da última semana, sempre trocando frases em voz baixa.
- Não me toques. - disse Hell - Estou carregado. No fim de contas, tu foste a minha primeira rapariga. Isso não se esquece. É uma coisa que nos atravessa de lado a lado.
Anica obedeceu com um risinho ávido. Depois, ficou senhora de si com um impaciente movimento de cabeça.
- Tudo isto são tolices, Bulli. - disse ela - É o passado, acabou-se. Eu tenho o meu conde. E tu estás apaixonado pelas duas gémeas, de tal maneira que até um cego vê. Todo o hotel fala nisso.
- Por uma das duas, só. - opôs Hell, vivamente.
- Tanto pior para ti. Atenção: é bom não andar de passeio com uma menina de boa família. Ao menos queres casar com ela? Ah! Corou o meu pobre Bulli! Queres que fale de ti ao velho Lyssenhop? Tenho
muita influência sobre ele. Queres? Convém-te, an?
- acrescentou, depois de um olhar para o rosto confuso e suplicante de Hell - Mas queres que te diga? És daqueles que uma mulher inveja à outra!
Ela estava muito ocupada a olhar para o higrómetro emquanto que, lenta e docemente, dizia estas palavras. E Hell, com os olhos igualmente fixos no higrómetro, respondeu, aflito:
- Porque dizes isso ? Eu não tenho nada de extraordinário.
- Justamente. - replicou Anica, em voz ainda mais baixa - Podes acreditar-me: eu conheço os homens. Todos gostariam de ter o teu tipo. E as mulheres querem-te como amante ou como marido, desejariam ter filhos e envelhecer contigo, passar a vida contigo. Alguém que é forte, que não tem nada de extraordinário, sobre quem se pode contar, uma figura ingénua de conto de fadas... umas invejam-te às outras, acredita-me ...
- Ora vamos, Anikuschka, não chores! Mas porquê? Que te aconteceu? - perguntou Hell, pegando-lhe na mão com as suas grandes pás de nadar.
Foi assim que May os encontrou ao sair do Grande Pttermann para ver como estava o tempo.
- Lá está o teu cavaleiro andante. - disse Carla, atrás dela-A condessa apoderou-se dele. Há mais de uma hora que anda a dançar com ela através da chuva.
Os olhos de May tornaram-se negros e a sua voz profunda.
- Palavra, que esta mulher parece devorar os homens. - replicou, com energia-Ontem engoliu o Tat com pele e cabelo e esta manhã rapina-me o meu rapaz. Que o diabo a leve!
Pôs um cigarro na boca e as duas mãos nas algibeiras do seu impermeável. Carla fez o mesmo. Quando Hell chegou com a condessa ao Petermann, inclinou-se, suplicante e confuso, diante de duas colunas de pedra que não tinham mãos para ele.
- Adeus, senhor doutor. - disse Anica, cerimoniosamente.
- As minhas homenagens, senhora condessa. replicou Hell, esquivando-se a um novo aguaceiro que já vinha do lago.
Ao chegar, de cabeça molhada, ao balneário, encontrou Matz que, muito agitado, se pôs a saltitar à sua volta, com uma carta na mão. O correio tinha vindo trazer-lha. O sr. Birndl tivera de pagar uma sobretaxa pois não tinha a franquia suficiente. A carta estava molhada pela chuva, suja pelas mãos de Matz e tinha a direcção escrita em grandes letras. Hell, cheio de esperança, correu ao seu quarto, bateu com a cabeça na porta, viu as estrelas brilharem-lhe diante dos olhos e teve palpitações.
Depois, a mão caiu-lhe, sem coragem, e sentou-se triste e abatido à borda da cama. Eis o que dizia a carta:
Porque não vem o nosso amigo visitar-nos? Estamos muito infelizes. De noite chorámos."
Puck von Dobbersberg
Tigre von Dobbersberg
Por baixo da assinatura de Tigre estava a marca de uma pata de cão. Levantando os olhos, Hell viu a aranha no seu canto, má e venenosa:
- Aranha de manhã é azar. - pensou, preocupado. O sr. Birndl abriu a porta, avançou o ventre e a
cabeça no quarto e declarou:
- A senhora Mayreder já lá esteve e foi-se embora. Há mais de uma hora que o banho não está vigiado. É possível que o senhor seja um sportman, meu caro sr. Hell, mas ainda assim eu não o contratei para viver como um particular...
A animação está em plena força no Lago do Amor.
Cartazes sobre cartazes colocados na pequena paliçada ao lado da igreja e às entradas do Grande e do Pequeno Petermann; festa de praia, baile, soitée de gala com fogo de artifício, torneio de tennis, com prémio de honra. Podia ver-se o sr. Birndl, de pé, em frente do postigo da caixa, agarrando o dinheiro com as mãos de grossos dedos. O banho estava mais que cheio e o mestre da natação permanecia em cima do pontão todo o santo dia, doze horas seguidas.
O banho estava cheio, o tempo ora bom ora mau, às vezes o suor corria-lhe da testa, o sol batia-lhe na cabeça a ponto de todos os quartos de hora, para se refrescar, ter de mergulhar como para a partida de uma corrida. Às vezes, havia um vento de gelar, tempestuoso, e então andava de um lado para o outro a trote, com o seu roupão de banho, penetrado de humidade. Tinha já diminuído um arrátel, e quanto mais magro estava, mais frio sentia. A sua aversão crescente pela água fria magoava-o em segredo e, no entanto, era um facto. Não podia dissimular que não estava em forma, pouco bem alimentado e um tanto anémico. E o amor tinha-se assenhoreado dele, esse sentimento que o havia penetrado a fundo.
O torneio de tennis teve lugar sem o concurso de Hell, pois não tinha conseguido comprar os sapatos. Nem sequer teve tempo de assistir como espectador; mas teve muito que fazer nesse dia, um asfixiante dia de verão, havendo sobre o Cabeça de Mel, uma nuvem carregada de ameaças para a tarde, naquele lado da praia virado para o tennis. Uma vez, uma bola saltou e foi cair na água; ele foi buscá-la, nadando velozmente no seu tempo record e atirou-a com um lanço excelente e um dito alegre.
Evidentemente, aplaudiram.
De-resto, não era um desafio a sério que tivesse qualquer importância, sob o ponto de vista desportivo. Era simplesmente um pequeno encontro, sem consequências, entre os banhistas do Lago do Amor. O sr. Lyssenhop tinha posto à disposição da comissão um certo números de prémios e, com dois outros pais de família, conhecedores de tennis, formara-se o júri. De-resto, eram as suas filhas gémeas que os ganhavam todos; ninguém podia defender-se diante do seu jogo superior. À noite, houve um lauto banquete no Grande Petermann. Hell também foi por desejo de May. May tinha um vestido decotado em lamé prateado, e calçava sapatos iguais. Estava tão bonita, que Hell ficou como que inflamado. O seu sentimento tinha tomado tais proporções que, às vezes, não sabia .que fazer. Só podia olhar para May.
Os homens estavam de smoking. Hell vestia a sua camisa branca, o fato azul-marinho e sapatos castanhos. Estas três partes construtivas da sua indumentária tinham perdido a frescura à medida que a estação avançava; as tempestades ocasionais e os passeios à noite na Zirbitzplatte não eram de molde a conservá-las. Coisa curiosa: as calças haviam-se tornado curtas, pois a fazenda barata encolhia quando a passavam a ferro, operação a que, às vezes, Resi as submetia. As costuras formavam altos nos ombros, Deus sabe porquê, e as casas tinham um aspecto coçado dos mais curiosos.
Hell submetera os punhos desfiados à navalha de barba, mas os fios já tornavam a aparecer; tinha a cabeça lisa à força de brilhantina que, só ela, lhe custara 80 groschen. Dispusera de 5 schillings para a ceia no Petermann, por isso um suor fino lhe apareceu no nariz quando o criado lhe apresentou a conta. Deíxá-lol Ao menos, uma vez, tinha enchido a barriga e podia passar sem comer durante dois dias.
Estavam sentados em volta de uma grande mesa, muito alegre, e toda a gente se divertia doidamente. May estava colocada tão longe, que Hell nem mesmo a podia ver. Ficara ao lado de um senhor que chegara recentemente, o director Wucherpfennig, amigo de negócios do sr. Lyssenhop. O sr. Lyssenhop tinha dado o braço à condessa Sztereny e fazia brindes muito diversos. Hell estava sentado ao lado da mulher de um conselheiro que tinha um tique: abanava a cabeça constantemente. Às vezes, essa cabeça dizia três vezes: sim, sim, sim, outras: não, não, não. Era-lhe impossível estar quieta, mas a não ser isso, era uma senhora muito agradável. Do outro lado de Hell estava uma rapariga extremamente vigorosa, que tinha a boca aberta e não dizia nada. Contentava-se em observar tudo com ar esfaimado e indiscreto; de vez em quando dava uma gargalhada rouca, gutural e inquietante.
- A pobre criança é surda-muda. - explicou a mulher do conselheiro - Mas não faz mal, ela diverte-se tanto, a minha neta. Sente-se feliz por estar a seu lado, tem um certo fraco por si: sim, sim, sim, não, não, não.
Hell guardava silêncio. Quando faziam circular os pratos à roda, na sua raiva e na sua dor, servia-se, sem o menor pudor, de enormes porções. Aconteceu que, passando perto dele, alguém acariciou furtivamente os seus cabelos de um loiro quási branco, para o consolar: mas era só Carla.
- Pois é verdade, menina, cá estamos os dois. Porque estamos afinal nós aqui ? - perguntou ele à surda-muda. Atenta, ela tinha-lhe seguido os
movimentos da boca e parecia tê-lo compreendido. O seu rosto tomou uma expressão de tristeza e de pena; com um gesto estranho, passou a mão pela própria face. Hell, sempre simpatizando com os animais e com as crianças, sentia uma doce e fugitiva ternura por esta criatura tão mal favorecida. Espetou dois pãisinhos com os garfos e fê-los executar uma dança como tinha visto fazer a Charlie Chapim, no cinema. A rapariga riu às gargalhadas: sons tão bizarros saíram da sua garganta que, por um instante, toda a mesa se calou; os olhares voltaram-se, indignados, para a surda-muda e para o mestre de natação com o seu reles fato azul-marinho, de estio. Um pouco mais tarde, Hell levantou-se e, despeitado, foi-se embora. À guisa de adeus, a surda-muda apertou-lhe a mão numa expressão ávida e trémula. A mulher do conselheiro, comovida, abanava cada vez mais a cabeça. Hell foi ao banho e nadou até ao meio do lago, sentindo necessidade de se refrescar e purificar.
O proprietário do Hotel Petermann disse ao porteiro Eggenhofer, o sr. Eggenhofer disse ao sr. Birndl e o sr. Birndl disse a Hell que, no Grande Petermann, não tinha sido bem visto o mestre de natação andar metido por toda a parte. O Hotel Petermann tinha a sua reputação de hotel exclusivo e não queria dar ensejo a intrigas. Na "Reunião" só seriam admitidos cavalheiros de smoking, sempre por causa da selecção. Por isso é que tinham posto a entrada a dez chillings para que aqueles que não tivessem fato, nem sequer pudessem entrar.
Hell ficou doido de raiva ao saber isto. Os seus lábios empalideceram ao ponto de se tornarem inquietantes.
- Pega no cronômetro e vai para a canoa; - disse a May - sinto-me disposto a bater um record.
May, com ar preocupado, pegou no cronômetro e subiu para a canoa.
Matz remou. Hell partiu. Em 20 minutos e 13 segundos tinha feito o percurso de 1.500 metros atravessando o lago. A canoa, onde dançava de emoção a
May, teve dificuldade em o seguir. Hell tinha batido o record austríaco; tinha batido o record alemão e só estava três minutos abaixo do record do mundo. Quando May atingiu a outra margem, estava ele estendido, esgotado de forças e meio inconsciente na ponte onde atraca a canoa a motor. Mas para que servia este record de acaso? Andou furioso todo o dia e fatigou demasiado os seus alunos. A senhora Mayreder teve de beber mais água do que lhe seria agradável. Teve que aprender mergulhos de cabeça. Todas as vezes que, cega e sacudida pela tosse saía, a custo, da água, Hell obrigava-a a saltar à prancha e ordenava-lhe que se precipitasse de novo, nesse lago odioso. À noite, em Zirbitzplatte, apertou May nos braços quási até a partir em bocadinhos. Despedaçava-a num amor furioso, enchendo-a de ternuras de um jovem liãozinho indomado. Quebrada e maltratada por tanto amor raivoso e tanta força junta, May voltou para o seu quarto de rapariga, todo de papel cor de rosa e impregnado de alfazema e de Odol.
- Então? -perguntou Carla que, sentada diante do espelho, punha creme no rosto.
- Então, não era homem para ti, minha Carla.- disse May, apagando a luz.
Hell, lúgubre, foi ao Grande Petermann e, em voz forte e dura, pediu um bilhete de entrada para a reunião. O sr. Eggenhofer entregou-lho. O sr. Petermann, em pessoa, estava ali e fez que não ouviu. Hell pôs os dez schillings em cima da mesa. Guardou justamente o indispensável para comprar dez ovos e um pedaço de pão para se alimentar nos dias seguintes. Só lhe faltava uma coisa: conseguir o smoking, a todo o preço e fosse de que maneira fosse. Talvez que a carta dos milhões chegasse antes da "Reunião", sempre era uma possibilidade. Hell contava os passos até ao quarto: sim, não, sim, não, sim. Contou os botões e contemplou a aranha profética no seu canto, consultou todos os oráculos à volta. Nada. Nada de carta. Era preciso agir para o caso do smoking, a espera pura e simples não era uma solução.
O smoking estava no Montepio; para o desempenhar, precisava de cinquenta e dois schillings. Hell consultou o livro de capa de oleado e tomou uma decisão. Foi procurar o sr. Birndl e fez-lhe uma proposta que testemunhava ao mesmo tempo o seu desespero e a sua falta de senso em negócios.
- Ouça, sr. Birndl. - disse Hell - Ganhei aqui, contando com os dias bons e com os maus, uma média de dois schillings e treze gtoschen por dia. O meu contracto consigo dura ainda quarenta dias. Pague-me antecipadamente sessenta schillings e estamos quites. Desta maneira faz uma economia de vinte schillings, pelo menos. O tempo está bom. O barómetro ainda sobe. Sr. Birndl...
- Muito bem, - disse o sr. Birndl - mas se chover durante esses quarenta dias, quem perde sou eu. Não quero correr o risco. Para isso é que fizemos um contracto.
- Cinquenta e cinco schillings por tudo, sr. Birndl...
- Não quero correr o risco... Por isso é que nós fizemos um...
- Cinqüenta e três schillings. - disse Hell, fracamente - Para si é um lucro.
- Sim, mas se chove? Não, obrigado, nada de riscos para mim. - replicou o sr. Birndl, estúpido como um búfalo do prado e voltando o seu grande ventre para a caixa.
Hell foi-se embora. Vagueou, mergulhado em pensamentos dolorosos, à procura de Anica, Anikuschka, a condessa Sztereny. Não foi coisa fácil, para ele, falar-lhe a sós. Ou era o galgo do seu amigo, o pseudo-marido, que estava ao pé dela rodeando-a de toda a espécie de maneiras distintas e galantes, ou então a cabeça cuidada do sr. Lyssenhop surgia na sua vizinhança, sem falar nos diversos Boby, Dick e Fred, que faziam valer os seus nomes e o seu género britânico ao pé de Anica, no Grande Petermann, tão seleccionado. A-pesar-disso, Anica conseguiu esquivar-se, isolou-se na praia, estendida na areia atrás de um grande guarda-
-sol japonês. Vestia, nestas ocasiões, uma espécie de fato de criada, guarnecido de numerosos folhos de taffetas e sandálias de correias cruzadas na perna. Nunca uma gota de água do lago a tinha tocado.
- Graças a Deus que dou contigo, Anica, minha velha e querida Anikuschka - disse Hell, encontrando-a depois do almoço estendida numa atitude preguiçosa e sedutora - Procurei-te, preciso do teu auxílio, para ti é uma bagatela...
E, sem rodeios, pôs-se a explicar-lhe a situação, disse-lhe que tinha o smoking empenhado, pediu para lhe emprestar cinquenta e dois schillings.
Anica mostrou uma tristeza desproporcionada, todas as covinhas do seu rosto se abriram e, pensativa, passou a língua pelos lábios pintados.
- com que então o Bulli tem preocupações? Pobre Bulli. - disse ela, pondo uma cariciosa mão na sua
perna.
Hell teve um movimento de recuo; Anica aproveitava todas as ocasiões para se aproximar mais de perto, talvez sem mesmo dar por isso, a sedutora mulherzinha. Todas as vezes que ela o tocava, um tremor, como que um correr de areia quente percorria o dorso de Hell, sensação agradável mas proibida. Ele pertencia a May, tinha-se dado a ela de corpo e alma e proibia ao seu sentimento fazer caminho errado. Afastou-se. A mão de Anica caiu na areia e pôs-se a desenhar letras.
- Não. - disse ela.
Era-lhe impossível emprestar a Hell fosse o que fosse. Ela própria estava falida, não tinha senão três schillings na bolsa. Mostrou-a a Hell, sacudindo o conteúdo nos joelhos: pequenas caixas, batons, o lencinho de seda. Quando é que Anica tinha tido dinheiro? Pobre diabo, que pobre diabo que ela era!... Fora sempre leviana, gastadora, não podendo nunca conservar dinheiro. Bulli bem o sabia.
Bulli suspirou. Rangeu os dentes, o que lhe dava um ar ameaçador e terrível.
- Pede ao teu conde o dinheiro, suplico-te, Anikuschka querida, sê boa e faz-me isso. - implorou ele, envergonhado até ao mais fundo do seu ser.
Consentiu que o ombro de Anica se encostasse contra ele, deixou o joelho dela na proximidade do seu, tanto quanto ela queria.
- Anikuschka, ajuda-me: para o teu conde é uma bagatela emprestar-me umas infelizes notas.
Tornou-se suplicante, chamando-se a si próprio porco e chulo.
- Não - replicou Anica, triste, mas dura. - Não é possível de maneira nenhuma. As coisas não são como parecem. Para o conde não é assim uma bagatela, o conde tem preocupações como qualquer outro. As coisas não são como deviam ser, a vida às vezes é muito estranha.
E Bulli não a devia aborrecer, mas sim deixá-la tranquila. Senão, ela ia chorar!
Quando acabou de desenhar na areia, pegou no seu lencinho e Hell retirou-se, admirado. Levou com delicioso espanto um beijo que Anica, por trás do guarda-sol japonês tinha dado no seu braço nu, castanho e com penugem clara. Na areia podia ler-se em letras trémulas: "Gosto do Bulli!"
Hell sentou-se na plataforma da prancha, único lugar onde, nesse dia, depois do almoço, havia sombra. Pôs-se a pensar, perguntando a si próprio quem poderia emprestar-lhe os cinquenta e dois schillings. Entre os homens, só tinha um amigo e esse era Matz. Os outros haviam adoptado para com ele uma atitude singularmente reservada, altiva, hostil ou ciumenta. Todos tinham filhas, noivas, esposas, flirts, criaturas do sexo feminino, que a simples existência e presença de Urbano Hell parecia inquietar e, de qualquer forma, pôr em perigo. Sem dúvida, que o sr. Lyssenhop lhe mostrava, às vezes, uma certa cordialidade, batendo-lhe no ombro e dizendo, por exemplo: "Então como vão os negócios? Há gente na loja?" género de relações pouco encorajadoras para um empréstimo. Um sentimento de honra,
que ardia em Hell, proibia-o de se aproximar de Boby, do director Wucherpfennig e dos outros que perseguiam May. Fugitivamente, pensou em Vefi da casa Schwoisshackel, uma bela criatura vigorosa que lhe fazia olhinhos, lhe dava rações dobradas e que trazia, em bandoleira, um saco bem recheado. Mas igualmente qualquer instinto surdo o impedia de atacar Vefi, larga, quente e cheia de trabalho. Restavam só os Mayreder. O doutor Mayreder tinha um ar bondoso e bonacheirão.
No dia seguinte, de manhã, Hell flanava como por acaso através das cadeiras de dobrar e foi sentar-se ao lado do dr. Mayreder. O dr. Mayreder era, como já se disse, forte e curto e tinha uma lamentável disposição para varizes. De-resto, era um homem amável.
- Pois já temos o Pamperl a nadar sozinho.- disse Hell, para meter conversa; contava encaminhá-la diplomaticamente para o seu fim - É verdade, o Pamperl já sabe nadar sozinho.
- É, na verdade, espantoso! - replicou Mayreder.
- Hei-de ensinar-lhe ainda a dar alguns mergulhos e depois ficará pronto.
- Sim senhor, muito bem. Espantoso! - disse Mayreder.
Intervalo.
Hell voltou à carga:
- Está na realidade um lindo tempo. O lago está quási a 20 graus.
- Hum... - fez o sr. Mayreder.
- Não foi assim tão fácil ensinar o Pamperl a nadar. Mesmo nada fácil... - insistiu Hell.
- Sim?... Ah!...
- É verdade, porque ele ainda é pequenino. A sr.a Mayreder também tem muita dificuldade em nadar.
- Sério? Acha?
- Sim, ah! sim. Olhe que não é uma profissão agradável ser mestre de natação. Parece que não é nada, mas olhe que está longe de ser divertido.
- Calculo bem.
- Abre o apetite estar todo o dia na ponte e ninguém dá por isso.
- Sem dúvida, sem dúvida...
- E depois é muito mal pago. Muito mal, sr. Mayreder.
- Sério? Isso é lamentável.
- Muito lamentável. E depois dá muito trabalho. Mas ninguém dá por isso...
- Perdão... desculpe-me..-disse o dr. Mayreder, deitando olhares inquietos à sua volta.
Hell aproximou-se do seu tema:
- Há ocasiões em que me vejo seriamente atrapalhado, mas eu nasci optimista. Por toda a parte há gente boa, sr. Mayreder...
- Absolutamente... com certeza... Desculpe-me. Adeus. - replicou o sr. Mayreder, que se levantou vivamente e se foi embora.
Hell ficou sentado na areia ainda um minuto, assobiando forte com um ar alegre, para voltar a si do seu desapontamento. Depois atravessou cinco vezes a nado o trajecto de trinta metros ao lado da ponte, mas não era suficiente.
Quanto ao sr. Mayreder teve entretanto uma conversa urgente com sua mulher, Paulina, que foi desencantar em via de fazer exercícios gimnásticos.
- Paulininha, - disse ele - esquecemo-nos completamente de dar uma gorjeta ao mestre de natação, quando Pamperl nadou sozinho pela primeira vez. São coisas que é costume fazer... Foi bem aborrecido: ele acaba de me fazer alusões muito directas.
- Ao mestre de natação ? Como é isso ? - perguntou a sr.a Mayreder, corando - A ele não se pode dar uma gorjeta. Tem o seu grau de doutor e seria uma ofensa. É um rapaz muito particularmente distinto e delicado. Que imaginas tu? Uma gorjeta.
- Já te disse que espera alguma coisa de nós. Conheço os homens! Ele fêz-me toda a espécie de alusões. Deu-me toda a impressão de estar metido em maus lençóis. De-resto, não anda com boa cara.
- Mas então é preciso arranjar uma forma qualquer, uma gentileza que se lhe possa fazer. Não de cima para baixo, mas de igual para igual, compreendes?
- com certeza, Paulininha. Arranja isso. Tu farás melhor do que eu, tenho a certeza. - disse Mayreder, desaparecendo na sua cabine.
Nessa mesma tarde um grande cesto cheio de licores e de charutos fez a sua aparição no quarto de Hell. Levava presas graciosamente algumas flores com um cartãosinho que dizia:
"Pamperl Mayreder envia respeitosos cumprimentos ao seu professor."
Hell nunca tocara em licores e tinha horror aos charutos. Pôs o cesto a um canto debaixo da aranha. Desta maneira, o caso Mayreder estava terminado sem esperança. Só faltavam oito dias para a reunião. O smoking continuava no Montepio.
À noite, um encantamento reinava no Lago das Damas. Os vales pareciam apertar-se enchendo-se de sombras.
O lago estendia-se calmo, sob enxames de mosquitos prateados. Os contornos eram claros e nítidos; cada árvore, por afastada que estivesse, desenhava delicadamente todos os ramos no céu. Cada som chegava distintamente através do ar puro e tornava o silêncio mais silencioso ainda. O Dente de Ferro oferecia um espectáculo ardente, a vermelho e ouro, em volta das suas geleiras azuis. Sobre todos os terraços que rodeavam o lago, em todos os telescópios estavam os olhos levantados, atentos ao espectáculo. Daí a um instante tudo teria acabado e cairia na sombra; dos Bons Irmãos vinha já uma viração gelada. Hell, na canoa a motor, atravessou o lago polido como vidro; ao fundo, um céu rosa parecia nadar. Do lado de Wurmtal ele tomou um caminho que, através de bosques, levava ao castelo Dobbersberg; um doce perfume da tarde, mistura de nascente, agriões e hortelã-pimenta flutuava no ar.
No decorrer do verão tornara-se muito familiar destes lugares; conhecia a forma de abrir o fecho e o Tigre vinha ao seu encontro, soltando latidos de alegria.
Aqui, tudo era calmo e estranho. Aqui, era a outra margem. Aqui, desembarcava-se nas noites de infelicidade, quando não se podia mais suportar a fome, quando May era obrigada a dançar com os outros ou estava retida por um passeio de automóvel. E quando há horas de falta de coragem e as dúvidas nos assaltam, a respeito de certa carta que um certo agente de patentes não nos mandará talvez nunca...
Puck acorreu com o seu traje de camponesa.
- Tens as mãos frias! Que aconteceu ? - perguntou logo.
Ela estava radiante, contente, excitada.
- Hoje fomos levar o feno para a granja, foi maravilhoso, eu ando sempre um pouco embriagada no tempo do feno; cheira bem e podemo-nos enterrar nele. É tão agradável estar lá em cima encarrapitada no carro, quando o feno vem para baixo e julgamos catrl
Tigre, com a sua língua ardente, lambeu a mão de Hell. Hell, pálido e fatigado, pediu para falar ao barão.
- O papá está hoje com febre, mas ainda assim, vem. - disse Puck -Todos nós estamos contentes, não é verdade, Tigre? vou imediatamente anunciar-te ao papá.
Hell engoliu a saliva por duas vezes, antes de entrar com precipitação em casa do barão Dobbersberg.
- Espero-te cá fora. - disse Puck - Quando o papá está nos seus maus dias, não pode suportar senão uma pessoa de cada vez.
Dobbersberg, deitado no seu leito, com uma mesinha posta em cima da coberta, dispunha-se a escrever. A sua longa e estreita cabeça, à Greco, estava na sombra; um pequeno candeeiro espalhava o seu clarão sobre o manuscrito em que trabalhava.
- Todas as vezes que tenho febre, observo em mim uma fluidez muito particular de pensamentos. disse ele, sem outra introdução, de uma forma um pouco
precipitada, com tremor de lábios e leve bater de dentes - É preciso seguir ao mesmo tempo quatro ou cinco cursos de ideas. É como um vestíbulo da morte. Suponho que, no momento da morte, uma centena de correntes de ideas se transpõem, que, no segundo da morte, pensamos em tudo quanto nos esquecemos de pensar durante a nossa vida. É provável que, no momento da morte, o tempo pare, que nos destaquemos de toda a ficção de tempo e de espaço... Pode pensar-se que este segundo da morte seja mais longo do que todo o tempo que o precedeu. Conhece o meu livro Nos limites da consciência?
- Não, que pena! - respondeu Hell, pouco à vontade.
Procurava em vão uma transição, para passar da loquaz metafísica do barão ao seu smoking empenhado.
- Nestes últimos tempos tem vindo raramente ao País das Tulipas, prosseguiu o barão - tem estado lá na Banália. É pena. Puck tem muito desgosto... pobre mulherzinha sem defesa I...
O que ele dizia parecia-se muito com o delírio, os seus olhos brilhavam em excesso.
- Ah! sim, é verdade, há muito tempo que queria perguntar-lhe: que significa isso do País das Tulipas?
- interrogou Hell.
- Oh! absolutamente nada. É uma frase de criança, de Puck. É o contrário de Banália. Estes dois países estão continuamente em guerra. Mas parece que é a Banália que fica sempre vitoriosa e nós, os do País das Tulipas, continuamos no nosso pequeno domínio reservado. Ouve a música do Grande Petermann?
- Ouço, é um shimmy de Honolulu. - disse Hell. E os seus pés marcaram ligeiramente o ritmo que,
indistinto, entrava pela janela aberta.
- Olhe, Honolulu! Shimmy! Olhe! - exclamou o barão.
A cabeça mexia-lhe sobre as orelhas e ele sorria com o seu sorriso oblíquo e misterioso.
Hell mergulhou de cabeça no seu assunto.
- É que eu adoro dançar. - explicou - Fico absolutamente desesperado se não puder dançar, enlouquece-me ouvir um bom jazz. Daqui a oito dias há um baile no Petermann: se não puder ir, adoeço.
O barão estremecera às palavras que Hell tinha pronunciado, inconsciente e cheio de convicção juvenil. Os seus olhos, ao mesmo tempo brilhantes e ternos, abriram-se muito, contemplando o rapaz com olhar penetrante.
- Ah ! - disse em voz baixa.
E os seus dentes puseram-se a bater com mais força. Pegou com a mão macilenta num lenço que apertou contra os lábios, que tremiam num acesso nervoso.
- Posso fazer qualquer coisa? Devo... - perguntou Hell, aflito e pronto a socorrê-lo.
Mas o barão fez um sinal de recusa.
- Obrigado, -disse, não sem custo -Um pequeno ataque. Conversaremos na próxima ocasião, agora estou muito ... muito ... fatigado.
Hell sumiu-se pela porta. Ia desesperado. Precisava dos cinqüenta e dois schillings: era de novo a sua idea fixa e obstinada. Encontrou Puck na horta, agachada entre as plantas, no crepúsculo que findava, a apanhar groselhas.
- Entre nós, na montanha, tudo amadurece tarde, ainda estão muito ácidas. - disse ela, chegando-lhe um cacho à boca.
Pirilampos povoavam as moitas e os grandes mosquitos do Lago das Damas picavam e zumbiam. O cair da tarde escurecia as verduras e Hell não podia distinguir o rosto de Puck, emquanto se fartava de bagos frescos, sumarentos e ácidos.
- Anda, Puck, preciso falar-te a sério. -disse, por fim, arrastando-a para um banco - Nós somos amigos, não é verdade?
- Assim o creio. - respondeu Puck, cheia de espectativa e cruzando as mãos nos joelhos.
- Gostarias de me prestar um serviço, se eu precisasse, não é verdade, Puck? Se assim não fosse, nem
eu to pedia. É que não é tão fácil como isso...- disse Hell, levantando das ervas um pirilampo e colocando-o na palma da sua mão, donde lhe vinha um reflexo de uma lanterna em miniatura, verde e suave.
- Diz sempre. - murmurou Puck. Hell ouvia a sua respiração.
- É que eu tenho um grande desgosto, compreendes, Puck?
- Sim. - disse Puck, com uma vozinha seca.
Ela esperou ainda um instante, depois escondeu o rosto nas mãos e pôs-se a chorar. Chorava como Hell nunca tinha visto chorar. Docemente, suavemente, as suas lágrimas corriam sem cessar entre as mãos, como uma chuva de verão, sem marcar mágoa nem esforço. Quando ela afastou as mãos da cara, já sorria. Hell pôde constatá-lo à claridade do pirilampo.
- Porque gostas doutra. - disse Puck, com voz
quási imperceptível.
- Que é isso ? Que outra ? - perguntou Hell. Tinha pena de Puck; achava-a tão encantadora,
sentada a seu lado com as mãozitas vermelhas de groselhas, molhadas de lágrimas, picadas pelos mosquitos de verão. Atraiu Puck a si, abraçou-a e cobriu-lhe o rosto de beijos leves, delicados, ternos, que Puck recebeu de olhos muito abertos. Hell estava comovido. Colocou Puck a seu lado e disse-lhe fracamente:
- Preciso de dinheiro, Puck.
- Quanto? - perguntou ela, simplesmente.
- Cinquenta e dois schillings, cinquenta e três, se
quiseres. - replicou Hell.
E o seu peito dilatou-se, aspirando profundamente
uma onda de ar.
- Imediatamente. - retorquiu Puck. Levantou-se e correu para dentro de casa. Hell
seguia-a de perto. No vestíbulo, entre os móveis rústicos, pintados de azul, esperou. O coração batia-lhe. Viu lá em cima Puck e Tigre que faziam barulho: abriam-se portas, vozes murmuravam. Puck desceu a escada em turbilhão e anunciou alegremente:
- Disse à mamã. Eu não tenho dinheiro. A mamã dá-te de boa vontade, mas é preciso que tu próprio vás buscá-lo.
- Meu Deus. - pensou Hell. Mordeu os lábios, incomodado.
- Vai devagarinho; a mamã está com dores de cabeça. - disse Puck, à porta.
E empurrou-o para dentro do quarto.
Hell, a-pesar-de não ser cobarde, ficou inquieto, encontrando-se assim no quarto de dormir, da Bojan. Sentia surdamente que nesse verão se via cercado demasiadamente de mulheres. Ele próprio estava enamorado de May, estava cheio de amor, de ternura, de paixão e de desejos insatisfeitos. Tinha muitas vezes a sensação de uma explosão ameaçadora, de um despedaçar mais profundo do seu ser, de uma demasiada tensão das suas forças.
- Estou carregado como uma pilha eléctrica...- gemia ele, às vezes, exprimindo assim, por meio de uma metáfora, o estado do seu coração em evolução, que sentia prestes a rebentar.
May, aquela May dura e enérgica, tinha dificuldade em o manter na ordem. Mas todo o resto da colónia feminina que se entregava à alegria das férias no Lago das Damas, fazia o mais que podia para inquietar e perturbar esse pobre Urbano Hell.
Resi, a corcunda, abria a série trazendo-lhe, de manhã, leite fresco à cama demasiadamente curta; mostrava-lhe uma ternura tão viva, que dava vontade de rir ou de chorar. A senhora Birndl, no seu estado de gravidez, muito avançado, prendia todos os seus olhares ao fato de banho de Hell, aos seus músculos, à linha particularmente feliz da sua nuca. Oferecendo um espectáculo desagradável, ficava horas inteiras colada ao pontão, ao lado dele, com os cotovelos apoiados à balaustrada, muito perto dos seus braços. Ele não podia mesmo ver tudo o que as alunas faziam à sua volta, desafiando-o com palavras e olhares; mas sentia desde manhã como que uma vibração e uma chama no
ar. Também a surda-muda - Estefânia de Brinckmann
- não deixava de tomar as suas lições de natação; Hell, com paciência de anjo, dava-lhas laboriosamente por meio de exemplos e de gestos. Vefi Schwoisshackel, radiante de beleza, com os olhos azues sob uma coroa de tranças negras, tinha um modo mais que inteligível de lhe mostrar quanto ele lhe era agradável. Nunca lhe trazia os pratos sem que o seu peito fizesse sobre ele uma doce pressão.
- com sua licença, tomo a liberdade... - dizia.
E apertando-se contra os seus joelhos abria caminho por entre as filas dos bancos. Isto podia ainda suportar-se. Mas havia Anica, Anikuschka extremamente perigosa pela sua intimidade não esquecida, pela doçura das suas carícias.
- Anica, tu brincas com o fogo; Anica, não me toques que me endoideces. - suplicava Hell, atormentado.
Mas Anica continuava a brincar com o fogo. E que devia dizer-se de Carla Lyssenhop que, numa tarde, apareceu na sombra do terraço do lago, onde ele tinha por costume encontrar May e se lançou nos seus braços, pretendendo que era a irmã? Hell, interdito e confuso, tinha-se deixado beijar sem dizer palavra. Visto que Carla desejava ser tomada por May, que fosse feita a sua vontade. Mas que queriam dele, que lhe queriam elas todas? Havia pouco, tivera de consolar Puck. E agora estava no quarto de dormir da Bojan para receber dela cinquenta e dois schillings. Ele temia a Bojan mais do que qualquer outra. A Bojan tinha para com ele a pior das indiscrições: sonhava com ela. Quando ia de visita ao pequeno castelo, ela não era tão excessiva: estendia-se um pouco, fixava-lhe a boca com o olhar, reparava-lhe na nuca, olhava-lhe para as mãos. E boca, nuca e mãos, punham-se-lhe a arder. Mas o mais grave é que sonhava com ela. Sonhava com ela de maneira impudica, apenas suportável, com os seus cabelos vermelhos, a sua pele demasiadamente lisa e o fato de Pierrot que trazia em Lula.
A Bojan estava na cama. Mas que carnal Hell nunca tinha visto nenhuma parecida. Presa por cordas de ouro, pendia do tecto como um baloiço, como uma gôndola de amor. No chão, de cada lado, estava um candeeiro alto como um homem; era como no teatro. A Bojan estendeu-lhe um braço, branco e lasso, nu até ao ombro. Tinha o peito coberto de rendas transparentes e da gôndola tombavam igualmente cascatas de renda. Hell nunca pensou que, a não ser no cinema, se pudesse ver semelhante coisa.
- As minhas homenagens. - disse ele, numa voz estrangulada, aproximando-se da cama em bicos de pés.
Teve o cuidado de deixar uma distância entre si e a Bojan. Agarrou na mão estendida e apertou-a corajosamente por duas vezes.
- bom dia, doutor. - disse a Bojan, lânguida Estou muito contente em o ver. - E repetiu: - Muito contente... - olhando-o e perdendo-se nos seus pensamentos.
- Tomei a liberdade... Puck disse-me... - gaguejou ele.
- Ah! sim, precisa de dinheiro, o nosso pequeno que pescámos no lago. E seria muito indiscreta perguntando para que precisamos de dinheiro? É necessário dizer que sou muito curiosa; você é um homem que torna as mulheres curiosas, doutor. Já sabia?
Hell, de garganta seca, murmurou palavras negativas. Por nada do mundo teria contado ali a história do smoking empenhado.
- Um compromisso, um embaraço momentâneo...
- murmurou ele.
Sobre as calças brancas, de praia, descobriu nódoas de groselhas esmagadas. Que aborrecido!
- O correio funciona mal no Lago das Damas...
- acrescentou ainda.
Depois calou-se. A Bojan também se calou. Isto durou uns minutos e estes minutos sussurravam, cheiravam a mulher, passavam sobre Hell como
qualquer coisa pesada, desencadeada, desastrosa: um comboio rápido, um incêndio, um desabamento.
- Absurdo. -pensava Hell, com as fontes vibrantes - Hei-de desembaraçar-me, assim é preciso. Sobretudo, não me mexer.
Hirto, estava diante da cama da Bojan com todos os músculos distendidos. Lá se desembaraçou, realmente. Foi bastante perigoso desta vez, mas lá se arranjou. A Bojan, que tinha o gosto e a necessidade das situações cénicas, pousou na almofada o braço nu e desiludido. As longas épocas de verão, sem teatro, eram muito vazias e aborrecidas. Ela fechou os olhos, deixou cair a cabeça e o seu rosto tomou uma expressão dolorosa.
- Vá ao meu toucador... à direita, o armário. A minha carteira está na gaveta de cima. - disse, cansada.
Hell tomou a direcção que sua mão indicava, furou através do ar tépido e perfumado e encontrou-se num aposento cheio da atmosfera da mulher requintada, de mil objectos sedutores, misteriosos e femininos. Procurou às apalpadelas o armário e as roupas da Bojan roçaram-no. Entre a roupa interior, de seda, encontrou finalmente a carteira e pegou-lhe com certo peso na consciência, parecendo-lhe que ofendia May. De braço estendido, depô-la no leito da actriz.
- Sirva-se, se faz favor. - disse a Bojan, com ar trocista.
Contemplava-o com atenção emquanto ele pegava na saca e se punha a rebuscá-la, com os dedos trémulos. Ela não lhe facilitava as coisas, desejosa de pôr em embaraços esse Apoio desajeitado. Quando Hell conseguiu retinir os cinqüenta e dois schillings e pôs na sua mão todas as moedas e notas, sentiu que tinha os cabelos húmidos de suor. A Bojan ria. Ela tinha uns caninos estreitos, ponteagudos e trocistas.
- É tudo quanto quer de mim, não é verdade? perguntou-E agora boa noite. Puck espera-o. Durma bem.
Isto foi dito num tom pérfido e tão malicioso que parecia que ela bem sabia que visitava Hell em sonhos. Foi como se lho quisesse lembrar. Piscou mesmo levemente os olhos.
- Obrigado, sim... não... - respondeu Hell.
A Bojan estendeu-lhe de novo o braço e a mão.
- Muito obrigado, mil vezes obrigado. As minhas homenagens. - disse Hell, cheio de amabilidade.
Agora que podia retirar-se, agarrou amavelmente nessa mão quente e lisa e beijou-lha. Mas este beijo na mão tomou um caminho inesperado. A mão que ele tinha levado aos lábios, voltou-se e apresentou-lhe a face inferior fixando-se contra os seus lábios, aspirando-os como se fosse uma boca. Depois, a pele branca com veias azues, o braço liso como vidro quente, roçou o seu rosto e enlaçou-lhe a nuca. Hell sentiu-se cerrado, atraído, e nem soube o que aconteceu. De-repente, as suas mãos encontraram-se metidas na carne da mulher, nas rendas, e a sua boca confundiu-se com outra boca. A sua energia afrouxou, e caiu de uma altura vertiginosa, do alto de um cume para um abismo devorador. Viu-se cair.
-Não pensou do fundo de si mesmo-Não, não!
E reuniu tudo em si, a boca, as mãos, todo o seu corpo contraído. Ergueu-se cambaleante. A gôndola vacilou levemente nas suas cordas de ouro. Hell sentiu o coração bater-lhe furiosamente até à garganta.
- Então? - perguntou a Bojan, de olhos fechados e não muito descontente.
Hell agarrou no dinheiro que lhe tinha caído das mãos e saiu do quarto, cambaleante. Fora, o Tigre velava, aborrecido e de olhos fosforescentes.
- Preferia cair sobre ortigas, meu velho Tigre.- disse Hell, exausto, encostando a cabeça contra a pele manchada do cão.
Dois dias antes da "Reunião", chegou uma carta que dizia assim:
"Meu querido filho:
"Muito obrigada pelos cinquenta e dois schillings
infelizmente, o smoking foi vendido, por que não tinhamos pago os juros, há seis semanas. Empreguei o dinheiro que mandaste desempenhando a biciclete. Diverte-te muito no baile. -Não apanhes frio Não bebas água fria se estiveres quente. Aproveites a dança. Mil beijos da tua mãe, que te ama."
YAT Lyssenhop e Urbano Hell, tiveram uma altercação das mais vivas. Estavam encavalitados lá em cima, na prancha de dez metros, para não serem incomodados. De baixo, as suas finas figuras desportivas pareciam muito pequenas com os contornos nitidamente desenhados. Estavam sentados um ao lado do outro, em cima da prancha, com as pernas pendentes para o vácuo. Dois andares abaixo, na prancha de três metros, Carla exercitava-se a saltar de costas. De-resto, era a hora morta do banho, entre a uma e as duas da tarde. A rapariga surda-muda, estendida na areia, levantava os olhos para eles, sorridente, satisfeita, com a boca entreaberta, emquanto a senhora Mayreder descrevia, a nadar, pequenos círculos ansiosos em roda da escada. Até Matz, com o seu corpito de criança, estava na água; Hell tinha-o ensinado a nadar e, graças a Deus, ele agora sabia!
Aparte isto, tudo estava calmo na prata. Até a discussão, lá de cima, era contida, de frases proferidas em voz baixa, mas mordazes.
- Tu és um tirano, é o que és. Um déspota cheio de orgulho e querias mandar em mim! - dizia May Lyssenhop, trémula de cólera.
- Está bem, então sou um tirano. Bem, sou... eu, an? Eu é que sou um tirano? E porque não
hás-de ser tu? és superficial e vaidosa, não tens nenhuma espécie de delicadeza. - replicou Urbano Hell. Ambos tinham a voz dura, de raiva e desespero.
- Porque não foste à Reunião? Tinha-te ou não pedido que fosses? Só teria dançado contigo toda a noite.
- E tu para que foste à Reunião ? Tinha-te ou não pedido que não fosses? Cá tinha as minhas razões. Mas tu teimaste, só para me arreliares.
- Quem é que é teimoso? Tu e sempre tu. És o ente mais teimoso que tenho visto.
- Seja. Pode ser. Mas se eu não fosse teimoso, há muito que tudo isto teria acabado; podes acreditar. Mas tu não me compreendes...
- Que queres que compreenda? Já me falaste nos teus negócios? Apertas os dentes até rangerem, é o que tu fazes. Porque não foste à Reunião? Dize, pode ser que eu compreenda.
- Cá tinha as minhas razões. Não as posso dizer.
- Santo Deus! - replicou May, torcendo as mãos, encolerizada em face de tanta obstinação-Mas, vejamos: eu conheço essas famosas razões que tu não podes explicar. São simplesmente histórias de mulheres.
- Jesus! Que mulheres? Que vem a ser isso agora?
- Se calhar, não sei! Não conheço as tuas mulheres!... Andam todas à tua volta como malucas. A baroneza pequena, a actriz ou a condessa. Sei lá! É uma infelicidade encontrar um rapaz destes, para quem elas correm todas. Nem se pode ter a certeza da própria irmã...
- Deus é testemunha que não toco em nenhuma. Está certa May, que nem olho para elas. Prometi-te não olhar para nenhuma e o que prometo... cumpro. Mas concorda que tu não me facilitas as coisas ...
- Vês? Não te facilito as coisas! É então minha a culpa? No entanto, faço tudo quanto queres!
- Às vezes, May, és mais tola do que uma criancinha! Não percebes nada de nada. Primeiro, tenho
preocupações e depois ando à toa, como doido. Meu Deus filha, tenho medo, de ti, pões-me a assar e a fritar em azeite a ferver. Às vezes é de fazer trepar às paredes.
- De que falas tu, afinal ?
- De quê? Mas, disto: gosto de ti!
Toda a sua dor e toda a sua raiva amorosa das semanas passadas, rebentaram emquanto ele estava sentado assim, de punhos fechados, com má cara, a gritar em voz rouca:
- Gosto de ti!
De-repente, May emmudeceu e fechou a boca. Agitou levemente as mãos e arranhou com os pés a esteira áspera que cobria a prancha.
- Meu Deus, Hell, porque não mo disseste? perguntou, em seguida, meigamente.
E Hell respondeu, também meigamente:
- Como querias que to dissesse? Achas-me capaz de te fazer mal? Então quê? Bem sabes o que há. E preciso que sejas tu que venhas para mim.
- Bem sabes que fui eu que vim para ti. - disse May, fazendo-se ainda mais meiga - Bem sabes que te pertenço.
- Toda?
- Toda. Não te verás mais livre de mim. Pertenço-te para sempre.
- Para sempre! Tens cada uma! Daqui a um mês voltas para Berlim e eu fico aqui. Terás tido um flirt com um mestre de natação, um divertimento de férias, e será tudo.-disse Hell, muito compadecido de si próprio.
- Não digas tolices. Em Setembro tu vais a Berlim por causa da tua corrida, e então veremos como isto se há-de arranjar. Talvez até lá tenhas recebido a tal carta que te dá volta à cabeça.
- May, - disse Hell muito sério - diz-me uma coisa: tens realmente confiança em mim? Achas que essa carta arranjará tudo? Ou estás a troçar?
- Pois bem, meu filho: até agora, só me falaste
nisso vagamente: que hei-de acreditar? Nem sequer sei do que se trata! Tu preferes calar-te!...
- Não posso dizer tudo, May. Tu és apenas uma grande criança amimada, uma princesa com automóvel e sapatos de prata... o teu Tat, é como um rei... e tu és... emfim, bem me entendes. Não posso falar contigo sobre os meus negócios. Como podes compreender o que sejam preocupações? Podes imaginar, May, que alguém tenha clara e simplesmente fome, até fazer doer o estômago e que se seja forçado a engolir a saliva constantemente como se se tivesse contracções na garganta? E a cabeça fica vazia, e não vemos diante de nós senão carne, muita carne assada, como se se fosse um cão...
- Já tiveste fome? - perguntou May, vivamente. E também vivamente Hell respondeu:
- Não, nunca.
May pousou delicadamente a mão na de Hell, agarrada à borda da prancha.
- Diz-me tudo, meu pequeno, fala, peço-te... pediu em voz baixa.
Um pouco mais tarde, Hell fez com a cabeça um sinal afirmativo:
- Sim, já tive fome. - replicou, quási imperceptivelmente.
- Meu queridinho... meu querido... - murmurou May - Fala.
- Pois bem, imaginemos que eu conheço uma mulher, uma senhora, cujo marido era funcionário e morreu antes do nascimento de seu filho. Durante toda a vida ela viveu atrapalhada para se manter com a sua pensão e um filho. A pobre velhinha tem agora trinta e três schillings de mensalidade. Seu filho não tem emprego. Podes imaginar uma coisa assim, May? Como pode viver esta gente? Como te parece que vivam?
- Conta, Urbano.
- Há gente que não tem palácio, nem automóvel, nem botões de camisa com pérolas verdadeiras para pôr com a casaca. Muitos não podem mesmo ir ao baile
porque só possuem um infeliz fato azul-marinho, que os criados de café desprezam. E só um par de sapatos castanhos. E quando as solas têm buracos, essa gente não dorme de noite, cansando a cabeça a pensar: onde hei-de ir buscar o dinheiro pára as solas? Que tens tu, May?
- Nada. Estava só a rir. Agora, tudo se há-de arranjar entre nós. Até que emfim falaste. Continua...
- Deves ficar sabendo que nessa gente há cólera, altivez, força, se queres chamar-lhe assim. De outra forma ficariam esmagados num abrir e fechar de olhos. Tem de se tirar de dificuldades com unhas e dentes. Então passam anos encarniçados atrás de uma idea. O homem exercitado na pobreza agüienta muitíssimo. Se é teimoso a valer arranja qualquer coisa. Agarra-se a um problema e não o larga antes de o resolver. Mas não posso explicar-te coisas técnicas, tu não compreenderias. - terminou Hell, desviando os olhos de May para contemplar o lago.
A canoa a motor buzinava e aparte isto tudo estava calmo e vazio. Só Carla, estendida na areia, pequena e distante, parecia dormir. May inclinou-se para a frente até poder encontrar o olhar de Hell.
- Bem, agora compete-me a mim falar. - disse ela, em voz seca, profunda - Tens de mim, bem má opinião, Urbano, é o que é. Julgas que por estarmos no Petermann, termos um automóvel e me arrastar por aqui com os rapazes do tennis, e o conde, não há nada em mim? Mas só em férias no Lago do Amor é que eu levo esta vida. Tu és aqui mestre de natação e as mulheres correm atrás de ti mas, na verdade, és um engenheiro que alguma coisa pode fazer. E eu sou aqui uma pessoa que não presta para nada, mas em casa, eu é que estou encarregada da correspondência inglesa da Bewamag o que não é uma bagatela. Trabalho as minhas oito horas por dia como qualquer homem que se preza e não vivo tanto nas nuvens como imaginas. O Tat pregou comigo durante dois anos na secção de previdência e um ano no escritório do pessoal. Aí pude
aprender alguma coisa a respeito dos nossos operários. Tens razão, não compreendo nada de técnica, mas porque não me explicas? Tat também me explicou a construção dos seus wagons e eu compreendo perfeitamente. Hell deu uma resposta estranha que nada tinha com o assunto.
- Como tens os olhos castanhos, May! - exclamou, contemplando-a - Sabes qual foi a primeira palavra que te ouvi dizer? "No fundo, gosto mais do que é amargo", afirmavas tu. Ora a partir desse momento o meu caso ficou arrumado.
- Voltemos ao nosso assunto. - disse May.
- Entendido. - respondeu Hell, obedecendo Pois bem, trata-se de um film de papel incombustível e muito barato. É um negócio de primordial importância, destinado a ter um grande futuro. Tudo o que até agora se tem feito no género, film de gelatina, viscose, etc. não vale nada. O preço de venda é muito elevado. Mas eu achei-o. Eis do que se trata, May.
- Achaste ? Mas isso é espantoso l E porque esperas ainda?
- Pedi uma patente. E depois há uma grande casa de films que se interessa. Agora espero notícias. Mas, May, segredo absoluto ...
- Mas isso é maravilhoso, Hell! Quanto tempo pode demorar ainda? Desde quando esperas? E tens a certeza que a tua invenção é superior às outras?
- Absoluta certeza. Cheguei por um outro caminho. O meu film. não é em celulóide, mas em papel. As probabilidades são enormes. Dentro de dez anos far-se-ão assinaturas de films como de jornais ilustrados. Todos os dias espero novas. Já espero há bastante tempo.
- Há quanto já?
- Olha... vai fazer um ano...- disse Hell, hesitante.
- Vai fazer um ano?! - repetiu May, caindo no silêncio e na reflexão.
Agora que Hell tinha dito e contado tudo, a sua miséria e a sua esperança, sentia-se um pouco aliviado
e desembriagado. Ora gelava em pleno sol, sofrendo de fadiga e de desencorajamento, ora um singular desalento o invadia, pensando na sua invenção. Tudo lhe parecia tão distante, que se sentia como decomposto, anulado pelas emoções e angústias da espera. Emquanto estava sentado na prancha, em pleno dia, ao lado de May, e lhe falava pela primeira vez detalhadamente, teve quási a sensação de ser um charlatão. Dissera apenas a verdade pura e simples.. mas ele próprio quási duvidava. E tinha a impressão de que May também não lhe ligava grande importância.
De súbito, ela tornou-se muda, pensativa e séria: uma pequena ruga formou-se entre as suas lindas sobrancelhas bronzeadas.
- Escuta, meu querido. - disse, depois de certo tempo, num tom alegre - Não quererias tu falar ao Tat a respeito desse negócio? O Tat é muito entendido. Emquanto esperas, ele podia colocar-te nas suas oficinas. Ou então... escuta, Urbano... diz: não querias talvez casar comigo?
- Quero! - afirmou Hell, enrouquecido, em voz obstinada.
- Bem, então já vês. A ti é preciso arrancar-se tudo com uma tenaz! Podias bem falar ao Tat.
- Mas é por isso, May, que eu espero desesperadamente a carta. Antes, não posso falar ao teu Tat. Não irei de solas rotas ter com o sr. Lyssenhop, pedir-lhe a mão da filha. Não, não farei isso.- disse Hell, teimoso.
- Ora vamos, quem fala em pedir a minha mão ? Nós somos pessoas grandes, creio eu. Estamos de acordo. É um negócio arrumado. Mas parece-me que devias falar ao Tat.
- Assim que chegar a carta.-tornou Hell, cabeçudo, marcando as sílabas.
- Meu Deus, que parvo. - exclamou May - bom. Esperemos a tua carta. E quem se fritará em azeite a ferver até lá ?
- May, quando estás assim sentada ao sol, pareces toda de ouro. Os cabelos, os olhos, a pele, o corpo:
tudo é ouro. E o dedo grande do pé é de ouro também. A minha May é toda de ouro, por fora e por dentro. disse Hell, olhando-a, sonhador.
May sentou-se na prancha e agarrou-se com as duas mãos vigorosas.
- Meu querido amor,-pensava ela - meu querido, meu muito querido amor, como tu és lento, pesado, bom e tonto! E preciso fazer tudo por ti.
Desviou dele o olhar e fixou-o além do lago que cintilava ao sol do meio-dia.
- Tu sabes no que eu penso, meu pequeno ? perguntou lentamente - Um dia destes vamos fazer uma excursão à montanha, os dois. Faremos a ascensão do Dente de Ferro e iremos aos Tauérn por Dõrngrat e Blãsserscharte. Isso leva-nos apenas três dias. Temos que passar duas noites fora, uma em KõrnerhUtte e outra em Jochhaus. Eu cá me arranjarei para me libertar e é preciso que faças o mesmo. Combinado?
Ela baixou e voltou a cabeça. Uma vaga quente tornava púrpuro o rosto da rapariga para o deixar empalidecer em seguida. Hell, também empalideceu, o seu coração parou de bater durante um segundo e os lábios ficaram brancos. Não podia proferir uma palavra, tinha na garganta qualquer coisa grossa que o asfixiava, um grito sem dúvida que era preciso reter. Mudo, fez um sinal de cabeça, afirmativo. Nele tudo cantava. May nova, May querida, camarada, companheira, rapariga, mulher... com certeza que iria com ela à montanha... lá tudo era forte e solitário e as noites próximas e grandes.
May olhou-o, tendo talvez os olhos húmidos.
- Já discutimos muito, não achas? - disse ela, sorrindo - Agora compreendemo-nos. Desta vez será para sempre, não é verdade?
- Sim, - disse Hell - para sempre.
Ficaram ainda um momento sentados na prancha, baloiçando as pernas. O lago parecia grande, sob os vapores do meio-dia, quási sem margens, projectando um fumo branco sob os raios verticais do sol. May
levantou-se e espreguiçou-se. Ágil, avançou até à borda da prancha, que tremia levemente. Baloiçou-se em bicos de pés.
- Vem; - disse ela - saltaremos juntos.
- Tu sabes, May, que sou um medíocre saltador.- replicou Hell, pondo-se ainda assim em pé e distendendo os músculos.
- Vem - insistiu May - juntamente comigo e tudo irá bem.
Pôs-se ao seu lado à borda da prancha e enlaçaram mutuamente os ombros. Os dois corpos esticaram-se e eles olharam-se nos olhos, rindo.
- Hop lá! -disse Hell.
Um instante depois atiravam-se num lindo arco pelo ar executando um salto perigoso, triunfante, e entraram juntamente na água que espumava, deliciosamente fresca, verde, argêntea.
Tal foi o noivado de May Lyssenhop e de Urbano Hell.
O sr. Birndl tivera razão não querendo correr o risco; desde o princípio do mês de Agosto, as receitas das lições de natação baixaram de uma forma assustadora e inquietante. Pouco a pouco, toda a gente tinha aprendido a nadar; toda uma geração de nadadores, nascida nesse verão, deslizava na água, com prudência, é certo, e na proximidade do pontão e das escadas, mas, no entanto, sem o auxílio de Hell. Ele não tinha, por assim dizer, outra coisa a fazer senão estar em traje de banho ,no pontão ou a vigiar que não se afogasse alguém. Às vezes, oferecia-se a distracção de um banho, de uma corrida endiabrada de 200 metros com Carla ou May, mesmo com Boby ou o conde Sztereny, esbelto e de cabelos de um negro-azul que, com o seu monóculo e o seu acento nasalado de aristocrata vienense, representava, no quadro da sociedade "exclusiva" do Grande Petermann, o supra-sumo do chie mundano. Ao meio-dia, as refeições de Hell eram irregulares, quer dizer que só as fazia de dois em dois ou de três em três dias. Depois de jantar, estendia-se na areia, pois sentia-se fatigado e em má forma. Um pouco mais tarde, a tempestade tomou o hábito de rebentar todas as tardes, varrendo a praia e os banhistas e arrefecendo o lago. Depois, Hell teve de pautar o espaço reservado
aos não nadadores, aproximando as bandeirinhas da margem. O nível do lago subia lenta mas regularmente, erguendo a superfície das águas cada dia um pouco mais para o passeio.
As tempestades chegavam sempre do mesmo lado sudeste; começavam por rugir durante horas atrás da Muralha Alta, como um rebanho afastado, mas irritado, de vacas monstruosas; depois, um retalho de nuvem branca corria sobre os Bons Irmãos com a velocidade dum estafeta brandindo a bandeira branca. Depois o lago tornava-se liso, silencioso, hipócrita, negro no meio. Gaivotas e andorinhas molhavam na água os seus ventres brancos; depois, logo a seguir, vinha o primeiro relâmpago. Após um longo intervalo, o trovão rugia com ecos nas paredes das montanhas e nunca mais acabava. O lago punha-se a saltar subitamente como se a água tivesse subido ao grau de ebulição.
Mais dois minutos e todos os diabos estavam desencadeados: uma dessas infernais tempestades do Lago das Damas rebentava com nuvens negras que rolavam, relâmpagos que despedaçavam o céu em seis sítios ao mesmo tempo e vinham ferir a superfície do lago sob a forma de bolas de fogo, com trovoada que bastaria para um fim do mundo e rajadas de granizo, que batiam, como um regimento de grandes bombos e tambores, no teto zincado e pintado a vermelho do balneário.
Hell correu ao seu cubículo e fechou a janela. Que, a bem dizer, não era uma janela, mas um buraco redondo, no tabique.
O cubículo ficava ao fim da fila das cabines 18 a 36 e também não era mais do que uma cabine. Por diante da trave da porta, contra a qual Hell batia sempre, a água saía por uma goteira, num jacto ruidoso, que procurava saída por qualquer parte entre as tábuas. Desde a subida das águas, as estacas das cabines não estavam já a seco e Hell, pelas fendas do sobrado, podia ver e ouvir o lago que, irritado e sombrio, atirava a sua espuma branca contra a madeira.
Quando Hell estava ainda à entrada da porta a aspirar o ar húmido e a escutar com um sorriso admirado o martelar da chuva e o ruído da tempestade, viu, de súbito, uma maleta chegar voando por cima do tabique, que separava o banho de um terreno para construções; um pouco mais tarde surgiu um pé tentando prudentemente transpor a mesma divisão e a vedação de arame farpado. Era um pequeno pé, calçando um sapato branco todo manchado, seguido por uma linda perna e depois por uma saia branca, molhada...
Hell deitou a cabeça fora do seu cubículo, expondo-a assim ao jacto das goteiras, para melhor observar o fenómeno - e por fim Anica, toda inteira, saltou e veio cair no balneário, deixando atrás de si um pedaço de flanela branca agarrado ao fio farpado.
Anica tinha um aspecto desagradável correndo assim através da tempestade, pela praia. Estava toda de branco, os braços nus, sem dúvida ainda vestida como de manhã quando fazia muito calor. O gorro de verniz negro dos seus cabelos, penteados à chinesa, dissolvia-se, a pele que trazia ao pescoço, ensopada, ficava rija à sua roda e fazia dela um esquisito animalzinho eriçado. Estava arranhada, magoada, molhada e suja de cima a baixo. Precipitou-se, cambaleante, sobre os saltos altos através da areia, pegando com as duas mãos, na maleta que, a cada passo, lhe batia nos joelhos.
Hell não sabia que pensar desta estranha aparição e, de cabeça baixa, deu dois passos para a chuva. Anica, sem alento e gemendo, lançou-se-lhe de um salto contra o peito, empurrou-o para o cubículo e fechou ruidosamente a porta.
Picaram ali os dois na obscuridade, no meio do barulho que a chuva fazia sobre o teto. Hell ouvia a respiração forte e precipitada de Anica, muito perto dele. Sentia-se pouco à vontade. Não se via nada!
- O que há? - perguntou, estendendo a mão. Retirou-a logo, pois tinha tocado em qualquer coisa
de quente e húmido que respirava.
- Abre a porta...- reclamava ele, indignado.
Uma fria mão húmida e perfumada, fechou-lhe a boca.
- Cala-te. Não fales. - murmurou Anica. Hell replicou, severo:
- Olha lá, tu endoideceste?
Logo a seguir, sentiu entre os braços qualquer coisa de muito conhecido, de docemente familiar, qualquer coisa que tremia, que soluçava, que, tentando abafar os soluços, soluçava ainda mais, qualquer coisa que se escondia inteiramente nele. Hell murmurou palavras de consolação para a acalmar, acariciando com as grandes mãos secas os membros delicados e molhados que pareciam reclamar protecção. Toda a espécie de instintos masculinos acordaram nele emquanto ali estava com a rapariguinha tremendo nos seus braços.
- Aconteceu-te alguma coisa ? Fizeram-te mal ?
- perguntou, alisando os cabelos de Anica que tinha encontrado no escuro.
Anica continuou por algum tempo a soluçar e a gemer; era um verdadeiro acesso nervoso; depois, acalmou-se pouco a pouco, esfregando o queixo contra o peito de Hell; com certeza tinha procurado o lenço, pois ouviu-a por fim assoar-se, abafando o ruído. Então ela largou-o.
O pior parecia ter passado. Hell tirou a maleta de cima do seu pé direito, onde tinha estado até então e entreabriu a pequena janela.
- Não, peço-te - murmurou ela -Que eles não me descubram.
Hell agarrou-a e pousou-a, na falta de cadeiras, na borda da cama; sentia-se pouco à vontade com esta endemoninhada Anica no seu cubículo; afastou-se dela e foi refugiar-se no canto da teia de aranha, cruzando os braços atrás das costas, lugar onde eles pareciam mais em segurança.
- Então, Anikuschka ? Que aconteceu ? - perguntou alegremente.
Anica voltou a soluçar e depois disse:
- Prenderam-no e se me encontram, prendem-me a mim também.
- Prender? A quem, meu Deus? Que aconteceu?
- O Fernando... - replicou Anica.
A água, escorrendo-lhe da saia, formava pequenas poças no chão.
- Quem é o Fernando ? - perguntou Hell, desorientado.
- É o conde. O meu, sabes ?
- Ah! sim, o teu! Preso? E porquê, meu Deus?
- Ora, porque tem azar. - disse Anica, com ar altivo.
Soluçou como uma criança que acaba de chorar.
- Azar, como? Que fez ele de mal? Não se prendem assim as pessoas, sem razão.
- Ele não fez nada. Não pôde pagar, eis tudo. Que queres tu, não tinha dinheiro! Será um crime não ter dinheiro? Pois aí tens porque o levam e o prendem, sim, por não ter dinheiro!
Hell suspirou.
- Não compreendo nada, Anikuschka. Conta-me o que se passou.
- Foi isto... - começou Anica, dócil, emquanto escorria água por toda a parte, dos cabelos, das roupas, dos olhos - Foi isto: conheci-o quando dançava na revista e ele agradou-me logo, porque se apresenta bem e tem qualquer coisa de distinto. Nesse momento, ainda tinha dinheiro, ficou logo louco por mim e fomos muito felizes. Comprou-me lindos vestidos e fizemos excursões, estávamos em Semmering, tínhamos mesmo um automóvel a pagar às prestações. Depois, ele teve que abandonar o automóvel... nisso houve qualquer coisa de mal porque, se ele não tinha o automóvel senão a prestações, não o podia vender. Mas foi o seu amigo Tony que o levou a isso; e perdeu-se o automóvel. E justamente nesse momento, eu desejava muito um relógio de pulso, um relógio pequenino, em platina com brilhantes! Tu compreendes, não é verdade? É indispensável ter um relógio de pulso. Eu já estava vexada por ele não mo ter oferecido e fiz-lhe uma cena. Então disse-me que não era assim tão rico, que não tinha dinheiro e se eu não
queria saber de um pobre diabo, que me fosse embora. Mas justamente nesse momento, eu estava tão apaixonada por ele, que fiquei, e de-resto, não seria gentil da minha parte abandoná-lo por causa de um relógio de pulso. Então o Tofl mandou procurar um homem da Mariahilferstrasse, chamado Sobel que lhe emprestou dinheiro. Tony e um outro do Clube ficaram por fiadores e isso custava uns juros loucos. Eu não percebia nada dessas coisas, mas sabia que, de cada vez que ele pedia um adiamento custava sempre mais. Às vezes, ele tinha outra vez dinheiro, pois tem sorte ao jogo e então era amável comigo e acabei por ter o meu relógio de pulso. Um dia ele disse-me: "Anikuschka, precisamos de viajar, isto começa a aquecer, Sobel está louco de raiva, essa sanguessuga". Nesse momento já eu não o amava tanto, mas que havia de fazer? Não tinha contracto para o verão e é chie viajar, segundo penso. Viajámos então bem vestidos e tip-top. "Deus está com os que não se ralam", costuma o Fernando dizer. Partimos então, instalando-nos sempre nos melhores hotéis, levando vida grande e o Fernando escreveu para Viena para arranjar dinheiro e para Budapeste. Mas não chegou nada. Então ele disse-me: "Sê um pouco amável para com as pessoas, apoia-te ao teu titulo de condessa e eles terão muita honra em nos tirarem de dificuldades". Isto divertiu-me, como podes pensar, e então armei em condessa e namorisquei um pouco os homens, lamentando-me às vezes, dizendo que tinha preocupações e que as nossas propriedades da Hungria estavam confiscadas. E então esses senhores tiravam as suas carteiras e tornavam-se mais insistentes. O conde aparecia e fingia-se zangado como se os quisesse comer ou bater-se em duelo. Então eles ficavam tranzidos e não diziam palavra a respeito do dinheiro que me tinham emprestado. Ou então abalávamos antes do fim da semana sem pagar a conta. "Mais tarde pagarei", dizia sempre o Fernando. Ao princípio, divertiu-me espantosamente representar esta comédia e ver como as pessoas se
inclinavam diante de mim e do conde e como eles estavam sempre prontos a largar dinheiro, quando a senhora condessa tinha embaraços, ao passo que a pobre Anne Pozwaurek tinha que fazer sei lá o quê, antes que lhe dessem fosse o que fosse. Mas às vezes tinha medo e pensava: isto não pode continuar assim sem que haja empeno. E quando te encontrei aqui, tive receio que toda esta trapalhada fosse descoberta. Já não podia suportar o Fernando e pensava: não é realmente chie da sua parte explorar-me assim. E não fizemos senão brigar e várias vezes me quis ir embora. Então ele lançou-me sobre o velho Lyssenhop e dei-lhe volta à cabeça. E o Fernando disse: "Ficamos aqui, porque encontrámos emfim um estúpido que nos pagará o hotel". É preciso dizer-te que nos últimos tempos não ficávamos em parte alguma mais que dois ou três dias e sempre com nomes diferentes, fugindo depois. Mas, até aqui as coisas não correram mal, só a semana passada é que não tivemos dinheiro nenhum. Então o Petermann impacientou-se e o que aconteceu, não sei eu. Devem ter feito seguir uma denúncia, de qualquer parte, atrás de nós, de modo que nos acharam, a-pesar-do nosso nome de guerra. De-repente, tudo apareceu contra o Fernando, por causa do automóvel; o Sobel de Mariahilferstrasse com as letras e todos os senhores que me emprestaram dinheiro, os donos dos hotéis e o Petermann, todos, até o velho Lyssenhop que sempre foi tão amável. Então, sem mais nem menos, vieram dois polícias prender o Fernando e selar as malas, que levaram. Pode calcular-se um horror assim! Eu estava justamente na casa de banho, ao lado do nosso quarto e ouvi tudo. Vesti-me à pressa e fugi pela janela para a cave do Pequeno Petermann, onde me escondi. Eles ficariam bem admirados se soubessem como a senhora condessa sabe trepar um muro.... Então, durante todo o dia, não saí da cave e só tinha medo que o Eggenhofer me fosse desencantar. Rezei a todos os santos e pensei constantemente: "Ah! se o Bulli cá estivesse, tirava-me de apuros. E não quero ser presa
só por não ter dinheiro! Creio que não é pecado não ter dinheiro." Quando a tempestade rebentou, e toda a gente se apressou a voltar para casa, eu saí então, passando pelas trazeiras do Petermann até aqui, onde ninguém me virá procurar nem me poderá encontrar. Cá estou, aqui fico, e é preciso que o Bulli me salve.
Chegando a este ponto da sua narrativa, ela sacudiu três vezes a cabeça à guisa de afirmação, cruzou as mãos sobre a saia molhada e olhou Hell de frente, com uma expressão de inocência e de confiança tais, que ele ficou desarmado.
- É claro! Cá estás. Ficas, e eu é que te hei-de salvar. E de que maneira, não me dirás?- perguntou preocupado, depois de ter, durante minutos, ruminado no caso.
- Aqui, ninguém virá procurar-me. Nem sequer sabem que nos conhecemos. Fico cá, muito simplesmente, e amanhã às quatro horas e dezoito há um comboio para Viena que eles não vigiam, espero, e no qual tenho probabilidades de poder escapar-me. Deslizo até à estação quando ninguém me vir, ai entre as três e as quatro...
- Sim senhor, bonito. - disse Hell, engolindo a saliva - Então tu contas passar a noite aqui ? Linda situação em que me metes, não há dúvida...
Hell pegou no canivete e, como um garoto, pôs-se a riscar a mesa, voltando a Anica umas costas contrariadas. A chuva continuava a rufar.
- Não é a primeira vez. - disse ela, um pouco mais tarde, apoiando-se-lhe às costas.
- O que é que não é a primeira vez ? - perguntou Hell.
- Não seria a primeira vez que passava à noite contigo ... - murmurou Anica, um pouco mais tímida.
- Pois é precisamente por isso. - explicou Hell, lacònicamente.
Anica esperou um pouco, depois pôs-se a rir com todo o seu rostozinho de porcelana.
- Bulli não está zangado de todo. Bulli tem medo de mim. - declarou ela, radiante.
Hell voltou-se vivamente.
- Medo, não. Nada disso. - declarou com violência a Anica e a si mesmo - Mas é aborrecido pensar em tudo isto que acontece. O sr. conde corre mundo, enche a barriga e engana toda a gente. E nós cansamo-nos a ser banheiros da aristocracia. E depois sou eu que devo valer-te. Sou eu que devo pagar as asneiras do sr. conde. Que vou agora fazer de ti ?
- O que tu quiseres. - disse Anica, pequenina e cheia de vida, sentada na borda da cama.
No fim de contas, a sua atitude nesta derrocada, era corajosa e decente. Estava encharcada, rasgada, mas não choramingava. Pequenas tremuras percorriam-lhe continuamente o corpo, os lábios e o queixo. As mãos molhadas, de esmalte perfumado, não paravam de tremer. Mas ela não ligava importância e sorria a Hell com as suas cinco covinhas ao mesmo tempo. Hell sentia nas mãos uma sensação singularmente terna e compadecida. Pousou uma sobre os cabelos molhados e desfeitos e a outra no rosto de
Anica.
- Anikuschka - murmurou- Que animalzinho imprudente e estúpido tu és!...
Anica interpretou estas palavras no seu verdadeiro sentido, quer dizer, como uma manifestação de amizade, de perdão e de simpatia. O seu lábio inferior pôs-se a tremer com mais força e baixou-se ligeiramente, mas o lábio superior esforçava-se sempre por sorrir. Hell deu-lhe uma palmadinha comovida.
- Pronto, Anica, não chores; é assunto arrumado.
Eu arranjarei tudo.
Anica saltou-lhe ao pescoço e depôs rapidamente alguns beijos violentos naquele rosto. Hell não pôde deixar de sentir uma agradável sensação. Custou-lhe um pouco afastar Anica e fazê-la sentar na borda da cama. Teve que abrir passagem pela frente dela para ir à janela redonda, que abriu completamente.
- Isto é um tanto estreito. - disse ele, incomodado.
E fez sair um pouco de ar do seu peito oprimido. Anica farejou o pequeno aposento e pôs-se a tiritar mais fortemente.
- Tenho frio e estou ensopada. E tenho uma fome de lobo! -disse ela, fixando em Hell um olhar de espectativa.
- Tens fome? Ah sim, tens fome, mas é que não tenho grande coisa para comer. - respondeu Hell, confuso.
Foi ao armário e tirou manteiga, pão e leite.
Assim que Anica se pôs a comer, ele sentou-se a seu lado na borda da cama e seguia, com o olhar, cada bocado prestes a desaparecer entre os dentes brancos e fortes. Lá lhe fugia o jantar! Não pôde deixar de soltar um suspiro. Quando Anica terminou, ele juntou os restos da manteiga, estendeu-os no último pedaço de pão e engoliu tudo precipitadamente. Anica encostou-se contra ele e tentou aconchegar-se no seu ombro, como num ninho.
- Tenho um frio terrível. É preciso tirar estes farrapos molhados. - disse ela, queixosa.
"-Só me faltava isto!" - pensou Hell.
Procurou o seu roupão de banho, mas Resi, a corcunda, tivera o cuidado de o fazer desaparecer para secar.
- Toma, - disse, voltando-lhe as costas - podes embrulhar-te no meu impermeável.
Ouviu Anica fazer ligeiros fru-frus no crepúsculo, atrás de si, emquanto ele metia a cabeça pela janela.
"-Em que diabo de situações estas mulheres nos metem sempre!" - pensava, olhando para a chuva.
Mas, ao mesmo tempo, disse em voz alta:
- Espera: vou buscar água para te fazer chá. Vai aquecer-te.
Anica soltou um grito, dizendo que nem um instante, um só instante, ali ficaria sem ele, que preferia deitar-se ao lago, tanto medo tinha que a descobrissem
e a prendessem; apenas a presença de Hell lhe dava um pouco de calma.
Mas Hell não se deixou enternecer: saiu do cubículo e fechou a porta à chave, atrás de si.
Entretanto, cá fora, a paisagem tinha-se envolvido em nevoeiro; uma chuva fina, fria e persistente caía das nuvens baixas e o mesmo vapor ténue subia do lago em vagas húmidas e flutuantes. Nada de margens nem de montanhas; a bandeira vermelha estava colada, flácida, contra o mastro.
Nestas condições não havia que contar com os banhistas, circunstância que tranquilizava Hell não deixando de o inquietar. Não podia imaginar como se passaria o tempo até às quatro horas e dezoito, com Anica no seu quarto. Cheio de melancolia procurava em vão uma protecção: pensou em May, como numa imagem santa. Que faria ela se procurassem Anica e a encontrassem ao pé de si? Mas não podia abandonar a pobre criatura imprudente. Só o diabo sabia onde aquilo o podia arrastar. Não sem prazer, ele imaginava como faria mergulhar o conde e o trataria mal se alguma vez lhe caísse nas mãos com o seu rosto negro azulado, untado de creme.
Na segunda fila das cabines havia música. Matz estava agarrado à prancha como um pequeno monte de limos e soprava numa harmónica, debaixo de chuva. Hell parou diante dele. com a vazilha cheia de água, na mão, reflectia.
- Matz, - disse-lhe - hoje ninguém virá já tomar banho. Mas tu ficas aqui e prestas atenção. Se alguém, seja quem for, quiser ir a minha casa, tu dirás: O sr. Hell está a dormir. Compreendes?
- Bem. - disse Matz, que fez um sinal afirmativo com a cabeça, sem se interromper.
Quando Hell voltou ao seu quarto, singulares mudanças se tinham dado. Haviam colocado uma corda do teto à janela e todas as roupas de Anica estavam ali estendidas, a secar. O ralo fora fechado e o candeeiro de petróleo aceso; Anica tinha vestido o pijama de Hell
que parecia enorme no seu corpo delicado. Ela estava deitada na cama de campanha, de cigarro na boca. Estendida no leito muito curto, parecia de uma alegria e de um bom humor perfeitos.
- Agora está agradável aqui.- declarou, assim que Hell entrou, fechando de-pressa a porta atrás de si.
- Muito agradável, efectivamente.- murmurou Hell.
Teve uma pequena visão nascida da vertigem: numerosas Anicas em numerosos leitos, e infelizes Hells inclinados sobre elas, de cabeça perdida muito antes das quatro horas da manhã. Anica olhava-o num misto de troça e satisfação, emquanto ele estava diante da sua lamparina de álcool, queimando, por distracção, os dedos nos fósforos.
- Em que pensa o Bulli?-perguntou ela, maliciosa.
Bulli pensava na sua sala das máquinas. Refugiara-se da sedução equívoca daquele quarto, no ruído das fábricas Oluma. Estava farto dessa atmosfera de mulheres, dessas meias penduradas diante dos seus olhos, dessa roupa de seda, de tudo que aquilo tinha de vaporoso, leve, de desejo e sedução, que exibiam diante de si, dia após dia. Teve a sensação que abusavam dele, desse bonito mestre de natação; tocavam piano sobre os seus nervos esfaimados, violentavam-no sem darem por isso, portavam-se com ele de uma forma infame. Refugiava-se nas regiões masculinas. Fugia para a sala das máquinas. Ah como aquilo gritava e assobiava deliciosamente! Como as rodas de aço giravam, como as articulações trabalhavam, como tudo se encadeava engenhosamente, judiciosamente, obra da imaginação dos homens, dirigida por homens, servida por homens. Nesse momento, Hell pensava em todos esses homens com singular simpatia, com uma saudade singular; como eram magnificamente feios com as suas máscaras de suor, os seus músculos e os seus rostos fatigados. Ele tinha saudades, saudades amargas do trabalho que era a sua profissão e a sua pátria. Aqui, as mulheres fariam dele um gato, se aquilo assim continuasse. E a carta que não chegava!
Aqui, os pensamentos deram um salto e transportaram-se para as coisas actuais.
- Penso que tenhas dinheiro para a viagem. disse ele a Anica, oferecendo-lhe o copo de dentes, cheio de chá.
Anica pegou na maleta que estava aos pés da cama e, de testa franzida, pôs-se a examinar o seu múltiplo conteúdo.
- Nem sequer sei o que tenho, trouxe tudo quanto achei na casa de banho. O resto, a gente da polícia levou-o. Se isto não é um roubo!... - disse, rancorosa.
Soltou gritinhos de alegria. O relógio de platina estava lá. E o porte-monnaie, também; tinha-se metido numa pantufa de couro. No poite-monnaie existiam doze schillíngs. A viagem para Viena custava dezanove.
- Tens que me dar sete! - foi a conclusão de Anica.
Hell riu-se.
- Onde queres tu que eu vá buscar sete schillings? - limitou-se a dizer.
Franziu a boca e tomou um ar furioso. Todos os músculos do seu corpo exercitado, até aos dedos dos pés, se contraíram, à força de resistência obstinada. E isso por boas razões. Hell tinha um segredo. Hell não estava assim tão pobre como parecia. É certo que havia muito tempo que renunciava a uma porção de coisas. Os sapatos castanhos estavam rotos e as suas refeições eram outra vez particularmente irregulares. Mas não se encontrava sem dinheiro. Economizara. Na gaveta da sua mesa estava um tesouro, um pequeno capital. Ele economizava para uma excursão à montanha, que devia durar três dias e duas noites. Possuía nove schillings e quarenta e dois gtoschen, ao todo. Preferia deixar-se matar, a dar fosse o que fosse desse dinheiro.
Anica, que queria acariciá-lo, caiu sobre os músculos tensos que, ao tocar, pareciam bolas de ferro, e um beijo que ela lhe deu foi esbarrar contra os dentes cerrados. Como mulher que conhece os homens, renunciou a apanhar dinheiro a esse Bulli, feito ouriço.
- Bem. Irei só até Salzburg. - decidiu, resignada. E havia nela qualquer coisa de uma gata que é tão
elástica que não sente dores quando cai.
No fundo, ela estava feliz. No meio da sua catástrofe, o minuto era-lhe propício e não se importava com o que viria.
Via-se estendida num leito quente, o seu querido Bulli estava ao pé dela, só tinha que estender as mãos para o agarrar; os seus cabelos estavam quási secos e prestes a transformarem-se em verniz negro e sedoso, a sua pele aquecia e, quando tivesse posto um pouco de pó, refloriria como uma rosa de porcelana.
Na igreja das Damas deram seis horas. A chuva sussurrava, fria e regularmente, no teto de zinco. Bulli e Anica beberam chá por um único copo, que sabia a mentol. Bulli domesticou-se um pouco, sentou-se na cama ao lado de Anica. Era como no passado.
- Lembras-te ? - perguntou ela.
Esta pergunta fez começar a série de histórias que tinham todas como estribilho: "Lembras-te?".
- Sim, esse tempo era bom! - concordou Bulli, que se lembrava de tudo.
O tempo passava. Sete horas soaram, depois sete e meia.
Hell estava sentado na borda da cama, friccionando os pés de Anica, que não queriam aquecer de forma alguma. A chuva caía. Às vezes, ouvia-se Matz tocar harmónica. Ouvia-se igualmente a música no Café do Grande Petermann: todos esses tangos e charlestons, escutados a distância, tinham um encanto perigoso.
Oito horas. Anica acariciou a mão de Hell e ele falou da sua invenção.
May Lyssenhop passeava através do hall do hotel, espreitando por cima da Grande Praça. Nos outros dias, Hell aparecia justamente nesse momento mesmo antes do jantar, mas hoje não se via em parte alguma. No Petermann, os boatos corriam surdamente. A sociedade "exclusiva" fazia, em voz baixa, suposições sem nada saber de exacto. O sr. Petermann era a
discrição em pessoa. O casal de condes desaparecera do Petermann em circunstâncias obscuras. De manhã, viram polícias falarem com o porteiro. Ninguém sabia exactamente o que se passava, excepto o sr. Lyssenhop, cuja fronte corava às vezes de cólera sob os cabelos cinzento-ferro.
- Vamos para a mesa. - disse Carla - Hoje não se pode brincar com o Tat, com o humor com que está.
- Tem todas as razões deste mundo, para isso. replicou May.
Nove horas. A canoa a motor tocou. Aparte isto, tudo estava silencioso. Hell e Anica calaram-se. Ela brincava com os cabelos e ele não podia deixar de rir, porque os seus braços saíam, tão pequenos, das grandes mangas do pijama. Anica tinha um grande encanto: esquecia-se facilmente e fazia esquecer. Ao pé dela repousava-se...
May estava no terraço do lago e perscrutava no telescópio as opacidades da noite brumosa.
- Urbano estará na outra margem, ao pé dos Dobbersberg? Andará a treinar-se? Acontecer-lhe-ia alguma coisa? Não se vê nada... - disse ela, inquieta, a Carla, que passeava pelo terraço, também inquieta.
Tat procurava fugir a uma partida de bridge com a mulher do conselheiro íntimo. Secretamente, troçavam dele. Tinha o aspecto tão desamparado sem a encantadora condessa de Sztereny, atrás de quem costumavam sempre vê-lo!...
Quási dez horas. Chovia sem cessar. A aranha do canto apanhou um mosquito e sugou-o como a um biberão. As visões ansiosas de Hell estavam a ponto de se tornarem realidade. Ele ia perder a cabeça: respirava com dificuldade. Debruçou-se sobre a cama e Anica murmurou ao seu ouvido ternuras que lhe aqueceram o sangue como pimenta e sal.
Hell tinha resistido tanto durante essa longa estação tão escabrosa! Iria ceder? Era tão bom deixar-se cair! Sucumbir seria um verdadeiro alívio. Nesse
momento, os braços de Anica fecharam-se sobre ele como uma vaga quente.
- Mas não imagines que gosto de ti. Gosto de outra. Não gosto mesmo nada de ti - murmurou Hell, desesperado - Não quero, não quero, não quero! Virgem santa! S. José!
Esta evocação aos santos patronos, foi tão divertida que Anica pôs-se a rir. Hell, furioso, mordeu a coberta às riscas.
Então, justamente nesse momento de vertigem, bateram à porta. Bateram três pancadas, depois arranharam na madeira e voltaram a bater três pancadas. Anica escondeu a cabeça debaixo da coberta.
- São eles que chegam; vêm buscar-me. - disse em voz abafada, debaixo do edredon.
Hell escutou, de respiração suspensa.
- Quem é? - perguntou, em voz enrouquecida e velada, para a porta.
Tinha a cabeça perdida. Por um nada esqueceria tudo: May, a si próprio e o perigo que ameaçava a imprudente Anne Pozwaurek. Bateram outra vez três pancadas. Hei! voltou a si; mostrava a expressão dos records, o rosto iluminado de um herói. Deu dois passos, passando ao lado das roupas de Anica que balouçaram, fez girar a chave na fechadura, abriu bruscamente a porta e bateu com a cabeça, com toda a força, contra a trave.
- Que deseja?- gritou, sem fôlego, na noite negra, avançando dois punhos protectores na obscuridade, ao encontro dos polícias que vinham prender Anica...
FORA, na escuridão, estava qualquer coisa de muito pequeno; era Matz que, fiel às instruções, tinha esperado no corredor das cabines. Depois, alguma coisa grande, fina, envolvida num casaco, voltava a cabeça, fumando um cigarro. O pequeno clarão ardeu mais forte, depois extinguiu-se como sob a influência de uma respiração ofegante. Além disto mais nada. Nem polícias, nem prisão. Hell passou as mãos trémulas pelos cabelos desalinhados.
- May! - exclamou em voz abafada...
- Não, desta vez engana-se. Sou eu: Carla.- responderam-lhe da escuridão.
- Ah bem, Carla... - disse Hell.
Atrás dele, no quarto, a maldita Anica fazia barulho, embora procurasse amortecer os movimentos. Hell encostou-se à porta e perguntou, perturbado:
- Em que... quero dizer... em que lhe posso ser útil, menina Carla?
- May foi-se embora, assim que soube que você tinha a visita de uma senhora. - disse, depois de duas fumaças.
- Como? ...que visita?... quero dizer... porquê ?... uma senhora?... Não compreendo...
- Perfeitamente. Não o vendo, nós estávamos inquietas a seu respeito, Hell, e viemos saber o que tinha
acontecido. Então topámos com Matz que tocava harmónica. "O sr. Hell está a dormir. - elucidou ele Tem uma senhora lá em casa". May, disse: "É nojento...", deu meia volta e foi-se. Mas eu fiquei; este
caso interessa-me.
- Foi assim. - disse Matz, contente consigo, esperando uma aprovação pelo bom cumprimento dos seus
deveres.
Hell sentiu uma náusea, o seu estômago vazio dava-lhe volta e encostou-se ao tabique, só podendo pensar numa coisa:
"-Cá está um caso intrincado."
Ao mesmo tempo, disse a Matz:
- Vai-te daqui, espécie de idiota!
Carla tirou da algibeira uma lâmpada eléctrica e iluminou o caminho da pequena sombra deslizante. Depois, projectou o cone luminoso sobre o rosto desolado
de Hell.
- Então? -perguntou ela, com uma expressão
compadecida.
- Tenho que dizer a verdade a May. - Gagguejou Hell.
Carla replicou:
- É uma boa idea.
Hell agarrou Carla pelos ombros com as duas mãos que, embora de ferro, não deixavam de tremer, e
reteve-a.
- Sabe quem é a senhora que está em minha
casa? - perguntou ele, encolerizado.
- Tenho um pressentimento. Não será a senhora que deu volta à cabeça a todo o Lago do Amor, a senhora que tirou ao nosso Tat 1.200 schillings? A senhora em honra de quem vigiam a estação?
- Vigiam a estação? - exclamou Anica - Anne Pozwaurek - saindo para fora do quarto.
Tinha-se vestido entretanto e, com o seu vestidinho branco, despedaçado, expôs-se à lâmpada eléctrica de Carla, cuja luz crua lhe salientava sem piedade o mau parecer.
-Jesus, Maria, José! Vigiam a estação! Vêm buscar-me de um momento para o outro! Acabou-se tudo! Pode denunciar-me, menina Carla, mas eles não me apanharão, prefiro deitar-me ao lago. Não quero ser presa. - gemia Anika, juntando as mãos entrelaçadas diante da boca, gesto muito impressionante, mas gesto de criada.
Carla sentiu uma piedade misturada de repulsa.
- Que tenho eu consigo? Porque a hei-de denunciar? De-resto, o lago está muito frio e a senhora não sabe nadar. - disse Carla, extremamente altiva.
Qualquer coisa em Hell começou a ferver; com uma das mãos, empurrou Anica para a cabine e passou a outra pelo braço recalcitrante de Carla, arrastando-a consigo.
- Venha, Carla. - disse, com energia - Tenho que lhe falar, que lhe explicar tudo. Depois, dirá a May o que se passa.
Hell e Carla andaram de um lado para o outro durante bastante tempo, quási meia hora, no corredor das cabines. Hell falou e Carla escutou. Ela ouvia falar de um mundo onde os homens têm fome e as mulheres se dão por dois pares de meias de seda. Ouviu falar em quartos dando para pátios trazeiros, mulheres de porteiros maldosas e miseráveis, candeeiros de petróleo; de fogões não acesos e de rendas de casa por pagar; de leviandade e de camaradagem, dos últimos groschen e das primeiras noites partilhadas. Ouviu falar de casas de penhores, de viúvas em péssima situação, de jovens criaturas sem protecção, cujo único capital é o seu sorriso de porcelana. Do ofício de costureira, tão duro, de tabernas, de estudantes pobres. Não havia sequência em tudo quanto Hell dizia, mas, como o dizia muito sério e o seu braço tremia de emoção, Carla acabou por compreender. E o estribilho de tudo quanto ele dizia era que Anica fora a sua primeira rapariga. E que tinha bom coração. E que um homem que não fosse reconhecido seria um canalha, um miserável.
Hell dirigia-se a Carla num tom tão grave como se ela fosse May. Estava escuro, a chuva rolava sobre o tecto de zinco, a madeira húmida das cabines exalava um cheiro fresco e amargo e, por baixo do sobrado, vinham bater as coleantes vagas do lago. Havia um certo encanto nesta profunda obscuridade. Carla teve de fazer um esforço para sair do seu atordoamento. Acendeu um cigarro e tomou coragem nele. Hell parou e pegou-lhe nas duas mãos.
- Aqui está a verdade. Agora sabe tudo a meu respeito. Diga-o a May. Ajude-me, peço-lhe. - implorava ele, para o minúsculo clarão vermelho que o cigarro espalhava sobre o rosto de Carla.
Ela tinha um ar sério e decidido. Hell achou que, nesta estranha noite de catástrofe, se parecia muito com May. Reflectiu, fumou, parou, avançou. Reflectiu. Calou-se. Fumou.
No quarto, Anica estava sentada, dando a impressão de uma encomenda postal esperando a hora da expedição. Estava muito mal empacotada, com os sapatos e o vestido branco ainda impregnados de humidade. Ela tinha perdido tudo: o amante, os vestidos, o seu título de condessa e o tecto que a cobria. Se aquilo corresse bem, mandavam-na embora com uma chinelinha, um relógio de platina, dois lenços de seda e um capital de doze schillings. Não tinha chapéu, nem casaco, nem ninguém que lhe pertencesse.
Onze horas deram na igreja das Damas. Anica apagou o candeeiro e ficou na obscuridade. Tinha medo que os polícias a viessem buscar.
Muito mais tarde, Hell voltou; abriu a porta com o pé, sem entrar.
- Anda, - disse, severo-pega na maleta, tudo corre bem.
Anica, trémula, seguiu-o pela areia mole e molhada e pela ponte, debaixo da chuva, até à extremidade.
- Tem cuidado, não caias à água. - disse Hell, segurando-lhe a mão fria.
- Que vai fazer o Bulli?- perguntou Anica, ansiosa.
- vou passar-te para a outra margem do lago. Aqui prendiam-te. Carla Lyssenhop vai dar a volta ao lago com o automóvel e ajuda-te a fugir pelo outro lado. - disse ele, avaro de palavras.
Na canoa entrara água e o banco estava molhado. Anica tremia no seu vestidinho de verão, que tanto sofrera desde aquela manhã em que ninguém suspeitava de nada.
- Toma. - disse Hell, tirando a camisola de sport que também estava húmida, mas que conservava o calor do seu corpo.
Anica ajustou-se-lhe como a uma carícia. Silenciosos, atravessaram o lago, remando contra um vento nocturno e adormecido. A passagem foi longa, perderam a noção do tempo, como num sonho.
- Estás zangado ? - perguntou Anica, em certo momento.
- Tenho grandes preocupações. - replicou Hell. Depois, caiu outra vez o silêncio.
Hell remava um trajecto de 1.500 metros, o seu trajecto que, do promontório do Grande Petermann conduzia, em linha recta, à estação de Wurmtal, onde era a paragem dos barcos a motor. Ele conhecia agora o lago, mesmo na mais profunda escuridão... Na outra margem, prendeu a canoa com uma corrente; depois esperaram debaixo das árvores, que pingavam, à beira da estrada que contorna o lago. Minutos depois, um automóvel chegou pela fita clara da estrada e furou a noite com os seus brancos buracos de luz. Carla vinha ao volante: era o carro cinzento dos Lyssenhop e Carla ria, sob o seu capacete de couro, pois divertia-a pregar aquela partida ao Tat, apaixonado e ludibriado.
- Suba. - disse ela, sem cerimónia - vou levá-la à estação de Salzfelden. Tem tempo de tomar o comboio da meia-noite.
Anica, que não sabia o que lhe acontecia, subiu para o automóvel. Hell saltou para o lado de Carla e o ruído do auto afastou-se ao longo da margem do lago, à borda do qual os sapos faziam ouvir o seu coaxar queixoso, debaixo da chuva.
Árvores, telhados, floresta, negro sobre negro, curvas da estrada, montões de pedra, pinheiros novos destilando resina, vacas dormindo no prado adormecido, tudo é transposto pelo carro, que não dorme. A casa de um guarda da linha, uma lanterna, uma ponte, uma aldeia. Um prédio com varandas aparece na luz, depois mergulha na sombra, uma igreja por trás das árvores, cheiro a gasolina e o aroma de jardins de camponeses. O carro pára.
- Aqui está a estação. - disse Carla - Fique ao pé do carro, Hell. vou tratar de instalar a senhora no comboio.
Anica saiu do carro; estava terrivelmente fatigada e sentia-se muito abandonada. Mas fez a diligência por sorrir. Quisera despedir-se do Bulli, mas não se apresentara ocasião. Ah como estava agradável na caminha de campanha!...
- Adeus, Bulli.
Ela voltou-se mais uma vez e desapareceu sob a lanterna solitária da entrada da estação. Carla seguiu-a como um guarda. Hell sentiu uma certa emoção subir-lhe à garganta, emquanto seguia com os olhos o pequeno vulto ligeiro que iam pôr em segurança. No fim de contas fora Anica a sua primeira amiguinha, que mandavam assim para um mundo cruel.
- Adeus. - disse ele, de-repente.
Mas ela já não ouviu. Um pouco mais tarde, o comboio chegou, silvando, pela subida, tomando fôlego durante os dois minutos regulamentares e, asmático, partiu, dando-se grandes ares. Carla saiu da estação e subiu para o automóvel.
- Pronto. - disse - Tudo correu bem. Tirei-lhe um bilhete até Viena e dei-lhe algum dinheiro para miudezas. Isto entrará nas contas do Tat.
- Muito obrigado.
- De nada.
Trajecto silencioso na obscuridade. Carla, parecia ter o diabo no corpo. Meteu a segunda velocidade. Atirou-se com o carro, que derrapou na estrada molhada,
fê-lo guinchar nas curvas, tomou bruscamente a descida para a margem do lago, numa corrida vertiginosa.
- Mas que é isso ? - gritou-lhe Hell, ao ouvido.
- Quero defender-me de mim mesma! - replicou Carla, gritando também.
- Porquê?
- Não desconfias? - perguntou ela, rindo
O pequeno castelo de Dobbersberg, com o seu parque, passou rapidamente ao lado deles; depois a estação de Wurmtal e a margem do lago, coberta de caniços. Um safanão brusco. Travão. Paragem. Hell caiu sobre Carla, mordendo a língua.
- Que é isto agora? Que aconteceu, meu Deus?
- perguntou ele, ennervado.
- Não me faças perguntas tão estúpidas, meu rapaz...-disse Carla, impaciente e surdamente irritadaSupõe que sou um pouco doida e mais nada. Esta história emocionou-me. Foi uma linda partida que pregámos ao Tat: raptar-lhe uma pessoa destas no seu próprio carro. Sou um bocado maluca, não é verdade? Pelo amor de Deus, diga alguma coisa, Hell, será você de papelão?
- Que quer que eu diga, Carla? Quer que eu guie agora? Ou quê?
- Diga ao menos: obrigado. Deus do céu, que homem! Foi por você que eu fiz isto. Ouça bem, unicamente por si. Faça qualquer coisa. Não fique ao meu lado como uma estátua!
- Sim... De-facto... evidentemente... você foi espantosa. Obrigado, muito obrigado...- gaguejou Hell.
O carro tremia, o motor trabalhava e Carla parecia inimaginàvelmente agitada.
- Quero que tu digas: Carla, és um tipo fantasticamente fixe.
- Pois és, Carla. És um tipo fantasticamente fixe. Isso é verdade. - disse Hell, pousando a mão sobre a luva de couro que estava ao volante.
Carla escutava avidamente, mas isso não a sossegou.
- Foi unicamente por si que o fiz... - murmurou ela, inquieta - Você não calcula até que ponto eu sou fixe, Hell. - acrescentou ainda.
Pobre Hell. Sentia-se tão fatigado! Estava como que vazio e, além disso, tinha muita fome. Gelava, naquela corrida veloz, sem a camisola. Sentia uma torturante mágoa ao pensar que May tinha dito: "É nojento!". Passava da meia-noite. Teria querido estar no seu quarto e na sua cama muito curta. Mas o diabo transplantara-o para aqui, num carro estranho que, tarde, de noite, tinha parado à borda do lago, carregado com esta Carla lunática e estranhamente agitada.
De súbito, ela tirou as mãos do volante, enluvadas de couro, lançou-as em volta do pescoço de Hell e apertou contra os seus lábios uma boca de donzela ingénua. Havia nesse gesto muito de paixão e muito de inocência.
"-Pronto!"- pensou Hell, cheio de receio e de raiva.
Por pura delicadeza, decidiu-se a uma contra-pressão. Mas foi mais uma pancada do que um beijo. Carla desprendeu-se logo dele.
- Tu só pensas em May, evidentemente! - disse ela, olhando-o nos olhos.
- Evidentemente, que penso em May. - replicou ele, furioso.
- Maluco. Nós somos todos malucos. - acrescentou Carla.
Depois puseram-se a caminho, sem dizer palavra, até à estação do Lago do Amor, diante da qual, dois polícias silenciosos, estavam plantados, na noite negra.
CHOVEU durante três dias. O passeio do lago estava deserto. O banho estava deserto. Os banhistas de grande distinção, que se tinham instalado no Grande Petermann, como o sr. director Wucherpfennig, Boby ou a família Lyssenhop, não saíam, conservavam-se invisíveis. Tanto pior. Hell circulava, assobiando. Fazia como se o tempo estivesse bom e como se ele se encontrasse nas melhores relações com May. Várias vezes ao dia saía do balneário e ia até à aldeia.
- vou jantar... - dizia do alto da sua grandeza ao sr. Birndl, que passeava em frente do postigo da caixa.
Mas ele não fazia nada, não ia jantar nem ao Grande Petermann nem à estalagem Schwoisshackel: estrelava ovos em casa, numa lamparina de álcool. Corria ao correio e regressava de mãos vazias. Pensativo, voltava e tornava a voltar entre os dedos a medalha que tinha ganho na sua corrida. Fez os seus 1.500 metros a nado, embora o lago estivesse frio e agitado. Levou
23 m. e 58 s. o que não podia ser qualificado de bom tempo. Voltou ao correio. Nada. Parou em frente do Grande Petermann, assobiando. Nada. Tomou um ar despreocupado, procurou dinheiro numa gaveta da mesa, tocou no capital inviolável e foi até ao Café Petermann onde, nos dias de chuva, os banhistas de distinção tinham por hábito retinir-se. Nada de May. Hell
tamborilou em cima da mesa, acompanhando a assobio as melodias banais tocadas por uma pequena orquestra.
- Então Hell, está assim de tão bom humor? perguntou Carla, passando ao lado dele.
O casal Mayreder tomou lugar à sua mesa.
- Santo Deus, como está bronzeado, sr. Helll exclamou a sr.a Mayreder, contemplando-lhe o rosto com ar sonhador.
Ele estava marcado com engraçadas e finas linhas brancas no sítio onde as rugas da testa não permitiam que o sol entrasse. Hell pagou e despediu-se. Foi ao correio.
Ao terceiro dia, entregaram-lhe uma carta. Era uma carta imponente e vinha registada. A emoção agarrou Hell pela garganta, quando assinou o registo e tomou posse da carta.
- Veja, cá está ela. - disse a empregada, que se sentia solidária com todas as impaciências e esperanças de Hell.
O rapaz rasgou o sobrescrito e pôs-se a ler a carta mesmo à entrada do correio, emquanto o empurravam de todos os lados. Primeiro, viu tudo branco, depois verde, depois encarnado-vivo. Engoliu várias vezes a saliva, meteu, num movimento brusco, a carta no bolso e foi-se embora através da grande praça, voltando para o seu cubículo. O seu andar era hirto e as mãos tombavam-lhe, singularmente flácidas e vazias. Na cabine tornou a ler a carta. Uma feia e maldosa carta, uma carta absolutamente detestável. Hell sentou-se e fixou o vácuo. Atirou-se para cima da sua pequena cama. As pessoas sãs reagem, adormecendo, contra uma dor demasiado forte para poder ser suportada. Hell dormiu e o benefício deste anestésico foi-lhe concedido. Quando acordou, ainda lhe doía, mas a maior queimadura tinha passado. Hell sentia uma necessidade de actividade. Chovia sempre. O lago estava muito agitado, para que pudesse nadar. Tirou os sapatos e pôs-se a remendar as solas rotas; o empedrado do Lago das Damas era cortante, mortal, para os sapatos baratos de doze schillings.
Impossível fazer com aquilo uma excursão à montanha; de-resto, tudo parecia estragado, acabado para sempre.visi
Hell olhou à sua volta com uma expressão de cólera furiosa, tentando fazer face à má fortuna. Encontrou o seu pijama com um grande buraco na manga, datando da visita de Anne Pozwaurek. Agarrou no pijama e na sua pequena caixa de costura, sentou-se no limiar da porta, ao lado da goteira, e pôs-se a consertar a sua dor com uma linha prodigiosamente grande.
Foi assim que May o encontrou, quando veio, um pouco depois das três horas, passear na areia molhada, de cigarro na boca, afectando um ar despreocupado.
Encontrava-se em traje de automobilista, com casaco e boné de couro; o cinto desatado pendia dos dois lados e ela estava inteiramente coberta de gotinhas. Pareceu a Hell um pouco mudada, gelada, ou antes, fatigada de não dormir, quando veio encostar-se perto dele, contra a trave, metendo as mãos nas algibeiras do casaco. Hell viu tudo, embora se obstinasse em não olhar.
- bom dia, Urbano.
- bom dia, May.
- Como vai isso?
- Menos mal.
Hell continuou a coser. May deitou fora o cigarro, apagando-o com o pé. Depois, tomou alento.
- Vim para te dizer que a nossa excursão à montanha já não se pode fazer. - disse ela, a seguir.
Os seus nervos estavam enfraquecidos pelas últimas semanas.
- É pena. - respondeu Hell, somente.
- É verdade, é pena. Silêncio.
Hell voltou a coser.
- Julguei que a Carla te tivesse explicado tudo. Imaginei que tivesses confiança em mim.- murmurou Se não ... tanto pior. Então, acabou-se a excursão ? É pena...
- Isso é outro assunto. - disse May, apoiando-se nas algibeiras do casaco - Tornaremos a falar, outra vez, nessa história da mulher. De momento, venho apenas dizer-te que partimos.
- Partem? Porquê? Quando?-gritou Hell, aflito.
- Daqui a pouco. Imediatamente. Assim que o Tat tiver acabado de fazer a mala. O motorista já está a meter gasolina. Tat quer partir. Tat já não deseja ficar. Essa mulher comprometeu-o; o escândalo do hotel foi muito grande. E depois, está sempre a chover e ele quere ir-se embora. É por isso que a nossa excursão não se pode fazer.
A voz de May tinha-se posto a tremer. Sentiu as pestanas húmidas de lágrimas e apressou-se a acender um segundo cigarro. Hell nem mesmo levantou os olhos. Continuou a coser, sem ver, e com uma rapidez vertiginosa. Sentia a maçã de Adão entrar-lhe pela garganta.
- Ah! sim, partes então? E agora tudo acabou. Acaboul E eu só tenho que ficar para aqui, de mãos vazias... - disse ele, numa voz de baixo, rouca, pouco habitual.
- Mas não, quem te diz isso ? Evidentemente que é arreliador termos de partir assim tão de-pressa e justamente no momento em que estou zangada contigo. Porque eu gosto de ti, Urbano, é verdade. E isto não acabou. Que idea: acabar. Daqui a quatro semanas irás a Berlim e lá tudo se passará melhor, tudo se arranjará.
- Oh! Não! - disse Hell, obstinado, sacudindo a cabeça.
- Ora vamos, meu filho... olha ao menos para mim ... Urbano ...
- Nada disso, - obstinou-se Hell - nada se arranjará. Nada correrá melhor. Tudo está pior do que nunca e eu não irei a Berlim. Já não corro no H. Sch. C. Retiraram-me a licença, desclassificaram-me.
- Pelo amor de Deus, isso é possível ? Desclassificado? Por causa de umas lições de natação aqui? Mas é horrível. E por quanto tempo?
- Seis meses. Mas eles verão se isso lhes dará sorte. Vão vê-las boas. Hão-de procurar muito, antes de arranjarem um que lhes faça 1.500 metros a nado em 20 minutos e 13 segundos. Que percam todo o seu crédito, esses senhores do Clube Áustria. Peço a minha demissão pura e simplesmente. Aqui tens o que faço a esses senhores da desclassificação! Vês, May, é assim que se começa, é o começo do fim. Luta a gente com toda a força para se manter ao de cima de água, tentando ficar-se da melhor maneira possível, e eis que nos dão uma mocada na cabeça. Então, pronto, tomba-se. Não sou choramingão, nunca me queixei e só eu sei o que me tem custado a desembaraçar-me! Ninguém me viu de mau humor, melancólico e descontente. Ninguém pôde perceber nunca, em que disposições eu estou: se me sinto fatigado, se tenho fome ou outra coisa qualquer. E tratam-me desta forma: desclassificam-me! E ainda por cima tu vais-te embora e eu fico só, com toda esta porcaria ... Pois bem, abandono, eis tudo. Desclassifiquem-me o que quiserem, deixem-me ir ao fundo. Bem. Muito bem. Não sou o único nos tempos que vão correndo...
May deixou passar um certo intervalo sobre esta explosão. Aproximou-se de Hell, tirou a mão do bolso do casaco e passou-a pelos cabelos húmidos. com um olhar vago e perscrutador ao mesmo tempo, contemplou a água que caía da goteira. Vendo que Hell não dizia mais nada, mas, abandonando a costura, segurava a cabeça entre as mãos, ela sentou-se a seu lado na soleira da porta.
- Bem, agora vem comigo falar ao Tat.
- Que queres que lhe diga?
- Fala-lhe, anda. Podes ter confiança no Tat. É certo que neste momento o seu humor não está cor de rosa, mas fala-lhe, ainda assim. Conta-lhe a tua invenção, tenho a certeza que o interessará.
- E tu acreditas, May ?
- Eu ? Oh! eu ... que importa ? - disse May, inexperiente em mentiras - Evidentemente, eu acredito.
- Pois bem, às vezes quem não acredita sou eu. Vês, May, isto é o pior de tudo. Às vezes, dou a mim próprio o efeito de um charlatão, de um gracejador, com a minha invenção. Isto já dura há muito sem haver nada de novo. Preciso de repetir constantemente a mim próprio: não, tu não mentes, tu descobriste realmente qualquer coisa de verdadeiramente bom e tudo acabará por se arranjar.
- Então, vês ? Anda de-pressa falar ao Tat. Mas avia-te...
De-repente, Hell atirou o seu pijama em voo planado para um canto e, sem transição alguma, o seu sentimento fez explosão e May, admirada, encontrou-se presa num abraço que a deixou sem respiração e incapaz de se dominar. O que ele gaguejou entre as duas bocas, como palavras apaixonadas, ternuras furiosas, promessas desesperadas, mal se compreendia. Ela teve a sensação obscura e, no entanto, bastante agradável, de ter alguns membros amachucados, parecia-lhe que um gigante todo de ferro a comia e engolia inteira.
- Que tens, meu pequeno?- gaguejou, assim que pôde respirar.
- É preciso dizer ao teu Tat? Será preciso dizer-lhe que gosto de ti como um louco, como um idiota? É preciso dizer-lhe que quero ter-te, ainda que acabe o mundo? Que naufrago se não o conseguir ? É preciso dizer-lhe isto ?
- Não. - murmurou May, sorridente, feliz.
- Será preciso dizer-lhe que seremos felizes os dois, May? Falar dos nossos castelos no ar? Que te tenho e não te largo e que me é indiferente que me queiras mal ou não ? Que não te cedo a ninguém, que para isso seria preciso cortarem-me as mãos e que nenhum Tat do mundo tem nada que ver com isto, se nós estamos de acordo ? Será preciso dizer-lho ?
- Não, não meu filho... tu és pateta... não, não meu querido ...
May, ainda toda alvoroçada e tonta, estava sentada a seus pés, com o boné de couro às três pancadas na
cabeça. Hell afastou-se com tanto esforço como se estivesse soldado a ela; levantou-se, espreguiçou-se.
- Achas que ponha o fato melhor ? - perguntou, muito razoavelmente.
- Não, não faças partes: vai como estás, mas de-pressa. - replicou May, entre o riso e as lágrimas.
Hell calçou os sapatos castanhos, rotos, e passou a mão pelos cabelos em desordem.
- Vamos. - disse com ar decidido, como quem parte para uma corrida.
O sr. Lyssenhop estava sentado em cima da mala que, um pouco cheia de mais, não se queria fechar, quando May entrou, vestida de automobilista, de cigarro na boca e mãos nas algibeiras.
- Um instante, Tat: o Urbano queria falar-te.
- Quem ?
- Urbano. Urbano Hell, o dr. Hell... do balneário ... É que nós queremos casar.
- Ah! bem. És muito amável, participando-mo. Vocês não perdem tempo com cerimónias, não é verdade?
- Porquê, Tat ? Isto podia ser mais cerimonioso, mas já que resolveste subitamente a partida, é preciso que o resto seja feito também de-pressa. Nós estamos apressados.
- Perfeito. Se estão assim tão apressados, manda-o entrar. - disse Tat, não sem bom humor.
Hell entrou com expressão decidida. May pôs-se à porta como se estivesse de guarda, e esperou.
- bom dia, sr. Hell. - disse Tat - Os negócios hoje vão mal, an ? A loja está, com certeza, vazia.
- Efectivamente... - replicou Hell, acanhado. Tinha tomado uma posição de partida como quem
vai para uma corrida; estava quási torcido à força de tensão interior.
- Quer fazer-me o favor de fechar esta mala por mim? Eu não consigo. - disse Tat.
Urbano fechou a mala, de-repente. Estava carregado de forças sobrehumanas, como um dínamo.
Exercéu simplesmente uma pressão com dois dedos, na mala, e a fechadura fechou. Depois, todos ficaram calados.
- Bem, fale à vontade. - disse Tat, sentando-se e oferecendo uma cadeira a Hell.
- Hum ... hum ... - disse Hell.
May arranhava nas algibeiras do casaco.
- Fuma?
- Não, obrigado.
- Um licor?
- Não, obrigado. Silêncio.
- Vamos, fale,- disse Tat, fazendo tocar o seu relógio de repetição.
Ouviram-se quatro pancadas retinir pelo quarto. Hell tomou uma resolução.
- Pois bem, tenho de casar com sua filha... disse Hell.
E estava de tal forma agitado, que isto soou como uma grosseria.
- com licença: de qual se trata?-perguntou o sr. Lyssenhop.
- De May.
- Ah! bom. Cá está a May. - disse Tat, examinando com o olhar a rapariga vestida de couro que estava à porta - Pois bem, este senhor quer casar contigo, May. E tu, também queres casar com ele?
- Sim, Tat, absolutamente.
O sr. Lyssenhop examinou as unhas dos dedos. Até ali tinha dado à conversa um ar meio brincalhão; agora tomou um tom sério.
- Meu caro sr. Hell: -disse ele-compreenda-me bem. Eu não sou um tirano de comédia à moda antiga e as minhas filhas vivem, mais ou menos, sob a sua própria responsabilidade. Elas têm-me incutido suficientemente o princípio de que a indulgência é a única virtude própria da geração antiga, para conseguir fazer-se amar. Vejamos: se eu tivesse um filho, minhas filhas podiam casar com quem quisessem e fazer
o que lhes apetecesse, isso não teria importância. Mas como estas raparigas em duplicado, são tudo quanto possuo como filhos, é muito importante saber quem elas me trazem. Trata-se da raça, da família, de tudo, numa palavra. Trabalho numa obra que é toda a minha vida, não sei se ouviu falar dela: é a Bewamag. May há-de explicar-lhe melhor do que eu o que isso significa. Ela trabalha, de-resto, muito razoavelmente, desde os dezanove anos. E se o meu futuro genro deve um dia tomar conta da fábrica, eu devo, evidentemente, reservar-me o direito de oposição. Não basta ter bonitos olhos e tudo quanto agrada às senhoras. Falei lealmente, May?
- com certeza, Tat.
- Agora é a sua vez de falar. Enumere-me com toda a franqueza as suas qualidades positivas. Nada de modéstia, se faz favor.
Hell contemplou as biqueiras dos sapatos... Teve uma desagradável consciência de si, ali sentado com as suas velhas calças de sport, de bombazina, e a camisa de flanela, gasta pela lavagem. A camisola tinha ido com Anica.
- Tenho uma excelente saúde ... - disse ele, em voz velada - Sou relativamente novo, quási vinte e seis anos. E sou bastante forte, não me vergo à fadiga nem ao trabalho. E preciso dizer-lhe que tenho a paixão do trabalho ...
- Hum... - disse o sr. Lyssenhop, não sem benevolência, esperando o seguimento.
- Sou de boa família. Meu pai morreu há muito; era secretário geral da prefeitura. Não tenho irmão nem irmã. Minha mãi ainda vive...
- Ganhei para o Áustria o record dos 200 metros, natação livre. - acrescentou, de-repente.
Depois pôs-se a reflectir. Tat esperava.
- Não tenho fortuna.- continuou Hell, com decisão. Aproveitou essa circunstância para declarar os 36
groschen do seu bolso e os 7 schillings da gaveta da sua mesa. Dito isto, calou-se. May torcia as mãos nas algibeiras do casaco.
- Ah! não tem fortuna... nos nossos dias há muita gente assim. Mas ganha dinheiro? Ou as lições de natação são para si apenas um sport ? - perguntou Tat, um pouco trocista.
- Perfeitamente, é assim. É um pequeno ... emfim, um pequeno extra para o tempo das férias. A minha profissão é engenheiro.
- Ah! prefiro isso. Construção de máquinas?
- Entendo também alguma coisa de máquinas. Evidentemente. Fiz o meu doutoramento em química. Mas para ter o diploma de engenheiro é preciso conhecer igualmente o que respeita à construção de máquinas, o que, de-resto, me interessa pessoalmente. Nas fábricas Oluma fiz mesmo a uma máquina um pequeno aperfeiçoamento que ainda funciona...
- Ah! Trabalhou nas fábricas Oluma?
- Trabalhei, trabalhei, mas agora, reduziram o pessoal e despediram imensa gente...
- A Oluma está muito em baixo, meu caro. Quem se não salvou a tempo com as acções... - disse o sr. Lissenhop, dirigindo-se por engano a Hell como a um homem da sua categoria - Que espécie de melhoramento foi ? Pode saber-se ou é segredo ?
- É isto. - disse ele, tirando um lápis da algibeira
- Perdão. - acrescentou, pegando na conta do hotel que estava em cima da mesa e pondo-se a desenhar à margem - Imagine que isto é uma máquina de fazer pregas; muni-a... vê... aqui... de um segundo dispositivo. E daqui que a força é transmitida. Desta forma é possível trabalhar a peça de dois lados, simultaneamente. É uma economia que conta...
May olhou para as duas cabeças que, calmas e cheias de zelo, se inclinavam sobre o papel. Haviam-se esquecido dela. Tat tinha um ar muito interessado. E Urbano... Urbano parecia-lhe menos familiar; já não era o seu "pequeno, o seu amado das noites de lua, o rapaz pobre que se podia enganar". É singular como os homens mudam quando se trata da sua profissão! Todos os directores, engenheiros-chefes e contra-mestres
da Bewamag tinham o mesmo ar. May via já o seu Hell entre eles. Uma vaga quente de alegria, misturada de respeito, percorreu-a. Tat pegou na conta do hotel (figuravam nela algumas garrafas de champagne para o casal aristocrata) ..e guardou-a.
- Hum... - rosnou ele - Isso parece-me plausível. Não está mal de todo. Então despediram-no? E agora ?
- Ora... - disse Hell, encolhendo os ombros. Tat, em cujo charuto se tinha formado, emquanto
esperava, um cone de cinza de um comprimento desmedido, o que, segundo a experiência de May, era indício de muita atenção, tornou-se pensativo.
--Escute, sr. Hell:-disse ele-não tenho nenhuma intenção de o magoar, mas consinta que lhe fale com inteira franqueza. Gostaria que minhas filhas casassem com homens ricos. Raparigas como as minhas, as filhas do velho Lyssenhop, estão mais ou menos expostas ao perigo de casarem por causa do seu dinheiro. E esse perigo fica diminuído se o homem também for rico, se não precisar. Fica diminuído, eu não disse excluído. Como vê, meu caro Hell, um pouco de desconfiança é natural em nós, e nunca é bastante, creia. Se eu lhe contasse o que nos pode acontecer, a nós, no entanto, afeitos a conhecer os homens? E isto nos meios "exclusivos"... Mas deixemos...
Lançou um olhar tímido para May que, maliciosa, piscou os olhos. A sua fronte, sob os cabelos grisalhos, penteados para trás, corou e continuou vivamente, não sem uma certa irritação:
- Eu pergunto a mim mesmo: este jovem dr. Hell não quererá muito ao mesmo tempo ? Quererá May imediatamente e o velho Lyssenhop como sogro? Não será já muito bom para começar, oferecerem-lhe uma pequena situação que, eventualmente e dentro de limites modestos, se pudesse encontrar em qualquer parte ?
- Parece-me, Tat, que estás abusando da situação.
- disse May, da porta.
Hell só compreendeu lentamente as punhaladas ocultas do discurso de Lyssenhop; abriu a boca, as suas orelhas coraram, muito tarde, de cólera.
- Dava a minha vida para ter um emprego, disse ele-e não sou com certeza exigente. Mas quanto a ter pensado no dinheiro ou em qualquer coisa nesse género... isso nunca na vida. Longe de mim tal idéia.
- É um erro. É preciso pensar... Como quer viver com May, sem dinheiro ?
Subitamente, Hell perdeu a paciência e o domínio. Batendo com o punho na mesa, deu um salto.
- Aqui tens. - gritou ele na cara de May - Eu não te tinha dito, que não devia vir com os sapatos rotos falar com o teu Tat? Aqui estou numa bonita situação. Que queres que eu diga ao teu Tat? "Fala ao Tat... pronto, já está feita agora a tua vontade. Bonita conversa. O teu Tat não me acredita e ainda por cima tem muitíssima razão...
O sr. Lyssenhop contemplou com toda a tranquilidade Hell, agitado, que gesticulava com as suas grandes mãos.
"- São muito esquisitos os rapazes de hoje, pensava ele - mas também têm qualidades. São fáceis de penetrar. Bonito rapaz, de carácter recto, este que May foi desencantar..."
- Urbano esqueceu o essencial, Tat. - disse May, com a sua voz profunda, sempre ao pé da porta - Ele fez uma invenção, que está destinada a um grande futuro. Assim que as formalidades estejam cumpridas, Hell triunfará. Eu também não sou uma idiota e sei muito bem quem posso trazer-te. Será uma questão de dias ou de semanas, que Hell levará a tirar-se de apuros. Não é verdade, Urbano ?
- Perfeitamente. Assim o espero. com certeza.- disse Hell.
- Que invenção? Que formalidades? Qualquer coisa relativa à técnica de máquinas?
- O Tat, tem um único ponto de vista, compreendes? - disse May, dando-lhe coragem - Só tem
máquinas na cabeça. Mas há outras coisas de futuro, não é verdade, Urbano?
- com certeza, certamente. Trata-se de um film incombustível, muito barato. Numa palavra: descobri o film incombustível. - declarou Hell.
Tat envolveu-se um pouco no fumo do charuto e não pareceu impressionado.
- Mas isso já existe. - disse apenas.
Hell pôs-se a fazer uma descrição detalhada. Começou por cruzar a perna com certo chie, mas os seus sapatos ficavam expostos a uma luz desvantajosa e deixou-os, furtivamente, cair; as orelhas puseram-se-lhe encarnadas, a testa ardente cobriu-se de inúmeras rugas e encheu Tat com um fluxo de termos técnicos de foto-química. O film incombustível, barato, era uma necessidade absoluta. Devia triunfar. O mundo inteiro reclamava-o a altos gritos. No meio de múltiplas experiências em inúmeros sítios, em todas as fábricas especializadas, trabalhavam para a sua descoberta. Tinham ensaiado a celulose acetilada, o film em viscose, o film em gelatina. Tudo ficava muito caro. Nada correspondia ao fim em vista. Mas ele, Hell, tinha-o achado. Trabalhara durante três anos sobre bases diferentes, partindo de um ponto de vista diverso. O professor Mõller, o famoso Mõller dos colóides, seu professor, tinha-o ajudado, pondo à sua disposição um pequeno laboratório. Havia-o tomado como assistente, emquanto ele fazia os seus estudos, e deixou-o trabalhar na estação de experiências do Instituto técnico, até que a coisa chegou a bom fim. E agora já estava. Tinha achado o film em papel incombustível; existia agora o film barato que o mundo inteiro reclamava. E tinha este e este ar. As suas vantagens eram tais e tais, os seus preços de revenda estes e aqueles. Tinha-se experimentado aqui e acolá. Este e aquele haviam confirmado o seu valor e utilidade. Hell tinha-se apoderado de um jornal e escrevia com extrema velocidade colunas de algarismos, de fórmulas, de cálculos. Tudo estava tão bem estabelecido na sua
cabeça, aprofundado e esmiuçado tanta vez, tudo isso que respeitava à sua invenção! Esquecera completamente May e Lyssenhop; para ele, já não era o pai de May, mas um especialista proprietário de fábricas. Esse jovem Urbano Hell, com o seu ar aberto e transparente, tinha estado tanto tempo fechado em si mesmo! Podia emfim falar do que mais lhe tocava o coração. Podia emfim expandir tudo o que repousava no mais profundo de si mesmo como capacidade de trabalho. May não compreendia uma palavra de todo o seu discurso, só se podia admirar e alegrar-se. Tat tinha começado por consultar o relógio, baloiçara as pernas e sorrira furtivamente, como homem de negócios, experiente e reservado. Depois, entrou no jogo. Tudo aquilo começava a interessá-lo também.
- Que diabo, - pensou ele - este rapaz não é estúpido. Tem boa possibilidade de triunfar.
Deram quatro horas e meia, depois cinco. Regularmente, todos os dez minutos, o barco a motor tocava no lago, dobrando o Grande Petermann. Na Praça Grande o automóvel cinzento esperava e o motorista buzinava de vez em quando. Carla, ennervada, dançava através dos corredores.
Se May casa com este rapaz, Carla irá passar dois anos na Inglaterra, tinha ela resolvido.
Não se morria de um amor infeliz, graças a Deus, mas não era indispensável assistir e ver os outros comerem bife, emquanto se morria de fome.
Não faltava muito para as cinco e meia quando Hell terminou a sua descrição. Estava a suar. A testa, o pescoço e até as mãos, estavam húmidas. May continuava sempre à porta, sem sentir fadiga, hirta como um alabardeiro. Tat fumava o seu terceiro charuto. Esperou um pouco, depois de Hell ter terminado, reflectindo profundamente.
- Meu caro Hell.- disse a seguir, tomando a sua máscara de homem de negócios - Meu caro Hell: não percebo nada dessas coisas. Talvez seja bom, talvez seja mau. Talvez me tenha contado a verdade, talvez
tenha mentido. Talvez veja com justeza, talvez se tenha enganado. Seja como for, eu não posso viver de castelos no ar. Faço-lhe uma proposta: dê-me a sua documentação e tratarei de saber se o negócio vale qualquer coisa e como podemos fazê-lo frutificar. Para começar, tenho que o submeter ao nosso escritório de patentes. Depois se verá.
- Combinado.- disse Hell, com certo orgulho Era precisamente o que eu esperava. Aqui está do que se trata: alguém está a ocupar-se do negócio ...
- Alguém? Quem?
- Um engenheiro-consultor. Tem tudo nas mãos e fará o que for preciso.
- Tudo nas mãos? Tudo quê?
- Ora... tudo. O invento, os cálculos, as experiências, etc...
- Ah. bom. Mas conservou as cópias, calculo?
- com certeza, certamente. Quero dizer, no fundo, para quê? Tenho tudo na cabeça. - disse Hell, com candura.
May, à porta, fez um movimento. O sr. Lyssenhop reteve uma observação e continuou:
- Foi sem dúvida o professor Mõller ou Mtíller, não sei, que lhe indicou esse engenheiro-consultor? perguntou.
- Ah! Não. Esses de Mõller pedem todos adiantamentos e assim não podemos marchar. O meu é um rapaz novo, não muito mais velho do que eu. Rapaz muito amável que tem futuro. Ele é que se encarregou...
- Ah .sim? E quais são as suas últimas notícias?
- Últimas notícias?... bem sabe... há muito tempo que as não tenho. Na sua última carta, acalmava-me, dizendo que era preciso ter paciência, que ele gastava o seu tempo na repartição de patentes. Depois, foi para a América e há muito tempo que não tenho notícias. Ele tem muito que fazer...
- Parece... E conhece-o a fundo? Foi-lhe seriamente recomendado?
- Mas sim, conheço-o muito bem. Ia todos os dias a um Café ao lado da Escola Politécnica. Joguei muitas vezes o bilhar com ele. Foi assim que entrámos em conversa e ele encarregou-se do negócio. Foi o meu amigo Hõpfner, do Club Áustria S. e R. C. que mo apresentou.
O sr. Lyssenhop não acreditava nos seus ouvidos.
- Esse engenheiro-consultor tem um gabinete que progride bem? - perguntou, fracamente.
- Sim... quero dizer, de momento não tem. com esta penúria de alojamentos, percebe... e ele anda sempre a viajar. Ultimamente esteve na América.
Os olhos de Lyssenhop avermelharam-se. Tinha no globo do olho numerosas veias pequeninas, indicando ligeiramente uma esclerose, que se encheram de sangue.
- Como se chama esse homem? - perguntou ele, suave.
- Meyer. - replicou Hell.
A esta palavra, a este nome sem pretensão e tão vulgar, o sr. Lyssenhop explodiu. Ficou vermelho, a ponto de se tornar inquietante, abafou quási e parecia inchado. Tossiu.
- Senhor, - disse ele -senhor, mas você é um perfeito idiota? May, este homem é um idiota? Tu trazes-me... tu ousas trazer-me um idiota consumado? Ele fez uma invenção! Tem um trunfo em seu poder. E vai atirar com tudo para a goela de um charlatão, de um sr. Meyer qualquer que encontrou num Café? Mas de onde saiu o senhor? Que imagina? Desde quando espera que o sr. Meyer dê sinal de vida? Está na América, heim? Não escreve? Não tem consultório? Como pode você imaginar um instante que esse... que esse sr. Meyer torne a aparecer com o seu film incombustível? É demais. Já tenho que chegue, May. Este idiota já me excitou demais!
Hell não conhecia a disposição apoplética do
sr. Lyssenhop, e ficou diante dele como diante de um tremor de terra, da erupção de um vulcão, de uma catástrofe cósmica. May, um pouco mais afeita a este espectáculo, disse docemente:
- Tat, escuta, meu Tat querido...
- Não, não escuto nada! - vociferou Tat.
E a coifa unida dos seus cabelos cinzento-ferro, ergueu-se literalmente na cabeça, aspecto que afligiu profundamente Hell.
- Não quero ouvir nada, - continuou - já ouvi demais. Mestre de natação, pode ir-se embora. Pelintra, sapatos rotos, pobre, sem emprego, tudo pode passar. Tudo pode passar, nada é irremediável, mas a estupidez, essa é irreparável. May, a estupidez é absolutamente irremediável e sem esperança nenhuma. Ouça-me, senhor: você, sr. Hell e mais o seu sr. Meyer. Eu não posso interessar-me por este assunto. Um pobre diabo pode ter a minha filha se o quiser absolutamente. Um idiota, nunca. A minha mala... que o Eggenhofer mande buscar a mala. Nem mais uma palavra sobre este caso, se faz favor. Cala-te, May, peço-te.
E May calou-se. Ela conhecia o Tat. Mas Hell, atingido no mais fundo de si mesmo, não tanto pelas grosserias que lhe eram dirigidas, como pelo tom que empregavam para com May... não se calou.
- Sr. Lyssenhop,-disse ele-o senhor está de mau humor. Tem para isso todas as razões do mundo. Foi ludibriado por um esctoc, apenas porque ele se fez passar por conde e agora está furioso com toda a gente e não acredita em ninguém. Eu não conheço os homens como o senhor, não sou um homem de negócios como o senhor, não. Mas tenho faro, tenho faro como um animal, tenho nariz, que quer?... ainda que para si seja um idiota. Assim que vi o conde, disse à Anikuschka: é um salteador. E do Meyer digo: é um rapaz honesto. Há-de ver-se quem tem razão.
- Não se verá nada. - gritou o sr. Lyssenhop, extremamente irritado e tocado numa ferida em carne viva pelo nome de Anikuschka - Não se verá nada. Não quero mais ouvir falar de si. Proíbo-te, May, proíbo-te, tu ouves? Que me tratem como um farrapo se você tornar a ver alguma vez o tal sr. Meyer; no dia em que isso acontecer, pode chamar-me Jeremias Farrapo. Pode levar May e toda a Bewamag, ainda por cima, se o tornar a ver mais ao seu film. Cá está o Eggenhofer: desça a mala. É a última vez que me irrito neste maldito Lago das Damas. Continua a chover? Claro que chove. Palavra que se pode ter uma apoplexia aqui, à força de aborrecimentos.
Tais foram as últimas palavras do sr. Lyssenhop que Hell pôde perceber; o resto perdeu-se num resmungar indistinto, vindo da escada. Eggenhofer tinha carregado a mala ao ombro do criado e descido a correr. O sr. Lyssenhop agarrou com uma das mãos o seu casaco de viagem e com a outra empurrou May para fora. Tudo quanto restava no quarto era um pouco de fumo de cigarro e uma folha de jornal amarrotado e coberto de números em que Hell pegou e que, perdido nos seus pensamentos, alisou e meteu no bolso.
Não pensava em nada, saindo para o corredor e descendo sobre a passadeira verde da escada, no rasto da cólera tempestuosa do sr. Lyssenhop. Pela segunda vez hoje, ele tinha recebido uma pancada na cabeça. De momento, bastava.
Como no seu estado de semi-sonolência passasse por um canto escuro ao lado da sala de leitura, foi enlaçado por uns braços cobertos de couro, e uma boca apaixonada, exigente e trémula, comprimiu-se contra os seus dentes cerrados.
- Carla? - perguntou ele, fracamente e cheio de receio.
- Não; é May. - replicaram-lhe, desprendendo-se dele.
Imediatamente a seguir, o motor, lá fora, pôs-se em marcha.
Hell correu para a porta, mas não viu senão uma nuvem de fumo e o sr. Eggenhofer que, de boné fora da cabeça e com as mãos quentes pela gorjeta, ali estava radiante, sorrindo maldosamente.
As lições de natação da jovem surda-muda, menina Estefânia de Brinkmann, eram um espectáculo ao qual assistia todo o balneário de Birndl, compreendendo banhistas e empregados. Hell vedava a entrada do pontão, para conter nos justos limites a curiosidade que lhe parecia indelicada e dolorosa. Mas, atrás da vara, os maillots surgiam subindo à prancha para ver de cima: o sr. Birndl, na barreira, sacudia a cabeça com assombro e até a sr.a Birndl, em toda a sua amplidão, se deixava ficar em pleno sol, para observar.
A menina Brinkmann, pelo seu lado, não parecia reparar na revolução causada pelas suas lições de natação; quem sabe até se sentia um certo orgulho e lisonja. Tinha a boca aberta, com a expressão de um surdo que presta atenção; os seus olhos inquisitoriais e exigentes, estavam fitos em Hell, não o largava com o olhar; mesmo estendida na água, as suas pupilas voltavam-se para o lado dele procurando saber se estava satisfeito. Seguia as suas instruções por mímica com uma obediência fanática e dava mostras de um interesse e de uma valentia extremas. Ingurgitava água em quantidade, nadava ao longo do pontão, num infatigável vai-vem. A temperatura era apenas, em consequência da chuva e da tempestade, de 15? centígrados, mas ela entrou sem a mínima hesitação, mergulhou com segurança, como
Hell lhe tinha indicado. Ficou muito tempo debaixo de água e, quando reapareceu, via-se que estava quási asfixiada, pois não possuía a arte da humanidade falante de fechar a boca no momento próprio. Provavelmente ela nadava debaixo de água com a boca aberta, que parecia escutar; quem sabe o que tinha visto e ouvido lá em baixo! Hell, um pouco aflito, sacudiu-a para a fazer despejar a água, ajudando-a a respirar, friccionando-a ligeiramente. Mostrou-lhe que era preciso fechar a boca. Instruiu-a de uma forma bastante expressiva, por meio de mímica. Subiu à prancha, abriu a boca o mais que pôde, saltou para a água e alcançou a custo a terra firme, com sintomas de asfixia. Depois fechou a boca, levantou insistentemente o queixo com a mão, deu um dos seus soberbos mergulhos e voltou, rindo. Eis o género de espectáculos que apreciavam os habitantes do Lago do Amor. A menina Brinkmann batia as mãos, sons roucos saíam como urros da sua garganta incompleta. Ela tinha uma forma primitiva, quási animal, de manifestar os seus sentimentos. Era forte, uma larga e opulenta criatura de vinte anos; a natureza não lhe tinha sido favorável, mas era cheia de afabilidade e, não sabendo falar, não sabia mentir. Todo o Lago das Damas podia perceber de que natureza eram os seus sentimentos pelo mestre de natação.
- Como a sua neta é feliz e como faz tudo para agradar ao professor! - dizia à mulher do conselheiro, a sr.a Mayreder, que estava na praia, de folhos ao vento.
A mulher do conselheiro, vestida hermeticamente, imagem imutável da sua casta, com o seu broche de pedras preciosas e as suas botas de gáspeas penteadas, feitas por medida, abanava a cabeça debaixo da sombrinha verde.
- É maravilhoso o mestre de natação, sim, sim, sim, não, não, não e o trabalho que tem! A minha Estefânia tem uma verdadeira adoração por ele.
- Sim, ele tem muito bom coração, isso vê-se logo. A maneira como sabe levar as crianças! Pamperl, por exemplo...
A menina Brinkmann voltou a saltar. Copiou o que lhe tinham mostrado, levantou o queixo, fechou a boca e deixou-se cair na água. Hell puxou a corda e fê-la sair.
- Mais?- perguntou ele, por mímica.
No fundo, entendia-se muito bem com essa criatura muda; procedia com ela como se fosse um cão, e pronto.
"-Mais". - fez-lhe compreender a surda-muda.
Mais. Ainda dez vezes. Hell fê-la entrar na água e depois retirou-a. Era um óptimo dia para apanhar uma insolação, com aquele esmagador calor no alto da prancha, embora a água continuasse fria e a neve caísse de novo, descendo do alto das montanhas até aos olmeiros.
Desde que os Lyssenhop haviam partido, a existência de Urbano Hell ficara tão vazia, tinha tão pouco interesse, os dias baloiçavam-se a ponto de enjoar; nenhuma espera, nenhum entusiasmo, nenhuma calma. Hell estava para ali, como uma criança a quem fugiu o balão. Estava perplexo diante de um mundo onde se podiam passar coisas assim. Era um mundo bem reles e bem pouco agradável, desde que lhe tinham tirado May. O Lago das Damas era um lugar odioso e deserto, rodeado de algumas pequenas montanhas encafuadas no nevoeiro; o lago era um pouco de água turva e fria, pouco melhor do que um pântano. As brancas figuras do tennis, onde faltava uma, eram capazes de tornar alguém neurasténico. Um passeio à noite, em lembrança dela, ao Zirbitzkogel não o acalmou. Terminava por um verdadeiro ataque, por uma forte torrente de lágrimas, pouco viril, contra o qual nenhum ranger de dentes teria poder. A lua, de cara inchada, lançava um olhar sobre a Cabeça de Mel e via um Urbano Hell beijando os troncos dos pinheiros, lançando-se entre os prados e mordendo a erva curta, até ter a boca cheia de terra.
Mas, emfim, era preciso a gente reagir. Era preciso treinar-se, embora o tivessem desqualificado. Exactamente por isso. Tinha a intenção de bater um record para
sua própria satisfação, apenas por teimosia, por rancor e por instinto de conservação. E depois, precisava de comer. Além disso, esperava uma carta do sr. Meyer. Era nesse círculo restrito que girava Urbano Hell, desde a partida de May Lyssenhop. Era possível que fosse muito forte em correspondência inglesa, essa May Lyssenhop, mas para cartas de amor não tinha o menor talento. Como havia de escrever cartas de amor, essa rapariga desportiva, reservada, seca, tão pouco patética e solene? Mandava-lhe postais ilustrados, era o que fazia. Às vezes, uma folha de papel cinzento dentro de um sobrescrito estreito, igualmente cinzento, chegava. Os Lyssenhop davam uma volta pelos Dolomites, ao que parecia. "Penso em ti..." escrevia May. "Muitas lembranças." Ou então: "Que pena não estares aqui! Tua May que te beija." No entanto, uma vez ela escreveu numa carta: "Para o ano viremos aqui os dois. É maravilhoso. Sempre tua."
Hell arrumou estas cartas na gaveta da mesa, ao lado da medalha de prata verdadeira. Da mesma gaveta tirou o seu capital, agora inútil, os seus sete schillings economizados com tanto sacrifício, e levou os sapatos a consertar. Durante três dias andou com os velhos sapatos de gimnástica, o que era penoso, pois choveu incessantemente durante esses três dias: parecia de propósito. Ao quarto dia, Hell, com os sapatos consertados, foi à estalagem Schwoisshackel e, com verdadeiro apetite, comeu o que lhe restava. A sua existência tornou-se singularmente desequilibrada e precária. Vacilava como numa barca sem peso na quilha. Seria porque Hell perdera ou quási, a confiança em si? A saída violenta do sr. Lyssenhop, tão cheio de experiência, acabrunhou-o. O sr. Meyer não era mais do que uma sombra vaga. Hell pensava muito em Meyer e quanto mais pensava, mais essa recordação se tornava indistinta. Hell, a custo, recordava a cabeça desse Meyer, as suas palavras a que pudesse agarrar-se. O sr. Meyer afundava-se cada vez mais na onda anónima das figuras obliteradas do Café. Era evidente que o sr.
Lyssinhop tinha razão. Era evidente. Hell concordava. Abandonou a esperança de uma carta. Se essa carta chegasse e tudo se arranjasse à última hora, seria como num conto de fadas ou num romance.
"- Essas coisas não acontecem..." - pensou Hell, fatigado.
Nem sequer tinha a direcção desse Meyer, que partira para a América. Não podia escrever-lhe nem queixar-se contra ele; não podia mesmo bater-lhe. Tudo se tornara negro e indiferente. Às vezes, Hell treinava-se, outras não se treinava. Havia dias em que nadava até aos limites das suas forças, lançando-se numa carreira como se fizesse uma corrida consigo mesmo; depois, esgotado e vazio, entrava cambaleante, na cabine. Havia outros em que abandonava tudo; a água fria causava-lhe repulsa, cobria-o de pele de galinha e o lago era um inimigo que ele evitava.
Havia dias em que Hell comia e outros em que ficava sem comer. Às vezes, as visões da fome obsediavam-no a ponto de o fazerem correr às dez horas da manhã ao Schwoisshackel, onde comia todo o dinheiro que lhe rendera o último dia de sol. Uma vez, encheu-se de calor e de fartura. Começou por salsichas de fígado e acabou comendo uma ementa inteira: sopa, carne, legumes e batatas, que Vefi, em quantidades excepcionais, amontoava sobre o seu prato. No intervalo dos pratos, comia pão, ensopando-o nos molhos; mandou fazer uma omelette e, para terminar, pediu queijo.
Quando voltou, encontrou os Mayreder, com Pamperl. Os Mayreder, suspeitando vagamente que Hell tinha necessidades, convidaram-no para almoçar. Não admitiram recusas: levaram-no para um trajecto de dois quilómetros através do passeio do lago, aquecido pelo sol do meio-dia, até à pensão Seepitz, onde estavam. Hell, preguiçoso e pesado, acompanhou-os, dando a mão a Pamperl, receando os olhares carregados de sentimento da sr.a Mayreder. Almoçou pela segunda vez; cinco pratos passaram, a custo, pelo seu estômago,
desabituado à comida. Quando a sr.a Mayreder se estendeu na sua cadeira para fazer a sesta, Hell, reconhecido e tímido, despediu-se.
No caminho foi apanhado por uma tempestade que acabou em bátega de água geral; diante do Petermann, as senhoras Brinktnann retiveram-no. Elas também gostariam de lhe ser agradáveis. Levaram-no para o terraço do lago, esse terraço que, na ausência de May, se estendia vazio e sem razão de ser sob o ruído da chuva, e serviram-lhe café e bolos. O creme deu-lhe uma leve náusea que conseguiu vencer.
A menina Estefânia de Brinkmann estava sentada a seu lado, com uma beatitude tão radiosa, tão aberta e tão flagrante, que todo o público "exclusivo" do Grande Petermann voltou para eles os olhos e alguns até os apontaram com o dedo.
- Pus-lhe qualquer coisa na cabine. - murmurou a sr.a Birndl, da caixa, quando ele entrou, pousando um dedo tímido sobre os lábios ligeiramente inchados em consequência do seu estado - Não é preciso que o sr. Birndl saiba... - sussurrou ela, num piscar de olhos, cheio de cumplicidade.
Na cabine estavam tortas de medronhos, excelente especialidade da cozinha do Lago do Amor; tinham o perfume acre e fresco da nata e encontravam-se cobertas de vespas que entravam e saíam pela janela, zumbindo.
Hell engoliu três pedaços para não fazer desfeita à sr.a Birndl e fez presente do resto a Matz que, fora, debaixo da chuva ligeira, limpava a areia da praia. Um pouco depois das cinco horas, tiveram o lindo espectáculo de um arco-íris que, com um pé atrás da Cabeça de Mel, galgava até ao outro lado do lago, onde se reflectiam as suas vivas cores. Depois, um sol quente e repousante apareceu, caiu em diagonal sobre os prados, dando à erva a cor do cânhamo amarelo-florido.
Hell apagou os 16? do quadro negro e substituiu-os por 18?. Por causa disso os banhistas chegaram ainda a-pesar-de, do lado sul do lago, as sombras
da noite começarem a cobrir o vale e a água. E houve alguns habitantes do Petermann, o sr. saxão, a família Mayreder completa, as senhoras Brinkmann que também se mostraram pela segunda vez nesse dia. A surda-muda nadava só, havia dois dias, e exercitava-se com uma paixão extraordinária e com muita coragem. Matz tinha por hábito nadar a seu lado, por um vago sentimento cavalheiresco nascido na sua alma de homem de seis anos.
Os banhistas deixaram-se ficar sobre as pranchas molhadas pela chuva, tremendo um pouco com frio pelo adiantado da hora; havia mais sossego que de manhã, sob o calor branco e cintilante do meio-dia.
Hell, em roupão de banho, apoiava-se ao pilar que suportava a prancha, sentindo-se um pouco pesado por ter comido tanto, e falava com um senhor de pança redonda, de maillot às riscas, de quem nem sequer sabia o nome.
De súbito, ouviu-se do lago um grito estranho, gutural, quási animal; vinha de perto de cinquenta metros da margem, do lado donde a surda-muda nadava, de conversa com o pequeno Matz. Viram-se duas cabeças, depois qualquer coisa de turbilhonante que lutava; ouviu-se ainda uma vez o mesmo grito soando como um ruído de ronca, que nada tinha de humano; as cabeças desapareceram: uma, com touca de borracha vermelha, voltou à superfície e depois foi de novo engolida.
- Santo Deus -exclamou Hell.
E, no mesmo instante, tirou o seu roupão e, transpondo de um salto a barreira, atirou-se para a água. O coração subiu-lhe acima do estômago cheio até à garganta; teve que o engolir de-pressa. Em poucos segundos pescou Matz, segurando-o com o braço esquerdo. Matz nadava e cuspia valentemente.
- A culpa... foi dela... - murmurou, assim que pôde respirar.
Hell tinha mergulhado, vendo Matz em segurança, e trouxera a menina Brinkmann num estado
inquietante. Estava com certeza cheia de água, sem respiração, abafada pelo medo e pela falta de ar; esta aventura tinha-a posto fora de si. Agarrava-se a Urbano Hell com todo o seu largo corpo, pesado mesmo dentro de água, parecia ter uma data de braços, estrangulava-o e ao mesmo tempo gritava horrivelmente.
Era um verdadeiro combate, não muito divertido; para conseguir pôr a rapariga atravessada nas suas costas, Hell teve de lhe apertar os braços como num torno; nadando somente com as pernas, pôde, por fim, voltar com ela para a escada. Da ponte, faziam sinais aflitivos. Hell depôs a rapariga, rindo, a-pesar-da sua fadiga.
- Bebeu um bocado de água, talvez tenha engolido alguma carpa. - disse à mulher do conselheiro.
A surda-muda pôde emfim respirar e, diante de toda a gente, a escorrer água como estava, atirou-se para o peito molhado de Hell. Na sua desdita, fez do acidente um drama: foi como se lhe tivesse salvo a vida. Aplaudiam, agora que a aflição tinha passado.
- Mas, vejamos ... minha menina. - murmurou Hell, acanhado, libertando os braços.
De súbito, a sr.a Mayreder soltou um grito.
- Ele está a deitar sangue! - exclamou ela, com os olhos muito abertos, estendendo os braços cobertos de pele de galinha.
Todos os olhares se voltaram para Hell. Efectivamente, ele sangrava. Deu então por isso: o sangue jorrava de um pequeno rasgão irregular que fendia o seu braço direito, do cotovelo ao ombro.
- Não é nada. - disse, limpando com os dedos o fio que corria.
- Como foi que se feriu? - perguntou o dr. Mayreder, pondo o monóculo que habitualmente pendia de um fio.
- Não sei. Talvez na viga. Tem pregos salientes.
- disse Hell indo buscar o seu roupão que tinha despido havia pouco - O dr. Mayreder seguiu-o e, com os olhos míopes, examinou os pilares.
- Há efectivamente pregos e pregos ferrugentos.- disse, descontente - É preciso desinfectar isso, sr. Hell, entende? O melhor seria pôr-lhe tintura de iodo.
- Não vale a pena, - respondeu Hell - o lago desinfectou-me suficientemente.
E pôs-se a enxugar o sangue que sujava o seu roupão e, vexado, entregou-o a Matz que estava a seu lado, ofegante.
- A culpa é dela e não minha. - disse ele, com toda a sua dignidade de homem de seis anos - Ela agarrou-se a mim e, gorda como é, não consegui voltar acima.
- Está bem, tu és um bom rapaz. - disse Hell, pingando sangue, o que lhe era muito desagradável.
Depois, meteu-se debaixo do duche. Tinha frio e estava fatigado depois desse dia e da pequena aventura de há pouco. As sombras da noite invadiam a praia, azues-cinzentas e acompanhadas de um ventinho que fazia ondular a água. Matz trouxe as últimas cadeiras e as toalhas molhadas; os banhistas foram-se embora.
- Está todo azul, sr. Hell! - disse a sr.a Mayreder, compadecida - Tem frio?
- Nem sombra. Estou azul por ter comido tortas de medronhos. - gracejou Hell.
- Ponha tintura de iodo no braço, senhor Hell, acredite num médico: tintura de iodo. - insistiu o dr. Mayreder.
E depois a praia esvaziou-se e a sr.a Birndl pôs-se a fazer a caixa, emquanto o crepúsculo chegava por cima do lago e a primeira pancada de tan-tan soava no Grande Petermann.
Hell foi para o lado do óculo e assestou-o para as montanhas cujas cabeças estavam sendo cercadas por nuvens.
Hell não podia ver montanhas sem pensar imediatamente em May com um desejo ardente e doloroso. Os seus pensamentos tinham-se detido com muita intensidade nas duas noites que devia passar com ela e que tinham ido por água abaixo. Nada de noites na
montanha, nem record em Berlim, nem milhões da parte do sr. Meyer. Três tortas de medronhos da sr.a Birndl eram os prazeres que a sorte lhe concedia. Demorou-se a olhar pelo telescópio, descendo ao longo dos vales, passando além das pastagens, das florestas, até cair no pequeno castelo Dobbersberg, no vale. Ai, na praia, um ponto claro dançava dum lado para outro. Depois de algumas investigações pôde verificar que não era Puck, mas Tigre. Teve, de súbito, a nostalgia da outra margem com a sua calma benéfica. Não tinha lá voltado desde a inquietante história que se havia dado no quarto da Bojan, na gôndola.
- E se fôssemos até ao País das Tulipas ? - perguntou Hell, a si próprio. E respondeu: "Sim".
Vestiu o seu fato azul e tomou a canoa. Remou, e a sua ferida do braço pôs-se a arder; sentia também a manga da camisa humedecer-se de sangue que continuava a correr. Era uma noite doce e calma, as gaivotas, embaladas pelo lago, pareciam dormir.
Tigre soltou ladridos de alegria quando Hell prendeu a canoa no alpendre das canoas; metia-lhe o focinho malhado na palma da mão e agitava a cauda contra as calças azues e enrugadas de Hell.
- Onde está Puck?-perguntou o rapaz, agarrando o Tigre pela coleira.
O cão pôs-se logo a galopar com ele através dos prados e dos carreiros, de nariz no chão, entrou pelo bosque, rodeou o castelo e arrastou Hell até às novas edificações. Chegando a uma das portas, pôs-se a ladrar e a arranhar e, de-facto, a pequena figura de Puck mostrou-se pela porta entreaberta.
- Que sorte vires justamente hoje - disse Puck, com um ar sério, misturado de alegria - Aconteceu uma coisa maravilhosa! A porca está a dar à luz. Podes entrar, mas o Tigre não.
Tigre deitou-se, gemendo, diante da porta da cavalariça e Hell entrou na sua exalação quente e forte. Estava calmo na cavalariça, com o torpor sonolento, ruminante, de todas as cavalariças, esse espezinhar
surdo, esse telintar de correntes, esse barulho dos animais que se vão deitar na palha. Hell, que até então tinha gelado sem o confessar, aqueceu. Puck parou diante de um estábulo e, ao lado de Hell, inclinou-se sobre a grade de madeira. No interior, uma porca bastante gorda, estava estendida, imóvel e ofegante; a forte Lenitschka, sentada ao lado, tinha ao pé de si um cesto cheio de palha no qual minúsculos leitões, todos nus, se moviam ligeiramente.
- É a primeira vez que ela tem filhos. Portou-se muito bem. - disse Puck, quási solene - Já teve nove, mas Lenitschka imagina que terá doze. É espantoso, para a primeira vez.
Trocou palavras técnicas com a velha. Imediatamente o animal levantou os flancos, trabalhando com violência, e um novo porquinho caiu na palha. Lenitschka agarrou-o logo e secou-o.
- Tu tens muito juízo, tu!-disse Puck, à mãi.
O animal olhou Puck com os seus pequenos olhitos, farejou o pequeno que Lenitschka lhe mostrou antes de o pôr no cesto e, seriamente, soltando de vez em quando um gemido abafado, dirigiu a sua atenção para o duro trabalho do parto.
Hell compreendeu, de súbito, que qualquer coisa de confuso ligava esse animal a Puck e ao mesmo tempo à velha ama. Resumiu uma impressão obscura, dizendo em voz baixa:
- Não há que dizer, é imponente!
- Sim,-disse Puck-é admirável, não é verdade? Os seus olhos estavam tão brilhantes como o
reflexo das luzes que iluminavam a cavalariça... Ela pôs-se a reflectir:
"- Os porcos têm sorte! - pensou.
Hell riu.
- Que engraçado animal tu és, Puck! - disse, passando-lhe a mão pelos cabelos.
- Não tão engraçada como isso. - contraditou PuCk. Asseguro-te que esses porcos têm sorte: eu também gostava de ter doze filhos. Ai, meu Deus, doze
filhinhos gordos como estes! A mim seria preciso tirarmos para que eu não os comesse, como a ela.
Puck mergulhou um momento em sérias reflexões. O rostozinho de malaia trabalhava e os seus olhos puseram-se a cintilar.
- Eu sei o que é preciso fazer para ter filhos. disse, quási violenta-E tu sabes o que é preciso fazer?
- Pelo amor de Deus...- pensou Hell, recusando-se a responder.
Puck passou o braço pelo dele; dos seus olhos, das suas mãos, de cada curva do seu corpo, emanava calor e uma vitalidade doce e inocente. Hell, com uma ternura misturada de impaciência, contemplou esse pedacinho de mulher, apaixonado e ingénuo, esse estranho resultado do método pedagógico, tão complicado do barão Dobbersberg. O décimo segundo porquinho tinha deslizado, molhado e cor de rosa, para a vida, e Lenitschka, depois de curto exame, havia anunciado, em tcheco, o fim do acontecimento, arrastando Puck para longe dos vapores da cavalariça, que começavam a tornar-se demasiado pesados. Fora, o céu estava estrelado; através dum ligeiro véu, vapores transparentes, quási luzidios, subiam do lago e os primeiros morcegos saíam flexíveis e em ziguezague para fora dos buracos. Ao longo da parede da casa cheirava a sabugueiro. Hell colheu uma mão-cheia de bagos rijos e pôs-se a mastigá-los.
- Tu tens um ar triste, não dizes nada... - notou Puck - Aconteceu-te alguma coisa?
- Que eu saiba, não. Que havia de ter ?
- Não tens fome ?
- Não, meu Deus! - disse Hell, cheio de orgulho
- Hoje tenho a barriga cheia a ponto de rebentar. Há dias em que isto acontece, depois, não há nada durante uma semana. É o que se pode chamar azar.
Ele não tinha vergonha diante de Puck, discutia com toda a confiança os seus embaraços.
- Outra coisa me falta. - acrescentou ele, de-repente - Falta-me o mais importante...
- Posso ajudar-te? Do que precisas? Que queres tu? - perguntou Puck, levantando para ele os seus olhos opacos de animalzinho.
Ao princípio, não teve resposta emquanto passeavam através dos últimos rumores dos edifícios da propriedade. A bomba funcionava, uma porta fechou-se, uma lanterna passou a correr para a cavalariça, um lenço branco inclinou-se sobre um balde. O aroma da erva, recentemente cortada, entrou pela porta da cavalariça. Hell mascava o gosto acre de sabugueiro.
- O que eu queria não posso dizer-to. - murmurou Hell.
Puck parou ao canto do pátio, não disse nada e procurou também qualquer coisa para mascar: uma folha amarga e verde, de nogueira. Depois esperou, em silêncio. Hell levantou os braços para agarrar as ramadas por cima dele e disse:
- Falta-me uma mulher. Queria uma mulher que fosse minha, que eu pudesse cingir nos meus braços, dormir ao pé dela e não a deixar. Aqui tens o que me falta, compreendes?
Puck, sem dizer palavra, inclinou a cabeça e engoliu alguma coisa, um pensamento, uma resposta e o sumo amargo da nogueira. O seu coração inchou com o desejo de o auxiliar e de encontrar ela própria socorro para qualquer coisa desconhecida que se passava em si também. No castelo, um chocalho de vaca acabava de tinir, num ruído surdo.
- Chamam-nos para jantar. Queres entrar? perguntou Puck.
- É melhor, não... - disse Hell, cheio de medo, ao pensar na Bojan.
- Então anda, vamo-nos esconder. - propôs Puck, pegando-lhe nas mãos.
Voltaram para trás, ao longo da parede que irradiava ainda um pouco de calor do dia. Hell andou ao lado de Puck entre o lamaçal dos patos e a erva curta tosqueada pelos gansos; conheceu, na propriedade dos Dobbersberg, sítios até aí desconhecidos. Diante das
casas dos criados, uma harmónica celebrava as horas de descanso do dia que acabava; a obscuridade tinha-se acentuado.
- Podes abrir a porta? - perguntou Puck, parando diante de um barracão de madeira, bastante elevado Aqui é o celeiro, está-se bem lá dentro.
Hell fez deslizar o fecho, não sem sentir uma leve queimadura no braço ferido. A porta abriu-se, rangendo; no ar, as exalações quentes e pesadas da palha armazenada, eram espessas como uma parede.
- Vem.- disse Puck, notando que Hell recuava um pouco - Cá dentro está agradável; é o meu refúgio.
A claridade da noite fazia erupção pela porta com a magnificência de uma carrada de ceifa; aqui tudo estalava, deitava fumo, cheirava a verão e a colheitas. Via-se a palha disposta em camadas entre o madeiramento; um grande corta-palhas estava agachado, como um animal, no meio da eira. Puck inclinou-se sobre uma colina prateada, a um canto.
- É bonita a aveia. - disse ela, fazendo deslizar os grãos entre os dedos - É preciso enterrar bem as mãos.
Hell enterrou as mãos, ao lado das dela, na colina de aveia. Isto dava-lhe uma sensação de prata fresca, reluzente, lisa como pó depois de fazer a barba. Foi acometido de um desejo de rapazinho: enterrar-se todo ali. Puck lançou-lhe um olhar sério e perscrutador e soltou um profundo suspiro. Depois atirou-se sobre o leito de grãos, arrastando Hell para o seu lado. Era um leito de raro encanto, no qual Hell se deixou cair. O ruído dos grãos, deslizando, envolveu-o docemente. Hell enterrou as mãos a seu lado e brincou com a aveia. Desprendia-se de tudo uma grande calma, como se estivessem sobre a areia do mar. Sob a cobertura de aveia, encontrou a mão de Puck como se fosse uma toupeira. Reteve-a, brincando. Puck soltou um segundo suspiro muito profundo, depois aproximou-se de Hell e estendeu-se, encostada ao seu corpo. Hell não se moveu nem resistiu, o seu coração batia num
tiquetaque suave e aliviado: ouvia-o entre o crepitar dos grãos. Era de uma grande doçura estar assim estendido ao lado de Puck; era como se, numa noite de verão, se deixasse ir ao acaso sobre uma onda mansa, na água temperada. Só se moveu quando os lábios de Puck tocaram os seus; ele pensou em May e ficou cheio de um furor que logo se acalmou sob os lábios de Puck. Ela não sabia beijar, nunca o tendo tentado: prendeu os lábios dele aos seus, num sugar ardente, silencioso, aspirante, quási como uma criança adormecida. Sob o ligeiro tremor das costas, Hell cerrou os braços e abandonou-se. Fez uma coisa feia e desesperada que o aliviou enormemente: beijou Puck, pensando em May.
Foi assim, deitados um ao lado do outro, silenciosos, mudos, que o barão Dobbersberg os encontrou quando, na sua volta depois da ceia, veio ver porque estava aberta a porta do barracão. A sua sombra longa e fina de D. Quixote, projectou-se em cima do chão da eira, executando alguns acanhados movimentos de braços. Dobbersberg tossiu ligeiramente, docemente, mas, no entanto, bastante alto para que Hell desse por ele depois de um certo tempo.
"- com a breca!"-pensou Hell, aflito, erguendo-se com Puck nos braços, que sorria com ar sonhador.
A aveia rolava sobre eles.
- A doninha esteve com certeza a brincar consigo aos enterros? - apressou-se a dizer Dobbersberg, com a sua voz clara e agradável - Desde pequenina que é essa a sua brincadeira favorita. Às suas bonecas preferidas enterrava-as na palha, declarava-as mortas e chorava-as. Passados dias, a doninha desenterrava-as; elas estavam então novas e vivas e gostava outra vez delas. Foi assim que procedeu consigo, sr. Hell?
Hell tinha-se levantado; estava coberto de poeira e tinha aveia por toda a parte, no colarinho da camisa, nas mangas e até nos sapatos. Sacudiu-se, murmurou algumas palavras confusas e teve um profundo reconhecimento pelo barão, pela sua incrível delicadeza. Fazia
naturalmente parte da sua filosofia, nunca se admirar nem se zangar com coisa alguma.
Entre Hell e o barão, ela caminhava para casa um pouco pensativa, ligeiramente vibrante, como uma corda cujo som acabasse de parar, mas cheia de inocência e de contentamento.
- Ora vê como eu estou quente; estava calor no celeiro. - disse, sem acanhamento, encostando a cara contra a grande mão de Hell.
A Bojan, sentada no pequeno terraço, colocada como uma imagem entre duas lanternas de seda chinesa, ligeiramente pintadas de vermelho, ardia também. Acolheu Hell com um aperto de mão e um ar de concordância tão manifesta, que ele assustou-se. Numa voz, cujas modulações cantavam através de todos os registos, ela convidou-o a tomar um copo de vinho com frutas. Hell, a quem faltava experiência, notou, cheio de espanto, que a sua toilette e o seu rosto tinham mudado completamente. Encontrava-se em frente de uma mulher nova, quási desconhecida, que, embaraçado, olhava fixamente.
- Ora vamos, Hell, não me coma assim. - cantou a Bojan - Porque me olha dessa maneira? Que tem?
- A senhora baronesa tem hoje um ar... um ar. não sei... - gaguejou Hell.
As suas mãos estavam ainda todas cheias do calor de Puck e apertou os punhos.
- Que ar tenho eu? Estou bonita ou feia? Diga...
- cantou a Bojan, insinuante.
- Artificial... É isso... artificial! - exclamou Hell. A Bojan teve um riso de ressonâncias felizes.
- Vesti-me e penteei-me segundo um Renoir disse ela - Em Outubro devo representar a Dama das Camélias. Montam a peça no estilo de 1880 e eu caracterizei-me hoje. Ocupei o meu dia. De outra forma morria de aborrecimento nesta casa. Os vermes comem-nos neste Wurmtall
A Bojan estava envolvida num brilho pregueado de seda formando ancas, envolvida no vestido até às mãos,
até ao rosto e até aos bicos dos pés. As linhas do seu corpo eram ao mesmo tempo extremamente dissimuladas e acentuadas. No seu busto alto e espartilhado caíam os reflexos vermelhos das lâmpadas. Abaixo da cintura, tudo se perdia num montão de ondas de renda. Hell, habituado a corpos treinados, a fatos de banho, estava estranhamente perturbado e agitado. Não compreendia nada de teatro: reparou, no entanto, que a Bojan vibrava e que era obrigado a vibrar com ela.
- Sinto um pouco de febre e de embriaguez. O papel entranhou-se-me. - disse a Bojan.
Hell, nalgumas frases mal articuladas, contou-lhe o seu dia. A Bojan prodigalizou-lhe, entretanto, uma cenazinha preciosa. Representou de mundana, mostrou a tuberculose, o amor, a renúncia, as suas mãos improvisaram no ar obras-primas de expressão.
Desviando os olhos da Bojan e deixando-os errar à sua volta, Hell viu que Dobbersberg e Puck tinham saído do terraço, em silêncio e sem dizerem adeus. De longe, ouviram-se os ladridos do Tigre no parque. Hell levantou-se precipitadamente, dizendo que era tempo de regressar.
- Acompanho-o à canoa. - declarou a Bojan, estendendo-lhe a nuca para que ele lhe pusesse uma écharpe de renda de Chantilly, que fazia parte do seu papel.
com os saltos altos, ela caminhava a seu lado. Hell respirou profundamente e levantou a cabeça para o céu, onde estava suspensa a trama de estrelas, clara e cintilante, da via láctea. O perfume doce e violento de um canteiro de lírios atingiu-o, como se lhe batesse em cheio no rosto.
- Como estas flores são viciosas! -disse a Bojan, fazendo uso do soberbo registo alto da sua voz.
A cada passo, as costas da sua mão de vidro ardente oscilavam contra a dele.
"- O País das Tulipas, tudo isto é o País das Tulipas". - pensou Hell, confusamente - E belo ... disse, quando se abriu o panorama do lago com os
seus vultos de montanhas, no fundo da pequena candeia de luz do Lago das Damas.
A Bojan agarrou estas palavras no ar, como uma réplica:
- Belo. talvez, mas eu não faço grande caso desta beleza. É bonito o lugar onde nos sentimos felizes, e eu não sou feliz ... Ah ! não... não sou feliz! Sofro, sofro terrivelmente, Hell... - disse, elevando a voz e a mão para logo as deixar cair.
"- Que me diz ? Mas isso é terrível... - pensou Hell, que nunca tinha ouvido uma coisa parecida-Quê? Ela sofre ? Uma mulher como esta ?
- Não calcula quanto me sinto só! Não tem ninguém na vida, a famosa Bojan... é estranho, não é verdade? E, no entanto, sou só, terrivelmente só. Sabe lá o mundo como pagamos caros os nossos êxitos. Sacrificamos o mais puro do nosso sangue e que nos dão em troca?
A Bojan tinha tomado um impulso admirável. Fazia teatro, sentia-se feliz e aliviada, em cheio no seu papel de 1880. O que ela recitava a Hell, com uma centena de cambiantes na voz, era uma pequena improvização que se podia fazer ouvir. De-resto, ela nem dava por que estava a representar, pois era artista na alma e sentia já as lágrimas subirem-lhe à garganta. Hell estava comovido. Reteve a respiração e não ousou abrir a boca, pouco à vontade como se sentia. Dentro do seu sapato esquerdo, tinha aveia que pisava em cada passo.
A Bojan concentrava com embriaguez o seu sentimento como para fazer um film; por fim, sentiu as lágrimas chegarem-lhe aos olhos. Sorriu com as pestanas húmidas e os lábios trémulos, apertando a écharpe nos ombros, até ter um ar fino e tuberculoso, e disse:
- Tem razão em troçar de mim, Hell. Que pode a vida oferecer-me ainda ? Daqui a pouco tudo acabará ... sei que morro nova. Sim... sei... - disse ela, impaciente, pois não queria deixar-se desviar deste
assunto. - Que quer: já sou uma velha. Deixe-me confiar-lhe um segredo: não sei o que é o amor. Nunca conheci uma grande paixão!
Hell, confuso e comovido, ia lao lado dela através da alameda do parque. As últimas frases da Bojan tinham sido apenas um sopro e era-lhe preciso apurar o ouvido para a compreender. Que coisa engraçada: era bem ele, Urbano Hell, pobre diabo, que se encontrava ali e, ao lado dele, era a famosa Bojan, no fundo, profundamente infeliz. Era a ele que ela contava os seus segredos, era a ele que se dirigia para sonhar, era a ele que tinha beijado, quando deitada na sua gôndola...
- Santo Deus ! - pensava.
E o seu coração pôs-se a bater. Desde que May o tinha deixado, ele circulava no mundo, sem protecção, como um crente que tivesse perdido o seu amuleto. A mão ardente aproximou-se ainda. Desta vez, ele pegou-lhe e conservou-a entre as suas.
- Costuma pensar em mim ?-murmurou a Bojan
- Eu... calcule... que penso muitas vezes em si. Desde que o vi pela primeira vez, alguma coisa me obriga a pensar em si. Sonho consigo muita vez, de noite... e mesmo acordada. Ah! Hell, o que faz, Hell!
Hell não fazia nada. Só uma vez tinha murmurado em voz enrouquecida:
- Sim, sim.
E apertava a mão. Estava pouco à vontade e tinha um horror inveterado a cenas. Mas as palavras da Bojan comoveram-no profundamente, era como se lhe passassem uma raspadeira no coração. Ele não fez nada. Mas sem que fizesse fosse o que fosse, a Bojan, encontrou-se de súbito nos seus braços e isso não se passou de forma alguma com tanta inocência, como fora o beijo ingénuo de Puck, no celeiro. Aqui, ele foi arrastado no turbilhão de uma paixão experimentada, ficou aturdido e a via láctea dançou com as suas mil estrelas de fogo diante dos seus olhos fechados... com um gemido por trás dos maxilares cerrados, ele abandonou-se, entregando-se ao abraço.
Quanto à Bojan, a representação e o sentimento misturavam-se nela: de qualquer forma, não estava habituada a parceiros com uma paixão assim transbordante; pôs-se a soluçar e a rir e conseguiu chegar a um paroxismo, a uma verdadeira crise histérica, que a aliviou deliciosamente. Hell ficou muito aflito, deixou-a logo e serenou. Quando ainda, muito aturdido, encostado a uma árvore, ele abriu os olhos, o barão estava na sua frente, com uma pequena lanterna na mão, sorrindo com o seu sorriso atormentado e oblíquo. Hell perdeu a respiração. A Bojan soltou um gritinho, hesitou um segundo entre o desmaio e a fuga, mas decidiu-se logo, levantou prontamente a saia do ano de
1880 e fugiu.
- Trouxe-lhe a chave do alpendre das canoas. disse o barão, muito amavelmente, com a sua voz de timbre agradável.
Hell teria esperado qualquer coisa de espantoso: um tiro de revólver, uma bofetada, uma erupção, uma catástrofe. Em face da amabilidade calma do filósofo, teve a sensação de cair num buraco profundo... aturdido, pisando, dentro dos sapatos, os grãos de aveia ao lado de Dobbersberg que o encaminhava para o alpendre das canoas.
"- Que hei-de eu dizer-lhe, Jesus, Maria, José? Que devo dizer-lhe? - pensava Hell, sentindo o suor correr-lhe pelas costas - Estou às suas ordens."
Estava ainda sob a influência de 1880 e a frase solene acudiu-lhe sozinha: Estou às suas ordens...
Por duas vezes, abriu a boca antes de sair qualquer coisa; por fim, disse com seu próprio espanto:
- Não sei como isto foi... acontece-me sempre encontrar-me na sua presença nas situações mais desagradáveis.
- Situações mais lisongeiras para si do que para mim; mas é preciso não dar às coisas desse género mais importância do que elas merecem. - replicou o barão, amavelmente - O senhor também... meu caro, não devia... como direi... emfim... exagera-lhe a importância.
Minha mulher está extremamente nervosa durante as férias, ela procura os seus pequenos alívios onde os encontra. No fundo, a culpa é minha: eu devia entrar em cena no bom momento, para lhe dar a deixa requerida. De-resto, não tenho necessidade de lhe dizer, que os filósofos têm sempre os papéis cómicos nas comédias, não é? Eles esquecem o guarda-chuva, metem o guardanapo no bolso em vez do lenço, partem loiça...
Hell, confuso, ouvia a tagarelice cheia de à-vontade de Dobbersberg. Quando o barão abriu o alpendre e acendeu a pequena lanterna, estava amarelo e tinha mau parecer, como na véspera de um novo ataque de febre. Hell sentiu uma profunda vergonha de si mesmo, quando entrou na ponte onde Puck, no dia famoso, o tinha retirado do lago.
- Ora vejamos, o ciúme não é uma necessidade da alma humana, mas um sentimento primitivo. É uma questão de convenção, de tradição, de educação.-disse o barão Dobbersberg, emquanto Hell fixava os remos.
- Espere, doutor: deixe-me desapertar a corrente. Ora veja os esquimós: eles não conhecem o ciúme. Quando desejam honrar um convidado, cedem-lhe a sua filha ou a sua mulher e sentem-se muito ofendidos, se o convidado não aceita a oferta. Mais à esquerda, doutor, senão irá de encontro ao barco de vela. Está ali ríght?
- Sim, muito obrigado.- replicou Hell, que se sentia aturdido.
Mergulhou os remos na água. O barão segurava a corrente numa das mãos e acrescentou:
- É certo que eu não sou um esquimó. Gostaria mais de renunciar a seguir-lhes os usos, mas, por outro lado, não queria ser pouco hospitaleiro para consigo. Por isso, era preferível que não viesse mais a nossa casa, a esta margem. Boa noite, doutor Hell.
Atirou a corrente para a canoa. O pequeno gesto significava o fim do seu domínio sobre si próprio. E, com um violento pontapé, empurrou-a do ancoradoiro.
- No fim de contas, levei a minha bofetada." - pensou Hell, emquanto a canoa deslizava no lago.
Sentiu outra vez uma tempestade de suor frio correr-lhe pelas costas ardentes. O barão, no alpendre das canoas, apagou a lanterna e ficou muito tempo na obscuridade, com o rosto encostado a uma estaca, só com os seus segredos e os sentimentos humanos recalcados no seu coração, que lhe faziam mal, sem nenhuma filosofia...
A partir desse dia memorável, pelas numerosas refeições e aventuras de toda a espécie, Hell entrou num mau período, um período de cão, como ele dizia a Matz que aprovava com uma inclinação de cabeça. Chovia. Uma chuva regular, infernal, caía do céu, noite e dia sem parar. As montanhas desapareciam, as margens desapareciam, o próprio lago estava invisível. A goteira pingava com melancolia e, quando Hell estava sentado no chão diante do seu quarto, via só a prancha como uma carcaça encharcada pela chuva. O tennis estava submergido; sob as cabines, numa proximidade ameaçadora, o lago fazia ouvir o seu ruído. Matz estava sentado na segunda fila das cabines, tentando tocar na sua harmónica os charlestons do Grande Petermann; tudo se tornava mais lúgubre.
Nada de carta do sr. Meyer, nada de notícias da menina Lyssenhop. Nada de dinheiro na gaveta da mesa, nada de receitas a marcar no caderno de capa de oleado. Impossível nadar: não somente a água estava a 14?, mas a chaga no braço que, às vezes, lhe ardia endiabradamente, não havia maneira de se curar como devia. Nunca tinha comido regularmente, mas agora suportava a fome como uma doença, com acompanhamento de vertigem, de violentos tremores e desejo de se meter num canto, a chorar.
Hell pôs-se a procurar as fontes da alimentação. A senhora Birndl estava de cama, tinha dado à luz dois gentis gémeozinhos e isso explicava amplamente o volume surpreendente do seu corpo, a fadiga excessiva que a impediu durante certo tempo de fabricar as tortas de medronhos. Resi, a corcunda, sem ocupação durante o período da chuva, deixou a roupa para ajudar o casal Birndl. Os Mayreder moravam longe, no fim do lago, e estavam invisíveis. As senhoras de Brinkmann tinham feito as malas e haviam partido. A jovem surda-muda viera uma única vez a casa de Hell para se despedir e, nessa ocasião, lágrimas silenciosas, de uma grossura espantosa, tinham rolado pelas suas faces e, coisa estranha, tinha-lhe beijado a mão. E Hell batera-lhe na nuca, como a um bom cão velho de quem se gosta, a-pesar-de tudo. Mas o café com leite acabara... À noite, Hell sonhou com um mercado coberto. Era uma casa sem fim onde ele passeava admirando as montras de presuntos, salsichas, pedaços de toucinho, carne e aves. Montanhas de frutas empilhadas nos cestos, pão doce, queijos grandes como rodas de carro, camarões cozidos e vermelhos estavam expostos em blocos de gelo. Hell, em sonhos, estava também deitado num bloco de gelo. Teve tanto frio, que acordou do seu sonho. O frio rastejou-lhe pelas costas como um animal antipático. Deitou-se para o outro lado, porque lhe doía o braço. "Tintura de iodo", dissera o dr. Mayreder, devorando uma enorme perna de vaca, emquanto Hell voltava a adormecer. Sonhou com Schwoisshackel. No meio da estalagem via-se uma grande mesa, os pratos estavam alinhados e de cada prato subia um vapor quente e um perfume, que apertava a garganta. "Tudo isto são pastéis", dizia a Vefi, instalada nos joelhos de Hell e empurrando-lhe o peito contra o braço. Ele queria comer, mas não pôde desprender o braço e continuou sentado diante da comida até acordar. Mastigou o mau gosto da boca, consequência da fome e sacudiu o edredon. Meio adormecido como estava, parecia-lhe que a Vefi se tinha escondido entre as almofadas Engoliu uma golada de
água e adormeceu para logo entrar de um salto na pequena cozinha de sua mãi.
- vou jantar. - disse ele no dia seguinte, grandioso, ao sr. Birndl, também preocupado por causa do tempo.
O sr. Birndl resmungou qualquer coisa acerca do seu sportman. Para que lhe servia o belo mestre de natação, se todos os banhistas fugiam diante da chuva? O Grande Petermann estava, por assim dizer, vazio. Em breve despediriam a orquestra.
Hell, indeciso, hesitou com as mãos metidas nos bolsos do seu impermeável, passeou diante da estalagem Schwoisshackel, antes de entrar. O bafo quente e espesso de um puré de ervilhas cortou-lhe a respiração. Abancando a um dos cantos, na mesa coberta de oleado, encomendou, com sombria resolução, uma refeição de três pratos. Os minutos de espera foram intoleráveis. Teve de engolir e estrangular as suas vias digestivas como se tivessem espasmos convulsivos. Levantou-se, pegou num biscoito que estava na outra mesa e comeu-o.
- com sua licença, tomo a liberdade. - disse a Vefi, pondo a sopa em frente dele.
Era uma bela rapariga, esplêndida, com os seus dentes, os seus olhos e as suas tranças. Tinha joelhos, ancas e seios e tudo nela aspirava por Hell. Hell estava acanhado, pois o talher tremia-lhe nas mãos, emquanto comia. Três dias de fome fazem de um homem um animal. Quando estava quási saciado, tomou coragem. Fez sinal a Vefi que se aproximou, alegre. Ela deitava sempre um cheiro a cozinha; hoje cheirava a fígado de vaca, o que, aos olhos de Hell, não deixava de ter um certo encanto.
- O sr. Hell jantou bem? - perguntou. Hell fez um esforço.
- Vefi, esqueci-me da carteira;-disse alegremente
- tem que me fiar o jantar, amanhã pago.
- Pois sim, pague então amanhã. - disse a Vefi, pousando a mão, cordialmente, no seu braço.
Hell despediu-se.
Chuva, chuva, chuva. Um dia, Hell, encontrou no seu quarto uma côdea de pão e um pote de leite coalhado, dádiva anónima de Matz que, em segredo, tinha trazido metade do seu jantar do asilo dos pobres. Porque Matz, embora fosse pequeno, com as suas calças muito grandes e os seus pés cinzentos dos limos, tinha uma alma como qualquer pessoa e possuía pensamentos seus e uma afeição sólida, no seu coração de seis anos.
Mas passados quatro dias, Hell estava outra vez na mesma. Saiu do seu quarto com uma cara sombria; levantou a gola, pois gelava, e pôs-se a caminho para o Schwoisshackel. Modesto, comeu uma sopa com pedaços de toucinho e simplesmente por consciência, iniciou um namoro com a Vefi.
E a Vefi sentou-se logo à mesa, a seu lado, as faces cada vez mais coradas, pois havia muito tempo que delirava pelo mestre de natação. Ele agradava-lhe e se o senhor Hell quisesse, ela não diria que não... E emquanto lhe fazia estas ternas declarações, um delicioso perfume a carne de porco subia do seu avental. Os seus braços eram quentes e bonitos e a bolsa pendia em bandoleira, tendo um brilho de gordura.
Quando Hell lhe disse que tornara a esquecer-se da carteira, ela afastou-se dele, um pouco arreliada; mas logo lhe rodeou o pescoço com o braço.
- Este sr. Hell é realmente... mas amanhã sem falta, sim?
- Se estiver bom tempo... - replicou Hell, indo-se embora.
Agora só esperava o bom tempo, já não os milhões, nem as noites na montanha, nem mesmo notícias de May. Foi ver o barómetro, suportando em cheio o aguaceiro na Praça Grande, dando pancadinhas nos vidros do higrómetro.
-Tenho que dizer uma coisa ao sr. Hell.-murmurou a Vefi, dois dias mais tarde, arrastando-o para um
corredor escuro, atrás da estalagem - O patrão fez barulho: não quer que lhe abra crédito, proibiu-me de servir, fosse o que fosse, ao sr. Hell, antes de ter pago.
- Está bem, já percebi, está bem.-disse ele, continuando para ali, distraído, um pouco torcido à força de dores no estômago.
Um calor subia da Vefi, que se apertava contra Hell.
- Gostaria de ajudar o senhor Hell...-murmurou, tímida.
Mas o sr. Hell desapareceu sem responder.
Hell foi para casa, procurou a medalha de prata verdadeira e levou-ao ao ourives da aldeia, atrás da Praça Grande. Recusaram-lha. Durante muito tempo esteve parado diante de uma montra de carniceiro, cheia de numerosas salsichas; engoliu a saliva amarga. Foi pedir um adiantamento ao sr. Birndl, mas o sr. Birndl estava de mau humor e tinha boas razões para ter medo. Tinha que alimentar dois gémeos e pagar juros hipotecários, pois fizera pintar o estabelecimento de banhos, de novo, na esperança de ter um bom verão. Agora, a chuva estava quási a tirar a cor antes mesmo das contas estarem pagas. A estação, em breve estaria no fim, os banhistas desapareceriam como moscas: todas as noites partiam alguns.
- Muito bem, perfeitamente. - disse Hell.
À noite, levantou a gola e foi à estação; parou ao lado do sítio onde estacionava o automóvel que trazia os estrangeiros da montanha.
- Desejam que leve a mala?-perguntou ele a duas senhoras de certa idade, que viajavam com numerosa bagagem.
As senhoras discutiram muito tempo, debaixo de chuva, antes de lhe entregarem a mala. Hell arrastou as bagagens até ao acesso ao cais; mais longe, era proibido. As senhoras resmungaram, desapontadas; deram-lhe uma moeda de vinte groschen, molhada pela chuva. Hell precipitou-se para o aparelho automático
à entrada da gare, fez sair duas tablettes de chocolate e, ávido, comeu-as gulosamente. Sentiu no braço estranhas pulsações. Se tivesse dinheiro, compraria tintura de iodo.
Três dias depois foi vítima de uma derrocada moral. Foi até ao Schwoisshackel e fez sinal a Vefi para o seguir até um corredor escuro, onde reinava o cheiro das barricas de cerveja. Os joelhos tremiam-lhe de fome e de fadiga, o que lhe dava a ele próprio uma lamentável impressão. Expôs a sua situação. Continuava a chover e ele não podia mais. Aludiu às suas possibilidades, à carta de Meyer, ao film incombustível, achou-se com o ar de um cavalheiro de indústria. Pôs as suas mãos entre Vefi e a porta e reteve-a. Ela deu-lhe coragem, consolou-o, passou-lhe a mão pelos cabelos. Era quási tão alta como ele, de raça forte e vigorosa. Ficou de pé na sua frente, podendo beijá-lo em plena boca. O seu avental rescendia a salsichas. De súbito, ela teve uma resolução fogosa:
- Na sala do restaurante não é possível, o patrão vê tudo; mas se o sr. Hell quer esperar no meu sótão, levo-lhe qualquer coisa de comer. - murmurou, dando a Hell pequenos empurrões doces, ternos e agitados, para uma esquina do corredor.
Confusas ideas trabalhavam na cabeça de Hell: "Comer... sótão... Vefi..." Ele sentia que estava em via de tomar um compromisso, mas não opunha nenhuma resistência. Por trás das pernas vigorosas da Vefi subiu por uma espécie de escada de capoeira, chegou a uma obscuridade profunda e foi empurrado para uma cama que, à camponesa, cheirava a palha fresca. A Vefi acendeu uma vela que espetou numa garrafa. Diante da fresta, a chuva corria e o tecto de ardósia ressoava com o sussurro da chuva. Vefi olhou, com ternura, o mestre de natação.
- O sr. Hell gosta um pouco de mim ? - perguntou, desajeitada.
- Muito. - disse Hell, olhando aquela cara de mulher firme e afectuosa.
- Imediatamente, sr. Hell, terá qualquer coisa de comer.- disse ela, desaparecendo na escada.
Hell teve uma pequena conversa com a vela que lhe fazia companhia.
"Aqui está onde nós chegámos. E acabou-se a história. Durante todo o verão, resisti às mulheres para chegar a isto. Para pagar uma salchicha, meto-me na cama com a criada. e no fundo, isto não te desagrada, porco que tu és! E May?"
Este nome afligiu-o. Este pensamento afligiu-o, o pensamento de May, ali naquela mansarda.
"-May"-pensou ele, cheio, como nunca, de saudades, sentado sobre a palha que crepitava debaixo dos cobertores de quadrados vermelhos.
No meio da sua desgraça e da sua decadência era uma pequena consolação sucumbir precisamente ao pé da Vefi, depois de se ter valentemente debatido contra todos os perigos do Lago das Damas. Pois sendo apenas a Vefi, ele não era inteiramente culpado. A Bojan teria sido pior, ou Carla, ou Puck.
A Vefi chegou mesmo no meio das suas meditações, rindo e carregando uma porção abundante de salchichas. Trouxe também uma garrafa de cerveja e tudo foi disposto, de forma apetecível, numa mesinha que aproximou do leito onde Hell estava.
A Vefi via-o comer, o que o acanhava um pouco porque engolia avidamente. Ela articulou algumas desastradas palavras de amor:
- Queres-me? Eu quero-te! Agrado-te? Tu também me agradas. Ficas comigo esta noite?
- com certeza. - disse Hell, fracamente. Bebera a cerveja toda e a sua cabeça tornava-se
pesada e turbilhonante. Tinha a impressão de ter sonhado com salchichas e com a Vefi, assim como com o mercado e o resto, nas últimas noites.
- Tu és boa.-murmurou ele, tomando a Vefi nos seus braços e encostando a cabeça pesada contra aquele peito quente.
Sentia uma sensação engraçada nas palmas das
mãos como se tivesse entre os dedos grandes objectos curvos, borrachas monstras para apagar ou coisas desse género. Estendeu as mãos e cingiu a Vefi. Quando era criança... lembrava-se obscuramente... sentira a mesma impressão nas mãos, quando tinha febre.
- Aqueces-me. - disse Hell, encostado contra a
respiração do peito da Vefi.
- Estende-te um pouco e espera-me. - murmurou ela - Ainda tenho que servir lá em baixo, mas não me demoro. Daqui a nada volto. Fica aqui.
Agarrou nos pratos e desceu. A chuva caía. Hell deixou-se tombar sobre as almofadas e fechou os olhos; as fontes latejavam, mas não pôde retinir os pensamentos. Dali a pouco, abriu o colarinho, desabotoou a camisa e tirou os sapatos húmidos. Sentiu uma tremura e deslizou na cama, já meio adormecido. Depois estendeu os braços, porque o cotovelo doía-lhe com todos os movimentos. A seguir pôs-se a escutar a chuva, olhando fixamente para a vela.
Quando a Vefi voltou, uma hora mais tarde, o sr. Hell estava a dormir e a vela continuava ainda acesa. A Vefi sorriu, cruzou as mãos e olhou para o rapaz. Ele sonhava à maneira de um cão; às vezes, os dedos tremiam-lhe, outras torcia a boca. As madeixas dos cabelos, de um loiro pálido, não estavam já correctamente puxadas para trás; caíam-lhe para a testa cercada de rugas claras. A Vefi tinha um filho natural, em qualquer parte, na montanha; sentiu uma emoção maternal, inclinou-se sobre o sr. Hell e, com precaução, levantou-lhe os cabelos da testa. Ela reflectiu, ficou um pouco indecisa e, por fim, desprendeu a correia da sua bolsa.
- Ouve, já cá estou... - murmurou depois, sacudindo-o, ao princípio fracamente, depois com mais
força, no ombro.
Hell soltou um suspiro e continuou a dormir. A Vefi ficou um tanto desiludida, mas também um pouco comovida; ele agradava-lhe tanto, deitado na sua cama como uma criança! Passou-lhe a mão pela cara, que ardia.
-Pobre diabo, está fatigado e esfaimado!" pensou, cheia de compaixão.
Estendeu-se debaixo da roupa, apertou os braços em volta do pescoço dele e deu-lhe um beijo longo e firme, na boca. Daí a algum tempo o sr. Hell resmungou qualquer coisa indistinta, voltou-se para a parede e continuou a dormir. A Vefi olhou à sua volta, pegou num dos sapatos e deixou-o cair ao chão, com ruído.
Mas o sr. Hell não acordou.
"-Se ele está assim tão fatigado, é preciso deixá-lo dormir." - pensou ela, rendendo armas.
Soltou um suspiro de decepção, profundo e convencido. Depois, sentou-se na borda da cama, junto aos pés do sr. Hell, metidos nas peúgas passajadas.
Cruzou as mãos nos joelhos, apagou a vela e suspirou mais uma vez. Mas, por fim, adormeceu também, no meio do quarto padre-nosso que o sr. confessor lhe tinha dado de penitência, por conta dos seus pecados.
A sr.a Paulina Mayreder estava numa situação embaraçosa. Via os banhistas irem-se de mala feita e ela não podia arrancar-se do Lago do Amor, onde havia uma praia e um mestre de natação. Uma espécie de paralisia se tinha apoderado da sua pessoazinha um pouco curta e tão resoluta, um reumatismo de coração a que quási se podia dar o nome de amor.
Isto tornava-a inquieta: um dia estava muito triste e outro muito alegre, ia de um lado para o outro, beijando Pamper, abraçando o marido... mas com isto, nada remediava. Estava muito descontente consigo própria; mesmo sem querer, pensamentos inconvenientes perseguiam-na por vezes. Entregava-se conscienciosamente à gimnástica, e havia certo tempo, tomava o café sem nata nem açúcar... e, a-pesar-de tudo, o seu caso parecia desesperado.
Mal a chuva acabou, a sr.a Mayreder vestiu o seu impermeável e seguiu pelo passeio do lago, até ao balneário. Viu Hell e ficou um pouco aflita:
- Santo Deus, que mau parecer tem!...-disse ela, fixando-o.
-E, no entanto, estou perfeitamente.-replicou Hell, que preferia tudo à piedade.
Um vento glacial e húmido soprava, o banho tinha um ar triste e deserto.
- Quer realmente entrar na água com este frio ?
- perguntou ele, admirado.
Que restava à sr.a Mayreder fazer?
- Quero. - respondeu, heróica.
Hell, de mau humor, foi ao seu quarto vestir o maillot e o roupão. A sr.a Mayreder, por seu lado, cercou-se de folhos de malha de seda; mas estava cheia de pele de galinha. O ar gelava.
- Queria aprender o crawl, sr. Hell. - declarou a sr.a Mayreder, tomando uma brusca decisão.
Viu diante de si numerosas lições de natação, todos os dias uma lição de natação, todos os dias o sr. Hell...
- O cinto mais largo, se faz favor... - murmurou envergonhada, com os joelhos a tremer.
- O crawl... muito bem... porque não? - disse Hell, descontente.
Era preciso tirar o roupão de banho e começar, para mostrar os movimentos, primeiro no ar, depois na água. Mergulhando, como para uma corrida no lago, cheio de frio, sentiu-se mal. Nadou num crawl clássico ao longo do pontão, trinta metros para ida e trinta para volta; o braço fazia-o sofrer a cada momento.
- Aqui tem como é preciso começar. - disse Hell, saindo da água.
Pegou na corda e meteu a sr.a Mayreder no lago turvo, cheio de água gelada. Depois de três minutos atrozes, durante os quais ela fez tudo ao contrário, com a cabeça hidrófoba enterrada na água espumosa e sufocante, a senhora Mayreder fatigou-se. Isto era superior às suas forças. Quando voltou a estar vestida e que, para tranquilizar o seu inquieto coração, quis conversar alguns minutos com o mestre de natação, ele tinha desaparecido.
Fora buscar à caixa os seus trinta groschen e correra à aldeia para comprar pão.
No dia seguinte, o tempo estava melhor e fazia mais calor. O banho continuava deserto. Pelo meio-dia, a senhora Mayreder reapareceu e voltou a dar a Hell
O ensejo de ganhar mais trinta groschen. Nesse dia, Hell não entrou na água, estava vestido até ao pescoço, tinha sobre si o impermeável com a gola levantada.
- Não sei porquê, mas estou gelado dia e noite.
- disse ele, descontente, olhando para a sr.a Mayreder, com um olhar vago.
- Sente-se mal ? Meu marido é médico, pode examiná-lo.-respondeu ela, inquieta-Venha ter connosco à pensão Seespitz.
- com muito gosto, obrigado... com certeza.-replicou Hell, pensando num menu de quatro pratos.
De-resto, ele já não sentia verdadeira fome, o seu estômago tornara-se pequeno e duro como uma pedra. A sr.a Mayreder era muito pudica e Hell muito tímido; o convite ficou suspenso no ar, como a corda de um prestidigitador, e nada se seguiu. Mas à tarde, a senhora Mayreder deixou-se mais uma vez arrastar ao banho que, com a sua areia molhada e a sua bandeira estragada pela chuva, era um lugar de lamentável desolação.
- O sr. Hell foi jantar. - anunciou Matz - Naturalmente foi ao Schwoisshackel.
Hell, orgulhoso, mantinha aos olhos do sr. Birndl a ficção de um jantar diário. Na verdade, ele não tinha querido voltar ao Schwoisshackel depois da aventura comprometedora com a Vefi, mesmo tendo dinheiro. A sr.a Mayreder errou através da aldeia, de restaurante em em restaurante, perplexa. Andava pela praça perscrutando com o olhar as salas dos restaurantes fumarentos, através dos vidros velados pelos vapores.
- Perdão, procuro o meu marido... - dizia ela, envergonhada consigo própria até ao mais fundo do seu ser.
Mas não estava em estado de poder voltar para casa sem sentir mais uma vez, nessa noite, a grande mão seca e quente de Hell. Diante da estação encontrou-o emfim, e ficou um instante ao lado de um castanheiro para poder observá-lo sem ser vista. Hell, que minutos antes, tinha ainda carregado uma mala, estava numa
atitude singular diante dos horários do caminho de ferro, fixando-os com insistência, sem se mover, levando a mão de vez em quando ao bolso para tirar qualquer coisa que mordia num movimento furtivo, que causava d ver. Fêz-se luz na sr.a Mayreder, sobre a situação desgraçada de Hell; esta certeza confrangeu-lhe atrozmente a garganta, despedaçando-a numa dor até então desconhecida.
- Como passou, sr. Hell? - disse ela, compreendendo logo o que devia fazer - Como folgo em vê-lo. O Lago das Damas tornou-se tão aborrecido.... Quer jantar connosco esta noite? Meu marido teria com isso muito prazer e a mim fazia-me companhia para o regresso neste caminho do lago que não tem fim.
- É muito amável. - replicou Hell, elegante, engolindo o último naco de chocolate - É verdade que já jantei, mas acompanho-a com prazer.
Isto era uma pura mentira. Hell acompanhou a sr.a Mayreder sem nenhum prazer. Tornara-se muito irritável. Desejava sossego. Esta mulher fazia-lhe mal aos nervos com os seus olhares carregados de sentimento e a sua voz que tremia ligeiramente todas as vezes que se lhe dirigia. Deixava sempre um segundo a sua mão entre as dele, quando lhe dava os bons dias. Esta maturidade, bem alimentada, quereria cativá-lo como a Vefi, com uma refeição quente?
"-Sopa, - pensou entretanto - Bceuf à Ia mode. Arroz à imperatriz."
Havia dias em que os mais extraordinários pratos se apresentavam ao seu espírito com uma tal precisão, que os sentia na língua e julgava engoli-los. Às vezes, sentia-se mergulhado num vácuo profundo, sem ideas e duro como uma pedra. Depois, sentia ligeiras dores no occipicio, pulsações surdas no braço suspeito e parecia que estava prestes a assobiar o shimmy de Honolulu.
Couve-flor au gratin!-ouviu-se de súbito dizer, e pareceu-lhe estar no meio de uma conversa galante e muito hábil. Parecia-lhe, coisa estranha, que dois ou três Urbanos Hells passavam ao mesmo tempo no passeio
do lago. Um tinha dores e o outro era um pobre diabo. Costeletas de cabrito com creme, barbo com manteiga, pensava o segundo.
O outro, muito cortês, estava a dizer:
- Mas como, minha senhora? Uma mulher um pouco cheia é mais interessante; os homens preferem infinitamente isso, acredite-me, sou conhecedor.
Tinham já passado além do bosque e entrado pela alameda que ia dar à pensão Seespitz.
Parece-me que estou doente -pensou um dos Hells. Há qualquer coisa em mim, que não vai bem. O outro passou o braço esquerdo, intacto e sem dor, no da sr.a Mayreder e ganhou a sua ceia com discursos frívolos.
Nessa noite, houve na Seespitz uma salada russa, roastbeef guarnecido com legumes, compota, torta e queijo. O que era estranho era que Hell não sentia prazer em comer e que, ao voltar pelo passeio do lago, pareceu-lhe que devia cair à água, desmaiar primeiro e morrer logo depois, para acabar com tudo aquilo.
- Precisas de aprender a nadar. Pamperl receberá lições de crawl e eu também. - disse a sr.a Mayreder com decisão, nessa mesma noite, a seu marido, que ficou profundamente consternado - Falei com Hell. Está na miséria, morre de fome e não quere que se dê por isso. Nunca aceitará uma esmola. E se nós tomássemos lições de natação, lições particulares que ele nos desse aqui, no pavilhão de banhos de Seespitz? Tu podias pagar-lhas um pouco mais caras e ele comia connosco. Pode ser que não dê por nada e venha de boa vontade. Tem uma cara de Jesus crucificado, o pobre rapaz, tão novo e tão bonito!
- Mas para que é preciso que eu aprenda a nadar? Convida-o as vezes que quiseres sem lições de natação.
- disse o dr. Mayreder, desalentado.
- Sem lições não aceitará o convite.- replicou ela. Assentaram pois na resolução delicada e corajosa
da sr.a Mayreder.
No dia seguinte, Hell, depois do seu serviço no balneário, foi ao Seespitz dar lições particulares. Não
chovia mas estava frio. Neve fresca cobria as montanhas, cujos cimos tinham barretes de nuvens. O pequeno pavilhão de banhos da Pensão Seespitz repousava, calmo e cheio de frio, no lago liso que o tempo de chuva tinha tornado azul-escuro. Todos os vinte minutos o barco a motor atracava, mas sem trazer visitantes. Hell tinha levado o fato de banho e a corda, e mudava-se numa das cabines; a família Mayreder ocupava a outra e não ficava mais nenhuma. O ventre do sr. Mayreder parecia o de um lutador chinês e o seu horror à água ultrapassava todos os limites. Antes de mergulhar no lago, quási chorou, e à saída parecia um cadáver de afogado. Pamperl, esse, era corajoso, mas, depois de estar um minuto na água glacial, tornou-se azul; Hell teve de o retirar do lago e friccioná-lo. Depois ele saltou à água, passou um braço - o são - sob o corpo da sr.a Mayreder e fez a diligência para lhe ensinar o crawl, desejando seriamente merecer o jantar. Foi só quando o sr. Mayreder lhe deu três schillings dentro de um sobrescrito que Hell começou a desconfiar da bondade heróica com que aquela família corpulenta, hidrófoba e sem talento, se encarniçava a receber lições de natação para lhe dar lucros. O seu sentimento de honra em que tinha tanto mais melindre quanto pior era a sua situação, deu logo sinal.
- Como quer que aceite dinheiro, doutor? Convidou-me.. janto consigo... sou seu hóspede... creia que não posso fazer-me pagar.
- Diga, meu rapaz, tem febre? - perguntou o dr. Mayreder, pegando na mão direita, ardente, de Hell, que fazia o gesto de recusar o dinheiro.
- Não. - replicou Hell, furioso - Estou quente e o senhor está frio, mais nada. Estou habituado à água.
Mas ele não tinha o mínimo calor. Um pouco mais tarde estava sentado na sala de jantar onde os banhistas eram já raros, tremendo como uma castanhola. Pamperl estava na cama com uma botija. A sr.a Mayreder, envergando dois casacos de malha, era uma bola de lã, agitada e trémula. Hell sentiu obscuramente que
se devia mostrar agradecido para com aquela mulher. Por delicadeza, encostou a perna à dela por debaixo da mesa; às vezes os seus joelhos tremiam de frio, o que fazia empalidecer a sr.a Mayreder. Mas era apenas um mal-entendido.
No dia seguinte, à tarde, Hell descobriu o braço negro e inchado como o dum preto da floresta virgem.
- Que é isso? - disse o dr. Mayreder, espantado. O medo da lição de natação estragara-lhe o dia
inteiro, mas a sr.a Mayreder estava radiante a-pesar-da temperatura ser apenas de onze graus.
- Tintura de iodo. - disse Hell, tocando no braço, com prudência - Comprei hoje um pouco de tintura de iodo, aquela feridita que fiz outro dia inchou um bocadinho.
- Isto não tem boa cara. Faça compressas com acetato de alumínio e não brinque com estas coisas.- disse o dr. Mayreder.
Silencioso, Hell agarrou na corda e despediu-se logo que a lição terminou. Estava com uma indisposição de estômago, disse, deixando à sr." Mayreder a decepção de uma noite vazia. Quando voltou no dia seguinte, tinha olhos de peixe cozido e o braço apresentava uma ligadura mal feita.
- Pode nadar assim? -perguntou a sr.a Mayreder.
- Bem, não posso precisamente fazer uma corrida mas posso entrar um pedaço na água e mexer com as pernas... até me dá prazer.- afirmou Hell.
Tinha havido nevoeiro. A temperatura subira ligeiramente. Na água escura, em frente do pavilhão, nadavam larvas de insectos mortos em grande quantidade, tristes e pouco agradáveis à vista.
O dr. Mayreder, na sua corda, gemia e sofria como se lhe tirassem a vida. Hell em breve o libertou. Depois, a sr.a Mayreder chapinhou na água com as costas curvas e as pernas hirtas. Era um verdadeiro milagre não se afogar. Quando ela bebia muita água, Hell segurava-a com o braço intacto. Recusou a refeição com
uns agradecimentos um tanto hesitantes, e pediu simplesmente um pouco de leite a ferver.
Às nove da noite descobriram subitamente que havia lua cheia. O espectáculo do quarto crescente passara-se atrás de uma parede de nuvens e eis que, de-repente, se rasgaram e descobriu-se um céu nocturno puro e calmo; uma lua vermelha, redonda e gigantesca, ardia suavemente na profundeza do céu.
No Lago do Amor foi logo organizado um divertimento para distrair os raros banhistas. Alguns foguetes subiram, três verdes e dois vermelhos, depois mais dois que falharam. No Grande Pettermann havia música.
- Gosta de dançar? - perguntou a sr.a Mayreder que, com Hell, tinha saído para o terraço.
-Apaixonadamente. E a senhora? Se tocássemos o gramofone?-perguntou Hell, o mais despreocupadamente possível, atendendo à sua lamentável disposição.
Parecia-lhe sempre que era devedor a esta sr.a Mayreder, que ela esperava um pagamento que lhe era impossível realizar.
- Não danço, já não é para a minha idade.- disse ela
- Mas eu peço-lhe...- insistiu Hell, com esforço.
- Não... não... deixe... não é para a minha idade. Tenho-o percebido nestes últimos tempos... sim, precisamente, nestes últimos dias. Eis do que se trata: nós, mulheres, esforçamo-nos por resistir, defendemo-nos, esperamos ainda qualquer coisa. De-repente, tudo acaba. Já não se conta mais. É a vez das outras mulheres, das mais novas ... das Lyssenhop...
Hell estremeceu. Este nome bateu-lhe no peito como uma bola de quatro quilos.
A sr.a Mayreder reteve, pestanejando, umas lágrimas, prestes a jorrarem dos olhos. Estava muito triste. A música do Petermann acompanhava a sua tristeza. Estava triste, como se tivesse dezasseis anos, de uma tristeza estúpida, jovem e exaltada. Decidiu-se a pronunciar qualquer coisa de definitivo e para isso retiniu as suas forças.
- Gostava que tivesse boa opinião a meu respeito, sr. Hell.- disse ela-Nestes últimos dias tem tido tanto trabalho para me fazer a corte! Bastava olhar para si para ver o esforço e o desgosto que isso lhe causava. Mas eu não quero. Por quem me toma? Imagina que espero de si qualquer coisa? Nunca na vida. Tenho o meu marido e tenho Pamperl. Você deve ter feito curiosas experiências com as mulheres...
- Realmente... Em todo o caso...- disse Hell, de coração contrafeito.
- Não me importune... é tudo quanto lhe peço. Não exijo que me diga pequenas inconveniências e que me pise em segredo, fazendo uma cara de dores de dentes. Só quero que me diga, se qualquer coisa o incomoda e que venha ter comigo, como faz o Pamperl, quando tiver desgostos. Às vezes, talvez eu o possa ajudar. De-resto... sim... já passei por algumas coisas este verão. Mas já tenho idade para resolver sozinha estes pequenos negócios, sem assistente. Quisera poder pensar em si com amizade e que também pensasse em mim com amizade. Eis tudo.
Hell estava confuso e aliviado, ao mesmo tempo.
-"Mas, no fundo, é uma mulher gentil!"-pensou, admirado.
Ficou surpreendido, ao constatar que uma mulher mal feita e tão má nadadora, pudesse ter qualidades respeitáveis.
- No fundo, é uma senhora gentil. - disse, num tom tão surpreendido, que, a-pesar-das dores que o coração da sr.a Mayreder sofria, ela não pôde deixar de se rir.
No Lago do Amor, um pequeno ponto amarelo elevava-se no ar, com explosão, caindo na água sem se acender.
- Veja, é isto:-disse a sr.a Mayreder, sentimental mas bastante razoável - o último foguete. Não se acende. Cai na água. A miragem acabou. Agora, vá ter com meu marido. Gostaria de ficar aqui, só, ainda um pouco.
- Muito obrigado. Obrigado de todo o coração, -disse Hell-Boa noite e, se eu adoecer, chamarei por si, a chorar, como o Pamperl... Está combinado ?
A sr." Mayreder soltou um suspiro e seguiu com os olhos a nuca de Hell que entrou no clarão da sala de jantar para desaparecer em seguida. Ela contemplou a lua que os nevoeiros começavam a envolver; depois, meteu no peito um pequeno caixão, cheio dos seus últimos entusiasmos apaixonados, com as pequenas recordações, os pensamentos exaltados de uma mulher que quer acabar com tudo aquilo.
- Penso que podemos voltar para casa na próxima semana.- disse ela, ao deitar-se, com os pés gelados, ao senhor Mayreder, que se dispunha a ler o "Wiener Tagblatt", da véspera.
Hell voltou para casa e começou por renovar a ligadura em redor do braço inflamado. Sofrera todo o dia porque a gaze do penso estava embebida em água por causa da lição que dera aos Mayreder e tinha-se colado, molhada e pesada, sobre a pele dolorosa. Sentia náuseas só de pensar no cotovelo.
"-Que porcaria. " - disse ele, severo, à sua ferida que se tinha fechado mas conservava um ar suspeito e inchado.
A mão direita estava ardente e insensível; para a castigar, bateu várias vezes contra a mesa. Doeu-lhe horrivelmente, até aos maxilares. Mas depois, Hell pôs-se a lavar os dentes e foi assaltado por uma terrível tremura, à qual se entregou por instantes como uma árvore à tempestade. Depois, abandonou tudo, tudo lhe foi indiferente, tudo parecia afastar-se dele e tornar-se-lhe estranho. Meteu-se na cama; a roupa estava sempre um tanto húmida no seu cubículo, debaixo de cujo chão passava o lago. Hell não tinha desejo de apagar a luz, parecia que para isso era necessário um prodigioso dispêndio de energia. Os tabiques da cabine afiguravam-se-lhe maus e hostis, os nós da madeira tornaram-se olhos. Depois,-estranho!-desdobrou-se.
"Não há dúvida, tenho febre". - pensou um dos Hells, sentindo nas mãos qualquer coisa de gomoso.
Depois entrou na sala das máquinas onde fazia um calor horrível. As pessoas estavam em fogo e ele sentia os seus ombros e as suas costas a arder. Tirou a camisa. O terrível era que um deles tinha o braço preso na transmissão, o que lhe causou dores insuportáveis.
"- Se acontecem coisas destas aos engenheiros-chefes, May casará com o director Wucherpfennig" disse o sr. Lyssenhop.
Arrastaram Hell para fora da sala; Anikuschka seguiu-o levando o braço arrancado do qual escorria serradura. O leito ficou coberto de serradura; Hell, pouco à vontade, agitou-se entre esta corrente. Fora, um homem estava sentado debaixo de uma árvore, colhendo cerejas e enchendo-se como um louco. Hell foi-se embora, ofegante de raiva, querendo gritar mas não lhe saindo um som da boca. O homem das cerejas limitou-se a rir. Era Hell em pessoa. Hell sacudiu a árvore, raivoso. O homem caiu no chão e partiu qualquer coisa. As cerejas sentiram a dor e puseram-se a sangrar; pelo caminho, corriam formigas. "Estou farto já"- pensou Hell - "vou acordar". E foi o que fez. Tateou a custo em cima da mesa à procura de água, não encontrou o jarro e foi à cozinha de sua mãi. A mãi estava sentada na carvoeira, tendo sobre os joelhos um velho almofariz de latão e pisava pimenta.
Na cozinha estava igualmente muito calor e a pimenta mordia-lhe a pele. Hell montou na bicicleta, que sua mãi tinha desempenhado do Montepio e partiu para os Dolomitas. Os Dolomitas eram muito a pino mas numa espécie de cartão que se deformava. Bum, bum, bum... batia a mão do almofariz.
Era por assim dizer impossível fazer duzentos metros nesses Dolomitas. May tinha que ali estar com o cronômetro para lhe fazer sinal. A mão do almofariz também ennervava Hell, que pensava: "Hoje não será um dia bom." Caiu da bicicleta em cima de um monte de pedras; uma pedra ponteaguda enterrou-se-lhe no
cotovelo. Mexeu-lhe um pouco, depois deixou-a tranqüila e voltou para casa da mãi através do laboratório. Bum, bum, bum, fazia o almofariz. Uma horrível máquina, absolutamente mal construída, produzia films incombustíveis. As fitas desenrolavam-se, misturavam-se, amontoavam-se, enchendo todo o laboratório, porque a mãi continuava a pisar no almofariz. De súbito, alguma coisa se rasgou, e o film incombustível ardeu. Ardia como uma chama clara, quente, cintilante; Hell, impelido pela explosão, caiu ao chão. Abriu os olhos o mais que pôde, sentiu o tumulto do coração e fixou, espantado, o candeeiro de petróleo que não tinha apagado. Este ardia sempre, muito vermelho, terminando por um fio de fuligem. Cheirava mal. Hell juntou os vários Hells que a febre tinha feito de si, depois, ficou sentado durante alguns minutos na cama desfeita, com a cabeça pesada e inclinada para diante.
- Atenção. - disse-Onde estou eu? Que se partiu? Feri-me num prego ferrugento. Este braço faz-me delirar. Não estou em mim, tenho febre. Não se brinca com isto. Amanhã mostrarei toda esta trapalhada ao dr. Mayreder.
Bateram uma pancada. Sentiu-a no coração, no pulso nas pontas dos dedos, no ombro, no cotovelo, em toda a pele. Mas era inegável que alguém batia da parte de fora: bum, bum, bum, como o almofariz do sonho. Batiam à porta da cabine. Hell fez um esforço para voltar a si.
- O que é? Quem está aí? -perguntou, com essa voz rouca que se tem de noite.
- Sou eu, a Puck. Abre a porta.
Isto era admirável. Hell, na sua disposição de espírito pouco clara, não percebeu logo; pôs os pés no chão e saltou da cama. As paredes pareceram-lhe escorrer durante alguns segundos e, em seguida, voltar o mau cheiro do petróleo. Pegou nas costas da cadeira. Meu Deus, como isto custava! E disse:
- Entre, está aberto.
Hell não ficaria mais surpreendido se alguma coisa de ilógico, fantástico, febril tivesse acontecido. Mas
tudo se passou em limites razoáveis. A porta abriu-se e Puck entrou. Ela tinha exactamente o aspecto do seu primeiro encontro, a capa de pano tirolês posta pela cabeça, o vestidinho de algodão, as botas grossas; estava molhada de alto a baixo. A sua pessoa trazia frio e humidade à cabine. Mesmo sob o tecto, a chuva, o eterno ruído de verão do Lago das Damas, tinha voltado a cair.
- Ah bem; és tu? Que queres? Que vens fazer, no meio da noite, ao banho? - disse Hell.
Endireitou-se sobre os pés nus e conseguiu manter-se normalmente diante de Puck, no seu pijama, que ele próprio tinha remendado. Puck não trazia boa cara, quási como se também tivesse febre. Estava pálida, trémula, de olhos encovados e brilhantes.
- Atravessei com a minha canoa. É só uma hora. Temos visitas. A mamã convidou gente de teatro, eu fugi. - disse Puck. com um gesto vago, fez sinal para trás, para a chuva negra-O Tigre também lá está na canoa. - acrescentou.
Isto era dito em tom angustioso e pedia protecção. Ela fechou a porta, encostou-se-lhe com uma expressão de fadiga e decisão que, através dos véus da febre, chegou a atingir Hell.
- Bem, e que me queres tu ?
- Não podia mais. Lá em baixo todos estão alegres. Não podia mais. Pensava sempre: Hell, Hell, Hell. E agora vejo-te, Hell.
- Tu és... ouve, Puck: não se fazem visitas a senhores, de noite, provavelmente ninguém nunca te disse isto.-notou Hell, perturbado.
- Nunca. De-resto, isso nada mudaria as coisas. É preciso que eu esteja junto de ti, não posso viver assim. Tu nunca vais à outra margem, o papá diz que tu nada tens que ver no País das Tulipas. Diz que não quer que tu voltes. Mas Hell, nunca mais... é impossível. Tenho dezassete anos e quem sabe se chegarei aos oitenta. Querias tu que eu nunca mais te visse... nunca mais, Hell ? Então, vim ter contigo..
- Mas sim, Puck, és muito gentil, mas que queres que eu faça agora de ti?
Puck, tímida e exigente, estendeu uma pequenina mão no ar.
- Ah Hell... - disse docemente - Tu é que deves saber. Eu exactamente, não sei. É preciso que ponhas tudo outra vez direito.
Hell, deixando as costas da cadeira, cambaleou na direcção de Puck.
- Como és pateta, minha pequena, minha querida...
- disse ele, passando-lhe a mão esquerda pelos cabelos húmidos.
Na direita havia dez mil diabos à solta.
- Sim. - murmurou Puck - E isso, ainda... mais... mais ainda, Hell.
Ela fechou os olhos abrindo a boca como para beber. A expressão que ele lhe viu no rosto horrorizou Hell. À pressa, retirou-se para trás da cadeira. Mas ela seguiu-o.
- Escuta, Puck: - disse ele - não me sinto bem esta noite. Sê boa e volta para casa. Amanhã tornaremos a conversar. Vem amanhã na canoa. Agora tenho vontade de dormir.
- Compreendo, tens vontade de dormir. Eu também.. eu queria dormir. Ah como eu queria voltar a poder dormir! - replicou Puck, muito docemente, cheia de desejo e de saudade-Mas se tu soubesses como se sofre de noite, Hell! Fico tão inquieta, Hell! Noite e dia é como se tivesse de morrer de fome! O meu coração tem fome, os meus olhos, a minha boca, as minhas mãos, toda a minha pele, tudo tem fome, tudo, Hell. Fome de ti! Às vezes, tenho vontade de gritar, como uma criancinha, até me tornar vermelha e azul. Aqui tens. Às vezes, queria fugir, fugir de mim mesma, não sei para onde, para cima, para o Dente de Ferro ou então para baixo, para o Lago. A Lenitschka fêz-me chá. Mas para quê? Sinto bem que só tu podes ajudar-me. E tu, tu não sentes nada!
Hell sentiu alguma coisa. Apagado, longínquo, por trás das paredes da febre, sentiu uma inclinação fina, surda, reconhecida, por essa mulherzinha apaixonada. Entretanto, pensou de-repente: May. Entreviu qualquer coisa bem torneada, clara como o dia, que era para ele tão homogénea como Puck lhe era estranha, e o pequeno entusiasmo acabou.
- Não se deve ser exaltada a esse ponto, Puck, são coisas doentias. - disse ele, severo, tanto para si como para Puck.
O braço estava doloroso, pô-lo em cima da mesa como um objecto. Tinha sonhado coisas desagradáveis e esquecera-as. Correra serradura de qualquer sítio. A lembrança vaga fez-lhe fechar a boca.
- Então queres mandar-me assim embora? Nada tens para mim? Não queres ajudar-me? -perguntou Puck, com voz profunda - Não gostas um pouco de mim?
- Sim, Puck. Mas nisso há muitas diferenças. Tu és a minha amiguinha da outra margem, compreendes?
- Isso não é bem. Procedes mal, Hell. Que fizeste de mim? Vais à outra margem, acaricias-me, beijas-me, sim, Hell, tu beijaste-me, fizeste-o muitas vezes, e isso atravessava-me de um lado ao outro como uma faca. Como se tu me tivesses cortado em duas metades e uma das metades não quisesse mais deixar-te. Ultimamente, no celeiro do trigo, foi como... eu senti que me transformava em macieira, não é para rir que te digo isto, Hell; sentia-me como uma macieira, tudo em mim se tornou pesado, tão doce, tão cheio de seiva que nem te sei dizer! Não posso mais viver sem ti e tu queres mandar-me embora? Se não gostas de mim, Hell, para que me fizeste tudo isto? Foi de mais para mim!
Hell, durante uns instantes, sentiu-se de novo encafuado no escuro, cheio de dores surdas e do tiquetaque das pulsações. Dirigiu-se às apalpadelas para a cama e sentou-se. Puck seguiu-o, apertou-se contra ele, estendeu a boca como para uma fonte.
- Sê bom para mim... - murmurou ela, na sua ignorância cheia de intuições.
Quis agarrá-lo. Este toque causou nele uma dor que, atravessando-lhe o ombro o feriu no cérebro. Estendeu o braço, gemeu devagarinho, depois irritou-se. Durante todo o verão tinha sido delicado. Tinha tido fome, tinha estado gelado, transpirado, tinha trabalhado, tinha-se atormentado, tinha suportado degradações de toda a espécie. A-pesar-de tudo, assobiara e rira e levara tudo com bom humor. Tinha sofrido um grande amor, em suma, bastante infeliz. Deixara que o mostrassem diante do balneário, abandonado aos piores ataques da gente feminina do Lago do Amor, correndo como um cão atrás da comida. Engolira, num sótão, uma salchicha cuja lembrança o fazia corar, e tinha estado exposto a tentações indiscretas de novas e velhas, direitas e corcundas, da surda-muda, menina Brinkmann e da loquaz senhora Mayreder. Lá se livrara e ficara limpo tendo sido amável com toda a gente.
Provavelmente Puck valia mais que toda a outra gente, pois tinha todos os dias mais encanto de originalidade e fizera por ele o que mais ninguém fizera no Lago das Damas; amava-o melhor, com mais ternura e mais inteiramente do que qualquer outra. Talvez até que, no fim de contas, esta criaturinha do País das Tulipas fosse feita de um estofo mais fino e mais precioso do que a própria May. (Mas Hell não dava por isso: o seu espírito simples e normal não fazia semelhantes análises.) E quando Puck, esta comovedora e deliciosa escravazinha Puck, tocou no seu braço, Hell rebentou. Nesse momento, as suas perturbações recalcadas rebentaram. Estava farto, e pôs-se a gritar com mais força do que a tempestade infernal do seu braço.
- Não me toques. - berrou ele - Que queres tu? Que me querem todas? Porque não me deixam em paz? Estou farto, farto até às pontas dos cabelos, estou farto. Não quero nada de vocês, não quero nada de vocês todas, pois ainda não deram por isso? Vocês
são indiscretas e não me deixam um momento de repouso. Correm atrás de uma pessoa até casa, têm-se eternamente estas estúpidas histórias de mulheres, todos estes aborrecimentos e choraminguices. Que me querem? Quem são vocês para me atormentarem assim? Por quem me tomam? Eu não sou um galgo, não sou sequer um galanteador, nem o vosso brinquedo de férias. Tenho mais que fazer, sou um homem sério e hei-de prová-lo. Deixem-me tranquilo; comigo não há nada a fazer. Tenho uma, uma só, entendem? uma e única e todas as outras me são indiferentes e nada tenho que ver com elas. Está uma pessoa doente, não tem que comer, morre por assim dizer diante dos vossos olhos e vocês não vêem mais nada senão as vossas idiotas histórias de amor. Mas agora, mais não! Estou
farto, farto, farto.
E a este "farto", vociferado por três vezes, Hell fendeu o ar com o punho cerrado, emmudeceu e caiu na almofada, com o rosto febril e quási espantado.
Puck tinha recuado para a parede, até ao canto da aranha, os seus olhos estavam muito abertos e cheios de terror, como se visse diante de si um desabamento ou um tremor de terra. Qualquer coisa de horrível se passou no seu coração; respirou de-pressa e a respiração assobiava-lhe na garganta.
- É a mim que tu dizes isso? É a mim que me queres bater? - perguntou ela, gaguejando.
Mas como os seus lábios estavam tão cerrados e a garganta não emitia sons, esta pergunta ficou muda em si. Hell estava estendido na cama, voltado para a parede; tinha uma cara extenuada e o braço estendido a seu lado, como se fosse de madeira. A cabine estava cheia do cheiro de petróleo e pedaços de fuligem negra flutuavam no ar, elevando-se e caindo de novo. Puck foi maquinalmente baixar a torcida até que a chama fumarenta e vacilante se transformou numa pequena luz redonda e amarela. Envolveu-se na sua capa húmida e pôs o capuz pela cabeça.
- Agora vou para longe, pára muito longe...- disse ela, em voz seca, dura, apagada e depois esperou qualquer coisa que não veio.
"- Vai para o diabo.." - pensou Hell, no seu leito, mas não o disse.
Recomeçou a desdobrar-se e a produzir film incombustível na sala das máquinas. A fechadura da porta rangeu, uma rajada de ar fresco entrou e depois evaporou-se. Que ar triste ela tinha com a sua carinha sombreada pelo capuz, pensou um dos Hells, febril. O outro tinha tido a idiotice de mergulhar a mão no ácido muriático. O terceiro ficou estendido um tempo a fixar a luz, fez um esforço sobrehumano e saiu da cama. Apagou a luz e dirigiu-se às apalpadelas, deitou a cabeça para a noite, ao lado da goteira.
- Puck, não me queiras mal.-disse esse Hell, que não tinha perdido ainda inteiramente o conhecimento.
Mas Puck já não se via.
DE manhã cedo, um cão estava de pé na praia, um cão molhado, lamentável, e malhado; era o Tigre, que não cessava de soltar uivos desgarradores. Uma canoa vazia flutuava no lago; era a dos Dobbersberg.
Um criado da quinta, que todas as manhãs atravessava o lago, chegando da montanha, com uma bilha de leite às costas, agarrou-a e levou-a a reboque.
No castelo começou a elevar-se um murmúrio, uma inquietação. Procurou-se. A Leniuschka, de mãos torcidas, correu através dos quartos, das cocheiras, dos pátios, lamentando-se em tcheco, mas toda a gente compreendeu o que acontecia. Um criado subiu, ofegante, até onde a pequena baronesa se refugiava com freqüência, mas nada se sabia dela. A senhora estava agarrada ao telefone, o barão, pálido como um espectro, saltou para o cavalo e, ao acaso, foi procurar pelo vale de Wurmbach. Os convidados da casa cochichavam, alvoroçados; eram pessoas de teatro, de Viena; tinham estado alegres na outra noite e ninguém reparara que a pequena baronesa havia desaparecido. Um deles, alto e espadaúdo, de rosto vaidoso, envergava polainas de couro e pôs-se à frente de vários criados da quinta. A Bojan teve um ataque de nervos e levaram-na desmaiada para a gôndola. O rumor atravessou o lago, chegou à aldeia; no Grande Petermann formavam-se pequenos grupos, no passeio do lago conversava-se em voz baixa; que a pequena baronesa maluca era
maluca, sabia-se. Agora tinha-se deitado ao lago para ir ter com as vinte e quatro virgens do século XVI.
Era uma fresca manhã cheia de nevoeiro, embora a chuva nocturna tivesse parado. Todas as árvores pingavam, os telhados igualmente; de cada pedaço de erva, gotas silenciosas caíam sem descanso, no chão. Sobre o lago, o nevoeiro espesso estava em ebulição. Já não havia nem paisagem, nem montanha, nem casas, nem margem. Os sons só chegavam como passados por algodão: o sino da igreja, o trepidar do caminho de ferro, uma businã na estrada, o canto de um galo, o gramofone num restaurante cheio de uma alegria deslocada. Mais tarde as nuvens aclararam-se, tornaram-se finas e transparentes e depois um sol fatigado e fresco absorveu-as.
Sobre o lago, o barco a motor corria sem direcção, aos ziguezagues vagos na aparência, mas, na verdade, perseguindo o seu fim, como um cão a sua pista.
Os habitantes do Lago das Damas, espreitavam todos pelos telescópios, para ver. Na varanda, estavam sentados os últimos banhistas, no terraço do Grande Petermann, o sr. Eggenhofer dava explicações e o rumor entrava em Seespitz, onde os Mayreder começavam a fazer as malas. Quanto ao lago, tinha nessa manhã, um arzinho alegre e inocente, com pequenas vagas vivas, cinzentas-claras e cor do sol, que brincavam como lagartos, murmurando delicadamente de encontro à borda do passeio. Pequenos peixes subiam do fundo para fazerem um almoço de mosquitos, quási à superfície da água. Esses pequenos peixes de barrigas prateadas tinham qualquer coisa de inquietante nessa manhã; é que haviam vindo lá de baixo...
Três canoas rebuscavam o lago com canas, cordas, velhas redes, utensílios impotentes, incapazes de penetrar numa profundidade negra de oitenta metros. Uma das canoas era dirigida pelo actor de Viena, sombrio, bem feito e de voz forte. Noutra ia o barão; dir-se-ia que perdera o juízo. Mudo, apontava com a mão macilenta ora uma direcção, ora outra. Dois criados
seguiam as suas indicações, examinando a água e movendo-a com as varas. Nos lugares menos profundos, acontecia tocarem o fundo e bolas de ar elevarem-se para virem rebentar sem ruído à superfície. O terceiro barco que procurava, era o lento e largo barco de salvamento do balneário; o sr. Birndl, em pessoa, remava; o pequeno Matz governava e, na borda do barco, o sr. Hell, parecia dever cair de um instante para o outro.
Foi a Hell que procuraram primeiro, quando se tratou de ir revistar o lago. Ele saíra da cama, cambaleante, vestira o fato de banho e o roupão, e tinha tomado o barco. Não proferira palavra, nem se mostrara nada admirado. Isso provinha de Hell não conseguir chegar a saber claramente, se estava acordado ou se tudo aquilo ainda fazia parte dos seus sonhos febris e caóticos da noite. Tinha no braço uma ligadura sob a qual sentia pulsações dolorosas e, no entanto, singularmente estranhas; parecia-lhe que uma grande massa pesada e ardente de ferro em brasa lhe pendia do ombro.
Hell vacilava entre momentos de extrema lucidez e outros em que tudo lhe parecia incrível e irreal. Os seus lábios estavam secos como papel frisado, tinha mau hálito. Estava bronzeado... isso datava de melhores dias, mas os seus olhos estavam vermelhos e mortalmente doentes, no rosto emaciado e febril. A verdade é que existia ainda vontade nele, havia ainda uma considerável massa de estofo duro e inquebrável. Atenção, dissera a si próprio. Que tinha? Que acontecia? Puck tinha ido vê-lo, de noite. Puck queria dele qualquer coisa, que ele não lhe havia querido dar. Havia pronunciado palavras vis, muito vis. Depois, Puck fôra-se embora.
"- vou para longe, para muito longe."
Estas palavras continuavam a ressoar aos seus ouvidos. Na areia seca da praia apareciam traços das botas de montanha, de Puck. Louco de dor, Tigre não parava de correr da cabine de Hell para a praia e vice-versa. Entretanto, levantava a cabeça e soltava uivos horríveis. Hell também teria querido uivar, mas não
lhe era permitido. Apertou os dentes o mais que pôde para os impedir de bater.
"-Se Puck se atirou à água, a culpa é minha. pensou Hell, num momento de lucidez - Como, culpa minha?"
Ele não lhe tinha feito nada! Vivia simplesmente a sua vida, melhor ou pior, não dizendo nem fazendo senão coisas simples e normais. E, de-repente, encontrava-se metido numa desgraça e em histórias horríveis! Como saber se Puck estava realmente lá em baixo, se ela tinha feito isso? E se tudo aquilo não fosse senão um sonho, como o film incombustível que tinha ardido várias vezes durante a noite? Hell teimava em penetrar a parede de febre e de letargia atrás da qual vivia.
Ele não sabia quási nada. Mas, no Lago do Amor
- coisa incompreensível - já sabiam tudo.
Os pardais que, na rua da estação almoçavam excrementos de cavalo, falavam já nisso, que a pequena baronesa maluca se tinha suicidado - diziam eles-por causa do belo mestre de natação, num desespero de amor. E, um pouco mais tarde, o rumor elevou-se de que se tinha achado qualquer coisa muito perto do Seespitz, onde o lago se cobre de juncos e se transforma em pântano.
Hell inclinou-se na borda da canoa e fixou a água. Viu nessa água numerosas Pucks, numerosas pequenas Pucks humildes e boas. Havia umas que usavam capuz, outras que tinham ar de escravas javanesas. Havia as que comiam groselhas e as que estavam agachadas na cavalariça, com olhos vivos, as que queriam agarrá-lo por cima da borda da canoa que se mirava na água. Quando Hell viu isso, foi tomado de profunda vertigem; pensou, num instante: "Basta!" Dirigiu-se com energia para dentro da sua consciência e prendeu-se aí.
"-Se Puck se tivesse afogado, ela flutuaria!" pensou ele.
E chegou mesmo a dizê-lo, com a sua voz enferrujada, ao sr. Birndl, que concordou com um sinal de
cabeça. O sr. Birndl estava inundado de suor, à força de remar; tinha um ar sério
Matz governava, lendo a direcção nos olhos embaciados de Hell. Em certos momentos, as três canoas que faziam as investigações, aproximavam-se até se juntarem e algumas palavras monossilábicas se trocavam:
- Nada?
- Não, nada absolutamente.
- Será preciso mergulhar. - disse alguém.
As canoas dispersavam. com o sol ascendendo, o lago tornava-se mais claro, a canoa de Hell lançou a sombra na verde profundidade. Mesmo no fundo, um suave balançar de plantas aquáticas, aparecera. Pedras, conchas entreabertas fixavam-nos como olhos brancos. De súbito, Hell recebeu em pleno coração uma dor como uma navalhada.
"- Puck! Puck. Querida Puckzinha! - pensou
- É possível que estejas morta? Nunca mais te ver, nunca mais!"
Durante um instante, sentiu esse "nunca mais", com uma violência nevrálgica, depois tudo se embrulhou de novo. Puck estava estendida no fundo, envolta na sua pesada capa de pano tirolês, tinha os olhos mortos e levantados, abertos para Hell, que a via distintamente. Cambaleando, ele levantou-se do banco, deixou o roupão e saltou à água. Tinha feito tudo segundo as regras: havia-se enchido de ar e deitara-se de cabeça, de maneira a descer como uma flecha na água espumante. Fêz-se pesado e conservou os olhos abertos. Nada. A profundidade insondável parecia descer cada vez mais, emquanto Hell era impelido para a superfície. Tirando o braço da água e tomando fôlego, pareceu-lhe não ter já dores. Mas gelava atrozmente, no seu roupão de banho, emquanto a água que o cobria escorria para a canoa. Passou tempo, o comboio do meio-dia e vinte e três, entrou na estação, a sua locomotiva deitou fumo, depois partiu. No Grande Petermann o tan-tan tocou para o almoço. As montanhas elevavam-se, rígidas, em volta do lago, sem lançarem sombras. Hell
viu flutuar na água mais plana uma coisa clara e imóvel. Tornou a mergulhar, chegou quási ao fundo e demorou-se aí até não poder mais. Um tronco de árvore, que perdera a casca, estendia os seus braços de ramos, e era tudo. Hell tornou a subir. Depois disso ficou estendido um bom momento na canoa, com o coração a bater-lhe fracamente. O barco a motor passou ao lado, tinha retomado o seu horário, ia profundamente enterrado na água, com carga demasiada de viajantes curiosos. O sr. Birndl pegou num pãozinho e pôs-se a comer; transpirava desalmadamente e esfregava as palmas das mãos cobertas de empolas.
- Estou satisfeito, agora é a sua vez de remar, senhor Hell. - disse ele.
Hell agarrou nos remos, mas as coisas não iam bem. O seu braço não queria obedecer.
- Impossível.- murmurou, deixando pender a mão para a água - Não estou bem...
Foi Matz quem remou, mudo e encarniçado, um homem de seis anos, cheio de energia e de carácter. Lá em baixo, na outra canoa, levantavam uma rede onde se tinha prendido madeira flutuante. A canoa dos Dobbersberg passou muito perto da canoa de salvação, as bordas quási se tocaram. Matz levantou os remos. O barão lançou um olhar ardente e longínquo para Hell, inclinado para a frente, molhado e pálido. Dobbersberg abriu três vezes a boca antes que saísse algum som.
- Temos que desistir? - perguntou em seguida com a sua voz clara.
- Não. - respondeu logo Hell, fazendo um esforço sobre si mesmo.
- Na verdade, acredita que a encontraremos? perguntou o barão que, desde pela manhã, se mantinha silencioso.
- Se ela está no lago, achá-la-emos. - replicou Hell, admirando-se ele próprio de poder proferir palavras sensatas.
Mas se ela estivesse no lago, forçosamente flutuaria.
As canoas separaram-se. O barão, fantasma negro com rosto amarelo de desenterrado, mergulhou em si próprio. Hell encheu o peito de ar e voltou a mergulhar na água.
Três horas. O comboio de mercadorias vinha do lado de Salzfeld. Os habitantes do Lago das Damas dispersaram-se, visto aquilo durar tanto tempo e não acontecer nada. Os últimos banhistas dormitavam em cadeiras de lona. O Dente de Ferro saiu das nuvens, onde se escondera havia semanas: destacou-se no céu altivo e branco. Viu-se pela segunda vez espelhado no lago. No desembarcadoiro de Wurmtal tinham preparado uma pequena maca para o caso de ser necessária. Mais tarde, contava-se que o barão fora transportado para casa, desmaiado, sendo vítima de um ataque de febre e de uma síncope. O velho médico do Lago das Damas, com a sua maleta de couro negro, do século passado, foi levado à pressa ao castelo, baloiçado pelo barco a motor. O coração de Hell também não estava bem, mas ele não se deixava dominar, aguentava tudo: desgosto, trabalho, fadiga. Obscuramente, este pensamento atravessava-lhe às vezes a cabeça: que o pior momento da sua vida era aquele. Contudo, o sol a quem nada disto importava, caminhava sobre o lago, para o lado oeste. Na margem de Wurmtal, os arbustos começavam a lançar sombras curtas sobre a água. Quatro horas. Tigre saltou para o lago, para nadar para o largo. O sr. Birndl agarrou os remos e por seu lado, dirigiu a canoa. Hell compreendeu logo, reuniu as suas forças, mergulhou na profundidade, no sítio em que Tigre descrevia círculos, nadando. Chegou quási ao fundo, onde estava escuro e sentiu-se esmagado por uma pressão imensa. Durante um segundo pôde supor-se que teria de ficar lá em baixo. Depois, o elemento fê-lo gentilmente voltar à superfície, todo coberto de espuma; meteram-no para dentro da canoa. Já não sentia dores, não sentia a menor dor. Assim estendido na canoa, olhava para o céu que o deslumbrava; o céu tornara-se negro, por trás dos seus olhos molhados pela
água do lago. De-repente, invadiu-o um pensamento suave e calmante. Puck não estava no lago.
"-Ela não fez tal coisa." -pensou ele, com certeza absoluta - Puck é uma criança, ama muito a vida, voltará.
Durante alguns instantes adormeceu com esses pensamentos consoladores. A tarde ia avançada: no Petermann, a orquestra estava prestes a tocar.
Os Mayreder, no Seespitz deixaram o telescópio e puseram-se a caminho para o passeio do lago. Pamperl, bem educado, ia entre os dois.
- Talvez precisem de mim lá em baixo. - disse o dr. Mayreder.
E, sobre as suas curtas pernas, caminhou para o Lago das Damas.
A sr.a Mayreder comprou uma garrafa de cognac.
- "Hell deve estar gelado", disse ela, cheia de bom senso, pois tinha feito as suas experiências com o lago tão frio. Os Mayreder foram ao balneário, 18 graus estavam marcados no quadro, o que era de uma falta de exactidão flagrante. A caixa estava vazia; na distribuição da roupa, Resi, a corcunda, estava sentada.
- Sim, sim, é a vida. - disse ela, resignada.
A praia estava deserta, húmida, o vento da noite soprava e a bandeira vermelha elevava-se por momentos, como um pássaro que aprende a voar. Ao pé da ponte, um cão molhado e triste estava estendido, com o focinho em cima das patas e os olhos , fitando fixamente em frente de si, para o lago. Aparte isto o banho estava vazio. No entanto, alguém estava agarrado ao telescópio, de maillot às riscas azues e brancas: o sr. saxão.
- Então parece que temos uma desgraça? - disse ele, aos Mayreder sem tirar os olhos do telescópio.
Dentro de pouco tempo a noite ia descer. O lago fêz-se cor de rosa, o Dente de Ferro tinha um colorido sumptuoso, belo de mais para os raros banhistas que se encontravam no Lago das Damas. A sr.a Mayreder, seguiu pelo pontão até à extremidade, pôs a mão sobre a balaustrada, com a écharpe flutuando
ligeiramente. Sentiu-se triste e orgulhosa, ao mesmo tempo. Puck deitara-se ao lago num desespero de amor. Ela, a sr.a Paulina de Mayreder, sobrevivera docemente, sem exibições, de forma que nem seu marido dera por nada. E, no fim de tudo, seu marido também tinha qualidades... A canoa dirigiu-se para o pontão; aproximou-se. Matz saltou em terra e amarrou. O sr. Birndl, volumoso, ergueu-se na canoa e arrastou qualquer coisa atrás de si.
- A senhora é capaz de me ajudar? - disse ele, respeitosamente.
O sr. Mayreder atravessou a praia, correndo, e chegando ao pontão, afastou a sr.a Mayreder.
- Uma desgraça? - perguntou brevemente o dr. Mayreder, pondo a luneta e sendo apenas um médico.
- Julgo que não. Ele já não podia mais, foi muito. - replicou o sr. Birndl.
Agarrando Hell pelos ombros, tiraram-no da canoa e estenderam-no nas táboas, que se molhavam com o seu corpo encharcado.
- Cognac!-disse o sr. Mayreder, pondo-se a friccioná-lo.
A água do lago suja e turva corria da ligadura que rodeava o braço. O dr. Mayreder começou a desmanchar essa ligadura molhada e colada. Hell gemeu e voltou para o dr. Mayreder os seus olhos brancos e doentes. O dr. Mayreder assobiou, pegou num canivete e arrancou-lhe cautelosamente a ligadura do braço. A sr.a Mayreder colocou a cabeça de Hell sobre os seus joelhos e deu-lhe carinhosamente um pouco de cognac.
- Obrigado. - disse Hell - Eu já posso .. sozinho ... Meu Deus!
O dr. Mayreder aproximou a luneta junto do braço vermelho, inchado e suspeito.
- Há por aqui um hospital?
- Há, o das Ursulinas. Porque pergunta?
O dr. Mayreder depôs o braço com extrema precaução, como um vaso frágil que contivesse um tóxico.
- Seticemia. - limitou-se a dizer.
O sr. Birndl, diante do Grande Petermann, estava ao lado do seu amigo, o porteiro Eggenhofer, conversando com o carteiro. Era um dia admiravelmente belo, a Grande Praça estava branca, brilhava verdadeiramente ao sol e tinha um ar italiano. As senhoras vestiam toilettes de musselina, amarelas e brancas, o carteiro transpirava em grossas gotas, emquanto realizava o seu serviço, que o obrigava a numerosas escaladas pelas montanhas.
- Ah! Ah! Até que emfim vens com a célebre carta registada! -disse o sr. Birndl -No entanto, o sr. Hell esperou todo o verão para nada. Durante todo o verão choveu e não houve ninguém no banho, agora que o mestre de natação se vai abaixo, é que faz 19? e as pessoas querem tomar banho. Agora que ele está a morrer é que vem a carta. Vai para o diabo e deixa-me em paz.
- É verdade que ele está a morrer? - perguntou Eggenhofer, tirando maquinalmente o boné de serviço, com as insígnias do Petermann-Não é possível uma desgraça dessas. Um rapaz tão novo, tão elegante!
- Pois sim, mas parece que nem Nosso Senhor o salva. O dr. Mayreder disse: "não sei como o havemos de salvar, sr. Birndl!"
- E porquê?
- Por causa da infiltração. É por isso, compreendes? O doutor diz: Se o salvarmos, fica sem o braço, disse ele. A ser assim, não sei o que é preferível. Que queres tu que um sportman faça só com um braço? Ontem cortaram por dentro, mas parece que não resultou nada. Não sou experiente em cirurgia, disse o dr. Mayreder, nunca mais operei depois de fazer o meu estágio nos hospitais, disse ele. Quanto ao nosso médico do Lago das Damas, a esse conhecemo-lo nós, não será ele quem o tire de dificuldades. Resi, a corcunda, está todo o santo dia metida na igreja a pedir por ele e a patroa corre constantemente para as Ursulinas a perguntar novidades. Ah! meu Deus, que queres tu que haja de novo? Deram-lhe morfina para que ele tenha um pouco de repouso e agora dormita. Não será ele quem te há-de assinar o registo da carta, meu velho. Se ao menos soubéssemos se o que cá vem dentro é bom ou mau... - disse o sr. Birndl, apoderando-se sobrescrito, tomando-lhe o peso, cheirando-o, examinando-lhe a estampilha e a data. Vem de Berlim: tem escrito Hotel Germânia. - disse ele - É preciso que lhe seja entregue ainda hoje, pois amanhã talvez já esteja morto. Só agora chega a maldita carta. "Espero ainda vinte e quatro horas; - disse o dr. Mayreder - depois telefono para Salzburgo e mando chamar o meu colega, sr. Birndl. Mando-o vir à minha custa; não quero que este rapaz morra." Ele vai fazer despesas, é chie isso da sua parte, digo-to eu. com certeza que a mulher anda metida nisso; tu conhece-la, é uma gorda e pequenina. Atirou-se sempre ao mestre de natação como uma bicha. De-resto, todas as mulheres dão espectáculo por causa do mestre de natação. A Vefi de Schwoisshackel chora todo o dia como uma goteira e as Ursulinas perderam o juízo desde que lá o têm. A madre superiora tem setenta e quatro anos, mas havias de a ver quando se trata de fazer qualquer tratamento ao mestre de natação.
- Foi também por causa dele que a pequena baronesa maluca se deitou ao lago.-declarou Eggenhofer.
-A-propósito: sabes a última notícia?- perguntou o carteiro, tirando o cachimbo da boca - A baronesa maluca não se deitou ao lago. Fica sabendo que ainda está viva.
- Que me dizes? Estás a mangar? - ralhou o sr. Birndl, com severidade.
- É como te digo. Soube isto pelo velho Vierecker que encontrei esta manhã na Zirbitzalm; ele leva forasteiros para o Dente de Ferro e encontrou o Schleinz mesmo sobre o Hirzinger-Kees; e o Schleinz contou-lhe, que conduziu a baronesa para o Dente de Ferro e que durante um dia, não puderam sair da cabana por causa do nevoeiro e a baronesa soltou iu-ius e esteve muito alegre e que ela sobe como um guia encartado; isso sabemos nós, não é verdade? Talvez esta noite volte do Dente de Ferro. Eu fui levar o recado ao castelo.
- Não, isso é muito forte. -exclamou o sr. Birndl, cuspindo no chão, com cólera e espanto - Aqui está uma que deviam fechar numa casa de doidos. Que comédia! Incomoda-se a gente, procuramos pelo lago como idiotas, emquanto a menina sobe ao Dente de Ferro l E o pobre diabo do mestre de natação, o que ele fez nesse dial O que ele teve de mergulharl Foi digno de respeito, o que ele fez com o seu envenenamento de sangue... foi digno de respeito! E um sportman e não se rende, tu compreendes? Ainda há-de dar que fazer à morte, não é dos que se deitam de costas para morrer. Há nele a força de um javali. O dr. Mayreder disse: "Talvez a sua natureza o salve, devemos esperar." Se ele não tivesse perdido o conhecimento à força de morfina, deviam dizer-lhe que a baronesa foi ao Dente de Ferro, isso devia consolá-lo.
- E eu que hei-de fazer à carta? - perguntou o carteiro - No fim de contas pode ser que a carta tenha qualquer coisa de importante, que não possa esperar até que o mestre de natação tenha morrido ...
- Dá-me a carta e emquanto se espera, eu assino. Matz está de atalaia e se o mestre de natação acordar,
entrega-lha. Matz está agachado todo o dia ao lado da sua cama, parece um cãosinho e fica lá com a carta registada. Ah tudo isto é uma comédia, santo Deus!
Durante esse tempo, Hell, no seu leito de hospital, estava estendido de costas, muito quieto, com o braço ligado ao seu lado; a coberta de Hell erguia-se com a sua respiração ofegante.
- O pulso está bom.-disse a madre superiora, depondo-lhe a mão esquerda cautelosamente na cama.
Hell perguntava a si próprio porque tantos pássaros negros e gigantescos voavam por cima do mar, com cabeças brancas que lhe davam um ar de freiras. Franziu furtivamente as sobrancelhas sobre os seus olhos fechados e soltou um trémulo suspiro. Não tinha dores, sentia-se mesmo bem. Depois de muitas horas nadava no mar com May. A água estava azul, transparente, infinitamente fresca.
Era uma água quente, que envolvia o seu corpo e o de May, atirando-os para a frente a cada vaga. Era na baía de Waikiki. Hell reconheceu-a, com as suas palmeiras, as suas cadeias de montanhas e as suas vagas suaves, que se alongavam por uma encantadora margem.
"-Foi aqui que Arne Borg se treinou para o record mundial." - disse Hell a May.
Durante um momento, tudo parecia ser uma fotografia, que ele tinha admirado frequentemente num velho livro; depois, tudo se tornava vivo. May, estendida na água, nadava com movimentos longos, ao pé dele, tal como uma lâmina de ouro. Hell não se lembrava de ter sentido nunca a calma e o prazer desta natação, durante horas seguidas, através do mar matinal, com May a seu lado. É verdade que uma vez um tubarão se aproximou dele e lhe mordeu no braço, mas ele não disse nada a May para não a afligir e, depois, na verdade, não lhe fazia doer muito. Na margem tocavam o shimtny de Honolulu ...
"- Desejei sempre fazer a minha viagem de núpcias a Honolulu! -disse May.
Este reparo fez reflectir Hell, emquanto continuava a nadar. Ele ia em viagem de núpcias com May a Waikiki... olha, e não tinha dado por isso. Nadavam juntos há tanto tempo, que nem se lembrava do casamento.
"-Veja como se pode viver em castelos no ar!"disse ele ao sr. Lyssenhop, que os foi visitar.
Estavam sentados numa grande sala prateada, no meio do seu castelo no ar, que se baloiçava brandamente, muito brandamente, todo construído com água. May tirou da algibeira um lencinho e limpou a testa de Hell. Ele sentiu distintamente a sua mão e isso fez-lhe bem, pois estava muito cansado. A mordedura do tubarão fazia-se sentir mais. Abriu os olhos.
"- Como virá Matz para Waikiki?" - pensou logo.
Tudo se tornou invisível para ele e, através do invisível, viu o mundo por buracos. Primeiro viu Matz, agachado, pequeno e hirto, numa cadeira. Depois, distinguiu um pedaço de parede castanho-claro; uma gravura com manchas de humidade, estava pendurada: nela se distinguia uma montanha e uma mulher. "Santa Úrsula, rogai por nós", podia ler Hell. As letras aproximavam-se dele para desaparecerem logo no invisível. Alguns círculos flutuavam no ar, tudo era fragmentário e incompreensível. May tinha desaparecido. Hell viu alguém que estava estendido no seu leito, como se estivesse morto, com os joelhos estirados sob uma coberta de lã branca. Reconheceu a cruz vermelha do hospital, marcada no cobertor.
- Ah! compreendo...-disse, fatigado, lembrando-se.
Emergiu dos nevoeiros da morfina, que se evaporavam cada vez mais, para lhe deixar uma grande dor e uma profunda fraqueza. Moveu-se levemente.
- Não se mexa. - disse alguém atrás dele, à cabeceira da cama.
Uma fina mão surgiu do mesmo lado, para lhe enxugar o suor da testa. Matz saiu da cadeira para depor duas cartas em cima da coberta da cama.
- Desta vez cá tem o correio, sr. Hell. - disse ele, voltando para a cadeira e tornando-se uma pequena estatueta de madeira.
Hell deitou os olhos para as duas cartas que estavam em cima da coberta. Uma era de May. Fez um esforço para se levantar e pegou na carta com a mão esquerda. Aplicou-se com todas as forças a reencontrar a sua lucidez. Estava doente, tinha-lhe voltado a consciência, sentia uma coisa estúpida no braço, fora operado, estava no hospital do Lago do Amor. Isto era a sua mão, isto o cobertor, isto uma carta de May. Aproximou-a dos olhos, reconheceu a letra, mas os caracteres baralhavam-se constantemente. Esperou um pouco, com a carta na mão. Depois, levou-a à boca e tentou abri-la com os dentes. O esforço fatigou-o e, triste, abandonou-a. Houve um ruído atrás da sua cabeça.
- Posso abrir e ler-lhe as cartas? - perguntaram, timidamente.
- Sim. - disse Hell, depois de breve hesitação. Pôs-se a sorrir e não ficou muito admirado, quando
Puck apareceu e pegou nas cartas.
-- Já cá estás, Puck? - perguntou, satisfeito Sabes que sonhei coisas extraordinárias contigo ?
- Sim. Sei. E não só sonhaste. Procuraste-me no lago até caíres desmaiado.- disse Puck, de olhos baixos.
Ela tinha posto um avental de enfermeira, grande demais para a sua pequena estatura.
- Mas eu não estava no lago. Como as pessoas são tolas. Então tu pensas que eu me deitava ao lago?
- Então onde estiveste ?
- Lá em cima; corri pelas montanhas, para que isto me passasse. É agradável; lá em cima, as tolices não contam. Estive no Dente de Ferro os três dias e duas noites em que fiquei ausente...
- Muito bem. Passaram duas noites, eu sei. Vais agora melhor ? - perguntou Hell, amável, embora se sentisse muito mal e tivesse de vencer todas as dificuldades do mundo para não desfalecer.
Puck, séria, fez com a cabeça um sinal que sim.
- Voltei sozinha. Queres que leia a tua carta ? perguntou ela, acanhada.
Hell hesitou em se separar da carta de May que tinha na mão. Mas como era só Puck que a veria...
"Querido. - leu Puck, sem expressão, como se se tratasse de um tema na escola - Estamos em Gossensass há três dias, buraco bem aborrecido, na minha opinião. Para fazer ski no inverno, talvez não seja mau, mas para agora... isso não. Penso muito em ti. E tu ? No fim da semana vamos para Berlim. Tat está bastante insuportável. Daqui a pouco dou notícias, gostaria de ter um retrato teu. Beijos! Beijos! Beijos! Tua May."
- Está aqui mais uma carta. - disse Puck, logo a seguir, pois estava acanhada com aqueles beijos lidos em voz alta, a-pesar-da sua resolução de ser razoável e boa e de não querer mais nada de Hell - Tens aqui outra carta, ouves Hell ?
Os sonhos de Hell arrastaram-no no encalço de May, durante alguns minutos, e tinha mesmo voltado a Honolulu. As suas pálpebras pesadas, de marfim, baixaram-se.
- Ouves ? - perguntou Puck.
À pressa, saiu de Waikiki para voltar ao seu leito de hospital, cheio de boa-vontade de não perder os sentidos.
- Lê lá... - disse ele, esforçando-se por parecer alegre.
Puck pegou na carta e leu:
"Senhor engenheiro Hell.
"Muito prezado senhor.
"Tendo regressado há oito dias dos E. U. A. tratei imediatamente da continuação dos negócios respeitantes ao seu caso, negócios que tinha iniciado já há muito com o grupo Fimorag. Sinto-me muito feliz em poder
hoje transmitir-lhe excelentes notícias. A patente do estado alemão para o nosso film de papel incombustível, marca de garantia Palzethil, está concedida. O pedido de patente feito na América está em bom caminho. O grupo Fimorag que - como sabe - tem grandes interesses na América, está disposto a adquirir uma opção para a fabricação do film Palzethil, pelo qual lhe propõe um avanço de dez mil dólares. Pela aquisição da patente, ser-lhe-á entregue a importância de cem mil dólares. Aparte isto, uma participação de 5 lhe caberá nos negócios durante a duração da patente. É evidente que, para vigiar a execução do processo, ser-lhe-á dada uma situação de director, por um contracto especial entre o senhor e a Fimorag. Antes de mais nada, seria muito útil a sua presença em Berlim, no mais curto prazo de tempo, para que possa concluir pessoalmente as negociações; terei muito prazer em o secundar nesse momento, pois, sabendo-o um excelente jogador de bilhar, sei-o também um mau homem de negócios. Junto à minha carta um cheque de dez mil marcos para começar e sou, esperando uma resposta,
Seu muito sinceramente dedicado Dr. Eríck Meyer"
Puck deixou cair a carta na sua bata de enfermeira e sacudiu a cabeça:
- Como esta carta é estúpida! - disse ela.- Que absurdos! E. U. A. e Fimorag e Palzethil... palavra que eles escrevem como chineses. Não se percebe nada. Há ainda uma espécie de cartaz. Será a famosa carta que esperas há tanto tempo ?
Hell sentiu a boca tremer; era uma pequena convulsão que ele não podia deter: não era um riso, mas uma convulsão. Fitou Santa Úrsula com manchas de humidade e, fixando-a, agarrou-se para não ter uma vertigem, deslizando num abismo sem fundo.
- Sim, cá está a carta. - disse ele.
O seu coração, que o tinha abandonado havia
instantes, pôs-se em marcha como um motor. Puck limpou-lhe a testa, coberta de suor imo.
- Ora espera, cá tens a tua carta, emfím... Sempre julguei que estavas a brincar. Julguei que a tua carta vinha do País das Tulipas. É boa a carta? Não entendo nada.
- Sim, oh! sim, Puck. Tudo corre bem... - murmurou Hell.
Dois pensamentos batalhavam nele, grandes como o mundo e bulhentos como um dínamo monstro. Emfim, trabalho., dizia o primeiro, o primeiro de todos. Depois o segundo: Emfim, May! O peito de Hell dilatou-se na sua camisa de hospital, inchou, o pescoço inchou, os olhos tornaram-se vermelhos, as veias da testa salientaram-se; ele estava prestes a rebentar e a dispersar-se em átomos.
De súbito, soltou um grito. Estava bem acordado agora: gritava como se estivesse em plena posse das suas forças. Bramiu, rugiu como uma buzina, com urros selvagens de floresta virgem, vomitou quanto tinha engolido durante o verão. Da sua garganta saíram ar e urros até que ficou bem despejada; depois, Hell, desinchou pouco a pouco, trémulo e alagado em suor, mas indiscutivelmente aliviado.
Puck ficou aflitíssima durante esta explosão, mas Matz, homem e camarada como era, compreendeu logo. Pôs-se a rir, bateu nas coxas com os punhos sujos, juntando aos de Hell os urros da sua voz clara, de criança.
- Caspité! - disse ele - Até que emfim, cá temos a carta, já cá está!
Em baixo, junto da irmã porteira, tinham ouvido igualmente os urros e as almas afligiram-se-lhes. Elas estavam sentadas em roda da parede e recearam pelo mestre de natação. Resi, a corcunda, a Vefi do Schwoisshackel, a gorda sr.a Birndl e a curta sr.a Mayreder.
- Ele vai morre. - diziam elas, ao mesmo tempo e cada qual no seu dialecto especial.
E a madre superiora, com os seus setenta e quatro anos, atirou-se para fora do seu quarto para subir, correndo, as escadas de madeira rangente, galgando dois degraus ao mesmo tempo. As religiosas, pássaros negros de toucas brancas, seguiram-na, enchendo o quarto de Hell com os seus gestos largos e suaves.
Hell teve um pequeno desfalecimento: a multidão perturbava-o, o seu coração queria abandoná-lo. Reteve-se, sofreando a sua vontade que funcionava como um bom cavalo diante de um pesado carro. Hell mexeu os pés debaixo da coberta branca.
- Preciso levantar-me, preciso partir. - disse com energia.
Mas como acabara de gastar a sua voz e a sua força até ao esgotamento, ouviu-se só um fraco murmúrio.
- Pois sim, meu filho. - disse a madre superiora, em tom consolador.
Introduziram na boca de Hell uma colher de líquido amargo, depois água e ele deixou-se cair nas almofadas, antes de se levantar para ir para Berlim.
- Estou um pouco fatigado, Deus sabe como isto há-de ser. - disse ele, com um sorriso que pedia perdão.
No mesmo instante, partiu em sonhos para Waikiki, onde May o tinha esperado, vigilante e segura como ela era e como ele a amava...
QUE coisas esquisitas se passavam em HelI! Era como numa viagem de caminho de ferro. Dormia, sem realmente dormir. Todas as vezes que abria os olhos era para ver o mesmo aposento, a cruz na coberta, a grossa manga da sua camisa hospitalar, a parede castanha, a santa com nódoas de humidade. Mas, continuando tudo igual, mudava agora e apresentava um aspecto diferente sempre que ele abria os olhos.
Uma vez, por exemplo, pôde ver um senhor que Hell conhecia, um senhor de grande cabeça e luneta nos olhos. Esse senhor - Hell sabia que tinha horror à água mas que, fora isso, era de uma grande bondade pegou na mão de Hell, consultou o relógio com ar preocupado e desapareceu entre os negros nevoeiros rasgados, que flutuavam diante dos seus olhos, antes que a viagem da noite continuasse. Uma outra vez, o quarto estava cheio de gente açodada, que aborrecia Hell com os seus murmúrios.
- O compartimento vai cheio. - exclamou ele, de bom humor.
- Isto vai, há-de melhorar. - disseram, para o consolar.
- Quero que a minha mãi venha. - proferiu ele. E isto pareceu-lhe que afligia as pessoas presentes. Contrariado, Hell pôs-se a dormir. Mas
acordaram-no. Desta vez, havia um outro senhor que Hell tomou pelo antigo director do liceu, com uma barba curta e branca e lunetas de ouro. Hell adoptou logo a atitude rígida de um colegial.
- bom dia, sr. Director - disse, amável.
Em criança tinha-lhe chamado "Stryx". Stryx estava sempre misturado aos seus negócios escolares que lhe não diziam respeito. Depois, desfez a ligadura que lhe rodeava o braço, examinou-o, apalpou-o com um objecto que podia ser uma caneta. Não foi precisamente agradável. Hell tinha uma quantidade de grandes e largos dentes no rosto, tornado muito pequeno, e apertou-os o mais que pôde.
- Vamos, meu caro, coragem. - disse Stryx, dando-lhe ânimo como para um exame.
O dr. Mayreder-era bem ele: o gordo chamava-se dr. Mayreder-afastou um candeeiro de luz crua, era de tarde ou de noite, e disse:
- O sr. professor veio expressamente de Salzburgo para o curar, Hell. Não tenha receio. Tudo se há-de arranjar.
Hell não tinha o menor receio.
- Mas sim, - disse ele, rindo, com todos os seus dentes brancos - hei-de salvar-me; já me salvei. A carta chegou ...
- Isso é que é bom - disse Stryx, benévolo-Precisamos de cortar um pedaço. Penso que está de acordo. Nem sequer dará por isso. Não vamos fazer barulho, não é verdade?
Hell, acordou um pouco mais a esta palavra "barulho". Não respondeu, ficou um minuto mudo e durante esse minuto, acordou completamente e recuperou a sua lucidez. Havia quatro pessoas no aposento: o médico de barba branca, de Salzburgo, o dr. Mayreder, a madre superiora e uma outra religiosa. Os quatro tinham posto as suas batas brancas e mostravam uns grandes olhos agitados de pessoas que no meio da noite foram arrancados ao sono para fazer um trabalho. Hell tornou-se razoável e muito pálido.
- Querem cortar-me o braço ? -perguntou ele, em voz baixa.
- Porque há-de pensar logo no pior? - respondeu Stryx, em voz falsa - Precisamos cortar um pouco para chegarmos ao fundo. Mas só cortaremos o estritamente necessário. Mas o necessário deve ser cortado, mesmo que seja o braço. Não será tão terrível como isso. Vamos já prepará-lo.
Hell estendeu-se por um momento nas almofadas e fechou os olhos. Estava fatigado, mortalmente fatigado. Agora tinha a carta. Agora tinha trabalho, dinheiro e sorte; e May esperava-o em Waikiki. E eis que lhe iam cortar um braço, esse miserável braço doente, deitado ao lado dele na cama, como se não fizesse parte da sua pessoa.
- Que pena. - disse Hell, em voz baixa e com resignação.
Durante um momento sentiu uma revolta subir em si, um furor contra essa maldita surda-muda a quem ele devia aquilo, contra esse maldito mergulho na água, esse maldito prego ferrugento, toda essa maldita profissão desqualificada que o tinha levado ali. Uma religiosa inclinou-se para ele, desabotoando-lhe a camisa como a uma criança, voltando os olhos do seu peito nu e tendo os dedos trémulos como se tivesse medo. Alguém passou uma seringa contra a sua coxa. Tiraram-no da cama, para o porem em qualquer parte onde fazia frio e onde faíscas de luz branca deslizavam contra as paredes negras. Um cheiro a éter, a clorofórmio, a iodo, flutuava no ar-o odor familiar e quási agradável dum laboratório químico.
- Pagarei caro, doutor, se me salvar o braço. disse Hell, cheio de bom senso-Sou muito rico, poderei pagar dez mil marcos. É que não posso dispensar o meu braço, sou um homem de sport, tenho o record de duzentos metros pela Áustria. E depois quero casar-me e não posso, se me tiram o braço. Suplico-lhe, doutor...
- Continue a falar... - disseram, dando-lhe coragem e abafando-o ao mesmo tempo com o clorofórmio.
As últimas palavras, que ele entendeu, foram as que Stryx pronunciou com a sua voz de professor:
- A instalação deste hospital, data, sem dúvida, do século dezassete, an?
Depois, Hell adormeceu. Parecia-lhe dormir profundamente, durante alguns minutos e não estar senão meio acordado. A dormir, acordado, a viagem continuava. Dormiu, acordou, dormiu, acordou, sempre atrás de nevoeiros, de véus espessos, abafado como sob almofadas. Pouco a pouco tudo se aclarou, se animou, se aliviou. Por fim, dormiu efectivamente: dormiu num sono sem sonhos e o seu despertar foi um verdadeiro despertar no meio de um sol doirado, espalhado pelo seu quarto de doente. O sol entrava pela janela aberta; diante da janela, uma longa haste de vinha virgem oscilava delicadamente, brilhante e rosada. Ao longe, atrás desta haste, qualquer coisa cintilava: era o lago. Qualquer coisa de branco e de azul se elevava na floresta: era o Dente de Ferro e a pequena janela do hospital deixava ver mesmo uma nesga do céu grande e distante. Hell ia bem, ia mesmo muito bem, extremamente bem. Prudentemente, voltou a cabeça; o que viu primeiro foi um cão adormecido deitado no chão em frente da sua cama.
- Tigre. - murmurou, comovido.
Tudo estava tão calmo, tão tranquilo, tão suave! Para mais, o sino da igreja pôs-se a tocar.
"- bom Deus, oxalá que não faça chorar!" pensou Hell, entristecido.
Tigre, a dormir, ouviu e mexeu a cauda. Numa cadeira, alguém que vestia uma bata grande demais, levantou-se.
- Puck?-perguntou Hell, com uma alegria delicada e admirada.
- Então, meu pequeno, isso vai? - perguntou Puck, pondo-lhe a mão na testa, depois no pescoço, como uma terna mãi - Já não há febre? Estás salvo!
Hell tranqüilizou-se. Havia diante de si e atrás uma coisa boa e outra má, mas ele não pôde ver o que
era. Sentiu uma dor aguda mas normal, quási agradável, no ombro.
- Efectivamente, estou salvo. - disse lentamente, tornando-se sonhador.
A sua cabeça estava lúcida, mas vazia.
- Estiveste sempre ao pé de mim ? - perguntou, reconhecido.
- Não. Sempre, não. Revezávamo-nos a velar.- replicou Puck.
- Já não chove? - perguntou Hell, respirando o ar que entrava pela janela, carregado de cheiros de água, de canoas alcatroadas, de florestas de pinheiros.
- Não. Já não. - disse Puck, sorridente.
Ela ficou ainda um instante com a mão nos cabelos de Hell, pousando sobre ele um olhar singular, firme e ao mesmo tempo sonhador, por assim dizer, resignado.
- Anda, Tigre, temos que partir.- disse em seguida. Tigre acordou logo, sacudiu-se e saiu do quarto
atrás de Puck, sem mesmo olhar para Hell.
Hell, na cama, sentiu-se um pouco abandonado com a sua dor muito viva e o seu medo adormecido de uma coisa esquecida. Uma grande mosca entrou pela janela, fazendo-lhe companhia com o seu zumbido estival e que evocava a verdura e o sol. Isto durou um minuto, depois Hell seguiu-a com os olhos, quando ela saía para fora. A porta rangeu.
- Quero que me digas, Puck, o que eu tenho realmente ... - murmurou Hell, levemente perturbado.
May respondeu:
- Nada, tudo corre bem.
Sim, era May que tinha respondido. May, alta, elegante, estava no meio do quarto com uma bata branca também, mas para ela, muito curta; os seus olhos eram taças douradas cheias de água, mas ela não queria que o notassem. Não chorou e sentou-se na borda da cama de Hell, tão naturalmente como se fosse sua mulher há muito tempo e só entrasse no seu quarto para saber como ele passava. O coração de Hell bateu loucamente, como se quisesse partir-lhe as costelas.
- Tu? - perguntou ele, tendo apenas fôlego para uma palavra.
- Eu sim, sou eu. A pequena baronesa telegrafou-me dizendo que te queriam amputar; então, vim logo. Uma corrida espantosa, meu rapaz: trezentos e qüarenta quilómetros em seis horas e meia. E todo o tempo na montanha. Ainda não tinhas saído da anestesia e já eu cá estava.
- Deus do céu, tu. - murmurou ele, agarrando-a. Agarrou-a, agarrou-a... com as suas mãos intactas e
completas. É certo que os dedos de uma delas estavam ligados e que o movimento teve uma repercussão dolorosa através de todo o corpo. Mas que importava ? Ela estava ali, ela estava viva, ela pertencia a um braço que aderia ao corpo de Hell, esse braço pertencia-lhe! Hell fixou essa parte integrante, ligada, mascarada, dolorida, de si próprio, depois fixou May que ria, depois bateu com precaução na coberta da cama. Tudo estava inteiro, tudo funcionava! Um medo atroz desprendeu-se dele como uma casca, como uma horrível pela seca.
- Chegaste logo? Vieste logo para o pé de mim? E se eu fosse um aleijado, querias-me da mesma maneira?- perguntou, cheio de felicidade, rindo, do mais fundo de si mesmo.
- Sim. É provável. Mas prefiro-te assim. - disse May, simplesmente. Posso beijar-te ? - perguntou ela.
Depois, fê-lo com prudência.
- Faremos a nossa viagem de núpcias a Waikiki.- murmurou Hell que, como um carroussel, rodava em círculos de felicidade.
- Gostava mais de ir à lua. - murmurou May, depois de uma pausa - É mais barato...
- Mas eu sou rico... - disse Hell, um pouco mais tarde, no decurso desse diálogo interrompido.
May respondeu, mudando de assunto:
- Que belas mãos tens. - disse, brincando com a barbatana esquerda de Hell-Nunca ninguém teve umas mãos tão grandes, verdadeiras pás! E as pontas dos dedos com rugas como as de um bebé e calos do
remo, quatro em cada mão. E em cada dedo um montinho de pêlos brancos. Que homem extraordinário que tu és! Que mãos extraordinárias que tu tens. Tive sempre que pensar nelas, sempre, sempre.
Ela tornava-se sentimental, mas arrependeu-se:
- Então és rico ? Esse Meyer, de mau agouro, deu sinal de vida? - perguntou ela, alegremente, passando o dedo pelas rugas brancas que sulcavam ainda a fronte de Hell, embora estivesse menos bronzeado que dantes.
- Sim, senhora, escreveu! -replicou Hell, soberbo. May ficou muda durante alguns instantes.
- Quási que é pena. - disse, por fim - Tu és um rapaz tão gentil, Urbano, tão gentil. Quando tiveres dinheiro e uma fábrica... serás como os outros. É verdade? Achas que é verdade?
Hell, incerto, calou-se. Estava um pouco enfraquecido pela alegria, as emoções e os numerosos beijos. E no meio desta fraqueza ele viu-se a si próprio caminhar através de uma sala de máquinas, viu-se sentado um instante ao lado de Puck no jardim, a comer groselhas verdes; depois viu um Hell gordo e orgulhoso sentado numa poltrona forrada de veludo verde.
- Acabou-se o País das Tulipas! - disse, dirigindo-se ao gordo Hell da poltrona - Mas será indispensável engordar? Continuarei a treinar-me: o essencial foi saírmos de dificuldades, a corrida final foi abominável.
- Estás a delirar ? O que é o País das Tulipas ?
- perguntou May, assustada.
Hell sacudiu a cabeça, passeando o olhar através do quarto. Faltava-lhe qualquer coisa, mas não percebeu que era Puck que procurava. Engoliu a saliva por duas vezes.
- Que procuras ? Precisas de alguma coisa ? perguntou May.
Hell contemplou May, contemplou-a cheio de felicidade, engoliu uma terceira vez e calou-se. Tinha uma esquisita sensação, uma boa sensação familiar, que só agora reconhecia: tinha fome.
"- Tenho fome!" - pensou.
E alegrou-se de uma forma singular e incompreensível. Mas não disse nada a May. Não fala de fome, quem a conhece a fundo. E, quanto a comer, de acordo com a sua fome, era, para ele agora, uma aprendizagem
a fazer.
Ao longe, uma canoa atravessou o lago. Puck remava de uma forma rítmica, que acompanhava com um canto, como cantam os negros ou as crianças, ou os remadores chineses nas suas barcas. O Dente de Ferro lançava sobre ela a sua sombra, tal como uma grande irmã vigilante; o lago era o seu bom amigo e, na outra margem, no País das Tulipas, oito irmãos vidoeiros esperavam-na, perdidos entre o trevo. Era disso que falava a canção de Puck, calma e não muito triste. A sua canção tinha equilíbrio, as notas pareciam arredondar-se num todo delicado que flutuava entre o céu e a água, como uma bola paciente e luminosa. E ninguém a ouvia, salvo um peixe que, com os olhos fora da cabeça, apareceu à luz para agarrar uma das últimas moscas douradas do verão...
Vicki Baum
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