Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O LEÃO DA MONTANHA
Tinha sido uma manhã movimentada no Café Danúbio e agora a garçonete inglesa descansava na cozinha. Rudi, um dos músicos, se aproximou e avisou que o barão von Linden pedia para vê-la.
Sibele olhou, espantada.
— O que um barão austríaco quer falar comigo? Acha que ele é ligado à opera?
— Pode ser. — Rudi deu de ombros. — Vá logo. Tire esse avental e a touca. Ele parece impaciente e muito importante.
— Oh, céus. Estou bem? — Perguntou, arrumando os cabelos.
— Para uma garota que trabalhou a manhã inteira, você está ótima — ele disse, rindo.
Ela gostava de Rudi. Era gentil e já tinha trabalhado em Londres, por isso falava bem o inglês. Sempre conseguia dizer coisas que a encorajavam, nos momentos em que mais precisava.
Sibele se olhou, apressada, no espelho. Seus lindos cabelos loiros e brilhantes pareciam arrumados, e seu rosto tinha traços de força e independência.
Saiu da cozinha caminhando depressa para a sala do café, que agora estava vazia. Algumas empregadas limpavam as mesas e, ao fundo, viu urn homem alto.
Hesitou antes de se aproximar, pois ele parecia ameaçador.
num casaco cinza com gola de pele, batendo impaciente as luvas. O sol brilhava sobre seus cabelos loiros quase brancos. Sibele achou que fosse um velho, mas, quando ele se virou e a encarou com seus enormes olhos cinzentos, mudou de idéia.
Era um homem de uns quarenta e cinco anos, completamente seguro de si e cheio e autoconfiança. Ela não o conhecia.
— É a srta. Sibele Winters? — O inglês dele era perfeito, com um leve sotaque. — É a moça que estava entre os que se salvaram do incêndio num hotel em Rjngstrasse, há cinco semanas?
Ela o olhou, curiosa.
— Sim. — respondeu com calma, mas seu coração deu um pulo de susto. — Eu estava no hotel que pegou fogo e meu nome é Winters.
— Muito prazer. — O olhar dele era autoritário, mas tinha um certo calor humano. Fez uma leve reverência. — Tive dificuldade em encontrá-la, srta. Winters. Por que está trabalhando num café? Fui informado que é bailarina e devia dançar no corpo de baile da ópera.
Analisou seu vestido preto, com rendas brancas na gola e nós punhos, os cabelos brilhantes e o corpo ágil de bailarina.
— Machuquei o tornozelo e uma outra garota me substituiu no balé. Estou trabalhando aqui até encontrar outra vaga como bailarina. Está ligado à ópera, senhor barão?
— Não. — Ele sorriu como se a idéia o divertisse. — Meu assunto com você não é ligado à sua carreira, a não ser para lhe dizer que estou muito feliz que o balé a tenha trazido a Viena. Por que veio?
— A companhia em que eu dançava, na Inglaterra, perdeu o diretor e estava com muitas dívidas. Todas nós resolvemos procurar outro emprego. Minha professora, que é austríaca, arranjou para que eu viesse dançar aqui. Então, na noite em que cheguei, o hotel pegou fogo. — Sibele suspirou e deu de ombros. — Machuquei o tornozelo ao pular da janela, segurando um bebê. Olhe, não quero mais falar nisso.
— Pelo contrário — O olhar dele pareceu atravessá-la. — Estou aqui por causa da criança que você salvou.
Ficou espantada com aquilo, mas ele desviou os olhos e observou calmamente as mesas do café. Da cozinha vinha um cheiro delicioso de tortas.
— Pode sair por uma hora? — perguntou de repente. — Não podemos conversar aqui. O que tenho a dizer requer calma e um lugar sossegado.
Sibele hesitou, lembrando do bebê que agarrara na hora de saltar pela janela, naquela noite. Quem seria aquele homem de cabelos quase prateados e pele bronzeada? Observou os lábios dele. Eram lábios de um homem com completo controle de suas paixões. Parecia que podia ser gentil para com as garotas que apreciava e agir sem piedade para com os inimigos. Era isso mesmo, estava escrito em seu rosto, nas maçãs altas e no olhar penetrante.
— Sim, posso sair um pouquinho, mas devo voltar na hora do chá quando o movimento começa outra vez. Com licença que vou buscar meu casaco.
— Espero no carro. Está estacionado na esquina — ele disse, inclinando a cabeça.
Ela correu para o vestiário, onde Rudi fumava e a recebeu com um sorriso.
— Bem, ele adora o balé e resolveu patrocinar um espetáculo para você. É isso?
— Nada assim tão bom. — Deu uma risada e vestiu o casaco de tweed de gola alta. — Acho que o barão von Linden está ligado ao bebê que tirei do berço na noite do incêndio. Ele deve ter vindo me oferecer alguma recompensa. É muito formal e sério. Pediu para sairmos, pois quer conversar com calma.
— Cuidado, querida. Há muita arrogância nestes homens da velha nobreza austríaca. Não se deixe enganar pelo ar distraído dele. Faz parte do privilégio de ter nascido em berço de ouro.
Ela riu, pois Rudi só conseguia diverti-la, em vez de alarmá-la. Era bom tê-lo como amigo, numa cidade estranha.
— Tomarei cuidado. Não acho que o barão esteja interessado em mim, mas nunca se sabe os motivos de um homem. Sou magra demais para o gosto dos austríacos. Não acha que todos eles gostam de loiras gordinhas?
— Sou vienense. — Rudi tomou a mão dela e a beijou no pulso. — Sempre admirei um rosto bonito e umrtornozelo fino.
— O que é muita gentileza sua, Rudi, mas não temos tempo para flertes. O barão está esperando por mim.
Correu pelo café e saiu na rua ensolarada, em pleno outono de Viena. Sabia que a cidade era encantadora e em cada esquina parecia que iam surgir cavaleiros e reis. Na praça havia soldados da guarda imperial, com seus lindos cavalos e uniformes vermelho e azul. Era como se estivesse caminhando por um cenário de, ópera. Viena era a cidade do romance. Dos amantes que se encontravam no bosque, na primavera, quando os lilases floriam.
Sibele parou ao lado de um Mercedes, e o barão abriu a porta para ela. Entrou, lembrando dos avisos de Rudi. Na intimidade do carro, sentiu-se nervosa e procurou observar o perfil do homem. Não. Ele não estava interessado numa jovem bailarina . num país estranho. Pensava em outra coisa.
Passaram por Ringstrasse em silêncio, e ela ficou pensativa. . De repente... suas recordações voltaram. Lembrou-se das sirenes dos carros de bombeiros, dos gritos das pessoas desesperadas e do choro do bebê em seus braços, abandonado no quarto de um hotel. Sibele não olhou para o prédio enegrecido pela fumaça, vazio e silencioso.
Parecia um destino trágico. O incêndio foi a primeira coisa que lhe aconteceu ao chegar a Viena. Vinha com tantas esperanças, mas agora estavam destruídas. Seu único consolo era ter salvo aquele bebê.
— O que acha de Viena?
Ela observou a paisagem lá fora, enquanto o barão falava. Viu Burggarten e uma porção de pássaros esvoaçando sobre o gramado.
— Viena tem todo o encanto do Velho Mundo. Estou amando a cidade.
— Vocês jovens usam a palavra amar com muita facilidade
— o barão comentou, irônico, como se a considerasse ingênua, incapaz de saber o significado do amor.
Mas não era verdade.
Sibele já tinha sofrido muito por amor. Conhecera Cassian, o grande bailarino, é com seu jeito jovem e inexperiente, havia se apaixonado por ele. Cassian era gentil e muito inteligente. Ele predisse que ela seria, um dia, uma grande bailarina. Este era seu sonho mais precioso e ia tentar realizá-lo de qualquer maneira.
— Não sou nenhuma criança, senhor barão — falou, empertigada. — Perguntou minha opinião sobre Viena e eu a dei.
— Parece amar as coisas com muita facilidade.
— Faz parte da natureza das dançarinas ter muita imaginação
— ela se defendeu —, e sinto a atmosfera mágica de Viena. Vejo o encanto nos velhos edifícios e no rosto das pessoas.
— O que vê no meu rosto, senhorita?
Ficou espantada, pois não tinha jeito de responder com franqueza. Via forças nos traços dele, a paixão controlada, a tirania, como se usasse isso para esconder um sonho perdido.
Sibele entendia de sonhos. Aos quinze anos, tinha entrado na companhia de balé de Cassian e passava horas admirando o diretor. Sonhava em crescer e sé transformar em sua partner... talvez, sua namorada. Sabia que havia outras mulheres, bailarinas lindas e talentosas, mas sempre que conversavam, Cassian a olhava de um modo especial. Ele era judeu por parte de mãe e lhe havia dado um nome artístico: Feigileh, o passarinho.
— Vejo que está curioso, senhor barão. Quer saber sobre o incêndio?
— Aguenta falar sobre isso?
— Foi terrível. Algumas pessoas morreram.
— Eu sei — ele disse, em tom sombrio.
Agora, dirigia com calma para os limites da cidade, onde ficavam os famosos Bosques de Viena, dourados com suas folhas de outono e recortados contra as montanhas ao longe. Havia neve nos picos, e logo desceria, cobrindo a montanha inteira.
— É parente do menininho? — Lembrou que o bebê tinha. cabelos bem loiros e olhos azuis. Estava chorando, enrolado num xale caro.
— Sim.
Ficou em silêncio e dirigiu mais depressa, como se precisasse sentir completo controle sobre o poderoso motor. Logo chegavam ao bosque. A folhagem vermelha e dourada se acumulava nas alamedas e as árvores de rara elegância se projetavam de encontro aó céu.
O barão parou o carro e olhou para Sibele; depois, pegou um cigarro.
— Fuma, srta. Winters?
— Não, obrigada. Faz mal para uma dançarina que precisa de todo o fôlego.
— Então, permite que eu fume? — Sorriu, como se a preocupação dela com a saúde o divertisse. Como se o fato de ser uma dançarina não tivesse muita importância.
Acendeu o cigarro e soltou urna baforada lenta. Não era um homem bonito, mas era alto e distinto e se vestia bem. Um homem que as pessoas obedeciam, antes de apreciar. Bem, ela agora estava ali, e se ele queria lhe oferecer alguma recompensa, Sibele já havia tomado sua decisão: ia recusar. Já era terrível demais ter que falar sobre aquela noite.
— Então, não teve muita sorte ao chegar a Viena? — Ele se inclinou e a observou atentamente. — E agora, está trabalhando como garçonete. Não deve ser um trabalho bom para uma bailarina. Pensou em voltar para a Inglaterra?
— Sim, pensei. — De repente, ficou triste. — Mas meu motivo para vir até aqui foi me afastar de uma tristeza pessoal e lá não havia chance de encontrar emprego como bailarina. Há poucas companhias de balé e, no momento, não têm vagas. A escolha foi vir para Viena. Quero ficar aqui até aparecer uma chance de entrar no balé da ópera. Se não conseguir isso, vou trabalhar no café até economizar o suficiente para ir a Paris. Sou ambiciosa, sabe? E já decidi que tenho que ser bailarina de uma grande companhia.
— Na Inglaterra, ninguém tentou impedi-la de vir?
— Fui criada por duas tias que já morreram. Não tenho família, senhor barão.
— E uma garota que se apaixona por cidades; não tem namorado? — O olhar cinza mergulhou nos olhos castanho-escuros dela. — Não encontrou nenhum amor que
fosse mais importante do que sua vontade de fazer carreira?
Sibele achou que a conversa estava tomando um rumo muito pessoal. Não queria falar sobre amor. Era algo que se ganha sem pedir e quem dá não pede nada em troca. Aquele homem nunca saberia o que era amor. Parecia do tipo exigente. Talvez visse o amor sob um prisma completamente diferente,
— Então, pretende ficar na Áustria, nos próximos meses, trabalhando como garçonete? Levando bandejas de mesa em mesa? No fim do dia estará cansada demais para os ensaios.
— Eu... eu tenho que viver — disse, na defensiva. — Tenho que pagar o aluguel do meu apartamento. Não sei fazer mais nada, apenas dançar.
Ele apagou o cigarro e a olhou, atentamente.
— Fale-me sobre aquela noite, no hotel. Gostaria de saber exatamente o que aconteceu.
— Parece pensar que tem o direito de saber.
— Acredite em mim, srta. Winters: tenho o direito. Novamente, ela sentiu que havia um tom sombrio na voz
dele. Quando o olhou, viu seu rosto carregado de tensão.
— Disse que era difícil falar sobre aquilo. Para mim também será difícil ouvir.
Ela cruzou as mãos no colo e observou as árvores. Era bom olhar coisas vivas, enquanto falasse do incêncio que tinha causado a morte a três pessoas.
Sibele ouviu sua própria voz, falando com aquele estranho. Era como se não tosse ela. Estava contando como tinha acordado, com o cheiro de fumaça, naquela noite. Sentiu-se engasgada, quase sufocando. Levantou de camisola e saiu para o corredor. Ali, a fumaça estava pior. Quase perdeu o folêgo, e as lágrimas começaram a escorrer dos olhos. Então, correu para a escada, pensando em escapar por ali, mas viu as chamas e ouviu um choro de criança, vindo de um quarto que estava com a porta aberta.
Entrou e arrancou o bebê do berço. Não havia ninguém no quarto. As chamas estavam se aproximando cada vez mais portanto sua única saída era voltar ao próprio quarto e saltar pela janela.
Parecia que tinha passado horas ali, agarrada ao bebê, sentindo a dor no tornozelo torcido ao correr pelo corredor. Tentou confortar o bebê, e, de. dentro da fumaça, surgiu um bombeiro.
— Foi muito corajosa moça: salvou seu filho.
Ela sacudiu a cabeça e entregou o bebê a ele. Não sabia nada sobre o menininho, a não ser que era muito bonito e parecia bem cuidado. Teria; talvez, um ano de idade.
Sabia em que quarto ele estava?
Não. Mas sabia que eram quatro portas além do seu quarto.
Mais tarde, ao verificarem os registros, que não haviam sido danificados pelo fogo, descobriram que o quarto era de uma tal frau Kristy. Não se sabia quem era. Não tinha sido encontrada entre os sobreviventes. Mais tarde, o corpo de mulher, totalmente queimado, foi achado numa das escadas. Concluiu-se que havia abandonado a criança e fora apanhada pelo fogo, ao subir.
Sibele estremeceu. Que tipo de mulher abandona o filho num incêndio? A criança podia ter morrido sufocada.
Ao terminar a história, os dois ficaram em silêncio. Olhou para o barão e viu que parecia distraído. Depois, enfiou a mão no bolso e puxou uma corrente com uma medalha. Era do tipo que abria e dentro havia dois retratos. Um, de uma jovem de rosto oval, muito loira e bonita. O outro, de um rapaz moreno e lindo, mas de olhar triste. Sibele olhou, curiosa, para o barão.
— Isso foi encontrado com a mulher morta — ele disse. — Pertencia à minha irmã Kristy e foi devolvido à nossa família depois do incêndio?
— Que horrível! — Sibele segurou a mão dele, demonstrando involuntariamente toda sua piedade. — Lamento muito. Então, o bebê...
— Sem dúvida era dela. — Fechou a medalha e guardou no bolso. — Kristy não foi feliz em nossa casa. Ela fugiu de Mayholtzen há mais de dois anos. Deve ter percebido que ia ter um bebê... nós não sabíamos... Ele respirou fundo e continuou:
— Só quando vi o garotinho, entendi a verdade. Ele parece muito com a mãe. Depois, ao encontrarem o corpo dela... tudo fortaleceu minha opinião de que se tratava de minha irmã. O nome que usou foi frau Kristy, e penso que estava a caminho de nossa casa, em Mayholtzen. Tinha ficado muito tempo afastada de nós e devia ter resolvido trazer o filho para nos apresentar.
Olhou triste, para as árvores do bosque.
— No incêndio, Kristy deve ter tentado fugir. Era típico dela. Sempre que havia uma crise, procurava fugir, se esconder, sem pensar em mais ninguém. Desta vez — deu de ombros — correu para a morte.
— Tentou procurá-la?
— Oh,. sim, muitas vezes. Não sou nenhum homem sem coração. — Olhou para Sibele com severidade, e ela se afastou, temendo aquele corpo poderoso e forte, entendendo o medo e a insegurança que a irmã dele devia ter sentido, quando se viu com problemas.
— Descobri onde ela estava logo depois que fugiu de casa.
Morava com uma amiga em Interlaken, na Suíça. Bu lhe disse que podia voltar, se quisesse, mas ela recusou. Disse que o castelo lhe trazia recordações tristes. Como sempre, ia fazer o que queria. Voltei a Mayholtzen e avisei o resto da família de que agora ela pretendia viver a própria vida. Minha mãe ficou muito aborrecida, naturalmente. Kristy não nos contou nada sobre o bebê. Srta. Winters, ela tinha um namorado que morreu escalando uma montanha. Ele era o pai da criança. Tenho certeza disso. Se ao menos tivesse me dito que estava em Viena, eu teria vindo buscá-la, evitando a tragédia que ocorreu.
Fez uma pausa e olhou profundamente para Sibele.
— Era tão impulsiva... penso que tinha um pouco de medo de mim. Será que pareço tão bravo? Ela não contava nada a ninguém. Escondia todos os seus segredos. Nem me avisou que eu tinha um sobrinho... É um menino lindo. Acho que devia ter muito orgulho dele.
Sibele concordou e procurou não lembrar do bebê chorando naquele quarto cheio de fumaça.
— Você não teria fugido, deixando seu filho para trás, não? — De repente, ele segurou a mão dela com força. — Tenho que lhe agradecer pela vida dele. Salvou meu sobrinho, srta. Winters, e deve ser recompensada.
— Não. A vida dele já é recompensa suficiente...
— Eu insisto. Vim procurá-la para mostrar minha gratidão e também a de minha mãe. Ela quer convidá-la a passar uns tempos no castelo.
— É muita gentileza, mas não posso...
— Não adianta recusar. — Olhou-a com ar ameaçador. — Não é bom para uma dançarina trabalhar como garçonete. Vai ficar cansada e não conseguirá fazer seus exercícios. Sabe que seu talento pode sofrer danos... e, então, o que acontecerá com sua vida?
— Sou jovem, senhor barão, e já consegui dançar num corpo de baile.
— Vi que valoriza muito seu talento e tem ambição para o futuro.
— Sim.
— Então, seria melhor passar umas férias nas montanhas, onde o repouso faria com que recuperasse seu tornozelo mais rapidamente, em vez de ficar correndo com bandejas de café.
— Preciso do dinheiro que ganho. É gentileza sua me convidar para ir a Mayholtzen, mas não posso aceitar, mesmo sabendo que gostaria de ir.
— Não vejo por que não vai. Se está preocupada com dinheiro, posso lhe dar um cheque...
— Creio que não! — Ficou muito vermelha. — Acontece que sou uma pessoa independente e não aceitaria o seu dinheiro.
— A vida do bebê vale tudo que tenho, srta. Winters, Eu teria muito prazer em lhe proporcionar uma certa estabilidade financeira, até encontrar emprego numa das companhias de balé.
— Não. — Sacudiu a cabeça, com firmeza. — Gosto de viver do que ganho e não quero ser conhecida como a bailarina que foi mantida por um barão austríaco.
— Eu não direi a ninguém — ele sorriu, irônico. — Será um segredo só nosso.
— Quando uma coisa é mantida em segredo, sempre parece pior do que é. O senhor é generoso, barão, mas minha resposta é não, obrigada. Gosto de trabalhar para viver, gosto de sentir respeito por mim mesma.
— Você é muito britânica — ele disse, apertando o pulso dela. — Não se entrega sem lutar.
— É verdade. — Tentou puxar o pulso, mas ele não o largou. — Devo lembrá-lo, barão, de que sou visitante na Áustria, e até agora só encontrei cortesia e simpatia: E, principalmente, respeito.
— É teimosa também? — Sorriu, encarando-a, e ela de repente se sentiu pouco à vontade por estar ali, perto dos Bosques de Viena, sozinha com ele.
— Eu... tenho que voltar ao café. O proprietário vai ficar zangado, Afínal, ele foi muito gentil em me dar o emprego.
— E se eu lhe oferecesse outro... em Sete Lilases?
Olhou-o espantada. Os olhos castanhos-escuros dela tinham minúsculas partículas douradas. Não eram olhos comuns, na Inglaterra, mas seu pai era do sul. Certo dia, ele havia partido para uma pescaria no Ártico e não voltou mais. Toda a tripulação do barco morreu durante uma tempestade em alto-mar. A mãe morreu pouco tempo depois, e Sibele foi criada por duas tias que, sem a mimarem, deixaram que escolhesse seu caminho na vida. Sempre a incentivaram para o balé, e agora ela estava resolvida que essa seria sua profissão. As tias. costumavam dizer que tinha herdado os olhos e a independência do pai.
Encarou o barão von Linden, pensando no estranho destino que os unia. Sabia que tinha força para conseguir o que queria; e também orgulho suficiente para se retirar, quando percebia que não estava sendo apreciada. Ele também. Por isso, havia virado as costas, quando a irmã lhe disse que, não queria voltar para casa.
O barão era um homem interessante. Será que teria que discutir com ele? Não era melhor deixá-lo ganhar a discussão? Que tipo de emprego ele poderia lhe oferecer? Que tipo de lugar era o tal Sete Lilases? O nome parecia romântico, mas não devia se impressionar com isso.
Ele pareceu ler seus pensamentos, pois comentou: — Nosso castelo nas montanhas é conhecido como Sete Lilases, porque os arbustos foram plantados pelos meus antepassados e, na primavera, ficam cobertos de flores lilases, rosas e malva. Diz a lenda que, enquanto os lilases florescerem, haverá um Linden no castelo. Isso agora é possível, porque você salvou o pequeno Loren. Ele crescerá no castelo e, por isso, quero lhe mostrar minha gratidão, srta. Winters. Quero lhe oferecer um emprego, já que não aceita ser apenas nossa hóspede.
— Que emprego? — Apesar de interessada, procurou falar friamente. Tinha que concordar com Rudi: esses nobres austríacos, nunca se sabe...
— Professora de dança na escola do vale. E um lugar lindo, e as garotinhas vão adorar aprender balé. O que acha?
— Não sei. As professoras da escola são escolhidas pelas autoridades locais? Como pensa em colocar uma nova professora na folha de pagamento.
— Mayhollzen e todo o vale pertencem à minha família. — Sorriu, orgulhoso. — Sou uma das autoridades locais e penso
que poucos serão contrários à idéia de que as garotinhas devem aprender balé.
— Quer dizer que é uma autoridade feudal? Lá, sua palavra é
lei?
— Não. Faço apenas sugestões. Já passamos do tempo em que as pessoas beijavam as botas dos nobres. Os velhos títulos não significam nada no mundo moderno. Mas os habitantes das montanhas gostam de pensar que têm um barão a quem podem apresentar seus problemas. Meu irmão Kurt acha tudo muito divertido. Já ouviu falar de Kurt von Linden? O campeão de esqui e alpinismo?
— Não. Só conheço os bailarinos famosos. Não pertenço ao mundo dos esportes.
— Então, será bom para Kurt encontrar uma jovem que não o conhece nem viu seu retrato nas revistas.
— Eu ainda não disse que vou para o seu castelo.
— Mas irá.
— Não está pedindo. Parece me dar uma ordem.
— Isso aumenta sua teimosia?
— Sim, um pouco. Pretende pagar meu salário do próprio. bolso?
— Faz alguma objeção?
— Só se me oferecer muito dinheiro.
— Prometo não oferecer. Não quero corromper sua maravilhosa independência.
— Espera que eu more no castelo?
— Minha mãe, a baronesa, ficará muito satisfeita com isso.
— Seu irmão Kurt também estará lá?
— No momento, está. Planeja escalar a montanha chamada Torre de Vidro. Há algum tempo, tentou subir até lá, com um grupo onde estava o namorado de Kristy. Helmut caiu e Kristy culpou Kurt pelo acidente. Ele agora sente que precisa conquistar a montanha, e não vou tentar convencê-lo a desistir. Deve tomar as próprias decisões.
— Mas não está deixando que eu tome as minhas! — Sibele protestou. — Quer que eu diga agora mesmo se vou ou não a Mayholtzen. Se pensa que me deve alguma coisa, garanto que está enganado.
— Talvez eu sinta que deva dar uma dançarina ao mundo, Conosco, você terá o sossego e o ambiente de que precisa para seus ensaios. Assim, quando chegar a hora de entrar para o corpo de bale, já estará pronta. Não arruine seu talento, num emprego aborrecido. Deixe que a bailarina que existe em você aceite a minha oferta.
— Está bem. Seria uma tola em recusar. Mas não posso ir imediatamente. Devo dar um aviso prévio ao dono do café e esperar que ele arrume uma substituta para mim.
— Eu falarei com ele. Sei que a dispensará hoje mesmo. Permite?
Sibele sacudiu a cabeça.
— Vamos fazer um jogo limpo, senhor. Está muito ansioso para controlar as pessoas e os acontecimentos. Talvez por isso, Kristy tenha sentido medo.
— Está com medo de mim? Será que pareço um homem muito exigente? Será que não sou compreensivo com os temores e afeições das jovens ?
— É uma pessoa forte. O mundo não pode amedrontá-lo; portanto, parece um pouco amedrontador. As pessoas percebem que fica impaciente diante das fraquezas delas.
Sou assim brutal? Será que vai se atrever a vir a Sete Lilases, depois de descobrir isso?
— Como eu poderia resistir, senhor barão? — Sorriu, mas ele continuou sério e ela notou que seu coração disparava. — Seu irmão Kurt se parece com o senhor?
— Está preocupada em ir para um castelo, nas montanhas, com dois brutos, em vez de um? — Riu, satisfeito. — Bem, srta. Winters, vou deixar que faça sua própria opinião sobre Kurt. Sou apenas um homem, não sei que reações ele provoca nas mulheres.
— É modesto, senhor.
— Imagino que sua companhia de balé tenha lamentado perdê-la.
— Sim. Nosso diretor tinha confiança em mim, mas a companhia se dissolveu...
Lembrou-se de Cassian dançando A Bela Adormecida e, depois, o pas de deux do Pássaro Azul. O salto mortal dele, como um pássaro ferido, e sua queda. Tinha morrido instantaneamente porque estava com problemas no coração. Sofria há alguns meses, mas não tinha contado nada a ninguém. Cassian era assim, um homem forte, um tirano gentil. Dançando ou dirigindo, ele sempre a olhava nos olhos, sorria e demonstrava confiar nela.
— Nunca haverá outro Cassian — suspirou.
— Gostava dele?
— Sim. — Encarou o barão. — Todos que o conheciam gostavam dele.
— Pessoas assim são muito raras. Geralmente, é preciso que nos ajustemos à atração, e, aí então, a magia se aprofunda ou acaba. Talvez seu sentimento por esse homem tenha sido uma espécie de adoração por um herói. Você não passava de uma garota...
— As garotas amadurecem depressa no mundo do balé. É uma arte em que o corpo tem que ser compreendido, para exprimir corretamente as emoções.
O barão a olhou longamente, seu olhar provocando uma estranha perturbação. Então, com um movimento rápido, ele a pegou pelos ombros e a puxou para si. Ela tentou se afastar, surpresa e assustada. Ele começou a rir.
— E tão inocente como uma menininha. Precisa fingir o contrário porque a convidei para vir ao meu castelo? Teme que comentem sobre o barão corrompido e a bailarina? E muito nervosa também. Nem parece a heroína controlada e calma que pensei encontrar.
— Desculpe desapontá-lo. Ele ainda a segurava, e, quando a soltou, Sibele foi para o canto do carro. Ficar perto dele lhe despertava instintos primitivos... a atração incontrolável entre homem e mulher. Lá fora, o sol refletia a poeira, e ela sentiu que devia se afastar daquele estranho.
— Está ficando tarde e tenho que cuidar dos meus negócios. Poderá ir sozinha a Mayholtzen, daqui a duas semanas?
—- Vim sozinha para Viena. Sou uma pessoa muito independente e perfeitamente capaz de cuidar de mim mesma.
— Será que não vai mudar de idéia e desistir de vir para o castelo?
— Se prometi, não vou quebrar minha palavra.
— A baronesa ficaria muito desapontada. Você salvou o neto dela, por isso insistiu para que eu viesse a Viena procurá-la.
— Sua mãe verá que não sou nenhuma heroína dramática.
— Verá que é uma pessoa muito humana srta. Winters. Levou-a de volta ao café e se despediram. Sibele observou o Mercedes se afastando e entrou correndo.
Tinha um emprego de professora de dança na escola do vale de Sete Lilases, pensou, sem acreditar. Era fantástico! Ia adorar aquilo.
Afinal, estava tendo um pouco de sorte. Havia encontrado um nobre austríaco, de rosto forte e um charme imenso... Talvez nada parecido lhe acontecesse mais em toda a vida.
A história toda tinha ingredientes de romances. Até um ar de tragédia que envolvia o castelo dele: uma irmã que fugiu depois de perder o namorado, morto ao tentar escalar uma montanha perigosa. Havia Kurt von Linden, o alpinista e irmão do barão. O responsável pela morte do namorado da irmã. Por isso, a garota tinha fugido para a Suíça, resolvida a criar sozinha o seu filho.
Enquanto se preparava para o trabalho da noite no café, Sibele escutou frau Wilder dando ordens. Colocou o avental e viu as inúmeras bandejas que teria que carregar e os clientes chegando.
Percebeu que não ia tolerar aquele emprego nem mais um minuto. Não sabia o que a esperava em Sete Lilases, mas não queria continuar ali. Hen Wilder era um homem simpático, mas a esposa estava sempre irritada, dando ordens, fazendo Sibele correr de um lado para o outro.
— Frau Wilder...
Aproximou-se da mulher com o queixo erguido. — Frau Wilder, quero apresentar minha demissão, Vou voltar ao balé e deixarei o seu café dentro de duas semanas.
Estava sozinha no vagão indo para Mayholtzen. O trem era pequeno e lento, mas a viagem parecia linda. Sibele usava suas botas de couro, calça de veludo verde e um casaco de camurça bege, combinando com o gorro verde e bege. Seus cabelos, soltos, apareciam por baixo do gorro.
Aos poucos, viu Viena ficar para trás e irem surgindo sítios e fazendas. Depois, o trem começou a subir. As montanhas eram escarpadas e lindas, havia neve por toda parte. Ao longe, surgiam vilarejos e grupos de pinheiros. Mais de perto, via as enormes gargantas de gelo, perigosíssimas de tão profundas, completamente brancas, que até pareciam azuladas.
Às vezes, o trem apitava e entrava em túneis estreitos. Ao sair, esbarrava em pinheiros que curvavam os galhos, deixando cair a neve acumulada sobre eles.
Depois de algumas horas de . viagem, avistou uma estaçãozinha, parecendo um quadro, na montanha coberta de neve. Tinha chegado a Mayholtzen.
Desceu carregando a mala e caminhou para a estação. Não havia ninguém. Largou a passagem sobre o balcão e caminhou para a porta. Tudo estava completamente vazio.
Ninguém tinha vindo esperá-la, como a baronesa prometera, naquela carta tão simpática. Não havia nem sombra do Mercedes preto, e Sibele ficou um pouco desapontada. O que faria?
Foi então que viu um homem se aproximar. Era alto, magro e teve certeza de que era o barão. 'Mas, quando chegou mais perto, viu se tratar de um completo estranho.
Seus cabelos não eram loiros, mas tinham uns fios prateados; os olhos, de um azul da cor do céu. Apesar disso, tinha alguns traços que lembravam seu novo patrão.
— Boa tarde, senhorita. Deve ser a professora de balé. Durante um momento, pensei que fosse Robin Hood, saindo da floresta.
Ela corou e tirou o gorro. Ia responder, quando ele se apresentou: Kurt von Linden, o campeão de esqui... Claro que seus modos combinavam com sua fama.
— A baronesa queria vir encontrá-la, mas nevou muito, e ela é como os gatos: prefere ficar perto da lareira. O inverno vai começar cedo este ano. — Ele sorriu, arrogante. — Será que você veio nos trazer mais frio?
Sibele tocou o broche que tinha colocado na lapela. Era um presente de Cassian e ela acreditava que dava sorte. Ia precisar de muita, se teria que conversar com aquele tipo.
Era o homem de quem Kristy tinha fugido. Ele havia convidado o namorado dela para escalarem a montanha e, sem dúvida, depois a enfrentou com a arrogância costumeira.
Sibele sentiu vontade de voltar correndo para a estação, mas sabia que o trem já tinha ido embora. Apertou a alça da mala e olhou para a montanha.
Ele a encarou, parecendo ler seus pensamentos.
— Já lhe avisaram a meu respeito? Ouviu falar que sou perigoso?
— Ouvi a história de sua irmã Kristy.
Ele pegou a mala dela, olhando para a estação.
— Acho que não tem nada a ver com as pessoas como nós, srta. Winters. É uma moça da cidade, uma bailarina acostumada com as luzes e a sofisticação do teatro. Verá que um inverno em Mayholtzen não é nada agradável. Quando a neve começa a cair sem parar, muitas vezes o castelo fica completamente isolado.
Então, as coisas que aconteceram conosco começam a voltar... atacam nossos nervos... Sendo estranha, você poderá se ver presa, como uma mariposa, na teia dos nossos dramas. O castelo é assim. Quem não gosta de isolamento poderá se sentir numa prisão.
Olhou, sério, para o pico da montanha.
— Acho que seria mais esperta se esperasse o trem das quatro e meia e voltasse para Viena.
Sibele apertou o broche com mais força, lembrando de Cassian e pedindo que a ajudasse naquela emergência. Procurou se controlar.
— Aceitei um emprego em Mayholtzen e não posso desistir, só porque não me quer no castelo. Seu irmão, o barão, me ofereceu o cargo de professora de dança e sua mãe me escreveu uma carta encantadora.
— Já ensinou balé, antes?
— Acho que isso não é da sua conta, senhor. — Estava aborrecida e furiosa, mas sentia-se insignificante diante daquele homem. Havia uma força e uma arrogância nele, que ela ainda não conhecia. Era tão poderoso como as montanhas que costumava conquistar.
— Gosto de crianças — disse baixinho. — Se quiser fazer mais perguntas, é melhor se dirigir ao barão.
Ele a encarou durante alguns momentos, sem dizer nada. Novamente, Sibele sentiu vontade de sair correndo para Viena, para seu amigo Rudi. Será que esse homem ia conseguir afugentá-la? Não podia decepcionar o barão; afinal, era convidada dele.
— Então, quer que a leve a Sete Lilases?
— Sim. Agradeço muito, se me levar.
Pela primeira vez, ele deu um sorriso sincero. As linhas de seu rosto se suavizaram e os olhos pareceram ainda mais azuis.
— Vamos, srta Winters. Vejo que está de botas. Esperava neve?
— Um amigo me avisou que neva cedo, nas montanhas.
— Sabe esquiar?
— Não. Tenho medo de machucar as pernas.
— É medrosa?
— Não. Sou bailarina, e um osso quebrado pode significar o fim da minha carreira.
— Vejo que tem um temperamento dramático. — Sorriu. — Será que seria assim tão ruim encerrar a carreira? Deve saber que consegue atrair muito homens.
Ela corou e o olhou. Ele não podia dizer aquilo. Afinal, ela era seu tipo. Parecia não estar satisfeito por não conseguir que ela fugisse correndo da neve e do castelo. Não a queria ali... talvez, porque o irmão quisesse.
Chegaram a uma curva do caminho, e Sibele viu um trenó puxado por um cavalo negro, belíssimo.
Kurt ajudou-a a sentar, colocou a mala a seu lado, criando uma espécie de barreira entre os dois, puxou a manta de pele eles e estalou o chicote, segurando as rédeas com firmeza, vento no rosto fez com que ela ficasse corada; sentiu um imenso prazer com o ar frio que esvoaçava seus cabelos, trazendo flocos de neve.
Imaginava que era uma bailarina famosa, que ia encontrar um misterioso barão e procurou esquecer aquele homem arrogante a seu lado; esquecer os olhos azuis penetrantes, como os picos azulados das montanhas.
— Quando estive na Inglaterra, não vi trenós puxados a cavalo — ele disse. — Você deve estar se divertindo.
— Sim. É muito agradável viajar assim, com o ar fresco no rosto e a música do sininho do cavalo.
— Romântico, hein?
— Isso depende da companhia. Olhe aquilo, que encantador! Os dois olharam ao mesmo tempo, e durante um momento
ficaram maravilhados com uma pequena cascata onde o sol se refletia na água e nos flocos de neve que voavam contra o céu.
Mais adiante, depois de uma curva estreita, surgiu o vale, os telhados das casinhas e uma igrejinha pitoresca.
— Aquela é a Capela da Freirinha — ele disse, e Sibele ficou encantada. Ali, naquele lugar, ia se recuperar da perda de Cassian. Ia apenas pensar em ser uma grande dançarina, para realizar a expectativa dele.
— As montanhas são lindas e parecem de cristal, mas, na verdade, são perigosas demais. Há barrancos e paredes de gelo, abismos sem fundo, e grandes avalanches de neve podem devorar os grupos de alpinistas num abrir e fechar de olhos. Há plataformas de neve que cedem, cordas se arrebentam e tempestades que nos deixam isolados durante dias, numa barraca congelada.
— Então, por que sobe nas montanhas, senhor?
— Por que dança, senhorita?
— Quer dizer... que gosta do alpinismo? Ele deu uma risada.
— Como diz Bruno, sou um louco que um dia vai quebrar o pescoço. Sim, gosto de sentir o desafio.
— Quem é Bruno?
— Meu irmão. — Sorriu, provocante. — O barão von Linden.
— Ah, sim. Eu não sabia o primeiro nome dele.
— Mas estava querendo saber?
— Sem dúvida. Agora, é meu patrão. Mas não costumo chamar meus superiores pelo primeiro nome. Você fala comigo como se eu fosse uma interesseira que tem intenções de conquistar um barão. Sabe, foi ele que me encontrou e insistiu para que eu viesse até Sete Lilases. Eu estava muito contente trabalhando como garçonete e esperando a chance de entrar no balé da ópera.
— Bruno ficou agradecido por ter salvo a criança.
— Sim. E você me perguntou se eu era medrosa...
— As pessoas às vezes são movidas por impulsos estranhos e acabam fazendo o que mais temem. São atos impulsivos, apenas.
— Como eu poderia deixar uma criança de um ano, chorando no berço, num hotel pegando fogo? Claro que senti medo, mas não pensei nisso e, se estava agindo por impulso, estou muito agradecida, porque salvei o bebê e porque não sou uma pessoa que só pensa em si mesma.
—s Se seu olhar matasse, eu já teria sido atirado do trenó, para algum abismo das montanhas. Sabe que está me olhando com todo o seu ódio, senhorita?
— É que você tem um modo provocante de dizer as coisas.
— Não quero que tenha ilusões sobre nós. Mayholtzen é um lugar para gente forte.
— E o que pensa que sou? — Ela o olhou, indignada. — Uma dançarinazinha que procurou encantar seu irmão, até que ele me oferecesse hospedagem no castelo, durante o inverno?
— As confissões são boas para a alma. Você mesma está dizendo isso. Eu não falei nada.
Sibele levantou os olhos e viu que ele ria divertido.
— Não deve ter uma boa opinião de seu irmão — disse, secamente.
— Não.
Ela não esclareceu mais nada. O trenó prosseguiu mais veloz, sempre subindo a montanha. Sentia-se sozinha com Kurt von Linden, acima do mundo. Era um lugar lindo, e ela fechou os olhos, para absorver toda a paz. Tentou esquecer que estava indefesa, entregue nas mãos dele, sabendo que não a desejava em seu castelo.
Talvez Kurt estivesse ressentido por ela, sendo uma estranha, saber tanto sobre a família. Sobre Kristy. Talvez visse nela uma inimiga. Por isso, não gostou ao saber que Bruno a protegeria.
Em Mayholtzen, as montanhas formavam uma cadeia quase fechada e algumas possuíam vegetações em parte de encosta. Mas todos os picos estavam brancos de neve.
— Você está pálida.
Ela não sabia o que dizer. Será que ele tinha lido seus pensamentos? Será que percebera seu medo?
— Acho que estou preocupada em conhecer sua mãe. A baronesa me escreveu uma carta...
— Não se preocupe. Mamãe é muito gentil, do tipo encanto de mulher vienense que abandonou a vida divertida na cidade e veio para as montanhas. Aconteceram muitas coisas que poderiam tê-la deixado amargurada, mas não deixaram.
— Por favor, não quer me falar sobre ela?
— Bruno não lhe falou nada?
— Não houve tempo. Conversamos durante uma hora apenas.
— E só precisou disso para aceitar o emprego que ele lhe ofereceu? Algumas pessoas acham que Bruno as intimida; É muito parecido com papai.
— E barão porque herdou o título do pai?
— Sim. Meu pai morreu há anos, durante a guerra. Eu era pequeno, mas lembro dele. Era um homem alto e loiro, de princípios rígidos. Era juiz. Certa manhã de inverno, recebeu ordens para ir para a Alemanha. Depois, minha mãe só soube que ele tinha sido julgado e condenado. Era um inimigo político do novo regime. Não respeitaram sua cidadania austríaca, e o colocaram na prisão. Não ouvimos mais falar dele durante um longo tempo. Mesmo os amigos importantes de minha mãe não conseguiram libertá-lo. Nós, seus filhos e a esposa, ficamos como prisioneiros no castelo. Os camponeses de Mayholtzen nos traziam comida e nos contavam o que estava acontecendo. Ficamos sabendo sobre a chegada dos ingleses, dos aliados.
Fez uma pausa e respirou fundo. Depois contou como os moradores do vilarejo enganavam os guardas do castelo para poderem ver a baronesa e os filhos. Contou como sentia vontade de ser livre para brincar com as outras crianças e do perigo que havia atravessado porque o pai tinha falado contra um regime de leis terríveis.
— Seis meses depois da prisão de papai, mamãe recebeu um pacotinho... eram as cinzas dele. Disseram que tinha morrido de um ataque cardíaco. Ela sabia que não era verdade e ficou ainda mais apavorada por nossa causa. Finalmente, conseguiu que alguém nos levasse, pelas montanhas, para um país neutro. Continuou no castelo, fingindo que estávamos com ela. Então, os guardas descobriram, e ela foi presa. Apesar de sua família ser muito importante em Viena, não conseguiram soltá-la. Até hoje, tem no rosto a marca do anel de um oficial que a esbofeteou para que contasse quem havia tirado seus filhos da Áustria.
— Como puderam fazer isso?
— Foi fácil. Eram homens sem alma. Foi bom, quando tudo acabou, voltamos ao castelo e descobrimos que nossa casa já não era mais uma prisão. A maior parte da mobília tinha sido roubada, junto com os castiçais e candelabros, as tapeçarias e quadros. Mas não conseguiram roubar as jóias da minha mãe. Durante todo o tempo, elas ficaram escondidas na Capela da Freirinha. Então, foi tudo vendido para reconstruirmos o castelo. Só há um ano, Bruno conseguiu comprar de volta as jóias de que Trinka gostava mais. É assim que nós a chamamos.
— Trinka — Sibele murmurou, imaginando uma mulher frágil, mas corajosa, segundo o lema dos vienenses; curvar, para nunca quebrar. — Não entendo por que sua irmã, Kristy...
— Ela era minha irmã adotiva — ele explicou. — Trinka sempre quis uma filha, e Kristy ficou órfã... Era uma garotinha loira, que Trinka adorava.
— Deve ter sido muito triste para sua mãe, quando soube...
— Sim, foi um grande choque. Mas agora ela tem o bebê, graças a você.
— Está agradecendo sinceramente, sr. von Linden?
— Claro que estou. — Ele a olhou de modo penetrante. — No entanto, se eu fosse Bruno, teria usado minha influência para colocar você no corpo de baile da ópera.
Aquela franqueza, aliada à história da sua infância, fez com que Sibele sentisse simpatia. Ele queria que soubesse das recordações tristes sobre Kristy, que ainda pairavam sobre Sete Lilases.
Se aquela tinha deixado sua imaginação agitada, por outro lado, sentia-se ansiosa para conhecer a baronesa.
Momentos depois, surgiram as torres do castelo, se elevando.. acima dos pinheiros. O trenó entrou no bosque e logo em seguida passava por um lago calmo e azulado, que a um lado tinha o castelo e, do outro, as escarpas rochosas das montanhas.
— É lindo, parece um sonho!
— Lembre: não é um paraíso, senhorita.
O trenó rodeou o lago azul com suas pequenas ilhotas e parou diante da porta do castelo. Logo na entrada, estavam as sete arvorezinhas de lilases. Eram baixas e fortes e delas saía um suave perfume, apesar de ainda não estarem floridas.
Sibele sabia que jamais esqueceria aquela chegada. Será que estaria lá ainda, na primavera, para ver os lilases florirem?
Kurt von Linden lhe estendeu a mão, e ela desceu do trenó. A proximidade dele a perturbava, havia tanta vitalidade naquele homem, que ela parecia sufocada. Ao mesmo tempo, sabia que ele não tinha muita paciência com garotas que ganhavam a vida dançando.
Afastou-se, procurando aparentar calma.
— Obrigada, senhor.
— Está me agradecendo pelo passeio de trenó, mas não pelo conselho que lhe dei, não é? — Ele a segurou com força pelo braço, forçando-a a encará-lo. Seu olhar trazia uma promessa de mais antagonismo, no futuro. Não conseguiam se entender... nem nos olhares.
— Deve ter percebido claramente que prefiro trabalhar para viver — ela disse. — Trabalhei duro no café, e verá que vou fazer o mesmo na escola.
— Acho que gostaria de dançar, em vez de lecionar. Será que sua ambição vai se satisfazer tendo que ensinar garotas que não têm a menor leveza nem graça?
— Eu as transformarei, apesar das suas dúvidas. Gosto muito de crianças. E você, não?
— Não sou muito sentimental, senhorita.
— Duvido que goste de alguma coisa... nem mesmo das suas montanhas. Parece uma pessoa muito controlada, e, geralmente, esses tipos são frios e sem sentimentos.
— Fala como se estivesse me desafiando, srta. Winters?
— Só fiz um comentário, senhor.
— Depois de me conhecer há tão pouco tempo?
— Também fez avaliações sobre o meu caráter, não deve esquecer. Disse que eu não sirvo para este ambiente e devia voltar a Viena.
— Foi para o seu próprio bem.
— Acontece que estou aqui... e não farei mal algum, mesmo que não consiga criar um grande corpo de baile com as garotinhas da escola.
— Sabe que não é nenhuma criança. Devia perceber que pode causar problemas em nossas vidas, como qualquer um de nós poderá perturbar a sua.
— Como? — Arregalou os olhos. — Não estou entendendo. Que problemas eu poderia causar? Sou só uma professora de
dança.
— Srta. Winters, me recuso a acreditar que seja tão inocente como parece. — Olhou-a fixamente, e ela corou. — Sabe que não é uma moça recatada nem envergonhada.
— Pelo que ouvi de você, também não é quieto nem envergonhado. — Ele apertou seu braço com mais força, mas Sibele continuou, arrogante. — Imagina que, como as outras garotas, eu vou me atirar em seus braços no intervalo entre as lições de dança? Ou que vou me atirar em cima do seu irmão? Sei que não gosta de mim, e eu não gosto de você; portanto, vamos fazer uma trégua e procurar viver do melhor modo possível.
— Seria gentil diante de Trinka?
— Claro, não quero aborrecer sua mãe. Penso que ela gosta muito de você.
Ele sorriu, mas o olhar continuou frio.
— Como alpinista, eu tenho uma regra: quando a montanha está calma, é melhor ouvir: ao menor distúrbio, a avalanche pode começar... quando menos se espera.
— E o que devo concluir deste comentário?
— Um alpinista não pode ser impulsivo. Ao mesmo tempo, ele percebe os impulsos das outras pessoas. Você é uma estranha que me dá a mesma sensação que tenho quando estou escalando uma montanha: o arrepio de encontrar algo inesperado no minuto seguinte... a suspeita de que um passo em falso pode me arremessar nas profundezas de um abismo. Sabe que não é do tipo sólido e estável, srta. Winters?
— Devo pedir desculpas por isso? Sabe, não preciso de nenhum analista.
— Não. Faz muito tempo que perdeu o seu... diretor?
— Ele não me via como uma pessoa perigosa.
— Como ele a via? — Os olhos de Kurt von Linden brilharam intensamente. — Estava apaixonado por você?
— Como se atreve a perguntar isso? — Sentia-se profundamente chocada com aquela intromissão. Que direito ele linha de lhe fazer tais perguntas? Afinal, estava ali apenas porque o barão insistira.
— Vamos entrar antes que comecemos a brigar? Ele riu e a olhou com um ar de pouco caso.
— Talvez seja melhor. Minha mãe está nos esperando.
— Será bom ver alguém amigável.
Ele a soltou, e Sibele caminhou para a porta. Parou, observando as duas torres nas laterais do castelo, e depois entrou no vestíbulo. Havia uma porta de vidro e, ao virar-se para ele, observou que, entre os arbustos de lilases, havia um de avezinho.
A vista ali era linda. Sibele decidiu que aquele homem não ia estragar seu prazer. Estava disposta a aproveitar ao máximo sua estada no castelo.
— Conhece a superstição ligada aos avezinhos? — ele perguntou.
— Não.
— São plantados na entrada das casas, para manter as bruxas do lado de fora. — Riu, irónico, e ela não soube o que responder. — Por favor, entre, senhorita.
— Acho que gostaria de me trancar do lado de fora, não?
— Talvez, Penso, bruxinha, que você vai trazer mais problemas a Sete Lilases... e já tivemos tantos!
Entraram numa sala ampla. Em um canto havia uma grande lareira e pelo chão se espalhavam peles de urso. Um piano preto, ao fundo, refletia os raios, e havia uma prateleira com músicas, ao lado.
Sofás e poltronas davam a impressão de que a família sempre se reunia naquele aposento. Talvez fosse ali que ouvissem música, recordando as valsas de sua querida Viena.
A baronesa não estava, mas perto da lareira havia uma poltrona com um livro. Talvez a dona da casa tivesse saído naque]e instante. Talvez tivesse ido ver o netinho. — É uma sala encantadora.
— Sim, Trinka pediu que eu a trouxesse aqui. É sua sala favorita, com seus livros e suas músicas. Deve ter ido dar uma olhada no bebê. Ela se comporta como se algum ente da floresta pudesse vir aqui roubá-lo.
— O amor deixa as pessoas ansiosas.
— Naturalmente. — Ele parecia estar fazendo pouco caso dela outra vez. Curvou-se sobre uma cigarreira. — As dançarinas não fumam, não é? Ou você desobedece às regras, de vez em quando?
— Nunca, quando se trata de cigarros.
— Então, sua dedicação é completa?
— E a sua, não é? Imagino que precise de muito fôlego para escalar as montanhas, ou ganhar um campeonato de esqui.
— De vez em quando, desobedeço às regras, apesar da opinião que deve ter de mim. Não sou nenhum playboy, nem esportista radical.
— Não formei nenhuma opinião, ainda, sr. von Linden.
— Mesmo? — Sorriu através da fumaça. — Parece estar resolvida a se opor a tudo que eu digo. Sabe?, sou muito diferente de meu irmão. Ele leva ,tudo a sério e se sacrifica em nome das tradições austríacas. Vejo que me olha como se eu estivesse falando sobre algum tipo de traição. O castelo é um lugar encantador e gosto muito de Mayholtzen, tenho orgulho de ser filho de um homem corajoso, mas minha filosofia é que cada um tem seu cainho, deve viver sua própria vida. Quero ver novos horizontes, muito além de Sete Lilases. Meu irmão trabalha e planeja viver apenas para este lugar. Kurt von Linden se aproximou da lareira.
— Ele é guiado pela tradição e toma todas as decisões baseado nela. Eu sou diferente... eu resolvo minha vida por mim mesmo... sempre escolho que parte da montanha quero escalar... ou que mulher quero amar.
Agora Kurt a olhava, com ar irônico.
— Sabe que tem olhos grandes, srta. Winters? Eles falam por você. Deve estar pensando que sou um terrível egoísta.
— Fala como se o senso do dever fosse uma coisa entediante. E se você fosse o filho mais velho?
— Sem dúvida, já teria transformado o castelo num hotel para esquiadores. Mayholtzen seria uma grande atração nas montanhas e um maravilhoso centro de esportes de inverno. Isso
a deixa chocada?
— Kurt, já conseguiu assustar nossa jovem convidada?
A voz tinha o sotaque típico e encantador das vienenses. Sibele virou-se e viu uma senhora entrando com calma, carregando uma bandeja até o sofá.
— Querida, deve estar querendo um café, depois da longa viagem. O trem demora para subir a montanha. Kurt, por favor, acenda as luzes, enquanto vejo se essa moça é mesmo tão bonita
como Bruno me disse.
Sibele sentiu o coração bater mais depressa. Então, o barão a considerava bonita... e tinha comentado com a mãe...
Kurt foi de candelabro em candelabro, acendendo todos, fazendo com que os cristais refletissem a luz junto com os últimos raios de sol. Sibele viu que seu olhar procurava o dela, mas procurou evitá-lo. Havia uma aura de tragédia no olhar dele, como um detalhe num quadro que faz o observador arrepiar!
A baronesa era ainda muito bonita, com olhos azuis iguais aos de Kurt e cabelos loiro-prateados. Na face, uma pequena cicatriz, lembrando a fase mais difícil de sua vida. No pescoço, um lindo topázio selvagem, talvez parte das jóias que Bruno conseguira comprar de volta.
— Então, finalmente, vamos nos conhecer. Minha querida, não sabe como esperei este momento. Queria lhe agradecer com minhas próprias palavras o que fez pelo meu Lorenz. Ele estaria
. morto, se não fosse a sua coragem. Sibele... posso chamá-la assim?... espero que sejamos amigas. Sei que seremos. Você é uma bailarina e eu, certa vez, quase cheguei a ser concertista de piano.
Sorriu, triste, e olhou para uma das janelas.
— Mas, em vez disso, escolhi o amor. Liebesleid. Sabe o que significa esta palavra?
— Sim... acho que sim. — Enquanto falava, Sibele percebeu que Kurt a olhava. Sentiu-se envergonhada, preferindo ter dito que não sabia o significado da palavra.
— Então, explique para nós. — Ele pediu.
Olhou-o, zangada, sabendo que a mãe dele não podia ter deixado de notar a provocação.
— Significa a agonia do amor. É uma palavra linda, mas muito cruel.
— Sempre há tristeza na beleza e também um certo sofrimento no amor... Mas não é hora de falarmos disso. — A baronesa sorriu e indicou um sofá. — Vamos sentar e tomar café. Espero que goste de bolo de maçã. Conversaremos sobre assuntos que não interessam ao meu filho. Diga-me: ele lhe deu as boas-vindas, na estação?
Sibele teve que rir, e a baronesa olhou para o filho, com ar de quem o conhecia muito bem. Nos olhos azuis dela transpareceu todo seu amor.
— Sei que não sou bem-vindo aqui TrinKa. Por isso, vou para minha sala de trabalho. Acho que está encantada em poder conversar com a srta. Winters.
— Com ciúme, Kurt? — A baronesa acariciou o rosto do filho, como quem acaricia um leãozinho, sem temer a mordida. Sibele tinha certeza de que só a mãe conseguia se aproximar tanto dele.
— Você sempre conquista os visitantes, Trinka. — Levou a mão dela aos lábios e beijou. Depois, aproximou-se da porta e fez uma leve reverência em direção a Sibele. — Espero que goste do nosso castelo, srta. Winters. Quando a neve chega cedo, como este ano, geralmente o inverno é longo. Espero que não ache monótono a vida na montanha. Mas. se achar, avise logo, antes que fiquemos incomunicáveis. As avalanches descem sobre as estradas e a ferrovia não funciona... Os alpinistas têm uma intuição de que essas coisas acontecerão este ano.
— Mesmo assim... você vai tentar escalar a montanha? — Trinka perguntou, preocupada.
Sibele viu que o olhar dele endurecia. Era um homem que só se preocupava com os aspectos perigosos da vida... estava desligado de tudo mais. Ele tinha certeza de que uma bailarina jamais conseguiria enfrentar os rigores de um inverno nas montanhas.
— Estou ansiosa para conhecer melhor Sete Lilases — Sibele confessou. — Não sou uma pessoa mimada, já deve saber disso, pois gostei muito do passeio de trenó.
— Gostou? Fico contente com isso, senhorita! — Ele sorriu, com ar diabólico.
— Apreciei muito a paisagem — ela corrigiu.
Ele deu uma risada e saiu, fechando a porta. Sibele ficou a sós com a baronesa.
— Não deve deixar Kurt irritá-la — a velha disse, servindo o café com bolo. Sibele colocou açucar e provou, achando delicioso. — Meus filhos são muito austríacos, e talvez assustem um pouco você. Eles acreditam que se deve fazer tudo
completamente. Se é para escalar uma montanha, deve-se
escalar até o pico mais alto. Se é para amar... tem que amar a
noite inteira. A luz da lareira brilhou sobre a prateleira e a baronesa riu, suavemente.
— Aqui na montanha, Sibele, ainda temos uma vida um pouco feudal, mas acho que logo se acostumará. Penso que Kurt não vai precisar levá-la embora, quando a neve começar a cair. Vejo que tem muito senso de humor e muita coragem. Por causa de sua coragem, é que hoje posso segurar meu neto nos braços.
Os olhos azuis da baronesa se encheram de lágrimas.
— Kristy foi uma tola em fugir de casa. Sabe que o namorado dela morreu ao tentar escalar uma montanha com Kurt?
— Sim, ele me disse. Deve ter sido muito triste para a senhora.
— Mais triste para Kristy, e também para Kurt. Ela jogou a culpa de tudo sobre ele e ficou histérica ao saber... Bruno lhe contou. Helmut morreu na Torre de Vidro, uma montanha muito perigosa que parece atrair todos os jovens da Áustria. Uma plataforma de neve cedeu e Helmut caiu no abismo, mesmo amarrado a Kurt. Meu filho conseguiu puxá-lo para cima, até a beirada, mas a corda se rompeu por causa das rochas cortantes. Helmut caiu novamente, e Kurt passou dias nas montanhas, procurando o corpo dele. Quando voltou, estava completamente molhado por causa da tempestade, e só encontrou as acusações da irmã.
A baronesa parou e olhou para a lareira.
— Kristy o acusou de ter cortado a corda para se salvar e não cair junto com Helmut. Mas Wolfgang, o guia dele, viu quando o acidente aconteceu e examinou a corda. Tem certeza de que foi cortada pelas rochas e que Kurt fez tudo para salvar o amigo
Entretanto, como Kristy, Kurt também não quer saber de. conversar sobre o assunto. Agora, ele vai se arriscar novamente, pois sente que, enquanto não vencer a montanha em que Helmut morreu, não terá paz,.
Houve um silêncio dramático entre as duas e Sibele estremeceu. Lembrou-se do olhar de Kurt von Linden e o aviso que lhe dera. Podia ficar presa na teia de dramas que rodeava o Castelo dos Sete Lilases.
Mas, como ir embora agora que a baronesa parecia contente com sua presença? Além disso, queria ver Bruno von Linden mais uma vez. Era bobagem fugir correndo, só porque o irmão mais novo dele fazia com que lembrasse os abismos pengosos das montanhas que rodeavam o castelo.
O sol se punha atrás do castelo, quando uma criada levou Sibele a seus aposentos. Ao subir a escada, sentiu cheiro de charuto e imaginou se Bruno estaria por ali. Lembrava-se dele, com seu charuto, o casaco cinza de gola de pele, esperando por ela no carro. Talvez fosse mais experiente do que o irmão Kurt. Talvez fosse menos agressivo e vivesse em mais harmonia com a natureza, em vez de tentar dominá-la.
Ao chegar no quarto, sentiu-se de repente recompensada por estar ali. Era lindo: parecia a ilustração de um conto de fadas. A cama antiga tinha enormes colunas e um dossel. Sobre ela, um acolchoado fofo e aconchegante. Nas paredes inúmeras estantes com livros e animaizinhos de madeira. O tipo de coisa que uma pessoa bem jovem colecionaria.
Será que aquele quarto tinha sido de Kristy? Não... A baronesa não faria isso... não ia hospedá-la num quarto cheio de recordações...
Sibele olhou com mais cuidado e percebeu que devia ter sido o quarto de um dos garotos. Tinha quase certeza que era de Kurt.
Podia até imaginá-lo na janela, observando o páteo lá embaixo, onde os guardas vigilavam, ameaçadores. Ele sozinho e triste ali, com vontade de poder brincar com as outras crianças e sentindo saudade do pai. Sim, aquele devia ter sido o esconderijo de Kurt, quando garoto.
Sibele estremeceu e procurou não pensar mais naquilo. Pegou a maleta e escolheu um sabonete. Foi até o banheiro e viu que, apesar de antigo, tinha todos os confortos modernos. Havia uma enorme banheira com água quente e todos os tipos de sais e óleos de banho. Jogou algumas gotas de óleo de pinho na água e procurou relaxar. Minutos depois sentia-se renovada ao sair e observar o rosto no espelho embaçado.
Lembrou de Kurt dizendo que muitos homens deviam achá-la atraente.
Será que temia algo desse ripo? Será que estava com medo de o irmão gostar dela? Talvez achasse que uma bailarina não era a mulher ideal para o barão Mayholtzen!
Enxugou-se com cuidado e pensou em Bruno. Como todas as garotas de sua idade, sentia curiosidade sobre o amor. Seu amor por Cassian não tinha se realizado... mas agora lembrava as vezes em que ficou sozinha com ele.
Tinham passeado juntos, depois das aulas e dos ensaios, quando toda a companhia havia ido embora. Conversavam junto ao Embankment e ela lembrava da mão forte dele, segurando a sua, sempre que atravessavam a rua.
O olhar de Cassian era diferente do de todos os outros homens. Muitos diziam que ele tinha o olhar de um fauno. E um dos seus melhores desempenhos tinha sido exatamente em L'Après-Midi d'un Faune.
Lembrou a conversa que tiveram num café em Strand perto do teatro de Covent Garden.
— Se uma pessoa quer ser um grande artista, na música, no
canto ou no balé — ele havia dito —, é preciso se desligar de
tudo. .As ligações humanas enfraquecem a dedicação do artista
para com seu trabalho. Ele perde a lealdade e a ambição,
quando se apaixona.
Aquilo era um aviso. Sabia que ela ansiava por amor. Mas com Cassian, Sibele pensava agora, tudo tinha sido diferente. Ele era igual a ela. Tinha as mesmas ambições. Poderia ajudá-la a se tronar uma bailarina perfeita.
Observou-se no espelho. Agora, não tinha ninguém para ajudá-la. Precisava ser sua própria guia, dali em diante.
Ao voltar para o quarto, deu um encontrão com alguém. Afastou-se, apertando o robe contra o corpo.
— Srta. Winters...
— Senhor...
Ficou terrivelmente confusa. Mais uma vez, tinha confundido Kurt com o irmão. Eram da mesma altura, e ela havia sentido o cheiro do charuto.
Levantou os olhos e sentiu as mãos fortes dele no braço. Bem, Kurt devia roubar alguns charutos do irmão. E também algumas namoradas, se sentisse vontade.
— Está com o perfume dos pinheiros — ele disse. — É o perfume que sinto, bem de manhã, quando saio para a escalada.
— Por favor. — Ela tentou escapar, e, apesar do pânico, notou como estava atraente, com um temo de noite e uma camisa branca, que salienteva mais seu rosto bronzeado e os olhos azuis. Era muito bonito, com a beleza que só têm os alpinistas que chegam aos picos mais altos.
— Sabe que lhe deram o quarto que era meu? Já não durmo aqui, mas guardo algumas coisas naquele baú, perto da janela. Vim buscar algo.
— Então... pode pegar o que quiser. — Eslava assustada, não só pelo contato dele, mas porque as recordações de Cassian a tinham deixado muito sensível. — Espero que não se importe de a baronesa ter me dado o seu quarto.
— É um quarto muito bom, com vista para o lago. Acho que vai gostar de dormir aqui.
Ele a olhou longamente, e Sibele procurou se controlar.
— Quer pegar o que veio buscar?
— É melhor esperar. Logo vão tocar o sino, chamando para o jantar, e você ainda não se vestiu. Abraçou-a pela cintura e ela se sentiu ainda mais frágil. Afastou-se, mas era como se o toque dele em sua pele, feito ferro em brasa. Nunca se sentiu tão perturbada. Ele era feito as montanhas: de repente, quebrava o gelo e fazia com que as pessoas caíssem em abismos profundos.
Sibele fechou a porta e encostou-se nela, ouvindo-o se afastar. Tinha que se vestir logo, ou chegaria atrasada ao jantar.
Aproximou-se da mala e pegou um vestido verde, estampado de florzinhas, de saia rodada, que combinava muito bem com seus cabelos loiros. A gola e os punhos eram de renda branca bordada, e lembrava as roupas das pastoras de gansos da Europa. Achou que era o vestido ideal para o jantar no castelo. Afinal, não teria outra escolha. Era também seu melhor vestido, pois o tinha comprado em Viena, depois de perder todas as roupas no incêndio. Ainda bem que havia conseguido salvar algum dinheiro.
Ao descer a escada, viu que um enorme cão branco, montanhês, se espreguiçava e se aproximava rosnando. Não sabia o que fazer, quando ouviu a voz de Kurt.
— Calma, Breck. Não rosne para a visita.
Sibele estava novamente em desvantagem. Se fosse um cão comum não teria medo, mas aquele parecia um urso.
— Posso alisá-lo? Ou ele vai morder minha mão? — perguntou, bancando a corajosa.
— Pode. Ele não morderá, se eu estiver aqui. — Kurt sorriu, como se tivesse ganho mais um ponto, no jogo indefinido deles.
— Pensei que fosse um urso — ela disse, passando a mão na cabeça do cachorro e sentindo que ele rosnava baixinho, ao mesmo tempo que sacudia o rabo.
Kurt levou-a para uma imensa sala de jantar, toda enfeitada com candelabros de cristais sustentados por estátuas de bronze, em estilo gótico. Ela e Kurt apareciam juntos num grande espelho, e sentiu que seu coração bateu mais depressa, ao notar que formavam um bonito par.
De repente, os sinos tocaram e ela olhou, curiosa.
— Toda a tarde, os sinos tocam, nas torres do castelo. Servem para guiar quem volta para casa ou alguém que se perdeu na floresta.
— É interessante. Parecem com as sirenes no mar. O bangalô onde morei, quando criança, ficava numa região cheia de nevoeiros. Eu costumava ficar na cama, acordada, ouvindo as sirenes, pensando que elas poderiam guiar os navios de volta ao porto. Meu pai e sua tripulação ficaram perdidos no Ártico, numa tempestade de neve. Eu era muito criança, naquela época, e não entendia por que papai não voltou para casa.
De repente, parou, imaginando por que estaria contando tudo aquilo. Desviou os olhos e disse:
— Vamos, sua mãe deve estar esperando.
— Sim, só minha mãe deve estar esperando, srta. Winters — ele disse, irônico. — Meu irmão ainda continua na Bavária. Disse que foi a negócios, mas desconfio de outras coisas.
Sibele sentiu que corava e segurou o vestido, para não tocar nele. Podia parecer com o irmão, mas era muito diferente. O barão era cortês e gentil, mas Kurt tratava as mulheres como coisas perigosas que deviam ser conquistadas e, não, amadas.
— Finalmente chegaram — a baronesa disse, indicando os lugares. Nas janelas, as cortinas haviam sido fechadas. — Que vestido bonitinho, querida. Parece a personagem do balé Giselle, quando encontra o príncipe.
Kurt deu uma risada irônica.
— Dificilmente eu me pareceria com um príncipe de balé. Então, srta. Winters, não tem vontade de rir dessa idéia?
Puxou a cadeira para a mãe e Sibele sentou do outro lado da mesa. Ele fazia a mãe parecer ainda mais frágil. Entretanto, sabia que a mulher era muito forte. E, talvez, a única pessoa que Kurt amava.
— Nesta sala havia candelabros de cristais da Boêmia, mas foram roubados, junto com outras coisas — Trinka comentou, triste. — Eram muito bonitos, e meus meninos adoravam ver os reflexos e ouvir o barulhinho que faziam, quando alguém pisava com força no chão.
— Não vamos falar de uma época que não significa nada para a nossa convidada, mamãe. Ela não tinha nem nascido.
— Sim, é muito jovem. — Trinka afastou um vaso, para poder ver melhor Sibele. — Bruno me contou que você é muito independente. Que só concordou em vir até aqui porque ele lhe ofereceu um emprego. É a primeira vez que visita um local nas montanhas da Áustria?
— Sim. — Sibele provou a sopa e achou deliciosa.
— Não está com medo de que os doces austríacos estraguem seu corpo de bailarina? — Kurt perguntou.
— Tive sorte: não aumentei de peso. Acho que queimo todas as calorias por causa dos exercícios. Ainda estou no mesmo peso que tinha aos dezesseis anos.
— Você tem um nome bonito e é uma pessoa muito ardente — ele disse, rindo e olhando-a nos olhos. — Acho que vai se divertir com as garotinhas do vale, muito gordas e loucas por molhos e tortas. Espero que sua paciência não se esgote na primeira semana. Geralmente, as artistas são temperamentais.
— E disciplinadas também, não esqueça — ela corrigiu.
— Não ligue para Kurt. Se tivesse temperamente artístico, compreenderia que deve ser uma grande experiência para você ensinar sua arte. Realmente, acho que ele só tem sensibilidade mesmo para suas montanhas. Você é um homem de gelo, meu filho.
— Quer dizer que não tenho sentimentos, Trinka?
— Às vezes, acho que não.
Ele deu de ombros e olhou distraído para a travessa de repolho com vitela. Depois, serviu-se de uma colherada de creme de leite.
Que temperamento, Sibele pensou. Era melhor que ele ficasse longe, senão, ela ia explodir. Seu olhar endureceu ao encontrar o dele. Parecia o de um cão brincando com um gatinho. De repente, sentiu vontade de arranhá-lo, feri-lo. Seus pensamentos a deixaram chocada. Era uma pessoa de natureza calma, e aqueles desejos a deixavam espantada.
Trinka começou a fazer perguntas sobre o balé, e Kurt pareceu ainda mais distraído.
Conversaram sobre as companhias inglesas, as músicas preferidas de Sibele e como transmitia emoções ao público.
— Você é uma boa dançarina? — Kurt perguntou, inesperadamente.
Ela demorou a responder.
— Não sou má. Espero melhorar, vou viver e lutar para dançar cada vez melhor.
— Só para isso?
— Parem, crianças — a baronesa interrompeu. — Por que estão sempre brigando?
— Seu filho acha que Mayholtzen não é lugar para mim — Sibele disse, olhando Trinka nos olhos, vendo que tinham calor, ao contrário do azul gelado de Kurt. Todo o porte da mulher indicava que pertencia à velha nobreza.
Sibele sentiu uma enorme ternura. Não tinha convivido com a mãe, que morreu quando ela ainda era criança. As tias eram gentis e boas, mas jamais havia conhecido o amor materno.
Trinka sorriu com todo seu charme e acariciou as pérolas do colar. Sibele pensou que aquele colar talvez pertencesse a Kristy, antes de a moça fugir.
— Kurt tem opiniões muito estranhas, querida. Não deixe que ele a aborreça. Acho que, na verdade, ele só pensa em alpinismo, porque está sempre com a cabeça nas nuvens.
— Talvez, ao escalar a montanha, ele se sinta ainda mais superior ao resto da humanidade. — Sibele riu, tomando o vinho.
A baronesa deu uma olhada para o filho, esperando a reação, mas ele baixou os olhos. Só quando encarou Sibele, a moça viu a promessa de vingança.
Ele havia se tornado seu inimigo, e ela pretendia lutar, mesmo que não conseguisse vencer. Não ia se entregar. Por isso, levantou o queixo e o olhou com arrogância. Kurt ia escalar novamente a Torre de Vidro, para provar que não temia a montanha. Tinha que vencê-la para esquecer os gritos desesperados da irmã. Agora, parecia muito distante, Sibele achou que pensava nas montanhas. Esperava que, quando o barão voltasse, encontrasse um modo de impedir o irmão de fazer aquela escalada, diante da iminência de um inverno perigoso.
Após o jantar, foram para a sala de música. Trinka sentou ao piano e começou a tocar Schubert. Depois de alguns acordes, sentiu-se triste e mudou para uma alegre valsa vienense.
— Por que vocês dois não dançam?.
Sibele achou que Kurt jamais se afastaria da janela para dançar com ela. Afinal, era muito arrogante e estava contemplando sonhadoramente suas amadas montanhas ao longe.
Mas ele se aproximou e disse, baixinho:
— Vamos dançar. E só por Trinka que estou fazendo isso; não por você.
Tomou-a nos braços e rodopiaram pela sala. Ela sentiu que cabia com perfeição em seus braços e que ele dançava muito bem. Afinal, sendo um esportista, devia ter muita agilidade nas
pernas.
Saíram dançando da sala e foram para o terraço, ao luar.
— Sempre havia bailes no salão — ele disse. — Isso foi há muito tempo, mas não esqueci. Havia espelhos e anjinhos pelas paredes. Bruno está tentando comprá-los de volta. Quer que tudo fique como antes. Certa noite, durante um baile, eu me escondi atrás de uma cortina. Um maestro de Viena, amigo de mamãe, me encontrou, e todos riram. Ele me colocou sentado no banco do piano e me deu bolo de chocolate. No dia seguinte, quando Bruno soube, jogou bolas de neve em mim, até que caí no lago. Depois ele me tirou de lá, para que não congelasse.
Sorriu para ela, com ar de pouco caso, levantou bem o queixo e continuou:
— Sabe que seu barão é bem bonzinho? Será que já o colocou num pedestal? O lindo barão que entou na sua vida e a tirou do café. O barão e a garçonete. Romântico, não?
— Por que tem que estragar tudo?
— Talvez, porque minha natureza seja destrutiva.
A música da valsa ecoou pelo terraço, e ela imaginou Kurt criança, caindo no lago, o irmão, arrependido, tentando tirá-lo de lá. Tinha contado a história enfatizando o lado bom do barão... talvez quisesse que ela percebesse alguma coisa. Talvez Bruno a tivesse convidado para vir ao castelo, por pena dela.
Mas as preocupações de Kurt poderiam ser outras, ela continuou meditando, enquanto dançavam. Quem sabe, temia que ela magoasse sua mãe, como Kristy.
— Já andou de trenó à noite, ao luar? Quer dar um passeio comigo? Vai ser uma experiência inesquecível.
Ela sacudiu a cabeça. Não devia ficar a sós com ele. Se saísse, na neve, estaria completamente à mercê daquele temperamento imprevisível.
— Acho que não poderei sentir prazer neste passeio... com você.
— Espera que meu irmão a convide?
— Se o convite partisse dele, certamente eu aceitaria.
Kurt riu. Soltou-se dos braços dele, voltando para a sala de música.
— Vou até o quarto, dar uma olhada em Lorenz — a baronesa avisou. — Quer vir comigo? Ele é muito bonitinho, quando dorme.
Sibele concordou e subiu atrás de Trinka.
— Ele é lindo, não? — Trinka perguntou, acariciando o rosto da criança. — Sibele, tenho que lhe agradecer muito. O que posso lhe dar em troca?
— Não precisa me dar nada. Não há nada que eu queira... A baronesa a encarou, demoradamente.
— Há sempre alguma coisa. Posso lhe dar um dos meus filhos, por exemplo. Acha que conseguiria amar Kurt?
— Não!
Não podia ter sido convidada até ali para esse tipo de conversa. Será que Kurt sabia o que se passava na mente da mãe. Por isso havia dito que voltasse a Viena? Não era de
admirar que a estivesse tratando tão mal. — Desculpe. — Trinka tocou seu braço. — Falei como uma
mãe boba que se preocupa demais com os filhos. Vejo que ele não é do tipo de homem que atrairia você. Parece com as próprias montanhas e você prefere a música, a alegria de viver, as coisas agradáveis da vida. Esqueça o que eu disse, por favor.
— Já esqueci.
Trinka se aproximou e lhe deu um beijo no rosto. — Está aborrecida, querida, com o que eu disse?
— Mas, mas espero que Kurt...
— Kurt sempre faz o que quer. Não se importa com os desejos de sua mãe.
— Ele conhece os seus desejos?
— Talvez. Mas não fique com medo do meu filho, querida.
— Não estou.
Depois de mais alguns minutos admirando o bebê, Sibele se despediu da baronesa e foi para o quarto. Colocou a camisola sobre a cama e tirou o vestido. Estava assobiando, enquanto se preparava para dormir, quando ouviu alguém bater na porta.
Vestiu um robe, apressada, e fechou-o até o pescoço.
— O que você quer? — perguntou, ao dar com Kurt de pé na porta.
— Não fique assustada. Só vim buscar algo que está guardado naquele baú perto da janela. Posso entrar?
— Não. Eu pego para você. O que é?
— Um livro de capa azul.
Ela abriu o baú e encontrou o livro. Na capa havia a inicial '"K" em dourado. Parecia um diário. Será que ele temia que ela lesse seus segredos? Que idéia! imagine, se ia se importar com o que ela fizesse.
— É um diário. Eu levo comigo em minhas escaladas. Desculpe incomodar você.
— Não me incomodou. E não precisava se preocupar, que eu não ia ler o seu diário. Não sou deste tipo de garota e não estou curiosa sobre sua vida.
— Nunca imaginei nada disso, senhorita. Preciso do diário porque tenho que procurar as anotações que fiz na última escalada. Estou escrevendo um artigo para o Jornal Alpino e preciso dos detalhes. Assim, poderei mandá-lo amanhã de manhã, pelo correio. Boa noite, srta. Winters. Espero que durma bem, no meu quarto de criança.
Saiu, apressado, e ela ouviu que fechava uma porta, mais adiante no corredor.
Parou encostada na cama, lembrando o rosto irônico dele, marcado com rugas feitas pelos ventos das montanhas, e aqueles frios olhos azuis.
Tinha certeza de que ele havia aparecido em seu quarto para deixá-la ainda mais confusa. Sabia que ia encontrá-la se preparando para dormir. O diário devia ser só uma desculpa.
Pegou a escova de cabelos, mas não a usou. Em vez disso, ficou estudando seu próprio rosto, no espelho. A luz se refletia em seus cabelos, os olhos eram grandes e estavam escuros. Havia uma estranha expressão neles, uma espécie de raiva confusa.
Kurt von Linden tinha vindo ao seu quarto, naquela hora da noite, com o único propósito de deixá-la assim, como se algo íntimo tivesse acontecido entre os dois.
Era como se ele a tivesse tocado, quando a olhou daquele modo tão pessoal.
Ao mesmo tempo, Sibele sabia que aquele homem só desejava o que representasse um desafio.
Sibele acordou e sentiu-se perdida entre as imensas colchas e cobertores. Durante um momento, não conseguiu lembrar onde estava. Procurou ouvir os ruídos da cidade, mas tudo continuava quieto. O relógio marcava oito e quinze, e ficou nervosa. Tinha que ir correndo para o café... Então, percebeu que já não estava mais em Viena e, sim, num castelo nas montanhas.
Saiu da cama, vestiu o robe e foi até a janela. Lá fora, tudo parecia limpo e úmido. A majestade das montanhas era de tirar o fôlego. Os picos pontiagudos a faziam lembrar que por ali havia muitos abismos inesperados. Lá embaixo, o lago azul refletia as sombras de algumas árvores, e pássaros cantavam alegremente.
Sibele achou que aquele lugar era maravilhoso. Agora, cora o amanhecer, sua coragem tinha voltado completamente. Sentia-se capaz de enfrentar tudo que lhe acontecesse e ia saber lidar com os moradores do castelo e seus terríveis segredos.
— Bom dia, senhorita — disse uma jovem criada, entrando com a bandeja do café. Colocou-a sobre uma mesinha e aproximou-se de- um armário, onde Sibele tinha guardado as roupas.
— O suéter creme e a saia de pregas? Precisa usar meias de lã, senhorita, se for sair.
— Sim, vou até o povoado, conhecer a escola. Devo começar a trabalhar lá, dentro de alguns dias.
Gerda, a criada, entendia inglês e começou a falar sobre o povoado, dizendo que os habitantes estavam ansiosos para conhecer a nova professora de balé.
Sibele já esperava essa curiosidade. Tratando-se de um lugar pequeno, não era de admirar que os habitantes quisessem saber quem era a estranha inglesa que ia ensinar balé e havia sido contratada pelo barão.
Sabiam que era jovem, solteira e atraente, Gerda contou: muitos já comentavam que devia ter algum caso amoroso com o barão. .
Sibele ficou confusa e pensou se, durante o breve encontro que tiveram, o barão havia se sentido atraído por ela. Seu coração bateu mais depressa. Ele não era um homem muito atraente. Mas. por,outro lado, ela queria se dedicar ao sonho de ser uma grande bailarina e nenhum homem devia interferir nisso.
Terminou o café rapidamente e se preparou para enfrentar o dia que tinha pela frente. Colocou um gorro de lã, combinando com o suéter, e desceu. Olhou em algumas salas, mas todas estavam vazias. A baronesa devia estar dando banho e a mamadeira para o netinho.
Saiu por uma das portas de vidro e começou a caminhar pela grama gelada, que estava sob seus pés. Tomou a direção do lago, e logo percebeu que estava sendo seguida.
Parou perto da margem e olhou para trás.
Era Kurt, que vinha colocando os pés exatamente sobre as pegadas que ela havia deixado.
Sem saber como agir, fingiu que não o tinha visto e ficou observando o lago e as montanhas.
— Admirando o lago, srta. Winters? As montanhas a deixam nervosa?
— Elas me fazem sentir pequenina. Acho que mesmo você deve se sentir pequeno diante de algo tão grandioso.
— É verdade. Minha arrogância... você já deve ter percebido que é grande... se reduz a nada, comparada com a força e o perigo das montanhas. Mas tenho a vantagem de conhecê-las desde que nasci e estou acostumado com elas. Para um estranho, sei que é preciso tempo para se familiarizar, superar todos os medos e incertezas.
Levantou os olhos para os picos mais altos.
— Nas cidades só há coisas feitas pelos homens. Aqui, em Mayholtzen, é possível se conhecer a força da natureza, as coisas que estão além da nossa compreensão e do nosso controle. É por isso que você tem que respirar fundo ao olhar para uma montanha. Elas são diferentes do seu mundo. Mas, se estiver preparada, elas poderão ser conquistadas.
Olhou Sibele nos olhos, enquanto falava, e ela percebeu que se sentia tensa e nervosa. Kurt adorava a grandeza daquelas geleiras, era a única coisa que o comovia. Falava delas como um homem falaria da mulher que ama. Sibele deu um passo para trás, desviou os olhos e procurou não lembrar o que a baronesa tinha dito na noite anterior.
— Será que conseguiria amar Kurt? — ela havia perguntado. Era como se tivesse perguntado a Sibele se conseguiria
escalar um daqueles picos perigosos que não eram aquecidos nem pelos raios do sol. Ele parecia tão distante, tão incapaz de amar uma mulher. Sentiu um aperto no coração. Queria se afastar dele, daquele olhar gelado e da atração que seu rosto exercia.
— Já ouviu falar de Nanda Devi?
— Não... — Ouviu o gelo estalando sob seus calcanhares, ao dar o passo para se afastar dele. Procurou se equilibrar na ponta dos pés. Mesmo sabendo que ali o gelo ainda não estava completamente sólido, preferia correr o risco de cair a ficar muito perto de Kurt...
— Era um pico inacessível, onde, diz a lenda, a princesa Nanda foi se esconder dos seus raptores. Agora, ela é chamada de deusa Nanda. Durante muitos anos, nenhum alpinista conseguiu escalar o pico porque havia uma cordilheira de rochas, protegendo-o. Parecia que jamais homem algum atravessaria aquela barreira, mas os alpinistas insistiram e Nanda Devi foi conquistado.
— Pelo seu modo de falar, parece que prefere sua deusa
solitária, em vez de uma mulher de verdade.
— Ela só pode causar congelamento num homem ou atirá-lo
num abismo. Mas uma mulher real pode provocar danos muito maiores.
— Se as mulheres são assim, é porque foram magoadas por
alguém, em primeiro lugar.
— Como eu magoei Kristy? Por isso ela fugiu e me acusou de ter cortado a corda para salvar minha vida.
— Foi por sugestão sua que Helmut tentou escalar o pico. Ela o amava e esperava casar com ele.
— Eu pensei que, escalando uma montanha, ele se transformasse num homem.
— Não são todas as mulheres que querem um super-homem — Sibele comentou, tensa, e viu que uma chama rápida brilhava nos olhos de Kurt. — As mulheres amam poetas e sapateiros, assim como aqueles que se atrevem a explorar o desconhecido, escalam montanhas ou viajam até a Lua. As mulheres amam por motivos desconhecidos.
— Fala como uma pessoa romântica, srta. Winters.
— Não quero ser uma deusa solitária, com gelo nas veias.
— Você quer ser uma bailarina famosa, com os homens a seus pés.
— Não é verdade. Como se atreve a dizer isso?
— Sou atrevido por natureza. Você mesma me disse que espera ser uma grande bailarina. Quer isso, acima de tudo.
— Sim, sempre desejei dançar, desde criança. E todas as bailarinas querem ser famosas. Como todos os alpinistas deviam querer escalar o Nanda Devi.
— E se não conseguir satisfazer suas ambições? Ficara contente em pertencer ao corpo de baile. Uma entre muitas...
— Pelo menos estarei dançando.
— Entregou seu coração a um fantasma e sempre vai dançar para ele, não?
— Não é da sua conta! — De repente, Sibele sentiu-se furiosa e esqueceu que estava perto demais do lago. Deu outro passo para trás e, antes que percebesse, o gelo estalou. Gritou, assustada, e sentiu os braços fortes de Kurt agarrando-a pela cintura. Ele acabava de salvá-la de um mergulho na água gelada. Mas Kurt também a tinha provocado tanto, que ela não conseguia se sentir agradecida.
— Não vai me agradecer por salvá-la? — perguntou, em tom brincalhão. — Ia gostar do mergulho menos do que estar em meus braços. Quando dançamos ontem, percebi que estava tensa. Será que, quando ficamos juntos, damos curto-circuito um no outro?
— Eu... eu tenho certeza de que não gostamos um do outro. Colocou a mão no peito dele, para afastá-lo, e sentiu seus
músculos rijos, o calor másculo e uma sensação de perigo.
— Seus reflexos são admiráveis. Eu não ia gostar nada de cair no lago. E agora, diga como posso chegar até o povoado.
— Pretende ir a pé? — Olhou-a, sorrindo, com ar de pouco caso, e ela sentiu os nervos à flor da pele. Como era diferente de Cassian, com seu rosto atrevido e sua falta de gentileza. Atrás daquele sorriso, escondia-se um desconhecido que não queria se revelar a ninguém.
— O povoado fica muito longe, senhorita. Pode se perder.
— Será que alguém pode me levar até lá? — perguntou, ainda tensa, lembrando o toque das mãos dele em sua cintura. Lembrou ainda, em pânico, de como tinham estado próximos. Poderia tê-la beijado contra sua vontade. Tinha os lábios firmes, seria o tipo de beijo que mais parece um castigo do que uma carícia.
— Sim, eu a levo. Tenho que colocar meu artigo no correio. Espere enquanto vou buscar o trenó. Está bem?
— Teve que concordar, pois parecia não haver outra pessoa que pudesse levá-la.
— Quero conhecer a escola onde vou lecionar. Acha que poderei falar com o diretor?
— Sim, Franz Donner ficará encantado.
Kurt saiu para buscar o trenó, e ela ajustou o gorro, sentindo-se aliviada. Ainda estava nervosa, lembrando o momento em que ele a segurou. Durante um segundo, quis fugir correndo dali, mas logo voltou à calma. Afinal, ia apenas até o vilarejo com ele e, não, num passeio pelas montanhas. Se Kurt tentasse alguma coisa, ia lhe dar um tapa no rosto. Era um absurdo ele se comportar com ela daquele jeito, fazendo sempre o que queria.
Os sininhos do trenó ecoavam pelas montanhas, Sibele ficou observando os pinheiros enfeitados de cristais de neve. Aconchegou-se debaixo da manta de pele e viu que a fumaça subia dos chalés na encosta.
Tudo ali era lindo demais. Parecia que havia entrado num mundo de conto de fadas. Ao longe, o apito do trem a fez lembrar de Viena. Não, não ia fugir de Mayholtzen. Nem mesmo quando o inverno chegasse. Não ia precisar temer Kurt; afinal, o barão logo chegaria ao castelo. Bruno devia gostar dela, já que tinha dito à mãe que era uma moça atraente.
Sibele observou as rédeas nas mãos de Kurt. Parecia um homem forte, em seu elemento favorito. Talvez o barão fosse mais meigo. Mas se Bruno a achava atraente, por que a baronesa tinha perguntado se poderia amar Kurt?
Sentiu-se levemente apreensiva, mas esqueceu seus temores ao ver o vilarejo. As casinhas eram lindas, com telhados vermelhos e chaminés compridas. No centro, a igreja parecia a guardiã do local.
— Temos que deixar o trenó aqui e caminhar o resto.
Pararam, e ele amarrou o cavalo a uma árvore. Depois, estendeu a mão para Sibele. Mas ela sabia que, se o tocasse, ficaria ainda mais perturbada; por isso, recusou e saltou sozinha do trenó. Ele riu, irônico, e começaram a caminhar.
— Aqui estamos, senhorita, no caminho que leva ao vilarejo. As pessoas passavam conversando, e havia rastros de esqui ao
lado do caminho. Kurt levava na mão um envelope grande, endereçado ao Jornal Alpino. Sibele jamais havia pensado nele como um homem ,capaz de escrever, mas seu caráter tinha aspectos muito complexos e ela não queria pensar naquilo.
Ao chegarem diante da escola, parou encantada. Era um imenso bangalô, com torres e sinos, rodeado de um lindo jardim. Ao entrarem, Sibele ouviu vozes infantis.
— Posso fechar os olhos e me imaginar de volta à escola — murmurou. — Era tão feliz! Não tinha preocupações, não precisava tomar decisões. Os tempos de escola eram alegres...
Parou e olhou para Kurt. Ele estava sério e triste, olhando as fotos emolduradas, nas paredes. Então, ela lembrou que não devia ter mencionado a infância, pois ele não teve nenhum dia feliz. Tinha ficado preso no castelo, com o irmão, sem frequentar a escola, e não havia nenhuma foto sua, ali nas paredes da entrada. Como podia ter esquecido dos problemas dele? As consequências de ser filho de um homem de coragem que havia se colocado contra a tirania.
Sentiu-se aliviada ao ouvir passos. Era Franz Donner, e Kurt fez as apresentações. O diretor tinha um ar de homem sábio e tranquilo, com os óculos na ponta do nariz e um cachimbo no canto da boca.
— Então, veio ensinar minhas meninas a fazerem umas piruetas?
— Faz com que meu trabalho pareça muito simples. Acha que não devia me aceitar como professora da escola?
— A sugestão do barão me pegou de surpresa, confesso. Mas, depois que pensei no assunto, achei que seria bom para as meninas. Elas aprenderão música clássica e os enredos dos balés.
— Tenho certeza de que vão adorar as aulas — Sibele disse, na defensiva. — Eu não queria aceitar esse trabalho. Senti que ia ter uma certa oposição. Se não me quer na equipe, senhor diretor, eu gostaria de saber, antes de começar a trabalhar.
— Agora que nos encontramos, srta. Winters, vejo que será
ótimo para as minhas meninas tê-la como professora. Vai trazer um ar primaveril para a escola. Venha até o meu escritório e vamos tomar uma xícara de café.
O escritório dele era muito masculino, com sofás de couro e estantes de livro pelas paredes. Esperava que o sr. Donner não se arrependesse da decisão de aceitá-la.
O café foi trazido por uma das alunas, que ficou observando Sibele. Ela sorriu, e a garota se afastou, envergonhada.
— Penso que cheguei de surpresa.
— Sim. Eu ia lhe dizer isso, senhorita. O barão não é um homem que se preocupa com aulas de balé. Geralmente, pensa em assuntos mais práticos. Deve ter causado uma forte impressão sobre ele.
— Sr. Donner! — Estava chocada, ao ouvi-lo falar o que todos pensavam. Devia estar sendo considerada no povoado como a bailarina que conseguiu agarrar o barão. — Ele só quis me arranjar um emprego porque queria que eu passasse algum tempo no castelo. Prestei um serviço à família...
— Sim. Salvou o bebê, não é? Foi muito corajosa, srta. Winters. Fria diante de uma crise, como são todos os ingleses.
— Aconteceu que eu estava lá. Foi o destino.
— Acredita no destino, senhorita? Bem, coisas estranhas acontecem, quando se é jovem. São parte da vida. O que pensa do irmão do barão?
— Ainda não sei. Mas a opinião dele é que eu devia ter ficado em Viena.
Encarou o diretor, que sorriu, divertido.
— Vejo que deve ter ficado confusa com Kurt von Linden. Muita gente fica. Ele é como um leão jovem, livre, e se sente culpado de uma tragédia. É natural que se coloque na defensiva, quando está diante de estranhos. Verá que é melhor ficar longe dele, pois ainda não aprendeu a ser meigo.
Ela cruzou as mãos no colo.
— O problema é que ele não me deixa ficar longe. Não quero ser vaidosa, nem dizer que ele me acha ataente. Acho que me vê como a bailarina de uma caixinha de música. Algo com que pode brincar.
— Pobre rapaz!
— Sei que estou errada em não gostar dele. A mãe é tão encantadora. O barão também. Por que Kurt tem que brigar e discutir sempre comigo, estragando minha estadia aqui?
— Todos os castelos têm encantamentos que devem ser quebrados, antes de a felicidade reinar para sempre. Talvez, o destino a tenha enviado aqui para que quebre o encantamento de tristeza que paira sobre Sete Lilases.
— Como?
Sibele arregalou os olhos. Que felicidade poderia trazer? O castelo devia ser sua casa só até voltar a Viena. Tinha que viver sua própria vida e realizar suas ambições. Precisava superar a própria tristeza com a morte de Cassian.
— Não quero me envolver com os von Linden e seu drama. Espero ser apenas uma visita e fazer o meu trabalho.
— Uma garota tão linda na casa de dois homens solteiros? —, Ele riu malicioso. — Olhe, sua chegada já provocou uma série de boatos no vilarejo. As pessoas estão fazendo apostas se será Kurt ou o barão que conquistará seu coração.
— Meu coração só pertence à minha carreira, sr. Donner.
— Só? Uma carreira não é substituto para o amor. Falo por experiência própria. Quando tiver a minha idade, verá que suas sapatilhas de balé, os recortes dos jornais e a fama não são triunfos suficientes, se não tiver o seu homem. As estrelas são distantes e só brilham à noite, ficando esquecidas durante o dia.
— Isso também pode ser dito por muitas esposas — Sibele respondeu. — Por que acha que há tantas mulheres casadas e descontentes?
— Porque fazem muitas perguntas sobre a vida, em vez de deixá-la fluir naturalmente, como as madeiras que flutuam no Danúbio. A vida e o amor são coisas misteriosas. Tentar entendê-los é como despertar uma flor para descobrir onde está seu perfume. As mulheres deviam se contentar com o mistério do amor e se manter, elas mesmas, profundamente misteriosas.
— Então, não aconselha que elas sigam uma carreira? Essa opinião me parece um tanto fora de moda.
— Sou uma pessoa fora de moda, srta. Winters. Saí de Viena há muito tempo e só visito meus parentes de vez em quando. Estou feliz em vir do meu chalé até a escola todas as manhãs, admirar a beleza da neve e a paz deste lugar. Sei que também já se encontra sob o encanto de Mayholtzen, senhorita; basta olhar
para o seu rosto.
— É verdade. Mas os lugares não encantam as pessoas por muito tempo. Apenas, outras pessoas. Eu fiz um voto de não me envolver com ninguém. Só quero amigos e, não, amantes.
— Pode ser amada contra sua vontade, srta. Winters. — ele disse, sorrindo.
— Pretendo apenas dançar. Nasci para ser bailarina. Jamais poderia ser diretora de uma escola, pois não consegui aprender bem nem a matemática. Tem certeza de que quer que eu ensine balé às alunas? Elas poderão não gostar mais das outras matérias.
— Acho que a graça, para uma menina, é algo muito importante. Mais importante do que a cultura. Mas isso fica em segredo entre nós. As outras professoras ficariam chocadas em saber o que penso.
— Como elas reagiram diante da idéia de terem uma professora de balé aqui?
— Os homens ficaram curiosos e as mulheres desaprovaram um pouco. Mas todos vão adorá-la, depois que a conhecerem.
— Pensarão que sou protegida do barão?
— Bem, alguns boatos sempre são despertados por um homem como o barão, principalmente quando resolve arranjar emprego para uma bailarina inglesa.
— Mas não sou protegida dele — Sibele disse, zangada. — Não sou nenhuma garota de opereta que precisa da proteção de um nobre porque não tem talento.
— Está na defensiva — o diretor respondeu, divertido. — Mas será que não acha o barão atraente e um perigo para sua independência?
— Já amei alguém, sr. Donner. E não pretendo deixar que aconteça outra vez. A mágoa é muito grande, quando se perde alguém por morte repentina. Ainda não acredito que não vou vê-lo outra vez. Ele era um grande bailarino. Um homem de enorme talento, uma chama que brilhava, e penso que nunca poderei gostar de mais ninguém.
— Sim, a perda de alguém que amamos é muito dolorosa. Mas a sua juventude é o maior inimigo da sua tristeza. Daqui a algum tempo, estará sorrindo de novo. Ele preencheu uma parte da sua vida, mas não deixe que a fique perseguindo, no futuro.
— Não quero esquecer Cassian. Ele era uma chama viva, e todos se sentiam bem em estar por perto, quando dançava. Era como ver um pássaro voando. E já estava tão doente. Nenhum de nos acreditou. Foi como se nosso mundo acabasse. Cada um teve que tomar um caminho diferente, e ainda estou aturdida de me encontrar num povoado das montanhas. Fico perguntando a mim mesma se agi corretamente, vindo para cá.
— Acho que sim. — Franz Donner deu um suspiro. — E bom vir para as montanhas, quando a gente se sente inseguro. Cada dia você entrará em contato com forças da natureza que a renovarão. Vai aprender que para cada crueldade há uma alegria, um raio de sol para cada canto sombrio.
Enquanto ele falava, ela observou que Kurt estava parado na porta. Não sabia há quanto tempo estava ali, pois olhava os dois com o mesmo ar distraído de sempre. Como se fossem estranhos e o que falavam não interessante.
Sibele sentiu que estremecia e colocou o gorro.
— Meu acompanhante está me esperando.
— Sim. Parece uma montanha de gelo.
O diretor deu uma risada e se aproximou da porta.
— Olá, Kurt. A srta. Winters e eu estávamos discutindo as aulas de bale. Agora, penso que vai levá-la de volta ao castelo.
__ Sim, estou indo para casa. Gostaria de ter vindo de esqui, mas a srta. Winters me disse que não esquia por medo de quebrar a perna.
— Talvez ela goste de observar você — Franz Donner disse
piscando para Sibele. — Ela não sabe como você é ágil nas encostas das montanhas. Um dos principais esquiadores da Áustria, o mais corajoso líder da tradição local de esquiar à noite, carregando tochas acesas. Devia ter visto o último aniversário do barão, srta. Winters. Kurt e um grupo de rapazes daqui desceram a montanha vestidos de preto, com as tochas. Só se via o fogo deslizando.
— Parece ter sido um lindo espetáculo. Mas acho que minha visita terminará antes do próximo aniversário do barão.
— Meu irmão faz aniversário daqui a três semanas. Acho que ainda estará aqui. O diretor não vai querer uma professora que fique menos de um mês.
— Tem razão, sr. von Linden. Deve ter sido uma criança muito inteligente. O primeiro da classe, talvez?
Falou sem pensar, e novamente lhe veio à memória Kurt e o barão, presos no castelo, sem poderem ir para a escola. Sem poderem correr pelo vale ou esquiar com as outras crianças.
Sibele ficou chocada com a própria crueldade. Não queria magoá-lo, mas agora já tinha dito a frase. Entretanto, quando seus olhares se encontraram, percebeu que ele não poderia ser magoado facilmente. Parecia um homem à prova de choque.
— Vamos, srta. Winters? O cavalo está lá fora, no frio, esperando.
Ela se despediu do diretor, ainda aborrecida consigo mesma. Depois de se acomodarem no trenó, Kurt comentou:
— Parece ter se dado bem com Franz Donner.
— Sim, ele é uma pessoa agradável. Acho que vou gostar de trabalhar na escola. Para não dar trabalho a ninguém de me trazer até o/vilarejo, estou pensando em alugar um chalé.
— Minha mãe não gostaria que fizesse isso.
— Mas, no chalé, eu ficaria mais perto da escola.
— Se aprender a esquiar, poderá vir pela enconsta, junto com as crianças.
— Eu... vou pensar.
— E melhor aprender com um especialista do que com um amigo. Assim, não correrá o risco de quebrar a perna. E se não esquiar, perderá o que há de mais divertido por aqui.
Olhou-o, observando seu cabelo esvoaçar ao vento. Parecia um jovem leão. Até mesmo Franz Donner tinha feito essa comparação.
— Está me olhando de modo estranho — ele comentou. — Acho que vou atirá-la pelo Siebengbirge?
— Nem sei o que é isso? — Mas ela se agarrou ao trenó com mais força.
— É um abismo mencionado na história As Sete Montanhas, de Grimm. Lá as moças bonitas ficam presas em castelos escuros.
— Já que está me falando sobre contos, a Áustria me lembra uma poesia.
— Recite para mim. Talvez eu também a conheça.
— Não sou boa para recitar versos, senhor.
— Talvez esteja com vergonha de mim.
— Geralmente, fica-se com vergonha das pessoas que conhecemos há pouco tempo.
— Mas parecia estar se dando muito bem com Franz Donner. Vi que riam juntos, e só tinham conversado durante uma hora.
Ela mordeu o lábio, sem saber o que responder. Realmente, tinha gostado do diretor da escola. Era um homem com idade para ser seu pai. Mas Kurt, com todo seu vigor, deixaria qualquer moça um pouco tímida.
— Ele é um homem gentil e tolerante.
— E acha que não sou nada disso. Não negue. Estou fendo em seus olhos.
— Eu não ia negar. — Desviou o olhar para os pinheiros e viu que o trenó estava numa velocidade cada vez maior. Sorriu.
Era engraçado brigar com Kurt. Ele dizia o que lhe vinha à cabeça, sem se preocupar.
Ao se aproximarem mais do castelo, ficou pensativa. Agora o caminho estava cheio de galhos secos de pinheiros.
De repente o cavalo escorregou, o trenó subiu em um barranco e tombou, enterrando Sibele e Kurt debaixo de montanhas de cobertores de pele e neve.
Sibele sentiu que mãos a agarravam, tirando-a dali; puxou o gorro de cima dos olhos e encontrou o olhar azul e gelado de Kurt.
— Solte-me.
Ela o empurrou, mas ele não soltou. A força com que a segurava amedrontou Sibele. Sua única arma eram as palavras e decidiu usá-las, sem pensar se eram falsas ou verdadeiras.
— Não aguento que me toque! Suas mãos me dão arrepio!
— Por quê? Acredita no que Kristy pensou de mim? Pensa que essas mãos cortaram a corda atirando o namorado dela para a morte? Olhe para mim! — Forçou-a a encará-lo. — Sim, está escrito nos seus olhos. Aquele olhar acusador. Aquela mesma vontade de me odiar. Está bem, fique à vontade, pode me odiar. Mas agora, vai me odiar com razão!
Curvou-se, e Sibele deu um grito. Seus rostos se aproximaram e, de repente, Kurt a beijou. Foi um beijo rude, vingativo e cheio de punições. Lá no barranco, o cavalo relinchou, arrancando com a pata uma porção de neve que foi cair perto deles.
Ela já tinha sido beijada antes... mas, não, assim. Cassian foi gentil e meigo. Aquele beijo furioso de Kurt a atingiu como um tapa. Só depois de começar a correr dele, Sibele sentiu as lágrimas escorrendo pelo rosto.
O beijo sem amor a fez sentir saudade de Cassian e perceber que agora ele fazia parte dos seus sonhos. Sonhos que talvez nunca se realizassem.
Sibele correu até chegar diante do castelo.
Parado na frente da porta estava um carro preto, muito limpo e brilhante. Era o Mercedes. Parou, quase sem fôlego, lembrando o passeio que havia feito naquele carro.
Tinha ido até os Bosques de Viena, quando o barão a convidou para passar uns tempos em Sete Lilases.
O barão tinha voltado... Bruno estava em casa novamente.
Encontraram-se novamente na hora do almoço. Ele foi gentil, mas distante. Fez poucas perguntas e devotou toda sua atenção à mãe. Sibele ficou ouvindo Kurt e a convidada que o barão havia trazido da Bavária.
Era Maria Landi, filha de um dos sócios de Bruno. Tinha cabelos escuros, lisos, trançados sobre a cabeça, pele muito clara, e usava a roupa típica da Áustria.
Após o jantar, Kurt convidou:
— Gostaria de conhecer minha oficina, Maria? Faço meus próprios esquis. Verá que muitos deles podem ser adaptados ao peso e altura de uma mulher.
— Como posso resistir ao convite? Vai ser delicioso esquiar com o campeão nacional. Ainda tenho a medalha que você me deu, ganha por aquele salto, há dois anos. É meu talismã. Sempre acreditei que me traz sorte.
— E uma garota tão linda precisa de sorte? Claro que é só olhar para um homem, e ele se torna logo seu escravo.
— É fácil escravizar garotos, Kurt. Mas os homens de que eu gosto não são escravos de mulher nenhuma. — Riu e olhou para a baronesa, — Esses seus filhos são orgulhosos porque mulher nenhuma conseguiu fisgá-los.
Trinka franziu as sobrancelhas, depois riu com a ironia da moça.
— Certo, senhorita. Meus filhos são como as montanhas Mayholtzen: difíceis de serem conquistadas.
Em silêncio, Bruno observou os restos de sua truta na manteiga. Sibele viu que, em seguida, ele olhava a moça bávara. Maria era linda e Sibele sentiu uma certa inveja. Não tinha os traços tão perfeitos da outra, nem a mesma autoconfiança. Afinal, havia saído de um remoto povoado da Comualha onde ainda nos dias de hoje os pescadores acreditam em bruxas,
— Está nos visitando na época certa, Maria — a baronesa disse. — Mas seria bom ficar até a primavera, quando os lilases começam a florir. No vale, dizem que, quando as flores surgem ainda no inverno, é porque vai haver casamento. Kurt sempre ri dessa idéia.
Ele riu para a mãe.
— Trinka vê flores de laranjeiras por toda parte.
— A maioria das mães é assim — o barão comentou. — Acho que Trinka deseja que você case, para não ter mais de esperá-lo de volta das escaladas. Ela acredita que uma mulher será capaz de segurá-lo em casa, longe do monte Rosa, Madehorn e da Torre de Vidro.
— Bruno! — a baronesa ralhou. — Por favor, não mencione esse nome horrível.
— Se eu não mencionar, querida, ficará ainda mais sinistro.
— Kurt, será que precisa me atormentar, escalando a Torre de Vidro outra vez? Não pode esquecer e aceitar como acidente o que aconteceu lá?
— Sei que foi acidente e todos sabem também. Só Kristy duvidou. Para meu próprio bem, preciso voltar àquela montanha. Não cortei a corda, mas convidei Helmut para ir até lá. E por isso tive culpa.
— Não. — Trinka sacudiu a cabeça. — Bruno, fale com seu irmão. Faça-o entender que não pode desafiar os deuses. Eles já levaram alguém desta casa e poderão levar outra pessoa. Kurt;
não se importa que eu fique tão nervosa? Só se preocupa com seu próprio orgulho?
— Sou filho de Karel von Linden e preciso lembrar isso, a outras pessoas, Trinka. Escalei o Nanda Devi, uma montanha diabólica. Por que devo ter medo da Torre de Vidro?
— Porque ela já levou Helmut e também Kristy. Você é meu filho e não quero que nada lhe aconteça.
— Vou viver cem anos, querida. — Riu e mudou de assunto. Mas Sibele percebeu que um clima de tragédia continuava pairando sobre a sala.
Momentos depois ela se desculpava, dizendo que precisava escrever uma carta, e saía da sala. -
Ao se aproximar da escada, sentiu o cheiro do charuto. Seria Bruno? Ou Kurt? Dessa vez, era o barão.
Sibele o encarou demoradamente, sorrindo. Era como se ele tivesse esperado por aquele momento a sós, para cumprimentá-la.
— Meu Deus, sabe que é exatamente como eu lembrava? Magrinha e com os olhos cheios de fogo. Está zangada porque não conversamos muito durante o jantar?
— Não. Por que estaria, senhor barão?
— Porque é uma mulher. — Observou-a lentamente, de alto a baixo, e voltou a encará-la. — Não podemos conversar agora. Venha se encontrar comigo, no lago, depois do pôr-do-sol.
— É um ordem? — perguntou, esperando que ele não percebesse sua voz trêmula. O riso de Maria ecoou na sala ao lado. Sibele pensou na espontaneidade da outra. Se estivesse em seu lugar, com certeza, não ficaria tremendo daquele jeito.
— Sim, é uma ordem — ele disse, e se afastou.
Sentada na cama, Sibele pegou caneta e papel para escrever a Rudi, em Viena. Mas seus pensamentos estavam agitados.
"Acho que você ia gostar daqui", escreveu. "É um lugar lindo, e Trinka von Linden toca Schubert do jeito que você gosta de ouvir. Parece que entrei num álbum de família e espero ajudá-los de algum modo."
Descreveu as montanhas e o lago, terminou a carta e selou. Depois desceu para colocá-la num pratinho de estanho, sobre a mesa da entrada. A baronesa lhe havia dito que as criadas voltavam ao povoado à noite e poderiam colocar sua correspondência no correio.
Sibele lembrou de Kurt, lhe dizendo que precisava mandar um artigo para o jornal. Aquilo tinha sido só uma desculpa para acompanhá-la até o povoado.
Agora, ,Kurt devia estar conversando com Maria. A moça entendia de esportes de inverno e discutia com ele em pé de, igualdade.
Kurt sabia que, se quisesse conversar com Sibele, o assunto teria que ser outro. Um assunto do qual não entendia: o balé, as noites brilhantes no teatro e na ópera, nos ensaios e as coreografias.
Kurt devia pensar que ela não tinha a menor utilidade num inverno nas montanhas, Sibele decidiu- fazer o possível para provar que estava errado.
Ao passar pelo salão de baile, parou, observando sua imagem num dos inúmeros espelhos de cristal. Depois resolveu entrar.
Aquele aposento ainda não tinha sido restaurado. Em uma das mesas havia uma marca profunda, como se alguém tivesse dado um chute, com uma bota pesada. Um dos soldados, talvez. Numa das paredes, uma enorme mancha avermelhada lembrava que deviam ter atirado vinho ali, e os sofás estavam com o estofamento rasgado.
Sibele lembrou da valsa que tinha dançado com Kurt. Ele dançava muito bem. Maria também devia dançar bem. Afinal, não tinha com o que se preocupar; apenas com os esportes de inverno e com sua vida social. A riqueza do pai lhe garantia todos os lindos vestidos que desejasse.
De repente, Sibele ouviu que tocavam La Captive, de Berlioz, e, sem pensar, começou a dançar. Agora, não se sentia tímida nem envergonhada. Estava no seu elemento. Kurt e Maria que ficassem cora as encostas das montanhas. Ela tinha a sua dança.
Mas a timidez voltou fogo, ao ver pelos espelhos que havia alguém parado numa das portas.
— Eu ia passando — Kurt disse — e achei que um espetáculo tão bonito devia ter uma platéia.
— Acha... que sou uma tola?
— Nada disso. Você é uma bailarina. E está num salão de baile. Por favor, continue. Vou observar e descobrir por que os homens ficam loucos pelas bailarinas.
Procurou sair, apressada, mas ele a segurou pelo braço.
— Solte-me — disse, zangada. — Pare de me atormentar. — Agora, ela o encarava e via que havia um fogo estranho nos olhos dele.
— Eu lhe fiz um elogio.
— Não quero elogios... de homem nenhum.
— Mas gosta de recebê-los, não?
— Quando são sinceros.
— Duvida de minha sinceridade?
— Sim, pois já me disse que não me queria aqui. Aconselhou-me a voltar para Viena. Você tomou sua decisão na estação: pensa que não posso contribuir em nada para a escola do vilarejo. Na verdade, acho que gostaria de ter me visto saindo do trem com um par de esquis nas costas. Olhe, não sou do tipo esportivo. Sou uma bailarina. Trabalhei muito para chegar onde estou. Acho que muito mais do que você, para ganhar sua medalha.
— Pensa que sou apenas um playboy?
— Você mesmo disse que só seu irmão trabalha para manter Sete Lilases. Você só quer se divertir. Não se prende a responsabilidade nenhuma. Quer ser livre para escalar as montanhas.
— Sim. —Sorriu, irônico. — Sim, o que mais quero é ser livre. Por isso, desisti do meu curso de medicina. Acreditei que tinha vocação para curar as pessoas. Mas, depois de três anos, resolvi que não aguentava mais o cheiro de remédio e os gemidos de dor. Rompi com a medicina. Voltei para as montanhas e me sinto muito mais à vontade entre elas do que no laboratório ou no anfiteatro de operações.
— Ia ser... médico? — Olhou para ele espantada.
— Não acredita? Saiba que posso voltar para a faculdade e terminar o curso dentro de dois anos, se quiser. O que aprendi me serviu muito nas escaladas. Dei pontos em mãos cortadas e consertei colunas fora do lugar.
— Logo vai perder a vida, nas montanhas. De que adiantará
tudo que aprendeu?
Agora, ela o via mais destrutivo do que nunca. O que o fazia subir naqueles monstros de gelo? Lembrou-se da infância dele, trancado no castelo, sem poder correr pelo vale. Talvez estivesse se vingando: queria ser completamente livre. Poderia ser tarde demais para pensar numa carreira.
— Que desperdício!
— Quem quer ser médico precisa se dedicar completamente, srta. Winters. Lamento, mas tenho uma natureza dividida, quero uma coisa e faço outra. Não sente pena de mim?
— Sim, mesmo que não mereça. Tem nas mãos a chance de salvar muitas vidas e, apesar disso, só pensa nos picos cruéis. Quer atormentar aqueles que o amam...
— Fala de minha mãe?
— Sim, naturalmente. E de Bruno.
— O que sabe de Bruno? Eu já lhe disse que ele é muito diferente de mim. — Seus olhos brilharam cruelmente.
— Já percebi. Você quis me avisar! Ele não é nenhum playboy, mas um homem que trabalha para manter Sete Lilases e a família. O castelo deve ser muito dispendioso. Há os criados, tantos quartos, o lago, o bosque... E você me disse que ele está restaurando tudo por aqui. Aos poucos, vai devolver a este lugar a velha beleza.
— Sim, mas só por orgulho. Olhe bem para o meu irmão, senhorita, e verá como é orgulhoso. Na biblioteca, tem livros que só falam dos nossos antepassados e das ligações dos Linden com a nobreza austríaca. A noite, devora os velhos documentos, que durante a guerra ficaram escondidos com as jóias de Trinka, na capela.
— Acho tudo isso fascinante — ela disse, com os olhos brilhando. — Não se interessa pela história da sua família?
— Nossas ligações remotas com o caso Mayerling? Ou que um dos nossos antepassados era um general prussiano? O retrato dele está no escritório de Bruno. A semelhança entre os dois é espantosa.
Sibele encarou Kurt, esquecendo que seu pulso se acelerava
sob a mão dele. Só queria entender bem o que lhe havia dito.
Que em Bruno corria o sangue de homens importantes, que
tinham dominado outros povos, estavam envolvidos em
escândalos da corte e guerras cruéis.
Era esse Bruno que a havia procurado ao pé da escada, que a convidara para se encontrar com ele, no lago, ao anoitecer.
Encarou Kurt com frieza. Ele que ficasse com suas montanhas. Ela ia se deixar guiar pelo instinto. Agora só queria fugir e ir para o lado oposto do castelo.
Então, Bruno era uma mistura de autoridade e gentileza... não precisava teme-lo. Kurt, impaciente e selvagem, continuava também preso ao passado.
— Entendo. — Ele sorriu, irónico, soltando o pulso dela. — Então, desaprova o que sou. Não tenho senso de dever nem ambições. Sou livre e posso seguir meu próprio caminho. Acredita que não gosto de ninguém?
— Gosta de sua mãe... do meu jeito. Gosta de um rosto
bonito...
— O seu?
— Não! — Corou e teve vontade de brigar com ele. Mas já sabia que não ia conseguir derreter aquele bloco de gelo.
— Maria, então? — Kurt quis saber. — Ela é amiga da família desde criança. Aprendeu a esquiar comigo e se transformou nessa beldade que você viu. Sentiu ciúme dela? Teme que roube as atenções de Bruno?
— Ora, pare com isso! — Sibele puxou o pulso, tentando se libertar dele. Kurt não a soltou e riu de sua falta de força.
— Eu a deixei zangada. Você fica bem, com os olhos brilhantes, quase como os de Maria. Não precisa se preocupar com as outras mulheres, srta. Winters. A sua graça é incomparável, como uma samambaia jovem.
— Pare! Já chega o que fez antes do almoço. Já lhe disse que não me toque. Você me dá arrepios.
— Pensa que sou de gelo? Se só consigo fazê-la sentir frio, então, é bom que nada aconteça para que fique sozinha comigo à noite. Os prussianos, meus antepassados, marcharam por toda a Europa, pegando o que queriam. Eu senti prazer, enquanto a observava dançando, há poucos minutos. Talvez, um dia, fique maluco por uma bailarina.
— Você faz pouco caso de tudo! Brinca com tudo! Não entendo as coisas que disse de Bruno. Nem as coisas que disse de si mesmo. Você pertence à sua deusa de neve.
— Sim? Não pare. Diga o que estou vendo em seus olhos: Eu pertenço à Torre de Vidro.
— Você pensa isso. Sua mãe lhe pediu que não escalasse, mas não quer atender. O que está esperando? Que o gelo fique ainda mais pesado? Que o inverno piore tudo? Assim, terá a chance de quebrar o pescoço para provar que não matou Helmut. Será mais fácil, não? Mais fácil do que voltar aos estudos e se tornar uma pessoa útil ao mundo.
— Pensa que sou inútil? — Deu de ombros. — Pode estar certa. Mas há algo em cada um de nós que nos faz escolher nossos próprios caminhos. Temos uma porção de esperanças que nos puxam cegamente em determinada direção. Muitas vezes nos apaixonamos contra a nossa vontade ou não gostamos de alguém, sem nenhum motivo aparente. Somos seres humanos, srta. Winters. Somos disciplinados ou não. Certos ou errados. Temos de traçar nossos destinos, apesar de tudo que dizem sobre os que já nascem com o destino traçado nas estrelas. Acredito que somos um pouco do que herdamos dos nossos antepassados e um pouco do que aprendemos quando crianças. Você foi órfã, portanto deve estar procurando um protetor, um homem forte, uma espécie de pai, Eu diria que seu diretor de balé era bem mais velho.
— Cassian era um eterno jovem. Ele dançava com mais graça do que qualquer jovem. Era um ser humano magnífico. E não me envergonho de dizer isso... nem para você.
— Nem para mim — Kurt levantou uma sobrancelha, com ar curioso. — Acha que não sei nada sobre o amor e nem quero saber? Pensa mesmo que tenho gelo nas veias e uma pedra no lugar do coração? Acredita que não sei o que é ser magoado por alguém a quem se ama? Amei meu pai, srta. Winters. Era muito pequeno na época, mas gostava dele. Desde então, passei a
odiar a injustiça que existe no mundo, a ambição e o poder. Vou para as montanhas porque sua beleza e crueldade são naturais. Eu escalo com homens de vida simples, que só têm paz no coração, como os guias tibetanos e os amigos que encontrei nas escarpas dos Alpes.
Lentamente, ele desviou os olhos de Sibele e observou a parede manchada de vinho.
— Peço desculpas pelo homem que sou. Acontece que meus amigos alpinistas sempre são gentis, caridosos e fortes. Alguns dos estudantes de medicina com quem convivi eram apenas ambiciosos. Só queriam aparecer: um carro grande, um nome numa placa dourada e os pagamentos altos oferecidos pelos ricos. Só queriam as mulheres entediadas que sempre estão prontas para adorar um médico.
Deu de ombro, e ela percebeu que Kurt carregava uma enorme tristeza. Não tinha esquecido os dias de infância e na adolescência não encontrou nenhum estímulo. Só lhe restavam as montanhas com suas escarpas profundas e perigosas.
Sibele sentiu vontade de consolá-lo, dizer algo gentil. Sabia que não conseguiria entender Kurt. Era complexo demais: seu coração era capaz de bater com mais força por' suas amadas montanhas do que por uma mulher.
Antes de conseguir dizer o que pensava, ele a soltou e se afastou. Ela ficou imóvel, observando seu reflexo no espelho e ouvindo os últimos acordes de La Captive.
Ficou pensativa. Será que era uma cativa daquele castelo? Seu coração bateu mais depressa. Desde Cassian, não se sentia tão perturbada. Será que devia comparecer ao encontro com Bruno?
Os últimos raios de sol se refletiam no gelo da montanha causando um lindo efeito multicolorido.
Agora, ela sabia que Bruno era um homem autoritário. Que gostava das coisas a seu modo. Poucas pessoas se atreveriam a contradizê-lo. Será que teria coragem de olhar novamente dentro daqueles olhos cinzentos?
Em Viena, ele a tinha convencido a largar o emprego no café e vir ao castelo. Se ficasse lá, ela estaria em maior contato com a ópera. Mas não resistiu ao convite. Será que ele tinha sentido a mesma atração e, por isso, a convidou para seu castelo nas montanhas, onde às vezes até os lilases desafiavam a natureza?
... E desabrochavam no inverno, num sinal de que em breve haveria um casamento.
A noite caiu fria, e os últimos pássaros cantavam sobre o lago. Sibele vestiu um casaco forrado com pele de carneiro e puxou o capuz sobre a cabeça.
Ao se aproximar do lago, percebeu o barão caminhando entre . as árvores do bosque, à sua espera. Virou-se ao ouvir os passos dela, e um último raio de sol iluminou seu rosto. Sibele sentiu o coração bater mais depressa. Ele lhe entendeu as mãos.
Também estendeu as mãos para ele, que as apertou com força, até seu anel machucar os frágeis dedos da moça.
— Agora, podemos ficar de mãos dadas e sorrir — ele falou. Mas ela não conseguia sorrir. Sentia-se envergonhada e
tímida. Ele era tão alto, tão seguro de si. Lentamente, o barão levou o pulso dela até os lábios e o beijou. Era um gesto de nobreza, mas parecia tão natural, feito por ele.
— Eu não tinha certeza se viria. As mulheres costumam mudar de idéia. Em Mayholtzen, não há as frivolidades de Viena.
— Não sou uma pessoa frívola, senhor.
— Mas não teria vindo, se eu não tivesse lhe oferecido um emprego. Não é do tipo que se satisfaz sendo apenas um ornamento. Sabe que está linda, com esse capuz? Parece um pouco amedrontada, como se eu fosse um lobo. Ou será que está com vergonha de mim? É a segunda vez que conversamos, e você não sabe que tipo de homem eu sou. Mas gostou da minha mãe, não?
— Oh, sim. — O beijo dele a tinha deixado completamente insegura e envergonhada.
— O que achou do castelo? Romântico? Como o cenário de um balé? Qual deles?
Ela sorriu e ficou em silêncio. Era como se ele tivesse lido seus pensamentos. Observou a superfície calma do lago, refletindo as montanhas e o castelo.
— Em Viena, pensei que gostaria de conhecer Sete Lilases. O que achou do meu reino, nas montanhas?
Ele tinha dito aquilo rindo, mas com um tom de orgulho e poder. As coisas que possuía, de que gostava, sempre cuidaria com carinho. E seria assim, quando escolhesse uma esposa, ela pensou. Seria uma mulher protegida pelo orgulho dele, amada... e possuída.
Sibele não sentia a mesma aversão de Kurt, pelo poder e a importância do barão. Bruno precisava mais do que um saco de dormir e uma barraca para se sentir feliz. Como aqueles dois irmãos eram diferentes! Sibele, que não tinha irmãos, estava espantada em encontrar personalidades tão opostas na mesma família.
O vento soprou e ela estremeceu. O barão sugeriu:
— Por que não vamos conversar no meu escritório? Não; gosto muito do frio. Geralmente, quando subo nas montanhas, uso o bondinho. E lá no pico, prefiro me hospedar num bom hotel, com restaurante.
— Eu adoraria subir no bondinho — disse animada. — Será' que poderei ir?
— Claro, vamos combinar o passeio. Se Kurt for conosco, com certeza ele vai descer esquiando. Já o viu em ação?
— Não. Mas ouvi dizer que é muito bom nesse esporte.
— Sim. Há poucos iguais a ele. — Entraram no pátio do . castelo e viram que vários terraços já estavam acesos. — Você parece não ter se dado bem com meu irmão. Ele falou algo que a tenha aborrecido? Sei que Kurt tem um temperamento difícil.
— Eu finjo que não percebo. — Tentou falar com alegria,
procurando convencê-lo que não havia nada de grave em. seu relacionamento com o irmão dele. Sabia que não podia ser amiga daquele rapaz imprevisível, mas não ia aborrecer Bruno com isso. Ele abriu uma porta e entraram.
O escritório era imenso, cheio de sofás de couro e uma grande mesa coberta de papéis. Ficou encantada com os tapetes.
— São da Transilvânia — o barão explicou. — Gosto de coisas diferentes. Por favor, sente ali. Sabe, eu lhe trouxe um presente da Bavária.
Sibele achou que ele estava brincando. Como aquele barão imponente e importante podia ter se lembrado dela numa viagem de negócios?
Ele lhe entregou um pacote. Era uma caixinha de música. Abriu a tampa e começou a ouvir A Dama de Neve.
— Espero que tenha gostado. Qualquer outra coisa parecia pessoal demais, e acho que lembrará de mim ao ouvir esta música.
Ela agradeceu, entusiasmada, mas a música a fez lembrar de Cassian. Certa vez, tinha assistido com ele ao balé A Dama de Neve, em Convent Garden. Depois, foram para o pequeno restaurante de que gostavam tanto.
Quando Sibele encarou o barão, ele pareceu perceber que ela tinha tristes recordações. Sabia que era inocente e não ia tentar fazê-la revelar seus sentimentos. Ela continuou a olhá-lo e ele se aproximou. Seu beijo foi firme, porém gentil, com o sabor do charuto e muito másculo.
— Quis beijar você naquela primeira vez, em meu carro. Mas achei que era cedo demais. Podia pensar que sou o tipo de homem que tem um pavilhão de caça para encontros clandestinos. Os homens da minha posição geralmente são vistos como depravadores em relação às mulheres. Será que me acha depravado?
Ela sorriu, trêmula, lembrando-se do beijo dele.
— Gosto do seu castelo, senhor barão. Gosto da sua gentileza e do seu presente. Estou contente por ter vindo a Mayholtzen.
— Muito bem, vamos fazer um brinde. Kurt trouxe um vinho de um mosteiro das montanhas e eu sempre o guardei para uma ocasião especial. A que vamos, brindar? — Ficaram em silêncio por algum tempo. O barão continuou: — É melhor não fazermos promessas... no momento. A você. Uma companhia jovem e um bom vinho velho.
Ela sentiu o líquido delicioso descendo pela garganta e um
calor subindo pelo rosto.
Ele se encostou na lareira e ficou observando-a.
— Vamos combinar o seu passeio no bondinho. Precisa ver tudo que Mayholtzen tem a oferecer. Vai ficar encantada.
Sibele levantou os olhos e viu o antepassado prussiano dele. Era um homem sério, vestido com uniforme militar e de capacete. A cor dos olhos do homem era igual ao cinza de
Bruno.
— Se eu o encontrasse vestido assim, ficaria um pouco
nervosa,
— E não fica nervosa diante de mim, em roupas modernas?
— Soltou uma longa baforada do charuto.
Será que estaria brincando com ela? Esperando uma resposta, mas já sabendo que seu charme a deixava tímida? Sentiu saudades do mundo do balé, da proteção de Cassian. Sabia que muitas dançarinas sucumbiam ao suborno dos elogios de um
homem e ao champanhe.
— Deve pensar que sou ingênua. Deve saber que nunca fui hóspede de pessoas tão distintas. Nasci num bangalô perto do mar e depois morei em pensões em Londres. Não era uma vida fácil. Estou encantada com o seu castelo, senhor barão, e também com suas atenções. Mas não pretendo fazer papel de tola, nem ser enganada.
— Minha querida, quem sonharia em enganar você? Pensa que eu a convidei para Sete Lilases para seduzi-la? Seria muito mais fácil em Viena, com todos aqueles restaurantes e teatros.
— Não seria fácil em lugar nenhum seduzir uma moça, contra a vontade dela.
— Talvez. — Os olhos cinzentos tinham um brilho misterioso. — No passado, minha querida bailarina, eu poderia ter feito de você o que quisesse: uma estrela famosa ou a minha companheira. As duas coisas. Certa vez, falou de um homem que admirava. Será que não está misturando veneração com amor? O amor não é fácil de controlar. É uma chama que pode queimar todas suas defesas. É muito jovem, Sibele. Mas já foi tocada pela magia do balé. Entretanto, não conhece a magia do amor. Verá que só com ele conseguirá uma realização verdadeira.
Ele parou e ela ouviu os sinos tocando nas torres.
— Vamos descer para o jantar.
Bruno estendeu a mão e ela levantou. De repente, estava com o rosto encostado na jaqueta de veludo dele. Tinha sentido atração por aquele homem, desde Viena. Ali no castelo, essa atração estava se tomando incontrolável. Sentiu vontade de acariciar o rosto dele, suavizar as rugas nos cantos da boca. Mas ele se mexeu e a ruga sumiu, como se tivesse sido apenas o efeito de um jogo de luzes.
— O que foi? De repente você me olha como se eu fosse um estranho. Pensei que depois deste nosso encontro seríamos, pelo
menos, amigos.
Ele parou antes de dizer a última palavra e ficou segurando-a nos braços. A porta se abriu e alguém disse:
— Bruno, estamos esperando você. Oh, você está conversando com a srta. Winters?
Sibele soltou-se do abraço e Maria Landi se afastou-da porta, descendo, apressada.
— Vamos, srta. Winters — o barão falou rindo. — Causaremos um escândalo, se nos pegarem a sós muitas vezes.
Kurt não jantou com eles. Tinha ido até a casa de um amigo, Eric Gerhardt, companheiro de alpinismo.
— Trinka, não se preocupe tanto com ele.— Bruno disse na hora do café.
— Mas Kurt está fazendo os planos para a escalada — ela respondeu, ansiosa. — Gostaria tanto que ele voltasse aos estudos, fizesse algo útil com sua vida. Bruno, será que não pode convencê-lo a trabalhar com o sr. Landi?
— Ele ia atrapalhar mais do que ajudar. Kurt não serve para os negócios. Seria como colocar um leão na jaula. Trinka, agora você tem Lorenz e sabe que cuidarei de Sete Lilases, no futuro. Aceite Kurt como ele é. Não podemos fazer nada para mudá-lo.
Algumas vezes, lembro-me dele quando bebê. Era como Lorenz, e nunca pensei que crescesse para ficar tão independente. Quando havia festas aqui, ele descia engatinhando, para me ver.
— Houve momentos — o barão disse pensativo — em que senti ciúme dele. Porque ainda podia ser tratado como um bebê, por você. Agora, está tão distante como suas montanhas.
— Ele mudou muito, desde a última vez que o vi — Maria comentou, olhando Bruno.
Após o café, o barão sentou no banquinho do piano, a baronesa ficou perto da lareira e Maria num divã, sob um abajur lilás. Sibele escolheu uma poltrona perto da janela, afastada do círculo familiar. Aquelas pessoas eram tão majestosas que preferia observá-las de longe.
De repente, Maria começou a cantar, numa voz forte e firme, inesperada numa pessoa tão frágil.
— Muito bem! — o barão aplaudiu, quando ela terminou. — Agora, Sibele dançará para nós.
— Oh, não! — Ficou envergonhada, com vontade de sumir dali. — Não estou com os sapatos adequados.
— Vá buscar as sapatilhas, nós esperamos — Bruno pediu. — Afinal, não precisa ficar tão nervosa. Somos um público como qualquer outro.
— Não. É muito diferente dançar para pessoas que não se conhece. Principalmente, quando há outras bailarinas no palco.
— Olhou ansiosa para a baronesa, que lhe pareceu compreensiva.
— Sim — Trinka disse, depois de um momento. — Não insista, Bruno.
— Vamos ler o baralho Tarot — Maria sugeriu. — Será bem divertido.
— Ótimo — Trinka concordou. — Lembra a última vez que tia Berta veio de Viena? Tudo que ela leu em Tarot aconteceu.
O barão sorriu, mas não insistiu mais com Sibele. Apenas puxou-a para o círculo familiar.
— Venha, vamos ver o que diz a sua sorte.
— Quer que eu revele tudo? Até os seus segredos, srta. Winters — Maria perguntou, rindo para Bruno.
— Será que sabe mesmo ler o Tarot, srta. Landi?
— Claro. Posso dizer que vou descobrir muitas coisas. Quando uma garota sai de seu país e vai para o exterior, está fugindo de alguma coisa ou procurando alguém. Não veio como
turista, não é? Me contaram que estava trabalhando em Viena.
— Sim, como garçonete.
— Que horrível! Não deve ser nada agradável ter que servir atras pessoas.
— Acontece que servi gente muito interessante — Sibele explicou, vendo que a outra estava tentando chamar a atenção de Bruno.
— Havia homens bonitos? Acho que fui muito mal-acostumada. Sempre gosto de homens bonitos à minha volta. Quando Bruno me convidou para vir até aqui, tive que
aceitar. Não podia recusar a convivência com dois solteiros tão atraentes.
— Pare de brincadeira, Maria — A baronesa sorriu e começou a embaralhar as cartas do Tarot. — Já ouviu falar deste baralho, Sibele?
— Sim. Dizem que os antigos hebreus o usavam para saber se seriam felizes ou atingidos por alguma calamidade.
— Isso mesmo. Portanto, preste atenção. Você poderá ter alguma revelação interessante.
A baronesa embaralhou e passou as cartas para Maria. A moça cortou o baralho e Trinka tirou uma carta.
— O sol — Maria disse. — Ele fica perto da justiça... e muito interessante... O Pêndulo! Um homem suspenso sobre um abismo...
— Odeio essa carta — a baronesa murmurou.
— Significa apenas o dever — Bruno disse. — As cartas podem parecer dramáticas, mas só possuem um significado que cada um interpreta de acordo com sua vontade. Muitas vezes, sentimos que nossos deveres se opõem aos nossos desejos. Por isso, ficamos atormentados.
— O sol significa alegria. — Maria sorriu. — Haverá alegria para um dos seus filhos.
— Um? — A baronesa estremeceu. Sibele percebeu porque estava perto. — Chega, Maria, tire a sorte da nossa convidada.
— Embaralhe e tire uma carta — Maria pediu.
Sibele fez o que a moça pedia e logo em seguida colocava uma carta sobre a mesa.
— A estrela. Espera que algo de bom lhe aconteça?
— Sim. Acho que todos esperam.
— Ah, a Sacerdotisa de Isis. Querida, vai se envolver num mistério. Esta carta significa que algo muito estranho vai lhe acontecer. — Maria riu, maliciosa. — Espero que eu não a tenha deixado nervosa.
— Nem um pouco. — Sibele riu também, mas ficou imaginando por que teria vindo a Sete Lilases. Era descendente de celtas, que acreditavam muito na força do destino e sempre procuravam significado em tudo que lhes acontecia. Sentiu que algo ia lhe ser revelado.
— Continue lendo as cartas — Bruno pediu. — É divertido. — Não acredita na sorte, barão? — Sibele perguntou.
Ele riu, irônico, ficando ainda mais parecido com Kurt.
— Odeio pensar que não sou o dono do meu próprio destino.
Penso que as pessoas não são marionetes. Elas tomam decisões que as conduzem ao desastre. E isso é o destino.
— Parece ter muita certeza, barão.
— Sim. Os homens têm que ter certeza e as mulheres têm que ter encanto.
Aquela resposta era muito parecida com as de Kurt, ela pensou. No fundo, talvez os dois não fossem tão diferentes.
Durante o resto da noite, se divertiram com o baralho. Ao se despedir, Sibele subiu para o quarto, vestiu a camisola e o robe e ficou observando alguns dos animaizinhos de madeira e um castelo de vidro, da pequena coleção de objetos que Kurt tinha reunido quando criança.
Ao mesmo tempo, ficou recordando o comportamento de Maria. Era óbvio que a moça estava interessada em Bruno. Será que ele ia casar com ela? Tudo indicava que sim. A baronesa havia perguntado se poderia amar Kurt. E Maria era do mesmo ambiente, falava a mesma língua. Era filha de um sócio dele.
O barão havia dito que causariam escândalo se fossem apanhados juntos, e Maria, ao vê-los abraçados no escritório, não ficou chocada. Era como se já fosse cúmplice do barão.
Aos poucos, apesar de sonolenta, Sibele começou a sentir saudade dele. Lembrou do presente que tinha lhe trazido da Bavária. Ela o havia deixado sobre a lareira do escritório.
Resolveu ir lá buscá-lo. Afinal, estava de robe, e o escritório, era ali perto. Saiu da cama e foi para o corredor, caminhando apressada.
Ao abrir a porta do escritório, viu lá dentro Kurt, segurando uma arma, que olhava atentamente.
— Kurt! Não pode fazer isso! — Correu para ele e lhe arrancou a pistola da mão. — Pense em Trinka, vai partir o coração dela.
— O que aconteceu, garota? Ficou maluca? Não vou pôr fim à minha vida com uma das pistolas do general. Elas nem estão carregadas. Afinal, faria uma sujeira horrível no carpete e um barulhão enorme no castelo. Seria mais educado se eu escorregasse da montanha.
— Oh, céus. — Agora Sibele sentia-se completamente idiota. Afinal, tinha pensado muito em Kurt. Não saía de sua cabeça a imagem dele como uma criança infeliz, presa no castelo. De acordo com essa imagem, era bem possível que tentasse o suicídio. Principalmente, depois de carregar a culpar pela morte de Kristy.
— Acontece que Eric e eu tivemos algumas dúvidas sobre essas armas antigas e vim verificar. Você foi muito corajosa. Se a pistola estivesse carregada, poderia ter disparado, atingindo-a.
Sibele só queria sair correndo dali.
— O que veio procurar aqui? É muito tarde. Geralmente, nossas hóspedes não ficam entrando no escritório de Bruno, a essa hora, de camisola e sem sapatos. — Ele se aproximou e a segurou pelo pulso.
— Por favor, me largue.
— Não grite. Senão, vai acordar o castelo inteiro. O que era tão importante assim? O que a trouxe até aqui? Está nervosa?
— Vou embora. Posso esperar até amanhã. — Esqueceu algo aqui?
— Não...
— Sabe que não consegue contar mentiras? Fica vermelha e pisca demais.
— Não seja ridículo! Tenho que ir embora. Alguém pode ouvir...
— E nos encontrar aqui?
— Por que não brinca com Maria? Por que não a atormenta?
— Ela ia rir apenas. Com você é mais divertido. Fica zangada e nervosa.
— Oh, eu odeio você. Nunca encontrei alguém tão irritante. Sabe? Acho que vive dentro de uma armadura. Tentei ser simpática, mas não consegui.
— Quer que eu goste de você? Pois me parece insegura e frágil. Se tivesse descido daquele trem cheia de autoconfiança, eu não a teria aconselhado a ir embora.
— Não olhe assim para mim, Só porque sou dançarina, não pense que costumo flertar com todos os homens.
— Você se magoa por nada. Eu só quis lhe dar um aviso. Agora, quero saber: o que veio procurar aqui?
— Como se atreve a me fazer perguntas? Não é da sua conta.
— Sou curioso. Meu irmão lhe deu algum presente? Um símbolo de afeição?
— Não, não!
Ele atirou a pistola num sofá, aproximou-se e a tomou nos braços. Saiu carregando-a pelo corredor, e, ao chegar em seu quarto, colocou-a na cama.
— Agora, é hora de dormir. Está muito frio para ficar andando por aí, com essas roupas. Boa-noite.
Saiu e fechou a porta.
Agora, pensando melhor, ela entendia o aviso que Kurt quis lhe dar. Devia sair do caminho de Bruno. Talvez, porque já houvesse outra mulher.
Sibele começou a dar aulas de balé na escola. As garotas usavam túnicas azul-marinho e sapatilhas brancas. Logo percebeu que não seria fácil conseguir um grupo de bailarinas maravilhosas, mas ia dar mais graça às meninas, e deixá-las com o corpo mais disciplinado e uma postura saudável.
O diretor mandou colocar barras na sala de ginástica e logo as garotinhas começaram a treinar os passos c as piruetas.
Um dia, um jovem passou num carro esporte amarelo e deixou o toca-discos e uma enorme coleção de discos clássicos.
— Quem é esse Papai Noel que anda num carro amarelo? — Sibele quis saber.
Algumas das alunas sorriram e explicaram, num inglês misturado com alemão:
— É Gerhardt. Ele vem a Mayholtzen para escalar as montanhas. Dizem que era muito apaixonado pela filha adotiva da baronesa. Ela nem o olhava, mas dizem que se casaria com ela, mesmo depois do que aconteceu na Torre de Vidro.
Sibele mudou de assunto. Não queria suas alunas falando dos problemas pessoais da família que a hospedava. Mas ficou contente porque agora já podiam ensaiar ao som das músicas de que tanto gostava.
Ia se encontrar com Eric Gerhardt tão inesperadamente quanto o presente que ele dera à escola. O passeio no bondinho tinha
sido combinado para o próximo fim de semana. Foi a baronesa quem avisou que Eric iria junto,
— Ele é um homem solitário. Será bom que tenha companhia no fim de semana.
— Kurt o convidou? — Sibele perguntou, tomando café com creme. Tinha ficado sozinha com a baronesa, antes de os dois irmãos chegarem em casa e enquanto Maria se preparava para o jantar.
A moça geralmente demorava umas duas horas para se vestir e se pentear e sempre surgia com um estilo diferente de cabelo e uma roupa nova.
Sibele estava ansiosa pela chegada do fim de semana, quando estaria com o barão na montanha e poderiam se comunicar mais, em vez de continuarem com as conversas educadas que sempre mantinham diante dos outros.
Por enquanto, o relacionamento não passava de uma amizade. Achava que um homem tão distinto não ia deixar ir além disso. Também preferia assim. Ia provar a Kurt que não precisava de nenhum protetor.
— Sim, Kurt achou uma boa idéia levar o amigo. — Trinka sorriu. — Eles nunca se cansam das montanhas. Eric não tem família. É um rapaz magrinho e quieto.
— Parece completamente oposto a Kurt — Sibele falou, divertida. Estava adorando aquele café da tarde, com geléias e creme. Como não engordava, não precisava se preocupar com as calorias das tortas austríacas.
— Não acha Kurt atraente, não é? — Trinka perguntou, brincalhona.
— Não foi isso que eu quis dizer. — Sibele escolheu geléia de pêssego e passou na torta. — Ele não é do tipo quieto. Está sempre falando o que pensa e tem opiniões muito definidas. Eric, por outro lado, é do tipo tímido. Nem parou na escola, quando trouxe o presente. Deixou os discos e o toca-discos nos degraus da entrada. Deixou também um bilhete dizendo que esperava estar ajudando as aulas de balé. Estou contente por encontrá-lo, porque assim poderei agradecer pessoalmente.
— Vocês dois têm muito em comum. — Trinka passou os dedos pelos anéis. Era um hábito que tinha quando algum pensamento a atormentava. — Como você disse, Kurt tem uma personalidade muito definida. Talvez o ache um tanto autoritário. Mas, quando era criança, parecia muito mais adorável do que o irmão. Precisava de mim. Me procurava para contar seus problemas e chorava no meu colo, quando arranhava os joelhos. Agora, pertence apenas a si mesmo. Os filhos crescem para viver suas próprias vidas. Não sou possessiva, mas noto que Kurt não entrega seu coração a ninguém. Só pensa nas
montanhas. Será que não o acha um tanto esquisito.
— Não. — Sibele olhou a baronesa, com ar compreensivo. — As pessoas do mundo do balé também são assim. David Cassian era completamente devotado à dança. As mulheres em sua vida apenas tocavam uma parte muito superficial. No fundo, ele só pensava na dança. Dizia que me amava mais, quando eu. dançava para ele. Acho que, quando se ama alguém, deve se estar preparado para ser magoado por essa pessoa. Se o amor fosse apenas felicidade, seria muito melhor.
— E gostaria que o amor fosse só felicidade?
— Sim... se já não tivesse resolvido dedicar minha vida à dança.
— Acho que neste fim de semana, o bondinho vai levar um grupo de almas perdidas para o alto da montanha — a baronesa disse, tristonha.
— Maria também? — Sibele quis saber.
— Sim, ela é uma criança que passa o tempo todo fingindo ser mulher. Deseja muito meu filho Bruno, e ele a está iludindo. Vejo que tem passeado mais pelo bosque nos últimos tempos, e outro dia, estava assobiando uma ária de balé.
— Baronesa...
— Calma, querida. Eu também já fui jovem. Bruno é um
homem bonito. Quem sabe se Maria não vai conseguir o que quer? Talvez o destino reserve algo diferente...
A baronesa sorriu e fez um gesto em direção aos pés de lilases, próximos da porta.
— Espero que o tempo continue bom no fim de semana.
— Ouvi dizer que o bondinho não funciona quando há muito vento — Sibele comentou.
— É verdade. Há alguns anos, um dos cabos escapou e muitas pessoas morreram. Mas acho que o clima continuará bom. Vai ser um passeio delicioso. Tem um casaco pesado?
— Só o de pele de carneiro.
— Ah, mas aquilo é uma jaqueta! Venha, vou lhe emprestar um dos meus casacos de pele. Vamos experimentar.
Trinka tomou Sibele pela mão e levou-a a seu quarto. No quarto ao lado, Lorenz deu um gritinho. A baronesa foi até lá e o trouxe, deixando-o brincar com um vidro de perfume sobre a cama.
— Aqui em Mayholtzen, eu às vezes uso casacos de pele para catar gravetos no bosque, no inverno. Mas tenho um que vai lhe servir perfeitamente. É de pele de leopardo da neve, branco com manchas castanhas. Kurt comprou para mim, mas acho que pensava em mim como uma mãe bem mais jovem. Hoje, o estilo não fica bem numa viúva de meia-idade.
— Ele pode não querer que eu use um casaco que lhe deu de presente — Sibele comentou, imaginando Kurt numa loja sofisticada, em Viena, comprando um casaco de peles para a mãe.
— Experimente. — A baronesa estendeu o casaco, que tinha um gorro e um abrigo para as mãos, combinando.
Sibele vestiu e ficou linda. Parecia que tinha sido feito para ela. As manchas castanhas combinavam perfeitamente com a cor dos seus cabelos.
— Está encantadora, querida — a baronesa disse, feliz. — Experimente o gorro. Vai precisar de proteção para a cabeça, no seu passeio às montanhas.
— Estou tentada, baronesa.
— Mas tem medo de Kurt?
Sibele pensou em si mesma, num bondinho, subindo as montanhas, usando aquele lindo casaco. Imaginou o que Kurt faria, quando ia até Viena, ele que só gostava das montanhas e não ria facilmente.
— Ele não vai gostar, baronesa. Escolheu este casaco para a senhora, e já estou até vendo-o arrancando o gorro da minha cabeça. — Sibele deu uma risada. Ele pode me atirar para fora do bondinho, por causa da minha audácia.
— Seja audaciosa. Agarre sua chance... — Trinka foi interrompida por um grito de Lorenz.
O bebê tinha conseguido abrir o vidro de perfume e estava furioso com o cheiro que se espalhava em suas roupas e na cama.
— Querido... cuidado com o chão...
As duas o levaram para o quarto e começaram a dar banho nele. Sibele lhe deu um barquinho para brincar. Mas Lorenz se divertia mais enchendo o brinquedo de água e atirando nelas, que não paravam de rir.
— O que está acontecendo aqui? — Era Bruno que abria a porta.
— Estamos num pântano — a baronesa explicou, contando as estrepolias do neto. — Agora, esse banho está quase se transformando num caos.
Bruno observou a cena, demorando o olhar em Sibele, que tinha sentado no chão, vestida com um dos aventais da babá.
Lorenz encheu mais uma vez o barquinho de água e atirou no tio, rindo às gargalhadas.
— Oh, seu terno! — Sibele murmurou, penalizada.
— A água seca logo — Bruno disse. — É bom que a criança se sinta à vontade e brinque sem inibições. Ele vai ficar parecido com Kristy.
— Quando o vejo assim — a baronesa comentou —, tão feliz e confiante, imagino como poderei agradecer o que Sibele fez.
Quer o meu castelo? Quero que o considere sua segunda casa. Venha aqui sempre que desejar.
— Sibele sabe que nossa porta está sempre aberta para ela. — O barão encarou a moça e sorriu. — Não podemos segurá-la aqui para sempre, Trinka. Ela tem asas. Acredita que deve dançar... ou morrer.
Tinha lido seus pensamentos, e Sibele sentiu-se ainda mais atraída por aquele homem. A baronesa levou Lorenz para o berço e o garoto ficou rindo, brincando com alguns chocalhos.
Sibele sabia que não podia tomar o lugar de Kristy no castelo, mas aquela criança, a recordação de um amor tão trágico, estava trazendo uma nova vida à baronesa.
Encarou demoradamente o barão, num olhar que transmitia toda sua vontade de ser acariciada por ele, ser beijada novamente.
— Vou buscar Maria — ele falou, de repente, e saiu. Sibele suspirou e se aproximou de Lorenz,
— Querida, vá se trocar para o jantar. Seu vestido ficou completamente molhado.
Dez minutos depois, ela estava indo para o quarto, segurando a saia molhada. Ao virar no corredor, uma sombra se aproximou. Sentiu-se abraçada, e logo seus lábios se encontraram, num beijo exigente. Procurou afastá-lo, alarmada com a resposta que seu corpo dava ao dele.
— Bruno...
— Eu tive que esperar você. Queria segurá-la, abraçá-la como se fosse uma criancinha molhada. Sibele, eu quero você.
— Bruno, por favor! — Afastou-se dele. — Não posso ficar aqui, nem encarar sua mãe, se deixarmos que nossos sentimentos saiam do controle. Isso não é amor. Apenas atração e um pouco de solidão...
— Sua solidão? — Ele a segurou pelos ombros. — Acho que devia ficar agradecida pela minha amizade... se quer chamá-la assim. Você está longe de casa, e não vou insultar sua inteligência, tratando-a como criança.
— Há... barreiras. Nós dois sabemos disso, e não quero ser apenas um caso que você teve com uma dançarina.
— O que quer, querida?
— Oh, Bruno, ainda é cedo demais para saber o que quero.
— Sabe que, naquele dia em Viena, sentimos uma atração instantânea um pelo outro. Gostei do seu rosto e você gostou do meu. É assim que as coisas começam. Veio a Sete Lilases querendo me ver outra vez. E eu voltei querendo revê-la. Não podemos esconder nossos sentimentos de nós mesmos. Quando estamos juntos e quando eu a abraço assim, sinto que quer ficar perto de mim. Vai negar isso? Quando suas mãos tocaram meu ombro, você respirou fundo, olhando o meu rosto. Acha que sou tolo de pensar que tudo isso não passa de amizade?
— E Maria? Ela gosta de você.
— Sim, eu sei.
— Então, não está sendo cruel e desonesto, falando comigo desse jeito? Todos sabem que você deve casar com ela. É linda, pertence ao seu mundo, fala a sua língua, não tem nenhum fantasma a persegui-la.
— E você tem o fantasma do seu dançarino inglês. Ele morreu dançando... Muito dramático. Não vai esquecê-lo?
— Não. Ele foi parte da minha vida durante quatro anos. Só posso procurar alguém para diminuir a dor de perdê-lo. As pessoas fazem isso...
— Então, quer que fiquemos apenas na amizade?
— Sim, por favor, Bruno.
— Será perigoso eu ficar a sós com você. — Beijou-a na testa. — É tão modesta que não se conhece? Sim, Maria é linda. Tem um coração bom e alegre e fala a minha língua. Mas não desperta os meus sentidos!
Sibele sentiu que tremia, chocada diante da reação dele. Momentos depois, queria lhe acariciar o rosto. Não conseguiu resistir ao impulso e, quando o tocou, viu que ele não tinha rugas na testa. Eram apenas sombras mas ele estava tenso, com os olhos brilhando, como se quisesse beijá-la outra vez.
— Bruno, tenho que me vestir para o jantar!
— Daqui a um minuto — ele disse e curvou a cabeça, aproximando os lábios dos dela.
Então, ouviram passos, e Kurt surgiu na escada. Vinha decima, de uma das salas na torre, onde havia montado um observatório. Olhou demoradamente para o irmão com a moça nos braços.
— Boa noite. — Passou rindo, com ar de pouco caso, e Sibele corou violentamente.
Bem, aquilo tinha que acontecer. Mais cedo ou mais tarde, Kurt ia pegá-la nos braços de Bruno. Agora, tinha motivo para acreditar nas acusações que lhe havia feito.
Mas não eram verdadeiras. Será que ele não podia evitar de julgar os outros? Será que não tinha nenhum sentimento de humanidade, já que não possuía amor nem fraquezas?
Agora, cada vez que trocasse um olhar com Bruno, seu segredo seria compartilhado com Kurt. Cada vez que conversassem, Kurt saberia que suas palavras tinham um significado secreto.
Sentiu que o odiava e correu para o quarto. Estava temerosa e, por isso, escolheu o par de sapatos vermelhos. Cassian gostava deles e ela sempre sentiu que lhe davam coragem. Quando usara sapatos vermelhos pela primeira vez, ele havia sorrido e a convidado para jantar. Depois, passearam de mãos dadas pela noite de Londres.
Após alguns momentos, recordando seu maravilhoso romance com o bailarino, levantou os olhos e sentiu que o castelo era um ambiente estranho. Não pertencia àquele lugar. Queria estar num grupo de bailarinas, rindo e esperando as últimas notas da orquestra, antes de entrar em cena.
Alguém bateu na porta e ela atendeu.
— Oh, é você? — Parou com as mãos na cintura, frustrada por não encontrar ali um parceiro para um pas-de-deux.
— Estava esperando meu irmão? — Kurt perguntou, e ela ficou furiosa. Ele se aproximou e a segurou pela cintura.
— Eu estava apenas sonhando acordada — falou, baixinho, escolhendo as palavras, deixando ele pensar que sonhava com o barão.
— Isso faz parte do delírio de amar? — Soltou-a e riu.
— Nunca se apaixonou?
Sentiu que ele ficava mais tenso e percebeu que poderia facilmente quebrá-la em duas, se quisesse. Bem, tinha sido curiosa. Talvez merecesse uma punição.
— Eu já cai da montanha. Deve ser a mesma coisa. Fica-se sem fôlego, arranhado e nervoso?
— Pare de brincadeiras. Espero que, quando se apaixonar, sofra bastante. É assim que acontece com as pessoas que dizem não acreditar no amor.
— Então, essa emoção misteriosa chamada amor vai acabar comigo? Para uma pessoa tão jovem, você até parece uma autoridade no assunto. Quem lhe ensinou? Cassian?
— Ele nunca foi meu amante! — Queria sair dali, mas viu que não ia conseguir. O olhar dele parecia encantá-la, fazendo com que contasse todos os seus segredos. Kurt era forte e cínico. Ele a magoava com as palavras, e quando a tocava.
— Eu nunca disse que seu diretor tinha sido seu amante. — Parou e fez uma carícia no rosto dela. — Fazer amor e sentir amor são duas coisas completamente diferentes. Muitos homens fazem amor sem sentir nada, apenas desejo. Cassian foi sábio. Ele fez com que você sentisse amor, sem destruir sua inocência.
Ela corou, sem saber o que responder. Estava terrivelmente consciente da masculinidade dele. Kurt parecia tão calmo, mas tinha a intensidade do gelo e queimava como a neve. Havia coisas de que ele nunca falava. Paixões que guardava para si mesmo. Ao contrário de Bruno, ele apenas tomava, sem pedir nada, sem procurar encantar.
— Sim, David Cassian foi muito sábio. — Sibele estava com a voz trêmula e os olhos arregalados.
Kurt se parecia cada vez mais com uma montanha inconquistável. Representava o perigo silencioso de uma avalanche que começa aos poucos. Ao tocá-la, fazia com que se sentisse insegura. Com David, sempre se sentia protegida.
— Cassian tinha sua própria filosofia — disse, vendo que fazia cada vez mais revelações. — Ele dizia que o prazer é uma ilusão. É como arrancar uma flor antes de o botão desabrochar.
— Quem falou isso não era homem que deixasse de colher flores.
— Então, conhece essa poesia? Lê versos?
— Sim. Quase todos os alpinistas lêem. É relaxante e serve de inspiração. Já escrevi alguns poemas para o Jornal Alpino.
— Poemas?
— Sim, entre outras coisas. Acha tão espantoso?
— Acho incrível.
— Pensa que não observo o formato de um floco de neve nem a poesia dos silêncios no abismo? Será que não sou humano? Pareço assim tão terrível?
Segurou-a pelo pulso, com força. Sibele lembrou o que tinha sentido nos braços do irmão, há poucos minutos. Havia desejado continuar abraçada com Bruno. Mas agora, só pensava em se livrar da mão de Kurt.
Olhou-o, incerta. Será que era a arrogância dele que a incomodava? Ou seria o orgulho? O orgulho de um homem que só está realizado quando se encontra sozinho, nas montanhas.
— Está apaixonada por meu irmão?
— Como se atreve a perguntar isso?
O tom ríspido dele tinha sido como uma chicotada, Precisava se vingar.
— Eu seria uma tola em negar que gosto dele. O que não acontece com você. Ele não me vê como uma criança que precisa ser censurada; é encantador e age como um amigo.
— Foi o que notei.
— E nunca é irônico.
— Desculpe. Esqueci que as mulheres preferem os floreios, em lugar de frases diretas. Gostam de ser enganadas; assim, podem chorar, depois.
— Está me dando algum aviso?
— Se não é uma criança, então sabe o que está fazendo, indo encontrar, com meu irmão no bosque, deixando que ele brinque com você durante algumas horas.
Novamente, ela se sentiu chicoteada. Uma brincadeira! Ele chamava assim os encontros? Como se atrevia? Respirou fundo e o encarou. Era um olhar que não deixava dúvidas. Jamais concordaria em ter o mesmo tipo de brincadeira com ele.
— Você é um bruto! — Não conseguiu pensar em nada mais original, e ele a agarrou como se fosse uma boneca de pano.
— E você, uma tola!
Largou-a e desceu a escada. Lá embaixo, virou-se e disse:
— Pode descer, eu não a tocarei.
Ela hesitou, depois desceu, apressada, e passou por ele, batendo os saltos dos sapatos vermelhos.
— Amanhã à noite estaremos nas montanhas — Kurt murmurou. — Não está ansiosa, srta. Winters? Ou será que também tem medo do meu mundo?
— Seu mundo de castelos de neve e picos gelados? Creio que vou achar tudo muito frio e grandioso.
— Pode achar que é mais fascinante do que os castelos de pedra. — Ele caminhou até a janela que dava para o lago, onde a lua nova se refletia. Atraída pelo luar, Sibele se aproximou e viu o clarão se refletir também nos picos mais altos da montanha.
— Suas geleiras conseguem superar a beleza de um luar no lago? — ela perguntou, irônica.
— Sim, mas de um modo diferente. É algo mais grandioso. Este cenário diante de nós poderia servir apenas para uma opereta, mas, lá nas montanhas, é digno de uma obra de Wagner.
— Eu me divirto muito com as operetas.
— Diverte-se? Essa é uma palavra que não se aplica a Wagner. Com a música dele é uma questão de amor ou ódio.
Sibele olhou o luar, novamente surpresa com a cultura dele. Seu perfil era perfeito e parecia uma escultura de bronze. E tinha pensado em lhe dar um tapa!
Kurt virou-se e a encarou; estava com os olhos mais brilhantes do que nunca.
— Você é muito britânica e pode achar minhas palavras extravagantes.
— Posso, mas estou ansiosa para aprendê-las.
— Acredito que sim, quando não está me dando uma das suas lições. — Ele passou a mão no rosto, pensativo. — Tolstóí entendia as pessoas passionais. Ele dizia que, quando se ama, é preciso amar até a loucura. E, quando se ameaça, é preciso ameaçar com ferocidade. Se for preciso brigar, então a briga deve ir até o fim.
Fez uma pausa significativa. Um criado entrou para acender as luzes. Sibele sentia-se dominada pelo olhar de Kurt. As palavras dele se aplicavam às suas próprias ações. Quando amasse, certamente seria com a paixão do conquistador. A mesma que havia sentido ao escalar o Nanda Devi.
Logo em seguida, as outras pessoas chegaram.
Depois do jantar, ouviram um pouco de música. Tinham que dormir cedo, pois iam partir logo após o café da manhã, e se despediram alegremente.
— Parecemos conspiradores. — Maria riu, ao pé da escada. — Dá até a impressão de que cada um vai encontrar o desejo secreto de seu coração, lá no alto da montanha. Ou será que é excesso de imaginação minha?
Olhou para Bruno, que lhe sorriu.
— Você tem um coração grande demais e é muito romântica, Maria. Cada viagem parece oferecer um encontro empolgante. Não pensa assim, Sibele?
Bruno tinha pronunciado seu nome com uma doçura especial e ela sorriu, perturbada. Então, a lenha estalou na lareira e Sibele lembrou-se das músicas executadas por Trinka.
— É sempre bom esperar uma viagem — respondeu. — Algumas vezes, é o melhor de todo o programa.
— Pensa que ficará desapontada nas montanhas? — Bruno perguntou. O fogo da lareira se refletia em seus cabelos, deixando-os mais brilhantes e com um tom avermelhado.
— Ela espera ficar encantada — Kurt comentou. — Eu já avisei que ficará... só no princípio.
— Kurt está sempre me avisando de alguma coisa. — Sibele riu e evitou o olhar dele. — Nunca viajei num bondinho, e mal posso esperar que chegue amanhã.
— Vai gostar muito — o barão garantiu. — Mas lembre-se de ir bem agasalhada. Nós não somos como Kurt, que já tem resistência contra as regiões mais geladas.
— Sua mãe vai me emprestar um casaco. — Olhou nervosa para Trinka. — Espero que Kurt não se importe que eu use o casaco de pele de leopardo na neve, baronesa.
Kurt encarou-a, mas não disse nada. Trinka riu, como se soubesse de algum segredo do filho.
— Ele não vai querer vê-la enregelada, querida. E é uma vergonha aquele casaco tão lindo, guardado o tempo todo. Kurt, por favor, diga a Sibele que pode usar o casaco.
— Use, com a minha bênção. Nunca consegui escolher o presente certo para as mulheres, nem fazer o elogio que elas gostam.
Sibele sentiu-se confusa e só conseguiu murmurar um agradecimento. Maria olhou-a, com pena. como se fosse muito desagradável para uma moça ter que pedir um casaco emprestado.
— Vai levar seus esquis? — Kurt perguntou a Maria.
— Sim, claro. — Os dois ficaram conversando, enquanto o barão se afastava para fechar o castelo.
Sibele estava pronta, esperando perto do lago, quando Maria apareceu. As duas eram completamente opostas. Maria usava um casaco de peles moderno e caro e um tailleur de camurça verde que lhe dava um ar de caçadora.
— Os homens estão colocando a bagagem no carro. Eric vai naquele carro esporte amarelo. Você ainda não o conhece?
Sibele levantou a cabeça, sentindo-se estranha naquele casaco de peles exótico. O ar gelado fazia com que seu rosto corasse com facilidade.
— Pensei que fosse apenas uma garota inglesa comum, quando a vi — Maria disse, olhando-a atentamente. — Mas agora estou entendendo por que os homens ficam tão fascinados pelas moças do seu país. Vocês têm uma qualidade misteriosa, no rosto e no comportamento. Não se revelam ao primeiro olhar. Sabe que é realmente muito atraente, Sibele? Agora, tenho certeza de que é minha rival.
— Sua rival, Maria? — Sabia o que a outra queria dizer, mas resolveu se fingir de inocente. — Sabe que, nem neste casaco emprestado, chego aos pés da sua beleza.
— Ora, vamos! Sabe o que estou dizendo. — Maria deu uma risadinha. — Vê o lago, parecendo um espelho de gelo, refletindo tudo, mas não revelando nada? Nenhuma de nós duas sabe qual a preferida do barão.
Maria encarou Sibele, como se quisesse adivinhar seus pensamentos.
— Não é tão inocente — ela disse, num tom agudo. — Deve saber que vai chegar a hora de Bruno casar. Não sei qual de nós escolherá. Só pode casar com uma. Portanto, a outra vai sobrar. Está com medo de que seja você?
— Eu seria louca se sentisse medo disso. Não vim a Sete Lilases em busca de um marido. Vim apenas conhecer a baronesa e lecionar na escola, até poder voltar para o corpo de baile da ópera. Todos sabem que o barão gosta muito de você.
— Ele gostava, antes de você vir para cá. Agora, conversa demais com você e a olha constantemente. Sei que gosta de você, mas acho que é louca, se pensa que a pedirá em casamento. Os homens da família von Linden casam com mulheres de altas posições. Você é apenas uma bailarina para Bruno e Kurt.
— Sei disso. — Sibele sentiu uma dor do coração e lembrou que Kurt tinha dito a mesma coisa: uma brincadeira. — É bobagem ficar com ciúme, pois sabe que os dois irmãos estão apenas se divertindo com uma bailarina. Isso acontece há muito tempo. Há varias novelas e peças de teatro sobre essa situação.
— Mas você ê pobre. Seria bom se conseguisse casar com Bruno. Então, não teria que trabalhar. Acredito que seja um trabalho duro, dançar no corpo de baile.
— Eu acho agradável e, naturalmente, espero conseguir o solo.
— Mas todas as garotas querem amar e casar. Não finja. Mesmo que continue fingindo para Bruno, não finja para mim tentando mostrar que se dedica de corpo e alma só à dança. Seria quase como se transformar numa freira.
Sibele sorriu daquele comentário. Na verdade, não era uma vida muito diferente, mesmo. A maioria das grandes bailarinas levava uma vida bastante enclausurada, fora do teatro. Se amavam, era sempre de um modo impessoal. Toda sua paixão já tinha sido entregue à dança. Não acreditava muito na magia do romance e das coisas que as mulheres procuram num relacionamento com um homem, sem nunca encontrar.
— Estamos sempre dançando ao som de músicas excitantes. Não é igual à vida de uma freira.
— Não gosta de roupas bonitas? — Maria olhou de alto a baixo o casaco da outra. — A baronesa deve gostar muito de você, para lhe emprestar suas roupas. Claro que é porque salvou o bebê de Kristy. Ela sempre mimou muito a garota. Bruno avisava, mas a baronesa tinha sofrido tanto durante a guerra, que não queria para a filha adotiva nenhum momento triste. Foi muito irônico Kristy ter tido um final tão trágico. Parece obra do destino!
— A vida tem modos estranhos de nos apresentar para outras pessoas. Estou contente de ter conhecido a família von Linden, mas pretendo voltar ao meu mundo.
— Será que o destino a deixará voltar? — Depois de dizer isso, Maria virou-se e caminhou em direção a Kurt, que se aproximava.
Sibele, a baronesa, o bebê e Maria se acomodaram no carro de Bruno, enquanto Kurt preferia ir com Eric, seu amigo, no carro esporte amarelo.
— Vamos — a baronesa disse, animada e logo levaram um susto, ao verem o carrinho ao lado do Mercedes preto. — Kurt está dirigindo. Espero que tenha cuidado.
— Será que ele sabe o significado da palavra cuidado? — o barão perguntou. — Fique tranquila, querida, senão vai se desgastar com preocupações inúteis.
— É como se ele estivesse sendo possuído por um demônio, Bruno. Sei que esconde seus verdadeiros sentimentos por trás daquele sorriso irônico. Ele nunca foi o mesmo, depois daquela escalada trágica.
— Você ainda pensa nele como um bebê de olhos azuis, como os de Lorenz. — Bruno deu uma risada. — Minha querida, o bebê já desapareceu há muito tempo. Cresceu e virou urn homem. Talvez, um leãozinho. Pergunte a Maria, ou a Sibele. Vão lhe contar como ele está terrível, principalmente quando consegue ficar a sós com elas.
Trinka sorriu para Sibele, que não respondeu, achando melhor não discutir sobre Kurt.
Continuaram a viagem, admirando a paisagem. Mas, de repente, após fazer uma curva, o barão pisou violentamente nos freios e parou. Mais adiante estava o carro esporte amarelo, também parado. Kurt fumava um charuto, encostado na porta, e Eric olhava o motor.
Bruno baixou o vidro e murmurou algumas palavras em alemão. Kurt soltou uma baforada de fumaça.
— Não pode me culpar de o carro ter encalhado na neve. É muito baixo, e eu não poderia evitar o que aconteceu.
— É verdade. Não foi culpa dele — Eric afirmou.
— Bem, podemos nos apertar um pouquinho, e Eric virá conosco — a baronesa disse. — Kurt, você trouxe seus esquis?
— Sim, claro. — Colocou a bagagem no bagageiro do Mercedes. Eric se acomodou e, no momento em que o barão deu a partida, Sibele ouviu os estalos dos esquis sendo travados.
Kurt passou como uma bala ao lado do carro.
— Oh, não! — Trinka gritou, apavorada. — Por favor, tome cuidado! Ele é bem capaz de querer apostar corrida com o carro!
— Não, mamãe: ele chegará antes de nós. Vai usar os atalhos da montanha, que conhece desde criança. Com os esquis, não precisa ficar na estrada.
Depois de mais algumas horas de viagem, chegaram à estação do bondinho e se acomodaram enquanto os carregadores colocavam a bagagem na parte reservada para carga. Kurt já estava lá.
Em poucos minutos, o bondinho partia, subindo acima das árvores e penhascos. Sibele respirou fundo, tal era a beleza. Estavam suspensos no ar, e dali ela podia ver ao longe a cordilheira. Com seus picos apontados para o céu muito azul e sem nuvens. Ao longe surgiam vilarejos e riachos, e, logo abaixo um imenso penhasco pedregoso e gelado.
O bondinho entrou numa espécie de garagem, e as pessoas começaram a descer. Um grupo alegre de empregados do hotel se aproximou para retirar a bagagem.
Entraram num vestíbulo e logo foram conduzidos a uma sala de estar com uma imensa lareira acesa. Tudo parecia acolhedor e quente. O gerente do hotel se aproximou e convidou-os gentilmente a conhecerem seus quartos.
Sibele ficou encantada com o que lhe foi oferecido. As janelas davam para as montanhas cobertas de neve. Dali, podia apreciar o sol que se punha ao longe. Tinha apreciado o pôr-do-sol muitas vezes, em sua terra natal, mas nunca nas montanhas geladas. Na Cornualha, o mar sempre estava presente. Segurou-se na madeira da janela e procurou absorver toda aquele beleza. No quarto, os móveis eram todos pintados com motivos regionais, no tradicional estilo austríaco.
Ouviu que batiam na porta, e em seguida, a baronesa entrou.
— Você está pálida — Trinka disse, acariciando-lhe o rosto. — A altitude algumas vezes afeta os recém-chegados. Vou fechar sua janela, senão terá a sensação de que vai cair, se continuar olhando para os picos.
Fechou as janelas e acendou os abajures. Sibele sentiu-se mais segura.
— É muito gentil, baronesa.
— Pode me chamar de Trinka. Assim, eu me sinto mais jovem. Somos amigas, e ficarei contente se usar meu apelido. Responda-me: está contente de ter vindo? Não se arrependeu?
— Nenhum pouco... Trinka.
— Ninguém a magoou?
— Não...
— Pergunto, porque tenho dois filhos bem diferentes mas que atraem muito as mulheres. Bruno é experiente e tem muito charme. Kurt é complicado, e as mulheres gostam de mistério.
Trinka parou e observou um santo num oratório. — Acho que gosta mais de Bruno do que de Kurt. Mas, provavelmente, ele a fará sair de Sete Lilases mais cedo do que você planejou.
Poucos minutos depois, a baronesa deixava Sibele sozinha no quarto. A moça começou a se vestir para o jantar. Escolheu um suéter de mohair ouro velho, combinando com a saia de tweed e colocou no pescoço a correntinha que as tias lhe deram quando fez quinze anos.
Durante todo o tempo, lembrava das praias da Cornualha e de David. Dos momentos que passou com ele, pouco antes de sua morte.
Agora, sua estadia em Sete Lilases estava estranhamente ameaçada. Era como se pressentisse que algo ia acontecer, mudando completamente sua vida. Saiu para o corredor e tomou
o caminho da grande sala de estar.
— Vejo que é a primeira a descer — Eric disse, perto de uma das cortinas. — Venha ver os alpes, srta. Winters. Ah, está hesitante? Talvez sinta medo da proximidade deles.
— Nunca estive tão perto do pico de uma montanha. Ao vê-la da janela, senti o coração bater mais depressa. Mesmo na escuridão, os picos parecem brilhar. São lindos, mas de um modo frio. Não sei como pode amá-los.
— O amor de um homem por uma montanha é uma coisa mística, senhorita. Talvez seja artificial para uma mulher entender. Ela só nota os perigos, e a falta de conforto. Estou certo?
— Nunca temeu o dia em que sua sorte faltar? Em que escorregar ou for apanhado por uma avalanche?
— O perigo faz parte do jogo. Escalar uma montanha como o Himalaia é como se arriscar a conquistar uma mulher bonita, mas de temperamento imprevisível. Quem sabe se ela vai sorrir ou não? Quem sabe quando vai abrir os braços para um abraço ou para mostrar as garras? Sim, os alpinistas enfrentam grandes perigos, mas há a excitação o tempo todo. A promessa de se conquistar o inconquistável.
— Parece muita arrogância.
Ele sorriu, distraído.
— Eu a vi olhando, muito séria, para Kurt, quando ele partiu sozinho de esqui. Acha-o arrogante, não?
— E que mulher não acharia? Nós somos muito diferentes, Kurt e eu, um pensando que a profissão do outro não serve para nada. Ele poderia ser um médico... Ainda pode ser, se quiser continuar os estudos. Sr. Gerhardt, não pode convencê-lo a voltar para a faculdade? É o melhor amigo dele, e a baronesa
ficaria muito contente se Kurt parasse de arriscar a vida.
— Uma pessoa não pode dizer à outra o que fazer com sua vida. A decisão tem de ser dele. e espontânea. Se houver pressão, só se conseguirá tensão.
— Mas ele tem mãos firmes e muita concentração. Poderia ser um cirurgião de primeira. Parece um desperdício... — Ela estremeceu. — Ele já resolveu escalar a montanha que matou o namorado de Kristy. E se lhe acontecer algo?
— Sim, senhorita, e se lhe acontecer algo? Vai ficar muito triste?
Arregalou os olhos, sem entender como ele podia falar com tanta frieza. Kurt era seu amigo, já tinham feito muitas escaladas juntos.
— Você o culpa... pelo que aconteceu com Kristy? — Sibele perguntou.
— Não se pode impedir a marcha do destino — ele disse, baixinho. — Não, acho que Kurt não foi responsável pelo acidente nas montanhas. Conhecendo o alpinismo, sei que a morte pode chegar de várias maneiras. Para cada um de nós, há um momento do destino. O pior é quando ficamos sozinhos, sabendo que a felicidade tomou outro rumo. Não que Kristy não gostasse de mim. Ela gostava mais do rapaz que morreu, mas eu gostava dela. Teria sido o pai de seu bebê, se ela tivesse me procurado após a tragédia. Mas, preferiu fugir, quando Bruno a encontrou. Não quis voltar a Sete Lilases. Kurt também foi embora, esperando que assim ela voltasse para casa. Sabia o que a irmã sentia. Então, preferiu ficar matando o tempo, até que ela...
— Onde ele foi?
— Kurt?
— Sim. Onde ele foi?
— Foi para o Quênia. Lá as montanhas são altas e vermelhas. Depois explorou os vales do Himalaia, cheios de pássaros exóticos. Em seguida, entrou no Tibet, onde conhecei alguns monges. Só voltou quando Bruno mandou um telegrama, contando que Kristy havia morrido. Quando chegou, parecia mais velho, menos esportista e mais um homem de propósitos mais sérios. Nem eu, nem a baronesa, nem ninguém poder impedi-lo de fazer o que quer. Acho que no Tibet ele aprendeu algo muito profundo sobre si mesmo. Kurt não fala sobre assunto, mas acredita que encontrou lá o que estava procurando.
— Tibet — Sibele murmurou. — A terra dos sinos de prata e dos monastérios. — Lentamente, levou a mão ao coração e encarou o melhor amigo de Kurt. — Acredita que ele voltará para lá?
— Há uma chance. Kurt aprendeu a suportar o sofrimento desde criança, quando perdeu o pai. A lição permanece até hoje. Em várias pistas de esqui, como em St. Moritz, eu o vi em companhia de mulheres, mas sempre parece distraído e apenas amigo delas; não as transforma no repouso do guerreiro. No passado, senhorita, os campeões escolhiam a mulher mais bonita para um dia ou uma noite.
Ela sorriu, mas ele continuou, sério:
— Acredito que Kurt von Linden aceita os beijos das mulheres sem entregar o coração. Ele é duro e frio como as suas montanhas. Seu rosto lembra os das estátuas. Um homem de bronze.
— Fala como quem já decidiu não gostar dele. Talvez Kurt seja um desafio.
— Ele gosta de discutir comigo.
O rapaz riu; o resto da família entrou na sala, junto com Maria.
Durante o jantar, Sibele olhou para Kurt, que em vez de usar traje de noite comum aos homens de sua posição, tinha escolhido uma camisa xadrez, igual à dos lenhadores, e calça de
montaria.
Observou Bruno também e achou-o um tipo muito seno, profundo e concentrado.
As garçonetes se aproximaram para servir o vinho e uma delas, mais descuidada, deixou cair um pouco no vestido de Maria.
— Sua estúpida! Veja o que fez em meu vestido favorito.
— Calma, Maria. — Trinka pegou-a pelo braço. — Vamos subir, e poderá trocar de roupa.
— O hotel vai reembolsar o seu vestido — Bruno garantiu. Logo após as duas se retirarem, o gerente chegou,
oferecendo-se para pagar pelo vestido ou mandar limpá-lo imediatamente.
Ao voltar, Maria atirou a roupa para a garçonete e, sorrindo para Bruno, disse:
— Ela pode ficar com o vestido, se conseguir tirar a mancha. Eu já estava mesmo cansada dele.
— Não, obrigada, senhorita. — A garçonete devolveu a roupa, e Bruno sorriu, com ar de quem apreciava o orgulho da moça simples.
Após o jantar, Maria sentou-se aos pés do barão, junto do fogo. Procurou ser o mais gentil que podia. Afinal, tinha feito uma cena. Será que ele a perdoaria? Ficaram conversando, e logo riam alegremente.
Um músico veio entretê-los e um garoto dançou com guisos nas botas. Após mais alguns cálices de vinho, assaram castanhas na lareira e ficaram comentando sobre a viagem.
— Eu gostaria de saber onde cada um de nós estará, nesta época, daqui a um ano — Sibele disse.
— Quer mesmo saber o que esta noite revela para nós? — Eric perguntou, descascando uma castanha. — Eu prefiro receber o futuro de surpresa.
— Deve haver alguém entre nós que já sabe o que o futuro lhe reserva — Maria falou, olhando para Bruno.
Será que,ela se referia ao futuro dos dois?, Sibele pensou, sentindo-se corar. Mas, em vez de responder, Bruno encarou Sibele e acariciou a cabeça da outra, que estava sentada a seu lado.
Ele é cruel, ela pensou. Já devia ter percebido que se tratava de um homem acostumado a ter as mulheres que queria. Gostava delas. Apreciava sua beleza e a graça. O calor feminino. Jamais iria encará-las como algo além de um animalzinho de estimação.
Mesmo enquanto olhava para Sibele, ele continuava acariciando Maria. Bem, a outra era da Bavária, podia entendê-lo e aguentar melhor o que ele lhe fazia.
Sibele levantou e sentiu que alguém a segurava pelo braço. Virou-se e viu Kurt.
— Venha dar uma olhada nas montanhas. Não precisa ter medo delas.
— Não quero — disse, zangada.
— Mas eu quero. — Puxou-a sem cerimônia, levando-a para um terraço, de onde saía um caminho estreito em direção a um dos picos.
— Vamos dar um passeio.
Ela estava de botas e colocou apenas o gorro e as luvas.
— Por que não vamos todos juntos ver as montanhas ao luar? — Os outros já as viram antes e eu não me canso delas. Vou adorar essas montanhas até a eternidade.
Então, como se estivesse arrependido de lhe haver contado um segredo, ele a puxou para o caminho estreito que tinha de um lado o paredão da montanha e do outro, um abismo profundo.
Pararam em uma curva, onde o caminho se alargava numa espécie de mirante. Kurt se abaixou, pegou um punhado de neve, fez uma bola e jogou no vazio.
De repente Sibele começou a se sentir muito feliz. Dando uma gargalhada, ela também se abaixou, fez uma bola de neve e atirou nele. Seus cabelos se soltaram do gorro e ela se sentiu mais viva e alegre do que nunca.
Estava agradecida por Kurt lhe proporcionar aquela paisagem e o encarou dentro dos olhos, como se já não o temesse mais.
— Está contente em ter vindo? — ele perguntou.
— Passar o fim de semana aqui? Ou fazer essa batalha de neve?
Talvez ainda sentisse algum temor por estar sozinha com ele, ali ao luar. As estrelas pareciam flocos luminosos de neve e Sibele sentiu que algo pousava em seu rosto. Tinha começado a nevar novamente.
Por todo fado, os cristais de neve brilhavam ao luar. Podia ouvir o vento soprando entre os picos, e sentia que Kurt fazia parte daquela paisagem. Agora percebia que o conhecia melhor do que ninguém. Podia bater nele, magoá-lo e até odiá-lo. Não precisava ser sempre educada, quando estava com Kurt. Não tinha importância se seus cabelos não estavam arrumados ou se não tinha passado batom. Podia dizer a ele o que lhe viesse à cabeça. Kurt era como as montanhas: natural e sem falsidades.
— Vamos voltar! — Virou-se e começou a correr pelo caminho. Ouviu os passos dele a seguindo e aumentou a velocidade.
Queria fugir dele, ao mesmo tempo sonhava em ficar em seus braços. Queria que a pegasse... mas não podia, não devia.
Em pânico, correu mais, vendo a curva da montanha se aproximar e ouviu-o gritando seu nome. Ò som ecoou pelas montanhas e ela ouviu outro ruído.
Era um ruído horrível, como um trovão subterrâneo, aumentando cada vez mais. Quando levantou os olhos, foi apanhada por uma imensa cortina de neve que caiu rugindo sobre ela.
— Sibele!
Sentiu que Kurt se atirava sobre seu corpo, segundos antes da. neve desabar. E a avalanche começou a cair pela montanha, numa imensa cachoeira que levou vários minutos para terminar.
Então, não se ouviu mais nenhum barulho. Apenas, o silêncio total.
Kurt conseguiu libertar um braço; depois abriu mais espaço, levantou e tirou a neve dos cabelos. Ajudou Sibele a sair pela abertura e limpou o rosto dela.
— Está se sentindo bem? — perguntou, esfregando suas mãos.
— Acho que não consigo ficar de pé. Oh, meu tornozelo! — Caiu de encontro a ele, gemendo de dor. — É o mesmo que machuquei antes, no incêndio em Viena. Acho que o torci outra vez.
— Deixe-me ver. — Kurt ajoelhou-se na neve e tirou a bota dela. Sibele gemeu, enquanto ele lhe massageava o tornozelo. — Sim, deve ter torcido quando caiu debaixo da neve. Está doendo muito?
Ela piscou, procurando controlar as lágrimas. A avalanche a amedrontara e agora o barulho do vento soprando, acompanhado da neve que caía sem parar... a Lua se escondendo atrás de uma nuvem e Kurt ali aos seus pés... tudo parecia tão fantástico!
— Se tentar andar com esse tornozelo machucado, pode Piorar mais ainda. Vou carregá-la.
— Todo o caminho?
Deviam estar a mais de um quilómetro do hotel, e a cada minuto a neve caía com mais força, mais depressa, Escurecendo tudo ao redor e apagando os rastros que haviam deixado.
Sentiu a força dos braços musculosos de Kurt quando ele a levantou e apertou-a de encontro ao peito, procurando protegê-la da tempestade.
— Terá que confiar em meus músculos — murmurou.
— Parece que vai cair uma nevasca, nós podemos nos perder...
— Podemos, mesmo.
Ele começou a caminhar pela neve, com a cabeça baixa apertando-a nos braços para não deixar que o vento a atingisse.
Seus pés batiam na neve num som abafado, e ela ouvia pedrinhas rolando pelo abismo.
A mudança no clima tinha sido tão brusca, que toda a paisagem, calma há poucos momentos, agora parecia ameaçadora. Era como se estivessem sendo punidos por terem quebrado o silêncio com suas risadas e gritos.
Mas será que tinham mesmo rido há poucos minutos? Lutando contra a neve e o vento, Kurt parecia mais sério do que nunca, numa batalha infernal para chegar ao hotel, antes da nevasca piorar.
Imaginou que ele estaria pensando e tentou ver seu rosto, mas a expressão era impenetrável.
— Espero não ser muito pesada — gritou, procurando superar o ruído do vento. — Deve ser difícil caminhar comigo nos braços. .
— Em Katmandu, certa vez, carreguei um guia durante toda a descida da montanha. Ele tinha quebrado o joelho num tombo Aquela descida foi realmente das mais difíceis. Você é leve Precisa ser leve para ser bailarina, não?
— Sim. Você já me parece ter um corpo bem mais resistente. Ele riu, e foi como se os deuses da neve ficassem mais
furiosos. A nevasca piorou. Ficou aterradora. Sibele tevê medo, pois já deviam ter chegado no hotel. Já deviam estar vendo os lampiões da fachada. Em vez disso, pareciam completamente perdidos. Podiam estar em Katmandu ou em qualquer outro lugar do mundo.
De repente, Kurt parou e olhou adiante, fixamente. Depois sacudiu a cabeça, e a neve se desprendeu dos seus cabelos.
— Acho que estou vendo algo. Sim, parece o telhado de um
chalé.
— Mas o hotel...
— Se estivermos perto, o pessoal do chalé nos mostrará o caminho.
Caminhou para o local, e Sibele sentiu-se aliviada. Nem uma luz atravessava a neve. Quanto mais se aproximavam daquela sombra, maior era a certeza de estarem perto de um chalé alpino. As paredes de madeira estavam grossas de neve e as janelas quase haviam desaparecido. Parecia uma casinha completamente abandonada.
Sentiu que Kurt a apertava com mais força.
— Agora sei onde estamos — ele disse. — Caminhamos em sentido contrário ao do hotel. Este lugar, senhorita, é um abrigo de caçadores.
— Oh, não! — Parecia uma brincadeira do destino. — Não podemos achar o caminho para o hotel?
— Não na tempestade de neve. Parece que teremos que passar a noite juntos. Os caçadores devem ter deixado lenha, comida, pele e querosene para o fogão. Será melhor ficarmos aqui do que andarmos por aí. Podemos cair em algum abismo, se eu ficar cansado e desmaiar. As coisas serão piores do que passar a noite sozinha comigo.
— Todos vão ficar preocupados, no hotel.
— Eu já me perdi nas montanhas, outras vezes — ele comentou, irónico. — Mas sei o que quer dizer. Meu irmão não a olhará do mesmo modo, depois que passar a noite comigo. É nele que está pensando?
— Não. Há sua mãe. Ela ficará preocupada. Mas sei que não tem consideração para com as preocupações dos que o amam. Vê o amor como uma bobagem. Só quer fazer o que bem entende. Só pensa no seu próprio prazer.
— Não é nenhum prazer ficar aqui, de pé, com a neve caindo no meu pescoço. Segure-se enquanto abro a porta.
Ela ouviu o som da neve sendo deslocada e ele abriu a porta com o pé. A escuridão lá dentro era total.
— Há uma caixa de fósforos no meu bolso direito. Pode
pegar e acender um?
Sibele enfiou a mão no bolso dele, enquanto a neve do telhado despencava sobre os dois. Kurt entrou no escuro, fechou a porta, e ela percebeu que estava sendo carregada para um lugar primitivo, por um homem que tinha levado uma vida primitiva em várias partes do mundo.
Sentiu que havia vários objetos no bolso dele e seus dedos devem ter encostado numa espécie de despertador, pois ouviram; o som de uma campainha.
— Sei que as garotinhas gostam de brincar com os bolsos dos adultos — ele disse —, mas, por favor, faça isso depois. Agora, precisamos dos fósforos.
— Eu não estou brincando. Vocês, homens, carregam tantas coisas nos bolsos... Ah, achei!
Sibele acendeu um fósforo e logo a chama se apagou. Mas foi o suficiente para revelar que tinham um abrigo. Em seguida, acendeu mais cinco fósforos, até conseguirem acender um lampião. Então Kurt parou, com ela nos braços, e ficou observando o local.
— Gostaria que me colocasse no chão. Acho que já estou melhor.
Ele a encarou, e seu olhar pareceu diabólico à luz do lampião.
— Agora, está isolada num abrigo de caçadores. — Olhou-a de alto a baixo e limpou a neve que tinha se acumulado na gola do casaco. — Este lugar parece com as casas do Tibet. Fui convidado para ficar em uma delas. Tashi, o guia de quem lhe falei, queria dividir tudo comigo. Insistiu para que eu aceitasse sua mula ou sua irmã mais nova.
— E o que aceitou? — Sibele encarou-o, esperando que não, percebesse o quanto tremia. Estava assustada, primeiro porque sentia dor no tornozelo, e, segundo, porque se encontrava isolada na neve com Kurt von Linden. Ele riu, e ela sentiu mais medo ainda.
— A mula, e foi muito útil para carregar minha bagagem nas escarpas da montanha Kali Gandaki, um lugar fascinante que eu sempre sonhei em visitar.
— Vai voltar ao Tibet?
— Sim. Quero rever os amigos que fiz lá. Havia um sábio monge e Tashi, que ficou com lágrimas nos olhos, quando parti. Pode imaginar alguém chorando por vê-la indo embora?
— Por favor, Kurt...
— Vamos, você pensa que sou duro como uma pedra.
— Nem sempre.
— Mesmo? — O olhar dele brilhou. — Não me trate bem, senhorita. Não nesta noite que vamos passar juntos. Naquela vez, eu aceitei uma mula de presente, em vez de uma namorada, mas sinto prazer em olhar um rosto bonito e apertar nos braços um corpo bem-feito.
— Kurt...
— Você fala o meu nome como se ele a ofendesse.
— Eu... estou com frio. Não podemos acender um fogo? Imediatamente, ele começou a procurar a lenha e perguntou:
— Como está o tornozelo?
— Melhor.
— Sibele —murmurou o nome baixinho —, você parece tão pálida, que eu diria ter sobrevivido a um terremoto.
— Estou pálida porque sinto frio.
— Me dê os fósforos, e teremos um fogo dentro de dez
minutos.
Acendeu a lareira e logo a chama crepitava dentro do abrigo. Lá fora, o vento parecia um acompanhamento da sinfonia de Brahms que ele assobiava distraído. Sibele foi olhar dentro de um armário, acima do fogão e estremeceu ao ver uma aranha caminhar sobre sua mão, se afastando das latas de sopa.
— Podemos tomar uma sopa. Você tem, um daqueles canivetes de escoteiro, que tira rolhas e abre latas? Poderemos esquentar umas latas de sopa e torná-las nas canequinhas.
Ele se aproximou e lhe estendeu um punhal que não parecia em nada com canivete de escoteiro. Depois, pegou o fósforo e avisou:
— Fique longe, enquanto acendo o fogão.
Houve uma pequena explosão e logo no fogão a querosene surgia uma chama alta, parecendo ir até as mãos dele.
— Kurt, tenha cuidado!
Virou-se e olhou para ela, curioso, mas o olhar mudou, assim que notou sua preocupação.
— Está pensando na noite do incêndio?
— Sim. O fogo é terrível, quando está fora de controle.
— Como uma avalanche que despenca de algum lugar e deixa a desgraça por onde passa. Mas não vamos ficar tristes. Temos um abrigo seguro e podemos fazer um café. Não é sempre que duas pessoas perdidas na neve conseguem isso.
— Não temos água para o cate.
— Estamos rodeados de neve. Ele sorriu docemente. — É só sair e encher uma panela. Quando a água esquentar, podemos bebê-la. Veja, temos até leite em pó. Agora, vou buscar um pouco de gelo.
Ele saiu com algumas panelas e canecas. Sibele ficou por uns instantes perto da lareira e depois abriu novamente o armário e viu que, além do leite em pó, havia geléias e um pote cheio de farinha. Se encontrasse uma frigideira... Viu a aranha se afastando para outro canto e não sentiu medo. Sabia que ela também estava apavorada com a invasão de seus domínios. Afinal, não era nenhum monstro e não poderia lhe causar mal.
Encontrou a frigideira, que tinha no fundo um pouco de -gordura. Começou a imaginar panquecas cheirosas, com geléias. Sim, seria fácil, agora que tinha leite em pó e farinha. Num outro pote, encontrou manteiga, chocolate e uma lata de sardinhas.
Levou tudo para a mesa e percebeu que Kurt já estava ausente há uns dez minutos.
Tudo parecia quieto demais lá fora. Sibele ficou nervosa.
Ouviu o vento contra as paredes e lembrou do que ele havia dito sobre o perigo de caminhar na tempestade e cair em abismos.
Eram armadilhas que esperavam os incautos nas escarpas, e só bastava um passo em falso:
— Kurt! — Abriu a porta e o vento a empurrou para dentro novamente, soprando-lhe os cabelos violentamente. Não conseguia ver nada: apenas a neve.
A noite parecia escura demais, e o nome Kurt ecoou ao longe. Chamou novamente.
— Kurt! Onde você está? Oh, por favor, não se perca nem se machuque...
Agarrou-se à porta, procurando não deixar o vento jogá-la longe. A neve caía em todas as direções e o abrigo de troncos parecia prestes a desabar, sob tanto peso.
Será que tinha ouvido vozes? Talvez fossem os fantasmas daqueles que haviam morrido nas montanhas. Sentiu lágrimas nos olhos e uma angústia enorme. Devia ter sido a mesma angústia que Kurt sentiu ao ver o namorado da irmã caindo, a corda cortada, salvando-o de morrer também.
Quase fora de si, ela procurou e chamou. Talvez ele já tivesse caído. E, no final, não haveria nada que lhe indicasse em qual dos abismos desaparecera. Era como se nada lhe desse nenhuma esperança.
Sibele saiu, sem se importar com a tempestade. Deu dois passos, tropeçou e caiu, gritando. Levantou e tentou caminhar novamente, quase sem fôlego. Parecia um fantasma na neve. Apesar de saber que estava fazendo uma loucura, que devia permanecer no abrigo, em segurança, sentia que algo muito forte a atraía. Algo mais forte do que o medo de morrer.
— Kurt! Onde você está? Kurt, eu morro, se você não voltar! Torceu novamente o tornozelo e, angustiada de tanta dor,
caiu gritando outra vez o nome dele. Mas não teve nenhuma resposta. Apenas a neve caindo... caindo... até que não acordasse mais. Não haveria mais balé. Sua carreira havia acabado, a cortina baixava, e sabia que talvez não visse mais aquele homem que não se atrevia a amar porque seu amor sempre parecia magoar as pessoas amadas.
— Sibele! — Ele a agarrou com força, fazendo com que acordasse daquele pesadelo.
— Kurt?
— Sua maluca! — Pegou-a nos braços e carregou-a novamente para o abrigo. Chutou a porta, e ela ficou ofuscada pela luz do lampião, sem conseguir focalizar a vista.
Kurt estava furioso.
— O que você estava fazendo lá fora? Podia ter se perdido, sabia? Tudo podia ter acontecido...
— Eu pensei que você tivesse sumido. Tinha saído há tanto tempo...
— Resolvi trazer um lenço cheio de neve para fazer compressas no seu tornozelo. E tive que encher bem as panelas, para termos bastante água.
Alisou os cabelos dela, e seus olhares se encontraram.
— Por que me seguiu? — Kurt quis saber. — Estava com medo de ficar sozinha... ou preocupada comigo?
— As duas coisas.
— Ouvi você gritar.
— Torci o tornozelo novamente.
— Acho que esse tornozelo ficou fraco. — Levou-a para uma cama e fez com que se deitasse. — Espere aqui e não se mexa.
Kurt saiu e voltou logo em seguida com a panela e as canecas cheias de neve. Depois preparou uma compressa e tirou a bota dela. Enrolou a meia e aplicou o lenço com neve sobre o tornozelo.
— Isso vai aliviar a dor. Descanse, vou preparar alguma coisa para comermos.
— Eu... eu ia fazer panquecas — disse, rouca. — Encontrei leite em pó e farinha.
— Se gosta de panquecas, vamos ter. — Ele sorriu, e Sibele viu que não parecia mais tão zangado. Curvou-se sobre ela e desabotoou seu casaco de peles, afastando-o para os ombros.
Estava tão próximo, que sentiu seu hálito no rosto.
— Seus olhos parecem estar implorando algo. Será que quer que eu seja um homem gentil e encoste sua cabeça no meu ombro, convidando-a a chorar? As lágrimas não vão me derreter, nem ajudá-la. Você tem que resistir, e o melhor agora é tomar algo quente. Descanse e não mexa nesse tornozelo. Vou fazer comida.
Afastou-se e colocou seu casaco junto com o dela nas costas de uma cadeira, diante do fogão, para secar.
A chama do fogão de querosene era azulada. Enquanto Sibele esfregava o tornozelo, Kurt lavou a frigideira na neve.
— Vai ser Uma noite gelada — ele disse. — Precisamos agradecer aos santos que colocaram esse abrigo em nosso caminho. O que vai querer? Panquecas doces ou salgadas?
— Doces. Com geléia, por favor.
— A vida é engraçada. Quem diria que você e eu íamos estar juntos esta noite, por um capricho da natureza, comendo panquecas feitas com neve? Agora, tem uma boa história para contar aos seus netos.
— Meus netos serão apenas as minhas sapatilhas de balé — ela brincou.
Ele parou de servir o café, depois de guardar a sopa para mais tarde. Observou o tornozelo que ela havia torcido em Viena e, agora, na tempestade de neve.
— Você parece o tipo de garota que gostaria de ter uma família. Gosta do pequeno Lorenz, não? Não pretende ficar tendo apenas casos de amor, não?
Ela corou violentamente.
— Acha que estou tendo um caso de amor com seu irmão?
— Acha isso? — Ele lhe trouxe uma caneca com café quente. Sentiu-se tão reanimada que quase o perdoou pelo tom arrogante da pergunta.
— Obrigada! Pelo café!
— Verá que é impossível viver sem amor — Kurt disse, encostando-se perto da lareira.
— Você conseguiu. Tem seus casos sem entregar o coração. Eu prefiro ficar sozinha, ou então terei que estar loucamente apaixonada.
— A maioria das mulheres tem que estar loucamente apaixonada antes de se entregar.
— Será que os homens são menos sensíveis?
— Eles têm menos a perder. Veja o meu irmão, por exemplo. Admiro o tino dele para negócios. Bruno cuida muito bem de Trinka. Mas ele sempre foi um homem muito apreciado pelas mulheres. E elas sempre o perdoaram por ser... como posso lhe dizer isso?... por agir como dono delas. Bruno sempre gostou de um rosto bonito, mas acho que, depois desta noite, não brincará mais com você.
Ela o encarou e empalideceu.
— O que quer dizer com... depois desta noite?
— Ora vamos! Tenho que lhe dizer tudo?
— Quer dizer que as pessoas vão pensar que você e eu... Ah, não!
— Desculpe, senhorita. — Ele sorriu, irónico. — Sei que não sou o von Linden com quem gostaria de passar a noite, isolada num abrigo de caçadores. Mas os outros vão pensar que sou. Sabe, conheço muito bem as montanhas para me perder nelas. E estou muito acostumado com o clima daqui para não prever a chegada de uma tempestade.
— Então, preparou tudo para que eu ficasse isolada com você?
— Foi o único modo de salvá-la. De evitar que fizesse algo de que ia se arrepender depois. Meu irmão já resolveu, há muitos anos, casar com a filha do sócio. E eu percebi que você estava encantada com ele.
— Então, pretende me seduzir? — Olhou-o com um imenso desprezo. — Sei que com o tornozelo torcido e com essa tempestade de neve, não poderei correr de você.
— Fique calma. Vou lhe dar panquecas, não meus beijos odiosos. Sabe, senhorita, um dia, vai lembrar de mim com
gratidão.
— Por ter me trazido aqui?
— Sim.
Kurt começou a assobiar uma canção de ninar e terminou de preparar as panquecas. Sibele observou-o e viu que tinha mãos muito ágeis e fortes.
— Agora, vou ter uma reputação duvidosa — ela gemeu. — Vou entrar para a lista das suas conquistas. Que deve ser quilométrica.
— Talvez meio quilômetro. Ainda não ganhei nenhuma medalha de ouro pelas minhas conquistas. — Virou uma panqueca distraído. — Talvez eu me sinta feliz, daqui a alguns anos, por ter ajudado a dar uma grande bailarina ao mundo. Talvez, um dia, eu vá a Londres vê-la dançar. Vou lhe mandar flores. Quando receber um buquê de edelweiss saberá que é meu.
— Não irá me ver nos bastidores?
— Não. Quero que lembre de mim como o homem com quem gostava de brigar. Se nos encontrarmos outra vez, talvez nos comportemos como estranhos educados.
— Isso seria difícil. — Sorriu e desviou o olhar. Agora, sentia vontade de chorar diante da possibilidade de não ver Kurt. Era arrogante, irritante, impossível, mas era também gentil, de um modo muito especial. Só dele. Tinha se atrevido a censurá-la e a tomar uma atitude, em vez de vê-la cair vítima do charme do irmão. De repente, nem sabia mais por que havia gostado de Bruno. Tudo que ele lhe oferecia era amizade e alguns elogios.
— É tudo tão ridículo! Você não tinha que me raptar para evitar que eu perdesse a cabeça , com o seu irmão. Nunca
pretendi fazer isso. Sabe que exagerou? Criou uma situação emocional, baseado em muito pouco. Você me viu como uma dançarina tola prestes a se entregar. Foi muita gentileza sua, . salvar minha honra... mas estou em perigo... de perdê-la com você.
— Já disse que não vou tocá-la.
— Você me toca cada vez que me olha!
Será que tinha mesmo dito aquilo em voz alta? Ou era apenas imaginação? Ele parecia ter se transformado numa rocha, com o queixo erguido e os olhos quase fechados.
— Coma as panquecas, enquanto estão quentes.
— Não me trate feito criança! E não me olhe assim! Não sou nenhuma colegial ingênua.
— Não vou me atrever a tratá-la como mulher, pois podemos nos transformar em amantes de uma noite. Não há futuro para nós. Nenhuma capela, nem alianças... nem agora, nem nunca. Está me ouvindo?
— Muito bem, Kurt. Como o eco da Torre de Vidro, o eco da culpa e da punição que quer impor a si mesmo por ter levado o namorado de Kristy até lá. De agora em diante, vamos nos amar à distância. Você, no Tibet, e eu, em Londres.
— Não fale em me amar. — ele disse, ríspido. — Não aguentei vê-la se transformar na amante do meu irmão, mas não posso pedir que seja minha esposa.
— E se eu pedir que seja meu marido?
— Eu nunca vou casar, senhorita. Espero que um dia encontre outro homem como David Cassian.
— Acho que já o encontrei. Ele é galante o suficiente para raptar uma garota, salvando-a de um barão. Meu Kurt maluco, as chances são de que, quando a manhã chegar e voltarmos para o hotel, seu irmão exija que você me transforme numa mulher honesta. — Sorriu e estendeu a mão para ele. — Estou avisando que vou fazer chantagem com você. Vou deixar que todos acreditem que fizemos amor a noite inteira, no abrigo de caçadores.
— Seus olhos vão trair você. São puros e inocentes, e não pretendo estragar essa inocência.
— Acho que nunca fará nada que me magoe, Kurt, mas, se me mandar embora, ficarei muito infeliz. Meu querido! — Aproximou-se e acariciou o rosto dele. — Não pode punir a si mesmo para sempre. Ainda mais porque, agora, está punindo a mim também. Pensei que nunca mais sentiria essa excitação, essa alegria de viver, depois que Cassian morreu. Mas; mesmo com ele, minhas emoções não eram tão intensas. Não sentia a mesma expectativa que senti nas manhãs que passei no castelo.
Olhou para ele, esperançosa, mas percebeu que Kurt baixava os olhos.
— Cassian me ensinou a dançar. Mas você, meu querido, me ensinou a amar.
— Não diga. Não acredite nisso. Como todos os sonhos, esse também vai desaparecer.
— Acredita mesmo?
— Tenho que acreditar.
— Não quero que meu amor por você desapareça, Kurt. Se temos que nos separar, vou continuar a amá-lo e ficarei atormentada com isso. — Agora estava com os olhos cheios de lágrimas. — Sei que farei o que você decidir, mas deixe-me dizer uma coisa: você pode ser um ótimo médico e eu posso desistir do meu sonho de ser uma grande bailarina. Não quer continuar seus estudos? Poderia fazer o bem, para compensar o que aconteceu com Helmut e Kristy.
— Está virando minha vida pelo avesso! — De repente, ele a agarrou e mergulhou nos olhos dela. — Por que veio a Sete Lilases? Todos os meus planos foram perturbados, quando a vi na estação, olhando para mim e para as montanhas como se fôssemos igualmente perigosos. Queria que voltasse a Viena, mas também queria colocá-la no trenó e levá-la para um passeio na neve. Sibele, por que tivemos de nos encontrar tão tarde?
— Você é teimoso! — Ela se afastou. — Está tendo a chance de fazer algo construtivo com sua vida, mas prefere sacrificá-la aos deuses cruéis das montanhas. Foram eles que mataram Helmut; não você.
— Sempre achei Helmut fraco e indeciso. Pensava que não era suficientemente bom para Kristy. Eu o desafiei para aquela escalada. Se tivesse cortado a corda, não seria tão culpado.
— E vai resolver alguma coisa você sacrificar o seu futuro? Eu não penso assim, Kurt. Acho que uma dívida deve ser paga com trabalho e amor.
— Podemos amar, mas nem sempre tornamos felizes aqueles que amamos.
— Podemos tentar, Kurt. Sabemos que não haverá felicidade verdadeira, se nos separarmos. Só de pensar nisso, meu coração fica gelado.
— Venha para perto do fogo. — Ele a tomou nos braços e a levou para junto da lareira. — Você tem um olhar corajoso, Sibele, e é a primeira vez que vejo lágrimas. Chora por mim?
— Por nós dois. — Acariciou-o nas têmporas. — Está com cabelos brancos aqui, Kurt. Pense como ficará distinto. O famoso dr. Kurt von Linden, cujas mãos salvam tantas vidas...
— Pare de me seduzir.
— Só há um modo de me impedir de dizer que o amo, preciso de você e quero lhe entregar meu coração e toda força que tenho. Não, Kurt, há dois modos. Pode me beijar ou me matar.
— Querida! Querida! — Os lábios dele se aproximaram. — Eu morreria por você.
— Prefiro que viva para mim. —.Abraçou-o com força e sentiu as batidas do coração dele. Aquele coração que continuaria sofrendo, até ele escalar a Torre de Vidro e dizer adeus aos seus fantasmas.
— Para quando marcou a escalada?
— Daqui a uma semana.
— Vai voltar para mim, Kurt?
— Sim, minha querida. — Sorriu e mergulhou os olhos nos dela. — Preciso transformá-la em uma mulher honesta, lembra?
Sibele sorriu e o abraçou com mais força, enquanto a luz da lareira iluminava o chalé. O vento tinha parado e tudo parecia calmo e puro. A Lua surgia atrás das nuvens, prateando as geleiras perigosas.
Violet Winspear
O melhor da literatura para todos os gostos e idades