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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O LEÃO NEGRO / Jude Deveraux
O LEÃO NEGRO / Jude Deveraux

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Misteriosamente belo, imensamente rico, o audaz conquistador inglês, era conhecido como Leão Negro por sua ferocidade de leão. Ninguém podia competir com ele, até que enfrentou a Lyonene, uma beleza de olhos verdes cujo espírito fogoso igualava ao dele.
Lyonene suportou inumeráveis perigos para estar ao seu lado, até que um dia as mentiras maliciosas a conduziram para um grave perigo. Somente Leão Negro tinha a coragem para destruir a conspiração implacável que os tinha separado e que tinha ameaçado os laços de amor que tinham jurado não romper jamais.
As chamas da paixão...
Com um poderoso movimento, o homem rasgou o lençol que a cobria e, sem querer, emitiu um gemido ao vê-la, mais encantadora do que poderia imaginar.
Lyonene viu sua expressão, e a fúria se converteu em medo, já que viu o rosto do Leão Negro, um rosto que tinha obrigado a homens robustos a se ajoelhar e se render. Não tinha acreditado que pudesse ter um olhar tão assustador, um olhar que agora se dirigia para ela. Instintivamente, tratou de se cobrir quando ele rasgou o lençol.

 


 


Capítulo 01

Lyonene ouviu os passos fortes de Lucy na escada de pedra e se aconchegou sob o grosso cobertor. Os ventos de janeiro assobiavam no exterior da velha torre e rajadas de vento gelado penetravam pelas venezianas de madeira, mas sua cama estava quente e tinha a intenção de ficar nela o máximo possível.

—Lady Lyonene. — Lucy abriu o cortinado da cama.

Lucy, agora, era uma mulher velha e estava muito gorda. Tinha cuidado de Lyonene desde que nasceu e gostava dela como a uma mãe.

— Sua mãe quer que vista a túnica dourada, a capa e o manto verde.

Lyonene, que tinha virado para a luz com certa má vontade, olhava agora Lucy com interesse.

— O manto e a capa verde?

— Chegou um convidado, um convidado muito importante, e têm que vestir os seus melhores trajes para realizar a apresentação.

Lyonene afastou a roupa de cama e colocou um pé no chão de carvalho. As venezianas estavam muito bem fechadas devido ao frio invernal e a única luz provinha da pequena lareira e da vela de sebo situada no alto candelabro junto à cama. O suave brilho destacava todas as curvas de seu jovem e esbelto corpo. Lucy ajudou sua senhora a colocar a anágua de linho e a justa túnica de lã que ressaltava seu esbelto corpo de mulher. A capa, aberta nos lados, não cobria nada.

— Conhece o convidado? Trata-se de um amigo de meu pai?

—Não, senhora. — Lucy rodeou o cinto de couro ao redor da estreita cintura de Lyonene. — É um conde, um homem jovem que seu pai ainda não tinha conhecido.

Lyonene se deteve e olhou fixamente sua criada.

— É bonito? É um conde jovem e bonito, tem o cabelo claro e monta um garanhão branco? — Brincou Lyonene.

— Isso você verá no seu devido tempo. Agora, pegue o pente para que possa desembaraçar o seu cabelo.

Lyonene obedeceu enquanto insistia:

— Me conte algo mais sobre ele. De que cor tem os olhos? E seu cabelo?

— Negro muito negro. Tão negro como os olhos do diabo.

As duas mulheres levantaram a vista quando Gressy e Meg entraram no pequeno quarto carregando lençóis de linho limpos. Falou Gressy, a mais velha das duas:

—O conde chegou. Não é qualquer conde do rei, trata-se do grande Leão Negro em pessoa.

— É verdade que é negro. — Acrescentou Meg.

— Tem os olhos e os cabelos negros como satã. Inclusive seu cavalo é completamente negro. — Remarcou Gressy.

Lyonene olhou para elas com uma expressão de horror. Tinha ouvido todo tipo de histórias sobre o Leão Negro desde que era uma menina, histórias de força e coragem. Mas cada uma delas sempre estava pintada de um toque de maldade; acaso sua força provinha de algum poder maligno.

— Estão seguras de que se trata do Leão Negro e não de outro? — perguntou em voz baixa.

— Nenhum outro homem poderia ter um olhar como o seu. Juro que me deu um arrepio só de ficar perto dele. — Gressy olhou para sua senhora intensamente.

Lucy deu um passo adiante e exclamou:

— Basta de dizerem tolices! Vão assustar a pobre menina. Continuem com seu trabalho, eu tenho que ir ver lady Melite. — penteou um pouco mais Lyonene e fixou o arranjo de seda transparente com uma fita dourada. — Agora não se mova, e sobre tudo não se despenteie. — Se deteve um momento frente à porta, apontando severamente para Meg e Gressy. — E basta de fofocas. Se cabelo negro fosse coisa do demônio, muitos de nós sentiríamos um enorme pavor no dia do Julgamento Final.

Lucy suspirou e afastou uma pequena mecha grisalha que aparecia na têmpora, entre a touca e o queixo, e o véu que caía e que chegava até os ombros. Lucy acreditava que seus cachos tinham, ainda, a cor negra fuligem de sua juventude.

Quando a porta fechou, Lyonene se acomodou no banco de pedra junto à janela e sussurrou:

— Me fale mais sobre ele.

— É muito grande...

— Forte... — Interrompeu Meg, que diante do olhar de Gressy foi obedientemente para um lado da cama de Lyonene para pegar o lençol.

— Onde estávamos? — continuou Gressy, virando para Lyonene e se sentindo segura de si diante seu público.

Um dia Lyonene seria proprietária de seu próprio castelo, mas por enquanto, havia uma área em que Gressy era superior a ela, e esta era a do conhecimento dos homens.

— Seu nome é Leão Negro, e assim o chamam pelo negrume demoníaco e por ter a ferocidade de um leão. Dizem que derrubou vinte homens em um torneio em Gales, e nas guerras que houve ali, de um só golpe podia partir um homem ou seu cavalo em dois. — Lyonene empalideceu, isso animou Gressy a dar mais detalhes desses contos que só conhecia de ouvir. — Dizem por aí que sua primeira mulher tentou se suicidar para escapar dele.

Lyonene cortou a respiração e, sem querer, fez o sinal da cruz. O suicídio era um pecado mortal.

— E o que dizer dos sete homens, os sete diabos, que o acompanham... — acrescentou Meg, muito agitada para temer a reação da Gressy.

— Assim é. — Disse Gressy com ares de mistério. — Viaja com sete homens enormes, e todos com o cabelo negro, mas nenhum tão negro como o do Leão sobre seu cavalo negro.

— Veio até aqui e tenho que conhecê-lo? — Lyonene não podia esconder o medo em sua voz.

— Sim, agora seu pai e sua mãe se encontram lá embaixo com ele. Ninguém nega nada ao Leão Negro, por mais insignificante que seja sua petição. Vamos Meg, temos que preparar o quarto para o cavaleiro do diabo.

Abandonou o aposento e Meg a seguiu com os olhos arregalados, carregando os lençóis sujos. Gressy se sentia satisfeita de ter captado a atenção das duas meninas, já que considerava a ambas meninas, apesar de que nenhuma das duas era mais de dois anos mais nova que ela.

Do outro lado da pesada porta, Meg recuperou o fôlego.

— Gressy, é verdade que esse homem foi gerado pelo diabo?

A mulher mais velha aproximou seu rosto do de Meg.

— Dizem que nunca sorri e que nunca riu. Também dizem que a mulher que o faça rir se casará com ele.

Meg se apoiou contra a úmida parede de pedra. O rosto de Gressy estava pouco iluminado nesse corredor escuro. O coração batia acelerado do sinistro terror que sentia. A noiva do diabo! Que horrível pensamento.


Lady Melite, a mãe de Lyonene, também estava a par dos rumores que circulavam sobre o Leão Negro, e se vestiu com esmero, reprovando a si mesma que suas mãos tremessem. Desejava que não tivesse vindo. Já tinha havido muita confusão ultimamente, e só o que faltava agora era se ocupar de um conde conflituoso. Fechou o cinto de sua volumosa capa, tão diferente de sua filha. Tirou o tecido superior por cima do cinto, cobrindo-o por completo, e ajustou o manto verde escuro sobre os ombros com dois broches de ouro lavrado, unidos com uma corrente que cobria a clavícula.

— Sir Tompkin chega amanhã e ainda terei que organizar o trabalho dos servos... — parou em seco de balbuciar, começou a rir e pensou que começava a se parecer muito com William, todo o tempo sofrendo por acontecimentos que ainda não aconteceram. — É um homem, isso é tudo. Ofereceremos o que tenhamos e com isso deverá contentar-se.

Esticou o comprido véu de linho que cobria o cabelo e deixou que caísse por cima dos ombros. Estava orgulhosa de ainda ter um pescoço bonito e de não usar touca. Endireitou-se e desceu para saudar seu convidado.

William, o pai de Lyonene estava fascinado com o conde de Malvoisin. Os relatos que tinha ouvido a respeito desse homem eram sem dúvida exagerados, mas de um ponto de vista masculino. Deu uma olhada no braço direito de Ranulf, cuja cota de malha, foi feita perfeitamente na medida, marcava com claridade as linhas dos músculos. Diziam que, em cima de seu cavalo negro a galope, o Leão Negro era capaz de partir em dois um poste de carvalho de dez centímetros de largura. William esperava poder convencer o conde para que fizesse uma demonstração dessa impossível proeza. O barão não podia evitar olhar a cota de malha do conde. Divertia-se ao pensar no difícil que era para ele poder oferecer aos seus doze cavaleiros uma cota de malha, inclusive uma medíocre, e ali estava esse homem com uma cota só para torneios. Inclusive seus homens vestiam esplêndidas cotas de malhas que tinham sido pintadas de verde ou negra, as cores de Malvoisin.

— Ah, aqui está minha esposa, lady Melite. Esse é Ranulf de Warbrooke, terceiro conde de Malvoisin.

Ranulf levantou as sobrancelhas em gesto de surpresa pela apresentação feita por William.

— É uma honra, milady. Espero que o fato de não tenha sido convidado não cause muitos incômodos. — Disse, enquanto fazia uma reverência.

William acusava Melite de emitir julgamentos muito rápidos. Por isso ela calava suas opiniões voluntariamente, e esperava semanas e, inclusive meses até que seu marido chegasse à mesma conclusão que ela tinha tirado em poucos minutos. Nessa ocasião, sua rapidez para julgar tampouco tinha falhado. Em alguns instantes já conhecia esse homem chamado Ranulf de Warbrooke.

— Seja bem-vindo, sir Warbrooke, somos nós que estamos honrados... melhor dizendo, contentes por sua presença aqui. Esperamos que tudo seja de seu agrado. — Sua voz tinha passado a metade da frase, de soar formal a ser genuinamente cordial, já que se agradava do jovem que tinha a sua frente.

Ranulf sobressaltou por sua receptividade. Em geral, as mulheres ou se sentiam atraídas por ele, por seu dinheiro ou seu título, ou tinham medo por causa de sua reputação. Mas essa elegante mulher não deixava entrever nenhum desses sentimentos.

— Se aproxime. Sente-se comigo ao lado da lareira e me conte as novidades. Recebemos tão poucas visitas aqui em Lorancourt... — levantou o braço, Ranulf tomou e a acompanhou aproximando-se das duas cadeiras ao lado da faiscante lareira.

— Tinha entendido que ultimamente recebiam a muitos hóspedes.

Lady Melite sacudiu a mão que tinha livre.

— Vêm para ver Lyonene, para se informar de nossas propriedades e para comerem em nossa mesa. Vem para mostrarem os atributos uns aos outros. Ninguém tem tempo para falar com uma velha ansiosa de novidades. Mas sente-se por um momento e me conte coisas.

William se encontrava de pé atrás deles. Sentia que o fôlego de um pássaro poderia derrubá-lo. Melite, geralmente a mais sensata das mulheres, tinha tomado o braço do cavaleiro mais feroz da Inglaterra e o tinha levado a um canto do salão como se tratasse de uma velha fofoqueira. E o que disse sobre os que vinham ver Lyonene e para avaliar as propriedades? Era sem dúvida alguma, uma afirmação muito particular, para fazê-la a um estranho. Teria que falar seriamente com ela e logo.

— Me descreva essa coisa nova que se chama botão. — continuava Melite.

— Trata-se de um pequeno adorno costurado na roupa. Ultimamente as mulheres fazem um buraco em um lado do traje e introduzem o botão através do buraco, e o utilizado para fechar.

— Agora entendo. Assim não terá que costurar as mangas das túnicas.

William afundou no banco frente à lareira. Ali estava o Leão Negro, o guerreiro mais temível de toda a Inglaterra, possivelmente de todo o mundo cristão, e sua mulher falando de moda feminina!

Melite virou por um momento para seu marido e lhe dedicou um tenro sorriso.

— Pode enviar Lucy para que traga Lyonene? Eu gostaria que nosso hóspede conhecesse nossa filha.


— Oh, que homem tão bonito, esse Leão Negro! — Disse efusivamente Lucy a Lyonene. — Tem uns cachos que chegam ao pescoço, como era antes o do meu menino. — Lucy, apesar de estar muito orgulhosa de seu filho, que tinha se convertido em monge da ordem beneditino, de vez em quando também se sentia triste por ele. — É alto e forte, e sua mãe o tem comendo em sua mão. Pode ser um grande guerreiro, mas eu juraria que é um homem muito tenro.

— E o que me diz de seu cabelo e seus olhos negros? Não te assustou? — inquiriu Lyonene.

— Se quiser que diga a verdade, sim, me assustou, mas sua mãe em seguida entendeu seu caráter e tenho nela muita confiança. — Assentiu com a cabeça e olhou Lyonene com ar inquisidor. — Faria bem em escolher um homem assim como marido.

— Marido! Lucy, já ouviu todas as histórias sobre seu caráter!

— Sim, histórias. Não acredito que haja nada verdadeiro nessas histórias.

— Ele é conde, e um conde não se casa com a filha de um barão. Não sei como pode ter tal pensamento. Conhece a razão de sua visita a Lorancourt?

— Conheço... pude ouvir um pouco da conversa.

Lyonene reprimiu um sorriso.

— Tem um irmão que é escudeiro de sir Tompkin, e como esse cavaleiro vem nós visitar logo, o conde veio ver seu irmão durante um dia ou dois.

— Bom, me agrada saber que o Leão Negro não passa por cima do amor aos seus familiares. E disse que minha mãe fala com facilidade com ele e, além disso, é bonito?

— Incrivelmente bonito, mas se demorar mais será um velho quando for vê-lo.

Lyonene desceu lentamente os degraus de pedra, passando a mão pela parede gasta até chegar ao vestíbulo iluminado. Notou que suas mãos tremiam e tentou conter o tremor. Os relatos sobre esse homem giravam em sua cabeça e as opiniões de todos pareciam um zumbido permanente.

Chegou até o último degrau, se deteve por um momento para arrumar a saia e o cabelo e, respirou profundamente para acalmar seu agitado coração. Da sua posição estratégica na escuridão das escadas podia ver a cena no grande vestíbulo. A enorme lareira estrepitava com várias lenhas ardendo. A pouca distância da lareira havia duas cadeiras; uma estava ocupada pela pequena silhueta de sua mãe e a outra revelava um braço com cota de malha, cujo prateado brilhava palidamente pela luz da lareira.

Conseguiu se acalmar e olhou para o outro lado do vestíbulo, para a outra lareira onde também tinham acendido um fogo. Nas banquetas, ou de cócoras no chão, havia sete homens, todos com sua cota de malha e com tabardo com o escudo do Leão Negro. Falavam em voz baixa e ouviu um deles rir. Não pareciam serem os homens do diabo que Gressy tinha falado. Sobre tudo pareciam estarem cansados e Lyonene teve vontade de se aproximar deles, e ter certeza se já tinham servido comida e bebida suficiente. Se os guarda eram calmom, certamente, o Leão Negro também o seria.

A moça se aproximou da luz.

— Aqui chega minha filha Lyonene. — Disse Melite.

Lyonene manteve a cabeça baixa. Tinha que controlar seu desejo de olhar fixamente e devia recordar suas boas maneiras. Sua mãe tinha conversado com esse homem como se o conhecesse há anos. Dava-se conta de que o guarda do Leão Negro que estava ajoelhado, agora se encontrava de pé diante ela. Seu nervosismo não deixava de aumentar.

Ranulf não tinha se sentido tão cômodo fazia muito tempo. Somente a rainha Leonora o tinha feito se sentir tão à vontade, como essa mulher tinha feito. Inclusive, depois de ter visto Lady Melite, e sabendo que no seu tempo de juventude, fora uma mulher bonita, a extraordinária beleza de Lyonene o sobressaltou.

Com a cabeça baixa não podia ver seu rosto, mas seu cabelo espesso e encaracolado caía pelas costas até a cintura. Era ruivo, de um loiro escuro-dourado com milhares de reflexos dançantes pelo fogo. A túnica estreita revelava sua silhueta, e essa visão o deixou sem saliva. Cintura estreita, quadris ondulantes e seios macios e tentadores. Não recordava ter se sentido tão afetado por nenhuma outra bela mulher.

Lyonene levantou timidamente a vista para Ranulf de Warbrooke, não muito segura do que esperava, mas temendo o pior. Era muito moreno, com olhos negros como o carvão e cachos de azeviche que pareciam ser terrivelmente rebeldes. Sua cabeça não chegava nem sequer no ombro do Leão Negro.

Entretanto, foi à expressão de seus olhos o que mais a intrigou. Como sua mãe, também tinha o dom de poder julgar o caráter de uma pessoa com um só olhar. Os olhos do conde de Malvoisin recordavam a um cão que teve fazia tempo. Tinha caído em uma armadilha e a pata quase tinha cortado pela metade, que o deixava louco de dor. Custou muito tempo acalmar ao animal e ganhar sua confiança para poder soltar a armadilha de aço. Durante todo esse tempo, o cão a tinha olhado com a mesma expressão de dor e cautela, e de esperança quase morta, que via no homem que agora se encontrava diante dela.

— Estou contente porque pôde vir a Lorancourt, milorde, e espero que perdoe minha demora em recebê-lo.

Ranulf estendeu-lhe sua mão e ela colocou a sua, de pequenas proporções, na ampla e cálida mão dele. Nem sequer, o fogo direto em seus dedos, teria podido afetá-la mais. Quase perdeu o fôlego com a sensação, mas se alegrou de poder disfarçar, temia causar uma ofensa. Para ela não havia mais ninguém no recinto e se converteu em uma mão imaterial. Sentiu que seus sentimentos e pensamentos tinham sido transferidos aos seus dedos.

Começou a olhar bobamente ambas as mãos, uma clara e pequena e a outra grande endurecida pela luta e coberta de pelos curto e escuro.

Ranulf falou de novo, e parecia que sentia a sua voz através da ponta dos dedos.

— Uma mulher bonita não precisa pedir perdão. Um sorriso será suficiente. — Sua voz tinha perdido um pouco de suavidade e agora havia nela um ponto de dúvida. Colocou a outra mão debaixo do seu queixo e elevou o rosto para poder vê-la melhor.

Ela o olhou de novo e viu um rosto forte, uma mandíbula bem perfilada, as sobrancelhas levemente arqueadas em cima dos olhos negros, um nariz reto e os orifícios nasais alargados. Seu olhar se dirigiu para os lábios dele de bonita forma, mas muito rígidos. Lucy tinha razão, era um homem bonito. Sorriu timidamente no princípio e depois com um pouco mais de calor. Olhou para os lábios que não sorriam e viu uma doçura ali, a mesma gentileza que sua mãe havia visto. De repente, sentiu um terrível desejo de rir, do grande alívio que sentiu com sua descoberta. Ela se moveu para os dedos que seguravam seu queixo. Nunca o tato de um homem a tinha feito se sentir tão viva.

Repentinamente, Ranulf deixou cair à mão do seu queixo e soltou a mão que a segurava.

— Devo me ocupar do cavalo — resmungou enquanto se dirigia para a porta sendo seguido de seu guarda pessoal.

William não saía de seu assombro e desabou na cadeira acolchoada frente a lareira.

— Bem! Embora um homem vivesse mais mil anos, não chegaria a entender a mente de uma mulher. Minha esposa trata ao campeão do rei como uma lavadeira fofoqueira e depois minha filha quase desmaia ao vê-lo e depois começa rir na sua cara. Se não me confiscarem as terras em duas semanas, não entenderei por que.

— William. — Começou Melite, sabendo que não poderia explicar suas ações e menos ainda as de sua filha. — Ele pareceu bastante contente. Vamos Lyonene, temos tarefas que terminar.

Lyonene estava ansiosa por abandonar o aposento, já que não queria pensar por que suas reações para esse homem tinham sido tão óbvias. Mas também, era certo, que não teria sentido se o teto da torre desabasse e se um raio a tivesse alcançado.

Lyonene temia em ficar só com sua mãe, já que sabia que haveria perguntas que não poderia responder.

— Não, não haverá perguntas. Unicamente te peço que seja amável com nosso convidado, não porque seja um grande guerreiro ou porque seja o conde do rei, mas sim porque merece nossa bondade.

Sem dizer uma palavra, Lyonene assentiu.

— Agora vá com essas duas tolas que têm como criadas e procure que nosso Leão Negro se encontre bem em sua guarida. — Disse sorrindo e acariciando o belo cabelo de sua filha.

Lyonene subiu as escadas restantes para chegar aos quartos do terceiro andar. Havia seis aposentos, um para seus pais, outro para ela e mais quatro para os convidados. Encontrava-se só no andar, já que os serventes estavam ocupados nas cozinhas, assim tomou seu tempo para escolher o quarto para lorde Ranulf.

Uma hora mais tarde, decidiu que o quarto estava pronto e se dirigiu para seu aposento. Lucy tinha deixado um pouco de pão, queijo e uma caneca de leite sobre o suporte da lareira. Deu o primeiro gole e ajustou as lâminas das venezianas de madeira para poder ver o pátio interno. Pôde observar como um dos homens abandonava o grupo da guarda do Leão Negro e se dirigia para a porta do pátio; levava consigo um longo pau e uma bolsa presa com uma corrente a sua cintura e a jogou para trás.

Sem pensar no que fazia, Lyonene tirou a manto verde e a capa e se vestiu com outro manto de lã em cima da túnica dourada. Da arca tirou sua capa mais quente, feita de pesada lã cinza com um grande capuz completamente forrado de pele de coelho. Segurando bem a capa, desceu as escadas até o grande vestíbulo, dizendo a si mesma que o único que queria era um pouco de ar fresco. Levou consigo um grande vaso de vinho para que esquentasse envolto dentro do manto. Assombrou-se ao ver como era fácil passar despercebida ao cruzar o pátio e a porta principal. Os guardas não se importava com quem saía, mas sim com quem queria entrar.


Ranulf se sentou no duro chão de pedra com as costas apoiada em uma árvore fazendo caso omisso do vento cortante.

Seus pensamentos estavam completamente dedicados a essa encantadora moça de olhos verdes. “Ah, Warbrooke”, repreendeu a si mesmo, “ela não é feita para seus flertes. É uma dama, uma inocente garota que deseja o matrimônio, o matrimônio com um jovem de mais ou menos sua idade e classe social.” Mas ainda assim, não podia renunciar à visão dela. Fechou os olhos e apoiou a cabeça contra a áspera casca, afligido pela lembrança e por algo tangível, esses olhos esmeralda sob as sobrancelhas arqueadas, esse pequeno nariz e a boca, lábios carnudos e macios, tentadores. Seu cabelo o atraía e não deixava de pensar em como ele se enrolava em caracóis, cobrindo seus ombros e deixava cair sobre seus seios, e em sua cor incomum, ruivo, avermelhado, dourado...

“Mon Dieu!” O que estava acontecendo com ele para estar ali sentado sonhando com uma moça quando tinha tanto trabalho para fazer? Tinha conhecido muitas garotas bonitas, muitas em efeito, mas esta era de alguma forma diferente. Quando havia tocado no seu queixo, pensou que faria a desonra de beija-la diante seus pais e seus homens. Qual teria sido sua reação se tivesse afundado sua mão no cabelo dessa jovem desconhecida e...

— Trouxe um pouco de vinho. — A suave voz de Lyonene limpou seus pensamentos.

Olhou-a fixamente sem sorrir, estudando-a, sem ter em conta sua proposta.

— Faz frio e ainda falta um momento para o jantar... — afastou a vista do olhar intenso do conde, sentindo-se de repente tímida e se arrependendo de sua impulsividade.

Sem deixar de olhar fixamente, o homem tomou a taça de vinho quente e sorveu um gole do delicioso e doce vinho, que deslizou brandamente por sua garganta.

— Quer compartilhar comigo?

— Sim. — Respondeu ela sorridente, acariciando brandamente seus dedos enquanto pegava a taça.

Uma gota de vinho ficou na borda e ao resgatá-la com seus lábios Lyonene se sentiu surpreendida por seu próprio atrevimento. Devolveu a taça e tirou um pacote debaixo do manto onde levava o pão e o queijo.

Dedicou um amplo sorriso e o Leão Negro se deu conta de que só tinha olhos para ela. Os olhos de Lyonene pareciam muito as preciosas joias e suas bochechas tinham se avermelhado pelo ar frio. O capuz cobria quase todo seu belo cabelo, mas as peles brancas emolduravam seu rosto e fazia um magnífico contraste com as espessas e longas pestanas. Nenhum dos dois parecia necessitar palavras e ambos se sentaram tranquilamente para saborear do vinho e da comida. Uma repentina rajada de vento enviou as folhas secas do bosque para eles.

Lyonene cobriu o rosto com a mão porque algo tinha entrado no olho.

— Meu olho! — Gritou, com lágrimas e uma dor cada vez mais intensa.

— Deixe-me olhar. — Suas cálidas mãos seguraram seu rosto e com seus dedos delicados e fortes a obrigou a abrir os olhos.

— Há uma pedra, um pedregulho. — Soluçava.

— Não, não acredito. Olhe para cima e a encontrarei. Abre a pálpebra devagar.

Sua voz era suave e tranquilizadora e, apesar da dor, se obrigou a abrir a pálpebra, confiando nele completamente, segura de que a aliviaria.

— Ali está! Era só uma partícula de areia, verdadeiramente menor que uma pedra.

Piscou várias vezes para acalmar a ardência. Do momento em que ele a tinha tocado, havia se sentido segura de que aliviaria a dor. Agora estava muito ciente de suas mãos que se encontravam em cada lado do seu rosto e que olhos escuros cercados por espessas e curtas pestanas, a olhavam fixamente. Sua íris era totalmente negra e, apesar disso, nessa curta distância podia apreciar neles um salpico dourado.

— Está melhor? Já não dói?

Não respondeu imediatamente e, antes de começar a retirar sua mão do rosto, sustentou-a por um momento ao lado de sua bochecha.

— Não, já não me dói. Obrigada.

Ele moveu a mão, olhou para outro lado e Lyonene teve medo de tê-lo ofendido. Sentia que uma estranha estava tomando seu corpo, já que não podia acreditar na ousadia dessa manhã. Tratou de começar uma conversa.

— Pergunto-me como pode estar quente quando eu tenho tanto frio, apesar do meu manto de peles.

Ranulf parecia confuso.

— Vamos para o castelo junto a lareira. — Ao ver o olhar de desilusão de Lyonene, seu coração deu um salto. Como ele, ela não queria abandonar sua companhia. — Ou venha comigo, ensinarei um esporte que ajudará ficar mais quente.

Ficaram de pé e ela olhou como Ranulf agarrou o pau e o dobrava para atar um comprido cordão de seda em cada ponta.

— Já viu antes?

Ela negou com a cabeça.

— Trata-se de um arco galés. Alguns o chamam arco comprido por sua longitude.

— Não se parece em nada a um arco. — Disse com um olhar cético. — Como pode um homem lançar uma flecha com um simples pau?

— Não viu como funciona e já está menosprezando?

Lyonene elevou a cabeça.

— Deveria pedir ao meu pai que o ensine o funcionamento de uma boa balestra1.

Ranulf levantou uma sobrancelha.

— Encontre um objetivo que esteja longe e que o melhor arqueiro de seu pai pudesse alcançar.

Lyonene assinalou uma árvore de casca branca, não muito longe de onde se encontravam. Lyonene observou como Ranulf puxava o arco galês até a orelha, sustentando brandamente uma flecha de plumas negras e verdes entre os dedos. Os músculos de seus braços se sobressaíam.

A flecha saiu disparada com um nítido som de corda esticada. Lyonene cortou a respiração quando viu que a flecha aterrissava, além do dobro de distância, da árvore que ela tinha escolhido.

Ranulf lhe lançou um olhar rápido que fez recordar de como se gabou da balestra. Então, antes que ela pudesse se recuperar da surpresa, ele começou a tirar flechas da bolsa de couro que tinha atada à cintura e as disparou com deslumbrante rapidez. Em menos de um minuto tinha jogado dez flechas, e todas se cravaram na mesma árvore.

Ela o olhou fixamente.

— Nunca tinha visto nada parecido. — Levantou a saia e começou a correr para a longínqua árvore.

Enquanto tratava de tirar as flechas de plumas negras e verde da casca, viu com sobressalto que Ranulf aparecia ao seu lado para retirá-la. Não o tinha ouvido chegar.

Voltou-se para ele rindo.

— Não acredito que meu pai possa lhe ensinar grande coisa. — Ranulf não disse uma palavra, mas com sua expressão ficou claro que estava de acordo com ela. — Deveria mostrar o arco galés; assim poderia explicar aos seus homens como usá-lo.

— Não, não acredito. Inclusive meus próprios homens se negam a usá-lo. Acreditam que não é uma arma para cavaleiros e que os rebaixaria a simples soldados rasos.

— Estou vendo que não compartilha seus temores. — Seus olhos brilhavam e por pouco não começou a rir quando ele levantou a sobrancelha. — Acredita que poderia aprender a disparar com esse pau?

— Pode tentar. — Ranulf demonstrava em destro manejo com a nova arma.

Olhou a Ranulf com impotência.

Rapidamente, ele se plantou atrás dela e, rodeando-a com os braços, esticou o arco. Ao apontar com a flecha se deu conta de sua fragrância ‘rosas e fumaça’ e de sua fria bochecha perto da sua. Podia sentir cada uma de suas cativantes curvas contra ele, e suas nádegas contra sua virilha. Ansiava virá-la para ele, desejava sentir sua suavidade de perto, beijar seus úmidos lábios, mas sabia que agora devia se concentrar. Tratou de dar instruções para o manejo do arco, mas em seguida notou que sua voz o traía e que era devorado pelo desejo que sentia, ao ter seus lábios tão perto de sua orelha e quase poder saborear a carne do lóbulo entre seus dentes.

Lyonene lançou a flecha.

— Eu acertei!

Ela se virou caindo entre seus braços e ele a abraçou com delicadeza sem nem sequer respirar por medo de esmaga-la com o seu desejo crescente.

Lyonene acreditou que seu coração ia explodir: de tão forte que pulsava. Os braços dele a rodeavam com ambas as mãos pelas costas e Lyonene podia sentir seu calor através de túnica grossa e da capa de lã.

Olhou-o e desejou que a beijasse, sim, queria que a beijasse e seu coração começou a pulsar mais rápido enquanto que, inconscientemente, ia se aproximando mais dele, seus seios contra seu peito. Ela sentiu sua aguda inalação, cálida e delicada. Como seria beijar a um homem?

Ele retirou seus braços.

— O jantar será servido e minha mãe deve estar me esperando. — Sorrindo, queria dizer algo tranquilizador. — Obrigado pelas lições de arco. Agora, Leão, devemos retornar ao castelo porque o aborrecimento de meu pai faria tremer a um leão se a refeição atrasar. — Ao ver o olhar de desconcerto por sua maneira de nomeá-lo, ela continuou falando. — Não lhe parece estranho que ambos tenhamos recebido nomes de leão? Meu pai assegura que no dia do meu nascimento o olhei com tanto desdém que me puseram nome de leoa, mas minha mãe disse que pensou no nome de Lyonene pela cor de meu cabelo.

Ranulf tocou ligeiramente uma mecha de seu cabelo ruivo.

— Não acredito que possa olhar com desdém a alguém.

Ela se pôs a rir.

— Não me conhece, tenho um caráter terrível.

— Então o nome vai bem, como o meu. Ao menos não leva a maldição de um horrível negrume como o meu.

— Ora! Só os trovadores acreditam que todos os homens devem ter o cabelo claro e os olhos azuis. Você faria com que o resto parecessem descoloridos. — Virou rapidamente. — Vê aquela árvore no final do bosque? Façamos uma corrida. — Recolheu a saia e o manto, colocou em cima do braço e começou a correr.

Ranulf ficou quieto olhando a bonita visão das firmes e sinuosas panturrilhas e, pequenos pés correndo de maneira tão inexperiente através do bosque. Quando estava na metade de caminho da árvore, e com apenas alguns passos a alcançou facilmente.

Lyonene olhou por cima do ombro e viu como a alcançava sem problemas. Lembrou-se de um truque que utilizava desde pequena com as outras crianças de Lorancourt. Quando Ranulf quase a tinha alcançado, ela deu um passo para o lado por onde ele corria, o homem tratou de se afastar para não golpeá-la e no intento perdeu o equilíbrio.

Ouviu como Ranulf gemia atrás dela e riu com satisfação pelo êxito de seu truque. Mas, então, quase cortou a respiração ao sentir que ele a rodeava pela cintura com seu forte braço e a levantava do chão, enquanto seguia correndo à mesma velocidade, apesar de levá-la como carga.

Quando se recuperou da surpresa, Lyonene começou a rir, quando tinham chegado à árvore, não podia conter-se mais. Ele se sentou no chão e ela se apoiou na árvore, com tantas lágrimas deslizando pelas bochechas que nublavam a vista.

— Eu ganhei. — Ofegou.

— Ganhou!? Nem sequer correu com honra. Fez uma armadilha.

Ela secou as lágrimas e, para sua imensa alegria, viu que Ranulf sorria e suas feições se suavizaram: tinha o aspecto de um moço.

— Minha cabeça chegou antes à árvore, no memento que você chegou lá, por isso ganhei a corrida. — Quase não podia conter a risada.

Ranulf afastou um dos cachos que caía rebelde em cima de suas bochechas, já que o capuz tinha caído.

— Nunca chegará a ser um cavaleiro. Suas mentiras desonrariam ao seu senhor.

Lyonene fez uma careta de horror.

— E você, Leão, seria a pior mulher com essa maneira que têm de pegar objetos grandes que cruzam em seu caminho!

— Objetos grandes! — Pegou Lyonene pela cintura e a levantou, ela tinha a cabeça alta e pôs as mãos sobre seus ombros. — Mas pesa menos que minha armadura...

De repente ficou séria. Enquanto o olhava de cima, dedicou um sorriso que ele devolveu.

— Seja qual for o truque, é uma boa recompensa ao ver um leão sorrir.

Ranulf a colocou no chão com delicadeza. Agora ele também estava sério e seu desejo por ela havia voltado. Não podia tocá-la sem que o sangue de suas veias começasse a ferver.

— Vá para o castelo. Eu irei depois. Sua mãe não gostará de ver que sua leoa passou toda a manhã sozinha com um homem.

Sem pronunciar uma palavra, Lyonene saiu correndo para o castelo e subiu os degraus gastos que levavam ao seu quarto. Não parou de correr até que chegou ao seu quarto e então se atirou sobre o colchão de plumas de sua cama.


Melite tinha visto quando Ranulf e sua filha entraram no bosque. Se fosse outro homem, teria enviado imediatamente um lacaio para pedir que Lyonene voltasse, mas sabia que ela estava a salvo com Ranulf. Nunca questionou seu conhecimento sobre esse homem, confiando plenamente em suas premonições e seus sentidos. Sorriu para si mesma, ia tratar por todos os meios de organizar o casamento de sua filha com o conde de Malvoisin. Preferiria que não se tratasse de um conde, assim teria mais possibilidades de culminar seu desejo. Sim, o desejo. Agora ria em voz alta, e olhou ao seu redor para ver se alguém percebia. O desejo estava no centro de seus planos. Não havia nada mais seguro que dois corpos um perto do outro. Se William soubesse o que estava planejando, ficaria furioso. Não gostava que os homens andassem perto de sua filha, apesar de sua opinião sobre o matrimônio. Mas Melite tinha planejado dar uma mão à natureza e animar que esse delicado broto de amor pudesse florescer.


Lyonene observou Ranulf da janela com as venezianas fechadas quando ele retornava do bosque. Ajoelhou e atiçou o fogo com uma varinha de ferro. A imagem do rosto sorridente de Ranulf apareceu no meio da fogueira. Não era capaz de ver outra coisa que não fosse ele; podia ouvir sua voz, sentir suas mãos em sua cintura. Sentou em um banco perto da lareira e deixou cair à cabeça entre as mãos. Tudo girava. Nunca tinha se sentido tão estranha.

— Lyonene! — Lucy entrou caminhando como um pato. — Mas o que está fazendo aqui, jovenzinha, quando sua mãe tem tantos convidados? E o que faz com a lareira acesa pela manhã? Uma fada dança em sua cabeça?

—Não Lucy, eu só estou contente. Não há nada de mal. Tenho muita fome, não poderíamos descer?

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 02

Ranulf estava muito confuso. Durante muito tempo tinha se sentido satisfeito. Sempre tinha existido mulheres que tinham lhe devotado seu corpo livremente, mas em muitas ocasiões elas o consideravam uma mera conquista, e o que queriam eram poderem alardear que tinham ido para a cama do Leão Negro. Ranulf nunca enganou a si mesmo sobre seu status na corte do rei Eduardo. Dos onze condes, só dois eram jovens e solteiros: seu amigo Dacre de Saunay e ele. Era consciente de que muitas mulheres venderiam suas almas para se converter em condessas. E apesar de todos os flertes e todas as declarações de amor para ele, nenhuma delas tinham conseguido fazê-lo rir.

Lembrou-se de Lyonene, seus olhos claros e brilhantes pelo frio, assim como suas bochechas ruborizadas. Mais acima de tudo, se lembrava de sua risada. Durante uns poucos minutos se esqueceu de si mesmo, de sua responsabilidade como conde e do passado. Sim, o mais importante era que, por um instante, não havia sentido o peso da lembrança de Isabel, cujos comentários desdenhosos tinham amedrontado a esse jovem que tanto a tinha amado. Ranulf olhou o céu cinza e nublado. Já não era mais aquele jovem, nesse instante, não sentia o peso dos anos que tinham passado depois daqueles fatos.

— O que faz aqui sentado quando há uma festa aguardando? Nunca estive tão faminto, já faz bastante tempo que comemos a última vez.

Ranulf olhou para cima e viu Corbet, um membro de sua guarda.

— Acredito que descuidei de meus homens. Tudo está bem? Ficou de pé ao lado do cavaleiro; media uns cinco centímetros a mais que Corbet. Se alguém se detivesse a observa-los, consideraria Corbet como um cavaleiro forte e bonito, mas o aspecto dominante de seu lorde o eclipsava totalmente.

— Isto não é Malvoisin, mas tampouco é uma tenda plantada no solo molhado no meio do Gales. Lady Melite é agradável e sua filha reconfortaria a qualquer homem.

Ranulf se voltou para ele.

— Não fale assim dela.

Furioso, deixou seu vassalo, e dando grandes passos, se dirigiu para o castelo.

Corbet observou as largas costas de Ranulf e sorriu. Se havia alguém que necessitasse de uma esposa, esse era seu lorde. Contrário à muitos homens, Ranulf não se interessava em ter várias mulheres, na realidade dava a impressão de evitá-las, simplesmente servindo-se delas só quando era necessário, embora elas o assediassem constantemente na corte. Corbet sentia muito orgulho de pertencer à elite da Guarda Negra e, embora Ranulf mantivesse certa distância de seus homens, eles sabiam mais sobre seu lorde do que ele poderia imaginar. Todos viam nele um homem atento por debaixo essa férrea aparência. Deixou de lado essas reflexões e seguiu a seu lorde até a grande torre de pedra. Embora fosse só por ele mesmo, Corbet desejava profundamente que a adorável lady Lyonene retornasse a Malvoisin com eles; seria um prazer poder ver cada dia uma beleza como dela. Invejava Ranulf.

Quando Ranulf entrou pela porta, viu que lhe tinham atribuído uma cadeira junto a Lyonene e em seguida se sentiu nervoso como um menino. Um servente verteu água perfumada sobre suas mãos de um recipiente com cabeça de dragão, e outro ofereceu um pano de linho limpo. O sacerdote abençoou a comida e todos sentaram nas cadeiras. Observaram silenciosamente enquanto um menino cortava um grande pedaço de pão e o colocava na toalha branca frente à Lyonene e Ranulf. A comida deveria ser compartilhada entre dois comensais. Cada um tinha seu próprio copo e os copos dos convidados de honra e o da família eram de prata com pedras preciosas incrustadas, sem esculpir.

Os primeiros pratos, compostos de diferentes variedades de carne, começaram a chegar; havia cervo, cabeça de javali, porco e cordeiro.

— Seus homens têm boas maneiras. Eu gosto que não façam ruído enquanto comem. Os homens de meu pai não são tão atenciosos. — Assinalou com a cabeça para o lado esquerdo da mesa.

Ambos observaram como os homens pegavam enormes peças de carne e enchiam a boca sem se deter para usar uma faca.

— Dei um nome a cada um. Gostaria de ouvi-los? — Ranulf assentiu com a cabeça. — Os dois do fundo se chamam Galinha e Galo. Saberia adivinhar quem é quem? O seguinte é Gato. Vê como move as mãos e os olhos? O seguinte é Urso. Uma vez, quando cortei a perna sendo menina, começou a chorar. Também temos a Pomba, chamo-o assim porque move a cabeça como as pombas. E o último é Falcão, meu favorito.

Ranulf examinou com atenção ao homem que Lyonene dizia preferir.

— E por que se interessa por ele?

— É bom e inteligente, sabe cantar e não é desagradável à visão, não concorda?

Ranulf a olhou fixamente.

— Não saberia dizer quando um homem é agradável à vista. — Sua voz soou dura.

Começou a estudar seus olhos negros e o cabelo encaracolado que tinha deixado descoberto.

— Acreditava que você saberia.

Ranulf, para sua consternação, podia sentir o sangue correndo em seu rosto. Confuso, olhou para seus homens e viu que tinham deixado de comer para observá-lo. Voltou-se para Lyonene, que sorria com malicia. Devolveu-lhe timidamente o sorriso.

— É uma diabinha. Que homem seguiria a um cavaleiro que ruboriza?

A risada de Lyonene ressoou com um precioso som contagioso. Lyonene pôs ambas as mãos sobre seu braço e tocou seu ombro com a testa.

Ranulf tentava ignorar os olhares de seus homens.

Ninguém na sala parecia pensar que a risada de Lyonene fosse algo fora do comum.

Com certo alívio, viu que chegava à mesa o seguinte prato: capões, pombas e bolo de aves pequenas.

Lyonene pegou com uma colher uma metade do capão coberto de molho de mostarda, colocando-o no prato comum. Nunca antes tinha sentido tão cômoda com um homem, e mesmo assim, sentia a mesma excitação por todo o corpo, a mesma que tinha aparecido durante as poucas vezes que o havia tocado.

— Sinto muito. Não queria rir tanto. Meu pai diz que rio muito e acredito que tem razão. Está zangado? Vou te dar a melhor parte do frango.

— Não estou zangado. — Sorria de verdade. — E se consigo um pouco de frango, já será mais que a carne que comi até agora, já que comeu tudo, sem deixar nada para mim.

— Isso não é verdade! — Protestou, e logo começou a rir de novo, dessa vez cobrindo a boca. — Está gozando de mim, leão! — Sussurrou.

— Sim, leoa! — Se inclinou para ela com um intenso desejo de beijar esses lábios carnudos e suaves, manchados de mostarda na comissura. Com a ponta da língua, Lyonene tirou a mostarda e o Leão Negro se sentiu traído. Perguntou-se se seria o vinho, mas começava a fazer mais calor nessa sala de jantar do que faria em uma tenda em pleno verão.

Várias pessoas tinham observando o conde de Malvoisin e lady Lyonene. A Guarda Negra nunca tinha visto seu lorde se comportar dessa maneira com ninguém. A única pessoa que conseguia fazê-lo sorrir era a rainha Leonora e às vezes, Geoffrey ou Dacre. Mas essa moça o tinha transformado em uma espécie de pajem de cavaleiro.

Melite estava sentada ao lado de Lyonene. Ela tinha cuidado de organizar a distribuição dos comensais. Não queria que seu convidado sentisse que devia dividir sua atenção entre ambas às mulheres. A cada risada de sua filha, estava mais convencida de suas resoluções.

O reverendo Hewitt, o sacerdote do castelo, também estava observando-os. Embora muitos dos contratos de matrimônios eram alianças para unir propriedades, a Igreja não via isso com bons olhos e incentivava os matrimônios entre casais, que sim, tinham sentimentos mútuos. Agora sorria ao ver Lyonene com esse grande guerreiro. Quando viu esse homem com sua Guarda Negra, tinha-lhe parecido um grupo formidável e tinha temido sua presença. Entretanto, Lyonene tinha domado tão bem ao Leão Negro, que quando ela girava a cabeça este a olhava com uma expressão de amor, igual à de um jovem cavaleiro que ver a dama de seus sonhos.

— Não há cisne dessa vez, mas o cozinheiro prometeu que preparará um dentro de um ou dois dias. — Disse Lyonene.

— Não posso ficar dois dias.

— Oh! Não sabia que ficaria tão pouco tempo, acaso Lorancourt lhe parece um lugar aborrecido? — A voz e a expressão de Lyonene não podiam ocultar sua decepção.

— Não, meu lacaio me avisou que devo retornar. Há vários casos para julgar e meus vizinhos enviam éguas para Tighe.

— Tighe é seu cavalo negro? Eu acreditava que as éguas lhe teriam medo.

— Tighe é muito manso, mas tem razão, ele não está acostumado a nenhuma fêmea, nem égua, nem mulher.

— Sei muito pouco sobre você. Não é casado? — Ficou pálida e suas sobrancelhas arqueadas se elevaram.

Ranulf a estudou.

— Não, não tenho mulher, nem irmã, nem mãe.

A cor voltou para o rosto de Lyonene. Poderia não fazer nenhuma diferença para ela, mas estava contente de saber que não era casado.

A comida chegou ao seu fim e neste momento, vários dos homens começaram a procurar um lugar onde dormir. Lyonene suspirou porque sabia que sua mãe tinha vários afazeres para ela no castelo. Nunca antes tinha se incomodado em fazê-los, inclusive às vezes, se divertia. Mas certamente, nunca tinha se sentido assim por causa de um homem. Não queria abandonar sua companhia e desejava ficar com ele.

— Agora devo atender as necessidades de Tighe. — Ranulf vacilou. — Você gostaria de comprovar quão manso é?

Lyonene olhou para um lado. Estava muito ansiosa

— Sim, eu gostaria, mas terei que ir mais tarde. Minha mãe necessita de minha ajuda.

Ranulf assentiu.


Lyonene não podia entender a sua mãe. Tudo o que fazia estava errado, assim, depois de um momento, Melite disse a sua filha que partisse, argumentando que estava muito desajeitada. Lyonene não via no que tinha atuado diferente nesse dia, mas se apressou em chegar ao estábulo antes que sua mãe mudasse de ideia.

Ranulf acariciava a crina de Tighe e assombrava a si mesmo por sobressaltar-se a cada som e por olhar a cada instante para a porta do compartimento. Teve que conter a respiração quando viu entrar Lyonene, com um grande sorriso triunfal e seus olhos brilhantes por ter corrido através do vento frio.

— Devo retornar logo. — Sussurrou e se comportavam como conspiradores.

Ranulf assobiou baixinho e Tighe virou sua cabeça elegante para ele. Com cuidado, Lyonene se aproximou e o belo cavalo negro roçou seu ombro com o focinho. Ela soltou uma gargalhada enquanto acariciava a linda cabeça.

— Tinha razão. É um encanto. É seu tamanho e seu negrume o que me assustava. Como com você.

Parecia assustada e observava Ranulf que se encontrava muito perto dela. Antes que ele pudesse responder, continuou.

— Por que tem que ser tão grande?

— Por sua força. A armadura de um homem fica mais pesada a cada ano e necessita um cavalo que possa suportar o peso e que não se canse facilmente. Dizem que um dia desses, os cavaleiros terão um cavalo só para carrega-las para as batalha, mas que este será muito grande para ser montado em outras ocasiões.

Lyonene esfregou o nariz do frísio.

— Não posso acreditar que haja um cavalo maior que Tighe, e claro, nem outro mais bonito.

Do outro lado do estábulo, ouviram que dois homens começavam a falar. Lyonene olhou para Ranulf com uma expressão de pânico.

— É meu pai. Não vai gostar de me ver aqui sem a Lucy. Devo me esconder.

A guerra tinha ensinado Ranulf a ter recursos e a pensar com rapidez. Pegou uma capa avermelhada pendurada no fundo do estábulo e a lançou por cima dos ombros de Lyonene, cobrindo seu cabelo com o capuz. Trocou-a de lugar para que desse as costas à porta e estivesse de frente para ele. Ela o olhou sorrindo ligeiramente, confiando plenamente nele, e neste momento a rodeou com seus braços e a beijou, brandamente no princípio.

Eles se esqueceram de William e nenhum dos dois ouviu seus passos ou soube que estavam sendo observados. William viu que Ranulf estava beijando a uma serva, já que só os servos usavam a cor vermelha, e abandonou o estábulo rindo entre dentes. Gostava de saber que seus convidados estavam bem entretidos.

Durante o primeiro contato com os lábios de Ranulf, Lyonene pensou que tinha perdido todos os sentidos. Só notava sua boca, seu corpo, nunca tinha experimentado nada parecido. Inclinou a cabeça para um lado e rodeou seu pescoço com os braços, aproximando-o cada vez mais. Os braços de Ranulf a apertaram mais e Lyonene pôde sentir seu corpo forte e duro, cada centímetro de seu próprio corpo faminto dele.

Ranulf abriu os lábios e ela seguiu seu exemplo, movendo-os sob os seus. Estava agarrada a ele e cumpria com as exigências de sua inquieta boca. O coração de Lyonene pulsava grosseiramente. Nunca o soltaria, não queria que este momento terminasse.

Ranulf a afastou, seu corpo doía ao vê-la com os olhos fechados e os lábios úmidos e abertos.

— Parte. — Sua voz soava severo.

Ela assentiu e abandonou o estábulo em silêncio. Suas pernas fraquejavam e tremiam devido à força da emoção que sentia.

Melite observou como sua filha entrava no grande salão. Estudou esses olhos verdes que olhavam ao vazio.

— Lyonene! Necessito-lhe.

Lyonene estava contente pela chamada do mundo exterior. A cabeça girava com todas essas emoções e pensamentos para poder ficar sozinha.

— Tenho que preparar os banhos para nossos hóspedes e você deve me ajudar. — Todos os membros da Guarda Negra eram nobres e deviam ser tratados como tais.

Lyonene olhou-a surpreendida. Seu pai não permitia nunca que ajudasse a dar banho nos convidados.

— Não sei o que devo fazer.

— Deve comprovar se Meg e Gressy fazem o que mandei, se há sabão e ervas para a água, e que há toalhas limpas para cada homem. Claro que sabe o que terá que fazer.

Um dos aposentos privados em uma ponta da torre se usava como banheiro. Levavam até ali água quente da cozinha que havia abaixo e enchiam e voltavam a encher a banheira. Lyonene já estava muito cansada quando, dentro de algumas horas, Ranulf entrou no banheiro. Lyonene sabia que sua mãe tinha deixado o convidado mais importante para o final, assim não devia se apressar e lady Melite podia reservar a honra de ajudar a dar banho em Ranulf. Sentia-se tão confusa pelo que tinha passado nesse dia, confusa por esse homem que tinha entrado em sua vida com um grande cavalo negro e, que em poucas horas tomou posse de todas suas emoções e pensamentos.

Meg se aproximou de Lyonene e a olhou com malicia.

— Deve dizer lady Melite que sir William a necessita e que deve ir para lá imediatamente.

— Eu não posso... você deve dizer a ela, Meg.

Meg observou a porta do aposento com uma expressão de horror.

— Está ali dentro, morrerei de medo.

Lyonene franziu o cenho e deixou que se fosse. Golpeou timidamente a porta, deixou-a entreaberta e começou a transmitir a mensagem a sua mãe.

— Lyonene, não seja boba! Entre e feche a porta, se não o calor escapará. Bem, agora me diga qual é a mensagem.

Tentando não cruzar seu olhar com de Ranulf, cujos olhos podia sentir ardendo em suas costas, comunicou a mensagem a sua mãe.

Melite colocou o manto sobre os ombros.

— Peço mil desculpas, milorde, — disse Melite — mas preciso ver o que meu marido deseja. Minha filha lhe ajudará com o banho, mas advirto que deverá ter paciência, porque para esta tarefa é inepta. Escute-me, Lyonene, — se dirigiu a sua filha — faça o que te mandei, mas recorda sua última experiência e tome cuidado em não molhar a capa e o manto. Voltarei em um momento, mas agora depressa porque a água está esfriando.

Uma vez a sós, Lyonene não podia olhá-lo. Sua voz ressoou e a tristeza que havia nela trocou seu estado de ânimo.

— Não necessito ajuda, não é necessário que fique.

Ela virou-se para sorrir para ele e o observou com os olhos arregalados, quando ele se sentou na banheira fumegante. Tinha costas largas, peito espesso e braços grandes com músculos bem definidos. A luz do fogo reluzia em sua pele suave e úmida, bronzeada pelo sol. Todo seu peito estava coberto por uma capa espessa de pelo negro encaracolado. Lyonene não pôde evitar voltar a rir.

— É verdadeiramente um leão negro.

Em seguida olhou para outro lado, horrorizada por seu atrevimento. Ranulf devolveu o sorriso e ambos relaxaram.

— Sua mãe tinha razão. A água está esfriando e minha paciência vai diminuindo. — Agarrou uma barra de sabão. — Vamos, me lave as costas.

Enquanto se aproximava, recordou as palavras de sua mãe. Retirou o manto de seus ombros, a capa aberta nos lados e o cinto que usava por baixo. De uma pequena bolsa de couro, tirou uma tesoura de ouro e cortou as estreitas mangas de sua túnica e as deixou com o resto de sua roupa.

— Assim não se molhará.

Ranulf observava como tirava a roupa e se alegrou de que a água estivesse esfriando. Unicamente vestida com a túnica dourada, que ficava justa como uma segunda pele, não havia nenhuma parte de seu belo corpo que Ranulf não pudesse ver.

Seus seios se elevavam em cada respiração e ele lembrava muito bem a sensação deles contra o seu peito.

Em silêncio, Lyonene agarrou o sabão da mão de Ranulf e fez um pouco de espuma. Não sabia bem por onde devia começar ou que devia fazer. Encolheu os ombros e pensou que deveria dar banho nele como fazia com ela mesma. Todas suas dúvidas desapareceram a partir do momento em que tocou a suave e cálida pele de suas costas. Seus grandes músculos se amontoavam sobre a superfície brilhante, criando vales e colinas, e onda de suaves níveis. Suas mãos se deleitavam com as ondulações, causando uma tensão nada desagradável em seu pescoço.

Continuou com os contornos de suas largas costas até chegar aos seus braços, ensaboando generosamente o pelo de seus antebraços. As mãos de Ranulf eram longas e tinham uma forma muito bonita; as unhas eram finas e estavam bem cuidadas. Agradava especialmente a sensação de tocar a dura palma da mão, com seus dedos finos e sensíveis, pois suas calosidades faziam pensar na força desse enorme homem sentado docilmente e perdido na exploração de suas mãos.

Seu peito de aço e granito só ficava suavizado pela pele bronzeada que o cobria, e pelo espesso arbusto de pelo negro encaracolado. Ensaboou essa mata azeviche com vigor, vendo como se enredavam entre seus dedos e observando suas pequenas e leves mãos contra essa massa escura.

O pescoço era o indicativo de como o cavaleiro moderava e reservava sua força; seus músculos se alargavam e se esticavam graças a anos de treinamento exaustivo. Com seus dedos, localizava o tendão de aço e o seguia do pescoço por toda a coluna vertebral. Apertava com muita força, mas Ranulf não parecia dar-se conta. Ela sorriu e o olhou no rosto pela primeira vez.

Ele a observou com uma expressão estranha. Seja a razão que fosse ela sentiu que ruborizava. Não sabia no que errou. Sua mãe tinha ordenado que desse banho no convidado e tinha obedecido. Sabia que estava desfrutando da tarefa, mas estava tão visível em seu rosto?

— Acredito que te desagrado. Minha mãe nunca me ensinou como fazer. Sou acaso muito lenta?

— Não. — sua voz não era mais que um sussurro. Seguiu falando, mas dessa vez com mais dureza. — Se quiser parar...

— Mas ainda não terminei... — ela tentou não ruborizar. — Feche os olhos, — pediu sem poder suportar mais que a examinasse.

Agora podia continuar tranquilamente e, ao mesmo tempo, podia observá-lo, quieto e tranquilo, confiando nela, esperando pacientemente que ela terminasse de lavá-lo. Passou seus finos dedos por seu bonito rosto, tocando a pequena cicatriz que tinha na bochecha, sem poder evitar seus lábios de curvas esculturais. Seus próprios lábios ardiam e, inclusive sentia cocegas na boca quando seu corpo recordava o beijo que trocaram. As pestanas de Ranulf se moveram como se fosse se abrir, assim, rapidamente passou um dedo cheio de sabão por cada pálpebra. Não queria que a visse, porque tinha medo que seus pensamentos se refletissem no rosto. Devia recordar que esse homem era um conde do rei. Quando se fosse em poucos dias, não queria ficar com a lembranças que mais tarde pudessem envergonhá-la.

Jogou um pouco de água quente para enxaguar o rosto e ensaboou o cabelo comprido com grandes mechas negras, rebeldes e encaracolados. Esfregou o couro cabeludo com força.

— Me diga se te machucar.

Seu gemido a fez rir, porque não deixava nenhuma dúvida do que pensava sobre sua habilidade para lhe fazer mal. Jogou um balde de água sobre a cabeça de Ranulf para enxaguar o cabelo.

Foi para o outro lado da banheira, indicou que tirasse uma perna da água e ignorou seu apagado protesto. Estava encantada de ver que suas pernas também estavam cobertas de pelo curto e escuro.

Quando terminou com as duas pernas, olhou-o e viu uma expressão de satisfação em seu rosto; tinha os músculos relaxados e o cabelo úmido grudado ao rosto. Não pôde evitar voltar a rir, e ele a olhou surpreso.

— Meu pai, minhas criadas e seus homens andam nas pontas dos pés, como se tivessem medo de você, mas neste momento, não têm, precisamente, um aspecto muito aterrador. Agora o grande Leão Negro se parece mais a um filhotinho molhado.

Ranulf lhe lançou um de seus olhares, e ao mesmo tempo fez uma careta divertida.

— Não posso entender como uma dama tão encantadora como sua mãe, pode ter tido à maldição de ter uma filha tão mal-educada. Agora, já basta de zombar de mim e traga água para me enxaguar.

O homem se levantou dando as costas a Lyonene, que observou seu corpo nu, brilhante pela água. A luz da lareira brincava com as gotas que escureciam e realçavam seus bronzeados músculos.

Ranulf lançou um olhar por cima do ombro, perguntando o porquê de uma pausa tão longa. Apesar de suas boas intenções, Lyonene tinha ensopado a parte da frente de sua justa túnica, deixando muito pouco à imaginação.

Ele se virou rapidamente.

— Lyonene, a água está esfriando! — Protestou Ranulf.

A moça não pareceu se dar conta da desnecessária brutalidade de seu tom, mas em seguida ficou de pé no tamborete e jogou água sobre seu magnífico corpo. Ela se virou quando ele alcançou uma toalha que estava esquentando frente ao fogo, e não voltou a olhar até que Ranulf se plantou diante dela, vestido com uma pequena tanga.

Com um sorriso zombador, o homem lhe disse:

— Asseguro que nunca tinham me dado banho assim desde os tempos em que minha mãe o fazia. Tem certeza de que não fez isso muitas vezes?

— Não, só uma vez. — As lembranças a fizeram sorrir, enquanto tratava de controlar a risada tampando com a mão a boca. — Esse dia terminou tão mal, que meu pai não permitiu que me aproximasse nunca mais de minha mãe quando ela dava banho a alguém.

Ranulf se sentou em um banco perto da lareira. Tratava de não pensar no vestido transparente e os olhos de Lyonene que brilhavam divertidos. Ranulf se dava conta de que estavam sozinhos nesse pequeno aposento. Sabia que devia se vestir e reunir-se com seus homens, mas não podia. Ainda não podia cobrir a pele que ela havia tocado.

— Eu adoraria escutar a história.

— Ocorreu neste mesmo aposento quando eu tinha doze anos.

— Faz muito tempo, tenho certeza. — Lyonene ignorou o sarcasmo com dignidade.

— Um velho cavaleiro veio visitar meu pai, eu o considerava um chato que sempre queria que me sentasse em seu colo. — Lyonene não viu como Ranulf franzia o cenho. — Utilizava um chapéu com uma grande pluma vermelha que enrolava em cima de sua cabeça e se movia enquanto falava, era algo que fazia constantemente. Sempre vinha aqui para escapar dele. Uma manhã, subi com meu novo falcão e meu cachorrinho. Brincamos um momento, mas Lucy me chamou para que a ajudasse em alguma tarefa, assim deixei meu falcão e meu cachorrinho. Quando voltei, minha mãe estava ajudando o velho a tomar banho. Não vi meus animais, mas pensei que minha mãe os tinha afugentado do aposento. Abaixo, Gessy e o cozinheiro tinham começado a brigar, por isso minha mãe abandonou o aposento e me pediu que terminasse de dar banho no homem.

— Exatamente como hoje. — Acrescentou Ranulf.

Lyonene observou seu corpo quase nu que mostrava sua evidente força e poder e, por um momento, pensou que era muito pouca a semelhança entre os dois homens.

— Tudo passou muito rápido. Dirigi-me para a lareira por um momento e, de repente, o velho cavaleiro saiu da banheira e começou a se vestir. Ele pulou sobre mim e uma das cordas da calça se rompeu, assim caiu até os tornozelos. Logo ele tropeçou e caiu de frente. O falcão lançou um grito e o cachorrinho saiu de seu esconderijo saltando sobre o chapéu com a pluma vermelha que estava no banco.

O sorriso de Ranulf e o brilho em seus olhos animaram a Lyonene a prosseguir.

— O que aconteceu então? Espero que tenha corrido para sua mãe.

— Não, não podia, porque receio que comecei a rir. A porta se abriu de repente e meu pai entrou gritando que não deveria ficar sozinha com nenhum homem, mas então, parou ao ver o velho cavaleiro estendido de barriga para baixo sobre um atoleiro de água, com o falcão voando em cima de sua cabeça e o cachorrinho posado sobre seu flácido traseiro, movendo a cauda e uma pluma vermelha quebrada e pendurando na boca.

Ranulf começou a rir, um acontecimento quase inaudito.

— Quase posso ver!

— Ele ficava gritando que foi atacado por demônios, centenas de demônios.

Ambos riram imaginando a cena que Lyonene acabava de contar.

— Tenho certeza de que sua risada não ajudou a acalmar o mau gênio do pobre velho. Espero que seu pai a tenha obrigado a se desculpar.

— Não, não me obrigou. Não me disse nada, mas me levou nas costas até meu quarto. — Disse Lyonene, rindo.

—Te levou nas costas? — Ranulf secou uma lágrima.

— Sim, estava rindo tanto que caí no chão e não era capaz de andar. — Respondeu Lyonene se desfazendo em lágrimas uma vez mais.

Melite abriu lentamente a porta. Foi recebida por uma Lyonene ensopada e um Ranulf quase nu que chorava de tanto rir. Lyonene viu que sua mãe lhe dedicava um sorriso.

— Estava contando a história do cavaleiro da grande pluma vermelha.

Melite se aproximou, rindo entre dentes.

— Minha filha não conhece toda a história. Depois que seu pai a levou até seu quarto, o velho cavaleiro se negou a ficar um minuto a mais em Lorancourt, assim William e eu o ajudamos a preparar sua bagagem e a selar seu cavalo, mas não nos atrevíamos a olhá-lo no rosto ou a falar do que tinha acontecido neste aposento. Justo quando o homem estava montado sobre seu cavalo, à corda que o mantinha preso se rompeu e lhe deu um golpe no tornozelo. Então, William e eu, por muita vergonha que nos causasse, não pudemos evitar cair na gargalhada como Lyonene. O homem foi gritando que ia nos demandar assim que chegasse a Londres. Nunca mais tivemos notícias dele.

O resto da história que tinha contado Melite trouxe novas gargalhadas e os três riram até que doeram todos os músculos.

Foi Melite quem recordou que já era a hora do jantar e que o convidado devia se vestir.

Uma vez vestido com calças perfeitamente confeccionadas, uma túnica e um tabardo, Ranulf se preparava para abandonar o aposento. Melite se adiantou em busca dos serventes e ele ficou uns momentos a sós com Lyonene.

— Nunca tinha desfrutado tanto de um banho e me parece que nunca tinha rido tanto. Muito obrigado.

Observou seu belo rosto com os olhos brilhantes ainda das risadas, imaginou-a em Malvoisin e lhe agradou muito a ideia.

O jantar foi leve, sopas e guisados, pão esquentado, frutas conservadas em mel, especiarias e queijos. Chegou, por fim, o trovador que William tinha contratado e a noite transcorreu tranquilamente, enquanto os comensais escutavam longas histórias sobre antigos cavaleiros, Robin Hood e a corte do rei Artur. Sem preparação prévia, compôs uma canção sobre a beleza de Lyonene. Cantou-a com entusiasmo já que geralmente, as filhas dos barões não são muito bonitas, mas a tradição pedia sempre uma canção de louvor sobre as qualidades da jovem esposa.

Ranulf se lembrou das canções que os trovadores tinham composto para Isabel, essas canções que tinham tido tanta influência em um moço de apenas dezesseis anos. Viu como Lyonene sorria ao trovador. Em um momento de ciúmes, pensou em agarrar o alaúde e cantar ele mesmo uma canção, mas sabia que haveria tempo para isso. Sim, começava a sentir que haveria tempo para essas coisas. O sorriso que Lyonene lhe lançou o reconfortou e ele devolveu.

A comida tinha terminado e as mesas estavam amontoadas contra a parede. Já era noite e o castelo começou a esfriar. Ranulf não desejava que chegasse o dia seguinte, pois tinha medo de despertar e se dar conta de que tudo tinha sido um sonho.

Lyonene não sentia tais medos e esperava com ânsia que o dia seguinte fosse igual ao que estava terminando. Desejou boa noite aos seus pais e aos convidados e subiu as escadas de caracol até seu quarto. Encontrava frente à porta discutindo com a Lucy, quando Ranulf apareceu.

— Posso ser de alguma ajuda? — Perguntou ele.

Lyonene o olhou com desespero.

— A irmã de Lucy, que vive no povoado, está doente, mas Lucy tem medo de me deixar sozinha embora seja só por uma noite. Prometi que não vai me acontecer nada mau, se estou rodeada de tantos guardas.

Ranulf tomou a mão roliça da anciã e a beijou.

— Se sentirá mais tranquila se fizer um juramento que protegerei a essa dama com minha vida?

Lucy suspirou, mas o tratamento que tinha recebido de Ranulf tinha surtido mais efeito do que estava disposta a admitir. Um conde do rei tinha beijado sua mão!

— Quem protegerá a minha senhora de jovens e bonitos cavaleiros como você?

— Lucy! — Gemeu Lyonene.

Ranulf fez uma reverência ante a rechonchuda mulher.

— Ouvi que lady Lyonene guarda em seu quarto cães ferozes e um grande falcão que atacam aos intrusos como uma manada de demônios.

Lucy não pôde evitar rir, pois conhecia muito bem a história.

— É um par de... Não têm nem um pingo de seriedade. Bom, vou... e espero não viver para me arrepender — deixou cair seus braços e se foi.

Lyonene e Ranulf observaram como Lucy partia caminhando como um pato, resmungando entre dentes. O silêncio trouxe uma sensação de desconforto, estavam muito calados.

— Espero que o quarto e todo o resto dessa casa sejam de seu agrado.

Ranulf passou um dedo pela bochecha de Lyonene.

— Gosto de tudo em Lorancourt.

Sabia que não podia estar tão perto dela na escuridão do corredor sem tomá-la em seus braços.

— Boa noite. — Disse Ranulf com brutalidade enquanto partia.

Lyonene entrou em seu quarto e começou a se despir.

Estar sozinha sem Lucy proporcionava uma agradável sensação de liberdade. Estava de camisola de pé em frente à lareira. Tinham passado tantas coisas nesse dia. Lembrou-se das risadas que compartilharam durante a corrida. Afastou-se da lareira que fazia muito calor.

Subiu na alta cama de plumas e se agasalhou com o grosso cobertor de lã. Exausta como estava, dormiu em seguida.


Durante um momento, Ranulf andou por seu pequeno quarto com seus silenciosos sapatos de couro. Fazia quinze anos que o moço que uma vez tinha sido, dormiu no quarto dos pais de uma moça, sonhando com uma vida feliz. Desde então, ele tinha mudado, se convencendo que aquilo que procurava não era possível. Existiam poucos matrimônios felizes e nunca mais tinha considerado a possibilidade de tal futuro. O rei Eduardo insistia em que se casasse com uma princesa castelhana, muito rica, mas muito feia. Quase tinha se resignado ao destino desse casamento. Mas agora tinha aparecido Lyonene.

Precisava pensar um pouco. Acaso era amor o que sentia, ou simplesmente se tratava de pecado e luxúria? Em seguida descartou esse último. Deixou-se levar várias vezes pela luxúria, mas jamais tinha considerado a ideia de se casar com a mulher em questão.

Por um momento, formou na cabeça a imagem de Lyonene sentada ante uma grande lareira em Malvoisin, com um bebê são e gordinho no tapete. As luzes brincariam com seu cabelo e quando ele entrasse na sala, ela se levantaria para saudá-lo.

Fez desaparecer essa imagem com a mão.

Deixou-se cair em um lado da cama. Tinha aprendido a arte da guerra e, às vezes, tinha tido medo antes de uma batalha, mas nunca havia sentido tanto medo como nesse momento. Seria capaz de mudar de novo sua vida e seu coração por uma jovenzinha? Seria capaz de superar uma traição de Lyonene?

Em silêncio, abriu a porta de seu quarto e se dirigiu para os aposentos de Lyonene. Estava deitada de barriga para cima, com seu rosto para ele. Tinha uma mão sob as mantas e a outra com a palma para cima, sobre seu rosto.

Tocou-lhe o cabelo e pegou uma encantadora mecha que caía de um lado do colchão, deixando que o cacho se enroscasse em seu pulso. As pestanas de Lyonene eram como pequenas asas em suas bochechas e sua boca se franzia, sendo ainda mais tentadora para Ranulf.

— O que aconteceria se eu colocasse meu pequeno coração em suas mãos, meu amor? — Sussurrou. — Você cuidaria ou o rejeitaria? — Ranulf brincava com seu cabelo, tocando essa fina textura com a ponta dos dedos. — Se me tratar bem, eu te amarei mais do que qualquer mulher foi amada, mas...

Seu rosto se escureceu e se Lyonene tivesse despertado, teria visto o rosto que fez merecedor do nome de Leão Negro.

— Se for falsa, se estiver somente brincando, viverá num inferno sobre a Terra, como jamais conheceu.

Suas feições relaxaram e, cuidadosamente, tocou-a com a ponta de seus dedos. Ela suspirou enquanto dormia e seus olhos piscaram. Ranulf conteve o fôlego esperando que não despertasse. Lyonene virou para o outro lado, mostrando um ombro nu. Ranulf se levantou, beijou brandamente sua pele de cetim e a cobriu com a manta.

— Em breve a esquentarei e não necessitará nem de roupa nem mantas. Recorde, pequena, a farei escolher entre o céu e o inferno.

Abandonou o quarto para se dirigir ao seu.

 

Capítulo 03

Na manhã seguinte, Lyonene dormiu até tarde, já que Lucy não estava ali para despertá-la. Ouviu ruído de cavalos e de metal contra metal. Abriu um pouco a portinhola para ver o que passava embaixo. Seu pai tinha um campo preparado para treinamento, tinha tirado a velha areia de um grande terreno e havia voltado a encher com areia fina e suave. Ali estava a Guarda Negra com todas suas armas, as armaduras de ferro e um calçado que mostrava a cor negra sob o sol da manhã. Nunca tinha visto os homens de seu pai treinar tão duramente e com tanto entusiasmo, como dos de Ranulf. Dois homens lutavam entre si e outros dois combatiam com grandes espadas. Outro saltava, sem utilizar as mãos, sobre seu cavalo uma e outra vez, carregando a armadura de ferro sem problemas. O coração de Lyonene pulsou forte quando viu como o Leão cavalgava para um grande poste colocado no terreno e o partia em dois de um só golpe.

A moça sorriu satisfeita e fechou as venezianas. Quando quase tinha terminado de se vestir sua túnica de lã cor marfim e com a folgada capa escarlate, ouviu o som de uma trombeta que anunciava a chegada de mais convidados. Seu coração quase caiu porque sabia que mais convidados significava mais trabalho e menos tempo para atividades de prazer.

Ouviu as vozes e se aproximou do grande salão. Seu pai apresentou a dois homens, sir Tompkin e sir Hugh, um era alto e o outro baixo, mas ambos eram fortes e robustos. Melite pediu a Lyonene que conduzisse sir Tompkin a um dos aposentos destinados aos convidados.

Durante todo o percurso pelas escadas, William não deixou de falar com entusiasmo de sua filha: de sua beleza, de seu encanto, de suas perspectivas de matrimônio... Mas Lyonene quase não o escutava, de tão consternada que estava ao ver que seu dia estava arruinado.

— Warbrooke! — Ordenou o homem bruscamente. — Se assegure de que minha cota de malha esteja limpa e não descuide de suas obrigações só porque seu irmão está aqui.

Ao ouvir o nome Warbrooke, Lyonene levantou a cabeça subitamente. Supôs que o jovem loiro que via devia ser o irmão de Ranulf. Quando o jovem abandonou o aposento, Lyonene arrumou uma desculpa para segui-lo.

— É o irmão do Leão Negro? — ela o deteve em um corredor escuro. Era muito diferente de seu irmão, cabelo claro, sorridentes olhos azuis e um olhar malicioso que percorria seu corpo.

— E o que fez meu irmão para despertar o interesse de uma dama tão encantadora? — respondeu ele.

Lyonene ruborizou, seus sentimentos eram evidentes para todo mundo.

Geoffrey sorriu para jovem de faces ruborizadas. Ranulf tinha se dado bem dessa vez, geralmente considerava que seu irmão tinha um gosto péssimo para mulheres. O que dizer das megeras que conhecia na corte! Só as olhando era o bastante para revirar o estômago de um homem.

— Suponho que é lady Lyonene, — prosseguiu o jovem — Sir Tompkin está enfurecido por sua culpa há vários dias. Parece que muitos aspirantes a pretendente de suas horrendas filhas falam em excesso sobre sua beleza. Agora vejo quais são as razões de tantos louvores.

Lyonene sorriu.

— Apreendeu muito bem a arte de fazer a corte e não se parece absolutamente com seu irmão, embora seu sorriso seja um tanto parecido.

Geoffrey perdeu toda expressão.

— Sorriso? E o que você sabe do sorriso do meu irmão.

— Sei que tem um sorriso agradável e que ri com gosto, embora possivelmente muito alto.

O jovem escudeiro ficou olhando fixamente Lyonene, que franziu o cenho de tão intenso que foi o olhar.

— Parece que falei algo que não devia. — Disse a jovem. — Não pretendia ofender ao seu irmão quando disse que ria muito alto, mas é que as paredes tremem. Minhas criadas se assombram do ruído que faz.

Geoffrey se repôs.

— Ranulf está esperando embaixo e... — começou a dizer.

— Oh, não. — Repôs Lyonene. — Está com seus homens no campo.

Geoffrey dedicou um amplo sorriso e ela olhou para outro lado.

— Me acompanhe, assim poderei saudar esse meu irmão risonho. Tenho que reconhecer que o está confundindo com outro. Tem o cabelo negro e... ?

— Oh, sim. E também tem olhos negros e seu cavalo é do mais manso.

Geoffrey franziu o cenho e sacudiu a cabeça.

— Que Ranulf permita que alguém toque seu cavalo vai além de meu entendimento. Imagino que esta informação não terá a mínima importância comparada com algo, que sim deveria me inquietar, mas pelo que diz respeito a mim, sou Geoffrey de Warbrooke, modesto escudeiro de sir Tompkin.

Lyonene o olhou.

— Não se parece em nada com o Leão. Ali está! — Dirigiu-se para ele a toda pressa.

Geoffrey a olhou completamente desconcertado. Ranulf sempre tinha detestado que o chamassem Leão Negro, na realidade, sempre tinha odiado qualquer referência a sua pele muito morena, por uma razão que ele desconhecia. Tinha escutado histórias sobre seu irmão e via como o povo comum o temia. Só na corte, entre seus semelhantes, o tratavam sem medo. Essa jovem, uma simples filha de barão, tinha chamado Ranulf de Leão.

— Já vejo que minha presença não é necessária. — Disse Geoffrey enquanto ficava de pé ao lado de seu irmão, que olhava a Lyonene fixamente nos olhos.

Ranulf se virou surpreso.

— Geoffrey! — Agarrou a seu irmão, menor em tamanho e o abraçou, dando um beijo em cada bochecha e um leve beijo na boca. — Não sabia que já tinha chegado. Onde está esse velho odioso a que anda seguindo? Não me diga que o sagraram cavaleiro e que veio se unir a minha Guarda Negra!

— Já sabe que falta ainda um ano para que seja sagrado cavaleiro e, além disso, sou muito preguiçoso para me unir a uma guarda como a sua. Não quero suar até acabar cada dia. Não entendo como esta encantadora dama o suporta. Não conhecia esta sua paixão. Soube manter bem o segredo.

Lyonene se virou para olhar como um homem da Guarda Negra jogava uma lança na direção a um alvo longínquo. Não queria olhar a nenhum dos dois irmãos.

— Devo retornar à torre. Vou te ver durante o jantar? — Disse lançando um olhar fugaz a Ranulf.

Ele tomou sua pequena mão e a acariciou antes de aproximá-la dos seus lábios. Nenhum dos dois percebia a quantidade de pessoas que os observava. Ela levantou a saia e começou a correr para a velha torre de pedra. Só ao chegar aos degraus de madeira que levavam ao segundo andar, lembrou-se de caminhar corretamente.

— O que pensa de lady Lyonene? — Ranulf tentava controlar o entusiasmo em sua voz. Mas não podia enganar Geoffrey, este conhecia muito bem seu irmão.

—Ouvi que tem muito temperamento, e que é de natureza briguenta como uma pega-rabuda2 e... — Geoffrey começou a rir a gargalhadas ao ver o rosto de seu irmão, deformado pela raiva o que fazia quase irreconhecível. — Não me mate, irmão, por favor. Não fazia mais que brincar.

Ranulf relaxou e olhou timidamente para outro lado.

— Admito que essa jovem cause um estranho efeito em mim. Mas me diga à verdade o que pensa dela.

— Ouvi que o tem feito sorrir. — Neste momento, e para sua grande surpresa, Geoffrey viu um tímido sorriso no rosto de seu irmão mais velho.

— Não consigo entender, essa moça me enfeitiçou. Não é a mulher mais bela, apesar de ser só uma menina?

— Sente-se ao meu lado, irmão, e me fale dela. Faz muito tempo que a conhece?

Ranulf se apoiou contra a parede atrás do banco de pedra e passou a mão pelos olhos afastando o cabelo molhado de suor.

— Vim aqui para te ver, mas ontem pela manhã conheci minha leoa. Não sei o que está ocorrendo. Do primeiro momento em que contemplei esses olhos verdes, não posso ver nada mais. Ontem de noite quase não dormi e agora tenho medo de morrer, porque não consigo me concentrar em meu trabalho. O que me ocorre?

Geoffrey ficou atônito e reflexionou para responder.

— Meu irmão, acredito que se apaixonou pela moça.

— Apaixonado! — Repetiu Ranulf com ironia. — Pensei nisso, mas não posso acreditá-lo. É uma menina. Minha filha Leah quase teria sua idade.

— Bom, sempre poderia tê-la como amante e, quando se cansar dela, dê-lhe como esposa a um de seus homens. — Ranulf franziu o cenho, mas Geoffrey se pôs a rir. — Então, deve se casar com a jovem. Vejo que ela também sente o mesmo por você, embora não entendo por que razão. Estou totalmente seguro de que será um marido desastroso.

— Não posso me casar com ela. — Quase não se podia ouvir a voz do conde.

— Ranulf, deve esquecer Isabel! Muitos homens não têm sorte em seu primeiro matrimônio. Você era só um menino e ela era só alguns anos, mais velha. Não pode viver constantemente no passado. Essa mulher te adora, se case com ela antes que outro a leve. É certo que é somente a filha de um barão. Possivelmente, o grande conde de Malvoisin não queira rebaixar-se a... Entende minhas palavras? Se você não se casar com ela, outro o fará. O que você acha da ideia de outro homem a segurando em seus braços, beijando-a... ? Ranulf me solte! — Geoffrey se levantou do chão empoeirado aos pés de Ranulf, se libertando da mão do irmão. — Vou limpar a cota de malha de sir Tompkin. Pensará no que te disse?

Geoffrey deixou seu irmão sozinho.


—Lyonene! Repeti quatro vezes a pergunta. Onde está com a cabeça?

— Sinto muito, pai. O que me perguntou?

— Agora já não importa. O que há de errado com você hoje?

—Acredito que o problema de nossa filha está ali fora. — Disse Melite olhando seu marido. A mulher abandonou por um momento a costura.

William franziu o cenho.

— Sir Tompkin? — Disse incrédulo.

— Oh! Sir Thomas, é obvio! Esse velho gordo! — Respondeu Lyonene com um tom de repugnância na voz.

— Não tolerarei uma falta de respeito como essa em minha casa, jovenzinha.

— William, é o conde de Malvoisin o que está causando tantos problemas a Lyonene. — Sussurrou Melite.

— Ranulf de Warbrooke! Pensa no conde do rei?

Lyonene ficou de pé frente a lareira espreguiçando com uma graça felina.

— Ele não é bonito? Ele não é o homem mais amável e mais doce? Ele não tem um esplêndido cabelo encaracolado?

William arregalou os olhos e olhou boquiaberto a sua esposa, que mostrava um sorriso de satisfação.

— Lyonene, vai se pentear um pouco. Diga a Lucy que acenda a lareira e fique em seu quarto até a hora de jantar. — Ordenou Melite a sua filha.

Lyonene obedeceu a sua mãe sem protestar.

— Agora, me diga, por favor, minha esposa, o que está acontecendo em meu próprio castelo? — Perguntou William a Melite quando ficaram sozinhos. — Minha filha está perturbada pelo Leão Negro? Não pode esperar que um sonho como esse se realize. Ela se casar com um conde é tão improvável quanto eu me casar com a filha do rei.

— Primeiro teria que perguntar para ele.

— Perguntar! Acredita que sou tão idiota? Vai rir na minha cara. Já é suficiente poder contar aos meus amigos que um conde me visitou, mas que aspire a ter um conde como genro... ! Não, não vou aguentar que zombem de mim.

— William, não percebeu que nosso conde também está tão perturbado, como você diz, por nossa filha? — Ao ver que não respondia, Melite sorriu. — Olhe pela janela. Verá que digo a verdade.

Incrédulo, William se dirigiu para as janelas fechadas e baixando uma das persianas, pôde ver o que se passava fora. Ranulf estava sentado em um banco, com a cabeça apoiada contra a parede e olhando o vazio. Enquanto William o observava, alguns guerreiros da Guarda Negra olhavam perplexos ao seu lorde.

William voltou para o lado da lareira e sentou na cadeira.

— Não sei se aceitará a nossa filha como esposa, mas podemos perguntar. — Prosseguiu Melite. — Não se dizia, faz muito tempo, que o conde de Malvoisin tinha se casado com a filha de um barão, uma mulher a quem amava?

O rosto do William se iluminou.

— É assim! Quando era só um moço, causou muito escândalo por casar-se com essa mulher. Dizia que o rei Enrique estava muito aborrecido. Depois de cinco meses do casamento nasceu um bebê. Quando a mulher e o menino morreram uns anos depois, diz que ele ficou louco pela dor e que nunca mais voltou a rir. — Virou para sua mulher.

— Continue. Como é o resto da história? — Pediu ela.

— Dizem que a pessoa que o faça rir será...

— Sua mulher, eu acredito que é assim a lenda. Tenho certeza de que começou como uma brincadeira, e não sei por que razão, mas lorde Ranulf não é feliz. — Melite sorriu com doçura a seu marido e deduziu que William recordava a risada de Ranulf no dia anterior. — Quer que envie um pajem para procurar ao nosso convidado? Não acredito devemos prolongar a agonia dos apaixonados. Não quero que meus netos nasçam cinco meses depois da cerimônia.

Sentaram-se em silêncio até que Ranulf apareceu diante deles, vestido com seu traje de treinamento, com suas calças justas, a túnica curta e com o tabardo que quase não chegava às coxas. Não deixava de olhar para as sombras provenientes do grande salão e para o enorme buraco da escada.

— Lorde Ranulf... — começou William.

Não podia entender o que viam suas mulheres nesse enorme homem sentado diante dele que pudesse provocar tanto amor. Sentiu calafrios ao recordar a força que tinha demonstrado essa manhã. Amava a sua filha e esperava não cometer um engano.

— Minha filha Lyonene não está... casada e tem idade para isso. — Prosseguiu o barão. — Me deixou louco durante um ano, recusando a dúzias de homens que desejavam contrair matrimônio com ela.

Custava continuar, já que o Leão Negro tinha começado a franzir o cenho e tinha o olhado com seriedade. Melite decidiu então ajudar ao seu marido.

— O que William quer dizer é que temos razões para acreditar que Lyonene te aceitaria, e por isso oferecemos a mão de nossa filha. — esclareceu Melite.

William continuou:

— Posso oferecer um dote de dois feudos e meio de cavaleiro3. Lyonene é também minha herdeira e, depois de minha morte, será a proprietária de Lorancourt.

Ranulf tratou de acalmar os batimentos acelerados de seu coração. Não importava o dote, mas por respeito a William devia aparentar ter isso em consideração. As propriedades de Warbrooke incluíam doze castelos, e um deles era Malvoisin. Os outros onze eram tão grandes como Lorancourt. Cada um dos castelos era mantido por vários feudos de cavaleiro, desde cinco até mais de cem. Ranulf não sabia quantas centenas de feudos de cavaleiro possuía.

Melite parecia ler seus pensamentos. Apoiou sua mão sobre a enorme mão de Ranulf que repousava sobre o joelho.

— Concorda comigo se disser que parece ter começado a apreciar a minha filha. O que me interessa é seu bem-estar e não falar de feudos de cavaleiro nem de heranças. Dizem meus olhos e sentidos a verdade?

— Sim, ela é o prêmio. Nenhum dote poderia igualá-la.

William perdeu as mensagens que Melite e Ranulf se enviavam. Estava pasmo.

— Então, estamos de acordo? — Concluiu.

— Com uma condição. Que primeiro pergunte a Lyonene. Não quero que seja forçada a se casar. — Disse Ranulf. — Deve decidir livremente. Não existe outro homem? Outro pretendente?

William agitou a mão.

— Não, e pode acreditar em minha esposa, a moça aceitará de boa vontade. Vai querer convidados da corte na cerimônia?

Ranulf considerou a proposta por um momento.

— Não, não posso avisar a ninguém, já que Eduardo e Leonora trariam todos seus criados, quase trezentas pessoas, embora alguns dos outros condes viajam com bem menos pessoas. — Viu o olhar de horror de William. Hospedar e dar comida a tantos convidados! Ranulf prosseguiu: — Faz frio agora, muito frio para um torneio, assim se não for uma ofensa para você, para sua esposa e para lady Lyonene, o casamento será simples e partirei logo com minha esposa para Malvoisin.

O sentimento de alívio de William era quase evidente.

— Sim, será como você deseja. Agora, falemos do dia em questão. O anúncio deve fazer durante três domingos. Hoje é sábado. Se assinarem o compromisso hoje, podemos organizar o casamento para dentro de três semanas. Está de acordo, milorde?

— Sim, é obvio. — Ele se levantou. — Então partirei amanhã, já que tenho muitos preparativos que ultimar, e voltarei dentro de três semanas. — Seus olhos brilhavam ao olhar a sorridente Melite. Impulsivamente, colocou suas mãos nos ombros dela e a beijou na bochecha.

Melite agarrou ao seu futuro genro pelo braço e o acompanhou até as escadas.

— É quase a hora do jantar. Mandei avisar aos seus homens, talvez, você gostaria de trocar de roupa. — Convidou-o.

Em silêncio, Ranulf subiu os gastos degraus que conduziam ao seu quarto. Enquanto se lavava lentamente e colocava uma túnica e um tabardo de veludo azul escuro, riu entre dentes. O que pensariam os membros da Guarda Negra se soubessem que seu líder estava nervoso como um menino, e tudo por uma leoa de olhos cor de esmeralda?


Lyonene olhava fixamente pela janela. Necessitava de um sopro de ar frio que a fizesse reviver. Estava de costas para seu pai. Ao inteirar-se da notícia, quase tinha desmaiado. Lorde Ranulf estava de acordo em se casar com ela! Não podia evitar sentir um pouco de rebeldia pelo fato que fosse um matrimônio contratado, sem seu conhecimento prévio. Lembrou-se de sua prima Ana. Um pajem a tinha avisado de que seu pai a requeria no salão de abaixo. Algum instante mais tarde ela já estava casada com um homem que jamais tinha visto.

Lyonene suspirou profundamente e pensou que, a final de contas, tinha sido afortunada por ter um bom pai. Além disso, Ranulf tinha estipulado que ela devia aceitar livremente a união. Fechou os olhos e avançou um pouco para sentir o ar fresco nas bochechas. Passar o resto de sua vida como tinha passado esse dia! Que a beijasse quando ela o desejasse!

— Minha filha, dará uma resposta a esse homem.

— Sim pai, eu me casarei com ele. — Respondeu com delicadeza.

William sacudiu a cabeça e abandonou o recinto. Não podia acreditar que sua filha fosse se converter em condessa. Não viu Ranulf até que tropeçou nele.

— Ela está de acordo? — Perguntou o cavaleiro negro.

— Sim, ela está de acordo. — Respondeu William e olhou Ranulf com algo semelhante ao horror. O Leão Negro ia ser seu genro. Não era o genro que devia temer ao sogro? —V á até ela. Tenho certeza que deseja te ver. — Encolheu os ombros e desceu as escadas.

Lyonene seguia olhando pela janela quando ouviu que porta voltava a se abrir.

— Lucy vem aqui e contempla esse glorioso dia. — Disse ela, mas virou-se ao ouvir a voz grave de Ranulf.

— E o que faz desse dia frio e cinza um dia tão glorioso. — A voz do homem tinha um ar muito sério.

Ela sentiu de repente um grande acanhamento. Afinal de contas, ele não deixava de ser um estranho. Ranulf caminhou para a arca de carvalho esculpida colocada contra uma das paredes. Pegou o pente de marfim da moça e examinou as figuras que havia nele.

— Falou com seu pai e aceitou o... acordo? — Perguntou.

Lyonene respondeu pausadamente.

— Sim, mas não se trata de um casamento em lugar de um acordo? — Lyonene começou a sorrir. — Ao menos, eu acredito que é um casamento, porque não se trata de um acordo muito vantajoso para você, já que escolheu a pobre filha de um barão como esposa. Não preferiria uma mulher rica com extensas propriedades e...?

— Os joelhos maltratados?

Os olhos de Lyonene brilharam.

— E como sabe que meus joelhos não estão maltratados?

— Certamente não sei, assim terei que averiguar. Não vou pedir em matrimônio uma mulher com pernas feias. — Ranulf não sorriu, mas em seus olhos advertia a alegria.

— Não se aproxime ou gritarei. — Lyonene se afastou dele.

— E quem se atreverá a deter o grande Leão Negro? Lançarei pela janela a todos os homens que se aproximem e depois farei a minha vontade.

Lançou um olhar lascivo enquanto Lyonene tratava de conter sem êxito a risada. Ranulf a apanhou pela cintura e se sentou na cama com Lyonene sobre o colo. A jovem tratou em vão se desfazer dele, mas a risada a debilitava. Ranulf fez alguns intentos desinteressados para levantar sua saia. Segurou suas duas mãos com uma só das suas.

— Então esse tornozelo não está muito maltratado.

— Não está nada maltratado.

— Se não estiver, não ficará bem com o outro que está completamente torcido.

— Mas o que é tudo isso? — Perguntou Lucy, que acabava de aparecer do nada. — Sabia que não podia deixar a esta menina sozinha. Tire as mãos de cima da minha menina e saia desse quarto imediatamente! Não permitirei esses joguinhos enquanto eu esteja perto.

— Lucy, vamos nos casar. — Protestou a moça.

A anciã deixou de pestanejar por um momento, como único sinal de que provava o que tinha ouvido.

— Bom, mas até que estejam casados, está sob minha tutela. E você, jovem, tire as mãos de Lyonene e saiam desse quarto. Não têm permissão para ficar só com minha menina até depois do casamento. — Ranulf afastou Lyonene de seu colo e se inclinou para beijá-la. — Já basta com isso! Têm toda uma vida juntos pela frente. Não tem sentido querer se cansar muito rápido um do outro.

Ranulf se dirigiu para a saída, obedientemente. A risada de Lyonene o deteve.

— E o que acontece com suas ameaças, Leão? Não as cumprirá? — A jovem fez um gesto com a cabeça apontando a janela.

Ranulf olhou Lucy, que se dirigia para a janela, e esboçou uma careta.

— Não sou tão forte para isso. Possivelmente deveria chamar a Guarda Negra. — Depois de uma pausa, franziu o cenho. — E ao frísio já...

A risada de Lyonene o seguiu enquanto fechava a porta.

— Não é fantástico, Lucy? Acaso não é o mais gentil e o mais tenro...?

— Sim, sim.

Lucy estava impaciente e escutava o falatório de Lyonene enquanto arrumava o quarto.

— Acaso não tem um corpo perfeito?

Lucy deixou cair às roupas que carregava.

—Lady Lyonene, se comporte! A senhora sua mãe e eu lhe ensinamos as maneiras de uma dama e não os de uma... Uma mulher qualquer.

Lyonene a olhou com os olhos abertos e ar inocente.

— A que se refere Lucy? Só estava falando de suas formas de cavaleiro. Não pensa que referia a outra coisa...

Lucy olhou fixamente a sua jovem ama, dando-se conta de que havia voltado a cair na armadilha. Felizmente o sino que anunciava o almoço começou a soar e ambas se dirigiram para o piso de baixo.

Lyonene perguntava-se quantos anos passariam até que seu coração não desse um salto cada vez que visse Ranulf. Ele estava de pé, lhe dando as costas e falando com sir Tompkin, muito mais baixo que ele. Pareceu notar a sua presença, já que se virou e estendeu a mão. Não a soltou enquanto sir Thomas franzia o cenho e se dirigia para a mesa.

— Acredito que o homem está muito aborrecido, já que há anos tenta que me case com uma de suas espantosas filhas. — Disse Ranulf a Lyonene enquanto todos se sentavam a mesa. — Sir William disse que o compromisso poderemos assinar depois do almoço. Tem certeza de que quer passar o resto de sua vida comigo? Tem certeza de que quer colocar seu bem-estar em minhas mãos?

— Tenho mais que certeza. Você que deveria andar com cuidado. — Comeu uma parte do presunto.

Ranulf franziu o cenho.

— Que perigo oculto me espera?

— De mim, é obvio. Só sabe que tenho os tornozelos direitos. Mas não sabe nada sobre meu caráter.

— Não estou convencido a respeito de seus tornozelos, mais me diga quais são seus defeitos de caráter.

— Tenho um temperamento terrível e minha mãe diz que sou muito vaidosa...

— E com razão...

— Muitas vezes não me comporto como uma dama deve, e digo o primeiro que me passa pela cabeça.

— Esses são defeitos muito graves.

— Não ria de mim, Ranulf de Warbrooke! Também vejo seus defeitos.

Ranulf não podia ocultar um sorriso.

— Chamam-me “feto do diabo” e ousa pensar que tenho defeitos?

Lyonene sacudiu a mão com um gesto de desaprovação.

— O nome deve ter suas razões durante a guerra, mas como os outros te chamam não é sua culpa.

— E o que acredita que tem de mal em meu caráter?

— Muito orgulho e arrogância. Há outros defeitos, mas esse é o pior.

Ranulf beijou a bochecha de Lyonene, mas ao recordar onde se encontrava se ergueu em seguida.

— O orgulho é o menor de meus defeitos. — Sua face endureceu e ficou muito sério. — É minha e não permitirei que olhe a outros homens. Lembre-se bem disso.

Dedicou-lhe um sorriso radiante.

— Esta é uma petição fácil, já que durante meus dezessete anos eu nunca desejei nenhum homem para marido até que conheci você. Não acredito que goste de outros homens no futuro.

— Só têm dezessete anos? É mais jovem do que pensava.

Ela começou a rir muito alto.

— Faço grandes confissões a respeito de minha fidelidade e você se escandaliza com minha idade. Não me diga que me dobra de idade! É verdade que parece muito velho. Tenho certeza de que não durará até passar o inverno.

— É uma moça muito impertinente! Acaso não sabe que cada dia antes do jantar, o Leão Negro come três meninas como você?

Alheio as pessoas olhando ao seu redor, ela colocou um dedo sobre o lábio inferior dele.

— Não acho que seja uma maneira horrível de morrer de todo. —Disse ela suavemente.

Ele olhou para ela por um momento e então mordeu seu dedo, um pouco forte, até que ela puxou-o de volta.

— Você não sabe que é o homem quem persegue a mulher? Comporte-se e coma o seu jantar. De novo estou dando motivos para que meus homens não me respeitem, faz quase dois dias que veem como me deixo enrolar por uma atrevida.

Felizmente, Lyonene deu pouco de atenção à comida e às canções do trovador. Nem sequer tinha dado conta de quando tinha começado a cantar.

Terminou o almoço e retiraram as mesas para coloca-las contra as paredes. O reverendo Hewitt trouxe plumas, tinta e os papéis para que o compromisso fosse assinado e colocou em uma pequena mesa que havia frente a lareira. Sir William assinou rapidamente, mas Ranulf tomou uma pausa. O reverendo ancião colocou suas mãos sobre o forte braço de Ranulf.

— Não está seguro, milorde?

— Só estava recordando de um momento muito parecido com este.

Assinou com uma rubrica negra e grossa.

— Agora o costume diz que têm que trazer anéis e que os prometidos devem se beijar. Lady Lyonene, acredito que têm um anel, não é assim?

Estirou sua mão para alcançar a de Ranulf e com os dedos tremendos colocou um anel de ouro no terceiro dedo de sua mão esquerda, o braço mais perto do coração, o dedo que continha à veia que ia direta ao coração.

— Eu não tenho... — começou Ranulf, mas seu rosto se iluminou e tateou com a mão, dentro do tabardo onde encontrou uma bolsa de couro que desabotoou do cinto. Havia algumas moedas e várias joias, entre elas um enorme rubi, três chaves de ferro e um pouco de lã enrolada. Tirou a lã e ao desenrolar apareceu um anel de ouro com umas mãos entrelaçadas que representavam a união, e um sol e uma lua que simbolizavam o vínculo para toda a vida do matrimônio. Havia três esmeraldas que atravessavam a parte superior.

— Era o anel de minha mãe. Pediu-me que o levasse sempre comigo.

— Então não pode me dar, já que em algumas ocasiões estará separado dele.

Tomou lhe a mão e colocou o anel no dedo.

— Envolverei em um pouco de lã a você e ao anel e os levarei comigo. Agora vá com sua mãe, porque descuidei muito de meus homens, meu cavalo e do meu irmão.

— Têm que me beijar.

Sua voz fazia um dano que quase tinha esquecido. Inclinou-se e a beijou na bochecha, mas ela o rodeou pelo pescoço com seus braços e o manteve perto dela. Por um momento ficaram abraçados.

— Parte antes que me envergonhe diante de sua família e de meus homens. — sussurrou enquanto retirava os braços de Lyonene. — Percebe que não te incluo entre os envergonhados porque reconheço que é uma desavergonhada.

Lyonene riu tolamente.

— Parte com seu cavalo e eu farei minhas tarefas sem lhe incomodar outra vez.

Melite seguiu a sua filha pelas escadas.

— Um dia desses pagarei pelo que está acontecendo. — Murmurou. Ver sua filha tão feliz causava uma grande alegria, mas se perguntava onde teria errado para ter criado uma moça tão atrevida. — William tem culpa. Se tivesse dado o nome de Joan a sua filha, tal como eu queria, não teria saído assim. Nenhuma mulher chamada Joan rodearia com seus braços a um homem que não fosse seu marido, nem lhe pediria que a beijasse, ao menos não diante de seus pais. Mas, claro está, era uma moça com nome de leoa! — Disse.

Sorriu. Era uma sorte que Lyonene fosse casar com um homem como Ranulf e não com um fracote como Giles, o garoto que vivia na propriedade vizinha e que sempre tinha assegurado que um dia se casaria com Lyonene.

— Mãe! O que está dizendo? Está falando sozinha!

— Moça, pode ser impertinente com lorde Ranulf, mas não comigo.

Lyonene sorriu tranquila.

— Sinto muito, mãe. É que hoje mesmo ele também me chamou assim. Acaso não é um homem maravilhoso?

Melite suspirou, pois sabia que lhe esperava várias horas de bate-papo sobre os encantos de lorde Ranulf.

As duas mulheres passaram toda à tarde no grande dormitório de William e Melite, que também servia de sala de costura, Lyonene não podia se concentrar no trabalho. Constantemente pegava o anel e o punha à luz para poder admirar o brilho das esmeraldas, e várias vezes ia olhar pela janela para ver o que acontecia no campo de treinamento.

— Lyonene, a colheita de maçãs deste ano foi muito boa. Vai à cozinha e peça ao cozinheiro que lhe dê algumas. — Ordenou Melite a sua filha.

— Não tenho fome.

— Pensava que possivelmente o cavalo negro de lorde Ranulf poderia querer comer um pouco.

Lyonene deu um salto e correu para sua mãe para dar um abraço rápido e um beijo na bochecha. Já quase tinha chegado à porta quando veio uma ideia à cabeça e se virou.

— Qualquer dia desses perguntarei o que tinha de tão urgente na mensagem que enviou meu pai, para que me deixasse sozinha dando banho em lorde Ranulf.

Havia apenas um lampejo no rosto Melite, mas foi o suficiente para responder a sua filha. Rindo, Lyonene foi para a cozinha.

Nos estábulos fazia calor e cheirava muito bem quando Lyonene chegou com a cesta cheia de maçãs e se dirigiu para o grande cavalo negro. Acariciou a cabeça e abriu a porta. O cavalo comeu as maçãs delicadamente de sua mão, enquanto ela lhe acariciava o poderoso pescoço.

— Lyonene! O que faz? Não deveria estar no estábulo de Tighe! — Chamou-a Geoffrey.

Sorriu-lhe por cima da baixa parede de madeira.

— É tão doce como seu amo.

Esfregou o nariz aveludado, agarrou um pente de ferro da parede e começou a escovar sua espessa e longa crina.

Geoffrey se encontrava de pé do outro lado da porta, com uma expressão de assombro em sua face.

— Este cavalo é um garanhão, não é nada doce. Nunca se comporta assim com ninguém, exceto com Ranulf. Sabe que mordeu ao chefe dos estábulos?

— Certeza que o homem merecia um castigo. Vê como é doce?

Ficou frente a uma das patas de Tighe e penteou o comprido pelo que crescia no joelho.

— Nunca tinha visto um cavalo com um pelo assim. Está claro que Tighe é muito vaidoso, mas um cavalo tão bonito como ele tem razão para sê-lo.

— Lyonene, jamais conheci uma moça como você. Meu irmão é muito afortunado. — Reconheceu Geoffrey.

Ela ficou de pé e deu mais maçãs a Tighe.

— O que não compreendo é por que ainda não está casado. Sei que o esteve, mas foi há muito tempo. Que as mulheres na corte do rei Eduardo tenham deixado escapar a um homem tão terno e atento está fora de meu entendimento.

— Oh, o tentaram. Mas sempre há algo que delata a cobiça em seu olhar e em sua forma de atuar.

Lyonene sentiu que ruborizava e olhou para outro lado.

— Bom, eu também o desejo muito.

Geoffrey riu.

— As mulheres da corte desejam suas riquezas e também a ele. Isso é fácil de ver. Elas avaliam sua roupa, no forro azeviche do seu manto, suas joias e as contas de suas propriedades.

— Propriedades? Mas só há Malvoisin, uma ilha no sul da Inglaterra.

— Malvoisin é uma entre tantas. Há...

— Não me diga isso! Eu não gosto de pensar em Ranulf como em um desses condes do rei. Assusta-me de verdade. Quase preferiria que fosse um fazendeiro como meu pai, assim ficaria em casa e brincaria com as crianças.

— O que estou ouvindo sobre crianças? — Ranulf se aproximou deles. — Ainda não coloquei a mão sobre essa moça e já acredita que é mãe.

Geoffrey olhou um e a outro.

— Vou falar com Maularde. — Disse finalmente.

Ranulf riu entre dentes.

— Posso saber o que é tão engraçado? — Perguntou ela.

— Maularde quase não fala com ninguém. — Respondeu e se virou para ela com a porta do estábulo entre os dois. — Acredito que se casa comigo pelo cavalo. — Ranulf olhava como Lyonene penteava a longa crina. — Quando estivermos em Malvoisin procurarei uma boa égua, e assim possivelmente Tighe lhe poderá dar uma filha. — O grande garanhão golpeou brandamente no ombro com a cabeça. — O vê? Acredito que gosta da ideia. Agora, saia daí e venha comigo. Ou vou ter que vendê-lo se o segue mimando. — Colocou suas mãos nos ombros de Lyonene e olhou-a intensamente. — Quero me recordar bem de você, já que partirei pela manhã.

— Não pode! Não tão cedo. — Lyonene se inclinou para ele. — Não poderia ficar até que se leia o anúncio? Até o casamento? Então poderíamos ir juntos ao meu novo lar.

— Não posso. Já disse ao meu lacaio que estaria lá antes disso, não poderia ficar ao seu lado tanto tempo. Voltarei no dia do casamento e então será minha. Agora deve ir com sua mãe.

Lyonene se separou dele.

— Sempre me manda para minha mãe. Eu gosto de ficar com você.

— Não pode ficar comigo até que seja minha esposa, não seria capaz de suportar. Agora parte, se não quer que a carregue nas costas.

Lyonene sorriu zombeteiramente e ficou imóvel.

Sem nenhum olhar, Ranulf a carregou em seus ombros e ela ficou em uma posição muito imprópria para uma dama. Lyonene gritou para que a soltasse e ele a libertou antes de chegar à porta do estábulo.

— Tenho certeza que sou a noiva mais maltratada de toda a Inglaterra, e a única a que não recebeu um beijo como Deus manda no dia de seu compromisso.

— Não entende... não posso te beijar a cada momento. Partirei amanhã cedo, se vier para ver-me, então, te darei um beijo antes de ir. Agora não me tente mais.

Lyonene caminhou lentamente para a velha torre e subiu as escadas.

Durante o jantar anunciaram os esponsais e houve aclamações. Os membros da Guarda Negra ficaram de pé e levantaram as taças em honra de Lyonene. Cada um dos homens pronunciou umas palavras a propósito de sua beleza e seu encanto.

— São homens muito agradáveis. — Disse Lyonene, sorrindo adulada.

Não percebeu que Ranulf apertava os punhos, nem de que tinha o cenho franzido.

Depois do jantar, Lyonene cantou e tocou o saltério, um instrumento de corda parecido à harpa. Sua voz era clara e bonita, e só tinha olhos para Ranulf enquanto cantava antigas canções de amor.

Ranulf deu um beijo na mão, desejou-lhe boa noite e foram todos dormir. Os dois prometidos eram conscientes de que unicamente uma parede os separava. Ranulf estava contente de que Lucy estivesse de volta, assim não teria a tentação de entrar no quarto de Lyonene, como tinha feito na noite anterior.

Durante um breve instante, antes de adormecer, surgiram algumas dúvidas em sua cabeça. Não tinha certeza se se casar com essa desconhecida seria o mais certo. Certo era que ela o olhava como nenhuma mulher jamais o tinha feito, mas também olharia assim a outros homens? Acaso era melhor atriz que as demais mulheres da corte, que conseguia o fazer acreditar que era ele quem lhes importava e não as riquezas de Malvoisin? Deixou de lado todos esses pensamentos, mas esses apareceriam mais adiante.


Lyonene espreguiçou lentamente como uma gata. Sentia que esse dia ia passar algo, tinha uma agitação que ainda não sabia a que era devida. Então, com os olhos já completamente abertos, saltou nua da cama tentando não despertar Lucy e se vestiu depressa. Lyon partiria pela manhã e tinha que vê-lo.

Apesar da tênue luz, viu os homens de seu pai dormindo profundamente no grande salão; entretanto, a Guarda Negra não estava presente. Em silêncio, chegou até a porta e se dirigiu aos estábulos. Era tão cedo, que o sol ainda não tinha saído.

A jovem ficou de pé frente à porta do estábulo, com os olhos fixos no edifício escuro.

— Minha leoa se levantou cedo. — Disse Ranulf em voz baixa e com um fôlego suave que provocava estremecimentos por todo o corpo.

Ela se virou e lhe dedicou um estupendo sorriso.

— Igual ao meu leão, parece.

— Cuidado com esses sorrisos leoa ou procurarei uma guarida para os dois. — Lhe fez um gesto sedutor com os olhos.

Lyonene tampou a boca para segurar a risada que lhe escapava. Foi então que viu que Geoffrey estava muito perto, em cima do ombro levava uma brida de cavalo.

— Também vai?

Geoffrey era consciente da careta de aborrecimento que ia aumentando no rosto de seu irmão, mas não se assustou. Esse novo ciúme de Ranulf merecia mais algumas provocações.

Lyonene olhou fixamente seu cunhado de olhos azuis. Ele era mais bonito de perto, com essas pálpebras que escureciam suas bochechas. Observou-o com interesse enquanto o jovem tomava sua delicada mão e a beijava. Seus olhos brilharam.

— Posso lhe dar um beijo antes de partir?

Segurado à moça pelos ombros, seus olhos se encontraram com os de Ranulf provocativamente. Beijou-a brevemente com seus agradáveis e doces lábios. Com um sorriso, deixou-a e foi terminar de preparar seu cavalo. Lyonene se virou e viu como montava.

— Bem, irmão. O que está esperando? Beije lady Lyonene e assim poderemos partir.

Levou seu cavalo para saída do estábulo, deixando Lyonene e Ranulf sozinhos.

O coração e a respiração de Lyonene se aceleraram somente em pensar em beijar de novo o Leão. Virou para ele, com uma expressão tão séria como a do Ranulf. A enorme mão se enredou na cabeleira da moça e bruscamente aproximou-a dele, com seu peito de aço contra o corpo suave dela. Ranulf a beijou com uma sofreguidão que ela igualou em seguida. Os braços dela rodearam seu corpo robusto, aproximando-o mais. Lyonene podia notar as coxas de Ranulf contra as suas e instintivamente aproximou seus quadris para ele.

Ranulf a afastou quase bruscamente e ela se apoiou contra a parede do estábulo, respirando agitadamente, com seus suaves lábios separados.

— Espera muito de mim. Será melhor que vá. Procure que sua mãe te guarde em um lugar seguro. — Disse duramente e em voz baixa.

— Se esquecerá de mim?

— Nunca, minha leoa. Não pensarei em nada mais.

— Eu tampouco. — As lágrimas sufocaram suas palavras.

Ranulf secou com um beijo cada lágrima que formava em suas pestanas e logo partiu.

Lyonene não soube quanto tempo ficou ali de pé. O sol já brilhava quando finalmente entrou no castelo, embora para ela qualquer pensamento ensolarado se evaporasse.

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 04

Melite viu a expressão perdida no rosto de sua filha quando Lyonene entrou no grande salão. Sabia que seu futuro genro tinha partido e que três longas semanas de espera se estendiam diante delas. Suspirou. Para sua filha isso significaria uma eternidade, mas para ela não parecia tempo suficiente para tudo o que teria que fazer.

Em primeiro lugar, deviam confeccionar todos os vestidos. Embora o dote de Lyonene não fosse suficiente incentivo para um conde, Melite tinha pensado vestir sua filha como correspondia a uma condessa. Mandou chamar William, já que era ele que guardava a chave das dependências onde se armazenavam as coisas de valor de Lorancourt.

William se queixou um pouco, mas finalmente esteve de acordo com sua mulher em que Lyonene deviria ser vestir adequadamente. Desse aposento escuro e frio trouxeram joias, peles, cetins, sedas, veludos e finas lãs. Lyonene suspirou ao ver a beleza de todo esses tecidos e não se atrevia corta-los por medo de estragá-los.

Durante três semanas, Gressy, Meg, Lucy, Melite e Lyonene não pararam de costurar. Traçaram diminutos leões com fio de seda verde pela borda de uma túnica e os preencheram com lã de cordeiro, conseguindo assim animais acolchoados. Cada leão estava enfeitado com pequenas perolas.

Deram especial atenção ao vestido de noiva. Era composto por uma túnica de seda cor açafrão muito justa, e as mangas se juntavam com uma fileira de pequenos botões, do pulso até o cotovelo. A capa, aberta nos lados, era de veludo castanho avermelhado e tinha um corte que revelava as curvas generosas de seus seios e seus quadris. O manto era de brocado verde da Sicília, adornado com aves fênix de grande beleza, tecidas em um verde mais escuro, e toda a capa e o capuz estavam forrados com pele de coelho que tinha sido tingida com tons verdes.

Lyonene adoraria conhecer a medida de seu prometido para lhe oferecer um tabardo como presente de casamento, mas finalmente se conformou em oferecer duas taças de ouro. Não percebeu a expressão pálida de seu pai, quando combinou com dois ourives, que fossem a Lorancourt para converter dois de seus quatro bonitos pratos de ouro, em duas taças com a haste de joias incrustadas. Para Lyonene era tranquilizador o martelar constante dos artesãos enquanto trabalhavam nas taças de ouro ao redor de umas bolas de ferro que serviam de molde às taças. Sabia que enquanto as taças fossem tomando forma, ia aproximando o dia de seu casamento.

Cada noite caía exausta na cama, tal e como Melite tinha planejado, mas sempre, antes de dormir, tinha tempo para pensar na doce visão de Ranulf. Agora começava a recordar coisas que não a tinham preocupado quando estavam juntos. Pensava muito frequentemente em seu título de conde, na corte do rei Eduardo, onde Ranulf devia ser um assíduo visitante. Começou a se questionar as razões pelas quais ele se casava com ela e, quanto mais se aproximava o dia, mais se sobressaltava por qualquer ruído e chorava mais frequentemente. As histórias acrescentadas pela Gressy sobre os horrores do Leão Negro não ajudavam a acalmar sua ansiedade, que aumentava cada dia que passava.


Geoffrey fez uma careta. Se seu apaixonado irmão perguntasse mais uma vez sobre a beleza de lady Lyonene, agarraria sua espada e lhe cravaria o aço entre suas costelas. Tinham cavalgado muito para chegar a Londres em uma noite e Geoffrey não fazia mais que pensar em uma cama suave, para compartilhar possivelmente com uma serva de taberna que o esquentasse.

Ranulf não gostava de Londres, com esses esgotos abertos pelas ruas e com os porcos que pegavam o lixo e perambulavam comendo lavagem. As ruas eram estreitas e o ar não alcançava aos cavaleiros entre esses edifícios de três e quatro pisos. A estalagem onde passaram a noite tampouco estava totalmente limpa.

Ranulf percorreu a cavalo a rua dos ourives até que encontrou a loja que estava procurando. Só três membros da Guarda Negra o acompanhavam, os outros quatro cuidavam de Geoffrey, que não tinha querido deixar sua cama e sua roliça serva tão cedo.

Ranulf entrou na apertada e pequena loja. Um homem baixo e moreno se aproximou.

— Quero comprar um presente de casamento para minha prometida, e eu gostaria de adquirir seu trabalho mais refinado.

— Todos meus trabalhos são os mais refinados. Que tipo de peça deseja?

Ambos os homens se olharam sem sorrir, mas compreendendo-se.

— Quero um cinto, um cinto muito especial. Deve parecer do mais puro ouro e do metal mais fino. Tem que ter leões, um leão e uma leoa, e também deve representar cenas de leões caçando juntos...

Ranulf parou de falar, um pouco envergonhado diante desse homem solene.

— Entendo. E o que me diz das cores?

— O leão deve estar esmaltado da cor negra mais escura que tenha e nos olhos de ouro deve colocar uma pérola negra. A leoa... —Ranulf fechou os olhos durante um segundo, deleitando-se nessas deliciosas lembranças — a leoa deve ser de ouro, ter o castanho avermelhado dos leões, e para o olho têm que utilizar uma esmeralda. — Ranulf fez uma pausa, recordando os olhos cor de esmeralda de Lyonene. — Deve estar composto de várias peças, cada uma com uma cena que não deve ser mais larga que meu dedo, nem mais longa que meu polegar. Poderá fazer uma peça tão delicada?

— Se me der o ouro suficiente, posso fazer algo.

Ranulf ficou rígido.

— Haverá ouro em abundância.

— Qual e a medida da dama? Quantas peças deve ter o cinto?

Ranulf estava confuso. Levantou as mãos formando um círculo.

— Posso abranger sua cintura com minhas mãos. O joalheiro tomou nota mentalmente.

— Acredito que leva 15 peças para o comprimento. E agora, o fecho. Do que vai ser feito?

Ranulf refletiu um momento.

— Uma pérola negra e uma esmeralda.

Falaram do preço e fixaram a data para pegar o cinto quando tivesse terminado. Quando voltou para a estalagem, Ranulf se sentia satisfeito. Geoffrey tinha passado um dia tranquilo e agora já estava preparado para partir. Os dois irmãos se prepararam para se despedirem. Geoffrey se separava de seu irmão, já que devia voltar para suas obrigações como escudeiro de sir Tompkin.


Levou dois longos e exaustivos dias chegar a Malvoisin e Ranulf de novo se maravilhou ao ver as muralhas uniformes de pedra cinza aparecer diante dele. Ele e seus homens se dirigiram ao castelo, onde foram recebidos com ovações e saudações pelos moradores do castelo.

Desmontaram depois de passar pela muralha que protegia o pátio interior. Seu lacaio, o falcoeiro, o primeiro cozinheiro e o chefe dos estábulos viviam com suas famílias nas moradias que se encontravam no pátio interno, mais tranquilo.

Os membros da guarda se dirigiram aos seus aposentos enquanto Ranulf foi para a sala.

Durante todo o tempo que permaneceu em Malvoisin não deixou de chover e, embora julgasse muitos casos em seu tribunal muito frequentemente as pessoas não se atreviam a sair ao exterior por causa do abundante lodo.

A chuva o manteve trancado entre as muralhas de pedra do castelo. Algumas vezes se reunia com seus homens, mas agora eles estavam com suas mulheres e se sentiam satisfeitos. Ranulf, em troca, estava nervoso e o martelar da chuva ainda provocava mais ansiedade.

Sentou perto da lareira com outra taça de vinho na mão.

Os aposentos estavam silenciosos, já que era tarde e os criados tinham se deitado. Tentou se recordar os dois dias que tinha passado em Lorancourt, mas não podia fixar uma imagem clara. Durante muito tempo não tinha nenhuma razão para sorrir e as palavras de uma mulher moribunda o tinham açoitado durante muitos anos.

Um relâmpago iluminou o aposento durante um breve instante. Também tinha chovido naquela noite. Ela, a mulher que chamavam sua esposa, tinha chegado tarde com Leah, sua filha de três anos que tratava de seguir os passos de sua mãe.

Estavam há três anos casados e não se deitara nenhuma só vez com sua esposa. A princípio, havia se sentido perturbado por ela, era um garoto inexperiente e ela tinha alguns anos a mais que ele. Ela tinha rido dele e tinha dito que poderia amá-la quando fosse digno dela, quando se convertesse no cavaleiro mais forte da Inglaterra.

Seus homens acreditavam, hoje, que treinavam exaustivamente, mas naquele tempo, ele nem dormia e nem comia, de tão preocupado que estava por agradar a sua esposa. Não protestou quando soube que nasceria um bebê e, mais tarde, a menina se converteu em sua alegria, um bálsamo contra sua malvada e adúltera esposa.

Quando percebeu que se deitava com outros homens, muitos homens, já tinha muito carinho por Leah para pensar em jogar sua mãe para longe dali.

Ranulf se levantou e se aproximou da lareira, apoiando as mãos contra o suporte de pedra. Nunca tinha imaginado que ela o odiasse tanto para ser capaz de matar a menina que ele tinha aprendido a amar.

Em uma úmida noite ao voltar para casa, Isabel tinha um olhar triunfante ao ver Ranulf levantar a menina nos braços enquanto ela tremia.

Ele não se separou da pequena Leah durante os três dias em que a febre a consumiu. Só depois de sua morte se inteirou da enfermidade de sua mulher e de que ela também jazia em seu leito de morte.

Ranulf se lembrou das horríveis últimas palavras que Isabel tinha lhe dedicado:

— Estou contente que ela esteja morta, porque eu também estou morrendo e assim terei lhe tirado tudo. Amei somente um homem, o pai de Leah, mas era pobre e meu pai não o queria. Você estava ali, com suas riquezas e seus homens, e me tiraram da pessoa que eu mais amava. De verdade acreditava que poderia suportar sua negra feiura? O que outra mulher poderia fazer? Não, Ranulf de Warbrooke, nenhuma mulher vai amar você, somente suas finas peles e taças de ouro. Vá procurar um sacerdote e não me faça ver outra vez seu negrume do diabo.

Ranulf se levantou e espremeu a taça de prata que sustentava na mão. As joias que a tinha adornado se espalharam por todo o quarto e sua mão ficou coberta de vinho e sangue. Não deveria ter se prometido outra vez! Havia muita semelhança entre os dois casamentos: um pai ansioso de ter um conde como genro, uma moça... Sentou-se de novo.

Não, não havia nenhuma semelhança entre Isabel e Lyonene.

Mas quem era essa jovem? Tinha a impressão que os dois tinham se sentido do mesmo modo. Entretanto, ele nunca havia se sentido assim por ninguém. Sabia tão pouco dela, que poderia ter tratado a muitos homens antes dele com a mesma ânsia, e o mesmo desejo.

A tormenta piorou ao mesmo tempo que seu humor. As lembranças de seu compromisso indicavam falsidade e engano.

Pela manhã, Hodder encontrou seu lorde dormindo no chão e, quando despertou, pôde ver que a escuridão de seu humor correspondia a de seu aspecto. O fiel lacaio viu que o temperamento de Ranulf piorava dia a dia, que comia pouco, bebia muito e não se lavava nem se barbeava.

A chuva seguia caindo, molhando tudo, filtrando nos buracos e desanimando os humores. Com muita alegria, Corbet viu sair o sol justo no dia em que deviam partir para Lorancourt. Os sete homens estavam preparados e esperavam seu lorde no pátio, mas Ranulf não aparecia.

Hugo Fitz Waren, o membro mais antigo da Guarda Negra, foi buscá-lo.

— Milorde, já saiu o sol. — Disse o homem — Devemos nos apressar para chegarmos a tempo do casamento.

— Não vou. — Respondeu Ranulf. — Vou enviar várias carroças de ouro a sir William como compensação, mas eu não volto a me casar.

Hugo se sentou em um banco aos pés de Ranulf e tentou controlar sua respiração ante o olhar de seu lorde.

— Então, o grande Leão Negro teme a uma menina que tem a metade de sua idade e de sua estatura? E o que vai mandar à moça para compensá-la pela perda de um marido que ama?

— Acaso não sabe que o conde de Malvoisin é muito rico para que alguém o ame?

— Não é muito rico para chafurdar-se em autocompaixão. Pode-me olhar como quiser, mas não tenho medo. Sei tudo sobre essa outra mulher que teve.

— Não me fale dela.

— Até que não me obrigue a calar, falarei. Não pode culpar a todas as mulheres pelos enganos de uma só.

— São todas iguais, minhas mulheres.

— É certo que ambas têm certa semelhança, já que são filhas de barões. Mais é um homem de palavra e faz tempo que não vê à moça. Quando a vir de novo, seus temores desaparecerão. — Hugo se aproximou de Ranulf, e se deu conta de que estava bastante ébrio. — Hodder! — Ordenou. — Vista ao seu lorde. Vamos para Lorancourt e voltaremos com uma esposa. Se assegure de que use os trajes para a cerimônia de casamento.

Foi um Ranulf cansado e confuso o que cavalgou em direção ao norte, para Lorancourt. Doía-lhe a cabeça e ardia o estômago, mas isso era melhor que pensar e ouvir as vozes que o perseguiam.

 

 


Capítulo 05

Lyonene viu como os raios do sol da manhã iluminavam o chão. Parecia que tinham passado horas desde que se vestiu. Seu prometido e os homens de Malvoisin tinham chegado à noite anterior, e tinham tido que preparar muitos banhos para que estivessem apresentáveis para o casamento. Não tinha visto Ranulf.

Meg se precipitou no pequeno quarto.

— Está linda, milady.

Lyonene sorriu, sentindo os nervos no estômago.

— O que carrega?

A garota soprou.

— É para sua senhoria, um grande e escuro, seu...

— Me deixe ver. É para mim, não é assim?

— Oh sim. E também é lindo.

Tanto Melite como Lyonene lançaram um olhar severo, por ter aberto um presente para outra pessoa. Meg entregou cuidadosamente a sua jovem ama com uma reverência.

A caixa era longa e estreita e estava coberta com capa de marfim tanto na parte superior como na inferior. Em cada lado, seis em total, tinham representadas cenas de amor cortês entre um homem e uma mulher.

— É linda. — Suspirou Lyonene.

— Não! Abra, o presente de verdade está dentro.

Assombrada de que houvesse mais presente, além da linda caixa, Lyonene levantou a tampa pelas dobradiças de prata. O cinto de leão brilhava e as esmeraldas cintilavam.

Melite agarrou a caixa enquanto sua filha examinava admirada os pequenos leões e leoas.

— Nunca vi nada semelhante. — Sussurrou.

Aproximou-o da luz, tocando o fino fio de ouro e as suaves pérolas esmaltadas.

— Acaso não é magnífico?

Melite sorriu a sua filha, contente de vê-la tão feliz.

— É verdadeiramente magnífico. Agora coloque ou vamos chegar tarde ao seu casamento.

Com muito cuidado, Lyonene colocou o cinto ao redor da cintura, deixou-o cair justo em cima de seu quadril e lhe acariciou com suavidade.

— Fez chegar às taças a meu prometido? — perguntou Lyonene a sua serva.

— Sim, milady.


Tremia a mão de William quando segurou a de sua filha, para descer as escadas. Ajudou-a montar em uma bonita égua. Ela tinha que montar na maneira feminina para esta feliz ocasião, o resto da família e os serventes iam a pé. William dirigiu o cavalo durante a curta distância até a capela do castelo. Era um dia frio e claro, a cerimônia se realizaria no exterior da igreja, já que o matrimônio era considerado como uma questão legal mais que sagrada.

Lyonene sorriu ao ver os dois irmãos um junto ao outro. Ambos vestiam as cores de Malvoisin. O irmão mais novo ia vestido de cor verde, com uma faixa negra no manto, forrado de pele branca. O mais velho ia vestido de negro com uma fina trança verde nos flancos do tabardo, seu manto era forrado de marta negra.

William ajudou sua filha desmontar. O olhar de Ranulf quase assustou Lyonene: não era como ela o recordava, franzia o cenho em lugar de estar contente em vê-la, e tinha olheiras.

O reverendo Hewitt perguntou quem oferecia à mulher em matrimônio e quem a recebia. William soltou seu braço e ela agarrou o do Ranulf, que não a olhou nem um momento. Lyonene desejava ter a segurança de que estava casando com o mesmo homem a quem se prometeu.

Ambos responderam às perguntas do sacerdote e as portas da igreja se abriram de par em par. Ela deixou sair um suspiro contido e puxou o braço de Ranulf até que ele olhou para ela. Parecia cansado, mas era seu Leão. A moça lhe sorriu.

— Sempre se esquece de me beijar. — Sussurrou Lyonene.

Ranulf sorriu com acanhamento e se inclinou ligeiramente em sua direção.

— É muito tarde, o reverendo Hewitt vai abençoar nosso matrimônio.

Enquanto se ajoelhavam em frente ao altar para a missa, ela percebeu ainda mais as mudanças em seu marido, mudanças que não tinham sido provocados pela falta de sono. A longa cerimônia terminou e ali estavam de novo, sob a luz do sol da manhã.

Ranulf levantou Lyonene para que se sentasse na grande sela do frísio e logo montou atrás dela, rodeando-a com os braços e segurou as rédeas. Enquanto, os convidados lançavam sementes diversas e gritavam: “Viva aos noivos!”

— Agora cavalguemos para Malvoisin, nos afastemos daqui. — Lhe disse ele.

Ela notou seu suave fôlego no ouvido. Virou e o abraçou.

— Sempre peço que me beije e você sempre me rejeita, e agora quer me levar daqui e pede que desatenda aos nossos convidados.

As rédeas caíram quando Ranulf abraçou Lyonene, esmagando-a contra seu corpo. Não foi um beijo doce, a não ser um beijo cheio de saudade e de dúvidas que ainda tinha.

Lyonene se inclinou para ele e carinhosamente rodeou seu pescoço com seus braços.

— Venha comigo. — Ele pediu.

— Não posso. Não posso pensar só em mim.

— Então, pense em mim.

Ela o olhou nos olhos e viu a dor que carregava consigo.

— Amanhã todos meus dias serão seus, mas o dia de hoje pertence a meus pais. Venha comigo. Dançaremos e comeremos o que estivemos preparando durante dias.

— Haverá muitos homens convidados?

— Certamente, mas também haverá mulheres. Ranulf, o que ocorre? Aconteceu alguma desgraça? Não sorri.

— Acaso não sabe que o Leão Negro nunca sorri?

Lyonene não pôde evitar que a atravessasse um calafrio.

Outro ser ocupava o corpo do homem que tinha começado a amar.

— Vamos. Não me importa os outros. Cavalguemos para sua ilha.

— Não. Você escolheu os outros, que assim seja. Não quero negar nada a minha esposa. — Sua voz soava fria.

Ela apoiou suas costas contra ele e sentiu como Ranulf endurecia. Ela estava assustada tanto dos seus atos como suas palavras.

A velha torre de Lorancourt estava decorada com a bandeira negra e verde de Malvoisin e haviam preparado uma grande festa. Havia um grande cisne branco assado e vestido de tal maneira que quase parecia estar vivo, com cada pena reposicionado perfeitamente. Também tinha assado um javali recheado com coelhos que foram recheados de perdizes. E tinha tortas de todo tipo sobre toalhas brancas.

Muitos dos convidados levantaram suas taças e beberam em honra do jovem casal.

— Ranulf, parece cansado. Ou acaso está triste por esse matrimônio?

Os olhos do Ranulf se viam frios e inexpressivos.

— Ainda tenho que ver com quem me casei.

Lyonene piscou para controlar as lágrimas que vinham aos olhos.

— O cinto é muito belo. Agradeço-lhe.

Fez uma saudação mínima com a cabeça e bebeu de um gole todo o vinho que havia na taça.

Lyonene estava muito silenciosa, ignorando o ruído e as pessoas que havia ao seu redor. Onde estava o homem que ela recordava, o homem sorridente que brincava com ela e a segurava com as mãos?

— Poderia dizer o que fiz para o contrariar tanto?

Ranulf se abrandou um pouco e tocou a bochecha com o dorso da mão.

— Sou um homem com um gênio muito ruim, e você não têm culpa. Possivelmente poderíamos sair daqui um momento e encontrar um lugar para ficarmos sozinhos.

— Basta! Terá toda uma vida com ela, e ao resto de nós só ficará lamentar sua perda. — O que falava era sir John de Bano, um homem muito amável que Lyonene conhecia de toda a vida. Dedicou-lhe um sorriso. — Lady Lyonene deve nós ensinar esse maldito jogo irlandês com as carroças. William nunca se lembra das regras nem eu tampouco. Se Giles estivesse aqui, poderia nos ajudar, mas não veio.

— Quer jogar conosco? É um jogo pouco comum e necessita de habilidade. — Propôs Lyonene a Ranulf.

— Não, não estou de humor para jogos. Vá com eles, já que gostam tanto de sua companhia.

Ela começou a dizer Sir John que não iria deixar seu marido, quando o homem mais velho puxou seu braço, fazendo sinal para ela vir.

— Não se preocupe. — O homem disse quando estavam sozinhos. — Estava desse jeito no meu casamento, meio morto de medo. Sabia que minha vida tinha terminado. Via Maggie como uma estranha, apesar de conhecê-la há muitos anos. Agora venha e nos ensine este condenado jogo e se divirta. Ele se recuperará sozinho.

— Espero que tenha razão, entretanto parece uma pessoa diferente do que conheci.

— É obvio que é. Agora é casado e não um solteiro despreocupado.

— Se as coisas são assim, deveria ter fugido com ele sem casamos.

John ficou boquiaberto.

— É como uma filha para mim, e por isso a atuarei como o faria um pai e, por isso te direi que não pode falar disso com ninguém, exceto com o reverendo Hewitt. Suas palavras são um pecado e deve se arrepender de havê-las pronunciado.

Lyonene baixou a cabeça para que John não visse seus olhos.

— Sim, sir John.

— Bem. Agora vem para a mesa de jogo.

Lyonene não pôde desfrutar da brincadeira ou de nenhuma diversão, e seu olhar sempre se perdia no silencioso Ranulf, que não se unia a atividade alguma e ficou sozinho, bebendo. Cada vez que tratava de aproximar-se dele, alguém a arrastava entre risadas para o outro lado da sala. Somente Geoffrey falava com Ranulf, já que todos outros convidados estavam a par de que era um dos onze condes do rei.

Prepararam as mesas para o jantar. O vinho, a cerveja e as demais bebidas alcoólicas acrescentaram animação ao bom humor dos convidados.

— Está se divertindo? — A pergunta de Ranulf soou como uma acusação.

— Encontrarei uma maneira de escapar para o jardim. — Ela propôs. — Me esperará ali?

— Eu não gostaria de te privar da companhia de seus queridos convidados.

— Por favor, meu Ranulf, não conheço a causa do seu aborrecimento. Peço que me diga e assim não te desgostarei mais.

Não houve mais tempo para palavras, pois a banda que tocava da varada que rodeava o grande salão, triplicou o som e o aposento se encheu de moças que dançavam vestidas com túnicas. Os convidados lançavam exclamações de aprovação e afastaram as mesas para que todos pudessem dançar.

As danças se encaixavam com o humor das pessoas; agora repletos de bebida e comida, todos se mostravam ruidosos e alegres. Lyonene teve que suportar que a jogassem nos braços de um homem a outro. As danças rápidas a deixaram sem fôlego.

— Então se vendeu para ser condessa. — Quem falava era Giles, o filho de sir John, a cor de seus olhos delatava que tinha estado bebendo muito.

— Me solte Giles! Como se atreve a se apresentar nestas condições?

Giles a tinha agarrado pelos pulsos e a empurrou para o banco, perto de uma janela escura que havia nas paredes de pedra de dois metros de altura.

— Você é atrevida. O que seu marido pensa de nós?

Lyonene olhava-o incrédula.

— De nós? Não há nada a dizer sobre nós. Conheço-te desde que éramos crianças, isso é tudo.

— E o que me diz de nossa conversa sobre matrimônio?

— Nossa conversa sobre o matrimônio foi sobre com quem nos casaríamos e quando. Não falamos de um matrimônio entre nós.

— Acaso não sabia que eu queria que fosse minha esposa?

— Giles, está me machucando! — O jovem não a soltava. — Bebeu muito. Vá dormir e não diga mais mentiras sobre mim.

— Mentiras! Diz que meu amor é uma mentira? O que é que ama mais nele, seu ouro ou sua condição de conde? Gosta de ser condessa?

Apesar de saber que machucaria os dedos dos pés, já que usava sandálias de couro brando, Lyonene lhe deu um forte chute na tíbia. Surpreso, Giles a soltou o suficiente para que ela pudesse escapar. Saiu correndo para Ranulf.

— Não me diga que se cansou das atenções dos convidados que caíram em seus encantos. — Disse seu marido.

A moça se virou para ele, fez um gesto e partiu.

Dirigiu-se para a porta do vestíbulo e desceu as escadas para a estufa. As pedras frias lhe faziam bem, já que a fúria fervia dentro dela.

O dia do seu casamento! Tinha que ser o dia mais bonito e se converteu em um desastre. Um marido que se voltava um estranho mal-encarado, um amigo de infância convertido em um louco bêbado. Desejava com todo seu coração poder pegar um cavalo e escapar de tudo isso.

— Então não pode suportar sua presença nem sequer um só dia. Pagou um alto preço por suas sedas e veludos.

— Não se aproxime Giles. O que diz são tolices. Nunca te amei e nunca quis me casar com você. Casei-me com Ranulf porque é um homem bom e amável, não por suas riquezas.

— Está dizendo que o Leão Negro é bom e amável, quando toda a Inglaterra conhece seu caráter? O próximo que dirá que é um homem risonho e que lhe quer muito.

— Não vou dizer nada de meu marido.

Virou-se para voltar para castelo, mas Giles a apanhou pelo pulso. A bofetada que Lyonene lhe deu fez que assobiassem os ouvidos. Lyonene arregaçou a saia e começou a correr, mas os soluços de Giles a detiveram. Giles tinha sido seu amigo e não podia suportar sua dor. Virou-se para ele.

— Giles, não fique assim. Não sabia o que sentia por mim. Sempre foi meu amigo.

Giles a agarrou pelo braço e apoiou a cabeça em seu ombro.

— Sempre te amei, sempre.

Lyonene deu tapinhas no seu ombro, mas se afastou para o lado.

— Uma cena muito comovedora.

Ambos se viraram para Ranulf, que se encontrava a poucos metros deles e que falava com uma voz tão cheia de ódio que gelou o sangue de Lyonene.

Uma risada horrível saiu da boca de Giles.

— Então é este o marido, o maravilhoso conde que pode comprar qualquer noiva que queira. Poderá pensar que a conquistou, mas sempre será minha. Entende minhas palavras? É minha!

Lyonene não viu que Ranulf se movia, mas de repente Giles voou disparado e aterrissou com um som surdo vários metros mais longe. Não disse nada mais. O olhar na face de seu marido era aterrador e ela ficou imóvel.

Uma mulher que se encontrava perto os viu.

—Está aqui. Não podem separar-se um do outro. Chegamos a tempo. — Disse sorrindo.

Logo, o frio pátio se encheu de mulheres risonhas que rodearam Lyonene.

— Logo será sua, lorde Ranulf.

Só Melite se deu conta da expressão no rosto de seu genro. Colocou uma mão no seu braço, mas ele não pareceu notar, assim seguiu a sua filha.

Lyonene estava tão rígida como uma boneca enquanto Lucy e sua mãe tiravam seu vestido de noiva. Em silêncio, se meteu na cama de dois metros quadrados. Seguia sem falar quando a cobriram até os seios com finos lençóis de linho, e puseram algumas almofadas de plumas atrás da cabeça. Arrumaram a grande cabeleira de mechas ruiva ao redor de sua cabeça e ombros.

As lágrimas corriam pelo rosto rechonchudo de Lucy.

— Que bonita que é minha menina! Oh, milady! Não quero deixa-la aqui como um cordeiro que vão degolar.

— Oh, te cale, Lucy! Já está suficientemente assustada. Não aumente seu medo. — Ordenou Melite.

— E com razão deveria o ter, — respondeu Lucy — pois dizem que foi gerado pelo diabo.

Melite se levantou e, com os olhos cheios de fúria, indicou à mulher a porta com o dedo. Entre soluços, Lucy partiu.

— Lyonene, já te contei o que ocorre entre um homem e uma mulher. É um ato de amor e não terá que ter medo.

Lyonene levantou a vista e olhou a sua mãe.

— Acredito que me odeia.

— O que aconteceu? O que têm feito?

— Não sei, só sei que estava mais que zangado. Giles contou mentiras e agora me odeia.

— Giles! Sabia que ia causar problemas, então pedi a sir John que viesse sem seu filho. Nem sequer o vi. — Olhou para a porta. —Aqui chega. Sede amável e paciente com ele, não deixe que seja seu temperamento que fale. Tenho que ir. Agora é uma mulher casada e têm que resolver sua própria vida.

Deu-lhe um beijo na bochecha e saiu do quarto. Melite se apertou contra a escada de pedra enquanto a Guarda Negra carregava seu lorde, nos ombros com as pernas voltadas para cima das escadas.

— Agora saberemos a que tipo de homem nós servimos! Se dentro de nove meses não tiver um bebê, iremos servir a Robert de Vere, que tem seis filhos.

— Um leão em seu escudo e uma leoa em sua cama. Quem poderia pedir mais?

À medida que foram entrando no quarto o faziam discretamente, já que a visão de lady Lyonene na cama, com seus suaves seios apenas cobertos pelos lençóis e o cabelo em forma de auréola sobre sua cabeça, os fez pensar em todas as mulheres que seu lorde tinha conhecido e em como nenhuma podia competir com ela. Ranulf estranhou tanto silêncio, mas ele também, ao vê-la, respirou pesadamente.

Quando ficou completamente nu, os homens o levantaram e o colocaram depressa na cama ao lado de sua esposa. Corbet foi apagando todas as velas, até que ficou somente uma ao pé da cama. Sainneville, outro membro da Guarda Negra, deteve seu companheiro quando este ia apagar a última e, apontando com os olhos ao casal na enorme cama, disse:

— Se estivesse em seu lugar, ao se virar entre esses finos lençóis, você gostaria que o quarto estivesse às escuras?

Fez silêncio e cada homem pensou nessas últimas palavras. Rindo, abandonaram o aposento.

— Ranulf...

Ela começou a falar quando ficaram sozinhos. Ranulf deu um sobressalto quando ela colocou sua mão sobre seu braço nu.

— Resigna-se à ideia de ter um marido rico? Têm a intenção de suportar minhas carícias enquanto deseja a outro homem? Ou possivelmente já o conhece bem no longo dos anos.

— Giles não significa nada para mim. E nenhuma vez significou, ouve-me?

— O moço não parecia estar de acordo com suas palavras. Não pode ter inventado toda essa história.

— Mas o fez. Estávamos acostumados a brincar juntos quando éramos crianças e falávamos de quando nos casaríamos, mas eu sempre referia a um homem desconhecido. Entretanto, parece que esse não foi o seu caso.

— Agora entendo tudo. O moço a amava, mas você renegava o seu amor porque queria entrar no círculo dos ricos. Teve sorte na caça e trouxeram para a mesa um conde de Malvoisin. Quer que te conte quantas são minhas propriedades, cavaleiros ou qual é a quantidade de pratos de ouro que possuo?

— Basta! Sou inocente! É só um moço com a cabeça cheia de sonhos e nunca significou nada para mim. É você a quem eu...

— Ama? — Disse com desdém. — Então pode dizer que me ama? Ouçamos essas doces palavras. Talvez aplaque a ira do leão e ele voltará outra vez a ser doce e dócil, em suas pequenas mãos.

Lyonene lhe lançou um olhar gélido cheio de raiva.

— Eu não minto, e não posso dizer que te amo ou que alguma vez vá amá-lo.

Com um poderoso movimento, ele rasgou o lençol que a cobria e, sem querer, emitiu um gemido ao vê-la, mais encantadora do que poderia imaginar.

Lyonene viu sua expressão, e a fúria se converteu em medo, já que viu o rosto do Leão Negro, um rosto que tinha obrigado a homens robustos a se ajoelharem e se renderem. Não tinha acreditado que pudesse ter um olhar tão assustador, um olhar que agora se dirigia para ela.

Instintivamente, tratou de se cobrir quando ele arrancou o lençol. Com uma mão poderosa e forte tomou-lhe um seio. Sua boca se aproximou de Lyonene e machucou seus lábios. Com uma coxa abriu suas pernas enquanto ela tentava se defender com as mãos, mas era tanta a sua força, que não se dava conta dos esforços de Lyonene.

Ela arranhou a pele de seus braços e das costas e ele respondeu com um gemido. Lyonene ficou sem ar, quando os lábios dele se moveram para um lado de sua boca. Com a outra perna, separou as pernas de Lyonene e ela gritou quando sentiu a primeira pontada forte. Vieram lágrimas aos olhos enquanto ele parecia querer enchê-la até que a arrebentasse.

Ele ficou imóvel durante um instante e ela sentiu que a dor diminuía, mas Ranulf se moveu de novo e a dor começou outra vez. Passou um minuto e ele se moveu lentamente, deliberadamente e, em seu interior, Lyonene sentiu uma faísca de paixão. Podia sentir sua respiração forte e rápida em seu ouvido, mas, enquanto ele ia movendo-se cada vez mais rápido, a dor ainda a inibia.

Sentiu como Ranulf se estremecia e logo como seus músculos relaxavam, deixando cair todo seu peso sobre ela. Abraçou-o forte, esquecendo por um momento suas palavras carregadas de fúria.

Ranulf se afastou dela para o outro lado da cama, não a olhou e nem lhe dirigiu a palavra, deixando bem claro que ainda seguia zangado.

Ela se aconchegou no outro lado da cama, deixando cair lágrimas por suas bochechas em silêncio.

 

 

Capítulo 06

Ranulf se sentou em frente ao fogo morto, com o manto escorregando, por seus ombros bronzeados, sem que ele percebesse, totalmente alheio ao frio. Voltou a encher a taça e deu um grande gole, com seus sentidos quase anestesiados pelos efeitos do vinho. Não esperava que a moça fosse virgem. Seus olhos avermelhados olhavam fixamente ao fogo faiscante. Não tinha esperado muitos dos acontecimentos das últimas semanas, e estava furioso consigo mesmo por sua própria falta de honra e por sua falta de controle.

Bebeu mais vinho e, nesse momento, ouviu uma respiração entrecortada atrás dele. Ao perceber sua pureza, tinha vacilado e tratado de reparar a brutalidade de seu ato, com evidentes poucos resultados. O medo em seus olhos, e sobre tudo o ódio que mostravam, havia devolvido a raiva que sentia por ela.

Quando o moço disse que lhe pertencia, que só se casava pelo ouro, sentiu-se possuído por uma raiva tão violenta que o impedia de ver ou pensar. Foi uma sorte que as mulheres a levassem porque não queria imaginar como teria reagido.

Sua esposa! Sim, estava casado com ela, apenas uma menina, cujos olhos verdes o tinham perseguido e ocupavam seu pensamento inclusive nesse momento. Tinha provado ser pura em um sentido, mas e se era verdade que desejava outro homem, esse moço? Quem dizia a verdade, ele ou ela? Só o tempo lhe daria uma resposta, uma vida juntos, de desconcerto e escuridão, estendia-se diante deles.

O débil sol de inverno iluminou o quarto, fazendo-a parecer ainda mais fria. Ranulf se levantou e se vestiu, sem afastar a vista da moça que dormia na cama.

Quando esteva preparado, aproximou-se dela e observou seu cabelo emaranhado e seu rosto marcado de lágrimas.

— É hora de se levantar, temos que sair logo. — Falou brandamente.

Ranulf a observou enquanto ela abria seus grandes olhos cheios de medo. Neste momento afastou o olhar.

Lyonene moveu uma perna e fez um gesto de dor pelas contusões que tinha em todo o corpo. Então era isso um ato de amor, pensou, o que sua mãe havia descrito como uma união prazerosa. Não tinha encontrado nada de prazeroso nesse horrível ato, só havia sentido muita dor.

Seu marido olhava fixamente através das venezianas de madeira, enquanto ela se vestia rapidamente. Estava muito agradecida que essa manhã não tivesse a intenção de repetir o ato.

Apertou os dentes e se preparou para suportar mais fúria.

— Estou pronta. — Disse a moça.

O homem se virou para ela, mas Lyonene se assustou ao ver que seu rosto estava desprovido de toda expressão, vazio e indiferente.

— Meus homens esperam embaixo, logo começaremos a viagem. Seus pertences estão preparados?

Lyonene levantou o queixo.

— Sim, estão.

Ranulf tocou sua cintura brandamente e ela não pôde evitar fazer um movimento de resistência ao sentir o contato. A lembrança da dor era ainda muito recente, e se sentiu muito aliviada quando viu que não a voltava a tocá-la.

Desceram junto às escadas de pedra e Ranulf se deteve antes de saudar as pessoas que os estava esperando com impaciência.

— O castelo de Gethen será seu dote. Vale mais ou menos o feudo em taxas de doze cavaleiros.

Lyonene não sabia por que este comentário a incomodava tanto. Notava como aumentava sua cólera.

— Nunca quis suas propriedades. — Disse, lhe lançando um olhar que mostrava claramente que seu aborrecimento estava aumentando.

— E eu nunca quis... — ele se reteve — lhe pagarei pelo que perdeu. — Disse mais atento dessa vez.

Lyonene não pôde evitar olhá-lo fixamente com raiva. Espontaneamente, vieram-lhe à cabeça maldições que os homens de seu pai costumavam utilizar. Tinha perdido mais que o pouco de sangue que tinha manchado os lençóis, quando decidiu se casar com esse homem.

Ele acreditava que podia comprar tudo o que desejasse. Os ricos não eram só um amontoado de riquezas, mas também era uma raça além do povo comum, convencidos de que seus bens davam controle sobre outros ou que davam atributos que outros não possuíam.

Fez o gesto de desagrado.

— Não pode me pagar pelo que perdi. — Passou diante dele.

— Irmão meu! Alegra-me ver que sobreviveu a esta noite. — Disse Geoffrey.

Os olhos do jovem brilhavam, mas em seguida se obscureceram tão logo viu os rostos dos recém-casados, que nem sequer se tocavam e permaneciam solenes, com olhos que se mostravam duros e afiados como um vidro partido. Assim, já tinham discutido e tinha certeza de que Ranulf tinha a culpa.

Geoffrey agarrou o braço de Lyonene e a levou à parte.

— Algo vai mal, irmãzinha?

Ela não respondeu e durante um momento Geoffrey se perdeu nas profundidades cristalinas desses perfeitos lagos de fogo verde. Deus! Era uma mulher muito bela e, durante um instante, qualquer pensamento sobre seu irmão se desvaneceu. Sacudiu ligeiramente a cabeça.

— Meu irmão não será um marido fácil, pois temo que esteja obcecado pelo passado.

Lyonene lhe dedicou um tímido e gélido sorriso.

— Sou sua esposa, assim não acredito que minha felicidade ou a falta dela tenha alguma importância. — Olhando de esguelha a Ranulf, que falava com sua mãe, acrescentou. — Tenho certeza que me recompensará bem pelo que faça. Agora, se me desculpar, devo me despedir de minha mãe.

Só neste momento, Geoffrey viu um brilho de emoção em seus olhos.


Lyonene montava escanchada na pequena égua castanha, tentando não pensar na emotiva despedida ou no futuro incerto que a aguardava. Passou diante da guarda e continuou ao lado de seu calado marido, cujos pensamentos eram indecifráveis.

— Senhora, posso lhe apresentar aos membros da guarda? —Disse para a jovem com olhos sorridentes, um cavaleiro da guarda. Era um homem baixo, forte e bonito. Contente pela distração, ela se virou para olhar aos sete homens. — Aqui temos a Herne, com sua barba ruiva, Robert, Gilbert, Sainneville, que tem tendência a ser um pouco bufão, Hugo Fitz Waren e Maularde.

Todos os cavaleiros fizeram uma reverência desde suas selas e a olharam com simpatia, o qual lhe levantou um pouco os ânimos.

— E você, como se chama?

— Corbet, ao seu serviço, não há ação sem importância ou insignificante quando se trata de estar ao contínuo serviço da bela dama de meu lorde.

Lyonene não pôde conter a risada e Hugo viu como as costas de Ranulf se endureciam.

— Pode ser que Sainneville atue às vezes como um bufão, mas você é um adulador de primeira ordem.

— Senhora, deve acreditar. Antes de ver o brilho desses olhos de esmeralda, eu era tão tímido como meu cavalo, não podia soltar uma palavra frente a uma dama. Juro-lhe que foi a visão de uma beleza superior e o som de sua melodiosa risada o que me liberou do mutismo. Para sempre serei seu servidor.

Corbet fez uma reverência.

Assombrada, Lyonene se voltou para os homens que havia atrás dela.

— Sempre é assim?

Todos sorriram junto.

— Sempre. — Responderam em coro.

Sainneville tomou a palavra.

— Lorde Ranulf, deveria tomar cuidado com sua esposa. Conforme parece, Corbet começou a cobri-la com seu mel, e nos dá a impressão de que não só está caçando moscas. — Havia um tom risonho em sua voz.

A risada se deteve quando Ranulf se virou para eles com o semblante franzido. Lyonene se deu conta em seguida do medo que seu marido infundia em seus homens e se voltou para frente.

Fizeram uma pausa para comer e Ranulf a ajudou a desmontar, pegando-a pela sua cintura.

— Não está cansada?

Ela conseguiu esboçar um leve sorriso.

— Não, não o estou, mas me parece bem que paremos. Você está bem? Seus olhos... — Olhou para o outro lado, tímida e confusa pela lembrança da noite anterior.

Ranulf não respondeu, mas a levou junto a uma árvore e a deixou ali, enquanto dava ordens aos seus homens e aos criados que os serviam. Voltou para seu lado com um guardanapo que continha pão, queijo e carne fria. Abriu-a e deixou que ela escolhesse primeiro. Havia tensão no ar que respiravam. Finalmente, Lyonene decidiu romper o gelo.

— Sua ilha está muito longe?

— Sim, está há cinco dias a cavalo, mas temos alojamento para cada noite.

Seus indecifráveis olhos a olhavam duramente.

Tomou outra parte de queijo e, ao roçar a mão de Ranulf, ficou sem fôlego. De repente, encontrou-se grudada nele, com seu rosto contra o seu, sentindo seu fôlego suave e quente. Ranulf não precisava falar para expressar seus sentimentos, já que seus olhos diziam tudo. Queria acreditar nela, estava desesperado para confiar nela de novo. A dor estava ali, como um prego de aço atrás de seus olhos, com uma antiga ferida curada que ocultava veneno. Ela viu a dúvida em seu olhar, viu os pedidos silenciosos e a única maneira que conhecia de aliviá-lo era aproximar os lábios aos seus.

A suave música dos pássaros se uniu ao vibrante cheiro do desejo que envolvia o corpo de Lyonene. O aroma do pasto se mesclava com o suave e delicioso sabor dos lábios de Ranulf que se moviam contra os seus delicadamente no princípio, indagando, explorando a busca do tesouro. Com seus fortes braços sustentava o corpo dela cada vez mais débil.

Lyonene só tinha olhos para ele, mas o instinto fez que Ranulf se afastasse e a olhasse enquanto sustentava sua cabeça com a mão e lhe acariciava a têmpora com o polegar. A contra gosto, Lyonene abriu os olhos, esfregando o rosto na palma de sua mão, sentia-se tão pequena ao seu lado!

— Eu gostaria de acreditar. — Sussurrou Ranulf. Quando Lyonene abriu a boca para falar, ele a fechou com a ponta do dedo. — O averiguarei. As palavras não têm importância, pois as dizem muito facilmente. Temo que essas pequenas mãos guardem muita coisa que me pertencem.

Não sabia por que, mas essas palavras inspiraram um violento tremor de medo, como se tivesse uma premonição do que aconteceria no futuro.


Viram o fogo antes de divisar as muralhas da torre do castelo de Bedford. Lyonene se sobressaltou ao ver a reação imediata dos homens e esporeou sua montaria para poder manter o ritmo dos estrondosos cavalos negros que galopavam diante ela.

Parecia que o povoado inteiro ardia, e os gritos dos serventes e dos animais apanhados no furioso ardor das chamas a envolveram, paralisando-a por um momento.

— Dirigi-vos à torre! — Vociferou Ranulf enfurecido.

— Posso ajudar? — Gritou Lyonene, ao ver um menino correndo pelo pátio.

Começou a desmontar, mas Ranulf a agarrou com força pelo braço e a obrigou a se deter. Sua voz se converteu num rugido e uma horrível luz escureceu seu rosto convertendo-o em uma criatura desconhecida, sobrenatural, em um diabo negro.

— Não tenho tempo para isso. Obedeça!

Lyonene não podia fazer nada mais, exceto obedecer, e deu a volta com o cavalo para o pátio interior, cujas portas estavam fechadas como uma espécie de amparo contra o fogo ameaçador.

Não havia ninguém exceto os solitários guardas, já que todos os moradores do castelo tinham deslocado para ajudar a extinguir o fogo. Encontrou os estábulos e fez uma breve pausa, observando as chamas que tentavam passar por cima das muralhas, procurando mais combustível, mais sacrifício para sua gulodice. Tirou a sela de seu cavalo e foi procurar uma capela onde pudesse orar pela segurança dessa gente.

— Sabia que não deixaria que sua joia preciosa estivesse perto de tanta destruição. — Ouviu dizer a uma voz entre dentes.

— Giles! O que estar fazendo aqui?

Lyonene olhou nervosa ao seu redor. O rugido do fogo era ensurdecedor, inclusive dentro do estábulo, ou possivelmente se tratava do medo e do pânico que ameaçavam afunda-la.

— Considerava-me um amante tão insensível para dar por perdido a batalha tão facilmente? Tinha certeza de que me conheceria melhor.

— Não lhe conheço em nada. Por que me seguiu?

— Esta é uma pergunta de fácil resposta.

Enquanto Lyonene retrocedia para a parede de madeira do compartimento e se apoiava nela, os olhos de Giles examinaram todo seu corpo. Não podia escapar desse moço que tinha sido seu amigo durante a infância e que agora se converteu em um louco.

— Estava disposto a admitir que tivesse perdido uma batalha justa, mas como poderia competir contra as riquezas de seu conde? Eu tinha você em um altar, justo depois da Virgem Maria, e todo este tempo estava conspirando para me trair.

— Giles, está errado.

Apoiou-se um pouco mais na parede, como se uma porta fosse aparecer por arte de magia. O calor aumentava no estábulo e um cavalo não parava de mover-se por medo ao fogo.

— Não deve me temer. Não tenho a intenção de lhe fazer mal. Não, aprendi muito sobre suas manobras. Perdi o que mais ansiava. — Seus olhos se dirigiram para seus seios, perfeitamente perfilados e palpitando de medo. — Mas como se vendeu, eu também vou vender o pouco que fica. Lembra-se disso? — Fez ondear uma folha de papel ante o rosto confuso de Lyonene—. É uma de suas cartas.

— Eu não te escrevi nenhuma carta.

— Sim, isso é verdade, mas Lucy disse uma vez que estava acostumada a escrever contos e esse tipo de coisas. Lembra-se do Gilbert?


Lyonene estava totalmente desconcertada; não se lembrava de nenhum Gilbert em Lorancourt. Mas de repente, do fundo da memória veio uma lembrança. Olhou fixamente o papel e a suja mão que o sustentava.

— Foi você quem provocou o fogo. — Sussurrou.

Giles começou a rir.

— Sim, e me alegra você saber e ver até que ponto eu estou disposto chegar para obter o que quero. — Deu um passo adiante e lhe acariciou o ombro. — Quando for rico, comprarei a várias mulheres como você.

— Giles... Basta!

Giles jogou a mão para trás e Lyonene virou o rosto antecipando o golpe. Ele se afastou e a observou enquanto acariciava o papel que tinha em suas mãos.

— Tenho cinco cartas como esta, foi muito fácil trocar o nome de Gilbert para Giles. Quer que leia essa bela missiva de amor que me escreveu?

Lyonene sacudiu a cabeça, pois conhecia perfeitamente o conteúdo das cartas. De menina, sempre tinha sido um pouco sonhadora e quando seu indulgente pai tinha permitido a sua única filha que aprendesse a ler, ela tinha decidido não estudar retórica ou os evangelhos, a não ser um livro de lendas corteses, comprado em segredo por sua mãe em Londres. Lyonene tinha lido os relatos uma e outra vez, e sempre pedia novas narrações aos trovadores. Logo, começou a criar suas próprias histórias, às vezes como relatos e outras vezes como canções que cantava a seus pais durante as noites tranquilas. Mas um tempo atrás, além das histórias, criou também o seu próprio amante, um jovem cavaleiro imaginário, forte e valente, ao qual escrevia cartas. Sabia o que dizia as cartas, e sabia que destino lhe apresentava Giles nessa mão que já tinha causado tanta destruição. Nela sustentava o fim de suas esperanças de felicidade com seu marido, uma felicidade que, como um delicado fio, não poderia resistir outra sacudida.

— Lyonene, é muito fácil adivinhar seus pensamentos. Acaso desconfia tanto de você?

— Ainda têm que dizer o que espera de mim. — Seus ombros se afundaram pelo cansaço.

— Ouro.

— O único que tenho é minha roupa. Não me deu nada.

— Não se faça de ingênua.

Lançou uma olhar fora do estábulo e viu que não se viam mais chama por cima da muralha. Voltou o olhar para Lyonene.

— Vejo que seu marido conseguiu dominar o fogo antes do que eu esperava. Agora, me escute. Quando voltar, estará cansado e dormirá profundamente. Quando tiver certeza de que não despertará, me lance uma pedra preciosa da bolsa que leva no cinto.

— Não! Não posso fazê-lo!

— Esta carta é o menos grave que posso utilizar como pagamento, se não me obedecer. O que lhe pareceria ficar viúva tão cedo?

— Não sabe o que estar dizendo. Acaso esqueceu que se trata do Leão Negro?

Giles adotou um ar depreciativo.

— Vejo que não se esqueceu. Mas eu não sou como esses cavaleiros nobres do rei, como bem sabe. Eles se regem por leis que não me afetam. Como acredita que me introduzi no castelo? Ninguém vê um servo. Acredita que ele percebe quando um simples servo passa ao seu lado? Não perceberá até que se encontre com uma espada entre as costelas.

Lyonene perdeu a fala, o terror subia pela espinha dorsal, rastejando como um silencioso e nojento animal de centenas de patas.

— Ah! Sabia que tinha razão. Agora devo ir. Faça o que lhe disse e não me traia.

De novo sozinha, com uma respiração superficial, seu corpo se agitava por dentro, como se ossos tremessem. O que deviria fazer? Entrou na torre deserta, tentando correr, mas era incapaz de fazê-lo. Em uma escura esquina havia um banco no que se sentou, quase caindo contra a fria parede.

Pensou no que teria acontecido se tivesse ido com Ranulf depois do casamento, se não se afastasse dele durante todo o dia, se não tivesse saído... pensamentos inúteis e estéreis. Desejava que sua mãe estivesse perto, que não estivesse sozinha com um marido, que tinha caído sobre ela com violência na noite de bodas e que esse dia lhe tinha devotado uma trégua, uma trégua que parecia destinada a se fazer em pedacinhos.

Giles estava louco, porque nenhum homem podia atuar dessa maneira e ao mesmo tempo estar em seu juízo perfeito. Agora o via muito claramente, via o que tinha deixado acontecer fazia muito tempo. Melite havia dito uma vez que Lyonene sempre resgatava os fracos e aos menores de uma ninhada, se fosse um porco, um cão e, às vezes, uma pessoa, e como todo mundo riu do comentário, acrescentou que estava acostumada a conseguir que esse animalzinho se convertesse em um pavão.

Giles era a prova de seu fracasso. Recordou a primeira vez que o viu, escondendo-se em um canto, temeroso de sua própria sombra, impressionado com seus dois bonitos irmãos mais velhos e pela menina de sete anos com um lindo nome de leoa a adorada por todo mundo. Lyonene mal olhou os outros dois moços, mas em troca procurou o adoentado e pálido Giles, com suas pernas fracas e débeis por causa da falta de exercício.

Sir John protestou ao ver que as duas crianças, da mesma idade, mas tão radicalmente diferentes, andavam de mão dadas e caminhavam juntos sob o sol de abril. Melite o tranquilizou e ambos deixaram que as crianças partissem.

Lyonene e Giles passaram muito tempo juntos durante os dez anos seguintes. Uma vez, Lyonene ouviu a queixa do pai de Giles que seu filho já não servia para nada em casa, enquanto que a pequena Lyonene dava ordens e insistia até que Giles fizesse o que ela queria. O que surpreendia mais sir John era que ela nem lhe suplicava nem tratava de convencê-lo. Ele mesmo tinha tentado por todos os meios que Giles montasse a cavalo, mas não o tinha conseguido.

A menina de oito anos tinha alardeado diante ele:

— O que significa isso que não pode montar a cavalo? Eu posso! Monte agora mesmo e deixe já de se queixar!

A menina tinha pouca paciência para admitir suas desculpas e, ante os olhos de sir John, finalmente o menino se converteu em um moço saudável.

Lyonene tratou de se concentrar no presente, de sair das lembranças que uma vez foram doces, mas que agora chegavam ao nível da imundície das ruas de Londres. Não tinha passado despercebido para ela às pequenas coisas que a incomodava nele, mas nunca tinha dado importância. Recordou do gato que uma vez o tinha arranhado e como se estremeceu ao descobrir, que um dos cães farejava os restos do pobre animal.

Mais lembranças vieram à mente: as ancas machucada do cavalo que tinha derrubado Giles, a mão queimada de uma serva que caiu sobre o fogo, depois de ter tropeçado na perna de Giles... Lyonene afundou o rosto em suas mãos. Também havia bondade nele, pensou, suficiente bondade para salvá-lo.

O som dos cascos de um cavalo sobre as pedras do exterior a fez voltar a realidade. Levantou lentamente, como uma anciã cansada, e olhou para a porta. Um dos membros da Guarda Negra estava ali de pé. Não recordava seu nome.

— Milady, encontra-se bem? — Disse o homem com voz pausada e profunda, o que fez recordar que se tratava de Maularde, o cavaleiro tranquilo que quase não falava.

Fez um gesto com a cabeça e, com certa dificuldade, conseguiu esboçar um pequeno sorriso que não convenceu de seu bem-estar ao cavaleiro.

— Posso ajudar? — as palavras dela lutavam por sair.

— Sim, necessitamos de comida. Onde estão as mulheres?

Pela primeira vez, olhou ao seu redor e, para sua surpresa, viu as sólidas muralhas e que a vida tinha continuado durante essa última hora.

— Não sei. Irei ver. — Ela se dirigiu para a porta seguida pelo cavaleiro.

A cozinha estava situada longe das dependências principais, com o objetivo de evitar os incêndios. O ar era espesso por causa da fumaça, mas Lyonene não percebeu, nem tampouco que Maularde examinava cautelosamente o pátio deserto. Um servente coxeava perto dos cavalos. O negro cavaleiro o observou durante um momento, obviamente considerando que havia um problema.

Lyonene encontrou uma das moças que trabalhava na cozinha rodeada pelos braços de um jovem, e seus próprios problemas lhe voltaram vividamente para a mente. Tinha um ar absorto quando pediu ao moço que saísse para ajudar a apagar o incêndio e ela que começasse a preparar comida. Ao pouco, já tinham preparadas várias cestas para os homens famintos. Maularde tinha conseguido reunir vários serventes e em seguida começaram a assar um cordeiro.

Lyonene ajudou Maularde a carregar as carretas e o cavaleiro não protestou ao vê-la subir ao lado do cocheiro, enquanto ele montava em seu cavalo. Lyonene queria estar ocupada, tudo que fosse para retardar o momento em que teria que tomar uma decisão a respeito das palavras de Giles.

Mais da metade do povoado tinha ficado destruído e a muralha tinha caído em algumas partes. Ainda se viam chamas que se dirigiam para o bosque. Foi então quando ela ouviu a voz de Ranulf, gritando e dando ordens que não deviam deixar para mais tarde. Lyonene deu uma cotovelada no cocheiro que dirigiu os cavalos para onde estava Ranulf.

— O que faz aqui? Volte para a torre. — Ordenou seu marido

— Mas e os feridos? Não é necessária minha ajuda?

A visão de Ranulf, coberto de imundície da cabeça aos pés horrorizou-a.

— Não, chegaram os monges.

Lyonene viu então às simples vestimentas marrons e as cabeças tonsuradas dos monges que, com calma, ajudavam às pessoas que tinham sofrido queimaduras. Assentiu com a cabeça em silêncio e logo olhou para frente quando o cocheiro virou com os cavalos e voltou para a torre.

Ranulf concedeu uma pausa nos extenuantes trabalhos para observá-la, não muito seguro do que devia pensar, mas em seguida o incêndio não deixou mais tempo para pensar em qualquer outra coisa.

Lyonene voltou para a cozinha para se assegurar de que todos estavam trabalhando. O longo dia de viagem e o abalo emocional começaram a pesar sobre ela, e sem forças, arrastou-se para a torre.

— Pensou em minhas palavras?

O moço aparecia sempre do nada.

— Giles, não pode me pedir isso. Fomos amigos. Como pode se voltar contra mim?

O jovem saiu das sombras, com seus olhos azuis, enfurecidos e penetrantes.

— É você que se voltou contra mim. É você quem se converteu em uma deusa pagã e a que decidiu que rumo devia tomar minha vida. — Deu um passo ao redor dela e seu rosto passou a ser do moço que ela tinha conhecido durante anos — Se lembra da égua marrom, que te jogou na água? Se não estivesse ali...

— Não me recordo desses dias distantes.

Bruscamente ela se virou para a porta, mas Giles a apanhou pelo pulso.

— Conheço-lhe muito bem. Então, agora, me denunciará para o guarda? Nem minha captura e nem minha morte te libertará de mim. Olhou os homens que havia ao redor de seu marido? Sabe qual de entre eles são meus homens ou qual o mataria se me ocorresse uma desgraça?

— Não acredito.

Os olhos do Giles ardiam.

— Lyonene, acredita que minto? — Murmurou enquanto lhe acariciava uma mecha de cabelo, mas trocou o gesto ao ver que ela se separava dele. — O que significaria para ele uma ou duas pedras preciosas? Pude observar que seus vestidos estão cheios delas.

— Me deixe em paz!

— Sim, a deixarei em paz, mas tome cuidado com todos os que se aproximam dele. O ouro tentaria inclusive ao mais leal dos cavaleiros. — Sorriu quando viu que ela tinha compreendido que inclusive um membro da Guarda Negra poderia estar comprometido na traição. — Esta noite, enquanto dorme, esperarei debaixo da janela. Se não estiver ali, amanhã receberá a carta ou uma faca no estômago. Ainda não sei qual das duas coisas, mas não acredito que deseje nenhuma delas. — Disse encolhendo os ombros. Depois de dizer essas palavras, partiu.

Lyonene se dirigiu lentamente para o quarto maior e começou a se lavar e se preparar para dormir. Devia confiar em Ranulf e contar os planos de Giles. Pensava em como esse dia em que tão bem tinha passado com ele, quando ela o tinha chamado Leão, esse homem que a compreendia que a acreditaria, se tornara longínquo. Se Giles não tivesse estado bêbado nem houvesse dito todas aquelas coisas a Ranulf no dia de seu casamento... Não, não queria voltar a ver essa raiva.

Enquanto tirava o vestido de veludo verde de um dos fardos que tinham jogado tão rapidamente no aposento caiu ao chão uma pequena bolsa. Pertencia a Ranulf e, não sabia como, tinha ido parar entre suas coisas. Conhecia muito bem as pedras preciosas que continha na bolsa.

— Não! — Exclamou em voz alta, e voltou a colocar a bolsa dentro do fardo. Não podia começar um matrimônio com tantas mentiras e enganos. Apertava as mãos uma e outra vez, o frio lhe embranquecia a pele e a aliança de casamento parecia solta. Ausente, brincava com o anel e notava o metal entre suas apertadas mãos.

Já era tarde quando ouviu um ruído proveniente do pátio, os cães ladravam e se ouvia barulho de água. Sabia que os homens haviam voltado e que estavam tirando a fuligem de seus corpos no poço. Sentou-se e ficou muito quieta, notando que seu coração pulsava com força.

Uma tocha que piscava no corredor delineou a forma escura de Ranulf na entrada, cujos amplos ombros pareciam decair devido ao cansaço. Caminhou para o fogo e aproximou as mãos para esquentar-se, Lyonene viu que seu cabelo estava úmido. Virou-se para ela tão rápido para agarrar a espada com uma mão, que Lyonene soltou um grito apagado.

— Ainda está acordada? Está a ponto de amanhecer, deveria ter dormido. — Estava muito cansado para mostrar suas emoções, fossem de alegria ou justamente o contrário.

— Queria... queria falar com você.

Ranulf se afundou em um banco frente ao fogo, com sua cabeça entre as mãos. Com que queixa viria agora, perguntava-se. Quase não podia pensar. Tudo o que via era carne queimada, as bocas abertas com gritos silenciosos pedindo água e os corpos carbonizados.

— Não pode esperar até manhã? Estou derrotado.

— Sim, suponho que pode esperar.

Não podia acrescentar isto à carga que já levava em seus ombros, não havia joia que valesse isso. Ficou de pé frente a ele e lhe acariciou uma mecha úmida do cabelo com doçura e acanhamento, sem saber como ia reagir.

Ranulf tomou sua mão e esfregou a mandíbula com ela, sua barba espetada quase conseguiu lhe arranhar a pele.

— Estou muito agradecido.

Ouvindo suas palavras, Lyonene notou que os olhos se enchiam de lágrimas.

Quando Ranulf se levantou e se dirigiu para a cama, ela já sabia o que tinha que fazer: Desfazer-se de Giles. O vínculo entre Ranulf e ela era muito frágil ainda, e uma carta com palavras como as que estavam ali escritas o destruiria em seguida.

Ouviu que as cordas chiavam, quando Ranulf se meteu na cama.

— Venha para cama. — Disse ele em voz baixa e cansada.

— Sim, em seguida, vou jogar mais lenha ao fogo.

Tal e como esperava, em uns instantes ouviu o ritmo pesado e constante de sua respiração. Rapidamente, encontrou a bolsa com as pedras preciosas e se dirigiu em silencio para a janela. Só devia mover uma lâmina da veneziana e deixar cair à bolsa. Suas mãos tremiam enormemente e rezou por estar fazendo o correto. Ouviu um ligeiro ruído quando soltou a bolsa e em seguida voltou para o lado de Ranulf, que seguia respirando com força.

Ainda tremendo, tirou o vestido e se meteu na cama ao lado de seu marido. Ali estava ela, imóvel, rígida, muito consciente dessa proximidade que lhe era tão pouco familiar. Ranulf virou para ela e moveu um braço, que foi parar sobre seu pescoço. Apenas sem poder respirar, levantou o pesado braço como pôde e, para sua surpresa, encontrou-se com a mão de Ranulf que tinha começado a acariciá-la. Tinha os olhos fechados, mas sua mão procurava o corpo nu de Lyonene. Sem pronunciar nenhuma palavra, colocou-a debaixo dele e Lyonene, assustada ao sentir seu peso e recordar a dor da noite de bodas, esticou todos os músculos do corpo.

Com a coxa, Ranulf lhe separou as pernas, Lyonene notou como os olhos se enchiam de lágrimas e sentiu as primeiras dores quando ele entrava nela. Ao menos, dessa vez tudo foi mais rápido, mas Lyonene ainda demorou um pouco para dormir, com o cabelo em sua têmpora, molhado por tantas lágrimas.


Ranulf despertou primeiro pela manhã, como sempre fazia, antes que saísse o sol. Lyonene estava estendida ao seu lado, o rosto virado ligeiramente para ele. Seu primeiro pensamento foi perguntar se era possível que sua esposa parecesse ainda mais jovem e mais bonita enquanto dormia. Não pôde passar muito tempo com ela durante seus dois primeiros dias de matrimônio. As palavras do moço o perseguiam, eram palavras muito semelhantes com as de sua primeira esposa. Deseja acreditar na menina que dormia junto a ele, de saber que não estava tratando de enganá-lo, que não era falsa com ele. Não? Que queria? Dava-lhe a impressão de que as mulheres tinham medo do Leão Negro ou o desejavam por suas riquezas. Lembrou-se de quando seu pai disse uma vez, que seu filho mais velho nunca poderia matar um homem e nem tampouco poderia converter-se em campeão da justa do rei. Ranulf se perguntava como teria reagido frente a esse filho, que tinha sido preparado para a Igreja, e que hoje era temido por muitos, odiado por alguns, mas amado por muito poucos. Uma só mulher tinha mudado isso.

Lyonene se moveu enquanto dormia e isso lhe fez voltar à realidade. Voltava a entrar na batalha, desarmado e nu. Não sabia quantas feridas receberia dessa vez que poderia curar. Tocou-lhe a bochecha, perto da pequena orelha que se ondulava uma maneira misteriosa. Seus olhos se abriram imediatamente e o medo que Ranulf viu neles o sobressaltou.

Lyonene viu a curva de seus lábios, a doce expressão de seu olhar e acreditou reconhecer seus pensamentos. Ainda não estava pronta para mais dessas relações amorosas tão dolorosas. Virou e se vestiu rapidamente. Logo, nervosa, ajoelhou-se frente ao fogo e atiçou o carvão. E se a chamava para que fosse à cama? Era seu marido e não podia rejeitá-lo.

Ranulf deitou de barriga para cima e franziu o cenho. Ela tinha direito ter medo, já que tinha sido muito violento na primeira noite. Era uma pena que essa tivesse sido sua iniciação às relações sexuais, mas mudaria essas lembranças essa mesma noite no castelo de Aylersbury, onde haveria tempo para a ensinar a arte de amar.

Virou-se apoiando o rosto em suas mãos. Desfrutava vendo-a tão nervosa, observando como tratava tão obviamente de evitá-lo. No dia seguinte de Aylersbury, depois da noite que prepararia para ela, perguntaria o que pensava das duas noites anteriores.

— Levantará logo? — Perguntou Lyonene, com a voz um pouco tremente.

— Sim, logo.

Ele a observou enquanto ela guardava alguns objetos em um fardo e viu como introduzia rapidamente nele uma bolsa de couro marrom. Franziu o cenho, já que a bolsa lhe fez relembrar algo que tinha esquecido. Pareceu recordar uma figura imprecisa, mas não podia ver toda a imagem. Veio à memória uma visão da noite anterior, quando Lyonene se aproximou da janela. Certamente tinha sido um sonho.

— Ontem de noite me disse que queria falar comigo. Posso saber qual era o motivo?

Tentou manter uma voz neutra, diferente da que sentia em seu interior. Tentava relaxar enquanto via as mãos tensas de Lyonene, que não se atrevia a olhá-lo nos olhos.

— Não queria... Eu só... Ranulf! — ela correu para a cama e se refugiou em seus braços.

Lyonene tremia e ele a segurava com força, maravilhado com a delicadeza de seu corpo e temeroso de lhe fazer mal. Algo a tinha aborrecido enormemente. Com o dedo lhe levantou o queixo e viu que seus olhos estavam secos.

— O que ocorre? O que te preocupa?

— Quero... Quero que tome cuidado, que se mantenha em guarda.

Um nó na garganta a impedia de seguir falando.

— Acaso é o incêndio o que tem feito que tema por minha segurança?

— Sim... Não, é outra coisa.

— Então, me diga do que se trata. Não lhe farei mal por umas poucas palavras.

— Trata-se de Giles, ele...

Ranulf a empurrou.

— Atreve a pronunciar seu nome diante de mim! Deveria estar contente que não tenha matado seu amiguinho. Deveria saber que era seu amante e ver que agora me rejeita, teria matado a ele e possivelmente a você também. Deveria me agradecer que tenha acreditado em suas palavras e não nas desse homem. Agora, chame a sua serva e se prepare, porque partiremos logo.

Retirou os lençóis precipitadamente e começou a se vestir, dois dias de matrimônio e lhe tinha provocado mais fúria do que jamais tinha conhecido, uma fúria intensa que chegava até o mais fundo de seu ser, machucando mais que as suas feridas de machado, provocando mais raiva do que sentiu contra os galeses, durante os anos de guerra ou contra os sarracenos durante as cruzadas. Essa moça o tocava mais profundamente que nenhuma outra coisa. Somente Isabel... Deteve de repente, esses pensamentos, causava sofrimento cada vez que pensava nela.

— Se aproxime Lyonene, se aproxime. — Lyonene ficou de pé frente a ele, juntando todas suas forças. Para Ranulf custava muito dizer tudo isso. — Temo não poder suportar que fale de outro homem. Agora já me acalmei, pode me dizer o que quer.

Se o mero feito de nomear o nome de Giles tinha causado tanta raiva, como ele reagiria às cinco cartas supostamente dirigidas a outro homem? Acaso era tão inocente para pensar que ouviria a razão antes de fazê-la em pedacinhos? Possivelmente depois se arrependeria de seus atos, mas nesse momento não queria arriscar-se.

— Não há nada a dizer. — Sussurrou, e se virou.

Ranulf também se virou, porque soube que ela tinha mentido. Abandonou o aposento sem lhe dirigir a palavra. Uma vez no pátio, em um primeiro momento não ouviu que Maularde lhe falava em voz baixa. Estava usando todo seu autocontrole para acreditar nela, para tratar de reconquistar os primeiros dias de felicidade. Como duas pessoas que tinham tanta sintonia, podia ter-se afastado tanto?

A suave voz de Maularde insistiu.

— Lorde Ranulf, tenho notícias que você precisa saber.

Ranulf escutou com incredulidade o que estava contando seu cavaleiro, franzindo o cenho cada vez mais, com cada palavra, com cada revelação.

— Vigia-o. — concluiu Ranulf.

— E milady?

— É minha e deve ser minha... responsabilidade.

Quase lhe escapou a palavra fardo.

 

 

 

 

 

 

Capítulo 07

Lyonene observou como Lucy entrava na carroça: era muito velha e obesa para montar a cavalo. Logo virou para retornar para junto do seu marido. Durante um momento, Ranulf a olhou intensamente com seus olhos negros, perscrutando seu rosto antes de ajudá-la a montar em seu cavalo.

Enquanto ambos cavalgaram em silêncio, várias vezes Lyonene teve um desesperado desejo de contar a Ranulf tudo sobre Giles, mas cada vez, sua solenidade e inclusive sua magnitude, a impedia de fazê-lo.

— Logo pararemos para jantar. O incêndio nos cansou muito e não temos nenhuma pressa.

Ajudou-a desmontar e a deixou um momento para atender às pessoas que tinha a seu comando, logo voltou para ela.

— Quer dar um passeio? — Pegou-a pelo braço.

Contente, deixou-se guiar pelo bosque, não muito longe, já que podiam ouvir as vozes, mas o suficiente para perdê-los de vista.

— Temo que seja um mau marido, tal e como disse meu irmão. Vamos nos sentar aqui e conversar um pouco. — O solo gelado pareceu penetrar no corpo dela e não pôde reprimir de estremecer. — Têm frio.

Retirou seu manto e se aproximou dela, cobrindo-a com seus braços e sua capa, com seu coração pulsando contra sua bochecha.

— Está contente de retornar a sua casa, milorde?

Ranulf não pôde impedir de franzir o cenho, pois tinha passado tão rapidamente de ser Leão para ser milorde.

— Sim, o clima galés é muito duro, e eu me criei na suavidade de minha ilha.

— Me fale dela.

Descreveu com grande prazer a ilha, os prados e a proximidade do mar.

— Vive ali só com seus homens? Não têm família?

— Meus pais faleceram quando eu era muito jovem. — Ele levantou um cacho de cima de sua perna e o esfregou entre os dedos. — Tenho a impressão de que não sabemos muito um do outro e que nos custa encontrar as palavras e, entretanto, quando nos conhecemos, nunca tínhamos tempo suficiente para dizer tudo o que queríamos.

Lyonene tratou de deter as lágrimas antes que brotassem, pois ela se sentia do mesmo modo. Olhou-o e sorriu ligeiramente. Ranulf aproximou seus lábios dos dela, e Lyonene se perdeu em seu apaixonado beijo. Era como se Ranulf tratasse de extrair a essência de sua alma com esse beijo. Mas sua paixão se via substituída por outro sentimento, um sentimento mais elevado que da pura paixão mundana. Lágrimas cálidas e dilaceradoras deslizaram por suas bochechas. Ranulf se afastou dela.

— Me diga o que a preocupa? — Perguntou Ranulf.

Uma voz saiu de entre as árvores e Giles apareceu

— Eu lhe direi. Acaso não se pergunta por que uma recém-casada há três dias chora quando seu marido a beija? Desembainhe sua espada e lutemos lorde Ranulf, e então veremos quem ganha essa mulher.

— Só é um menino. Não posso lutar com você. Minha esposa me falou de você, e eu acredito.

Lyonene pôde ver a dor no rosto de Ranulf, enquanto pronunciava essas palavras.

— Então, possivelmente isso o convencerá de que estou dizendo a verdade.

Jogou uma bolsa de couro aos pés de Ranulf.

— Não! — gritou Lyonene, e em seguida se lançou para pegar as cartas, mas Ranulf foi mais rápido que ela.

Lentamente, tirou uma carta da bolsa e depois as outras enquanto empalidecia e mudava a expressão de seu rosto. Quando terminou, virou para sua esposa. Lyonene poderia ter lidado com a raiva, a violência ou qualquer outra demonstração de emoção, mas não essa expressão de desconcerto total e de agonia nos olhos de Ranulf.

— Você escreveu essas cartas? — Perguntou com calma.

— Não as escrevi para Giles, eu juro. Eram...

— Para outro? — Ele afastou a mão dela de seu braço e jogou um olhar ao jovem que tinha diante dele. — Ela é agora minha esposa, apesar do que tenha feito no passado, eu não vou matar a nenhum moço.

— Bastardo! É tão bom, tão puro, que não pode sujar sua espada com um plebeu, mas já a ensanguentou quando a empunhou contra a filha de um barão. Acaso acredita que foi amor à primeira vista ou que foi a prata de sua cota de malha? Tínhamos tudo planejado, não percebeu? Ontem mexeu entre seus pertences e me deu esta pedra preciosa. — A jogou nos pés de Ranulf.

Ranulf olhou a pedra e logo contemplou o rosto aterrorizado de sua mulher.

Lyonene viu a raiva e o ódio em seus olhos.

— Se afaste de mim. Agora devo matar esse moço por você. Ficará alegre quando estiver morto? Procurará logo a outro que o substitua?

— Ranulf, deve me escutar! Está mentindo. Escrevi essas cartas a um homem imaginário, o sonho de uma menina. E disse que te mataria se não lhe dava esta pedra preciosa.

— E tenho que acreditar que esse moço estava ameaçando me matar? Que me roubou para me proteger desse menino? Não, mulher. Acreditei em você uma vez, mas já não posso acreditar mais. Agora, desapareça da minha vista.

Fez um sinal com a cabeça a alguém que se encontrava atrás dela e um cavaleiro da guarda a agarrou pelo braço e a afastou da clareira.

— Ranulf, por favor!

— É muito tarde para suas súplicas. Leve-a daqui para que não veja o horror que causou.

Lyonene abandonou o lugar e se deteve junto aos cavalos quando ouviu o primeiro ruído de aço contra aço. O duelo não demorou muito em terminar, mas para Lyonene pareceu que tinha passado horas, e cada ruído, cada som prolongava sua agonia.

Ranulf se deteve diante dela, e Lyonene viu frieza e dureza nos olhos de seu marido.

— Olhe o sangue que se derramou hoje. Um moço que nunca chegará a ser homem por sua culpa.

Subiu a sua sela, deixando que Hugo Fitz Waren ajudasse sua esposa a montar em seu cavalo. Lyonene não se atrevia olhar aos outros homens, segura de que estes a odiavam. Por isso, surpreendeu-se ao notar uma mão no seu joelho, foi um momento breve, mas tranquilizador. Um por um, saudaram-na solenemente com a cabeça, indicando que acreditavam em suas palavras e que aquele moço tinha perdido o juízo.

Só uma vez durante a longa viajem para o castelo de Aylersbury Lyonene tentou falar com seu marido, mas o ódio que viu a fez morder língua.


Pask, o intendente do castelo de Aylersbury, saudou calorosamente Ranulf.

— Sua senhoria, estamos orgulhosos de que nos honrem de novo com sua visita. O cozinheiro trabalhou durante dias para preparar a comida, e promete ser um banquete digno de você e de seus homens. Oh, trouxe uma dama?

— É minha esposa. — O tom de Ranulf fez com que o homem fizesse um gesto de assombro. — Ponha suas coisas no quarto que há em frente de Eduardo, eu usarei o seu.

Lyonene se sentia muito fatigada para preocupar-se de onde dormiria. Estava atormentada pelas lembranças de seu amigo de infância, agora morto, e por um marido que a odiava.

Lucy se deixou cair sobre a estreita cama.

— Foi um dia fatídico. O filho de sir John sempre foi um pouco estranho. Só você lhe dava atenção e dedicava tempo. Sempre soube que...

— Por favor, Lucy, poderíamos não falar disso? Estou esgotada e desejo descansar.

— Sim, lady Lyonene. Quer algo para comer? — Perguntou para a jovem enquanto a ajudava a despir.

— Não, não acredito que volte a comer. O único que eu gostaria agora é dormir e esquecer tudo.

Lucy saiu do quarto nas pontas dos pés.


Ranulf dava voltas pelo quarto, sem olhar para bandeja de comida que tinha diante dele. Tinha sido um idiota casando-se de novo, e sobre tudo um matrimônio que nem sequer servia para melhorar sua posição. A princesa castelhana não teria causado tantos problemas como o que tinha agora.

Lyonene, essa beleza de olhos cor de esmeralda, com o cabelo castanho avermelhado e pestanas grossas e escuras, era agora sua mulher, e olhe para o inferno que tinha passado nesses três dias. Maularde o tinha prevenido da presença de Giles, e ele tinha dado a ela todas as oportunidades para explicar-se, para ser honesta com ele, mas não o tinha sido. Tinha tentado não matar ao moço, mas havia ficado louco quando este o atacou. Ranulf esfregou os olhos com a mão, como se quisesse apagar a lembrança. Sabia perfeitamente o que era ser jovem e estar tão apaixonado.

Apaixonado? E o que sabia ele do amor? A moça o tinha levado ao matrimônio tão facilmente, mas agora que estavam casados se comportava de um modo diferente. Já não o desejava como antes, nem parecia ser feliz como quando estava na casa de seu pai. Tudo parecia indicar que se tratava de uma armadilha, pela verdade das palavras do moço.

Muitas lembranças se ocultavam. Frustrado, despiu-se e se dirigiu para cama vazia e fria e, por um momento, sentiu-se confuso. Sem se vestir, saiu para o gelado corredor e abriu a porta do quarto de Lyonene. Ela não despertou até que sentiu que alguém a levantava repentinamente, envolvendo com os lençóis seu corpo adormecido.

Os olhos escuros de Ranulf ficaram mais escuros sob a luz fraca, com sua face escurecida pela espessa barba de um dia. Não a olhou enquanto a transportava em silêncio, mas ela ansiava por ver seu olhar e por ouvir sua voz. Jogou-a sobre o colchão de plumas da enorme cama. Nesse instante ela percebeu a nudez dele, e a visão de seu corpo a fascinou, acelerando seu coração quando ele a olhou, com sua perna e seu quadril expostos entre os lençóis retorcidos.

— O quer que você seja, segue sendo minha esposa, e não pode me expulsar de seu leito. — Esticou as mantas e se meteu na cama, aproximando-a dele.

— Ranulf...

— Não quero falar do que aconteceu hoje, nem agora nem nunca. O moço está morto e averiguarei se suas palavras eram verdadeiras ou não.

— Como saberá? Eu lhe direi...

—Não, neste momento somente quero uma coisa de seus lábios.

Com sua mão acariciou seu ventre e notou que estava tensa e rígida. “Possivelmente esteja pensando no jovem”, disse a si mesmo enquanto a puxava com força para ele, fazendo que ofegasse de dor. Agarrou-a pelo queixo para aproximar sua boca da sua.

— Está pensando nele? Preferiria que fosse ele quem estivesse do seu lado?

— Não, não o preferiria. — Soluçou, tratando de afastar-se dele. — Por favor, não me machuque mais. Ficarei deitada sem me mover. Assim doerá menos.

Ranulf deixou cair à mão e se afastou para observá-la pensativamente.

— Ontem à noite, depois do incêndio, lhe machuquei de novo? —Ela assentiu com a cabeça. — Caramba, não para de me provocar dolorosamente! Conheço-te há apenas algumas semanas e já alterou toda minha vida, o presente e o passado. De manhã li uma carta escrita por você a um moço que tive que matar. Não tenho nenhuma prova de sua inocência. Na realidade, tudo parece indicar que é culpada. No primeiro dia que te conheci se jogou em meus braços com uma força ofuscante, e não tenho provas de que não tenha feito o mesmo com outros homens. Agora estou casado com você há três dias e me vi obrigado a te violar duas vezes e a matar um menino por você. Entretanto, aqui está estendida diante de mim com o cabelo emaranhado, e tudo o que desejo e fazer amor.

Lyonene pestanejou confusa entre o desejo de que a beijasse e de evitar o que o beijo implicaria.

Ele puxou-a e ela afundou seu rosto no espesso arbusto de pelo de seu peito, esfregando sua bochecha contra a suavidade de sua pele.

— Ainda não sei de sua lealdade, se é inocente ou pior do que Eva, mas sei que te desejo mais do que a qualquer outra mulher que tenha visto em minha vida. Não se afaste. Não te machucarei mais. Temo que lhe provoque dor com meus torpes intentos, mas vou tentar recuperar o tempo perdido.

Levantou sua boca para se encontrar com a dele e, suave e cuidadosamente, beijou-a durante um tempo, com delicadeza suficiente antes de aumentar a pressão em sua sensível pele. Ele moveu os lábios, passando seus dentes pelo lábio inferior dela, antes de beber do suave mel de sua boca.

Lyonene sentiu que o novo tato delicado em sua pele e seu grande tamanho a derretia. Ele a virou, colocando-a de barriga para baixo, ela se enrijeceu pensando na dor que seguiria e lamentando o fim dos doces beijos. Mas ele não pareceu perceber seus movimentos e começou a beijá-la apaixonadamente do lado da boca até a orelha, detendo-se no lóbulo e acariciando-o com a ponta da língua.

Seus lábios desceram pelo seu pescoço e Lyonene arqueou, se entregando mais e mais a ele. Sua mão tocava seu quadril e sua cintura, segurando-a com força perto das costelas, depois tocou seu seio e ela quase protestou pela surpresa, mas a sensação de sua mão em toda sua pele não podia ser melhor. A boca de Ranulf viajou por todo seu corpo, acendendo novos e deliciosos fogos.

Ela sentiu-se deixando seu corpo, sua razão fugindo, e tudo o que restava era um desejo novo, por cumprir, um desejo por algo desconhecido. Parecia como se ele tivesse centenas de mãos, centenas de lábios e todos procuravam, tocavam e enchiam sua mente, até que toda ela era pura sensação. Freneticamente, tocou o cabelo de Ranulf, esse espesso arbusto de cabelo que se encaracolava entre seus dedos sensíveis e vibrantes.

— Leoa, doce leoa. — Murmurou ele com um tom de voz profundo, acrescentando ao seu espírito selvagem os tremores que sacudiam todo seu corpo.

Ele a penetrou e Lyonene não teve medo, nem sentiu dor, só sentiu o princípio do fim de um desejo que a consumia e a cegava.

Lyonene não precisou seguir seu exemplo, pois o desejo que a dominava tomou posse dela e igualou a paixão de Ranulf. No final, lançou um grito, afundou as unhas em suas costas e se arqueou para aproximar-se mais a ele. Lentamente, as quebras da onda de paixão a sacudiram e foi relaxando progressivamente até cair sobre os lençóis brancos de linho. Quando Ranulf se moveu para virar-se e sair dela, Lyonene não quis soltá-lo, regozijando-se com sua musculatura e com a maneira em que sua pele escura cobria seu corpo úmido, que desprendia um forte e primitivo aroma de suor masculino.

Ranulf, brincalhão, esfregou seu rosto úmido no pescoço de Lyonene, acariciando-a com sua barba, logo se deslocou para um lado para poder ver seu rosto sob a luz de uma grossa vela que havia ao lado da cama. Acariciou uma mecha de cabelo que caía por sua têmpora.

— Agradei-lhe? — Sussurrou ela.

Olhou-a com estupor, pois se divertiu com a pergunta.

— Se soubesse... — começou ela, mas logo se deteve.

— Sim, agradou-me muitíssimo e temo que tenha me tirado toda a força. — Acrescentou, enquanto via que ela fechava os olhos de cansaço.

Lyonene dormiu antes que Ranulf terminasse de falar. Apesar de estar satisfeito e cansado, observou-a durante um momento, estava enroscada e grudada nele, e parecia ainda mais jovem do que era. Afastou-se um pouco dela e se dispôs a dormir. Esta noite teria sonhos agitados.

Apesar da paixão da noite anterior, a manhã não aliviou a dor entre Ranulf e Lyonene. A morte de Giles pesava sobre ambos, assim como as acusações do moço. Cruzaram de barco até a ilha de Malvoisin e, durante alguns instantes os pensamentos de Lyonene foram ultrapassados pela beleza e a força do enorme castelo. O Black Hall era uma casa de pedra, com novas tapeçarias que a rainha Leonora havia trazido de Castela e suas janelas estavam cobertas com cristais chumbados. Entendeu o orgulho que sentia Ranulf por seu lar, que ela teria compartilhado se ele tivesse dado alguma causa para se sentir desejada ou um pouco mais de carinho, e que não lamentasse constantemente por ter se casado com a filha de um barão.

Em sua solidão, já que Ranulf estava quase sempre ausente, tratou de ocupar seu tempo com os trabalhos que teria que fazer no castelo.

— O que faz quando não estou? William de Bee disse-me que interfere na gestão do meu castelo. — Lhe disse uma noite, enquanto lançava seu tabardo a Hodder. Lyonene olhou-o atônita. — Toda Malvoisin sempre esteve nas mãos do meu assistente durante anos. É um homem livre e não quero lhe dar razões para reclamações.

Lyonene se ergueu e olhou com raiva os olhos negros.

— Perdoe minha impertinência, milorde, mas só queria ser util. Diga-me, por favor, o que devo fazer cada dia, já que não posso me meter no que se supõe que é minha própria casa. Não estou acostumada ficar sem fazer nada.

A expressão de Ranulf era fria e indolente.

— Possivelmente William possa encontrar ouro para que o conte. Acredito que ganhou esse prazer. — O homem jogou um olhar à cama onde compartilhavam os únicos momentos de felicidade.

Lyonene o olhou fixamente, com olhos arregalados e, de repente, sentiu-se suja e desprezível. Saiu correndo do aposento e encontrou um corredor que estava bloqueado pela enorme figura da Lucy. Girou e atravessou uma porta que conduzia à torre de Black Hall. A escuridão da torre era absoluta e teve que subir as escadas às cegas. Como o aposento de cima estava muito iluminado, cegou sua vista.

— Minha filha, venha e sente-se aqui e beba isto.

Era a voz de um homem gordo com a cabeça raspada e traje de monge que pôs o braço sobre seus ombros. Levou-a até uma rudimentar cadeira de madeira e lhe ofereceu uma jarra de vinho tinto.

— Sou o irmão Jonathan. E você deve ser a encantadora lady Lyonene, a esposa de lorde Ranulf. — Começaram a brotar as lágrimas dela. — Venha comigo. Casados só há um mês e já discutiram?

Lyonene tomou o vinho tão rápido que engasgou, mas sentia que necessitava de calor. O irmão Jonathan lhe acariciou o braço.

— Me conte o que passou. Sei escutar muito bem.

Com muito esforço, Lyonene só conseguiu dizer:

— Não posso.

O monge permaneceu calado durante um momento e logo falou pausadamente.

— Ouvi dizer que o seu matrimônio foi por amor, que se amaram desde o primeiro momento.

Lyonene fez um grande esforço por recordar esses dois primeiros dias com Ranulf.

— Sim. — Sussurrou Lyonene, olhando fixamente ao fogo e pensando no dia em que Ranulf tinha ajudado a sustentar o arco comprido.

— Mas passou algo depois? Algo que a tenha feito perder de vista o amor que sentiam?

— Sim, algo passou.

O irmão Jonathan sorriu e se perguntou que pequeno incidente poderia ter acontecido que teria produzido a mudança. Provavelmente, o ciúme de Ranulf, disse a si mesmo. Desde sua primeira mulher, não podia suportar que ninguém tocasse o que era dele, se fosse seu cavalo, seus homens ou, conforme podia supor sua mulher.

— Conheço lorde Ranulf desde que era menino e tem suas razões para ser... um pouco intolerante. Diga-me, ainda o ama? Não pode ter deixado de amá-lo tão cedo, não se for um amor verdadeiro.

Lyonene pestanejou com seus olhos imprecisos.

— Eu... não sei. Mudou tanto... Quando o conheci, não parávamos de rir, agora não deixa de franzir o cenho e, às vezes me dá medo. Tentei explicar sobre Giles, mas não quer me escutar.

Então era isso! Disse-se Jonathan. Havia outro homem, um homem que, provavelmente, olhava à esposa de Ranulf. Sorriu pacientemente.

— Lorde Ranulf não é um homem cruel, mas às vezes não sabe raciocinar sobre certos assuntos. É um homem amável debaixo dessa capa de dureza. Acaso não viu isso?

— Sim. — Agora sorria de novo e veio à cabeça algumas lembranças desse Ranulf, apagando da mente tudo o que aconteceu na noite do casamento.

O monge sorriu.

—Bem, então. Tudo depende de você.

— De mim? Mas como vou mudá-lo? Não gosta de nada do que faço.

— Isto não é o que ouvi pelas fofocas dos serventes. Têm que provar que o quer. Deve fazer tudo o que possa para lhe demonstrar que se preocupa com ele.

— Sim, tenho que provar. — Sussurrou, deixando a taça vazia. — Provarei que não sou como pensa. Encontrarei uma maneira de fazê-lo. Obrigada, Irmão Jonathan.

Lyonene abandonou o aposento e o monge ficou sentado, refletindo, antes de voltar a encher sua taça. Ah, os jovens, tinham problemas tão pequenos... Perguntou-se de novo o que era o que teria angustiado a Lyonene. Certamente uma discussão sobre um vestido novo, ou possivelmente algo ainda menos importante.


Ranulf não retornou a Black Hall essa noite e Lyonene se deitou em sua grande cama olhando ao teto, com a expressão perdida. Dava a impressão que tudo tinha sido culpa dela, que seu marido a odiava por algo que tinha feito. Pensou nas palavras de irmão Jonathan e prometeu que, de algum jeito, provaria que seu amor por Ranulf era verdadeiro e que só amava a ele.

Pela manhã se dirigiu ao sul da ilha para ver como estavam os servos ali. Sir Bradford, um dos cavaleiros mais jovens da guarnição, acompanhou-a em seu caminho de volta ao castelo.

— Acredito que sinto um toque da primavera no ar. Ou possivelmente é porque o desejo tanto que o sinto assim. — Disse sir Bradford.

Lyonene riu.

— Sim, eu também estou cansada desse frio. Amanhã pela manhã seguirei o curso do rio e procurarei indícios da primavera nos prados.

Ambos viram como Ranulf se dirigia rapidamente para eles, com a expressão cheia de raiva. Com um braço puxou sir Bradford de seu cavalo, desceu do frísio negro e, pondo um pé em cima do moço, colocou a espada sobre ele.

Lyonene saltou de seu cavalo e ficou no meio dos dois.

— Mas o que está fazendo? Por que desembainha sua espada contra este moço?

— Acredito que você poderia responder melhor do que eu essa pergunta. Acredita que poderiam se encontrar aqui sem que eu soubesse? Já te avisei, mas sempre está me desafiando e dessa vez foi muito longe.

Ergueu-se ante ele, negando-se a se curvar.

— O que diz não tem nenhum sentido. O moço não fez mais que cavalgar ao meu lado e falar comigo, isso é tudo. É você com esse temperamento que vê coisas que não existem.

Ranulf respondeu com uma frieza sepulcral.

— Ah, e alguma vez não me deu nenhuma razão para duvidar de você? Em nossa noite de casamento, te encontrei com um moço que mais tarde tive que matar. Roubou-me para pagar ao seu amante e agora começa de novo com esse outro jovem. Também quer ver seu sangue? Acaso sua avareza não pede só sua semente, mas também seu sangue?

A ira quase a transtornou.

— É o único homem que permiti me tocar e me arrependo cada dia que seja dessa maneira. Deveria ter escapado com Giles ou com qualquer outro, antes de me comprometer com alguém com uma natureza tão vil como a sua.

Ranulf lhe deu uma bofetada na boca, fazendo um corte no seu lábio e derrubando-a no golpe.

— Então, vamos desfazer o que fizemos. Amanhã pela manhã irei a Gales e quando retornar não me deixe te encontrar aqui.

Montou seu cavalo e partiu.

Lyonene ficou deitada. O sangue lhe corria pelo machucado da boca. Fez gestos a sir Bradford para que se afastasse, e ele a deixou só. As lágrimas chegaram primeiro, lágrimas de desespero e desolação. Oxalá não tivesse dito todas essas coisas, mas seu temperamento era incontrolável. E o que acontecia com suas nobres promessas de provar seu amor? Seu marido tinha ordenado que se afastasse dele, assim não haveria mais oportunidades para provar seu amor.

— Ranulf. — Gritou estendida no prado, sentindo como seus soluços a rasgavam. Na manhã seguinte, Ranulf partiria para Gales e a história entre os dois teria terminado.

De repente, sentou-se e entre lágrimas olhou para frente.

Para algo tinham posto seu nome de leoa. Acaso não tinha mais coragem que uma serva? Não se renderia tão facilmente.

Rondava várias ideias pela cabeça. Se viajasse para Gales, não viajaria sozinho. Viajaria com mulheres que cozinhassem e limpassem para os homens.

Secou as lágrimas e começou a sorrir em segredo. Não a rejeitaria quando tivesse passado a cólera. Sabia que precisava de mais tempo, e poderia emendar de algum modo o que tinha acontecido. Sabia que encontraria uma maneira de demonstrar seu amor.

Outra vez segura de si e com um propósito em mente, montou sobre seu cavalo e se dirigiu para Black Hall. Tinha que preparar muitas coisas para o dia seguinte.

 

Capítulo 08

As carroças estavam preparadas no pátio exterior, Lyonene colocou uma capa avermelhada sobre os ombros e colocou o capuz para tampar seu rosto. A preparação de seu plano havia levado bastante tempo e não queria arruinar todo esse trabalho deixando alguém no pátio descobri-la. Sua nova criada, Kate, tinha seguido o seu plano, mas Lyonene a tinha surpreendido olhando-a com uma expressão estranha no rosto. A moça devia fingir que Lyonene estava doente e que ninguém podia incomodá-la, exceto ela. Quando a trama fosse descoberta, Lyonene provavelmente já estaria em Gales. Deu um chute no chão e pegou o grosso manto de lã de sua serva, já que fazia muito frio no início da manhã. Lyonene refletiu sobre o que estava preste a fazer, perguntando-se como seria a reação de Ranulf quando revelasse sua identidade ante ele. Tinha dito que não queria voltar a vê-la e se tivesse ousado demais nesta farsa? Não lhe agradava usar somente um manto de serva, mas embora tivesse tentando, não pôde levar o fardo com trajes forrados de peles na carroça, já que eles eram revistados constantemente por vários homens, e o descobrimento de alguns vestidos como os seus a teria desmascarado e arruinado seu plano.

— Você, moça!

Lyonene se deu conta de que uma mulher a estava chamando. Agachou a cabeça e tratou com todas suas forças de reter a cólera que ameaçava explodir em rebelião contra as ordens dessa mulher grosseira.

— Não fique aí parada todo o dia! Vem me ajudar com esses barris!

Lyonene seguiu à mulher para o pátio interior e seu coração começou a pulsar forte, ao ver a Guarda Negra montada em seus belos corcéis com o frísio, sem cavaleiro, no meio. Lyonene jogou um olhar ao bonito cavalo negro, sua crina majestosa a espessa cauda que chegava até o chão, e o bonito pelo negro que lhe saía do joelho até o casco, estava se movendo e levantando uma pata como sinal de impaciência por partir. Era o cavalo perfeito para o Leão Negro.

Lyonene sustentou os barris, um em cada braço, e começou a seguir à mulher para o pátio exterior até que se detiveram repentinamente. Lyonene seguiu seu olhar. Ranulf caminhava para seu cavalo e, com satisfação, viu como todos os olhares se dirigiam para ele e para seus homens evidentemente orgulhosos de seu lorde.

Ele montou de um salto na sela do frísio e se deteve um momento para olhar para uma das janelas do segundo andar de Black Hall. Lyonene quase cortou a respiração ao ver que se tratava da janela de seu pequeno quarto.

— Que as torturas do inferno desçam sobre essa mulher! — Disse entre dentes uma mulher que se encontrava do lado de Lyonene.

Lyonene a olhou pela primeira vez. Era velha, quase tão velha como sua mãe, mas as feições de seu rosto mostravam que tinha sido bonita. De fato, seus olhos a fascinavam, pois eram pouco comuns, estreitos, inclinados em forma de amêndoa excepcionalmente bonitos. Os estreitou enquanto se fixava no que Ranulf olhava e Lyonene se surpreendeu ao ver que continham malevolência.

— Dizem que não lhe importa meu Ranulf.

Um brilho de raiva a rasgou e teve que fazer força para controlar-se.

— O que quer dizer com seu Ranulf? Por acaso não tem uma mulher?

— Sim, tem uma mulher.

A mulher usou um tom depreciativo e se virou para o Leão que voltou a vista para outro lado. Voltou a olhar Ranulf

Lyonene apertou os punhos, ao ver que os olhos estranhos da mulher se desfaziam em um olhar de adoração.

— Tem uma mulher, mas ela não o cuida tal e como ele merece. É uma estúpida por ter preferido fazer amor com outro que com meu lorde Ranulf.

— E o que você sabe da vida amorosa de meu lorde Ranulf? — Lyonene não poder conter a raiva em sua voz, nem a leve ênfase que pôs na palavra meu.

A mulher a olhou indolentemente e Lyonene encontrou seu sorriso de suficiência e um olhar provocador que não tratava de ocultar.

— Ah, então meu Ranulf encontrou alguém que me substitua. Não tinha ouvido falar de ti; esconde-te muito bem. Mas se for sua amante, reconhecerá que é muito habilidoso e por isso estou agradecida.

Lyonene franziu o cenho e esteve a ponto de perguntar a que se referia, quando ambas se deram conta de que os cavalos tinham começado a mover-se. Ficou petrificada ao ver que Ranulf se dirigia para ela, montado em seu frísio, mas Ranulf só tinha olhos para a mulher que havia ao seu lado. Antes que pudesse vê-la, Lyonene cobriu o rosto com a sombra de seu capuz.

— Maude, estou contente de te ver nesta magnífica manhã. Alegra-me saber que vai viajar conosco.

— Só por você, meu lorde. Viajo só por você, e se houver alguma coisa que você precise... Terei prazer em providenciar.

Lyonene olhou furtivamente Ranulf apertando os dentes, ao ver sua expressão de adoração quando olhava a essa velha insolente. Ranulf não se importava que todo mundo no pátio tivesse ouvido essas palavras e que entendessem bem seu significado. Lyonene se voltou para o outro lado, antes que Ranulf virasse e a visse, como se fosse perceber ela enquanto essa mulher gorda de olhos rasgados se oferecia a ele tão obviamente.

— Ah, Maude, sinto muito sua falta desde que foi viver no povoado. Preparou... Algum espetáculo para esta viagem?

— Trouxe caixas com sedas de todas as cores e tudo que posso necessitar.

Sua voz melosa era como uma carícia e Lyonene sabia que ia tirar o capuz, se isso não terminava logo.

— Esperarei com ânsia que cheguem as noites.

Nem sequer olhou uma vez sequer a face oculta de Lyonene antes de virar e partir com a guarda atrás dele, Maude ao seu lado, fez um ruído e ao levantar a vista Lyonene se encontrou com um olhar malicioso. Sorrindo, viu os olhos ainda cintilantes:

— Tem uma vontade de ferro. Se estivesse em seu lugar, não teria sido capaz de controlar tão bem minha raiva.

Lyonene elevou o rosto.

— Não sei de que raiva está falando.

Maude lançou de novo uma risada rouca.

— Não deve ter medo de que tire seu lugar com o lorde, já que meus dias terminaram e devo viver com a lembrança de suas doces carícias.

Lyonene sacudiu a cabeça.

— Eu não conheço nenhuma doce carícia.

Dessa vez a risada foi mais longa e mais profunda.

— Então é isso o que ocorre. Ainda não o conhece de todo, só o está desejando. — Olhou para a janela de Black Hall e endureceu a expressão e falou com voz desumana. — Se ouviu, ela o rejeita, e que apodreça no inferno! Então Maude te ajudará a cumprir seu desejo.

— Fala com muita leveza que deseja que uma mulher que não conhece apodreça no inferno. Possivelmente é lorde Ranulf quem a rejeita e não é como você pensa.

Maude a olhava fixamente.

— Então deve ser porque é muito feia ou porque é muito mal-humorada, para que ele não possa suportar tocá-la. Ou tem varíola.

— Claro que não!

Lyonene respondeu acaloradamente, mas se deteve e virou o olhar para outro lado quando descobriu o olhar penetrante de Maude.

— Parece que sabe muito deste assunto. E como está tão segura de que não conheço a mulher de lorde Ranulf? Guarda muito orgulho para ser uma serva.

Gelou o sangue, pois estava a ponto de tirar o capuz e não podia responder. Maude rompeu o silêncio ensurdecedor.

— Vem comigo, levaremos estes barris à carroça e começaremos a viagem. Teremos tempo suficiente para saber quais são suas razões, mas o mais importante é que terei tempo para te ensinar a satisfazer ao meu lorde Ranulf, e para que aprenda tudo o que deseje sobre seu doce tato.

Lyonene mordeu a língua para não replicar às brincadeiras da velha. O único que queria era chegar a Gales e conhecer a rainha. O que passasse durante a viagem não era assunto dela.


Lyonene viajou muito incômoda, montada em um burrinho atrás das quatro carroças, da Guarda Negra e de Ranulf. Não via seu marido e várias vezes teve que olhar para outro lado, pois Maude não deixava de observar seus movimentos.

Por alguma razão que só Maude conhecia, ela ajudava que Lyonene permanecesse no anonimato e evitou várias situações incômodas. Lyonene agradecia a sorte de que os homens da Guarda Negra não fossem como os de seu pai, de cujas insinuações não escapavam nenhuma serva. Os homens se sentaram sob algumas árvores e Lyonene os observou. Maude estava lhes servindo a comida e eram muito amáveis com ela. Lyonene removeu o caldeirão sobre o fogo com golpes secos, enquanto Ranulf dizia algo à mulher, a risada rouca de Maude flutuando no ambiente.

Ranulf tinha razão quando disse que viajariam muito rápido, e ao final do dia só ficou tempo para uma breve comida. Como não estava acostumada a cozinhar, Lyonene teve dificuldades em ajudar a Maude a preparar o jantar e estava muito agradecida por sua paciência. Observou a grande tenda negra de Ranulf e se sentiu aliviada ao ver que Maude lhe levava comida, mas ao mesmo tempo, reteve a respiração até que a mulher retornou. Maude lançou um olhar provocador e se pôs a rir.

Observou como Maude se dirigia a uma das carroças e tirava uma caixa de madeira. Chamou-a por cima do ombro.

— Se aproxime.

Curiosa, Lyonene a seguiu, apesar de que se desgostava que a mulher assumisse que ela iria onde a chamassem.

O fogo em que cozinhavam estava afastado das quatro tendas dos homens, e Lyonene se perguntou qual era a razão. Agora via que devia ser para poder ter uma certa privacidade. A caixa tinha incrustações de pérolas e de prata que reluziam sob o reflexo da luz da lua. Quase com admiração, Maude abriu a tampa e tirou o que parecia ser uma peça de seda muito suave e transparente. Pareciam calças de homem, um pouco mais largas, com joias incrustadas ao longo da perna e que deviam chegar até o tornozelo. Ao redor da cintura também havia uma faixa de ouro e joias resplandecentes.

Outra peça de roupa que Maude tirou da caixa foi uma faixa de seda cuja utilidade Lyonene não soube adivinhar. A peça seguinte era um corpete diminuto, delicado e transparente. Também tirou muitos véus, suaves e sedutores. Lyonene não tinha visto nunca uma seda como aquela. Ajoelhou-se para tocar esses ornamentos.

— Pertenceram a minha mãe e depois a mim. Agora estou muito gorda para poder usar isso.

— O que é isto e como alguém pode usar estes objetos? Revelam mais do que podem cobrir.

Maude deixou escapou a risada.

— Tem razão, este é o propósito deste objeto. — Viu a cara confusa de Lyonene.

— Minha mãe era uma sarracena que meu pai trouxe da Terra Santa. Apaixonou-se por ela durante uma noite em que ela dançava em algum lugar por lá. Era um homem bom, e não se preocupava que ela tivesse dançado muitas vezes. — Sua voz soou tensa. — A trouxe com ele das cruzadas e sempre foi muito bom com ela. Eu era muito jovem quando ele morreu e, de um dia para o outro, minha mãe envelheceu. Embora tivesse dançado muitas vezes para meu pai, depois de sua morte, não voltou a dançar. Mas me ensinou a dançar e me deu de presente estas roupas de seda. Não fui tão fiel como minha mãe a nenhum de meus maridos.

Levantou-se e pediu a Lyonene que seguisse seu exemplo Um gemido assustado saiu dos lábios de Lyonene quando Maude pôs as mãos no corpo da jovem mulher.

— O fará. Agora tire estas roupas.

— Não o farei! Não sei quais são suas razões, mas não tirarei a roupa.

Imperturbável, Maude continuou.

— Como supõe que vai pôr estas roupas se não tirar as que está vestida? Assim não entrarão.

— Não tenho intenção de pôr sua roupa de baile. A seda é muito bonita, mas não quero pôr isso.

A voz do Maude ficou depreciativa.

— Acaso acredita que é a única moça que veio nesta viagem? É que não viu às outras duas que olham para Ranulf com desejo? Pagaram muito para vir nesta viagem e não pagaram com ouro. Entende o que quero dizer? Sabem que, às vezes, lorde Ranulf escolhe uma moça para passar a noite em sua tenda durante estas viagens, e estão dispostas a vender o que for para obter este privilégio, porque é um amante suave e complacente, e depois é muito generoso e lhes dá de presente ouro. — Via como Lyonene olhava com crescente ansiedade para a tenda de Ranulf — Esta noite não há nenhuma mulher lá, mas me diga, como se sentirá quando ouvir a risada suave de uma mulher que vem da tenda ou quando gritar de prazer? Estará contente de ter rejeitado as sedas de dança de minha mãe? Estaria satisfeita se se sentasse para ouvir os suspiros de Ranulf quando... ?

— Basta!

Maude sorriu.

— É o que pensava. Ensinar-te-ei a dançar. Demoram-se anos em ser uma perita, mas estes soldados ingleses não sabem apreciar uma dança como esta. Meu lorde Ranulf só te verá à luz das velas.

Lyonene empalideceu. Vestir-se com essas roupas, e diante de um homem! Era impensável. Maude leu seus pensamentos.

— Se não for a sua tenda, terá que ouvir os gritos das outras mulheres. Quer que te descreva o que me disse uma mulher na última viagem sobre a cama de lorde Ranulf? — Pôs-se a rir ao ver que Lyonene cobria os ouvidos. — Então venha comigo e veremos se aprende a dançar.

Com as mãos tremendo, Lyonene começou a tirar roupas de lã e ficou de pé diante de Maude, escondida entre as árvores. Quando estava completamente nua, Maude a girou várias vezes para examinada, enquanto Lyonene apertava os dentes, pensando unicamente em sair daí para desfazer-se do olhar penetrante da velha mulher.

— Bem, muito bem. É difícil acreditar que eu também tive um corpo como o teu. Agora vamos vesti-la.

Colocou-lhe o cinto com joias, que apenas a cobria, em torno de seus quadris e entre suas pernas. Colocou roupa transparente sobre suas pernas e ajustou as fitas douradas ao redor de seus finos tornozelos. Agora entendeu por que o cinto era tão largo, já que não devia usar na cintura a não ser sobre os quadris, por debaixo do umbigo. A faixa de seda cobriu seus seios amarrada nas costas. Ficou sem respiração quando Maude atou com força e se horrorizou ao ver que, como resultado de ter ajustado bem o tecido, seus seios se destacavam mais e quase saltavam por sobre a seda, ocultando muito pouco. O minúsculo corpete só enfatizava as curvas de seus ombros e ressaltava a forma de seus seios e a curva profunda de sua cintura, destacando seus quadris por cima do resplandecente cinto.

O constrangimento de Lyonene só durou um momento, pois a beleza dos trajes lhe proporcionava uma estranha sensação de sensualidade e gostava de sentir como sua cabeleira roçava os braços nus e a cintura.

— Sim, sim. Tem efeito sobre ti. Esta seda viu muitas noites de prazer e guarda estas lembranças.

Apesar de si mesmo, Lyonene não podia apagar o sentimento de sensualidade que lhe davam sua pele nua e o vestido de seda.

Maude trouxe um estranho instrumento de corda de detrás de uma árvore e Lyonene a escutou tocar uma música estrangeira, por algum momento. Se levantou e, cantarolando, começou a fazer movimentos sensuais lentos com seus quadris e seu ventre. Maude fez-lhe um sinal com a cabeça, para que esta seguisse seus movimentos, surpreendida ao ver a facilidade com que ela os realizava.

— Bem, sim, muito bem. — Murmurou Maude enquanto voltava a tocar o instrumento. Lyonene escutava as indicações de Maude, que pareciam misturar-se com a música.

— Dobra um pouco mais os joelhos. Assim, lentamente Agora mais rápido. Quero ouvir os sinos.

Lyonene tinha ouvido vagamente um toque de sinos, mas agora se dava conta de que provinha do traje, que os pedaços de ouro que cobria os lados do corpete, no cinto e nos punhos eram centenas de sinos. Quanto mais rápido se movia, mais ouvia seu som tilintarem. Agradou-lhe saber que esse som o produziam seus movimentos. A música era cada vez mais rápida e os sinos soavam mais alto.

Quase podia imaginar os olhos de Ranulf, escuros e inescrutáveis, enquanto a observassem. Sentiu uma sensação de derrota quando a música parou e Maude ordenou que tirasse o traje de dança.

— Tem-no feito muito bem. Amanhã direi a milorde que temos uma nova bailarina e ficará muito contente. Mas agora precisa dormir, ou amanhã estará muito cansada.

Com o sentimento de desilusão ainda nela, Lyonene voltou para o acampamento para deitar-se perto de Maude, sob as estrelas. Estava tão esgotada que dormiu profundamente.

Pela manhã, tinha os músculos doloridos e qualquer movimento em cima do asno doía. Mas preferia sentir essa dor, porque lhe impedia de pensar no que estava fazendo.

Fizeram outra pausa antes do jantar, e Lyonene observou às outras duas mulheres que rondavam constantemente ao redor de Ranulf. Ouvia como Corbet não cessava de realizar comentários sarcásticos a propósito das mulheres e do modo como elas se exibiam.

Seguia maravilhando-se da conduta da Guarda Negra. Ela nunca tinha entrado no salão principal de Malvoisin, mas algumas vezes tinha visto umas mulheres no pátio. Eram mulheres tranquilas e bem vestidas, e sabia que viviam com os cavaleiros da Guarda Negra. Pensou na disciplina que tinham esses homens, tão diferentes aos que tinha conhecido de menina.

A queda da noite trouxe novas práticas da dança que Maude a ensinava. Gostava dos movimentos graciosos e aprendia rapidamente. Passado um momento, sentiu-se cansada e se deixou cair sobre o colchão de palha.

Um leve som a despertou e olhou para Maude que dormia profundamente. Instintivamente, virou-se para a grande tenda negra e viu Ranulf de pé, vestido somente com uma tanga de linho branca. Ficou de barriga para baixo e fingiu que dormia, enquanto olhava para o lugar de onde procedia o ruído. Com o queixo sobre suas mãos, observou Ranulf que se sentou em uma rocha não muito longe dela. A luz da lua brilhava sobre sua pele bronzeada e viu seus ombros caírem, nem tanto pelo cansaço a não ser possivelmente pela tristeza.

Teve um repentino desejo de aproximar-se dele, de agarrar sua cabeça com esse cabelo alvoroçado e aproximá-la de seu peito, para tranquilizá-lo. Ele se levantou, bocejou e se espreguiçou, ficando os músculos das costas e sua pele dourada bem pronunciada. Lyonene estremeceu ligeiramente e se cobriu melhor com a manta, já que a ideia de o reconfortar tinha fugido dela e foi substituída por outra emoção mais forte.

Começaram a viagem antes que saísse o sol e Lyonene montou no asno meio adormecida. Durante o jantar, as duas mulheres foram ainda mais atrevidas em sua perseguição a Ranulf. Cheia de ira, Lyonene lançou a panela de ferro na carroça. A voz de Ranulf a deteve. Ainda estava debaixo da árvore, mas Lyonene podia sentir seu olhar sobre ela. Rapidamente, com sua cara bem encoberta pela sombra do capuz, virou-se para ele durante um breve instante. Maude estava inclinada sobre ele e sussurrava perto de seu ouvido. Ranulf não fazia nenhum esforço por afastar-se dela e dirigia seu olhar para Lyonene, enquanto ela guardava os utensílios de cozinha na carroça. Estavam falando dela!

O jantar chegou a seu fim e Lyonene tratou, com sutileza, mas sem êxito, saber do que tinham estado falando. A risada de Maude era irritante, mas ao menos sabia que Ranulf não estava ciente de que sua esposa viajava com eles, disfarçada de serva.


Na terceira noite saíram da rota principal e se dirigiram para um castelo. A ideia de um fogo faiscante a reconfortavam enquanto foram aproximando-se das muralhas da torre. Ao entrar no bailey4, um homem chegou correndo até eles, meio nu, com as calças e uma camisa de linho aberta, mostrando seu forte e duro peito. Era um homem bonito, de cabelo loiro, costas largas e quadris finos. Correu para Ranulf com os braços abertos e ambos se abraçaram dando voltas e levantando um ao outro do chão.

— Ranulf, cada vez que o vejo está mais feio!

Lyonene abriu a boca para falar, mas sentiu a pressão da mão de Maude em seu braço. Não era fácil recordar que se passava por uma serva.

— E você é tão fraco como uma moça. Mais fraco que algumas moças. — Dizia Ranulf.

Voltaram-se a se abraçar, beijaram-se na bochecha e, com os braços entrelaçados, dirigiram-se para as escadas de madeira que levava ao segundo andar da torre.

Lyonene esperou impaciente que a Guarda Negra seguisse seu lorde, para obter a permissão que ela podia entrar no castelo. Ranulf tinha escolhido uma cadeira frente a lareira, em um lado da sala. O outro homem estava de pé ao lado de outra cadeira, vestindo-se vagarosamente com as roupas que lhe segurava um servente.

— O que há de novo em Malvoisin? Ouvi algumas histórias sobre você, mas não acredito em nenhuma.

— E quais são estas histórias? Estou seguro de que, ao menos, são meias verdades. Venha, Dacre, sentem-se aqui e deixe de perder tanto tempo se preocupando com sua beleza.

Dacre sorriu e se sentou em uma cadeira ao lado de Ranulf, fazendo um aceno com a mão para que o servente se retirasse.

— Não sou eu quem deve questionar os intuitos do Senhor, mas às vezes me pergunto por que Ele te deu o aspecto de um demônio e o temperamento de um anjo, e me deu o corpo de um anjo e o caráter de um demônio.

Ranulf deu um gole em seu vinho quente.

— Há muita gente que não estaria de acordo sobre qual é o corpo do diabo e qual o do anjo.

A risada de Dacre foi como um estrondo.

— Assim está de acordo em quem tem um temperamento de anjo. Não esperava menos de você.

Nenhum dos dois homens se deu conta da presença da jovem serva, que se achava muito perto do respaldo das cadeiras. Maude empurrou uma cesta com uma vassoura pequena e uma pá para Lyonene e lhe indicou que fosse limpar a lareira. Não tentou convencer a Maude de que não era seu dever como serva de Ranulf, mas sim, ficou contente de poder ouvir a conversa entre Dacre e seu marido.

— Contudo, saberia distinguir a verdade em uma história, a de que se casou com uma moça jovem, mas pobre.

Lyonene ardia de desejos de voltar-se para ver o rosto de Ranulf, mas se ocupou das cinzas da lareira.

— É verdade. — Respondeu finalmente com calma Ranulf.

— E também ouvi que lhe puseram um estúpido nome de leoa, porque quando nasceu tinha um rosto largo e achatado, com um nariz grande, sem lábios ...

— Pois você ouviu errado!

Dacre riu ao ouvir a veemência na voz de seu amigo.

— Bem, me diga então o que pôde apoderar-se de seu pai, para que pusesse o nome de leoa em sua filha.

Ranulf se apoiou na cadeira de carvalho esculpido. Explicou com voz pausada:

— Ela tem o cabelo castanho-avermelhado da cor de um leão, uma grande e grossa juba dele. Olhos verdes que colocariam uma esmeralda em vergonha, um nariz minúsculo e uma boca cheia e macia. Quando ela está com raiva, uma sobrancelha...

De repente se deteve e olhou a taça de vinho.

— Continue. Precisa me contar mais sobre esta mulher. E quanto ao resto dela? Tem uma cintura larga? E o que me diz de suas pernas?

— Dacre! Estar indo muito longe. Está falando de minha esposa. Não é uma serva que possa ser compartilhada.

A voz do Ranulf soava cheia de ira.

— Entendo. Tem as pernas largas como o pescoço de um frísio e uma cintura do mesmo tamanho que a tua. Se eu tivesse uma esposa assim, tampouco quereria falar dela.

Lyonene ouviu a risada de Ranulf, um som que tinha escutado muito poucas vezes.

— É... Não, não morderei seu anzol. Têm que vir a Malvoisin para vê-la.

— Ou poderia perguntar a Corbet. Tenho certeza que ele pode me dar uma opinião verdadeira, sobre esta sua esposa misteriosa.

Ranulf franziu o cenho enquanto bebia de sua taça.

— Corbet fala muito às vezes.

— Mmm. Ciúmes tão cedo! Deve ser muito bonita. Têm que me contar o que se apoderou de você para que se casasse com ela. Acreditava que Isabel o tinha amargurado para sempre.

Lyonene esperava ansiosamente a resposta de Ranulf, a razão pela qual se casou com ela.

Passou muito tempo e Lyonene soube que Ranulf não responderia. Voltou a concentrar-se no pesado trabalho de limpar as cinzas. Ao menos ao lado da lareira fazia mais calor.

— Lembra-se da serva ruiva em Londres? Pela que disputaram Corbet e Sainneville?

Ranulf voltou a rir.

— Estavam bem embriagados e...

— Nem você nem eu estávamos muito sóbrios. Graças aos céus e a Hugo Fitz Waren.

— Sim, Hugo ajudou a separá-los porque eu não podia. Não me importava quem ficasse com a mulher.

— Era muito inteligente. Sabia quem era o conde. Nunca me esquecerei de seu rosto quando colou aquele corpo gordo diante de você, enquanto contava entre soluços que a havia salvado a vida e que lhes devia tudo. Lembro-me que quando disse “tudo” pôs os olhos arregalados de uma maneira...

— Seu “tudo” não esteve nada mal. — Dacre gritou.

— E o que sabe você do que ela tinha para oferecer, porque ela veio a meu quarto naquela noite?

— A seu quarto! E para que ela quereria um fracote como você quando poderia ter a um homem de verdade!

— Fracote! Pois aquela pequena doçura sussurrou que você lhe dava mais medo que o diabo!

— Pois me disse que passar a noite com você seria como passar a noite entre meninas bonitas.

— Tem graça! Já te mostrarei, bonitas!

Lyonene se virou e viu como Dacre se lançava no pescoço de Ranulf e como os dois homens rolavam pelo chão de juncos, medindo suas enormes forças Que dois homens adultos lutassem dessa maneira entre si pelo chão e que, além disso, fosse por uma mulher era absurdo! Rolaram até seus pés, agarrados um ao outro, com seus rostos separados unicamente por uns poucos centímetros. Lyonene se levantou calmamente e deixou cair à cesta quase cheia de cinzas de sua cintura para o chão, muito perto de seus rostos. Não esperou pare ver os destroços que tinha causado, mas tranquilamente, afastou-se deles. Sorriu timidamente quando ouviu que deixavam de brigar e que começavam a tossir e a amaldiçoar.

Maude apareceu de repente e agarrou o esbelto corpo de Lyonene, fazendo-a apoiar o rosto em seu ombro.

— Matarei a esta serva. — Gritou Dacre perto de onde Maude estava segurando Lyonene. — Maude, solta-a. Tenho o meu próprio castigo para ela.

— Deu um susto de morte a pobre moça. É muito jovem e não está acostumada as brincadeiras violentas entre os condes do rei.

Maude acariciou o cabelo de Lyonene, completamente escondido sob o véu de lã que caía por suas costas. A voz de Maude tinha um tom sarcástico e Lyonene começou a rir em silêncio, tanto que seus ombros começaram a mover-se.

— Veem? Está tremendo de medo.

Este comentário fez rir ainda mais Lyonene e lhe escapou um som parecido a um soluço.

— É a esta que está ensinando a dançar? — A voz de Ranulf era gentil.

Maude assentiu com a cabeça.

— Então, que fique contigo na cozinha e me envie alguém com água para limpar todo este pó.

Maude moveu um pouco a cabeça de Lyonene para que pudesse ver a confusão que tinha causado. Sentia que eles mereciam por terem falado de servas de tabernas. Quando Maude a levou para a cozinha, Lyonene ouviu como falava Ranulf.

— Maude está ensinando a esta moça a dançar. Disse que é muito boa e que estará pronta para atuar quando chegarmos ao País de Gales.

— Bom, então vejamos o que sabe fazer. Podemos perdoá-la se dançar bem.

— Esta é minha, Dacre. É jovem, muito jovem para as recompensas que você tem em mente. Dentro de uns anos, quando dançar melhor, então poderá “perdoá-la”, mas ainda não.

Maude levou Lyonene à cozinha e lhe deu uma montanha de cebolas para cortar, como castigo pelo que tinha feito. Cortava e picava com raiva, pensando nas palavras de Ranulf a respeito da garçonete de Londres. Também recordava que havia dito: “Esta é minha”. A quantas mulheres tinha ensinado Maude a dançar para ele? Não soube quando se começaram a misturar as lágrimas causadas pelas cebolas e as verdadeiras.

Lyonene notava que Maude se esforçava em mantê-la separada de Ranulf, sempre havia tarefas que fazer que requeressem sua presença longe dele. Estava mais que exausta quando se deixou cair no colchão frente da lareira. A palha era muito incômoda e sentia falta de seu agradável colchão de plumas de Malvoisin.


A manhã chegou muito rapidamente e, meio adormecida, montou no asno.

— Esta será a noite, porque amanhã chegamos ao País Gales. Esta frase de Maude despertou a Lyonene e, durante todo o dia, tratou de convencer-se de não seguir com a ideia da dança. Quando se detiveram para jantar e viu como uma das mulheres acariciava a mandíbula de Ranulf com o dedo e como este lhe segurava a mão durante um instante, Lyonene se decidiu. Não pensaria nas consequências desta noite, o único que queria era que a visse, que segurasse sua mão e a de ninguém mais.

Quando terminaram de montar a tenda de Ranulf, Lyonene viu que Maude falava com ele e soube que Ranulf estava de acordo com as sugestões da velha mulher. Seu coração começou a pulsar rapidamente.

Não teve tempo de pensar enquanto Maude a levou até um lugar isolado no meio do bosque. Os primeiros protestos terminaram quando já a tinha despido completamente. Logo, o vestido da dança a envolvia. Era como se já não fosse ela mesma, como se fosse outra pessoa: uma beleza escura, uma sarracena a que tinham ensinado desde pequena a seduzir e a atrair aos homens com seus fluidos movimentos corporais. Podia ouvir a estranha música em sua cabeça e seus quadris começaram a mover-se lentamente, com um sorriso secreto em seu rosto.

Maude tirou um objeto de vidro prateado, um espelho, de uma caixa de madeira e também um pote de pó negro. Maquiou-a: Aplicou o Kohl escurecedor nas pálpebras superiores e inferiores e nas sobrancelhas. Havia véus transparentes, suaves e com cores tênues que se acrescentavam ao traje. Um dos véus cobria seu cabelo e a parte inferior de seu rosto.

Era outra mulher a que a olhava desde desse pequeno espelho e esses olhos escuros e sensuais prometiam coisas das que Lyonene sabia muito pouco, promessas de paixão e de pele suave como a seda. Caminhou com soltura e segurança para a tenda iluminada com velas.

Ranulf estava meio recostado na cama e, em um primeiro momento, não viu a garota morena que entrava em sua tenda, só ouvia a música de Maude junto com uma flauta e uns instrumentos que vibravam como tambores. Em seguida se sentiu impressionado pela confiança que mostrava a moça, fazendo movimentos seguros e sedutores. Esqueceu que sabia que era uma serva já que, de algum jeito, transformou-se em algo que ele tinha visto, fazia muitos anos, na Terra Santa.

Cada ondulação lenta era um gesto de amor e começou sentir que ela dançava somente para ele como nenhuma mulher o tinha feito antes. Seus quadris se moviam para ele, seus braços acenavam em gestos e seus olhos verdes o acariciavam. As danças que Maude conhecia tão bem, sempre o tinham excitado, mas esta moça dava mais, dava-lhe um sentimento de saudade e de ternura. Um véu caiu a seus pés, revelando uma longa e esbelta perna escondida, mas visível sob as calças de seda. A música se fez mais rápida, a moça ficou de costas e Ranulf alcançou a ver um pouco de seu cabelo através do véu escuro.

Outro lenço se moveu pelo espesso ar e pôde ver a curva de um quadril e o cinto dourado resplandecente sob o reflexo da luz das velas. Seus quadris começaram mover-se mais depressa e as campainhas tilintavam ao ritmo de seus movimentos. O quadril nu era dourado, cremoso, enquanto que o outro provocava seu olhar perplexo, quando se movia detrás de um véu dobrado, aparecendo e desaparecendo de novo.

A moça ficou de lado e pôde ver a forma de seu corpo através das sedas. Seus seios se elevavam um pouco, outra vez quando os quadris se moviam para diante e para trás. Seus olhos o fascinavam, sorriam, franziam o cenho, provocavam-no, rejeitavam-no. Seus ágeis braços enfatizavam seus movimentos fluídos.

Caiu outro véu e Ranulf pôde ver mais de seu bonito corpo. Seu ventre ondulava, mostrando o adorável segredo de seu umbigo. Ranulf estava petrificado em sua cama, incapaz de romper o feitiço paralisador do desejo e a fascinação que ela tinha tecido.

A rapidez da música aumentou e lhe cortou a respiração, quando viu que tinha caído outro véu ao chão. Seus seios se sobressaíam por cima da seda, brilhando, movendo-se e tremendo enquanto dançava, e Ranulf ouviu sua suave risada baixa e gutural que enchia seu corpo com estremecimentos de uma paixão ainda insatisfeita.

Ranulf temia mover-se, tinha medo de que fosse uma aparição de prazer que desaparecesse com um só suspiro. Lyonene se aproximou dele tortuosamente, lenta e sinuosamente, sua pele emitia um delicado perfume. Com medo, mas sem poder controlar seu desejo, tentou tocá-la com uma mão. Um breve sussurro de sua pele suave e cremosa contra seus dedos e, ela se afastou e jogou sua cabeça para trás, deixando louco seus sentidos, com sua risada suave, baixa, mas impregnada de promessas.

Com seu braço, Lyonene roçou seu rosto, passando perto de seus lábios e excitando-o até os extremos do que parecia ser, uma nova parte de seu ser. Então, de repente, ela se afastou dele, para longe, para o lado mais escuro da tenda. Seus olhos escuros e seu corpo dourado brilhavam, em contraste com a seda de cor creme da tenda. Ele não podia suportar o vazio que ela tinha deixado. A música estava chegando ao ponto mais frenético e, com seus olhos, Lyonene o desafiou, abrindo os braços e animando-o enquanto seu corpo aumentava os movimentos palpitantes.

Uma mão poderosa a arrastou para ele, estreitando com força as curvas de sua cintura e, com a outra mão, apertando-a contra ele. Ranulf se deu conta de que a tenda estava escura, muito escura, enquanto olhava nos olhos dela semifechados, pôde ver a boca que esperava sob o véu e, a paixão e a fome que demostrava mais que a sua.

Aproveitaram e prolongaram cada momento delicioso, ele acariciou sua pele, ligeiramente úmida pela dança, como também estava a dele. Ela emitia uma espécie de ronronar, cada vez que a tocava. Durante um breve instante, ela abriu os olhos para encontrar os dele, enquanto ele afastava o véu para beijá-la, seus lábios procurando os dela, e então Ranulf fechou seus olhos.

A música que vinha do exterior diminuiu até converter-se em um ritmo sensual, como se tivesse adivinhado o que estava ocorrendo dentro da tenda.

Lyonene deixou que Ranulf sustentasse seu corpo totalmente com suas fortes mãos. Os lábios dele tocaram brandamente os seus, saboreando as sensações deles, degustando-os. Sua língua passou pela borda de seus dentes, deleitando-se nas partes mais secretas. A lentidão agonizante com que ele tomou seu prazer dela, enfraqueceu seu corpo, quase a fazia sentir como se estivesse morrendo sob sua doce tortura. Com seus dentes passou por todo seu lábio inferior provando sua firmeza e desfrutando de seu sabor especial. A comissura dos lábios recebeu atenção especial e a urgência que ele sentia a envolveu, seus lábios apaixonados e seus movimentos esmagando os dela, enquanto deleitava-se do néctar de sua boca.

Lyonene puxou-o para ela, mais perto, cada vez mais perto, e passou as mãos pelos grandes músculos das costas, glorificando o poder reservado que detinha. A sensação de seus dedos acariciando sua pele nua a deixava louca, por sentir sua pele escura e suave sob suas mãos. Os lábios de Ranulf se transladaram a sua orelha sussurrando palavras tenras, desconhecidas para ela, sem sentido, mas ao mesmo tempo, cheias de significação.

Possivelmente, foi uma nota discordante da música que a fez voltar para a realidade e dar-se conta de que ela era a esposa indesejada de Ranulf, e não uma serva como ele acreditava. Ele fazia amor com uma serva, uma serva que dançava para ele, mas não abraçava e nem acariciava a sua esposa. Seu orgulho, o orgulho de uma leoa, voltou a habitar seu corpo e soube que não podia continuar fazendo amor com ele, sabendo que ele pensava que era outra pessoa.

Armou-se de coragem e se recusou a escutar mais palavras de amor. Mais duro foi rejeitar o tato dos lábios que beijava seu pescoço. Livrou-se dele tão rapidamente que levou um segundo, antes que ele se desse conta que tinha fugido da tenda. Correu tão rapidamente como pôde antes de deter-se

As lágrimas retidas brotaram como uma violenta corrente. Amaldiçoou-se a si mesmo cem vezes por ser uma estúpida. Sua mente não podia deixar de pensar em meio de toda a confusão. Como podia ser que o tato desse homem a inflamasse dessa maneira, e como podia fazer amor tão meigamente a uma mulher que ele acreditava que era uma serva, alguém que não lhe importava?

Maude a encontrou e a ajudou a banhar seu rosto inchado e a trocar de roupa. No caminho de volta ao acampamento, não intercambiaram uma palavra e a velha mulher protegeu cuidadosamente Lyonene de ser vista da tenda escura de Ranulf, silenciosa, agora, depois do estrepitar de fúria de uma hora antes. Só a longa compreensão de Maude, que conhecia fazia muito tempo Ranulf, tinha sido capaz de acalmá-lo da raiva que tinha se levantado contra a moça. Lyonene respirou irregularmente toda a noite em seu sono e Maude, indignada, sacudiu a cabeça.

Pela manhã, Maude enviou Lyonene para procurar água longe do acampamento. Ranulf apareceria logo e adivinharia facilmente qual das quatro mulheres era a que tinha dançado para ele na noite anterior. Tudo o que podia fazer era atrasar o inevitável.

Os pensamentos de Lyonene ainda combatiam em seu interior, enquanto tirava o pesado balde da água. Estava tão absorta em seus pensamentos que não ouviu chegarem os cavalos. Antes que pudesse protestar, uns fortes braços a agarraram e a aproximaram de um corpo ossudo, as mãos manuseando-a por debaixo de seu traje de serva. Uma boca com um aroma nauseabundo a beijou e ela começou a dar chutes e a arranhar. Então ouviu uma voz risonha que lhe pareceu familiar

— Sir Henry! Acredito que não sabe tratar a uma dama.

O velho a soltou e ela se virou. Mantendo a cabeça baixa, olhou cautelosamente e viu Geoffrey frente ao homem que a tinha atacado.

— Dama? Mas se é somente uma serva — soltou sir Henry.

A voz de Geoffrey escondia o desprezo.

— Se me permitir sir, todas as belas jovens são damas.

Lyonene se sentiu muito agradecida pela intervenção de Geoffrey.

Sir Henry começou a rir.

— Entendo o que quer dizer.

— Permitem-me tentá-lo?

— Parece-me que você tem mais experiência.

Sem nem sequer olhá-la, Geoffrey a agarrou em seus braços começou a beijá-la. Lyonene estava aterrada de que fizesse isso, tinha o mesmo respeito por ela que sir Henry.

— Vejo que meu irmãozinho encontrou um entretenimento que o agrada. Possivelmente a possa excitar mais que eu, porque esta foge de minhas carícias. Há jovenzinhas que preferem a meninos bonitos em lugar de homens, Dacre provou isso.

Geoffrey se virou e viu Ranulf montado no Tighe e lhe dedicou um leve sorriso.

— Parece que me considera suficientemente aceitável, obrigado pela comparação com lorde Dacre. — Olhou para o rosto de Lyonene que agora estava inevitavelmente exposto. Geoffrey a olhou com uma expressão de horror e a virou para que encarasse Ranulf.

O olhar de dor de Ranulf, antes de converter-se em um olhar de ódio, assustou-a. Então adotou um ar depreciativo.

— Vejo agora por que ela te acha tão... aceitável. Deve pedir a ela para dançar para você. Ela está...

O olhar de dor voltou a aparecer e então virou o cavalo e partiu.

 

 

 

 


Capítulo 09

— Lyonene, qual é o significado disso? Não, não me diga, pois estou certo de que é Ranulf. Ele é tão insuportável para viver?

Lyonene só pôde sacudir a cabeça, já que estava formando um grande nódulo na garganta e não podia falar. Maude apareceu do nada e levou Lyonene com o burrinho. Estava muito consternada e não viu que Geoffrey cavalgava ao encontro de seu irmão.

— Ranulf, o que aconteceu para que a trate assim? Por que está vestida de serva e montando um asno? — Geoffrey implorou a seu impassível irmão. Esperou uma resposta, mas não obteve nenhuma — Não entendo por que a trata desse modo. É bonita e atrativa, como pode rechaçá-la? — Seguia sem receber resposta e Geoffrey suspirou exasperado. — Vou partir com sir Tompkin. Hoje mesmo iremos para a Cornualha. Ranulf, recorde que é sua esposa.

— É ela quem o esquece.

Geoffrey franziu o cenho para Ranulf.

— Insinua que ela teve algo que ver com o que aconteceu esta manhã? Que possivelmente deseja a atenção de outros homens?

A resposta de Ranulf foi encolher os ombros.

— Se não fosse seu irmão e não amasse tanto a vida, o desafiaria para um duelo pelo que acaba de dizer. Qualquer dama que seja acusada falsamente e se veja forçada a atuar como uma serva, merece um campeão.

— Você tem tanta certeza de que ela é falsamente acusada? Que prova tem de sua inocência?

Geoffrey sorriu.

— Porque conheço você. Porque se preocupa mais com suas posses e aquela sua ilha, ao ponto de que se ela espirrasse, saberia imediatamente. E essa Guarda Negra mataria a qualquer homem que se aproximasse de lady Lyonene. Tenho razão, ou não? Você sempre soube de seu paradeiro, a cada minuto.

— Sim, até que partimos para o País de Gales. Soube esconder-se muito bem.

— Esconder-se! Então é realmente afortunado por ter uma esposa que o quer tanto que se veste como uma serva para seguir a seu amado. Diga-me, acaso suas damas da corte fariam o mesmo por seus amados maridos? Preocupo-me muito. Lyonene fará sempre o que quiser, mesmo se isto incluir um marido zangado, indignado e acusador. — Sorriu ao ver o olhar escuro de Ranulf. — Não entendo às mulheres. Não consigo entender como elas escolhem ou aceitam um marido. O que eu não teria dado para que uma mulher assim me escolhesse. — Geoffrey franziu o cenho ao ver a ferocidade no olhar de seu irmão. — Agora vou partir. Possivelmente possa sair da Cornualha e ir a Malvíssima, mais adiante, durante este ano. Fique em paz, irmão.

Lyonene não sabia que Geoffrey partia, na realidade, estava ciente de muito poucas coisas que passavam ao seu redor. Seus pensamentos se enfrentavam constantemente.

Nem sequer ouviu os estrondosos cascos de Tighe, quando Ranulf cavalgou para o burrinho. O único que sentiu foi que a levantavam e a sentavam sobre o lombo do frísio, segura firmemente pelos braços de Ranulf. Sabia que estava furioso, mas não se importava. Ao menos no momento se encontrava em seus braços. Cavalgaram para a cabeça do grupo. Ranulf rasgou bruscamente a capa avermelhada que levava Lyonene e a jogou no chão. Então a agarrou pelo cabelo, puxando sua cabeça para trás, seu rosto virado para ele, para que o olhasse. Apesar da dor que sabia que estava lhe causando, Lyonene sorriu com olhos brilhantes.

— Ouça-me agora, esposa, e ouça-me bem. Você é minha e eu não a compartilho com ninguém.

Lyonene sustentou seu olhar.

— Nunca fui de outro, meu Leão.

Ranulf a olhou fixamente, durante um momento e, desviou o olhar. Lyonene apoiou suas costas nele e viajaram em silêncio.


— Me diga o que tenho que fazer com você. — A voz de Ranulf era áspera quando a encarou, as paredes de seda de sua tenda os cercando. — Acreditava que ia a Gales para procurar diversão? Diga-me, acaso sempre faz as coisas como você quer? Acha que um homem que se dirige à guerra deve ter a carga acrescentada ao ter que socorrer a uma mulher?

— Guerra? Não há nenhuma guerra. — Respondeu Lyonene acaloradamente.

—Acaso acha que minto? O galês Rhys decidiu que queria ser rei. Agora cavalga para o norte. O rei Eduardo me enviou uma mensagem para que o encontre e detenha esta rebelião. Acreditava que deixaria minha ilha para viajar por este frio país somente para apreciar a paisagem? Já tinha suficiente cuidando com meus homens e agora tenho que carregar e cuidar de uma nobre.

— Não, não pensei que...

— É isso! Não pensa. Agora já se divertiu, vestindo-se de serva e me enganando. Mas, me diga milady, qual era o propósito em tudo isto? Se não me falha a memória, a última vez que falamos ficamos de que voltaria para casa de seus pais.

Merecia tudo isto, ela sabia. Não tinha pensado bem quando decidiu disfarçar-se de serva. Quantas vezes sua mãe a tinha castigado por rebeldia e desobediência como essa?

— Diga algo, mulher! Sei que têm língua.

Ela levantou o queixo e se alegrou de que a cólera fosse substituindo esses sentimentos de culpabilidade.

— Não queria... não queria partir. Queria...

— Siga ... estou escutando.

Ela levantou-se e tocou a seda, contente de não usar mais o manto de lã grosso. Virou-se para poder vê-lo, seus olhos ardentes e o cabelo completamente desalinhado.

— Você é meu marido e eu te amo. — Ela esperou sem fôlego por sua resposta.

Seus olhos negros não suavizaram o olhar.

— Têm uma maneira muito estranha de demonstrar seu amor. Roubando-me, me...

Lyonene tampou os ouvidos.

— Basta! Sei tudo. Acaso não vivi todos esses horríveis momentos? Acaso não me vi apanhada entre ameaças e cólera dia após dia? Existe alguma maneira em que posso demonstrar isso?

Ranulf a observou e logo se aproximou dela, tocando brandamente a bochecha com a mão.

— Não sei. — Disse em voz baixa.

O som de metal contra metal fez com que Ranulf levantasse a cabeça.

— O que é esse ruído? — Ofegou Lyonene.

Corbet entrou de repente na tenda e olhou brevemente Lyonene.

— Rhys ataca. — Disse sem rodeios.

— Guarde-a! — Ordenou Ranulf, enquanto agarrava seu escudo e saía da tenda para o ruído da batalha que se fazia cada vez mais intensa.

— Por aqui. — Disse Corbet enquanto cortava a sarja da tenda na parte de atrás. Lyonene o seguiu, olhando constantemente por cima do ombro.

A luz do sol era muito brilhante, o aroma de sangue já começava a ser muito forte e se mesclava com o pó e o horrível som dos gritos dos homens, seus gemidos agonizantes, o estrondo dos cascos de cavalos.

Imediatamente, Lyonene viu Ranulf no meio do campo de batalha, a pé, pois não tinha tido tempo de selar seu cavalo. Viu o brilho da espada que tinha apertada com as duas mãos, arremetendo-a com força contra um homem montado a cavalo. Cortou a respiração e sentiu que gelava seu sangue.

Corbet a sacudiu pelo braço para que caminhasse para diante. Tropeçou e caiu de joelhos, agarrando-se ao tronco de uma árvore para recuperar o equilíbrio. O guardião novamente a puxou, mas ela não conseguia tirar os olhos de seu marido ou parar o rugido ensurdecedor da batalha que a cercava. Ranulf estava coberto de sangue agora, mas ainda assim, ele lutava.

Uma flecha passou assobiando a seu lado e se cravou na árvore a poucos centímetros de sua mão e Lyonene a olhou com incredulidade. Vagamente, dava-se conta de que Corbet lutava contra um homem atrás dela, mas Lyonene continuava olhando fixamente para a flecha. O medo começou a fazê-la tremer.

Captou um movimento acima da árvore e viu que um homem se escondia em meio das folhas e que esticava a balestra apontando para Ranulf. Lyonene gritou, mas ninguém a ouviu.

— Não, não. — Sussurrou.

Levantou-se, ergueu a saia e começou a correr para o coração da batalha, para Ranulf. Correu em sua busca e ele a olhou incrédulo, com o rosto coberto de suor e sangue.

Ela o alcançou no mesmo tempo que a flecha. Abraçou-o e com seu ombro direito protegia seu coração. A flecha atravessou sua pele e músculo alcançando o peito de Ranulf, que estava protegido pela cota de malha. A ponta de aço perfurou a armadura de ferro, o tecido e a carne de Ranulf, mas o corpo de Lyonene diminui sua velocidade e não chegou mais adiante. Olhou-o sabendo que seus corpos estavam unidos por um pedaço de madeira.

— Leão, eu... — ela sussurrou e depois desmaiou.

Ranulf a segurou para que não caísse, e então pôs a cabeça para trás e deu seu grito de guerra.

No princípio, Sainneville não viu o pequeno corpo tão terrivelmente unido a seu lorde.

— Rompa, homem! Não fique aí parado. — Ordenou duramente Ranulf. A voz tremia.

Hugo apareceu, olhou sua senhora e se virou para proteger as costas de seu lorde. Sainneville rompeu a ponta com plumas, tratando de não olhar o rosto sem vida de Lyonene.

— Pode tirar a flecha de ferro? Ela liga-nos juntos.

— Sim, milorde. — Sainneville levantou seus dedos trementes.

— Fitz Waren! Venha e faça isto. Rápido! Está despertando. Não quero que ela sofra mais.

Com destreza, Hugo pôs seus dedos entre o ombro de Lyonene e o peito de Ranulf. A flecha estava incrustada profundamente e entrelaçada com as peças da cota de malha. Rodar a flecha sem dobrar a haste era uma tarefa muito difícil.

— Feito, milorde. — Disse por fim Hugo. — Deixe-me que pegue à dama e que a tire desta coisa. Segure a flecha firme para que não se mova, irei retirar milady.

Ranulf obedeceu a seu homem e, cuidadosamente, Hugo conseguiu tirar Lyonene da flecha cravada no peito dele. Ranulf tirou a ponta de aço do peito e a atirou ao chão com fúria. Então pegou Lyonene nos braços, com seu sangue fluindo sobre ele.

— Ranulf, dói-me. Dói-me o ombro. Está bem? Não o feriu a flecha? — Suspirou Lyonene.

Ranulf não respondeu e se dirigiu para a tenda com grandes passos.

— O que ocorre? Ela desmaiou? — perguntou Maude, mas em seguida ofegou ao ver o sangue que cobria Ranulf e Lyonene. — Eu cuidarei dela. — Disse, enquanto Ranulf a colocava na cama.

— Não! — Disse Ranulf. — Vai. Não preciso de ajuda. Traga-me água, roupa limpa e nos deixe.

Maude saiu rapidamente da tenda e Ranulf dedicou toda sua atenção a Lyonene. Seus olhos estavam completamente abertos, mas não parecia que pudesse ver nada. Desembainhou sua espada e cortou toda sua roupa, cobrindo-a cuidadosamente com as mantas de veludo. Quando Maude trouxe a água, Ranulf lavou e enfaixou a ferida. Só então ele se sentou, quieto, e olhou para ela com ternura.

— Milorde? Ela está bem?

Era Hugo que esperava de pé na porta. Ranulf girou para ele, com os olhos brilhantes, seu rosto e corpo ainda cobertos com a sujeira e o fedor da batalha.

— Está bem para uma menina que protegeu seu marido com seu próprio corpo. O galês que disparou a flecha...

— Está morto. Maularde se ocupou dele. A batalha terminou e a ganhamos. — Neste momento, olhou para Lyonene. — Esta noite rezaremos por ela.

Ranulf assentiu com a cabeça enquanto Hugo partia. Chegou a noite e ele ficou ao lado de sua cama, de joelhos, rezando fervorosamente. Nem sequer viu ou ouviu que Maude acendeu velas por toda a tenda.

— Ranulf...

Levantou a cabeça ao ouvir o sussurro de Lyonene. Acariciou sua testa, dando-se conta pela primeira vez que ela tinha febre.

— Fica quieta meu amor, não fale.

— Ainda usa a armadura. — Sussurrou, tocando as peças de ferro em seu pulso.

— Sim, não tem importância.

— Ainda está zangado comigo?

— Sim, estou zangado com você, mas esperarei que se recupere para te repreender.

— Não queria desobedecer. Vi o homem e soube que ele dispararia contra você. Gritei, mas você não me ouviu.

— Então usou seu corpo como escudo. — Disse sem rodeios.

Lyonene se moveu para poder tocar com sua mão esquerda o ponto em seu coração, onde a cota de malha estava rasgada e coberta com sangue seco.

— Se não tivesse feito, estaria morto.

— Sim, meu amor. Salvou a minha vida. Por que razão não sei.

— Porque te amo, meu Leão, porque te amei desde o primeiro momento em que te vi, porque sempre te amarei.

Pela manhã, a febre de Lyonene tinha piorado. Frequentemente, Ranulf tinha que sustentá-la para impedir que caísse da pequena cama de armar.

— Milorde, têm que comer. — Ordenou Hugo a seu lorde, depois de dois dias de comida mal tocadas. — Assim não ajudará à moça.

O conde comeu distraidamente, sem tirar os olhos de sua esposa.

Ranulf teve longas e dolorosas horas para pensar na mulher que jazia diante dele, com o rosto vermelho e fervendo da febre. Quantas vezes havia dito que o amava? E quantas vezes ele tinha zombado dela por suas declarações de amor? Sabia que essa mulher tinha muito orgulho, entretanto, tinha engolido esse orgulho para segui-lo, depois de havê-la golpeado e haver dito que desaparecesse de sua vista.

Mergulhou o pano em água morna e enxugou sua testa, tocando sua boca gentilmente. Se lembrou vividamente do sangue em seus lábios quando ele a golpeou, e seu estômago apertou em nojo e remorso.

Lyonene não se movia e jazia tranquila, como se estivesse morta. Ergueu sua mão quente e a aproximou de seus lábios. Tinha lhe perguntado o que devia fazer para demonstrar seu amor.

Ele a tinha amado uma vez. Não, retificou enquanto esfregava sua mão contra sua bochecha, a amou desde o primeiro momento em que a viu, quando ela o olhou fixamente com esses brilhantes olhos verdes. Por que tinha se esquecido desses primeiros dias?

Lembrou-se de Giles e de sua primeira esposa, Isabel e de repente tudo pareceu muito claro. Giles estava louco. Tinha querido sua própria morte, utilizando Ranulf como meio e ele havia acreditado no moço, em lugar de confiar em sua esposa. Se tivesse observado bem, teria visto a luz antinatural que projetavam dos olhos desse jovem. Lyonene não tinha visto dor em seus olhos quando eles se encontraram pela primeira vez, a mesma dor que, agora, estava seguro de ter visto nos olhos de Giles?

Começou a dar-se conta do injusto que tinha sido com ela, o quanto a havia ofendido e a dor e a febre que a consumiam lhe pesavam ainda mais. Lyonene era tão diferente de Isabel, como ele era de Geoffrey, e tinha errado muito em compará-las. Isabel nunca tinha dado a ele qualquer confissão de amor. Tudo o que tinha dado era ódio.

— Segue igual?

Ranulf não tinha ouvido entrar Hugo na tenda.

— Sim, segue igual.

— Os homens estão rezando por ela. Aprenderam a querê-la e a admirar sua valentia.

Ranulf se virou com uma expressão de cólera em seu rosto

— E de que pode servir esse amor, quando está aqui, tão perto da morte? Por que eles não a “quiseram” quando ela estava no meio da batalha, quando teve que proteger seu marido com seu frágil corpo? Por que ninguém a impediu que viesse nesta viagem? Por quê?

Hugo pôs uma mão no ombro de Ranulf que rompeu a chorar. Afundou o rosto em suas mãos e deixou sair todas as lágrimas que fazia tempo se ocultavam em seu peito.

— Água.

Ranulf estava sentado com os olhos entrecerrados e não ouviu o leve sussurro. Durante cinco dias, não tinha saído da tenda e os últimos três não tinha comido nada.

— Água. — Repetiu Lyonene.

Ranulf saltou e olhou com incredulidade para os olhos abertos de sua esposa. Passaram-se alguns segundos antes de se recuperar o suficiente para tomá-la em seus braços e levantar uma caneca de água fresca para seus lábios.

— Não recordo nada. Por que estou aqui?

Ele a segurou perto dele, sentindo seu coração batendo. Ela ficaria bem! Lyonene se recuperaria!

— Silêncio agora. Abrace-me, amor, não fale. Recebeu uma flecha que ia dirigida para mim. — Conteve as lágrimas e tratou duramente de não a abraçar muito forte.

— Está bem, não está ferido?

De repente, Ranulf se sentiu feliz, porque sabia que tinha toda uma vida para amá-la, para fazê-la esquecer sua cólera e hostilidade. Afastou-a e sorriu para ela.

— Ileso! Estou mais que ileso! Você salvou minha vida e eu devo tudo a você. E você, minha doce Leoa, vai ficar bem. E agora têm que comer.

Lyonene conseguiu sorrir.

— E se não o faço?

Ranulf levantou uma sobrancelha.

— Não tinha pensado nisso, mas tendo em conta sua constante desobediência, provavelmente terei que obrigá-la a comer.

Lyonene pôs uma mão sobre a de Ranulf.

— Eu gostaria de... — Disse com calma.

— Sim? O que deseja?

— Esta manhã, tudo é distinto. É como se estivéssemos de novo em Lorancourt e você fosse o homem que conheci, e não há mais ódio entre nós.

— Eu diria que o ódio desapareceu. — Disse Ranulf calmamente.

Nenhuma outra frase poderia ter sido mais expressiva para ela.


Os dias que se seguiram foram para Lyonene de grande felicidade, que aprendeu a conhecer seu marido, de muitas risadas e de esquecimento desse medo que sentia dele.

— Milorde! Chegou um mensageiro do rei Eduardo anunciando um torneio. — Gritou Corbet.

— Um torneio? — Disse Lyonene desde sua cadeira cheia de musgo. — É seguro? E esse Rhys? Se deseja tirar o trono do rei, é seguro ir?

— Rhys e seus três filhos morreram na batalha. Seus homens não causarão nenhum problema se não tiverem um líder. — Ranulf a olhou. — Você não gostaria de ver a corte e o torneio?

— Oh, sim, Ranulf, Oh, sim, eu adoraria ir.

Ranulf se ajoelhou e pôs uma mão no seu ombro.

— Então, vamos. — Ele se voltou para Corbet. — Diga ao mensageiro que o Leão Negro e sua Guarda Negra desafiam a todos.

Corbet sorriu.

— Já o temos feito, milorde.

O rosto do Ranulf se endureceu, mas antes que pudesse falar, Lyonene se pôs a rir.

— É bom ver como seus homens conheçam tão bem a seu lorde, não é certo?

Ficou olhando Corbet por um momento e logo relaxou.

— Sim, é certo. Vá agora e se preparem. Sairemos pela manhã.

Quando ficaram a sós, virou-se para Lyonene.

— Está o suficientemente bem para viajar? A ferida não dói muito?

— Não, não me dói tanto. — Ela levantou a mão para ele e puxou-o para sentar-se ao lado dela. — Me conte tudo a respeito da corte, do rei, da rainha, de outros condes, de ...

— Você vai muito rápida. Fique quieta e vou contar tudo o que puder sobre uma mesa redonda.

— Uma mesa redonda? Como a das histórias do rei Artur?

— Sim, o nome é o mesmo, mas se refere a três dias de jogos, justas e festins. Acha que poderá sobreviver a tanta excitação? — Seus olhos brilhavam.

Lyonene sabia que ele estava brincando.

— Me fale da rainha, é muito bela?

Ranulf se pôs a rir e começou a falar da vida que era tão familiar para ele e que era completamente nova para sua esposa.

 

 

 

Capítulo 10

Lyonene e Ranulf estiveram no castelo de Caernarvon durante seis dias e ela tinha passado o tempo conhecendo às pessoas da corte e à rainha Leonora. A rainha era uma mulher baixa e tranquila, muito mais interessada em seus filhos do que na política estadual. Ela e Lyonene se levavam às mil maravilhas. O rei era um homem tremendamente alto, ruivo e com uma energia enorme. Não parecia ficar quieto durante muito tempo.

Pelas noites, Ranulf e Lyonene cantavam duetos, ela tocava o saltério e ele um alaúde. Estavam sempre acompanhados por muitos convidados, que começavam a chegar em grande número. Cada hóspede foi tratado de acordo com sua classificação. Os condes tinham prioridade e o melhor que se podia dar para eles, enquanto que os cavaleiros menores, os mercenários receberam um lugar onde montar suas tendas, pasto para os cavalos e o privilégio de uma refeição diária com o rei Eduardo.

A excitação cada vez maior afetou Lyonene que estava se divertindo muito. A rainha Leonora tinha começado a depender dela e Lyonene era uma anfitriã muito eficaz.

— Passa muito tempo com estes homens. — Uma mão a rodeou pela cintura e a levou para um canto escuro da sala.

Lyonene ficou tensa no início, mas depois relaxou quando se deu conta de que estava tão intimamente perto de Ranulf. Quando ela lançou um sorriso, seus dentes ficaram expostos a tênue luz.

— Só quero que se sinta bem. Havia uma dama, uma tal lady Elisabeth, que parecia estar muito interessada no corte de seu tabardo, especialmente nos ombros e os braços, pelo menos isso é o que parecia pela maneira em que acariciava... seu tabardo.

Ele a apertou contra ele até que ela mal conseguia respirar

— Possivelmente percebeu que minha própria esposa estava negligenciando-me. Não a vi muito nestes dias. Possivelmente deveria me fazer passar por um convidado para ter seus cuidados.

Seu coração batia rapidamente e ela podia sentir o dele sob suas mãos. Conseguiu tirar as mãos e as colocar em seu peito.

— Claro, milorde, é muito bem-vindo ao castelo de Caernarvon. Por favor, me diga o que temos que possamos lhe oferecer Posso oferecer vinho ou comida, ou... ?

— Uma bailarina. Eu gostaria que me enviassem uma bailarina sarracena com véu ao meu dormitório. Uma que seja atrativa, que mostre seu corpo dourado e lance fora os véus quando dança. Acredita que poderá encontrá-la? Só quero a melhor.

— Você gostou da minha dança, então?

Sua resposta foi um beijo, um beijo feroz, esmagador e exigente que a obrigou a atraí-lo para mais perto dela e responder com fogo igual. Ouviu-se uma voz perto deles

— Está aqui! Vejo que meu amigo não mudou muito depois de haver-se casado com a filha de um barão. Deixa em paz à moça, Ranulf, e venha falar comigo. Estou seguro de que esta jovem o esperará, não há dúvida.

Ranulf afastou-se dela, e ela o sentiu tão relutante como ela.

— Dacre, há momentos em que você é mais uma maldição que um amigo.

O belo homem loiro colocou as mãos nos quadris, pernas separadas, e seu riso aberto, fazendo com que muitas pessoas se virassem e olhassem. Eles se abraçaram, cada um aparentando tentar quebrar as costelas do outro. Eles sorriram um para o outro com o olhar especial de velhos amigos, que não haviam se visto há muito tempo.

— Inteirei-me de seu casamento e dois meses mais tarde o vejo atracado com uma das damas do castelo. Eu disse que deveria tê-la trazido para o País de Gales. Pelo menos, espero que esta não seja tão bem usada como Lady Adela, com quem você se deitou tantas vezes no ano passado. — Se deteve ao ver que Ranulf franzia o cenho.

Lyonene estava atrás de Ranulf, enquanto os dois falavam e ele a puxou para tê-la ao seu lado, segurando seu antebraço e sua mão possesivamente entre as suas.

— Esta é minha esposa, lady Lyonene. E você, creio eu, já conhece lorde Dacre.

— Do que está falando? Lembrar-me-ia de uma beleza assim se a tivesse conhecido.

Ranulf lançou um sorriso a seu amigo e a sua esposa.

— Ela me seguiu até o País de Gales em meu cortejo, vestida de serva. — Em sua voz podia notar um certo orgulho.

— Parece-me uma história incrível. Inclusive vestida de serva, reconhece-se a uma beleza como ela. Não importava o que ela usasse, seguiria sendo uma dama. Milady, casou-se com um bobo. Deveria havê-lo feito comigo, pois eu a reconheceria embora estivesse vestida de homem.

Ranulf seguia sorrindo.

— Lembra-se daquela noite em seu castelo, quando estávamos conversando enquanto uma serva limpava a lareira?

Dacre olhou atônito para Lyonene, que desviou o olhar, o sangue começando a subir até suas bochechas. Disparou em risadas de novo.

— Então foi você que deixou cair o cesto de cinzas em nossos olhos!! — Agarrou-a dos braços de Ranulf e a levantou acima de sua cabeça. — Prometi que a castigaria pelo que tinha feito e vou cumprir. — Suas palavras frenéticas foram dirigidas a Ranulf

—Não o faça! — Falou Ranulf colocando a mão no punho da espada.

Dacre reconheceu de repente o tom de advertência e, com suas mãos ainda na cintura de Lyonene, voltou-se rapidamente para Ranulf. Então franziu o cenho por um momento ao ver a carranca do Leão Negro no rosto do amigo e o desafio em seu olhar. Surpreso, soltou Lyonene e deu uma forte palmada no ombro de seu amigo, seus lábios se torceram em um sorriso contido.

— Não estou brincando, Dacre. Ela é...

As pessoas no grande salão tinham parado de falar, os músicos na galeria tinham deixado de tocar. O certo é que não muitos homens tinham visto a ira de Warbrooke e tinham vivido suficiente para contá-lo. Lyonene ficou no meio de seu marido e lorde Dacre.

— Então, sua velha aflição terminou por voltar a aparecer, e agora vai fazer um nobre discurso sobre como daria sua vida para proteger sua esposa. — Brincou Dacre.

O corpo de Ranulf relaxou e sua mão deixou a bainha. Ele desviou o olhar, uma expressão tímida em seu rosto.

— É certo, daria minha vida para protegê-la.

— Bem, então meu amigo, se eu prometo não fazê-la desaparecer como por arte de magia, permitirá que a observe mais de perto?

Ranulf devolveu o sorriso zombador a seu amigo e aproximou Lyonene da luz. Os convidados voltaram a falar e os músicos começaram a tocar de novo.

Lyonene tentou controlar sua cólera, enquanto Ranulf a fazia dar voltas perto da luz das velas. Sentia-se como um cavalo que estivessem pensando em comprar.

— Fez muito bem, Ranulf. Só por este glorioso cabelo vale a pena perder a liberdade. — Dacre deu uma palmada no ombro de Ranulf.

Lyonene se voltou e jogou um olhar fulminante de seus olhos cor de esmeralda. Sua voz estava cheia de desdém.

— Se os cavaleiros terminaram a inspeção, o gado deste castelo tem trabalho a fazer.

Ela virou no calcanhar em meio de um redemoinho de cabelo castanho-avermelhado e se afastou furiosamente. Ela ouviu a voz baixa de Ranulf, mas não suas palavras enquanto ele falava atrás dela. Ela fechou as mãos em punhos ao ouvir a risada de resposta de Dacre.

Esqueceu-se rapidamente de Dacre e de Ranulf quando a rainha Leonora apresentou a Berengaria. De pequena, Lyonene nunca tinha tido muitos amigos, já que a maioria dos convidados que foram a Lorancourt eram muito velhos ou muito jovens, mas ao ver Berengaria, soube imediatamente que tinha encontrado uma amiga. A rainha Leonora as apresentou e se deram a mão como se fossem amigas de toda a vida, que se perderam de vista durante muito tempo.

— Acredito que se sente como eu, que fomos amigas durante muito tempo. Vamos causar uma agitação onde quer que vá, você e eu.

— O que quer dizer? Não vejo a razão para tal agitação.

— Você é uma criança inocente! Olhe ao seu redor os homens que há no salão e aos olhares estreitos de suspeita de suas mulheres. Agora olhe como seu bonito marido a observa. Está pronto para saltar ao ataque se algum homem se aproximar para falar com você.

— Mas por que...?

— Eu não vou explicar, porque você vai aprender em breve.

Ranulf, de fato, vigiava sua esposa, pois sua beleza foi realçada pela de lady Berengaria. As duas mulheres tinham a mesma altura, uma com tez clara e cabelos castanho-avermelhadas que caíam por debaixo de sua cintura, em uma abundância de grossos cachos, e a outra com cabelo ruivo escuro e olhos da mesma cor. Seu cabelo chegava a uns centímetros de seus quadris e se enrolava a seu redor em uma perfeita curva. Havia três tranças minúsculas em cada lado de sua testa, puxadas para a parte traseira de sua cabeça e presas com uma fita vermelha longa, bordada com pérolas brancas e minúsculas. A túnica de seda que perfilava sua voluptuosa figura era da mesma cor que seu cabelo, coberta por um sobretudo impecável de veludo branco sem mangas.

Lyonene estava vestida de cor azul, com uma túnica verde e azul que se refletia em seus olhos e uma capa de veludo azul marinho. As duas mulheres, extraordinariamente belas e delicadas, estavam causando uma grande confusão no grande salão, uma agitação cheia de inveja, ciúmes, desejo e, por parte de ambos os maridos, um instinto de cautela e amparo.

— Venha comigo, nos sentemos aqui.

Berengaria se deslocou para um banco apoiado contra a parede, onde poderiam aproveitar de uma melhor visão das pessoas que havia no salão.

— Deve me contar como capturou lorde Ranulf, pois houve muitas mulheres que cobiçaram seu dinheiro e esse bonito corpo dele. Embora, eu tenha ouvido, que ele está disposto o suficiente para compartilhar uma dessas.

Lyonene sacudiu a cabeça.

— Não me diga qual delas, pois admito que todas as mulheres, exceto a rainha, já me contaram sobre as aventuras passadas de meu marido.

Berengaria riu, provocando que muitas pessoas presente, que estavam esperando uma ocasião para admirar a beleza de ambas as mulheres, virassem a cabeça.

— Posso imaginar quais foram suas palavras. Mas ainda não me respondeu qual foi a poção mágica que utilizou para caçá-lo e, se as intrigas dizem a verdade, em apenas dois dias.

Lyonene encolheu os ombros.

— Só o fiz rir.

Berengaria refletiu um momento e assentiu.

— Sim, entendo por que poderia apaixonar-se por uma mulher que o fizesse rir. — Antes que Lyonene pudesse protestar, a amiga continuou. — É tão maravilhoso ser rica? Têm suas criadas que se ocupam de todos seus caprichos e que servem línguas de colibri assadas em três molhos?

Lyonene começou a rir a gargalhadas. Sentia-se feliz em estar com uma pessoa tão singela e sincera.

— Não acreditará, mas não tenho nenhuma criada.

Ao ver a incredulidade refletida no rosto de Berengaria contou como se fez passar por Kate na viagem ao País de Gales e que como não mencionaram nenhuma criada, não tinha pedido nenhuma. Havia centenas de serventes em Caernarvon com poucas coisas que fazer, de modo que todas as suas necessidades eram atendidas.

— Acredito que seremos boas amigas e tenho vontade de contar a Travers que não sou a única mulher que comete loucuras e que não sou a única que continua fazendo travessuras. Ele jura que sou a única que ainda me mantenho assim e que todas as outras mulheres são o próprio decoro em todos os momentos.

— Ranulf estava muito zangado, mas à rainha Leonora ficou satisfeita por eu ter vindo e repreendeu Ranulf por me obrigar a ir a tais extremos para chegar aqui.

As duas mulheres explodiram em risada.

— Temos muita sorte de ter a uma rainha como ela. Meu pai ainda conta horrores da anterior.

— Este Travers é seu marido?

O rosto da Berengaria se iluminou de um modo especial ao ouvir o nome de seu marido.

— Olhe ao seu redor e me diga se pode adivinhar qual deles é meu Travers.

Lyonene tentou com vários homens, todos bonitos, e Berengaria soprou com cada um, fazendo comentários depreciativos como “bate em sua esposa”, “não gosta das mulheres”, “ambicioso”, movendo as sobrancelhas. Quando Lyonene se rendeu, Berengaria assinalou a seu marido.

— É o que está falando com lorde Dacre. — Disse, com olhos cintilantes e observando a esperada reação no rosto de sua amiga.

O interlocutor de lorde Dacre era o homem mais feio que Lyonene tinha visto em sua vida. Era de estatura média e parecia ser feito de pedra, de tão quadrado que era seu corpo. Não tinha nenhum tipo de graça ao mover-se, só uma inquebrável solidez. Mas seu rosto era o mais aterrador. Suas orelhas eram enormes e seu cabelo uma mescla apagada de cores indefinidas, um matagal áspero e rebelde. Sua testa se sobressaía vários centímetros por cima de seus olhos e as sobrancelhas se uniam em uma só. Profundas rugas corriam ao lado do nariz para uma boca com finos lábios. Seus olhos eram diminutos.

Tratou de manter a compostura enquanto se virava para Berengaria. Certamente só estava brincando.

Berengaria sorriu.

— Ele não é um troll? Mas vou dizer-lhe que o amei desde que eu tinha apenas três anos e continuarei a fazê-lo até morrer.

— Me conte, porque me dá a impressão que há uma boa história detrás de tudo isto.

— Contar-lhe-ei com agrado, embora o tenho feito a poucas pessoas. Procedo de uma família numerosa. Tenho seis irmãos e cinco irmãs. Meu pai sempre esteve contente porque suas filhas são bonitas e dóceis, e seus filhos bonitos e independentes. Eu sou a exceção. Desde o meu nascimento, eu parecia ser o sexo errado, porque eu já fiz coisas que uma jovem não deveria. Um dia, quando fazia pouco que tinha completado três anos, estava caminhando com minha babá pelos campos ao redor de nosso castelo. Em um momento em que ela estava olhando para o outro lado, escondi-me atrás de uns arbustos e a observei enquanto me buscava e me chamava.

— Como pode se lembrar de algo que passou faz tanto tempo? Eu não tenho nenhuma lembrança de quando tinha três anos. — Inquiriu Lyonene.

— Pois eu não tenho outras lembranças, e isto poderia ter acontecido a semana passada, tão vívido me parece. Quando a babá voltou para o castelo para me procurar, eu me dirigi para o lago dos patos, um lugar onde ela nunca queria me levar. Estúpida mulher! Tinha um medo constante que me acontecesse algo, assim sempre evitava me levar aos lugares que eu achava mais divertidos. Quando cheguei ao lago, um rosto me observava atentamente dos juncos. Ao princípio, é certo que pensei que se tratava de um troll, mas segui olhando fixamente quando saiu de seu esconderijo e vi que se tratava de um moço. Olhamo-nos durante um bom momento, e tive um sentimento muito forte de que esse menino era meu e que sempre o seria. Ele tinha doze anos e quase tinha a mesma estatura de agora. Elevei os braços e ele me levantou. Carregou-me por horas, me falando e me ensinando os ninhos dos pássaros, os insetos que se arrastavam e compartilhando comigo a bolsa de comida que levava. Nenhum dos dois se deu conta da hora que era, assim quando chegamos ao castelo já era tarde. Àquela hora, todos estavam desesperados e pensavam que estava morta. Minha mãe se aproximou para me agarrar pelo braço, mas eu não queria soltar Travers, e quando meu pai finalmente me puxou para longe, eu chutei e gritei até que Travers veio, beijou minha testa e me disse para fazer o que era desejado de mim.

— Certamente seus pais se perguntaram a razão de seu comportamento.

Berengaria deu de ombros.

— Sempre quis fazer as coisas a minha maneira. No dia seguinte, neguei-me a me separar um minuto sequer de Travers. Andei a cavalo com ele, enquanto seu pai e o meu inspecionavam uma parcela de terra que meu pai queria vender. Pela manhã eu já sabia que Travers ia partir, assim gritei, chorei e disse que o amava e que ele não devia crescer e que tinha que me esperar. Ele beijou minha testa e disse que quando eu estivesse pronta para o casamento, ele viria me buscar.

— Você não pode me dizer que isso, é exatamente, o que aconteceu!

— Sim. Quando tinha quinze anos, meu pai trouxe para mim, um jovem e seu pai e me disse que deveria me casar com esse homem. Sabia que meu pai acreditava que conseguiria casar-me, assim, diante de todos, disse que tinha me casado em segredo e que levava o filho de meu marido no ventre.

— Não fez isso! Claro que não era verdade!

— Não, não podia ser verdade, já que não tinha visto Travers desde aquele dia e não tinha permitido que nenhum outro homem me tocasse.

— Seu pai deve ter ficado muito furioso.

Berengaria revirou os olhos.

— É uma afirmação muito suave para referir-se ao temperamento de meu pai. Fez-me examinar por uma parteira e soube que tinha mentido, assim, me encerrou em uma torre a pão e água. Aleguei que estava muito doente e uma velha babá me trouxe papel e pluma para escrever meu testamento. Escrevi a Travers que era o momento de vir me buscar, ou meu pai me obrigaria a me casar com outro. Introduzi a carta na fenda de uma seteira, junto com um anel de ouro e a dei a um servo para levar ao destino certo.

Lyonene começou a rir.

— Acredito que minha história de me disfarçar de serva não é nada comparado com esta. Contem-me o resto!

— Travers chegou dentro de três dias com um exército! Mais de trezentos homens se aproximaram do portão do castelo de meu pai e ele, para dizer a verdade, estava muito satisfeito de ver que teria um genro com caráter. Mais tarde, disse que seria necessário um homem assim para viver comigo, já que considerava uma árdua tarefa.

— Mas e você? Não tinha visto Travers desde que era um bebê. Sentia o mesmo por ele depois de todo esse tempo

— Oh, sim. Corri para ele quando me tiraram da torre, ele me agarrou em seus braços e me beijou, mas desta vez não na testa. —Seus olhos brilharam. — Se tivesse tido alguma dúvida, o beijo a fez desaparecer.

Lyonene se apoiou contra a parede e suspirou.

— E agora vivem em contínua satisfação.

— Ah! Não há nada doce a respeito de meu Travers. Tem temperamento tão feio como sua cara. Se você pudesse ver seu braço, veria onde eu o cortei uma vez.

— Não o entendo. Se você o ama...

— O amor não é a coisa bonita como contam os trovadores, é um sentimento interior e que nos diz que formamos uma só unidade com esse homem, seja quem for e como for. Se Travers vendesse sua alma ao diabo, segui-lo-ia amando e tentaria conseguir um bom preço pela minha.

Lyonene sabia que deveria sentir-se escandalizada, entretanto, olhou fixamente a Ranulf e sentiu de novo a dor da flecha galesa em seu ombro.

— Temo que eu também seguiria a meu Leão Negro.

Berengaria sorriu.

— Venha, vamos comer e não falemos mais de demônios. Temo que a penitência por meus pecados seja muito elevada.

Dirigiram-se juntas para as mesas.

Mais tarde, Lyonene e Ranulf se encontravam a sós no quarto, enquanto Ranulf tomava um banho quente.

— Queria perguntar algo. — Disse Ranulf.

Como ele estava silencioso, Lyonene deixou de lavá-lo um momento e o olhou.

— É tão terrível o que vai perguntar-me?

— Alguns assim acreditam. Henry de Lacy me pediu que aceite a seu filho pequeno de pajem. Mas o garoto só tem seis anos e deveria esperar outro ano antes de abandonar seu lar. — Fez uma pausa e, como Lyonene não falava, continuou. — Esta vez será sua decisão, já que um pajem está sob a responsabilidade da mulher, até que chegue à idade de converter-se em escudeiro.

— Como se chama o moço, e por que pensa que eu poderia ter alguma objeção?

— Chama-se Brent e embora seja muito jovem, ele...

— Brent! Não se trata do menino que atou a perna de sir John à mesa durante o jantar?

— Esse mesmo.

— O menino que soltou às pombas na sala de estudo dos monges? O menino que...

— Ele é o responsável por tudo isto e já entendo qual é sua resposta.

— Assim que se converteu em bruxo e agora pode ler meus pensamentos! Então deve saber que eu gosto deste menino. Tem muito bom humor e seus pais tratam de acalmá-lo.

Lyonene começou a ensaboar seu rosto, enquanto se preparava para barbeá-lo, uma nova tarefa para ela.

— Não sabe o que diz, o moço é um diabinho. Ele é o último daquela grande ninhada de Lacy's, e os pais estão cansados e precisam descansar. Pelo que vejo, Berengaria não era o suficiente para levá-los a tumba.

— O que tem que ver Berengaria com meu Brent?

— Seu Brent! Então já adotou o menino. É o irmão mais novo de sua amiga. Acaso não sabia que ela era a filha de um conde?

Ela raspou um pedaço de barba.

— Como sou a humilde filha de barão, sei muito pouco da hierarquia da corte. — Disse com altivez.

Ranulf entendeu a indireta que carregavam essas palavras.

— Sabe muito pouco de como criar filhos e ainda assim está ansiosa em adotar este. Sabe que quatro mulheres o rejeitaram? Dizem que uma delas quase desmaiou quando ouviu o nome do pequeno monstro.

Lyonene não podia barbeá-lo enquanto Ranulf falava.

— Primeiro me pede que o aceite e agora tenta me dissuadir, e o que está dizendo de minha falta de conhecimento no cuidado de criar filhos? Não vejo que você tenha tanta experiência neste assunto, e ainda assim, não parece recuar diante da ideia de acolher Brent.

— Sim, mas sempre posso golpeá-lo se se comportar mau. Não acredito que você vá ter pulso tão forte com esse menino. — Disse, com ares de suficiência.

Lyonene o olhou indignada.

— Fala muito de golpear, primeiro a sua frágil esposa e agora a um menino que é menor que sua enorme cabeça. Agora deixe de discutir comigo para que possa terminar de barbeá-lo, e concentre sua arrogante mente se pode ou não adotá-lo, antes que me escape a adaga da mão e corte suas petulantes palavras de sua garganta.

Agarrou-a do pulso, ao mesmo tempo, em que ela aproximava o afiado aço perto de suas bochechas, lhe lançando um olhar de prazer.

— Começo a sentir pena por esse pobre menino que vai ter a uma leoa como mãe. Ele sempre pensará que fará tudo como deseja, mas na verdade, ela sempre vai ganhar.

— Em minha vida só quis ganhar um prêmio, e o consegui. —Sorriu baixando a cabeça.

Ranulf apoiou a cabeça contra a esquina da banheira.

— Termine de me barbear e não me contradiga mais.

Lyonene sorriu para Ranulf, que tinha os olhos fechados, e terminou de barbeá-lo.

Juntos, entraram no grande salão e sentiram o aroma de comida. Ranulf a apresentou a Henry de Lacy, conde de Lilcoln e Salisbury, pai de Berengaria e Brent. Quando os homens começaram a falar da administração de terra, Lyonene foi sentar se em um banco que havia contra a parede. Brent se aproximou de seu pai e o homem a apontou e enviou o menino para ela.

— É lady Lyonene?

— Sim, e você é lorde Brent?

— Sim, sou-o, milady.

Ela deu um tapinha no banco e Brent se sentou perto dela. Ele olhou para ela com olhos arregalados e depois com uma expressão curiosa sobre seus cabelos. Uma mãozinha levantou-se e puxou com força uma de suas mechas.

Lyonene levou a mão à cabeça em um gesto de dor.

— Qual é a sua razão para isso?

Brent não parecia estar surpreso de sua ação.

— Só queria ver se seu cabelo é real. Ouvi que duas senhoras afirmavam que não o era, e outra disse que deveria levá-los cobertos.

Lyonene sorriu.

— E o que você acha?

Brent encolheu os ombros.

— Não me importa. Não me interessa o cabelo das mulheres, já que vou me preparar para ser um cavaleiro. — Pôs seus pequenos ombros eretos.

— Acaso não é bom para um cavaleiro se preocupar por suas damas? Acaso não me protegeria do perigo, se fosse necessário? Pois foi escolhido que o treinem em Malvoisin e como eu vivo ali...

Brent relaxou de novo, contente que Lyonene lhe deu uma razão para ficar ao seu lado, pois era evidente que gostava dela.

— Está contente de ir para Malvoisin?

— Oh, sim. — Ele respondeu. — Você é uma boa dama, pois não é velha nem feia.

Lyonene sorriu.

— Agradeço-lhe o elogio. Agora, me conte algo sobre esses ardis que ouvi sobre você. São certos?

Brent deu de ombros novamente.

— Vê aquelas meninas? Ontem à noite as fiz chorar. — Disse, muito orgulhoso.

— E o que fez para fazê-las chorar?

— Contei-lhes uma história sobre um dragão que atravessa voando as paredes e come às meninas, só às meninas. Ouvi dizerem a sua mãe que não puderam dormir toda a noite. — Disse sorrindo Brent, que a olhou de esguelha para ver sua reação.

— Meninas estúpidas! Teriam que te haver contado histórias piores para que você não pudesse dormir.

Brent lhe dedicou um olhar de desdém.

— Tenho certeza de que nenhuma menina pode inventar piores histórias que as minhas.

Lyonene se aproximou dele.

— Eu posso e quando estivermos em Malvoisin, farei-o. Não só as escreverei, mas sim, transformarei em música e as cantarei. — Fez com que as últimas palavras soassem como uma ameaça.

Brent a olhou agora com um renovado respeito.

— E o que fará se ponho um rato morto debaixo de seu travesseiro?

— Cortá-lo-ei, e o servirei de jantar e não direi nada até que o tenha comido.

Seus olhos se abriram e pôs uma cara como se imaginasse o gosto de uma comida assim. Sentou-se contra a parede, contente de ver que Lyonene tinha coragem.

— Meu pai só me disse que vou viver com você, mas não conheço seu marido, que será meu lorde.

— Vê o homem que fala com seu pai? O homem que está vestido de negro?

O menino se sentou totalmente ereto e a surpresa estava presente em seu rosto.

— Mas esse é o Leão Negro. — Sussurrou.

Ela o olhou intrigada.

— Acaso não deseja ser o pajem de lorde Ranulf?

Brent estremeceu involuntariamente.

— Meu primo me disse que ele corta os meninos de minha idade em pedacinhos para praticar, para manter afiada a ponta de sua espada.

Lyonene o agarrou pelos ombros.

— Isso é horrível! Como você criou uma história para as meninas, assim seu primo inventou esse conto de meu marido.

Ele olhou para ela com admiração.

— Não têm medo dele?

Lyonene sorriu.

— Na realidade, às vezes sim, mas quando tenho medo, tento que ele não o veja. E você tampouco deve mostrá-lo.

Parecia que o menino iria chorar.

— Ou se não, ele...

— Não diga isto! Não pense! Fique aqui e agora vou buscá-lo. Verá que é muito amável. Se eu, que sou uma simples moça, não lhe tenho medo, tenho certeza de que o pajem de um cavaleiro não o temerá.

Brent tentou levantar os ombros de novo, mas seu lábio inferior continuava tremendo.

— Isso é verdade.

Lyonene murmurou algumas palavras sobre como os homens começam tão jovens com sua arrogância e se dirigiu para onde se encontrava Ranulf. Estava absorto em uma conversa com Henry de Lacy e quando apoiou a mão em seu braço, ele simplesmente a segurou e acariciou cada um de seus dedos. Lyonene deu um passo para trás para que Brent pudesse ver, e o menino olhava com fascinação.

— O que é isso que você faz?

— Me desculpe, lorde Henry, mas gostaria de falar um momento com meu marido.

— O filhotinho já está dando problemas? Se quiser anular o acordo, entendê-lo-ei.

Lyonene respondeu imediatamente.

— Oh, não. Estou muito contente com o menino e não quero perdê-lo.

Henry riu.

— Certamente, em uns meses se arrependerão e pensarão o contrário. Depois de doze filhos, a gente acredita que está preparado para todas estas coisas, mas não posso com este moço. Possivelmente esteja ficando velho. Bom, gostei de falar com você, meu filho.

Henry deu uns tapinhas no ombro de Ranulf e partiu.

— Agora, o que há de errado com o menino?

— Não se trata dele, mas sim de você.

— De mim? Mas se não falei com ele.

— Ele está apavorado com você. Um primo encheu seus ouvidos com histórias horríveis de você.

Ranulf esboçou um meio sorriso.

— E como sabe que não são verdades?

Lyonene contou a história de Brent e Ranulf fez uma careta de desgosto com o lábio superior. Caminhou para o menino e Brent quase deu um salto do banco de madeira.

Ranulf olhou para a cabeça curvada do menino e viu que ele tremia. Aproximou uma mão para tocar seus cabelos loiro avermelhado, mas não o fez. Sentou-se no banco.

— Milorde, é uma honra ser seu p... p... pajem. — A voz do menino era quase inaudível.

— É também uma honra para mim o ter a meu serviço. Então, você tem medo do Leão Negro? — Brent não respondeu nem olhou para Ranulf, mas seu tremor não fazia mais que aumentar visivelmente. — Me diga Brent, acha que a Guarda Negra teme a seu lorde?

Brent levantou a cabeça.

— Oh não Milorde, pois eles pertencem a você, e eles também... — seu medo aumentou ao recordar as histórias que lhe tinham contado.

Ranulf falava com calma, com voz tranquilizadora.

— Se for como diz e eles não têm medo é porque formam parte de minha família, então você tampouco deve me ter medo. Meu pajem me pertence, assim como a Guarda Negra. Possivelmente o conhecerão como o “Pajem Negro”.

Lyonene viu como mudava a expressão de Brent enquanto digeria suas palavras, então começou a sorrir e fez uma pergunta:

— Como posso ser o pajem negro se não tenho o cabelo negro? Todos os cavaleiros da Guarda Negra têm o cabelo da mesma cor que o seu.

Ranulf estendeu a mão ao menino, mostrando o dorso.

— Vê? Tenho suficiente cabelo negro para os dois.

Lyonene não pôde evitar tornar a rir.

— É verdade. Todo seu corpo está coberto de cabelo negro.

Ranulf dedicou a sua esposa um olhar intenso e Lyonene não notou que estava se ruborizando. Voltou-se, mostrando um repentino interesse pelas figuras de uma tapeçaria que havia do outro lado.

Brent não se atreveu a tocar a mão que Ranulf lhe estendia.

— De verdade vou ser seu pajem, milorde? Poderei ver seu garanhão negro e conhecerei sua guarda, tocarei sua espada e... ?

Os olhos do Ranulf começaram a brilhar.

— Sim, tudo isto e muito mais. Agora vamos jantar e, assim que acabemos, iremos ao estábulo e verá meu cavalo.

O moço se ergueu e ficou imóvel, de algum jeito, deu a impressão de saltar de alegria. Brent sorriu para Lyonene, deu a volta e correu para um grupo de meninos maiores do outro lado da sala. Em alguns segundos, todos os moços se viraram boquiabertos para olhar Ranulf.

Lyonene sussurrou ao seu marido:

— Não tenho dúvidas de que ele está dizendo que você come três meninos por dia e que o escolheu para ajudá-lo em seu horripilante açougue.

Ranulf se levantou e lhe deu o braço. Quando Lyonene ficou ao seu lado, Ranulf a olhou da mesma maneira que antes.

— Estou mais preocupado por seu interesse no cabelo negro que cobre meu corpo. Possivelmente possa me demonstrar um pouco deste interesse.

— Possivelmente. — Disse, olhando-o com os olhos entrecerrados. Ranulf puxou seu braço para aproximá-la a seu corpo, como se tivesse medo de que desaparecesse.

— Venha, mostraremos Tighe ao menino, mas mais tarde leoa, mais tarde... — Murmurou, beijando sua mão.


Na manhã seguinte, Lyonene se levantou primeiro e vestindo sua bata verde, foi reavivar o fogo. Ranulf dormia ainda e ela o observou, com as rugas de seu rosto suavizadas pelo sono. Tocou um cacho que caía sobre seu olho. Com a mão, Ranulf agarrou seu pulso e ela ofegou de surpresa. Lyonene se aproximou com entusiasmo, amaldiçoando à manta e à bata que os separavam. Os lábios de Ranulf não a provocavam, mas sim exigiam.

— Venha para mim, leoa. — Disse ele, com um grunhido autoritário, e a aproximou dele, pressionando-a com seu peso contra o colchão de plumas. Os braços de Lyonene estreitaram-no com força Ranulf e o beijou com paixão.

Golpearam à porta e o juramento que proferiu Ranulf foi tão vil que a fez estremecer. Ranulf não percebeu que Lyonene tremia, enquanto dizia a gritos à pessoa que entrasse. Um pálido Brent entrou carregando um pesado cântaro com água quente.

— Trago água quente, meu lorde. — Disse com voz tremente.

Lyonene viu o cenho franzido no rosto de seu marido e deu uma boa cotovelada nas suas costelas. Ranulf grunhiu e virou a carranca para ela. Lyonene lhe sorriu com doçura.

— Seu pajem trouxe água para que se lave e quer ajudá-lo a se vestir para o desfile das justas. — Lyonene deu um beijo na comissura dos seus lábios, que era uma linha dura e sombria. Imediatamente a agarrou e a ameaçou empurrá-la de novo na cama. — Ranulf! — gritou e deu um golpe no seu peito.

Ranulf parecia recuperado, soltou-a e saiu da cama atando uma tanga sobre seus quadris.

Brent se deteve diante de Ranulf e o olhou intimidado.

— É verdadeiramente um Leão Negro por todas as partes. — Não entendeu por que seu lorde e sua lady riam, pois não sabia que foram exatamente as mesmas palavras que Lyonene pronunciou, quando viu Ranulf nu pela primeira vez.

Demorou um pouco em estar preparado para o desfile. Esse dia usava uma cota de malha coberta por uma capa de prata, que só usava para as cerimônias. Lyonene tinha ajudado Brent a levantar a cota de malha e, embora o menino ainda não fosse escudeiro, Ranulf permitiu que também o ajudasse.

— Irei comprovar como estão os cavalos e voltarei dentro de uma hora. Procure não me fazer esperar.

Lyonene sacudiu a cabeça.

— Não tenho o costume de causar seu atraso.

— Não banque a leoa comigo. Venha aqui e dê um beijo em seu cavaleiro.

Levantou-a do chão com um braço e lhe deu um beijo rápido quase esmagando suas costelas. Deixou-a cair bruscamente e piscou um olho para Brent.

— Veja como terá que beijar as mulheres, devem saber que está beijando a um homem. — O pequeno Brent assentiu com a cabeça, como se acabasse de aprender uma lição importante. — Aproxime-se Brent, já houve suficiente lições sobre mulheres por hoje. — Disse, rapidamente indicando a saída do quarto, dedicando um amplo sorriso a Lyonene antes que ela fechasse a porta de repente.

Ela tinha pedido a uma donzela que a ajudasse a vestir-se para o desfile e foi muito cuidadosa com cada dobra de sua túnica verde, com a capa de veludo e com o manto forrado de pele da Marta zibelina. A maioria das mulheres foram vestidas com as cores de seus maridos, ou com as de seu lorde, mas Lyonene considerava que às vezes, as roupas eram muito chocantes. A serva costurou as estreitas mangas de seda. Muitas mulheres usavam as mangas de maneira que a parte superior do antebraço fosse de uma cor e a parte de debaixo de outra. O resto da túnica era acostume ser de uma terceira cor. Lyonene opinava que alguns vestidos eram muito coloridos. Tinha gostado do penteado de Berengaria e esperava que sua amiga não se incomodasse de copiá-lo. Abriu uma pequena caixa que havia no fundo do baú, para assegurar-se de que a faixa ainda estivesse ali. Era uma cópia do cinto do Leão e o daria de presente a Ranulf na justa, para que o levasse em seu elmo. Tinha-lhe encantado costurar cada ponto desses leões negros e dourados.

A serva saiu espavorida quando Ranulf entrou no quarto. Ele se deteve e olhou sua esposa.

— Você gosta, milorde? — Disse ela fazendo uma reverência.

— Você usa as cores de Malvoisin.

— Que outras cores deveria usar a condessa de Malvoisin? —Perguntou, arrogante.

Ranulf se sentou na cama desfeita.

— Vire-se para que eu possa olhar para você. Não é muito apertada esta túnica?

— Está folgada, vê? — tentou mover o tecido para mostrar, mas a serva tinha fixado bem a seda. Olhou-o, pôs-se a rir e encolheu os ombros. — É a moda. Atrevo-me a dizer que a de lady Elisabeth será igualmente apertada.

— Elisabeth não é minha esposa e não me importa se os homens a olham boquiabertos.

— Acha que os homens olharão este pobre corpo? — Perguntou com uma fingida inocência.

Ranulf a olhou entrecerrando os olhos.

— Está tentando me deixar com ciúmes?

— E se estiver?

— Então, direi que não deveria fazê-lo. Acredito que não necessito ajuda para isto. Venha comigo, pois começaremos dentro de pouco. Consegui um cavalo negro para você. Não se importa em não montar um cavalo branco como as demais damas?

Lyonene sabia que não receberia nenhum elogio de sua parte. Agarrou-o pelo braço coberto pela cota de malha.

— A esposa do Leão Negro não pode montar um cavalo branco, não ficaria bem para o resto de seu homem.

Os olhos de Ranulf brilharam enquanto a olhava e tocou os broches dourados em forma de leão que fechavam seu manto, com seus olhos cor de esmeralda perfeitamente combinando. Deu-lhe um terno beijo na bochecha.

Os cavaleiros da Guarda Negra esperavam embaixo, estavam resplandecentes, formados e preparados para o desfile. Hugo Fitz Waren cavalgava primeiro, com sua cota de malha verde e o tabardo negro com um leão negro correndo por um prado verde. O frísio e a égua negra estavam preparados para Ranulf e Lyonene.

Quando Ranulf parou diante do cavalo de Lyonene tirou algo da alça da sela de montar. Retirou o tradicional diadema de ouro da cabeça de Lyonene e a lançou a um servo do castelo. Em seu lugar, colocou uma coroa de ouro com esmeraldas e pérolas negras.

— Uma condessa não pode apresentar-se como uma simples dama. — Disse, sorrindo para ela.

Lyonene tirou uma fita verde do cabelo e a atou no braço dele; a seda ficava muito bem com a reluzente prata.

Ele ergueu-a no cavalo e Lyonene ajustou a perna na sela de montar. O cabelo caía solto sobre os ombros e a saia roçando a garupa do cavalo.

Dirigiram-se lentamente para seus postos na longa fila de pessoas. Hugo Fitz Waren levantou o estandarte preto e verde de Malvoisin, o leão rosnando vivido contra o verde esmeralda do chão. O tabardo negro formava redemoinhos contra a sarja verdes que cobria seu cavalo.

Ranulf encabeçou a linha dupla que seguiam o lorde de sua Guarda Negra. Tanto seu tabardo como as roupas que usava Tighe eram de um negro intenso. Atrás dele se encontrava Corbet, com roupas verdes e negras para seu cavalo. As cores se alternavam ao longo de toda a fila. Lyonene estava totalmente vestida de verde, como seu cavalo, e os homens que a seguiam também alternavam as cores.

Diante e detrás dela, ondeavam os estandartes do rei e de seus condes. Destacava o unicórnio azul e dourado de lorde Dacre, os seis leões do Humphrey de Bohun, as três coroas de Robert de Vere, as marcas de sabres de John de Montfort e os três leopardos de Edmund, o irmão do rei. As cores e as joias brilhavam, e os cavalos se mostravam excitados e davam coices e empinavam ameaçando atirarem ao chão seus cavaleiros.

Lyonene pensou em Brent. Sabia que estava com o grupo de seu pai. Teria gostado de ter tido tempo para lhe fazer um traje com as cores de Malvoisin.

A grande ponte levadiça de carvalho que conduzia as muralhas do novo castelo estava baixado e começou o desfile. O ruído da multidão que esperava dissipou todo pensamento enquanto os cavaleiros se dirigiam ao campo. Durante várias semanas tinha chegado gente de todas as partes: homens livres, servos cujos amos estavam presentes nas celebrações, mulheres cuja profissão era o entretenimento e mercadores, centenas de mercadores.

Os cavaleiros que desfilavam se situaram em uma pequena costa, que parecia viva com o movimento dos estandartes e das bandeiras. Construíram-se dois grupos de bancos elevados, um a cada lado da barreira, um para a nobreza, com um toldo de sarja com raias vermelhas e brancas e outro para as damas e os cavaleiros de grau inferior que entravam nas competições, com o teto aberto ao céu da primavera. Em cada extremo do estreito campo se situavam as tendas. Em um estavam às tendas dos desafiadores e no outro as tendas para os recém-chegados. Lyonene viu o estandarte do Leão Negro na zona dos desafiadores.

Atrás das cadeiras de madeira e das tendas estavam as pequenas tendas e as carroças dos mercadores, cujas bandeirolas eram muito perceptíveis. Entre a multidão que aplaudia, circulavam muitos homens que levavam caixas, seguras com uma correia, que continham comida, bebida, tecidos, relíquias de Santos, medicamentos que garantiam curá-lo de tudo e objetos procedentes de toda partes do mundo.

Parecia que as cercas não fossem suportar a enorme massa de gente que queria ver os ricos trajes dos cavaleiros e das damas. Quando Hugo Fitz Waren fez sua entrada pela porta e seu cavalo começou a caminhar sobre o terreno da justa, coberto de areia, alguém aclamou o Leão Negro. Lyonene estava especialmente contente e sorria a todo mundo, mas um olhar rápido a Ranulf mostrou que ele não respondia às ovações, de fato, tinha um aspecto muito imponente com seu negro traje e suas costas erguida como uma barra de aço.

O grupo seguinte esperou que o conde de Malvoisin desse a volta com sua esposa e seus cavaleiros ao redor do terreno da justa. Lyonene tinha a impressão de que o público os aclamava mais forte, mas em seguida se repreendeu, pois sabia que era seu estúpido orgulho o que lhe dizia isto.

Deixaram o portão para atrás e entraram no terreno das tendas no outro extremo da areia. Esta área também estava cercada, pois estava reservada para o uso dos cavaleiros escolhidos pelo rei.

Havia três pavilhões que ostentavam as cores de Malvoisin, dois para os homens e uma para Ranulf, o conde e a condessa de Malvoisin entraram na maior.

Lyonene não pôde evitar recordar de sua dança quando viu a cor creme do interior. Ranulf deixou de despir-se para observá-la. Então se desenhou um sorriso no seu rosto. Começou cantarolar a canção daquela noite.

Lyonene começou a rir.

— Acredito que já me perdoou por me haver escondido e ter vindo a Gales.

— Eu disse que te perdoaria.

Ela não gostou da presunção de Ranulf.

— Deveria o pôr a prova.

— Não se atreva a fazê-lo. — Grunhiu, mas logo compreendeu que Lyonene brincava.

Brent entrou na tenda.

— Milorde, venho para ajudá-lo a se vestir. É apropriado que uma dama esteja presente na tenda de um cavaleiro?

Lyonene estreitou os olhos, dando as costas a Ranulf que se dirigiu ao menino:

— É uma honra, Brent. Todo cavaleiro que vai a uma batalha, embora seja um simulacro, deve obter os favores de sua dama. Agora venha e ajude a me preparar para o combate. Deve me pôr óleo por todo o corpo.

Lyonene resmungou algo sobre como os pajens tinham as mais deliciosas tarefas e se afastou quando Ranulf olhou para ela. Proferiu um grito quando ouviu a voz da Berengaria e sua amiga entrou.

— Sempre quis ver esta tenda. — Tocou com os dedos a seda das paredes. — Lorde Ranulf, acredito que hoje entra em combate.

— Sim. Pedi a Eduardo que fizesse oito taças de ouro, todas com esmeraldas como prêmio.

Berengaria fez um gesto com as sobrancelhas para Lyonene, que lhe respondeu com um sorriso.

— Milorde, é uma honra que duas damas estejam presentes? — a voz de Brent soava exasperada.

Berengaria riu.

— É um de Lacy, sempre impaciente e mal educado. Escolheu a um diabinho, Lyonene. Venha e procuraremos uma cadeira de onde possamos ver o triunfo de seu marido.

— Pode se sentar com minha esposa na seção reservada para os de Malvoisin. Não acredito que lhes seja difícil ver daí.

As duas mulheres abandonaram a tenda.

— Como é que as mulheres suportam tanta arrogância? —olharam-se de uma à outra e puseram-se a rir.

Ranulf tinha razão, as cordas verdes e negras delimitavam uma boa parte dos bancos em forma de degraus. Havia lugar para uma dúzia de pessoas. Lyonene e Berengaria sentaram nas cadeiras da primeira fila. Ainda faltava um bom momento para que começassem os combates, assim compraram uma torta e bolos de queijo a um mercador.

Os trompetes começaram a soar cortando o ar fez-se um silêncio espectador. Os cavaleiros começaram a entrar desde ambas as partes do terreno, vestidos unicamente com tanga. Lorde Dacre e seus cinco homens causaram pouca comoção, o corpo de Dacre era de uma suave cor dourada e seu peito estava coberto de um fino pelo loiro.

Quando Ranulf entrou no terreno da justa, seguido de seus sete cavaleiros negros, Lyonene apertou com força o braço de Berengaria.

Berengaria exclamou:

— Agora vejo por que ama a este homem: é magnífico.

Lyonene sorriu com orgulho.

As prendas das mulheres das tribunas choviam sobre o campo: flores, fitas, mangas de vestidos e túnicas. Ao seu redor, Lyonene ouviu gritar os nomes dos homens da Guarda Negra, especialmente os do Corbet e Maularde. Corbet agradeceu as ovações lançando beijos e deu as prendas a um servo. Maularde só recolheu uma fita que lhe tinham jogado e sorriu a alguém que se encontrava atrás de Lyonene. Ela se virou e viu uma jovenzinha a quem, ao sorrir ao guarda, lhe desenharam graciosamente as covinhas.

Ranulf fez a sua esposa um sinal com a cabeça e ela pôde ver que tinha atado no braço a fita verde que tinha lhe dado.

— Travers nunca permitiria que homens assim estivessem perto de mim. Não seria fácil escolher a um entre eles.

— Mas meu Ranulf é, com diferença, o melhor, não acha?

— Dizem que o amor é cego, mas certamente não é em seu caso.

Dacre não lutaria contra Ranulf, tal e como o Leão Negro tinha esperado, embora tivesse gostado de ganhar de seu amigo, mas os dois condes e seus homens desafiavam aos recém-chegados. Primeiro lutavam os homens da guarda. Se algum dos recém-chegados ganhava dos cavaleiros do rei, então deviam lutar contra Ranulf ou lorde Dacre.

As batalhas começaram. Ranulf e Dacre observam enquanto os cinco grupos de cavaleiros rodeavam uns aos outros. Seus corpos lubrificados de azeite brilhavam sob o sol da manhã e as ovações do público os inspiravam. Um dos homens de Dacre caiu, mas tentou aguentar até que o oficial do rei o declarou derrotado. Lyonene viu como Ranulf dava uma palmada efusiva no amigo.

Os três cavaleiros da Guarda Negra ganharam sem problemas os três combates e Lyonene sabia que outros homens não poderiam ter sido treinados na luta, como os homens de seu marido.

Os trompetes voltaram a soar e entraram onze homens para desafiarem aos cavaleiros. Lorde Dacre e Ranulf observaram como um dos recém-chegados, que tinha ganhado facilmente aos homens de Dacre, era derrubado por Sainneville.

A segunda rodada também foi fácil de vencer, e Lyonene viu de novo a petulância nos rostos de Ranulf e Dacre e os pretendidos bocejos.

Os trompetes voltaram a soar e o terreno se esvaziou, mas já não havia recém-chegados. Ranulf e seu amigo se ergueram quando os trompetes começaram a bramar outra vez. As portas do fundo se abriram lentamente e duas carroças tampadas foram levadas ao meio do terreno.

Fez-se um grave silêncio entre a multidão e todos os olhares estavam postos nas carroças, de conteúdo secreto. Dois homens saíram correndo detrás e fizeram soar os trompetes; as sarjas das carroças caíram sem revelar nada de seu interior. Os que carregavam as carroças se baixaram ao chão e dois homens altos e fortes saíram delas, com suas cabeças e seus corpos completamente raspados e cobertos de azeite que davam um efeito muito brilhante. As carroças foram retiradas rapidamente e os dois homens ficaram ali em pé, com as pernas abertas e as mãos sobre os quadris.

— Viemos de Angilliam, somos os irmãos Ross e desafiamos lorde Dacre e lorde Ranulf a lutar até que um dos dois grite: “Paz!”

O clamor da multidão foi ensurdecedor, um rugido que fez vibrar as cadeiras. Berengaria começou a rir e a aplaudir e logo olhou para Lyonene que sorria agradada.

— Parece segura do resultado desta luta.

— Ranulf vai ganhar, mas terá que lutar duramente para consegui-lo. Estou contente de que não seja fácil receber as taças de ouro.

— Oh, acredito que terá que fazer um esforço para ganhar desses homens.

Ranulf rodeou ao enorme homem e Lyonene observou com satisfação que seu marido o igualava em altura. O primeiro choque levou Ranulf a cair de costas com um forte ruído. Lyonene viu seus músculos em tensão enquanto tentava se livrar do homem, as pernas travadas juntas e a pele escura de Ranulf bem visível. Desfizeram a chave de pernas e voltaram a rodear-se, mas desta vez Ranulf conseguiu agarrá-lo primeiro. Os braços de Ranulf rodearam o pescoço do homem e Lyonene pôde ver as costas de seu marido enquanto o outro homem se liberava. Os músculos tensos enquanto se empurravam, cada um tratando de agarrar ao outro, usando sua força para tratar de desfazer a pressão do outro. Ficaram de pé e se agarraram pelos braços, puxando, empurrando com as pernas, enquanto lutavam um contra o outro. Durante vários minutos nenhum se moveu, se não fosse pelos músculos de seus pescoços tensos como cordas e, os nós que formavam os músculos de suas costas, pensava-se que o único que faziam era descansar.

— Ross está se cansando. Suas pernas começam a fraquejar, mas Ranulf não parece cansado. Deve haver treinado muito para este combate. — Disse Berengaria.

Lyonene só fez sorrir, pois toda sua atenção se dirigia a seu marido e só podia imaginar a dor que sentia neste longo combate.

Romperam a chave de braço e a multidão aclamou, pois o homem da cabeça rapada mostrava claros sinais de cansaço, e Ranulf aproveitou para retomar o ataque.

— Lorde Dacre também está lutando bem, embora o outro Ross é mais pequeno que o que luta com lorde Ranulf.

Os dois homens continuaram lutando até que Ranulf o fez cair quando lhe bloqueou os tornozelos pelas panturrilhas. O homem não pôde desfazer-se da chave de perna. O grito do “Leão” encheu o ambiente quando o homem gemeu “Paz”. Ranulf ficou de pé e, solenemente, ajudou ao homem calvo a levantar-se e a ficar de pé a seu lado. Ele abandonou o terreno e Ranulf ficou ali mostrando o triunfo. Só passou um momento até que lorde Dacre se uniu a ele e juntos passeavam se vangloriando ao redor do campo.

Ranulf se deteve um instante diante Lyonene e ela deu um beijo em uma fita e a lançou para ele. Ele a pegou em pleno voo enquanto olhava para ela, um olhar que a fez ruborizar-se. Com a fita fez um rolo e a meteu em um lado da tanga, com as pontas caindo por cima de seu quadril e sua coxa. Ranulf sorriu com um lado da boca, um sorriso quase lascivo. Lyonene cobriu o rosto com as mãos, enquanto a multidão, os homens e mulheres que a rodeavam elogiaram seu gesto. Ela não voltou a levantar o olhar até que ele saiu do campo.

— Você pode mostrar seu rosto novamente, porque ele se foi e os trompetes soam para o jantar.

Uniram-se à fila de gente que começavam a abandonarem os terrenos do torneio.

— Minha lady. Minha Lady Lyonene! — Se virou e viu Brent, sem fôlego e com os olhos muito abertos. — É o cavaleiro mais forte! Viram-no?

— Sim, o vi. — Lyonene não se dava conta de que a expressão em seu rosto era a mesma do menino.

— Ordenou que vá vê-lo em sua tenda, pois vai jantar aí. Diz que não deve vestir-se ainda, já que pode haver outros homens como os irmãos Ross com quem terá que lutar. — Seu rosto se encheu de pena. — Tenho que ir comer com meu pai.

Berengaria se pôs a rir.

— Temo que nosso pai seja um pobre substituto do Leão Negro. Venha comigo, Brent, possivelmente poderá se conformar com meu pobre Travers.

Lyonene se deu pressa em chegar à tenda de Ranulf. A princípio não o viu, pois estava muito quieto estirado na cama de armar.

— Lyonene? — Sussurrou.

Lyonene se apressou a chegar ao seu lado.

— Ranulf! Está ferido!

— Estou mais que ferido, estou morrendo. — Foi sua apagada resposta. — Não há uma parte de meu corpo que não esteja doendo. Nenhum dos ferimentos de machado no meu braço e na minha perna, nem os dois juntos, me causaram tanta dor.

Lyonene acariciou seu cabelo úmido de suor, com uma faísca de risada na voz.

— Mas Brent disse que estava preparado para combater com outro homem, é claro, um mais feroz do que acaba de ganhar. — Lyonene pôs-se a rir ao ouvir seu gemido.

— Você é muito cruel. O que acha que diria o menino se me visse como você me vê agora?

— Ao menos não acha que devo me sentir impressionada.

Ela puxou a fita verde que pendia de sua tanga e sua mão instantaneamente cobriu a dela, mas não sem seu gemido de dor.

— Isto é meu. Ganhei e não me faça lutar de novo para mantê-lo.

— Mmm! Não poderia nem sequer me chicotear agora.

Com seu braço, rodeou-a pela cintura e entre gritos e risadas, atirou-a sobre ele na cama de armar. Pôs uma pesada perna sobre suas coxas e um braço por cima de seus seios, seu rosto se aconchegou contra sua orelha.

— Deleita-se em me causar dor. Primeiro devo me vangloriar diante meu pajem e logo devo provar minha força a minha esposa. Deite-se e não me atormente.

Lyonene fez como ele tinha ordenado e agradeceu sua proximidade.


— Bom dia, meu lorde. — Os saudou Brent abaixo, nas escadas, com cara solene.

Ranulf franziu o cenho para o menino.

— Sinto-me um pouco cansado esta manhã. Possivelmente estaria disposto a me tirar um pouco de peso, até que cheguemos ao campo de batalha. Desprendeu a larga espada.

Lyonene acreditou que as pálpebras do menino podiam virar-se de tão abertos que tinha os olhos.

— Oh, milorde, não é esta a espada que utilizou para matar aos infiéis na Terra Santa? — Sussurrou Brent.

—Sim, é esta.

— E como se chama?

— Challouns. Está aqui escrito na folha. Há uma lasca da cruz verdadeira na bola de cristal do punho e dizem que essa esmeralda veio da coroa de rei Artur.

Fazendo uma reverência, Brent sustentou a espada diante dele, com sua cabeça para trás e os braços levantados. Lyonene e Ranulf o seguiram e ela apertou seu braço.

— Você é muito amável com o menino. Agora vejo por que ele o adora. Meu pai nunca passou tanto tempo com os pajens, nem com seus escudeiros.

— Eu gosto de crianças. Possivelmente poderia me dar alguns. — Olhou seu ventre de maneira significativa.

— Esteja seguro de que vou encher cada canto de Malvoisin com filhotinhos de leão.

Ranulf sorriu com malicia.

— Se eu durar as noites exigidas de mim para isso.

Lyonene sacudiu o cabelo e se negou a responder, o que o fez rir e lhe dar um beijo na bochecha.

No campo da justa, os bancos já estavam cheios e vários dos membros da Guarda Negra ocupavam a seção reservada para o conde de Malvoisin, ficaram de pé até que Lyonene se sentou. Falou com cada um dos quatro cavaleiros e os felicitou por seu êxito nas lutas do dia anterior. Corbet e Maularde estavam sentados à parte, cada um junto a uma bonita jovem. Para sua surpresa, Hugo Fitz Waren também estava sentado junto a uma moça.

Lyonene deu uma cotovelada em Ranulf.

— Hugo é tão solene... não acreditava que fosse um...

Os olhos de Ranulf brilhavam.

— Nenhum de meus cavaleiros tem dificuldades em encontrar uma mulher. Sentem-se muito honrados de pertencerem a Guarda Negra. Apesar de que outros façam mais ostentação, Hugo tem muitas mulheres que tentam apanhá-lo.


Lyonene se sentou junto a Ranulf, as coxas de ambos bem juntos.

— Do mesmo modo em que eu lhe apanhei?

— Sim, do mesmo modo.

O som dos trompetes fez com que todos prestassem atenção ao campo da justas coberta de areia. As provas de salto seriam pela manhã, e consistiam em saltos de obstáculos e de grande distância. Os cavaleiros de lorde Dacre começaram esta competição.

Os trompetes soaram de novo para anunciar que a comida estava servida. Nesta ocasião, Berengaria se sentou à esquerda de Lyonene e Ranulf a sua direita. Foram entretidos por três jovenzinhas que tocavam e cantavam.

O rei Eduardo se levantou e todos fizeram um silêncio respeitoso.

— Tenho um anúncio a fazer neste dia. Lutamos para conquistar Llewellyn, e o conseguimos, mas todos conhecem a história de seu irmão traidor, David. Quando foi capturado, sua família foi levada ao castelo de Rhuddlan. Havia dois filhos e sete filhas. Demos os filhos gêmeos de três anos, a meus cavaleiros para que os educassem. As filhas e a mulher pediram que as levassem a viver com as monjas. À mulher e a quatro das filhas o permiti. Agora tentei casar às outras três. Uma se suicidou. — A multidão emitiu um grito afogado pelo horror desse pecado mortal.

— A outra filha pude casá-la com sir John de Bohum. Alguns de vocês poderão tê-lo... conhecido. A moça o matou durante sua noite de bodas. — A sala ficou em silêncio absoluto, todos os rostos expressavam horror.

— Agora espero evitar que a última filha desperdice sua vida. — Se voltou para o homem que havia perto da porta e todo mundo olhou para ele. Dois homens grandes e fornidos, vestidos com cota de malha, entraram na sala acompanhados do som de correntes, que se arrastavam atrás deles. A moça era muito pequena para que a pudessem ver a princípio. Tinha a cabeça baixa e escondia o rosto, mas seu cabelo negro caía em cascata sobre sua capa azul de veludo.

— Devem se perguntar por que tenho acorrentada a uma moça tão pequena, mas já matou a um de meus homens e podem ver as feridas que têm estes outros.

Lyonene se fixou nos sulcos que havia nos rostos dos homens, onde a garota tinha arranhado com suas unhas.

Berengaria deu uma cotovelada em sua amiga.

— Se estivesse em seu lugar, — afirmou — eu teria feito o mesmo. Acredito que os galeses não acreditavam que David fosse um traidor.

— Chama-se Angharad, — prosseguiu o rei Eduardo — e a ofereço em matrimônio a qualquer cavaleiro que esteja à altura de sua posição.

Neste momento a garota levantou o rosto e a multidão lançou uma exclamação de admiração por sua beleza. O cabelo negro emoldurava um bonito rosto com um nariz diminuto e lábios voluptuosos, mas eram seus olhos o que mais sobressaia, pois eram de um azul radiante e vibrante. Agora ardiam de febre, e seu olhar de desafio e desprezo era evidente para todo mundo.

Berengaria chamou a atenção de Lyonene para lorde Dacre, sentado algumas cadeiras mais à frente. Olhava boquiaberto à moça, e seus olhos ficaram frágeis como se tivesse perdido a razão. Lyonene deu uma cotovelada em Ranulf para que observasse seu amigo.

— Dacre tem senso comum. — Ele sussurrou baixinho.

Enquanto ele falava, Dacre jogou sua cadeira para trás provocando um ruído alto, quando caiu no chão, vários dos convidados se sobressaltaram. Saltou por cima da mesa para a mulher surpreendendo-a para que não pudesse reagir. Atraiu-a para si com força, esmagando entre seus corpos suas mãos acorrentadas enquanto seus lábios tomavam os dela.

Dacre se afastou com um grito de dor e todos viram a gota de sangue em seus lábios.

— No futuro se arrependerá deste sangue, mas lhe juro ante Deus, que um dia me amará mais que a sua própria vida. Você é minha!

Ela começou a soltar a gritos uma corrente de palavras em língua galesa. Os silenciosos comensais se horrorizaram ao ver que cuspia em Dacre. Este, entretanto, sorriu e esfregou seu queixo molhado de cuspe contra o dela. A moça tentou mover seus braços, mas não pôde.

Dacre se voltou para seu rei.

— Eu a reivindico em matrimonio agora, e se um padre não vier logo, deitar-me-ei com ela sem que esteja casada.

De repente, rompeu-se a tensão do ambiente e todos se puseram a rir.

O rei Eduardo fez um gesto com a cabeça para um homem que se achava no outro extremo da mesa.

— Stewart! Prepare os papéis. Não há dote, já que seu pai perdeu tudo por seus atos de traição.

Angharad investiu contra o rei, que se afastou, apesar de que lorde Dacre a segurava com força.

— Meu pai não era nenhum traidor!

Pronunciou essas palavras com um tom estranho, ao tentar falar em uma língua que não era a sua.

— Leve-a lorde Dacre. Não o invejo, procure que não o assassine durante sua noite de bodas.

Dacre a ergueu nos braços, enquanto ela tentava desfazer-se dele, mas sua tarefa era inútil, devido à força desse homem. Dacre sorriu para o rei.

— Não tema por minha vida. Só é uma mulher que ainda não conheceu a um homem. Esta noite conhecerá um que a domará.

A multidão rompeu em risadas e Dacre levou da sala à moça que se debatia contra ele. Todos estiveram de acordo que nunca tinham participado de uma refeição tão animada como essa.

— O que pensa agora de seu amigo? — Perguntou uma risonha Lyonene a seu marido.

— Que Dacre sempre teve muito pouco senso comum com respeito às mulheres. — Tomou sua pequena mão e a beijou. — Lutei em duas guerras e não me importo em ter uma batalha constante. Mas em meu próprio dormitório eu gosto de ter paz.

— E considera que nossos encontros são pacíficos?

A risada retumbava na garganta de Ranulf.

— Não, minha leoa, acredito que sua proximidade é tudo menos pacífica. Se não fosse porque devo participar dos jogos de Eduardo, gostaria de me juntar ao esporte que Dacre desfruta hoje.

Lyonene sentiu que se ruborizava e olhou a seu redor para ver quem estava escutando. Lyonene voltou a pôr sua mão sobre sua própria saia.

— A julgar por nosso comportamento, haverá muitos que pensarão que somos recém-casados. Depois de tanto tempo, deveríamos estar cansados um do outro e começar a nos buscar amantes.

Ranulf apertou seu pulso, causando dor.

— Não diga estas coisas!

— Ranulf, eu só fiz uma brincadeira. Não me machuque. Eu não vou olhar para qualquer outro homem, eu juro. Não vê que estava brincando?

Ranulf a soltou.

— Sinto se te machuquei, mas não posso rir de coisas como esta.

— Algum dia me contará quem o machucou e lhe causou tanta dor?

Ranulf olhou para outro lado, sem responder.

Estiveram em silencio durante o resto da refeição, mas para o final, o bom humor de Ranulf havia voltado. Caminharam juntos para sua tenda no final do terreno. Brent esperava impaciente por seu lorde. Ranulf deu um beijo muito casto em Lyonene e esta foi encontrar-se com Berengaria nas arquibancadas. Iniciou-se o lançamento de lança. Cilbert de Clare, outro conde e o cavaleiro de Robert de Vere, começou a prova.

Ranulf apareceu com um pequeno traje com as cores de Malvoisin e fez uma demonstração do grande arco. Lyonene percebeu que havia muitas exclamações de júbilo feminino perto dela. Berengaria se pôs a rir ao ver o cenho franzido de sua amiga. O grupo de servos e os homens livres não estavam presos às regras da cavalaria, como os cavaleiros, e suas ovações pelas distâncias que alcançava o novo arco eram ensurdecedoras, pois Ranulf era um de seus cavaleiros favoritos. Ranulf os saudou, desfrutando de sua adoração.

Depois da exibição, Lyonene acompanhou Ranulf à tenda.

— Eles gostaram de meus lançamentos? — Perguntou, sorrindo astucioso para ela. — Brent está dividido entre as palavras de seu pai e as de seu novo lorde. Acredito que verá as coisas a minha maneira, não acha?

— Tenho certeza de que assim será, pois acaso não conseguiu que eu também veja as coisas a sua maneira?

Aproximou-a dele e a beijou.

— Estou mais satisfeito por tê-la ganhado que ao pajem. Você gostaria de esquecer do jantar e ficar em minha tenda? — Sossegou seus protestos com os lábios, e tudo o que Lyonene pôde fazer foi submeter-se, enquanto a boca dele se dirigia lentamente para seu pescoço.

Fizeram amor tão apaixonadamente como se fizesse meses que não estavam juntos. Mais tarde, Lyonene e Ranulf descansaram deitados um junto ao outro, nus e satisfeitos.

— Você me enfeitiçou. Como ganharei a justa amanhã se minha mente não deixar de pensar em você? — Disse ele.

— Não me importo se entrar na justa ou não. Fica comigo todo o dia e olharemos dos degraus.

Agarrou-a pelos ombros e a afastou dele, olhando-a com o cenho franzido.

— Desonrar-me-ia. O Leão Negro deve lutar, porque se não perderia aos homens que o seguem. — Mudou de assunto. — Me pergunto como irá Dacre com sua nova esposa.

— Você a achou bonita?

— Muito bonita.

— Mais que eu?

— De longe. Você é uma lesma comparada a ela. — Ranulf só riu quando Lyonene lhe deu um golpe no peito.

No dia seguinte, Lyonene despertou cedo e se voltou lentamente para olhar Ranulf enquanto dormia ao seu lado. Tinha uma das mãos enrolada em seu cabelo e a outra segurando firmemente sua cintura. Lyonene sorriu pensando que nem sequer quando dormia, deixava-a solta.

— Parece-me que me têm preparado alguma bruxaria esta manhã.

— Não, só estou o olhando. — Se aproximou dele, colocando suas mãos ao redor de seu pescoço. — Voltaremos logo para casa?

— Acredito que está tão cansada da corte como eu. Voltemos para casa amanhã. — Ela deu-lhe um beijo rápido. — Estou ansioso pela a viagem. — A atirou em cima do colchão e ficou em cima dela. — E que entretenimento têm preparado para quando voltar? Embora não poderia igualar a dança.

Lyonene lhe lançou um olhar perverso com seus olhos cor de esmeralda. Com suas mãos percorreu todo seu corpo até que encontrou o que procurava.

— Não acha? — sussurrou Lyonene antes que as palavras lhe escapassem.


No campo de justa, Lyonene olhou com temor aos competidores de Ranulf. Ele levava uma esplêndida cota de malha prateada, com sua faixa, a cópia do cinto de leão atada ao elmo. Permitia-se levar um máximo de três por cada homem. O som ensurdecedor dos cascos dos cavalos, as lanças estilhaçadas, as ovações e zombarias da multidão eram avassaladores. O homem seguro de si mesmo, sentado sobre seu cavalo negro era um estranho para ela. O sorriso tinha desaparecido, o homem sorridente com quem tinha passado tantas horas de prazer dava lugar a esse rosto intenso e escuro de campeão do rei, o Leão Negro. Não se fixou no temor que infundia a tantos homens.

A justa não se deteve quando chegou a hora do almoço; ao contrário, os servos trouxeram comida às arquibancadas e os espectadores comeram e beberam com entusiasmo enquanto ovacionavam seus preferidos. Lyonene não pôde evitar sentir-se orgulhosa de que nenhum dos cavaleiros de Malvoisin tivesse sido derrotado.

Os cavaleiros mercenários pediam grandes somas de dinheiro para o resgate dos homens que derrubavam, e mais de um pobre cavaleiro perdeu grande fortuna esse dia. Em várias ocasiões, Lyonene viu Brent cheio de júbilo, sujo e cansado.

Lady Aleen, a mãe de Brent, foi expressar seu agradecimento por ter acolhido a seu oneroso filho. Lyonene ria enquanto ela relatava os contos do moço sobre lorde Ranulf e referia sua completa adoração pelo cavaleiro.

Já era tarde quando as justas terminaram. Lyonene e Berengaria riram ao observar que algumas moças só vestiam suas túnicas, pois tinham tirado todos os adereços para lançá-los como prendas a seus cavaleiros favoritos. Começaram a desmontar as tendas e as duas mulheres se dirigiram de volta ao castelo.

Lyonene ouviu o som da água quando abriu a porta de seu dormitório. Ranulf estava submerso em uma grande banheira cheia de água fumegante.

— Venha aqui e me lave as costas. Estou contente de poder me ocupar de outras coisas agora. Não têm medo de molhar sua roupa? Não penso somente nas mangas. — Ranulf sorriu maliciosamente.

Em poucos minutos, Lyonene se encontrava com Ranulf dentro da banheira, a água caindo pelos lados.

Riram enquanto passavam os dedos ensaboados por todo o corpo, explorando lugares sensuais.

Duas pessoas muito limpas se uniram a outros convidados para o jantar do final do torneio.

O falcoeiro principal de Eduardo havia trazido vários falcões à sala e, depois dos dois pratos principais, soaram os trompetes. Da cozinha trouxeram doze enormes bolos, cada um levado por dois meninos. Quando os cortaram, saíram vários pássaros voando do interior e o bater das asas encheram o salão. Os aplausos e as zombarias da multidão ainda acrescentaram mais confusão. Os falcões desciam para caçar aos pássaros enquanto os convidados cobriam as cabeças com os braços e desfrutavam do espetáculo.

Momentos mais tarde retiraram os pássaros, mas a excitação ainda estava presente. Apareceram bailarinas e as brincadeiras e os gritos começaram a ser mais fortes e mais grosseiros.

Lyonene tinha tomado muito vinho e a cabeça começava a dar voltas. Pediu um pouco de água para diluir a embriagadora bebida.

— Me escute, milorde Ranulf, dê a sua esposa um pouco de água.

Os olhos do rei Eduardo cintilaram enquanto dava uma jarra de prata a seu conde. Ranulf duvidou um momento, mas depois sorriu com malicia a seu rei.

— Entendo o que quer dizer. Possivelmente um pouco de água ajudará.

O vinho aguado não pareceu muito mais suave para Lyonene, mas o enjoo não era desagradável. Olhou Ranulf e pareceu esquecer a presença de outros. Um movimento rápido captou sua atenção e viu que um cavaleiro tomava a uma das bailarinas e lhe rasgava a túnica, afundando seu rosto em seus grandes peitos.

Lyonene sentiu que todos seus sentidos ardiam. Passou sua língua pelos dentes, apreciando o quando afiados eram. Sentia um formigamento nos dedos e estes pareciam mais sensíveis que nunca. Estudou o perfil de Ranulf e se sentiu incrivelmente faminta de provar sua pele debaixo de sua boca. Nunca havia se sentido tão estranha.

— Warbrooke! Cuide de sua esposa. Acredito que a “água” de nosso rei não saciou sua sede. — Gritou alguém entre o enorme estrondo.

Ranulf voltou atônito seus olhos para sua esposa e viu um grande sorriso. Levantou seus dedos para beijá-los. Ficou sério quando ela passou um dedo por seus lábios. Ranulf não duvidou. Agarrou-a nos braços, ignorando as gargalhadas atrás dele, e a levou para seu dormitório.

Mais tarde, Lyonene não se lembrava com muita claridade de todos os acontecimentos dessa noite. Pareceu-lhe que de repente estavam nus na cama. Lembrou-se que lutou contra Ranulf e que este a deixou ganhar. Ao final, ficou satisfeita quando pôde percorrer avidamente a boca por todo seu corpo. Quando ele tentou aproximá-la, ela o rechaçou até que não esteve pronta para ele.

Ela gemia e ria, porque sabia que tinha poder sobre ele, porque sabia que era a única que tinha ganhado do Leão Negro. Passou suas mãos por todo seu corpo, utilizando as unhas e explorando cada centímetro dele.

Quase com violência, ele a deitou a seu lado. Fizeram amor de maneira incontrolada, turbulenta, com ondas de uma furiosa tormenta que rompiam, relâmpagos que causavam incêndios, enquanto ela passava suas unhas pelas costas e pelo interior das coxas.

A tormenta terminou com a mesma violência com a que tinha começado. Separaram-se sem falar, sem tocar-se, satisfeitos, e dormiram imediatamente.

 

 

 

 


Capítulo 11

À manhã seguinte Lyonene tratou de aliviar sua dor de cabeça, mas as brincadeiras de Ranulf não ajudavam. Olhava para o outro lado quando este a provocava por seus atos da noite anterior. Sentia que o estômago dava voltas quando Ranulf a tirou da cama e a segurou firmemente contra ele.

— Eduardo gosta muito destes truques. Deu-me vinho branco para diluí-lo no tinto. E devo agradecer, porque os resultados foram... — Lhe mordeu o lóbulo da orelha. — Não há um centímetro de pele em minhas costas. Como explicarei estas feridas a meu pajem?

Lyonene podia notar o sangue quente que subia a seu rosto e evitou olhar esses olhos zombadores.

— Mmm, minha leoa. — Ele enterrou seu rosto em seu pescoço. — Me arrependo do tempo que perdemos. Sei que não se encontra bem, mas está muito doente para começar a viagem de volta a Malvoisin?

Apesar de sua dor de cabeça e de estômago, conseguiu sorrir timidamente e sussurrou:

— Sim, estou pronta para voltar para casa.

Era tarde do dia antes que pudessem iniciar a viagem. As roupas, a comida, as armas e armaduras, as tendas, devia colocar-se tudo nas carroças, Maude e as outras duas mulheres de Malvoisin se despediram. Lyonene lamentava ter que deixar Berengaria, mas ambas intercambiaram promessas de visitas futuras.

Brent olhou sua mãe com tristeza, mas todo sinal de pesar desapareceu quando Ranulf apareceu com um robusto pônei negro no pátio e entregou as rédeas a seu novo pajem. Henry de Lacy sorriu e acusou Ranulf de estar estragando o menino, mas Ranulf afirmou que tratava a todos seus homens com honra, como mereciam. Lyonene escondeu seu sorriso ao ver o solene rosto desse menino de seis anos.

Com um rápido olhar a Guarda Negra, viu que Corbet e Sainneville estavam em pior estado que Lyonene. Ranulf deu umas fortes palmadas nas costas dos dois homens e lhes perguntou se não acreditavam que fazia um dia esplêndido. Piscou o olho para Lyonene, que não podia entender que graça tinha essa brincadeira já que seu próprio estômago se negava a ficar quieto.

A viagem de volta a Malvoisin transcorreu lentamente demoraram uma semana inteira. Não pernoitaram em nenhum castelo e preferiram montar suas tendas e passar as noites protegidos somente pelo fino tecido que os separavam do ar quente da primavera. Passearam frequentemente agarrados pela mão entre as árvores, rindo, beijando-se e apreciando-se.

Do momento em que cruzaram com o navio para ilha de Malvoisin, Lyonene sentiu uma forte excitação. À primeira visão das bandeirolas, ela e Ranulf intercambiaram olhares e sorrisos secretos, apertaram o passo com seus cavalos. Lyonene se inclinou para tocar as mãos que lhe eram oferecidas.

Tão somente houve um ponto negro em sua feliz volta para casa: a visão de um cavaleiro que os observava, meio escondido nas paredes dos estábulos. Ela se lembrou de tê-lo visto uma vez antes, durante uma guarda. O cavaleiro lhe dedicou um sorriso malicioso e ela se virou imediatamente.

Ranulf desceu Lyonene de seu cavalo, mantendo as mãos na diminuta cintura de Lyonene. Levantou-a no alto um momento e, olhando-se nos olhos, sorriram-se.

— Milady, retornou! Quase morro de medo por estar tão longe. — Lucy caminhou como um pato para sua ama.

— Suas preocupações não parecem ter afetado o seu apetite. — Sussurrou Ranulf, ao ver que Lucy tinha ganhado peso.

— E toda esta bagagem! Parece que alguém a ajudou em sua malvada conspiração. — Acrescentou Lucy apontando com a cabeça a serva, Kate, que sorria.

Lyonene sabia que, apesar das palavras de Lucy, esta nunca seria mesquinha nem com Kate, nem com ninguém. A velha mulher se virou para Ranulf pela primeira vez.

— Parece que ao final recuperou a razão. — Disse entre soluços, vendo a cumplicidade entre eles.

Ranulf não sorriu, mas Lyonene viu uma expressão divertida em seus olhos.

— Se está falando desta leoa, não tive escolha. Passou horas inteiras procurando uma maneira de me seduzir. Os homens têm um limite de resistência.

— Ranulf! — Lyonene o olhou horrorizada.

Lucy os olhou de um e a outro, com o semblante sério.

— Disse-lhe que assim o fizesse. Uma mulher não deveria depender das frequentes mudanças de um homem para obter o que ela quer.

Lyonene não podia falar, de tão envergonhada que estava. Ranulf sorriu com malicia e tomou a mão de Lyonene para aproximá-la dos seus lábios, sempre olhando a Lucy.

— Agora obteve o que queria. Mas não foi fácil para mim, todos os dias e todas as noites. — Ignorou o grito de Lyonene, segurou firmemente sua mão contra ele.

Lucy sorriu zombeteiramente.

— Mas o certo é que parece que seus desejos se alinharam bem com os seus.

Lyonene sacudiu a mão com força e conseguiu livrar-se de Ranulf.

— Não vou permitir que falem de mim como de uma serva de taberna!

Manteve a cabeça erguida e se dirigiu para a porta de Black Hall. Teve que fazer uso de todas suas forças para evitar perder a compostura quando ouviu que Ranulf dizia algo sobre... “a melhor serva de taberna que jamais tive” e justo depois a risadinha de alegria de Lucy.

Brent, que já não podia conter mais sua excitação por estar nesse grande castelo, passou correndo ao lado de Lyonene. Ela estava contente de poder ensinar ao menino a beleza de Malvoisin, e observou de novo a maravilha dos vitrais, tapeçarias e tapetes.

O dia passou ouvindo os informes dos acontecimentos dos quase dois meses que tinham estado fora. William de Bee, assistente, contou-lhes os problemas do castelo de Gthen, em Dower para Lyonene. Ao que parecia, um vizinho pretendia que uma grande parcela das terras lhe pertencia. Ranulf enviou William e a seis cavaleiros de suas tropas para tratar o assunto.

Para Lyonene, os dias se alargavam e passavam em uma efusiva felicidade. Ela e Basset, o jardineiro, trabalhavam para encherem o Jardim da Rainha com rosas, lírios, malmequeres, papoula narcisistas e muitas outras ervas. Cerejeiras, macieiras e pêssegos cobriam os muros. Nas noites cálidas, ela e Ranulf se sentavam junto à fonte e conversavam ou cantavam.

Ranulf passou quase duas semanas ocupando-se de seus outros feudos. Quando voltou, o encontro dos dois esposos foram momentos cheios de felicidades. Passavam muitas horas na sala de repouso, bebendo da mesma taça e contando histórias, o que tinha ocorrido enquanto tinham estado separados.

No fim de julho, estavam um dia sentados na sala de repouso enquanto Brent cochilava sobre um tapete, aconchegado junto ao cachorrinho que Ranulf lhe tinha presenteado, quando um servo entrou com a notícia de que havia um incêndio no povoado. Ranulf se dirigiu para ali imediatamente, com Brent o seguindo muito de perto.

Já era tarde quando a Guarda Negra voltou com seus corpos enegrecidos pela fumaça.

— Não pudemos salvar as casas, mas todos vivem, embora haja alguns com queimaduras. Poderia cuidar deles? — Perguntou Ranulf com voz cansada, enquanto os homens se dirigiam para o rio para lavar-se.

A luz do dia viu um lorde e sua senhora não tinham podido dormir por toda a noite. Subiram as escadas agarrados de braços dados e com os olhos virtualmente fechados.

— Aqui está. — Lucy deu a Lyonene uma cesta que ela recolheu com um movimento lento.

— Ninguém vai deixar você dormir aqui. Logo todo o povo do castelo estará acordado, William terá um problema que necessitará uma solução urgente, Basset necessitará a ajuda de sua senhora... Devem partir. Preparei-lhes comida e esse seu cavalo malvado está selado, assim partam. Não lhes quero ver até que caia a noite.

Encolhendo-se os ombros, Ranulf estremeceu de cansaço. Passou a mão pelas costas de Lyonene e lhe beliscou o traseiro, sorrindo com malicia quando ela deu um salto.

— Lucy, me roubou o coração. Estou tão contente que nem sequer me incomodarei em defender o ultraje ao Tighe. Vamos leoa, conheço uma clareira que você gostará.

Agarrou-a pela mão e puxou-a para a porta. Lyonene só teve um instante para lançar um sorriso de agradecimento a Lucy.

A clareira provou ser mais bonita do que Ranulf tinha prometido. Estavam a salvo de olhares indiscretos e o terreno era suave, coberto de musgo e pequenas flores rosa.

Lyonene só vestia sua túnica de linho e Ranulf a tanga. Ele se apoiou em uma árvore e Lyonene aconchegou suas costas contra o peito de Ranulf, cujos braços a rodeavam.

— Já não é infeliz por haver se casado comigo? — Perguntou ela.

— Nunca fui infeliz.

Ela sorriu e se aproximou mais dele, passando uma mão por sua coxa.

— Está contente com o Brent?

Ranulf, levantando uma sobrancelha, virou-a para ela para que esta o olhasse.

— A que vem tanta pergunta? Há algo que a desgoste? — Ela apoiou-se nele.

— Não. Sou feliz. Mas queria saber como se sentia com respeito a mim e em relação aos filhos.

Ranulf soprou.

— Você é uma carga pesada, mas os homens devem acostumar-se a suas esposas. Por isso e com relação aos filhos, pelo menos ao Brent, a cada dia eu gosto mais do menino. O irmão Jonathan disse que é muito inteligente e que já sabe escrever seu nome. Corbet o esteve ensinando a...

Deteve-se de repente e voltou a virá-la para que o olhasse, com o cenho franzido.

— Por que me faz estas perguntas?

Lyonene colocou a mão em seu peito e começou a rir.

— Você me machucou! — Ele a soltou tão rapidamente que quase caiu para trás. — Ranulf, não sou sua inimiga para que me olhe com essa cara. Como resposta, lhe direi que tenho curiosidade. — Lyonene sorriu secretamente e sentiu que Ranulf se tranquilizava. — O que acreditava que queria dizer, milorde?

Ranulf inspirou profundamente e logo suspirou, totalmente relaxado.

— Você me assustou, é tudo. Pensei, por um momento, que você queria dizer que levava uma criança.

— E se essas fossem as minhas palavras?

Ele a apertou novamente e depois relaxou.

— Me obrigaria a suportar esta notícia com a coragem que cabe a um cavaleiro e a um conde.

Lyonene estava contente de que não visse a expressão de seu rosto.

— E de que coragem está falando? Não vejo grande façanha para um homem criar um bebê.

— Não se trata de criá-la, mas sim da responsabilidade eterna. Um filho é uma empreitada muito séria.

— E você suportaria a notícia com a gravidade que cabe à ocasião?

Se ele pudesse ter visto seus olhos, não teria caído em sua armadilha tão facilmente.

— Sem dúvida nenhuma. Depois de tudo, estou contente de que não esteja grávida, pois não tive tempo de pensar nos deveres que correspondem a um... pai.

Lyonene percebeu encolher seu coração.

— E o que me diz de sua filha? — Perguntou-lhe. Ranulf ficou calado por um momento.

— Então era jovem e... — Fez uma pausa. — Não falemos mais disto.

Lyonene se virou para ele.

— Mas meu esposo, devemos falar disto, pois no Natal lhe darei o mais especial dos presentes.

Ranulf sorriu.

— E dê que pode tratar-se? Não há nada que não tenha.

Lyonene sacudiu a cabeça.

— Possivelmente pedirei ao irmão Jonathan que lhe dote de um novo cérebro, não poderia ter menos substância do que este que usa agora.

Ranulf franziu o cenho e ficou completamente pálido e com os olhos totalmente arregalados.

Ela olhou para as mãos.

— Por favor, não me diga que está aborrecido. Acredito que não poderia suportá-lo.

Sentaram-se em silencio um tempo, que pareceu horas, e então Ranulf levantou seu queixo com as pontas dos dedos. Poderia ter jurado que essa mão masculina e forte, a mão do Leão Negro, o campeão do rei, tremia. Seus olhos tinham uma estranha expressão.

— Isso é verdade? Leva a meu filho no ventre?

Ela assentiu, não muito segura do que via em seu rosto. Ranulf deixou cair à mão, levantou-se como um raio, e, com as pernas separadas e as mãos nos quadris, levou a cabeça para trás e lançou o grito de guerra mais forte, terrível e aterrorizante que jamais se ouviu. Lyonene tampou os ouvidos para proteger-se desse alarido espantoso que fazia tremer todo seu corpo.

O bramido seguiu e se propagou até muito longe, e aqueles que o ouviram também se estremeceram desse som, que jamais se escutou fora do campo de batalha.

Lyonene permanecia sentada, quieta com suas mãos nos ouvidos quando Ranulf se voltou para olhá-la. Levantou-a para esquadrinhar seu rosto e lhe deu um beijo forte na boca.

— Com isto posso entender que a notícia não o desgosta?

Agarrou-a nos braços.

— Nenhum homem jamais foi tão feliz.

— Já não pensa nas responsabilidades e nas obrigações? —Brincou Lyonene.

— Terminou sua diversão de zombar de mim. Primeiro eu gostaria de um filho e depois um monte de filhas. Necessitarei a um rapaz que me ajude a proteger as minhas bonitas filhas. E nunca permitirei que se casem, sempre ficarão comigo para trazerem minhas botas e me servirem vinho. — Fez uma pausa. — Tenho certeza de que Eduardo se desapontará um pouco com isso.

— O que tem que ver o rei com nosso filho?

— Se nascer no Natal, então significa que foi concebido na Mesa Redonda. — A olhou com ironia. — Meu pobre cérebro sempre foi bom em aritmética e não em adivinhações de mulher. Eduardo dirá que foi o vinho branco que me deu para misturar com o tinto. Certeza que todo mundo estará de acordo, pois não tinha um aspecto muito saudável quando a transportei do salão.

— Não me transportou!

— Claro que o fiz. Aclamaram-me e me sugeriram o que era que eu devia fazer depois, mas temo que você superou todas as expectativas de qualquer homem. Sim, tenho certeza de que nessa noite fiz meu filho. — Ranulf começou a rir quando Lyonene lhe deu um murro no peito. — O que dirá nosso filho de uma mãe que bate em seu pai?

— Certamente fará o mesmo que eu, ou terei a sorte de ter em meu ventre a um fanfarrão como você. Os primeiros passos dará como um fantoche e suas primeiras palavras serão pura ostentação.

Ranulf rompeu em risadas e a abraçou.

— Então, têm que me dar filhas, pois do contrário, quem a escutará?

— Tenho certeza de que você, sim, encontrará a alguém.

— Isso é certo, mas todas se desfazem em êxtase e elogios para mim. Nenhuma outra mulher me obriga a fazer tantos esforços para causar boa impressão ou me bate quando vou muito longe.

Lyonene riu com ele e lhe rodeou o pescoço com os braços.

— Vou dar-lhe tudo o que desejar. — Se beijaram com ternura. — Está contente, feliz de verdade?

Ranulf mordiscou sua orelha.

— Você é difícil de convencer. Não há nada que possa dizer para que entenda. Estou ansioso por este primeiro filho. Agora eu gostaria de voltar para o castelo, colocá-la na cama e ir alardear diante meus homens.

— Me solte e não seja tão bobo. Estou bem, e a força de que faço a cada dia flui para este menino.

Deixou-a no chão com cuidado e pensou em suas palavras.

— Não sei... Lucy e Kate lhes cuidarão e evitarão que esbanje essa força que você diz. Vista-se e voltemos. — Abriu os olhos perplexo. — Pode montar?

Lyonene manteve o rosto perfeitamente calmo.

— Não, deveria caminhar até o castelo.

Ranulf estreitou os olhos.

— Não seja descarada, moça. Tenho maneiras de castigá-la que não fará mal à criança.

Lyonene sacudiu o cabelo sobre um ombro.

— E como vai fazê-lo milorde?

Agarrou-a pelo braço e muito seriamente começou a fazer cócegas até que ela gritou. Caíram juntos no chão e Ranulf ignorou suas súplicas de piedade. A túnica ficou presa debaixo do joelho de Ranulf e se rasgou, deixando seus seios a descoberto. Seus cuidados se converteram em desejos de vingança.

Fizeram amor com suavidade e ternura, a celebração para a notícia que os unia, ambos conscientes do que tinham criado uma nova vida para alegria deles. Em estado de êxtase sensual, ficaram adormecidos sobre o campo, rodeados de flores, a água que corria, o zumbido preguiçoso dos insetos e a suave e cálida brisa do verão.

Lyonene se sentou tranquilamente na sala de repouso e começou a costurar um novo tabardo para Ranulf. O ruído da Guarda Negra procedente do grande salão a fez rir, pois as zombarias soavam cada vez mais fortes. A camaradagem entre seu marido e seus homens era uma amizade verdadeira, construída depois de anos de guerra, batalhas, dor e alegria, e podia supor, também de um pequeno número de barris de vinho.

Estava estendida na cama quando Ranulf retornou, despiu-se ruidosamente e se atirou sobre o colchão a seu lado. Aproximou-a dele, como se fora uma boneca de trapo e lhe acariciou o ventre endurecido. Deu um gemido de satisfação e adormeceu, com a cara coberta pelo cabelo de Lyonene.


Ao final de duas semanas, começou a tormenta. Despertaram sob um céu cinza, com relâmpagos a distância e o ar úmido.

Ranulf saiu com seus cavaleiros ao pátio e estudaram esse tempo pouco prometedor.

— Acredito que deveríamos começar a preparamo-nos. — Se virou e viu o rosto preocupado de Lyonene. — Na ilha de Malvoisin sempre há tempestades terríveis e acredito que esta será uma das piores. Meus homens e eu devemos alertar às pessoas do povoado. Veja se tudo dentro das muralhas esteja seguro, não tenho vontade de ver tábuas voando pelos estábulos entre as cavalariças. Designe um menino para que fique com cada cavalo e o acalme. Encontre William e lhe dê minhas ordens.

— Lorde Ranulf, estou aqui, comecei os preparativos. Estão fechando as venezianas com pregos. — Pela voz de William podia se notar que não necessitava de ninguém lhe dando ordens.

Ranulf só assentiu com a cabeça e partiu.

Os sons habituais do castelo se transformaram em um silêncio inquietante. Todos pareciam caminhar nas pontas dos pés e falavam em sussurros. O mestre carpinteiro e o aprendiz carregavam a caixa de ferramentas por toda parte para fixar com pregos as tábuas que apareciam soltas. Como os cavalos notavam que a tempestade estava chegando, começaram a se mostrarem nervosos e assustadiços, e os moços tentavam tranquilizá-los.

Os cavaleiros das tropas cuidaram das pilhas de lenha e do armazenamento de comida na torre de pedra. Levaram para o interior da torre artigos de couro, tecidos e animais. Esvaziaram completamente os pátios e passarelas para evitar que a chuva se misturasse com a sujeira e se convertesse tudo em um esgoto a céu aberto.

As primeiras gotas de chuva caíram pela tarde.

— Lady Lyonene, deve me seguir. Lorde Ranulf me ordenou que não ficasse fora quando a chuva começasse a cair.

Kate, que tomava muito a sério suas responsabilidades como donzela de Lyonene, quase puxou forte sua ama para a segurança da torre de pedra. Dentro da torre estava tudo escuro, as janelas completamente fechadas.

— Hodder, por favor procure que o fogo esteja aceso na sala de repouso, e levem toalhas e roupas para lorde Ranulf e Brent. Estarão muito molhados quando retornarem. Procure que Dawkin tenha comida e vinho quente.

— Sim, milady.

Enquanto Lyonene subia as escadas, a tempestade piorou. O som do trovão retumbou sobre suas cabeças e sentiram o relâmpago em lugar de vê-lo. Pensou em Ranulf, Brent e os cavaleiros da Guarda Negra que estavam fora e estremeceu.

A sala de repouso estava quente e seca, mas cada golpe furioso do vento trazia uma nova preocupação a seu rosto. Era impossível olhar para fora, porque as venezianas estavam fechadas para o exterior, protegendo os preciosos vitrais.

— Não posso trabalhar nisto! — Disse Lyonene deixando de lado a costura. — Por que não voltam? Vá perguntar a alguém se soube algo. — Disse a Kate.

— Milady, acabo de fazê-lo A ilha é grande e eles devem ver a muitas pessoas. Todas as torres de vigia devem estar acesas.

— O que é isso? Por que devem acender uma luz?

— Para avisar aos navios da ilha. Há muitos naufrágios na Ponta de St. Agnes.

— Naufrágios? — Perguntou com calma e voltou a sentar-se.

— Sim. Por isso os homens, os cavaleiros de lorde Ranulf, têm que ir ver se houver sobreviventes.

— Por que ele deve ir? Acaso não há outros homens?

— Oh sim, milady, mas não há homem mais honesto que lorde Ranulf. — Kate viu que Lyonene não entendia o que dizia, assim começou a explicar. — Se trata da lei que diz que qualquer um que encontre um navio sem sobreviventes pode ficar com seu carregamento. Embora, se só uma única pessoa sobreviva, a essa pessoa pertence todo o carregamento, não aos que o encontram.

— Ainda não vejo em que isto afeta ao meu marido.

— Muito frequentemente, os que encontram o navio matam aos sobreviventes em lugar de abandonar o botim. Lorde Ranulf vai comprovar que ninguém cometa um assassinato.

— Oh! — Se inclinou para trás e meditou nas palavras de Kate. — Mas não é perigoso ir durante uma tempestade socorrer a essas pessoas que estão se afogando?

— Oh sim, é muito... — Kate se deteve quando viu o olhar de sua senhora. — Lorde Ranulf só dá as ordens. Não é perigoso para ele. Há outros homens que sabem utilizar um navio e vão procurar às pessoas. — Mentiu Kate.

Lyonene se sentiu aliviada pelas palavras da moça, mas não o suficiente para continuar costurando.

— Acha que hoje houve um naufrágio?

— Não, teríamos ouvido algo se tivesse ocorrido, apesar da tempestade.

As horas passavam muito lentamente e Lyonene não deixava de dar voltas em frente às janelas, esquecendo-se que estavam fechadas. Ouviu ruídos e correu para as escadas para encontrar-se com uma absoluta escuridão.

Já era muito tarde quando, desta vez sim, ouviu o inconfundível som de portas se abrindo e de pessoas falando. Seus pés mal roçavam os degraus enquanto se precipitava para baixo. Correu para Ranulf, sem se importar com suas roupas molhadas. Ele a agarrou em seus braços, dando-se conta dos fortes batimentos do coração de Lyonene.

— Bom, estou aqui quase afogado e ainda me quer molhar mais. — Beijou suas pálpebras cobertas de lágrimas. — Deixe que me aproxime do fogo, pois o frio e a umidade impregnaram em meus ossos.

— E Brent? Onde está? — Perguntou.

— Corbet o levou. Suas mulheres se ocuparão dele.

Ela não pôde evitar sentir uma pontada de ciúmes. Ranulf se deu conta em seguida.

— Não têm suficiente comigo? Deixa que fique aqui congelado e que me converta em gelo? Deveria ter seguido meu pajem?

Lyonene sorriu e o puxou para as escadas, onde pediu que Kate se retirasse. Rapidamente, ajudou Ranulf a tirar as roupas ensopadas e o esfregou com toalhas secas.

Hodder trouxe roupa limpa, sandálias forradas de peles, vinho quente e uma fonte com sopa quente e frango assado. Uma vez que se aqueceu, Ranulf atacou a comida e a bebida.

— É uma das piores tempestades que já vi. — Disse entre bocados de comida. — O vento levantou um cão e o transportou a metros de distância. Brent se agarrava a sua sela com ambas as mãos. Hugo o colocou na frente dele e guiou o pônei. A chuva caía tão forte que quase não se podia ver. Prepararam bem o castelo?

Lyonene esfregou suas panturrilhas com a toalha.

— Sim, as venezianas resistiram bem. Houve alguma notícia sobre algum navio?

Ranulf fez uma pausa e com uma coxa de frango na mão continuou.

— Não. Acendemos fogueiras em todas as torres e enviamos homens à Ponta de St. Agnes. Se virem um navio cavalgaram para aqui imediatamente.

— E deve você ir? Não pode enviar a alguém para que dê as ordens?

Levantou uma sobrancelha.

— Não, ninguém mais pode... dar as ordens.

Enquanto falavam, Herne entrou no quarto.

— Há um naufrágio, e parece que é um importante. O chefe da guarda está se vestindo.

Ranulf se levantou bruscamente e caminhou com grandes passadas em seu dormitório. Lyonene o seguiu e ficou observando-o em silêncio enquanto tirava a roupa da arca.

— Não pode deixar isto para seus cavaleiros?

Ele se virou para ela com um rosto tão violento como a tempestade que havia lá fora.

— Não, não posso. Não me peça nunca mais isso. — Sua voz era baixa e mortal. Ele vestiu calças grossas de lã, depois a camisa de linho. — Venha aqui, — disse finalmente — devo ir e não quero que você se atormente.

Ela ficou quieta diante dele, em silêncio.

— Onde está minha leoa? — Perguntou. — Dê-me meu pesado manto de lã. Acaso não vale todo o ouro que gasto em você, ou a comida que lhe dou?

Então Lyonene levantou a cabeça.

— Possivelmente a chuva possa convertê-lo em um cavaleiro cortês?

Quando terminou de vestir-se, estreitou-a com tanta força que quase lhe esmaga as costelas.

— Se quer ajudar, vá à capela e reze. Não quero lutar contra o mar sem ajuda. — Enquanto corria escada abaixo, ele gritou de volta para ela. — E peça que recolham a água do chão. Não quero que minha casa se molhe por causa da tempestade.

Lyonene ouviu vozes e logo a porta que se fechava, de repente ficou quieta como o silêncio que enchia o enorme vazio, a chuva que arremetia contra o teto, o vento que ameaçava inclusive às pesadas pedras da casa, quando se deu conta de suas palavras “de lutar contra o mar...” O que queria dizer era que ia se unir aos homens nos barcos.

Sua mente trabalhava com rapidez. É obvio! De que outra forma ele poderia saber se havia sobreviventes? A menos que ele estivesse lá, os homens nos barcos poderiam facilmente remover qualquer vestígio de pessoas encontradas vivas. Ninguém jamais saberia.

Correu para seu dormitório e revolveu todos os baús para procurar as lãs que precisava. Em poucos segundos, estava vestida e envolta com roupas muito grossas.

Só tinha um cavalo no estábulo do pátio interior, um garanhão negro indisciplinado, que em condições normais, teria temido montar. Disse-lhe umas palavras tranquilizadoras, selou-o e o elegante animal voltou os olhos para ela, mas não a mordeu, nem lhe deu um coice.

— Tem que correr por mim esta noite. Temos que esquecer os preconceitos que temos um pelo outro, já que Ranulf nos necessita. Devemos detê-lo antes que leve a cabo seus planos. — Conduziu o grande cavalo para fora dos estábulos e subiu na sela de montar. O animal protestou um pouco, mas ela deu um puxão às rédeas e ele se acalmou. — Não temos tempo para brincar, vamos.

O garanhão correu por ela, entre a cortante chuva e vento, que deixou feridas na amazona e no cavalo convertidos em um, já que tinham o mesmo propósito.

Havia muitos cavalos e homens que olhavam para a Ponta de St. Agnes. Lyonene sabia que se a viam, algum cavaleiro da Guarda Negra a escoltaria até o castelo. Deixou o cavalo perto de umas rochas, sem atá-lo, já que sabia que estava adestrado para ficar quieto. Ninguém se precaveu da forma escura que caminhava ao longo da costa, a um lado do precipício, até chegar à praia.

Quando a luz de um relâmpago lhe mostrou os botes, viu que era muito tarde. Três deles já tinham entrado nas águas turbulentas, e a figura de Ranulf era facilmente distinguível no barco mais distante.

Ajoelhou-se no pé do escarpado e começou a rezar com mais força da que acreditou ser capaz. A tempestade continuou ensopando-a, açoitando-a, arrancando suas roupas, mas ela não se dava conta. O único que fazia era rezar, olhando para o mar.

Passaram horas até que viu as primeiras luzes dos botes que retornavam. Então se precipitou para a praia, fazendo caso omisso dos homens que corriam para ela e da água que a salpicava. Alguém a agarrou pelos ombros, mas inquieta não o olhou, pois sua única preocupação eram os botes que retornavam.

Viu imediatamente que Ranulf não estava aí. Começou a entrar no mar, mas algo ao redor de sua cintura a impedia. Os botes foram aproximando-se. Ela não podia mover-se.

— Sinto muito, milady. Seu marido viu entre as águas a cabeça de alguém e mergulhou tentando salvá-lo. Procuramos por todas as partes durante horas, mas não pudemos encontrá-lo. — Gritou um homem desde um dos botes sob a fúria da tormenta.

Braços fortes tentavam segurá-la. Ela afundou o rosto em um ombro molhado e sentiu como lhe acariciavam as costas tratando de consolada.

—Não! — Exclamou ela, fervendo por dentro.

Afastou ao homem que a segurava e quando se virou para o homem do bote, este retrocedeu:

— A mulher se tornou louca! — Estava desfigurada pela raiva.

A Lyonene de doce voz já não estava aí. A voz que rugia através do vento e a chuva não era a de uma mulher.

— Conhecerão o inferno sobre a Terra se não o encontrarem e o trazerem para o castelo e, devolvê-lo a mim, vivo! Não existirá torturas, nem sequer castelo, que possam igualar ao que vou fazer.

Deu um passo para diante e os homens a seu redor deram um passo para trás. Estava possuída, por algo, contra o que não tinham vontades de lutar.

— Ouviram-me? Não voltem sem ele.

Nenhum homem protestou quando voltaram a subir nos botes e começaram de novo a remar vigorosamente, para irem de novo, de volta ao mar mortal.

Não havia mãos que a protegessem agora, quando Lyonene se ajoelhou na água, mas todas as mãos se uniram seguindo o exemplo de sua senhora e começaram a rezar.

Havia pessoas que observavam da colina e a visão da moça ajoelhada entre a areia e as ondas, rodeada por sete Cavaleiros Negros, também ajoelhados, fizeram-lhes esquecer do frio e a umidade e se uniram às preces pelo retorno de seu amado lorde. Ninguém se moveu nem deixou de rezar até que uma luz tênue começou a aparecer e a tempestade diminuiu em sua fúria.

Não houve um só homem nos botes que não fizesse o sinal da cruz ou rezasse ao ver todas essas pessoas que os esperavam.

Uma mão no seu ombro indicou a Lyonene, que os botes tinham voltado, outras mãos a ajudaram a levantar-se. No princípio não o viu, pois tinha a cabeça baixa. Quando descobriu que ele estava ali, ela desabou e afundou seu rosto entre suas mãos. Ao desaparecer a tensão, seus músculos se relaxaram e sentiu a debilidade de seu corpo.

Alguém tinha se ajoelhado a seu lado e a tinha rodeado com o braço. Ajudaram-na a levantar-se e caminhou para um lado do barco. Ali estava Ranulf, concentrado em um vulto comprido e molhado que sustentava sobre seu colo. Quando ele a viu, sobressaltou-se e logo se enfureceu.

Gritou ao homem que havia perto dela:

— Não deveriam haver permitido que ela ficasse aqui.

— Ela salvou sua ingrata vida, assim não fale dela desta maneira.

Ranulf ficou perplexo ao ouvir o tom do homem: nunca ninguém tinha ousado lhe falar assim.

— Falaremos disto mais tarde. Tome, — deu o vulto a Sainneville — é uma moça, então tratem com cuidado.

A chuva tinha diminuído e agora era somente uma garoa. O sol se esforçava em sair. Ranulf saiu do bote com as roupas ensopadas e frias. Surpreendeu-lhe o comportamento de um dos homens do bote diante da presença de Lyonene, parecia ter medo de sua pequena esposa.

— O que fez nestas poucas horas para conseguir que meus homens me repreendam e que estes outros lhes tenham medo? —Perguntou-lhe franzindo o cenho.

— Ranulf... — Seus lábios tremiam e de repente se encontrou em seus braços, com violentos soluços que sacudiam seu corpo.

Ranulf a aproximou dele, abraçando-a, ele mesmo temeroso da ferocidade de sua emoção. Tirou-lhe o capuz e acariciou seu cabelo molhado, alisando-o.

— Venha comigo, meu doce. Estou bem, retornei. Não chore assim. Por favor, deve parar, não posso suportá-lo mais!

Ela tratou de acalmar-se.

— Quando voltaram sem você, não podia suportá-lo, não podia acreditar... Oh, Ranulf, eles teriam deixado você.

Ranulf olhou aos homens que havia a seu redor.

— O que é isto? Teriam deixado que me afogasse?

Corbet riu.

— Sim, nós pensávamos que tinha morrido, mas sua senhora tinha outros planos para você, além de uma fria tumba no mar. Agora está calma, mas não existe tempestade que possa se igualar a sua fúria. Reconheço que me deu tanto medo que gelou meu sangue.

Ranulf franziu o cenho, pois sabia que Corbet estava brincando, mas havia uma parte de verdade em suas palavras. Então sorriu, mostrando seus dentes brancos perfeitos.

— É uma leoa. — Disse com orgulho, e a levou nos braços ao topo da colina.

Deitou-a no chão um momento para ir ver como estava Tighe, que tinha ficado esperando-o, fielmente, sob a tempestade. Lyonene caminhou alguns metros para ir procurar o garanhão negro que a esperava nas rochas.

— Milady!

Ela olhou aturdida como Maularde saltava para ela. Lyonene saltou para trás e evitou o enorme corpo que voava para ela e que caiu a seus pés.

— Lyonene, fique muito quieta.

Lyonene olhou com desconcerto para Ranulf e aos homens que a olhavam fixamente. Ranulf se aproximava lentamente às escondidas. Notou que havia algum perigo, possivelmente algum animal selvagem por perto, então não se moveu. Ficou pasma quando viu que Ranulf dava um salto rápido e agarrou as rédeas do cavalo negro de suas mãos.

Então o cavalo jogou a cabeça para trás, relinchou e começou a dar coices.

— Mas o que está fazendo? Está assustando o pobre animal. — Lyonene tomou as rédeas e acariciou o focinho do cavalo para acalmá-lo e o animal baixou a cabeça para lhe acariciar o ombro.

Olhou de novo para seu marido e sua guarda. Estavam boquiabertos e seus rostos mostravam um profundo assombro. De repente, os oito homens puseram-se a rir. A risada começou lentamente, mas pouco a pouco se converteu em gargalhadas. Primeiro um e logo outro começaram a cair de joelhos, segurando o estômago enquanto riam. Os oito homens caíram no terreno úmido e coberto de musgo.

— Me perdoe, meu lorde, — brincou Sainneville, com os olhos cheios de lágrimas — mas vai assustar o pobre cavalo.

— A cauda do cavalo pesa mais que ela. — Herne se desfazia em lágrimas.

— E a cara que fez o barqueiro! — Novas risadas.

Ranulf era o que gargalhava mais forte.

— É sério? Ela realmente fez isso? Edkins estava aterrorizado!

— Eu também estava! Juro que ela parecia medir seis metros de altura, e a tempestade era silenciosa comparada com sua voz retumbante!

— Minha cotovia? Chamei-a de cotovia diante de Eduardo. Se ele a tivesse visto! — Ofegou Ranulf.

Lyonene sabia que estavam rindo dela. Não tinha feito nada para que rissem assim!

— Não quero afastá-los de seu divertimento, mas vou voltar para casa perto da lareira e do fogo. — Disse Lyonene friamente.

Os homens começaram a acalmarem-se um pouco e a sentarem-se. Então, cada um deles ficou tenso e na expectativa, quando ela colocou o pé no estribo. Quando montou o animal e lhes deu, o que ela esperava que fosse, um olhar repreendedor, zangou-se ao ver que voltavam a deitarem-se no chão e rompiam em risadas mais fortes que antes. Ficou ereta e partiu. Não quis ver nada mais.

— Lyonene! — Ranulf trovejou até que emparelhou Tighe ao lado do cavalo dela.

— Eu o odeio! Você me usa como uma brincadeira para todos os seus homens! Você é detestável!

— Sabe qual é a razão de nossas brincadeiras?

Lyonene não o respondeu, nem o olhou, e açulou o garanhão para que ultrapassasse Tighe. Ranulf ficou a seu lado.

— Sabe que cavalo está montando?

Lyonene franziu o cenho. Seu aborrecimento aumentou porque acreditava que ele seguia brincando.

— O encontrei em um dos estábulos. — Respondeu. — Já tinha visto antes esse cavalo, isso é tudo. Sinto-o se pertence a alguém, mas não havia outro. — Lhe lançou um olhar feroz. — Se houvesse pensando duas vezes antes de salvá-lo, certamente não o tivesse feito.

Ranulf se pôs a rir.

— Mas alguma vez viu se montavam a este cavalo?

— Não, nunca. Tem um passo muito suave e não sei por que alguém deixa que engorde tanto.

— A razão, meu doce, é que Loriage nunca deixou que ninguém o montasse mais que alguns segundos.

— Está brincando! Tem caráter, mas é muito gentil.

Ranulf tomou sua mão e a beijou.

— Como domou o leão, agora doma a esta fera. É o filho de Tighe, e acredito que lhe prometi uma de suas crias, mas o que eu pensava era em uma preciosa égua, não este demônio. Já tinha decidido matá-lo. — Como se o garanhão tivesse ouvido, levantou suas patas dianteiras do chão, mas Lyonene o controlou facilmente.

— Se lhe fizer mal, se o machucar, sua besta horrível, eu mesmo torcerei seu pescoço. — Advertiu furiosa para Ranulf. Lyonene riu quando o cavalo olhou Ranulf de lado.

— Estou perdoado? — Ela lhe deu um ligeiro sorriso, ainda não tinha certeza se ele merecia o perdão. — Deve compreender que a situação tinha muita graça, quando vimos que agarrava as rédeas do cavalo e conduzia como se fosse um cordeiro, a este animal, que feriu a muitos homens.

Lyonene se inclinou para adiante e acariciou o pescoço aveludado do cavalo.

— Sempre consigo domar a grandes animais negros, Loriage, mostremos a este velho o rápido que podemos galopar.

Ambos chegaram às portas do castelo ao mesmo tempo. Loriage era mais rápido que o pesado frísio, mas a habilidade e o conhecimento do cavalo de Ranulf eram maiores.

Ranulf a ajudou a desmontar.

— Não deve correr tanto porque pode machucar a meu filho. —Avisou Ranulf.

Lyonene não pôde evitar sorrir para Ranulf, contente de ouvir que falava de seu filho. Ele agarrou sua mão.

— Venha e vejamos o que nos trouxe o mar, esqueceu por que me banhei esta manhã? E logo será hora de dormir, — Ranulf a olhou de esguelha — e de outras atividades sob os lençóis.

Lyonene apertou sua mão.

— Estou contente de que esteja aqui e que não esteja... — Seus olhos se nublaram.

— Sentiria minha falta?

— Nunca!

Ele riu olhando para sua casa.

— Sempre está mentindo.

 

 

 

 

 

 

 


Capítulo 12

Tinham esquecido da mulher que Ranulf salvou do mar.

— Milady, a colocamos em um aposento para convidados. Devemos mudá-la para um quarto de servas? — Perguntou Kate quando os encontrou.

Por um momento Lyonene não entendeu do que falava, mas logo se lembrou.

— Tirarei esta roupa molhada e irei vê-la eu mesma.

— Não pode cuidar da mulher. Faz muitas horas que não dorme. Envie-a à Torre da Joia. — Ordenou Ranulf.

— Não se interessa por esta moça que quase lhe custa a vida? —Inquiriu Lyonene.

Ranulf encolheu os ombros.

— Neste momento só me interessa uma coisa. — Lyonene escapou de suas garras.

Ranulf bocejou e se meteu em um lado da cama. Dormiu antes que ela terminasse de trocar sua roupa. Olhou com desejo seu corpo imóvel antes de abandonar o quarto.

A mulher dormia em uma cama grande, Lyonene viu imediatamente que não era uma menina, apesar de seu pequeno corpo. Era discretamente bonita, com o cabelo loiro e as sobrancelhas e as pestanas claras. Debaixo de suas grandes maçãs do rosto se destacavam umas covinhas e seus finos lábios tinham uma cor pálida.

— Agora está dormindo, milady, mas a fiz tomar um pouco de caldo quente. Está muito magra, quase parece uma menina. Não foi o naufrágio o que lhe tirou toda a carne dos ossos, não é certo?

Lyonene se pôs a rir.

— Não, não foi o naufrágio. Está em moda ser magra. Possivelmente esta dama venha de uma terra onde a moda se toma muito a sério. Procure que haja sempre alguém com ela. Agora irei dormir. Diga a William que não façam muito ruído no castelo.

Despiu-se e se meteu na cama junto de Ranulf. Ele se aproximou dela e suspirou enquanto dormia. Satisfeita, ela também adormeceu.

Quando despertaram, os últimos raios de sol se dissipavam, e o calor da cama os fazia sentirem sonolentos e lânguidos. Ao tentar levantar-se, Ranulf a atraiu para ele.

— Hoje já escapou de mim uma vez, ou seja, que não voltará a fazê-lo. Quero recompensá-la porque me salvou de uma morte prematura. — Seus lábios se encontravam no pescoço de Lyonene, saboreando a forma e a textura de sua suave pele.

— Estou contente de que Hugo não o resgatasse, pois ele não poderia aproveitar sua recompensa tanto quanto eu. — Murmurou ela.

Ranulf a sossegou com seus lábios. Uns golpes na porta os interromperam. Ranulf proferiu um insulto em voz alta e voltou a prestar atenção a sua esposa, mas os golpes continuaram.

Ranulf, furioso, saiu disparado da cama, o aviso de Lyonene o fez colocar a tanga antes de abrir a porta. Kate estava em frente à porta e estirava o pescoço procurando a sua ama.

— Não queria lhes incomodar, milorde, mas se trata da mulher que encontraram.

— Que mulher? — Ranulf rugiu à assustada moça. Lyonene colocou um vestido e ficou diante de Ranulf lançando a serva um olhar de reprimenda.

— O que aconteceu com a mulher, Kate? Não se recuperou como acreditava?

— Oh sim, milady. Recuperou-se muito bem. Está sentada em sua cama e exige ver sua senhoria.

— Exige? — Ranulf se adiantou. — Quase morro por tirar esse vulto sem valor do mar e ainda exige mais? Ela deveria dar graças a Deus por ter sido resgatada.

Lyonene tratou de detê-lo, mas ele a afastou a um lado para dirigir-se atropeladamente, com raiva, ao quarto de convidados. Ranulf entrou no aposento enquanto Lyonene ficava atrás dele.

— Mulher, o que quer de mim? — A voz de Ranulf soava tranquila e cheia de sarcasmo.

Lyonene viu como os olhos azuis claro da mulher se abriam ao descobrir um Ranulf quase nu. Sua expressão era estranha, procurava, calculava e agora baixava as pálpebras com astúcia, como um método para aproximar-se do belo homem que tinha diante dela.

— Oh, milorde. — Chorou, forçando uma lágrima. Sua voz era aguda e cantante. — Não sei o que lhes disse a serva. O único que fiz foi perguntar por meu salvador. Devo-lhes minha insignificante vida.

Lyonene viu a surpresa no rosto de Kate e soube em seguida que a náufraga mentia. Ranulf se sentou a seu lado e lhe agarrou a mão.

— Agora está a salvo e não têm por que chorar.

A mulher se inclinou para Ranulf. Colocou uma mão no seu peito. Seus dedos brincaram com seu espesso pelo enquanto o olhava com olhos bem abertos e um olhar inocente.

— Sempre estarei em dívida com você. — Murmurou. — Não lhes posso pagar, pois todos nossos bens se afundaram com meu pai, o duque de Vernet.

— Seu pai era duque? Então deve ser franco. — Ela assentiu com a cabeça e brotou outra lágrima. — Me sinto muito honrado com sua presença. Pode ficar conosco até que notifiquemos a seus parentes do seu paradeiro.

Ela se inclinou ainda para ele, sua cabeça quase tocava o ombro de Ranulf.

— Ai, milorde, não ficou mais parentes.

Ranulf deu umas palmadas na sua mão.

— Bom, pode ficar em Malvoisin tanto tempo como queira. Mas agora deve descansar. — Se levantou e perguntou. — Como se chama?

— Amicia.

— Eu me chamo Ranulf e esta é minha esposa, lady Lyonene.

A mulher olhou pela primeira vez Lyonene. A surpreendeu a frieza do olhar dela, e seu tímido sorriso a fez sentir calafrios, pois era um sorriso gelado. Lyonene, em troca, dedicou-lhe um brilhante sorriso, mas quando seus olhos se encontraram com os de Amicia, ela lhe lançou uma firme provocação, um desafio.

Quando o casal se encontrava sozinho em seu quarto, começaram a se a vestir.

— Esta mulher se equivocou de lugar. Deveria estar em Londres. É melhor que qualquer atriz que jamais tenha visto.

— Do que estar falando? — perguntou Ranulf.

— De nossa lady Amicia, evidentemente. Se ela for à filha de um duque franco, eu sou a irmã da rainha Leonora. O que mais gostei foi da parte de “minha insignificante vida”. Diga-me, você gostou dessas escassas lágrimas que conseguiu tirar?

Ranulf a agarrou pelo braço e a sentou sobre suas pernas.

— Está com ciúmes!

— Não é certo. Acredito que há pouca substância para está-lo.

— Oh, acredito que eu gosto disto. Diga-me: Acaso você não gostou da maneira como sua mão tocou meu peito?

— Ranulf, falo a sério! Esta mulher não é boa; não é como parece ser. Além disso, mentiu sobre Kate e...

Ranulf a afastou do colo e voltou a se vestir.

— Como pode julgá-la tão duramente por umas poucas palavras? Quando a vi pensei que era uma mulher comum, mas se for a filha de um duque devemos tratá-la com respeito. Agora se ocupe de nosso almoço e não se preocupe com ela. Só é uma mulher. Que dano poderia fazer?

Lyonene se dirigiu à cozinha para ordenar que preparassem a comida. Ranulf não estava sendo razoável! Sabia que não podia fazer nada para convencê-lo de que as palavras dessa mulher não eram mais que um teatro.

Encontrou Dawkin na porta da cozinha.

— Milady, a mulher não está muito contente. — Lhe informou. — Rechaçou a comida duas vezes, uma porque dizia que não estava suficientemente cozida, a outra porque estava muito cozido. Kate quase se alagou na cozinha com tantas lágrimas.

Lyonene tratou de acalmar ao cozinheiro principal:

— Já falarei com ela, mas sobre tudo não diga nada disso a lorde Ranulf.

Lyonene temia a reação de seu marido às queixas sobre Amicia. Se dissessem mais queixas contra ela, possivelmente, ele pediria que ela ficasse em Malvoisin para sempre. Agarrou uma grande bandeja carregada de comida para Ranulf e para ela e levou para sala de repouso. Mas para seu desgosto, Amicia estava sentada junto a lareira, envolta em peles.

— Oh, Lyonene, lady Amicia decidiu que está bem o suficiente para se juntar conosco no jantar. — Disse Ranulf, agarrando a bandeja das mãos de sua esposa.

— Que atenciosa de sua parte... — Seus olhares se encontraram durante um breve instante.

— Nos fale de sua terra. — Pediu Ranulf a Amicia. — Faz anos que não visito a França.

— Ah, então já esteve lá. Soube que era um homem educado no primeiro momento em que o vi. Há algo em seus olhos que o diz.

Ninguém viu nos lábios de Lyonene um gesto de desgosto pela maneira com que Ranulf reagiu às suas açucaradas palavras. Lyonene observou como a mulher franca se inclinava para Ranulf a cada oportunidade e lhe tocava o braço muito frequentemente. Seu único consolo foi que nenhuma vez Ranulf sorriu para a mulher ou riu de seus comentários.

Kate se aproximou e escoltou Amicia a seu quarto.

— Você quase não falou durante o jantar. — Reprovou Ranulf a Lyonene. — Não gosto que seja descortês com nossa convidada.

— Não fui descortês. Tenho certeza de que falei quando tive a oportunidade de dizer uma palavra. — Se defendeu ela.

— Venha aqui. — A fez sentar-se em suas pernas. — Não tenho certeza de que gosto muito deste seu ciúme. Nunca a vi tratar a alguém desta maneira. Nem sequer lady Elisabeth na corte lhe causou tanto aborrecimento.

— Não o entende. Esta Amicia não é como elas. De algum modo, elas se preocupavam com você. Esta mulher só se preocupa com si mesma.

— Como pode falar deste modo de alguém que acaba de conhecer?

Lyonene suspirou. Era inútil continuar. Tinha ouvido sua mãe passar horas tratando de convencer seu pai, sobre o caráter de uma pessoa a que acabava de conhecer, e Melite sempre tinha terminado por desistir. Parecia que estava condenada a esperar que Ranulf chegasse, pouco a pouco, à mesma conclusão que ela. O único que restava, era desejar que fosse o mais rápido possível.


A manhã nasceu brilhante, o sol estava radiante e a terra tratava de repor-se da tempestade.

— Vou passar o dia com meus homens e não retornarei até a hora de jantar. — Disse Ranulf. — Procure que nossa convidada se sinta cômoda.

Lyonene fez uma careta de desgosto, mas faria a tarefa que lhe tinha encomendado.

Quando Amicia chegou à sala de repouso, vestia uma roupa de Lyonene. A condessa se assombrou por seu descaramento, pois nem sequer a tinha pedido emprestado. Os olhos de Amicia a desafiavam a lhe perguntar por que estava usando seus vestidos, mas Lyonene simplesmente riu, pois ficavam grandes e parecia que se penduravam pelo corpo de moça.

— Parece que vamos ter que passar o dia juntas, já que todas as suas roupas se danificaram, quer costurar comigo?

Amicia não se dignou a olhar para Lyonene.

— Não, eu não costuro. Uma dama tem servas que cumpram estes deveres por ela.

— É certo? Então deverei informar disso à rainha Leonora, pois sempre borda suas próprias roupas.

Amicia lançou um rápido olhar de ódio antes de dirigir-se a cadeira junto à janela. Passou um dedo pelos cristais enquanto falava:

— Lorde Ranulf é o Leão Negro, não é assim? — Não esperou uma resposta. — Ouvi falar dele, inclusive, na França. Meu pai, o duque, — se assegurou de que Lyonene ouvisse bem estas palavras — falava muito frequentemente dele. Inclusive uma vez o teve em conta para que fosse meu marido.

Lyonene não afastou os olhos dos buracos da agulha.

— Meu marido é um homem amável e poderia ter aceitado casar-se, pois com seu primeiro matrimônio provou que não tem objeção em casar-se com uma mulher mais velha que ele.

Fez-se um silêncio entre as duas.

— Parece muito segura em seu matrimônio... Lyonene. Chamam-lhe assim, não é certo? Um nome estranho. Suponho que ofereceram um dote enorme a sua senhoria.

— Na realidade, não, mas não acredito que seja um assunto que devamos tratar.

Amicia não fez caso de seu comentário.

— Então, trata-se de um matrimônio por amor.

Lyonene se deteve um momento para pensar.

— Acredito que assim é.

— Acaso lorde Ranulf lhe jura amor eterno a cada momento do dia?

— É minha convidada e lhe devo tratar como tal, mas não falarei da vida privada entre meu marido e eu, com você — deixou a costura na primeira cadeira que encontrou e abandonou a sala. Não ouviu a risada triunfal de Amicia.

Lyonene se dirigiu à torre da Joia para averiguar se havia alguém ferido da tempestade. Amicia a tinha feito duvidar como ninguém tinha feito antes. Claro que Ranulf a amava; o seu foi um matrimônio por amor, embora ele nunca tenha pronunciado essas palavras, tal e como lhe tinha falado muitas vezes do amor que sentia por ele. “Sou estúpida”, disse-se. As palavras não importavam: claro que ele a amava.

Sacudiu a cabeça e se obrigou a concentrar-se em suas tarefas, mas uma pergunta rondava sua cabeça: Seguiria amando-a quando fosse velha e feia?

Essa noite, Amicia voltou a jantar com eles. Não deixava de sorrir e de desculpar-se por todas as moléstias que estava causando e se inclinava para Ranulf cada vez que falava. E ele não parecia se incomodar.

Uma vez a sós em seu quarto, depois do jantar, Ranulf se interessou pela saúde de Lyonene:

— A criança não dá problemas? Está muito calada.

Lyonene se afastou dele.

— Meu bebê não me dá problemas. Às vezes acredito que é o único perfeito em minha vida.

Ele a abraçou e lhe acariciou o cabelo.

— O que lhe preocupa? Arrumarei se puder.

— Fá-lo-ia? Faria que carregasse seu filho sem engordar ou que não envelhecesse com os anos?

Ranulf sorriu, enquanto passava seu polegar pelo ângulo extremo do olho dela.

— Faz bem em se preocupar, já detecto uma ruga em sua pele.

Lyonene o afastou com um empurrão.

— Não estou brincando.

Ranulf franziu o cenho.

— Há algo que te inquieta. Não fará mal em compartilhá-lo comigo. — Os olhos dela se encheram de lágrimas. — Nunca a vi assim. Sempre está de bom humor, inclusive quando não sou uma boa companhia.

Um tênue sorriso surgiu entre as lágrimas de Lyonene.

— Estou muito contente de ouvir o que sempre soube.

— Venha para a cama antes que lhes dê uma surra como merece.

Atraiu-a para ele e com suas mãos afagou seu ventre nu, como se inspecionasse como crescia seu filho dia a dia.

— E o que pensará se minha barriga cresce até aqui? —Sussurrou ela fazendo um gesto com a mão.

— Esperarei que sejam gêmeos. — Murmurou ele enquanto adormecia.

Quando na manhã seguinte Lyonene decidiu que iria a cavalo até o povoado, Amicia disse que já se encontrava bem para cavalgar com ela.

Como o moço do estábulo tinha medo de Loriage, Lyonene o selou.

— E não faz que lhe deem uns açoites? — Perguntou Amicia muito surpreendida.

— Só é um moço. Mais tarde o ensinarei que Loriage é muito tranquilo se lhe fala com suavidade.

— Estou segura que este cavalo é fácil de montar e você inventou esta história de ferocidade. Posso lhe demonstrar isso?

— Claro. — Lyonene recuou para trás.

O garanhão negro nem sequer deixou que a mulher subisse à sela, parou sobre duas patas e lutou enquanto ela tentava pôr um pé no estribo. Muito zangada, Amicia desistiu.

As duas mulheres se detiveram no pátio exterior para falarem com um dos cozinheiros que levava alguns repolhos para que Lyonene desse sua aprovação. No fundo do pátio viu que rondava um homem e que Lyonene fugia dele.

— Quem é? — perguntou Amicia.

Lyonene olhou para o cavaleiro.

— Não recordo seu nome. Sempre está vadiando e suas maneiras são muito insolentes para meu gosto.

— Não acha que é muito bonito?

Não se virou para olhar o homem que sorria.

— Não, não acho. — Lyonene esporeou o garanhão.

Encontrou um grupo de servos reunido com suas esposas. Ela deu atenção aos bebês, aos campos alagados e a produção de ovos de algumas galinhas. Olhou para cima e viu que Amicia falava com o cavaleiro da guarnição do castelo. “Merecem o um ao outro!”

Já tinha passado a hora do jantar quando as duas mulheres voltaram para castelo. Ranulf estava no pátio junto aos cavaleiros da Guarda Negra e apresentou os sete homens a lady Amicia. Lyonene percebeu que Hugo e Maularde desconfiavam de suas palavras melosas, como ela.

Quando Lyonene entrou no salão, o primeiro que viu foi Brent, que tinha estado ausente durante dois longos dias. Não tinha dado conta de quanto tinha sentido falta dele.

— Brent! — Lyonene se ajoelhou e abriu os braços para receber o menino e ele correu para ela, lhe dando um feroz abraço, demostrando seu amor cada vez maior por ela.

De repente, o menino se lembrou de sua condição de pajem e se separou rapidamente, ao tempo que se virava para ver se seu lorde Ranulf tinha visto essa debilidade, mas o Leão Negro estava olhando atento para fora da janela.

Lyonene se levantou e obrigou a si mesmo a não acariciar mais o menino.

— Passou vários dias na grande sala da Guarda Negra? Deve me contar como é, pois nunca entrei ali.

— Não entrou? — Brent estava muito surpreso.

Ranulf interveio na conversa:

— Não, só os homens podem entrar na sala de minha guarda.

— Mas também há mulheres em... — o moço se deteve ao ver a clara piscada de Ranulf. — Oh, não pode entrar as esposas.

Lyonene sorriu inocentemente.

— Então deve me contar tudo a respeito deste lugar. É muito escuro, sujo e está cheio de aranhas?

Brent caminhou com muito orgulho diante dela e depois fez um giro com o ombro.

— Só há algumas, mas quase nem as vi.

Lyonene queria rir com Ranulf, mas viu que ele tinha a mesma expressão que o moço. Passou a mão no ventre e pediu a Deus não trazer para o mundo um terceiro fanfarrão.

Brent se deteve frente à porta da sala de repouso, onde Amicia estava sentada.

— Quem é esta? — Sussurrou a Lyonene, enquanto Ranulf se aproximava para saudar a mulher.

— Lorde Ranulf a tirou do mar. Não lhe contaram isso?

— Oh sim, Martha disse que lorde Ranulf resgatou a uma mulher e que você salvou a ele. É certo? É muito pequena para fazer isto e o Leão Negro não necessita que ninguém o salve.

— Acredito que está equivocado, Brent. — Disse-lhe Ranulf. —Venha e conhecerá lady Amicia e, lhe contarei como minha diminuta esposa dominou a mais de vinte homens e conseguiu que amainasse uma tempestade aplacando sua ira.

Brent quase não fez caso da mulher que lhe apresentaram. Em troca, esperou com impaciência que contassem a história que tinham prometido. Ranulf começou ignorando a pergunta sussurrada de Lyonene.

— Quem é Martha?

Contava muito bem as histórias e inventou um conto muito original com que Lyonene considerava um acontecimento ordinário.

Brent a olhou com admiração.

— Pode fazê-lo de novo? Pode levantar tanto a voz e quebrar as paredes de pedra?

— Ranulf! O menino acredita em suas mentiras. — Se zangou ela.

Tanto Brent como Ranulf se mostraram indignados.

— Um cavaleiro de verdade não mente! — Exclamaram ambos de uma vez.

Lyonene não pôde evitar tornar a rir ao ver o quanto se pareciam.

Amicia, que não tinha feito caso durante todo o momento, terminou com a alegria:

— Não queria atrapalhar um momento de felicidade familiar. Sinto-me um pouco cansada e devo me retirar.

— Desculpe nossas más maneiras, lady Amicia, — respondeu Ranulf — o jantar será servido aqui e eu gostaria que jantasse conosco.

— Não se senta à mesa com os homens de sua guarda?

— Não. Têm suas próprias casas. Acostumei-me assim quando era solteiro e sigo mantendo a mesma tradição.

Os olhos acesos da mulher esquadrinhavam os olhos escuros de Ranulf.

— Então recentemente se casou, milorde?

— Sim, agora faz...

— Seis meses. — Completou Lyonene a frase.

Ranulf se virou e sorriu a Lyonene, que de repente parecia ter um grande interesse nas janelas.

— Oh, Hodder chega com a comida. Jantará conosco?

— Como poderia rejeitar um convite tão amável?

Lyonene viu que Hodder olhava Amicia com ar depreciativo enquanto punha a mesa. Não estava acostumado a estar de acordo com esse homem presunçoso, mas desta vez, sim, o estava. Pela primeira vez, seus olhares se encontraram em um instante de cumplicidade.

Amicia falou durante toda a comida, elogiando Malvoisin, pedindo a Ranulf que lhe contasse suas tribulações durante as cruzadas, elogiando seu grande talento ao estruturar o castelo.

Brent escutava encantado as histórias de Ranulf, mas Lyonene viu que lançava olhadas furtivas a Amicia de vez em quando. Não ajudava em nada ver que um menino de seis anos via como era essa mulher.

Na manhã seguinte, Ranulf irrompeu em seus aposentos.

— Hodder! — Rugiu.

As paredes se estremeceram enquanto ele bramava pelas escadas, subindo os degraus de dois em dois.

— Onde está esse homem? Hodder, se der algum valor a sua vida, virá imediatamente!

— O que ocorre, Ranulf? Por que está tão zangado? — Perguntou Lyonene.

Ele colocou roupas em uma bolsa de couro.

— Me ajude a colocar minha cota de malha e minha armadura, se apresse. — Ordenou a Hodder quando este entrou no quarto. — Não, a de prata não. Vou fazer guerra, não me divertir.

Lyonene sentiu que suas pernas fraquejavam.

— Por que fala de guerra?

— Esse canalha! As ameaças de William não foram suficientes. Agora envia servos para cultivar minhas terras.

— Que terras'? Do que estar falando?

— O castelo de Gethen, seu castelo! Meu lacaio, seu lacaio! Não me importo a quem pertença esse lugar. Por Deus, matarei a esse homem com minhas próprias mãos. Atreve-se a questionar quais são os limites de suas terras.

Lyonene tinha medo de seu marido e se assombrou da calma que demonstrava Hodder. Lyonene observou com o estômago revolto como agarrava a maça, a bola de ferro com pontas perfurantes, o machado de guerra e o martelo de guerra da parede.

— Ranulf, não pode falar com o homem?

— Falar! Já passou a hora de falar. Agora o que tem que preocupar-se é de estar bem abastecido, porque penso sitiá-lo. Veremos quanto tempo aguenta esse modesto barão diante do Leão Negro. Você cuidará do castelo enquanto eu não esteja aqui. Levarei minha guarda e cem cavaleiros da guarnição. Se precisar de mais, enviarei uma mensagem para que me enviassem. Entende quais são suas obrigações?

— Estou bem treinada. — Respondeu ela friamente, ele lançou um olhar rápido, mas seu aborrecimento não diminuiu.

— Brent virá comigo. — Disse Ranulf, ao tempo que se levantava, e vestia-se com roupas de viagem. — Venha aqui e me beije para que me lembre de você por um tempo. Não me dê razões para me preocupar com você. É seu castelo o que vou defender. — Lyonene não disse o que pensava, que não trocaria um dia em sua companhia em troca desse castelo que não conhecia. Mas conteve as lágrimas e os protestos enquanto ele a beijava com cólera e urgência, fazendo do beijo algo violento e doloroso. — Lhe enviarei notícias do que ocorre. — Lhe prometeu e desceu correndo as escadas.

Lyonene tratou de seguir seus passos.

— Espere, espere! — Rogou ela.

Lyonene subiu correndo as escadas e procurou a toda pressa a fita que tinha bordado, e que era uma cópia do cinto com o leão. Alcançou Ranulf quando este já estava no pátio, esperando com seus homens. Rodeou-lhe o pescoço com seus braços, pôs uma mão dentro da abertura de seu tabardo e atou a fita ao cinto de couro. O que fez depois com sua mão fez ofegar Ranulf, mas a empurrou para que se afastasse.

— Não sabe se comportar. — Disse Ranulf, mas seus olhos brilhavam.

— Se lembre de mim. — Sussurrou ela, lutando por conter as lágrimas.

— Não poderia fazer outra coisa. — Foi sua resposta.

Quando os homens saíram cavalgando do pátio central, os soluços de Lyonene se uniram aos de outras quatro mulheres que se despediam dos cavaleiros da Guarda Negra. Olharam-se sem falar: havia camaradagem entre as mulheres solitárias, condenadas a esperar e a rezar por seus homens que partiram para a guerra.

Lyonene e Amicia passaram toda a tarde na sala de repouso, a condessa com sua costura e a outra mulher vadiando.

— Invejo-lhe, lady Lyonene, por sua aparente serenidade e paz. Estou segura de que não poderia estar como você nesta situação.

— E o que quer dizer com isto?

— Acredito que leva o filho de lorde Ranulf no ventre. Suponho que é seu, mas claro, disto ninguém pode ter certeza. — Lyonene lançou um olhar curto e frio a essa mulher mais velha que ela. — Não queria a ofender. É que lorde Ranulf é um homem tão bonito... Tenho certeza de que deve ser muito popular entre as mulheres. Eu o acho um homem verdadeiramente fascinante.

— Não permitirei que fale assim de meu marido.

— Peço que me desculpe. Na realidade, não falo de seu marido. É você quem me assombra. Se eu fosse engordar por um bebê, preocupar-me-ia de que meu marido estivesse a muitos quilômetros de distância, na companhia de homens, que com certeza, se entreterão com mulheres, de classe baixa, claro, mas mulheres afinal de contas.

— Lady Amicia, se for verdade que é uma dama, suas insinuações não são muito sutis e eu não gosto absolutamente. Seria melhor que guardasse seus pensamentos para você.

— Estou de acordo. Tampouco eu gostaria que me recordasse minha difícil situação.

Lyonene se limitou a olhá-la. Amicia sorriu e passou a mão pela tapeçaria.

— A pesar do breve contato com ele, acho que lorde Ranulf é... muito suscetível a menor insinuação de... romance, digamos assim. Contem-me, lady Lyonene, como foi seu noivado. Foi difícil chegar a um acordo com ele, ou o apanharam rapidamente? Interessa-me muito isto saber. Fazia muito tempo que o conhecia quando se comprometeram?

Lyonene ficou olhando à mulher sem poder articular palavra

— Certamente que foi coisa de alguns dias... — Amicia cobriu a boca. — Tenho certeza que lorde Ranulf não é o tipo de homem que se apaixona facilmente, é muito sério para estas coisas. Ah, perdão, é verdade que mencionou que lorde Ranulf ainda não tenha declarado seu amor. Humm... Pergunto-me o que estão preparando na cozinha para comer. Sinto-me um pouco fraca e me retirarei a meu quarto. Que passe um bom dia, milady. Espero não haver dito nada que a tenha ofendido.

Lyonene se sentou aturdida e logo estremeceu. Sabia que Amicia era uma mulher malvada e não devia surpreender-se quando fizesse comentários como estes. E se Ranulf estivesse com uma mulher enquanto se encontravam separados? A maioria dos homens faziam. Era natural e ela devia aceitar a ideia.

— Oh! — Gritou quando cravou a agulha no polegar. Olhou o tabardo novo e seguiu costurando. Cravou-se com a agulha várias vezes. “Não, não, não!” Não aceitaria que outra mulher tocasse a Ranulf.


Fazia quatro dias que ele se fora quando chegou o primeiro mensageiro. Primeiro o viu pela janela da sala de repouso: carregava no cavalo uma bolsa com o leão de Malvoisin bordado. Baixou as escadas correndo, quase tropeçando, por causa de sua rapidez. Não percebeu que Amicia ia atrás dela.

O moço trazia dois envelopes selados com o leão de Warbrooke. Quase os arrancou violentamente de suas mãos.

— É lady Lyonene? — Reteve-lhe a mão para que não abrisse as missivas.

— Sim, sou eu.

— E quem é lady Amicia?

— Eu sou lady Amicia. — Lyonene ficou quieta enquanto o menino agarrava um dos envelopes de suas mãos e o dava à pálida mulher.

— Vá ... vá à cozinha e pegue o que necessitar.

A primeira faísca de felicidade se apagou. Ranulf tinha escrito a Amicia! Observou-a enquanto rompia o selo.

— Está bem. — Murmurou, e logo olhou para Lyonene, sustentando a carta perto de seus seios. — Não se apressa em abrir sua carta?

Lyonene passou a seu lado e se dirigiu a seu quarto. Seu primeiro impulso foi atirar a carta nas chamas, que ainda não tinha lido, mas não pôde.

Sitiamos o castelo e temo que isto vá demorar meses. Enviei homens a Malvoisin para que os carpinteiros construam nossas armas. Ofereci-lhe todas as possibilidades para que se retire, mas as rechaçou. Já estou aborrecido de tudo isto. Tornei-me brando estes últimos meses e agora só quero a comodidade de meu lar.

Brent está bem e sempre falamos de você. A fita nunca me abandona.

Seu amoroso marido e cansado cavaleiro,

Ranulf

Ela se afundou na cama e começou a chorar. A carta era tenra, sem rastro da arrogância que ele sempre fazia alarde. Sabia o que ele devia sentir. Amaldiçoou-se por ter duvidado dele um só instante. Levou tempo, mas por fim tinha banido suas dúvidas e agora voltava a sorrir pela primeira vez depois de vários dias. Entreteve-se para escrever sua resposta a Ranulf, informando de seu bom estado de saúde e o da criança que esperava, contando o que tinha ocorrido no castelo. Só no final acrescentou algo do que sentia:

Kate está preocupada de que me converta em como você era antes, pois não encontro nada que me faça rir.

Sua leoa

Seu estado de ânimo tinha melhorado um pouco, quando se dirigiu à sala de repouso para jantar, com Amicia como única companhia.

— Sua carta trouxe boas notícias? — Perguntou-lhe a maliciosa mulher.

— Sim. Temo que sitiaram o castelo e que Ranulf estará fora durante algum tempo.

— Oh sim, tiveram quatro reuniões com o barão, mas nenhuma teve êxito assim estão fazendo alguns túneis e... deve me desculpar. Tenho certeza de que contou o mesmo.

— Parece que não sei tanto como você. Possivelmente o homem que escreveu a você é um escritor mais prolífico.

— Sim, lorde Ranulf me escreveu uma carta muito longa.

— Ranulf? Do que está falando? — Perguntou Lyonene sem compreender.

— Por que me faz esta pergunta, milady? Acreditei que já sabia. Disse-me que minhas insinuações eram pouco sutis.

— Está tentando me dizer que meu marido envia mensagens para você?

— Não pode culpar a um homem que se sinta atraído por outra mulher.

Lyonene se levantou da cadeira.

— Não acredito em você. Deve me mostrar esta carta.

— Milady Lyonene, vejo que esta deve ser a primeira infidelidade de seu marido, se a posso chamar assim, e não queria agradecer sua hospitalidade lhes mostrando algo que seguramente a angustiará.

— Irei ver meu marido e ele negará suas mentiras.

— Certamente o fará. Você não esperaria que ele se gabasse de suas mulheres para você. Não acreditará que era um monge antes de casar-se, verdade? Então, por que teria que mudar tão só por um juramento diante algumas testemunhas? E cumpriu com esses juramentos, pois parece que têm tudo o que uma mulher pode desejar. Por favor, deve comer. Deve pensar no filho que cresce a cada dia.

Lyonene era incapaz de engolir um bocado da comida. Não podia acreditar nestas palavras! Cavalgaria até onde se encontrava Ranulf e... Acreditaria se ele negasse ter um interesse nesta mulher?

Amicia não deixou de queixar-se durante o jantar da insolência dos servos de Malvoisin, mas Lyonene não ouviu nenhuma só palavra. Estava muito desconsolada para escutar nada mais.

No dia seguinte colocou suas roupas mais velhas e passou horas trabalhando no jardim. Arrancava as ervas daninhas furiosamente.

— Muito bem, milady. — A voz de Amicia sobressaltou Lyonene, que se cortou ao tentar arrancar um cardo muito resistente. Sentou-se sobre seus talões e sacudiu a terra das mãos. — Não sei como suporta a sujeira e o suor da jardinagem. — Prosseguiu a mulher. — Eu acreditava que uma dama... Ah, claro, você só é a filha de um barão, não é assim?

— Não tenho tempo para seus insultos esta manhã. Se tiver algo que me dizer, faça, mas vá direto ao ponto.

— Parece que sempre a desagrado. Eu só saí ao jardim para desfrutar um pouco. Nesse pouco tempo que estou aqui, já tenho bonitas lembranças.

— Milady Lyonene, — Kate a chamou atentamente — devemos entrar para nos proteger do sol. Lucy se preocupa com você e pelo bebê.

Em silêncio, Lyonene a seguiu para a cozinha. Sabia que Amicia não entraria aí.

— Lady Lyonene, se sua mãe soubesse como trabalha durante sua gravidez... — brigou Lucy. Lyonene pensou em sua mãe como um refúgio agradável. Lucy continuou. — E lorde Ranulf se zangaria muito se soubesse que está fazendo mal a sua criança.

Lyonene atirou a taça sobre a mesa.

— Lorde Ranulf! Não deixo de escutar seu nome. Terei esse filho que tanto espera, mas não acredito que possa dar refúgio a sua amante durante muito tempo.

— Do que está falando, minha filha? Lorde Ranulf não tem nenhuma amante. Por que diz isso? Nunca vi a um homem que amasse tanto a sua esposa. Adora-lhe.

— Ah, Lucy! — Se aferrou à mulher de abundantes carnes que sempre tinha estado com ela e começou a chorar sobre seu generoso peito.

— Venha para cima. Deve deitar um momento.

Lyonene se apoiou na mulher e deixou que a despisse e a metesse na cama. Lucy lhe acariciou a testa, muito quente, olhou preocupada suas profundas olheiras.

— Me conte o que a atormenta, minha filha. Lucy lhe escutará.

— Ele não me ama. Nunca me amou.

— Mas como pode dizer isto? Ele nunca a deixa sozinha quando pode ser evitado. Algo de sua carta a pôs triste?

— Há outras mulheres.

— Céu, todos os homens têm outras mulheres. É sua maneira de ser, mas não significa que não a queira. — As lágrima começaram a brotar quando ouviu as palavras de Lucy. — Durma, minha filha, e a dor se aliviará.

Pouco a pouco, os soluços de Lyonene começaram a acalmar-se. Dormiu em um sono agitado e se sentiu ainda pior quando despertou na cama vazia, de um quarto vazio.

Evitou Amicia durante os dias seguintes, comendo em seu quarto e evitando a sala de repouso. Um exílio em sua própria casa.

— Foi-se, milady. — Disse Kate ao entrar no quarto de Lyonene.

— Foi? Quem se foi?

— A mulher, a mulher franca. Chegou um mensageiro esta manhã cedo com uma carta para ela e em poucos minutos pediu que selassem um cavalo e se foi. Levou pouca roupa. Acha que não voltará?

O coração de Lyonene se acelerou um pouco ao pensar que poderia haver-se desfeito dessa odiosa mulher.

— Não sei. Esse mensageiro, que estandarte levava?

— Levava o de Malvoisin, o Leão Negro.

Notou que ficava pálida.

— Viu a carta, Kate? — Sussurrou.

— Sim, milady. Está em cima de sua cama, mas não sei ler.

— Traga-me.

Com as mãos trementes, Lyonene desdobrou o papel.

Venha até mim.

Ranulf

A carta caiu no chão.

— Milady, milady! — Kate correu para lhe trazer uma taça de vinho. — Beba isto!

Lyonene bebeu um pouco do líquido. Tudo era verdade! Cada palavra era verdade! Era a letra de Ranulf e era também seu selo sobre a cera. Só ele levava o selo do conde de Malvoisin e nunca o deixava com ninguém.

Amicia se foi por três dias, três dias de inferno para Lyonene. Tinha gasto todas as lágrimas. Kate tomou conta dela, e ela estava vagamente consciente das pessoas ao seu redor. Lucy tentou ajudar dizendo que nenhum homem valia todo esse alvoroço, e lhe contando que também foi um golpe muito duro para ela, quando seu primeiro marido tomou a outra mulher, mas ela tinha que seguir vivendo.

Chegou outra carta de Ranulf, e a resposta de Lyonene foi seca e breve, onde só fazia um resumo do que tinha se passado no castelo.

— Lady Lyonene, está doente? Nunca a vi tão cansada. — Amicia a saudou na sala depois de sua chegada. — Reconheço que não há nada melhor que uns dias no campo para refrescar-se, embora as tendas sejam um pouco calorosas no verão, não acha?

Lyonene passou rapidamente ao seu lado e saiu da casa.

O moço do estábulo, que já não tinha medo desde que Lyonene tinha passado um momento com ele e Loriage, selou seu cavalo. Uma vez em sua montaria, ela esporeou o animal e cavalgou o mais rápido que pôde, contente de notar o vento e o exercício. Chegou ali antes de dar-se conta que tinha cavalgado para a clareira, o bonito lugar onde tinha contado a Ranulf que iriam ter um filho. Nesse momento tinha sido imensamente feliz, com uma felicidade que agora sabia que já não voltaria. Deitou-se no chão coberto de musgo, com o rosto escondido entre suas mãos.

— Eu te amo tanto, Ranulf, por que você não poderia me amar em troca? — Sussurrou.

Quando voltou esta noite, tinha tomado algumas decisões. Ranulf a tinha escolhido para casar-se, e embora não a quisesse como amante, cumpriria com os deveres que se esperavam de uma esposa.

— Estou contente de que se sinta melhor e possa comer comigo. É uma pena estar grávida com este calor. Espero não me encontrar nunca nesse estado. — Lhe disse Amicia sorrindo.

Lyonene estirou a saia sobre seu ventre.

— Acaso não sabe falar de outra coisa, além de meu marido? —Repôs com aspereza.

— Mas se não mencionei lorde Ranulf! Embora, se estiver interessada, posso lhes contar como vai o sítio...

— Não, não tenho vontade de ouvi-lo.

— Asseguro-lhes que a entendo. Falaremos de outras coisas. Direi-lhe que a cada dia tenho mais carinho a Brent. Há momentos que recorda o Ranulf. É a maneira que tem de caminhar, creio. Diga-me, o que ocorreu a Ranulf para que tenha essa horrível cicatriz que vai do estômago até... ? Perdoe, milady, íamos falar de outra coisa.

— Amicia, já é suficiente. O que faça meu marido não é meu assunto, mas não permitirei que em minha própria casa conte estas histórias sobre suas... suas ações. Se não parar, enviarei-lhe para a sala das tropas.

Amicia estreitou os olhos.

— Não, milady, não acredito que deva fazer isto.

— Não me ameace. Tenho o poder do castelo durante a ausência de meu marido e se quiser posso dar a ordem de que a pendurem, ninguém poderá impedi-lo.

— Suas ameaças não me assustam. Eu não me arriscaria a desatar a ira de Ranulf, e embora ainda não vi sua cólera, posso imaginar que não deve ser agradável. Sugeriria que suportasse minha presença com fortaleza. Ranulf tomará suas próprias decisões quanto ao meu lugar nesta casa.

As duas mulheres se olharam fixamente e nenhuma das duas cedeu até que Hodder chegou para retirar os pratos da mesa.

Exausta, Lyonene caiu pesadamente em sua cama aquela noite. A manhã trouxe um mensageiro com uma carta de Ranulf:

É tarde e não posso dormir. Meu pajem não me consideraria tão homem se soubesse que tenho saudades de uma menina. Noto que está preocupada. Oxalá pudesse estar aí com você.

Não pode me escrever sobre outras coisas, além de William de Bee? Envie-me uma dessas suas malditas rosas pelas qual se preocupa tanto.

Não passa um só momento em que não pense em você.

Ranulf

Aproximou a carta do peito. Como podia escrever estas cartas a ela, depois de pedir a Amicia que fosse ficar com ele?

Acaso Lucy tinha razão e um homem podia amar de verdade a uma mulher e deitar-se com muitas outras?

Esqueceu-se de Amicia durante um momento e correu a escrever sua resposta à carta. Contou-lhe sobre sua solidão, de sua viagem ao prado, mas não mencionou a dor que sentiu ao saber que tinha estado com Amicia. Se ele tivesse insinuado que desejava que sua mulher fosse vê-lo, Lyonene teria saído correndo, descalça se fosse preciso, mas não tinha mencionado nada sobre essa possibilidade e teve muito cuidado em não deixar transparecer seus sentimentos. Enviou-lhe, além disso, uma carta a Brent, lhe contando coisas sobre os cavalos e os falcões.

Quando as cartas estiveram preparadas, pediu a Dawkin que enchesse uma caixa com fruta em conserva e uma vasilha com pepinos japoneses e cebolas em vinagre. Logo saiu ao jardim e pegou umas flores. O mensageiro começou a protestar, mas Lyonene o fez calar com um só olhar. Os caules foram envoltos com tecidos úmidos e empacotados em musgo e logo com várias capas a mais de tecidos úmidos. Solenemente, William de Bee trouxe uma bolsa dura de couro que protegeria esse enorme ramo no lombo do cavalo.

Pregou um casulo de rosa com cera na parte inferior da carta para Ranulf e a selou. Para Brent, Lyonene enviou um cinto de couro selado com o leão de Malvoisin e uma diminuta esmeralda na fivela.

Enquanto o mensageiro saía cavalgando, sentiu-se mais feliz do que tinha estado fazia semanas. Não viu a cara cheia de cólera de Amicia enquanto a observava da janela da sala de repouso. “Tiveste tudo em sua vida, já é hora de compartilhar um pouco. Eu terei o marido rico e o amor dos servos.”

Lyonene sorria quando começou a subir as escadas, pensando na reação de Ranulf ao receber as flores.

— Parece muito contente hoje. Alegro-me de que não esteja doente como ultimamente.

— Sim, obrigada. Sinto-me muito melhor.

Um pequeno objeto oculto na saia de Amicia fez um suave som quando caiu no chão. Lyonene se agachou para recuperá-lo. Dizer que sua alegria desapareceu seria muito suave, pois na mão tinha a fita, a cópia do cinto com o leão que tinha enviado ao castelo do Gethen com o Ranulf.

— De onde pegou isto? — Pôde articular, a garganta seca.

Amicia tratou de agarrar a fita, mas encolheu os ombros quando Lyonene a afastou rapidamente dela.

— Pedi-o e ele me deu. É muito bonito, não acha? — Lyonene se dirigiu a seu quarto sem soltar a fita. Uma vez sozinha, lançou-a com todas suas forças o mais longe possível. “Eu lhe envio flores e você dá meu presente a outra. Diga-me, será tão generoso com nosso filho?”

Não chorou, mas sim se dirigiu à sala de repouso e terminou seu trabalho de costura. Não queria pensar que aquela roupa era para seu marido traidor que lhe enviava falsas palavras doces. Quando Amicia entrou na sala, Lyonene lhe dedicou um doce sorriso e não falaram mais do Ranulf.

 


Capítulo 13

Passaram três longos dias até que Lyonene recebeu a carta mais extensa de Ranulf.

As flores chegaram perfeitamente. Levei sete delas aos meus homens, pois eles parecem tão cansados quanto eu. Dói-me a cabeça esta manhã, pois a noite de ontem passei com Maularde e um barril de vinho. Não sabia que este homem falava tanto. Ama a uma moça que conheceu no torneio de Eduardo e quer casar-se com ela. Quero que vivam em Malvoisin, pois não posso renunciar aos meus homens.

Até mesmo Brent está cansando desta horrível batalha. Sentiu-se muito afetado quando ouviu o que lhe dizia dos falcões. Sempre usa o cinto que lhe mandou. Não quer banhar-se e se passar outra semana assim, não deixarei que entre em minha tenda.

Alguém roubou a fita que tão lindamente você me deu. Fiz com que revolvessem o acampamento, mas não a puderam encontrá-la. Perdoe minha falta de atenção.

Pedi que costurem a rosa que me mandou em minha jaqueta de couro. Não se esqueça de mim.

Seu cavaleiro,

Ranulf

Tinha escrito que tinham roubado sua fita quando na realidade a tinha Amicia. A mulher não podia ter ido ao acampamento sem que ele a tivesse visto. Tampouco era possível que Amicia enviasse suas próprias mensagens ou que tivesse acesso ao selo de Ranulf. Lyonene recordou as histórias sobre a primeira mulher de Ranulf: dizia-se que tratou de suicidar-se, de tão infeliz que era. De que maneira a traiu para que a mulher tratasse de cometer um pecado mortal?

Fazia só seis meses que se casaram, e já era um professor na mentira e no engano. Até onde poderia chegar em três anos? Um homem não ganha o apelido de “gerado pelo diabo” por nada.

Agarrou uma pluma, tinta e papel e se dirigiu à sala de repouso. Não deixaria que soubesse que estava sabendo de seu desonroso comportamento. Deveria ter sido honesto com ela e lhe dizer que já não a desejava, em lugar de enviar bonitas cartas enquanto a enganava.

Amicia estava de pé junto à janela, com uma carta na mão.

— Vai lhe escrever?

Lyonene assentiu

— Vou enviá-la com o mensageiro quando retornar ao acampamento. Possivelmente a possa dar eu mesma. Tenho que preparar algumas coisas.

Amicia saiu rapidamente da sala. Sua carta estava aberta em cima da cadeira e Lyonene não pôde evitar aproximar-se. Não a tocou, não havia necessidade. A última linha era bastante clara:

Eu te amo, minha Amicia.

Ranulf

Quando Amicia voltou, Lyonene se encontrava sentada diante da mesinha. Tinha enrugado a carta que tinha começado a escrever. Baixou as escadas que conduziam ao pátio, onde aguardava o mensageiro. Amicia se adiantou para o pátio exterior, supostamente para ir procurar um cavalo para a viagem.

— Têm alguma mensagem que quer que entregue?

— Não. Mas diga ao meu marido que seu filho está bem e seu castelo está bem cuidado.

O menino parecia duvidar, mas se virou e dirigiu seu cavalo para o portão por onde tinha saído Amicia.

Desta vez a mulher só passou uma noite fora. Quando voltou, mostrou orgulhosa a Lyonene um bonito frasco de cristal de rocha e ouro que continha uma pequena quantidade de perfume: a mulher franca cheirava a essa fragrância.

— É um presente muito caro e, conforme se diz, bem merecido. Juro-lhe que nunca tinha passado uma noite como esta. Não é de estranhar que já esteja prenha com um marido como ele.

— Fora! Não suportarei mais! Que passa as noites com a mais baixa das mulheres, é um fato, mas que depois você venha alardear e mostrar os bens obtidos com suas artimanhas é o cumulo. Não suportarei mais seus insultos. William! Ensine a esta mulher seu novo quarto. Pode ficar no castelo, mas fora no pátio interior. Envie-a a torre da guarnição, pouco me importa!

Apesar de estar acesa pela raiva, pareceu ver no assistente um ligeiro sorriso.

Amicia sorriu indolentemente, sabendo o que ia ocorrer.

— Vai se arrepender disto. Será você quem terá que abandonar esta casa e serei eu quem dará as ordens. — Se desfez do braço de William e desceu as escadas diante dele. Deteve-se diante da porta e, sem voltar-se, começou a rir, com uma risada horrível que encheu a sala, fazendo arrepiar a pele de todo aqueles que a escutou.

Agora que a mulher se foi, voltou quase instantaneamente a suavidade aos aposentos. Os sons habituais voltaram a se escutar e os servos caminhavam mais rápido. Lyonene, incluso, acreditou ver que Hodder sorria. Selou Loriage e saiu disparada para a reservada clareira onde poderia estar sozinha.

Mas dispensando Amicia, não tinha diminuído seus temores. Ainda podia ver a carta de Ranulf que falava de amor, algo que ela desejou durante muito tempo, mas essas palavras tinham sido para outra. Por que se casou com ela? Não era pelo ouro, tinha demonstrado que não era por amor e não tinha compartilhado a cama com ela até pouco, qual era então a razão?

Um ruído a afastou de seus pensamentos, um som familiar de metal contra metal. Virou-se e o viu diante dela, com um sorriso no rosto.

Seu coração começou a pulsar com força. Ranulf estava diante dela, o homem que tinha amado tão intensamente, mas também que oferecia seu amor a uma mulher que fazia pouco tempo que conhecia, e não a ela.

— O sítio... terminou? — Sussurrou com voz afogada. Ele se sentou pesadamente ao lado dela.

— Por que não me respondeu a carta? — Sua voz soava quase morta.

— Fez toda esta viagem para me perguntar isto? Não poderia ter enviado outro mensageiro?

— Não me faça mais perguntas e responda à minha.

Lyonene olhou as mãos.

— Não acreditava que se interessava por minha resposta. Estou bem, como pode ver, e estou grávida de seu filho. William se encarrega do castelo à perfeição.

— Lyonene, o que tem acontecido para que fique assim? Estou cansado. Cavalguei uma noite e um dia sem parar para vê-la e agora me dá um frio recebimento.

— Não sou eu quem está fria.

Ranulf tirou o elmo da cabeça e se inclinou para molhar o rosto e o cabelo no riacho.

— Não entendo nada do que está ocorrendo. Acaso minhas cartas a desgostaram? Não estou acostumado a escrever missivas assim. Geoffrey disse que não sou hábil com a pluma, embora meus professores nunca se queixassem durante meus estudos. — Se apoiou em uma árvore, com a pesada armadura. — Não queria lhe ofender, mas parece que o tenho feito.

Lyonene não podia conter as lágrimas. Em geral, Ranulf estava sempre tão seguro de si mesmo... Lembrou-se da última vez que tinham estado juntos na clareira, de como tinha vangloriado, de como ficou contente quando ouviu a notícia do filho que viria.

— A criança te incomoda? — Lyonene manteve a cabeça baixa para que Ranulf não pudesse ver suas lágrimas e sacudiu a cabeça negativamente. — Acaso meu negrume se tornou mais horrendo durante o tempo que estive fora, tanto que já não pode me suportar mais? — Lyonene sacudiu a cabeça de novo. — Pelo que há de mais sagrado, Lyonene, olhe para mim! — Gritou Ranulf exasperado. — Deixei uma esposa que ria e que me beijava e quando volto ao fim de um mês, ela me odeia.

As lágrimas nublavam sua visão e afogavam suas palavras.

— Não o odeio.

— Então, por que primeiro me envia flores e alguns dias mais tarde só me manda uma mensagem através de um moço nervoso?

— Só veio porque fiz isto? Por essas poucas palavras?

A dor que ela viu nos olhos de Ranulf oprimiu seu coração como se um cinto metálico o apertasse.

— Não, — se justificou Ranulf — só era uma desculpa. Vim porque pensava que minha leoa estaria me esperando com beijos e com os braços abertos. Estou farto de palavras grosseiras e de batalhas.

Estendeu a mão, com a palma para cima e, antes que ela se desse conta, já estava em seus braços, com a cota de malha de aço machucando sua suave pele.

Lyonene começou a chorar apoiada nele. As lágrimas escorregavam pelo pescoço de Ranulf. Este provocou:

— Vai oxidar minha cota de malha. Se tivesse sabido que só obteria lágrimas, em lugar de vir, teria ficado com Maularde. Não pode me conceder um só beijo?

Lyonene colocou uma mão de cada lado de seu rosto e o beijou com uma violência que não sabia que possuía. Ele a aproximou ainda mais dele, beijando-a com mais força ainda, com os lábios esmagados um contra o outro. Seus desejos acumulados se soltaram em uma paixão de fogo líquido.

Ele se afastou dela.

— É verdade que se lembra de mim?

— Não, não o conheço. É uma besta negra que veio aqui para me fazer amor.

Ranulf passou seus lábios pelo pescoço de Lyonene.

— Você me tomaria como estou, porque temo que até mesmo eu vou sufocar com o fedor que tenho.

— Sim, Ranulf, tomaria fosse qual fosse seu aroma ou sua traição.

— Do que está falando?

— Vai perder mais tempo falando? — Lyonene começou a desabotoar o pesado cinto que segurava sua espada.

— Não. Não necessito mais palavras.

Um mês de separação tinha aumentado o desejo de um pelo outro até o ardor da febre. Sentiam-se frenéticos e torpes, enquanto arrancavam as roupas do corpo. Ranulf, vestido de guerra, era mais lento, já que a cota de malha era difícil de tirar. Quando Lyonene ficou nua diante ele, com a luz do sol filtrada, mostrando sua pele dourada, ele se deteve e ela correu para ele. Sentiu a fria cota de malha de ferro em sua pele, beliscando-a e mordiscando-a, mas a suave dor só fazia aumentar seu desejo para ele.

— Não, não remova, venha para mim.

Puxou-o para ela sobre o chão de veludo, saboreando o contraste da masculinidade morna, suave e úmida pele de Ranulf contra suas pernas e, sentindo a dureza maciça e fria do aço contra seus suaves seios.

Juntaram-se quase violentamente, Lyonene gritando no princípio de doloroso prazer. Seus quadris se levantaram para satisfazer as necessidades de Ranulf e ambos se elevaram para novas alturas de fúria, de mares revolvidos pela tempestade, de uma explosão de luzes de plenitude.

Repousaram juntos, estreitando-se, com seus corações pulsando com força, saciados nesses momentos, depois de fazerem amor. Ranulf se voltou para ela e a segurou com uma perna que pôs sobre seus quadris. Acariciou-lhe a bochecha, olhando-a com olhos tenros e felizes.

— Acredito que me agrada mais do que recordava.

Lyonene sorriu.

— Obrigada, milorde. Alegra-me poder agradar a um homem tão poderoso como o Leão Negro.

— Dá-me muito crédito. Temo que o Leão Negro não tem muito poder nestes momentos.

— Está equivocado, pois seu fedor me mantém aqui embaixo.

Ranulf riu.

— Uma moça que quer que a tome usando todo este ferro não é uma dama muito delicada.

Lyonene rodeou seu pescoço com os braços e o atraiu para ela em um feroz abraço.

— Não, acredito que não sou uma dama quando estou perto de você. — Lyonene o afastou e lhe deu um beijo. — Ajudarei que tire esta coisa pesada e depois voltaremos para casa. Possivelmente poderia compartilhar um banho quente com você.

— Uma perspectiva encantadora.

Ela o ajudou a tirar a cota de malha e ele a aproximou para ele.

— Não me disse a causa de sua cólera para mim. E não me diga que não estava encolerizada, porque aprendi a conhecê-la.

— Não, não importa minhas razões. A cólera e as razões terminaram. Agora está comigo, e não há nada que me importe mais.

— Desde que me casei com você me tornei um homem velho em determinadas coisas. — Repôs Ranulf. — Não acredito que seus problemas tenham terminado, e não acabará se não me conta quais são as causas. Sou um marido tão temível para não merece sua confiança?

— Não é sua confiança em mim o que me aflige, a não ser a que eu tenho em você. Não me faça mais perguntas. Agora se foi a aflição e estamos juntos. Não peço nada mais.

Ranulf a beijou na testa, não muito tranquilo com sua resposta, diante da impossibilidade de saber mais. Agarrou-a nos braços e a examinou: seus peitos se incharam um pouco e seu ventre estava mais duro e um pouco mais redondo. Ele passou suas mãos pelo seu corpo.

— Espero merecer sua aprovação e que tenha feito uma boa compra.

Ranulf não fez caso de suas palavras.

— Acreditava que as mulheres ficavam doentes quando estavam grávidas. Não parece que a afete meu filho.

Lyonene encolheu os ombros.

— Acredito que algumas mulheres adoecem. Estou contente de não estar doente. Meu marido me dá suficientes preocupações para acrescentar as do filho.

— Sou um homem com um temperamento muito dócil e nunca lhe dei nenhuma razão para se preocupar.

— Sou eu a que me causo meus próprios problemas, então.

Ranulf franziu o cenho, pois sua conformidade era mais alarmante que sua cólera. Agarrou-a e a aproximou contra seu peito, quase assustado por suas estranhas palavras.

— Escudar-lhe-ei, sejam quais sejam seus problemas. Deseja a outro homem? — Agarrava-a tão forte que Lyonene quase não podia respirar. Lyonene lhe deu um murro com todas suas forças debaixo das costelas.

— Têm um cérebro diminuto e não vou satisfazê-lo com uma resposta. Se vista para que possamos voltar para casa.

Enquanto ele se virava com ares de suficiência, Lyonene não pôde resistir a fazer uma brincadeira.

— Não poderia haver outro homem, pois você levou a todos os homens bonitos quando carregou a guarda.

Ele agarrou seu pulso com tanta força que começaram a brotar lágrimas de dor dos olhos de Lyonene.

— Ranulf, me solte! Só estava brincando. Não quero a outro homem. Soltem-me, bruto!

Ele soltou seu pulso e sorriu um pouco envergonhado.

— Temo que haja brincadeiras nas quais não vejo humor. Já disse que nunca a compartilharei.

Os olhos de Lyonene ardiam intensamente.

— E quanto a você, meu marido, devo compartilhar? — Sua voz soava séria, quase como um sussurro.

Ele pareceu sobressaltado, pois sua pergunta o surpreendia.

— Nunca tinha pensado nisto. Acho que é diferente com um homem do que com uma mulher.

— Acaso meus sentimentos de dor e ciúmes são menos importantes porque você é um homem?

— Não, não posso responder. Nunca tinha considerado isto até agora. Todos os homens vão à guerra e sempre há mulheres. Não acredito que seja o mesmo. — Ranulf falava a sério, suas sobrancelhas se enrugavam enquanto tratava de concentrar-se.

— Todas as mulheres devem esperar enquanto seus maridos estão na guerra e sempre há homens.

— Você se incomodaria que eu tivesse outras mulheres?

— Você acha que poderia suportar saber que houve as mãos de outro homem em mim? Não, não me machuque de novo, eu só uso palavras. Tampouco eu gosto de pensar que outras mulheres o toquem.

Ranulf a atraiu para ele, agarrando-a pela cintura e levantando-a acima de sua cabeça.

— Ouvi dizer que os leões só têm uma companheira, possivelmente, eu seja um leão de verdade. Suas palavras são novas para mim e, na realidade, nunca tinha passado a ideia pela minha cabeça. Inclusive, o rei Eduardo... não, não vou contar intrigas da corte. Vou pensar nesta nova ideia. Mas agora tenho fome. Por que não vamos procurar esse horrível animal que monta e voltemos para casa?

— Loriage é muito bonito! Só está ciumento de que seja dócil unicamente comigo.

— Suas palavras têm algo de verdade. Odeio a todos os homens que estão perto de você, seja um cavalo ou um pássaro. Por que não pode ser como as demais mulheres e montar uma égua pintada?

— Se fosse como as demais mulheres, não me quereria. Sou a única mulher que não lhes tem medo e nem o adora. Você foi muito mimado em sua vida. Pergunto-me como devia ser sua mãe para criar a um homem como você.

— Minha mãe era uma dama, tranquila e amável, não muito distinta da sua. Vi como lady Melite estremecia, mais de uma vez, ao ver seu rebelde comportamento.

— Nunca fui rebelde! — Afirmou Lyonene enquanto Ranulf a ajudava a montar na sela. — Era por sua maneira de me adular. Não podia evitar zombar de um homem que me olhava com esses enormes olhos brilhantes.

— Se não estivesse tão faminto, faria que se arrependesse dessas palavras. — Seu braço se moveu rapidamente, rodeando-a e montando-a sobre Tighe, em frente a ele. — Acredito que já o faço. Agora tente ser uma dama durante um momento.

— Ser uma dama não me dá como recompensa ser atacada por um bonito cavaleiro. — Lyonene rebolou seu traseiro.

— É você a que me ataca, eu...

— Me poupe. Sempre tão amável, tão bom caráter, já o ouvi antes. Diga-me, como ganhou o apelido de gerado pelo diabo?

Ranulf passou os dentes pelo seu pescoço e o ombro, fazendo-a estremecer.

— Não me deram esse apelido para virar brincadeira de uma menina insolente. — A estreitou ainda mais em seus braços. — Eu sempre fui satisfeito onde quer que estivesse, mas agora, acho que não posso suportar estar longe de você. Você é como comida ou bebida para mim, uma coisa que devo ter para viver. Você não sabe como sua raiva me fez sentir. Seguirá me mandando horríveis mensagens?

— Sim, acredito que o farei, pois o trouxe para mim, algo que umas palavras doces não teriam conseguido.

— Não têm nenhum respeito pelas obrigações de seu marido.

Lyonene tirou a mão de Ranulf de sua cintura e a beijou.

— Um marido tem outras obrigações além da guerra. — Cavalgaram juntos para as imponentes muralhas cinza de Malvoisin, satisfeitos e felizes de estarem juntos de novo. Trouxeram água quente a seu quarto quando o céu se escureceu e começou a chover. Acenderam o fogo para se protegerem do frio.

Lyonene banhou a Ranulf, ambos desfrutando e rindo com seus jogos amorosos. Só um instante danificou a felicidade de Lyonene.

— O que aconteceu com nossa convidada franca? Não me diga que deu rédea solta a sua cólera e lhe cravou uma adaga? Embora haja vezes que teria gostado que alguém o fizesse.

— E de que momento fala? Só a conhece faz apenas uns poucos dias. Não pode ser que a tenha visto como é realmente seu caráter em tão pouco tempo.

Ranulf evitou um olhar intenso de sua esposa.

— Conheci à mulher, mas não percamos nossas poucas horas falando dela. Seja qual seja a razão, estou contente de que não esteja aqui.

Lyonene tampouco tinha vontade de continuar com o mesmo assunto, pois a maneira de atuar de Ranulf demonstrava que escondia algo, e nesses momentos tão agradáveis, não tinha vontade de romper o feitiço, falando do que tinha destruído sua paz durante todo o mês anterior.

— Quando deve retornar a seus cavaleiros?

Ranulf saiu do banho, nu e molhado, com sua pele que brilhava à luz dourada do fogo. Aproximou-a dele e a água molhou as roupas de Lyonene. Beijou-a e ela se aproximou mais.

— É o perfeito substituto da toalha. — Murmurou Ranulf. — Amanhã partirei. Sshh, — disse, pondo um dedo sobre seus lábios — não proteste e nem faça minha volta mais difícil. Não sou um homem que deve deixar que meus cavaleiros lutem sozinhos por minha causa. Dispomos desta noite para estarmos juntos e será pouco tempo, pois logo se fará dia. Tentemos aproveitá-la o melhor possível. E tire estas roupas úmidas. Molhará o chão.

Ela sorriu e começou a despir-se. Fizeram amor lentamente, sem a pressa de antes, explorando ambos os corpos.

Lyonene estava exausta da tensão do mês anterior, e liberar suas preocupações, o desassossego pelas correrias amorosas de seu marido, proporcionou-lhe um contente e pacífico sono. Quando Ranulf começou a afastar-se um pouco dela, se agarrou a ele enquanto dormia. Ele suspirou de prazer e a colheu com força.

— Você pode saber o quanto eu te amo, pequena Leoa? —Sussurrou a seu corpo adormecido. — Você pode saber o desejo e a saudade que sinto quando estou longe de você? — Beijou-lhe a testa e dormiu, abraçando-a com força.

Lyonene despertou e abriu os olhos para ver o rosto adormecido de Ranulf. As pestanas negras de Ranulf eram quase como as de uma moça e seus lábios eram suaves e doces. Moveu-se, beijou a cicatriz que tinha na bochecha e Ranulf despertou. Olhou-a nos olhos sorrindo e, com uma mão afastava seu cabelo de seu rosto.

— Estou contente de o ver de novo. Começava a duvidar de que se lembrasse de mim. — Disse Lyonene com calma.

— Eu esqueci às vezes, mas algumas coisas estavam lá para me lembrar de você.

— E que coisas eram?

— O sol, a lua, o vento, o pasto, só pequenas coisas.

Ela riu e se aproximou mais dele.

— Eu gostaria que não voltasse para essa batalha, tenho medo.

— Não há perigo, o único que poderia acontecer é que um bêbado me lançasse um elmo de madeira na cabeça.

— Não, não estou brincando, e não é a batalha o que me dá medo, a não ser outra coisa.

— Deveria temer a ira do Leão Negro, pois lhe faz perder tempo com tanto falar. Não conhece uma melhor maneira de enviar seu cavaleiro à batalha?

Deixou-se acolher pelos braços de Ranulf durante um momento enquanto se esquecia de seus medos, mais tarde a perseguiram de novo, enquanto via como Hodder o ajudava a colocar sua pesada cota de malha.

— Não me olhe como se fosse a última vez que vai ver-me. Vá procurar Dawkin para que prepare comida que possa levar ao acampamento.

Enquanto Lyonene estava ausente, chamou-lhe a atenção algo que brilhava em um canto do quarto. Agachou-se para recolhê-lo e viu que se tratava da fita que Lyonene tinha costurado como réplica de seu adorado cinto. Ranulf franziu o cenho, sem entender como podia ter chegado aí, já que a última vez que a tinha visto foi em sua tenda, perto do castelo de Gethen. Havia algo que a preocupava e ela se recusava a dizer o que era, mas ele intuiu que a fita tinha algo a ver com seus problemas. Suspirou e meteu a fita na bolsa de couro em sua cintura. Quando confiasse nele, confessaria seus medos. Até, então, devia esperar, pois imaginava que nada menos que a tortura a forçaria a responder a suas perguntas.

Lyonene não chorou quando Ranulf partiu a cavalo, com seu guarda atrás dele, mas sim, ficou em silencio no pátio interior. Um sentimento muito forte lhe oprimia o peito, como se tivesse um peso muito grande sobre ela. Sentou-se sozinha no jardim durante um momento, tratando de desfazer-se desse sentimento horrível, mas não conseguia.


Passou uma semana tranquila e Lyonene quase se esqueceu de seus medos. Mas um ruído no piso de abaixo lhe acelerou o coração. A porta da sala de descanso se abriu e Kate entrou.

— Milady, me perdoe, mas ela está causando muito alvoroço. Diz que deve vê-la imediatamente.

— Mande-a entrar.

Nem Lyonene nem sua donzela sentiam a necessidade de explicar de quem estavam falando.

Amicia entrou na sala lentamente, olhando ao seu redor com ar majestoso, como se estivesse admirando as magníficas proporções, as tapeçarias, as decorações. Estava se ainda era possível, mais magra que antes.

— É tal e como o recordava.

— Não me saúda, Amicia?

Amicia sorriu.

— Sou lady Amicia, acredito que se lembra. Não, não saúdo. A condessa de Malvoisin não precisa rebaixar-se a saudar filhas de barões.

— Têm-me intrigada com seu enigma, pois sou tanto condessa como filha de barão.

— Filha de barão, sempre o será, mas não estou segura de que possa manter seu título.

Lyonene sentiu que a cólera começava a aparecer.

— Não jogue com as palavras e vá direto ao ponto. Se tiver algo que me dizer, diga-me e parta.

— Lady Lyonene, seu medo a delata. Tenho notícias que poderia fazer que você e eu estivéssemos em paz.

— Não pode haver paz entre as duas. Que notícia me traz? — O rosto de Lyonene perdeu a cor. — Ranulf! Ocorreu algo a meu marido?

— Não. — Amicia colocou bem o manto. — Está bem, perfeito e vigoroso a última vez que o vi. Seu medo está presente em seu rosto. Ama-o muito?

— O que sinto por meu marido é meu assunto. Se não tiver nada mais que me dizer, parta.

— Não, milady, tenho muito que dizer. O amor que sente por seu marido também é meu assunto, pois é um amor que compartilhamos.

— Não voltarei a começar isto de novo. Acreditei em suas mentiras uma vez, mas agora já não. Desapareça de minha vista. —Lyonene se levantou furiosa.

— Me escutará, pois sua vida depende disso. Sim, sua própria vida depende de minhas palavras. — A voz de Amicia soava lúgubre.

Lyonene se sentou de novo, pouco convencida, mas sentindo que a mulher era capaz de algo.

— Diga o que tiver que dizer e parta.

— Lorde Ranulf demonstrou que é um homem volúvel, acredito, quando se trata de mulheres. Só terá que ver como se prometeu a você depois de conhecê-la somente por um dia. Eu dei-lhe advertências que você não prestou atenção e agora deve pagar por sua incredulidade e, sobretudo, por seu tratamento a mim. Assim como Ranulf de Warbrooke a escolheu com pressa, então ele a descartará rapidamente. — Seus olhos brilhavam como os de uma serpente.

— Não acredito em nenhuma palavra do que está dizendo. Meu marido não me deixou sozinha. Seu comportamento não demonstra que esteja cansando de mim.

—Sabe... — Insistiu Amicia maliciosamente. — Eu conheço Ranulf muito melhor que você. Sei que é um homem que necessita mulheres, muitas mulheres, e eu estou disposta a aceitar este tipo de comportamento. E você também está lady Lyonene?

O único que podia fazer Lyonene era olhá-la fixamente, odiando-a e, entretanto, escutando-a contra toda a razão, dizendo-se que essas palavras eram falsas.

— Aceito a meu marido como ele é, e como devo.

— Muito bem dito por parte de uma esposa devota. Você vai sentir o mesmo quando seu marido traga outra para esta bonita sala, ou sente-se com outra a seu lado na mesa? O que dirá quando favorecer a outro filho antes que o seu? — Esta última frase disse quase sussurrando.

— O que quer dizer com outro filho? Ranulf não tem outro filho, exceto o que levo comigo.

— Em breve, minha inocente dama, porque eu carrego um em meu ventre, que é tão dele como o que você carrega.

— Não! Não lhe acredito! É o bastardo de outro homem, se de fato leva um filho nesse ventre sem carne, e tenta me convencer de que é de meu marido.

— Já a tinha avisado e lhe mostrei as provas do amor de seu marido para mim. Acaso devo mostrar de novo as cartas? Pois já sei que as viu. Devo lhe descrever os momentos íntimos de paixão quando me deu a fita com os leões que me roubou? Não, vejo que sabe que digo a verdade.

Lyonene tratou de sossegar seu coração acelerado, acalmar suas emoções e pensar racionalmente. Quando decidiu falar, fê-lo com calma e deliberadamente.

— Muitas mulheres devem olhar para o outro lado quando os bastardos de seus maridos nascem. Eu sou tão forte como elas.

— Ah, muito razoável, mas acredito que se esquece do rei Eduardo.

— E o que tem que ver o rei com um assunto tão feio como o que acaba de expor?

— Temo que muito. — Amicia observava Lyonene, estudando as reações a suas palavras.

— Como já mencionamos, é a filha de um barão, enquanto que eu sou a herdeira das propriedades e da fortuna do duque de Vernet. O rei Eduardo gostaria muito que a Inglaterra estivesse associada com essas terras. Ele não expressou suas dúvidas quanto ao fato de seu conde se casar com uma mulher humilde de berço? — Lyonene não sabia o que responder, mas sua cabeça se enchia de lembranças. — Se lembra da história de Gilbert de Clare, o conde de Gloucester? Obteve o divórcio e pouco depois se casou com a princesa Joanna. O que acha que dirá o rei Eduardo quando souber que a filha do duque de Vernet leva em seu ventre um filho do conde de Malvoisin? Acredita que rirá e que dará tapinhas no ombro de lorde Ranulf? Ou acha que pensará na guerra que poderia causar um insulto tão grande a França?

Lyonene não sabia o que responder.

— O que você vai fazer então? — Sua aguda voz continuava. — Você se sentará calmamente quando o Papa dissolver seu casamento? E o seu filho? Um filho que acreditava que ia herdar tudo será deixado de lado e o meu se converterá em conde de Malvoisin. Ficará aqui e compartilhará a cama de lorde Ranulf como sua amante? Ele parece gostar muito de você. Estou certa de que continuará a fazê-lo, mesmo quando não estiverem ligados um ao outro por um contrato de casamento. Possivelmente voltará para seus pais? Acaso estarão orgulhosos de sua filha? Casada uma vez com o grande Leão Negro, seu ex-genro. Você será um prêmio, e seu pai terá pouca dificuldade em encontrar outro marido. O que lhe parece a ideia de compartilhar a cama com outro homem? Possivelmente não será tão forte como lorde Ranulf, ou tão bonito, mas terá todo o necessário para lhe dar mais filhos.

— Basta! Deixem-me em paz! Não posso suportar mais sua presença. — Lyonene tampou as orelhas.

— Não é minha presença que a incomoda, mas a verdade que você ouve em minhas palavras. Eu irei, mas você está longe de se livrar de mim.

Sozinha novamente, Lyonene sentou, atordoada, incapaz de fazer um pensamento coerente. Kate ia e vinha, e Lyonene nem ouvia nem respondia as suas perguntas. As palavras da mulher, em efeito, soavam verdadeiras. Parecia-lhe recordar cada palavra dita na corte, cada insinuação a seu matrimônio pouco apropriado com um conde.

E que acontecia a Ranulf? Parecia que não se importava com as convenções, mas amava a seu rei, e sua honra era algo que apreciava muito. E se o rei o pressionava? Conhecia a resposta, sabia que Ranulf não desobedeceria ao rei. Não tinha mencionado Simón de Montfort com ódio, condenando como esse homem se elevou contra o rei e tinha tratado de derrotar a pai do rei Eduardo? Não, Ranulf era um homem honrado e faria o que ditasse sua consciência.

Ela tentou costurar novamente, mas não conseguiu. E quanto à crua afirmação de Amicia? A ideia de outro homem tocando-a trazia um arrepio de repulsa. Mas poderia ficar e converter-se em sua amante? Poderia ver Amicia em sua cama?

“Não!”, pensou, não poderia.

Trouxeram sua comida, mas não se deu conta de que mãos a serviam. Dava voltas pela sala, depois parou para olhar pelo vidro da janela. Os criados caminhavam pelo pátio com normalidade, como se o dia, em que o mundo de Lyonene veio abaixo não tivesse existido.

Ranulf parecia vir até ela de todos os cantos, seu rosto, sua voz, suas palavras. Não, confiava nele! Este pensamento trouxe novas esperanças. Talvez Amicia tenha mentido. A letra poderia ter sido forjada, a fita roubada. Ela não os tinha visto juntos, não tinha nenhuma prova de que o filho de Amicia fosse de Ranulf. Se o filho não era dele, o rei Eduardo não obrigaria Ranulf a anular o matrimônio.

Devia ir até ele, sim, devia ver com seus próprios olhos se as palavras de Amicia eram verdadeiras. Um olhar rápido pela janela mostrou que era muito tarde, muito tarde para começar a viagem.

Sua mente trabalhava com rapidez e planejou tudo com muito cuidado. Já tinha se disfarçado uma vez e voltaria a fazê-lo, só que desta vez deveria viajar como um homem, ou como um moço. Roupa, ela pensou. Necessitaria roupas; não roupas caras, que encorajariam os ladrões, a não ser roupas de aprendiz, em busca de seu professor. Necessitaria uma desculpa para viajar sozinha. Passou por sua cabeça o fato de que seria uma viagem perigosa, mas em seguida a afastou. Seu futuro e de seu filho eram primordiais.

Ela vasculhou um baú de Ranulf e tentou vestir-se com algumas de suas roupas, mas elas eram irremediavelmente grandes demais e os tecidos eram muito ricos para um pobre menino.

— Kate, venha aqui. — Sabia que a serva veria com receio o olhar selvagem de sua ama. — Kate, já me ajudou antes e agora necessito de novo. Tenho que ir ver lorde Ranulf, mas deve ser em segredo. Ninguém exceto eu e você pode estar sabendo.

— Não pode ir ver sua senhoria sem uma escolta.

— Devo fazê-lo. Tenho que averiguar algo. Se eu estiver certa, então me mostrarei e não haverá necessidade de segredo, mas se eu me engano... Não, não quero pensar nisso. Mas necessito sua ajuda. Necessito roupas de homem que me sirvam, roupa de aprendiz ou de homem simples. Acha que poderá consegui-la? E que esteja limpa. Não quero que os insetos infestem minha pele.

— Sim, milady. Poderia consegui-la.

Lyonene esperou com impaciência que Kate voltasse. Agarrou as roupas que havia trazido.

— Não o disse a ninguém? — Kate sacudiu a cabeça. — Parece que ficarão bem. Que mais trouxe?

— São as roupas de homem que eu usarei.

— Você? Mas por que deveria você se vestir de homem?

— Para viajar com você.

Lyonene deixou de examinar a roupa.

— Não, Kate, não virá comigo. Devo ir sozinha.

— Irei com você ou contarei a todo mundo quais são suas intenções.

Os olhos de Lyonene se estreitaram.

— Está me ameaçando?

— Sim, estou.

Lyonene não pôde evitar rir.

— Então, devo ceder. Partiremos pela manhã. Está segura de que quer se arriscar?

— Não me obrigue a pensar nesta loucura. — Disse a moça enquanto ajudava Lyonene a despir-se.

O último pensamento de Lyonene antes de dormir foi que estava condenada a ter sempre donzelas insolentes. Suspirou e deu graças a Deus por ter Kate e Lucy.

Pela manhã cedo, enquanto Kate e Lyonene preparavam as roupas, Hodder entrou no quarto. O homem nunca tinha aceitado bem a sua nova ama, e os dois raramente intercambiavam palavra.

— Hodder, o que aconteceu?

— Preparei cavalos adequados para os três. Está nos esperando fora dos muros do castelo.

Kate e Lyonene intercambiaram um olhar e a condessa se voltou para o lacaio de seu marido.

— Não sei do que está falando. Não pedi nenhum cavalo.

— Não pretenderão se fazerem passar por um aprendiz montando em um cavalo como Loriage. Não há ladrão na Inglaterra que não atacasse para obter um cavalo como esse. Não fiquem me olhando assim, devemos partir.

— Hodder, como...?

— Só direi que não há nada que ocorra em Malvoisin que eu não esteja informado. Pertence a meu amo e ele me pediu que cuidasse de você e isso é o que penso fazer. Agora terminem de se vestir. Direi que foram ao povoado e que não voltarão até o anoitecer. Isso nos dará tempo suficiente antes que se dê a voz de alarme.

Muito atônita para fazer mais perguntas, Lyonene obedeceu.

Não usaram os disfarces até que chegaram no barco que os levou da ilha de Malvoisin até a costa da Inglaterra. Hodder manteve sua identidade e disse que ia com dois homens livres ver lorde Ranulf. Kate e Lyonene esconderam cuidadosamente seus rostos e passaram sem ser reconhecidas ao lado dos barqueiros.

Cavalgaram durante todo o dia e a maior parte da noite. Quando se detiveram, Lyonene caiu esgotada sobre a manta que Hodder tinha estendido para ela. O chão estava quente, mas duro, e quando despertou, doía-lhe todo o corpo.

Quase tinha anoitecido quando chegaram ao castelo de Gethen, mas Lyonene, estimulada por uma energia nervosa, não tinha consciência da longa e exaustiva viagem que acabara de completar. Quando viram as bandeirolas do Leão Negro, diminuíram o passo e cada nervo de seu corpo lhe pedia que voltasse para Malvoisin; não queria saber se as palavras de Amicia eram verdade.

Hodder notou seu medo.

— Podemos voltar, milady. — Disse calmamente.

— Não, devo averiguar.

O acampamento não estava fortemente vigiado. O cavaleiro que viu os três moços não advertiu de nenhum perigo. O Leão Negro era famoso em toda a Inglaterra e muitos foram visitar seu acampamento com a esperança de vislumbrar o conde ou a sua Guarda Negra. Consequentemente, Hodder foi capaz de levar as duas mulheres a uma pequena colina perto da enorme tenda negra que Lyonene conhecia tão bem.

Embora o cavaleiro que vigiava o acampamento não se preocupava muito com os três desconhecidos, havia outro homem, que sim, estava muito interessado. Deu uma volta pelo acampamento e se mostrou muito satisfeito quando observou que os cavalos procediam de Malvoisin. Examinou com atenção as costas das três pessoas e sorriu amplamente quando viu a mecha castanha avermelhada se sobressair de uma capa muito larga e uma diminuta mão o pôs de novo em seu lugar. Voltou correndo a tenda que compartilhava com outros cavaleiros da guarnição.

Lyonene foi a primeira a vê-la. Amicia caminhava com segurança para a tenda de Ranulf e Lyonene se deu conta de que seu coração se deteve junto com sua respiração. A mulher não estava mentindo, sim, ela ia ao acampamento.

— Milady, deve se dar a conhecer. Não pode permitir que essa mulher entre na tenda de seu marido. — Disse Kate indignada.

— Não, não posso me mostrar, pois... — se deteve ao ver que Ranulf saía da tenda. Seu coração começou a palpitar fortemente quando o viu, tão alto, com seu cabelo escuro que lhe recordava os momentos que tinham passado juntos, uns momentos breves, pensava agora.

Amicia chegou por detrás de Ranulf e o agarrou pelo braço, virou-se para olhá-lo com uma mão sobre seu peito, acariciando-o. As três pessoas não puderam ver o rosto de Ranulf, quando este se voltou para a magra mulher. Amicia falava com ele e Ranulf a estava escutando atentamente. Seus braços rodearam o pescoço de Ranulf e Amicia ficou nas pontas dos pés e o beijou.

Lyonene se levantou e voltou para onde estavam os cavalos.

— Vi mais do que posso suportar. Vamos para casa.


A viagem de volta a Malvoisin se perdeu na memória de Lyonene. A visão de Amicia nos braços de Ranulf era tudo o que podia ver. Tudo era verdade! Tudo o que havia dito Amicia era verdade. Ela acreditava que seu amor por Ranulf era suficientemente forte para suportar os filhos de outra mulher, se fosse necessário, mas não poderia suportar ver como ele se casava com outra, ou ver a si mesma casada com outro.

Deixou que Kate cuidasse dela, obedecendo cegamente a tudo o que lhe dizia. Nem sequer se deu conta de quando chegaram a Malvoisin, ou quando Kate a despiu e a deitou na cama. Lyonene teve um sono irregular, sentindo-se pior quando levantou.

Durante dois dias não percebeu nada do que ocorria ao seu redor, sentava-se na sala de repouso, olhando o vazio sem fazer nada ou tentando costurar sem muito êxito. Não sentia cólera, nem emoção de nenhum tipo, quando Amicia irrompeu na sala de repouso na manhã seguinte.

— Assim, agora sabe.

— Sim, sei.

Amicia sorriu maliciosamente.

— E que diz agora de suas esperanças para o filho que carrega? Possivelmente, lorde Ranulf lhe permitirá ficar e servir ao meu filho. — Lyonene a olhava sem ânimo. — Não acreditava que fosse tão egoísta. — Continuou Amicia. — Não parece que pensa muito em seu filho, mas não se deixe inquietar por seu coração quebrado, muitas mulheres viram como seus maridos se separavam delas, mas sempre se preocuparam em proteger seus filhos.

— Não conheço nenhum modo de proteger a meu filho. Como posso ir contra todo o mal que tramou? Eu sou uma aprendiz no domínio das maldades que pratica.

Amicia se sentou junto a Lyonene e pegou sua mão fria. Lyonene franziu o cenho para Amicia, cujo rosto tinha mudado para mostrar agora uma grande preocupação.

— Lady Lyonene, peço-lhe que me perdoe por tudo neste assunto. Sei que foi graças a você que me salvaram da tempestade, que lhe devo minha vida. Não queria que isto ocorresse, mas lorde Ranulf, não posso explicá-lo, o homem me olhou... vejo que você compreende. — Amicia se inclinou mais em volta dela. — Eu era virgem quando ele me tomou e não pude resistir. — Lyonene olhou para o outro lado. — Nunca amei a um homem antes e agora direi que o quero para mim, que devo tê-lo, assim como você o quer. Não tenho o direito de pedir o seu perdão, mas há uma maneira, que talvez, eu possa expiar alguns dos meus maus atos.

— Não existe nenhuma maneira pela qual possa pagar o que têm me feito.

— Sei, milady, e estou muito envergonhada. Você estava feliz antes que eu chegasse e arrebatei toda sua felicidade. Se não levasse um filho no ventre, não insistiria sobre este assunto. Voltaria para a França e trataria de curar meu coração partido, o que certamente seria o caso se eu deixasse lorde Ranulf.

— Como pensa me devolver algo que, em definitivo, roubou-me?

— Não posso te salvar, mas possivelmente, possa salvar a seu filho. Neste momento está a caminho um mensageiro que avisará ao rei Eduardo de minha presença na Inglaterra e também lhe dirá que levo um filho no ventre. Tenho certeza de que o divórcio chegará logo.

— E como isto salvará ao meu filho? — perguntou Lyonene. Sua boca era uma magra linha.

— Se desconhecerem seu paradeiro antes que o menino nasça, será herdeiro do título de conde e do condado.

— Não confio em você. Por que se arriscaria a perder o título para seu filho, me contando tudo isto?

Amicia encolheu os ombros.

— Devo-lhe minha vida e, além disso, pode ser que seja uma menina. Ranulf deve deixar seu título a seu primeiro filho varão. Não suas propriedades. Não arrisco tanto como parece.

Lyonene refletiu durante um momento. Não teria acreditado, se ela parecesse sacrificar tudo pelo filho dela, mas era verdade que devia a vida a Lyonene e que possivelmente queria recompensá-la de algum jeito.

— Então, têm um plano?

Amicia pôs o dedo na boca e caminhou em silencio para a porta, para certificar-se de que o corredor estivesse vazio. Voltou, sentou-se ao lado de Lyonene e sussurrou:

— Isto deve ser feito em segredo. Ninguém deve saber, nem sequer esse curioso lacaio ou inclusive sua donzela, entendido?

Lyonene assentiu.

— Arrisco-me muito em planejar isto e não quero que me descubram. Ouvi que seu pai tem familiares na Irlanda. É certo?

— Sim, mas não os conheço, embora meu pai tenha falado muito deles.

— Acha que eles poderiam alberga-la até que nasça o menino.

— Sim, acredito que o fariam se soubessem que estou em perigo.

— Bem, então arrumarei tudo para que um navio a leve até a Irlanda. Ficará lá até que nasça o menino. Depois, quando estiver sã e salva, poderá voltar para a Inglaterra. Para a casa de seu pai. Estou segura de que o divórcio será definitivo, mas a Igreja não permitirá outro casamento até que não a encontrem. Assim, seu filho será o primogênito e conde.

Lyonene franziu o cenho.

— Não o entendo. Se o divórcio for definitivo, como poderei estar ainda casada com Ranulf?

Amicia a olhou com cara selvagem por um momento.

— É muito complicado de explicar. Deve confiar em mim, pois sou a filha de um duque e conheço melhor a corte assim como suas leis. Está de acordo com o plano?

— Não sei. Estou confusa. Eu...

— Você é egoísta! — Disse Amicia com cara de asco. — Eu lhe ofereço segurança, uma maneira de escapar às dificuldades à sua frente, que se você mesmo parar para considerar é uma indicação do seu egoísmo. O que fará quando seu filho tenha vinte anos e lhe pergunte por que não pensou nele e por que só desejava a esse bonito pai? Então, não terá o marido que tanto anseia e nem o amor de seu filho. Falará da confusão, pedirá que a perdoe quando ele for pouco mais que um mendigo, bastardo declarado do conde de Malvoisin? Possivelmente um dia veja meus filhos e se lembre...

— Basta! Vai muito depressa.

— Terá que apressar-se, pois acredito que o sítio terminará muito em breve.

— Então Ranulf voltará e falarei com ele.

Amicia jogou a cabeça para trás e emitiu um gemido agudo que se supunha que devia ser uma gargalhada.

— Você é mais tola do que parece. Preferiria escutar minhas palavras da boca do homem pelo que sonha? Acaso pensa que não a deixará partir para a Irlanda e frustrará os planos do rei que o herdeiro do conde seja o neto de um duque franco? Não, milady, se quer partir para a Irlanda, faça rapidamente antes que ele retorne.

— Eu... Quando sai o navio?

— Pela manhã.

— Tão cedo? Não tive tempo para pensar.

— Arrumei-o assim, para que não pudesse pensar. Observei-lhe e sei que o desejo que sente por ele lhe trairá. Deve decidir agora, neste momento, sim ou não, e em pouco tempo poderá ir.

Lyonene não sabia o que fazer. Tinha visto como Amicia beijava Ranulf, pensou na relação de Ranulf com seu rei e logo pensou em seu filho.

— Sim, irei.

Amicia lançou um sorriso triunfal.

— Tomou uma decisão muito sábia, milady. Esta noite deverá preparar a bagagem, somente o que possa colocar na bolsa de couro que vai sobre o cavalo, nada mais. E não deve contar seus planos a ninguém. A ninguém! Entendeu?

— Sim, entendi muito bem. — Foi a resposta lúgubre de Lyonene.

— Agora vou, mas pela manhã pegue seu cavalo negro. Diga que na bolsa há roupa para os servos, se alguém perguntar, mas não faça nada que possa parecer suspeito. O navio sairá antes que descubram que desapareceu. — Amicia abandonou a sala.

Lyonene não se moveu, mas mais tarde, quando Kate a ajudou a deitar-se na cama, começou a chorar e não parou até que o sol começou a iluminar seu quarto com uma cor rosa. Essa seria sua última noite como a senhora de Malvoisin, sua última noite na cama de Ranulf. Levantou-se tarde, esperou até que o sol tivesse saído completamente e, depressa, colocou um pouco de roupa na bolsa de couro. Não levou joias, exceto o cinto de leão. Como lembrança, pegou uma pequena caixa de marfim que pertencia a Ranulf, esculpida com o leão de Malvoisin. Tinha sido feita para que contivesse seu selo, mas agora estava vazia.

Olhou pela última vez seu dormitório, onde tinha sido tão feliz e fechou a porta.


Chegar ao navio que a esperava na Ponta de St. Agnes foi muito fácil. Só Kate percebeu o rosto marcado pela longa noite de pranto de sua ama, mas Lyonene explicou facilmente dizendo que eram as dores que causavam o bebê que carregava.

Seu ventre tinha engordado e acariciou a curva que se formava, esperando que estivesse fazendo o correto fugindo.

Pôde ver como içavam as velas e descobriu que era um dos navios que pertencia a Ranulf, e que o utilizava para comercializar com outros reinos. Amicia saiu de seu esconderijo entre os arbustos.

— Chega tarde e Morell teve que dar desculpas pelo seu atraso. — Disse Amicia com um tom acusador.

— Morell?

— Você não acha que eu poderia organizar sua fuga sozinha... Sir Morell é um dos cavaleiros das tropas de Ranulf, embora, por direito, teria que pertencer a Guarda Negra. Mas agora não há tempo para tudo isto. Deve esconder suas roupas e seu cabelo. — Amicia lhe deu uma capa vermelha.

Lyonene desmontou e colocou o manto.

— Cuidará de Loriage? De que volte são e salvo?

— Não é hora de se preocupar com seu precioso cavalo. Sim, cuidarei do animal. Agora devemos ir. Morell não tem um temperamento doce quando seus planos não saem como previsto. Mantenha sua cabeça baixa e não olhe para ninguém. Não quero que os guardas a vejam.


Lyonene seguiu a Amicia para o navio e ficou ao lado da mulher franca enquanto ela falava com um homem que não podia ver.

— Traga-a aqui embaixo. — Disse uma voz queixosa, e Lyonene levantou os olhos para ver o homem que a levaria para a Irlanda. Tinha-o visto em poucas ocasiões, mas cada vez tinha ficado gravada em sua memória. Lembrava-se de que se escondia nas sombras onde só ela podia vê-lo, com um sorriso malicioso no rosto. Sempre a olhava como se soubesse mais dela, como se esperasse o momento para descobrir tudo o que desejava.

Instintivamente, Lyonene se afastou. O cavaleiro loiro a agarrou pelo braço.

— Lady Lyonene, não tenha medo. Levar-lhe-ei para os parentes de seu pai e me encarregarei de sua segurança e de proteger sua honra com minha própria vida. Desça. Já vi a sua cabina, pois gostaria que você estivesse confortável.

Ela não podia olhar para ele.

— Eu sou Sir Morell, servo de seu estimado marido. Estou atrasado para o serviço, não acho que ele vai se importar muito comigo, agora que eu tiro a esposa dele, embora por uma boa causa. Venha comigo e tenha a certeza de que receberá todas as considerações.

Lyonene permitiu ser conduzida para baixo, mais insegura de si mesma a cada momento. A cabina era minúsculo, apertada e quase sem ar.

— Lady Lyonene — disse ele, aproximando a cabeça dela.

— Sim. — Ela se forçou para olhar em seus olhos azuis. Ele era bonito de certa forma, elegantemente vestido, com olhos brilhantes, nariz fino e boca firme.

Ele pareceu entender seu escrutínio e deu-lhe um sorriso unilateral.

— Lady Lyonene, devo pedir-lhe indulgência. Meus homens não são cavaleiros. Na verdade, eles não são homens honrados, e embora eu te proteja com a minha vida, tenho medo de ter apenas uma vida. Você é uma mulher bonita e eu não gostaria de arriscar tal beleza em contato com os homens grosseiros que cavalgam comigo.

— Qual é o significado disso? — Ela conseguiu obter as palavras finalmente.

— Eu te protegerei dos meus homens.

— Você não pode mandá-los ficar longe de minha cabina?

Ele sorriu, seus olhos devorando-a, o cabelo em cascata sobre seus ombros, o arfar de seus seios, o inchaço do ventre dela sob o grosso manto de lã.

— Temo não ser um homem a ser temido como o Leão Negro. Não, eu sou mais amável. — Ele tocou um cacho ao longo de seu seio, e uma carranca franziu as sobrancelhas, quando ela se afastou bruscamente. Ele afastou-se dela, procurando controlar-se.

— Eu... eu desejo deixar este navio. Há algo que não vai bem. Não sei o que é, mas decidi que prefiro enfrentar meu marido antes que... se apresente ante mim.

— Sair, tão cedo? Mas a nossa jornada acaba de começar. Nossa longa e lenta viagem, devo acrescentar.

Sir Morell lutou por conter sua cólera.

— Milady, seus medos não têm fundamento. Todo mundo aqui quer ajudá-la. Sei tudo sobre lady Amicia e deve pensar em seu filho. — Seus olhos se dirigiram a seu ventre inchado e ela se cobriu. Sir Morell continuou. — Tomou a decisão mais acertada e quando estiver a salvo com seus parentes se dará conta. Até então, estará rodeada de desconhecidos e é natural que tenha algumas dúvidas. Sou mais velho que você e vi mais do mundo, e mais esposas jovens serem deixadas de lado por outra mulher. Sente-se aqui, milady.

Guiou Lyonene até o estreito beliche, passando seus braços por seu antebraço um instante antes de soltá-la.

— Devo continuar o que comecei. Para me assegurar de que não corra perigo com estes homens pouco cavalheirescos, tenho que trancar a porta da cabina.

— Vai me encerrar neste lugar diminuto?

— É por sua própria segurança. Confie em mim. Ajudarei a escapar do que seria uma situação perigosa.

— Não tenho certeza...

— Eu prestei homenagem a Ranulf de Warbrooke e, apesar do que pensa de mim, sou um homem de palavra. — Ela assentiu com a cabeça, rendendo-se diante do que lhe proporcionava o futuro. — Não se arrependerá de ter acreditado em mim. Agora vou ver que tudo esteja bem no navio. Voltarei dentro de pouco com comida e talvez possa me juntar a você no seu jantar.

Morell abandonou a cabina e Lyonene ouviu como fechava a porta com chave. Sentiu-se desamparada, além do desespero, e tudo o que podia fazer era deitar-se sobre o duro travesseiro e olhar o vazio. Parecia que sua vida tinha chegado ao final.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 14

Hodder cavalgou toda a noite e, só por pura coincidência, encontrou-se com o conde de Malvoisin enquanto este voltava para o castelo depois de um sítio tão longo. Corbet ajudou a desmontar do cavalo ao pequeno homem.

— Devo falar com lorde Ranulf.

— Estou aqui. O que ocorreu? Por que viajou sozinho sem guarda?

Hodder ofegou, sentando-se em cima de uma rocha.

— Milorde... se foi! — Disse, tratando de recuperar sua respiração.

— Quem se foi? A mulher franca? Estou contente de ter me livrado dela.

— Não. É lady Lyonene quem desapareceu.

Hodder viu como o levantavam da rocha pelos ombros. Oito rostos o olhavam fixamente e não pôde evitar estremecer de medo.

— Não pude ouvir o que diziam assim não sei quais eram seus planos. Esta manhã cavalgou em direção ao povoado levando roupas para as servas, mas a noite ainda não havia voltado. Alertei ao guarda, e toda a ilha foi vasculhada. Passamos horas procurando-a, mas ninguém soube encontrá-la.

— Cavalguemos. — Ranulf se voltou para seus homens.

— Hugo, designa a um homem para que se ocupe da bagagem. Minha guarda vem comigo a Malvoisin. Hodder virá conosco. Quero ouvir mais sobre este rastreamento que foi feito.

Não foi fácil falar durante o trajeto de volta à ilha A cabeça de Hodder estava perto de explodir com a pressão dos gritos e o som ensurdecedor dos cascos dos cavalos, mas Ranulf não teve compaixão dele. Depois de um momento, Ranulf se deteve e colocou Hodder na garupa do frísio e o homem pôde continuar com sua história.

Ranulf sabia que Hodder era um espião de escutar atrás das portas, mas não sabia que era tão perito. Agora duvidava se havia algo do que foi dito no castelo, que Hodder não soubesse.

Hodder relatou a Ranulf tudo sobre a traição de Amicia. Contou-lhe das cartas, a fita e os alardes da mulher.

— Lyonene acreditou em tudo o que essa mulher disse?

— Sim, mas não no princípio. Zangou-se muito quando pensou que o que dizia a mulher era verdade, mas acreditava que não significaria ser mal para ela como sua esposa.

— Muito bem feito para ela. — Murmurou Ranulf com um tom sarcástico, que quase não se ouviu com o forte ruído de seus cavalos.

— Não pode culpar lady Lyonene. Até eu teria acreditado nas ameaças da mulher se eu não te conhecesse tão bem.

Ranulf se voltou na sela para olhar seu lacaio.

— E que razões você têm para acreditar em mim quando confrontado com essas provas?

Hodder encolheu os ombros.

— Olhei para lady Lyonene e logo à esquelética Amicia. Terminei por conhecer o tipo de mulher que sua luxúria gananciosa deixaria louca.

Ranulf teria rido se o momento não fosse tão sério.

— Essas cartas foi o que fez minha esposa se recusar a responder à minha carta. Sabia que algo não ia bem quando voltei para casa. Esta mulher é uma tola, uma tola desmiolada, por pensar que eu escreveria cartas de amor a outra mulher e, em seguida, negligenciaria minhas obrigações, cavalgando para vê-la porque penso que minha mulher está triste. Estar casado dá muitas alegrias, mas também causa muito sofrimento Pense duas vezes antes de se casar, Hodder.

O lacaio estava indignado. Recuperou-se e continuou.

— Milady estava mais feliz depois de sua visita, mas Amicia trouxe mais notícias.

— Mais notícias, mais cartas?

— Não, milorde. Ela veio com a notícia de que carregava seu filho.

— Meu filho! Que a semente de um homem possa enraizar-se naquele terreno estéril seria um milagre. Lyonene acreditou?

— Não, não acreditou. Disse que iria vê-lo para comprovar que não havia nada entre os dois.

— Isto é o único com um pouco de sentido do que ouvi até agora. Mas suponho que ela não veio.

— Sim, sim que veio. Kate e eu cavalgamos com ela até seu acampamento.

Ranulf ficou em silencio durante um momento, amaldiçoando a insensatez de uma esposa que cruzava a turbulenta campina inglesa com uma donzela e um homem débil e fraco como amparo.

Hodder entendeu o que pensava seu amo.

— Vestimo-nos de aprendizes de mercadores. Não tivemos nenhum problema.

— Por que não a vi então?

— Sentamo-nos em uma colina perto de sua tenda e o observamos.

— Continue! Deve ter havido mais razões para que minha esposa se recusasse a me ver, por que ela fugiu de mim.

— Viu como beijava Amicia, milorde.

— Não, ela não poderia ter visto! — Então se lembrou de quando Amicia entrou em sua tenda e ele tinha tido que sair para escapar dela. Ela o tinha beijado e ele teve que se controlar para não golpeá-la. Ela não era melhor do que uma cadela no cio. Tinha ido muito frequentemente ao acampamento durante o sítio, e pelo que sabia, vários dos cavaleiros da guarnição tinham desfrutado de seus favores. Tinha feito insinuações para Ranulf, mas ele sentia repulsa por ela, por seus braços magros e sua voz aguda, suas falsas declarações de ser a filha de um duque.

No dia seguinte da tempestade, Ranulf tinha enviado uma mensagem a França para saber sobre o duque de Vernet. A resposta tinha chegado essa mesma manhã. O duque estava no navio naufragado, mas o homem tinha quase oitenta anos e nunca tinha tido uma filha. Amicia utilizou a história com um propósito, que ainda era desconhecido para Ranulf.

Sentindo maus presságios, Ranulf insistiu a Hodder que continuasse com seu relato.

Hodder informou sobre a última visita de Amicia, de como ela havia dito que o rei Eduardo forçaria Ranulf a casar-se com ela para evitar a guerra. Ranulf só podia mover a cabeça, atônito ao pensar que Lyonene tivesse podido acreditar numa história semelhante.

— E quanto ao resto da história? Não me explicou onde e por que minha esposa está escondida. Procurou em todas as cabanas, na clareira?

— Sim, por toda parte, mas não há maneira de encontrá-la.

— Tirarei seus dentes quando a encontrar. — Disse apertando a mandíbula.

— Acredito que Amicia tem algo a ver com o desaparecimento de lady Lyonene.

— Não entendo o que quer dizer.

— Essa mulher é muito ardilosa. Não pude escutar mais, pois me enviou para o outro lado e começou a sussurrar. Deveria ter adivinhado suas intenções.

Cavalgaram em silencio até Malvoisin, Ranulf a todo momento amaldiçoava e rezava por sua esposa. Seu orgulho estava ferido, ele a repreendera por não confiar nele, por acreditar que escolheria a uma mulher como Amicia pelas razões que lhe tinham sido dadas. Amaldiçoou-se a si mesmo por deixá-la com uma mulher tão malvada, por não forçá-la, quando voltou a Malvoisin, a lhe dizer o que ocorria.

Hodder repetiu o que havia dito Amicia: Como Ranulf pretendia que a criança de Lyonene fosse servo do filho de Amicia e que seria conhecido como bastardo. Finalmente, ele revelou a oferta de Amicia do condado ao filho de Lyonene.

Ranulf começou a entender o que tinha causado o medo de sua esposa. Ela conhecia muito pouco sobre as leis da corte. Ranulf podia escolher qual o filho ou podia adotar o filho que desejasse para lhe ceder seus bens e seu título. Não era por ordem de nascimento, como insistia Amicia.

O navio que os levava para a ilha ia muito lento a seu parecer, e a expressões nos rostos de seus homens era tão sombria como a de Ranulf. Contou-lhe brevemente sobre a traição que tinha ocorrido durante sua ausência, pois tinha deduzido pela história de Hodder que havia um complô. Dividiu os homens em pares e atribuiu áreas da ilha onde deviam procurar. Antes que o navio atracasse, os homens e seus cavalos já caminhavam pela água.

Os cavaleiros da Guarda Negra foram primeiro ao castelo para trocarem seus cavalos, mas Ranulf ficou com Tighe, já que o animal foi criado para a resistência.

Vasculharam toda a ilha, com tochas, e todo mundo teve que responder às perguntas dos homens. Ranulf começou a temer que a tivessem levado para pedir uma recompensa, assim começou a procurar lugares onde seus captores a pudessem tê-la escondido.

Ninguém que se parecesse com Lyonene tinha cruzado de navio até a costa da Inglaterra, assim que ele acreditava que não tinha abandonado a ilha. Utilizaram cães de caça para que seguissem todas as pistas que encontrassem.

Chegou a noite e ainda não havia sinal dela nem de Amicia. Os primeiros sinais de fadiga e um profundo sofrimento nublaram seus pensamentos e sua vista. Foi à capela de Mottistone e rezou, pois era o único caminho que conhecia para esclarecer sua mente. Depois de alguns momentos de meditação, já sabia que procurar pela ilha não daria nenhum resultado, sabia que um navio a tinha levado embora, e sabia com certeza que isto não se tratava simplesmente de uma mulher ciumenta que tinha fugido, a não ser o resultado de um meticuloso plano.

Saiu da capela mais reconfortado e deu graças aos Santos por ter lhe dado a resposta.

Cavalgou rapidamente até a Ponta de St. Agnes, subindo pelas escadas até o posto da guarda, sobre a torre de pedra.

— Saiu algum navio hoje?

— Sim, milorde. Dois navios, dois dos seus. — Respondeu o homem, terrivelmente assustado ao ver a fúria no rosto de seu amo.

— Dois! Não havia nenhum navio que devesse partir hoje. Que desculpa foi dada para que saíssem dois dos meus navios sem meu consentimento e quem os dirigia?

— William de Bee enviou um para a França com um carregamento de lã para ser tecida; o outro foi para a Irlanda, para comprar mais tecidos.

— Que carregamento foi enviado a Irlanda?

— Nenhum, meu lorde. O navio foi vazio.

Os olhos de Ranulf transpassavam ao homem e quando falou o fez com voz tenebrosa.

— Você já viu algum de meus navios sair ou voltar vazio?

— Não, milorde, mas sir Morell disse que tinha muita pressa para comprar mais ornamentos para sua nova esposa, que você adora. Disse...

— Sir Morell! — Ranulf fez uma careta de desprezo. — Esse homem sempre me atormentou. Quem foi com ele?

— Só seus homens, milorde, a tripulação, alguns servos e... essa mulher franca. Foi escolher as cores, isso eles disseram.

— Isso eles disseram! Demonstrou ter bons ouvidos, mas nada mais entre eles. Encontraram em você um alvo fácil. Saia de minha vista antes que te tire definitivamente da Terra. Levaram minha esposa em um navio vazio, sem dúvida vestida de serva. Um momento mais e terá que responder por sua incompetência.

O homem, atemorizado, quase caiu pelas escadas, da pressa com que desceu.

Ranulf se voltou para notar que alguém o estava tocando no ombro. Era Herne.

— Chegamos à mesma conclusão. Está de acordo em que há um complô? Averiguou algo que seja útil? — Perguntou Herne, que assentiu ao escutar a resposta de Ranolfo, logo continuou. — Devemos nos preparar, pois não acredito que esteja esperando uma mensagem de resgate. Sairemos logo. Ouvi dizer que a Irlanda é um lugar pequeno e será fácil encontrá-la.

Ranulf passou o dia inteiro preparando-se, permitindo que seus cavaleiros descansassem, e ele mesmo dormiu algumas horas. Sabia muito pouco da Irlanda, mas Dacre tinha primos ali. Enviou mensagens a seu amigo e a Lorancourt. Recordava que seu sogro tinha mencionado ter família na Irlanda. Se Lyonene conseguisse escapar, refugiar-se-ia com seus parentes, assim Ranulf devia saber onde eles ficavam.

Em todas suas ações havia uma lentidão deliberada, pois sabia que diante dele e de seus homens, se apresentava uma longa batalha. Já não estava irado contra sua esposa, mas sentia que tinha alguma falha nele que fazia com que ela duvidasse dele.

Reuniu-se com a Guarda Negra no pátio interior, vestiam-se com suas mais pesadas cota de malha e seus tabardos de lã mais grossos. Pesadas armas de guerra pendiam das selas dos cavalos e também estavam cobertos com couraça de ferro. Não intercambiaram palavras, enquanto Ranulf montava o frísio negro. Tinham um único propósito, e um laço que os ligavam até a morte.

Demoraram dois dias para chegarem a Dunster e lá esperavam as respostas às mensagens de Ranulf. Dacre oferecia sua ajuda, se fosse necessária, e os nomes e lugares onde residiam seus familiares. William Dautry também enviava o nome dos primos de sua filha e Melite dizia que rezava continuamente por eles.

O navio demorou dois dias para chegar a Waterford, na costa da Irlanda. A vista de uma terra desconhecida aumentou os temores de Ranulf, pois parecia impossível procurar por toda a ilha. E seus homens se dividiram em quatro pares e começaram a busca; Maularde e Ranulf partiram juntos.


O navio começou a mover-se e Lyonene sentiu o mal-estar no estômago instantaneamente. A náusea a impedia de pensar no que tinha feito. Deitou-se na diminuta cama; a imagem de Ranulf aparecia por toda parte. Ela poderia nunca mais vê-lo ou tocá-lo. Seu filho nasceria e Ranulf nunca poderia ver o bebê. Uma dor aguda no estômago impediu que seus olhos se enchessem de lágrimas. Teria um filho moreno como Ranulf ou sairia claro como ela?

A porta da cabina se abriu.

— Trouxe-lhe comida e vinho. — Sir Morell se deteve e franziu o cenho. — Não me diga que está enjoando?

Lyonene se limitou a olhá-lo, seu estômago dava voltas. O conteúdo de seu estômago chegou a sua garganta e engoliu para que não saísse, cobrindo a boca com a mão.

O olhar de Morell se endureceu, torcendo a boca ao olhá-la. Atirou a bandeja em cima da mesa e o vinho se derramou, o aroma da bebida lhe provocou novos enjoos.

— Amicia! — Gritou Morell através da porta aberta.

A pesar da dor e de seus intentos de controlar as náuseas, Lyonene se surpreendeu, pois não sabia que a mulher franca viajava com eles. Estava muito doente para pensar no quebra-cabeça.

— No que posso lhe servir meu doce cavaleiro?

Amicia passou a mão pelo peito coberto de couro de sir Morell.

— Pode cuidar dessa mulher doente que trouxe a bordo com você.

— Doente! Não está doente. Não é um pouco cedo para o parto?

— Não, está doente pelo movimento do navio. Eu tinha outros planos para ela do que vê-la atirar fora o que tem no estômago. Uma parte do plano era que eu pudesse estar com ela.

Amicia lançou um olhar preocupado a Lyonene, que estava enroscada na cama.

— Ainda fica um bom caminho a percorrer, e eu gostaria que não se inteirasse de nosso segredo. Será mais dócil se não souber nada sobre nós. Poderá tê-la logo, juro-lhe isso. Demoraremos doze dias em chegar a Irlanda. Não estará doente todo o tempo. Não seja tão ansioso.

Amicia acariciou o ombro de Morell, lhe passando as mãos pelo pescoço.

— Não sei por que se interessa tanto por esta mulher. Não tem nada que eu não possa lhe dar. Venha e demonstrarei isso.

Ele afastou os braços de seu pescoço.

— Eu não gosto de minhas mulheres tão usadas. Cuide dela e de que se recupere rapidamente, ou eu a fecharei em sua cabina e não deixarei que nenhum homem se aproxime, por razões opostas às que tranco a esta dama.

— Insulta-me ao me pedir que cuide da mulher com quem quer se deitar?

— Não lhe peço isso. Nenhum homem deve pedir qualquer coisa a uma mulher como você. Agora faça o que eu digo ou executarei minhas ameaças.

Empurrou-a com força para onde jazia Lyonene e abandonou a cabina rapidamente, pois tinha repulsa em ver Lyonene doente.

Lyonene não podia se recordar muito do que aconteceu nos dias seguintes, mas percebeu as mãos que a empurravam, dos insultos que ouvia e da dor de estomago que a mortificava. Obrigavam-na a comer e a comida saía imediatamente vomitada. Então a insultavam mais, batiam-lhe nas mãos e nos braços e passavam um trapo sujo para limpar sua boca suja.

Um dia ao despertar sentiu bem de novo, estava mais magra e mais débil e lhe doía a cabeça. Demorou um momento em recordar onde estava e por que estava ali.

— Ranulf. — Sussurrou enquanto pensava no marido que não voltaria a ver jamais.

Os sussurros saíram de sua garganta ressecada e olhou ao seu redor para procurar água. Havia um vaso do outro lado da cabina. O que tinha parecido um lugar diminuto, agora parecia enorme. Lentamente, sentou-se na cama e, devido a seu cansaço, a cabeça começou girar. A parte dianteira de sua túnica estava suja, manchada com os vômitos dos dias anteriores. Fez um gesto de asco ao ver toda a sujeira, mas não tinha suficiente força para trocar de roupa. Só pensava em saciar sua sede.

Moveu as pernas e pôs seus pés descalços sobre o chão de carvalho. Para caminhar tinha que apoiar-se nos objetos que havia na cabina, e assim chegou à jarra de água. Sorriu triunfante quando seus trementes dedos tocaram a asa e a notou fria para suas mãos ressecadas. Aproximou da boca com dificuldade, mas soube que estava vazia antes de poder vê-lo com seus próprios olhos. Derrubou a jarra em cima de sua língua e caiu uma gota que não serviu para aliviar sua dor.

Uma gargalhada, quase ao seu lado, fê-la girar-se com muito esforço para a porta. Não estava bem fechada e a risada procedia de fora. Possivelmente, alguém poderia lhe dar algo para beber. Torpemente, pôs a jarra no suporte e se dirigiu com os braços pendurando para a porta, os pés de arrastando pelo chão.

A porta se abriu com facilidade e deu uns poucos passos pelo corredor até uma cabina próxima. Havia luz e podia ver duas pessoas sentadas a uma mesa, com as cobiçadas jarras cheias de líquido em suas mãos. Olhou-as com desejo enquanto Amicia bebia do recipiente açucarado. Levantou a mão para abrir a porta.

— Brindemos por lady Lyonene!

O som de seu nome a deteve e pestanejou para esclarecer sua mente nublada pela sede. Reconheceu a voz de sir Morell.

— Por um plano tão perfeito que nos permitiu raptar à esposa do conde de Malvoisin sob seus narizes. Nenhum outro homem penetrou as defesas desta ilha.

— Não se esqueça de incluir a mim, meu lorde, pois não esteve sozinho na execução deste plano.

— Ah, Amicia, você só foi um instrumento. Fui eu quem a observou durante meses, quem planejou cada passo. No dia em que a vi em cima daquela colina ao lado da tenda do Leão, não podia acreditar em nossa boa fortuna!

— Lady Lyonene foi um alvo muito fácil. Está tão perdidamente apaixonada por esse homem, que soube que não poderia suportar a ideia de que outra mulher estivesse perto dele. — Amicia bebeu um gole de cerveja. — Entendo por que prefere a esse homem. Ouvi seus gritos pelas noites.

— E também queria experimentar a alegria que ela encontrava, não é certo? Quando ele a rechaçou, rapidamente, soube que tinha encontrado uma companheira para a trama que tinha planejado.

Amicia lhe lançou um olhar de desdém.

— E agora que a temos, o que devemos fazer com ela?

— Está tudo planejado. Tenho uma amiga na Irlanda, uma viúva que faria muito por mim. Levá-la-ei para ela e aí a pequena condessa esperará que seu marido pague o resgate. Demorará meses, senão anos, em reunir tudo o que pedirei.

— E o que fará com ela durante os anos que levará tudo isto?

A voz da Amicia tinha um brilho de brincadeira.

— Sua enfermidade me incomoda muitíssimo. Cresci rodeado de enfermidades e agora não posso suportá-las. Não entendo porque ainda não se recuperou. Faltam somente quatro dias para chegar a Irlanda. Você colocou algo na sua comida para provocar seu mal-estar? — Perguntou-lhe Morell agarrando-a pela parte dianteira da capa.

Amicia se desfez dele com facilidade.

— Comida! Tudo o que engole vomita imediatamente. Possivelmente é a criança o que provoca isto, embora não a ouvi se queixar antes de sua gravidez.

— Isso é outro inconveniente. Embora, com o menino, obteremos uma recompensa mais alta, lamentarei a perda de tempo em poder compartilhar a cama com ela.

— É muito tosca essa sua maneira. Por que uma barriga inchada o impediria de frear algo pelo qual arriscou sua vida?

— Dá-me asco, Amicia. Não tenho nenhuma vontade de tomar os restos de outro homem, quando estiver livre dessa carga, ela será minha, mas não pense nisso. Ela ficará bem logo, e haverá suficiente tempo, antes que seja uma mulher sem forma.

Amicia levantou a taça.

— Espero que valha a pena todo o esforço que está fazendo por ela.

Ambos beberam a taça de um só trago.

— Agora, vá ver como está. Deixou-a sozinha muito tempo. Procure que ela coma algo que fique dentro dela.

Amicia alcançou a jarra e encheu de novo sua taça.

— Há tempo. O único que faço é ver como se revira na cama e se queixa todo o tempo. Nem sequer faz um esforço para se levantar, fica estirada ali, chamando-o uma e outra vez.

Morell franziu o cenho e encheu sua taça.

Lyonene estava recostada contra a parede, seu coração pulsava fracamente. Começou a retirar-se pouco a pouco para chegar à porta de cabine. Alcançou a cama e se deitou. Se seu corpo não estivesse tão seco, teria começado a chorar, mas não havia força nela, só o sombrio e desolado conhecimento que tinha sido presa fácil de um plano insidioso.

Lyonene ouviu Amicia entrar no quarto e tratou de manter seu rosto escondido, tinha que fingir que continuava doente ou o destino que a aguardava seria pior que o de um estômago doente. Devia simular a enfermidade e escapar de algum jeito de seus raptores e não devia pensar no passado.

— Me perdoe, meu doce Ranulf. — Sussurrou.

— Aqui têm sua imunda cama-de-gato.

Amicia levantou bruscamente seu rosto e a forçou a engolir de uma taça de estanho, com o metal golpeando nos dentes. Bebeu com vontade a água velha.

— É toda uma dama. Possivelmente, seu marido pensaria duas vezes quando estivesse a um metro do mau cheiro que vem de você. Basta! Não vá se afogar. — Sacudiu a cabeça de Lyonene e a olhou aos olhos.

Lyonene se esforçou para manter o olhar perdido.

— Era esperar demais, que eu me livraria da carga que é você. Morell a deseja. Homens! Tudo está em suas cabeças. Uma mulher é igual à outra, assim como os homens são muito iguais.

Deixou cair à cabeça de Lyonene e ela caiu de novo na dura cama.

— Pelo menos, agora bebe, dentro de pouco poderá tomar um pouco de caldo.

Para Lyonene, o mais difícil era suportar a sujeira de suas roupas. O fedor fazia que seu débil estômago se revolvesse inclusive quando bebia água. Teria que mostrar a Amicia que se encontrava melhor, pois logo precisaria utilizar o urinol. Quando a mulher franca retornou, virou-se para olhá-la.

— Assim está acordada. Passaram-se muitos dias.

— Quantos? — sussurrou Lyonene.

— Dez.

— Então faltam dois dias para chegar a Irlanda. Fui uma carga para você.

— Sim, foi.

— Não sabia que viajaria a Irlanda. Não deveria estar em Malvoisin?

— Não comece a chorar de novo. Já tive o suficiente. Você deve ter tido febre causada por algo mais que o movimento do mar e, esteve delirando todo o tempo que esteve doente. Não há nada sobre você ou lorde Ranulf que eu não saiba. Deixaremos este navio logo e Morell quer que você esteja bem. Deve bebe isto e dormir. — Deu a taça de sopa quente bruscamente na mão de Lyonene.

Por muito que o tentou, não pôde levantar a pesada taça. Seus dedos tremiam e seus braços, débeis, não obedeciam seus comandos.

—Aqui! — Amicia, muito zangada, levantou a taça, forçando Lyonene a beber. Inclinou muito a taça e empurrou a cabeça da inválida Lyonene muito para atrás, uma parte do conteúdo caiu em cima de sua túnica, acrescentando mais sujeira. — É pior que um bebê. Tenho que cuidar de você como se fosse uma criança e já estou farta. Seu aroma me repugna, já não se parece com uma mulher. Não acharia estranho se perdesse o menino.

Lyonene pôs seus trementes dedos no ventre, dando-se conta de que tinha crescido, mesmo depois desses poucos dias.

— Não aconteceu nada ao meu filho, verdade? — Perguntou ansiosa, temerosa de que algo mal tivesse ocorrido.

— Não. Está muito firme. Agora devo ir ver sir Morell. Queria saber quando você se levantaria.

Lyonene se sentou na cama de armar apoiada na parede, sentindo-se tão cansada como se tivesse subido uma montanha, ou possivelmente várias montanhas. Apesar do desconforto da áspera roupa, e de seu aroma, do cabelo emaranhado, quase tinha adormecido quando sir Morell abriu a porta da cabine.

— Mon Dieu! Amicia, não posso entrar nesta cabine! Tire-a daqui e a banhe, pois vejo que a deixou em seu próprio vômito. Encarregar-me-ei de que limpem a cabine. Você é um animal para tratar qualquer mulher assim. Saia da minha vista!

Fez-se silêncio e Lyonene sentiu que voltava a ficar adormecida. Mãos grosseiras a levantaram da cama de armar.

— Não me importo tanto com ela. Vi prostitutas que estavam em pior estado.

Uma voz áspera ressoava acima dela. Abriu seus olhos cansados o suficiente para ver que a trocavam de cabine.

— Não, ela não está tão mal. Seus olhos são da cor de uma joia que uma vez vi usar sua senhoria.

— Ranulf? — Suspirou Lyonene.

— Sim, falo de lorde Ranulf. Agora, não se preocupe porque ele vai te comprar de volta. Não, ele não a deixaria partir.

— Mantenha a boca fechada, marinheiro! — A voz de sir Morell chegou através de uma neblina.

Ela não devia deixar sob nenhum pretexto que pensassem que sabia quais eram seus planos.

— Ranulf? — Sussurrou de novo.

— Veem? Não sabe do que estou falando. A dama está muito doente para me ouvir. Pesa menos que uma pluma, e isso que está grávida.

— Se ocupe de seus assuntos e não lhe fale mais. Possivelmente, mais tarde recorde suas palavras.

— Sim, senhor.

Depositaram Lyonene em uma cadeira. Estava muito cansada para abrir os olhos. Notava a umidade e o calor perto dela, o que lhe dava mais vontade de dormir.

— Não, não pode dormir agora. Meu cavaleiro quer que lhe dê um banho. Não acredito tanto nos banhos como ele, não é bom para a pele. Venha aqui! Não caia! Se não me perguntará de onde saíram às feridas. Não posso acreditar que pudesse cheirar tão mal depois de somente dez dias.

Lyonene sentiu a brisa fresca, enquanto Amicia lhe arrancava a roupa.

— Agora fique de pé, mais acima.

A água a fazia se sentir maravilhosa, molhando sua pele, enchendo seus poros ressecados, como se nenhuma quantidade de água a tivesse feito se sentir cheia se a houvesse bebido. Inclusive, desfrutou da brutalidade do banho de Amicia. Ninguém mais que ela queria desfazer-se da imundície de sua enfermidade. Lavou seu cabelo e os dedos da mulher esfregaram o couro cabeludo, eliminando toda a sujeira.

Lyonene se sentiu quase viva quando ficou de pé no banheiro, enquanto Amicia a enxaguava com água quente. Secou-a com muito brio com uma fina toalha e por fim, as roupas limpas tocaram sua pele.

— Não haverá mais seda fina para você, milady. Esta roupa é abrigada e ampla e deixará que a criança cresça. Parece que está crescendo muito depressa. Morell não gostará disso. — Começou a rir.

Lyonene não fez nenhum gesto que demostrasse que tinha entendido as palavras da mulher, desfrutando por um momento de ter a pele fresca e roupa limpa para usar. A pálida mulher abriu a porta e um homem enorme entrou vestido com roupa ordinária e com o cabelo emaranhado e sujo.

— Agora parece uma dama de verdade, como quando cavalgava junto a lorde Ranulf.

Lyonene fechou os olhos e fingiu uma insensibilidade que não sentia. O marinheiro a transportou à pequena cabine e a deixou com cuidado na cama recém-feita, com lençóis que cheiravam a água de mar e a raios de sol. Relaxou, agradecida, desfrutando plenamente dessa comodidade física, que ocultava sua situação real.

— É muito bonita. Sabia que os cavaleiros da Guarda Negra a chamam de lady Leoa? Uma vez tentei falar com ela, mas esse Corbet desembainhou sua espada contra mim. Não deixam que ninguém se aproxime dela, exceto aqueles que gozam do favor de sua senhoria.

— Deixe-a aqui, seu idiota! Não preciso de suas estúpidas histórias para me divertir. Não teria pensado que era uma dama tão bonita se tivessem tido que segurar sua cabeça em cima do urinol.

— Não, uma verdadeira dama sempre é uma dama.

O tom de desprezo de suas palavras ia claramente dirigido a Amicia.

Lyonene dormiu durante muito tempo, despertou uma vez quando a cabine estava escura, mas voltou a dormir em seguida. Quando despertou de novo, a cabine estava iluminada e se sentia muito melhor. Faminta, sedenta, débil, mas viva, com a convicção de que seguiria viva.

Não passou muito tempo até que Amicia entrou na cabine com uma bandeja cheia de comida.

— Parece que vai voltar a viver.

Lyonene bebeu um gole da sopa quente e comeu um pedaço de pão.

— Morell ficará contente de saber que você está prestes a estar recuperada. — Ela olhou para Lyonene com um ar malicioso.

A condessa sabia o que queria dizer essas palavras, os olhos cheios de lágrimas e quando terminou de comer o que havia lhe trazido, deitou-se na cama, cansada.

— Devo dormir. — Murmurou, consciente do exame que estava sendo submetida por Amicia. Tinha que fazê-la acreditar, por todos os meios, que continuava muito doente. Só assim teria uma possibilidade de que sir Morell a deixasse em paz.

No dia seguinte Lyonene se sentia muito mais forte, mas não o demostrou a Amicia. Sir Morell foi visitá-la e Lyonene murmurou algo sobre o filho que carregava e tampou a boca com a mão. Viu o olhar de asco no rosto do cavaleiro, antes que este saísse correndo. Também estava ciente de como isto divertia Amicia, assim decidiu seguir com a comédia.

Mais tarde, nesse mesmo dia, o navio se deteve e logo começou a ouvir ordens e gritos, enquanto tratavam de atracar no porto. Amicia se aproximou dela.

— Agora viajaremos para... a casa de seus parentes. Deve montar ao meu lado e se afastar de sir Morell até que esteja bem.

Lyonene acreditou notar um tom de brincadeira nas últimas palavras da mulher. Ela mal teve tempo de tirar o cinto com o leão de seu esconderijo, debaixo da cadeira acolchoada. O instinto a tinha impulsionado escondê-lo e a caixa de marfim de Ranulf tampouco deveria ser encontrada. Prendeu o cinto debaixo das dobras da capa de lã, sobre seu estômago, puxando mais tecido para frente e acrescentando mais volume a seu ventre cada vez maior.

Amicia percebeu o aumento de volume, mas não disse nada, isso a animou que seu truque era necessário.

Não houve mais atuação quando a levaram para o outro lado do navio. A horrível escada de corda se balançava, e ela caiu quando tentou caminhar por ali. Seus débeis braços começaram a tremer violentamente, tanto pelo esforço como pelo sentimento do perigo que corria.

Um homem forte a agarrou pela cintura e a depositou com doçura no bote a remos.

— Cuidado, não demostre muito afeto com a dama. — Disse sir Morell, rindo do marinheiro que a segurava.

— Não quero que ocorra nada a ela e nem com a criança. Você jurou que não seriam feridos.

— Não, ninguém vai machucá-la. Meus planos para a dama não incluem lhe causar dor, mas tudo depende dela. Amicia, não pode fazer algo para ajudá-la? Ela não tem mais vida do que uma boneca de pano.

Por um momento, os pálidos olhos de Amicia se encontraram com os olhos verdes de Lyonene e se entenderam. Enquanto Amicia acariciava a perna de sir Morell, ela e Lyonene se olharam intensamente. Houve um silencioso acordo, entre as duas mulheres, fazendo abstração de seus papéis de prisioneira e raptada, mas simplesmente duas mulheres, com o reconhecimento de sua condição. Amicia assentiu brevemente com a cabeça e Lyonene fechou de novo os olhos. A força tinha abandonado seu corpo.

— Está muito doente, Morell. Na realidade, temo por sua vida. Ainda falta muito para o nascimento do bebê, mas acredito que está sentindo dor. Claro que, se quiser, poderá tomá-la assim. — Amicia fez um gesto para o corpo enfraquecido de Lyonene, todo um exemplo de debilidade.

— Não, eu prefiro uma mulher e não um inútil saco de pano. Encontraremos uma curandeira que possa fazer algo com ela.

— Acredito que deveríamos ir diretamente a casa da viúva. Quando encontrarem um navio do Leão Negro vazio, isso causará muito alvoroço. Devemos dar-nos pressa para que não nos vejam.

— Têm razão. Eu não gostaria que Ranulf de Warbrooke encontrasse sua esposa, antes que eu possa obter minha recompensa.

Descer pela corda não era nada comparado com as horas montado a cavalo. E tudo que Lyonene soube fazer foi ficar em cima do animal. Tratava de pensar em uma maneira de escapar, mas viajavam através de uma terra estéril e os caminhos, às vezes, eram muito pedregosos e íngremes, os esforços do cavalo não obtinha o estímulo da débil amazona.

Sir Morell virava frequentemente para observá-la, e ela tinha conseguido mostrar sinais de estar gravemente doente. Depois desse dia, não voltou a virar-se para ela, Amicia lhe dedicou um ligeiro sorriso, mas não foi correspondida.

À noite acamparam e só acenderam uma pequena fogueira para se protegerem do frio da noite. Lyonene pegou um pedaço de carvão e o escondeu dentro de seu manto. Esfregou um dedo sujo de carvão debaixo dos olhos e manchou por debaixo das maçãs do rosto.

Amicia a olhou estranhamente, mas não disse nada. Quando sir Morell a pegou pelo braço, ela se inclinou contra ele e lhe deu um sorriso pálido. Ele a afastou rapidamente. Nem sequer podia permitir-se um mínimo sorriso de triunfo.

No terceiro dia, chegaram a uma velha torre de pedra, cujas ameias se desmoronavam na parte de acima. Quase tinham chegado às muralhas do castelo, quando se ouviu a voz de alto de um sentinela.

— Sou sir Morell, antigo membro da guarda de Malvoisin. Gritou para o cavaleiro.

Enferrujadas rodas de ferro começaram a mover-se e os portões se abriram. A ponte levadiça que cruzava o fosso era pouco profundo, cheio de sujeira e inútil, as correntes estavam quebradas, portanto, o único que estava em bom estado, era o restelo com pontas de ferro.

Os captores não pretendiam que Lyonene fosse levada a casa de seus parentes. Falava-se livremente de resgate, aceitando que ela estava ciente dos planos ou como ela esperava, porque acreditavam que estava muito doente para entender suas palavras. Lyonene pensava que eram realmente estúpidos. Só Amicia percebia a quantidade de comida que a prisioneira consumia.

No dia anterior, o cavalo de Lyonene se assustou por culpa de um coelho e Lyonene teve que utilizar muita força para controlar ao animal. Não queria cair sobre o chão duro, nem sequer para mostrar aos outros que estava doente. Quando seu cavalo se acalmou, olhou para Amicia e viu seu sorriso que demonstrava que Lyonene não a enganara e reafirmando sua aliança..

Cruzaram a ponte e enquanto passavam por debaixo do velho restelo todos olharam para cima, temerosos de que o pesado portão caísse sobre eles.

— Morell! Está mais bonito que nunca.

Lyonene observou cabisbaixa e viu uma mulher alta e magra que corria para os braços abertos de Morell. Levava o cabelo e o pescoço completamente cobertos pelo véu e o barbette5 que o segurava no lugar.

— Entre. Tenho muito que lhe contar.

Suas palavras eram bastante comuns, mas Lyonene desviou o olhar enquanto as mãos da mulher entravam por baixo do tabardo de Sir Morell. Lyonene estava muito consciente das lembranças, de saudações felizes, do triste afastamento de perto de seu amado para sequer olhar para esses dois, tão obviamente, amantes.

O marinheiro a ajudou a desmontar do cavalo. Ela agarrou o braço de Amicia e caminharam para o castelo em ruínas. Os degraus exteriores de madeira que levavam ao segundo andar pareciam muito perigosos.

— A viúva só pensa em sua paixão pelos homens. Não se apoie em mim! Não suportarei mais seu peso. Tenho certeza de que está ciente de seu resgate.

— Sim, estou ciente. Sua avareza a conduzirá à morte. — A voz de Lyonene era dura.

Amicia sorriu sob a tênue luz do frio vestíbulo.

— Agora me ameaça, entretanto, não pensa que foi por sua avareza, por causa de seu filho, que aceitou rapidamente meu plano.

— Não foi por isso. Acreditava que Ranulf a amava.

A estranha risada de Amicia fez um ruído áspero.

— É mais estúpida do que acreditava. Então deveria haver ficado e lutado por ele.

— Mas... o rei Eduardo...

— Se cale! Eles ouvirão. Agora, isso já está feito e terá muito tempo para pensar em sua insensatez.

— Sim, minha insensatez. — Sussurrou Lyonene.

— Amicia. Traga nossa convidada para perto da luz. — Disse sir Morell.

Quando Lyonene parou diante do fogo, só olhou durante um breve instante à mulher que tinha a sua frente.

— O que a aflige? É algo contagioso? Não quero este tipo de enfermidade em minha casa.

— Não. Só se encontra mal pela gravidez. Estará bem quando descansar um pouco e comer algo. — Respondeu Amicia.

— Espero que valha a pena todo este esforço, Morell. Coloque-a em alguma parte... Amicia, não é assim? Canso-me somente de vê-la.

Lyonene se sentou em um banco sem almofadas, já que a única cadeira diante da lareira estava ocupada pela viúva.

— Está seguro de que seu marido não a encontrará aqui? Ouvi falar desse homem e eu não gostaria de ter que batalhar contra ele.

— Batalhar! Lady Margaret, você não poderia ganhar uma batalha nem contra uma tropa de enguias desarmadas, imagine uma tropa como a do conde de Malvoisin. — Zombou Morell.

— Morell, sei que minhas defesas não são como eram quando meu querido marido estava vivo, mas posso lhe assegurar que treinam muito energicamente.

Sir Morell jogou a cabeça para trás e começou a rir.

— O treinamento que dá a seus homens não é o tipo de treinamento que os preparam para uma batalha, ao contrário lhes tira a pouca força que têm. Não me fale mais de sua força. A razão pela qual escolhi este lugar é porque ninguém acreditaria que um valioso refém, como a condessa de Malvoisin, se esconderia em uma ruína de castelo como este.

Lady Margaret não pareceu ofender-se pelas palavras de sir Morell.

— Subestima-me, como sempre.

Ela bateu palmas duas vezes e quatro homens apareceram dos cantos da sala. Eram homens feios, tinham cicatrizes e os narizes e as maçãs dos rostos deformados por muitos golpes e feridas. Estavam armados com uma maça, um malho de correntes, um martelo e um machado de guerra. No cinto também levavam outras armas mortíferas.

— Estou contente ao ver que está tão bem protegida, lady Margaret, mas de verdade acha que estes quatro homens, poderiam resistir ao Leão Negro, se este atacasse? Sempre o segue esses sete diabos. — Apertou as mãos com raiva.

— Não destrua a taça, Morell! Eu sei de sua campanha para ser um de sua guarda, mas ele viu muito cedo o que você é. Nenhum homem deseja ter que proteger-se de seus próprios homens. Não! Aconselharia que não tentasse me bater. Minha própria guarda não veria tão bem seus golpes como eu suportei no passado. Não acredito que entenda a minha guarda. Não me protegem, mas sim, estão aqui por ela.

Lyonene levantou a cabeça e viu como a mulher a apontava com o dedo.

— Meus homens nunca a deixarão sozinha. Se um cavaleiro de Malvoisin tentar resgatá-la, meus homens a matarão antes de poder ver o rosto do atacante.

Sir Morell riu.

— É mais inteligente do que pensava. O cavaleiro não tentará nada se souber que sua vida está em perigo. Poderia tê-la em meio de um campo, em meio de seu próprio castelo e o único que poderia fazer é pagar o resgate. Sim, é inteligente.

— Obrigada, cavaleiro. — Ela levantou seus braços e os deslizou por seu pescoço. — Agora vou dizer-lhe que meus homens a manterão longe de você também.

O cavaleiro a empurrou.

— Não, quero ter esta mulher e a terei.

Um gesto rápido de lady Margaret e os quatro corpulentos homens rodearam o discreto corpo de Lyonene. Parecia ainda mais perdida, mais sozinha, quando se aglomeraram ao redor dela.

— A mulher será mantida aqui, mas como convém a ela, não como uma prostituta para seu uso. Pelo que ouvi do Leão Negro, um tratamento como este o enfureceria, provocaria que perdesse o senso comum e poderia forçar um ataque, por ódio. Se a mulher morrer, não receberemos o resgate. Se o conde morrer sem herdeiro, Malvoisin voltará para o rei inglês e também perderíamos o resgate.

— É um herdeiro o que leva no ventre!

— Acaso é bruxo e sabe o sexo da criança ou se viverá? Esta mulher parece estar às portas da morte. — Sua voz soava cheia de sarcasmo. — Não, cuidaremos bem dela durante todo o tempo que esteja aqui. Alice! — Girou-se para uma mulher gorda que saiu das sombras. — Esta é lady Lyonene. Estará a seus cuidados. Leve-a a sala da torre que foi preparada para ela. Lembra-se do que te disse?

A mulher assentiu e caminhou para Lyonene, agarrando-a pelos braços, com firmeza, mas amavelmente.

— Pode-se confiar nesta mulher? Lyonene tem uma maneira muito particular de ganhar o carinho dos servos. — Disse Amicia enquanto via como as duas mulheres abandonavam o salão.

— Tenho certeza de que não terei problemas como este. — Lady Margaret examinou o corpo esquálido de Amicia. — Alice é muda e não pode contar nosso segredo. Também é retardada. Contei-lhe que está grávida e cuidará de nossa preciosa condessa. — Riu olhando à porta por onde tinha saído Lyonene. — A vida desta mulher parece estar isenta de dificuldades. Filha de um barão, casada por amor com um conde rico e bonito... não há nada que não tenha.

— Sim. Já é hora que compartilhe um pouco dessa felicidade com os outros. — Disse Amicia rindo.

 

 

 

 

 

 

Capítulo 15

— Alice?

Lyonene se espreguiçou. As mantas de fina lã eram pouco adequadas para o frio úmido e as correntes de ar da torre.

— Está bem esta manhã?

Viu como a gorda mulher se agachava diante do fogo lentamente tratando de avivá-lo. Alice se virou e sorriu a Lyonene, assentindo com a cabeça.

— A tosse de sua mãe está melhor?

Alice imitou a alguém que bebia uma taça e depois assinalou com o dedo para Lyonene.

— Ah, então as ervas que te recomendei lhe fizeram bem? Estou feliz. Faz muito frio para estar doente.

Lyonene tentou sentar-se e imediatamente Alice correu para ajudá-la.

— Está enorme, não é verdade? — Lyonene sorriu e esfregou a enorme barriga. — Ranulf estaria...

Alice a agarrou pelos ombros, franziu o cenho e meneou a cabeça vigorosamente.

— Não, sei que não deveria. As lembranças são ainda muito dolorosas. Acha que há alguma possibilidade de que o menino deu meu cinto a alguém? Quando sir Morell o apanhou, já não o tinha.

Alice se virou.

— Sei o que você dirá. Que aconteceu há muito tempo e que não há notícias. Lady Margaret disse que Ranulf não responde a suas petições. Acha que não pagará o resgate? Causei-lhe tantos problemas.

Alice se virou para ela com uma expressão dura no rosto, enquanto entrecerrava os olhos em um gesto de ameaça. Lyonene se pôs a rir.

— Eu não vou começar de novo. Você já ouviu muitas vezes. O que poderíamos fazer hoje? Vestir-nos com roupas de ouro e cavalgar em nossos garanhões pelas colinas da Irlanda?

Alice sorriu e se dirigiu para uma arca de madeira no canto do quarto. Abriu-o com reverência e tirou uma bolsa de couro que continha um precioso livro.

Lyonene sorriu.

— É um bom dia para a leitura. Diga-me, estão bem os guardas? Não se esqueceram de mim?

Alice estremeceu e lançou um olhar aterrador à porta de carvalho.

— Alice, não podem ser tão horríveis como pensa. Faz quatro meses que estou aqui e tudo o que fazem é estar sentados e vigiar.

Alice se limitou a olhá-la. Tinham discutido este assunto antes e não tinham solucionado nada. Ajudou a sua ama a sair da cama já que a gravidez de Lyonene a fazia ser muito desajeitada. Amarrou as roupas de lã sem apertar e penteou o comprido cabelo.

— Acha que deveria cortá-lo? Brent me disse que algumas mulheres da corte o achavam muito comprido. Falei-te do Brent?

Enquanto Alice sorria indulgentemente, Lyonene pegou sua mão e a aproximou de sua bochecha.

— Claro, já te contei tudo o que tinha que contar sobre mim. Deve estar aborrecida com minhas histórias.

Como resposta, Alice acariciou a bochecha de sua ama.

— Lady Margaret acredita que é retardada. Não gostaria de saber que está muito longe da verdade. Não acredito que a tivesse colocado como minha guardiã se soubesse a inteligência que tem. Sente-se ao meu lado e lerei por um momento e logo te ensinarei mais letras. Um tempo a mais e poderá ler este livro sozinha. Já te disse que Ranulf tem seis livros?

Parou de falar e começou a rir.

— Não me olhe assim. É uma crítica muito feroz. Não te falarei mais de Ranulf por agora, mas cuidado, porque dentro de um momento, possivelmente, recorde coisas que ainda não te contei. Duvido-o, mas pode ser.

Ambas se viraram quando a porta se abriu e apareceu lady Margaret.

— Não parece uma prisioneira maltratada. — Se sentou em uma cadeira frente a lareira. — Não há notícias. — Olhou para Lyonene em silêncio. — Tinha entendido que seu marido a amava ao extremo, mas não parece muito ansioso por sua volta. Meu mensageiro voltou ontem à noite e disse que o conde de Malvoisin está se divertindo na corte com as damas. Não parece ser o marido que perdeu a sua esposa e que sente falta com loucura. Não têm uma resposta para este enigma?

Lady Margaret observava Lyonene.

Lyonene olhou para outro lado.

— Não, não tenho. — Respondeu rapidamente. — Não foi para mim a quem disse que amava, e sim para Amicia. Sou a filha de um barão e possivelmente Ranulf encontrou a outra. — Ao pronunciar seu nome, os olhos se encheram de lágrimas.

— Ora! — Margaret se levantou e se dirigiu para a janela, cujas venezianas não estavam bem fechados e se filtrava o gelado vento da manhã por debaixo das janelas. — Seja lá o que for que sinta por você, não esperava isto dele. É sua mulher por lei e deve saber que a criança está a ponto de nascer. Se não for por você, o fará pelo menino. Morell voltará para a Inglaterra para comprovar por si mesmo porque ele não está preparando um resgate. Devia haver imaginado que Amicia era uma mentirosa. O precioso ajudante de seu marido disse que espera que você não volte nunca mais. — Lady Margaret pôs-se a rir ao ver o rosto de surpresa de Lyonene. — Então acreditava que todos a amavam. É muito vaidosa. Ninguém lhe disse isso antes?

— Sim, já me disseram isso. — Sussurrou Lyonene.

— Agrada-me saber que pelo menos há um sussurro de verdade neste velho castelo. Seus guardas começam a impacientar-se. Querem conhecer esse seu marido, pois ouviram falar de sua grande força. Você gostaria de ver como enfrentam a ele? Morell acredita que poderia com eles. Ah, vejo que não está muito segura. Se não tivesse a chance de perder a recompensa, gostaria de comprová-lo com meus próprios olhos, pois este homem me irrita com sua insolência, não respondendo as minhas mensagens.

Lady Margaret observou o fogo.

— Se não valo nada para você, por que não me deixa partir? Devo custar muito em comida e logo terá que cuidar também do bebê.

— Sim, você é inútil para mim, mas deve haver algum valor em você. É verdade que você me custa muito e precisará pagar essa dívida. Depois que tenha seu filho esperarei um pouco mais. Seu marido pensará de outra maneira quando já tiver dado a luz.

Lady Margaret abandonou o quarto.

Lyonene não se dava conta das lágrimas que caíam por suas bochechas e, pouco a pouco, notou que Alice a estava sacudindo com força.

— Por que faz isto? — Perguntou ao ver o rosto atormentado de sua donzela. — Está zangada comigo. O que fiz?

Alice apontou para a porta fechada, então franziu o cenho para sua ama, vigorosamente sacudindo a cabeça. Fazia meses que passavam muito tempo juntas e durante este tempo haviam desenvolvido sua própria maneira de comunicar-se.

— Está me dizendo que sou uma estúpida. — Afirmou Lyonene sem rodeios.

Alice a soltou e ficou de pé diante dela, com as mãos nos quadris e um olhar de desdém.

— Acredito em tudo o que me dizem. Primeiro as mentiras de Amicia sobre Ranulf e agora as histórias de lady Margaret, mas o que me diz de William de Bee? Por que me odiaria o assistente de Ranulf?

Alice sacudiu as mãos com um ar de aborrecimento. Lyonene se pôs a rir.

— Sei o que está dizendo. É difícil para mim não acreditar neles. Suas mentiras são muito lógicas.

Alice se ajoelhou diante sua ama, agarrando suas mãos e lhe implorando com o olhar. Ela bateu a cabeça com um dedo.

— Sim, deveria pensar por mim mesmo. Tenho certeza de que Ranulf preocupa-se comigo. Certamente, passamos tão poucos momentos juntos. Odiou-me durante tanto tempo que me custa acreditar que tenha mudado. Não sacuda a cabeça assim. Acredito que conheço meu próprio marido. Ah! — Franziu o cenho ao ver os gestos da Alice. — Tenho certeza de que sou mais inteligente que a criança que ainda não nasceu. Por que Ranulf foi a corte? O rei Eduardo não lhe dará o dinheiro para meu resgate. O rei quer que Ranulf se case com uma princesa castelhana.

Lyonene observou Alice.

— Tem razão. Possivelmente lady Margaret minta e Ranulf não está na corte.

Começou a rir ao ver a exasperação de Alice.

— Sou uma condessa, sabe? Em minha casa, os servos me tratam com respeito.

Alice pôs sua cabeça sobre o joelho de Lyonene e a jovem mulher acariciou seu grosso cabelo.

— Seja lá o que eu disser, você é mais que uma donzela para mim. Se não fosse por você, pelas longas horas e dias, que escutou minhas intermináveis histórias, teria me jogado pela janela. Você gostaria de escutar mais histórias sobre a mesa redonda? —Sussurrou Lyonene.

Quando Alice assentiu com a cabeça, Lyonene começou a falar, pois sabia que à mulher adorava ouvir sobre o esplendor, os jogos, as comidas, as roupas, os cavaleiros poderosos que lutavam uns contra os outros. Não havia um instante do torneio de três dias que Lyonene não tivesse contado a Alice, mas ambas desfrutavam com a história uma e outra vez, e ambas sabiam que isso evitava que Lyonene pensasse na realidade das paredes de pedra que a encerravam e de escutar as mentiras que a rodeavam.

Pela tarde, Lyonene dormiu e Alice cuidou de suas obrigações fora do castelo. Quando despertou, ficou deitada pensando no tempo que durava sua captura. A maioria dos dias tinha passado com Alice na habitação da torre. Irlanda era mais quente que a Inglaterra, mas as paredes de pedra criavam uma atmosfera sombria e opressiva. Nunca tinha estado fora do castelo desde que entrou nele, e a falta de sol e exercício não ajudavam a levantar seu ânimo.

Ultimamente, desde que o filho que esperava ficou grande em seu ventre, atrevia-se a sair do quarto, pois sir Morell sempre espreitava, tocando seu cabelo, seu ombro, sorrindo de uma maneira que não deixava dúvidas sobre seus pensamentos. Cada vez que se lembrava da conversa que tinham tido quando chegou no castelo estremecia.

— Por quê? Por que você faz isto? — Tinha lhe perguntado.

Ele tinha rido de uma maneira muito insolente.

— Acaso não será suficiente o dinheiro que receberei de seu marido? Não será a adorável Lyonene o bastante? — Sir Morell tocava o corpo de Lyonene.

Ela levantou a cabeça e o olhou fixamente aos olhos.

— Não, não o é. Fui uma estúpida em não acreditar em meu marido. Mas você eu não acho que seja estúpido. Há algo mais atrás do ouro.

Ele sorriu ligeiramente e observou a taça vazia.

— Tanto conhecimento por parte de alguém tão jovem. Quer que conte uma história? — Sem lhe dar tempo para responder, seguiu falando. — Você não conheceu seu marido quando este era um jovem. Ele mudou muito desde que conheceu você. Cheguei como escudeiro, um entre vários jovens, justo depois da morte de sua esposa. O jovem lorde Ranulf! Tão forte, tão reservado, tão escuro!

Não se deu conta do olhar de pena de Lyonene. Ele encheu sua taça e continuou:

— É uma história muito simples, na realidade. Eu era jovem com vontade de agradar, ansioso de obedecer às ordens de meu amo que tinha minha idade. É estranho como chegamos a odiar as pessoas que nos fazem mal e assim nos desfazemos de nossa inocência. Servi-lhe durante quatro anos, quatro anos que dava a esse cavaleiro para nada, pois não me escolheu para sua guarda. Não, disse que todos os seus cavaleiros deveriam ter o mesmo negrume diabólico que ele. Então, por um pouco de cabelo claro, utilizaram-me e me afastaram como se fosse lixo.

Lançou sua taça violentamente em direção ao fogo, batendo de raspão em um dos cães de caça, que saltou e, dando um uivo saiu correndo.

Lyonene se sentou com calma atrás do escudo que formavam seus vigilantes.

— Não poderia ter sido por outra razão? Possivelmente escolheu seus cavaleiros, porque viu neles algo de seu caráter que gostava.

Morell se levantou e a olhou fixamente, sem ter percebido que os guardas tinham as mãos em suas armas.

— Eu dava tudo! Não tinha o caráter que tenho agora.

Seus olhares se encontraram e Lyonene sentiu que Ranulf tinha visto o homem em que Morell ia se converter. Seu marido não era tão vaidoso para deixar de lado a um bom cavaleiro só por uma pequena a cor de cabelo.

— Acaso não é o homem de hoje o que foi ontem?

O rosto de Morell se tornou vermelho e já tinha dado um passo para ela, quando sentiu a pesada mão de um dos guardas no ombro. Livrou-se da mão, enquanto seguia olhando fixamente Lyonene.

— Ele pagará pelo que fez e não esquecerei suas palavras. — Disse com voz rouca. Virou-se e, muito irado, saiu a grandes passos da sala.

Lyonene sacudiu a cabeça para livrar-se desses horríveis pensamentos e observou seu ventre enorme.

Alice o apalpava cada dia para verificar o progresso da criança em crescimento. Lyonene temia que rasgasse sua pele, de tão tensa que estava, mas Alice a tranquilizou e o bebê já estava virado corretamente para seu nascimento. Lyonene estava impaciente para dar à luz e poder se livrar do enorme peso. Fechou os olhos e pensou na alegria que sentiria ao ter em seus braços um bebê de cabelo e olhos negros.

Alice tocou seu ombro e Lyonene saltou.

— Não te ouvi entrar. Sim, eu gostaria de ir ao grande salão. Diverte-me ver a cara de asco de Morell porque estou tão enorme. Se não me cansasse tanto carregar minha barriga por toda parte, eu gostaria de ficar assim durante um bom tempo. Acha que ele se cansaria de mim se eu permanecesse assim por vários anos? — Esfregou o abdômen alegremente. — O que pensaria se fossem gêmeos? Ranulf disse uma vez... Não, não chorarei de novo. — Lyonene começou a rir ao ver o olhar zangado de Alice.

— Vejo que nossa condessa nos honra com sua visita, por dois dias seguidos. Estamos muito honrados. — Disse Amicia, saudando-a. A mulher franca sorriu quando viu que Morell desviava o olhar para o outro lado. — Morell, não acha que tem muito bom aspecto? Tenho certeza de que leva pelo menos dois meninos nessa enorme barriga.

Morell olhou Amicia com um olhar de desprezo e abandonou a sala. A mulher lançou um sorriso triunfal.

Alice acompanhou sua ama a uma cadeira ao lado da lareira. Lyonene alisou sua saia e olhou a seu redor. Lady Margaret estava de joelhos, no chão, jogando dados com outros dois homens. Sua risada se propagava por toda a sala. Ocasionalmente, ela passava a mão pela coxa de um dos homens, e Lyonene desviava o olhar. Amicia tentava se introduzir no grupo. Alguns servos, dois homens seguidos por outros, carregavam lenha para o fogo. O homem que tinha atrás era muito grande e havia algo nele que fez com que ela o observasse fixamente. Alice tocou seu ombro e franziu o cenho, não era muito apropriado que Lyonene olhasse assim aos servos, especialmente aos homens.

Lyonene olhou para o outro lado, mas quando viu que Alice voltava a concentrar-se na costura, não pôde evitar lançar um olhar rápido. Havia algo nesse homem... Alice lhe chamou de novo a atenção, logo a donzela saiu para procurar mais fio. Os quatro guardas que sempre a vigiavam de perto estavam concentrados no jogo de dados.

Os três servos se aproximaram do fogo. Lyonene olhou para o outro lado, fascinada pela malha de sua bata de lã. Exortou-se a si mesmo por ser tão estúpida. Tinha vista centenas de servos em sua vida, e jamais nenhum tinha chamado sua atenção, mas agora sentia que queria ver o rosto desse homem. Ele agarrou um atiçador e moveu as lenhas do fogo. Este ato captou sua atenção e, quando ela olhou fixamente a mão morena coberta de pelo negro, ela parou de se mover. Lyonene sabia que ele a estava observando, que tudo o que tinha que fazer era levantar o olhar para ver o proprietário dessa mão tão familiar. Olhou para cima muito lentamente, temerosa do que iria ou não ver.

Os olhos de Ranulf se encontraram com os seu em um olhar inexpressivo, com as negras íris procurando seu olhar verde esmeralda. Seus olhos a percorreram rapidamente e pareceu não se importar com a mudança em sua figura quando voltou a olhar seu rosto.

Só podia olhá-lo, assombrada de que estivesse diante dela, obviamente desarmado. Se o reconhecessem, não teria muitas oportunidades de defender-se contra um homem armado com uma maça. Mas apesar de todos os seus medos havia também pura alegria ao ver que ele arriscava tanto por ela, que a tinha procurado, que não tinha ido a corte para relaxar e esquecer-se dela. Lutou para articular uma palavra, um sinal de amor, para lhe dizer tudo o que seu coração sentia por ele, para lhe avisar do perigo que enfrentava por ela.

— Enviaram-me para cortar lenha. — Disse ele com uma voz tranquila que transmitia todo o desgosto e a degradação de fazer uma tarefa tão humilde. Quando ele se foi, antes que pudesse piscar, sentiu-se sozinha de novo com suas palavras flutuando no ar.

Sentou-se tranquila durante um momento olhando fixamente ao fogo. Sentiu que nascia uma enorme risada dentro dela, retumbando e preparando-se para sair. Esforçou-se por controlar-se e a risada reprimida se converteu em lágrimas, em uma mescla de alegria e sofrimento.

Durante quatro meses inteiros, não o tinha visto, com tudo o que tinha ocorrido! Tinham-na raptado e pediam um resgate, seu corpo tinha aumentado muito da última vez que tinha visto seu marido. Agora, enquanto estava sentada rodeada desses horríveis guerreiros, ele caminhava com calma pela sala, diante de todos e o que disse à esposa que ele procurava? “Enviaram-me para cortar lenha.” Nenhuma expressão de carinho, nenhuma palavra doce pela sua saúde ou do filho que que crescia em seu ventre, a não ser uma manifestação indignada, por ver-se obrigado a cair tão baixo por ela, só para resgatá-la.

Afundou o rosto em suas mãos, incapaz de acalmar suas emoções que sacudiam seus finos ombros. Tinha vindo! Dissesse o que dissesse, fizesse o que fizesse, estava bem, porque tinha vindo por ela.

Alice tocou em seu ombro, uma pergunta fazia enrugar a sobrancelha.

Lyonene olhou a seu redor rapidamente, mas sabia que Ranulf tinha partido.

— Já é hora de jantar, Alice? Admito que estou faminta. —Dedicou um sorriso brilhante a sua serva.

Alice sorriu com aprovação pelo apetite de sua ama; frequentemente não comia o suficiente. Mas também viu outra coisa, uma felicidade, uma luz nesses olhos verdes, que não conhecia.

O sentimento de antecipação levantou o ânimo de Lyonene durante todo o jantar, apesar de que, cada vez mais, dava-se conta do perigo que aguardava seu marido. Estremeceu ao pensar em seu atrevimento ao entrar na sala, tão perto de quem poderia reconhecê-lo facilmente.

— Têm frio? — Perguntou-lhe lady Margaret e Lyonene respondeu com uma negativa. — Espero que não seja a criança. Não estou pronta para ser parteira.

— Não, o menino não chega ainda. Só estou cansada de levar tanto peso. Agora irei para meu quarto. — Lyonene se levantou e Alice a seguiu.

De novo em seu quarto, Lyonene abandonou seus medos e, desalentada, sentou-se diante do fogo. Alice estava preocupada com ela e Lyonene tentou sem muito êxito dissipar os medos da mulher. Lyonene não disse nada a propósito da aparição de Ranulf no castelo; a vida de Ranulf era muito preciosa para confiar em alguém, inclusive em uma amiga.

Deitou-se na cama mais cedo que o normal, esperando que o sono fizesse desaparecer alguns de seus medos. Alice a deixou sozinha para ir visitar sua mãe que vivia no povoado, algo no que Lyonene tinha insistido muito. Demorou bastante em adormecer.

A primeira coisa que ela percebeu foi uma mão sobre a boca, cortando sua respiração. Ela se agitou violentamente e arranhou a mão.

— Fique quieta, minha leoa. Não tire toda a pele de minha mão. Acaso não se lembra de mim?

Ela recuperou alguns dos seus sentidos e olhou nos olhos de Ranulf, suaves e gentis, e tão próximos aos dela. Ele afastou a mão.

— Então se lembra de mim. Passou tanto tempo, que pensava que... — Parou de falar quando viu que ela começava a chorar. Rapidamente voltou a cobri-la com as mantas e se deitou junto a ela, rodeando-a com os braços.

Lyonene chorou violentamente por um tempo. Os profundos soluços convulsionavam seu corpo e, pouco a pouco, acalmou-se.

— Isto quer dizer que está contente de me ver de novo? — Suas suaves palavras não combinavam com sua voz rouca e trêmula. Acariciou-a por todo o corpo, os ombros, os braços, e se deteve no enorme e duro ventre, sentindo os movimentos tranquilos do bebê. Foi um momento doce entre os dois, compartilhando o que tinham criado.

Ranulf gemeu, enquanto mantinha a mão quieta, mas possessiva sobre seu abdômen.

— Você está tão gorda que quase não a reconheci.

— Não estou... não estou gorda. — Choramingou ela, controlando suas lágrimas. — É somente o bebê que se sobressai muito. O resto está igual. — Disse, tentando se defender.

— Não, você não se viu por trás. Você anda como um pato, balançando para frente e para trás, de um lado para o outro. Inclusive seus pés se veem enormes. Por acaso eles ficaram laranja?

— Ranulf! Você é horrível! Você deve dizer que eu sou bonita quando carrego seu bebê no ventre, não me falar de minha feiura.

Ele levantou seu rosto para o dele.

— Sim, você é linda. — A beijou com doçura na boca e em suas úmidas pálpebras. Viu como suas lágrimas começaram a brotar de novo. — Mas você ainda é como um pato, o mais bonito dos patos, mas um pato de qualquer forma.

Lyonene sorriu, cessaram as lágrimas e se aconchegou no ombro de Ranulf.

— O que acha do pato que você me converteu? — Ela cobriu a mão dele com a sua, pousou-a no ventre e o chute forte da criança foi sentido por ambos.

— A criança se moveu?

— Sim. — Lyonene viu como Ranulf se enchia de orgulho.

— Isso é porque é forte.

— Tenho certeza de que nascerá com uma lança em uma mão e uma espada na outra. — Respondeu ela com sarcasmo.

— Eu espero que ele tenha mais consideração que sua mãe. Você não mudou. Você está tão insolente quanto antes.

— Então você se lembra de mim? Você não se esqueceu?

— Esquecer? Não poderia me esquecer de você como não poderia me esquecer de... levar minha perna direita comigo.

— Ah, então agora me compara com sua perna. É um cavaleiro muito romântico.

— Ousa me chamar pouco romântico! Olhe o que tenho vestido! Estou vestido de servo. A horrível lã me picou como nenhuma cota de malha tinha feito antes. Inclusive cortei lenha para estar perto de você. E agora me diz que não sou romântico. Eu atravessei o inferno para estar aqui.

— Ranulf, meu doce. Lamento ter causado tanta miséria. É tudo culpa minha.

— Bom, não chore de novo. A umidade faz que a lã pique ainda mais e que o aroma me repugne. Você não receberá nenhum argumento de mim. É tudo culpa sua e eu exijo saber por que você me deixou. Sempre me disse que sou um ignorante, mas nunca cheguei a cometer um ato tão estúpido como o seu.

— Nunca disse que era um ignorante.

— Não evite a pergunta. Quero ouvir por que me deixou

— Ranulf, este não é o momento. Você deve sair antes que esses homens descubram que você está aqui. Alice me fala muitas vezes de sua perfídia.

Ranulf agitou a mão.

— Bah! — Ele acenou com a mão. — Eles são pouco mais do que um exercício antes do jantar. Como Alice pode contar alguma coisa deles quando ela é muda?

— Sabe muito sobre mim. Por que não me beija mais um pouco Ranulf?

— Não. — Ele a empurrou de volta para o seu ombro. — Eu não vou lutar com meu filho por você. Um de nós de cada vez estará em você.

— Ranulf! — Lyonene deu um grito ofegante ao ouvir essa grosseria e depois se pôs a rir.

— Agora me dirá por que me deixou.

— Você é muito persistente. Preocupa-me que minha pele não volte a ser como antes, que fique flácida e solta.

— Sempre será preenchida com minhas filhas, Lyonene!

Ela compreendeu seu comando.

— Pensei que você se casaria com Amicia. Ela disse...

— Sei disso. Hodder me disse. Quero saber por que você acreditou nessa mulher e por que não confiou em mim?

— Eu confiava em você, mas os homens sempre levam outras mulheres para a cama.

— Verdade? Você sabe disso de fato? E se os homens fizerem, eles sempre se casam com elas e abandonam suas esposas?

— Não, mas Amicia disse que o Rei Edward...

— Edward é meu rei, mas ele não governa minha vida. Ele não pode me obrigar a fazer o que eu não quero.

— E Gilbert de Clare? Ele deixou sua esposa para tomar uma filha do rei Edward.

— Você conheceu Gilbert na corte. Você o compararia comigo? Ele é um homem ganancioso e Edward tem sido avisado sobre isso muitas vezes. Você verá problemas com o homem em breve. Ele não deseja agradar seu rei tanto como igualá-lo. Agora que outras razões insignificantes você dará para me deixar?

— Eu não sei. Pareciam tão lógicas as palavras de Amicia. Eu vi cartas que você mandou para ela. Ela tinha a fita. Eu vi você beijá-la.

— Não, você não viu! Você viu a mulher enrolar seu corpo feio sobre mim. Tive de me conter para não jogá-la no chão.

— Ranulf, não te vejo há muito tempo. Por que devemos falar desse desagrado? Sei que as palavras de Amicia eram falsas. Ouvi-a dizer a Sir Morell como conspiraram tudo.

— Temos toda a noite, pois não pretendo levá-la daqui até o amanhecer e desejo saber o que a fez acreditar nas palavras da mulher. Se tivesse mais confiança em mim, teria visto cem cartas e não teria acreditado nelas.

— É como você diz, mas havia algumas coisas que eu sabia que eram, certamente, verdade.

— Nomeie-os.

Lyonene ficou em silêncio por um momento, desejando que Ranulf não a obrigasse a falar de suas dúvidas.

— Amicia disse que quando ela olhou para você... eu sei, — ela gritou desesperadamente, — eu sei de seus sentimentos. Foi o mesmo comigo. Ranulf! Você ri de mim! Eu lhe digo meus pensamentos mais íntimos e você ousa rir de mim!

Neste momento, Ranulf agarrou sua mão quando Lyonene a levantou para golpeá-lo.

— Não vai ferir meu filho com seus movimentos teimosos. Então, Amicia lhe disse que desde a primeira vez que me viu não pôde resistir.

— Eu tampouco entendo agora. Reconheço que sou uma idiota por amar alguém como você. É uma criatura malvada.

Ranulf a beijou na testa.

— É uma mentirosa e a obrigarei a confessar seus pecados quando voltarmos para casa. Lyonene, aqui neste lugar sombrio, vou te dizer algo, mas só direi uma única vez. Daqui em diante, negarei que foi dito.

Lyonene moveu a cabeça para trás sobre o braço dele para olhá-lo. O sentido de honra de Ranulf era tão forte, que o fato de considerar a possibilidade de mentir a fez olhá-lo com assombro.

Ranulf a ignorou.

— Há momentos que me gabo de minha beleza, mas só o faço porque você me olha desse modo. Direi que vi seu desejo ao me olhar. Não proteste, pois sei que olho para você da mesma maneira. Mas o que você vê em mim não é visto pelas outras mulheres. Elas me acham muito moreno, grosseiro ou minha forma sem graça.

— O que você diz não é verdade! O que me diz das mulheres da corte? Tive que lutar com elas por você.

— Acha que estariam tão interessadas em mim se eu não fosse tão rico? É Dacre quem é o ideal de beleza.

— Dacre! Ora, ele é como o ventre de um peixe. Seus olhos e cabelos não têm cor e está tão magro que quase não faz sombra.

— Você parece ter passado muito tempo estudando-o.

Lyonene o ignorou e correu o dorso de seus dedos ao longo da barba de vários dias que crescia em sua bochecha.

— E quando ele tem uma barba de três dias, de longe parece uma moça, não se pode ver a diferença. Sabia que com a certa luz, sua barba é quase azul?

Ranulf lhe beijou os dedos e sorriu.

— É bom saber que você se sente assim, mas não muda o que eu tento dizer a você. Desejo que com esta confissão possa evitar que o que aconteceu não ocorra uma segunda vez. Embora você tenha sido tola com respeito a mim, no primeiro dia que me viu, as demais mulheres não o são.

— Volta a mentir! Nunca fiz papel de tola por você.

— É verdade, sempre esteve muito tranquila, exceto, quando você me cobiçou, quando me banhou, ou se jogou em meus braços quando eu mostrei como usar o arco, ou quando ...

— Não fiz nada que não tivesse feito diante de outros cem homens. Aháa! Vinguei-me. Não, estou mentindo, não me olhe assim. E o que me diz de você? Acaso se casa com todas as mulheres depois de um dia de conhecê-las?

Ranulf a puxou de volta para seu ombro.

— Vejo que não consegui muito. Você é teimosa e não leva em consideração minhas palavras. Mas me escute bem e se lembre disto: não deve temer nunca outra mulher que suspire por mim, depois de alguns breves encontros.

— Então eu deveria me preocupar somente depois de alguns encontros longos?

Ranulf encolheu os ombros.

— Já aconteceu outras vezes. Sou um amante muito talentoso.

— É um...

Ranulf lhe deu um beijo para que parasse de falar.

— Não discutirei isso com você. Tente recordar minhas palavras quando outra mulher, mais esperta que você, andar atrás de meu ouro.

— Não recordo ter acreditado em ninguém que pensasse que é feio. Sabe que têm pontos dourados nos olhos? — Lyonene viu que Ranulf ria dela.

— Reconheço-o. Sou o mais bonito dos homens e nunca mais vou negá-lo.

Lyonene começou a falar timidamente:

— Ranulf, se você diz que não é como eu te vejo, também sou diferente do modo como você me vê? Você disse que me achava linda.

Ranulf voltou a rir.

— Infelizmente, não é assim. Receio ter ouvido falar de sua beleza por três anos antes de me aventurar ir a Lorancourt. Reconheço que tinha curiosidade em ver essa moça, que fazia todos os homens falarem entre sussurros.

— É verdade?

— Sim, mas não vou falar mais disto, nem vou repetir. Já é muito vaidosa, embora não consigo entendê-lo, pois está tão gorda que me derrubará da cama.

— É culpa sua que esteja tão gorda. Se fosse magro e não um gigante como é, tenho certeza de que não levaria o peso de um menino do tamanho da metade de um cavalo como o seu. Assim não se queixe do desconforto, pois é minha pele que está a ponto de explodir.

Ranulf a abraçou.

— Se eu não te amasse tanto, me incomodaria muito sua língua afiada.

Ranulf notou que Lyonene ficava tensa.

— O que disse para que se afaste? — Perguntou perplexo.

— Você disse que me amava. — Sussurrou Lyonene.

— É obvio. Eu disse isso muitas vezes. Por que isso deveria fazer você se afastar de mim?

— Nunca havia me dito isso.

Ranulf levantou seu queixo.

— Está chorando de novo? Não entendo nada. Nunca houve um dia em que eu não dissesse que te amo.

— Não, você nunca fez isso. Amicia sabia que não tinha feito e quando vi uma de suas cartas em que dizia que a amava...

— Não se esqueça de que eu não escrevi essas cartas. Mas o que você diz não pode ser verdade. Se eu não disse com palavras, minhas ações lhe disseram. Cada vez que faço amor com você digo que te amo.

Lyonene choramingava.

— Mas fez amor a tantas mulheres? Também as amava?

— Não, mas é diferente com você. — Se deteve, pois se dava conta de que Lyonene não podia saber como era diferente com ela. — Acaso não fui muito doce com você?

Lyonene fez um esforço para controlar suas lágrimas.

— Você é muito doce com todas as mulheres.

— Mon Dieu! Você vai me enlouquecer. Ouça! Acabei de dizer que te amo!

— Amaldiçoa-me e tenho que tomar como uma declaração de amor? Não entendo sua lógica.

— Não atuo com lógica quando estou perto de você. Que outra mulher me faz perder a paciência e ao mesmo tempo me faz rir? Que outra mulher persigo por terra e mar? Por qual outra mulher me vestiria de servo para resgatá-la?

— Sua esposa? Isabel, a quem amava tanto e que quase o deixa louco de dor quando morreu. — Por um momento, Ranulf ficou perplexo e não pôde falar. — Sei que a amava. Vê-se em seus olhos quando menciono ela ou à menina. Acredito que não posso substituí-la em seu coração.

Ranulf falou com uma voz fria:

— Não continue. Interpreta-me mal se acha que dei a essa mulher algum amor. Contar-lhe-ei o que não contei a ninguém, e poderá julgar você mesma o que causou minha dor.

Contou-lhe a história de um jovem e sua insensível e infiel esposa, como se fosse a história de outro. O quarto ficou em silêncio e Lyonene pôde imaginar a aflição que ele tinha albergado durante tanto tempo, as emoções que tinham convertido um jovem alegre em um homem perturbado, que ganhou o nome de Leão Negro.

Deitaram-se na cama quando Ranulf terminou de falar.

— Por isso estava tão furioso em nossa noite de casamento! —Disse Lyonene tranquilamente.

— Nunca estive furioso. Sempre sou bom e amável.

— Foi tão bruto comigo que se eu não tivesse feito os votos o teria deixado.

— Você disse que me odiava, mas não acreditei em você.

— Sim, você acreditava em tudo que disse Giles. Às vezes estou feliz por essa flecha galesa, embora a cicatriz deixada seja muito feia.

— Eu te amo, Leoa. Eu não sei como você poderia ter duvidado de mim. Amo-te mais que a mim mesmo, ou que a meu filho, ou ao Tighe.

Lyonene começou a rir as gargalhadas.

— Agora sei que diz a verdade.

— Vou começar a fazer uma lista de insultos e reembolsá-la como é devido, quando esta enorme barriga não me impedir de ficar dentro de você.

— Esperarei muito ansiosa suas instruções. — Seus olhos brilharam sob a tênue luz e ela moveu uma perna sobre sua coxa.

Ele estava muito consciente de sua pele sob suas mãos, a maneira como seu cabelo acariciava sua bochecha.

— Você é uma mulher cruel. Agora fique quieta. Há pouco tempo antes do amanhecer e devo dizer-lhe nosso plano para removê-la deste lugar.

Ranulf colocou a mão em seu estômago, e um pontapé afiado do bebê o fez franzir a testa.

— Já faz muito tempo da mesa redonda. Não falta pouco para que nasça o bebê? Poderá viajar?

— Falta meia lua para que nasça, tenho certeza.

— Então falta pouco. Possivelmente, deveríamos esperar que dê à luz. Sua Alice cuidará de você.

— E então lady Margaret decidirá me levar a outro lugar ou haverá outros contratempos. Eu não gostaria de viajar com um recém-nascido com este frio. Agora está protegido e quente. Alice disse que está bem hospedado em seu ninho líquido.

— Então partiremos pela manhã. Agora espero meus homens.

— Como me encontrou?

— Não foi fácil. Tínhamos que mantê-lo em segredo, por isso fizemos correr o rumor de que me encontrava na corte, que não me importava minha humilde esposa e que não pagaria o resgate. Estou contente por você não ter ouvido essa história ou estou certo de que você teria acreditado nisso.

— Não, não teria acreditado. — Mentiu Lyonene.

Ao ver como ela desmentia tão orgulhosamente o que Ranulf havia dito, ele lançou um olhar de suspeita.

— Os primos de Dacre e seu pai enviaram espiões por toda parte. Ninguém pensou em procurar aqui. Esta mulher, lady Margaret é conhecida por sua lascívia pelos jovens. Não acreditávamos que se atreveria a provocar a minha ira.

Lyonene sentia medo, como sempre tinha quando Ranulf se tornava o cavaleiro que era temido por tantos homens.

— Mas o que fez que procurassem aqui?

— Sainneville viu seu cinto de leão.

— Mas o menino a quem eu dei... quando o encontraram, enforcaram-no.

— E fizeram bem. Vendeu-o, não pensou em ajudá-la. Cometeu um engano ao oferecê-lo a um de meus homens. Então foi fácil encontrá-la. Algumas jarras de cerveja e estes guardas começaram a alardear da dama que tinham prisioneira, dos quatro guardas que tinham ordens de matá-la se se produzisse qualquer intento de resgate.

— Como chegou a este quarto? — Perguntou, de repente surpreendida por não ter perguntado isto antes.

Ranulf inclinou a cabeça para a janela fechada.

— Lancei uma corda ao redor das ameias e desci.

— E os guardas que há nas torres?

Ranulf lançou um meio sorriso.

— Não sabia que lady Margaret escolheu quatro novos cavaleiros para seu castelo em ruínas? São homens fortes e viris, um pouco morenos para seu gosto, mas ela ignora este defeito.

— Sua guarda!

Ranulf se pôs a rir a gargalhadas.

— Sim, minha guarda. Gilbert disse que a mulher é mais instintiva na cama.

Lyonene o ignorou.

— Você está aqui há muito tempo. Por que você não se colocou como seu cavaleiro e não como um servo?

— A mulher é bastante inteligente. Ela não permite que ninguém se aproxime de você, exceto esses quatro homens e dois de seus cavaleiros. Não tínhamos certeza de que era você que ela mantinha em cativeiro, então um de nós teve que entrar no salão. Meus homens não são tão valentes para usar estas roupas ou para cortar lenha. —Ranulf arrancou a áspera lã.

— Acho que serei perdoada por todos, mas não que você tivesse que erguer um machado fora da batalha.

Seu olhar confirmava sua opinião.

— Agora devo ir, já que se faz dia e não quero que me vejam claramente contra a muralha. Só vim para avisar e para lhe dizer que se prepare. Não há maneira de trancar a porta sem que nos escutem de fora. Meus homens chegarão logo e então atacaremos. Prepare a roupa e qualquer outra coisa que necessite.

Lyonene gritou, aferrando-se a ele:

— Mas Ranulf, o que vai fazer? Como me tirará daqui sem arriscar sua vida?

— Não me faça isto. Já arrisquei muito. Dois de meus cavaleiros virão ao seu quarto antes que se faça dia e deve obedecê-los em tudo o que digam. Não faça nada estúpido. Entende o que quero dizer? —Lyonene só podia assentir com a cabeça. — Eles a protegerão enquanto o resto de nós se ocupa dos quatro guardas. Não chore mais. — Ranulf se levantou, abriu seus braços para acolhê-la e lhe acariciou as costas nua. — Está mais gorda do que pensava. Quase não posso lhe rodear com meus braços.

— Temo que os dias em que me levava nos braços a toda parte terminaram.

Ranulf se pôs a rir e a levantou nos braços. Lyonene estava envergonhada por seu corpo deformado e tentou cobrir-se. Ranulf afastou suas mãos.

— Não. Não seja tola. É meu filho que a deixa assim. Você pode carregá-lo, eu pelo menos vou poder olhá-lo. Você é linda gorda e bonita magra. Acredito que a amaria embora tivesse três cabeças.

Ranulf a olhou aos olhos e sorriu. Deu-lhe um beijo na boca, mas se afastou quando ela começou a devolver seu beijo com ardor.

— Tenho que ir.

Inclinou-se com ela, deitou-a na cama e a agasalhou com as mantas.

— Deve sentir saudades de Malvoisin. — Disse, olhando com ironia às ordinárias mantas.

— Sinto mais saudades do lorde Ranulf. — Murmurou, rodeando-o com os braços e aproximando muito seu rosto. — Eu te amo.

Ranulf a beijou na bochecha e se levantou, alto e poderoso.

— Sempre soube, mas sempre é bom ouvi-lo.

Ela lhe deu um beijo, sabendo que as palavras de Ranulf escondiam seus verdadeiros sentimentos. Pareceu que tinha desaparecido em um instante, e só viu o pé que dava impulso para subir pela corda.

 


Capítulo 16

Ela acordou devagar, atordoada, insegura de seus arredores. Ela esticou um braço para alcançar Ranulf, querendo seu calor perto dela, a segurança de sua proximidade. Seus olhos se abriram em perplexidade, quando sua mão encontrou apenas uma frieza vazia, e não a carne morna de seu marido. Deu-se conta da situação quando se sentou com a manta ao seu redor.

Alice levantou o olhar de sua costura e sorriu.

— É muito tarde? — O gesto de sua donzela era afirmativo. — Me deixou dormir até tarde.

Alice voltou a dirigir seu olhar para o objeto de lã remendada que tinha em suas mãos. Lyonene a olhou pensativa.

— Sabe, não é verdade? Não sei como, mas sabe.

Alice sorriu nervosa pelo segredo compartilhado entre as duas. A corpulenta mulher se levantou e deu a roupa a sua senhora.

Durante todo o dia ficaram no quarto, olhando ansiosamente para a janela fechada. No final do dia, chegou lady Margaret.

— Hoje não nos honrou com sua visita? Tenho certeza de que sir Morell sentirá falta de te ver.

— Não me olha muito, então francamente não sei do que está falando.

— Hoje sairá para a Inglaterra para ver por que seu marido não manda o resgate.

Lyonene olhou à mulher, com sua mão no ventre, apoiando-a ligeiramente onde seu filho lhe dava chutes.

— Acreditava que você tinha certeza de que ele não queria saber nada de mim, já que faz tempo que se foi para a corte.

Lady Margaret franziu o cenho.

— Parece muito segura de você. Se não soubesse que está muito bem vigiada, acreditaria que guarda um segredo.

Lyonene sorriu de maneira insossa.

— É meu filho. Acredito que chegará logo. Certeza que conhece a tranquilidade que sente uma mulher justo antes de dar à luz.

— Não, não tive a má sorte de ter uma barriga inchada. Prefiro meus prazeres sem tal castigo. Se o seu trabalho de parto começar, peça para Alice me buscar e eu enviarei alguém da aldeia. Você entende minhas palavras, Alice? Têm que vir me buscar se começar a doer a barriga da senhora.

Alice a olhou sem compreender, fazendo-se de ignorante e assentiu com a cabeça, com os olhos brilhantes e a boca ligeiramente aberta.

— Não posso entender como suporta sua presença todo o dia e permanecer sã sem enlouquecer. — Disse Margaret com um sorriso zombador.

— Suas intenções são boas e cuida perfeitamente de tudo o que necessito.

— Devo ir. Empreguei novos guardas para seu amparo. Morell me assegurou que tudo está bem, mas não posso evitar me sentir um pouco preocupada.

Lyonene olhou ao fogo.

— Oh! Estes guardas são tão ferozes e feios como os outros quatro?

Lady Margaret começou a rir com uma espécie de gargalhada rápida, lhe fazendo saber o que pensava.

— Não, na realidade são muito bonitos, fortes e vigorosos. Quando já não estiver como agora, dar-lhe-ei a um deles. Você gostará de seu aspecto, pois ouvi que prefere homens morenos.

Lady Margaret se virou e abandonou o quarto. Lyonene notou a mão da Alice em seu ombro. Seus olhos se cruzaram.

— Sim, sei que não deveria haver dito isso, mas não os reconheceu como homens de Ranulf. Estou contente de que sir Morell se vá. Ranulf disse que não terá problemas com os guardas, mas estou contente de que haja menos homens para lutar.

Chegou à noite e ela seguia esperando, com um pequeno fardo de roupa a seu lado. Seu nervosismo aumentava ao pensar no perigo que corria Ranulf, no perigo que tinha causado sua estupidez. Antes de deitar-se na cama, passou horas rezando de joelhos. Só a muda ordem de Alice a fizeram deter-se.

Surpreendentemente, adormeceu logo e foi despertada no meio da noite, por uma enorme mão escura e quente sobre sua boca. Abriu os olhos e encontrou os olhos negros de Sainneville.

— Milady, estou contente de vê-la de novo.

Lyonene pegou a mão dele por um momento, feliz em ver um rosto familiar de um amigo.

— Ele não merece tanta atenção, asseguro-lhes isso. Pode acreditar que tive que obrigá-lo a descer pela corda? Dizia que tinha medo de que o castelo caísse em cima dele.

Lyonene sorriu para Corbet, suas brincadeiras e a suas palavras leves; estava tão contente de vê-los de novo.

— Não, não posso acreditar. Estão bem, os dois?

— Só agora que o sol saiu de novo. Malvoisin é um lugar escuro sem sua dourada senhora.

— Sir Corbet, não mudou, estou tão contente de voltar a vê-los de novo. Sir Sainneville, você trabalha para protegê-lo das diabruras?

Sainneville lhe piscou o olho.

— Vejo que o conhecem bem. Mas não foi ele quem causou os problemas durante esta viagem.

Lyonene cobriu a boca com a mão.

— Por favor, não briguem comigo. Meu marido não perdeu nem um momento para me recordar todos meus crimes. Diga-me a verdade, ele realmente cortou lenha?

Os dois guardas morenos sorriram.

— Sim. — Disse Corbet.

— Era uma tarefa fácil para ele, assim, que o animávamos desde nossos postos no topo das ameias.

— Não, não fizeram isso.

— Não podíamos perdemos essa oportunidade. Quantos cavaleiros têm a sorte de poder dar ordens a seu lorde?

— É Hugo quem terá que temer por sua vida.

— Mas o que poderia ter feito sir Hugo? É um cavaleiro calmo e pacífico.

Corbet tentou não rir muito forte.

— Lady Margaret o colocou no comando dos servos. Lorde Ranulf acreditava que poderia escapar de suas obrigações como servo, mas Hugo tinha outros planos. É um cavaleiro muito valente.

— Meu marido?

— Não, — disse Sainneville rindo — sir Hugo foi mais valente que qualquer um de nós. Apoiou-se na parede comendo uma maçã e apontou a nosso lorde. Ainda o posso ouvir: “Você aí. É um tipo muito robusto. Pode ir cortar lenha enquanto estes menos fortes a carregam.” Surpreendeu-me que os insultos de Ranulf não carbonizaram a madeira.

Lyonene cobriu a boca para rir.

— Não vai ser sir Hugo quem sofrerá, a não ser eu, por ter causado todos estes problemas.

Lyonene observou o quarto e viu que Alice estava sentada sobre sua cama em um canto.

— Conhece estes cavaleiros, Alice?

Corbet sorriu.

— Foi ela quem conseguiu nossos trabalhos.

Alice apontou para seus olhos, depois para eles e Lyonene riu.

— Alice deve ter percebido de que pertenciam a Guarda Negra, pois sempre estou contando coisas sobre Malvoisin.

— Nos sentimos honrados de ser mencionados por alguém tão adorável. Uma donzela em perigo é uma de nossas missões preferidas. Queríamos, apenas, que houvesse também um feroz dragão para matarmos em sua honra.

Lyonene se apoiou contra a parede de pedra e os olhou.

Riam, mas sua missão era séria e podia lhes custar a vida e, ainda assim, atuavam como se fosse mais que uma saída qualquer. Tentou levantar-se e Alice em seguida foi ajudá-la. Tinha dormido com sua roupa de lã, preparada para uma fuga rápida.

Os dois guardas a olharam fixamente, já que não estavam acostumados à nova forma de seu corpo.

— Agora vejo o que ocorreu ao sol. — Lyonene olhou para Corbet desconcertada. — Você o engoliu.

Lyonene riu da brincadeira. Não era hora de repreendê-lo por sua insolência. Agora estavam unidos pelos velhos laços da amizade. Mais tarde em Malvoisin, recuperariam a antiga formalidade, mas agora, as circunstâncias eram diferentes. Alice a ajudou com a capa e o manto, roupas abrigadas e resistentes.

— Tem certeza de que não mudará de ideia e virá conosco?

Alice sorriu, acariciou o cabelo de Lyonene e sacudiu a cabeça. Sua família e suas tradições eram irlandesas. Não queria abandonar seu lar.

Ouviu-se um grito do outro lado da porta e todos deixaram de falar. Lyonene estava assombrada da rapidez com a que Corbet e Sainneville se moveram. Os dois cavaleiros se colocaram de costas para a porta, não permitindo que entrassem os homens que tentavam violentamente abrir a porta.

— Leve-a ao lado da janela! Se for necessário, abaixe-a com a corda. Herne está esperando embaixo. — Ordenou Sainneville a Alice.

Do outro lado da porta podiam se ouvir o ruído de metal e vozes. O ruído da porta se reduziu pela metade e parou de tudo quando Ranulf e seus cavaleiros começaram a lutar contra os guardas. Lyonene se sentou em uma cadeira perto da janela, pálida, com os nervos tensos ameaçando explorando.

Ouviram o grito de batalha de Ranulf através da porta de carvalho, parecia encher todas as pedras da torre. Lyonene só podia esperar e escutar os horríveis gritos e o som do aço e o ferro que atingiam contra madeira, pedra e carne.

Sainneville e Corbet a observavam. Não podiam fazer nada para ajudar a seus companheiros ou a seu lorde, mas esperar era pior para eles que a batalha.

Quando já pensava que não poderia resistir mais tão grande era o medo que a paralisava, ouviu a voz de Ranulf do outro lado da porta.

— Abram!

Corbet e Sainneville abriram a pesada porta para deixar entrar a um ensanguentado Ranulf. Sua expressão era de fera selvagem, feroz e assustadora.

Lyonene tratou de levantar-se para saudá-lo, mas suas pernas não teriam podido sustentá-la. Alice a ajudou.

Ranulf olhou para ela um instante, satisfeito de que não estivesse ferida.

— Morell está reunindo homens, algumas centenas. Gilbert os viu cavalgar para nós. Deve ter ouvido que estamos aqui. Enviei um mensageiro aos primos de Dacre e nos encontraremos com eles cavalgando em direção ao norte.

Ranulf deu um grande passo e levantou Lyonene nos braços, sem sequer olhá-la.

— Herne tem cavalos embaixo. Cuidem de minhas armas. — Ordenou a Corbet.

Lyonene afundou seu rosto no pescoço de Ranulf, vestido com a cota de malha, cujo aroma de sangue era dominante. Não sabia se era o aroma ou o medo que sentia, mas seu estômago ficou tenso e começou a doer. Só houve tempo para um breve olhar de despedida a Alice.

Oito cavalos negros os esperavam fora da torre com Tighe à cabeça. Ranulf a subiu à sela e ela agarrou forte quando sentiu mais dor no ventre.

— Está bem? — Perguntou Ranulf, sua pressa fazendo que a frase soasse dura.

— Sim, estou bem.

— Então devo ver meu homem.

Ela virou-se e viu como ajudavam Maularde a subir no cavalo. Sua perna esquerda estava sangrando profusamente e o tabardo mostrava um corte comprido e irregular.

Ranulf intercambiou umas palavras com o cavaleiro e voltou para Lyonene, montando o cavalo atrás dela.

— Ele pode viajar? — Perguntou Lyonene.

— Sim, por um tempo. Ele pegou um golpe de machado em sua perna. Deve ser atendido logo ou pode perder sua perna, se não sua vida.

Lyonene olhou para frente enquanto Ranulf tomava as rédeas e estimulava Tighe a galopar. Outra dor a deixou sem fôlego, e ela percebeu que o bebê tinha decidido conhecer seu pai. Ela fez uma oração silenciosa pedindo tempo suficiente para escapar do exército de Morell que os perseguia.

Tinham cavalgado rapidamente durante duas horas quando Ranulf se deteve. Lyonene agarrava o ventre, contente de não está em movimento, um momento de alívio do galope continuo do cavalo. Ranulf desmontou e se dirigiu para Maularde.

— Temo que ele tenha desmaiado, milorde. — Ouviu a voz tranquila de Hugo.

Lyonene girou para olhar para o guarda. O cavaleiro, forte e escuro, estava caído sobre o pescoço do cavalo. O sangue cobria um lado inteiro do cavaleiro e do cavalo. A visão não fez nada para aliviar as dores que já sentia.

— Não pode cavalgar mais. Minha esposa também está cada vez mais cansada. Ficarei aqui com eles. Há uma choça atrás dessas árvores. Devem cavalgar mais rápido ainda, pois se Morell vir que não estou com vocês, voltará aqui e nos encontrarão.

Os seis cavaleiros assentiram solenemente, entendendo a situação.

— Os homens de Dacre estão esperando. Dê-me todos os panos que tenham para a perna de Maularde. Partam agora mesmo e não voltem até que seja seguro.

Assentiram e, enquanto rezavam por sua segurança, tiraram toda a roupa restante das bolsas de couro atrás de suas selas de montar.

Tudo parecia incrivelmente tranquilo quando partiram. Ranulf tomou as rédeas de ambos os cavalos e os conduziu para o bosque a uma casinha de pedra com um teto de palha, que lhes ofereceria um refúgio. Ranulf escondeu os cavalos, cavaleiro e amazona sob umas árvores, enquanto se dirigia para inspecionar a propriedade. Só quando esteve seguro de que estava vazia voltou aonde os tinha deixado.

Baixou a Lyonene do cavalo e deixou que ficasse de pé no chão. Lyonene se apoiou em uma árvore para não cair.

Desmontar Maularde de seu cavalo com a delicadeza necessária foi muito mais difícil, mas Ranulf sabia que sua vida dependia dos cuidados que pudesse lhe proporcionar. As pernas de Ranulf se dobraram pelo peso ao conduzir a seu homem até a cabana escura. Deitou-o com cuidado sobre o chão sujo.

Lyonene tocou o ventre, pois teve outra contração. Eram cada vez mais próximas e mais fortes. Não tinha tempo de ter medo, pois estava em jogo a vida de Maularde. Entrou na cabana.

— Aqui estou. — Disse Lyonene enquanto se ajoelhava ao lado de Maularde. — Eu cuidarei dele. Deve levantá-lo para lhe tirar os sapatos. Traga-me as roupas que lhes deram. Não pode acender um fogo?

— Não, não podemos. Espero que os homens de Morell não vejam este lugar. Morell! Gostaria de conhecê-lo pessoalmente.

— Não perca seu tempo pensando nele. Procure água e um recipiente. Devo limpar esta ferida e enfaixá-la.

Ranulf saiu em silêncio, antes que pudesse ver como Lyonene fechava os olhos pela dor em seu ventre.

— É o bebê? — Logo que pôde, sussurrou Maularde.

Lyonene sorriu e alisou seu cabelo molhado pelo suor.

— Não fale agora. Nós vamos cuidar de você e vai ficar bem, mas deve descansar também. E sim, é o bebê, mas não diga isso a Ranulf.

— Acho que ele vai saber em breve.

— Temo que suas palavras sejam verdadeiras. Calma agora. Eu vou te causar mais dor, porque preciso remover alguns pedaços de ferro que ficaram presos a sua perna.

Ranulf retornou com um recipiente de barro cheio de água.

— Está quebrado, mas pode segurar um pouco de água. Maularde lhes falou?

Lyonene olhou ao cavaleiro com carinho.

— Sim, preocupa-se com minha saúde.

Ranulf a olhou pela primeira vez e viu a dor em seu rosto. Tocou-lhe o cabelo e acariciou a bochecha. Lyonene se inclinou para diante para aliviar a dor. Ranulf a aproximou dele.

— O bebê chuta você novamente?

— Sim, cada vez mais fortes. Arranque um pouco de tecido e molhe para que eu possa ajudar ao seu homem.

Trabalharam juntos, em silêncio, enquanto Lyonene tirava com cuidado as partes de ferro com um galho de árvore verde que tinha arrancado. Tinha que parar muito frequentemente para segurar o ventre pelas contrações que aumentavam cada vez mais. Ranulf não falava muito quando ela inclinava a cabeça pela dor, mas a segurava pelas costas e os ombros.

Finalmente terminaram de enfaixar a perna de Maularde e, embora acreditassem que dormia, ele abriu os olhos e lhes falou.

— Agora é a sua vez, milady.

Lyonene sorriu.

— Sim, temo que tenha razão. As dores são agora muito seguidas.

— O que acontece? — Ranulf perguntou.

— Seu filho está chegando, milorde — sussurrou Maularde.

— Não, pode ser. Não há aqui nenhuma mulher para atender no parto.

Lyonene ainda pôde rir um pouco, embora viesse uma contração mais forte.

— Lyonene, não pode dar à luz agora. Deve esperar que eu encontre alguém.

— Não, Ranulf, não me deixe. Ajude-me a deitar.

Agarrou-a nos braços com cuidado e notou que o corpo musculoso de Ranulf começava a tremer.

— Temo que lhe encherei ainda mais de sangue, pois dar à luz é algo muito complicado, Ranulf. Ah, não, era uma brincadeira. Não tome a sério. É um trabalho muito fácil.

Ele colocou-a cuidadosamente sobre os juncos no chão.

— Irei procurar musgo para lhe preparar uma cama. — Se notava a tensão em sua voz. — Há tempo?

— Sim, ainda falta um pouquinho.

Ranulf saiu correndo da casa.

Veio-lhe outra contração e enquanto ela se agarrava ao chão, notou uma mão quente e forte sobre a sua. A força e a proximidade de Maularde a tranquilizaram.

Ranulf voltou em seguida e pulverizou o musgo por debaixo dela. Viu as mãos entrelaçadas de sua mulher e seu guarda. Não desfez o contato, pois isso o alegrou. Lyonene separou as pernas, empurrando com força o bebê a cada contração.

Ranulf se colocou no meio das pernas dela e usou sua espada para cortar a roupa interior. Secou sua testa e murmurou palavras de ânimo enquanto os dores a sacudiam. Ficaram em silêncio quando ouviram o som de centenas de cavalos muito perto dali, sabendo que poderia ser apenas questão de momentos antes de Morell os encontrar. Todos eles suspiraram de alívio quando os cavaleiros passaram.

Não ficou muito tempo de tranquilidade, pois Lyonene rompeu a bolsa de água e Ranulf, que tinha ajudado no nascimento de muitos potros, soube que a criança estava quase nascendo. Maularde se arrastou aproximando-se mais dela para evitar que gritasse quando a cabeça aparecesse. Ranulf só teve tempo de segurar o bebê quando Lyonene deu o último empurrão.

Rapidamente, tirou o cordão do pescoço do recém-nascido e limpou o muco de sua diminuta boca. A criança deixou escapar um grito de protesto por esse novo e frio ambiente e, Ranulf cuidou de cortar o cordão umbilical e desfazer-se da placenta.

Maularde pareceu recuperar o ímpeto depois do nascimento e foi ele quem limpou o menino gritão com uma parte de seu tabardo de veludo. Envolveu ao recém-nascido com roupa abrigada, acariciando o grosso cabelo negro que cobria sua carinha enrugada.

Ele entregou a criança a uma exausta Lyonene, e ela tocou o pequeno rosto, as pequenas orelhas.

— Eu gostaria de ver este meu filho. — Disse Ranulf com calma e o segurou dos braços de Lyonene. Era noite, mas não se atreviam a acender uma luz, assim Ranulf agarrou o menino, tirou-lhe as roupas e o estudou a luz da lua.

Lyonene via seu perfil, o brilho de seus olhos negros quando este sustentava seu filho, foi um momento privado para os dois, que ninguém mais podia compartilhar. A mão enorme do Leão Negro era muito suave quando tocava esses diminutos dedos e, Ranulf sorriu quando o menino agarrou seu dedo escuro e cheio de cicatrizes de guerra de seu pai.

Trocou-lhe a roupa e o devolveu aos braços de Lyonene. Ranulf lhe acariciou a bochecha com ternura, com olhos chorosos, demostrando a profundidade de seus sentimentos.

— Obrigado por meu filho. — Sussurrou antes de deitar-se ao seu lado e adormecer.

Os quatro dormiam pacificamente, unidos por dificuldades e alegria compartilhada. O recém-nascido despertou e todos tomaram parte em seu cuidado, no novo prazer dessa alegria antiga. Nas primeiras horas do amanhecer não houve distinção entre lorde e vassalo, entre pai ou amigo, mas sim uma união causada e abençoada por uma nova vida, um ser inocente, cuja maravilhosa presença transcendeu os laços terrenos. Os três adultos sorriram um para o outro formando uma unidade.

Dormiram um pouco mais e o sol brilhou nesse novo dia quando voltaram a despertar. Ranulf ajudou seu guarda a sair da casa e logo tirou Lyonene, enquanto o bebê ficava aos cuidados de Maularde.

Sentaram-se juntos, Lyonene no colo de Ranulf, por alguns momentos antes de voltarem. Ranulf a beijou na boca doce e brandamente.

— Acho que o garoto te agrada? — Brincou Lyonene.

— Sim, ele é o mais bonito dos bebês. Tenho certeza de que não poderia ter sido melhor. — Disse Ranulf tratando de parecer sério.

— Você não o acha feio e vermelho como a maioria dos pais?

— Não, ele não é vermelho. Tem minha cor de pele e meu cabelo. Você viu a maneira que já começa a enrolar em seu pescoço? Já pode ver-se que tem a força necessária para ser um cavaleiro e o tamanho de sua cabeça me diz que será um homem alto.

— Sim, é verdade que é muito grande, acreditei que ia me partir em duas.

— Não, equivoca-se. Foi ele quem fez todo o trabalho. Ele se empurrou para vir ao mundo.

Lyonene se pôs a rir, pois via o princípio de seu sorriso.

— Ranulf! Não parecia muito seguro de você mesmo naquele momento.

Ranulf apertou-a contra si.

— É verdade que tive medo, pois não sabia que dar à luz fosse uma tarefa tão difícil. Você é tão pequena e meu filho tão grande...

— Já não me lembro da dor, então não sofra por mim. Para mim é suficiente saber que o agradei.

Ranulf se apoiou em uma árvore.

— Sim, Montgomery é perfeito e eu vou...

— Montgomery! Escolheu um nome sem me consultar? E se eu preferir outro nome ou se não gosto do que escolheu?

Ranulf encolheu os ombros.

— Isso não mudaria nada. O nome do meu filho é Montgomery de Warbrooke, quarto conde de Malvoisin. Era o nome do meu avô e voltará a viver no meu filho. Voltaremos logo à minha ilha e ele será batizado. Dacre virá e será seu padrinho e Maularde será seu outro padrinho.

— Maularde? Não deveria pedir a Geoffrey, seu irmão?

— Não, Geoffrey preferiria mimar a uma menina. Meu homem mereceu esta honra.

— É certo. Para madrinha, tinha pensado na Berengaria, se isso for adequado aos seus planos preconcebidos.

Ranulf ignorou seu comentário sarcástico e seus olhos se perderam na distância.

— Eu gostaria que minha mãe pudesse vê-lo. Desejava ter uma casa cheia de meninos.

Lyonene tentou procurar algumas palavras de compreensão, mas não às encontrou.

— Tenho certeza de que esteve muito contente por dar à luz a um menino tão bonito como você.

Ranulf a olhou e sorriu.

— É verdade, pois tinha a mesma opinião que você sobre mim. Talvez seja bom ela nunca ter visto no inútil que se converteu Geoffrey.

— Não têm muito respeito por seu irmão. Eu o vejo bastante bonito e doce.

— Hoje não poderá me irritar. Estou muito contente com meu filho.

— O único que peço é que se pareça com você só no aspecto e não em sua arrogância e vaidade.

Ranulf a beijou no pescoço.

— Não, será um menino doce com as palavras melosas de sua mãe. Já lhe disse que te amo hoje? Que te amo mais a cada dia?

Lyonene sussurrou:

— Não, mas se o tivesse feito, eu teria apreciado muito estas palavras.

Ranulf retirou seus lábios da pele de Lyonene.

— Você é uma maldição para mim. Abandona-me durante meses e eu não consigo encontrar nenhuma mulher ao meu gosto e quando eu te vejo de novo, você rivaliza com meu cavalo em tamanho e agora eu devo esperar até que você se recupere de meu filho. Acredito que não quero beijá-la até que possa chegar ao final do assunto.

— Você é um marido muito atencioso. — Lyonene o beijou por todo o pescoço.

— Lyonene! Basta já com este comportamento. Agora me diga que presente deseja como recompensa por meu filho. Dar-lhe-ei uma coroa de estrelas se isso for o que deseja.

— Ah, meu galante cavaleiro, você é muito generoso, mas deixarei que o resto do mundo possa desfrutar das estrelas. Não há nada que deseje mais que retornar a Malvoisin, com o povo que conheço e quero, e que meu filho tenha saúde.

— Deve haver algo que queira, alguma joia? — Lyonene pensou durante um momento.

— Eu gostaria de recuperar meu cinto de leão.

Ranulf desenhou um amplo sorriso e começou a procurar em uma bolsa que tinha ao lado do cinto. Seus olhos brilharam enquanto devolvia o bonito cinto.

— Seu desejo é uma ordem.

— Oh! — Gritou Lyonene enquanto o segurava com força contra sua bochecha. — Não sabe a agonia que suportei por ele. Tinham me tirado tudo e não ficava nada mais como pagamento para um suborno. Nunca havia possuído nada que amasse tanto como este cinto.

Ranulf seguia sorrindo.

— E quanto a mim, Leoa? Eu não compartilho de algum desse amor, como um de seus bens?

Lyonene sorriu.

— Não possuo você, Ranulf. Ninguém poderia lhe possuir.

O rosto de Ranulf ficou sério.

— Temo que se equivoca, pequena leoa. Se houver algum homem que tenha pertencido a alguém, esse sou eu.

Seus olhos se encontraram por um momento em um sentimento profundo de amor eterno, que ultrapassava a existência diária ou o êxtase da carne. Suas almas se tocaram.

O pranto do bebê os devolveu à realidade.

— Montgomery está chamando a sua mãe.

Ranulf se levantou levando sua esposa nos braços com toda facilidade.

— Então levarei tudo o que ele deseja. O filho do Leão Negro saberá que o mundo poderá ser como ele queira, se assim o pedir.

Lyonene começou a rir.

— Vejo que terei que suportar a outro como você, pois já vejo que fará do menino a sua imagem.

— Sim, e nossa leoa adorará aos dois.

— Receio que me conhece muito bem.

Desta vez, enquanto Lyonene dava o peito ao seu filho, Maularde olhou para outro lado.

— É um bom menino, não é? — Alardeou Ranulf.

— Sim, milorde. O mais forte que tenha visto para sua idade. Pergunto-me se terá algo que ver com essa juba de cabelo.

— O que acha de ser o padrinho do menino?

Maularde ficou mudo durante um momento.

— Seria uma grande honra. Mas acredito que não me mereço tanto. — Disse com calma.

Lyonene cobriu o peito e segurou o bebê contra ela, brincando com uma mecha de cabelo negro que começava a enrolar debaixo de suas pequenas orelhas.

— Acredito que ganhou esta honra, já que me ajudou a trazer este menino ao mundo. Não há muitos padrinhos que possam dizer o mesmo.

O negro cavaleiro sorriu.

— Prometo que amarei o menino como se fosse meu, disso podem estar certos.

— Acredito que já começou a fazê-lo. — Disse Ranulf.

Em seguida se calou e começou a escutar atento

— Alguém está chegando.

Ranulf desembainhou a espada e Maularde, ficou de pé apoiado contra as pedras bicudas da casa, entre Lyonene e a porta.

Ranulf se dirigiu à soleira da porta e interrogou Maularde com o olhar.

— Até que fique uma faísca de vida em mim. — Foi sua inequívoca resposta.

Lyonene ficou quieta sentada, protegendo Montgomery até dos pensamentos do mal. Olhou para as costas de Maularde e viu que sua perna voltava a sangrar. Ainda assim, seguia firme, ignorando a dor e o corte da ferida, fiel a seu dever de proteger a sua ama e a seu novo lorde.

— Salve a Guarda Negra! — Eles ouviram a voz de Ranulf de algum lugar acima da cabana rústica, um lugar escondido onde observava e se preparava para o ataque. Desceu ao chão diante da estreita porta e desapareceu quando saiu correndo para saudar seus homens.

Maularde voltou a sentar-se, mantendo sua perna estirada. Deixou que a dor se mostrasse em seu rosto. Lançou um tímido sorriso a Lyonene.

— Se estivesse sozinho, temo que lançaria um grito de dor. É bom que esteja em sua presença.

Ela não conseguiu devolver o sorriso, sabendo que suas palavras não cobriam sua dor. Eles podiam ouvir o riso de Ranulf e seus homens. Como Ranulf tinha mudado em um ano! Maularde leu seus pensamentos e ambos compartilharam um sorriso.

— Temos um visitante. — Disse Ranulf. — Não, é um visitante muito bem-vindo e eu sou capaz de lidar com ele sozinho. É um guerreiro forte. Sua força já me assustou.

A Guarda Negra estava em silêncio, sem compreender as palavras de seu lorde.

— Maularde! — Gritou Corbet. — Deixou já de fingir e está preparado para voltar ao trabalho? Milady, não a vi ao entrar... — Se deteve ao ver o recém-nascido.

Sainneville olhou perplexo para Corbet, perguntando-se o que o teria feito calar, até que também ficou parado, olhando fixamente o bebê de cabelo negro que dormia nos braços de sua mãe.

Quando cada homem da Guarda Negra entrou na cabana, Sainneville se ajoelhou e baixou a cabeça. Foi um momento muito intenso e um grande tributo a Ranulf. Como o primeiro, outro dos homens beijou a pequena mão do recém-nascido e rendeu homenagem ao herdeiro de seu lorde. Lyonene tentava conter as lágrimas diante dessa grande honra. Também viu que a mandíbula de Ranulf estava menos firme que habitualmente, sim, na realidade parecia que tremia.

— Salve o filho do conde de Malvoisin. — Gritaram, e as pedras tremeram com o som de suas vozes.

Montgomery não se importou com o barulho e lançou um grito mais forte que as vozes dos homens.

Ranulf sorriu orgulhoso para o filho.

— Temo-me que o rapaz não aprecie a meus homens tanto como eu.

Corbet recuperou a voz.

— Bem, acredito que passou exatamente um ano até o nascimento deste filho, desde o dia do casamento até agora. Têm-nos feito ganhar algumas apostas, milorde.

Ranulf franziu a testa um momento em perplexidade e depois sorriu.

— Suponho que Dacre esteja metido em tudo isto. Estarei contente de vê-lo pagar. Se se negar, ajudarei vocês com muito gosto a compilar os lucros.

Lyonene desviou o olhar, fingindo não entender suas palavras, mas secretamente prometeu um dia retribuir a lorde Dacre por seu atrevimento.

Ranulf deu um passo adiante e gentilmente pegou o menino dos braços da mãe. Levou-o para fora e seus homens o seguiram. Lyonene se dirigiu para a janela e olhou como seu marido tirava a roupa do bebê e o mostrava orgulhoso a seus homens. Podia ouvi-lo como alardeava sobre a força do menino. Fazia-a sentir-se contente ao ver a ternura, a maneira protetora que Ranulf segurava seu filho.

Acenderam uma fogueira. Gilbert e Herne foram ao povoado próximo procurar roupas limpas para o bebê. Lyonene nunca tinha desejado tanto um banho como o que tomou nessa cabana irlandesa ordinária. Pela primeira vez banhou a seu filhinho, admirando seus traços perfeitos e seus olhos, que como predisse Ranulf, à medida que passava o tempo se tornavam mais verdes.


Ficaram na cabana durante dois dias, sobre tudo para permitir que a perna de Maularde se curasse. Como se negava a viajar de carroça, Ranulf e seus homens prepararam um suporte em cima do cavalo para que sua perna pudesse estar estirada durante a viagem de volta a Malvoisin.

Viajaram lentamente, descansado frequentemente, e Ranulf estava especialmente atento às necessidades de Lyonene, sempre preparado para ajudá-la.

Ela nunca perguntou o que ocorreu a sir Morell, Amicia ou inclusive a lady Margaret, mas várias vezes viu Hugo e Ranulf falando seriamente e, de alguma forma, sentiu que estavam a salvo de mais traição por sua parte.

Em Waterford embarcaram em um navio de retorno a Inglaterra. Lyonene não sabia se era sua felicidade ou o fato de não estar grávida, mas durante a viagem que durou três dias não voltou a adoecer-se, ao contrário, desfrutou da suave brisa e do penetrante aroma de mar.

Foi uma longa jornada de cinco dias até chegar a Malvoisin e jamais tinha desejado tanto terminar uma viagem. Quando começaram a divisar as torres cinza do castelo, Montgomery já tinha dezessete dias e começava a engordar. Dormiu quase todo o tempo, frequentemente embalado nos fortes braços de seu pai, alheio as pessoas e os acontecimentos que ocorriam ao seu redor.

As trombetas soaram quando divisaram o castelo, e as pessoas do povoado corriam para saudá-los. Tinha chegado à notícia do nascimento do menino e se formavam aglomerados para vê-lo, lançando alegres gritos quando viram a juba de cabelo negro.

— Ranulf! — Lyonene lhe tocou o braço. Olhou adiante para alguns cavaleiros que saíam do castelo. Esporeou seu cavalo, fazendo caso omisso dos guardas que imediatamente a seguiram. Quando chegou a eles, desmontou e começou a correr com os braços abertos. Sua mãe a abraçou e ambas choraram de alegria por voltarem a se verem.

— Está bem, minha filha? Fizeram-lhe mal? — Perguntou Melite.

— Não, estou bem e muito contente de estar em casa. Papai também está aqui?

Melite se afastou e Lyonene beijou a seu pai, que secou rapidamente uma lágrima.

— Tem muito bom aspecto, minha filha. Parece tão em forma quanto uma leoa pela qual te dei seu nome.

Lyonene sorriu a seus pais.

— E teve uma pequena cria de leão que lhes fazem avôs, um filhote de olhos verdes, cabelo negro, peito de aço. — Ranulf passou uma perna sobre as costas de Tighe e deslizou até o chão, sem despertar seu filho, que com tanto orgulho levava.

Melite segurou o bebê e tocou o rosto adormecido. Todos juntos caminharam para a muralha leste e depois para o pátio interior, onde os servos do castelo esperavam para ver o bebê. Quando por fim entraram em Black Hall, foi Lyonene quem viu primeiro Brent. Estava sentado sozinho ao lado da janela, inseguro de si mesmo entre tantos estranhos. Ranulf e Lyonene tinham estado fora durante mais de quatro meses, e para um menino de seis anos eles já pareciam estranhos.

Lyonene se sentou um momento com ele, enquanto os outros seguravam Montgomery e o admiravam.

— Brent, estou muito contente de vê-lo de novo.

— Eu também, milady.

Ele torceu a bainha do tabardo em suas mãos.

— Você gostaria que lhe contasse como me salvou lorde Ranulf? Como entrou pela janela com uma corda e como cortou lenha?

Os olhos de Brent se iluminaram.

— O Leão Negro cortando lenha? Não posso acreditar.

Enquanto contava a história, viu como ele relaxava. Pouco a pouco perdeu seu nervosismo e começou a sentir que pertencia a esse lugar. Ranulf veio até ele, com Montgomery em seus braços.

— Você gostaria de ver meu filho, Brent?

— Eu... sim. — Disse, não muito convencido.

Ranulf se ajoelhou diante do menino e, enquanto Brent estudava o bebê, Ranulf observava Brent.

— Claro que agora é muito pequeno e não vale para nada.

Lyonene levantou as sobrancelhas quando ouviu a frase do Ranulf

— Necessitará que homens como você, eu, e claro, a Guarda Negra, treinem-no para que se converta em cavaleiro. Acha que poderá ensiná-lo?

Os olhos de Brent começaram a brilhar.

— Sim, sim, milorde.

— E como meu pajem, o vigiará e o protegerá?

— Sim, farei-o.

— Muito bem. Agora devo ver como está meu castelo. Tudo foi bem enquanto não estive?

— Oh, sim, milorde. Walter me deixou ter meu próprio falcão. Disse que... — O menino ficou quieto na porta esperando impacientemente a seu amo.

Ranulf deu seu filho a Lyonene, e enquanto ela o segurava, seu marido pôs uma mão atrás da sua cabeça para beijá-la suave e meigamente.

— Não posso acreditar que este menino seja meu, pois juro que passou mais de um ano desde que a toquei pela última vez. — Ranulf a beijou de novo, um movimento da criança impedindo-o de esmagá-la contra ele.

— Lyonene. — Chamou Melite.

Ranulf se separou dela.

— O que acha que eles diriam se a pusesse em cima de meu cavalo e levasse-a para longe daqui?

Lyonene se apoiou nele e, sem deixar de olhá-lo, colocou uma mão sobre seu peito.

— Estou disposta a suportar o que tiverem que dizer, seja bom ou mau.

Ranulf, emocionado, tocou-lhe o cabelo e com seu polegar acariciou seus cílios.

— Você é uma desavergonhada. Quem daria, então, de comer a meu filho?

— Nós poderíamos levá-lo conosco.

— Você é uma diabinha por me tentar assim. Acaso não têm honra?

— Minha honra é você e eu o seguiria onde quer que fosse.

— Lady Melite, venha e leve esta sua filha. Ainda não aprendeu a ter maneiras diante dos convidados.

Melite sorriu aos dois.

— Tenho medo de defendê-la. Ela sempre foi uma boa e doce criança antes de olhar para milorde.

Lyonene se pôs a rir.

Com os olhos brilhantes, Ranulf sacudiu a cabeça, enquanto olhava de sua sogra e a sua esposa. Fez uma pausa na porta para voltar a olhar como Lyonene embalava o bebê e sorriu pacificamente, enquanto atendia às petições de Brent e o seguia pelo castelo.

Melite não teve necessidade de perguntar a sua filha se era feliz, pois em seu rosto se via a satisfação e a alegria de ter seu marido, seu filho e de voltar a estar em sua casa. Melite não podia ocultar sua satisfação, estava muito contente de ver que a paz e a harmonia reinavam no castelo.

 

 

 

 

 

 

Capítulo 17

A notícia do regresso seguro de Lyonene espalhou-se rapidamente por todo o reino, e os convidados começaram a chegar. Ela correu para Berengaria e se abraçaram, contentes de voltarem a se verem. Travers trazia seu filho, um menino de dezessete meses que era exatamente igual a sua mãe, um menino muito bonito. Era um contraste ver o angélico menino com a feiura de seu pai.

— Já sei o que pensa, — sussurrou Berengaria — e eu também estou contente de que se pareça comigo. Mas venha, eu gostaria de ver o que seu moreno marido produziu.

Berengaria manifestou sua admiração, como todos, ao ver o menino de olhos verdes, e Montgomery já parecia se gabar com tanto carinho.

— Já tem o olhar e a aparência de seu pai. — Disse Berengaria, rindo.

Quando Ranulf entrou no castelo com Brent, caminhava junto a Dacre e os dois homens riam de alguma brincadeira.

— O que você fez com ele? Ele está mudado e não é o mesmo homem que eu tenho visto por anos. — Perguntou Berengaria a Lyonene.

Lyonene encolheu os ombros.

— Sempre foi assim com lorde Dacre. Eles não são mais velhos do que Brent quando juntos.

— Não, se equivoca. Vi lorde Ranulf e lorde Dacre brigarem um contra o outro desde que era menina, mas nunca tinha visto uma luminosidade como essa nos olhos de seu marido. Domou o Leão Negro.

— Não, espero que não. Se bem me lembro, há algumas maneiras ferozes sobre ele que eu gosto muito.

— Lembra? — Perguntou Berengaria. — O menino já tem quase um mês.

Brevemente, Lyonene contou a sua amiga sobre os meses na Irlanda. Berengaria estremeceu.

— Não acredito que queira ouvir mais sobre seus dias na Irlanda. Eu não gostaria de estar longe de minha família durante tanto tempo. Mas acredito que teve muita sorte de ter o marido que têm. Se eu tivesse feito uma tolice parecida, acredito que Travers teria me deixado com eles.

Lyonene ficou perplexa por sua franqueza, mas admitiu que ela também tinha pensado um pouco nisso. Suas palavras se detiveram com a entrada de Dacre e Ranulf.

— Aqui está sua esposa e continua sendo tão bonita como a lembro. Desembainhará a espada outra vez contra mim se a toque? —Perguntou Dacre.

— Se te desafio, esteja seguro de que será seu fim. — Disse Ranulf tranquilamente.

— Teremos tempo para provar suas palavras. — Riu Dacre quando se virou e agarrou Lyonene em seus fortes braços, lançando-a no ar antes de puxá-la para ele e dar um beijo na boca.

Ela lançou um olhar a Ranulf e viu que suas suspeitas eram fundadas; seu marido franzia o cenho para eles e seu corpo estava rígido em um intento de controlar suas emoções.

— Você é um bocado muito saboroso, quase tão boa quanto minha Angharad.

Lyonene empurrou os ombros de Dacre que tinha suas mãos na cintura e seus pés não tocavam o chão.

— E como está sua esposa lorde Dacre? — Disse ela em voz bem alta. Então baixou a voz e disse: — Me solte ou direi a todo mundo algo que me contou lady Elisabeth sobre você.

O rosto de Dacre perdeu o sorriso.

— Hmmm. Bem, acho que talvez não goste disso.

Dacre a olhou fixamente um momento e depois a deixou no chão e começou a rir.

— Se Angharad não estivesse do tamanho de meu cavalo, eu a teria trazido aqui e você teria que resolver isso com minha diabinha. Ouviu como esta menina, que é sua esposa, me ameaçou? Olhe. Tem guelra. — Dacre estirou seu braço por cima de sua cabeça.

Ranulf, sem poder ocultar sua satisfação, sorriu a sua mulher e logo voltou a olhar seu amigo.

— Eu gostaria de saber o que disse lady Elisabeth sobre você.

De repente Dacre deixou de sorrir.

—Mmm. Bom, acredito que não gostaria que você soubesse.

Ranulf jogou a cabeça para trás e pôs-se a rir.

— Iremos ver meu filho e logo meus homens que o esperam. Acredito que há uma questão de ouro que deve resolver.

Dacre deu um golpe nas costas de Ranulf.

— É uma dívida que estou disposto a pagar ansiosamente, pois na verdade, eu não achava que você fosse homem o suficiente para fazê-lo.

Saíram da sala de repouso discutindo amigavelmente e rapidamente o quarto se encheu de mulheres. Lucy, ainda chorosa pelo retorno de Lyonene, Kate, Melite, Berengaria e Lyonene passaram algumas horas maravilhosas, enquanto preparavam o traje para o batismo.

Lyonene ainda se emocionava ao amamentar Montgomery e encontrava muito prazer compartilhando esses momentos com seu filho. Crescia mais a cada dia, seus olhos procuravam rostos e as luzes que surgiam em cima dele. Já começava a distinguir sua mãe do resto das outras mãos que o seguravam nos braços e que o tocavam.

Malvoisin se achava invadido por convidados e seus servos. Colchões foram trazidos das adegas, arejados e montados por toda a casa. Os dormitórios de Black Hall estavam cheios e, como se tinha por costume, camas foram colocadas dentro da câmara de Ranulf e Lyonene. De noite as cortinas de sua própria cama estavam fechadas, mas podiam ouvir os ruídos das pessoas que dormia ao redor.

Lyonene aproximou seu corpo nu ao de Ranulf, seus seios contra suas costas, uma perna sobre sua coxa, sua suave pele deleitando-se com a superfície dura e coberta de cabelo. Ele se virou para ela rapidamente, aproximando-se do corpo suave e redondo em contraste com os músculos de aço do Leão Negro. Acariciou-a suavemente, saboreando sua pele cremosa e a plenitude de cada curva.

Lyonene aproximou mais seus quadris, sentindo o ardente desejo de Ranulf e, sua excitação aumentou sua fome dele, o desejo reprimido durante os meses de separação. Acariciou-lhe os músculos das costas, esfregando forte com a palma da mão, usando as unhas, desenfreada pela paixão cada vez maior. Com a boca, Lyonene percorreu toda a enorme redondeza de seu ombro, acariciando sua pele cálida e bronzeada com seus lábios, seus dentes, sua língua. Mordiscou um lado de seu pescoço, movendo-se a seu lado, com seus seios tensos contra o cabelo espesso e negro de seu torso, sentindo calafrios por todo o corpo devido às suaves cócegas que lhe provocava.

Chegou até o lóbulo da orelha e sentiu a respiração de Ranulf contra seus cabelos, uma respiração profunda e rápida. Empurrou-o para os lençóis, esfregando sua coxa entre as pernas de Ranulf, exaltando seu poder sobre ele. Com a mão, Lyonene percorreu seus braços, sentindo o poder contido, a força que só ela podia controlar e usar em seu benefício, para seus próprios caprichos e fantasias. Seus seios se esfregaram contra seu peito, notando como os mamilos rosados acariciavam sua pele e o suave pelo. Sem querer, Lyonene soltou um gemido duro e profundo enquanto acariciava seus lábios abertos com a ponta da língua, e logo o som se transformou em uma risada animal, gutural, quando o sentiu tremer debaixo dela. Lyonene mordeu seu lábio inferior e o torceu, sussurrando e acariciando-o, com seu corpo cada vez mais perto do objetivo.

— Tenho fome, Melite. Traga-me um pouco de comida ou mande a uma das donzelas a que o faça, mas não consigo dormir em um lugar estranho, quando tenho fome.

As palavras de William chegaram a sua cama rodeada de cortinas. Lyonene, por instinto, se afastou de Ranulf imediatamente ao ouvir a voz de seu pai. Ranulf puxou-a de volta para ele, mas um ruído muito forte o fez abrir os olhos e deixou a mão quieta em seu quadril. Suspirou e apertou os dentes fazendo um esforço para acalmar-se.

— Sir William, posso lhe ajudar em algo? — Perguntou-lhe ele através das cortinas.

— Não, lorde Ranulf, eu só queria encontrar a porta e depois a cozinha, mas é estranho aqui e eu não consigo encontrar o caminho da saída. — Outro ruído pontuou suas palavras

— Devo ir, ou seu pai pode destruir meu salão, assim como fez com meu prazer, esta noite. Você deveria estar feliz por ele ser seu pai ou eu poderia jogá-lo pela minha janela com seus modos desajeitados. — Sussurrou a Lyonene, lançando um olhar acusador. — Me vestirei e comerei com ele. Acredito que demorarei a dormir esta noite. — Se inclinou para dar um beijo na sua bochecha, mas quando a mão dela se dirigiu para seu ventre e o acariciou, Ranulf a afastou. — Não leoa, não vou fazer nada enquanto seu pai se agita como um javali ferido.

Ranulf se afastou rapidamente e a deixou. Lyonene cravou o punho contra o travesseiro e começou a rezar orações pedindo perdão, pois o juramento que tinha pensado ia dirigido contra seu próprio pai. Estava adormecida quando Ranulf voltou com um forte cheiro de vinho e só suspirou pacificamente quando Ranulf a atraiu para ele e dormiu.


A casa despertou muito cedo no dia seguinte e Lyonene se viu envolta em um torvelinho de preparativos para o batismo de Montgomery. Pela tarde, a solene cerimônia foi realizada na capela do salão da Guarda Negra, com o sol que se filtrava pelas bonitas janelas de vidros coloridos e chumbados. Berengaria deu o tranquilo bebê a padre Watte, que o imergiu na água abençoada. Montgomery lançou um forte grito, com toda a força de seus pulmões, que fez estremecer e sorrir lorde Dacre.

Mais tarde, no Salão Negro, presentes foram dados, copos com joias e chapas de ouro. Lorde Dacre apresentou seu afilhado com uma sela, pequena, feita para um pônei, com o couro gravado com o leão de Malvoisin.

Mas de todos os presentes, o favorito foi o de Ranulf a sua esposa. Tratava-se de uma taça alta, coberta em sua parte superior e inferior com filigranas de ouro, definido com esmeraldas, pérolas e diamantes. O cálice estava finamente esculpido em cristal de rocha, e aparecia gravada a cena de um leão e sua leoa, sentados tranquilamente e rodeados de quatro filhotes pulando. O pé da taça era de ouro, e havia uma inscrição com palavras de amor de Ranulf para sua bonita e jovem esposa.

Enquanto Lyonene segurava a requintada taça e lia a inscrição, levantou os olhos nublados de lágrimas para Ranulf.

— Assim não esquecerá. — Disse Ranulf, respondendo à pergunta não formulada.

Lyonene pôs a mão atrás de sua cabeça e puxou-o para baixo em um beijo que mostrou sua gratidão e expressou sentimentos mais fortes que isso.

Uma ovação encheu a salão, tanto pelo nascimento de um herdeiro, como pela felicidade que existia.

À noite, Lyonene se deitou na cama exausta, sozinha, enquanto Ranulf bebia com Travers e Dacre. Ela sentiu sua relutância em se juntar a ela em sua cama e sabia que tinha que ver com os acontecimentos da noite anterior e tratou de não desejar que partissem seus convidados.

No terceiro dia, as atividades foram planejadas. William pegou sua esposa e a sua filha e as levou ao Grande Salão.

— Quero ver este meu filho em ação. Ele prometeu me instruir no treinamento adequado de meus homens. — William rodeou a Lyonene com o braço. — Tem-no feito muito bem, minha filha. É um bom homem e te faz sentir orgulhosa.

— Sim, ele faz pai.

Lyonene passou o dia inteiro com sua mãe e Berengaria, já que tinha prometido a ambas mudas dos galhos das rosas do rei Eduardo. Depois do jantar, quando a casa estava mais tranquila, um moço trouxe uma mensagem.

— Um homem me deu e disse que era de Lorde Ranulf.

Ela sorriu e o enviou à cozinha enquanto tirava a missiva da bolsa.

Espero-a ao lado do manancial situado ao

norte da igreja de Calbourne.

Ranulf

Seu coração tinha começado a palpitar como o de uma menina, e não com o coração de uma mãe respeitável. Deixou a bolsa sobre o banco. Não via ninguém, assim, não se descuidava de seus convidados por um encontro secreto com seu marido. Rapidamente se dirigiu aos estábulos e ordenou a Russell que selasse Loriage. Não o tinha montado desde sua volta e ao notar a força do cavalo negro, excitou-se ainda mais, enquanto se apressava em direção a Ranulf e a alegria que sabia que lhe esperava.

Riu de si mesmo quando caiu o capuz e o vento arrancou a fita de seda de sua cabeça, emaranhando e jogando seu cabelo ao vento, que caiam em desalinho sobre seus ombros. Era maravilhoso ser livre, livre das exigências, obrigações e responsabilidades, e correu para seu amante, em um encontro excitante graças a seu ar secreto e proibido.

Ela cutucou no lado de Loriage e o animal saltou para frente, tão excitado quanto sua bela ama, juba e cauda voando ao vento frio. Eles pareciam voar juntos, flutuando pelos campos suavemente ondulantes, perto de casas, árvores, observando as pessoas.

Ao aproximar-se do manancial, Lyonene puxou as rédeas de Loriage. A última vez que tinha visto a escrita de Ranulf foi quando Morell falsificou as cartas para Amicia. Olhou a seu redor, vendo os matagais e as árvores como esconderijos perfeitos e, de repente, teve medo. Nunca soube exatamente o que tinha ocorrido aos dois e o fato de não sabê-lo a perseguia.

Loriage notou a mudança em sua ama e sacudiu a cabeça, soprando e dando coices, sinal de seu nervosismo.

— Silêncio, Lori. — Ela sussurrou, mas não conseguiu acalmar seus próprios medos.

Nem o cavalo saltitante nem a precavida ama viram o coelho, mas quando o cavalo o viu, o pequeno animal se encontrava debaixo dos cascos cortantes. Loriage agachou a cabeça e Lyonene, com seus pensamentos em outra parte, saiu voando por cima de sua cabeça.

Ranulf chegava galopando ao manancial, a tempo de ver sua pequena esposa voando pelo ar e aterrissando com uma forte pancada na água gelada. Desmontou rapidamente e correu para ela, que já estava se pondo de pé, secando a água de seus olhos e olhando a seu redor com cara de surpresa.

Ranulf se deteve na borda sorrindo, com suas mãos nos quadris.

— Acreditava que tinha uma mulher obediente, mas há limites. Tenho certeza, milady, de que pedi que nos encontrássemos ao “lado” do manancial e não “dentro” do manancial.

Ela o olhou, sobressaltada e logo, furiosa.

— Acreditava que estaria mais preocupado por minha saúde. — Disse com altivez.

Ranulf caminhou para ela e lhe ofereceu a mão e, ela fez todo o possível para atirá-lo à água, mas não pôde. Ele sorriu enquanto os dentes de Lyonene começavam a tocar castanholas, agarrou-a nos braços e a tirou da água.

— No que estava pensando para deixar que esse demônio de cavalo lhe atirasse fora? Possivelmente deveria dá-lo para que o coma os porcos.

Lyonene se aproximou de Ranulf, tentando esquentar-se, mas também pensando no tempo que tinha passado desde a última vez que tinham estado sozinhos de verdade.

— Loriage não teve a culpa, foi somente minha. Estava... pensando em outra coisa.

Ranulf afastou sua cabeça de seu ombro e seus olhos negros a olharam com dureza, fixamente.

— Já tive o suficiente disso. Sou tão indigno de sua confiança que me esconde seus pensamentos?

Lyonene o olhou fixamente. Ambos tinham oculto seus pensamentos e seus sentimentos muito frequentemente e o pouco tempo que tinham passado juntos, estavam repletos de dificuldades por sua falta de confiança. Não era fácil falar do tempo que passou na Irlanda.

— A carta que me enviou, não estava segura de que fosse sua. Digo-o pelas cartas falsificadas de antes.

Ranulf voltou a aproximar a cabeça de Lyonene de seu ombro, contente de que seu problema fosse tão pequeno, mas sensato. Acariciou-lhe o cabelo molhado.

— Temos muito a aprender, não é? Eu não posso culpá-la pelo que você fez se pensarmos desta maneira. Mas devemos aprender a dar e a confiar. O que acontece? — Podia notar suas lágrimas através de seu grosso tabardo de veludo. — Pela primeira vez sou um cavaleiro bom e gentil e, minha dama chora por isso. Não deveria ser assim.

Lyonene sorriu.

— Para mim, sempre foi bom e cavalheiro e sempre amei você.

Os olhos do Ranulf brilharam.

— Sempre? — Brincou.

Lyonene franziu ligeiramente o cenho.

— Exceto quando me fez amor pela primeira vez e quando vi Amicia em seus braços e...

Ranulf a fez calar com seus lábios, que se moviam rapidamente pelo seu pescoço.

— Não acha que já falamos o suficiente? Não têm frio com esta roupa? O que me diz se as tirássemos?

— Diga-me novamente que você me ama.

Quando Ranulf olhou para ela novamente, seus olhos eram muito sérios.

— Eu te amo completa e totalmente, mais que a minha própria vida e imploro seu perdão por toda a dor que causei, pela fraqueza do meu amor que fez você desconfiar de mim.

Lyonene cobriu sua boca com um dedo.

— Estas são palavras maravilhosas, mas cada vez tenho mais frio e logo meu filho, nosso filho, precisará de mim. Ou você se esqueceu o que terá que fazer, com uma mulher que carrega em seus braços?

— Você é uma insolente desavergonhada. Verá como castigo uma insolência dessas.

— Sou sua aluna muito disposta e ansiosa. — Sussurrou enquanto o puxava para mais perto dela.

 

 

                                                                  Jude Deveraux

 

 

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