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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O LEGADO DE ARN - P.2 / Jan Guillou
O LEGADO DE ARN - P.2 / Jan Guillou

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O LEGADO DE ARN

Segunda Parte

 

Birger dormiu mal naquela noite. E quando a primeira claridade do amanhecer despontou, ele achou que não podia mais dormir, já que estava bem acordado, pensando e repensando como devia se compor­tar e o que deveria dizer na assembléia da família. Vestiu-se com rou­pas simples e foi primeiro falar com Ibrahim a respeito das suas preo­cupações. Do garanhão ele foi depois para um lugar que raramente visitava, a pequena capela de Ulvåsa, que era pouco mais do que uma saleta de orações com um pequeno altar de pedra e uma simples cruz de madeira.

Ali ele rezou por bastante tempo para a Virgem Maria, pediu o perdão pela sua fraqueza na fé, por não ter se confessado há muito tempo e pela falta de confiança que havia demonstrado por Ela. Agora esperava que Ela lhe desse toda a sua proteção, de modo que ele con­seguisse formular as suas palavras do jeito certo, na hora da provação chegar. A sua oração, porém, logo se transformou em uma espécie de discussão, na tentativa de convencer a Virgem Maria com as palavras que já diziam respeito mais às que usaria na assembléia da família, que a paz era a maior e a mais desejada bênção para todos, que a guerra poderia conduzir a perdas para todos e que Ela, portanto, devia apoiá-lo e ajudá-lo na hora da decisão em Bjälbo.

Logo ele se deu conta da futilidade em tentar convencer a Mãe de Deus, em vez de rezar pelo seu perdão. Pensou, então, em apresentar a sua causa com mais humildade.

Quando a vida no aldeamento começou a animar-se do lado de fora, ele se levantou da posição de joelhos já enrijecidos e saiu da cape­la para trocar de roupa e vestir-se com a veste de armas, como todos os folkeanos se vestiam para se apresentar nas assembléias desde tempos imemoriais. Aqueceu água e fez a barba usando a sua navalha recém-afiada, pois presumia não ser preciso mostrar a sua barba rala e ruiva para ninguém, com a intenção de confirmar a sua maioridade e ener­gia ou exagerar a sua sabedoria. Ele sopesou nas mãos as esporas de ouro antes de colocá-las no lugar certo. Como tinham ficado por muito tempo guardadas, as partes de couro ficaram secas e endureci­das, estalando durante a colocação. Mas ele logo foi buscar um pouco de sebo para amaciá-las.

Pela sua vontade ele teria cavalgado sozinho para Bjälbo, na com­panhia apenas de um escudeiro com a bandeira de sua família. O caminho era plano, permitindo ampla visão de todos os quadrantes, a paz ainda reinava e não havia ameaças. Além disso, nenhum salteador poderia alcançá-lo, com ele montado no seu Ibrahim, que também foi decorado com as cores folkeanas.

Ingrid Ylva, porém, achava necessário que todos os doze escudei­ros de Ulvåsa o acompanhassem na viagem, não por uma questão de segurança, mas porque era um direito seu e para que se notasse bem quem era o novo porta-voz da casa de Ulvåsa quando ele chegasse à assembléia. A sua mãe verificou todos os detalhes, inspecionou-o da cabeça aos pés quando ele estava prestes a subir no cavalo e pareceu satisfeita com o que viu. Sorriu para ele, confiante, abraçou-o e beijou-o na testa.

— Você é agora a estrela da manhã que, em breve, aparecerá subindo na abóbada do céu. Pense bem no que eu lhe disse, meu que­rido Birger. E não tenha receio de nada nem de ninguém — sussurrou ela bem perto do seu ouvido para que nenhum dos irmãos escutasse. Eles tinham vindo para se despedir, com um adeus meio emburrado. A pior expressão era de Eskil, que se achava na condição de ser o que melhor poderia representar a voz de Ulvåsa, pois dos irmãos era o que melhor conhecia as leis, não só as dos homens, como também as da Igreja.

Birger saiu de Ulvåsa bastante orgulhoso, com o porta-bandeira segurando o símbolo da família na sua frente e os doze escudeiros atrás, em duas filas. O símbolo heráldico de Ulvåsa tinha quatro qua­drantes, com duas cabeças do grifo sverkeriano em preto e vermelho, que era a marca da família de Ingrid Ylva, e dois leões folkeanos com uma meia-lua, que era o símbolo de família de Magnus Månesköld.

Do lado esquerdo, Birger segurava o seu escudo folkeano recém-pin­tado com o leão dourado, mas sem nenhuma marca, a fim de mostrar que aquele era Birger Magnusson e não qualquer outro folkeano.

A viagem foi curta, com o dia ensolarado, e Birger chegou bem cedo a Bjälbo, onde recebeu as boas-vindas de Karl, o Surdo, que era o líder dos folkeanos e aquele que estaria no comando, representando a família na assembléia.

Quando todos já haviam chegado, os presentes foram primeiro até a igreja para fazer orações, assistirem a uma missa e à bênção para uma reunião bem-sucedida. Depois seguiram todos em procissão, com os seus homens portadores dos respectivos símbolos, até a praça do aldeamento, perto da igreja. Em épocas passadas, a assembléia era realizada na sala da torre da igreja, onde o jarl Birger Brosa dirigia a todos com mão de ferro. Mas com o passar dos anos os folkeanos tornaram-se tantos que era impossível arranjar lugar para todos na sala da torre, pequena e escura. A praça do aldeamento estava rodeada de muros feitos com grossos troncos de carvalho e era o lugar de onde, mais de uma vez, se tinha defendido Bjälbo de ataques. Birger pensou que um muro de defesa assim, feito de troncos, era coisa do passado, tanto quanto a sala da torre da igreja tinha servido para as assembléias de outrora. Junto da praça havia uma grande sala e para lá se dirigiram todos os homens portadores dos símbolos, a mando do senhor de Bjälbo, Karl, o Surdo, a fim de colocar esses símbolos alinhados junto das paredes. Foi isso que ele pensou para acabar com a sensação de que uns eram melhores que os outros. Isto porque, antes, os homens de Bjälbo sentavam-se na frente e, depois, os homens dos outros aldea­mentos, ao longo da sala, conforme a força e a honra, o que sempre tra­zia problemas na hora de saber quem é que ficaria mais atrás. Agora, porém, todos se sentavam à mesma mesa, uma mesa longa, emparelha­da com as paredes laterais, com Karl, o Surdo, no meio, de um lado, e Folke, o jarl do reino, à sua frente. O símbolo de Ulvåsa pendia junto de uma das paredes, ao lado do símbolo de Bjälbo pela direita e do símbolo de Sune Folkesson, de Älgarås, pela esquerda, símbolo que era muito parecido com o de Ulvåsa pelo fato de Helena, a esposa de Sune Folkesson, ser também da família sverkeriana.

Os cavaleiros Sigurd e Oddvar ficaram sentados na frente de Birger, ladeando o jarl Folke. Eles apenas se cumprimentaram fria­mente, com um aceno, sem dizer palavra.

Após uma curta oração, pedindo por harmonia e sabedoria na reu­nião, Karl, o Surdo, levantou-se e disse suas razões para apoiar o jovem Johan Sverkersson, exatamente como Ingrid Ylva havia previsto.

O jarl Folke falou em seguida contra essa proposta, não tendo qualquer dificuldade em encontrar grandes motivos para isso. Muitos dos seus parentes próximos tinham sido feridos e muitos outros mor­reram para, pela última vez, afastar do reino os sverkerianos e a sua malta de seguidores. Convidar e colocar agora essa família no trono seria insultar esses mortos.

Holmgeir era o homem do jarl Folke escolhido para assumir a coroa, neto do abençoado rei santo Erik, e os folkeanos, desde Gestilren e Lena, estavam unidos aos erikianos. Portanto, seria uma traição fazer a vontade do arcebispo Valerius nas suas intrigas para colocar no trono um sverkeriano.

A princípio parecia que a maioria dos homens presentes na sala estava com o jarl Folke, sustentando que a aliança com os erikianos devia persistir. Torgils Eskilsson, de Arnäs, foi o primeiro que, aberta­mente, ousou ir contra o jarl Folke e ficar do lado de Karl, o Surdo.

Todos ficaram quietos na sala, escutando com atenção, o que tal­vez tenha deixado Torgils um pouco inseguro. O raciocínio que ele apresentou a seguir, porém, era bem claro. Ele disse que, naquela reu­nião, nada valia mais do que o bem-estar dos folkeanos, nem alianças antigas, nem promessas ao soberano morto, nem nada, a não ser o que fosse melhor para a família. E o melhor para os folkeanos era não se tornarem inimigos da Igreja. Isto porque, se o arcebispo Valerius se recusasse a coroar qualquer outro que não o jovem Johan, o que seria possível fazer? Entrar em guerra contra o arcebispo?

O jarl Folke logo tomou a palavra, dizendo que se poderia banir qualquer homem da Igreja caso ele, clara e notoriamente, traísse o seu país, pois isso estava nas leis superiores, como eram as de Roma. Por duas vezes Valerius tinha traído seu país ao voltar na frente de guerrei­ros dinamarqueses. Se os folkeanos decidissem banir um homem como esse do seu bispado e do seu lugar no conselho do rei, quem é que poderia ir contra essa decisão?

Tanto o cavaleiro Oddvar como o cavaleiro Sigurd disseram que era preciso respeitar a aliança com a família do rei erikiano e que ambos haviam jurado fidelidade a ele, o rei Erik, que os elevou e os armou cavaleiros.

Sune Folkesson, de Älgarås, havia esperado bastante, de testa fran­zida, para falar, mas, por fim, ao fazê-lo, disse que, como todos na sala deviam saber, ele jamais tinha hesitado em entrar na guerra a favor da família e de ambas as vezes ele estava entre os vencedores em Gestilren e Lena, sendo que, da segunda vez, junto de Arn Magnusson, quando mataram o rei Sverker Karlsson e, com isso, dando a guerra por termi­nada. Mas que tinha dificuldade em entender como poderia investir com uma lança contra um arcebispo, por muito que fosse negra a sua alma. Não seria a ação mais inteligente por parte dos folkeanos faze­rem da Igreja sua inimiga. E que seria problema de Deus julgar um homem como esse arcebispo, não problema dos guerreiros folkeanos.

E assim continuaram os discursos na sala, contra e a favor, até que todos haviam dito o que pensavam, com exceção de Bengt Elinsson de Ymseborg e Birger Magnusson de Ulvåsa. Parecia que os dois lados se equivaliam e que nenhum deles poderia vencer sobre o outro.

Finalmente, convidado pelo jarl Folke a se manifestar, o cavaleiro Bengt disse que, embora fosse contra o exercício de violência contra um arcebispo, também não gostaria de ver qualquer sverkeriano sendo coroado rei. Dessa maneira ele estava de ambos os lados e teria sido insultado pela sua covardia, caso não fosse, como era, o melhor guerreiro do reino.

No primeiro dia não se avançou além disso. A assembléia dos fol­keanos estava paralisada entre dois grupos de expressão equivalente e tão longe um do outro que pareceu impossível fazer uma ponte entre os dois. Birger foi o único que não se manifestou, o que não surpreen­deu ninguém, visto que era o mais novo de todos e comparecia pela primeira vez a uma assembléia da família.

À noite, durante o banquete, Birger procurou a companhia de Torgils Eskilsson para lhe falar do seu tempo na casa do pai de Torgils, em Visby, e das preocupações naturais pelo fato de o senhor Eskil não ter nenhum filho ou parente que pudesse substituí-lo e administrar a sua câmara de comércio quando morresse. Torgils lamentou-se, dizen­do que essa era, de fato, uma grande preocupação, mas que ele próprio era responsável pelo castelo de Arnäs, o mais forte da família folkeana e, por isso mesmo, ele era mais importante para a segurança de todos do que na função de administrador de uma casa de comércio, por muito lucro que esta desse. No entanto, Torgils entendia muito bem qual era a grande importância do comércio. Arnäs estava situada numa posição em que todas as mercadorias que vinham da Noruega ou de Lödöse e da Dinamarca tinham que passar por lá, como as embarcações que, muitas vezes, passavam a noite atracadas nos píeres fluviais de Arnäs. E tudo que se produzia em Forsvik e não embarca­va para Söderköping passava por Arnäs, a caminho de Lödöse. Que Visby era o ponto central de ligação de tudo isso, como o seu pai havia previsto, todos sabiam, se entendessem um pouco de comércio. Mas o que é que ele podia fazer? Ele foi ensinado desde cedo para ser coman­dante da fortaleza, e o seu filho, Knut, iria ter o mesmo destino que o seu. Se o futuro fosse de eterna paz, um castelo forte como o de Arnäs perderia significado. Mas como o primeiro dia de negociações na assembléia da família havia mostrado, com horrorosa clareza, a guerra podia já estar a caminho, justo no momento em que eles estavam ali comendo e bebendo. A saída mais simples talvez fosse deixar que esse Johan se tornasse rei, exatamente como Karl, o Surdo, havia sugerido.

Caso se cortasse esse nó, deixaria de haver guerra, visto que, assim, os erikianos nada teriam do que se vingar. Eles não poderiam ir contra os folkeanos. Para isso não eram suficientemente fortes. Ninguém era. E também não tinham condições para banir o arcebispo. Então, era melhor continuarem em paz. E, para isso, Johan era a melhor escolha.

Birger não reagiu nem com palavras nem com mudanças na expressão do rosto, contra ou a favor, do ponto de vista de Torgils sobre o assunto. Em vez disso, pediu desculpas, dizendo que não que­ria ter dor de cabeça no dia seguinte como bebedor de cerveja e se reti­rou para o seu alojamento.

Uma tradição conservada em Bjälbo desde os tempos de Birger Bro­sa era a de não se beber cerveja ou vinho enquanto decorressem as nego­ciações. Embora a cerveja em quantidades moderadas servisse para soltar as línguas presas, a bebida em excesso era prejudicial, visto que os desen­tendimentos logo podiam transformar-se em coisa pior. E sempre que a cerveja era servida entre os folkeanos, jamais era bebida em pouca quan­tidade, mas, sim, sobre-humanas.

Assim, todos, sedentos, foram para o banquete e muitos acabaram bebendo demais. Por isso, no dia seguinte, as negociações só começa­ram depois do meio-dia, ainda que um ou outro dos presentes apare­cesse de olhos vermelhos e rosto carrancudo.

As discussões na sala continuaram logo na mesma direção do dia anterior. O jarl Folke, que ainda não estava restabelecido da bebedei­ra, parecia, nitidamente, de mau humor e saiu logo enfrentando alguns dos presentes que, meio indecisos ou de coração aberto, haviam falado a favor de Johan Sverkersson para futuro rei.

Como nenhum dos que atacou quis responder no mesmo tom, ele se animou a brincar com o fogo. Talvez se pudesse ver a explicação para a infidelidade de alguns dos nossos parentes, disse ele em voz alta ao observar certos símbolos, com o grifo negro dos sverkerianos. Se um sverkeriano conseguir chegar ao trono de novo, esses parentes vão obter vantagens maiores do que os outros.

Como acreditava que o frangote chamado Birger, certamente, era aquele que teria mais dificuldades em aceitar esse insulto, ele exortou-o a falar, finalmente, por si mesmo e em nome de Ulvåsa, mas, então, que falasse como um leão e não como grifo.

Houve uma série de risadas maliciosas de parte dos presentes na sala em seguida a essas palavras duras e todos os olhares se viraram para Birger, que, corando, fez o sinal-da-cruz e se levantou. Era a sua hora e não dava para esperar mais, nem para recuar.

— É verdade que a minha mãe, Ingrid Ylva, é uma senhora sver­keriana e todos os senhores a conhecem — começou dizendo Birger, em voz baixa, de modo que Karl, o Surdo, gritou para ele falar como homem. — É verdade que a minha mãe é sverkeriana — repetiu ele, com voz exageradamente elevada. — E verdade também que a mãe de Emund Jonsson, Ulvhilde, é da família sverkeriana. É verdade ainda que a esposa de Sune Folkesson, Helena, também é sverkeriana. Houve uma época em que os folkeanos estabeleceram essas ligações para fortalecer o nosso poder. Por isso estou agora aqui. Mas por isso mesmo você não deve me insultar, jarl. Em vez disso, deve considerar que Emund, assim como Sune e eu próprio, todos nós fizemos o jura­mento de cavaleiros diante do rei Erik, e esse juramento nós o fizemos seriamente. Mas o meu juramento não me impede de agir. A minha fidelidade a esta assembléia, assim como a de Emund e a de Sune, é incontestável. Sobre isso ninguém deve duvidar. E, assim, exijo que peça desculpas, jarl Folke.

Era preciso muita coragem para exigir que o próprio jarl do reino se desculpasse e se corrigisse. O ambiente na sala ficou tenso e silencioso, e todos os olhares se desviaram de Birger e foram parar no jarl Folke.

— Nesse pequeno caso, eu vou lhe fazer a vontade, Birger — murmurou o jarl. — Nós, os folkeanos, estamos todos juntos no mesmo barco e nisso eu não poderia pensar diferente. Queira receber as minhas desculpas pelas palavras pouco respeitosas sobre a sua mãe e as dos outros. Mas nem por isso você vai escapar facilmente, pois quero saber o que pensa, em alto e bom som, não sobre questões pequenas e esporas de ouro, mas sobre a grande questão que é a razão desta assembléia.

— Isso você vai ouvir agora! — gritou Birger do outro lado da mesa, para mostrar que não se deixava intimidar pela voz grossa do jarl. — Por isso vou lhe dizer, em alto e bom som, por que você, jarl Folke, está errado. Isto, se lhe aprouver ouvir, sem me interromper ou rugir contra mim — continuou ele num tom mais baixo.

Nenhum frangote jamais tinha falado assim para um jarlfolkea­no do reino. Um silêncio de espanto desceu novamente na sala. Como Birger fizera um desafio, dizendo que poderia demonstrar que o jarl estava errado, era preciso escutar com atenção. Estava em jogo a honra e a curiosidade, visto que um dos dois, o jovem ou o velho, ficaria mal. O jarl Folke recuperou-se rapidamente do seu espanto e indicou com um sinal da mão que Birger tinha agora a palavra. Depois sentou-se lentamente e recostou-se na cadeira, decorada com um dragão.

— Você está errado em três coisas, meu caro parente — retomou Birger, num tom de voz mais baixo e mais amistoso, já que a raiva poderia estragar tudo. — Você está errado ao falar da nossa honra perante os erikianos. Isso era quando o rei Erik ainda gozava do nosso juramento de fidelidade. Disso estamos liberados. Agora trata-se de fidelidade de folkeanos a folkeanos. Você está errado também ao dizer que Holmgeir tem direito à coroa. Em primeiro lugar, não é dos fol­keanos o direito de escolher. Esse direito é dos erikianos. E se a rainha Rikissa der à luz um filho, os erikianos, certamente, vão dizer que esse filho é por direito de herança o seu rei. Assim diz a lei em relação à herança normal. Se a mulher está grávida quando o seu homem morre e, depois, dá à luz um filho, então esse filho herda tudo como se tives­se nascido com o pai em vida. O caso de herança de um rei é, pela lei, como um caso de herança normal. E o seu terceiro e pior erro, entre­tanto, é o de falar que devemos usar o poder folkeano, essa força que representa tanto a nossa honra quanto a nossa segurança, para banir um arcebispo. Se nós atacarmos a casa dele, se o banirmos ou, ainda pior, se o matarmos, todas as terras folkeanas na Götaland Oriental e na Ocidental ficarão sob interdikt. Com isso, acabamos não ganhan­do nada, e, em contrapartida, perdendo tudo.

Birger deu uma parada, notando um sussurro de ansiedade na sala, e viu nos olhos do jarl Folke que alguma coisa não estava clara. De longe, na saía, alguém fez uma pergunta, sobre o que significava interdikt.

— Interdikt — continuou Birger — significa que Sua Santidade, em Roma, excomungará todo o nosso país. Nenhum dos serviços da Igreja estará disponível. Ninguém poderá ir à missa ou confessar-se, ninguém poderá receber a extrema-unção nem ser enterrado em terra abençoada. Se um castigo como esse nos for dado, todo o nosso poder folkeano ficará reduzido à insignificância.

Nesse momento os murmúrios na sala aumentaram muito e Karl, o Surdo, logo aproveitou a oportunidade para concordar, intensiva­mente, com as palavras de Birger Magnusson, voltando a insistir que a melhor coisa a fazer era deixar que o traiçoeiro arcebispo coroasse Johan Sverkersson, visto que um rei fraco como ele faria com que aumentasse o poder dos folkeanos. Parecia que ele tinha conseguido que a maioria acenasse com a cabeça, meditando e concordando.

Logo Birger se levantou de novo e esperou que todos os sussurros e resmungos terminassem, de modo que a sua voz pudesse ser ouvida.

— O nosso jarl da família, Karl, está errado, tal qual Folke, o jarl do reino — recomeçou ele, sem rodeios, o que fez voltar logo o silên­cio na sala. — Suponhamos que a rainha Rikissa dê à luz um filho. E que nós escolhamos Johan Sverkersson para rei. Quem é que ficará mais prejudicado nos seus direitos, se os direitos do filho do rei forem rejeitados? Talvez Holmgeir e Knut, mas eles não poderão atingir a nós, folkeanos, ficando apenas a ranger os dentes. Pior, no entanto, é a situação com o rei Valdemar, o Vencedor, da Dinamarca, visto que, então, nós estaremos violando os direitos do filho da sua irmã. E a raiva do rei Valdemar não é exatamente aquilo que nos serve melhor. Nada ameaça o poder dos folkeanos no nosso reino, ninguém poderá nos vencer pela espada e pela lança. Por aí a nossa segurança é enorme. O mais lamentável, no entanto, é ouvir falar os nossos dois parentes mais notáveis e mais velhos, querendo lançar sobre as nossas cabeças as únicas infelicidades que nos podem ameaçar. Se seguirmos o conse­lho do jarl Folke, seremos todos excomungados por Sua Santidade. Se seguirmos o conselho do jarl Karl, teremos que enfrentar mais uma invasão do exército dinamarquês no nosso país, a fim de instalar no nosso trono uma criança e nos deixar subservientes aos seus intenden­tes. A nenhum desses conselhos devemos obedecer!

Birger sentou-se calmamente, como se tivesse dito tudo o que pre­cisava dizer, o que não era bem a verdade. Melhor seria, porém, ima­ginou ele, que os dois jarles agora se entendessem e concordassem em fazer aquilo que, de momento, era a única saída possível.

Mas isso não fizeram. Ambos continuaram discutindo vivamente aquilo que Birger havia apontado como erros nos conselhos dados por um e pelo outro, mas nenhum deles queria reconhecer os seus pró­prios erros, ainda que já tivesse se tornado certa a opinião de todos na sala de que Birger Magnusson estava confiante a respeito dos conse­lhos de ambos os velhotes.

Da discussão que crescia entre os dois jarles, ninguém chegaria a lugar nenhum e aquele que primeiro se cansou foi o cavaleiro Bengt Elinsson, que bateu com o punho na mesa, a fim de que se fizesse silêncio.

— Eu sou folkeano pelo lado de minha mãe e, por conseguinte, pelo meu sangue, faço parte da família. Servi à nossa causa tanto em Gestilren como em Lena — começou ele, com voz bem sonora. — A minha fidelidade a esta família não poderá ser posta em dúvida por ninguém, muito menos a minha honra e a minha sabedoria. Aqueles que têm vivido mais próximos de Bjälbo do que eu, e que, certamen­te, têm uma memória melhor do que a minha, se recordam dos homens que aqui falaram de forma inteligente, entre nós, folkeanos, homens como Birger Brosa. E diante dos nossos olhos e dos nossos ouvidos está agora mais um desses homens, bem aqui entre nós, para honra nossa e para nos servir. Por isso, peço humildemente a você, meu jovem e nobre Birger, uma coisa que nunca fiz durante todos esses anos que fiquei lhe insuflando conhecimentos no campo de trei­namento de Forsvik, que fale para nós, de forma clara e tranqüila, aquilo que devemos fazer. Em mim você terá um seguidor!

O cavaleiro Bengt sentou-se pesadamente na cadeira, com um olhar de amizade e estímulo para Birger e fazendo sinal com a mão para que se levantasse de novo. Nenhum dos folkeanos presentes que­ria outra coisa.

Birger levantou-se, corando mais uma vez, visto que tudo o que ele menos esperava nesse dia era receber uma lisonja tão grande do maior cavaleiro do reino.

— O melhor que temos a fazer agora é não fazer nada — disse ele em voz tão baixa que, novamente, foi chamado à atenção no grito por Karl, o Surdo, para que elevasse a voz. — Nós não devemos fazer nada por ora! — repetiu ele, mais alto. — Se Rikissa tiver um filho, é aos erikianos que competirá decidir se ele ou qualquer outro se tornará pretendente ao trono. Se Rikissa tiver uma filha, a questão passará a ser entre Holmgeir e Johan Sverkersson. No momento não é de nenhum deles. Quando soubermos como vai ficar, nos encontraremos de novo. Nessa altura, vamos ter diante de nós todas as regras do jogo.

Rapidamente ficou decidido que se devia agir tal qual como Birger havia sugerido. E, assim, todos puderam ir mais cedo para a festa de encerramento, com muita cerveja e carnes grelhadas.

Mais tarde, o jarl Folke se aproximou do lugar onde estava Birger e sentou-se ao seu lado, já tão vacilante que entornou quase metade da cerveja do seu caneco em cima do jovem parente. Mas a sua intenção não era maldosa, antes pelo contrário. Ele se inclinou para Birger, deu-lhe uns tapinhas amistosos nas costas e confirmou, com uma voz já meio pastosa, que ele, sem dúvida, não tinha degenerado dos folkeanos de Bjälbo. E como ele já estava ficando velho, sentia-se seguro em saber que um outro Birger Brosa, certamente, viria depois dele.

Só muito mais tarde na noite Birger começou a entender o que tinha acontecido, pensando nas forças desconhecidas que existiam den­tro de si mesmo. Assim como a estrela matutina, Birger Magnusson havia subido ao céu folkeano, justamente como Ingrid Ylva tinha previsto.

 

UM ÚNICO HOMEM no reino desejava a guerra mais do que qual­quer outra coisa na vida. Esse homem era o arcebispo Valerius. E como tudo lhe caía nas mãos como queria, ele estava certo de que Deus lhe faria a vontade até nisso. Era como se nada que ele fizesse pudesse dar errado.

Quando a rainha Rikissa, finalmente, deu à luz um filho na Dinamarca, a quem ela pôs o nome de Erik, como o do seu pai assas­sinado, parecia a princípio que isso seria uma grande contrariedade para Valerius. Se os folkeanos e os erikianos agora se unissem e apon­tassem essa criança, e ninguém mais, como herdeira da coroa do rei, seria difícil para a Igreja fazer qualquer outra exigência. Mas aí os eri­kianos, internamente, entraram em desacordo e, de repente, havia três pretendentes ao trono, visto que Holmgeir e o seu filho Knut acha­vam que a sua pretensão vinha antes da criança na Dinamarca.

A discussão entre os erikianos fez com que os folkeanos se cansas­sem e, na sua assembléia, decidiram que tanto fazia e que, portanto, ficariam com Johan Sverkersson, desde que recebessem, eles próprios, uma parte bem aquinhoada de poderes.

Era de recear que o tio da criança, nascida dinamarquesa, o pode­roso rei Valdemar, o Vencedor, viesse a intervir com força total, a fim de garantir os direitos do filho da sua irmã à coroa, e então seria tão difícil tanto para a Igreja como para os folkeanos contrariá-lo.

Mas Deus quis ajudar mais uma vez o seu fiel Valerius nessa ques­tão e da maneira mais maravilhosa. O rei Valdemar se preparava para mais uma cruzada contra a Estônia e não podia, ao mesmo tempo, enviar tropas armadas para a Götaland Ocidental, em especial sabendo que sairia caro tentar abater a cavalaria folkeana. Em vez disso, tentou chamar a intervenção do papa em Roma na solução do problema dos direitos de herança, de modo que, em breve, começaram a chegar as bulas papais com questionamentos duros dirigidos ao arcebispo Valerius e, finalmente, uma chamada do novo papa, Sua Santidade Honório III, ordenando que o arcebispo Valerius e o bispo Bengt, de Skara, se apresentassem diante do papado e explicassem as suas ações.

Mas Valerius fez, então, uma coisa jamais vista. Queimou a bula papal e proibiu todos os presentes que a leram a jamais pronunciarem uma palavra sequer a respeito do assunto. Ao mesmo tempo, assegurou que ele próprio assumiria toda a responsabilidade por esse pecado.

Johan, o Jovem, foi coroado rei em Linköping no ano de 1219. Os homens da Igreja também não saíram dessa desobediência em rela­ção a Roma de mãos abanando. Isto porque a primeira lei real em nome de Johan III, o Jovem, estabeleceu nada menos que a Igreja dei­xaria, a partir daquele momento, de pagar impostos. Além disso, e para enriquecer em especial os próprios bispos, todos os contravento­res condenados em áreas da Igreja passavam a pagar os seus impostos ao bispo da capital da diocese. A bondade real iria enriquecer todos os bispos, mais do que jamais eles poderiam esperar, se um adulto, e não um mal-educado garoto de quinze anos de idade, estivesse no poder. Valerius e os seus bispos certamente tinham todas as razões para esta­rem satisfeitos.

Quando o conselho da corte se reuniu pela primeira vez, Karl, o Surdo, foi nomeado jarl, assumindo a dignidade do cargo em substi­tuição ao seu meio-irmão, Folke, inimigo declarado da Igreja. Bengt Elinsson tornou-se o marechal do reino; o novo bispo, Karl Mag­nusson, foi nomeado chanceler do rei; e o novo homem de leis, Eskil Magnusson, também ganhou o seu lugar no conselho, assim como o filho de Ulvhilde, Emund Jonsson.

Ingrid Ylva e Ulvhilde tinham, assim, conseguido que o conselho da corte ficasse composto, justamente, como acordado com o arcebis­po Valerius. Por isso, Ingrid Ylva pôde pegar o acordo escrito e assina­do entre ela, Ulvhilde e o arcebispo e queimá-lo com selo e tudo.

O poder no reino estava agora dividido entre os folkeanos e a Igreja, e aquele que nada tinha a dizer era o rei Johan, o Jovem, visto que fazia apenas aquilo que Valerius queria, em face da dívida de gra­tidão que tinha para com esse homem.

Foi pouco depois da coroação em Linköping que Valerius come­çou a falar de guerra. Diante do conselho, mostrou várias bulas papais de Honório III e do seu abençoado antecessor, Inocêncio III, nas quais advogavam a realização de cruzadas aos países do outro lado do Mar Báltico, onde as populações ainda não tinham sido cristianizadas. Anteriormente, todos esses desejos papais tinham sido recusados, tanto pelo rei Knut Eriksson como pelo rei Erik Knutsson, em função do conselho de Arn Magnusson que era marechal dos dois e que sabia mais de cruzadas do que qualquer outro homem na Escandinávia.

No entanto, Valerius era tão incansável em suas conversas sobre as cruzadas no leste que chegava a ter o atrevimento de apresentar o rei Valdemar, o Vencedor, como exemplo divino por estar a caminho da Estônia. E a sul da Estônia, na Curlândia, tinha sido instituída uma nova ordem, a Ordem da Espada de Guerra, que do papa recebeu as mesmas Regras da Ordem dos Templários, a que deviam obedecer e que tinha obtido estrondosas vitórias e conquistado grandes regiões.

Justamente por isso, dizia o novo marechal no conselho da corte, Bengt Elinsson, não havia grandes razões para se juntar a essa multi­dão. Valerius, porém, não se dava por vencido e falava amplamente a respeito do perdão concedido aos cruzados de todos os seus pecados na vida, coisa que talvez fosse uma questão mais importante para ele próprio do que para os outros. E ele não tinha a menor dificuldade, diante do juvenil soberano, em pintar a grande aventura do outro lado do mar. Os bispos no conselho da corte deviam decidir conforme o seu arcebispo. E Valerius chegou a nomear o novo bispo Karl, de Linköping, para acompanhá-lo na abençoada viagem.

Que o seu filho ainda inexperiente na sua primeira tarefa, após ter sido promovido a bispo, fosse obrigado a ir para a guerra, deixou Ingrid Ylva não só desconfiada, como também mal-humorada. Ela já via o jovem Karl como o novo arcebispo do reino, assim que o trai­çoeiro Valerius fosse levado para debaixo da terra, onde era o seu lugar. A conversa de Valerius de que o bispo Karl, de Linköping, era o mais novo e o de melhor saúde entre todos os bispos, podendo por isso agüentar não só a viagem de barco como também outros esforços, não serviu muito como desculpa diante de Ingrid Ylva. Sendo assim, como é que se poderia explicar que esse Bengt, de Skara, o mais velho e mais decrépito de todos, e o próprio Valerius, iriam fazer essa via­gem? Ingrid Ylva desconfiava, furiosa, de um estratagema e logo con­vocou Birger para que providenciasse para o seu irmão e bispo toda a segurança necessária, com no mínimo um esquadrão de cavaleiros forsvikianos.

Com isso, ela colocou Birger numa situação difícil. Assim como o marechal Bengt Elinsson, ele pensou primeiro em não participar, de jeito nenhum, nessa guerra. Eles consideravam que tinham boas razões para isso.

Isto porque Karl, o Surdo, sendo agora o novo jarl, era quem deci­dia sobre tudo o que tinha a ver com guerra fora do país. E, para apoio às suas decisões, ele participou dos detalhes da campanha ao arcebis­po e ao rei, que sabiam ainda menos do que ele a respeito da guerra nos novos tempos. Ao descrever os seus planos para a abençoada cru­zada ao leste, Karl, o Surdo, ouviu de Birger e Bengt que eles conside­ravam sem justificativa ou, pior ainda, uma loucura, seguirem junto. O jarl Karl tinha decidido, de fato, que essa guerra devia ser feita segundo as boas tradições do passado, com combatentes de verdade, sem cavalos. Cheio de entusiasmo infantil, ele falou do que chamava frota svea para longas incursões de saque, nos velhos tempos, em que esses ousados combatentes e navegadores eram o terror para os pagãos no leste. E com esses combatentes podia-se enfrentar o inimigo em formação, designada por cabeça de porco.

Bengt Elinsson e Birger mal puderam acreditar no que ouviram quando perguntaram, cautelosamente, o que ele queria dizer com for­mação de cabeça de porco. Era uma disposição conhecida desde a batalha de Bråvalla, na era pagã, a maior batalha de todos os tempos na Escandinávia. O lado que venceu adotou uma formação do tipo “em cunha”, com o mais corajoso dos combatentes na frente, seguido dos dois mais fortes e, depois, os quatro e os oito, em valor decrescen­te de forças, de modo que todos avançavam para o ataque nessa for­mação parecida com a cabeça de um porco. Tal qual um punhal quen­te na manteiga, a cabeça de porco entrava pela multidão inimiga, comentava Karl, animado e esfregando, bem-humorado, as suas mãos geladas e enrugadas pela velhice. A questão se apresentava ainda mais como loucura quando Karl, o Surdo, começou a descrever os seus pla­nos, arfando e com a respiração entrecortada.

Caso Birger e Bengt tivessem que decidir sobre a questão durante a assembléia folkeana, eles teriam, sem qualquer dificuldade, quebra­do os braços de Karl, de tal maneira ele os agitava na sua frente. Diante da assembléia e de todos os cavaleiros, as idéias antiquadas de Karl teriam parecido tão presunçosas como, de fato, eram. Afinal, entre os componentes da assembléia, mais da metade tinha participa­do das duas últimas batalhas contra os dinamarqueses, em que a cava­laria foi decisiva na definição do pleito.

Mas Karl, o Surdo, conseguiu passar todas as suas decisões ao con­selho da corte. E no conselho nem o marechal Bengt Elinsson nem o cavaleiro Emund tiveram muita oportunidade para se dizerem contra. O arcebispo e o rei acreditavam, sem restrições, no seu jarl

Após uma longa agonia, Birger chegou à conclusão de que, se tinha que participar da guerra, não valeria muito a pena ficar discutin­do com um velhote surdo a respeito de cabeças de porco ou de outras invenções. A guerra seria conduzida sem cavaleiros e com os corajosos combatentes da Svealand a pé. E ponto final. Entretanto, ele conse­guiu convencer o jarl a embarcar pelo menos um esquadrão de fors­vikianos para a segurança dos bispos e para procurar e vigiar o inimi­go a distância. Contra a vontade, o velho jarl teve que reconhecer ser útil a movimentação rápida dos cavaleiros para obter informações sobre as posições inimigas, e essa colaboração seria apreciada, mas eles deveriam se afastar do caminho na hora do verdadeiro combate.

Birger teve que morder o lábio e ficar olhando fixamente para o chão como se fizesse uma reverência ao ouvir esta última ordem. O jarl do reino estava louco e, além disso, um louco perigoso, visto que mantinha em suas mãos o poder de vida ou morte sobre muitas pes­soas. Sobre o caso não ajudava em nada rir ou chorar. E ainda muito menos discutir, pois, então, nem sequer os dezesseis forsvikianos poderiam viajar e atravessar o mar.

 

Finalmente, Birger estava na proa de uma galera bem carregada que avançava, tranqüilamente, ao sabor de um suave vento estival de bom­bordo pelo Mar Báltico. Levou quase um ano para fazer todos os pre­parativos e à volta da galera em que Birger estava viam-se os barcos longos dos sveas por todos os lados. Quatro mil homens achavam-se a bordo desses barcos que já eram usados nas antigas campanhas de saques. A bordo da pesada galera, no meio da frota de embarcações menores, estavam o rei, o arcebispo, o bispo Karl, de Linköping, dezesseis forsvikianos e trinta cavalos. O jarl seguia em uma das maio­res embarcações longas e à frente da galera.

Birger estava triste e pensativo. Foi difícil mobilizar sequer um esquadrão de forsvikianos depois que Bengt Elinsson falou de coração aberto sobre o que pensava de Karl, o Surdo, como comandante dessa guerra sem cavaleiros, cabeças de porco e outras maluquices semelhan­tes. Por essas palavras Birger não podia censurar o cavaleiro Bengt, já que ele próprio compartilhava de todas essas considerações.

A galera foi fácil de conseguir com a boa quantidade de moedas de ouro retiradas da arca de guerra do rei, que ele recebeu antes de partir para Visby. Birger não encontrou nenhum motivo para ser um homem de negócios especialmente cuidadoso com o dinheiro ao comprar o barco de Eskil Magnusson e ao contratar a tripulação, na certeza de que a maior parte do ouro que estava sendo gasto com essa guerra era mesmo para jogar fora.

Entretanto, o bom da viagem a Visby foi que ele pôde levar con­sigo o irmão mais novo, Elof, que, segundo as palavras fortes de Ingrid Ylva, sua mãe, não servia para grande coisa em comparação com os seus irmãos mais velhos. Elof esforçou-se para aprender latim e filosofia, como todos os outros irmãos, e talvez não tivesse uma cabe­ça pior do que eles. Mas ele não queria fazer nada da sua vida, não pre­tendia ser homem de leis, nem empunhar o bastão de bispo, nem mesmo as esporas de ouro de cavaleiro. Sonhava isolado e talvez tives­se pena de si mesmo pelo fato de beber demais e ficar bêbado mais vezes do que os outros homens.

A boa recordação na mente de Birger, ao levar o irmão até Visby, foi ver como Elof, realmente, ficou espantado diante das ruas limpas, com escoamento, as casas de pedra, as igrejas e os muros da cidade, assim como o prédio da câmara de comércio de Eskil Magnusson. Como Birger havia esperado, esse novo mundo abriu novas perspecti­vas para Elof.

A má recordação foi ver que Elof ficou bêbado logo na terceira noite, depois de rondar pelas tabernas da cidade. Por pouco escapou de ser espancado até a morte e de ser roubado. Birger desculpou-se, dizendo que tinha feito o possível, diante de Olof e do senhor Eskil. Se Olof se recompusesse, ele teria uma grande vida pela frente, plena de trabalho significativo como a mãe deles talvez nem conseguisse imaginar. De qualquer forma, agora, ele estava em Visby, e se preferis­se a cerveja e o vinho, então estaria aniquilando a grande oportunida­de ao seu alcance. A escolha seria de sua livre e espontânea vontade. Birger não podia ter feito mais nada do que lhe mostrar Visby e deixá-lo ficar lá pelo tempo que quisesse.

Não se via terra de nenhum lado e as vagas no mar eram bonitas e suaves, sob vento fraco. De vez em quando, algum dos jovens forsvi­kianos subia ao tombadilho para vomitar. Para a maioria, esta era a primeira viagem por mar, não contando com aqueles pequenos traje­tos nos lagos Vättern e Vänern. Birger não censurava ninguém, visto que isso também tinha acontecido com ele, das primeiras vezes que viajou para Lübeck nas galeras do senhor Eskil.

Aquele que visse Birger sozinho, de pé, na proa do barco, olhando sem cessar para o lugar onde devia surgir a terra dos pagãos, poderia acreditar, certamente, que ali estava um guerreiro impaciente e entu­siasmado diante do que estava para acontecer. Para qualquer homem devoto e humilde, seria fácil imaginar que ali estava um jovem nobre na expectativa ardorosa de poder penitenciar todos os seus pecados.

Nada disso estava sequer perto da verdade. Birger tinha muito em que pensar, sem dúvida, mas era como se ele, o tempo todo, quisesse afastar de si todos os pensamentos sobre a guerra que, inexoravelmen­te, se aproximava a cada vaga que a galera furava. Recordações agradá­veis passavam pela sua mente. E também as desagradáveis. Tudo menos a próxima guerra.

Matteus Marcusian, de Forsvik, seu companheiro de infância, estava a bordo. Ao contrário do seu parente Johannes, Matteus fre­qüentou a escola de guerra de Forsvik, em vez de fazer o aprendizado para artesão de cobre, serralheiro, marceneiro ou qualquer outra pro­fissão que, em geral, providenciava o sustento para quem não tinha terras. Matteus era guerreiro, mas um combatente sem terras e sem guerras. Por isso, ele atendeu ao chamado de Birger, apesar de todas as advertências dos forsvikianos mais velhos. No momento, estava agar­rado à amurada do barco, mas, por ignorância, na popa, de modo que os seus vômitos se espalhavam com o vento pelo convés.

Que Erik Stensson, o mais velho dos forsvikianos a bordo, tivesse atendido ao chamado de Birger, não era para estranhar. Erik tinha ser­vido como professor de armas na escola de Bengt Elinsson, em Ymseborg, desde aquele dia em que eles se encontraram pela primei­ra vez na assembléia de Askeberga e em que Birger pediu que Erik fosse perdoado e absolvido por ter desonrado a sua espada. Com isso, Erik ficou em dívida para com Birger, pelo resto da sua vida, uma dívida que podia ser cobrada a qualquer momento pelo credor. E o crédito foi cobrado, fazendo-o servir na guerra.

O pensamento de Birger continuava fugindo da temática da guer­ra. Desde a primeira vez que falou na assembléia da família, ele notou que as palavras lhe vinham à mente com muito mais facilidade. Tinha enterrado em si mesmo um tesouro de Deus, até essa primeira vez, quando discutiu com o velhote Karl, o Surdo, que não entendia o perigo de uma guerra com o rei Valdemar, e com o outro velhote, Folke, pouco escolado nas coisas da Igreja, que não entendia o perigo de interdição, o tal de interdikt. Mas, depois disso, Birger passou a ser aquele que, nas assembléias, falava por último e que dizia o que devia ser feito. E quase sempre os acontecimentos lhe davam razão. Todos os velhotes o comparavam com Birger Brosa, e isso, a um tempo, lhe dava satisfação e lhe metia medo. Ficava satisfeito, sim, quando falava diante de uma audiência atenta e em silêncio, e sentia como as pala­vras lhe vinham à mente, voando como andorinhas, harmoniosa­mente. Essa era a sua vida. Deus tinha lhe dado esse dom de poder lide­rar seus parentes e todo o resto lhe parecia menos importante. Tudo menos, possivelmente, a vontade de sair vivo dessa guerra absurda.

Por um instante, a sua mente ocupou-se da guerra, mas logo pas­sou a se ocupar de um outro assunto da maior importância, ao mesmo tempo bonito e doloroso. Ele já tinha um filho, chamado Gregers.

Era um verdadeiro milagre, em especial por ter vivido muitos anos sem saber disso. E se a Virgem Maria não tivesse guiado os seus pas­sos, talvez nunca viesse a saber. Mas foi quando viajava pelo Vale do Mälaren, na sua difícil missão de encontrar dezesseis forsvikianos de boa vontade, que ele acabou chegando a um aldeamento chamado Sund, pertencente à família ulviana. Habituado como estava a ser bem recebido e bem alimentado, bastando para isso que avistassem a distância o seu escudo folkeano, ele achou estranha a maneira descon­fiada como o senhor e a senhora do aldeamento falavam. Afinal, não havia inimizade nenhuma entre folkeanos e ulvianos. Um dos filhos da casa chegou mesmo a pronunciar palavras bruscas para ele, que não chegou a ouvir, e que também não poderiam ser ouvidas depois, visto que o seu pai o pôs na rua, aos empurrões e bofetadas, xingando-o.

Todos os olhares furtivos e os longos momentos de penoso silên­cio fizeram com que ele se arrependesse de não ter dormido na flores­ta, como, aliás, já estava acostumado, em vez de procurar alojamento naquela casa. Agora, porém, era tarde demais. Seria uma desonra para a casa se ele interrompesse a sua estada e se despedisse no meio da noite. Portanto, só havia uma saída, pedir desculpas e dizer que, no dia seguinte, teria uma longa viagem pela frente e devia se recolher bem cedo. Ninguém lhe ofereceu mais cerveja.

Durante a noite, veio até ele, furtivamente, uma jovem escrava. Na primeira reação, Birger a mandou embora, bruscamente, já que o seu estado de espírito não estava para tais prazeres. Logo a seguir, porém, ao repensar o caso, achou que a companhia de um corpo jovem de mulher seria bem melhor do que ficar remoendo os seus pensamentos. E, assim, quando ela insistiu de novo, ele agiu rápido e tirou-lhe a roupa. Ela, por sua vez, começou a espernear e a debater-se, da maneira mais persistente imaginável. Quando Birger se deu conta, ela disse, sussurrando, que se ele quisesse ficar na cama com ela podiam chegar a um acordo, mas que ela tinha vindo para lhe contar uma coisa que, talvez, ele ainda não soubesse. Birger, então, devolveu-lhe a roupa e pediu para que ela falasse ao que tinha vindo.

Sem se intimidar com a situação, ela vestiu a roupa pela cabeça, enquanto contava que num casebre, fora do aldeamento, vivia a filha mais velha da casa, Signy, que desonrou a família ulviana ao dar à luz um filho bastardo. Ela vivia isolada com o filho no casebre e dizia-se que o pai a tinha expulsado de casa, não sem antes encher o seu corpo de chibatadas, até que ela confessou quem era o pai da criança e que o seu nome era Birger Magnusson, de Ulvåsa. O senhor da casa ficou, então, desesperado, visto que não podia se vingar de um folkeano e,. com isso, buscar uma retratação. E matar a sua filha de pancada para restabelecer a sua honra isso ele não conseguia fazer. E, assim, Signy e o filho bastardo puderam escapar com vida, mas ficaram proibidos de sequer aparecer no aldeamento. O filho bastardo chamava-se Gregers, mas não tinha sido batizado.

Birger sentiu-se como se tivesse sido queimado pelo fogo e, ao mesmo tempo, recebido um balde de água gelada ao ouvir essa histó­ria. Vestiu-se rapidamente, buscou no bolso algumas moedas de prata para a jovem serviçal, que entendeu mal essa dádiva e voltou a despir-se. Ele ordenou-lhe de imediato que se vestisse e lhe indicasse o cami­nho para o casebre onde Signy e o seu filho Gregers moravam. Ela se lamentou, mas disse que isso não ousava fazer, visto que, assim, esta­ria desobedecendo a uma ordem do dono. Signy, sem dúvida, não tinha sido morta à pancada pelo seu pai, mas este, certamente, não hesitaria em cortar a cabeça de uma escrava que ousasse trair suas ordens ao revelar para estranhos a sua desonra.

Birger conteve a sua ânsia e lhe perguntou, então, docemente, pelo nome. Ela respondeu que tinha vários apelidos, mas o mais usual era Sala. Para acalmá-la, ele deu-lhe um tapinha na cabeça e prome­teu-lhe que no dia seguinte compraria a liberdade dela, de modo que, assim, nada de mau lhe poderia acontecer. Isso não acabou com o seu medo e ela voltou a lamentar-se, dizendo que talvez o seu dono não a quisesse vender, visto ter outras razões, que não quis mencionar, para conservá-la em seu poder. Birger respondeu em poucas palavras que não poderia explicar o como e o porquê para uma escrava, mas pode­ria, sim, prometer-lhe que ofereceria ao seu dono uma proposta que ele, dificilmente, poderia recusar.

E, assim, aconteceu que Birger pôde reencontrar Signy pela pri­meira vez depois daquela noite dos jovens em Agneshus. Os seus cabe­los estavam desalinhados, as roupas eram as de uma escrava e os olhos, cheios de medo. Estava escuro no pequeno casebre e apenas o brasei­ro o iluminava. Levou algum tempo para fazer mais luz no ambiente, enquanto Signy ficou andando de um lado para outro, como uma ratazana acuada, delirando a respeito de pecado e penitência. Quando conseguiu reavivar o braseiro e, além disso, acender duas tochas de piche, ele enlaçou-a e segurou com as mãos o seu rosto, de uma maneira suave, mas imperativa, obrigando-a a sentar-se ao seu lado, à luz do fogo e das tochas de piche.

— Eu sou Birger Magnusson — disse ele. — Lá fora está a escra­va Sala, foi ela que me mostrou onde você estava. E me disse que você deu à luz um filho meu, isso é verdade?

Signy não precisou responder a essa pergunta, pois logo se ouviu uma mexida na cama por trás dela e então os olhos de um garoto bem esperto e curioso surgiram e descobriram Birger. E logo o garoto se jogou nos braços dele. Jamais Birger tinha sido surpreendido por um ataque inesperado como esse.

— Ele chegou! Ele chegou! — dizia o garoto, rindo. — Mamãe dizia sempre que ele viria, o meu pai poderoso, de uma terra estranha!

Birger abraçou o garoto e aconchegou-o contra o peito, bem aper­tado e por bastante tempo, antes que voltasse a poder falar. Depois pegou uma tocha de piche e iluminou o rosto do menino, ao mesmo tempo que mantinha o seu próprio também bem iluminado, a fim de que os dois pudessem ver um ao outro. E pudessem reconhecer um ao outro. O garoto tinha cabelos negros, com algumas mechas ruivas, justamente, como seria de esperar, características tanto de Birger como de Signy, que tinha cabelos negros. E ele tinha os olhos casta­nhos de Birger e não os azuis da sua mãe.

— Alguém me disse que o seu nome é Gregers — sussurrou no ouvido do garoto. — É esse o seu nome?

— Sim! E o teu nome é Birger — respondeu o garoto, sem medo.

— Não se diz teu nome, diz-se seu nome, quando se está falando com o pai — corrigiu Birger, de brincadeira, e rindo logo em seguida para Signy, que estava sentada junto, mordendo o lábio e ainda com uma expressão selvagem no olhar.

Demorou bastante antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, dominado como estava pela sensação de ter nos braços alguém que, em parte, se parecia com ele. Mas depois ordenou que Gregers voltas­se para a cama, que ele queria falar agora com a mãe, Signy. Primeiro o garoto não obedeceu, o que lhe motivou logo uma reprimenda. Gregers devia obediência ao seu pai.

De Signy ele teve de início que puxar pelas palavras. Ela parecia ter dificuldade em falar com lucidez. Mas após alguns momentos, se recompôs, o seu olhar pareceu ficar menos selvagem e passou a contar aquilo que Birger já tinha concluído.

Ela nunca tinha estado com outro homem antes daquela noite em Agneshus, durante o casamento de Jon Agnesson. Mulheres sabidas tinham lhe dito que não dava para ficar grávida na primeira vez, mas não era verdade. Isto porque, depois dessa noite, o seu pai, que ficou com suspeitas de que nem tudo tinha corrido como devia ser naquela noite em Agneshus, passou a vigiá-la como se ela fosse a galinha dos ovos de ouro. Logo se viu que ela estava grávida e que nenhum outro homem, a não ser Birger, podia ser o pai da criança. O pai dela conse­guiu extrair-lhe a verdade à base de chicotadas. Ela estava tentando educar Gregers o melhor possível e, nos últimos anos, quando ele che­gou à idade de começar a fazer perguntas sobre o possível e o impos­sível, ela lhe contou uma história, a de que o seu pai chegaria caval­gando uma tarde, quando menos se esperava, e que daria para ver a distância o brilho do seu escudo azul e dourado e o seu ágil cavalo branco.

— Por que você falou em cavalo branco quando sabia que o meu cavalo era negro? — perguntou Birger.

— Porque se tratava de uma saga, e nas sagas os cavalos brancos podem ser vistos melhor ao escurecer do que os negros — respondeu ela, caindo na gargalhada, o que também contagiou Birger.

— Você podia ter mandado uma mensagem para mim, aí eu teria sabido da situação — disse Birger depois de se ter recuperado da liber­tadora gargalhada. — Do jeito que você agiu, talvez eu nunca viesse a saber. Você acabaria por viver aqui neste buraco até morrer e ninguém saberia o que aconteceria com Gregers.

— Eu mandei uma mensagem para você sim. Eu rezei — respon­deu ela, baixando os olhos. — Eu rezei à Mãe de Deus para que Ela se apiedasse de mim, para que Ela enviasse todo o Seu amor e consolo para alguém como eu, que tanto A adoro. E Ela ouviu as minhas preces. Foi Ela que te enviou, finalmente, para mim.

Birger ficou em silêncio diante dessas palavras. Na verdade, ele tinha cavalgado pelo Vale do Mälaren ao acaso, na esperança de encontrar algum forsvikiano que tivesse se casado com alguma erikia­na ou ulviana, pois havia muitos folkeanos, sem grandes posses de ter­ras, nessa situação, nos últimos anos. Birger podia ter encontrado o que queria em algum outro aldeamento visitado e tomado uma outra direção. De qualquer forma, estava ali, naquele aldeamento afastado e do qual só agora sabia o nome. E havia chegado, justamente, ao escu­recer, não no meio do dia, quando não haveria razão nenhuma para perder tempo e ficar, em especial, ao ver que estava sendo tão mal recebido. Portanto, ao escurecer ele chegou e ficou. E, colocadas as coisas no seu devido lugar, só havia uma resposta. A Mãe de Deus tinha escutado as orações de Signy e, com a Sua doce mão, encami­nhado Birger para junto de Signy e Gregers.

— Esta é a sua última noite neste casebre — disse ele. — E é neste casebre que eu quero passar esta noite com você e com o nosso filho. Permita-me apenas que eu vá lá fora para dizer a Sala que esta vai ser a última noite dela como escrava.

A alcova de Signy ficou pequena demais para os três e Gregers dormiu inquieto, bufando junto da mãe, por não poder arredar o seu pai. Este passou a maior parte da noite acordado, de barriga para cima e olhando para o teto, no escuro, abraçado aos dois.

Na manhã seguinte, acordou já tarde, surpreso por ter, finalmen­te, caído no sono profundo. À luz clara da manhã, ele viu que Signy era tão bonita quanto se lembrava de a ter visto naquela noite em Agneshus, mas precisava de roupas novas e de alguns cuidados femi­ninos. Do jeito que estava, parecia mais uma escrava do que filha do dono da casa.

Na hora da separação, Birger sentiu-se um pouco tímido, mas levantou o risonho Gregers bem alto, contra o céu, e prometeu que se veriam de novo em breve, mas que ele agora estava de viagem a servi­ço do rei e não podia demorar muito. No entanto, Gregers e a sua mãe iriam morar em um alojamento melhor já naquela noite seguinte.

Ele beijou os dois na testa e saiu sem olhar para trás. No caminho pela floresta, de volta para o aldeamento, ele pensou bem no que devia dizer para o pai de Signy.

Quando o pessoal do aldeamento o viu chegar pela floresta, houve muita correria e muito cochicho. Mas logo ele entrava na sala e se sen­tava sozinho com o pai de Signy, que se chamava Olaf Gudmursson.

— Eu cheguei aqui como convidado, senhor Olaf, sem saber o que me esperava. Mas agora tem dois assuntos que eu preciso resolver com o senhor, de imediato — começou por dizer Birger, sem rodeios, assim que terminou a refeição matinal. Embora estivessem sozinhos à mesa, havia muitas pessoas transitando pela sala, muito atentas, ten­tando escutar o que se dizia.

— O senhor não é aquele convidado a quem eu mais gostaria de dar as boas-vindas, meu jovem e nobre Birger. Por isso, o que é que o faz supor que eu queira fazer negócios consigo? — respondeu Olaf, tão amedrontado quanto zangado.

— Deixemos isso de lado e vamos logo tratar de um negócio pequeno primeiro — continuou Birger. — O senhor tem uma escra­va, senhor Olaf, que me prestou um grande serviço, embora eu receie que o senhor vá pensar que ela não satisfez da maneira correta o seu dono, agindo como agiu. Seja como for, eu quero comprá-la. Ofereço-lhe um marco de prata por ela.

— Nenhuma escrava merece um preço tão alto — respondeu Olaf, aborrecido.

— Isso eu sei, mas também é verdade que nenhuma escrava me prestou um serviço tão grande quanto ela, que se chama Sala. Estamos de acordo?

— Está feito.

— Ótimo. Agora, vamos ao negócio maior. Eu conheci ontem o meu filho Gregers, que é um garoto esperto, vivo e que fala muito bem, apesar da sua pouca idade. Ele foi chamado de filho bastardo. Não é mais filho bastardo a partir de hoje. Ele é meu filho, ainda que fora do casamento, e se chamará Gregers Birgersson.

— A minha filha foi sua amante e essa desonra não se lava assim tão facilmente, nem mesmo quando um jovem nobre chega e reco­nhece o seu filho — murmurou Olaf, inseguro, não sabendo ao certo se devia continuar zangado por sua honra não ter sido lavada total­mente ou se devia estar satisfeito por ter um neto adotado na podero­sa família folkeana.

— Eu também cometi esse erro de ter uma amante fora do casa­mento — respondeu Birger friamente. — Isso acontece tanto nas altas esferas como nas baixas. Isso aconteceu e não há muito a discutir a esse respeito. Escute, porém, a minha proposta. Hoje mesmo o senhor vai mudar Signy e Gregers Birgersson para uma casa no aldeamento. O senhor vai fazer as pazes com a sua filha, vai batizar sem demora o meu filho como cristão e vai tratá-lo com aquele amor a que o seu neto tem direito. Quando chegar a época das festas do Natal, o senhor, senhor Olaf, Signy e Gregers Birgersson, e quem mais quiser na sua companhia, vão ser recebidos em Ulvåsa. O senhor deverá levar consigo o seu sinete, se tiver. Em Ulvåsa, vamos assinar o nosso acor­do. Gregers vai ser educado em Forsvik e Signy receberá uma fazenda de minha propriedade. E assim será feito.

— E o que é que o leva a acreditar, nobre Birger, que o senhor pode vir aqui na minha casa e decidir como lhe convém e dar ordens a um fazendeiro como eu? Na minha própria casa! — exclamou Olaf, parecendo estar disposto a dar um murro na mesa, mas se arrependeu. — Afinal, eu sou um homem da família ulviana — acrescentou ele, agora com alguma hesitação, ao ver que Birger não fazia questão de responder.

— E eu sou Birger Magnusson, de Ulvåsa, da família folkeana — respondeu, enfim, Birger, muito lentamente. — E Gregers é da famí­lia folkeana a partir de hoje. O senhor, senhor Olaf, passa a ter a res­ponsabilidade de uma vida folkeana em suas mãos. Nós, folkeanos, veríamos com muita boa vontade e benevolência uma atitude da sua parte aceitando a proposta que eu lhe fiz. E eu acho sim que, se o senhor pensar bem no assunto, vai querer ter os folkeanos como ami­gos, em vez de tê-los como inimigos.

Olaf Gudmursson não precisava pensar muito. Ainda que aquele jovem nobre tivesse ditado as suas ordens, sem o mínimo sinal de ameaça e sem mesmo elevar o tom da sua voz, havia nas suas palavras uma frieza contundente. O fato de ter os folkeanos como amigos era uma coisa um pouco obscura, mas certamente positiva. Em contra­partida, o fato de tê-los como inimigos significava aldeamentos incen­diados, animais e escravos mortos e a perda da própria vida.

O senhor Olaf logo aceitou de bom grado a proposta de Birger e lhe garantiu que era com o maior prazer e honra que também aceita­va o convite para visitar Ulvåsa no Natal.

Assim aconteceu. O senhor Olaf Gudmursson chegou a Ulvåsa em quatro trenós logo depois do dia de Natal, visto que a neve caiu mais tarde do que o normal naquele ano. Signy tinha voltado a ser uma jovem bem-tratada, de olhos claros e de riso fácil, e o pequeno Gregers logo se tornou amado por todos por suas traquinagens e sua curiosidade em relação a tudo aquilo que existia em um aldeamento muito mais rico do que aquele em que tinha vivido até então.

Para grande alívio de Birger, Ingrid Ylva tratou Olaf Gudmursson com todo o respeito e com todo o amor, muito além do esperado por Signy. Também parecia ter muito prazer em pegar Gregers e vê-lo sen­tado no seu colo, coisa que não era nada fácil, visto que logo ele que­ria ir embora para qualquer outro lugar.

Escreveu-se o que devia ficar escrito e Olaf Gudmursson tinha, de fato, o seu próprio sinete, embora não soubesse ler nem escrever. Ficou acertado que Gregers receberia boa educação em Forsvik, tudo o que era necessário para um jovem, ainda que o seu avô por parte de mãe se mostrasse desconfiado diante da conversa sobre leituras e clé­rigos e reclamasse dizendo que, na sua opinião, era preciso dar ao seu neto uma educação mais de homem. Ingrid Ylva explicou, então, em voz suave, sem malícia, que ele nada tinha a recear em relação à edu­cação dos homens em Forsvik.

Signy deveria receber na primeira oportunidade a sua fazenda na Götaland Ocidental, ou na Oriental, o que seria mais simples, ou, então, em Nordanskog, se preferisse. Portanto, por aí, estava tudo resolvido.

Mas uma noite, quando Birger, depois de muita cerveja, estava sozinho com a sua mãe na sala, e veio com a conversa de talvez aceitar Signy como sua esposa, Ingrid Ylva ficou furiosa, tão de repente quan­to surpreendentemente. Ter um filho com uma amante era uma coisa normal e competia ao homem honrar as suas responsabilidades, e isso ele tinha feito. Mas ir além desses arranjos, na seqüência de um ato impensado em que o filho, Gregers, se apresentava como um caso amorável como criança esperta e de bom coração, não havia motivo para dar qualquer outro passo adiante. Nada de Signy de Nordanskog, nem ninguém da família ulviana. Estava fora de questão. Essa conver­sa deixava Ingrid Ylva furiosa, visto que, para ela, Birger já devia ter entendido tudo isso com clareza. Para ela não importava quantas amantes Birger tivesse, embora no caso de Signy reconhecesse que a amante tinha uma boa cabeça e era amorosa.

No caso, porém, de casamento, a coisa era diferente. O irmão de Birger, Eskil, estava perto de se casar. A sua esposa não seria qualquer amiguinha, como Signy, por aí, mas a senhora Kristin, viúva do jarl norueguês, Håkan Galin, que tinha um filho de dezessete anos, chama­do Knut. Eskil tinha aderido à vontade de sua mãe sem a menor reação, ao entender a importância dessa ligação, não apenas com uma das mais poderosas famílias norueguesas, mas também erikiana. Kristin era neta do santo rei Erik. No dia em que Birger pensasse em casar, ou seja, em legalizar a sua união com uma mulher, não seria diferente. Isso signifi­caria apenas uma questão, e essa questão era poder.

 

A frota das embarcações dos sveas chegou à costa da Estônia, por trás das grandes ilhas Dagö e Ösel, antes da galera real em que seguiam o rei Johan, o Jovem, o arcebispo Valerius, o bispo Karl, de Linköping, e os cavaleiros forsvikianos. Mas os sveas não tinham nem paciência nem razões para esperar por mais tempo os grandes senhores antes de entrar em combate.

Os seus guias conduziram-nos para uma terra chamada Rotalien e na costa onde desembarcaram havia um antigo forte feito de madeira que se chamava Leal. A defesa do forte não era muito sólida e os sveas logo avançaram para dentro dos muros por todos os lados.

Quando a galera real chegou no dia seguinte, o combate já tinha terminado, a terra estava cheia de cadáveres por enterrar e o forte saqueado até a última moeda de prata.

Diante dessa visão, o arcebispo Valerius ficou desesperado, re­ceando que todos os pagãos já tivessem sido massacrados. Mas quan­do ouviu do comandante vencedor, o jarl Karl, o Surdo, que havia uma multidão de pagãos presos, que eles tinham poupado porque, a julgar pelas vestes que usavam, sua liberdade poderia ser negociada em tempos de guerra, o arcebispo mudou logo de estado de espírito. Uma pia batismal fora trazida pelos escravos da galera para terra e colocada diante do forte. Trouxeram, então, um rotaliano, amarrado, esper­neando e tentando se esquivar.

Birger estava a ponto de recolher os cavalos forsvikianos na cava­lariça do forte quando teve que parar junto do arcebispo e da pia batismal, já que no momento um grande espetáculo estava para acon­tecer.

O pagão que trouxeram para a frente de Valerius e da pia parecia não recear nem a morte nem o batismo, parecendo também mais cheio de raiva do que pavor. Estava claro que não queria ser batizado e as palavras que lhe saíam da boca, na sua linguagem absolutamente incompreensível, com certeza não eram as mais apropriadas àquele ato cristão. Ele se contorcia todo e revirava a cabeça para evitar o batis­mo. Dois sveas bem fortes, porém, seguravam-no e empurraram a cabeça dele para dentro da pia. Valerius aspergiu um pouco de água por cima da cabeça do assustado pagão que, depois, foi retirado do lugar, gritando e ainda esperneando, enquanto Valerius levantava as mãos para os céus, de braços esticados, parecendo entrar em êxtase e começando a balbuciar frases desconexas, que Deus, enfim, tinha cumprido a grande promessa de lhe perdoar todos os pecados da vida, incluindo a desobediência a Sua Santidade ou até o assassinato do rei. Em seguida, Valerius caiu de joelhos e, impotente, com um sorriso de felicidade nos lábios, foi preciso carregá-lo para dentro do forte, daí que não houve mais batismos naquele dia.

Os dois homens de Uppland que tinham levado para longe o recém-batizado acabaram se cansando de tanta gritaria e de tanto ele espernear. Um deles desembainhou a espada e decapitou o desgraça­do, dizendo, enquanto limpava a arma, que a língua, sem dúvida, também podia causar a morte em mais de uma maneira.

Ao ver que alguns dos guias estonianos que estavam junto pare­ciam mais preocupados do que seria razoável, Birger se aproximou deles e perguntou se sabiam aquilo que o homem batizado e decapita­do falara de maneira tão horrível e raivosa. A resposta que recebeu, foi, ao mesmo tempo, clara e triste. A resistência do batizado advinha do fato de ele já ser cristão e considerar um pecado ser batizado duas vezes. Todos os homens que jaziam pelo chão à volta do forte e que agora estavam sendo despidos e saqueados antes de os seus cadáveres serem enterrados eram cristãos. Por isso, eles não esperavam nada de mal ao verem que mais um exército se aproximava e descia em terra sob o sinal da cruz, e só mais tarde chegaram à conclusão de que tinham de se defender, combatendo pela vida, contra os seus próprios iguais na fé.

O início dessa cruzada tinha se tornado, assim, menos abençoada do que Valerius e Karl, o Surdo, haviam previsto. Na primeira reunião de guerra naquela noite dentro do forte, o jarl explicou que já tinha sido uma grande coisa terem conseguido tomar um forte logo no pri­meiro dia em que chegaram à terra dos pagãos. O fato de os primeiros pagãos que encontraram pela frente serem cristãos fora, comparativa­mente, uma contrariedade menor. Isto porque, com o forte Leal como ponto de apoio, eles podiam converter ao cristianismo as gentes dos campos em volta. E muito mais não foi dito nessa primeira noite. Os insaciáveis combatentes de Svealand, sonhando com novas vitórias, não estavam muito dispostos a ouvir e participar de qualquer reunião organizada.

Birger chegou à conclusão de que as suas piores apreensões no que dizia respeito à insensatez dessa guerra já tinham sido ultrapassadas com folga.

E nada do que surgiu nos dias seguintes veio demonstrar o contrá­rio. Birger e os seus forsvikianos cavalgaram pelos campos, em círculos cada vez mais afastados, em volta do forte Leal, a fim de verificar se ha­via algum perigo de ataque armado ou se algum inimigo se aproxima­va. Acabaram encontrando apenas pequenos aldeamentos, com igrejas cristãs e camponeses que, timidamente, os abençoavam quando eles passavam por perto. A província de Rotalien já fora convertida.

A força de cavalaria de Birger começou a procurar cada vez mais longe de Leal, sem conseguir outras informações além daquelas que já tinha. Mas a caminho na direção sul, no terceiro dia, cruzaram um campo deserto e plano com dois grandes vales. Nenhum dos forsvikia­nos estava especialmente alerta, visto que já não esperavam encontrar quaisquer inimigos. Os dois vales, de qualquer forma, tinham que ser observados, eram mais importantes do que os campos abertos que permitiam uma visão livre. E eles cavalgaram primeiro por um dos vales, na direção leste-oeste, sem encontrar nada, além de animais em fuga, e voltaram, então, pelo outro vale, na direção contrária. Já esta­va anoitecendo no sul. Por isso, puderam ver oito cavaleiros estranhos como se viessem em roupagens negras, contra o pôr-do-sol, do lado sul da saída do vale.

Birger levantou o seu braço direito, fazendo sinal para eles pararem. E todos ficaram quietos por um momento, tentando focali­zá-los contra o sol para tentar saber que espécie de cavaleiros tinham pela frente. Viram então que os cavaleiros colocavam os seus elmos e se dividiam em dois grupos armados de lanças e escudos brilhantes, prontos para atacar.

De imediato Birger ordenou que os seus homens recuassem e saís­sem do vale para o campo aberto. Como parecia que estavam fugindo, os inimigos esporearam os seus cavalos para alcançá-los. Os forsvikia­nos, porém, não tiveram dificuldade em chegar primeiro ao campo aberto, onde pararam e se dividiram em quatro grupos, ao mesmo tempo que colocavam os seus elmos na cabeça. Depois, movimen­taram-se em meio-círculo, de modo que o sol iluminasse de lado o ini­migo. E ficaram nessa posição, aguardando.

Os oito cavaleiros que não tiveram medo em atacar um regimen­to com o dobro de homens, o que deixara boquiabertos Birger e os outros forsvikianos, chegaram logo em seguida, subindo a saída incli­nada do vale, e ficaram observando. Ao descobrir que eram esperados, eles se alinharam em uma frente de defesa, prontos para atacar.

Birger ordenou, então, que o esquadrão se dividisse em quatro grupos e se movimentasse de modo a cercar o inimigo.

Mas o inimigo reconheceu, imediatamente, a armadilha e se divi­diu em dois grupos de quatro cavaleiros, cada um cavalgando em sen­tido contrário, preparando-se para atacar os dois grupos de forsvikia­nos mais próximos. Birger respondeu mandando avançar os dois dos seus grupos mais atrasados que, ainda assim, chegaram primeiro.

Cada um dos grupos de quatro inimigos dispostos a atacar tinha agora oito cavaleiros contra si, pela frente e de lado. Também esta armadilha foi descoberta pelo inimigo, que fugiu reagrupando-se num semicírculo um pouco mais longe e virando-se, ao mesmo tempo, novamente, adotando uma formação linear pronta para atacar.

Birger fez sinal, então, para que os seus homens também se reunis­sem em linha reta e na frente do inimigo, começando a avançar a trote, para verem o que o inimigo pretendia fazer e até que ponto a sua coragem ia agüentar. Era um inimigo estranho, que sabia tudo sobre como o combate entre guerreiros armados devia ser conduzido e, sobretudo, como ser evitado. Se eles eram pagãos, então, certamente, a luta não seria de brincadeira.

Os oito cavaleiros não recuaram, apesar de o dobro de cavaleiros estar agora avançando contra eles. Logo seria tarde demais para evitar o confronto e, no entanto, o inimigo continuava no mesmo lugar. Coragem não lhe faltava.

Justamente no momento em que Birger iria levantar o braço, dando o sinal para ataque, os oito cavaleiros novamente evitaram esse ataque, movimentando-se para o cimo de um morro, o que não lhe seria de grande vantagem, mas estavam agora de rostos voltados para o sol. Birger e os seus homens seguiram, então, no seu encalço, lenta­mente, preparando-se novamente para o ataque.

Quando os forsvikianos chegaram tão perto dos oito cavaleiros a ponto de considerar que já os tinham na armadilha, visto que sabiam ter cavalos mais rápidos, eles viram os seus adversários, nitidamente, pela primeira vez. Foi uma visão muito estranha. Todos os oito ves­tiam mantos brancos e vestes de malha de aço. No peito de cada um a cruz vermelha dos templários atravessada por uma espada negra. O seu confanonier exibia uma bandeira branca com a cruz vermelha e a imagem da Mãe de Deus.

Birger fez sinal, imediatamente, para eles pararem e que todos os seus homens baixassem as lanças. Em seguida, chamou o seu próprio confanonier, Matteus Marcusian, que portava a bandeira forsvikiana, e lhe deu ordem para baixar e levantar três vezes o seu símbolo.

Os cavaleiros no alto de morro em frente também baixaram e levantaram as suas lanças três vezes, mas o porta-bandeira com a ima­gem da Mãe de Deus não se mexeu. Birger pensou que eles, sem dúvi­da, quiseram afirmar o mesmo com as lanças, mas por uma razão que não era difícil de imaginar se recusaram a fazer a saudação secular com uma bandeira com a imagem da santa.

Ele retirou, então, lentamente, o seu elmo, baixou a malha de aço do pescoço e deixou à mostra todo o rosto. Passou depois a sua lança para o homem mais próximo à direita e avançou sozinho por três cavaleiros para a frente dos forsvikianos. Em seguida, chamou Matteus com a bandeira forsvikiana e ordenou que também ele reti­rasse o elmo da cabeça e o colocasse na corrente do ombro. Eles não precisaram esperar muito tempo para que um dos cavaleiros de bran­co fizesse o mesmo que Birger e na companhia do seu porta-bandeira avançasse num trote lento. Birger e Matteus avançaram também ao seu encontro.

O homem com as vestes brancas de cavaleiro, que tanto lembra­vam as dos templários, a ponto de a distância se poder confundi-los, tinha uma barba longa e negra e cabelos cortados curto, o que parecia muito peculiar.

Os quatro cavaleiros pararam na frente uns dos outros, a menos da distância do comprimento de um cavalo e o cavaleiro estrangeiro foi o primeiro a falar, na linguagem da Igreja:

— Em nome de Deus e de Sua Santa Madre Igreja, eu sou o frei Arminus, da Sagrada Ordem da Espada de Riga. E quem é o senhor, cavaleiro secular? — perguntou ele rispidamente.

— Eu sou o cavaleiro Birgerus de Gothia, do exército sueono em cruzada sagrada — respondeu Birger no mesmo tom de voz, sem hesitar.

— Por que o senhor está contra nós, como se fôssemos inimigos? — perguntou o outro, com uma expressão no olhar mais alegre do que zangada.

— Porque os senhores se apresentaram como inimigos, com o sol pelas costas. Só agora, pela primeira vez, a curta distância, pudemos ver a cruz sagrada. Além disso, cavalgaram contra nós como se fossem atacar, aliás, com muita astúcia e competência — respondeu Birger, que também se sentia mais divertido e aliviado do que angustiado.

— Com muita astúcia e competência, o senhor comandou os seus homens, cavaleiro Birgerus — respondeu o Cavaleiro da Espada, sor­rindo e abanando a cabeça. — Se realmente entrássemos em comba­te, aquele que sobrevivesse teria dificuldade em explicar, depois, a sua vitória. Não teria sido nada bonito se nós, os Cavaleiros da Espada, abatêssemos os cavaleiros cristãos da cruzada!

— Também não teria sido bonito, talvez pior, para nós explicar como matamos oito Cavaleiros da Espada, loucos, que resolveram ata­car uma força com o dobro dos seus homens — respondeu Birger impetuosamente.

Isso fez com que o frei Arminus caísse na gargalhada, sacudindo a cabeça, antes de explicar, amistosamente, que a sua missão era procu­rar o rei gota que acabara de chegar a Leal. Por isso, ele pedia humil­de e fraternalmente que o cavaleiro Birgerus de Gothia escoltasse a ele e aos seus irmãos.

Esse pedido era irrecusável e logo os dezesseis cavaleiros seculares de vestes azuis cavalgavam lado a lado com os oito Cavaleiros da Espa­da de volta para Leal. Na frente seguia o confanonier dos Cavaleiros da Espada, com a bandeira da Mãe de Deus, depois Matteus Marcusian, com a bandeira forsvikiana, e atrás dos dois porta-bandeiras seguiam Birger e frei Arminus.

Ambos estavam curiosos em relação aos demais. A última coisa que frei Arminus esperava encontrar era um esquadrão de cavaleiros bem armados que pudesse se reagrupar durante o combate segundo todas as regras da arte da guerra. Disse, inclusive, que o que esperava era encontrar um bando de brutamontes selvagens a pé, armados de machados. Birger suspirou ao pensar que, se frei Arminus ansiasse por ver tal desgraça, logo iria satisfazer os seus olhos acima de quaisquer expectativas.

A última coisa que Birger esperava encontrar na terra inimiga dos pagãos eram cavaleiros da mesma espécie dos templários do seu avô Arn. Por isso, imediatamente começou por perguntar a respeito da relação entre as duas ordens, se é que havia alguma.

O frei Arminus confirmou de imediato que os Cavaleiros da Espa­da eram uma ordem da mesma classe dos templários e que, por isso, os uniformes eram muito semelhantes. Os Cavaleiros da Espada, além disso, tinham recebido, inclusive, de Sua Santidade, Inocêncio III, as mesmas regras dos templários.

— Ao puxar pela sua espada, não pense em quem você deve matar, pense antes em quem você pode poupar — citou logo Birger, após aquela informação, citação que deixou frei Arminus espantado, tal como havia esperado.

Com isso, chegou a vez de Birger responder a perguntas e contar a respeito do seu avô, Arn de Gothia, e de como os conhecimentos sobre os templários haviam passado como legado hereditário na família em Gothia. Assim, não era de estranhar que os seus cavaleiros e os do frei Arminus houvessem tentado usar o mesmo tipo de movi­mentação armada. Apontou, então, para a bandeira que Matteus Marcusian levava na frente, onde apareciam três cruzes vermelhas dos templários junto com o leão folkeano, que era, justamente, o símbolo do avô, Arn.

Frei Arminus, primeiro, ficou mais uma vez espantado e, depois, animado, ao saber que um irmão entre os templários tinha consegui­do trazer para casa esses conhecimentos e ensiná-los aos seus parentes na sua terra. Desde que, evidentemente, esses conhecimentos não fos­sem usados para fins perversos. Birger confirmou logo que isso não era o caso. Cavaleiros como ele só entravam em luta para defender as suas terras contra invasores estrangeiros e, no caso atual, em uma cruzada em terras pagãs.

Frei Arminus sorriu amargurado diante do termo “terras pagãs” e disse que, a esse respeito, havia uma coisa ou outra a objetar, o que faria mais tarde. Mas, no momento, era interessante para ele observar as luvas de guerra de Birger e as coberturas de aço, que este usava nos tornozelos e nos joelhos, por cima da malha de aço, e, ainda, outros detalhes que Birger e os seus homens usavam, mas não os Cavaleiros da Espada. Birger deixou que ele provasse as luvas e respondeu de boa vontade a todas as perguntas a respeito das proteções para os joelhos e os ombros que todos os forsvikianos usavam e que eram muito melho­res do que aquelas dos seus irmãos cristãos. Não demorou muito para que eles começassem a falar de negócios, com Birger explicando como era fácil mandar mensagens de Riga para Visby, lugar onde havia um mercador de nome Eskil Magnusson, capaz de fornecer qualquer quantidade desse tipo de apetrechos e de tudo o que se pudesse ima­ginar. No entanto, poderia demorar meio ano, ou até um ano, para que as mercadorias estivessem à disposição para serem apanhadas em Visby.

Frei Arminus estava interessado em receber todas essas informa­ções por escrito, já que até mesmo as luvas que ele provou lhe pare­ciam bem superiores àquelas que ele usava, um tipo de luva com sepa­ração somente para o polegar, feita de couro, reforçado com anéis. As mãos e os joelhos eram as partes do corpo em que os cavaleiros nor­malmente se feriam, portanto esses novos apetrechos seriam conside­rados como um abençoado alívio para os guerreiros de Deus.

Ao se aproximarem do forte Leal, frei Arminus contou, rapida­mente, para Birger qual era a sua missão. Essas terras situadas ao norte do forte agora tomado pelos recém-chegados sueonos, estavam sob o domínio do rei dinamarquês Valdemar, que tinha a sua base em Reval, onde estava construindo agora um grandioso castelo de pedra. Ao sul de Leal, as terras eram dos Cavaleiros da Espada, que eles controlavam a partir do castelo de Riga. As terras situadas entre essas duas provín­cias convertidas e já conquistadas chamavam-se Rotalien, onde agora eles se encontravam. Rotalien era uma pequena faixa de terras aráveis entre os Cavaleiros da Espada e os dinamarqueses, uma terra que não pertencia a ninguém, de modo que não havia razão para entrarem em discussões desnecessárias. Mas em Rotalien também não havia pagãos, portanto seria difícil para os recém-chegados encontrarem aqui quais­quer almas a evangelizar.

Em contrapartida, havia um inimigo traiçoeiro que não devia ser subestimado. Lá fora, nas grandes ilhas de Dagö e Ösel, reinava a bar­bárie pagã, e era lá que encontrava refúgio uma grande quantidade de saqueadores, difíceis de conter. Alcançá-los por mar não era fácil e, nos últimos anos, as geleiras não tinham sido suficientemente seguras para permitir a passagem de um exército de cavaleiros com segurança. Mais cedo ou mais tarde os Cavaleiros da Espada iriam limpar esses ninhos de cobras, mas até lá os sueonos deviam prestar atenção para não serem assaltados por esses saqueadores a partir dessas ilhas.

Tudo isso frei Arminus havia se apressado a contar para Birger, desnecessariamente. Isto porque, quando os Cavaleiros da Espada se encontraram com o rei Johan, o Jovem, com o jarl Karl, o Surdo, e o arcebispo, verificou-se que nenhum deles entendia uma palavra sequer da linguagem da Igreja, nem da linguagem saxônica, que era a língua materna do frei Arminus. Por isso, Birger logo foi convocado para a reunião, a fim de traduzir tudo o que era dito. Frei Arminus viu que havia um bispo que parecia entender muito bem o que ele disse, pelo menos na linguagem da Igreja. Mas esse bispo não tinha permis­são para falar na presença do seu arcebispo, e o arcebispo se mostrava, nitidamente, maluco e só ficou dizendo tolices. Para o rei Johan, porém, frei Arminus, com a ajuda de Birger, pôde apresentar a sua mensagem claramente, sem problemas.

E aquilo que os Cavaleiros da Espada tinham a dizer não espalhou nenhuma alegria entre os cruzados recém-chegados. Em resumo, frei Arminus achava que, como não havia nenhum pagão ainda vivo para converter e como não havia terras a conquistar, visto que o rei dina­marquês, pelo norte, e os Cavaleiros da Espada, pelo sul, se oporiam a isso, certamente o melhor e o mais inteligente para os bravos irmãos do Ocidente era fazer as malas e voltar para casa. Além disso, havia o grande perigo de serem atacados pelos bandos de ladrões aquartelados na Ilha de Ösel, em especial pelo fato de os amigos cristãos do Oci­dente terem apenas dezesseis cavaleiros para se defender.

Na reunião, Birger negou-se a traduzir literalmente as objeções de Karl, o Surdo, quando ele falou de cabeças de porco e do ardor de com­bate dos nórdicos. E não foi apenas porque ele achou a expressão cabe­ça de porco impossível de traduzir para o latim. Isso era possível sim. Mas porque os ouvintes, inevitavelmente, iriam cair na gargalhada.

Frei Arminus e os seus cavaleiros não ficaram para dormir porque tinham pressa de voltar para Riga. Antes de deixar esse estranho exér­cito de cruzados em Leal, frei Arminus botou no papel todas as indica­ções de Birger de como comprar as luvas de guerra para os Cavaleiros da Espada e outros apetrechos do equipamento. Deixou para trás o acampamento do exército sueono com sensações muito contraditórias, mas que esses homens estariam perdidos na guerra isso qualquer um poderia ver. No entanto, acreditava ter entendido, através do jovem Birgerus de Gothia, que isso tinha sido uma estratégia calculada, a de trazer apenas um esquadrão de cavalaria. Como é que um cavaleiro jovem e tão inteligente como Birgerus podia pertencer a uma gente tão bárbara era difícil de entender. Alguma coisa estava errada.

 

O rei Johan, o Jovem, logo se cansou da sua cruzada. E nisso ele não estava só. Os barcos longos dos sveas começaram a voltar para casa já na segunda semana. O grande erro dessa cruzada, sob o ponto de vista dos sveas, foi a quase total ausência de inimigos e, portanto, de saques compensadores. O bispo Karl de Linköping também criticava a situa­ção. Não havia pagãos para converter, já que todos, ao que parecia, tinham sido decapitados ou foram batizados.

Além disso, para a liderança do exército não foi nada encorajador receber o enviado especial dinamarquês de Reval, que, devidamente acompanhado, logo chegou e que, com palavras bruscas, informou que eles considerariam da maior gravidade qualquer intrusão acima de meio dia de viagem na direção norte, já que todas as terras a norte dessa linha pertenciam à Dinamarca e ao rei Valdemar. Além disso, o rei Valdemar mandou uma mensagem dizendo não considerar Johan Sverkersson como rei legítimo, antes e apenas um intrigante malicioso que entrou para um bando de clérigos pecaminosos, a fim de tomar o lugar de Erik Eriksson, o sobrinho por parte da irmã do rei Valdemar.

O enviado dinamarquês demonstrou de todas as maneiras que falava em nome de uma grande potência, não hesitando sequer dian­te das piores objeções apresentadas. O rei Johan, o Jovem, ficou furio­so, e talvez essa tenha sido a intenção ao ouvir os insultos desses dina­marqueses na sua própria língua, e ordenou que todos logo fossem decapitados e as cabeças enviadas dentro de um saco para o atrevido Valdemar. Karl, o Surdo, e Valerius, que passaram a ter um compor­tamento mais equilibrado e não pareciam mais estar tão loucos, fica­ram extremamente aflitos, desaconselharam a medida com a maior veemência, pediram desculpa ao enviado especial dinamarquês e seus acompanhantes, esperando poder se reconciliar durante uma agradá­vel refeição vespertina. Disso os dinamarqueses nem sequer queriam ouvir falar e insistiram em voltar imediatamente para Reval, de prefe­rência com a cabeça em cima dos ombros.

Agora não restava quase nada da cruzada do rei Johan. Ele próprio teria que fugir logo para casa. Isto porque, se o rei Valdemar viesse a saber que o seu inimigo se encontrava tão próximo do seu alcance e, ainda por cima, havia ameaçado os seus enviados de cortar-lhes a cabeça, seria razão mais do que suficiente para alguém que procurava entrar em guerra.

Assim, não causou admiração o rei Johan e o seu delirante arce­bispo serem colocados no primeiro e melhor barco longo da frota para fugir logo no dia seguinte. A última ordem do soberano, todavia, foi a de que ele queria ver o forte Leal devidamente armado e mantido como ponto de apoio para futuras conquistas.

Se agora o jarl tivesse bom senso e apenas se limitasse a manter uma boa expressão e, na seqüência, não ligasse para as fantasias do rei-garoto, tudo poderia ter terminado bem, pelo menos no sentido de que se havia realizado uma cruzada com poucas perdas em vidas. Mas Karl, o Surdo, assumiu de imediato e sem hesitar a idéia de ficar em Leal com quinhentos homens durante o inverno. O arcebispo Valerius ordenou, então, que o bispo Karl de Linköping devia ficar para batizar algum pagão errante que porventura aparecesse. O arce­bispo dizia que tinha batizado o único pagão encontrado e que, por isso, era também o único homem da cruzada que até o momento havia cumprido, realmente, a sua missão divina e, assim, também, o único a estar liberado de todos os seus pecados.

Na realidade, Birger não sentia prazer nenhum em passar o inver­no nessa cruzada sem sentido. Mas tanto Karl, o Surdo, que finalmen­te começou a ver o perigo à medida que a sua força de guerra se des­fazia, com todos os barcos longos fugindo, quanto o irmão de Birger, o bispo Karl, conseguiram convencê-lo a ficar junto com os cavaleiros forsvikianos. Dessa forma seria possível, pelo menos, tomar conheci­mento antecipado caso alguns salteadores resolvessem atacar o forte.

O mês de julho foi quente, monótono e difícil. Os quinhentos homens que ficaram tiveram que trabalhar duro e suaram para forta­lecer o velho forte de madeira que, segundo Birger, não resistiria mui­tas horas, caso fosse atacado por qualquer exército. Além do mais, o calor do verão fez com que os troncos de madeira ressecassem e, assim, aumentasse o perigo de incêndio, ao mesmo tempo que os dois poços de água existentes dentro do forte começaram a secar.

Era como se os inimigos da Ilha de Ösel tivessem contado com tudo isso. E tal como os seus ídolos desejavam, cada novo dia era de sol ardente, até que eles acharam que estava na hora. Vieram de noite, de repente, a 8 de agosto, em grande quantidade, pelo mar, cercando logo o forte como se fosse um único enxame de gente. Parecia uma multidão de vários milhares de homens.

O primeiro pensamento de Karl, o Surdo, foi o de realizar uma ruptura e adotar logo a formação de cabeça de porco. Infelizmente todos os melhores sveas que entendiam essa arte de guerra há muito tempo tinham voltado, com o pouco saque conseguido. Enquanto o jarl se sentou com um grande caneco de cerveja na frente para pensar, Birger e o irmão, o bispo Karl, subiram para a torre do forte e apon­taram para a horrível multidão, dizendo, amarguradamente, que se era apenas pagãos que o arcebispo estava procurando em nome de

Deus, ali havia uma boa quantidade deles, embora se mostrassem tão contrariados em ser batizados quanto aquele cristão que Valerius cha­mou a si e depois foi decapitado. Karl reagiu dizendo que entre irmãos não se devia brincar desse jeito grave, em especial quando se via a morte diante dos olhos. Era melhor rezar e tentar consolar-se com a idéia de que aquele que morre pela causa de Cristo numa cruzada sem­pre ganha a salvação. Birger ficou vergonhosamente sem resposta dian­te dessa crença infantil. Ele próprio não tinha a menor vontade de ofe­recer a sua vida na luta contra essa enorme quantidade de salteadores, nem a sua vida, nem a do seu esquadrão de forsvikianos, nem a vida de trinta cavalos. Isso porque ele não duvidava nem um pouco de como essa luta ia terminar. Lá fora os pagãos estavam preparando fundas e balistas, e como rolavam para a frente pedaços de lenha e piche, não havia dúvida nenhuma sobre o que estavam pensando fazer. Em breve estaria chovendo fogo por cima do forte. Mas a esse respeito Birger não disse absolutamente nada para o seu pacífico e religioso irmão.

Quando Karl, o Surdo, acabou de pensar no grande salão do forte, ele tomou a sua única decisão inteligente durante toda a cruzada. Mandou chamar Birger e lhe perguntou quanto tempo seria necessá­rio para buscar a ajuda dos dinamarqueses em Reval ou dos Cavalei­ros da Espada em Riga e se seria possível para os forsvikianos e seus cavalos romper aquela muralha humana formada pelos pagãos lá fora.

A última pergunta era a mais fácil de responder. Birger explicou que um esquadrão pesadamente armado de forsvikianos no máximo perderia um ou dois homens na tentativa de ruptura.

Depois disso, a questão ficava mais complicada. Os dinamarque­ses em Reval estavam mais próximos, levaria menos de um dia para chegar lá a cavalo. Os Cavaleiros da Espada em Riga poderiam ser alcançados em um dia e meia noite. Assim, todos os dezesseis forsvi­kianos romperiam a barreira humana, junto com os outros cavalos soltos, e se dividiriam em dois grupos, cada um cavalgando para o seu lado. No que dizia respeito à disposição dos irmãos de fé em ajudar, Birger imaginava que os Cavaleiros da Espada não iriam querer perder a oportunidade de um confronto decisivo com os salteadores de Ösel. Em relação à compaixão do rei Valdemar para com os guerreiros que serviam a um rei, ele odiava Johan, que recebeu a coroa, em vez de Erik Eriksson, Birger estava mais inclinado a acreditar que a resposta lá do lado norte seria um frio não. A certeza ninguém poderia ter, evi­dentemente. Havia a possibilidade de o rei Valdemar ver isso mais como uma vitória sobre os pagãos do que uma ajuda prestada a homens que serviam o seu inimigo.

Tentar conseguir ajuda nos dois lados era, no entanto, a melhor solução, comentava Karl, o Surdo, rispidamente, e perguntava quan­tos dias ainda seriam necessários para agüentar o cerco até essa ajuda chegar como esperado. Birger respondeu que se houvesse água sufi­ciente para apagar os incêndios durante três dias, teriam uma chance de salvação. Era preciso preparar-se para os incêndios, umedecer as toras de madeira e limpar todos os lugares de materiais inflamáveis. Karl, o Surdo, concordou com tudo, tristemente, e fez o sinal-da-cruz.

A ruptura da barreira humana inimiga deu-se cerca de uma hora mais tarde, já que não havia tempo a perder. Quando os pesados por­tões do forte se abriram chiando, ouviu-se uma grande gritaria de júbilo do lado de fora, vindo da enorme multidão de pagãos que acor­reram a toda a velocidade de todos os lados com os machados e as lan­ças acima da cabeça. Primeiro receberam uma chuva de flechas das torres do forte, por trás das paliçadas de madeira, mas depois ouviram o barulho aterrorizante dos cascos dos cavalos batendo no chão, o que os levou a mudar de posição e a fugir em todas as direções.

Birger e os seus dezesseis cavaleiros, mais todos os cavalos soltos, avançavam num firme galope contra a multidão inimiga e desaparece­ram numa nuvem de poeira, deixando pelo caminho uma rua de san­gue e de mortos.

Karl, o Surdo, viu tudo de pé na torre e ficou horrorizado. Não que ele sentisse qualquer forma de compaixão pela grande quantidade de pagãos gritando, sangrando e morrendo do lado de fora dos muros. Mas pelo fato de só agora, talvez no seu último dia de vida e, de qualquer maneira, tarde demais, ele ver claramente que tinha falhado. Cem fors­vikianos teriam arrasado todo o exército inimigo tão facilmente quanto Birger e os dezesseis homens tinham rompido a linha inimiga sem dei­xar para trás nenhum homem morto, nem sequer ferido.

 

Quatro dias mais tarde, Birger retornou junto com oito forsvikianos e com frei Arminus na frente de cem Cavaleiros da Espada. Já a distân­cia eles chegaram à conclusão de que tinham chegado tarde demais. O forte estava queimado e nenhum homem vivo se via por perto.

Birger foi encontrar o irmão nu, decapitado e atrozmente mutilado. Pelo menos imaginou que fosse o irmão, visto que os cadáveres nus eram aqueles de quem tinham sido roubadas as vestimentas mais caras.

Os Cavaleiros da Espada, primeiro, fizeram uma oração. Depois metade retirou as vestes de guerra e começou o trabalho cristão de enterrar os mortos, enquanto a outra metade cavalgava nas imedia­ções, verificando se não havia o perigo de mais um ataque de surpre­sa. Recolher os mortos não era uma tarefa fácil, já que restavam pou­cos instrumentos de trabalho no meio das ruínas do forte, ainda que quinhentos cadáveres não pudessem ser enterrados em covas separa­das. Decidiu-se juntar restos de madeiras meio queimadas do forte e fazer uma enorme fogueira.

Num pequeno bosque, alguns cavaleiros da patrulha foram encontrar uma centena de cabeças espetadas na ponta de estacas, dis­postas em círculo, à volta de uma fogueira ainda queimando, como se fosse uma oferenda. Entre essas cabeças Birger foi encontrar a do irmão e a de Karl, o Surdo.

Era um mês ainda quente, sendo impossível pensar sequer na pos­sibilidade de levar para casa os mortos, para serem enterrados em terra abençoada, junto dos seus ancestrais. Birger conseguiu ainda escavar a terra com uma estaca afiada e fazer duas covas onde colocou os restos mortais do irmão e de Karl, o Surdo, marcando bem os respectivos sepulcros.

O trabalho com os mortos demorou dois dias. As cinzas e os ossos esbranquiçados pelo fogo foram jogados no mar, do alto de uma rocha, depois de abençoados e de a missa ser rezada. Os oito forsvikia­nos que viajaram para Reval, do rei Valdemar, após a ruptura, entre­tanto, não voltaram, nem sozinhos nem com os guerreiros dinamar­queses, e ia demorar bastante tempo antes que Birger viesse a saber o que lhes tinha acontecido.

Durante a viagem de volta para Riga e o forte dos Cavaleiros da Espada, os forsvikianos e o seu líder, Birger, cavalgaram separados, de cabeça pendente, não só por terem perdido amigos e parentes, sendo Birger o mais atingido, como também por reconhecerem uma derro­ta humilhante, insana e desnecessária. Se tivesse vindo uma força completa de cavalaria, se fossem uns cem cavaleiros a sair pelos por­tões do forte Leal, a vitória teria sido certa e oferecida por Deus, arra­sando os salteadores pagãos de Ösel. Em seguida, teria sido possível ocupar a ilha, libertar todos os homens e mulheres sveas escravizados e trazer de volta muitas das coisas roubadas pelos salteadores em incursões no Mälaren. Tudo isso estaria ao seu alcance.

Mas os velhotes tinham decidido de forma diferente. O seu jarl sonhava com a guerra à moda antiga e com as sagas dos heróis do pas­sado. E o arcebispo apenas queria jogar água na cabeça de um único pagão e com isso, para ele, tudo estaria terminado. Todos tinham sido enganados e jogados em uma armadilha mortal pela insensatez desses velhotes. O rei era apenas uma criança que de nada entendia. Portanto, contra ele não havia razão para ter raiva, nem piedade.

 

Segundo Birger, Riga era uma cidade que muito fazia lembrar Visby. Também lá havia um grande porto e um enorme muro à volta da cida­de. Mas havia ainda um imponente castelo em construção onde os

Cavaleiros da Espada tinham o seu domínio principal. E dentro de Riga os cidadãos pareciam olhar os cavaleiros passantes com muitíssi­mo mais respeito do que os habitantes de Visby.

Todos os forsvikianos receberam alojamento, baias para os cavalos dentro do castelo e foram muito bem tratados pelos seus irmãos de fé. No primeiro dia, ao darem uma volta pelo castelo e ao observarem os treinamentos de guerra, que constituíam o trabalho diário dos cavalei­ros, caso não estivessem em campo, eles verificaram também, para sua satisfação, que esses treinamentos eram semelhantes àqueles com os quais tinham crescido em Forsvik.

Erik Stensson, que era o mais velho no esquadrão, e Skule Germundsson, o mais jovem, ficaram fascinados com o que viram e logo inquiriram junto do frei Arminus se poderiam receber a graça de se juntar à irmandade e fazer os seus votos. Erik Stensson considerava que tinha cometido muitos pecados na vida, pecados que ele queria reparar, e se isso pudesse acontecer por meio do uso das únicas facul­dades que possuía, e os seus pecados pudessem ser relevados, melhor ainda. Para sua salvação, ele disse sem hesitar estar disposto a jurar pobreza, obediência e castidade e se tornar um irmão entre os outros Cavaleiros da Espada. Mas o que o jovem Skule tinha em mente era mais obscuro.

Frei Arminus falou por longo tempo e seriamente com os dois aspirantes antes de ter certeza de que ambos atendiam, de fato, ao cha­mado da fé e não eram apenas simples aventureiros. Depois foi ao encontro de Birger, para saber quais eram as famílias dos dois homens. Para serem recebidos como irmãos entre os Cavaleiros da Espada, deveriam ser homens honrados e pertencer a famílias com escudo hie­rático próprio. Caso contrário não poderiam ser recebidos como irmãos cavaleiros válidos, mas, sim, candidatar-se ao serviço na Ordem como sargentos. Birger atestou, embora contra a vontade, que Erik e Skule deviam ser considerados como suficientemente bem-nas­cidos para poderem se tornar cavaleiros, segundo as regras da Ordem. Acrescentou, ainda, com um sorriso disfarçado, que frei Arminus não devia ser tão meticuloso em relação às origens familiares dos dois, caso não bastasse o leão dos folkeanos. Afinal, eles já eram guerreiros e cavaleiros formados e, além disso, estavam mais bem equipados e armados do que os irmãos do manto branco. Birger não gostou da idéia de os dois forsvikianos entrarem na guerra santa contra os pagãos num país estrangeiro, em vez de voltarem e defenderem a pátria, mis­são que, na realidade, tinha sido a razão pela qual passaram dez anos de estudos e treinos em Forsvik. Mas se eles, honestamente, se diziam chamados pela fé divina, a dúvida de Birger não valia muito como objeção.

Frei Arminus, entretanto, reconheceu a hesitação no olhar de Birger e declarou que os dois aspirantes seriam chamados para as ora­ções e observados durante alguns dias, a fim de definirem, formal­mente, as suas inclinações pela fé. Depois disso, eventualmente, ele não hesitaria em nomeá-los irmãos cavaleiros, até porque eram ambos bons guerreiros e poderiam entrar na luta de imediato, sem a necessi­dade de mais treinamentos.

Três dias depois, ao entrar no porto de Riga uma galera suficien­temente grande, frei Arminus decidiu não apenas transportar Birger com seus homens e cavalos para Visby como, também, seguir com eles. A intenção por trás dessa decisão não era difícil de imaginar.

Ao desembarcar em Visby alguns dias mais tarde, Birger levou frei Arminus imediatamente para a câmara de comércio do senhor Eskil, onde ambos foram fraternalmente bem recebidos, antes mesmo de o senhor Eskil sequer ter conhecimento dos grandes negócios que esta­vam por vir. Os três homens não tiveram qualquer dificuldade em chegar a um acordo sobre o negócio das luvas de guerra, a proteção para os joelhos e tornozelos dos homens e para o pescoço e a cabeça dos cavalos. Em termos de negócio, foi um acordo satisfatório para ambas as partes. E, pelo que parecia, não havia limites para o que a Ordem dos Cavaleiros da Espada poderia pagar em ouro, se assim fosse desejado, pois tudo era feito desde que fosse útil à sua Guerra Santa. E para os Cavaleiros da Espada a proteção das mãos e dos joelhos, assim como a dos cavalos, valia quase qualquer preço em ri­quezas seculares.

Para alívio de Birger, o seu irmão Elof se comportou melhor do que se poderia esperar. Habituado como estava a ler e pensar em outras línguas, além da linguagem popular, ele já havia aprendido a escrever e a falar razoavelmente bem o saxônico. No entanto, grande parte dos seus estudos dessa língua tinha ocorrido no balneário de Visby e nas tabernas da cidade, e não na sala de contas do senhor Eskil. Birger tentou incutir bom senso nele, no sentido de entender que devia dedicar-se a essa grande oportunidade da sua vida, mas Elof tinha a impressionante capacidade de evitar as perguntas demasiado diretas por meio de piadas. Viajar para Hamburgo e Lübeck, porém, foi do seu gosto, confessou ele. E isso ele continuaria a fazer. No entanto, Birger suspeitava de que aquilo que o atraía mais nessas cida­des eram certos pecados e não as tensas e difíceis negociações com os avarentos mercadores lübeckianos. Mas a esse respeito ele não disse nada. Achava, porém, que Elof estava no caminho certo.

Mais preocupado ficou com a maneira leviana como Elof reagiu à notícia da morte do irmão Karl. Elof apenas encolheu os ombros, sus­pirou e disse que quem queria dar a vida pela prometida bem-aven­turança não podia reclamar se as suas preces realmente fossem ouvi­das. Birger ficou triste com a maneira que ele recebeu a notícia da morte de Karl, mas também pensativo. De repente, percebia que Elof, como o irmão menor de uma leva de irmãos mais velhos, mais fortes e, acima de tudo, muito mais ambiciosos, certamente não tivera uma vida fácil. Em especial tendo em conta que a mãe, Ingrid Ylva, sempre enérgica, demonstrava a toda hora que, em relação a Elof, não tinha grandes esperanças. As feridas secretas em Elof estavam muito longe de sarar. Seria melhor, portanto, que ele assumisse responsabilidades maiores, de modo a ter razões para se afastar das tabernas e da autoco­miseração. Birger convenceu, então, o senhor Eskil de que Elof iria tornar-se aquele que assumiria toda a responsabilidade pelo negócio com as mercadorias que viriam de Forsvik para Visby e Riga.

O senhor Eskil hesitou um pouco antes de aceitar a proposta, isto porque esse grande negócio de armas devia ser aquele que maior lucro daria, desde que fosse conduzido corretamente.

Quando Birger e frei Arminus estavam para se despedir, indo cada um para o seu lado, Birger pediu-lhe um favor e, pela primeira vez, sentiu-se inseguro em relação à maneira como devia colocar as suas palavras. Ele pediu para o amigo entender que ele, como um homem da Götaland Ocidental, talvez tivesse sentimentos e conceitos que podiam parecer para um homem puro e espiritual como frei Arminus um pouco baixos e vulgares. Na verdade, porém, ele queria se vingar dos salteadores e assassinos da Ilha de Ösel. E pelo que ele tinha entendido, os Cavaleiros da Espada pretendiam atacar essa ilha o mais cedo possível, se não por outra razão, pelo desconforto de terem um ninho desses bem no meio de uma região conquistada e convertida ao cristianismo.

O favor que ele pedia era, portanto, simples e claro. Ele gostaria de saber, antecipadamente, quando esse castigo seria realizado. Queria vir com pelo menos cem cavaleiros do mesmo nível que frei Arminus tinha visto e dos quais dois já tinham sido aceitos na sua divina ordem.

Frei Arminus ficou cofiando a sua barba negra, tranqüilamente, à espera de que Birger saísse do caminho meio confuso que escolheu para realizar esse simples questionamento. Em seguida, assegurou que a vingança, em certos casos, podia ser uma boa coisa e, nesse caso, até uma ação cristã depois do que aconteceu em Leal.

Frei Arminus prometeu mandar a tempo uma mensagem para o senhor Eskil em Visby, antes da vingança tão cristã quanto necessária contra Ösel. E acrescentou que se sentia especialmente satisfeito em combater ao lado do bom Birgerus de Gothia e não, como quase aconteceu da primeira vez que se encontraram, contra ele.

 

DO QUE SE FALOU MUITO nos anos seguintes foi sobre a maneira como Ingrid Ylva recebeu a notícia de que o seu filho, o bispo Karl, de Linköping, tinha sido decapitado pelos pagãos em Leal, na província de Rotalien. Seriam calúnias e boatos, perigosos, além disso, para o boateiro, era o que se diria, caso não tivesse havido tantas testemunhas entre os habitantes de Ulvåsa e os forsvikianos que estavam desembar­cando no píer quando as suas palavras foram pronunciadas.

Ela jurou solenemente e por todos os santos que os malditos que roubaram a vida do seu filho iriam morrer. O pior deles, Valerius, dentro de um ano, e o segundo, que era o presunçoso rei Johan, den­tro de dois anos.

Essas palavras, ditas na hora do desespero por uma mãe que aca­bara de saber que um dos seus amados filhos tinha sido decapitado, talvez não fossem uma coisa à qual dar muita importância. Muitas mulheres haviam dito coisas semelhantes na hora da dor.

Mas com Ingrid Ylva a história era diferente, ela estava certa. Talvez não fosse muito difícil prever a morte do arcebispo Valerius. Nessa altura, ele já estava ardendo em febre nos seus aposentos do bis­pado em Uppsala, e nessa situação já ele estava desde que voltara da Estônia, dois meses antes. Que ele não tinha muito mais tempo de vida era uma coisa que qualquer um podia prever.

No entanto, que o jovem e saudável rei morresse, de repente, aos vinte e dois anos de idade, era mais difícil de aceitar. Mas ele morreu mesmo, também ardendo em febre, da mesma maneira que antes tinha morrido o rei Erik Knutsson. O boato de que Ingrid Ylva teria envene­nado o rei correu célere, mas todos aqueles que eram racionais rejeitavam essa versão. Era verdade que Ingrid Ylva tinha estado com o rei em Näs, durante um grande banquete, em que a maioria dos homens e das mulheres de bom nível no reino também estava presente. Mas isso aconteceu mais de três semanas antes da morte do rei, e a sua febre intensa, portanto, nada tinha a ver com a presença de Ingrid Ylva, nem com a presença dos muitos convidados reais no banquete.

Os rumores, porém, grudaram nas mulheres, que passaram a ser consideradas como bruxas, o que também aconteceu com Ingrid Ylva. A diferença, entretanto, consistia no fato de que tais rumores talvez fossem mais perigosos para quem os espalhassem do que para as mulheres envolvidas. Ingrid Ylva não era uma mulher qualquer e tinha os homens mais poderosos do reino sob sua proteção.

Embora as calúnias persistissem, dizendo que ela, ao saber da morte do seu filho bispo, havia caído de joelhos, puxado os cabelos e amaldiçoado aqueles que, em sua opinião, eram os culpados, logo em seguida Ingrid se recompôs e agiu da maneira mais inteligente e séria. Apenas algumas horas depois, ela se encontrou com Folke Bengtsson, em Bjälbo, nomeado, então, como jarl da família, em substituição do meio-irmão Karl, o Surdo, quando este passou a ser jarl do reino.

Folke e Ingrid Ylva logo chegaram a um acordo sobre o que deve­ria ser feito. Em primeiro lugar, era preciso que a posição de jarl do reino continuasse a pertencer a um folkeano e, estando Karl, o Surdo, morto, Folke devia retomar o cargo de jarl da coroa. O seu pior inimi­go seria, naturalmente, o arcebispo, mas esse não contava mais, estava no leito de morte em Uppsala. E os conselheiros do rei nada podiam fazer contra essa nomeação, muito menos o próprio rei, ainda criança.

Como conseqüência de Folke ainda não ter assumido a sua nova função de jarl do rei, haveria tempo para escolher um novo jarl da família folkeana, achava Ingrid Ylva. E o homem que ela tinha em mente era o seu filho Birger.

Folke não precisava pensar muito para chegar à conclusão de que a proposta de Ingrid Ylva era a mais inteligente. Birger já atuava como jarl da família quando os folkeanos se reuniam. Todos o escutavam sem­pre em silêncio quando ele falava. Era jovem, sem dúvida. Mas Birger Brosa também era jovem quando foi escolhido líder dos folkeanos.

Poucos eram os homens que podiam concorrer com Birger na eleição para jarl da família, e entre os mais jovens, apenas um. Era o filho de Karl, o Surdo, Ulf Fasi, que, evidentemente, se achava mais próximo do ramo folkeano de Bjälbo, onde tinha vivido toda a vida. Daí os seus laços de sangue serem mais fortes do que Birger, cujo pai, Magnus Månesköld, tinha sido apenas filho de criação de Birger Brosa. Além disso, em matéria de laços de sangue ele podia dizer que era quem iria substituir o pai, Folke, o Surdo, considerado o senhor de Bjälbo e chefe dos folkeanos do lugar.

No entanto, o velho Folke considerava poder repelir com certa facilidade essa pretensão. O seu meio-irmão, Folke, o Surdo, sempre esteve tão exageradamente desconfiado de tudo o que dizia respeito aos novos métodos de guerra que o seu filho jamais teve a oportuni­dade de ser educado em Forsvik. Ulf Fasi poderia estar, talvez, mais à vontade nos seus domínios em Bjälbo do que muitos outros. Mas um jarl de família que não soubesse cavalgar com lança e escudo como um forsvikiano jamais seria eleito na assembléia familiar, onde mais da metade dos senhores folkeanos do lugar eram, eles próprios, forsvikia­nos. Nessa assembléia, Birger conseguiria o apoio de todos, menos o do próprio Ulf Fasi.

Menos de uma semana depois de Ingrid Ylva ter tido esta conver­sa com o senhor Folke, ela se mudou com Birger para Bjälbo. O seu terceiro filho, Bengt, ficou como senhor de Ulvåsa e seria dentro de um ano o homem de leis da Götaland Ocidental.

No primeiro ano como líder da família folkeana, Birger dedicou-se a aprender como lidar com todas as pequenas, mas importantes, coisas que diariamente eram colocadas para exame pelo jarl. Os casos, na sua maioria, eram pedidos de autorização para resolver diversas irregularidades, problemas financeiros de viúvas e de jovens que se recusavam a casar com quem seus pais exigiam e um ou outro roubo de noiva. O último caso era o mais importante a enfrentar, visto que há muito tempo ninguém se atrevia a perturbar a paz de qualquer casamento em que os folkeanos estivessem envolvidos. Talvez um ou outro achasse que os folkeanos já não tinham dentes tão fortes, uma vez que o seu jarl ainda não tinha saído dos cueiros. Aqueles que pen­saram assim tiveram que pagar caro pelo seu erro. Birger queimava as fazendas deles, matava-os e se apropriava de todos os seus bens. A sua força de escudeiros era a maior de todas as fazendas folkeanas e com­posta exclusivamente de forsvikianos.

Na catedral de São Pedro, considerada a primeira missa semanal na Götaland Ocidental, um ano mais tarde, Ingrid Ylva chegou com ar sério para Birger e disse que ele tinha que convocar uma grande assembléia de folkeanos na próxima lua cheia, enquanto o gelo ainda permitisse o uso de trenós para os parentes que viessem de mais longe. Primeiro ela não queria explicar a razão de estar tão certa de que ele precisava convocar uma assembléia assim tão grande, quando parecia não haver muitas coisas para tratar por uma reunião tão completa. Ela respondeu de maneira hesitante, mas disse que ele, como bom filho que era, devia fazer como ela mandava. Então ele ficou zangado, dizendo que já tinha escutado muitos sussurros a respeito de quem, entre o filho e a mãe, era realmente a pessoa que mandava em Bjälbo e que não ia convocar todos os homens para se reunir e apenas esva­ziar os barris de cerveja de Bjälbo. Foi nessa altura que Ingrid Ylva falou tranqüilamente, como se não fosse nada de mais, que o rei Johan deveria morrer, mais ou menos, nessa época que ela tinha proposto para a reunião. Portanto, a assembléia da família deveria assumir uma posição quanto à sucessão no trono do reino, e quanto mais cedo os folkeanos pudessem decidir-se, melhor seria.

Diante dessas palavras, Birger ficou perscrutando os olhos escuros da sua mãe, sem encontrar nada mais do que a certeza do que havia dito ser verdade. Não perguntou mais nada e convocou a assembléia que ela tinha proposto.

Com isso Birger teve tempo suficiente para pensar sobre o que devia ser decidido, assim como se poderia explicar o fato de ele ter convocado a assembléia com essa presteza. Para fazer acreditar que era apenas uma coincidência, achou melhor arranjar outro assunto importante para tratar, o de que ele pensava seriamente ser necessário enfrentar a questão dos salteadores na Ilha de Ösel, que até o último verão continuavam pilhando duramente a região dos fracos sveas à volta do Lago Mälaren. Se a sua mãe acertasse na previsão sobre a morte do rei, muito pouco se deveria tratar do caso da Ilha de Ösel. De qualquer forma, o caso Ösel seria considerado suficientemente importante para ser discutido e decidido por todos os membros ativos da família folkeana.

Quanto à questão da sucessão do trono do reino, havia apenas duas possibilidades. Ou os folkeanos tomavam agora o poder real, enfrentando uma guerra com Knut Holmgeirsson, seus parentes eri­kianos e uma parte dos sveas que ficariam do seu lado, ou, então, os folkeanos se uniriam no apoio ao único com direito ao trono por herança, que era o filho do rei Erik Knutsson, ainda criança e vivendo na Dinamarca.

Se os folkeanos, por acaso, tivessem algum homem que pudesse exigir a coroa do rei e conseguisse unir toda a família do seu lado, esse seria o próprio Birger. Evidentemente ele era ambicioso, isso não lhe era difícil reconhecer e em silêncio. Mas ele não era ambicioso ao extre­mo e reconheceu também, após muito pensar, que os folkeanos iriam se dividir caso se discutisse a questão de, finalmente, tomar o poder real. Ulf Fasi jamais iria apoiá-lo, assim como nem o cavaleiro Sigurd e seu irmão Oddvar. E mesmo que Knut Holmgeirsson e seus parentes não pudessem arrostar nem com metade do poder dos folkeanos, a guerra seria longa e traria grande sofrimento para todo o reino.

Isso também seria razão suficiente para advogar a favor de Erik Eriksson, ainda criança na Dinamarca, como rei. Dessa maneira os folkeanos voltariam a fortalecer os seus laços com os erikianos e, no que dizia respeito à divisão do poder no conselho real, poderiam ficar com metade das cadeiras seculares. O importante era que a posição de regente, o jarl, pertencesse a um folkeano e que todo o poder armado estivesse nas mãos folkeanas. Dessa maneira a paz estaria salva por longo tempo. E como os folkeanos eram em maior número, mais ricos e poderosos do que os erikianos, em breve haveria uma lenta conquis­ta por meio de todos os casamentos entre as duas famílias, o que aca­baria por terminar com os erikianos. De forma pacífica, mas garanti­damente, se conquistaria todo o poder no reino. Mas não agora, e não com violência.

Quando os longos trenós com todos os porta-vozes familiares de Ymseborg, Forsvik, Lena e Hönsäter na Götaland Ocidental e dos aldeamentos na Götaland Oriental, que faziam uma viagem mais curta, começaram a entrar em Bjälbo, a informação da morte, vinda de Näs, ainda não tinha chegado. Assim, Birger pôde dedicar todo o primeiro dia a falar sobre a questão de reunir pelo menos uns cem cavaleiros folkeanos, que partiriam de barco para o leste, se juntariam aos Cavaleiros da Espada de Riga, sobre os quais ele tinha muito a contar, e, depois, executar a vingança contra Ösel. Assim, seriam libertados todos os sveas, homens e mulheres, mantidos como escra­vos lá. Seriam recuperados todos os objetos roubados nos saques à volta do Lago Mälaren e com isso constituir muitos laços com depen­dentes agradecidos, o que iria fortalecer ainda mais o poder dos fol­keanos sobre os erikianos. Finalmente, seriam trazidos os restos mor­tais do seu irmão e do abençoado jarl Karl para serem enterrados, de forma cristã, em Bjälbo e na catedral de Linköping.

Birger foi tão enfático perante a assembléia, que os seus parentes logo se manifestaram, prontos para, como um só homem, apoiá-lo nessa guerra tão boa quanto lucrativa. Isso quase fez com que a assem­bléia terminasse logo, ao final do primeiro dia de reunião, com todos os porta-vozes se preparando para voltar para casa e acelerar os prepa­rativos para a guerra.

No segundo dia, porém, chegou um mensageiro vindo das cor­rentes do Mo com a informação de que o rei tinha morrido em decor­rência de uma febre em Näs.

Birger, que, aparentemente, se preparava para encerrar os traba­lhos da assembléia, logo modificou a sua decisão diante da mensagem recebida da morte do rei. Então falou sobre a nova questão, de tal maneira que seus parentes ficaram maravilhados. Diante da notícia recebida, explicou ele, vamos ter que adiar a guerra contra Ösel. No momento era preciso decidir sobre uma coisa menos importante, como formar um séquito de honra folkeano para acompanhar os res­tos mortais do soberano na sua ida para o mosteiro de Alvastra. Isso não seria difícil, visto que todos os principais folkeanos já estavam ali reunidos.

Em seguida, porém, haveria a grande questão a discutir: qual seria a posição da assembléia diante da escolha do novo rei? Ali, naquela assembléia familiar, residia o verdadeiro poder do reino. Naquela sala, em Bjälbo, seria decidido o futuro dos cidadãos do país. Por isso nin­guém poderia deixar Bjälbo antes de os líderes folkeanos tomarem uma decisão. Com essa ordem, Birger sentou-se e passou a palavra para os seus conterrâneos.

Como havia sido previsto, a assembléia logo ficou dividida em duas partes, uma achando que estava na hora de os folkeanos assumi­rem o poder no reino, já que ninguém poderia ser contra essa tendên­cia. E outra querendo que fosse feito o que havia sido decidido na assembléia anterior, mantendo-se ao lado da família erikiana.

A discussão foi grande, principalmente quando aqueles que que­riam mandar buscar Erik Eriksson na Dinamarca exigiram a concor­dância dos que achavam estar na hora de os folkeanos assumirem o poder de uma vez para sempre. Afinal, quem era, entre os folkeanos, o pretendente ao trono?

Logo alguns dos presentes indicaram o nome de Birger, que con­tinuou sem alterar a expressão do rosto. Ulf Fasi, como era de esperar, ficou furioso e falou eloqüentemente a respeito de traição e de honra, assim como da antiga aliança entre folkeanos e erikianos. E nesse sen­tido recebeu o apoio do cavaleiro Sigurd que, com lágrimas nos olhos, relatou o momento em que ele e o seu irmão, Oddvar, foram armados cavaleiros por Erik Knutsson num dos dias mais negros e mais difíceis do reino.

Birger deixou que a discussão corresse solta entre os dois lados antes de ele próprio falar. Explicou primeiro, de forma breve e nobre, que ele não merecia receber a coroa de rei. Antes, tinha verificado como seria difícil para os folkeanos, nesse momento, indicar um pre­tendente ao trono, à volta do qual todos se unissem. E para ele o des­tino dos folkeanos era mais importante do que a coroa do rei.

Entretanto, era necessário fortalecer a aliança com os erikianos, continuou ele. Mas de forma alguma por ser uma atitude nobre, nem porque alguns dos folkeanos, como ele próprio, tinham recebido as esporas de ouro de um erikiano, mas sim porque isso era o melhor para o futuro de todo o reino. Se um erikiano recebesse a coroa do reino, fosse ele quem fosse, quer uma criança, quer Knut Holmgeirsson, esse erikiano ficaria nu e impotente, sem o apoio dos folkeanos. Portanto, devia ser escolhida a criança Erik Eriksson para rei e assim salvar o reino do pior que poderia acontecer, uma guerra entre parentes.

Nesse meio-tempo, todos os folkeanos que tivessem filhos e filhas na idade de casar deveriam fazer os casamentos com erikianos. Assim, em breve, só haveria folkeanos à volta do poder e da coroa do reino.

Dessa maneira, os folkeanos acabariam alcançando todo o poder nas suas mãos, sem que isso custasse uma só gota de sangue. Essas foram as palavras finais do jarl da família e com elas tinha dito tudo o que queria.

Os folkeanos ficaram em silêncio por bastante tempo, refletindo. Até que o velho Folke, de novo jarl do reino, tirou da bainha a sua espada e bateu com a lâmina na grossa mesa de carvalho. Logo se escu­tou um barulho enorme na sala, em que todos seguiram uma antiga tradição de expressar a sua concordância, repetindo a atitude do velho Folke, o primeiro a se manifestar. Finalmente, Birger pegou na espada de Arn Magnusson, pendurada na parede acima do lugar onde estava, retirou-a da bainha lentamente para que todos pudessem ver, solene­mente, a inscrição que nela existia e, por sua vez, bateu forte com ela na mesa.

Os folkeanos estavam unidos. E avançando mais um passo para ficar mais próximo do poder. Sem que isso custasse sequer uma gota de sangue.

 

Erik Eriksson era uma criança com apenas seis anos de idade quando assumiu o trono do reino. Dizia-se que uma babá na corte dinamar­quesa o tinha deixado cair num chão de pedra quando ainda era bebê e que, em conseqüência, ficou deformado e coxo. Chegou com o seu professor e tutor, Erengisle Vig, visto que, para seu maior infortúnio, perdeu a mãe, assim como já tinha perdido o pai. Mas por que e como a rainha Rikissa morreu, apesar da pouca idade, ninguém sabia.

Tudo correu como havia sido decidido na assembléia dos folkea­nos. O velho Folke tornou-se o jarl do reino. Bengt Elinsson, mare­chal. E o filho de Ulvhilde Emundsdotter, Emund Jonsson, manteve o seu lugar no conselho da corte. Que Knut Holmgeirsson, velho amigo de Birger, também tivesse conseguido um lugar no conselho não era de surpreender, assim como não foi surpresa ele ter consegui­do nomear para o mesmo conselho um amigo seu, Knut Kristinsson. Se alguma coisa correu como não devia foi a decisão dos bispos, sob a liderança do novo arcebispo, Olof Basatömer, de indicar o afogueado e gordíssimo Bengt, bispo de Skara, para chanceler do rei. Com isso os folkeanos perderam a fonte de informações que tinham durante aquele curto período em que o irmão de Birger, o bispo Karl, de Linköping, fora encarregado de escrever em um pergaminho todas as decisões do rei e responder a outras.

Birger recusou nobremente o convite para um lugar no conselho do rei. Ele tinha várias razões para isso. Uma delas era a de não querer perder a amizade de Knut Holmgeirsson. Embora não se vissem há muitos anos, eles continuavam a se dar muito bem. Todavia, Birger sentiu que não devia arriscar-se e que era melhor e mais seguro não pôr à prova essa antiga amizade. E suspeitava muito que Knut e ele raramente iriam concordar nas suas conversas sobre comércio, poder e guerra. E não tinha esquecido as palavras do abençoado rei Erik quando disse que a inimizade entre ele e Knut lançaria todo o reino na infelicidade.

Além disso, ele era o jarl dos folkeanos. Assim, tinha maiores poderes que o jarl e o marechal do reino juntos, visto que ambos tinham que se submeter ao que fosse decidido por ele na assembléia dos folkeanos. Birger também estava convencido de que o verdadeiro poder, o poder dos folkeanos, exigia mais atenção e mais trabalho do que o poder dourado no conselho da criança-rei. E, acima de tudo, ele tinha um assunto para resolver, ao qual pretendia dedicar toda a sua atenção e força. Os folkeanos ainda não tinham vingado a morte do seu irmão e a do seu tio em Leal.

Ainda mais urgente se tornou essa questão pelo fato de naquele verão de 1224, ano da coroação, uma frota de salteadores do leste mais uma vez ter assaltado a região do Lago Mälaren, matando não apenas sveas, mas também três folkeanos em suas próprias fazendas e aldeamentos. Era a hora da vingança. E Birger tinha todos os folkea­nos a apoiá-lo como se fossem um homem só. Não seria difícil reunir mais de cem cavaleiros para a campanha. E era melhor que a campa­nha começasse logo do que mais tarde, visto estar restabelecida a uni­dade do reino e a grande força folkeana poderia, assim, embarcar para o leste sem receio de voltar mais tarde para fazendas e aldeamentos incendiados.

 

Nesse outono embarcaram dez esquadrões de cavaleiros folkeanos em galeras menores, avançando lenta, mas seguramente, de Söderköping para Visby e dali para Riga em barcos maiores. Entre os mais velhos encontrava-se não só o cavaleiro Bengt Elinsson, com trinta e dois homens de Ymseborg, como Emund Jonsson, com um esquadrão de Ulfsheim, e Matteus Marcusian, de Forsvik. O que deixou Birger entristecido foi a ausência dos cavaleiros Sigurd e Oddvar, que alega­ram não se sentir em condições de seguir nessa campanha sob o comando de Birger. No entanto, contribuíram com quatro esqua­drões de Lena e Forsvik.

Os custos da operação saíram do caixa de guerra de Arnäs e Forsvik e entre os mais jovens na campanha estava o neto do senhor Eskil, Knut Torgilsson, de Arnäs, que não pretendia ser mercador. Birger fez dele o seu confanonier, o que não era apenas uma honra, mas também uma situação de segurança num exército de cavaleiros. O porta-bandeira, dizia-se, era sempre o último a morrer.

Em Riga, o comandante do castelo e dos Cavaleiros da Espada, frei Arminus, mostrou-se um pouco arredio quando os primeiros gru­pos de cavaleiros bárbaros do Oeste começaram a desembarcar no porto. Mas em parte logo viu que esses homens estavam equipados com os mesmos apetrechos de guerra que tinham custado uma fortu­na em ouro para os Cavaleiros da Espada terem. E em parte porque o seu jovem amigo Birgerus de Gothia estava entre os primeiros a desembarcar.

À noite, na hora da refeição, quando frei Arminus, Birger e Bengt Elinsson, que também falava razoavelmente a língua da Igreja, se encontraram pela primeira vez, a conversa avançou um pouco amar­rada. Os Cavaleiros da Espada tinham tido muito trabalho ao enfren­tarem do lado sul os selvagens lituanos e não muito tempo para pen­sar naquilo que, para eles, era comparativamente como uma pequena pedra no sapato, o bando de salteadores da Ilha de Ösel.

Birger explicou que também ele tivera muito que fazer nos últi­mos anos, mas que os salteadores de Ösel haviam voltado várias vezes ao Lago Mälaren e que agora era uma questão de puni-los com ou sem os Cavaleiros da Espada. Se a superfície gelada do Báltico no inverno não fosse suficientemente espessa para permitir que a cavalaria o transpusesse até Ösel, ele esperaria a chegada da primavera, armar uma frota de pequenos barcos e desembarcar na ilha com a sua força folkeana, assim que as condições o permitissem. Se desembarcassem em terra dez esquadrões, o resto não seria grande problema. A dificul­dade estava, evidentemente, no desembarque.

Frei Arminus respondeu que ele preferia passar o outono em ora­ções e reflexões, à espera de que os gelos aumentassem, e quando ficas­se mais seguro ele avançaria com os seus irmãos cavaleiros. Isso resol­veria logo a questão. Se aproximar com pequenas embarcações era problemático, tudo poderia acontecer.

No outono, o castelo dos Cavaleiros da Espada em Riga ficou cheio. Em contrapartida, os forsvikianos puderam participar do trei­namento diário dos irmãos cavaleiros no campo com muita alegria, visto que, tendo a maioria muito mais treinamento que os seus novos companheiros, conseguiriam portar-se muito melhor. O cavaleiro Bengt, apesar de já grisalho, conseguiu sobressair entre todos, mostrando-se invencível nos torneios realizados.

Todos constataram que as suas preces tinham sido atendidas. O inverno começou suave, com pouca neve, mas depois do Natal che­gou um vento gelado do norte que parecia nunca mais ceder e logo o mar ficou congelado que nem uma grande passarela branca. O exérci­to de cavalaria nem precisaria passar pelo golfo de Riga para avançar do leste em direção ao lado mais curto do estreito de Ösel e onde, cer­tamente, eles seriam esperados. Os cavaleiros poderiam avançar pelo gelo que parecia infinito diretamente pelo lado sul. E foi por essa direção que quinhentos cavalos chegaram à ilha, ouvindo-se a distân­cia o tremendo barulho dos seus cascos batendo no gelo.

Na praia, encontraram uma resistência fraca e desorientada e aca­baram matando todo mundo. Depois cavalgaram rápido na direção norte e surpreenderam os nativos pelas costas, sem terem que passar pelos fossos de defesa cavados perto da praia no lado leste. Nenhum inimigo armado foi poupado. E logo se elevou contra o céu uma nuvem negra de fumaça de todos os corpos queimados que podia ser vista de todos os lados da ilha.

Perto da parte leste da praia havia um castelo antigo, igual àquele chamado Leal. Foi lá que a cavalaria do exército assentou acampa­mento, depois de terem limpo o castelo inteiro de todo o lixo e de os clérigos, com suas vestes verdes, caminharem por toda parte espalhan­do água-de-rosas pelas paredes e assoalhos.

A vitória foi clara como o sol da manhã. Toda a Ilha de Ösel esta­va em suas mãos, sem mais resistência. Tratava-se agora de administrar a vitória com calma e segurança.

Pressa eles não tinham. Ainda ia demorar para o mar congelado derreter. Durante esse tempo, as carroças podiam ir e vir entre Riga e Ösel e as patrulhas de cavaleiros vigiarem a costa da ilha permanente­mente, a fim de prenderem qualquer um que pensasse fugir com ouro ou mercadorias. E quando os gelos realmente derretessem, não have­ria problemas. Os quinhentos cavaleiros dominavam, facilmente, toda a ilha, ainda que existissem nela dez mil habitantes. A coluna ver­tebral da defesa há muito que tinha sido quebrada.

Portanto, como ordenar o trabalho dali para a frente? Frei Arminus conversou com Birger reservadamente logo na primeira noite, depois da missa de agradecimento e dos cânticos vespertinos, onde ele e todos os irmãos em posição superior participaram. A questão era que os Cavaleiros da Espada e os folkeanos tinham, sem dúvida, intenções diferentes. Aquilo que os Cavaleiros da Espada queriam realizar era fácil de explicar. Eles desejavam transformar o castelo em uma verda­deira fortaleza. Mas queriam construir também igrejas para batizar os pagãos que, voluntariamente, se dispusessem a isso. Segundo a sua experiência, depois de uma vitória tão clara e completa aumentava extraordinariamente a adesão de voluntários ao batismo entre os der­rotados. Era de notar, porém, que, depois do batismo, todos passavam a ter direito à vida, à família e à propriedade.

Mas o que Birger queria?

A vingança estava em primeiro lugar, explicou Birger tranqüila­mente. A segunda coisa era libertar todos os homens e mulheres das suas províncias sueonas, mantidos como escravos. A terceira era recu­perar bens e mercadorias saqueados, pertencentes aos seus parentes e aos vizinhos deles, e levá-los de volta para os seus donos de direito. Depois disso havia os pequenos problemas a resolver, como carregar esses pertences de volta, mas como o caixa de guerra era bom, seria fácil chegar a um acordo.

Frei Arminus acenou afirmativamente com a cabeça, dizendo que essas exigências eram fáceis de atender. Mas era preciso agora que os dois grupos não atrapalhassem um ao outro. Os seus clérigos estavam ansiosos por começar o trabalho de conversão. Já era possível ver como os primeiros pagãos se enfileiravam diante do castelo para receber a cruz branca nas suas vestes, dada a todos aqueles que se batizavam e que, assim, evitavam ser mortos por decapitação.

Birger refletiu por um momento e sugeriu em seguida que tudo fosse feito mais lentamente e com mais cuidado. Se cada um pudesse ser batizado no seu próprio aldeamento, tudo seria mais fácil.

Como frei Arminus não entendeu, primeiro, qual era a vantagem desse procedimento que levaria mais tempo a executar, Birger teve que explicar melhor. Mas a explicação tomou muito tempo. Foi difícil para Birger dizer qual era o seu desejo. Mas por fim conseguiu ver aceita a sua vontade. Caso fizessem como Birger propunha, seriam evitados muitos batismos de pessoas que não estavam sinceramente procurando por Deus, mas que queriam apenas escapar da morte.

Os Cavaleiros da Espada e os folkeanos passaram, no dia seguin­te, a cavalgar juntos, lentamente, de aldeamento a aldeamento. Consigo levavam trenós para conduzir libertos e pertences apreendi­dos. E os clérigos não entravam em ação e iniciavam os batismos tão logo a situação de cada um ficasse esclarecida.

Nenhuma expedição que saísse para essa missão era composta com menos de quatro esquadrões, o que significava ser toda resistên­cia inútil.

Primeiro, o aldeamento da fazenda era cercado por todos os lados e os cavaleiros procuravam encontrar pistas na neve de eventuais fugi­tivos que eram trazidos de volta junto com as mercadorias que tenta­vam esconder. Os Cavaleiros da Espada ficavam, então, na retaguarda, esperando que os folkeanos terminassem a sua tarefa.

Os folkeanos reuniam depois toda a gente do aldeamento, escra­vos e seus donos, na praça. A seguir, perguntavam se havia sveas, gotas, noruegueses ou outros homens ou mulheres do norte entre os escravos. E quase sempre havia.

Chorando de gratidão e agradecendo a Deus e aos folkeanos, os escravos libertos eram autorizados a avançar, retirar as vestes quentes dos seus ex-donos e vesti-las. Depois perguntava-se a eles quem é que os tinha tratado mal, com crueldade. Os homens ou mulheres apon­tados eram punidos com a decapitação, depois de serem obrigados a revelar onde tinham escondido o produto dos seus saques em terras estranhas. Os libertos ajudavam nessa busca e, muitas vezes, acabavam trazendo para a praça diversos objetos, que eram acomodados nos tre­nós folkeanos.

Mas neste particular tanto os folkeanos quanto os Cavaleiros da Espada eram meticulosos. Os objetos roubados em terras estranhas eram levados para os donos, mas apenas esses. No caso, as forças che­gadas não eram compostas de saqueadores. Vinham apenas para evan­gelizar e libertar os escravos. Uma vez separados os objetos, os mortos jogados numa cova e os ex-escravos reunidos nos trenós, os folkeanos consideravam a sua tarefa cumprida. Então os clérigos avançavam e começavam o batismo dos poucos sobreviventes que diziam esperar a salvação na cruz branca de Cristo. Um ou outro que dizia não querer ser batizado era logo jogado na fogueira dos cadáveres.

Demorou até a primavera a realização desse trabalho de conversão nos aldeamentos da ilha. Quando os gelos derreteram e a fuga pelo mar tornou-se possível, estavam todos os sobreviventes da ilha con­vertidos. Mais de mil escravos originários da Svealand e até muitos gotas orientais que viviam na costa foram libertados. Os objetos que deviam ser levados de volta para casa enchiam dez carroças. De tudo o que foi encontrado, o que mais satisfez Birger foi a espada do jarl Karl, o Surdo. Birger não teve piedade nenhuma diante daqueles con­siderados os donos do aldeamento em que a espada foi achada.

Birger deu-se ao trabalho de falar com todos os escravos sveas liber­tados, homens e mulheres. Anotou o nome de cada um e o nome da fazenda de onde vieram, não esquecendo de salientar que era graças a ele e aos folkeanos que haviam recuperado a liberdade. Disse ainda que talvez um dia ele viesse procurá-los, por estar ele próprio em difi­culdades e precisar da parte deles de um pequeno favor. Era tudo o que pedia.

Cada homem e mulher jurou que, se esse dia chegasse, jamais iria esquecer a dívida que tinha para quem o libertou e ajudou a sair da escuridão buraco escuro da desesperança em que tinha vivido até o momento em que, como se fosse uma melodia celestial, escutara o galope dos cavaleiros folkeanos.

 

Nunca mais os salteadores de Ösel poderiam atormentar o povo do Vale do Mälaren, informou Birger ao voltar para casa, diante da assembléia da família que já o esperava, em Bjälbo. No entanto, na sua opinião, nos próximos anos seria preciso colocar uma barreira à entra­da do Mälaren, no Báltico, a fim de evitar que, do leste, chegassem povos desconhecidos, desejosos de usar o mesmo itinerário que em épocas passadas foi utilizado pelos salteadores de Ösel.

Como havia prometido, ele trouxe consigo os restos mortais do seu irmão e de Folke, o Surdo, em duas arcas douradas. Ulf Karlsson Fasi, que, finalmente, pôde ver o seu pai ser enterrado nas terras aben­çoadas de Bjälbo e receber das mãos de Birger a espada dele, devia ter-se demonstrado mais agradecido, acharam muitos. Mas parecia que ele ainda não tinha se recuperado do fato de não ter sido escolhido como senhor de Bjälbo e líder da família, no lugar que agora era de Birger.

O arcebispo Olof Basatömer, que pareceu a Birger ser uma pessoa sincera e de boa natureza, realizou a missa de corpo presente dedicada ao bispo Karl Magnusson na catedral de Linköping.

Um tempo de muita tranqüilidade reinou em todo o país. No cas­telo de Näs deixaram de existir todas aquelas intrigas de antes. O rei menino continuou sendo educado pelo seu professor dinamarquês de forma pacífica. O novo arcebispo, Olof, não queria nem ouvir falar de novas cruzadas no leste. E Birger tinha ganhado tanta honra quanto ouro na sua cruzada, pois era assim que se falava dessa campanha, em especial na Svealand, terra da grande maioria dos libertos.

Nesse tempo pacífico, nenhum seqüestrador sequer ousava sonhar com o roubo de qualquer noiva a caminho do seu casamento com um folkeano. A tradição de ir buscar a noiva era realizada sempre com a presença de cavaleiros folkeanos, com expressões sérias no rosto e relu­zentes armas nas mãos. Birger havia ordenado enfaticamente que nenhuma noiva de família folkeana deixasse de ser acompanhada, no mínimo, por dois esquadrões de cavalaria. E muitos foram os casamen­tos entre as duas famílias, a folkeana e a erikiana, durante esses anos de paz, tal como o líder folkeano havia recomendado.

Nessa época de tranqüilidade, Birger arranjou tempo para, final­mente, visitar Signy. Ela tinha recebido uma bonita fazenda, com o seu aldeamento reconstruído junto de uma praia do Lago Unden, onde desaguava um largo riacho. Em sua volta foram aradas todas as terras e nos prados junto da praia o pasto era farto. Não dava para reclamar da riqueza da fazenda, que era rodeada por largas florestas. Foi aberto um caminho para Älgarås com ligação para a praia ocidental do Lago Vättern, de modo que pelo menos dia sim, dia não passavam viajantes por lá. Signy não tinha muitos escudeiros para defendê-la, mas havia uma bandeira folkeana hasteada bem alto no aldeamento e vista a dis­tância de todos os lados da fazenda. Essa segurança era a maior que ela podia ter. E melhor do que uma quantidade superior de escudeiros, complicados e beberrões, teria dito Birger.

Quando viajava para se encontrar com Signy, Birger preferia ir sozinho, achando que a vida dele e a dela não diziam respeito a mais ninguém. Na casa dela, ele se mostrava atencioso como qualquer homem com mulher e filhos, e se sentia bem por ter necessidade de, a cada momento, no meio da floresta, pensar na responsabilidade de ser o jarl dos folkeanos. Por isso sobre ele baixava uma paz maravilhosa toda vez que a visitava e dormia com ela.

Birger sempre sentia dificuldade na hora da separação e acabava iniciando a viagem de volta mais tarde do que havia pensado. Isso sig­nificava longos trechos do trajeto sob a luz do luar ou uma noite de sono no meio da floresta. Na escuridão, ele não tinha medo de ser ata­cado por homens que não seriam loucos a ponto de atacar quem se defendia com o símbolo dos folkeanos. E Birger, inteligentemente, não se cansava de espalhar a notícia do que aconteceria a todos aque­les que puxassem a espada contra qualquer folkeano. E no meio da noite escura jamais tinha encontrado outra coisa que lamentáveis dis­farces espalhados pela floresta, cujos sons, aliás, eram por ele bem conhecidos. O piado de uma coruja era apenas isso, bem como o berro de qualquer veado na hora do amor, em noites de setembro, não era nada mais do que isso.

Na única vez em que nem tudo iria acontecer como era normal na viagem de volta da casa de Signy, que deixou mais tarde do que devia, como era normal, sendo obrigado a dormir uma noite, como era nor­mal, na floresta, Birger estava já deitado, quase adormecendo e gozan­do de uma solidão que tanto apreciava, sonhando já, junto da foguei­ra quase apagada, e, ainda, recordando as mãos dela, seu rosto e seu corpo esguio e macio. Pensou então na promessa que lhe havia feito, de mandar pintar um ou vários corações vermelhos no escudo, junto do leão folkeano, como sua marca pessoal. Isso seria um segredo entre ele e Signy, o símbolo da sua união extraconjugal. Ela jamais poderia ser a sua esposa, não apenas porque Ingrid Ylva não queria, mas por­que ele, por ser líder jovem dos folkeanos, tinha que se casar por motivos de poder e não por amor, já que o poder e o amor, em geral, não cami­nhavam juntos. Talvez a sua amada Signy pudesse compreender isso, mas talvez ainda não tivesse perdido a esperança de um milagre.

Antes de adormecer, por algum momento os seus pensamentos foram para o filho Gregers, que já há três anos permanecia em Forsvik recebendo toda a educação possível. Birger via o menino somente durante as festas do Natal em Bjälbo, às quais Signy também compa­recia, ou na Páscoa, época em que parava toda a atividade em Forsvik. Ele próprio jamais visitava Forsvik. Os cavaleiros Sigurd e Oddvar ele só via nas assembléias da família, sendo eles os porta-vozes de Lena e de Forsvik, mas nunca mais deixaram de se mostrar frios no tratamen­to com o jarl, que lhes correspondia do mesmo jeito. Alde, sua tia, ele já não via há muitos anos. Só sabia que tinha dado à luz duas filhas, de quem ele nem se lembrava dos nomes.

Birger aconchegou-se ainda mais no seu manto grosso forrado com pele de urso e logo estava sonhando, aquecido, com coisas que nada tinham a ver com cavalgadas, cavaleiros e luta pelo poder.

Contudo, ao amanhecer, seis homens atacaram-no quando ele ainda dormia mais profundamente. Bem aconchegado como estava, no que teria sido a primeira noite de geada no outono, ele pouco pôde fazer, antes de ser amarrado ao tronco de um pinheiro. Os homens, depois, atiçaram de novo o fogo e se prepararam para fazer o reconhe­cimento da sua vítima e do valor da sua troca. Como não o decapita­ram logo em seguida, Birger imaginou que eles teriam ordens de algum inimigo para o levarem com vida, e que, portanto, não valia a pena discutir e negociar com eles. Mais espantado ficou, no entanto, quando pareceram ficar muito satisfeitos ao abrir as suas bagagens e encontrar algumas coisas de valor, mas logo ficaram pensativos ao des­cobrir o seu escudo e virá-lo para a luz do fogo, encontrando a marca dos folkeanos. Pela forte discussão que se estabeleceu entre os saltea­dores, pois não eram outra coisa senão isso, Birger entendeu que não estavam atrás dele, que não pretendiam nada mais do que roubar. Mas o leão dourado tinha-os colocado numa situação de difícil escolha, ou fugir rápido e pedir perdão ou matar o folkeano, enterrá-lo bem fundo ou jogá-lo no riacho mais próximo. Dos seis homens, dois falavam mais do que os outros, que, como quaisquer escravos, faziam uma reve­rência sempre que a palavra lhes era dirigida.

Birger não sentia medo de perder a vida, visto que a situação lhe parecia absurda demais, valendo mais uma boa gargalhada do que um gemido de medo. De todos os homens do reino que esses salteadores podiam encontrar na floresta, esses infelizes tinham achado o pior. Ainda que Birger estivesse amarrado e um pouco alquebrado, de repente ele achou a situação tão ridícula que desatou a rir às gargalha­das. Nessa altura a discussão entre os seis salteadores parou e eles fica­ram olhando em silêncio para Birger, de olhos espantados, bem aber­tos, sobressaindo o branco dos seus olhos à luz tênue da manhã.

— Como é que um homem amarrado, à distância de uma espada da morte, pode encontrar razão para rir? — perguntou um dos homens, avançando na direção de Birger, abaixando-se e olhando bem nos olhos dele como que procurando sinais de loucura.

— Nesse caso, nós somos sete homens à beira da morte — respon­deu Birger lentamente. — Por isso, devemos ter cuidado com as pala­vras pronunciadas na nossa negociação e não nos apressar demasiado.

— Talvez possamos poupar a sua vida em troca de um resgate, a ser pago pela família. Por isso não o decapitamos logo — respondeu um outro, excitado, enquanto todos se reuniam à volta dele para ouvir melhor.

— Nós, os folkeanos, jamais pagamos resgate por qualquer um dos nossos. Mas decapitamos qualquer um que ouse levantar a mão para um folkeano. Por isso você está em má situação, salteador. Como pode entender, você acaba de dominar e amarrar sozinho um folkea­no — respondeu Birger de uma maneira mais amistosa do que amea­çadora, como se estivesse falando com uma criança.

— Então o que é que você tem para nos oferecer pela sua vida? Se nós resolvermos poupá-la, o que é que vai nos dar em troca? — per­guntou o salteador.

— A única coisa que, no momento, lhes posso prometer é uma morte rápida e indolor — respondeu Birger, com um sorriso largo, mas prosseguiu logo com o seu pensamento diante das expressões de medo e raiva dos outros. — Mas como entendo que vocês vão achar essa oferta bem avara, talvez possamos pensar em qualquer outra coisa melhor. Diga-me o seu nome e por que deixou uma fazenda e uma base para viver correndo pela floresta. Pelo que entendi pela maneira como você fala, parece que nasceu como homem livre e não como escravo.

— Diga-me primeiro o seu nome, folkeano! — ordenou o saltea­dor, ainda excitado.

— Eu sou Birger Magnusson, de Bjälbo, o jarl da família folkeana. E trate de me soltar logo para que possamos continuar melhor as nossas negociações — respondeu Birger, sorrindo e consciente de que o conhe­cimento do seu nome iria assustar os infelizes salteadores.

Eles fizeram o sinal-da-cruz, raciocinaram um pouco e resolveram logo cortar as amarras que prendiam Birger. Este levantou-se lenta­mente, esfregando as mãos e os punhos, pegou sem hesitar a sua espa­da que estava com um dos homens em oração e convidou todos com um sinal para se sentarem à volta do fogo. Esperou que arranjassem mais lenha para atiçar a fogueira, deixando que a soprassem para aumentar as labaredas.

— Como eu disse antes, é preciso cuidado com as palavras e os pensamentos — começou Birger cautelosamente ao sentar-se no círcu­lo à volta do fogo reavivado. — Compreendo perfeitamente que não era a intenção de vocês assaltar um folkeano e muito menos o líder deles. Por esse erro eu posso perdoá-los e deixar que tenham uma morte tranqüila. Mas vamos ver se existe mais alguma coisa com a qual vocês possam pagar a dívida que têm para comigo. Primeiro quero saber seus nomes, de onde vêm e por que estão vivendo na floresta.

Os dois líderes eram irmãos e se chamavam Torgeir e Aunund. Tinham vivido em liberdade e em paz na própria terra como campo­neses. A sua fazenda tinha o nome de Bäckafallen e fazia limite com a fazenda Jävsta. Um homem mau com o nome de Svante seqüestrara a filha mais nova da fazenda Jävsta, obrigou-a violentamente a ser sua noiva e, depois, voltou com homens armados e apoderou-se de toda a fazenda. O pai e a mãe da noiva foram expulsos e obrigados a viver num casebre abandonado na floresta. Depois disso, sua ambição aumentou e ele acabou tomando para si todas as fazendas à volta de Jävsta, incluindo aquela dos dois irmãos e do seu pai. O nobre Svante era um homem com brasão de família e uma longa espada saxônica, difícil de enfrentar pelos camponeses. Ele acabou decapitando o pai dos dois irmãos ao insultá-lo em altos berros diante de testemunhas, de modo que o pai deles foi obrigado a limpar a sua honra puxando pela espada. Depois Svante tomou toda a fazenda como justa com­pensação por um arranhão sofrido durante a luta com o pai que ele matou. Logo os dois irmãos foram obrigados a abandonar a fazenda que lhes pertencia como herança diante dos golpes desferidos contra eles. E só conseguiram levar quatro dos seus escravos, que agora eram homens livres. De quanto valia agora a liberdade se não havia tranqüili­dade? Na floresta, passaram a assaltar os viajantes para receber o resgate em troca pela liberdade. E assim passaram a viver, embora consideras­sem que esse tipo de vida era miserável.

Birger os escutava com um interesse cada vez maior. Achava que o nome da fazenda, Jävsta, não lhe era desconhecido, assim como o nome Svante o colocou a pensar. Ficou em silêncio por um momento e pensou duas vezes para ter certeza da conclusão a que tinha chegado.

— Conta mais a respeito desse Svante — disse ele, pensativo. — Como é o símbolo da família dele? Ele já esteve alguma vez em uma assembléia com um processo em que ele ou uma escrava roubara três moedas de ouro?

— É ele mesmo! — confirmou Torgeir, surpreso. — Foi antes de se apoderar de toda a fazenda. Ele tinha estado lá como convidado, roubou e acusou uma escrava chamada Yrsa, que obrigou a segurar ferros em brasa antes que fosse enforcada. Que Deus tenha a sua alma em paz!

— Sim, que Deus tenha a sua alma em paz — concordou Birger. — Eu sei. Eu estava na assembléia de Askeberga há muitos anos quan­do isso aconteceu. E desde então eu nunca mais esqueci esse ladrão chamado Svante. Por isso, podemos agora fazer o nosso negócio, de modo que vocês e eu possamos sair com a nossa honra salva. Daqui a três dias vocês deverão se encontrar comigo perto do píer dos barcos no Vättern, onde esta trilha termina. Em seguida vamos todos para Jävsta e corrigiremos toda a situação.

Depois dessas palavras, Birger levantou-se, pegou a sua sela e encaminhou-se para o seu garanhão. Quando voltou para junto da fogueira, a fim de apanhar o seu saco de dormir e o escudo, os seis homens estavam discutindo acaloradamente um assunto que parecia incompreensível para Birger, visto que tinham acabado de receber uma oferta que eles dificilmente podiam recusar.

— Como é que vamos saber se você não está nos enganando! — exclamou um dos irmãos chamado Aunund. — Como é que vamos saber se você não está dizendo isso só para pouparmos a sua vida e vol­tar depois com muitos homens para nos matar?

— Porque você ainda vive e porque tem uma língua comprida demais — respondeu Birger. — No momento em que me devolveram a espada, vocês se condenaram à morte. Mas nós encontramos um caminho melhor.

— Mas nós somos seis! — objetou Aunund, excitado.

— Isso é verdade — disse Birger, desembainhando lentamente a sua espada. — Vocês são seis, mas eu sou folkeano. Se querem mesmo questionar as minhas palavras, então façam isso aqui e agora. Mas lembrem-se de que, antes, eu apenas tinha para lhes oferecer uma morte rápida e indolor. Agora chegamos a um acordo que também é melhor para mim.

O irmão Torgeir levantou-se então e interpôs-se de braços abertos diante de Aunund, ainda agitado. Disse ainda que, por parte dele, achava que a palavra de um jarl folkeano era tão certa quanto o nas­cer do sol e que todos eles estariam no lugar combinado dentro de três dias.

E assim aconteceu. Birger chegou de Bjälbo com dois esquadrões de cavalaria e mais alguns cavalos para que Torgeir, Aunund e os qua­tro libertos pudessem acompanhar a poderosa tropa de cavaleiros, de mantos azul e prata. E dentro de pouco tempo já estavam na fazenda de Jävsta.

O senhor Svante não esperava receber tais visitas e, quando correu para a praça do aldeamento, julgou, primeiro, que se tratava de mobi­lização e que a tropa vinha procurar por homens das fazendas de Jävsta que soubessem manejar a lança ou o arco e flecha.

Em vez disso, teve que se sentar diante do jarl dos folkeanos para acertar um negócio para ele nada favorável. Primeiro teve que devol­ver por escrito a fazenda Bäckafallen para os dois pobres irmãos Torgeir e Aunund. Depois teve que aceitar uma oferta ridícula pela fazenda Jävsta e outras próximas, uma oferta que, contudo, não podia recusar quando a praça do aldeamento estava completamente cheia de cavaleiros armados até os dentes. Os pergaminhos e o sinete o jarl fol­keano tinha trazido consigo. Escrever também ele era capaz. E tudo foi feito de maneira correta e legal, até mesmo o respectivo pagamen­to miserável.

Assim que o selo e a tinta dos pergaminhos secaram, o jarl condu­ziu o senhor Svante para a praça que até pouco antes era dele e estendeu-lhe uma espada, que era dele mesmo. E diante de todo o pessoal da fazenda começou a contar em voz alta a história de um miserável chamado Svante, que todos tinham tido como seu dono, e que era um simples ladrão. E que uma vez roubara três moedas de ouro na fazenda Jävsta. Da responsabilidade por esse crime ele fugira feito uma cobra peçonhenta, atirando a culpa em uma pobre escrava indefesa chamada Yrsa que acabou pagando pelo crime, sendo enforcada.

Um homem tão covarde quanto esse Svante jamais poderia ser perdoa­do e, para compensar a sua desonra, estava abrindo mão de todas essas fazendas.

Quanto mais o jarl falava, mais sonoros eram os sussurros e, depois, as risadas do pessoal da fazenda e dos escravos. Os mais felizes eram os dois irmãos, Torgeir e Aunund. Finalmente, Svante não pôde agüentar mais. Seus olhos ficaram injetados de ódio e de rancor. Pu­xou a espada e avançou contra o homem que o tinha insultado em poucos minutos, mais do que ele tinha suportado em toda a sua vida.

Quando o cadáver de Svante foi levado para fora, Birger foi falar com Torgeir e Aunund, enquanto limpava a sua espada do sangue do criminoso. Disse então que entre eles agora a paz estava restabelecida e tudo desculpado. No entanto, eles estavam obrigados a compensar todos aqueles que haviam roubado antes. Se alguém começasse a falar em ajustar contas e levar o assunto para uma assembléia, deveriam dizer que estavam sob a proteção dos folkeanos, e, caso precisassem de dinheiro emprestado para pagar as suas dívidas, poderiam ir até Bjälbo.

Mas desde esse dia uma coisa eles não puderam esquecer. A boa vontade de Birger teria o seu preço. Eles estavam agora em dívida para com ele, e um dia, quem sabe, Birger viria pedir-lhes um favor. A este respeito os dois irmãos juraram por tudo quanto lhes era caro e sagra­do que, fosse o que fosse o que Birger lhes pedisse, eles o atenderiam sem pestanejar.

Como Torgeir era o mais velho dos dois, ele ficou como senhor de Bäckafallen, embora a propriedade fosse de ambos. E na sua nova fazenda de Jävsta, Birger fez um trato com Aunund, colocando-o como seu administrador.

Aunund, o excitado, foi quem dos dois irmãos se deu melhor, conseguindo uma segurança inestimável contra cobradores raivosos ao hastear a bandeira folkeana em Jävsta.


                     O tempo dos Vândalos

BIRGER NÃO ERA DAQUELE TIPO de homem que tinha facilidade em reconhecer a derrota e o insucesso. Mas estava difícil de ver a guerra intestina entre erikianos de outro jeito que não fosse um insucesso para o poder folkeano. O rei-menino Erik Eriksson, o deficiente, fora expulso do reino e Knut Holmgeirsson tinha tomado o trono, dando a Ulf Fasi a honra de ser o jarl.

Foi isso que paralisou a assembléia da família dos folkeanos. Havia folkeanos em ambos os lados da luta entre erikianos. O jarl Folke exi­giu que os folkeanos apoiassem o jovem coroado e, por direito, o ver­dadeiro rei. Ulf Fasi exigiu o contrário, que fosse dado apoio a Knut Holmgeirsson na sua rebelião contra um poder real que desonrava o reino.

Qualquer decisão de dar apoio armado a um dos lados iria resul­tar em luta de folkeanos contra folkeanos no campo de batalha.

Birger achava ter sido astuto ao apontar para esse absurdo e disse que, justamente por isso, não se devia dar apoio armado a nenhum dos lados. Ele contava que a questão se resolvesse por si mesma. Mas estava errado.

Contra tudo o que era consciência e bom senso, o jarl Folke jun­tou uma força armada que mal podia chamar-se de exército e seguiu para Sörmland com o menino-rei deposto, o seu professor e um único esquadrão de cavaleiros dinamarqueses para dar uma lição a Knut Holmgeirsson e ao seu amigo Knut Kristinsson, que também abando­nou o conselho real. O pequeno encontro entre alguns poucos cava­leiros e uma multidão de camponeses arrebanhados a esmo terminou com a vitória de Knut, que recebeu sob juramento e em troca das suas vidas a palavra de que o menino-rei Erik Eriksson e o seu pai de cria­ção, Erengisle Vig, deixariam sem demora o reino, viajando para a Dinamarca. Depois Knut Holmgeirsson foi aclamado rei, assumindo o nome de Knut, o Alto, e seria coroado em Strängnäs.

Birger estava na torre do castelo de Ymseborg, entregue aos seus pensamentos sobre o que havia acontecido, junto com o cavaleiro Bengt Elinsson, o único dos folkeanos a quem ele ousava mostrar as suas fraquezas e dúvidas. Era uma noite, pouco antes de chegar o verão, com toda a região reverberando ao som do canto dos tordos negros e de uma raposa berrando ao longe. Não bebiam nada por ambos com­partilharem em segredo a idéia incomum de que os homens sóbrios, melhor do que os não sóbrios, podiam falar de coisas importantes.

Bem por baixo deles, entre as casas do aldeamento, que em breve estariam condenadas em caso de cerco ao castelo, estavam treinando novos jovens com os professores forsvikianos do cavaleiro Bengt. Era uma imagem serena que, de vez em quando, obrigava Birger e o seu parente e amigo mais velho, Bengt, a trocarem sorrisos significativos quando algum dos alunos errava o alvo e recebia uma pancada. Ambos já tinham passado por isso e sabiam tudo sobre o assunto.

Podiam ter escolhido um dos lados, mas não fizeram isso e aí é que estava o problema. Não teria sido difícil prever que Knut Holmgeirsson iria procurar um motivo para convocar o conselho do rei e sair de lá sob grande algazarra. Mas também não acreditavam que ele fosse tão longe a ponto de provocar uma guerra, se é que se pode­ria chamar de guerra aquilo que aconteceu no distrito de Sundby, em Sörmland. Com isso, ficou-se com um pretendente ao trono nas cos­tas, na pessoa de Knut Holmgeirsson, que queria procurar um moti­vo para entrar em uma guerra ainda pior contra a Noruega. Nessa questão os folkeanos tinham algo a dizer e tanto Birger quanto o cava­leiro Bengt haviam chegado a um acordo de que era necessário evitar a todo custo uma guerra contra os vizinhos noruegueses. Isto porque se eles invadissem o reino, seria fácil derrotá-los com a cavalaria. Mas se, ao contrário, eles tivessem que ir caçá-los entre as montanhas altís­simas e os largos fiordes, essa ação seria irrealizável e era isso, justa­mente, o que Knut Holmgeirsson estava pensando fazer.

Sim, existia motivo para entrar em guerra com os noruegueses. Como era normal, havia uma rebelião na Noruega e o rebelde mais recente, Sigurd Ribbung, havia fugido para a província sueona de Värmland tão logo ele se sentiu pressionado. Finalmente, o rei Håkon, da Noruega, acabou se cansando e no inverno anterior deci­diu mandar uma grande força de cavalaria e de trenós para caçá-lo e puni-lo na Värmland, incendiando e devastando terras e casas por toda parte. Não era, certamente, uma causa justificável. O rei norue­guês não tinha nenhum direito de queimar fazendas, aldeamentos e de matar em terras que pertenciam aos gotas e aos sveas. A discórdia e as disputas, no entanto, deviam ser negociadas e compensadas com reparações dos prejuízos. Partir, em vez disso, para uma guerra na Noruega e uma luta aberta nos fiordes não seria inteligente.

O cavaleiro Bengt considerou que essas questões, de qualquer forma, não tinham qualquer significado verdadeiro para Knut Holmgeirsson. O que Knut queria alcançar era apenas o poder real e agora ele já estava lá no trono. Havia duas outras questões, no entan­to, que precisavam ser consideradas, segundo o cavaleiro Bengt.

Uma delas, a menor, dizia respeito à forma como os folkeanos iriam honrar com a sua presença a coroação de Knut Holmgeirsson mais tarde, no verão, todos reunidos ou apenas com uma tropa redu­zida. Ele próprio preferia que se comparecesse em grande estilo, pela mesma razão que os folkeanos abertamente advogaram que não deviam se meter numa briga que poderia levar à guerra e que não se devia nem discutir os problemas internos dos erikianos. Portanto, agora, não era possível negar ao vencedor o direito a receber todas as honras que lhe eram devidas como rei. Isso era conseqüência de uma decisão nada inte­ligente, mas agora era tarde demais e nada podia ser feito.

Outra questão, porém, era saber como lidar com a desordem e a insegurança, protegendo a vida dos habitantes e suas propriedades, que irromperam por todo o reino. Knut Holmgeirsson e o seu amigo

Knut Kristinsson andavam cavalgando de fazenda em fazenda lá para o norte, em Nordanskog, principalmente em Sörmland, ao que pare­cia saqueando e fazendo o que lhes dava na cabeça, como se fossem homens primitivos ou simplesmente animais. No mundo do rei Knut, o Alto, nenhuma noiva seguia em segurança para o casamento e nenhum homem se sentia seguro no seu aldeamento.

Era uma grande ameaça. Essa desordem não poderia alcançar as Götaland Ocidental e Oriental. Imagine se os guerreiros da tropa real começarem a atacar e saquear as fazendas dos folkeanos?

Iríamos matá-los como se faz com os outros, respondeu Birger, entre dentes. Não havia qualquer outra resposta a dar. Nas províncias das Götaland Ocidental e Oriental reinava a paz folkeana e com isso a tranqüilidade para a grande maioria. Nenhum homem ousaria sequer sonhar em atacar um séquito folkeano de noiva ou entrar e saquear uma fazenda folkeana. Se desistissem dessa ordenação, estaria tudo perdido.

Nisso o cavaleiro Bengt concordara plenamente com Birger, após ficar em longo silêncio, pensando. Por isso mesmo, achava ele, era preciso comparecer em grande estilo à coroação de Knut, o Alto. No banquete, Birger, certamente, estaria sentado ao lado e perto do ouvido do novo rei. E, então, devia dizer para ele, com todas as letras, quais seriam as conseqüências se os homens de Knut, seus seguidores ou parentes, tivessem a ousadia de estabelecer a desordem, de saquear e incendiar em terras folkeanas.

 

Os folkeanos chegaram com grande poder e com capas esvoaçantes e de cores fortes à festa estivai da coroação. Strängnäs, que era uma cidade pequena, mas possuía uma catedral, amanheceu colorida de azul e prata.

Birger teve muitas oportunidades para apresentar as suas adver­tências, às vezes com rodeios, outras vezes de maneira explícita, ao antigo amigo Knut Holmgeirsson durante os dias de festa da coroa­ção. Podendo ser tudo, menos louco, Knut não deixou de chamar o jarl da família folkeana para sentar-se à mesa de honra, ao lado dele, do arcebispo Olof Basatömer e do novo jarl do reino, Ulf Fasi.

Mesmo assim, a sensação de insucesso continuou aumentando em Birger durante esses dias. Sabendo que Knut pretendia reunir o seu conselho, não havia dúvida de que ele tencionava diminuir a influência folkeana na assembléia o mais que pudesse. Que a posição de jarl do reino devia continuar pertencendo a um folkeano ele nunca deixou de admitir realmente em cada vez que falava do novo conselho. Mas o jarl era Ulf Fasi, que abandonou com ódio a casa de seus ances­trais em Bjälbo e o conselho do rei Erik. Se o jarl do reino, Ulf Fasi, e o jarl da família folkeana, Birger, se tornassem inimigos, o único que ganharia com a desavença seria o rei Knut. Ainda mais nítidas ficaram as intenções deste quando se viu que o irmão de Birger, o homem de leis Eskil, da Götaland Ocidental, e o filho de Ulvhilde, o cavaleiro Emund Jonsson, deviam deixar o conselho para dar o lugar para dois homens de leis de Uppland, Laurentius, de Tiundaland, e Germund, de Attundaland.

Infelizmente, Knut tinha um motivo nada ruim ao explicar a razão de afastar do conselho do rei o homem de leis Eskil, dizendo que este tinha ficado encarregado das negociações com o rei Håkon, da Noruega, e isso ele fez com a maior incompetência. Em vez de tentar estabelecer um regime de paz e respeito, ele se intrometeu numa dis­córdia interna da Noruega, ao despachar o seu filho de criação, Knut, ao encontro do exército rebelde de Sigurd Ribbung, agravando com isso as relações com o país vizinho. Birger só pôde admitir que essa, lamentavelmente, fora uma medida extremamente ruim de interme­diar a paz entre os dois lados.

Birger tinha várias razões para recusar o lugar no conselho que, finalmente, o rei Knut lhe ofereceu. Em primeiro lugar, o convite che­gou tarde, quando todas as posições mais importantes dentro do con­selho já estavam ocupadas. Em segundo lugar, ele não queria sentar-se num conselho real como refém folkeano do seu inimigo Ulf Fasi, nomeado jarl, e aquele que, depois do rei, era quem mandava. E, em terceiro lugar, reconhecia que aquilo que Knut Holmgeirsson havia conseguido era a separação do reino, um afastamento entre os sveas e os gotas. E, portanto, era mais importante para ele manter a união entre os folkeanos nas províncias gotas.

Ainda que Birger estivesse absolutamente certo nas suas previsões sobre os caminhos desfavoráveis para onde o reino seguia, isso pouco servia como consolação. A sua derrota apresentava-se cada vez maior à medida que, inevitavelmente, estava para acontecer.

E, de fato, cada vez ficou pior lá para o norte, na Svealand, onde uma desmedida violência se espalhou por todos os lados, a ponto de as igrejas serem saqueadas dos seus símbolos mais sagrados, desde que fei­tos de ouro ou prata. A explicação dada era a de que se tratavam de jovens da Uppland, que dessa maneira encontravam a possibilidade de enriquecer, assim como seus ancestrais em épocas passadas faziam nas campanhas realizadas no leste, atravessando o Báltico. Só que agora os países do outro lado do mar tinham ficado ou fortes demais ou domi­nados pelos dinamarqueses e pelos Cavaleiros da Espada. Por isso, para uma grande parte dos povos à volta do Mälaren, era como se tivessem voltado das cinzas as invasões dos salteadores do leste, só que estes não vinham mais, mas tinham sido substituídos pelos vândalos de Uppland com o apoio do rei. Muitos dos saques realizados na região eram con­siderados como parte da campanha de arrecadação de impostos.

Mas da grande inquietação que reinava em Nordanskog onde o rei Knut, o Alto, cavalgava de fazenda em fazenda com o seu exército de homens gananciosos e sedentos, não se falava muito nas Götaland Ocidental e Oriental. As notícias chegavam com alguns poucos fugi­tivos que viajavam para o sul, depois de perderem tudo, procurando apoio e ajuda de parentes. E cada vez ficou mais raro no norte o acom­panhamento por folkeanos dos séquitos de noivas.

Houve, porém, uma exceção, quando Magnhild, a filha mais nova do cavaleiro Bengt Elinsson, teve que ser acompanhada até o noivo, Herve Stigsson, da família ulviana. Para esse casamento existiam razões importantes, segundo o cavaleiro Bengt, com as quais Birger concordou. Para a família ulviana, passou a ser tão importante a liga­ção conjugai com erikianos quanto era para os folkeanos. Afinal, ulvianos e erikianos sempre tinham estado muito próximos. Além disso, porém, a donzela Magnhild e o jovem Herve haviam se encon­trado numa festa, no palácio do rei, em Linköping, ficaram enamora­dos, dormiram juntos e depois pediram aos pais que se fizesse a festa de noivado.

Se a sua filha já estava grávida ou não, o cavaleiro Bengt não sabia, e também não queria saber, mas organizou logo, o mais rápido possí­vel, uma grande festa de noivado em Ymseborg. Quando, pouco tempo depois, chegou a hora de acompanhar Magnhild até a fazenda do jovem Herve, na direção norte, perto de Nyköping, o cavaleiro Bengt pediu a Birger que cedesse alguns cavaleiros de Bjälbo. Birger deu logo todo o seu apoio a esse pedido, dizendo que ele próprio teria prazer em liderar pelo menos um esquadrão para segurança da noiva no caminho para Nyköping. Nada de mau poderia acontecer a Magnhild, porque isso seria a maior infelicidade, não apenas para o cavaleiro Bengt, mas também para todo o reino.

Se tal donzela e noiva, filha de um dos cavaleiros e porta-vozes fol­keanos, fosse seqüestrada ou violentada, a vingança, necessariamente, teria que ser tão dura que o rei Knut acabaria encostado na parede, obrigado a escolher entre dois males. Ou apoiava os seus parentes, reunindo a sua gente e marchando para o sul, a fim de punir os folkea­nos, ou tentava fingir que não sabia de nada e com isso criar muitas dissensões entre todos os que o ajudaram a alcançar o poder. O melhor para todos era salvar o rei Knut de ser obrigado a fazer essa escolha horrorosa.

Não muito longe de Nyköping, o jovem e nobre Herve foi ao encontro do longo séquito da noiva com o cavaleiro Bengt Elinsson e o jarl dos folkeanos, Birger Magnusson, na frente, de ambos os lados da noiva Magnhild. O jovem Herve fazia-se acompanhar de doze homens e Birger achou com isso que a força do séquito da noiva ia muito além do que se poderia exigir para um curto caminho que res­tava, a ser percorrido por uma pequena floresta. Por isso, deu ordens para que um dos esquadrões folkeanos voltasse para Bjälbo. Foi um pouco estranha essa decisão quando já se estava tão próximo do desti­no, mas Birger achou que, mesmo para um aldeamento muito grande e rico, seria difícil, durante três dias, alimentar todas as bocas e refres­car todas as gargantas sedentas de uma maneira honrosa, de um séqui­to que mais parecia um exército de cavalaria. Aqueles que tiveram de voltar provavelmente ficaram decepcionados, já sentindo o gosto da festa de casamento, mas obedeceram à ordem sem pestanejar, aliás, como era de esperar de um cavaleiro folkeano.

Os salteadores de Uppland tinham saqueado, durante as duas sema­nas anteriores, uma região não muito longe de Nyköping. No entanto, o séquito da noiva continuava tão forte que era difícil imaginar que alguns simples salteadores tivessem a ousadia de realizar um ataque.

Mas, ao anoitecer, já com todos em alegre conversa, sabendo que faltava pouco para percorrer o resto da floresta e chegar aos prados da grande fazenda do noivo Herve, ouviu-se um som estranho, vindo do cimo de uma encosta, bem no caminho por onde o séquito devia pas­sar. E de lá surgiram elfos terríveis, de braços balançando e de andar animalesco, de pernas abertas.

Birger ordenou logo que o séquito parasse e os cavalos recuassem como se todos estivessem com medo, o que, aliás, foi fácil de fazer, visto que os cavalos, efetivamente, estavam com medo daqueles elfos na sua frente. Os elfos, por sua vez, ficaram encorajados por essa suposta hesitação entre os cavaleiros da noiva, aproximando-se e fazendo cada vez mais barulho.

— Agora, meu caro amigo e futuro parente, vai haver uma dança bem divertida — sussurrou Birger ao avançar lentamente para junto do jovem Herve. — Pode acreditar, eu já vi antes esses elfos e prome­to que essas cabeças vão rolar tão fácil quanto as de seres humanos.

O jovem Herve primeiro hesitou, mas quando viu o sorriso aber­to de Birger, logo encontrou coragem para esporear o seu cavalo e ata­car os elfos, sem hesitação. Atrás dele seguiram Birger e mais oito cavaleiros forsvikianos, enquanto o resto da guarda rodeava a noiva Magnhild, pronta para o que desse e viesse.

Logo se demonstrou que era verdade aquilo que Birger havia dito. As cabeças desses elfos caíram tão fácil quanto as de seres humanos. Seguiu-se, depois, a caça aos fugitivos e, em breve, os salteadores, na sua maioria, tinham recebido uma morte muito mais rápida e indolor do que mereciam.

A alegria reinou já na primeira noite desse casamento entre as famílias ulviana e folkeana. De brincadeira, Birger mandou que pin­tassem um escudo com um elfo vermelho de cabeça cortada e, depois, entregou-o a Herve, dizendo que talvez esse pudesse ser o seu símbo­lo dali para a frente, e que devia trocar de nome, passando a chamar-se, em vez de Herve, “helfeano”.

Feliz com a sua postura de herói, rindo e falando pelos cotovelos, o noivo Herve explicou ter achado a proposta de Birger Magnusson muito boa e que os futuros descendentes dele e de Magnhild passa­riam a pertencer a uma nova família, a dos helfeanos.

 

Embora num tempo de vândalos e muitos perigos, Birger preferiu via­jar sozinho para visitar Signy, continuando a considerar que o amor entre os dois não era assunto para mais ninguém. Na casa de Signy e da nova filha dos dois, Sigrid, ele podia sentir-se um outro homem, diferente daquele que tinha que ser entre os folkeanos. No aldeamen­to de Signy, podia vestir-se com roupa normal de camponês, andar ao longo da praia com a pequena Sigrid num braço e o outro acarician­do os ombros macios de Signy.

Era uma tranqüilidade andar assim e falar apenas da futura colhei­ta de feno da fazenda, da dor pela morte do garanhão Ibrahim, que morreu por causa de um nó nos intestinos, de como o jovem garanhão Marwan se comportava bem, da praga que atingiu o lúpulo e estragou a cerveja, ou ainda da pequena Sigrid, que deveria entrar para um convento quando ficasse mais crescida para aprender a Palavra de Deus e, com isso, adquirir sabedoria. A respeito dessas coisas peque­nas era possível falar sem pensar naquela sensação cada vez mais pro­funda de insucesso e de chegar tarde demais. E se Signy dissesse o con­trário, o que acontecia cada vez com maior freqüência, ele não preci­saria se esmerar para ter as coisas feitas como ele queria ou achava que era melhor. Na casa de Signy, ele se liberava da postura de jarl da famí­lia folkeana, posição para a qual começava a recear não ter jeito. Mas essa nova falha na sua autoconfiança podia levá-lo a ficar em silêncio e de mau humor. Signy já tinha aprendido que era quase inútil qual­quer tentativa de consolá-lo com palavras e melhor era deixá-lo à von­tade, quando notava que ele, de repente, ficava calado e de olhar per­dido no horizonte.

Birger tinha começado a perguntar-se o que Deus queria fazer da sua vida. Parecia, sem dúvida, que ele tinha nascido para ser jarl da família ou liderar os folkeanos na conquista do poder sem que isso, necessariamente, custasse uma gota de sangue. Tinha acreditado nisso por um longo tempo e, nesse sentido, ficava completamente paralisa­do sempre que Signy levantava, furtivamente, a questão da vida deles em comum. Já tinham dois filhos e viviam como marido e mulher. Ainda não havia casamento em perspectiva para ele. Não seria a von­tade de Deus que eles dois ficassem juntos, pertencendo um ao outro?

Embora Birger sempre descartasse, rapidamente, essa possibilidade nos últimos anos, estava cada vez mais inseguro a esse respeito. Ele demonstrava seu amor para Signy, há muito tempo que carregava o seu escudo folkeano com a marca secreta deles, um coração vermelho, e não tinha nenhuma mulher erikiana disponível para ele se casar. A não ser, é claro, que alguma das irmãs de Knut Holmgeirsson ficasse viúva. E será que ele precisava mesmo aceitar uma viúva para se casar?

Essas perguntas ele fazia a Deus, mas Deus nunca lhe respondia. E essa resposta talvez nem ele merecesse. Na realidade, nem ele se con­siderava, honestamente, um bom cristão. Rezava apenas uma vez ou outra por semana. E confessar-se havia muitos anos que não o fazia.

Birger se desculpava, pensando que talvez tivesse recebido uma imagem totalmente injusta da fé cristã, pelo fato dos homens que ele conheceu como detentores dos mais altos postos da hierarquia cristã raramente merecerem respeito e reverência. O antigo arcebispo fora um traidor de primeira ordem e, além disso, um assassino por envene­namento que acreditou ser perdoado e abençoado por Deus ao reba­tizar um cristão contra sua vontade na Estônia. O novo arcebispo, Olof, era um homem que, nitidamente, agia conforme os ventos, não hesitando em coroar primeiro Erik Eriksson e, depois, Knut Holmgeirsson. O bispo Bengt, de Skara, bem-sucedido ao alcançar a posição de chanceler no novo conselho do reino, era um dos dois homens mais ricos da Götaland Ocidental. Quando aquela montanha de banhas chamada Bengt aparecia de visita na casa de qualquer cam­ponês, dizia-se que este ficava tremendo de pavor diante da perspecti­va de ver as suas despensas esvaziadas de comida e bebida. É que o bispo Bengt costumava cavalgar com um séquito de trinta homens. E ninguém sabia para que lhe servia toda a enorme riqueza que possuía. Era uma coisa incompreensível. Que utilidade tinha para um bispo todas aquelas armas e escudos, tapeçarias e jóias em ouro e prata que ele tão zelosamente juntava?

O irmão de Birger, o abençoado Karl, sem dúvida acreditava em Deus de coração aberto e, honestamente, devia ter acreditado na absol­vição da sua alma quando os salteadores da Ilha de Ösel o decapitaram. Por sua ardente convicção, certamente ele merecia mais ser reverencia­do do que maltratado. Mas Birger jamais poderia ter esse tipo de cren­ça. Confiava mais nas pessoas, na sua capacidade de entendimento, na sua ambição e temor do que nas suas rezas e confissões.

Ao se tratar de comportamento em relação ao amor e ao prazer, o seu irmão Bengt, que agora era homem de leis na Götaland Oriental e senhor de Ulvåsa, talvez tenha sido o mais inteligente dos irmãos. Indo abertamente contra a sua mãe, Ingrid Ylva, e o seu irmão, Birger, jarl da família folkeana, ele escolheu a mulher apenas seguindo os seus instintos e não ligando a mínima para as razões de família.

Ela chamava-se Sigrid, a Linda, um apelido que, como se veria depois, era merecido. Mas era uma mulher que vinha de uma família de nível inferior, de um ramo afastado da família sparreana. Bengt determinou com toda a decisão o seu noivado, em combinação com o pai dela, Sigsten, e não disse nada, nem para a mãe nem para os irmãos, antes de a festa de noivado acontecer, nem como estavam acertados os dotes da noiva e do noivo.

Nessa altura, Birger, furioso, mandou um manto para Ulvåsa em que metade era feita com o brilhante e aveludado tecido azul, apaná­gio dos mais ricos mantos folkeanos, e a outra metade, de um tecido cinza, rude, caseiro. Menos de uma semana mais tarde, Bengt man­dou devolver o manto para Bjälbo, só que antes fez tecer no pano cinza tantos fios de ouro e pedras preciosas que essa metade ficou muito mais cara ainda do que a outra, azul.

Birger, que tinha acabado de chegar de uma visita a Signy e tivera uma dificuldade anormal em se separar dela, não estava com disposi­ção para aceitar essa brincadeira com tranqüilidade e bom humor. Novamente furioso, mandou selar o seu cavalo e partiu para Ulvåsa.

Era um dia de verão muito quente e seco e a poeira levantada pelas patas do cavalo podia ser vista ao longe quando se aproximou de Ulvåsa. Não havia como hesitar a respeito de quem estava chegando, pois, só os forsvikianos sabiam cavalgar desse jeito. E só um único era conhecido por chegar sozinho.

Bengt, o homem de leis, correu logo para a floresta mais próxima, receando que o seu irmão, o jarl, fizesse os dois infelizes. Sigrid, a Linda, ao contrário, apressou-se a mudar de roupa, vestindo, então, as suas vestes mais bonitas. E em breve recebia com o mais reverente dos sorrisos o seu cunhado Birger na grande sala de Ulvåsa. Era a primei­ra vez que se encontravam, mas quando ele viu Sigrid, a sua raiva desapareceu por completo. Pegou nas mãos dela e disse que agora sim podia entender o seu irmão, ao ter a oportunidade de ver a sua futura parenta. Até só podia lamentar não ter sido o primeiro a descobri-la, porque, nesse caso, teria agido talvez como o seu irmão.

Em seguida, Birger mandou procurar o receoso Bengt, que apare­ceu ainda hesitante e preocupado, olhando de lado para o seu irmão ao entrar na sala. Eles acabaram se reconciliando com facilidade e, quando Birger partiu no dia seguinte, de volta para Bjälbo, tudo tinha sido perdoado e esquecido. E Bengt recebeu a bênção do jarl da famí­lia, que abençoou também o seu casamento com Sigrid, a Linda. Birger prometeu até uma contribuição para o dote do noivo.

Quando ele, mais tarde, contou esse episódio para Signy, acabou entendendo, tarde demais, que teria sido melhor ficar calado. Mesmo não tendo mencionado o exagero das suas palavras para Sigrid, a Linda, de que teria agido da mesma maneira que seu irmão, caso a tivesse visto primeiro, a história terminou levando Signy às lágrimas. A pergunta subseqüente não era difícil adivinhar qual seria. Se Birger podia permitir esse casamento do seu irmão, por amor e prazer, em vez de obrigá-lo a casar conforme a luta pelo poder, por que ele pró­prio não se permitia fazer a mesma coisa?

Não foi fácil para ele responder a essa pergunta, nem mesmo para si mesmo.

 

Embora achasse muitas vezes que seu fardo era pesado e a vida sem alegrias, Birger tentava combater a depressão por meio de trabalho duro pelo futuro. Havia nuvens negras encobrindo o céu do norte e Birger previa que esse mundo de salteadores que atormentavam cada vez mais, a cada ano, a província de Svealand iria se espalhar para o sul. Mais cedo ou mais tarde as barreiras se romperiam e uma onda de assassinatos e de incêndios assolaria o coração das terras dos folkeanos.

Nesse momento, era preciso não ter outros inimigos além de Knut, o Alto, e os seus salteadores.

O mais importante era estar em paz com a Noruega e a Dina­marca. Por isso, Birger enviou o cavaleiro Bengt, com ouro e o com­promisso de honra, por escrito, para os dinamarqueses em Reval, a fim de que fossem soltos os oito forsvikianos que mantinham presos desde que estes foram lá procurar ajuda, antes do assalto ao castelo de Leal. Birger, por seu lado, viajou com um grande séquito para uma visita ao rei Håkon, em Oslo, na tentativa de remediar os males que o seu irmão Eskil, o homem de leis, havia causado.

A princípio, o rei Håkon mostrou-se fechado a um novo contato, achando que o conselheiro do reino enviado antes, o homem de leis Eskil Magnusson, para negociar com ele, era um homem de uma lín­gua com jeito de serpente. Depois, prometeu não deixar entrar mais os rebeldes noruegueses que procurassem refugio nas terras dos sveas e dos gotas e, por outro lado, esse homem de leis da Götaland Oci­dental tinha instigado Knut, o filho de criação de Eskil, aliás filho do abençoado jarl norueguês Håkan Galin, a se juntar aos rebeldes lide­rados por Sigurd Ribbung. De qualquer forma, o rei Håkon acabou vencendo a disputa, mas não estava de jeito nenhum satisfeito com a atitude de Eskil Magnusson.

Birger teve muitas dificuldades em negociar um acordo com o soberano norueguês. Parecia à primeira vista que só o rei Håkon teria que ceder. Birger achava que, primeiro, o rei e o filho de criação de Eskil, Knut Håkansson, deviam fazer as pazes. Em seguida, havia que arranjar-se um casamento de conveniência que juntasse folkeanos e noruegueses, de modo que não pudessem existir novas traições entre ambos os lados. Era o caso, portanto, de o rei Håkon ordenar o casa­mento do jovem e inconstante Knut com a também jovem Ingrid, irmã de Margareta, rainha e esposa do rei Håkon. Esse casamento não só selaria a paz entre ambos, o soberano norueguês passaria a ter os folkeanos como seus amigos e estes constituíam de longe a força dominante nas terras dos sveas e dos gotas, que precisavam acertar as contas em breve com Knut, o Alto, rei dos salteadores.

A princípio, o rei Håkon achou que essa oferta era tão atrevida quanto impossível. Mas quanto mais escutava o bem falante represen­tante supremo dos folkeanos, mais se convencia de que a proposta era boa. E quando se separaram o fizeram como amigos, ambos convenci­dos de que tinham encontrado, por parte da Noruega e dos folkeanos, um caminho para solucionar muitos anos de desentendimentos.

Mas embora Birger tivesse muitos problemas de início para con­vencer o rei Håkon, em Oslo, isso não foi nada comparado com o que encontrou pela frente ao avistar o irmão Eskil perto de Skara.

Eskil ficou andando de um lado para outro a passos largos e com arrogância por uma grande sala cheia de pergaminhos com textos burocráticos por todos os cantos. Quando ouviu primeiro do seu irmão Birger que, de alguma maneira, tinha se portado estupidamen­te e que melhor fazia em não se meter em negociações com poderes estrangeiros, já que sobre esse assunto não sabia nada, ele ficou furio­so e até ameaçou o irmão de jogá-lo na praça com suas próprias mãos e bater nele tão forte como quando eram crianças. Diante dessas ameaças, Birger soltou uma gargalhada tão sonora e tão longa que a raiva de Eskil acabou por ceder.

Em seguida, a situação de Eskil piorou, quando a sua mulher, Kristin, começou a intrometer-se na conversa e logo se colocou do lado de Birger ao escutar que o rei Håkon, quase por milagre, tinha concordado em deixar que o seu filho casasse com Ingrid, irmã da rai­nha. Que tinha sido um caminho inseguro para o poder, o de tentar uma ligação entre o filho, Knut, com o rebelde Sigurd Ribbung, já estava mais do que provado. Mas, em vez disso, se Knut pudesse rea­lizar esse casamento tão favorável, agora sim o caminho para o poder estaria bem nivelado.

Knut foi chamado, então, e entrou na sala meio receoso e servil, mas também ele logo ficou ao lado da sua mãe e de Birger. Nessa hora não adiantou nada Eskil elevar o tom de voz e voltar a andar de um lado para outro na sala. Logo teve que concordar.

Isso foi um alívio enorme para Birger, visto que achara quase impossível reparar todos os erros estúpidos cometidos pelo seu irmão. Pela primeira vez desde há muito tempo que ele não sentia ter tido sucesso numa questão tão importante.

Em seguida, Birger fez várias perguntas ao seu irmão como homem de leis, a respeito das leis esparsas que ele estava reunindo. Com isso, pensou em amenizar a situação, deixando que Eskil falasse por algum tempo sobre assuntos de que realmente entendia. E Eskil cumpriu a missão que lhe competia, às vezes sussurrando, outras vezes gritando, buscando aqui e ali, pelos cantos, alguns documentos e falando sempre de problemas difíceis como se estes fossem do conhe­cimento de todo mundo. Mas na hora de assuntar sobre essas ques­tões, Kristin, sua mulher, e o filho Knut fugiram da sala, revirando os olhos para o teto como se já tivessem ouvido a mesma história milha­res de vezes.

Eskil falava com entusiasmo, procurava algo entre os montes de pergaminhos e voltava de vez em quando com algum texto que mos­trava para Birger com longas explicações. Mas ele nem dava chance para os comentários de Birger. Estava reunindo todas as leis existentes na Götaland Ocidental para colocá-las por escrito, dando-lhes forma e preservando-as para sempre, sem modificações, já que não estariam sujeitas à falta de memória de algum homem de leis. Ele falava com tal intensidade e segurança que Birger acabou se interessando mais do que ele esperava. O cabelo de Eskil estava agora espetado para todos os lados. Ele tinha o hábito de coçar a cabeça cada vez que se depara­va com um caso difícil.

E então mandaram buscar cerveja. A noite seria, certamente, longa, mas Birger estava ficando cada vez mais curioso. Na realidade, ele tinha em baixo conceito não só os clérigos, como os homens de leis. Para ele as leis só existiam quando eram conhecidas de todos e consideradas justas. E o poder só existia na ponta da espada e da lança.

Mas para Eskil as leis eram o fundamento básico de todos os reinos cristãos, uma segurança para a paz e a propriedade. Repetidamente ele dizia que o reino devia ser construído na base de leis. Essas eram as palavras que ele pretendia colocar no início do trabalho por escrito que iria reunir todas as leis.

Birger, que sempre havia pensado que Eskil era mais realista do que o irmão mais novo, o abençoado Karl, agora sentia que os dois eram absolutamente iguais. Havia qualquer coisa igualmente inocente na crença deles, um apaixonado pelas leis, e o outro, na sempre boa justiça de Deus.

— Você é homem de leis, meu caro irmão, quem é que poderia acreditar mais na bênção da lei? — objetou Birger, cautelosamente, ao sentir que Eskil estava quase a ponto de apresentar a lei como um pre­sente de Deus para os seres humanos. — Mas de onde vêm as leis, de Deus Todo-Poderoso? É isso que você quer dizer?

Birger achou que tinha feito as perguntas com toda a cautela, na medida certa, e que não havia razão nenhuma para Eskil ficar nervoso.

— Você está brincando comigo, meu irmãozinho, não é? — tro­vejou Eskil, no entanto, avançando para ele como uma coruja sobre um camundongo.

— De jeito nenhum, estou apenas perguntando a você, meu irmão, coisas que deve saber e que eu não sei — respondeu Birger, sur­preso. — As leis podem ser injustas, podem ser distorcidas, podem servir apenas para quem é o mais forte, e o mais hediondo na pior das hipóteses. Se você me diz que é com essa lei que vamos construir o nosso país para sempre, como é que eu posso evitar fazer perguntas?

— Mencione para mim uma lei injusta! — ordenou Eskil, olhan­do fixamente para o seu irmão, como se estivesse falando para qual­quer um dos criados da casa.

— A prova do ferro em brasa — respondeu Birger, sem levantar a voz. — Qual é o hipócrita que poderá dizer ter a lei de Deus do seu lado se decide que seja feita a prova do ferro em brasa para qualquer suspeito?

— Você tem razão — respondeu Eskil, espantado, sentando-se.

— Você assestou a ponta da sua lança justo numa ferida muito dolo­rosa. A prova do ferro em brasa não existia nas leis dos nossos ances­trais. Ela foi inserida por clérigos inconscientes. Mas vai ser abolida!

— Então eu volto à minha pergunta — objetou Birger, tranqüilo.

— Quem é que nos dá as leis? Se você diz que essa lei será abolida, isso bastará? E se a Igreja não concordar? Se o povo, que se diverte imen­samente com o espetáculo que a prova do ferro em brasa oferece, dis­ser que a prefere? É você mesmo que muda a lei?

— Não, mas o rei e o seu conselho — respondeu Eskil, levan­tando-se e continuando de novo o seu interminável passeio pela sala, de repente muito mais interessado e atento do que pouco antes.

— Então devemos primeiro assumir o poder do rei e do conselho — disse Birger, sorrindo. — E para isso precisamos de cavaleiros e lan­ceiros, mais do que os seus escritos. É isso justamente o que eu queria dizer. Isso que você chama de leis depende da ponta da minha lança.

— Mas aí é preciso também que você tenha um irmão que seja esperto em leis para lhe aconselhar, certo? — brincou Eskil de volta.

— Você já distorceu a lei alguma vez?

— Com certeza absoluta — respondeu Birger. — Já comprei gran­des fazendas e muitas terras dos inimigos. E a um preço muito bom, o que favoreceu a mim e à nossa família. E de homens para quem vendê-las era a última coisa que pensariam. E, no entanto, cumprimos todas as formalidades, conforme a lei mandava, usando documentos com nossos selos e tudo.

— Como é que você conseguiu comprar aquilo que os outros não queriam vender? — perguntou Eskil, curioso.

— Foi muito simples — respondeu Birger. — Eu chegava à fazen­da do vendedor com dois esquadrões de cavaleiros forsvikianos. Isso causava um efeito maravilhoso sobre a vontade de as pessoas quererem agradar. Depois bastava apresentar a minha oferta e jamais recebia um não como resposta.

— Então você estava distorcendo a lei — objetou Eskil, deprimi­do. — Precisamos abolir essa tradição. Conforme as leis antigas, todos os grandes negócios têm que ser discutidos na assembléia.

— Nessa altura eu também chegaria com os meus cavaleiros na assembléia — acrescentou Birger, provocadoramente. — E se alguém fosse contra mim, eu avançaria para ele, tiraria o meu elmo calma­mente da cabeça e riria na cara dele. Isso deve funcionar. E se não fun­cionar eu o chamarei de miserável, direi que ele tem menos coragem que qualquer mulherzinha da rua e outras ofensas ainda piores. E na hora o vendedor involuntário é um homem morto, depois de ter puxado da espada contra a minha pessoa. Tudo conforme a lei manda.

— Também esse abuso precisa ser abolido — disse Eskil, acenan­do com a cabeça negativamente. — Em vez de ficar brincando comi­go, me diz, por favor, como é que nós podemos melhorar as leis. Isto, no caso de sermos a um tempo o rei, o jarl e o conselho real, só você e eu, aqui e agora?

— Então teríamos muitos dias de trabalho pela frente — respon­deu Birger. — Quer dizer, se quisermos mudar as leis. Isto porque, agora, os nossos lucros são maiores, sendo como somos o maior poder armado da comunidade.

— Digamos que não seja essa a situação! — interrompeu Eskil, impaciente. — Digamos que os folkeanos não têm poder armado superior, ninguém consegue isso, absolutamente. Queremos que o nosso reino viva em paz e acreditamos que só vamos conseguir isso quando criarmos leis que sejam iguais para todos. Pronto!

— Nesse caso, eu introduzo as seguintes leis — começou Birger, rindo. — A vingança por sangue deixa de ser uma tradição legal, todos os homicídios têm que ser julgados em assembléia. E, nessas assembléias, ninguém deverá ser morto ou admitido com armas. Reinará a paz do rei. Nenhuma mulher poderá ser seqüestrada ou ofendida, pois são essas as causas normais das vinganças que causam tanto sangue derramado. Nenhum homem deverá sofrer qualquer emboscada a caminho da igreja ou no retorno, já que é nessa ocasião que os salteadores normalmente atacam. Chega ou quer mais leis, meu querido irmão?

— Podes falar mais, se for essa a tua vontade — respondeu Eskil, em voz baixa, formal e seriamente.

— Muito bem. Nenhum homem deverá ser ofendido em sua casa ou receber sequer uma visita indesejada e violenta. Uma lei como essa iria prejudicar os meus negócios, visto que eu, normalmente, compro as fazendas e os aldeamentos, interrompendo, assim, a paz dos lares, mas, ainda assim, aceito que se faça uma lei nesse sentido. Com essas leis, a paz reinaria no nosso país. Quer dizer, se Deus nos desse essas leis. Mas Deus parece não querer fazer isso, acho.

— Não blasfeme! Não fique brincando com coisas sérias como essas de que estamos falando agora. Você entende mesmo até que ponto está com razão? De onde tirou todos esses conhecimentos sobre as leis, você que sempre ficou conhecido como bom orador nas assem­bléias da família, bom homem de armas e bebedor de cerveja?

— E com prazer que brindo a você por essas palavras — respondeu Birger. — Você também não é nada mau como bebedor de cerveja e, a propósito, está na hora de encher de novo os nossos copos vazios, já que a nossa conversa nos está divertindo. Mas vou lhe dizer de onde vêm esses meus conhecimentos sobre leis. De Sörmland. Eu estive lá e o que vi não lhe vai agradar em nada. Os vândalos atravessam toda a província de um extremo a outro e a lei deles é aquela de que eu falei, aquela que está na ponta da lança. Na pior das hipóteses, esses vânda­los vão entrar nas nossas províncias. Até agora o rei Knut ainda não se atreveu a soltar os seus cachorros entre nós, mas receio que essa hora esteja próxima. Os saqueadores têm um apetite crescente e, em breve, não vai existir muito mais para saquear na Sörmland. Aquilo que não foi roubado está pelo menos enterrado. E quando esses vândalos entra­rem na sua casa, o que é que você vai fazer?

— Primeiro vou esconder os meus pergaminhos, de modo que o fogo não os destrua. Depois mandarei chamar o meu irmão e os seus esquadrões — disse Eskil, rindo e saindo da sala reclamando por mais cerveja. — Mas depois — continuou ele, excitado, ao voltar à sala e sentar-se —, quando tivermos vencido, pois certamente você não tem qualquer dúvida a esse respeito, o que é que vamos fazer?

— Escolher um rei que faça aquilo que quisermos que ele faça e tra­te os meliantes como eles merecem — respondeu Birger rapidamente, como se isso fosse uma coisa sobre a qual já tivesse pensado.

Essa foi a noite em que uma nova amizade nasceu entre os dois irmãos. Não falaram de uma nova guerra por vir, o que melhor seria do agrado de Birger considerar e esclarecer. Dedicaram-se apenas a dis­cutir como a vitória seria administrada e como a lei seria a alavanca que jogaria o passado no lixo. Quando Eskil falou, prolixamente, sobre como essas leis para a paz poderiam ser o início de uma nova era, Birger objetou dizendo que não entendia como era possível conseguir que o povo, de um dia para outro, passasse a seguir leis tão mudadas.

Eskil não precisou de muito tempo para apresentar uma resposta. Esses crimes tinham que ser abolidos, não poderiam ser perdoados, e os criminosos multados, indo as multas, diretamente, para os cofres do rei. Pela primeira vez os vândalos iriam entender que não encon­trariam refúgio em lugar nenhum, por muito poderosos que fossem os seus parentes.

Birger objetou de novo, dizendo que, de qualquer forma, era pre­ciso encontrar um soberano adequado para decretar essas leis. E que, no momento, um rei desses não estava nem à vista. Além disso, essa doce tranqüilidade de que falavam só poderia ser criada por meio de muita violência e à custa de muito sangue. E não seria esse um custo muito alto a pagar?

Não. O curto sofrimento de alguns vândalos na hora não seria nada comparado com a tranqüilidade futura das famílias, achava Eskil. E, então, pela primeira vez, Birger ficou pensativo e inseguro.

Mais tarde, naquela noite, embora um pouco vacilantes nas per­nas, mas exultantes, cada um achando ter encontrado o lado inteli­gente do outro irmão, eles foram para a cama, mas antes houve uma curta discussão.

Birger descobriu que a bandeira que ele próprio havia portado em Gestilren como confanonier de Arn Magnusson tinha desaparecido. Birger havia oferecido essa bandeira ao seu irmão e ela fora colocada, bem alto, na parede mais longa da grande sala.

Eskil confessou, um pouco envergonhado, que tinha dado essa bandeira, o que, de início, Birger achou completamente incompreen­sível. O símbolo da vitória, e de uma vitória importantíssima como a de Gestilren, a quem é que se poderia ter dado uma coisa tão insubs­tituível?

A um poeta islandês de nome Snorre, foi o que Birger ficou saben­do na hora. Alguns invernos antes, Snorre havia visitado o aldeamen­to do homem de leis, a fim de lhe fazer uma longa série de perguntas aleatórias sobre o passado longínquo, assunto sobre o qual ele pensa­va escrever. A sua visita tinha sido muito agradável e uma manhã ele deu à mulher de Eskil, Kristin, um poema escrito sobre insônia, e ela tinha ficado tão satisfeita com as bonitas palavras, que comparavam a insônia com a sua beleza, que ela arrancou a bandeira da parede e ofereceu-a ao poeta.

Mais tarde, nada podia ser feito para corrigir essa tolice. Um pre­sente dado não poderia ser recuperado sem desonra, suspirou Birger. Mas mortificava-o saber que a marca dos folkeanos em Gestilren, uma vitória que ficaria para sempre na memória, tinha sido dada a um qualquer, como Snorre, de quem ninguém iria se lembrar.

 

Uma noite inesquecível foi aquela em que Gregers Birgersson teve uma premonição que o deixou insone. Aliás, houve uma época em que ele adormecia chorando, com dores pelo corpo inteiro, em Forsvik. Os primeiros anos foram duros e solitários.

Mas agora ele já estava com catorze anos de idade, quase um homem, e, dentro de dois anos, seria elevado à categoria de forsvikia­no pelo cavaleiro Sigurd ou pelo seu irmão, Oddvar. Completaria, então, os dez anos de aprendizado. O que faria depois ele ainda não tinha decidido. Ou poderia ficar em Forsvik, como professor dos mais jovens, ou serviria em Bjälbo, na casa do pai.

Era uma noite tranqüila de outono e tinha caído a primeira neve, ao anoitecer, depois da oração vespertina. O único som que se ouvia era o dos gemidos de dor, causados por algum movimento na cama, dos jovens forsvikianos que dormiam na sala. Ou o choramingar de algum dos mais jovens.

No início, o seu tempo em Forsvik foi quase ruim. Os outros jovens tinham sido muito duros com ele e não foi vantagem nenhuma ser bisneto do abençoado santo Arn ou filho do jarl da família folkea­na, visto que era apenas filho bastardo. A única pessoa que o apoiava e o consolava, durante os primeiros anos, foi a velha senhora Cecília, que, já um pouco corcunda e quase cega, continuava a passar pela sua sala de estudos quase todos os dias.

Mas assim como marcas de contusões desaparecem mais cedo ou mais tarde, também o seu sofrimento em Forsvik foi diminuindo a cada ano que passava. E agora, já com catorze anos, na sala, já havia mais jovens do que velhos entre ele. E só os mais velhos podiam com­batê-lo na espada nos torneios, mas ninguém com a besta, a pequena arma forsvikiana feita para disparar de cima do cavalo. Atualmente essa arma estava sempre pendurada ao lado de cada cama no dormitó­rio dos jovens. Ao norte, em Nordanskog, os tempos eram de preocu­pação, e ainda que os folkeanos mais velhos não acreditassem que os vândalos chegariam a ponto de pensar em atacar Forsvik, mesmo assim resolveu-se praticar a defesa no caso de uma possível invasão. Começou-se a cavar túneis de fuga por baixo das grandes casas do aldeamento para que ninguém precisasse escolher entre morrer quei­mado ou correr para fora das casas e encontrar pela frente os vândalos à espera. Os portões das grandes casas passaram a ter trancas pelo lado de dentro, feitas de toras de carvalho encaixadas em pesados suportes de ferro. Havia armas em todas as casas.

Mas naquela noite todos esses preparativos se mostraram insufi­cientes. Quando o impensável aconteceu, veio com uma força incrível e como se fosse um raio vindo de um céu sem nuvens.

Gregers, que estava deitado de costas, com as mãos cruzadas atrás da cabeça e o olhar fixo no teto escuro, achou primeiro que devia tratar-se da sua imaginação, de um sonho, quando sentiu um peque­no estremecimento na cama e escutou o ruído surdo de patas de cava­lo a distância. Nenhum forsvikiano voltaria para casa dessa maneira, em especial de noite. Um esquadrão inteiro dos jovens aos mais velhos havia sido mandado para o castelo de Lena, a fim de escoltar um bispo qualquer em visitação, e, por isso, no dormitório, só meta­de das camas estava ocupada, com garotos e adolescentes.

Ao reconhecer que não havia mais dúvida sobre o que estava escu­tando, ainda ficou deitado, paralisado, por alguns momentos. Estava finalmente acontecendo o que previra. Chegara, realmente, o pesade­lo em que ninguém tinha acreditado.

Então ele saltou da cama e correu para o portão, trancando-o por dentro, enquanto gritava para que todos acordassem. Alguns ainda reclamaram, dizendo que se tratava de mais um exercício de treina­mento, mas logo todos perceberam que era sim o prenúncio da morte ao ouvirem fortes machadadas no portão e ao sentirem o primeiro cheiro de fumaça.

Nils Sigstensson, de Tofta, que tinha dezessete anos de idade e era o mais velho dos vinte e cinco jovens no dormitório, assumiu o comando do grupo que iria sair primeiro para salvar os cavalos de morrerem queimados e, se possível, subirem nas selas. Gregers ficou comandando todos os outros jovens que, rapidamente, colocavam as suas vestes de malha de aço enquanto alguns choravam e outros solta­vam palavrões. Um pouco desajeitadamente na luz fraca da sala, todos armaram as suas bestas e abriram as seteiras na parede mais longa da sala que davam para a praça e a principal rua do aldeamento. Viram, então, as chamas do incêndio e a fumaça que formava longas sombras no céu, ao mesmo tempo que ouviam vozes de homens falando uma língua que não era a dos gotas ocidentais.

Gregers ficou sentado, esperando ouvir os outros quatro jovens, cada um na sua seteira, o grito de que tinham o alvo na mira. Logo ele daria a ordem de atirar. Uma vez disparado o tiro, os quatro se baixa­vam com as suas bestas que, em seguida, armavam novamente, enquanto outros quatro atiradores, com as bestas prontas, tomariam o seu lugar. Nils Sigstensson e o seu grupo, entretanto, já tinham passa­do pelo túnel de fuga, restando apenas nove na casa em chamas.

Gregers e o outros tiveram tempo de disparar duas vezes antes que os sitiantes se dessem conta do perigo, mas nessa altura já havia uma dúzia de homens lá fora se contorcendo de dor e morrendo. Os vân­dalos, então, recuaram, gritando, da zona de tiro e ficaram esperando que as chamas fizessem a sua parte. Ao mesmo tempo, Gregers ouviu o tilintar das espadas, imaginando que o cavaleiro Oddvar e os cinco forsvikianos mais velhos que dormiam na sala dos cavaleiros já tinham saído e entrado na luta. Mas pelo barulho lá fora era de imaginar tam­bém que os atacantes eram sem dúvida em maior número do que os defensores. Decidiu, então, que ele e os oito mais jovens ficassem na posição um pouco mais, apesar das chamas, e continuassem atirando ao acaso, só para atrair a atenção e desviá-la dos companheiros que já deviam ter saído e estar a caminho da cavalariça. Os sitiantes deviam acreditar que todos os jovens continuavam ainda presos como ratos na casa em chamas. A fumaça já era intensa, fazendo arder os olhos, e alguns dos jovens começaram a chorar, jogando para o lado as suas armas, mas Gregers, nessa altura, chegava perto e dava-lhes uma bofe­tada, dando a ordem de continuar combatendo como qualquer fors­vikiano. A questão, agora, era de vida ou morte para todos e, portan­to, não dava para ninguém recuar e se esconder. Eles tinham que agüentar mais um pouco dentro da casa em chamas, antes de fugirem pelo túnel. Os companheiros mais velhos já deveriam estar chegando a cavalo, caso contrário todos estariam perdidos.

Nils Sigstensson e os jovens que, primeiro, fugiram pelo túnel, correram no escuro em disparada, sem que fossem vistos, e depois se separaram em dois grupos, na direção da cavalariça, que ainda não tinha sido incendiada. Mas encontraram na frente do portão um bando de invasores que riam e conversavam. Protegidos pela escuri­dão, os jovens conseguiram se aproximar à distância de quase um arre­meço de lança antes de, tranqüilamente, fazer pontaria com as suas bestas e dispará-las, matando todos os homens. Em seguida eles entra­ram na cavalariça, selaram os cavalos o mais rápido que puderam, abriram o almoxarifado das armas e pegaram as lanças e os escudos já no caminho da saída. Quando os primeiros oito já tinham saído, ado­taram logo a formação reta de ataque, abaixaram as lanças e avança­ram a galope pela rua do aldeamento, atingindo todos os salteadores a cavalo, jogando-os no chão. Dos que estavam a pé só se salvaram os que conseguiram saltar para o lado e se desviar do ataque. Os cavalei­ros forsvikianos, na corrida, chegaram até os píeres, os moinhos e as oficinas, onde nada tinha sido incendiado ainda, e voltaram a atacar de novo. Ao mesmo tempo, os outros oito companheiros que tinham ficado na cavalariça já estavam prontos, em cima dos seus cavalos e ali­nhados para atacar pelo outro lado. No que Gregers ouviu o segundo grupo passar a galope, deu ordem para seguirem pelo túnel de fuga, certificando-se de que todos levavam as suas bestas e os cestos com fle­chas consigo e que nenhum iria cometer a tolice de disparar a esmo, rastejando pela escuridão do túnel. Pouco depois, chegavam ao ar fres­co da noite, tossindo e com os olhos ardendo.

Os inimigos lá fora estavam preocupados em se esquivar dos jovens cavaleiros que os caçavam por um lado e pelo outro montados nos seus rápidos garanhões. E ao fugirem por entre as casas em chamas iam ao encontro de crianças que, de início, eles acharam serem ino­fensivas, mas que estavam com armas nas mãos e acertavam nos alvos cada vez que disparavam.

A luta só poderia terminar agora de um jeito. Mas, quando os vândalos fugiram, metade de Forsvik estava em chamas. E entre mor­tos e feridos havia gente correndo de um lado para outro, em desespe­ro, procurando por crianças, parentes e amigos. E de algumas casas em chamas, trancados por dentro, ouviam-se gritos horrorosos de homens e mulheres. Nessa desordem terrível não foi possível apagar os incêndios como se devia.

 

O cheiro de fumaça e de cadáveres queimados, assim como a dor pelos mortos, pairava fortemente sobre Forsvik. Quando Birger chegou, dois dias mais tarde, e viu dos píeres o povoado, as lágrimas vieram aos seus olhos com tal intensidade que ele não teve como poder contê-las nem escondê-las. Era a imagem mais deplorável que já tinha visto na vida.

As quatro maiores casas de Forsvik tinham ardido até os alicerces, a casa dos cavaleiros, a dos jovens, a cavalariça e a Terra Santa. Metade das casas menores da rua principal estava também em ruínas fume­gantes. Os salteadores tinham queimado também a pequena igreja, além de terem decapitado os dois clérigos de Varnhem que prestavam serviço em Forsvik.

Entre os assassinados estavam o cavaleiro Oddvar, Matteus Marcusian, Iben Ardous e três outros homens que dormiam na sala dos cavaleiros e que, com obstinada coragem, pegaram as espadas e saíram logo para a rua para se defrontar com um poder numérico infi­nitamente superior. Eles e mais quatro jovens tinham morrido lutando. Todos os outros mortos foram retalhados, mutilados ou queimados.

Forsvik tinha perdido vinte e seis vidas e a maior dor era pela morte da velha senhora Cecília Rosa. Foi encontrada diante da sua sala de contas, com um monte de rolos de pergaminho nos braços. Tinha saído da sua casa, correndo em direção à sala de contas para tentar salvar, pelo menos, os documentos mais importantes. Mas essa câmara os vândalos não haviam incendiado, antes tinham fuçado em todo o lugar para roubar o ouro e a prata que suspeitavam existir nas arcas. Devem ter acreditado que todas as riquezas reunidas durante todos esses anos em Forsvik estavam ali guardadas e prontas para serem roubadas. Deviam entender muito pouco de negócios, senão saberiam que, para chegar ao ouro de Forsvik, teriam que assaltar o castelo de Arnäs. Por isso mesmo, todos os vândalos mais gananciosos acabaram morrendo. Ficaram tanto tempo cegos, à procura do ouro, que, quando saíram, já era tarde demais, os ventos da sorte na guerra haviam mudado. Gregers e os seus atiradores os encontraram e mata­ram todos.

Caso fossem contados todos os mortos dos dois lados, a vitória seria dos forsvikianos. Dos vândalos, havia mais de cinqüenta corpos, todos alinhados perto dos píeres, rodeados de moscas.

Cecília Rosa ficou deitada sobre a terra queimada junto da igreja, tendo a cobri-la o manto dos templários. Birger se aproximou, ajoelhou-se e afastou o manto, cautelosamente, para o lado. Ela tinha sido atingida por um corte de espada na nuca. Como o corte parecia inclinado, algum dos vândalos montados tinha vindo por trás e desfe­rido o golpe na passagem. Birger ficou em silêncio por muito tempo, olhando para ela. Tentou rezar, mas não sabia o que pedir a Deus. Mas pelo rosto dela, bem tranqüilo, ele sabia que a sua alma estava no céu. Voltou a colocar o manto sobre a avó, mas arrependeu-se, levantou-o e deu-lhe um último beijo de despedida.

Em Forsvik, ninguém falava alto. Só se escutavam sussurros e o choro de muitos. Alguns passavam por Birger sem o ver, outros reme­xiam nas cinzas das casas, procurando ainda por desaparecidos e ten­tando saber quem eram os encontrados.

Johannes Jacobian estava vermelho de tanto chorar, mas parecia bem concentrado, quando o encontrou junto das ferradas e dos moi­nhos. Era a parte intocada de Forsvik O ataque tinha começado do lado oposto e os vândalos não tinham conseguido incendiar o caminho todo por terem que usar as mãos para enfrentar os defensores forsvikianos.

Isso significava que a produção de vidro e ferro, de utensílios de cobre e de barro, assim como a tecelagem, os moinhos e as serras, tinham ficado incólumes. Era um consolo para Johannes, que tinha assumido a responsabilidade do seu pai por toda a produção em

Forsvik. Mas também que, no momento, valia menos que uma moeda de prata da Götaland Ocidental. O seu tio Marcus tinha morrido queimado, assim como todos que dormiam na Terra Santa, e o filho dele e seu primo, Matteus, foram mortos na praça com muitos golpes de espada. Birger disse para ele não ser esse o momento para procurar consolo porque nem todo o consolo do mundo seria suficiente. O momento agora era de se concentrar e iniciar a fase de reconstrução, e isso ele queria que Johannes liderasse. O inverno estava chegando, metade dos sobreviventes de Forsvik estava sem teto e os cavalos, sem cavalariça e sem feno. Dentro de algum tempo, chegariam ao porto fluvial as embarcações e as galeras e era preciso haver ordem.

Johannes saiu, então, da sua paralisia momentânea e voltou para a parte do aldeamento destruído pelas chamas, a fim de dar início aos trabalhos de recuperação, conforme as ordens de Birger.

Duas horas mais tarde, chegou a Forsvik o cavaleiro Sigurd com Alde a seu lado, e à frente de dois esquadrões completos, um deles emprestado e formado por forsvikianos.

Assim que avistou Birger, Alde esporeou o seu cavalo e dirigiu-se sem hesitar para ele. Desceu da montaria e abraçou-o. Havia muitos anos que eles não se viam e foi impossível encontrar palavras. Finalmente, ele conseguiu se desprender de Alde, lenta e cautelosa­mente, pegou a mão dela e conduziu-a para as ruínas da igreja. Birger não precisou dizer nada. Assim que viu o manto branco dos templá­rios cobrindo um corpo, ela entendeu tudo. Os dois rezaram juntos por Cecília Rosa e, depois, abraçados, voltaram para o aldeamento. Continuavam sem dizer palavras um ao outro, mas estas também não teriam servido de nada no momento. A dor sobrepunha-se a todas as palavras e, também, às suas antigas desavenças.

Quando o cavaleiro Sigurd viu o corpo dilacerado do seu irmão Oddvar nas ruínas da sala dos cavaleiros, ele gritou de dor com os bra­ços levantados para o céu e queria montar logo de novo e iniciar a per­seguição dos vândalos que fugiram após a atrocidade que cometeram.

As pistas na neve estariam ainda vivas e os que fugiram a pé seria pos­sível alcançá-los ainda no mesmo dia. Os outros, montados, seriam alcançados em três dias, gritava ele, repetidamente, com uma voz cor­tante. E todos os homens que tinham chegado com ele montaram de novo nos cavalos para segui-lo.

Birger teve que se colocar no meio do caminho desses cavaleiros, balançar o seu manto para parar os primeiros animais e bramir com toda a força dos seus pulmões que, em nome dos folkeanos, a sua ordem era para que todos se contivessem, descessem dos cavalos e par­ticipassem de uma reunião, antes de partirem para uma vingança mal pensada.

Todos se reuniram à volta de Birger e junto das ruínas da sala dos cavaleiros da qual uma das empenas, extraordinariamente, estava de pé, chamuscada.

Birger explicou que não estava na hora da vingança. Naquele momento de dor, deviam enterrar os mortos e iniciar os trabalhos de reconstrução, antes de o inverno chegar. Ele próprio e Alde seguiriam com o corpo de Cecília Rosa para a sua última viagem a Varnhem. Ele voltaria dentro de alguns dias, acompanhado de clérigos para a reali­zação no lugar de enterros cristãos. Os sarracenos existentes em Forsvik não poderiam esperar tanto tempo, mas também não precisa­riam de clérigos para se despedirem dos seus mortos.

Durante o tempo de espera, os dois esquadrões de forsvikianos deveriam percorrer os prados e as terras à volta de Forsvik, procuran­do pelos cavalos em fuga e trazendo de volta tantos quanto possível. Os animais que estavam nos cercados tinham reagido com medo do fogo e saltado por cima das cercas, fugido cada um para o seu lado. Os homens e as mulheres com ferimentos mais graves deveriam ser trans­portados de barco pelo Lago Vättern na direção sul, para chegar o mais depressa possível aos cuidados dos monges. Era a isso, e nada mais além, que todos deviam dedicar o seu tempo por ora.

O cavaleiro Sigurd objetou, dizendo com raiva e desdém que, nesse momento difícil, todas essas atividades eram para ser feitas por velhos, mas aquilo que os homens jovens tinham de fazer era se por­tar como homens.

Birger ficou furioso, ainda mais quando viu que muitos dos fors­vikianos armados continuavam dispostos a seguir Sigurd e partir de imediato para a vingança. Ele achou que não estava na hora de discu­tir entre quem estava de luto. Mas não pôde se conter.

Primeiro atacou Sigurd mais do que pretendia, dizendo que o que devia ter sido feito era defender Forsvik, e não deixar o aldeamento tão desprotegido, a ponto de a salvação ter vindo dos garotos mais jovens quase saídos dos cueiros. E só depois disse o que devia ter dito logo.

Não era apenas uma pequena vingança aquilo que ia acontecer aos culpados. A questão agora era de guerra. Mais de mil homens, entre vândalos e amigos destes, deviam pagar com a vida o que fizeram em Forsvik. E para isso não era com uma incursão às pressas, com dois esquadrões, que se começava.

Seriam mandadas mensagens nesse mesmo dia pelos melhores cavaleiros para todos os aldeamentos folkeanos da Götaland Ocidental. Dentro de uma semana, todos os líderes folkeanos deveriam se reunir numa assembléia em Bjälbo para decidirem como, quando e onde a guerra começaria.

Os forsvikianos obedeceram, então, a Birger e os que estavam ainda montados desceram dos cavalos um pouco envergonhados. Mas ficou tarde demais para Birger aplacar o cavaleiro Sigurd, que olhou para ele com lágrimas nos olhos e muita raiva por ele o ter culpado tanto pela morte do seu irmão como pela da muito amada senhora Cecília Rosa. Birger se arrependeu muito das suas palavras atiradas ao vento num momento de raiva, mas achou que não era a hora oportu­na de tentar contornar o problema e fazer reparações. A hora agora era de pensar somente na guerra, já que ele próprio, inevitavelmente, seria quem iria liderar os folkeanos na campanha para o norte.

Birger retirou-se, então, e subiu para as áreas acima do porto, a fim de perscrutar as longas filas de inimigos mortos. Passou por todos lentamente, examinando cada um e tentando identificar algum rosto, alguma marca nas vestes ou qualquer outra coisa que lhe fosse conhe­cida. Como só conseguiu reconhecer um, com dois veados dourados, chegou à conclusão de que deviam ser todos de Uppland.

Alguns deles tinham sido mortos com facão ou pauladas. Outros estavam com o pescoço cortado à faca. Era uma pena alguns não terem sido deixados com vida para se saber quem eram e, acima de tudo, quem os havia mandado. Mas Birger achava que não se podia culpar os desesperados forsvikianos por terem acabado com a vida daqueles inimigos todos. Restava retirar os símbolos encontrados e queimar todos os corpos.

Ele estava profundamente entregue aos seus pensamentos, mas sentiu, de repente, que alguém o observava e quando se voltou quem viu foi Gregers, cheio de fuligem e de olhos vermelhos, com as roupas ensangüentadas por cima da veste de malha de aço. A visão do rapaz emocionou-o e logo abriu os braços para o filho que com três passa­das chegou até ele.

— Gregers, Gregers, meu filho — murmurou ele, sentindo as lágrimas novamente chegarem aos olhos e achando que antes nem tinha perguntado por ele, nem lhe passado pela cabeça indagar o que tinha acontecido ao seu filho... Segurou-o, porém, num abraço bem apertado por um longo momento, enquanto procurava as palavras certas. — Você está vivo e foi um daqueles que nos salvaram de uma infelicidade ainda maior — disse ele afastando o rapaz e mantendo-o seguro pelos ombros, olhando-o bem nos olhos, sem sequer tentar esconder as lágrimas.

— Eu matei... oito homens... com a minha besta — respondeu Gregers, em voz baixa, como se apenas com muita força de vontade pudesse suster os soluços.

Birger sentou-se, então, num dos pilares do píer e fez sinal ao seu filho para também se sentar na sua frente.

— Conte como correram as coisas, como foi que isso aconteceu há duas noites — encorajou ele, amistosamente e de forma paternal, tão suave quanto conseguia. — Oito homens! Nada mau...

E Gregers contou, gaguejando de início, como ele acordou, sentindo um pequeno tremor da cama e como os poucos garotos que estavam na sala fizeram tudo da maneira mais inteligente possível.

À medida que ele ouvia a história, era como se pudesse ver tudo como se estivesse no lugar do filho. Tudo devia ter acontecido como Gregers havia contado. E embora ainda sentindo a dor mais profunda pelo que havia acontecido, Birger não pôde deixar de sentir também um pouco de orgulho pela maneira como esses garotos que ainda não eram homens, mas forsvikianos, tinham desbaratado cem vândalos e matado metade deles.

— Você é realmente meu filho, Gregers — disse ele quando ouviu o fim da história. — Eu o negligenciei, deixei-o sozinho por um tempo longo demais, sem apoio e amor de pai. Por isso, antes de mais nada, lhe peço perdão.

— Perdoar-lhe, meu pai? — perguntou Gregers, hesitante, aba­nando lenta e negativamente a cabeça. — Eu não tenho nada a lhe perdoar, meu pai. O senhor me fez forsvikiano.

— Ainda não! — Sorriu Birger, pálido, desembainhando a espa­da. — Dê um passo à frente e ajoelhe-se!

O garoto fez como ele lhe tinha mandado. Então, Birger explicou que em tempo de guerra as regras não eram as mesmas como em tempo de paz, e que, portanto, o que ia fazer era correto. Birger tocou, então, com a sua espada, primeiro o ombro esquerdo e depois o direi­to, dizendo que, quando ele se levantasse, seria um forsvikiano de ver­dade, com direito a usar uma fita azul na bainha da sua espada.

Mas dali para a frente os dois não ficariam separados por tanto tempo. Primeiro iriam ambos, junto com Alde, acompanhar o corpo da muito amada Cecília Rosa até Varnhem, onde ela ficaria enterrada ao lado do seu amado Arn Magnusson. Depois seguiriam para Bjälbo. E na guerra que estava se aproximando Gregers iria cavalgar ao lado do seu pai, o jarl, com a bandeira folkeana.

De novo Gregers chorou ao se levantar armado como forsvikiano, pois à maior e mais negra das dores que habitava na hora o seu cora­ção se misturavam, agora, de uma maneira quase insuportável, o orgu­lho e o amor por um pai que, para ele, tinha sido até então mais uma saudade e um sonho do que realidade.

 

Ingrid Ylva estava bem consciente da impossibilidade, para uma viúva que tinha acabado de ver surgir os seus primeiros cabelos bran­cos, de decidir qualquer coisa sobre a guerra. Numa assembléia da família, aos berros, ela não teria nem vez, e a qualquer mulher seria impossível falar de compreensão para homens que pareciam loucos por vingança.

Até então ela também não tinha entendido o quanto Forsvik era um lugar sagrado para os folkeanos. Para ela, Forsvik era apenas um dos maiores aldeamentos e, sem dúvida, aquele que produzia mais riquezas por meio de todas as coisas maravilhosas que saíam das suas oficinas. Mas essas oficinas não tinham sofrido nada e as casas incen­diadas podiam ser reconstruídas sem problemas.

Ela lamentava a morte de Cecília Rosa muito mais do que o aldea­mento incendiado. O mesmo acontecia com a sua querida amiga Ulvhilde, que já chegara a Bjälbo para os funerais de Cecília Rosa, assim como haviam feito, alguns anos antes, por Cecília Blanka. Agora só restavam duas das quatro viúvas que antes administravam o reino.

Ulvhilde contou como o seu filho Emund também estava furioso e cheio de desejo de vingança. Para esses homens, no momento, não havia outra questão senão reunir todos os guerreiros a cavalo, marchar direto contra Knut Holmgeirsson e matá-lo, assim como a todos os seus homens. Pelo que Ulvhilde tinha entendido, essa missão podia ser muito bem-sucedida a julgar por aquilo que constituía a fixação na mente desses homens. Para Emund e outros companheiros, a questão não era mais a de um aldeamento ter sido incendiado, era Jerusalém que eles queriam vingar. Já havia centenas de folkeanos que tinham passado os seus anos de adolescência e juventude em Forsvik. Usavam emblemas característicos e faziam uma saudação especial, de modo que qualquer forsvikiano sempre reconhecia outro, ainda que dezenas de anos de idade os separassem. E esse reconhecimento não servia ape­nas para consolidar uma amizade, mas para a observação de uma regra específica, um pouco incompreensível, a de que nenhum forsvikiano podia puxar a espada contra outro. De qualquer forma, no momento, estavam todos enlouquecidos, cegos pela raiva, e seria difícil forçá-los a agir com cuidado e cabeça fria.

Ingrid Ylva obteve a confirmação de todas as suas preocupações em relação a essa guerra de doidos ao escutar Birger falando dos seus planos. No entanto, resolveu aguardar por dois dias a sua volta de Varnhem, junto com Gregers, para chamá-lo à razão, antes de todos os homens chegarem a Bjälbo e afogarem nos barris de cerveja o bom senso e o equilíbrio das decisões. Ainda que impaciente, ela se obrigou a não falar imediatamente de guerra. Por isso, quis ouvir de Gregers o que este tinha achado da sua primeira visita a Varnhem. O menino estava deslumbrado, nunca tinha imaginado que houvesse uma casa de Deus tão grande em toda a Escandinávia. E de Birger ela quis saber como ele tinha conseguido convencer o velho frei Guillaume de Bourges a dar autorização para o enterro de uma mulher na catedral. Segundo podia imaginar, o monge cedeu por motivos econômicos e pela bolsa aberta de Birger, adiantou ela, aparentando inocência. Birger contou, então, que de início a negociação tinha sido difícil. Frei Guillaume insistiu, dizendo que as mulheres de nível familiar menor não podiam ser enterradas debaixo das pedras do piso da igreja. Mas Birger chamou a atenção para o fato de Cecília Rosa ter sido, justa­mente, a esposa do filho mais amado de Varnhem, Arn Magnusson, e que fora ela que inspirara nele um amor tão divino, capaz de assegu­rar a sobrevivência dele a vinte anos de guerra na Terra Santa como templário. E, como seria de esperar, frei Guillaume amoleceu logo diante da menção do nome de Arn Magnusson, talvez não apenas pela testemunhada religiosidade do avô, mas muito mais pela grande quantidade de ouro que veio aumentar as posses de Varnhem em fun­ção dessa religiosidade. Ao final, graças à argumentação inteligente de Birger, tudo terminou bem. Cecília Rosa jazia, agora, para toda a eter­nidade, debaixo das pedras do piso da catedral de Varnhem e ao lado do seu amado Arn.

A missa de corpo presente foi muito bonita, mas longa demais. Nesse sentido Gregers também concordou.

Lentamente Ingrid Ylva estava encaminhando a conversa para o assunto que mais lhe interessava. Para ela não havia dúvida a respeito da facilidade com que a vitória seria conseguida, era muitíssimo mais importante saber em nome de quem essa vitória seria obtida. Em nome da abençoada e divina vingança nórdica seria a pior hipótese. Em nome de Deus, seria, pelo contrário, a melhor, mas então era ape­nas uma questão de palavras. E essa era a hora de ela influenciar Birger, antes que todos os folkeanos invadissem Bjälbo e transformas­sem a assembléia em uma casa de doidos.

— Que você, meu amado filho, irá vencer, isso eu sei — disse Ingrid Ylva, de forma tranqüila e, aparentemente, distraída, numa noite, já bem tarde, quando estavam a sós e a paz ainda reinava em Bjälbo. — E eu sempre soube — continuou ela, no mesmo tom de voz, desta vez aparentando um pequeno problema com a sua roca de fiar — que será você aquele que vai matar Knut Holmgeirsson. Era por isso que eu não gostava dessa idéia de você treinar Knut no mane­jo da espada. Era como se eu o visse lançando pedras no seu próprio caminho.

Como ela havia previsto, essas palavras deixaram Birger mudo. Ele apenas olhou para ela fixamente, ao mesmo tempo que lhe passa­vam pela cabeça mil pensamentos.

Birger ficou verdadeiramente abatido e em silêncio. E a primeira coisa em que pensou foi que a sua mãe, realmente, era a única pessoa no reino que tinha a capacidade de deixá-lo mudo. Nem mesmo o cavaleiro Bengt tinha mais esse talento. Ela era muito bonita, pensou ele depois, ainda confuso, e dizia-se que ela já tinha recusado novo casamento com mais de mil pretendentes. Mas isso era falso, como também era falso que ela dominava a arte da bruxaria. No que dizia respeito, porém, à sua capacidade de premonição em relação ao futu­ro, isso já o deixava meio inseguro. As premonições dela já tinham dado certo muitas vezes e não apenas em relação a assuntos sem im­portância. E ali estava ela, tranqüila, vestida de vermelho, uma cor com que adorava apresentar-se quando estava no centro folkeano de Bjälbo, fingindo estar mais interessada na roca com que fiava do que em falar sobre a guerra. Mas não é isso que está acontecendo, pensou ele finalmente. Ao contrário, ela quer falar a sério sobre a guerra e é isso que vamos fazer.

— Não é uma premonição muito especial essa de eu acabar matando Knut — disse ele finalmente. — Um de nós vai acabar fazendo isso, visto que, como a senhora disse, vamos ganhar essa guer­ra. E como a senhora e eu sabemos, a guerra vai terminar com a morte dele. E seus parentes vão atribuir a culpa a mim. Portanto, minha que­rida e amada mãe, aonde é que a senhora, realmente, quer chegar e o que é que a senhora quer falar comigo?

— Primeiro, em nome de quem pensa vencer? — perguntou ela suavemente e ainda com o olhar fixo na lã que estava fiando.

— Vou vencer em nome dos folkeanos e em nome de Forsvik — respondeu Birger, numa afirmação curta e breve.

— Isso ainda não é o suficiente — suspirou Ingrid Ylva, afastan­do de si o trabalho manual em que parecia ocupada e olhando de fren­te para Birger. — Ainda não é o suficiente, meu filho. Pense em algo melhor.

— Em nome de Deus — propôs Birger, com um sorriso desde­nhoso nos lábios. — É o que todos dizem. Vamos ter, pelo menos, dois clérigos do nosso lado, visto que Knut vai ter, certamente, um arcebispo covarde do seu. E daí?

— Em nome dos folkeanos e de Deus, isso é absolutamente natu­ral — disse Ingrid Ylva. — Mas ainda não é o suficiente.

— Então não sei aonde a minha querida mãe quer chegar. Mas estou disposto a escutar. Diga-me, se é que pode, o que seria ainda melhor do que Deus e os folkeanos!

— Lutar por Deus, pelo rei Erik Eriksson e os folkeanos! — respondeu logo Ingrid Ylva.

— Erik Eriksson, o rei-criança! — exclamou Birger, espantado. — A senhora acha que eu devo ir buscar de volta o deficiente da Dinamarca e colocar a coroa na cabeça dele enquanto a de Knut está no chão?

— Isso mesmo — reagiu Ingrid Ylva, sem alterar a expressão do seu rosto. — E agora lhe peço que me ouça sem me interromper.

— Estou escutando — confirmou Birger, com um pequeno meneio de cabeça. — Mas agora, querida mãe, a senhora vai ter que escolher as palavras como se fosse Birger Brosa para conseguir me convencer.

— É isso que vou fazer — respondeu Ingrid Ylva, com um sorri­so que mal se notava. — Se você não me interromper, não for buscar mais cerveja e não ficar tossindo ou fazendo caretas.

— Durante conversas sérias, face a face, ninguém precisa se embriagar. E isso que eu penso. Mas fale, por favor. Diga que pensa­mentos está escondendo.

— Muito bem. Muitos são os refugiados que passam aqui por nós, em Bjälbo, fugindo da desordem em Sörmland onde os homens de Knut dominam a situação. O povo de Sörmland deve odiá-los. O povo à volta do Lago Mälaren, por sua vez, ama o jarl Birger pelos muitos escravos que você trouxe de volta da Ilha de Ösel. Não é ver­dade?

— Tudo isso é verdade, querida mãe. Mas o que é que isso tem a ver com a nossa vitória na guerra? E, acima de tudo, o que é que isso tem a ver com a volta do deficiente Erik Eriksson?

— Você prometeu não me interromper!

— Também é verdade. Peço desculpas. Mas me diga, o que isso tem a ver com Erik Eriksson?

— Tudo! — respondeu Ingrid Ylva, triunfante. — E tente escutar sem me interromper mais uma vez. Você vai avançar para o norte e entrar em Sörmland com o seu exército. Fará uma limpeza geral na província, matando todos os homens de Knut, e tratará o melhor pos­sível o povo do lugar. Então, com mais razão, você avançará pela costa sul do Lago Mälaren, onde é conhecido não como salteador inimigo, mas como libertador. E em breve não só Sörmland, mas também Närke, ficarão livres dos homens de Knut. E todos os habitantes des­ses lugares vão saudar e dar as boas-vindas ao libertador Birger Magnusson, de Bjälbo, e aos folkeanos. Já começou a entender aonde quero chegar?

— A sua idéia é boa e era assim que eu queria fazer desde o início. Agora, porém, voltemos a Erik Eriksson!

— A bandeira que o exército do sul vai levar deverá ser a mesma usada em Gestilren, metade com as três coroas erikianas e metade com o leão folkeano. Isso significa que vocês não são folkeanos vingativos, a questão não diz respeito apenas ao amado aldeamento de Forsvik. A questão diz respeito ao reino. E quando vocês, finalmente, em Uppland ou em qualquer outro lugar, prenderem Knut Holmgeirsson e o matarem, então a guerra estará terminada. Vocês terão chegado em nome do reino e em nome do rei Erik, ele que foi um soberano mera­mente complacente e não o chefe dos vândalos, como foi o rebelde Knut. Agora você já deve ter compreendido, não é?

Birger ficou em silêncio por um longo tempo, resmungando. Ingrid Ylva observava-o intensamente, vendo que as suas palavras o tinham convencido. Ela teve que se conter para não começar a sorrir por ter vencido ou apenas por orgulho.

— Ah! — exclamou Birger finalmente. — Isso que a senhora disse não é tolice não, querida mãe. Mas essa seria apenas uma das possibi­lidades que eu pensava abordar amanhã na assembléia. E agora preci­so dormir!

Birger dirigiu-se para a mãe, deu-lhe um beijo na testa e desapare­ceu depois com passadas decididas na meia escuridão da sala.

Ingrid Ylva aproximou mais a luz da vela, pegou novamente na roca e continuou transformando a lã em fios, sorrindo para si mesma. Em breve, pensava ela, Birger estará se casando com a irmã de um rei.

 

Foi espumando de raiva e com desejos de vingança que a assembléia se reuniu, no dia seguinte, em Bjälbo. Era novembro, o pior mês para a guerra. Mas em dezembro, com o congelamento dos caminhos, seria possível cavalgar por Aros Ocidental e Enköping, em direção aos dois castelos de Knut, Vik e Sko, ao sul de Aros Oriental. A ordem era tomar os dois castelos, queimá-los, matar todo mundo sem piedade e incendiar todos os aldeamentos à volta até a distância de um dia de marcha a cavalo.

Assim imaginaram os folkeanos como seria feito e à volta dessa proposta começaram as negociações. Essa seria a menor das vinganças contra quem era culpado da destruição de Forsvik. Todos os forsvikia­nos, jovens e velhos, viriam com força máxima, reunindo o seu pessoal disponível, mais os camponeses de todas as fazendas próximas, e, com isso, conseguindo juntar mais de dois mil arqueiros de longa distância.

Eskil, o homem de leis, compareceu à assembléia pela primeira vez, mas não conseguia falar, ficando em pé no seu lugar, como os outros faziam, antes precisava fazê-lo como na sua sala, andando de um lado para outro, de pernas abertas, com imponência, panturrilhas tensas, explicando como a guerra devia ser conduzida. Ele queria que se usassem novas armas, principalmente na invasão do castelo de Vik, que era mais resistente do que Sko. Falou em trébuchet, como se todos já soubessem do que se tratava, e em batista sob várias formas, de modo a poder derrubar os muros com blocos de pedra e, também, ati­rando bolas incendiárias, jogadas a distância.

Embora nem todos tivessem entendido tudo o que Eskil, o homem de leis, havia dito, havia a concordância generalizada de que essa vingança seria a maior de todos os tempos na memória dos homens, ficando todos impacientes, aguardando as primeiras tempe­raturas negativas que congelariam o solo, permitindo a passagem de carroças com as armas pesadas e a comida.

Birger sabia que teria de derrubar todos esses planos, mas não estava preocupado com a possibilidade de não ser bem-sucedido. Era como se a sua autoconfiança, tão maltratada durante algum tempo atrás, tivesse voltado mais forte do que nunca, e como se a luta pela frente nessa assembléia fosse um prazer. Ele esperou até o final do pri­meiro dia de reunião antes de se levantar e tomar a palavra. Em cerca de uma hora chegaria o momento da missa na igreja de Bjälbo e, depois, da refeição da noite na sala grande. Birger tinha calculado o tempo com precisão. Ele não queria que houvesse discussão na assem­bléia. Preferia que todos tivessem alguma coisa em que pensar e para conversar uns com os outros durante a noite.

Como também era tradição em Bjälbo não oferecer cerveja para os porta-vozes enquanto durassem os trabalhos da assembléia, a sede dos presentes seria mais uma vantagem a favor de Birger. Ninguém iria que­rer prolongar a reunião do dia desnecessariamente com discussões can­sativas durante a noite, ainda por cima de estômago vazio.

Quando todos já tinham dito o que pensavam e pareciam concor­dar que a guerra deveria começar no mês seguinte, sendo o castelo de Vik o alvo mais importante, todos os olhares se voltaram para Birger em grande expectativa. Ele precisaria apenas levantar-se e, sem dizer palavra, bater com a lâmina da sua espada na mesa para que tudo ficasse confirmado e decidido. Mas ele levantou-se lentamente e com uma expressão pensativa, para mostrar que havia mais coisa pela fren­te, além do que os presentes esperavam. Dessa maneira fez-se silêncio total na sala, de modo que Birger poderia falar em voz baixa, ao con­trário do que quase todos os outros eram obrigados a fazer para serem ouvidos.

— A nossa dor é tão grande quanto a nossa raiva. Nossos parentes que morreram de arma na mão, assim como aqueles que, vergonhosa­mente, foram degolados sem chance de defesa ou queimados serão implacavelmente vingados — começou ele. — Não vamos descansar enquanto Knut Holmgeirsson e os seus homens não estiverem mor­tos. Até aí estamos todos de acordo. E vamos conseguir com a ajuda de Deus. Mas não vamos entrar nessa guerra agora, em dezembro, mas só em maio, no próximo ano.

Nessa altura ele parou de falar, diante de um murmúrio de espan­to e irritação que se espalhou pela sala. Birger sabia que tinha de ser convincente em seguida, caso contrário a sua posição de jarl, de repente, estaria em terreno movediço. Sabia também que tinha de continuar falando mais rápido e com mais convicção. E levantou a mão, pedindo novamente silêncio.

— Nós não vamos entrar nessa guerra no mês que vem simples­mente porque não queremos obter uma pequena vitória — continuou ele. — E uma pequena vitória seria tomar apenas o castelo de Vik e a casa de Sko, o que, além disso, seria uma invasão bastante difícil e cus­tosa durante o inverno. Mas seria, portanto, uma pequena vitória. E aquilo que pretendemos agora é a maior vitória dos folkeanos de todos os tempos e algo maior do que, inclusive, a vingança a que temos todo o direito. Se tomarmos o castelo de Vik ainda este ano, como muitos de vocês querem, falando com ousadia e decididamente a favor dessa medida, o que é que nós conseguiríamos com isso? Vingança, sem dúvida. E o que mais? Quem será o rei do país e onde estará o seu conselho quando Knut cair morto? Estará o nosso reino condenado a deixar os salteadores andando por aí, saqueando onde e quando quiserem? Vamos voltar para casa, apenas com a finalidade de comemorar a vitória com um grande banquete, ficando à espera da vingança dos homens de Uppland? Não. Se for assim, a nossa vitória será realmente pequena. E logo vamos ter novas razões para novas campanhas de vingança cada vez piores, quando, na primeira campa­nha, podíamos ter selado para sempre o destino do nosso reino.

Birger fez uma pausa para ver a reação no rosto dos porta-vozes folkeanos presentes. Estavam todos de testa franzida, mas em silêncio, e isso era um bom sinal quando havia dito o pior.

— Agora vou dizer para vocês como devemos fazer — continuou ele, incentivado pela tensa atenção na sala. — Primeiro vamos buscar de volta o nosso coroado rei Erik Eriksson, isto porque à frente do nosso exército deve haver dois símbolos para que todos vejam. Um deles é o de Forsvik. O outro é aquele que nos guiou em Gestilren, sendo metade folkeano e metade erikiano. E esse é o símbolo do nosso reino. Não são folkeanos vingativos, sedentos de sangue, que vão cavalgar para o norte. É o exército real que chegará para punir os rebeldes. Essa diferença é enorme. E a nossa vitória será maior. Com sangue-frio e após cuidadosa apreciação, vamos mandar dois exércitos na direção norte, um com destino a Nyköping e outro com destino a Örebro. É em Sörmland e em Närke que está a chave da vitória, pois é lá que o povo vai saudar como bem-vinda a nossa chegada. Lá nós seremos os libertadores, e não mais um devastador exército que vem do sul. E vamos limpar, sim, Sörmland e Närke de todos os salteado­res e chefes a serviço de Knut Holmgeirsson. Durante todo o verão vamos retirar essas províncias das mãos perversas de Knut. E, então, vamos cercá-lo em Uppland. Vamos dar a volta pelo Lago Mälaren e apontar para o coração dele, o castelo de Vik e a casa de Sko. É lá que ele vai ter que se defrontar conosco ou fugir. Depois podemos tomar Vik e incendiá-lo. E, então, os homens de Uppland, mesmo que tenham ainda algum líder, vão partir em direção ao sul para se vingar dos folkeanos. Vão poder se rebelar apenas contra o rei Erik e, então, terão que se defrontar não só conosco, mas também com os homens de Sörmland e de Närke, que nós já conquistamos durante o verão para o nosso lado. Dessa maneira a nossa vitória será muito maior do que apenas uma horrível vingança. A nossa vitória será inesquecível. Mas a vingança nós a teremos também. Quando cheguei a Forsvik e vi toda aquela dor, aquela amargura e toda aquela devastação, prome­ti uma vingança muitas vezes multiplicada. Essa promessa posso repe­tir agora, se fizermos e agirmos como eu disse.

O silêncio que pairou na sala quando Birger se sentou o conven­ceu e a todos os parentes em que se notava uma expressão de reflexão profunda de que ele ia conseguir fazer como queria.

Demorou um certo tempo antes que alguém se manifestasse de novo. Apenas algumas objeções se apresentaram. Um disse que era melhor escolher um novo rei do que atravessar o mar para trazer de volta a criança erikiana, transformada em rei. Um outro afirmou que essa questão já tinha sido levantada antes e nada ficou resolvido por falta de um pretendente folkeano. E nada mais se disse.

Birger não precisou falar de novo, já que estava na hora da missa e da refeição vespertina. Até mesmo o seu irmão Eskil, o homem de leis, acenou afirmativamente com a cabeça, concordando com ele.

Com isso, mais de metade da vitória já estava ganha, pensou Birger, refletindo sobre como e quando deveria viajar para a Dina­marca, a fim de procurar por Erik, o Deficiente, e convencê-lo, e na pior das hipóteses, também ao seu conselheiro, a voltar para o reino onde foi coroado, mas renegado depois por seus próprios parentes. Seria conveniente mencionar para ele que esses parentes estavam con­denados à morte? Ou era melhor mencionar apenas que a vitória já estava garantida?

De qualquer maneira, a guerra estava decidida. E era um alívio ter ganhado tempo para preparar tudo como devia ser, em vez de par­tirem logo, às pressas, mal preparados, o que só poderia conduzir a mor­tes desnecessárias. Para uma verdadeira vitória, era preciso poupar tanto os seus homens quanto os seus inimigos de uma morte desnecessária.

 

Na primavera seguinte, após o degelo, o rei Erik Eriksson voltou pelo Lago Vänern, chegando ao castelo de Arnäs onde o senhor Torgils Eskilsson ficaria responsável pela sua segurança até que a guerra termi­nasse com a vitória. Arnäs era um castelo muito mais forte do que o de Näs, na Ilha de Visingsö, e seria impossível tomá-lo até mesmo com essas novas armas para cercos de que Eskil, o homem de leis, havia falado com tanto entusiasmo. Arnäs, junto com os castelos de Ymseborg, Forsvik e Bjälbo, faziam parte da rede de defesa contra qualquer invasor das províncias das Götaland Ocidental e Oriental. E a partir desses castelos sairiam esquadrões folkeanos, todos os dias, procurando o menor sinal dos inimigos vindo de Nordanskog.

Os cavaleiros Bengt e Birger, que ficaram em Bjälbo durante mais de um mês preparando a guerra, logo concordaram num ponto, que não se podia deixar indefesos os aldeamentos em tempos de terror e que, para conseguir a vitória contra os homens de Uppland, bastaria usar apenas metade das forças de cavalaria folkeanas. Como estava previsto que esse não seria um exército de saqueadores inimigos, contava-se com o povo de Sörmland e de Närke para ajudar e com­bater ao lado do exército real. A essa altura o povo de lá devia estar mortalmente cansado dos intendentes e dos vândalos de Knut Holmgeirsson.

Existia um limite claro para a tolerância em relação ao povo de Nordanskog. Não só haviam sido feitas novas marcas para o exército, costuradas e pintadas em Forsvik durante o inverno. Também foram copiadas em pergaminho todas as marcas encontradas em vestes de guerra e em escudos dos vândalos que morreram em Forsvik. Todos aqueles homens que fossem apanhados com alguma dessas marcas perderiam a vida, sem a menor contemporização.

Seria preciso, também, dois mapas iguais com as marcas inimigas. Os folkeanos não iriam avançar para o norte com uma única grande força, mas com duas menores. Bengt Elinsson seria o comandante de uma delas, tendo o cavaleiro Sigurd como seu subcomandante e homem mais próximo. Eles se reuniriam em Ymseborg, atravessando depois a floresta de Tiveden, em direção a Örebro, e daí para o norte, rodeando o Lago Hjälmaren, em direção a Arboga e, finalmente, a Strängnäs.

A força liderada por Birger, com o cavaleiro Emund Jonsson como subcomandante e homem mais próximo, teria Nyköping como sua primeira parada, seguindo depois por Södertälje, na direção oeste, até Strängnäs. Por volta da época da feira de Laurentius, no início de agosto, as duas forças de Birger e de Bengt estariam reunidas em Strängnäs. Só então chegaria a hora de juntar os combatentes a pé e os arqueiros de longa distância, com flechas em grandes arcos, que não teriam tido muita coisa a fazer no exército durante o verão a não ser caminhar penosamente pelas trilhas então usadas.

Quando as duas forças chegassem a Strängnäs, já as duas provín­cias de Närke e Sörmland estariam limpas de intendentes e vândalos sob o comando de Knut Holmgeirsson. A hora do grande combate estaria se aproximando.

Aquilo que os folkeanos executaram foi visto como uma guerra muito estranhamente ordenada. Numa paisagem estivai, com dias longos, ouvindo-se o canto dos pássaros e vendo-se o trabalho de co­lheita sendo realizado nos prados os dois exércitos se movimentavam com segurança e apresentavam uma demonstração de poder sem igual.

Para o jovem Gregers, que cavalgava ao lado do pai, o jarl, desme­didamente orgulhoso e de coração batendo forte à frente dos esqua­drões forsvikianos, até a excitação se desvaneceu. Durante o longo caminho entre Linköping e Nyköping, eles não encontraram um único inimigo. E antes de entrar em Nyköping, o exército fez uma parada de dois dias, perto do aldeamento de Herve Trolle, para des­canso, reparo das carroças e limpeza das armas. Para Gregers, essa guerra parecia o começo de uma longa viagem de verão que já estava começando também a ficar monótona.

Mas Birger tinha tido boas razões para fazer a parada em casa de Herve Trolle, que pertencia a uma família com grande influência em Sörmland e que, pelo casamento dele com Magnhild, filha do cavalei­ro Bengt Elinsson, estava ligada à família folkeana. Aquilo que o seu pai e Herve Trolle tinham que conversar Gregers só veio a entender quando a parada no aldeamento terminou e o senhor Herve se juntou ao exército com dez cavaleiros, depois de ter contribuído, sem custos, para a despensa volante com carne defumada e salgada. O seu porta-bandeira passou a cavalgar na frente do exército com a marca do aldeamento que era novo e tinha três imagens, a de um lobo vermelho correndo, que tinha sido a antiga marca da família ulveana, um elfo de cabeça cortada e o leão dourado folkeano.

Só quando um pequeno grupo de cavaleiros do exército saiu para Nyköping com os porta-bandeiras na frente, Gregers começou a entender a estratégia do seu pai na campanha. Eles foram encontrar-se com habitantes da cidade para negociações. Foi nesse momento que o jarl Birger abriu uma bula com o selo real que dava à cidade de Nyköping dois anos livres de impostos desde que se declarassem como súditos fiéis do rei Erik Eriksson. Para os habitantes de Nyköping, sofridos pelas constantes intervenções dos intendentes de Knut, o Alto, essa oferta era grande demais para ser recusada. Desde esse momento, ao autenticar com o seu selo a bula do rei, eles passaram a ter o direito legal de não receber, e até matar, todos os homens que viessem cobrar impostos em nome de Knut, o Alto.

A caminho de Södertälje, dois dias após uma boa recepção em Nyköping e de uma despensa novamente bem cheia, Birger começou a explicar para o seu filho, impaciente, como as coisas se passavam. A luta iria começar dentro de algum tempo, mas, então, contra um ini­migo solitário e fortemente acuado. Isto porque todas as cidades que se uniram ao rei Erik Eriksson passavam a ser cidades perdidas para Knut Holmgeirsson. Isso poderia parecer, talvez, uma maneira de guerrear aos pouquinhos, mas, ao final, o resultado se mostraria mor­tal para Knut, o Alto.

Bem à frente do exército cavalgava sempre um esquadrão de fors­vikianos bem armados. Para os viajantes pacíficos, eles contavam que nada havia a recear diante do exército real que vinha a caminho pelo sul, e em cada aldeamento sempre contavam a mesma história. Ao mesmo tempo perguntavam pelos intendentes e salteadores de Knut, o Alto, se eles tinham sido vistos ultimamente ou se alguém sabia onde estavam. Tanto os camponeses quanto os viajantes se dispu­nham de boa vontade a prestar informações. Dessa maneira, a guerra continuava a ser empurrada para a frente do exército, mas em peque­nos passos e sem muito alvoroço.

Ao longo dos caminhos, esse esquadrão folkeano avançado teria maiores possibilidades de bater de frente com grupos desavisados de intendentes ou, melhor ainda, de salteadores de Uppland. Nessa altu­ra, a hora não era de perguntar, mas de botar o elmo na cabeça ou as viseiras para baixo e atacar de imediato. Um esquadrão de forsvikianos era muito mais forte do que o dobro de adversários a cavalo e nem mesmo os indesejados intendentes de Knut, o Alto, cavalgavam em grupos maiores do que isso.

Um pouco antes de Södertälje, Gregers teve a oportunidade de ver o primeiro sinal dessa guerra surda que antecipava a chegada do exér­cito. Pendurados em um carvalho, havia quinze homens enforcados, balançando ao vento. Pela maneira rígida e contorcida como os corpos se apresentavam, porém, era de prever que tivessem sido mortos antes de pendurados, para servir de aviso aos passantes. Pelas suas vestes de armas podia-se ver que alguns serviam ao rei Knut, o Alto, e os outros vinham de famílias de Uppland e de Västmanland.

Em Södertälje, repetiram-se em grande parte as negociações feitas em Nyköping, e com isso mais uma cidade, embora muito menor, tinha caído nas mãos do rei Erik Eriksson, sem perda de sangue.

Quando o exército começou a deslocar-se para ocidente, lenta­mente, através da província de Sörmland, parou em cada aldeamento, mas não saqueou nenhum, e ofereceu a cada homem que acompa­nhasse o exército um período de dois anos livres de impostos. A fama da liberalidade do rei Erik Eriksson, na sua volta ao trono do reino, correu muito mais depressa do que o avanço do exército pelo cami­nho. De vez em quando chegavam cavaleiros denunciando a presença de intendentes ou salteadores. Imediatamente Birger mandava um ou dois esquadrões para matar todos que fossem encontrados. Lenta, mas seguramente, toda Sörmland ficou livre dos homens de Knut.

Da mesma maneira lenta, quase pacífica, Bengt Elinsson e o cava­leiro Sigurd haviam passado por Närke e sem dificuldade alguma con­seguiram que a cidade de Örebro se unisse às forças do rei Erik

Eriksson. A ganância que Knut, o Alto, e os seus intendentes haviam demonstrado virou-se contra eles.

Na hora determinada, pouco antes da feira de Laurentius, os dois exércitos se encontraram perto de Strängnäs, onde existia um peque­no castelo para intendentes que as forças de Bengt mantinham cerca­do há alguns dias. Para os defensores dentro do castelo de madeira foi triste ver as forças inimigas, do lado de fora dos muros, se duplicarem e a grande quantidade de bandeiras que flutuavam ao vento, muitas representando todas as cidades e as grandes famílias de Sörmland e Närke. O único que ainda não tinha sido arrancado das mãos de Knut, o Alto, era esse pequeno castelo do qual a coragem dos defen­sores devia estar baixando a cada hora que passava.

Birger e Bengt não tinham pressa nenhuma. Mandaram montar acampamento a uma distância razoável do castelo que deviam tomar como última ação antes de entrar em Strängnäs. Eles tinham muito que conversar sobre os meses do verão que terminava e as experiências dos dois eram muito semelhantes. Uma ou outra matança era uma diversão a mais para contar, como quando um grupo de intendentes, pela primeira vez, cavalgou na direção de um esquadrão de forsvikia­nos muito jovens e só entenderam a seriedade da situação quando estavam morrendo, caídos no chão. Ou o grupo de camponeses que chegaram correndo, afogueados, no meio da noite, contando que o diabo estava à solta e que havia um grupo de salteadores a caminho do seu aldeamento. E em cada pequena ação executada ganhava-se mais de uma centena de novos seguidores. Essa era uma guerra sem igual, uma guerra em que, milagrosamente, o exército via aumentar as suas forças e em que os conquistados, sem se rebelar, se submetiam aos conquistadores. Como nenhum dos intendentes, nem dos salteado­res, tinha sobrevivido aos curtos e surpreendentes encontros com os cavaleiros folkeanos, era difícil de imaginar o quanto Knut Holmgeirsson sabia a respeito do perigo mortal que se aproximava. Não havia qualquer possibilidade de ele ter recebido informações dos homens que tinham enfrentado o inimigo ou sequer o visto a distância.

Os cavaleiros forsvikianos sempre conseguiam alcançar os cavaleiros fugitivos, tendo ordens estritas para proceder dessa maneira. Só agora, após três meses de campanha, estava-se diante de uma operação um pouco maior. Até então tinha-se perdido apenas alguns homens entre os dois exércitos. Nenhum, porém, em luta. Coisas que sempre acon­teciam quando muitos homens armados faziam campanha. Alguma besta que, inadvertidamente, se disparava, algum cavalo que tomava o freio nos dentes e disparava a galope arrastando o cavaleiro caído e preso no estribo, e uma ou outra cena de pugilato entre beberrões, logo devidamente dominados, além de outros pequenos casos parecidos.

A questão, agora, era decidir se tomavam o pequeno castelo com um ataque frontal ou por meio de negociações. Neste último caso, havia duas coisas a considerar. Se não se incendiasse o castelo, não haveria o risco de queimar a arca bem fornida de dinheiro que, certa­mente, se achava lá dentro. E caso se desse salvo-conduto aos homens de Knut, eles iriam, com certeza, correr para ele e contar tudo o que acontecera em Sörmland e Närke. Com sorte ele ficaria furioso, per­deria o controle sobre si mesmo, caçaria todos os seus homens arma­dos e iria em disparada ao encontro da morte.

No entanto, havia razões também para tomar o castelo de assalto, a fim de não dar salvo-conduto para ninguém. Até então nem Birger nem o cavaleiro Bengt tinham encontrado símbolos iguais àqueles que haviam sido vistos nas vestes e nos escudos dos vândalos que ata­caram Forsvik. E sobre quem Birger, na assembléia da família folkea­na, jurara vingança.

Caso se deixasse que os defensores do castelo negociassem o seu salvo-conduto, não seria fácil ver os homens com os símbolos dos vân­dalos saírem do castelo para a liberdade. Isso iria provocar muito ala­rido entre os folkeanos, e estes, certamente, diriam que Birger não havia cumprido a sua palavra.

A traição seria uma possibilidade, disse Bengt Elinsson com um dar de ombros. Quando os defensores do castelo estivessem saindo, passariam apenas aqueles que tivessem os símbolos certos. O salvo­conduto não valeria para os vândalos e seus parentes. Para estes, só a morte por vingança.

Uma possibilidade pior era a de tentar evitar a traição apresentan­do logo de início, na negociação, a condição de o salvo-conduto não valer para certos vândalos, se houvesse lá dentro alguns com o símbo­lo em questão. Esses teriam que ser entregues antes de continuarem as negociações.

Essa não seria uma boa solução, concordaram logo os dois em seguida. Se os defensores do castelo soubessem por antecipação quais deles estariam condenados à morte, por causa dos símbolos nas suas vestes, logo os infelizes iriam desfazer-se das suas roupas e queimá-las.

O cavaleiro Bengt propôs, finalmente, que se esperasse algum tempo, pois, até então, tudo tinha corrido muito mais rápido e de uma maneira muito mais simples do que se esperava. Havia vários meses pela frente antes da batalha final contra Knut Holmgeirsson. E esse castelo não fora construído para resistir a um longo cerco. Parecia antes servir apenas para guardar arcas de dinheiro. Não se sabia ao certo quanto havia de mantimentos no castelo, mas deixar que esses mantimentos diminuíssem, ao mesmo tempo que o medo aumentava diante dos sitiantes, de qualquer modo seria conveniente. E quanto à idéia de traição lá dentro, ela talvez apressasse um pedido de negocia­ções a partir dos defensores. Entretanto, deixava-se que os defensores suassem lá dentro do castelo. Birger teria tempo de cavalgar a Strängnäs para fechar a negociação com a última cidade de Sörmland que ainda não tinha aderido ao exército real.

E quando Birger, dois dias mais tarde, entrou em Strängnäs diante de uma quantidade enorme de bandeiras que agora faziam parte do seu exército, foi recebido com um espetáculo extravagante e completamen­te inesperado. Ao longo da rua principal, beirando o porto e a catedral, estavam reunidos os habitantes da cidade com bandeiras nas cores azul e prata nas mãos, agradecendo a Deus e abençoando o conquistador recém-chegado. Parecia tudo tão exagerado que ele chegou a recear uma cilada astuciosa, e só depois, ao sentar-se junto com os líderes do povoado e o temeroso bispo, ele entendeu. Mais de trinta habitantes da cidade tinham estado presos como escravos em Ösel. Ao escutar ser Birger Magnusson quem chegava, eles convenceram a todos de que não era questão de se defender de um inimigo, mas de dar as boas-vindas a um amigo a quem se devia um favor. Uma negociação mais fácil na troca de dois anos livres de impostos por fidelidade ao rei Erik Eriksson ele nunca teve outra durante toda a viagem. Teria bastado avançar com um ano livre de impostos ou até com meio ano, se endu­recesse a negociação, achou ele mais tarde. Mas não era o caso de ser avarento, antes encarar o caso com prazer. Não foi um mau negócio aquele fechado em Strängnäs, sabendo que agora as províncias inteiras de Sörmland e Närke tinham aderido ao rei Erik Eriksson.

Durante duas semanas os sitiantes construíram as catapultas e reu­niram piche e outros combustíveis em preparação para o ataque final contra o castelo. Nesse meio-tempo os defensores não tentaram esca­par nem uma única vez. As flechas disparadas por eles foram em pequeno número e nem sequer intencionalmente ameaçadoras, mesmo quando algum cavaleiro as provocasse passando perto dos fos­sos de defesa.

Uma semana mais tarde, num dia de sol forte, Birger decidiu que devia dar início ao ataque para, pelo menos, sentir o nível de resis­tência dos defensores. As noites de agosto já tinham ficado mais lon­gas e escuras, e como os homens dentro do castelo deviam pensar que o inimigo estava disposto a tentar vencê-los pela fome, o ataque veio como uma surpresa completa.

Uma hora antes do amanhecer, o céu se iluminou como se fosse já dia por uma quantidade enorme de bolas de fogo e de flechas incen­diadas sobre o castelo, disparadas de todos os lados. Os incêndios começaram em vários lugares, antes que os defensores tivessem sequer tempo de acordar e se preparar para apagá-los.

Mil homens estavam prontos com escadas à espera da ordem para atacar. Mas Birger mandou que aguardassem. Ele estava no cimo de um pequeno morro, junto com os cavaleiros Bengt, Emund e o amuado e rabugento Sigurd. Todos chegaram à mesma conclusão. Se começas­sem a invasão do castelo naquele momento, isso iria custar no míni­mo a perda de uns cem dos seus homens. Mas com a luta também se evitaria todo o trabalho de extinção dos incêndios. O castelo iria arder até a base e todos os defensores morreriam lá dentro, no fogo do infer­no ou na fuga diante dos cavaleiros que estariam à sua espera. Mas o ouro e a prata que roubaram dos habitantes de Sörmland e Närke também derreteriam com o fogo. No caso de poderem trabalhar con­tra o incêndio, o comandante iria tentar salvar, certamente, as arcas de dinheiro até o último momento.

— É aí que vemos o perigo de se construir castelos de madeira — disse Birger. — Talvez o fogo faça todo o trabalho por nós, talvez seja melhor preparar novos lançamentos de bolas de fogo agora que acham que já conseguiram dominar os incêndios. Podemos, então, vencer sem perder uma única vida entre os nossos. O que é que vocês acham?

— Se mandarmos agora os homens avançarem com as escadas, tudo irá terminar antes do meio-dia e não precisaremos perder mais tempo — respondeu o cavaleiro Sigurd, de rosto virado como se não quisesse encarar Birger quando falava com ele.

— Eu acho também que não há razão para prolongar esse tormen­to para nenhum dos lados — concordou o cavaleiro Emund.

— E você, Bengt, o que é que acha? — perguntou Birger, sem mostrar quais eram as suas intenções.

— Eu preferiria que esses homens lá dentro se entregassem incon­dicionalmente e, além disso, que conseguíssemos salvar o ouro e a prata que eles acreditam poder usar para pouparmos suas vidas — res­pondeu o cavaleiro Bengt.

— Está certo — concordou Birger, fingindo pensar bem no assunto antes de ordenar a retirada dos homens com as escadas e a pre­paração para um segundo lançamento de fogo.

Quando o segundo ataque foi desferido, uma hora mais tarde, o fogo ainda ardia em muitos lugares no castelo, ainda que os defen­sores trabalhassem que nem burros de carga para apagar os focos.

Mas os incêndios foram reavivados e agora estavam até mais fortes, visto que tinham sido adicionados potes de resina de pinheiro nas catapultas. Cada vez que um desses potes caía em cima de algum lugar já incendia­do as línguas de fogo subiam aos céus, com uma grande explosão.

O dia já estava claro. O sol tinha subido acima do horizonte uma hora atrás. E o dia prometia ser quente e bonito, sem uma única gota de chuva.

Diante dos portões de madeira do castelo, do lado de fora dos muros, estavam à espera dois esquadrões de cavalaria e quinhentos homens armados com lanças e machados. Mas a maior parte do exér­cito estava afastada, em descanso, comendo a refeição matinal. Os homens se espalhavam pela área, mastigando, bebendo e vendo ao longe o castelo em chamas onde o fogo parecia ser mais teimoso do que o pecado, apesar de ser fácil entender o esforço que devia estar sendo feito lá dentro para abafá-lo com água, com couro de boi molhado ou qualquer outra coisa que estivesse à mão. O fogo já tinha até lambido parte da paliçada do muro pelo lado externo, fora do alcance de quem, pelo lado interno, queria apagá-lo. E por ali abria-se um buraco enorme por onde poderiam passar pelo menos dois cava­leiros armados, lado a lado, de cada vez.

Birger e Bengt estavam confortavelmente sentados debaixo de uma tenda aberta, a uma distância segura do castelo, observando o espetáculo. Faziam a refeição matinal, bebendo cerveja e comendo presunto defumado com pão. Esse era o tipo de refeição normal em campanha. E por onde o exército passava, o pão era recebido diaria­mente de aldeamentos agradecidos pela liberação dos impostos.

— Eles devem estar vivendo lá dentro num inferno — murmurou Birger, pensativo. — Foi assim, com certeza, que morreram o meu irmão Karl e o nosso parente Karl, o Surdo. Como eu disse, nós não vamos construir muitos castelos de madeira no nosso reino.

— Se você e eu fôssemos comandantes lá dentro, o que é que você acha que deveríamos fazer? — perguntou Bengt Elinsson, sem deixar de pensar nos parentes mortos.

— Eu diria que a situação é desesperadora e que é preciso nego­ciar — respondeu Birger. — Se o inimigo lançou dois ataques de fogo como esses sobre nós, poderá mandar mais um ou dois. Espera apenas que morramos, queimados, ou que negociemos a rendição. É melhor negociar. Manter o castelo não podemos. Estamos, portanto, em uma armadilha mortal, pior do que se tivéssemos tentado sair daqui no início.

Após a refeição matinal, Birger aproveitou para descansar e dormir algumas horas, para se refazer do início do cerco na véspera, mas quan­do acordou, despertado por uns leves toques no seu braço, ele tinha quase certeza do que estava para acontecer.

Todos os incêndios no castelo estavam apagados, mas ainda havia fumaça em muitos lugares. Nos muros havia vários buracos enormes e não seria preciso usar escadas para realizar uma invasão. Um dos comandantes da guarnição do castelo tinha saído e pedido salvo-conduto ao jarl sitiante. Birger mandou logo o mensageiro de volta com a informação de que ele receberia sem demora o negociador e que ele, em nome da honra folkeana, lhe concedia o salvo-conduto.

Momentos depois saiu um homem todo sujo de fuligem e com os restos queimados e rasgados de uma veste azul sob uma malha de aço com as três coroas erikianas. Birger mandou que lhe oferecessem um banco para se sentar e um caneco de cerveja para se refrescar, antes do homem apresentar a sua mensagem. Com um pequeno sorriso, ele viu o sitiado levar o caneco à boca e beber a cerveja com tal voracidade, que o líquido acabou escorrendo também pelo pescoço e pelo peito, até que, com um gemido sonoro, baixou o caneco vazio. Birger con­cluiu que lá dentro não havia mais cerveja.

— Eu sou Birger Magnusson, jarl dos folkeanos e marechal do rei Erik Eriksson. E eu o saúdo, intendente, com o salvo-conduto. Diga o seu nome! — disse Birger, em tom ríspido.

— Eu sou Sture Svantesson, da família bodeana, intendente do rei Knut nas províncias de Sörmland e Närke — respondeu o outro com um tom de voz bem alto, como se, apesar da sua situação desesperada e desfavorável, ainda quisesse dar uma demonstração de firmeza.

— Knut Holmgeirsson não tem mais nenhum intendente nas províncias que você mencionou. Quem é você? — perguntou Birger em voz baixa, olhando bem nos olhos do abatido sitiado.

Não recebeu nenhuma outra resposta, a não ser um sinal de renúncia do outro, baixando a cabeça.

— Você tem duas escolhas — continuou Birger. — Dentro de meia hora você sai do castelo com todos os seus homens. Todos desar­mados. Muitos de vocês, mas não todos, vão conservar suas vidas. A outra escolha é a de vocês continuarem lá dentro e tentarem se defen­der. Neste caso, eu posso garantir que ninguém sairá de lá com vida. Quaisquer outras condições de negociação simplesmente não existem. E como homem honrado, já pode voltar para o castelo e levar esta mensagem para os seus companheiros!

Nesse momento Birger levantou-se, demonstrando que a conver­sa tinha terminado e acenando para o inimigo com a mão para que fosse embora imediatamente.

Em menos de meia hora o portão do castelo abriu-se e por ele saiu um bando de defensores chamuscados, de cabeça baixa e sem armas. Eram um pouco mais de cento e cinqüenta homens.

Alguns deles tinham cometido um erro mortal. Os homens com status superior e os que tinham a marca do escudo da família espera­vam receber um tratamento melhor por parte dos vencedores, talvez até muita cerveja e um banquete à noite. Por isso, saíram com as ves­tes de armas e com o escudo na mão. Quando vieram pegá-los e os separaram da grande massa, eles ainda conservavam uma expressão infantil e ainda não tinham entendido nada.

Na realidade, entre esses homens separados, muitos tinham inva­dido e incendiado quase toda Forsvik. Fora por esse motivo que nem Bengt nem Birger tinham encontrado no caminho nenhum desses homens, aqueles que os dois, em especial, esperavam abater. Quase um terço dos perdedores sujos de fuligem possuía alguma das marcas reproduzidas nos dois rolos de pergaminho que os mestres da vidraria e da tecelagem de Forsvik, com tanta exatidão e arte, haviam prepara­do durante a noite de inverno na sua cidade saqueada.

Birger ordenou que os prisioneiros fossem separados em dois gru­pos, de modo que todos com os símbolos identificados nas vestes e nos escudos ficassem juntos e com as mãos amarradas nas costas. Os prisioneiros dos dois grupos receberam, então, a ordem de se sentarem no chão, junto com os grupos a uma distância razoável um do outro e todos sob a observação do pessoal folkeano a pé. Entretanto, Sture Svantesson, que fora o comandante, foi obrigado a seguir de volta para o castelo com Birger e os seus três subcomandantes, junto com um grupo de doze forsvikianos de espadas em riste.

Era como entrar na ante-sala do inferno, pensou Birger ao ver a devastação dentro do castelo e ao sentir o cheiro de carne queimada no calor asfixiante. Havia mortos por toda a praça do castelo e, ao longo da fileira de casas derrubadas e carbonizadas viam-se cadáveres encolhidos como se fossem crianças. Aqueles que sobreviveram deviam saudar o carrasco como libertador.

O inimigo tinha tido o bom senso de deixar todas as armas no meio da praça do castelo, num monte bem organizado. E o intenden­te Sture conduziu, de boa vontade, os seus mandantes a uma câmara rodeada de peles bovinas e trapos bem encharcados. Lá dentro encontravam-se não só os livros de contas, bem guardados, mas tam­bém quatro arcas cheias de moedas de prata e quase cem marcos em ouro. Considerando tudo como despojos de guerra, toda a campanha já estaria paga e ainda sobraria muito.

Na despensa do castelo não restava muita comida, a maior parte estava queimada e destruída pela água. Os dois poços de água na praça estavam vazios e, no fundo, havia trapos espalhados para sugar as últi­mas gotas do então precioso líquido.

Birger ordenou que tudo o que fosse encontrado na sala de contas devia ser levado, com todo o cuidado, junto com a prata e o ouro, para o castelo real de Näs e fechado a chave na câmara do tesouro, no porão da torre oriental. Na época certa, uma parte seria devolvida para aqueles em Sörmland e Närke que pagaram impostos injustificados ou foram roubados. E o restante ficaria com o rei Erik como compen­sação pelos impostos que ele iria deixar de receber durante dois anos.

Quando o castelo ficasse limpo de tudo o que tivesse algum valor, seria queimado até os alicerces, como parte da vitória de que muitos folkeanos falaram, com que sonharam, de que se jactaram e que pin­taram em cores vivas durante os muitos acampamentos da campanha ou nos dias monótonos passados em cima dos cavalos e sob chuva intensa.

Tendo trazido um cepo e um machado, Birger convidou o inten­dente Sture a segurar o machado e, com isso, salvar a sua vida. Caso se negasse, iria juntar-se ao grupo dos escolhidos para morrer e o convi­te seria refeito para o segundo homem no comando do castelo. Eram quase quarenta os homens que iam perder a cabeça. Portanto, seria um trabalho cansativo, com direito a descanso e a um caneco de cer­veja de vez em quando.

O intendente Sture empalideceu por baixo das manchas negras da fuligem ao ouvir esse convite. Fez o sinal-da-cruz e se ajoelhou, rezan­do por alguns momentos. Depois dirigiu-se de cabeça baixa para o grupo dos condenados e deixou que lhe amarrassem as mãos atrás das costas. Por esse ato ele conquistou um grande respeito entre vencedo­res e vencidos.

Birger fez, então, o convite para o segundo homem no comando do castelo que também apresentava as cores erikianas na sua veste de armas. Este se contentou em fazer o sinal-da-cruz, cuspiu nas mãos e pegou o machado. Birger ordenou, então, que ele cumprisse a missão, deixando o intendente Sture por último.

Um a um, os vândalos amarrados foram levados para o seu carras­co e parente. E à medida que as cabeças rolavam por uma poça de sangue cada vez maior no lugar da execução, aumentavam os risos e os rugidos dos vencedores, enquanto os perdedores presos viravam o rosto.

Quando só restava o intendente Sture e ele era levado, escorregan­do no sangue derramado, na direção do carrasco que a essa hora já estava quase esgotado e bêbado de tanta cerveja tomada nos curtos momentos de descanso, Birger levantou o braço e suspendeu a execu­ção. Sture estaria livre, assim como o seu segundo homem, o carrasco, e os demais prisioneiros. E acrescentou duas coisas. A primeira era a de que a mensagem que queria mandar para Knut, o Alto, era bem simples e não precisaria de muitas palavras de adorno. A segunda era a de que o homem que tinha servido de carrasco estava sob sua prote­ção, enquanto continuasse em Sörmland.

Um intendente com mais vontade de viajar do que Sture certa­mente nunca ninguém vira em Sörmland, E a esse respeito houve muitas risadas e foram ditas muitas piadas.

Antes de irem embora, os vencidos foram obrigados a mais um último tormento. Receberam ordens para despir seus parentes decapi­tados das vestes de armas e lavá-las num córrego próximo, reunir todos os cadáveres em uma fogueira na praça do castelo e botar fogo em tudo. Só depois poderiam partir com os salvo-condutos para atra­vessar Sörmland até chegar a Västmanland e Uppland, pelo mesmo caminho que ele iria tomar, disse Birger ao despedir-se um pouco mais tarde.

Com isso, a parte mais fácil e agradável da campanha de Birger terminara e os vencedores tiveram três dias de festa com muita cerve­ja nas tendas ou, para aqueles que preferissem, em Strängnäs. Em Strängnäs, assim como na maioria das cidades à volta do Lago Mälaren, todos que vestiam as cores folkeanas andavam em seguran­ça, por muito bêbados que estivessem. E bastava pronunciar algumas palavras de que eram homens de Birger Magnusson para serem bem recebidos com insuspeitável boa vontade e respeito.

Mas a guerra que se aproximava era outra. O caminho através de Sörmland e Närke tinha sido mais um passeio do que uma guerra.

Quando o exército ficou pronto para a partida, Birger falou rispida­mente, lembrando a todos que os dias de moleza tinham terminado. Em Västmanland e Uppland a situação iria se parecer mais com aqui­lo que todos imaginavam como guerra mesmo e não uma cavalgada tranqüila iniciada numa noite de maio. Agora iriam entrar no coração do inimigo e ninguém poderia esperar por descanso enquanto a cabe­ça de Knut, o Alto, não tivesse caído.

 

Em meados de novembro, o exército folkeano assentou acampamen­to numa planície na frente de Enköping. Pelas costas havia uma flo­resta e, pela frente, visão livre sobre a cidade. Ao anoitecer foi possível observar o exército de Knut, o Alto, saindo de Enköping e assentar acampamento tão perto que era possível ver nitidamente as fogueiras acesas e, de vez em quando, até ouvir risos e vozes na noite sem ven­tos. Era a derradeira noite antes da decisão. Quase no mesmo dia, fazia um ano que Forsvik tinha sido devastada.

Gregers Birgersson não conseguia dormir. Durante aquele ano, desde que o seu pai, com o direito que lhe era atribuído como jarl da família, o armou cavaleiro forsvikiano, ele já tinha visto as muitas faces da guerra, uma coisa que ele não esperava, nem sequer imaginava. As províncias de Sörmland e Närke tinham sido tomadas ao preço dimi­nuto de trezentas mortes inimigas e apenas dez do lado dos vencedo­res. Mas quando o amanhecer inevitavelmente chegasse, aconteceria o grande embate e, antes do anoitecer, vários milhares de homens teriam caído nessa planície na frente de Enköping.

Era um pensamento irreal, como se tudo aquilo fosse um sonho. Embora o seu pai e os cavaleiros do seu conselho tivessem a certeza da vitória, havia que enfrentar todas as forças reunidas de Knut, o Alto, em que o desejo de vingança devia estar bem forte e em que todos iriam combater para salvar a vida. Era uma coisa muito diferente de incendiar um pequeno castelo.

Gregers suava dentro do seu saco de dormir feito de peles, virando-se a cada momento como uma cobra, para um lado e para outro, sem encontrar uma posição que fosse mais aconchegante para adormecer. Finalmente acabou se levantando e saindo para o acampa­mento. A atmosfera estava fria, com um vento cortante, e apenas algu­mas fogueiras ainda continuavam ardendo. A longa distância pôde ver que havia luz na tenda do jarl e ainda que um porta-bandeira não tivesse o direito de invadi-la, encheu-se de coragem, levantou o pano da porta da tenda e entrou.

O seu pai estava sentado a uma mesa sobre a qual haviam coloca­do uma caixa de areia com cones e setas. O cavaleiro Bengt estava apontando para eles e explicava a situação enquanto o jarl acenava com a cabeça, pensativo, e justo no momento em que lhe sussurrava sua concordância, os dois homens levantaram os olhos e viram, espan­tados, a chegada de Gregers.

— Gregers, meu querido filho, tenho certeza de que você está com dificuldades para dormir, não é?

Nisso o jarl se levantou e foi abraçar o filho, indicando, depois, uma cadeira para ele se sentar ao lado da caixa de areia. Gregers sau­dou o cavaleiro Bengt timidamente e depois ficou observando ora um, ora outro. Parecia a ele incompreensível como os dois homens, ambos tão equilibrados, podiam ficar tão tranqüilos, impassíveis e confiantes enquanto as fogueiras dos inimigos ardiam a uma distância de apenas alguns tiros de flecha dali.

— É bom que saiba, meu jovem — disse o cavaleiro Bengt —, que quando eu fiquei, pela primeira vez, diante da perspectiva de um grande combate, embora já fosse um pouco mais velho do que você, também não consegui dormir. Ninguém consegue de início. Se isso for ajudá-lo a dormir nessas horas que restam da noite, é bom que você saiba que nós já vencemos.

— Como é que já vencemos se ainda não foi disparada sequer uma flecha? E será que Knut, o Alto, não está pensando a mesma coisa que nós? — perguntou Gregers, inseguro.

— Veja aqui — exclamou o seu pai, apontando para a areia alisa­da com cones e setas. — Aqui, diante de Enköping, está o exército de Knut. Ele tem cinqüenta cavaleiros e talvez três mil homens a pé. Nós estamos com a floresta pelas costas e lá na frente, diante do nosso exér­cito de arqueiros de longa distância. Vamos colocar apenas dois esqua­drões de cavalaria, e isso é tudo o que Knut vai ver, ao amanhecer, na hora de observar as nossas posições. E vai ficar satisfeito com o que vir, constatando que temos apenas trinta e dois homens a cavalo, que é o que ele presume, caso contrário não teria vindo até nós. Mas na floresta atrás de nós não será possível ver nada e é lá que estarão escon­didos dez esquadrões de cavalaria quando o dia amanhecer. Eles estão a caminho esta noite, a pé, cada cavaleiro conduzindo o seu cavalo na escuridão. Knut vai atacar doze esquadrões, pensando que são dois. Você também é cavaleiro, ensinado em Forsvik, já deve saber o que isso significa. O difícil não é o meio dia de trabalho amanhã, depois do amanhecer. O difícil foi chegar aqui.

— Foi por isso que nós sempre mantivemos a maior parte da força de cavalaria na retaguarda assim que saímos de Örebro — disse Gregers, animado, de uma maneira que levou o seu pai e o cavaleiro Bengt a sorrir, um sorriso bem aberto.

— Você é esperto como o seu pai, Gregers — brincou o cavaleiro Bengt, embora sem o mínimo escárnio na voz. — E foi por isso que muitos dos cavaleiros que andavam investigando os nossos passos e encontramos pelo caminho se salvaram e voltaram para Knut dizendo que os gotas estavam chegando tão fracos como da vez anterior. Se tivessem visto os dez esquadrões que vão esperar por eles amanhã, Knut teria fugido que nem uma raposa para a sua toca e seria uma cor­reria louca por metade da Uppland para encontrá-lo com o rabo entre as pernas.

— Portanto, Knut está absolutamente seguro da vitória, visto ter vindo até nós voluntariamente — completou Birger com alguma impaciência na voz. — O que ele ainda não sabe é que esta é a sua última noite com vida. Portanto, vá dormir agora, que amanhã quero ter um porta-bandeira esperto e animado ao meu lado!

Gregers fez uma reverência diante dos dois poderosos homens e voltou para a sua tenda onde os outros confanonieres estavam deitados. Tentou entrar de mansinho para não acordar ninguém, mas ninguém estava dormindo mesmo. Ou então tinham o sono muito leve, visto que a sua chegada provocou muitos palavrões incontidos. Mas ele foi logo se desculpando, dizendo que tinha ido urinar. E cheirava mal dentro da tenda, mas de suor e angústia.

A manhã nasceu serena e úmida, com um pouco de nevoeiro. O tempo favorecia muito mais os folkeanos do que o lado de Knut, o Alto. O vento forte teria prejudicado os arqueiros folkeanos de longa distân­cia e, além disso, teria clareado a paisagem e o inimigo poderia desco­brir aquilo que o aguardava dentro da floresta, atrás do jarl e dos seus porta-bandeiras que já estavam em posição, em cima dos cavalos.

Aquilo que Knut Holmgeirsson e os seus homens viram quando avançaram a cavalo para observar o campo de batalha era a imagem do que mais gostariam de ver. Diante dos folkeanos a pé havia trinta e dois cavaleiros, o que era um pouco mais da metade dos que eles tinham do seu lado. Também os folkeanos a pé eram em menor número e, pela sua posição junto da floresta, deviam estar com medo e prontos para fugir. Bem atrás e em posição segura estava o próprio Birger Magnusson que, assim, parecia não estar com uma disposição muito ousada. Ele estava longe demais e envolto na neblina para que se pudesse ver quais os símbolos que Birger portava, mas dizia-se que eram os dos folkeanos e dos erikianos, o que Knut achou ser um atre­vimento desmedido. De qualquer forma, logo esses símbolos iriam adornar as paredes da sua sala.

Gregers estava com frio, ainda que bem agasalhado, e segurava com tal força o cabo da bandeira que a sua mão direita quase congela­va, tendo que largá-lo de vez em quando para esfregar as mãos uma na outra, segurando-o com o antebraço. Também de vez em quando, preocupado, olhava de lado para o pai, para ver se havia algum sinal de inquietação ou de dúvida no seu rosto. Podia ser que as suas pala­vras durante a noite tivessem servido apenas para apaziguar os medos de um filho jovem e inexperiente. Mas o seu pai continuava tranqüi­lo, com as mãos segurando de leve as rédeas do cavalo e apresentando uma expressão sorridente no rosto, de quem sentia tudo, menos inse­gurança.

Estavam a cavalo em cima de uma pedra grande, um pouco mais elevada que o campo de batalha, e tinham uma boa visão até as linhas mais recuadas do inimigo, que desapareciam na neblina. Atrás deles, na floresta, ouvia-se o relinchar dos cavalos e o tilintar das esporas. Era impossível manter cento e sessenta cavaleiros em completo silêncio. Mas os ruídos eram muito fracos para que pudessem ser ouvidos pelo inimigo e a neblina suficientemente densa para que este pudesse ver dentro da floresta quem estivesse escondido.

Lentamente a linha de cavalaria de Knut começou a avançar, ouvindo-se um enorme barulho de armas tilintando quando cerca de mil homens a pé pegaram nas suas lanças e começaram a avançar atrás da linha de cavalaria.

Gregers viu o seu pai fazer o sinal-da-cruz, abaixar a cabeça e fazer uma curta oração, e foi isso que ele fez também. Mas logo abriu os olhos, diante do chamado do seu pai para que prestasse atenção.

— Um pouco mais... um pouco mais, eles têm que avançar um pouco mais — sussurrava Birger, sorrindo, olhando às vezes para o inimigo, que continuava se movimentando poderosamente para a frente, e outras para Gregers.

De repente Birger levantou o escudo bem para cima no ar. Lá em­baixo, no meio do exército, o cavaleiro Emund repetiu o mesmo movimento. Ouviu-se, então, um grande estardalhaço no momento em que mil arqueiros, com arcos de longa distância, por trás da sua linha de cavalaria, dispararam as primeiras flechas.

— Mais um pouco! — sussurrou Birger de novo, entre dentes, como quem quer convencer o inimigo a ficar mais perto da morte. Os cavaleiros de Knut, o Alto, continuavam avançando a trote e por trás deles via-se uma paliçada de longas lanças.

— São os lanceiros que queremos atingir primeiro — disse Birger para Gregers enquanto levantava e abaixava novamente o escudo. Logo o cavaleiro Emund, em cima do seu impaciente animal, fez o mesmo movimento de comando, ao qual os arqueiros obedeceram retesando os arcos e apontando as flechas para o céu.

Foi um momento de tamanha tensão que Gregers achou que o seu coração, batendo fortemente, ia saltar do peito. Ia ver uma coisa que nunca tinha visto, apenas ouvido falar por contadores de histórias.

Finalmente Birger fez um sinal rápido com o escudo, repetido também pelo cavaleiro Emund, e então viu-se que tudo o que tinha sido dito a respeito desse momento era verdade.

O céu escureceu, ouvia-se um assovio como se mil cegonhas dan­çassem sobre o campo, e logo em seguida era como se uma divina mão de ferro baixasse no meio do exército inimigo. Um grito coletivo de dor e de medo, misturado com o relinchar dos cavalos e o tilintar das armas, elevou-se para o céu, de onde uma nova nuvem de flechas vinha a caminho.

Depois de a terceira chuva de flechas ter sido disparada, todos os arqueiros folkeanos recolheram as armas e correram com passos firmes, mas sem pressa, para a floresta. Passavam por eles, mas em sen­tido contrário, o cavaleiro Bengt com o seu porta-bandeira forsvikia­no num trote ligeiro para se juntar aos dois esquadrões de cavalaria que até então só tinham servido como isca para atrair o inimigo para o ataque. Eles formavam duas linhas de ataque para avançar contra os cavaleiros inimigos que ainda restavam em cima dos cavalos e, depois, golpear os homens a pé nas linhas mais recuadas, longe do alcance da chuva de flechas. Ao mesmo tempo, o cavaleiro Sigurd, com os seus cinco esquadrões e o símbolo forsvikiano na frente, correu a galope à volta do campo de batalha para cortar lá atrás a fuga dos adversários.

Os esquadrões do cavaleiro Bengt combateram pela frente o exér­cito inimigo, derrubando todos no caminho. Logo os cavaleiros forsvi­kianos se dividiram em grupos de quatro e bateram em disparada para todos os lados, a fim de degolar os fugitivos que corriam em debandada.

O que tinha acontecido até então fora mais um massacre do que uma luta. Não houve salvação para os homens de Knut. Desse lado, na linha de ataque, surgiram oitenta cavaleiros forsvikianos, de lanças em riste.

A intenção era simples; espremer o exército de Knut por todos os lados, de modo que ficasse reduzido a apenas alguns homens à volta do porta-bandeira. O próprio Knut e os seus homens, como Knut Kristinsson, o seu jarl, Ulf Fasi, o arcebispo e mais alguns líderes. E como Birger havia contado na noite anterior, o núcleo das forças de Knut e os seus escudeiros fugiram todos para um pequeno morro, onde logo foram cercados, e de onde assistiram, impotentes, às mano­bras dos grupos de cavaleiros folkeanos que cruzavam o campo de batalha em ação de limpeza, matando todos os sobreviventes.

Isso ainda durou algum tempo, antes que Birger e o seu porta-bandeira se dirigissem em trote ligeiro pelo campo de batalha, agüen­tando o mau cheiro do sangue quente derramado em direção ao ini­migo cercado. Birger parou à distância de uma flecha, avaliando a situação. Depois mandou chamar um esquadrão de forsvikianos, ordenando formação em duas linhas de oito. Os ruídos da batalha tinham amainado no campo e se escutavam apenas alguns gemidos de dor dos moribundos.

Ao chegar à conclusão de que já tinha esperado o suficiente para que eles lá em cima sentissem o medo como um frio paralisante nos membros, ele desembainhou a sua espada, jogou a lança no chão e ordenou aos cavaleiros à sua volta para fazerem o mesmo. Em seguida levantou o braço, dando o sinal de ataque, e, momentos depois, ace­lerou na direção do grupo inimigo.

Birger já tinha descoberto Knut, o que não fora difícil, visto que ele tinha uma coroa dourada em cima do elmo.

Knut sabia muito bem quem se aproximava e achou primeiro que tinha conseguido evitar, com talento, a espada de Birger, já que fica­ram lado a lado, em posição um pouco desfavorável para Birger. Mas no momento seguinte o cavalo de Knut caiu devido a um golpe cer­teiro que destroçou a sua espinha dorsal. E, na queda do cavalo, Knut Holmgeirsson nem chegou a ver o golpe seguinte dirigido con­tra a sua nuca.

Os homens à volta de Knut que ainda se mantinham vivos tinham estado tão ocupados em se defender contra os outros forsvikianos que ninguém veio ajudar o seu rei, e a maioria já tinha caído quando Birger gritou que bastava.

Apenas dez inimigos restavam ainda vivos em cima do pequeno morro, entre eles dois bispos, que nenhum dos forsvikianos golpeou, Knut Kristinsson, ferido, o homem de leis Laurentius, de Tiundaland, e o homem que até esse momento tinha sido o jarl de Knut, o Alto, o folkeano Ulf Fasi, de Bjälbo.

Vencedores e vencidos ficaram quietos, olhando uns para os outros. O sol já tinha subido um pouco e, junto com uma brisa fraca, levantado quase toda a neblina. Ao longe ainda se ouviam os cavalei­ros folkeanos galopando atrás de alguns inimigos que por sorte ou com a ajuda de Deus tinham escapado ao cerco da tropa folkeana e agora cavalgavam ou corriam desvairados para salvar a vida.

Esse, e apenas esse, era o momento cruciante dos vencedores, pen­sou Birger. Aquilo que se seguiria era apenas trabalho. E ia demorar muito tempo.

Ele colocou quatro esquadrões em formação retangular à volta do grupo vencido, chamou Gregers e cavalgou com a bandeira do reino em trote ligeiro duas voltas ao redor do grupo de inimigos que os olhavam cheios de ódio. Acabou parando junto do cadáver de Knut Holmgeirsson e apontou com sua espada ainda ensangüentada para Ulf Fasi, que arfava, pálido, com um braço sangrando. Em seguida apontou sua espada, com decisão, para a bandeira das três coroas de Knut que um homem ferido, com grande esforço, ainda mantinha erguida junto do seu jarl.

Então aconteceu o esperado. Ulf Fasi fez um sinal ligeiro ao seu confanonier para que ele avançasse e entregasse a bandeira de Knut, o Alto, a Birger. Este a pegou e estendeu a Gregers, que, desajeitada­mente, conseguiu colocá-la apoiada no estribo, segurando as duas bandeiras juntas.

Depois Birger inclinou-se para o lado e retirou com a espada a coroa de rei da cabeça de Knut Holmgeirsson, levantando-a no ar, reluzente, sob a luz do sol. Observou-a por um momento, sem alterar a expressão do rosto, e cavalgou lentamente na direção de Ulf Fasi enquanto suspendia a espada, de modo que a coroa veio parar junto da sua mão. Ele voltou a apontar a espada para Ulf Fasi sem dizer pala­vra. Ulf Fasi tirou, então, ele mesmo a sua coroa de jarl da cabeça e, com um pequeno aceno da parte de Birger, enfiou-a na espada, de modo que ela foi parar por cima da ensangüentada coroa real que, de novo, pertencia a Erik Eriksson.

Os prisioneiros foram levados para Enköping, onde os adminis­tradores da cidade se entregaram incondicionalmente a Birger Mag­nusson. A cidade não foi saqueada.

O banquete da vitória durou três dias e esvaziou as despensas de Enköping. Em contrapartida, os habitantes da cidade receberam autorização para saquear o campo de batalha, como compensação pelos custos da festa.

Nesse banquete, Ulf Fasi, junto com Knut Kristinsson, amigo do falecido Knut Holmgeirsson, e os seus bispos ficaram sentados à mesa de honra, com Birger Magnusson e os seus cavaleiros. Eles não pude­ram concordar em muita coisa, mas ficou decidido que o cadáver de

Knut Holmgeirsson seria levado e entregue aos seus parentes, que Ulf Fasi nunca mais voltaria a combater contra os seus parentes folkeanos.

Erik Eriksson, o Deficiente, voltou a ser o rei incontestável, tanto das Götaland como da Svealand. Essa derrota perto de Enköping custou muito caro aos povos de Uppland e de Västmanland e ainda ia demorar muito para que voltassem a pensar em guerrear contra os cavaleiros folkeanos.

Um longo período de paz estava reservado para o reino inteiro.

 

                           O tempo do Jarl

NUMA NOITE ESCURA E SINISTRA de setembro, no Anno Domini de 1246, as vielas de Visby foram atingidas por uma chuva tão forte que nem mesmo as gordas ratazanas do porto deram o ar da sua graça. Foi um tempo difícil para Visby, cuja prosperidade dependia do comér­cio, mas o novo rei dinamarquês, Erik Plogpenning, havia bloqueado a cidade de Lübeck e, assim, nenhuma embarcação podia sair ou entrar. E uma vez cortado o comércio com Lübeck, as conseqüências para os habitantes de Visby foram desastrosas.

Com uma capa de couro com capuz e a cabeça baixa, evitando o vento e a chuva, um forasteiro andava sozinho, devagar, hesitante e inseguro por uma das ruelas que saíam da grande praça na direção norte. Parecia uma caminhada descuidada em uma noite escura, sem testemunhas por perto, caso o pior acontecesse. Isso porque, assim como Visby não podia acabar com as ratazanas na área do porto, tam­bém não conseguia livrar-se da escória que as cidades portuárias sem­pre pareciam atrair. Marinheiros deixados para trás e criminosos fugi­tivos, tanto de terras próximas como longínquas, eram os habitantes livres da noite tanto quanto as ratazanas negras.

Três homens dessa espécie comprimiam-se contra um dos portões da cidade e perscrutaram o caminhante que se aproximava na chuva. Ele parecia uma pessoa bem forte, mas essa aparência podia ser conse­qüência do tamanho da capa. Quando ele levantou a cabeça para olhar para cima, a luz bateu em cheio no seu cabelo molhado e grisa­lho, revelando que já não era um jovem. Os três ladrões olharam uns para os outros em sinal de entendimento. Por baixo daquela capa havia, certamente, uma bolsa cheia de dinheiro ou, pelo menos, alguma coisa de valor. E naquele tempo ruim que parecia obra do diabo não haveria testemunhas por perto. Quando o corpo fosse encontrado, rígido e frio, na manhã seguinte, eles já estariam dormindo a sono solto, bem alimentados e satisfeitos.

O primeiro dos três homens que avançou contra o caminhante, escorregando sobre as lajes lisas da ruela, acabou recebendo um pon­tapé no peito. O segundo viu o seu braço cortado por uma espada manejada com tal rapidez que parecia um raio, e o terceiro fugiu em corrida desvairada, convencido que tinha visto o diabo em pessoa.

Quando aquele que recebeu o pontapé e caiu no chão tentava se levantar de repente já tinha a espada apontada para o seu pescoço. Nada podia fazer, a não ser o sinal-da-cruz e preparar-se para morrer.

— Eu preciso encontrar o caminho para a taberna da mãe Emma e quero que você me leve até lá — disse o forasteiro na língua dos lübeckianos como se perguntasse pelo caminho num dia normal e no meio de uma grande multidão.

O ladrão sem sorte, de nome Angus, tentou afinar a voz e dar uma resposta, mas foi interrompido por um grito de dor e de medo partin­do do seu camarada cujo braço cortado jazia por terra. Até então ele tinha se mantido em silêncio, segurando com a mão o toco do braço de onde o sangue jorrava. O forasteiro, então, virou-se rápido e asses­tou mais um golpe nele com a espada. O golpe foi certeiro e o corte da lâmina pôde ser ouvido apesar da chuva. O silêncio voltou e, nova­mente, o ladrão Angus já tinha a ponta da espada ensangüentada apontada para si.

— E então, vai me mostrar o caminho ou não? — perguntou o forasteiro com a mesma tranqüilidade na voz. Era como se estivesse falando do tempo.

Em breve estava andando pela ruela uma estranha dupla de homens, um deles molhado até os ossos, mancando e pedindo piedade por sua vida, seguido do outro com passadas pesadas de quem estava cansado e coberto com uma capa de couro. Ele tinha deixado a espada debaixo da chuva, virando-a várias vezes para limpá-la do sangue. Depois passou-a no corpo de Angus para secá-la e enfiou-a novamente na bainha, por baixo da capa. Angus carregava uma faca por baixo do cinto, mas não tinha a menor intenção de usá-la, embo­ra puxar uma faca fosse mais rápido do que puxar a espada. Mas Angus, tal como o colega fugitivo, achava que tinha encontrado o diabo em pessoa.

Pouco depois o forasteiro batia na porta na casa de má fama a que o dono chamava de taberna da mãe Emma, mas que, na boca do povo, era conhecida como a casa das rameiras da ruela norte da cida­de. Podia-se comer um bom pedaço de carne grelhada na taberna, mas vendia-se muito mais a cerveja de Lübeck. E havia as rameiras, caso se desejasse, o que geralmente acontecia após ingerida uma boa quantidade da forte cerveja lübeckiana.

Àquela hora da noite e com tempo ruim, o dono da taberna, Dieter Strandfänger, abriu a porta contra a vontade, sabendo que só podia ser algum bêbado e, portanto, alguém que só trazia problemas e pouco dinheiro.

— Gutn aften — saudou o forasteiro na língua lübeckiana. — Jeg söche den herr Elof handelsmann.

— Aqui ninguém procura por ninguém sem antes dizer o seu nome — reagiu Dieter Strandfänger, irritado. — E também ninguém entra se não tiver dinheiro para gastar.

— Eu sou marechal do reino e venho tratar de um assunto do rei; portanto, suas preocupações podem ser maiores do que com o paga­mento — respondeu o forasteiro, sem levantar a voz, enquanto passa­va pelo dono da taberna como se ele nem estivesse ali.

Cerca de uma dezena de pessoas estava lá dentro, numa sala ilu­minada pelas chamas mortiças de um braseiro num canto e algumas tochas. A um canto estavam sentados cinco fregueses, ainda meio sóbrios, jogando dados, cercados por duas rameiras que riam alto e instigavam o jogo. Em cada canto havia gente de braços cruzados sobre a mesa e dormindo, enquanto outros conversavam, discutindo. Um homem estava sentado sozinho, de cabeça baixa, diante de um copo de cerveja, com vestes melhores do que as dos outros. Foi para lá que o forasteiro se dirigiu diretamente e, quando chegou, tirou a capa de chuva e sacudiu-a, de modo que pingasse sobre o homem sozinho e, inadvertidamente, em cima de quem estivesse próximo.

Normalmente, qualquer forasteiro que se comportasse dessa ma­neira seria jogado na rua. Mas aqueles que se molharam com os pin­gos de água e se levantaram para dar uma boa sova no atrevido logo desistiram do intento. O forasteiro estava com uma veste de malha de aço sob uma jaqueta de armas onde brilhavam as três coroas do rei e o leão folkeano. E só a espada extraordinária que trazia à cintura já bas­tava como efeito paralisante contra qualquer bêbado que quisesse brigar.

O mais surpreso de todos, porém, foi o mercador Elof, quando levantou os olhos do copo e saiu das suas contemplações alcoólicas para descobrir diante de si o irmão Birger.

— Por Jesus, a Virgem Maria e todos os santos! Você chegou final­mente! — exclamou ele, levantando-se e abraçando, sem a menor timidez e hesitação, o recém-chegado e poderoso homem do conti­nente.

— Finalmente? — riu Birger, dando tapinhas nas costas do irmão. — Foi apenas há dez dias que os habitantes de Visby, humildemente, pediram ajuda ao rei. Você acha que eu voaria feito um pombo para chegar aqui com este tempo?

— Não foi nisso que pensei, Birger — disse Elof com voz enrola­da. — Eu pensei sim que já faz dez anos que não nos vemos.

Ficaram os dois segurando-se mutuamente pelos ombros e olhan­do bem nos olhos um do outro e em silêncio por alguns momentos. Depois, virando-se, Elof jogou uma moeda de prata em cima da mesa, ao lado do copo de cerveja, com faixa azul, ainda pela metade.

— Imagino que o que temos para falar seja melhor conversarmos na minha casa — disse ele, apanhando seu chapéu de feltro, ainda úmido, e o manto.

A chuva continuava caindo quando os dois saíram para a rua e, como Elof estava menos protegido do que Birger, ambos correram pela cidade, escorregando em alguns trechos, até chegar ao ambiente aquecido da câmara de comércio. Elof pediu desculpas a ele por um momento, pois tinha que trocar de roupa, mas logo acordou o pessoal de serviço para que o seu irmão fosse atendido enquanto o esperava.

As criadas vieram correndo com velas, atiçaram o braseiro e trou­xeram duas jarras de cerveja escura e copos lübeckianos, retirando-se em seguida, recuando de costas, reverentes e cheias de pompa.

Birger ficou observando a sala. Uma melancolia repentina atraves­sou a sua alma. Essa mesma sala ele conhecia bem dos seus tempos de jovem, com chapéu de penas, diante do senhor Eskil, o mercador, que ele admirava, e diante de um futuro que lhe parecia já estar determi­nado. Ele seria herdeiro dessa casa e mercador. E não soldado real. E com a honestidade que todo homem deve exigir de si mesmo, ele não se considerava mais do que um soldado. Agora o senhor Eskil já esta­va no descanso eterno, e a sua viúva, Bengta, também. Foi um mila­gre Elof conseguir ficar com a câmara de comércio, considerando o que a herança, primeiro do senhor Eskil e, depois, da senhora Bengta, deve ter custado em prata e ouro. E não cheirava mais a riqueza essa sala, embora fosse difícil dizer o que tinha mudado. Cadeiras, mesas e tapetes eram os mesmos, pelo menos disso ele se lembrava bem. O mesmo acontecia com as almofadas e as peles, os vidros lübeckianos mais bonitos e a criadagem obediente. No entanto, havia qualquer coisa que, nitidamente, dizia que a riqueza e a felicidade tinham aban­donado aquela casa com o senhor Eskil e a senhora Bengta.

Ou seria apenas o rosto de Elof. Ele engordara bastante, o nariz ficara avermelhado no meio do rosto. Os olhos tornaram-se pequenos e parecidos com os de um porco, com as bochechas salientes. Assim ficavam os homens que procuravam a felicidade mais na bebida do que no trabalho cristão.

A cerveja e o vinho podiam abater o mais forte dos homens. E Elof não estava entre estes. O desapontamento de Birger não poderia ser maior depois de uma travessia que foi um pesadelo, vindo de Söderköping, de pernas bambas, para chegar à casa de Elof e saber que o seu dono estava na cidade e em uma casa mal-afamada.

A decadência de Elof e as recordações na sala deixaram Birger entristecido, pensando que teria sido muito melhor se ele tivesse fica­do em Visby, há muitos anos, quando o senhor Eskil lhe fez uma pro­posta tentadora. Rico ele estava, sem dúvida, por força de todas as guerras que aconteceram desde então e por força das terras que com­prou fácil, na base do convencimento que se oferece como norma a todos os vencedores. Mas havia muito sangue em sua riqueza e a vida como mercador teria sido, certamente, mais fácil e mais cristã.

A consciência lhe dizia que ele, normalmente, tinha a facilidade de cair na autocomiseração e que havia muito mais com que se alegrar do que para reclamar. Tinha uma esposa real em Bjälbo e com ela três filhos e uma filha, todos saudáveis. O rei Erik havia concedido a mão de sua irmã, Ingeborg, a ele como prêmio pela vitória em Enköping, e para uma honra como essa ninguém em sã consciência podia dizer não.

Mas o rei decidiu também que Ulf Fasi continuasse como jarl do reino, apesar de Birger merecer mais essa honra e ser aquele que os fol­keanos teriam preferido. Em vez disso, teve que se contentar em ser o marechal do reino, e como Ulf Fasi não entendia nada de guerra, edu­cado como foi por um homem, Karl, o Surdo, que na vida nada fez por melhorar, Birger teve que intervir em pequenas guerras para res­taurar a ordem nos distritos em que a desordem tinha sido provocada por amanuenses incompetentes ou líderes mal-intencionados. Mas em relação ao poder central Birger preferiu se afastar, já que tinha um inimigo de morte na pessoa do jarl Ulf Fasi. Por isso, ele e o seu irmão, Eskil, o homem de leis, tinham planos para construir um novo reino com uma base totalmente legal. O jarl se mostrou contrário a tudo o que Birger e Eskil queriam mudar. A única coisa em que eles receberam o apoio do soberano foi a proibição da prova do ferro em brasa, o que constituiu apenas um pequeno avanço em comparação com todas as esperanças antecipadas.

Ele ouviu risadinhas abafadas na porta e descobriu um menino e uma menina em pijamas, que, curiosos, o observavam. Chamou-os, mas ambos apenas abanaram a cabeça, com timidez. Parecia que uma criança tinha seis e a outra sete anos de idade. Uma delas tinha dois den­tes da frente faltando e a outra, dentes novos.

Birger teve logo uma idéia. Pegou duas moedas de prata no bolso e mostrou-as para as crianças, tentando-as a se aproximarem para pegá-las. Ambas vieram, sentaram-se nos seus joelhos e a cada uma ele deu a prometida moeda.

— Que tipo de espíritos da noite vocês são que ainda não estão dormindo a esta hora? — perguntou ele, na linguagem popular, mas recebeu de volta apenas olhares de incompreensão. Daí ele fez a mesma pergunta, mas desta vez em linguagem lübeckiana. E logo recebeu como resposta um monte de perguntas. As duas crianças que­riam saber se ele era guerreiro do rei, se tinha vindo para libertar Lübeck e se podiam ver a sua espada enorme. Birger deixou-se logo persuadir, puxou cautelosamente a espada e colocou-a deitada na mesa, entre as jarras de cerveja, avisando-as para terem cuidado com a lâmina. Descobriu, então, que ainda havia um pouco de sangue fresco nela, junto da empunhadura. Limpou a lâmina logo com uma das mãos, enquanto que, com a outra, fazia passar a unha da mão do garo­to pelo fio, deixando um risco na unha. Logo a menina quis passar pela mesma experiência do irmão.

Elof, que voltava de roupas secas, ficou logo exasperado e surpre­so ao ver as crianças sentadas cada uma num dos joelhos de Birger e cavalgando-o como se fosse num cavalo, mas logo se tranqüilizou diante do sorriso de felicidade no rosto cheio de cicatrizes do seu irmão. Também não foi para ele necessário intervir com dureza, por­que as crianças, assim que notaram a sua presença, saltaram rápido dos joelhos de Birger e correram descalças pelo chão de cerâmica da sala e desapareceram pela porta soltando risadas.

— Acho que encontrei os primeiros pequenos folkeanos nascidos em Visby — brincou Birger. — Como se chamam?

— Gerhard e Hilda — respondeu Elof, suspirando, e de repente o seu rosto se iluminou. — Elas constituem uma grande alegria para mim, como todas as crianças quando nascem, mas, antes disso, sem­pre são uma grande preocupação.

O que Elof queria dizer com isso não era fácil de imaginar, a não ser que fosse um convite para falarem amenidades antes de entrarem nas grandes questões. Enquanto Elof enchia os copos de cerveja, Birger hesitou entre continuar na linha de pensamento de Elof ou entrar diretamente nos assuntos importantes que o tinham trazido a Visby. Decidiu que Lübeck podia esperar meia hora, já que era verda­de, como Elof havia dito, que eles não se viam há dez anos.

— O que é que você quis dizer ao mencionar que duas vidas ino­centes podem causar problemas antes de nascer? — perguntou ele ao pegar o seu copo de cerveja.

— Isso depende muito, infelizmente, de quem for a mãe — mur­murou Elof, levantando o copo para um brinde com o irmão. Os dois beberam em silêncio. Birger não quis perguntar nada mais, esperando apenas que o irmão continuasse sua explicação.

— Gerhard e Hilda nasceram do meu casamento com Hanelore Kopf, filha de um dos mercadores mais ricos de Visby — continuou Elof. — O pai dela está aborrecido e se sente traído pelo fato de ter acreditado que estava casando a filha não apenas com os poderosos folkeanos do continente, mas também com uma fortuna enorme. Podia parecer isso mesmo, enquanto o senhor Eskil e a sua mulher, a senhora Bengta, eram os donos desta casa. Mas quase tudo o que havia em prata e em barcos foi parar nas mãos dos herdeiros.

— Quer dizer que o mercador Kopf está de mau humor — disse Birger. — Ele conseguiu casar a filha com um folkeano, o que pode ser considerado muito importante no futuro, mas não com a riqueza que ele esperava.

— Isso mesmo — confirmou Elof. — Mas acontece também que Hanelore é uma mulher instável em muitos aspectos. É uma boa mãe, amorosa. Mantém a casa em ordem, mas escrever ela não sabe e dos negócios não entende nada.

— Assim como a minha mulher não pode entrar na guerra — res­pondeu Birger, irritado. — E o que é que tem isso? Seria mais da sua parte, do que da sua mulher, tratar dos assuntos que competem ao homem, certo? A não ser que você prefira gastar o seu tempo nas tabernas, entre a ralé?

— Não, não. Não foi isso que eu quis dizer — reagiu Elof, receo­so. — Escute até o fim, você vai entender melhor. Há um ano aproxi­madamente, recebi no serviço a filha única de um outro mercador de Visby atingido duramente por uma desgraça. Ele perdeu tudo o que possuía em dois naufrágios, um seguido do outro, e os credores con­seguiram tirar-lhe até a casa onde morava. E me pediu para ajudar sua filha, Helga, que ele educou como se fosse um menino e que, segun­do dizia, era muito boa para escrever e fazer contas, sabendo como manter atualizados os livros de contabilidade. Eu a coloquei a meu serviço e tudo aquilo de que o pai dela se jactou se mostrou ser verda­de. Com Helga voltou a haver luz na sala de contas. E tudo aquilo que estava em desordem logo ficou arrumado e organizado. Ela chegou como uma bênção a esta casa.

— E daí? — indagou Birger, vendo que Elof hesitava em conti­nuar. — Afinal, se você tem agora uma abençoada mão para ajudá-lo no lugar mais importante da casa, a sala de contas, do que é que tem a reclamar e a se lamentar?

— É que eu estou completamente apaixonado por ela, e ela por mim. Ela está esperando um filho meu — respondeu Elof, desviando o olhar para o lado e pegando o copo de cerveja, que despejou goela abaixo, de uma só vez, respingando na sua camisa de veludo já man­chada.

— Então estamos os dois no mesmo barco — respondeu Birger em voz baixa e nem um pouco zangado, como Elof receava ao colocar o copo de volta na mesa. — Eu tenho uma mulher que me é muito querida e que se chama Signy. Foi a primeira mulher na minha vida. Com ela tenho um filho, que se chama Gregers, e duas filhas, de nomes Sigrid e Ylva. Mas, na verdade, uma amante e três crianças bas­tardas. Em Bjälbo tenho a minha esposa, Ingeborg, irmã do rei Erik, e com ela três filhos, Valdemar, Magnus e Erik, e uma filha, Rikissa. Separação em tudo, até das discussões. Não se trata da melhor das situações, mas pode-se viver com isso. E você também pode, e deve, conviver com isso. Você e eu não somos os primeiros, nem seremos os últimos, a passar por essa inconveniência.

— Inconveniência? Você chama essa infelicidade de inconveniên­cia, como se fosse uma coisa fácil de contornar? Você não entende em que perigo eu me encontro? — explodiu Elof, desesperado.

— Não — disse Birger friamente. — Conte qual é o perigo e logo vamos contorná-lo.

— O mercador Kopf quer me arrastar para a assembléia da cida­de, exige indenização, quer invalidar o casamento e receber de volta o dote da noiva, uma punição nada suave! O pai de Helga também pode me arrastar para a assembléia da cidade e exigir o que resta da minha casa. Como a sua situação é difícil, não vai hesitar. Mas apesar de toda essa infelicidade, tenho momentos de alegria com as minhas inocen­tes crianças, assim como curtos momentos de prazer com Helga! Isto não é uma inconveniência qualquer, essa é a grande infelicidade da minha vida, que se transforma em nuvens negras sobre o mar.

— O que lhe falta é apenas dinheiro — respondeu Birger seca­mente. — Leis sobre rameiras e outras não vigoram para homens ricos, só para os pobres. Acontece o mesmo em relação a indenizações exigidas por pais mal-humorados. Essas ameaças só servem para os pobres. Você tem tudo a ganhar e nada a perder. Por isso é que esta­mos os dois no mesmo barco. Pelo menos no que diz respeito à ques­tão de melhorar a riqueza.

— Eu não entendi nem uma palavra do que você disse, meu que­rido irmão — sussurrou Elof, resignado, com lágrimas nos olhos. —

O comércio com Lübeck está suspenso. Estou perdendo dinheiro todos os dias. Em breve os ratos vão comer o que resta da minha casa. E aí você diz que o que me falta é apenas dinheiro? E o que é isso de nós dois no mesmo barco? Você é um homem rico em terras, segundo entendi, e até que ponto se preocupa comigo? Você não veio nem ao meu casamento e fez com que eu parecesse um fanfarrão diante do mercador Kopf e de todos os seus parentes que esperavam ver o mare­chal do reino no séquito do casamento. E agora você fala despreocu­padamente sobre minhas pequenas inconveniências!

— Calma, meu irmão, e acredite em mim — respondeu Birger suavemente, enchendo de cerveja os copos dos dois para ter tempo e tranqüilidade antes de começar a explicar. — Eu queria vir ao seu casamento, e com um bom séquito — continuou ele. — Não sou tolo a ponto de não entender o desserviço que estaria prestando ao meu irmão. E o que poderia ser mais importante? A este respeito, apenas uma coisa. Há dez anos ocorreu uma rebelião na Tavastland, com o apoio de Novgorod, e eu tive que ficar lá por mais de dois anos para restabelecer o poder no nosso reino e organizar e transportar sveas sem terra como colonizadores. Contra a vinda ao seu casamento estava o fato de eu ter que abandonar a minha carreira de marechal e de o nosso reino perder as suas novas terras do outro lado do Mar Báltico. Por isso tive que deixá-lo nessa situação penosa, o que foi para mim uma decisão nada agradável.

— Você é um homem de guerras, eu entendo. E não estou culpando-o por isso, assim como lhe peço desculpas pelas minhas palavras desesperadas — comentou Elof tristemente. — Mas eu lhe peço também para entender o meu desespero. A minha vida, hoje, não vale quase nada.

— É isso que nós temos de mudar — reagiu Birger, incentivando Elof e sorrindo quando este levantou o seu copo de cerveja. — Porque agora nós vamos libertar Lübeck das garras do rei Erik Plogpenning, e, se formos bem-sucedidos, nem você nem eu vamos deixar de ganhar com isso.

— Você veio com um exército? — exclamou Elof, de queixo caído.

— Não, não vim com exército nenhum. Mas estou com dez enjoados ferreiros forsvikianos, uma partida de ferro e outra de ouro. E é tudo — respondeu Birger, cheio de segredos.

— Então o desapontamento vai ser grande quando você se encon­trar conosco no conselho da cidade amanhã — suspirou Elof. — Esperávamos que o rei Erik nos mandasse ajuda completa; esperávamos que vocês, no conselho do rei, entendessem o significado de Lübeck cair nas mãos dos dinamarqueses. E então você chegou sozinho!

— Há menos de dez dias chegou ao rei Erik o pedido de ajuda de Visby — respondeu Birger lentamente, bufando como se tivesse que começar a explicar coisas simples demais. — Vocês querem que socorramos Lübeck, uma cidade que está cercada há dois meses, não é verdade?

— Sim, essa era a nossa humilde esperança dirigida ao rei — con­cordou Elof.

— Estamos agora no final de setembro — continuou Birger. — Só poderíamos mandar uma frota de guerra para Lübeck na primave­ra e, então, seria tarde demais. Uma vez, na Tavastland, e na época do Natal, nós tomamos um pequeno castelo fazendo-lhe o cerco e ven­cendo-o pela fome. Não queríamos incendiar o castelo, pois isso iria queimar um local protegido, necessário para passarmos o inverno. O castelo, além disso, estava localizado num trecho que era difícil tomá-lo de assalto; a ação iria custar muitas vidas. Portanto, com dois meses de cerco os defensores ficaram esfomeados.

— E o que é que isso tem a ver com Lübeck? — interrompeu-o Elof, em dúvida.

— Bastante — confirmou Birger, lenta e tristemente. — Quando tomamos o castelo, nada havia lá, nem um cão ou gato vivo. Muitos cadáveres demonstravam ter sido até comidos. E os sobreviventes esta­vam tão fracos e confusos que nem sequer fazia sentido dar a eles salvo-condutos. Deve estar acontecendo a mesma coisa em Lübeck, ou vai acontecer dentro em pouco. Ou vamos socorrê-los em duas semanas, ou, então, eles vão cair.

— E como é que vamos fazer isso sem um exército? — perguntou Elof, curioso.

— Com dinheiro, que é o mais importante — respondeu Birger, fazendo uma parada provocadoramente longa antes de explicar o seu plano. — Os muros de Lübeck são fortes demais para os dinamarque­ses, por isso eles se limitaram a cercar a cidade, montando uma barrei­ra na entrada do porto com uma corrente de ferro sobre o Rio Trafven. Essa é a situação. Se conseguirmos enviar uma frota de bar­cos com comida, passando pela corrente até Lübeck, os sitiantes estarão perdidos. Não vão agüentar o inverno. Você está entendendo?

— Alguma coisa, mas acho que poucos mercadores de Visby estarão dispostos a mandar os seus barcos sem guerreiros contra o exército dinamarquês — murmurou Elof, intrigado.

— É isso que eu penso também — reagiu Birger. — Por isso, pre­ciso da sua ajuda para comprar todos os barcos que você puder arranjar e carregá-los com carne, peixe seco e grãos. Tenho ouro suficiente, do rei e meu. E para você eu empresto metade do meu ouro.

— Então vamos nos arriscar a perder tudo — objetou Elof, cheio de medo.

— É verdade — confirmou Birger. — É isso que acontece na guerra. A gente se arrisca a perder tudo, a vida e os bens. Mas aquele que não arrisca também não ganha nada. Pense no contrário desta vez! Nós socorremos Lübeck com dez galeras cheias de comida. Acho que, nesse caso, você conseguiria um bom preço pelas mercadorias em Lübeck, visto que, suponho, o preço dos últimos gatos e cães já esteja bastante elevado.

— Iríamos receber o dinheiro do investimento multiplicado por dez — calculou Elof com um repentino brilho de esperança nos olhos. — Mas o que é que você vai fazer com os seus ferreiros?

— Eles vão revestir as quilhas dos barcos com ferro — disse Birger, sorrindo. — Vamos arrebentar a corrente com os barcos. Isso significa que quanto mais barcos você comprar e mais pesados fica­rem, melhor. E maior será a possibilidade de lucro. O perigo não está em investir muito, mas em investir pouco demais.

— Você está nos propondo um negócio muito estranho, meu irmão — disse Elof, pensativo. — Ou tudo ou nada. A morte ou a riqueza, e mais nenhuma inconveniência, que é como você descreveu a minha triste situação.

— Isso mesmo. Ou tudo ou nada tanto para mim como para você — concordou Birger. — Lá no continente está o jarl Ulf Fasi, pedin­do a Deus e a todos os santos que eu seja malsucedido e, de preferên­cia, que morra lentamente numa prisão dinamarquesa. Mas se tiver­mos sucesso, você e eu, será mais do que riqueza o que nós vamos ganhar. Lübeck vai ficar agradecida para sempre. Pense no que signi­ficará a isenção de taxas alfandegárias entre Lübeck, Visby e Söderköping durante dez anos para o nosso comércio. Para não falar do que significará um privilégio especial para você nesse comércio...

 

Quando o degelo aconteceu, já bastante tarde, na primavera seguinte, Ingrid Ylva, finalmente, pôde enterrar no abençoado cemitério de Bjälbo o corpo da sábia ervanária Jorda. Para Ingrid Ylva foi mais um alívio do que um sentimento de perda. Durante muitos anos, desde aquela tarde em que Jorda e Vattna chegaram como imigrantes em Ulvåsa, ela se tornara sua protetora pelo preço baixo para as três de uns poucos sussurros e mexericos.

Tudo poderia ter terminado muito pior, visto que a capacidade das duas mulheres sobre a natureza de Deus era bem-vinda quando se tratavam de nascimentos problemáticos e de febres insistentes, mas a gratidão e a memória das pessoas eram curtas. Se as vacas adoeciam e precisavam ser abatidas, sussurrava-se que era por causa de bruxaria e feitiçaria. Se morria alguém com grande dor de estômago e que Jorda e Vattna não conseguiam curar, logo se dizia que as ervas das duas, em vez de ajudar, tinham sido a causa da morte. Com uma proteção menos forte do que aquela oferecida em Bjälbo pela mãe do jarl da família folkeana, Vattna e Jorda teriam que fugir para qualquer outro lugar para não serem executadas como bruxas. E logo teriam que fugir novamente pelos mesmos motivos. Em Bjälbo, elas puderam viver em segurança os seus últimos vinte anos de vida e, agora, descansavam lado a lado naquela terra abençoada. Nada mais podia ameaçá-las.

O legado que deixaram era muito grande. Toda a sabedoria que elas transmitiram para Ingrid Ylva ficou conservada em vidros produ­zidos em Forsvik e colocados em prateleiras longas em uma das torres da igreja. Uma sabedoria conservada para curar ou para matar.

Em Bjälbo, os amanuenses fizeram como Ingrid Ylva mandou e a missa de corpo presente foi longa, assim como as orações cantadas por Vattna e Jorda.

Na noite da missa de corpo presente por Jorda, a Virgem Maria apareceu para Ingrid Ylva na sua alcova, com um manto vermelho e com a coroa de rainha na cabeça. Ela ficou quieta, com o manto ver­melho, aos pés da cama, mostrou um sorriso suave e elevou as suas mãos pequenas e brancas, juntando-as como se quisesse rezar. Das Suas mãos surgiu, então, uma luz forte que iluminou todo o aposen­to. Primeiro a luz era branca, mas foi transformando-se, suavemente, em dourada. À medida que a cor dourada foi ficando mais forte, transformou-se em uma coroa de rei, que a Virgem Maria, primeiro, estendeu para Ingrid Ylva e, depois, para cima. Em seguida, largou-a no ar, ficando a coroa pairando, livremente, bem por cima da cama.

A Virgem Santa abriu o seu manto vermelho e debaixo dele estavam os netos de Ingrid Ylva, o louro Valdemar e Magnus, de cabe­los escuros. Com os braços envolvendo os dois garotos, Ela se elevou depois em direção ao teto e desapareceu, continuando com os garotos sob a proteção das Suas mãos.

A coroa dourada do rei pairou por alguns momentos sobre a cama de Ingrid Ylva e iluminou todo o quarto, de modo que parecia até que se tratava de um dia de verão, para, de repente, apagar-se e a escuridão total voltar.

Ingrid Ylva sentou-se na cama, bem acordada na escuridão. E, então, escutou a voz suave da Virgem Santa por toda a sala e dentro e em volta de si:

“Antes de chamá-la para junto de mim, Ingrid Ylva, você deve se lembrar de uma coisa. Enquanto conservar a cabeça erguida, vertical, nada de mau atingirá os folkeanos. “

Nessa noite Ingrid Ylva não conseguiu dormir muito. Aquilo que a Virgem Santa disse e lhe mostrou em parte era fácil de entender, mas, em parte, também, difícil de esclarecer. Que a coroa do reino iria para Valdemar, depois de Erik Eriksson, Ingrid Ylva achou que já sabia, e com a divina proteção que, agora, a Santa Virgem estava demonstrando, a sucessão não poderia acontecer de outro jeito.

A família erikiana não existia mais. Fora engolida pelos muitos casamentos realizados com os folkeanos, justamente como Birger tinha previsto há mais de vinte anos. Depois do rei Erik não havia mais nenhum pretendente à coroa da família erikiana, que, de um jeito ou de outro, não fosse folkeano e, então, a questão era saber ape­nas qual dos sobrinhos do rei seria o primeiro entre os folkeanos. Os filhos de Birger, Valdemar e Magnus, não tinham apenas a vantagem de a sua mãe ser irmã de um rei, mas também o fato de a sua avó, Ingrid Ylva, ser de família real.

Que o rei Erik Eriksson, o Deficiente, viesse a ter algum filho era uma possibilidade em que Ingrid Ylva acreditava tão pouco quanto qualquer outro cidadão do reino. Quatro anos antes, o seu conselhei­ro tinha encontrado a noiva certa, no caso de se pensar somente em reprodução, tal como se fazia em Forsvik em relação a garanhões e éguas. O rei Erik casou-se, então, com Katarina Sunesdotter, e a idéia não fora nada ruim.

Pelo lado do seu pai, o cavaleiro Sune, de Älgarås, Katarina era considerada de alta estirpe, filha de um dos heróis de Gestilren. Mas depois da vitória o cavaleiro Sune, que na época era tido como um dos ousados jovens folkeanos, muito amigo de Arn Magnusson, viajou com um esquadrão de parentes diretamente para o mosteiro de Vreta, embora ainda não estivesse totalmente recuperado dos ferimentos contraídos no campo de batalha.

No mosteiro de Vreta estava enclausurada a sua amada Helena, filha do rei Sverker, que ele tinha acabado de matar no campo de bata­lha. Ele, então, liberou-a da clausura, quando ela correu para ele, embora as más línguas tenham falado de seqüestro. Então, eles caval­garam juntos para Älgarås e passaram a viver como fazendeiros. Helena deu a ele quatro filhas.

Foi uma bonita história de amor, além disso muito conveniente, visto que o casamento de um folkeano com a filha de um rei não podia ser considerado como um enlace desprezível. Mas o que a história não conta e o que Ingrid Ylva, muito sensível, jamais pergun­tou, ao se encontrar com Sune Folkesson ou Helena Sverkersdotter em banquetes reais ou na festa de Natal em Bjälbo, era se ele tinha confessado para ela que fora ele, junto com Arn Magnusson, que matara o pai dela, o rei Sverker, em Gestilren.

De qualquer forma, e passando por cima desse caso, a verdade é que a abençoada filha Katarina, de Sune e Helena, não conseguiu gerar um filho. Talvez tivesse ficado tempo demais no convento, e ainda por cima em Vreta, onde a sua mãe, Helena, sofrera por amor. Até que um dia Katarina foi retirada do convento e levada para o aldeamento real de Fyrisvallen para se casar com o rei.

O convento podia causar tanto dano quanto benefício para qual­quer jovem. E quanto mais Ingrid Ylva pensava no assunto, mais ela chegava à conclusão de que a jovem Katarina era uma daquelas que tinham sofrido.

Helena jamais deveria tê-la obrigado a ficar em Vreta, onde ela própria estivera presa como jovem perdida de amores. Portanto, só havia uma explicação. Katarina era uma das muitas jovens que fica­vam enlouquecidas diante do medo de Deus já desde criança, perma­necendo constantemente em oração, pagando penitências com o chi­cote e o cilício, e dizendo receber a constante visita noturna da Virgem Maria. Essas jovens tinham uma tendência a se sentir infiéis caso dor­missem nuas até mesmo com o seu marido, em união abençoada por Deus, achando que só pertenciam a Cristo. Era lamentável que isso acontecesse com as mulheres jovens. E, no entanto, acontecia com muita freqüência.

Se Katarina tivesse dado à luz um filho, este seria o próximo rei do país, por ser erikiano por parte do pai e folkeano e sverkeriano por parte de mãe. Um pretendente ao trono mais qualificado seria impos­sível encontrar.

Mas assim não iria acontecer. Sem um único filho durante quatro anos, isso indicava o que aconteceria no futuro. O rei Erik iria morrer sem ter filho homem. O garoto Valdemar herdaria a coroa.

Por isso, a Virgem Santa teria mostrado para Ingrid Ylva uma coisa de que esta já tinha conhecimento. A revelação, entretanto, era muito mais difícil de entender quanto às palavras da Mãe de Deus: “Enquanto conservar a cabeça erguida, vertical, nada de mau atingirá os folkeanos”.

Andar de cabeça erguida era uma coisa que Ingrid Ylva sempre fazia, sem se envergonhar e sem que alguém pensasse em criticá-la por isso, uma vez que ela sempre se portou assim. Mas “na vertical”?

Presumivelmente a Virgem Santa quis lembrar-lhe que a sua vida ainda não estava para terminar, que ela devia continuar vivendo ainda por algum tempo e que não devia abaixar a cabeça, desanimada, uma última vez.

Era isso! Quem poderia saber melhor do que a Mãe de Deus a res­peito dos recantos mais recônditos do coração do ser humano e pres­sentir os seus pensamentos mais sigilosos? E Ela tinha penetrado no íntimo da Sua humilde súdita. Ela sabia de tudo. Isto porque Ingrid Ylva, bem lúcida, há algum tempo pensava estar a sua vida por um fio, que não tinha muito mais para ela fazer nesta vida terrena e a libertação da sua alma já tinha passado da hora.

Ela era a única que restava das quatro viúvas que, antes, tinham gerido o reino. O seu cabelo tinha começado a embranquecer, no mesmo ritmo que o de Birger. A luta pelo poder no reino, na visão de Ingrid Ylva, tinha terminado e eram justamente os seus netos que, finalmente, o tinham em suas mãos.

Ela estava perdendo a visão, de modo que era difícil continuar o trabalho na roca, feito geralmente nos momentos de solidão. Também já andava um pouco encurvada e as suas mãos às vezes tremiam desa­jeitadamente. Aquilo pelo que ela tinha vivido fora alcançado. E com isso nada mais importava na vida terrena. Era assim que ela pensava.

Mas a Virgem Maria ordenara-lhe pensar de forma diferente. Por algum tempo ainda ela precisava manter a sua cabeça na vertical.

 

Quando voltou de Söderköping com as primeiras embarcações flu­viais da primavera, Birger chegou a Ulvåsa com três arcas pesadas, exi­gindo cada uma a força de quatro homens para ser descarregada. Birger havia passado uma única noite alegre em casa do seu irmão Bengt, o homem de leis, e sua esposa Sigrid, a Linda, que continuava a fazer jus ao seu apelido, embora o seu traseiro tivesse ficado mais largo do que o de uma égua.

Por esse motivo foram Bengt e Sigrid que, no reino, ouviram em primeira mão a maravilhosa saga de como Birger entrou numa guerra com apenas alguns ferreiros e duas arcas de ouro para vencer a Dinamarca e salvar Lübeck. E voltar como vencedor não com duas, mas com três arcas de ouro. Agora ele estava com pressa de chegar ao castelo real de Näs. Mandou alguns cavaleiros para Bjälbo, a fim de trazerem carroças para transportar o ouro, e escudeiros folkeanos para acompanhá-lo, fazendo a sua segurança.

Birger ainda passou por Bjälbo no seu caminho para Näs, mas ficou apenas um dia para abraçar os filhos, dormir com a mulher, Ingeborg, e encontrar-se com a mãe, Ingrid Ylva, que, para seu espan­to, havia mudado da casa denominada Trädgården, “o jardim”, para uma sala simples na torre da antiga igreja de Bjälbo. Na realidade, essa sala, antes, nos tempos de Birger Brosa, era usada para as assembléias da família folkeana e agora tinha sido limpa e repintada de branco, mas mesmo assim podia ser considerada uma estranha moradia.

A explicação da mãe, dizendo que ainda precisava viver por mais alguns anos e que dormiria melhor se fosse o mais perto possível das forças divinas da igreja, ele não chegou a levar a sério. E a explicação dela de que precisava manter a cabeça vertical em favor dos folkeanos, segundo uma mensagem que veio até ela por meio de uma revelação da própria Virgem Maria, provocou uma gargalhada por parte de Birger, e a reação de que, na pior das hipóteses, mandaria que a enter­rassem de pé, na vertical.

Na hora ela ficou irritada e ralhou com ele, de uma maneira que só ela mesma, atualmente, entre todas as pessoas no mundo, se atreve­ria a fazer. Mas Birger logo a tomou nos braços e pediu desculpas, pro­metendo organizar um grande banquete assim que voltasse do castelo real de Näs, onde teria que transmitir muitas notícias sobre a libera­ção de Lübeck.

A respeito da vitória e de Lübeck Ingrid Ylva não estava disposta a ouvir nada, apesar das muitas tentativas de Birger. Ela disse que já sabia antecipadamente que ele venceria, e desta vez pela razão em especial de ter levado consigo a divina espada de Arn Magnusson. Ele então ficou em silêncio, abraçado a ela, que agora parecia leve como uma pena, embora ainda fosse uma mulher de aço.

Se Ingrid Ylva não tivera paciência para escutar como a maravi­lhosa vitória em Lübeck tinha sido obtida, sem um único cavaleiro e sem um único arqueiro, em compensação os homens do rei, na gran­de sala do conselho, na torre oriental do castelo, estavam mais do que dispostos a ouvir tudo o que Birger tinha para lhes contar.

E foi considerado um verdadeiro milagre quando ele mandou entrar as duas arcas de ouro e as mostrou para todos. Eram justamen­te as duas arcas de ouro que o rei e o conselho colocaram à disposição de Birger para essa desesperada e quase impossível tentativa de liber­tar a cidade do cerco dos dinamarqueses. As arcas foram trazidas por oito homens e colocadas em cima da mesa de carvalho do conselho, no meio da sala. Birger, então, abriu a fechadura de ambas, fez uma reverência diante do rei e disse estar ali, de volta, todo o investimento feito por Sua Majestade. Além disso, ele trazia tratados de comércio que tinha negociado em Lübeck durante todo o inverno. Todos os principais portos do reino estavam agora livres de taxas alfandegárias na entrada e na saída de Lübeck durante dez anos, a contar daquele momento. Para aqueles que soubessem fazer contas, acrescentou ele, esses acordos significavam muito mais riquezas do que aquelas expos­tas ali na mesa.

O rei foi o primeiro a fazer as perguntas que todos no conselho estavam mais do que impacientes para ver respondidas. Como é que uma vitória que parecia um milagre de Deus tinha efetivamente ocor­rido?

Birger avançou então calmamente, sorrindo, para o lugar do marechal, abaixo da cadeira ligeiramente elevada do jarl, e sem timi­dez, totalmente à vontade, sem necessidade de que lhe pedissem mais uma vez, começou logo a contar a história da libertação de Lübeck.

Contou que ele chegara de Visby com cinqüenta embarcações, mas sem um único homem de guerra a bordo. Em contrapartida, os barcos tinham as quilhas revestidas de ferro e estavam com muito peso. E essa foi a única arma necessária desta vez. Os dinamarqueses sitiantes à volta de Lübeck puderam apenas ver a frota de Gotland chegar pelo mar sem nada fazer a não ser pedir a Deus que mandasse um vento sul. Mas era outubro, o mês dos ventos tempestuosos do norte. O vento logo ficou favorável e, então, todos os barcos de qui­lhas reforçadas investiram ao mesmo tempo contra as correntes que impediam a entrada no porto. E as correntes se quebraram como se fossem fios de linho.

Do lado de fora dos muros da cidade, os dinamarqueses patina­vam na lama do outono e viam seu estoque de mantimentos acabar. O período frio e chuvoso do inverno estava se aproximando e eles seriam obrigados a sentir o aroma das refeições noturnas que enchiam o estô­mago dos habitantes da cidade. E enquanto os sitiantes se deitariam na lama fria, os sitiados dormiriam em ambientes secos e aquecidos. Não foi difícil entender as razões que levaram os dinamarqueses a desistir e a voltar para casa.

Aquilo que Birger não contou e que ninguém se lembrou de per­guntar foi sobre o bom negócio que ele fez vendendo peixe seco e carne salgada para uma cidade rica, mas esfomeada. E as vantagens que o irmão de Birger, Elof, agora um dos homens mais ricos de Visby, tirou dessa viagem. A esse respeito também ninguém pergun­tou nada. Isto porque fazer perguntas indiscretas a um homem que tinha voltado para o rei com todo o tesouro de guerra e, ainda por cima, com uma série de tratados abençoados, seria impensável, até mesmo para um jarl aborrecido e desconfiado como Ulf Fasi. Tudo o que o jarl pôde fazer o tempo todo foi tossir e se remexer na sua cadei­ra, enquanto Birger falava da sua vitória miraculosa, com a comida sendo a única e decisiva arma.

Mas essa reunião do conselho do rei, que apenas estava com a meta­de dos conselheiros por ter sido convocada às pressas, incluiu uma sur­presa inesperada para Birger. Assim que a alegria por tudo o que ele tinha a dizer amainou, o rei Erik, gaguejando e inseguro, pediu silêncio e disse que depois de todas as boas notícias, infelizmente, estava na hora de ouvir as más. E então apontou para o seu jarl, Ulf Fasi, que, tossin­do e de rosto pálido, se levantou e falou de mau humor.

Os homens de Uppland tinham se rebelado e recebido o apoio das províncias da Dalicárlia e de Västmanland. O seu líder, lamentavel­mente, era Holmgeir Knutsson, filho de Knut Holmgeirsson, que fora imediatamente executado por Birger Magnusson.

O jovem e nobre Holmgeir gozava da amizade do jarl, confessou ele desnecessariamente, visto que todos no conselho sabiam. Por isso ele não podia fazer outra coisa senão recomendar, com pesar, que a rebelião em Nordanskog teria que ser dominada com rigor e em definitivo. Não via qualquer outra saída para esse conselho real. Para ele, era muito triste ouvir dizer que o jovem Holmgeir teria dito que não descansaria enquanto a coroa que fora de seu pai, Knut Holmgeirsson, não fosse colocada na sua cabeça e que o deficiente Erik Eriksson não voltasse a ser exilado de novo, abandonando mais uma vez o reino.

Tossindo e lançando, de vez em quando, olhares traiçoeiros para Birger, como se este fosse o culpado pela rebelião, o adoentado jarl começou usando muitas palavras para, mais uma vez, contar a mesma história. Até os seus pensamentos pareciam descoordenados. O certo é que a atmosfera na sala do conselho esfriou tremendamente e aqui­lo que pouco antes parecia ser uma brisa de verão, cheia de promessas, se transformou em ventos de um inverno rigoroso.

O primeiro pensamento de Birger foi de desespero. Afinal, acaba­va de chegar em casa após uma guerra nada sanguinária e já tinha que sair novamente em campanha para outra guerra, desta vez na expecta­tiva de ser muitíssimo sangrenta. Quando o seu primeiro desaponta­mento amainou e ele já não escutava mais as palavras, entre acessos de tosse, do rancoroso jarl, afinal o mais importante já tinha sido dito, Birger começou a sentir-se de novo mais animado.

Os habitantes de Uppland tinham levado dez anos para esquecer os ensinamentos do encontro anterior perto de Enköping, no qual morreu até o último homem, com a exceção dos bem-nascidos e alguns fugitivos com sorte. Durante os primeiros anos depois de Enköping, a província de Uppland foi transformada em uma terra de muitas viúvas e homens com pouca vontade para guerrear. Mas aqueles que eram jovens demais para seguir para a morte sob a lide­rança de Knut Holmgeirsson tinham crescido ouvindo histórias cada vez piores de coragem e de honra. E agora a história se repetia.

Esse era o lado ruim da questão.

O lado bom era o fato de haver agora quase cinqüenta esquadrões folkeanos no reino. Isso significava um total de oitocentos cavaleiros. Metade dessa força seria suficiente para derrotar qualquer exército em toda a Escandinávia. Até mesmo os Cavaleiros da Espada iriam pen­sar duas vezes antes de enfrentar um adversário como esse. Mas isso era uma coisa de que o jovem Holmgeir nada sabia, tampouco o pre­sunçoso Ulf Fasi.

Dois ou três meses era o que demoraria a obrigar Holmgeir e a sua gente a se juntar. Depois a sua cabeça e a dos seus homens cairiam fácil. Era na verdade uma questão resolvida, embora Birger pensasse que iria ter um pouco de tranqüilidade para recomeçar as suas ativida­des como jarl da família, em que muito tinha ficado por fazer nos últimos anos. Mas o lado bom da questão sobressaía cada vez mais ao repensar o assunto. Agora que o reino estava cheio de pretendentes ao trono e todos eles, mais ou menos, de sangue folkeano, não faria mal nenhum dar uma varrida na horta, limpando-a de uma vez para sem­pre. Essa rebelião devia ser esmagada de forma dura e simples. Depois viria, enfim, a paz.

Quando Ulf Fasi terminou a sua história, apesar de gaguejar e tos­sir, falando pela terceira vez ser necessário esmagar a rebelião, ele sentou-se, olhando fixamente para Birger com ares de inimigo, como se quisesse derrubá-lo com a força do pensamento.

Seguiu-se um longo momento de doloroso silêncio. A única coisa que se ouvia era o murmúrio de orações em latim por parte do arce­bispo Jarlerus.

O rei, por sua vez, olhou em volta, até que chegou à conclusão de que ninguém tomaria a palavra antes dele.

— Ouvi-vimos, para começar, essas bo-boas notícias do nosso mare-marechal — gaguejou ele, piscando os olhos. — Ouvi-vimos de-depois, as más notícias. O que nos di-diz disso o nosso mare-marechal?

— Nós temos uma rebelião a enfrentar — disse Birger depois de esperar, sem alterar a expressão do rosto, o final das palavras do rei. — Eu concordo com o nosso jarl de que há apenas uma coisa a fazer. E se Vossa Majestade quiser assumir a responsabilidade, essa rebelião será esmagada até o outono. Depois disso acredito que ninguém mais vai se atrever a tentar de novo se rebelar, se Deus quiser, durante o resto do reinado de Vossa Majestade.

— O jarl é da me-mesma opinião? — perguntou o rei de chofre.

— Não, senhor, não sou, Majestade! — respondeu Ulf Fasi, o rosto branco de raiva ou do esforço para conter a tosse. — Na verda­de, devemos conter esses jovens rebeldes, sem juízo, e esses campone­ses iletrados. Mas devemos demonstrar tolerância para com esses lou­cos, Majestade. O nosso reino tem sido por demasiado tempo o reino das vinganças. E a vingança sempre gera vingança. Por isso, na minha opinião de jarl, o castigo a ser aplicado contra esses revoltosos em Nordanskog não deverá ser liderado pelo nosso marechal, Birger Magnusson. Prefiro mandá-lo contra os estrangeiros, mas não contra os nossos. Qualquer um serve, mas não o marechal contra Uppland, essa é a minha última palavra a respeito do assunto!

Fez-se silêncio na sala e a maioria dos conselheiros preferiu desviar o olhar. Birger ficou surpreso diante da sua própria calma. Houve um tempo em que ele se descontrolaria e teria dado razão às palavras trai­çoeiras de Ulf Fasi, de que ele teria executado Knut Holmgeirsson quando, na realidade, tinha sido uma luta de homem contra homem. Reagindo como antigamente, ele iria jogar mais lenha na fogueira, entrando numa luta de palavreado que terminaria por lançar a reu­nião em total desordem, sem se chegar a qualquer decisão. Talvez isso fosse um sinal de que já estava ficando velho, quando nem sequer o seu coração batia mais forte em face dos rodeios de Ulf Fasi. Talvez isso fosse apenas conseqüência da enorme experiência adquirida em negociações entre amigos e inimigos, conhecimentos que lhe diziam que controlar-se era o caminho mais curto para a vitória, guardando para si todas as grandes palavras de exaltação e raiva. O rei não pode­ria tomar qualquer outra decisão senão a de esmagar a rebelião em Nordanskog, por muito que Ulf Fasi pudesse falar em defesa do jovem Holmgeir.

— De-de qualquer forma, te-temos que tomar uma de-decisão. Por isso, do-dou a palavra ao mare-marechal — disse o rei, concentra­do em fazer com que as palavras lhe saíssem corretamente da boca.

— Essa rebelião tem que ser contida como qualquer outra, e a esse respeito estamos todos de acordo — respondeu Birger em voz baixa. — Por nossa parte, já não vai ser difícil esmagar essa rebelião até o outono. Os rebeldes são jovens e ignorantes, estimulados por suas próprias palavras, não entendendo o poder superior que têm de enfrentar. São muitos, portanto, em nosso reino, que podem assumir o comando do nosso exército de cavalaria, e se esse pequeno detalhe pode alegrar o nosso jarl, é com muito boa vontade que eu me dedi­carei a outros assuntos que deixei de resolver durante os seis meses que fiquei preso no gelo, em Lübeck. Por isso, vou dar o comando da ope­ração a Nils Sigstensson, de Tofta, e a Gregers Birgersson, ambos fors­vikianos, com boa experiência de guerra, e, além disso, bons amigos, que podem dividir o trabalho entre si.

O rei não disse mais nada, talvez querendo evitar falar, mas ace­nou afirmativamente com a cabeça, não deixando dúvidas em nin­guém na sala de que concordava com o que fora dito.

O jarl Ulf nada podia objetar, uma vez que Birger havia concor­dado tão facilmente em abandonar o comando. E, por seu lado, Birger não estava interessado em prolongar a conversa. Quanto mais discutisse com o jarl Ulf mais este iria apresentar exigências de con­tenção, de tal maneira que, no final, iria querer convidar os rebeldes para um banquete de reconciliação, em vez de castigá-los.

O rei expressou, então, uma ordem, em poucas palavras, dizendo ser seu desejo que a rebelião fosse esmagada com a maior tolerância e que o líder Holmgeir fosse levado vivo para uma prisão no castelo de Nyköping.

Com isso a reunião do conselho terminou. E, a caminho da saída da sala da torre, Birger avançou direto para o seu irmão Eskil, o homem de leis, cutucou-o provocadoramente com o braço e lhe perguntou onde ele tinha perdido a língua, se, normalmente, era tão falador. Eskil murmurou apenas que havia muitas outras coisas que ele achava mais importantes do que castigar os rebeldes. E que ele gos­taria até de poder conversar mais calmamente com Birger a respeito dessas coisas mais importantes. Decidiram, então, viajar para o aldea­mento do homem de leis assim que o banquete em honra do conselho em Näs terminasse.

 

Na sala da casa-grande do homem de leis, Eskil voltou a ficar falador, quase como de costume. Mas ele parecia, de repente, estar mais velho e mais fraco, tossindo o tempo todo, enquanto andava de um lado para o outro, gesticulando, e, de vez em quando, pegando um perga­minho para mostrar a Birger. Dizia ter conseguido mais do que o cumprimento de uma ordem legal que ele e Birger tanto tinham dis­cutido durante muitos anos. Também tinha chamado o seu escrivão, um norueguês, para registrar a maior parte do que fora discutido. De qualquer forma, não conseguia ler andando, de modo que se aproxi­mou da mesa de leitura e desenrolou o texto, com um olhar de satis­fação dirigido para Birger, que estava sentado em uma cadeira da sala, divertido e com um sorriso condescendente nos lábios.

— Veja a nova lei que servirá de base legal para o nosso reino! — começou por dizer Eskil, explodindo de excitação. — É uma lei real e uma lei para o juramento do rei. Aquele que matar ou ferir alguém em sua casa, que seqüestrar ou violentar uma mulher, que matar ou ferir alguém em qualquer assembléia, ou indo ou voltando da igreja, ou ainda dentro desta, ou exigir vingança após reconciliação, ou ainda se se vingar de um parente que nada tiver a ver com o caso...

— Acho que você está querendo perseguir o seu próprio irmão com essas leis! — interrompeu-o Birger com uma gargalhada. — Mas pode ficar assim mesmo! Isso foi o que falamos e o que concordamos mandar escrever após muitos anos de discussão. Muito bem. E agora, o que vamos fazer com qualquer outro malfeitor culpado de qualquer dessas infrações?

— Esse homem perderá tudo o que tem como multa — continuou Eskil, insensível às brincadeiras do irmão. — E essa multa será dividida entre o soberano, as forças armadas e o autor do processo. Enquanto isso, o malfeitor ficará preso ou dado como fugitivo, ou até que o pro­cesso seja instaurado, ele terá que pagar quarenta marcos para o rei. E então, o que é que o meu querido Belisarius tem a dizer sobre isso?

— Se todos os homens livres forem convencidos a seguir essas leis, acabarão as vinganças por sangue e haverá ordem em nosso reino — respondeu Birger, pensativo. — Por enquanto está tudo bem claro e fácil de entender. É inteligente, também, essa divisão das multas ele­vadas entre as forças armadas, o rei e a vítima. Dessa maneira serão muitos os que vão estar a favor dessas novas leis, pelo menos até que sejam atingidos por elas. Mas, então, surge a questão decisiva: quem irá colocar essas leis em vigor?

— O rei, na próxima coroação — respondeu Eskil, breve. — A lei entrará em vigor em nome de Deus e por juramento do soberano. Essa é a única possibilidade.

— Então vamos ter que escolher um rei que faça o que nós quiser­mos — murmurou Birger, enrugando a testa. — Erik Eriksson está mais nas mãos de Ulf Fasi do que nas nossas. E ainda por cima o rei atual tem pouco mais de trinta anos e pode muito bem sobreviver a você e a mim.

— Isso sem dúvida é verdade — admitiu Eskil, dirigindo-se ao lugar onde estava o irmão e sentando-se pesadamente como se toda a excitação anterior tivesse desaparecido. — Você e eu já estaremos debaixo da terra, pelo menos eu, quando essas leis entrarem em vigor. Mas eu ainda acho que você deve mandar os seus filhos, Valdemar e Magnus, para junto de mim desde já, a fim de aprenderem sobre o assunto assim que tiverem um pouco mais de entendimento. Mais tarde um dos dois será coroado rei e jurará promulgar essas leis no momento da coroação.

— Você pensa como a nossa mãe — murmurou Birger. — Ambos dão como certo que Erik Eriksson não terá descendente homem, e Valdemar é quem irá herdar a coroa. Mas nós dois já sabemos de longa data que, nessa questão, nada pode ser dado como certo. Justo neste momento estamos com uma rebelião a enfrentar, criada por um pequeno pretendente ao trono no norte, em Uppland.

— Sim, sim, mas, se eu entendi direito, a questão será resolvida em breve — objetou Eskil.

— É claro — admitiu Birger. — Aliás, já mandei uma mensagem para Gregers e para Nils Sigstensson, quando ainda estava em Näs. Devem vir aqui para receberem as minhas ordens. Espero que você não tenha nada contra. Assim, vamos ganhar um pouco de tempo.

— Claro que não, claro que não, posso até fazer algumas sugestões de como deverão agir. Você sabe, agora existem novas maneiras de proteger os cavalos, com chapas de aço por cima do dorso e da cabe­ça, assim como no traseiro, onde você acertou com a espada no cava­lo de Knut Holmgeirsson, obrigando-o a cair.

— Eu sei disso, claro — reagiu Birger, gargalhando. — Agradeço-lhe pela amizade e por suas informações, mas gostaria de sugerir, com a maior humildade da minha parte, querido irmão, que você cuide das leis enquanto eu cuido das guerras. Creio que assim será melhor do que se fizéssemos o contrário.

Eskil aceitou a sugestão com uma gargalhada, encolheu os ombros e pediu desculpas, dizendo ser um homem do tipo que, desde tenra idade, sempre se acostumou a interessar-se por tudo entre o céu e a terra de Deus.

Birger também não tinha nada contra isso, mas achou que a opor­tunidade era boa para mudar de assunto e falar de uma coisa que tinha a ver com as boas leis do reino, embora à primeira vista pudesse pare­cer muito rebuscado.

Era preciso pensar apenas um pouco sobre a pequena guerra que estava por vir contra os rebeldes de Uppland para entender a questão. Em maio, os cavaleiros folkeanos iriam se reunir, desta vez para comba­ter rapidamente o inimigo com a cavalaria e sem grandes embates com a infantaria. De acordo com as ordens do rei, a vitória deveria ser conseguida com o menor número de mortes possível. Para isso o exército deveria se movimentar rapidamente de um lugar para outro, a fim de desmotivar a vontade de lutar do inimigo por meio de pequenas derrotas.

A cavalaria poderia passar por Örebro, sem qualquer tipo de opo­sição, seguir, depois, por Aros Ocidental, e chegar a Uppland por Enköping. A cavalaria poderia, assim, se movimentar livremente por todo o reino, mas, infelizmente, o mesmo poderia ser feito por qual­quer inimigo de fora, como também pelos internos.

Era preciso pôr um fim a essa fraqueza do reino. E, por isso, o poder real tinha de ser convencido a investir mais ouro e trabalho na reconstrução dos castelos, colocando-os em ordem. Örebro não podia continuar sendo uma cidade pela qual os exércitos, dali e de além-mar, pudessem passar a seu bel-prazer. Nem Nyköping. O mesmo devia acontecer na costa do reino. Kalmar e a nova cidade na entrada do Lago Mälaren deviam ter castelos reais, bem fortificados. A razão era simples. Por trás das leis do reino era necessário haver forças reais. Caso contrário, as leis ficariam sendo apenas palavras soltas e o poder continuaria o da ponta da lança do mais forte.

Eskil andava de um lado para o outro da sala, com as mãos nas costas, escutando atentamente pela primeira vez o que Birger dizia. Quando voltou a sentar-se ao lado de Birger, admitiu que havia uma forte ligação entre o poder do rei e a lei. Por isso, era cada vez mais importante que os folkeanos assumissem o poder, e o mais cedo pos­sível, em todo o reino. Isso significava a necessidade de recuperar a coroa.

Só então o reino se tornaria como os outros novos países do mundo, com uma ordenação real e uma lei real, e com ou sem Deus. Porque sempre fora assim que, por costume, se dizia. O poder do rei vinha de Deus, como também a lei. Assim, e apenas assim, se forjaria a união do novo reino.

 

EM Lödöse, BIRGER teve um ataque de depressão, mais profunda do que o normal. Após duas semanas de ociosidade, receava desapare­cer como líder. A única coisa que o animava um pouco era ouvir o som de alguém tossindo forte, uma tosse áspera e sofrida.

O rei Erik Eriksson, junto com o jarl e o marechal, viajou com um grande séquito para Lödöse, a fim de se encontrar com o rei Håkon da Noruega. Foi Håkon que marcou o encontro e tinha deixado claro que chegaria antes das festas de midsommar[1]. Mas já tinham passado dez dias do prazo combinado, extraordinariamente frios e de chuva perma­nente, e nada de verem a embarcação norueguesa subindo o rio.

Por vontade do jarl Ulf, Birger não teria ido a essa festa, mas o rei Håkon havia apresentado um pedido específico a esse respeito. Ele e Birger se conheciam e confiavam um no outro. Já tinham feito negocia­ções antes. Com base nessas aparentemente inocentes e amistosas pala­vras na carta do rei Håkon o jarl Ulf fez um grande escarcéu e exigiu de Birger que, diante dele e do rei, se defendesse de acusações de traição.

Isso Birger fez sem quaisquer dificuldades. As negociações que ele fizera antes com o rei norueguês, na qualidade de jarl da família fol­keana, diziam respeito à normalização de uma situação criada pelo seu por vezes retardado, mas abençoado irmão, Eskil, o homem de leis. Eskil tinha dado seu apoio ao rebelde norueguês Ribbung contra o rei Håkon, e, inclusive, colocado o seu filho de criação, Knut, ao lado dos rebeldes. Não fora a melhor maneira de chegar à paz e a uma conciliação com o rei Håkon depois de este ter invadido a província de Värmland em perseguição a Ribbung. Mas o que Birger e o soberano norueguês combinaram foi o casamento de Knut com a irmã da rainha da Noruega, e então a situação foi contornada. O jovem Knut passou de rebelde malsucedido para jarl do rei Håkon, e este ficou em dívida de gratidão para com Birger. No jarl Knut do rei Håkon tinha-se, por­tanto, um aliado. E isso não podia ser, de jeito algum, um sucesso insignificante.

Por essa razão, não admirava que o rei Håkon, mais uma vez, qui­sesse que Birger participasse das negociações.

O rei Erik Eriksson e o seu chanceler, o bispo Kol, aceitaram de imediato essas explicações, e o jarl Ulf Fasi acabou não ganhando nada em apresentar as suas questões, astutas e intrigantes, a Birger. Por isso, todos os três estavam agora juntos em Lödöse, rodeados de homens demais e com provisões de menos no meio de chuva intensa, à espera de um rei norueguês que não chegava.

Birger acabou ficando sozinho a maior parte do tempo de espera na sua tenda. De início ainda tentou falar com o rei Erik a sós, mas o jarl Ulf Fasi ficava sempre em volta do soberano, feito um veado alfa cercando as suas fêmeas. E quando o jarl Ulf ficava deitado na tenda, com mais um tremendo ataque de tosse, Birger também achava que não devia aproveitar-se da doença do jarl para falar com o rei.

Mas a tosse de Ulf Fasi fez com que Birger ficasse cada vez mais de bom humor e filosofasse que a morte era como um homem cego, que tanto podia fazer o bem como o mal e que tanto podia cometer uma justiça como uma injustiça para com aquele que a merecesse.

Birger achava que fora um grande mal o seu irmão Eskil ter mor­rido com o rosto enfiado no leitão assado preparado para as festas do Natal do ano anterior. As idéias de Eskil a respeito de um reino melhor, com leis iguais para todos, não mereciam morrer tão cedo. Mesmo considerando que a morte foi boa por acontecer depois das festas do Natal e ter sido, como em muitos casos entre os seus ances­trais, rápida e indolor.

Ao lado do féretro de Eskil, Birger jurou que iria continuar traba­lhando na herança de leis recebida do seu irmão e que jamais, nem por um só momento, deixaria de dedicar os seus pensamentos ao assunto. E jamais traiu esse juramento.

No momento, porém, a morte estava a caminho do homem certo. Lá fora, no acampamento, Birger tinha escutado o jarl Ulf tossindo muito. Quando aquele som sibilante chegava de longe e a tosse pare­cia não ceder, era necessário esperar até que fizesse tempo quente e seco para que houvesse melhoras. Mas como apenas chovia e ventava há duas semanas, era preciso que o jarl Ulf entendesse que estava na hora de interromper a viagem e recolher-se rapidamente sob um teto quente. Em vez disso, ele pediu para continuar de cama na sua tenda, a fim de não deixar o rei sozinho com Birger. E, pior ainda, com Birger e o soberano norueguês. Dessa maneira o jarl Ulf estava apres­sando a sua morte, e isso deixava Birger de muito bom humor.

O rei Håkon jamais chegou. E quando o tempo melhorou em Lödöse e o calor do verão interrompido voltou com força total, os mantimentos no acampamento tinham acabado e o jarl Ulf estava tão mal que resolveu deixá-lo e partir para o norte.

O jarl Ulf tossiu pela última vez perto de Skara, a meio caminho do seu túmulo. Foram mandados mensageiros para todos os lugares, marcando uma reunião dos folkeanos para o enterro em Bjälbo. A maioria dos convidados chegou antes do funeral e do rei.

Quando o jarl Ulf Karlsson Fasi foi enterrado, ao lado do túmu­lo do seu pai, Karl, o Surdo, na igreja de Bjälbo, Birger disse que não só os olhos folkeanos como também os seus permaneciam secos, sem lágrimas.

Três dias de banquetes costumazes marcaram a morte de Ulf Fasi na sala da casa-grande de Bjälbo. Na mesa de honra sentou-se a espo­sa de Birger, Ingeborg Eriksdotter, junto com o bispo Kol e, um pouco mais longe, o próprio Birger com o rei Erik Eriksson. Dessa maneira, ele teve boas razões para, durante três dias, tentar se fazer ouvir pelo soberano. Entre todos os duzentos folkeanos que obede­ciam ao seu comando, Birger estava tão forte no poder que nem pre­cisou fazer qualquer demonstração nesse sentido. Bastava apresentar-se equilibrado e condoído, sem mencionar uma única palavra de com quem estava o poder no reino, para que, mais cedo ou mais tarde, o próprio soberano abordasse o assunto. Birger achou que era mais inte­ligente aguardar com paciência de anjo a iniciativa do rei.

A questão mais importante era saber qual dos folkeanos devia ser nomeado jarl como sucessor de Ulf Fasi. Havia apenas dois para esco­lher. Birger, que era o preferido de todos os mais velhos na família, e o jovem Karl, filho de Ulf Fasi, preferido de muitos dos mais novos. Pelo menos entre aqueles que não eram forsvikianos.

O rei estava, assim, sozinho como erikiano entre a sua irmã e o jarl dos folkeanos, sempre respeitoso e atento no meio do próprio ninho dos folkeanos, num mar de trajes azuis e prateados. E isso durante as três noites de banquetes.

Até a última hora o rei ficou esperando e acreditando que Birger levantaria a questão. Mas nem a expressão do rosto de Birger traiu as suas intenções. Ficou falando da viagem malsucedida a Lödöse, da campanha folkeana vitoriosa, contra os rebeldes de Uppland, todos derrotados para sempre perto de Sparrsätra, e da sua mãe, Ingrid Ylva, que havia mudado para a sala da torre da igreja, a fim de ficar mais perto de Deus nos últimos anos da sua vida, dos seus filhos que ainda eram jovens demais para serem obrigados a assistir a esses banquetes de enlutados convivas, sobre a caça com falcões em que ele havia par­ticipado em Lübeck, a respeito dos tratados de comércio que precisa­vam ser renovados, justamente com Lübeck, dos Cavaleiros da Espa­da e de como o rei dinamarquês, segundo os seus difamadores, mere­cia bem o nome de Plogpenning[2] depois de ter tido a estranha idéia de cobrar imposto sobre as charruas dos camponeses. Birger conver­sou sobre diversos assuntos com o rei, mas nem uma palavra sobre o poder do jarl.

Finalmente a paciência do rei Erik terminou, logo no final do ter­ceiro banquete. E, de repente, perguntou a Birger, direta e surpreen­dentemente, o que aconteceria se ele entregasse o poder do jarl ao filho de Ulf Fasi, o jovem Karl.

— Isso só Deus, nosso Pai, sabe — respondeu Birger, sem a menor alteração na expressão do rosto. — Muitos dos meus parentes aqui ficariam surpresos e certamente desapontados se Vossa Majestade preferisse esse jovem intempestivo à minha pessoa. Isto, embora Karl seja um jovem esperto e respeitoso, que certamente poderá aprender a ser um bom jarl Se sobreviver.

— E se eu... ainda as-sim, o no-nomear meu jarl, se-será que tam­bém vou sobre-sobreviver? — perguntou o rei, com uma ponta de raiva no olhar depois de por tanto tempo ter ficado pensativo e à espe­ra de uma brecha no rosto de Birger.

— Espero que sim, de todo o coração, visto que sou cunhado de Vossa Majestade — respondeu Birger com uma leve reverência e um sorriso que para o rei pareceu exageradamente aberto.

— E se eu fizer de você o meu jarl, Birger? Será que vou viver com mais segurança? — perguntou o rei, diretamente e sem gaguejar uma única vez.

— Claro, certamente — respondeu Birger sem pestanejar. — Se Vossa Majestade me nomear seu jarl, farei de imediato o meu juramen­to de fidelidade. E tenho oitocentos cavaleiros sob o meu comando.

— Eu e-entendo — disse o rei. — Assim se-será. Mas amanhã que-quero que você me acompanhe a-até Näs, para uma... longa con­versa.

— Como Vossa Majestade quiser. Até Näs eu irei como seu jarl, sob juramento — respondeu Birger, com mais uma nova reverência.

O rei Erik voltou-se, então, para o bispo Kol, do outro lado da sua irmã, e sussurrou-lhe alguma coisa que pareceu cerimoniosa. O bispo acenou com a cabeça concordando e saiu da mesa para voltar em seguida, após alguns momentos, com a coroa de jarl e a espada que antes tinha pertencido a Ulf Fasi.

Quando o rumor do que estava para acontecer se espalhou, logo o silêncio pairou pela sala. No momento ainda ninguém sabia ao certo quem o rei iria nomear como seu jarl.

O bispo Kol abençoou a espada e a coroa, colocando-as cuidadosa­mente diante do soberano, que se levantou e fez sinal com a mão para que todos se calassem. O seu discurso, em seguida, foi muito curto:

— Nós, o r-rei Erik Eriksson, no-nomeamos Birger Magnusson como no-nosso jarl! — exclamou ele com muito esforço. Em seguida, pegou no cinturão com a espada e envolveu a cintura de Birger com ele. Depois pegou a coroa, estendeu-a em todas as direções e baixou-a na cabeça de Birger.

De quase todos os lados da sala surgiram grandes aplausos. Mas do lado dos mais jovens, que estavam mais afastados e agrupados, ouviram-se apenas murmúrios, sentindo-se o seu desencanto.

Esses jovens foram os primeiros para quem Birger olhou ao se levantar já com a coroa de jarl na cabeça. Guardou bem na sua mente quem eram. Depois, fez, então, o seu juramento de fidelidade.

 

O caminho de Bjälbo para o castelo de Näs foi curto e muito pouco se falou durante a viagem. Logo na primeira noite, o novo jarl foi chamado para se apresentar ao rei nos aposentos deste na torre ociden­tal do castelo. E Birger se apresentou, cheio de maus pressentimentos.

Que o rei Erik tivesse sido obrigado a nomeá-lo jarl, apesar de pre­ferir o jovem Karl, era razão mais do que suficiente para amargura e dissensão. Mas até mesmo o mais presunçoso dos reis devia reconhe­cer que, na realidade, se tratava de um oferecimento a que dificilmen­te ele podia dizer não, significando segurança para a sua vida. Isso fora o que Birger jurou dar-lhe diante dos parentes. E Birger não era de trair os seus juramentos.

Mas acerca do rei Erik, por quem ele, bem no fundo, não tinha grande consideração, Birger não sabia muito, sendo difícil prever quais eram as suas intenções. E se o rei fosse tão presunçoso a ponto de mandar matar o jarl que tinha acabado de ser obrigado a escolher? E, em seguida, nomear o jovem Karl como seu jarl e dividir os folkea­nos em dois exércitos, sem sequer entender o que estaria fazendo?

Essas circunstâncias não eram muito de considerar naquele momento. Ele próprio tinha feito a cama para se deitar, e a tinha feito com a consciência tranqüila de quem saberia muito melhor servir o seu reino do que o grupo de apoio ao jovem Karl.

Birger fez o sinal-da-cruz ao entrar na câmara do rei e, uma vez lá dentro, logo se ajoelhou, mantendo-se de cabeça baixa.

— Vejo que você é um jarl sem precedentes, Birger — disse o rei, dando uma pequena risada. — Sente-se aqui e fique sabendo, a partir de agora, que o jarl e o arcebispo são os únicos no reino que não pre­cisam se ajoelhar diante do soberano.

— Vejam só. Todos os dias se aprendem coisas novas — respon­deu Birger, sentando-se no lugar indicado pelo rei, entre almofadas estrangeiras e diante de mesas baixas, de um jarro de vinho e copos da região do Reno. O vinho era tinto, o que era pouco habitual.

— Você é o meu jarl, jurou fidelidade à minha pessoa. Eu não o conheço tão bem como devia e você também não me conhece, embo­ra eu suspeite que não tenha a minha pessoa em alta consideração. Ouvi dizer que você e Knut Holmgeirsson, uma vez, passaram uma longa noite juntos com o meu pai nesta sala. Vamos fazer agora, nós dois, a mesma coisa. Para começar, peço que me conte o que se passou naquela noite — disse o rei, falando longamente e com voz tranqüila, sem a mínima insegurança ou gagueira.

— É... foi uma longa noite — respondeu Birger, um pouco enver­gonhado e surpreso diante do bonito discurso do rei, sem a mínima insegurança.

— Isso eu já entendi. Por isso mesmo lhe perguntei sobre o caso, já que você é o único sobrevivente daquela noite — comentou o rei, rindo muito, ao mesmo tempo que se inclinava para a frente e pegava o jarro de vinho tinto, de que se serviu primeiro, antes de encher o copo de Birger. — E vamos esclarecer logo uma coisa. Você está sur­preso com a minha dicção, certo?

— Na verdade, é que... sim, estou surpreso sim, Majestade — res­pondeu Birger.

— Eu não sou como você, meu caro jarl. Eu ando mancando, de costas duras, e jamais poderei disputar torneios de guerra a cavalo, coisa que vocês, folkeanos, têm em alta consideração. E no diz respei­to à minha dicção, eu não gaguejo quando estou com raiva, ou com medo de perder a vida, ou ainda quando me sinto totalmente à von­tade. Em qual dessas situações você acredita que estou agora?

— Vossa Majestade não me serviria vinho se estivesse envenena­do, se estivesse com muita raiva de mim ou com medo que eu lhe tirasse a vida — respondeu Birger, com uma leve reverência, pegando o copo de vinho e fazendo desafiadoramente um brinde, um skål.

— A sua coragem é grande, Birger, tal como sempre me disseram, e é com o maior prazer que bebo com você — disse o rei, sorrindo e levando o vinho à boca.

E Birger fez o mesmo, sem demonstrar grande hesitação. O vinho era seco, quase rascante, mas ao mesmo tempo suave, tendo sido acrescentados condimentos estrangeiros.

— Bom, agora, finalmente, gostaria de ouvir o que se passou nessa noite entre o meu pai, você e Knut Holmgeirsson — disse o rei, colocando o copo de volta na mesa.

Birger tentou contar a verdade do que aconteceu, tanto quanto possível, e sem dar muita importância ao fato de ser bem superior no manejo das armas em relação ao parente erikiano do soberano. Tentou também chegar o mais rápido possível, a ponto de esclarecer quais te­riam sido as intenções do rei Erik Knutsson de que a paz devia existir para sempre entre erikianos e folkeanos e que havia um grande perigo se os jovens Birger e Knut fossem inimigos, pois receava que, um dia, viessem a se defrontar no campo de batalha. Birger admitiu que o rei Erik Knutsson estava absolutamente certo ao ordenar que os dois homens se tornassem amigos. Se os dois jovens trabalhassem juntos, isso os levaria a harmonizar as suas mentes. E amigos eles ficaram. Mas Deus, na Sua inescrutável vontade, os tinha colocado frente a frente no campo de batalha.

— O meu pai era um homem bom e inteligente — comentou o rei, pensativo, quando Birger terminou de contar a sua história. — Se tivesse vivido mais, certamente teria feito de você o seu jarl, sem dúvi­da. Aliás, talvez você se tenha perguntado por que demorei tanto tempo a fazê-lo. A esse respeito, o que é que você acha?

— Estou certo de que Vossa Majestade teve razões mais do que suficientes para justificar a sua conduta — respondeu Birger, sem sequer pensar ser assim que se devia falar com um rei.

— Considere que você é agora o meu jarl — disse o rei, irritado. — Considere que fez o juramento, não apenas fortitudo, mas também sapientia. Considere que, neste momento, ninguém nos ouve e que você sempre deve me dizer a verdade! Eu era uma criança quando che­guei aqui ao reino, isso é verdade. Tinha um professor que sabia mais de filosofia e da linguagem da Igreja do que de guerra, vingança de sangue e de folkeanos. Isso também é verdade. Mas tenho sido dili­gente. Tenho aprendido bastante e não sou nenhum idiota, embora às vezes pareça ser e falar como tal. Agora vamos trabalhar os dois, você e eu, em conjunto, durante muitos anos, já que sou ainda bastante jovem. Portanto, vou fazer-lhe novamente a mesma pergunta: por que você acha que escolhi Ulf Fasi para. jarl, e não o vencedor de Enköping, que salvou a minha coroa, matou Knut Holmgeirsson e esmagou todos os rebeldes? Por quê?

— Pelo fato de Vossa Majestade reconhecer que a união do reino era mais importante do que me compensar pelo que fiz por merecer. Pelo fato de Ulf Fasi ser a pessoa que podia conter com mais tranqüi­lidade do que eu uma parte dos jovens folkeanos. Pelo fato de Vossa Majestade não querer ver uma nova guerra civil inflamar o reino — respondeu Birger resolutamente.

— Muito bem falado, jarl — respondeu o rei. — E o que está acontecendo com esses jovens agora? Será que eles não estão quietos e acomodados depois da derrota de Holmgeir e da sua prisão?

— Alguns desses jovens rangem os dentes. Não entendendo de nada, fecham os punhos, ameaçadoramente, nas nossas costas. Mas algum entendimento eles têm, a ponto de não quererem mais repetir o desastre de Sparrsätra. Uma rebelião é coisa que Vossa Majestade não terá que recear nos próximos anos — respondeu Birger lentamen­te, enfatizando bem as palavras.

— Você teria feito uma rebelião se eu tivesse nomeado o jovem Karl para meu jarl? — perguntou o rei com voz tranqüila, apesar da rudeza da pergunta.

— Não, Majestade — respondeu Birger, sem hesitar. — Talvez eu agisse de outra maneira se Karl e os seus jovens amigos resolvessem matá-lo e usurpar o trono do reino.

— O que aconteceria então?

— O jovem Karl teria logo pela frente uma escolha difícil. Ou me indicaria como jarl, e então o irmão de Holmgeir, Filip, e seus amigos folkeanos fariam uma rebelião, ou, ainda, nomearia Filip ou Holmgeir para jarl e teria logo que enfrentar a rebelião dos folkeanos sob o meu comando.

— Muito bem. Agora você vê, Birger — disse o rei, satisfeito. — O rei jamais poderá ser cauteloso o suficiente na escolha do seu jarl. E com essa injustiça que lhe fiz, quando indiquei Ulf Fasi, eu tinha as minhas razões. Mas depreendo do que você disse que tem certa des­confiança em relação a alguns dos jovens senhores do reino.

— É verdade, Majestade.

— E não será por ter inveja deles, por sua juventude e despreocu­pada falta de entendimento?

— Não, Majestade. Eu também passei por isso. Durante dois anos da minha juventude, eu e Knut Holmgeirsson andamos de festa em festa, tendo uma vida dissipada e sem sentido. Acredite em mim, Majestade, esses jovens preguiçosos procuram apenas o poder pelo poder, sem quaisquer intenções de bom senso. Se tentarem assumir o poder, vão criar um grande problema. Se realmente conquistarem o poder, nada de bom irá acontecer para o nosso reino.

O rei ficou em silêncio, analisando Birger, pensativo. Birger já percebera que tinha subestimado aquele homem, o que não contava a seu favor, por ter se amarrado rápido demais e por vaidade às coisas erradas. Ele era forsvikiano até a medula, educado nas armas por Arn e por clérigos cheios de sabedoria. Um o ensinara a montar a cavalo e a usar a lança, os outros a manejar a palavra. Por isso os seus olhos e ouvidos se fixaram tão fortemente nesse rei que tinha recebido como apelido a sua deficiência, fechando o seu entendimento à possibilidade de Erik Eriksson merecer a sua coroa. Agora sabia ter errado, e isso por um erro de entendimento que seria mais próprio de um jovem do que de um guerreiro grisalho e jarl. Ali estava uma coisa ainda a recuperar.

— Bem, agora precisamos discutir uma questão bastante difícil — disse o rei tranqüilamente, após sua longa reflexão em silêncio. — Você quer ter a bondade de nos servir mais vinho, já que, ao que pare­ce, o veneno ainda não surtiu efeito?

Birger levantou-se ligeiro, com um sorriso nos lábios e abanando a cabeça diante daquela brincadeira grosseira, mas fazendo o que lhe tinha sido pedido. Depois foi o rei que levantou o seu copo, fazendo mais um brinde, e ambos beberam em silêncio.

— A questão difícil, sem rodeios e embelezamentos, é saber o que você pensa fazer contra aqueles no reino que têm uma mente rebelde — disse o rei, decidido, após um novo momento de reflexão.

— Aquele que tomar para si o nome de rei e quiser ser coroado não poderá continuar vivo. Nenhum jovem pode acreditar que a vitó­ria será facilmente obtida com qualquer rebelião. Ou que o seu manto azul e prateado vai defendê-lo e salvá-lo de qualquer punição, inde­pendentemente de ele estar adornado com as três coroas ou com o leão dourado — respondeu Birger, rápido e decidido, tentando ser tão claro quanto o seu soberano.

— O nosso prisioneiro em Nyköping, Holmgeir, filho de Knut, você sabe — suspirou o rei —, é um traidor, conforme a lei romana. E as leis romanas você conhece bem, certo?

— Sim, Majestade, o conhecimento de leis do meu abençoado irmão Eskil era enorme. Ele sabia a origem de cada uma e sua aplica­ção. E alguns desses conhecimentos ele passou para mim.

— Esse pensamento me ocorreu, na verdade, quando escutei você e seu irmão Eskil, o homem de leis, discutindo com o jarl Ulf sobre quais leis deviam ser mudadas — acenou o rei com um inesperado olhar de alegria no rosto, em geral tenso e pensativo. — Mas agora voltemos ao caso do rebelde prisioneiro. O jarl Ulf defendeu-o, e isso porque, creio, ele jurou perante seu amigo Knut Holmgeirsson tomar conta do filho. Você matou Knut no campo de batalha e faria isso, também, em relação ao filho, em Sparrsätra, caso estivesse lá?

— Sim, Majestade.

— Mesmo que, primeiro, o tivesse feito prisioneiro?

— Sim, Majestade.

— Muito bem. Isso também entendeu o jarl Ulf. Foi assim que ele resolveu complicar a situação, querendo que outros esmagassem a rebelião em Uppland. Você sabe, eu próprio estava inseguro a respei­to desse assunto. Achei que a vitória era mais importante do que a preocupação em relação à cabeça dos rebeldes. Mas como, na reunião do conselho, você explicou que a vitória seria fácil e que o comando da campanha poderia ser dado ao seu filho Gregers e a Nils Sigstensson, então isso me tranqüilizou. Mas temos que voltar ao assunto no ponto em que o deixamos na reunião do conselho. O que você pretende fazer com o prisioneiro Holmgeir?

— Matá-lo sem demora, Majestade.

— Então a responsabilidade pelo sangue dele vai cair sobre os seus ombros, pois será fácil de calcular que a morte de Holmgeir depende do fato de o reino ter um novo jarl.

— Isso é verdade, Majestade. Vai ser a minha mensagem clara para os rebeldes. Eles já estão cantando versos sobre Holmgeir, falam até em libertá-lo. Por isso nós temos que ensinar a eles qual é a ordem que agora reina no país.

— Nós não, meu jarl, mas você — disse o rei, sorrindo. — Eu sou o rei vacilante, Erik, o Deficiente, que não consegue nem falar direito. Não vou ter culpa nenhuma nessa história. A culpa vai ser só sua.

— Eu entendo, Majestade — disse Birger. — Vossa Majestade é muito inteligente.

— Então não falemos mais sobre esse assunto do Holmgeir. Basta que você me faça saber da sua morte — disse o rei em tom de lamen­tação. — Portanto, esse caso é passado. Vamos em frente, tratar do fu­turo. Você acusou certos jovens senhores de não terem qualquer bom senso em relação ao poder, certo?

— Sim, Majestade. Foi isso mesmo que eu quis dizer.

— Então vamos falar agora de um assunto que para mim é de muito maior interesse do que qualquer rebelde — recomeçou o rei, com entusiasmo e ardor, bebendo todo o vinho do copo e reenchen­do-o, antes de continuar. — Aos seis anos de idade, fui trazido para uma terra estranha onde me disseram que eu era rei, mas eram outros que tomavam todas as decisões por mim. Não tive nem tempo para ficar mais velho e sábio, antes de ser combatido no campo de batalha e exilado infamemente do meu reino. Alguns anos mais tarde você chegou e me ofereceu de novo a coroa, prometendo-me uma vitória certa. Disso você se lembra, certo?

— Sim, Majestade. Tratava-se não apenas de uma vitória, porque essa era certa, como eu prometi, mas em nome de quem seria alcança­da, a fim de acabar com a guerra civil. Por isso viajei até a Dinamarca, para trazer de volta o nosso coroado rei para o seu reino.

— Eu me lembro de como você o tempo todo me falava e metia as palavras na minha cabeça como se eu nem soubesse como pensar, quanto mais responder. Você convenceu o meu presunçoso professor, mas a mim você via como apenas uma criança, não é verdade?

— Vossa Majestade ainda era muito jovem — desculpou-se Birger, envergonhado, visto não ter qualquer dificuldade em imaginar como aquela negociação devia ter parecido aos olhos do rei.

— É verdade, eu era muito jovem — concordou o rei. — Mas isso aconteceu já há muito tempo e, durante todos esses anos, não se pas­sou um dia sem que eu tentasse aprender algo de novo quanto aos deveres de um rei. Por que Deus me deu esse lugar na Terra? Por que fui mandado ainda garoto para ser rei de uma gente guerreira, nórdi­cos sedentos de sangue, que logo me deram um apelido pejorativo? Qual é o significado do meu poder? Sem dúvida acho que já sei, mas gostaria primeiro de ouvir a sua opinião. Se alguns grupos de jovens querem sobrepujar o meu poder, sem quaisquer outras intenções, como você disse, quais são, então, as suas intenções?

— Fortalecer a paz no reino — respondeu Birger, sem pestanejar. — Em nosso reino, cada homem será senhor dentro da sua própria casa, poderá cavalgar até a igreja sem suspeitar de qualquer embosca­da, assim como apresentar o seu caso na assembléia sem medo de ser decapitado ou cortado em pedaços por algum espadachim ou adver­sário mais forte. E aquele que tomar qualquer mulher pela violência ou estuprar qualquer mulher será considerado vândalo pelos outros homens. Só com essa nova ordem este país se tornará uma nação forte como os países mais ao sul. E como o poder do rei é dado por Deus, essas novas leis também serão instituídas pelo rei. Nós vamos cons­truir o futuro do nosso reino com base nessas leis, no comércio com o estrangeiro e no trabalho com os campos e as florestas. E para tudo isso é necessário ter um reino em paz. E...

— Pare! Espere! Eu não consigo acompanhá-lo — disse o rei, sol­tando uma gargalhada. — Isso tudo já é o suficiente para você e eu darmos trabalho às nossas cabeças durante muitos anos. Deixe só que eu diga que penso da mesma maneira como você acaba de mencionar. Mas tenho ainda uma outra pergunta a fazer. O que é que você pensa a respeito do poder da Igreja? Quem é que tem o poder final, a Igreja ou o rei?

— De preferência, os dois — disse Birger, mal-humorado por ter sido contido na entusiástica descrição dos seus grandes sonhos, além dos do seu abençoado irmão, Eskil. — Mas essa é uma questão difícil. Quando se tenta dividir o poder com a Igreja, isso em geral só conduz à desordem. Podemos tentar nomear novos bispos se acreditarmos que podem nos servir e ser fiéis em agradecimento. Mas isso jamais acontece pelo fato de caírem logo em seguida sob o poder do arcebis­po, que não cabe a nós nomear. No conselho, muitos bispos acabam se metendo em tudo, mesmo naquilo que não entendem. Em segredo eles se reúnem e resolvem entre si como fazer para tentar nos condu­zir. Os arcebispos, nos últimos anos, além disso, têm sido homens sem honra, homens em quem não se pode confiar. Valerius chegou até a pra­ticar um crime por envenenamento, isso mesmo. Foi ele quem matou o pai de Vossa Majestade, estou convencido disso. Olof Basatömer era como um caniço ao vento. Primeiro coroou Vossa Majestade e, mais tarde, sem hesitar, coroou Knut Holmgeirsson e, depois, voltou de novo para a reunião do conselho, aqui em Näs, sem a menor ver­gonha. Jarlerus, que é quem nós temos agora, faz reuniões secretas com certos jovens senhores e, após a vitória deles, estaria disposto a coroar qualquer um. Mas esse não é o reino dos nossos sonhos, como qualquer um pode ver.

— Sem dúvida qualquer um pode ver — disse o rei, pálido e de boca seca, bebendo rápido mais vinho. — Eu não sabia que o meu pai tinha sido assassinado, e muito menos por um arcebispo. Você real­mente está certo ao fazer essa horrível acusação?

— Sim, Majestade.

— Muito bem. A esse respeito vou querer ouvir muito mais, em uma outra oportunidade. Mas agora tenho razões para voltar à gran­de questão. O que devemos fazer em relação à Igreja?

— Se fôssemos nós a decidir, o que não seria assim tão fácil, sepa­raríamos a espada e a cruz — respondeu Birger após uma reflexão. — No conselho real, o arcebispo vai passar a sentar-se apenas para res­ponder questões da Igreja, nada de opinar sobre guerra, ou terroris­mo, comércio ou impostos. Nós, os laicos, tratamos do poder laico. Mas para levar os clérigos a aceitar isso é preciso ter alguma coisa para lhes oferecer. E aquilo que vamos oferecer à Igreja é que assuma a res­ponsabilidade por todos os seus assuntos, até mesmo a de nomear os seus bispos.

— Você sabe que o papado é, mais ou menos, da mesma opinião, seguindo mesmo a sua linha de pensamento nessa questão? — inda­gou o rei, espantado.

— Pode ser verdade, pois Roma sempre falou em liberdade da Igreja, embora não tenha havido muito dessa liberdade no nosso reino — murmurou Birger.

— Agora estamos mais próximos de uma grande mudança do que você pensa — disse o rei, cheio de segredos. — Um cardeal foi envia­do por Sua Santidade até o nosso reino. Ele vai convocar uma reunião de toda a gente ligada à Igreja para o final do inverno ou o início da primavera em Linköping ou em Skänninge. Seu nome é Vilhelm de Sabina e os seus poderes clericais estão apenas um pouco abaixo dos de Sua Santidade. Ele já nos escreveu e, pelo que pude entender, quer limpar muita coisa da nossa vida religiosa. Mas disso você não sabia, certo?

— Não, Majestade. Sobre isso eu não sabia de nada mesmo — admitiu Birger, pensativo. — Vossa Majestade vai conduzir as nego­ciações diretamente com Roma?

— De novo, e mais uma vez, não eu, mas você! — respondeu o rei, de chofre. — Contaram-me que você fala a linguagem da Igreja como qualquer clérigo, é verdade?

— Melhor do que a maioria dos clérigos que encontrei, Ma­jestade.

— Muito bem. Então você tirou um peso de sobre os meus ombros. Eu não estava satisfeito com a idéia de ter de ficar sentado para negociar, gaguejando, diante de clérigos tanto daqui como de longe. Muito menos em latim. Deus me livrou dessa tarefa e eu Lhe sou infinitamente grato por isso. Você, meu jarl, será o nosso porta-voz diante desse cardeal altamente recomendado de Roma. Você vai conduzir as nossas idéias, sem quaisquer objeções e de acordo com as suas próprias idéias que eu, agora, aprecio muito mais do que no tempo em que o conhecia apenas através das assertivas de Ulf Fasi sobre o seu baixo nível de entendimento.

— Então, Majestade, precisaríamos mudar a opinião a respeito um do outro — respondeu Birger, com uma leve reverência.

— E por isso vamos ter que agradecer a Deus, que, nitidamente, colocou você no meu caminho no momento certo — disse o rei com uma expressão de grande alívio no seu rosto normalmente rígido.

— Eu agradeço de boa vontade a Deus — respondeu Birger. — Mas me permito também chamar a atenção para as palavras de Vossa Majestade ao dizer que o rei jamais conseguirá ser suficientemente cuidadoso na escolha do seu jarl. O oposto também é verdade. Um jarl folkeano jamais conseguirá ser suficientemente cuidadoso na escolha do seu rei.

— Acho que vai ser uma longa noite aqui na torre também para nós dois — declarou o rei, rindo muito. — Vou mandar trazerem mais vinho. Aliás, você gostou desse vinho?

— Eu bebo aquilo que o meu rei achar melhor — respondeu Birger, evitando se pronunciar a respeito do vinho.

— Este vinho deve agradar à grande maioria das pessoas — disse o rei como se não tivesse notado a hesitação de Birger. — É o vinho do santo sacramento da comunhão, vindo da Borgonha, que mandei buscar em Varnhem. Mas você talvez não esteja habituado a comun­gar, certo?

 

O verão e o outono passaram, com Birger de bom humor, o melhor de sempre, segundo a sua esposa, Ingeborg. O que deu a ela mais ale­gria foi a maneira como ele falava bem do irmão, o rei, coisa que Birger nunca tinha feito antes. E por conhecer o seu irmão Erik, ela sabia muito bem que ele era inteligente e bom, mas a sua fala gague­jada, quando diante de muita gente, e o fato de mancar de uma perna faziam com que só aqueles que lhe eram próximos conhecessem o grande coração que existia no seu corpo fraco. Anos antes, todas as brincadeiras e piadas que se diziam nos banquetes em Bjälbo a respei­to do seu irmão faziam-na sofrer e ter vergonha de nunca responder à altura, por falta de coragem. A partir do momento em que Birger foi nomeado jarl e conheceu o rei, todas essas brincadeiras passaram a ser proibidas e punidas em Bjälbo, assim como passou a ser proibido cha­mar os noruegueses, “norrmän”, literalmente “homens do norte” de “norrbaggar”, “escaravelhos do norte”.

Também em relação a ela Birger mudou de comportamento. Depois de todos esses anos em que ela lhe deu três filhos e uma filha, ele se tornou outro homem. Era como se a vida deles dois só agora tivesse começado. Ele viajava muito pela província e pelo reino intei­ro como de hábito, mas agora, todas as vezes ao voltar, sempre a pro­curava de imediato, lhe dava um grande abraço e fazia saber o que desejava para o fim da tarde e para a noite, antes de se apressar até o castelo e enfrentar a multidão que o aguardava com toda espécie de problemas para expor ao jarl da família. Anos antes, ele sempre fazia o contrário, correndo primeiro ao trabalho que o esperava e só mais tarde via a esposa e as crianças, durante a refeição da noite e a oração vespertina.

Era como se atmosfera tivesse ficado mais leve e a vida mais relu­zente em Bjälbo. Ingeborg começou a soltar gargalhadas de vez em quando, coisa que ninguém tinha ouvido antes. E quando o trabalho do dia terminava, ela e o jarl não mais ficavam lado a lado em silên­cio, mas falavam e riam, o que surpreendia e alegrava os parentes e o pessoal da casa.

Aos domingos ele não ficava conversando em reuniões com cava­leiros estranhos como antes, mas passou a cavalgar com os filhos ou os ensinava a caçar patos nas lagoas, ou, ainda, mandava atrelar o cavalo à carroça e saía com Ingeborg e todas as crianças para pequenos deslo­camentos com cestas de comida e vinho. Da sua amante e das crian­ças que tinha com ela Birger deixou de falar em alto e bom som, e desafiadoramente.

A sua transformação foi tão grande que chegou mesmo a parecer um homem feliz. Isso Ingeborg nunca poderia ter sequer imaginado. O seu rosto duro, de queixo rude e retangular, e os seus olhos negros e brilhantes combinavam muito mais com o homem que ele era antes. Como era estranho ver agora o mesmo rosto, com as marcas da guer­ra, e o mesmo queixo duro, sorrir de felicidade e os mesmos olhos bri­lhando de calor humano.

Todo o receio que Ingeborg sentia pelo dia em que o senhor da casa, inevitavelmente, se tornaria o jarl do reino tinha desaparecido com o vento.

Para o próprio Birger esse verão curto e o outono que lhe seguiu foi o tempo mais feliz de que se lembrava desde a infância em Forsvik. É verdade que as muitas obrigações tomavam muito do seu tempo. Por vezes essas obrigações tornavam-se uma desnecessária e lamentável perda de tempo, como quando ele e o rei Erik foram malsucedidos em encontrar-se com o rei Håkon, da Noruega, em Lödöse. No entanto, tudo ficou corrigido, de uma maneira simples e fácil, quando, pela ter­ceira vez, Birger voltou a Lödöse e, finalmente, pôde esclarecer a situa­ção do caso Värmland. Tudo terminou muito bem, visto que ele e Håkon chegaram a um acordo e resolveram casar seus filhos. Håkon, o Jovem, que já estava eleito como o próximo rei da Noruega, e a filha de Birger, Rikissa. Mas, como Birger achava que Rikissa ainda era jovem demais, era preciso esperar mais algum tempo para o casamento.

Além disso, assinaram um tratado concordando em nunca dar asilo político aos inimigos de um dos reinos. Foi assim, facilmente, que uma interminável discussão terminou e isso combinava bem com o estado de espírito de Birger na época, segundo o qual sentia que nada do que pretendia fazer dava errado.

Ainda segundo esse estado de espírito, ele também conseguiu resolver algumas pendências com a sua amante, Signy, e com as crian­ças que tinha com ela. Assim, as filhas receberam cada uma um gran­de presente de noivado, em vez da herança a que não tinham direito. E o filho, Gregers, recebeu duas grandes fazendas em Sörmland, entre todas as novas propriedades de Birger na região. Com Signy ele con­seguiu se reconciliar, a ponto de ela, pelo menos, dizer que o perdoa­ria por ele ter traído as promessas feitas durante tantos anos. Por mais estranho que pudesse parecer, todas as boas palavras de Birger a respei­to do rei e da felicidade no exercício do poder de jarl do reino junto desse soberano tiveram o mesmo efeito, tanto junto a Signy quanto a Ingeborg. Ele não entendeu bem a razão disso, mas imaginou que Signy, finalmente, podia ter compreendido que ele, agora, procurava o poder por motivos dignos de respeito. Nesse caso, portanto, ele agora havia escolhido o poder, em vez do amor, uma decisão que antes não teria sido tão simples.

Sempre que tinha tempo livre de assuntos que deviam ser tratados com o rei ou em Bjälbo, Birger montava no cavalo e partia para Sörmland, visitava tanto os habitantes das cidades quanto as fazendas cujos grandes senhores ou algum parente estavam entre aqueles que foram libertados pela guerra que, na boca do povo, se chamava a cam­panha do senhor Birger a Ösel. E assim, em Sörmland, muitos se tor­naram seus amigos. Ele começou a ser bem-vindo e não recebido ape­nas como o respeitável e temido jarl pelos grandes senhores de Uppland e Västmanland. Por trás dessas incursões que podiam ser consideradas como viagens de recreação, pulando de banquete em banquete, existiam, no entanto, boas e justificadas razões. Birger acha­va que a chave para a futura paz no reino estava em Nordanskog. As rebeliões não deviam ser contidas apenas por cavaleiros armados, mas, de preferência, por meio de novos laços de amizade.

Aquele que veio a ficar mais próximo dele entre todos os seus novos amigos era um grande e obstinado senhor de Uppland, com castelo junto do Lago Mälaren, chamado Ivar Blå, de Gröneborg.

 

Só no terceiro dia da reunião da Igreja o cardeal Vilhelm de Sabina condescendeu em chamar o enviado do poder laico a Skänninge. Birger tolerou essa humilhação sem dificuldade. Estava habituado a essa atitude dos clérigos, que, muitas vezes, agiam assim na tentativa de mostrar que se situavam acima do poder secular do rei. Também não o surpreendeu saber, ao entrar na sala do capítulo do mosteiro dos dominicanos, que o cardeal fingia estar muito ocupado numa conver­sa com o arcebispo Jarlerus e um dos seus acólitos, de modo que, ao que parecia, nem sequer tinha notado a chegada de um novo visitan­te. Enquanto esperava, Birger tratou de não deixar que o seu estado de espírito desbancasse para a raiva e o uso de palavreado impensado diante desse tratamento. Um pouco mais difícil para a sua paciência foi ver o cardeal, de repente, olhar para ele da cabeça aos pés, com um olhar cansado, e, sem o saudar, virar-se para o arcebispo, dizendo-lhe para retirar imediatamente da sala abençoada o abominável visitante. O arcebispo fez logo uma reverência bajuladora e passou adiante a ordem para o acólito que, tão horrorizado quanto acanhado, ficou desviando o olhar do cardeal para Birger como se não pudesse acredi­tar no que os seus ouvidos tinham escutado.

Certamente, imaginou Birger, aquele homem presunçoso acredi­tou que o termo abominável se referia mesmo a Birger. Que o idiota estivesse hesitando, agora, em mandar para fora o jarl do reino era fácil de entender.

Quando o cardeal e o seu acólito bajulador tentaram resolver o engano, sempre se referindo a Birger como ele, e como se ele não entendesse nada, Birger teve que esmagar uma vontade extrema de, de repente, virar as costas e sair dali sem dizer palavra. Resolveu, então, sublimar a sua raiva e, quando o acólito se aproximou cautelosamente para se dedicar ao abominável Birger e lhe pedir, estendendo as mãos, para que este lhe desse a espada, Birger simplesmente fez um gesto com a mão, despachando-o como se fosse uma mosca.

— Será que ele não entende que a arma é abominável e não pode entrar num lugar abençoado como este? — perguntou o cardeal, sur­preso, continuando sem falar diretamente com Birger.

— Vossa Eminência deve perdoar-lhes a hesitação — disse Birger com voz suave e na linguagem da Igreja. — No nosso país, não é de tradição um homem da Igreja pegar a arma de um duque. Gostaria ainda de, reverentemente, pedir a Vossa Eminência para não subesti­mar o meu respeito pela Igreja a ponto de acreditar que estou profa­nando esta sala. De qualquer forma, vou já avisando que esta espada é abençoada e pode entrar em todas as igrejas. É a espada de um templário.

O espanto do cardeal estava bem expresso no seu rosto e custou a desaparecer. Certamente estava pensando em como sair dessa doloro­sa situação em que ele próprio se colocou. Ao final, pareceu decidir-se por não levar tanto a sério a situação, nem com exagerada raiva nem com um exagerado pedido de desculpas.

— Na paz do Senhor lhe apresento as boas-vindas, duque Birgerus, e como o senhor deve ter entendido, os servidores da Igreja, aqui, ao meu lado, não tiveram a bondade de me dizer que o senhor falava a nossa língua tão bem. Pensando melhor, até parece divertido que algum deles estivesse preparado para servir de intérprete. E se a sua espada é a de um cavaleiro templário, então, certamente, como salientou, é uma espada abençoada. O senhor, portanto, é o porta-voz do rei Ericus, com todos os poderes por procuração.

— Assim é, Eminência — respondeu Birger, com uma olhadela de viés para os dois clérigos que estavam ao lado do poderoso cardeal. Eles teriam que explicar uma coisa ou outra ao seu chefe assim que ele saísse. — Eu possuo todos os poderes do rei para responder em seu nome e em nome do reino — continuou Birger. — Sua Majestade lamenta que vários motivos o impeçam de estar presente, mas envia, por meu intermédio, os seus mais sinceros desejos e as mais ardentes esperanças de que a reunião dos religiosos aqui presentes resulte em grandes progressos. E se o poder secular puder contribuir de alguma forma para esse sucesso, nós faremos todo o possível para apoiar as suas pretensões no sentido de alcançar essa finalidade maior.

— Por parte do divino papado a nossa resposta só poderá ser uma, a de expressar a nossa satisfação ao anotar esse forte e bem-vindo apoio às nossas esperanças — respondeu o cardeal, com um esforço malsucedido de se manter sério, tentando inclinar-se para a frente e esconder o rosto com a palma da mão.

Birger não entendeu o motivo de o cardeal se divertir tanto com a situação, mas resolveu terminar aquele primeiro contato o mais rápi­do possível, para que pudesse ser esquecido, e abrindo uma oportuni­dade para recomeçar da melhor maneira a próxima reunião em que se encontrassem.

— Assuntos de grande importância para o reino me chamam agora — disse Birger, num tom de voz de quase imperceptível impa­ciência. — Vossa Eminência está convidado a visitar a nossa represen­tação real, amanhã, nesta mesma hora, para tratar de pendências. Entretanto, gostaria de chamar a atenção, com toda a humildade, para o fato de este convite estar reservado a Vossa Eminência, pessoalmen­te, e que nenhum dos meus compatriotas precisa estar presente, para não atrapalhar a reunião com traduções e interpretações menos bem-sucedidas.

O cardeal levantou-se logo e abençoou Birger, abanando a cabeça e andando rápido, esforçando-se, sem resultado, para abafar o riso, colocando-se a uma distância de onde não podia ser ouvido. Birger saiu dali confuso e injuriado.

Se tinha sido malsucedido no primeiro encontro com o represen­tante do papa, no qual este achou por bem rir dele, então o início das negociações não tinha tido sucesso e o princípio de separação de poderes entre a Igreja e o reino, entre a cruz e a espada, estava a peri­go. Embora, na realidade, ainda precisasse esclarecer o motivo do riso do cardeal, de modo que era melhor não começar a se preocupar.

Naquela noite Birger dormiu mal, remoendo as idéias concebidas sobre o representante do papa. O cardeal estava vestido com simplici­dade, de negro, com um pequeno capelo vermelho na cabeça e uma faixa de seda, larga e vermelha, à volta da cintura e pendente de um dos lados. Birger presumia que isso tinha alguma coisa a ver com san­gue derramado, tal como o vinho tinto seco da comunhão. Mas ao contrário dos bispos normais, o cardeal não se enfeitava com ouro, prata ou tecidos reluzentes com pedras preciosas. No entanto, de certa maneira, ele irradiava uma dignidade que Birger nunca havia visto em qualquer outro homem da Igreja. Ou essa impressão advinha do seu latim, que fluía como veludo da sua boca, e, na verdade, soava como uma linguagem divina, mais bonita e mais nítida até mesmo em com­paração com aquela do frei Guillaume, em Varnhem? Ou será que no meio de toda a grandeza religiosa ele era um homem com certa facili­dade em rir? Não era fácil chegar a uma conclusão.

Além disso, ele se parecia mais com um pequeno veado, mais tal­vez com uma fêmea do que com um macho. Tinha uma cintura fina, um pequeno e estranho bigode e um cavanhaque com o formato da ponta de uma espada. Na realidade, era um pássaro estranho neste ninho nórdico.

Birger, no entanto, não precisava repensar mais sobre o motivo do riso do cardeal. Quando, no dia seguinte, este entrou na casa de comércio alugada por Birger em Skänninge, cujo proprietário e toda a família estavam agora vivendo muito bem às custas do rei em Linköping, ele pareceu ainda mais alegre do que no dia anterior e deu a impressão até de querer abraçar Birger.

— Por Deus, meu caro duque — exclamou o cardeal, ainda com um largo sorriso nos lábios ao se sentar na grande sala da câmara de comércio de Birger e ser servido de vinho por serviçais, que logo man­dou embora, livrando-se da sua presença —, disseram-me que o senhor era um guerreiro simplório que muito pouco entendia de polí­tica e de questões clericais. E como eu erradamente acreditava no que me diziam sobre o senhor, assim o recebi ontem, infelizmente. A minha elevada missão exclui, como pode compreender, o compromis­so de me apresentar como um idiota. Espero que o senhor, assim como eu, possa apreciar a questão com um sorriso, já que, de minha parte, ainda vou rir de mim mesmo por muito tempo.

— Com absoluta certeza — respondeu Birger, com um rosto que parecia feito de pedra, o que, primeiro, amedrontou o seu convidado, até que, enfim, ele próprio abriu um largo sorriso. — Eu sou o repre­sentante do rei, falo em seu nome. Vossa Eminência é o representante de Sua Santidade e fala em nome dela. Posto isso, acho que as forma­lidades estão cumpridas neste nosso primeiro encontro e são de pouco significado diante das grandes questões que vamos discutir, ou, melhor ainda, sobre as quais temos de chegar a um acordo.

— O senhor é um personagem especial, difícil de encontrar neste extremo do mundo, o norte — disse o cardeal, aliviado por ver que os dois tinham superado, rapidamente, essas pequenas circunstâncias desagradáveis. — Eu estive na Noruega, durante um ano, também em missão, como representante de Sua Santidade. E não posso dizer que foi fácil. A vida religiosa aqui no norte, em muitos aspectos, é uma vida estranha à própria Igreja. Agora a minha missão é aqui, no seu país. E, então, eu encontro pela frente um líder secular com o qual é tão fácil falar como se eu estivesse em Roma. Onde é que o duque aprendeu o seu latim?

— O meu abençoado avô foi cavaleiro templário. O seu nome era Arn de Gothia e a sua fama tem crescido com o tempo — disse Birger, pausadamente. — Ele foi o maior guerreiro que nós conhecemos, mas, além disso, segundo eu creio, um santo. Ele criou não apenas uma escola de guerra, onde eu e muitos outros jovens parentes fomos educados, mas também uma escola onde se aprendiam muitas outras coisas. Na verdade, uma escola de vida. Por conseqüência, Vossa Eminência irá encontrar, no nosso reino, mais guerreiros com rostos com cicatrizes que falam a linguagem da Igreja como eu do que bispos que dominem essa língua. Aliás, posso até falar de bispos no nosso reino que nem sequer sabem ler e escrever na nossa língua popular.

— Já notei esse absurdo — respondeu o cardeal, alteando uma sobrancelha, divertido. — Muito bem, meu respeitadíssimo duque, diga-me, por favor, o que o rei, ou melhor, o que o senhor desejaria desta nossa primeira reunião de clérigos no seu país.

— Eu sou a favor da liberdade da Igreja — respondeu Birger, entusiasmado. — Isso significa que eu, defendendo em primeiro lugar os próprios interesses, como Vossa Eminência irá reconhecer, mais cedo ou mais tarde, gostaria de retirar a participação de todos os bis­pos nas decisões seculares do consilium do rei. O senhor terá que me desculpar pela minha franqueza. Evidentemente, Sua Majestade está consciente, no entanto, de que este nosso desejo tem um preço. Este preço é o de permitir que a Igreja exerça plenamente os seus pode­res, nomeie os seus próprios bispos e padres, obedeça a Roma e não ao rei. Mas nós temos também algo a receber, o de ter um rei que não esteja submetido a Roma, a não ser nas questões que envolvam a própria Igreja.

— O senhor é um homem atrevido e bem instruído, duque Birgerus — disse o cardeal, pensativo. — Por um lado, as suas idéias aqui apresentadas implicariam a sua morte na fogueira nos países de onde eu venho. E, por outro lado, elas levariam o poder secular a decapitá-lo. Todavia, posso lhe dizer agora, falando seriamente, que compartilho com você essas idéias. Entretanto, sou obrigado a lhe fazer uma pergunta: o senhor certamente não espera que a Igreja perca o direito de excomungar os reis?

— Não, senhor — respondeu Birger rapidamente. — Se os reis recebem o seu poder de Deus, eles também devem poder ser repreen­didos por Ele. Caso contrário, receio que, aqui, teríamos logo o infer­no na Terra.

— Vamos, então, rezar juntos pelo progresso do nosso trabalho em conjunto, duque Birgerus. E vamos agradecer a Deus também por nos ter unido, pois, assim, as negociações vão ser fáceis durante as nos­sas reuniões — disse o cardeal, ajoelhando-se para rezar e convidando Birger para fazer o mesmo.

Birger obedeceu desajeitadamente, após uma curta hesitação, já que daria preferência a continuar a conversa do que pedir a Deus por uma coisa que seria da sua responsabilidade esclarecer. Ao que parecia, era fácil conversar com esse cardeal, desde que não tivessem como tes­temunha nenhum presunçoso clérigo por perto. Se os homens da Igreja fossem tão perspicazes quanto Vilhelmus Sabinensis, o mundo seria completamente diferente, pensou Birger, juntando as mãos e fechando os olhos para rezar, com alguma hipocrisia.

 

Todas as boas esperanças de Birger a respeito das negociações com o cardeal foram confirmadas por completo já na primeira semana. A maneira como o cardeal falava diante dos clérigos durante as longas reuniões diárias na igreja do mosteiro era uma coisa que Birger apenas podia imaginar, mas, certamente, seria uma linguagem totalmente diferente daquela que usava para falar com Birger.

Os dois se reuniam todos os dias para o summarum das considera­ções diárias, uma vez na sala do capítulo do mosteiro, onde tinham o cuidado de falar cerimoniosamente e, na vez seguinte, na casa de comércio de Birger, do outro lado da cidade. Aqui a linguagem era outra, direta, sem rodeios, de um jeito que Birger jamais poderia ima­ginar poder ter com qualquer homem da Igreja.

O cardeal Vilhelm tinha uma lista de coisas que ele queria alcan­çar e para as quais, com poucas e pequenas exceções, encontrou forte resistência por parte dos clérigos do país. Aquilo que o cardeal queria mudar era, pela ordem de importância, a introdução do celibato para todos os que fizessem os votos, em vez da ordenação atual, que permi­tia a existência de um bando de crianças em cada casa paroquial, que os bispos dali em diante só pudessem ser nomeados pela Igreja, que desse modo se instituísse um capítulo em cada diocese, que as proprie­dades dos padres fossem passadas para a Igreja e não para herdeiros, e que em cada bispado, dentro de um ano, houvesse um livro de decre­tos onde se reuniriam os textos legais produzidos pela própria Igreja.

Apenas para a última questão o cardeal tinha encontrado resposta positiva. Em todo o resto, apenas oposição obstinada e feroz. Em momentos de desespero ele sentiu vontade de excomungar e mandar para a lixeira toda a Igreja sueca, deixando o país para nunca mais voltar.

Ele achava totalmente compreensível que os padres demonstrassem má vontade contra o celibato, por terem que abandonar as suas famílias. Isso seria uma grande perda para a maioria. Mas que eles, insistente­mente, combatessem a proposta de os bispos serem nomeados pela Igreja, e não pelo rei, era uma coisa que não dava para entender. Mas esta, porém, Birger poderia explicar com facilidade. Ele pediu ao car­deal, de uma maneira exageradamente amistosa, beirando a zombaria, para considerar que, se os veneráveis bispos que ele teve o desprazer de encontrar tinham sido todos nomeados pelo poder real, como é que eles, então, podiam deixar de reconhecer que essa seria a melhor forma de eleição? Havia que ter em conta que muitos desses bispos jamais teriam chegado a essa posição se a lei da Igreja prevalecesse, certo?

Portanto, a questão era muito simples. Eles consideravam apenas os seus próprios interesses e isso coincidia com o ponto de vista de Birger em relação aos clérigos, embora fosse uma atitude completa­mente estranha para o cardeal Vilhelm.

A questão agora para Vilhelm de Sabina era saber quanto poder usar. Se usasse poder de mais, criaria uma revolta que conduziria à perda para Roma de toda a Igreja sueca. Se usasse poder de menos, acabaria por continuar toda a barbárie nórdica. E o que é que o poder secular poderia fazer para ajudar a Igreja nessa situação?

Esta era uma boa questão para Birger. Antes de mais nada, pediu ao cardeal para indicar o que seria a condição sine qua non para obter aque­la mudança, mesmo que todo o resto fosse por água abaixo.

A questão mais importante era o celibato, o que desapontou a Birger, que achava ser indispensável para a Igreja nomear os bispos. Ele disse entender muito bem o raciocínio de que aquele que se casa com a Igreja não poderia, além disso, se casar com uma mulher. Mas que isso fosse extremamente importante mudar, lá para o norte, na Escandinávia, era mais difícil de engolir.

O cardeal explicou, então, com toda a sinceridade, que isso não era apenas uma questão dogmática, mas uma coisa que tinha a ver com as propriedades da Igreja. Se os padres tivessem herdeiros, então as riquezas da Igreja se reduziriam, lenta, mas seguramente. Em espe­cial nos casos em que os bispos tinham a capacidade extraordinária de atrair grandes riquezas para si, em nome da Igreja, não para a Igreja.

Birger, então, desistiu, mas propôs o uso do método do chicote e da cenoura. Seria uma grande perda para muitos dos homens da Igreja se eles fossem obrigados a se separar dos seus entes queridos. Seria pre­ciso, então, dar-lhes alguma coisa em troca.

Birger tinha uma proposta astuta. Em compensação pela perda, todos os clérigos receberiam por lei garantias contra a violência em geral e a invasão violenta das igrejas, em especial. Isso seria uma mudança que eles receberiam com alegria. E o rei e o seu conselho adotariam, imediatamente, essa lei e a estenderiam em geral para a tranqüilidade das igrejas. Dessa forma, tanto a cruz quanto a espada veriam a sua vontade vencer, juntando suas forças.

No que dizia respeito à questão da nomeação dos bispos, podia-se trabalhar com a mesma astúcia, segundo Birger. Caso o cardeal Vilhelm tivesse dificuldade em ver aprovado o dogma do celibato, mesmo depois de usar o método do chicote e da cenoura, seria impen­sável tentar pressionar, na mesma reunião, os clérigos para novas con­cessões.

Mas para resolver esse dilema havia um remédio, assegurou Birger, animado. E a sua proposta era simples. O cardeal Vilhelm de Sabina deixaria a reunião em Skänninge sem uma decisão tomada sobre a ins­tituição do capítulo cardinal e do direito soberano deste de nomear os bispos.

Ao chegar a Roma, o cardeal exporia o assunto para Sua Santidade, o papa Inocêncio IV, e proporia o envio de bulas para o arcebispo e o rei suecos. Se o papado determinasse a nova ordem, regulando o capítulo cardinal e o direito deste de nomear os bispos, a questão em breve estaria resolvida e sem discussão. O conselho do rei iria adotar, imediatamente, a mudança e transformá-la em lei secular.

E, em seguida, seria um prazer para Birger limpar o conselho do rei de certo número de bispos que ainda se sentassem lá por terem sido nomeados pelo poder secular. Dessa forma simples, sem discussões intermináveis e resmungos, seria dado um enorme passo à frente para separar a cruz da espada, exatamente como ambos queriam.

Durante umas duas semanas, o cardeal e o jarl aperfeiçoaram o plano e ambos acabaram pensando um do outro que poderiam até trocar de manto. Ambos reconheceram também que, mesmo não tendo talvez uma oportunidade de voltar a se encontrar, já era bom saber que tinham conquistado um amigo para a vida inteira, dentro do outro poder.

Embora ainda estivessem em jejum, eles começaram uma refeição simples de despedida na casa do mercador, sem ninguém por perto, quer pelo lado do poder eclesiástico, quer do poder laico. Eles se sen­tiam livres e à vontade para conversar unicamente quando estavam a sós. Os leigos ficariam chocados diante da maneira como Birger abra­çou um alto eclesiástico de meia-idade e os clérigos ficariam ainda mais chocados ao ouvir um cardeal falando tão baixo e tão grosseiro com um simples cavaleiro.

Embora ambos tivessem vencido, visto sentirem que tudo iria ocorrer como planejado, ainda assim estavam um pouco tristes, melancólicos, nesse que seria o seu último encontro. Tudo nos seus planos já estava pronto, tudo tinha sido pensado e repensado muitas vezes para que não houvesse falhas. A conversa começou a ficar difícil pelo motivo de cada um seguir seus pensamentos em direções diferen­tes. Mas, de repente, o rosto do cardeal se iluminou como se ele tives­se tido uma nova idéia.

— Se eu entendi bem pelo que deixou escapar alguns dias atrás, duque Birgerus, o senhor tem dos homens da Igreja em geral um con­ceito muito baixo e, por isso, não se confessa há muitos anos.

— É verdade — admitiu Birger. — Eu sempre desconfiei de todos os homens da Igreja que encontrei, com exceção de alguns monges cistercienses e do meu irmão, o abençoado bispo Karl de Linköping. Jamais acreditei na possibilidade de qualquer bispo guardar segredo do que eu lhe dissesse em confissão. E eu assevero, Eminência, que tenho boas razões para essa desconfiança.

— Mas de mim o senhor não desconfia, duque Birgerus? — per­guntou o cardeal, inocentemente.

— Não, de jeito nenhum! Do senhor eu não desconfio. Jamais encontrei um homem da Igreja cuja fé e o chamado de Deus me mere­cessem tanta consideração! — respondeu Birger, só percebendo quan­do já era tarde demais que, com o que dizia, estava caindo numa armadilha.

— Muito bem! — disse o cardeal, sorrindo e puxando a faixa de seda, que beijou e colocou sobre os ombros. Em seguida, abençoou Birger e se preparou para a confissão. — Meu filho, estou pronto para ouvir a sua confissão — disse ele, estendendo os braços para a frente.

— Já faz muitos anos... — murmurou Birger, contra a vontade.

— Maiores são as razões para fazê-lo agora — reagiu o cardeal com suavidade convincente. — E isso não lhe causará nenhum prejuí­zo, meu filho.

— Não, claro que não — suspirou Birger, se afundando na cadei­ra, apático. — Tudo bem, padre, perdoe-me porque pequei!

— Então, estou pronto para ouvir a sua litania, meu filho.

— Na verdade, eu já não me confesso há dezenas de anos. O que devo confessar primeiro? Eu mandei executar um jovem e isso foi uma das primeiras coisas que fiz quando assumi o posto e o poder de duque. Aquele que me antecedeu tinha poupado a vida desse jovem, mas eu não.

— Isso aconteceu porque você sentiu ódio ou inveja desse ho­mem? — perguntou o cardeal, enrugando a testa.

— Não, de jeito nenhum. Eu não o conhecia, nem nunca me encontrei com ele. Ele era um rebelde que agiu contra o rei, tomou o seu nome, e suas ações custaram muitas vidas.

— Eu entendo — disse o cardeal, aliviado. — Mas qualquer gran­de traidor, segundo a lei, é culpado e deve morrer, não é?

— Segundo a lei romana, claro que é, mas, segundo a nossa lei, não. E eu receio que essa não tenha sido a última vez que tive que tomar essa decisão. Eu pretendo dominar todas as rebeliões com dure­za. Existem vários jovens no nosso reino que se consideram aptos a tomar o lugar de quem caiu, e se eu tiver que decidir, eles também vão morrer. E se este é um pecado grave, o que é que eu devo fazer, segun­do a Igreja?

— Você procura o poder em benefício próprio, meu filho?

— Não. O meu rei é um bom homem, embora muitos o subesti­mem por causa das suas dificuldades em falar. O juramento de fideli­dade que lhe fiz continua de pé. Ele quer fazer do nosso país um reino melhor e mais feliz. E, como eu, ele quer introduzir aqui mais leis romanas. É para isso que eu quero usar o poder.

— Apenas para isso? Não para enriquecer?

— Sim, claro, também. Isso eu já fiz. E se isso é um pecado grave, então eu confesso que pequei, mas dificilmente me arrependerei. Protegi a vida dos meus descendentes, dando a eles bem-estar e um futuro sem preocupações.

— Você participou de alguma cruzada em direção ao leste, tal como Sua Santidade, por três ocasiões, já pediu ao rei deste país?

— Sem dúvida. Já por três vezes viajei, cumprindo essa missão guerreira.

— Mas, então, a maior parte dos seus pecados na vida estão per­doados, meu filho.

— Acredito que não. Vi coisas que me dão a certeza de que isso a que chamamos Guerra Santa não compensa os pecados cometidos.

— Você blasfema ao negar as afirmações do Santo Padre, meu filho. Mas diga-me, mesmo assim, o que foi que você viu e que o levou a esse erro.

— Eu vi um arcebispo batizar contra a vontade um homem já convertido que, em seguida, foi decapitado por gesticular demais con­tra esse segundo batismo. E depois disso o tal arcebispo caiu de joe­lhos, agradecendo a Deus o perdão por ter matado com veneno o nosso rei. Após essa conduta ultrajante, o arcebispo voltou logo para casa e morreu com um sorriso de felicidade nos lábios na certeza de que o Paraíso estava esperando por ele.

— Aquilo que você está dizendo em confissão deve ser verdade, visto que Deus é nossa testemunha — disse o cardeal com rugas de preocupação na testa.

— Isso eu sei. Minhas palavras representam a verdade e por elas posso jurar diante da Virgem Maria e por minha morte.

— Nesse caso, o arcebispo que fez isso está no Inferno — consta­tou o cardeal secamente.

— Como é que o senhor pode dizer aquilo que eu não pude dizer, padre? Afinal, o Santo Padre prometeu o perdão a todos os pecadores que participassem da cruzada.

— Porque esse arcebispo de que você falou, na sua presunção, acreditou que podia enganar a Deus, como se Deus não pudesse ver direto o que se passava no seu coração negro, ao usar a cruzada apenas para ser perdoado do pior dos crimes. Mas diga-me, o que você faz para reparar seus pecados?

— Apenas aquilo que os meus poderes me permitem. Doei muito ouro para reconstruir um mosteiro incendiado. Do mesmo jeito, mandei reconstruir duas igrejas incendiadas por criminosos em Sörmland. Essa ajuda que lhe prestei, padre, para reencaminhar certas ovelhas de volta para o rebanho aqui, em Skänninge, talvez eu possa contar como uma ação que agrade a Deus. Mas isso serve também aos meus próprios interesses e aos do meu rei.

— E quais são os outros pecados que pesam na sua consciência, meu filho?

— Coisas pequenas com as quais eu não pretendo gastar o nosso tempo. Como, por exemplo, eu ter pescado e caçado, junto com os meus filhos, no dia de descanso do Senhor. A pior talvez seja a de eu ter três filhos bastardos e uma amante, mas tenho cuidado deles como se fosse minha família, abençoada por Deus. E disso não me arrependo.

— O fato de não se arrepender é o seu maior pecado.

— Eu sei disso, padre. Mas, mesmo assim, não me arrependo.

— Então eu não posso lhe perdoar, meu filho.

— Eu sei disso também. Mas do que serviria eu dizer, falsamente, que me arrependo? Esse arrependimento da boca para fora não iria enganar o Nosso Senhor?

— Certamente que não — disse o cardeal, sorrindo. — Seria de desejar que muitas outras pessoas tivessem essa preocupação. Você não se arrepende, portanto, nem sequer hesita ao dizer que, futuramente, matará aqueles rebeldes, é isso?

— Não, se eu achar que será necessário para a segurança do meu reino. A felicidade do meu reino é mais importante do que o estado da minha alma.

— Quem fala assim pode ser um homem muito nobre ou um homem presunçoso.

— Eu não sou nobre, padre. Eu quero criar paz e felicidade, mas por ser um homem prático e, por esse tipo de egoísmo, não pretendo me penitenciar diante do senhor, padre, e muito menos diante de Deus.

— As suas convicções são tão duras quanto a sua honestidade é grande, Birgerus. Eu não posso perdoá-lo, pois você está endurecido em alguns dos seus pecados. Mas uma penitência posso propor.

— Cem anos a pão e água? De que isso serviria?

— Não para muita coisa, sou obrigado a admitir — reagiu o car­deal, rindo. — E para um homem como você, seria, para usar a sua própria expressão, uma medida nada prática. Aliás, uma penitência como essa você logo deixaria de cumprir, visto que duvida da própria utilidade da penitência. Mas existe uma coisa maior, mais do seu agra­do, que você pode fazer e com a qual, usando a sua força, irá agradar a Deus.

— Uma nova cruzada?

— Isso mesmo. De Novgorod os pagãos se deslocam para oeste e ameaçam os cristãos em Fennia, que é uma província pertencente ao seu rei. Se eles não forem contra-atacados de maneira rápida e defini­tiva, vão causar muita inquietação aqui na Escandinávia.

— Isso é verdade. E viria a dar um grande prejuízo ao nosso comércio. Nisso existe uma razão para a guerra. Mas essa razão é a minha, não a sua, padre. Se nem mesmo um arcebispo pode enganar a Deus, muito menos eu, certo?

— Não, mas Deus está nos vendo agora e nos ouvindo. E Ele está conosco quando eu digo que o perdôo de todos os pecados, Birgerus de Gothia, com uma condição.

— Fazer uma cruzada, não por minha fé, mas para salvar o nosso comércio na província de Fennia? O senhor dá a entender, padre, mais uma vez, que Deus se deixa enganar, embora Ele possa ver tudo o que se passa em nossos corações.

— Não é isso que estou dizendo, meu filho. Ninguém pode enga­nar a Deus. Mas quando Ele olha o seu coração, Ele vê, também, os dois lados da mesma coisa. E aquilo que você não entende é a Graça do Perdão. Liberte-nos dos pagãos na Tavastland e você será perdoa­do, pela Graça de Deus, de todos os seus pecados.

 

NO SEGUNDO ANO da cruzada, Birger mal conseguiu evitar a gran­de nevasca, mas pôde sair do castelo, construído no interior da Tavastland, e chegar ao sul, na cidade portuária e bispado de Åbo. Não o surpreendeu ter sido visitado, assim que chegou, por uma mul­tidão de bispos da cidade, que, com palavras mais atrevidas do que o habitual, apresentaram as suas reclamações em relação à maneira como a guerra estava sendo conduzida.

Em primeiro lugar, seu descontentamento estava relacionado com o número de pagãos batizados, mas também se mostraram sedentos de sangue, exigindo mais cadáveres pagãos no futuro. Eles não enten­diam nada de como a guerra devia ser conduzida, mas também não era de esperar que entendessem. Aquilo que para eles era importante, assim como para os mercadores, era a arca de prata, o número de pagãos mortos ou batizados, mesmo contra a vontade.

Eles reclamavam até mesmo do populacho e de malfeitores, de presos fugitivos e de pedintes, de criminosos e de gente expulsa de fazendas que Birger juntou na região duramente atingida por rebe­liões da província de Svealand.

Foi nessa região, no norte, que Birger começou a sua cruzada. Os seus mensageiros e ele próprio cavalgavam de cidade para cidade, de um extremo a outro da província, declarando para quem quisesse ouvir que aquele que se alistasse na nova cruzada estaria salvando a sua alma. Era preciso dizer isso primeiro. Mas todos já tinham escutado antes.

O que produziu mais efeito foi a promessa de que cada um, por muito pobre que fosse, receberia uma fazenda na nova província do reino, do outro lado do mar, desde que combatesse por um ano ao lado do rei e do jarl. Além da fazenda e, portanto, de terras próprias, o homem receberia meio marco de prata e uma vaca. Depois das guer­ras que os sveas perderam durante as últimas rebeliões, muitos homens viviam uma vida miserável. Os caminhos estavam cheios de pedintes e vagabundos que espalhavam insegurança e discórdia pela província onde faziam qualquer coisa nada cristã para, por vezes, adormecerem à noite de barriga cheia. A promessa de que seriam recompensados em milhares de vezes o que possuíam por uma ação cristã parecia para eles um milagre.

Durante os dois primeiros verões da guerra, mais de quatro mil pessoas atenderam a esse chamado para uma nova vida em terras que seriam suas. E no porto de Åbo aglomeravam-se barcos e galeras vin­dos da costa da Svealand em quantidades enormes. Como a grande maioria desses homens e mulheres pouco ou nada sabia de guerrear, Birger conseguia que muitos deles começassem de imediato a cuidar das suas terras e a construir o seu aldeamento, o mais depressa possí­vel, para não atrapalhar as ações do exército. De Åbo eles se espalha­vam ao longo da costa, tanto na direção norte quanto na sul, como que para abraçar a Tavastland com dois longos braços de colonizado­res. Com o tempo essa nova província passaria a fazer parte integran­te do reino.

A guerra propriamente dita, travada contra os habitantes de Tavastland, Birger a conduzia apenas na defensiva e quase que exclu­sivamente com a cavalaria. Sempre evitava grandes combates. Metade da cavalaria folkeana estava sob seu comando e todos os meses alguns dos esquadrões voltavam para casa, sendo substituídos por outros tan­tos vindos de casa. A missão da cavalaria era a de marcar presença, a de patrulhar as áreas onde os colonizadores construíam os seus aldea­mentos e esmagar duramente todos os grupos de inimigos armados que encontrassem. Mas os cavaleiros estavam estritamente proibidos de atacar pessoas que não viessem de armas na mão contra eles e nin­guém podia ser preso por se recusar a aceitar o batismo. Assim se daria uma clara e nítida mensagem aos pagãos, a de que aqueles que apontas­sem uma arma contra os homens do rei Erik estariam condenados a morrer.

A primeira coisa que Birger fez assim que botou os pés em terra e recolheu informações suficientes, foi mudar o que tinha sido a origem e a razão da última rebelião. Os homens da Igreja, por motivos sem fundamento, tinham proibido os pagãos de comercializar peles, mantei­ga e ferro. Esses produtos não podiam ser comprados pelos cristãos e, principalmente, ser exportados para as províncias de além-mar. Assim que a fome se tornou grande demais nas ricas florestas da Tavastland, a rebelião chegou tão natural quanto o sol nascente.

Essa proibição comercial foi uma das razões para que os tavastla­nos quase conseguissem expulsar todos os súditos cristãos do rei Erik da província. A outra fora a incompreensível crueldade de alguns clé­rigos. Havia um bispo chamado Thomas, em Åbo, que, pelo que Birger pôde compreender ao ouvir as ações do homem, devia estar louco. O bispo tinha o hábito, incompreensível para qualquer humil­de servidor de Cristo, de ele próprio chicotear os pagãos, até que os ossos brancos da coluna das vítimas começassem a aparecer entre a carne surrada pelo chicote e elas passassem a desejar a morte como uma forma de libertação diante de tanto sofrimento. De uma forma mais estranha de espalhar o Evangelho ninguém jamais tinha ouvido falar.

Em Näs, no conselho do rei, as reclamações tinham surgido num tom completamente diferente por parte da multidão de bispos. Estes chamaram a atenção para o testemunho de muitos, demonstrando que a extrema crueldade dos pagãos tinha necessariamente de ser reprimida ainda com mais rigor, em nome de Deus. Sem dúvida, dizia-se que os pagãos furavam os olhos dos cristãos, aprisionavam os padres, enrolavam-nos em palha e piche e incendiavam seus corpos, cortavam suas mãos e pés e punham-nos para correr, matavam todas as crianças que encontravam, extraindo as suas vísceras enquanto ainda com vida, ou obrigavam os cristãos a correr à volta de qualquer árvore até que morressem.

De todas essas histórias mentirosas, a que mais espanto causou a Birger foi a afirmação de que se obrigavam os cristãos a correr em volta de uma árvore até morrerem. Ele tinha dificuldade em imaginar a extrema paciência dos pagãos, para esperar a morte do inimigo. Para não falar da dificuldade de qualquer um realmente morrer correndo à volta de uma árvore. No máximo o que podia acontecer era a pessoa desmaiar de cansaço.

Pior ainda, mas não tão divertida, era a mentira de obrigar qual­quer um a correr depois de cortadas as mãos e os pés. A corrida jamais poderia ser longa.

Todo esse lixo o rei Erik e Birger foram obrigados a ouvir com a máxima paciência na reunião do conselho, e ambos concordaram em não discutir as razões do bando de bispos, por muito questionáveis que fossem, para iniciar uma guerra. Entre quatro paredes, os dois concordaram também que havia razões mais inteligentes para trans­formar a Tavastland em território integrado do reino, de uma vez por todas. Se toda a costa leste do golfo de Bótnia, do outro lado do mar, caísse nas mãos de Novgorod, o comércio com os países do leste perde­ria muito do seu valor para o reino do rei Erik. Mas uma vez ocupada toda a praia norte do golfo, esse perigo ficaria muito reduzido. Essa seria uma boa razão para a guerra.

Entretanto, era muito importante ter os bispos do seu lado na guer­ra. As suas untuosas garantias de salvação para aqueles que participas­sem na Guerra Santa tinham grande efeito junto ao povo porque todos eram pecadores e, entre estes, muitos eram aqueles que acreditavam em qualquer coisa dita pelos clérigos. Sem a ajuda dos clérigos, entusiasma­dos, abençoados e malcheirosos a água benta, jamais teria sido possível juntar todos os milhares que, finalmente, Birger conseguiu reunir para a ocupação da nova província.

Por isso a impaciência deles foi ficando cada vez maior com o pas­sar dos meses na nova província, sem ter nada que fazer e, principal­mente, sem pagãos contrariados e de mãos amarradas atrás das costas para converter. Birger tinha proibido o batismo compulsório.

O inverno chegou e o frio era de rachar em Åbo. As botas de Birger, de fabricação forsvikiana, forradas de pele, rangiam ao pisar na neve pesadamente enquanto baforadas de ar quente saíam da sua boca. Ele andava sozinho, embora muitos o desaconselhassem a fazer isso, perguntando-lhe se qualquer pagão, e existiam muitos na cidade, não ficaria feliz em matar o próprio jarl. Birger, obstinadamente, dizia que a pergunta tinha que ser feita ao contrário. Qual o pagão que não ficaria feliz diante dessa demonstração de que tudo o que o jarl dizia era verdade, que em Abo reinava a paz entre tavastlanos e colonizado­res? E cada vez que ele fazia um passeio desses, sozinho, e apenas encontrava pela frente, ao longo das ruas, reverências respeitosas, ele se convencia ainda mais de que tinha razão.

Agora, porém, estava na hora de ter uma conversa a sério com os clérigos, todos sedentos de sangue. Um novo bispo tinha sido enviado para o bispado de Åbo em substituição do louco Thomas que gostava de chicotear os pagãos e que fugiu, em desespero, para Visby, onde morreu na casa das rameiras. Além disso, havia o bispo Sigmund, de Sigtuna, na cidade. E à volta desses dois bispos se juntava um grupo de homens de Deus cheios de fervor no sentido de espalhar a obra divina.

Quando estava para entrar no castelo dos bispos, Birger foi barra­do por um idiota entre as sentinelas, que não o reconheceu por baixo das vestes grossas e tentou impedir a sua entrada. Como Birger já esta­va de mau humor, quase que o idiota recebia uma estocada, o que seria uma maneira dolorosa de perder a vida naquele frio fortíssimo do inverno.

Na sala do capítulo do castelo dos bispos todos estavam à sua espera e Birger resolveu avançar a passos largos, sem saudar ninguém, para a cadeira no meio da mesa longa do capítulo, do lado da parede maior da sala onde estava pendurado um estandarte do rei. E fez um sinal para todos começarem as suas já antecipadas reclamações. Primeiro falaram os dois bispos, sem que Birger se dispusesse a responder-lhes. Depois falaram alguns padres, em linguagem reveren­te, sobre aquilo que eles achavam ser a vontade de Deus. Tudo o que eles tinham a dizer, porem, podia ter sido resumido em poucas pala­vras. Eles achavam que essa cruzada não era, realmente, uma verdadei­ra cruzada, porque, se assim fosse, eles teriam obrigado os pagãos a se batizarem em maiores quantidades e outra parte dos pagãos teria per­dido a cabeça por maldição, pois era assim que acontecia nas cruzadas de verdade.

E isso era tudo, embora eles tivessem, demorado duas horas para apresentar suas reclamações.

Quando Birger, finalmente, teve que assumir a palavra, caso con­trário o silêncio iria imperar na sala, ele já tinha decidido se livrar de mais conversas com um pouco de rigor e de mentira. Isso não iria cau­sar prejuízo nenhum, desde que servisse para apaziguar esses loucos.

— Acabei de ouvir as vossas reclamações — começou ele, em voz baixa, para que se fizesse silêncio em toda a sala. — E não é a primei­ra vez que isso acontece. Todavia, preciso chamar a atenção de todos para algumas coisas que continuam esquecendo e desconsiderando. Só eu estou no comando desta cruzada, e mais ninguém, muito menos qualquer clérigo, seja ele quem for. E existe uma boa razão para isso. Sem vitória não vai existir peregrinação das almas, resultante do industrioso trabalho de evangelização. Sem vitória, haverá apenas lágrimas, ranger de dentes e orações patéticas para Nosso Senhor Jesus Cristo a respeito da razão de Ele nos ter abandonado, apesar do bem que tentamos criar. Os senhores devem saber, também, que não somos os primeiros homens do nosso reino que responderam a este chamado superior. Há uns cem anos, o santificado santo Erik esteve aqui. Eu próprio estive aqui há quinze anos e voltei há doze. Muitos outros do nosso reino tentaram fazer o mesmo que nós, mas como as rebeliões voltaram a acontecer, isso significa que todos falharam nas suas intenções. Agora chegamos ao fim. É a nossa última viagem. Hoje a província de Tavastland passará a ser parte do nosso reino para sempre. Por isso estou colonizando o território com os nossos cida­dãos, por isso estamos conduzindo a guerra com o máximo cuidado, por isso prometemos aos tavastlanos a retomada dos seus negócios. Eu não estou dando a vocês milhares de pagãos esperneando e se agitan­do por não quererem ser batizados durante dois anos. Estou dando a vocês a Tavastland para evangelizar para sempre. São dez mil novos cristãos à vossa disposição para tolerar e encaminhar, recuando da pre­tensão infantil de matar. A questão está na vossa consciência. O que será uma felicidade maior no céu: um pagão convertido ou um morto?

Ele falou devagar, enfatizando cada uma das suas palavras, e o silêncio surdo que se seguiu deu-lhe a entender que as suas palavras tinham tido o efeito pretendido. Mas ainda não era o suficiente. Ao deixar o castelo dos bispos, Birger sabia que esses homens, irrecuperá­veis, estariam tramando novas medidas. Era preciso mentir para lhes calar a boca.

Birger levantou-se como se fosse para ir embora, enquanto reina­va o silêncio, mas fingiu que se tinha lembrado de mais um detalhe, atraindo, então, novamente, todos os olhares da assembléia.

— Vocês também precisam considerar mais duas coisas, uma alta­mente venerável e outra menos — disse ele, elevando a voz, muito mais alto do que antes. — Por essa minha maneira de conduzir a guer­ra, recebi o apoio e a bênção do cardeal Vilhelm de Sabina. Aquele que se opuser a mim estará se opondo, também, ao cardeal e à Santa Igreja. Isso significa que vou considerar a rebeldia da parte dos homens da Igreja do mesmo jeito que considero a rebelião dos guer­reiros. Os guerreiros rebeldes, como sabem, perdem a cabeça.

Depois disso ele saiu lentamente da sala, que continuava em total silêncio, exibindo uma expressão dura que, aliás, teve dificuldade em manter, mas conseguiu até desaparecer do alcance dos olhos dos bispos.

“Ah, me desculpe esse pequeno desvio da verdade, Eminência, meu cardeal, mas a finalidade foi construtiva”, pensou ele, rindo para si mesmo. Em seguida esfregou as mãos uma na outra e revirou os olhos enquanto vestia o seu pesado manto de inverno.

Muito satisfeito, Birger voltou no frio intenso da época para o cas­telo secular. As ruas estavam desertas, e nem os gatos nem os cachor­ros apareciam. Durante a caminhada, pensou que havia várias sema­nas que não comia uma refeição de verdade, decidindo que estava na hora de resolver esse problema. E adormecer de barriga cheia.

Finalmente ele tinha calado a boca daqueles bispos. E a vitória na guerra estava garantida, pois já nessa época havia uma preocupação maior em construir do que combater na província. E os dois castelos Tavastehus e Åbohus em breve estariam prontos. Dos castelos seria suficiente uma pequena força de cavaleiros para controlar todo o espa­ço à volta. A vitória se sobrepunha a todo o resto e por ela ele se sen­tia até perdoado por ter mentido em nome do cardeal. Tudo, é claro, a favor da questão cristã.

 

Quando a primavera chegou a Åbo e o mar até então congelado se abriu, a impaciência grudou nas pessoas, à espera de que surgisse a pri­meira galera no horizonte. Como sempre, isso era um grande aconte­cimento e muita gente se reunia no porto para receber os novos com­batentes e colonizadores e para ter notícias do país de origem. Costumava ser um dia de grande atividade e muita alegria.

A primeira galera que entrou no porto trouxe notícias que, de iní­cio, deixaram Birger imóvel como um bloco de gelo e, depois, pen­sativo, como se estivesse sonhando.

A galera trazia o estandarte real com uma faixa preta, na qual nin­guém prestou atenção até que um arauto, seguido de dois tocadores de tambor, se apresentou na praça. Quando todos fizeram silêncio, ele, com uma voz esganiçada, anunciou a última mensagem das terras do centro.

O amado rei Erik Eriksson dos gotas e dos sveas tinha sido chama­do por Deus, na época de Candlemas, neste ano da graça de 1250, e dez dias mais tarde, numa assembléia em Aros Oriental, Valdemar Birgersson tinha sido eleito novo rei e havia feito o juramento diante das pedras de Mora, perto da cidade.

Sua Majestade, rei dos gotas e dos sveas, Valdemar Birgersson, ordenou que o jarl do reino voltasse para casa o mais depressa possí­vel. Para a cidade de Åbo, assim como para todos os guerreiros e cléri­gos a serviço do reino, vigorava a partir daquele momento um mês de luto pela morte do soberano.

Birger continuava imóvel. As duas mensagens anunciadas o atingi­ram como dois raios vindos de lugares diferentes. O pensamento de que o bom rei Erik, de quem se dizia com escárnio que era gago e deficien­te, tinha morrido com apenas trinta e poucos anos de idade fez com que os seus olhos se enchessem de lágrimas. Afinal, como jarl do rei Erik, ele já havia feito muitas melhorias, e o próprio Erik, com inteligência e bom senso, estava encaminhando o reino para um futuro de muita feli­cidade. Que injustiça ele ter morrido tão cedo!

Que o próprio filho, Valdemar, de doze anos de idade, tivesse sido escolhido rei, isso o enchia de sentimentos confusos. Birger sentia a cabeça rodopiar.

A guerra civil estava agora a caminho. Os jovens nobres iriam ten­tar matar o seu filho — foi esse o primeiro pensamento de Birger. Mas se o seu filho foi escolhido para rei, todo o poder iria cair nas mãos do pai — e esse foi o seu segundo pensamento. Depois não pensou em mais nada, assim que descobriu que todos olhavam para ele com pavor. Só então ele se concentrou e ordenou, peremptoriamente, que todos os enfeites na cidade para a festa da primavera fossem retirados e que a cerimônia do funeral fosse celebrada com dignidade e reflexão, com penalidades para os que transgredissem o luto.

Depois disso ele seguiu a passos largos para o seu cavalo, montou e partiu em direção ao castelo, onde se fechou na sala de contas para que fosse deixado em paz e na tentativa de pensar com clareza.

Não foi fácil. O redemoinho de pensamentos voltou com força total, difícil de evitar. Como é que um rei tão jovem como Erik Eriksson morrera? Será que a sua mãe, Ingrid Ylva, tinha alguma coisa a ver com o caso? De qualquer forma e independentemente do lugar do reino onde estivesse o seu filho, ele corria agora o perigo de ser morto por alguns desses jovens que se achavam mais perto da coroa que o jovem Valdemar. Era um plano seu de muitos anos o de criar tantos folkeanos de sangue real, que a coroa acabaria por cair nas mãos da família como qualquer fruto maduro. Era uma questão de tempo o fato de esses jovens se reunirem com suas forças em algum lugar do reino para tentar o mais rápido possível atacar o novo rei, enquanto estivesse fraco e sem o seu jarl

Ele não conseguiu organizar os pensamentos. Havia questões demais entrando na sua mente ao mesmo tempo e nenhum dos que tinham acabado de chegar podia lhe oferecer qualquer resposta. Com que rapidez se poderia organizar a coroação e em que lugar do reino estava agora o arcebispo? Quais as forças de cavalaria que ele podia reunir e voltar para casa, ou seria melhor não perder tempo com isso, quando a rapidez era mais importante do que a força? Seria essa uma punição de Deus ou uma recompensa? A resposta para essa questão dependia do fato de o garoto poder sobreviver.

Após três dias de dolorosa espera pelo vento certo, um prazo que, pela época do ano, foi abençoadamente curto, o jarl Birger estava a caminho de casa na mesma galera que tinha chegado primeiro a Åbcom a frota da primavera. No caminho ele passou por muitas embarcações, cheias de gente comum e de guerreiros. Tarde demais e já bem ao largo ele reconheceu que devia ter trazido consigo um esquadrão de cavalaria forsvikiana. Se os homens a bordo fossem sim­patizantes dos jovens nobres, pretendentes ao trono, a sua vida não valeria muita coisa. E por isso mesmo a morte seria conseqüência da sua presunção.

Essa suspeita mostrou-se logo infundada, visto que quase todos os homens a bordo eram sveas. Todos tinham parentes que haviam começado uma nova vida na nova província e muitos deles preten­diam agora fazer o mesmo. Era como se um Poder Superior o estives­se protegendo, assegurando-lhe a vida entre os sveas. Isto apesar de, à primeira vista, não ser de esperar tal coisa. Ninguém mais duro do que ele tinha causado na Svealand tantos incêndios e deixado tantas viúvas chorando. Por isso ele ficou em dúvida, até que acabou entendendo que Deus o quis recompensar por ter espalhado na Tavastland os ensi­namentos cristãos. E se isso fosse verdade, então também era verdade, como o cardeal havia prometido, que ele agora estava livre e todos os pecados lhe tinham sido perdoados.

Primeiro Birger se ajoelhou na proa e agradeceu a Deus pela graça recebida, de costas para todos os marinheiros sveas a bordo e sem medo deles. Mas logo atravessou a sua mente a idéia de que ser um homem sem pecados era totalmente injustificável. Nesse caso, ele devia ter sentido algum tipo de mudança dentro de si. Mas, sem qual­quer dúvida, ele não tinha sentido nada e já estava pensando em como prender, executar ou mandar para o exílio aqueles jovens que achava serem os mais perigosos. Não era dessa maneira, certamente, que pen­saria um homem livre e sem pecado.

 

Desde que o seu pai, Ulf Fasi, morreu de tosse crônica e o inimigo dele, Birger Magnusson, se tornou jarl do reino, o jovem e nobre Karl vivia em permanente estado de medo. Agora que o rei Erik Eriksson havia morrido, de morte súbita, inesperada, como se tivesse sido enve­nenado, e o reino recebido um novo garoto como rei, todo o poder real estava nas mãos do jarl Birger.

O jovem Karl sabia que tinha de fugir do país. Se devia ou não se juntar a Knut Magnusson, Knut Folkesson, Filip Knutsson e outros jovens e nobres ele tinha menos certeza. Mas uma coisa era certa. Ele não teria muito tempo de vida, se o jarl Birger o apanhasse. Mesmo assim ele fez o impensável ao visitar Bjälbo para se despedir da sua velha mãe. Logo no segundo dia da visita, os amigos chegaram corren­do para avisá-lo de que havia um cavaleiro com manto folkeano se aproximando a galope de Ulvåsa. Podia ser o jarl, que, nesse caso, teria viajado de barco via Söderköping, subido o rio em uma embarcação e, assim, chegado a Ulvåsa.

Karl fugiu logo. Mas em seguida descobriu que havia um esquadrão de dezesseis cavaleiros forsvikianos atrás dele e se aproximando a cada momento. Ele sabia muito bem que nenhum homem comum como ele poderia cavalgar mais rápido do que esses forsvikianos e todo aquele que os visse no seu rastro podia considerar-se perdido.

Então ele parou e fez uma prece, tendo o cuidado de não usar palavras amargas, as últimas da sua vida, antes de entregar a alma à Mãe de Deus. Pediu perdão pelos seus pecados e se desculpou pelo fato de não se ter confessado no devido tempo, por descuido. Em seguida desembainhou a espada para enfrentar a morte como homem e não como um covarde.

Quando o esquadrão folkeano chegou perto dele, os cavaleiros fizeram um cerco em volta de Karl à distância de quase um tiro de fle­cha e pararam. Nenhum dos cavaleiros desembainhou a espada e aquele que tinha uma faixa azul no braço e exercia o comando se apro­ximou de Karl e, com palavras muito corteses, disse que de forma alguma queriam tirar-lhe a vida, mas que o jarl queria lhe falar pes­soalmente a respeito de uma questão grave e que eles tinham recebido uma ordem para levá-lo vivo e são de volta para Bjälbo.

O jovem Karl, de início, pensou que o jarl queria apenas ter o prazer de ver, ele próprio, a sua cabeça cair. Mas quando, em desespe­ro de causa, falou sobre o assunto, os cavaleiros apenas riram na cara dele e disseram que, se fossem essas as intenções do jarl, ele próprio teria vindo. Além disso, o jarl tinha dado a sua palavra. E ninguém no reino poderia dizer que o jarl não cumpria a palavra, quer fosse para o bem, quer fosse para o mal.

Isso era verdade, reconheceu Karl. Podia-se falar muito mal de Birger Magnusson, mas não que ele não cumpria a sua palavra.

Uma hora mais tarde, Karl estava na frente do jarl como um homem livre e com a espada à cintura.

— O tempo é curto para tudo, meu caro parente — começou por dizer Birger. — Preciso seguir viagem imediatamente para Näs, onde, ao que me informaram, o meu filho, o rei, se encontra. Entretanto, fiquei satisfeito em saber que você estava aqui, pois isso poderia con­duzir a uma reconciliação. Por que você fugiu quando eu cheguei?

— Pela simples razão de que a minha cabeça estava tão insegura no meu corpo quanto a de Holmgeir Knutsson no momento em que o senhor se tornou jarl do reino — respondeu Karl sem rodeios.

— Ela vai continuar assim no seu corpo justamente porque nos encontramos a tempo. Tenho um convite a lhe fazer, um convite que prefiro apresentar-lhe agora, vendo que você está livre na minha fren­te, do que mais tarde, de mãos amarradas, como vencido. Com a ajuda de Deus, estou salvando-o de uma grande infelicidade.

— Se Deus estivesse do meu lado, o meu pai teria vivido mais dois anos e então eu, e não o seu filho Valdemar, seria escolhido rei — res­pondeu o jovem Karl de cabeça altiva.

— Aí é que você se engana — disse Birger em voz baixa. — A maneira como Deus está conduzindo tudo isso jamais saberemos. Mas a questão decisiva não foi a de o seu pai ter morrido de velhice um ou dois anos mais cedo. A questão decisiva foi a de o nosso rei Erik ter morrido jovem e sem filho varão. Você jamais poderia se tornar jarl no lugar do seu pai se o rei Erik e eu tivéssemos a oportunidade de traba­lhar os dois em conjunto, durante vinte anos, lado a lado, para alcan­çar o que pretendíamos. Você estaria longe da coroa do reino, morto ou vivo. Portanto, não se lamente e escute a minha proposta. Como eu disse, estou com pouco tempo.

— Qual é, então, a sua proposta, jarl Birger?

— Reconcilie-se comigo aqui e agora. E eu o convido a assumir o lugar de membro do conselho do rei. Não se junte àqueles jovens. Você sabe de quem estou falando. Se eles se rebelarem, vão ficar sem a cabeça, todos, de uma vez, já que sem cabeça eles se comportam agora ao imaginar que podem provocar uma rebelião. Você e eu somos da família de Bjälbo. Quero que você fique a meu lado.

— Você e o meu pai foram inimigos até o último minuto — obje­tou o jovem Karl, hesitante.

— É verdade — respondeu o jarl. — Você quer dizer com isso que herdou do seu pai essa animosidade? Ou você é um homem com vontade e entendimento próprios?

— Como é que eu posso saber se você está sendo honesto ou não quer apenas ganhar tempo para, mais tarde, cortar a minha cabeça, quando lhe aprouver? — perguntou o jovem Karl amargamente.

— A sua franqueza é enorme, Karl — respondeu o jarl com um aceno de amizade e consideração. — Considere, em primeiro lugar, que você está vivo. Em segundo lugar, eu disse que tinha um convite a lhe fazer, e com isso quero expressar a idéia de que confio em você e de que quero mesmo tê-lo ao meu lado. E isso vale muito mais do que um lugar no conselho do rei.

— Se me oferecer ouro e florestas, você poderá receber tudo de volta após a minha morte — objetou o jovem Karl de novo.

— Isso também é verdade — concordou Birger. — Mas escute bem o que vou dizer. Dentro de pouco tempo a minha filha Rikissa seguirá com um séquito de noiva a caminho do rei Håkon da Noruega. Isso acontecerá muito em breve, espero, visto que esse casa­mento vai definir algumas coisas. No entanto, eu próprio estarei ocu­pado e não poderei liderar esse séquito. Por isso lhe peço humilde­mente que aceite levar a minha filha em segurança até o rei norueguês.

Por muito obstinado e orgulhoso que o jovem Karl se mantivesse diante desse homem que agora tinha todo o poder do reino em suas mãos, ele ficou sem resposta diante daquela que seria a menos provável de todas as propostas. O jarl estava lhe entregando a vida da filha em suas mãos. Uma confiança maior ninguém conseguiria demonstrar.

Karl conseguiu apenas formalizar com uma reverência a aceitação da missão honrosa. O jarl levantou-se, então, e se apressou em dire­ção ao cavalo que o esperava. E já a caminho do portão gritou que Karl devia ir ver sua mãe e aguardar em segurança sua volta a Bjälbo. Depois Birger desapareceu no caminho, esporeando o cavalo e par­tindo a galope.

 

Em Näs, Birger foi encontrar o seu filho Valdemar e os outros, além da filha, Rikissa, e da esposa, Ingeborg, todos com boa saúde e prote­gidos por três esquadrões folkeanos, bem como o pessoal que já fazia parte do castelo. Foi um grande alívio e um momento de muitas demonstrações de amor entre todos, pois ninguém duvidava do gran­de perigo que corriam,

Mas em Näs encontrava-se também o governador da província de Uppland, Ivar Blå, de Gröneborg, que merecia toda a honra de o jovem Valdemar ter sido escolhido como rei. Além disso, ele tinha conseguido tirar Valdemar das pedras de Mora, sem que qualquer dos jovens rebeldes tivesse tempo sequer de pensar em caçar e matar o novo rei.

Birger estava espantado com esse homem que, sem dúvida, podia ser considerado como seu amigo, mas que, no entanto, era apenas de Uppland e de uma família de que mal se tinha ouvido falar. Por que fazer essa boa ação? Porque haveria uma recompensa por parte do rei, sem dúvida. Mas ainda assim, por quê?

Ivar Blå não tinha muita coisa a dizer a esse respeito. Ele próprio nada tinha a ver com todos os pretendentes folkeanos ao trono, mas agiu na tentativa de causar o menor dano possível para o reino. Aca­baria havendo uma rebelião contra qualquer dos jovens ou garotos com mães erikianas e pais folkeanos, pois deles havia uma boa quan­tidade. No momento o importante era escolher aquele entre eles cuja eleição pudesse conduzir a uma guerra mais curta e menos prejudicial.

E Ivar Blå achava que fora uma escolha simples. O jarl do reino detinha o comando sobre todo o exército de cavalaria e o restante do exército do outro lado do mar. Se ele voltasse com desejos de vingança, todas as províncias logo ficariam em chamas. Mas se ele voltasse para defender o seu filho como rei, tudo sairia muito mais barato. Era muito simples.

Birger ficou agradecido e também um pouco surpreso ao ouvir esse grande homem de Uppland explicar uma questão difícil com palavras tão simples. Ele acreditava ser o único no reino com essa capacidade.

A escolha do jovem Valdemar como rei nas pedras de Mora era, sem dúvida, o primeiro passo, e o mais importante, para o poder. Mas o passo seguinte era a coroação. E isso significava também que a Igreja abençoaria o novo rei e que dificultaria aos rebeldes encontrar novos adeptos. Birger ordenou que a coroação se realizasse o mais cedo pos­sível, na catedral de Linköping. De certa maneira foi bom que o arce­bispado de Uppsala tivesse se incendiado, pois assim não seria preciso cavalgar por um caminho longo e perigoso até chegar a Nordanskog com o séquito da coroação.

A coroação do novo rei, Valdemar, de doze anos de idade, também não precisava ser uma comemoração de grande vulto, mas era mais importante que fosse feita logo. O arcebispo Jarlerus, como se espera­va, não foi encontrado, estando, talvez, entre os rebeldes. Portanto, foi o bispo de Växjö, temeroso e nem sequer letrado, que coroou Valdemar.

Por conseguinte, a rebelião em Nordanskog acabou perdendo força. Se os jovens rebeldes tivessem sido mais decididos de início, eles poderiam ter aprisionado Valdemar quando este chegou à assembléia em Aros Oriental ou pelo menos um pouco mais tarde, durante a escolha do rei nas pedras de Mora. Mas Ivar Blå e os folkeanos mais velhos foram mais rápidos e, além disso, tiveram sorte quanto à hora da inesperada morte do rei Erik, já que o anúncio do seu falecimento veio por ocasião da feira de Candlemas. Então restavam apenas dez dias para a assembléia, quando toda a Uppland viria para Aros

Oriental, a fim de estar presente nos dias da maior feira do ano. Portanto, a escolha do rei passou a ser uma inesperada diversão para a multidão e os senhores ali reunidos. Se Ivar Blå e os folkeanos mais velhos que o ajudaram fossem obrigados a fazer uma convocação espe­cial para a reunião, os inimigos poderiam ter chegado em quantidades apreciáveis. Tal como tudo tinha acontecido, todos os outros preten­dentes ao trono foram surpreendidos pelas circunstâncias que favore­ceram Valdemar.

Mas ainda que o perigo estivesse dominado pelos tempos mais próximos, Birger não descuidou do assunto e mandou enviados espe­ciais para saber o que estava acontecendo lá no norte. Todas as infor­mações que chegavam a Näs falavam o mesmo. Por muito que os jovens senhores, e agora já se sabia quem eram, andassem dizendo que era uma injustiça e que Deus queria que se fizesse uma rebelião para que um deles fosse eleito rei, em vez de Valdemar, essas eram apenas palavras que caíam como sementes sobre uma pedra. Os sveas pobres pensavam, de preferência, em mudar-se para o leste, por obra das boas graças do jarl, do que entrar em guerra contra ele. E os grandes senho­res eram de opinião que qualquer tentativa de rebelião contra o jarl Birger e os seus cavaleiros só poderia terminar com toda a província de Uppland novamente em chamas.

Além disso, os cavaleiros do rei conseguiram aprisionar um dos rebeldes, Filip Larsson, quando este foi até Nyköping, a fim de recrutar gente. Filip Larsson tinha sido muito amigo de Holmgeir Knutsson, que fora decapitado, e falava deste amplamente, como se fosse um mártir e um santo.

O primeiro pensamento de Birger quando Filip Larsson foi con­duzido a Näs, de mãos e pés amarrados por baixo da barriga do cava­lo, foi de mandá-lo para os carrascos. Mas a sua mulher, Ingeborg, convenceu-o a demonstrar tolerância e, por isso, ele se contentou em condená-lo, em nome do rei, ao exílio. Em duas semanas ele teria que deixar o país para sempre. E se fosse encontrado ali depois do tempo estabelecido, mesmo após muitos anos, seria executado de imediato.

Uma calma ilusória baixou sobre o reino e a vida na corte entrou na antiga rotina, em que os problemas grandes e pequenos se mistura­vam. Entre os menores, estava a encomenda de uma nova coroa para o jovem Valdemar. Na coroação em Linköping fora usada a coroa do rei Erik, grande demais, de tal maneira que nem as orelhas pontudas de Valdemar tinham impedido que ela caísse sobre os olhos justo na hora do juramento.

Entre os maiores problemas a resolver, estava o de responder às bulas de Sua Santidade, a mais importante das quais era a muito espe­rada por Birger, que estabelecia um arcebispado para cada bispado, de modo que cada arcebispado passasse a responder no futuro pela nomeação de todos os outros integrantes, desde padres aos bispos. Foi com a maior satisfação que Birger encarregou o seu novo e jovem chanceler, o bispo Kol, de Strängnäs, de criar o texto da resposta para o papa, com a inclusão da manifestação do rei Valdemar, dos gotas e dos sveas de aceitar todas as condições propostas pela bula de Roma e que, no futuro, nenhum outro bispo seria nomeado pelo poder secu­lar no reino.

Em seguida Birger afastou do conselho do rei os dois bispos que não sabiam ler nem escrever, substituindo-os por leigos, sendo um deles o jovem Karl. Birger deixou ainda transparecer que os homens da Igreja, no futuro, tinham pouco ou nada a dizer nas questões trata­das no conselho, já que eram, na sua grande maioria, questões de natureza secular.

Esse foi o castigo que ele usou contra os bispos no conselho.

A solução que ele encontrou, para amenizar, foi a de pedir aos bis­pos para escreverem as leis do reino sobre a segurança dos religiosos em geral nas visitas às igrejas e tratarem da sua exposição em locais como os bispados, as cidades e, finalmente, as igrejas. Os bispos mos­traram boa vontade em ajudar Birger nessa questão.

Com isso Birger achava ter lançado, finalmente, a pedra funda­mental para a construção do conjunto de leis que garantiam a paz na freqüência das igrejas, nos lares dos padres, e a segurança das mulhe­res no reino.

Agora que os padres estariam seguros em seus lares, o próximo passo seria garantir o mesmo direito a todos os homens. Assim, fora ótimo haver tanta controvérsia a respeito da lei que punia a invasão dos lares dos padres. Seria fácil conseguir a adesão dos camponeses na hora de estabelecer a igualdade de direitos e estender a todas as famí­lias seculares a segurança dentro de suas casas.

Mais difícil seria conseguir dos seus parentes mais destacados e também dos de outras famílias a concordância com essa nova lei. Os rebeldes já usavam essa ameaça contra as pessoas em melhor posição e apresentavam o jarl como um homem sentimental, que tudo fazia para beneficiar os padres. Esses comentários fizeram com que Birger ficasse mais cuidadoso. Embora a paz assegurada pela lei nos lares pudesse ser apreciada pela população em geral, o mesmo podia não acontecer em relação aos grandes senhores cavaleiros que perdiam assim todo o direito de comer e beber na casa de quem lhes apeteces­se nos campos. E caso houvesse uma rebelião, era melhor ter os cava­leiros do seu lado do que os camponeses, ainda que estes já estivessem cansados de viver correndo sempre o risco de serem invadidos de repente por um bando de homens barulhentos que comiam e bebiam tudo o que encontravam nas adegas e nas despensas. Birger achou que devia esperar para estabelecer a lei da paz nos lares em geral até que o perigo de rebelião passasse.

A colonização sueca e a guerra na Tavastland continuaram, mas sem muita discussão. Uma última grande tentativa de um contra-ataque por parte dos tavastlanos foi realizada com a ajuda de uma força de Novgorod, mas então a cavalaria folkeana começou a atacar o exército invasor logo no início da sua entrada na província, realizando sucessivos ataques durante uma semana, que apressaram a desorgani­zação do inimigo, de forma que a vitória final foi conseguida sem que tivesse havido um embate grande e decisivo.

Durante essa época de falsa calmaria, Birger viajou para Forsvik com a finalidade de uma conciliação com o marido de Alde, o cavalei­ro Sigurd. Assim como o jovem e nobre Karl tinha sido o penúltimo, agora era o cavaleiro Sigurd o último homem no reino com quem Birger tinha um relacionamento ruim e de quem queria ser amigo, em vez de ter que decapitá-lo. Para desapontamento de Birger, o cavalei­ro Sigurd, de repente, teve que tratar de um assunto no castelo de Lena assim que ele desembarcou no píer mais baixo de Forsvik. No entanto, Birger, inteligentemente, conseguiu abafar o seu primeiro impulso de irritação e, em vez de voltar logo para casa no mesmo barco, resolveu ficar por dois dias, a fim de tentar reconstruir a amiza­de de antes com Alde Arnsdotter.

Alde dirigia agora Forsvik com a mesma agilidade de sua mãe, Cecília Rosa, e estava educando a sua filha mais velha, Cecília, a seguir os seus passos e os da avó. Havia, porém, uma pequena, mas doloro­sa, preocupação, confessou Alde, uma vez sentados juntos durante a segunda noite na sala maior da nova casa-grande.

Para Birger, essa dificuldade de Alde foi uma surpresa, pois, para ele, tinham ficado as memórias iluminadas da sua infância em Forsvik, assim como a alegria de ver que tudo tinha ficado como dan­tes, após uma boa recuperação dos estragos causados pela invasão dos vândalos de Uppland.

Tinha a ver com o legado de Alde. Ela já tinha cabelos grisalhos, tal como Birger, e nessa idade, se não antes, os pensamentos rumavam facilmente para a morte e para o que iria acontecer com os descenden­tes. O cavaleiro Sigurd e ela tinham duas filhas. A mais velha era Cecília Aldesdotter e vivia na companhia de Ardus Ibensson, em união abençoada por Deus. Cecília tratava dos registros em livros e das contas, e ele era o chefe dos ferreiros de Forsvik. Tinham um filho chamado Arif e uma filha, Måna, e ambos exerciam funções impor­tantes em Forsvik.

A sua segunda filha, Ulrika, era dona de casa, casada com Erlend Bengtsson, da família sparreana, de Sörmland, e, portanto, bem situa­dos na vida.

O único filho de Alde e Sigurd, Roland, tinha passado pela dura escola de Forsvik, dos cinco anos de idade até os dezessete, e passava a maior parte do tempo no castelo de Lena, desejando apenas, como era de esperar, ser cavaleiro, igual ao pai.

Birger escutou pacientemente tudo isto, parecendo mais uma bonita história bem-sucedida passada em Forsvik, e não entendia bem aonde a sua tia e querida amiga de infância queria chegar.

Mas quando ela, finalmente, chegou à questão que a preocupava, ele se envergonhou de não ter pensado no caso, que lhe parecia agora claro. Aquele que, segundo a lei, devia herdar Forsvik, era Roland Aldesson, que era, entre as crianças de Alde e Sigurd, o que menos entendia, embora o desejasse, de Forsvik Se existia um filho, nada cabe­ria de herança para a filha. Cecília Aldesdotter, seu marido e as crianças poderiam continuar a vida em Forsvik, sendo que o jovem Roland obje­tivava entrar para a escola de guerra.

Ao ouvir o restante da história, Birger ficou pensativo e contando, um pouco alheio, a respeito do juramento que fizera diante do seu abençoado irmão Eskil, o homem de leis, que não deixaria passar um dia sem pensar em leis reais, novas e mais fortes, que servissem de base para um reino melhor e mais feliz. Esse juramento ele estava cumprin­do. No entanto, nunca tinha atentado para o erro na lei, de que Alde, calmamente, lhe havia falado. Mas a lei era clara como água e dela não se podia fugir. Já o velho ditado mencionava, para o homem tudo e para a mulher, nada.

Certamente, raciocinou ele, essa lei tinha a ver com tempos passa­dos, quando a herança só podia ser de terras e de armas do pai. As ter­ras tinham que ser cultivadas pelo filho, assim como claro era o filho receber do pai a espada e o elmo. Mas agora os tempos eram outros.

Forsvik não se podia comparar a um elmo ou a alguns palmos de terra arável.

Ele teria que reformular esse velho direito de herança. Irritava-o verificar que ele e Eskil, que tinham dedicado tantas noites ao estudo da natureza das leis e suas fontes, nunca houvessem reparado nesse erro do direito de herança. Não era possível, porém, mudar uma lei como essa do dia para a noite, por muito injusta e velha que ela fosse. Cada assembléia no país era composta de homens, e desses era de esperar que todos fossem de opinião que era certo e justo que o irmão herdasse tudo, e a irmã, nada. No caso de Forsvik, porém, havia como contornar a lei, segundo ele raciocinou. Na torre de Arnäs estavam guardadas todas as riquezas em ouro produzidas por Forsvik durante os muitos anos de bons negócios com fregueses tanto próximos como distantes. Assim, Roland Aldesson podia receber uma boa herança que, de maneira alguma, o faria sentir-se prejudicado. E, então, Alde podia e devia deixar Forsvik em testamento para Cecília e seu marido, Ardus Ibensson. Só assim se podia ter certeza de que Forsvik conti­nuaria a existir para benefício duradouro de toda a família.

Alde fez ainda algumas fracas objeções. Não acreditava que fosse possível usar de um subterfúgio para contornar a lei. Mas Birger afas­tou sua preocupação, dizendo que já conhecera outros casos mais gra­ves de interpretação das leis. Há muito tempo que já se aceitava a regra de que cada um podia doar a herança para igrejas e mosteiros por tes­tamento. Portanto, era possível fazer o mesmo em relação aos seus descendentes. Logo que chegasse de volta a Näs, ele daria uma ordem ao seu chanceler para escrever o testamento, a ser enviado para Alde, de modo que esta pudesse apor o seu selo. E com isso a questão esta­ria terminada.

Os dois voltaram a se entender melhor e a lamentar que não tives­sem resolvido esse caso muito antes. E quando a sua reconciliação se aprofundou com vinho e lágrimas, Birger começou a reclamar da dureza de Sigurd, de este não ter ficado em Forsvik quando soube que ele estava chegando. Afinal, será que a nossa inimizade é assim tão grande?, perguntou Birger, com tristeza na voz. As palavras tolas já tinham sido faladas há muitos anos. E desde então muita água já tinha corrido por baixo da ponte.

Com lágrimas nos olhos, Birger assegurou que, agora, queria fazer de Sigurd o marechal do reino, visto que Sigurd era o único grande combatente da época de Arn Magnusson. Seria possível que tal honra não pudesse quebrantar o coração duro de Sigurd?

Alde disse não ter certeza de nada a esse respeito. Sigurd era muito orgulhoso e tinha muita dificuldade em esquecer que era apenas o filho de um ex-escravo, enquanto todos à sua volta em Forsvik, desde a mais tenra idade, só falavam das elevadas posições que ocupavam as suas respectivas famílias. Ele também teve dificuldade em engolir o fato de todos os seus filhos terem preferido usar o nome da mãe em vez do seu, e, num momento de raiva e de tristeza, chegou a confessar o quanto lhe doeu que o seu filho fosse impedido de usar o nome de Arn, por oposição de Cecília, ou de Sigurdsson.

E foi justamente essa ferida mais dolorosa que Birger atingiu da pior maneira com as suas palavras quando a inimizade surgiu na juventude. E essa ferida jamais cicatrizou.

Birger voltou pensativo para Bjälbo na companhia de dois jovens forsvikianos já graduados que, a partir de então, receberiam a honra de educar o jovem rei do país em tudo o que se aprendia em Forsvik. Mandar o rei para um treinamento duro e severo de dez anos em Forsvik era impensável. Eventualmente, seu filho Magnus, que pare­cia com o pai em temperamento e na cor do cabelo, assim como Valdemar era parecido com a sua mãe, poderia ingressar na escola e receber a dura educação de Forsvik. Mas não o rei.

Ao deixar Forsvik, após a boa convivência com Alde, ele pensou primeiro em seguir para Lena o quanto antes para procurar se recon­ciliar com o cavaleiro Sigurd. Talvez ele pudesse chamar à razão o filho Roland, levando-o a entender que era uma grande honra usar o nome de Sigurdsson, um dos maiores combatentes e cavaleiros do reino, do que o nome da mãe.

Mas em vez de resolver essa questão difícil, ele achou que tinha urgência em voltar a tratar das outras pendências do reino e desistir dessa visita difícil a Lena.

Disso ele se arrependeu amargamente.

 

No ano seguinte, começou a fazer sentido, lentamente, para Birger que tinha subestimado tanto o ódio dos jovens senhores por ele quan­to a obstinação deles pelo poder real. Nada havia no passado que desse a entender terem eles o menor sucesso na suas tentativas de instigar o povo de Nordanskog a rebelar-se. E do seu amigo, o rei Håkon, da Noruega, Birger recebeu mensagens com a descrição detalhada de como os rebeldes, um após o outro, com o exilado Filip Knutsson em primeiro lugar, procuraram o apoio do rei norueguês e foram repeli­dos. Isto porque o rei Håkon jamais trairia a sua palavra, em não dar apoio aos inimigos do soberano vizinho. Entretanto, achava que esta­va na hora de selar o acordo de amizade entre os dois por meio do casamento combinado entre Rikissa, a filha de Birger, e o filho dele, Håkon, o Jovem.

Rikissa tinha apenas catorze anos, o que Birger considerava ser ainda a idade mínima para ela se casar. Mas agora o casamento tornara-se uma questão que dizia respeito mais à defesa do reino do que à preocupação de conduzir uma noiva jovem demais à cama do noivo.

Começou, inclusive, a haver pressa na concretização desse casa­mento, visto que tanto a partir do rei Håkon quanto dos seus próprios enviados, ele sabia não só quem eram os rebeldes, todos mais ou menos folkeanos, ou pelo lado do pai ou pelo da mãe, como soube também que um deles, com quem era mais ligado por laços de famí­lia, Knut Magnusson, já começara a intitular-se como rei Knut.

Já isso era motivo suficiente para preocupação. Mas pior ainda foi saber, pelas informações que começaram a chegar dos seus enviados, como os rebeldes estavam pensando chegar à vitória. Eles cavalgavam como bandos de ladrões em grandes áreas da província de Nordanskog, saqueando no caminho as igrejas de todo ouro e prata. Não era difícil imaginar o que eles fariam com essas riquezas, e isso foi confirmado também por uma mensagem do rei Håkon.

Como não conseguiam reunir um exército forte dentro das fron­teiras do reino, onde tinham pouco apoio, eles viajaram para Schlesien, no sul da Dinamarca, a fim de contratar, a peso de ouro e prata e de tudo o que pudessem reunir em termos de riqueza, um exército de ca­valeiros mercenários.

Como a guerra era inevitável, Birger, como jarl do reino, podia começar a reunir o exército de soldados a pé e de arqueiros e mandá-los para o sul, a caminho do castelo de madeira de Kvinnestad, na área ao sul da Götaland Ocidental, assim como devia começar a reunir mantimentos. Tudo isto ele fazia de bom humor, não duvidando da vitória contra os cavaleiros mercenários vindos do estrangeiro. Mesmo que metade dos esquadrões do reino continuasse em serviço do outro lado do Mar Báltico, a outra metade da cavalaria folkeana seria mais do que suficiente para vencê-los.

Ele conferia um peso bastante maior ao envio de espiões atrás dos rebeldes para conhecer por antecipação seus planos, o que pensavam, e assim reunir a cavalaria, de movimentação mais fácil.

O exército de mercenários deveria chegar através da Jutlândia, dinamarquesa, e atravessar o mar de barco para Halland, isso ficaria logo claro. E, por isso, Birger tinha mandado o exército para o sul, visto querer bater o inimigo o mais rápido possível, antes que eles saqueassem e incendiassem tudo.

Como último preparativo naquele verão, Birger mandou o jovem Karl, como tinha prometido, à frente do séquito da noiva, Rikissa, para o rei Håkon. No séquito, seguiram também os bispos Lars, de Skara, e Magnus, de Aros Ocidental. Como não podia estar presente em Oslo, por causa da guerra que se aproximava, ele mandou uma quantidade honrosa de cavaleiros das fazendas folkeanas da Götaland Oriental e de Bjälbo para acompanhar Rikissa.

Em seguida faltaria apenas reunir a cavalaria da Götaland Ocidental e partir para o sul à espera do último e decisivo combate. E, assim, ele iria passar, finalmente, por Lena, a fim de fazer as pazes com o cavaleiro Sigurd, que era o maior comandante de todos os cavaleiros da Götaland Ocidental.

Esse encontro tornou-se a mais fria decepção da sua vida. O cava­leiro Sigurd entendeu que dessa vez o inimigo era formado por folkea­nos e não por uns folkeanos quaisquer, visto que grande parte deles era composta de forsvikianos. E todos os forsvikianos haviam jurado jamais puxar a espada uns contra os outros. Por conseguinte, nenhum cavaleiro da Götaland Ocidental seguiria Birger para essa guerra civil com os forsvikianos.

Por muito que Birger tentasse convencê-lo de que não se tratava de guerra civil, visto que o exército inimigo era composto, principal­mente, de mercenários estrangeiros, Sigurd não se deixou desviar das suas convicções.

Birger ficou desesperado, chegando quase às lágrimas, e tentou persuadir o cavaleiro Sigurd a fazer as pazes com ele, mas reconheceu logo que ele devia ter pensado nisso antes, quando falou em amizade, em muita água por baixo da ponte e em outras invocações que agora estariam surgindo na hora errada. Nos olhos do cavaleiro Sigurd, achava poder ver que a sua insistente oposição à colocação de forsvi­kianos contra forsvikianos não apenas tinha a ver com a antiga tradi­ção de fidelidade entre eles. Pareceu a ele que, de igual modo, essa oposição se devia à inimizade, desnecessária e infantil, que nasceu entre ele e o cavaleiro Sigurd. Uma ferida que nunca mais cicatrizava.

Como o tempo escasseava, Birger teve que desistir e cavalgar em direção ao seu exército em Kvinnestad. Foi uma viagem muito triste. Ele tinha vencido muitas batalhas e, em alguns casos, com armas que ninguém esperava. Uma vez a comida tinha sido a sua única arma, quando libertou Lübeck. Ultimamente, em Tavastland, usou grandes bandos de colonizadores pobres e a tolerância foi a sua melhor arma. Mas como estava habituado a vencer com a cavalaria, jamais lhe pas­saria pela cabeça que precisaria vencer a cavalaria inteira de um exérci­to com apenas soldados a pé. Isso lhe parecia ser impossível.

Durante os dois dias de viagem, sozinho, Birger teve a sensação, repetidas vezes, de que tudo aquilo que havia perseguido na vida lhe estava escapando das mãos. Finalmente havia paz no reino. Final­mente havia um rei folkeano. Finalmente o trabalho com as grandes leis de segurança havia começado a dar frutos. E agora tudo estaria perdido.

Também não esperava nenhuma tolerância por parte dos vence­dores. Por sua parte, a morte não seria o problema maior, mas ele sen­tia dor só de pensar no que os vencedores iriam fazer dos seus filhos quando chegassem lá no norte na inebriante alegria da vitória com a cabeça do jarl na ponta de uma lança, bem na frente, entre os porta-bandeiras.

Passou pela mente dele que um dos motivos para os rebeldes der­rubarem a ordem estabelecida no reino, tão forte quanto alcançar o poder, era a animosidade contra as novas leis de segurança. Essas leis significavam que o direito dos jovens senhores de viajar como ladrões pelo país com o apoio da lei acabaria. Talvez a fúria deles contra Birger tivesse mais a ver com isso do que com algumas das suas vitórias con­tra os seus parentes.

Num momento de desespero que o lançou em profunda escuridão, ele parou e desceu do cavalo. Ficou sozinho num bosque de carvalhos no meio de um prado ao sul de Skara. Não havia ninguém por perto. Ninguém estava vendo o seu desespero, o medo ou a dúvida em relação a tudo pelo que tinha vivido até esta derradeira cavalgada para a morte.

“O que é que você me aconselha agora, você que tem resposta para tudo, meu grande amigo, cardeal Vilhelmus?”, murmurou para si mesmo.

Só havia silêncio à sua volta, a não ser a brisa fraca passando pela folhagem dos galhos mais altos dos carvalhos.

A força dentro si voltou, repentinamente, como uma fúria ou o fluxo da água de uma represa aberta na primavera. Se era a voz de Deus que falava para ele ou a do divino santo Arn, ou a do cardeal, ele não sabia dizer. Mas toda a sua força e poder de decisão estavam de volta.

Birger fez o sinal-da-cruz e se ajoelhou. Com a curta oração aumentou ainda mais a sua certeza de que Deus não queria que o bem perdesse diante da hipocrisia e do egoísmo que o inimigo representa­va. Quando fez de novo o sinal-da-cruz, veio a mensagem de uma voz forte, através do seu pensamento, na linguagem de Deus: In hoc signo vinces!

Eram palavras atribuídas ao divino santo Arn, isso ele sabia muito bem. Na linguagem popular, significavam: Com este sinal, vencerás!

Birger saltou para cima do seu impaciente garanhão e partiu, rápi­do, para o sul.

 

                   O final do começo

NA ESCURIDÃO MAIS PROFUNDA da noite o jarl Birger, acompanha­do do bispo Kol, seguiu para o lugar onde estavam os recém-chegados cavaleiros folkeanos e saudou a todos, um a um, abraçando alguns deles que conhecia melhor. Ele não pôde esconder suas lágrimas.

Em todo o acampamento do exército ainda se trabalhava duro à luz bruxuleante dos archotes de piche. As últimas peles de vaca foram retiradas e levadas para serem colocadas no teto das trincheiras. As carro­ças e os carrinhos com carnes e outros suprimentos foram levados para uma área longe do conflito. Quando surgissem as primeiras luzes do amanhecer, mais de mil homens teriam que deixar o acampamento. Eram todos madeireiros, lenhadores e abatedores de retaguarda cujo serviço na guerra tinha terminado e a presença não teria mais utilidade nem daria alegrias a ninguém. Estava sendo posto em prática um plano imaginado por Birger quando a vitória do dia seguinte ainda era incerta.

Quando Birger já tinha saudado todos os cavaleiros e o bispo Kol os abençoado, o que exigiu algum tempo, pois eram quase duzentos homens, Birger chamou o cavaleiro Sigurd e seus três comandantes e levou-os para a casamata, na margem do riacho. Uma vez ali, mandou acender uma tocha, alisou a areia do caixote, colocou de novo os cones e as setas em posição e riscou a areia com o dedo enquanto explicava como seria o combate do dia seguinte. A cavalaria faria uma grande volta em surdina e atacaria o inimigo pelas costas a um sinal de Birger. O sinal seria uma flecha em chamas azuladas disparada para o céu.

Era difícil dizer quando o sinal seria dado. Se tudo corresse como Birger esperava, o inimigo seria capturado implacavelmente ao atacar, ao tentar atravessar o riacho e também na fuga, ao voltar para trás. Dessa forma a cavalaria encontraria pela frente um inimigo em fuga desordenada, que poderia ser abatido após um curto combate. Os mercenários eram conhecidos por desistirem do combate assim que julgassem a batalha perdida. Acima de tudo, faziam questão de não arriscar a sua vida. E uma vez tendo os mercenários desistido, os rebel­des folkeanos não teriam outra coisa a fazer senão entregar-se como prisioneiros.

A cavalaria ficaria dividida em dois grupos, um maior, com a mis­são de fazer o trabalho pesado de vencer a tropa estrangeira, e outro, menor, com a missão de cercar o campo do inimigo e assegurar que nenhum dos rebeldes fugisse. Birger ordenou que o filho do cavaleiro Sigurd, Roland Aldesson, comandasse a força maior da cavalaria que teria a missão mais trabalhosa e perigosa. O cavaleiro Sigurd coman­daria a força menor, que tomaria o acampamento inimigo. Nem o cavaleiro Sigurd nem o filho dele se opuseram a essa ordem, embora os dois trocassem um rápido olhar de espanto.

Foram feitas e respondidas algumas perguntas e a repetição de todas as manobras. Em seguida Birger pediu que o jovem Roland e seus subcomandantes se retirassem para dormir e deixassem que ele e o cavaleiro Sigurd ficassem a sós.

— Eu não quis dizer nada diante dos jovens, mas agora não posso deixar de perguntar por que você deu ao meu filho a missão mais difí­cil e perigosa — falou o cavaleiro Sigurd, tranqüilamente, assim que os outros se afastaram, ficando difícil de poderem escutar. Havia mais espanto do que irritação ou raiva na sua voz.

— Você gostaria mesmo de comandar o ataque? — disse Birger, a pergunta acompanhada de um olhar provocador. — Considere que você e eu já começamos a ficar um pouco mais velhos e mais lentos na execução das manobras. Eu dei essa ordem pensando em você, Sigurd, e a minha intenção foi a de lhe prestar um serviço.

— Esse serviço vai custar caro se Roland estiver entre os mortos quando formos limpar o campo de batalha, por volta do meio-dia de amanhã — murmurou Sigurd.

— Essa não foi a minha intenção. Ao contrário, foi a de dar a Roland a honra da nossa vitória — respondeu Birger. — A minha dis­posição é boa e, em função da sua chegada, estou certo de que a vitó­ria será nossa. Além disso, você ficou dispensado de ter que escolher entre dar ao seu filho uma tarefa insignificante como porta-bandeira ou uma difícil, como aquela que eu lhe dei e que nós dois sabemos ser da sua preferência.

— Você tem razão e eu lhe agradeço — concordou o cavaleiro Sigurd, pensativo. — Exatamente como você disse, eu teria dado a Roland um lugar sem perigo atrás da tropa ou como meu porta-bandeira. Essa ordem Roland ficaria obrigado a cumprir, mas, mais tarde, iria me censurar amargamente. Muito bem. Quer dizer então que a minha missão será a de reunir os folkeanos feitos prisioneiros, depois de tomar o seu acampamento. É isso?

— Isso mesmo. Todos sabem que você é um homem honrado, todos o conhecem — confirmou Birger. — Assim, tudo será feito de forma mais tranqüila e com mais precisão, se for você a executar essa tarefa, em vez de ser eu a fazê-lo.

— Mas depois vou deixar todos os prisioneiros com você, certo?

— Certo. Eles são todos prisioneiros do rei e eu sou o comandan­te supremo dele — respondeu Birger, sendo breve e falando pouco à vontade. O cavaleiro Sigurd contemplou-o longa e pensativamente, mas sem ódio no olhar.

— Vejo que você tem uma preocupação, Sigurd — disse Birger quando o silêncio entre os dois se prolongou. — É melhor falar agora do que mais tarde!

— Receio pela intolerância com que você vai tratar os prisionei­ros, entre os quais muitos são nossos parentes. E eu apelo para você considerar as palavras muitas vezes repetidas por Arn Magnusson a respeito de tolerância, palavras que ficaram na nossa memória para sempre — respondeu Sigurd, devagar e de testa enrugada pela preocu­pação.

— Eu me lembro exatamente das palavras a que você se refere — suspirou Birger, cansado. — “Ao puxar a sua espada, não pense em quem vai matar, pense em quem vai poupar”, foram essas as palavras que você tinha em mente, certo?

— Isso mesmo — respondeu Sigurd. — São justamente essas palavras que eu quero que você tenha sempre em mente.

— Eu não sou nenhum santo como ele foi. Não recebi esse legado como herança — disse Birger com um encolher de ombros. — Além disso, Arn Magnusson estava errado em um aspecto importante, visto que nem ele se considerava infalível. Você se lembra, certamente, de que ele falava que o poder era composto de três pernas fortes?

— É claro. Seriam o ouro, a espada e a cruz — respondeu Sigurd. — Assim que os folkeanos dominassem essas três pernas, a paz seria eterna e o país iria florescer. E agora me diga: você ainda acredita nessa sabedoria?

— Ainda acredito, mas só em parte — respondeu Birger. — Em breve vamos nos separar da Igreja e deixar esse poder que advém da cruz para os homens dela. Nós não queremos nos meter no que eles fazem, assim como não queremos que eles se metam no que nós, do poder secular, fazemos. Assim, restam duas pernas, o ouro e a espada, mas existe uma terceira perna que é igualmente importante, a lei. Arn Magnusson não reconhecia a importância da lei por ser um homem tão bom e cristão que acreditava nas leis da Igreja e da consciência como sendo mais do que suficientes para nos orientar. E então, talvez por ser um homem muito melhor do que eu e você, ele estava errado. Depois da vitória que nós vamos conquistar amanhã, teremos em vigor uma lei de segurança em todo o reino. Todos os homens pas­sarão a ser reis em sua própria casa. Ninguém, como você e eu, pode­rá invadir a casa de qualquer outro homem, violentar a mulher dele ou esvaziar a sua adega ou despensa. É por esse fato que o combate amanhã vai ficar na história.

Sigurd tinha escutado em silêncio, pensativamente, e acenado com a cabeça de vez em quando, dando a entender que concordava com ele no geral e que também achava inteligente e justo que se colo­casse os camponeses em proteção. Mas totalmente satisfeito ele ainda não estava.

— Receio que a vitória amanhã ficará na história por um outro motivo — disse ele finalmente. — E acho que você sabe do que estou falando.

— Não, não sei — mentiu Birger, fazendo um gesto inquisitivo com as mãos.

— A sua maneira de tratar os prisioneiros — respondeu Sigurd. — Você, Birger, eu conheço bem. Você não vai mostrar nenhuma tolerância para com os vencidos.

— Eu poderia mentir para você agora, Sigurd, por ter medo de você mudar de atitude mais uma vez, reunir os seus cavaleiros e me deixar aqui sozinho neste ninho de vespas. Mas mentir a respeito disso seria ofendê-lo, e até a mim mesmo, depois de todas as preces de agra­decimento que fiz ao ver sua chegada com a salvação. Sim, os seus receios vão se confirmar e vou dizer por quê. Não tem nada a ver com ódio, descortesia ou raiva. Não sou um homem simples assim. Mas esta vai ser a última rebelião. Se eu deixar os rebeldes saírem por aí depois de terem prometido mundos e fundos e feito juramentos falsos de que vão se acomodar pelo resto de suas vidas, não vai demorar muito e logo vamos ter uma nova rebelião para debelar. Mas se eu lhes cortar a cabeça, haverá paz em nosso reino.

— Eu entendo como você pensa, mas ainda assim acho que está errado — respondeu o cavaleiro Sigurd. — Você manda cortar a cabe­ça deles e eles serão silenciados. Mas os filhos e os parentes deles vão odiá-lo por toda a eternidade, e desse ódio vai nascer em breve uma nova rebelião. Você vai fazer uma colheita de dragões, Birger, ainda que as intenções sejam as melhores.

— De certa maneira, você tem razão — admitiu Birger. — Vou colher muito ódio e muitas reclamações, mas também um longo tempo para respirar... pelo menos dez anos. E durante esses anos vamos trabalhar muito e construir mais fortalezas para proteger o reino. Kalmar, Estocolmo, Örebro, Nyköping e outros mais. A partir desses castelos vamos controlar o reino. Entretanto, entram em vigor as leis de segurança, de respeito às mulheres, de liberdade religiosa, leis que vão mudar tudo no nosso reino. Ficará para trás o tempo das vin­ganças de sangue. E o das rebeliões também.

— E para isso você está disposto a arcar com todo o ódio, em con­seqüência da intolerância que vai demonstrar amanhã? — perguntou Sigurd, sem dar sinal pelo tom da voz de que se deixara convencer.

— Sim, assim mesmo — reagiu Birger. — Você deve pensar que todo homem de bem deve cuidar da sua biografia. Mas pensando assim cada um pode estar enganando a si mesmo pela sua presunção. Mais importante do que a biografia são as suas ações e o resultado delas. Após a vitória de amanhã vamos chamar o nosso reino de Sverige, terra dos sveas, em latim, Suécia, uma palavra só para as pro­víncias de Götaland e Svealand. Vamos forjar neste reino uma unida­de e uma força. Não haverá mais razão para falarmos de sveas e de gotas, mas de suecos. Essa será a minha obra e, quem sabe, será muito maior e mais bonita do que a minha biografia.

— De fato, acredito em você, Birger — confessou o cavaleiro Sigurd, pensativo, afastando para o lado com os dedos os seus longos cabelos já grisalhos. — Acredito que a sua obra vai ser muito maior e melhor do que a sua biografia. Mas, de qualquer forma, gostaria de lhe pedir um favor.

— Você sabe que, neste momento, eu não posso lhe negar nada — reagiu Birger rapidamente. — Seja o que for que você me peça, eu tentarei realizar.

— Então eu lhe peço para me deixar sair daqui com os meus cava­leiros, ainda amanhã, logo depois da vitória. Não quero ver o que você pensa fazer, ainda que concorde que você tem razão em tudo o que me disse.

— Você acha que eu tenho razão?

— Acho sim, ainda que seja difícil para mim ter que admitir, Birger. Creio que você tem razão, mas, no entanto, prefiro não ver meus parentes morrerem amanhã.

 

Uma hora antes do amanhecer, o acampamento acordou pelo movi­mento dos serviçais encarregados do relógio de areia. Contadas as horas numa ampulheta, eles partiram em volta do campo tocando um triângulo de ferro. Foram acesas as tochas de iluminação, as fixas e as móveis, e todo o campo começou a se movimentar como um gigan­tesco formigueiro.

O jarl estava de pé num morro situado atrás das catapultas que iriam mergulhar o inimigo num mar de fogo se tudo corresse como o previsto. Em cima do morro, além dos homens escolhidos para dispa­rar as catapultas, estavam o bispo Kol, dez arqueiros de segurança e dois outros de longa distância, preparados com flechas de fogo e algu­mas conchas pequenas com enxofre e lascas de cobre. O trabalho no acampamento era realizado de forma tranqüila e segura. Algumas car­roças com trabalhadores diversos, sem armas, se afastavam, gemendo na noite. E, em breve, cairia o silêncio completo sobre os quatro homens que ficaram, dispostos a vencer ou morrer.

As primeiras luzes do amanhecer apareceram e as estrelas começa­ram a apagar-se, uma em seguida à outra. No momento, restava ape­nas esperar e rezar.

Os esquadrões forsvikianos já haviam se retirado na escuridão da noite, duas horas antes do amanhecer, visto que, no longo desvio em volta, eles precisavam seguir, cautelosamente, a pé. A sua ausência aumentava a gravidade da situação no silêncio, não se escutando nada desse lado, mas ouvia-se o relinchar dos cavalos do inimigo, do outro lado do riacho, sinal de que os cavaleiros tinham começado a formar para o ataque.

O bispo Kol tremia e suava frio. Jamais tinha visto um grande combate de perto e já se lamentava por não ter seguido a proposta do jarl no sentido de se retirar em qualquer uma das últimas carroças. Agora era tarde demais, e ainda que não receasse por sua vida, maior, no entanto, era a sua preocupação diante dos pecados cruéis que iria testemunhar. Só nessa hora ele entendeu bem o que o jarl tinha pre­parado como armadilha terrível.

Assim que a primeira flecha iluminada ascendeu, ouviu-se, de repente, um sinal agudo de corneta do outro lado do riacho Säveån e uma grande cobra de fogo saiu da praia inimiga. À luz do fogo viu-se uma enorme quantidade de flechas incendiárias serem acesas e apon­tadas para cima. Ao segundo sinal da corneta o céu se transformou em uma luz flamejante diante deles. Era a primeira onda de flechas incen­diárias caindo sobre a primeira trincheira, ao longo da margem do ria­cho. O bispo Kol sentiu como o seu coração batia forte no peito e mar­telava nas têmporas. Era como se a tensão fosse superior às suas forças e ele estivesse para desmaiar. Mas ao olhar para o jarl ele se tranqüilizou um pouco diante daquele sorriso atravessado de satisfação.

Tudo parecia correr, por enquanto, tal como o jarl havia descrito para ele. Onda após onda de flechas incendiárias passava por cima da primeira linha de defesa do acampamento, mas em lugar algum sur­giu qualquer incêndio. A maioria das flechas caía em cima das peles molhadas e se apagavam de imediato. Uma ou outra ia mais longe e caía no meio do acampamento, mas era logo apagada por garotos dili­gentes com baldes de água e molhos de ramos verdes na mão. Em lugar nenhum o fogo pegou.

Depois de meia hora de tentativas infrutíferas para incendiar o acampamento, o inimigo acionou o segundo passo do seu plano de ataque. Ouviu-se um grande barulho de armas e de estribos do outro lado do riacho no momento em que a cavalaria e a tropa a pé rece­beram ordens para formar em cunha, ao mesmo tempo que os arquei­ros deixavam as suas posições e se retiravam. Após um novo sinal de corneta surgiu um ruído borbulhante que o bispo Kol, de início, não conseguiu entender e precisou se inclinar para o lado do jarl, ainda mantendo o seu sorriso de satisfação, para lhe perguntar o que estava acontecendo. Era o som de mil homens, ou mais, entrando na água ao mesmo tempo para invadir, intempestivamente, as valas defensivas na outra margem do riacho.

Só agora era chegada a hora de os arqueiros e as bestas do jarl entrarem em ação. E pelos gritos e gemidos embaixo, no riacho, o bispo Kol entendeu que muitos dos inimigos já tinham caído, antes mesmo de atravessar as águas. Mas a tropa a pé já estava avançando para a margem e para as águas e empurrando os feridos para irem em frente. O único caminho possível era avançar em direção aos muros de madeira, às defesas permanentes e às paliçadas, do outro lado.

Birger deu, então, a ordem para que as três catapultas fossem arma­das e carregadas cada uma com a primeira barrica daquilo que ele cha­mava de fogo grego. Lá na frente escutava-se o tremendo estrondo das quebradoras de muros, acionadas contra as madeiras da defesa. Birger mandou, então, que um dos arqueiros de longa distância disparasse uma flecha com enxofre, atravessando o acampamento e se fixando na madeira do muro de defesa. A chama forte e clara significava que todo mundo por trás do muro onde o inimigo estava tentando se infiltrar tinha que se afastar. Nenhum dos homens de Birger devia ficar perto do lugar por onde o inimigo logo iria investir de novo.

O ruído dos aríetes e o ranger e a quebra das madeiras eram cada vez mais elevados e logo uma parte do muro caiu e um espaço de uns trinta passos se abriu. Ouviam-se os gritos triunfantes dos invasores inimigos que agora entravam e, no momento, escutaram-se do outro lado dois sinais de cometa e em seguida o som surdo das patas dos cavalos batendo no solo. A cavalaria inimiga avançava, passando pelas águas do riacho, com centenas de cavaleiros.

O jarl tinha dado ordem para acender o fogo grego das barricas das catapultas já armadas, e o bispo Kol chegou a temer que alguma das barricas estourasse antes de ser enviada pelo ar. Mas o jarl conti­nuava calmo e esperou até que os primeiros soldados inimigos chegas­sem a um tiro de distância dos seus defensores diretos, antes de man­dar disparar as três catapultas e recarregá-las de novo. As três barricas seguiram, então, a sua viagem aérea, lentamente, quase parecendo três artefatos inofensivos. Mas quando as barricas atingiram o solo elas se abriram, jogando fogo para todos os lados até à altura do topo das árvores à sua volta. Uma onda de calor chegou a atingir o rosto do bispo, que teve de levantar os braços para se defender.

Diante dele a imagem era absolutamente infernal. De centenas, tal­vez milhares de gargantas saíram gritos estridentes de dor e medo, de cortar o coração. Os homens corriam como tochas ardentes em todas as direções, antes de rolar pelo chão, gemendo e lutando contra as chamas que não os largavam. Nesse momento, já as três novas barricas das cata­pultas voavam a caminho de um destino um pouco mais longe, de modo que atingiam e provocavam um mar de chamas entre os cavalei­ros que acabavam de invadir a fortaleza. A visão era o que se podia ima­ginar do inferno, pensou o bispo Kol, cujos olhos se encheram de lágri­mas vendo o sofrimento indescritível de homens e cavalos, gesticulando e esperneando e gritando, assolados pelas chamas.

O jarl ordenou, então, que fosse jogada uma flecha de enxofre, que produzia uma cor amarelada, na direção do lugar onde estavam os seus arqueiros de longa distância. Mal a flecha atingiu o solo com a sua luz clara, ouviu-se o ruído chiado de milhares de arcos sendo esti­cados e logo em seguida milhares de flechas voavam no céu, forman­do uma nuvem negra de morte prevista para os inimigos em fuga desorganizada, numa grande zona de confusão e desespero nas mar­gens do riacho.

Uma nova nuvem de flechas disparadas pelos arqueiros de longa distância voou na direção dos muitos fugitivos que recuavam e subiam a outra margem da corrente, enquanto que, por toda parte, se ouviam ainda os mais terríveis gritos e gemidos daqueles homens que ardiam e que a morte ainda não havia liberado do indescritível sofrimento.

O jarl, que continuava calmo e senhor da situação, ordenou, então, que um dos arqueiros de longa distância rolasse uma das suas flechas com piche nas lascas de cobre e a disparasse, acesa, diretamen­te para o céu.

Logo em seguida a flecha subia no horizonte, deixando um rastro de fogo, de cor azul. No alto parou como se fosse uma estrela brilhan­te e logo iniciou a descida.

Os gritos dos homens queimados e moribundos tinham amaina­do. Apenas uma pequena quantidade de fugitivos estava sendo perse­guida a pé e caçada por arqueiros e besteiros entre a fortaleza e a mar­gem do riacho. Alguns cavalos com rabos e crinas em chamas circula­vam sem destino, de olhos brancos de tanto medo. O grande incêndio no meio do acampamento, por trás dos muros de madeira destruídos pelo inimigo antes da invasão, começou a apagar-se e, assim que as chamas desapareciam, via-se um tapete negro de corpos humanos, alguns deles se revirando no solo e dando ainda alguns sinais de vida.

De longe ouviu-se então um ribombar estranho que o bispo Kol julgou ser produzido por algum temporal de raios e relâmpagos. Mas quando o ruído aumentou do outro lado do riacho, logo entendeu que só poderia ser o galope da cavalaria folkeana que estava atacando o já quase derrotado inimigo.

O jarl olhou para o bispo e sorriu. Apontou para o outro lado do riacho e disse:

— Isso aí é como se fosse música para os meus ouvidos. São os nossos. Meus irmãos e parentes. É a cavalaria folkeana. Agora, meu caro bispo, se quiser, já pode agradecer a Deus pela vitória. A batalha está ganha. Tudo acabou.

 

Por volta do meio-dia, o jarl cavalgou com o seu porta-bandeira e atravessou o riacho Säveån a caminho do acampamento do exército inimigo, onde os trabalhos de limpeza já estavam adiantados e de onde se via subir uma larga nuvem de fumaça negra produzida pelas fogueiras de cadáveres ardendo.

A vitória, no entanto, não tinha sido tão fácil e garantida como se previa quando os cavaleiros forsvikianos chegaram. Eles se defronta­ram com uma resistência muito maior do que esperavam. Em parte, muitos dos cavaleiros do exército de mercenários conseguiram retor­nar antes de baterem de frente com o mar de chamas e com a onda de fugitivos, alguns deles feito tochas andantes. E, em parte, porque o número de cavaleiros mercenários era mais do que o dobro daquele que Birger tinha imaginado.

Ao fazer o retrospecto da batalha, o comando da cavalaria merce­nária reclamou do fato de sua entrada na luta ter sido desnecessaria­mente retardada, mas deu uma explicação, a de que tinham subesti­mado a força dos cavaleiros azuis que atacaram, achando que eram mais numerosos do lado dos rebeldes e que venceriam com facilidade.

Birger também achou que errara, não tendo recebido as informa­ções corretas para o cálculo dos muitos cavaleiros que, realmente, exis­tiam do lado contrário. Fora vítima da mesma astúcia empregada por ele, muitas vezes, de mostrar uma pequena parte da cavalaria para o adversário ver e esconder a parte maior dos olhos do inimigo.

Dessa forma Birger não tinha mandado o jovem Roland Aldesson no comando de uma vitória fácil, como havia sido a sua intenção. Roland acabou encontrando pela frente um poder muito maior de cavaleiros mercenários da Schlesien, ainda por cima muito mais bem defendidos por armamentos alemães do tipo que só nos últimos anos tinha começado a entrar em uso no sul.

No entanto, Roland e os seus subcomandantes logo conseguiram superar as dificuldades ao atrair os cavaleiros legionários para campo aberto, fingindo fugir deles, e acabaram vencendo-os por meio de táti­cas melhores e, sobretudo, por meio de uma rapidez muito maior na reorganização das linhas de ataque e dos agrupamentos pequenos que simulavam fugas e logo voltavam ao ataque.

Birger sentiu um pouco de vergonha ao reencontrar o cavaleiro Sigurd no acampamento onde os prisioneiros folkeanos estavam reu­nidos e ficou sabendo o que tinha acontecido. Mas Sigurd logo ace­nou que não havia razão para desculpas. O seu filho Roland, com a ajuda de Deus, tinha sido aquele que, mais do que qualquer outro forsvikiano, havia assegurado a vitória final. E que alguns pequenos arranhões e pequenas feridas haviam sido um preço muito baixo para tamanha honra.

Mas logo estava chegando a hora de eles terem que se separar, achava Sigurd. Em uma das maiores tendas de campanha estavam sen­tados, de mãos amarradas nas costas, os rebeldes que exigiam agora o início das negociações com os vencedores. Como não tinham entendi­do nitidamente o que os esperava, estavam muito indignados e se acha­vam maltratados por terem sido amarrados como prisioneiros comuns. Os mais indignados eram Knut Magnusson, que se dizia rei, e Knut Folkesson, que se apresentava como jarl. Os outros, Filip Larsson e mais quatro homens, pareciam mais aquietados e cautelosos.

Os mercenários estavam todos sentados num grande cercado para animais, alguns deles conversando e rindo, despreocupados, à espera. Deviam ser entre setecentos e oitocentos sobreviventes ou feridos de pouca monta.

Birger ainda não tinha dito a Sigurd o que pretendia fazer com os mercenários e estes pareciam dar como certa a norma habitual no caso, que era a de se passar para o outro lado ou de pegar metade do seu soldo e voltar para casa. Era assim que se costumava tratar os homens que faziam da guerra um modo de vida. Eles nunca tinham nada contra ninguém e muito menos podiam ser considerados como inimigos dos vencedores.

Um em cada dez deles vai poder sobreviver, decidiu Birger. A mensagem que, dessa maneira, o pequeno grupo de sobreviventes ia levar para casa era bem clara. Aqui no norte, na Escandinávia, mer­cenários não podem contar, de jeito nenhum, com o perdão. Nenhum rebelde poderia comprar, dali em diante, qualquer novo exército além daquele que pudesse arregimentar no seu próprio país.

E nenhum dos prisioneiros rebeldes iria sobreviver. Os cepos dos carrascos já tinham sido colocados diante da tenda onde estavam os parentes folkeanos aprisionados.

Quando Sigurd viu isso, sentiu-se mais do que disposto para ir logo embora com os seus forsvikianos. Birger disse não ter nada con­tra, mas pediu que, antes, Sigurd mandasse formar todos os esqua­drões nos prados onde o jovem Roland tinha sido o principal respon­sável pela vitória obtida.

Diante da formação no prado, Birger ordenou que o jovem Roland descesse do cavalo, se aproximasse e se ajoelhasse diante do seu jarl. Em seguida desembainhou a espada que fora do templário Arn Magnusson e, erguendo-a bem alto à luz do sol, de modo que a cruz dourada da Ordem dos Templários e a inscrição enigmática nela gra­vada resplandecessem e brilhassem.

— Roland, meu caro e corajoso amigo — disse Birger elevando a voz. — A vitória hoje dependeu mais de você do que de qualquer outro. Você honrou a sua família e os seus companheiros forsvikianos. Assim, armo você agora como o primeiro entre todos os cavaleiros da Suécia, sendo este o nome do nosso reino a partir de hoje e desta vitó­ria. E o seu nome, cavaleiro Roland, será Roland Sigurdsson e ne­nhum outro!

Empunhando a espada, Birger tocou com ela, levemente, em ambos os ombros de Roland, ordenando, então, que ele se levantasse e o abraçou longamente.

Nesse momento todos os forsvikianos desembainharam as espa­das, apontando-as para o céu e pronunciando o poderoso grito de guerra que usavam antes de qualquer grande ataque.

O cavaleiro Sigurd chorava de emoção ao se aproximar de Birger para abraçá-lo e lhe assegurar que toda aquela velha inimizade de antes desaparecera para sempre e que nele e no seu filho Birger poderia contar com dois amigos pelo resto de sua vida.

De qualquer forma, ele não queria ficar para assistir ao que estava por vir, ainda que acreditasse nas palavras de Birger, assegurando que essa seria a última ação cruel que tinha de ser feita para garantir, de uma vez por todas, a paz no reino nascente da Suécia.

 

AS DURAS PENAS APLICADAS pelo jarl Birger contra os rebeldes fol­keanos vencidos chocaram de tal modo os seus contemporâneos que a indignação se manteve viva por mais de cem anos. Na crônica de Erik, do século XIV, ele ainda aparece implacavelmente criticado pelo even­to. Isso podia ter se tornado um peso político muito grande a dificul­tar todos os seus planos de introdução das novas leis que iriam funda­mentar o novo Estado, a Suécia.

Mas ele recebeu a maior ajuda imaginável para sair desses apuros. Em uma bula papal, datada de 23 de outubro de 1252, diz-se:

“Tendo tido conhecimento de que Sua Excelência pretende viver seus dias de coração purificado, garantimos aqui que está absolvido e perdoado por todos os pecados que, de coração aberto, já confessou ou venha a confessar dentro de três meses após a recepção desta carta. “

O poder papal não poderia ter expressado o seu apoio político ao jarl Birger com uma prova maior do que esta. E um aliado mais importante do que o papa jamais o jarl Birger poderia ter conseguido para o seu lado. O cardeal Vilhelm de Sabina deve ter ficado muito bem impressionado com esse duque nórdico com quem se encontrou na reunião eclesiástica de Skänninge em 1248.

 

[1] Midsommar. Literalmente, meio do verão. Coincide, em geral, com a nossa festa de São João. Festa muito importante em toda a Escandinávia. (N. T. )

[2] Plogpenning: literalmente, charrua de dinheiro. (N. T. )

 

                                                                                Jan Guillou  

 

                      

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