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O LEGADO DOS TEMPLÁRIOS - P.2 / Steve Berry
O LEGADO DOS TEMPLÁRIOS - P.2 / Steve Berry

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

Malone já estava à espera que a mulher se desse a conhecer, mas aquela não era a voz dela. Pegou na arma.

- Não se mexa, Sr. Malone. Está na mira de uma arma.

- É o homem da catedral - revelou Stephanie.

- Eu disse-lhe que voltaríamos a encontrar-nos. E o senhor, monsieur Claridon, não era assim tão convincente no asilo. Doido? O senhor? Difícil de acreditar.

Malone tentou perceber que surpresas lhe revelava a escuridão. A dimensão da sala já por si produzia uma confusão de barulhos, mas apercebeu-se da presença de outras pessoas por cima deles, antes da última fila de prateleiras junto ao corrimão de madeira.

Contou quatro pessoas.

- Estou, no entanto, impressionado com os seus conhecimentos, monsieur Claridon. As suas conclusões sobre as pedras tumulares parecem-me deveras lógicas. Sempre acreditei que continham muita informação. Também eu já pesquisei estes arquivos. Uma tarefa hercúlea. Tanta coisa para ler e ver. Agradeço-lhe por ter abreviado as minhas buscas. A Ler as Regras de Caridad. Quem haveria de dizer...

Claridon fez o sinal da cruz e Malone viu medo a inundar-lhe os olhos.

- Que Deus nos proteja.

 

 

 

 

- Então, monsieur Claridon - disse a voz na escuridão -, temos mesmo de envolver Deus neste assunto?

- Os senhores são os Seus guerreiros? - argumentou Claridon com a voz a tremer.

- E o que o leva a dizer tal coisa?

- Quem mais poderiam ser?

- Podemos ser polícias. Não, não acreditaria nisso. Ou talvez sejamos aventureiros, investigadores, como o senhor. Mas não. Para simplificar as coisas, digamos que somos os Seus guerreiros. E de que modo podem vocês os três ajudar a nossa causa?

Ninguém respondeu.

- A Sr.ª Nelle possui o diário do marido e o livro do leilão. Essa será a sua contribuição.

- Vá-se lixar - gritou ela.

Um estalido, semelhante ao rebentar de um balão, soou mais alto que a chuva e uma bala atingiu a mesa a apenas alguns centímetros de Stephanie.

- Resposta errada - informou a voz.

- Faça o que ele pediu - disse Malone. Stephanie fitou-o de olhos esbugalhados. - Se ele voltar a disparar é para a matar.

- Como sabe? - perguntou a voz.

- Era o que eu faria.

Ouviram uma risada.

- Gosto de si, Sr. Malone. É um profissional.

Stephanie levou a mão à mala e retirou o livro e o diário.

- Atire-os em direcção à porta - pediu a voz. Ela obedeceu.

Uma silhueta apareceu e levou-os.

Malone acrescentou mais um homem à sua contagem. Agora havia pelo menos cinco homens no interior do arquivo. Sentiu o volume da arma que trazia presa à cintura, sob o casaco. Infelizmente, não conseguiria alcançá-la antes de um deles ser atingido.

- O seu marido, Sr.ª Nelle, conseguiu juntar muitas das pistas e as suas deduções relativas aos elementos que faltavam estavam quase sempre correctas. Era um homem brilhante.

- O que pretendem? - perguntou Malone. - Só há poucos dias entrei nesta aventura.

- Pretendemos justiça, Sr. Malone.

- E é necessário atropelar um homem em Rennes-le-Château para obter justiça?

Malone pensou em agitar um pouco os acontecimentos para ver o que acontecia.

- E posso saber de quem está a falar?

- De Ernst Scoville. Trabalhava com Lars Nelle. Estou certo que o conhecia.

- Sr. Malone, talvez a reforma lhe tenha entorpecido as capacidades. Espero que fosse mais eficiente a interrogar os suspeitos quando trabalhava a tempo inteiro.

- Agora que já tem o diário e o livro não tem de se ir embora?

- Preciso da litografia. Monsieur Claridon, podia fazer a gentileza de a entregar ao meu associado, ali, do outro lado da mesa?

Claridon não tinha o mínimo desejo de obedecer. Ouviu-se mais um estalido proveniente de uma arma com silenciador e a bala enterrou-se no tampo da mesa.

- Detesto ter de me repetir.

Malone pegou no desenho e entregou-o a Claridon.

- Faça o que ele diz.

A folha foi aceite por uma mão a tremer e Claridon deu alguns passos para lá do alcance da luz. Os trovões ecoavam lá fora e a chuva continuava a cair com violência.

Foi então que se escutou um novo barulho.

Tiros.

A lâmpada da mesa desfez-se em pedaços.

De Roquefort ouviu os tiros e reparou que as faíscas dos disparos provinham da saída do arquivo. Raios, tinham companhia.

A sala estava agora mergulhada na mais completa escuridão.

- Mexam-se - gritou para os seus homens no passadiço do segundo andar, e esperou que eles soubessem o que fazer.

Malone percebeu que alguém disparara propositadamente contra a lâmpada. A mulher que os seguia. Por certo encontrara outra forma de entrar no arquivo.

Assim que a sala ficou às escuras, agarrou em Stephanie e deitaram-se no chão. A sua esperança era que os outros também tivessem sido apanhados de surpresa.

Puxou da arma que trazia escondida sob o casaco.

Ouviram-se mais dois tiros vindos do rés-do-chão e o homem posicionado na plataforma saiu a correr. Malone estava mais preocupado com o homem do piso térreo, mas não ouvira nenhum barulho vindo daí e também não sabia nada de Claridon.

A correria parou.

- Não sei quem está aí - disse a voz do homem -, mas tem mesmo de interferir?

- Podia fazer-lhe a mesma pergunta - respondeu a mulher com um tom de indiferença.

- Isto não é assunto seu.

- Lamento discordar.

- Atacou dois dos meus homens em Copenhaga.

- Digamos que pus fim ao seu ataque.

- Vai pagar por isso.

- Apanhe-me, se conseguir.

- Agarrem-na - gritou o homem.

Sombras negras deslocaram-se apressadas. Os olhos de Malone já se tinham adaptado à escuridão e avistou uma escada ao fundo da plataforma.

Passou a arma para as mãos de Stephanie.

- Não saia daqui.

- Onde vai?

- Retribuir um favor.

Rastejou em frente, serpenteando por entre as estantes e depois fez um compasso de espera antes de atacar um dos homens, quando este desceu o último degrau. O seu tamanho e constituição eram semelhantes ao homem da faca, mas desta vez Malone estava preparado. Aplicou-lhe uma joelhada no estômago e depois um soco na nuca.

O homem caiu inerte.

Malone perscrutou a escuridão e escutou alguém correr um pouco mais à frente.

- Não. Deixe-me em paz.

Era Claridon.

De Roquefort estugou o passo em direcção à porta do arquivo. Desceu da plataforma, sabendo que a mulher haveria de querer retirar o mais rápido possível, porém as suas escolhas eram limitadas. Existia apenas uma saída para o corredor e uma outra, pelo gabinete do conservador. Todavia, o seu homem ali colocado acabara de o informar pelo rádio que tudo estava calmo.

Tinha agora a certeza que era a mesma pessoa que interferira em Copenhaga e provavelmente a mesma da noite anterior em Rennes-le-Château. Era imperioso que descobrisse a sua identidade.

A porta que dava acesso ao arquivo abriu e fechou-se logo em seguida. No rectângulo de luz que se projectou do corredor, avistou duas pernas estendidas no chão, por entre as estantes. Correu até lá e descobriu tratar-se de um dos seus subordinados. Estava inconsciente e tinha um dardo espetado no pescoço. Era o irmão posicionado no rés-do-chão e que fora incumbido de ir buscar o diário, o livro e a litografia.

Não tinha nenhum dos objectos com ele.

«Raios partam a mulher.»

- Façam o que ordenei - gritou para os restantes homens.

De Roquefort correu para a porta.

Malone ouviu a ordem e decidiu regressar para junto de Stephanie. Não fazia ideia do que aquele homem lhes ordenara que fizessem, mas partiu do pressuposto que os deveria incluir e por certo não seria coisa boa.

Agachou-se e contornou as prateleiras de volta até à mesa.

- Stephanie? - murmurou ele.

- Estou aqui, Cotton.

Esgueirou-se até junto dela. Tudo o que conseguiam ouvir agora era a chuva a cair.

- Tem de haver outra saída - sussurrou ela na escuridão. Malone voltou a pegar na arma.

- Alguém saiu. Provavelmente a mulher. Vi apenas uma sombra. Os outros devem ter ido atrás de Claridon por outra saída.

A porta voltou a abrir-se.

- É ele a sair - explicou Malone.

Levantaram-se e correram para a porta. Aí chegados, ficaram à escuta e como não ouviram nada, saíram.

- Isto vai ser interessante - comentou.

Correram ambos.

De Roquefort continuou em perseguição da mulher, que sem dúvida procurava sair do palácio e parecia conhecer bem a sua planta. Cada caminho que escolhia era sempre o mais apropriado. Já conseguira o que tinha vindo buscar e ele teria de assumir que planeara muito bem a fuga.

Atravessou outra porta, entrou numa sala abobadada. A mulher encontrava-se já na outra extremidade. Acelerou o passo e viu uma enorme escadaria de pedra - a Grande Escadaria de Honra. Em tempos ladeada por frescos e protegida por portões de ferro, a escadaria reflectia bem a grandiosidade das cerimónias. Nada daquilo existia actualmente e ao fundo dos degraus a escuridão era absoluta. De Roquefort sabia que depois da escadaria existiam portas que davam acesso a um pátio. Embora ouvisse os passos da mulher, não conseguia distinguir a sua forma.

Assim, limitou-se a disparar dez tiros.

De Roquefort avistou a mulher a correr pela longa galeria. Ela olhou para trás e, sem perder velocidade e o equilíbrio, disparou.

Teve de se atirar para o lado para escapar à bala e ela desapareceu ao virar de uma esquina. Levantou-se de um salto e continuou a perseguição. Antes do disparo, De Roquefort tinha visto o diário e o livro na mão dela.

Não podia deixá-la fugir.

Malone avistou um homem de calças pretas e camisola escura de gola alta a contornar uma esquina a poucos metros deles e de arma em punho.

Malone ouviu o que parecia um martelo a bater repetidamente num prego. Um tiro silenciado atrás de outro. Aproximou-se devagar de uma porta.

Ao fundo da escura escadaria apercebeu-se do ranger de dobradiças e depois reconheceu o barulho de uma porta a abrir. A tempestade que se abatia lá fora tornou-se mais audível. Pelos vistos, os tiros indiscriminados tinham falhado. A mulher conseguira sair do palácio. Ouviu passos atrás de si e falou para o microfone que trazia preso à camisa.

- Já têm o que quero?

- Sim, temos. - Foi a resposta que obteve pelo auricular.

- Estou na Sala do Conclave. O Sr. Malone e a Sr.ª Nelle estão mesmo atrás de mim. Tratem deles.

E correu escada abaixo.

Malone viu o homem de camisola de gola alta abandonar a sala escura que tinham agora à sua frente. De arma apontada, ele e Stephanie seguiram-no.

Como que surgidos do nada, três homens armados bloquearam-lhes o caminho.

Malone e Stephanie pararam.

- Atire a arma para o chão - ordenou um dos homens.

Não seria capaz de os atingir a todos sem ele ou Stephanie caírem mortos. Assim, obedeceu sem hesitar. Os homens aproximaram-se.

- O que fazemos agora? - perguntou Stephanie.

- Estou aberto a sugestões.

- Não existe nada que possam fazer - disse um dos homens de cabelo curto.

Permaneceram imóveis.

- Virem-se - ordenou o terceiro.

Malone olhou para Stephanie. Já estivera em situações difíceis e algumas bem parecidas com aquela que agora enfrentavam. Mesmo que fosse capaz de imobilizar um ou dois adversários, havia ainda o terceiro e estavam todos armados.

Após um barulho seco e um grito, o corpo de Stephanie caiu inerte no chão. Antes mesmo de conseguir acudir-lhe, a cabeça de Malone foi atingida por um objecto duro e o mundo em seu redor desapareceu.

De Roquefort continuou em perseguição da sua presa que atravessava agora a praça do Palácio em direcção às ruas desertas da cidade. A chuva não parava de cair. De súbito, o céu pareceu abrir-se num enorme relâmpago que momentaneamente iluminou a escuridão.

Deixaram os edifícios para trás e aproximaram-se do rio.

De Roquefort sabia que à sua frente a ponte de Saint Bénézet ligava ambas as margens do Ródano. Com a ajuda dos constantes relâmpagos, conseguiu ver que a mulher seguia um caminho que levava à ponte. O que a faria ir para ali? Não importava, tinha de a seguir. Ela possuía uma boa parte daquilo que ele fora buscar e não tinha intenção de sair da cidade sem o livro e o diário. Apesar disso, não podia deixar de se interrogar sobre os efeitos da chuva nas páginas dos livros. O cabelo estava encharcado e tinha a roupa colada ao corpo.

Viu um clarão à sua frente - no instante em que a mulher disparou um tiro contra a porta de entrada da ponte, e desapareceu logo em seguida no interior do edifício.

De Roquefort correu para a porta e, com cautela, espreitou lá para dentro. À direita ficava a bilheteira, e à esquerda havia uns balcões que vendiam recordações e postais. Três torniquetes davam acesso ao exterior. Há muito tempo que a ponte incompleta não passava de atracção turística.

A mulher encontrava-se a trinta metros de distância, e corria pela ponte em direcção ao rio.

Depois desapareceu.

Ele estugou o passo e saltou os torniquetes, correndo atrás dela.

Ao fundo do segundo arco, erguia-se uma capela gótica. Sabia tratar-se da Capela de São Nicolau. Os restos mortais de São Bénézet, o responsável pela construção da ponte, tinham em tempos estado ali guardados. Todavia, as relíquias haviam sido perdidas durante a Revolução Francesa, restando apenas a capela - gótica na parte superior e românica na metade inferior. A mulher seguira por aí, descendo as escadas.

Outro relâmpago iluminou o céu.

Limpou a chuva dos olhos e parou no primeiro degrau.

Foi então que a viu.

Não estava lá em baixo, mas de volta ao tabuleiro da ponte, e corria para o quarto arco que a colocaria a meio do Ródano, mas sem saída, pois a ligação à outra margem tinha sido destruída pelas cheias há trezentos anos. Tinha por certo usado as escadas por baixo da capela como forma de se proteger contra os tiros que ele pudesse vir a disparar.

De Roquefort seguiu-a, e contornou a capela.

Não queria disparar, pois precisava dela viva. Mais importante que tudo, precisava dos livros que ela levava. Com isso em mente, disparou um tiro para os pés da sua presa.

Ela parou e voltou-se para trás.

De Roquefort continuou a correr, de arma apontada.

A mulher chegara a um beco sem saída. Atrás dela, não havia mais nada a não ser a noite escura e o rio. A tempestade parecia não querer abrandar e o vento e a chuva açoitavam-lhe o rosto.

- Quem é a senhora? - perguntou ele.

Ela envergava um fato justo preto que combinava com a pele escura. Era esguia e musculada, e o capuz preto deixava-lhe apenas o rosto descoberto. Trazia uma arma na mão esquerda e um saco de plástico na outra. Antes de responder, estendeu o saco para fora da extremidade da ponte.

- Não vale a pena tomar decisões apressadas - advertiu ela.

- Posso simplesmente matá-la.

- Não faria isso por duas razões.

- Sou todo ouvidos.

- Primeira, o saco cairia ao rio e tudo aquilo que mais deseja desapareceria. Razão número dois, sou cristã e vocês não matam cristãos.

- Como sabe aquilo que eu faço ou não faço?

- E um cavaleiro templário e os vossos votos não permitem que maltratem outros cristãos.

- Não tenho provas de que seja cristã.

- Então fiquemos pela primeira razão. Mata-me, os livros caem ao Ródano e a corrente arrasta-os para longe.

- Aparentemente, procuramos ambos a mesma coisa.

- Que raciocínio rápido.

O braço da mulher continuava estendido sobre a extremidade da ponte e ele tentava avaliar qual seria o melhor sítio para a atingir. No entanto, ela tinha razão. O saco desapareceria antes de conseguir atravessar os poucos metros que os separavam.

- Parece que estamos num impasse - afirmou ele.

- Não creio.

A mulher largou o saco, que de imediato desapareceu na escuridão, e depois aproveitou o momento de surpresa para erguer a arma e disparar. De Roquefort desviou-se para a esquerda e rebolou nas pedras molhadas. Quando limpou a chuva do rosto, viu a mulher saltar da ponte. Levantou-se de um salto e correu para a beira, à espera de ver as águas agitadas do Ródano a correrem apressadas; porém, dois metros mais abaixo estava uma plataforma de pedra pertencente ao pilar que suportava o arco exterior. Viu a mulher pegar no saco e desaparecer por baixo da ponte.

Hesitou um segundo, mas depois também saltou, e aterrou de pés. Os tornozelos já envelhecidos acusaram o impacto.

Ao ouvir o barulho de um motor, ergueu a cabeça e viu um barco acelerar, saindo da extremidade da ponte em direcção a norte. Levantou a arma para disparar, mas um clarão fê-lo aperceber-se que ela também tinha apertado o gatilho.

Mergulhou de novo no chão e o barco dissolveu-se na noite escura.

Quem seria aquela megera? Ela obviamente sabia quem ele era, embora não o que ele era, pois não o identificara. Também parecia entender a importância do livro e do diário. Mais preocupante que tudo o resto era o facto de aquela mulher conhecer todos os seus passos.

Ergueu-se e passou por baixo da ponte até ao local onde o barco estivera ancorado. Era inteligente, pois planeara uma excelente fuga. Dirigia-se para uma escada de ferro presa à ponte quando algo lhe chamou a atenção.

Baixou-se.

Estava um livro caído nas pedras molhadas sob a plataforma da ponte.

Aproximou-o dos olhos. Esforçou-se para ver o que continham as páginas húmidas e leu algumas palavras.

Era o diário de Lars Nelle.

A mulher deixara-o cair na fuga apressada.

De Roquefort sorriu.

Possuía agora parte do quebra-cabeças, não todo, mas talvez o suficiente, e sabia muito bem como obter o restante.

 

Malone abriu os olhos, apalpou a nuca e concluiu que nada estava partido. Massajou os músculos endurecidos com a palma da mão, a tentar atenuar os efeitos de ter estado inconsciente. Consultou o relógio e viu que eram onze e vinte da noite. Estivera desmaiado durante cerca de uma hora.

Stephanie estava a alguns metros dali. Arrastou-se até ela, levantou-lhe a cabeça e acordou-a gentilmente. A sua antiga chefe pestanejou e tentou focar-lhe o rosto.

- Doeu - murmurou ela.

- A quem o diz. - Observou a enorme sala. - Temos de sair daqui.

- E os nossos amigos?

- Se quisessem matar-nos, já o teriam feito. Acho que já não precisam de nós. Já têm o diário, o livro e Claridon. Somos dispensáveis. - Reparou que a sua arma estava caída ali perto e esticou-se para a apanhar. - Nem sequer nos consideram uma ameaça.

Stephanie esfregou a cabeça.

- Isto foi uma péssima ideia, Cotton. Nunca deveria ter reagido depois de receber o diário. Se não tivesse telefonado a Ernst Scoville é bem possível que ele ainda estivesse vivo. E nunca o deveria ter envolvido a si.

- Se bem me lembro, eu insisti para ser envolvido. - Levantou-se devagar. - Temos de ir embora. O pessoal da limpeza pode entrar e não me apetece dar explicações à Polícia.

Ajudou Stephanie a erguer-se também.

- Obrigada, Cotton. Por tudo. Agradeço-lhe muito o que fez.

- Até parece que terminou tudo.

- Para mim terminou. O que quer que Lars e Mark procuravam terá de ser encontrado por outra pessoa. Vou para casa.

- E Claridon?

- O que podemos nós fazer? Não sabemos para onde o levaram ou onde poderá estar. E o que diríamos à Polícia? Os Cavaleiros Templários raptaram um doente do sanatório? Havia de ser bonito. Lamento muito, mas ele está por sua própria conta e risco.

- Mas sabemos o nome da mulher. Claridon disse que ela se chamava Cassiopia Vitt. Também nos revelou onde morava, em Givors. Podemos encontrá-la.

- E depois? Agradecemos-lhe o facto de nos ter salvo a pele? Acho que ela também está por sua conta e parece-me mais do que capaz de tomar conta de si própria. Como disse, já não somos importantes. - Stephanie tinha razão. - O melhor é irmos para casa, Cotton. Já não há aqui nada para nenhum de nós.

Mais uma vez estava certa.

Saíram do palácio e dirigiram-se para o carro. Depois de terem deixado os seus perseguidores para trás à saída de Rennes, Malone tinha a certeza que não haviam sido seguidos até Avinhão, por isso pensou que os homens já estavam à espera na cidade, o que não parecia provável, ou que haviam recorrido a algum tipo de vigilância electrónica. Isso significava que as corridas e os tiros antes de o Renault ter ficado preso na lama não tinham passado de uma diversão para o enganar. A verdade é que funcionara.

Uma vez que já não eram peças fundamentais daquele jogo, decidiu que o melhor seria regressarem a Rennes-le-Château e passarem lá a noite.

A viagem demorou cerca de duas horas e quando atravessaram os portões da vila passava um pouco das duas da manhã. Soprava um vento fresco e a Via Láctea espalhava-se por cima das suas cabeças quando deixaram o parque de estacionamento.

Não havia uma única luz acesa no interior das muralhas e as ruas continuavam húmidas da chuvada do dia anterior. Malone sentia-se cansado.

- Vamos descansar um pouco e saímos amanhã por volta do meio-dia. De certeza que deve haver algum voo que possa apanhar de Paris para Atlanta.

Stephanie abriu a porta. No interior da casa, Malone acendeu um candeeiro e de imediato reparou numa mochila que não pertencia a nenhum deles, colocada sobre uma cadeira.

Retirou a arma que trazia presa à cintura e apercebeu-se de movimento. À porta do quarto, surgiu um homem com uma Glock apontada na sua direcção.

Malone levantou a pistola.

- Quem é você?

O intruso era um homem ainda jovem, com o mesmo cabelo curto e constituição robusta que se habituara a ver nos últimos dias. O rosto, embora bonito, era severo e ameaçador, os olhos pareciam dois berlindes negros e empunhava a arma com a segurança de um profissional. No entanto, Malone reparou numa pequena hesitação, como se o outro homem estivesse a tentar perceber se se tratava de amigos ou inimigos.

- Perguntei quem era.

- Baixa a arma, Geoffrey - ordenou uma voz vinda do quarto.

- Tem a certeza?

- Sim, tenho.

O homem obedeceu e Malone baixou também a arma.

O outro intruso mostrou-se de seguida.

Era alto e magro, e usava o cabelo muito curto. Também empunhava uma arma e Malone demorou alguns instantes a reconhecer as mesmas feições que vira na foto colocada sobre a mesa à sua esquerda.

Ouviu o arquejo de espanto de Stephanie.

- Meu Deus do céu - murmurou ela. Também ele estava espantado.

À sua frente encontrava-se Mark Nelle.

Stephanie estremeceu. O coração batia-lhe acelerado e por um instante teve de dizer a si mesma para respirar.

O seu único filho estava na mesma sala que ela.

O seu desejo era correr para ele e dizer-lhe o quanto lamentava todos os atritos e diferenças, e como estava feliz por o voltar a ver. Todavia, os seus músculos pareciam não querer obedecer.

- Mãe - disse Mark -, o teu filho regressou do além.

Notou a frieza na voz dele e pressentiu de imediato que o seu coração continuava insensível.

- Onde estiveste?

- É uma longa história.

Não havia sombra de compaixão no olhar dele. Stephanie esperou que ele se explicasse, mas Mark nada disse.

Malone aproximou-se dela, colocou-lhe uma mão sobre o ombro e pôs termo àquele silêncio incómodo.

- Não era melhor sentar-se?

A cabeça parecia-lhe querer explodir e não estava a conseguir lidar com toda aquela ansiedade. Mas que raios, era a responsável por uma das unidades mais especializadas e importantes do governo dos Estados Unidos, habituada a lidar com crises diariamente. Verdade que nenhuma era tão pessoal quanto a que enfrentava naquele instante, porém, se Mark desejava que o seu primeiro encontro fosse assim tão frio, então não seria ela a mostrar-lhe o quanto se sentia dominada pelas emoções.

Seguiu o conselho de Malone e disse:

- Muito bem, Mark, conta-nos lá essa longa história.

Mark Nelle abriu os olhos. Já não se encontrava a dois mil e quatrocentos metros de altitude nos Pirenéus Franceses, a seguir um trilho em busca do esconderijo de Bérenger Saunière. Pelo contrário, estava no interior de um quarto com um tecto de vigas escuras.

O homem que o velava era alto e robusto, com cabelo grisalho e barba cerrada. Os olhos possuíam uma estranha tonalidade violeta que não se recordava de alguma vez ter visto.

- Cuidado - disse o homem em inglês -, ainda estás fraco.

- Onde estou?

- Num lugar que durante séculos sempre foi um refúgio.

- E esse lugar tem nome?

- Abbaye des Fontaines.

- Mas isso fica a quilómetros do lugar onde me encontrava.

- Dois dos meus subordinados estavam a seguir-te e correram em teu auxílio quando a neve te derrubou. Pelo que me disseram, a avalanche era enorme.

Ainda sentia o tremor da montanha e o cume a desintegrar-se como uma catedral a ruir. A encosta desabara completamente sobre ele, a neve resvalara como sangue de uma boca aberta, e empurrara-o para a frente. Mas teria ouvido bem?

- Havia homens a seguir-me?

- Sim, fui eu que os enviei. Tal como fiz com o teu pai algumas vezes.

- Conhecia o meu pai?

- As suas teorias sempre me interessaram. Por isso fiz questão de o conhecer, a ele e ao que sabia.

Tentou sentar-se na cama, mas o flanco direito parecia ter sido atingido por uma descarga eléctrica. Encolheu-se de dor e agarrou-se ao estômago.

- Tens algumas costelas partidas. Quando era jovem também me aconteceu o mesmo. É muito doloroso.

Voltou a deitar-se.

- Trouxeram-me para aqui?

O homem mais velho acenou afirmativamente com a cabeça.

- Os irmãos são homens engenhosos.

Mark reparou na sotaina branca e nas sandálias de corda.

- Isto é um mosteiro?

- É o lugar que procuravas.

Não sabia muito bem o que responder.

- Sou o mestre dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão. Somos os templários. O teu pai procurou-nos durante décadas. Tu também nos tens procurado, por isso achei que estava na hora.

- Na hora de quê?

- Isso cabe-te a ti decidir, mas eu gostaria que te juntasses a nós.

- E por que faria eu isso?

- Desculpa que te diga, mas a tua vida é um completo caos. Sentes a falta do teu pai mais do que demonstras e ele já faleceu há quase seis anos. Pouco ou nada falas com a tua mãe e isso é mais marcante do que imaginas. Profissionalmente, és professor, mas não te sentes realizado. Tentaste reabilitar o trabalho e as crenças do teu pai, contudo não tens conseguido grandes progressos. Era por isso que te encontravas nos Pirenéus, a tentar descobir o motivo que levou o abade Saunière a ir lá tantas vezes. Em tempos idos, o abade vasculhou a zona em busca de algo. Por certo, encontraste os recibos do aluguer do cavalo e da carruagem entre os papéis de Saunière que mostram quanto pagou aos vendedores locais. É desconcertante, não é? De que modo um humilde padre conseguia pagar luxos como um cavalo e uma carruagem particulares?

- O que sabe sobre o meu pai e sobre a minha mãe?

- Sei muita coisa.

- Espera mesmo que eu acredite que é o mestre dos templários?

- Entendo que esse facto possa ser difícil de aceitar. Eu próprio tive dificuldades quando os irmãos me convidaram a juntar-me a eles há décadas. Mas por agora vamos concentrar-nos em cuidar dos teus ferimentos e depois logo se vê.

- Fiquei deitado naquela cama durante três semanas - explicou Mark. - Depois disso, os meus movimentos ficaram limitados a apenas algumas zonas da abadia, mas eu e o mestre falávamos com frequência. Por fim, aceitei ficar e fazer os votos.

- O que te levou a isso? - perguntou Stephanie.

- Sejamos realistas, mãe. Tu e eu já há anos que mal nos falávamos. O pai tinha morrido. O mestre estava certo. A minha vida não fazia sentido. O pai passou a vida à procura do tesouro dos templários, dos seus arquivos e dos próprios Cavaleiros do Templo. Um terço daquilo que ele procurava veio ao meu encontro. Queria ficar.

Para apaziguar o seu crescente nervosismo, Stephanie resolveuv desviar a atenção para o rapaz atrás de Mark. Exibia uma aura de juventude e havia curiosidade nos seus olhos, como se estivesse a ouvir tudo aquilo pela primeira vez.

- Chamas-te Geoffrey? - perguntou-lhe ela ao lembrar-se das palavras do filho.

Ele assentiu.

- Não sabias que eu era a mãe de Mark?

- Sei pouco dos outros irmãos. A Regra assim o dita. Nenhum irmão fala da sua vida aos outros. Pertencemos à irmandade. O que fomos antes é irrelevante para o que somos agora.

- Parece uma coisa muito impessoal.

- Pelo contrário. Eu acho bastante esclarecedor.

- Geoffrey enviou-te um pacote pelo correio - disse Mark. - Era o diário do pai. Recebeste-o?

- É por isso que estou aqui.

- Tinha-o comigo aquando da avalanche. O mestre guardou-o no dia em que me juntei à irmandade. Descobri que tinha desaparecido na noite em que ele morreu.

- O vosso mestre faleceu? - perguntou Malone.

- Agora temos um novo líder - explicou Mark -, mas é o diabo em pessoa.

Malone descreveu o homem que o atacara e a Stephanie na Catedral de Roskilde.

- Esse é Raymond de Roquefort - afirmou Mark. - Como o conhecem?

- Somos velhos amigos - respondeu Malone, e contou-lhe o que sucedera em Avinhão.

- Não tenho dúvidas que Claridon é agora prisioneiro de De Roquefort - declarou Mark. - Que Deus ajude Royce.

- Ele vivia escondido com medo dos templários - revelou Malone.

- E encontrou o pior deles todos.

- Ainda não me disseste o que te levou a permanecer na abadia durante os últimos cinco anos - insistiu Stephanie.

- Aquilo que eu procurava, estava lá. O mestre transformou-se num pai para mim. Era um homem gentil, delicado e cheio de compaixão.

Ela percebeu a indirecta.

- Ao contrário de mim?

- Não é altura de falarmos sobre isso.

- E quando será uma boa altura? Eu pensava que tinhas morrido, Mark. Mas afinal estavas fechado numa abadia, misturado com os templários...

- O seu filho era o nosso senescal - explicou Geoffrey. - Ele e o mestre governaram com sabedoria. Foi uma bênção para a nossa Ordem.

- Ele era o segundo na linha de comando? - perguntou Malone.

- Como subiste tão depressa?

- O senescal é escolhido pelo mestre. Apenas ele determina quem é o mais apto - revelou Geoffrey. - E o mestre escolheu bem.

Malone sorriu.

- Tens um irmão muito leal e dedicado.

- Geoffrey é um poço de informações, embora nenhum de nós vá conseguir arrancar-lhe seja o que for até ele achar que está na hora de nos contar.

- Não te importas de explicar isso? - pediu Malone.

Mark contou-lhes os acontecimentos das últimas quarenta e oito horas. Stephanie ouviu o filho com um misto de fascínio e raiva. Ele falava da irmandade com reverência.

- Os templários - começou Mark - evoluíram de um bando obscuro de nove cavaleiros, cujo objectivo era proteger os peregrinos a caminho da Terra Santa, para um grupo multicontinental composto por dezenas de milhares de irmãos espalhados por mais de nove mil propriedades. Eram temidos por reis, rainhas e papas. Ninguém, até Filipe IV, em 1307, os conseguira desafiar com sucesso. Sabe porquê?

- Por causa do seu poderio militar? - alvitrou Malone. Mark sacudiu a cabeça.

- Não era a força que lhes dava poder, era o conhecimento. Possuíam informações que mais ninguém tinha.

Malone suspirou.

- Mark, não nos conhecemos, mas já é tardíssimo, estou cansado e cheio de dores no pescoço. Podemos saltar os enigmas e ir directos ao que interessa?

- Incluída no tesouro dos templários estava uma prova relacionada com Cristo na cruz.

Fez-se silêncio.

- Que tipo de prova? - Quis saber Malone.

- Não faço ideia. Sei apenas que se chama o Grande Legado. A prova foi encontrada na Terra Santa, sob o Templo de Jerusalém, escondida algures entre o século I e o século VII, quando o templo foi destruído. Os templários transportaram-na para Paris e ocultaram-na. A sua localização era conhecida apenas pelos mais altos dignitários da Ordem. Quando Jacques de Molay, o mestre dos templários na altura da Expulsão, foi queimado na estaca em 1314, a localização exacta do esconderijo morreu com ele. Filipe IV tentara arrancar-lhe essa informação e não conseguira. O pai acreditava que os abades Bigou e Saunière de Rennes-le-Château tinham conseguido descobrir esse mistério.

- O mestre também era dessa opinião - disse Geoffrey.

- Estão a ver? - Mark olhou para o amigo. - Basta dizer as palavras mágicas e obtemos a informação.

- O mestre deixou claro que Bigou e Saunière estavam certos - confirmou Geoffrey.

- Certos em relação a quê? - indagou Mark.

- Isso ele não disse. Apenas que estavam certos. - Mark olhou-os.

- Como pode ver, Sr. Malone, eu também já tive a minha conta de enigmas.

- Chame-me Cotton.

- Que nome tão original. Como o obteve?

- É uma longa história. Um dia conto-lha.

- Mark - interrompeu Stephanie -, por certo não acreditas que existe uma prova definitiva relacionada com a crucificação. Nem o teu pai chegou a esse ponto.

- E como podes tu saber isso?

Havia rancor no tom de voz de Mark.

- Eu sei como ele...

- Não sabes nada, mãe. É esse o teu problema. Nunca soubeste nada daquilo que o pai pensava. Para ti as crenças dele não passavam de uma fantasia, de um desperdício dos seus talentos. Nunca o amaste o suficiente para o deixar ser ele mesmo. Pensavas que ele andava atrás de fama e dinheiro, mas não. Ele procurava a verdade. Cristo morreu. Cristo ressuscitou e voltará um dia. Era isso que lhe interessava.

Stephanie tentou acalmar-se para não reagir intempestivamente às palavras do filho.

- O pai era um académico sério. O seu trabalho tinha mérito, ele apenas não falava abertamente das suas buscas. Quando descobriu Rennes-le-Château nos anos setenta e contou ao mundo a história de Saunière, isso foi apenas para angariar fundos para as suas pesquisas. O que aconteceu ou não naquele lugar deu origem a uma boa lenda e milhões de pessoas gostaram de a ler, apesar dos floreados. Tu foste uma das poucas que não quis saber de nada.

- O teu pai e eu tentámos resolver as nossas diferenças.

- Como? Contigo a dizer-lhe que estava a desperdiçar a vida a correr atrás de uma fantasia? A lembrá-lo que não passava de um falhado?

- Está bem, raios partam. Estava errada - gritou. - Queres que repita? Estava errada. - Levantou-se da cadeira com uma determinação que parecia dar-lhe força. - Fiz asneiras. É isso que desejas ouvir? Na minha cabeça, estás morto há cinco anos e agora tenho-te aqui à minha frente, e tudo o que queres de mim é que admita que estava errada. Muito bem. Se pudesse confessar isso ao teu pai, fazia-o. Se lhe pudesse implorar perdão, era o que faria. Mas não posso. - As palavras seguiam-se em catadupa como se tivesse de as dizer antes que se lhe esgotasse a coragem. - Vim até França para ver o que podia fazer, para tentar continuar o que Lars e tu achavam importante. Esse foi o único motivo que me trouxe aqui. Pensei que estava finalmente a fazer a coisa certa. Mas não me venhas com lições de moral porque também fizeste asneiras. A diferença entre nós é que eu aprendi alguma coisa nos últimos cinco anos.

Voltou a sentar-se na cadeira e sentiu-se um pouco melhor. No entanto, apercebeu-se que o fosso entre eles ficara ainda maior e isso fê-la estremecer.

- É tarde - disse Malone. - O melhor que temos a fazer é ir descansar e amanhã resolvemos tudo isto.

 

Abbaye des Fontames Domingo, 25 de Junho, 5 h 25 m

De Roquefort fechou a porta atrás de si.

- Está tudo preparado? - perguntou a um dos assistentes.

- Como pedido.

Melhor assim Estava na hora de mostrar quem mandava. Percorreu o extenso corredor subterrâneo. Encontrava-se três andares abaixo do piso térreo, numa zona da abadia ocupada pela primeira vez há mil anos. A construção sucessiva havia transformado as salas que o rodeavam num labirinto de câmaras já quase esquecidas, usadas apenas para armazenamento.

Regressara à abadia com o diário de Lars Nelle e Royce Claridon A perda de Pierres Gravées du Languedoc, o livro do leilão, continuava a incomodá-lo. Esperava que o diário e Claridon lhe fornecessem as pistas que faltavam.

E a mulher negra era um problema.

O mundo dele era distintamente masculino e a sua experiência com mulheres mínima. Eram uma raça muito diferente, disso tinha a certeza, mas a mulher que o enfrentara na ponte de Saint Bénézet parecia quase extraterrestre. Não evidenciara o mais pequeno sinal de medo e agira com a agilidade e esperteza de uma autêntica leoa. Atraíra-o para a ponte, sabendo exactamente como iria escapar. O seu único erro fora perder o diário. Era imperioso que descobrisse a sua identidade.

Mas uma coisa de cada vez.

Entrou numa câmara encimada por vigas de madeira que permanecera inalterada desde o tempo de Napoleão. Havia uma mesa longa ao centro, sobre a qual Royce Claridon estava deitado de costas com as mãos e as pernas presas a espigões de ferro.

- Monsieur Claridon, tenho pouco tempo e preciso que me diga muitas coisas. A sua colaboração pode tornar tudo isso deveras simples.

- O que tenho de dizer? - perguntou ele num tom desesperado.

- Apenas a verdade.

- Sei pouco.

- Ora, não é nada bom começar com uma mentira.

- Não sei de nada.

Encolheu os ombros.

- Ouvi-o no arquivo do Palácio dos Papas. O senhor é um manancial de informações.

- Tudo o que disse em Avinhão foi o que deduzi naquele instante.

De Roquefort fez sinal a um irmão que estava na outra ponta da sala. O homem aproximou-se e colocou um recipiente aberto sobre a mesa. Com três dedos, retirou do interior uma massa branca e pegajosa.

De Roquefort tirou os sapatos e as meias de Claridon que de imediato levantou a cabeça para ver o que se passava.

- O que está a fazer? O que é isso?

- Banha.

O irmão esfregou a banha nos pés descalços de Claridon.

- O que está a fazer?

- Estou certo que conhece a nossa história. Quando os templários foram presos em 1307, os seus captores recorreram a inúmeros métodos para lhes extraírem confissões. Arrancaram dentes, unhas, enfiaram espetos de metal nas cavidades oculares e utilizaram o calor de todas as formas imagináveis. Uma das técnicas envolvia untar os pés com banha e depois colocá-los junto das chamas. Aos poucos, os pés começavam a cozinhar e a pele caía. Muitos irmãos sucumbiram a esta tirania e aqueles que conseguiram sobreviver acabaram por confessar. Nem Jacques de Molay escapou.

O irmão terminou de untar os pés de Claridon e abandonou a sala.

- Nas nossas Crónicas existe o relato de um templário que, após ter sido sujeito a esta tortura e ter confessado, foi levado até à presença dos seus inquisidores a segurar um saco que continha os seus ossos dos pés carbonizados. Também o autorizaram a guardá-los como recordação. Muito benévolo da parte dos inquisidores, não acha?

Afastou-se até um fogareiro a carvão que ardia a um canto da sala. Mandara prepará-lo há uma hora e as brasas estavam agora brancas de tão quentes.

- Deve ter pensado que o lume era para aquecer a sala. Esstas câmaras subterrâneas são frias, é verdade, porém ordenei que acendessem o lume de propósito para si.

Arrastou o fogareiro até junto dos pés de Claridon.

- Ao que sei, o lume deve estar brando e não intenso, o que faria com que a banha derretesse demasiado depressa. Tal como com um bife, a chama mais baixa funciona melhor.

Claridon esbugalhou os olhos.

- Quando os meus irmãos foram torturados no século XIV, acreditava-se que Deus dava forças aos inocentes para suportarem a dor, por isso apenas os culpados confessariam. Para além disso, e este detalhe é bastante conveniente, qualquer confissão arrancada por intermédio de tortura não podia ser retirada. Logo, assim que uma pessoa confessava, não havia mais nada a fazer.

De Roquefort aproximou um pouco mais o fogareiro. Claridon gritou.

- Já, monsieur? Ainda não aconteceu nada. Não tem resistência?

- O que deseja?

- Muitas coisas. Mas podemos começar pela importância de Don Miguel de Manara a Ler as Regras de Caridad.

- Há uma pista respeitante ao abade Bigou e à lápide de Marie d'Hautpoul de Blanchefort. Lars Nelle encontrou um criptograma e acreditava que a chave para o resolver estava no quadro. - Claridon parecia despejar as palavras.

- Já ouvi isso tudo no arquivo de Avinhão. Quero saber aquilo que não disse.

- Não sei mais nada. Por favor, os meus pés estão a fritar.

- É essa a ideia. - Levou a mão ao interior da sotaina e retirou o diário de Lars Nelle.

- Tem o diário? - perguntou Claridon admirado.

- Porquê o espanto?

- Era a viúva de Lars quem o tinha.

- Mas já não tem. - Lera grande parte das entradas na viagem de regresso de Avinhão. Folheou o diário até encontrar o criptograma e mostrou a página aberta para Claridon ver. - Foi isto que Lars Nelle encontrou?

- Oui, oui.

- Qual é a mensagem?

- Não sei. Juro que não sei. Retire o fogareiro, por favor. Imploro-lhe! Os meus pés estão a arder.

De Roquefort decidiu que um gesto de compaixão podia ajudar a fazer falar o prisioneiro e afastou as brasas.

- Obrigado, obrigado - agradeceu Claridon a arfar.

- Continue.

- Lars Nelle descobriu o criptograma num manuscrito que Noël Corbu escreveu nos anos sessenta.

- Nunca ninguém encontrou esse manuscrito.

- Lars encontrou-o. Estava na posse de um padre a quem Corbu o confiara antes de morrer em 1968.

Conhecia Corbu dos relatórios de um dos seus antecessores. Esse marechal também procurara o Grande Legado.

- E o criptograma?

- O quadro foi referido pelo próprio abade Bigou no registo da paróquia um pouco antes de ter fugido de França para Espanha, por isso Lars acreditava que continha a chave do quebra-cabeças. No entanto, morreu antes de o conseguir decifrar.

De Roquefort não possuía a litografia do quadro. A mulher ficara com ela, juntamente com o livro do leilão. Porém, dificilmente seria aquela a única cópia do quadro. Agora que sabia o que procurar, descobriria outra.

- E o que sabia Mark Nelle?

- Pouca coisa. Mark era professor em Toulouse e fazia as suas buscas apenas aos fins-de-semana, como passatempo. Não era tão empenhado quanto o pai. Andava à procura do esconderijo de Saunière nas montanhas quando foi morto por uma avalanche.

- Ele não morreu nas montanhas.

- Claro que morreu, há cinco anos. De Roquefort aproximou-se.

- Mark Nelle viveu nesta abadia durante os últimos cinco anos. Foi salvo e trazido para aqui. O nosso mestre deu-lhe abrigo e fez dele o nosso senescal. Também queria que ele fosse o próximo mestre, mas graças a mim não conseguiu. Mark Nelle fugiu esta tarde e durante cinco anos vasculhou os nossos registos à procura de pistas, enquanto o senhor estava escondido num sanatório de loucos, com medo da própria sombra.

- Não pode ser.

- Mas é verdade. Foi aqui que ele viveu enquanto você tremia de medo.

- Era de si e dos seus irmãos que eu tinha medo. Lars também vos temia.

- E tinha razões para temer. Mentiu-me várias vezes e eu detesto que me enganem. Foi-lhe dada uma oportunidade para se arrepender, mas ele optou por continuar a mentir.

- Penduraram-no da ponte, não foi? Sempre desconfiei disso.

- Não era um crente. Acho que já percebeu que farei qualquer coisa para atingir os meus objectivos. Uso o manto branco e isso significa que sou o mestre desta abadia, obedecido por quase quinhentos irmãos. A nossa Regra é clara. A ordem do mestre é como uma ordem de Cristo, pois foi Ele quem disse pela boca de David, Ob auditu auris obedivit mihi, ou seja, ele obedeceu-me assim que me escutou. Isso também devia fazê-lo tremer de medo. -Agitou o diário. - Agora diga-me o significado do criptograma.

- Lars acreditava que indicava a localização do achado de Saunière.

Puxou o fogareiro para junto dos pés de Claridon.

- Juro-lhe que os seus pés vão assar se não responder ao que lhe perguntei.

Claridon escancarou os olhos.

- O que tenho de fazer para provar a minha sinceridade? Sei apenas partes da história. Lars era assim, não partilhava muito o que sabia. Tem o diário dele.

O desespero da voz de Claridon também indiciava credibilidade.

- Continue. Estou a ouvir.

- Sei que Saunière encontrou o criptograma na igreja de Rennes-le-Château durante as obras de substituição do altar. Também descobriu uma cripta e ficou a saber que Marie d'Hautpoul de Blnchefort não estava enterrada no cemitério da paróquia, mas sob a igreja.

Também lera tudo aquilo no diário, mas o que ele queria saber era:

- Como foi que Lars descobriu tudo isso?

- Encontrou informações sobre a cripta em livros antigos descobertos em Monfort-Lamaury, o feudo de Simon de Montfort, que descreviam a igreja de Rennes até ao mínimo detalhe. Depois encontrou mais referências no manuscrito de Corbu.

Detestava escutar o nome de Simon de Montfort, outro oportunista do século XIII que comandara a Cruzada Albigense e saqueara o Languedoc em nome da Igreja. Se não fosse ele, os templários teriam conseguido aquelas terras, o que teria impedido a sua queda mais tarde. O único erro da Ordem nos primeiros tempos fora a sua dependência das regras seculares. A razão que levara os primeiros mestres a relacionarem-se tão de perto com a realeza era algo que sempre o deixara perplexo.

- Saunière descobriu que o seu antecessor, o abade Bigou, mandara erigir a campa de Marie d'Hautpoul e pensou que as palavras gravadas na lápide e a referência ao quadro eram pistas.

- São tão conspícuas?

- Não para uma pessoa do século XVIII. A maioria era analfabeta. Logo, até os códigos mais simples seriam bastante eficazes. na verdade até o foram, tendo em consideração que ficaram indecifráveis até agora.

Naquele momento recordou-se de algo que lera nas Crónicas, algo escrito após a Expulsão. A única pista deixada sobre a localização do Grande Legado. Qual é o melhor lugar para esconder uma pedra? A resposta parecia agora óbvia.

- Debaixo da terra - murmurou.

- O que disse?

De Roquefort voltou à realidade.

- É capaz de se recordar do que viu no quadro?

- Oui, monsieur. De cada detalhe. - Isso tornava aquele tolo mais valioso. - E também tenho o desenho.

Teria ouvido bem?

- O desenho da campa?

- As notas que tirei no arquivo. Quando as luzes se apagaram, eu agarrei o papel que estava sobre a mesa.

Aquilo eram boas notícias.

- Onde está o papel?

- No meu bolso.

Decidiu que o melhor seria fazer um acordo.

- E que tal uma colaboração? Temos ambos algumas informações valiosas, porque não juntar esforços?

- E que lucraria eu com isso?

- Ficar com os pés intactos seria uma recompensa imediata.

- Tem razão, monsieur. Isso agrada-me muito.

Decidiu apelar para as ambições do homem.

- Nós procuramos o Grande Legado por razões diferentes das suas. Assim que o encontrarmos, estou certo que uma remuneração monetária poderá compensá-lo pelo seu trabalho. - De seguida, deixou bem claro: - Para além disso, não vou deixá-lo sair daqui e, mesmo que consiga fugir, encontrá-lo-ei onde quer que se esconda.

- Pareço não ter grandes escolhas.

- Sabe muito bem que eles o abandonaram.

Claridon não respondeu.

- Estou a falar de Malone e de Stephanie Nelle. Não fizeram o mínimo esforço para o salvar. Em vez disso, salvaram-se a eles. Ouvi-o a implorar por ajuda no arquivo e eles também o ouviram. No entanto, nem sequer o tentaram socorrer. - Calou-se, deixou que as palavras fizessem efeito e esperou ter avaliado bem o carácter fraco do prisioneiro. - Juntos, monsieur Claridon, podemos atingir os nossos objectivos. Eu possuo o diário de Lars Nelle e tenho acesso a um arquivo que o senhor nem imagina. O senhor possui as notas sobre a campa e é detentor de outras informações. Ambos desejamos a mesma coisa, vamos descobri-la em conjunto.

De Roquefort pegou numa faca que estava sobre a mesa, entre as pernas de Claridon, e cortou as cordas.

- Venha, temos muito trabalho pela frente.

 

Rennes-le-Château, 10 h 40 m

Malone seguiu Mark quando este se aproximou da igreja de Santa Maria Madalena. Não se realizavam ali serviços religiosos durante o Verão e o domingo parecia um dia importante para os turistas, tendo em consideração a pequena multidão que começava a juntar-se, de máquinas fotográficas e de vídeo em punho.

- Precisamos de bilhetes - disse Mark. - Não podemos entrar na igreja sem pagar.

Malone entrou na villa Béthanie e esperou no fim de uma pequena fila. Já no exterior, encontrou Mark frente a um jardim vedado onde se encontravam o pilar visigodo e a estátua da Virgem de que Royce Claridon lhes falara. Leu as palavras PENITENCE, PENITENCE e MISSION 1891 gravadas numa das faces do pilar.

- A Nossa Senhora de Lourdes - disse Mark, e apontou para a estátua. - Saunière estava fascinado por Lourdes, onde ocorreu a primeira aparição da Virgem. Antes de Fátima. Ele queria que Rennes se transformasse num local de peregrinação, por isso mandou construir este jardim e desenhou a estátua e o pilar.

Malone apontou para o amontoado de turistas.

- Parece que conseguiu.

- Isso é verdade, mas não pelas razões que desejava. Tenho a certeza que nenhuma dessas pessoas sabe que o pilar não é o original. Não passa de uma cópia aí colocada há alguns anos. A inscrição do verdadeiro é difícil de ler, devido à erosão, e encontra-se no museu do presbitério. O mesmo se passa em relação a muita coisa neste lugar. Já pouco se encontra como no tempo de Saunière.

Aproximaram-se da entrada principal da igreja. No pórtico Malone leu a seguinte inscrição, TERRIBILIS EST LOCU ISTE, baseada num episódio do Antigo Testamento - «Que terrível é este lugar.» Conhecia a história de Jacob que sonhara com uma escada apoiada na terra, cuja extremidade tocava o céu, e ao longo da qual subiam e desciam os mensageiros de Deus. Ao despertar do sonho exclamara, «Que terrível é este lugar!» e chamou a esse local Betel, que significava «casa de Deus». Nesse momento, ocorreu-lhe outra ideia.

- Mas no Antigo Testamento, Betel torna-se rival de Jerusalém enquanto centro religioso.

- Exactamente. Mais uma pista deixada por Saunière. Existem outras no interior da igreja.

Tinham todos dormido até tarde, e acordado apenas há cerca de trinta minutos. Stephanie ficara no quarto do marido e ainda lá estava quando Malone sugeriu a Mark que fossem até à igreja. Queria falar com ele sem ter Stephanie por perto e assim também lhe dava tempo para acalmar. Sabia que o próximo confronto não seria amigável e até nem seria má ideia adiar o inevitável. Geoffrey oferecera-se para os acompanhar, porém Mark recusara. Malone ficara com a impressão de que o jovem também desejaria conversar com ele a sós.

Penetraram na igreja composta por uma única nave de tecto elevado. A dar-lhes as boas vindas estava a figura de um diabo, com vestes verdes e a sorrir, que suportava o peso da pia de água benta.

- Trata-se do demónio judeu Asmodeu e não do diabo - explicou Mark.

- Outra mensagem?

- Também não lhe deve ser estranho.

- O guardião dos segredos, se não me engano.

- Isso mesmo. Observe o resto da pia.

Sobre a pia de água benta erguiam-se quatro anjos, cada um executando uma das partes do sinal da cruz. Por baixo estava escrito PAR CE SIGNE TU Le VAINCRAS. Malone traduziu do francês. «Sob este signo tu o vencerás.»

Conhecia o significado daquelas palavras.

- Pertencem à batalha de Constantino contra Maxêncio. De acordo com a história, Constantino viu uma cruz com essa inscrição desenhada no Sol poente.

- Todavia, existe uma diferença. - Mark apontou para as letras esculpidas. - Não existe «o» na citação original. Apenas «Sob este signo vencerás.»

- E isso é importante?

- O meu pai descobriu uma antiga lenda judaica que conta de que modo o rei conseguiu impedir os demónios de interferirem com a construção do Templo de Salomão. Um desses demónios, Asmodeu, foi controlado ao ser obrigado a transportar água, o único elemento que ele detestava. Visto isso, o simbolismo da pia não é despropositado. Porém, o «o» na citação foi claramente acrescentado por Saunière. Há quem diga que é apenas uma referência ao facto de ao tocar-se na água benta e fazer-se o sinal da cruz, como fazem os católicos, o diabo «o», seria derrotado. Mas existe quem chame a atenção para o posicionamento da palavra na frase em francês. Par ce signe tu le vaincras. As letras da palavra le, «o», são a décima terceira e a décima quarta. 1314.

Recordava-se daquela data do livro sobre os templários.

- O ano em que Jacques de Molay foi executado.

- Coincidência? - interrogou Mark, e encolheu os ombros. Cerca de duas dezenas de pessoas vagueavam pela igreja a tirar fotografias e a admirar a decoração. As janelas de vitral brilhavam com o sol e Malone contemplou as cenas que retratavam. Maria e Marta em Betânia, Maria Madalena com Cristo em ascensão e a ressurreição de Lázaro.

- É quase um parque de diversões teológico - murmurou.

- Não deixa de ter razão.

Mark apontou para o chão em xadrez frente ao altar.

- A entrada para a cripta é ali, mesmo antes da grade de ferro trabalhado, escondida sob os ladrilhos. Há alguns anos, uma equipa de geógrafos franceses efectuou um estudo do subsolo com radares de solo e conseguiu fazer algumas leituras antes de as autoridades os mandarem parar. Os resultados mostraram uma anomalia subterrânea sob o altar que podia muito bem ser a cripta.

- E nunca ninguém fez escavações aqui?

- Os habitantes locais nunca autorizariam. Isso acarretaria demasiados riscos para o turismo.

Malone esboçou um sorriso.

- Claridon disse a mesma coisa ontem.

Sentaram-se numa fila de bancos.

- Uma coisa é certa - sussurrou Mark -, não existe aqui nenhum tesouro. Porém Saunière usou esta igreja para mostrar aquilo em que acreditava. E tendo em conta tudo o que li sobre ele, esse acto coaduna-se com a sua personalidade arrojada.

Malone apercebeu-se que nada daquilo era subtil. A coloração e brilho excessivos ofuscavam toda e qualquer beleza. Foi então que se apercebeu de outro pormenor. Nada ali era harmonioso. Cada uma das expressões artísticas, desde as estátuas, aos relevos e aos vitrais, era individual, sem qualquer respeito por temas, como se a similaridade fosse de algum modo ofensiva.

Um estranho conjunto de santos esotéricos olhavam-no com expressões apáticas como se também eles se sentissem envergonhados pelos seus pormenores berrantes. São Roque exibia a coxa ferida, Santa Germana deixava cair um molho de rosas do avental, Maria Madalena segurava um vaso de alabastro. Por mais que se esforçasse, Malone não se sentia bem ali dentro. Já estivera no interior de muitas igrejas europeias e quase todas mostravam um enorme sentido de tempo e história. Aquela parecia apenas uma exposição.

- Saunière supervisionou todos os detalhes da decoração - explicou Mark. - Nada foi aqui colocado sem a sua autorização. - Mark apontou para uma das estátuas. - St. António de Pádua. É a ele que rezamos quando perdemos alguma coisa.

- Outra mensagem? - perguntou Malone, notando a ironia.

- Não tenho dúvidas. Repare nas estações da via-sacra.

As esculturas começavam no púlpito, sete ao longo da parede norte e depois outras sete na parede sul. Cada uma delas recriava o percurso realizado por Jesus até ao Calvário. O excesso e variedade de cores conferiam-lhe um aspecto estranho para algo tão solene.

- Estranhas, não são? - perguntou Mark. - Quando aqui foram instaladas, em 1887, eram bastante vulgares na região. Existe um conjunto muito parecido em Rocamadour. Tanto essas como estas foram feitas pela Casa Giscard em Toulouse. Já muito se disse sobre estas estações. Há quem afirme que têm origens maçónicas ou que são uma espécie de mapa do tesouro. Nenhuma das teorias é verdadeira. Mas existem mensagens nelas.

Malone observou alguns dos detalhes mais curiosos. O rapaz negro que segurava a tigela de água de Pilatos. Uma trompeta a ser tocada quando Jesus cai sob o peso da cruz. Três discos prateados erguidos no ar na estação quatro. A criança frente a Jesus, na estação oito, que envergava um tecido axadrezado. E na estação dez, um soldado romano a jogar aos dados pelas vestes de Jesus e os números três, quatro e cinco bem visíveis nas faces dos dados.

- Veja a estação catorze - pediu Mark, e indicou a parede sul. Malone levantou-se e dirigiu-se ao local. As velas tremeluziam frente ao altar e ele reparou de imediato no baixo-relevo que o decorava. Uma mulher que, presumiu que fosse Maria Madalena, chorava, ajoelhada, frente a uma cruz formada por dois ramos. Na base do ramo havia uma caveira que lhe lembrou a caveira que vira na litografia em Avinhão.

Depois virou-se e observou a imagem da última estação da via-sacra, a décima quarta, que mostrava o corpo de Cristo a ser transportado por dois homens, enquanto três mulheres observavam em pranto. Atrás deles, erguia-se uma escarpa rochosa sobre a qual brilhava a Lua cheia no céu nocturno.

- Jesus a ser transportado para o sepulcro - sussurrou Mark que, entretanto, aparecera por trás de Malone. - A lei romana não autorizava que se sepultassem os crucificados. Essa forma de execução estava reservada aos acusados de crimes contra o império. Os criminosos morriam lentamente na cruz, para todos verem, e o corpo era deixado para que as aves o debicassem. No entanto, Pilatos terá supostamente entregue o corpo de Cristo a José de Arimateia para que pudesse ser sepultado. Já alguma vez se interrogou porquê?

- Não, nunca.

- Houve quem pensasse nisso. Lembre-se que Cristo foi morto na véspera do sábado e, por lei, não podia ser enterrado depois do entardecer. - Mark apontou para a estação catorze. - No entanto, Saunière pendurou esta representação que mostra o corpo a ser transportado depois de escurecer.

Malone continuava sem entender.

- E se em vez de estar a ser transportado para o interior do sepulcro, o corpo estiver a ser retirado dele, depois de escurecer?

Mark não respondeu, em vez disso perguntou:

- Conhece os Evangelhos Gnósticos?

Conhecia. Tinham sido encontrados em 1945 por sete beduínos egípcios da aldeia de El-Kasr que, ao escavarem perto de um rochedo, descobriram um esqueleto humano e uma urna selada. Pensando que podia conter ouro, partiram a urna e encontraram apenas treze códices envoltos em pele. Os textos estavam todos escritos em copta e eram provavelmente da autoria dos monges que viveram num mosteiro das redondezas durante o século IV. Os códices continham quarenta e seis manuscritos cristãos, datando o seu conteúdo do século II. Alguns viriam posteriormente a perder-se, deitados fora ou usados para acender fogueiras, mas em 1947 os que restaram foram adquiridos por um museu local.

Malone contou a Mark o que sabia.

- A razão que levou os monges a esconderem os códices é ditada pela própria história - explicou Mark. - No século IV, Atanásio, bispo de Alexandria, escreveu uma carta que foi enviada para todas as igrejas do Egipto. Nela se decretava que apenas os vinte e sete livros incluídos no recentemente formulado Novo Testamento podiam ser considerados Escrituras, e que todos os outros livros heréticos tinham de ser destruídos. Nenhum dos quarenta e seis manuscritos da urna estava em conformidade com o decreto. Assim, os monges do mosteiro Pacomiano optaram por esconder os treze códices em vez de os queimarem, talvez esperando por uma mudança mais favorável na liderança da Igreja. Claro que a situação nunca se alterou. Graças a Deus que os códices sobreviveram. São os Evangelhos Gnósticos que conhecemos actualmente. Num deles, o de Pedro, está escrito, E quando contaram as coisas que tinham visto, falaram que viram três homens sair do sepulcro e que dois deles transportavam o outro.

Malone voltou a observar a estação catorze. Dois homens a segurarem um terceiro.

- Os Evangelhos Gnósticos contêm textos magníficos - continuou Mark. - Muitos estudiosos afirmam que o Evangelho de Tomé, que estava incluído nos códices, pode ser o que mais se aproxima das verdadeiras palavras de Cristo. Os primeiros cristãos temiam os gnósticos. A palavra provém do grego gnosis, que significa conhecimento. Os gnósticos eram apenas pessoas que desejavam aprender, mas a emergente versão católica do cristianismo acabou por eliminar todo o pensamento e ensinamentos gnósticos.

- E os templários mantiveram esses ensinamentos vivos?

Mark assentiu.

- Os Evangelhos Gnósticos e muitos outros que os teólogos nunca viram fazem parte da biblioteca da abadia. Os templários sempre foram mais flexíveis em relação às Escrituras. Os chamados textos heréticos têm muito para nos ensinar.

- E como poderia Saunière saber alguma coisa sobre esses Evangelhos? Afinal só foram descobertos décadas após a sua morte.

- Pode ter tido acesso a outro tipo de informação. Vou mostrar-lhe uma coisa.

Seguiu Mark até à entrada da igreja e saíram. No pórtico, havia um rectângulo de pedra com letras pintadas.

- Leia o que diz ali - pediu Mark.

Malone esticou a cabeça e esforçou-se por decifrar as palavras. Muitas estavam quase apagadas.

REGNUM MUNDI ET OMNEM ORNATUM SAECULI CONTEMPSI,

PROPTER ANOREM DOMINI MEI JESU CHRISTI: QUEM VIDI,

QUEM AMAVI, IN QUEM CREMINI, QUEM DILEXI

- Traduzido significa, «Desprezo o reino deste mundo e todos os bens temporais por amar o meu Senhor Jesus Cristo, o qual vi, amei, venero e no qual acredito.» É uma afirmação interessante, mas contém erros bem visíveis. - Mark levantou o dedo.

- As palavras scoeculi, anorem, quen e cremini estão mal escritas. Saunière gastou cento e oitenta francos nesta inscrição. Uma quantia considerável para a época. Sabemos isso porque os recibos ainda existem. Dedicou especial atenção ao desenho da entrada e, no entanto, permitiu que os erros ficassem à vista de todos. Teria sido fácil emendá-los, uma vez que as letras eram apenas pintadas.

- Talvez não tenha reparado.

- Saunière? Era um homem muito meticuloso e nada lhe escapava.

Mark e Malone afastaram-se do pórtico e uma nova vaga de turistas invadiu a igreja. Pararam frente ao jardim com o pilar visigodo e a estátua da Virgem.

- A inscrição no pórtico não é bíblica. Faz parte de um responsório escrito por um homem chamado John Tauler nos inícios do século XIV. Os responsórios eram orações ou poemas utilizados entre a leitura das Escrituras e Tauler era bem conhecido no tempo de Saunière. Assim, é possível que o abade tivesse apenas gostado da frase. Mas ainda assim é estranho.

Malone concordava.

- Os erros podem ajudar-nos a entender o que levou Saunière a deixá-los ficar. As palavras são quem cremini, «no qual acredito», mas deveria estar escrito credidi. No entanto, Saunière aceitou o erro. Poderá isso querer dizer que ele não acreditava Nele? E o mais interessante é quem vidi, «o qual vi.»

Malone entendeu de imediato a relevância.

- Aquilo que encontrou levou-o a Cristo. O qual viu.

- Era isso que o meu pai achava e eu penso o mesmo. Saunière parecia não resistir a enviar mensagens. Queria que o mundo soubesse aquilo que ele sabia, mas era como se tivesse consciência que ninguém no seu tempo o entenderia. E tinha razão. Ninguém percebeu nada. Só quarenta anos após a sua morte é que alguém prestou atenção a tudo isto. - Mark virou-se para apreciar a antiga igreja. - Este é um lugar de contrários. As estações da via-sacra estão penduradas em sentido contrário às das restantes igrejas do mundo, o demónio na porta é o oposto do bem. - Depois apontou para o pilar visigodo. - Virado de cabeça para baixo. Veja a cruz e os desenhos na face.

Mission

1891

Malone observou a face do pilar.

- Saunière inverteu o pilar antes de gravar Missão 1891 no fundo e Penitência, Penitência no cimo.

Reparou num V, com um círculo no centro, no canto inferior direito. Inclinou a cabeça e tentou ver o símbolo invertido.

- Alfa e ómega? - perguntou.

- Há quem pense que sim. O meu pai era uma dessas pessoas.

- É outra designação para Cristo.

- Correcto.

- O que fez Saunière inverter o pilar?

- Ainda ninguém conseguiu apresentar uma explicação plausível.

Mark afastou-se e um grupo de turistas ocupou o seu lugar para tirar fotografias. Depois conduziu Malone até às traseiras da igreja, para um canto do Jardim do Calvário onde se encontrava uma pequena gruta.

- É uma réplica também feita para os turistas. A original foi destruída durante a Segunda Guerra Mundial. Saunière construiu a gruta com pedras que trazia das suas viagens. Ele e a amante ausentavam-se durante dias seguidos e regressavam carregados de pedras. Estranho, não acha?

- Depende do que traziam escondido no meio das pedras.

Mark sorriu.

- É uma maneira fácil de trazer ouro sem levantar suspeitas.

- Saunière era um homem muito estranho. Podia estar simplesmente a carregar pedras.

- Todas as pessoas que aqui vêm são um pouco estranhas.

- Isso inclui o teu pai?

Mark fitou-o com uma expressão séria.

- Sem dúvida. Estava obcecado. Votou a sua vida a este lugar, amava cada centímetro quadrado desta aldeia. Esta era a sua casa.

- Mas não a tua?

- Tentei continuar o trabalho dele, mas faltava-me a sua paixão e dedicação. Talvez tenha percebido que nunca chegaria longe.

- Então porquê esconderes-te numa abadia durante cinco anos? - Mark não respondeu. - Estavas a fazer a mesma coisa que a tua mãe veio aqui fazer. Apenas não sabias que havia alguém a vigiar-te.

- E ainda bem que o fizeram.

- A tua mãe está a sofrer.

- Vocês trabalharam juntos?

Notou a tentativa de evasão.

- Sim, durante muito tempo. É uma boa amiga.

- É uma cabeça dura.

- É uma mulher dura, mas não é insensível. Está a sofrer com tudo isto. Muita culpa e muitos arrependimentos. Podia ser uma segunda oportunidade para vocês os dois.

- Eu e a minha mãe afastámo-nos há muito tempo. Foi melhor para os dois.

- Então o que fazes aqui?

- Vim para casa do meu pai.

- E quando chegaste e viste as bagagens de outras pessoas, dentro das quais estavam os nossos passaportes, que por certo terás encontrado, ainda assim ficaste.

Mark virou-lhe as costas e Malone pensou ter notado uma tentativa de esconder as suas dúvidas. Era mais parecido com a mãe do que gostava de admitir.

- Tenho trinta e oito anos e ainda me sinto um miúdo - confessou Mark. - Vivi os últimos cinco anos protegido no interior de uma abadia governada por uma Regra severa. Um homem que considerava como um pai tratou-me bem e ascendi a uma posição de importância como nunca poderia imaginar.

- E no entanto, aqui estás tu, no meio de nenhures. - Mark fitou-o e sorriu. - Tu e a tua mãe precisam de conversar.

O sorriso transformou-se numa expressão séria e preocupada.

- Conheço a mulher que mencionou ontem à noite, Cassiopia Vitt. Ela e o meu pai disputaram terreno durante muitos anos. Não seria importante procurá-la?

Reparou que Mark gostava de evitar responder a perguntas colocando-as, um pouco à semelhança da mãe.

- Depende. Achas que ela é uma ameaça?

- Não sei. Ela parecia estar sempre por perto e o meu pai não gostava muito dela.

- De Roquefort também não.

- Disso tenho a certeza.

- No arquivo, ontem à noite, ela não se identificou e De Roquefort não parecia saber o seu nome. Mas se ele tem Claridon, por esta altura já deve saber quem ela é.

- Isso é problema dela - argumentou Mark.

- Salvou-me a pele duas vezes, por isso acho que merece ser avisada. Claridon contou-me que ela vive nas redondezas, em Givors. A tua mãe e eu íamo-nos embora hoje. Pensávamos que já não havia mais nada que pudéssemos fazer, mas isso mudou. Preciso de fazer uma visita a Cassiopia Vitt e penso que o melhor seria ir sozinho.

- Concordo. Nós esperamos aqui. Também tenho de fazer uma visita. Há já cinco anos que não converso com o meu pai.

E dirigiu-se para a entrada do cemitério.

 

11 h 05 m

Stephanie encheu uma chávena de café e ofereceu mais a Geoffrey, mas o jovem recusou.

- Só podemos tomar uma chávena por dia - explicou ele. Ela sentou-se na mesa da cozinha.

- A Regra governa todos os quadrantes da vossa vida?

- É o nosso modo de vida.

- Sempre pensei que o segredo também fosse um pormenor importante para a irmandade, mas falas dela abertamente.

- O meu mestre, que descansa agora junto do Senhor, disse-me para ser honesto consigo.

Ficou espantada.

- E como poderia o teu mestre conhecer-me?

- Acompanhou as buscas do seu marido muito atentamente. Isso aconteceu antes de eu chegar à abadia, mas o mestre contou-me. Ele e o seu marido falaram em várias ocasiões. Na verdade, o mestre era o seu confessor.

Stephanie ficou de boca aberta com aquela informação.

- Lars teve contacto com os templários?

- Na realidade, foram os templários que o contactaram. O mestre abordou o seu marido, porém se ele tinha conhecimento que falava com um templário nunca o revelou. Talvez pensasse que se o dissesse isso poria fim ao contacto. Mas é provável que o soubesse.

- O teu mestre parece ter sido um homem muito interessante.

A expressão do jovem iluminou-se.

- Era um homem sábio que lutou pela prosperidade e pelo bem da nossa Ordem.

Veio-lhe à memória o modo como ele defendera Mark na noite anterior.

- E o meu filho ajudou nessa tarefa?

- Por essa razão foi escolhido para ser o nosso senescal.

- E o facto de ser filho de Lars Nelle não teve nada a ver com essa escolha?

- Sobre isso, nada lhe sei dizer. Apenas ontem descobri quem era o senescal e aqui, nesta casa. Por isso, não sei.

- Não sabem nada uns dos outros?

- Muito pouco e alguns de nós sofrem com isso. Outros apreciam a privacidade. Passamos a vida juntos, como numa prisão, e demasiada familiaridade pode tornar-se um problema. Assim, a Regra proíbe qualquer intimidade entre irmãos. Somos reservados e colocamos o silêncio ao serviço de Deus.

- Parece difícil.

- É a vida que escolhemos. Mas esta aventura... - Abanou a cabeça - O mestre disse-me que iria descobrir muitas coisas novas e tinha razão.

Stephanie deu mais um gole no café.

- O teu mestre parecia ter a certeza que acabaríamos por nos conhecer.

- Ele enviou-lhe o diário na esperança de que viesse. Também mandou uma carta a Ernst Scoville, que incluía páginas do diário que falavam sobre si. O plano era que isso vos unisse. Sabia que Scoville não gostava de si, foi o seu marido quem lhe contou, porém, também tinha conhecimento dos seus vastos recursos e queria que vocês os dois, juntamente comigo e o senescal, descobrissem o Grande Legado.

Recordou-se daquele nome da noite anterior.

- A vossa Ordem acredita mesmo que há mais qualquer coisa na história de Cristo, pormenores que o resto do mundo não conhece?

- O meu treino ainda não me permite responder a essa pergunta. São necessárias muitas décadas de estudo e serviço até que tenha acesso a todo o conhecimento da Ordem. No entanto, para mim, e tendo em consideração o que aprendi até agora, a morte parece-me um objectivo claro. Muitos milhares de irmãos pereceram nos campos de batalha da Terra Santa. Nunca nenhum deles voltou as costas à luta e desistiu.

- A Igreja Católica chamaria heresia a isso que acabaste de dizer.

- A Igreja é uma instituição criada pelos homens e gerida por homens. Tudo o mais que se lhe atribui é também responsabilidade desses mesmos homens.

Stephanie decidiu tentar a sua sorte.

- E o que devo eu fazer, Geoffrey?

- Ajudar o seu filho.

- Como?

- Ele tem de terminar o que o pai começou. Não podemos permitir que Raymond de Roquefort encontre o Grande Legado. O mestre foi muito claro nesse ponto. Foi por essa razão que planeou tudo com antecedência.

- Mark odeia-me.

- Ele ama-a.

- E como podes tu saber isso?

- O mestre disse-me.

- Ele também não tinha maneira de saber.

- O meu mestre sabia tudo. - Geoffrey levou a mão ao bolso das calças e retirou um envelope selado. - Foi-me pedido que lhe entregasse isto quando achasse apropriado. - Estendeu-lhe o rectângulo de papel um pouco amarrotado e depois levantou-se da mesa.

- O senescal e o Sr. Malone foram à igreja e eu vou deixá-la sozinha.

Ela agradeceu o gesto. Como não sabia que emoções aquela carta podia despertar, esperou que Geoffrey saísse e depois abriu o envelope.

Sr.ª Nelle, não nos conhecemos, no entanto sinto que sei muito a seu respeito, tudo graças a Lars que sempre me confidenciou os seus desejos e angústias. Mark é diferente, guarda os seus tormentos para si e partilha muito pouco. Apenas em algumas ocasiões consegui que me contasse alguns pormenores mais pessoais. Apesar disso, as suas emoções não eram tão transparentes quanto as do pai. Talvez tenha herdado essa característica de si? Não é minha intenção criticá-la. O que está a acontecer neste momento é muito sério. Raymond de Roquefort é um homem perigoso. É movido por uma espécie de cegueira que ao longo dos anos afectou muitos membros da nossa Ordem. O seu filho disputou a liderança com ele e perdeu. Infelizmente, Mark não possui a determinação necessária para terminar as suas batalhas. Começá-las parece fácil, dar-lhes continuação é ainda mais fácil, mas resolvê-llas tem sido difícil. As disputas consigo, com De Roquefort, com a sua própria consciência, tudo isso são desafios. Pensei que juntar-vos poderia vir a ser benéfico para ambos. Como já disse anteriormente, não a conheço, mas acredito compreendê-la. O seu marido faleceu e muito ficou por resolver. Talvez esta demanda possa responder a todas as suas perguntas. Deixo-lhe este conselho: confie no seu filho, esqueça o passado e pense apenas no futuro. Pode ser uma boa maneira de conseguir a paz. A minha Ordem é única em toda a cristandade. As nossas crenças são diferentes e isso tem a ver com as lições aprendidas pelos nossos primeiros irmãos e que nos foram deixadas como herança. Isso torna-nos mais cristãos ou menos cristãos? Na minha opinião, nem uma coisa nem outra. A descoberta do Grande Legado irá responder a muitas questões, mas temo que irá originar muitas mais. Caberá a si e ao seu filho decidir o melhor caminho quando, e se, o momento crítico chegar, e chegará, pois tenho fé em ambos. Teve lugar uma ressurreição e com ela foi-lhe dada uma segunda oportunidade. Aproveite bem esse milagre. Fica um alerta: liberte a sua mente dos preconceitos aos quais se habituou. Esteja receptiva a conceitos mais vastos, pois só desse modo terão sucesso. Que o Senhor a acompanhe.

Correu-lhe uma lágrima pela face. Chorar era uma sensação estranha, algo que não fazia desde a infância. Era uma mulher com estudos superiores e possuía a experiência de décadas de trabalho nos cargos mais elevados e de responsabilidade de um departamento governamental. A sua carreira fora passada a resolver situações complicadas e tivera muitas vezes de tomar decisões de vida ou morte. Todavia, nenhuma se aplicava ali. Tinha de algum modo abandonado o mundo do bem e do mal, do certo e do errado, do branco e do preto, e entrara num reino onde os seus pensamentos mais profundos não só eram conhecidos como compreendidos. Aquele mestre, um homem que ela nunca vira e com o qual nunca falara, parecia entender a sua dor.

Tinha razão. O regresso de Mark era uma ressurreição. Um milagre espantoso com possibilidades infinitas.

- A carta deixou-a triste?

Levantou os olhos e viu Geoffrey à entrada da porta. Depois limpou as lágrimas e disse:

- De certa forma sim, mas também me deixou feliz.

- O mestre era assim. Conhecia a alegria e a dor. Mais a dor, nos últimos dias.

- Como morreu ele?

- Sofria de cancro. Faleceu há duas noites.

- Sentes a sua falta?

- Cresci sozinho, sem família. Foram as freiras e os monges que me criaram. Sempre me trataram bem, mas nenhum deles me amou. É difícil crescer sem o amor de um pai ou de uma mãe. - Aquela confissão partiu-lhe o coração. - O mestre foi carinhoso comigo, talvez até me tenha amado, mas mais importante que tudo, confiou em mim.

- Não o desapontes.

- Não o farei.

Stephanie levantou a carta da mesa.

- Isto é para mim? Posso guardá-la?

- Claro. Eu fui apenas o mensageiro.

Recompôs-se e perguntou:

- O que levou Mark e Cotton à igreja?

- Creio que o senescal desejava falar com o Sr. Malone.

Ela levantou-se da cadeira.

- Talvez nós também devêssemos...

Alguém bateu à porta. O olhar dela desviou-se de imediato para a fechadura que estava apenas no trinco. Cotton e Mark teriam entrado sem bater. Reparou que Geoffrey também ficara alerta e que tinha a arma na mão. Stephanie avançou até à porta e espreitou pelo vidro. Do outro lado estava um rosto familiar. Era Royce Claridon.

 

De Roquefort estava furioso. Fora informado há apenas quatro horas que, na noite da morte do mestre, o sistema de segurança do arquivo registara uma entrada às 23:51. O senescal permanecera no interior do arquivo durante doze minutos e saíra com dois livros. As placas de identificação colocadas em todos os volumes mostravam que se tratava de um códice do século XIII, que conhecia bem, e de um relatório de um marechal escrito na última metade do século XIX, que também lera.

Quando interrogara Royce Claridon há algumas horas, não revelara que conhecia o criptograma incluído no diário de Lars Nelle. Havia também um no relatório do marechal, juntamente com o local onde o quebra-cabeças fora encontrado: na igreja do abade Gélis em Coustausa, não muito longe de Rennes-le-Château. Recordava-se de ter lido que o marechal conversara com Gélis um pouco antes de o abade ter sido assassinado e ficara a saber que Saunière também descobrira um criptograma na sua igreja. Quando comparados, repararam que eram iguais. Aparentemente, Gélis teria resolvido o enigma e contara ao marechal, contudo a solução não foi anotada e tão-pouco encontrada após a morte de Gélis. Tanto a Polícia local quanto o marechal suspeitaram que o criminoso pretendia algo que se encontrava dentro da pasta do padre. Por certo, a solução do criptograma. Mas teria sido Saunière o assassino? Era difícil saber. O crime nunca chegara a ser resolvido.

No entanto, tendo em consideração o que De Roquefort sabia, o abade de Rennes teria sido incluído na lista dos suspeitos.

Agora o relatório do marechal tinha desaparecido, o que até podia nem ser uma má notícia, uma vez que possuía o diário de Lars Nelle, que continha o criptograma de Saunière. Apesar disso, tal como o marechal escrevera, seriam os quebra-cabeças mesmo iguais? Não havia maneira de ter a certeza sem o relatório, que fora certamente levado do arquivo por alguma razão.

Há cinco minutos, ao ouvir a conversa entre Stephanie Nelle e o irmão Geoffrey através de um microfone colocado numa veneziana, ficara a saber que Mark Nelle e Cotton Malone tinham ido até à igreja. Stephanie até chorara depois de ler uma carta que o antigo mestre lhe endereçara. «Tão comovente.» O mestre previra tudo com antecedência e todo aquele assunto estava rapidamente a sair do seu controlo. Precisava de voltar a pegar nas rédeas da situação e pôr um travão naquela catadupa de acontecimentos. Assim, enquanto Royce Claridon tratava do par em casa de Lars Nelle, ele ia tratar dos outros dois.

Depois do que acontecera a noite passada na ponte, pensara que Malone e Stephanie já não eram importantes e por isso ordenara aos seus ajudantes que os deixassem inconscientes. Matar dois agentes americanos iria certamente chamar demasiadas atenções. Deslocara-se a Avinhão para descobrir que segredos se escondiam no Palácio dos Papas e para capturar Claridon, não para despertar a atenção do governo americano. Conseguira atingir os seus objectivos e trazer o diário de Lars Nelle como bónus. Vistas bem as coisas, não tinha sido uma má noite de trabalho. Ficara até disposto a deixar fugir Mark Nelle e Geoffrey, uma vez que longe da abadia representavam um perigo bem menor. Todavia, após ter sido informado dos livros desaparecidos, essa estratégia mudara.

- Estamos em posição - informou-lhe uma voz ao ouvido.

- Fiquem atentos e não façam nada até eu mandar - murmurou para o microfone preso na lapela.

Trouxera seis irmãos consigo e encontravam-se agora espalhados pela aldeia, misturando-se com a crescente multidão de domingo. O dia estava limpo e ventoso. Enquanto os vales do rio Aude eram locais quentes e calmos, as colinas não escapavam aos ventos constantes.

De Roquefort subiu a rua principal em direcção à Igreja de Santa Maria Madalena sem fazer qualquer esforço para ocultar a sua chegada.

Queria que Mark Nelle soubesse que ali estava.

Mark encontrava-se aos pés da campa do pai. O local estava em boas condições, tal como as restantes campas, uma vez que o cemitério fazia parte do percurso da cada vez mais florescente indústria turística da aldeia.

Durante os primeiros seis anos após a morte do pai, fora ele quem pessoalmente tomara conta da campa, visitando-a quase todos os fins-de-semana. Também cuidara da casa. O pai fora uma pessoa querida pelos habitantes de Rennes, referindo-se sempre à aldeia com simpatia e tratando a memória de Saunière com respeito. Talvez fosse por esse motivo que incluíra tanta ficção sobre Rennes nos seus livros. O mistério embelezado era uma fonte de rendimentos para toda a região e os escritores que desprezavam esse aspecto não eram bem vistos. Tendo em conta que não havia certezas relativamente a quase nenhuns dos aspectos da história, isso deixava a porta aberta para todo o tipo de especulações. Também ajudava o facto de o pai ser considerado o homem que chamara a atenção do mundo para aquele lugar, embora Mark soubesse que fora um livro francês quase desconhecido, Le Trésor Maudit de Gérard de Sede, publicado nos finais dos anos sessenta, que chamara a atenção do pai. Sempre achara o título

- O Tesouro Maldito - deveras conveniente, principalmente após a súbita morte do pai. Mark era apenas um adolescente quando lera pela primeira vez o livro que Lars escrevera, mas só anos mais tarde, quando estava já na universidade a aprofundar os seus estudos em história medieval e filosofia teológica, é que o pai lhe revelou o que estava realmente em jogo.

- A essência do cristianismo é a ressurreição dos corpos físicos. E a realização da promessa do Antigo Testamento. Se os cristãos não ressuscitarem um dia, então a sua fé é inútil e os Evangelhos uma mentira, ou seja, não há mais nada após esta vida. É a ressurreição que dá significado a tudo o que se faz em nome de Cristo. Também existem outras religiões que falam do paraíso e de uma vida após a morte, mas só o cristianismo fala de um Deus que se transformou num homem, morreu pelos Seus irmãos e depois se ergueu de entre os mortos para governar para toda a eternidade. Pensa só nisto - dissera o pai -, os cristãos podem ter crenças diversas sobre muitos assuntos, mas todos acreditam na ressurreição. Jesus derrotou a morte unicamente por eles. O reino dos céus espera-os, pois também eles irão ressuscitar e viver para toda a eternidade na companhia do Senhor. Todas as tragédias têm significado porque a ressurreição oferece esperança para o futuro.

Depois o pai fizera a pergunta que sempre o preocupara.

- E se isso nunca aconteceu? E se Cristo pura e simplesmente morreu e nunca regressou?

Sim, e se?

- Pensa nos milhões de pessoas que foram massacradas em nome de Cristo ressuscitado. Só durante a Cruzada Albigense foram mortos quinze mil homens, mulheres e crianças apenas por negarem a encarnação, a paixão e a ressurreição de Cristo. A Inquisição foi responsável pela morte de milhões de pessoas. As cruzadas na Terra Santa custaram centenas de milhares de vidas. Tudo em nome do suposto Cristo Ressuscitado. Durante séculos, os papas usaram o sacrifício de Jesus como modo de motivar os homens para as batalhas. Se a ressurreição nunca tivesse acontecido e não houvesse a promessa de uma vida após a morte, quantos homens achas que teriam arriscado a vida?

A resposta era simples. Nem um.

E se a ressurreição nunca aconteceu?

Mark passara os últimos cinco anos à procura de resposta para essa pergunta no seio de uma Ordem que o mundo acreditava ter sido erradicada há centenas de anos. Contudo, estava tão confuso como no dia em que fora levado para a abadia.

O que ganhara?

Mais importante, o que perdera?

Afastou a confusão da mente e voltou a concentrar-se na campa do pai. Ele mesmo encomendara a lápide e assistira à sua colocação numa triste tarde de Maio. O pai fora encontrado uma semana antes enforcado numa ponte a sul de Rennes. Mark estava em casa, em Toulouse, quando a Polícia telefonou. Recordava-se do rosto dele quando identificou o corpo, a palidez da pele, a boca escancarada, os olhos sem vida. Uma visão grotesca que temera nunca mais vir a esquecer.

A mãe regressara à Geórgia logo após o funeral. Pouco tinham falado durante os três dias que ela estivera em França. Ele tinha vinte e sete anos, acabara de ser aceite na Universidade de Toulouse como professor assistente e não sabia quase nada da vida. Agora, passados onze anos, questionava-se se estaria mais preparado. No dia anterior teria morto Raymond de Roquefort sem hesitar. Se isso tivesse mesmo ocorrido, o que aconteceria a tudo o que aprendera? Onde estava a disciplina que acreditava ter adquirido? Os fracassos de De Roquefort eram fáceis de entender - um falso sentido de dever exacerbado por um ego demasiado orgulhoso -, mas as suas próprias fraquezas eram desconcertantes. No espaço de três dias passara de senescal a fugitivo, da segurança ao caos.

E para quê?

Sentiu o volume da arma sob o casaco. A segurança que lhe oferecia era perturbadora.

Afastou-se da campa do pai e aproximou-se da última morada de Ernst Scoville. Conhecera o solitário belga e gostava do homem. Pelos vistos, o mestre também sabia da sua existência, uma vez que lhe enviara uma carta na semana anterior. O que dissera De Roquefort sobre os dois pacotes? «Já tratei de um dos destinatários.» Isso era óbvio. Mas depois acrescentara mais alguma coisa. «E não tardarei a tratar do outro.» A mãe estava em perigo. Estavam todos. Porém, pouco ou nada podiam fazer. Ir à Polícia? Ninguém acreditaria neles. A abadia era bastante respeitada e nenhum dos irmãos se atreveria a denunciar fosse o que fosse. Tudo o que encontrariam seria um pacato mosteiro dedicado a Deus. A Ordem desenvolvera planos para ocultar tudo o que dissesse respeito à irmandade e ninguém dentro da abadia deixaria de cumprir o seu dever. Disso tinha a certeza. Estavam entregues a si mesmos.

Malone esperou no Jardim do Calvário que Mark regressasse do cemitério. Não queria intrometer-se num assunto tão pessoal. Compreendia perfeitamente o que o jovem deveria estar a sentir. Tinha apenas dez anos quando o pai falecera e a dor de saber que nunca mais o voltaria a ver nunca diminuíra. Ao contrário de Mark, não tinha nenhum cemitério ao qual o pudesse ir visitar. A campa do pai fora o oceano Atlântico dentro do casco de um submarino afundado. Tentara em tempos saber pormenores do sucedido, mas o incidente permanecia classificado como secreto.

O pai amara a Marinha e os Estados Unidos e fora um patriota que sacrificara a vida pelo seu país. Esse facto sempre deixara Malone muito orgulhoso. Mark Nelle tinha sido afortunado. Vivera ainda muitos anos na companhia do pai, aprendera com ele e partilhara alegrias e tristezas. Apesar disso, em alguns aspectos ele e Mark eram parecidos. Ambos os pais eram viciados no trabalho e ambos tinham falecido em circunstâncias estranhas.

Os visitantes continuavam a entrar e a sair do cemitério. Por fim, viu Mark atravessar os portões atrás de um grupo de japoneses.

- Foi penoso - confessou Mark. - Sinto muito a falta dele.

Malone decidiu continuar a conversa no ponto onde a deixara.

- Tu e a tua mãe têm de se entender.

- Ainda existem muitos ressentimentos e ver a campa dele não ajudou.

- Ela tem coração. Pode estar fechado numa couraça de ferro, mas está lá.

Mark sorriu.

- Parece conhecê-la bem.

- Tive alguns anos de experiência.

- Neste momento preciso de me concentrar no plano do mestre, seja ele qual for.

- Vocês são ambos bons a fugirem aos assuntos.

Mark voltou a sorrir.

- Deve ser genético.

Malone consultou o relógio.

- São onze e trinta. Tenho de ir. Quero visitar Cassiopia Vitt ainda antes do anoitecer.

- Eu desenho-lhe um mapa. Não é longe daqui.

Saíram do jardim e viraram em direcção à rua principal. A alguns metros de distância, Malone reparou num homem alto, com cara de poucos amigos, mãos nos bolsos de um casaco de cabedal, a dirigir-se para a igreja.

Agarrou Mark pelo ombro e disse:

- Temos companhia.

Mark seguiu o olhar de Malone e viu De Roquefort. No momento em que observavam o local, a tentarem avaliar as suas opções, viram mais três homens com o corte de cabelo habitual. Dois deles estavam frente à villa Béthanie e o outro bloqueava o caminho para o parque de estacionamento.

- Alguma sugestão? - perguntou Malone. Mark avançou em direcção à igreja.

- Por aqui.

Stephanie abriu a porta e Royce Claridon entrou.

- Onde estava? - perguntou ela, e fez sinal a Geoffrey para baixar a arma.

- Levaram-me do palácio ontem à noite e mantiveram-me preso numa casa não muito longe daqui, mas consegui fugir.

- Quantos irmãos se encontram na aldeia? - perguntou Geoffrey a Claridon.

- Quem és tu?

- Chama-se Geoffrey - apressou-se ela a dizer, à espera que o rapaz não revelasse mais nada.

- Quantos irmãos estão aqui? - voltou ele a perguntar.

- Quatro.

Stephanie aproximou-se da janela da cozinha e espreitou para fora. A rua estava deserta em ambas as direcções. Todavia, estava preocupada com Mark e Malone.

- Onde estão os irmãos?

- Não sei. Ouvi-os dizer que vocês estavam na casa de Lars e por isso vim direito aqui.

Não gostou daquela resposta.

- Ontem à noite, não conseguimos ajudá-lo. Não fazíamos ideia para onde o tinham levado e deixaram-nos inconscientes quando tentávamos apanhar De Roquefort e a mulher. Quando recuperámos os sentidos, já tinham todos desaparecido.

O francês levantou os braços como se estivesse a render-se.

- Não faz mal, madame, eu entendo. Não havia nada que pudessem ter feito.

- De Roquefort está aqui? - questionou Geoffrey.

- Quem?

- O mestre. Também veio?

- Não referiram nomes. - Claridon voltou-se para Stephanie. - Ouvi-os dizer que Mark está vivo. Isso é verdade?

Ela assentiu.

- Ele e Cotton foram até à igreja, mas não devem demorar.

- Um milagre. Pensei que ele tivesse morrido.

- Também eu.

O olhar de Claridon varreu a sala.

- Já há muito tempo que não entrava nesta casa. Lars e eu passámos bons momentos aqui.

Ela puxou uma cadeira para o francês se sentar. Geoffrey tomou posição junto à janela e ela reparou numa certa tensão no jovem.

- O que lhe aconteceu? - perguntou Stephanie a Claridon.

- Estive atado até hoje de manhã. Libertaram-me as mãos para que pudesse ir à casa de banho e eu aproveitei uma janela pequena para fugir. Devem certamente andar à minha procura, mas não tinha outro lugar para onde ir. Seria difícil sair da aldeia, uma vez que existe apenas uma entrada e uma saída. - Claridon agitou-se nst cadeira. - Não se importava de me dar um copo de água?

Ela levantou-se e encheu um copo. Claridon bebeu-o de uma só vez e ela voltou a enchê-lo.

- Estava cheio de medo deles - confessou o francês.

- O que querem? - perguntou ela.

- Procuram o Grande Legado, tal como Lars.

- E o que lhes disse? - indagou Geoffrey com desdém.

- Não revelei nada, embora eles também tenham perguntado pouca coisa. Disseram-me que seria interrogado hoje, depois de tratarem de um assunto, mas não consegui saber que assunto era esse. - Claridon fitou Stephanie. - Faz ideia do que podem eles querer de si?

- Já têm o diário de Lars, o livro do leilão e a litografia. Que mais poderão querer?

- Acho que é Mark quem eles querem.

Ao ouvir aquelas palavras, Geoffrey ficou ainda mais tenso.

- E o que desejam dele? - perguntou Stephanie.

- Não faço ideia, madame. No entanto, pergunto-me se é uma causa pela qual valha a pena morrer.

- Há novecentos anos os irmãos morreram por aquilo em que acreditavam - declarou Geoffrey. - Isto não é diferente.

- Fala como se pertencesse à Ordem.

- Estou apenas a citar a história.

Claridon bebeu o segundo copo de água.

- Lars Nelle e eu estudámos a Ordem durante muitos anos. Também li sobre essa história.

- E o que leu? - quis saber Geoffrey. - Livros escritos por pessoas que nada sabem. Escrevem sobre heresias e adoração de ídolos, de homossexualidade e sodomia, da rejeição de Jesus Cristo. Nada disso é verdadeiro. Tudo mentiras destinadas a destruir a Ordem e a roubar a sua riqueza.

- Agora sim, fala como um templário.

- Falo como um homem que gosta de justiça.

- E isso não é um templário?

- Não deviam ser assim todos os homens?

Stephanie sorriu. Geoffrey era esperto.

Malone seguiu Mark de volta à Igreja de Santa Maria Madalena. Atravessaram a nave central, e passaram nove filas de bancos, em direcção ao altar. Aí, Mark virou à direita e entrou numa pequena sala. No interior, estavam três turistas.

- Podiam dar-nos licença? - disse Mark em inglês. - Sou um dos responsáveis do museu e preciso desta sala durante alguns instantes.

Ninguém questionou a sua autoridade e Mark fechou calmamente a porta depois de eles saírem. O lugar era iluminado por luz natural, filtrada por vitrais. Havia uma fileira de aparadores vazios numa das paredes e as outras eram de madeira. Para além disso, não existia mais mobília.

- A sacristia era aqui - explicou Mark.

De Roquefort não tardaria a entrar na igreja e, tendo isso em mente, Malone advertiu:

- Presumo que tenhas algum plano.

Mark dirigiu-se a um aparador e tacteou a prateleira de cima.

- Como lhe contei, quando Saunière construiu o Jardim do Calvário, também fez uma gruta. Ele e a amante iam até ao vale recolher pedras. - Mark continuou à procura de alguma coisa. - Regressavam com sacos cheios delas. Ah, aqui.

Retirou a mão e segurou o aparador que deslizou para a frente, revelando um espaço sem janelas.

- Era o esconderijo de Saunière. O que ele trazia escondido no meio das pedras era guardado aqui. Poucos são os que sabem deste acrescento. Saunière criou-o durante as obras de remodelação da igreja. Os planos de construção, anteriores a 1891, mostram-no como um espaço aberto.

Mark puxou de uma pistola automática que trazia escondida sob o casaco.

- Vamos esperar aqui e ver o que acontece.

- De Roquefort conhece, este esconderijo?

- Já vamos saber.

 

De Roquefort parou frente à igreja. Era estranho que os seus alvos tivessem fugido para ali. Mas pouco importava. Ia tratar de Mark Nelle pessoalmente. A sua paciência estava a chegar ao limite. Tivera o cuidado de consultar os seus oficiais antes de deixar a abadia. Não estava disposto a repetir os mesmos erros do mestre anterior. A sua liderança teria ao menos a aparência de uma democracia. Felizmente, a fuga e o tiroteio do dia anterior tinham unido os irmãos para um único objectivo. Todos concordavam que o antigo senescal e o seu aliado deviam ser trazidos de volta à abadia e castigados.

E a sua intenção era cumprir esse desejo.

Observou a rua.

A multidão de turistas crescia a olhos vistos. O dia quente trouxera ainda mais excursões à aldeia. Virou-se para o irmão que se encontrava ao seu lado e ordenou-lhe:

- Vai lá dentro e avalia a situação.

O homem obedeceu de imediato.

De Roquefort conhecia bem a planta da igreja. Havia apenas uma entrada e saída. As janelas de vitrais não abriam e, por isso, teriam de partir uma para fugirem. Não avistou nenhum polícia, o que não era invulgar em Rennes. Pouco ou nada acontecia na aldeia que não fosse o dinheiro a trocar de mãos. A comercialização revoltava-o. Se dependesse dele, todas as visitas à abadia terminariam. Sabia que o bispo haveria de estranhar aquela decisão, mas já decidira limitar o acesso a apenas algumas horas ao sábado invocando a necessidade de isolamento dos irmãos. O bispo iria entender esse motivo. Também planeava ressuscitar muitas das antigas práticas e rituais há muito abandonados, rituais esses que separavam os templários de todas as outras ordens religiosas. E para isso necessitava dos portões da abadia mais tempo fechados do que estavam actualmente.

O irmão que enviara ao interior da igreja regressou.

- Não estão lá - afirmou o homem quando se aproximou.

- Como assim?

- Procurei na nave, na sacristia, no confessionário. Não estão lá dentro.

A resposta não lhe agradava.

- Não existe outra saída.

- Mestre, eles não se encontram lá.

Olhou fixamente para a igreja e a sua mente avaliou as possibilidades.

Foi então que percebeu.

- Vem comigo - disse. - Já sei onde estão.

Stephanie escutava Royce Claridon não como mulher e mãe empenhada numa missão importante para a sua família, mas como a responsável de uma agência governamental que lidava diariamente com missões de espionagem e contra-espionagem. Havia ali qualquer coisa que não encaixava. O aparecimento súbito de Claridon era demasiado conveniente. Pouco conhecia Raymond de Roquefort, mas conhecia-o o suficiente para perceber que ou tinham permitido que ele fugisse ou aquele homenzinho sentado à sua frente aliara-se ao inimigo. De qualquer das maneiras, o melhor seria ter cuidado com o que dizia. Geoffrey também parecia ter pressentido algo, visto que pouco revelava nas suas respostas às perguntas do francês - demasiadas perguntas para quem acabara de escapar a uma situação de vida ou de morte.

- A mulher que estava ontem no palácio era Cassiopia Vitt, a Ingénieur referida na carta dirigida a Ernst Scoville? - perguntou ela.

- Penso que sim. Um autêntico demónio.

- Pode ter-nos salvo a todos.

- Como? Interferiu nos nossos planos, tal como fazia com Lars.

- Está vivo graças à interferência dela.

- Não, madame, estou vivo porque eles querem extrair-me informações.

- Pergunto-me é o que faz aqui - comentou Geoffrey do seu posto junto à janela. - Não é fácil escapar a Raymond de Roquefort.

- O senhor conseguiu.

- E como sabe isso?

- Eles falaram de si e de Mark. Pelos vistos, a vossa fuga envolveu tiros e alguns irmãos ficaram feridos. Não estão nada satisfeitos.

- E algum deles referiu que tentaram matar-nos?

Instalou-se um silêncio incómodo.

- Royce. - disse Stephanie, por fim -, do que mais podem eles andar à procura?

- Sei apenas que deram pela falta de dois livros nos arquivos. Ouvi-os falar acerca disso.

- Ainda há pouco disse não saber o que queriam de Mark - declarou Geoffrey num tom desconfiado. :

- E não sei, mas sei que andam atrás de dois livros desaparecidos.

Stephanie olhou para Geoffrey e não viu o mínimo sinal de admissão. Se ele e Mark estavam realmente na posse daqueles livros, o jovem não o deu a entender.

- Ontem - disse Claridon - mostrou-me o diário de Lars e o livro...

- Que De Roquefort agora possui.

- Não. Cassiopia Vitt roubou-lhos a noite passada.

Mais um pedaço de informação. Claridon parecia saber muito para um homem supostamente ignorado pelos seus captores.

- Então isso significa que De Roquefort precisa de a encontrar. Tal como nós - afirmou ela.

- Parece que um dos livros que Mark tirou dos arquivos da Ordem também continha um criptograma. De Roquefort quer esse livro.

- Também ouviu isso durante o seu cativeiro?

- Oui, madame. Pensavam que estava a dormir, mas eu estava bem acordado. Um dos seus marechais, do tempo de Saunière, descobriu o criptograma e tomou nota dele no livro.

- Não temos quaisquer livros - afirmou Geoffrey.

- Como assim? - Havia incredulidade no seu olhar.

- Não temos os livros. Saímos da abadia à pressa e não trouxemos nada connosco.

Claridon levantou-se da cadeira.

- Está a mentir.

- Palavras muito ousadas. Pode provar o que diz?

- É um membro da Ordem, um guerreiro de Cristo, um templário. O seu voto devia impedi-lo de mentir.

- E o que o impede a si? - perguntou Geoffrey.

- Não estou a mentir. Já passei por muitas dificuldades. Estive cinco anos escondido num asilo para evitar cair nas mãos dos templários. Sabe o que eles planeavam fazer? Untar-me os pés com banha e cozinhá-los.

- Não temos os livros. De Roquefort anda atrás de sombras.

- Isso não é verdade. Dois homens ficaram feridos durante a vossa fuga e ambos referiram que Mark carregava uma mochila.

Stephanie estranhou a informação.

- E como sabe isso tudo? - interrogou-o Geoffrey.

De Roquefort entrou na igreja, seguido pelo irmão que já lá estivera dentro. Atravessou a nave central e entrou na sacristia. Tinha de tirar o chapéu a Mark Nelle. Poucos eram os que sabiam do compartimento secreto. Não fazia parte do percurso de nenhuma visita e apenas os puristas de Rennes desconfiavam que o espaço existia. Sempre achara curioso o facto de os responsáveis pelo lugar nunca terem explorado a modificação que Saunière fizera à arquitectura da igreja, as câmaras secretas acrescentavam sempre outra dimensão aos mistérios, mas havia muita coisa sobre a igreja, a aldeia e toda aquela história que desafiava qualquer explicação.

- Quando aqui entraste, a porta estava aberta?

O irmão abanou a cabeça e murmurou:

- Estava fechada, mestre.

De Roquefort encostou a porta silenciosamente.

- Não deixes ninguém entrar.

Aproximou-se do aparador e tirou a arma. Nunca vira a câmara secreta que ficava atrás do armário, mas lera suficientes relatos de anteriores marechais que tinham investigado Rennes para saber que tal espaço existia. Se ainda se recordava, o mecanismo situava-se na prateleira de cima.

Esticou o braço e encontrou a alavanca.

Sabia que no momento em que a accionasse, os dois homens do outro lado ficariam alerta e não duvidava que estivessem armados. Malone sabia bem utilizar uma arma e Mark Nelle, por aquilo que já vira, também não devia ser subestimado.

- Prepara-te - disse para o seu acompanhante.

O irmão tirou a automática e apontou para o aparador. De Roquefort fez accionar a alavanca e recuou, de arma apontada, preparado para tudo.

O armário deslizou um pouco e depois parou.

Encostado ao extremo direito, escancarou a porta com a ponta do pé.

A câmara secreta estava vazia.

Malone e Mark estavam enfiados no interior do confessionário. Tinham esperado alguns minutos dentro da sala secreta, a observarem o que se passava por um buraco estrategicamente colocado no aparador. Mark vira um dos irmãos entrar na sacristia, observar a sala e depois sair. Depois tinham feito um compasso de espera de alguns segundos e abandonado o seu esconderijo, enquanto o irmão saía da igreja. Certificando-se que não havia mais ninguém lá dentro, tinham corrido para o confessionário e entrado no exacto momento em que De Roquefort e o irmão regressavam.

Mark deduzira sensatamente que De Roquefort conheceria a câmara secreta, e que não partilharia essa informação com ninguém a menos que fosse necessário. Quando viram De Roquefort à espera no exterior, e quando este enviara o seu acompanhante para investigar o interior da igreja, ficaram apenas mais uns minutos, o suficiente para mudarem de esconderijo, pois assim que o batedor regressasse e informasse que não os encontrara, De Roquefort partiria de imediato do princípio que estavam escondidos. Afinal, havia apenas uma entrada e saída.

- Conhece o teu inimigo e conhece-te a ti mesmo - sussurrou Mark quando De Roquefort e o seu lacaio entraram na sacristia.

Malone sorriu.

- Sun Tzu era um homem sábio. A porta da sacristia fechou-se.

- Temos de ir - disse Malone.

Abandonaram o confessionário, viraram à direita e dirigiram-se para a porta.

Stephanie ergueu-se da cadeira, avançou até Geoffrey e calmamente retirou-lhe a arma da mão. Depois voltou-se e encostou o cano à cabeça de Claridon.

- Seu verme asqueroso. Aliou-se ao inimigo.

Claridon escancarou os olhos.

- Não, madame. Juro que não.

- Abre-lhe a camisa - pediu ela.

Geoffrey arrancou os botões da camisa do francês, e expôs um microfone colado ao peito.

- Venham. Depressa, preciso de ajuda - gritou Claridon.

Geoffrey deu-lhe um soco no queixo e o francês aterrou no chão. Stephanie virou-se, de arma em punho, e viu que um dos homens de cabelo curto corria para a porta. Um pontapé e esta escancarou-se.

Geoffrey estava alerta e tomou posição à esquerda da porta. Quando o homem entrou, o jovem agarrou-o. Stephanie viu uma arma na mão do atacante, mas Geoffrey conseguiu prender-lhe os braços para que o cano apontasse para baixo. Depois rodopiou nos calcanhares e pontapeou-o com toda a força contra a parede. Não lhe dando sequer tempo para reagir, voltou a atingi-lo no abdómen e quando o homem se inclinou para a frente, já sem fôlego, Geoffrey empurrou-o para o chão com um murro na espinha.

- Ensinam-vos isso na abadia? - perguntou Stephanie, impressionada.

- Isto e mais.

- Temos de sair daqui.

- Espere um pouco.

Geoffrey correu até ao quarto e regressou com a mochila de Mark.

- Claridon tinha razão. Temos os livros e não posso sair daqui sem eles.

Ela reparou num auricular que o irmão que Geoffrey dominara trazia.

- Estava a ouvir o que Claridon dizia e aposto que em contacto com os outros.

- De Roquefort também aqui está - declarou o jovem com convicção.

Stephanie pegou no telefone que estava sobre o balcão da cozinha.

- Temos de encontrar Mark e Malone.

Geoffrey aproximou-se da porta escancarada e espreitou para um lado e para o outro.

- Era de prever que estivessem aqui mais irmãos. - é possível que estejam ocupados na igreja. Vamos até lá, mas evitemos a rua principal - sugeriu ela, e devolveu a arma ao jovem.

- Tu proteges-me.

Ele sorriu.

- Será um prazer.

De Roquefort contemplou o espaço vazio. Onde estariam eles? Não havia outro lugar na igreja onde pudessem esconder-se.

Voltou a colocar o aparador no lugar.

Por certo o outro irmão apercebera-se da sua perplexidade no momento em que descobriu a câmara secreta vazia. Recompôs-se.

- Onde estão eles, mestre? - perguntou o irmão.

A ponderar sobre a resposta, aproximou-se da janela de vitral e espreitou para o exterior, por um dos vidros transparentes. O Jardim do Calvário estava ainda repleto de visitantes. Foi então que avistou Mark Nelle e Cotton Malone a correrem pelo jardim e depois a virarem para o cemitério.

- Lá fora - respondeu ele calmamente, e dirigiu-se para a porta da sacristia.

Mark pensou que o truque com a câmara secreta lhes poderia dar tempo suficiente para fugirem. Esperava que De Roquefort estivesse acompanhado apenas por um pequeno contingente. Porém, havia mais três irmãos no exterior, um na rua principal, outro a bloquear o atalho para o parque de estacionamento e, por fim, um posicionado junto à villa Béthanie. Pelos vistos, De Roquefort não considerara o cemitério uma ameaça, talvez por ser murado e possuir um fosso de quinhentos metros num dos lados.

Contudo, era para aí que Mark se dirigia.

Agora agradecia aos céus as muitas explorações nocturnas que efectuara com o pai. Os habitantes locais não apreciavam que se visitasse o cemitério depois de escurecer, mas segundo o seu pai essa era a melhor altura. Tinham em muitas ocasiões escolhido essa hora para procurarem pistas e informações que os ajudassem a entender o estranho comportamento de Saunière. Numa dessas ocasiões, tinham sido surpreendidos e improvisaram outra saída que não incluía o portão principal.

Estava na altura de voltar a dar uso a essa descoberta.

- Desculpa perguntar, mas como planeias sair daqui? - indagou Malone.

- É um pouco assustador, mas ao menos está sol. Das outras vezes era de noite.

Mark virou à direita e desceu a correr os degraus que levavam à parte baixa do cemitério. Cerca de cinquenta pessoas deambulavam por ali, a admirarem as campas. Para lá do muro, o céu azl brilhava e o vento assobiava sem parar. Em Rennes, os dias claros eram sempre ventosos, mas no interior do cemitério mal se notava, pois a igreja e o presbitério bloqueavam as rajadas mais fortes.

Estugou o passo em direcção a um monumento adjacente ao muro leste, sob uma fileira de olmos que projectavam no solo as suas sombras alongadas. Reparou que os visitantes se concentravam maioritariamente na zona superior, onde se encontrava a campa da amante de Saunière. Subiu para uma laje grossa e daí saltou para o muro.

- Siga-me - incitou, antes de saltar para o outro lado, rebolar uma vez, levantar-se a sacudir a poeira.

Olhou para trás e viu Malone saltar também para a estreita passagem.

Estavam na base do muro, um passadiço de rocha com cerca de um metro de largura. Pinheiros e faias suportavam a encosta descendente lá ao fundo, os ramos batidos pela força do vento e as raízes presas entre as fendas das rochas.

Mark apontou para a esquerda.

- Este caminho termina ali à frente. Depois da casa, não tem saída. - Voltou-se para o outro lado. - Temos de ir por aqui. Vai dar ao parque de estacionamento e lá é mais fácil voltar a subir.

- Não está vento aqui, mas quando virarmos a esquina - Malone apontou para a frente -, imagino que seja mais ventoso.

- Como um furacão, mas não temos outra escolha.

 

De Roquefort entrou no cemitério acompanhado por um irmão e ordenou aos restantes três que esperassem lá fora. Mark Nelle fora esperto ao usar a câmara secreta como diversão. O mais provável é que tivessem permanecido lá dentro até o seu batedor sair da igreja e depois procurado refúgio no confessionário.

Uma vez no interior do cemitério, parou e estudou cuidadosamente as campas, porém não viu os seus adversários. Disse ao irmão que seguisse pela esquerda enquanto ele seguia pela direita. Não demorou até encontrar a campa de Ernst Scoville.

Há quatro meses, quando descobrira o interesse do mestre em Scoville, mandara um irmão investigar as actividades do belga. Através da instalação de uma escuta ficara a saber de Stephanie Nelle e dos seus planos de visitar a Dinamarca e a França, e até da sua determinação em comprar o livro. No entanto, quando se tornou claro que Scoville não gostava da viúva de Lars e que pretendia apenas gorar os seus esforços, um carro a alta velocidade resolveu o problema da sua potencial interferência. Scoville não era uma peça fundamental do jogo, ao contrário de Stephanie Nelle, e naquela altura nada podia impedir as suas movimentações. De Roquefort tratara pessoalmente da morte de Ernst Scoville, e não envolvera mais ninguém da abadia, pois aquela morte gratuita seria muito difícil de explicar.

O irmão regressou do lado oposto e anunciou:

- Nada.

Onde poderiam estar?

O olhar pousou no muro acinzentado que rodeava o cemitério. Aproximou-se de uma zona onde o muro lhe dava apenas pelo peito. Lá em baixo, tudo parecia liliputiano, e as estradas e as casas como se vistas num atlas. O vento açoitava-lhe o rosto e secava-lhe os olhos. Apoiou ambas as mãos no muro, içou o corpo e debruçou-se um pouco para a frente. Olhou para a direita. O rebordo rochoso não tinha nada. Depois virou o rosto para a esquerda e avistou Malone de relance a virar do lado norte da muralha para o lado esquerdo.

Saltou para o chão.

- Estão num rebordo do muro a avançar em direcção à Torre Magdala. Não os deixes prosseguir. Eu vou para o miradouro.

Stephanie e Geoffrey saíram de casa. Uma rua estreita paralela à muralha oeste levava até ao parque de estacionamento. Geoffrey continuava atento e alerta. Portara-se como um profissional experiente apesar de ser ainda jovem.

Aquele recanto da aldeia era pouco habitado e os pinheiros e abetos cresciam livremente em direcção ao céu.

Algo picou-lhe a orelha direita e lascou a pedra da casa à sua frente. Stephanie virou a cabeça e viu o homem que os atacara em casa a apontar de novo a arma, a cinquenta metros de distância. Procurou abrigo atrás de um carro estacionado e Geoffrey atirou-se para o chão, rebolou e disparou dois tiros por entre as pernas. O barulho, como foguetes, foi abafado pelo vento. Uma das balas atingiu o alvo e o homem gritou de dor e agarrou-se à coxa antes de cair.

- Excelente pontaria - elogiou ela.

- Não o podia matar. Dei a minha palavra.

Levantaram-se ambos e apressaram-se.

Malone continuava a seguir Mark. A saliência rochosa tornara-se mais estreita e o vento, que de início apenas incomodava, transformara-se agora num perigo. Soprava com intensidade e abafava todos os sons.

Encontravam-se no lado oeste da aldeia. As rochas brilhavam com o sol, coloridas por tufos de erva e musgo.

O miradouro que Malone percorrera há duas noites, em perseguição de Cassiopia Vitt, estendia-se seis metros acima das suas cabeças. A Torre Magdala ficava mesmo em frente e conseguia avistar turistas no cimo dela a admirarem os vales distantes. Não apreciava muito esse tipo de vistas. As alturas afectavam-no, tal como o vinho, e sempre ocultara essa fraqueza dos psicólogos do departamento durante as avaliações regulares. Olhou de esguelha lá para baixo. Pequenos arbustos povoavam a encosta, depois o terreno parecia nivelar-se para voltar a descer a pique.

Mark seguia três metros à sua frente. Viu o jovem olhar para trás, parar e depois virar-se e levantar a arma, apontando-a na sua direcção.

- Foi alguma coisa que eu disse? - gritou Malone.

O vento fez agitar a mão de Mark e abanou a arma. Com a outra mão segurou-a de forma mais estável. Malone apercebeu-se do seu olhar fixo, virou-se para trás, e viu aproximar-se um dos homens de cabelo curto.

- Fique onde está, irmão - gritou Mark.

O homem segurava uma Glock igual à do jovem.

- Se levantar a arma, mato-o - garantiu Mark. O outro baixou a arma.

Malone não gostava da posição em que fora apanhado e encostou-se à muralha, dando-lhes espaço para o duelo.

- Esta luta não é sua, irmão. Sei que está apenas a cumprir as ordens do mestre. Mas ainda que o atinja apenas na perna, acabará por cair da muralha. Acha que vale a pena?

- O meu voto exige que obedeça ao mestre.

- Ele está a pô-lo em perigo. Já parou para pensar no que se está a passar?

- Não tenho de o fazer.

- E não tem de salvar a sua vida?

- Era capaz de me matar, senescal?

- Sem dúvida que sim.

- Aquilo que procura é tão importante que valha a vida de outro cristão?

Malone observou enquanto Mark ponderava e interrogou-se se a determinação que vira nos seus olhos se transformaria na coragem suficiente para fazer o que era preciso. Ele também já enfrentara um dilema semelhante muitas vezes. Matar alguém nunca era uma tarefa fácil, mas às vezes era preciso fazê-lo.

- Não, irmão, não vale isso. - Mark baixou a arma.

Pelo canto do olho, Malone viu um movimento. O outro homem decidira tirar partido da concessão do jovem. A Glock começou a subir à medida que a outra mão se dirigia para a arma, certamente para estabilizar o tiro que se preparava para disparar.

No entanto, não chegou a fazê-lo.

Um estalido, abafado pelo vento, partiu do braço esquerdo de Malone e o homem caiu para trás quando a bala se lhe alojou no peito. Não percebeu se estava a usar um colete à prova de balas, mas também não importava. O tiro tinha-o feito perder o equilíbrio e o corpo robusto do homem balançava. Malone aproximou-se, tentou impedir a queda, e viu dois olhos tranquilos. O mesmo olhar do homem da faca antes de saltar do cimo da Torre Redonda. Mais dois passos e teria conseguido agarrá-lo, mas uma rajada de vento arrastou-o para o precipício e o corpo caiu como um tronco de madeira.

Escutaram um grito vindo de cima. Alguns dos visitantes no miradouro tinham presenciado a queda.

Virou-se para Mark que tinha a arma apontada.

- Está tudo bem?

- Nem por isso, mas temos de ir.

Malone concordou. Estugaram o passo e seguiram caminho.

De Roquefort subiu a correr as escadas que levavam ao miradouro. Escutou uma mulher a gritar e viu que as pessoas se aproximavam da muralha. Abeirou-se e perguntou:

- O que aconteceu?

- Um homem caiu pela encosta.

Abriu caminho com os cotovelos. Tal como no cemitério, o muro tinha cerca de um metro de largura, tornando impossível ver a base da muralha exterior.

- Caiu onde? - questionou ele.

- Ali - respondeu um homem, apontando.

Seguiu o dedo esticado e avistou uma figura de casaco escuro e calças claras no fundo da colina. Sabia de quem se tratava. «Raios.-» Plantou a palma das mãos no muro e içou-se. Apoiado no estômago, olhou para a esquerda e viu Mark Nelle e Cotton Malone subirem uma pequena inclinação que dava para o parque de estacionamento.

Saltou para o chão e correu para as escadas.

Carregou no botão do rádio que trazia preso à cintura e murmurou para o microfone na lapela:

- Eles dirigem-se para aí. Fica atento.

Stephanie ouviu um tiro que parecia ter vindo do lado exterior da muralha. Mas isso não fazia sentido. O que andaria alguém ali a fazer? Ela e Geoffrey estavam a trinta metros do parque de estacionamento que se encontrava repleto de veículos, incluindo quatro autocarros parados junto à torre de água.

Abrandaram o passo e Geoffrey escondeu a arma atrás da coxa à medida que caminhavam.

- Ali - alertou o jovem.

Também vira o homem no outro extremo do parque a bloquear o caminho para a igreja. Virou-se para trás e reparou noutro homem que subia a rua atrás deles.

Nesse momento avistou também Mark e Malone que saltavam o muro.

- Correu até eles e perguntou:

- -Onde estiveram?

- Fomos dar um passeio - respondeu Malone.

- Ouvi um tiro.

- Depois explico - disse ele.

- Temos companhia - explicou Stephanie, e apontou para os dois homens.

Mark avaliou a situação.

- De Roquefort está a arquitectar tudo isto. Temos de sair daqui, mas não tenho as chaves do nosso carro.

- Eu tenho as minhas - disse Malone. Geoffrey entregou a mochila a Mark.

- Bom trabalho - elogiou ele. - Vamos embora.

De Roquefort passou a correr pela villa Béthanie e ignorou os muitos visitantes que se dirigiam para a Torre Magdala, para o jardim e para o miradouro.

Ao chegar à igreja, virou à direita.

- Estão a meter-se no carro - disse uma voz pelo auricular.

- Deixa-os ir - ordenou ele.

Malone saiu do estacionamento e dirigiu-se para a rua principal. Notou que os «cabelos curtos» não tinham feito qualquer esforço para os impedir e isso preocupava-o.

Estavam a ser empurrados para alguma situação. Mas para qual?

Passaram pelos quiosques e voltaram à direita na rua principal em direcção às portas da aldeia.

Depois de passarem pelo restaurante, a multidão era menor e a estrada tornara-se mais circulável.

Não tardou a avistar Raymond de Roquefort no meio da estrada a tapar o acesso aos portões da cidade.

- Planeia desafiá-lo - informou Mark do banco traseiro.

- Óptimo porque eu não planeio travar.

Pisou o acelerador com mais força.

De Roquefort estava cada vez mais próximo e não parecia disposto a desviar-se.

Malone não lhe viu nenhuma arma na mão. Pelos vistos devia pensar que só a sua presença era o suficiente para os amedrontar. Atrás de De Roquefort a estrada estava desimpedida, mas depois dos portões havia uma curva apertada e Malone esperava que ninguém aparecesse por ali nos próximos segundos.

Acelerou mais e o carro saiu disparado.

Trinta metros.

- Vai matá-lo - disse Stephanie.

- Se tiver de ser.

Quinze metros.

Malone manteve o volante estável e fitou De Roquefort à medida que o corpo deste se aproximava do párâ-brisas. Preparou-se para o impacto e fechou as mãos para segurar o volante com mais força.

Uma forma saltou do lado direito e afastou De Roquefort da trajectória do automóvel.

Malone e os restantes atravessaram os portões da aldeia.

O novo mestre percebeu o que acabara de acontecer e não ficou nada satisfeito. Preparara-se para desafiar o seu adversário, pronto para todo e qualquer desfecho, e não apreciara a intromissão.

Depois viu quem o salvou.

Royce Claridon.

- O automóvel tê-lo-ia morto - disse o francês. Empurrou o homem para o lado e levantou-se.

- Isso ficou por saber. - Sacudiu a roupa e perguntou: - Conseguiu extrair-lhes mais alguma informação?

- Eles descobriram o microfone e tive de pedir ajuda.

Nos seus olhos, havia raiva. De novo, o fracasso. Contudo, houve um pormenor que o deixou um pouco menos furioso.

O carro usado na fuga era o de Malone e ainda tinha o mecanismo de vigilância. Ao menos saberiam para onde tinham ido.

 

Malone conduziu o mais depressa que conseguiu pela estrada serpenteante até chegar ao vale. Aí, virou para oeste em direcção à estrada principal e depois para sul rumo aos Pirenéus.

- Para onde vamos? - perguntou Stephanie.

- Fazer uma visita a Cassiopia Vitt. Tinha planeado ir sozinho, mas acho que chegou a hora de todos a conhecermos. - Precisava de algo que o distraísse dos acontecimentos do dia. - Fala-me dela - pediu a Mark.

- Não sei muita coisa. O pai era um empreiteiro espanhol abastado e a mãe muçulmana da Tanzânia. É uma mulher muito inteligente. Tem diplomas em História, Arte e Religião e também é rica. Herdou muito dinheiro e tem ganho ainda mais. Ela e o meu pai entravam em desacordo muitas vezes.

- Sobre que temas? - Malone queria saber.

- Provar que Cristo não morreu na cruz é uma das missões de Cassiopia. Há doze anos, o fanatismo religioso era visto de uma maneira muito diferente do que acontece agora. As pessoas não estavam tão preocupadas com os Talibã ou a al-Qaeda. Nessa altura, Israel era o assunto do dia e Cassiopia não gostava do modo como os muçulmanos eram constantemente retratados como extremistas. Detestava a arrogância do cristianismo e a presunção do judaísmo. O meu pai sempre disse que ela procurava a verdade. Cassiopia queria desmontar o mito e ver até que ponto Jesus Cristo e Maomé eram parecidos. Os pontos e interesses em comum, esse tipo de coisas.

- Não era também isso que o teu pai queria?

- Era o que eu sempre lhe dizia.

Malone sorriu.

- A casa dela ainda fica muito longe daqui?

- Menos de uma hora de caminho. Ali mais à frente viramos para oeste.

Malone olhou pelo espelho retrovisor. Não havia ninguém a segui-los. «Óptimo». Abrandou a velocidade quando entraram numa aldeia chamada Saint Loup. Como era domingo estava tudo fechado, com excepção da bomba de gasolina e de uma loja. Malone encostou o carro.

- Esperem aqui. Não demoro - disse, saindo do Peugeot. - Tenho de tratar de uma coisa.

Malone saiu da estrada principal e conduziu o automóvel por um caminho de gravilha que entrava na floresta. Uma placa indicava que GIVORS - UMA AVENTURA MEDIEVAL NO MUNDO MODERNO ficava a alguns metros de distância. A viagem de Rennes demorara cerca de cinquenta minutos. Tinham seguido em direcção a oeste grande parte do caminho, passando pelas ruínas da fortaleza catara de Montségur, e viraram depois para sul a caminho das montanhas, onde as colinas inclinadas abrigavam rios, vales e árvores.

O caminho estava bem conservado e as faias projectavam sombras frescas ao longo de todo o percurso. A entrada abria para uma clareira cheia de automóveis e ladeada por pinheiros e abetos. Malone estacionou o carro e todos saíram. Uma placa escrita em francês e em inglês publicitava o local.

SÍTIO ARQUEOLÓGICO DE GIVORS SEJA BEM-VINDO AO PASSADO. AQUI, EM GIVORS, LOCAL ORIGINARIAMENTE OCUPADO POR LUÍS IX, ESTÁ A SER CONSTRUÍDO UM CASTELO COM AS MESMAS TÉCNICAS E MATERIAIS À DISPOSIÇÃO DOS PEDREIROS DO SÉCULO XIII.

A TORRE DE MENAGEM ERA O SÍMBOLO DO PODER DE QUALQUER SENHOR FEUDAL E O CASTELO DE GIVORS FOI DESENHADO À SEMELHANÇA DE UMA FORTALEZA MILITAR, COM MURALHAS GROSSAS E MUITAS TORRES DE ÂNGULO.

A PAISAGEM CIRCUNDANTE FORNECIA ÁGUA EM ABUNDÂNCIA, PEDRA, TERRA, AREIA E MADEIRA ESSENCIAIS PARA A SUA CONSTRUÇÃO. OS CANTONEIROS, CINZEIADORES, PEDREIROS, CARPINTEIROS, FERREIROS E OLEIROS TRABALHAM, VIVEM E VESTEM-SE EXACTAMENTE COMO O TERIAM FEITO HÁ SETE SÉCULOS.

ESTE PROJECTO É FINANCIADO POR PRIVADOS E ESTIMA-SE QUE SERÃO PRECISOS TRINTA ANOS ATÉ O CASTELO ESTAR TERMINADO.

APRECIEM A VISITA AO SÉCULO XIII.

- Cassiopia Vitt financia tudo isto? - perguntou Malone.

- A história medieval é uma das suas paixões - explicou Mark. Era bastante conhecida na Universidade de Toulouse.

Malone decidira que a abordagem directa seria a mais produtiva. Por esta altura, Vitt já devia suspeitar que ele a contactaria.

- Ela vive onde?

Mark apontou para este, onde os ramos dos carvalhos e dos olmos ocultavam outro caminho.

- A casa dela é por ali.

- Estes carros são para os visitantes? - questionou ele.

- Fazem visitas guiadas ao local da construção para angariar fundos. Fui a uma dessas visitas, há alguns anos, estavam os trabalhos ainda a começar. É impressionante o que ela está a fazer.

Malone começou a andar em direcção ao caminho que levava à residência de Vitt.

- Bem, vamos lá cumprimentar a nossa anfitriã.

Caminharam em silêncio. À distância, na encosta íngreme de uma colina, avistou as ruínas de uma torre de pedra, as camadas amareladas pelo musgo. O tempo estava seco e ameno, e o caminho era ladeado por ervas e flores selvagens. Malone imaginou o entrechocar das armas e os gritos de guerra que há séculos deveriam ter ecoado pelo vale enquanto os homens lutavam pelo seu domínio.

Ao fundo do caminho erguia-se a casa senhorial. Tijolo e pedra vermelho-escuros formavam padrões simétricos ao longo de quatro pisos, flanqueados por duas torres cobertas de hera e encimadas por telhados de ardósia. A folhagem verde espalhava-se pela fachada como ferrugem em metal. Os vestígios de um fosso, agora preenchido por ervas e folhas, rodeavam três lados, e árvores esguias e sebes de teixo aparado guardavam a sua base.

- Bela casa - elogiou Malone.

- É do século XVI - explicou Mark. - Ao que sei, ela comprou a casa e terreno onde se encontra o sítio arqueológico. Chama ao local Royal Champagne, como um dos regimentos de cavalaria de Luís XV.

Estavam dois carros estacionados frente à casa. Um Bentley Continental GT - que devia custar cerca de cento e sessenta mil dólares, segundo as contas de Malone - e um Porsche Roadster, barato em comparação. Havia também uma mota. Malone aproximou-se e examinou o pneu e o pára-choques traseiro. O cromado estava riscado. E ele sabia precisamente como aquilo acontecera.

- Foi onde acertei.

- Tem toda a razão, Sr. Malone.

Virou-se. A voz bem-educada provinha do pórtico. Frente à porta de entrada estava uma mulher alta, esguia e de cabelo castanho-avermelhado que lhe chegava aos ombros. As feições reflectiam uma beleza felina semelhante à de uma deusa egípcia - sobrancelhas finas, maçãs do rosto salientes, nariz arrebitado. A pele tinha a cor do mogno e vestia uma roupa casual, mas elegante como se fosse passear para os Campos Elíseos.

Cassiopia sorriu-lhe.

- Estava à sua espera.

Os olhos de ambos cruzaram-se e ele reparou na determinação dos olhos negros.

- Curioso, tendo em conta que só há uma hora decidi vir visitá-la.

- Oh, Sr. Malone, tenho a certeza que faço parte da sua lista de prioridades desde a noite em que disparou contra a minha mota em Rennes.

Estava curioso.

- Porquê trancar-me na Torre Magdala?

- Esperava ganhar tempo para fugir discretamente, mas conseguiu libertar-se demasiado cedo.

- E o que a fez disparar contra mim?

- Não teria ganho nada em falar com o homem que apanhou.

Apercebeu-se do tom melodioso da voz dela, sem dúvida utilizado de propósito para desarmar os opositores.

- Ou talvez não quisesse que eu falasse com ele. De qualquer maneira, obrigado por me ter salvo em Copenhaga.

Ela retribuiu a cortesia.

- Não tenho dúvidas que teria encontrado uma saída. Eu só acelerei o processo.

Viu-a olhar para lá do seu ombro.

- Mark Nelle, é um prazer conhecê-lo finalmente. Que bom saber que não morreu naquela avalanche.

- Vejo que continua a interferir nos assuntos alheios.

- Não considero interferir, apenas monitorizar os progressos das pessoas que me interessam. Tal como o seu pai. - Cassiopia passou por Malone e estendeu a mão a Stephanie. - Também é um prazer tê-la aqui. Conheci bem o seu marido.

- Pelo que me dizem, a senhora e Lars não eram grandes amigos.

- Não acredito que alguém tenha dito isso. - Cassiopia olhou para Mark com uma expressão irónica. - Disse uma coisa dessas à sua mãe?

- Não foi ele - respondeu Stephanie. - Foi Royce Claridon.

- Ora aí está um homem de pouco carácter. Confiar nele só traz problemas. Avisei Lars, mas nunca acreditou.

- Nesse ponto concordamos - disse Stephanie.

Malone apresentou Geoffrey.

- Pertence à Ordem? - perguntou Cassiopia. O jovem não respondeu.

- Claro, também não esperava que respondesse. Bem, de qualquer maneira, é o primeiro templário que conheço civilizadamente.

- Isso não é verdade - afirmou Geoffrey, e apontou para Mark.

- O senescal pertence à irmandade e conheceu-o primeiro.

Malone interrogou-se sobre o que teria levado o jovem a fornecer aquela informação. Até agora pouco ou nada dissera.

- Senescal? Tenho a certeza que há uma história por trás disso - comentou Cassiopia. - Entrem. Estava a preparar-me para almoçar e assim que vos vi pedi que pusessem mais pratos na mesa.

- Óptimo - disse Malone. - Estou cheio de fome.

- Então vamos almoçar. Temos muito que falar.

Seguiram-na para o interior da casa e Malone reparou no bom gosto da decoração. Reparou também no dispendioso mobiliário italiano, nas armaduras raras de cavaleiros, nas tapeçarias francesas e nos quadros flamengos. Cassiopia era sem dúvida uma conhecedora de arte.

Entraram numa espaçosa sala de jantar, iluminada por luz natural que atravessava janelas de caixilho, decoradas por elaborados cortinados, e salientava o branco da toalha de mesa e o brilho do chão de mármore. Do tecto pendia um candelabro eléctrico, apagado. Em torno da mesa, os criados colocavam talheres ao lado dos pratos.

O lugar era impressionante, mas o que chamou a atenção de Malone foi o homem sentado na outra extremidade da mesa.

A Forbes Europe cotava-o como o oitavo homem mais rico do continente, e o seu poder e influência estavam em proporção directa com os seus milhares de milhões de euros. Era visita regular de reis e presidentes da República e amigo pessoal da rainha da Dinamarca. Doava largas somas de dinheiro para obras de caridade pelo mundo inteiro e, durante o último ano, Malone passara pelo menos três dias por semana na sua companhia, a falar de livros, de política, do mundo e da vida. Entrava e saía da sua propriedade como se fizesse parte da família e, em muitos aspectos, Malone sentia que isso era verdade. No entanto, agora duvidava seriamente de tudo isso. Na verdade, sentia-se um idiota.

Henrik Thorvaldsen limitou-se a sorrir.

- Já não era sem tempo, Cotton. Há dois dias que estou à sua espera.

 

De Roquefort seguia no banco do passageiro, concentrado no monitor do GPS. O mecanismo acoplado ao automóvel de Malone estava a funcionar na perfeição e o sinal era forte. Um dos irmãos conduzia enquanto Claridon e outro irmão ocupavam o banco traseiro. De Roquefort continuava irritado com a interferência de Claridon em Rennes. Não tinha qualquer intenção de morrer e teria saltado a tempo, porém desejava saber se Cotton Malone possuía a coragem necessária para o atropelar.

O irmão que caíra da muralha morrera, tendo sido atingido no peito antes de cair. O colete à prova de bala impedira danos de maior, mas a queda fracturara-lhe o pescoço. Felizmente, nenhum deles trazia identificação, embora o colete fosse um problema. Equipamento daquele tipo revelava sofisticação, mas não havia nada que ligasse aquele homem à abadia. Todos os irmãos conheciam a Regra. Se morressem fora dos muros da abadia, os seus corpos seriam enterrados sem identificação. Tal como o irmão que saltara da Torre Redonda, a baixa em Rennes também acabaria numa morgue regional e os seus restos mortais enterrados numa vala comum. Todavia, antes de isso acontecer, o mestre deveria enviar um clérigo que reclamaria o corpo em nome da Igreja, e que se ofereceria para realizar um enterro cristão sem quaisquer custos para o Estado. Essa oferta nunca fora recusada. O procedimento não levantava suspeitas e o gesto garantia que o irmão recebia um enterro condigno.

Não se apressara a sair de Rennes, tendo ido primeiro revistar as casas de Lars Nelle e de Ernst Scoville, mas não encontrara nada. Os seus homens, posicionados no parque de estacionamento tinham-no informado que Geoffrey transportava uma mochila que depois entregara a Mark Nelle. Não tinha dúvidas que continha os livros roubados.

- Já sabe para onde foram? - perguntou Claridon do banco traseiro.

De Roquefort apontou para o monitor.

- Em breve saberemos.

Depois de interrogar o irmão ferido que escutara a conversa de Claridon em casa de Lars Nelle, ficara a saber que Geoffrey não revelara nada de interesse, obviamente desconfiado dos motivos do francês. Enviar Claridon fora um erro.

- Garantiu-me que era capaz de descobrir os livros.

- Não precisamos deles. Temos o diário e devíamos concentrar-nos em decifrar o que já temos.

Até podia ser verdade, mas incomodava-o que Mark Nelle tivesse escolhido aqueles dois de entre os milhares que existiam no arquivo.

- E se contêm informação que não está contemplada no diário?

- Faz ideia de quantas versões da mesma informação já encontrei? A história de Rennes é um amontoado de contradições. Deixe-me estudar os vossos arquivos. Conte-me tudo o que sabe e, juntos, vejamos o que conseguimos.

Era uma boa ideia, mas infelizmente, ao contrário do que levara a Ordem a acreditar, sabia muito pouco. Na verdade, estivera a contar com a mensagem que o mestre deixa habitualmente ao seu sucessor e na qual, desde o tempo de De Molay, estava sempre incluída a informação mais cobiçada.

- Terá a sua oportunidade, mas agora é importante que terminemos isto.

Voltou a pensar nos dois irmãos mortos. As mortes destes seriam vistas pelo colectivo como um presságio. Para uma sociedade reljgiosa assente na disciplina, a Ordem era bastante supersticiosa. A morte violenta também não era uma coisa comum e tinham ocorrido duas no espaço de poucos dias. A sua liderança podia agora ser questionada. «Muita coisa e demasiado depressa» seria a crítica. E seria obrigado a ouvir as objecções de todos, uma vez que desafiara abertamente o último mestre, em parte porque o homem ignorara os desejos dos irmãos.

Pediu ao condutor uma interpretação da leitura do GPS.

- Qual a distância até ao automóvel deles?

- Doze quilómetros.

Observou a paisagem campestre. Em tempos idos, não se avistaria um horizonte que não tiVesse uma torre. No século XII, os templários tinham povoado aquela terra com mais de um terço das suas propriedades. Toda a região do Languedoc deveria ter pertencido aos templários. Lera os planos nas Crónicas. O modo como as fortalezas, os postos avançados, os depósitos de mantimentos, as quintas e os mosteiros tinham sido estrategicamente colocados e ligados por uma rede de estradas bem cuidadas. Durante duzentos anos, o poder da irmandade fora preservado com cuidado e quando a Ordem não conseguiu estabelecer um feudo na Terra Santa, acabando por entregar de novo Jerusalém aos muçulmanos, o objectivo fora tentar fazê-lo no Languedoc. Tudo corria bem até Filipe IV ter desferido o golpe fatal. Ao contrário do que se podia pensar, não havia uma única referência nas Crónicas a Rennes-le-Château. A aldeia, e as suas anteriores encarnações, não desempenhavam qualquer papel na história dos templários. Tinham existido fortificações templárias noutras zonas do vale do Aude, mas nenhuma em Rhedae, como o monte era então chamado. No entanto, a minúscula aldeia parecia agora o epicentro e tudo por causa de um padre ambicioso e de um investigador americano.

- Estamos a aproximar-nos do automóvel - avisou o condutor. Já alertara para a necessidade de agirem com cuidado. Os outros três irmãos que trouxera consigo para Rennes estavam a regressar à abadia, um deles com um ferimento na coxa depois de ter sido atingido a tiro por Geoffrey. Isso contabilizava três homens feridos para além dos dois mortos. Enviara uma mensagem a dizer que desejava reunir-se com os seus oficiais quando regressasse à abadia o que deveria acalmar os mais inquietos, mas primeiro precisava de saber onde estavam os seus opositores.

- Ali mais à frente - disse o condutor. - Cinquenta metros.

Olhou pela janela e estranhou a escolha de refúgio por parte de Malone e companhia. Esquisito terem ido para ali. O condutor parou o carro e saíram. À sua volta, havia apenas carros estacionados.

- Traz o aparelho portátil.

Caminharam um pouco e vinte metros mais à frente o homem que segurava o GPS portátil parou.

- Aqui.

De Roquefort observou o veículo.

- Não foi neste carro que saíram de Rennes.

- O sinal é forte.

A pedido de De Roquefort, o outro irmão procurou sob o carro e encontrou o mecanismo de detecção.

Sacudiu a cabeça e fitou as muralhas de Carcassonne que se erguiam em direcção ao céu a dez metros de distância. A zona onde se encontravam fora em tempos o fosso da cidade fortificada. Agora era utilizado como parque de estacionamento para os milhares de visitantes que ali afluíam diariamente para verem uma das últimas cidadelas da Idade Média. Aquelas muralhas já existiam quando os templários vaguearam pelas redondezas e haviam testemunhado a Cruzada Albigense e as muitas guerras que depois se sucederam. E nunca haviam cedido. Eram verdadeiramente um monumento à resistência e à força.

No entanto, eram também um testemunho de esperteza e habilidade.

De Roquefort conhecia o mito local, do século oitavo, altura em que os muçulmanos controlavam a cidadela. Por fim, os francos vieram de norte dispostos a recuperar o local e, de acordo com a sua habitual táctica, montaram um cerco prolongado à cidadela. Durante um ataque, o rei mouro fora morto e deixara a tarefa de defender as muralhas à filha. A rapariga era esperta, e criara a ilusão de superioridade numérica ao pedir às poucas tropas que tinha que corressem de torre para torre e enchessem a roupa dos mortos com palha. Passado algum tempo, a água e os mantimentos começaram a escassear de ambos os lados. Por fim, a rapariga ordenou que a última porca fosse apanhada e alimentada com os cercais que restavam. Pegou então na porca e atirou-a para fora das muralhas. O animal abateu-se sobre o solo e a barriga rebentou, mostrando os cereais. Os sitiantes ficaram chocados. Após um cerco tão prolongado, pelos vistos, os infiéis ainda possuíam comida suficiente para alimentar os porcos. Em face disso, retiraram.

Um mito, sem dúvida, mas uma interessante história sobre o engenho humano.

E Cotton Malone também demonstrara algum engenho ao mudar o mecanismo para outro carro.

- O que se passa? - perguntou Claridon.

- Fomos enganados.

- Não é o veículo deles?

- Não, monsieur. - Voltou-se e começou a andar em direcção ao automóvel. - Para onde teriam ido?

Foi então que lhe ocorreu uma ideia. Parou. - É possível que Mark Nelle conheça Cassiopia Vitt?

- Oui - respondeu Claridon. - Ele e o pai costumavam falar dela. Seria aí que se encontravam? Vitt já interferira por três vezes e de cada uma beneficiara Malone. Talvez ele achasse que tinha ali uma aliada.

- Vamos - ordenou De Roquefort, e dirigiu-se de novo para o carro.

- O que fazemos agora? - questionou Claridon.

- Rezamos.

O francês continuava sem se mexer.

- Para quê?

- Para que os meus instintos estejam certos.

 

Malone estava furioso. Henrik Thorvaldsen sempre soubera mais do que revelara. Apontou para Cassiopia.

- É sua amiga?

- Conheço-a há algum tempo.

- Já a conhecia quando Lars Nelle era vivo?

Thorvaldsen assentiu.

- E Lars sabia dessa amizade?

- Não, não sabia.

- Então, quer dizer que também o fez passar por parvo - argumentou Malone num tom mais agressivo.

O dinamarquês viu-se forçado a uma defesa mais pacífica, pois estava preocupado.

- Cotton, entendo a sua irritação, mas nem sempre podemos ser totalmente honestos. A mesma história pode ter diferentes ângulos. Tenho a certeza que quando trabalhava para o governo dos Estados Unidos também fazia a mesma coisa. - Malone não mordeu o isco.

- Cassiopia vigiava Lars. Ele sabia da existência dela e achava-a um estorvo. Contudo, a verdadeira tarefa dela era protegê-lo.

- Por que não lho disse?

- Lars era um homem deveras teimoso. Era mais fácil para Cassiopia vigiá-lo na sombra. É uma pena, mas ela não conseguiu protegê-lo dele mesmo.

Stephanie aproximou-se, e fitou-o com desdém.

- O perfil dele alertava precisamente para isto. Motivos duvidosos, muda constantemente de aliados, pouco fiável.

- Isso ofende-me - ripostou Thorvaldsen, e olhou-a indignado - Tendo em conta que Cassiopia também vos protegeu aos dois.

Nesse ponto, Malone não podia discordar.

- Devia ter-nos dito.

- Teria feito alguma diferença? Tanto quanto me lembro, estavam ambos determinados a viajar até França, em especial a Sr.ª Nelle. Por isso, nada do que pudesse ter dito os teria impedido. Assim, assegurei-me de que Cassiopia estava lá para vos ajudar no que fosse preciso.

Malone não ia aceitar aquela desculpa esfarrapada.

- Para começar, Henrik, devia ter-nos falado de Raymond de Roquefort, que devem ambos conhecer. Em vez disso, deixou-nos ir às cegas.

- Não há muito para dizer - explicou Cassiopia. - Quando Lars era vivo, tudo o que os irmãos também faziam era ter cuidado com ele. Nunca tive nenhuma espécie de contacto com De Roquefort. Isso só ocorreu há alguns dias. Por isso, sei tanto sobre ele quanto vocês.

- Então, como foi capaz de antecipar os seus passos em Copenhaga?

- Não antecipei. Limitei-me a segui-lo a si.

- Nunca dei pela sua presença.

- Sou boa naquilo que faço.

- Não foi assim tão exímia em Avinhão. Dei pela sua presença no café.

- E o seu truque de deixar voar o guardanapo para ver se eu os seguia? Foi óbvio. Eu queria que vocês soubessem que estava ali. Assim que vi Claridon, desconfiei que De Roquefort não estaria muito longe. Há anos que ele vigia o francês.

- Claridon falou-nos de si - afirmou Malone -, mas não a reconheceu em Avinhão.

- Ele nunca me viu. Sabe apenas o que Lars Nelle lhe contou a meu respeito.

- Claridon nunca mencionou esse facto - disse Stephanie.

- Estou certa que deve existir muita informação que Royce não revelou. Lars nunca percebeu, mas Claridon era mais problemático para as suas investigações do que eu.

- O meu pai odiava-a - afirmou Mark com rancor.

Cassiopia olhou-o com indiferença.

- O seu pai era um homem brilhante, mas pouco versado na natureza humana. Tinha uma visão muito simplista do mundo. As conspirações que pesquisava, aquelas que prosseguiram após a morte dele, são bastante mais elaboradas e complicadas do que pode imaginar. Esta é uma demanda da verdade pela qual já morreram muitas pessoas.

- Mark - chamou Thorvaldsen -, aquilo que Cassiopia acabou de dizer é verdade, como decerto saberá.

- O meu pai era um homem bom que acreditava naquilo que fazia.

- Disso não tenho qualquer dúvida. Contudo, ele também fez segredo de muitas coisas. Nunca soube que eu e ele éramos amigos íntimos, e lamento nunca o ter conhecido antes. Porém, o seu pai fazia questão que os nossos contactos permanecessem confidenciais e eu respeito isso mesmo após a sua morte.

- Podia ter-me dito - argumentou Stephanie.

- Não, não podia.

- Então, porque está a falar connosco agora?

- Quando a senhora e Cotton partiram de Copenhaga, eu vim de imediato para aqui. Presumi que acabariam por encontrar Cassiopia. Era precisamente por isso que ela se encontrava em Rennes há duas noites, para vos atrair na sua direcção. Inicialmente, o meu plano era ficar na sombra e nenhum de vocês saber da nossa ligação, mas depois mudei de ideias. Isto já foi demasiado longe. Precisam de saber a verdade e aqui estou eu para a revelar.

- Quanta bondade da sua parte - disse Stephanie com ironia.

Malone fitou o dinamarquês. Thorvaldsen tinha razão. Em muitas situações, também ocultara o que sabia ou revelara meias verdades. Stephanie também já o fizera.

- Henrik, há mais de um ano que não entro nestas jogadas. Reformei-me porque estava farto e não queria envolver-me mais neste tipo de coisas. Devo dizer que, neste momento, estou esfomeado e curioso, por isso sugiro que almocemos e enquanto isso nos conte a verdade que precisamos saber.

O almoço era coelho assado, temperado com salsa, tomilho e manjerona, acompanhado por espargos e salada, e uma sobremesa de groselha com creme de baunilha. Enquanto comia, Malone tentou avaliar a situação. A sua anfitriã parecia a mais descontraída, mas a cordialidade dela não o impressionava.

- Desafiou abertamente De Roquefort naquela noite no palácio - disse-lhe ele. - Onde aprendeu tudo aquilo?

- Aprendi sozinha. Do meu pai herdei a coragem e da minha mãe a capacidade de ler a mente masculina.

Malone sorriu.

- Um dia pode enganar-se.

- Lisonjeia-me que se preocupe com o meu futuro. Alguma vez se enganou enquanto trabalhava como agente governamental?

- Muitas vezes e em certas ocasiões isso resultou na morte de outros.

- O filho de Henrik faz parte dessa lista?

Malone não gostou da indirecta, principalmente tendo em consideração que ela não fazia ideia do que se tinha passado.

- Tal como aconteceu aqui, houve quem não recebesse a informação correcta e as más informações levam a más decisões.

- O jovem morreu.

- Cai Thorvaldsen estava no lugar errado à hora errada - explicou Stephanie.

- Cotton está certo - disse Henrik, parando de comer. - O meu filho morreu porque não tinha sido alertado para o perigo em seu redor. Cotton estava lá e fez o que pôde.

- Não estava a insinuar que a culpa foi dele - contrapôs Cassiopia. - Porém, ele parecia empenhado em dizer-me como devia gerir os meus assuntos. Estava apenas a tentar perceber se ele seria capaz de tratar dos seus. Afinal, acabou por desistir. Thorvaldsen suspirou.

- Vai ter de a desculpar, Cotton. É uma mulher inteligente, versada em arte, em música, em religião, coleccionadora de antiguidades, mas herdou a falta de educação do pai. A mãe, Deus guarde a sua alma, era mais refinada.

- Henrik acha-se meu pai adoptivo.

- Teve sorte em eu não a ter atingido quando fugiu de mota em Rennes - avançou Malone, e observou-a com atenção.

- Não esperava que conseguisse escapar da Torre Magdala tão depressa. Estou certa que os responsáveis pelo local devem estar furiosos com a perda daquela janela. Acho que era a original.

- Estou à espera de ouvir a tal verdade de que falou - disse Stephanie para Thorvaldsen. - Disse-me na Dinamarca para manter uma certa abertura de espírito para aquilo que o senhor e Lars achavam importante. Agora ficamos a saber que o seu envolvimento era bem mais profundo do que qualquer um de nós podia pensar. Por certo compreenderá que isso nos deixe desconfiados.

Thorvaldsen pousou o garfo.

- Muito bem. Até que ponto conhecem o Novo Testamento? «Que pergunta estranha», pensou Malone. No entanto, sabia que Stephanie era católica praticante.

- Contém os quatro Evangelhos, São Mateus, São Marcos, São Lucas e São João, que nos falam de Jesus Cristo.

- Correcto - declarou Thorvaldsen. - A história diz-nos que o Novo Testamento, tal como o conhecemos, foi organizado durante os primeiros quatro séculos depois de Cristo como forma de universalizar a mensagem cristã. Afinal, católico significa isso mesmo, «universal». Não se esqueçam que, ao contrário do que acontece nos nossos dias, naquela época a política e a religião eram uma e a mesma coisa. À medida que o paganismo decaía e o judaísmo se fechava em si mesmo, as pessoas começaram a procurar algo novo. Os seguidores de Jesus, que eram apenas judeus com uma perspectiva diferente, elaboraram a sua própria versão do mundo, mas isso também o haviam feito os carpocratianos, os essenos, os naassenos os gnósticos e uma centena de outras seitas emergentes na altura. A principal razão que fez com que a versão católica prevalecesse e as restantes não, foi a sua habilidade de se impor como crença universal. Atribuíram às Escrituras tamanha autoridade que ao fim de algum tempo ninguém as podia questionar sem correr o risco de ser apelidado de herético. No entanto, existem muitos problemas no Novo Testamento.

A Bíblia era um dos temas preferidos de Malone. Já a lera, assim como grande parte da análise histórica existente sobre o assunto, e estava a par das suas contradições. Cada um dos Evangelhos era uma estranha mistura de factos, rumores, lendas e mito que havia sido sujeita a incontáveis traduções, edições e redacções.

- Não se esqueçam que a emergente Igreja Cristã já existia durante a civilização romana - explicou Cassiopia. - Para conseguir atrair seguidores, os seus fundadores tiveram de competir com um sem-número de crenças pagãs e com as suas próprias crenças judaicas. Mas também precisavam de se diferenciar dos restantes, por isso Jesus tinha de ser mais do que um simples profeta.

Malone começava a ficar impaciente.

- Mas o que tem isso a ver com o que se passa aqui?

- Pense no que significaria para o cristianismo encontrar os ossos de Cristo - avançou Cassiopia. - O cristianismo gravita em torno da ideia de Jesus ter morrido na cruz, ressuscitado e depois subido aos céus.

- Esse aspecto é uma questão de fé - referiu Geoffrey.

- Ele tem razão - concordou Stephanie. - É a fé, não os factos que o definem.

Thorvaldsen abanou a cabeça.

- Retiremos por momentos esse elemento da equação, uma vez que a fé também elimina a lógica. Pensem só. Se existiu um homem chamado Jesus, como podiam os cronistas do Novo Testamento saber alguma coisa sobre a Sua vida? Pensem na questão da língua. O Antigo Testamento foi escrito em hebraico. Por seu lado, o Novo Testamento foi escrito em grego e quaisquer fontes que possam ter existido estariam escritas em aramaico. Depois há o problema das próprias fontes. São Mateus e São Lucas falam da tentação de Cristo no deserto, mas Jesus estava sozinho quando isso teve lugar. E a oração de Jesus no Jardim das Oliveiras? São Lucas diz que Ele se afastou dos discípulos à «distância de um tiro de pedra». Quando Jesus regressou, encontrou-os todos a dormir e foi de imediato preso e depois crucificado. Não existe uma única referência sobre Jesus ter dito alguma coisa sobre a oração no jardim e a tentação no deserto, mas no entanto sabemos todos os detalhes desses episódios. Como? Todos os Evangelhos referem que os discípulos fugiram na altura da prisão de Jesus, por isso nenhum deles lá estava, e apesar disso, os quatro oferecem relatos detalhados da crucificação. Qual a origem desses relatos? O que fizeram os soldados romanos, o que Pilatos e Simão fizeram. Como poderiam os autores dos Evangelhos saber tudo isso? Os crentes diriam que essa informação proveio de inspiração divina. Todavia, os quatro Evangelhos, as supostas Palavras de Deus, são mais contraditórios do que concordantes. Por que razão Deus ditaria apenas confusão?

- Talvez não nos caiba a nós questionar tal coisa - respondeu Stephanie.

- Ora - argumentou Thorvaldsen -, existem demasiadas contradições para serem simplesmente ignoradas. Analisemos as generalidades. O Evangelho de São João faz referência a muitos aspectos que os outros três, os chamados Evangelhos sinópticos, ignoram por completo. O estilo é também diferente, a mensagem mais depurada. Parece um testemunho completamente diferente. No entanto, algumas das inconsistências mais precisas começam com Mateus e Lucas. São os únicos que dizem alguma coisa sobre o nascimento e linhagem de Jesus, e mesmo assim divergem um do outro. Mateus escreve que Jesus era um aristocrata, descendente de David, herdeiro do trono. Lucas reitera a ligação a David, mas aponta para uma classe social mais inferior. São Marcos seguiu um caminho completamente diferente e difunde a imagem de um carpinteiro pobre. Também o nascimento de Jesus é contado de forma diversa. São Lucas diz que o menino foi visitado por pastores mas São Mateus chama-lhes Reis Magos. São Lucas escreve que a família vivia em Nazaré e que se deslocou para Belém, onde Jesus nasceu numa manjedoura. Contudo, São Mateus diz que Maria e José viviam desafogadamente em Belém onde Jesus nasceu, não numa manjedoura, mas numa casa.

«Porém, a crucificação é o acontecimento que contém mais discrepâncias. Os Evangelhos nem sequer concordam na data. São João fala no dia antes da Páscoa, os outros três referem o dia seguinte. São Lucas descreve Jesus como dócil, um «cordeiro». São Mateus tem uma opinião diferente. Para ele, Jesus não veio à terra para trazer paz, mas sim a espada. Até as palavras finais do Salvador são diferentes. São Mateus e São Marcos afirmam que foram: «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?» São Lucas escreve: «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.» São João é ainda mais sucinto: «Tudo está consumado.»

Thorvaldsen interrompeu-se e deu um gole do copo de vinho.

- E a própria história da ressurreição está pejada de contradições. Cada um dos Evangelhos oferece uma versão diferente sobre quem entrou no sepulcro, o que lá foi encontrado e até o dia da semana. E quanto à aparição de Jesus após a ressurreição, nesse aspecto também não existem semelhanças entre os quatro livros. Porque não pensar que Deus teria sido ao menos um pouco mais consistente ao tratar-se da Sua Palavra?

- As variações entre os Evangelhos têm sido tema de vários livros

- explicou Malone.

- Isso é verdade - concordou Thorvaldsen. - E as inconsistências existem desde o início, ignoradas nos tempos antigos, pois os quatro Evangelhos raramente apareciam juntos. Na verdade, foram divulgados individualmente, uma história fazendo mais sucesso nuns lugares que noutros. O que ajuda de alguma forma explicar as diferenças. Não podemos esquecer que a ideia por trás dos Evangelhos era demonstrar que Jesus era o Messias anunciado no Antigo Testamento e não afirmar-se como uma biografia irrefutável.

- Não eram os Evangelhos apenas um registo do que havia sido passado oralmente? - perguntou Stephanie. - Os erros não seriam, portanto, de esperar?

- Sem dúvida - disse Cassiopia. - Os primeiros cristãos acreditavam que Jesus regressaria em breve e o mundo acabaria, por isso não havia necessidade de registar nada. Todavia, passados cinquenta anos, e como o Salvador ainda não tinha voltado, tornou-se importante imortalizar a vida de Jesus. Foi nessa altura, que o primeiro Evangelho, o de São Marcos, foi escrito. O Evangelho de São Mateus e o de São Lucas vieram depois, por volta de oitenta depois de Cristo. O Evangelho de São João foi escrito mais tarde, perto do final do século I, por isso é tão diferente dos outros três.

- Se os Evangelhos fossem completamente concordantes não seriam ainda mais suspeitos? - perguntou Malone.

- Os quatro livros são mais do que apenas divergentes - explicou Thorvaldsen. - Na verdade, trata-se de quatro versões diferentes da Palavra de Deus.

- É uma questão de fé - insistiu Stephanie.

- Lá vem essa palavra - argumentou Cassiopia. - Sempre que existe um problema com um texto bíblico, a solução parece fácil: é a fé. Sr. Malone, o senhor é advogado. Se o testemunho de Mateus, Marcos, Lucas e João fosse dado em tribunal como prova da existência de Jesus, o júri concordaria?

- Sem dúvida, todos eles falam de Jesus.

- Mas se ao mesmo tribunal fosse pedido que declarasse qual dos quatro estava correcto, qual seria a decisão?

Malone sabia a resposta.

- Estão todos correctos.

- Então como resolveria as diferenças entre os testemunhos?

Dessa vez já não respondeu, pois não sabia.

- Ernst Scoville fez em tempos um estudo - disse Thorvaldsen - foi Lars quem me falou disso, no qual mostrava que existia uma variação de dez a quarenta por cento entre os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas em qualquer passagem que desejássemos comparar. Qualquer passagem. No de São João, que não é um dos sinópticos, a percentagem era ainda mais elevada. Por isso, Cotton, a pergunta de Cassiopia é válida. Estes quatro testemunhos teriam qualquer valor probatório para além de estabelecerem que pode ter existido um homem chamado Jesus?

Malone sentiu-se impelido a perguntar:

- Poderia alguma das inconsistências ser explicada pelo facto de os escritores se darem a liberdades criativas com a tradição oral?

Thorvaldsen acenou afirmativamente com a cabeça.

- Essa explicação faz sentido. Porém, o que a torna inaceitável é essa palavra repetitiva: fé. Para milhões de crentes, os Evangelhos não são a tradição oral de judeus radicais a tentar criar uma nova religião, a recrutar discípulos ou a contar a sua história com as modificações e acrescentos necessários ao seu tempo. Não. Os Evangelhos são a Palavra de Deus e a ressurreição é a sua pedra angular. O facto de o seu Deus ter enviado o Seu filho para morrer por eles, e Ele ter ressuscitado e ascendido aos céus é o que os distingue de todas as outras religiões.

Malone olhou para Mark.

- Os templários acreditam nisto?

- Existe um elemento de gnosticismo na crença templária. O conhecimento é transmitido por fases e apenas os irmãos de hierarquia mais elevada na Ordem sabem de tudo. Porém, ninguém possui esse conhecimento desde que o Grande Legado desapareceu durante a Expulsão em 1307.

Estava curioso.

- E o que pensam actualmente de Jesus Cristo?

- Os templários dão igual importância ao Antigo e ao Novo Testamento. Aos seus olhos, os profetas judeus do Antigo Testamento previram a vinda do Messias e os autores do Novo Testamento cumpriram essa previsão.

- Tal como os judeus - disse Thorvaldsen -, dos quais posso falar, uma vez que o sou. Durante séculos, os cristãos afirmaram que os judeus não reconheceram o Messias quando Ele regressou e por essa razão, Deus criou uma nova Israel sob a forma da Igreja Cristã, para tomar o lugar da Israel dos judeus.

- «O seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos» - murmurou Malone, citando o que São Mateus escrevera sobre a disposição dos judeus em aceitarem a responsabilidade pelo sangue derramado.

Thorvaldsen assentiu.

- Essa frase tem sido utilizada há dois mil anos como desculpa para matar judeus. O que poderia um povo esperar de Deus depois de rejeitarem o Seu próprio filho como o Messias? Essas palavras, escritas no Evangelho, tornaram-se o grito de batalha de assassinos.

- Assim, o que os cristãos acabaram por fazer - acrescentou Cassiopia - foi romper com o passado. Chamaram Antigo Testamento a metade da Bíblia e Novo à outra metade. Um era para os judeus e o outro para os cristãos. As doze tribos de Israel no Antigo Testamento foram substituídas pelos doze apóstolos no Novo. As crenças pagãs e judaicas foram assimiladas e modificadas. Através dos Evangelhos do Novo Testamento, Jesus cumpriu as profecias do Antigo Testamento, provando assim a sua vocação messiânica. A mensagem certa, moldada de acordo com o público, fez com que o cristianismo acabasse por dominar o mundo ocidental.

Os criados apareceram e Cassiopia fez-lhes sinal para que retirassem os pratos e servissem o café. Quando o último se retirou, Malone perguntou a Mark:

- Os templários acreditam na ressurreição de Cristo?

- Quais?

Malone achou a questão estranha e encolheu os ombros.

- Os de agora acreditam, claro. Com poucas excepções, a Ordem segue a doutrina católica tradicional. Não faço ideia daquilo em que acreditavam em 1307. As Crónicas dessa altura não são muito claras e, como já referi, apenas os oficiais mais elevados saberiam alguma coisa sobre esse assunto. A maioria dos templários era analfabeta. O próprio Jacques de Molay não sabia ler nem escrever. Isso significava que era uma pequena minoria que controlava o que a maioria pensava. Claro que nessa altura o Grande Legado existia e presumo que ver fosse sinónimo de crer.

- O que é o Grande Legado?

- Quem me dera saber. A informação perdeu-se e as Crónicas pouco falam a esse respeito. Acredito que seja algum tipo de prova daquilo em que a Ordem acreditava.

- É por essa razão que o procuram? - questionou Stephanie.

- Só recentemente se começou a procurar. Existia pouca ou nenhuma informação sobre a sua localização. No entanto, o mestre disse a Geoffrey que acreditava que o pai estava no caminho certo.

- E o que faz De Roquefort querê-lo com tanto empenho? - perguntou Malone a Mark.

- Encontrar o Grande Legado, dependendo do que lá estiver, pode significar o reaparecimento da Ordem na cena mundial. Esse conhecimento pode modificar toda a cristandade. De Roquefort também pretende vingar-se do que sucedeu à Ordem. O seu objectivo é expor a Igreja Católica como hipócrita e limpar o nome dos templários.

Malone estava confuso.

- Como assim?

- Uma das acusações feitas aos templários em 1307 foi a adoração de ídolos, sendo um deles uma espécie de cabeça barbada. Essas acusações nunca foram provadas. Todavia, ainda hoje, os católicos rezam frequentemente a imagens e objectos, sendo o Sudário de Turim um deles.

Malone recordou o que um dos Evangelhos dizia sobre a morte de Cristo: «Depois de descer o corpo da cruz envolveu-o num lençol.» O simbolismo era de tal modo sagrado que mais tarde um papa decretara que a missa deveria sempre ser rezada sobre um altar coberto por uma toalha de linho. O Sudário de Turim, referido por Mark, era uma peça de linho que exibia a imagem detalhada da frente e das costas de um homem com um metro e oitenta de altura, nariz afilado, cabelo pelos ombros, de barba e com marcas de crucificação nas mãos, pés e escalpe, e ferimentos de chicotadas nas costas.

- A imagem do sudário não é a de Cristo - disse Mark. - Pertence a Jacques de Molay. O mestre foi preso em Outubro de 1307, e em Janeiro do ano seguinte foi pregado a uma porta no Templo de Paris de modo semelhante a Cristo. O objectivo era castigá-lo por não acreditar em Jesus como nosso salvador: Foi o inquisidor-mor de França, Guillaume Imbert, quem orquestrou aquela terrível tortura. Após a crucificação, De Molay foi envolvido num manto de linho que a Ordem guardava no Templo de Paris e utilizava durante as cerimónias de iniciação. Sabemos hoje que o ácido láctico e o sangue do corpo traumatizado do mestre De Molay se misturou com o olíbano do manto e gravou a imagem. Existe mesmo um equivalente moderno. Em 1981, um doente de cancro em Inglaterra deixou a marca das suas pernas nos lençóis.

Malone lembrou-se que nos finais dos anos oitenta a Igreja autorizara um exame microscópio e a datação radiométrica por carbono-14 do Sudário de Turim. Os resultados indicaram que não existiam desenhos ou pinceladas, e que a coloração estava impregnada no linho. A datação revelou que o manto não era originário do século I, mas de algures entre os finais do século XIII e meados do século XIV. Porém, muitos foram os que contestaram os resultados e afirmaram que a amostra fora adulterada ou provinha de uma restauração posterior do manto.

- A imagem gravada no linho coincide exactamente com o corpo de De Molay - explicou Mark. - Existem descrições dele nas Crónicas. Na altura em que foi torturado, o cabelo crescera-lhe até aos ombros e a barba também. O manto que envolveu o corpo do mestre De Molay foi retirado do Templo de Paris por um dos parentes de Geoffrey de Charney. De Charney foi queimado na estaca em 1314, juntamente com De Molay. A família guardou o pano como relíquia e mais tarde reparou que exibia uma imagem. O manto apareceu inicialmente num medalhão religioso de 1338 e foi exibido pela primeira vez em 1357. Assim que foi visto, as pessoas associaram-no de imediato à imagem de Cristo e a família De Charney nada fez para desmentir essa crença. Tal continuou até aos finais do século XVI, quando a Igreja se apoderou do manto e o declarou acheropita, ou seja, que não fora feito por mão humana classificando-o como relíquia sagrada. De Roquefort quer recuperar o manto, uma vez que pertence à Ordem e não à Igreja. Thorvaldsen abanou a cabeça.

- Que palermice.

- É o que ele pensa.

Malone reparou na expressão aborrecida de Stephanie.

- A lição bíblica foi fascinante, Henrik. No entanto, continuo à espera de ouvir a verdade sobre o que se passa aqui.

O dinamarquês esboçou um sorriso.

- Sempre tão simpática.

- Pode agradecê-lo à minha personalidade cativante. - Mostrou o telemóvel. - Para que não haja más interpretações, ou começa a revelar alguma coisa de útil nos próximos minutos ou ligo para Atlanta. Já tive a minha conta de Raymond de Roquefort, por isso vou tornar esta caça ao tesouro público e acabar com isto de uma vez por todas.

 

Malone estremeceu ao ouvir a declaração da sua antiga chefe. Já se perguntara quando iria ela perder a paciência. Pelos vistos, não demorara muito.

- Não pode fazer isso - disse Mark à mãe. - A última coisa que desejamos é ter o governo envolvido nisto.

- Qual é o problema? - perguntou Stephanie. - Essa abadia devia ser investigada. O que fazem lá dentro não tem nada a ver com religião.

- Muito pelo contrário - contrapôs Geoffrey com uma voz trémula. - Os irmãos são piedosos e dedicam a sua vida à oração e adoração do Senhor.

- E nos intervalos aprendem a lidar com explosivos, técnicas de combate corpo a corpo e a disparar armas automáticas. É um bocadinho contraditório, não concordam?

- Nada mesmo - afirmou Thorvaldsen. - Os primeiros templários eram simultaneamente monges e guerreiros temidos.

Stephanie não parecia impressionada.

- Não estamos no século XIII. De Roquefort tem um plano e é capaz de qualquer coisa para o ver cumprido. Hoje em dia chamamos terroristas a esse tipo de pessoas.

- Não mudou nada - acusou Mark.

- Pois não. Continuo a acreditar que organizações com dinheiro, armas e ressentimentos são um problema. O meu trabalho consiste em lidar com elas.

- Isto não lhe diz respeito.

- Então o vosso mestre não me devia ter envolvido. «É um bom argumento», pensou Malone.

- Já não compreendia quando o pai estava vivo e continua sem perceber.

- Sempre me podes esclarecer.

- Sr. Malone? - chamou Cassiopia num tom calmo. - Gostaria de ver os planos de construção do castelo?

Pelos vistos, a anfitriã queria falar com ele a sós, o que até lhe convinha, pois também tinha umas perguntas para lhe fazer.

- Seria um prazer.

Cassiopia empurrou a cadeira para trás e levantou-se da mesa.

- O prazer será meu em partilhá-los consigo. Isso dará algum tempo a estes senhores para conversarem, que bem precisam. Fiquem à vontade. O Sr. Malone e eu não demoraremos.

Seguiu Cassiopia para o exterior da casa e desceram pelo mesmo caminho ladeado de árvores até ao parque de estacionamento, e ao local da obra.

- Quando ficar pronto - explicou Cassiopia - teremos aqui um castelo do século XIII tal como existiu há setecentos anos.

- É uma obra e tanto.

- Só aposto no melhor.

Entraram na obra através de um largo portão de madeira e atravessaram o que aparentava ser um celeiro com paredes de arenito que abrigavam uma moderna recepção. Para lá desse ponto, imperava o cheiro a pó e a cavalos e uma centena de pessoas ocupava-se numa tarefa ou noutra.

- Já abrimos as fundações de todo o perímetro e a muralha oeste vai bem avançada - informou Cassiopia. - Estamos prestes a começar as torres de ângulo e os edifícios centrais, mas leva tempo. Temos de fazer os tijolos, a argamassa, partir a pedra e cortar a madeira precisamente como era feito há setecentos anos.

Recorremos aos mesmos métodos e ferramentas, e até vestimos as mesmas roupas.

- E também comem a mesma comida?

Cassiopia sorriu.

- Nesse aspecto, somos um pouco mais modernos.

Conduziu-o pela área de construção até um pequeno promontório onde tudo podia ser apreciado com clareza.

- Venho aqui muitas vezes. Trabalham ali a tempo inteiro cento e vinte homens e mulheres.

- Deve ser uma fortuna em ordenados.

- Um pequeno preço a pagar para que a história possa ser contada e vista.

- A sua alcunha, Ingénieur. É isso que lhe chamam? Engenheiro?

- Foram os empregados que me baptizaram com essa alcunha. Estudei técnicas de construção medieval e projectei tudo isto.

- Engraçado, sabe ser uma cabra arrogante e ao mesmo tempo uma mulher muito interessante.

- O comentário que proferi à mesa, sobre o filho de Thorvaldsen, não foi nada correcto. Por que não reagiu?

- Para quê? A Cassiopia não fazia ideia do que estava a falar.

- Tentarei não fazer mais juízos de valor de agora em diante.

Malone soltou uma gargalhada.

- Duvido muito que consiga conter-se e não sou assim tão sensível. Com o tempo, aprendi a cultivar uma certa largueza de costas. Temos de o fazer se queremos sobreviver nesta profissão.

- Mas já está reformado.

- Nunca nos afastamos, ficamos apenas mais vezes fora da linha de fogo.

- Então está a ajudar Stephanie Nelle apenas como amigo?

- Difícil de acreditar, não?

- Nem por isso. Na verdade, está bem de acordo com a sua personalidade.

Agora estava curioso.

- Como conhece a minha personalidade?

- Quando Henrik me pediu que me envolvesse, passei algum tempo a estudá-lo. Tenho alguns amigos no seu antigo posto de trabalho e todos lhe teceram elogios enormes.

- É bom saber que as pessoas ainda se recordam.

- Sabe muita coisa a meu respeito? - perguntou ela.

- Apenas alguns pormenores.

- Possuo muitas particularidades.

- Então deve dar-se bem com Henrik.

Cassiopia não pôde deixar de sorrir.

- Estou a ver que o conhece bem.

- E há quanto tempo o conhece?

- Desde a infância. Ele era amigo dos meus pais. Há muitos anos, falou-me de Lars Nelle e do seu trabalho, e fiquei fascinada. Acabei por me transformar no seu anjo-da-guarda, embora ele me achasse o demónio. Infelizmente, não pude ajudá-lo no último dia de vida.

- Estava lá?

Cassiopia sacudiu a cabeça.

- Ele tinha viajado para sul, para as montanhas, e eu estava aqui quando Henrik me telefonou a dizer que tinham encontrado o corpo.

- Acha que ele se suicidou?

- Lars era um homem triste, isso era óbvio. Também me parecia uma pessoa frustrada. Havia um sem-número de amadores que se tinham aproveitado do seu trabalho e distorcido tudo. O quebra-cabeças que ele tentou resolver permanece um mistério até hoje. Por isso, sim, é possível que o tenha feito.

- E tentava protegê-lo de quê?

- Muitos eram os que tentavam intrometer-se nas suas pesquisas. Alguns não passavam de caçadores de tesouros ambiciosos, outros de oportunistas, mas os homens de Raymond de Roquefort não tardaram a aparecer também. Felizmente, fui capaz de passar despercebida.

- De Roquefort é agora o mestre.

Ela franziu o sobrolho.

- Isso explica o seu empenho. É ele quem comanda agora os recursos da Ordem.

Pelos vistos, Cassiopia nada sabia sobre Mark Nelle ou onde este estivera nos últimos cinco anos. Achou que seria melhor contar-lhe e depois acrescentou:

- Mark perdeu para De Roquefort na escolha do novo mestre.

- Então isto entre eles é pessoal?

- Em parte, acredito que seja - afirmou. Depois ficou a olhar para baixo, à medida que uma carroça puxada por cavalos avançava lentamente pela terra até ao local onde a muralha começava a erguer-se.

- O trabalho hoje é só para os turistas verem - explicou ela, ao reparar no interesse dele. - Faz parte do espectáculo. Amanhã voltamos à construção a sério.

- A placa à entrada diz que vai demorar trinta anos a terminar.

- Ou mais.

Tinha razão. Possuía mesmo muitas particularidades.

- Em Avinhão, deixei o diário de Lars para trás de propósito para que De Roquefort o encontrasse.

Aquela revelação deixou Malone chocado.

- Porquê?

- Henrik queria falar com os Nelle em privado. Foi por isso que o chamei para aqui. Ele também me disse que o senhor era um homem honrado. Confio em pouquíssimas pessoas, e Henrik é uma delas. Por isso, vou confiar na palavra dele e revelar-lhe algumas coisas que mais ninguém sabe.

Mark ouviu enquanto Henrik Thorvaldsen explicava. A mãe também parecia atenta. Apenas Geoffrey se limitava a olhar fixamente para a mesa, como se em transe.

- Está na altura de conhecer e perceber aquilo em que Lars acreditava - disse Henrik para Stephanie. - Ao contrário do que possa pensar, ele não era um louco atrás de um tesouro no fim do arco-íris. A sua demanda era séria.

- Vou ignorar o insulto porque quero ouvir o que tem para dizer. Thorvaldsen olhou-a irritado.

- A teoria de Lars era simples, embora na verdade não lhe pertencesse. Foi Ernst Scoville quem desenvolveu grande parte dela e envolvia uma nova abordagem dos Evangelhos do Novo Testamento, em especial a forma como tratavam a ressurreição. Cassiopia já hoje falou de alguns aspectos. Comecemos com o de São Marcos. Foi o primeiro Evangelho a ser escrito, por volta de setenta depois de Cristo, e talvez o único que os cristãos possuíam após a morte de Jesus. Contém seiscentos e setenta e seis versículos, no entanto, apenas oito são dedicados à ressurreição. Este facto extraordinário mereceu apenas uma curta menção. Porquê? A resposta é simples. Quando o Evangelho de São Marcos foi escrito, a história da ressurreição não se tinha desenvolvido e o Evangelho termina sem uma única menção ao facto de os discípulos acreditarem que Jesus se havia erguido dos mortos. Em vez disso, conta-nos que os apóstolos fugiram. Apenas as mulheres aparecem na versão de São Marcos e até elas ignoram a ordem de avisarem os discípulos para se deslocarem à Galileia para aí verem Cristo ressuscitado, fugindo amedrontadas e não contando a ninguém o que tinham visto. E não existem anjos, apenas um jovem vestido de branco sentado ao lado da pedra que tapava o sepulcro e que anuncia: «Ressuscitou». Não há guardas, nem panos de linho, nem Jesus ressuscitado.

Mark sabia que tudo o que Thorvaldsen acabara de dizer era verdade. Também estudara atentamente os Evangelhos.

- O testemunho de São Mateus apareceu uma década mais tarde. Por essa altura, os romanos já tinham saqueado Jerusalém e destruído o Templo, e muitos judeus optaram por fugir para os Estados de língua grega. Os judeus ortodoxos que permaneceram na Terra Santa consideravam os novos judeus cristãos um problema, tal como os romanos o eram. O Evangelho de São Mateus foi provavelmente escrito por um desses escribas judeus cristãos. O livro de São Marcos deixara muitas questões sem resposta, e Mateus alterou a história de modo a adaptar-se melhor aos tempos conturbados em que viveu. Agora, o mensageiro que anuncia a ressurreição já é um anjo que desce à terra durante um terramoto, com uma face semelhante a um relâmpago. Os guardas ficam como mortos e o anjo senta-se sobre a pedra do sepulcro. As mulheres também sentem medo, mas este é rapidamente substituído por alegria. Ao contrário do que acontece no relato de São Marcos, as mulheres aqui apressam-se a ir contar aos discípulos o que sucedeu e encontram Cristo ressuscitado. Também é aqui que, pela primeira vez, o Senhor ressuscitado é descrito. E o que fizeram as mulheres?

- Estreitaram-lhe os pés e prostraram-se diante Dele - respondeu Mark. - Mais tarde, Jesus apareceu aos seus discípulos e proclamou: «Foi-me dado todo o poder no Céu e na Terra.» E diz-lhes que estará com eles até ao fim dos tempos.

- Grande mudança - afirmou Thorvaldsen. - O Messias judeu chamado Jesus tornou-se agora Cristo para o mundo. No Evangelho de São Mateus é tudo muito mais vívido e miraculoso.

Depois, na década de oitenta d. C., aparece o testemunho de São Lucas. Por essa altura, os judeus cristãos já se afastaram, e muito, do judaísmo, por isso Lucas modificou a história da ressurreição de modo a reflectir essa mudança. As mulheres continuam a aparecer no sepulcro, mas desta vez encontram-no vazio e vão a correr contar aos discípulos. Pedro é o primeiro a lá chegar e vê apenas o manto que embrulhava o corpo. Depois, São Lucas conta uma história que não é referida em mais nenhuma passagem da Bíblia. Nessa história, Jesus viaja disfarçado, encontra alguns dos apóstolos, partilha uma refeição com eles e quando é descoberto, desaparece. Mais tarde, há ainda um outro encontro com todos os discípulos, no qual eles duvidam da Sua presença e Jesus se senta a comer com eles, e desaparece em seguida. É também apenas no Evangelho segundo São Lucas que encontramos a história da ascensão aos céus e Cristo aparece como que em êxtase.

Mark também lera análises semelhantes nos arquivos dos templários. Há já alguns séculos que os irmãos mais letrados estudavam a Bíblia, a anotarem os erros, a avaliarem as contradições e a elaborarem hipóteses sobre os muitos conflitos entre datas, nomes, lugares e acontecimentos.

- Depois temos o Evangelho segundo São João - continuou Thorvaldsen -, escrito mais tarde, por volta do ano 100 d. C. Existem tantas alterações neste livro que é quase como se João falasse de um Cristo completamente diferente. Não existe o nascimento em Belém, aqui Jesus nasce em Nazaré. Os outros três falam de um sacerdócio de três anos, João refere apenas um. Neste Evangelho, a Última Ceia tem lugar na véspera da Páscoa e a crucificação no dia da preparação da Páscoa, não coincidindo estes acontecimentos com os outros Evangelhos. João também mudou a purificação do templo do dia depois do Domingo de Ramos para mais cedo. No Evangelho de João, Maria Madalena vai sozinha ao sepulcro, descobre-o vazio, e pensa de imediato que o corpo foi roubado. Só quando ali regressa com Pedro e com «o outro discípulo» é que vê os dois anjos que depois se transformam em Jesus. Reparem como este pormenor, sobre quem estava no sepulcro, se modificou. O jovem vestido de branco, descrito em São Marcos, transformou-se no anjo deslumbrante de Mateus, que Lucas modificou para dois anjos e João converteu em dois anjos que se transformam em Jesus. E o Senhor ressuscitado foi visto no jardim no primeiro dia da semana, como aos cristãos sempre foi dito? São Marcos e São Lucas dizem que não. Mateus afirma que sim e João primeiro diz que não, mas depois Maria Madalena acaba por vê-Lo mais tarde. O que se passou é claro. Com o tempo, a ressurreição foi ficando cada vez mais miraculosa para se adaptar a um mundo em mudança.

- Presumo - disse Stephanie - que não seja defensor do princípio da infalibilidade das Escrituras.

- Não existe nada de literal na Bíblia. É uma história cheia de consistências que só podem ser explicadas pela fé. Isso pode ter funcionado há mil anos ou até há quinhentos anos, mas essa explicação já não é aceitável. Hoje em dia, a mente humana questiona e o seu marido também o fazia.

- E o que pretendia ele fazer?

- O impossível - murmurou Mark.

A mãe olhou-o com um olhar compreensivo.

- Isso nunca foi impedimento para ele. - A voz dela estava calma e melodiosa como se, por fim, tivesse percebido a verdade que durante tanto tempo estivera escondida. - Era um sonhador incorrigível.

- Porém, os seus sonhos tinham uma base - disse Mark. - Há muito tempo, os templários souberam aquilo que o pai desejava saber. Mesmo hoje, estudam textos que não fazem parte do Novo Testamento: O Evangelho de Filipe, a Carta de Barrabás, os Actos de Pedro, a Epístola dos Apóstolos, o pastor de Hermas, o Livro Secreto de João, o Evangelho de Maria, a Didaché (1), e o Evangelho de Tomé, que é para eles o mais próximo que existe das palavras proferidas por Jesus, uma vez que não foi sujeito a incontáveis traduções. Muitos destes chamados textos heréticos são bastante reveladores. E basicamente, era isso que tornava os templários especiais e era essa a verdadeira fonte do seu poder. Não era a riqueza ou o poder, mas o conhecimento.

 

Nota 1: Também apelidado de «Ensinamento dos Doze Apóstolos», é o nome de um tratado primitivo cristão que contém instruções para comunidades cristãs. É provavelmente o primeiro catecismo escrito. (N. da T.)

 

Malone colocou-se à sombra dos choupos que decoravam o promontório, e esperou que Cassiopia revelasse o que mais ninguém sabia.

- Por que razão entregou o diário de Lars Nelle a De Roquefort?

- Porque não serve para nada.

Reparou numa centelha de divertimento no seu olhar.

- Sempre pensei que continha os pensamentos mais secretos e privados de Lars. Para além de informações que ele nunca publicou, ou seja, a chave para tudo.

- Há algo de verdade nisso, mas não é a chave para nada. Lars criou-o apenas para os templários.

- Claridon podia ter conhecimento disso?

- Não creio. Lars era um homem muito reservado e nunca contava tudo. Disse uma vez que era preciso ser-se paranóico para sobreviver no tipo de trabalho que ele realizava.

- Como sabe?

- Henrik estava atento. Lars nunca revelou os detalhes, mas contou-lhe os seus encontros com os templários. Certa vez, acreditou mesmo ter falado com o mestre da Ordem. Falaram em várias ocasiões, mas De Roquefort acabou por entrar em cena e era um homem mais agressivo e intolerante. Assim, Lars criou o diário como uma diversão para De Roquefort.

- E poderia o mestre dos templários ter conhecimento disso? Quando Mark foi levado para a abadia, tinha o diário com ele. O mestre guardou-o durante cinco anos e só há um mês o enviou a Stephanie.

- É difícil dizer. Porém, se o diário foi enviado a Stephanie, é possível que o mestre tivesse calculado que De Roquefort iria mais uma vez tentar obtê-lo. Pelos vistos queria envolvê-la, e que melhor maneira de o fazer senão tentá-la com algo irresistível?

Era uma jogada inteligente, tinha de admitir. E funcionara.

- Estou em crer que o mestre achou que Stephanie recorreria aos seus vastos recursos para a ajudar nesta demanda - afirmou Cassiopia.

- Não a conhecia. É demasiado teimosa. Primeiro tentou fazer tudo sozinha.

- Mas você estava lá para a ajudar.

- Que sorte a minha.

- Ora, não é assim tão mau. Caso contrário não me teria conhecido.

- Como disse, sorte a minha.

- Vou considerar esse comentário como um elogio para não ficar ofendida.

- Duvido que se ofenda por tão pouco.

- Portou-se muito bem em Copenhaga - afirmou ela. - E depois novamente em Roskilde.

- Estava na catedral?

- Durante algum tempo, mas saí assim que o tiroteio começou. Teria sido impossível ficar sem revelar a minha presença e Henrik queria que isso permanecesse em segredo.

- E se eu não tivesse sido capaz de travar aqueles homens?

- Impossível! - exclamou ela, e sorriu a Malone. - Diga-me uma coisa, ficou muito chocado ao ver aquele irmão saltar da Torre Redonda?

- Não é algo que se veja todos os dias.

- Cumpriu o seu voto. Ao ver-se encurralado, escolheu a morte para não desmascarar a Ordem.

- Presumo que estava lá por eu ter dito a Henrik que Stephanie planeava visitar-me.

- Em parte. Quando fui informada da morte inesperada de Ernst Scoville fiquei a saber pelos idosos de Rennes que ele falara com Stephanie e que ela vinha a França. São todos entusiastas do mistério, e passam os dias a jogar às cartas e a fantasiar sobre Saunière. Scoville gabara-se de que queria apenas ficar com o diário de Lars e pouco se importava com Stephanie, embora lhe tenha dado a entender o contrário. É óbvio que também ele desconhecia a inutilidade do livro. A sua morte despertou as minhas suspeitas, e foi nessa altura que contactei Henrik e fiquei a saber da visita de Stephanie à Dinamarca. Decidimos que o melhor seria eu também dar um pulo até lá.

- E Avinhão?

- Tinha um informador no asilo. Ninguém acreditava que Claridon fosse doido. Oportunista, aldrabão, falso, isso sim, louco nunca. Assim, vigiei-o até ao dia em que o foi buscar. Henrik e eu sabíamos que existia alguma coisa nos arquivos do Palácio dos Papas, só não sabíamos o quê. Como Henrik mencionou ao almoço Mark e ele nunca se conheceram. O filho de Lars era mais reservado que o pai. Fez apenas algumas buscas e creio que se destinaram a manter a memória do pai viva, nada mais. Tudo o que possa ter encontrado, manteve em segredo. Ele e Claridon deram-se durante algum tempo. Depois, quando Mark desapareceu na avalanche e Claridon se escondeu no asilo, eu e Henrik desistimos.

- Até agora.

- Sim, a demanda voltou a renascer e desta vez é possível que cheguemos mais longe. - Malone esperou que ela explicasse aquela afirmação. - Temos o livro do leilão e também temos A Ler as Regras de Caridad.

- De Roquefort ficou com a litografia.

- Não é a única imagem que existe do quadro. Já encontrei muitas na Internet. Juntos podemos muito bem descobrir o que Saunière encontrou, uma vez que somos os primeiros a possuir tantas peças do quebra-cabeças.

- E o que fazemos, se encontrarmos alguma coisa?

- Como muçulmana gostaria de contar ao mundo. Como realista, não sei. A arrogância histórica do cristianismo é revoltante. Espantoso como toda a história ocidental é moldada pelos seus preceitos tacanhos. A arte, a arquitectura, a música, a escrita e até a própria sociedade, transformaram-se em servos do cristianismo. Esse movimento simples acabou por transformar-se no molde no qual a civilização ocidental se baseou e é provável que tudo esteja assente sobre uma mentira. Não gostaria de saber?

- Não sou uma pessoa religiosa.

Nos lábios dela, desenhou-se outro sorriso.

- Mas é um homem curioso. Henrik fala da sua coragem e intelecto com reverência. Um bibliófilo com uma memória eidética. Uma combinação e tanto.

- Também sei cozinhar.

Cassiopia soltou uma gargalhada.

- Não me engana. Encontrar o Grande Legado também seria importante para si.

- Digamos que seria uma descoberta fora do vulgar.

- Pronto, está bem, não insisto mais. Mas se o encontrarmos sempre quero ver a sua reacção.

- Está assim tão confiante no nosso sucesso?

Cassiopia estendeu os braços em direcção ao contorno distante dos Pirenéus.

- Está algures por aí, disso não tenho dúvida. Saunière encontou-o, nós também conseguiremos.

Stephanie voltou a considerar o que Thorvaldsen dissera sobre o Novo Testamento e repetiu:

- A Bíblia não é um documento literal.

Henrik abanou a cabeça.

- Muitos cristãos não aceitariam esse argumento. Para eles a Bíblia é a Palavra de Deus.

Stephanie encarou o filho.

- O teu pai acreditava que a Bíblia não era a Palavra de Deus?

- Falámos sobre esse assunto muitas vezes. Eu, ao início, acreditava e argumentava com ele, mas depois acabei por concordar com o pai. É um livro de histórias. Histórias gloriosas destinadas a ensinar o bem. Há até uma certa grandeza nelas, se pusermos em prática a moral que elas encerram. Não creio que seja necessariamente a Palavra de Deus. Para mim, basta que as suas palavras sejam verdadeiras e intemporais.

- Elevar Cristo a um estatuto de divindade foi uma maneira de aumentar a importância da mensagem - explicou Thorvaldsen:

- Quando a religião organizada se estabeleceu no século III e IV, acrescentou-se tanta coisa à história que é impossível saber qual o seu âmago. Lars queria mudar tudo isso. O seu desejo era descobrir o que os templários em tempos haviam possuído. Quando há anos tomou conhecimento da existência de Rennes-le-Château, convenceu-se de imediato de que Saunière descobrira o Grande Legado e dedicou a sua vida à resolução desse mistério. Stephanie ainda não estava convencida.

- Mas como podem vocês ter a certeza que eles esconderam alguma coisa? Não foram todos aprisionados de surpresa? Como poderiam ter tido tempo de esconder fosse o que fosse?

- Estavam preparados - disse Mark. - As Crónicas deixam isso bem claro. Aquilo que Filipe IV tentou não foi novidade. Cem anos antes ocorrera um incidente com Frederico II, imperador da Alemanha e rei da Sicília. Em 1228, chegou à Terra Santa como excomungado, o que significava que não podia liderar uma cruzada. Os templários e os hospitalários permaneceram fiéis aos papas e recusaram-se a segui-lo. Apenas os seus cavaleiros teutónicos alemães o acompanharam. Acabou por negociar um tratado de paz com os sarracenos, que criava uma Jerusalém dividida. Com esse tratado, o quartel-general dos templários passaria a pertencer aos muçulmanos. Podem imaginar o que os irmãos pensavam do rei. Frederico II era tão amoral quanto Nero, e universalmente odiado. Chegou mesmo a tentar raptar o mestre da Ordem. Em 1229, deixou por fim a Terra Santa, e quando se dirigia para o porto de Acre os locais atiraram-lhe com excrementos. O rei odiava os templários pela sua deslealdade e assim que chegou à Sicília confiscou as suas propriedades e mandou prender os irmãos. Tudo isto está registado nas Crónicas.

- Isso significa que a Ordem estava preparada? - perguntou Thorvaldsen.

- A Ordem já testemunhara em primeira mão o que um rei descontente lhes poderia fazer. Filipe IV não se distinguiu muito. Enquanto jovem tentara juntar-se aos templários, mas fora recusado, e desenvolveu um ressentimento profundo contra a irmandade. No início do seu reinado, os templários chegaram até a salvar Filipe, quando este tentou desvalorizar a moeda francesa e o povo se revoltou, dando-lhe refúgio no Templo de Paris. Depois disso, sentiu-se em dívida para com os templários e como sabemos os monarcas não gostam de ficar em dívida para com ninguém. Por isso em Outubro de 1307, a Ordem estava preparada. Infelizmente, nada ficou registado que nos diga que medidas foram tomadas. - Mark fitou Stephanie. - O pai deu a vida para tentar resolver este mistério.

- Ele adorava pesquisar, não era? - perguntou Thorvaldsen. Em vez de responder ao dinamarquês, Mark continuou a fitar a mãe.

- Era uma das poucas coisas que o deixava verdadeiramente feliz. Ansiava por agradar à mulher e a si mesmo, mas falhou em ambos os casos. Por isso, decidiu deixar-nos.

- Nunca quis acreditar que ele se tinha suicidado - disse Stephanie ao filho.

- Mas nunca saberemos isso, pois não?

- Talvez possam vir a saber - afirmou Geoffrey. Pela primeira vez desde que a conversa começara, o jovem levantou o olhar do tampo da mesa. - O mestre disse que poderão vir a descobrir a verdade sobre a sua morte.

- O que sabes sobre isto? - perguntou ela.

- Sei apenas aquilo que o mestre me disse.

- O que te contou ele sobre o meu pai?

Havia raiva no olhar de Mark e Stephanie nunca o vira explodir daquela maneira com alguém que não fosse ela.

- Isso terá de ser descoberto por si. Não sei. - A voz dele parecia estranha, vazia e conciliatória. - O mestre pediu-me que fosse tolerante com as suas reacções. Deixou claro que o senescal era o meu superior e que devia sempre respeitá-lo.

- Mas pareces ser o único com respostas - argumentou Stephanie.

- Não. Sei apenas alguns pormenores. Segundo o mestre, as respostas deverão partir de vós.

 

Malone seguiu Cassiopia para o interior de uma sala com tecto de traves e paredes decoradas com tapeçarias. Uma lareira de mármore negro dominava a sala oblonga, iluminada por um candelabro impressionante. Os outros juntaram-se a eles vindos da sala de jantar e Malone reparou nas expressões sérias nos rostos de todos. Junto às janelas, encontrava-se uma mesa de mogno sobre a qual estavam espalhados livros, papéis e fotografias.

- Vamos lá ver se conseguimos chegar a algumas conclusões - disse Cassiopia. - Sobre aquela mesa encontra-se tudo o que tenho sobre este assunto.

Malone contou aos outros a verdade sobre o diário de Lars e como alguma da informação nele contida era falsa.

- Isso inclui o que ele escreveu a meu respeito? - perguntou Stephanie. - Este jovem aqui - disse, e apontou para Geoffrey - enviou-me páginas que o mestre dele tinha arrancado ao diário, páginas essas que falavam de mim.

- Só a senhora pode saber se o que ele escreveu era verdade ou parte da diversão - esclareceu Cassiopia.

- Ela tem razão - avançou Thorvaldsen. - Grande parte do diário não passa de uma farsa. Lars criou-o como isco para os templários.

- Outro detalhe que resolveu omitir em Copenhaga - protestou Stephanie.

Thorvaldsen não se deixou atingir pelo comentário.

- O importante era que De Roquefort pensasse que o diário era genuíno.

Stephanie endireitou-se na cadeira.

- Seu filho da mãe, podíamos ter morrido a tentar recuperá-lo.

- Mas não morreram. Cassiopia esteve sempre de olho em vocês.

- E isso justifica o que fez?

- Nunca ocultou informações a algum dos seus agentes?

Ela não respondeu.

- Henrik tem razão - disse Malone. Stephanie olhou-o indignada.

- Quantas vezes me contou apenas parte da história? - perguntou Malone. - Quantas vezes me queixei mais tarde que essa atitude poderia ter-me custado a vida? E o que respondia sempre? «Habitue-se.» O mesmo se aplica aqui, Stephanie. Também não me agrada, mas acabei por me habituar.

- E se parássemos de discutir e tentássemos chegar a um consenso sobre as descobertas de Saunière? - pediu Cassiopia.

- E por onde sugere que comecemos? - questionou Mark.

- Diria que a lápide de Marie d'Hautpoul de Blanchefort seria um bom começo, uma vez que possuímos o livro de Stüblein que Henrik comprou no leilão. - Apontou para a mesa. - Está aberto no desenho.

Todos se aproximaram e observaram o esboço.

- Claridon explicou tudo isto em Avinhão - declarou Malone, e falou-lhes da data da morte errada, 1681 em vez de 1781, do numeral romano, MDCOLXXXI, que continha o zero, e do restante conjunto de números romanos, LIXLIXL, marcados na parte inferior da pedra.

Mark agarrou num lápis que se encontrava sobre a mesa e escreveu 1681 e 59, 59, 50 num bloco de folhas em branco.

- É a conversão daqueles números. Estou a ignorar o zero em 1681. Claridon tem razão, não existe o zero na numeração romana.

Malone apontou para as letras gregas escritas na pedra da esquerda.

- O francês explicou que se tratava de palavras latinas escritas no alfabeto grego. Converteu as letras e o resultado foi Et in arcadia ego «E em Arcádia eu.» Pensou que se trataria de um anagrama, uma vez que a frase não faz qualquer sentido.

Mark estudou as palavras atentamente e depois pediu a mochila a Geoffrey. Desta retirou uma toalha muito bem dobrada. Abriu-a e no seu interior encontrava-se um pequeno códice. As suas folhas tinham sido dobradas, depois cosidas e por fim encadernadas.

Vellum (1) se Malone não estava enganado. Nunca vira um no qual pudesse tocar.

 

Nota 1: Documento escrito em pergaminho. (N. da T.)

 

- Este livro pertence aos arquivos da Ordem. Descobri-o há alguns anos, assim que me tornei senescal. Foi escrito em 1542 por um dos escribas da abadia e relata a forma como os templários se reagruparam após a perseguição. Também abrange os meses entre Dezembro de 1306 e Maio de 1307, uma altura em que Jacques de Molay se encontrava em França e pouco se sabe sobre as suas movimentações.

Mark abriu cuidadosamente o volume e folheou as páginas até encontrar o que procurava. Malone viu o texto latino, as letras desenhadas a pena e tinta.

- Oiçam isto.

O nosso mestre, o venerado e devoto Jacques de Molay recebeu o enviado do papa no dia 6 de Junho de 1306 com a pompa e circunstância reservada apenas aos altos dignitários. A mensagem dizia que Sua Santidade, o papa Clemente V, requeria a presença do mestre De Molay em França. O nosso mestre respondeu que obedeceria ao chamado, mas antes de deixar a ilha de Chipre, onde a Ordem estabelecera o seu quartel-general, o nosso mestre foi informado de que o líder dos Hospitalários também fora convocado, mas que recusara apresentar-se junto do papa, argumentando que deveria permanecer junto da sua Ordem em tempo de conflitos. Isto despertou alguma desconfiança no nosso mestre, que decidiu aconselhar-se junto dos seus oficiais. Sua Santidade também lhe havia pedido que viajasse incógnito e com uma guarda reduzida. Este pedido originou ainda mais suspeitas, pois não competia a Sua Santidade ditar a forma como o nosso mestre atravessava as suas terras. Foi também entregue ao nosso mestre um estranho documento, intitulado De Recuperatione Terrae Sanctae, sobre a recuperação da Terra Santa. O manuscrito era da autoria de um dos advogados de Filipe IV e nele se planeava uma nova e grande cruzada liderada por um Rei Guerreiro e com o objectivo de recuperar a Terra Santa aos infiéis. Esta proposta era uma afronta directa aos planos da nossa Ordem, e fez com que o nosso mestre questionasse os motivos da sua ida à corte. O nosso mestre deixou bem claro que desconfiava do monarca francês, mas que seria impróprio e insensato dar voz a tais desconfianças para lá das muralhas do nosso Templo. Sendo um homem cuidadoso, e recordando-se da traição de Frederico II, o nosso mestre fez planos para que a nossa sabedoria e riqueza não se perdessem. Rezou para que estivesse errado, mas não via razão para partir sem estar preparado para o pior. O irmão Gilbert de Blanchefort foi chamado e sobre ele recaiu a tarefa de levar o tesouro do Templo. O nosso mestre disse depois a Blanchefort: «A liderança da Ordem pode estar em risco. Assim, nenhum de nós deverá saber o que tu sabes e deves assegurar-te de que aquilo que sabes é passado a outros de forma correcta.» O irmão De Blanchefort, sendo um homem culto, partiu para cumprir a sua missão e em segredo escondeu tudo o que a Ordem possuía. Pediu ajuda a quatro irmãos e escolheram quatro palavras como sinal ET IN ARCADIA EGO. No entanto, as letras são uma mistura da verdadeira mensagem. Quando colocadas pela ordem correcta revelam o significado da sua missão, i TEGO ARCANA DEI.

- «Eu oculto os segredos de Deus» - revelou Mark, traduzindo a última linha. - Os anagramas também eram bastante comuns no século XIV.

- Então De Molay estava preparado? - perguntou Malone.

- Claro. O mestre veio para França com sessenta cavaleiros, cento e cinquenta mil florins de ouro e doze cavalos de carga carregados de prata. Sabia que ia haver sarilhos e aquele dinheiro seria utilizado para comprar a sua imunidade. No entanto, há algo nesta traição que é muito pouco conhecido. O comandante do contingente dos templários no Languedoc era Seigneur de Goth. O papa Clemente V, o homem que requerera a presença de De Molay, chamava-se Bertrand de Goth. A mãe do papa era Ida de Blanchefort, parente de Gilbert de Blanchefort. Como podem ver, De Molay possuía boas informações.

- Isso ajuda sempre - afirmou Malone.

- De Molay também sabia algo relativo a Clemente V. Antes da sua eleição como papa, Clemente encontrou-se com Filipe IV. O rei tinha o poder de entregar o papado a quem bem entendesse e, antes de o dar a Clemente, impôs seis condições. A maior parte estava relacionada com o poder de fazer quase tudo, mas a sexta dizia respeito aos templários. Filipe queria ver a Ordem desfeita e Clemente concordou.

- Muito interessante - disse Stephanie. - Porém, o que me parece mais importante neste momento é o que o abade Bigou sabia. Foi ele quem encomendou a campa de Marie. Saberia ele da ligação entre o segredo da família De Blanchefort e os templários?

- Sem dúvida - declarou Thorvaldsen. - Foi a própria Marie d'Hautpoul de Blanchefort que confidenciou o segredo da família a Bigou. O marido era descendente directo de Gilbert de Blanchefort. Assim que a Ordem foi aprisionada e os irmãos começaram a arder nas fogueiras, Gilbert não iria revelar a ninguém a localização do Grande Legado. Desse modo, o segredo da família tem de estar relacionado com os templários. Que mais poderia ser?

Mark acenou com a cabeça em sinal de concordância.

- As Crónicas falam de carroças cobertas por palha que atravessaram os campos de França em direcção a sul, aos Pirenéus, escoltadas por homens armados, disfarçados de camponeses. Todas, com excepção de três, fizeram a viagem em segurança. Infelizmente não há qualquer referência ao destino. Existe apenas uma pista nas Crónicas. «Qual é o melhor lugar para esconder uma pedra?»

- No meio de um monte de pedras - respondeu Malone.

- O mestre disse o mesmo - revelou Mark. - Para a mente do século XIV, os locais mais óbvios eram os mais seguros.

Malone voltou a observar o desenho da lápide.

- Então Bigou mandou gravar esta pedra que, em código, diz que ele esconde os segredos de Deus, e deu-se ao trabalho de a colocar num local público. Para quê? Falta-nos aqui qualquer coisa.

Mark voltou a pegar na mochila e retirou outro livro do interior.

- Este é um relato escrito pelo marechal da Ordem em 1897. O irmão andava a investigar Saunière e descobriu outro padre, o abade Gélis, numa aldeia próxima, que também encontrara um criptograma na sua igreja.

- Tal como Saunière - disse Stephanie.

- Exactamente. Gélis tinha decifrado o criptograma e queria informar o bispo. O marechal fez-se passar por representante do bispo e copiou o quebra-cabeças. No entanto, não apontou a solução.

Mark mostrou-lhes o criptograma, e Malone estudou os símbolos e as letras.

- É preciso uma chave numérica para decifrar isto, não é?

- Sim. É impossível descobrir a solução sem a chave. Existem milhares de combinações possíveis.

- Existia um quebra-cabeças destes no diário do teu pai - disse Malone.

- Eu sei. O meu pai encontrou-o no manuscrito de Noël Corbu.

- Claridon falou-nos disso.

- O que significa que por esta altura De Roquefort também já o tem - lamentou Stephanie. - Mas fará parte da ficção do diário de Lars?

- Tudo em que Corbu tenha tocado tem de ser considerado suspeito - esclareceu o dinamarquês. - Ele romantizou toda a história de Saunière para promover o seu maldito hotel.

- Mas escreveu o manuscrito - contrapôs Mark. - O meu pai sempre acreditou que era verdadeiro. Corbu foi amigo da amante de Saunière até esta morrer, em 1953. Muitos acreditavam que ela lhe revelou algumas coisas, razão pela qual Corbu nunca publicou o manuscrito. Entrava em contradição com a sua versão ficcionada da história.

- Mas de certeza que o criptograma no diário é falso - disse Thorvaldsen. - Isso seria precisamente o que De Roquefort mais desejaria do diário.

- Só podemos esperar que seja - retorquiu Malone enquanto observava o quadro A Ler as Regras de Caridad que estava sobre a mesa. Levantou a pequena reprodução e estudou as letras escritas sob o rapaz vestido com hábito de monge.

ACABOCK A° DE 1681

Algo estava errado e não tardou a recordar-se que a data na litografia de Avinhão era 1687.

Contou aos outros do que acabara de se lembrar.

- Passei esta manhã a tentar saber tudo o que podia sobre o quadro - disse Cassiopia. - Foi destruído por um incêndio nos finais dos anos cinquenta, mas antes disso a tela tinha sido limpa e preparada para exposição. Durante o processo de restauro descobriu-se que 1687 era na verdade 1681. É claro que a litografia guardada no Palácio dos Papas foi feita numa altura em que a data não parecia essa.

Stephanie abanou a cabeça.

- Isto é um quebra-cabeças sem solução. Tudo muda a cada instante.

- Estão a fazer precisamente aquilo que o mestre desejava - revelou Geoffrey. Todos olharam para ele. - O mestre disse que assim que se juntassem, tudo seria revelado.

Agora Malone estava confuso.

- Mas o vosso mestre também nos alertou contra o Engenheiro.

Geoffrey apontou para Cassiopia.

- Talvez devam ter cuidado com ela.

- Que significa isso? - perguntou o dinamarquês.

- A raça dela lutou contra os templários durante dois séculos.

- Na verdade, os muçulmanos derrotaram os irmãos e correram com eles da Terra Santa - aventou Cassiopia. - E os muçulmanos espanhóis também não lhes facilitaram a vida aqui no Languedoc quando os templários tentaram expandir os seus domínios para lá dos Pirenéus. Por isso, o vosso mestre tinha razão. Cuidado com o engenheiro.

- O que faria se encontrasse o Grande Legado? - perguntou-lhe Geoffrey.

- Depende do que encontrarmos.

- O que importa o conteúdo? Seja o que for, o Legado não lhe pertence.

- É muito ousado para um simples irmão da Ordem.

- Há aqui demasiadas coisas em jogo. A sua ambição em provar que o cristianismo é uma mentira é a menor delas.

- Não me recordo de ter dito que essa era a minha ambição.

- O mestre sabia.

- O vosso mestre nada sabia das minhas motivações - respondeu ela de olhos fixos em Geoffrey e num tom de voz severo.

- E ao mantê-las em segredo mais não faz do que confirmar as suspeitas dele - argumentou o irmão.

Cassiopia voltou-se para Thorvaldsen.

- Este jovem pode vir a ser um problema.

- Foi enviado pelo mestre - explicou Henrik. - Não devemos questionar a sua presença.

- Vai dar problemas - declarou ela.

- Até pode ser que sim - disse Mark -, mas Geoffrey faz parte do grupo, por isso habitue-se.

Manteve-se calma e perguntou:

- Confia nele?

- Isso não interessa - respondeu Mark. - O mestre confiava nele e isso é que importa, mesmo que o irmão, às vezes, possa ser irritante.

Cassiopia não insistiu, mas a expressão dela não era de aprovação e Malone até a compreendia.

Voltou a sua atenção para a mesa e observou as imagens a cores da Igreja de Maria Madalena. Reparou no jardim com a estátua da Virgem e as palavras MISSION 1891 e PENITENCE PENITENCE: gravadas no pilar virado ao contrário. Viu uma a uma as fotos das estações da via-sacra, e parou por momentos na estação 10, na qual um soldado romano joga aos dados pelas vestes de Cristo, os números três, quatro e cinco visíveis na face dos dados. Depois parou na estação 14, que mostrava o corpo de Jesus a ser transportado a coberto da noite por dois homens.

Recordou-se do que Mark dissera na igreja e não pôde deixar de se interrogar. Estariam a entrar ou a sair do sepulcro?

Abanou a cabeça.

O que se estaria a passar ali?

 

17 h 30 m

De Roquefort encontrou o sítio arqueológico de Givors, bem assinalado no mapa da Michelin, e aproximou-se com alguma cautela. Não queria que soubessem da sua presença. Ainda que Malone e o seu grupo não se encontrassem ali, Cassiopia Vitt conhecia-o. Assim, ao chegar, pediu ao motorista que prosseguisse devagar pela clareira que servia de parque de estacionamento até encontrarem um Peugeot da mesma cor e modelo e com o autocolante da empresa de aluguer colado no pára-brisas.

- Estão aqui - afirmou. - Estaciona. O motorista obedeceu à ordem.

- Vou dar uma vista de olhos - disse aos outros dois irmãos e a Claridon. - Esperem aqui, mas não deixem que vos vejam.

Saiu do carro. O sol do final de tarde pintava as muralhas de vermelho. Respirou o ar frio e puro que lhe fez recordar a abadia. Tinham seguramente subido em altitude.

Olhou em redor e não tardou a ver o caminho ladeado de árvores. No entanto, decidiu que o melhor seria manter-se fora de qualquer caminho definido, e optou por fazer o percurso por entre as árvores. Todo o cenário circundante fora em tempos dominado pelos templários. Uma das maiores e mais importantes oficinas havia coroado uma colina ali próxima. Era um dos vários locais onde os irmãos laboravam noite e dia para fazerem o armamento da Ordem. Sabia que tinham dedicado muito trabalho à técnica de compactar madeira, couro e metal, que depois transformavam em escudos quase inquebráveis. Contudo, a espada tinha sido sempre o melhor amigo do cavaleiro templário. Os barões chegavam a gostar mais das suas espadas do que das mulheres e os irmãos alimentavam uma paixão semelhante, encorajada pela Regra. Porém, as espadas dos templários em nada se assemelhavam às dos barões. Os punhos não eram decorados com ouro ou com fileiras de pérolas. Os botões das extremidades dos punhos não continham relíquias. Os cavaleiros templários não precisavam desse tipo de talismãs, pois a sua força provinha da fé em Deus e da obediência à Regra. O seu companheiro era o cavalo, de preferência rápido e inteligente. Cada cavaleiro possuía três animais, que eram alimentados, penteados e treinados todos os dias, e que retribuíam esse afecto com uma lealdade sem precedentes. Lera certa vez a história de um irmão que ao regressar a casa vindo de uma cruzada fora mais depressa reconhecido pelo seu fiel garanhão do que abraçado pelo pai. E eram sempre garanhões. Cavalgar uma égua era impensável. O que dissera uma vez um cavaleiro? «A mulher para a mulher.»

Continuou a andar. O odor da terra e dos arbustos despertava-lhe a imaginação e quase que conseguia ouvir os cascos pesados a esmagarem as briófitas e as flores. Tentou ouvir outros barulhos, mas os grilos e os gafanhotos interferiam. Estava atento a qualquer tipo de vigilância electrónica, mas ainda não detectara nada. Avançou por entre os altos pinheiros. Afastou-se cada vez mais do caminho de gravilha e embrenhou-se na floresta a cada passo. O suor começava a escorrer-lhe pelo rosto.

Monges guerreiros. Era nisso que os irmãos se haviam transformado e ele gostava daquele termo.

São Bernardo de Claraval justificara a existência dos templários ao glorificar a morte dos não-cristãos. «Ao causar a morte ou morrerem, quando em nome de Cristo, nada praticam de criminoso, sendo antes merecedores de gloriosa recompensa. O Soldado de Cristo mata com segurança e morre com uma segurança ainda maior. Não é sem razão que ele empunha a espada. É um instrumento de Deus para o castigo dos malfeitores e defesa dos justos. Na verdade, quando mata um malfeitor isso não é homicídio e ele é considerado o carrasco legítimo de Cristo.»

Conhecia bem aquelas palavras. Eram ensinadas a cada noviço. Repetira-as silenciosamente quando vira morrer Lars Nelle, Ernst Scoville e Peter Hansen. Eram todos hereges. Homens que ameaçavam a Ordem. Malfeitores. Agora havia mais uns quantos nomes a acrescentar a essa lista. Os dos homens e mulheres que ocupavam a casa senhorial que começava agora a surgir por entre as árvores, abrigada por entre escarpas rochosas.

Na pesquisa que fizera antes de sair da abadia ficara a saber que a casa fora em tempos uma residência real, uma das muitas casas de Catarina de Médicis, e que escapara à Revolução graças ao seu isolamento. Cassiopia Vitt era obviamente uma mulher abastada. Casas como aquela exigiam grandes somas de dinheiro, tanto na sua compra como na sua manutenção, e De Roquefort duvidava que ela organizasse visitas para ajudar a pagar as despesas. Não, aquela era a residência privada de uma alma isolada que já por três vezes se intrometera nos seus assuntos. Uma alma da qual tinha de tratar. No entanto, também precisava dos dois livros que Mark Nelle roubara dos arquivos da Ordem. Por isso, qualquer atitude mais drástica estava fora de questão.

A noite aproximava-se e as sombras começavam a tapar a casa. A mente fervilhava-lhe de ideias.

Precisava de ter a certeza que estavam todos lá dentro. O local onde se encontrava era demasiado próximo da casa, mas avistou um aglomerado de faias a duzentos metros e que seriam um ponto de observação perfeito, permitindo-lhe ver a entrada principal.

Tinha de partir do pressuposto de que estariam à sua espera. Depois do que acontecera em casa de Lars Nelle, por certo já teriam percebido que Claridon estava a trabalhar para ele. Contudo, talvez não o esperassem tão cedo. Era óptimo. Precisava de regressar à abadia. Os seus oficiais esperavam-no para o conselho.

Decidiu deixar ali os dois irmãos de guarda. Seria o suficiente por agora.

Mas não tardaria a regressar.

 

20 h 00

Stephanie não se recordava da última vez em que ela e Mark se tinham sentado para conversar. Talvez isso não acontecesse desde a adolescência do filho. Era esse o tamanho do fosso que existia entre eles.

Agora tinham-se retirado para uma sala no andar superior de uma das torres. Antes de se sentar, Mark abriu quatro janelas pequenas, e deixou entrar a brisa fresca do fim da tarde.

- Podes não acreditar, mas todos os dias penso em ti e no teu pai. Sempre o amei. Contudo, quando descobriu a história de Rennes, ficou completamente obcecado e nessa altura isso custou-me muito.

- Entendo isso, mãe, a sério. O que não percebo é por que razão o fez escolher entre si e aquilo que ele considerava importante.

A rispidez dele fê-la estremecer e teve de se controlar para manter a calma.

- No dia do funeral entendi o quanto errara, mas já não o podia trazer de volta.

- Odiei-a nesse dia.

- Eu sei.

- E mesmo assim fugiu para casa e deixou-me em França.

- Pensei que era isso que desejavas.

- E era, mas tive muito tempo para reflectir nos últimos cinco anos. O mestre defendeu-te, embora só agora comece a entender muitos dos seus comentários. No Evangelho de Tomé, Jesus diz:

«Quem não odiar seu pai e sua mãe não pode ser meu discípulo.» Depois diz: «Quem não amar seu pai e sua mãe como eu não pode ser meu discípulo.» Começo a perceber essas declarações contraditórias. Odiava-te, mãe.

- E agora, amas-me?

Mark não respondeu e o seu silêncio foi como uma pedrada no coração. Por fim disse:

- É minha mãe.

- Isso não é resposta.

- É a única que terá.

O rosto dele, tão parecido com o de Lars, era uma mistura de emoções antagónicas. Resolveu não o pressionar mais. O momento de exigir alguma coisa há já muito que passara.

- Ainda trabalha para o Magellan Billet? - perguntou ele. Stephanie apreciou a mudança de assunto.

- Acho que sim, tendo em consideração que devo ter abusado da sorte nestes últimos dias. Cotton e eu não temos passado despercebidos.

- Ele parece ser um bom homem.

- Sem dúvida. Não o queria envolver em nada disto, mas ele insistiu. Trabalhou para mim durante muito tempo.

- É bom ter amigos assim.

- Tu também tens um.

- Geoffrey? É mais um oráculo do que um amigo. O mestre juntou-o a mim, mas não sei porquê.

- Ele seria capaz de te defender com a própria vida. Isso é óbvio.

- Não estou habituado a que as pessoas dêem a vida por mim.

Stephanie recordou-se daquilo que o mestre escrevera na carta, sobre Mark não possuir a determinação necessária para terminar as suas batalhas. Contou-lhe exactamente o que vinha na carta e ele ouviu em silêncio.

- O que terias feito se tivesses sido eleito mestre? - perguntou ela.

- Uma parte de mim ficou feliz por ter perdido.

Ficou boquiaberta.

- Porquê?

- Sou um professor universitário, não um líder.

- És um homem no meio de um conflito importante. Um conflito que outros esperam ver resolvido.

- O mestre tinha razão a meu respeito.

Stephanie fitou-o com desânimo.

- O teu pai teria ficado envergonhado se te ouvisse dizer isso.

Ficou à espera da explosão de raiva do filho, mas Mark limitou-se a permanecer sentado em silêncio enquanto lá fora os insectos enchiam a noite de sons.

- Devo ter morto um homem hoje - revelou Mark num murmúrio. - O que diria o pai disso?

Já estava à espera que ele mencionasse esse facto. Desde que tinham saído de Rennes que não contara um único pormenor sobre o que se tinha passado.

- Cotton disse-me. Não tiveste escolha. Deste-lhe a oportunidade de se afastar, mas ele optou por te desafiar.

- Vi o corpo rebolar pela colina. Que estranhas as coisas que sentimos quando sabemos que tirámos a vida a alguém.

Stephanie esperou que ele explicasse.

- Estava satisfeito por ter puxado o gatilho, pois isso significava que tinha sobrevivido. Mas outra parte de mim sentia-se em agonia, porque o mesmo não acontecera ao outro homem.

- A vida é uma sucessão de escolhas. Ele escolheu mal.

- Fazes isso com alguma frequência, não é? Esse tipo de decisões?

- Acontecem todos os dias.

- O meu coração não é suficientemente frio para isso.

- E o meu é? - perguntou Stephanie, ofendida com a insinuação.

- Diga-me a mãe.

- Cumpro as minhas obrigações, Mark. Foi aquele homem que escolheu o seu próprio destino, não tu.

Não. Foi De Roquefort que escolheu. Foi ele quem o enviou para aquele precipício, sabendo que haveríamos de nos defrontar. A escolha foi dele.

- É esse o problema da tua Ordem, Mark. A lealdade inquestionável não é uma coisa boa. Não houve país, exército ou líder que tivesse sobrevivido depois de insistir numa tolice dessas. Os meus agentes fazem as suas próprias escolhas.

Durante alguns instantes fez-se silêncio.

- Tem razão - murmurou ele, por fim. - O pai teria vergonha de mim.

Decidiu arriscar.

- Mark, o teu pai já morreu há muito tempo. Durante cinco anos pensei que também tu tivesses morrido, mas estás aqui, agora. Achas que podes perdoar-me?

Ele levantou-se da cadeira e respondeu:

- Não, mãe, não posso.

E saiu.

Malone sentou-se no exterior à sombra de uma pérgula coberta de folhas verdes. Apenas os insectos perturbavam a sua tranquilidade enquanto observava os morcegos a esvoaçarem no céu. Há pouco Stephanie chamara-o à parte e contara-lhe que o telefonema que fizera para Atlanta a pedir informações sobre a sua anfitriã revelara que o nome de Cassiopia Vitt não constava de nenhuma das bases de dados de terroristas que o governo americano mantinha. O historial dela era irrepreensível, embora o facto de ser meio muçulmana levantasse sempre algumas suspeitas. Era dona de uma empresa multicontinental com sede em Paris e negócios nos mais variados ramos. A empresa fora fundada pelo pai e ela herdara a presidência, embora pouco ou nada se envolvesse nos negócios. Era também presidente de uma fundação dinamarquesa que trabalhava em parceria com as Nações Unidas na ajuda às vítimas da fome e da SIDA, especialmente em África. Não havia nenhum governo que a considerasse uma ameaça.

Apesar disso, Malone não tinha tanta certeza. Surgiam novas ameaças todos os dias, a maior parte das vezes de lugares de onde menos se esperava.

- Tão absorto.

Ergueu a cabeça e viu Cassiopia junto à pérgula. Vestia um fato de montar preto que lhe salientava as formas.

- Estava a pensar em si.

- Sinto-me lisonjeada.

- Não é caso para tanto. - Apontou para a roupa dela. - Estava a perguntar-me onde se teria metido.

- Tento dar uma volta a cavalo todas as noites. Ajuda-me a pensar.

Sentou-se a seu lado.

- Mandei construir esta pérgula há muitos anos, em homenagem à minha mãe. Ela adorava o ar livre. - Malone pressentiu que havia um motivo por trás daquela visita. - Notei há pouco que parece ter dúvidas relativamente a tudo isto. Não quer desafiar a sua Bíblia cristã?

Não lhe apetecia falar sobre aquilo, mas ela parecia determinada.

- Nada disso. É por a Cassiopia optar por desafiar a Bíblia. Parece que toda a gente nesta demanda tem interesses pessoais a defender. Você, De Roquefort, Mark, Saunière, Lars, Stephanie e até Geoffrey, que é, no mínimo, um pouco diferente de todos.

- Deixe-me contar-lhe umas quantas coisas e entenderá que isto para mim nada tem de pessoal.

Duvidava muito, mas apesar de tudo queria ouvir o que ela tinha para dizer.

- Sabia que ao longo de toda a história apenas se encontrou um esqueleto crucificado na Terra Santa? - Malone não fazia ideia. - A crucificação não era praticada pelos judeus. Apedrejavam, queimavam, decapitavam ou estrangulavam como pena capital. A lei moisaica só permitia que um criminoso que já tivesse sido executado fosse pendurado na cruz como castigo adicional.

- «Pois o enforcado é uma maldição de Deus» - disse ele, citando o Deuteronómio.

- Conhece o Antigo Testamento.

- lemos alguma cultura na Geórgia.

Cassiopia sorriu.

- No entanto, a crucificação era uma forma de execução comum para os romanos. Quintílio Varo, no ano 4 a. C., crucificou mais de duas mil pessoas. Em 66 d. C., o governador romano da Judeia, Gessius Florus, matou perto de quatro mil condenados. Tito, em 70 d. C., executava quinhentas pessoas por dia. Porém, só se encontrou um esqueleto crucificado. A descoberta ocorreu em 1968, a norte de Jerusalém. Os ossos datavam do século I e isso alvoroçou muita gente. Contudo, não era Jesus. O morto chamava-se Yehochanan, tinha cerca de um metro e oitenta de altura, e entre vinte e quatro e vinte e oito anos. Sabemos isso porque havia informação escrita no seu ossário. Também fora atado à cruz, não pregado, e nenhuma das pernas estava partida. Compreende a importância desse pormenor?

Compreendia.

- A morte na cruz ocorria por sufocação. A cabeça acabava por cair para a frente, cortando o acesso do oxigénio pela traqueia.

- A crucificação era uma humilhação pública. A ideia não era matar as vítimas depressa. Assim, para atrasar ainda mais esse processo era colocado um pedaço de madeira por trás das costas, onde o condenado se podia sentar, ou ao fundo dos pés, para se erguer. Assim, as vítimas podiam segurar-se e respirar. Ao fim de alguns dias, se a vítima não tivesse ainda esgotado as forças, os soldados partiam-lhe as pernas. Desse modo, já não podia suportar o peso do corpo e acabava por morrer passado pouco tempo.

Malone recordou-se dos Evangelhos.

- Um crucificado não podia desonrar o sábado. Os judeus queriam que os corpos de Jesus e dos dois criminosos que tinham sido crucificados com ele fossem retirados da cruz até ao anoitecer. Por isso, Pilatos ordenou que as pernas dos condenados fossem partidas.

Ela acenou com a cabeça em sinal de assentimento.

- «Mas, ao chegarem a Jesus, vendo que já estava morto, não lhe quebraram as pernas.» É do Evangelho de São João. Alguma vez se interrogou por que motivo Jesus morreu tão depressa? Só estava pendurado há algumas horas e a morte costumava levar dias. E por que não lhe terão os soldados romanos partido as pernas para se assegurarem de que morria? Em vez disso, São João diz que Lhe abriram o peito com uma lança e da ferida brotou sangue e água. Contudo, São Mateus, São Marcos e São Lucas não fazem qualquer referência a este acontecimento.

- Onde pretende chegar?

- Das dezenas de milhares de crucificados apenas se encontrou um esqueleto e a razão é simples. No tempo de Jesus, os funerais eram considerados uma honra. Ninguém ficava chocado por os corpos serem deixados para os animais. Cada um dos castigos capitais impostos por Roma, ser queimado vivo, deitado às feras ou a crucificação, tinha um aspecto em comum: não havia corpo para sepultar. As vítimas de crucificação eram deixadas penduradas até os pássaros limparem os ossos e o que sobrava era depois atirado para uma vala comum. No entanto, os quatro Evangelhos dizem que Jesus morreu à nona hora, três da tarde, e depois foi retirado da cruz e sepultado.

Malone começava a perceber.

- Os romanos não teriam feito isso.

- É aqui que a história se complica. Jesus foi condenado à morte ao faltarem apenas algumas horas para sábado. Apesar disso, o método escolhido é a crucificação, a forma mais lenta de matar uma pessoa. Como poderia alguém pensar que ele estaria morto antes do anoitecer? O Evangelho Segundo São Marcos chega a dizer que Pilatos ficou admirado com uma morte tão rápida e perguntou a um centurião se tudo estava em ordem.

- Mas Jesus não foi chicoteado antes de O pregarem à cruz?

- Jesus era um homem forte no apogeu da vida e estava habituado a percorrer grandes distâncias a pé sob um calor abrasador.

Sim, é verdade, ele foi flagelado. De acordo com a lei, devia receber trinta e nove chicotadas. Mas nenhum dos Evangelhos nos diz quantas foram administradas. Aparentemente, após tais tormentos teve ainda força suficiente para se dirigir aos Seus acusadores com determinação. Existem poucas provas de algum estado de fraqueza. Contudo, Jesus morre em apenas três horas, sem Lhe quebrarem as pernas, e com o peito aberto por uma lança.

- A profecia referida no Êxodo. São João faz-lhe referência no seu Evangelho. Afirma que tudo aquilo aconteceu para se cumprir a Escritura.

- O Êxodo fala das restrições da Páscoa e que nenhuma carne podia ser levada para fora de casa. Tinha de ser comida debaixo de tecto «sem se quebrar nenhum osso». Isto nada tinha a ver com Jesus. A referência que São João faz ao Êxodo é uma débil tentativa de dar continuidade ao Antigo Testamento. Claro que, como já disse, os outros quatro Evangelhos nem sequer mencionam a lança.

- Presumo que com tudo isto pretenda dizer que os Evangelhos estão errados.

- Nenhuma da informação neles contida faz o mínimo de sentido. Contradizem-se uns aos outros e desafiam a história, a lógica e a razão. Pedem-nos que acreditemos que um homem crucificado morreu em três horas, sem as pernas partidas, e foi-lhe depois concedida a honra de ser sepultado. Claro que do ponto de vista religioso isto faz todo o sentido. Os primeiros teólogos pretendiam atrair seguidores e precisavam de elevar Jesus de um simples homem a Cristo, o Salvador. Os autores dos Evangelhos escreveram em grego e deviam conhecer bem a história helénica. Osíris, marido da deusa íris, morreu às mãos do mal numa sexta-feira e ressuscitou ao terceiro dia. Cristo podia perfeitamente fazer o mesmo. Claro que para Ele se erguer fisicamente dos mortos teria de existir um corpo identificável, ou seja, a Sua carne não podia ser debicada pelos pássaros e os ossos atirados para uma vala comum. Daí o sepulcro.

- Era isso que Lars Nelle pretendia provar? Que Cristo não ressuscitou dos mortos?

Cassiopia abanou a cabeça.

- Não faço ideia. Tudo o que sei é que os templários sabiam algumas coisas suficientemente importantes para transformar um bando de nove cavaleiros obscuros numa organização internacional. Conhecimento esse que alimentou a sua expansão e que Saunière redescobriu. É esse conhecimento que eu pretendo.

- E como podem ainda existir provas de seja o que for?

- Devem existir. Viu a igreja de Saunière. Ele deixou bastantes pistas e todas apontam na mesma direcção. Deve haver alguma coisa, o suficiente para manter os próprios templários à procura.

- Estamos a sonhar acordados.

- Acha mesmo?

Malone reparou que o fim da tarde se dissolvera por fim na noite, e as colinas e árvores circundantes pareciam agora uma enorme silhueta.

- Temos companhia - murmurou Cassiopia. Esperou que ela explicasse.

- Quando fui montar, subi o promontório e avistei dois homens. Um a norte e o outro a sul. De Roquefort não tardou a encontrá-lo.

- Não pensei que o truque de mudar o GPS o atrasasse por muito tempo. Ele acabaria por perceber que eu tinha vindo para aqui e Claridon mostrar-lhe-ia o caminho. Viram-na?

- Não creio. Fui cuidadosa.

- Isto pode tornar-se perigoso.

- De Roquefort é um homem com pouco tempo e impaciente, principalmente se perceber que foi enganado.

- Refere-se ao diário?

- Sim. Claridon acabará por perceber que está cheio de imprecisões.

- Mas De Roquefort encontrou-nos. Estamos sob a sua mira.

- Deve saber muito pouco ou não se daria a tanto trabalho, utilizaria os seus próprios recursos e procurava sozinho. Não, ele precisa de nós.

As palavras dela faziam sentido, como tudo o resto que Dissera.

- Saiu a cavalo já a antecipar a presença daqueles homens não foi?

- Pressenti que estávamos a ser observados.

- É sempre assim tão desconfiada?

Ela fitou-o.

- Só quando me querem fazer mal.

- Presumo que já tenha um plano de acção.

- Claro.

 

Abbaye des Fontaines Segunda-feira, 26 de Junho, 12 h 40 m

De Roquefort estava sentado frente ao altar na capela principal e uma vez mais exibia o hábito branco de cerimónia. Os irmãos enchiam todos os bancos, entoando palavras que remontavam ao Início. Claridon encontrava-se nos arquivos, a estudar os documentos. Dera ordens ao arquivista para que deixasse o tolo aceder a tudo o que desejasse, mas também que o vigiasse. O relatório de Givors dizia que tudo estava calmo na residência de Cassiopia Vitt. Um dos irmãos vigiava a frente da casa e o outro as traseiras. Como pouco ou nada podia ser feito, resolveu retomar as suas funções.

Uma nova alma estava prestes a ser aceite na Ordem.

Setecentos anos antes, qualquer iniciado teria de ser um homem livre de dívidas e fisicamente apto para combater. A maioria era também celibatária, mas os homens casados eram aceites como membros honorários. Os criminosos não constituíam problema, nem tão-pouco os excomungados. A ambos era oferecida redenção. O dever de cada mestre era fazer a Ordem crescer. A Regra deixava claro: «Se qualquer cavaleiro secular, ou outro homem, desejar deixar o caminho da perdição e abandonar este século, não lhe negueis entrada.» Contudo, foram as palavras de São Paulo que acabaram por permanecer: «Aprovai o espírito se vier de Deus.» O candidato ajoelhado à sua frente representava a sua primeira tentativa de implementar esse ditame. Desgostava-o que uma cerimónia tão gloriosa tivesse de ser realizada a coberto da noite atrás de portas fechadas. Mas os novos tempos assim o ditavam. A herança dele, aquilo que gostaria de ver registado nas Crónicas após a sua morte, era o fim da clandestinidade e o regresso à ribalta.

Os cânticos terminaram.

Ergueu-se da cadeira de carvalho que desde o Início servia como trono do mestre.

- Irmão - disse ele ao candidato que se encontrava ajoelhado à sua frente com as mãos sobre a Bíblia -, o que te pedimos não é fácil. Aquilo que vês da nossa Ordem mais não é do que a fachada. Habitamos esta esplendorosa abadia, alimentamo-nos bem. Temos roupas, medicamentos, educação e consolo espiritual. Todavia, vivemos sob regras muito duras e não é fácil ser servo de outrem. Se desejas dormir é possível que tenhas de ficar acordado e se estiveres de vigília é provável que te mandem deitar. Pode não ser teu desejo ir para onde te ordenam, mas terás de obedecer. Raramente farás alguma coisa que desejes. Saberás viver com estas dificuldades?

O rapaz, já com quase trinta anos, o cabelo muito curto e a face branca e barbeada, ergueu a cabeça e respondeu:

- Suportarei todas as dificuldades que Deus achar convenientes.

Sabia que o jovem era o candidato típico. Tinha sido descoberto há alguns anos na universidade e um dos preceptores da Ordem acompanhara o seu progresso, enquanto lhe analisava a árvore genealógica e pesquisava a sua história pessoal. Quanto menos ligações, melhor. Felizmente, o mundo estava cada vez mais repleto de almas perdidas e solitárias. Algures naquele processo, acabou por estabelecer-se contacto directo e, sendo receptivo, o iniciado foi recebendo os ensinamentos da Regra e respondendo às mesmas perguntas colocadas durante séculos a todos os candidatos. Casado? Noivo? Alguma vez fizera algum juramento ou voto numa outra ordem religiosa? Tinha dívidas que não pudesse pagar? Alguma doença que nunca tivesse revelado? Estava ligado a um homem ou uma mulher por qualquer tipo de obrigação?

- Irmão - continuou De Roquefort -, na nossa companhia não deverás procurar riquezas, nem honras, nem descanso. Ao invés disso, deverás esforçar-te para alcançar três coisas. Primeira, renunciar e rejeitar todos os pecados deste mundo. Segunda, servir Deus nosso Senhor. Terceira, ser pobre e penitente. Prometes perante Deus e a Virgem Maria obedecer ao mestre deste Templo todos os dias da tua vida? E viver em castidade e desprovido de bens pessoais? Seguir as regras desta casa e não abandonar a Ordem, seja à força ou por fraqueza, em melhores ou piores dias?

Aquelas palavras eram proferidas desde o Início e De Roquefort recordou-se de quando as escutara pela primeira vez, há trinta anos. Sentia ainda a chama que nele se acendera, um fogo que agora ardia intensamente. Ser templário era uma coisa importante, significava algo de extraordinário e estava determinado a garantir que, durante o seu mandato como mestre, cada candidato viesse a entender e a sentir essa devoção.

Fitou o candidato ajoelhado.

- O que respondes, irmão?

- De par Dieu, Por Deus, assim o farei.

- Entendes que te pode ser pedido que sacrifiques a vida? - E depois do que acontecera nos últimos dias aquela pergunta parecia ainda mais relevante.

- Entendo perfeitamente.

- E por que darias a tua vida por nós?

- Porque o meu mestre assim o exigiu.

A resposta certa.

- E obedecerias sem questionar?

- Questionar seria desobedecer à Regra e a minha tarefa é obedecer.

Fez sinal a um dos irmãos, que tirou de uma arca de madeira um longo tecido de sarja.

- Levanta-te - pediu ao candidato.

Vestido com um hábito negro que lhe roçava os pés descalços, o jovem ergueu-se.

- Retirem-lhe as vestes - ordenou, e estas foram-lhe despidas Por baixo, o candidato vestia umas calças pretas e uma camisa branca.

- Acabaste de despir o manto do mundo material - explicou De Roquefort. - Agora acolhemos-te com o manto da nossa irmandade e celebramos o teu renascimento como irmão da Ordem.

Fez um sinal, e um dos irmãos aproximou-se com o tecido e colocou-o em volta dos ombros do candidato. De Roquefort já vira muitos homens adultos chorar naquele momento. Ele próprio tivera de lutar para conter a emoção quando aquele mesmo manto o cobrira. Ninguém sabia ao certo a idade do tecido, mas sempre existira um na arca desde o Início. Conhecia bem a história de um dos primeiros mantos, utilizado para enrolar Jacques de Molay depois de o mestre ter sido pregado a uma das portas do Templo de Paris. De Molay permanecera embrulhado no linho durante dois dias, incapaz de se mexer devido aos ferimentos, demasiado fraco até para se levantar. Enquanto isso, as bactérias e químicos do seu corpo tinham manchado as fibras do tecido e produzido uma imagem que mais tarde começaria a ser venerada pelos cristãos mais ingénuos como sendo a do corpo de Cristo.

Sempre considerara esse desfecho apropriado.

O mestre dos Cavaleiros Templários, o chefe de uma suposta ordem herética, transformara-se no molde a partir do qual todos os artistas viriam a copiar a face de Cristo.

Bela ironia.

Encarou os irmãos à sua frente.

- Têm perante vós o nosso mais recente irmão, a envergar o manto que simboliza o renascimento. É um momento pelo qual já todos passámos, uma experiência que nos une. Quando me escolheram como mestre, prometi-vos um novo futuro, uma nova Ordem, um novo caminho. Disse-vos que encontraria o Grande Legado. - Levantou-se e deu um passo em frente, - Neste momento, nos nossos arquivos, encontra-se um homem possuidor de informações que nos são preciosas. Infelizmente, enquanto o anterior mestre permaneceu de mãos cruzadas, outros, não pertencentes à Ordem, têm realizado várias buscas. Segui pessoalmente os seus esforços e estudei os seus movimentos, e esperei pelo momento mais apropriado para nos juntarmos a essa busca. - Fez uma pausa. - Esse dia chegou. Temos neste momento irmãos para lá das muralhas da abadia ocupados nesta demanda, e muitos de vocês irão juntar-se-lhes.

Enquanto falava deixou que o olhar lhe vagueasse pela igreja até encontrar o capelão. Era um italiano de expressão solene, o clérigo de estatuto mais elevado na hierarquia da Ordem. O capelão comandava os padres, cerca de um terço dos irmãos, homens que haviam escolhido uma vida dedicada exclusivamente a Cristo. As palavras do italiano eram muito respeitadas, em especial porque falava muito pouco. Quando o conselho se reunira, durante o dia, o capelão expressara o seu descontentamento relativamente aos acontecimentos recentes.

- Está a avançar demasiado depressa - declarara o capelão.

- Estou a cumprir os desejos da Ordem.

- Ou os seus desejos?

- Existe alguma diferença?

- Já parece o anterior mestre.

- Nesse ponto ele tinha razão. E embora discordasse dele em muitos aspectos, sempre lhe obedeci.

Não gostara da sinceridade do italiano, em especial na frente do conselho, porém sabia que muitos respeitavam o capelão.

- O que preferia que eu fizesse?

- Que preservasse a vida dos irmãos.

- Os irmãos sabem que podem ter de dar a vida pela Ordem.

- Não estamos na Idade Média, nem a liderar uma cruzada. Estes homens dedicam a sua vida a Deus e juraram obediência ao seu mestre como prova da sua devoção. Não tem o direito de lhes pedir a vida.

- Pretendo encontrar o Grande Legado.

- Com que finalidade? Sobrevivemos sem ele durante setecentos anos. Não é fundamental.

De Roquefort ficara chocado com aquela afirmação.

- Como pode dizer uma coisa dessas? E a nossa herança.

- Que importância teria actualmente?

- Seria a nossa salvação.

- Já fomos salvos. Todos os homens aqui têm almas puras.

- Esta Ordem não merece viver escondida.

- Vivemos escondidos por opção própria. Estamos satisfeitos com isso.

- Eu não estou.

- Então esta luta é sua, não nossa.

Isso deixara-o furioso.

- Não pretendo ser contestado.

- Mestre, passou menos de uma semana e já se esqueceu das suas origens.

Ao fitar o capelão, tentou ler-lhe a expressão severa. Continuava a defender o que dissera durante o conselho. Não iria ser contestado. Era imperioso encontrar o Grande Legado e as respostas estavam na posse de Royce Claridon e dos convidados de Cassiopia Vitt.

Assim, ignorou o olhar de indiferença do capelão e concentrou-se na multidão que tinha à sua frente.

- Irmãos, oremos pelo sucesso da nossa demanda.

 

Terça-feira, 27 de junho 1 h 00 m

Malone encontrava-se em Rennes, a deambular pela Igreja de Maria Madalena e os mesmos pormenores excessivamente vistosos voltaram a incomodá-lo. Não havia ninguém lá dentro, com excepção de um homem sozinho de pé frente ao altar e vestido com uma batina preta. Quando o homem se voltou, o seu rosto não lhe era desconhecido. Bérenger Saunière.

- O que faz aqui? - perguntou o abade numa voz estridente. - Esta igreja é minha e de mais ninguém.

- E como pode ser sua?

- Eu fui o único que arrisquei.

- Arriscou o quê?

- Aqueles que desafiam o mundo estão sempre em perigo.

Depois notou uma abertura no chão, mesmo antes do altar, e degraus que desciam para a escuridão.

- O que há ali em baixo?

- O primeiro degrau no caminho para a verdade. Deus abençoe todos aqueles que guardaram essa verdade. Deus abençoe a generosidade dessas pessoas.

A igreja começou subitamente a dissolver-se e não tardou a ficar rodeado de árvores numa praça frente à Embaixada dos Estados Unidos na Cidade do México. Havia pessoas a correr de um lado para o outro, o som de buzinas, pneus a chiar e motores a acelerar.

Depois ouviu tiros.

Homens acabados de sair de um automóvel dispararam sobre uma mulher de meia-idade e um jovem diplomata dinamarquês que estavam a almoçar à sombra. Os guardas da embaixada reagiram, mas encontravam-se demasiado longe.

Ele tirou a arma e disparou.

Corpos estatelaram-se no chão. A cabeça de Cai Thorvaldsen explodiu quando as balas destinadas à mulher o atingiram. Malone conseguiu acertar em dois dos homens que tinham começado o ataque e depois sentiu o ombro rasgar-se quando uma bala o atravessou.

A dor abalou-lhe os sentidos. Cambaleou para trás, mas ainda conseguiu matar o seu atacante. A bala atingiu o rosto escuro que uma vez mais se transformou em Bérenger Saunière.

- Por que me matou? - perguntou Saunière num tom calmo.

As paredes da igreja voltaram a erguer-se à volta dele e apareceram as estações da via-sacra. Malone viu um violino num dos bancos e sobre as cordas deste estava um prato de metal. Saunière flutuou até ao banco e espalhou areia no prato. Depois passou o arco pelas cordas e, enquanto soavam algumas notas, a areia agitou-se e formou um padrão diferente.

Saunière sorriu.

- Nos locais onde o prato não vibra, a areia não se altera. Muda-se a vibração e cria-se um padrão diverso. E é sempre diferente.

A estátua do Asmodeu ganhou vida e o pequeno demónio judeu deixou a pia de água benta e flutuou na sua direcção.

- Este lugar é terrível - declarou o demónio.

- Não és bem-vindo aqui - gritou Saunière.

- Então por que me incluíste?

Saunière não respondeu. Nesse instante, surgiu mais uma figura das sombras. Era o rapaz com as vestes de monge do quadro A Ler as Regras de Caridad. Mantinha ainda o dedo encostado aos lábios, a pedir silêncio, e trazia consigo o banco sobre o qual estava escrito ACABOCE Aº DE 1681.

Afastou o dedo dos lábios e disse:

- Sou o alfa e o ómega, o princípio e o fim.

Depois desapareceu.

Em seguida, surgiu uma mulher de rosto sombrio e vestida de preto.

- Conhece a minha campa.

Era Marie d'Hautpoul de Blanchefort.

- Tem medo de aranhas? - perguntou ela. - Não lhe farão mal.

Sobre o seu peito surgiram números romanos, brilhantes como o Sol. LIXLIXL. Por baixo dos símbolos materializou-se uma aranha, igual à que se encontrava na campa de Marie. Por entre as pernas da aranha estavam sete pontos. No entanto, os dois espaços junto à cabeça estavam vazios. Com o dedo, Marie traçou uma linha desde o pescoço, atravessando o peito e as letras brilhantes, até à imagem da aranha. No caminho traçado pelo dedo surgiu uma seta. A mesma seta com duas pontas que estava desenhada na sua lápide.

Malone flutuava e ia-se afastando cada vez mais da igreja. Atravessou as paredes e o cemitério, e dirigiu-se para o jardim, onde a estátua da Virgem se erguia sobre o pilar visigodo. A pedra já não estava escurecida e gasta pela erosão; Em vez disso, as palavras PENITENCE, PENITIENCE e MISSION 1891 resplandeciam.

O demónio Asmodeu voltou a aparecer e proclamou:

- Sob este signo o vencerás.

Deitado frente ao pilar visigodo encontrava-se Cai Thorvaldsen. Por baixo dele havia um pedaço de asfalto oleoso tingido de sangue e os seus membros desenhavam ângulos impossíveis, tal como os do homem da faca que saltara da Torre Redonda. Tinha os olhos escancarados e pareciam cheios de medo.

Depois ouviu uma voz, mecânica, nítida e decidida, e viu uma televisão com um homem de bigode a apresentar as notícias. Falava da morte de uma advogada mexicana e de um diplomata dinamarquês. A razão do tiroteio era desconhecida e o ataque resultara em sete mortos e nove feridos.

Malone acordou.

Já sonhara muitas vezes com a morte de Cai Thorvaldsen - demasiadas até -, mas nunca relacionada com Rennes-le-Château. Pelos vistos, tinha a mente repleta de pensamentos que não conseguira afugentar quando há duas horas tentara adormecer. Conseguira por fim dormir escondido numa das muitas divisões da residência de Cassiopia Vitt. Ela assegurara-lhe que os homens que se encontravam no exterior seriam vigiados, e que estariam preparados caso De Roquefort decidisse atacá-los durante a noite. Malone concordara com a sua avaliação. Estavam em segurança, pelo menos até ao dia seguinte.

Assim, permitira-se aquele descanso, mas a mente tinha continuado a resolver o quebra-cabeças.

Grande parte do sonho desvanecera-se, contudo recordava-se ainda da última parte - o apresentador a noticiar o ataque na Cidade do México. Soubera mais tarde que Cai Thorvaldsen namorava com a advogada mexicana. Era uma mulher dura e corajosa que investigava um misterioso cartel. A Polícia local descobrira que a advogada fora várias vezes ameaçada, mas sempre ignorara as ameaças. A Polícia afirmara também que estava naquela área no dia do tiroteio, mas estranhamente nenhum agente foi visto por perto quando os atiradores saíram do carro. Ela e o jovem Thorvaldsen estavam a almoçar numa esplanada e Malone dirigia-se para a embaixada em serviço. Recorrera à arma automática para abater dois atiradores antes de dois outros se aperceberem que ele estava ali. Não chegara a ver o terceiro e o quarto homens, um dos quais o atingiu no ombro. Antes de cair inconsciente, conseguira matar o seu atacante e o outro homem fora abatido por um dos guardas da embaixada.

Não sem antes a chuva de balas ter provocado muitos estragos.

Sete mortos e nove feridos.

Malone sentou-se na cama.

Acabara de resolver o mistério de Rennes.

 

Abbaye des Fontaines 1 h 30 m

De Roquefort passou o cartão magnético pelo sensor e o trinco abriu-se. Entrou na iluminada sala dos arquivos e atravessou a zona restrita até à secretária onde Claridon se encontrava. Na mesa à sua frente erguia-se uma pilha de papéis. O arquivista estava sentado ao seu lado, a observá-lo pacientemente, tal como lhe fora ordenado. De Roquefort fez sinal para que ele se retirasse.

- O que descobriu? - perguntou a Claridon.

- O material que me indicou é muito interessante. Nunca pensei que a Ordem tivesse tido uma existência tão preenchida após a expulsão de 1307.

- A nossa história é muito rica.

- Descobri um registo da altura em que Jacques de Molay foi queimado na fogueira. Pelos vistos, muitos irmãos presenciaram a execução em Paris.

- Ele caminhou para a estaca no dia 13 de Março de 1314 com a cabeça bem erguida e disse à multidão: «É justo que num momento tão solene, quando a minha vida está prestes a terminar, eu revele o grande engano aqui praticado e fale em nome da verdade.»

- Decorou as suas palavras?

- É um homem a recordar.

- Muitos historiadores culpam De Molay pela queda da Ordem. Dizem que ele era fraco e complacente.

- E o que dizem sobre ele os relatos que leu até agora?

- Parecia um homem forte e determinado e que soube fazer planos atempados antes de viajar de Chipre até França no Verão de 1307. Chegou mesmo a antecipar as acções de Filipe IV.

- A nossa riqueza e sabedoria foram salvaguardadas. De Molay certificou-se disso.

- O Grande Legado? - perguntou Claridon.

- Os irmãos asseguraram-se de que sobreviveria, tal como De Molay.

Os olhos de Claridon pareciam cansados. Apesar de já ser tarde, o cérebro de De Roquefort funcionava melhor à noite.

- Leu as últimas palavras do mestre De Molay?

Claridon assentiu.

- «Deus vingará as nossas mortes. O mal recairá sobre aqueles que nos condenam.»

- Referia-se a Filipe IV e a Clemente V, que conspiraram contra ele e a nossa Ordem. O papa viria a falecer em menos de um mês e Filipe sucumbiria sete meses depois. Nenhum dos herdeiros de Filipe conseguiu manter o trono ou deixar descendência masculina, encerrando-se assim a dinastia dos Capetos. Quatrocentos e cinquenta anos mais tarde, durante a Revolução Francesa, a família real francesa foi presa no Templo de Paris, tal como Jacques de Molay. Quando a guilhotina cortou a cabeça de Luís XVI, um homem mergulhou a mão no sangue do rei e exibindo-a para a multidão gritou: «Jacques de Molay, haveis sido vingado.»

- Um dos vossos?

- Sim, um irmão apanhado na emoção do momento, a presenciar o fim da monarquia francesa.

- Isto significa muito para si, não é?

Não estava particularmente interessado em partilhar os seus sentimentos com um estranho, mas deixou claro:

- Sou o mestre.

- Não é só por isso, há mais qualquer coisa aqui.

- A análise psicológica também é uma das suas especialidades?

- Colocou-se na frente de um automóvel que avançava a toda a velocidade, desafiando Malone a atropelá-lo, e teria queimado os meus pés sem qualquer remorso.

- Monsieur Claridon, milhares de irmãos foram presos e torturados por causa da ganância de um rei. Outros arderam na fogueira. Ironicamente, apenas a mentira os teria salvo. A verdade foi a sua sentença de morte, uma vez que a Ordem não foi considerada culpada de nenhuma das acusações contra ela levantadas. Sim, isto é um assunto muito pessoal.

Claridon pegou no diário de Lars Nelle.

- Tenho más notícias. Li grande parte do diário e há algo de errado - De Roquefort não gostou daquela declaração. - Tem imprecisões, bastante subtis, porém óbvias para quem sabe o que procura.

Infelizmente, De Roquefort não possuía conhecimentos suficientes para entender as diferenças. Na verdade, a sua esperança era que o diário preenchesse essa falta de dados.

- Trata-se de meros erros de anotação?

- De início pensei que sim, mas à medida que fui detectando outros comecei a duvidar. Lars era um homem meticuloso e eu ajudei a compilar muita da informação contida no diário. São erros intencionais.

De Roquefort pegou no diário e folheou-o até encontrar o criptograma.

- E isto? Está correcto?

- Não tenho forma de saber. Lars nunca me revelou se tinha descoberto a sequência matemática necessária para o resolver.

Aquela reviravolta nos acontecimentos deixava-o preocupado.

- Está a dizer-me que o diário não serve para nada?

- Estou a dizer-lhe que contém erros. Até algumas das entradas do diário pessoal de Sauni^re estão mal citadas. Eu li muitas delas há algum tempo.

De Roquefort estava confuso. O que se es'taria a passar? Recordou-se do último dia de vida de Lars Nelle, daquilo que o americano lhe dissera.

- Você não seria capaz de encontrar nada, mesmo que estivesse na frente dos seus olhos.

Escondido por entre as árvores, De Roquefort desaprovava a atitude de Nelle, mas admirava-lhe a coragem - o homem tinha uma corda em volta do pescoço. Alguns minutos antes observara o americano a atar a corda a um dos apoios da ponte e depois a fazer o laço, Nelle tinha então trepado para a beira da ponte e ficado a contemplar o rio escuro que corria por baixo.

Seguira o americano durante todo o dia, interrogando-se sobre o que estaria ele a fazer ali naquela zona dos Pirenéus, uma vez que a aldeia mais próxima nada tinha a ver com Rennes-le-Château nem com as pesquisas de Nelle. A meia-noite aproximava-se e a escuridão envolvia toda a paisagem em seu redor. Apenas o correr apressado da água sob a ponte quebrava a quietude das montanhas.

De Roquefort emergiu do seu esconderijo por entre a folhagem e aproximou-se da ponte.

- Já me perguntava quando iria aparecer - disse Nelle, de costas voltadas para ele. - Presumi que um insulto seria o ideal.

- Sabia que eu estava aqui?

- Estou habituado a ser seguido por irmãos. - O americano virou-se para ele e apontou para a corda. - Agora se não se importa, gostava de me matar.

- Pelos vistos, a morte não o assusta.

- Já morri há muito tempo.

- Não teme Deus? Ele não permite o suicídio.

- Qual Deus? Do pó viemos e ao pó voltamos. É esse o nosso destino.

- E se estiver errado?

- Não estou.

-E a sua demanda?

- Só me trouxe infelicidade. Por que razão se haveria de preocupar com a minha alma?

- A sua alma não me preocupa, mas a demanda sim.

- Já me segue há algum tempo e o vosso mestre chegou a falar comigo pessoalmente. É pena que a Ordem tenha de continuar a busca sem me ter a mim para indicar o caminho.

- Sabia que o vigiávamos?

- Claro. Os irmãos esforçaram-se durante meses para obter o meu diário.

- Disseram-me que era um homem estranho.

- Sou um homem infeliz que está farto de viver. Parte de mim lamenta tudo isto. Pelo meu filho, que amo muito, e pela minha esposa, que me ama à sua maneira. Porém, já não sinto qualquer vontade de viver.

- Existem maneiras mais fáceis de morrer.

Lars Nelle encolheu os ombros.

- Detesto armas e o veneno parece-me pouco digno. Sangrar até à morte não me atrai e por isso escolhi o enforcamento.

- Acho o suicídio uma opção egoísta.

- Egoísta foi a maneira como as pessoas me trataram. Acreditam que Rennes esconde tudo e mais alguma coisa, desde a monarquia francesa a extraterrestres. Aparecem na aldeia carregados de equipamento e derrubam paredes, escavam buracos e túneis. Chegaram a abrir campas e a exumar os corpos. Os escritores já inventaram todas as histórias e teorias possíveis e o seu intuito é unicamente ganhar dinheiro. Assisti a videntes e bruxos estabelecerem contacto com os mortos. Já se inventou tanta coisa que, em comparação, a verdade é uma história aborrecida. Obrigaram-me a escrever aquelas palermices. Tive de aderir ao fanatismo geral para conseguir vender alguns livros. As pessoas queriam ler patetices. É ridículo. Só me apetece rir de mim mesmo. Devia chamar egoísta a essa cambada de idiotas.

- E qual é a verdade sobre Rennes? - perguntou De Roquefott calmamente.

- Não lhe vou dizer.

Decidiu tentar outra abordagem.

- Tem consciência de que é a única pessoa que um dia poderá resolver o quebra-cabeças de Sauníère?

- Um dia? Já o solucionei.

Recordou-se do criptograma que vira no relato do marechal guardado no arquivo da abadia, o mesmo que os abades Gélis e Saunière haviam encontrado nas suas igrejas, aquele cuja solução poderia ter custado a vida a Gélis.

- Não me quer contar? - A pergunta era mais uma súplica que um pedido.

- É igualzinho aos outros. Sempre à procura de respostas fáceis. Já ninguém gosta de desafios. Levei anos a decifrar a combinação.

- E presumo que não tomou nota de nada.

- Isso cabe-lhe a si descobrir.

- Você é um homem muito arrogante.

- Não, sou um homem perturbado. É diferente. Sabe, todas aquelas oportunidades que surgiram e que depois resultaram em desilusões, ensinaram-me uma coisa. - De Roquefort esperou que o americano continuasse. - Não há absolutamente nada para descobrir.

- Está a mentir.

Nelle encolheu os ombros.

- Talvez sim, talvez não.

Decidiu deixar o americano prosseguir com o que o levara ali.

- Espero que encontre a paz que procura.

Voltou-se e começou a afastar-se.

- Templário! - chamou Nelle. De Roquefort parou e virou-se para trás. - Vou fazer-lhe um favor, embora não o mereça. Todavia, a vossa Ordem também não merecia o destino que teve. Vou dar-lhe uma pista, algo para o ajudar na sua busca. Não está escrito em lado nenhum, nem sequer no meu diário. Será o único a possuí-la e se for esperto poderá até decifrar o enigma. Tem um lápis e um papel?

De Roquefort procurou nos bolsos e depois aproximou-se do muro, e entregou-lhe um pequeno bloco e uma caneta. Nelle rabiscou qualquer coisa numa folha e atirou-lhe de volta o bloco e a caneta.

- Boa sorte - desejou ao marechal antes de saltar.

Ouviu a corda chiar e o estalido do pescoço a partir. Aproximou o bloco dos olhos e na luz difusa da noite tentou ler o que Lars Nelle deixara escrito.

ABRAÇOS STEPHANIE

A mulher de Nelle chamava-se Stephanie. De Roquefort sacudiu a cabeça. Não era nenhuma pista, tratava-se apenas de uma despedida.

Agora não tinha assim tanta certeza.

Decidira na altura que deixar o bilhete junto do corpo provaria a ideia do suicídio. Assim, acabara por puxar o corpo para cima e colocara o papel no bolso da camisa de Nelle.

Mas seriam aquelas palavras realmente uma pista?

- Na noite em que morreu, Nelle contou-me que decifrara o criptograma e depois ofereceu-me isto. - De Roquefort pegou num lápis e escreveu ABRAÇOS STEPHANIE numa folha.

- E como podem essas palavras ajudar-nos? - perguntou Claridon.

- Não sei. Nunca pensei muito sobre isso até agora. Se o que diz é verdade, que o diário possui erros intencionais, então já foi feito para que o encontrássemos. Procurei esse diário enquanto Lars estava vivo e depois quando o filho o herdou. Contudo, Mark Nelle mantinha-o escondido. Quando ele apareceu aqui na abadia, fiquei a saber que o trazia consigo, mas o mestre apossou-se dele e manteve-o bem guardado até há algumas semanas. - Depois pensou melhor no aparente erro de Cassiopia Vitt, em Avinhão, e entendeu que não se tratava de nenhum deslize. - Tem razão. O diário não serve para nada. - Apontou para a folha escrita. - Mas talvez essas duas palavras tenham algum significado.

- Ou talvez sejam mais uma diversão.

Também era uma opção a considerar. Claridon estudou as palavras com interesse.

- O que disse Lars quando lhe entregou isto?

Contou-lhe palavra por palavra, terminando com «uma pista, algo para o ajudar na sua busca. Se for esperto poderá até decifrar o enigma.»

- Recordo-me de uma coisa que Lars me contou em tempos. - Claridon procurou por entre o amontoado de livros que tinha sobre a mesa até encontrar uns papéis dobrados. - São as notas que fiz em Avinhão do livro de Stüblein sobre a lápide de Marie d'Hautpoul. - Apontou para uma série de números romanos MDC0LXXXI. - Estavam gravados na pedra e referem-se supostamente à data da morte, 1681, e isso retirando o zero, pois a numeração romana não o contempla. Todavia, Marie faleceu em 1781 e não em 1681. A idade também está errada. Ela tinha sessenta e oito anos quando morreu, e não os sessenta e sete gravados na pedra. - Claridon pegou numa folha de papel e escreveu 1681, 67 e ABRAÇOS STKPHANIE. - Nota alguma coisa de parecido?

Observou os números e as letras, mas nada viu de especial. Os enigmas também não eram a sua especialidade.

- Tem de pensar como um homem do século XVIII. Foi Bigou quem desenhou a lápide. A solução seria fácil por um lado e difícil por outro, tendo em conta as possibilidades infinitas. Se dividirmos a data de 1681 em dois números, obtemos o 16 e o 18. 1 mais 6 dá 7, e 8 mais 1 é igual a 9. 7, 9. Depois olhemos para o 67. Não podemos inverter o 7, mas o 6 transforma-se em 9 quando virado ao contrário. Temos novamente os números 7 e 9. Contemos as letras das palavras da mensagem que Lars lhe deixou. 7 para ABRAÇOS.

9 para STEPHANIE. Acho que ele lhe deixou mesmo uma pista.

- Abra o diário no criptograma e tente.

Claridon folheou as páginas e encontrou o desenho.

 

Y E N S Z N I M G L C Y • R A T E H O X

O • E O T + T E C T N G A + D E Z B O F

V O U P H R P A + DY S T L R D A • X T

L P O C X F E I S R A V H G C K L N H N

R D M R M A A N R J ' S • M B D Q A D P

R I E U Z O O T U O J I F S O E A L B N

T N A T ' G R E Y I O E ' T R U X ' W H

K X V E V L A L P E N + L O Z J K J D G

N U E + N G E K O • I X A Z V R + S I Z

S N S I C E T B + X G A C S E D X V U A

Y V L K B • ' N B W V K T P I B • J T Y

O U P E O M S U L Z R V ' J R S B + C E

P A T S X E • F X ' H N M Z H • Y T B C

 

- Existem várias possibilidades. 7, 9. 9, 7. 16. 1, 6. 6, 1. Comecemos pela mais óbvia: 7, 9.

De Roquefort observou Claridon contar as letras e símbolos ao longo das filas. Parava a cada 7 e a cada 9 e apontava os caracteres exibidos. Quando terminou, anotara ITEGOARCANADEI.

- É latim - disse ele, ao observar as palavras.- i tego arcana dei.

- «Eu oculto os segredos de Deus» - traduziu.

Raios.

- Esse diário é inútil! - gritou De Roquefort. - Nelle elaborou o seu próprio criptograma.

No entanto, outro pensamento invadiu-lhe a mente. O relato do marechal também continha um criptograma encontrado e supostamente resolvido pelo abade Gélis, e idêntico ao encontrado por Saunière.

Tinha de o conseguir.

- Há outro criptograma num dos livros roubados por Mark Nelle.

Os olhos de Claridon iluminaram-se.

- Suponho que o vai buscar.

- Assim que o Sol nascer.

 

Givors, França, 1 h 30 m

Malone estava no salão, a espaçosa divisão iluminada por candeeiros, reunido com os restantes em torno da mesa. Acordara-os a todos há apenas alguns minutos.

- Já sei a resposta - revelou.

Para o criptograma? - perguntou Stephanie.

Ele assentiu.

- Mark falou-me da personalidade de Saunière. Impetuoso e destemido. E concordo com o que referiu no outro dia, Stephanie. A igreja em Rennes não é um mapa do tesouro. Saunière nunca teria exposto essa informação, todavia não resistiu a deixar alguns indícios. O problema é que são necessárias muitas peças para montar o quebra-cabeças, mas felizmente nós estamos na posse de grande parte delas.

Pegou no livro Pierres Gravées du Languedoc, ainda aberto na página que mostrava a lápide de Marie d'Hautpoul de Blanchefort.

- O abade Bigou foi quem deixou as verdadeiras pistas. Ia fugir de França para nunca mais voltar e por isso escondeu os criptogramas em ambas as igrejas e deixou duas pedras gravadas sobre uma campa vazia. Temos a data de morte errada, 1681, a idade errada,

67, e observem os números romanos no fundo - LIXLIXL - 59, 59,

  1. Se somarmos tudo, o resultado é 168. O abade também fez alusão ao quadro A Ler as Regras de Caridad. Não se esqueçam que no tempo de Bigou a data não estava ainda escurecida e ele teria visto 1681 e não 1687. Existe aqui um padrão que se repete.

Malone apontou para o desenho das lápides.

 

CT GIT NOBLe M

ARIE DE NEGRE

DARLES DAME

D'HAUPOUL DE BLANCHEFORT

AGEE DE SOIX

ANTE-SEPT ANS

DECEDEE LE

XVII JANVIER

MDC0LXXXI

REQUIES CATIN

PACE

rEDDIS REGIS C

ELLIS ARCIS

PRAE-CUM

LIXLIXL

 

- Reparem na aranha gravada no fundo. Tem sete pontos intencionalmente colocados entre as pernas e dois dos espaços foram deixados em branco. Por que não incluir um pontinho em cada espaço? Depois pensem no que Saunière fez no jardim do lado de fora da igreja. Pega no pilar visigodo e vira-o de pernas para o ar, gravando na sua face «Mission 1891» e «Penitence, Penitence». Eu sei que vos vai soar estranho, mas acabei de sonhar com a ligação entre todas estas pistas. - Todos sorriram, contudo ninguém o interrompeu. - O ano passado, Henrik, quando Cai e todas as outras pessoas morreram no tiroteio na Cidade do México... Costumo sonhar com isso de tempos a tempos. É difícil afastar essas imagens da cabeça. Foi um dia trágico que resultou em muitos mortos e feridos.

- Sete mortos e nove feridos - murmurou Stephanie.

Nesse momento foi como se finalmente se fizesse luz nas suas mentes.

- Cotton, é bem capaz de ter razão - exclamou Mark, sentando-se.

- 1681. Se somarmos os dois primeiros e os dois últimos algarismos, obtemos 7 e 9. Saunière virou o pilar de modo a deixar uma mensagem. Ou seja, o pilar foi erigido em 1891, mas se invertermos a data obtemos 1681. 7 e 9 mais uma vez.

- Agora contemos as letras - disse Malone. - 7 em Mission e 9 em Penitence. É bem mais do que uma simples coincidência. E o 168 da numeração romana gravado na lápide? O total está lá por uma razão. Basta somar o 1 ao 6 e depois o 1 ao 8 e obtemos 7 e 9. O padrão está em todo o lado. - Puxou para junto de si a imagem colorida da estação dez exibida no interior da Igreja de Maria Madalena. - Reparem. Aqui o soldado romano está a jogar aos dados pelas vestes de Cristo. As faces dos dados mostram um 3, um 4 e um 5. Quando Mark e eu visitámos a igreja, interroguei-me sobre a escolha destes algarismos em particular. Mark contou-me que Saunière foi responsável por cada pormenor da igreja. Isso significa que optou por aqueles algarismos por uma razão. Penso que a sequência é o aspecto mais importante. O 3 é o primeiro, depois o 4, e por fim o 5. 3 mais 4 dá 7, 4 mais 5 são 9.

- Então 7 e 9 é a chave do criptograma - concluiu Cassiopia.

- Só há uma maneira de saber. - Mark fez sinal e Geoffrey entregou-lhe a mochila. Folheou cuidadosamente o relato do marechal e encontrou o desenho.

 

Y E N S Z N T M G L N Y Y R A E F V H E

O • M O T + P E C T HP E R + A + B L Z

V O U P H R E I + D U S T L E G R ' D F

L P O R X F O N S R T V H G + C R K R

R D E U M A E T R + R O A U • S M B A Q

R I O + A O I L U J N R Z K M A O X E M

T N A F O G R N E O Y + M P F Q L E' +

K X V O ' L T K Y I U D • S G T S X O I

N U E + V G A N P E E S L E + U P S Q M

S N L I N E ' L O + P A Q D L X D V G P

Y V E K C • T U B G ' H S M S C • L Y '

O U P T B M + B L V O V + N A X W X S U

P A T S O E S F X • C T I W B • T Y + O

 

Em seguida, começou a aplicar a sequência 7 e 9 enquanto avançava pelas linhas de vinte letras e símbolos. À medida que o fazia, foi tomando nota do carácter encontrado.

TEMPLIERTRESORENFOUIAULAGUSTOUS

- Está em francês - declarou Cassiopia. - A língua de Bigou.

- É verdade - concordou Mark.

Depois de acrescentar os espaços a mensagem começou a fazer mais sentido.

TEMPLIER TRESOR ENFOUI AU LAGUSTOUS

- «O tesouro dos templários pode ser encontrado em lagustous» - traduziu Malone.

- O que é «lagustous»? - perguntou Henrik.

- Não faço ideia - respondeu Mark. - E não me recordo de qualquer referência a esse lugar no arquivo da Ordem.

- Vivi toda a minha vida nesta região e não conheço tal lugar - explicou Cassiopia.

Mark parecia desiludido.

- As Crónicas referem que as carroças se dirigiram para sul em direcção aos Pirenéus.

- E por que haveria o abade de tornar tudo tão simples? - perguntou Geoffrey no seu habitual tom calmo.

- Ele tem razão - concordou Malone. - Bigou pode ter incluído algum mecanismo de segurança para que não bastasse apenas descobrir a sequência numérica.

- Não diria que isto foi fácil - argumentou Stephanie com uma expressão admirada.

- Não o foi porque as peças do quebra-cabeças estavam espalhadas e algumas perdidas para sempre - explicou Malone. - Contudo, no tempo de Bigou elas existiam e ele erigiu a lápide para que todos a vissem.

- Mas o abade jogou pelo seguro - disse Mark. - O relato do marechal deixa bem claro que Gélis encontrou na sua igreja um criptograma idêntico ao de Saunière. Durante o século XVIII, Bigou serviu ambas as igrejas por isso deixou uma pista em cada uma.

- Na esperança de que uma alma curiosa encontrasse ao menos uma delas - completou Henrik. - E foi isso precisamente o que aconteceu.

- Gélis chegou mesmo a resolver o criptograma - disse Mark. - Sabemos isso porque ele próprio o revelou ao marechal. Também lhe confessou que temia Saunière, e uns dias mais tarde foi assassinado.

- Por Saunière? - perguntou Stephanie.

Mark encolheu os ombros.

- Ninguém sabe. Sempre considerei o marechal um dos suspeitos. A verdade é que ele desapareceu da abadia algumas semanas após o assassinato de Gélis e como sabemos não anotou no seu diário a solução do criptograma.

Malone apontou para o papel.

- Agora já temos a solução, mas precisamos de descobrir o que significa «lagustous».

- E um anagrama - sugeriu Cassiopia.

- É possível. Tal como na lápide onde Bigou utilizou «Et in arcadia ego» em vez de «I tego arcana dei». Pode ter recorrido ao mesmo truque.

Cassiopia analisava o papel com muita atenção e subitamente o seu olhar iluminou-se.

- Já sabe, não é? - perguntou Malone.

- Acho que sim.

Esperaram todos em silêncio pela revelação.

- No século X, um barão abastado de seu nome Hildemar, travou conhecimento com um homem chamado Agulous. Os familiares do barão não apreciavam a influência de Agulous sobre Hildemar. Em oposição à família, o barão entregou todas as suas propriedades ao amigo, que converteu o castelo numa abadia, à qual Hildemar se juntou. Foram ambos mortos pelos sarracenos enquanto rezavam ajoelhados frente ao altar da capela. Acabaram por ser santificados. Ainda existe aí uma aldeia, a cerca de cento e cinquenta quilómetros daqui. Chama-se Saint Agulous - Cassiopia pegou no lápis e converteu «lagustous» em «St Agulous».

- Existiram aí propriedades dos templários - disse Mark - E até uma casa importante, mas já desapareceu tudo.

- O castelo, que depois se transformou em abadia, ainda existe - explicou Cassiopia.

- Temos de o procurar - sugeriu Thorvaldsen.

- Isso pode ser problemático - comentou Malone, e olhou de soslaio para Cassiopia. Não tinham contado aos outros sobre a presença dos homens no exterior, por isso aproveitaram o momento.

- De Roquefort não vai ficar de mãos cruzadas - avisou Mark.

- Assim que descobrir que o diário do meu pai não serve para nada, a sua atitude para connosco vai mudar.

- Precisamos de sair daqui sem que ele se aperceba - opinou Malone.

- Somos muitos - lembrou Henrik. - Uma saída desse tipo será um desafio.

Cassiopia sorriu.

- Gosto de desafios.

 

7 h 30 m

De Roquefort avançou pela floresta de pinheiros altos, o solo sob os pés prateado devido à urze branca. O ar da manhã exalava a mel e das fendas rochosas que o rodeavam desprendiam-se pequenos farrapos de névoa. Uma águia pairava nos céus em busca de alimento. Ele tomara o pequeno-almoço na companhia dos irmãos, a refeição feita no tradicional silêncio enquanto outro irmão lia as Escrituras em voz alta.

Tinha de dar algum crédito a Claridon. O palerma decifrara o criptograma com a sequência 7, 9, e desvendara o segredo. Infelizmente, a mensagem não tinha qualquer utilidade. Claridon contara-lhe que Lars Nelle encontrara um criptograma no manuscrito de Noel Corbu, o homem que, em meados do século XX, inventara grande parte da ficção em torno de Rennes-le-Château. Teria Nelle alterado o criptograma ou isso devia-se a Saunière? E fora a frustrante solução que levara Lars Nelle ao suicídio? Todo aquele esforço para, depois de finalmente decifrado o criptograma, ficar a saber o mesmo? Seria isso que Nelle queria dizer quando afirmara: «Não há absolutamente nada para descobrir»?

Era difícil adivinhar, mas não ia desistir.

Uma buzina soou à distância, o som provinha da mesma direcção da casa de Vitt. A jornada de trabalho ia certamente começar. Um pouco mais à frente, viu um dos seus sentinelas. Contactara com o irmão pelo telemóvel durante a viagem e ficara a saber que tudo estava calmo. Avistou a casa por entre as árvores, banhada pela luz da manhã.

Aproximou-se do irmão e este informou-o que há uma hora um grupo de onze homens e mulheres, todos vestidos à época, tinham chegado a pé vindos do local da construção e que se encontravam no interior da residência desde então. O segundo sentinela relatou que nas traseiras tudo estava calmo e ninguém entrara ou saíra. Tinham registado bastante movimento dentro de casa, há duas horas, luzes nos quartos e actividade dos criados, a própria Vitt aparecera cá fora, dirigira-se aos estábulos e voltara em seguida para casa.

- Também houve alguma actividade à uma da manhã - informou o irmão. - As luzes dos quartos acenderam-se e depois uma cá em baixo. Uma hora mais tarde, apagaram-se todas. Parece que todos acordaram durante algum tempo e depois foram deitar-se.

Talvez a noite deles tivesse sido tão reveladora quanto a sua.

- Mas ninguém saiu?

O irmão abanou a cabeça.

Pegou no rádio que trazia no bolso e comunicou com o líder dos dez irmãos que o acompanhavam. Tinham deixado os automóveis a alguns metros dali e caminhado pela floresta em direcção à residência. Ordenara-lhes que cercassem discretamente a casa e depois esperassem pelas suas ordens. O irmão acabara de lhe dizer que estavam todos em posição. Contando com os dois homens que ali tinha deixado de vigia e ele mesmo, perfaziam treze homens armados. Mais do que suficiente para aquela missão.

«Irónico», pensou. «Os irmãos estavam de novo em guerra contra um sarraceno. Há setecentos anos, os muçulmanos tinham derrotado os cristãos e retomado o controlo da Terra Santa. Agora, outra muçulmana, Cassiopia Vitt, envolvera-se nos assuntos da Ordem.»

- Mestre.

A sua atenção desviou-se para a porta principal da residência, da qual começavam a sair pessoas vestidas com os coloridos trajes dos camponeses da Idade Média. Os homens envergavam túnicas castanhas apertadas na cintura, meias escuras e sapatos de camurça muito fina. As mulheres vestiam vestidos compridos e cinzentos, e aventais. Chapéus de palha, toucas e capuzes cobriam-lhes as cabeças. No dia anterior notara que todos os trabalhadores do sítio arqueológico usavam trajes da época, certamente para realçar ainda mais a atmosfera anacrónica do local. Alguns trabalhadores pareciam brincar com outros enquanto o grupo se dirigia calmamente para o caminho que levava ao castelo.

- Talvez tenha sido alguma espécie de reunião - sugeriu o irmão ao seu lado. - Vieram e agora regressam ao trabalho.

De Roquefort concordou. Cassiopia Vitt dirigia pessoalmente o projecto Givors e por isso era natural que se reunisse com os seus trabalhadores.

- Quantos entraram?

- Onze.

Contou o grupo e perfaziam o mesmo número. Óptimo. Estava na hora de agir. Aproximou o rádio dos lábios e ordenou:

- Avancem.

- O que devemos fazer? - perguntou a voz do outro lado. Estava farto de brincar com os seus opositores.

- Façam o que for necessário para os manter aí até eu entrar.

De Roquefort entrou na casa pela cozinha, uma divisão enorme carregada de ferro inoxidável. Tinham já passado quinze minutos desde que dera ordens para tomarem a casa de assalto e o cerco ocorrera sem ter sido disparado um único tiro. Na verdade; os ocupantes estavam a tomar o pequeno-almoço quando os irmãos invadiram o piso térreo. Homens posicionados em todas as saídas e no exterior tornavam qualquer tentativa de fuga uma impossibilidade.

Estava satisfeito. Não pretendia atrair atenções. À medida que avançava pelas várias divisões, foi admirando as tapeçarias que - decoravam as paredes, os candelabros que pendiam dos tectos os quadros valiosos e o mobiliário antigo. Cassiopia Vitt era uma mulher de bom gosto.

Encontrou a sala de jantar e preparou-se para confrontar Mark Nelle. Os outros seriam mortos e os seus corpos enterrados na floresta, porém Mark Nelle e Geoffrey seriam levados de volta para a abadia para enfrentarem um castigo merecido. Faria deles um exemplo. A morte do irmão em Rennes tinha de ser vingada.

Entrou na sala cercada pelos irmãos, todos de arma em punho. O olhar varreu a longa mesa e contou seis pessoas. No entanto, não reconheceu nem uma.

Em vez de encontrar Cotton Malone, Stephanie Nelle, Mark Nelle, Geoffrey, Cassiopia Vitt e Henrik Thorvaldsen, os homens e mulheres reunidos em torno da mesa eram completos desconhecidos, todos vestidos com calças de ganga e camisolas.

Os trabalhadores do sítio arqueológico.

Tinham escapado mesmo debaixo do seu nariz.

De Roquefort foi obrigado a conter a raiva. Virou-se para um dos irmãos e disse:

- Mantenham-nos aqui até eu voltar.

De Roquefort saiu pela porta da frente e percorreu calmamente o caminho ladeado de árvores que levava ao parque de estacionamento. Vira apenas alguns carros ali naquela manhã, e o automóvel alugado de Cotton Malone era um deles. Todavia, agora já não se encontrava ali.

Abanou a cabeça.

Não fazia ideia para onde poderiam ter ido.

Um dos irmãos que deixara no interior da casa apareceu atrás dele a correr. De Roquefort interrogou-se sobre o que o levara abandonar o seu posto.

- Mestre - chamou o homem -, uma das pessoas lá dentro contou-me que Cassiopia Vitt lhes pediu que viessem logo cedo a casa dela com as roupas de trabalho. Seis deles trocaram de roupa e Vitt disse-lhes que apreciassem o pequeno-almoço.

Isso já ele tinha deduzido.

- Mais alguma coisa?

O irmão entregou-lhe um telemóvel.

- O mesmo empregado disse que foi deixado um bilhete que os informava da sua vinda e que quando chegasse lhe deveria entregar este telefone e isto.

De Roquefort abriu o papel e leu o seu conteúdo.

A solução foi encontrada. Ligarei para este telefone antes do entardecer com mais informações.

- Quem escreveu isto? - perguntou De Roquefort.

- O empregado disse que foi deixado com a sua muda de roupa, juntamente com a instrução que lhe fosse entregue directamente a si.

- Como foi que conseguiste isto?

- Quando ele referiu o seu nome, eu fiz-me passar por si e o homem entregou-me isto.

O que se estaria a passar ali? Haveria um traidor no seio do grupo? Era o que aparentava. Tendo em consideração que não fazia ideia de para onde tinham fugido, poucas escolhas lhe restavam.

- Diz aos homens que regressem à abadia.

 

10 h 00 m

Malone olhava maravilhado para os Pirenéus, tão parecidos com os Alpes em termos de geografia e grandiosidade. Separando a França da Espanha, os cumes pareciam estender-se até ao infinito, cada pico coroado por neve branca e brilhante. Entre os cumes aninhavam-se vales profundos aquecidos pelo sol, os domínios de Carlos Magno, francos, visigodos e mouros.

Tinham levado dois carros, o seu Peugeot de aluguer e o Land Rover de Cassiopia, que ela mantinha sempre estacionado junto ao local da construção. A sua fuga fora bem arquitectada e executada, uma vez que ninguém os seguira. Uma vez a caminho, tinham feito uma paragem e revistado os carros exaustivamente em busca de quaisquer mecanismos de detecção. Tinha de dar os parabéns a Cassiopia. Era sem dúvida nenhuma uma mulher cheia de imaginação.

Há uma hora, antes de se dirigirem para as montanhas, tinham também parado para comprar roupas. As suas túnicas e vestidos compridos tinham suscitado alguns olhares admirados, mas agora já vestiam roupas mais apropriadas - calças de ganga, camisolas, botas e casacos.

Saint Agulous ficava empoleirada na crista de um precipício, rodeada de colinas em socalcos. A aldeia, não muito maior que Rennes-le-Château, era constituída por um conjunto de edifícios antigos em pedra calcária, que pareciam ter-se fundido com a rocha que lhes servia de cenário.

Malone abrandou antes de entrar na aldeia e seguiu por um caminho de terra, estacionando à sombra de umas árvores. Cassiopia seguiu-o e saíram todos para o ar frio da montanha.

- Não me parece boa ideia irmos todos à aldeia - alertou Malone - Não me parece o tipo de lugar que receba muitos turistas.

- Cotton tem razão - concordou Mark. - O meu pai abordava sempre estas aldeias com algum cuidado. Eu vou com Geoffrey. Seremos dois rapazes a passear pelas montanhas. Não é invulgar nesta altura.

- Acham que eu não ia causar boa impressão? - perguntou Cassiopia.

- Causar boa impressão não é o problema - disse Malone a sorrir -, o pior é fazer com que as pessoas a esqueçam.

- E quem o nomeou líder? - perguntou ela.

- Eu - declarou Thorvaldsen. - Mark conhece estas montanhas e fala a língua. Eles são os mais indicados.

- Pois então, façam favor - disse Cassiopia.

Mark e Geoffrey atravessaram as portas da aldeia em direcção a uma praça ladeada por árvores. Geoffrey transportava ainda a mochila com os livros e os dois pareciam caminhantes em passeio. Os pombos circundavam os telhados de ardósia em bandos barulhentos e no centro da praça erguia-se uma fonte da qual jorrava água meio esverdeada. Não havia ninguém à vista e apenas o vento os saudou.

Uma rua empedrada e bem conservada saía da praça, e desaparecia por entre o labirinto de casas. O barulho de cascos anunciou a aproximação de uma cabra, que depois atravessou para uma rua lateral. Mark sorriu. Tal como muitas outras aldeias da região, aquela também não parecia governada pelos relógios.

Um dos vestígios da antiga glória daquele local provinha da igreja que se elevava ao fundo da praça. Um lanço de degraus estreitos terminava numa porta românica. No entanto, o edifício era gótico

o campanário exibia uma estranha forma octogonal, que de imediato chamou a atenção de Mark. Não se recordava de ter visto outra igual na região. O tamanho e grandiosidade da igreja aludia a um passado de poder e prosperidade agora perdidos.

- Estranho, uma aldeia tão pequena possuir uma igreja desta magnitude - comentou Geoffrey.

- Não é novidade. Há quinhentos anos isto era um florescente centro mercantil, daí uma igreja tão imponente.

À frente deles, surgiu uma rapariga sardenta que lhes sorriu e entrou numa pequena mercearia. Ao lado ficava o que parecia ser o posto dos Correios. Mark interrogou-se sobre o estranho capricho do destino que preservara Saint Agulous dos sarracenos, dos espanhóis, dos franceses e dos cruzados albigenses.

- Comecemos por aqui - sugeriu ele, e apontou para a igreja.

- Pode ser que o padre saiba de alguma coisa.

Atravessaram o pórtico e sobre as suas cabeças o tecto da nave, pintado de azul, estava decorado de estrelas douradas. Não havia estátuas nas paredes e sobre o altar elevava-se uma simples cruz de madeira. As tábuas do chão, já gastas e com meio metro de largura, provavelmente cortadas há séculos nas florestas da região, rangiam a cada passo. Enquanto a igreja de Rennes se excedia em decoração, naquela reinava um minimalismo e uma quietude quase sobrenaturais.

Mark notou o interesse de Geoffrey pelo tecto. Sabia o que o irmão estava a pensar. O mestre usara um manto azul com estrelas douradas nos últimos dias de vida.

- Coincidência? - perguntou Geoffrey.

- Não creio.

Um homem já idoso emergiu das sombras junto ao altar. O seu hábito castanho e largo não escondia a corcunda pronunciada e o andar descompassado lembrava o de uma marioneta.

- O senhor é o abade desta igreja? - perguntou Mark em francês.

- Oui, monsieur.

- Como se chama a igreja?

- Capela de Saint Agulous.

Mark observou Geoffrey dirigir-se para o altar.

- É uma aldeia muito pacata - comentou ele.

- Os que aqui vivem não têm pressa. É de facto um lugar muito pacífico.

- Há quanto tempo é o abade desta igreja?

- Já há muitos anos. Parece que mais ninguém quer vir para aqui, mas eu gosto de aqui estar.

Mark recordou-se do que sabia sobre a região.

- Esta área serviu em tempos de esconderijo para os salteadores espanhóis, não foi? Entravam em Espanha, aterrorizavam os habitantes locais, roubavam as quintas e depois regressavam às montanhas, escondendo-se das autoridades espanholas.

O padre acenou afirmativamente com a cabeça.

- Para pilharem Espanha tinham de viver em França. E nunca fizeram mal a um francês. Mas isso já foi há muito tempo.

Mark continuava a contemplar o interior austero da igreja. Nada ali sugeria que o edifício escondesse algum segredo.

- Senhor abade - disse ele -, alguma vez ouviu o nome Bérenger Saunière?

O homem pensou durante alguns instantes e depois abanou a cabeça.

- E esse nome alguma vez foi mencionado nesta aldeia?

- Não é meu costume ouvir as conversas dos paroquianos.

- Nem tão-pouco foi isso que eu pretendi insinuar. Mas recorda-se de alguém o ter proferido?

Voltou a abanar a cabeça.

- Em que ano foi construída a igreja?

- Em 1732. Contudo, o primeiro edifício foi erigido no século XIII. Depois construíram-se outros. Infelizmente, nada restou dessas construções antigas.

A atenção do abade desviou-se para Geoffrey que continuava a deambular junto ao altar.

- Ele incomoda-o? - perguntou Mark.

- De que está ele à procura?

- Boa pergunta», pensou Mark.

- Talvez esteja a rezar e prefira estar perto do altar.

O abade fitou-o.

- Não mente lá muito bem. - Mark apercebeu-se de que o padre era bem mais esperto do que dava a entender.

- Por que não me diz o que desejo saber?

- É muito parecido com ele.

Mark ficou surpreso, mas não o demonstrou.

- Conheceu o meu pai?

- Ele vinha a esta zona com frequência e falámos bastantes vezes.

- Ele contou-lhe alguma coisa?

O padre abanou a cabeça.

- Não era do feitio dele.

- Sabe o que devo fazer?

- O seu pai disse-me que, se alguma vez aqui viesse, já saberia o que fazer.

- Sabe que ele faleceu?

- Sei, sim. Contaram-me. Suicidou-se.

- Pode não o ter feito.

- Isso são ilusões. O seu pai era um homem infeliz. Veio à procura de alguma coisa, mas infelizmente não encontrou nada. Isso deixou-o bastante frustrado. Quando ouvi que se tinha matado, não fiquei surpreendido. Não havia paz para ele neste mundo.

- Falou-lhe sobre essas coisas?

- Muitas vezes.

- Por que razão me mentiu ao dizer que nunca ouvira 'O nome Bérenger Saunière?

- Não menti. Nunca antes tinha ouvido esse nome.

- O meu pai nunca lhe falou dele?

- Nem uma única vez.

Estava perante outro enigma, tão frustrante e "irritante" quanto Geoffrey, que se dirigia agora para junto deles. Era óbvio que a igreja não continha qualquer resposta, por isso perguntou:

- E a abadia de Hildemar, o castelo que o barão deu a Agulous no século X? Ainda está de pé?

- Sim, essas ruínas ainda existem. Ficam nas montanhas, não muito longe daqui.

- Já não é uma abadia?

- Ah, não. Está desocupada há mais de trezentos anos.

- O meu pai alguma vez mencionou esse lugar?

- Foi lá muitas vezes, mas não encontrou nada, o que só aumentou o seu desânimo.

Precisavam de ir, porém tinha ainda uma última pergunta.

- A quem pertencem as ruínas da abadia?

- Foram compradas há alguns anos por um dinamarquês chamado Henrik Thorvaldsen.

 

Abbaye des Fontaines, 11 h 40 m

De Roquefort fitava o capelão sentado na outra ponta da mesa. O padre esperara o seu regresso de Givors. E ainda bem. Depois do confronto do dia anterior, também precisava de falar com o italiano.

- Não volta a questionar as minhas decisões - deixou claro.

O mestre detinha a autoridade necessária para destituir o capelão caso, tal como a Regra especificava, «ele causasse distúrbios ou fosse mais um obstáculo do que uma ajuda.»

- A minha função é ser a sua consciência. Desde o Início que é deste modo que os capelães servem os mestres.

O que se lia apenas nas entrelinhas era que a decisão de remover o capelão teria de ser aprovada pela irmandade e isso poderia revelar-se difícil, visto que o italiano era um homem querido pelos restantes. Assim, reformulou um pouco a sua ordem.

- Não volta a questionar as minhas decisões na frente dos irmãos.

- Não era minha intenção questioná-lo, estava meramente a lembrá-lo que a morte dos dois irmãos pesa muito sobre as nossas almas.

- E não sobre a minha?

- Tem de prosseguir com calma e cuidado.

Estavam reunidos nos seus aposentos, à porta fechada. Do outro lado da janela aberta escutava-se o som distante da cascata.

- Esse tipo de abordagem não nos levou a parte alguma.

- Quer se aperceba disso quer não, a morte dos dois homens está a afectar a sua autoridade. Os irmãos já começam a questionar-se e ainda só é mestre há alguns dias.

- Não tolerarei qualquer tipo de discordância.

O capelão esboçou um sorriso decepcionado, mas tranquilo.

- Já parece o mestre ao qual tanto se opôs. O que mudou, afinal? O senescal afectou-o assim tanto?

- Ele já não é o senescal.

- Conheço-o apenas por esse nome. Já o mestre parece saber bem mais.

De Roquefort questionou-se se o reservado veneziano sentado à sua frente estaria a ser honesto. Os seus espiões tinham-lhe dito que o capelão estava bastante interessado nas acções do mestre. Bem mais do que o necessário para um conselheiro espiritual. Interrogava-se se aquele homem, que dizia ser seu amigo, não estaria a tentar obter alguma vantagem. Afinal, anos antes, ele mesmo recorrera aos mesmos métodos.

Na verdade, desejava falar sobre o seu dilema, explicar o que acontecera, o que sabia, pedir alguma orientação, no entanto partilhar tudo isso com alguém seria imprudente. Claridon não passava de um pateta mas, ao menos, não pertencia à Ordem. Aquele homem era bem diferente. Tinha o potencial para se transformar num inimigo. Assim, afirmou o óbvio.

- Procuro o nosso Grande Legado e estou próximo de o conseguir.

- À custa de dois mortos.

- Não havia alternativa - argumentou, elevando o tom de voz. - Muitos outros morreram por aquilo em que acreditavam. Nos dois primeiros séculos da nossa existência, vinte mil irmãos deram as suas vidas pela Ordem. Estas duas mortes são insignificantes.

- Então a vida humana vale menos agora do que naquele tempo? - perguntou o capelão quase num murmúrio.

- Não, o valor é o mesmo. O que mudou foi a nossa falta de dedicação.

- Isto não é uma cruzada. Não existem infiéis na Terra Santa. Estamos a falar de encontrar algo que o mais provável é não existir.

- O que diz é blasfémia.

- O que digo é verdade e sabe muito bem disso. Acha que encontrar o Grande Legado vai mudar tudo, porém nada mudará. Terá ainda de conquistar o respeito daqueles que o servem.

- Cumprir as minhas promessas garantirá esse respeito.

- Avaliou bem esta demanda? Não é tão simples quanto pensa. As questões que levanta são bem mais problemáticas do que o eram no Início. O mundo já não é iletrado e ignorante, e terá de enfrentar mais oposição do que aquela com que os irmãos se depararam, naquela altura. Infelizmente para si, não existe uma única menção a Jesus Cristo em nenhum registo histórico secular grego, romano ou judeu. Nem uma referência sequer em qualquer registo literário. Apenas no Novo Testamento. E a ele se resume toda a Sua existência. E porquê? Sabe a resposta tão bem quanto eu. Se Jesus alguma vez existiu, pregou a Sua mensagem na Judeia. Ninguém se importou muito com Ele. Os romanos pouco se preocupavam, contanto que Ele não incitasse a nenhuma rebelião, e os judeus pouco mais faziam do que discutir entre eles, o que até interessava aos romanos. Jesus apareceu e desapareceu. A sua passagem foi inconsequente. Todavia, agora comanda a atenção de milhares de milhões de pessoas. O cristianismo é a maior religião do mundo e Ele é, em todos os sentidos, o Messias. O Cristo ressuscitado. E nada do que possa encontrar vai alterar isso.

- E se os Seus ossos lá estiverem?

- Como provaria que são os ossos de Jesus?

- Que provas tiveram os primeiros cavaleiros? E veja o que alcançaram. Reis e rainhas curvavam-se perante eles. Apenas aquilo que sabiam poderia justificar tal comportamento.

- E acredita que terão partilhado esse conhecimento? E o que fizeram, mostraram os ossos de Cristo a cada rei, a cada doador, a cada um dos fiéis?

- Não faço ideia do que terão feito, mas qualquer que tenha sido o seu método, provou ser eficaz. Os homens acorriam, a quererem fazer parte da Ordem. As autoridades seculares procuravam cair nas suas boas graças. Por que não pode isso voltar a acontecer?

- Pode, mas não da maneira que pensa.

- Irrita-me, por tudo o que fizemos pela Igreja. Vinte mil irmãos e seis mestres morreram para defender Jesus Cristo. O sacrifício dos Cavaleiros Hospitalários nem tão-pouco se compara. Não existe um único santo templário, mas muitos foram os hospitalários canonizados. Pretendo corrigir essa injustiça.

- E como será isso possível? - O capelão não esperou pela resposta. - O que está feito não poder ser mudado.

De Roquefort pensou no bilhete. «A solução foi encontrada.» E no telemóvel guardado no bolso. «Ligarei para este telefone antes do entardecer com mais informações.» Os dedos acariciaram o volume provocado pelo telemóvel no bolso das calças. O capelão continuava a falar e murmurava algo acerca de «uma busca inútil». Royce Claridon continuava metido nos arquivos à procura de mais pistas.

Porém, apenas um pensamento lhe ocupava a mente.

Porque é que o telemóvel não tocava?

- Começo a ficar farto disto, Henrik - gritou Malone. Acabara de ouvir Mark Nelle explicar que as ruínas da abadia próxima pertenciam a Thorvaldsen. Encontravam-se à sombra das árvores, à entrada de Saint Agulous onde tinham estacionado e aguardado.

- Cotton, não fazia ideia de que aquela propriedade era minha.

- E acha mesmo que acreditamos nisso? - perguntou Stephanie.

- Pouco me importa se acreditam ou não. A verdade é que isso para mim é uma novidade.

- Então como o explica? - questionou Malone.

- Não faço ideia. Sei apenas que Lars me pediu cento e quarenta mil dólares, três meses antes de falecer. Nunca me disse o que pretendia fazer com o dinheiro e eu nunca perguntei.

- Deu-lhe essa enorme quantia de dinheiro sem lhe perguntar nada? - interrogou Stephanie.

- Ele precisava e eu emprestei. Confiava nele.

- O abade disse que o meu pai comprou a propriedade ao governo regional. Pelos vistos queriam ver-se livres das ruínas e tinham poucas ofertas, dada a localização e mau estado de conservação. foi vendida em leilão aqui mesmo em Saint Agulous. - Mark virou-se para Thorvaldsen. - A sua oferta foi a melhor. O padre conhecia o meu pai e disse que não foi ele quem licitou.

- Então Lars deve ter pedido a alguém para fazer isso por ele, porque não fui eu. Depois registou a propriedade em meu nome para não se envolver. Lars era bastante paranóico. Se fosse dono daquelas ruínas e o soubesse, ter-vos-ia dito isso mesmo ontem à noite.

- Não tenho assim tanta certeza - murmurou Stephanie.

- Escute, Stephanie. Não tenho medo de si nem de nenhum de vocês e nem tão-pouco tenho de me explicar. Considero-vos meus amigos e se soubesse que as ruínas eram minhas teria dito.

- Por que não partimos, do pressuposto que Henrik está a dizer a verdade? - sugeriu Cassiopia. Estivera estranhamente calada durante toda a discussão. - O melhor seria irmos andando. Anoitece depressa nas montanhas e eu quero ver o que lá está.

Malone concordou.

- Ela tem razão. Vamos embora, podemos discutir isto mais tarde.

A viagem até ao local demorou quinze minutos, e exigiu nervos de aço e bons travões. Seguiram as indicações do abade e não tardaram a avistar as ruínas no cimo de um monte, a torre flanqueada por um precipício. A estrada terminava a dois quilómetros das ruínas e a caminhada até lá, por entre pinheiros e rochas, levou mais dez minutos.

Entraram na abadia.

Os sinais de negligência eram evidentes e estavam por todo o lado. As grossas paredes estavam nuas e Malone deixou que os dedos tocassem o granito, cada uma daquelas pedras cortada da montanha e trabalhada com paciência por mãos antigas e sabedoras. O que teria sido em tempos uma enorme galeria, com colunas e capitéis que séculos de erosão haviam deixado quase irreconhecíveis, abria-se agora para o céu azul, e musgo, líquenes e ervas cobriam o chão, outrora de pedra. As cigarras enchiam a tarde de sons.

Era difícil entender a planta da abadia, pois o telhado e a maior parte das paredes estavam caídos no chão. Todavia, as celas dos monges eram ainda visíveis, assim como uma grande sala e outra divisão espaçosa, que aparentava ser uma biblioteca. Malone não tinha dúvidas de que a vida ali deveria ter sido frugal, parcimoniosa e austera.

- Tem aqui uma bela casa - disse para Thorvaldsen.

- Estava agora a admirar o que cento e quarenta mil dólares compravam há doze anos.

Cassiopia parecia fascinada.

- Os monges deviam cultivar o pouco solo fértil existente aqui em cima. Os dias eram curtos e os Verões muito breves. Quase que conseguimos escutar os seus cânticos.

- Deviam ser autênticos eremitas - disse Thorvaldsen.

- Lars registou esta propriedade em seu nome por algum motivo. E também vinha cá por algum motivo. Tem de existir aqui qualquer coisa - afirmou Stephanie.

- Talvez - disse Cassiopia -, mas o abade da aldeia contou a Mark que Lars não encontrou nada. Esta pode ser mais uma das suas intermináveis buscas.

Mark abanou a cabeça.

- O criptograma dirigiu-nos para aqui. O meu pai veio aqui. Pode não ter encontrado nada, mas achou o lugar suficientemente importante para o comprar. Estamos no sítio certo.

Malone sentou-se numa pedra e olhou para o céu.

- Temos mais cinco ou seis horas de luz. Sugiro que as aproveitemos ao máximo. Deve fazer frio durante a noite e estes casacos não vão ser de grande ajuda.

- Trouxe algum equipamento no Land Rover - informou Cassiopia. - Lanternas, cordas e um pequeno gerador.

- Mas que mulher tão precavida! - elogiou Malone.

- Aqui - gritou Geoffrey.

Malone espreitou mais para o fundo das ruínas. Não se apercebera que o irmão se separara do grupo.

Seguiram a voz dele e encontraram Geoffrey frente ao que fora em tempos um portal românico. Pouco restava da sua decoração, para além de touros com cabeça de homens, leões alados e folhas de palmeira.

- A igreja - anunciou Geoffrey - foi cavada na rocha. Malone confirmou que as paredes não tinham sido feitas pelo homem, mas antes talhadas na pedra do monte.

- Sempre vamos precisar das lanternas - disse ele para Cassiopia.

- Não vamos, não - contrapôs Geoffrey. - Há luz no interior.

Malone foi o primeiro a entrar. As abelhas zumbiam nas sombras. Estreitos raios de luz atravessavam pequenas ranhuras cortadas na pedra em diferentes ângulos, aparentemente desenhadas para aproveitar o movimento do Sol. Houve algo que lhe chamou a atenção. Aproximou-se de uma das paredes, agora desprovida de qualquer decoração, para além de um baixo-relevo a cerca de três metros acima da sua cabeça. O cimo aparentava ser um elmo com uma faixa de linho a cair de ambos os lados de um rosto masculino. As feições já praticamente não se distinguiam e o nariz quase que desaparecera. No cimo, estava uma esfinge e por baixo um escudo de pedra com três martelos.

- É um símbolo templário - disse Mark. - Já vi um igual na nossa abadia.

- E o que faz aqui? - perguntou Malone.

- Os catalães que viveram nesta região durante o século XIV não morriam de amores pelo rei francês. Os templários foram aqui tratados com amabilidade, mesmo depois da Expulsão. Foi por isso que procuraram refúgio nesta região.

As grossas paredes erguiam-se até um tecto arredondado e dos frescos, que seguramente em tempos haviam adornado as paredes nada restava. A água que se infiltrara na rocha porosa há muito que apagara qualquer vestígio artístico.

- Parece uma caverna - comentou Stephanie.

- Ou uma fortaleza - notou Cassiopia. - Pode muito bem ter sido a última linha de defesa da abadia.

Malone estava a pensar no mesmo.

- Sim, é possível. Mas há um problema - disse ele, e apontou em redor -, não existe mais nenhuma saída.

Houve outra coisa que lhe chamou a atenção. Aproximou-se e fixou os olhos na parede, a maior parte da qual imersa em sombras.

- Quem me dera ter aqui uma das lanternas. Os outros aproximaram-se também.

Pouco acima da sua cabeça, viu uma série de letras gravadas na pedra, já quase desaparecidas.

- P, R, N, V, I, R? - perguntou Malone.

- Não - disse Cassiopia. - Há mais. Outro I e talvez um E e outro R.

Ela tinha razão. Tentou interpretar o que estava ali escrito.

PRIER EN VENIR

Malone esboçou um sorriso aberto e satisfeito. Recordou-se das palavras no centro da lápide de Marie d'Hautpoul de Blanchefort: «REDDIS REGIS CELLIS ARCIS». E do que Claridon dissera acerca delas em Avinhão.

«Reddis significa devolver, restituir ou recuperar alguma coisa anteriormente tirada. Regis deriva de Rex, ou seja, rei. Cella diz respeito a uma arrecadação. Arcis provém de arx, que quer dizer forte, fortaleza, cidadela.»

Na altura, as palavras pareciam não fazer sentido, mas talvez agora precisassem apenas de ser redispostas.

«Arrecadação», «fortaleza», «restituir algo anteriormente tirado», «rei».

Se se acrescentassem algumas preposições, a mensagem poderia ser: «Na arrecadação de uma fortaleza, recuperar algo anteriormente retirado ao rei».

E a seta que se estendia no centro da lápide, entre as palavras, começava no cimo com as letras P-S e terminava em PRAE-CUM.

PraE-cum. Termo latino para rezar para que chegue»

Voltou a examinar as letras gravadas na rocha

PRIER EN VENIR

Expressão francesa para «rezar para que chegue».

Voltou a sorrir e depois contou aos outros o que lhe ocorrera.

- O abade Bigou era esperto, não há dúvida.

- A seta no meio da lápide tinha de ser importante - comentou Mark. - Estava mesmo no centro, num local onde era impossível não a ver.

Os sentidos de Malone estavam agora ainda mais alerta e começou a observar o chão. Muitas das lajes tinham desaparecido e as que restavam estavam partidas ou rachadas. Apesar disso, reparou num padrão. Uma série de quadrados, emoldurados por uma estreita linha de pedra, corria de cima para baixo e da esquerda para a direita.

Contou-os.

No interior de uma das molduras contou sete pedras na horizontal e nove na vertical' Contou outra secção que era igual, e depois mais uma e o resultado era o mesmo.

- O chão está disposto na mesma sequência de setes e noves - explicou-lhes.

Mark e Henrik avançaram em direcção ao altar, também a contarem.

- E existem nove secções desde a porta até ao altar - disse Mark.

- E sete na horizontal - acrescentou Stephanie.

- Bem, parece que estamos no lugar certo - concluiu Malone. Pensou novamente na lápide. «Rezar para que chegue». Voltou a olhar para as palavras francesas escritas na pedra e depois baixou os olhos para observar o chão. As abelhas continuavam a zumbir junto ao altar.

- Temos de ir buscar as lanternas e o gerador. Precisamos de ver o que estamos a fazer.

- Acho que o melhor seria passarmos aqui a noite - sugeriu Cassiopia. - A estalagem mais próxima fica em Elne, a cinquenta quilómetros daqui. Talvez devêssemos acampar por aqui mesmo.

- Temos mantimentos? - perguntou Malone.

- Não temos, mas podemos ir comprá-los a Elne sem levantar muitas suspeitas - explicou ela. - Mas eu não quero sair daqui.

Malone percebeu que ninguém estava disposto a abandonar o local agora que a busca atingia o seu auge. O enigma deixara de ser um conceito abstracto, impossível de entender. Em vez disso, a resposta encontrava-se ali algures em redor e, ao contrário do que dissera a Cassiopia no dia anterior, queria encontrá-la.

- Eu vou - ofereceu-se Geoffrey. - Vocês precisam de ficar para decidir o melhor rumo a tomar.

- Agradecemos - disse Thorvaldsen.

Cassiopia levou a mão ao bolso e tirou umas quantas notas.

- Vai precisar de dinheiro.

Geoffrey aceitou os euros e sorriu.

- Façam uma lista do que é necessário e eu estarei de volta antes de anoitecer.

 

Malone varreu o interior da igreja com o feixe de luz da lanterna, enquanto estudava as paredes de pedra em busca de mais pistas. Já tinham descarregado todo o material que Cassiopia trouxera e transportado tudo para o interior da abadia. Stephanie e Cassiopia encontravam-se no exterior a montar o acampamento e Henrik oferecera-se para ir procurar lenha. Ele e Mark tinham regressado às ruínas para tentar perceber se lhes escapara alguma coisa.

- Esta igreja já está vazia há muito tempo - comentou Mark.

- Segundo o padre da aldeia, há trezentos anos.

- Deve ter sido magnífica.

- Este tipo de construção não é invulgar. Existem igrejas subterrâneas por todo o Languedoc. A mais famosa situa-se em Vals, perto de Carcassonne. Está em bom estado e ainda exibe os seus frescos. Todas as igrejas desta região eram pintadas, era assim o estilo da época. Infelizmente, e graças à Revolução, poucos vestígios restaram desse tipo de arte.

- A vida aqui devia ser difícil.

- Os monges eram uma gente estranha. Não tinham jornais, nem rádio, nem televisão, nem música, nem cinema. Os livros e os frescos eram os seus únicos passatempos.

Malone continuou a perscrutar a escuridão que o rodeava, quebrada apenas por uma ténue luz pálida que coloria alguns pormenores, como se tivesse nevado ali dentro.

- Temos de partir do princípio de que o criptograma do marechal é verdadeiro - disse Mark. - Não há razão para pensar o contrário.

- Excepto o facto de o marechal ter desaparecido pouco tempo depois de ter escrito o relato.

- Sempre acreditei que esse homem possuía o mesmo tipo de motivação que De Roquefort. Acho que desapareceu em busca do tesouro. Deve ter sabido da história do segredo da família De Blanchefort. Essa informação e o facto de o abade Bigou poder ter conhecimento do segredo, fazem parte das nossas Crónicas. O marechal pode ter partido do pressuposto de que Bigou escondeu ambos os criptogramas e que estes levavam ao Grande Legado. Sendo um homem ambicioso, resolveu ir procurá-lo.

- Então para quê tomar nota do criptograma?

- Não fazia grande diferença. Já tinha a solução, que o abade Gélis lhe fornecera. Mais ninguém fazia ideia do significado do quebra-cabeças, portanto, por que não anotar tudo no livro e mostrar trabalho feito ao mestre?

- Pensando assim, o marechal também pode ter morto o abade Gélis e depois regressado e registado tudo o que aconteceu como forma de ocultar o seu envolvimento.

- Também faz sentido.

Malone aproximou-se das letras gravadas na parede - PRIER EN VENIR.

- Não sobreviveu mais nada aqui dentro - murmurou ele.

- Isso é verdade e é lamentável. Existem muitos nichos nas paredes e todos eles deviam conter estátuas. Isso, juntamente com os frescos devia tornar esta igreja um lugar bem decorado.

- Então, como conseguiram estas palavras sobreviver?

- Estão quase sumidas.

- Mas ainda se conseguem ler - argumentou ele, e pensou que talvez Bigou tivesse assegurado que isso aconteceria.

Voltou a recordar-se da lápide de Marie de Blanchefort, da seta de duas pontas e da expressão PRAE-CUM. Rezar para que chegue. Olhou para o chão e para a sequência 7-9.

- Os bancos estariam colocados aqui, não achas?

- Sim, bancos longos e de madeira, há muito desaparecidos.

- Se Saunière descobriu a solução do criptograma por ele mesmo ou lhe foi apontada por Gélis...

- O marechal dizia no seu relatório que Gélis não confiava em Saunière.

Malone abanou a cabeça.

- Podia não ser verdade. É óbvio que Saunière sabia de alguma coisa. Portanto, vamos partir do princípio de que ele encontrou o Grande Legado. De tudo o que lemos, sabemos que o abade regressou aqui muitas vezes, e segundo o que me disseste em Rennes ele e a amante costumavam sair em passeio e regressar carregados de pedras para a gruta que ele andava a construir. Podia muito bem vir aqui para fazer levantamentos do seu banco privado.

- No tempo de Saunière essa viagem seria facilmente realizada de comboio.

- Então o abade necessitaria de ter acesso ao esconderijo e ao mesmo tempo manter o local secreto.

Observou mais uma vez as palavras gravadas na pedra. PRIER EN VENIR. Rezar para que chegue. Ajoelhou-se.

- Faz sentido, mas o que consegue ver daí que eu não veja daqui? - perguntou Mark.

O olhar dele varreu a igreja. Nada mais restava no seu interior para além do altar, a seis metros de distância. A pedra do cimo devia ter cerca de oito centímetros de espessura, e estava apoiada num suporte rectangular feito de blocos de granito. Contou os blocos numa fila horizontal. 9. Depois contou-os verticalmente, 7. - Apontou o feixe de luz da lanterna para as pedras cobertas de líquenes. A argamassa que as unia era ainda visível. Seguiu o contorno da argamassa com a luz até à parte de baixo da pedra do altar. E foi então que viu. Agora sabia. Malone esboçou um sorriso vitorioso.

«Rezar para que chegue».

Esperto.

De Roquefort não estava a prestar atenção ao que o tesoureiro dizia. Era algo sobre o orçamento e os excedentes. A abadia era gerida por fundos há muito obtidos e religiosamente mantidos de modo a assegurar que nunca viesse a passar por dificuldades financeiras. Os seus campos, quintas, adegas e leitarias supriam grande parte das necessidades e a água era de tal modo abundante que a canalizavam para o vale, onde era engarrafada e vendida por toda a França. Claro que muito do que era necessário para complementar as refeições e fazer a manutenção tinha de ser comprado. Contudo, o dinheiro proveniente da venda da água e do vinho, para além das receitas dos bilhetes das visitas, era mais do que suficiente para cobrir essas despesas. Por isso, não estava a entender o objectivo daquela conversa.

- Estamos com falta de dinheiro? - interrompeu De Roquefort.

- De modo nenhum, mestre.

- Então por que me está a incomodar?

- O mestre tem de ser informado de todas as decisões monetárias.

O idiota tinha razão, mas não lhe apetecia ter de pensar naquilo. Apesar disso, o tesoureiro podia ser útil.

- Estudou a nossa história financeira?

A pergunta parecia ter apanhado o homem de surpresa.

- Claro que sim, mestre. É obrigatório para todos os que desejam ser tesoureiros. Estou neste momento a ensinar os mais novos.

- Na altura da Expulsão, a quanto ascendia a nossa riqueza?

- Era incalculável. A Ordem possuía nove mil bens imobiliários e é impossível avaliar tudo isso.

- E a riqueza líquida?

- Também é difícil dizer. Tínhamos dinares em ouro, moedas bizantinas, florins de ouro, dracmas, marcos, e barras de prata e ouro. Quando De Molay se deslocou a França, em 1306, levava consigo doze cavalos carregados de prata não cunhada, que ninguém sabe onde ficaram. Depois havia ainda os objectos que guardávamos como depósito.

De Roquefort sabia a que se referia o tesoureiro. A Ordem fora pioneira no conceito de depósito seguro, e guardava testamentos, dinheiro, jóias e outros documentos importantes de pessoas abastadas a troco de uma taxa. A sua reputação como uma ordem honesta e de confiança fez com que o serviço crescesse em toda a cristandade.

- Os valores deixados à guarda da Ordem desapareceram durante a Expulsão - explicou o tesoureiro. - E os inventários estavam nos arquivos que também desapareceram. Por isso não há maneira de avaliar nada disso. Todavia, posso dizer que a nossa riqueza andaria na casa dos milhares de milhões de euros.

Também estava a par da história das carroças de feno conduzidas para sul por quatro irmãos e o seu líder, Gilbert de Blanchefort, que recebera instruções para não revelar a ninguém o seu destino e para se assegurar de que esse conhecimento era «passado a outros de forma apropriada». De Blanchefort cumprira bem a sua missão. Setecentos anos depois, a localização do Grande Legado continuava desconhecida.

O que seria tão precioso para Jacques de Molay que ordenara que fosse ocultado de modo tão elaborado?

Reflectira na resposta àquela pergunta durante trinta anos.

O telemóvel no bolso começou a vibrar e de Roquefort assustou-se.

Já não era sem tempo.

- O que foi, mestre? - perguntou o tesoureiro.

A voz do homem chamou-o de novo à realidade.

- Pode sair.

O tesoureiro levantou-se, fez uma vénia e depois retirou-se.

De Roquefort atendeu o telemóvel e disse:

- Espero que isto não seja mais uma perda de tempo.

- Desde quando a verdade é uma perda de tempo?

Reconheceu a voz de imediato. Era Geoffrey.

- E que razões tenho eu para acreditar numa única palavra tua? - perguntou ele.

- Porque é o meu mestre.

- A tua lealdade era para com o meu antecessor.

- Isso é verdade, enquanto ele foi vivo. Após a sua morte, o meu voto para com a irmandade obriga-me a ser fiel a quem envergar o manto branco.

- Ainda que não gostes desse homem.

- Acho que fez o mesmo durante muitos anos.

- E atacar o teu mestre faz parte dessa lealdade? - Não se esquecera do golpe na cabeça na noite em que ele e Mark Nelle tinham fugido da abadia.

- Foi necessário para ganhar a confiança do senescal.

- Onde conseguiste este telemóvel?

- Foi o antigo mestre quem mo deu. Era para ser utilizado durante as nossas buscas no exterior, mas decidi dar-lhe uma utilização diferente.

- Tu e o mestre arquitectaram tudo muito bem.

- Era importante para ele que fôssemos bem sucedidos. Foi por esse motivo que enviou o diário a Stephanie Nelle, para a envolver.

- Esse diário é uma inutilidade.

- Foi o que me disseram. Não sabia disso até ontem. Perguntou por fim o que desejava realmente saber.

- Já resolveram o criptograma? Aquele que estava no relatório do marechal?

- Sim, já foi resolvido.

- Diz-me, onde estão vocês?

- Em Saint Agulous. Nas ruínas da abadia a norte da aldeia.

- E o Grande Legado está escondido aí?

- Todas as pistas apontam nessa direcção. Eles estão neste momento a tentar descobrir o esconderijo e eu vim a Elne comprar mantimentos.

Começava a acreditar no irmão. Todavia, perguntava-se o que desencadeara aquela atitude, se o desespero se o bom senso.

- Se tudo isso for mentira, mato-te.

- Já o fez antes, por isso acredito na sua ameaça.

Sabia que não deveria perguntar, mas apesar disso fê-lo.

- E quem foi que eu matei?

- É por certo responsável pela morte de Ernst Scoville e talvez pela de Lars Nelle, mas essa será mais difícil de determinar, pelo menos tendo em consideração o que o anterior mestre me contou.

Queria saber mais coisas, mas qualquer interesse que demonstrasse seria tomado como uma admissão tácita, por isso declarou apenas:

- És um sonhador.

- Já me chamaram coisas piores.

- Quais são as tuas motivações?

- Quero ser cavaleiro e é o mestre quem faz essa escolha. Há algumas noites, na capela, quando prendeu o senescal, deixou claro que isso nunca iria acontecer. Decidi nessa altura tomar um caminho diferente, um caminho que o anterior mestre não aprovaria. Assim, segui o curso dos acontecimentos, tentei saber o máximo de informações possível e esperei até poder oferecer-lhe aquilo que realmente deseja. Em troca, peço apenas o perdão da Ordem.

- Se o que dizes é verdade, ser-te-á concedido.

- Tenho de regressar às ruínas. Eles planeiam passar lá a noite. Já deve ter percebido que são pessoas determinadas e inteligentes, tanto em grupo como individualmente. Embora não pretenda dar-lhe conselhos, o melhor será agir de modo peremptório.

- Garanto-te que assim farei.

 

Malone levantou-se e caminhou até ao altar. No feixe de luz da lanterna, reparara na ausência de argamassa sob a pedra superior. A sequência 7-9 chamara-lhe a atenção e ajoelhar-se permitira-lhe ver a fenda.

Junto ao altar, agachou-se e aproximou a luz.

- A pedra do cimo não está pegada ao suporte.

- Nem precisa. A gravidade ajuda a mantê-la no local - explicou Mark - Olhe para a pedra.Dever ter oito centímetros de espessura e quase dois metros de comprimento.

- Bigou escondeu o seu criptograma na coluna do altar em Rennes. Sempre me perguntei porquê aquele esconderijo Original, não acha? Para lá chegar, teve de levantar a pedra o suficiente para soltar o ponto de apoio e depois colocar o frasco de vidro na pequena abertura. Volta-se a colocar a pedra do altar no sítio e temos um excelente esconderijo. Mas não é assim tão simples. Ao escolher aquele local, Bigou estava a tentar dizer algo. - Pousou a lanterna. - Temos de deslocar isto

Mark avançou para uma das pontas e Malone para a outra. Ao segurar a laje de ambos os lados, tentou perceber se a pedra se deslocaria. E deslocou, ligeiramente.

- Tens razão - disse ele. - Foi apenas aqui assente. Não vejo razão para estarmos com mesuras. Vamos empurrar isto para o chão.

Juntos, deslizaram a pedra para a esquerda e para a direita até que a gravidade pudesse fazer o resto.

Malone olhou para a abertura rectangular que ficara exposta e viu que estava repleta de pedras.

- Está cheia de pedras - disse Mark.

Malone sorriu.

- Claro que está. Ajuda-me a retirá-las.

- Para quê?

- Se fosses Saunière e não quisesses que ninguém seguisse o teu rasto, a laje do altar já seria óptima para desencorajar qualquer um, mas estas pedras seriam ainda melhores. Tal como me disseste ontem, temos de pensar como as pessoas daquele tempo. Olha em redor. Nunca ninguém viria aqui à procura de um tesouro. Isto não passava de uma ruína. E quem se daria ao trabalho de desmanchar o altar? Está aqui há séculos, imperturbado. No entanto, se alguém o fizesse, o melhor seria ter uma segunda defesa.

O suporte rectangular erguia-se a cerca de um metro do chão e não demoraram a retirar todas as pedras do seu interior. Dez minutos mais tarde, o pilar estava vazio. O fundo estava coberto de terra.

Malone saltou para o interior e pareceu-lhe sentir uma ligeira vibração. Dobrou-se e apalpou o fundo com as mãos. A terra ressequida tinha a consistência da areia do deserto. Mark iluminou a abertura enquanto Malone retirava a areia com a mão em concha. A quinze centímetros de profundidade, tocou em qualquer coisa dura. Com as duas mãos, abriu uma pequena cratera e avistou tábuas de madeira.

Olhou para cima e sorriu de contentamento.

- É tão bom ter razão.

De Roquefort entrou de rompante na sala e fitou os membros do conselho. Pedira uma reunião de emergência logo após o telefonema de Geoffrey.

- O Grande Legado já foi encontrado.

Os irmãos entreolharam-se surpreendidos.

- O anterior senescal e os seus comparsas localizaram o esconderijo. Tenho um irmão dentro do grupo que os espia e me vai mantendo informado. Chegou a hora de reclamarmos a nossa herança.

- E o que propõe? - questionou um deles.

- Levar um contingente de cavaleiros e prendê-los.

- Mais derramamento de sangue? -perguntou o capelão.

- Não será necessário, se tudo for feito com cuidado.

O capelão não parecia impressionado.

- O anterior senescal e Geoffrey, que aparentemente é o seu aliado, visto não haver mais nenhum irmão no grupo, já mataram dois membros da Ordem. O que o leva a pensar que não haverá mais tiros?

Já ouvira o suficiente.

- Capelão, isto não é um assunto de fé. A sua orientação não é necessária.

- A segurança dos membros desta Ordem é responsabilidade de todos.

- Está porventura a insinuar que não me preocupo com o bem-estar e segurança da Ordem? - Elevou a voz. - Pretende questionar a minha autoridade e as minhas decisões? Diga-me, capelão.

Se o veneziano estava intimidado, não o deixou transparecer, e limitou-se a afirmar:

- É o meu mestre, devo-lhe lealdade... Em qualquer circunstância. - De Roquefort não apreciou o tom insolente. - Mas, mestre, não foi o senhor que disse que devíamos todos participar numa decisão com esta magnitude? - Alguns dos outros membros acenaram com a cabeça em sinal de assentimento. - Informou a irmandade em conclave de que iria seguir um novo rumo?

- Capelão, estamos prestes a embarcar numa das maiores missões da história da nossa Ordem. Não tenho tempo para discutir consigo.

- Sempre pensei que dar graças ao nosso Senhor e Deus fosse uma das nossas maiores missões e isso é um assunto de fé do qual estou habilitado a falar.

De Roquefort já estava farto.

- Pode sair. - O capelão permaneceu sentado e ninguém se atreveu a dizer palavra. - Se não abandonar a sala de imediato, mando prendê-lo e enfrentar o castigo. - Fez uma pausa. - Que não será agradável.

O capelão levantou-se e fez uma vénia curta.

- Eu saio, como ordenou.

- E falaremos mais tarde, pode ter a certeza.

Esperou que o homem abandonasse a sala e depois disse aos outros:

- Procurámos durante muito tempo o nosso Grande Legado. Agora está ao nosso alcance. Aquilo que contém pertence-nos a nós e a mais ninguém. É a nossa herança e eu pretendo reclamar aquilo que é nosso. Levarei doze cavaleiros para me ajudarem. Deixo a escolha dos homens ao vosso critério. Que estejam prontos e armados daqui a uma hora.

Malone chamou Stephanie e Cassiopia e pediu-lhes que trouxessem a pá que tinham descarregado do Land Rover. Apareceram acompanhadas de Henrik e, quando entraram na igreja, Malone explicou-lhes o que ele e Mark tinham descoberto.

- Muito esperto - elogiou Cassiopia.

- Tenho os meus momentos.

- Precisamos de tirar o resto da terra aí de dentro - sugeriu Stephanie.

- Passe-me a pá, se faz favor.

Retirou o resto da areia e, alguns minutos depois, pôs a descoberto três tábuas de madeira escurecida. Metade estava presa com tiras de metal e a outra metade formava uma porta com dobradiças que abria para cima.

Dobrou-se e tocou gentilmente no metal.

- O ferro está corroído. As dobradiças já se desfizeram. Cem anos de exposição fizeram os seus estragos.

Ergueu-se e usou a pá para partir o que restava delas.

- Como assim, cem anos? - perguntou Stephanie.

- Foi Saunière quem construiu esta porta - explicou Cassiopia. - A madeira não está em muito mau estado e parece ter sido bem acabada, o que não é coisa que se veja em madeira medieval. Saunière precisava de entrar e sair facilmente, por isso, quando descobriu esta entrada, refez a porta.

- Concordo - disse Malone. - E isso explica o modo como lidou com a pesada pedra do altar. Arrastava-a até meio, tirava as pedras que tapavam a porta, trepava cá para dentro e depois voltava a colocar tudo no lugar quando saía. De acordo com o que li, era um homem robusto e bastante esperto.

Encaixou a pá na abertura e puxou-a para cima. Mark alcançou as tábuas e segurou-as. Malone atirou a pá para o lado e juntos arrancaram a madeira da sua moldura, expondo um buraco fundo.

Thorvaldsen olhou para o vazio.

- Fantástico. É bem possível que estejamos no lugar certo.

Stephanie virou a lanterna para a abertura e iluminou uma escada encostada à parede.

- Acha que aguenta?

- Só há uma maneira de descobrirmos.

Malone esticou a perna e com cuidado aplicou algum peso sobre o primeiro degrau. A escada era feita de madeira grossa e ele esperava que ainda estivesse bem pregada. Viu algumas cabeças de prego enferrujadas. Fez mais peso e agarrou-se ao pilar, não fosse tudo aquilo desabar de um momento para o outro. O degrau não cedeu. Colocou o outro pé na escada e experimentou o seguinte.

- Acho que aguenta.

- Eu sou mais leve - elucidou Cassiopia. - Não me importo de ir à frente.

Malone sorriu.

- Se não se importa, gostava de ser eu a fazê-lo.

- Está a ver? Eu tinha razão - disse ela -, também deseja isto.

Sim, era verdade. O que estava lá em baixo começava a motivá-lo, como a busca de livros raros em estantes obscuras. Não havia maneira de saber o que se iria encontrar.

Ainda agarrado à beira do suporte do altar, desceu-se até ao segundo degrau. Distavam cerca de quarenta e cinco centímetros uns dos outros. Passou rapidamente as mãos para o cimo da escada e desceu mais um degrau.

- São sólidos.

Continuou a descer, experimentando-os um a um. Por cima da sua cabeça, Stephanie e Cassiopia varriam a escuridão com as lanternas. No passar dos feixes de luz apercebeu-se de que estava a chegar ao fim da escada. O chão era o próximo passo. Estava tudo coberto por uma gravilha fina e pedras do tamanho de punhos e caveiras.

- Atirem-me uma lanterna - pediu ele.

Thorvaldsen esticou o braço e deixou-a deslizar. Malone agarrou a lanterna e iluminou o espaço em seu redor. A escada erguia-se desde o chão até ao tecto, numa altura de cerca de cinco metros. Também reparou que a saída ficava no centro de um corredor natural que milhões de anos de chuva e neve a derreter tinham escavado na pedra calcária. Sabia que os Pirenéus estavam repletos de cavernas e túneis.

- Por que não salta para o chão? - perguntou Cassiopia.

- Isso seria demasiado fácil. - Sentiu um pequeno arrepio no fundo das costas e algo lhe dizia que não era apenas provocado pelo ar frio. - Vou passar para o lado de trás da escada. Deixem cair uma dessas pedras o mais a direito possível. - Desviou-se do caminho.

- Já podemos? - perguntou Stephanie.

- Força - respondeu ele.

A pedra atravessou a abertura, atingiu o chão e continuou a cair. O foco das lanternas iluminou o local de impacto.

- Tinha razão - exclamou Cassiopia. - Aquele buraco estava ali mesmo à espera que alguém saltasse da escada.

- Atirem mais pedras em redor até encontrar chão sólido.

Choveram mais quatro e aterraram em terra firme. Como já sabia onde era seguro colocar os pés, saltou da escada e examinou a armadilha com a lanterna. A cavidade tinha cerca de um metro quadrado e pelo menos um metro de profundidade. Debruçou-se e retirou alguns pedaços da madeira que fora colocada por cima da abertura. As pontas eram macho e fêmea e as tábuas suficientemente finas para se quebrarem com o peso de um homem, mas suficientemente grossas para aguentarem uma camada de areia e saibro. No fundo do buraco erguiam-se espigões de metal bem afiados, à espera de atingir qualquer intruso. O tempo embotara o seu brilho, mas não a sua eficácia.

- Saunière não brincava - comentou ele.

- Podem ser armadilhas deixadas pelos templários - fez notar Mark. - Isso é latão?

- É bronze.

- A Ordem era perita em metalurgia. Usavam bronze, latão, cobre. A Igreja proibia as experiências científicas, por isso aprenderam coisas como essas com os árabes.

- Aquela madeira não tinha setecentos anos - alertou Cassiopia. Saunière deve ter consertado as defesas dos templários.

Não era propriamente o que ele desejava ouvir.

- O que significa que esta é apenas a primeira de muitas armadilhas.

 

Stephanie, Cassiopia e Mark juntaram-se a Malone. Thorvaldsen ficou lá em cima à espera que Geoffrey regressasse e preparado para descer qualquer ferramenta que viesse a ser precisa.

- O que eu disse não foi uma brincadeira - esclareceu Mark.

- Os templários foram pioneiros nas armadilhas. Li relatos nas Crónicas sobre as técnicas que desenvolveram.

- Mantenham os olhos bem abertos - alertou Malone. - Se queremos encontrar alguma coisa, temos de procurar.

- Já passa das três - informou Cassiopia. - Daqui a duas horas já não haverá sol. Se está frio agora, imaginem quando anoitecer.

O casaco ajudava a manter o corpo quente, mas luvas e meias térmicas também seriam uma grande ajuda. Tudo isso fazia parte da lista de compras de Geoffrey. Apenas a luz proveniente do tecto iluminava a passagem que se estendia em ambas as direcções. Sem as lanternas, Malone duvidava que fossem capazes de ver um dedo à frente do nariz.

- A luz do Sol não faz diferença. Já não chega aqui abaixo. Precisamos é que Geoffrey regresse com a comida e roupa quente. Henrik - gritou -, avise-nos quando o irmão chegar.

- Boa sorte, Cotton!

A mente fervilhava-lhe de ideias.

- O que será este lugar? - perguntou aos outros.

- Pode fazer parte de um horreum - alvitrou Cassiopia.

- Quando os romanos governaram esta região, abriram arrecadações subterrâneas para conservarem bens perecíveis. Digamos que foram a primeira versão dos frigoríficos. Muitos sobreviveram até hoje. Este pode ser um deles.

- E os templários sabiam disso? - questionou Stephanie.

- Também os tinham - explicou Mark. - Aprenderam com os romanos. O que Cassiopia diz faz sentido. Quando Jacques de Molay pediu a Gilbert de Blanchefort para esconder o tesouro do Templo, ele pode muito bem ter escolhido um lugar como este. Sob uma igreja desconhecida, numa abadia menor, e sem qualquer ligação à Ordem.

Malone apontou a lanterna para a frente e depois virou-se e dirigiu o foco para o lado oposto.

- Para que lado?

- Boa pergunta - disse Stephanie.

- Mark e Stephanie, sigam por esse lado - instruiu Malone.

- E eu e Cassiopia vamos por este. - Apercebeu-se que nem Stephanie nem o filho ficaram satisfeitos com a decisão. - Não temos tempo para discussões entre mãe e filho. Esqueçam isso por agora e façam o vosso trabalho. Era isso que me diria, Stephanie.

Ela nem sequer argumentou.

- Cotton tem razão. Vamos - disse a Mark. Malone ficou a vê-los desaparecer na escuridão.

- Boa jogada - murmurou Cassiopia. - Mas acha que foi sensato enviá-los juntos? Têm muito para resolver entre eles.

- Nada como momentos de tensão para os fazer apreciar a presença um do outro.

- Isso também se aplica a nós dois?

Ele virou o feixe da lanterna para o rosto dela.

- Comece a andar e já ficamos a saber.

De Roquefort e os doze irmãos aproximaram-se das ruínas pelo lado sul. Tinham evitado a aldeia de Saint Agulous e estacionado os veículos alguns quilómetros atrás. Fizeram o resto do caminho a pé, por entre rochas e arbustos. Sabia que toda aquela região atraía muitos amantes da natureza e montanhistas. O grupo seguia por um caminho estreito mas bem marcado, talvez utilizado pelos pastores locais e pelos seus rebanhos. O trilho terminava a cerca de um quilómetro do monte de pedras e entulho que fora em tempos um lugar de devoção.

De Roquefort parou e consultou o relógio. Eram quase quatro horas da tarde. O irmão Geoffrey dissera que regressava às quatro. Olhou em redor. As ruínas erguiam-se sobre um promontório, cem metros acima. O automóvel alugado de Malone estava estacionado ali perto.

- É melhor escondermo-nos por entre as árvores - ordenou.

Um momento mais tarde, avistou um Land Rover a subir a colina e viu-o depois parar ao lado do Peugeot. Geoffrey saiu do banco do condutor e reparou que o jovem olhava em volta como se procurasse alguém. No entanto, De Roquefort não revelou a sua presença, pensando poder tratar-se de uma armadilha.

Geoffrey fez um compasso de espera junto ao jipe e depois abriu a porta da bagageira e retirou duas caixas do interior. A agarrar ambas, dirigiu-se para a abadia. De Roquefort esperou que ele passasse e só então se mostrou.

- Estava à tua espera, irmão.

Geoffrey parou e voltou-se para trás.

Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Sem dizer nada, pousou as caixas no chão, abriu o casaco e puxou da arma automática. De Roquefort reconheceu a nove milímetros de fabrico austríaco, uma das várias marcas que o arsenal da abadia mantinha.

Geoffrey engatou a arma.

- Então traga os seus homens e vamos acabar com isto.

Malone sentia a tensão ficar cada vez mais insuportável. Seguia Cassiopia à medida que avançavam pela passagem subterrânea.

O caminho tinha cerca de dois metros de largura e dois metros e meio de altura, e entre ele e a superfície amontoavam-se cinco metros de terra dura. A verdade é que os espaços contíguos não eram os seus lugares preferidos. Pelo contrário, Cassiopia parecia cada vez mais determinada. Já vira aquele tipo de coragem em agentes que trabalhavam melhor sob tensão extrema.

Os seus sentidos estavam em alerta máximo por causa das armadilhas e prestavam atenção aos mínimos pormenores. Sempre achara divertido que nos filmes de aventuras as partes móveis feitas de pedra ou de metal, e supostamente com centenas ou milhares de anos, funcionassem sempre como se tivessem sido oleadas no dia anterior. O ferro e a pedra eram vulneráveis ao ar e à água que limitavam a sua eficácia. Contudo, com o bronze a história já não era bem assim. O metal era duradouro e fora precisamente por isso que tinha sido criado. Assim, os espigões no fundo dos buracos podiam ser um verdadeiro problema.

Cassiopia deteve-se com a luz da lanterna apontada para a frente.

- O que foi? - perguntou Malone.

- Olhe ali.

Ele juntou o seu foco ao dela e viu.

Stephanie detestava espaços fechados, mas não queria revelar essa fraqueza ao filho, que já não a tinha em grande conta. Assim, para tentar esquecer o desconforto, perguntou:

- Como poderiam os templários ter escondido o tesouro aqui?

- Transportando-o por partes. Nada os deteria.

- Isso deve ter levado uma eternidade.

- Tempo era coisa que não lhes faltava.

Estavam ambos atentos ao chão à sua frente e Mark testava cuidadosamente a superfície antes de cada passo.

- As suas precauções podiam não ser sofisticadas, mas eram eficientes - explicou Mark. - A Ordem possuía cofres por toda a Europa. A maior parte era guardada, para além de terem armadilhas.

Aqui, a ocultação e as medidas de segurança teriam de fazer o trabalho dos guardas. A última coisa que desejavam era chamar a atenção para a igreja tendo cavaleiros à sua volta. - O teu pai teria adorado isto.

- Eu sei.

O feixe da lanterna dele iluminou algo mais à frente na parede da passagem. Stephanie agarrou o ombro do filho e disse-lhe:

- Olha ali.

Havia letras gravadas na rocha.

NON NOBIS DOMINE

NON NOBIS SED DOMINE TUO DA GLORIUM PAUPERS COMMILITONES CHRISTI TEMPLIQUE SALOMONIS

- O que diz? - perguntou ela.

- «Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao Vosso nome conferi a glória. Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão.» É a divisa dos templários.

- Então é verdade. Estamos no lugar certo. Mark não respondeu.

- Que Deus me perdoe - murmurou ela.

- Deus não tem nada a ver com isto. Foi o homem quem deu origem a esta confusão e cabe ao homem resolvê-la. - Apontou para o fundo da passagem com a lanterna. - Olhe para ali.

Ela seguiu o feixe de luz e avistou uma grelha de metal, um portão, que dava acesso a outro corredor.

- Será que foi ali que guardaram tudo? - perguntou ela. Antes mesmo de ouvir a resposta, avançou em frente e dera apenas alguns passos quando ouviu Mark gritar:

- Não!

Nesse momento, o chão desapareceu-lhe sob os pés.

Malone observava o que as lanternas iluminavam. Um esqueleto prostrado no chão da caverna com os ombros, o pescoço e a caveira apoiados contra a parede.

- Vamos aproximar-nos - sugeriu ele.

Avançaram e Malone reparou numa ligeira depressão no solo. Agarrou de imediato o ombro de Cassiopia.

- Estou a ver - disse ela, e parou. - É uma queda alta.

- Os espigões estariam bem escondidos noutros tempos, mas a madeira enfraqueceu e tornou-os visíveis.

Contornaram a depressão, mantendo-se em solo firme, e chegaram junto do esqueleto.

- Sobraram apenas os ossos - comentou ela.

- Olhe para a cavidade torácica e para a face. Partida em vários pontos. Deve ter caído na armadilha. Estes cortes são dos espigões.

- Quem será?

Algo chamou a atenção de Malone.

Agachou-se e encontrou um fio de prata escurecido por entre os ossos. Puxou-o e reparou que um medalhão balançava na ponta.

- O símbolo dos templários. Dois homens montados no mesmo cavalo. Representava a pobreza individual. Vi um desenho disto num livro há algumas noites. Aposto que é o marechal que escreveu o relatório que usámos para aqui chegar. O tal que desapareceu da abadia assim que o abade Gélis lhe revelou a solução do criptograma. Deve ter vindo, descoberto a entrada, mas pelos vistos não foi muito cuidadoso. Saunière deve ter encontrado o corpo e deixou-o ficar.

- Mas como poderia Saunière ter percebido tudo? Como resolveu ele o criptograma? Mark deixou-me ler o relatório. De acordo com Gélis, Saunière não tinha solucionado o criptograma que descobrira na sua igreja e Gélis não confiava no abade, não lhe tendo por isso revelado nada do que sabia.

- Isso partindo do princípio de que o relatório do marechal é fiel à verdade. Saunière ou o marechal mataram o padre para o impedir de contar a alguém o que descobrira. Se o assassino é o marechal, o que parece provável, então escreveu o relatório apenas para que não o considerassem suspeito. Assim, ninguém pensaria que deixara a abadia para vir aqui tentar levar o Grande Legado. Era irrelevante mostrar ou não o criptograma. Fosse como fosse, não haveria maneira de o resolver sem a sequência matemática.

Desviou a atenção do esqueleto e fez incidir o feixe de luz um pouco mais à frente.

- Olhe para ali.

Cassiopia levantou-se e ambos viram gravada na rocha uma cruz com quatro braços iguais, expandida nas extremidades.

- A cruz pateada - explicou ela. - Só podia ser usada pelos templários, graças a um decreto papal. Era sempre vermelha e usada sobre manto branco e significava a sua prontidão para o martírio na luta contra os infiéis.

Com a luz, Malone traçou o contorno das letras que estavam escritas por cima da cruz.

PAR CE SIGNE TU LE VAINCRAS

- «Sob este signo tu o vencerás» - disse ele, traduzindo. - Esta citação está na igreja de Rennes, sobre a pia de água benta. Saunière colocou-a lá.

- As palavras do imperador Constantino quando combateu Maxêncio pela primeira vez. Antes da batalha terá visto uma cruz com essa inscrição por baixo.

- Com uma diferença. Mark disse que na frase original não existe «o». Apenas «sob este signo tu vencerás.»

- Ele tem razão.

- Saunière acrescentou o «le» depois do «tu», na décima terceira e décima quarta posições na frase. 1314 - O ano em que Jacques de Molay foi executado.

- Eu diria que o abade apreciava um toque de ironia no seu simbolismo e foi aqui que veio buscar a ideia.

Perscrutou a escuridão e viu que a passagem terminava seis metros mais à frente. No entanto, antes disso, uma grelha de metal fechada por uma corrente e um cadeado conduzia noutra direcção.

Cassiopia também a viu.

- Parece que encontrámos.

De súbito, ouviram um estrondo e alguém gritar «Não!».

Viraram-se ambos para trás.

 

De Roquefort parou à entrada das ruínas e ordenou aos seus homens que se espalhassem pelos flancos. O lugar estava desconfortavelmente tranquilo. A calma era quase sepulcral. Geoffrey permanecia a seu lado. Podia muito bem tratar-se de uma emboscada e, por isso, viera preparado e bem armado. Estava satisfeito com a escolha do conselho. Aqueles homens eram os melhores cavaleiros da abadia, lutadores experientes e de coragem inquestionável, qualidades que lhe podiam muito bem vir a ser úteis.

Espreitou por cima de um amontoado de pedras cobertas de líquenes para o interior da estrutura decrépita. Havia ainda alguma luz, mas em breve o Sol procuraria refúgio atrás das montanhas e a escuridão tomaria conta do lugar. O tempo também o preocupava; no Verão, as tempestades e a chuva apareciam sem avisar nos Pirenéus.

Fez um sinal e os homens avançaram, saltando por cima de pedras e secções de paredes caídas. Avistou uma espécie de acampamento abrigado entre três paredes. A um canto, havia lenha disposta para uma fogueira que não tinha ainda sido acesa.

- Eu entro primeiro - murmurou Geoffrey. - Estão à minha espera.

Fazia sentido e De Roquefort assentiu.

O irmão deslocou-se calmamente em direcção ao acampamento. Continuava sem ver vivalma. Depois o jovem desapareceu no interior das ruínas. Pouco depois apareceu e fez-lhes sinal para que entrassem.

De Roquefort disse aos homens que esperassem e apenas ele penetrou nas ruínas. Já deixara ordens com o seu tenente para que só atacassem caso fosse necessário.

- Só Thorvaldsen se encontra na igreja - disse Geoffrey.

- Qual igreja?

- Os monges abriram uma igreja na rocha. Eles descobriram uma entrada sob o altar que leva a umas cavernas. Os outros estão lá em baixo à procura e eu disse a Thorvaldsen que vinha buscar os mantimentos.

Aquilo, sim, eram boas notícias.

- Gostava de conhecer Henrik Thorvaldsen.

De arma em punho seguiu Geoffrey até à igreja. O dinamarquês estava de costas viradas para eles, debruçado sobre o que parecia ser o suporte do altar. Quando os sentiu aproximar, virou-se.

De Roquefort apontou-lhe a arma e disse:

- Nem uma palavra ou será a última que diz em toda a sua vida.

A terra cedera sob os pés de Stephanie e as pernas pendiam-lhe agora em direcção a uma das armadilhas que tanto se tinham esforçado por evitar. Que atitude tão infantil. Ao ver as palavras escritas na pedra e o portão de metal ali à espera de ser aberto, apercebera-se de que Lars não andava atrás de um sonho. Com o entusiasmo, esquecera-se de todas as cautelas e apressara-se. Mark ainda tentara detê-la, gritando, mas já era demasiado tarde.

Agora já ia em direcção ao vazio.

Ergueu os braços numa tentativa para se equilibrar e preparou-se para os espigões. Nesse momento, sentiu um braço envolver-lhe o peito num abraço apertado e começou a cair de costas. Atingiu o chão, mas sentiu que outro corpo lhe amortecia a queda.

Durante alguns segundos, tudo ficou em silêncio.

Mark estava por baixo dela.

- Estás bem? - perguntou Stephanie, e rebolou para o lado. O filho levantou-se e sacudiu a gravilha.

- Bela massagem nas costas.

Ouviram então o som de passos vindos da escuridão, acompanhados por dois feixes de luz. Atrás destes, apareceram Cassiopia e Malone.

- O que aconteceu? - perguntou Malone.

- Fui descuidada - confessou ela. Levantou-se e sacudiu a roupa. Malone fez incidir o foco da lanterna no buraco rectangular.

- Teria sido uma queda e tanto. Está cheio de espigões e todos em bom estado.

Stephanie aproximou-se, olhou lá para baixo e depois voltou-se para Mark que esfregava o pescoço, tentando aliviar as dores.

- Obrigada, filho.

- De nada.

- Malone! - chamou Cassiopia. - Olhe ali.

Também já descobrira a divisa dos templários escrita na pedra.

- Dirigia-me para esse portão quando o chão se abriu.

- São dois - murmurou ele. - Um em cada ponta do corredor.

- Existe outro portão? - questionou Mark.

- Sim, e outra inscrição.

Ouviram em silêncio enquanto Malone contava o que tinham encontrado.

- Concordo consigo - disse Mark. - Esse esqueleto devia ser o nosso marechal. - Puxou o fio que trazia ao pescoço. - Todos usamos esse medalhão, que recebemos na cerimónia de iniciação.

- Pelos vistos, os templários resolveram jogar pelo seguro e separaram o tesouro. - Apontou para o chão. - E não o tornaram fácil de encontrar. O marechal deveria ter tido mais cuidado. - Malone encarou Stephanie. - Tal como todos nós.

- Compreendo - concordou ela -, mas como diz sempre, não sou uma operacional.

Ele sorriu e disse:

- Bem, vamos lá ver o que está atrás daquele portão.

De Roquefort continuava com a arma apontada a Henrik Thorvaldsen.

- Dizem que o senhor é um dos homens mais ricos da Europa.

- E eu ouvi dizer que o senhor é um dos prelados mais ambiciosos da história contemporânea.

- Não devia ligar ao que Mark Nelle diz.

- Foi o pai dele quem o disse.

- O pai dele não me conhecia.

- Eu não diria isso, afinal fartou-se de o seguir.

- O que se revelou uma perda de tempo.

- Foi por esse motivo que o matou?

- É isso que pensa? Que eu matei Lars Nelle?

- Ele e Ernst Scoville.

- Não sabe do que fala.

- Sei que o senhor é um problema - declarou Thorvaldsen. Depois apontou para Geoffrey. - Sei que ele é um traidor.

De Roquefort observou o irmão engolir o insulto com desdém no olhar.

- Sou leal ao meu mestre, o meu voto assim o exige.

- E trai os seus amigos por causa de um voto?

- Nunca seria capaz de entender.

- Pois não, nem quero.

De Roquefort baixou a arma e fez sinal aos seus homens. Estes invadiram a igreja e o mestre fez-lhes sinal que não fizessem barulho. Depois de mais alguns sinais gestuais, entenderam de imediato que seis deles deviam tomar posição lá fora e os outros seis cercar o interior.

Malone contornou a armadilha que Stephanie pusera a descoberto e aproximou-se da grelha de metal. Os outros não tardaram a segui-lo. Viu um cadeado em forma de coração suspenso de uma corrente.

- Latão. - Depois tocou no portão. - Mas a grelha é de bronze.

- O cadeado e a corrente devem ter sido colocados por Saunière - explicou Mark. - O latão era um bem raro na Idade Média. Era preciso zinco para o fazer e não era fácil de conseguir.

- Este tipo de cadeado era muito comum nesta região. Era usado para fechar as correntes dos escravos - acrescentou Cassiopia.

Nenhum deles fez questão de abrir a grelha e Malone sabia porquê. Podia haver outra armadilha à espera.

Com a bota, afastou cuidadosamente a terra e o cascalho e experimentou o chão. Parecia sólido. Depois usou a lanterna para examinar melhor o portão. A extremidade direita estava segura por duas dobradiças. Apontou a luz por entre a grade e viu um corredor que após alguns metros curvava para a direita. Não era possível ver onde ia dar. Boa. Forçou a corrente e o cadeado.

- O latão é resistente. Não vamos conseguir forçá-lo.

- E se o cortássemos? - sugeriu Cassiopia.

- É uma boa ideia, mas com o quê?

- Com os alicates que eu trouxe. Estão na caixa das ferramentas, ao lado do gerador.

- Eu vou buscá-los - disse Mark.

- Está alguém aí em cima?

As palavras ecoaram no interior do suporte do altar e assustaram De Roquefort. Não tardou a reconhecer a voz de Mark Nelle. Thorvaldsen deu um passo em frente, preparando-se para responder, mas De Roquefort agarrou-o e tapou-lhe a boca mesmo antes de ele conseguir emitir qualquer som. Em seguida fez sinal a um irmão que arrastou o dinamarquês para longe, enquanto lhe mantinha a boca tapada.

- Responde-lhe - disse para Geoffrey.

Seria uma forma interessante de testar o seu novo aliado.

Geoffrey meteu a arma no cinto e aproximou-.se do altar.

- Estou eu.

- Já regressaste. Que bom. Tiveste problemas?

- Nenhum. Trouxe tudo o que estava na lista. Há novidades?

- Descobrimos qualquer coisa, mas precisamos de alicates. Podes ir buscá-los? Estão na caixa das ferramentas ao lado do gerador.

De Roquefort observou o irmão deslocar-se até ao gerador e retirar o alicate da caixa.

O que teriam eles encontrado? Geoffrey passou-lhe a ferramenta.

- Obrigado - disse Mark. - Não vens?

- Fico aqui com Thorvaldsen a tomar conta das coisas. Não queremos ser surpreendidos por convidados indesejados.

- Boa ideia. Onde está Henrik?

- A desempacotar o que eu trouxe e a preparar a fogueira. Não tarda é de noite. O melhor é ajudá-lo.

- Se calhar também não era má ideia irem ligando o gerador e preparando os cabos para as luzes. Podemos precisar.

- Eu faço isso.

Geoffrey ficou a ver Mark desaparecer e depois afastou-se do altar e murmurou:

- Já foi.

De Roquefort sabia bem o que tinha de ser feito.

- Está na hora de assumir o comando desta expedição.

Malone pegou na ferramenta e colocou os dentes do alicate sobre os elos da corrente. Depois apertou a pega com força e escutou um estalido que indicava que fora bem sucedido. A corrente soltou-se e aterrou no chão juntamente com o cadeado.

Cassiopia baixou-se e apanhou-os.

- Sei de museus que teriam pago uma fortuna para ficarem com isto. Tenho a certeza que não há muitos em tão boas condições.

- E nós acabámos de o cortar - disse Stephanie.

- Não tínhamos outra escolha - argumentou Malone. - Estamos com pressa. - Apontou o foco da lanterna por entre a grelha. _ Cheguem-se para o lado. Vou abrir isto muito lentamente. Acho que não há nada do outro lado, mas nunca se sabe.

Encaixou o alicate na grelha e depois afastou-se para o lado, usando a parede de rocha como protecção. As dobradiças estavam perras e teve de agitar a grade para trás e para a frente. Por fim, a porta abriu-se.

Preparava-se para entrar quando uma voz gritou de cima:

- Sr. Malone, tenho Henrik Thorvaldsen. Preciso que o senhor e os seus amigos subam. Dou-lhe um minuto. Se não obedecer mato o velhote.

 

Malone foi o último a subir. Quando saltou da escada, reparou que a igreja estava ocupada por seis homens armados, para além de De Roquefort. No exterior, já não havia sol e o interior era iluminado por duas pequenas fogueiras.

- Sr. Malone, que prazer. Conhecemo-nos por fim em pessoa - cumprimentou Raymond de Roquefort. - Portou-se muito bem na Catedral de Roskilde.

- Que bom saber que apreciou.

- Como nos encontrou? - perguntou Mark.

- Não foi graças ao diário falso do seu pai. Muito esperto da parte dele, ao mostrar o óbvio e alterar os pormenores de modo a que não servisse para nada. Quando Claridon decifrou o criptograma, a mensagem era, como já sabem, inútil. Dizia que escondia os segredos de Deus. Diga-me, uma vez que já esteve lá em baixo, esconde mesmo esses segredos?

- Não tivemos oportunidade de descobrir - respondeu Malone.

- Então temos de remediar isso. Mas para responder à sua pergunta...

- Geoffrey traiu-nos - interrompeu Thorvaldsen.

Mark ficou estupefacto.

- O quê?

Malone já reparara que Geoffrey tinha uma arma na mão.

- Isso é verdade?

- Sou um irmão da Ordem, leal ao meu mestre. Fiz apenas o meu dever.

- O teu dever? - gritou Mark. - Seu traidor filho da mãe. - Lançou-se em direcção a Geoffrey, mas foi agarrado por dois irmãos. Geoffrey não se mexeu um centímetro. - Ajudaste-me apenas para que De Roquefort pudesse ganhar? Foi isso que o teu mestre te pediu? Ele confiava em ti. Eu confiava em ti.

- Sabia que ele ia dar problemas - declarou Cassiopia. - Tudo nele apontava para isso.

- E bem o devia saber - contrapôs De Roquefort -, pois a senhora também só me deu problemas. Foi muito esperto da sua parte deixar o diário de Lars Nelle para que eu o encontrasse e ficasse ocupado com ele durante algum tempo. Porém, como está a ver, a lealdade na nossa irmandade fala sempre mais alto e os seus esforços foram infrutíferos. - De Roquefort encarou Malone. - Tenho seis homens aqui e outros seis lá fora, todos armados e com ordens para disparar. Vocês não estão armados, segundo me garantiu o irmão Geoffrey. Mas prefiro ter a certeza.

De Roquefort chamou um dos irmãos e este revistou Malone e depois os restantes.

- Como fizeste? Telefonaste para a abadia quando foste comprar os mantimentos? - perguntou Mark a Geoffrey. - Estranhei teres-te oferecido, uma vez que há dois dias que não sais do meu lado.

Geoffrey permaneceu calado e exibiu uma expressão convicta.

- Não vales nada - gritou Mark.

- Concordo - afirmou De Roquefort, e Malone viu o homem levantar a pistola e disparar três tiros contra o peito de Geoffrey. As balas fizeram-no cambalear para trás e De Roquefort terminou o trabalho com um tiro na testa.

O corpo do irmão caiu no chão, inerte. Malone mordeu o lábio inferior. Nada podia ter feito para evitar aquilo.

Mark lançou-se ao pescoço de De Roquefort e este encostou-lhe a arma ao peito.

Deteve-se.

- Ele atacou-me na abadia - explicou De Roquefort. - Atacar o mestre é um crime punível com a morte.

- Isso era há quinhentos anos! - bradou Mark.

- O irmão era um traidor e já não é útil a ninguém. São os perigos inerentes às tarefas de um espião. Ele seguramente estava a par dos riscos que corria.

- E você sabe os riscos que está a correr?

- Uma pergunta estranha, vinda de um homem que matou um irmão da Ordem. Esse acto também é punível com a morte.

Malone percebeu que aquela discussão não passava de exibição para os outros verem. De Roquefort precisava do inimigo, pelo menos por enquanto.

- Fiz o que tinha de fazer - argumentou Mark.

- E eu farei o mesmo.

De Roquefort levantou a arma.

Stephanie colocou-se entre os dois homens e protegeu Mark com o próprio corpo.

- E também seria capaz de me matar?

- Se tiver de ser.

- Mas eu sou cristã e não fiz mal a nenhum irmão.

- Palavras, minha senhora. Não passam de palavras.

Stephanie levou a mão ao colarinho e puxou um fio com uma medalha.

- A Virgem Maria. Anda sempre comigo.

Malone sabia que De Roquefort não a podia matar. Aparentemente, Stephanie também se apercebera da exibição do mestre e decidira desafiá-lo na frente dos seus homens. Agora não podia dar-se ao luxo de ser hipócrita. Estava impressionado. Era preciso coragem para enfrentar uma arma carregada.

De Roquefort baixou a arma.

Malone apressou-se em direcção ao corpo ensanguentado de Geoffrey. Um dos homens levantou um braço para o deter.

- Eu se fosse a si baixava o braço - ameaçou ele.

- Deixa-o passar - ordenou De Roquefort.

Aproximou-se do corpo. Henrik olhava fixamente para Geoffrey e a expressão dele mostrava angústia. Malone também reparou em algo que nunca antes vira no rosto do dinamarquês. Lágrimas.

- Nós os dois vamos voltar lá a baixo - anunciou De Roquefort a Mark - e vai mostrar-me o que encontraram. Os outros ficam aqui.

- Vá-se lixar!

De Roquefort encolheu os ombros e apontou a arma na direcção de Thorvaldsen.

- Ele é judeu. As regras são diferentes.

- Não abuses - pediu Malone a Mark. - Faz o que ele manda. Esperava que ele entendesse que havia um tempo para semear e outro para colher.

- Está bem. Vamos - concordou Mark.

- Eu também gostava de ir - pediu Malone.

- Não - respondeu De Roquefort. - Isto é um assunto da Ordem. Embora nunca tenha considerado Nelle um de nós, ele fez o juramento e isso conta para alguma coisa. Para além disso, pode ser útil. Já o senhor, poderia transformar-se num problema.

- Mark também pode dar-lhe dores de cabeça.

- Não creio. Ele sabe que, cristãos ou não, todos estariam mortos antes de ele aqui chegar.

Mark desceu a escada, seguido por De Roquefort.

Apontou para a esquerda e contou-lhe sobre a câmara que tinham descoberto.

O novo mestre guardou a arma e apontou o foco da lanterna para a frente.

- Mostre o caminho. E já sabe o que acontece se houver problemas.

Mark começou a andar, juntando o seu feixe de luz ao de De Roquefort. Contornaram o buraco que por pouco não reclamara a vida de Stephanie.

- Engenhosos - elogiou ele, enquanto admirava a armadilha e os espigões.

Chegaram à grade e continuaram.

Mark recordou-se do que Malone dissera sobre a existência de mais armadilhas e avançou passo a passo. Mais à frente a passagem estreitava e depois virava para a direita. Após alguns metros, voltava a virar para a esquerda. Lentamente, fizeram a última curva e pararam.

Apontou a lanterna e à sua frente estendia-se uma câmara com nove metros quadrados e tecto abobadado. A teoria de Cassiopia, de que aqueles subterrâneos podiam ter origem romana, estava correcta. A galeria formava um armazém perfeito e à medida que a lanterna iluminava a escuridão começaram a aparecer incontáveis maravilhas.

Primeiro viu estátuas. Pequenas peças coloridas. Várias Virgens com o Menino, anjos, bustos, todos em fila como um exército ao longo da parede. Depois avistou o brilho de ouro proveniente de arcas rectangulares. Algumas decoradas com painéis de marfim, outras revestidas a ónix e ouro, e outras ainda adornadas com cenas religiosas e brasões. Eram relicários, feitos para guardar os ossos dos santos, demasiado preciosos para funcionarem como simples caixas de arrumação. Talvez a pressa da fuga tivesse ditado aquele tipo de utilização.

Ouviu De Roquefort tirar a mochila que trazia às costas e subitamente a sala encheu-se de uma luz cor-de-laranja oriunda de uma lâmpada alimentada a bateria. De Roquefort entregou-lhe uma.

- Estas são melhores.

Não queria colaborar com aquele monstro, mas ele tinha razão. Agarrou na lâmpada e separaram-se de modo a observarem todo o conteúdo da sala.

- Cubra-o - disse Malone a um dos irmãos, e apontou para Geoffrey.

- Com o quê? - perguntou o homem.

- Os cabos eléctricos do gerador estão embrulhados num cobertor. Posso usar isso - explicou Malone e apontou para o exterior.

O homem pensou na sugestão durante uns segundos e depois respondeu:

- Oui. Pode ser.

Malone dirigiu-se até ao gerador e encontrou o cobertor ao mesmo tempo que avaliava a situação. Regressou e cobriu o corpo de Geoffrey. Três dos guardas tinham-se retirado para junto de uma das fogueiras, enquanto os restantes três estavam posicionados junto à saída.

- Ele não era nenhum traidor - segredou Henrik. Todos o fitaram admirados. - Geoffrey entrou sozinho e avisou-me que De Roquefort se encontrava aqui, e que fora ele quem o chamara, teve de o fazer. O mestre anterior fizera-o jurar que, assim que o Grande Legado fosse encontrado, De Roquefort seria informado. Ele não teve escolha. Não queria fazê-lo, mas acreditava que o seu antigo mestre saberia o que estava a fazer. Pediu-me que entrasse no jogo e implorou o meu perdão. Depois garantiu-me que não deixaria De Roquefort fazer-me mal. Infelizmente, não consegui retribuir o favor.

- O que ele fez foi uma tolice - afirmou Cassiopia.

- Talvez - disse Thorvaldsen.

- Ele explicou por que foi obrigado a avisá-lo? - murmurou Stephanie.

- Disse apenas que o mestre tinha previsto um confronto entre Mark e De Roquefort. A tarefa de Geoffrey era assegurar-se de que aconteceria.

- Mark não é adversário para aquele homem - exclamou Malone. - Vai precisar de ajuda.

- Concordo - acrescentou Cassiopia, que falava sem mover os lábios.

- Estamos em desvantagem - disse Malone. - Eles estão armados e nós não.

- Eu não diria isso - segredou Cassiopia. Malone gostou do brilho dos olhos dela.

Mark contemplou o tesouro que o rodeava. Nunca antes tinha visto tanta riqueza. Os relicários continham uma variedade de ouro e prata, quer em moedas cunhadas, quer em barras. Havia dinares de ouro, dracmas de prata e moedas bizantinas, todas dispostas em pilhas. E jóias. Pelo menos, três arcas brilhavam com pedras em bruto, demasiadas para serem contadas. Os cálices e vasos relicários chamaram a sua atenção. A maioria era de ébano, vidro, prata e ouro. Outros exibiam figuras em relevo e pedras preciosas. Interrogou-se a quem pertenceriam os restos mortais que continham. De um deles tinha a certeza. Leu a inscrição e murmurou:

- De Molay.

De Roquefort aproximou-se.

No interior do relicário estavam pequenos pedaços de osso pretos. Mark sabia a história. Jacques de Molay fora queimado vivo numa ilha do rio Sena, afirmando a sua inocência e amaldiçoando Filipe IV, que assistia à execução sem demonstrar o mínimo remorso. Durante a noite, os irmãos tinham atravessado o rio a nado e remexido nas cinzas. Quando regressaram à margem, traziam os ossos do mestre escondidos na boca. Agora estava a olhar para uma dessas recordações.

De Roquefort benzeu-se e proferiu uma oração.

- Repare no que eles fizeram.

Porém, Mark apercebera-se de algo ainda mais importante.

- Isto significa que alguém visitou este lugar depois de Março de

  1. Devem ter continuado a vir aqui até que morreram todos. Cinco deles sabiam da existência deste esconderijo. A Peste Negra deve ter reclamado a vida da maior parte deles em meados do século XIV. Nunca contaram o segredo a ninguém e a localização perdeu-se para sempre. - Havia tristeza no seu olhar.

Virou-se e a luz da lanterna revelou crucifixos e estátuas de madeira de ébano junto a uma parede. Eram cerca de quarenta, os estilos variando ente o românico, o germânico, o bizantino e o gótico. As feições das figuras eram de tal modo perfeitas que pareciam estar vivas.

- É deslumbrante - admirou De Roquefort.

O tesouro era incalculável em dimensão e valor. À sua frente estava o maior conjunto de arte medieval que alguma vez vira.

À direita, sobre um pedestal de pedra, viu um livro de grandes dimensões. A capa ainda brilhava, talvez devido à folha de ouro, e tinha pérolas. Aparentemente, já alguém abrira o volume, pois havia folhas de pergaminho amarrotadas e espalhadas pelo chão. Agachou-se, aproximou a luz das folhas e viu que estavam escritas em latim. Conseguiu ler algumas frases e depressa percebeu que se tratava de um inventário.

De Roquefort reparou no seu interesse.

- O que é isso?

- Um inventário. Saunière deve ter tentado examinar o livro quando descobriu este lugar, mas não teve cuidado com o pergaminho.

- Não passava de um ladrão. Não tinha o direito de levar nada do que aqui estava.

- E nós temos?

- Pertence-nos. Foi-nos deixado pelo próprio De Molay. Foi crucificado numa porta e mesmo assim nunca revelou nada. Os seus ossos estão aqui. Tudo isto é nosso.

A atenção de Mark desviou-se para uma arca parcialmente aberta. Apontou o feixe de luz nessa direcção e viu mais pergaminho. Abriu a tampa com cuidado e as dobradiças rangeram. Não se atreveu a tocar nas folhas amontoadas e limitou-se a tentar decifrar o que dizia na página do cimo. Concluiu que se tratava de francês antigo e leu o suficiente para saber que era um testamento.

- Os documentos que eram deixados à guarda da Ordem. Esta arca deve estar repleta de testamentos e escrituras dos séculos XIII e XIV. - Abanou a cabeça. - Até ao final, os irmãos asseguraram-se que o seu dever era cumprido. - Avaliou a importância daquela descoberta. - Podemos aprender tanto com estes documentos.

- Mas não é só isto - declarou subitamente De Roquefort. - Não há livros. Nem um. Onde está o conhecimento?

- Na frente do seu nariz.

- Está a mentir. Há mais. Onde?

Mark fitou De Roquefort.

- É isto que está a ver.

- Não se arme em esperto comigo. Os nossos irmãos esconderam o seu conhecimento, sabe disso. Filipe IV nunca o encontrou, por isso tem de estar aqui. Vejo-o nos seus olhos. Há mais. - De Roquefort puxou da arma e encostou o cano à cabeça de Mark. - Diga-me.

- Prefiro morrer.

- E preferia ver a sua mãe morrer? Ou os seus amigos? Porque é isso que farei até que me diga o que pretendo saber.

Mark avaliou as alternativas. Não era que tivesse medo de De Roquefort - estranhamente não sentia qualquer temor -, mas a verdade é que também queria saber. O pai procurara durante anos e não encontrara nada. O que dissera o mestre à mãe a respeito dele? «Ele não possui a determinação necessária para levar as suas batalhas até ao fim.» Isso ainda estava para se ver. O fim da demanda do pai estava apenas a alguns metros de distância.

- Muito bem, venha comigo.

- Está um bocado escuro aqui - disse Malone a um dos irmãos que parecia ser o chefe. - Podíamos pôr o gerador a trabalhar e iluminar isto um pouco mais.

- Esperamos que o mestre regresse.

- Eles vão necessitar dessas luzes lá em baixo e ainda demora alguns minutos a preparar tudo. O seu mestre pode não querer esperar quando as mandar acender. - Esperava que a sua previsão afectasse a decisão do homem. - Não haverá problema. Só vamos montar umas luzes.

- Está bem. Façam isso.

Malone regressou para junto dos outros.

- Caiu que nem um patinho. Vamos a isso.

Stephanie e Malone pegaram num conjunto, e Henrik e Cassiopia no outro. O material consistia em duas lâmpadas de halogéneo sobre um tripé e um pequeno gerador alimentado a gasolina. Posicionaram os tripés em lados opostos da igreja e direccionaram as lâmpadas para cima. Os cabos estavam ligados e estendiam-se até ao gerador, colocado junto ao altar.

Havia uma caixa de ferramentas ao lado do gerador. Cassiopia ia pegar nela quando um dos guardas a impediu.

- Preciso de dar energia aos cabos. Não posso usar fichas para este tipo de amperagem. Só vou buscar uma chave de fendas.

O homem primeiro hesitou, mas depois afastou-se, de arma sempre apontada. Cassiopia meteu a mão na caixa e retirou a chave de fendas. À luz das fogueiras, ligou os cabos ao gerador.

- Vamos verificar as ligações às lâmpadas - sugeriu ela a Malone. Deslocaram-se fortuitamente até ao primeiro tripé.

- A minha arma de dardos está na caixa de ferramentas - segredou.

- Presumo que sejam os mesmos que usou em Copenhaga - disse ele, de lábios imóveis como um ventríloquo.

- Actuam rapidamente. Só preciso de alguns segundos para os disparar.

Cassiopia mexia no tripé como se estivesse ocupada a fazer alguma coisa.

- E quantos tem?

Fez de conta que terminara o que estava a fazer. - Quatro.

Deslocaram-se para o segundo tripé.

- Contra seis homens.

- Os outros dois ficam para si.

Pararam junto ao outro tripé.

- Precisamos de uma distracção. Tive uma ideia - murmurou ele.

Cassiopia mexeu nos cabos.

- Já não era sem tempo.

 

Mark seguiu à frente enquanto voltavam para trás, pela mesma passagem, em direoção ao local que Cassiopia e Malone tinham explorado. Depois de saírem da sala do tesouro, Mark apanhou o alicate, supondo que o outro portão também estaria fechado a cadeado.

Chegaram às palavras escritas na parede.

- «Sob este signo tu o vencerás» - leu De Roquefort. Depois viu a segunda grade. - É ali?

Mark assentiu e apontou para o esqueleto no chão.

- Também veio ver com os próprios olhos.

Contou-lhe a história do marechal do tempo de Saunière e do medalhão que Malone encontrara, que confirmava a sua identidade.

- Foi bem feito - declarou De Roquefort.

- É diferente do que veio aqui fazer?

- Eu vim pela Ordem.

Mark observou uma pequena inclinação no solo um pouco mais à frente. Sem o revelar, contornou o ardil e seguiu em direcção à parede, evitando a armadilha na qual De Roquefort parecia não ter reparado, pois a atenção dele estava centrada no esqueleto. Junto ao portão, armado com o alicate, cortou o cadeado. Recordou-se das precauções de Malone e encostou-se à parede enquanto abria o portão gradeado.

Para lá dele, estendia-se um corredor com as mesmas duas esquinas. Avançou, a lanterna a mostrar apenas rocha.

Virou a primeira esquina e depois a segunda. De Roquefort vinha mesmo atrás e os seus focos de luz revelaram outra galeria, esta bem maior do que a câmara do tesouro.

A sala estava cheia de plintos de pedra de vários formatos e tamanhos e sobre eles havia livros, centenas de volumes, todos cuidadosamente empilhados.

Aquela visão entristeceu Mark, pois sabia que os manuscritos não estariam em boas condições. Embora a câmara fosse fresca e seca, o tempo teria arruinado o pergaminho e a tinta. Teria sido bem melhor se tivessem sido guardados no interior de uma caixa, mas os irmãos que os haviam escondido por certo não faziam ideia que só voltariam a ser descobertos setecentos anos mais tarde.

Deslocou-se até uma das pilhas e examinou a capa do livro. O que deveria ser prata sobre tabuinhas de madeira havia enegrecido. Levantou a capa com muito cuidado e aproximou a lanterna. As suas suspeitas confirmavam-se. A maioria das letras tinha desaparecido.

- Consegue ler alguma coisa? - perguntou De Roquefort. Mark sacudiu a cabeça.

- Precisa de ir para um laboratório e ser restaurado por profissionais. O melhor será não mexermos nos livros.

- Mas parece que isso já foi feito por alguém antes de nós. Seguiu o feixe de luz com o olhar e viu uma pilha de livros, páginas e pedaços de capas espalhados pelo chão.

- Só pode ter sido Saunière - afirmou Mark. - Vai levar anos a recuperar alguma coisa de útil destes livros. E isto se encerrarem alguma coisa de interesse, para além do valor histórico.

- Isto é nosso.

«Pouco importa», pensou Mark. «Não servem para nada.»

No entanto, a mente fervilhava-lhe de ideias. Saunière estivera ali, disso não restavam dúvidas. A câmara do tesouro fornecera-lhe a riqueza de que precisava. Teria sido fácil deslocar-se até ao local de tempos a tempos e carregar ouro ou prata não cunhados. As moedas seriam mais difíceis de trocar, pois os responsáveis dos bancos haveriam de querer saber qual a sua proveniência. Mas o metal bruto teria constituído uma unidade monetária perfeita no início do século XX, uma altura em que muitas economias se baseavam no ouro ou na prata.

Porém, o abade fora mais longe e usara aquela riqueza para decorar uma igreja que apontava para algo em que ele acreditava. Algo sobre o qual tinha tantas certezas que até fizera gala desse conhecimento. «Sob este signo tu o vencerás.» Palavras gravadas não apenas ali, como também na igreja de Rennes. Depois recordou-se da inscrição pintada sobre o pórtico. «Desprezo o reino deste mundo e todos os bens temporais por amar o meu Senhor Jesus Cristo, o qual vi, amo, venero e no qual acredito.» Palavras de um antigo responsório? Talvez. No entanto, haviam sido propositadamente escolhidas por Saunière.

«O qual vi.»

Rodou sobre os calcanhares, iluminou a sala, e observou os blocos.

E foi então que Mark viu.

«Qual o melhor lugar para esconder uma pedra?»

Claro.

Malone deslocou-se até ao gerador, junto ao qual deixara Henrik e Stephanie. Cassiopia continuava a «ajeitar» o tripé. Agachou-se e certificou-se de que havia gasolina no motor.

- Isto vai fazer muito barulho? - perguntou ele em voz baixa.

- Era bom que sim, mas infelizmente estas unidades já são quase silenciosas.

Não tocou na caixa de ferramentas, para não atrair atenções indesejadas. Até ao momento nenhum dos guardas se dera ao trabalho de inspeccionar o seu conteúdo. Pelos vistos, o treino de defesa e vigilância na abadia deixava um pouco a desejar. E seria assim tão eficaz? Provavelmente aprendiam luta corpo a corpo, a disparar uma arma ou a usar uma faca, mas a escolha de recrutas era limitada e ninguém faz milagres.

- Tudo a postos! - gritou Cassiopia, suficientemente alto para que todos a pudessem ouvir.

- Tenho de ir ter com o meu filho - murmurou Stephanie.

- Compreendo - respondeu Malone -, mas temos de fazer isto com cuidado.

- Acha que De Roquefort vai permitir que ele saia dali? Não se esqueça que matou Geoffrey sem a menor hesitação.

Era óbvio que Stephanie estava nervosa.

- Eu sei que a situação é delicada - segredou -, mas tenha calma.

Também ele queria apanhar De Roquefort, por Geoffrey.

- Preciso de ficar um segundo junto da caixa de ferramentas - sussurrou Cassiopia, enquanto se baixava e arrumava na caixa a chave de fendas que estivera a usar.

Quatro dos guardas estavam junto de uma das fogueiras e os outros dois permaneciam à esquerda, perto da outra. Nenhum deles parecia estar a prestar-lhes grande atenção, confiantes de que não haveria nada que pudessem fazer.

Cassiopia permaneceu agachada frente à caixa de ferramentas, a mão ainda no interior, e fez sinal a Malone com a cabeça. Estava pronta. Malone levantou-se e disse:

- Vamos pôr o gerador a funcionar. O guarda responsável autorizou. Virou-se e murmurou junto ao ouvido de Stephanie:

- Assim que eu puser isto a trabalhar, vamos atacar aqueles dois irmãos que estão lado a lado. Eu fico com um e a Stephanie com o outro.

- Com todo o prazer.

- Tenha calma. Isto não é tão simples quanto pensa.

- Vai ver que até é.

Mark aproximou-se de um dos plintos de pedra. Reparara em algo de diferente. Enquanto os restantes eram suportados por uma variedade de pilares, alguns singulares, mas a maioria aos pares, aquele estava seguro por um suporte rectangular, semelhante ao do altar. O que lhe chamou a atenção foi a disposição das pedras. Nove blocos de pedra na horizontal e sete na vertical.

Baixou-se e iluminou a parte de baixo. Não havia argamassa sobre a fila de cima. Tal como no altar.

- Temos de tirar estes livros - declarou.

- Mas disse para não lhes mexermos.

- O que é realmente importante está dentro desta pedra.

Colocou a lanterna no chão e agarrou num braçado de manuscritos. Ao mexer-lhes, levantou uma nuvem de pó. Depois voltou a colocá-los com cuidado no chão. De Roquefort fez o mesmo. Após três montes cada um, o cimo ficou vazio.

- Isto tem de deslizar - informou ele.

Cada um deles pegou numa ponta e o tampo moveu-se, muito mais facilmente que o do altar, uma vez que o plinto tinha metade do tamanho da laje. Empurraram-no mais um pouco e aterrou no chão com estrondo, partindo-se em pedaços. No interior do plinto, Mark viu uma caixa pequena, com cerca de sessenta centímetros de comprimento, metade de largura, e quarenta e cinco centímetros de altura, feita de pedra castanho-acinzentada - pedra calcária, se não estava enganado - e em excelente estado de conservação.

Voltou a pegar na lanterna e aproximou-a da caixa. Tal como supunha, havia uma inscrição num dos lados.

- É um ossário - afirmou De Roquefort. - Está identificado? Observou as letras e ficou satisfeito ao ver que a inscrição estava escrita em aramaico. Só assim podia ser autêntico. O costume de colocar os corpos em criptas subterrâneas até que restassem apenas os ossos e depois colocá-los numa caixa de pedra era popular entre os judeus durante o século I. Mark sabia que tinham sobrevivido cerca de um milhar de ossários. Todavia, apenas um quarto possuía inscrições que identificavam o seu conteúdo. Isso explicava-se pelo facto de a maior parte da população nessa altura ser analfabeta.

Ao longo dos séculos haviam aparecido muitas falsificações, uma delas, há apenas alguns anos, afirmava conter os ossos de Tiago, o meio-irmão de Jesus. Outros testes de autenticidade seriam o tipo de material utilizado - pedra calcária das pedreiras nos arredores de Jerusalém -, o estilo das gravuras, o exame microscópico da patina e a datação por carbono.

Mark aprendera aramaico. Era uma língua difícil, tornada ainda mais complicada pela sua variedade de estilos, pelo calão e pelos muitos erros dos antigos escribas. A maneira como as letras eram gravadas podia também constituir um problema. A maior parte das vezes isso era feito com um prego, o que resultava em inscrições pouco profundas que o tempo facilmente apagava. Outras, como era ali o caso, eram gravadas com um estilete e de forma inequívoca, não sendo portanto difíceis de traduzir. Na verdade, já as conhecia. Leu da direita para a esquerda, como devia ser, e depois inverteu as palavras.

YESHUA BAR YEHOSEF.

- «Jesus, filho de José» - disse Mark, traduzindo.

- São os ossos de Jesus?

- É o que nos resta saber. - Olhou para a tampa. - Abra-o.

De Roquefort debruçou-se, agarrou a tampa e fez força até que a pedra se soltou. Depois ergueu-a e encostou-a ao ossário.

Mark escancarou os olhos.

Lá dentro, encontravam-se ossos.

Alguns tinham-se transformado em pó, mas a maior parte estava intacta. Viu um fémur, uma tíbia, algumas costelas, o osso pélvico, e o que aparentavam ser dedos e partes da coluna vertebral. E uma caveira.

Teria sido aquilo que Saunière encontrara?

Sob a caveira viram um pequeno livro em excelentes condições. Escapara aos efeitos cruéis do tempo, pois permanecera fechado dentro do ossário que, por sua vez, estava dentro de outro recipiente.

A capa era deslumbrante, decorada com folha de ouro e guarnecida com pedras preciosas talhadas em forma de cruz. Cristo repousava sobre a cruz, também de ouro. Em torno da cruz, havia mais pedras em tons de carmesim, verde e amarelo.

Levantou o livro, soprou o pó que o cobria e equilibrou-o sobre o canto do plinto. De Roquefort aproximou-se com a lanterna e Mark abriu a capa e leu o incipit, as primeiras linhas do texto. Fora escrito em latim, com letra gótica, sem pontuação e a tinta mantinha ainda o tom azul-avermelhado.

AQUI ESTÁ CONTIDO UM RELATO ENCONTRADO PELOS PRIMEIROS IRMÃOS DURANTE AS ESCAVAÇÕES NO MONTE DO TEMPLO REALIZADAS NO INVERNO DE 1121 ESTANDO O ORIGINAL EM TÃO MAU ESTADO FOI COPIADO EXACTAMENTE COMO SURGIA NA LÍNGUA ORIGINAL QUE APENAS UM DOS NOSSOS CONSEGUIA ENTENDER POR ORDEM DO MESTRE WILLIAM DE CHARTRES DATADA DE 4 DE JUNHO DE 1217 O TEXTO FOI TRADUZIDO PARA A LÍNGUA DOS IRMÃOS E PRESERVADO PARA QUE TODOS SAIBAM

De Roquefort estava a ler por cima do ombro dele e disse:

- Este livro foi colocado no ossário por alguma razão. Mark concordava.

- Vamos ler o resto.

- Pensei que estava aqui pelos irmãos. Não devíamos levar isto para a abadia e lê-lo em voz alta para todos ouvirem?

- Tomarei essa decisão depois de o ler.

Questionou-se se os irmãos alguma vez chegariam a saber de tudo aquilo, mas ele desejava saber, por isso estudou as inscrições da página seguinte e reconheceu a confusão de traços.

- Está em aramaico. Só consigo ler algumas palavras. Esta língua desapareceu há dois mil anos.

- O incipit falava de uma tradução.

Abriu cuidadosamente as folhas e viu que, o texto aramaico se estendia por quatro páginas. Depois aparecia A LÍNGUA DOS IRMÃOS.

Latim. O vellum sobrevivera quase intacto. As folhas tinham a cor de pergaminho envelhecido e a tinta permanecia clara e visível. A encimar o texto havia um título.

O TESTEMUNHO DE SIMÃO

Mark começou a ler.

 

Malone aproximou-se de um dos irmãos. Este estava vestido da mesma maneira que os outros, de calças de ganga, casaco de lã e boné a cobrir o cabelo curto. Havia pelo menos outros seis no exterior, a acreditar nas palavras de De Roquefort, mas pensaria neles assim que tivessem dominado os que se encontravam no interior da igreja.

Pelo menos nessa altura estaria armado.

Viu Stephanie pegar numa pá e começar a juntar as brasas de uma das fogueiras. Cassiopia permanecia junto ao gerador com Henrik, à espera que ele e Stephanie assumissem posições.

Malone olhou para Cassiopia e fez-lhe sinal com a cabeça.

Ela ligou o gerador, que começou a trabalhar e depois parou. Mais duas tentativas e o motor pegou, emitindo um ruído surdo e prolongado. As luzes nos tripés acenderam-se e o seu brilho foi-se intensificando à medida que a voltagem aumentava.

Malone reparou que o sucedido chamara a atenção dos guardas. Um erro que lhes seria benéfico. No entanto, precisavam de mais qualquer coisa para dar tempo a Cassiopia para disparar os quatro dardos. Questionou-se sobre a pontaria dela, mas depois recordou-se do episódio de Rennes.

O gerador continuava a roncar.

Cassiopia permanecia agachada ao lado do gerador, a caixa de ferramentas junto aos pés, e fingia estar a regular os manípulos do motor.

As lâmpadas atingiram a sua intensidade máxima e os guardas pareceram perder o interesse.

De súbito, um dos conjuntos de luzes explodiu e de seguida o outro. Formaram um cogumelo de fumo branco que desapareceu em poucos segundos. Malone aproveitou esse tempo para esmurrar o queixo do homem que estava ao seu lado.

O irmão cambaleou e depois estatelou-se no chão.

Malone baixou-se e tirou-lhe a arma.

Stephanie encheu a pá com brasas a ferver e virou-se para o guarda mais próximo, cuja atenção se focava nas luzes que explodiam.

- Ei! - chamou ela.

O homem voltou-se e ela atirou-lhe com as brasas para o peito. O guarda gritou de dor e Stephanie acertou-lhe com a pá no rosto.

Malone viu a antiga chefe lançar as brasas quentes contra o homem e bater-lhe com a pá. De seguida, desviou o olhar para Cassiopia que calmamente disparava a arma de dardos. Já devia ter usado um dos dardos, pois apenas três homens restavam de pé. Um dos guardas levou a mão à coxa e o outro ao pescoço, e ambos caíram no chão.

O último dos homens junto ao altar apercebeu-se do que acontecera aos seus companheiros e fitou Cassiopia, que se encontrava agachada dez metros à frente dele de arma apontada.

O homem saltou para trás do altar e o dardo falhou o alvo.

Malone sabia que ela já não tinha mais nenhum e não demoraria muito até o irmão disparar.

Segurou melhor a arma que tinha na mão, mas não queria usá-la. O disparo iria alertar De Roquefort e os guardas que se encontravam no exterior da igreja. Assim, começou a correr, colocou as palmas das mãos no suporte do altar e, quando o irmão se ergueu, deu um salto, pontapeou o homem no rosto e atirou-o para o chão.

- Nada mau - elogiou Cassiopia.

- Pensei que nunca falhasse.

Cassiopia e Stephanie começaram a desarmar os homens caídos. Henrik aproximou-se de Malone e perguntou:

- Está bem?

- Há já algum tempo que não fazia isto.

- É bom saber que os seus reflexos continuam a funcionar na perfeição. Como fizeram aquilo com as luzes? - perguntou Henrik.

- Bastou aumentar a voltagem. Resulta sempre. - Havia algo de errado. Os irmãos posicionados no exterior deveriam ter ouvido o rebentar das lâmpadas, porém nenhum viera ver o que se passava.

- Já devíamos ter companhia por esta altura.

Cassiopia e Stephanie aproximaram-se de armas em punho.

- Talvez estejam nas ruínas, lá mais à frente - disse Stephanie. Malone observou a saída.

- Ou talvez nem sequer existam.

- Garanto-lhe que existem - afirmou uma voz masculina proveniente do exterior da igreja.

Um homem surgiu por entre a escuridão, o rosto envolto em sombras.

Malone ergueu a arma.

- E quem é o senhor?

O homem parou junto a uma das fogueiras e o olhar dele fixou-se no corpo de Geoffrey.

- O mestre matou-o?

- Sem qualquer remorso.

Fez uma expressão triste e condoída, e murmurou qualquer coisa. Possivelmente uma oração. Depois disse:

- Sou o capelão da Ordem. O irmão Geoffrey telefonou-me, depois de ter chamado o mestre. Vim para evitar qualquer violência, mas cheguei demasiado tarde.

Malone baixou a arma.

- Também faz parte do plano de Geoffrey?

- Sim. Ele não queria contactar De Roquefort, mas deu a sua palavra ao anterior mestre. - E acrescentou num tom suave e terno:

- Acabou também por dar a vida.

- O que se está a passar aqui? - perguntou Malone.

- Compreendo a sua frustração.

- Não, não compreende - interrompeu Henrik. - Esse pobre rapaz está morto.

- E eu lamento. Serviu a Ordem sempre com muita honra.

- Chamar De Roquefort foi uma atitude estúpida - declarou Cassiopia - Só atraiu sarilhos.

- Nos últimos meses de vida, o nosso anterior mestre desencadeou uma complexa cadeia de acontecimentos. Confidenciou-me os seus planos. Disse-me quem era o nosso senescal e por que o tinha recolhido na Ordem. Falou-me sobre o pai do senescal e alertou-me para o que estava para acontecer. Jurei-lhe obediência, juntamente com o irmão Geoffrey. Sabíamos o que se estava a passar, ao contrário do senescal, que nem sequer tinha conhecimento do nosso envolvimento. O mestre pediu-me que não fizesse nada, a menos que o irmão Geoffrey solicitasse a minha ajuda.

- O seu mestre está lá em baixo com o meu filho - informou Stephanie. - Cotton, temos de descer.

Apercebeu-se da impaciência na voz dela.

- O senescal e De Roquefort não podem coexistir - disse o capelão. - São os extremos de um longo espectro. Para o bem da irmandade, apenas um deles pode sobreviver. No entanto, o meu antigo mestre interrogava-se se o senescal seria capaz de o realizar sozinho.

- O capelão fitou Stephanie. - E é por isso que a senhora está aqui. Ele acreditava que iria trazer força ao nosso senescal.

Stephanie parecia não estar com paciência para misticismos.

- O meu filho pode morrer graças a esta trapalhada.

- Durante séculos, a Ordem sobreviveu por entre batalhas e conflitos. O anterior mestre limitou-se a forçar um confronto. Ele sabia que De Roquefort e o senescal acabariam por se enfrentar, porém era seu desejo que essa guerra tivesse algum significado.

Assim, colocou-os a ambos no caminho do Grande Legado. Tinha certeza que se encontrava algures, mas duvido sinceramente que acreditasse que algum deles o encontrasse. O mestre também sabia que dessa batalha sairia um vencedor e que se esse vencedor fosse De Roquefort, este não demoraria a eliminar os seus aliados, como de facto o fez. A morte de dois irmãos pesa sobre nós e todos acreditamos que haverá mais mortes...

- Cotton - interrompeu Stephanie - Não vou esperar mais.

O capelão não se mexeu.

- Os homens que estavam lá fora já foram dominados. Façam o que têm a fazer. Aqui em cima, não haverá mais derramamento de sangue.

Malone ouviu também as palavras que aquele estranho homem não proferiu.

«Lá em baixo, porém, será bem diferente.»

 

O TESTEMUNHO DE SIMÃO

Permaneci em silêncio e deixei que outros escrevessem o sucedido. Todavia, ninguém o fez. Assim, deixo este registo escrito para que todos saibam o que aconteceu.

O homem Jesus passou muitos anos a espalhar a sua mensagem pelas terras da Judeia e da Galileia. Fui o primeiro dos seus seguidores, mas em breve crescemos em número, pois muitos acreditavam que as palavras dele possuíam grande significado. Viajámos com ele, observando enquanto mitigava o sofrimento, oferecia esperança e anunciava a salvação. Era sempre igual a si mesmo, independentemente do dia ou da situação. Se as multidões o louvavam, agradecia. Quando lhe eram hostis, não mostrava medo ou raiva. O que os outros pensavam ou diziam de si nunca o afectava. Disse certa vez «Todos nós fomos feitos à imagem de Deus, todos somos dignos de ser amados, todos podemos viver no espírito de Deus.» Vi-o abraçar leprosos e imorais. Estimava mulheres e crianças. Mostrou-me que todos eram merecedores de amor. Costumava dizer «Deus é o nosso pai. Tudo ama e tudo perdoa. Nenhuma ovelha se perderá desse pastor. Contai tudo a Deus, pois só assim o vosso coração alcançará a paz »

O homem Jesus ensinou-me a rezar. Falava de Deus, do dia do juízo final e do fim dos tempos. Cheguei a pensar que ele era capaz de controlar o vento e as marés, pois parecia tão diferente de nós.

Os líderes religiosos ensinavam que a dor, a doença e a tragédia faziam parte do julgamento de Deus e que deveríamos aceitar essa ira com a contrição de um penitente. O homem Jesus dizia que isso estava errado e ofereceu ao doente coragem para melhorar, ao fraco a capacidade de fortalecer o espírito e aos descrentes a possibilidade de acreditarem. O mundo parecia abrir-se sempre que ele se aproximava. O homem Jesus tinha um objectivo e vivia para o cumprir e esse objectivo era claro para aqueles que o seguiam.

No entanto, o homem Jesus fez inimigos durante as suas viagens. Os anciãos consideravam-no uma ameaça, uma vez que ele pregava valores diferentes, novas regras, e isso punha em causa a autoridade deles. Temiam que, se o homem Jesus continuasse a pregar livremente a mudança, Roma poderia apertar o jugo e todos sofreriam, em especial o sumo sacerdote, que fazia o que Roma mandava. E assim aconteceu que Jesus foi preso por blasfémia e Pilatos decretou que fosse crucificado. Eu estava lá nesse dia e Pilatos não ficou feliz com a sua decisão, mas os anciãos assim o exigiram e ele não pôde recusar.

Em Jerusalém, o homem Jesus e outros seis foram levados para um monte e presos à cruz com correias de couro. Mais tarde, as pernas de três homens foram partidas e eles acabaram por perecer ao início da noite. No dia seguinte, morreram mais dois. O homem Jesus foi deixado a penar até ao terceiro dia e só então lhe partiram as pernas. Não fui ter com ele enquanto padecia. Eu, e os outros que o seguiam escondemo-nos com medo de sermos os próximos. Após a sua morte, o homem Jesus foi deixado na cruz durante mais seis dias, enquanto os pássaros lhe debicavam a carne. Depois desceram-no e os ossos foram atirados para um buraco escavado no chão. Assisti a tudo isso e depois fugi de Jerusalém pelo deserto, e parei em Betânia na casa de Maria, chamada Madalena, e da sua irmã Marta. Também elas haviam conhecido o homem Jesus e a notícia da sua morte entristeceu-as. Zangaram-se comigo por não o ter defendido e por ter fugido quando ele estava a sofrer. Perguntei-lhes o que preferiam que tivesse feito e a resposta foi clara: «Juntares-te a ele.» Porém, essa ideia nunca me ocorreu. Em vez disso, a todos os que me perguntaram, neguei ter conhecido o homem Jesus e tudo o que ele representava. Abandonei a casa delas, e regressei dias mais tarde à Galileia e ao conforto das coisas que me eram familiares.

Dois dos seguidores do homem Jesus, Tiago e João, também regressaram à Galileia. Juntos partilhámos a dor da perda do homem Jesus e retomámos as nossas vidas de pescadores. O tempo não ajudou a aliviar a nossa tristeza. Enquanto pescávamos no mar da Galileia, falávamos dele e de tudo o que fizera e testemunhara. Fora no lago, há anos, que o víramos pela primeira vez e ele pregara no nosso barco. A memória dele parecia estar em todo o lado naquelas águas e isso fazia com que fosse cada vez mais difícil esquecer a dor que sentíamos. Uma noite, enquanto uma tempestade agitava o lago e nós estávamos sentados na margem a comer pão e peixe, julguei ter visto o homem Jesus sobre a bruma, mas quando me fiz à água percebi que não passava de imaginação. Partíamos o pão e comíamos peixe todas as manhãs. Recordando-nos do que o homem Jesus fizera certa vez, um de nós abençoava o pão e oferecia-o em louvor de Deus. Este acto fazia-nos sentir melhor. Um dia, João comentou que o pão partido se assemelhava ao corpo partido do homem Jesus. A partir desse dia, começámos a associar o pão ao seu corpo.

Passaram-se quatro meses, e um dia Tiago lembrou-nos que a Tora afirmava que todo o que se pendurava numa árvore era amaldiçoado. Disse-lhe que isso não era verdade em relação ao homem Jesus. Essa foi a primeira vez que algum de nós questionou as palavras antigas. Não podiam simplesmente aplicar-se a alguém tão bom quanto ele. Como poderia um escriba antigo saber que todos aqueles que eram pendurados numa árvore estavam amaldiçoados? Não podia. Numa batalha entre o homem Jesus e as palavras dos anciãos, o homem Jesus vencia.

A nossa dor continuava a atormentar-nos. O homem Jesus tinha morrido. A sua voz já não se escutava. Por outro lado, os anciãos continuavam a viver, assim como a sua mensagem, não porque estivessem certos, mas apenas porque estavam vivos e continuavam a pregá-la. Os anciãos tinham triunfado sobre o homem Jesus. Mas como poderia algo tão bom estar errado? Como poderia Deus permitir que essa bondade se extinguisse?

O Verão terminou e chegou a festa do Tabernáculo, altura de festejar as colheitas. Pensámos que seria seguro viajarmos até Jerusalém e participar dos festejos. Uma vez aí, e durante a procissão ao altar, alguém leu nos Salmos que o Messias não morreria, mas voltaria para pregar os actos do Senhor. Um dos anciãos proclamou que embora o Senhor tivesse castigado severamente o Messias, não o havia entregue à morte. Em vez disso, a pedra rejeitada pelos construtores transformara-se na pedra angular da casa de Deus. No interior do templo escutámos leituras do livro de Zacarias, que dizia que um dia o Senhor viria e que de Jerusalém correria água e que o Senhor reinaria sobre toda a terra. Depois, uma noite, escutei outro texto de Zacarias, no qual se falava de um espírito de benevolência e de súplica. Dizia também que quando contemplássemos aquele a quem tinham trespassado, choraríamos por ele como se chora um filho único.

Ao ouvir tudo aquilo, pensei no homem Jesus e no que lhe sucedera. O leitor parecia falar directamente para mim quando falou dos planos de Deus de atacar o pastor para que as ovelhas se tresmalhassem. Nesse momento, fui tomado por um amor imenso que não mais me deixou. Nessa noite, dirigi-me ao local onde os romanos tinham enterrado o homem Jesus. Ajoelhei-me sobre os seus restos mortais e questionei-me como podia um simples pescador ser a fonte de toda a verdade. O sumo sacerdote e os anciãos tinham considerado o homem Jesus uma fraude, mas eu sabia que eles estavam errados. Deus não exigia a obediência a leis antigas como forma de obter a salvação. O amor de Deus não tinha limites. O homem Jesus dissera isso muitas vezes e, ao aceitar a sua própria morte com coragem e dignidade, dera uma última lição a todos nós. No final da vida, encontramos a vida. Amar é ser amado.

Todas as dúvidas que possuía desvaneceram-se. A dor desapareceu e a confusão tornou-se clareza. O homem Jesus não estava morto. Vivia. O Senhor ressuscitado estava dentro de mim. Sentia a sua presença de modo tão intenso como quando ele estava ao meu lado. Recordei-me do que me dissera muitas vezes: «Simão, se me amas, encontrarás as minhas ovelhas.» Entendi, por fim, que amar como ele amava e agir como ele agia era conhecer o Senhor e viver como ele vivia era o caminho para a salvação. Deus descera dos céus para habitar dentro do homem Jesus e dera-se a conhecer através das suas acções e palavras. A mensagem era clara. Tratai dos necessitados, confortai os aflitos, acolhei os rejeitados. Fazei isso e o Senhor ficará contente. Deus tirou a vida do homem Jesus para que pudéssemos aprender essa lição. Eu fui apenas o primeiro a aceitar essa verdade. A minha tarefa ficou clara. A mensagem tinha de viver através de mim e de todos os outros que, como eu, acreditassem.

Quando contei a João e a Tiago a minha visão, eles também partilharam dela. Antes de deixarmos Jerusalém, voltámos ao local da minha visão e retirámos da terra os restos mortais do homem Jesus. Levámo-lo connosco e colocámo-lo numa caverna, à qual regressámos no ano seguinte para recolher os ossos. Depois escrevi este relato e coloquei-o junto do homem Jesus, pois juntos eles são a palavra.

 

Mark estava simultaneamente confuso e admirado. Conhecia Simão. Fora chamado Cephas, em aramaico, depois Petros, pedra, em grego. Acabou por se tornar Pedro e os Evangelhos diziam que Cristo proclamara: «Sobre esta pedra edificarei a minha Igreja.»

O testemunho era o primeiro relato antigo que lera e que fazia sentido. Não havia acontecimentos sobrenaturais ou aparições miraculosas, nem atitudes contrárias à lógica e à história. Não vira quaisquer pormenores que pudessem não ser credíveis. Era o testemunho de um simples pescador que acompanhara um grande homem, cujas palavras e acções o haviam inspirado a prosseguir a causa.

Simão não possuía o engenho ou a habilidade para elaborar o tipo de ideias religiosas que apareceriam mais tarde. O seu conhecimento limitava-se ao homem Jesus, o qual conhecera, e que Deus reclamara através de uma morte violenta. Era claro para Simão que, para conhecer Deus, para ser parte Dele, teria de procurar ser igual ao homem Jesus. A mensagem só poderia viver se ele, e outros depois dele, lhe dessem vida. Dessa maneira simples, a morte não teria qualquer poder sobre o homem Jesus e a ressurreição teria lugar. Não literal, mas espiritualmente. Na mente de Simão, o homem Jesus ressuscitara - vivia de novo - e nesse momento singular, durante uma noite de Outono seis meses após a execução do homem Jesus, nasceu a Igreja cristã.

- Aquela cambada de arrogantes - murmurou De Roquefort.

- Com as suas grandes igrejas e teologias. Está tudo errado.

- Claro que não está.

- Como pode dizer isso? Não há nenhuma crucificação espalhafatosa, nenhum sepulcro vazio, nem anjos a anunciar a ressurreição de Cristo. Tudo isso é ficção criada pelos homens para seu próprio benefício. Este testemunho sim, faz sentido. Tudo começou com um homem que compreendeu algo por si mesmo. A nossa Ordem foi dizimada da face da terra e os nossos irmãos torturados e assassinados em nome do suposto Cristo ressuscitado.

- O efeito é o mesmo. A Igreja foi criada.

- Acha que a Igreja teria florescido se toda a sua teologia se baseasse na revelação pessoal de um simples homem? Quantos crentes acha que teriam conseguido?

- Mas foi exactamente isso que aconteceu. Jesus era um homem simples.

- Que foi elevado ao estatuto de um deus por homens que vieram depois dele, e se alguém desafiasse essa ideia era acusado de heresia e queimado na fogueira. Os cátaros foram exterminados aqui mesmo nos Pirenéus por não acreditarem.

- Tinham de embelezar a história para conseguirem sobreviver.

- Aprova o que fizeram?

- Está feito.

- E nós podemos desfazê-lo.

Foi então que lhe ocorreu algo.

- Saunière também deve ter lido o testemunho.

- E não contou a ninguém.

- Pois não. Até ele viu que não traria qualquer benefício.

- Não disse nada porque de outro modo perderia o acesso ao seu tesouro. Não passava de um ladrão sem honra.

- Talvez, mas é óbvio que não ficou indiferente à informação. Deixou tantas pistas na sua igreja. Era um homem culto e sabia latim. Se encontrou este testemunho, como estou certo que o terá feito, compreendeu cada palavra. Ainda assim, colocou-o no mesmo lugar e fechou o portão quando saiu. - Voltou a observar o ossário. Estaria a olhar para os ossos do homem Jesus? Naquele momento foi invadido por uma profunda tristeza ao aperceber-se de que tudo o qe restava do pai eram ossos.

Fitou De Roquefort e perguntou-lhe o que desejava realmente saber:

- Matou o meu pai?

Malone viu Stephanie apressar-se em direcção à escada com a arma de um dos guardas na mão.

- Vai a algum lado?

- Ele pode odiar-me, mas não deixa de ser meu filho.

Entendia os motivos dela, mas não a deixaria ir sozinha.

- Eu também vou.

- Prefiro fazer isto sozinha.

- Quero lá saber das suas preferências. Vou consigo.

- E eu também - afirmou Cassiopia. Henrik agarrou-a por um braço.

- Não. Deixe-os ir. Precisam de resolver isto.

- Resolver o quê? - perguntou Cassiopia. - Está um homem lá em baixo que mata sem avisar.

O capelão deu um passo em frente.

- O senescal e o mestre têm de se enfrentar. A mãe dele foi envolvida por uma razão. Deixe-a ir. O destino dela é lá em baixo com eles.

Stephanie desapareceu pela escada e Malone observou-a de cima enquanto ela saltava para o lado, para evitar a armadilha. Depois seguiu-a, lanterna numa mão e arma na outra.

- Para que lado? - murmurou ela.

Ele fez-lhe sinal para que não fizesse barulho e ouviram vozes vindas do lado esquerdo, da câmara que ele e Cassiopia tinham descoberto.

- Por aqui - disse ele.

Sabia que o caminho estava livre de armadilhas até quase à entrada da câmara. Apesar disso, avançaram com cuidado, quase passo a passo. Quando avistou o esqueleto e as palavras gravadas na parede soube que deveriam ter cuidado. As vozes eram agora mais audíveis.

- Perguntei-lhe se matou o meu pai - repetiu Mark, elevando a voz.

- O seu pai era um homem fraco.

- Isso não é resposta.

- Estava presente na noite em que ele pôs termo à vida. Segui-o até à ponte e chegámos a falar. - Mark escutava atentamente. - Ele sentia-se frustrado. Zangado até. Solucionara o criptograma, o que estava no diário, e de nada lhe servira. Faltava-lhe a determinação e o empenho necessários para continuar.

- Não sabe nada do meu pai.

- Muito pelo contrário. Observei-o durante anos. Avançava de assunto para assunto, nunca resolvendo nenhum. Isso trouxe-lhe problemas pessoais e profissionais.

- Mas descobriu o suficiente para nos guiar até aqui.

- Não, isso foi feito por outros.

- Não tentou sequer impedi-lo de se matar?

- Para quê? Ele estava decidido a morrer e não vi qualquer vantagem em impedi-lo de o fazer.

- Então limitou-se a virar costas e a deixá-lo morrer?

- Não me meti onde não era chamado.

- Seu filho da mãe. - Avançou em direcção a De Roquefort, que lhe apontou a arma. Mark segurava ainda o livro do ossário.

- Vá, força, mate-me.

De Roquefort não parecia impressionado.

- Matou um irmão, sabe qual a pena para esse crime.

- Ele morreu por sua causa. Foi você quem o mandou.

- Lá voltamos ao mesmo. Um conjunto de regras para si e outro para os restantes. Não fui eu que puxei o gatilho.

- Foi em autodefesa.

- Pouse o livro.

- E que fará com ele?

- O que os mestres no Início fizeram. Vou usá-lo contra Roma.

Sempre me questionei de que modo a Ordem crescera tão depressa. Quando os papas tentaram juntar-nos aos hospitalários, conseguimos evitá-lo de todas as vezes e tudo por causa desse livro e dos ossos. A Igreja Romana não podia correr o risco de ver isso tornado público. Imagine o que terão pensado os papas medievais quando souberam que a ressurreição física de Cristo não passava de um mito. Claro que não podiam ter a certeza. Esse testemunho podia ser tão falso quanto os Evangelhos. Contudo, as palavras são impressionantes e os ossos difíceis de ignorar. Havia milhares de relíquias em todo o lado. Pedaços de santos adornavam cada igreja. As pessoas acreditavam facilmente. E estas eram as relíquias mais importantes de todas. Assim, os mestres recorreram ao que sabiam e a ameaça funcionou.

- E actualmente?

- Passa-se precisamente o contrário. Existem demasiadas pessoas que não acreditam em nada. Há demasiadas perguntas nas mentes modernas e poucas respostas nos Evangelhos. Este testemunho, no entanto, é diferente. Faria sentido para muitas pessoas.

- Então pretende ser um Filipe IV da actualidade.

De Roquefort cuspiu no chão.

- Isto é o que penso dele. Queria este conhecimento para assim poder controlar a Igreja e para que os seus herdeiros pudessem fazer o mesmo. Mas pagou caro pela sua ganância. Ele e toda a família.

- E acha que vai conseguir controlar alguma coisa?

- Não é esse o meu desejo. Mas gostaria de ver as caras de todos aqueles prelados pomposos enquanto explicam o testemunho de Simão Pedro. Afinal, os ossos dele encontram-se no coração do Vaticano. Construíram uma catedral em torno do seu túmulo e baptizaram a basílica com o seu nome. E o seu primeiro santo e primeiro papa. Como explicariam as suas palavras? Não gostaria de os ver tentar?

- E quem pode garantir que foram escritas por Simão Pedro?

- E quem pode provar que os Evangelhos são da autoria de Marcos, Mateus, Lucas e João?

- Mudar tudo pode não ser assim tão bom.

- É tão fraco quanto o seu pai. Não aguentam um bom desafio. Voltava a enterrar tudo isto? Não dizia a ninguém e permitia que a Ordem permanecesse na escuridão devido às calúnias de um rei ganancioso? É devido a homens fracos como vocês que estamos nesta situação. Você e o seu mestre mereciam-se. Também não passava de um homem sem coragem.

Mark já ouvira o suficiente e, sem aviso, levantou a mão esquerda, a que segurava a lâmpada, e momentaneamente cegou De Roquefort. O desconforto obrigou-o a fechar os olhos e baixar a arma, enquanto levantava a outra mão para proteger os olhos.

Mark deu um pontapé na arma e correu para fora da câmara. Saiu do outro lado do portão e apressou-se em direcção à escada, mas deu apenas alguns passos.

Três metros mais à frente viu outra luz, e distinguiu Malone e a mãe. r.t..

Atrás dele surgiu De Roquefort.

- Alto! - ordenou, e Mark obedeceu. De Roquefort apróximbtit-se.

Mark viu a mãe levantar uma arma.

- Baixa-te, Mark - gritou ela.

Porém, ele não se mexeu.

De Roquefort encontrava-se agora mesmo por trás de Mark e com o cano da arma encostado à nuca deste.

- Baixe a arma - ordenou-lhe De Roquefort.

Malone mostrou que também estava armado.

- Não pode matar-nos aos dois.

- Pois não, mas posso matar este.

Malone avaliou as possibilidades. Não conseguiria atingir De Roquefort sem magoar Mark. Mas o que levara o jovem a parar, permitindo que De Roquefort o apanhasse?

- Baixe a arma - pediu Malone a Stephanie.

- Não.

- Se fosse a si fazia o que ele diz - sugeriu De Roquefort.

Stephanie não se mexeu nem um centímetro.

- Ele vai matá-lo de qualquer maneira.

- Pode ser que sim - respondeu Malone. - Mas é melhor não o provocar.

Sabia que ela perdera o filho uma vez devido a decisões mal tomadas e não estava disposta a perdê-lo outra vez. Observou a expressão de Mark. Não havia nele a mínima sombra de medo. Apontou com a lanterna para o livro que o jovem segurava.

- Isto tudo é por causa desse livro?

Mark acenou afirmativamente com a cabeça.

- O Grande Legado, para além de um imenso tesouro e documentos.

- Valeu a pena?

- Não me cabe a mim dizê-lo.

- Claro que valeu - declarou De Roquefort.

- E agora? - perguntou Malone. - Não tem por onde fugir e os seus homens foram dominados.

- Obra sua?

- Alguns sim. Mas o seu capelão também aqui está e trouxe um contingente de homens. Parece que houve uma revolta.

- É o que veremos - argumentou De Roquefort. - Srª Nelle, não volto a repetir, baixe a arma. Tal como o Sr. Malone tão bem disse, não tenho nada a perder se matar o seu filho.

Malone continuava a avaliar a situação, a mente a rever todas as opções. Foi então que viu a solução iluminada pela lâmpada de Mark. Havia uma ligeira depressão no solo. Pouco perceptível, a não ser que se soubesse que ali estava. Outra armadilha que ocupava toda a largura da passagem e que se estendia desde o local onde Malone estava até Mark. Olhou de soslaio para o jovem e percebeu pela expressão deste que também ele sabia da existência daquela armadilha. Um pequeno aceno de cabeça e Malone percebeu o que levara Mark a parar. Queria que De Roquefort o alcançasse.

Pelos vistos, chegara a hora de pôr um fim a tudo aquilo.

Ali e naquele momento.

Avançou uns passos e arrancou a arma das mãos de Stephanie.

- O que está a fazer? - gritou ela.

- O chão - segredou Malone.

Viu que ela entendeu e depois recuou.

- Assim está melhor - disse De Roquefort.

Stephanie ficou em silêncio, parecendo entender. Porém, Malone duvidava que ela compreendesse realmente o que iria passar-se. As palavras dela, dirigidas a Mark, foram proferidas para De Roquefort.

- Muito bem. Agora é consigo.

Mark sabia que chegara o momento. O mestre escrevera à mãe dizendo que ele não possuía a determinação necessária para levar as suas batalhas até ao fim. Começá-las parecia fácil, continuá-las ainda mais fácil, mas resolvê-las sempre se revelara difícil. Mas isso era no passado. O mestre preparara o palco e os actores haviam desempenhado os seus papéis. Agora estava na altura de correr o pano. Raymond de Roquefort era uma ameaça. Dois irmãos tinham já morrido por causa dele e nada o faria parar. Era impossível a coexistência dos dois dentro da Ordem e o mestre aparentemente sabia disso. Por essa razão, um deles teria de desaparecer.

Mark sabia que um passo mais à frente se abria um precipício no chão, que esperava estivesse cheio de espigões de bronze. Na sua ânsia de seguir em frente, pouco preocupado com o que se passava à volta, De Roquefort não prestara atenção ao perigo. Era também dessa maneira que o seu inimigo pretendia administrar a Ordem.

Os sacrifícios dos milhares de irmãos ao longo de setecentos anos seriam desperdiçados por vaidade e arrogância.

O testemunho de Simão fornecera-lhe por fim a explicação histórica para o seu cepticismo religioso. As contradições bíblicas sempre o tinham incomodado e levado a pensar que a religião era uma ferramenta utilizada pelos homens para manipular outros homens. A necessidade da mente humana de obter respostas, até para perguntas que as não possuem, permitira que o inacreditável se transformasse em doutrina. De algum modo, acreditar que a morte não era o fim era uma fonte de consolo. Havia algo mais. Jesus teria supostamente provado isso ao ressuscitar fisicamente e oferecendo essa mesma salvação a todos os que acreditassem.

Porém, não existia vida depois da morte. Não literalmente.

Em vez disso, a vida depois da morte é o modo como os outros nos recordam. Ao lembrar-se do que o homem Jesus fizera e dissera, Simão Pedro apercebera-se de que as crenças do amigo tinham ressuscitado dentro dele e pregar essa mensagem, fazendo o que Jesus fizera, tornou-se a sua salvação. Nenhum de nós devia julgar os outros. Só nos podemos julgar a nós mesmos. A vida não é infinita e, tal como os ossos no ossário mostravam, todos regressamos ao pó.

Só podia esperar que a sua vida tivesse significado alguma coisa e que outros se recordassem dele por isso.

Inspirou e atirou o livro para Malone, que o agarrou.

- Por que fez isso? - perguntou De Roquefort.

Mark viu que Malone percebeu o que ele se preparava para fazer e, de repente, também a mãe compreendeu. Viu-o nos olhos dela quando estes se encheram de lágrimas. Queria dizer-lhe que lamentava, que estava errado e que nunca deveria tê-la julgado. Ela pareceu ler-lhe os pensamentos e deu um passo em frente, que Malone bloqueou com o braço.

- Saia da frente, Cotton - disse ela.

Mark aproveitou esse momento para avançar também, o chão ainda firme.

- Vá buscar o livro - ordenou De Roquefort.

- Com certeza. Outro passo. Continuava firme.

Contudo, em vez de caminhar em direcção a Malone, como De Roquefort mandara, baixou-se para evitar o cano da arma encostada à sua cabeça e rodopiou, dando uma cotovelada forte nas costelas do inimigo. Os músculos abdominais do velho guerreiro eram fortes e Mark apercebeu-se de que não era adversário para ele. No entanto, possuía uma vantagem. Ao passo que De Roquefort se preparava para lutar, Mark limitou-se a colocar os braços em torno do peito do homem, a rodopiar para a frente e a desequilibrá-lo, lançando ambos para o chão, o qual não suportaria o peso dos dois homens.

Ouviu a mãe gritar «não» e a arma de De Roquefort disparar. Empurrara a mão que segurava a pistola para fora, mas não havia maneira de dizer para onde teria ido aquela bala. Aterraram sobre o chão falso, o peso combinado dos corpos suficiente para fazer desmoronar a cobertura. De Roquefort esperara com certeza bater em solo duro e pôr-se de pé logo em seguida. Porém, assim que caíram no buraco, Mark soltou os braços e deixou que os espigões perfurassem o corpo do inimigo.

De Roquefort gemeu e da boca escorreu-lhe sangue.

- Disse-lhe no dia em que contestou o mestre que iria arrepender-se desse gesto - murmurou Mark. - O seu governo chegou ao fim.

De Roquefort tentou falar, mas já nada conseguiu dizer. O corpo ficou imóvel.

- Estás bem? - perguntou Malone lá de cima.

Mark levantou-se e a alteração de peso fez com que o corpo de De Roquefort se enterrasse ainda mais nos espigões. Içou-se do buraco e sacudiu as roupas.

- Acabei de matar outro homem.

- Ele ter-te-ia morto também - argumentou Stephanie.

- Não é uma grande desculpa, mas não tenho outra.

A mãe não conseguia conter as lágrimas.

- Pensei que te ia voltar a perder - disse ela.

- Tinha esperança de evitar os espigões, mas não sabia se De Roquefort iria colaborar.

- Tinhas mesmo de o matar - afirmou Malone. - Ele não teria olhado a meios para terminar o que começara.

- E o tiro? - perguntou Mark.

- Passou perto - respondeu Malone. Depois apontau para o livro. - Era disto que andavam à procura?

- Sim, e há mais.

- Já perguntei antes, valeu a pena?

Ele apontou para a passagem.

- Venham ver e depois digam-me.

 

Abbaye des Fontaines Quarta-feira, 28 de junho, 12 h 40 m

Mark contemplava a sala circular. Os irmãos tinham-se reunido em conclave para escolher um novo mestre. De Roquefort estava morto e o corpo fora depositado na Sala dos Mestres na noite anterior. Durante o funeral, o capelão contestara a sua inclusão nas Crónicas e os irmãos tinham aceitado essa proposta votando de forma unânime. Enquanto ouvia o discurso do capelão, apercebera-se de que os acontecimentos dos últimos dias não poderiam ter sido evitados. Infelizmente, tinha morto dois homens, um com grande pesar e o outro por não ter outra opção. Implorara o perdão de Deus pela primeira morte, mas sentia-se aliviado por De Roquefort já não existir.

Nesse momento, o capelão voltou a falar, dirigindo-se ao conclave.

- Irmãos, o destino esteve em marcha, mas não da maneira que o nosso mais recente mestre desejava. O caminho dele estava errado. O Grande Legado está de volta graças ao senescal. Foi ele quem o antigo mestre escolheu como sucessor e foi a ele que confiou esta demanda. O senescal enfrentou o seu inimigo colocando os interesses da Ordem à frente dos seus, e conseguiu o que outros tentaram durante séculos.

Mark viu centenas de cabeças acenarem em concordância. Nunca antes tocara ninguém daquela maneira. Tivera sempre uma existência solitária e as excursões com o pai, e depois sozinho, tinham constituído as únicas grandes aventuras que experimentara até recentemente.

O Grande Legado fora transportado para a abadia na manhã anterior. Ele e Malone tinham removido o ossário e o testemunho, e transportado tudo em separado. Mostrara ao capelão as suas descobertas e concordaram que caberia ao novo mestre decidir o que fazer com tudo aquilo.

Dessa vez, Mark não se encontrava entre os oficiais da Ordem. Era apenas um irmão e escolhera um lugar entre eles. Também não fora escolhido como membro do conclave e limitava-se a observar enquanto os doze actuavam.

- Só há um caminho - declarou um dos membros do conclave.

- O antigo senescal deverá ser o nosso mestre. Que assim seja.

Fez-se silêncio na sala.

Mark queria protestar, mas a Regra proibia-o e ele já tinha a sua conta de infracções.

- Concordo - afirmou outro dos membros. Os restantes dez acenaram em concordância.

- Então assim será - declarou o nomeador. - Aquele que foi o nosso senescal será agora o nosso mestre.

A sala irrompeu em aplausos enquanto quatrocentos irmãos mostravam o seu contentamento.

Os cânticos começaram.

Beauséant.

Deixara de ser Mark Nelle. Agora era o mestre.

Todos se viraram para ele. Afastou-se dos irmãos e entrou no círculo formado pelo conclave. Fitou os irmãos, homens que conhecia e admirava. Entrara na Ordem como uma maneira de cumprir o sonho do pai e fugir à mãe. Depois ficara porque acabara por amar a Ordem e o seu mestre.

Recordou-se das palavras de São João:

«No princípio existia o Verbo; o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus. Por ele é que tudo começou a existir. Nele é que estava a Vida e a Vida era a Luz dos homens. A Luz brilhou nas trevas, mas as trevas não a receberam. Ele estava no mundo e por Ele o mundo veio à existência, mas o mundo não o reconheceu. Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas, a quantos o receberam, aos que nele crêem, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus.»

Simão Pedro reconhecera-O e recebera-O, assim como o tinham feito todos os que vieram depois de Simão, e as suas trevas transformaram-se em luz. Talvez graças àquela extraordinária visão de Simão, todos eram agora filhos de Deus.

Os gritos e palmas começaram a diminuir.

Mark esperou que o silêncio se instalasse.

- Pensei que talvez tivesse chegado a hora de deixar este lugar - disse ele num tom calmo. - Estes últimos dias foram prolíferos em decisões difíceis. Devido às escolhas que fiz, pensei que a minha vida enquanto irmão tinha terminado. Matei um dos nossos e lamento muito esse acto, porém não tive outra escolha.T ambém matei o mestre, mas dele não sinto falta. - Levantou a voz. - Ele desafiou tudo aquilo em que acreditávamos. A sua ganância e imprudência teriam sido o nosso fim. De Roquefort estava preocupado apenas com os seus desejos, as suas necessidades e não as da Ordem. - Sentiu uma nova motivação ao recordar-se das palavras do seu mentor. «Não te esqueças de tudo o que te ensinei.»

- Como vosso líder, irei delinear um novo caminho. Sairemos do anonimato, não para exigir vingança, mas para reclamarmos um lugar neste mundo como os Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão. É o que somos e o que deveremos ser. Há muitas coisas grandiosas que podemos ainda fazer. Os pobres e os excluídos precisam de quem os defenda e nós podemos ser os seus salvadores.

Recordou-se das palavras de Simão. «Todos nós fomos feitos à imagem de Deus, todos somos dignos de ser amados, todos podemos viver no espírito de Deus.» Ele era o primeiro mestre em setecentos anos a guiar-se por essas palavras.

E pretendia segui-las.

- Agora, meus irmãos, está na hora de nos despedirmos do irmão Geoffrey, cujo sacrifício tornou este dia possível.

Malone estava impressionado com a abadia. Ele, Stephanie, Henrik e Cassiopia tinham sido autorizados a entrar e a conhecer todo o local - os primeiros não templários a serem agraciados com esse privilégio. O seu guia, o capelão, mostrara-lhes cada canto e sala, e explicara pacientemente toda a história. Depois saíra dizendo que o conclave ia reunir-se. Regressara há alguns minutos e acompanhara-os até à capela. Tinham vindo para assistir ao funeral de Geoffrey, a sua presença autorizada graças ao papel que haviam desempenhado na descoberta do Grande Legado.

Sentaram-se na primeira fila, mesmo em frente do altar. A capela era magnífica, uma autêntica catedral que albergara os Cavaleiros Templários durante séculos, e Malone conseguia sentir a presença deles.

Stephanie estava sentada ao seu lado, e Henrik e Cassiopia ao lado dela. Ouviu-a arquejar quando os cânticos terminaram e Mark apareceu do outro lado do altar. Enquanto os outros irmãos envergavam sotainas castanho-avermelhadas com os capuzes sobre as cabeças, ele usava o manto branco do mestre. Malone apertou a mão trémula de Stephanie. Ela sorriu e apertou a dele com mais força.

Mark aproximou-se do caixão simples de Geoffrey.

- Este irmão deu a sua vida por nós. Foi fiel ao seu juramento. Por essa razão, receberá a honra de ser enterrado na Sala dos Mestres. Antes deste dia, apenas os mestres ocupavam esse lugar, agora terão a companhia deste herói. - Ninguém discordou. - Para além disso, a contestação feita ao nosso anterior mestre por De Roquefort está a partir deste momento revogada. Ele ocupará o seu devido lugar nas Crónicas. Vamos então despedir-nos do irmão Geoffrey. Através dele renascemos.

O serviço fúnebre demorou uma hora e Malone e os outros seguiram os irmãos até à Sala dos Mestres. Uma vez aí, o caixão foi colocado no loculus ao lado do antigo mestre.

Depois saíram para a rua e para junto dos seus automóveis.

Malone reparou na calma evidente de Mark e numa melhoria no seu relacionamento com a mãe.

- O que vai fazer agora, Malone? - perguntou Cassiopia.

- Volto para os meus livros. E o meu filho vem passar um mês comigo.

- Um filho? De que idade?

- Catorze anos. Um reguila

Cassiopia sorriu.

- Sai ao pai, então.

- Acho que é mais parecido com a mãe.

Pensara bastante em Gary nos últimos dias. Ver o relacionamento mal resolvido de Stephanie e Mark fizera-o pensar nos seus próprios erros enquanto pai. Contudo, isso parecia não se ter reflectido em Gary. Nunca lhe notara quaisquer ressentimentos. Era um aluno brilhante, um jovem dedicado e nunca fora contra a ida de Malone para Copenhaga. Aliás, fora a primeira pessoa a encorajá-lo, pois percebera que o pai também tinha o direito de ser feliz. Malone sentia-se culpado por essa decisão, mas estava ansioso por passar algum tempo com o filho. O ano passado fora o seu primeiro Verão na Europa. Este ano tinham planeado visitar a Suécia, a Noruega e a Inglaterra. Gary adorava viajar, outra das coisas que tinham em comum.

- Vai ser divertido - afirmou.

Malone, Stephanie e Henrik iriam de carro até Toulouse e apanhariam um avião para Paris. Stephanie seguiria depois para Atlanta, enquanto Malone e Henrik regressavam a Copenhaga. Cassiopia seguiria no Land Rover para o castelo.

Estava junto ao carro quando Malone se aproximou.

As montanhas erguiam-se em seu redor e, dali a uns meses, chegaria o Inverno para as cobrir com um manto branco. Tudo parte de um ciclo, tão óbvio na natureza quanto na vida. Bom, depois mau, depois bom e outra vez mau, e bom de novo. Quando resolvera reformar-se, confessara a Stephanie que estava farto de toda aquela violência sem sentido. Ela sorrira face à ingenuidade dele e dissera-lhe que enquanto a terra fosse habitada não haveria um lugar calmo. O jogo era igual em todo o lado, apenas os jogadores mudavam.

Estava disposto a aceitar que assim fosse. A experiência da última semana mostrara-lhe que era um jogador e sempre o seria. No entanto, se alguém perguntasse, responderia que era um livreiro.

- Tenha cuidado consigo, Malone - disse Cassiopia. - Olhe que já não voltarei a protegê-lo.

- Tenho um pressentimento que nos voltaremos a ver.

Cassiopia sorriu-lhe.

- É bem possível. Nunca se sabe.

Ele aproximou-se do carro.

- E o que vai ser de Claridon? - perguntou Malone a Mark.

- Implorou o nosso perdão.

- E vocês concederam-lho.

Mark esboçou um sorriso.

- Ele disse que De Roquefort pretendia assar-lhe a pele dos pés e alguns irmãos confirmaram. Ele quer juntar-se a nós.

Malone soltou uma gargalhada.

- E estão preparados para isso?

- Em tempos as nossas fileiras incluíam homens bem piores. Acho que sobreviveremos. Olho para ele como a minha penitência.

Stephanie e Mark falaram durante uns minutos num tom pacífico. Já se tinham despedido em privado e ela parecia calma e satisfeita. Malone ficara contente. Era importante que fizessem as pazes.

- O que irá acontecer ao ossário e ao testemunho? - perguntou Malone a Mark. Não havia irmãos por perto e ele sentia-se à vontade para falar acerca do assunto.

- Vão permanecer fechados. O mundo está satisfeito com a sua crença e eu não irei perturbar isso.

- É uma excelente decisão - concordou ele.

- Mas a Ordem vai emergir das sombras.

- É isso mesmo - confirmou Cassiopia. - já estive a falar com Mark, e a irmandade está disposta a contribuir e a envolver-se na organização de caridade que eu dirijo. A luta contra a SIDA e contra a fome bem precisam de apoio monetário, e fundos não é coisa que agora falte à Ordem.

- Henrik também nos pediu que ajudássemos as suas causas - explicou Mark -, e eu concordei. Como pode ver, os Cavaleiros Templários vão estar muito ocupados. As nossas capacidades podem ser bem aproveitadas.

Malone estendeu a mão e Mark apertou-a.

- Os templários estão em excelentes mãos. Boa sorte.

- Para si também, Cotton. E continuo curioso sobre o nome.

- Liga-me um destes dias e eu conto-te.

Entraram no Peugeot alugado e apertaram os cintos. Antes de arrancarem, Stephanie disse:

- Devo-lhe um favor.

Ele fitou-a

- Essa é nova.

- Não se habitue.

Ele sorriu.

- Use-o com sabedoria.

- Com certeza.

E ligou o veículo.

 

 

Nota do autor

Sentado numa esplanada na Höjbro Plads, decidi que o meu protagonista teria de viver em Copenhaga. É verdadeiramente uma das grandes cidades europeias. Assim, Cotton Malone, livreiro, tornou-se um novo frequentador daquela praça. Também passei algum tempo no Sul de França, descobrindo muita da história e dos habitantes locais que acabaram por fazer parte da história. Grande parte do enredo surgiu-me durante a viagem, o que é compreensível, tendo em consideração a beleza inspiradora da Dinamarca, do Rennes-le-Château e de toda a região do Languedoc. No entanto, é importante saber onde começa a ficção e termina a realidade.

A crucificação de Jacques de Molay, referida no prólogo, e a possibilidade de a sua imagem estar gravada no Sudário de Turim (capítulo 46) são conclusões retiradas por Christopher Knight e Robert Lomas. Fiquei intrigado quando descobri a ideia no seu livro The Second Messiah e resolvi incluí-la na minha história. As conclusões de Knight e Lomas - referidas por Mark Nelle no capítulo 46 - são consistentes com todas as provas científicas e amostras recolhidas do sudário nos últimos vinte anos.

A Abbaye des Fontames é pura ficção, mas baseia-se em grande parte em vários retiros existentes nos Pirenéus. Todas as cidades, praças e ruas dinamarquesas mencionadas existem realmente. A Catedral de Roskilde e a cripta de Cristiano IV (capítulo 5) são locais de verdadeira beleza e a vista da Torre Redonda em Copenhaga (capítulo 1) parece transportar-nos para outro século.

Lars Nelle é uma combinação de vários homens e mulheres que dedicaram a vida a escrever acerca de Rennes-le-Château. Pesquisei muitas fontes. Algumas rasavam o bizarro, outras o ridículo. Todavia, a seu modo, todas ofereciam uma visão única sobre esse lugar misterioso.

O livro Pierres Gravées du Languedoc de Eugène Stüblein (mencionado pela primeira vez no capítulo 4) faz parte do folclore de Rennes, embora nunca ninguém tenha visto uma cópia. Tal como referido no capítulo 14, o volume está catalogado na Bibliothèque Nationale de Paris, mas desapareceu.

A lápide original de Marie d'Hautpoul de Blanchefort já não existe e o mais provável é ter sido destruída pelo próprio Saunière. Uma sociedade científica terá supostamente feito um desenho da mesma no dia 25 de Junho de 1905, tendo sido publicado um ano depois. Existem pelo menos duas versões desse suposto desenho, sendo difícil saber alguma coisa do original.

Todos os factos associados à família d'Hautpoul e à sua ligação com os templários são verdadeiros. Como descrito no capítulo 20, o abade Bigou era de facto o confessor de Marie e foi ele quem encomendou a lápide dez anos após a sua morte. A fuga de Rennes em 1793 também é verdade. As mensagens secretas que terá escondido não passam de conjecturas (associadas ao mistério de Rennes), mas a possibilidade de existirem torna a história mais interessante.

O assassínio do abade Antoine Gélis aconteceu realmente e do modo como foi contado no capítulo 26. Existia de facto uma ligação entre Gélis e Saunière, e há quem especule que o último possa ter estado envolvido na sua morte. Contudo, não foram encontradas quaisquer provas nesse sentido e o crime permanece sem solução até aos dias de hoje.

A existência, ou não, de uma cripta sob a igreja de Rennes nunca será conhecida. Tal como referido nos capítulos 32 e 39, as autoridades locais nunca permitirão qualquer tipo de escavação ou exploração. No entanto, os senhores de Rennes têm de estar enterrados algures e até à data a sua cripta ainda não foi encontrada. As referências à cripta supostamente descobertas no jornal da paróquia, como referido no capítulo 32, são reais.

O pilar visigodo descrito no capítulo 39 existe e está exposto em Rennes. Saunière inverteu mesmo o pilar e gravou as palavras nas faces. A relação entre 1891 (1681, quando invertido) e a campa de Marie d'Hautpoul de Blanchefort (e a referência nela encontrada a 1681) ultrapassa um pouco os limites da coincidência, mas é real. Talvez exista mesmo uma mensagem ali... algures.

Todas as construções e edifícios erigidos por Saunière em Rennes são verdadeiros. Centenas de milhares de turistas visitam o local diariamente. A sequência 7-9 é invenção minha, baseada em observações realizadas enquanto estudava o pilar visigodo, as estações da via-sacra e vários outros objectos dentro e em redor da igreja de Rennes. Que eu saiba, mais ninguém escreveu sobre esta sequência, por isso talvez esta seja a minha adição pessoal à saga de Rennes-le-Château.

Noël Corbu viveu em Rennes e o seu papel na criação de grande parte da ficção sobre este lugar é verdadeiro (capítulo 29). Existe um livro extraordinário, The Treasure of Rennes-le-Château: A Mistery Solved, escrito por Bill Putnam e John Edwin Wood, que aborda as mentiras de Corbu. Foi ele quem comprou as propriedades de Saunière à amante deste. A maioria concorda que, se o abade soubesse de alguma coisa, tê-lo-ia de facto contado à amante. Parte da lenda (provavelmente outra invenção de Corbu) diz que a amante terá revelado toda a verdade a Corbu antes de morrer, em 1953. Todavia, nunca saberemos se tal é verdade. O que sabemos é que Corbu lucrou com a história de Rennes e, em 1956, foi ele a fonte das primeiras histórias escritas no jornal sobre o suposto tesouro. Tal como foi dito no capítulo 29, Corbu escreveu um manuscrito sobre Rennes, mas este viria a desaparecer após a sua morte em 1968.

A lenda de Rennes acabou por ser imortalizada num livro de 1967 chamado The Accursed Treasure of Rennes-le-Château, de Gérard de Sede, e que se considera o primeiro livro sobre o assunto. Contém muita ficção e grande parte não passa de um recontar da história de Corbu relatada ao jornal. A certa altura, Henry Lincoln, um realizador britânico, acabou por descobrir a aldeia e o seu mistério, e popularizou-os ainda mais.

O quadro A Ler as Regras de Caridad, de Juan de Valdés Leal, encontra-se exposto na Igreja de Santa Caridad, em Espanha. A sua localização em França e inclusão na história de Rennes (capítulo 34) é invenção minha. A descrição do Palácio dos Papas em Avinhão é fiel ao edifício, excepto na parte dos arquivos, imaginados por mim.

Os criptogramas fazem parte da história de Rennes, mas os que se encontram neste livro foram elaborados por mim.

A reconstrução do castelo em Givors baseia-se num projecto neste momento a decorrer em Guédelon, França, no qual os artesãos se encontram a construir um castelo do século XIII, recorrendo aos mesmos materiais e ferramentas da época. A empreitada levará décadas a terminar e o local está aberto ao público.

Como é do conhecimento de todos, os templários existiram de facto e a sua Regra é citada com exactidão. O poema incluído no capítulo 10 é verdadeiro, embora o autor seja desconhecido. Tudo o que a Ordem alcançou, tal como detalhado ao longo do livro, é verdadeiro e permanece como testemunho de uma organização que estava claramente muito à frente do seu tempo. Quanto ao tesouro perdido dos templários, nada foi encontrado desde a Expulsão, em Outubro de 1307, e Filipe IV procurou mesmo em vão. Os relatos de carroças que se dirigiram para os Pirenéus (capítulo 48) baseiam-se em antigas referências históricas, embora nada se saiba com toda a certeza.

Infelizmente, não existem quaisquer crónicas dos templários. Mas, quem sabe, talvez esses documentos sejam um dia encontrados por alguém que descubra também o tesouro perdido dos templários. A cerimónia de iniciação no capítulo 51 está fielmente reproduzida, usando as palavras ditadas pela Regra. Contudo, enterro descrito no capítulo 19 é ficção, embora os judeus do século enterrassem os seus mortos de modo semelhante.

Como é óbvio, o Evangelho de Simão é criação minha. Contudo, o conceito alternativo da ressurreição de Cristo proveio de um livro magnífico intitulado Ressurrection, Myth or Reality, escrito por John Ahelby Spong.

Os conflitos entre os quatro livros do Novo Testamento relativos à ressurreição (capítulo 46) desafiaram muitos académicos durante séculos. O facto de apenas ter sido encontrado um esqueleto crucificado (capítulo 50) levanta algumas questões, assim como muitos comentários e declarações feitos ao longo da história. Houve um, em particular, atribuído ao papa Leão X (1513-1521), que me chamou a atenção. Leão era um Médicis poderoso apoiado por aliados poderosos, líder de uma Igreja que naquele tempo tudo governava. A sua declaração é curta, simples e estranha para o chefe da Igreja Católica Romana e foi o ponto de partida para este romance.

«Foi-nos muito útil, o mito de Cristo.» 

 

                                                                  Steve Berry

 

 

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