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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O LEITEIRO DE MAEKÚLA / Eduard Vilde
O LEITEIRO DE MAEKÚLA / Eduard Vilde

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Na vasta herdade de Maekula vive um austero senhor. Austero sim, não arrogante. Porque Ulrich von Kremer pode ser austero, pois que afastado de muitas das alegrias que a vida pode proporcionar ao homem, mas nem por isso é um senhor arrogante para com os seus rendeiros.

Prova-se isso ao reparar na jovem Mari, quando esta limpa os vidros do solar. Mas quem seria aquela mulher, jovem e de faces alegres? E um desejo surge na pessoa do senhor. Porém ela é a mulher de Prillup, o inquilino da cabana, que tinha nome de lagarta. E o senhor engendra um plano que acaba por apresentar ao seu inquilino, tão peludo quanto ambicioso. Como irá reagir Prillup a tal proposta? E a jovem Mari, qual o seu papel no meio de tudo aquilo? A verdade é que ele se vai tornar o leiteiro de Maekula e, com isso, não vão ser tão boas assim as mudanças que ocorrem na sua vida.

 

Por volta das nove horas, a porta principal do solar espreguiça‑se lânguida, como de costume, e deixa sair o senhor da herdade, pois é justamente a essa hora, depois do pequeno almoço, que Ulrich von Kremer inicia sozinho a primeira ronda pela herdade, durante o período em que lá reside, desde o dia de São Jorge(1) até à festa de São Miguel(2).

À medida que os anos passam, o amo da Herdade Máekúla apresenta muito poucas alterações ao seu aspecto exterior: sempre o mesmo casaco de cheviote azul escuro com mangas brilhantes, largo e gasto pelo uso, a parte traseira num tom de azul mais claro, de tanto o dono se sentar em cima dela. Também o mesmo colete azul com reveladores vestígios de nódoas de comida à frente, algumas bastante recentes, indicando que ovos mal cozidos fazem invariavelmente parte do menu de pequeno almoço do senhor von Kremer. A cobrir‑lhe a cabeça, sempre o mesmo boné esverdeado e preto, como uma panqueca, com a parte de cima coçada pendendo para a frente e a pala dura gasta pelos anos e pelo uso constante; e as velhas calças inglesas de sempre, às riscas cinzentas e castanhas,

 

*1. Dia de São Jorge ‑ 23 de Abril, dia em que os inquilinos ocupam as casas e os trabalhadores rurais são contratados.

  1. Festa de São Miguel ‑ dia 29 de Setembro, primeiro dia do trimestre, em que venciam as datas para pagamento de salários, rendas, etc.

 

cujos joelhos puídos e bainhas esfiapadas ecoam claramente uma juventude e elegância perdidas. Neste homem, os únicos sinais de abastança são o anel de sinete com um ornamento em forma de escudo, que ele usa no enorme nó do dedo indicador, e a corrente do relógio em ouro maciço, que brilha sobre o colete, com um enorme relógio suíço pendurado na ponta ‑ que raramente vê a luz do dia e que é conhecido como uma famosa preciosidade da família, passada ao longo das gerações, e em cujo revestimento amolgado a dedicatória gravada já há muito se esbateu. Quanto ao homem propriamente dito, aquele a quem os intelectuais da vizinhança apelidaram de Bismarck de Maekula, por causa de uma cómica semelhança com o Chanceler do Reich alemão no que toca ao rosto e ao semblante, esse já chegou àquela idade estável em que uma série de rugas novas em redor dos olhos ou uma ou duas pregas a mais debaixo do queixo já pouca diferença fazem ‑ tão pouca como um novo punhado de barba grisalha, um pedaço de carne flácida no pescoço, ou alguma perda de elasticidade nos joelhos. Na verdade, os Kremers envelhecem devagar ‑ provavelmente porque já nascem velhos.

Descendo os estreitos degraus de pedra (existem apenas três), von Kremer finca os pés no relvado, que se estende macio e vasto pelo terreno ondulado desde a casa até ao prado pantanoso lá em baixo. Depois, repousando as mãos nuas ‑ uma das quais agarra um robusto pau de zimbro ‑ atrás das costas, ele parte lenta mas determinadamente, como uma galera navegando com excesso de peso, e encaminha‑se para o lado sul da casa. Os observadores mais argutos asseguram que, enquanto se encontra ainda nas proximidades do solar, von Kremer raramente se dá ao trabalho de olhar seja para o que for com a apropriada solicitude. Seus olhos baixam o olhar para fixar o chão que pisa. Se se der o acaso de ele levantar o olhar para contemplar qualquer trabalho, o senhor de Maekula limita‑se a murmurar qualquer coisa, a encolher os ombros, a sacudir os longos bigodes e a apressar o passo. ‑ Verflixt! Der Dalles?

Não há como negar que muitas coisas naquela herdade deveriam ser diferentes ‑ e a pequenez da propriedade não é, por si só, razão suficiente para explicar tudo o que está mal. A vacaria e o estábulo não são excepção. O vaqueiro nem se atreve a soprar a corneta perto destes edifícios, não vão eles ceder e desmoronar‑se. E os velhos aposentos dos criados com telhados forrados a palha, verdadeira relíquia dos tempos da servidão, não embelezam propriamente a entrada da herdade. Isto para já não falar do selvagem emaranhado em que se tornou o pomar, por falta de jardineiro. Um pomar que não produz nada de comestível para além de um punhado de groselhas e algumas framboesas roídas pelos bichos. Mas, essencialmente, é o próprio solar, a morada do barão, que o faz murmurar, ainda que o faça com menos frequência hoje do que antigamente, pois que o tempo adormeceu os sentidos e von Kremer não é, já de si, um homem sensível. ‑ Verflixt! Der Dalks!(1)

Bastante pequeno e modesto, em consonância com o tamanho moderado da herdade, o solar ainda hoje se ergue inacabado, exactamente no mesmo estado em que se encontra já há quase duas décadas. E se os tempos não mudarem para melhor ‑ e infelizmente ainda não se vislumbram quaisquer sinais de que isso venha a acontecer ‑ a casa permanecerá meia feita para sempre. Aos olhos de um estranho que a veja de longe, a construção assemelhar‑se‑á a uma velha serração, com a excepção de que esta se ergue no cimo de uma colina, demasiado longe do rio. Só o andar de baixo do edifício, feito em pedra e projectado ao estilo de uma casa de campo da Baviera, está acabado, e as janelas que espreitam por entre as paredes caiadas conseguem,

 

*1. A maldita pobreza! (Dialecto Germano‑báltico)

 

de alguma forma, conferir à incompleta casa o aspecto de uma habitação. Mas o andar de cima, uma inacabada construção em madeira, e tudo o resto que teria dado ao solar a arquitectura inicialmente planeada, encontram‑se num triste estado delapidado que faz com que o edifício se assemelhe a um caixote velho. De todas as estruturas do andar de cima, apenas as vigas e traves protuberantes sugerem o terraço amplo que se estenderia em redor desse piso superior. Quanto às portas e janelas, não passam de buracos mal tapados rasgados nas cinzentas paredes de madeira batidas pelos elementos. Já o telhado, recentemente remendado e a chaminé caiada de fresco conseguem apenas fazer com que o exterior da casa pareça ainda mais incongruente, de modo que o edifício faz lembrar o esqueleto de um monstro cuja carne já foi arrancada e devorada pelos falcões.

Não fosse esse aspecto inacabado e a casa poderia decerto ter embelezado a paisagem, em vez de magoar a vista, já que o local da construção tinha sido escolhido com um apurado sentido estético, no cume de uma pequena elevação, precisamente no ponto em que o terreno se espreguiça para baixo, em direcção a um ribeiro. Do andar de cima, teria sido possível avistar, de um lado, os belos pastos verdes e o ribeiro serpenteante de água lamacenta e negra; do outro lado, campos orlados de arbustos encher‑nos‑iam a vista, e teríamos podido avistar também o campanário da igreja e a vila lá ao fundo. Nas direcções do Norte e Oeste, as janelas teriam revelado uma paisagem pitoresca de suaves planaltos onde os bosques de carvalhos, os pinhais e as nogueiras dão lugar a bosques de bétulas por entre as quais se entrevêem pálidas clareiras de terras de pasto, polvilhadas de verdes arbustos de uva‑espim.

Sim, era sem dúvida este o sítio onde o solar acabado deveria ter‑se erguido orgulhoso! Ao menos uma vez, todos os parentes de von Kremer em Sàrgvere haviam estado de acordo quando, há dezanove anos, declararam unanimemente: «O Ulrich lio terá uma casa encantadora.

O Ulrich terá uma casa que valerá a pena mostrar às pessoas!» E agora...

‑ Der Dalks, der Dalles... verflixt!

Esta criatura exasperante que Ulrich culpa por tudo não é uma visita frequente nos lares dos barões bálticos de ascendência alemã. Apesar disso, ela parece ter‑se instalado permanentemente junto de três gerações de Kremers. A primeira aparição, fizera‑a ainda muito pequena, mas com o tempo, esta criança tornou‑se mulher crescida. De onde veio ninguém sabe, pois é certo que nenhum dos Kremers havia sido esbanjador ou perdulário no sentido completo da palavra. Assim, teremos evidentemente de aceitar como certa a explicação adiantada pelos sucessivos feitores da herdade, nomeadamente, a de que o solo era pobre, os camponeses preguiçosos e de dedos hábeis para os bens alheios, e o solar da herdade tinha sido abençoado com demasiadas crianças, especialmente raparigas. Contudo, estas condições não impediam os feitores de encher os próprios bolsos e, ao cabo de alguns anos de serviço fiel, conseguir alugar quintas e comprar casas na cidade. Dizia‑se, contudo, que houvera de facto um Kremer numa geração anterior que havia desperdiçado muito dinheiro, ajudando a «Dalles» a crescer e a desenvolver‑se. Enquanto criança, este Kremer revelara um extraordinário talento para os jogos de cartas, o que levou os pais a decidir encaminhar o rapaz para a carreira diplomática, na óbvia esperança de que os serviços dele trouxessem honras à família, bem como à pátria.

Apesar disso, dificilmente se poderia acusar os Kremers de ambição. Aliás, tinham, em regra, tão pouco desta característica que nem sequer se esforçavam por ser incluídos entre os «proprietários rurais bem sucedidos» do distrito. Mesmo os poucos que se haviam aventurado longe de casa para tentar a fortuna no exército ou nas carreiras civis, acabavam sempre por deixar que outros fossem promovidos em seu lugar, numa tocante manifestação de altruísmo.

Ninguém conseguia lembrar‑se de um único Kremer que tivesse alguma vez feito um esforço consistente para conquistar um lugar nos órgãos do governo local, e ainda menos para buscar a fama através das artes e das ciências. E assim, há já várias gerações que os Kremers não se podiam gabar de ter um único génio na família ‑ nenhum marechal‑de‑campo ou general, nenhum ministro do estado ou governador, nem sequer uma distinção de fidalguia. De tal modo que, quando de repente aparece uma criança com uma veia de ambição tão claramente definida ‑ então, meu Deus, porque não ajudá‑la nesse caminho? E foi assim que este Kremer, em particular, se fez diplomata.

Dentro de pouco tempo, contudo, veio a perceber‑se que a escada que o rapaz tinha de subir para atingir o objectivo desejado, começando nos gabinetes ministeriais e passando por consulados e embaixadas, tinha de ser revestida com camadas de ouro mais espessas do que haviam previsto os pais e parentes lá da vilória de Sãrgvere. Aliás, o embaixador e pretendente a ministro queixava‑se constantemente de que a falta de dinheiro era o obstáculo que lhe barrava o caminho, de tal modo que quando finalmente conseguiu o posto de adido em Londres, lamentou especialmente a sua magreza de fundos, e isto apesar de ter recentemente melhorado em muito a sua condição através de um casamento com uma família rica. Nessa altura, os pais e parentes fizeram maravilhas com o seu espírito de sacrifício e abnegação, pelo que tanto a herdade de Sãrgvere como a de Mãekúla se afundaram em hipotecas. Ainda assim, o adido de Londres considerava miserável o contributo familiar. Foi assim que o distinto senhor manteve a condição de adido até que as suas dificuldades o fizeram ceder à tentação num jogo de cartas a uma mesa de um dos mais aristocráticos clubes Conservadores de Londres. E foi aí que aconteceu algo que não vem mencionado nas crónicas de família dos Kremers, mas que levou ao fim abrupto da carreira diplomática de Gõtz von Kremer. Não era segredo nenhum que, ao longo de todos os anos de serviço, o diplomata se mantivera fiel aos mesmos maus hábitos a que se havia dedicado tão ardentemente durante a juventude.

É impossível esperar que um estrangeiro seja capaz de analisar até que ponto é que o estado civil dos actuais Kremers foi afectado pelos danos causados nessa época às herdades de Sãrgvere e de Mãekúla. Muito menos se espera que compreenda como se sente a esse respeito cada um dos Kremers da actual geração ‑ o mais provável é eles próprios não o compreenderem muito bem. Por isso, o leitor terá de se limitar a aceitar o simples facto de que os seis Kremers, três irmãos e três irmãs, permaneceram todos solteiros. A pequena herdade de Mãekúla sustenta apenas Ulrich, enquanto que todos os outros se alimentam dos recursos de Sãrgvere, ainda que seja Adalbert, o mais velho, o gestor oficial da propriedade. Apesar de um modo de vida simples e severo, quase pequeno‑burguês na sua austeridade, até a vasta propriedade de Sãrgvere tem vindo a decair com os anos, de modo que Heinrich von Kremer, o mais novo dos irmãos, é obrigado a compor o seu rendimento trabalhando como assalariado na cidade, onde é oficial na Associação de Crédito da Nobreza. De outra forma, é de duvidar que ele conseguisse manter os seus dois gostos favoritos: a colecção de cigarreiras, cinzeiros, anéis de guardanapos e canivetes de bolso raros, e o hábito de manter ao seu serviço um criado esguio e atraente, em vez de contratar uma camponesa, que seria muito mais barata.

Ao dar o seu passeio matinal, o Kremer de Máekúla adere a um princípio bem simples: evitar qualquer coisa que lhe possa acelerar o ritmo cardíaco. Isto porque o barão pretende viver uma vida longa e uma das válvulas do coração não é completamente saudável. É por isso que ele vai caminhando em passo lento mas resoluto, mantendo considerável distância entre si e qualquer pessoa que possa aborrecê‑lo ‑ acima de tudo, o feitor sobre quem Kremer largou todas as preocupações da gestão doméstica, já que, no rosto deste homem taciturno, ele consegue ler quantos arados, ancinhos, carroças e outros equipamentos rurais ainda mais caros é necessário comprar sem demora. Para além destas cautelas, antes de deixar a casa, Kremer nunca se esquece de colocar no bolso de trás do casaco um pedaço de pão branco, que vai roendo para afastar o desejo do tabaco, substância terminantemente proibida pelo médico de família. Quanto a pensamentos, ele encaminha‑os cuidadosamente para a paz, a alegria e a inocência, pensando especialmente em Sãrgvere. Pois a companhia dos irmãos e irmãs em Sàrgvere, onde ele se aloja durante os meses de Inverno e onde passa todos os domingos de Verão, local onde também o irmão citadino se refugia nas horas livres, constitui todo o seu mundo. Apesar disso, seria fútil esperar que, neste mundo, seis mentes diferentes pensassem como uma e seis corações batessem ao mesmo ritmo. Na verdade, acontece formarem‑se diferentes facções e travarem‑se teimosas batalhas no seio da família Kremer, e tudo por causa de assuntos tão vitais como o facto de as compotas da irmã Yakooba terem começado a fermentar porque ela errou na quantidade de açúcar, ou porque os frascos foram guardados num local húmido; ou então quantas galinhas deve haver para cada galo para que elas ponham ovos a bom ritmo; ou se os gatos podem ser lavados com água morna e sabão, como os cães ‑ tudo assuntos importantes, ainda que não determinem os destinos da Europa, nem sequer os da família, aliás. Às vezes, os Kremers dividem‑se em dois partidos, às vezes em seis ‑ dependendo se o assunto em contenda é recém‑aparecido ou já velho e poeirento. Por regra, a disputa só termina quando todos os combatentes abandonam o campo de batalha, saltando um a um da mesa de jantar e desaparecendo no respectivo quarto atrás do estrondo de uma porta fechada com força. É daí que eles acabam mais tarde por emergir, ramo de oliveira em punho, depois de um período de tempo que pode durar uma hora ou dois dias, dependendo do temperamento específico de cada participante.

Mas a débil válvula do coração de Ulrich von Kremer parece imune a este tipo de agitação. Na verdade, a válvula está já tão habituada a estes pequenos sobressaltos que a sua ausência poderia até ser prejudicial. Aliás, Ulrich não trocaria de modo algum estas altercações pelos acessos de nostalgia que sentira certa vez, quando fora obrigado a passar mais de uma semana longe de Sàrgvere ‑ esse sentimento que se contorce dentro de nós e que chega mesmo a trazer‑nos lágrimas aos olhos, especialmente a coberto do escuro silêncio da noite, quando as sombras atravessam as janelas e se esgueiram para dentro do quarto. Nesses momentos, o velho fidalgo sente‑se esmagado pela tristeza e pela pena que sente de si próprio.

Durante o passeio matinal, depois de transpor o portão e alcançar a oficina do ferreiro, Herr von Kremer escolhe geralmente o caminho mais longo dos dois que ali se cruzam ‑ nomeadamente, o caminho que leva à quinta do leiteiro. Como todas as alamedas de Máekúla, esta está mal pavimentada, com o piso esburacado e pedregoso, ou lamacento nalguns pontos. Ela estende‑se pelo declive da elevação, orlada de arbustos com pequenas clareiras aqui e ali, onde podemos entrever toda a colina e os campos que se estendem ao longe. Mais à frente, os solos tornam‑se arenosos e entramos em esparsos pinhais. Em breve avistamos a quinta do leiteiro no cimo de um pequeno outeiro, onde de um lado se avista a turfeira e do outro a aldeia e algumas cabanas dispersas na orla do campo e do pasto.

Percorrendo este trilho, o caminhante pára frequentemente para recuperar o fôlego. Ele senta‑se numa rocha, ou deita‑se sobre a relva, estica as pernas, agita o pau que traz na mão, murmura, boceja e sente‑se feliz por saber que está vivo, que existe. E não só existe, como existe na qualidade hereditária de Senhor de Mãekúla ‑ existe enquanto indivíduo que realmente possui uma partícula da Terra, que vive ao abrigo de um telhado que é seu, seu sem sombra de dúvida, um indivíduo que ainda tem o direito de gerir e de ordenar, que ainda é respeitado, que não tem razões para temer seja quem for. E a relva cresce, os cereais amadurecem, as vacas dão leite, os moradores pagam renda e os trabalhadores trabalham nos campos dele. Sim, sim. Aahh! Boceja com gosto, um bocejo que abarca todo o padrão da sua vida, das suas actividades, das suas atitudes perante tudo.

Geralmente, o barão von Kremer detém‑se um pouco perto da manada de gado, se por acaso a avistar do caminho, e então uma expressão de paternal solicitude ilumina‑lhe os olhos e ele cofia com satisfação os longos bigodes grisalhos. Ou não serão estes cento e quarenta úberes ‑ poucos, é certo, e nem sequer da melhor raça ‑ o principal suporte da economia da herdade? As batatas estão bem abaixo e os cereais comerciáveis ainda mais, nos anos em que chega a haver cereais para vender. É por isso que o barão coça uma ou duas vacas entre os cornos, chamando‑as pelo nome, e dá um pedaço de pão à boca de uma outra, honrando Toomas, o vaqueiro, com algumas perguntas, ditas em tom de confidência. Nada tem a temer de Toomas. Toomas nunca poderia fazer vacilar a válvula defeituosa que tem no coração, porque este homem cansado e de olhos baços admira o seu amo e senhor como se se tratasse de Deus Todo‑Poderoso, descido do Céu para se deter ali à sua frente. E só quando Kremer lhe vira as costas para se ir embora é que o vaqueiro se lembra de tirar o chapéu. Ele nunca se queixa, nunca pede nada.

Depois de passar o olhar pela quinta do vaqueiro, ou melhor, pelo aglomerado constituído pela barraca da debulha, o celeiro caiado e um ou dois telheiros para a turfa, que, aliás, são edifícios comparativamente novos e de bom aspecto que não magoam a vista; depois de procurar morangos selvagens pela colina, só para passar o tempo, e de assustar um ouriço escondido no meio de um arbusto, ou atiçar uma inofensiva cobra ou lagarto com a ponta do pau, o barão dirige finalmente os passos na direcção de casa, atravessando os prados verdes da aldeia.

E é assim que chega finalmente ao solar com um apetite saudável que não tem grandes critérios nem se dá ao trabalho de escolher entre o melhor e o pior que a cozinheira lhe coloca à frente. Um copo de vinho tinto barato mata‑lhe a sede e dá o mote a uma merecida sesta de proprietário rural, que dura, em regra, uma hora ou duas.

Ao fim da tarde, Herr von Kremer dá outro passeio pela herdade, mas desta vez escolhe um itinerário mais curto. E é nessa altura que ocorre o episódio mais interessante do seu programa diário: Kremer observa as leiteiras enquanto ordenham as vacas no curral. As mãos ágeis espremendo os mamilos, o fluxo constante de leite, os baldes com as bordas orladas de espuma ‑ tudo isto constitui um espectáculo tão atraente que, quando regressa a casa, ele vai sempre de muito bom humor, desejoso de dar corda à velha caixa de música, cujas notas suaves lhe dão sempre a bonomia desejada para desfrutar da refeição da noite. Por vezes, enquanto come, ele acompanha esta melodia com ímpetos de cantoria que, na opinião crítica da senhora Reemet, mulher do feitor, parecem «os dentes de dez serrotes rasgando a parede, ou o barulho de pedrinhas a resvalar».

À luz de três velas ‑ ele ainda não usa querosene ‑ o nobre von Kremer boceja ao ler meia dúzia de colunas do Revalsche Zeitung e meia dúzia de versículos do Uvro dos Upros, geralmente dedicados à sabedoria de Salomão. Isto porque o barão não tem mais nada em casa que lhe sirva de literatura. As velas extinguem‑se por fim e assim acaba mais um dia na vida do velho solteiro ‑ um dia exactamente igual ao anterior, exactamente igual à série interminável de dias antes desse.

 

Mas então, certa Primavera, nos primeiros anos da década de 1890, uma garrida faixa de cor irrompeu repentinamente entre os habituais tons cinzentos da sua vida calma. De imediato, o barão começou a sentir que já não vivia sozinho consigo mesmo. Parecia‑lhe agora que uma presença intangível, estranha e desconhecida até então, se impregnava em tudo o que ele via, ouvia e cheirava, até no ar que respirava. A princípio, não foi capaz de defini‑la como sendo bela ou feia, boa ou má, mas era inegavelmente nova e incrivelmente preciosa. Então, aos poucos, essa incerteza foi ficando cada vez mais clara e transformou‑se num mel tão doce que era quase amargo.

Era raro Ulrich von Kremer escolher para os seus passeios a curta e negligenciada alameda que contornava o lado sul do solar, passava pelo celeiro e conduzia ao aglomerado de cabanas de Kruusimáe, porque este caminho depressa se perdia num terreno meio pantanoso onde a água chegava, por vezes, à altura do tornozelo. É claro que ele poderia bem voltar a casa de pés enxutos se tomasse o caminho que serpenteava entre a colina e o charco e se entendia para lá da aldeia. Seria um passeio muito mais curto, mas Herr von Kremer não gostava de caminhos estreitos. Contudo, certa tarde, saindo detrás de uns arbustos para lá do celeiro, onde se detivera para ouvir os urros e berros dos lavradores que conduziam as manadas de bois pelo campo fora, Kremer deu por si no prado perto da aldeia. Mordiscando o seu pedaço de pão, ele continuou o caminho até chegar a três degraus erigidos perto de uma cerca. Para lá dessa cerca, a estrada afundava de repente na direcção do pântano e encharcava‑se. Aí chegado, deu meia volta, não sem antes lançar um olhar de saudação ao campanário da igreja, que se via do outro lado do charco, e caminhou ao longo da vedação de estacas, em direcção ao aglomerado de árvores que marcava o início do caminho mais costumeiro, o que se estendia pelo prado e pelo campo de volta ao solar.

Era à sombra dessas mesmas árvores que se aninhava a última das dispersas cabanas dos trabalhadores rurais, polvilhadas ao longo do prado. As traseiras desta estavam encostadas a um monte de gravilha, pelo que, do solar, só era possível avistar‑lhe o cimo do telhado. Olhando pela janela do quarto de Herr von Kremer, esse fragmento de telhado parecia uma lagarta enorme, negra e peluda, arrastando‑se pelo cume do campo. E esta visão fazia sempre com que Kremer se lembrasse de Tõnu Prillup, o inquilino da cabana, que era tão peludo como uma lagarta e cujo nome dava também nome à cabana.

Ao passar perto do quintal de Prillup, iluminado pelos calorosos raios do sol, um lampejo de cor saltou à vista do caminhante, levando‑o a virar a cara e a abrandar o passo. Focando esse ponto de cor, ele discerniu então tratar‑se de uma saia vermelha sobre a brilhante relva verde: no canto do quintal, perto do celeiro, estava deitada uma mulher, de rosto voltado para os luminosos raios de sol, os olhos fechados e a boca aberta.

‑ Ora esta! A dormir em dia de trabalho! ‑ foi o pensamento que atravessou a mente de Kremer, o senhorio. Mas olhando com mais atenção, ele teve de admitir que não conhecia esta adormecida.

‑ Uma visitante, talvez? Bem, tanto se me dá! ‑ E voltou‑se para ir embora. Contudo, avançou apenas três passos.

Ocorreu‑lhe de repente que havia ali algo que merecia um segundo olhar, e por isso, voltou novamente a cabeça. E, como ainda não sabia ao certo que coisa era essa, recuou sobre os seus próprios passos e deu ainda um passo suplementar para se aproximar ainda mais dos degraus que antecediam a vedação. Não havia vivalma nem naquele quintal nem na cabana, com excepção de algumas galinhas, que debicavam o chão perto do armazém da debulha, e de um grupo de pardais que, num coro ruidoso, se empoleirava nos ramos da bétula que se erguia no meio do quintal.

A preguiçosa adormecida, enroscada confortavelmente como um gato, atirara a cabeça para trás, repousando‑a sobre o braço esquerdo, pelo que o rosto dela estava de perfil e o pescoço branco estava completamente descoberto no prolongamento do queixo bronzeado. O rosto dela, os lábios sorridentes, tinham uma expressão de ironia, como se alguém lhe estivesse a sussurrar alguma bisbilhotice. Herr von Kremer reparou também que os dentes da rapariga eram bastante espaçados, e dedicou particular atenção às duas suaves rugas que lhe atravessavam a garganta jovem, mesmo por cima do colar de contas de vidro baratas. Ele reparava agora que tinha sido a simples imagem daquelas duas linhas na pele dela a despertar a sua curiosidade inocente e a impeli‑lo a voltar atrás. Em todos os outros aspectos, esta jovem mulher era igual a todas as outras esposas da vila, com o anel de prata brilhante no dedo da mão direita, anunciando que se tratava da esposa de alguém, e não de uma simples rapariga solteira.

Deveria ele tentar saber quem ela era? Kremer conhecia todos os habitantes adultos da sua pequena comunidade, em especial as famílias dos inquilinos daquelas cabanas; essas conhecia‑as todas, até as criancinhas. E agora, aqui estava ela, no quintal de Prillup, esta mulher que, aparentemente, se sentia perfeitamente em casa e que von Kremer não reconhecia de todo. Bem, porque não perguntar? Mas em vez disso, Herr von Kremer voltou‑se para se ir embora, como que relutante em acordar a adormecida.

A questão nunca teria, por isso, sido formulada se ele não tivesse reparado que a cabana de Prillup estava adornada com uma porta novinha em folha.

Depois de ter avançado meia dúzia de passos, von Kremer deteve‑se para contemplar mais de perto este pequeno luxo. Pousando o pé no degrau de baixo, em frente à cerca, ele inclinou‑se sobre o seu cajado de zimbro, que trazia sempre consigo, e lançou um olhar mais crítico à esquálida cabanazinha, reparando agora na horta de couves e na pequena tira de terra lavrada. Concluiu então... humm, que a família de Prillup poderia ser considerada uma das mais prósperas entre os modestos inquilinos de Màekúla. Mas quem era aquela ali deitada sobre a relva? E deitou mais um olhar furtivo à mulher. Então, lembrou‑se de pensar por onde andaria Leenu, a mulher de Prillup. E os dois ou três filhos deles? A minúscula janela da casinhota não denunciava qualquer sinal de vida no interior. Talvez esta mulher tivesse sido trazida para os ajudar? A saia vermelha estendida sobre a relva ao lado do celeiro atraía o olhar de Kremer naquela direcção. Por fim, os olhos dele repousaram sobre umas tinas e tigelas de madeira que, pelos vistos, estavam à espera de ser lavadas e escaldadas, só que o fogo debaixo do grande caldeirão de ferro já se extinguira. Agora sim, ele teria de facto continuado ‑o seu caminho não fosse, naquele momento, terem aparecido duas crianças, rindo ruidosamente e correndo a toda a velocidade desde o prado até à cabana.

‑ Mari! Olha, Mari! Olha só o que nós temos! ‑ O rapaz vinha à frente com um minúsculo ninho de carriça nas mãos, a rapariga vinha‑lhe no encalço, o cabelo voando ao vento, e em redor deles saltitava a massa peluda de um cão perdido em entusiasmos. Apressaram‑se na direcção da cerca como um verdadeiro turbilhão, exactamente no sítio onde a mulher dormia, do outro lado da vedação. Ninguém reparou no senhor da herdade, ainda de pé ali perto.

Observando‑a enquanto acordava e se levantava, Kremer concluiu que esta mulher deveria ser bastante jovem. Nos movimentos vagarosos e calmos desta rapariga chamada Mari ‑ o modo como erguia a cabeça, como se virava para cima e se punha lentamente de pé ‑ havia algo que, estranhamente, não condizia com a maturidade física da sua figura, e o mesmo se podia dizer da expressão que carregou no rosto ao aproximar‑se do ninho dos pássaros, bem como do tom da voz dela ao explicar ao pequeno ladrão, de forma séria e autoritária, que o ninho tinha de ser novamente posto no seu lugar, senão os pássaros fugiriam todos e nunca mais regressariam à casa de Prillup.

‑ Mas e os ovos?

‑ Devolves também os ovos, claro.

‑ Mas porquê? São tão giros, são pintalgados! Um ou dois...

‑ Não, não, nem um para amostra. A mãe dos pássaros conta‑os.

Mas a expressão no rosto de Mari contrariava as suas palavras de repreensão. A curiosidade com que examinou o minúsculo ovo na palma da mão fez crer que, no fundo, os seus sentimentos até estavam do lado do rapaz.

Foi nesse instante que todos os três repararam no senhorio, a quem o cão começou a ladrar, levando a conversa a uma interrupção abrupta.

‑ Você é desta família? ‑ perguntou Kremer, transpondo os degraus e aproximando‑se da cerca, falando em perfeito Estónio e usando até o sotaque desabrido dos camponeses.

A mulher olhou‑o calmamente mas não respondeu. Kremer aguardou.

‑ Então, porque não falas?

A jovem examinou‑o então, do topo do chapéu à ponta dos pés, sem abrir a boca. Cuidadosa, carinhosamente, voltou a pôr o ovo de carriça dentro do ninho.

«Não é parva nenhuma», pensou Kremer, corando ligeiramente sob o aguçado escrutínio dela. Apoiou‑se então numa perna e logo a seguir na outra, tentando lembrar‑se de outra abordagem qualquer, mas pensando melhor, decidiu dirigir‑se às crianças.

‑ Esta Mari vive convosco?

Estavam os três de pé à sua frente, as crianças de costas encostadas à vedação e a mulher do outro lado, de estômago encostado a ela. Ao ouvir a pergunta, as crianças olharam de imediato para a mulher e, como ela manteve o silêncio, apenas um ligeiro sorriso aflorando‑lhe os lábios, também eles se calaram, limitando‑se a soltar uma ou duas risadas. O lábio superior húmido, por debaixo dos narizinhos pequenos das crianças, brilhava em consonância com a natural alegria que emanavam.

‑ Mentecaptos! ‑ resmungou Herr von Kremer, mas apenas depois de lhes voltar as costas.

Depois de ter andado uns vinte passos, poderia ter obtido uma explicação exaustiva sobre essa misteriosa Mari, isto se a sua curiosidade tivesse durado tanto. A essa hora, os lavradores já tinham deixado os arbustos de há pouco e estavam agora a lavrar o campo que se estendia pelo declive perto de Kruusimàe, o mesmo campo que Kremer atravessava agora em direcção a casa. Entre esses lavradores estava Tõnu Prillup. Quando o senhorio o alcançou, tinha ele chegado ao fim do campo e estava a dar a volta ao arado, enquanto que os companheiros já tinham passado um pouco mais à frente. Mas Kremer retribuiu o cumprimento de Prillup sem o deter. Algo que nem ele próprio conseguiria explicar impediu‑o de formular a pergunta. Em breve, a voz de Prillup já não passava de um eco monótono, ressoando ao longe quando o camponês chamava os bois pelos nomes e os incitava a continuar, gritando‑lhes que caminhassem direitos. Aliás, toda a colina vibrava atrás de si com estes coros viris, acompanhados pelo estalido de chicotes e pelos sentidos palavrões largados por vozes másculas.

Ao som desta música pastoral dos lavradores, o senhor da Herdade Màekúla continuou a sua marcha, chegando a casa um pouco cansado e insatisfeito consigo próprio, por qualquer razão inexplicável. Nessa noite, o feitor visitou‑o para lhe fazer um relatório qualquer, e quando a conversa de negócios terminou, Kremer esteve quase a fazer uma referência subtil à mulher que vira no quintal de Prillup. Só que, mais uma vez, não lhe pareceu valer a pena, pelo que o silêncio que guardou disse a Reemet que a conversa estava terminada e que ele podia ir.

Já deitado na cama, Kremer lembrou‑se de repente, entre outras coisas, que Prillup estava entre os inquilinos que não tinham pago a renda inteira no dia de São Jorge. Mas estas coisas aconteciam com tanta frequência ali na Herdade Màekúla que, geralmente, ele pouca atenção prestava às razões apontadas pelos não‑pagadores. Mas espera! ‑ não foi o Prillup que tinha murmurado qualquer coisa sobre um funeral ‑ o funeral da mulher? Então esta jovem... Mas mal tinham passado três semanas desde o dia de São Jorge e Prillup não tinha feito referência absolutamente nenhuma a eventuais despesas de um casamento. Ou teria sido Rein Kiilaste a referir a morte da mulher e Tõnu teria então falado de um casamento em vez de um funeral? Talvez durante os longos meses do Outono e Inverno, Leenu tivesse... Mas... E aí, Herr von Kremer puxou o cobertor acima das orelhas. Fosse como fosse, nada daquilo lhe dizia respeito.

Apesar de tudo, antes de adormecer, o barão recordou ainda, ensonado, que as crianças lhe haviam chamado Mari. E por fim, já quando os olhos se fechavam com sono e a boca se entreabria para ressonar, ainda pensou, desdenhoso: «Que absurdo cabelo, daquela cor louro‑cinza. E todo emaranhado! Bah!»

Na manhã seguinte, quando pousou a mão sobre o portão, Kremer hesitou, perguntando‑se: «Bem, para onde?

Para a quinta do leiteiro outra vez? Hum, já agora dou um salto a Kruusimâe para ver que avanços é que os homens fizeram esta manhã na lavragem dos campos.» E guiou então os passos na direcção do casario de Kruusimâe. Pelo caminho, foi inspeccionando a lavragem com a atenção adequada, seguindo sempre o mesmo caminho na direcção das cabanas que seguira no dia anterior. Quando, por acaso, espreitou para o quintal de Prillup, só avistou os dois pequenos «mentecaptos». Estavam sentados numa mó de pedra perto da alta porta do celeiro, aparando o pêlo do dorso do cão com uma tesoura enorme. Aliás, estavam tão absorvidos por este trabalho, um segurando o cão e o outro manejando a tesoura, que nenhum deles reparou no passante. Através da janela aberta do casebre ouvia‑se o clique‑claque de um tear manual, mas a janela era demasiado pequena para deixar entrever a tecedeira.

Tão especial e límpido estava o ar naquela manhã que mesmo a uma distância considerável, o estalido regular do tear conseguia alcançar os ouvidos de Kremer. Aliás, ele julgou ouvi‑lo até mesmo depois de regressar a casa. Foi então para o quarto, abriu a janela e ali ficou de pé, à escuta, perdendo o olhar para lá do monte de feno, fixando aquele ponto que parecia uma lagarta grande e preta espreguiçando‑se pelo campo fora.

Nos dois dias que se seguiram desabou uma chuva fria, pelo que o velho cavalheiro foi obrigado a permanecer em casa. A maior parte do primeiro dia, passou‑a vagueando pela casa, em bocejos, mas no segundo já começou a queixar‑se e até a praguejar, o que não era nada seu costume. O terceiro dia amanheceu envolto em neblina. O céu estava carregado e chuviscava de tempos a tempos, uns salpicos dispersos de chuva. Mas nada disto conseguiu abalar o velho impaciente, apesar de umas dores agudas que lhe picavam a anca direita e o tornozelo esquerdo. Assim, depois de pôr um par de galochas de cano alto e uma gabardina, o barão dirigiu‑se ao portão do solar. Daí, meteu‑se sem um segundo de hesitação ao caminho para a vacaria, sem abrandar o passo uma única vez ‑ o que só vem provar que também a loucura dos dias chuvosos tem o seu método.

‑ Fu! ‑ disse a cozinheira e criada Fillemine Fahtri(1), única mulher ao serviço dele e que se considerava orgulhosamente a governanta do solar Máekúla, quando viu regressar o amo passada cerca de uma hora. ‑ O senhor já voltou e a Mari ainda não acabou as janelas! Eu bem lhe disse para ser rápida, mas eles são todos tão lentos por aqui. Todos tão fagarrosos(2).

A resposta de Herr von Kremer foi um murmúrio quase inaudível, que ele resmungou enquanto a criada lhe tirava o sobretudo e as galochas, o que, nas mãos da senhora Fillemine, era uma tarefa vagarosa por causa da gordura que lhe pendia dos braços e lhe dificultava os movimentos. «Qual Mari?», pensou ele consigo próprio, porque geralmente era Kai, a mulher do vaqueiro, quem lavava as janelas e esfregava o soalho. Contudo, Herr von Kremer não disse nada e entrou na sala mais próxima, a sala cuja porta Fillemine abrira para si. Era óbvio que, nesta divisão da casa, as limpezas já tinham terminado.

Aqui, ele sentou‑se e descansou por uns minutos, depois deu vários passos incertos pela sala e finalmente, com as mãos bem enterradas nos bolsos, parou para examinar cada uma das vidraças, como que testando a transparência do vidro.

Não se ouvia qualquer som proveniente da divisão ao lado, o escritório. Talvez as limpezas já tivessem acabado aí também... Deitou a mão à maçaneta da porta e espreitou lá para dentro: sim, já estava limpo. Deste lado da casa já não havia mais divisões, as outras duas assoalhadas, das quatro que havia lá em casa, ficavam do outro lado do pequeno hall de entrada.

«Qual Mari?» ‑ Voltou‑se então, abriu a porta para o halle. ficou à escuta. Fillemine andava às voltas com pratos na cozinha.

 

*1. Nome Estónio Vilhelmim Vahtrik, pronunciado com exagerado sotaque alemão.

  1. Para vagarosos.

 

Não se ouvia qualquer outro som. Por isso, ele atravessou o vestíbulo e abriu a porta do outro lado ‑ mas apenas uma nesga. Sim, estava ali alguém na sala de estar, e essa pessoa estava a assobiar. Quando o velho cavalheiro fez a sua aparição na sala de estar ‑ e porque razão não haveria ele de entrar para ver quem limpava as janelas de sua casa em vez de Kai? ‑ reconheceu imediatamente a mulher que avistara dormindo no quintal de Prillup, identificando‑a mesmo antes de ver o pescoço e a cabeça, que estavam escondidos por detrás de uma viga, e apesar de a mulher envergar agora roupas de cor diferente. O porte gracioso dela, os movimentos ágeis, enquanto se sentava no parapeito da janela para melhor esfregar a vidraça com uma mão, tudo isto eram coisas que ele guardara subconscientemente na memória, imagens associadas à relva verde e brilhante do quintal de Prillup. Pelos vistos, Mari não dera pela sua chegada, porque continuou a assobiar sozinha, não num assobio estridente, mas sim no som seguro que se ganha com muita prática. Ele hesitou, os longos bigodes grisalhos esmorecendo um pouco, mas depois lá se aproximou para fazer notar a sua presença.

‑ Bem, bem ‑ começou, juntando as mãos atrás das costas. ‑ Parece que tenho uma empregada nova para me limpar as janelas. De onde vem ela?

Lentamente, a jovem mulher baixou a cabeça e inclinou‑a para dentro da sala, demorando‑se antes de responder. Era evidente que, desta vez, ela tencionava realmente responder, via‑se na expressão do rosto dela. Mas os olhos dela olhavam‑no de lado e, mirando esse olhar distante, ele percebeu que ela estava distraída. Mari fez então um esforço para se concentrar na pergunta de Kremer e respondeu então abruptamente:

‑ Bom dia! A mulher do vaqueiro está de parto.

‑ Ah é? Ah, sim... claro... isso já se esperava. E tu, de onde vens?

‑ Da casa do Prillup, claro.

‑ Da casa do Prillup... sim senhor! ‑ Von Kremer estava determinado a gracejar. ‑ Então o Prillup agora tem duas mulheres, é?

‑ Não. Só uma. A minha irmã morreu há quatro semanas.

‑ Então a Leenu do Prillup era tua irmã, era?

Mari acenou afirmativamente com a cabeça. Ainda sentada no parapeito, virou‑se novamente e retomou o trabalho, esfregando vigorosamente a outra face da vidraça com um pano molhado.

‑ Enterrou uma mulher e casou com outra... Tudo no espaço de quatro semanas.

‑ Que mais poderia ele fazer?

‑ De onde te trouxe ele?

‑ Da Floresta.

A resposta não era um gracejo e Kremer não a interpretou como tal: havia uma paróquia com extensas florestas a sudoeste de Sãrgvere, para lá da igreja, e a população local chamava‑lhe a Floresta.

‑ Muito bem! Sim, agora me lembro que a Leenu não era destes lados. O vosso casamento foi pouco depois do dia de São Jorge, presumo eu.

‑ No dia de São Nicolau ‑ disse a rapariga, limpando despachadamente o nariz com as costas da mão esquerda.

‑ Mas os filhos do Tõnu não te chamam mãe?

‑ Não sou mãe deles. ‑ Dizendo isto, ela desceu do parapeito e mergulhou o pano no balde. O cabelo emaranhado dela, cor de cinza alourada, caíra‑lhe de dentro do lenço, que lhe escorregara para a nuca, e quando ela levantava a cabeça, lá aparecia a segunda rugazinha na garganta, mesmo por baixo do nó do lenço.

O barão decidiu nesse momento que a conversa já durara tempo suficiente e dirigiu‑se à porta, como se apenas tivesse passado pela sala de estar para conversar um pouco antes de passar à divisão seguinte, onde um qualquer negócio urgente o aguardava.

Mas quando atravessou a sala de estar, deteve‑se mais uma vez, com a mão na maçaneta.

‑ Escuta, Mari, quando te perguntei há uns dias de onde eras... Porque não me respondeste?

‑ Não quis.

‑ Não quiseste? ‑ As sobrancelhas à Bismarck dele ergueram‑se num arco. ‑ Bem, mas porquê?

‑ Não me apeteceu, pronto ‑ disse Mari, levando o pano e o balde até à janela seguinte.

Herr von Kremer afastou‑se um pouco da porta, como se pretendesse discutir este argumento, mas depois de alguns segundos abriu e fechou a boca várias vezes com um estalido dos lábios e mudou repentinamente de assunto.

‑ Ele é bom para ti?

‑ Quem?

‑ O Prillup, claro.

A rapariga levou o escadote até à janela seguinte, onde ia começar a lavar as vidraças de cima, e subiu. Foi de lá de cima que respondeu, e Kremer julgou ver‑lhe novamente no olhar uma expressão distante.

‑ Alguma vez ele foi mau para alguém?

Mari continuou o trabalho e o senhor do solar deteve‑se ali por perto. Deixando o olhar passear sobre os contornos do corpo dela, desde as sandálias de couro não curtido até aos braços nus, até à cabeça que praticamente tocava no tecto, ele disse então, no tom repugnante de um homem sem humor que tenta ter graça:

‑ E se caísses agora e partisses o pescoço?

Ao que a mulher reagiu da forma mais inesperada. O rosto que voltou agora na direcção do velho senhor tinha mudado repentinamente de máscara. Agora, pela primeira vez, trazia uma expressão de amargura, os espaçados dentes da frente surgiram brancos por entre os lábios.

‑ Quem lamentaria? O barão, talvez?

Kremer deu uma pequena gargalhada forçada e saiu da sala. Sentia‑se feliz, mas não tentou sequer sondar as razões dessa felicidade. Passando da sala de jantar ao escritório e de novo à sala de jantar, ia cofiando sempre os longos bigodes grisalhos. Na sala de jantar, deu voltas e voltas à mesa, com os polegares encaixados nos bolsos do colete, mexendo incessantemente os dedos. Então, deu por si de pé em frente a uma das janelas, onde uma apagada marca de um pé no parapeito lhe chamou a atenção. Isto deu‑lhe uma desculpa para examinar os parapeitos mais de perto, o que fez sem a mínima má‑vontade, sendo depois induzido a inspeccionar também as vidraças. Assim, depois de examinar bem de perto a transparência das janelas, concluiu que o asseio estava abaixo dos padrões, ao passo que, nesse aspecto, o trabalho da antecessora tinha sido quase sempre perfeito. Mas ela há‑de aprender, pensou pacatamente o benevolente senhor, e passou então a inspeccionar as janelas do escritório.

Um pouco mais tarde Kremer lembrou‑se que havia algo que se esquecera de perguntar a Mari ‑ algo que o senhor da herdade tinha o direito de saber. Por isso, voltou atrás e perguntou‑lhe se ela estava a substituir Kai também na ordenha ‑ ele próprio já não ia à vacaria há um dia ou dois, por isso não sabia. A resposta dela foi afirmativa. Então, ele quis saber quem a mandara chamar ‑ o capataz ou a mulher dele? Tinha sido chamada do solar, explicou Mari, mas por quem especificamente, isso ela não fazia a menor ideia.

Depois disso, o barão ainda lhe perguntou se ela já havia limpo as janelas de um solar alguma vez. Não, esta era a primeira vez. E aquela porta nova na casa de Prillup, por acaso ele não a mandou fazer por ocasião do casamento?

O barão tinha outras perguntas mais importantes a precisar de resposta, mas de uma forma ou de outra, tinham‑se‑lhe varrido da memória. Por isso, ia deixar as coisas por ali, por enquanto, e estava prestes a voltar‑se e a sair quando, subitamente, se lembrou de outra coisa.

‑ Tens mais irmãs em casa?

‑ Duas.

‑ Mais novas do que tu?

‑ Uma é mais nova, a outra é mais velha.

‑ Então porque é que ele te escolheu entre elas as duas?

‑ A Liina ainda não fez o crisma, e a Tiina não queria casar com ele.

‑ E tu querias?

‑ Uma de nós tinha de casar. Ele tem os filhos da Leenu.

‑ Muito bem, muito bem ‑ murmurou ele, contido e formal.

Regressado novamente à outra ala da casa, Ulrich von Kremer fixou o olhar numa grande nódoa de tinta que manchava o pano que lhe cobria a escrivaninha, e ficou ali sentado massajando as têmporas com os nós dos dedos. Deixou‑se tomar pelos sentimentos ao ponderar o facto de que há coisas absurdas nesta vida que nem dois dias seguidos de chuva conseguem lavar, quando um homem sofre de «inclinações plebeias». E o olhar ergueu‑se lentamente da mancha na mesa para um retratozinho a óleo pequeno e meio apagado pendurado na parede sombria. Foram exactamente essas palavras que, proferidas com ansiedade maternal, se escaparam certa vez dos lábios altivos e aristocráticos da honrada senhora ali retratada.

Meia hora depois, Herr von Kremer estava sentado à mesa da sala de jantar enquanto Vilhelmine, compenetrada no seu papel de criada, lhe atendia todas as necessidades. De repente, parou, à escuta, e os cabelos dela eriçaram‑se visivelmente enquanto os lábios sussurravam a palavra «Credo!». Aí, saiu da sala de jantar às pressas para voltar pouco depois, segurando nas mãos uma caixa de música tinindo, como se se tratasse de um cordeirinho salvo da boca do lobo.

‑ São tão rudes, tão incrivelmente rudes! Ah, vi logo, assim que ela pôs os pés nesta casa! Vi logo que era uma criatura rude. O amo nem adivinha o que ela fez! Sentou‑se no sofá, esticou as pernas e disse, «Sim senhor, deve ser bem bom descansar aqui!»

Enquanto a criada pousava a pobre violentada caixinha de música numa mesinha ao canto, o patrão continuou mastigando a comida, engoliu uma garfada e comentou:

‑ Sim, são muito tolos, estes camponeses. Precisam de ser educados.

Nessa mesma noite, no curral, enquanto conversava com a mulher do capataz, que supervisionava a ordenha, o senhor da herdade comentou casualmente:

‑ Vejo que temos uma mulher nova para ajudar à ordenha.

‑ Sim, pedi‑lhe para vir ajudar. Pareceu‑me um pouco mais asseada do que as outras.

‑ Limpou muito bem as minhas janelas. Melhor do que a Kai. Daqui para a frente, podes deixá‑la ir lá a casa fazer todas as limpezas. E aí, ele mudou de assunto e começou a falar dos vitelos.

 

O tempo seco segue‑se aos dias chuvosos e o senhor da herdade retoma o hábito de passar pela vacaria regularmente à hora da ordenha, e às vezes até duas vezes por dia. Geralmente, ele aparece bastante cedo para ver as vacas a serem regadas ao pé do poço, antes da ordenha. Ele gosta de as observar precipitando‑se de cabeça para a manjedoura cheia de água, todas em monte, bloqueando o caminho umas às outras, empurrando, entrechocando‑se, prendendo os chifres uns nos outros, às cabeçadas! Com que alegria e vivacidade a água lhes escorre pelos pescoços, como abanam as caudas, como resfolegam as narinas, como soam os badalos! Toda esta pressa, este barulho, são um espectáculo de teatro, uma representação ao vivo que Kremer nunca sonharia trocar por nada do que se encena na cidade, aonde ele vai sem ânimo umas duas ou três vezes no Inverno. Nem trocaria os urros do touro pela melhor música de orquestra. Em menos de um nada, os animais já estão de pé no espaçoso curral, ruminando com ar sonhador, e então aparece um balde branco de madeira e dez dedos libertadores debaixo da teta de uma vaca, e depois de outra, e o senhor da herdade vai passeando entre elas, atacando as incómodas moscas com o seu bastão, inspirando profundamente o ar saturado do doce aroma do leite misturado com os odores exalados pelos animais. Por fim, detém‑se um pouco junto da grande tina onde a Senhora Reemet está sentada num banquinho, as agulhas de tricô entrechocando‑se, sempre desejosa de oferecer respostas exaustivas às perguntas do amo. E enquanto falam, as ordenhadoras vão aparecendo ‑ Tiiu e Truutu, depois Madli, e em seguida uma senhora de idade e uma rapariga jovem ‑, cada uma despejando os baldes de leite pela peneira feita de um tecido grosso de algodão. Uma das ordenhadoras é nova e o barão lança um olhar perscrutador às mãos da rapariga e segue a figura dela, que se afasta, com um olhar aprovador.

Mas as mulheres não fazem muito caso dele. É óbvio que ele não é desses fidalgos cuja presença instiga medo nos camponeses. E mesmo a mulher nova já parece saber disso, a que vem de casa de Prillup, porque uma das ordenhadoras conta, entre risos, que no outro dia, Mari fez esguichar um fio de leite da teta da vaca para o chão, à passagem do velho, deixando um longo rasto de gotas de leite, como botões brancos, na cauda do casaco dele. O amo bem voltara a cabeça, olhando por cima do ombro quando ouviu os risos estalando atrás de si, mas depois continuou a andar sem uma palavra. Neste aspecto, o vaqueiro Toomas é a única excepção entre os lavradores da herdade de Kremer: vive em constante medo do barão, e não admira ‑ a mulher está já de parto do quinto filho.

Enquanto os baldes de leite juntam espuma e a tina se enche, e a Senhora Kuru aparece no caminho para a vacaria puxando um carrinho de mão cheio até cima com recipientes de madeira lavados na copa, com a filha empurrando atrás para ajudar, aparece um homem entre as colinas do pasto ‑ um homem que qualquer pessoa consegue reconhecer de longe, mesmo que tenha má vista. Uma mão invisível parece ter‑lhe agarrado o nariz, movendo‑o para cima e para baixo, para a direita e para a esquerda, a um ritmo regular. A distância, parece que o pescoço está tão gasto e frágil que a cabeça em cima dele pode a qualquer momento rebolar dali abaixo e cair no chão com um baque abafado.

Este homem entra nos aposentos dos criados, que ficam debaixo do mesmo tecto que a leitaria, e se a tina grande de leite ainda não tiver sido trazida para dentro, ele às vezes vai até lá fora ao curral para observar o fim da ordenha. Isto é sempre um sinal para o barão se ir embora. Não que ele não goste deste homem ‑ ele é útil em muitos aspectos ‑ mas há algo no seu cumprimento que Kremer prefere não enfrentar. Há nove ou dez anos, quando a mão invisível ainda não tinha agarrado o nariz de Yann Kuru, o barão Kremer até apreciava uma conversa privada com ele. Nessa altura, o tom de voz nos cumprimentos de Yann era menos afectado e a expressão nos olhos mais sincera.

‑ Não consigo perceber onde é que este homem enterra o dinheiro! ‑ começa Yann depois de passar algum tempo com a senhora Reemet. ‑ Passa a vida a pedir dinheiro adiantado. Nem sequer consegue esperar até ao fim do mês. Noutras herdades, noutros sítios, nunca... Valha‑me Deus!

A senhora Reemet já ouvira tantas vezes as histórias de Yann, que começam e acabam a falar de dinheiro, que chega a agradecer aos céus quando a tina fica finalmente cheia de leite e é levada para a leitaria. Aqui, basta‑lhe mergulhar a régua no leite e anotar a quantidade marcada. Feito isso, o trabalho dela termina.

Um dia segue‑se a outro e Herr von Kremer chega sempre pontualmente à hora da ordenha, e entre as velhas ordenhadoras, ele repara sempre na nova, a substituta de Kai, que lhe lavara as janelas tão bem lavadas. Mas certa manhã, ele dá com uma outra mulher ordenhando as vacas no lugar dela. Trata‑se de Yuula Pajus, a vizinha do lado de Mari.

‑ Então, que se passa com a Mari?

‑ Tem os dedos doridos. Pediu‑me para vir no lugar dela, hoje.

‑ Dedos doridos? Que fina senhora! Com mãos brancas e delicadas!

Nessa tarde, durante o passeio, Herr von Kremer, perdido em pensamentos, dá consigo junto ao casario de Kruusimáe, apesar de ter originalmente planeado ir à leitaria. No relvado em frente ao portão de Prillup, um jogo da malha está agora no auge. Todos os três estão completamente concentrados no jogo, especialmente a mãe. Com grande precisão, ela ocupa‑se a medir a distância com o olhar e, quando chega a sua vez, lança a malha com ímpeto e deixa‑a voar. E se acertar no alvo e ainda afastar uma ou duas malhas adversárias, afirma orgulhosa: «É assim que se faz!» Envolvidos no jogo, nenhum deles repara no senhor da herdade ali de pé. Aliás, não reparariam nele de qualquer modo, mesmo que ele não estivesse a coberto dos arbustos.

Kremer não lhes interrompe o jogo. Agrada‑lhe observar a disputa, ainda que ele próprio nunca tenha sido desportista. E quando o jogo acaba, ele retrocede nos seus passos e dirige‑se de volta à mansão, com olhos sonhadores e a boca torcida num sorriso.

No dia seguinte, a mulher de Prillup, Mari, está de volta à ordenha, trabalhando silenciosa e séria como sempre. Cada vez que vai até à tina para despejar o balde de leite, o olhar dela perde‑se no vazio, aparentemente um velho hábito seu, sacudindo depois a cabeça como que para afastar esse transe. Mas logo no momento a seguir, Kremer poderá avistar‑lhe os dentes espaçados num esgar risonho, porque a vaca Kiryak deu um pontapé no balde e entornou‑o. E passam‑se várias horas de ordenha, de manhã ou à noite, até que um dia, por entre as ordenhadoras, Herr von Kremer topa com uma mulher magra e de rosto amarelento cujas mãos e pés se movem com demasiada rapidez, como se ela estivesse a tentar compensar alguma coisa.

Depois disso, as visitas de Kremer à leitaria tornaram‑se mais raras e mais espaçadas. A relva e os cereais estavam a crescer com rapidez e os campos e prados atraíam‑no agora cada vez mais. As suas deambulações pela propriedade eram cada vez maiores agora, ele aventurava‑se cada vez mais longe pelos campos fora, indo até aos terrenos pantanosos, até ao riacho negro. Contudo, depressa veio a perceber que estes passeios eram um desperdício, porque o olhar pouco apreendia das paisagens em seu redor. Parecia haver uma cortina velando tudo, e mesmo que ele a afastasse por um momento, ela voltava imediatamente a fechar‑se. Qualquer forma que ele vislumbrasse parecia apenas um contorno flutuante e vago, uma imagem desfocada por detrás da cortina. Certa vez, o barão deu consigo fitando um zimbro durante uma hora ou mais ‑ como se estivesse discursando para a árvore ‑ sem sequer se aperceber da causa ou objectivo dessa sua atitude, já que este não era um acto consciente. E quando chegava a casa, mentalmente exausto e com um sentimento de secreta inquietude ardendo‑lhe no peito, roía‑lhe sempre a desconfortável sensação de que deixara algo por fazer. Então, lutava contra a tentação de voltar atrás, ali e agora, para resolver tudo o que deixara inacabado. De todos estes momentos nebulosos, ele recordar‑se‑ia mais tarde apenas de um qualquer incidente banal, e isso acudir‑lhe‑ia à memória vezes e vezes sem conta: como quando se perdeu a contemplar o seu próprio reflexo na água negra do riacho e foi murmurando para si próprio, cada vez mais alto: «Ulrich, Ulrich!»

Vieram então os dias quentes e sufocantes e os longos crepúsculos do pino do Verão; o céu estava alto e iluminado, o ar zumbia com insectos; os odores fortes do pomar selvagem elevavam‑se colina acima e tudo parecia vibrar e derreter com as ondas de calor. Do crepúsculo à meia‑noite, bem alto no céu azulado, a luz prateada da lua crescente flutuava sobre os prados, e as ondas à superfície das águas negras do riacho brilhavam brancas à luz do luar. O pomar de vidoeiros por detrás da horta mergulhava num silêncio sufocante ‑ cantava um rouxinol, apenas ‑ enquanto que os edifícios fantasmagóricos no topo da colina faziam lembrar enormes cabeças pensativas com misteriosos morcegos esvoaçando em seu redor como pensamentos perturbadores.

Em noites como essas, Ulrich debruçava‑se para fora da janela aberta, olhando e escutando, inalando os odores da noite, e sentia‑se melancólico e triste. A sua cabeça careca reflectia a luz da lua e atraía borboletas da noite, pelo que ele erguia sempre a mão, instintivamente, para se proteger. Apesar de ter regressado de Sàrgvere havia apenas dois dias, sofria já de solidão e sentia uma mágoa, uma pena de si próprio, invadindo‑lhe o coração e a alma, lenta e silenciosamente.

As noites chegavam e desapareciam uma depois da outra. Em retrospectiva, ele via com uma clareza cada vez maior o caminho comprido e estreito que se estendia direito desde os terrenos pantanosos lá longe até aos seus pés. Na orla deste caminho não havia quaisquer marcos capazes de despertar memórias ‑ nenhuma acção boa ou má, nenhum acontecimento feliz ou infeliz, nenhum prazer legítimo ou proibido. E quando ele se voltava para olhar a pálida planície coberta de lilases que se estendia à sua frente, onde uma pequena manada de vacas malhadas constituía a única coisa viva na sua vida, aí ele avistava com um estremecimento a negra carroça fúnebre, aproximando‑se inexoravelmente ‑ e já não vinha muito longe. Passava a mão sobre a cabeça calva, como que para limpar os suores frios, fechava a janela e encolhia‑se na cama sem sequer abrir a Bíblia. Mas o sono não vinha. E o rouxinol troçava dele, empoleirado nos ramos das bétulas, apesar de a janela estar firmemente fechada.

A noite inteira, Herr von Kremer torturava‑se com repreensões a si próprio. Era dele a culpa de tudo. As circunstâncias haviam criado obstáculos no seu caminho, mas não deveriam tê‑lo impedido de dar o passo. Ele tinha sido atraído pelo sexo fraco, e houvera decerto oportunidades, mas ele deixara‑as fugir. Adiara sempre para outra altura, uma altura melhor que nunca veio. Tinha hesitado quando deveria ter actuado com resolução; tinha recusado quando deveria ter aceitado. Sempre a mesma história. .. ainda há tempo, muito tempo. E foi assim que permaneceu sempre um espectador, desejoso e salivante quando outros saboreavam, porque eram mais sábios do que ele.

Mais sábios? Seria uma questão de sabedoria? Não há como negar que, até então, a atitude dele perante as mulheres não tinha sido a mais correcta, talvez não tenha sido suficientemente liberal. Elas atraíam‑no e repeliam‑no ao mesmo tempo. Ele tolerava‑as apenas dentro de uma «zona neutra», eram‑lhe atraentes apenas quando se encontravam do outro lado da barreira. Mas quando pensava nelas ali, na proximidade, um medo abjecto enchia‑lhe o coração, como se ele estivesse prestes a enfrentar um qualquer perigo que se escondia por detrás dessa intimidade. Imaginava então que por detrás de cada prega do vestido, cada caracol do cabelo e cada pena no chapéu havia algo de terrível à sua espera. Mas não era também verdade que ele começara a construir esta casa com essa intenção no fundo da mente, numa altura em que já não lhe agradava a ideia de legar a herdade a estranhos? Decerto que haveria alguém capaz de se satisfazer com o pouco que ele tinha para dar, ou alguém que fosse capaz de acrescentar algo ao que ele tinha. Mas mal lhe bastava fazer uma escolha mental para logo uma cautela imediata o puxar para trás. Esta falta de determinação da sua parte depressa se tornou do conhecimento público, e em breve Kremer passou a ser tratado em consonância com ela. Algumas mulheres referiam‑se‑lhe como «só Ulrich», para outras ele não passava de uma figura cómica, para muitas não existia sequer. É claro que este estado de coisas não lhe passou despercebido durante muito tempo, pelo que rapidamente se recolheu em si mesmo, fechou‑se numa concha. E agora, revivia o passado nestas noites quentes de Verão, tentando aproveitar ao máximo as escassas recordações da juventude, quando participara em alguns festins ébrios na cidade em Março ou Setembro, e se entregara a folias com alguns jovens da sua idade ‑ coisa que mais tarde sempre lamentara sinceramente.

Seria esta uma característica inata, este medo de se prender ao matrimónio? Quem sabe? Revisitando o passado, Kremer lembrava‑se apenas vagamente da pequena Friede, por entre a névoa do tempo. Ainda hoje ele acreditava que poderia ter trazido a pequena costureira da mãe para dentro do círculo familiar, com toda a legalidade, claro, se ao menos as condições tivessem sido minimamente favoráveis! Se ao menos aquelas palavras fatais não tivessem transposto aqueles lábios determinados: «Sim, Ulrich, porque não? E começa já a aprender o ofício de sapateiro antes que seja tarde, já que é o que se ajusta melhor aos teus interesses e às tuas inclinações.» E não tinha a própria Friede desabafado numa carta: «Sim, Ulrich, mas sabes que recebo muito pouco pelo meu trabalho...» Ele tinha, portanto, sido obrigado a quebrar todos os laços com ela, nem sequer foi capaz de manter um romance clandestino, pois a própria costureira achou por bem tornar‑se esposa de um sapateiro que já tinha aprendido o ofício.

Seria isto uma prova da hipótese psicológica mantida pela falecida viúva von Kremer, nascida Condessa Lútzen, a teoria de que o filho se sentia mais à vontade entre os membros das classes inferiores do que entre a aristocracia ‑ pelo menos no que toca a assuntos amorosos? Ulrich via‑se obrigado a reconhecer um grão de verdade na conjectura da mãe, mas o mundo ordinário mas robusto da gente comum, com o qual ele contactava dia após dia, parecia de certo modo servir‑lhe melhor. Talvez o estimulasse por causa da naturalidade saudável que o caracterizava. Mas o seu caso seria uma excepção assim tão rara? Haveria assim tantos senhores feudais nos tempos antigos que não se haviam aproveitado do privilégio senhorial relativo às noivas virgens de baixa estirpe? Evidentemente que teria havido razões para lhes conceder esse direito. Aliás, mesmo o vizinho mais próximo da família em Sárgvere, o bom velho Radeck de Suurpalu, quando ia à cidade, acontecia muitas vezes uma dona de casa gorducha de uma das quintas da herdade correr em sua direcção, fazer parar a carroça e dizer: «Sê bom rapaz e traz‑me um quilo e meio de lã preta da loja do Karu». E quanto ao irmão Heinrich ‑ bem, aí as pessoas zombavam ‑ mas esse assunto desagradável não tinha nada a ver com Ulrich.

Seja como for, a carroça funerária preta lá se aproximava, cada vez mais perto, e já era hora de ele corrigir, pelo menos até certo ponto, o mal que infligira a si próprio durante todos estes anos. E noite após noite, Ulrich debatia‑se com estas questões, às voltas inquietas na cama. De vez em quando, puxava de um pedaço de pão e punha‑o na boca, e guardava também uma caixinha com rebuçados de fruta amargos na mesinha de cabeceira. Sempre que a almofada debaixo da cabeça ficava demasiado quente, o que acontecia de dez em dez minutos, ele voltava‑a ao contrário. E, elevando os pés, agitava o cobertor para cima e para baixo, tentando criar uma corrente de ar que o arrefecesse.

Através do tecto, ouvia o chiar dos ratos e o roer das ratazanas. Que vida gozavam eles lá em cima, no chão macio e arenoso de oito divisões vazias, onde as janelas estavam fechadas a prego e onde reinava sempre um crepúsculo majestoso ‑ até de dia! Uma vida sem obstáculos que partilhavam com as galinhas do capataz que se alojavam lá à noite, em poleiros improvisados. E enquanto Ulrich mordiscava o pão, chupava os rebuçados de fruta e virava a almofada ao contrário, sempre planeando um ponto de viragem importante na sua vida, o galo anunciava‑lhe lá de cima, de duas em duas horas, e o cuco na sala ao lado lembrava‑o todas as meias horas, que a distância entre ele e a carroça negra encolhera mais uma vez. O cuco escondia‑se no relógio suíço da senhora Reemet e Ulrich ouvia‑lhe distintamente a voz, porque o corredor em chão de pedra que dividia a casa em comprimento e separava os aposentos do amo dos quartos dos criados, onde vivia o capataz e a governanta, tinha excelentes qualidades acústicas, tão boas, aliás, que os gritos nocturnos da criada Vilhelmine se ouviam do outro lado da casa ‑ a pobre criatura sofria de pesadelos impressionantes nas noites quentes de Verão.

Ulrich só adormecia depois de o galo cantar três vezes, quando o dia já beijava as faces pálidas da aurora e as fazia corar, quando os primeiros raios de sol expulsavam já as traças e borboletas que viviam dentro da velha mobília da sala de estar.

Os pensamentos de Herr von Kremer andavam tão absorvidos por esta grande crise na sua vida que ele perdia a conta aos dias da semana, de tal modo que até se esqueceu de ir para Sárgvere certo sábado porque pensou ser ainda sexta‑feira. Como de costume nesse dia, aproveitando a ausência do amo, tinha sido planeada uma limpeza meticulosa a todo o solar. E foi assim que a mulher da limpeza se apresentou lá em casa antes de Vilhelmine ter sequer recebido ordem para arrear os cavalos.

‑ Não, não ‑ mentiu Kremer à criada. ‑ Não estava a pensar ir a Sárgvere hoje. Vou para a cidade no comboio da noite. Mas deixa a Mari continuar com as limpezas, não me incomoda nada. Posso sair para um passeio enquanto ela acaba de lavar a última sala, se o chão da primeira ainda não estiver seco nessa altura.

Assim, a jovem mulher de Prillup começou a limpeza no quarto, enquanto que no escritório, o velho senhor punha os óculos e concentrava toda a sua atenção nas colunas de números no livro de registo das contas de deve e haver.

Entre os dois havia duas amplas divisões, por isso não havia hipótese de se incomodarem um ao outro.

E de facto, Herr von Kremer trabalhou imperturbável durante algum tempo; mas depois, repentinamente, levantou‑se, tirou os óculos e foi até Mari com ar determinado.

Mari estava de joelhos, movimentando o pano molhado para a frente e para trás ritmicamente, com um mesmo princípio: Pressas para quê? Pressas para quê? Vivemos do tempo de Deus e do pão do barão.

Desta vez não assobiava, ocupava‑se a roer um fiapo de cordel cuja ponta oscilava no ar, pendurada abaixo do queixo. A porta aberta da sala estava no campo de visão dela, e ela deve ter visto o barão a entrar, mas não levantou a cabeça nem abriu a boca para lhe dar uma saudação, não fosse o pedaço de cordel cair. Não usava lenço na cabeça naquele dia, a cabeça, braços, pescoço e garganta estavam nus, os seios meio revelados. Gotas de transpiração brilhavam sobre a pele bronzeada e as coxas mostravam os seus contornos firmes por debaixo da saia apertada.

Ao aproximar‑se de Mari, o senhor esqueceu de repente as palavras que tencionava dizer‑lhe. Levada por um impulso, a mão dele precipitou‑se repentina para a frente e afagou a garganta da rapariga num gesto bem disposto. Ocorreu‑lhe então que os dedos tinham tocado ao de leve naquelas desejadas rugas no pescoço dela, enquanto que o polegar tinha sentido a quente suavidade da curva debaixo do queixo da rapariga. Imediatamente, um odor estranhamente fresco, maravilhosamente jovial e inebriante a suor subiu‑lhe à cabeça. Mas nada disto o afectou tanto quanto, puxando a mão para trás e permanecendo ali parado, acanhado, ele a viu reagir ao atrevimento: com um gesto rápido da cabeça, ela olhou‑o, lançou‑lhe um sorriso rápido e deixou escapar um pequeno e brincalhão «Au!» E enquanto o sangue lhe afluía num ímpeto à cabeça, lhe bramia nos ouvidos, lhe toldava a vista, o problema resolveu‑se milagrosamente por si só: Kremer percebeu de repente o que era aquilo que tanto desejava, aquilo que tinha vindo a investigar; mas agora, ao aceitá‑lo, os joelhos enfraqueciam com o medo e o coração dava‑lhe sinal para que fugisse.

E ele assim fez, contornando a mulher da limpeza, dando passos desajeitados no chão molhado e escorregadio, voltando atrás pelo mesmo caminho sem que qualquer um deles tivesse dito uma palavra. As abas do casaco iam abanando num movimento estranho, como se escondessem um troféu que ele estava desejoso de guardar num local seguro.

Depois deste episódio, deixou‑se ficar sentado durante um quarto de hora na sala de jantar, em silêncio absoluto, com as mãos pousadas sobre os joelhos, tomado de uma alegria tímida e secreta que se escondia entre as rugas em volta dos olhos e dos cantos da boca, enquanto uma doce languidez lhe tomava conta dos braços e das pernas. Finalmente, um pensamento começou a insinuar‑se, recorrente, na sua mente abstraída: para a próxima, um pouco mais. Para a próxima, um pouco melhor! Passou outro quarto de hora antes que ele se lembrasse da caixa de rebuçados de fruta na sua mesa de cabeceira. Ora, ele poderia muito bem ter tirado um e tê‑lo segurado ao pé da boca dela, como se faria a um cachorrinho. Ela teria rido e tê‑lo‑ia apanhado com os lábios! Lamentou não se ter lembrado disso mais cedo.

Mas bem, os rebuçados lá estavam, e a Mari ainda estava em casa...

Mas não, agora não. É melhor para a próxima. Agora, ele não queria mudar nada, não queria estragar a doçura daquele momento.

Por isso, parou de sonhar e voltou à realidade. Começou a examinar ternamente a palma e o polegar da sua mão direita. Que prazer ficar ali a contemplar a palma da mão, cuja pele ainda tem aquela quente sensação de formigueiro, como se tivesse sido acariciada por suaves plumas! E de repente, sentiu o impetuoso odor do suor novamente nas narinas. Fechando os olhos, recostou a cabeça contra as costas da cadeira. Parecia sentir gotas de pura felicidade pingando das pontas do longo bigode.

E depois, subitamente, sentiu‑se obcecado pela necessidade de se exercitar. Sentiu que tinha de levar o seu troféu para bem longe, onde o pudesse admirar num ambiente novo. Vilhelmine apareceu em resposta ao sino impaciente que ele agitou, limpando as mãos ao canto do avental.

‑ Manda arrear os cavalos!

‑ Já? O senhor tencionava ir para a estação à noite.

‑ Não. Vou para Sârgvere imediatamente.

Mas por qualquer razão «Sârgvere» tinha uma ressonância maléfica aos ouvidos de Ulrich naquele dia, como o estalar de vidro estilhaçado. Ao mesmo tempo, ele pensou nas Três Pinguins, nome que as suas três irmãs tinham recebido do irmão Heinrich, e com esse pensamento, um vulto de aversão, de medo até, veio ensombrar‑lhe o rosto. Vilhelmine ainda estava à porta da sala quando ele mudou novamente de ideias e anunciou que afinal sempre ia para a cidade. E porquê ir de comboio? Os cavalos levavam‑no lá. Ficava a pouco mais de trinta verstas. E na carruagem, viajaria sozinho, completamente só consigo próprio, livre para pensar e planear enquanto seguia caminho confortavelmente.

Mas o seu melhor fato estava no armário e o armário estava no quarto... Evidentemente, ela sairia do quarto. Mas não, hoje não. Hoje é melhor não a ver mais.

Por isso, Vilhelmine recebeu ordem para trazer o fato para o escritório, onde ele se vestiu, ainda que, por essa altura, o quarto de vestir já estivesse limpo e com o chão seco.

Quando o proprietário da herdade de Mãekúla saiu, com seu casaco comprido e chapéu preto de feltro e, assistido pela criada Vilhelmine, entrou para a carruagem, cuja capota foi solenemente presa por ela, como se conferisse uma grande honra a si própria, ele reparou numa figura de pé à janela da sala, com o nariz esborrachado contra a vidraça. Apesar de ter lançado apenas um olhar fugidio, conseguiu reparar que os lábios juntos dela estavam a chupar qualquer coisa.

Belo! Ela encontrara sozinha a caixa de rebuçados, pensou ele com gosto. Para ele, isso era importante, unia‑os ainda mais, era algo confidencial e íntimo. Mais, Ulrich sentiu‑se até como se tivesse sido ele próprio a depositar o primeiro doce na boca risonha dela, foi ele que a deixou comer o rebuçado, como se deixaria um cão fiel comer um torrão de açúcar.

Quando a carruagem passou por perto das janelas, contornando a esquina da casa, o único passageiro do veículo fitou feliz as costas do cocheiro Peeter, como se uma qualquer figura cómica estivesse projectada no seu velho casaco puído com grandes pregas à cintura. Tão absorto ia o barão que não reparou nas sujas crianças do feitor, que lhe abriram o portão, depois de algum tempo à espera que a carruagem chegasse. E também não respondeu aos cumprimentos das pessoas que tinham ido ao ferreiro pôr ferraduras nos cavalos. O cocheiro já tinha conduzido a carruagem por mais de uma versta no caminho para Sãrgvere quando o barão reparou que algo não estava bem.

‑ Pára, Peeter! Vou para a cidade!

Peeter deixou os cavalos seguirem a trote por um momento antes de puxar as rédeas e gritar «Ôô!» E outro momento passou antes que ele voltasse o rosto jovial, barbeado e estreito, e o longo pescoço na direcção do amo.

‑ Ah... para a cidade, então?

‑ Sim, para a cidade. Vou para a cidade.

‑ Não para a estação do comboio?

‑ Não, segue directamente para a cidade. Não vou de comboio.

‑ Então... não vai de comboio? ‑ E a boca aberta de Peeter abriu‑se ainda mais enquanto a cabeça pequena, enterrada num chapéu que lhe ficava grande, se voltou novamente para a frente. O cocheiro contemplou então, demorada e carinhosamente, os dorsos dos cavalos ‑ eram uma boa parelha de cavalos de lavoura, mas em boa verdade, nada bons para a carruagem ‑ e disse por fim, de forma algo abrupta:

‑ Mas não trouxemos aveia connosco.

‑ Podes comprar aveia pelo caminho. Ou quando chegarmos à cidade.

Só então Peeter começou a virar a direcção dos cavalos, mas logo hesitou novamente.

- Não trouxe pão comigo, nem dinheiro.

- Eu dou‑te dinheiro, não te preocupes.

‑ A mim? Dinheiro?

‑ Sim, claro. Nem sequer precisas de passar a noite na cidade. Depois de dar algum descanso aos cavalos podes voltar logo para casa.

Por esta altura, já tinham chegado à estrada onde iniciaram o caminho até à cidade.

 

Herr von Kremer passou um domingo agradável em Tallinn: passeou no Parque Kadriorg, ouviu música na Kursaal, jantou no Hotel du Nord ‑ e sempre sozinho, porque o irmão Heinrich tinha ido a Sárgvere e ele não estava com disposição para aceitar a companhia de estranhos. Ambas as noites foram passadas no sossegado apartamento da família na Rua Lai, que era partilhado com os outros de Sárgvere. Apesar do sossego, ele não foi capaz de engendrar nenhum plano definitivo, como fora sua intenção ao sair de casa. O problema é que ele não conseguia chegar a uma decisão, por muito que tentasse, já que de cada vez que conseguia ordenar mais ou menos os pensamentos, eles de imediato se dispersavam, como moscas presas no nosso punho fechado se evadem se houver uma nesga entre os dedos.

Por fim, resolveu regressar a casa e continuar lá as suas buscas. Assim, na segunda‑feira de manhã já estava de volta a Màekúla, onde voltou a passar as noites sentado à janela, como antes. O rouxinol já abandonara as árvores ao pé da horta, mas em seu lugar havia agora um cuco que estimulava os pensamentos do barão com seus monólogos interessantes, de tal modo que o senhor começou a ver o pássaro como um pequeno e amável chefe de serviço.

Na verdade, Herr von Kremer sabia agora exactamente o que pretendia fazer e estava certo de que alcançaria o seu objectivo.

Em circunstância alguma voltaria atrás ‑ disso tinha ele a certeza absoluta.

Para começar, ele teria provavelmente de encontrar um modo de agradar à rapariga. Mas quem são eles para se darem ares de selectivos, estes filhos e filhas da terra? Especialmente os lavradores que vivem nas cabanas, ali à borda do pântano, que pedem lenços e sapatos emprestados uns aos outros quando vão à missa ao domingo. Não, nesse aspecto não tinha com o que se preocupar. Ainda assim havia algo que lhe toldava os planos e lhe ensombrava o objectivo. Por entre a ténue luz da aurora aparecia, aqui e ali, um dedo erguido num gesto de aviso, que parecia até ameaçador, por vezes.

De início, Kremer julgou que aquelas dúvidas e hesitações provinham das lições dos Dez Mandamentos, e dedicou‑se a analisar os seus motivos. Contudo, a consciência em breve se apaziguou em relação a esse ponto. Nitimur in vetitum(1) era praticamente a única frase latina que recordava desde os tempos da escola. Não é humano desejar o fruto proibido? Se aqueles velhos sábios da Bíblia, que ele lia todas as noites e sabia praticamente de cor, se mesmo esses senhores veneráveis, de entre os poucos escolhidos pelo próprio Deus, eram apenas humanos e vacilavam por vezes ‑ então, que se poderia esperar dos fracos, dos insignificantes como Ulrich von Kremer, de Máekúla ‑ que se pode esperar de um verme? Afinal de contas, qual é a utilidade da religião, para que serve a penitência? Ninguém fraqueja de propósito, ou peca por pura maldade! Se alguém se desse ao trabalho de olhar para a vida de Ulrich von Kremer no passado e de examinar cuidadosamente a longa história das suas provações, certamente acreditaria na verdade destes pensamentos. Mais, reconheceria certamente que Ulrich von Kremer não é nenhum fraco, que ele se esforçou e lutou sempre como um homem.

 

*1. Almejamos o proibido. (Ljztim)

 

Mas há limites para tudo neste mundo ‑ chega sempre um dia em que sentimos ter chegado ao fim das nossas forças. Um ser humano tem de ser humilde, sim, mas não pode nunca largar da mão a sua âncora.

Não. O aviso alarmante que sentia não apontava nessa direcção. Bastava ler um ou dois excertos do Grande Livro, ponderar novamente na moral que ensinavam, e Kremer concluía que estas parábolas confirmavam sempre o seu ponto de vista. Como poderia ser de outra forma? Ele chegou até a reparar que certos versos que anteriormente interpretara de forma ligeiramente diferente pareciam agora apoiar as novas opiniões, bastava estudá‑los mais de perto.

Mas então, de onde vinha aquele desconfortável aviso?

O cuco começou a chamar e, pouco a pouco, Ulrich chegou à solução.

Der Afistand! Der hohere Anstand!(1) Porque tu és Ulrich von Kremer. Não podes simplesmente seduzir a mulher de um pobre lavrador às escondidas do marido. Isso seria indigno da tua linhagem. Há quem o faça, claro, mas não homens como tu. Como pudeste esquecer‑te disso! Ora, se até o Radeck, de Suurpalu, que não se pode gabar de possuir a mais alta moralidade ‑ até ele prefere, no fim de contas, que a mulher fale a verdade. Não, Ulrich, tens de comportar‑te como um homem honrado. Mesmo perante um pobre lavrador. E tens de agir como um cavalheiro antes, e não depois, como fez o Radeck. Bem, não há outra solução: tens simplesmente de entrar em acordo com Tõnu ‑ jawohlf.(2)

Ao cabo de uma longa busca, chegara finalmente à verdade, e foi um enorme peso que se lhe levantou dos ombros.

E deste modo, terá um ponto de vantagem sobre Radeck.

Sim, assim será melhor ‑ melhor em todos os aspectos e para todos os envolvidos. Ela é uma jovem vivaça e de língua afiada.

 

*1. O decoro!, a mais alta dignidade! (Alemão)

  1. É isso mesmo! (Alemão)

 

E quem sabe o que poderá acontecer? Alguma ninharia pode vir ao de cima, algo inesperado pode acontecer ‑ os segredos nunca são absolutamente seguros, há sempre qualquer coisa só à espera de vir a descoberto. E depois há aquele marido... É difícil dizer que espécie de homem ele será. A julgar pelas aparências, parece ser manso e sensato mas, e se se irritar; e se a raiva lhe inflamar o peito? Sabe‑se lá o que poderia fazer, talvez nem ele o saiba! E mais, ainda podem voar pedras para dentro de casa, quebrando os vidros... Aliás, já é uma sorte se ele não atirar chumbo ou pegar fogo à casa! Nunca se pode ter a certeza com estes campónios... Nunca se pode confiar completamente, a laia deles tem sempre um ressentimento qualquer contra a nossa classe. Mas se o acordo for feito numa base legal segura e tudo estiver correcto aos olhos da lei... Então não haverá razão para ressentimentos de qualquer das partes, e o pequeno revólver prateado pode continuar descarregado na gaveta da mesinha de cabeceira.

Escusado será dizer, claro, que a outra parte também precisará de ser compensada. Também o marido terá de sentir que lucra com o acordo ‑ tanto quanto ela. Se todos os interesses de ambos os lados forem levados em conta, então tudo será justo e claro e a paz estará garantida.

Mas por enquanto, Kremer ainda não fazia ideia de como satisfazer esse interessado no acordo. Foi pensando calmamente no assunto, pesando cuidadosamente todos os aspectos. E aqui, novamente, o Bem veio sempre a derrotar o Mal no seu coração.

Não esquecendo que ele, o pagador, não era um homem rico, Kremer considerou qual deveria ser a oferta mais baixa. Bem, talvez os deixasse ficar com a casota e o talhão de terreno sem lhes cobrar renda, como fizera Radeck, segundo os boatos. Mas no caso de Radeck tratava‑se da quinta do feitor, enquanto que aquele era um mísero talhão de lavrador. Ou será que lhes poderia ceder uma quinta de boas dimensões na aldeia de Maekula? Mas quintas dessa extensão só havia três, e os arrendamentos de qualquer uma delas só venceriam daí a vários anos. Talvez lhe pudesse dar um emprego no solar? Pô‑lo no lugar de Peeter como cocheiro e tratador de cavalos? Com um salário mais alto, claro. Mas não havia no solar alojamento para um homem casado. Os dois quartos na ala dos criados já estavam ocupados ‑ já lá havia vários casais, pessoas solteiras, até, crianças... Até na área de serviço da lavagem de roupa já lá vivia um rapaz com a mãe viúva.

‑ É pena eu não ter uma taberna. Que pena! Aí não haveria com que me preocupar. Ele podia pagar‑me a renda normal e ainda assim enriquecer em três tempos.

Mas isso estava fora de questão. A taberna da paróquia vizinha estava mesmo à saída de Maekula e a taberna da igreja ficava a dois passos.

Ou será que poderia resolver a questão em dinheiro? Decerto que dinheiro vivo seria a forma mais simples, e talvez a melhor. Porque não?

Mas não! Essa ideia foi rejeitada de imediato. Seria como comprar uma mercadoria, do mesmo modo que alguns homens pagam por uma rapariga de rua na cidade, ou numa casa de má fama. Não, nunca seria capaz de fazer isso, não conseguiria oferecer dinheiro a nenhum deles. Tem de haver outras maneiras! Mas no fim de contas, Ulrich, não sejas excêntrico, não regateies tanto! Não és rico, mas também não és pobre nem mesquinho. Dá‑lhes qualquer coisa que os faça felizes ‑ felizes e gratos.

E o que poderia ser esse presente?, pensava ele. Bem, mm! Porque não pôr as quintas à venda no Outono? Fosse como fosse, ele já tinha planeado fazer isso daí a uns anos, a pedido dos inquilinos (estavam todos com dificuldades). Bem, poderia antecipar a decisão e fazer isso já ‑ estava no seu direito. E uma das quintas poderia ser dada de presente aos recém‑casados, talvez uma das mais pequenas. Assim como assim, metade dos inquilinos antigos não teria dinheiro para comprar a quinta onde viviam.

Este plano agradou ao velho senhor, pelo que o conservou na cabeça durante algum tempo, até que novas dúvidas o começaram a assombrar. E se o acordo viesse a ser cancelado? E se depois de um ano ou dois, por uma razão ou por outra, ele decidisse pôr um fim àquilo? Era uma possibilidade ‑ tanto da parte deles como da sua. Eram apenas humanos, qualquer dos três. Foi então que uma ideia lhe ocorreu que fez com que os olhos se lhe esbugalhassem e o levou a dar uma alegre palmada no joelho. Levantou‑se de um salto.

Uma excelente ideia! Sim, é a única maneira! E assim todo o acordo terá uma base sólida.

De imediato imaginou a porta do quarto abrindo‑se para deixar entrar aquela criança grande, a rapariga sorridente, que caminharia com familiaridade, como se estivesse a regressar a casa. Assim seria claro e justo. E ainda para mais, seria um gesto nobre. Uma fonte de rendimento tão importante não podia ser confiada a qualquer um, ainda para mais sem exigir um tostão de garantia (aquele homem não tinha um tostão para oferecer). Kremer terá de tentar a sorte e arriscar. É claro que toda essa conversa requer muito mais talento e diplomacia do que se possa pensar à primeira vista, e Tõnu era um simplório... Mas seja como for, Kremer arriscará.

E quanto à parte deles no negócio? Acho que, em qualquer dos casos, hão‑de ficar satisfeitos (e aqui, Herr von Kremer deixou escapar uma risadinha, enquanto deitava olhares rápidos para a esquerda e para a direita). Hão‑de ficar satisfeitos, sim, basta olhar para o Yaan Kuru. E também tinham razões para ficar agradecidos. Ah sim, sem dúvida!

Enterrando as mãos nos bolsos e erguendo os ombros, o barão começou a caminhar em passos largos de um canto ao outro do quarto, com a animação de um homem que encontrou a verdade.

A excitação era tanta que o movimento dos seus passos levantou uma pequena brisa que lhe despenteou os poucos cabelos soltos que tinha na cabeça calva. Claro que não há bela sem senão, isso é óbvio! E neste caso o senão até pode vir a ser pesado. A garantia paga por Yaan, por exemplo, terá de ser devolvida, e também os pagamentos adiantados que o leiteiro lhe fizera. Estes poderiam ser reembolsados aos poucos, e se a colheita fosse boa, por alturas do dia de São Jorge já seria possível ter a dívida toda paga. Mas a garantia... Essa transação ia precisar do cuidado de um perito.

Ah, mas seja como for...! Havemos de suportar mais esse sacrifício!

Parando em frente ao espelho, fitou com ar ousado o outro Kremer bem nos olhos. Sentia agora que tinha finalmente chegado a um entendimento. E parado, ali de pé, o barão levou até ao fim a sua linha de raciocínio...

Bem, o Yaan irá embora, e então ficarei com a casa e a quinta dos Kuru à disposição. Vou incluí‑las no acordo. É um bolo muito cobiçado, há muito mais quem o queira. E se eu acrescentar umas cabeças de gado da minha manada... aí sim, finalmente: Der vorhang kann aufgehenf.(1)

Pegou então no chapéu e no cajado e saiu para um passeio.

Mas o pano não subiu e Tõnu não apareceu em cena, simplesmente porque não foi convocado. Kremer ia adiando esse passo, dia após dia, e sem razão aparente. Parecia‑lhe apenas que o dia de amanhã seria mais propício, e que o outro a seguir seria ainda melhor.

Certa manhã, deu com Tõnu no pinhal e chamou‑o. Mas quando o homem chegou ao pé de si, o barão não tinha nada a dizer.

‑ Não faças caso. Esqueci‑me.

 

*1. Pode subir o pano! (Alemão)

 

Tõnu supôs que o senhor estivesse a pensar na dívida.

‑ Há a questão do que devo desde a Primavera. Vou pagá‑la trabalhando mais dias no Verão.

‑ Não, não era isso. Era outra coisa qualquer ‑ disse Kremer, voltando‑se para se ir embora. ‑ Passa pelo escritório uma noite destas que eu depois digo‑te.

Na noite do dia seguinte, Tõnu apareceu no escritório de Herr Kremer, mas tinha evidentemente comparecido cedo demais, porque o senhor da herdade precisou de muito tempo para decidir o que dizer, e mesmo então limitou‑se a perguntar:

‑ Bem, já falaste com o Reemet sobre o feno e onde podes amontoá‑lo?

‑ Sim, senhor.

‑ Onde é que ele te disse para fazeres os fardos?

‑ Ao pé do charco, naturalmente.

O velho senhor olhou pela janela e murmurou algo parecido com «Este ano poderás fazê‑lo em terras mais elevadas», mas Tõnu não seria capaz de jurar ‑ talvez tivesse ouvido mal. Passado um momento, o outro disse:

‑ Escuta, Tõnu, no Outono podias‑me arrancar estes arbustos todos de uva‑espim à volta dos terrenos do solar. O meu irmão em Sàrgvere leu num livro que eles fazem mal às colheitas de cereais. Parece que ajudam o cereal a oxidar.

‑ Mas no Outono vêm os jardineiros que pagam pelas bagas de uva‑espim.

‑ Ah, esses miseráveis! Os estupores não me pagam quase nada por elas. Os estragos são dez vezes maiores. Podes começar a desbastar depois de as bagas terem sido apanhadas. A lenha fica para ti.

E foi tudo. O Outono ainda vinha longe. Tõnu não percebeu porque teria o velho tanta pressa em se preocupar com os arbustos naquela altura do ano.

Os dias que se seguiram, Ulrich passou‑os alheado e apático, sentindo‑se estranhamente irritado consigo próprio. Não conseguia perceber o que se passava consigo. Estava tudo resolvido, e contudo havia algo que não estava bem. Não que lhe faltasse coragem, mas sentia‑se algo incomodado. Não havia agora qualquer aviso no ar, nem sombra de ameaça, mas ainda assim ele limitava‑se a matar o tempo. O que seria? Que outra coisa poderia estar a incomodá‑lo?

Estaria com vergonha de si próprio perante aqueles dois, ou perante as pessoas em geral?

Não, respondeu de imediato com um esgar quase desdenhoso. Aqueles dois, e todos os outros que por ali viviam que pensem o que quiserem. A opinião deles não lhe fazia diferença. Sempre vivera de acordo com os seus próprios valores e sempre fizera o que achara melhor. Mais depressa se envergonharia perante cavalos ou corvos! Mas há pelo menos três seres humanos que não podem saber absolutamente nada a este respeito ‑ aquelas três em Sàrgvere, as Três Pinguins. Mas Kremer acreditava que não seria difícil esconder‑lhes esse segredo.

Ainda assim, Herr von Kremer deixava‑se ficar todas as manhãs à janela, meditando, isto apesar de já tudo estar resolvido. Não estava a fazer quaisquer progressos, porque até o cuco que se empoleirava do outro lado da horta já se tinha ido embora. Talvez tivesse ido substituir o rouxinol nalguma outra paragem, para incitar qualquer outro fraco hesitante com seus gritos.

Mas saído o cuco, sempre houve um sucessor.

Só que este não cantava, ria.

A gargalhada rouca atroava os ares vinda do charco, como se tivesse sido ali avistado o maior tolo de todos os tempos.

De início Herr von Kremer tomou a criatura por uma ave, uma ave que balia como uma cabra, mas passado algum tempo, convenceu‑se de que se tratava de um humano, ou de um espírito em forma humana. Quase julgava ver‑lhe o cabelo despenteado, a barba pontiaguda, o nariz achatado e os olhos de palhaço. E quando olhava mesmo com atenção, pensava avistar as pontas de um par de chifres e entrever um casco de cabra.

Mas então o punho de Kremer desferrou um murro no parapeito da janela e o homem põe‑se de pé num salto, os bigodes estremecendo com determinação, pronto para agir! Não admitiria troça de ninguém!

Só que não podendo entrar em acção imediatamente, começou a caminhar inquieto pelos quatro quartos, como que tentando ganhar ímpeto, e os seus passos no chão ecoavam um som metálico.

O que é aquilo? Alguém mexendo na maçaneta? Foi até à porta e abriu‑a. Mari estava sentada à entrada do escritório com um cesto no braço.

‑ Trouxe ovos para o solar mas não há vivalma na cozinha e a porta das traseiras está trancada.

Ela fitou‑o directamente, concentrando‑se na sua boca aberta de espanto. Como não obteve resposta, continuou:

‑ Talvez o senhor Kremer possa levá‑los. Eu não posso esperar muito, tenho de passar pela loja ao pé da igreja antes de ir para casa.

Ele fez‑lhe sinal que entrasse, mas quando ela transpôs a ombreira da porta, ele permaneceu calado.

Aliás, Kremer estava como que estupefacto. Era a primeira vez que via Mari com roupa de domingo, e o rosto dela estava tão limpo... tão maravilhosamente limpo! Os olhos dela brilhavam tão claros naquele rosto limpo que era possível contar os lampejos azuis em redor da pupila negra. Até a tez queimada do sol parecia ter sido apagada da pele pela lavagem, tanto que o pescoço e a delicada suavidade da pele debaixo do queixo estavam apenas ligeiramente mais brancos do que o rosto. E havia algo de excitante nas cores vivas no lenço e nas roupas que trazia, cujos tons se misturaram todos perante a vista turva e emocionada de Kremer.

Só reparou com precisão no pequeno barrete vermelho cor de vinho, que brilhava como um carvão em brasa sobre uma camada de cinzas amareladas.

Ficou sem saber o que fazer, por isso tirou o cesto das mãos de Mari e deixou‑se ficar ali parado, segurando‑o na ponta do braço esticado, como que pesando‑o.

‑ Gostava de levar o cesto de volta ‑ disse Mari com o seu sorriso rápido, que surgiu luminoso no rosto calmo e sério e logo desapareceu novamente.

‑ De volta... sim... Pois bem, vamos pô‑los aqui mesmo.

Passou então o cesto da mão direita para a esquerda e começou a tirar de lá os ovos, dois de cada vez, e a depositá‑los em fila sobre a escrivaninha. Com a pressa, deixou cair um. Ambos seguiram‑no com os olhos: a gema brilhante espalhou‑se lentamente no chão, perto da biqueira da bota dele.

Kremer riu‑se com o incidente, as maçãs do rosto levemente rosadas, mas estranhamente, Mari permaneceu séria.

‑ Por favor, deixe‑me ser eu... ‑ disse ela em tom sereno, tomando o cesto nas suas mãos e depositando com destreza os ovos no pano verde que cobria a escrivaninha. ‑ Trinta. Contando com aquele. ‑ Apontou para o chão.

Os modos calmos e sérios da rapariga deram‑lhe coragem, pelo que, despertando uma ponta de humor, o barão olhou para baixo e perguntou:

‑ E o que havemos nós de fazer àquele?

‑ Eu podia limpar o chão, se... ‑ Ela olhou em volta.

‑ Não, não! Não era isso que eu queria dizer. A Vilhelmine pode fazer isso.

‑ Há‑de desmaiar assim que vir isto.

‑ Não te rales! Eu depois reanimo‑a.

Provavelmente, Mari imaginou Vilhelmine sendo reanimada, e era demais para o seu sentido de humor: um sorriso radioso iluminou todos os traços do rosto lavado, os olhos faiscaram e os dentes espaçados e brancos revelaram‑se por detrás dos lábios, enquanto o peito se elevou e relaxou novamente, acompanhando a respiração dela, transbordante de vitalidade.

O efeito de tudo isto em Ulrich foi tal que ele perdeu praticamente o controlo. Num estado mental nebuloso, lembra‑se de ter insistido com Mari para que aceitasse algum dinheiro, bem mais do que os ovos valiam. Como Mari não tinha troco, rogou‑lhe que aceitasse toda a quantia, gaguejando que ela voltaria ao solar para lhes trazer mais ovos noutra altura. Recordava com mais clareza o momento em que lhe pegou no braço quando lhe ia abrir a porta, e quase não reconheceu a sua própria voz quando disse:

‑ Diz ao Tõnu para vir aqui ao escritório amanhã. Não! Diz‑lhe que venha já hoje.

 

Ao sair do escritório de Kremer, Prillup conseguiu manter um ar composto enquanto o solar ainda estava à vista. Com os olhos postos no chão e os ombros encolhidos, ia caminhando subservientemente, com passos cuidadosos. Mas assim que percorreu uma distância de cerca de duzentos passos, olhou para trás e soltou uma gargalhada. Alguns passos mais à frente voltou a olhar para trás e desta vez riu bem alto. Contornando o mato de nogueiras, depressa atingiu o cimo da colina, onde começavam os terrenos da aldeia de Kruusimáe, e aqui, repetiu o gesto pela terceira vez. Depois, ergueu‑se alto no cimo da colina e fitou longamente o solar, com olhar atento, observando os raios do sol poente envolvendo a casa lá em baixo. Num repente, revelando os dentes num esgar e contorcendo o rosto, explodiu novamente com um riso incontrolável. Quase engasgando‑se em gargalhadas, agarrado compulsivamente ao estômago, foi murmurando entre risos:

‑ Ah, que piada!... É a piada do ano!... Tenho que contar esta a toda a gente!

Só depois de recuperar completamente daquele violento ataque de riso é que Prillup continuou o caminho para casa. Piscando muito os olhos marejados de lágrimas de riso, ia olhando em volta na esperança de encontrar alguém que lhe servisse de primeiro ouvinte para aquela história ridícula.

Mas não havia ninguém em redor, o caminho estava deserto. Por entre a barba em desalinho, que lhe cobria o rosto inteiro até às maçãs do rosto, ainda se escondia um sorriso furtivo, réstia do incontrolável ataque de riso, quando, de repente, uma ideia nova lhe ocorreu, fazendo desaparecer momentaneamente toda a vontade de rir.

‑ Talvez estivesse a troçar de mim... Talvez quisesse fazer de mim parvo... Jovem demais para o velhaco?... Que será que ela teria a dizer?... E quando ela ouvir esta!

De cabeça inclinada, Prillup olhou fixamente para os pés e recordou mais uma vez todos os detalhes do que acabara de ver e ouvir. Mas era evidente que tinha agora chegado a uma nova decisão, uma decisão que expulsou o pensamento que lhe havia atravessado a mente. Novamente, um sorriso divertido aflorou‑lhe os lábios e iluminou‑lhe o rosto peludo. Num impulso, mergulhou as pontas dos dedos na barba e levou um tufo molhado de pêlos ao nariz, inspirando ruidosamente o ar.

‑ Mmm! Muito bom, o raio do vinho! Doce como sumo, mas que bem que mexe e remexe cá dentro!

Prillup bebera dois copos de Porto no escritório do amo e esquecera‑se de limpar a boca.

Sorrindo de orelha a orelha, caminhou novamente em direcção ao portão de casa, com o polegar da mão direita pressionando o estômago com força no ponto em que o vinho do barão continuava a revolver‑se em alegres ondas. Estava firme na decisão de contar a história tola que ouvira no escritório à primeira pessoa que encontrasse pelo caminho, para que os outros também pudessem rir‑se a bom rir. Só que então, e muito repentinamente, algo inesperado aconteceu‑lhe que nem ele mesmo saberia explicar. Afastando‑se ligeiramente do caminho, na orla do bosque de pinheiros que cresciam na encosta arenosa, Prillup desequilibrou‑se de repente, tropeçou e caiu sobre a relva, voltando‑se depois para cima e deixando‑se ficar ali deitado.

O leite! A quinta do leiteiro!

Ficou ali deitado, parado como um tronco de árvore, olhando o pôr do sol com os olhos bem abertos, a cabeça repousando sobre as mãos juntas. O céu crepuscular brilhava ainda com todos os tons de vermelho e amarelo. Mesmo acima da linha do horizonte, no meio da abóbada celestial, pairava uma nuvem negra em forma de uma águia de brasão de contornos tão claros que dir‑se‑ia que a ave estava a guardar uma abertura no céu através da qual o brilho infinito dos céus irradiava contra as suas costas. Outros monstros celestiais apareciam agora, flutuando na direcção do oeste flamejante. Alguns assemelhavam‑se a animais terrestres, outros a criaturas raras e estranhas ‑ e os contornos de todos estes seres brilhavam com mais intensidade ao aproximar‑se da águia. Esse brilho, contudo, foi‑se apagando depressa, as cores perderam a luz, até que por fim, o rosto de Tõnu adquiriu uma luz azulada, como o rosto de um enforcado.

Mas ainda assim deixou‑se ficar ali deitado, sem mexer um dedo. Formiguinhas pretas começaram a caminhar por cima do pescoço e dos braços dele ‑ aparentemente, tinha deitado a cabeça muito perto de um formigueiro e uma formiga estava agora correndo com dificuldade por cima da barba e dos lábios dele.

Por fim, Prillup começou a sentir as cócegas e começou a agitar‑se e a afastar os bichos. Estava agora sentado, movimentando freneticamente as mãos em frente ao rosto, como que afugentando mosquitos, e logo se pôs de pé de um salto. Nos lábios ainda se vislumbrava um resquício da alegria de há pouco.

Mas quando, de volta à estrada, Tõnu avistou o velho Ots à sua frente, caminhando com passos pesados e um fardo de estacas de madeira às costas, ele não apressou o passo para o alcançar. Nem sequer sentiu que tinha algo a dizer quando se cruzou com Krõõt, a mulher do Yuri. Em vez disso, foi directo ao portão da sua casinha, tão absorto nos seus pensamentos que atravessou uns bons metros do parque infantil comunitário e nem sequer ouviu as boas tardes que lhe disseram as filhas dos vizinhos.

Ao chegar a casa, o cão Kaaru foi recebê‑lo ao portão, abanando tanto a cauda que as patas de trás também abanavam, e o cão arreganhava os beiços e soltava pequenos ganidos de puro prazer, mostrando os dentes brancos. Mas também a ele, o dono não tinha nada a dizer. Depois de fechar o portão atrás de si, parou no meio do quintal e deitou um olhar vago e absorto na direcção do cão, única atenção que dedicou a Kaaru naquele dia. Ao cão pareceu bastante estranho que o dono ficasse ali de pé durante tanto tempo a olhar para o chão. Tão estranho, aliás, que o bicho achou melhor desaparecer discretamente na escuridão crepuscular que começava agora a cobrir o quintal como uma nuvem de pó cinzenta que apaga os contornos das coisas e faz com que tudo pareça maior do que é.

Prillup estava prestes a entrar em casa quando avistou três figuras obscuras na vedação perto do celeiro. Guiou então os passos naquela direcção. Como uma coruja com duas pequenas crias debaixo de cada asa, lá estava Mari, abraçando Yuku e Anni perto de si, todos os três olhando atentamente na direcção do pântano.

‑ Que maravilhas são essas que vocês estão aí a observar? ‑ perguntou o pai com um sorriso.

‑ Estamos a ouvir a gente de Tapu ‑ respondeu Anni com um sussurro. ‑ Sh! sh! Não faças barulho!

Na verdade, a noite estava tão calma e o ar frio tão parado e rarefeito que o som de conversas e risos da aldeia de Tapu era levado até às colinas de Kruusimãe, isto apesar de Tapu se situar numa encosta alta do outro lado do pântano. Aliás, as vozes tinham um som tão alto e nítido que os falantes invisíveis bem poderiam estar à conversa atrás do arbusto mais próximo. Algumas das palavras perdiam‑se, como se fossem apagadas, e a ligação entre os vários fragmentos que lhes chegavam aos ouvidos era geralmente ambígua, de modo que, juntando as palavras todas, adquiria‑se uma estranha mistura de lógica e de absurdez.

O estranho é que os três ouvintes nunca se riam daquilo que iam ouvindo. Permaneciam sempre de expressão séria e tensa, e só de vez em quando as crianças levantavam o rosto e olhavam para a mãe com uma expressão interrogativa.

Agora ouvia‑se o rumor de uma carroça invisível, um cavalo invisível resfolegava, alguém tossia, alguém assobiava. Algures, uma ovelha balia e um cão começava a ladrar ‑ e era impossível dizer se aqueles sons vinham da terra ou do ar, se eram reais ou apenas imaginados. E os intervalos de silêncio eram tão intensos que quase se conseguia ouvir os pensamentos do vizinho, bem como os nossos próprios.

‑ O jantar está na mesa. Nós já comemos ‑ disse Mari sem voltar a cabeça.

‑ Não vão entrar?

‑ Daqui a nadinha.

‑ Grande divertimento, este! Porque é que não podem ouvir noutro dia?

‑ Entra tu, pai. Estás a estragar tudo! ‑ pediu Yuku. Prillup já estava na cama quando eles entraram, mas ainda

estava bem acordado. As crianças ficaram na cozinha ‑ era onde dormiam ‑ e Mari começou a levantar a mesa.

‑ Pergunto‑lhe ou não? ‑ hesitava Tõnu debaixo dos cobertores.

Reinava agora o silêncio na cozinha, a porta estava fechada. Mari entrou na cama. É agora o momento, pensou Tõnu, sorrindo na antecipação.

Mas então veio‑lhe à mente uma imagem: a imagem de Mari e das crianças sentadas na vedação escutando os sons misteriosos da aldeia de Tapu. E algo parecido com medo impediu‑o de abrir os lábios. Decidiu esperar até que Mari lhe perguntasse porque é que o velho o tinha chamado ao escritório.

Mas Mari não é curiosa, isso sabe ele bem, e essa espera não faz sentido. Ele ouve‑a bocejar antes de adormecer, as costas macias e quentes apertadas contra ele. Escuta a doce, jovial respiração da mulher. E toda a noite, Prillup fica sozinho com aquela tolice ridícula que, a princípio, estivera tão desejoso de contar a toda a gente. E vai moendo e remoendo o assunto até nascer o sol.

Nessa altura, levanta‑se resoluto: há‑de falar com ela quando a altura for boa, quando ela der à história o devido valor, em vez de a encarar apenas como uma anedota. Que seja uma anedota, se ela quiser levá‑la dessa forma, mas também pode ser encarada seriamente, se se preferir.

Ah sim, pode mesmo ser encarada de ambas as formas! Qualquer que seja o nosso ponto de vista sobre o assunto, tudo está bem e em ordem. E nem sequer importa qual o resultado das nossas considerações. Qualquer que seja a nossa perspectiva, tudo acaba sempre bem. Dá, pelo menos, um bom assunto de conversa.

Assim, ele deixa que o dia passe porque não lhe parece propício e escolhe o dia seguinte, que lhe parece mais favorável. É domingo, o dia de descanso. É mais fácil falar sensatamente com alguém quando não se está exausto da labuta diária.

Por isso, enquanto jantam juntos ‑ as crianças já tinham jantado e estavam na rua a brincar ‑ e depois de Mari falar da vaca, que estava de rastos nessa Primavera e que teima em não dar leite porque as pedras e a areia do pasto não prestam para comer, Prillup afaga a barba e comenta:

‑ Bem, se quiseres que a gente tenha leite à farta, só depende de ti... de fazeres o que o Barão quiser. Aí logo podemos nadar em leite e enterrar‑nos até aos joelhos em manteiga.

Mari levanta os olhos e fixa‑o com um olhar inquiridor. Prillup solta uma gargalhada.

‑ Sim, sim, dou‑te a minha palavra de honra que é verdade. Lembras‑te que eu fui lá na sexta‑feira... tu mesma me trouxeste o recado.

Bem, ele está para lá sozinho, sabes, não visita ninguém nem nada. Também não gosta de caçar... nem sequer tem um cão... as noites são longas e solitárias, diz ele. O que ele mais gostava era que... bem, e depois tirava o negócio da venda do leite ao Yaan e dava‑no a nós...

Mari olha‑o com desprezo, uma expressão intensamente séria.

‑ Ele prometeu logo escrever um contrato, como um homem bom, se tu... ‑ Os dentes de Tõnu entrevèem‑se por entre a barba, num sorriso ‑ bem, se tu... e depois podíamos mudar‑nos para a casa dos Kuru...

Mari pega numa mão‑cheia de cascas de batata de cima da mesa e atira‑as propositadamente à cara dele. Não tem nada a dizer. Nada a acrescentar.

E é esse o fim da anedota. Encara‑a como quiseres.

Os olhos de Prillup escurecem, o rosto perde a expressão, dois restos de casca de batata prendem‑se‑lhe na barba e ficam lá pendurados.

‑ Disseste que hoje ias pôr aros novos no barril ‑ disse a jovem esposa por fim, levantando‑se da mesa.

Tõnu também já acabou de comer.

‑ Sim, vou fazer isso já. ‑ Limpa a boca e sacode as cascas de batata. ‑ Acho que se calhar já é altura de eu ir à aldeia dos pescadores comprar arenque fresco. O que ainda temos está muito salgado e seco. E assim como assim já não temos muitos no fundo do barril, parece‑me.

‑ Não são muito magros nesta altura do ano?

‑ Talvez sejam, mas ainda assim... Peixe fresco sempre é peixe fresco.

Em passos largos, vai até à porta e, antes de sair, espreguiça‑se com volúpia. Sente‑se agora de coração leve, e o riso brota‑lhe da garganta como a água cristalina de uma nascente.

‑ O velho enlouqueceu. Ficou mesmo doido de todo. Não fiques ofendida. Não há pior que um velho tolo.

Mari está calmamente a arrumar a mesa, de costas para a porta, enquanto Prillup se espreguiça. Um raio de luz dourada pousa‑lhe sobre os leves cabelos encaracolados sobre o pescoço, tingindo‑os de uma tonalidade vermelha.

‑ E eu... bem, eu só te falei nisso pela piada... Não queria dizer... bem, achei que não havia mal. E disse‑lhe isso, mesmo na cara dele... Perguntei‑lhe... na idade dele... o raio de um velho tarado, é o que ele é! ‑ Prillup desiste, então, e sai. Esta é uma daquelas situações em que é simplesmente inútil esperar uma resposta de Mari.

Mas depois de Prillup sair para o quintal, o som da despreocupada cançoneta que Mari assobia chega aos ouvidos do marido pela janela aberta:

 

No Inverno...

Em terra ou no mar...

A apanha do feno no prado começou nessa segunda‑feira. A relva estava rija e resistente e era preciso afiar as gadanhas constantemente, de modo que o som metálico das lâminas ecoava incessante pelos campos. Alegre na sua força, Prillup balançava a sua gadanha da direita para a esquerda, cortando fileiras grandes de erva, porque tinha os braços quase tão compridos como as pernas. Regozijava‑se com o pensamento de que terminaria a sua parte em breve e poderia ir para casa mais cedo do que os outros, com os raios de sol ainda brilhando sobre as costas, aquecendo‑as. Aliás, em boa verdade, só agora é que ele se dava conta de como gostava de ir para casa, e os outros homens gracejavam a seu respeito, dizendo que Prillup ainda estava como em noite de núpcias (ainda não havia mulheres no prado do solar, só viriam mais tarde para amontoar o feno cortado). E Prillup ria também, gabando a jovialidade da mulher e troçando de Yuri, cuja mulher estava a envelhecer e a ganhar rugas.

Prillup sentia que nunca tinha estado tão satisfeito com a sua vida.

Em poucos dias, contudo, esse entusiasmo começou a esmorecer. Tõnu parava para afiar a gadanha com demasiada frequência, acendia o cachimbo vezes demais, fazia pausas maiores do que as aparentemente necessárias e contemplava longamente uma ou outra poça deixada pelas cheias. Ou então perdia‑se simplesmente a olhar para o riacho, coçando a nuca. E à noite, lá se arrastava para casa, subindo a colina na direcção de Kruusimáe com um passo tão lento que dir‑se‑ia que a mulher que tinha em casa à sua espera era a velha e enrugada Krõot, esposa do Yuri, e não Mari. E então, houve uma noite em que ele não foi imediatamente para casa. Depois de esconder a gadanha num arbusto a meio da encosta, caminhou resoluto através dos campos e ao longo de paredes caiadas até à planície onde se erguia a quinta dos Kuru, perto da estrada entre os campos do solar e o pasto.

Nem o próprio Prillup saberia dizer o que o levava lá. Foi apenas essa a direcção que os seus pés tomaram. O céu estava carregado e começava a escurecer, mas mesmo assim, ele ia‑se demorando atrás dos arbustos que separavam o campo de feno do de grão, que já fazia parte da quinta dos Kuru. Por fim, resolveu‑se a subir o pequeno muro caiado e a transpor os limites da propriedade do leiteiro, onde se agachou atrás de um arbusto numa pequena elevação de onde podia avistar grande parte do terreno dos Kuru. Entre os dedos ia enrolando alguns pés verdes de cevada e de centeio apanhados no terreno da quinta.

Ali escondido, acabou por observar uma cena de azáfama: a mulher saiu de dentro de casa com um saco onde levava um farnel, depois saiu a filha com um pequeno barril de leite do celeiro. O filho, um rapazinho apenas, apareceu com uma saca de feno. Todos estes objectos foram depositados na carroça, já muito carregada com barris de leite encostados ao fundo da carga, junto ao cavalo avermelhado. Não era tarefa fácil arranjar espaço para tudo: para além dos barris de leite e da caixa de manteiga, havia dois bezerros na carroça, abanando indefesos as orelhas flexíveis junto à palha que se amontoava a um canto. Por fim, foi Yaan, com a cabeça sempre a abanar, que fez a sua aparição, calçando botas pretas de cano alto e com um lenço branco em volta do pescoço, balançando um chicote na mão. Destro, saltou com à‑vontade para o lugar do condutor e, gritando uma última ordem por cima do ombro, pôs a carroça em movimento e afastou‑se ao som regular das rodas pisando o terreno arenoso.

Chegaria à cidade cedo pela manhã e toda aquela carga depressa se transformaria em dinheiro. O leite, a manteiga e os dois bezerros... Daí a umas horas seriam notas de papel e moedas tilintantes. E esta metamorfose misteriosa repetia‑se três ou quatro vezes por semana. E entretanto, ainda cresciam os cereais ali no campo, que o alimentavam a ele e aos animais.

Prillup seguiu a carroça com os olhos. O pé de cevada estava agora entalado entre os lábios, o centeio ainda enrolado à volta do dedo. Tão viçosas eram as plantas, aliás, que os dedos estavam molhados de seiva e o odor forte dos caules partidos chegava‑lhe às narinas. Vagaroso, Prillup levantou‑se depois de a carroça transpor dois portões e de o boné preto de Yaan Kuru, eternamente balançando para cima e para baixo, desaparecer finalmente por detrás da última colina do caminho.

Alguns dias mais tarde, a figura alta e magra de Prillup apareceu junto à janela aberta da casa do leite, onde se fazia o leite amargo e se batia a manteiga. Havia uma porta a meio da parede divisória, separando as duas salas. A mulher de Yaan Kuru azafamava‑se na sala da frente, dando à manivela da enorme batedeira de manteiga, enquanto Yaan estava na sala de trás, esvaziando uma tina de leite morno. A filha do casal, uma jovem adolescente de concha na mão, deitava leite em potes para fazer natas, e logo surgia novamente Yaan, que levava esses potes até às quatro prateleiras que se estendiam de uma ponta à outra da parede.

A senhora Reemet e as ordenhadoras, que tinham trazido a tina para dentro do armazém, já se tinham ido embora.

‑ Bom dia! Que haja força e saúde!

Yaan não tem a mínima pressa de responder ao cumprimento de um Zé‑Ninguém. Ele reconhece a voz de Prillup mas nem sequer se dá ao trabalho de voltar a cabeça, ocupando‑se em vez disso a carregar em passo bamboleante mais um pote de natas até à prateleira, com os polegares sujos imersos no leite até à articulação. É só ao regressar que lança finalmente um olhar rápido na direcção da figura que lhe havia aparecido à janela.

‑ Bom dia! Liisu, passa‑me mais uns potes vazios! Tõnu encosta o ombro à ombreira da janela e passeia o

olhar pelas filas duplas de potes de natas nas prateleiras. O seu rosto barbudo acolhe um sorriso insinuante.

‑ Bem, bem! Produção têm vocês... e muita! ‑ Aí, inspira o ar ruidosamente, levantando o nariz bem alto. ‑ E o cheiro: é quase sufocante.

‑ Bem jeito nos dava ter mais. Muito mais!

‑ Vende assim tão bem?

‑ Geralmente! É bom leite amargo. Há muita procura no Verão, e se for de Maekúla...!

‑ Então são doidos por ele, é?

Kuru levanta a cabeça. O nariz pontiagudo insinua‑se, vermelho e protuberante, meio pelado por causa da constante exposição ao sol. Os olhos pequenos e redondos, de porquinho, avivam o seu tom de azul, como dois miosótis.

‑ Não sabias que o leite de Máekúla é famoso?

‑ Não me digas!

‑ Valha‑me Deus! Havias de os ver lá no mercado: é sempre o nosso leite que eles pedem. O leite de Máekúla não é diluído e aguado, como o que vendem alguns outros... Até alguns estalajadeiros no‑lo compram. Não enchas tanto, liisu!

‑ Então as vacas do velho bigodaças dão um leite assim tão bom?

‑ As vacas?! Ouve‑me só este, Viiu! Este acha que é das vacas! ‑ Yaan levanta o olhar sobre o pote de natas que tem nas mãos e mira a mulher na sala lá à frente, mexendo a manteiga. Depois, sorri aquele seu sorriso azedo e quase fecha os olhinhos azuis, redondos no meio do seu rosto largo e achatado. ‑ Então é só isso que tu sabes sobre o negócio do leite!

‑ Não, claro, o leite tem de estar no ponto certo, não muito espesso e não muito amargo. Toda a gente sabe isso ‑ apressa‑se Prillup a explicar. ‑ E é claro que não são as vacas que o fazem amargo; é o leiteiro.

‑ Agora é que disseste tudo. ‑ Yaan leva mais natas para a prateleira, limpa com a manga a parte da frente do colete às riscas e regressa para junto da janela, de dedo no nariz. ‑ E o leite só por si também não chegava. Se não fossem aqueles tijolinhos de ouro ali...

‑ Então também adoram manteiga, estou a ver.

‑ Nisso não me posso queixar. Aquela gente da cidade sabe o que é bom. Os cozinheiros e as criadas recebem sempre ordens expressas das patroas para só comprar a manteiga que tiver um selo em forma de rosa. É a marca de Màekúla, uma rosa por cada meio quilo. A manteiga de Màekúla não é ácida. Viiu, quando tirares as natas daquela panela grande ali, vê lá se não há lá nenhum rato. Pareceu‑me ver a ponta de uma cauda.

Novamente, Kuru mergulha os polegares no leite e vira‑se em direcção às prateleiras. Tinha umas ancas largas, como uma mulher, e pernas curtas, tudo escondido debaixo de um par de uns calções de lã incrivelmente largos. Em casa, o leiteiro de Màekúla calça sempre sandálias de couro artesanais.

‑ Mas disseste que ainda não chegava. Que te dava jeito ter mais... ‑ O olhar interessado de Tõnu paira sobre as fileiras de potes de natas alinhadas contra a parede, para pousar finalmente sobre as panelas cheias de natas espessas, que se entrevêem na sala em frente. ‑ Bem, porque é que não pedem ao velho para comprar mais vacas?

O senhor de Kuru fica silencioso durante uns momentos: acabou de encontrar umas baratas na tina de leite que está mais próxima da parede e está a tentar pescá‑las com os dedos. Depois, vai atirando os insectos mortos, cobertos por uma camada branca e cremosa, contra o chão argiloso e sem pavimento, murmurando maldições.

‑ Comprar mais vacas! Pois sim! É mais fácil dizer que fazer. Não se compra vacas na feira sem dinheiro. Ou achas que devia comprá‑las eu e dá‑las ao velho de presente!

‑ Mas ouvi falar em semear mais pasto porque ele queria aumentar a manada.

‑ Sim sim, caro amigo... E isso ele até fazia... se conseguisse arranjar mais crédito do banco aqui do Yaan Kuru. ‑ Desta vez, o sorriso amargo que ele rasga para a mulher ver, lá na outra sala, é mais largo, e os dentes dele, os dentes brancos e fortes de um camponês, brilham fugazmente por entre os lábios azulados.

‑ Já agora, até podia construir um estábulo novo e uma vacaria nova. Até podia acabar de construir o segundo andar do solar. Porque não?

Aqui, a conversa é interrompida por um choro agudo que vem do outro lado da parede ‑ o espaço onde vive o vaqueiro e a família. O bebé de Kai está a gritar de tal modo que dir‑se‑ia estar a ser beliscado por tenazes em brasa. Em menos de um nada, junta‑se‑lhe o choro das outras crianças mais novas e por fim o lamento arrastado e cansado de uma voz de mulher.

Agora, Prillup decide que é melhor passar algum tempo com Viiu, a mulher de Yaan, e observar o processo de bater a manteiga. Assim, ele contorna o edifício para a observar melhor através da janela da frente, que está virada para a estrada. Mas essa janela está fechada, provavelmente por causa do pó da rua, já que há sempre muitas carruagens a passar por ali. Talvez ele devesse então ir andando... hoje tem de andar a carregar feno do campo para enfardar e aproveitou a hora de almoço para vir até aqui. Só que Prillup está relutante em ir já embora, pelo que passa ao lado do monte de lenha e do montículo de turfa e volta à janela da parede lateral, onde estava ainda há pouco.

O choro e os queixumes do outro lado da janela estão a acalmar. Tõnu apoia os cotovelos no parapeito da janela e tenta lembrar‑se de alguma coisa para dizer.

‑ Mas imaginemos que alguns desses tijolos de ouro acabam por sobrar. Não têm sal nenhum e o tempo está quente. Bem, e se alguns desses tijolos de ouro (o nome parece dar‑lhe prazer) não se venderem e tiveres de ficar tu com eles? O que é que fazes?

‑ Enterro os mortos.

‑ Enterras...?

‑ Sim, é o que faço. Vou fazer o quê com eles se estão mortos?

A filha de Yaan começa a dar risadinhas baixas, e também a mulher na sala ao lado. Finalmente, esta aparece à entrada da divisória.

‑ Não lhe ligues. É conversa de leiteiro. A manteiga que sobra é embalada toda junta num pote e vendida mais barata como manteiga para cozinhar.

‑ Ah, então é isso! ‑ E agora é a vez de Prillup rir. ‑ Portanto é manteiga da boa desde que seja vendida como um tijolo dourado numa caixa, mas se estiver metida num pote, aí já é só manteiga para cozinhar!

Os ombros estreitos e ossudos de Prillup são de repente sacudidos pelo riso, a boca barbuda bem aberta.

Ninguém na quinta de Kuru se lembrava de alguma vez o ter visto rir com tanta alegria.

‑ Sim, mas não acontece assim tantas vezes... Nem com toda a gente ‑ ouve‑se Yaan resmungar, enquanto retira o primeiro punhado de moscas das panelas de leite quente. ‑ Os que enterram os mortos são sempre os que não sabem manter bem os vivos, como... ‑ e Yaan lança‑se a enumerar vários leiteiros das paróquias vizinhas, e é claro que o leiteiro de Màekúla não faz parte dessa lista.

Por fim, Prillup recupera do seu ataque de riso, mas a voz ainda vacila quando finalmente consegue respirar fundo e perguntar:

‑ Mas aqueles bezerros, apenas com três dias de idade, ainda nem desmamados... vocês não ganham muito com eles, pois não?

‑ Porque não?

‑ Bem, de certeza que os talhantes conseguem ver...

‑ Ver o quê? Não está escrito na testa dos bezerros se eles têm três dias de idade ou seis.

‑ Mas tocando neles, os talhantes notam...

‑ Eles que toquem. Também não é por isso que hão‑de conseguir saber há quantos dias nasceram. Eles vêm ter com os leiteiros na estrada e põem‑se a regatear connosco nas tabernas pelo caminho, e geralmente já estão meio tocados pelo vinho... Basta ter o dom da conversa... bem, digamos que se consegue sempre ganhar o suficiente com os vitelos para cobrir as despesas das viagens à cidade, e ainda dá para comprar um par de botas e o corante para a manteiga.

‑ Ah, pois, e disso deves precisar muito, suponho. ‑ Com um sorriso educado, Tõnu volta o rosto para Viiu, que continua parada à entrada da sala.

‑ No Inverno, claro, mas no Verão não. Há compradores que são esquisitos até se a manteiga estiver amarela demais.

E então, algum assunto urgente chama Yaan e a família à «fábrica da manteiga», e enquanto eles desaparecem da vista de Prillup, o visitante afasta‑se finalmente e vai‑se embora.

Quando Yaan Kuru nota que a sombra à janela desapareceu por fim, pega numa colher grande e faz o sinal da cruz por cima do leite na panela da sala de trás, benzendo depois também as natas e a manteiga na sala da frente.

‑ Quem sabe... talvez ele tenha mau olhado. Vamos ter que começar a fechar aquela janela também.

Mas apesar das precauções, há um qualquer poder secreto que continuamente dirige os passos do lavrador de Kruusimáe na direcção da quinta do leiteiro da herdade. No domingo seguinte, a caminho de casa depois da missa, Tõnu está de passagem em frente ao portão da quinta de Kuru e, sem a mínima hesitação, vai logo entrando. O usual copo de gin dos domingos deu‑lhe coragem e fá‑lo esquecer aquilo que, durante anos, sempre o separou a si e a todos os lavradores do inquilino da quinta de Kuru. Ele sabe exactamente o que dizer a Yaan para lhe cair nas boas graças e para agradar como convidado em casa dele. Aliás, toda a gente na paróquia conhece bem o tema preferido de Yaan, e os lavradores de Kruusimáe então, esses conhecem‑no particularmente bem.

A família Kuru está à mesa do almoço. O pai e a mãe estão sentados, o filho e a filha de pé. O pai está a meio de um relato qualquer e, como o visitante não passa de um mero lavrador de Kruusimáe, apenas a mãe responde ao cumprimento dele, enquanto que o leiteiro, sem se deter um segundo, continua com a sua história:

‑ Meu bom homem, disse‑lhe eu, devias pensar um bocadinho antes de abrir a boca. Abre os olhos e vê bem com quem é que estás a falar. Depois de andares a pedinchar já não te serve de nada encheres o peito de ar e fazeres‑te importante. O que é que aconteceria se qualquer vagabundo pudesse vir aqui e fazer‑te frente?

Até podes ter razão. Podes estar coberto dela, mas para quê levantar a voz? Tens língua para falar, não tens? Sim, é verdade, eu costumava comer restos da comida dos outros. É verdade, não vou negar. Mas o que eu era antes não é para aqui chamado. O que eu sou agora é que importa. Mas tu, meu bom amigo, estás de tal modo que em breve a fome há‑de te atar as tripas num nó.

Primeiro, a rapariga larga em risadinhas, depois segue‑se‑lhe o rapaz. Mas a mãe permanece séria. No seu rosto comprido e austero, que já teria perdido completamente o rubor da juventude não fosse uma tez mais rosada aqui ou ali, apenas os olhos se mexem, passando o olhar da colher que tem na mão para a porta de casa. Foi Prillup quem disse: ‑ Bem, bem. Não há dúvida que lhe disseste das boas! E quem era

o sacana?

O senhor de Kuru engole algumas garfadas de comida e depois, com um esgar sarcástico, conta à mulher como acabou o encontro para, só no fim, mencionar o nome do infeliz, atirando‑o na direcção de Tõnu. Não se trata de um dos rendeiros de Kruusimáe. Oh, não, nem sequer é dos mais pobres. Na verdade, é o inquilino de uma quinta ali da paróquia, um que nem se tem safado nada mal. Ao ouvir isso, Prillup encolhe os ombros e deixa uma vaga insinuação de sorriso aflorar‑lhe os lábios.

‑ Aproveitaste bem as tuas oportunidades, Yaan, isso ninguém o nega. É o destino. E os tijolinhos de ouro e o leite amargo e espesso também ajudaram!

Yaan continua a comer. Em cima da mesa, há sopa de ervilhas e carne de porco cozida. O leiteiro vai cortando a carne macia e gordurosa com o canivete, prende‑a entre a lâmina do canivete e o polegar e leva‑a à boca, cujos lábios brilham, reluzentes da gordura. Desde que o visitante chegou lá a casa, parece que o porco sabe melhor, porque a expressão do leiteiro ficou mais calma e sorridente e ele lambe agora os dedos com maior prazer.

As gotas de suor no topo calvo da cabeça dele brilham também com vivacidade.

‑ Seja como for ‑ Kuru continua a mastigar ‑ Deus sabe o que é que dá e a quem dá. Mas o que me foi concedido é mais do que algum dia virei a precisar. Suspira. Algum dia, os miúdos hão‑de encontrar...

‑ Porque é que não te sentas aí no banco, Tõnu? ‑ interrompe a mulher no seu tom monocórdico.

Agora, pela primeira vez, Yaan ergue o queixo gorduroso e olha directamente para Tõnu.

‑ Porquê no banco? Pega uma cadeira e senta‑te à mesa connosco! ‑ E depois, virando‑se para o filho: ‑ Se já comeste baixa as mãos e sai da mesa. Para que é que andas para aqui a bocejar e a olhar em volta?... Bem, Tõnu, serve‑te, se quiseres partilhar o que temos para oferecer.

‑ Ah, eu não sou esquisito. Nem podia ser! Nem me lembro da ultima vez que comemos carne. O máximo que podemos esperar é carapaus salgados. Bem, muito obrigado, de qualquer forma, mas tenho três crianças em casa à espera do pão de passas que a gente come sempre ao domingo.

‑ Três? Quem é a terceira? ‑ pergunta a mulher do leiteiro com um sorriso.

‑ A mais alta, claro. Não sei porquê mas ainda não consigo pensar nela como minha mulher. Tenho que me habituar... Não é que ela seja assim tão nova em termos de idade, mas tens uns modos...

‑ Então não estás assim muito satisfeito com ela?

‑ Não é isso. Estou satisfeito, sim... Claro que estou! Ela nunca fez nada de mal... Só que às vezes só consigo pensar nela da mesma maneira que penso nos meus filhos. E outras vezes... bem, vocês sabem como é aquela gente da paróquia da Floresta. É gente diferente de nós, de uma maneira ou de outra... Às vezes não consigo entendê‑la bem, por assim dizer. Mas estou satisfeito...

‑ Bem, então aproxima‑te na mesma, sempre levas daqui que chegue para um, para três é que não, isso te digo ‑ decide o dono da casa pondo fim às objecções de Tõnu.

‑ De onde vens? Vens pelo caminho mais longe da igreja? Costumavas atravessar sempre o charco de Mádakaela descalço.

‑ Sim, venho da igreja. ‑ Prillup senta‑se na cadeira que Viiu lhe colocou ao pé da mesa. ‑ Aquele sujeito, o Trumm, deu‑me boleia na carroça. Assim não tive de descalçar as botas mais uma vez.

‑ Então e vais à igreja sozinho?

‑ Bem, sim. Os miúdos não iam ficar quietos em casa se a Mari também viesse à missa. Ah, isso nem por sombras! E acontece sempre ou que a miúda não tem um lenço novo para pôr na cabeça, ou é o outro que lhe falta o chapéu... Eu não consigo comprar‑lhes tudo o que eles querem...

Durante uns momentos, todos comem em silêncio. Aqui e ali, vão fazendo algum ruído ao sorver a sopa, mas é Yaan, estalando os beiços com prazer, que faz mais barulho. Paira no ar um cheiro a whisky. Liisu repara que os dedos de Prillup tremem inseguros ao segurar a colher de sopa e levá‑la à boca. Os olhos dele disparam olhares nervosos em todas as direcções e as bochechas estão rosadas. Sentindo o olhar examinador da rapariga em si, Prillup levanta de repente o olhar e fixa‑a directamente do outro lado da mesa, num olhar que ela não consegue perceber se é de censura ou de medo.

Liisu já comeu que chegue. Ela pousa o prato, cruza os braços e sai da sala com o irmão. Antes de fechar a porta, ainda deita um olhar de relance para trás, olhando Prillup pelas costas. Parece‑lhe que até o cabelo dele treme.

Ainda assim, o lavrador começa a tagarelar calmamente:

‑ Assim são estes bens materiais. Como o ganha‑pão desta família aqui, por exemplo. Já perguntei a mim mesmo, o que é que este homem há‑de fazer a tanto dinheiro se continuar a trabalhar desta maneira por mais dez anos?

‑ Dez anos? ‑ Yaan sorri outro dos seus sorrisos amargos. ‑ Ainda não perdi a cabeça, caro amigo! Passo metade da noite agachado na carroça, entalado entre caixas e caixotes, a outra metade passo‑a deitado em bancos de madeira numa taberna qualquer, tentando dormir umas horas... ano após ano, sempre em viagem. Raios me partam! Quero ser senhor de mim próprio duma vez por todas, e descansar! Os empregados que labutem e se cansem! Mais um ano ou dois, no máximo, e hei‑de estar a viver nas minhas próprias terras. Só minhas. E aí...

‑ Serve‑te de mais carne, Prillup. Não comeste quase nada ‑ oferece Viiu.

Mas Prillup já não a ouve. Só tem ouvidos para o homem que será, em breve, senhor de si próprio, possuidor da sua própria terra.

‑ Bem, imagino que escolhas uma quinta do outro lado do rio... Uns mil, mil e quinhentos metros quadrados, não? Deste lado do rio não há nada de jeito para comprar ‑ comenta Prillup, de olhos sempre postos na malga de sopa e mergulhando continuamente a colher no caldo, como se as ervilhas estivessem a resistir à captura.

Durante algum tempo, Yaan deixa‑se ficar sem responder, os olhos presos na tigela de sopa pousada na mesa à sua frente. Finalmente, levanta o nariz, abana a cabeça e com um sorriso pensativo afirma condescendente:

‑ Quem sabe se eu não terei os recursos para comprar duas quintas dessas. Ou talvez... mas ainda é muito cedo para saber com certeza. Talvez acabe por comprar uma das herdades mais pequenas. Talvez uma herdade com uma leitaria.

E por um segundo, os olhos azuis‑miosótis de Yaan encaram de frente os do visitante.

A colher de Prillup pára no ar, a boca aberta, à espera. E há um momento de silêncio antes de ele murmurar:

‑ Não me digas!

Mas então, prossegue, mais ávido do que nunca:

‑ Sim, claro. Aliás, nem poderia ser de outra forma. Tenho a certeza que isso há‑de acontecer.

E depois de engolir a colherada, o peito estreito e os ombros magros sacodem‑se com gargalhadas altas e secas, enquanto o lavrador olha ora para o leiteiro ora para a mulher, e até a barba que lhe cobre as faces compõe uma expressão que deseja aos anfitriões os mais sinceros e altruístas desejos de que tudo de bom lhes venha a acontecer.

E por essa altura, está acabada a refeição. Viiu, que tem estado a amassar migalhas de pão em cima da mesa com o dedo mindinho, desprega os olhos do tampo e encara o visitante. Insiste para que Tõnu coma mais um pouco, mas em vão. Ele pousa a colher, fecha o canivete e afasta a cadeira da mesa, depois de apertar as mãos a ambos os anfitriões para exprimir a sua gratidão. Por fim, limpa os dedos raspando‑os nos canos altos das botas.

‑ Passaste por cá por causa de algum assunto, talvez, Prillup? ‑ perguntam‑lhe.

‑ Um assunto? Ah, sim, por pouco esquecia‑me! Estava a pensar no velho Mihkel Tiits, que vai amanhã à noite à aldeia dos pescadores comprar peixe fresco para a semana de Pentecostes. Se quiserem podemos comprar também para vocês.

Mas Yaan comprou arenques na cidade há pouco tempo. Yaan compra sempre peixe na cidade.

‑ Ah, bom... Claro, claro... Bem, lembrei‑me disso quando estava a passar pelo vosso portão. Pensei que mais valia entrar e perguntar. Bem, esqueçam...

Lá fora, o tempo estava muito quente, o ar quase oprimia, a relva escassa secava, deixando à vista a superfície argilosa do paul.

Durante algum tempo, Prillup caminhou de olhos quase fechados. Seguia num passo ligeiro, quase saltitante, de cabeça leve. Nem sequer deu pela oficina do ferreiro, quando passou por ela, e também não reparou nos arbustos nem no bosque de aveleiras ao lado do celeiro. Só quando se aproximou do portão que dava passagem ao prado da aldeia de Kruusimàe é que se deteve junto dos pinheiros de ramos retorcidos. As sombras torcidas das árvores sobre o chão arenoso pareciam mãos enormes e disformes estendendo‑se na sua direcção, prontas a agarrá‑lo e desejosas de o sufocar. E aqui chegado, as forças faltaram‑lhe de repente. Sentou‑se numa pedra grande, na berma da estrada, apoiou a cabeça nas mãos e gemeu baixinho.

 

É de manhã, no dia de São João. O sol já vai alto no céu e, espreitando para dentro do quarto quente e abafado de Prillup, encontra os recém‑casados ainda a dormir. O sol não se surpreende com isto, porque o casal tinha ido à festa de São João com as crianças na noite anterior, e só voltaram para casa depois de a fogueira se apagar e das brasas se transformarem em cinzas. Nada surpreendido, o benevolente sol sorri e ergue‑se ainda mais.

Tõnu, contudo, é o único a dormir. A jovem esposa está acordada. Com o cotovelo no colchão de palha, o punho segurando a cara, ela observa Tõnu dormindo. Está deitado de costas com as mãos no estômago, o queixo bem levantado e a boca aberta. Tem o peito todo à mostra, as mangas da camisa de vestir estão puxadas para cima, os lençóis puxados para baixo. Tudo o que se vê do corpo dele está coberto de pêlos espessos e abundantes: peito, pescoço, queixo, maçãs do rosto, braços, mãos. Uma camada cerrada de cabelos macios e brilhantes que lhe cobrem toda a anatomia ‑ apenas um pouco mais esparsa nas mãos ‑ e que, quase sem se dar por isso, sem crescer mais longa ou mais espessa, se mistura com a barba no rosto dele, com o cabelo emaranhado na cabeça. A barba vela‑lhe a cara até às maçãs do rosto, o cabelo começa não muito acima das sobrancelhas. Tufos de pêlos compridos crescem‑lhe das narinas, pequenos pêlos finos saem‑lhe dos ouvidos.

A jovem esposa sente‑se muito seduzida pela camada de pêlo natural que cobre o corpo do marido. O olhar dela passeia pelo peito dele, para cima e para baixo, contempla‑lhe os braços, o rosto, e regressa novamente ao peito. Ela levanta furtivamente a mão livre e afaga aquele peito cabeludo, roçando a mão para lá e para cá, leve e carinhosamente, do mesmo modo que uma criança tímida afagaria um cão adormecido. Satisfeito este desejo, ela recolhe depois a mão e contempla novamente o homem. Então, de repente, os olhos dela iluminam‑se divertidos: acaba de recordar uma imagem do seu velho livro da escola. Ela enruga levemente os lábios ao sussurrar a palavra «orangotango».

E então, apodera‑se dela uma vontade repentina, um desejo apaixonado, e ela não consegue resistir à tentação: apetece‑lhe incendiar aquela camada grossa de pêlo macio e brilhante no peito dele, ela quer observá‑lo em chamas, como um incêndio arrebatador. Tõnu guarda sempre o cachimbo e o tabaco à cabeceira da cama. Ela estica o braço para alcançar a caixa de fósforos e leva o jogo tão longe que chega a acender um fósforo e a esperar que o enxofre derreta e que a chama aumente.

Mas o adormecido mexe‑se, fecha a boca, abre‑a novamente e abre os olhos.

‑ O que é isso? O que se passa? ‑ resmunga com voz arrastada ao passar as costas da mão pela testa transpirada. Os seus olhos castanhos avermelhados, muito juntos, olham para aqui e para ali, incertos, e Mari tem a impressão de que, nos últimos tempos, eles enterraram‑se ainda mais fundo na cavidade do rosto de onde vão deitando o seu brilho.

‑ Ia só pegar fogo ao teu corpo ‑ responde Mari.

‑ Pegar... Pegar fogo! Porquê? ‑ Os olhos de Tõnu concentram‑se agora nas mãos da mulher, onde o fósforo preso entre os dedos ainda arde.

‑ És tão peludo. Tõnu boceja.

‑ Ainda não tinhas reparado?

‑ Não, não tinha.

‑ Então onde é que tens estado com os olhos?

‑ Não sei.

Tõnu boceja novamente.

‑ Então vá. Pega‑me lá fogo.

‑ Agora já não quero. ‑ E Mari atira o fósforo apagado por cima da cabeceira da cama.

‑ Pois sim, sou peludo. Em toda a parte, da cabeça aos dedos dos pés. A minha mãe, que Deus a tenha, dizia sempre: «Tõnu, tu hás‑de ser rico. Nunca tivemos ninguém tão cabeludo em toda a nossa família e é por isso que somos todos pobres. Mas tu hás‑de ser rico.»

‑ Mas não és.

Prillup colocou as mãos debaixo da nuca e está a olhar para o tecto com um sorriso nos lábios. Os pêlos em redor da boca tremem de excitação, a voz tem um tom suave e sonhador.

‑ Até agora ainda não fiquei rico. Ainda não... É o que a minha mãe costumava dizer. Mas o meu pai era de outra opinião. Ele dizia: «Isso é só conversa. Tretas de mulher. Quem é que te há‑de dar seja o que for sem pedir nada em troca? A quem é que hás‑de tu ir tirar essa riqueza? Não somos esse tipo de gente, que ande para aí a tirar coisas aos outros: nem o meu pai, nem eu, nem tu, meu rapaz. Nenhum de nós é pessoa para isso. Talvez se alguma coisa estiver mesmo debaixo do nosso nariz, a gente queira ir lá e levá‑la. Mas quando lá chegamos vemos que alguém já lá passou e a levou. Por isso é assim mesmo! Mais vale nem desejar nada, nem sequer pensar nisso. Descansa mas é o teu corpo à noite e podes ter a certeza que hás‑de tirar a cabeça da almofada de manhã até que, certa manhã, há‑de ser a última vez que a tiras da almofada porque depois o dia amanhece e tu hás‑de estar frio e duro. Peixe salgado e pão, umas fumaças no cachimbo e uns goles de whisky ‑ é o que os Prillups sempre tiveram e a ti também não te há‑de faltar.»

‑ O que é que a tua mãe respondia a isso?

‑ A mãe mantinha lá a sua ideia. «Se um rapaz é peludo e se rezar a Deus, nada é impossível. Por isso, continua a rezar a Deus, que te deu tanto cabelo.»

‑ E o teu pai, que dizia então?

‑ Bem, o pai contra Deus não dizia nada, claro. Não era nenhum pagão. Mas uma vez zangou‑se a sério. Talvez dessa vez tivesse bebido dois goles em vez de um. Tinham acabado de vir da igreja e ele começou a falar meio sozinho, com voz zangada. A perguntar a quem é que se devia rezar para ficar rico. A Deus ou ao diabo? Porque o Diabo é que dizem que tem pêlos, Deus não. Nunca ninguém ouviu falar de Deus ser peludo. Então ele disse‑me, muito irritado: «O melhor é não rezar a nenhum. Não há‑de servir para nada. Peixe salgado e pão hás‑de ter sem precisar de rezar.»

Prillup sorri, ainda olhando o tecto.

‑ O velho era estranho, às vezes.

‑ E tu acreditavas em quem, no teu pai ou na tua mãe?

‑ Eu? No fim, acabei por acreditar nos dois.

‑ Como assim, nos dois? ‑ A jovem esposa está agora a brincar com a caixa de fósforos.

‑ Sabes, Mari, às vezes um homem põe‑se a pensar, especialmente quando somos jovens: porque não apertar o cinto, pôr um chapéu na cabeça e partir por aí pelo mundo? A gente pensa, se houve mais quem encontrou coisas boas, porque não eu? E talvez a gente encontre mesmo qualquer coisa que valha a pena, se tivermos sorte. Não somos piores do que os outros; temos olhos para ver e ouvidos para ouvir, como toda a gente, e se às nossas mãos lhes faltar a destreza, elas logo aprendem, acho eu, porque têm articulações, não são rígidas como paus. Assim, dava para sair deste buraco pantanoso de uma vez por todas.

Olha, como fez o Mihkel Vutt, do outro lado do charco. Ele sabia fazer um pouco de carpintaria, não muita, claro. Tinha aprendido sozinho a trabalhar mais ou menos com madeira, a princípio percebia tanto daquilo como eu ou outra pessoa qualquer. Mas vê lá: um dia prendeu uma machadinha ao cinto e abalou. E eu, não sei porquê, não consigo fazer isso. Eu bem penso em ir embora, mas nunca vou. Vou até à porta mas depois nunca consigo passar para o outro lado. É como se houvesse alguém a segurar‑me.

‑ O que é que foi feito desse Mihkel?

‑ Agora está bem na vida. É dono de três casas em Kassisaba, uma delas tem uma loja. Primeiro andou por aí, a trabalhar como carpinteiro aqui e ali, nos solares das herdades. Depois foi para a cidade e trabalhou como empreiteiro. Sabe Deus como é que ele arranjou esse trabalho. E agora constrói casas para os outros, e sobra sempre um pouco de madeira dessas construções, por isso passado um pouco o Mihkel construiu uma casa para si.

‑ É uma maneira bem barata de construir uma casa.

‑ Agora é que disseste tudo ‑ respondeu Prillup com uma gargalhadinha. ‑ Agora já é ricaço. Fica para ali a olhar de mãos nos bolsos enquanto os trabalhadores contratados é que fazem o trabalho todo por ele. E não é o único que conheço. Eu dantes trabalhava com um sujeito, o Mart, lá na aldeia, antes de o meu pai morrer. «Raios me partam!», diz‑me ele certo dia. «Estou a ficar farto desta vida. O melhor é roubar um cavalo por aí, ou arranjar uma mulher que tenha umas massas postas de lado.» E chegado o dia de São Jorge, ele arruma a trouxa e faz‑se à estrada. Não sei quantos cavalos roubou até encontrar uma mulher rica, mas o que sei é que o Mart agora tem uma barriga bem gorda e redonda e já há uns anos que é dono de uma taberna em Paldiski. Enquanto que aqui o Tõnu limitou‑se a seguir as pisadas do pai, a viver na mesma barraca de sempre.

O Tõnu passa a vida a preparar‑se para se atirar para o desconhecido mas depois nunca se mexe.

Afagando o nariz do marido com a caixa de fósforos, a mulher comenta:

‑ Eu vejo como esse teu nariz quer empinar‑se em direcção ao céu, mas em breve há‑de voltar cá para baixo, onde é o lugar dele.

‑ Mas eu também hei‑de sair deste lugar um dia. Ninguém me pode impedir ‑ continua ele, sem reparar na gentil provocação de Mari. ‑ Ou se calhar até posso fazer um novo começo aqui mesmo. Os dias em que trabalho nos campos da herdade para pagar a renda ainda me deixam tempo livre e o trabalho por empreitada não dá dinheiro. O barão paga mesmo muito pouco por trabalhos de empreitada. Olha para o Yaak, de Siim‑Yúri, do outro lado do rio em Tapu, por exemplo. Antes arrendava uma casota de lavrador, como eu. Há uns doze ou treze anos, começou a vender maçãs e frutos silvestres. Primeiro perto da igreja, aos domingos, e nos outros dias no mercado na cidade, toda a fruta que dava o pomar de uma herdade. Depois foi e alugou dois ou três pomares de macieiras e começou a mandar a fruta para São Petersburgo, e depois comprou também batatas e ovos e foi tudo para Petersburgo. Agora o homem é dono de uma quinta bem grande, já toda paga e tudo, perto da linha do comboio. E ainda continua com o negócio e a ganhar bem.

‑ Não o invejas, pois não?

Agora Mari agarrou a bolsa de tabaco e está a balançá‑la no ar, pendurada pelo cordel.

‑ Invejo? Não, estava só a falar por falar. Perguntaste‑me em quem é que eu acreditava, se no meu pai ou na minha mãe. Acredito no meu pai, que eu não sou homem de grande iniciativa nem assim tão determinado. Mas talvez a minha mãe também tenha razão. Talvez apareça mesmo qualquer coisa, se eu tiver sorte.

‑ Há‑de cair qualquer coisa do céu, queres tu dizer.

‑ Bem, de uma maneira ou de outra, talvez surja qualquer coisa na minha vida. Qualquer coisa que está destinada para mim. Não precisa de ser nada muito grande e fino, como aquele alfaiate aleijado na outra paróquia, que teve uma sorte desgraçada quando o tribunal andou à procura do legítimo herdeiro que tinha a receber aqueles três mil. Foi uma herança deixada por um parente qualquer desconhecido algures na Crimeia ou no Cáucaso. Mas a minha sorte talvez chegue de outra maneira, aos poucos.

‑ Mas a tua mãe dizia‑te para rezar a Deus. Tu rezas?

De boca ainda aberta, Prillup vai passando o olhar devagar do tecto para a bolsa de tabaco balançando no ar. Depois, pálpebras e pestanas velam‑lhe a luz castanha dos olhos. Passa‑se um momento em silêncio antes que ele responda, vigoroso:

‑ Vou à igreja, não vou? E às vezes até a encontros de leitura da Bíblia.

‑ Sim, mas a isso toda a gente vai.

‑ Mas antes não havia nada como isto para eu pedir a Deus. Nada por que valesse a pena rezar, nada que eu quisesse assim tanto.

‑ Então sempre acreditaste no teu pai, e só há pouco tempo é que começaste a acreditar na tua mãe, não foi?

Com um encolher de ombros, Tõnu dá um ou dois resmungos enquanto dirige novamente o olhar inquiridor para o tecto. Por fim, põe um rosto sério e exclama triunfante:

‑ És mesmo tolinha! O Yaan Kuru não se pôs de joelhos para rezar a Deus estes anos todos, pois não? Antes de tomar conta do negócio da venda do leite de Mâekúla na cidade. E se achas que ele rezou, enganas‑te redondamente. O Yaan só começou a dar graças à mesa com as mãos postas quando começou a ficar com a carteira recheada. Só depois de encher os bolsos é que começou com as leituras da Bíblia lá em casa.

Mas o negócio do leite apareceu sozinho, caiu‑lhe do céu aos trambolhões, por assim dizer. Um dia, foi chamado ao escritório e o barão disse‑lhe que ele podia tomar conta do negócio do leite a partir do próximo dia de São Jorge, se ele quisesse, só porque era o que vivia mais perto da herdade. Foi de repente, como um raio dos céus.

‑ Porque é que o homem que lá estava antes desistiu do negócio?

‑ Era leiteiro também da herdade vizinha e alugou uma quinta maior para começar a negociar em leite fresco. Olha, acho que na altura o Yaan nem teria uns cem rublos poupados... Mas talvez tivesse, porque ficou com o melhor pedaço de terra para a lavoura. Bem, seja como for, andou por tudo quanto era parente, os dele e os da mulher, e lá conseguiu arranjar o dinheiro que precisava para começar, para dar de garantia e para comprar a carroça e os barris. E um belo dia, acredites ou não, o Yaan Kuru tornou‑se leiteiro, como qualquer outro leiteiro. Bem, como qualquer outro também não. Ao princípio havia uma grande diferença entre ele e os outros, lembro‑me disso como se fosse ontem.

Agora, Tõnu sente que encontrou o tom certo para a sua conversa. Mas dar‑lhe‑ia maior prazer se pudesse falar com o cachimbo na boca. Estende o braço para o alcançar, mas o cachimbo não está no lugar do costume, à cabeceira da cama. Está pendurado nos lábios de Mari, cheio de tabaco fresco, e ela está mesmo prestes a acender um fósforo.

‑ Mas que coisa! Para que queres tu amargar a língua?

‑ Quero experimentar. Não tarda já to dou.

Com ar sério e pensativo, ela puxa duas inspirações ao cachimbo, que lhe puxa um canto da boca para baixo. Está sentada de mão em volta do joelho e de cada vez que fuma mais um pouco, as bochechas contraem‑se‑lhe para dentro do rosto, na aspiração do ar, e os lábios empinam‑se. Depois de uma ou duas tentativas, ela lá consegue expelir para o ar um anel de fumo azul.

Mas Tõnu não tem grande sentido de comédia. A mão está pousada, lassa, à espera do cachimbo, enquanto ele continua a falar. Em geral, nem é grande falador. Dez frases por dia é mais ou menos o que se dá ao trabalho de proferir. Mas hoje começou a gostar do assunto, pelo que continua a falar tanto que vestígios de espuma começam a aparecer‑lhe nos cantos da boca. E quando Mari lhe passa o cachimbo, ele não se aborrece minimamente por o tabaco já estar meio queimado e já só dar para meia dúzia de inspirações.

‑ Bem, quando o velho tolo começou a ir ao mercado, ia de sandálias de couro. Os outros leiteiros só olhavam para ele a pensar de onde teria vindo aquele pedinte: uma vergonha para a profissão. Fizeram lá uma combinação entre eles, como nos disse depois a Madis Kulp, daquela taberna onde os leiteiros costumam parar. Pois disse ela que eles um dia, mesmo à hora mais movimentada, juntaram uma delegação que foi ter com o Yaan com um par de botas velhas muito bem remendadas com chapas na sola e tudo. E então falaram com ele com muita delicadeza e disseram que tinham ouvido dizer que ele fazia anos, e se ele não queria aceitar aquele presentinho. E antes que o Yaan pudesse abrir a boca, sentaram‑no na carroça do leite, arrancaram‑lhe as sandálias dos pés e calçaram‑lhe as botas. E a multidão no mercado a ver aquilo tudo! Foi uma partida e tanto que lhe pregaram! Mas depois é claro que não ficou com as botas. Assim que o mercado fechou atirou‑as para outra carruagem qualquer. E da vez a seguir, o Yaan apareceu na cidade de botas. Eram de couro curtido caseiro, mas ele besuntou‑as com alcatrão até cima. Depois é que comprou um par de botas pretas a sério. Só que não bastava um par de botas para fazer do Yaan um leiteiro a sério. Não tarda os outros leiteiros encontrarem outro defeito nele. Um dia, dois deles agarraram‑no pelos braços, mas de forma amigável, e levaram‑no, a dizer que pagavam eles. O Yaan pensou que o iam levar à taberna por detrás da Câmara Municipal.

Mas mesmo ao lado há um barbeiro, e foi para lá que foram, cortar o cabelo ao Yaan... Mas isto tudo já foi há muito tempo. Ainda nem dois anos tinham passado e já o Yaan andava a empinar o nariz, e à medida que o tempo passava, começou a abanar cada vez mais a cabeça enquanto andava. Aos olhos dele, nós deixámos todos de ser homens. Agora somos só pedintes e maltrapilhos. Agora, em tudo quanto é taberna daqui até à cidade, só se fala na pipa de dinheiro que o Yaan ganhou.

‑ Tenho dinheiro, pois tenho! ‑ cantarola Mari, imitando a voz melodiosa de Yaan.

‑ Ora bem. Até tu já o ouviste. Há muito falatório nas

costas dele.

‑ Mais do que hei‑de conseguir gastar ‑ continua Mari abanando a cabeça, imitando. ‑ As crianças hão‑de gastá‑lo um dia.

‑ He, he, he! Tens boa memória, tu! ‑ Prillup larga risadinhas enquanto lhe põe a mão no ombro. ‑ E o Yaan tem tanto jeito em levar a conversa para o assunto do dinheiro, sempre o dinheiro. Mesmo que a conversa seja sobre o cata‑vento na torre da igreja, ou sobre um escaravelho ou sobre um ancinho, é certo e sabido que o Yaan Kuru há‑de acabar a falar dos montes de dinheiro que tem. E se fores tu a ter o bom senso de levar a conversa para o lado certo, ele até é capaz de esquecer a tua baixa condição e de te fazer um favor.

Prillup passa o cachimbo de um canto da boca para o outro. O canto do olho esquerdo estremece um pouco e os dedos dos pés, que aparecem ao fundo da cama, debaixo do cobertor, mexem‑se impacientemente. E quando, por fim, ele continua a falar, a voz surge‑lhe grave de um ponto bem fundo no peito:

‑ Mas se pensarmos... o Yaan até tem razão. Ele sabe do que fala. E se alguém tem alguma coisa a dizer... eles que experimentem enfrentá‑lo. Não se consegue impedir uma galinha de cacarejar depois de ela pôr um ovo. É natural. O rato pode rir‑se à vontade do gato, escondido no seu buraco no chão. Mas um rato é um sempre rato e um gato é um gato. E o gato comeu bem enquanto que o rato passa fome. Pois se não queres ser um rato, sê gato. Mas até essa altura chegar, hás‑de rir do gato por inveja, e o gato há‑de te espicaçar de propósito quando te vir, para que o invejes. Acho que toda a gente por aqui gostava de estar no lugar do Yaan Kuru, para se poderem gabar pela igreja e pelas lojas. Mas assim, temos de nos calar e de baixar a cabeça ao Yaan quando ele está por perto. Sabias que todos os estalajadeiros, desde a igreja à cidade, curvam a cabeça quando o Yaan passa, e nem sequer recebem assim tanto dinheiro das mãos dele. Ele nunca bebe nada mais forte do que vinho de mel e nem sequer fuma. Vai e volta à cidade como uma mulher. E até da história das botas e do corte de cabelo já ninguém se lembra.

Entretanto, Mari tem estado a apanhar moscas e a prendê‑las contra o cobertor, com a mão esquerda fechada. E quando volta a cabeça, encara os olhos castanhos do marido, que se calou finalmente e a encara com uma expressão quase dolorosa. Ela liberta então as prisioneiras e desiste de caçar mais.

‑ Sim, e depois?

Durante algum tempo, Tõnu não continua. Coça a face aqui e ali com o bico do cachimbo, depois atira o cachimbo ruidosamente de volta à cabeceira da cama. A maçã de Adão ergue‑se acentuada, ao engolir fundo. E agora a voz dele está rouca e cada palavra é como que forçada a sair, ainda que ele tente falar com uma indiferença calma.

‑ Não há muito mais a dizer. A não ser que agora ele vai comprar uma herdade.

‑ Oh!

‑ O Yaan Kuru é leiteiro há nove anos e agora vai ser proprietário de terras. Começou a carreira com sandálias de couro, agora há‑de calçar botas de pelica e fazer‑se transportar de carruagem.

‑ Está só a gabar‑se, tenho a certeza.

‑ A gabar‑se ou não... qualquer um se gabava se tivesse o que ele tem.

‑ Se calhar ele nem sabe contar dinheiro.

‑ Com isso não te rales. Lá contar dinheiro sabe ele, mesmo que mal consiga ler uma frase num livro. Dá erros a escrever que parece uma criança. Há herdades de vários tamanhos, sabes. Ele não haveria de querer Kaikna, ou Tapu, ou nem sequer Sárgvere. Há‑de deixar Máekúla para o velho e Viduste Kaikna para o leiteiro que ocupou o cargo o dobro do tempo. Mas Laipsalu e Mudriku também são herdades, e há outras deste lado da cidade e do outro, tanto no nosso país, como na Livónia e na Rússia... Mas estás‑te a rir de quê?

‑ Imagina o Yaan Kuru numa carruagem! É mesmo para rir. Com aquela cabeça a dar a dar!

‑ Não te rales tu com a cabeça dele. Não há nada de errado com ela. Vê mas é se as rodas do coche dele não te atropelam no Verão que vem, ou no próximo.

As mãos de Prillup estão entrelaçadas debaixo da nuca e ele vai dando pancadinhas na ponta da cama com os dedos dos pés.

‑ Talvez ele não compre uma herdade, ele ainda não decidiu. Se encontrar algumas quintas de lavoura boas talvez as compre. Hão‑de servir tão bem como uma herdade. E mesmo que ele se gabe de ter mais do que tem na realidade, mesmo que as poupanças dele só sirvam para duas quintas, ou mesmo uma quinta grande... meu Deus, isso não prova, ainda assim, que vale bem a pena andar a vender leite durante nove ou dez anos? Agora, pode bem fazer‑se de lorde e deixar a mulher fazer‑se de dama. E não há‑de levar muito tempo a poupar dinheiro suficiente para comprar uma carruagem, se não o tiver já poupado. E tu a dizer que é só conversa! Que sabes tu disso? Digo‑te eu que não é só gabarolice. Ele disse‑me o mesmo a mim ainda no outro dia, mesmo à minha cara, e a mulher dele também estava lá.

E pode‑se ver nos olhos de um homem e no tom de voz se ele está a sério ou não. E o próprio barão disse (lembras‑te daquela vez que eu lá fui), disse‑me que o negócio da leitaria era uma mina de ouro, e que o Yaan...

Mas de repente o falante repara que já não tem ouvinte.

Olhando pela janela, Mari vê as crianças em correria pelo jardim, com as camisas de dormir, o cão saltitando e ladrando no seu encalço. Estão todos acordados e com energia. Mari dá um salto leve e destro por cima do incansável falador, pula para fora da cama e sai do quarto. Quando, por fim, o pai Prillup se volta para a pequena janela, avista os três lá fora, nas suas compridas camisas de dormir brancas, salpicando água do poço uns contra os outros e rindo, enquanto o cão corre desesperadamente em volta, sem saber ao lado de quem deve lutar.

Durante algum tempo, Tõnu permanece quieto, o rosto sem expressão. Para preencher o vazio do momento, põe o ouvido à escuta para o zumbido de moscas. Elas emaranham‑se nos pêlos do peito dele, na barba, vão andando pelo braço peludo acima, atravessam‑lhe os pés e as pálpebras, mas Tõnu não as enxota. Vai bocejando até doer e solta uns gemidos agudos, como um cão com pulgas. Só então atira as pernas para fora da cama e, depois de vestir as calças, senta‑se ao canto do quarto, perto da janela, e apoia os cotovelos nos joelhos. Segurando a cabeça com ambas as mãos, vai dirigindo o olhar inquieto para o chão enquanto, no quintal, ecoam os gritos alegres e o riso solto.

De repente, parece que Prillup avista a primeira mulher, Leenu, de pé no meio do quarto iluminado e zumbindo de moscas. O coração dele dispara, como que para recebê‑la.

Ah, sim! A Leenu saberia o que fazer. Ela era sensata. Era gémea.

Mas a ela, nunca ninguém desejara.

E porque é que ela tinha de trabalhar de sol a sol, e porque é que fazia os outros trabalhar? Meu Deus! Que bem é que isso nos fez?

Uma mágoa surda enche a alma de Prillup. Ali está Leenu, de pé: pobre, ossuda, seca como um bacalhau, as mãos sempre ocupadas mas nada que pudesse mostrar como fruto do seu trabalho. Mas ela sempre concordara com ele. Apoiava‑o em todos os momentos, olhava‑o nos olhos e bebia‑lhe as palavras. Ele deseja que ela tivesse ficado com ele durante mais tempo. Porque havia ela deixado o lar e o marido sem mais nem menos?

Mas por outro lado, não se pode negar que ela se queixava demasiado. Estava sempre a queixar‑se, de manhã à noite, ralhando com tudo e todos, dos animais às pessoas, dos animados aos inanimados. Era até capaz de botar defeito num tronco de lenha ou num ramo, como se estivessem vivos. Durante os últimos anos, o seu rosto murcho pareceu definhar como um fungo, severo e amargo. Era o tédio, aquele seu constante resmungar, apesar de se ter tornado um hábito do qual ela já nem tinha consciência nos últimos anos. Ainda mais porque começara então a proferir as suas queixas num tom de voz cada vez mais baixo; as palavras de desprezo eram apenas murmúrios contidos, como que ditos apenas para si própria. Parecia um hábito inato, como o zumbido instintivo do moscardo. Mas mesmo assim era cansativo. Até as crianças dificilmente o suportavam, chegavam a evitar a mãe sempre que podiam. Quanto a Tõnu, esse, não podia fazer mais do que cerrar os punhos, ranger os dentes e ficar calado.

Mas pensando nisso agora, ela nem fazia aquilo de propósito, por rancor. Pelo contrário, ela fazia‑o para fazer um bem aos outros, esforçava‑se por ser útil à família. E talvez aquela parteira competente tivesse tido razão, quando o primeiro parto de Leenu se prolongou demasiado e acabou por lhe custar a vida do primeiro filho, e a parteira disse que desde o princípio, Leenu sofria de um mal que lhe fora infligido por um mau olhado durante a gravidez.

Uma nova vaga de mágoa inunda Tõnu, e uma solidão amarga de viúvo enche‑lhe o peito. Perdido na dor, ele inclina a cabeça ainda mais sobre o chão e move os lábios murmurantes numa confissão ao chão poeirento que tem aos pés: tudo o que foi com Leenu para a cova era seu também, e ela havia‑lhe pertencido completamente e por inteiro, apesar de tudo.

Prillup ainda está assim sentado quando o trio ruidoso e alegre entra pela casa em algazarra. As camisas de algodão grosso estão molhadas, os pés enlameados e a água escorre‑lhes pelas pernas. Rindo e empurrando‑se conversam sobre a grande brincadeira e sobre o estado em que estão agora, praticamente sem reparar no pai da família, a quem esses divertimentos passam ao lado. As crianças continuam portanto em alegre tagarelice até que Mari veste a saia e lhes ordena que se vão vestir. Então, Mari começa a pentear o cabelo emaranhado em frente a um espelho minúsculo.

De repente, alguma coisa mudou, pensa Tõnu, olhando pela janela.

Quando estes três entraram em casa com grande estardalhaço, como três potros maliciosos, ou melhor, como uma égua jovem com dois póneis, algo luminoso se espalhou pela casa e lhe entrou no peito ‑ algo que expulsou o que lá havia antes.

É melhor assim. Sim, é melhor assim, na verdade. Muito

melhor.

E não havia necessidade nenhuma de trocar isto seja pelo que for. Para quê? Está decidido, então. De uma vez por todas!

Isto não pode mudar (não pode!) e o olhar de Prillup vai passeando lentamente pela figura de Mari, que se penteia. Não, não pode mudar. Não pode!

De repente, levanta‑se de um salto e aproxima‑se dela sorrindo, essa mulher que tomou o lugar de Leenu. Gostaria de lhe dizer qualquer coisa, de fazer qualquer coisa, mas não sabe o quê e por isso passa‑lhe apenas um dedo pelo pescoço e dá um estalido de satisfação com a língua, como o orgulhoso dono de um potro belo e saudável, quando afaga carinhosamente o bicho.

 

Mas aqueles ataques súbitos não o abandonam durante muito tempo.

Livra‑se de um, logo lhe aparece outro.

As palavras do barão são como um insecto venenoso que agora se alojou no peito do lavrador.

Ele morre, mas logo volta à vida. Às vezes passa o dia morto e é reavivado à noite, outras vezes é ao contrário.

E de cada vez que volta à vida, aparece mais activo do que antes, despertando uma febre que cada vez mais lhe corrói o coração.

Não estaria certo nem justo que Tõnu zombasse de Yaan por levar sempre a conversa para o seu tema favorito: ele próprio tornou‑se num mestre nessa arte. Com uma diferença, porém: se Yaan fala daquilo que lhe está mais próximo do coração a tudo e a todos, os discursos de Tõnu são invariavelmente dirigidos à mesma e única ouvinte, que se vê obrigada a escutar a mesma interminável conversa vezes demais.

Tõnu não lhe dá descanso, porque também não tem descanso.

É como um dono de escravos porque o seu amo o trata como um escravo.

Num dia, ele reza para que ela tenha mais sensatez, no dia seguinte deseja que ela seja tola.

Mas Mari não é nem sábia nem tola, e por isso as constantes insistências dele não o levam a lado nenhum.

Mari tem sono pesado e não gosta de se levantar cedo. Ela boceja e espreguiça‑se e indigna‑se com a brevidade das noites de Verão.

‑ Por ti, dormias até às dez, não?

‑ Pois dormia.

‑ Ou talvez até ao meio‑dia?

‑ Às vezes.

‑ Bem, há mulheres que podem dormir até que horas quiserem.

Bocejando, Mari espreguiça-se com tanta volúpia que minúsculas lágrimas lhe vertem dos olhos.

‑ Pois, suponho que haja, sim.

‑ E não é por nascerem em berço de ouro que podem fazer isso.

‑ Pois, pois.

‑ Uma chega lá de uma maneira, a outra de outra.

‑ Como sempre.

‑ E há gente que nem repara quando a sorte lhes bate à porta.

‑ Sem dúvida ‑ admite Mari, com um bocejo fundo e demorado.

‑ A Senhora Kuru podia dormir até ao meio‑dia, se quisesse, e daqui a um ano ou dois, em lhe apetecendo só se levanta à noite.

‑ Que pena que eu não sou mulher do Yaan ‑ ri Mari, expulsando finalmente a sonolência e saltando da cama.

No Verão, os lavradores têm que labutar de manhã à noite.

Mari trabalha por fases e arrancadas: às vezes é muito diligente, mas outras vezes não lhe apetece fazer nada. Nessas alturas, é o tédio que lhe pesa sobre os ombros. Os olhos brilham‑lhe com lágrimas por chorar e ela não tem a mínima vergonha em fazer uma longa pausa para descansar a meio do dia. E é evidente que as tarefas domésticas menores também são feitas sem grande cuidado.

Mas de uma forma ou de outra, Tõnu consegue sempre tirar partido destas negligências no trabalho doméstico da esposa.

‑ Sim, Mari, minha querida, o trabalho é duro. Muito duro, para alguns. Mas não é culpa deles que tenham de trabalhar tanto. Não são bons para o trabalho pesado, Deus nosso Senhor não os fez para isso. Sempre observei e achei que há dois tipos de pessoa no mundo: os camponeses e a gente requintada, e esses dois tipos não são feitos da mesma carne. Pois a carne que tens em cima dos ossos, Mari, é a de uma dama.

‑ Então está bem. Vou passar os dias deitada a olhar para o tecto, senão estaria a pecar contra os desígnios do Senhor.

‑ Bem, e porque não? Podias muito bem fazer isso mesmo. Bastava‑te reparar em que direcção é que aponta o dedo do Senhor.

‑ Grande dedo, não haja dúvida! A apontar para um segundo homem!

O modo como Mari levanta as sobrancelhas é suficiente para fazer com que Tõnu se cale, como se a pá de um escavador tivesse embatido em metal. Ele perde a fala, os pensamentos, e às vezes vê‑se até obrigado a virar a cabeça para fugir ao olhar penetrante dela, que parece atravessá‑lo e vê‑lo por dentro.

Há dias de desconfiança, seguidos de dias esperançados, e por entre esses há dias em que Prillup vai caminhando até ao solar para largar o seu «Não!» em cima da mesa do barão e arrumar o assunto de uma vez por todas. Só que acaba sempre por voltar atrás a meio do caminho. Uma vez, chega mesmo até à porta. E sempre que Prillup topa o velho fora do solar e receia que as circunstâncias dêem azo a uma conversa privada, ele vira as costas à última hora para evitar um confronto. Espera ardentemente ser convocado ao escritório mas receia tal convocatória.

E agradece a paciência que o barão tem demonstrado para consigo. Às vezes, deseja que o assunto já tenha sido esquecido e receia esse esquecimento. E quando por fim acontece eles encontrarem‑se, Tõnu fica amedrontado mas, ao mesmo tempo, aliviado. Encontram‑se por acaso no prado, perto da casinha de Prillup. Ele detém‑se a meio caminho, o coração dá um baque momentâneo, como se tivesse repentinamente deparado com um urso adormecido. Os olhares dos dois homens cruzam‑se e desviam‑se de imediato. Durante um momento, estão os dois sem palavras. Kremer afunda‑se um pouco mais na meda de palha em que estava deitado, com o boné apoiado no joelho, enquanto que o vento lhe faz dançar os longos bigodes.

‑ Ora, ora, Prillup, já não aparecias há muito tempo.

Só agora é que Prillup começa a brincar nervosamente com o chapéu que tem nas mãos. Tirou‑o da cabeça, mas deteve a mão lá em cima para coçar a nuca, como se esperasse que aquela troca de palavras fosse breve.

‑ Não tinha nada a dizer a vossa mercê, senhor Kremer.

‑ Ah, então não queres ser um homem de negócios?

‑ Um homem de negócios? Até podia pensar nisso... Mas o senhor barão estava mesmo a sério?

‑ Que diabo! ‑ Herr von Kremer ergue‑se da sua cama de palha, sentando‑se. ‑ Então achas que eu falei contigo só para me divertir!

‑ Não, não pensei nada disso, claro. Bem, a verdade é que já falámos bastante sobre isso, mas não me cabe a mim decidir, como vossa senhoria sabe.

‑ Ah, então é a Mari que está contra.

‑ Pois, é assim mesmo, sim senhor.

O barão coloca o chapéu na cabeça e agarra o cajado. Ambos olham simultaneamente em volta para se assegurar que não há ninguém em posição de os ouvir.

‑ Está com medo de quê, ela? Do falatório dos outros?

‑ Sim... isso também, sem dúvida.

‑ E que mais?

Tõnu arrasta os pés pela terra.

‑ Sabe‑se lá! Ela é enigmática. Não consigo compreendê‑la. Debaixo das sobrancelhas espessas, as pupilas nos olhos

grandes e salientes de Herr Kremer dilatam‑se e o rosto dele adquire uma expressão que não estava lá antes. A mão de Tõnu, ainda agarrada à aba do enorme chapéu de palha artesanal desce‑lhe da cabeça até ao ombro, do ombro até ao peito.

‑ Ouve lá, Prillup, não me estás a dizer a verdade. Eu sei que a Mari concorda. És tu que estás contra!

‑ Se o barão o diz...

‑ Sei, sim senhor. A Mari não é parva. Ela ia gostar de viver, e ia saber viver, tem mesmo cara disso. Mas és tu que não a deixas. Ficas ressentido com ela se ela tiver uma vida melhor.

Prillup está calado. A boca pende‑lhe aberta, ele vai olhando em volta, como que à procura, a mão esquerda está esquecida sobre a anca, afagando‑a: o lavrador está a ser confrontado com algo completamente novo.

‑ Talvez. Talvez fique mesmo ressentido com ela. Um pouco, mas ela não disse nada sobre isso, nem uma palavra, nem sequer deu a entender.

‑ Ora bem! És muito esperto, tu! ‑ Herr Kremer levanta‑se. ‑ Então achas que uma mulher há‑de vir ter contigo e pedir‑te, quando se vê perfeitamente que tu estás contra. És muito esperto, sem dúvida!

Kremer vira as costas ao adversário e movimenta‑se como se se fosse embora, só que os passos demoram‑se. Ainda murmura por cima do ombro:

‑ Cada homem é que sabe como é que trata dos seus negócios. ‑ E Prillup repara que ele tem o pescoço vermelho, de fúria.

Mas não é apenas o pescoço do barão que está vermelho. Todo o rosto está vermelho, até os olhos parecem de um vermelho incandescente, tanto que o velho cavalheiro nem consegue ver com clareza. Kremer julga sentir uma pontada ou duas na região do coração, lá onde está a válvula doente. Mas não é a fúria que lhe corre nas veias. Ao contrário do que Prillup pensa, trata‑se apenas de uma profunda insatisfação consigo próprio, cuja essência amarga é: Ich hãtte mich mit dem Kerl nicht einlassen solkn!(1)

Mas então, revela‑se que Herr von Kremer ainda não tem motivos para se desiludir consigo próprio: Prillup não o deixa partir ‑ é evidente que o acordo ainda não caiu por terra.

‑ Por favor, que o meu senhor não se ofenda ‑ a mão de Prillup que segura o chapéu está de volta à nuca. ‑ O que eu quis dizer é que ainda não tomámos nenhuma decisão do nosso lado, a coisa ainda não está bem assente. Será que o barão nos podia dar mais algum tempo para falar sobre o assunto?

O rosto de Kremer perdeu de imediato a tez vermelha. Ele vira um tudo‑nada o seu corpo anafado na direcção do lavrador mexendo com veemência as sobrancelhas e os bigodes para cima e para baixo. Quando fala, a sua voz áspera recupera o usual tom sereno:

‑ O tempo que precisares, Prillup.

‑ Pois bem, pois bem.., o senhor barão não nos estabeleceu nenhum limite de tempo, claro. É muito paciente. Mas não consigo fazer melhor. Tudo tem os seus espinhos, naturalmente... Aliás, já tudo poderia estar em ordem. ‑ Aqui, a boca de Prillup torce‑se num sorriso, até os olhos tentam pedir desculpa ‑ se o barão fosse, por assim dizer, um pouco mais jovem. Mas sendo as coisas como são, ela já assim está sobrecarregada com um homem velho...

 

*1. Nunca devia ter‑me metido com este sujeito! (Alemão)

 

‑ Ela disse isso? ‑ O corpo de Kremer volta‑se mais um grau na direcção de Prillup.

‑ Isso não exactamente. Não se atreveria. Ser barão faz diferença, é claro. Mas é fácil de imaginar que... Bem ela sendo assim tão nova... Uma pessoa assim tão jovem não entende logo tudo de uma vez quando a gente lhe fala destes assuntos. Ela é como uma criança.

‑ Mas que idade tem ela, afinal?

‑ Vai fazer vinte e um a meio de Agosto, pelo que me dizem. Mas a questão não é essa. É que aquela gente da paróquia da Floresta... eu conheço‑os porque trabalhei lá nas quintas deles. Aquela gente não cresce mesmo a sério até já ter rugas na testa e pés de galinha nos olhos, e há quem não ganhe juízo nunca, até morrer.

‑ Nesse caso, ainda tenho muito que esperar!

‑ Bem, não, meu senhor. Nem todos são assim. Alguns percebem as coisas quando ainda são novos e capazes de aprender. Eu também conheço pessoas assim daquela paróquia, e a Mari não é... como o barão mesmo disse...

Chegado a este ponto, o velho cavalheiro, que não acredita numa palavra da longa algaraviada de Tõnu, põe um fim abrupto à conversa.

‑ Bem, deixemos a coisa por aqui. Outro dia passas lá por casa e dás‑me a resposta.

E ao dar meia volta e ao erguer o cajado, ainda acrescenta:

‑ E diz‑lhe que não tem que se preocupar com o falatório das comadres desde que ela saiba manter a boca fechada e tu também, Prillup.

E em seguida, depois de dar uns passos:

‑ Aliás, até pode ser ela a passar lá por casa uma noite destas e dizer‑me.

Tõnu viu‑o passar a mão esquerda pelo peito e pelas costas, como se estivesse a sacudir qualquer coisa de cima do corpo.

E depois, dando impulso com o cajado, desapareceu por entre os arbustos.

A partir desse dia, Tõnu Prillup mudou de táctica: agora não havia métodos subtis; o lavrador ia sempre directo ao assunto. Não insistia demasiado, não fazia exigências nem tentava convencer com falinhas mansas ‑ isso não lhe pareceria justo, ainda que, nalgumas ocasiões, ele fosse capaz de arranjar coragem para conversas dessas. Agora, Tõnu estava incansável nos seus esforços, tentando que ela finalmente aceitasse o plano, mostrando‑lhe sempre o lado bom da ideia, pintando‑o com cores vivas e atraentes, e terminando os discursos sempre com a mesma pergunta: «Então, Mari, minha querida, o que é que achas?» E, do mesmo modo que agora lhe chamava sempre «querida Mari», tentava também tornar a oferta cada vez mais tentadora e começava, por isso, a encurtar cada vez mais o período de tempo necessário para que o exigente negócio do leite os levasse ao objectivo glorioso.

Ele calculava que cinco anos, ou talvez seis ou sete, no máximo, seriam suficientes para poupar dinheiro suficiente para comprar uma pequena quinta, para começar. Não precisavam de almejar uma grande herdade. Isso facilitaria as coisas ao princípio, mas a longo prazo exigiria mais tempo para atingir o objectivo final. Nas suas meditações em relação ao objectivo imediato, Tõnu só hesitava em relação aos assuntos de pouca importância: se compraria uma quinta de lavoura normal ou uma quinta com um moinho para moer farinha, ou uma terra com madeira para vender, ou uma onde pudesse abrir uma loja. Contudo, mantinha‑se sempre fiel à ideia do solo fértil, nunca perdia de vista os campos verdes e os prados luxuriantes, porque o que ele queria, no fim de contas, era erguer‑se orgulhoso na sua terra, como Yaan Kuru, cujas palavras ele repetia com tanto gosto.

Mari ficava parada, como um cão a quem alguém coça as dentadas das pulgas. Nunca dizia nem sim nem não, e à medida que o tempo passava já quase nem se dava ao trabalho de troçar do marido e dos argumentos dele. Nada lhe perturbava a paz de espírito, ela limitava‑se a sorrir vagamente, com a mente vagueando longe, ou então olhava para o lado, como era seu hábito, por vezes coçando atrás da orelha, por vezes rompendo o silêncio cantarolando uma melodia qualquer. Mas quando um pica‑pau debica o tronco de uma árvore, mais cedo ou mais tarde descobre onde são os pontos ocos, pensava Tõnu. Mas eu continuo a picar dia após dia e não tenho nenhuma resposta. Não conseguia entender, simplesmente porque se esquecia que nem todas as árvores davam respostas afirmativas ao pica‑pau. Tõnu começava já a duvidar do resultado, tal como o próprio senhor da herdade, e duvidava ainda mais agora, que sabia que o barão também estava duvidoso.

E então, certo dia, aconteceu uma coisa que levou Prillup a pensar que, afinal de contas, talvez a sua árvore tivesse mesmo um ponto oco.

Estavam sentados ao pé da vedação, onde Mari tinha um tacho ao lume a cozer batatas para o jantar e Tõnu afiava a lâmina de uma gadanha. Tinha estado novamente a fazer o seu discurso e tinha chegado ao ponto em que punha o pé no solo escuro e rico de uma grande quinta. Partindo do princípio que Mari tinha saudades de casa, acabou o conto dizendo:

‑ E íamos para a paróquia da Floresta, perto da tua casa em Ruisu. É para lá que íamos. O que é que dizes a isso, Mari, minha querida?

‑ Porque não para a cidade? ‑ perguntou Mari, fitando absorta o lume.

‑ Para a cidade? Mas o que é que...?

‑ Há tanta gente diferente na cidade, e tantas coisas bonitas...

Só um segundo mais tarde é que o marido se apercebeu do completo significado daquela afirmação. Ficou de boca aberta, a gadanha escorregou‑lhe para o chão, a mão direita cravou os dedos à volta da faca, que segurava rígida perto do joelho.

E, num ápice, a memória de um pequeno incidente passou‑lhe como um relâmpago pela memória, uma observação que fizera e que agora o ajudava a entender a linha de pensamento de Mari.

Mari fora à cidade pela primeira vez na sua vida (o que não era nada de extraordinário para essas mulheres do campo) quando o casal foi lá às compras, em preparação para o casamento. Ela tinha passado o dia no sétimo céu, num mundo à parte onde, a cada passo, descobria algo de novo. Chegava a ser algo embaraçoso; ela parava constantemente para olhar espantada para as coisas. Várias vezes se perdeu entre a multidão e Tõnu tinha de andar à procura dela, como de uma criança perdida. E no fim do dia, quando Tõnu foi tratar de uns assuntos onde a presença da noiva não era necessária, ela perdeu‑se vagueando pela cidade mais uma vez e chegou à carruagem para voltar para casa com duas horas de atraso. O tempo passara tão depressa enquanto ela olhava para «as pessoas e para as coisas». E vinha com as bochechas coradas de prazer.

No regresso a casa, tinha vindo séria e pensativa, e mal abrira a boca. Mas assim que chegou a casa, vinha a rebentar com as novidades que tinha para contar; tantas que lhe davam para falar durante dias e dias. E ainda agora, recordava pequenos episódios que as crianças ouviam muito atentas, de boca aberta. Mari vira e ouvira mais na cidade numa hora do que Tõnu a vida inteira, e isto apesar de ele ter ido à cidade várias vezes nesse ano.

Então é para a cidade que ela quer ir.

Quanto a Tõnu, não havia nada que ele quisesse menos do que isso. Na cidade, sentia‑se sempre supérfluo, a proximidade das coisas parecia estrangulá‑lo e ele sentia crescer uma raiva contra todas aquelas pessoas, que pareciam ter conspirado para lhe dar puxões e encontrões e para lhe barrar constantemente o caminho. Dava graças a Deus cada vez que se afastava de lá e pensava consigo próprio como era possível que as pessoas suportassem uma vida daquelas. Mas o pior era que tudo tinha de ser comprado, a terra não dava nada, qualquer pedaço de comida em que ferrássemos o dente tinha de ser pago com dinheiro. Tõnu tinha um medo da vida citadina fechado bem no fundo de si. Mas para quê fazer estas ponderações tão cedo! Ainda muito tempo falta até chegar o dia em que seja preciso tomar a decisão final. Por essa altura, já a companheira há‑de estar mais madura, e mesmo que ela insista em levar a sua avante... Bem, as pessoas tanto vivem em cidades como no campo, não é verdade? Por agora, a árvore respondera ao pica‑pau, que acreditou ter encontrado o sítio onde se escondiam as deliciosas minhocas do seu alimento. E por enquanto, era isso o mais importante. Por isso, Prillup respondeu à mulher:

‑ Sim... Podíamos ir para a cidade. Porque não?

E não disse mais nada.

A conversa foi interrompida por uma lâmina invisível.

E não apenas naquele dia. Tõnu não se atreveu a tocar no assunto durante vários dias depois desse.

Naquele momento, limitou‑se apenas a fazer um gesto vago com a mão, como que a dizer que havia ainda muito tempo para pensar nessas coisas, e a levantar‑se do assento para ir até à barraca da debulha, como se tivesse qualquer tarefa urgente à sua espera lá dentro.

Dificilmente teria o lavrador sido capaz de explicar o que se passava consigo, mas sentia‑se neste momento muito mais seriamente confrontado com a questão do sim ou não do que alguma vez sentira antes. Aliás, deparava‑se agora com a mais ridícula das questões: transformar‑se‑ia ele em Yaan Kuru ou permaneceria Tõnu Prillup? Agora, que a sua parceira no negócio parecia disposta a pagar a sua parte do preço, Prillup sentia‑se assaltado por dúvidas: e se estivesse a fazer um mau negócio? Como uma lebre presa numa rede, sentia‑se acossado por uma apreensão infantil: como poderia ele dar um dos três membros da sua família a outra pessoa? Sentia agora que nutria alguns ressentimentos contra o generoso cavalheiro, exactamente como ele lhe insinuara, vexado, durante a conversa no prado.

Neste estado de espírito perturbado e inquieto, Tõnu perdeu o apetite e passou uma noite sem sono e sem descanso, até decidir que precisava de se ajoelhar e rezar a Deus por ajuda e bons conselhos. Aconteceu, porém, que esse confidente estaria provavelmente sobrecarregado com vários pedidos, e ocupado com os assuntos de qualquer outro pobre lavrador, pelo que Tõnu esperou em vão pela resposta. Foi então que decidiu consultar uma vidente.

Vivia ela na aldeia de Tapu e respondeu prontamente ao pedido do lavrador. À laia de introdução, os dois conversaram algumas banalidades sobre a vida em ambas as margens do rio, com a mulher enchendo constantemente o nariz de rapé. Tõnu não pronunciou uma palavra sobre o assunto que o afligia, mas assim que a vidente lançou as cartas, viu nelas, como num livro, que havia alguma boa sorte no caminho de Prillup ‑ só que ele tinha de ser perspicaz, não fosse perder a oportunidade. Havia obstáculos no caminho, avisou ela, e era preciso saber ultrapassá‑los. No fim, as cartas sujas e malcheirosas pronunciaram um veredicto breve e secreto: quem nada dá, nada tira. Que este homem do outro lado do rio se lembre sempre: quem nada dá, nada tira.

E com estas palavras misteriosas, Tõnu levantou‑se.

Tomou as mãos dela nas suas, agradecendo‑lhe, e prometeu voltar lá no Outono para lhe pagar um pouco mais. Dito isto, saiu.

Quem nada dá, nada tira... Quem nada dá, nada tira...!

A caminhada pelo meio do charco de casa de Sutsu até à cabana de Prillup demorava uma boa hora, mas Tõnu percorreu a distância em quase metade do tempo.

O medo dava‑lhe asas nos pés, fazia‑o fugir. Medo de que a vidente estivesse no seu encalço para lhe vir tirar algo da revelação que lhe fizera. Quando alcançou o rio e pôs o pé na ponte para o atravessar, chegou mesmo a olhar para trás, na direcção de Sutsu e a soltar uma risada quando não viu ninguém. E na outra margem, pôs‑se novamente a caminho a toda a velocidade, com a água salpicando debaixo dos pés, sem sequer saber porque ia com tanta pressa e pensando apenas que, nesse domingo, queria passar mais tempo em casa para melhor poder pôr o seu plano em acção. Só quando chegou à colina que antecede a sua aldeia, onde se deteve um pouco para calçar novamente as sandálias (ninguém precisa de saber que ele veio do charco), é que Tõnu abrandou finalmente o passo. Ao subir a colina, sentiu os joelhos fraquejar e a cabeça envolta num tumulto confuso.

Encontrou a mulher deitada na relva do pátio com três livros abertos debaixo do nariz. Mari tinha o estranho hábito de ler vários livros ao mesmo tempo, um excerto de um, depois de outro. Insistia que nada se misturava na cabeça dela e que entendia todos os livros na perfeição. Aliás, desempenhava os deveres domésticos segundo o mesmo princípio: começava qualquer coisa aqui para logo a largar ali. Considerava este método bastante mais racional e mais conveniente, também. Estava absolutamente segura do seu modo e não havia troça ou riso que tivesse o mínimo impacto em si. O espólio literário de Mari consistia numa dúzia de romances e livros de poesia amarelentos que trouxera da casa do pai e que lia e relia sabe Deus quantas vezes. Quanto à biblioteca de Prillup, mais não tinha do que uma mão cheia de livros religiosos e uma agenda na qual nada tinha sido escrito.

Sentindo a aproximação de Tõnu, a leitora ergueu, por um instante, o olhar do livro que lia, mas apenas até à altura dos joelhos do marido. Depois, continuou a ler, imperturbável. Nunca tinha tido o hábito de lhe perguntar onde estivera.

Ele estendeu‑se na relva ao lado dela e começou a encher o cachimbo. Estava contente por ela não lhe prestar atenção: dava‑lhe tempo para pôr as ideias em ordem e para acalmar a voz ‑ havia ainda algo de instável que lhe inquietava a garganta.

‑ Aonde foram os miúdos? ‑ perguntou então, à laia de tentativa.

‑ À Pajusi, acho eu ‑ disse Mari, voltando‑se para outro livro.

‑ Zangaram‑se?

‑ Não. Apetecia‑me ler, mais nada.

Tõnu puxou umas baforadas do cachimbo, com inspirações fundas. O céu crepuscular lançava uma tonalidade rosada sobre o quintal, produzindo um brilho suave nos cabelos de Mari e nas páginas brancas dos livros.

‑ Não chegámos a acabar a nossa conversa ‑ começou Tõnu, pousando a mão sobre a anca dela.

Mari continuou a ler. Parecia ter encontrado algo de muito interessante e, levando a mão à anca sem reparar, afastou a de Tõnu, como se o peso da mão do marido a incomodasse. Mas ainda assim, ouvira o que ele dissera, e assim que chegou ao fim do episódio emocionante perguntou casualmente:

‑ Qual conversa?

‑ Não te lembras? Estavas a dizer que querias ir viver para a cidade. Que achavas que assim que ganhássemos um pouco com a venda do leite podíamos ir viver para a cidade. Bem, eu precisei de parar um pouco para pensar nisso; é que a ideia é nova para mim... Sabes, sempre fomos gente da terra e o trabalho no campo já faz parte da nossa natureza. Mas, depois de pesar os prós e os contras... olha, uma cidade é um sítio tão bom para se viver como outro qualquer. Sem preocupações com o gado, nem com a palha, nem com a colheita do milho... Está tudo pronto e à mão. Basta comprar, comer e viver como os fidalgos. Sabes, podíamos arranjar uma das casas maiores e se nos apetecesse, abríamos uma loja, ou outro negócio qualquer. E se não nos apetecer aborrecer‑nos com essas coisas, podemos só deixar crescer o dinheiro. Ora bem! Aí hás‑de ter todo o tempo que quiseres para sair e olhar para as pessoas e para aquelas coisas todas! Que dizes, Mari, minha querida?

Antes de responder, Mari ainda leu várias linhas do livro. Quando falou, fê‑lo sem levantar os olhos.

‑ Podes ficar com a venda do leite depois do Yaan comprar a herdade dele.

‑ Depois do Yaan comprar... ‑ As pernas compridas de Prillup estremeceram e ergueram‑se um pouco do chão, e os lábios dele torceram‑se num sorriso. ‑ Não digas tolices. Quem é que me havia de passar o negócio para as mãos nessa altura? Não vês que o velho já está irritado porque a oferta dele não foi aceite tão depressa como ele esperava? Ele faz‑nos uma oferta generosa e agora tem de ficar à espera e pôr‑se a regatear como um tolo! Porque é que não vais lá e acabas com isso de uma vez por todas? ‑ Prillup falou suavemente, com um leve tom de censura, deixando as palavras escorrer macias pela barba cerrada.

‑ O assunto pode ficar arrumado agora mesmo. Basta tu calares a boca.

‑ Mas então tu... não queres?

‑ Não!

Os olhos castanhos de Prillup fecharam‑se por um instante, como se lhe tivessem dado uma pancada na cabeça. Tirou o cachimbo da boca, depois voltou a pô‑lo, depois tirou‑o novamente e pô‑lo na boca outra vez.

‑ Mas tu prometeste... Disseste...

‑ Eu disse que gostava de viver na cidade, se pudesse.

‑ Se pudesses! Mas podias, se...

A leitora virou uma página. Não mexeu um único músculo do rosto, mas as palavras de Tõnu morreram‑lhe nos lábios, as veias no pescoço começaram a inchar e a garganta deixou escapar um som abafado, como se estivessem a asfixiá‑lo. Prillup deixou‑se ficar deitado durante algum tempo, imóvel como um tronco. Depois levantou‑se e entrou dentro de casa em passos largos. Pareceu a Mari que os joelhos lhe tremiam ao andar.

 

No seu tempo, o falecido Aabram Prillup tivera dúvidas sobre a quem se deveria rezar em caso de problemas económicos: se a Deus se ao Diabo. Para não correr riscos, o filho pedia conselhos a ambos os dignatários, mas de nada lhe serviu. O primeiro envolvia‑se numa nuvem de silêncio, o que provavelmente significava que as queixas de Tõnu não tinham lugar nos ficheiros dele, enquanto que o segundo falava com palavras demasiado ambíguas por intermédio das cartas malcheirosas de Sutsu, a cartomante de Triinu, que apenas lhe diziam: não deixes que a sorte te fuja, não te deixes derrotar pelos obstáculos que tens no caminho. Pois falar era fácil, mas o que fazer? Tõnu bem desejava que os poderes dos céus e do inferno, que guiavam as acções dos homens, fossem mais explícitos e se lembrassem das limitações espirituais do ser humano. Só as palavras sobre dar e receber é que não eram assim tão obscuras. Claro que o filho de Aabram estava pronto a dar. Mas que fazer se a dádiva recusava, ela própria, ser dada, que fazer se o problema já não era a sua simples teimosia mas sim uma decisão firme e final? Que havia ele de fazer agora? A que diabo é que poderia ele recorrer agora, ou que coisa deveria ele tentar evitar?

Mais uma vez, Prillup decidiu que não havia meio, não valia a pena, melhor seria largar o assunto e pronto. Mas, chegado a essa fase, ele haveria invariavelmente de desenterrar no dia seguinte o que enterrara no anterior, insuflando esperança nos pulmões daquilo que parecia já morto e impossível. Seria tudo muito fácil se o destino prometido por Sutsu fosse pequeno. Só que este poderia vir a tornar‑se bem grandioso, pelo menos tão grandioso como o próprio Tõnu esperava, ou talvez maior, bem maior do que tudo isso. E por isso, valia a pena lutar. Tõnu não deveria descansar, não deveria poupar tempo nem energia, sono ou apetite, para alcançar esse destino maravilhoso. Talvez ele ainda consiga resolver o problema, talvez consiga puxar a alavanca certa, talvez algum golpe de sorte lhe aponte o caminho a seguir.

Mas, infeliz, os dias foram passando e nada lhe indicou que tivesse havido o mínimo progresso.

Tõnu encontrou um pretexto para enviar a mulher à cidade, na esperança de que os encantos originais da vida citadina lhe quebrassem a teimosia, no desejo de que ela viesse a aceitar melhor os planos dele. Mari foi então à cidade de comboio e passou um dia inteiro entre os encantos e os prazeres da urbe. Mas não voltou com metade do entusiasmo pela vida na cidade do que trouxera na primeira ocasião, declarando resoluta que a cidade estava vazia e fútil e que o calor tinha estado insuportável.

Foi então que Tõnu resolveu tentar a sorte com subornos a dinheiro. Prometeu‑lhe todos os lucros da venda dos vitelos, que ele venderia enquanto rendeiro da quinta de lacticínios de Máekúla, e assegurou‑lhe que poderia gastar esse dinheiro como bem entendesse, desde o primeiro dia. Também lhe prometeu uma parte fixa dos lucros da venda da manteiga e até insinuou que «o outro» não seria mesquinho com questões de dinheiro e que certamente haveria de acrescentar mais uma quantia ou outra aqui e ali.

Mas Mari sorria apenas um sorriso breve e dizia:

‑ Como são generosos, vocês os dois!

Alturas houve em que Prillup até pensou em aconselhar o barão a tomar o assunto nas suas mãos e a dar à rapariga alguns conselhos paternais: talvez a palavra de um barão tivesse mais impacto do que a de um simples camponês. Só que esta alternativa também tinha os seus inconvenientes: talvez Mari largasse alguma resposta atrevida e estragasse tudo.

E então, um dia de manhã, a governanta de Màekúla mandou dizer que Mari devia ir ao solar esfregar o soalho, e como o barão não tinha ido a Sàrgvere nesse dia ‑ Tõnu tinha‑o visto a passear nessa manhã ‑ talvez a convocatória da governanta tivesse partido do desejo do barão de falar com Mari a sós. Ou talvez não passasse de coincidência. Prillup teve, assim, de aceitar uma situação que não estava nas suas mãos mudar, e limitou‑se a esperar pelo melhor e a rezar para que tudo corresse bem.

Mas Mari respondeu à mensageira com a mais vergonhosa impertinência:

‑ Não, não vou. Eles que chamem a mulher do vaqueiro. Antes, o trabalho era dela e ela precisa do dinheiro mais do que eu.

Á saída do portão, Tõnu conseguiu interceptar a mensageira e rogar‑lhe que não repetisse o que Mari dissera; antes, que dissesse no solar que Mari não estava em casa.

‑ Deus nos valha! ‑ berrou Tõnu com indignação íntegra e vigorosa. Ainda por cima, acabara de lhe ocorrer outro lado da questão. ‑ Não vês que ele te quer a ti?, que ele te considera sua? Podia ter chamado outra pessoa qualquer, o mundo está cheio de mulheres e de raparigas, mas ele quer‑te é a ti, só a ti! Porque é que não podes respeitar os desejos dele, ou será que não sabes quem ele é e quem tu és?

Mas a teimosa Mari não cedia um milímetro. Rompeu em gargalhadas quando o viu juntar as mãos em desespero, perplexo. Entre ataques de riso, lá conseguiu dizer:

‑ Não, não posso! Não posso! Tenho respeito por mim mesma. Nunca te apercebeste disso?

Mari raramente ria, e mesmo quando ria, fazia‑o de forma sóbria e discreta. Prillup nunca a tinha visto rir um riso tão malicioso.

A mente dele tornou‑se um vazio; vácuo completo. Como se tivesse um bloco inerte de madeira em vez de uma cabeça em cima dos ombros. Estava mergulhado num pasmo confuso; ao andar, sentia que os pés estavam à beira de uma ladeira íngreme e que o próximo passo o lançaria num abismo sem fim. Na sua confusão, sentia que dificilmente conseguia controlar os movimentos das mãos. Tinha de fazer um esforço consciente para levar a forquilha na direcção certa, quando andava a carregar as ervas daninhas para fora do campo. À noite, deitava‑se exausto, de membros entorpecidos, e a cama debaixo do seu corpo parecia balançar como um barco sobre as ondas.

E foi neste estado de fraqueza e desespero que ele mais uma vez recorreu aos poderes superiores, apenas meio consciente do que fazia.

Começou a ler a Bíblia e a ordenar aos filhos que se sentassem de mãos postas à mesa. Depois da missa, ia aos encontros religiosos para rezar em comunhão e insistia que a mulher fosse consigo à Eucaristia, ainda que mal tivessem passado três meses desde que eles lá tinham estado depois do casamento. A anterior indiferença que nutria pela religião tinha desaparecido, de tal modo que Prillup chegava agora ao ponto de tentar fazer com que a mulher compreendesse que tinha de fazer a sua parte e viver como uma verdadeira cristã. As crianças eram obrigadas a recitar o Catecismo e não tinham autorização para ir para a cama sem antes rezar o Pai‑Nosso. E o pai exigia o cumprimento destas regras com tanto fervor como se ele próprio sempre lhes tivesse devotado o maior respeito.

Estes passos indirectos no sentido de uma vida mais santa depressa o levaram a desejar uma comunhão directa com Deus em assuntos da maior importância para si. E estava desejoso de começar.

Era provável que a sua impaciência o levasse a aproximar‑se do Senhor antes de ser a sua vez, pelo que Prillup se viu obrigado a uma longa espera. E esta longa espera de novo o levou a inclinar‑se para os Poderes das Trevas.

Certo domingo, depois da missa, Prillup encontrou por acaso aquela mulher, Sutsu, no caminho que ia da porta da igreja até ao portão. Apressou‑se então a mandar Mari à loja para comprar pão e, após um olhar significativo e um aperto de mão, conduziu Triinu para longe da multidão. Queria ele saber se a vidente teria algum remédio para uma mulher que se opunha ao marido em certas questões ‑ pouco importava quais ‑ e se havia maneira de a pôr submissa, de a fazer ficar mais razoável.

Ainda sã e vigorosa, apesar da idade, a Mãe Sutsu era uma mulher discreta e respeitável, impecavelmente vestida de preto. Seus olhos maternais irradiavam tolerância e amizade para com os vizinhos. Entre esses olhos calorosos, um nariz grande, largo e abatatado na ponta, protuberante e com uma tez escura causada pelo uso constante do rapé. E enquanto a senhora voltava a encher as narinas do pó, guardado numa caixinha brilhante, o nariz escureceu ainda mais ao ouvir os problemas de Prillup. A vidente usava um chapéu redondo, castanho‑avermelhado debruado a renda e que lhe pousava sobre a nuca mas sem lhe dar um ar afectado, porque deixava à mostra uma franja de cabelo castanho que, unida ao brilho do rosto dela, ofuscava tudo o resto.

É claro que ela conhecia um remédio apropriado. Aliás, para cada mal havia sempre um remédio, disse ela, e em alguns casos, havia vários. Então, com todo o bom senso e sem o mínimo de curiosidade inoportuna em relação aos problemas que afligiam Tõnu, a cartomante começou a instruí‑lo, depois de um breve momento pensativo em que contemplou o cata‑vento no cimo da torre da igreja. O amigo Prillup tem de cortar uma madeixa do cabelo da mulher sem ela notar na noite de São Bartolomeu. Depois, tem de tirar alguma cera do ouvido direito dela e sujidade debaixo da unha do dedo grande do pé direito ‑ tudo isto sem ela saber. Em caso de urgência, outra noite qualquer também servia. Depois, ele precisa de levar todas estas coisas a Sutsu, e então ela há‑de lhe acrescentar alguns ingredientes da sua lavra e dizer as palavras necessárias. Feito isso, Prillup terá de usar o amuleto num pequeno saquinho debaixo da camisa até que a cura comece gradualmente a resultar.

Mas a noite de São Bartolomeu era distante demais para satisfazer Prillup, o assunto era demasiado urgente, insistiu ele.

Nesse caso, também dava para fazer o encanto numa noite de quinta‑feira antes da lua cheia. Claro que na noite de São Bartolomeu era melhor, mas talvez ela conseguisse acrescentar algum ingrediente para compensar o defeito. Posto isto, as despedidas disseram‑se às pressas, porque uma rapariga com olhos em lágrimas estava a caminhar a passos largos por entre as campas da nobreza em direcção à Mãe Sutsu. Pelos vistos, o canto do cemitério por detrás da capela, onde tinha tido lugar o encontro, já tinha servido por várias vezes de retiro para consultas secretas com a cartomante mais famosa da paróquia.

Para Tõnu, cortar uma madeixa de cabelo da mulher foi tarefa simples, porque Mari tinha o sono pesado. Nem a sujidade da unha lhe causou grandes dificuldades. Mas quanto a extrair cera do ouvido ‑ aqui é que surgiu o problema. Durante algum tempo, nem sequer houve cera alguma nos ouvidos de Mari, porque ela os lavava regularmente. Quando finalmente apareceu alguma no ouvido esquerdo, não havia nada no ouvido direito, e quando, por fim, Mari ganhou cera no ouvido direito, as cócegas da palha no ouvido acordaram‑na antes que o marido pudesse extrair uma partícula que fosse de cera. De outras vezes, a esposa adormecia sobre o lado direito do corpo, precisamente no momento em que Tõnu se ia pôr ao trabalho. Assim, o marido ia observando e esperando em vão. Acabou por desistir quando, certa noite, Mari acordou e lhe bateu, rosnando irritada:

‑ Porque é que não és capaz de deixar os meus ouvidos em paz?

Por fim, Tõnu viu‑se obrigado a ir ter com a Mãe Sutsu sem lhe levar a cera.

Com a falta desse ingrediente, e dado que a madeixa de cabelo não tinha sido cortada na noite de São Bartolomeu, a vidente não teve a certeza de conseguir garantir o sucesso do feitiço, ainda que tenha tentado encontrar substitutos para os elementos em falta. Fazendo votos de que tudo corresse pelo melhor, cortou o cabelo aos bocadinhos, misturou‑os com a sujidade da unha e com outras substâncias misteriosas enrolou o preparado numa pequena bola que não tinha nenhuma cor distinta. De entre a ladainha que entoou em seguida, Prillup apenas compreendeu as últimas palavras: «Sic‑a‑nic‑a‑lic‑a‑loc‑a‑vondaa‑daa.»

Até bem recentemente, Prillup havia sido completamente imune a superstições de bruxarias. E agora, ali estava ele, saindo da casinhota de Sutsu com aquela bolinha malcheirosa pendurada ao pescoço.

Com o amuleto debaixo da almofada, Tõnu passou finalmente a conseguir dormir; a esperança de que o seu plano lhe traria sucesso agia como morfina sobre os seus nervos. Mas à medida que os longos dias iam passando e a teimosia de Mari não dava sinais de abrandar, à medida que todas as tentativas de Prillup para lhe falar ao coração falhavam, as longas noites de insónia foram regressando: a cama voltou a transformar‑se num barco instável debaixo do seu corpo e ele voltou a sentir os pés prestes a precipitarem‑se num abismo.

Chegou a altura em que Tõnu sentiu que tinha de se apressar. Não havia tempo a perder. Um homem como von Kremer nunca se deixaria ridicularizar. Mas tudo tem os seus limites, e mais cedo ou mais tarde ele há‑de deixar de querer aquilo que hoje cobiça. Com pensamentos destes a ocupar‑lhe a mente, grande foi o alarme de Prillup quando, certo dia, se cruzou com o velho senhor no campo de aveleiras atrás do celeiro e este passou por ele, mudo e solene, respondendo ao cumprimento de Tõnu apenas com um ligeiro movimento do nariz.

Agora, que se via ameaçado pela possibilidade de vir a perder tudo, o castelo dos sonhos de Prillup ergueu‑se à sua frente mais altivo e atraente do que nunca. O negócio dos lacticínios era a sua única saída. Ah, poder encher as mãos de dinheiro, poder viver atolado em dinheiro! Até então, a maior quantia que alguma vez segurara nas suas mãos trémulas tinha sido o dinheiro que pagara por um vitelo esquelético ou um cavalo velho. Na maior parte das vezes, o dinheiro que tinha para contar não passava de alguns copeques; apenas raramente lhe vinha parar às mãos um rublo ou outro. E saber que os outros iam ouvir falar da sua prosperidade! Poder falar de centenas com toda a normalidade, de milhares, para toda a gente ouvir! E comer carne de porco quando os outros comiam peixe seco e salgado. Saber que era invejado! E para lá dos limites da herdade, o castelo dos seus sonhos erguendo‑se esplendoroso: Prillup nunca mais seria escravo, passaria a ser senhor; não o oprimido, mas o opressor; nunca mais estremeceria ante o canto do galo de manhã, antes teria o prazer de observar os estremecimentos dos outros e de os ver levantar‑se de madrugada. E muitos levantar‑se‑iam da cama em sua honra, apenas para o servir. Ter bens! Bens que se medissem em extensão, em largura e altura, e todos esses bens legalmente seus, com um título de propriedade em papel passado, preto no branco. Tudo lhe pertenceria e toda a gente invejaria as suas posses, para sempre suas, suas para a eternidade! E todas as vozes do céu e da terra cantavam‑lhe estas palavras ao ouvido: «Meu, só Meu».

Prillup sentou‑se à sombra de um arbusto, tirou o amuleto mágico do pescoço e mirou‑o. Rápido! Sê rápido! Faz qualquer coisa! Mas a bola já estava seca e o remédio já sem seiva.

Num repente, a dúvida cravou‑se‑lhe na pele como uma ferroada de vespa: o poder mágico já se esbateu e morreu!

Pareceu‑lhe então que uma mão gelada lhe percorreu o corpo. Suores frios escorreram de todos os poros da pele, e uma pergunta nebulosa começou a formar‑se na sua mente confusa: o que vai ser de mim agora? Agora, o que é que há‑de me ajudar? Pois se mesmo Ele, o Todo‑Poderoso não atendera as orações de Tõnu; Ele que devia ajudar um homem desesperado, faltou‑lhe com o apoio de que precisava.

Mas o corpo tinha soçobrado e o rosto pousado na terra quando Tõnu se lembrou subitamente de um conselho já há muito esquecido.

Prillup recordou então o velho avô materno, sentado num tronco no quintal, com a sua camisa de linho branca apertada com um alfinete redondo e antiquado. Aquela cabeça grisalha tinha já quase cem anos de idade, de farta barba branca em volta do maxilar quadrado. Era um velho falador e alegre, com uma ternura que irradiava dos olhos cansados, uma ternura que havia encantado três esposas, que vieram todas a morrer antes dele. O avô tinha o costume de brincar com as crianças, e quando se dedicava a alimentar‑lhes algumas pérolas de sabedoria, pelo meio dos jogos e das brincadeiras, o conselho que mais frequentemente lhes repetia era o de que não perturbassem, sob pretexto algum, Deus Nosso Senhor com orações. Os queixumes e os desejos humanos não lhe deviam ser endereçados, pois que Deus tinha assuntos mais importantes para tratar: tinha de encaminhar o sol e a lua nas suas órbitas, tinha que acender as estrelas, fazer o clima, substituir a lua velha e gasta por uma nova todas as quatro semanas... Nem o Filho Dele teria tempo para ouvir os lamentos das pessoas; pois esse tinha o trabalho de vigiar, dia e noite, e de avisar as pessoas sobre iminentes guerras ou pragas, e para além disso, ainda era obrigado a controlar o Diabo.

E a ocupação do Espírito Santo era a de dar a ambos um conselho sensato sempre que necessário.

Mas quem escutava as penas das pessoas, quem lhes respondia, graciosa, às preces era a Virgem Maria, e apenas ela. Se alguém chamasse pela Virgem em alturas de desespero, não chamaria em vão. Diz‑se que foi por causa da ajuda dela que um certo barão se viu obrigado a enfrentar o seu destino, para já não falar de um meirinho e de um administrador, que se viram de repente chamados ao reino das profundezas. Se havia muitas preces que nunca chegavam a ser respondidas, isso era simplesmente porque as pessoas não sabiam a quem rezar.

Nenhum dos mais velhos acreditava no avô, nem sequer as próprias filhas. Na missa, nos círculos de oração e no crisma ensinavam‑lhes outro tipo de religião. Aliás, depois de uma conversa com a mãe, até Tõnu adquirira o hábito de zombar da fé que o velho depositava na Virgem.

Mas agora... Agora... Tõnu levantou‑se de um salto e apressou‑se em direcção a casa. Aí chegado, entrou decidido no celeiro, ajoelhou‑se por entre caixotes vazios e sacas meias cheias e ergueu a voz em desespero, fitando as teias de aranha que se penduravam lá em cima nas traves poeirentas do tecto.

Rezou à Virgem Maria do fundo da alma. Não compreendia ela que Tõnu estava certo? Tudo o que ele pedia era a oportunidade de viver melhor. Não teria ele sofrido já, que bastasse, com os tormentos da vida? Se tudo estivesse bem com Tõnu, tudo estaria bem com Mari, e também com as crianças. Todos precisamos de vergar um pouco a nossa vontade, pois toda a gente sabe que a fidalguia nunca dá nada a ninguém. Por isso, que a Virgem Maria ilumine a mente infantil de Mari e a faça ver tudo o que há a ganhar. Faça com que Mari não mais se recuse a pagar a sua parte do preço. Que a esposa disponha de hoje, amanhã e depois para pensar, mas depois disso, que ela venha ter com ele e lhe diga: «Agora já compreendo. Estou pronta.»

E Tõnu acabou a sua oração com uma promessa fervorosa de se manter fiel à Virgem Maria até ao fim dos seus dias.

Mas agora, a oração tirara‑lhe tantas forças que os joelhos se recusavam a obedecer. Com o coração palpitante, Tõnu pousou a cabeça cansada sobre a borda de uma tina de farinha e deixou que as lágrimas corressem livremente.

Quando finalmente se recuperou e se ergueu, sentiu‑se iluminado por uma tremenda felicidade, como se tivesse acabado de lavar a alma. Achou que havia falado muito bem. Em breve, um simples sim ou não haveria de lhe provar o valor do conselho do avô, e o prazo de três dias que havia estabelecido poupou‑lhe uma série interminável de ralações. Certamente que a sua ajudante divina reconheceria a rectidão da sua prece. Tõnu não estava a invadir a liberdade de ninguém, a sua mão não tentava alcançar o pão ou o abrigo de outrem, pois que a longo prazo, pouco importava se Yaan Kuru comprava a sua quinta daí a um ano ou daí a dois.

Nos três dias que se seguiram, a tensão cravou‑se em volta dele como uma garra. Todo ele era olhos e lágrimas. Passava o tempo a estudar cada linha do rosto da esposa, pesava cuidadosamente cada som que os lábios dela proferiam, seguia‑lhe todos os gestos com os olhos. E em cada movimento da cabeça, julgava ver a mudança esperada a apoderar‑se do rosto dela. Quando Mari acordava de manhã, quando se encontravam a meio do dia para o almoço, quando Mari se lhe dirigia com alguma pergunta, o coração de Tõnu estremecia e vacilava. «É agora», pensava ele. Passou esses três dias em concentrado silêncio, tentando esconder qualquer gesto ou atitude que o denunciassem. limitava‑se a sorrir carinhosamente a Mari. Este era um Tõnu que ela nunca vira antes; nem sequer durante os primeiros dias de casamento tinha Mari sido tão bem tratada por ele.

Quanto a Tõnu, parecia‑lhe que Mari andava excepcionalmente calada: calma, séria, pensativa, especialmente no terceiro dia, o último.

Tõnu interpretou este recolhimento como um bom presságio. Era exactamente este o modo como ele previra que ela se suavizaria e aceitaria, por fim, a vontade do marido. Acabado o jantar, pegou solenemente no seu cachimbo e sentou‑se na «poltrona» à espera. Não passava de uma cadeira de verga que Prillup havia tecido nas noites de inverno e almofadado com um pedaço de feltro. Ele não costumava sentar‑se nela senão aos domingos.

Mas Mari entrou, então, vinda do celeiro ou do armazém, tagarelou um pouco com as crianças na cozinha, e assim que entrou no quarto, começou a desapertar ganchos e botões com dedos ágeis. Bocejando com gosto, deixou‑se cair na cama com um suspiro de alívio.

‑ Vai haver trovoada esta noite. Sente‑se no ar ‑ comentou.

Tõnu deixou‑se ficar sentado e calado.

‑ O nosso centeio já está maduro. Tõnu não mexeu um músculo.

Agora ela estava deitada em silêncio. Aqui e ali, um breve ressonar soltava‑se‑lhe dos lábios e pouco depois tudo o que se ouvia era a respiração regular de pulmões jovens e saudáveis.

Na sua cadeira cerimonial, o observador deixou que o cachimbo lhe caísse dos lábios e escorregasse até ao colo. Os contornos da sua figura fundiram‑se com a escuridão que começava a encher o quarto.

Lá fora, o trovão começava já a ribombar, o cheiro da terra húmida e da chuva esgueirava‑se pela janela e os raios azuis dos relâmpagos rasgavam a escuridão.

À luz desses lampejos azulados e fortes, os olhos encovados do homem mudo pareciam negros e insondáveis.

 

As noites foram ficando cada vez mais longas, mas isso de nada serviu a Tõnu Prillup, que dormia cada vez pior. O sono fugia‑lhe. Quando conseguia fechar os olhos durante algum tempo, era imediatamente acordado por sonhos aterrorizadores. Antes de tudo isto, costumava dormir como uma pedra, mas agora, Mari queixava‑se constantemente que Prillup resmungava e falava enquanto dormia. Uma vez esteve à beira das lágrimas e noutra ocasião chegou até a tentar cantar uma melodiazinha.

A maior parte desses sonhos inquietos era tão breve que o sonhador não conseguia recordar nada ao acordar de manhã, excepto o sentimento de ter passado a noite aflito. E quando a memória conseguia, apesar de tudo, guardar alguma coisa do que fora sonhado, eram sempre fragmentos sem qualquer sentido que depressa caíam no esquecimento.

Mas certa noite, Prillup teve um sonho que recordou durante muito tempo, e desta vez nem sequer foi um pesadelo. Uma jovem foca subiu aos pés da cama e sentou‑se em cima dele. Deixou‑se ficar ali sentada, fitando‑o, com o estranho focinho torcido num sorriso amigável.

‑ Estás a olhar para mim porquê? ‑ perguntou Tõnu acariciando o focinho e o rosto do animal, que eram tão suaves como os lábios de um potro.

Era evidente que o animal sabia falar.

‑ Quero ver que espécie de homem és ‑ respondeu a foca claramente, ainda que com uma voz espessa e oleosa.

‑ Qual é o meu problema?

‑ O problema? ‑ repetiu a foca, torcendo o corpo. ‑ Grande homem me saíste! Nem sequer consegues que a tua mulher te obedeça!

‑ E então? O que é que achas que eu devia fazer?

‑ Dá‑lhe forte e feio, meu irmão. Forte e feio.

Com uma pata, a foca deu um beliscão no nariz de Tõnu e afagou o rosto da mulher com a outra. Depois, com um sorriso rasgado e simpático, pulou para fora da cama.

‑ Aonde vais agora?

‑ Eu? ‑ respondeu ela, agora distante e invisível. ‑ Vou percorrer o mundo e dar alguns conselhos a outros tolos.

Quando acordou, Tõnu soltou uma gargalhada. A expressão nos olhos da foca, a boca articulada e tudo o que dissera eram incrivelmente estranhos. E no entanto, Tõnu tinha a sensação de ter tido um encontro com uma pessoa real.

E esta foi uma pessoa que ele não esqueceu tão cedo, nem pela imagem nem pelas palavras que dissera. A foca começou a aparecer‑lhe frequentemente e a repetir as suas tolices vezes e vezes sem conta.

Até que, passado algum tempo, aquela história deixou de parecer assim tão tola, e as palavras entraram na consciência de Tõnu como se não tivessem sido proferidas por uma foca. Tõnu começou a ter acessos de fúria contra a mulher, porque o conselho lhe pareceu sensato ‑ tão sensato, aliás, que até poderia ter nascido na sua própria cabeça.

As primeiras tentativas não resultaram em nada: os olhos da esposa eram tão límpidos e brilhantes quando ela o olhava que lhe faziam nascer uma bola na garganta. Mas ele conhecia um remédio para isso. E quando regressou a casa certa noite, depois de passar pela loja ao pé da igreja para ir buscar a sua dose semanal de tabaco, Prillup vinha bem defendido contra aqueles olhos faiscantes.

Agora sim, saberia como atacá‑la.

Oh, se ao menos ele, pobre desgraçado, tivesse sabido que haveria de receber sobre os ombros o fardo de uma mulher tão inútil! Que sujeira, que desordem reinava naquela casa, que descuido! As poucas natas que têm lá em casa azedam, as galinhas põem os ovos sabe‑se lá onde, os barris da cerveja estão todos bolorentos, nem marido nem filhos têm uma camisa limpa para pôr sobre o corpo. E enquanto isso a dona de casa anda na boa‑vai‑ela pela aldeia com rapazes e raparigas. O marido chega a casa com fome e tem o cadeado pendurado na porta. Tem de voltar para trás e ir à procura da mulher ao pé dos baloiços para a chamar para casa!

A jovem esposa fita‑o, percebe que ele está bêbado e fica calada.

Ele continua o seu discurso irado:

‑ Tenho fechado os olhos ao descuido, tenho sofrido em silêncio quando outro homem qualquer já teria perdido a paciência há séculos. Não disse uma palavra sobre o quintal, onde há lixo por toda a parte, nem falei da vaca que vive atolada em estrume, nem do barril da cerveja que está pejado de bolor e que já não é escaldado sabe‑se lá há quanto tempo.

Aí, bebe um pouco de água do jarro e cospe‑a no chão.

‑ Água para porcos!

Ah, mas ela que se acautele! Até a maior das paciências chega ao fim, e Tõnu está a perder a sua. E quando se acabar a tolerância, pode ser que o mal que ela anda a fazer se volte contra si à vingança. Se ao menos ela fosse uma mulher que tentasse agradar ao marido, ou tentasse ver as coisas pelo lado dele. Ora, ela nem sequer quer saber das circunstâncias! Como aquela história do solar, por exemplo. Imaginem, sua senhoria não quer! Porquê? Sabe‑se lá! Nem sequer se digna a dar‑me uma razão.

Tem que ser sempre ela a ganhar. É isso! Quer lá ela saber dos prejuízos! Antigamente, não havia saia na aldeia que não pertencesse à nobreza. Pois o barão podia tomar quem quisesse e ninguém podia dizer um ai. Uma noiva era mulher do barão antes de dormir com o marido. E não havia cá escolhas ou meias escolhas! Um barão é barão quer seja novo ou velho, bonito ou feio. Ah, mas aqui a nossa Mari faz‑se de esquisita. Ele não serve. É velho demais. Ela quer antes um general jovem e bonito!

Tõnu detém‑se um momento, à espera, mas Mari continua calada. O silêncio dela enerva‑o.

‑ E agora perdeu a fala! Não tem nada a dizer em sua defesa, nem sequer consegue inventar uma desculpa qualquer. Se ao menos abrisse a boca, podíamos ir ao fundo da questão e perceber qual é o problema dela! Se ela viesse dizer que tinha medo de pecar... Mas não é pecado mortal se o marido disser que sim. Pecar todos nós pecamos, todos os malditos dias da nossa vida. Não há fim aos pecados que cometemos. E aqueles barões do antigamente que ficavam com as noivas dos outros também não eram nenhuns pagãos. Ou achas que o senhor da nossa herdade é pagão? Mas não, eles são todos tementes a Deus, ainda mais que nós camponeses. E o padre deles também é o nosso. E se fosse mesmo um pecado... achas que Deus e o padre iam apoiar uma lei para que o fidalgo pudesse ter cem mulheres? E nem tentes discutir comigo, que nem a tua língua afiada te pode valer!

Tõnu já tem a boca seca, por isso pega na caneca da cerveja e sorve uns bons goles. Mari está encostada ao poste da cama. Passa as costas da mão pela boca e coça o nariz.

‑ Ou bastava‑lhe vir ter comigo e dizer, «tenho vergonha das outras pessoas». Mas não vale a pena é começar com fingimentos! Não te disse já vezes sem conta... quem é que vai saber? E vocês não são crianças tolas, nenhum de vocês. E ele tem um apartamento na cidade, ainda por cima. E mesmo que houvesse falatório, e depois? Não deves nada a ninguém.

Ninguém tem nada contra ti. Qualquer pessoa que tenha os bolsos cheios não tem nada de que se envergonhar. E o falatório não faz mal a ninguém que saiba ir buscar o que precisa. Podes bem cuspir‑lhes nas caras. E se me disseres quem anda a espalhar boatos, eu vou lá e mato a rameira!

O punho fechado esbarra contra a mesa, num orgulho forte. Prillup ergue o olhar para ver que efeito é que as suas palavras tiveram na acusada, mas a escuridão ficou mais densa e ele não consegue vislumbrar nada através do negrume.

E assim continua, ralhando e ameaçando, lançando afronta após insulto ‑ tanto para afectar a mulher como para se afectar a si próprio, tentando ganhar fúria suficiente para a atacar com força bruta. Em pouco tempo, Tõnu chega ao ponto em que começa a ameaçá‑la, declarando que a partir daquele momento, a palavra dele é lei naquela casa, mesmo no que toca a este assunto. É então que, no meio da barulheira, ele começa a piscar os olhos enevoados na escuridão e repara que Mari desapareceu. Às apalpadelas, consegue chegar até à porta, que está meio aberta. Então é verdade; não foram os olhos que o enganaram.

Durante um momento, fica ali de pé, especado, rendendo‑se à evidência de que é absolutamente impotente; ou melhor, que não consegue usar o seu poder para comandar a mulher. Está em dúvida. Como deverá reagir a uma situação destas? É melhor assim, diz o seu lado melhor. E deixar as coisas como estão. Mas o outro lado insiste que seria uma fraqueza imperdoável deixar as coisas neste pé, e que essa fraqueza seria o equivalente a uma derrota. E é aí que a bebida que emborcara na taberna ao pé da igreja lhe serve de antídoto contra a fraqueza e lhe grita: Não desistas! Não vês que ela está só a desafiar‑te? Que espécie de homem és tu se não consegues vencer a tua mulher? E apoiando‑se ora num pé ora noutro, Prillup finalmente decide transpor a ombreira da porta.

Lá fora há muito mais claridade, num instante o olhar dele varre toda a extensão do quintal: mas ela não está lá. O marido procura no celeiro, espreita para dentro da cabana da debulha e do estábulo ‑ tudo em vão. Enquanto vai percorrendo o jardim, apanha do chão uma vara comprida e sólida. Talvez devesse chamá‑la? Não. Sabe‑se lá para onde é que ela poderia fugir se soubesse que ele anda atrás dela.

Não passa muito tempo até que Tõnu alcance a pequena horta na extremidade do terreno e a veja. Mari está sentada numa rocha em forma de pão, perto da vedação do terreno, com um brilho branco pálido em volta da cabeça, iluminada pelos raios da lua, que veio espreitar a noite por detrás de uma nuvem.

Só depois de se aproximar é que o marido repara que a esposa não está sozinha. Anni e Yuku estão sentados aos pés dela, escutando‑a de bocas abertas. Aparentemente, Mari está a contar‑lhes uma qualquer história ridícula que inventara ‑ as crianças nunca param de lhe pedir que lhes conte histórias, e Mari tem um talento fantástico para pegar num incidente qualquer sobre si própria ou algum dos vizinhos e inventar toda uma história em redor desse nada, um conto onde acontece toda a sorte de coisas impossíveis.

‑ Mari, vem contar‑nos outra história impossível, vens? ‑ pedem eles. E ela cede invariavelmente aos pedidos deles, ainda que, por vezes, tenha muito pouco para contar. Para além disso, Mari sabe descrever os acontecimentos mais ridículos com uma expressão tão séria e solene que as crianças gritam risos e pedem sempre mais.

Pois então, Mari não está sozinha. Esta eventualidade, Tõnu não tinha previsto; não se preparou para ela. Na verdade, não é que ele tenha o mínimo pudor em dizer seja o que for na presença daqueles fedelhos que estão ali sentados aos pés dela. Mas ainda assim, a situação parece ter mudado. E visto que afinal há ali três pessoas para enfrentar, em vez de apenas uma, Tõnu já não está tão seguro de si ao aproximar‑se.

Chegado à rocha onde a família está sentada, há mais uma coisa que o inquieta: todos os três o viram a aproximar‑se com a vara na mão e nenhum deles pareceu intimidado. A mais velha detém‑se a meio da história, a mais pequena pára de rir e os três pares de olhos fixam‑se no pai, calmos e imóveis. Na verdade, há quatro pares de olhos virados para ele, porque Kaaru, o cão felpudo, está aninhado entre o rapaz e a rapariga ‑ e é o único que parece sentir uma ponta de medo. Mas nem sequer Kaaru chega a fugir, apenas se senta e dilata as narinas, de olhos bem postos na vara de Tõnu. Em seguida, põe‑se a abanar o rabo, como que a pedir desculpa por não confiar.

‑ Ah! Ainda estás acordado. Pensei que já estivesses ferrado na cama.

O comentário casual de Mari, tão banal e amigável, derrota Tõnu: o castigador falhou. Em silêncio, dá consigo a pensar por que razão está ali de pé, porque é que está com aquela vara na mão. Que desculpa pode dar àqueles quatro pares de olhos que o fitam, e em especial a ela, que o desarmou tão completamente com aquela saudação tão amigável? Tõnu olha ora para uns, ora para outros. Não tem nada a dizer. Deixa‑se ficar em silêncio mais um pouco e por fim refugia‑se numa mentira:

‑ Ah, vim arrastar estas crianças malvadas para a cama. O que é que estão a fazer acordados a esta hora? Depois amanhã de manhã nem conseguem abrir os olhos. Vá, já para a cama!

O grupo dispersa‑se quando Tõnu começa a brandir a vara, e o jardim ecoa com os risos e os gritos das crianças. O cão ladra como nunca, tentando agarrar a ponta do pau, e Yuku conseguiu reunir coragem suficiente para entrar na brincadeira com o pai e o empurrar. O divertimento está no auge quando o poderoso adversário dos miúdos tropeça e cai estendido na relva com um baque forte, perdendo assim a batalha.

‑ Porque é que o pai não vem brincar connosco todas as noites? ‑ lembra‑se Anni de perguntar a Yuku, já à noite, na cama.

‑ Tola! ‑ boceja Yuku. ‑ Porque não é todas as noites que ele vai à loja buscar tabaco!

Yuku tem razão. Uma noite como aquela não há‑de voltar a acontecer. Talvez o pai não fume cachimbo tantas vezes agora, e por isso tão depressa não lhe volta a faltar o tabaco. E mesmo nos domingos em que ele pára para comprar tabaco depois da missa, isso não o leva a vir brincar com os filhos no jardim. Nunca mais voltará a brincar às guerras com eles.

Talvez tenha vergonha por ter perdido a batalha? As crianças sentem que nunca antes tinham visto o pai tão silencioso e tão distante como agora. Parece nem se dar conta da presença dos outros habitantes da casinhota, e não demonstra a mínima vontade de conversar. Como se os lábios se recusassem a formar palavras. As crianças reparam nos papos debaixo dos olhos do pai, cada vez maiores e mais roxos. Chegam até a partilhar estas observações com Mari.

Mas é verdade que os assuntos de Prillup não estão em ordem. Ele devia ir ter com o senhor da herdade mas não vai. Não tem forças para isso, não consegue simplesmente que os pés o levem até lá. Está constantemente à espera de ser chamado, pois nesse caso não terá alternativa senão ir, será obrigado a ir, seja como for. Só que a convocatória não chega e Prillup sente o coração cada vez mais pesado. Lá do alto da colina, o solar inacabado irradia algo de opressivo que se aloja no seu peito, algo que o seu cérebro cansado e confuso seria incapaz de definir.

Até o trabalho diário o desgasta. Os trabalhos obrigatórios na herdade entediam‑no, mas também lhe aborrece o trabalho que se vê obrigado a fazer na sua própria parcela de terra. Esse tédio vai crescendo até se transformar numa doença de nervos que o leva a pensar que está condenado a permanecer para sempre onde está: como um afogado que mal se consegue manter à tona e que não consegue alcançar a terra.

Entretanto, aquilo que fora outrora o centro da sua vida, a razão da sua existência ‑ o seu pedaço de terra, o cavalo velho, a vaca, o arado, o ancinho e o telhado que tinha sobre a cabeça ‑, ainda que fossem modestos e escassos, eram bens que Prillup estimava. Mas agora tudo lhe parece negro e oco e Tõnu odeia tudo isso com um ódio que se aproxima perigosamente da loucura. Agora, sente que não tem nada, que não é ninguém. Não consegue compreender porque é que ainda anda por aí, mexendo pernas e braços, porque é que continua a labutar, porque é que vê e sente, porque é que o cérebro continua a funcionar...

Mas também nem sempre se recolhe em silêncio, inexpressivo, com estes pensamentos negros. Por vezes, a irritação que sente exalta‑se numa ira desesperada, sem o mínimo propósito ou sentido. Então, dá um cruel pontapé ao cão, que não lhe fez mal nenhum, atira uma pedra a uma galinha que mais não fez do que cacarejar, bate no pobre cavalo, que já se está a esforçar ao máximo, e atira a gadanha contra uma pedra de propósito. Imediatamente a seguir arrepende‑se da violência que se apoderou de si, mas a tentação de se espicaçar a si próprio, de se incitar a continuar, é forte demais para lhe pôr fim.

Prillup vive num confuso e sombrio mundo crepuscular, numa atmosfera estranha e desumana. Parece estar constantemente em luta com um adversário secreto. Agora, o chão já não se move debaixo dos seus pés. Pelo contrário, ele sente que nem consegue tocar o chão, que não tem, aliás, qualquer chão debaixo dos pés. E certo dia, enquanto se ocupa a cortar os poucos pés de cevada que semeara no seu terreno, assalta‑lhe de repente a ideia de que o seu adversário o agarrou por trás e o vai arremessar bem alto até ao espaço, para um mundo que Tõnu desconhece mas que será sem dúvida mais escuro do que esta luz suave aqui em baixo.

Mari, que também está a colher cevada perto dele, observa o marido, que começa a recuar passo a passo, como se os olhos dele estivessem fixos nalguma visão dantesca. Com os joelhos trémulos, ele vai arrastando os pés, enquanto que a lâmina da gadanha, cujo cabo Tõnu agarra compulsivamente, vai cavando uma ruga funda no chão. Então, Prillup vacila e cai inerte sobre o monte de cevada cortada.

‑ Ele já se foi embora? ‑ perguntou mais tarde, com um sorriso, depois de Mari o reanimar com água fria do poço.

‑ Já se foi ‑ disse ela, arriscando uma resposta.

‑ Viste‑o mesmo a ir‑se embora?

‑ Sim, vi.

A esposa ergue‑o para que se sente. Ele olha em volta, confuso, como se fosse um estranho naquela terra. Depois toma consciência de onde está e arrisca um tímido sorriso envergonhado.

‑ Onde está a minha gadanha?

‑ Está ali.

‑ Bem, já é hora de... ‑ Mas Prillup não consegue levantar‑se sem a ajuda de Mari. E ao levantar‑se, os olhos abrem‑se‑lhe muito, de espanto. Como são fortes aqueles braços que sustentam o seu peso!

‑ Não, não! É melhor ires para casa deitar‑te. Eu acabo de cortar a cevada sozinha.

‑ Tolice! Não tenho nada de mal. Passa‑me cá a gadanha. Mas Prillup não consegue agarrá‑la, ela está demasiado

longe de si. E quando se baixa para a apanhar, ela parece afundar‑se mais e mais pela terra abaixo. Prillup não a alcança. Apoiando‑se na mulher, resolve‑se finalmente a ir até à casa e deitar‑se. Mari abre‑lhe as duas janelas e a porta, porque o marido se queixava da escuridão.

De volta ao campo, a esposa chama Anni, que está em casa do vizinho (hoje é a vez de Yuku apascentar a vaca ao pé do charco), e ordena‑lhe que vá vigiar o pai e que esteja por perto caso ele precise de alguma coisa.

Pouco depois, Anni volta para dizer a Mari que o pai adormeceu.

‑ Pus‑lhe uma caneca de cerveja num banco ao lado da cama e ele bebeu e voltou a beber até adormecer.

E dito isto, tomada de uma alegria infantil, começa a amontoar a cevada cortada com um ancinho, avançando pelo campo um pouco atrás de Mari. Uma ou duas horas mais tarde, a criança é mandada para dentro de casa mais uma vez para ver como está o pai. Ao regressar, informa:

‑ Fechei as portas e as janelas porque ele estava a tremer de frio.

E então trabalham até ao pôr do sol, falando pouco, à maneira dos bons trabalhadores. Anni, especialmente, tem um aspecto sério e calmo, perfeitamente consciente das suas responsabilidades.

Quando a pequena família se reúne no quarto, nessa noite, Prillup ainda dorme. Está deitado de barriga para cima e todos reparam na forma redonda e inchada que as suas bochechas tomaram de repente. O rosto está tão corado que o tom de vermelho profundo até se nota por entre a barba espessa. As olheiras parecem mais suaves.

‑ Tõnu, queres comer alguma coisa? ‑ pergunta‑lhe a mulher, acordando‑o depois de pôr o jantar na mesa.

‑ Comer? Não ‑ diz ele, abrindo muito os olhos. ‑ Comer para quê, se nem um telhado temos por cima da nossa cabeça?

De uma vez, Anni e Yuku viram o olhar para a madrasta, que calmamente pousa a palma da mão sobre a testa do doente.

‑ Vou dar‑te leite. Vais bebê‑lo, não vais?

Tõnu senta‑se na cama, então, já completamente desperto, e aceita o copo de leite.

Durante o princípio da noite, a febre aumenta e incita o doente a resmungar longos discursos. Às vezes, fala com os olhos bem abertos e Mari observa‑o à luz do pequeno candeeiro que deixou aceso. Perdido nos seus delírios febris, Tõnu parece discutir consigo próprio: por vezes, o seu discurso é sensato e coerente, depois volta a emaranhar‑se e a perder o sentido.

No meio do delírio, Tõnu insiste constantemente na mesma premonição, que não consegue, pelos vistos, largar, atacando‑a de todos os ângulos possíveis. Esse ponto a que o doente regressa sempre não é aquele assunto agora vital na sua vida; trata‑se de algo já maior do que isso. Tõnu parece estar com pavor de ser despejado da sua parcela de terra. Por vezes, afirma que já foi expulso, porque «o barão não permite que façam pouco dele». Outras vezes, ainda está à espera do aviso para abandonar a casa, e tem de andar à procura de outra quinta para alugar ali nas redondezas. Mas logo a seguir parece que afinal já recebeu o aviso mas não consegue encontrar outra casa porque a Primavera já está próxima. E mais uma vez, a situação muda: é dia de São Jorge, Tõnu foi despejado e não sabe para onde ir com os «quatro filhos». Essa quarta criança, imagina Mari com um sorriso breve, anda no colo da mãe, envolta em faixas de algodão.

Estes monólogos agitados são sempre acompanhados por gestos incessantes. Os dedos inquietos de Tõnu desapertaram os botões da camisa. Surge à vista o pequeno saco de linho pendurado ao pescoço. Curiosa, Mari vai mexendo no amuleto que se esconde lá dentro. Delicadamente, tira a pequena bolinha de dentro do saco (o dono do amuleto ainda está delirante e esquecido do mundo) e observa‑a cuidadosamente. Mas o lusco‑fusco do quarto não lhe dá luz suficiente, e por isso Mari levanta‑se da cama e analisa o estranho objecto mais perto do candeeiro, pousando‑o sobre a palma da mão aberta. Intrigada, cheira‑o, toca‑o com a unha, acabando por encolher os ombros, enquanto o olhar se perde a contemplar pensativamente a pequena chama do candeeiro. Por fim, boceja, espreguiça‑se, erguendo alto os braços e as pernas, e quase deixa cair a pequena bola por entre os dedos, para dentro da boca aberta num riso. Mas no fim, consegue deter essa queda e o amuleto volta são e salvo para dentro do saquinho de linho pousado sobre o peito do marido.

Antes de se deitar novamente, apaga o candeeiro com um sopro. Assim como assim, a chama já estava a morrer.

‑ Não fales mais, Tõnu. Agora tenta dormir.

Mari diz‑lhe estas palavras ao ouvido, em voz alta e clara. E ele obedece. Ainda bufa e sopra durante uns instantes, mas por fim responde‑lhe com um leve grunhido, antes de fechar os olhos e adormecer:

‑ Pois; está bem. Mas onde é que vamos arranjar um sítio para ficar amanhã? Já alugaram todas as casas.

‑ Não te rales, havemos de encontrar um sítio! ‑ grita‑lhe Mari ao ouvido.

‑ Está bem... Está bem... ‑ As palavras morrem‑lhe nos lábios e ele continua murmurando e mexendo compulsivamente os braços e as pernas. E só depois é que a calma e o silêncio caem sobre a casinhota de Prillup, como sobre as outras casinhotas de Kruusimãe.

Lá fora, na terra, o grilo começa a cricrilar, o galo no poleiro canta, o cão ruge de mansinho enquanto dorme. Daí a umas horas, há‑de nascer o dia... Mas tudo a seu tempo...

Na manhã seguinte, Mari insiste para que Tõnu não se levante, mas à hora do almoço ele lá arrasta o corpo para fora da cama. Nunca ficou doente de cama antes e tem vergonha de passar lá o dia. E, para mais, o trabalho ‑ ainda que duro e desagradável ‑ não lhe dá descanso e precisa de ser feito.

Por essa altura já a febre lhe abandonou o corpo, mas a aflição permanece‑lhe na cabeça. Disso não se consegue ele livrar; a angústia já o roeu bem fundo e os tormentos que nele se alojaram desgastam‑no em silêncio.

Agora, Tõnu já não tenta vergar a opinião da mulher. Essa fase já passou. Ao abandonar a cama nessa tarde, deitou fora o amuleto. Agora, tem de sofrer sozinho a sua angústia, ainda que, naturalmente, deixe escapar aqui e ali um ou outro queixume amargo para a esposa ouvir. E à medida que os dias passam, isso vai acontecendo com cada vez mais frequência, ainda que Mari não partilhe os receios do marido. A mente simples e infantil da mulher não consegue conceber que a família seja de facto expulsa de sua casa, nem acredita que houvesse qualquer dificuldade em encontrar outro sítio se isso acontecesse.

‑ Tinhas de cometer um crime mesmo grave para aquele homem te expulsar ‑ afirma Mari. ‑ Ele não tem ar de ser esse tipo de pessoa.

‑ Quem vê caras não vê corações, minha querida ‑ responde Tõnu com um sorriso triste. ‑Já muita gente foi expulsa daqui para fora antes de nós.

‑ Mas ele não os expulsou só por expulsar.

‑ Sabe‑se lá o que passa pela cabeça dessa fidalguia. Os senhorios fazem o que quiserem.

‑ Mas há outros sítios onde podemos viver, não há? Esta não é a única herdade que existe. Se a altura chegar, havemos de encontrar outro sítio ‑ insiste ela, tentando animá‑lo.

‑ Talvez se encontre alguma barraca miserável, sim. Mas como é que havemos de viver? Temos quatro bocas para alimentar, e na Primavera é bem possível que já sejam cinco.

‑ Cinco não! Quatro, quase de certeza. Mas seja como for, há sempre outras maneiras de ganhar a vida. Há trabalho para todos os gostos na cidade e no campo.

‑ Deus me valha! Ser criado, ou estivador? Tudo menos isso! Não vale a pena. A cabeça de Tõnu descai, cada vez mais desanimada. Ele arrepende‑se de ter falado. As palavras estão já gastas.

Mas continua a queixar‑se. De tal modo que aos domingos, em conversa com os vizinhos no adro da igreja vai perguntando se alguém sabe de alguma quinta para alugar, apesar de ainda não ter recebido ordem para se ir embora. E se por acaso acompanhar o capataz a alguma feira mais distante, também aí vai abordando furtivamente alguns lavradores com a mesma pergunta. Chegado a casa, insiste que a mulher faça uma visita à sua paróquia natal, na esperança de que ela, sendo nativa, tenha melhor sorte a recolher informações sobre alguma quinta boa que esteja vaga ‑ mais depressa lho dirão a ela do que a um estranho.

‑ Não é preciso ‑ responde Mari, o rosto marcado por um cansaço extremo. ‑ Vai ao solar firmar o contrato para o negócio da venda do leite.

O silêncio que se segue não é demorado. A mão de Prillup pára no ar, com um fósforo aceso entre os dedos ‑ mas apenas por um momento. Depois, o braço acaba o percurso e acende o cachimbo.

‑ Porque não? Se houvesse contrato para assinar... ‑ diz ele por entre as primeiras inspirações do tabaco. Ao inspirar o fumo, os lábios dele torcem‑se num sorriso gasto em volta do cachimbo.

‑ Não te preocupes. O contrato há‑de lá estar. Ele prometeu tê‑lo pronto hoje.

Mari está a fazer manteiga, mexendo vigorosamente as natas numa tigela com uma colher de pau. Um grão de fuligem cai do tecto, Mari retira‑o cuidadosamente da tigela com a unha do dedo mindinho e continua a mexer.

‑ Estás a gozar com quem? ‑ diz‑lhe Tõnu. O olhar dele desvia‑se do rosto inexpressivo dela e pousa sobre o creme espumoso na tigela, igualmente inexpressivo. Os lábios de Mari mantêm o silêncio.

Tõnu levanta‑se, hirto como um rochedo. Passado um instante, o canto do olho esquerdo começa a tremelicar, os cantos da boca torcem‑se, as veias no pescoço contraem‑se tão violentamente que fazem mexer os lóbulos das orelhas.

Prillup ergue um joelho na intenção de o apoiar no banco, mas falha o apoio e acaba por cair de joelhos no chão em frente à mulher. O cachimbo cai‑lhe da boca e aterra no chão de pedra com um barulho oco.

‑ Tu... Estás a dizer que...? ‑ As palavras dele dissipam ‑se no fogo que lhe irradia dos olhos.

‑ Ah, Tõnu, não comeces!

‑ Mas porquê...? Quando...? Uma sombra cobre o rosto de Mari.

‑ Já chega, Tõnu. Deixa‑me mas é continuar o meu trabalho.

Ao transpor a porta para a rua, Prillup vai balançando de um lado para o outro, desequilibrado, como se os pés tentassem equilibrar o peso de um saco enorme que ele levasse às costas.

 

Uma hora mais tarde, Prillup está sentado à mesa do quarto, olhando fixamente para uma folha de papel que segura nas mãos trémulas. Já há algum tempo que está ali sentado a lê‑la sem compreender uma palavra, apesar de ser perfeitamente capaz de ler as linhas manuscritas. A caligrafia é segura e bem delineada, como se tivesse sido desenhada com a ponta de um pau, mas assim que o lavrador tenta identificar cada palavra separadamente, a tinta funde‑se numa mancha violeta indistinta.

As crianças vão entrando e saindo, Mari entra também e sai logo de seguida. E de cada vez que alguém transpõe a porta do quarto, a folha de papel desaparece rapidamente debaixo da mesa. E sempre que Mari se afasta, o olhar de Prillup percorre a figura dela, furtivo.

É um olhar perscrutador e de apreço, este que o marido deita à jovem esposa. Quanto mais a vê mais deseja ver e, aos poucos, Prillup começa a pasmar‑se com o que vê. Nem consegue perceber para onde tinha estado a olhar até agora. Mari cresceu e amadureceu. A terceira criança de Tõnu já não é criança nenhuma.

De um dia para o outro, Mari desabrochou em beleza. Terá encontrado algum poço mágico cujas águas operaram alguma transformação milagrosa?

À medida que vai absorvendo cada detalhe da forma e da figura da mulher, os olhos dele tornam‑se cada vez mais ávidos, e de repente, o quarto quente e abafado (o centeio foi posto dentro de casa a secar) parece encher‑se do odor inebriante de plantas silvestres.

Os dedos inseguros de Tõnu seguram ainda o papel escrito a tinta violeta, mas ele não volta a pousar os olhos sobre a folha até estar novamente sozinho. E num instante, tudo naquele quarto fica baço e apagado. A pele dele começa a polvilhar‑se de gordas gotas de suor que lhe cobrem o rosto e o pescoço, gotejam do nariz e da testa. Agora, os olhos castanhos avermelhados do camponês tomaram uma tonalidade cinzenta e baça. Algumas gotas de suor caem‑lhe da testa e esbarram‑se contra a folha de papel que tem nas mãos.

Quando Mari volta a entrar no quarto, o que ela vê é um homem miserável sentado à mesa: a figura vibrante de felicidade de antes foi rudemente derrubada.

E ela foi lá fazer aquilo... Foi de sua própria vontade... Em segredo, sem ele saber... Quando ele não estava em casa, quando ele não podia sequer adivinhar. Nem sequer falou no assunto, não disse uma palavra, como se ele não fosse tido nem achado... Como se eles não fossem marido e mulher!

Sim, claro que houve algumas conversas, antes... só entre nós. Eu até disse que insistia... Mas só por brincadeira, acho eu. Era uma espécie de atracção minha. Mas agora que ela tenha lá ido... Que ela tenha mesmo lá ido...

A mão de Tõnu cai com um baque sobre o tampo da mesa, de palma aberta, aterrando em cima do contrato que ele largara enojado. Mas não chega a levantar os olhos. Todos os insultos, toda a amargura, dirige‑os contra a racha no chão que lhe passa por entre os pés. Não a consegue ver, mas sabe‑o bem: Mari está de pé ali no meio do quarto, altiva e forte.

‑ Mas agora gostava eu de saber como é que vamos ser capazes de olhar um para o outro. Quem sou eu agora e quem é ela? Que criatura é esta com quem me deito à noite e com quem me sento às refeições?

Para onde é que hás‑de dirigir o olhar quando estiveres com outras pessoas? Como é que eu me hei‑de sentar ao teu lado na missa?

Mas a racha no chão não oferece respostas às perguntas de Prillup.

‑ É o marido que se envergonha! Ela, nada! Ela até pode ter dito tudo aquilo para si própria, que não é uma criança, que é adulta, uma mulher. Mas ela...! Dá‑lhe na veneta e vai lá! E quando lhe ralhamos, ela deixa‑se ficar parada como uma parede e ainda nos olha com desprezo!

Tudo isto foi sendo dito ao acaso, mas quando finalmente Tõnu desprega os olhos do chão e encara Mari, verifica que ela ri a bom rir.

‑ Ah, mas podes ter a certeza que eu não te deixo em paz assim tão facilmente! ‑ E aqui, Tõnu levanta‑se finalmente. ‑ Exijo uma explicação! Quero saber que espécie de coisa és tu! Se tens alma, diz‑me, porque é que me fizeste uma coisa destas?

‑ Porque quis ‑ responde ela. Uma resposta que em nada o ajuda.

‑ Quiseste? Bem, claro que quiseste, senão não ias lá. O que eu quero saber é, porque é que quiseste?

Agora, a acusada ergue os braços bem acima da cabeça e espreguiça‑se. Revelando os dentes num bocejo (ou será um sorriso?), ela volta‑se calmamente e passa ao lado do acusador para chegar ao armário, onde começa à procura de qualquer coisa.

Isto irrita Tõnu, claro está, que hesita por um momento, mas logo rompe numa violenta torrente de blasfémias. É uma fúria que se alimenta de si própria, esta. Tõnu grita e urra como um louco, dando vazão à sua ira com uma série de palavrões tão degradantes como nunca antes tinha transposto os seus lábios. E quando a torrente de insultos seca, ele arrebanha o casaco e o chapéu do prego na parede e, arfando e bufando, sai de casa correr para se perder na chuva e na escuridão ‑ para bem longe daquela porca suja.

Quando regressa já Mari dorme, só que não apagou o candeeiro para que ele não entrasse às apalpadelas no escuro.

E ao lado do candeeiro, lá brilha a brancura da folha de papel.

Mari está mesmo adormecida, disso não há dúvidas. E enquanto Tõnu se despe, o olhar dele não larga a esposa que dorme despreocupada. Sentando‑se no banco durante uns instantes, o marido continua a fitá‑la: o cabelo emaranhado, o pescoço suave e macio, o seio arfante, o ombro, o braço, as ancas ‑ toda a florescente beleza do corpo dela que ele contempla agora, ou adivinha por debaixo dos cobertores. E novamente o assalta a evidência, ainda mais intensa do que antes, de que essa pessoa a quem ele chamara a sua terceira criança, se transformou de repente numa mulher.

De um sopro, Tõnu apaga o candeeiro. Ao deitar‑se ao lado da esposa recém‑descoberta, o coração dele contrai‑se em desespero, e apertando a mulher contra o seu peito com o braço magro e pesado, o pobre homem verte sobre os olhos, boca e ouvidos dela toda a sua angústia:

‑ Porquê, mulher? Porque é que me abandonas?

Ao mesmo tempo, nesse mesmíssimo instante, as velas ainda ardem no quarto de solteiro de von Kremer. Aliás, nestas últimas noites, as velas têm sido mantidas acesas nos quatro quartos da casa.

Herr von Kremer está de excelente saúde. Não tem a mínima pressa de se deitar porque quer ficar acordado a desfrutar este novo sentimento de bem‑estar.

Com passo vivaz e rosto feliz, vai andando para lá e para cá na sala, de mãos nas ancas, ou então de mãos enfiadas fundo nos bolsos, ou com os dedos cofiando demoradamente o bigode grisalho.

Pousada na mesinha do canto, a caixa de música vai debitando a sua melodia, e na mesinha perto do sofá brilha um copo de vinho tinto, ao lado de um prato com um pedaço de bolo amarelo que lhe sorri.

De tempos a tempos, o velho senta‑se numa poltrona, bebe um gole moderado do vinho e come uma garfada de bolo. E antes de beber, nunca se esquece de erguer o copo na direcção do espelho, onde o seu reflexo sorridente lhe acena também em resposta.

O coração está saudável, a válvula doente não lhe causa a mínima preocupação, e os batimentos cardíacos estão regulares.

A noite inteira, a caixa de música tem vindo a tilintar a melodia doce e suave de A Última Rosa, essa canção outonal e triste escrita para o ouvinte solitário. E de cada vez que um arremesso mais forte de felicidade lhe invade o peito, o barão não resiste a levantar a voz e a acompanhar a música com berros cantados:

Ist denn Ueben ein Verbrechen darf man nimmer artlich sein..(1)

Assim, o contrato assinado por Tõnu Prillup e Herr Kremer tem agora duas faces: uma apreensiva, a outra despreocupada e feliz. E o nosso estado de espírito, seja bom ou mau, depende apenas do ângulo em que contemplamos a questão. Nos dias a seguir ao seu violento desabafo, Tõnu vislumbrou o lado feliz, para variar, e rejubilou. O coração encheu‑se‑lhe de paz.

Em primeiro lugar, o homem percebeu agora com toda a clareza que tinha sido injusto para com Mari. Pois se era verdade que ela tomara a decisão de sua livre vontade, isso só significava que lhe devia gratidão. E por outro lado, se ela apenas cumpriu os desejos do destino, ainda mais injusto seria condená‑la por isso,

 

*1. Se o amor é um crime Não se pode nunca ser carinhoso... (Alemão)

 

até porque ele próprio rezara para que isso acontecesse. E como não havia meio de Tõnu conseguir determinar qual das duas situações guiara Mari, se é que fora qualquer uma delas, achou por bem distribuir a sua gratidão equitativamente a todos os envolvidos: à própria Mari, à Virgem Maria, ao Nosso Senhor e também à Mãe Sutsu e aos poderes que ela serve. Os primeiros foram recompensados com uma palavra de louvor e um sorriso amigável, enquanto que a gratidão de Triinu Sutsu acabou por ser paga com uma porção generosa das colheitas de Prillup. Sorte dela, os campos de Kruusimàe foram particularmente férteis nesse Outono.

Para além disso, Prillup começou a sonhar com a grande felicidade que a Primavera seguinte lhe reservava. Desejoso de antecipar desde já as alegrias que o esperavam, Tõnu começou a dirigir várias vezes os seus passos até à leitaria da herdade, até à manada de gado ou aos campos da quinta dos Kuru. O que ele lá via já tinha sido visto várias vezes, mas ainda lhe dava um prazer imenso ir até lá e contemplar tudo aquilo mais uma vez. Observando abertamente ou às escondidas, Prillup cofiava incessantemente a barba com satisfação e não conseguia deixar de sorrir.

A leitaria, o gado, a quinta... Tudo aquilo seria seu!

E o Yaan nem faz a mínima ideia. Ninguém faz a mínima ideia.

E quando souberem... com que espanto não o hão‑de olhar!

Certa noite, ao observar Yaan Kuru, que está de partida para a cidade com a carroça cheia de leite e de manteiga, Tõnu, que está escondido atrás de um arbusto no meio do prado, acena‑lhe adeus. Depois, deixa escapar uma gargalhada e murmura:

‑ Mas só por enquanto. Só por enquanto.

E quando chega ao casario de Kruusimàe, Tõnu lança‑se num insensato discurso dirigido às casinhotas em sua volta, contemplando a aldeia com um brilho malicioso no olhar.

É um discurso aparentemente absurdo, que levaria a crer que o camponês tinha passado pela taberna perto da igreja antes de regressar a casa:

‑ Ah, seus miseráveis, esperem para ver! Só um de vocês foi escolhido para se destacar, só um de vocês é que foi considerado merecedor. O resto... continuem para aí a esgravatar a terra para ganhar um sustento miserável, continuem para aí a viver como escravos nos terrenos do senhorio, continuem a comer peixe seco e salgado até ao fim dos vossos dias! A fortuna sorri ao cabeludo, os macios e belos vão ter de esperar.

Com que vontade Tõnu deseja encontrar alguém pelo caminho! Dificilmente saberia o que dizer, mas diria sem dúvida qualquer coisa. Não sabe o que faria, mas faria qualquer coisa. Provavelmente deitava‑lhe a língua de fora e desafiava‑o a medir forças num braço de ferro.

Em casa, Tõnu está amável e afectuoso, mas Mari depressa se cansa das constantes atenções do marido, pelo que começa a empurrá‑lo para longe com o cotovelo. Mas nem isto o desencoraja. O marido encara tudo com boa disposição e sem se ofender.

‑ Hoje estive a passear no prado onde o gado andava a pastar ‑ comenta ele com a mulher. ‑ Andei a fazer festas às vacas no pescoço e no dorso e elas gostaram. Mas assim que te toco a ti com o dedo mindinho, começas logo aos coices. Quando é que aprendes a viver como a fidalguia?

E vem então um dia em que Tõnu experimenta uma alegria completamente nova e singular, um dia que lhe anuncia o poder que virá a ter de forma mais clara do que o papel branco de letras violetas que ele agora guarda seguro entre as folhas do Livro dos Salmos, no armário.

Nesse dia, quando Prillup é chamado ao solar para receber instruções sobre os arbustos de uva‑espim que tinha ficado encarregado de cortar no prado, encontra todos os habitantes da casa no corredor principal, cada um encostado a uma das portas do lado direito.

Lá estão todos: a cozinheira Vilhelmine à porta da cozinha, a senhora Reemet na seguinte e até o capataz Reemet, encostado à última porta. Estão todos à escuta, de olhos esbugalhados e bocas abertas de espanto e assombro; de temor, até. De imediato, Tõnu compreende o que se passa. Palavras iradas ouvem‑se vindas do escritório, cuja porta está apenas encostada. Normalmente, Kremer não é homem de gritar e se enfurecer. Mesmo quando encontra falhas no trabalho dos inquilinos, as suas repreensões são, regra geral, moderadas. Nunca ninguém o ouviu barafustar com fúria. E agora, de repente, eis a voz dele subindo de tom, irada.

‑ Então achas que eu é que tenho que te agradecer! Eu é que te devo gratidão a ti e não tu a mim? Mesmo que me tenhas pago adiantado uma vez por outra, pagaste‑me com o meu dinheiro. Se me emprestaste dinheiro de vez em quando, foi o meu próprio dinheiro que me emprestaste! Foi o meu dinheiro que te permitiu empinar tanto o nariz! Sem as minhas terras e o meu dinheiro, tu, a tua mulher e os teus filhos não passariam de uns miseráveis. Agradece a Deus (ah, nem sequer abras a boca) ‑ ouve‑se um baque forte de um pé a bater no chão ‑ Agradece a Deus eu não te mandar embora da quinta imediatamente. Estou a dar‑te antecedência que chegue. E agora põe‑te a andar, pilantra!

A porta abriu‑se de rompante e Yaan Kuru saiu como um furacão, vermelho como um pimento. Chegou até a roçar o ombro contra Tõnu ao passar, mas nem sequer reparou nele, e ao chegar à porta da rua, abriu a maçaneta com ambas as mãos, como se precisasse de se apoiar nela para não vacilar e cair sobre os degraus.

Entretanto, os ouvintes curiosos desapareceram. Prillup encosta‑se à parede o mais que pode e a porta do escritório é fechada com estrondo.

Então, Tõnu decide que hoje não é o melhor dia para falar com Kremer, pelo que se esgueira cautelosamente para a rua.

Ao caminhar em passos largos de volta a casa, os ombros tremem‑lhe com riso reprimido e uma das mãos afaga incessantemente a barba. De vez em quando, não resiste e olha para trás, para o solar inacabado, cenário de acontecimentos tão importantes. E novamente, um ataque de riso lhe sacode o corpo.

Quem lhe dera que estivesse mais alguém consigo ali no caminho!

Ah, vem aí alguém! Frente ao portão do pasto, Tõnu encontra o vizinho, o velho Pajusi.

‑ Queres ouvir a última? O Yann Kuru recebeu o aviso! Acabou‑se a gestão da leitaria. E também vai ter de deixar a quinta. Aconteceu agora mesmo. E havias de ouvir a descompostura que levou!

‑ Então recebeu aviso para se ir embora? E levou para contar, ainda por cima?

‑ Sim. O velho tolo pôs‑se a discutir com o barão, a dizer «Então é essa a paga que eu recebo por lhe emprestar dinheiro», disse ele, «e por lhe pagar adiantado.» E aí, o barão deu‑lhe mesmo nas orelhas, que parecia que tinha rebentado uma tempestade! Até as vidraças nas janelas tremeram. Quem diria que o Kremer tinha assim tanta genica?

‑ Então o Yaan foi para o olho da rua! O barão acusou‑o de quê?

‑ Bem, acho que ele é convencido demais. Os fidalgos não suportam um camponês que dê em andar de nariz empinado mesmo nas barbas deles.

‑ Então o Yaan foi para o olho da rua!

‑ É bem verdade!

E o olhar de um encontra‑se com o do outro e ambos faíscam. O velho Pajusi até se esquece do recado que ia fazer e volta para trás, coxeando ao lado do vizinho. Ao passar frente ao portão dos Liivak, encontram Mart de pé no quintal e logo lhe contam a última novidade.

‑ Então o Yaan foi despejado, e ainda teve de ouvir?

‑ Ah sim, o barão falou com ele com muita raiva. E havia agora três pares de olhos a faiscar.

‑ Também não lhe há‑de fazer grande mossa.

‑ Mas ainda assim. Ele bem gostaria de ficar mais um pouco a amealhar mais algum dinheiro. E que descompostura levou! «Agradece a Deus eu estar a dar‑te antecedência para sair só na Primavera, em vez de te escorraçar da herdade como um cão vadio.» E ouviu cada palavrão!

E de novo, os olhos deles encontram‑se e toda a gente sorri, sentindo um calorzinho agradável no fundo do estômago e falando com gosto. Junta‑se‑lhes o pequeno Yuri, como que atraído pelo cheiro.

‑ Quem será que vai tomar conta do negócio agora? Nesta altura, Prillup encolhe muito os ombros e, com um trejeito dos lábios, começa a falar num tom arrastado e melodioso, quase como o de Yaan Kuru:

‑ Bem, meus amigos, há‑de ser alguém escolhido entre os outros. O que tiver algum dinheiro guardado, qualquer coisa amealhada com a ajuda de Deus. E talvez ele tenha algum parente rico que o possa ajudar. E é claro que a quinta e a leitaria vêm juntas...

Mas para os outros três homens, essa não é, por enquanto, a questão principal. De momento, já é suficientemente satisfatório para eles saber que Yaan vai ser removido da sua posição. Estes camponeses já há muito o invejam, e durante todo esse tempo, Kuru sempre os desprezou, sempre zombou deles. Nunca ninguém esperara vê‑lo cair em desgraça tão cedo. E agora era a vez deles se rirem ‑ Ao menos uma vez, eram eles os últimos a rir. E depois de os quatro amigos se separarem, toda a aldeola de Kruusimáe partilhou uma boa risada, e mais tarde até a aldeia de Altkúla ficou a saber. Não só os lavradores, mas também os fazendeiros locais ouviram a notícia e deram uma gargalhada de prazer.

Entretanto, Tõnu atravessa o prado como se estivesse no sétimo céu: o melhor de tudo ainda está para vir.

Mas isso ainda vai ter de esperar, para que a ligação entre as duas coisas não se torne demasiado óbvia, para que as pessoas não comecem a meter o nariz onde não são chamadas. Kremer concorda que o melhor será esperar um pouco. E quando chegar a hora ‑ ah, que caras que as pessoas vão fazer!

E então, Tõnu encosta‑se à vedação e tenta imaginar as expressões nos rostos dos vizinhos, mudando a cadência do passo enquanto vai repetindo para si próprio:

‑ Então foi aquele Prillup que tomou conta da venda do leite! Esta agora! Não sabias? Foi o Prillup que ganhou o negócio da leitaria, e a quinta do Kuru também fica para ele!

Que sorte, Tõnu ter‑se lembrado hoje de fazer insinuações sobre poupanças no cofre e familiares ricos. Isso é que foi bem pensado! Quando chegasse a hora, de certeza que as pessoas haveriam de se lembrar dessas palavras. Por isso, eles que abanem as cabeças à vontade e se ponham com conjecturas... Quem é que poderá vir a saber? Não há maneira de descobrir quanto dinheiro é que ele tinha poupado, ele ou a família dele. Nem ninguém tinha estado lá naquele dia, para ouvir o patrão a dizer:

‑ Bem, se precisares mesmo de dinheiro e não conseguires um empréstimo de ninguém, eu mesmo te empresto o dinheiro.

Ora bem! Tõnu não precisava de se ralar, nem sequer precisa de ir incomodar os tais familiares. Aliás, de nada serviria se os chamasse, pois toda a sua família, bem como a da mulher, pertencia àquela escala social a que Yaan Kuru chamava pedintes, ainda que alguns deles, como o pai e o tio de Mari em Ruisu, e o cunhado de Tõnu na outra paróquia, fossem já donos de umas quintas pequenas.

Tõnu não tinha com o que se preocupar, e por isso, à noite, podia recostar‑se e tocar harmónica ‑ uma paixão antiga recentemente reavivada. O pequeno instrumento ferrugento tinha sido desenterrado do meio de algum esquecido monte de lixo, talvez alguma relíquia dos dias da infância. E agora, quase não havia uma noite em que Tõnu não se sentasse perto do fogão a tocar melodias sonhadoras, despertando o sono nos seus ouvintes. Mari e as crianças depressa se fartaram de o ouvir, mas Tõnu nunca se cansa de tocar a sua harmónica. Para ele, é como se o pequeno substituísse o pensamento e a fala. Todos os passatempos que cultivava anteriormente, incluindo a leitura da Bíblia, foram empurrados para segundo plano, perdendo a importância para este pequeno assobio metálico.

Certa noite, depois de a madrasta vestir o seu melhor vestido no celeiro e sair, Anni não aguentou mais. Com os olhos marejados de lágrimas, aproximou‑se do pai e arrancou‑lhe o pequeno instrumento da boca.

‑ Não toques mais! Por favor! Eu fico doente se tocares mais.

Tõnu abanou a cabeça para um lado e para o outro, como se estivesse a despertar de um sono, inconsciente do que acontecera. Foi então que viu os olhos lacrimejantes naquela cara pálida. Pousou a sua mão grande e ossuda na cabeça da rapariga e disse:

‑ Não toco mais. Esta noite não toco mais. Agora vamos fazer outra coisa.

Bocejando, Yuku apareceu de um canto e ficou de pé do outro lado do pai. Vinha de barriga redonda à mostra, com pernas magras e voz baixa.

‑ Onde é que foi a Mari? ‑ quis saber.

‑ A Mari... bem... a Mari foi a casa dos vizinhos... Pois, de uns vizinhos. Sim, miúdos, e agora vamos fazer qualquer coisa divertida. E Prillup pousou a outra mão, também grande e ossuda, sobre a cabeça do rapaz.

‑ A que vizinhos é que ela foi? ‑ perguntou Anni com os lábios ainda a tremer.

‑ A vossa mãe... pois, a mãe foi... a mãe foi a casa da Tiit. E agora vamos jogar ao galo. Yuku, onde está a tua ardósia?

Mas Yuku não se mexeu. Nervoso, insistiu novamente:

‑ Quando é que a Mari vem para casa?

E Anni, que herdara os olhos castanhos do pai, inquiriu também:

‑ Porque é que ela saiu tão tarde?

‑ Não ‑ disse Prillup, evitando o olhar dos filhos. ‑ Acho que o jogo do galo não é assim tão giro, afinal de contas. Vou antes fazer animais em sombras chinesas na parede. Bem, a mãe... Ela já volta. Teve de ir fazer um recado. Mas vocês já vão ver, deixem‑me só pôr o candeeiro na posição certa.

E na parede iluminada logo aparecem coelhos pretos e vitelos, porcos e ovelhas que comem e mugem, que cavam tocas e saltam. E os galos abanam as penas e cantam, os cães sentam‑se nas patas de trás e ladram, os bois marram uns nos outros e os gatos apanham ratos. E ele cria outros animais ainda, fazendo truques engraçados na parede.

E este espectáculo de sombras prolonga‑se até Yuku adormecer ali mesmo no chão e Anni chegar a ficar dorida do cansaço, e lá fora a noite escurecer como breu. Gotas gordas de suor começam a brilhar como pérolas na testa do pai, enquanto as mãos continuam a contorcer‑se e a fazer magia, como se estivessem a esforçar‑se para se libertarem de algemas invisíveis.

Por fim, Anni adormece no banco, mas ainda depois disso os animais de sombras continuam a viver.

 

Quando o novo leiteiro de Máekúla tomou o seu lugar entre os restantes comerciantes no mercado da cidade, não houve falha na sua aparência que estes lhe pudessem apontar: o cabelo estava cortado e um novíssimo par de botas pretas adornava‑lhe os pés.

‑ Nada feito ‑ disse para si próprio o leiteiro quando reparou nos severos olhares de escrutínio que os colegas lhe lançavam. ‑ Não trago sandálias de couro artesanais nem tenho o cabelo comprido. Estavam à espera de ver outro campónio, não é? Aqueles em Máekúla são todos iguais, pensaram vocês. Mas estão enganados. O leiteiro novo até vos pode ensinar um truque ou outro a vocês, mas não tem nada a aprender convosco.

Assim, o leiteiro novo deixou que os outros o avaliassem em todos os aspectos. Não havia nada em si que pudesse desonrar a profissão: o fato que trazia era novo e o lenço que tinha enrolado à volta do pescoço estava mais limpo do que os da maioria. O olhar dos colegas caiu então sobre a carroça e o cavalo, sobre as tinas de madeira. Talvez aqui houvesse algo que se pudesse contemplar com desdém... Mais um erro! Não eram muitos os que tinham um cavalo tão bem alimentado à frente da carroça. A carroça em si também não era nada má, e os barris tinham vindo directos do tanoeiro. O novo leiteiro de Máekúla implorara ao predecessor que lhe vendesse os seus barris, mas Yaan recusara liminarmente, provavelmente por estar ressentido. Ia precisar deles para montar mais tarde o seu próprio negócio de lacticínios, dissera. Ora bem, não restava alternativa senão comprar barris novos. Aliás, era apropriado que um comerciante novo começasse o seu negócio com equipamento novo.

E estes outros escusam de partir do princípio que ele lhes fica muito atrás no que toca aos truques da venda, como a delicadeza e o à‑vontade. Instintivamente, ele parece saber exactamente a quem se dirigir por «minha senhora» e a quem deve chamar simplesmente «menina», tal como os outros o sabem. E é com muito gosto que ele diz «muito obrigado» ao receber o dinheiro, e com os clientes mais abastados chega até a curvar‑se numa pequena vénia. E quando gaba as virtudes da sua manteiga, dá‑a a provar aos clientes. Quanto ao leite, enche sempre as medidas até cima, e até ultrapassa um pouco a marca. Pode acontecer que, de início, os compradores sejam obrigados a esperar um pouco mais do que o costume para serem atendidos na carroça dele ‑ o leiteiro novo ainda não é tão ágil como os outros a manusear a mercadoria ou a contar o dinheiro. Mas isso não é problema. Com um pouco de tempo, ele depressa dominará essas tarefas. Certamente que os outros leiteiros rejubilaram quando, no primeiro dia, dois quilos de manteiga lhe escorregaram dos dedos e caíram de chape na lama; e também quando, no primeiro e no segundo dias, teve alguns desentendimentos com certos clientes ao dar‑lhes o troco. Mas se os seus respeitáveis colegas se dessem ao trabalho de recordar o seu primeiro dia no mercado... talvez aí já não tivessem tantas razões para zombar e escarnecer.

Quanto à grande popularidade do leite e da manteiga de Máekúla, que Yaan tanto gabara... Bem nesse aspecto, Prillup depressa descobriu que o antigo leiteiro exagerara com o maior dos descaramentos. Havia uns poucos de compradores que pediam «Màekúla» e olhavam desconfiados para o leiteiro novo, mas não havia de modo nenhum uma vaga de clientes acotovelando‑se em redor da carroça, como Yaan havia levado a crer. Para além disso, Tõnu também tivera dificuldade em encontrar um comprador entre os taberneiros que ficavam pelo caminho que não estivesse já comprometido com a venda dos produtos de algum leiteiro rival. Como seria de esperar, o antigo leiteiro de Màekúla não apresentara o seu sucessor aos clientes regulares, nem lhe mostrara os sítios onde costumava vender leite, pelo que o leiteiro novo não conseguiu, ao princípio, encontrar lojas às quais pudesse vender o leite que sobrava no mercado, e via‑se por isso obrigado a vendê‑lo pelas ruas, a um preço bastante mais baixo, bem entendido. E a venda da manteiga trazia‑lhe os mesmos problemas.

Todo o começo é difícil, mas Prillup estava seguro de que, em breve, ia estar familiarizado com os truques do negócio. E quanto à baixa procura de leite e manteiga de Màekúla... ah, ele haveria de encontrar uma solução também para isso. Esperem para ver!

Havia, contudo, um outro contratempo, que Tõnu veio depressa a descobrir: as viagens nocturnas à cidade, a que ele não estava minimamente habituado. Tõnu saía de casa quando começava a escurecer, e como as estradas eram más, passava o caminho inteiro a levar violentos encontrões e pancadas dos barris pesados que amontoava atrás de si na carroça. Parte da noite, passava‑a nalguma taberna de beira de estrada, não longe da cidade, barulhenta e cheia de fumo de tabaco. E daí, teria de partir novamente muito cedo para que pudesse alcançar o mercado pelas seis da manhã. Da cidade, iniciava a viagem de regresso por volta do meio‑dia, com as mesmas trintas verstás de caminhos esburacados à sua frente para percorrer até casa.

Mas apesar de tudo, as alegrias de Tõnu eram bem maiores do que as suas pequenas mágoas. Que satisfação lhe dava trabalhar na leitaria, lado a lado com a mulher, e levar o leite da ordenhadora, desnatá‑lo, fazer a manteiga e empacotá‑la, deitar o leite nos barris!

Essas pequenas coisas bastavam para redimir qualquer incómodo. E depois, estalar o chicote e deixar a quinta com a carroça cheia, transpor o portão da quinta de Kuru em direcção à cidade e voltar novamente a casa com a bolsa cheia! Para já não falar da excitação que lhe causava a venda da mercadoria. Até lhe dava prazer regatear o preço dos vitelos com os talhantes, no matadouro de alguma taberna, pois que os talhantes têm o hábito de se encontrar com os leiteiros à noite, numa taberna a caminho da cidade. E para além de tudo isto, ainda o prazer de trabalhar os solos férteis de Kuru, de viver nas divisões mais espaçosas da casa de Kuru, que não é tão velha como a antiga casinhota.

Sim, Tõnu está feliz. Não tem mágoas nem arrependimentos.

E agora, Tõnu é alguém. Já se tornou alguém, mesmo que ainda não esteja em posição de poder comprar uma herdade ou mesmo uma quinta. Tõnu tornou‑se alguém no dia em que se mudou para a casa de Kuru e foi nomeado o novo leiteiro da Herdade de Máekúla.

Aliás, mesmo que ele não tivesse, por acaso, consciência do seu novo estatuto, era impossível não o ler nos olhos de todos os que o rodeavam. E onde quer que encontre pessoas que não estejam ao corrente, Tõnu faz questão de lhes informar do facto, para que fique claro que ele deve ser respeitado ‑ que ele tem o direito de exigir esse respeito. Não que ele imponha a sua presença aos outros, longe disso, mas não perde uma oportunidade para se apresentar como o novo leiteiro da Herdade de Mâekúla. Isto porque, de início, era natural que ele encontrasse imensa gente no caminho para a igreja, ou para a cidade, que ainda não sabia disso.

Mais, Tõnu esforça‑se agora para que toda a gente veja como lhe corre bem o negócio, especialmente a gente da vizinhança. Por isso, dá em praticar certos hábitos típicos do leiteiro antigo, aquelas marcas que o distinguiam imediatamente dos outros: começou a abanar a cabeça e a erguer o nariz no ar.

Com isto não pretende ele parecer demasiado presumido, apenas quer dar a saber a toda a gente que ele, Tõnu Prillup, está a avançar rápido no caminho para a prosperidade, e decerto que essa atitude será correctamente interpretada pelos outros. E mesmo que se acotovelem e sorriam nas suas costas, talvez seja apenas porque o leiteiro novo ainda não domina a técnica: o passo ainda é meio irregular, o ritmo não é ainda tão agradável de ver. Tal como dantes, as ordenhadoras na quinta observam o novo leiteiro a aproximar‑se, descendo os ligeiros declives dos campos da quinta Kuru, com a cabeça a abanar e o nariz fazendo o sinal da cruz no ar. Mas toda a gente repara de imediato que há algo que falta: este não é o verdadeiro leiteiro. E algumas são até da opinião que este novo mercador nunca há‑de dominar a arte, porque um artista tem de nascer artista.

O objectivo final do seu trabalho, contudo, é algo que nem o próprio Tõnu determinou ainda com clareza. Ele espera decidir esse ponto daqui a um ano, talvez, dependendo do que Yaan fizer. Chegado o dia de São Jorge, Yaan não comprou qualquer herdade nem se apoderou de quinta alguma. Não tinha tido tempo suficiente para encontrar um local adequado. O antigo leiteiro foi então viver para uma paróquia vizinha, onde se alojou temporariamente com parentes da mulher.

Quanto a Mari, está aparentemente satisfeita com a sua vida nova ‑ aparentemente, porque a mulher não tem o hábito de exprimir os seus pensamentos por palavras. Já a mãe costumava dizer:

‑ A Mari só tem um amigo a quem faz confidências, e esse amigo vive dentro da cabeça dela.

Mas pelo que é dado ver, Mari parece satisfeita, já que trabalha com vontade e é mais diligente do que costumava ser, especialmente no que toca ao trabalho de bater a manteiga, que parece ser a sua ocupação favorita na leitaria. Pelo menos durante os primeiros seis meses, nunca se lembrou de pousar as mãos no colo e dizer:

«Não me apetece trabalhar hoje». Mari compreende muito bem que é necessário manter o negócio a funcionar, e sempre que há o perigo de o trabalho da quinta interferir com o trabalho da leitaria, ela chama a irmã mais nova para vir de Ruisu ajudar, isto apesar de ser avessa a incomodar os outros com pedidos, mesmo que os outros sejam seus familiares próximos.

Mas o que, sem dúvida, mais a satisfaz são as visitas à cidade de comboio, que Mari tem por vezes o privilégio de fazer, levando consigo uma bolsa bem guarnecida. Regressando no dia seguinte ao meio‑dia, ela traz invariavelmente histórias maravilhosas para as crianças sobre músicos que tocam tão bem que o nosso coração até quer saltar para fora do peito, e actores que falam e fazem tudo o que vem escrito nos livros, e cavalos que dançam e trotam ao som de música, e cavaleiros que fazem truques de pasmar em cima dos cavalos. As palavras dela tecem visões de navios de países estrangeiros, muralhas enormes com torres altivas, igrejas imensas com altares cintilantes, praças e avenidas cheias de gente alegre e despreocupada. E essas imagens são tão vívidas que as crianças sentem que viram essas maravilhas com os seus próprios olhos.

Como a jovem esposa tem agora mais dinheiro para gastar, nunca regressa a casa de mãos a abanar. Uma das suas fraquezas são sapatos bonitos: antes de chegar o Inverno já ela comprou três pares de sapatos novos. Mas também não esquece o filho e a filha. Quanto às roupas que veste ou aos lenços com que adorna a cabeça, tanto lhe faz ‑ até porque não tem ainda uma bolsa tão recheada que lhe permita já tantos luxos. Mas no que toca aos sapatos é compradora criteriosa e não lhe é fácil passar por uma montra em que haja sapatos no escaparate. Para além disso, ainda compra um candeeiro para a sala, um relógio e um espelho bom, e faz café aos domingos, servindo‑o em chávenas e pires requintados. Também aparecem livros novos nas estantes e a jovem esposa está muito tentada a assinar uma revista semanal, depois de ter trazido para casa algumas edições dispersas que entretanto já estão quase desfeitas de tanto terem sido lidas por si e pelas crianças.

Prillup não aprova todas estas compras, luxos desnecessários, na sua opinião (a antecessora de Mari não tinha esta fraqueza), mas não discute com a mulher. Ora, até lhe está a correr bem o negócio novo, e talvez até seja bom que haja já provas concretas da nova prosperidade, para além do mero nariz empinado do leiteiro. E aliás, nem ele próprio segue o exemplo de Yaan Kuru assim tão fielmente: gosta de molhar o bico com uma bebida mais forte do que as que Yaan consumia, e também acontece várias vezes fumar agora um cigarro em vez do habitual cachimbo. Estas são tentações a que ele não resiste ‑ bem, tentações, afinal de contas, como as dos sapatos de Mari.

Entretanto, a terceira parte do acordo também está satisfeita.

Se por acaso alguém se lembrasse de o olhar atentamente, daria para ver que o velho estava a rejuvenescer. A pele do rosto está mais límpida, se não mais macia. Ele caminha agora sem aquele passo desajeitado, meio abanado, e já não precisa das mãos ou do cajado para apoiar as costas; os passos dele são agora livres e ágeis. Mais do que isso, o barão tem agora um olhar mais perspicaz e uma percepção mais aguçada, pelo que vê muitas coisas novas nos locais familiares de sempre.

Sim! Agora, tudo está diferente, porque Kremer se passeia agora num mundo pintado de cores alegres. Novos estímulos, cada um mais fresco e vívido do que o anterior, lhe iluminaram o ambiente, lançando uma luz viva e colorida sobre todas as coisas. Agora, a vida não é apenas suportável, ela é doce e bela, e ele aprecia essa beleza fresca ainda mais porque a sólida realidade lhe preenche agora o espaço outrora ocupado por memórias poeirentas, e Kremer estremece de antecipação pelo dia e a hora que se aproximam, quando uma certa mão lhe baterá a uma certa janela ou quando a campainha do seu refúgio secreto na cidade tocar de uma determinada maneira.

Nessas ocasiões, Ulrich pousa a mão sobre o peito, por cima do coração onde supostamente se esconde aquela válvula defeituosa, e deseja poder viver para sempre, ou pelo menos viver tanto quanto viveu o avô Gótz von Kremer, que morreu com cento e três anos, quatro meses, duas semanas, cinco dias, nove horas e vinte e oito minutos e meio.

Neste novo mundo, as pessoas são amáveis. Agora, qualquer pessoa que recorra ao barão de Maekula com uma queixa pode sempre contar com um ouvido atento e preocupado, um coração terno e uma mão aberta, especialmente se o suplicante for uma representante lacrimosa do sexo fraco. A um, ele promete um pedaço um pouco maior do prado para fazer feno, a outro autoriza a cortar ramos para lenha, a um terceiro dá‑lhe permissão para abater árvores. E se um potro ou um novilho se escapar ao dono e for apanhado num campo de cereais, o dono do animal safa‑se pagando apenas metade da multa usual. Mais, diz‑se que Kai Karits largou numa choradeira até conseguir que o senhorio lhe baixasse a renda em um rublo ou dois. Mas foi Tiiu, a ordenhadora, quem conseguiu chegar mais longe do que todos: as lágrimas dela valeram‑lhe um marido.

Um dia, durante a ordenha do meio dia, Herr Kremer reparou que a rapariga limpava uma face com a manga, depois a outra. Primeiro, passou por ela algumas vezes, depois tocou‑lhe ao de leve no ombro.

‑ O que se passa, Tiiu?

A rapariga levantou a cabeça, deixou escapar um soluço, e logo as lágrimas lhe inundaram o rosto.

‑ A senhora Reemet sabe. ‑ E lançou então um olhar furtivo na direcção de uma pequena mulher de tez escura que estava a ordenhar uma vaca não longe dali.

Assim, Herr Kremer dirigiu‑se à senhora Reemet, mulher do capataz, e perguntou‑lhe.

‑ Sim. Aliás, o Reemet ia lá ao escritório hoje à noite por causa deste assunto. ‑ A senhora fez sinal ao amo para se afastar um pouco dos outros, continuando então o seu relato em voz baixa:

‑ Bem, eu falei com ela a sós e perguntei‑lhe várias vezes o que é que ela tinha. Mas ela, teimosa, respondia sempre que estava tudo bem, até que ontem chegou aqui a limpar os olhos com o canto do avental. Então eu perguntei‑lhe outra vez: «Então, Tiiu, o que é que te põe tão triste?» Ela deixou‑se ficar muito tempo só a chorar, sem dizer uma palavra. E depois, lá disse, de repente:

«E que razões tenho eu para estar feliz? Vou ter um bebé.»

«Bem,» disse eu, «isso não é infortúnio nenhum, desde que o pai queira casar contigo.»

«Aí é que está o problema. Ele não quer. A mãe dele não deixa.»

Então eu perguntei‑lhe se era o Ketas. Ela estava com a garganta num nó.

«Quem mais é que podia ser! Só que agora ele está a tentar deitar as culpas para cima do Peeter. Mas o Peeter... ele é tão tímido!»

«Bem, tu é que sabes», disse‑lhe eu. «Mas quando o Reemet chegar, vou falar com ele.»

«Por favor, ajude‑me», suplicou ela. «Seja qual for a minha reputação, eu sei que sou suficientemente boa para ser mulher do Ketas.»

‑ Bem, nessa noite, o Reemet ralhou ao rapaz forte e feio, mas ele não lhe deu ouvidos. Insistia que não tinha sido ele. A Tiiu anda com rapazes da herdade e da aldeia. Sabe‑se lá! E ele não tem culpa nenhuma. E o Reemet não é o homem certo para levar a melhor ao rapaz. Isso só o próprio Herr Kremer.

‑ Achas que a rapariga está a falar a verdade? ‑ perguntou Kremer. A senhora Reemet gesticulou com a cabeça e as mãos para mostrar que não tinha dúvidas nenhumas a esse respeito.

‑ Nesse caso, o Ketas vai ter de a pedir em casamento hoje mesmo. ‑ E dito isto, dirigiu‑se de imediato à pequena senhora escura que era uma das ordenhadoras.

‑ O teu filho foi almoçar a casa, Truutu?

‑ Sim, senhor.

‑ Diz‑lhe que passe pelo escritório antes de voltar ao trabalho.

Pouco tempo depois, Mihkel Ketas lá apareceu no escritório de Kremer. Tratava‑se do rapaz que vivia com a mãe viúva na lavandaria do solar. Era um jovem baixo e atarracado de pernas arqueadas e cabelo preto. Mas Ketas não apareceu sozinho; a mãe vinha‑lhe no encalço.

Kremer, contudo, empurrou‑a logo para fora do escritório.

‑ Não te quero cá!

Mas nem isso impediu a mulher de gritar no corredor o que pretendera dizer no escritório. Aliás, foi tão barulhenta e estridente que Kremer teve de abrir a porta e lhe ordenar que saísse do corredor.

‑ Ouve, Mihkel, disseram‑me que vives uma vida imoral. Como te atreves a viver uma vida imoral na minha herdade?

Os olhos baços do rapaz fitaram o senhorio, melancólicos.

‑ Não podes viver uma vida imoral aqui na minha herdade. Aqui, toda a gente tem de viver uma vida respeitável. São essas as ordens de Deus e as do senhorio. Não sabes isso?

Silêncio.

‑ Costumas ir comungar?

‑ Sim! ‑ Meio amuado.

‑ Quantas vezes?

‑ Duas vezes por ano.

‑ Portanto, comungas mas não temes Deus. Vives nesta herdade, debaixo do meu tecto, mas não temes o teu senhorio.

Diz‑me lá, então, que há‑de o capataz fazer de um rapaz como tu?

‑ Eu não sou o pai.

Kremer perfurou‑o com o olhar e dominou‑o com a voz:

‑ Se a rapariga diz que tu és o pai, é porque és o pai. Aqui, o jovem pareceu acordar. Primeiro com uma mão,

depois com as duas, pôs‑se a esfregar as pernas das calças, encolheu os ombros, abriu a boca com um estalido.

‑ Não sou! Não sou nada! Nunca na vida! Faça o que quiser. Eu não sou o pai!

‑ Bem, e se eu te despedir e te despachar a ti e à tua mãe da lavandaria sem aviso prévio... Nesse caso já és o pai?

Mihkel esfregou o nariz e rebolou os olhos. Até a voz perdeu alguns graus de certeza.

‑ Não, não. Não sou o pai. Não sou! Como se não tivesse havido outros!

‑ Escuta aqui, Ketas, um ou dois conselhos. ‑ E Kremer pousou dois dedos sobre o ombro do rapaz, enquanto falava num tom mais amigável ‑ Tem pena da pobre rapariga. O que vai ser dela e da criança? Ela nem tem pais...

Ketas ficou a olhar para o chão.

‑ Não queres casar com ela porquê? É boa trabalhadora e é saudável.

‑ É velha. E a minha mãe não gosta...

‑ Escuta aqui! Agora já reconheceste a criança como tua. Tu só não gostas da Tiiu porque ela é meia dúzia de anos mais velha do que tu e porque a tua mãe não gosta dela, não porque a criança é de outro homem. Mas se ela te serviu antes, também vai ter de te servir depois. E se ela serve para ti também tem que servir para a tua mãe.

‑ Mas o filho não é meu.

‑ Mas mesmo assim eras capaz de casar com a Tiiu para não perder o teu ganha‑pão, não eras? É que eu não estou a brincar: punha‑te no olho da rua num minuto! E a rapariga ia ter que enfrentar a justiça.

Mihkel estava prestes a ceder. O olhar dele começou a ceder, foi‑se lentamente erguendo das botas de Kremer até ao rosto, e foi nessa altura que se ouviu novamente a voz da mãe dele. Tinha achado por bem esconder‑se debaixo de uma das janelas do escritório para ouvir a conversa, e foi de lá que gritou:

‑ Então isso é que é justiça neste mundo! Dessa maneira, não há rameira que não arranje marido! É ir para a cama com um jovem qualquer e quando o caldo estiver entornado, basta pegar em alguém pelos colarinhos, e logo um rapaz que nunca saiu da vista da mãe um minuto. Pois é assim mesmo! E no meu rapaz ninguém acredita, mas tudo o que aquela cadela velha disser já é verdade! E castigam‑me o rapaz como se fosse um criminoso. E ela pode acusar quem quiser! Ora, o rapaz é capaz de dizer seja o que for por medo, mas isso não está certo. Eu é que sei melhor do que ninguém, mas a mim nem sequer me ouvem!

O rosto escuro da mulher desapareceu assim que Kremer chegou à janela. Mais uma vez, o rapaz pôs‑se firme na sua convicção. Afirmava e garantia que não tinha nada a ver com este assunto.

‑ Tudo bem ‑ disse Kremer, tirando o relógio do bolso. ‑ Pelas cinco horas, a lavandaria tem de estar vazia e vocês os dois sumidos da minha herdade. E se eu vos dever qualquer coisa, seja em dinheiro ou em géneros (vou consultar o meu livro de contas), o capataz paga‑vos. Adeus.

Mihkel hesitou mas voltou‑se devagar na direcção da porta. Achava que já lhe tinham pago tudo o que tinha a receber e que ainda tinha recebido algum dinheiro adiantado. Alcançou então a porta e estendeu o braço para pousar a mão sobre a maçaneta. Mas entretanto o barão, que se sentara à escrivaninha, resmungou para os seus bigodes:

‑ Estava a pensar em dar‑vos uma das cabanas de Kruusimáe nesta Primavera, mas como tu és um verme, bem podes ir por aí a vaguear pelas estradas.

E então, Mihkel não saiu, a mão não rodou a maçaneta. As suas orelhas grandes e azuladas, quase coladas à cabeça, pareceram ouvir esta última frase com atenção. Olhou então de lado para o falante durante algum tempo, voltando‑se devagar, e de repente curvou‑se numa vénia desajeitada.

‑ Honorável senhor... gostaria de perguntar à minha mãe.

‑ Mas despacha‑te, então ‑ gritou Kremer, abrindo um grande livro de contas de deve e a haver.

E o rapaz desapareceu. Dois minutos mais tarde estava de volta. Ainda mal tinha transposto a porta quando anunciou:

‑ Está bem. Aceito casar com a Tiiu.

‑ Ainda bem. ‑ E Herr von Kremer fechou o livro.

‑ E quanto à cabana de Kruusimáe?

‑ Vais recebê‑la.

E nesse fim de tarde, enquanto o Amo de Maekula passeava por entre o gado durante a última ordenha do dia, uma das ordenhadoras levantou‑se e, bem à frente de todas as outras, agarrou‑lhe a mão e beijou‑a sem dizer uma palavra.

 

Nesse Outono no mercado, quando o leiteiro de Voka comentou com o leiteiro de Mãekúla que Yaan Kuru tinha comprado uma fazenda por quatro mil rublos, perto da estrada a caminho da cidade, onde planeava abrir uma loja, Prillup comentou apenas, enquanto debicava a lama com a ponta do chicote, por entre os raios da roda da carroça:

‑ Ora bem! Mas ele tinha dito que ia comprar uma herdade inteira. ‑ E enrolando a língua, puxou um tufo de bigode para entre os lábios.

‑ Pois sim! ‑ riu o outro. ‑ Não é com palavras que se compra uma herdade. Ele também tinha de pagar ao senhorio pelo leite, ou não?

‑ Na volta, ainda compra mais umas quintas para acrescentar à primeira.

‑ Então porque é que não as comprou logo? Quintas naquela zona para vender é o que não falta, com madeira para vender e sem.

Tõnu Prillup atendeu um cliente e mordeu mais uma vez os bigodes, e mais uma vez comentou para Voka, que já vendera todo o seu leite e manteiga:

‑ Suponho que ele abra uma loja em grande escala.

‑ Sim, com quinhentos para começar, e ainda tem crédito por cima. ‑ E Voka saltou para cima da carroça e foi‑se embora.

Durante todo o caminho para casa, Prillup foi mordiscando incessantemente os bigodes; as pálpebras pesavam‑lhe sobre os olhos. Mas não chegou a adormecer, nem fumou um cigarro. Deixou‑se apenas ficar sentado e quieto entre os barris, olhando fixamente a cauda do cavalo. De vez em quando dizia «Vamos lá» e levantava o chicote apenas pela força do hábito. O cavalo queria parar em cada uma das tabernas onde eles costumavam deter‑se, mas Prillup só o deixou descansar uma vez, na estalagem a meio do caminho, e por isso acabou por chegar a casa muito mais cedo do que o costume.

Desta vez, não tinha notícias da cidade para contar à mulher. E quando, alguns dias mais tarde, Peeter, o cocheiro, falou da recente compra do antigo leiteiro na presença de Mari e de Tõnu, este apenas comentou calmamente, coçando a face barbuda:

‑ Ora bem. Agora tem os pés assentes na sua própria terra e tem um telhado que é dele por cima da cabeça. Ora bem, minha querida, não gostavas de viver assim também?

Mas mais tarde, Mari começou a reparar que o marido regressava por vezes da cidade com uma expressão agoirenta que nunca tivera antes. E isto começou a acontecer cada vez mais no segundo ano do negócio. Havia algo que o inquietava, isso percebia Mari muito bem, mas não houve meio de entender o que é que lhe corroía o coração daquela maneira até ao dia em que o próprio Tõnu lho deu a entender indirectamente. O marido, que nunca fora de se queixar muito, encontrava sempre defeitos no leite e na manteiga, agora, e na maior parte das vezes, procurava culpar a mulher pela falta de qualidade dos produtos. Por vezes, tinha ataques de fúria completamente despropositados e, por estranho que pareça, irritava‑o ver Mari bem disposta.

‑ O que é que te põe assim tão alegre?

‑ Nada.

‑ Ah, não me queres é dizer.

‑ Bem, é o velho que me faz rir. ‑ O olhar de Mari adquiriu uma expressão absorta e ela pousou os olhos sobre uma panela de natas. ‑ Estava sempre a queixar‑se que tinha uma comichão no peito, sabe‑se lá porquê. Eu pedi‑lhe para me mostrar. Ele abriu a camisa... e era uma carraça! Já estava cheio de sangue e meio roxo. E então eu disse: «Deixa‑me espremê‑la». Mas ele não quis nem ouvir falar no assunto, afastou‑me com as duas mãos. «Não, não, por amor de Deus! Não! Eu vou ao médico.» E lá foi. ‑ Mari inclinou‑se para a frente e limpou a bochecha. ‑ E no dia seguinte o velho foi mesmo à cidade para ver um médico.

De repente, o riso de Mari morreu e ela ficou muito séria: o seu olhar, que passeava pela sala, esbarrara agora com a expressão do marido. O rosto dele estava de um vermelho vivo por debaixo da barba, e o maxilar estava tenso, como que com dores. Os olhos castanhos faiscavam brasas.

Tõnu deixou‑se ficar em silêncio durante um momento, depois um gemido sumido escapou‑lhe da garganta, estrangulando‑lhe as palavras. Atirou a colher com que tinha estado a desnatar o leite e saiu porta fora, furioso.

A partir desse momento, algo novo e estranho começou a imiscuir‑se na relação deles. Mari não conseguia deixar de sentir que estava a ser secretamente observada, que estava cercada por todos os lados e que até os seus pensamentos estavam a ser lidos por outros. E a expressão no olhar desse que a acossava constantemente nem sempre era de amizade ou de confiança. Muitas vezes, quando surpreendia um olhar de Tõnu sobre si, Mari assustava‑se com o que via.

Certa noite, em Setembro, quando Prillup já estava montado na carroça por entre barris de leite, e o cavalo Yaska já estava a dirigir a carroça para a estrada, o condutor chamou de repente, por cima do ombro:

‑ Mari, chega aqui um instante.

‑ Esqueceste‑te de alguma coisa?

‑ Não. Só te quero dizer uma coisa. Pára, Yaska!

A jovem esposa não conseguia ver o rosto do marido na escuridão, mas sentiu o cheiro do whisky exalando da boca dele. Agora, nesta sua fase mais próspera, Prillup tinha sempre uma garrafa em casa. Nessa noite, bebera uns goles antes do jantar para abrir o apetite, e pelo tom de voz, Mari percebeu que ele não estava completamente sóbrio.

‑ O que é? ‑ perguntou ela, apoiando o pé no raio da roda.

Tõnu hesitou, como se estivesse à espera que o vento parasse. De repente, Mari sentiu a mão pesada dele agarrando‑lhe a cabeça.

‑ Talvez hoje seja altura de ires lá outra vez...? Não vás! Desta vez, não vás!

As palavras dele eram uma súplica mas também uma proibição. Ecoavam desespero. E antes que a mulher pudesse responder, ele puxou as rédeas, levantou o chicote e pôs a carroça em movimento, dirigindo‑se desajeitadamente para o portão. Mesmo à distância, ainda se ouviu uma tosse violenta ecoando na escuridão. Depois foi‑se ouvindo apenas o estrépito da carroça, com faíscas a saltar aqui e ali, sempre que as rodas faziam fricção nas pedras de granito.

Durante algum tempo, Mari deixou‑se ficar escutando esse barulho, com uma mão apoiada na parte de trás do pescoço, por debaixo do xaile, e a outra repousando levemente sobre a anca. E foi então que recordou, de repente, uma coisa que vira na cidade. Agarrou a ponta esquerda da saia para a levantar e, três vezes seguidas, imitou o passo de uma senhora da alta sociedade citadina, passando por cima de uma poça de lama com sapatos de salto alto. A poça de lama de Mari era o raio de luz que se estendia pelo pátio até ao portão. Era a luz do candeeiro que brilhava à janela de casa.

Finalmente, entrou em casa, assobiando, e assim que acabou as tarefas domésticas, foi para a cama e dormiu regalada a noite inteira. Nessas noites em que Prillup estava fora, Mari dormia mais, deitando‑se cedo e levantando‑se tarde. Mas às vezes também se deitava tarde e se levantava cedo simplesmente porque lhe apetecia, não porque tivesse de ser.

Uma semana mais tarde, o amo de Máekúla recebeu convidados de Sárgvere: as três «pinguins» e o irmão mais velho Adalbert apareceram para uma visita. Como sempre, vieram apenas por uma hora ou duas e o cocheiro grisalho nem sequer se deu ao trabalho de desatrelar os cavalos da carroça velhíssima. A família passou toda a visita na rua, passeando nas redondezas do solar e descendo depois até à quinta dos lacticínios na companhia de Ulrich. Os lavradores nos campos paravam sempre para olhar, pois era raro porem os olhos em fidalgos que não o barão, e muito mais raro era verem senhoras como as de Sárgvere, com os seus vestidos a arrastar pelo chão.

‑ Aquilo é que é bonito de se ver ‑ era a opinião geral, embora ninguém soubesse dizer porquê.

E os poucos camponeses que se viam obrigados a curvar‑se perante os visitantes, faziam‑no com delicadeza e graciosidade.

No que toca à aparência física, os Kremers de Sárgvere nada tinham a ver com o irmão Ulrich. O irmão mais velho era alto, magro e enxuto de carnes, com uma barbicha muito branca no queixo, as bochechas magras e encovadas. Fazia lembrar algum oficial do exército napoleónico depois da retirada de Moscovo. Também era diferente de Ulrich e das irmãs na maneira de andar e no hábito peculiar de fazer uns movimentos repentinos e rápidos. Apoiado nas suas pernas finas e compridas, Adalbert parecia trotar com passos curtos e efeminados. Mas mesmo assim conseguia adiantar‑se sempre aos outros, que avançavam num passo rítmico e bamboleante, pelo que o irmão mais velho tinha constantemente de retroceder nos seus passos e voltar para trás para se juntar aos outros.

Mas geralmente, Adalbert só reparava no seu afastamento em relação aos outros quando lhe ocorria alguma ideia brilhante que ele ansiava por partilhar, e então, não fosse esquecer o que queria contar, estendia o braço na direcção dos companheiros e aproximava‑se deles até estar suficientemente próximo para falar. Outra característica peculiar destas idas e vindas do irmão mais velho era o seu fiel cão de caça, Milord, cujo focinho comprido e pontiagudo parecia perpetuamente colado aos calcanhares do dono, e que o seguia como uma sombra cada vez que Adalbert se separava dos outros.

Entre as três irmãs havia uma semelhança extraordinária, pelo menos quando vistas de longe, onde a distância não permitia vislumbrar qualquer característica distintiva. As cabeças pequenas com lenços negros, os narizes pontiagudos, como bicos, os pescoços finos e ombros estreitos, o corpo alargando mais abaixo, no peito e nas ancas, com uns braços ridiculamente fraquinhos pendurados nos corpos largos e robustos, tudo isso justificava a insultuosa alcunha com que o irmão Heinrich as havia baptizado. Não é certo que um marinheiro na Antárctida fosse capaz de topar com as três irmãs de Sárgvere no meio de um bando dessas aves solenes, agrupadas de pé sobre uma extensão de neve brilhante.

Quanto menos as senhoras se moviam (e nesse aspecto, assemelhavam‑se a Ulrich), mais tagarelas se tornavam. Pareciam falar incessantemente umas com as outras, mas a conversa era sempre levada com uma espécie de reserva fria, que se revelava tanto no tom como no ritmo das palavras. Mais, estes aparentes diálogos eram levados a cabo sem que qualquer das irmãs prestasse a mínima atenção ao que as outras diziam, e nunca nenhuma delas deixava as irmãs terminarem as frases. Como era possível que aquelas três conseguissem comunicar fosse o que fosse umas às outras era um mistério para toda a gente, incluindo para os irmãos; mas era bem certo que se entendiam, tanto que, por vezes, as suas trocas de palavras degeneravam numa discussão. Nessas ocasiões, o irmão Adalbert era obrigado a estender o braço com a mão aberta no ar durante algum tempo, até que chegasse o necessário momento de paz, e nessa altura já ele se esquecera do que queria dizer. Nessas ocasiões, era Ulrich quem tinha a vantagem: a sua voz severa afogava todas as outras.

Finalmente, o pequeno grupo de visitantes regressou da leitaria trilhando caminhos ermos, indo parar ao emaranhado do negligenciado jardim, onde passearam mais um pouco. Depois, um a um e em fila indiana, meteram por um estreito caminho que passava perto do tanque de lavar a roupa e do poço, conduzindo ao amplo relvado entre as casas e os estábulos, que servia de pátio. Quando os visitantes lá chegaram, o gado tinha acabado de ser lavado e a ordenha do meio‑dia já tinha começado. Mari empurrava um carrinho de mão cheio até cima com um monte de tinas de madeira lavadas trazidas da copa. Era difícil empurrar aquele peso colina acima até ao poço, e os dois pequenos ajudantes da mulher do leiteiro não estavam lá para lhe facilitar a tarefa, apesar de ainda não terem ido para a escola.

‑ Olá, olá, rapariga! Vou ajudar‑te! ‑ chamou o velho barão de Sárgvere, estendendo, como de costume, o braço até alcançar o carrinho de mão cheio. Com um puxão enérgico, Adalbert ajudou o carrinho a subir a colina, pelo que os dentes espaçados de Mari se revelaram num sorriso rápido e ela agradeceu delicadamente com um «Muito obrigada, senhor».

Todos riram bem dispostos; até as três senhoras soltaram umas gargalhadas, enquanto Ulrich von Kremer bateu as mãos uma vez e moveu as pontas dos bigodes para cima e para baixo com um trejeito do rosto. Tinha as faces rosadas, o que lhe dava um ar de jovialidade.

‑ Escuta, Ulrich ‑ começou Adalbert, aproximando‑se do irmão com um braço erguido. ‑ Este Outono estás a pensar ficar aqui em Máekúla durante tanto tempo como no último?

‑ Talvez... Já arranjámos os fogões de sala todos, sabias?

‑ É estranho. Não tarda ninguém te conhece em Sárgvere. E tens ido à cidade mais do que o costume.

‑ Negócios... Obrigações... ‑ murmurou Ulrich, mas Adalbert já não o ouviu porque as pernas compridas o levavam já na direcção de uma vaca que lhe chamou a atenção. E enquanto a examinava com o braço estendido ansioso por partilhar a novidade com as irmãs, as três senhoras trocavam cumprimentos com a senhora Reemet.

‑ Esta vaca malhada aqui... Venham cá ver! É uma das melhores da manada do Ulrich!

As senhoras seguiram‑no, e Ulrich também se lhes juntou. Seguiu‑se então uma discussão longa em que analisaram a cor das malhas, bem como uma série de comentários de circunstância sobre as outras vacas. As irmãs tinham opiniões divergentes, mas os vários argumentos de cada uma pareciam fundir‑se com os das outras e, incompreensivelmente, formar um só. E até as vacas pararam de ruminar para melhor olhar os visitantes e apreciar as críticas deles.

O macho da manada era um jovem touro puro‑sangue e parecia haver algo naquele grupo de visitantes que lhe desagradava. O animal começou então a mirá‑los à distância, resfolegou algumas vezes, balançando a cauda impacientemente de um lado para o outro. Depois, baixou a cabeça e urrou ameaçadoramente.

Mas ninguém reparou no bicho. Os camponeses locais conheciam‑no como um touro dócil e os visitantes estavam demasiado envolvidos na sua discussão para reparar no animal. Para além disso, ninguém estava a usar qualquer pedaço de pano vermelho, nem sequer uma fita colorida, ou uma flor no chapéu. Apesar disso, a ira do touro ia aumentando. Tenso, começou a bater com a pata no chão, a andar em volta das vacas com patadas pesadas, e a aproximar‑se cada vez mais dos fidalgos. E nem sequer foi subtil nessa aproximação: voltou a urrar como que a dar‑lhes um sinal de aviso.

E desta vez foi um urro longo e sonoro. Mas reparando mais uma vez que ninguém o levou a sério, considerou ser altura de agir.

Por um instante, permaneceu quieto, a boca e as narinas pingando, os olhos cada vez mais vermelhos. Depois, um arrepio percorreu‑lhe a espinha até à ponta da cauda. E então, arremessando os chifres para a frente, urrou novamente e atacou. Um dos senhores foi erguido no ar, cambaleou e caiu de costas no chão. O animal estava já pronto a atacar mais uma vez quando recebeu um golpe tão forte na nuca que parou ali mesmo. Furioso, resfolegou mais uma vez e virou‑se para trás para arremeter contra o atacante, mas nessa altura recebeu uma segunda pancada na cabeça que o fez mudar de ideias. Com um urro abafado, bateu em retirada e escondeu‑se no meio da manada, com sangue a escorrer‑lhe do nariz.

Só então se soltou um grito de vários lábios: tinha sido o próprio Ulrich von Kremer o alvo da ira do touro. Tinha o rosto branco como cera, os lábios azuis, e estava deitado na relva, pedindo às irmãs e ao irmão que estavam debruçados sobre si:

‑ Levem‑me para o meu quarto. ‑ Estava tão confuso que usou o dialecto estónio local em vez da língua materna.

‑ Ulrich, estás ferido! ‑ gritaram as três irmãs a uma só voz, enquanto o irmão mais velho andava para cá e para lá, confuso e sem saber o que fazer, repetindo incessantemente:

‑ ht es denn moglich! Ist es denn mòglich!(1)

No meio da confusão, o pequeno cão de caça branco seguia o dono com um olhar culpado: quando aquilo aconteceu, ele tinha sucumbido às fraquezas carnais e afastara‑se do grupo para ir conhecer uma cadela que estava à porta do estábulo.

‑ Chamem um médico! ‑ implorou o ferido, agora em alemão, enquanto se erguia para se sentar. Depois,

 

*1. Isto não é possível! (Alemão)

 

olhou a mão que apertava contra a coxa esquerda e viu os dedos cobertos de sangue. Confuso, ficou a olhar fixamente para o sangue, de olhos muito abertos.

Entretanto a senhora Reemet e Mari, que atirara fora a vara com que atacara o touro irado, aproximaram‑se do barão para o ajudar a levantar‑se, e foi nessa altura que Adalbert recuperou a posse das suas faculdades e substituiu a senhora Reemet ao lado do irmão, para o amparar. Nessa altura, um dos cocheiros, o mais jovem de Màekúla, chegou a correr e substituiu Mari do outro lado. E agora, apoiado pelos dois homens, Ulrich cambaleava em direcção a casa, ainda fixando de olhos vítreos os dedos cheios de sangue. Atrás seguiam as três senhoras, num silêncio assustado, agarrando compulsivamente os braços umas das outras. E o estranho naquela visão é que as três bocas estavam abertas exactamente da mesma maneira. Por fim, ia a mulher do capataz com o chapéu do infeliz senhor nas mãos. Achou que a sua presença seria necessária no solar, onde dificilmente se poderia contar com a presença do espírito de Vilhelmine para acudir a uma emergência.

Ao regressar para junto do seu carrinho de mão, que estava agora cheio de tinas de madeira sujas para levar para a copa, Mari esbarrou de repente com Prillup, que saíra de detrás da porta do armazém do gelo ali perto. Os olhos faiscavam, os músculos das bochechas estremeciam com movimentos nervosos e o homem foi cuspindo saliva enquanto rosnou, com uma voz grave e tensa:

‑ O que é que tinhas que ir bater no animal? Que mal é que o bicho te fez?

‑ O quê...? Porquê...? ‑ Mari estava perplexa.

Tõnu lançou um olhar na direcção das ordenhadoras, que ainda estavam de pé à volta do local do acidente, debatendo animadamente os acontecimentos. Parecia querer acrescentar qualquer coisa, explicar qualquer coisa, e aproximou‑se da mulher mais um passo. Mas então, dir‑se‑ia que mudou de ideias de

repente, porque fez um gesto desalentado com a mão e, voltando‑lhe as costas, disse‑lhe num silvo contido:

‑ Volta ao trabalho, rameira!

Depois, foi directo ao armazém do leite sem olhar sequer para trás, caminhando de ombros baixos e cabeça inclinada para a frente.

Por um instante, Mari olhou na direcção do marido, vendo‑o afastar‑se. Depois, passou vigorosa as costas da mão pelo nariz, como era seu hábito, e pegou novamente no carrinho de mão para recomeçar o trabalho.

Estava ela a meio do pátio quando Peeter se cruzou com ela, correndo na direcção do estábulo.

‑ Vou à cidade... Para o médico! ‑ gritou, acenando com o braço. Aquele rapaz fleumático ficava com um aspecto cómico quando tentava movimentar‑se com rapidez, e Mari sorriu. Chegado à porta do estábulo, o rapaz tropeçou e quase caiu, e Mari sorriu mais uma vez.

Ao regressar da copa com as tinas lavadas, reparou que as ordenhadoras já tinham retomado o trabalho, mas a senhora Reemet ainda não voltara do solar. Ambos os cocheiros atarefavam‑se desajeitados em volta dos cavalos e da carroça, tentando aparelhar tudo o mais depressa possível. E na leitaria, Tõnu estava a alimentar o lume debaixo da panela das natas porque o tempo estava bastante frio, ainda que o sol brilhasse e o céu não tivesse nuvens. Se a temperatura lá dentro não estivesse quente, as natas não subiriam.

Nenhum deles falou até a tina de leite fresco ter sido trazida

para dentro.

‑ Deves vir a receber um bom presente, Mari ‑ disse a senhora Reemet gracejando. ‑ Se não fosses tu, o touro podia tê‑los virado a todos do avesso com os cornos, e sabe‑se lá o que teria restado das senhoras.

‑ Como está a ferida?

‑ Não o vai matar, nem vai ficar aleijado, sequer ‑ respondeu a senhora Reemet despreocupada. ‑ Mas o pobre touro tem os dias contados. O velho ainda mal tinha sido metido na cama e a ferida ligada e tratou logo de dizer que o touro tinha que ser levado para o matadouro. «Não quero ver aquele touro nunca mais!», disse ele.

Entretanto, Prillup tinha tirado uma ardósia de cima da estante e estava entretido a olhar para os números angulosos e tortos que a cobriam. Alguém tinha desenhado linhas a toda a largura da ardósia para facilitar a escrita dos números, mas apesar disso, os algarismos continuavam a estender‑se por cima e por baixo das linhas. A senhora Reemet disse‑lhe então a quantidade de leite que tinha sido trazida para dentro e Prillup anotou‑a na ardósia com um pau de giz que vinha pendurado por um cordel. Conseguiu, dessa vez, escrever os números bem em cima da linha, mas os algarismos saíram mal desenhados, ainda piores do que o resto, muito piores do que os que Mari anotava de vez em quando. No tempo de Yaan, tinha sido sempre a senhora Reemet a anotar as contagens.

O marido e a mulher esvaziaram a tina sem dizer palavra, e como não havia manteiga para bater nesse dia, Mari foi para casa enquanto que Prillup ficou para trás para ir avivando o fogo. Sozinho, trouxe para dentro um cesto cheio de turfa para alimentar o lume e, de quando em vez, ia até à sala do lado para consultar o termómetro que estava pendurado na parede ao lado da pedra de ardósia. E aqui, deixava‑se ficar, andando de um lado para o outro, de olhos postos nos tachos de leite que cobriam as prateleiras. Aqui e ali, parava para olhar com avidez para dentro de um deles, trocando‑os por vezes de sítio, movendo‑os para cá e para lá.

E então, de repente, Tõnu encostou a mão à testa, fechou os olhos e deu um passo para trás, como se estivesse intoxicado por algum fumo. Foi andando então até à parede exterior e, lá chegado, encostou‑se a ela, amparando as costas contra a pedra.

Quando voltou a abrir os olhos, tinha o olhar acossado pelo medo e pela dúvida, e levantou as mãos na direcção das prateleiras, como que tentando defender‑se.

Mari e Tõnu encontravam‑se duas vezes por dia para as refeições. O trabalho de cada um mantinha‑os geralmente afastados, mas mesmo à mesa eles nada tinham a dizer um ao outro, e quando a noite caía era também em silêncio que se deitavam na cama. Mas às vezes, Mari acordava de um sono profundo com a sensação de que uma trave do tecto tinha caído em cima dos seus quadris e a esmagava. Mas era apenas o braço do marido. E ela deixava‑o lá ficar.

De manhã, o rosto de Tõnu tinha os seus traços específicos que denunciavam também uma noite sem dormir.

Entretanto, o barão ferido, que perguntara com toda a seriedade ao médico se iria morrer, foi levado para a segurança de Sãrgvere no dia seguinte ao acidente, para que as irmãs pudessem cuidar dele até que se restabelecesse. Três semanas volvidas, já o homem estava de novo a pé.

Ao voltar a Màekúla, Herr Kremer ‑ que nunca fora grande apreciador de cães ‑ trouxe consigo um cão de guarda, que servia, evidentemente, para o defender contra novos ataques de touros. Assim, uma das primeiras ordens foi que se construísse um canil quente e confortável para o animal. No banco da carruagem, o barão trouxe também um pedaço de lã do tamanho de um vestido, e não do mais barato, que as irmãs de Sárgvere haviam comprado pessoalmente para oferecer à nova senhora da quinta de Kuru. A senhora Reemet, cuja previsão no que toca à recompensa se verificou real, ficou encarregada de levar a prenda a Mari, ainda que não houvesse qualquer razão para que o barão não lhe desse a oferta pessoalmente, no escritório.

Regressado à sua solitária Máekúla, onde Kremer já não se sentia de todo sozinho, o barão pôde desfrutar o tempo seco e agradável do Outono que se seguiu ao Verão frio e chuvoso.

Deixou‑se ficar na herdade corajosamente até que os ventos, a chuva e o gelo chegaram e, aos poucos, tudo começou a morrer no vale e na colina. Ficou até que um manto acinzentado cobriu o charco e os bosques se despiram completamente dos seus mantos verdes. Tudo foi tombando na lassidão de forma constante e austera, sem tristezas desnecessárias ou mágoas, curvando‑se simplesmente perante a lei da natureza, conhecendo perfeitamente o inevitável. E em breve, todas as douradas cores do Outono se apagaram, os odores fortes e vivos foram levados pelo vento e um céu denso e cinzento abateu‑se sobre a terra. E então, de um dia para o outro, um manto de neve cobriu a paisagem e as colunas de fumo azulado que se erguiam das duas chaminés da ala sul do solar davam prova de que o velho senhor da herdade ainda não tinha abandonado a sua residência. Daí se concluindo que os fogões de sala estavam de facto em perfeitas condições.

Desde o infeliz acidente, Kremer sentiu que a sua vida se tornara consideravelmente mais valiosa, pelo que começou a tentar demonstrar a sua gratidão para com o mais poderoso dos seus protectores lendo as Escrituras Sagradas regularmente todas as noites. Nessa altura, ele estaria completamente satisfeito com a sua vida, não fossem as sementes de ansiedade que o leiteiro Prillup lhe semeava agora no peito.

Kremer sentia que, de alguma forma, as suas relações com Prillup estavam a atravessar uma mudança. Entre eles instalava‑se agora o vago desconforto da suspeita. Quando se encontravam, o ar que respiravam estava carregado de antagonismo. Na verdade, tinham poucos contactos, apenas um encontro no primeiro dia de cada mês, quando Prillup vinha ao escritório para tratar de negócios. Nessas ocasiões, a breve e séria saudação do leiteiro, o modo como ele empurrava o dinheiro por cima do tampo da mesa na direcção do senhorio, até o modo como se sentava do outro lado da mesa e o modo como os olhos castanhos lhe brilhavam no rosto barbudo; o modo como fechava a porta atrás de si ao sair ‑ havia algo por detrás de tudo isto que deixava Kremer com a sensação de que alguém lhe tinha passado uma mão fria e agressiva pelo topo da cabeça careca.

Mas o que poderia ser? O que estaria errado, agora no segundo ano, quando tudo correra tão bem ao princípio?

O preço que o senhorio cobrava pelo leite não era moderado? Bastante moderado, até? Teria Kremer pressionado Prillup para pagar a dívida contraída, da qual apenas vinte e cinco rublos haviam sido pagos até ao momento? Alguma vez pedira ao leiteiro novo para lhe fazer pagamentos adiantados, coisa que tanto aborrecera Yaan? Kremer tinha encontrado meio de melhorar a sua situação financeira pedindo crédito ao banco e vendendo uma quinta ou duas, de modo que podia dar‑se ao luxo de não fazer demasiadas exigências ao leiteiro. E quanto à renda da quinta e da leitaria, era a mesma que sempre fora, e o preço dos vitelos era o mesmo, ainda que o preço da terra e da carne continuasse sempre a subir. E quanto à mulher... Ora, ela também recebia a sua parte, sob a forma de presentinhos inocentes.

O que poderia ser?, pensava então o cavalheiro. O que se passaria com Prillup?

Bem, sim... Podia ser isso... Mas porquê agora, depois de tanto tempo?

Nas suas conversas com Mari nunca se falava de Tõnu ‑ quanto a isso havia um acordo tácito entre os dois. Por isso, Kremer decidiu tentar a sorte com o próprio Prillup. O senhorio precisava de clareza; precisava de se livrar daquelas dúvidas que lhe atormentavam a paz de espírito.

Por fim, no primeiro de Dezembro, aventurou‑se então a levantar o assunto. Já as costas altas e estreitas de Prillup se viravam para a mesa, já a orelha ferida dele aparecia à vista, já o homem levantava a mão em que segurava o chapéu quando Kremer o deteve de repente:

‑ Espera um pouco, Tõnu!

Prillup virou‑se devagar. Em todo o seu rosto, apenas os olhos perscrutadores fizeram perguntas. Kremer estava sentado à mesa, curvado, arrebitando para cima as pontas do bigode longo, numa tentativa de sorriso.

‑ Já te quis perguntar várias vezes: apareces sempre aqui com um ar amargo, enches‑me o escritório de rancor e de amargura. Talvez o negócio dos lacticínios já não te agrade?

O leiteiro fixou o olhar no senhorio mas o mais provável é não ter visto nada. Deixou‑se ficar calado, os braços caídos inertes ao longo do corpo.

‑ A mim parece‑me que não devias ter nada a lamentar. Aliás, devias estar até muito satisfeito. Qualquer outro homem no teu lugar teria feito a mesma coisa.

Prillup continuou em silêncio, forçando os olhos, os braços, as pernas, a manter a calma.

Kremer aguardou, a mão brincando com um lápis, passeando os olhos pelo casaco de lã de Prillup.

‑ Podias dizer‑me o que te apoquenta. Sempre nos demos bem, tu e eu...

‑ Fui uma besta ‑ disse Prillup por fim.

‑ Bem...! Então afinal de contas...? ‑ Kremer fechou a boca com um estalido. ‑ Como é que... De que maneira...?

‑ Fui um bruto! ‑ repetiu o outro ainda mais vigorosamente, sem acrescentar nada.

Durante um momento, Kremer olhou Prillup nos olhos. Parecia que encontrara ali uma resposta, porque se ergueu suavemente da cadeira. Esfregando lentamente as mãos, e apoiando‑as em seguida atrás das costas, o velho cavalheiro foi passeando para lá e para cá no escritório até que parou novamente por detrás da sua cadeira e voltou a encarar Tõnu.

‑ Não consigo perceber exactamente qual é o problema, e se tu não me dizes... bem, deixemos a coisa por aqui. Mas escuta, meu caro Prillup, não é verdade que tudo nesta vida tem os seus defeitos?

A felicidade e a mágoa andam sempre de mãos dadas, sabes. Se te sentes desalentado, posso recomendar‑te um bom remédio. Eu mesmo já o experimentei. Ouve cá, Tõnu: sempre que fiz alguma coisa errada (e isso também acontece, que eu não sei tudo), ou quando fiz algum mal, o que também pode acontecer, porque os fidalgos também não são anjos; olha, eu pego na Bíblia e leio‑a até encontrar as palavras que foram escritas precisamente para mim, que me ajudam com o meu problema e me assentam como este casaco. E depois de eu ler esses versos, e de os reler três vezes, então as minhas preocupações desaparecem como quem limpa o pó do tampo de uma mesa. Mas tens de ler aquela parte que foi escrita para ti, percebes, Tõnu? Aquilo que tiver sido escrito de propósito para ti.

Durante este longo discurso, foram‑se escapando do casaco do leiteiro alguns ruídos de fricção sem que porém se percebesse que movimento é que o homem estava a fazer. Prillup permaneceu mudo, os olhos fixos no chão. Os lábios iam‑se contorcendo nervosamente, para um lado e para o outro, como se quisesse cuspir mas não o fizesse.

Kremer deu‑lhe tempo de sobra para responder, sentando‑se novamente e recostando‑se na cadeira, balançando‑se pensativamente para trás e para a frente. Mas como o outro continuou sem articular uma palavra, o barão levantou a cabeça de repente, como que despertando, e murmurou:

‑ Desde quando é que ela se tornou tão importante para ti?

‑ Não sei ‑ começou Prillup, mas interrompeu‑se de repente e fechou as pálpebras com força: como duas gotas de mercúrio, duas lágrimas gordas escorreram‑lhe para dentro da barba. Depois, ele voltou‑se às pressas e desapareceu.

Atrás de si ficou apenas um vago odor a nicotina e o cheiro amargo do casaco de lã não tratada.

 

Logo desde o primeiro dia, Tõnu Prillup, o leiteiro, desconfiou que os clientes da cidade estavam mais predispostos a comprar aos mercadores rivais do que a si. Só não entendia o poder que os levava a passar pela sua carroça sem se deterem: estaria a falha na sua mercadoria ou em si próprio? O pobre estava completamente confuso: acreditava firmemente que não havia nada de errado com o seu leite e a sua manteiga. Fazia tudo o que podia para os produzir com a melhor qualidade; e quanto às suas capacidades de vendedor, aqui Prillup considerava‑se superior aos colegas em rapidez e delicadeza. E apesar de tudo isso, era ele geralmente o último a sair do mercado, ainda obrigado a despachar miseravelmente pelas ruas os restos de leite que ninguém quis ‑ coisa que continuou a acontecer mesmo durante o segundo ano de negócio. Quanto aos contactos com revendedores, passava‑se a mesma coisa do que no mercado: todos eles pareciam ter qualquer ressentimento inexplicável contra si. Mesmo os compradores mais ou menos regulares tentavam comprar fiado ou deviam‑lhe dinheiro, de modo que Tõnu depressa desistiu deles por não serem bom negócio.

E pensava então o leiteiro: qual de nós é que está a repelir as pessoas; eu ou os meus produtos? Talvez ambos. Mas repeliam‑nos como e porquê?

Todos os barris e tinas, bem como a caixa da manteiga, eram limpos escrupulosamente. O leiteiro obrigava a esposa a escaldá‑los e a areá‑los regularmente e não lhe dava descanso. Mantinha sempre a barba aparada e o lenço à volta do pescoço impecavelmente limpo; lavava sempre a cara de manhã antes de sair da estalagem para o mercado e tinha sempre pronta aquela máscara com o sorriso convidativo, que punha no rosto à velocidade do relâmpago assim que colocava a carroça no seu lugar usual entre a fileira de leiteiros. E sempre que se via obrigado a vender o excedente a algum lojista da rua, voltava sempre a pôr o sorriso simpático. Mas tudo isso de pouco ou nada servia ante a atmosfera de antagonismo que o envolvia desde o instante em que as rodas da sua carroça pisavam a gravilha das ruas da cidade, ou que os primeiros fregueses apareciam perto da fila de leiteiros do mercado. Todos os outros leiteiros faziam bom negócio enquanto ele ia apenas subsistindo.

Mergulhado na tensão das circunstâncias, Prillup começou a tentar retirar significados das palavras e expressões dos seus clientes, mantendo uma atitude séria e honesta. Mas de nada lhe serviu. Alguns dos clientes olhavam‑no, sorriam um sorriso estranho e passavam pela carroça dele sem parar. Outros faziam o mesmo mas com uma expressão séria e vaga no rosto, enquanto que um terceiro tipo de pessoas aparecia para comprar uma vez, ou mesmo várias, e depois desapareciam. Em suma, alguns clientes não gostavam do sabor da sua mercadoria, outros não gostavam do aspecto do vendedor. E ambos os tipos de clientes eram bastante mais numerosos do que os que apareciam vezes sem conta e que estavam satisfeitos tanto com o homem como com o leite e a manteiga dele. Por isso, o leiteiro da Herdade de Màekúla acabava por fazer mais negócio do que qualquer dos outros com os compradores ocasionais, que não se davam ao trabalho de fazer escolhas muito criteriosas; por outras palavras, aqueles fregueses que só apareciam no mercado uma vez. E apesar de tudo, muito raramente lhe chegou aos ouvidos algum comentário crítico. Quanto ao leite e à manteiga, ouviu uma palavra aqui e ali, mas quanto ao homem em si, nunca se disse nada que lhe fosse dado ouvir. Por isso, Tõnu estava tristemente perplexo com a volta que as coisas tinham dado. Porque é que os seus colegas à direita e à esquerda prosperavam onde ele falhava tão redondamente? Porque é que era deixado para trás quando estava certo de ultrapassar os outros em polidez e em eficácia como vendedor? Não conseguia entender: de que forma é que os outros eram melhores do que ele? Ou como é que as mercadorias deles eram melhores do que as suas? E se houvesse uma remessa de manteiga que tivesse ficado menos boa, ou se o leite não viesse tão bom como de costume ‑ o que pode acontecer a qualquer um ‑ era certo e sabido que Tõnu pagaria caro pelo erro, enquanto que os outros recuperavam sempre sem problemas. Porque é que era diferente com ele? Porque é que o tratavam de forma diferente de todos os outros? Que maldição lhe tinham posto?

Como não conseguia achar a solução, ainda para mais porque era incapaz de admitir que poderia ter inimigos pessoais, Prillup decidiu que era absolutamente necessário iniciar uma campanha de reconciliação em grande escala. Levado por um sentimento vago de que o mundo inteiro estava contra si, começou a esforçar‑se por ser generoso e amável com toda a gente com quem tivesse contacto, tanto na estrada como em casa. Oferecia cerveja e whisky a toda a gente: aos outros mercadores, aos estalajadeiros, aos talhantes, aos lojistas e aos viajantes que conhecia, e se acontecesse algum vizinho passar por casa dele, com ou sem convite, nunca saía de lá sem ter comido uma boa refeição e sem provar um copo de whisky. Os talhantes que vinham ao encontro dos vendedores de gado nas estalagens à beira da estrada tinham o hábito de queimar o tempo jogando cartas a dinheiro pelas tabernas. Para lhes fazer companhia, o «bom velho Máekúla» era convidado a juntar‑se‑lhes, e era ele, frequentemente, o perdedor do jogo. No meio destes esforços, Prillup não se esqueceu da velha dama Sutsu. No Inverno, o leiteiro podia ir para a cidade directamente, atravessando o rio gelado e o charco, passando por Tapu. E sabendo que Triinu gostava de uma pinguinha de whisky, ele deixou‑lhe uma garrafa à porta em mais do que uma ocasião. Em troca, suplicava‑lhe que lhe desse um determinado pó branco com um odor e gosto misteriosos, remédio contra maus olhados e pragas, que costumava polvilhar sobre o leite e a manteiga de tempos a tempos.

E foi então que surgiu ainda outra fonte de ansiedade, que fez com que fosse necessário intensificar os esforços: o segredo deles começava a ser cochichado à boca pequena.

Nem Tõnu nem Mari souberam onde nem como é que o boato nasceu, como um manto de névoa cujo ponto de origem não sabemos determinar. Mas o mais provável foi que tivesse começado ali mesmo na vizinhança.

A pouco e pouco foi‑se tornando clara para Tõnu a razão pela qual as pessoas o olhavam de forma estranha. Ele começou a detectar algo nos olhares deles quando sorriam, no modo como apertavam os lábios, na voz deles quando riam. E isso começou muito antes dos sussurros e das insinuações veladas lhe chegarem sequer aos ouvidos.

Quando perguntou à mulher se já alguém tinha feito alguma insinuação à frente dela, Mari limitou‑se a coçar o pescoço por debaixo do lenço e a olhar vagamente para a panela de sopa que fervia no lume, até que os lábios começaram a formar palavras e ela respondeu num bocejo:

‑ Sim, claro que já. Mas isso é de esperar. Faz parte da natureza humana, esse tipo de falatório.

E o marido bem poderia ter adoptado a mesma atitude calma. Na verdade, Prillup até queria olhar a questão pelo mesmo prisma despreocupado, mas não conseguia.

Não tinha nada em que se apoiar, não tinha força interior que lhe desse alento. Tentou imitar Yaan e abanar a cabeça do mesmo modo altivo do antigo leiteiro, mas logo se esquecia de fazer esse movimento, e toda a gente o via passar cabisbaixo. Tentou olhar para as pessoas com ar ousado, e rir e urrar e gabar‑se, mas tudo lhe saía insípido, sem vida, e arrepios frios percorriam‑lhe a espinha. E por isso, começou a tentar receber toda a gente, ansioso de agradar, tentando evitar problemas sempre que possível, não fossem as pessoas exagerar e esgotar‑lhe mais energia do que o suportável. E nesta altura, Prillup precisava tanto de energia como de coragem, especialmente quando as pessoas da igreja e do caminho para a cidade começassem a farejar o boato, o que estaria sem dúvida prestes a acontecer, como se os próprios ventos lhes trouxessem as novidades aos ouvidos.

É sabido que as pessoas gostam de aceitar o que lhes é oferecido de graça, pelo que a quinta Kuru depressa se tornou o local de reunião de meio mundo, ainda que não houvesse naquela casa jovens solteiras que atraíssem a juventude. Aqui, aparentemente, o segredo da família não incomodava ninguém. Servia apenas de tópico interessante para se conversar nas costas dos Prillups. E sem dúvida que entre os convidados mais velhos haveria maridos e mulheres que invejavam secretamente Mari e Tõnu, e que de bom grado teriam trocado de lugar com eles. Segundo todas as aparências, a família estava bem abastada. Mas era certo que outros haveria que iriam tecer juízos de valor, e Tõnu sabia disso. Contudo, desde que as pessoas bebessem de bom grado uns copos na sua companhia, Tõnu sentia que as coisas estavam mais ou menos apaziguadas e que havia algo a ganhar com aquele convívio. Por isso, sempre que os convidados regressavam alegres e cantavam e dançavam em sua casa, Tõnu sentia‑se aliviado.

Durante esse Inverno, o cabelo do leiteiro ficou completamente grisalho na zona das têmporas.

As mãos estavam cansadas e tinha um tique no canto do olho que o incomodava constantemente. Os movimentos dele, anteriormente tão pausados, eram agora rápidos e repentinos. No fim do mês, antes de Prillup ir acertar as contas ao solar, Mari encontrava‑o frequentemente à mesa, contando dinheiro com dedos trémulos, derrubando desajeitadamente as pilhas de moedas ordenadas. Dessa maneira, fazia, naturalmente, poucos progressos nas contas.

O chefe de família quase nunca falava de negócios com Mari, cuja indiferença inata o ajudou neste ponto. Mas apesar disso, fazia grandes esforços para lhe mostrar ‑ especialmente quando não estava completamente sóbrio ‑ que estava perfeitamente satisfeito, que havia realizado as esperanças mais ambiciosas, ainda que de vez em quando deixasse escapar uma palavra que contradizia estas afirmações. Entretanto, assegurava‑se de que nada faltava ao lar, à mulher e aos filhos; nada que estivesse dentro dos seus meios e que ele fosse capaz de lhes oferecer.

Mas nesta época era frequente Prillup chegar da cidade embriagado. E neste estado, a sua típica tagarelice inocente podia facilmente degenerar numa irritação furiosa a propósito de uma banalidade qualquer, ou mesmo sem razão absolutamente nenhuma. Nessas alturas, discutia com a mulher e acossava‑a, às vezes chegando quase à violência.

Uma dessas cenas aconteceu certo dia perto do fim do Inverno. Tinha caído a noite quando o leiteiro chegou a casa, de evidente bom humor. Com a família no quarto das traseiras, ninguém reparou na sua chegada até que, uma a uma, várias laranjas vermelhas começaram a rolar pelo chão até ao interior do quarto. Para Anni e Yuku, esta era uma surpresa agradável, e de início, as crianças limitaram‑se a seguir as bolas coloridas e vivas com olhos bem abertos. Depois, com um grito alegre, atiraram‑se a elas de um salto. Só depois de todas as doze laranjas terem sido roladas para dentro do quarto, e depois de um pau de rebuçado comprido ter aterrado certeiro no colo de Mari é que o generoso presenteador apareceu à porta.

Vestida com as roupas de domingo, de chapéu de pele na cabeça e faces ligeiramente coradas, a jovem esposa estava sentada perto do candeeiro, exibindo toda a sua graça jovial. Tinha decidido apanhar o comboio da noite para a cidade e ir a pé até à estação de Màdakúla, a cerca de quatro verstas de distância. Assim que a primeira laranja apareceu a rebolar pelo chão, uma sombra apoderou‑se‑lhe das feições, indicando que teria sido melhor se Prillup tivesse chegado a casa uns minutos mais tarde.

Assim que entrou, o marido entendeu a situação. Ficou parado à porta, algo lhe escorregou da mão e caiu com estrondo no chão. O sorriso que trazia morreu‑lhe instantaneamente e os joelhos fraquejaram. Uma das crianças olhou atentamente para o rosto do pai e soltou um grito. Ele ficou ali de pé durante um momento, mudo de fúria e mexendo os cotovelos como que à procura de apoio. Depois atirou‑se de um salto à mulher e ordenou‑lhe, num silvo meio reprimido:

‑ Tira‑me esses trapos!

Mas logo cambaleou para trás, porque de imediato levou a forte pancada de um punho na cara.

‑ Estupor! Estupor! ‑ gritou Mari. Nunca ninguém a vira tão zangada. Parecia de repente ter crescido em tamanho e em força, o corpo até lhe tremia na antecipação de um combate, pronta a atacar. Tinha a boca aberta, com os dentes à mostra no rosto pálido, e os olhos faiscantes estavam muito abertos mas enxutos.

No instante seguinte, Anni agarrou‑se aos joelhos de Mari, enquanto Yuku segurou o casaco do pai. Ambas as crianças começaram a chorar, assustadas.

‑ Vais ficar em casa! ‑ ordenou Tõnu numa voz contida, por entre lábios que começavam visivelmente a inchar.

‑ Estou só a cumprir com a minha obrigação ‑ foi a resposta vigorosa da mulher.

Prillup levou a mão à boca, como se tivesse agora tomado consciência de uma dor forte, e começou a recuar, como quem se apercebe de repente da força invencível do adversário. Ao deixar‑se cair vencido sobre uma cadeira, cobrindo o rosto com as mãos, Mari inclinou‑se deliberadamente sobre a cama, pegou no casaco e no xaile, vestiu‑os e saiu. As crianças correram‑lhe no encalço, mas pouco depois voltaram para casa soluçando desesperadas.

Prillup deixou‑se ficar sentado, imóvel, dominado por um único pensamento: ela bateu‑me! Ela resistiu‑me com violência! A ideia não o fazia sentir‑se nem zangado nem amargo, mas torturava‑lhe a consciência, quase o paralisava. Com o impacto do golpe, a intoxicação alcoólica desvanecera‑se. Agora, Prillup estava perfeitamente lúcido e consciente da mudança, mas a cabeça continuava incapaz de pensar; aliás, ainda mais agora do que antes. Só conseguia fixar‑se no que acabara de acontecer e na evidência de que ele tinha agora que aceitar a situação, apesar de tudo. E nessa altura, recordou um incidente que se passara no Verão anterior.

Prillup recordou uma noite em que pedira à mulher para matar uma traça que pousara em cima da mesa. Mas em vez disso, Mari abriu a janela e tentou enxotar o insecto lá para fora com uma folha de papel.

‑ Porque é que não a matas e pronto?

‑ Como é que posso fazer uma coisa dessas? Ela é tão pequena e eu sou tão grande!

E então, um raio de luz atravessou‑lhe o cérebro turvo. Se é assim que ela pensa, então talvez ela tenha tido razão, afinal de contas. E Prillup avaliou então os acontecimentos numa nova perspectiva. O marido caído em desgraça levantou‑se então e correu atrás daquela que o desgraçara.

‑ Mari, Mari! Não te vás embora assim!

Mas era óbvio que perdera demasiado tempo com pensamentos: Mari já não está no pátio nem em lugar nenhum ali perto. Ele começa a correr ao longo do caminho cheio de neve, subindo a colina. Mas a noite está tão escura. ‑ Mari! Mari!

Nenhuma resposta recebe os chamamentos desvairados. Os olhos dele estão apagados, as pernas fracas. Acabou de fazer uma longa viagem e o whisky está a traí‑lo. Mas ainda assim vai persistindo lento no caminho para Kruusimáe, recolhendo forças na esperança de que talvez ela ainda volte ‑ desta vez, ela há‑de voltar!

Mas não há sinal dela. Não se vê nem uma estrela, nem uma luz. A neve vai caindo silenciosa e a voz dele perde‑se na escuridão sem chegar a lado nenhum. O negrume denso e parado da noite engoliu aquela que ele procura.

E então, Prillup perde o pé e cai estendido sobre um buraco oco na neve, batendo a cabeça contra algo duro. Com a mente ligeiramente entorpecida, deixa‑se ficar deitado na neve com o rosto virado para baixo. Isso parece aquecê‑lo. Chega até a esticar os braços e as pernas para melhor os repousar, e sente‑se invadido por um calor agradável que lhe corre nas veias cansadas, subindo pelo corpo acima desde os joelhos até à cabeça. E deseja poder ficar ali para sempre, escondido pela neve. Mas não; tem de se levantar. Tem de se levantar porque o cavalo ainda não foi desaparelhado nem levado para a cavalariça. E não há ninguém para cuidar da casa. E as crianças estão a chorar. E amanhã é outro dia de trabalho. Apalpando o caminho, Prillup volta aos tropeções para casa, andando com dificuldade no meio do nevão, que ameaça tornar‑se num verdadeiro temporal e que lhe dificulta a respiração: aliás, aquela neve poderia facilmente enterrá‑lo por completo.

Prillup não come nada à ceia, mas deixa comer as crianças enquanto ele se limita a beber um longo trago de whisky, escondendo o rosto por detrás da porta aberta do armário da cozinha, para os filhos não verem. Tõnu precisa de garantir uma noite de sono descansada. Precisa de calar aquela voz cujas palavras podem‑no magoar.

Mas o sono demora a vir. Prillup tem a boca e a testa tão quentes que doem, e arrepios frios percorrem‑lhe constantemente as costas. Desconfortável, acaba por chamar os filhos para virem dormir na cama do pai ‑ ficaria mais quente e sentir‑se‑ia menos só. Yuku acede e vem para o quarto, mas Anni recusa‑se. O pai abraça o filho, afaga‑lhe a cabeça e depois deixam‑se ficar deitados os dois, de costas um para o outro. Do outro quarto, onde Anni está sozinha na cama, chegam os sons de soluços abafados. E por fim, o silêncio enche a escuridão. Só lá de fora se ouve o zunido baixo do vento.

‑ Pai?

‑ O que é?

Um sussurro é respondido com outro.

‑ Ela volta?

‑ Claro! Amanhã já está em casa.

Tõnu sente o calor do corpo do rapaz contra as suas costas e ouve‑o suspirar profundamente algumas vezes antes de adormecer. E em pouco tempo, também o pai adormece, com as mãos apertando a cabeça latejante.

Mari regressou da cidade forte, saudável, robusta, e lançou‑se ao trabalho como se nada tivesse acontecido, como se também aqui ela quisesse cumprir com uma obrigação.

Trouxe para as crianças um saco cheio de coisas boas e encheu o peito de Tõnu com uma coragem renovada. E assim retomou a rotina do trabalho ‑ de casa à leitaria e de novo da leitaria para casa.

O gelo entre o casal foi derretendo e começou a aparecer relva verde onde antes só existia neve, e na ferraria, por onde passavam sempre a caminho da leitaria, um ferreiro novo dedicava‑se agora a forjar ferraduras.

Tratava‑se de Yuhan Kohvet, que regressara do exército no Outono passado, onde aprendera o ofício de ferreiro, e que podia agora substituir o ferreiro de Tapu nos trabalhos de Maekúla ‑ assim como assim, o ferreiro antigo já tinha trabalho demais. Mas durante os seus tempos de soldado, Yuhan aprendera ainda outra arte: a de tocar acordeão. E a música que ele fazia era alegre e brincalhona, ou então chorava lamentosa no tom das tradicionais melodias russas ‑ mas sempre tão original e cativante que o jovem ferreiro depressa foi aclamado unanimemente como o músico mais popular de toda a região, nesse Inverno. E quando por acaso um grupo de jovens parava em casa dos Prillups com música e dança, Yuhan Kohvet tocava sempre o seu acordeão, e a jovem esposa Mari ouvia atenta e deliciada.

Para além destas ocasiões festivas, Mari também gostava de observar o músico enquanto trabalhava na ferraria. Sempre que tinha uns minutos a perder no caminho da leitaria para casa, ela detinha‑se à porta da oficina durante uns minutos, ou então sentava‑se um pouco na soleira da porta coberta de fuligem, por entre carvões queimados e manchas vermelhas de ferrugem. Os foles suspiravam, o fogo cuspia fagulhas, o ar enchia‑se de fumos acres e Yaak Sõra, o novo ajudante do ferreiro, nunca se cansava de gabar o sobrinho a quem passasse.

Falador e alegre, pouco mais velho do que Yuhan, aceitara para si o papel de amigo e benfeitor do jovem, cobrindo‑o de elogios paternais e, ao mesmo tempo, extasiando‑se de alegria com as glórias do sobrinho. Tanto fazia se contava sempre as mesmas histórias ‑ havia sempre nelas detalhes novos que compensavam a repetição.

‑ Ora bem, minha jovem ‑ começava ele ‑ não há muitos que se possam comparar com ele.

Quem se pode comparar a um soldado de artilharia que se tornou ferreiro ao ferrar os cavalos do regimento? E quem mais poderia ter chegado a sargento em tão pouco tempo?

Ora, até lhe pediram para continuar no exército como mecânico para supervisionar o trabalho de sete oficinas! E quem é que se compara ao «nosso rapaz» nas artes da leitura, da escrita e da música? E sabe cantar com voz de baixo e a contraponto, e o acordeão que ele toca tem três filas de teclas, como toda a gente sabe.

‑ Sim, sim, minha boa vizinha, é de família, sabe? ‑ E era assim que Yaak terminava o seu longo discurso, esquecendo‑se porém de explicar de que modo é que estas excelentes características de família se revelavam no seu caso, que não passava do ajudante de Yuhan na forja e que manejava a marreta e soprava os foles e nos papéis fazia três cruzes em vez de assinar.

Por vezes, Yuhan ria da gabarolice do tio, outras vezes ofendia‑se, e noutras ocasiões ainda ficava vermelho por debaixo da fuligem que lhe manchava o rosto, se reparava que o falatório de Yaak levava a jovem mulher a ficar séria e a desviar pensativamente o olhar.

E quando o ferro vermelho em brasa era deitado sobre a bigorna e cuspia e espalhava fogo ao receber as pancadas da marreta, moldando‑se e dobrando‑se, então o tio Sõra nunca se coibia de estabelecer uma engenhosa comparação, falando com os olhos cinzentos muito abertos e brilhantes:

‑ Vê, rapariga. É assim que ele conquista os corações das jovens! Um coração que seja duro e teimoso quanto quiser, que ele há‑de fazê‑lo brilhar e torcer‑se, e há‑de martelá‑lo até se transformar num anel. Exactamente da mesma maneira que isto aqui. O meu sobrinho é capaz de conquistar o coração de qualquer rapariga em qualquer canto do planeta!

‑ Às vezes bates no sítio errado ‑ respondeu o sobrinho. ‑ Porque quem bate o ferro és tu, não és? Eu só o viro um bocado para um lado ou para o outro.

‑ Eu? Oh, eu só aliso seja o que for que me puseres debaixo da marreta. Tenho mais força do que tu... Mas a forma, quem lhe dá forma? E não julgues que ele só é capaz de fazer ferraduras e dentes de ancinhos... Ele é capaz até de fazer um kvólver(1), digo‑te eu. Se quiseres encomendar um...

Mas a senhora da quinta de Kuru não estava interessada em «levólveres». Bastava‑lhe ficar a observar o jovem ferreiro forjando ferraduras e dentes de ancinho. Havia algo de agradável e de apaziguador nos movimentos de Yuhan, qualquer coisa que a punha à vontade fosse qual fosse a peça de ferro a tomar forma na bigorna, sujeita às pancadas da marreta. Até o avental de couro do jovem ferreiro trazia qualquer coisa de pacífico e reconfortante, e cada vez que a marreta atingia a bigorna, depois de uma série de pancadas, o barulho que fazia parecia uma promessa solene. Geralmente, Mari saía quando entravam homens na oficina com cavalos para ferrar ou utensílios agrícolas para arranjar, enchendo a oficina de tal modo que não havia lugar para espectadores. Mas às vezes custava‑lhe sair, mesmo nessas alturas, e perder a visão de Yuhan a preparar o casco do cavalo antes de o ferrar, ou dos pedaços de ferro a voar para aqui e para ali, quando o ferreiro cortava as ferraduras à medida do casco do cavalo.

Era possível que houvesse um brilho qualquer nos olhos dos homens quando entravam na oficina e lá encontravam Mari, mas a verdade é que nunca se fizeram insinuações nenhumas, porque a força da personalidade da rapariga fazia‑os calar a boca. Assim, a jovem continuou a ir e a vir conforme lhe apetecia, e se acontecia ter algum tempo para matar, era usual ficar durante alguns instantes, para ver o ferreiro pregar as ferraduras no casco de um, ou talvez até de dois cavalos. Em resposta aos longos discursos do ajudante, ela ora ria ora ficava séria, sempre confiante de que, apesar de tudo, eles se esforçavam por lhe agradar. Por isso, que digam o que quiserem nas costas dela.

 

*1. Pronúncia incorrecta de «revólver».

 

Vendo que Mari apreciava as suas artes e capacidades, nesse Verão, Yuhan começou a visitar a casa deles sozinho. Aparecia com o acordeão e sem ele, aparecia quando Prillup estava em casa e, por vezes, aparecia quando ele estava na cidade.

Quando Prillup se ausentava, Yuhan brincava e ria muito com as crianças, acicatava o cão e o gato e conversava sempre de coisas distantes com Mari. Quanto mais remoto e frívolo o assunto, mais ele se entusiasmava com a conversa, de tal modo que às vezes perdia o fim à meada da história.

Quando começava a ficar tarde e as crianças iam para a cama, caía entre os dois um silêncio estranho, que só era quebrado quando o visitante perguntava:

‑ Queres que eu me vá embora? E Mari respondia:

‑ Sim, já é hora de ires para casa.

E Yuhan lá ia, ainda que, antes de sair, demorasse bastante tempo à procura do chapéu.

 

Depois daquela conversa agitada com o leiteiro no primeiro de Dezembro, em que depois de saldadas as contas o barão dera um sermão fraternal ao leiteiro por andar tão triste, um sentimento de inquietação começou a agitar o peito do velho senhorio. As lágrimas de Prillup levaram‑no a crer que havia qualquer coisa a resolver naquele acordo, pelo que começou a tentar chegar a uma solução. Durante uma hora ou duas, andou às voltas no escritório até que decidiu que o ar frio da rua o ajudaria a pensar melhor a situação. E quando chegou a noite, ainda havia nós por desatar, pelo que Kremer se voltou para a sua fiel Bíblia em busca de esclarecimento, lendo‑a à luz de duas velas.

E como sempre, a Bíblia forneceu‑lhe a resposta. Depois de viradas algumas páginas, Kremer encontrou os versos que tinham sido escritos para si.

Estavam no livro de David, e apenas um homem que quisesse realmente chegar à raiz dos seus problemas e fosse severo e justo consigo próprio seria capaz de interpretar a mensagem. Tratava‑se da história de David, de Urias o Hitita e de sua mulher Betsabé, contada pelo profeta Natan. Segundo a história, um homem rico tinha uma manada grande de ovelhas e gado, mas não quis abater nenhuma delas. Por isso, foi roubar a única ovelha de um homem pobre e matou‑a para dar de comer a um viajante que tinha acabado de receber em casa.

Não querendo poupar‑se a si próprio de modo nenhum, o Senhor de Máekúla releu a fábula duas vezes sobre o homem pobre e sobre o modo como ele amara o seu pequeno cordeirinho. E releu então os versos sobre o mesmo homem, sobre o modo como criara o cordeiro e o alimentara para que crescesse juntamente com os seus filhos, como partilhara o seu pão com o cordeiro e o deixara beber do seu próprio copo, como dormira com o bicho nos braços e como o tratara como um filho.

E então, Herr von Kremer pousou os óculos sobre a Bíblia aberta, levantou‑se lentamente e começou a andar pelo escritório com passos pesados, moendo e remoendo na cabeça o que acabara de ler.

Para quebrar o silêncio opressor que dominava a casa, o velho senhor ligou a caixa de música. Como estava muito escuro, acendeu velas também no quarto ao lado, e para acelerar os pensamentos, ia tirando, de vez em quando, um rebuçado de fruta da caixinha e metendo‑o na boca.

Não demorou muito até que a mente do pensador começasse a ficar mais clara e o seu coração mais leve. Um profundo suspiro de alívio escapou‑se‑lhe dos lábios, levando os bigodes a estremecer. Por fim, o barão limpou a testa e sorriu.

Graças a Deus! Pensando no que acabara de ler, reparava agora que o seu pecado era irrisório! Ora, nem sequer se comparava com o de David! Não havia razão para que o pecador Kremer se humilhasse diante do virtuoso David.

É verdade, Kremer tomara para si o cordeiro de um homem pobre, mas não furtivamente, ou através do engano. Não, não! Ele pedira o cordeiro e pagara um bom preço por ele. Para além disso, nem sequer a possuía completamente: ambos a partilhavam, e ela alegrara o coração tanto de um como do outro; enquanto que David não se detivera nem perante derramamentos de sangue para conseguir o que queria, e tomara o cordeiro completamente para si. E onde estavam os «vastos rebanhos de ovelhas e gado» de Kremer, que permitissem que as suas acções fossem medidas à mesma escala do que as de David, que tinha sido abençoado com várias esposas e concubinas? E por último, como poderia o receptor da dádiva adivinhar o que o oferecedor viria mais tarde a arrepender‑se?

Mas mesmo assim, Ulrich von Kremer estava longe de se considerar completamente inocente. Que ele tirara algo a outro e que essa outra pessoa chorava a perda, isso era facto inegável. O assunto em questão agora era como apaziguar o juiz supremo e como compensar a parte lesada, de modo a aligeirar o castigo.

Quanto ao castigo, Kremer não acreditava que fosse muito pesado, fosse como fosse. David, cujos erros foram bastante mais graves, foi punido apenas com a morte de um filho ‑ e ele tivera muitos e muitos filhos. Para Kremer, que fizera um mal bem menor, bastaria que uma vaca velha morresse de doença. Talvez um cavalo ou um boi morressem também, mas mais do que isso não. Pois agora, Kremer queria penitenciar‑se. Foi até ao escritório buscar o almanaque. Sim, precisava de se penitenciar, para não ficar atrás de David.

Sim... ‑ Kremer consultou o calendário. Hoje é quarta‑feira: daqui a quatro dias será o primeiro domingo do mês que vem, em que o sermão para os fidalgos será em alemão na igreja. O barão decide então ir confessar‑se, para além de comungar. E prometeu também dizer as orações com mais frequência do que até então, e até teria jejuado, como David, se a sua religião lho tivesse exigido.

Voltou então novamente a andar de um lado para o outro, ponderando a melhor maneira de remediar as coisas com Prillup. O Sultão, vigia atento do senhor, ladrou lá fora, e nesse momento, a mente do senhorio sentiu‑se estranhamente descansada. Kremer atreveu‑se até a andar de janela em janela, encostando o nariz à vidraça e piscando os olhos para ver através da escuridão lá fora, coisa que geralmente não gostava de fazer, especialmente àquela hora da noite.

O que deveria ele dar a Tõnu?

Um desconto de um quarto de copeque por cada litro de leite?

Mmm... Ultimamente, o senhorio tinha perguntado o preço do leite aqui e ali e descobrira que os outros estavam a receber um copeque inteiro mais do que ele pelo leite, e ele andava a pensar ‑ quem não pensaria? ‑ em aumentar o preço no próximo dia de São Jorge em meio copeque por litro; só meio.

Talvez aumentar apenas um quarto?

Como estava escuro lá fora!

Da janela, onde ele acabou por baixar a persiana, virou‑se para a mesa de cabeceira (estava agora no quarto de dormir) e tirou da caixa um rebuçado de fruta vermelho em forma de coração. Ao fazê‑lo, o olhar caiu‑lhe por acaso sobre o revólver brilhante niquelado dentro da gaveta meio aberta. Pegando‑lhe pensativo, ocorreu‑lhe que poderia carregar a arma. Deveria haver balas por aí algures. Mas afinal o revólver já estava carregado e Kremer lembrou‑se que o carregara ele próprio há umas quatro semanas (depois do último acerto de contas com Prillup), numa noite escura como esta.

Será que deveria aumentar o preço em um quarto de copeque?

Ulrich deixou o revólver na mesa de cabeceira (não gostava de manusear armas de fogo) e voltou para a sala de estar, chupando o rebuçado em forma de coração.

E foi então que chegou a uma decisão: não aumentaria o preço do leite nem em meio copeque nem em um quarto. Em vez disso, tentaria aumentar a manada comprando mais umas quatro ou cinco cabeças. Afinal, quanto mais leite vender maior será o lucro.

Sim, a ideia parecia boa. E até tinha dinheiro para essa compra porque a colheita da batata fora especialmente boa nesse Outono.

Kremer apagou as velas na sala com um sopro, desligou o tilintar da caixa de música e foi para a cama. No sótão, o galo do capataz começou a cantar. Já passava da meia‑noite. Até agora, a noite estivera mergulhada num negrume silencioso, mas agora levantava‑se vento, que assobiava ao passar pelas chaminés.

O barão apagou a vela e, ao devolver o candelabro ao seu local habitual sobre a mesa de cabeceira, a mão tocou aço frio e, com um arrepio violento, o velho cavalheiro enterrou‑se debaixo dos cobertores quentes e macios. E agora, seguro no conforto da cama, não se esqueceu de rezar as prometidas orações.

Decidido a voltar para Sárgvere imediatamente a seguir a ter ido à comunhão, para passar o pino do Inverno no seio da família, o Senhor de Máekúla adormeceu e acordou tarde na manhã seguinte, para encontrar um mundo brilhando com a brancura imaculada de um manto de neve acabada de cair.

Apesar de Herr Kremer estar a fazer um esforço sincero para ser justo e exaustivo na sua penitência, nem uma vez lhe ocorreu devolver o cordeiro ao legítimo proprietário. Essa solução nunca teve lugar nas suas elaboradas considerações, nem naquela altura nem nos tempos seguintes. E assim aconteceu que foi o proprietário, ele mesmo, a levantar o assunto três meses mais tarde, quando Kremer se deslocou a Máekúla para receber o dinheiro do leite no dia primeiro de Março, para que pudesse depois ir até à cidade pagar os impostos, que precisavam ser pagos nesse mês.

Prillup tinha deposto sobre a mesa a renda trimestral em notas e moedas (desta vez, havia alguns montes generosos de cobre). Depois, ficou a olhar fixamente o dinheiro e, com olhos que se turvaram de repente, disse:

‑ O barão não podia deixar as coisas ficarem por aqui?

‑ Ficar por aqui? Como?

‑ Sem ela.

‑ Então queres deixar o negócio?

‑ Não, agora não posso fazer isso. Mas isto já devia ser suficiente. Ou eu também não tenho um coração a bater no peito?

O barão levantou‑se de um salto, surpreendentemente ágil para um homem com o seu volume.

‑ Vamos lá, vamos lá! Isso eu não posso permitir. Não posso mesmo... Aliás, não consigo sequer pensar... ‑ E ergueu as sobrancelhas, consternado.

‑ O barão podia encontrar outra pessoa...

Os cotovelos de Kremer começaram a abanar‑se para cima e para baixo, como um galo prestes a lutar.

‑ Não, não, não. Isso é impossível. É mesmo impossível. Ela brinca no meu quarto como uma criança... Faz‑me feliz... Tem a cabeça cheia de ideias estranhas... Está comigo como se tivesse sido feita para mim... E quando diz graças e brinca comigo... é uma alegria ouvir.

‑ Mas então e eu? ‑ Tõnu interrompeu‑se. Não conseguia dizer mais nada. Pressionava os cotovelos com força contra o corpo, esforçando‑se para reprimir um ataque de tremores violentos.

‑ Bem, tu... Ora, ela é tua mulher!

‑ É mais do que minha mulher! ‑ explodiu Tõnu, o rosto barbudo escurecendo. ‑ Se fosse só minha mulher... Oh meu Deus! Era capaz de dar a minha filha, de dar duas filhas...

‑ Então, meu bom homem... meu bom homem... ‑ Na sua agitação, Kremer começou a bater com os pés no chão, como se estivesse a marcar o tempo. ‑ Eu vou comprar mais vacas. Já, esta Primavera... Muitas vacas. Muitas vacas boas... E não apenas uma ou duas, como na Primavera passada, ou a outra antes. E o preço... o preço... Bem, de certeza que sabes quanto é que os outros leiteiros estão a pagar pelo litro hoje em dia... e se não sabes, podes descobrir facilmente... Pois bem, ouve o que te digo: eu até devia aumentar o preço...

Sim, devia aumentar o preço um copeque inteiro, mas não vou fazer isso.

Mas o leiteiro só fixava o canto do escritório em silêncio, e os canos das botas altas tremiam‑lhe nas canelas.

‑ Mas não vês que isso representa muito dinheiro? E a renda da quinta Kuru também é baixa, e ainda ficas com os vitelos só por dois rublos, e o cavalo come o meu feno. Aliás, aquele cavalo é mais teu do que meu... Só o vejo quando o rei faz anos! Pensa um pouco, homem, pensa um pouco.

Deixou então o leiteiro para pensar no assunto e foi até à sala de jantar. Porquê? Não, ele não fazia ideia porque é que tinha ido para ali. Depois de dar uma ou duas voltas à grande mesa de refeições e de mudar a posição de duas cadeiras ‑ as suas mãos inquietas precisavam de se ocupar ‑, Kremer estava prestes a regressar ao escritório quando se voltou repentinamente para trás e, animado por uma ideia nova, foi até ao aparador com um passo rápido, tirou de lá uma garrafa e encheu um copo até acima, voltando depois ao escritório com um sorriso forçado avivando‑lhe as rugas em redor dos olhos.

Mas o homem que lá encontrou não era Prillup, o leiteiro, mas sim Reemet, o capataz, que estava no meio da sala com um livro de contas enorme numa mão e um molho de notas na outra.

‑ Ah! ‑ deixou escapar Kremer, reparando que acabara de entornar vinho no colete.

Depois, bebeu um gole, pousou o copo em cima da mesa e ficou pronto para receber as contas do capataz.

Nessa altura, Herr von Kremer não sabia que os negócios do leiteiro estavam longe de prosperar porque, como sempre, o senhorio passara a maior parte do Inverno na cidade e só regressara alegremente à sua querida Máekúla depois de desaparecidas as primeiras cheias da Primavera.

Era verdade que Prillup não se podia comparar com Yaan Kuru enquanto homem de negócios: o antigo leiteiro tinha nos olhos uma expressão feroz e determinada. Mas mesmo assim, Kremer vivia na ideia de que Prillup se desenvencilhava bastante bem, dadas as circunstâncias favoráveis. E aliás, o negócio dos lacticínios também não tinha assim tanto que se lhe dissesse, afinal de contas. Ou pelo menos, era essa a opinião geral das pessoas em Màekúla. Era verdade que Prillup gastava dinheiro demais, não era avaro como Yaan, mas talvez não tivesse tanta pressa de enriquecer como o outro, ou talvez pudesse dar‑se ao luxo de gastar porque tinha «outras» compensações.

Mari foi a única a adivinhar a verdade, e ao longo do Verão foi‑se convencendo de que, na verdade, os negócios do marido lhe corriam muito mal, tanto mais que ele se recusava terminantemente a falar sobre o assunto. Mas ela percebia, observando o modo como ele subia para a carroça ao partir para o mercado, o modo como ele largava as rédeas cansado ao regressar, o modo como olhava para os seus bens na leitaria. Já para não falar na crescente negligência com que cumpria os seus deveres, na falta de interesse pelo trabalho, na crescente desatenção ao tempo: em vez de regressar do mercado à tarde, como antes, Prillup demorava‑se frequentemente até à noite, e às vezes até à madrugada.

Um dia, Mari parou repentinamente de bater a tina de manteiga, olhou para a sala do leite, onde Tõnu trabalhava mudo como sempre, e disse, numa voz atravessada por um eco estranho:

‑ Afinal de contas, para que é que estamos a matar‑nos com a venda do leite?

O marido, que estava de pé de costas para ela, começou a virar a cabeça para cá e para lá, como se estivesse à procura, neste canto e naquele, dos lábios que haviam feito aquela pergunta. Por fim, voltou‑se para ela e fixou‑a. Abriu e fechou a boca como um peixe na água, e como um peixe olhou‑a; sem pestanejar.

‑ Isso quer dizer... voltar para Kruusimáe?

‑ Não que eu queira... Mas e se tiver de ser?

‑ Mas quem é que... ‑ engolindo o resto da frase, resguardou‑se atrás da ombreira da porta, como se estivesse nu e precisasse de se esconder.

‑ A dívida que vá para o diabo! ‑ exclamou Mari. ‑ De que serve andar a viver assim? Estou a ficar farta!

Algo parecido com o som de um pé a bater no chão ecoou vindo da outra sala. Pouco depois, Prillup, fora da vista da mulher, decidiu numa voz abafada:

‑ Vamos continuar.

Não disse mais nada. Mari voltou a mexer a manteiga, mas durante bastante tempo, o rosto dela não apresentou qualquer expressão.

Depois desse dia, Prillup lançou‑se ao trabalho com redobrado afinco, rangendo os dentes com uma determinação furiosa. De manhã à noite, não parava de trabalhar: fazia testes para tentar melhorar a qualidade do leite, da manteiga, das natas. Planeava os tempos de entrega com precisão e bebia menos. No campo e no prado, trabalhava por dois sem abrandar o ritmo e labutava até ao domingo, se fosse preciso, tal como fazia quando vivia em Kruusimáe.

Nesse ano, o Verão chuvoso foi um dos causadores do muito trabalho extra que houve para fazer, tanto no campo como na leitaria. Depois de um longo período de seca na Primavera, que, na quinta Kuru, estragou pedaços inteiros da colheita de centeio que seria colhida esse Inverno (e que foi necessário semear outra vez), chegaram as chuvas precisamente quando o trabalho da apanha e do enfardamento do feno estava no auge. Depois disso, o tempo instável manteve‑se até ao Outono, enquanto que os acessos enganosos de tempo seco acabaram por fazer mais mal do que bem. E se nesse ano, a colheita e enfardamento do feno foi um trabalho particularmente laborioso, a colheita dos cereais foi ainda mais difícil, já que ambas as coisas estavam em risco de apodrecer com tanta humidade.

Quanto à leitaria, o leite tinha tendência a estragar‑se e as natas não subiam por causa das temperaturas baixas. E o pior de tudo: com o tempo assim frio e húmido ninguém na cidade tinha vontade de consumir o tradicional leite azedo que se costuma beber no calor do Verão.

Também Mari labutava do nascer ao pôr do sol, e ainda mais porque não tinha ajuda: por qualquer razão que não esclareceu, Tõnu opôs‑se terminantemente a que a irmã viesse ajudá‑la. Yuhan Kohvet tinha provavelmente razão quando, ao apertar a mão da mulher do leiteiro, disse entre risos que a pele das mãos dela, que antes era tão suave, estava agora mais áspera do que as mãos de um ferreiro.

Por esta altura, Yuhan ganhara o hábito de prolongar as suas visitas a casa dos Prillups até altas horas da noite, especialmente quando o chefe da família não estava. Acontecia então que a própria esposa era obrigada a declarar:

‑ Bem, Yuhan, já são horas de ires para casa, não achas?

E Yuhan levantava‑se então para sair. Talvez lhe escapasse dos lábios um leve suspiro, ao transpor a porta da rua, mas não havia remédio: precisava mesmo de ir.

Numa dessas ocasiões, o ferreiro conseguiu persistir e ficar até bem tarde. Já estavam sentados um junto ao outro há bastante tempo, a conversa interrompida por longos períodos de silêncio amigável, quando repararam de repente que estavam de mãos dadas. E então, incrivelmente surpreendido, Yuhan reparou que Mari tinha colocado a mão sobre o joelho dele.

Ali estava ela sentada, aninhada e confortável, passando‑lhe um braço em volta dos ombros e encostando a bochecha à orelha dele. E então, os dez dedos fortes dela começaram a afagar o cabelo castanho e forte do ferreiro, e tudo no maior silêncio, sem uma palavra ou um riso. Mari nem sequer sorriu, limitou‑se apenas a afagar a cabeça dele e a despenteá‑lo com as mãos quentes. Yuhan sentiu como que uma gota húmida a cair‑lhe sobre o nariz e o lábio inferior, mas poderia ter sido só impressão sua, pois havia tal tempestade de pensamentos entrechocando‑se por debaixo da cabeleira despenteada que, num movimento ágil, o ferreiro se levantou e, carregando o seu doce fardo, deu dois passos em direcção à cama.

Mas ainda mal se tinha mexido e logo o corpo dela se pôs rígido e tenso como uma mola de aço, e num instante, Mari libertou‑se do abraço dele.

‑ Agora vai para casa, Yuhan.

As palavras foram ditas com ternura, mas havia naquela voz insegura um tom tão imperativo que Yuhan parou onde estava, os braços pendurados e imóveis contra o corpo e um sorriso envergonhado enfeitando‑lhe a barba jovial. Olhando‑a, reparou agora como Mari estava pálida ‑ os olhos pareciam quase negros em contraste com a brancura do rosto ‑ e recuou um ou dois passos. Mas não saiu imediatamente. Seria como aceitar uma derrota infantil se o fizesse.

Dada a relutância do visitante, Mari pegou‑lhe pela mão e beijou‑o, conduzindo‑o depois até ao lado de lá da porta. Assim que ele saiu, Mari rodou imediatamente a chave na fechadura.

Do lado de fora Yuhan reparou que tinha já o chapéu na cabeça. Noutras ocasiões, o objecto teria sido colocado num sítio qualquer pouco óbvio e difícil de encontrar.

Sendo uma herdade pequena, Máekúla não garantia ao ferreiro trabalho a tempo inteiro. Por isso, Yuhan Kohvet, o filho mais novo de um rendeiro de uma quinta numa aldeia próxima, não trabalhava para Kremer todos os dias, especialmente durante a época do fim do Outono. Nesta altura do ano, a jovem senhora de Kuru não tinha muitas oportunidades de passar pela oficina e observar o ferreiro no seu trabalho, ou ouvir a tagarelice bem disposta do tio. Certo dia, num dos poucos em que o ferreiro abriu a oficina, Mari passou por lá para dar uma espreitadela e ficou desiludida ao ver Ants Tuks brandindo a marreta, em vez do alegre Yaak.

Ants era baixo e atarracado, com uma cabeça enorme cheia de cabelo sujo e alourado que se estendia até aos ombros e lhe dava o aspecto de quem não tem pescoço. Transpirava abundantemente, como se estivesse numa sauna, e o nariz arrebitado e os pequenos olhos amarelados pareciam nadar no rosto largo, vermelho e alagado em suor.

‑ Bom dia, bar‑r‑r‑ronesa! ‑ Ants enrolou os r's, num rugido que se adequava ao seu tom de voz grave e rouco. ‑ Muito agradecemos a gr‑r‑r‑rande honra que nos concede.

Mas a mulher a quem ele se dirigiu nestes termos ignorou‑o por completo e dirigiu um cumprimento cortês a Yuhan, que lhe deu um vago aceno de cabeça à laia de saudação. Sem parar de trabalhar, o ferreiro comentou:

‑ Está um dia bonito, hoje... Já não era sem tempo!

‑ Sim ‑ respondeu Mari começando a tricotar. ‑ Está bom, como ontem e anteontem.

‑ Ora vês, Yuhan, o tempo está sempre bom para a nossa honr‑r‑r‑rada senhora. Também isso já era de esperar ‑ lançou Ants.

O ferreiro deitou um olhar ao ajudante, enquanto martelava atarefadamente. Ants, que de momento não tinha nada para martelar, estava de queixo apoiado no cabo da enorme marreta, fingindo não olhar para a jovem mulher que estava sentada à porta.

‑ Já ouviste dizer? ‑ apressou‑se Yuhan a perguntar a Mari. ‑ A égua branca do Tiits teve dois potros ontem à noite.

‑ Isso não é nada! ‑ riu Mari. ‑ Hoje de manhã, a mulher do liivak deu à luz três filhas!

‑ Assim é o mundo ‑ comenta Ants bocejando. ‑ Uma mulher recebe três filhos de um marido, outra não recebe nenhum de dois.

‑ Vamos lá pregar as dobradiças na porta ‑ cortou Yuhan impaciente, deixando cair a peça que segurava com uma tenaz. Os movimentos desajeitados dele traíam a sua ansiedade.

‑ Mas a dobradiça ainda não está acabada ‑ comentou a espectadora.

‑ Não faz mal. Furamos os buracos depois... Esta dobradiça é para outra porta. ‑ E apressado, Yuhan pegou na caixa dos pregos e num martelo. O ajudante seguiu‑o com duas dobradiças novas nas mãos.

Juntos, deitaram no chão uma grande porta que estava encostada a uma parede e começaram a pregar as dobradiças. Entretanto, Mari afastara‑se para lhes dar espaço e observava calmamente, enquanto os dedos se ocupavam a tricotar.

‑ O assalto ao armazém do Papiniidu já saiu no jornal? ‑ perguntou Yuhan. ‑ Ainda não recebemos o jornal esta semana.

‑ Não, ainda não saiu. Mas veio uma história sobre um cavalo que foi roubado por um ladrão muito esperto, algures para os lados de Tartu... ‑ E Mari começou a contar a história ao ferreiro.

De repente, o rapazinho Tuks desatou a rir. Tinha acabado de olhar casualmente para a esquerda e para a direita, tanto quanto o seu pescoço atarracado lhe permitia virar a cabeça, e agora tinha um sorriso malicioso nos lábios e dizia, na sua voz baixa e rouca:

‑ Agora estamos fritos, Yuhan. Quem é que vai acreditar em nós, dois rapazes solteiros, quando dissermos que a senhora veio até cá de sua livre e espontânea vontade?

Yuhan não conseguiu reprimir um sorriso furtivo: também ele reparou que o senhor da herdade se aproximava da oficina de um lado, enquanto Tõnu Prillup caminhava também ao encontro deles vindo da direcção oposta. Inevitavelmente, os caminhos deles cruzar‑se‑iam não muito longe da porta da ferraria. Mari também os vira, mas continuou a contar a história como se nada tivesse acontecido, interrompendo‑se apenas quando o barulho das marteladas a ensurdecia.

Mas o barão e o leiteiro não se encontraram cara a cara. O mercador, que foi cumprimentado pelos homens quando passou perto da oficina, virou na esquina do edifício antes de o fidalgo chegar à intersecção do caminho. Um minuto mais tarde, o barão estava a abrir o portão que conduzia ao campo, enquanto que Prillup, que cumprimentara o ferreiro e o ajudante com um aceno, se aproximava do portão que abria para o pátio da herdade. Por acaso, ambos olharam para trás na direcção da oficina quase ao mesmo tempo, enquanto voltavam a fechar os portões atrás de si.

‑ Agora é que estamos mesmo feitos ‑ sussurrou o jovem Tuks com um risinho escarninho.

‑ Bem, e afinal como é que os ladrões conseguiram fugir da cadeia? ‑ perguntou o ferreiro apressadamente.

E Mari acabou de contar a história do assalto, acrescentando um episódio trivial sobre um advogado. Depois, acenou uma despedida a Yuhan e virou‑se para se ir embora.

‑ E eu, não tenho direito a despedida? ‑ queixou‑se Ants.

‑ Bem... ‑ respondeu Mari. E achando que o rapaz estava a pedi‑las, fez‑lhe um gesto significativo, levantando um pouco a parte de trás da saia.

 

Como Herr von Kremer desconhecia as dificuldades financeiras de Prillup, foi apanhado completamente de surpresa quando, no primeiro dia de Setembro, o leiteiro lhe anunciou não poder cumprir o pagamento mensal na totalidade, prometendo‑lhe pagar o resto no mês seguinte. Surpreso, Kremer limitou‑se a murmurar um «está bem» ‑ na verdade, ficou tão perplexo que nem se lembrou de outra coisa para dizer. Também não reclamou no princípio do mês seguinte (e desta vez nem soube dizer porquê), quando Tõnu lhe trouxe apenas as receitas desse mês, prometendo pagar a dívida dentro de quatro semanas. Mas no primeiro de Novembro, o senhorio já teve uma palavra a dizer, até porque, por essa altura, já o leiteiro incorrera numa nova dívida que chegava quase aos vinte rublos.

Kremer falou calmamente, quase como um irmão, explicando que a economia doméstica da herdade cairia por terra se as coisas continuassem assim. Tinha sido um ano complicado: a escassa colheita de batatas ia render muito pouco, praticamente não havia feno que se pudesse vender e o barão nem sequer sabia como se iria arranjar para dar de comer à manada durante o Inverno. Para além disso, as obras de extensão da vacaria e as reparações do estábulo que haviam sido feitas esse ano tinham custado muito dinheiro. Outra preocupação eram os juros que teria de pagar sobre os empréstimos do banco.

Mas o leiteiro continuava a afirmar teimosamente que o ano também não fora nada bom para si. O leite tinha saído aguado, a manteiga escassa, e os clientes picuinhas e exigentes.

Sim, mas certamente que Tõnu teria algum dinheiro amealhado, e se fosse preciso de certeza que podia ir buscar alguns tostões a essas poupanças, sugeriu o senhorio.

Mas Prillup passou liminarmente por cima desse argumento e confrontou Kremer com a sugestão mais inesperada: será que o amo poderia baixar o preço do leite?

Kremer manteve o silêncio durante um momento. Por fim, lá conseguiu responder que Prillup só podia estar a brincar. Em seguida, largou uma insinuação sobre o primeiro empréstimo, cujo pagamento ainda não tinha sequer referido e não exigiria por enquanto, desde que as receitas de cada mês lhe chegassem às mãos regularmente e lhe permitissem manter a quinta a funcionar.

Talvez a menção daquele velho empréstimo tenha envergonhado Prillup, ou talvez tivesse sido o inoportuno pedido para que se baixasse o preço. A verdade é que o rosto do leiteiro corou violentamente e ele respondeu acintosamente que não iria regatear. Que sim, que pagaria o que devia no princípio do mês seguinte.

Ao que Kremer retorquiu num tom de voz apagado que os lavradores precisavam de ser pagos e que os criados do solar estavam a reclamar os salários. Será que Prillup não podia pagar a dívida mais cedo?

‑ Seja! Mais cedo, então. ‑ E Tõnu voltou‑lhe abruptamente as costas e desapareceu, deixando atrás de si o odor forte do whisky.

Cansado, Kremer passou a mão pela cara, do queixo até à testa.

Quinze dias depois, Prillup voltou com o dinheiro, mas mal conseguiu cobrir metade da dívida. E assim que o barão ergueu levemente as sobrancelhas, o leiteiro rugiu:

‑ Não tenho mais dinheiro!

E apesar de o outro não ter chegado sequer a abrir a boca para responder, Prillup desferrou um golpe na mesa com os punhos fechados e berrou:

‑ Não tenho mais, entende?

Desta vez, o cheiro quente do whisky chegou forte às narinas de Kremer. Até as notas em cima da mesa pareciam exalá‑lo. Aliás, a presença do álcool era tão palpável que quando Tõnu, que estava vestido para viajar, se virou desajeitadamente para a porta, tornou‑se evidente que o homem não se tinha seguro nas pernas, já que ao sair esbarrou com o ombro na parede. Kremer ouviu‑o avançar às apalpadelas pelo corredor escuro e fechar a porta da rua com tanto estrondo que as vidraças no escritório tremeram. O cavalo e o trenó já aparelhados estavam à espera do leiteiro ao pé do armazém das natas. Prillup agarrou as rédeas e atirou‑se ao acaso para cima dos barris que carregava. Agora que o rio e o charco estavam gelados e a neve não era muito funda, era possível tomar o atalho e seguir directo na direcção da cidade. Olhando da janela da sala, Kremer viu o trenó a afastar‑se, transpondo o portão do pátio como um tronco de madeira gigantesco riscando o branco da neve, desaparecendo no cimo da colina, ao descer em direcção ao prado.

Durante uma hora ou duas, Prillup não mexeu um músculo. O movimento do trenó deslizando velozmente fê‑lo sentir‑se sonolento, e acabou por dormitar, seguro de que o cavalo conhecia o caminho e de que a temperatura gelada não era tão baixa que lhe fizesse mal se não se protegesse. O viajante só começou a tomar consciência do mundo à sua volta depois de ter percorrido um bom pedaço de estrada e de se cruzar com cada vez mais viajantes em cavalos e trenós a caminho de casa, agora que a cidade já não estava assim tão distante. De vez em quando, podia contar também com a companhia da lua, que aparecia aqui e ali, cheia e luminosa por entre nuvens negras.

Subitamente, o cavalo relinchou. Estavam a chegar à primeira das tabernas de berma de estrada onde estavam acostumados a parar.

Esta era uma das mais amplas, e depois de amarrar o cavalo no pátio, Prillup entrou para ver como paravam as modas. Às vezes acontecia reunir‑se aqui um grande número de viajantes, e nessas ocasiões o sítio ficava tão barulhento que era impossível descansar ou dormir, pelo que Prillup se via obrigado a cavalgar mais três ou quatro verstas até à próxima taberna.

Naquela noite, a sala estava cheia. Alguns estavam sentados, outros de pé, e foi preciso olhar demoradamente em volta para conseguir distinguir as feições das pessoas por entre a densa nuvem de fumo. Pelos vistos, o grupo que ocupava o estabelecimento era composto essencialmente por homens da vizinhança, e Tõnu perguntou a si próprio porque estariam eles a calar‑se de repente, de forma tão suspeita. Sentiu instintivamente que pairava uma estranha tensão no ar. De pé, atrás do balcão, o estalajadeiro observava um grupo que estava sentado a um canto numa mesa redonda. No meio desse grupo, Prillup reconheceu Villem Puuk e de imediato compreendeu o significado de tudo aquilo.

‑ Bem, começamos? ‑ disse o tal Villem levantando‑se de repente. Era um louro alto e esguio com uma expressão contida e formal.

Como ninguém lhe respondeu, o homem pegou em duas garrafas de cerveja, uma em cada mão, foi até ao centro da sala agitando as garrafas e, uma vez lá chegado, abriu‑as e aspergiu cerveja sobre todos os que o rodeavam. Seguiu‑se de imediato uma bulha geral, com socos e pancadas generalizados.

No meio da confusão, Prillup viu o estalajadeiro e os empregados correndo de mesa em mesa, retirando copos e garrafas dos sítios onde a batalha corria mais feroz. Desagradado, foi recuando até à porta, limpando a cara molhada de cerveja.

‑ Màekúla! Para onde vais tu a fugir? ‑ chamou uma voz ofegante. ‑ Paga‑nos uma grade de cerveja, como da outra vez, que os nossos rapazes garantem que ninguém te toca num cabelo! Mas Prillup achou por bem não passar a noite com um grupo tão tumultuoso e por isso, minutos depois, já o cavalo Yaska trotava ligeiro pela colina fora, até à taberna seguinte, que ficava num vale. O brilho avermelhado no horizonte, a nordeste, indicava a localização da cidade, ainda a umas dez verstas de distância, e sempre que a lua espreitava por entre as nuvens vislumbrava‑se claramente o contorno das torres e dos pináculos. À porta desta segunda estalagem havia três cavalos. Um deles estava aparelhado a um trenó, os outros dois tinham atrás de si dois trenós mais pequenos vazios. Era impossível ver através dos vidros turvos da taberna, mas a julgar pelos murmúrios baixos que se ouviam lá de dentro, o grupo de clientes não era muito numeroso, pelo que Prillup decidiu imediatamente guiar a sua carga até ao abrigo do armazém, guiado por um moço de estrebaria que apareceu ao portão com um candeeiro. Por enquanto, o armazém abrigava apenas quatro veículos com mercadorias e dois trenós carregados de leite, o que não era mau: se houvesse pouca gente lá dentro, havia ainda esperança de encontrar um canto no bar onde se pudesse deitar. Às vezes, Prillup via‑se obrigado a passar a noite sentado. Assim que desmontou do trenó, o leiteiro cuidou primeiro das necessidades do cavalo. Por fim, entalou o saco com o farnel debaixo do braço e entrou. Aqui, grupos pacíficos de homens estavam à conversa enquanto bebiam e fumavam cachimbo. Amigável, o estalajadeiro deu um aperto de mão a Prillup e recomendou‑lhe a sala das traseiras, para lá do balcão, para descansar. Mas assim que Prillup soube que os leiteiros de Kurgsalu e de Liiva já lá estavam dentro, na companhia de um homem de Tapu que vinha com a mulher e de outra pessoa de uma outra paróquia que estava com a filha, Tõnu preferiu ficar na sala da frente. Com uma bebida na mão, dirigiu‑se então à mesa comprida e sentou‑se ao canto, onde metade do banco estava vazio. Para seu grande alívio, os homens que ocupavam essa sala eram‑lhe desconhecidos: esta noite não tinha nem vontade nem forças para fazer conversa ou para jogar os habituais jogos fingidos de risos e camaradagem. Assim que acabou de comer, o saco vazio e o casaco serviram‑lhe de almofada, enquanto o sobretudo forrado a lã de ovelha fez simultaneamente de colchão e de cobertor, e assim se deitou Prillup em cima do banco, pronto para dormir.

Mas o sono não chegava. Era certo que iniciara a viagem meio embriagado, mas essa intoxicação tinha passado durante a viagem, deixando‑o nervoso e assustado ao mesmo tempo. E não havia whisky no mundo que lhe diminuísse esse sentimento. Qualquer voz que se erguesse do burburinho geral parecia‑lhe estridente e agressiva; feria‑o, causava‑lhe estremecimentos. Por vezes, o assento debaixo de si parecia mexer (ou seria o chão debaixo do assento que tremia?) O ar parecia‑lhe carregado de ameaças, a hostilidade espreitava em cada canto. Prillup tinha a sensação de que todos aqueles estranhos que se reuniam por ali, rindo e conversando, eram seus inimigos. Apesar disso, fingiu dormir profundamente, não fosse alguém aproximar‑se e obrigá‑lo a conversar. Tõnu sentia que também ele estava inevitavelmente contra todos os outros, especialmente contra esses sujeitos despreocupados que levavam a noite tagarelando e bebendo ao balcão.

Entretanto, as pessoas iam e vinham. Prillup sentia os olhares deles roçarem o seu corpo quando as pessoas passavam por si. Sentados à mesa comprida, alguns dos homens estavam perto dele, outros estavam mais longe, mas o mercador tinha a sensação de conseguir ver o repugnante rosto de todos eles através das pálpebras fechadas. Não fez qualquer esforço para seguir a conversa, mas não conseguiu deter a suspeita mórbida de que falavam de si. De repente, arrebitou as orelhas: alguém dissera «Mari».

Seguiram‑se risinhos abafados e pouco depois ouviu‑se a palavra «Tõnu».

Não, não estava enganado. O grupo estava bastante perto de si. Prillup sentia os olhares furtivos deles perfurando‑lhe o crânio. Foi incapaz de reconhecer as vozes, mas conseguiu perceber que eram três pessoas diferentes. Foi então que ouviu claramente uma das vozes, em imitação zombeteira:

‑ Mari, veste roupa nova e lavada. O velho vem cá hoje à noite pelo caminho dos arbustos!

E todos riram à socapa.

Nesse momento, a rolha de uma garrafa voou por cima da cabeça de Prillup e esbarrou contra a parede.

Aqui e ali, o tilintar de copos.

Esta não era a primeira vez que o leiteiro de Màekúla ouvia uns e outros rindo às suas custas, nem sequer se podia dizer que estes comentários fossem mais maldosos do que anteriormente. Mesmo assim, Prillup via faíscas na escuridão dos olhos fechados, e sentia‑se como se tivesse acabado de levar um golpe violento na cabeça, de tal modo que não conseguiu conter um tremor convulsivo do corpo. Noutra ocasião qualquer, ele teria calado os zombeteiros com uma garrafa de whisky ou meia grade de cerveja, mas naquela noite não foi capaz de recorrer a esse expediente: uma inércia opressora colava‑o ao banco. Por isso, deixou que os desconhecidos continuassem a apoucá‑lo até que se fartaram e se foram embora.

Só que a trégua não foi duradoura. Os últimos viajantes tinham acabado de partir e os que ficaram para pernoitar ainda mal se tinham deitado na mesa comprida ou em cima dos bancos quando o ruído de pés arrastados atrás da porta anunciou novas visitas. E desta vez, as vozes barulhentas, distintamente audíveis, eram bem conhecidas. Se o vissem ali antes de o bar fechar para deixar dormir os hóspedes, aqueles homens arruinariam o seu descanso nocturno, disso ele não tinha a menor dúvida.

Por isso, puxou a gola do casaco por cima das orelhas e deixou‑se ficar quieto, com o rosto quase encostado à parede. Mas não demorou muito até que alguém segurasse um fósforo acesso bem debaixo do seu nariz. Teria sido o estalajadeiro, provavelmente, a trair a sua presença ao grupo recém‑chegado.

‑ Vejam só quem cá está! Aconchegado como um urso na toca! O mão de vaca! A dormir para aqui quando o senhorio está tão desejoso de fazer negócio... Ele tem rendas para pagar, não sabias? Toca a levantar, Maekúla.

Mas Maekúla ressonou corajosamente.

Em resposta, os visitantes abanaram‑no. O acossado resmungou qualquer coisa e mastigou em seco, mas voltou a mergulhar no sono.

Mas no fim, nem esse estratagema o ajudou. Os homens saíram para tratar dos cavalos no armazém e para perguntar se os fazendeiros traziam algum porco ou novilho para vender, enquanto um outro homem, vendedor de ovos que se juntara aos talhantes pelo caminho, tratou de ir abordando os clientes da taberna com vista à mercadoria que tinha para vender. Mas quando os talhantes regressaram ao bar, foram directos a Prillup e não o deixaram em paz até o leiteiro se levantar e se sentar com eles à mesa.

‑ Vá, Maekúla, não nos negues uma bebida. Isto não é sítio para vir dormir! Dormir, dormes em casa... e às vezes até com a Mari na cama contigo.

‑ Vão roubar outro, hoje. Deixem‑me em paz ‑ rosnou Tõnu, esfregando os olhos.

‑ Quem é que vai ser roubado, isso ainda estamos para ver... Vá, deixa‑te de coisas! Estás a nadar em dinheiro!

‑ Como é que sabes?

‑ Ora que pergunta! Pois se tu e ela andam os dois a trabalhar pelo dinheiro dia e noite! Até ouvi dizer que a Herdade Maekúla vai ser tua na Primavera.

‑ Isso foste tu que inventaste.

‑ Porque havia de inventar? ‑ meteu‑se um outro talhante. ‑ Se Deus te deu uma mulher suave como a seda, também te pode dar uma herdadezinha para acompanhar.

Toda a gente riu. Prillup endireitou‑se à mesa e pôs finalmente os pés no chão.

‑ Ó chefe! Sirva lá qualquer coisa forte a estes senhores. Ponha na minha conta. As piadas deles estão tão fracas como água.

‑ Ora bem, vê‑se logo que nasceu para ser senhor da herdade ‑ elogiaram eles. ‑ Até já fala como um!

Por esta altura, os quatro homens tinham‑se instalado numa pequena mesa redonda perto do fogão. Um deles tinha um rosto que fazia lembrar um pedaço de carne crua, o outro tinha um porte atlético com uma cabeça de aspecto romano que causaria inveja num modelo de escultor. Ao lado do cabeludo Prillup estava sentado o esguio vendedor de ovos, que abanava constantemente a cabeça num gesto afável que fazia lembrar um pregador. Este último, que se mantivera calado até agora, pousou uma mão calorosa sobre a cabeça de Tõnu e declarou:

‑ Não ligues, caro amigo! Eles já espezinharam os nossos pais e avós durante tempo que baste... ‑ E continuou com um tremor na voz: ‑ Fizeram‑nos passar fome, bateram‑lhes, desonraram‑lhes as filhas... E agora, se nós (qualquer um de nós, qualquer um que possa), se nós que estamos livres do jugo da escravatura que nos dominou, se qualquer um de nós lhes puder roubar qualquer coisa... olha, quanto mais, melhor. E aí, eu só tenho uma coisa a dizer... Estás‑me a ouvir?... Só uma coisa: ‑ E pegou no copo. ‑ viva a minha irmã Estónia, viva o meu irmão Estónio!

Os talhantes aprovaram o discurso e juntaram‑se ao brinde, tilintando os copos com Prillup e entoando em coro: «Viva!» Aí, o mercador de ovos pegou na mão do leiteiro e apertou‑a calorosamente enquanto o olhava confiante nos olhos e continuava, dando a cada palavra um tom de quase intimidade:

‑ Os meus melhores cumprimentos à tua mulher! Diz‑lhe da minhaparte... Diz‑lhe que o Anton Siiderman, vendedor de ovos, disse isto: Tosquiem os carneiros... Tosquiem‑nos e tosquiem‑nos bem! Estás a ver? Tosquiem‑nos bem, é o que eu digo!

 

Já a manhã ia alta quando o filho do estalajadeiro acordou Prillup. Olhando em volta, o leiteiro deu consigo estendido sobre três cadeiras ao pé do fogão, com os pés no chão e a cabeça pousada apenas sobre o chapéu.

Os colegas leiteiros que haviam passado a noite na sala das traseiras já tinham saído. Os amigos com que passara a noite tinham terminado os negócios e tinham ido cada um à sua vida. Prillup foi o último a abandonar a taberna, juntamente com uma camponesa que ia levar lã ao tecelão.

A sua partida tardia levou a que os revendedores o acolhessem com resmungos mal‑humorados, o que o obrigou a vender os produtos por um preço muito abaixo do preço de mercado.

‑ Ora não querem ver, este nem se digna a olhar para nós! Já és bom demais para isso, é? ‑ exclama alguém no mercado que agarra a mão de Prillup e a aperta.

‑ Olha! É o Maasikas! ‑ responde o leiteiro, abrindo com esforço os olhos pesados. ‑ Então andas por cá outra vez! Não, não é por ser bom demais. É que ontem pus‑me a beber com uns sujeitos e ainda agora não estou a ver bem, tenho a cabeça completamente turva. ‑ E Tõnu dá um sorriso repentino.

‑ Podias dar‑nos uma boleia? Podíamos conversar um pouco pelo caminho... Já não te vejo há séculos.

‑ Porque não? Sobe! Ia agora mesmo começar a viagem para casa. ‑ Prillup toma as rédeas. ‑ Ainda bem que te encontro. Tenho umas compras para fazer, e assim podes tomar conta do cavalo enquanto eu faço isso.

O sapateiro Maasikas, que fala de si próprio no plural por se identificar também com o cesto e com a mercadoria não vendida, sobe para o trenó e ajeita‑se entre os barris. Amigável, estende os lábios felinos num sorriso satisfeito.

As compras que Prillup tem para fazer no centro da cidade são despachadas em pouco tempo e em menos de um nada os dois começam a viagem até aos subúrbios, onde Maasikas vive e onde começa a estrada que leva à herdade de Maekúla. Chegados a um cruzamento perto da casa do sapateiro, Prillup puxa as rédeas para deter o trenó.

Chegado a este ponto, Maasikas deveria sair de entre os barris e descer do trenó. Os dois homens estão prestes a apertar as mãos e a despedir‑se, mas nenhum deles tem vontade de se separar do outro, e ambos acabam por olhar ao mesmo tempo para uma casa grande e velha cujas janelas no piso térreo estão enfeitadas com cortinas vermelhas.

‑ Convidava‑te a entrar, mas a minha casa está fria... Não tenho dinheiro para comprar muita lenha...

‑ Apetece‑me comer qualquer coisa quente. Está a ficar frio e ainda tenho um longo caminho pela frente.

‑ Até me sabia bem uma bebida...

‑ E a mim!

Os olhos de ambos colam‑se àquelas cortinas vermelhas escuras, e Tõnu conduz o cavalo em direcção ao pátio da taberna.

‑ Só por uma meia hora.

‑ Sim, claro... Mais do que isso não.

Depois de pendurar um saco de aveia na cabeça do velho Yaska, os homens encostam‑se ao balcão a comer um prato quente de perca frita. Ao fundo da sala comprida, uma mesa de canto está desocupada. Maasikas repara nela e pousa o cesto.

‑ Ficamos aqui de pé ou...?

‑ Bem, já agora sentamo‑nos um bocado.

‑ Só para trocar dois dedos de conversa...

‑ Olha, aquela ali é a nossa velha mesa.

Eles próprios levam o peixe, o whisky e o pão até à mesa, e entretanto a estalajadeira leva‑lhes cerveja. Os dois homens vão comendo e bebendo em silêncio. Mas os olhares são bastante eloquentes: eles perguntam e respondem, comunicam na perfeição sempre que uma mão leva um copo aos lábios, que saboreiam a bebida com prazer, para depois pousar o copo novamente sobre a mesa. A princípio, basta aos companheiros a simples satisfação de estarem juntos novamente.

‑ Recebi notícias dela há pouco tempo ‑ começa por fim o sapateiro, sussurrando, os olhos com um brilho intenso.

‑ Que notícias? ‑ murmura o outro.

‑ Já não está em Yamburg. Agora foi para Oudova.

‑ Mandaste‑lhe outra carta?

‑ Mandar mandei, mas para quê? Ela não responde.

‑ Está com o tal alfaiate?

‑ Sim... Sempre com ele! ‑ e o sussurro de Maasikas é quase um gemido.

Prillup está sentado em frente ao amigo, com a cara apoiada na mão, olhando fixamente para as espinhas do peixe no prato.

‑ Pois... Não há nada a fazer, não é? A não ser que a obrigues...

‑ Não, não! Isso seria o fim... se ela fosse trazida de volta à força... Seja como for, nunca ficaria em casa.

‑ Claro... A ternura é a melhor maneira. Mas tu não ias...?

‑ Há já ano e meio! Ano e meio... ‑‑ O sapateiro acentua as palavras, espremendo compulsivamente os polegares contra o tampo da mesa, erguendo os cotovelos como que prestes a levantar voo. ‑ Mas não consigo arranjar o dinheiro... Faça eu o que fizer. Não consigo amealhar uma quantia daquelas, pronto!

‑ E achas que fazia diferença?

‑ Se fazia diferença ou não... ‑ o lábio inferior do sapateiro treme‑lhe. ‑ Ao menos ia poder ouvir a voz dela... Dava para vê‑la, mesmo que fosse só de longe...

O leiteiro apoia agora o queixo na outra mão. Ambos fazem silêncio. Ao balcão, dois cocheiros discutem em voz alta, ouvem‑se risos aqui e ali, vindos desta e daquela mesa. O ar está denso com o cheiro rançoso de gordura queimada, de fumo de tabaco e dos vapores da cerveja e do whisky.

‑ Não consegues esquecê‑la?

‑ Não... É como se ela me tivesse dado uma droga.

‑ Deu‑te uma droga e... ‑ repete Prillup mordiscando os bigodes.

‑ Esteja eu acordado ou a dormir, tenho‑a sempre à frente dos olhos... E agora... Só de pensar que está com aquele alfaiate... aquele alfaiate! ‑ Os olhos faiscantes reviram‑se‑lhe nas órbitas, os polegares furam a mesa ainda com mais fúria, e o sapateiro acrescenta com um suspiro: ‑ Se ao menos a criança não tivesse morrido... Se a criança tivesse sobrevivido!

‑ A criança... pois. Se a criança... ‑ Prillup acena afirmativamente com a cabeça, pensativo, o olhar perdido na lonjura. Só passado algum tempo é que se recompõe e sugere:

‑ Podias tentar partir... Para isso tens dinheiro, ou não?

‑ Tenho dinheiro, sim, o meu trabalho dá dinheiro... E até tenho encomendas que cheguem... Mas antes disso o que é que eu faço? Pego fogo a esta casa aqui na esquina?

Prillup vê o sapateiro deixar cair os ombros. As mãos, derrotadas, escorregam do tampo da mesa e pendem inúteis dos braços, ao longo do corpo.

‑ Duas garrafas de cerveja, estalajadeira ‑ encomenda Maasikas pouco depois. Tinha pegado num copo para beber e descobrira‑o vazio. As garrafas também, vazias.

Prillup tem dois cigarros e oferece um ao companheiro. Começam a fumar e continuam a beber cerveja, servindo‑se da garrafa que foi pousada à sua frente.

‑ Está‑me cá a parecer que ainda vou beber mais uma dúzia destas no caminho para casa ‑ resmunga Prillup estudando o rótulo da garrafa. ‑ Mas se tudo está feito em pedaços... aqui dentro... ‑ e bate no peito com dois dedos.

‑ Está tudo feito em pedaços? ‑ pergunta Maasikas, interessado. ‑ Achas que está tudo desfeito?

Agora, Prillup segura a cabeça com ambas as mãos. Os olhos brilham intensos, as faces aquecem, vermelhas, e ele continua a falar num sussurro, inclinado perante o ouvinte.

‑ Uma vez segui‑a... Passei metade da noite debaixo da janela... com uma pedra em cada mão...

Os dois homens olham um para o outro, cada um com o rosto inundado de lágrimas.

Depois de um longo silêncio, Prillup continua:

‑ E agora, quando percebes que não vais ganhar nada com isto, quando percebes que foi tudo em vão...

‑ O negócio não melhorou? Prillup abana a cabeça.

‑ Vou ter de desistir. Está a levar‑me para a cova... E quando penso que vou ter de viver enterrado noutro casebre miserável qualquer! Noutra paróquia, talvez, mais pobre do que nunca... Sabes, ele pode levar‑me tudo... Ainda tenho de lhe pagar a dívida.

‑ Mas ficas com ela de volta! Ao menos recuperas a tua mulher!

‑ Pois sim! O velho há‑de me obrigar a pagar a dívida toda antes de a deixar ir. E seja como for, o que eu sou para ela agora? Um palhaço ridículo! E agora até já anda de namorico com um sujeito mais novo... mesmo debaixo do meu nariz, como que a dizer, «que espécie de homem és tu? És só um capacho onde limpo os pés!»

‑ Mas vais recuperá‑la!

‑ E não é só ter de viver na pobreza numa cabana miserável... É que toda a gente se vai rir, toda a gente vai fazer pouco de mim... De mim e dela, para o resto da vida...

‑ Leva‑a para qualquer sítio, longe ‑ incita Maasikas, sonhador.

‑ A história ia atrás de nós. Este negócio sujo há‑de seguir‑nos para onde quer que vamos... Nunca nos havemos de livrar dele.

‑ Mas ela fica contigo!

‑ E por quanto tempo? A tua fugiu com o alfaiate.

Prillup levanta‑se da mesa. Ao sair, pisa acidentalmente o calcanhar de outra pessoa, segue com a cabeça afundada entre os ombros. Quando volta, ao cabo de uma ausência prolongada, dirige‑se por engano ao outro lado da sala. Depois, volta‑se finalmente na direcção certa mas em vez de se sentar à mesa, vira à esquerda e vai até ao balcão, onde encomenda mais qualquer coisa.

‑ Ainda tenho fome. E beber só cerveja faz‑me sentir frio no corpo todo. ‑ Deixa‑se cair na cadeira, tremendo violentamente dos pés à cabeça. ‑ Fui lá fora cobrir o cavalo com uma manta.

Entretanto, o jovem empregado da taberna é rápido a trazer‑lhes whisky e um pouco de carne e pepinos em conserva. Os dois homens voltam a olhar‑se demoradamente nos olhos e a beber em silêncio. A cor no rosto deles começa a avivar, o brilho dos olhos aumenta de intensidade, a esperança começa a agitar‑se no peito deles, a coragem aventura‑se a bater as asas.

‑ A partir de agora, vou começar a poupar dinheiro.

‑ É boa ideia...

‑ Todos os copeques que puder... É a última vez que me vês aqui dentro!

‑ Já é altura de eu fazer o mesmo... quanto dinheiro não teria agora se não tivesse parado naquelas tabernas todas e tivesse feito o caminho de uma tirada só?

‑ Desta vez, é a sério. Mesmo a sério! ‑ e o punho pesado do sapateiro dá uma pancada decidida na mesa.

‑ Eu devia continuar com o leite até conseguir poupar um pouco...

‑ Eu vou afastá‑la daquele alfaiate! ‑ Os punhos do sapateiro dão novos golpes na mesa. ‑ Estou‑te a dizer: vou trazê‑la de volta!

‑ E se eu me recusar a pagar as dívidas...? Às vezes... Mas de propósito, como tenho feito agora por não ter escolha... Aconteça o que acontecer: o que ganhar, guardo... Assim como assim, também não paguei garantia nenhuma...

Prillup passa os dedos pela barba e passeia o olhar pelo rosto oval e pelo peito do camarada.

‑ Podias fazer isso. Claro que podias! E eu vou para Oudova! Estalajadeira, duas garrafas de cerveja!

‑ Se ao menos a minha mulher seguisse os meus planos... Se ela seguisse! Mas a Mari não...

‑ Talvez a consigas convencer.

‑ Não, não. Ela nunca concordaria com isto. Falta‑lhe qualquer coisa... Há coisas que ela simplesmente não entende! És capaz de adivinhar o que ela diria? Ela diria: «Não. Tenho de cumprir com a minha obrigação.» Não há nada a fazer: tenho de ser eu a fazer tudo sozinho. Tudo eu sozinho.

‑ Sabes o que eu vou fazer? Vou atirar esse sacana desse alfaiate ao lago!

Já acenderam os candeeiros de rua; está escuro lá fora, e o gelo enfeita as vidraças com formas que fazem lembrar flores. Os dois homens ainda estão sentados lado a lado e vão falando sem pressa. Vão bebendo e fazendo planos que parecem cada vez mais arrojados. E quando um bando ruidoso de jovens recrutas entra na taberna tocando acordeão em alegre cantoria, os dois mercadores juntam‑se‑lhe em coro, fazem amigos, oferecem‑lhes bebidas.

E é então que começam as danças.

Primeiro é o sapateiro que se junta aos dançarinos. Pelos vistos, o homem sabe as danças tradicionais russas. Mas o leiteiro também julga sabê‑las, pelo que logo se junta ao amigo. Em breve já ambos estão a escorrer suor. A taberna ecoa com o som de aplausos. Quando o leiteiro cambaleia e se estatela no chão, é levantado novamente no meio de um coro de gritos alegres.

 

Quando o leiteiro da Herdade de Máekúla vira as costas às luzes da cidade e começa o caminho para casa já a noite vai alta.

Gelado até aos ossos, o cavalo vai trotando a um ritmo ligeiro.

Já Tõnu sente‑se quente e sem vestígios de sonolência, de cabeça leve e fria. Vai assobiando, bem disposto, enquanto martela o cabo do chicote na caixa da manteiga, como que a marcar o tempo. Se lhe acontece passar por outros cavalos e trenós pelo caminho, grita‑lhes «Saiam‑me da frente!» só para se divertir e ultrapassa‑os, rindo.

Nesta disposição, as primeiras dez verstas são deixadas para trás com grande rapidez, ao som do ritmo regular dos cascos de Yaska batendo no chão. Passa pouco tempo até que a taberna de Kallaku, aninhada no sopé da colina, alicie o homem e o cavalo com suas luzes amareladas.

Tõnu lembra‑se vagamente de dever algum dinheiro ao estalajadeiro pelas bebidas da noite passada. Talvez devesse parar e saldar a dívida?

Mas não! Para quê mostrar a toda a gente que o velho Máekúla está a voltar para casa tão tarde? Paga para a próxima. Continua portanto o caminho e decide não parar em nenhuma das tabernas, nessa noite. Está ansioso por chegar a casa, onde tem Mari e os filhos à espera. Onde já estão, aliás, à espera há várias horas. Força, Yaska! Sobe a colina a correr! Vamos, rapaz!

Só depois de atingir uma extensão de caminho plano é que Tõnu repara pela primeira vez na beleza da noite. A lua derrama sobre a terra os seus brilhos prateados, miríades de estrelas cintilam no céu e a Via Láctea irradia o seu brilho ténue enquanto o manto de neve, o mundo inteiro, aliás, flutua num silêncio azul e sereno. Nessa quietude, o silêncio reina acima de todas as coisas e a neve dura debaixo das lâminas do trenó parece assobiar à sua passagem.

Tõnu olha em seu redor e ouve, maravilhado.

E de repente, um arrepio percorre‑lhe a espinha.

A temperatura continua a baixar? Até agora, o frio limitara‑se a beliscar‑lhe a ponta do nariz e as orelhas. Estaria agora a furá‑lo até aos ossos?

Prillup treme novamente, num arrepio mais violento do que o anterior. Começa a sentir o gelo mordiscar‑lhe as pontas dos dedos das mãos e dos pés. Os bigodes congelados debaixo do nariz parecem puxar e rasgar a pele do lábio inferior, e após passar por um moinho onde alguns viajantes pernoitam, surge‑lhe no horizonte a taberna de Aleti.

Será melhor parar e entrar um pouco? Logo se vê quando lá chegar.

De repente, o leiteiro desata a rir. E pensar que se esquecera! Que tolo, ir ali a tiritar de frio quando tem o remédio perfeito ali mesmo no trenó!

Põe‑se então a mexer e a remexer na carga até encontrar uma garrafa. É álcool puro que ele pretendera diluir em casa para fazer um licor mais forte do que o gin usual. Mas enfim! Numa noite assim tão fria pode bem bebê‑lo puro. E por sorte, o pequeno canivete com saca‑rolhas está mesmo ali a jeito, no bolso do casaco.

Prillup inclina a garrafa e junta os lábios, saboreando. A bebida fá‑lo tossir. Percorre‑lhe as veias como fogo! Mas dá uma sensação de calor tão agradável! Aquece‑o por dentro. Agora, não pode interromper a viagem, não vai voltar atrás na sua palavra.

Eles estão à sua espera em casa. Só mais uma vez ‑ mais uma pequena gota ‑ e ele será capaz de passar por esta taberna e por todas as outras sem se deter.

A taberna de Aleti avizinha‑se então, e Tõnu passa por ela sem abrandar.

Depois vem a de Nabraste, e Tõnu também não pára aqui.

Enquanto segue caminho, beberricando da garrafa como de um antídoto contra o frio gelado, o leiteiro começa a sentir que agora já seria praticamente impossível parar o trenó que desliza ligeiro, tão impossível como abandonar o seu lugar quente e confortável no veículo. O corpo dele está a mergulhar depressa num torpor doce e calmo. O rosto, exposto ao frio, perde a sensibilidade, uma calma infinita apodera‑se‑lhe do coração e do cérebro. Só os olhos e os ouvidos é que continuam alerta. Mas mesmo assim, tudo o que Prillup vê e ouve funde‑se num murmúrio reconfortante que lhe embala o corpo e a alma.

Debaixo do trenó deslizante, a neve deixou de gritar aos seus ouvidos: agora soa harmoniosa como uma harpa, logo canta como um distante coro de igreja, depois é um órgão sonante, ou um coro de sinos badalando.

E tudo à volta está coberto por aquele véu azul escuro, que se estende e se adensa até que a própria planície branca irradie um brilho azulado e as árvores e os arbustos reflictam essa matiz. Essa tonalidade azulada começa até a envolver subtilmente a crina e o dorso do cavalo, até o cobrir totalmente, e então vislumbram‑se as delicadas vestes da Morte, azuis escuras como o céu, cintilando esplendorosas com reflexos de luz prateada.

Ela movimenta‑se rápida sobre a planície nevada, à beira da estrada, mantendo‑se sempre um pouco à frente do viajante, apenas um pouco.

Os braços dela permanecem imóveis, e os pés também não tocam no solo, a figura flutua apenas no ar denso e azulado, por entre a espessa neve que vai caindo.

Os braços e pernas desta aparição são lustrosos, mas o mais resplandecente é a nuca e o ombro redondo e macio.

E o cabelo, esse cabelo louro‑cinza, brilha vivo, como o sol nascente no começo de um novo dia.

Num repente, o viajante sente a vista a falhar‑lhe, e de um momento para o outro deixa de ver.

Agora só ouve o coro de igreja cantando longe, e o órgão tocando, e os sinos repicando uma vez e outra, e outra.

E então, deixa de ouvir.

Versta após versta, o cavalo continua a trotar, resfolegando e expirando com força, confuso: porque é que hoje não há paragens pelo caminho?

Pela estrada fora vão encontrando outros trenós, aqui e ali, um trenó mais leve e rápido ultrapassa‑os, manobra que Yaska, animal sensato, facilita sempre.

Novamente, o bicho resfolega e abana a cabeça. Porque é que não há puxões de rédeas, toques do chicote, porque é que não se ouvem os ruídos do amo tossindo ou assoando o nariz?

Na verdade, não o surpreende que o dono dormite um pouco, de vez em quando, ou que adormeça mesmo profundamente no trenó. Mas nos outros dias, sempre que o trenó vacilava e perdia momentaneamente o equilíbrio, como acontecera há pouco, ou quando o pára‑choques de outro trenó batia de raspão no deles, como ainda agora, aí o amo acordava sempre e tocava na sua orelha ferida. Às vezes, bastavam os sinos dos outros trenós para o acordarem.

Estávamos agora a chegar a uma taberna onde ele pára sempre para me deixar descansar um pouco. Este lugar, ele nunca deixaria passar, seja qual for a hora. De sua iniciativa, o cavalo sai da estrada seguindo um hábito velho e enraizado. Há um lugar vazio no pátio, ao lado dos outros trenós. Há‑de acordar certamente quando eu parar o trenó por completo.

Mas o cavalo engana‑se: o dono não acorda.

E assim, o animal continua sem receber feno para comer ou uma manta para o aquecer. Sem receber quaisquer atenções, Yaska deixa‑se ficar um pouco de pé, esperando de cabeça baixa, até que começa a sentir o frio a apertar.

Um camponês cujo trenó está parado ali ao pé sai para a rua e cuida do seu cavalo. Depois, sai uma segunda vez e fica muito surpreendido por ver que o dono de Yaska ainda não saiu do trenó.

‑ O senhor leiteiro não vem para dentro para se aquecer? Mas não obtém resposta.

‑ Que sono pesado! ‑ Com um riso e um aceno despreocupado, o camponês segue o seu caminho.

Yaska aperta as orelhas o mais possível contra a cabeça, o lábio inferior pende‑lhe para o chão. Aquela situação é absolutamente nova. Sem saber o que fazer, dirige‑se novamente à estrada, com lentidão. Um arrepio frio percorre‑lhe o dorso desde a crina até à cauda. Assim que chega à estrada principal, põe‑se a trotar em passo rápido e consegue percorrer umas poucas verstas num instante.

Nesse preciso momento, em casa, a jovem esposa de Tõnu olhou para o relógio e tomou uma decisão.

Isto tem de acabar de uma vez por todas. Esta é a última vez.

Estava sentada sozinha na sala das traseiras, os dedos enrolando um fio vermelho para se ocuparem, com uma expressão séria e severa ensombrando‑lhe o semblante e os olhos fixos em dois remendos que tinha no avental, como se esses fossem as duas maiores loucuras cometidas na sua vida.

A primeira dessas loucuras tinha sido vir de Ruisu para casa de Prillup. A segunda fora a mudança de casa de Prillup para a quinta de Kuru.

Não havia modo de as medir, de determinar qual delas fora a pior. Ambas tinham sido erros excessivamente pesados, e um acabara por gerar o outro.

Mas o segundo deveria ter mitigado o primeiro, aliás, deveria tê‑lo anulado por completo. E o novo fardo que carregava agora deveria ter compensado ambas as asneiras passadas. Mas como e quando é que essa redenção aconteceria, isso nem a própria Mari sabia. E no entanto, ela deveria ter acontecido, uma vida melhor deveria realmente ter nascido de tudo aquilo, como uma bela flor nascida da terra negra e suja.

Mas há muito que esta esperança começara a desvanecer‑se, pois nada na realidade havia mudado, não havia nada real em que sustentar essa esperança vã. E se, ainda hoje, Mari continuava a fingir que acreditava em mudanças para melhor, fazia‑o apenas porque enterrar uma esperança era penoso e magoava‑a.

Mas ela conseguiria superar essa desilusão. E posto isto, Mari enterrou a sua última esperança.

Talvez agora devesse ir para a cama?

Mas não se foi deitar logo. Em vez disso, juntou as mãos atrás da nuca e ficou quieta, escutando os sons da noite.

O relógio debitava o seu tique‑taque a um ritmo rápido, como se um capataz exigente o obrigasse a apressar‑se.

Algures, uma ratazana esfomeada roía uma tábua de madeira. No canto da chaminé ouvia‑se um grilo cricrilando e uma das crianças no quarto lá à frente lamuriava‑se com ganidos agudos e abafados enquanto dormia. Era como se uma sonolência pesada soprasse do tecto e caísse sobre tudo o que havia cá em baixo.

E agora, o cão lá fora começou a ladrar, quebrando os latidos com um uivo longo, em resposta, certamente, ao cão do solar ou a algum rafeiro do casario mais próximo. E logo a seguir, o silêncio reinou novamente.

Mari fixou o olhar no desenho floreado das pequenas vidraças geladas durante um momento. O gelo sobre o vidro estava a ficar cada vez mais denso, e os caixilhos juntavam agora geada, para além do gelo.

De repente, os olhos dela abriram‑se‑lhe de espanto: algo que fazia lembrar os contornos de uma sombra estava em movimento por detrás das vidraças baças, aproximando‑se cada vez mais para recuar novamente logo de seguida. Em seguida, começou a aparecer uma mancha escura no vidro, como se alguém estivesse a soprar sobre a camada de gelo para a derreter. E foi então que Mari ouviu o cavalo a relinchar, impaciente, mesmo do outro lado da janela, como se estivesse ali mesmo junto do seu ouvido.

Apressada, Mari puxou um xaile em volta dos ombros, acendeu um candeeiro e correu para a rua para receber o viajante. ‑

Esteve lá fora bastante tempo, mas por fim lá regressou, carregando o marido. Entrou em casa com cuidado, não fosse ela acordar as crianças.

O fardo era pesado, mas Mari era forte.

Depositou‑o então na cama, tirou‑lhe o casaco de pele de ovelha e as botas, trouxe o candeeiro para dentro e iluminou o rosto do marido.

O rosto dele estava azulado, como se a noite o tivesse pintado. Por detrás das pálpebras meio abertas, os olhos reluziam como duas bolas brancas.

E só então é que Mari percebeu realmente o que acontecera.

Afastou uma madeixa de cabelo que caíra em frente dos olhos do marido e passou‑lhe lentamente a mão pela testa.

‑ Isto não devia ter acontecido! Não era preciso chegar a este ponto!

Mas a mão dela deteve‑se de repente, e ela endireitou‑se.

‑ Mas afinal... talvez...

Pouco depois, o candeeiro foi apagado e Mari dormiu sossegada ao lado do marido.

Na manhã seguinte, logo à hora da ordenha, já a notícia da morte de Tõnu Prillup se tinha espalhado, e pouco antes do meio‑dia, Herr von Kremer transpunha a porta da casa de Kuru.

Trazia vestido o seu velho sobretudo forrado a pele de castor, com o pêlo já gasto e rarefeito no colarinho, enquanto que o resto do tecido tinha um brilho verde algo repugnante. À luz esbatida que iluminava o quarto, coada pelas vidraças transparentes, agora que a temperatura subira e o gelo derretera, o velho senhorio tinha um aspecto amarelento. Todas as rugas que tinha no rosto eram claramente visíveis e as orelhas murchas pareciam feitas de cera.

Assim que entrou, dirigiu o olhar de imediato ao cadáver e ergueu uma mão para tirar o chapéu, mas não proferiu uma única palavra de cumprimento à viúva. Durante alguns instantes, ficou em silêncio à beira da cama, depois voltou‑se e saiu, lançando na direcção de Mari e das crianças um aceno de cabeça praticamente imperceptível.

Uma hora mais tarde, ouviu‑se o tilintar dos sinos de um trenó: o Amo de Máekúla estava de partida para Sárgvere.

Tõnu já estava repousando no caixão que havia sido trazido da aldeia perto da igreja quando o tio de Mari chegou de Ruisu. Tinha ficado encarregado de levar o leite ao mercado até depois do funeral, altura em que os negócios entre o solar e a quinta Kuru seriam finalmente postos em ordem. Não havia mais ninguém a quem ela pudesse ter pedido ajuda: o seu pai era já demasiado velho e não havia ninguém entre os parentes restantes de Prillup que fosse mais capaz de a ajudar.

Vindo da sua aldeia na floresta, Aadam Lems exalava um cheiro forte a resina; até o rosto e as mãos pareciam polvilhados com ela. O cabelo e a barba eram da cor do musgo seco. De uma forma geral, a sua figura baixa e atarracada fazia lembrar um tronco de árvore decepado apodrecendo na floresta. Depois de comer o seu quinhão e de fumar o cachimbo, o tio acercou‑se do caixão e levantou a tampa, alegando que queria dizer algumas palavras a Tõnu. Seguiu‑se um longo discurso sobre a relação

entre os viajantes e o álcool, e o tom de voz do falante era tão vivo que qualquer pessoa que ouvisse a conversa por acaso poderia pensar que se tratava realmente de um diálogo, que o homem que estava no caixão dizia qualquer coisa de vez em quando, ou fazia uma pergunta. No geral, o tom do discurso foi bastante amigável, e no fim os argumentos uniram‑se num consenso, de modo que a conclusão foi: Beber sim mas é preciso saber parar.

Aadam Lems nunca tivera grande coisa a dizer a mulheres, que, na sua opinião, estavam ao mesmo nível do que as crianças. Por isso, deixou‑se ficar sentado a fumar cachimbo até ficar com sono. Por fim, deitando‑se para descansar, limitou‑se a comentar:

‑ Bem... Pois, olha, a gente lá de casa manda‑te cumprimentos. Eu tenho tempo de sobra e quero um rublo por dia para levar o leite, mais as refeições enquanto cá estiver. E tu não te ponhas à espera muito tempo e não te faças de esquisita. Se o rapaz for bom aqui e aqui ‑ e o tio bateu no braço e tocou na testa ‑ diz‑lhe que sim se ele vier cá cortejar‑te.

E, precisamente, um pretendente com essas características apareceu de visita logo no dia seguinte ao princípio da noite, já depois de o tio Aadam ter partido para a cidade com o seu primeiro carregamento de leite e de manteiga.

A julgar pela compleição e estatura, o homem era forte e saudável, aproximando‑se da meia idade. Não havia defeito nenhum que se lhe pudesse apontar: a fala era correcta e séria, os modos polidos e delicados. Esfregou bem as solas das botas no tapete antes de entrar e teve o cuidado de não dizer nada que fosse demasiado familiar. O cabelo, da cor do trigo maduro, estava bem oleado e bem penteado, a barba ruiva bem aparada, e debaixo do queixo, meio escondidos pelo lenço enrolado ao pescoço, o homem envergava uma camisa branca e um laço. Lançando um olhar rápido na direcção do quarto das traseiras (mas o caixão já tinha sido levado para o celeiro), pediu desculpas por ter vindo talvez cedo demais, o que poderia ser visto como inoportuno.

Mas que o medo de que outros se lhe antecipassem e ganhassem vantagem lhe servisse de desculpa para tanta pressa.

Em seguida, sentou‑se para falar de negócios, e não havia dúvidas de que tanto a inteligência como a saúde física estavam dentro dos níveis de exigência que o tio Aadam recomendara.

Delicado, o pretendente manteve sempre um sorriso luminoso, mesmo enquanto falava de assuntos sérios.

Bem, para ser breve, o senhor estava disposto a trocar a sua quinta arrendada em Atlkúla pela quinta Kuru, aceitando também o negócio da venda do leite, se a senhora Prillup, claro, estivesse disposta a cumprir esse plano e se uma viúva se contentasse em viver com um viúvo. Os bens domésticos dele certamente aumentariam os dela, e ele tinha apenas um filho. E quanto ao contrato com o solar, esse prosseguiria, bem entendido, nos termos em que fora fixado antes de Prillup falecer ‑ um infortúnio, sem dúvida, mas que se pode fazer?

Bem... sim, ela nada teria a apontar a esse plano, começou a viúva a responder, alisando o avental sobre o joelho, se por acaso não soubesse o que o lavrador Aru tinha sido ouvido a dizer recentemente, num baptizado na família Vanarehe.

Ah sim, e o que dissera ele?

Que não conseguia compreender como é que dois cristãos conseguiam degradar‑se àquele ponto, como Mari e Tõnu faziam em nome de riquezas terrenas! Não bastasse a simples vergonha do acto, mas o que aconteceria às suas pobres almas quando chegasse o fim?

O visitante sorriu, depois ficou sério, levantou‑se da cadeira e sentou‑se novamente. A viúva continuou placidamente alisando o avental.

Pois é assim que as coisas são, continuou ela no mesmo tom. E porque haveria ela de adicionar mais uma carga de pecado à sua consciência já pesada e corromper ainda uma terceira alma em nome daquele maldito leite?

O agricultor Aru curvou‑se delicadamente ao apertar a mão da viúva. E ela curvou‑se em resposta à despedida deste. Antes de sair, o lavrador acrescentou umas palavras de consolo, ao que ela agradeceu, acompanhando‑o até à porta.

Depois desse, outros apareceram a pedir a mão da jovem mulher antes ainda de os restos mortais de Tõnu encontrarem o descanso eterno debaixo da terra do cemitério.

Na manhã de sábado, foi Ants Tuks quem apareceu na casa da quinta Kuru. Mari viu‑o pela janela, e ele provavelmente também a viu porque, ao encontrar o rapazinho e a rapariga no quintal, Ants curvou‑se e deu‑lhes uma festa paternal no rosto.

A jovem viúva teve dificuldade em manter uma cara séria quando Ants entrou em casa e se plantou na frente dela. Recordou de imediato o modo como ele a cumprimentara há alguns dias em frente ao portão da herdade: «Tirem os chapéus quando estão na presença de uma senhora». Recordou também a expressão zombeteira e exageradamente cortês do rosto dele. Mas conseguiu dominar‑se e ouvi‑lo com boa vontade e interesse.

Também Ants se ofereceu para acolher a viúva «nos termos do contrato antigo».

E a viúva não lhe disse que não.

Pediu‑lhe apenas que esperasse um pouco.

‑ É de esperar que receba outros pretendentes ‑ disse ela ‑ e quero fazer a escolha acertada. Não que tu tenhas alguma coisa de mal... Dizer isso era um erro grave... Mas sabe‑se lá! Talvez o segundo pretendente seja melhor, e o terceiro e o quarto ainda melhores. Seria um erro da minha parte decidir um negócio assim tão importante ao acaso, não é?

O rosto de Ants entristeceu e uma lágrima brilhou‑lhe no olho.

‑ Bem, se não queres aceitar‑me a mim, talvez aceites o meu irmão Yaak. Vou chamá‑lo imediatamente... Ele está à espera atrás do celeiro.

‑ E o Yaak é um óptimo sujeito, isso ninguém pode negar, mas manda‑lhe cumprimentos meus e diz‑lhe que também ele deve esperar.

Só depois do funeral é que o ferreiro fez a sua visita.

Ele não cobiçava a quinta dos Kuru, afirmou, nem tinha a mínima vontade de tomar conta da venda do leite. Queria a viúva sem esses laços. O contrato antigo deveria ser imediatamente cancelado e esquecido. Na Primavera, planeava encontrar trabalho numa herdade distante e prometeu criar os filhos de Tõnu como se fossem seus. Seria de esperar que uma oferta tão generosa e altruísta lhe desse força e coragem para falar com ousadia num tom vitorioso, mas Yuhan dificilmente dominava a crescente timidez e confusão que sentia, pois ultimamente, uma certa tensão parecia minar a relação entre os dois. Havia agora algo quase intangível flutuando no ar que erguia uma barreira entre eles. Ambos o sentiam, desde aquele dia de Outono na ferraria, em que o jovem Tuks falara demais na presença da rapariga.

Agora, enquanto falava, Yuhan tentava vislumbrar, receoso, a mínima mudança na expressão do rosto de Mari, e num instante, as palavras morreram‑lhe nos lábios. Ele viu‑a empalidecer até que as bochechas perderam a última gota de sangue e os olhos se abriram muito e escureceram. Então, os dentes dela surgiram por entre os lábios descorados e Yuhan ouviu um grito agudo de comando:

‑ Cobarde! Desaparece! Estás a ouvir‑me!? A porta é ali! Mas quando o cobarde recuou e, cambaleando, saiu para a

rua, a mulher que o ordenara a sair deixou‑se cair numa cadeira, apoiou a testa na beira da mesa e chorou amargamente.

Os ombros ainda se sacudiam em convulsões e o nó na garganta persistia ainda quando um grupo de gente ridiculamente mascarada entrou em casa e a rodeou. Um vem vestido de pássaro, o outro de urso, alguns vêm enfeitados com fitas de cores alegres, outros vestem roupas de papel colorido. Atrás deles, chegam Yuku e Anni saltitando.

‑ O que é que a Mari tem?

E o riso morre‑lhes de imediato na garganta.

‑ Não tenho nada. Estava a sentir‑me sozinha, mais nada. Tinha‑me esquecido completamente que hoje é véspera de Santa Catarina. ‑ E seca num instante os olhos. ‑ E vocês, vão para Kruusimàe, não?

Sim, para Kruusimae, claro. Tinham passado pela quinta dos Kuru só por um instante. A viúva espreguiça‑se e ri:

‑ Vou com vocês. Mas esperem um bocadinho! E ambas as crianças começam a gritar a uma voz:

‑ Eu também! Eu também!

‑ Podem vir também. Mas antes, Yuku, traz‑me aqueles cornos que encontraste.

E num ápice, a nova mascarada veste‑se: o casaco preto forrado por dentro a lã de ovelha é virado do avesso, um tufo de lã vermelha no queixo faz de barba, as bochechas estão manchadas de carvão negro e, para acabar, ela equilibra um par de chifres de cabra na cabeça. Yuku encontrara‑os completamente por acaso no sótão da quinta no Verão passado.

‑ Satanás! Estás o Satanás cuspido e escarrado! ‑ Os elogios vêm acompanhados de risos entusiasmados. Só a pequena Anni é que se assusta e se encolhe um pouco, temerosa.

Mas uma criatura infernal não o é a sério se não respirar fogo. Depressa! Um pouco de carvão numa caixa de fósforos! E não se esqueçam dos fósforos

Alguém apaga o candeeiro com um sopro.

‑ Deixa‑me ver como é que fica! Experimenta, Mari! Vê se consegues respirar fogo!

E Mari tenta, então, provocando gritos e risos. Todos excepto a assustadiça Anni, que solta um grito intimidado ao ver a chama.

E em poucos minutos, também Yuku e Anni se mascaram com roupas sumptuosas improvisadas de cortinados velhos. Ao sair, Mari tranca a porta, já que o tio Aadam está pela cidade, e o grupo parte em festa para Kruusimae.

Lá fora, a noite está silenciosa e suave como lã felpuda. A neve amontoa‑se como um suave edredão de penas sobre o qual se deita a escuridão. Suavemente, alguns flocos dispersos vão flutuando até ao chão. As árvores envergam espessos chapéus brancos e as casinhotas, meio enterradas na neve, parecem cisnes pensativos.

Mesmo à frente da procissão passa de repente um trenó puxado a cavalo, com os sinos tinindo abafados, como se estivessem almofadados com seda. Debaixo das lâminas do trenó, a neve mole não faz qualquer som. O cocheiro silencioso, à frente, e o amo atrás transformam‑se em silhuetas negras contra a neve à medida que o veículo se afasta e desaparece atrás da colina.

O Satanás do grupo senta‑se na neve.

‑ Ah, que assento divinal! Bem gostava de ficar aqui sentada para sempre!

E todos eles se atiram para a neve: um bando de diabretes reunidos na planície branca. Mas não tarda estão todos novamente de pé e correm em direcção à música que a brisa lhes faz chegar aos ouvidos.

Enquanto os mascarados fazem as suas cabriolas e se divertem nas casinhotas e nos armazéns da aldeia, von Kremer está sozinho, comendo o seu jantar de solteiro. Está muito bem disposto: deixou para trás, em Sárgvere, os pensamentos inquietos e agora sente o coração cheio de doces esperanças de uma felicidade futura, a mente ocupada com um plano novo, formulado durante a ausência.

‑ O que será que ela vai dizer? O mais provável é dizer que sim, mas também é possível que diga que não.

Acabado o jantar, Ulrich vai até à sala de estar, onde volta a pesar os prós e os contras da oferta generosa que está prestes a fazer.

‑ Ela há‑de concordar, se se der ao trabalho de parar para pensar um pouco. Sem trabalho, sem preocupações, instalada com todo o conforto, segura... Ora, tinha de ser louca para recusar uma oferta destas!

Ulrich está confiante de que a resposta dela seja sim. E amanhã saberá.

Põe‑se então a andar para cá e para lá, pára ao pé da mesa, detém‑se um pouco em frente ao sofá, olha para a parede, depois fixa a chama bruxuleante de uma das velas.

Acabaram‑se as partilhas. Só isso já é um passo em frente. É um passo em frente tanto para ele como para ela. E depois desse, só há mais um passo a dar. Ah, poder dar esse passo. Enfim! Ulrich von Kremer suspira.

E de repente, ouve‑se uma leve pancadinha na vidraça, atrás dele. A unha de alguém tamborila três vezes no vidro. O sinal é esse, mas é a janela errada. E, surpreendido, o velho senhor volta‑se rapidamente para trás.

Assim que faz esse movimento, solta um grito ensurdecedor, tenta apoiar‑se no ar, e com olhos vítreos dá dois passos cambaleantes e cai. Não fosse haver uma poltrona mesmo atrás de si a amparar‑lhe a queda com suavidade, e o senhorio teria certamente caído de costas no chão.

Durante uns minutos, parece que a vida lhe abandonou o corpo. Os sentidos estão bloqueados, o corpo imóvel, as pálpebras fechadas e o rosto de uma palidez fantasmagórica.

Mas os Kremers são conhecidos por serem uma família de gente dura. Envelhecem devagar e vivem muito. Gradualmente, um calor agradável começa a brotar do peito de Ulrich, espalhando‑se devagar pelos braços e as pernas, pulsando também na cabeça. A visão regressa‑lhe aos olhos. O homem começa a apalpar o corpo todo, depois pressiona ambas as mãos contra o coração e, com uma felicidade infinita, sente o sangue afluir‑lhe novamente ao rosto:

‑ Es schlãg! Es schlãg trHer! Gott, es schlãg!(1)

Agora, o tamborilar triplo é repetido na vidraça, pelo que Ulrich se ergue e se aproxima da janela ‑ cada passo um acto de coragem. Mas o Satanás que está lá fora adquiriu uma compleição mais clara, os chifres desapareceram, a boca já não cospe chamas nem há garras na mão que lhe acena agora amigável, para lhe acalmar os medos.

Ulrich abana o dedo na direcção dela, como que a ralhar, e ri. Depois apressa‑se a ir abrir a porta. Nunca caminhou com passos tão joviais.

‑ Sou tão parva! Podia tê‑lo matado!

‑ Não, não, minha querida. Fizeste‑me incrivelmente feliz! A sério! Pensa só... tenho uma válvula doente no coração, como sabes. Sempre tive o maior cuidado para a proteger contra qualquer excitação. Tinha medo que ela me falhasse a qualquer momento, e isso seria o fim... Mas agora... agora... ‑ Agarrando a visitante pela manga, ele leva‑a até ao quarto, porque as janelas da sala de estar não têm persianas. ‑ Agora sei que vou viver muitos anos... muito tempo... Mas senta‑te. Vou buscar‑te vinho e um pouco de bolo.

E lá vai ele, num ápice. Mas a excitação ainda é demasiada: Kremer traz os copos mas esquece‑se de trazer a garrafa, depois traz o bolo mas deixa a faca para trás. E durante todo o tempo em que anda para cá e para lá, não cessa de falar da válvula doente e do choque decisivo que acabara de receber.

‑ Se o meu coração aguentou isto... Se o segundo choque não o afectou... Se ele afinal não tem medo nem de touros nem de demónios... porquê... porquê...

A jovem mulher vai observando e sorrindo em silêncio, cruzando os braços cobertos de lã. O rosto, esfregado à pressa com neve,

 

*1. Está a bater! Está a bater! Meu Deus, está a bater! (Alemão)

 

tem ainda alguns veios negros e os chifres estão pendurados

no ombro dela.

‑ Mas senta‑te, senta‑te, minha mascarada maliciosa. Vamos beber às tuas faces rosadas e à minha boa saúde! Ou preferes tirar primeiro o casaco e lavar a cara?

‑ Não, vou já sair.

‑ Não ficas cá, então? Mari abana a cabeça.

‑ Estávamos a voltar da aldeia. Mandei os miúdos à frente, mas eles estão com fome e estão à minha espera em casa.

‑ Mas eu tenho uma coisa para te dizer. Uma coisa mesmo muito importante... Não vou conseguir esperar até amanhã.

‑ Está bem, então fico para ouvir o que tiver para dizer. ‑ Mari senta‑se no sofá. ‑ As palavras importantes são sempre as

mais rápidas.

Kremer senta‑se à frente dela e enche os copos. A mão treme‑lhe, os bigodes estremecem, mas a boca vibra com algo infantil e inocente.

‑ Primeiro vamos fazer um brinde.

‑ À Saúde e à Coragem! ‑ Os dentes espaçados de Mari revelam‑se num sorriso.

‑ Bem... o que é que vai acontecer à quinta do Kuru e à venda do leite agora? ‑ começa Kremer, depois de bebido o vinho e pousados os copos. ‑ Ao que sei, o teu tio só veio ajudar temporariamente.

‑ Quanto a mim, outra pessoa pode tomar conta da quinta e do negócio a partir do primeiro do mês que vem.

‑ Estou a ver! ‑ Os ombros de Kremer encolhem‑se um pouco. ‑ Então não vais ficar à espera que venha alguém tomar o lugar do Tõnu?

Mari abana a cabeça enquanto mastiga uma fatia de bolo.

‑ E então o que é que decidiste, assim em traços gerais?

‑ Vou viver na cidade.

‑ Na cidade...? Sozinha ou com as crianças?

‑ Vou levar a Anni comigo, mas o rapaz fica em casa do meu tio... Pode apascentar o rebanho no Verão que vem.

‑ Mas ainda ficas a ter de tomar conta da miúda... Como é que vais conseguir?

‑ Cá me desenrasco. Sou forte... e há tanta gente na cidade... Eu acho sempre que na cidade pode‑nos acontecer qualquer coisa.

O tom de voz de Mari e a expressão no olhar levam Kremer a recolher‑se em silêncio durante uns instantes. Uma expressão vazia tomou‑lhe conta do rosto.

‑ Mas então e eu?

‑ Não há nada de mal consigo, agora. O seu coração está óptimo, não está?

‑ Bem... Sim... mas eu tinha outros planos para ti... Pensei que podias ir para a cidade, claro, mas deixavas as crianças com os teus parentes... e... podias viver sozinha num apartamento sossegado... E eu dava‑te tudo o que precisasses...

‑ Não, não! Quero ser livre. ‑ Mari bebe mais um gole de vinho.

‑ E não terias de pagar a dívida do Prillup...

‑ Os filhos do Prillup hão‑de agradecer‑te por isso. Eu nunca conseguiria pagar essa dívida, nem quero.

‑ E a tua vida ia ser boa e fácil, e terias que chegasse para sustentar também as crianças.

Mari pousa o copo e levanta‑se, limpando a boca.

‑ Quando estiver na cidade, quero ser um pardal, não um canário numa gaiola.

‑ Mas pensa no assunto... Leva o teu tempo e pensa nisso... Afinal, não gostas nem um bocadinho...?

Mari pega nos chifres e coloca‑os novamente na cabeça. Depois, finge uma chifrada brincalhona na direcção de Kremer, solta uma risada alegre e vai‑se embora.

 

                                                                               Eduard Vilde 

 

 

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