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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O LÍRIO DOURADO / Richelle Mead
O LÍRIO DOURADO / Richelle Mead

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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A MAIORIA DAS PESSOAS TERIA MEDO de ser levada a um abrigo subterrâneo numa noite de tempestade. Mas não eu.
Tudo que eu pudesse explicar e definir de maneira objetiva não me intimidava. Por isso, enquanto descia cada vez mais abaixo do nível da rua, ficava enumerando fatos para mim mesma em silêncio. O abrigo era uma relíquia da Guerra Fria, construído para servir de proteção num tempo em que as pessoas acreditavam que os mísseis nucleares estavam por toda parte. Na superfície, o prédio parecia abrigar uma loja de equipamentos ópticos. Mas era só uma fachada. Nada assustador. A tempestade? Simplesmente o fenômeno natural da colisão de frentes atmosféricas. E, sério, se você está com medo de se machucar numa tempestade, então ir para o subsolo não deixa de ser uma boa ideia.
Portanto, não. Aquela jornada aparentemente ameaçadora não me aterrorizava nem um pouco. Tudo se apoiava na lógica e em fatos racionais. Eu conseguia lidar com aquilo.
Era com o resto do meu trabalho que eu tinha problemas.
Sinceramente, talvez fosse por isso que excursões subterrâneas em noites de tempestade não me atormentavam. Quando se passa a maior parte do tempo vivendo entre vampiros e meio-vampiros, transportando-os para que consigam sangue, e ocultando a existência deles do resto do mundo... bem, isso meio que dá uma perspectiva diferente da vida. Já havia presenciado batalhas sangrentas entre vampiros e visto proezas mágicas que desafiavam todas as leis da física que eu conhecia. A minha vida era uma luta constante para reprimir meu medo do inexplicável e tentar, desesperadamente, encontrar uma maneira de explicá-lo.
- Cuidado por onde pisa - meu guia disse, conforme descíamos outro lance da escada de concreto. Tudo que eu tinha visto até então era de concreto: as paredes, o piso, o teto. A superfície cinzenta e áspera absorvia a luz fluorescente que tentava iluminar o caminho. Tudo era frio, melancólico e de um silêncio sinistro. O guia pareceu adivinhar meus pensamentos. - Fizemos algumas modificações e ampliações na construção original. Você vai ver quando chegarmos à área principal.

 


 


Dito e feito. As escadas finalmente acabaram em um corredor com várias portas fechadas dos dois lados. O revestimento ainda era de concreto, mas as portas eram modernas,
com fechaduras eletrônicas exibindo luzes verdes ou vermelhas. Ele me acompanhou até a segunda porta à direita, que tinha luz verde, e entrei num saguão perfeitamente
normal, como a sala de espera de qualquer escritório moderno. Um carpete verde cobria o chão, numa tentativa nostálgica de imitar a grama, e as paredes em um tom
marrom-claro davam a ilusão de calor. Um sofá confortável e duas cadeiras ficavam do outro lado da sala, junto a uma mesa entulhada de revistas. E o melhor de tudo:
a sala tinha um balcão com uma pia - e uma cafeteira.
- Fique à vontade - o guia disse.
Achava que ele tinha mais ou menos a minha idade, dezoito anos, mas a barba irregular que ele tentava deixar crescer o fazia parecer mais jovem.
- Logo virão buscá-la.
Eu não tirava os olhos da cafeteira.
- Posso fazer café?
- Claro - ele respondeu. - O que você quiser.
Ele saiu e eu praticamente corri até o balcão. O café era pré-moído e parecia que também estava lá desde a Guerra Fria. Mas o que importava era que tivesse cafeína.
Depois do voo noturno que me trouxera da Califórnia, ainda me sentia sonolenta e com a visão embaçada, apesar de ter usado parte do dia para me recuperar. Liguei
a cafeteira e perambulei pela sala. As revistas estavam espalhadas ao acaso, e tratei de arrumá-las em pilhas alinhadas. Não suportava bagunça.
Sentei no sofá e, enquanto esperava o café ficar pronto, voltei a me perguntar sobre o que poderia ser aquela reunião. Havia passado a tarde ali na Virgínia relatando
a alguns funcionários alquimistas em que pé estava minha missão atual. Eu estava morando em Palm Springs, fingindo cursar o último ano num internato particular,
para cuidar da segurança de Jill Mastrano Dragomir, uma princesa vampira obrigada a se esconder. Mantê-la viva significava manter seu povo livre de uma guerra civil,
conflito que sem dúvida revelaria aos humanos o mundo sobrenatural que se escondia sob a superfície da vida moderna. Era uma missão importantíssima para os alquimistas,
então era de se esperar que quisessem ficar por dentro de tudo. O que me surpreendia era o fato de não terem feito isso apenas por telefone. Não conseguia descobrir
que outro motivo poderia ter me levado àquele lugar.
O café ficou pronto. Havia programado a cafeteira para fazer o equivalente a apenas três xícaras, o que eu considerava suficiente para aguentar a noite. Quando acabei
de encher o copinho de isopor, a porta se abriu. Quase derrubei o café quando vi quem entrava.
- Sr. Darnell - eu disse, devolvendo a jarra à base da cafeteira; minhas mãos tremiam. - É... é um prazer ver o senhor de novo.
- O prazer é meu, Sydney - respondeu, forçando um sorriso tenso. - Você cresceu muito.
- Obrigada, senhor - respondi, sem saber ao certo se tinha sido um elogio.
Tom Darnell tinha a mesma idade do meu pai, e seu cabelo castanho se entremeava de fios prateados. O rosto dele exibia mais rugas do que na última vez que o vira,
e seus olhos azuis demonstravam uma apreensão que eu não costumava associar à sua figura. Tom Darnell era um funcionário do alto escalão dos alquimistas e havia
alcançado seu cargo com ações decisivas e uma ética profissional inabalável. Quando eu era pequena, ele me parecia grandioso, terrivelmente confiante e imponente.
Agora dava a impressão de estar com medo de mim, o que não fazia o menor sentido. Ele não estava zangado? Afinal, eu era a responsável pelos alquimistas terem capturado
e aprisionado o filho dele.
- Obrigado por ter vindo até aqui - acrescentou, passados alguns instantes de silêncio constrangedor. - Sei que é uma longa viagem, ainda mais num fim de semana.
- Não tem problema nenhum, senhor - respondi, tentando parecer confiante. - Fico feliz em poder ajudar no que... no que for necessário.
Eu ainda me perguntava o que exatamente aquilo poderia ser.
Ele me examinou por alguns segundos e assentiu levemente com a cabeça.
- Você é muito dedicada - ele disse. - Exatamente como seu pai.
Não respondi. Sabia que aquilo pretendia ser um elogio, só que eu não encarava desse jeito.
Tom pigarreou.
- Muito bem. Vamos acabar logo com isso. Realmente não quero incomodá-la mais do que o necessário.
Voltei a sentir aquela energia nervosa e complacente. Por que ele estaria tão preocupado com o que eu estava sentindo? Afinal, depois do que eu tinha feito com Keith,
o filho dele, eu esperava um acesso de fúria e acusações. Tom abriu a porta e fez um gesto para que eu saísse.
- Posso levar o café?
- Claro.
Ele me acompanhou de volta ao corredor de concreto, na direção de outras portas fechadas. Eu segurava meu café com força, como se fosse o cobertorzinho que eu carregava
quando criança, e sentia muito mais medo do que quando havia entrado naquele lugar. Tom parou em frente a uma das portas com luz vermelha, mas hesitou antes de abri-la.
- Quero que saiba... que o que você fez foi de uma coragem incrível - ele disse, sem me olhar nos olhos. - Sei que você e Keith eram... são... amigos, e não deve
ter sido fácil para você entregá-lo. Isso mostra seu comprometimento com o trabalho, algo que nem sempre é fácil quando sentimentos pessoais estão envolvidos.
Keith e eu não éramos amigos, nem nunca tínhamos sido, mas acho que consegui entender o engano de Tom. Keith havia morado com a minha família durante um verão e,
mais tarde, trabalhamos juntos em Palm Springs. Entregá-lo por seus crimes não havia sido nada difícil para mim. Na verdade, tinha sido um prazer. Mas, pelo olhar
angustiado no rosto de Tom, eu sabia que não podia dizer nada desse tipo.
Engoli em seco.
- Bem, nosso trabalho é importante, senhor.
- Sim, sem dúvida - respondeu, com um sorriso triste.
A porta tinha um teclado de segurança. Tom pressionou cerca de dez dígitos e a fechadura soltou um estalido de aprovação. Ele abriu a porta e eu entrei atrás dele.
A sala quase vazia era mal iluminada e outras três pessoas estavam ali. Inicialmente não notei o que mais havia na sala, mas logo percebi que os outros também eram
alquimistas. Se não fossem, não haveria motivo para estarem ali. E, claro, todos possuíam os sinais que eu identificaria mesmo numa rua movimentada. Trajes sociais
de cores neutras. Tatuagens de lírios dourados reluzindo na bochecha esquerda. Era o uniforme que compartilhávamos. Éramos um exército secreto, espreitando sob as
sombras dos outros humanos.
Todos os três seguravam pranchetas e olhavam para uma das paredes. Foi então que notei a finalidade da sala. Uma janela na parede dava para outro espaço, bem mais
iluminado que aquele.
E Keith Darnell estava ali dentro.
Ele disparou na direção do vidro que nos separava e começou a esmurrá-lo. Meu coração acelerou e, assustada, dei uns passos para trás, certa de que ele queria me
atacar. Demorei um tempo para entender que, na verdade, ele não conseguia me ver. Relaxei um pouco. Só um pouco. A janela era um espelho unidirecional. As mãos dele
faziam pressão contra o vidro, e ele lançava olhares frenéticos de um lado para o outro, para os rostos que sabia que estavam lá, mas não conseguia ver.
- Por favor - ele gritava. - Me deixem sair! Por favor, me deixem sair daqui!
Keith parecia mais magro do que na última vez em que o tinha visto. Seu cabelo estava desgrenhado e parecia não ter sido cortado recentemente. Vestia um macacão
igual ao de prisioneiros ou doentes mentais, cuja cor cinza me lembrava do concreto do corredor. O que mais me chamou atenção foram o pavor e o desespero em seus
olhos - ou melhor, em seu olho. Keith havia perdido um dos olhos num ataque vampiro que eu, secretamente, havia ajudado a orquestrar. Nenhum alquimista sabia disso,
assim como nenhum deles sabia que Keith havia violentado Carly, minha irmã mais velha. Duvido que Tom Darnell teria elogiado minha “dedicação” se soubesse da minha
vingança particular. Vendo o estado em que Keith se encontrava naquele momento, me senti um pouco mal por ele e especialmente mal por Tom, que carregava uma expressão
cheia de dor. Ainda assim, não me sentia mal pelo que havia feito contra Keith. Nem a prisão, nem o olho. Resumindo, Keith Darnell era uma pessoa ruim.
- Você certamente reconhece Keith - disse uma alquimista com prancheta, cujo cabelo grisalho estava preso em um coque firme.
- Sim, senhora - respondi.
Fui poupada de fazer qualquer outro comentário quando Keith bateu no vidro com sua fúria renovada.
- Por favor! Estou falando sério! O que vocês quiserem! Faço qualquer coisa. Digo qualquer coisa. Acredito em qualquer coisa. Mas, por favor, não me mandem de volta
para lá!
Tom e eu tivemos um sobressalto, mas os demais alquimistas apenas observaram com um distanciamento clínico e rabiscaram algumas anotações em suas pranchetas. A mulher
de coque voltou a olhar para mim como se nada tivesse acontecido.
- O jovem sr. Darnell tem passado o tempo em um de nossos centros de reeducação. Uma medida lamentável, mas necessária. O tráfico de bens ilícitos foi sem dúvida
errado, mas a colaboração com os vampiros é imperdoável. Ainda que ele alegue não ter nenhuma relação com eles... bem, nós realmente não temos como comprovar. Mesmo
que ele esteja falando a verdade, ainda é possível que essa transgressão se transforme em alguma coisa maior, não apenas uma colaboração com os Moroi, mas também
com os Strigoi. O que temos feito o mantém longe desse terreno perigoso.
- É realmente para o bem dele - disse outro alquimista com prancheta. - Estamos fazendo um favor a ele.
Uma sensação de terror tomou conta de mim. O objetivo dos alquimistas era esconder dos humanos a existência dos vampiros. Acreditávamos que eles eram criaturas abomináveis
e não deveriam ter qualquer relação com humanos como nós. Nossa preocupação principal eram os Strigoi - vampiros assassinos perversos -, que poderiam ludibriar a
humanidade e escravizá-la com promessas de imortalidade. Mesmo os pacíficos Moroi e seus correspondentes semi-humanos, os dampiros, eram vistos com desconfiança.
Trabalhávamos muito com estes dois últimos grupos e, apesar de terem nos ensinado a tratá-los com desprezo, era inevitável que alguns alquimistas não apenas se aproximassem
dos Moroi e dos dampiros... mas também acabassem gostando deles.
O estranho era que, apesar do crime de vender sangue de vampiro, Keith era uma das últimas pessoas que eu imaginaria tendo um relacionamento amigável com eles. Foram
várias as vezes em que ele deixou sua aversão aos vampiros muito clara para mim. Na verdade, se alguém merecia ser acusado de simpatizar com vampiros...
... bem, esse alguém era eu.
O outro alquimista, um homem com óculos escuros espelhados habilmente pendurados no colarinho, deu sequência ao discurso:
- Você, srta. Sage, é um exemplo excepcional de alguém capaz de trabalhar muito com eles e manter a objetividade. Sua dedicação não passou despercebida por nossos
superiores.
- Obrigada, senhor - respondi pouco à vontade, me perguntando quantas vezes teria de ouvir a palavra “dedicação” naquela noite. Era uma grande diferença em relação
a alguns meses antes, quando entrei numa enrascada por ajudar uma dampira fugitiva a escapar. Ela acabou sendo absolvida e meu envolvimento foi descartado e entendido
como “ambição de carreira”.
- E - continuou o sr. Óculos Escuros -, considerando sua experiência com o sr. Darnell, pensamos que seria a pessoa ideal para nos dar um depoimento.
Voltei a prestar atenção em Keith. Ele esteve esmurrando e gritando quase ininterruptamente por todo aquele tempo. Os demais tinham conseguido ignorá-lo, então tentei
fazer o mesmo.
- Um depoimento sobre o quê?
- Estamos considerando se devemos ou não levá-lo de volta à reeducação - explicou a sra. Coque Grisalho. - Ele teve um progresso excelente lá, mas alguns acham que
é melhor prevenir até termos certeza de que toda e qualquer simpatia pelos vampiros tenha sido erradicada.
Se aquele comportamento de Keith era um “progresso excelente”, não conseguia imaginar como seria um progresso ruim.
O sr. Óculos Escuros segurou a caneta acima da prancheta.
- Com base no que você presenciou em Palm Springs, srta. Sage, qual é a sua opinião sobre o estado mental do sr. Darnell no que concerne aos vampiros? O vínculo
que você presenciou era grave o bastante para justificar outras medidas cautelares?
Supus que “outras medidas cautelares” significavam mais reeducação.
Enquanto Keith continuava a bater com força no vidro, todos os olhos na sala se voltaram para mim. Os alquimistas com pranchetas pareciam atentos e curiosos. Tom
Darnell suava visivelmente, observando-me com medo e expectativa. Era compreensível. O destino do filho dele estava nas minhas mãos.
Emoções conflitantes se contorciam dentro de mim enquanto eu observava Keith. Não é que eu não gostasse dele - eu o odiava. E eu não odiava muita gente. Não conseguia
perdoá-lo pelo que tinha feito com Carly. Além disso, as lembranças do que ele fizera contra mim e contra outras pessoas em Palm Springs ainda estavam vívidas na
minha memória. Ele havia me difamado e tornado minha vida um inferno para tentar acobertar seu esquema de tráfico de sangue. Além disso, tratava de maneira abominável
os vampiros e dampiros de quem deveríamos cuidar. Essa atitude me fazia questionar quem eram os verdadeiros monstros.
Não fazia ideia do que realmente acontecia nos centros de reeducação. A julgar pela reação de Keith, parecia ser bem terrível. Parte de mim adoraria dizer aos alquimistas
que era melhor mandá-lo de volta por anos a fio e nunca mais deixá-lo ver a luz do sol. Os crimes dele mereciam uma punição cruel - mas, apesar disso, eu não tinha
certeza se mereciam aquela punição em particular.
- Acho... acho que Keith Darnell é perverso - disse por fim. - Ele é egoísta e imoral. Não se preocupa com os outros e prejudica as pessoas para favorecer a si mesmo.
Está disposto a mentir, manipular e roubar para conseguir o que quer. Mas... - hesitei antes de continuar - não acredito que ele tenha perdido a noção do que os
vampiros são. Não acho que seja tão íntimo deles ou que possa se aliar a eles no futuro. Dito isso, também não acho que deva ser permitido que ele volte ao trabalho
alquimista num futuro próximo. Cabe a vocês decidir se isso significaria trancafiá-lo ou apenas deixá-lo em liberdade assistida. Seu histórico mostra que ele não
leva nossas missões a sério, mas isso é por egoísmo. Não por uma relação anormal com eles. Ele... bem, para ser sincera, é só uma pessoa ruim.
Recebi um silêncio em resposta, acompanhado pelo escrevinhar frenético das canetas enquanto os alquimistas faziam suas anotações. Ousei olhar na direção de Tom,
com medo do que veria depois de ter falado tão mal do filho dele. Para minha surpresa, Tom parecia... aliviado. E agradecido. Na verdade, parecia prestes a chorar.
Quando seus olhos encontraram os meus, ele murmurou um obrigado. Impressionante. Eu tinha acabado de afirmar que Keith era um ser humano horrível em todos os aspectos
possíveis. Mas nada daquilo importava para o pai, desde que eu não acusasse Keith de se aliar aos vampiros. Eu poderia ter chamado Keith de assassino e é provável
que mesmo assim Tom agradecesse, caso significasse que Keith não era íntimo demais do inimigo.
Aquilo me incomodou e voltei a me perguntar quem eram os verdadeiros monstros naquela situação. O grupo que havia deixado em Palm Springs era cem vezes mais digno
do que Keith.
- Obrigada, srta. Sage - a sra. Coque Grisalho disse, terminando suas anotações. - Você ajudou muito. Levaremos seu depoimento em consideração quando tomarmos nossa
decisão. Pode ir agora. Você encontrará Zeke no corredor, esperando para levá-la embora.
Foi uma dispensa abrupta, mas era algo típico dos alquimistas. Eficientes. Diretos ao ponto. Me despedi com um aceno educado e dei uma última olhada em Keith antes
de sair. Assim que fechei a porta atrás de mim, o corredor ficou num silêncio misericordioso. Não conseguia mais ouvir Keith.
Zeke, como descobri, era o mesmo alquimista que me acompanhou quando cheguei.
- Tudo pronto? - perguntou.
- Parece que sim - respondi, ainda um tanto atordoada pelo que havia acabado de acontecer. Agora eu sabia que o relatório anterior sobre minha missão em Palm Springs
fora apenas uma maneira de aproveitar a oportunidade. Já que eu estava na região, por que não fazer uma reunião pessoalmente? Não era algo essencial. Ver Keith tinha
sido o verdadeiro objetivo para eu cruzar o país.
Ao caminharmos de volta pelo corredor, uma coisa que eu não tinha notado antes chamou minha atenção. Uma das portas tinha vários dispositivos de segurança, bem mais
do que a sala em que eu estivera. Além das luzes e do teclado, havia também um leitor de cartão. Acima da porta, um fecho que se travava por fora. Nada luxuoso,
mas estava claro que todo aquele aparato pretendia manter bem preso o que quer que estivesse atrás da porta.
Parei involuntariamente e examinei a porta por alguns segundos. Depois segui andando, sabendo que era melhor não dizer nada. Bons alquimistas não faziam perguntas.
Ao notar meu olhar, Zeke se deteve. Olhou para mim, depois para a porta, e então de volta para mim.
- Você... quer saber o que tem aí dentro?
Lançou um olhar rápido para a porta de onde eu tinha acabado de sair. Estava claro que ele era do baixo escalão e tinha medo de arrumar problemas com seus superiores.
Ao mesmo tempo, havia nele uma ansiedade que sugeria um entusiasmo pelos segredos que guardava, segredos que não podia revelar às outras pessoas. Eu seria um meio
seguro de dar vazão a eles.
- Depende do que tem aí - respondi.
- É a razão do nosso trabalho - ele respondeu, misterioso. - Dê uma olhada e vai entender por que nossos objetivos são tão importantes.
Decidindo correr o risco, ele passou um cartão na leitora e digitou outro longo código. A luz na porta ficou verde e ele abriu o fecho. Eu estava esperando outra
sala mal iluminada, mas a luz ali dentro era tão intensa que tive que proteger os olhos com a mão.
- É um tipo de banho de luz - Zeke explicou, em tom de desculpas. - Sabe as lâmpadas bronzeadoras que as pessoas usam em regiões muito nubladas? É o mesmo tipo de
raio. A esperança é que faça com que pessoas como ele voltem a parecer um pouco mais humanas ou, pelo menos, deixem de achar que são Strigoi.
A princípio, minha visão estava ofuscada demais para entender o que ele queria dizer. Até que vi uma cela do outro lado da sala vazia. Grandes barras de metal cobriam
a entrada, trancada com outra leitora de cartões e outro teclado. Quando vi o homem dentro dela, me pareceu um exagero. Ele era mais velho do que eu - chutaria uns
vinte e poucos anos - e tinha uma aparência tão desmazelada que fazia Keith parecer limpo e asseado. O homem esquelético estava encolhido em um canto, com os braços
cobrindo os olhos para se proteger da luz. Tinha algemas nas mãos e nos pés, e estava claro que não iria a lugar nenhum. Ao entrarmos, atreveu-se a olhar para nós,
revelando mais de seu rosto.
Senti um calafrio. Ele era humano, mas sua expressão era tão fria e perversa como a de qualquer Strigoi que eu já tinha visto. Seus olhos cinzentos eram predadores.
Sem emoções, como um assassino sem compaixão alguma pelas pessoas.
- Trouxe o jantar? - perguntou com uma voz rouca que só podia ser forçada. - Uma linda garotinha, hein. Preferia que não fosse tão magra, mas tenho certeza de que
o sangue dela é suculento mesmo assim.
- Liam - Zeke disse, com a paciência prestes a se esgotar -, você sabe onde está seu jantar.
Apontou para uma bandeja de comida intacta, que parecia estar fria havia muito tempo. Nuggets, vagem e um biscoito.
- Ele quase não come nada - Zeke explicou. - Por isso está tão magro. Insiste em querer beber sangue.
- O que... o que ele é? - perguntei, sem conseguir tirar os olhos de Liam.
Era uma pergunta boba, claro. Liam era visivelmente humano, mas... alguma coisa nele não estava certa.
- Uma alma corrompida que quer ser Strigoi - Zeke respondeu. - Alguns guardiões o encontraram servindo àqueles monstros e o trouxeram até nós. Estamos tentando reabilitá-lo,
mas sem sucesso. Só fica repetindo que os Strigoi são grandiosos e que vai voltar para eles um dia e se vingar de nós. Enquanto isso, tenta com todas as forças fingir
que é um deles.
- Ah - Liam disse, com um sorriso malicioso -, eu serei um deles. E eles vão me recompensar por minha lealdade e meu sofrimento. Vão me despertar e me conferir um
poder muito maior do que vocês, mortais insignificantes, já ousaram sonhar. Viverei para sempre e virei atrás de vocês, de todos vocês. Vou me banquetear com seu
sangue e saborear até a última gota. Vocês, alquimistas, mexem seus pauzinhos e acham que controlam tudo. Pura ilusão. Não controlam nada. Não são nada.
- Está vendo? - Zeke apontou, balançando a cabeça. - Patético. Mas é o que poderia acontecer se não fizéssemos nosso trabalho. Outros humanos poderiam se tornar
como ele, vendendo a alma em troca da promessa vazia de imortalidade - afirmou e fez o sinal dos alquimistas contra o mal, uma pequena cruz sobre o ombro, que, sem
perceber, imitei. - Não gosto de entrar aqui, mas, às vezes... às vezes é bom para lembrar por que tentamos manter os Moroi e os demais nas sombras. E por que não
podemos nos deixar levar por eles.
No fundo, eu sabia que existia uma diferença gigantesca na maneira como os Moroi e os Strigoi interagiam com os humanos. Ainda assim, ali, diante de Liam, eu não
conseguia encontrar argumentos para explicá-la. Ele me deixara muda - e assustada. Na presença daquele homem, era fácil acreditar em todas as palavras que os alquimistas
diziam. Era contra aquilo que lutávamos. Era aquele pesadelo que não podíamos deixar acontecer.
Não sabia o que dizer, mas Zeke não parecia esperar muito.
- Certo, vamos. - E, para Liam, acrescentou: - É melhor você comer essa refeição aí, porque não vai receber mais nada até amanhã de manhã. Não me importa que esteja
fria e dura.
- Por que devo me importar com alimentos humanos se logo mais beberei do néctar dos deuses? - disse, estreitando os olhos. - Sentirei seu sangue ainda quente nos
meus lábios; o seu e o da garotinha bonita.
Então começou a rir, um som muito mais perturbador do que os gritos de Keith.
A gargalhada continuou enquanto Zeke me levava para fora da sala. Quando fechou a porta atrás de nós, fiquei paralisada no corredor, estarrecida. Zeke me olhava
preocupado.
- Desculpe... Acho que não deveria ter mostrado isso para você.
Balancei a cabeça devagar.
- Não... você estava certo. É bom vermos isso. Para entender a importância do que estamos fazendo. Eu sempre soube, mas... jamais esperava uma coisa assim.
Tentei desviar meus pensamentos para as coisas do dia a dia e tirar aquele horror da cabeça. Voltei os olhos para o café. Não tinha sequer tocado nele, e acabara
esfriando. Fiz uma careta.
- Posso pegar mais café antes de irmos?
Precisava de alguma coisa normal. Alguma coisa humana.
- Claro.
Zeke me levou de volta ao saguão. A jarra que eu havia preparado na cafeteira ainda estava quente. Joguei o café do meu copo fora e me servi um pouco mais. Enquanto
isso, a porta se abriu de repente e por ela entrou Tom Darnell, visivelmente abalado. Ele pareceu surpreso ao perceber que a sala não estava vazia e desviou de nós,
sentando no sofá e colocando a cabeça entre as mãos. Zeke e eu trocamos olhares hesitantes.
- Sr. Darnell - arrisquei -, o senhor está bem?
Ele não respondeu imediatamente. Manteve a cabeça entre as mãos; seu corpo tremia com soluços mudos. Eu estava prestes a sair quando ele levantou os olhos para mim,
embora eu tivesse a sensação de que, na verdade, ele não estava me vendo.
- Eles decidiram - ele disse. - Decidiram o que vão fazer com Keith.
- Já? - perguntei, surpresa. Zeke e eu tínhamos passado apenas cinco minutos com Liam.
Tom assentiu, melancólico.
- Vão mandá-lo de volta... para a reeducação.
Não pude acreditar.
- Mas eu... eu disse a eles! Disse que ele não estava se aliando aos vampiros. Ele acredita... no que todos nós acreditamos. Só fez algumas escolhas erradas.
- Eu sei. Mas eles disseram que não podemos correr o risco. Mesmo que Keith pareça não se importar com os vampiros, mesmo que acredite que não se importa, o fato
é que ele fez um acordo com um deles. Eles temem que a disposição dele para esse tipo de parceria possa influenciá-lo de maneira inconsciente. É melhor resolver
tudo agora. Eles devem... devem estar certos. É para o bem de todos nós.
A imagem de Keith batendo contra o vidro e implorando para não voltar passou pela minha cabeça.
- Sinto muito, sr. Darnell.
O olhar perturbado de Tom se focou um pouco em mim.
- Não sinta, Sydney. Você já fez muito... muito por Keith. Graças ao que você disse eles irão reduzir a pena na reeducação. Isso significa muito para mim. Obrigado.
Senti um embrulho no estômago. Por minha culpa, Keith havia perdido um olho. Por minha culpa, tinha ido parar na reeducação pela primeira vez. O mesmo sentimento
voltou a tomar conta de mim: ele merecia sofrer de alguma forma, mas não daquela.
- Eles tinham razão sobre você - Tom acrescentou, tentando sorrir sem sucesso. - Você é um exemplo excepcional. Tão dedicada! Seu pai deve estar muito orgulhoso.
Não sei como consegue conviver com aquelas criaturas e, ainda assim, manter a cabeça no lugar. Outros alquimistas poderiam aprender muito com você. Você entende
o verdadeiro significado da responsabilidade e do dever.
Desde que partira de Palm Springs, no dia anterior, vinha pensando muito sobre o grupo que deixara para trás - a não ser, é claro, quando os alquimistas me distraíam
com os prisioneiros. Jill, Adrian, Eddie, e até mesmo Angeline... Por mais frustrante que às vezes fosse, eram pessoas que se tornaram próximas e com quem eu me
importava, no final das contas. Apesar de toda a correria por causa deles, sentia falta daquele grupo heterogêneo desde o segundo que deixei a Califórnia. Eu me
sentia vazia quando eles não estavam por perto.
Aquela sensação me deixava desnorteada. Será que eu estava confundindo os limites entre amizade e dever? Se Keith ficara em maus lençóis por uma pequena associação
com um vampiro, o que dizer de mim? Será que algum de nós estava perto de ficar como Liam?
As palavras de Zeke ecoaram na minha cabeça: “Não podemos nos deixar levar por eles”.
E o que Tom acabara de dizer: “Você entende o verdadeiro significado da responsabilidade e do dever”.
Ele me olhava com expectativa; consegui esboçar um sorriso enquanto afastava meus medos.
- Obrigada, senhor - respondi. - Faço o que posso.
2
NÃO PREGUEI OS OLHOS NAQUELA NOITE. Em parte, simplesmente por causa do fuso horário. Meu voo de volta para Palm Springs estava programado para as seis da manhã,
o que correspondia às três da madrugada no fuso horário a que meu corpo estava acostumado. Dormir parecia inútil.
E, claro, havia o detalhezinho de que era um tanto difícil relaxar depois de tudo o que eu havia presenciado no abrigo dos alquimistas. Quando não estava visualizando
o olhar assustador de Liam, repetia mentalmente os alertas constantes que eu tinha ouvido contra os que se aproximavam demais dos vampiros.
A caixa de entrada cheia de e-mails do pessoal em Palm Springs não me ajudava em nada. Costumava checar o e-mail automaticamente pelo celular quando estava fora.
Mas naquele momento, no quarto de hotel, diante daquelas mensagens, fiquei cheia de dúvidas. Será que as mensagens eram realmente de cunho profissional? Será que
eram amigáveis demais? Será que ultrapassavam os limites do protocolo alquimista? Depois de ter visto o que acontecera com Keith, ficou mais evidente do que nunca
que bastava muito pouco para arranjar problemas com a organização.
Uma das mensagens era de Jill, com o assunto: “Ai... Angeline”. Não era nenhuma surpresa, e não me dei ao trabalho de ler imediatamente. Angeline Dawes, dampira
recrutada para ser a colega de quarto de Jill e garantir mais uma camada de segurança, vinha encontrando problemas para se adaptar a Amberwood. Ela estava sempre
em apuros, e eu sabia que, independente do que estivesse acontecendo dessa vez, não havia nada que eu pudesse fazer na hora.
Outro e-mail era da própria Angeline. Também não li. O assunto era “LEIA ISTO! MUITO ENGRAÇADO!”. Angeline tinha acabado de descobrir os e-mails. Aparentemente,
ainda não havia descoberto como desativar a tecla Caps Lock. E encaminhava indiscriminadamente piadas, spams ou alertas de vírus. Por falar nisso... tivemos de instalar
um software de proteção infantil no laptop dela, para bloquear certos sites e propagandas. Decidimos fazer isso depois que ela baixou quatro vírus por acidente.
Só o último e-mail na caixa de entrada me chamou atenção. Era de Adrian Ivashkov, o único em nosso grupo que não fingia ser estudante na Escola Preparatória Amberwood.
Adrian era um Moroi de vinte e um anos, então seria um pouco forçado fazê-lo se passar por aluno do ensino médio. Ele estava no grupo porque sem querer criara um
laço psíquico com Jill ao usar sua magia para salvar a vida dela. Todos os Moroi dominavam algum tipo de magia elemental, e a dele era o espírito - um elemento misterioso
ligado à mente e à cura. O laço permitia que Jill visualizasse os pensamentos e as emoções de Adrian, o que era perturbador para ambos. Estarem perto um do outro
os ajudava a resolver alguns problemas do laço. Além disso, Adrian não tinha nada melhor para fazer.
O assunto da mensagem dele era: “MANDE AJUDA IMEDIATAMENTE”. Ao contrário de Angeline, Adrian conhecia as regras sobre o uso de maiúsculas e só as usava para criar
um efeito dramático. Eu também sabia que, se tivesse alguma dúvida sobre quais e-mails estavam relacionados ao meu trabalho, aquele era, de longe, o menos profissional
do conjunto. Adrian não era minha responsabilidade. Abri a mensagem mesmo assim.
Dia 24. A situação está piorando. Meus captores continuam encontrando novos métodos terríveis de tortura. Quando não está trabalhando, a agente Escarlate passa o
tempo examinando amostras de tecido para vestidos de noiva e falando sem parar sobre quanto está apaixonada. Normalmente isso leva o agente Borscht Bobo a nos deliciar
com histórias de casamentos russos que conseguem ser ainda mais chatas do que suas histórias usuais. Minhas tentativas de fuga fracassaram até o momento. Além disso,
acabaram os cigarros. Qualquer socorro ou produto contendo nicotina que puder enviar será de grande ajuda.
- Prisioneiro 24601
Não pude evitar um sorriso. Adrian me enviava um e-mail desse tipo quase diariamente. Naquele verão, tínhamos descoberto que, através do espírito, era possível reverter
a transformação daqueles que se tornaram Strigoi à força. Era um processo complicado e trabalhoso... ainda mais por existirem tão poucos usuários de espírito. Acontecimentos
ainda mais recentes haviam sugerido que aqueles que fossem restaurados da transformação Strigoi nunca mais poderiam ser transformados novamente. Isso havia dado
um novo ânimo aos alquimistas e aos Moroi. Se existisse uma maneira de evitar a conversão em Strigoi através da magia, monstruosidades como Liam não seriam mais
um problema.
Foi assim que entraram em cena Sonya Karp e Dimitri Belikov, ou, como Adrian os chamava em seus e-mails angustiados, “agente Escarlate” e “agente Borscht Bobo”.
Sonya era uma Moroi; Dimitri, um dampiro. Os dois tinham sido transformados em Strigoi e foram restaurados pela magia do espírito. Eles haviam chegado a Palm Springs
no mês anterior para trabalhar com Adrian numa espécie de grupo de estudos para encontrar uma forma de proteção contra a transformação em Strigoi. Era uma tarefa
extremamente importante que, caso desse certo, poderia trazer grandes frutos. Sonya e Dimitri eram algumas das pessoas mais empenhadas que eu já tinha conhecido,
o que não combinava muito com o estilo do Adrian.
Boa parte do trabalho eram experimentos maçantes e meticulosos, muitos deles envolvendo Eddie Castile, um dampiro que também estava infiltrado em Amberwood. Ele
servia como cobaia de controle, já que, ao contrário de Dimitri, Eddie era um dampiro que nunca tinha tido experiências com a magia do elemento espírito e tampouco
possuía um histórico Strigoi. Eu não podia fazer muito para ajudar Adrian e sua frustração com o grupo de pesquisa - e ele sabia disso. Só gostava de fazer drama
e desabafar comigo. Cuidadosa com o que era ou não essencial ao mundo alquimista, estava prestes a excluir a mensagem, mas...
Uma coisa me fez hesitar. Adrian tinha assinado com uma referência a Os miseráveis, de Victor Hugo. Era um livro sobre a Revolução Francesa tão grosso que poderia
facilmente ser usado como uma arma. Eu tinha lido a obra tanto para a matéria de francês como para a de inglês. Como Adrian ficava entediado só de ler um cardápio
mais longo que o normal, era difícil imaginar que ele tivesse lido o livro de Victor Hugo independente da língua. Então como ele conhecia a referência? “Não interessa,
Sydney”, disse uma voz alquimista rígida dentro da minha cabeça. “Exclua. Não é importante. O conhecimento literário de Adrian (ou a falta dele) não é da sua conta.”
Mas não consegui resistir. Precisava saber. Aquele era o tipo de detalhe que me deixava maluca. Respondi com uma mensagem rápida: Como você sabe sobre 24601? Me
recuso a acreditar que tenha lido o livro. Viu o musical, não foi?
Cliquei em “Enviar” e recebi uma resposta quase imediata: Li o resumo na internet.
Típico. Ri alto, mas logo me senti culpada. Não devia ter respondido. Aquela era minha conta de e-mail pessoal, mas, se um dia os alquimistas decidissem me investigar,
não teriam escrúpulos em acessá-la. Aquele tipo de mensagem era condenável, por isso excluí a troca de e-mails - não que fizesse alguma diferença. Nenhum dado jamais
se perdia realmente.
Ao aterrissar em Palm Springs às sete da manhã do dia seguinte, ficou dolorosamente óbvio que meu corpo tinha ultrapassado seus limites e não conseguiria mais viver
de cafeína. Eu estava muito exausta. O café, em qualquer quantidade, já não me ajudaria mais. Quase caí no sono enquanto aguardava minha carona na saída do aeroporto.
E, quando ela chegou, não percebi até ouvir chamarem meu nome.
Dimitri Belikov saiu do carro azul alugado e veio na minha direção, pegando minha mala antes que eu pudesse dizer uma palavra. Algumas mulheres que estavam por perto
interromperam a conversa para admirá-lo. Eu me levantei.
- Você não precisa fazer isso - eu disse, mas àquela altura ele já estava colocando minha bagagem no porta-malas.
- Claro que preciso - respondeu, as palavras matizadas por um leve sotaque russo e um sorriso. - Você parecia estar dormindo.
- Era tudo o que eu queria - eu disse, entrando no lado do passageiro.
Sabia que, acordada ou não, Dimitri teria pegado a mala de qualquer jeito. Fazia parte dele esse resquício de cavalheirismo no mundo moderno; estava sempre disposto
a ajudar os outros.
Essa era apenas uma das características marcantes de Dimitri. Só a beleza dele já bastava para fazer muitas perderem o rumo. Seu cabelo castanho-escuro estava preso
em um rabo de cavalo curto, e os olhos da mesma cor eram misteriosos e sedutores. Ele era alto, tinha quase dois metros, superando alguns Moroi. Para mim era difícil
distinguir dampiros de humanos, então precisava admitir que ele tinha uma pontuação bem alta na escala de beleza.
Além disso, ele emanava uma energia que afetava a todos, invariavelmente. Estava sempre alerta, pronto para lidar com qualquer imprevisto. Nunca o tinha visto baixar
a guarda. Estava sempre pronto para o ataque. Era perigoso, sem dúvida, e me tranquilizava o fato de que estava do nosso lado. Sempre me senti segura perto dele,
mas um pouco desconfiada.
- Obrigada pela carona - acrescentei. - Eu podia ter chamado um táxi.
Sabia que essas palavras eram tão inúteis quanto dizer que não precisava de ajuda com a mala.
- Não tem problema nenhum - garantiu, seguindo para a área residencial de Palm Springs. Limpou o suor da testa e, não sei como, isso o fez parecer ainda mais atraente.
Apesar de ainda ser cedo, o calor já estava ficando pesado. - Sonya insistiu. Além disso, não temos experimentos hoje.
Franzi a sobrancelha. Aqueles experimentos, e o potencial espantoso que tinham de evitar o surgimento de outros Strigoi, eram de uma importância enorme. Dimitri
e Sonya sabiam disso, e se dedicavam à causa - ainda mais nos fins de semana, quando Adrian e Eddie não tinham aula -, o que tornava aquela informação difícil de
entender. Minha própria ética profissional não conseguia compreender por que não haveria pesquisa num domingo.
- Adrian? - presumi, pensando que talvez ele não estivesse “no clima” para pesquisas naquele dia.
- Também - Dimitri respondeu. - E estamos sem nossa cobaia de controle. Eddie disse que teve alguns problemas e não pôde vir.
Franzi ainda mais a testa. Que problemas Eddie poderia ter?
Eddie também era muito dedicado. Adrian às vezes o chamava de mini-Dimitri. Apesar de Eddie estar cursando o ensino médio, assim como eu, e portanto ter trabalhos
a fazer, eu tinha certeza de que ele largaria qualquer lição de casa pelo bem maior. Eu só conseguia pensar em uma coisa que seria mais importante do que ajudar
a encontrar uma “vacina” para a transformação em Strigoi. De repente meu coração acelerou.
- Jill está bem?
Ela tinha que estar. Ou alguém teria me dito, não? A principal função de Eddie em Palm Springs, assim como a minha, era mantê-la a salvo. Qualquer perigo que ela
corresse teria prioridade sobre qualquer outra coisa.
- Ela está ótima - Dimitri respondeu. - Falei com ela mais cedo. Não sei exatamente o que está acontecendo, mas Eddie não teria se ausentado se não fosse por um
bom motivo.
- Acho que sim - murmurei, ainda apreensiva.
- Você se preocupa tanto quanto eu - Dimitri brincou. - Não achava que isso fosse possível.
- Me preocupar faz parte do meu trabalho. Tenho que garantir que todos estejam bem o tempo todo.
- De vez em quando não faz mal garantir que você também esteja. Aliás, você vai perceber que isso acaba ajudando os outros também.
- Rose sempre tira sarro da sua “sabedoria de mestre zen” - ironizei. - É disso que estou tendo uma amostra? Se sim, então agora entendi por que ela não conseguia
resistir ao seu charme.
Essa resposta me rendeu uma das raras gargalhadas sinceras de Dimitri.
- Acho que sim. Se perguntar a ela, Rose vai dizer que foram os empalamentos e as decapitações que a seduziram. Mas tenho certeza de que foi a sabedoria zen que
ganhou seu coração.
Meu sorriso em resposta se desfez num bocejo. Conseguir fazer piadas com um dampiro era novidade para mim. Costumava ter ataques de pânico só de ficar numa sala
junto com um deles ou um Moroi. Aos poucos, durante o último semestre, meu nervosismo começou a abrandar. Jamais me livraria da sensação de “diferença” que sentia
em relação a todos eles, mas já havia avançado muito. Parte de mim sabia que era bom ainda ser capaz de distingui-los dos humanos, mas ao mesmo tempo também era
bom ser flexível, para facilitar meu trabalho. “Mas não flexível demais”, avisou aquela voz alquimista no fundo da minha mente.
- Chegamos - Dimitri disse, estacionando em frente ao meu alojamento em Amberwood. Se ele notou minha mudança de humor, não comentou nada. - Você devia descansar
um pouco.
- Vou tentar - respondi. - Mas primeiro preciso descobrir o que está acontecendo com Eddie.
- Se o encontrar - disse, assumindo uma expressão profissional -, leve-o para casa hoje à noite, para podermos trabalhar um pouco. Sonya iria adorar. Ela está com
algumas ideias novas.
Concordei com a cabeça, lembrando que aquele era o padrão que precisávamos manter. Trabalho, trabalho, trabalho. Não podíamos esquecer dos nossos objetivos mais
elevados.
- Vou ver o que consigo fazer.
Agradeci de novo pela carona e entrei, completamente decidida a cumprir minha missão. Então foi muito frustrante quando meus objetivos grandiosos logo caíram por
terra.
- Srta. Melrose?
Virei na direção do chamado pelo sobrenome que eu tinha adotado em Amberwood. A sra. Weathers, a velha e rechonchuda responsável pelo alojamento, corria na minha
direção. Seu rosto parecia cheio de preocupação, o que não era um bom sinal.
- Fico feliz que esteja de volta - ela disse. - Foi boa a visita familiar?
- Sim, senhora. - Se por “boa” ela quisesse dizer “assustadora e inquietante”.
A sra. Weathers fez um sinal para que eu me sentasse à sua mesa.
- Preciso conversar com você sobre sua prima.
Contive uma careta ao me lembrar do e-mail de Jill. Prima Angeline. Todos nós que frequentávamos Amberwood fingíamos ter algum tipo de parentesco. Jill e Eddie eram
meus irmãos. Angeline, nossa prima. Isso ajudava a explicar por que estávamos sempre juntos e nos envolvíamos nos assuntos uns dos outros.
Sentei com a sra. Weathers e, saudosa, pensei na minha cama.
- O que aconteceu?
Ela soltou um suspiro.
- Sua prima está tendo problemas com nossas regras de vestuário.
Aquilo foi uma surpresa.
- Mas nós usamos os uniformes, senhora.
- Claro - ela respondeu. - Mas não fora das aulas.
Era verdade. Eu estava vestindo uma calça cáqui e uma blusa verde de manga curta, além da pequena cruz dourada que sempre usava. Fiz um inventário mental do guarda-roupa
de Angeline, tentando me lembrar de alguma coisa que pudesse ter causado problemas. Talvez a parte mais preocupante fosse a falta de qualidade. Angeline viera dos
Conservadores, uma comunidade mista de humanos, Moroi e dampiros que vivia na cordilheira dos Apalaches. Além de não terem luz elétrica nem água encanada, eles preferiam
fazer suas próprias roupas ou então usá-las em farrapos.
- Na sexta à noite, ela estava usando um short jeans terrivelmente curto - a sra. Weathers continuou, com um arrepio. - Eu a repreendi imediatamente, e ela disse
que aquela era a única maneira de se sentir confortável no calor da rua. Eu lhe fiz uma advertência e pedi que encontrasse um traje mais apropriado. No sábado, ela
apareceu vestindo os mesmos shorts e uma regata completamente indecente. Foi aí que suspendi sua prima no dormitório pelo resto do fim de semana.
- Sinto muito, sra. Weathers - respondi. Sinceramente, não fazia a menor ideia do que dizer além disso. Eu tinha passado o fim de semana inteiro envolvida na batalha
épica para salvar a humanidade, e agora... um short jeans?
A sra. Weathers hesitou.
- Eu sei... Eu sei que essa questão não te diz muito respeito. É um problema dos pais dela. Mas, vendo como você é responsável e cuida do resto da sua família...
Suspirei.
- Sim, senhora. Vou cuidar disso. Obrigada por não tomar nenhuma medida mais drástica.
Subi as escadas, sentindo minha mala pequena ficar mais pesada a cada passo. Quando cheguei ao segundo andar, parei, sem saber direito para onde ir. Se subisse mais
um lance de escadas, daria no meu dormitório. Mas aquele andar me levaria à “prima Angeline”. Relutante, entrei no corredor do segundo andar, sabendo que, quanto
antes cuidasse daquilo, melhor.
- Sydney! - Jill Mastrano abriu a porta do quarto, com um brilho de alegria nos olhos verde-claros. - Você voltou!
- É o que parece - respondi, entrando no quarto atrás dela. Angeline estava lá também, deitada na cama com uma apostila. Tinha certeza de que aquela era a primeira
vez na vida que eu a via estudando, mas a prisão domiciliar provavelmente havia limitado suas opções de recreação.
- O que os alquimistas queriam? - Jill perguntou. Ela sentou na cama com as pernas cruzadas e, distraidamente, começou a brincar com os cachos castanho-claros de
seu cabelo.
Dei de ombros.
- Burocracia. Coisa chata. Parece que as coisas estavam um pouco mais animadas por aqui - respondi, com um olhar incisivo para Angeline.
A dampira levantou da cama num pulo, o rosto furioso e os olhos azuis inflamados.
- Não foi culpa minha! Aquela Weathers estava completamente louca! - exclamou, com um leve sotaque sulista arrastando as palavras.
Dei uma avaliada rápida em Angeline, e não havia nada alarmante. Sua calça jeans era gasta, mas decente, assim como a camiseta. Até sua vasta cabeleira, de um tom
loiro-avermelhado, estava domada, bem presa num rabo de cavalo, para variar um pouco.
- O que diabos você vestiu para deixar a mulher tão irritada, então?
Com a cara fechada, Angeline foi até o guarda-roupa, de onde tirou o short jeans mais esfarrapado que eu já tinha visto na vida. Pensei que ele fosse se desfazer
na minha frente. Além disso, era tão curto que eu não me surpreenderia se deixasse a calcinha dela à mostra.
- Onde você comprou isso?
- Eu que fiz - disse, quase parecendo orgulhosa.
- Com o quê, um serrote?
- Eu tinha duas calças jeans - ela respondeu, pragmática. - Estava tão quente que tive a ideia de transformar uma delas em um short.
- Ela usou uma faca da cantina - Jill interferiu, prestativa.
- Não encontrei nenhuma tesoura - Angeline se justificou.
Ai, minha cama. Onde estava a minha cama naquela hora?
- A sra. Weathers também mencionou uma blusa indecente - eu disse.
- Ah - Jill disse. - Era minha.
- Como assim? - perguntei, erguendo a sobrancelha. - Sei que você não tem nenhuma roupa “indecente”.
No mês anterior, antes de Angeline chegar a Amberwood, eu e Jill dividimos o quarto.
- E a blusa não é indecente mesmo - Jill concordou. - Só que não é exatamente do tamanho de Angeline.
Alternei o olhar entre as duas e entendi. Jill era alta e magra, como quase todos os Moroi - uma silhueta invejada pelos estilistas humanos, e que eu mataria para
ter. Ela até chegou a trabalhar como modelo por um tempo. Com aquele tipo físico vinham seios modestos. Já os de Angeline... Bem, não eram assim tão modestos. Se
ela usasse uma regata do tamanho de Jill, era de se esperar que o modelo da blusa seria alargado além dos limites da decência.
- Jill usa essa regata o tempo todo e nunca se mete em encrenca - Angeline disse, na defensiva. - Não achei que eu fosse ter problemas se pegasse emprestada.
Eu estava começando a sentir dor de cabeça. Ainda assim, achei que aquela situação era menos problemática do que a vez em que Angeline foi pega se agarrando com
um garoto no banheiro masculino.
- Bom, isso é fácil de resolver. Nós podemos, quer dizer, eu posso, já que você está presa aqui, ir comprar algumas roupas do seu tamanho hoje à noite.
- Ah - Angeline disse, subitamente mais animada -, não precisa. Eddie já está cuidando disso.
Se Jill não estivesse concordando com a cabeça, eu pensaria que era uma piada.
- Eddie? Eddie está comprando roupas pra você?
- Não é um amor? - Angeline respondeu com um suspiro sorridente.
Um amor? Não, mas eu sabia por que Eddie faria isso. Comprar roupas decentes para Angeline devia ser a última coisa que ele gostaria de fazer, mas ele faria mesmo
assim. Como eu, ele entendia o significado do dever. Então entendi por que Eddie havia cancelado os experimentos e por que não explicara seus motivos.
Na mesma hora, peguei o celular e liguei para ele. Eddie atendeu de imediato, como sempre. Eu tinha certeza de que ele nunca ficava a mais de um metro do celular.
- Oi, Sydney. Que bom que você voltou. - Ele fez uma pausa. - Você voltou, né?
- Sim, estou com Jill e Angeline. Soube que você andou fazendo umas comprinhas.
- Nem me fale - disse com um suspiro. - Acabei de chegar no meu dormitório.
- Não quer trazer as compras para cá? Aliás, preciso do carro de volta.
Houve um instante de hesitação.
- Você se importaria de passar aqui? Isto é, se Jill estiver bem. Ela está bem, não é? Não precisa de mim? Porque, se precisar...
- Ela está ótima. - O alojamento dele não era muito longe, mas eu estava louca por um cochilo. Mesmo assim, acabei concordando, como sempre fazia. - Tá. Encontro
você no saguão em uns quinze minutos?
- Tudo bem. Valeu, Sydney.
Assim que desliguei, Angeline me perguntou, assanhada:
- Eddie está vindo?
- Não, eu é que vou até lá - respondi.
Seu sorriso se desfez.
- Ah, tudo bem, tenho que ficar aqui, de qualquer jeito. Mal posso esperar para poder treinar de novo. Queria passar mais tempo com ele.
Eu não tinha notado como Angeline estava se dedicando ao treinamento. Ela parecia realmente animada com a ideia de treinar.
Saí do quarto e fiquei surpresa ao perceber Jill atrás de mim quando a porta fechou. Seus olhos estavam arregalados e preocupados.
- Sydney... Desculpa.
Olhei para ela, curiosa, me perguntando se ela também tinha feito alguma coisa errada.
- Por quê?
Ela apontou para a porta.
- Pela Angeline. Eu devia ter me esforçado mais para mantê-la longe de encrenca.
- Esse não é o seu trabalho - respondi, quase dando um sorriso.
- Sim, eu sei... - ela disse, baixando os olhos e deixando o cabelo cair no rosto. - Mesmo assim. Sei que eu devia ser mais como você. Em vez disso fico só... Você
sabe, curtindo.
- Você está no seu direito - respondi, tentando ignorar o comentário sutil sobre mim.
- Mesmo assim, eu devia ser mais responsável - ela argumentou.
- Você é responsável - garanti. - Ainda mais em comparação com Angeline.
Em Utah, minha família tinha um gato que sem dúvida era mais responsável que Angeline.
O rosto de Jill se iluminou, e me despedi para poder deixar a mala no quarto. A chegada de Angeline e meu trabalho na prisão de Keith me renderam um quarto só para
mim no alojamento, algo que eu estimava muito. Dentro dele, tudo era calmo e organizado. Meu mundo perfeito. O único lugar em que o caos da minha vida não entrava.
A cama perfeitamente arrumada estava pedindo para que eu dormisse ali. Implorando, na verdade. Logo mais, prometi. Assim espero.
Amberwood era dividida em três campi: leste (onde ficava o alojamento das meninas), oeste (onde ficava o dos meninos) e central (onde ficavam os prédios acadêmicos).
Um ônibus circulava entre eles seguindo horários fixos, mas as pessoas corajosas podiam ir andando de um a outro naquele calorão. Normalmente eu não ligava para
a temperatura, mas caminhar parecia trabalhoso demais naquele dia. Então peguei o circular até o campus oeste e tentei me manter acordada.
O saguão do alojamento masculino era muito parecido com o das meninas, com pessoas andando de um lado para o outro, estudando para entregar os trabalhos da escola
a tempo ou simplesmente curtindo o domingo de folga. Olhei ao redor, mas Eddie ainda não tinha chegado.
- Oi, Melbourne.
Virei e vi Trey Juarez vindo em minha direção, com um sorriso largo no rosto bronzeado. Ele era do último ano, como eu, e me chamava de Melbourne desde que uma das
nossas professoras se mostrou incapaz de decorar o sobrenome Melrose. Sinceramente, com tantos nomes para decorar, era uma surpresa que eu mesma ainda lembrasse
quem eu era.
- Oi, Trey - respondi. Trey era uma verdadeira estrela do time de futebol americano da escola, e também era muito inteligente, por mais que tentasse esconder. Então
nos dávamos muito bem, e o fato de eu tê-lo ajudado a restaurar seu status de melhor jogador no mês anterior contribuiu para que eu tivesse mais moral com ele. Ele
estava com a mochila pendurada num dos ombros. - Finalmente vai terminar aquele relatório do laboratório de química?
- Pois é - respondeu. - Eu e metade das líderes de torcida. Quer vir com a gente?
Revirei os olhos.
- Não sei por quê, mas tenho a impressão de que não vai rolar muito trabalho. Além do mais, vim encontrar Eddie.
Ele deu de ombros e tirou uns fios rebeldes de cabelo preto dos olhos.
- Não sabe o que está perdendo. Vejo você amanhã. - Ele deu alguns passos e então voltou a me encarar. - Ei, você está ficando com alguém?
Eu já ia dizer que não, mas então um pensamento surpreendente me passou pela cabeça. Eu costumava interpretar as coisas de um jeito muito literal. As minhas amigas
de Amberwood, Kristin e Julia, estavam tentando me treinar nas sutilezas da vida social do colégio. Uma das principais lições era que aquilo que as pessoas diziam
nem sempre era o que tinham em mente, ainda mais em questões amorosas.
- Você... está me chamando para sair? - perguntei, surpresa.
Era só o que me faltava. O que eu iria responder? Diria que sim? Que não? Não fazia ideia de que ajudá-lo com as lições de química poderia ser atraente. Eu devia
ter mandado Trey fazer o trabalho sozinho.
Trey pareceu tão surpreso quanto eu com a ideia.
- Quê? Não, claro que não.
- Graças a Deus - respondi.
Gostava do Trey, mas não tinha o menor interesse em sair com ele, ou ter que descobrir um jeito delicado de dizer “não”.
Ele me lançou um olhar contrafeito.
- Não precisa ficar tão aliviada.
- Desculpe - eu disse, tentando disfarçar o embaraço. - Mas por que você perguntou?
- Porque conheci o cara perfeito para você. Tenho certeza de que é a sua alma gêmea.
Agora tínhamos voltado a um território que eu conhecia: lógica contra falta de lógica.
- Não acredito em alma gêmea - retruquei. - É estatisticamente improvável que exista uma única pessoa ideal para cada um no mundo.
Mesmo assim, por um milésimo de segundo, desejei que fosse possível. Seria bom ter alguém que entendesse algumas coisas que passavam pela minha cabeça.
- Tá - Trey disse, revirando os olhos. - Não uma alma gêmea. Que tal alguém com quem você poderia sair de vez em quando e se divertir?
- Não tenho tempo para isso.
E realmente não tinha. Manter o grupo inteiro em ordem e fingir que era uma estudante já ocupava todo o meu tempo.
- Acredite em mim, tenho certeza de que você iria gostar dele. Ele frequenta uma escola pública e acabou de começar a trabalhar no Spencer’s. - Spencer’s era o café
onde Trey trabalhava, o que sempre me garantia descontos. - Um dia desses ele estava falando sem parar sobre a diferença entre respiração aeróbica e disaeróbica,
e eu fiquei pensando como ele era igualzinho a você.
- É anaeróbica - corrigi. - E continuo não tendo tempo. Desculpe.
Precisava admitir que estava terrivelmente curiosa para saber como aquele assunto tinha vindo à tona entre os baristas, mas achei melhor não encorajar Trey.
- Tudo bem - ele disse. - Depois não vá me dizer que nunca tentei ajudar você.
- Nem em sonho - garanti. - Ah, ali está Eddie.
- Bom, eu vou indo. Até mais, pessoal. - Trey fez uma continência irônica para mim e Eddie. - Não esqueça a minha oferta caso queira um bom ficante, Melbourne.
Trey saiu e Eddie me lançou um olhar atônito.
- Trey chamou você para sair?
- Não. Ele só quer me empurrar para um colega de trabalho dele.
- Talvez não seja uma má ideia.
- É uma péssima ideia. Vamos lá fora.
Sob o calor desértico, que parecia ignorar que estávamos em pleno outono, levei Eddie até um banco ao lado das paredes do alojamento. A sombra irregular de algumas
palmeiras próximas nos refrescava um pouco. As pessoas tinham certeza de que a temperatura estava prestes a diminuir, mas eu não via o menor sinal de mudança. Eddie
me entregou as chaves do carro e uma sacola de uma das lojas da cidade.
- Precisei chutar o tamanho - ele disse. - Na dúvida, escolhi os maiores. Achei que era mais seguro.
- Também acho. - Sentei no banco e remexi as compras dele. Calça jeans, cáqui, e algumas camisetas coloridas sem estampa. Todas as peças eram muito práticas, do
tipo que um menino sem firulas como Eddie escolheria. Aprovei. - O tamanho parece certo. Que olho bom você tem! Vamos ter que mandá-lo fazer compras mais vezes.
- Se precisar - respondeu, sério. Não consegui conter o riso.
- Eu estava brincando. - Coloquei as camisetas de volta na sacola. - Duvido que tenha sido divertido. - O rosto de Eddie continuava seríssimo. - Ah, vai. Está tudo
bem. Não precisa bancar o estoico comigo. Sei que não foi divertido para você.
- Estou aqui para cumprir minha função. Não importa se é divertido ou não.
Quase protestei, mas achei melhor não. Afinal, aquela era minha filosofia também, não era? Sacrificar minhas próprias vontades por um bem maior? Eddie era muito
dedicado àquela missão. Ele nunca saía da linha. E eu não esperava nada menos do que concentração total vindo dele.
- Então isso significa que você está disposto a fazer alguns experimentos hoje à noite? - perguntei.
- Clar... - Ele parou e reconsiderou. - Jill e Angeline vão?
- Não, Angeline ainda está presa no quarto.
- Graças a Deus - ele disse, visivelmente aliviado.
A reação dele deve ter sido minha maior surpresa daquele dia. Não conseguia imaginar por que ele estaria tão aliviado. Além de sua lealdade por ser guardião de Jill,
ele era louco por ela. Faria qualquer coisa por ela, mesmo que não fizesse parte do trabalho, mas se recusava a confessar seus sentimentos. Achava-se indigno de
uma princesa. Uma ideia incômoda me passou pela cabeça.
- Você está... evitando Jill por causa da relação dela com Micah?
Micah dividia o quarto com o Eddie. Era um bom rapaz, mas fazia Eddie reviver traumas dignos de terapia porque se parecia demais com Mason, o falecido melhor amigo
de Eddie. Além disso, Micah tinha uma relação estranha de pseudonamoro com Jill. Nenhum de nós estava contente com isso, já que, exceto para os Conservadores, relacionamentos
entre humanos e Moroi ou dampiros eram um grande tabu. No fim das contas, decidimos que não dava para impedir que Jill tivesse uma vida social, e ela jurou que não
havia nada sério ou físico acontecendo entre ela e Micah. Eles só passavam muito tempo juntos. E flertavam sem parar. Ele não sabia a verdade a respeito dela, e
eu me perguntava até que ponto ele iria querer avançar no relacionamento deles. Eddie insistia que era melhor Jill ter um relacionamento casual com um humano do
que se envolver com um dampiro “indigno” como ele, mas eu tinha certeza de que vê-los juntos devia ser torturante.
- Claro que não - respondeu, ríspido. - Não é Jill que eu quero evitar. É Angeline.
- Angeline? O que ela fez dessa vez?
Eddie passou a mão no cabelo, parecendo frustrado. O tom de seu cabelo loiro-acastanhado não era muito diferente do meu, loiro-escuro. Nossas semelhanças facilitavam
a tarefa de fingir que éramos gêmeos.
- Ela não me deixa em paz! Está sempre soltando uns comentários insinuantes quando estou por perto... e nunca para de olhar para mim. À primeira vista, isso pode
até não parecer assustador, mas é. Ela está sempre me observando. E eu não consigo evitá-la porque ela está sempre com Jill, e é minha obrigação manter Jill em segurança.
Relembrei algumas interações recentes entre eles.
- Você tem certeza de que está interpretando os sinais corretamente? Nunca percebi nada.
- É porque você não percebe esse tipo de coisa - ele disse. - Você não imagina quantas desculpas ela encontra para encostar em mim.
Depois de ter visto o short que ela fez, eu conseguia imaginar, sim.
- Hum, talvez eu possa conversar com ela.
Com isso, Eddie voltou imediatamente à postura totalmente profissional:
- Não, isso é problema meu, é minha vida pessoal. Eu resolvo.
- Tem certeza? Porque eu posso...
- Sydney - ele me interrompeu delicadamente -, você é a pessoa mais responsável que eu conheço, mas não é essa sua função aqui. Não precisa cuidar de tudo e de todos.
- Eu não me importo - respondi automaticamente. - E essa é minha função aqui.
Mas, ao dizer isso, refleti se era mesmo verdade. Parte da inquietação que senti no abrigo subterrâneo voltou à tona, fazendo-me questionar se o que eu fazia era
realmente por responsabilidade alquimista ou pelo desejo de ajudar aqueles que, contrariando o protocolo, tinham se tornado meus amigos.
- Viu? Agora você está usando o mesmo tom que usei há pouco. - Ele levantou e abriu um sorriso. - Quer ir comigo até a casa de Adrian? Para sermos responsáveis juntos?
As palavras dele pretendiam ser um elogio, mas soaram parecidas demais com o que os alquimistas haviam me dito. E a sra. Weathers. E Jill. Todo mundo achava que
eu era tão admirável, tão responsável, tão controlada.
Mas, se eu era mesmo tão admirável, por que nunca tinha certeza se estava fazendo a coisa certa?
3
APESAR DE EDDIE TER ME DITO para não me preocupar com Angeline, minha curiosidade me obrigou a encher o saco dele com o assunto no caminho para o apartamento de
Adrian.
- Como você vai lidar com isso? - perguntei. - Vai ter uma conversa franca com ela?
- Não. Pretendo apenas evitá-la, a menos que seja absolutamente necessário falar abertamente com ela. Se eu tiver sorte, ela vai perder o interesse.
- Bom, acho que esse é um caminho possível. Mas, sei lá, você é uma pessoa bem direta. - Se ele se deparasse com uma sala cheia de Strigoi, entraria sem a menor
hesitação. - Talvez também devesse tentar uma abordagem direta nesse caso. Ficar cara a cara com ela e dizer sinceramente que não está interessado.
- Falar é fácil - ele disse. - Cara a cara, nem tanto.
- Para mim parece fácil.
- É que você nunca teve de fazer isso - ele retrucou, cético.
Para mim, ir ao apartamento de Adrian já era bem mais fácil do que antes. O apartamento tinha sido de Keith, e um Moroi chamado Lee e duas Strigoi haviam morrido
ali. Eram memórias difíceis de apagar. Os alquimistas tinham me oferecido o apartamento, já que eu acabei assumindo plena responsabilidade pela missão de Palm Springs,
mas eu o cedi para Adrian. Não tinha certeza se queria morar lá, e ele estava desesperado para ter um lugar só dele. Quando vi a felicidade de Adrian com o novo
apartamento, soube que tinha tomado a decisão certa.
Adrian abriu a porta antes que tivéssemos a chance de bater.
- A cavalaria! Graças a Deus!
Eddie e eu seguramos o riso e entramos. A primeira coisa que sempre me chamava atenção era a tinta amarelo-ouro usada por Adrian para pintar as paredes. Ele estava
convencido de que a tonalidade ajudava a melhorar o ambiente e não deixava que questionássemos sua “sensibilidade artística”. Aparentemente, o fato de o amarelo
destoar terrivelmente dos móveis de segunda mão com estampa xadrez era irrelevante. Ou talvez eu simplesmente não fosse “artística” o bastante para apreciar a decoração.
Mas aquele estilo incoerente acabava por me confortar. Não lembrava em quase nada a decoração de Keith, o que ajudava um pouco a apagar os acontecimentos daquela
noite fatídica. Às vezes, quando corria os olhos pelo quarto, ficava sem ar, assombrada por visões do violento ataque Strigoi e da morte de Lee. A reforma de Adrian
no apartamento funcionara como uma luz afugentando sombras horrendas do passado.
Às vezes, quando eu ficava triste, a personalidade de Adrian causava esse mesmo efeito em mim.
- Blusa legal, Sage - ele disse, sério. - Realça muito o cáqui da sua calça.
Apesar do sarcasmo, ele parecia extremamente contente com a nossa chegada. Ele era alto e magro, o mesmo tipo físico da maior parte dos Moroi, além da pele tipicamente
pálida (ainda que não tanto quanto a dos Strigoi). Eu odiava admitir, mas ele era muito mais bonito do que tinha o direito de ser. O cabelo castanho-escuro era milimetricamente
desarrumado e os olhos às vezes pareciam verdes demais para ser verdade. Ele estava usando uma daquelas camisas de abotoar que estavam na moda, com uma estampa azul
que eu gostei. E estava cheirando a cigarro, o que não gostei.
Dimitri e Sonya estavam sentados à mesa da cozinha, remexendo numa pilha de papéis com anotações escritas à mão. As folhas pareciam espalhadas a esmo, e me perguntei
quanto trabalho eles realmente estavam conseguindo fazer. Se fosse eu, aquelas folhas estariam numa pilha perfeitamente organizada por tópicos.
- Que bom que você voltou, Sydney - Sonya disse. - Eu estava precisando de um pouco de apoio feminino por aqui.
A beleza de seu cabelo ruivo e de suas maçãs do rosto proeminentes era maculada pelos caninos que ela mostrava ao sorrir. A maior parte dos Moroi aprendia desde
cedo a evitar isso, para que os humanos não os reconhecessem. Mas Sonya não tinha pudor em mostrá-los em particular. E aquilo ainda me incomodava.
Dimitri deu um sorriso para mim, o que tornava seu rosto ainda mais bonito, a ponto de não restarem dúvidas de que a “sabedoria de mestre zen” não era o motivo para
Rose ter se apaixonado por ele.
- Duvido que você tenha tirado um cochilo.
- Muita coisa para fazer - respondi.
Sonya voltou um olhar curioso para Eddie.
- Estávamos nos perguntando por onde você andava.
- Ocupado em Amberwood - Eddie respondeu, de maneira vaga. Ele tinha dito no carro que seria melhor não mencionarmos a indiscrição de Angeline ou o fato de ele ter
sido obrigado a fazer compras para ela. - Sabe, cuidando de Jill e Angeline. Além disso, achei melhor esperar Sydney voltar, porque ela queria ver o que temos feito.
Deixei aquela mentirinha inocente passar.
- E como Angeline está? - Dimitri perguntou. - Ela está melhorando?
Eddie e eu trocamos um olhar. Tanto trabalho para não mencionar as indiscrições dela...
- Melhorando em que aspecto? - perguntei. - No combate, em usar roupas adequadas ou em não meter o bedelho onde não é chamada?
- Ou em desligar o Caps Lock? - Eddie acrescentou.
- Você também percebeu? - perguntei.
- É difícil não notar - respondeu.
Dimitri pareceu perplexo, o que não era muito comum. Ele não costumava ser pego de surpresa, mas a verdade é que ninguém era capaz de se preparar para o que Angeline
pudesse fazer.
- Não fazia ideia de que precisava ser mais específico - Dimitri disse, após uma pausa. - Estava perguntando sobre o combate.
Eddie deu de ombros.
- Houve um pouco de melhora, sim, mas é difícil ensinar as coisas para ela. Quer dizer, ela está completamente empenhada em proteger Jill, mas também tem certeza
de que já sabe como. Ela carrega anos de treinamento malfeito. É difícil desfazer isso. Além do mais, ela... se distrai muito fácil.
Precisei conter o riso.
Dimitri ainda parecia preocupado.
- Não temos tempo para distrações. Talvez eu devesse falar com ela.
- Não - Eddie disse, com firmeza, numa rara demonstração de contrariedade a Dimitri. - Você já tem coisas demais para fazer aqui. O treinamento dela é responsabilidade
minha. Não se preocupe.
Adrian puxou uma cadeira, virando-a ao contrário para encostar o queixo no encosto.
- E você, Sage? Sei que não precisamos ter medo de que você use roupas “inadequadas”. Se divertiu no spa dos alquimistas no fim de semana?
Coloquei a bolsa no chão e fui até a geladeira.
- Se por spa você quer dizer abrigo subterrâneo... E foram só assuntos profissionais. - Fiz uma careta ao abrir a geladeira. - Você prometeu que ia comprar refrigerante
diet!
- Verdade, prometi - Adrian disse, sem demonstrar qualquer remorso. - Mas depois li um artigo dizendo que adoçantes artificiais não fazem bem. Então pensei que devia
cuidar da sua saúde. - Fez uma pausa. - Não precisa agradecer.
Dimitri disse a ele o que todos estávamos pensando.
- Se você está interessado em hábitos saudáveis, eu poderia sugerir alguns.
Se eu ou Eddie tivéssemos dito aquilo, Adrian teria deixado passar, ainda mais porque era verdade. Mas vindo de Dimitri era diferente. Havia uma tensão enorme entre
os dois, uma tensão que vinha se acumulando fazia muito tempo. A namorada de Dimitri, uma dampira famosa chamada Rose Hathaway, namorou Adrian por um tempo. Ela
não queria magoá-lo, mas durante todo o período estivera apaixonada por Dimitri. Aquela situação, portanto, não teve como acabar bem. Adrian ainda carregava muitas
mágoas por isso e nutria um ressentimento particular contra Dimitri.
- Prefiro não incomodá-lo - Adrian respondeu, tranquilo demais. - Além disso, quando não estou trabalhando duro nessa pesquisa, conduzo um experimento paralelo sobre
como gim e cigarros melhoram o carisma de uma pessoa. Como você pode ver, os resultados são bem promissores.
Dimitri arqueou a sobrancelha.
- Peraí, volta um pouco. Você disse “trabalhando duro”?
O tom de Dimitri era leve e brincalhão, mas novamente fiquei surpresa com a reação de Adrian. Se eu tivesse feito aquele comentário, Adrian teria respondido algo
como: “Com certeza, Sage. Acho que vou ganhar o prêmio Nobel por isso”. Mas, para Adrian, as palavras de Dimitri eram um convite a um duelo. Vi uma faísca nos olhos
dele, o acender de uma dor antiga, e aquilo me incomodou. Aquele não era o jeito dele. Adrian sempre tinha um sorriso e uma gracinha na ponta da língua, mesmo que
fossem irreverentes ou inapropriados demais. Eu tinha me acostumado com aquilo. Até gostava.
Voltei o olhar para Adrian e sorri, esperando que meu sorriso parecesse sincero, e não uma tentativa desesperada de distraí-lo.
- Pesquisa, é? Pensei que você fosse mais um homem de apostas.
Adrian levou alguns segundos para deixar de encarar Dimitri e olhar para mim.
- Sou conhecido por jogar os dados de vez em quando - respondeu, cauteloso. - Por quê?
- Nada demais. Só estava pensando se você faria uma pausa na sua pesquisa sobre carisma para aceitar um desafio. Se passar vinte e quatro horas sem fumar, eu tomo
uma lata de refrigerante. Refrigerante normal. Uma lata inteira.
Vislumbrei o bom e velho sorriso de Adrian voltar.
- Duvido.
- Sério.
- Meia lata ia deixar você em coma.
Sonya franziu a testa e me perguntou:
- Você tem diabetes?
- Não - Adrian disse -, mas Sage tem certeza de que uma caloria a mais faria com que ela deixasse de ser supermagra e passasse a ser só magra. Uma tragédia.
- Ei - eu disse. - Você é que acha que seria uma tragédia passar uma hora sem cigarro.
- Não questione minha força de vontade, Sage. Passei duas horas sem fumar hoje.
- Passe vinte e quatro horas e aí vou ficar impressionada.
Ele me lançou um olhar de surpresa debochada.
- Quer dizer que você ainda não está impressionada? E eu aqui pensando que você estava deslumbrada desde o dia em que me conheceu.
Sonya balançou a cabeça, indulgente, como se fôssemos lindas criancinhas.
- Você não sabe o que está perdendo, Sydney - comentou, pegando a lata aberta à sua frente. - Preciso de umas três dessa por dia para me manter focada em todo esse
trabalho. Até agora, nenhum efeito colateral.
Até agora, nenhum efeito colateral? Claro que não. Os Moroi nunca sofriam nenhum efeito colateral. Sonya, Jill... Elas podiam comer o que quisessem e ainda teriam
aqueles corpos incríveis. Enquanto isso eu sofria por cada caloria e, ainda assim, não conseguia atingir aquele nível de perfeição. Caber no tamanho de calça que
eu estava vestindo tinha sido uma grande vitória. Agora, comparando com a silhueta esguia de Sonya, me sentia enorme. De repente me arrependi da proposta de beber
uma lata de refrigerante, mesmo tendo distraído Adrian. Pensei que podia relaxar, já que seria impossível ele passar um dia inteiro sem fumar. Eu nunca teria de
pagar minha aposta supercalórica.
- Acho melhor voltarmos ao trabalho. Estamos perdendo tempo - Dimitri disse, colocando-nos de volta nos trilhos.
- Certo - Adrian disse. - Lá se foram cinco minutos valiosos de pesquisa. Está pronto para se divertir um pouco mais, Castile? Sei que você adora ficar sentado.
Como eles buscavam encontrar alguma coisa especial em Dimitri, Sonya e Adrian costumavam fazer os dois dampiros sentarem lado a lado e examinavam suas auras detalhadamente.
A esperança era de que a conversão de Dimitri em Strigoi tivesse deixado algum sinal que ajudaria a explicar a imunidade dele contra uma nova transformação. Era
um método válido, apesar de não ser prazeroso para alguém ativo como Eddie.
Mas é óbvio que ele não reclamava. Tinha o mesmo olhar firme e determinado de Dimitri.
- Do que vocês precisam?
- Queremos fazer outro estudo de aura - Sonya respondeu. Aparentemente, o pobre Eddie teria de ficar sentado por mais um tempo. - Da última vez nos concentramos
em algum sinal de espírito. Agora queremos mostrar algumas imagens para vocês e ver se elas causam alguma mudança de cor nas suas auras.
Assenti, concordando. Muitos experimentos psicológicos tentavam técnicas parecidas, apesar de normalmente monitorarem reações psicológicas, e não auras místicas.
- Ainda acho que é uma perda de tempo - Adrian comentou. - Os dois são dampiros, mas isso não significa que devemos pressupor que qualquer reação diferente aconteça
porque Belikov já foi Strigoi. Cada pessoa é única. E cada pessoa vai responder de maneira diferente a fotos de gatinhos ou aranhas. Meu pai, por exemplo, odeia
gatinhos.
- Quem consegue odiar gatinhos? - Eddie perguntou.
- Ele é alérgico - Adrian disse, com uma careta.
- Adrian - Sonya disse -, já conversamos sobre isso. Respeito sua opinião, mas ainda assim acho que podemos aprender bastante com isso.
Na verdade, eu estava impressionada com o fato de Adrian ter uma opinião. Até então, achava que ele só estava seguindo o que Sonya e Dimitri o mandavam fazer, e
que não pensava muito sobre os experimentos. E, embora eu não soubesse muito sobre as auras que rodeavam os seres vivos, entendia o argumento dele de que diferenças
individuais poderiam atrapalhar a pesquisa.
- Todas as informações podem ser úteis nesse caso - Dimitri disse. - Ainda mais porque não encontramos nada até agora. Sabemos que existe alguma coisa diferente
em quem já foi Strigoi. Não podemos descartar nenhuma oportunidade de analisá-la.
Adrian apertou os lábios e não protestou mais. Talvez porque se sentisse derrotado, mas tive a impressão de que simplesmente não queria entrar em conflito com Dimitri.
Quando ninguém mais estava prestando atenção em mim, levei um livro para a sala e tentei me manter acordada. Eles não precisavam da minha ajuda. Só tinha ido até
lá para acompanhar Eddie. De tempo em tempo, verificava o andamento das coisas. Dimitri e Eddie observavam enquanto Sonya mostrava diferentes imagens no laptop.
Adrian e Sonya, por sua vez, observavam os dampiros atentamente e faziam algumas anotações. Quase desejei ser capaz de ver os feixes de cor e luz, e imaginava se
realmente havia diferenças significativas. Examinando Eddie e Dimitri, às vezes percebia uma mudança em sua expressão facial quando uma imagem particularmente fofa
ou horripilante aparecia na tela, mas a maior parte do trabalho deles continuava um mistério para mim.
Curiosa, perguntei baixinho para Sonya quando estavam mais ou menos no meio do processo:
- O que vocês estão vendo?
- Cores - ela respondeu - que brilham ao redor dos seres vivos. Eddie e Dimitri têm cores diferentes, mas as mesmas reações. - Ela mudou a foto na tela para uma
fábrica soltando fumaça preta contra um céu azul. - Nenhum dos dois gosta disso. As auras deles ficam mais escuras e atribuladas. - Passou para a imagem seguinte,
com um sorriso nos lábios. Três gatinhos surgiram na tela. - E agora elas se aquecem. É muito fácil identificar afeto na aura. Até agora, eles estão reagindo da
mesma maneira. Não há nenhum sinal na aura de Dimitri de que ele seja diferente de Eddie.
Voltei para o sofá.
Algumas horas depois, Sonya sugeriu uma pausa.
- Acho que já vimos tudo o que precisávamos. Obrigada, Eddie.
- Fico feliz em ajudar - ele disse, levantando da cadeira e se espreguiçando.
Ele parecia aliviado tanto pelo experimento ter acabado como por ter sido um pouco mais interessante do que ficar olhando para o nada. Ele era ativo e enérgico,
não gostava de ficar parado.
- Se bem que... nós temos algumas outras ideias - ela acrescentou. - Vocês acham que conseguem aguentar mais um pouco?
É óbvio que ela perguntou isso no meio do meu bocejo.
Eddie me olhou, com pena.
- Eu vou ficar, mas você não precisa. Vá dormir. Eu arranjo outra carona para casa.
- Não, não - respondi, contendo outro bocejo. - Eu não ligo. Quais são as ideias novas?
- Queria fazer uma coisa parecida - Sonya explicou. - Mas, dessa vez, usaríamos sons em vez de imagens. Depois queria ver como eles respondem ao contato direto com
o espírito.
- Acho que é uma boa ideia - eu disse, sem saber direito o que significava a última parte. - Vão em frente. Eu espero.
Sonya olhou ao redor e pareceu notar que eu não era a única que parecia cansada.
- Talvez devêssemos pegar um pouco de comida antes.
O rosto do Eddie se iluminou com a ideia.
- Eu vou - me ofereci. Eu já não ofegava sempre que os vampiros falavam de comida perto de mim, o que era um grande avanço. Sabia que eles não queriam dizer sangue,
pelo menos não se os dampiros e eu estivéssemos envolvidos. Além disso, não havia nenhum fornecedor por perto. Fornecedores eram humanos que se voluntariavam para
dar o sangue aos Moroi, por causa do barato que isso causava. Todos ali sabiam que era melhor nem fazer piada sobre isso perto de mim. - Tem um bom tailandês a alguns
quarteirões daqui. Posso pedir para viagem.
- Eu ajudo - Adrian disse, animado.
- Eu ajudo - Sonya corrigiu. - Da última vez que você foi comprar alguma coisa, ficou duas horas fora. - Adrian fez cara feia, mas não negou a culpa. - Além do mais,
nossas observações de aura foram idênticas. Você pode começar com os sons sem mim.
Sonya e eu anotamos os pedidos de todo mundo e saímos. Na verdade, eu não achava que precisasse de ajuda, mas imaginei que carregar comida para cinco pessoas, mesmo
que por poucos quarteirões, podia ser trabalhoso. Mas logo descobri que Sonya tinha outros motivos para me acompanhar.
- É bom sair um pouco e esticar as pernas - ela comentou. Era fim de tarde, havia bem menos sol e calor, um clima que os Moroi adoravam. Caminhamos por uma rua secundária
ladeada de prédios bonitos e pequenos comércios, em direção ao centro da cidade. À nossa volta erguiam-se palmeiras enormes, criando um contraste interessante com
o eclético ambiente urbano. - Fiquei presa lá dentro o dia todo.
- Pensei que Adrian fosse o único que sentisse claustrofobia com o trabalho de vocês - ironizei.
- Ele é só quem mais reclama - ela explicou -, o que é meio engraçado, porque ele é quem acaba saindo mais, considerando as aulas e as pausas para fumar.
Tinha quase me esquecido dos dois cursos de arte que Adrian estava frequentando numa faculdade da cidade. Normalmente ele deixava os projetos mais recentes à mostra,
mas não havia nenhum na sala nos últimos tempos. Só então percebi o quanto sentia falta deles. Eu podia até encher o saco dele, mas, às vezes, aqueles vislumbres
artísticos da maneira como ele pensava eram fascinantes.
Sonya me atualizou rapidamente sobre seus planos de casamento durante o curto caminho até o restaurante tailandês. Eu achava o namoro dela com o dampiro Mikhail
Tanner impressionante em vários aspectos. Primeiro porque dampiros e Moroi não costumavam se envolver em relacionamentos sérios. Em geral, eram só aventuras casuais
que resultavam na geração de mais dampiros. Além do escândalo de seu envolvimento, Mikhail quis caçar Sonya quando ela era Strigoi para libertá-la daquele estado
perverso. Rose fizera o mesmo com Dimitri, acreditando que a morte era preferível a ser um Strigoi. Mikhail fracassou, mas o amor deles permaneceu tão forte durante
aquele período difícil que, quando contra todas as expectativas ela foi restaurada, eles imediatamente voltaram a ficar juntos. Eu mal conseguia imaginar um amor
como aquele.
- Ainda estamos escolhendo as flores - ela continuou. - Hortênsias ou lírios. Acho que sei em qual você vai votar.
- Na verdade, eu diria hortênsias. Já tem lírios demais na minha vida.
Ela riu da minha resposta e, de repente, ajoelhou-se diante de um canteiro de flores cheio de gladíolos.
- Mais do que você imagina. Tem lírios aqui neste canteiro.
- Não está na época de lírio - observei.
- Nada fica fora de época. - Sonya olhou de um lado para o outro discretamente e, então, pousou os dedos na terra. Momentos depois raios verdes surgiram e foram
crescendo cada vez mais alto, até o copo de um lírio vermelho se abrir no topo. - Ah, os dos alquimistas são brancos... Ei, você está bem?
Eu havia recuado tanto na calçada que quase tinha ido parar na rua.
- Você... você não devia fazer essas coisas. Alguém pode ver.
- Ninguém viu - ela disse ao se levantar. Sua expressão ficou mais suave. - Sinto muito. Às vezes esqueço como você se sente em relação a isso. Foi errado da minha
parte.
- Está tudo bem - respondi, não muito convicta.
A magia dos vampiros sempre me dava calafrios. Precisar de sangue já era ruim o bastante. Mas ser capaz de manipular o mundo através da magia era ainda pior. Por
mais bonito que aquele lírio fosse, ele tinha um aspecto sinistro. Não deveria existir naquela época do ano.
Não conversamos mais sobre magia e logo chegamos à área principal do centro, onde ficava o restaurante tailandês. Fizemos o pedido gigantesco para viagem e nos disseram
que levaria uns quinze minutos para ficar pronto. Aguardamos do lado de fora, admirando o centro de Palm Springs no pôr do sol. Os últimos clientes saíam das lojas
que fechavam, e os restaurantes estavam cheios de pessoas que iam e vinham. Vários tinham mesas na calçada, e conversas entre amigos zuniam à nossa volta. Um grande
chafariz, ladrilhado em cores brilhantes, fascinava as crianças e inspirava os turistas a parar para tirar uma foto. Sonya se distraía facilmente com a variedade
de plantas e árvores que embelezavam as ruas da cidade. Mesmo se não tivesse a habilidade do espírito de afetar coisas vivas, ela ainda seria uma jardineira e tanto.
- Ei! Srta. Melrose!
Ao me virar, fiquei tensa ao ver Lia DiStefano vindo na minha direção. Lia era estilista e tinha uma loja no centro de Palm Springs. Eu não havia me dado conta de
que estávamos em frente à loja dela. Senão, teria esperado dentro do restaurante. Lia era baixinha, mas tinha uma presença avassaladora, realçada pelo estilo cigano
extravagante que usava para se vestir.
- Faz semanas que estou tentando falar com você - ela disse, depois de atravessar a rua. - Por que não me atende?
- Ando bem ocupada - respondi, séria.
- Sei. - Lia colocou as mãos no quadril e tentou me olhar de cima a baixo, o que foi um tanto curioso, já que eu era bem mais alta. - Quando você vai deixar sua
irmã desfilar para mim de novo?
- Sra. DiStefano - respondi, paciente -, eu já expliquei para a senhora. Ela não pode mais. Nossos pais não gostam. Nossa religião não permite que fotografem nosso
rosto.
No mês anterior, a silhueta perfeita e os deslumbrantes traços etéreos de Jill haviam atraído a atenção de Lia. Como ter sua foto espalhada por aí era bastante perigoso
para uma foragida, só concordamos em deixar Jill desfilar para Lia porque as modelos usariam máscaras. Desde então, Lia vinha pegando no meu pé para que eu deixasse
Jill modelar novamente. Era uma situação difícil, porque eu sabia que Jill queria muito, mas ela também entendia que a segurança devia vir em primeiro lugar. Alegar
que fazíamos parte de uma religião obscura já havia explicado nossos comportamentos estranhos muitas vezes, então imaginei que, com isso, Lia sairia do meu pé. Mas
não foi o caso.
- Nunca vi os pais de vocês - Lia disse. - Tenho observado sua família. Já entendi como funciona. Você é a autoridade. É você que preciso convencer. Vou publicar
um anúncio de duas páginas dos meus lenços e chapéus numa revista muito importante, e Jill é perfeita para o trabalho. O que preciso fazer para conseguir que ela
modele? Você quer uma parte do pagamento?
- Não é uma questão financeira - respondi, com um suspiro. - Não podemos mostrar nosso rosto. Mas, se você quiser colocar uma máscara nela de novo, fique à vontade.
- Não posso fazer isso - Lia disse, fechando a cara.
- Então temos um impasse.
- Deve haver alguma coisa. Todo mundo tem um preço.
- Sinto muito.
Nenhum dinheiro no mundo me faria faltar ao dever com Jill e os alquimistas.
O gerente do restaurante avisou pela janela que nosso pedido estava pronto, o que felizmente nos livrou de Lia. Sonya esboçou um riso maroto enquanto carregávamos
as sacolas rua abaixo em direção à casa de Adrian. O céu ainda estava purpúreo com os últimos raios de sol, e a luz dos postes atravessava as folhas das palmeiras,
criando formas estranhas na calçada.
- Algum dia você imaginou que sua missão aqui envolveria fugir de estilistas petulantes? - Sonya perguntou.
- Não - admiti. - Sinceramente, nunca imaginei metade das coisas que esse trabalh...
- Sonya?
Um rapaz surgiu aparentemente do nada, bloqueando o caminho. Eu não o conhecia, e ele parecia um pouco mais velho do que eu. Seu cabelo preto era cortado bem rente,
e ele encarava Sonya com curiosidade.
Ela parou abruptamente e franziu a testa.
- Eu conheço você?
- Claro - ele respondeu, animado. - Jeff Eubanks. Lembra?
- Não - ela respondeu educadamente, após examiná-lo por alguns instantes. - Você deve ter me confundido com outra pessoa. Desculpe.
- Não, não - ele disse. - Tenho certeza de que é você. Sonya Karp, não é? Nós nos conhecemos no Kentucky no ano passado.
Sonya se empertigou. Ela havia morado no Kentucky quando era Strigoi. Eu sabia que não deviam ser memórias agradáveis.
- Desculpe - ela repetiu, com a voz tensa. - Não sei do que você está falando.
O rapaz não se deu por vencido e continuava sorrindo como se eles fossem grandes amigos.
- É uma viagem e tanto do Kentucky para cá, hein. O que traz você aqui? Acabei de ser transferido no trabalho.
- Houve algum engano - interrompi, seca, empurrando Sonya adiante. Não sabia qual engano poderia ser exatamente, mas a reação de Sonya era o suficiente. - Temos
que ir.
O rapaz não nos seguiu, mas Sonya permaneceu em silêncio no caminho para casa.
- Deve ser difícil - eu disse, sentindo que devia falar alguma coisa. - Encontrar pessoas do seu passado.
- Não é esse o caso. Tenho certeza. Nunca vi esse cara.
Eu tinha pensado que ela só queria evitar qualquer associação com o fato de ter sido Strigoi.
- Tem certeza? Ele não era só um conhecido casual?
- Os Strigoi não conhecem humanos casualmente - ela disse, com um olhar desdenhoso. - Aquele cara não devia saber quem sou.
- Ele era humano? Não era dampiro?
Eu não conseguia perceber a diferença, mas os Moroi sim.
- Humano, sem dúvida.
Sonya tinha parado de novo e olhado para trás, na direção do vulto do rapaz, que se afastava. Acompanhei seu olhar.
- Deve haver algum motivo para ele ter te reconhecido. Ele parece bem inofensivo.
Com isso, ela sorriu novamente.
- Ah, Sydney. Pensei que você já tivesse passado tempo suficiente conosco para saber.
- Saber o quê?
- Que nada é tão inofensivo quanto parece.
4
SONYA NÃO DISSE NADA sobre o encontro misterioso para o restante do grupo no apartamento de Adrian, então respeitei seu silêncio. Todos estavam tão absortos no jantar
e nos experimentos que não notaram nada. E, assim que começaram a segunda leva de experimentos, até eu me distraí o bastante para não pensar mais naquele rapaz.
Sonya havia dito que queria saber como Eddie e Dimitri responderiam diretamente ao espírito. Ela e Adrian fizeram isso concentrando sua magia nos dampiros, um de
cada vez.
- É meio como o que faríamos se estivéssemos tentando curá-los ou fazer alguma coisa crescer - Sonya explicou. - Não se preocupe: não vamos transformá-los em gigantes
nem nada do tipo. É mais como se estivéssemos cobrindo cada um com uma camada de magia de espírito. Se Dimitri tiver alguma marca remanescente de quando foi curado,
imagino que pode reagir à nossa magia.
Adrian e ela ajustaram a sincronia entre eles, e Eddie foi o primeiro. No começo, não dava para ver nada além dos dois usuários de espírito fitando Eddie. Ele parecia
desconfortável sob o exame minucioso. Então notei um brilho prateado tremeluzente percorrer seu corpo. Dei um passo para trás, atônita - e em pânico - ao ver uma
manifestação física do espírito. Eles repetiram o processo em Dimitri, obtendo os mesmos resultados. Aparentemente, num nível invisível, as coisas também foram as
mesmas. Não havia nada notável na reação de Dimitri. Todos aceitaram isso naturalmente, como parte do processo científico, mas ver a magia envolver os dois de maneira
concreta me causou arrepios.
À noite, quando Eddie e eu voltamos de carro para Amberwood, me vi sentada o mais longe possível dele, como se algum resquício de magia pudesse escorrer e tocar
em mim. Ele conversou comigo com a mesma simpatia de sempre, e precisei fazer muito esforço para esconder o que estava sentindo. Agir assim me fazia sentir culpada.
Afinal, aquele era Eddie. Meu amigo. A magia, além de não ser capaz de me machucar, já tinha ido embora.
Uma boa noite de sono conseguiu acabar com a ansiedade e a culpa que eu estava sentindo. Quando acordei na manhã seguinte e comecei a me preparar para as aulas,
a magia era apenas uma lembrança remota. Embora eu só estivesse em Amberwood a trabalho, com o tempo passei a gostar muito daquela escola-modelo. Antes, eu havia
sido educada em casa e, embora meu pai sem dúvida tivesse sido rígido e me ensinado todo o currículo, ele nunca ia além do que achava necessário. Ali, mesmo se eu
já soubesse o que estava sendo dado nas aulas, havia muitos professores dispostos a me motivar para ir além. Não haviam permitido que eu fosse para a faculdade,
mas aquela escola era uma boa substituta.
Antes de ir para a aula, precisava acompanhar uma sessão de treinamento de Eddie e Angeline. Por mais que ele quisesse evitá-la, jamais deixaria de comparecer -
não com a segurança de Jill em jogo. Angeline fazia parte da linha de defesa de Jill. Sentei na grama com uma xícara de café, ainda cogitando se o interesse de Angeline
não passava de fruto da imaginação de Eddie. Pouco tempo antes, eu havia comprado uma cafeteira simples para o meu quarto e, embora não se comparasse ao café de
uma cafeteria, tinha me ajudado a atravessar várias manhãs difíceis. Um bocejo abafou meu cumprimento quando Jill sentou ao meu lado.
- Eddie nunca mais me treinou - ela disse, saudosa, enquanto assistíamos ao espetáculo de vê-lo tentando explicar pacientemente a Angeline que dar cabeçadas, por
mais que fosse adequado numa rixa de bar, nem sempre era a melhor tática contra os Strigoi.
- Tenho certeza de que ele vai voltar a treinar você quando tiver mais tempo - respondi, apesar de não ter tanta certeza. Desde que admitira para si mesmo seus sentimentos
por ela, ficava nervoso com a ideia de tocá-la demais. Além disso, uma parte cavalheiresca dele não queria que Jill se arriscasse nunca. Era irônico, porque o que
o havia atraído fora exatamente o ímpeto dela em querer aprender a se defender (algo raro num Moroi). - Angeline foi recrutada como proteção. Ele precisa garantir
que ela consiga desempenhar bem o trabalho.
- Eu sei. É que parece que todo mundo fica tentando me mimar - ela disse, franzindo a testa. - Na educação física, Micah não me deixa fazer nada. Como tive aquele
probleminha no começo, ele está paranoico achando que vou me machucar. Sempre digo que estou bem, que o problema era só o sol... mas ele continua interferindo. É
fofo, mas às vezes isso me deixa meio maluca.
- Já tinha percebido - admiti, pois era da mesma turma de educação física que eles. - Mas não acho que é por isso que Eddie não anda treinando você ultimamente.
Ele sabe que você é capaz e tem orgulho de você por isso... Ele só acha que, se estiver fazendo o trabalho dele direito, você nem deveria ter que aprender. É uma
lógica meio estranha.
- Não, eu entendo. - O desalento de antes se transformou em aprovação quando Jill voltou a assistir a sessão de treinamento. - Ele é tão dedicado... e bom no que
faz.
- Um jeito fácil de incapacitar alguém é pelo joelho - Eddie dizia para Angeline. - Ainda mais se você for pega desarmada e tiver que...
- Quando você vai me ensinar a empalar ou decapitar? - ela interrompeu, com as mãos no quadril. - O tempo todo é “acerte aqui”, “desvie ali”, blá, blá, blá. O que
preciso aprender é como matar os Strigoi.
- Não, não é. - Eddie era um exemplo de paciência, e havia retomado aquela postura preparada e determinada que eu conhecia bem. - Você não está aqui para matar Strigoi.
Talvez a gente possa praticar isso daqui a algum tempo, mas, agora, sua prioridade é manter os assassinos mortais longe de Jill. Isso é mais importante do que qualquer
outra coisa, inclusive nossas próprias vidas. - Ele deu uma olhada na direção de Jill, para enfatizar, e havia um brilho de admiração em seus olhos.
- Mas acho que decapitação mata os Moroi também, né? - Angeline ironizou. - Além disso, você teve um problema com os Strigoi no mês passado.
Jill se remexeu ao meu lado, desconfortável, e até mesmo Eddie fez uma pausa. Era verdade: ele tivera de matar duas Strigoi pouco tempo antes, na época em que o
apartamento de Adrian ainda era de Keith. Lee Donahue havia levado duas Strigoi até nós. Ele era um Moroi que tinha sido transformado em Strigoi. Depois de ser restaurado
ao seu estado natural, Lee queria desesperadamente voltar a ser Strigoi. Foi por sua causa que descobrimos que aqueles que foram restaurados pelo espírito pareciam
adquirir alguma resistência aos Strigoi. As duas Strigoi a quem ele havia pedido ajuda tentaram convertê-lo, mas acabaram por matá-lo - um destino melhor do que
se tornar morto-vivo, na minha opinião.
Em seguida, as Strigoi se voltaram contra nós e, sem querer, trouxeram à tona algo inesperado e alarmante (se não para elas, pelo menos para mim): meu sangue era
impalatável. Elas tentaram beber e não conseguiram. Em meio a todos os acontecimentos daquela noite, nenhum alquimista ou Moroi prestou muita atenção a esse pequeno
detalhe, o que me deixou aliviada. Morria de medo de que de repente alguém resolvesse me colocar sob o microscópio.
- O que houve foi um acaso infeliz - Eddie disse, por fim. - É pouco provável que volte a acontecer. Agora observe como as minhas pernas se movem e lembre-se de
que um Moroi é quase sempre mais alto que você.
Ele fez uma demonstração e lancei um olhar rápido para Jill. A expressão dela era indecifrável. Ela nunca falava sobre Lee, com quem havia namorado brevemente. Micah
estava conseguindo distraí-la no quesito romântico, mas ter visto seu último namorado ávido por se transformar num monstro sanguinário não devia ser fácil de superar.
Eu tinha a sensação de que ela ainda sofria, apesar de esconder muito bem.
- Você está dura demais - Eddie disse para Angeline, depois de várias tentativas.
Ela relaxou o corpo por completo, quase como uma marionete.
- Está bom assim?
- Não - Eddie respondeu, com um suspiro. - Precisa deixar um pouco de tensão.
Eddie se colocou atrás dela e tentou ajudá-la a se posicionar corretamente, mostrando como dobrar os joelhos e onde manter os braços. Angeline aproveitou a oportunidade
para inclinar o corpo e se esfregar nele de maneira sugestiva. Arregalei os olhos. O.k., talvez ele não estivesse imaginando coisas.
- Ei! - Ele deu um salto para trás, com uma expressão de pavor no rosto. - Presta atenção! Você precisa aprender isso.
A expressão dela era de pura inocência angelical.
- Estou prestando atenção. Só estava tentando usar o seu corpo para aprender o que fazer com o meu - ela disse e, juro por Deus, piscou para ele.
Eddie recuou ainda mais.
Percebi que talvez devesse intervir, apesar de Eddie ter dito que lidaria com seus próprios problemas. Um salvador ainda melhor surgiu quando o sinal tocou, avisando
que faltava meia hora para o início das aulas. Levantei num salto.
- Ei, precisamos ir, senão vamos perder o café da manhã. Vamos.
Angeline me encarou, desconfiada.
- Não é você que costuma pular o café da manhã?
- Sim, mas não sou eu quem está dando duro hoje. Além disso, você ainda precisa trocar de roupa e... Espera, você já está de uniforme?
Eu nem havia notado. Sempre que Eddie e Jill treinavam, eles usavam roupas esportivas, como as que ele estava vestindo. Angeline, por sua vez, estava usando o uniforme
de Amberwood - a saia e a blusa já exibiam o desgaste da batalha matinal.
- Sim, e daí? - ela perguntou, colocando a blusa para dentro onde tinha começado a descosturar. A lateral estava toda suja de lama.
- Você devia se trocar - eu disse.
- Nah. Assim está bom.
Eu não tinha tanta certeza, mas pelo menos aquilo era melhor do que o short jeans. Eddie foi vestir o uniforme e não voltou para o café da manhã. Eu sabia que ele
gostava de tomar café e, como todo garoto, conseguia trocar de roupa rápido. Meu palpite era que estava sacrificando a refeição para ficar longe de Angeline.
Ouvi chamarem meu nome quando entramos no refeitório, e vi Kristin Sawyer e Julia Cavendish acenando para mim. Além de Trey, elas eram minhas amigas mais próximas
em Amberwood. Eu ainda precisava aprender muito para desenvolver algum traquejo social, mas as duas me ajudavam bastante. E, com todos os elementos sobrenaturais
envolvidos no meu trabalho, era bem reconfortante me sentir rodeada por pessoas normais e... bem, humanas. Por mais que eu não pudesse ser completamente sincera
com elas.
- Sydney, queríamos a sua opinião sobre o que vestir - Julia disse, jogando o cabelo loiro para o lado, sinal de que estava prestes a dizer algo extremamente importante.
- Vocês querem minha opinião sobre moda? - Quase virei para trás para verificar se não havia outra Sydney ali. - Acho que ninguém nunca quis saber minha opinião
sobre isso.
- Você tem roupas muito boas - Kristin insistiu. Ela tinha a pele e o cabelo escuros, além de um ar esportista que contrastava com a natureza mais feminina de Julia.
- Boas demais, na verdade. Se minha mãe fosse dez anos mais nova, descolada e muito rica, ela se vestiria igual a você.
Não sabia dizer se tinha sido um elogio ou não, mas Julia não me deu tempo para analisar.
- Conta pra ela, Kris.
- Lembra aquele estágio em psicologia que eu queria fazer no semestre que vem? Fui chamada para uma entrevista - Kristin explicou. - Estou tentando decidir se uso
calça e blazer ou um vestido.
Ah, isso explicava por que tinham perguntado para mim. Uma entrevista. Para qualquer outra ocasião elas poderiam ter consultado uma revista de moda. E apesar de
admitir que eu provavelmente era uma autoridade em situações práticas como aquela... Bem, fiquei meio desapontada por ser esse o motivo para terem me chamado.
- De que cor eles são?
- O blazer é vermelho, e o vestido, azul-marinho.
Examinei Kristin, observando seus traços. Ela tinha uma cicatriz no pulso, resquício de uma tatuagem perigosa que eu havia ajudado a remover na época em que o esquema
de tatuagens de Keith havia se disseminado pela escola.
- Vá com o vestido - declarei. - Espere... É o tipo de vestido que você usaria na igreja ou na balada?
- Na igreja - ela respondeu, nem um pouco animada.
- Vestido, então, com certeza - eu disse.
Kristin lançou um olhar triunfante para Julia.
- Viu? Não falei que ela ia dizer isso?
Julia parecia em dúvida.
- O blazer é mais descontraído. É vermelho-vivo.
- É, mas “descontração” não é o que você normalmente precisa transmitir numa entrevista de emprego - argumentei. Era difícil me manter séria em meio à discussão
boba das duas. - Pelo menos não para esse tipo de emprego.
Julia ainda não parecia convencida, mas também não tentou dissuadir Kristin. Pouco depois, ela se animou novamente.
- Ei, é verdade que Trey arrumou um cara para você?
- Eu... o quê? Não. Onde você ouviu isso?
Como se eu precisasse perguntar... Era óbvio que o próprio Trey havia contado a ela.
- Trey disse que conversou com você - Kristin falou. - Sobre como esse menino é seu par perfeito.
- É uma ótima ideia, Syd - Julia disse, séria, como se estivéssemos discutindo uma questão de vida ou morte. - Seria bom pra você. Tipo, desde que as aulas começaram
eu fiquei com... - ela fez uma pausa e contou os nomes nos dedos - quatro meninos. Sabe com quantos você ficou? - ela mostrou o punho fechado - Zero!
- Não preciso ficar com ninguém - argumentei. - Já tenho problemas suficientes. Tenho certeza de que esse só seria mais um.
- Que problemas? - Kristin riu. - Suas notas excelentes, seu corpo divino e seu cabelo perfeito? Tipo, tudo bem, sua família é meio maluca, mas poxa... todo mundo
tem tempo pra sair com alguém de vez em quando... ou com todo mundo, no caso da Julia.
- Ei! - Julia reagiu, apesar de não negar a acusação.
Kristin insistiu, o que me fez cogitar que talvez ela se sairia melhor num estágio de advocacia do que de psicologia:
- Deixe de fazer a lição de casa uma vez na vida. Dê uma chance para esse cara e nós poderemos sair todos juntos um dia desses. Vai ser divertido.
Dei um sorriso forçado e murmurei algo sem me comprometer. Todo mundo tem tempo pra sair com alguém de vez em quando... Todo mundo menos eu, claro. Senti uma surpreendente
pontada de nostalgia - não de um namoro, mas simplesmente da interação social. Kristin e Julia saíam muito em um grupo grande de amigos e interesses amorosos, e
viviam me convidando para ir junto. Elas achavam que eu relutava em aceitar por causa dos trabalhos da escola ou talvez porque não tivesse o menino certo para me
acompanhar. Queria que fosse tão simples assim e, de repente, senti como se houvesse um gigantesco abismo me separando de Kristin e Julia. Eu era amiga delas, e
elas haviam me deixado entrar completamente em suas vidas, ao passo que eu era cheia de segredos e meias verdades. Parte de mim desejava que eu pudesse me abrir
com elas e confidenciar todos os dramas da minha vida de alquimista. Caramba, parte de mim só desejava que eu pudesse ir num desses passeios e abandonar meus deveres
por uma noite. Nunca daria certo, claro. Se fôssemos ao cinema, sem dúvida eu receberia uma mensagem me chamando para ajudar a acobertar algum assassinato de Strigoi.
Não era raro eu me sentir daquele jeito, mas a sensação se atenuou quando as aulas começaram. Entrei no ritmo da minha rotina, confortável com sua familiaridade.
Os professores passavam a maior parte das lições para fazermos durante o fim de semana, e fiquei feliz por poder entregar tudo o que havia feito durante as viagens
de avião. Infelizmente, minha última aula do dia arruinou a melhora do meu humor. Aula não era exatamente a palavra. Era um estudo independente que eu fazia junto
com a minha professora de história, a sra. Terwilliger.
Pouco tempo antes, a sra. Terwilliger havia se revelado uma usuária de magia, um tipo de feiticeira, ou sei lá como aquelas pessoas se autodenominavam. Os alquimistas
já tinham ouvido rumores sobre elas, mas não tínhamos nenhuma informação concreta. Até onde sabíamos, só os Moroi dominavam a magia. Nós a empregávamos nas tatuagens
de lírio, que continham alguns traços de sangue vampiro, mas a ideia de que os humanos também a utilizassem era maluca e perversa.
Portanto, tive uma grande surpresa quando, no mês anterior, a sra. Terwilliger não só se revelou mas também acabou me induzindo a usar um feitiço. Aquilo havia me
deixado chocada e me sentindo suja. Humanos não deviam usar magia. Não tínhamos o direito de manipular o mundo daquela maneira; era cem vezes pior do que o que Sonya
fizera com o lírio vermelho na rua. A sra. Terwilliger insistia que eu tinha um talento natural para a magia e até chegou a se oferecer para me treinar. Eu não sabia
o que estava por trás dessa insistência. Ela vivia falando sobre o meu potencial, mas eu não conseguia acreditar que ela iria querer me treinar sem nenhuma motivação
própria. Eu ainda não tinha descoberto o que era, mas não importava. Tinha recusado a oferta. Então ela tinha encontrado um jeitinho.
- Srta. Melbourne, quanto tempo você acha que ainda vai ficar no livro do Kimball? - ela perguntou de sua escrivaninha.
Trey me apelidara de “Melbourne” por causa dela, mas, ao contrário dele, ela parecia sempre esquecer que aquele não era meu sobrenome. Ela tinha pouco mais de quarenta
anos, o cabelo de um castanho opaco e um brilho sagaz permanente nos olhos.
Levantei os olhos do meu trabalho e me forcei a ser educada:
- Mais dois dias. Três, no máximo.
- Não se esqueça de traduzir os três feitiços do sono - ela disse. - Cada um tem suas próprias nuances.
- Tem quatro feitiços do sono neste livro - corrigi.
- Ah, é? - ela perguntou, inocente. - Que bom que eles estão chamando a sua atenção.
Disfarcei uma careta. Fazer com que eu copiasse e traduzisse livros de feitiços para pesquisa era a maneira dela de me ensinar. Eu acabava aprendendo os textos conforme
lia. Odiava estar presa àquela armadilha, mas era tarde demais para trancar a matéria. Além disso, não dava para reclamar na diretoria que eu estava sendo obrigada
a aprender magia.
Então, obediente, eu copiava os livros de feitiços e falava o mínimo possível durante nosso tempo juntas. Enquanto isso, me enchia de indignação. Ela estava ciente
do meu desconforto, mas não fazia nada para aliviar a tensão, deixando-nos num beco sem saída. Só uma coisa animava aquelas sessões.
- Olha só. Faz quase duas horas que eu não tomo um cappuccino. É admirável que eu ainda esteja funcionando. Você me faria a gentileza de ir até o Spencer’s? Depois
disso, estará liberada.
O último sinal já havia tocado quinze minutos antes, mas eu estava fazendo hora extra.
Fechei o livro de feitiços antes mesmo de ela terminar a frase. Quando comecei a trabalhar como sua assistente, odiava aquelas saídas constantes. Agora, não via
a hora de escapar. Sem falar no meu próprio vício em cafeína.
Quando cheguei ao café, vi que Trey estava começando seu turno, o que era ótimo - não só porque ele era um rosto amigo, mas também porque sempre me dava desconto.
Ele começou a preparar meu pedido antes mesmo que eu dissesse qual era, afinal, a essa altura ele já sabia de cor. Outro barista se ofereceu para ajudar, e Trey
deu instruções meticulosas sobre o que fazer.
- Latte de baunilha light - Trey instruiu, pegando o caramelo para o cappuccino da sra. Terwilliger. - Use o xarope sem açúcar e leite desnatado. Não faça besteira.
Ela consegue sentir o cheiro de açúcar e leite integral a quilômetros de distância.
Escondi um sorriso. Eu não podia revelar os segredos alquimistas aos meus amigos, mas ficava feliz ao perceber que eles sabiam minhas preferências de café de cor.
O outro barista, que parecia ter a nossa idade, lançou um olhar divertido para Trey.
- Eu sei o que significa light, o.k.?
- Quanta atenção aos detalhes - provoquei Trey. - Não sabia que você se importava tanto.
- Servimos bem para servir sempre - ele disse. - Além disso, hoje à noite vou precisar da sua ajuda com aquele relatório do laboratório de química. Você sempre acha
as coisas que eu deixo passar.
- É para amanhã - recriminei. - Você teve duas semanas. Acho que não fez muita coisa naquela sessão de estudos com as líderes de torcida.
- Pois é, pois é. Você me ajuda? Posso até ir ao seu alojamento.
- Vou ficar até tarde com um grupo de estudos. Um de verdade. - O sexo oposto era banido dos alojamentos a partir de certo horário. - Depois posso encontrar você
no campus central, se quiser.
- Quantos campi tem a escola de vocês? - o outro barista perguntou, entregando meu latte.
- Três. - Peguei o café, afoita. - Como a Gália.
- Como o quê? - Trey perguntou.
- Desculpe - respondi. - É uma referência em latim.
- Omnia Gallia in tres partes divisa est - o barista disse.
Levantei a cabeça num reflexo. Poucas coisas me distraíam do café, mas ouvir Júlio César citado no Spencer’s sem dúvida era uma delas.
- Você sabe latim? - perguntei.
- Claro - ele respondeu. - Quem não sabe?
- Só o resto do mundo - Trey murmurou, revirando os olhos.
- Ainda mais latim clássico - o barista continuou. - Quer dizer, é bem terapêutico se comparado ao latim medieval.
- Claro - eu disse. - Todo mundo sabe disso. Todas as regras ficaram caóticas depois da descentralização do Império.
Ele assentiu com a cabeça.
- Mas quando você compara com as línguas românicas, as regras começam a fazer mais sentido se você as examinar como parte de um quadro maior de evolução da língua.
- Isso - Trey interrompeu - é a coisa mais zoada que eu já vi na vida. E a mais bonitinha também. Sydney, este é Brayden. Brayden, Sydney.
Trey quase nunca me chamava pelo nome, então aquilo foi um pouco estranho, mas não tão estranho quanto a piscadela exagerada que ele me deu.
Apertei a mão de Brayden.
- Prazer.
- Igualmente - ele disse. - Você é fã de clássicos, então? - Ele fez uma pausa, me examinando com os olhos. - Viu a adaptação de Antônio e Cleópatra do Park Theatre
Group?
- Não, nem sabia que eles tinham encenado. - De repente me senti meio idiota por não saber aquilo, como se devesse estar por dentro de todos os eventos artísticos
e culturais da região de Palm Springs. Acrescentei, a título de explicação: - Faz só um mês que me mudei para cá.
- Acho que eles ainda vão fazer algumas apresentações nessa temporada. - Brayden hesitou novamente. - Eu veria de novo se você quisesse ir. Mas já vou avisando que
é uma daquelas adaptações mais livres de Shakespeare. Com figurino moderno.
- Não me importo. Esse tipo de reinterpretação é o que torna Shakespeare atemporal.
As palavras saíram da minha boca sem que eu percebesse. Ao pronunciá-las, de repente tive uma epifania e me dei conta de que havia mais coisas rolando do que eu
inicialmente tinha percebido. Repeti mentalmente as palavras de Brayden e, ao ver o enorme sorriso de Trey, logo entendi tudo. Aquele era o menino de quem Trey tinha
me falado. Minha “alma gêmea”. E ele estava me chamando para sair.
- É uma ótima ideia - Trey disse. - Crianças, vocês realmente deviam sair para brincar juntos. Um dia inteiro. Aproveitem para jantar, passear na biblioteca ou sei
lá o que vocês fazem para se divertir.
Brayden voltou os olhos para mim. Tinham cor de avelã, quase como os de Eddie, mas com um pouco de verde. Não tão verdes quanto os de Adrian, claro. Ninguém tinha
olhos tão incrivelmente verdes. O cabelo castanho de Brayden às vezes refletia em tons dourados, dependendo da luz, e tinha um corte prático que salientava seus
maxilares. Precisava admitir que ele era bem bonito.
- Eles se apresentam de quinta a domingo - ele disse. - Tenho um torneio de debates durante o fim de semana... Você pode na quinta à noite?
- Eu...
Podia? Não tinha nada planejado, até onde eu sabia. Cerca de duas vezes por semana eu levava Jill à casa de Clarence Donahue, um velho Moroi que tinha uma fornecedora.
No entanto, quinta não era uma das noites programadas para o fornecimento e, tecnicamente, eu não era obrigada a comparecer aos experimentos à noite.
- Claro que ela está livre - Trey se adiantou antes que eu pudesse responder. - Não é, Sydney?
- Sim - respondi, disparando um olhar para ele. - Estou livre.
Brayden sorriu. Sorri de volta. Sobrou um silêncio nervoso. Ele parecia tão inseguro quanto eu sobre o que fazer a seguir. Eu teria pensado como aquilo era fofo
se não estivesse tão preocupada em não parecer ridícula.
Trey deu uma cotovelada incisiva nele.
- Agora é a parte em que você pede o número dela.
Brayden assentiu, apesar de parecer descontente com a cotovelada.
- Certo, certo. - Ele tirou o celular do bolso. - É Sydney com “y” ou com “i”? - Trey revirou os olhos. - O que foi? Eu chutaria com “y”, mas como os nomes estão
cada vez menos convencionais, nunca se sabe. Só queria colocar certo no meu celular.
- Eu teria feito o mesmo - concordei, e então passei meu número.
Ele levantou os olhos e abriu um sorriso para mim.
- Ótimo. Mal posso esperar.
- Eu também - respondi, e estava sendo sincera.
Saí do Spencer’s completamente pasma. Eu tinha um encontro marcado. Como isso tinha acontecido?
Alguns segundos depois, Trey veio correndo atrás de mim, ainda usando o avental de barista, e me alcançou quando eu destravava o carro.
- E então? - perguntou. - Eu estava certo ou completamente certo?
- Sobre o quê? - retorqui, apesar de saber o que estava por vir.
- Sobre Brayden ser sua alma gêmea.
- Eu falei pra você...
- Eu sei, eu sei. Você não acredita em almas gêmeas. Mesmo assim - disse, com um sorriso -, se aquele garoto não é perfeito pra você, então não sei quem é.
- Bem, vamos ver. - Equilibrei o copo da sra. Terwilliger sobre o carro para poder beber o meu. - O fato de ele não gostar de interpretações modernas de Shakespeare
definitivamente pode ser um problema.
- Sério? - Trey perguntou, me encarando incrédulo.
- Não - respondi, olhando feio para ele. - Eu estava brincando. Bem, talvez. - O latte que Brayden havia feito para mim estava muito bom, então eu estava disposta
a conceder a ele o benefício da dúvida na questão do Shakespeare. - Por que você se importa tanto com a minha vida amorosa, afinal?
Trey deu de ombros e enfiou as mãos no bolso. Gotas de suor já se formavam sobre sua pele bronzeada por causa do sol do final da tarde.
- Não sei. Sinto que devo uma pra você depois de tudo que rolou com as tatuagens. E também por toda sua ajuda com os trabalhos da escola.
- Na verdade, você nem precisa da minha ajuda. E quanto às tatuagens... - Franzi a testa enquanto a imagem de Keith esmurrando o vidro voltava a se formar na minha
cabeça. O sangue de vampiro que Keith havia traficado resultara em tatuagens anabolizantes que causaram bastante estrago em Amberwood. Claro que Trey não sabia do
meu interesse pessoal na questão. Só sabia que eu havia dado um jeito nas pessoas que se aproveitavam das tatuagens para ganhar vantagens esportivas. - Fiz aquilo
porque era a coisa certa a fazer.
Ele abriu um sorriso.
- Claro. Mesmo assim, evitou muito desgosto do meu pai.
- Espero que sim. Agora você não tem mais nenhum rival na equipe. O que mais seu pai quer?
- Ah, sempre tem alguma coisa em que ele acha que eu podia ser melhor. Não é só com o futebol americano.
Trey já havia feito alusão a isso antes.
- Sei como é - eu disse, pensando em meu próprio pai.
Um momento de silêncio se estabeleceu entre nós. Depois de um tempo, ele disse:
- Para piorar, meu primo perfeito está vindo para a cidade. Tudo o que eu faço parece lixo perto dele. Você tem um primo assim também?
- Humm. Na verdade, não.
A maioria dos meus primos era por parte de mãe, e meu pai costumava evitar a família dela.
- Você deve ser a prima perfeita - Trey resmungou. - Enfim, sempre existem essas expectativas na família... esses testes. O futebol me garantiu certo respeito agora.
- Ele piscou para mim. - E minha ótima nota de química também.
Essa última indireta não passou batida.
- Tudo bem. Mando uma mensagem pra você quando voltar, e a gente dá um jeito no relatório.
- Valeu. E vou ter uma conversinha com Brayden pra ele não avançar o sinal na quinta.
Minha cabeça ainda estava pensando em latim e Shakespeare.
- Que sinal?
Trey balançou a cabeça.
- Sinceramente, Melbourne, não sei como você sobreviveu tanto tempo sem mim.
- Ah - eu disse, corando. - Aquilo.
Ótimo. Agora eu tinha mais uma coisa com que me preocupar. Trey achou graça da situação.
- Cá entre nós, Brayden deve ser o último cara no mundo com quem você precisa se preocupar. Acho que ele é tão perdido quanto você. Se eu não me importasse tanto
com a sua castidade, provavelmente daria uma aula pra ele sobre como tentar alguma coisa.
- Bem, obrigada por manter meus melhores interesses em mente - respondi, seca. - Sempre quis um irmão para cuidar de mim.
Ele me olhou, curioso.
- Você não tem, sei lá, três irmãos?
Ah, não.
- Hum, quis dizer em sentido figurado. - Tentei não entrar em pânico. Era raro eu soltar um fora sobre a história que tínhamos inventado para nossa família. Eddie,
Adrian e Keith já tinham se passado por meus irmãos em algum momento. - Nenhum deles se interessa tanto pela minha vida amorosa. E agora eu estou muito interessada
em ficar no ar-condicionado. - Abri a porta do carro, de onde veio uma onda de calor. - Hoje à noite falo com você e ajudo com seu relatório.
Trey assentiu, parecendo querer voltar para o café também.
- E eu ajudo você se tiver alguma outra dúvida sobre encontros românticos.
Eu esperava que meu olhar taxativo deixasse clara minha opinião sobre o assunto, mas depois que ele foi embora e liguei o ar-condicionado no máximo, minha petulância
se desfez, dando lugar a preocupação. A pergunta que não queria calar se repetiu na minha cabeça.
Como eu pretendia sair viva do encontro?
5
A NOTÍCIA DO ENCONTRO LOGO SE ESPALHOU.
Só conseguia imaginar que Trey havia contado para Kristin e Julia, que, por sua vez, contaram para Jill, Eddie e sabe lá Deus quem mais... Então eu não deveria ter
ficado surpresa quando Adrian me ligou logo depois do jantar e começou a falar antes mesmo que eu pudesse dizer “alô”.
- Sério, Sage? Um encontro?
Soltei um suspiro.
- Sim, Adrian. Um encontro.
- Você vai a um encontro de verdade, e não tipo fazer um trabalho da escola em dupla? - ele continuou. - Digo, vai ver um filme ou alguma coisa assim com alguém?
E um filme divertido, que não tem a ver com nenhuma lição de casa?
- Vou a um encontro de verdade. - Achei que era melhor não especificar que íamos ver uma peça de Shakespeare.
- Qual é o nome do sortudo?
- Brayden.
Houve uma pausa.
- Brayden? Esse é o nome dele de verdade?
- Por que você está perguntando se é tudo de verdade? Acha que eu inventaria tudo isso?
- Não, não - Adrian assegurou. - E é isso que torna tudo tão inacreditável. Ele é bonito?
Dei uma olhada no relógio. Já era hora de encontrar meu grupo de estudos.
- Caramba, acho que é melhor eu mandar logo uma foto pra você avaliar.
- Sim, por favor. E um dossiê completo com os antecedentes criminais e um histórico da vida dele.
- Preciso ir. Por que você está ligando tanto, afinal? - perguntei, irritada.
Ele demorou um tempo para responder, o que era raro. Adrian costumava ter uma dúzia de gracinhas na ponta da língua para tudo. Talvez não conseguisse decidir qual
delas usar. Quando finalmente respondeu, foi do seu jeito sarcástico de sempre, embora sua descontração soasse um pouco forçada demais.
- Porque é uma daquelas coisas que eu nunca pensei que veria na vida - ele disse. - Como um cometa. Ou a paz mundial. Acho que só estou acostumado a ver você solteira.
Por algum motivo, aquilo me incomodou.
- Por quê? Você acha que nenhum cara se interessaria por mim?
- Na verdade - Adrian disse, com a voz estranhamente séria -, consigo imaginar vários caras interessados por você.
Eu tinha certeza de que ele estava tirando onda com a minha cara e não tinha tempo para suas piadas. Me despedi e segui para o grupo de estudos, que felizmente era
muito dedicado, e conseguimos trabalhar bastante. Mas quando encontrei Trey na biblioteca mais tarde, ele não estava nem um pouco concentrado. Não parava de falar
sobre como tinha sido genial em me juntar com Brayden.
- Nós ainda nem saímos e já estou cansada dessa história - falei. Espalhei os papéis de Trey na mesa à nossa frente. Os números e fórmulas eram reconfortantes, muito
mais concretos e ordenados do que os mistérios da interação social. Apontei para o relatório com a caneta. - Preste atenção. Não temos muito tempo.
- Você não pode simplesmente terminar para mim? - ele disse, dando de ombros.
- Não! Temos tempo suficiente pra você terminar. Eu ajudo, só isso.
Trey era capaz de entender quase tudo sozinho. Me pedir ajuda era só uma maneira de fingir que não era inteligente. Ele esqueceu o encontro e se concentrou no trabalho.
Pensei que estava livre do interrogatório sobre Brayden até que, quando estávamos terminando o relatório, Jill e Micah passaram de mãos dadas.
Eles estavam em um grupo com várias pessoas, o que não era nenhuma surpresa. Micah era simpático e popular, o que rendera a Jill um grande círculo de amigos quando
começaram a sair juntos. Os olhos dela brilhavam de felicidade enquanto alguém contava uma história engraçada e todos riam. Eu mesma não pude conter um sorriso.
Era um grande avanço desde que Jill chegara a Amberwood, quando fora excluída por ter um visual excêntrico e um comportamento peculiar. Seu status social estava
progredindo. Talvez isso a ajudasse a aceitar melhor sua origem nobre. Meu sorriso esmaeceu quando ela puxou Micah de lado e caminhou apressada até nossa mesa. Sua
expressão ansiosa me deixou preocupada.
- É verdade? - ela perguntou. - Você vai sair com alguém?
- Pelo amor de... Você sabe que é verdade! E contou para Adrian, não foi? - perguntei, lançando um olhar fulminante.
O laço psíquico não ficava ativo o tempo todo, mas algo me dizia que ela sabia do telefonema dele mais cedo. Quando o laço estava “ligado”, ela conseguia enxergar
o que se passava dentro da cabeça dele, observando seus sentimentos e ações. No entanto, o laço só funcionava por uma via. Adrian não tinha essas visões. Ela ficou
encabulada.
- É. Não pude evitar quando Micah me contou...
- Foi Eddie que me disse - Micah acrescentou rápido, como se isso fosse livrá-lo da culpa. Ele era ruivo e tinha olhos azuis que pareciam sempre alegres e simpáticos.
Era o tipo de pessoa de quem era impossível não gostar, o que tornava ainda mais difícil desfazer a complicada trama que Jill tecera ao começar a namorar com ele.
- Ei, eu não contei para o Eddie - Trey disse, na defensiva.
Virei para encará-lo.
- Mas contou para outras pessoas, que contaram para o Eddie.
Ele deu de ombros.
- Posso ter mencionado aqui e ali.
- Inacreditável.
- Como ele é? - Jill perguntou. - É bonitinho?
Pensei um pouco sobre a pergunta.
- Bem bonitinho.
- Promissor - ela disse, animada. - Aonde ele vai te levar? Algum lugar legal? Curtir a noite na cidade? Um jantar chique? Eu e Micah adoramos o Salton Sea. É bem
bonito lá. Vocês podem ir e fazer um piquenique romântico. - Suas bochechas coraram e ela parou para retomar o fôlego, notando que estava falando sem parar. Divagar
era um dos traços mais adoráveis dela.
- Vamos ver Shakespeare no parque - eu disse.
Caiu um silêncio absoluto.
- Antônio e Cleópatra. É uma peça muito boa. - De repente senti que precisava me defender. - É um clássico. Brayden e eu gostamos muito de Shakespeare.
- O nome dele é “Brayden”? - Micah perguntou, incrédulo. - Que tipo de nome é esse?
Jill franziu a testa.
- Antônio e Cleópatra... é uma peça romântica?
- Mais ou menos - respondi. - No começo, sim. Depois todo mundo morre.
A expressão horrorizada de Jill deixou claro que eu não estava melhorando muito as coisas.
- Bem - ela disse -, espero que vocês... se divirtam. - Alguns momentos constrangedores depois, seus olhos voltaram a se iluminar. - Ah! Lia me ligou hoje. Disse
que vocês duas conversaram sobre eu voltar a modelar para ela!
- Quê? - exclamei. - Não foi nada disso que conversei com ela. Ela perguntou se você poderia fazer alguns anúncios impressos. E eu respondi que não.
- Ah. - A expressão de Jill esmoreceu um pouco. - Entendo. Pelo que ela disse... eu só pensei que... Bem, pensei que talvez houvesse um jeito...
Lancei a ela um olhar cheio de significados.
- Desculpe, Jill. Queria que houvesse um jeito. Mas você sabe que não dá.
Ela concordou, chateada.
- Eu entendo. Tudo bem.
- Você não precisa aparecer em anúncios para eu te achar bonita - Micah disse, galante.
Isso fez voltar o sorriso dela, que se desfez quando Jill olhou para um relógio por perto. Suas mudanças de humor me lembravam de Adrian, e eu me perguntava se em
parte elas não seriam efeito do laço.
- Argh. O toque de recolher já está para tocar. É melhor irmos embora. Você vem, Sydney?
Olhei para o relatório de Trey, que estava pronto e, com certeza, absolutamente perfeito.
- Vou daqui a pouco.
Micah e ela saíram. Voltando o olhar para Trey, fiquei surpresa ao encontrá-lo fitando atentamente a silhueta dela, que se afastava. Dei uma cutucada nele.
- Ei. Não se esqueça de colocar o nome nisso aí, ou o trabalho não vai servir pra nada.
Ele levou alguns segundos para desviar os olhos de Jill.
- Aquela é sua irmã, né?
Seu tom abatido fazia aquilo soar mais como uma constatação do que uma pergunta, como se ele estivesse se dando conta de uma desgraça.
- Hum, sim. Você já viu Jill milhares de vezes. Ela frequenta a escola há um mês.
- Eu sei, só que nunca tinha pensado muito nisso... - ele disse, franzindo a testa. - Nunca tinha olhado direito para ela. Não fazemos nenhuma aula juntos.
- Ela foi o centro das atenções naquele evento de moda.
- Ela estava de máscara. - Seus olhos escuros me examinaram. - Vocês duas não são nem um pouco parecidas.
- Todo mundo diz isso.
Trey ainda parecia inquieto, e não entendi por quê.
- É bom mesmo que você a mantenha longe da vida de modelo - ele disse, por fim. - Ela é muito jovem pra isso.
- É uma questão de religião - eu disse, sabendo que Trey não me pediria muitos detalhes sobre nossa “fé”.
- Seja lá o que for, mantenha Jill fora das vistas. - Ele rabiscou o nome no relatório e fechou o livro. - Você não ia querer vê-la estampada em todas as revistas
ou coisa assim. Tem muita gente louca por aí.
Dessa vez fui eu que fiquei olhando, pasma. Concordava com ele. Exposição demais significava que os Moroi dissidentes poderiam encontrá-la. Mas por que Trey pensaria
o mesmo? O argumento de que ela era jovem demais era sensato, pensei, mas havia algo um tanto perturbador naquela conversa. A maneira como ele a observou indo embora
era bastante inquietante. Mas, enfim, que outro motivo além de uma mera preocupação ele poderia ter?
A normalidade dos dias seguintes foi bem-vinda, considerando, claro, que normalidade era um conceito relativo por ali. Adrian continuava me mandando e-mails pedindo
resgate (ao mesmo tempo que, sem que eu pedisse, me dava conselhos sobre o encontro). A sra. Terwilliger insistia em suas tentativas meio agressivas de me ensinar
feitiçaria. Eddie mantinha sua dedicação ferrenha a Jill. E Angeline continuava a investir nele de um jeito nada discreto.
Depois de vê-la derrubar um copo de água “acidentalmente” na própria camiseta durante um treino, percebi que alguma coisa precisava ser feita, independente do que
Eddie tinha dito sobre sua vida pessoal. Assim como acontecia com quase todas as tarefas embaraçosas e desagradáveis do grupo, tive a sensação de que era eu quem
teria que cumprir esse papel. Imaginei que teria algum tipo de conversa rígida e franca sobre a maneira certa de chamar a atenção de alguém, mas, na noite do meu
encontro com Brayden, logo ficou claro que eu era a última pessoa que deveria dar conselhos amorosos.
- Você vai usar isso? - Kristin perguntou, apontando um dedo acusatório para a roupa que eu havia separado com cuidado sobre a cama.
Ela e Julia haviam se encarregado de me inspecionar antes que eu saísse. Jill e Angeline tinham vindo também, sem serem convidadas, e notei que todas pareciam muito
mais animadas com aquilo do que eu. Na maior parte do tempo eu era um misto de nervosismo e medo. Pensei que devia ser essa a sensação de ir para uma prova sem ter
estudado antes. Era uma experiência nova para mim.
- Não é um uniforme de escola - eu disse. Tinha noção suficiente para saber que isso seria inaceitável. - E é colorido. Bem, mais ou menos.
Julia pegou a blusa que eu tinha escolhido, uma de algodão bem fresquinha, de manga curta e colarinho alto. O tom era amarelo-limão, e pensei que elas fossem gostar,
já que todas me acusavam de não usar roupas coloridas. Eu até tinha separado uma calça jeans para usar junto. Ela fez que não com a cabeça.
- Esse é o tipo de blusa que diz: “Você nunca vai pôr as mãos aqui dentro”.
- E por que ele tentaria isso? - perguntei.
Kristin, sentada na minha cadeira com as pernas cruzadas, inclinou a cabeça, pensativa, estudando a camisa.
- Acho que a blusa diz mais: “Vou ter que voltar cedo para fazer uma apresentação no PowerPoint”.
Isso causou um ataque de riso em todas elas. Eu estava prestes a protestar quando vi Jill e Angeline revirando meu guarda-roupa.
- Ei! Vocês deviam pelo menos pedir licença!
- Todos os seus vestidos são pesados demais - Jill disse. - Ela tirou um de caxemira cinza-claro. - Tipo, esse pelo menos não tem manga, mas ainda assim é pesado
demais para este clima.
- Metade do meu guarda-roupa é assim - eu disse. - É feito para as quatro estações. Não tive muito tempo para pegar todas as roupas de verão antes de vir para cá.
- Viu? - Angeline exclamou, triunfante. - Agora você entende o meu problema. Posso cortar alguns centímetros desse vestido se quiser.
- Não!
Para o meu alívio, Jill guardou o vestido. Alguns instantes depois, tirou outro achado do armário.
- E essa? - ela perguntou, segurando um cabide com uma longa regata branca feita de um tecido leve e ondulado, com decote em U.
Kristin se virou para Angeline.
- Você acha que consegue aumentar o decote?
- O tamanho do decote já é suficiente. E essa não é uma blusa para vestir sozinha - protestei. - É feita para usar embaixo de um blazer.
Julia se levantou da cadeira e jogou o cabelo para o lado - aquele era um assunto sério.
- Não, não... isso pode dar certo. - Ela pegou a blusa das mãos de Jill e a colocou sobre o jeans que eu havia separado. Analisou por alguns instantes e depois voltou
para o meu guarda-roupa, que pelo visto estava aberto para todo mundo. Depois de uma busca rápida, tirou um cinto fino de couro marrom-claro, com estampa de cobra.
- Bem que eu me lembrava de ver você usando isso. - Ela colocou o cinto sobre a blusa branca e deu um passo para trás. Depois de mais um exame minucioso, assentiu
em aprovação. As outras se aproximaram para olhar.
- Boa ideia - Kristin disse.
- Ei, quem encontrou a blusa fui eu - Jill lembrou.
- Eu não posso usar a blusa sem nada por cima - reiterei.
Tinha esperanças de que meus protestos ocultassem minha ansiedade. Será que eu estava tão errada sobre a camisa amarela? Tinha certeza de que ela era adequada para
um encontro. Como eu poderia sobreviver àquela noite se nem sabia como me vestir?
- Se quiser usar um blazer em cima dela com essa temperatura, fique à vontade - Julia zombou. - Mas não acho que você deva se preocupar em mostrar demais. Não chamaria
a atenção nem da sra. Weathers.
- A blusa amarela também não - ressaltei.
Elas decretaram que minha roupa estava decidida e passaram aos conselhos de cabelo e maquiagem. Nessa parte, estabeleci limites. Usava maquiagem todo dia - maquiagem
muito boa e cara, aplicada para tirar o melhor proveito dos meus traços, dando a impressão de que eu não tinha passado nada. Eu não mudaria esse visual natural,
por mais que Julia insistisse que uma sombra rosa me deixaria mais “sexy”.
Nenhuma delas brigou muito sobre meu cabelo. Ele estava pouco abaixo do ombro, cortado em camadas. Havia só uma maneira de arrumá-lo: deixá-lo solto, ajeitando as
camadas cuidadosamente com o secador. De qualquer outro jeito pareceria bagunçado e, claro, eu já o havia deixado na forma perfeita. Não tinha por que mexer no que
já estava bom. Além disso, acho que elas já estavam muito animadas por eu ter topado vestir a regata branca - depois de tê-la experimentado e conferido que não ficava
transparente.
A única joia que concordei em usar foi minha cruz dourada. Prendi-a em torno do pescoço e fiz uma oração em silêncio, pedindo para sobreviver àquilo. Apesar de os
alquimistas usarem crucifixos com frequência, não seguíamos nenhuma fé ou prática cristã tradicional. Tínhamos nossas próprias cerimônias religiosas e acreditávamos
em Deus, e que Ele era a grande força de luz e bondade que inspirava todo o universo. Com toda essa responsabilidade, era provável que Ele não se importasse muito
com uma menina que ia sair com um garoto, mas talvez pudesse gastar um segundinho garantindo que aquilo não fosse tão difícil assim.
Chegada a hora de Brayden me buscar, elas desceram as escadas comigo. (Na verdade era um pouco antes da hora marcada, porque eu odiava a ideia de chegar atrasada.)
Todas inventaram motivos para conhecê-lo - desde Jill, que afirmou ser “um lance de família”, até Kristin, que alegou conseguir “identificar um babaca em cinco segundos”.
Eu não tinha tanta certeza disso, já que certa vez ela disse que Keith parecia uma boa pessoa.
Todas estavam dispostas a dar conselhos, mesmo que eu não tivesse pedido.
- Vocês podem dividir a conta do jantar ou os ingressos para a peça - Julia disse. - Os dois não. Ele precisa pagar a conta inteira de um deles.
- Mas é melhor se ele pagar tudo - Kristin disse.
- E peça alguma coisa mesmo se não estiver com fome - Jill acrescentou. - Se ele for pagar o jantar todo, você não vai querer que ele pague barato. Ele precisa se
esforçar para conquistar você.
- De onde vocês tiram tudo isso? - perguntei. - Qual é o problema se eu... Ah, não.
Chegando ao saguão, encontramos Eddie e Micah sentados num banco. Pelo menos eles tiveram a decência de parecer envergonhados.
- Vocês também?! - exclamei.
- Só estou aqui para ver Jill - Micah disse, num tom nada convincente.
- E eu estava aqui para, hum... - Eddie hesitou, ao que eu levantei a mão para detê-lo.
- Não precisa nem tentar explicar. Sério, estou surpresa por Trey não estar aqui também, com uma câmera ou algo assim. Imaginei que ele iria querer imortalizar todos
os momentos desse desastre de... ah. Ei, aqui!
Abri um sorriso quando Brayden entrou no saguão. Aparentemente, eu não era a única que gostava de chegar cedo.
Brayden pareceu um pouco surpreso com meu séquito de acompanhantes. Eu não podia culpá-lo - afinal, estava surpresa também.
- É um prazer conhecer todos vocês - Brayden disse, simpático, e um pouco desconcertado.
Embora ficasse incomodado com os avanços de Angeline, Eddie conseguia ser perfeitamente extrovertido em situações sociais menos bizarras. Ele representou o papel
de irmão e cumprimentou Brayden.
- Fiquei sabendo que vocês vão a uma peça hoje.
- Sim - Brayden disse. - Embora eu prefira o termo drama. Na verdade, eu já vi essa adaptação, mas queria assistir de novo com o olhar voltado para formas alternativas
de análise dramática. O método Freytag tradicional pode se tornar um clichê depois de um tempo.
Todos ficaram sem palavras. Ou talvez só estivessem tentando entender o que ele tinha acabado de dizer. Eddie voltou o olhar para mim e depois para Brayden.
- Bom, algo me diz que vocês vão se divertir bastante juntos.
Depois que conseguimos nos livrar dos meus entes queridos, Brayden comentou:
- Você tem amigos e parentes muito... dedicados.
- Ah - respondi. - Pois é. Por coincidência eles também iam sair juntos naquela hora. Para estudar.
Brayden olhou o relógio.
- Ainda dá tempo, acho. Sempre que posso, faço os trabalhos logo depois da aula, porque...
- Se deixar para depois, nunca se sabe quando algum imprevisto pode acontecer?
- Exato - ele disse.
Sorriu para mim, e retribuí o sorriso.
Acompanhei Brayden até o estacionamento de visitantes, onde havia um reluzente Ford Mustang prateado. Quase desmaiei. De imediato, estendi a mão e a passei pela
superfície suave do carro.
- Que lindo - falei. - Modelo novo, do ano que vem. Esses mais modernos nunca vão ter a mesma personalidade dos clássicos, mas sem dúvida compensam em segurança
e economia de combustível.
Brayden parecia positivamente surpreso.
- Você entende de carros.
- É um hobby - admiti. - Minha mãe é muito fã de carros. - Quando conheci Rose Hathaway, tive a experiência incrível de dirigir um Citroën de 1972. Em Palm Springs,
eu tinha uma perua Subaru que apelidei de Pingado, em referência à sua cor café com leite. Gostava muito dela, mas não era exatamente glamorosa. - São verdadeiras
obras de arte e engenharia.
Percebi que Brayden tinha me acompanhado para o lado do passageiro. Por meio segundo, cogitei se ele estava esperando que eu dirigisse. Talvez por eu gostar tanto
de carros? Mas então ele abriu a porta, e me dei conta de que estava esperando que eu entrasse. Entrei, tentando me lembrar da última vez em que um garoto tinha
aberto a porta do carro para mim. Conclusão: nunca.
O jantar não foi num fast-food, mas também não foi nada muito chique. Fiquei curiosa para saber qual seria a opinião de Julia e Kristin sobre isso. Comemos num restaurante
típico da Califórnia que servia todo tipo de saladas e sanduíches orgânicos. Todos os itens do cardápio pareciam ter abacate.
- Eu levaria você a um lugar mais legal - ele disse. - Mas não queria correr o risco de chegar atrasado à peça. O parque é a alguns quarteirões daqui, então dá tempo
de pegar um bom lugar. Eu... espero que esteja tudo bem. - De repente ele pareceu apreensivo. Era um grande contraste em relação à confiança que havia demonstrado
ao falar de Shakespeare. Eu precisava admitir que aquilo era um tanto reconfortante, e me vi relaxar um pouco. - Senão, posso encontrar um lugar melhor...
- Não, aqui está ótimo - eu disse, passando os olhos pelo restaurante fortemente iluminado. Era um daqueles lugares em que o pedido é feito no balcão e depois levamos
o número para a mesa. - Prefiro chegar cedo também. - Ele tinha pagado pela refeição. Tentei seguir as regras daquele tipo de encontro, que minhas amigas haviam
despejado em cima de mim. - Quanto te devo pelo ingresso? - perguntei, hesitante.
Brayden pareceu surpreso.
- Nada. É por minha conta - respondeu com um sorriso, também hesitante.
- Obrigada - agradeci.
Então, era ele quem estava pagando. Isso deixaria Kristin contente, apesar de me incomodar um pouco. Com os alquimistas, era sempre eu quem cuidava das contas e
da burocracia. Não estava acostumada a ter outra pessoa fazendo isso por mim. Acho que não conseguia me livrar da sensação de que precisava cuidar de tudo porque
ninguém mais conseguiria fazer as coisas direito.
Os estudos nunca foram um problema para mim. Mas em Amberwood, aprender a lidar com pessoas da minha própria idade de uma maneira normal vinha se mostrando uma tarefa
muito mais árdua. Eu estava progredindo, mas ainda me custava um grande esforço descobrir a coisa certa a dizer para meus colegas. Com Brayden, isso não era um problema.
Tínhamos um estoque infinito de assuntos, ambos ansiosos para dizer tudo o que sabíamos sobre toda e qualquer coisa. Passamos a maior parte do jantar discutindo
as complicações do processo de certificação de produtos orgânicos. Foi bem legal.
O problema veio quando estávamos terminando de comer e Brayden perguntou se eu queria sobremesa. Fiquei paralisada, de repente no meio de um dilema. Jill tinha me
dito para pedir o suficiente para que o encontro não saísse barato. Sem nem pensar nisso, eu pedira uma salada nem um pouco cara, simplesmente porque parecia boa.
Será que eu devia pedir mais alguma coisa só para que Brayden tivesse que “se esforçar” para ficar comigo? Será que valia a pena quebrar todas as minhas regras sobre
açúcar e sobremesa? E, sinceramente, o que a Jill sabia sobre regras de etiqueta em encontros românticos, afinal? O último namorado dela fora um homicida e o atual
não fazia a menor ideia que ela era vampira.
- Não, obrigada - respondi, finalmente. - Prefiro garantir que vamos chegar ao parque a tempo.
Ele concordou, levantando-se, e me abriu outro sorriso.
- Estava pensando a mesma coisa. A maior parte das pessoas não considera a pontualidade importante.
- Importante? É essencial - respondi. - Sempre estou pelo menos dez minutos adiantada.
O sorriso de Brayden se alargou.
- Eu tento me adiantar quinze. Pra falar a verdade... não queria sobremesa mesmo. - Ele abriu a porta para eu sair. - Costumo evitar muito açúcar.
Perplexa, quase parei em choque.
- Concordo plenamente, mas meus amigos sempre me enchem por causa disso.
Brayden concordou com a cabeça.
- Pois é. Motivos não faltam, mas as pessoas não entendem.
Eu caminhava pelo parque, atordoada. Ninguém jamais havia me entendido tão rápido e com tanta facilidade. Ele parecia estar lendo minha mente.
Palm Springs ficava numa área de deserto, com longas paisagens de areia e encostas de montanhas rochosas. Mas também era uma região que a humanidade vinha moldando
fazia tempo, de modo que muitos lugares, como Amberwood, foram transformados em áreas verdes viçosas que desafiavam o clima natural. Aquele parque não era diferente.
Consistia numa grande extensão de grama verde, rodeada por árvores frondosas, em vez das palmeiras tradicionais. Um palco havia sido montado numa das extremidades,
e as pessoas já estavam à caça dos melhores lugares. Escolhemos um à sombra, com uma excelente vista para o palco. Brayden tirou um cobertor da mochila para nos
sentarmos, e também um exemplar gasto de Antônio e Cleópatra, marcado com anotações e adesivos.
- Você trouxe o seu? - ele perguntou.
- Não - respondi, um tanto impressionada. - Não trouxe muitos livros de casa quando me mudei pra cá.
Ele hesitou, parecendo inseguro com o que estava pensando.
- Quer acompanhar a peça comigo?
Sinceramente, eu tinha pensado que iria apenas assistir à peça, mas a estudiosa dentro de mim certamente enxergava vantagens em acompanhar com o texto original.
Além disso, estava curiosa para ver que tipo de anotações ele havia feito. Assim que aceitei, percebi por que ele parecia nervoso. Ler com ele significava que teríamos
de nos sentar muito, mas muito próximos um do outro.
- Eu não mordo - ele disse, com um sorriso, quando não me aproximei imediatamente.
Aquilo aliviou a tensão e procuramos posições que nos permitissem ler o livro juntos quase sem nos tocar. Não havia como impedir que nossos joelhos roçassem um no
outro, mas como nós dois estávamos de calça jeans, aquilo não me fazia sentir que minha castidade estivesse em risco. Além do mais, não pude evitar perceber que
ele cheirava a café, meu vício favorito. Não era nada mau. Nada mau mesmo.
Ainda assim, eu estava completamente ciente daquela proximidade. Não achei que estivesse sentindo nenhum clima romântico. Meu pulso não acelerou; meu coração não
ficou palpitante. O que mais senti foi que nunca havia sentado tão perto de alguém - acho que em toda a minha vida. Não estava acostumada a dividir meu espaço pessoal.
Quando começou a peça, logo parei de pensar nisso. Brayden podia não gostar de encenações de Shakespeare com figurinos modernos, mas achei que tinham feito um trabalho
admirável. Acompanhando o texto, encontramos alguns pontos em que os atores se atrapalharam com as falas. Trocamos olhares secretos triunfantes, contentes por sabermos
algo que os outros nem imaginavam. Acompanhei também as anotações dele, concordando com algumas e balançando a cabeça para outras. Mal podia esperar para discuti-las
no caminho de volta para casa.
A plateia atenta inclinava-se para a frente durante a cena dramática da morte de Cleópatra, todos concentrados nas últimas falas. Ao meu lado, ouvi um barulho de
papel sendo amassado. Ignorei e me debrucei ainda mais. Ouvi o som de novo, dessa vez muito mais alto. Me virei para olhar e vi por perto um grupo de rapazes que
pareciam universitários. A maioria assistia à apresentação, mas um deles segurava alguma coisa dentro de um saco de papel. O saco era muito maior do que o objeto
dentro dele e tinha sido enrolado várias vezes. Ele lançou um olhar em volta, nervoso, tentando ser discreto ao desenrolar o papel lentamente. Era óbvio que, assim,
estava fazendo muito mais barulho do que se simplesmente tivesse desenrolado o saco de uma só vez.
Isso levou mais um minuto e, a essa altura, outras pessoas já estavam olhando feio para ele. Por fim, ele conseguiu abrir o saco e, então, ainda em câmera lenta,
colocou a mão dentro. Ouvi o estalar de uma tampa e a expressão do garoto se iluminou, triunfante. Ainda com o objeto escondido, levou o saco até a boca e bebeu
do que era, obviamente, uma garrafa de cerveja ou de alguma outra bebida alcoólica, o que já era evidente desde o começo por causa do formato do saco de papel.
Coloquei a mão na boca, tentando abafar o riso. Ele me lembrava muito Adrian. Era muito fácil imaginar Adrian levando uma bebida alcoólica escondida para um evento
como aquele e passando por toda sorte de sofrimento para ser discreto, na certeza de que, se fizesse tudo muito devagar, ninguém notaria. Também era muito provável
que Adrian tivesse o azar de abrir a garrafa bem no meio da cena mais tensa da peça. Conseguia até imaginar a expressão igualmente satisfeita em seu rosto, como
se dissesse: “Ninguém sabe o que eu estou fazendo!”, quando, na verdade, todo mundo sabia. Eu não entendia por quê, mas imaginar aquilo me fazia rir.
Brayden estava concentrado demais na peça para perceber.
- Ah - ele sussurrou. - Essa é uma parte muito boa, quando as servas dela se matam.
Nós tivemos muito o que debater e analisar no caminho de volta para Amberwood. Fiquei quase decepcionada quando o carro estacionou à porta do alojamento. Sentados
ali, percebi que tínhamos atingido outro momento crucial do encontro. Qual seria o procedimento adequado? Ele devia me beijar? Eu devia deixar? Aquele seria o verdadeiro
preço da salada?
Brayden também parecia nervoso, e me preparei para o pior. Quando olhei para as minhas mãos repousadas no colo, percebi que estavam tremendo. Você pode fazer isso,
disse a mim mesma. É um rito de passagem. Comecei a fechar os olhos, mas quando Brayden falou, eu os abri rapidamente.
Como ficou evidente, Brayden não estava juntando coragem para me beijar, mas para fazer uma pergunta.
- Você... gostaria de sair de novo? - ele perguntou, com um sorriso tímido.
Fiquei surpresa com o misto de emoções que essa pergunta provocou em mim. Alívio foi a principal, claro. Agora teria tempo para pesquisar alguns livros sobre como
beijar. Mas também estava um pouco desapontada por toda a presunção e confiança que ele demonstrara na análise dramática não ter continuidade naquele momento. Parte
de mim pensava que ele deveria ter dito algo como: “Bem, depois dessa noite perfeita, acho que não temos outra escolha senão sair de novo”. Na mesma hora, me senti
idiota por pensar isso. Eu não tinha o direito de esperar que ele ficasse mais à vontade com aquela situação se eu mesma estava ali sentada com as mãos tremendo.
- Claro - disparei.
Ele soltou um suspiro de alívio.
- Legal - ele disse. - A gente se fala por e-mail.
- Ótimo - respondi, sorrindo.
Outro silêncio constrangedor pairou no ar, e me perguntei se o beijo iria acontecer, afinal.
- Você quer... que eu te leve até a porta? - ele perguntou.
- Quê? Ah, não. Obrigada. É logo ali. Não tem problema. Obrigada. - Percebi que estava quase falando sem parar como Jill.
- Tudo bem, então - Brayden disse. - Foi uma noite muito boa. Mal posso esperar pela próxima.
- Eu também.
Ele estendeu a mão. Eu apertei. Então saí do carro e entrei no prédio.
Eu apertei a mão dele? Revi o momento na minha cabeça, sentindo-me cada vez mais idiota. Qual é o meu problema?
Atravessando o saguão, meio atarantada, peguei o celular para ver se havia alguma mensagem. Eu tinha deixado desligado durante a noite, imaginando que aquele era
o momento em que eu mais merecia paz. Para o meu espanto, ninguém tinha precisado de nada na minha ausência, apesar de haver uma mensagem de texto de Jill, enviada
quinze minutos antes: Como foi com Brandon? Como ele é?
Destranquei a porta do quarto e entrei. O nome dele é Brayden, respondi. Fiquei pensando sobre a segunda pergunta e levei um bom tempo para decidir a resposta.
Ele é igual a mim.
6
- UM APERTO DE MÃOS? - Adrian perguntou, incrédulo.
Lancei um olhar acusatório para Eddie e Angeline.
- Não existem segredos por aqui?
- Não - Angeline respondeu, com a franqueza de sempre. Eddie soltou uma risadinha. Era um raro momento de camaradagem entre os dois.
- Era para ser segredo? - ele perguntou.
Estávamos na casa de Clarence Donahue para o fornecimento de Jill e Adrian, que acontecia duas vezes por semana. Naquele momento, Jill estava com Dorothy, a empregada
humana de Clarence, e também sua fornecedora. Àquela altura, eu já tolerava muitos hábitos Moroi, mas beber sangue, sangue humano, sempre me causava arrepios. Meu
mecanismo para lidar com aquilo era tentar esquecer o motivo de estarmos ali.
- Não - admiti. Julia e Kristin haviam me interrogado sobre todos os detalhes dois dias antes, então acabei contando alguns. Imaginei que teria que aceitar que,
depois de contar alguma coisa a elas, era inevitável que chegasse aos ouvidos de todos. E era óbvio que minha família em Amberwood já contara tudo para Adrian.
- Sério? - Adrian perguntou, ainda atônito com o jeito que meu encontro com Brayden tinha terminado. - Aperto de mãos?
Soltei um suspiro e me afundei no sofá de couro macio. Vista de fora, a casa de Clarence sempre me lembrava uma típica mansão mal-assombrada, mas por dentro era
muito moderna e bem mobiliada.
- Veja bem, o que aconteceu foi que... Ah, quer saber? Esquece. Não é da sua conta. Desencana.
Mas algo em sua expressão me dizia que ele não desencanaria tão fácil.
- Com toda essa paixão ardente, é uma surpresa vocês conseguirem ficar longe um do outro - Adrian disse, inexpressivo. - Vão ter um segundo encontro?
Eddie e Angeline me encararam, na expectativa. Hesitei. Aquela era uma informação que eu ainda não tinha dado para Julia e Kristin, porque tínhamos acabado de marcar.
- Sim - respondi finalmente. - Vamos... ver moinhos de vento esta semana.
Se meu objetivo era calar a boca de todos, tinha conseguido. Os três pareciam atordoados.
Adrian foi o primeiro a falar.
- Vou supor que isso significa que ele vai levá-la para Amsterdã no jatinho particular dele. Se for isso, gostaria de ir junto. Mas não por causa dos moinhos.
- Tem um parque eólico enorme ao norte de Palm Springs - expliquei. - É um dos poucos no mundo que promove excursões abertas.
Mais olhares atordoados.
- Energia eólica é uma excelente fonte de energia renovável que pode ter um impacto imenso no futuro do país! - exclamei, irritada. - É legal.
- Legal - Adrian disse. - Já entendi tudo. Boa brisa pra vocês, Sage.
- Isso não tem nada a ver com...
As portas de vidro da sala se abriram e Dimitri e Sonya entraram, trazendo nosso anfitrião, Clarence. Eu ainda não o tinha visto desde que chegara e esbocei um sorriso
educado, feliz pela distração da minha vida “amorosa”.
- Olá, sr. Donahue - eu disse. - É um prazer vê-lo de novo.
- Hein? - O velho Moroi estreitou os olhos para mim e, depois de alguns instantes, pareceu me reconhecer. Ele tinha cabelo branco e sempre se vestia como se estivesse
num jantar formal de cinquenta anos atrás. - Ah, você. Que bom que você veio, minha filha. O que a traz aqui?
- O fornecimento de Jill, senhor.
Fazíamos isso duas vezes por semana, mas a memória de Clarence já não era a mesma de antigamente. Ele já era muito dispersivo quando nos conhecemos, mas a morte
do filho, Lee, parecia ter levado o velho ao limite, ainda mais porque, aparentemente, ele não acreditava na morte do filho. Mais de uma vez contamos com toda a
delicadeza que Lee havia morrido, deixando de fora a parte da história com as Strigoi. Sempre que fazíamos isso, Clarence insistia que Lee tinha “dado uma saída”
e que voltaria mais tarde. Dispersivo ou não, Clarence era sempre gentil e relativamente inofensivo - para um vampiro, óbvio.
- Ah, sim, claro. - Ele se acomodou na enorme poltrona e voltou o olhar para Dimitri e Sonya. - E então? Vocês conseguem consertar as fechaduras da janela? - Aparentemente
eles vinham tendo uma discussão à parte antes de se juntarem a nós.
Dimitri parecia estar procurando uma maneira gentil de responder. Sua beleza estava deslumbrante como sempre; vestia jeans e camiseta, com um sobretudo de couro
por cima. Eu não podia imaginar como alguém conseguia sobreviver em Palm Springs usando um sobretudo como aquele, mas acho que se alguém era capaz, esse alguém era
ele. Normalmente ele usava dentro de casa, mas eu já o tinha visto com o sobretudo na rua. Eu tinha mencionado aquela escolha inusitada de roupa para Adrian algumas
semanas antes: “Dimitri é muito sexy, né?”. A resposta de Adrian não fora de todo surpreendente: “Bem, sim, pelo menos de acordo com a maioria das mulheres”.
A expressão de Dimitri era a pura imagem da cortesia quando respondeu às preocupações do Clarence.
- Não acredito que haja algum problema nas fechaduras desta casa - Dimitri disse. - Todas estão muito bem fechadas.
- É o que parece - Clarence retrucou, sombrio. - Mas nunca se sabe o quanto eles estão preparados. Eu não estou tão desatualizado assim. Sei que existem várias tecnologias
por aí que podem ser instaladas. Como lasers que avisam se alguém está tentando invadir sua casa.
- O senhor quer dizer um sistema de segurança? - Dimitri perguntou, arqueando a sobrancelha.
- Sim, isso mesmo - Clarence respondeu. - Vai manter os caçadores bem longe.
O surgimento desse assunto não foi exatamente inesperado. A paranoia de Clarence também havia se agravado, ainda mais, nos últimos tempos. Ele vivia sob o medo constante
do que afirmava serem “caçadores de vampiros”, humanos que... bem, caçavam vampiros. Havia muito tempo, ele alegava serem eles os responsáveis pela morte de sua
sobrinha, e que os relatos de que ela fora morta por um Strigoi eram falsos. Descobriu-se, no fim, que em parte ele tinha razão. A morte dela não tinha sido causada
por um Strigoi, mas por Lee, numa tentativa desesperada de deixar de ser Moroi e voltar a ser Strigoi. No entanto, Clarence se recusava a aceitar isso e insistia
em suas crenças sobre caçadores de vampiros. Meus argumentos de que os alquimistas não tinham registro da existência de nenhum grupo como esse desde a Idade Média
eram inúteis. Por isso, Clarence estava sempre pedindo que as pessoas fizessem “verificações de segurança” na casa dele. Como Dimitri e Sonya estavam hospedados
ali, essa tarefa maçante costumava recair sobre eles.
- Não sou qualificado para instalar um sistema de segurança - Dimitri disse.
- Sério? Então existe alguma coisa que você não consegue fazer?
Adrian falou tão baixo que eu, que estava sentada ao seu lado, mal consegui ouvir. Duvidei até que os outros, mesmo com sua audição excepcional, tivessem entendido
o que ele havia dito. Por que Dimitri ainda o afeta tanto?, me perguntei.
- Seria preciso contratar profissionais - Dimitri continuou, dirigindo-se a Clarence -, mas imagino que o senhor não iria gostar de ter um monte de estranhos entrando
e saindo da sua casa.
- É verdade - Clarence disse, franzindo a testa. - Seria muito fácil para os caçadores se infiltrarem.
Dimitri era a imagem da paciência.
- Enquanto eu estiver aqui, vou checar todas as portas e janelas diariamente, só para garantir.
- Ótimo - Clarence concordou, relaxando um pouco. - Admito que não faço muito o tipo dos caçadores. Não sou tão perigoso. Não mais, pelo menos - ele disse, rindo
para si mesmo. - Mesmo assim, nunca se sabe o que pode acontecer. É melhor prevenir do que remediar.
Sonya abriu um sorriso brando.
- Tenho certeza de que tudo vai ficar bem. O senhor não precisa se preocupar com nada.
Os olhos de Clarence fitaram os dela e, após alguns instantes, lentamente ele também abriu um sorriso. Sua postura rígida relaxou.
- Sim, sim. Você está certa. Não preciso me preocupar com nada.
Senti um arrepio. Convivia com os Moroi havia tempo suficiente para entender o que acabara de acontecer. Sonya usara a compulsão - apenas um pouquinho dela - para
acalmar Clarence. A compulsão, o poder de forçar sua vontade aos outros, era uma habilidade que todos os Moroi possuíam, em graus variados. A dos usuários de espírito
era a mais forte, igualando-se à dos Strigoi. Usar compulsão em outras pessoas era um tabu entre os Moroi, e os que abusavam dessa habilidade sofriam graves consequências.
Supus que as autoridades Moroi fariam vista grossa por ela estar tranquilizando um velhinho ansioso, mas aquela ação, ainda que pequena, me incomodava. Sempre considerei
a compulsão um dos poderes mais traiçoeiros dos Moroi. E Sonya realmente precisava tê-la usado? Ela já era tão doce e calma. Será que isso não bastaria para tranquilizar
Clarence? Às vezes eu tinha a impressão de que eles usavam magia só por usar. Às vezes, me perguntava se a usavam perto de mim... sem que eu percebesse.
A insistência de Clarence sobre caçadores de vampiros sempre gerava um misto de deboche e mal-estar em todos nós. Depois que ele se acalmou (ainda que eu não aprovasse
a maneira como isso tinha sido feito), conseguimos relaxar um pouco. Sonya se recostou no sofá, bebendo um coquetel de frutas que parecia perfeito para aquele dia
quente. Por suas roupas sujas e seu cabelo desgrenhado, eu podia apostar que ela havia passado um tempo no jardim - mesmo assim, continuava linda. Em sua maioria,
os Moroi evitavam o sol forte, mas o amor dela pelas plantas era tão grande que não se importava de correr o risco para cuidar de algumas das pobres flores abandonadas
do jardim do Clarence. Um forte filtro solar podia fazer milagres.
- Não vou poder ficar muito mais tempo - ela disse. - Só mais algumas semanas, no máximo. Preciso voltar para planejar meu casamento com Mikhail.
- Quando é o grande dia mesmo? - Adrian perguntou.
Ela sorriu.
- Em dezembro. - O que me surpreendeu, até ela acrescentar: - Tem uma estufa tropical gigantesca perto da Corte, que vamos usar. É magnífica, mas na verdade isso
não importa. Mikhail e eu poderíamos nos casar em qualquer lugar. O que importa é estarmos juntos. Mas, claro, se dá pra escolher, melhor que seja com toda a pompa,
né?
Até eu sorri. Só mesmo Sonya para encontrar uma área verde em pleno inverno da Pensilvânia.
- Dimitri talvez fique - ela continuou. - Mas seria bom se conseguíssemos fazer algum progresso antes da minha partida. Os testes de aura até agora foram...
- Inúteis? - Adrian sugeriu.
- Eu ia dizer inconclusivos - ela respondeu.
Adrian meneou a cabeça.
- Então a gente perdeu todo esse tempo?
Sonya não respondeu; em vez disso, preferiu tomar outro gole da bebida. Eu podia apostar que não era alcoólica - afinal, Sonya não costumava se intoxicar como Adrian
-, e que Dorothy me faria uma se eu pedisse. Mesmo assim, também podia apostar que seria péssimo para mim. Talvez eu devesse ver se tinha alguma Coca Diet na geladeira.
Sonya se inclinou para a frente, com um lampejo de entusiasmo nos olhos.
- Dimitri e eu estávamos conversando e percebemos que tem uma coisa óbvia que deixamos passar. Na verdade, que temos evitado, mas não ir atrás disso seria um desperdício.
- O quê? - Adrian perguntou.
- Sangue - Dimitri respondeu.
Estremeci. Não gostava quando esse assunto vinha à tona. Me lembrava exatamente do tipo de pessoas com quem eu estava convivendo.
- É óbvio que existe alguma coisa nos Strigoi restaurados que protege a sua condição... a nossa condição - Dimitri continuou. - Procuramos por sinais mágicos, mas
a resposta pode estar num nível mais físico. E, de acordo com o relatório que li, as Strigoi tiveram problemas para beber o sangue de L... dele. - Dimitri estava
prestes a dizer Lee, mas se conteve por respeito a Clarence. O olhar vago e alegre do velho tornava difícil perceber se ele estava entendendo alguma coisa da conversa.
- Elas reclamaram - concordei. - Mas isso não as impediu de beber.
Era possível transformar alguém em Strigoi à força se um desses vampiros macabros drenasse o sangue da vítima e então lhe desse sangue Strigoi para beber. Lee havia
pedido que uma Strigoi fizesse isso com ele, mas tudo que a drenagem lhe rendeu foi sua própria morte.
- Queríamos pegar uma amostra do sangue de Dimitri e então comparar com o seu, Eddie. - Sonya disse. - O sangue pode conter todo tipo de propriedades mágicas, e
talvez elas nos mostrem como combater os Strigoi.
Procurei me manter o mais inexpressiva possível, torcendo para que ninguém me notasse. O sangue pode conter todo tipo de propriedades mágicas. Com sorte, durante
a conversa ninguém lembraria que meu sangue era inexplicavelmente repulsivo para os Strigoi. E, sinceramente, por que eles lembrariam? Eu nunca havia sido restaurada.
Não era uma dampira. Não havia motivo nenhum para desejarem minha participação naqueles experimentos. Mas se isso era verdade, por que de repente comecei a suar?
- Podemos enviar a um laboratório para analisar a parte química e tentar ler alguma propriedade mágica também - Sonya continuou. Seu tom era de desculpas, mas Eddie
não pareceu incomodado.
- Sem problemas - ele disse. - Estou à disposição. - Eu tinha certeza de que estava sendo sincero. Para ele, perder um pouco de sangue era mil vezes mais fácil do
que ficar parado sem poder fazer nada. Além disso, ele devia perder muito mais sangue no treinamento diário do que chegaria a dar àquele experimento.
- Se precisar de mais uma dampira - Angeline disse -, pode contar comigo. Eddie e eu podemos ajudá-la juntos. Formaríamos uma equipe. Sydney não precisaria mais
nos acompanhar, ainda mais agora que está namorando.
Havia tantas coisas erradas no que ela disse que eu não sabia por onde começar. A convicção que Eddie havia demonstrado quanto a ceder seu sangue desapareceu ao
som de “formaríamos uma equipe”.
- Vamos pensar a respeito - Sonya disse. Havia uma faísca em seu olhar, e lembrei de ouvi-la dizer que era fácil enxergar afeto nas auras. Será que conseguia detectar
a paixonite da Angeline? - Por enquanto, acho melhor não atrapalhar os estudos de vocês. Como Eddie já se formou, para ele a escola não tem tanta importância, mas
você não pode ficar para trás.
Angeline pareceu contrariada. Ela vinha tendo muitas dificuldades na escola, sem mencionar alguns vexames absolutos, como quando a mandaram desenhar um mapa da América
Central e ela apareceu com um de Nebraska e do Kansas. Ela mantinha uma postura arrogante, mas eu sabia que Amberwood a sobrecarregava de vez em quando.
Jill se juntou a nós, parecendo reluzente e revigorada. O ideal para os Moroi era beber sangue diariamente. Eles conseguiam sobreviver nesse esquema de duas vezes
por semana, mas eu percebia que Jill ia ficando cada vez mais cansada e desgastada até chegar o próximo fornecimento.
- Adrian, sua vez - ela disse.
Ele estava bocejando e pareceu sobressaltado ao ser notado. Não achei que estivesse muito interessado nos experimentos com sangue de que Sonya estava falando. Ao
se levantar, voltou os olhos para mim.
- Quer dar uma voltinha, Sage? - Antes que eu pudesse protestar, ele acrescentou: - Não se preocupe, não vou levar você para o fornecimento. Só quero fazer uma pergunta.
Assenti e o segui para fora da sala. Assim que ficamos longe dos outros, eu disse:
- Não quero ouvir mais nenhum comentário “espertinho” sobre Brayden.
- Meus comentários são hilários, não espertinhos. Mas não é sobre isso que eu queria conversar. - Ele parou no meio do corredor, em frente à porta que supus ser
do quarto de Dorothy. - Então, parece que meu pai virá a San Diego a negócios no fim de semana. - Me encostei à parede e cruzei os braços, já sentindo um mau pressentimento.
- É claro que ele não sabe por que estou aqui, nem mesmo que estou com Jill. Ele nem sabe em que cidade estou morando. Acha que estou curtindo a Califórnia, fazendo
besteira como sempre.
Não fiquei surpresa ao descobrir que o sr. Ivashkov não sabia o verdadeiro motivo para Adrian estar ali. A “ressurreição” de Jill era ultrassecreta, assim como sua
localização. Não podíamos correr o risco de que outra pessoa, mesmo alguém que não representasse uma ameaça para Jill, descobrisse onde ela estava.
O que me surpreendia era Adrian se esforçar tanto para fingir que não ligava para o que o pai pensava, quando era óbvio que se importava. Sua expressão era convincente,
mas havia uma amargura em sua voz que acabou por entregá-lo.
- Enfim - Adrian continuou. - Ele disse que almoçaria comigo se eu quisesse. Normalmente, eu diria que não... mas gostaria de saber como minha mãe está; ele nunca
me fala nada quando ligo ou mando e-mail.
Mais uma vez percebi sentimentos conflitantes. A mãe de Adrian cumpria pena numa prisão Moroi por crimes de conspiração. Era difícil perceber pela atitude arrogante
e pelo senso de humor dele, mas devia ter sido um golpe duro para Adrian.
- Me deixe adivinhar - eu disse. - Você quer meu carro emprestado?
Eu era solidária com pessoas que tinham problemas com os pais, até mesmo Adrian. Mas minha compaixão tinha limites e não se estendia ao Pingado. Não podia arriscar
nenhuma batida. Além do mais, a ideia de ficar presa, sem poder dirigir por aí, me dava medo, ainda mais com vampiros envolvidos na história.
- Não, de jeito nenhum - ele disse. - Sei que você não emprestaria por nada nesse mundo.
Ah, é?
- Então o que você quer? - perguntei, surpresa.
- Queria que você me levasse até lá.
- Adrian - resmunguei -, são duas horas de viagem.
- O caminho é praticamente uma reta só - ele ressaltou. - E imaginei que você preferiria dirigir por quatro horas, ida e volta, a emprestar o carro para alguém.
Olhei para ele.
- Isso é verdade.
Ele se aproximou, com uma expressão tão sincera que me deixou desconcertada.
- Por favor, Sage. Eu sei que é pedir demais, então nem vou fingir que você vai ganhar alguma coisa com isso. Quer dizer, você pode passar o dia inteiro lá em San
Diego, fazendo o que quiser. Sei que não é a mesma coisa do que ver painéis solares ou sei lá o quê com Brady, mas vou ficar devendo uma para você, em todos os sentidos.
Depois te pago o dinheiro da gasolina.
- É Brayden, e onde diabos você conseguiria dinheiro para a gasolina?
Adrian vivia com uma pequena mesada que o pai lhe mandava. Esse era um dos motivos para ele assistir às aulas na faculdade, com a esperança de conseguir algum auxílio
financeiro no semestre seguinte e aumentar um pouco a renda. Eu admirava aquilo, mas se todos ainda estivéssemos em Palm Springs em janeiro, significaria que os
Moroi estariam com graves problemas políticos.
- Eu... eu cortaria algumas coisas para conseguir o dinheiro extra - ele disse, depois de alguns segundos de hesitação.
Não me esforcei para esconder a surpresa. “Coisas” provavelmente significavam álcool e cigarros, para onde ia a maior parte de sua minúscula mesada.
- Sério? - indaguei. - Você pararia de beber para ver seu pai?
- Bem, não para sempre - ele admitiu. - Isso seria ridículo. Mas talvez eu consiga trocar por alguma coisa mais barata por um tempo. Tipo... raspadinhas. Você não
imagina o quanto eu gosto daquilo. De cereja, principalmente.
- Humm, não mesmo - eu disse. Adrian se distraía facilmente com assuntos malucos e objetos brilhantes. - São açúcar puro.
- Delícia pura, você quer dizer. Não bebo uma das boas há séculos.
- Você está fugindo do assunto - alertei.
- Ah, é. Então, mesmo que eu tenha que me alimentar à base de raspadinhas ou sei lá o quê, você vai ver a cor desse dinheiro. E isso nos leva ao outro motivo...
Eu meio que estou esperando que ele aceite aumentar minha mesada. Pode até ser difícil de acreditar, mas eu odeio pegar dinheiro emprestado. Para o meu pai, é mais
fácil fugir do assunto por telefone, mas cara a cara... Ele não tem como escapar. Além disso, ele acha mais “viril” e “respeitável” pedir as coisas diretamente.
A clássica conduta de honra de Nathan Ivashkov.
De novo a amargura. Talvez um pouco de raiva também. Estudei Adrian por um tempo antes de responder. O corredor estava escuro, o que lhe dava vantagem. Era provável
que ele estivesse enxergando perfeitamente enquanto alguns detalhes eram difíceis para eu distinguir. Aqueles olhos verdíssimos que eu tanto admirava pareciam escuros
agora. A dor no seu rosto, porém, era completamente visível. Ele ainda não tinha aprendido a esconder seus sentimentos de Jill e do laço, mas eu sabia que tentava
manter aquela atitude desleixada e inconsequente para o resto do mundo... exceto para mim, nos últimos tempos. Aquela não era a primeira vez em que eu o via vulnerável,
e me parecia estranho que era para mim, entre todas as pessoas, que ele expunha seus sentimentos. Será que era mesmo estranho? Talvez fosse só minha falta de traquejo
social me confundindo de novo. Fosse o que fosse, aquilo mexia comigo.
- É essa a questão mesmo? Dinheiro? - perguntei, deixando de lado minhas outras inquietações. - Você não gosta dele. Deve haver alguma outra coisa.
- Em grande parte é pelo dinheiro. Mas eu estava falando a verdade antes... sobre a minha mãe. Preciso saber como ela está, e ele nunca me fala dela. Sério, ele
finge que aquilo nunca aconteceu, seja para manter a reputação ou talvez... talvez porque aquilo o magoe. Não sei, mas, como eu disse, ele não poderá fugir quando
estivermos cara a cara. Além disso... - Adrian desviou o olhar por um instante antes de reunir coragem para voltar a me encarar. - Não sei. É idiota. Mas achei que...
bem, talvez ele ficasse impressionado por eu estar levando a faculdade a sério dessa vez. Mas provavelmente não.
Senti um aperto no coração por ele e suspeitei que essa última parte - ganhar a aprovação do pai - era muito mais importante do que Adrian conseguia admitir. Eu
sabia como era ter um pai que estava sempre te julgando, e para quem nada era bom o bastante. Entendia também seus sentimentos conflitantes... Como, num dia, você
poderia dizer que não se importava, e no dia seguinte ansiar por uma espécie de aprovação. E, sem dúvida, entendia seu apego à mãe. Uma das maiores dificuldades
para mim em Palm Springs era a distância que eu ficava em relação à minha mãe e às minhas irmãs.
- Por que eu? - deixei escapar. Não queria tocar nesse assunto, mas de repente não consegui me conter. Havia tanta tensão ali, tanto sentimento. - Você podia ter
pedido para Sonya ou Dimitri levarem você. Talvez eles até o deixassem pegar emprestado o carro alugado deles.
A sombra de um sorriso perpassou o rosto de Adrian.
- Não tenho muita certeza disso. E acho que você sabe muito bem por que eu não gostaria de ficar preso num carro com nosso amigo russo. Quanto ao resto... não sei,
Sage. Tem alguma coisa em você... Você não critica como os outros. Quer dizer, critica, sim. Você é a pessoa que mais critica aqui em alguns aspectos. Mas é honesta
em relação a isso. Eu me sinto... - O sorriso foi se desfazendo conforme ele buscava a palavra certa. - À vontade com você, acho.
Não tinha como refutar aquilo, apesar de eu achar irônico ele se dizer à vontade perto de mim, ao passo que eu ainda tinha ataques de pânico perto dos Moroi. Você
não é obrigada a ajudá-lo, alertou uma voz dentro de mim. Você não deve nada a ele. Você não deve nada a nenhum Moroi além do estritamente necessário. Esqueceu do
Keith? Isso não faz parte do seu trabalho. A imagem do abrigo subterrâneo voltou à minha memória e me lembrei de como uma transação com vampiros tinha levado Keith
à reeducação. O que podia dizer de mim? A interação social era parte inevitável da minha missão, mas eu estava ultrapassando os limites outra vez.
- Certo - concordei. - Levo você. Me avise por e-mail o horário em que precisará ir.
Foi aí que veio a parte mais engraçada. Ele pareceu completamente embasbacado.
- Sério mesmo?
Não consegui conter o riso.
- Você fez todo esse discurso e realmente não esperava que eu fosse aceitar, não é?
- Não - ele admitiu, ainda visivelmente admirado. - Quando se trata de você, nunca tenho certeza. Sabe, eu trapaceio com as pessoas. Quer dizer, sou bom em ler as
expressões faciais, mas percebo muita coisa pelas auras também e finjo que é graças à minha boa intuição. Mas ainda não aprendi a compreender os humanos totalmente.
Vocês têm as mesmas cores, mas um quê de diferente.
Auras não me causavam tanto estranhamento quanto outras magias dos vampiros, mas eu ainda não me sentia à vontade com elas.
- De que cor é a minha?
- Amarela, óbvio.
- Por que “óbvio”?
- As de pessoas inteligentes e analíticas costumam ser amarelas. Mas você tem um pouquinho de roxo aqui e ali. - Mesmo na penumbra, pude notar uma faísca maliciosa
em seu olhar. - É isso que torna você interessante.
- O que o roxo significa?
Adrian encostou a mão na porta.
- Preciso ir, Sage. Não posso deixar Dorothy esperando.
- Ah, vamos lá! O que o roxo significa? - perguntei, tão curiosa que quase o segurei pelo braço.
Ele girou a maçaneta.
- Só se você se juntar a nós.
- Adrian...
Ele entrou no quarto rindo e fechou a porta. Me recompus e comecei a voltar para a sala, mas decidi procurar minha Coca Diet antes. Fiquei na cozinha bebendo por
um tempo, encostada no balcão de granito, fitando distraidamente as panelas de cobre brilhantes penduradas em cima. Por que eu tinha aceitado levar Adrian? O que
havia nele que conseguia quebrar toda a retidão e lógica em torno das quais eu construíra minha vida? Eu entendia por que muitas vezes tinha um fraco por Jill. Ela
me lembrava minha irmã mais nova, Zoe. Mas Adrian? Ele não se parecia em nada com ninguém que eu conhecesse. Na verdade, eu tinha quase certeza de que não havia
ninguém no mundo que parecesse com Adrian Ivashkov.
Passei tanto tempo ali que, ao voltar para a sala, Adrian também estava voltando. Sentei no sofá, bebendo lentamente os últimos goles do refrigerante. Sonya abriu
um sorriso ao me ver.
- Sydney, acabamos de ter uma ideia ótima.
Apesar de nem sempre ser boa em captar os sinais das pessoas, notei que essa ideia ótima era direcionada a mim, e não a mim e Adrian.
- Estávamos falando sobre os relatos daquela noite do... incidente. - Ela lançou um olhar significativo para Clarence, e eu assenti, compreensiva. - Tanto os Moroi
como os alquimistas disseram que as Strigoi tiveram problemas com o seu sangue também, certo?
Fiquei tensa; não estava gostando nada daquilo. Temia aquela conversa fazia semanas. As Strigoi que mataram Lee não tiveram apenas “problemas” com o meu sangue.
O de Lee tinha um gosto estranho para elas. Mas o meu era repulsivo. A Strigoi que tentou beber de mim não tinha conseguido nem dar um gole. Chegou até a cuspir.
- Sim... - eu disse, cautelosa.
- Claro que você não é uma Strigoi restaurada - Sonya disse. - Mas queríamos dar uma olhada no seu sangue também. Talvez alguma coisa possa nos ajudar. Uma amostra
pequena já seria suficiente.
Todos os olhos se voltaram para mim, até mesmo os de Clarence. A sala parecia se fechar ao meu redor conforme um pânico conhecido tomava conta do meu corpo. Nunca
tinha pensado muito sobre por que as Strigoi não tinham gostado do meu sangue - na verdade, até evitava pensar sobre isso. Não queria acreditar que havia alguma
coisa especial em mim. Não era possível que houvesse. Eu não queria atrair a atenção de ninguém. Uma coisa era ajudar nos experimentos, outra era virar cobaia. Se
me quisessem para um teste, poderiam me querer para outro. E depois outro. E eu acabaria trancafiada, esquadrinhada e futucada.
Somava-se a isso o fato de eu não querer dar meu sangue. Não importava o quanto gostasse de Sonya e Dimitri. Não importava que o sangue seria retirado com uma agulha
e não com os dentes. O conceito básico era o mesmo, e violava um dos princípios primordiais dos alquimistas: dar sangue aos vampiros era errado. Aquele era o meu
sangue. Meu. Ninguém, muito menos os vampiros, tinha nada a ver com ele.
Engoli em seco, com a esperança de não dar na cara que meu desejo era sair correndo.
- Foi a opinião de apenas uma Strigoi. E vocês sabem que eles não gostam tanto de humanos quanto de... vocês. - Esse era um dos motivos pelos quais os Moroi viviam
com medo e tiveram seu número reduzido ao longo do tempo. Eles eram uma especiaria da culinária Strigoi. - Deve ser só isso.
- Talvez - Sonya disse. - Mas não faz mal dar uma olhadinha. - Seu rosto estava iluminado com essa nova ideia. Eu odiava desapontá-la... mas meus princípios nessa
questão eram fortes demais. Tinha sido criada para acreditar neles.
- Acho que é perda de tempo - eu disse. - A gente sabe que o espírito precisa estar envolvido e eu não tenho nenhuma ligação com isso.
- Eu realmente acho que pode ser útil - ela disse. - Por favor.
Útil? Do ponto de vista dela, sim. Ela queria descartar todas as possibilidades. Mas meu sangue não tinha nada a ver com as conversões de Strigoi. Não tinha como.
- Eu... acho melhor não.
Uma resposta controlada, considerando a violência das emoções que se engalfinhavam dentro de mim. Meu coração começou a bater mais forte e as paredes da sala pareciam
se fechar cada vez mais. Minha ansiedade crescia conforme eu era tomada por um sentimento conhecido, a terrível percepção de que eu estava em minoria na casa de
Clarence. Era eu e uma sala cheia de vampiros e dampiros. Criaturas antinaturais. Criaturas antinaturais que queriam meu sangue...
Dimitri me examinou, curioso.
- Não vai doer, se é disso que você tem medo. Não vamos retirar nada além do que um médico tiraria.
Balancei a cabeça, inflexível.
- Sonya e eu somos treinados nesse tipo de coisa - ele acrescentou, tentando me transmitir segurança. - Você não precisa se preocupar em...
- Ela disse que não, tudo bem?
Todos os olhos que estavam voltados para mim de repente se lançaram na direção de Adrian. Ele se inclinara para a frente, fixando o olhar em Sonya e Dimitri, e vi
naqueles belos olhos uma coisa que nunca tinha visto antes: ira. Pareciam esmeraldas em chamas.
- Quantas vezes ela precisa recusar? - ele interpelou. - Se ela não quer, não quer e ponto final. Isso não tem nada a ver com ela. É o nosso projeto de ciências.
Ela está aqui para proteger Jill e já tem coisa demais para fazer. Então parem de atormentá-la!
- “Atormentar” é uma palavra meio forte - Dimitri disse, calmo apesar da explosão do Adrian.
- Não quando você fica pressionando alguém que quer ser deixada em paz - Adrian rebateu. Ele me lançou um olhar de preocupação, antes de voltar a fúria contra Sonya
e Dimitri. - Parem de se unir contra ela.
Sonya olhou de mim para ele, em dúvida. Ela parecia realmente magoada. Por mais astuta que fosse, acho que nunca tinha percebido o quanto aquilo me incomodava.
- Adrian... Sydney... não estamos tentando irritar ninguém. Só queríamos muito levar isso a cabo. Pensei que vocês todos também quisessem. Sydney sempre nos apoiou
muito.
- Não importa - Adrian vociferou. - Pegue o sangue de Eddie. Pegue o de Belikov. Pegue o seu também que pouco me importo. Mas se ela não quer dar o dela, então pronto.
Ela disse que não. Fim de papo. - Alguma parte remota de mim percebeu que aquela era a primeira vez que eu via Adrian confrontar Dimitri. Normalmente Adrian simplesmente
o ignorava, e esperava ser ignorado de volta.
- Mas... - Sonya começou.
- Deixa pra lá - Dimitri disse. Era sempre difícil interpretá-lo, mas havia uma suavidade em sua voz. - Adrian está certo.
Como era de se esperar, o ambiente ficou um pouco tenso depois disso tudo.
Houve algumas tentativas fracassadas de conversa casual que mal notei. Meu coração ainda estava acelerado, e eu ainda não tinha recuperado o fôlego. Me esforçava
muito para ficar calma, garantindo a mim mesma que aquela conversa tinha chegado ao fim, que Sonya e Dimitri não iriam me interrogar ou drenar meu sangue à força.
Tomei coragem e olhei para Adrian. Ele não parecia mais nervoso, mas ainda havia certa ferocidade ali. Era quase... protetora. Uma sensação estranha e quente se
retorceu em meu peito, e, por um breve instante, enquanto olhava para ele, me senti... segura. Essa não era minha sensação usual perto dele. Lancei a ele um olhar
tentando demonstrar gratidão. Ele deu um breve aceno em retorno.
Ele sabe, percebi. Sabe como me sinto em relação aos vampiros. Claro que todos eles sabiam. Os alquimistas não escondiam nossa convicção de que, em sua maioria,
vampiros e dampiros eram criaturas das trevas que não tinham por que interagir com os humanos. Mas, como eu passava muito tempo com eles, não acreditava que o grupo
em Palm Springs realmente entendesse a profundidade dessa crença. Eles entendiam em tese, mas não sentiam na pele. Não tinham por quê, já que raramente viam evidências
disso em mim.
Mas Adrian entendia. Eu não sabia como, mas ele entendia. Lembrei das poucas vezes em que eu havia perdido o controle perto deles desde que chegara a Palm Springs.
Uma foi num percurso de minigolfe, quando Jill usou sua magia de água. Outra com Lee e as Strigoi, quando Adrian se ofereceu para me curar com sua magia. Aqueles
foram pequenos lapsos de controle que ninguém mais notou. Exceto Adrian.
Como seria possível que Adrian Ivashkov, que parecia nunca levar nada a sério, era o único entre as pessoas “responsáveis” ali que prestava atenção a esses detalhes?
Como era possível que ele fosse o único que realmente entendia a intensidade do meu sentimento?
Chegada a hora de irmos, levei Adrian para casa e os outros que estudavam comigo para Amberwood. O silêncio continuou no carro. Depois que Adrian desceu, Eddie relaxou
um pouco e balançou a cabeça.
- Nossa! Acho que nunca tinha visto Adrian tão bravo. Na verdade, acho que nunca tinha visto Adrian bravo antes.
- Ele não estava tão bravo assim - eu disse, evasiva, com os olhos fixos na estrada.
- Pra mim, ele parecia furioso - Angeline retorquiu. - Pensei que fosse pular em cima de Dimitri.
- Acho que ele não chegaria a esse ponto - Eddie zombou.
- Sei não - ela cismou. - Acho que ele estava disposto a encarar qualquer um que mexesse com você, Sydney.
Continuei com o olhar fixo na rodovia, recusando-me a olhar para eles. O confronto todo havia me deixado confusa. Por que Adrian tinha me protegido?
- Eu me ofereci para fazer um favor a ele na semana que vem - eu disse. - Acho que ele sente que está me devendo uma.
Jill, sentada ao meu lado no banco do passageiro, estivera em silêncio até aquele momento. Por causa do laço, talvez ela soubesse a resposta.
- Não - ela disse, com um tom intrigado na voz. - Ele teria feito isso por você de qualquer jeito.
7
PASSEI A MAIOR PARTE DO DIA SEGUINTE lutando contra minha recusa em ajudar Sonya, refletindo sobre minha decisão enquanto ia de uma aula para outra. Em parte, me
sentia muito mal por não ceder meu sangue para os experimentos. Afinal, sabia da importância deles. Se houvesse uma maneira de impedir que os Moroi fossem transformados
em Strigoi, teoricamente também seria possível aplicá-la aos seres humanos, o que poderia revolucionar as operações alquimistas. Pessoas medonhas como Liam, o prisioneiro
do abrigo subterrâneo, não seriam mais uma ameaça. Ele poderia ser “esterilizado” e liberado, sem o risco de que se tornasse vítima da maldade dos Strigoi. Eu sabia
também que Sonya e os outros não estavam chegando a lugar algum com a pesquisa. Eles não conseguiam descobrir o motivo que impedira Lee de se transformar em Strigoi
novamente.
Ao mesmo tempo, apesar da importância da causa, me sentia fortemente contrária à ideia de ceder meu sangue. Eu realmente temia que, ao aceitar isso, acabaria tendo
que me sujeitar a mais e mais experimentos. E eu não conseguia lidar com isso. Eu não tinha nada de especial. Não tinha passado por nenhuma transformação através
do espírito. Eu e Lee nunca tivemos nada em comum. Eu era igual a qualquer outro ser humano, a qualquer outro alquimista. Meu sangue simplesmente parecia ter gosto
ruim, o que não importava para mim.
- Fale-me sobre o feitiço de encantamento - a sra. Terwilliger pediu, numa tarde alguns dias depois dos eventos na casa de Clarence. Eu ainda estava pensando sobre
o que tinha acontecido enquanto, teoricamente, trabalhava no estudo independente com ela.
Levantei os olhos do livro na minha frente.
- Qual versão? A de carisma ou a meta?
Ela estava sentada à sua mesa e abriu um sorriso.
- Para alguém que é tão contra tudo isso, você está aprendendo muito bem. Estou falando da versão meta.
Eu aprendera aquele feitiço recentemente. Ainda estava fresco na minha memória, mas fiz questão de soltar um forte suspiro para que ela soubesse - ainda que de forma
sutil - o quanto aquilo me incomodava.
- Ele permite que quem lança o feitiço tenha um controle breve sobre outra pessoa. Para isso é necessário criar um amuleto, usá-lo... - franzi a testa, considerando
essa parte do feitiço. - E então recitar um pequeno encantamento sobre a pessoa a ser controlada.
- Por que a hesitação? - a sra. Terwilliger quis saber, ajeitando os óculos.
Ela notava qualquer vacilo. Eu não queria me dedicar àqueles estudos, mas ela era minha professora e aquilo fazia parte das minhas tarefas enquanto estivesse presa
àquela aula miserável.
- Não faz sentido. Bom, nada disso faz sentido, claro. Mas, do ponto de vista lógico, acho que falta alguma coisa tangível na vítim... no enfeitiçado. Talvez ele
também precise usar um amuleto. Ou beber alguma coisa, sei lá. É difícil acreditar que só quem lança o feitiço precisaria de um reforço. Acho que seria necessário
se conectar com a outra pessoa.
- Você usou a palavra-chave - ela disse. - Reforço. O amuleto reforça o desejo de quem lança o feitiço, assim como recitar o encantamento. Se isso for feito da maneira
correta, e quem lançar o feitiço estiver num grau avançado e poderoso o suficiente, o poder de comando é impelido sobre o enfeitiçado. Talvez não pareça tangível,
mas a mente é uma ferramenta poderosa.
- Poder de comando - murmurei. Sem pensar, fiz o sinal alquimista contra o mal. - Isso não parece nada certo.
- Existe alguma diferença em relação à compulsão que seus amigos vampiros usam?
Congelei. Fazia muito tempo que a sra. Terwilliger tinha admitido conhecer o mundo dos Moroi e Strigoi, mas aquele ainda era um assunto que eu evitava comentar com
ela. A magia da minha tatuagem não me impedia de discutir o mundo dos vampiros com pessoas que já soubessem a respeito dele, mas eu não queria revelar acidentalmente
nenhum detalhe sobre minha missão específica com Jill. Mesmo assim, o que ela disse me causou um sobressalto. Aquele feitiço era muito parecido com a compulsão,
com o que vi Sonya usar para tranquilizar Clarence. Os vampiros podiam simplesmente usá-la, sem nenhuma forma de auxílio. Já aquele feitiço exigia um componente
físico, mas a sra. Terwilliger havia me dito que isso era normal para os humanos. Ela disse que a magia era inata para os Moroi, mas que nós precisávamos arrancá-la
do mundo à força. Para mim, só parecia ser outro motivo para os humanos não se meterem nesses assuntos.
- O que eles fazem também é errado - retorqui, numa das raras vezes em que admiti a existência dos Moroi diante dela. Não gostava nada da ideia de que os poderes
que eu considerava tão perversos e intoleráveis também estivessem ao alcance dos humanos. - Ninguém deveria ter esse tipo de poder sobre ninguém.
- Você se acha muito superior a algo que sequer experimentou - ela ironizou.
- Nem sempre é preciso experimentar para saber. Eu nunca matei ninguém, mas sei que é errado.
- Não faça pouco-caso desses feitiços. Eles podem ser uma defesa muito útil - ela disse, dando de ombros. - Talvez dependa de quem usa, assim como um revólver ou
qualquer outra arma.
- Também não gosto nem um pouco de armas - respondi, fazendo cara feia.
- Exatamente por isso você devia achar a magia uma opção melhor. - Ela fez um pequeno gesto gracioso com as mãos e um pote de barro no parapeito da janela explodiu.
Estilhaços cortantes se espalharam pelo chão. Pulei da cadeira e recuei alguns passos. Então ela era capaz de fazer aquilo durante todo aquele tempo? E parecia não
ter feito esforço nenhum. Que tipo de dano conseguiria causar se realmente quisesse? Ela sorriu. - Viu? Muito eficaz.
Eficaz e simples - tão fácil quanto um vampiro usando magia elemental com a força do pensamento. Depois de todos os feitiços trabalhosos que eu andava vendo nos
livros, fiquei pasma ao ver uma magia tão “fácil”. Aquilo levava o que a sra. Terwilliger defendia a um nível inteiramente novo - e perigoso. Todo o meu corpo estava
tenso à espera de mais algum ato terrível, mas, a julgar pelo olhar sereno no rosto dela, aquela parecia ser a única demonstração de poder que tinha em mente - por
ora. Sentindo-me um pouco ridícula com a minha reação, voltei a me sentar.
Respirei fundo e escolhi as palavras com cuidado, buscando esconder minha raiva - e meu medo. Não seria nada bom ter um ataque na frente de uma professora.
- Por que a senhora continua fazendo isso?
A sra. Terwilliger inclinou a cabeça de lado, como um passarinho.
- Fazendo o quê, querida?
- Isto - respondi, batendo no livro à minha frente. - Por que a senhora continua me obrigando a trabalhar com isso, contra a minha vontade? Eu odeio, e a senhora
sabe. Não quero me meter em nada disso! Por que a senhora me faz aprender esses feitiços? O que a senhora ganha com isso? Existe um clube em que você recebe um bônus
por trazer um novo recruta?
Ela retomou o sorriso de deboche.
- Preferimos o termo clã, e não clube de bruxas. Embora até que soe bem. Mas, voltando à pergunta, não, eu não ganho nada com isso, pelo menos não do jeito que você
está pensando. Membros poderosos são sempre úteis para o clã, e você possui um potencial para a grandeza. Mas na verdade é mais do que isso. Você sempre argumenta
que é errado os humanos terem esse tipo de poder, certo?
- Certo - eu disse, cerrando os dentes. Tinha dito aquilo um milhão de vezes.
- Bem, essa é uma grande verdade... em relação a algumas pessoas. Você tem medo de que abusem desse tipo de poder, com razão. Isso acontece o tempo todo, e é por
isso que precisamos de pessoas boas e virtuosas que possam se opor àquelas que usam a magia para fins egoístas e nefastos.
O sinal tocou, indicando que eu estava livre. Eu me levantei e arrumei minhas coisas.
- Desculpe, sra. Terwilliger. Fico lisonjeada por me considerar uma pessoa tão honrada, mas já estou envolvida em uma grande batalha épica do bem contra o mal. Não
preciso de outra.
Saí da aula me sentindo ao mesmo tempo aflita e furiosa, torcendo para que os últimos dois meses do semestre passassem logo. Se aquela missão alquimista continuasse
no ano seguinte, escrita criativa ou alguma outra matéria eletiva seriam opções mais viáveis para minha agenda escolar. Era uma pena, porque eu realmente tinha gostado
da sra. Terwilliger no começo. Ela era muito inteligente e conhecia muito sua área de estudo - história, não magia - e tinha me estimulado com aquele tema. Se ela
tivesse demonstrado o mesmo entusiasmo que sentia com a magia para me ensinar história, não teríamos acabado naquela confusão.
Eu costumava jantar com Julia e Kristin ou com a minha “família”. Aquela era uma noite em família. Encontrei Eddie e Angeline já à mesa quando entrei no restaurante
do campus leste e, como sempre, ele pareceu grato pela minha chegada.
- Então, por que não? - Angeline dizia quando sentei com a bandeja. Era noite de comida chinesa e ela segurava um par de hashis, o que nunca era uma boa ideia. Uma
vez tentei ensinar a ela como comer com os pauzinhos, sem muito sucesso. Ela ficou com raiva e acabou apunhalando um rolinho primavera com tanta força que os hashis
se partiram ao meio.
- Eu só... é que não tem muito a ver comigo - Eddie disse, procurando responder à pergunta que ela tinha feito. - Eu não vou. Com ninguém.
- Jill vai com Micah - Angeline observou, dissimulada. - Será que você não precisa ficar de olho nela, já que vai ser fora da escola?
Eddie respondeu apenas com um olhar angustiado.
- Do que vocês estão falando? - perguntei, finalmente.
- Da festa do Dia das Bruxas - Angeline disse.
Aquilo era novidade para mim.
- Vai ter uma festa no Dia das Bruxas?
Eddie deixou seu tormento de lado por um instante e me lançou um olhar de surpresa.
- Como você não sabe? Tem cartazes em todo lugar!
Remexi meus legumes cozidos no vapor.
- Não tinha nenhum por onde passei.
Eddie apontou com o garfo para um lugar atrás de mim. Ao me virar, olhei para o balcão de comida por onde passara pouco antes. Lá, pendurado na parede, havia um
cartaz enorme que dizia: FESTA DO DIA DAS BRUXAS. Especificava a data e o horário, e era decorado com abóboras mal desenhadas.
- Ah - eu disse.
- Como você consegue decorar livros inteiros, mas deixa passar uma coisa dessas? - Angeline perguntou.
- É que o cérebro da Sydney só registra informações úteis - Eddie disse, com um sorriso. Eu não neguei.
- Você não acha que Eddie deveria ir? - Angeline insistiu. - Ele precisa cuidar de Jill. E, se ele for, nós podemos ir juntos.
Eddie me lançou um olhar desesperado, e coube a mim tentar encontrar uma saída.
- Bom, claro que ele tem que ir... especialmente por ser longe daqui. - O cartaz mencionava um lugar de que nunca tinha ouvido falar. Não tínhamos visto nenhum sinal
de Moroi vindo atrás da Jill, mas um lugar desconhecido apresentava novos riscos, o que me inspirou para acrescentar: - Mas aí é que está o problema. Ele estará
de plantão. Vai passar o tempo todo checando o lugar, atento para ver se alguém suspeito aparece. Seria uma perda de tempo se ele fosse com você. Você não iria se
divertir muito. É melhor ir com outra pessoa.
- Mas eu também preciso proteger Jill - ela argumentou. - Não é por isso que estou aqui? Preciso aprender o que fazer.
- Bem, sim - ele disse, visivelmente encurralado pela lógica dela. - Você vai ter que ir comigo para cuidar dela.
- Sério? - ela disse, abrindo um sorriso. - Então podemos ir juntos!
- Não - Eddie disse, retomando o olhar angustiado. - Nós vamos um junto com o outro. Mas não juntos.
Angeline pareceu não se incomodar com as nuances.
- Nunca fui a uma festa - ela admitiu. - Quer dizer, lá em casa nós fazíamos festas o tempo todo. Mas acho que as daqui devem ser diferentes.
Com isso era preciso concordar. Eu sabia como eram os eventos sociais dos Conservadores. Eles costumavam dançar ao redor de fogueiras ao som de músicas estridentes,
tomando uma bebida alcoólica intoxicante feita por eles mesmos, em que eu achava que nem Adrian tocaria. Os Conservadores também não consideravam um evento social
um sucesso se não houvesse pelo menos uma briga. Na verdade, era até impressionante Angeline ainda não ter se metido em nenhuma em Amberwood. Eu tinha sorte que
suas únicas transgressões tinham sido violar as regras de vestuário e responder para os professores.
- É, provavelmente - eu disse, de forma neutra. - Não sei. Também nunca fui a uma festa.
- Você vai nessa, não é? - Eddie perguntou. - Com Brody?
- Brayden. E não sei. Nem tivemos o segundo encontro ainda. Não quero acelerar as coisas.
- Claro - Eddie disse. - Afinal, ir a uma festa de Dia das Bruxas juntos é realmente um grande passo no namoro.
Eu estava prestes a retrucar sugerindo que talvez ele e Angeline devessem ir juntos no final das contas quando Jill e Micah sentaram com a gente. Os dois estavam
rindo tanto que mal conseguiam se acalmar para explicar o que era tão engraçado.
- Janna Hall terminou um terno masculino no clube de costura hoje - Jill disse, entre risadinhas. Voltei a sentir uma onda de alegria ao vê-la tão contente. - A
srta. Yamani disse que era a primeira peça de roupa masculina que ela via lá nos últimos cinco anos. Obviamente, Janna precisava de um modelo e só tinha um garoto
lá...
Micah ensaiou um olhar aborrecido, mas logo voltou a sorrir.
- Pois é. Escolhi a atitude máscula e me ofereci. O terno era horrível!
- Ah - Jill disse. - Não era tão horrível... Tudo bem, realmente era horrível. Janna não seguiu nenhuma das diretrizes de tamanho, então a calça ficou gigantesca.
Parecia uma barraca. E como ela não fez nenhum passador de cinto, ele precisou amarrar a calça com uma faixa.
- Que quase não aguentou quando elas me mandaram desfilar - Micah disse, balançando a cabeça.
Jill deu uma cutucada zombeteira nele.
- Acho que todo mundo iria gostar se a calça tivesse caído.
- Me lembre de nunca mais me inscrever num clube só de meninas - Micah disse. - Semestre que vem, vou me inscrever em alguma coisa como marcenaria ou caratê.
- Você não vai fazer de novo? Nem por mim? - Jill olhou para ele de um jeito que incrivelmente conseguia ser ao mesmo tempo zangado e sedutor. Percebi que aquilo
era muito mais eficaz do que qualquer compulsão ou feitiço de encantamento.
Micah soltou um suspiro:
- Estou perdido.
Nunca me considerei especialmente sentimental, e ainda desaprovava o romance acanhado daqueles dois, mas até eu sorri com aqueles gracejos. Isso até ver a expressão
no rosto de Eddie. Não estava transparecendo muito, para falar a verdade. Talvez o convívio com Dimitri tivesse rendido algumas dicas sobre como manter a expressão
impassível de guardião. Mas Eddie ainda não era como Dimitri, e eu conseguia notar os sinais mais tênues de tristeza e sofrimento.
Por que ele fazia aquilo consigo mesmo? Ele se recusava a confessar a Jill seus sentimentos. Assumia a postura nobre de quem precisava apenas protegê-la e nada mais.
Parte de mim conseguia entender isso. O que eu não conseguia entender era por que Eddie continuava a se torturar apoiando que ela saísse justo com o colega de quarto
dele. Mesmo com seu trauma em relação à semelhança entre Micah e Mason, Eddie estava se forçando a ver, todos os dias, a garota de seus sonhos com outra pessoa.
Eu nunca tinha passado por nada parecido, mas devia ser terrível.
Nossos olhos se cruzaram e Eddie balançou a cabeça discretamente. Não encana, parecia dizer. Não se preocupe comigo. Vou ficar bem.
Logo Angeline disparou a falar sobre a festa, perguntando se Jill e Micah iriam. Ela também mencionou seus planos de ir “com” Eddie. Isso o tirou do humor melancólico
e, embora eu soubesse que ela o importunava, fiquei pensando se aquilo não era melhor do que ser atormentado constantemente por causa do namoro entre Jill e Micah.
A conversa parou abruptamente quando Micah franziu a testa e comentou algo que todos nós havíamos deixado passar, e que resolveria os problemas de Eddie.
- Por que vocês vão à festa juntos? Vocês não são primos?
Eddie, Jill e eu ficamos paralisados. Mais um furo na nossa história. Não podia acreditar que tinha deixado isso passar não uma, mas duas vezes. Devia ter mencionado
assim que Angeline surgiu com o assunto da festa. Aos olhos da escola, todos éramos parentes.
- E daí? - Angeline perguntou, sem entender.
Eddie pigarreou.
- Hum, somos primos de terceiro grau. Mas, enfim. Não vamos juntos de verdade. É só uma brincadeira.
Isso fez o assunto morrer, e ele não pôde conter um sorriso triunfante.
No dia seguinte, Brayden me buscou logo após a aula para chegarmos a tempo do tour pelos moinhos. A sra. Terwilliger até me deixou sair uns minutos mais cedo, depois
que prometi que traria um cappuccino para ela no caminho de volta a Amberwood. Eu estava animada com o passeio e com a ideia de ver Brayden, mas, ao entrar no carro,
senti uma pontada de dúvida. Será que tinha o direito de me divertir assim, em atividades pessoais? Ainda mais depois dos novos deslizes na nossa história “familiar”?
Talvez eu estivesse dedicando tempo demais a mim mesma e tempo de menos à missão.
Brayden tinha muito a dizer sobre o torneio de debates do qual havia participado durante o fim de semana. Analisamos alguns dos temas mais difíceis que ele teve
de enfrentar e rimos com temas fáceis que atrapalharam a equipe rival. Havia anos que eu tinha medo de ficar com alguém, mas era uma grata surpresa a facilidade
que tínhamos para conversar. Foi muito parecido com o encontro para ver a peça de Shakespeare: uma fonte inesgotável de assuntos sobre os quais nós dois sabíamos
muito. Era o resto da experiência que ainda me deixava angustiada - a parte de “ficar” propriamente dita. Os livros sobre namoro que eu havia lido depois do nosso
primeiro encontro davam conselhos principalmente sobre sexo, o que era completamente inútil, já que eu nem sabia como ficar de mãos dadas.
Fiquei fascinada pelos moinhos gigantes. Por mais que não tivessem a beleza e elegância dos carros de que eu tanto gostava, eu sentia o mesmo deslumbramento diante
da engenharia que eles representavam. Alguns moinhos tinham mais de trinta metros de altura, com pás do tamanho de meio campo de futebol americano. Momentos como
aquele me deixavam maravilhada com a engenhosidade humana. Quem precisava de magia se podíamos criar maravilhas como aquela?
Nossa guia era uma moça simpática de vinte e poucos anos, que claramente adorava o trabalho dela e tudo o que a energia eólica representava. Ela sabia todo tipo
de curiosidades sobre os moinhos, mas não o bastante para satisfazer Brayden.
- Como vocês lidam com a ineficiência de energia provocada pela necessidade das turbinas de ventos em velocidades tão específicas?
Depois:
- O que você acha dos estudos que mostram que o simples aperfeiçoamento dos filtros na queima de combustíveis fósseis reduziria mais as emissões de gás carbônico
do que a implantação desse tipo alternativo de geração de energia?
E depois:
- Podemos enxergar a energia eólica como opção viável se, considerando o custo da construção e da manutenção, os consumidores acabam pagando mais do que pelas formas
tradicionais de eletricidade?
Não havia como ter certeza, mas tive a impressão de que a nossa guia encerrou o tour mais cedo. Ela incentivou os outros turistas a voltarem quando quisessem, mas
não disse nada para mim ou Brayden quando passamos por ela.
- É uma pena, mas ela estava muito mal informada - ele me disse, de volta à estrada.
- Ela sabia muito sobre os moinhos e suas instalações - argumentei. - Acho que os debates mais recentes sobre o assunto não costumam ser levantados nesses tours.
Ou - fiz uma pausa, com um sorriso - como lidar com turistas... impertinentes.
- Eu fui impertinente? - ele perguntou, parecendo realmente surpreso. Ele tinha ficado tão envolvido com suas ideias que nem mesmo percebeu. Era fofo.
Tentei não dar risada.
- Você só foi impetuoso demais. Acho que eles não estavam preparados para alguém como você.
- Mas deveriam estar. A energia eólica é realmente promissora, mas por enquanto existem vários tipos de gastos e ineficiências que precisam ser resolvidos. Senão
ela se torna inútil.
Recostei-me por algum tempo, tentando decidir a melhor maneira de responder àquilo. Nenhum dos conselhos que recebi dos livros ou dos meus amigos tinha me preparado
para lidar com discussões sobre fontes alternativas de energia. Um dos livros, que eu achei melhor nem terminar, tinha uma visão claramente machista que dizia que
era obrigação das mulheres fazer com que os homens se sentissem importantes durante um encontro. Suspeitei que Kristin e Julia me aconselhariam a rir e jogar o cabelo
para o lado, pondo fim à discussão.
Mas eu simplesmente não conseguia.
- Você está errado - eu disse.
Brayden, que era um grande defensor da direção segura, chegou a tirar os olhos da estrada por alguns segundos e me encarar.
- O que você disse?
Além de descobrir que, assim como eu, ele tinha um vasto estoque de conhecimentos profundos e aleatórios, também havia notado uma coisa dominante na personalidade
de Brayden. Ele não gostava de estar errado. Não era nenhuma surpresa. Eu também não gostava, e nós dois tínhamos muito em comum nesse aspecto. E, pelo jeito que
ele falava da escola e até mesmo do torneio de debates, deduzi que as pessoas nunca lhe diziam que ele estava errado - mesmo que por acaso ele estivesse.
Talvez não fosse tarde demais para fazer a jogadinha de cabelo. Mas, em vez disso, disparei a falar.
- Você está errado. Talvez a energia eólica não seja tão eficiente quanto poderia ser, mas o simples fato de estar sendo desenvolvida já é um grande avanço em relação
às fontes de energia arcaicas e ultrapassadas de que a nossa sociedade ainda depende. Esperar que o custo-benefício seja tão bom quanto o de uma outra que é usada
há muito, muito tempo é uma ideia ingênua.
- Mas...
- Não se pode negar que os benefícios compensam os gastos. As mudanças climáticas estão se tornando um problema cada vez maior, e a redução das emissões de gás carbônico
pela energia eólica pode ter um impacto significativo. Além disso, o mais importante é que o vento é renovável. As fontes baratas não valerão nada quando se esgotarem.
- Mas...
- Precisamos ser progressistas e pensar naquilo que irá nos salvar no futuro. Concentrar-se exclusivamente no custo-benefício que temos agora e ignorar as consequências
demonstra falta de visão a longo prazo, o que acabará levando a espécie humana à destruição. Quem não considerar isso só estará perpetuando o problema, a menos que
crie outras soluções. A maioria não faz isso. Só reclama. É por isso que você está errado.
Fiz uma pausa para recuperar o fôlego e então me atrevi a olhar para Brayden. Ele estava com os olhos fixos na estrada, incrivelmente arregalados. Achei que ele
estaria menos chocado se eu tivesse dado um tapa na cara dele. Imediatamente me arrependi do que havia dito. Sydney, por que você não deu só uma risadinha e pronto?
- Brayden? - arrisquei, hesitante, depois de quase um minuto sem resposta. Atônito, ele continuava em silêncio.
De repente, sem nenhum aviso, ele fez uma curva brusca e jogou o carro no acostamento, fazendo voar poeira e cascalho ao nosso redor. Naquele momento, tive a certeza
absoluta de que ele me mandaria sair do carro e eu teria que caminhar de volta até Palm Springs. E estávamos a quilômetros de distância da cidade.
Em vez disso, ele pegou a minha mão e se inclinou na minha direção.
- Você - ele disse, quase sem ar - é incrível. Absolutamente, indiscutivelmente e perfeitamente incrível.
E então ele me beijou.
Fiquei tão surpresa que mal consegui me mexer. Meu coração acelerou, mas era mais por nervosismo do que qualquer outra coisa. Eu estava beijando certo? Tentei relaxar,
abrindo um pouco os lábios, mas meu corpo continuava tenso. Brayden não recuou em repulsa, o que era um bom sinal. Eu nunca havia beijado ninguém e sempre me preocupara
sobre como seria. A mecânica do beijo se revelou mais fácil do que eu imaginava. Quando ele finalmente se afastou, estava com um sorriso nos lábios. Bom sinal, pensei.
Retribuí o sorriso, hesitante, porque sabia que era o que se esperava de mim. Mas, sinceramente, uma parte secreta de mim estava um tanto desapontada. Era só isso?
Não tinha nada de mais? Não que tivesse sido horrível, mas também não tinha me mandado às alturas. Tinha sido exatamente como parecia, lábios sobre lábios.
Com um grande suspiro de felicidade, ele se virou e voltou a dirigir. Eu só conseguia observá-lo com assombro e perplexidade, incapaz de esboçar qualquer reação.
O que tinha acabado de acontecer? Aquele tinha sido meu primeiro beijo?
- Spencer’s, certo? - Brayden me perguntou, quando viramos na saída que dava no centro da cidade, pouco depois.
Ainda estava tão atordoada por causa do beijo que levei um tempo para lembrar que havia prometido um cappuccino para a sra. Terwilliger.
- Isso.
Pouco antes de entrarmos na rua do Spencer’s, Brayden estacionou de repente em frente a uma floricultura.
- Já volto - ele disse.
Assenti, sem saber o que dizer, e cinco minutos depois ele voltou e me ofereceu um grande buquê de rosas delicadas, num tom rosa pálido.
- Obrigada? - eu disse, soando mais interrogativa do que agradecida.
Agora, além do beijo e da declaração de que eu era “incrível”, tinha merecido flores também.
- Elas não são adequadas - ele admitiu. - No simbolismo tradicional das flores, vermelho ou laranja seriam cores mais apropriadas. Mas eles só tinham essas e um
tom de lavanda, e você não parece o tipo de pessoa que gosta de roxo.
- Obrigada - respondi, dessa vez mais firme.
Ao sentir o doce aroma das rosas a caminho do Spencer’s, me dei conta de que nunca tinham me dado flores na vida.
Chegamos ao café pouco depois. Saí do carro e, como um raio, Brayden apareceu ao meu lado para fechar a porta atrás de mim. Entramos e fiquei aliviada ao ver Trey
trabalhando. A implicância dele seria um bom retorno à normalidade, já que minha vida tinha acabado de sofrer uma reviravolta maluca.
Trey pareceu não nos notar. Estava compenetrado numa conversa com alguém do outro lado do balcão, um rapaz mais velho do que a gente. A pele bronzeada, o cabelo
preto e alguns traços do rosto me indicaram que ele e Trey deviam ser parentes. Brayden e eu esperamos em silêncio atrás do rapaz até Trey finalmente olhar para
nós, com o semblante surpreendentemente tristonho, muito diferente de como costumava ser. Ele pareceu surpreso ao nos ver, mas depois relaxou um pouco.
- Melbourne, Cartwright. Passaram para pegar um pouco de cafeína depois dos moinhos?
- Você sabe que nunca bebo cafeína depois das quatro - Brayden disse. - Mas Sydney veio buscar uma bebida para a professora.
- Ah - Trey disse. - O de sempre para você e para a sra. T?
- Sim, mas o meu é gelado desta vez.
Trey me olhou com ar de espertalhão.
- Precisando se refrescar um pouco, então?
Revirei os olhos.
O rapaz que antes estava na nossa frente continuava por ali, e Trey apontou para ele enquanto pegava dois copos.
- Este é meu primo, Chris. Chris, Sydney e Brayden.
Aquele devia ser o “primo perfeito” de Trey. Em uma olhada rápida, vi poucos indícios de que ele fosse melhor do que Trey, exceto talvez sua altura. Chris era muito
alto. Não tanto quanto Dimitri, mas muito alto. Fora isso, os dois tinham traços parecidos e o corpo atlético. Chris até tinha alguns machucados e arranhões parecidos
com os que Trey costumava exibir, me fazendo supor que havia uma relação familiar com os esportes. Independente disso, Chris não parecia uma pessoa por quem Trey
deveria se sentir intimidado, mas talvez eu estivesse tomando partido da nossa amizade.
- De onde você é? - perguntei.
- San Francisco - Chris respondeu.
- Por quanto tempo ficará na cidade? - Brayden perguntou.
Chris encarou Brayden, desconfiado.
- Por que quer saber?
Brayden pareceu surpreso e não o culpei por isso. Antes que qualquer um de nós pudesse imaginar qual seria o próximo passo no manual de conversas casuais, Trey interferiu
depressa:
- Relaxe, C. Eles só estão sendo simpáticos. Não trabalham pra nenhuma agência secreta.
Pelo menos Brayden não.
- Desculpe - Chris disse, sem parecer realmente arrependido. Essa era a diferença entre os primos, percebi. Trey teria rido daquele engano. Na verdade, nunca teria
cometido aquele engano. Definitivamente havia níveis diferentes de simpatia na família dele. - Algumas semanas.
Nem eu nem Brayden nos atrevemos a perguntar mais alguma coisa depois disso e, felizmente, Chris aproveitou a oportunidade para ir embora, prometendo ligar para
Trey mais tarde. Quando ele se foi, Trey balançou a cabeça como se estivesse se desculpando e colocou os cafés prontos no balcão. Quando pus a mão no bolso para
pegar minha carteira, Brayden se adiantou e pagou para mim.
Enquanto dava o troco para Brayden, Trey disse:
- Os horários da semana que vem já estão no mural.
- Ah, é? - Brayden virou para mim. - Você se importa se eu for lá nos fundos por um segundo? No sentido figurado, claro.
- Vai lá - eu disse. Assim que ele saiu, me virei para Trey, desesperada. - Preciso da sua ajuda.
Trey arqueou as sobrancelhas.
- Pensei que nunca fosse ouvir isso de você.
Eu também não, mas estava completamente perdida, e Trey era minha única possibilidade de ajuda naquele momento.
- Brayden me deu flores - declarei. Eu não pretendia mencionar o beijo.
- E?
- Por que ele fez isso?
- Porque ele gosta de você, Melbourne. É isso que os garotos fazem. Pagam o jantar, dão presentes e torcem para que, em troca, vocês, hum... gostem deles também.
- Mas eu discuti com ele - sussurrei, olhando apreensiva para a porta onde Brayden havia entrado. - Pouco antes de ele me dar flores, fiz um discurso sobre como
ele estava errado em relação às fontes alternativas de energia.
- Peraí - Trey interrompeu. - Você disse... você disse para Brayden Cartwright que ele estava errado?
Assenti.
- Por que ele reagiria desse jeito?
Trey soltou uma gargalhada tão sonora que tive certeza de que faria Brayden voltar.
- As pessoas não costumam dizer para ele que ele está errado.
- É, imaginei.
- Ainda mais as meninas. Elas nunca dizem que ele está errado. Você deve ter sido a primeira a fazer isso. Deve ter sido a única garota inteligente o bastante para
discordar dele.
Eu estava ficando impaciente.
- Isso eu entendo. Mas por que as flores? Por que os elogios?
Trey meneou a cabeça e pareceu prestes a rir de novo.
- Melbourne, se você não sabe, não sou eu quem vai te dizer.
Eu estava tão preocupada que Brayden fosse voltar a qualquer instante que achei melhor mudar de assunto e não comentar o conselho inútil que Trey havia me dado.
- Chris é o primo perfeito de quem você me falou?
O sorriso dele desapareceu.
- Em carne e osso. Tudo o que eu faço, ele faz melhor.
Imediatamente me arrependi de ter feito a pergunta. Trey, assim como Adrian, era daquelas pessoas que eu não gostava de ver tristes.
- Bem. Ele não me pareceu tão perfeito. Talvez eu esteja sendo tendenciosa por passar tanto tempo com você. Você definiu o modelo de perfeição.
Isso trouxe seu sorriso de volta.
- Desculpe pela grosseria dele. Chris sempre se comportou desse jeito. Nunca foi o mais charmoso da família Juarez. Esse sou eu, claro.
- Claro - concordei.
Quando Brayden voltou, Trey ainda estava sorrindo, mas quando olhei para trás antes de sair do café, a expressão dele tinha voltado a se fechar. Ele estava concentrado
em seus pensamentos e eu queria saber como poderia ajudar.
No caminho de volta a Amberwood, Brayden disse, tímido:
- Bom, agora eu sei meus horários das próximas duas semanas.
- Ah, que... bom - eu disse.
Ele hesitou.
- Então... eu sei quando posso sair de novo. Quer dizer, digo, se... se você quiser sair de novo.
Aquilo teria me surpreendido se eu já não estivesse pasma com todos os outros acontecimentos daquele dia. Brayden queria sair comigo de novo? Por quê? Ainda mais
as meninas. Elas nunca dizem que ele está errado. Você deve ter sido a primeira a fazer isso. Deve ter sido a única garota inteligente o bastante para discordar
dele. E, o mais importante, será que eu queria sair com Brayden de novo? Dei uma olhada nele e então nas rosas. Lembrei do jeito como Brayden me olhou nos olhos
no carro parado. Percebi, então, que as chances de eu encontrar outro garoto que achasse Shakespeare e parques eólicos divertidos eram minúsculas.
- Tudo bem - eu disse.
Ele estreitou os olhos enquanto pensava.
- Vai ter uma festa da sua escola, não vai? Você quer ir? As pessoas costumam ir a esse tipo de coisa, né?
- É o que parece. Como você ficou sabendo?
- Pelo cartaz - ele disse.
E naquele exato momento, como se tivesse sido combinado, ele estacionou na entrada do meu alojamento. Pendurado na porta principal, havia um cartaz decorado com
teias de aranha e morcegos. VAI SER DE ARREPIAR! FESTA DO DIA DAS BRUXAS.
- Ah - eu disse. - Este cartaz. - Eddie estava certo. Eu realmente tinha memória seletiva. - Acho que a gente pode ir, sim. Se você quiser.
- Claro. Quer dizer, se você quiser.
Silêncio. Então, nós dois rimos.
- Bom, então - eu disse -, acho que vamos.
Brayden se inclinou na minha direção e entrei em pânico até perceber que ele só estava tentando dar uma olhada melhor no cartaz.
- Daqui a uma semana e meia.
- Tempo suficiente para arranjar fantasias, acho.
- Acho que sim. Apesar de...
E foi nesse momento que aconteceu mais uma coisa louca. Ele segurou a minha mão.
Confesso que não estava esperando muita coisa, ainda mais depois da minha reação dúbia depois do beijo no acostamento. Ainda assim, com a mão dele sobre a minha,
fiquei surpresa pela sensação de... bem, de simplesmente tocar a mão de outra pessoa. Achava que sentiria pelo menos algum arrepio ou o coração batendo mais forte.
Mas minha maior reação emocional foi ficar preocupada em relação ao que fazer com a minha mão. Entrelaçar os dedos? Apertar a mão dele de volta?
- Queria sair com você antes - ele disse. E voltou a hesitar. - Se você quiser.
Baixei os olhos para nossas mãos, tentando entender o que eu estava sentindo. Ele tinha mãos gostosas. Macias, quentinhas. Eu poderia me acostumar a segurar as mãos
dele. E, claro, ele cheirava a café. Será que aquilo era o bastante para desenvolver o amor? Aquela velha incerteza voltou a me incomodar. Que direito eu tinha àquilo
tudo? Eu não estava em Palm Springs por diversão. Não havia espaço para interesses pessoais entre os alquimistas. Sabia que meus superiores não aprovariam nada daquilo.
Mesmo assim, quando eu voltaria a ter aquela chance? Quando eu ganharia flores novamente? Quando alguém voltaria a me olhar com aquele fervor? Decidi arriscar.
- Claro - eu disse. - Vamos sair de novo.
8
SÓ SAÍMOS NOVAMENTE NO FIM DE SEMANA. Brayden e eu éramos capazes de sair à noite durante a semana e ainda assim dar conta de terminar os trabalhos, mas preferíamos
não fazer isso. Além disso, minhas noites durante a semana normalmente tinham algum compromisso com o grupo, fosse o fornecimento ou os experimentos. Eddie tinha
cedido o sangue dele naquela semana, e fiz questão de não estar por perto para que Sonya não tentasse me convencer mais uma vez.
Brayden queria sair no sábado, mas aquele era o dia em que eu prometera levar Adrian a San Diego. Brayden deu a ideia de tomarmos café da manhã antes de eu pegar
a estrada, e fomos a um restaurante que ficava junto a um dos resorts mais luxuosos de Palm Springs. Por mais que eu me oferecesse para dividir a conta, Brayden
voltou a insistir em pagar tudo e dirigir todo o trajeto. Quando ele estacionou em frente ao alojamento, tive uma visão surpreendente e nada agradável: Adrian sentado
num banco, parecendo entediado.
- Ah, não - eu disse.
- Que foi? - Brayden perguntou.
- Aquele é o meu irmão. - Sabia que não tinha como evitar aquilo. E o inevitável acontecera. Adrian provavelmente se agarraria ao para-choque de Brayden até que
eu os apresentasse. - Vem, vou apresentá-lo.
Brayden saiu do carro devagar, lançando um olhar de preocupação para a placa de PROIBIDO ESTACIONAR. Adrian levantou num pulo, com uma expressão extremamente satisfeita.
- Não era para eu buscar você? - perguntei.
- Sonya tinha algumas coisas para fazer e se ofereceu para me deixar aqui no caminho - explicou. - Imaginei que pouparia um pouco de trabalho pra você.
Adrian sabia exatamente o que eu estaria fazendo de manhã, então eu suspeitava que os motivos dele não eram tão altruístas assim.
- Este é Brayden - apresentei. - Brayden, Adrian.
Adrian apertou a mão dele.
- Ouvi falar muito de você. - Não duvidei, mas fiquei pensando da boca de quem exatamente ele tinha ouvido.
Brayden respondeu com um sorriso amigável.
- Na verdade, eu nunca tinha ouvido falar de você. Nem sabia que Sydney tinha outro irmão.
- Você nunca falou de mim? - Adrian disse, lançando-me um olhar magoado de deboche.
- Não surgiu uma oportunidade - respondi.
- Você ainda está no ensino médio, certo? - Adrian perguntou para Brayden. Em seguida, apontou com a cabeça para o Mustang. - Mas deve ter um trabalho de meio período
para dar conta das prestações do carro. A menos que seja um daqueles vagabundos que ficam tentando tirar dinheiro dos pais.
Brayden pareceu indignado.
- Claro que não. Trabalho quase todo dia num café.
- Num café - Adrian repetiu, conseguindo expressar vários tons de desaprovação na voz. - Entendi. - Ele olhou para mim. - Bom, podia ser pior.
- Adrian...
- É, mas não vou trabalhar lá para sempre - Brayden protestou. - Já fui aceito na USC, Stanford e Dartmouth.
Adrian assentiu, pensativo.
- Imagino que isso seja admirável. Embora eu sempre tenha pensado que Dartmouth era o tipo de universidade para onde iam as pessoas que não conseguiram entrar em
Yale ou Harv...
- Nós realmente precisamos ir - interrompi, segurando o braço de Adrian. Tentei arrastá-lo em direção ao estacionamento, sem sucesso. - Não queremos ficar presos
no trânsito.
Brayden deu uma olhada no celular.
- A essa hora, o trânsito costuma ser relativamente tranquilo no sentido oeste, mas como é fim de semana nunca se sabe como os turistas podem alterar as coisas,
ainda mais com tantas atrações em San Diego. Se você analisar os padrões de trânsito aplicando a teoria do caos...
- Exatamente - interrompi. - Melhor prevenir do que remediar. Mando uma mensagem pra você quando voltar, tá? Aí decidimos como vai ser o resto da semana.
Pela primeira vez não precisei me preocupar com aperto de mãos, beijo, nem nada desse tipo. Estava concentrada demais em tirar Adrian dali antes que ele abrisse
a boca e soltasse outra provocação. Apesar de adorar discutir assuntos acadêmicos e que eu discordasse do que ele dizia, Brayden costumava ser bastante pacífico.
Ele não tinha ficado propriamente bravo com Adrian, mas certamente aquela foi a vez em que eu o vi mais irritado. Adrian era capaz de tirar do sério até as pessoas
mais tranquilas.
- Sério mesmo? - perguntei, quando já estávamos seguros no Pingado. - Você não podia simplesmente ter dito “prazer em conhecê-lo” e pronto?
Adrian reclinou o assento, tentando encontrar a posição mais horizontal possível usando o cinto de segurança.
- Só estou cuidando de você, irmãzinha. Não quero que você acabe com algum folgado. Acredite em mim, sou especialista no assunto.
- Obrigada por oferecer sua expertise, mas consigo me virar sozinha.
- Sério, um barista? Por que não um estagiário de administração?
- Eu gosto do fato de ele ser barista. Ele está sempre cheirando a café.
Adrian abaixou o vidro, deixando que o vento bagunçasse seu cabelo.
- Estou surpreso que você deixe ele te levar de um lado pro outro no carro dele. Ainda mais considerando como você fica histérica sempre que alguém mexe em algum
comando do seu carro.
- Como o de baixar o vidro da janela? - perguntei, acusatoriamente. - Com o ar-condicionado ligado? - Adrian entendeu a indireta e subiu o vidro. - Ele quer dirigir.
Então eu deixo que ele dirija. Além disso, gosto daquele carro.
- É um carro legal mesmo - Adrian admitiu. - Mas nunca imaginei que você fosse o tipo de pessoa que corre atrás de símbolos de status.
- Eu não corro. Eu gosto porque é um carro interessante com uma longa história.
- Tradução: símbolo de status.
- Adrian. - Suspirei. - Essa vai ser uma viagem longa.
Na verdade, a viagem foi relativamente rápida. Apesar das especulações de Brayden, o trânsito estava tranquilo, o suficiente para eu decidir que merecia uma pausa
para o café no meio do caminho. Adrian pegou um moca - “Você pode pagar, Sage? Só dessa vez?” - e manteve o estilo debochado usual durante a maior parte da viagem.
No entanto, não pude deixar de notar que, faltando cerca de meia hora para chegarmos, ele foi ficando cada vez mais retraído e pensativo. As brincadeirinhas diminuíram
e ele passou muito tempo olhando fixamente pela janela.
Supus que estava caindo a ficha de que logo veria o pai. Eu sem dúvida conseguia me identificar com aquilo. Ficaria igualmente nervosa se estivesse prestes a ver
o meu. Mas, como achava que Adrian não iria gostar de uma sessão de terapia conjunta, procurei um assunto mais inofensivo para tirá-lo da melancolia.
- Descobriram alguma coisa com o sangue de Eddie e Dimitri? - perguntei.
Adrian olhou para mim, surpreso.
- Não esperava que você fosse tocar nesse assunto.
- Ei, estou interessada na parte científica. Só não queria participar.
Ele entendeu.
- Nada de novo, por enquanto. Mandaram as amostras para um laboratório, um dos nossos, acho, para ver se havia alguma coisa diferente entre os dois do ponto de vista
físico. Sonya e eu identificamos um... ah, não sei explicar. Algo como um “zumbido” de espírito no sangue de Belikov. Não que o fato de ele ter sangue mágico seja
alguma surpresa. Quase todo mundo acha tudo o que ele faz mágico.
- Ah, vai - eu disse. - Você está sendo injusto.
- Injusto? Você viu como Castile venera aquele cara. E quer ser igual a ele quando crescer. E por mais que Sonya normalmente seja a porta-voz do experimento, ela
não consegue nem respirar direito sem pedir a opinião dele antes. “O que você acha, Dimitri?”, “É uma boa ideia, Dimitri?”, “Por favor, dai-nos vossa bênção para
que possamos nos ajoelhar diante de vós e vos adorar, Dimitri.”
- Ainda acho que está sendo injusto - respondi, balançando a cabeça, irritada. - Eles são colegas de pesquisa. Claro que ela precisa consultá-lo.
- É, mas ela consulta a ele muito mais do que consulta a mim.
Talvez fosse porque Adrian sempre parecia entediado durante a pesquisa, mas imaginei que não ajudaria muito tocar nesse ponto.
- Os dois foram Strigoi. Eles meio que têm uma visão privilegiada do assunto.
Ele ficou um tempo em silêncio.
- Tudo bem. Com isso eu concordo. Mas você tem que admitir que a competição nunca foi justa entre mim e ele em relação a Rose. Você os viu juntos. Eu nunca tive
a mínima chance. Não dá nem para comparar.
- E por que você tem que comparar?
Parte de mim também queria perguntar o que a Rose tinha a ver com aquilo, mas Jill já me dissera muitas vezes que, para Adrian, absolutamente tudo tinha a ver com
Rose.
- Porque eu queria ficar com ela - Adrian respondeu.
- E ainda quer?
Ele não respondeu. Rose era um assunto delicado, em que eu preferia não ter entrado de maneira tão estabanada.
- Veja bem - eu disse. - Você e Dimitri são pessoas diferentes. Você não tem que ficar se comparando a ele. Não tem que tentar ser igual a ele. Quer dizer, eu não
vou ficar aqui sentada falando mal dele. Eu gosto dele. Dimitri é inteligente, dedicado, extremamente corajoso e guerreiro. É bom de luta. E é um cara legal.
- Você esqueceu de mencionar que é romântico e terrivelmente bonito - ele escarneceu.
- Ei, você também faz bem para os olhos - brinquei, fazendo referência a algo que ele tinha me dito um tempo antes. Ele não sorriu. - E não se subestime. Você também
é inteligente e consegue convencer todo mundo do que quer. Você nem precisa de carisma mágico para isso.
- Até agora não estou vendo muita diferença entre mim e um vigarista de meia-tigela.
- Ah, para com isso - eu disse. Ele conseguia me fazer rir até com os assuntos mais sérios. - Você entendeu o que eu quis dizer. E você também é uma das pessoas
mais leais que eu conheço. Além de ser muito atencioso, por mais que finja não ser. Eu vejo como você cuida de Jill. Poucas pessoas teriam atravessado o país para
ajudá-la. E quase ninguém teria feito o que você fez para salvar a vida dela.
Mais uma vez, Adrian levou um tempo para responder.
- Mas de que adianta ser leal e atencioso?
- Pra mim, isso significa tudo.
Não hesitei em responder. Já lidara com pessoas traiçoeiras e calculistas demais durante a vida. Meu próprio pai não julgava as pessoas pelo que elas eram, mas pelo
que podiam fazer por ele, enquanto Adrian, por trás da fachada de arrogância e irreverência, se importava muito com as outras pessoas. Eu já o vira arriscar a própria
vida para provar isso. Considerando que eu já havia mandado arrancar o olho de alguém para vingar minha irmã... Bem, lealdade era algo que eu realmente apreciava.
Adrian não disse mais nada durante o resto da viagem, mas pelo menos tive a impressão de que ele já não estava melancólico. Na maior parte do tempo parecia pensativo,
o que não era tão preocupante. O que me deixou um tanto desconfortável foi flagrá-lo várias vezes, pela minha visão periférica, me observando. Repeti mentalmente
o que havia dito várias e várias vezes, tentando entender se havia algo que justificasse tamanha atenção.
O pai de Adrian estava hospedado em um grande hotel de San Diego, cuja atmosfera era parecida com a do resort em que eu havia tomado café com Brayden. Executivos
de terno se misturavam a turistas usando estampas tropicais e chinelos. Quase tinha vestido uma calça jeans para tomar café da manhã, mas agora estava contente por
ter escolhido uma saia cinza e uma blusa de manga curta com uma estampa simples azul e cinza. A barra da blusa era levemente ondulada, e a saia tinha um padrão em
zigue-zague muito, mas muito sutil. Normalmente eu não usaria texturas tão contrastantes juntas, mas gostava da ousadia do look. Eu tinha chamado a atenção de Jill
para isso antes de sair do alojamento para o café. Ela levou um tempo para notar o contraste das texturas e, quando finalmente percebeu, revirou os olhos e disse:
“Nossa, Sydney. Como você é rebelde”.
Adrian, por sua vez, estava usando um de seus trajes típicos de verão - jeans e camisa de abotoar -, apesar de, claro, a camisa estar para fora da calça, com as
mangas arregaçadas e alguns botões de cima abertos. Ele usava esse tipo de roupa o tempo todo e, apesar do ar casual, muitas vezes conseguia parecer estiloso e moderno.
Mas esse não era o caso dessa vez. Aquele era o jeans mais gasto que eu já o vira usando - estava a ponto de rasgar na altura dos joelhos. E, embora fosse de boa
qualidade e combinasse perfeitamente com seus olhos, a camisa verde-escura estava amarrotada num grau inexplicável. Mesmo se tivesse dormido com ela ou a atirado
no chão, não teria conseguido deixá-la daquele jeito. Desconfiava que seria preciso amassá-la numa bolota e sentar em cima dela para que ficasse com uma aparência
tão terrível. Se eu tivesse notado aquilo em Amberwood (em vez de estar tão distraída tentando afastá-lo de Brayden), teria insistindo em passar a camisa antes de
partirmos.
Claro que, mesmo assim, ele estava bonito. Ele sempre estava bonito, independente do estado de seu cabelo ou de suas roupas. Era uma das coisas mais irritantes nele.
Aquele visual desalinhado fazia ele se passar por um modelo europeu pensativo. Examinando-o enquanto tomávamos o elevador para o saguão do segundo andar, concluí
que não podia ser coincidência ele estar usando seu traje mais desmazelado justo no dia em que visitaria o pai. A questão era: por quê? Ele sempre reclamava que
o pai vivia encontrando defeitos nele. Vestindo-se daquele jeito, Adrian só daria mais um motivo.
O elevador se abriu e quase perdi o fôlego ao sairmos. A parede no fundo do saguão era quase totalmente coberta por janelas que davam para uma vista espetacular
do oceano Pacífico. Adrian riu da minha reação e pegou o celular.
- Vai dar uma olhada mais de perto enquanto ligo para o meu velho.
Ele não precisou dizer duas vezes. Caminhei até uma das paredes de vidro, admirando a vasta extensão azul-acinzentada. Pensei que, em dias nublados, seria difícil
distinguir onde terminava o céu e começava o mar. O clima estava magnífico naquele dia, com muito sol e um céu azul perfeitamente limpo. À direita do saguão uma
porta dava para um terraço em estilo mediterrâneo, onde as pessoas desfrutavam do almoço à luz do sol. Olhando para o térreo, avistei uma piscina reluzente tão azul
quanto o céu, cercada de palmeiras e banhistas. Eu não sentia tanta saudade da água quanto usuários de magia como Jill, mas, querendo ou não, estava morando num
deserto havia quase dois meses. Aquilo era fascinante.
Estava tão paralisada com a beleza da paisagem que não notei quando Adrian voltou. Na verdade, não percebi que ele estava parado ao meu lado até uma mãe chamar pela
filha - cujo nome também era Sydney -, me fazendo olhar naquela direção. Ali estava Adrian, a alguns centímetros de mim, me observando com deleite.
Tive um sobressalto e recuei.
- Que tal avisar da próxima vez?
- Não queria interromper - ele disse, sorrindo. - Você parecia feliz, o que é pouco usual.
- Pouco usual? Estou sempre feliz.
Eu conhecia Adrian havia tempo suficiente para reconhecer quando ele estava prestes a fazer um comentário sarcástico. No último segundo, porém, mudou de ideia e
sua expressão ficou séria.
- Aquele cara... o Brendan...
- Brayden.
- Ele faz você feliz?
Olhei para Adrian, surpresa. Aquele tipo de pergunta era quase sempre uma armadilha dele, mas sua expressão neutra dificultava que eu identificasse seus motivos.
- Acho que sim - respondi, finalmente. - Quer dizer, infeliz não me faz.
Adrian voltou a sorrir.
- Quanto entusiasmo! O que você gosta nele? Além do carro? E do cheiro de café?
- Gosto do fato de ele ser inteligente - respondi. - Gosto de não ter que fingir que sou tonta perto dele.
- Você faz muito isso? - Adrian perguntou, franzindo a sobrancelha.
Fiquei surpresa com o tom de amargura da minha própria risada.
- Muito? Praticamente o tempo todo. Acho que a coisa mais importante que aprendi em Amberwood é que as pessoas não gostam de saber o quanto você sabe. Quando estou
com Brayden, não ficamos nos censurando o tempo todo. Hoje de manhã, por exemplo: num minuto estávamos discutindo nossas fantasias para o Dia das Bruxas, e no outro
as origens da democracia na antiga Atenas.
- Não vou fingir que sou nenhum gênio, mas como vocês passaram de um assunto para o outro?
- Ah - eu disse. - Nossas fantasias do Dia das Bruxas. Vamos vestidos de gregos. Da era ateniense.
- Claro - ele disse. E dessa vez deu para perceber que o tom sarcástico estava prestes a voltar. - Nada de fantasias de gatinha sexy pra você. Só o traje mais dignificante
e feminista.
- Feminista? - discordei, abanando a cabeça. - Ah, não. Não as mulheres de Atenas. Elas estão muito longe do que a gente considera feminista... Ah, deixa pra lá.
Não é tão importante.
Adrian esfregou os olhos.
- É isso, não é?
Ele se inclinou na minha direção e quase recuei... mas algo me manteve onde estava, algo na intensidade de seu olhar.
- O quê? - perguntei.
- Você acabou de se interromper - ele disse, apontando um dedo acusador para mim. - Você acabou de se fazer de tonta comigo.
Hesitei por um momento.
- É, meio que sim.
- Por quê?
- Porque você não quer saber da Grécia antiga, assim como não queria ouvir Brayden falar da teoria do caos.
- É diferente - Adrian disse. Ele não havia se afastado e ainda estava parado muito, mas muito perto, a ponto de eu sentir que devia me incomodar, mas não me incomodava.
- Ele é chato. Aprender com você é divertido. Como num livro infantil ou num especial de TV. Fale-me mais sobre as... hum, mulheres de Atenas.
Tentei não sorrir. Admirava as intenções dele, mas sabia que ele realmente não estava disposto a ouvir uma aula de história. Voltei a me perguntar que tipo de joguinho
era aquele. Por que ele estava fingindo interesse? Tentei formular uma resposta que durasse menos de sessenta segundos.
- A maioria das mulheres de Atenas não era instruída. Elas costumavam ficar em casa, cuidando dos filhos e do lar. As mulheres mais progressistas eram as chamadas
heteras, que eram como cortesãs e prostitutas de luxo. Elas eram cultas e meio extravagantes. Os homens poderosos deixavam as mulheres em casa cuidando dos filhos
e saíam com as heteras para se divertir. - Parei por um instante, sem saber se ele tinha acompanhado alguma coisa do que tinha dito. - Como eu disse, não é tão importante.
- Sei não - Adrian disse, pensativo. - Acho as prostitutas muito importantes.
- Que bom que as coisas não mudaram - uma nova voz interrompeu.
Nós dois tomamos um susto e levantamos o olhar para o homem carrancudo que acabara de se juntar a nós.
O pai de Adrian tinha chegado.
9
AQUELES QUE SOUBESSEM O QUE PROCURAR conseguiriam identificar um Moroi instantaneamente pelo semblante pálido e pela silhueta alta e magra. Para a maioria dos humanos,
essas características se destacavam, mas não eram o suficiente para desmascarar um vampiro. Os humanos simplesmente consideravam aqueles traços atraentes e inusitados,
assim como Lia considerava Jill o arquétipo da beleza etérea de passarela. Eu não queria pensar em termos de estereótipos, mas depois de um rápido exame da palidez,
do rosto longo, do olhar severo e do cabelo grisalho do sr. Ivashkov, me perguntei se as pessoas não o tomavam como um vampiro com mais frequência. Não, vampiro
não era o termo adequado, concluí. Ele parecia mais um agente funerário.
- Pai - Adrian disse, rígido. - É sempre um prazer.
- Para alguns de nós, sim. - O pai dele me examinou e vi seus olhos se fixarem na minha bochecha. Ele estendeu a mão, que eu apertei, orgulhosa pelo fato de cumprimentar
um vampiro não ser mais um grande acontecimento para mim. - Nathan Ivashkov.
- Sydney Sage - falei. - É um prazer conhecer o senhor.
- Conheci Sage enquanto estava vadiando por aí - Adrian explicou. - Como não tenho carro, ela fez o favor de me dar uma carona de Los Angeles para cá.
Nathan me observou, perplexo.
- É uma viagem longa.
Não tão longa quanto de Palm Springs, mas imaginei que seria mais seguro - e crível - fazê-lo pensar que Adrian estava em Los Angeles.
- Não é incômodo nenhum, senhor - eu disse. Virei para Adrian. - Vou trabalhar um pouco. Você me manda uma mensagem quando estiver pronto para ir?
- Trabalhar? - ele perguntou, enojado. - Ah, Sage. Vá pôr um biquíni e aproveitar a piscina enquanto está por aqui.
Nathan olhou de mim para ele, incrédulo.
- Você a fez dirigir até aqui e agora vai deixá-la esperando a seu bel-prazer?
- Sério - eu disse. - Não é incô...
- Ela é uma alquimista - Nathan continuou -, não sua motorista. Existe uma grande diferença. - Na verdade, havia dias em Amberwood em que eu não tinha tanta certeza
disso. - Venha, srta. Sage. Se você já perdeu o dia trazendo meu filho para cá, o mínimo que posso fazer por você é pagar seu almoço.
Lancei um olhar de pânico para Adrian. Não por medo de ficar sozinha com os Moroi - fazia tempo que já me acostumara a situações como aquela. O que eu não estava
certa era se Adrian realmente queria me ter por perto durante seu encontro familiar. Aquilo não era parte do plano. Além do mais, eu também não tinha certeza se
queria estar presente naquela reunião.
- Pai... - Adrian arriscou.
- Eu insisto - Nathan disse, ríspido. - Preste atenção e aprenda um pouco de cortesia.
Ele deu as costas e começou a se afastar, supondo que o seguiríamos. Foi o que fizemos.
- Talvez eu deva inventar um motivo para sair? - murmurei para Adrian.
- Não depois que ele usou a voz do “eu insisto” - ele respondeu num sussurro.
Por um momento, ao avistar o restaurante magnífico no terraço e sua vista para o oceano ensolarado, pensei que iria conseguir aguentar a família Ivashkov. Sentar
sob aquele calor, diante daquela magnificência, valeria o drama familiar. Mas, então, Nathan passou reto pelas portas do terraço e nos guiou até o elevador. Resignados,
nós o seguimos. Ele nos levou até o térreo, a um bar chamado O Saca-Rolhas. Era um lugar escuro e sem janelas, com vigas de madeira baixas e poltronas de couro preto.
Barris de carvalho ladeavam as paredes e a luz era filtrada por lâmpadas de vidro vermelho. Fora o garçom solitário, o bar estava vazio, o que não era nenhuma surpresa
àquela hora do dia.
Surpreendente era Nathan ter nos conduzido até lá em vez de nos levar ao restaurante sofisticado a céu aberto. Ele vestia um terno caro, que parecia ter vindo direto
de uma reunião de executivos em Manhattan. Por que teria ignorado um restaurante moderno e sofisticado em favor de um bar abafadiço, sombrio e...
Sombrio.
Quase soltei um gemido. Claro que o terraço não era uma boa opção - pelo menos não para um Moroi. Por mais que as condições parecessem encantadoras para mim, o sol
vespertino teria transformado o almoço dos Ivashkov num suplício - ainda que nenhum dos dois parecesse estar planejando uma tarde agradável.
- Sr. Ivashkov - o garçom disse. - É um prazer recebê-lo novamente.
- Posso pedir para entregarem a comida aqui embaixo outra vez? - Nathan perguntou.
- Claro.
Outra vez. Provavelmente aquela caverna subterrânea era o local preferido de Nathan para comer desde que chegara a San Diego. Melancólica, pensei uma última vez
no terraço e então entrei atrás de Nathan e Adrian. Nathan escolheu uma mesa no canto para oito pessoas. Talvez ele gostasse de espaço. Ou talvez adorasse fingir
que presidia alguma reunião corporativa. O garçom nos entregou os cardápios e anotou nossos pedidos para bebida. Escolhi um café e Adrian pediu um martíni, recebendo
olhares de desaprovação tanto de mim como do pai.
- Mal deu meio-dia - Nathan falou.
- Eu sei - Adrian disse. - Também estou surpreso por ter aguentado tanto tempo.
Nathan ignorou o comentário e se dirigiu a mim.
- Você é muito jovem. Deve ter acabado de entrar para os alquimistas.
- Todos começamos cedo - concordei. - Estou trabalhando sozinha faz pouco mais de um ano.
- Isso é bem admirável. Denota grande responsabilidade e iniciativa. - Ele agradeceu ao garçom, que lhe serviu uma garrafa de água com gás. - Não é nenhum segredo
o que os alquimistas pensam a respeito de nós mas, ao mesmo tempo, seu grupo nos faz muito bem. A eficiência de vocês é particularmente extraordinária. É uma pena
que meu próprio povo não siga esse exemplo.
- E como vão as coisas entre os Moroi? - perguntei. - Com a rainha?
Nathan quase sorriu.
- Quer dizer que você não sabe?
Eu sabia... Ou melhor, sabia o que os alquimistas sabiam.
- É sempre diferente ouvir uma perspectiva interna.
Ele soltou um riso abafado. Sua risada tinha um som áspero, como se rir não fosse algo em que Nathan Ivashkov tivesse muita prática.
- A situação está melhor agora. Mas longe do ideal. Aquela menina é esperta, devo admitir. - Supus que “aquela menina” fosse Vasilisa Dragomir, jovem rainha dos
Moroi e melhor amiga de Rose. - Tenho certeza de que ela gostaria de aprovar as leis dos dampiros e da hereditariedade, mas sabe que só causariam mais revolta em
seus opositores. Então está encontrando meios de negociar sobre outras questões e já conquistou o apoio de alguns inimigos.
As leis da hereditariedade. Essas me interessavam em particular. Havia doze linhagens reais entre os Moroi; Vasilisa e Jill eram as últimas de sua linhagem. As leis
Moroi diziam que um monarca precisava ter pelo menos um outro membro da família vivo; por isso Jill havia se tornado uma peça política tão importante. Até para os
assassinos mais terríveis seria difícil matar uma rainha bem protegida. Mas eliminar sua meia-irmã causaria os mesmos resultados e invalidaria a regência de Vasilisa.
Foi assim que Jill acabou indo para um esconderijo.
O raciocínio de Nathan seguiu na mesma linha:
- Ela também é inteligente por esconder a irmã bastarda. - Sabia que ele queria dizer “bastarda” no sentido de filha ilegítima, e não como um insulto; mesmo assim
estremeci. - Dizem que vocês sabem alguma coisa a respeito disso. Mas suponho que você não vai me dar nenhuma “perspectiva interna”, não é mesmo?
Fiz que não e busquei manter o tom amigável.
- Desculpe, senhor. Minhas informações só vão até aí.
Depois de alguns segundos de silêncio, Nathan pigarreou e disse:
- Então, Adrian. O que você queria?
Adrian tomou um gole do martíni.
- Ah, você notou que estou aqui? Pensei que tinha vindo encontrar Sydney.
Afundei um pouco na cadeira. Aquela era exatamente a situação que eu queria evitar.
- Por que você responde toda e qualquer pergunta com alguma impertinência? - Nathan perguntou, cansado.
- Talvez a culpa seja das suas perguntas, pai.
Aquele bar não era grande o bastante para conter a tensão que crescia cada vez mais. Todos os meus instintos me diziam para fingir que eu era invisível, mas em vez
disso me vi interrompendo os dois.
- Adrian está na faculdade - falei. - Assistindo a aulas de arte. Ele é muito talentoso.
Adrian me lançou um olhar intrigado, mas radiante. Algumas de suas obras eram realmente boas. Em outras, especialmente as que pintava quando ele estava bêbado, parecia
que tinha derrubado tinta na tela sem querer. Já havia dito isso para ele diversas vezes.
Nathan não pareceu impressionado.
- Sim. Ele já tentou isso antes. Não durou muito.
- Mas agora o lugar e o tempo são outros - eu disse. - As coisas podem mudar. Pessoas podem mudar.
- Mas normalmente não mudam - Nathan opinou. O garçom voltou para anotar nossos pedidos, embora nenhum de nós sequer tivesse olhado o cardápio. - Vou pedir para
todo mundo, tudo bem? - Nathan abriu o cardápio e o examinou rapidamente. - Traga um prato de cogumelos com alho na manteiga, o fondue de queijo de cabra, as vieiras
enroladas em bacon e a salada Caesar com ostras fritas. O suficiente para três na salada, claro.
O garçom fez algumas anotações rápidas e foi embora antes que eu pudesse dizer qualquer coisa.
- Pegou pesado, hein, pai? - Adrian comentou. - Nem perguntou se a gente se importava que você escolhesse.
Nathan não parecia preocupado.
- Já comi aqui antes. Sei o que é bom. Confiem em mim, vocês vão gostar.
- Sage não vai comer nada disso.
Concluí que aquilo seria muito mais fácil se os dois simplesmente ignorassem a minha existência.
- Por que não? - Nathan perguntou, olhando-me com curiosidade. - Você é alérgica a frutos do mar?
- Ela só come comida saudável - Adrian disse. - Tudo o que você pediu pinga gordura.
- Um pouco de manteiga não vai fazer mal nenhum a ela. Vocês vão ver como estou certo. É tudo muito gostoso. Além do mais - Nathan acrescentou, interrompendo-se
para beber um gole de água -, eu pedi uma salada para a mesa. Alface é saudável.
Nem tentei argumentar que nenhuma alface compensaria as ostras fritas ou o molho Caesar. De qualquer forma, eu não teria chance de abrir a boca, já que Adrian desembestou
a falar e - notei com certa perplexidade - já tinha bebido metade do martíni.
- Viu? - ele disse, revoltado. - É exatamente assim que você age. Acha que sabe o que é melhor para todo mundo. Simplesmente segue em frente e toma todas as decisões,
sem se importar em consultar alguém, porque tem total segurança de que está certo.
- Na minha vasta experiência - Nathan respondeu friamente -, costumo, sim, estar certo. Quando você tiver esse tipo de experiência, quando realmente puder dizer
que tem autoridade em, bem, alguma coisa, então vou poder confiar em você para tomar decisões importantes.
- Isto é um almoço - Adrian rebateu. - Não é uma decisão de vida ou morte. Tudo o que estou dizendo é que você podia pelo menos ter feito algum esforço para incluir
as outras pessoas. Obviamente, sua “vasta experiência” não se aplica a gentilezas comuns, não é?
Nathan voltou o olhar para mim.
- Em algum momento deixei de ser gentil com você, srta. Sage?
Por mais que eu quisesse, não havia onde enfiar a cabeça.
Adrian terminou o martíni num gole só e levantou o copo para chamar atenção do garçom.
- Deixe Sydney fora disso - Adrian interpelou. - Não tente manipulá-la para provar seu argumento.
- Não preciso manipular ninguém para provar meu argumento - Nathan replicou. - Acho que já está provado.
- Não tem problema quanto ao almoço - deixei escapar, sabendo bem que aquela discussão entre pai e filho não tinha nada a ver com meus hábitos alimentares. - Preciso
mesmo experimentar coisas novas.
- Não ceda a ele, Sydney - Adrian advertiu. - É assim que ele sempre consegue passar por cima dos outros, especialmente das mulheres. Ele fez isso com a minha mãe
durante anos.
Em silêncio, o garçom se aproximou e trocou o copo vazio de martíni por um cheio.
- Ah, por favor - Nathan disse, com um suspiro pesado. - Vamos deixar sua mãe fora disso.
- É fácil pra você - Adrian retrucou. Havia linhas de tensão visíveis em seu rosto. A mãe dele era um assunto delicado. - É isso o que você sempre faz. Estou tentando
arrancar uma resposta sua há semanas sobre como ela está! Caramba, só estou tentando saber onde ela está. É tão difícil assim responder? Ela não deve estar em segurança
máxima. Devem deixá-la receber cartas, pelo menos.
- É melhor vocês não terem contato nenhum enquanto ela estiver presa - Nathan disse. Até eu me espantei com a frieza com que ele falava da própria esposa.
Adrian sorriu com desdém e tomou outro gole do martíni.
- Lá vem você de novo: achando que sabe o que é melhor pra todo mundo. Sabe, eu queria muito, muito mesmo, acreditar que você evita falar dela porque isso te magoa.
Tenho certeza de que, se uma mulher que eu amasse estivesse presa, eu estaria fazendo todo o possível para me comunicar com ela. Mas para você isso deve ser difícil
demais. Talvez sua única maneira de lidar com a situação seja mantendo-a afastada, e me mantendo afastado também. Quase conseguiria entender isso.
- Adrian... - Nathan começou.
- Mas não é esse o caso, né? Você não quer que eu tenha nenhum contato, e provavelmente não está tendo nenhum contato com ela também, porque tem vergonha. - Adrian
estava ficando realmente nervoso. - Você quer afastar a gente e fingir que o que ela fez nunca existiu. Você quer fingir que ela não existe. Porque ela arruinou
a reputação da família.
Nathan fixou o olhar incisivo no filho.
- Considerando sua própria reputação, achei que entenderia o bom senso de não ter nenhuma associação com o que ela fez.
- E o que ela fez? Uma grande besteira? - Adrian perguntou. - Todos nós fazemos besteiras. Todo mundo erra. Foi isso que ela fez. Foi falta de discernimento, simples
assim. Não se rompem relações com uma pessoa que se ama por causa de erros como esse.
- Ela fez aquilo por sua culpa - Nathan disse. Seu tom de voz não deixava dúvidas de que realmente acreditava naquilo. - Porque você não conseguiu ficar quieto no
seu canto com aquela dampira. Tinha que ficar alardeando seu relacionamento com ela aos quatro ventos, e quase entrou numa enrascada tão grande quanto ela depois
do assassinato de sua tia. Foi por isso que sua mãe fez o que fez: para proteger você. Ela está presa por causa da sua irresponsabilidade. Tudo isso é culpa sua.
Adrian ficou mais pálido do que de costume, e parecia chocado demais para formular qualquer resposta. Voltou a pegar o martíni e tive quase certeza de ver suas mãos
tremerem. Nesse momento, dois garçons do restaurante de cima apareceram com a comida. Fitamos em silêncio enquanto arrumavam nossos pratos e dispunham as bandejas
habilidosamente. Olhar toda aquela refeição me fez sentir um enjoo que nada tinha a ver com o teor de sal ou gordura.
- Sr. Ivashkov - comecei, ignorando a voz da razão na minha cabeça que gritava para que eu me mantivesse calada -, é injusto culpar Adrian pelas escolhas dela, especialmente
se ele nem sabia o que ela estava fazendo. Tenho certeza de que ele faria qualquer coisa por ela. Se pudesse fazer algo para impedir, ou assumir o lugar dela, ele
teria feito.
- Você parece muito convicta, hein? - Nathan estava abarrotando o prato de comida e parecia muito contente com isso. Adrian e eu havíamos perdido o apetite. - Bom,
srta. Sage, sinto muito por acabar com as suas ilusões, mas parece que você, assim como tantas outras, caiu na lábia do meu filho. Posso lhe garantir que ele nunca
fez nada sem visar seus próprios interesses em primeiro lugar. Ele não tem nenhuma iniciativa, nenhuma ambição, e não leva nada adiante. Desde muito novo, sempre
quebrava as regras e ignorava o que os outros diziam quando não lhe convinha. Não me surpreende que suas tentativas de cursar uma faculdade tenham fracassado. Posso
garantir a você que essa também irá fracassar, já que ele mal conseguiu terminar o ensino médio. E nem foi por causa da bebida, das garotas ou das besteiras que
ele fazia... Ele simplesmente não se importava. Ignorava os estudos. Ele só conseguiu se formar graças à nossa influência e nossas contribuições financeiras. Desde
então, a situação só se deteriorou.
Adrian parecia ter levado um tapa. Senti vontade de me aproximar e reconfortá-lo, mas ainda estava em choque com as palavras de Nathan. Adrian claramente também
estava. Uma coisa era discorrer sobre como você achava que seu pai estava decepcionado com você. Outra coisa bem diferente era ouvir seu próprio pai explicar essa
decepção com tamanha riqueza de detalhes. Eu sabia disso porque já tinha passado por ambas as situações.
- Sinceramente, não me importo muito com a bebida, contanto que o derrube e o mantenha quieto. - Nathan continuou, com a boca cheia de queijo de cabra. - Você acha
que a mãe dele está sofrendo agora? Garanto que ela está muito melhor. Ela passou inúmeras noites em claro chorando por causa de todos os apuros em que ele se meteu.
Eu não o estou mantendo longe dela por minha causa ou por causa dele. Faço isso por ela. Pelo menos agora ela não precisa ouvir sobre a última palhaçada que ele
fez, nem se preocupar com ele. Ignorância é uma bênção. Ela está em um lugar melhor exatamente por não ter contato com ele, e eu pretendo manter as coisas desse
jeito. - Ele me ofereceu as vieiras como se não tivesse acabado de dar um imenso sermão sem nem parar para tomar fôlego. - Você realmente precisa experimentar. Proteína
vai te fazer bem, sabia?
Fiz que não com a cabeça, sem conseguir encontrar palavras.
Adrian respirou fundo.
- Sério, pai? Eu vim até aqui para ver você, para tentar descobrir algum jeito de entrar em contato com ela... e tudo o que eu ganho é isso? Que ela está melhor
sem mim?
Ao olhar para ele, tive a impressão de que estava se esforçando muito para se manter calmo e racional. Irromper em suas típicas respostas sarcásticas não o ajudaria
em nada, e ele sabia disso.
Nathan parecia perplexo.
- Este é o único motivo que te trouxe até aqui? - Pelo tom dele, estava claro que considerava o motivo ridículo.
Adrian mordeu o lábio, provavelmente para continuar escondendo seus verdadeiros sentimentos. Seu autocontrole me impressionou.
- Também pensei... que talvez você quisesse saber o que eu andava fazendo. Pensei que poderia ficar feliz por eu estar fazendo alguma coisa útil.
Por um momento, Nathan simplesmente fixou os olhos nele. Então sua perplexidade se desfez numa daquelas gargalhadas constrangedoras.
- Ah, foi uma piada. Não tinha entendido.
- Pra mim já chega - Adrian disse.
Como um raio, ele bebeu o resto do martíni e se levantou, seguindo apressado em direção à porta. Nathan continuou a comer tranquilamente, enquanto eu também me levantava.
Só quando cheguei à metade do bar, tentando alcançar Adrian, Nathan se deu ao trabalho de abrir a boca.
- Srta. Sage? - Cada centímetro de mim queria correr atrás de Adrian, mas parei e olhei para o pai dele. Nathan estava remexendo num maço de notas que tinha tirado
da carteira. - Tome. Permita-me compensá-la pela gasolina e pelo tempo.
Ele estendeu o dinheiro para mim e quase dei risada. Adrian se obrigara a ir até lá por vários motivos, entre eles o dinheiro. Ele sequer havia tido a chance de
pedir e, agora, lá estava Nathan me oferecendo. Não me mexi.
- Não quero nada de você - eu disse. - A não ser que seja um pedido de desculpas a Adrian.
Nathan me lançou outro olhar inexpressivo. Ele parecia sinceramente confuso.
- Pelo que eu precisaria me desculpar?
Fui embora.
Adrian havia ou descido a escada, ou tomado o elevador assim que saiu, pois não havia sinal dele do lado de fora do bar. Voltei ao saguão no andar de cima e procurei
de um lado para o outro, aflita. Parei um carregador de malas que passava.
- Com licença, onde é o lugar mais perto em que dá pra fumar?
- Do outro lado da entrada dos carros - ele respondeu, apontando com a cabeça para a porta de entrada.
Agradeci e quase corri para fora. De fato, na área reservada aos fumantes, lá estava Adrian, encostado a uma cerca de metal, à sombra de uma laranjeira, acendendo
um cigarro. Corri em sua direção.
- Adrian - exclamei -, você está bem?
Ele deu um longo trago no cigarro.
- Você realmente quer fazer essa pergunta, Sage?
- Ele estava fora de si - eu disse, convicta. - Não tinha o direito de dizer aquelas coisas.
Adrian deu mais uma tragada, e então jogou o cigarro na calçada e pisou sobre ele com a ponta do sapato.
- Vamos voltar para Palm Springs.
Voltei o olhar para hotel.
- Devíamos pegar uma água ou alguma outra coisa pra você. Você tomou aquela vodca rápido demais.
Ele quase abriu um sorriso. Quase.
- É preciso muito mais vodca para me fazer mal. Não vou vomitar no seu carro. Juro. Só não quero ficar e correr o risco de ver o velho de novo.
Assenti e, pouco depois, estávamos de volta à estrada. Passamos menos tempo em San Diego do que no caminho para lá. Adrian permaneceu em silêncio e, dessa vez, não
tentei tirá-lo de sua melancolia nem distraí-lo com conversas banais. Nada que eu pudesse dizer iria ajudá-lo. Duvidava que alguém pudesse dizer alguma coisa para
ajudá-lo. Não culpava Adrian pelo humor em que ele estava. Me sentiria igual se meu pai tivesse acabado comigo daquele jeito na frente de outras pessoas. Mesmo assim,
desejei poder fazer algo para abrandar a dor que ele estava sentindo. Algum pequeno consolo para lhe dar um instante de paz.
Minha oportunidade surgiu ao avistar um pequeno posto de gasolina perto da cidade de Escondido, com um cartaz que dizia: AS MELHORES RASPADINHAS DO SUL DA CALIFÓRNIA
AQUI NO JUMBO JIM’S! Lembrei da piada que ele havia feito sobre entrar numa dieta à base de raspadinhas. Fiz uma curva brusca, saindo da rodovia, mesmo sabendo que
seria inútil. Afinal, o que era uma raspadinha perto do desastre que tínhamos acabado de deixar para trás? Ainda assim, eu precisava fazer alguma coisa, qualquer
coisa, para que Adrian se sentisse melhor. Ele só pareceu notar que havíamos parado quando eu comecei a sair do carro.
- Que foi? - ele perguntou, abandonando forçosamente seus pensamentos sombrios. A tristeza no seu rosto acabou comigo. - Ainda tem meio tanque.
- Já volto - respondi.
Voltei cinco minutos depois e, mesmo com um copo em cada mão, consegui bater na janela dele. Ele saiu do carro, realmente confuso.
- O que aconteceu?
- Raspadinhas - eu disse. - De cereja pra você. Mas precisa beber aqui fora. Não quero correr o risco de sujar o carro.
Adrian piscou algumas vezes, como se eu fosse uma miragem causada pelo excesso de sol.
- O que é isso? Festinha de piedade para mim? Porque eu sou patético?
- Não é por sua causa - repreendi. - Vi o cartaz e fiquei com vontade. Pensei que também fosse querer uma. Se não quiser, jogo a sua fora e bebo só a minha.
Tinha dado apenas um passo em direção ao lixo quando ele me deteve e pegou a raspadinha vermelho-vivo. Nos encostamos no carro e bebemos sem dizer nada por um tempo.
- Cara - ele finalmente disse, com o olhar fascinado, depois de beber metade. - Tinha me esquecido de como isso era bom. Qual você pegou?
- De amora.
Adrian assentiu e deu um gole ruidoso na raspadinha dele. Aquele ar soturno ainda pairava ao seu redor, e sabia que uma bebida infantil não iria desfazer tão rápido
o estrago que o pai dele havia feito. O melhor que eu podia esperar era que ele tivesse alguns momentos de paz.
Terminamos pouco tempo depois e jogamos os copos no lixo. De volta ao Pingado, Adrian soltou um suspiro exaurido e esfregou os olhos.
- Nossa, raspadinhas são incríveis. Acho que estava precisando disso. Talvez a vodca tenha batido mais do que eu pensei. Que bom que você escolheu outra coisa além
de café, para variar um pouco.
- Ei, se eles tivessem com sabor de café, eu teria pedido, você sabe disso.
- Que nojo - ele disse. - Nenhum açúcar no mundo faria isso minimamente... - Ele parou no meio da frase e me lançou um olhar espantado. Parecia tão chocado que parei
de dar ré no carro e voltei a estacionar.
- Qual é o problema? - perguntei.
- A raspadinha. Aquilo é noventa e nove por cento açúcar. E você acabou de tomar uma, Sage. - Ele parecia interpretar meu silêncio como se eu não tivesse entendido.
- Você acabou de beber açúcar líquido.
- Você é que bebeu açúcar líquido. A minha era sem açúcar - eu disse, torcendo para soar convincente.
- Ah. - Não consegui saber se ele estava aliviado ou desapontado. - Quase tive um ataque agora.
- Parece que não me conhece.
- Pois é. - Seu humor melancólico voltara; as raspadinhas só tinham sido uma distração temporária. - Sabe o que foi o pior de tudo?
- O quê? - perguntei, sabendo que ele se referia ao pai, e não às raspadinhas.
- Você imaginaria que foi eu não ter conseguido o dinheiro, ou ele ter acabado com a minha vida, ou ele não acreditar que estou levando a faculdade a sério. Mas
quanto a isso tudo bem. Vindo dele, estou acostumado. O que me incomoda mesmo é que eu realmente destruí a vida da minha mãe.
- Não acredito nisso - respondi, atônita. - Como você mesmo disse, nós continuamos amando as pessoas, mesmo que elas cometam erros. Tenho certeza de que ela ama
você também. De qualquer forma, isso é uma coisa que você tem que discutir com ela, não com ele.
- Sim. Mas outra coisa que me incomodou... foi ele dizer tudo aquilo na sua frente.
Isso também foi um choque. Não reagi, me sentindo um tanto desconcertada por ele se preocupar tanto com a minha opinião. Por que ele haveria de se importar?
- Não se preocupe comigo. Já estive com pessoas muito mais enervantes do que ele.
- Não, não... O que quero dizer... - Adrian olhou para mim e logo depois desviou o olhar. - É que depois do que ele disse a meu respeito, não suporto a ideia de
que você me despreze.
Fiquei tão surpresa com aquilo que não pude formular uma resposta de imediato. Quando consegui, apenas disparei a primeira coisa que me veio à mente:
- Claro que não desprezo você. - Ele continuou sem me encarar, aparentemente não acreditando nas minhas palavras. - Adrian. - Pousei a mão sobre a dele e senti uma
faísca quente com a conexão. Ele virou a cabeça para mim num movimento súbito de surpresa. - Nada do que ele disse poderia mudar o que penso de você. Já faz tempo
que formei uma ideia sobre você... e é uma ideia muito boa. - Adrian desviou o olhar para baixo, onde minha mão cobria a dele. Enrubesci e soltei. - Desculpe. -
Imaginei que tivesse feito ele surtar com aquilo.
Ele voltou a me olhar nos olhos.
- Foi a melhor coisa que me aconteceu hoje. Vamos pegar a estrada.
Voltamos para a pista e me vi distraída por duas coisas. Primeiro, minha mão, que formigava e ainda estava quente no ponto em que tocara a dele, o que era meio engraçado.
As pessoas sempre pensavam que os vampiros eram frios, mas eles não eram. Pelo menos não Adrian. A sensação começou a desvanecer conforme eu dirigia, mas bem que
gostaria que ela permanecesse.
A outra coisa que estava me distraindo era todo aquele açúcar que eu havia acabado de beber. Ficava passando a língua nos dentes o tempo todo. Toda a minha boca
estava revestida de uma doçura enjoativa. Queria muito escovar os dentes e depois beber um frasco inteiro de enxaguante bucal. Açúcar líquido. Sim, era exatamente
isso que eu tinha bebido. Não queria ter tomado, mas sabia que, se levasse uma só para Adrian, ele teria interpretado como uma demonstração de piedade e acabaria
recusando. Precisava fingir que também queria uma e que só tinha pensado nele depois. Ele parecia ter acreditado na mentira sobre o teor de açúcar da minha, embora
em uma rápida visita ao posto de gasolina ele descobriria que o Jumbo Jim’s definitivamente não vendia raspadinhas sem açúcar. Eu cheguei a perguntar. Eles riram
na minha cara.
Não ter almoçado não compensava aquelas calorias, pensei, triste. E eu não conseguiria tirar aquele gosto doce da boca tão cedo. Considerando a rapidez com que Adrian
retornou à sua depressão, subitamente me senti idiota por ter chegado a usar aquele artifício. Uma raspadinha não era capaz de mudar o que o pai dele tinha dito,
e eu estaria meio quilo mais gorda no dia seguinte. Talvez não tivesse valido a pena.
Então relembrei o breve instante em que ficamos encostados no carro e o olhar efêmero de felicidade no rosto do Adrian, seguidos pelo: “Nossa, raspadinhas são incríveis.
Acho que estava precisando disso”.
Um curto momento de paz em meio à escuridão do desespero. Era aquilo que eu queria e era aquilo que tinha conseguido. Tinha valido a pena? Esfreguei as pontas dos
dedos umas nas outras, ainda sentindo aquele calor.
Sim, concluí. Tinha valido a pena.
10
A VIAGEM A SAN DIEGO continuava me incomodando, por mais que soubesse que devia deixar pra lá. Como vivia me relembrando, Adrian não era problema meu - não na mesma
medida que Jill e os outros. Mesmo assim, não conseguia tirar da cabeça o confronto terrível entre ele e Nathan, muito menos a expressão no rosto de Adrian depois.
Me senti ainda pior quando Eddie, preocupado, veio falar comigo sobre Jill na segunda-feira, durante o café da manhã.
- Tem alguma coisa errada com ela - ele disse.
Olhei imediatamente para a fila do restaurante, onde Jill aguardava com a bandeja. Seu olhar era vago, como se ela mal estivesse consciente de tudo ao seu redor.
Mesmo sem nenhum dom mágico de enxergar auras, conseguia praticamente ver a angústia que ela irradiava.
- Micah também percebeu - Eddie acrescentou. - Mas não sabemos o que poderia deixá-la tão chateada. Será que é por causa de Lia? Ou será que voltaram a pegar no
pé dela aqui na escola?
Naquele momento, não soube por quem me sentia pior: Adrian, Jill... ou Eddie. Havia quase tanto sofrimento no rosto dele quanto no da própria Jill. Ah, Eddie, pensei.
Por que você continua fazendo isso consigo mesmo? Ele estava visivelmente preocupado, mas não se atreveria a abordá-la, nem a oferecer conforto.
- Não tem nada de errado com Jill. O problema é com Adrian, e ela está sentindo por causa do laço. Ele está passando por um momento muito difícil.
Não dei mais detalhes sobre a situação de Adrian; não tinha esse direito.
O semblante de Eddie escureceu um pouco.
- Não é justo ela ter de aturar as mudanças de humor dele.
- Não sei - eu disse. - Parece uma troca justa pela vida dela.
O fato de Adrian ter usado o espírito para trazer Jill de volta à vida ainda era uma questão complicada para mim. Durante todo o meu treinamento alquimista, disseram-me
que aquele tipo de magia era errado, muito pior que qualquer outro que eu já tivesse presenciado. Seria possível até argumentar que o que ele fez estava a poucos
passos da imortalidade dos Strigoi. Por outro lado, sempre que via Jill viva e radiante, tinha certeza de que Adrian fizera a coisa certa. Eu havia falado a verdade
quando lhe disse isso em San Diego.
- Acho que sim - Eddie disse. - Queria que ela tivesse um jeito de bloqueá-lo. Ou pelo menos de fazê-lo ficar menos temperamental.
- Pelo que ouvi dizer - eu disse, meneando a cabeça -, Adrian já era assim muito antes de Jill ser beijada pelas sombras.
Mesmo assim, aquela conversa ficou na minha cabeça e passei o resto do dia me perguntando o que podia fazer para deixar Adrian mais contente. Obviamente, não poderia
arranjar outro pai para ele. Se pudesse, teria tentado conseguir um para mim mesma muitos anos antes. Raspadinhas também não eram uma opção, em parte porque só ofereciam
dez minutos de alívio, e também porque eu ainda estava me recuperando da última. Mais tarde finalmente tive uma ideia, embora não fosse nada fácil colocá-la em prática.
Na verdade, tinha certeza de que meus superiores diriam que eu não devia tentar fazer isso, razão pela qual decidi não deixar rastro nenhum em e-mail ou papel. Porém,
não podia executar isso naquele dia, então fiz uma nota mental para tratar do assunto depois. Além disso, quem sabe Adrian não conseguiria superar os efeitos do
encontro com o pai por conta própria?
Essas esperanças acabaram ganhando força quando vi Jill no dia seguinte, durante uma assembleia da escola. Assembleias como aquela ainda eram uma novidade para mim,
e havíamos tido exatamente duas desde o início das aulas. A primeira tinha sido uma reunião de boas-vindas na nossa primeira semana. A segunda, um agrupamento para
festejar o retorno do time de futebol americano. A daquele dia se chamava Estilos de Vida Saudáveis. Não conseguia entender sobre o que era ou por que seria tão
importante a ponto de interromper minha aula de química.
Mandaram que nos sentássemos agrupados em turmas no ginásio da escola, de modo que eu e Jill fomos colocadas em seções distintas da arquibancada. Ao esticar o pescoço
para vê-la, percebi que ela tinha ficado perto da quadra, com Angeline e alguns amigos que fez através de Micah. Eles a receberam bem depois que a conheceram melhor,
o que não era nenhuma surpresa considerando sua doçura. Até mesmo Laurel, uma menina que antes lhe atormentava a vida, agora lhe sorria, simpática. Angeline disse
alguma coisa que a fez rir e, no geral, havia uma melhora em sua disposição. Uma grande melhora, a julgar pelo tanto que ela ria. Fiquei contente. Talvez Adrian
realmente tivesse se recuperado.
- Alguém sabe me dizer o que é isso? - perguntei a Eddie e Micah, que estavam sentados de um lado, e a Trey, que estava do outro.
- É um grupo que vem para a escola fazer apresentações sobre questões como drogas e sexo com segurança - Micah explicou.
Ele era bem ativo no grêmio estudantil, então não foi uma surpresa ele saber da pauta do dia.
- São assuntos bem importantes - eu disse. - Isso não é para durar uma hora? Não acho que vão conseguir tratar de tudo isso em tão pouco tempo.
- Acho que é só uma revisão geral bem rápida - Trey disse. - Não querem fazer nenhum seminário ou coisa assim.
- Pois deveriam - argumentei.
- Perdemos alguma coisa? - Julia e Kristin abriram caminho aos empurrões, e se encaixaram entre mim e Trey. Trey não pareceu se importar.
- Estamos tentando explicar o objetivo disso para Sydney - ele contou a elas.
- Acho que o objetivo era escapar da aula - Julia disse.
Kristin revirou os olhos.
- Isso vai mostrar o que você perdeu sendo educada em casa, Sydney.
Nada poderia ter me preparado para o espetáculo que se desenrolou, sobretudo porque nem nos meus sonhos mais loucos eu imaginaria questões sociais de peso sendo
tratadas em números musicais. O grupo que se apresentou chamava-se Katar Geral, e o uso inapropriado do K quase foi suficiente para me fazer sair dali na hora. Antes
de cada música eles faziam um resumo rápido e completamente vago sobre o tópico ou, ainda pior, encenavam um esquete. Esses discursos rápidos sempre começavam com
um “Alô, criançada!”.
A primeira música se chamava “DSTs não são pra vocês”. Foi então que comecei a fazer minha tarefa de matemática.
- Ah - Eddie me disse. - Não é tão ruim. E as pessoas precisam saber esse tipo de coisa.
- Exatamente - respondi, sem levantar os olhos. - Ao tentarem usar uma linguagem “descolada” e “acessível”, estão transformando questões sérias em brincadeiras idiotas.
O único momento em que voltei a prestar atenção foi quando a Katar Geral começou a falar sobre os males do álcool. Um dos versos daquela canção particularmente horrenda
era: “Não ouve o teu amigo/ Uísque vai acabar contigo”.
- Argh. Já deu - murmurei, voltando a procurar Jill com os olhos.
Ela estava assistindo, incrédula e perplexa, mas assim como antes não havia nem sinal daquele desespero ou melancolia. Meus instintos sugeriram um motivo diferente
para aquela variação de humor. Adrian não tinha superado a tristeza. Era mais provável que estivesse bebendo para afogar as mágoas. Às vezes, Jill sentia alguns
dos efeitos colaterais da embriaguez, como as risadinhas que eu tinha visto, mas eventualmente o álcool acabava enfraquecendo o laço de espírito. O lado positivo
do comportamento dele era que a poupava um pouco da depressão. O lado negativo era que ela poderia sentir os efeitos físicos da ressaca no dia seguinte.
Felizmente a Katar Geral tocou sua última música, um grande número musical celebrando os prazeres de se sentir bem e ter um estilo de vida feliz e saudável. Eles
chamaram membros do corpo discente para dançar com eles, o que gerou reações diversas. Alguns alunos simplesmente ficaram parados, morrendo de vergonha, com expressões
que denotavam que estavam contando os segundos até aquilo acabar. Outros, sobretudo os que já costumavam chamar atenção na aula, davam os espetáculos mais esdrúxulos
possíveis.
- Sydney.
O tom de alerta na voz de Eddie me impediu de voltar à lição. Esse tipo de preocupação era reservado apenas a Jill e, no mesmo instante, olhei para ela. Jill, porém,
não era o problema. Angeline era. Um dos membros da Katar Geral estava tentando convencê-la a dançar e chegou a pegar a mão dela. Angeline balançou a cabeça enfática,
mas o rapaz parecia ignorar. Angeline podia se sentir à vontade em danças selvagens no meio das florestas da Virgínia Ocidental, mas aquela não era uma situação
em que se sentiria confortável.
Para ser justa, o que aconteceu em seguida não foi inteiramente culpa dela. O cara realmente devia tê-la deixado em paz quando ela se recusou, mas imagino que estava
absorto demais naquele humor descontraído. Ele deu um jeito de levantá-la à força, e foi então que Angeline deixou sua recusa perfeitamente clara.
Dando um soco na cara dele.
Foi impressionante, já que o cara era quase trinta centímetros mais alto do que ela. Supus que ela havia aprendido aquilo com o treinamento de Eddie sobre como nocautear
um Moroi mais alto. O cara cambaleou para trás e caiu, com um baque no chão. Quase todos os alunos por perto abafaram um grito de espanto, embora apenas uma das
pessoas da banda, a guitarrista, tivesse notado. O restante continuou cantando e dançando. A guitarrista correu até o colega caído e Angeline deve ter sentido seu
espaço pessoal ameaçado, porque também a socou.
- Eddie, faça alguma coisa! - exclamei.
Ele virou para mim, perplexo.
- O quê? Nunca chegaria lá a tempo.
Era verdade. Estávamos a uma altura de dois terços da arquibancada, cercados por outras pessoas. De mãos atadas, só me coube assistir à continuação do espetáculo.
A banda não demorou a perceber que algo estava terrivelmente errado e a música começou a vacilar até que, por fim, deu lugar ao silêncio. Enquanto isso, um grupo
de professores foi correndo até a quadra, tentando afastar Angeline do baixista da Katar Geral. O olhar dela era selvagem, como o de um animal encurralado que perdera
a cabeça e só queria escapar. Os professores finalmente conseguiram controlá-la, mas não antes que ela atirasse uma caixa de som contra o vocalista (e errasse) e
desse um soco no professor de marcenaria.
Trey me cochichou, boquiaberto.
- Aquela é a sua prima? Uau.
Nem me dei ao trabalho de responder. Tudo em que conseguia pensar era como iria controlar os danos dessa vez. Meter-se em brigas era uma infração grave por si só.
Sequer conseguia imaginar o que atacar um grupo musical educativo acarretaria.
- Ela derrubou, tipo, três pessoas com o dobro do tamanho dela! - Kristin exclamou. - E, tipo, derrubou mesmo. Nocauteou total.
- É, eu sei - respondi, desolada. - Estou aqui. Eu vi tudo.
- Como ela conseguiu fazer isso? - Julia questionou.
- Ensinei uns golpes a ela - Eddie comentou, incrédulo.
Como era de se esperar, ninguém sequer se deu ao trabalho de remeter o acontecido à sra. Weathers. Angeline foi mandada diretamente para a diretora e o vice-diretor.
Depois de sua demonstração, acho que se sentiriam mais seguros em um número maior. Talvez por recomendação da sra. Weathers, ou simplesmente porque nossos pais fictícios
(assim como os da nossa “prima” Angeline) eram conhecidos pela dificuldade de se contatar, pediram que eu a acompanhasse até a diretoria.
Meus conselhos prévios a ela foram curtos e diretos:
- Você tem que agir de maneira arrependida e contrita - disse a ela enquanto esperávamos na frente da sala da diretora.
- O que quer dizer “contrita”?
- Arrependida.
- Então por que você não disse só...
- E - continuei -, se perguntarem seus motivos, você diz que perdeu o controle e entrou em pânico. Diga que não sabe o que deu em você.
- Mas eu não...
- E não vai mencionar o quanto eles eram idiotas nem dizer nada negativo, seja o que for.
- Mas eles eram...
- Na verdade, não fale nada a menos que perguntem diretamente para você. Se me deixar cuidar disso, tudo vai acabar rápido.
Aparentemente Angeline levou isso ao pé da letra, porque cruzou os braços e me encarou, recusando-se a dizer qualquer outra coisa.
Quando fomos chamadas no escritório, a diretora e o vice - sra. Welch e sr. Redding, respectivamente - estavam sentados do mesmo lado da mesa, um ao lado do outro,
em um fronte unido que mais uma vez me levou a pensar que eles temiam por suas vidas.
- Srta. McCormick - a sra. Welch começou -, espero que tenha consciência de que a senhorita perdeu a linha completamente. - McCormick era o sobrenome falso de Angeline.
- Violência e brigas de qualquer espécie não são toleradas em Amberwood - o sr. Redding disse. - Temos normas severas, normas que visam garantir a segurança de todos
nesta escola, e esperamos que nossos alunos as obedeçam. Nenhuma de suas outras violações às regras da escola chegou perto do que você fez hoje.
- Mesmo que sua ficha fosse limpa, não restam dúvidas aqui - a sra. Welch disse. - Não temos lugar para você em Amberwood.
Senti um frio na barriga. Expulsão. Apesar de os Conservadores não serem inteiramente incultos, a bagagem de conhecimentos dela nem chegava perto da média dos estudantes
de ensino médio do mundo moderno. Ela tinha que fazer várias aulas de recuperação, e conseguir que entrasse em Amberwood tinha sido uma grande façanha. A expulsão
não era tão terrível quanto uma investigação sobre como era possível uma menina delicada como ela causar tanto estrago, mas ainda não era o resultado que eu queria.
Já podia imaginar meus superiores me perguntando: Como você pôde deixar de perceber que a escola a estava deixando tão explosiva? Minha única resposta possível seria:
Desculpe, eu estava muito ocupada namorando e ajudando vampiros que não são de minha responsabilidade.
- Você tem alguma coisa a dizer em sua defesa antes que notifiquemos seus pais? - a sra. Welch perguntou.
Eles olharam para Angeline, com expectativa.
Me preparei para um discurso irracional. Mas, em vez disso, Angeline conseguiu derramar algumas lágrimas que, admito, realmente pareciam de arrependimento.
- Eu... eu entrei em pânico - ela gaguejou. - Não sei o que deu em mim. Tanta coisa aconteceu de uma só vez e aquele cara era assustador e eu surtei. Me senti ameaçada.
Queria que todo mundo ficasse longe de mim...
Quase me convenceu, talvez porque houvesse um fundo de verdade naquilo. Angeline vinha tendo momentos conturbados em Amberwood, apesar de toda a sua presunção. Havia
mais pessoas na escola do que em toda a sua comunidade nas montanhas, e ela ficara tão atordoada durante a primeira semana que tivemos de nos revezar para escoltá-la
até as aulas. Eu realmente devia ter prestado mais atenção nela.
O sr. Reeding pareceu um pouquinho solidário, mas não o bastante para mudar de ideia.
- Tenho certeza de que foi difícil, mas isso não justifica o seu comportamento. Machucar três pessoas e danificar equipamentos caros de audiovisual não são, de forma
alguma, reações adequadas.
Que eufemismo.
Estava cansada das formalidades e precisava consertar as coisas antes que se agravassem ainda mais. Me inclinei para a frente na cadeira.
- Sabem o que também não é adequado? Um sujeito de trinta e poucos anos - porque essa era a idade dele, apesar de tentarem parecer jovens e descolados - agarrando
uma menina de quinze. Ele ter insistido quando ela demonstrou claramente que não queria acompanhá-lo já teria sido ruim o bastante. Mas a questão é que ele nem devia
ter tocado nela, pra começo de conversa. Ela é menor de idade. Se um professor fizesse isso, teria sido demitido. Li todos os livros que o departamento de RH dá
para os professores. - Tinha tentado descobrir se a sra. Terwilliger estava cometendo algum abuso comigo. - As únicas situações em que os professores podem pôr as
mãos nos alunos são em caso de emergência médica e para separar uma briga. Vocês podem até argumentar que aquele sujeito não era professor nem empregado de Amberwood,
mas o grupo dele foi convidado a vir até aqui pela escola, que tem a obrigação de manter a segurança dos alunos. Esta é uma escola particular, mas eu tenho certeza
de que a Secretaria de Educação da Califórnia teria algumas coisinhas a dizer sobre o que aconteceu hoje, assim como o pai da Angeline, que é advogado. - Na verdade,
ele era o líder polígamo de um bando de vampiros das montanhas, mas essa não era a questão. Alternei o olhar entre o rosto da sra. Welch e do sr. Redding. - Agora,
será que podemos renegociar a decisão de vocês?
Angeline estava em êxtase no caminho de volta da diretoria para o alojamento.
- Suspensão! - ela exclamou, feliz demais para o meu gosto.- Eu realmente vou poder matar aula? Parece mais uma recompensa.
- Mas você não pode deixar de fazer as lições de casa - adverti. - E não pode sair do alojamento. Nem pense em sair às escondidas, porque isso causaria sua expulsão
e não teria como eu salvar você de novo.
- Mesmo assim - ela disse, quase saltitante -, essa foi fácil.
Parei na frente dela, forçando-a a me encarar.
- Não foi fácil. Você se livrou por causa de uma brecha técnica. Você sempre reluta em seguir as regras por aqui, e hoje... bem, hoje você se superou. Você não está
na sua casa. Só deveria pensar em se meter numa briga aqui se Jill fosse atacada. É para isso que você está aqui. Não para fazer o que quiser. Você disse que estava
à altura do desafio de protegê-la. Se você for expulsa, e é um milagre não ter sido, ela estará correndo risco de vida. Então entre na linha ou comece a fazer as
malas pra voltar pra casa. E, pelo amor de Deus, deixe Eddie em paz.
O rosto dela se inflamava de fúria conforme eu ia falando, mas minha última frase a pegou de surpresa.
- O que você quer dizer com isso?
- Quero dizer que você não para de se atirar pra cima dele.
Ela torceu o nariz:
- É assim que se mostra para um garoto que você está a fim dele.
- Talvez entre os não civilizados seja sim! Aqui, você precisa recuar e começar a agir como um ser humano... quer dizer, uma dampira responsável. Você está transformando
a vida dele num inferno! Além disso, as pessoas acham que vocês são primos. Você está estragando nosso disfarce.
- Eu... estou transformando a vida dele num inferno? - ela perguntou, de queixo caído.
Quase me senti mal por ela. A surpresa em seu rosto era tamanha que ficou claro que ela realmente não fazia ideia de que seu comportamento com Eddie era inadequado.
No entanto, estava irritada demais para sentir pena dela naquele momento. Jill também havia se comportado de forma impulsiva quando chegamos, o que tinha sido igualmente
frustrante. Depois chegamos a desfrutar certa paz, mas agora Angeline ameaçava estragar tudo. Ao contrário de Jill, ela não parecia se dar conta de tudo isso, o
que eu não sabia se melhorava ou piorava a situação.
Triste e frustrada, Angeline me acompanhou até o alojamento, onde verifiquei com Jill que Adrian realmente vinha bebendo. Somado à minha agitação, aquilo era mais
do que o suficiente para me fazer querer fugir do campus. Mais cedo, Brayden havia me perguntado se eu queria sair com ele, mas eu não estava com ânimo para isso.
Mandei uma mensagem rápida: Hoje não posso. Coisa de família. Então, fui para a casa de Clarence.
Liguei antes para garantir que Dimitri e Sonya estariam lá, afinal, não queria ficar sozinha com o velho Moroi. Ele não estava por lá quando cheguei. Encontrei Dimitri
e Sonya debruçados sobre alguns cartões com gotas de sangue secas, cogitando sobre como proceder.
- Seria interessante conseguirmos sangue Strigoi para vermos o que aconteceria se eu aplicasse o espírito - ela dizia. - Você acha que consegue?
- Com prazer - Dimitri respondeu.
Eles me notaram. Assim que levantou os olhos, Sonya perguntou:
- Qual é o problema?
Nem me dei ao trabalho de perguntar como ela sabia. Era provável que a minha cara mostrasse mais que a minha aura.
- Angeline se meteu numa briga com um grupo musical educativo na escola.
Dimitri e Sonya trocaram olhares.
- Acho que a gente devia sair pra jantar - ele sugeriu. Pegou o chaveiro sobre a mesa. - Vamos para o centro.
Nunca teria imaginado que algum dia estaria ansiosa para sair com um Moroi e uma dampira. Era outro sinal de que eu havia progredido - ou regredido, de acordo com
os padrões alquimistas. Comparados à maioria das pessoas da minha vida, Dimitri e Sonya eram realistas e firmes, o que me reconfortava.
Fiz um resumo do comportamento de Angeline, bem como minha falsa ameaça de processo. Sonya pareceu se divertir com essa parte.
- Foi bastante esperto - ela disse, enrolando o espaguete com o garfo. - Talvez você devesse estudar direito em vez de trabalhar para os alquimistas.
Dimitri não achou tanta graça.
- Angeline veio para cá para cumprir uma missão. Ela queria deixar os Conservadores e jurou que devotaria todos os minutos de sua vida para proteger Jill.
- Houve um pouco de choque cultural - admiti, sem saber bem por que a estava defendendo. - E aqueles caras, hoje... Se eles tivessem tentado me fazer cantar com
eles, talvez também tivesse dado uns socos neles.
- Inaceitável - Dimitri disse. Ele já tinha atuado como instrutor de combate e eu entendia por quê. - Ela está aqui em uma missão. O que fez foi insensato e irresponsável.
Sônia deu um sorriso irônico.
- E eu achando que você tivesse um fraco por garotas jovens e insensatas.
- Rose nunca teria feito algo assim - ele rebateu. Então fez uma pausa para reconsiderar, e pude jurar que vi a sombra de um sorriso em seu rosto. - Bem, pelo menos
não na frente de todo mundo.
Quando deixamos o assunto Angeline de lado, trouxe à tona o motivo por que tinha ido até eles.
- Então... nada de experimentos hoje?
Até mesmo a disposição de Sonya vacilou.
- Ah. Não, não exatamente. Fizemos algumas anotações por conta própria, mas Adrian não está... Ele não está muito disposto a pesquisar esta semana. Ou a assistir
às aulas.
Dimitri concordou.
- Passei lá mais cedo. Ele mal conseguiu abrir a porta. Não faço ideia do que anda bebendo mas, seja lá o que for, tem bebido muito.
Considerando o relacionamento complicado entre eles, eu esperaria um tom de desprezo ao discutir os vícios de Adrian. Em vez disso, Dimitri parecia desapontado,
como se esperasse mais dele.
- Era sobre isso que eu queria conversar - eu disse. Tinha comido pouco no jantar e agora estava esmigalhando um pão, nervosa. - O humor atual de Adrian não é inteiramente
culpa dele. Digo, é, mas eu compreendo. Vocês sabem que fomos ver o pai dele no último fim de semana, certo? Então... não deu muito certo.
- Não fico surpreso - Dimitri disse, com um brilho compreensivo nos olhos pretos. - Nathan Ivashkov não é uma pessoa fácil.
- Ele meio que destruiu tudo o que Adrian vem tentando fazer. Tentei defendê-lo, mas o sr. Ivashkov não quis ouvir. Por isso eu estava me perguntando se vocês poderiam
ajudar.
Sonya não conseguiu conter a surpresa.
- Eu ajudaria Adrian com prazer, mas algo me diz que Nathan não vai dar ouvidos ao que temos a dizer.
- Não era isso que eu tinha em mente. - Desisti do pão e soltei todas as migalhas no prato. - Vocês dois são próximos da rainha. Talvez pudessem pedir a ela que
falasse com o pai de Adrian... sei lá. Sobre como ele tem sido útil. Como tem ajudado. Claro que ela não poderia explicar o que exatamente ele tem feito, mas qualquer
coisa já ajudaria. O sr. Ivashkov não daria ouvidos a Adrian nem a mais ninguém, mas teria de levar um elogio da rainha a sério. Se ela puder fazer isso.
- Ah, acho que ela faria - Dimitri disse, pensativo. - Ela sempre teve um fraco por ele. Todo mundo tem, ao que parece.
- Não - respondi, teimosa. - Nem todo mundo. Existe uma divisão. Metade o condena e o considera inútil, como o pai dele. A outra metade simplesmente ignora e o tolera,
pensando “Ah, é o Adrian”.
Sonya me examinou com cuidado, retomando o ar de divertimento.
- E você?
- Não acho que ele precise ser mimado nem desprezado. Se você esperar muito dele, ele não o desapontará.
Sonya não disse nada de imediato, e me senti desconfortável sob seu exame. Não gostava quando ela me olhava daquele jeito. Era algo que ultrapassava as auras, como
se pudesse ver dentro do meu coração e da minha alma.
- Vou falar com Lissa - ela disse, por fim. - Tenho certeza de que Dimitri também falará. Nesse meio-tempo, vamos torcer para que, se seguirmos seu conselho e esperarmos
que Adrian fique sóbrio, ele realmente fique.
Tínhamos acabado de pagar a conta quando o celular de Dimitri tocou.
- Alô? - ele atendeu. E assim, de repente, sua expressão mudou. Aquela ferocidade que eu costumava associar a ele se abrandou, e seu rosto se encheu de luz. - Não,
não. É sempre uma boa hora para você ligar, Rose.
Qualquer que fosse a resposta do outro lado, o fizera sorrir.
- Rose - Sonya me disse. Ela se levantou. - Vamos dar um pouco de privacidade a eles. Quer dar uma volta?
- Claro - respondi, me levantando também. O sol estava se pondo lá fora. - Na verdade, tem uma loja de fantasias aqui perto que eu queria dar uma olhada, se ainda
estiver aberta.
Sonya se virou para Dimitri.
- Você encontra a gente lá? - ela sussurrou para ele. Ele fez que sim, distraído. Assim que saímos para o ar morno do fim de tarde, ela sorriu. - Aqueles dois...
Numa luta, são mortíferos, mas perto um do outro se derretem todos.
- Você e Mikhail são assim? - perguntei, pensando que não havia tanto derretimento entre mim e Brayden, por mais que eu gostasse de estar com ele.
Ela voltou a sorrir e olhei para o céu, colorido em tons de laranja e azul.
- Não exatamente - ela disse. - Cada relacionamento é diferente. Cada um ama de um jeito. - Houve uma longa pausa enquanto ela escolhia as próximas palavras. - Foi
uma atitude bonita o que você decidiu fazer por Adrian.
- Não tinha o que decidir - argumentei. Atravessávamos uma rua movimentada, repleta de lojas muito iluminadas e com vaporizadores na frente para refrescar os clientes.
Estremeci ao notar o que aquele vapor estava fazendo com o meu cabelo. - Eu precisava ajudar. Ele não merecia ser tratado daquele jeito. Nem consigo imaginar como
suportou isso a vida toda. E você acredita que o que mais o incomodava era pensar que depois disso ele cairia no meu conceito?
- Na verdade - Sonya disse, de maneira vaga -, posso acreditar, sim.
A loja de fantasias ainda estava aberta, graças ao horário estendido de Dia das Bruxas, mas faltavam apenas dez minutos para fechar. Sonya circulou pelos corredores
sem nenhum objetivo real, enquanto eu segui diretamente para a seção histórica. Eles tinham apenas um vestido grego no estoque, uma toga toda branca com um cinto
de plástico dourado. Era vagabundo, talvez até inflamável. O tamanho era GG e cogitei se Jill tinha aprendido o suficiente no clube de costura para ajustá-lo para
mim. Com menos de uma semana até a festa, minhas opções eram limitadas.
- Sério? - disse uma voz atrás de mim. - Você já não me insultou o bastante sem recorrer a esse lixo?
Em pé atrás de mim estava Lia DiStefano, com o cabelo encaracolado coberto por um lenço vermelho-vivo. O volume de sua blusa rústica fazia parecer que seu minúsculo
corpinho tinha asas. Ela me olhou de cima a baixo com desaprovação nos olhos delineados.
- Você está me seguindo? - perguntei, na defensiva. - Sempre que venho para o centro, encontro você.
- Pra começo de conversa, se eu estivesse seguindo você, nunca a teria deixado pôr os pés aqui. - Ela apontou para a fantasia. - O que é isso?
- Minha fantasia de Dia das Bruxas - respondi. - Vou de grega.
- Nem é do tamanho certo.
- Vou mandar ajustar.
- Tsc, tsc. Estou tão horrorizada que nem sei por onde começar. Você quer um vestido grego? Faço um para você. Um dos bons. Não essa monstruosidade. Meu Deus. As
pessoas sabem que você me conhece. Se virem você usando isso, minha carreira estará arruinada.
- É, porque minha roupa numa festa da escola é realmente um fator decisivo na sua carreira.
- Quando é a festa? - ela perguntou.
- Sábado.
- Fácil - declarou. Deu uma olhada rápida em mim. - Suas medidas são fáceis também. Sua irmã vai se vestir tão mal assim?
- Não sei - admiti. - Ela disse que ia fazer um vestido de fada no clube de costura. Azul, acho.
Lia ficou pálida.
- Pior ainda. Faço um vestido pra ela também. Já tenho as medidas.
Suspirei.
- Lia, sei o que você está tentando fazer, e já adianto que não vai dar certo. Jill definitivamente não pode voltar a modelar para você. Não importa o quanto você
tente nos subornar.
Lia forçou um olhar inocente que não me convenceu nem um pouco.
- Quem falou em suborno? Estou fazendo isso por caridade. Seria uma desgraça deixar vocês duas irem a uma festa vestindo qualquer coisa que não o melhor.
- Lia...
- Não compre isso - ela advertiu, apontando para a fantasia. - Seria um desperdício. Valeria mais a pena atear fogo no seu dinheiro, apesar de que o dinheiro não
iria queimar tão rápido quanto esse vestido. Aviso quando suas fantasias estiverem prontas.
Com isso, deu meia-volta em seus saltos de madeira e foi embora, me deixando lá, perplexa.
- Conseguiu a fantasia? - Sonya me perguntou depois, assim que a loja nos obrigou a sair para fechar as portas.
- Estranhamente, sim - respondi. - Mas não daqui.
Tudo indicava que o telefonema de Dimitri não havia terminado, já que ele ainda não tinha aparecido. Voltamos devagar para o restaurante, querendo lhe dar mais tempo
com Rose. Outras lojas estavam fechando e os turistas começavam a rarear. Contei sobre o encontro com Lia, e Sonya achou mais graça do que eu.
- Aceita, boba - ela disse. - Se a estilista se ofereceu pra fazer a fantasia, você não é obrigada a dar algo em troca. Talvez ela possa me ajudar com os vestidos
das damas de honra.
Atravessamos uma rua menos movimentada e cortamos caminho por um beco estreito entre um prédio de tijolos e um gramado arborizado ao redor de uma igreja. Tinha achado
a igreja bonita durante a ida, mas agora, pouco tempo depois, o crepúsculo a carregara de sombras, conferindo-lhe um aspecto de mau agouro. Era bom não estar passando
por ali sozinha, apesar de ser estranho me sentir tranquilizada pela presença de uma vampira.
- Lia realmente faz coisas fantásticas - admiti. - Mas não acho que devêssemos encorajá-la.
- É verdade - Sonya disse. - Qualquer dia desses você poderia me ajudar a procurar alguns vestidos? Você tem um ótimo senso de...
De repente ela se virou para o terreno escuro em torno da igreja com uma expressão de medo no rosto. Eu não vi nada - a princípio. Segundos depois, quatro vultos
de preto surgiram de trás das árvores. Enquanto um me prensava contra a parede de tijolos, os outros três jogaram Sonya no chão. Empurrei meu captor, mas seu braço
forte me segurava firme. Sob a luz fraca, vislumbrei o brilho de algo que nunca esperaria ver nas ruas de Palm Springs: uma espada.
O vulto negro a empunhou sobre o pescoço de Sonya.
- Hora de voltar para o Inferno - ele disse.
11
NÃO SOU NENHUMA ATLETA. Até sei jogar vôlei, e uma vez Eddie me ensinou como dar um soco. Mas não tinha recebido o tipo de treinamento dos guardiões. E, sem dúvida,
não tinha os reflexos deles. Então, numa situação como aquela, sem conseguir me livrar daquela chave de braço, fiz a única coisa ao meu alcance.
Gritei.
- Socorro! Alguém me ajude!
Minha esperança era impedir que os agressores de Sonya a decapitassem, ou o que quer que tivessem planejado fazer com ela. Também esperava que, bem, alguém nos socorresse.
Tínhamos abandonado as avenidas principais do centro, mas ainda estávamos perto o bastante para alguém nos ouvir, ainda mais porque até pouco tempo antes havia um
número razoável de pessoas circulando pelas rua.
Um dos homens que seguravam Sonya vacilou, o que me fez supor que pelo menos isso eu tinha conseguido. Meu captor colocou a mão na minha boca e me empurrou com mais
força contra a parede. Então algo estranho aconteceu. O homem - ainda que não pudesse ver seu rosto, seu tipo físico era obviamente masculino - ficou paralisado.
Ainda estava me segurando, mas seu corpo ficara rígido. Era como se estivesse surpreso ou em choque. Não entendi por quê. Afinal, gritar por ajuda quando se é atacado
não é tão incomum assim. Não pensei que seria capaz de derrubá-lo, mas julguei que poderia tirar vantagem de sua inação. Voltei a empurrar, tentando me livrar de
seu controle. Só consegui me mover alguns centímetros até ele voltar a me segurar com mais força.
- Precisamos ir! - um dos captores de Sonya exclamou. Outro homem. Pelo que pude perceber, eram todos homens. - Alguém vai chegar.
- Isso só vai levar um segundo - o que segurava a espada grunhiu. - Precisamos livrar o mundo deste mal.
Observei aterrorizada, com o coração disparado no peito. Temia por mim, mas especialmente por Sonya. Nunca tinha visto uma decapitação antes, e não era agora que
queria começar.
Meio segundo depois, me vi subitamente livre. Outra pessoa havia se juntado à briga, alguém que agarrou meu captor e o atirou ao chão sem dificuldade. Aquilo devia
ter doído, e o cara caiu com um gemido. Mesmo sob a luz fraca, a altura e o sobretudo entregaram meu salvador: Dimitri.
Eu já o vira lutar antes, mas nunca me cansava. Era fascinante. Ele não parava de se mover nem por um segundo. Cada ação era elegante e mortal. Ele era como um dançarino
da morte. Deixando de lado aquele que acabara de lançar ao longe, Dimitri correu na direção dos demais. De imediato, partiu para o homem com a espada. Com um chute
veloz, lançou o agressor voando para trás, fazendo com que derrubasse a espada e mal conseguisse se agarrar a uma das árvores em volta da igreja.
Enquanto isso, um dos homens que até então segurava Sonya simplesmente deu as costas e saiu correndo para o centro. Dimitri não o seguiu. Sua atenção estava toda
voltada para o último rapaz, que, imprudente, tentava revidar. Isso, porém, deixou Sonya livre, e sem perder tempo ela se levantou e correu na minha direção. Era
raro eu ficar sentimental com alguém, principalmente os Moroi, mas a abracei sem pensar duas vezes. Ela retribuiu o abraço, e pude sentir que tremia. Antes, em seu
período Strigoi, ela havia sido incrivelmente poderosa. Mas como agora era apenas uma Moroi que havia pouco fora ameaçada com uma espada no pescoço, a situação era
bem distinta.
O rapaz que enfrentava Dimitri até conseguiu desviar de alguns golpes. Seu erro foi tentar acertá-lo - isso o fez abrir a guarda, e lhe rendeu um forte murro na
cara. O mais alto, que havia sido lançado contra a árvore, tentou atacar, mas seria ingênuo se achasse que Dimitri tinha se distraído. Dimitri o despachou sem dificuldade,
fazendo-o cair ao lado do rapaz que tinha acabado de socar. O mais alto tentou se levantar e parecia querer atacar novamente. Seu amigo o conteve e o puxou para
trás. Após um impasse momentâneo entre os dois, eles finalmente fugiram. Dimitri não os perseguiu. Sua atenção estava toda voltada para mim e Sonya.
- Vocês estão bem? - ele perguntou, vindo rápido até nós.
Com esforço, fiz que sim com a cabeça, enquanto meu corpo tremia sem parar.
- Vamos dar o fora daqui - Dimitri disse.
Ele colocou as mãos sobre nossos ombros e começou a nos levar dali.
- Espere - eu disse, virando na direção da igreja. - Devíamos pegar a espada.
Procurei à minha frente, mas estava ainda mais escuro do que antes. Dimitri a encontrou rapidamente com sua visão excepcional. Escondeu-a sob o sobretudo e saímos
rápido dali. Caminhamos até o apartamento de Adrian, que era muito mais perto do que a mansão de Clarence, fora da cidade. Mesmo assim, o curto trajeto pareceu durar
uma eternidade. Sentia que poderíamos ser atacados a qualquer momento, embora Dimitri continuasse nos tranquilizando enquanto nos guiava num ritmo quase acelerado.
Adrian ficou surpreso ao nos ver diante da porta. Também parecia muito bêbado, mas não me importei. Tudo o que eu queria era a segurança de suas quatro paredes.
- O que... o que está acontecendo? - ele perguntou, enquanto Dimitri nos apressava para entrar. Os olhos de Adrian se voltaram para cada um de nós, recaindo em mim
por mais tempo. - Vocês estão bem? O que aconteceu?
Dimitri nos examinou, verificando se tínhamos algum ferimento, apesar de nossos protestos. Estendeu a mão e segurou meu queixo, gentil, voltando minha bochecha não
tatuada na direção dele.
- Um pequeno arranhão - ele disse. - Nada sério, mas você devia dar uma lavada nele.
Toquei onde ele havia indicado e me surpreendi ao ver sangue nas minhas mãos. Não me lembrava de ter me ferido, mas imaginei que fosse por causa da parede de tijolos.
Sonya não tinha nenhum ferimento físico, mas admitiu estar com uma dor muito forte na cabeça, onde tinha batido no chão.
- O que aconteceu? - Adrian perguntou novamente.
Dimitri mostrou a espada que havia recolhido na cena do crime.
- Algo um pouco mais grave que um assalto, imagino eu.
- Acho que sim - Sonya disse, sentando no sofá. Sua atitude era surpreendentemente calma, considerando tudo por que tinha acabado de passar. Ela tocou na nuca e
se encolheu de dor. - Ainda mais porque me chamaram de “criatura do mal” antes de aparecerem.
- Chamaram? - Dimitri perguntou, arqueando a sobrancelha.
Eu não havia me movido desde que entrara na sala. Simplesmente fiquei lá, em pé, encolhida, perdida. Me mexer parecia difícil demais. Pensar parecia difícil demais.
Enquanto Dimitri examinava a espada, porém, algo chamou minha atenção e fez meu cérebro lento voltar a funcionar aos poucos.
Ao notar meu interesse, ele me entregou a espada. Peguei-a, tomando cuidado com a lâmina, e examinei o cabo, coberto de gravuras.
- Elas lembram você de alguma coisa? - perguntou.
Minha mente ainda estava enevoada pelo medo e pela adrenalina, mas tentei desenterrar algumas informações.
- São símbolos de alquimia antiga - respondi. - Da Idade Média, do tempo em que nosso grupo era um bando de cientistas medievais tentando transformar chumbo em ouro.
Isso era tudo que os livros de história comuns sabiam sobre nossa sociedade. Isso e o fato de que, com o tempo, acabamos desistindo do ouro. A organização encontrou
compostos mais sofisticados, como sangue de vampiro. A interação com eles levou a nossa causa atual, conforme os antigos alquimistas descobriram as tentações sombrias
e terríveis que os vampiros representavam. Nossa causa se transformou numa causa sagrada. A química e as fórmulas em que minha sociedade trabalhara, até então para
ganho pessoal, tornaram-se instrumentos essenciais para esconder a existência dos vampiros, instrumentos esses que agora complementávamos com a tecnologia.
Toquei no símbolo maior, um círculo com um ponto no centro.
- Na verdade, este é o símbolo do ouro. Este, o da prata. Essas quatro formas triangulares são os elementos básicos, terra, ar, água e fogo. E estes... Marte e Júpiter,
planetas ligados ao aço e ao estanho. Talvez seja a composição da espada? - Franzi a sobrancelha e examinei o restante do metal. - Mas não tem ouro nem prata aqui.
Seus símbolos também podem representar o Sol e a Lua. Talvez não representem coisas físicas. Não sei.
Devolvi a espada para Dimitri. Sonya a pegou da mão dele, examinando o que eu tinha ressaltado.
- Então você está dizendo que esta é uma arma alquimista?
Balancei a cabeça.
- Os alquimistas jamais usariam uma coisa assim. É mais fácil usar um revólver. E os símbolos são muito arcaicos. Nós usamos a tabela periódica agora. É mais fácil
escrever “Au” do que desenhar o símbolo do Sol para representar o ouro.
- Existe algum motivo para essas figuras estarem numa arma? Algum simbolismo ou significado maior? - Dimitri perguntou.
- Então, novamente, se você pensar no passado, o Sol e o ouro eram as coisas mais importantes para os antigos alquimistas. Eles se concentravam nessa ideia de luz
e claridade. - Toquei minha bochecha. - Essas coisas ainda são importantes, de certa forma. É por isso que usamos a tinta dourada. Além dos benefícios, o dourado
nos marca como... puros. Santificados. Parte de uma causa sagrada. Mas numa espada... não sei. Se quem fez isso estava seguindo o mesmo simbolismo, talvez a espada
seja santificada. - Relembrei as palavras dos agressores, sobre voltar para o Inferno. Fiz uma careta. - Ou talvez os donos da espada achassem que estavam servindo
a algum tipo de dever sagrado.
- Quem eram esses caras, afinal? - Adrian perguntou. - Vocês acham que Jill está correndo perigo?
- Eles sabiam sobre os vampiros, mas eram humanos - Dimitri disse.
- Até eu pude perceber isso - concordei. - Um deles era bem alto, mas não era Moroi.
Para mim, era difícil e intrigante admitir que nossos agressores fossem humanos. Sempre acreditei que os Strigoi eram malignos. Isso era fácil. E como até mesmo
os Moroi não eram totalmente confiáveis, a ideia de haver assassinos Moroi atrás de Jill não parecia nada improvável. Mas, os humanos... as pessoas que eu devia
estar protegendo? Aquilo era difícil. Eu havia sido atacada pelos meus semelhantes, os supostos “mocinhos”, e não pelos demônios com presas que eu tinha sido ensinada
a temer. Era um duro golpe na minha visão de mundo.
O rosto de Dimitri ficou ainda mais sombrio.
- Nunca ouvi falar de nada assim antes. Principalmente porque nenhum humano sabe sobre os Moroi. Exceto os alquimistas.
Lancei um olhar incisivo para ele.
- Isso não tem nada a ver com a gente. Eu disse a vocês que espadas não são o nosso estilo. Muito menos ataques.
Sonya colocou a espada sobre a mesa de centro.
- Ninguém está acusando ninguém aqui. Acredito que essa seja uma questão que vocês dois vão querer levar aos seus superiores. - Dimitri e eu assentimos. - Mas estamos
deixando passar um ponto muito importante aqui. Eles estavam me tratando como Strigoi. Uma espada não é a maneira mais fácil de matar alguém. Deve haver um motivo.
- É também a única maneira de um humano matar um Strigoi - murmurei. - Os humanos não conseguem enfeitiçar uma estaca de prata. Acho que conseguiriam atear fogo
em você, mas isso não seria muito prático naquele beco.
O silêncio se instalou enquanto pensávamos sobre isso. Por fim, Sonya suspirou e disse:
- Não acho que vamos chegar a lugar nenhum hoje, não sem falarmos com os outros. Quer que eu cure isso?
Levei um instante para entender que ela estava falando comigo. Toquei minha bochecha.
- Não, vai cicatrizar rápido sozinho. - Era um dos efeitos colaterais do sangue de vampiro nas tatuagens de lírio. - Vou lavar antes de ir embora.
Segui para o banheiro com a maior confiança que pude reunir. Quando cheguei e vi meu reflexo no espelho, perdi o controle sobre mim. O arranhão não era nada assustador.
O que mais me afligia era o que ele representava. Sonya estivera à beira da morte, mas minha vida também ficara em risco. Eu havia sido atacada e ficado indefesa.
Umedeci uma toalha e tentei levá-la ao rosto, mas minhas mãos tremiam demais.
- Sage?
Adrian apareceu no batente da porta e tentei controlar rapidamente as lágrimas que começavam a encher meus olhos.
- Sim?
- Você está bem?
- Não consegue dizer pela minha aura?
Ele não respondeu; em vez disso, tomou a toalha da minha mão antes que eu a derrubasse.
- Vire-se - ordenou. Obedeci e ele encostou a toalha no arranhão com suavidade. Tão perto dele, podia ver que seus olhos estavam avermelhados. Também podia sentir
o hálito de álcool. Ainda assim, a mão dele estava mais firme que a minha. Ele voltou a perguntar: - Você está bem?
- Não fui eu quem ficou com uma espada no pescoço.
- Não foi isso o que perguntei. Você tem algum outro ferimento?
- Não - respondi, baixando os olhos. - Talvez só... no meu orgulho.
- Orgulho? - Ele fez uma pausa para enxaguar a toalha. - O que isso tem a ver com o que aconteceu?
Levantei os olhos, mas não o olhei diretamente.
- Adrian, eu sei fazer muitas coisas. E, modéstia à parte, consigo fazer várias coisas incríveis que a maior parte das pessoas não consegue.
- E eu não sei? - ele disse, com um tom divertido. - Você consegue trocar um pneu em dez minutos falando em grego.
- Cinco minutos - corrigi. - Mas quando minha vida está em risco ou quando a vida dos outros está em risco, o que eu posso fazer? Não sei lutar. Fiquei completamente
indefesa lá. Assim como quando os Strigoi atacaram Lee e a gente. Só sei ficar parada assistindo, esperando alguém como Rose ou Dimitri vir me salvar. Eu... eu sou
como uma donzela indefesa dos contos de fada.
Ele terminou de limpar o ferimento e pousou a toalha sobre a pia. Colocou as mãos em volta do meu rosto e disse:
- A única verdade no que você acabou de dizer é a parte sobre ser a donzela dos contos de fada, mas só porque você é linda o bastante para ser uma. Não pelo resto.
Tudo o mais que você acabou de dizer é ridículo. Você não é indefesa.
Finalmente olhei para ele. Nas nossas conversas, era eu quem costumava acusá-lo de ser ridículo.
- Ah, é? Então sou igual a Rose e Dimitri?
- Não. Não mais do que eu. E, se bem me lembro, alguém me disse um dia desses que é inútil tentar ser igual aos outros. Que temos de ser nós mesmos.
Franzi a sobrancelha ao ouvir minhas próprias palavras sendo usadas contra mim.
- Essa situação é completamente diferente. Estou falando de saber cuidar de mim mesma, não de impressionar alguém.
- Aí está seu outro problema, Sage. “Cuidar de si mesma.” Esses ataques que você teve de enfrentar, com Strigoi e loucos com espadas, não são exatamente normais.
Não acho que você tenha de se culpar por não conseguir combatê-los. A maior parte das pessoas não conseguiria.
- Mas eu deveria ser capaz - murmurei.
Seu olhar era compreensivo.
- Então aprenda. Essa mesma pessoa que adora me dar conselhos uma vez me disse para não me fazer de vítima. Então não se faça. Você aprendeu a fazer um milhão de
coisas. Aprenda isso também. Faça um curso de defesa pessoal. Arranje uma arma. Você não pode se tornar guardiã, mas essa não é a única maneira de aprender a se
proteger.
Um turbilhão de sentimentos fervilhava dentro de mim. Raiva. Vergonha. Reconforto.
- Você tem muito a dizer para um cara que está bêbado.
- Ah, Sage. Sempre tenho muito a dizer, bêbado ou sóbrio. - Ele me soltou e deu um passo para trás. Me senti estranhamente vulnerável sem sua proximidade. - O que
a maioria das pessoas não entende é que fico muito mais coerente assim. Tem menos chance de o espírito me deixar maluco - ele disse, girando o dedo ao lado da cabeça.
- Por falar nisso... não vou dar nenhum sermão sobre isso - eu disse, contente por desviar o tema da conversa de mim mesma. - O almoço com seu pai foi péssimo. Eu
entendo. Se você quer afogar as mágoas, tudo bem. Mas, por favor, não se esqueça de Jill. Você sabe o que isso faz com ela. Talvez não agora, mas depois.
A sombra de um sorriso perpassou seus lábios.
- Você é sempre a voz da razão. Só tente ouvir a si mesma de vez em quando.
Já tinha ouvido aquelas palavras antes. Dimitri havia dito algo semelhante: que eu não poderia tomar conta dos outros se não tomasse conta de mim mesma primeiro.
Se duas pessoas tão absurdamente diferentes como Adrian e Dimitri tinham a mesma opinião, talvez eu devesse fazer alguma coisa sobre isso. Fiquei pensando muito
sobre isso quando voltei a Amberwood depois.
Uma das coisas boas sobre a embriaguez de Adrian era que Jill não teve como saber de nossa conversa. Assim, no almoço do dia seguinte, ao narrar para Jill, Eddie
e Angeline os acontecimentos da noite anterior, pude editar a história e deixar de lado meu colapso nervoso. As reações de Jill e Angeline foram as esperadas. Jill
ficou preocupada e perguntou várias vezes se eu e Sonya estávamos bem. Angeline nos contou com detalhes o que teria feito contra os agressores e como, ao contrário
de Dimitri, os teria perseguido rua afora. Eddie ficou em silêncio e não disse nada até que as duas fossem embora - Angeline para o quarto e Jill para se arrumar
para a aula.
- Imaginei que havia alguma coisa errada com você hoje - ele disse. - Especialmente no café da manhã, quando Angeline disse que o tomate era um legume e você não
a corrigiu.
Quase sorri com a piada dele.
- Pois é. Esse é o tipo de coisa que afeta as pessoas. Quer dizer, talvez não vocês. Ataques aleatórios com espadas em becos escuros são comuns para vocês, não?
Sério, ele fez que não.
- Nunca se pode subestimar um ataque. As pessoas que fazem isso se tornam descuidadas. Você não tem por que se sentir mal.
Eu estava remexendo um purê de batatas nada apetitoso com o garfo, e finalmente desisti.
- Não gosto de estar despreparada. Para o que quer que seja. Não me leve a mal, mas eu já estive junto quando você e Rose lutaram contra Strigoi. Nessas ocasiões,
eu também fiquei indefesa... mas era diferente. Eles são assombrosos... além do alcance humano. Realmente não espero conseguir lutar contra eles. Mas o que aconteceu
ontem à noite, mesmo com a espada, foi quase como um assalto comum. Mundano. E eles eram humanos, assim como eu. Eu não devia ter sido tão inútil.
- Você quer que eu ensine alguns golpes a você? - ele perguntou, gentilmente.
- O que você faz também é assombroso - respondi, voltando a sorrir. - Talvez eu devesse fazer alguma coisa mais no meu nível. Adrian disse que eu devia arranjar
um revólver ou fazer um curso de defesa pessoal.
- É um bom conselho.
- Pois é. Estranho, né? Os alquimistas fornecem treinamento em armas, mas não sou muito fã delas. Embora me saia muito bem em aulas e na teoria.
Ele riu.
- Verdade. Mas, se você mudar de ideia, me avise. Depois do desafio de treinar Angeline, estou pronto pra tudo. Apesar de que... pra ser sincero, ela está se contendo
um pouco mais.
Relembrei minha última conversa com ela. A briga e a suspensão tinham sido no dia anterior, mas pareciam ter acontecido anos antes.
- Ah, eu meio que tive uma conversinha com ela.
- Que tipo de conversa? - ele perguntou, surpreso. - Falei para não se preocupar com a minha vida pessoal. Isso é problema meu.
- Eu sei, eu sei. Mas meio que aconteceu. Eu disse a ela que aquele comportamento era inconveniente e que ela precisava parar. Ela ficou irada comigo, então não
sabia se ela tinha chegado a entender.
- Hum, parece que ela entendeu. - O que ele disse em seguida foi obviamente uma grande concessão. - Talvez ela não seja tão terrível quanto eu pensava.
- Talvez - concordei. - E veja por este ângulo: pelo menos a suspensão dela significa que você não terá que se preocupar com ela na festa.
Pela maneira como o rosto dele se iluminou, ficou claro para mim que ele ainda não tinha se dado conta disso. Alguns instantes depois, voltou a ficar sério:
- Se estão acontecendo ataques como o que você sofreu, vou precisar ter um cuidado extra com Jill, especialmente durante a festa. - Não achava que tinha como Eddie
ser ainda mais cauteloso, mas provavelmente ele provaria que eu estava errada. - Até que preferia que Angeline fosse.
A maioria das minhas aulas desviou meus pensamentos da noite anterior, mas o estudo independente com a sra. Terwilliger era outra história. Era silencioso demais,
sério demais. Me fez passar muito tempo pensando sozinha, relembrando todo o medo e a insegurança que eu vinha tentando ignorar. Daquela vez, copiei e anotei os
feitiços sem realmente decorá-los. Em geral, não conseguia evitar, mas naquele dia minha cabeça estava em outro lugar.
Estávamos quase no meio da aula quando finalmente prestei atenção no que estava fazendo. Era um feitiço da Antiguidade tardia que supostamente fazia a vítima pensar
que havia escorpiões por todo o seu corpo. Como em muitos dos livros de feitiços da sra. Terwilliger, a preparação era complexa e demorada.
- Sra. Terwilliger?
Por mais que odiasse fazer perguntas a ela, os acontecimentos recentes estavam pesando demais sobre mim.
Ela levantou os olhos de seus papéis, surpresa. Depois da guerra fria em que tínhamos nos metido, ela se acostumara ao fato de que eu só me pronunciava quando me
perguntava alguma coisa.
- Sim?
- Pra que servem esses feitiços ditos “ofensivos”? - perguntei, apontando para o livro. - Como poderiam ser úteis numa luta se prepará-los pode levar dias? Quando
se é atacado, não há tempo para uma coisa dessas. Mal se tem tempo para pensar.
- De qual deles você está falando? - ela perguntou.
- O dos escorpiões.
- Ah, sim. Bem, esse é do tipo premeditado. Quando você não gosta de alguém, trabalha nesse feitiço e depois lança. É bem útil para ex-namorados, eu diria. - Ela
se distraiu por um instante, e depois voltou a se concentrar em mim. - Claro que há outros que poderiam ser mais úteis numa situação como a que você descreveu. O
seu amuleto de fogo, se bem me lembro, requeria bastante trabalho prévio, mas pôde ser usado relativamente rápido. Há outros que podem ser lançados em pouquíssimo
tempo, com poucos ingredientes. Mas como eu já disse em várias ocasiões, esse tipo demanda muita habilidade. Quanto mais avançada estiver, de menos ingredientes
irá precisar. Você precisa de muita experiência para chegar ao nível de aprender algo assim.
- Nunca disse que queria aprender algo assim - argumentei, ríspida. - Só estava... fazendo uma pergunta.
- Ah, é? Engano meu. Por um momento tive a impressão que você estava, hum, interessada.
- Não! - Estava contente que a magia curativa da minha tatuagem já havia cicatrizado o arranhão da noite anterior quase por completo. Não queria que ela suspeitasse
que eu tinha motivos sérios para querer me proteger. - Viu? É por isso que nunca abro a boca aqui. Você fica interpretando e distorcendo tudo o que eu digo pra levar
adiante o seu plano de me atormentar.
- Atormentar? Tudo o que você faz é ler e tomar café, exatamente o que faria se não estivesse aqui.
- Exceto que aqui estou infeliz - eu disse. - Odeio todos os segundos desses estudos. Estou prestes a parar de vir e correr o risco de um desastre acadêmico. Isso
é tudo doentio e problemático e...
O último sinal do dia tocou e me interrompeu antes que eu dissesse algo de que me arrependeria. Quase no mesmo instante, Trey surgiu à porta. A sra. Terwilliger
começou a arrumar as coisas e dirigiu-lhe um sorriso, como se tudo estivesse perfeitamente normal.
- Veja só se não é o sr. Juarez. Que bom que apareceu por aqui, já que não pôde comparecer à aula.
Relembrando a manhã, percebi que ela estava certa. Trey não tinha ido à aula de história, nem à nossa aula de química.
- Desculpe - ele disse. - Tive uns problemas de família.
“Problemas de família” era uma desculpa que eu usava o tempo todo, embora duvidasse que o motivo dele envolvesse levar vampiros para um fornecimento de sangue.
- A senhora poderia me dizer o que perdi? - ele perguntou.
- Tenho um compromisso - ela respondeu, colocando a bolsa a tiracolo. - Pergunte a Melbourne; ela provavelmente vai poder explicar com mais detalhes do que eu. A
porta tranca sozinha depois que vocês saírem.
Trey puxou uma carteira para perto de mim enquanto eu pegava as anotações de história e as de química, pois imaginei que ele também iria precisar. Apontei com a
cabeça para a mochila esportiva ao lado dele.
- Vai para o treino?
Ele se debruçou para copiar as lições, fazendo o cabelo castanho-escuro cair sobre o rosto.
- Não podia perder - ele disse, sem levantar os olhos enquanto escrevia.
- Certo. Você só pode perder as aulas.
- Não me julgue - ele disse. - Teria ido se pudesse.
Deixei para lá. Sem dúvida, já havia tido minha própria cota de complicações pessoais. Enquanto ele escrevia, peguei o celular e vi que tinha uma mensagem de Brayden.
Continha apenas uma palavra, um recorde para ele: Jantar?
Hesitei. Ainda estava abalada por causa da noite anterior, e por mais que gostasse de Brayden, ele não era o consolo de que eu precisava naquele momento. Respondi:
Não sei. Tenho umas coisas para fazer hoje à noite. Queria pesquisar onde fazer aulas de defesa pessoal. Aquele era o consolo de que eu precisava. Fatos. Opções.
Brayden respondeu rápido: Podemos ir depois. Que tal o Stone Grill às 20h? Pensei, e então respondi que estaria lá.
Tinha acabado de colocar o celular na mesa quando outra mensagem apitou. Surpreendentemente, era de Adrian. Como vc tá dps de ontem? Tô preocupado com vc. Adrian
era articulado nos e-mails, mas vivia recorrendo a abreviaturas nas mensagens de texto - algo que eu nunca conseguia fazer. Só de lê-las tinha a sensação de que
alguém arranhava uma lousa, embora algo tenha me comovido no interesse dele, o simples fato de estar preocupado com meu bem-estar. Era reconfortante.
Respondi: Melhor. Vou procurar um curso de defesa pessoal. Ele respondeu quase tão rápido quanto Brayden: Me avisa se encontrar. Talvez eu faça tb. Pestanejei, surpresa.
Por essa eu não esperava. Só consegui responder: Por quê?
- Céus - Trey comentou, fechando o caderno. - Miss Popularidade.
- Coisa de família - respondi.
Ele riu, zombeteiro, e guardou o caderno na mochila.
- Valeu pelas anotações. E por falar em coisa de família... É verdade que a sua prima foi expulsa?
- Suspensa por duas semanas.
- Sério? - ele disse, levantando-se. - Só isso? Pensei que seria bem mais grave.
- É, quase foi. Convenci os diretores a pegarem leve com ela.
Trey riu abertamente ao ouvir isso.
- Imagino. Bem, acho que vou ter que esperar mais duas semanas então.
- Pra quê? - perguntei, franzindo a sobrancelha.
- Pra chamá-la para sair.
Fiquei muda por alguns instantes.
- Angeline? - perguntei, caso ele pensasse que eu tinha alguma outra prima. - Você quer sair com... Angeline?
- É, ué - ele disse. - Ela é gatinha. E nocautear três caras e uma caixa de som? Bem... não vou mentir: aquilo foi bem sexy.
- Consigo pensar em várias palavras para descrever o que ela fez, mas “sexy” não é uma delas.
Ele deu de ombros e seguiu para a porta.
- Ei, cada qual com as suas taras. Você gosta de moinhos de vento, e eu de porrada.
- Não acredito que você acabou de dizer isso - falei.
No entanto, cogitei se não era mesmo verdade, e concluí que, de fato, todos nós tínhamos nossas “taras”. O estilo de vida de Trey era muito diferente do meu. Ele
se dedicava muito ao esporte e estava sempre com machucados do treino, inclusive naquele dia. Estavam, aliás, mais graves do que de costume. Jamais conseguiria entender
a paixão dele pelo esporte, assim como ele jamais conseguiria entender meu amor pelo conhecimento. Meu celular voltou a vibrar.
- Melhor voltar para o seu fã-clube - ele disse, e então foi embora.
Um pensamento estranho me ocorreu. Será que todos os machucados recentes de Trey eram causados pelo esporte? Ele vinha fazendo várias referências à família dele
e, de repente, me perguntei se algo muito pior não estaria por trás de seu afastamento. Era uma ideia perturbadora, com a qual eu não tinha muita experiência. Outro
apito do celular me tirou das minhas preocupações.
Olhei para a tela e vi mais uma mensagem de Adrian, tão grande que teve de ser dividida em duas. Era a resposta para minha pergunta sobre por que ele faria o curso
de defesa pessoal também.
Vai me dar 1 motivo p/ evitar S&D. Além disso, vc n é a única q pode precisar de proteção. Aqueles caras eram humanos e sabiam que S era vampira. Talvez os caçadores
de vampiros existam msm. Já pensou q Clarence pode estar falando a vdd?
Fitei o celular, incrédula, processando as palavras de Adrian e as implicações do ataque da noite anterior.
Já pensou q Clarence pode estar falando a vdd?
Não. Até aquele momento, não.
12
QUANDO CHEGUEI AO RESTAURANTE, Brayden estava sentado à mesa com o laptop.
- Cheguei mais cedo - ele explicou. - Pensei em adiantar um pouco as lições. Fez o que tinha que fazer?
- Na verdade, sim. Estava pesquisando uns cursos de defesa pessoal. Você não vai acreditar o que eu encontrei.
Sentei ao lado dele na mesa para poder usar o laptop. Como sempre, ele cheirava a café. Cheguei à conclusão de que nunca me cansaria daquilo. Mostrei-lhe o site
que havia encontrado antes de ir para lá. O site parecia ter sido feito dez anos antes e era decorado por vários GIFs animados. Escola de Defesa Wolfe - Malachi
Wolfe, instrutor.
- Sério? - Brayden perguntou. - Malachi Wolfe?
- Ele não tem culpa do nome dele - eu disse. - E, veja, ele recebeu vários prêmios e recomendações. - Alguns eram relativamente recentes, mas a maioria era de alguns
anos atrás. - E esta é a melhor parte.
Cliquei num link intitulado “Próximos cursos”. Malachi Wolfe tinha uma agenda muito cheia, mas havia uma parte promissora. No dia seguinte ele começaria a dar um
curso de um mês de duração, com aulas semanais.
- Este não é exatamente o tipo de instrutor que eu tinha em mente - admiti -, mas as aulas já estão para começar.
- Não é um curso longo - Brayden acrescentou. - Mas pode dar uma base boa. Por que o interesse repentino?
A imagem do beco me veio na cabeça, com os quatro vultos na escuridão, e minha sensação de impotência ao ser jogada contra a parede. Minha respiração começou a acelerar
e tive de me lembrar que não estava mais lá. Estava num restaurante iluminado, com um garoto que gostava de mim. Estava em segurança.
- É só uma coisa que acho importante as mulheres saberem - justifiquei. - Apesar de... ser aberto tanto para homens quanto para mulheres.
- Isso foi uma indireta para eu me inscrever? - A princípio pensei que ele estava falando sério, mas ao me virar para ele vi que estava sorrindo.
- Se você quiser - respondi, abrindo um sorriso. - Na verdade, eu estava pensando no... meu irmão. Ele também queria fazer.
- Acho melhor eu não me inscrever, embora eu queira fazer artes marciais como eletiva na faculdade. - Brayden fechou o laptop, e voltei para o outro lado da mesa.
- Enfim, sua família é muito próxima. Não sei se deveria me intrometer.
- Talvez seja melhor mesmo - concordei, pensando que ele não sabia nem metade da história.
O jantar foi bom, assim como a conversa que se seguiu, sobre termodinâmica. Mas apesar de o assunto ser extremamente interessante, me peguei divagando muito. A todo
momento precisava me reconcentrar no que Brayden estava falando. O ataque e o comentário espontâneo de Adrian sobre caçadores de vampiros haviam me dado muito o
que pensar.
Mesmo assim, ficamos no restaurante bastante tempo, tanto que, quando saímos, já estava completamente escuro. Eu não havia estacionado muito longe, tampouco num
lugar muito deserto, mas de repente a ideia de caminhar sozinha no escuro me causou arrepios. Brayden estava falando algo sobre voltar a me ver na festa quando notou
minha expressão.
- Que foi? - ele perguntou.
- Eu... - Lancei o olhar rua abaixo. Dois quarteirões. Era essa a distância que me separava do carro. Havia pessoas na rua. E, mesmo assim, eu me sentia sufocando.
- Você me acompanha até o carro?
- Claro - ele disse sem pensar duas vezes. Mas me senti humilhada durante todo o caminho. Conforme tinha dito a Eddie e Adrian, não costumava precisar da ajuda dos
outros. Precisar de alguém para algo tão simples como aquilo era especialmente humilhante. Rose não precisaria de escolta, pensei. Até mesmo Angeline não precisaria.
Ela provavelmente esmurraria meia dúzia de pedestres só para não perder a prática.
- Está entregue - Brayden disse quando chegamos ao Pingado. Fiquei pensando se ele estaria me achando ridícula por precisar de escolta.
- Obrigada. Vejo você no sábado?
Ele assentiu.
- Tem certeza de que quer me encontrar lá? Posso buscar você, se quiser.
- Sei disso. E eu não me importaria de ir no seu carro. Sem ofensas, Pingado. - Dei um afago de consolação no carro. - Mas preciso levar meus irmãos. Fica mais fácil
assim.
- Tudo bem - ele disse. O sorriso que me deu parecia tímido, em contraste com sua confiança prévia em assuntos acadêmicos. - Mal posso esperar para ver sua fantasia.
Consegui a minha numa companhia de teatro. Claro que não é uma reprodução perfeita de um traje ateniense, mas foi o melhor que pude encontrar.
Tinha quase esquecido que havia deixado minha fantasia nas mãos da Lia. Brayden não era o único interessado em ver o que eu iria vestir.
- Também estou ansiosa - eu disse.
Após alguns instantes, comecei a estranhar por que ele ainda não tinha ido embora. Ainda estampava a mesma timidez e incerteza no rosto, como se estivesse reunindo
coragem para dizer algo. Só que, como vim a descobrir, falar não era exatamente o que ele queria. Com uma grande demonstração de bravura, ele deu um passo à frente
e me beijou. Foi bom, mas de novo não foi nada impressionante.
Pela expressão em seu rosto, porém, ele parecia ter sido enviado às alturas. Por que eu não tinha a mesma reação? Talvez estivesse fazendo alguma coisa errada. Será
que eu tinha algum problema?
- Vejo você no sábado - ele se despediu.
Fiz uma nota mental para pesquisar sobre reação a beijos depois.
Voltei para o alojamento em Amberwood e mandei uma mensagem para Adrian enquanto entrava. Tem um curso de defesa pessoal que começa amanhã à noite. Setenta e cinco
dólares. Apesar de ter demonstrado interesse na noite anterior, eu não botava muita fé de que ele tinha se livrado o suficiente da depressão para se dispor a fazer
algo assim. Nem sabia se ele ainda estava frequentando o curso de arte. Um minuto depois, chegou a resposta: Estarei lá. E, logo depois: Vc pode me arranjar a grana?
Jill também estava entrando no alojamento, nós duas em cima da hora do toque de recolher. Ela sequer me notara, e parecia cismada e pensativa.
- Ei - gritei. - Jill?
Ela parou no meio do saguão e pestanejou, surpresa por me ver.
- Ah, oi. Estava com o namorado?
- Não sei se já o chamaria assim - respondi.
- Quantas vezes vocês saíram?
- Quatro.
- Ele vai levar você à festa?
- A gente combinou de se encontrar lá.
Ela deu de ombros.
- Pra mim, estão namorando.
- Pra mim, você está citando o guia de namoro da Kristin e da Julia.
Ela voltou a sorrir, mas não por muito tempo.
- Acho que é o senso comum mesmo.
Examinei-a, ainda tentando entender o que a estava deixando daquele jeito.
- Você está bem? Parece incomodada com alguma coisa. É... por causa de Adrian? Ele ainda está chateado?
Por um momento, estava mais preocupada com Adrian do que com ela.
- Não - ela disse. - Quer dizer, sim. Mas ele está um pouco melhor. Está animado com a ideia de fazer o curso de defesa pessoal com você.
O laço sempre me impressionava. Tinha mandado a mensagem para Adrian havia menos de um minuto.
- Animado? - perguntei. Aquela parecia uma reação muito forte.
- É uma distração. E o melhor que ele pode fazer quando está nesse estado é se distrair - ela explicou. - Mas ele ainda está triste. Ainda está deprimido por causa
do pai.
- Não devia tê-lo levado a San Diego - murmurei, mais para mim mesma do que para ela. - Se tivesse me recusado, ele não teria conseguido ir.
Jill parecia cética.
- Não sei... Acho que ele teria encontrado um jeito, com ou sem você. O que aconteceu entre eles aconteceria mais cedo ou mais tarde.
Sua sabedoria era surpreendente.
- É que me sinto péssima por ver Adrian assim - comentei.
- O humor dele varia constantemente. Sempre foi assim - Jill disse, com o olhar distante. - Ele parou de beber um pouco, por minha causa. Mas isso abre espaço para...
bem, é difícil explicar. Você sabe que o espírito pode enlouquecer as pessoas, certo? Então quando ele está triste desse jeito e fica sóbrio, se torna vulnerável.
- Você quer dizer que Adrian está ficando louco?
Aquela não era uma complicação para a qual eu estivesse preparada.
- Não, não exatamente. - Ela mordiscou o lábio enquanto procurava as palavras. - Ele só fica um pouco disperso... de um jeito esquisito. Você vai entender quando
vir. Ele meio que faz sentido, meio que não. Fica alheio, divagando. Mas não como eu. Tem um... não sei dizer... um quê meio místico. Mas não é exatamente mágico.
É como se... como se ele perdesse o controle por um tempo. Nunca dura muito, e como eu disse, você vai perceber quando vir.
- Acho que já vi acontecer... - eu disse, arrebatada pela lembrança de um momento pouco antes de Sonya e Dimitri chegarem à cidade. Eu estava na casa de Adrian e
ele me olhou de um jeito estranho, como se fosse a primeira vez que prestava atenção em mim. Pensar naquilo ainda me dava arrepios.
Meu Deus, Sage. Os seus olhos. Como foi que eu nunca reparei neles? A cor... como ouro derretido. Eu poderia pintá-los.
- Mocinhas? - A sra. Weathers estava à mesa dela, guardando as coisas para a noite. - Está na hora de ir para o quarto.
Assentimos, resignadas, e subimos a escada. Ao chegarmos ao andar de Jill, a interrompi antes que pudesse entrar.
- Ei... se o problema não é o Adrian, então o que estava incomodando você lá embaixo? Está tudo bem?
- Hum? Ah, aquilo. - Ela corou, de seu jeito fofo. - Sim. Acho que está tudo bem. Não sei. Micah... me beijou hoje. Pela primeira vez. E acho que fiquei um pouco
surpresa com o que senti.
Fiquei admirada por eles nunca terem se beijado antes e imaginei que devia ficar contente por isso. As palavras dela repercutiram dentro de mim.
- Como assim? Você achou muito menos emocionante do que esperava? Como se só estivesse tocando os lábios de alguém? Como se estivesse beijando um primo?
Ela me olhou, confusa.
- Não. Que loucura. Por que você pensaria isso?
- Hum, só estava chutando.
De repente me senti uma idiota. Por que só comigo beijar era assim?
- Na verdade, foi muito bom. - Seu olhar parecia distante. - Quer dizer, quase. Eu não consegui me deixar envolver tanto quanto queria porque estava muito preocupada
com os caninos. É fácil escondê-los quando estou rindo ou conversando com alguém. Mas não durante um beijo. E tudo em que eu pensava era: “O que eu vou dizer se
ele perceber?”. Então comecei a lembrar do que você e todo mundo disseram. Que essa história com Micah não era uma boa ideia e que não daria para manter as coisas
sem contato físico pra sempre. Eu gosto dele, sabe. Gosto muito. Mas não o bastante para arriscar expor os Moroi... ou colocar a Lissa em risco.
- É uma atitude muito nobre.
- Acho que sim. Mas não quero terminar com ele agora. Micah é muito legal... e adoro todos os amigos que fiz graças a ele. Acho que vou esperar pra ver no que vai
dar... Mas é difícil. Isso valeu como alerta.
Ela parecia muito triste ao entrar no dormitório.
No caminho para o meu, me senti mal por ela... mas ao mesmo tempo aliviada. Vinha me preocupando com aquele relacionamento entre ela e Micah, com medo de que logo
enfrentaríamos uma situação dramática: ela se recusando a desistir dele porque aquele amor era tão grande que transcenderia as raças. Em vez disso, devia ter confiado
mais nela. Ela não era tão imatura como eu às vezes imaginava. Jill entenderia a verdade e resolveria a situação por conta própria.
Suas palavras sobre Adrian grudaram na minha cabeça, particularmente quando, na noite seguinte, o busquei em casa para nossa primeira aula de defesa pessoal. Ele
entrou no carro com uma atitude jovial, sem parecer deprimido ou louco. Estava, como notei, muito bem vestido, com roupas que teriam sido uma excelente escolha para
a visita ao pai. E também reparou na minha roupa.
- Nossa, acho que nunca vi você usando uma coisa tão... casual.
Estava com uma calça de ginástica verde-oliva e uma camiseta de Amberwood.
- A descrição do curso dizia para usar roupas confortáveis... conforme mandei por mensagem para você - comentei, com um olhar significativo para sua camisa de seda.
- Esta camisa é muito confortável - ele me garantiu. - Além disso, não tenho nenhuma roupa de exercício.
Ao dar partida no carro, a mão esquerda de Adrian chamou minha atenção. A princípio, pensei que estivesse sangrando, mas então percebi que era tinta vermelha.
- Você voltou a pintar - eu disse, radiante. - Pensei que tivesse parado.
- É, Sage. Não dá para assistir às aulas de pintura e não pintar.
- Pensei que tivesse parado de ir às aulas também.
- Quase parei - ele disse, me olhando de canto. - Mas então lembrei que tinha convencido uma garota de que, se ela me desse uma chance e me colocasse naquele curso,
eu faria tudo direitinho. Bem feito pra mim.
Abri um sorriso e acelerei o carro.
Havia saído com antecedência para termos tempo de cuidar da matrícula. Quando liguei para a Escola de Defesa Wolfe mais cedo naquele dia, um homem agitado havia
me dito para aparecer com o pagamento em dinheiro, porque estávamos muito em cima da hora. O endereço era uma casa afastada do centro, instalada em um terreno vasto
sem nenhum verde para amenizar o clima. O deserto dominava ali, dando à casa uma aparência triste e desolada. Se não fosse pelo WOLFE gravado na caixa de correio,
acharia que estávamos no lugar errado.
- Esse é o tipo de lugar que vemos nos filmes - Adrian disse -, quando as vítimas ingênuas encontram assassinos em série.
- Pelo menos ainda está claro - falei. Desde a noite no beco, a escuridão havia se tornado uma ameaça inteiramente nova para mim. - Não pode ser tão ruim.
Adrian abriu a porta do carro.
- É o que nós vamos descobrir.
Tocamos a campainha e fomos recebidos pelo som de latidos e passos acelerados. Recuei, incomodada.
- Detesto cachorros mal adestrados - sussurrei para Adrian. - Eles precisam se comportar e andar na linha.
- Assim como as pessoas na sua vida, né? - Adrian zombou.
A porta se abriu e demos de cara com um senhor de cinquenta e poucos anos, com uma barba loira desgrenhada, vestindo bermuda e uma camiseta da banda Lynyrd Skynyrd.
Para completar, ele usava um tapa-olho.
- Impressionante - ouvi Adrian murmurar. - Superou meus sonhos mais loucos.
Fiquei assustada. Aquele tapa-olho me fez pensar no olho de vidro de Keith, que por sua vez me lembrou do meu envolvimento no “acidente” em que ele o conseguiu.
Não era algo que eu gostasse de lembrar, o que me fez imaginar quais eram as chances de ter dado de cara com outro homem de um olho só. Ele empurrou os cachorros
de lado - aparentemente de uma raça mestiça de Chihuahua -, que por pouco não conseguiram escapar antes de ele fechar a porta.
- Pois não? - perguntou.
- Nós... estamos aqui para o curso. De defesa pessoal. - Achei necessário especificar, afinal, vai que ele também ensinasse a cuidar de cães e navegar os sete mares.
- Meu nome é Sydney; este é Adrian. Eu liguei hoje de manhã...
- Ah, sim, sim - ele assentiu, coçando a barba. - Você trouxe o dinheiro? Só aceito dinheiro vivo.
Tirei do bolso cento e cinquenta dólares e lhe entreguei. Por força do hábito, quase pedi um recibo, mas achei melhor não. Ele enfiou o dinheiro no bolso da bermuda.
- Está bem. Vocês estão dentro. Vão em frente e esperem na garagem até os outros chegarem. A porta lateral está aberta.
Ele apontou para uma grande construção de aparência industrial, duas vezes maior do que a casa, do outro lado do terreno. Sem esperar para ver se iríamos obedecer,
ele se esgueirou para dentro, onde estavam seus cães barulhentos.
Fiquei aliviada ao ver que a parte interna da garagem era a única coisa que parecia legítima. Havia colchonetes no chão e espelhos em algumas paredes. Uma televisão
e um videocassete ficavam num carrinho, ao lado de uma pilha de fitas empoeiradas sobre defesa pessoal. Um pouco mais desconcertante eram alguns itens da decoração,
como um par de nunchakus, arma composta por dois bastões pequenos ligados por uma corrente, que estava pendurada na parede.
- Não toque nisso! - adverti Adrian ao vê-lo seguir naquela direção. - Não é prudente mexer nas coisas de um cara daqueles.
Adrian não encostou.
- Você acha que a gente vai aprender a usar isso?
- A descrição do curso não dizia nada sobre armas. Só sobre defesa pessoal básica e combate corpo a corpo.
- Por que vir até aqui, então? - Adrian perguntou, caminhando até um expositor de vidro que continha vários tipos de socos-ingleses. - Esse é o tipo de coisa que
Castile faz o dia inteiro. Ele poderia ter nos ensinado.
- Queria alguma coisa mais acessível - expliquei.
- Como o capitão McBermudaTropical? Aliás, onde você encontrou esse cara?
- Na internet. - Sentindo que precisava defender minha busca, acrescentei: - Ele era muito bem recomendado.
- Por quem? Pelo capitão Gancho?
Não consegui segurar o riso.
O resto da turma foi chegando aos poucos ao longo da meia hora seguinte. A primeira foi uma senhora de uns setenta anos. A segunda, uma mulher que havia acabado
de dar à luz seu quarto filho e decidira que precisava “aprender a protegê-los”. As duas últimas mulheres da turma tinham vinte e poucos anos e usavam camisetas
com slogans feministas radicais. Adrian e eu éramos os mais jovens ali. E ele era o único homem - além do instrutor, que pediu para ser chamado simplesmente de Wolfe.
Estava começando a ter um mau pressentimento, especialmente quando a aula começou. Nós seis nos sentamos no chão enquanto Wolfe, apoiado em um dos espelhos, nos
encarava.
- Se vocês estão aqui - começou -, provavelmente já querem aprender a usar aquilo - ele disse, apontando para os nunchakus.
Vislumbrei o rosto do Adrian pelo espelho, cuja expressão dizia: Sim, é exatamente isso que eu quero aprender.
- Bem, é uma pena - Wolfe disse. - Vocês nunca vão usar. Pelo menos não neste curso. Ah, não nego que eles tenham sua utilidade. Salvaram minha vida mais de uma
vez quando eu caçava no Alasca há alguns anos. Mas se prestarem atenção no que vou ensinar a vocês, nunca precisarão de um desses. Afinal, não temos alces raivosos
aqui em Palm Springs.
A que tinha acabado de ter um filho levantou a mão.
- Você usou nunchakus contra um alce?
Os olhos de Wolfe escureceram.
- Usei todo tipo de coisa contra aquele canalha. Mas não é esse o ponto agora... Ouçam o que vou dizer. Com um pouco de bom senso, vocês não precisam de armas. Ou
punhos. Você - ele disse, para a minha surpresa apontando para mim, me encarando com seu olhar caolho de aço. - O que eu disse quando você chegou?
Engoli em seco.
- Para dar o dinheiro, senhor.
- E depois?
- Para esperarmos aqui.
Ele assentiu, satisfeito - então, aparentemente, minha resposta óbvia estava certa.
- Estamos a três quilômetros de qualquer outra casa e a quase um quilômetro da rodovia. Você não me conhece e, convenhamos, este lugar parece saído de um filme de
terror com assassinos em série. - Pelo canto do olho, vi Adrian me lançando um olhar triunfante. - Mandei vocês entrarem numa construção distante com pouquíssimas
janelas. Vocês entraram. Olharam em volta ao virem para cá? Examinaram os arredores antes de entrar? Verificaram as saídas?
- Eu...
- Não, claro que não - ele interrompeu. - Ninguém nunca faz isso. E essa é a primeira regra de defesa pessoal. Não presuma nada. Você não precisa viver morrendo
de medo de tudo, mas saiba o que está ao seu redor. Sejam espertos. Não entrem incautos em becos ou estacionamentos escuros.
E, a partir daí, não despreguei os olhos dele.
Wolfe era surpreendentemente bem preparado. Trouxe inúmeras histórias e exemplos de agressões, que me faziam pensar que os humanos eram as criaturas mais perversas
no mundo, não os vampiros. Ele nos mostrou imagens e diagramas de lugares perigosos, destacando suas vulnerabilidades e dando conselhos muito práticos que deveriam
ser óbvios para a maior parte das pessoas - mas não eram. Quanto mais ele falava, mais idiota eu me sentia pelo que tinha acontecido com Sonya. Se aqueles homens
quisessem mesmo atacá-la, teriam encontrado um jeito, de uma maneira ou de outra. Mas havia milhões de coisas que eu poderia ter feito para ser mais cuidadosa e,
quem sabe, evitar o confronto que aconteceu naquela noite. Essa ideia se mostrou uma parte importantíssima da filosofia de Wolfe: evitar o perigo em primeiro lugar.
Mesmo quando finalmente passamos a discutir alguns golpes básicos, a ênfase era em usá-los para poder fugir, não para ficar e tentar derrotar o agressor. Ele nos
deixou praticar alguns golpes na última meia hora de aula, formando pares para trabalharmos juntos contra um boneco, já que não queríamos machucar uns aos outros.
- Graças a Deus - Adrian disse, quando começamos os exercícios como parceiros. - Pensei que tinha vindo para um curso de luta para aprender a não lutar.
- Mas ele tem razão - eu disse. - Se der para evitar a briga, tanto melhor.
- E se não der? - Adrian perguntou. - Como com seus amiguinhos espadachins? O que você faz quanto está numa enrascada?
Dei um tapinha em nosso boneco inexpressivo.
- Essa é a função disto.
O principal golpe que Wolfe havia nos ensinado era como se livrar de uma chave de braço se alguém nos agarrasse por trás. Ele tinha algumas técnicas que não eram
muito mais complexas do que cabecear ou pisotear. Adrian e eu nos revezamos como agressor enquanto a vítima praticava as manobras - em câmera lenta e quase sem contato
físico com o parceiro. Era para isso que serviam os bonecos. Eu era uns dez centímetros mais baixa do que Adrian e portanto uma agressora bem improvável, o que nos
fazia rir toda vez que eu lhe dava um golpe. Wolfe nos repreendeu por não estarmos sendo suficientemente sérios, mas nos elogiou por termos aprendido as técnicas
rápido.
Isso me deixou tão convencida que, quando Adrian virou as costas para pegar água, me movi furtivamente atrás dele e lancei os braços em volta de seu pescoço. Wolfe
havia nos ensinado como se livrar daquele tipo de chave de braço e, sinceramente, pensei que Adrian tivesse visto que eu estava atrás dele e que desviaria antes
mesmo que eu encostasse nele. Aparentemente não. Ele congelou e, por um momento, paramos no tempo. Eu sentia a seda da camisa dele roçando minha pele e o calor de
seu corpo. O perfume remanescente da colônia caríssima que ele usava pairou no ar ao meu redor. Incrivelmente, não cheirava a cigarro. Eu sempre dizia que a colônia
não poderia valer o quanto ele gastava com ela, mas, naquele momento, eu reconsiderei. Era maravilhosa.
Estava tão absorta por aquela sobrecarga sensorial que fui pega completamente de surpresa quando ele me empurrou.
- O que você está fazendo? - esbravejou.
Pensei que ele ficaria impressionado com meu ataque surpresa, mas não havia nem aprovação nem bom humor em seu rosto. Meu sorriso se desfez.
- Testando se você conseguia lidar com um ataque surpresa. - Meu tom era hesitante. Não sabia o que tinha feito de errado. Ele parecia desconfortável. Quase angustiado.
- Qual é o problema?
- Nenhum - ele respondeu, áspero. Por um instante, seus olhos se fixaram nos meus com uma intensidade que me fez perder o ar. Então ele desviou o olhar, como se
não suportasse olhar para mim. Me senti mais confusa do que antes. - Nunca pensei que veria o dia em que você fosse colocar os braços em volta de um vam... de alguém
como eu.
Mal notei que ele quase deixara passar a palavra “vampiro” em público. O que ele disse me sobressaltou. Ele tinha razão: eu o havia tocado sem nem mesmo pensar sobre
isso - e não num aperto de mão formal como de costume. Claro que estávamos no contexto do curso, mas sabia que, meses antes, não teria feito isso em hipótese alguma.
Tocá-lo agora parecia perfeitamente natural. Teria sido esse o motivo para ficar angustiado? Será que estava preocupado com a minha relação com os alquimistas?
Wolfe passou por nós.
- Bom trabalho, garota. - Em seguida, deu um tapa nas costas de Adrian que quase o fez cair para a frente. - Você estava completamente despreparado para ela.
Isso pareceu deixar Adrian ainda mais aflito, e pude jurar que o ouvi murmurando: “Com certeza”.
Parte da presunção de Adrian voltou durante o trajeto de volta, mas ele ainda estava pensativo e em silêncio. Fiquei tentando entender mais essa mudança de humor.
- Precisa passar no Clarence para se alimentar?
Talvez a aula o tivesse exaurido.
- Não - ele disse. - Não quero atrasar você. Mas, talvez... você possa vir no fim de semana e vamos todos juntos para lá?
- Tenho a festa no sábado - eu disse, me justificando. - E acho que Sonya vai levar Jill para a casa do Clarence amanhã, depois da aula. Acho que ela pode pegar
você também.
- Acho que sim - ele respondeu. Ele parecia desapontado, mas um dia não era tanto tempo assim para esperar pelo sangue. Talvez ele estivesse com medo de que Sonya
voltasse a chamá-lo para os experimentos, o que não seria uma má ideia, pensei. De repente, ele abandonou a postura relaxada e se endireitou. - Por falar em Sonya...
fiquei pensando uma coisa agora há pouco. Uma coisa que Wolfe disse.
- Ora, ora, Adrian. Então você estava prestando atenção?
- Não comece, Sage - ele advertiu. - Wolfe é maluco, e você sabe disso. Mas quando estava discorrendo suas palavras de sabedoria, ele mencionou aquilo sobre não
dar informações pessoais a estranhos, e sobre como as vítimas costumam ser escolhidas antes da agressão. Lembra?
- Sim, eu estava lá - respondi. - Não faz nem uma hora.
- Certo. Então. Aqueles homens que atacaram você e Sonya pareciam saber que ela era uma vampira... Do tipo errado, mas ainda assim. O simples fato de terem aparecido
com uma espada significa que eles tinham feito uma pesquisa. Quer dizer, é possível que eles a tenham visto na rua um dia, por acaso, e pensaram: “Ah, uma vampira”.
Mas talvez eles já a estivessem seguindo por um tempo.
Tenham visto na rua... Prendi a respiração enquanto mil peças se encaixavam na minha cabeça de uma só vez.
- Adrian, você é um gênio.
Ele se sobressaltou.
- Hein? O que você disse?
- Uma semana antes do ataque, Sonya e eu saímos para buscar comida e encontramos um cara aleatório que afirmou conhecê-la do Kentucky. Ela ficou bem inquieta, porque
durante todo o tempo que esteve lá ela era Strigoi e, claro, não tinha muitos amigos humanos.
Adrian levou alguns instantes para digerir a história.
- Então... você quer dizer que eles já estavam pesquisando Sonya havia um tempo.
- Na verdade, foi você quem disse isso.
- Certo. Porque eu sou um gênio. - O silêncio voltou a reinar enquanto avaliávamos as implicações da situação de Sonya. Quando Adrian voltou a se pronunciar, seu
tom não era nada brincalhão. - Sage... Ontem à noite, você não respondeu minha mensagem sobre caçadores de vampiros.
- Os alquimistas não têm registros sobre caçadores de vampiros modernos - respondi automaticamente. - Meu pai me disse uma vez que, de vez em quando, alguns humanos
descobrem a verdade. Pensei que o ataque contra ela fosse alguma coisa assim, e não um grupo organizado ou uma conspiração.
- Existe a possibilidade remota de que, de algum jeito, em algum ponto, os alquimistas deixaram passar alguma coisa? E o que você quer dizer exatamente por “moderno”?
A história dos alquimistas estava quase tão incrustada em mim quanto as crenças que regiam nossos atos.
- Há muito tempo, tipo, na Idade Média, quando os alquimistas estavam se formando, muitas facções tinham ideias diferentes sobre como lidar com os vampiros. Nenhuma
acreditava que os humanos deviam ter contato com eles. Os que, tempos depois, formaram meu grupo concluíram que a melhor maneira de lidar com os Moroi era simplesmente
mantê-los longe dos humanos. Mas havia outros que não gostavam dessa ideia: eles achavam que a melhor maneira de manter os humanos em segurança era erradicando os
vampiros, de todos os meios possíveis.
Mais uma vez estava me baseando em fatos, minha velha armadura. Se eu pudesse encontrar alguma maneira racional de descartar a possibilidade de que um grupo de caçadores
de Moroi realmente existisse, não precisaria reconhecer as implicações disso.
- Então eles eram caçadores de vampiros - Adrian ressaltou.
- Sim, mas eles fracassaram. Eram vampiros demais, contando Moroi e Strigoi, contra um grupo tão pequeno como aquele. Acho que os últimos registros que temos são
da Renascença. Os caçadores acabaram desaparecendo.
Até eu podia ouvir a insegurança na minha voz.
- Você disse que a espada tinha símbolos alquimistas nela.
- Símbolos antigos.
- Antigos o suficiente para serem do tempo em que o tal grupo dissidente estava se dissolvendo?
- Sim - respondi com um suspiro. - O suficiente.
Queria fechar os olhos e me afundar no assento. Minha armadura começava a rachar. Ainda não tinha certeza absoluta de que podia aceitar a ideia de caçadores de vampiros,
mas não podia descartar essa possibilidade.
Pelo canto do olho, conseguia ver Adrian me examinando.
- Por que o suspiro?
- Porque eu devia ter ligado essas coisas antes.
Ele parecia muito satisfeito por eu ter reconhecido.
- Bem, mas você não acredita em caçadores de vampiros. É realmente difícil acreditar que eles possam representar uma ameaça real quando se vive num mundo baseado
em dados e fatos concretos, não é? E como eles poderiam ter passado despercebidos por vocês durante tanto tempo?
Depois que Adrian me dera a semente, a ideia já estava germinando na minha cabeça.
- Porque, se eles existirem, só estão matando Strigoi. Se algum grupo estivesse acabando com os Moroi, seu povo já teria notado. Os Strigoi não são tão organizados
e, mesmo se notassem, não reportariam esses assassinatos para nós de maneira alguma. Além disso, os Strigoi vivem morrendo pelas mãos de Moroi e dampiros. Se mais
alguns aparecessem mortos, eles culpariam vocês... Isso se alguém descobrisse, porque basta descartar o corpo de um Strigoi em plena luz do sol que ninguém nunca
vai descobrir que ele esteve lá.
Respirei aliviada com essa conclusão. Se esse grupo de pessoas realmente existisse, elas não estavam matando Moroi. Mesmo assim, caçar Strigoi era perigoso. Apenas
os alquimistas sabiam lidar direito com a destruição daqueles demônios e manter as mortes em segredo da maioria dos humanos.
- Você poderia perguntar a outros alquimistas sobre os caçadores? - Adrian indagou.
- Não, não por enquanto. Consigo fuçar uns arquivos, mas nunca poderia trazer isso à tona oficialmente. Eles se manteriam firmes à mesma teoria do meu pai, de que
foi apenas um grupo aleatório de humanos esquisitos. E me dispensariam, rindo da minha cara.
- Sabe quem não iria rir da sua cara?
- Clarence - dissemos ao mesmo tempo.
- Taí uma conversa pela qual não estou ansiosa - eu disse, abatida. - Mas, querendo ou não, ele realmente pode saber alguma coisa. E essa paranoia dele pode ser
útil. Por exemplo, toda aquela segurança que ele quer instalar em casa. Se esse grupo realmente tiver enfiado na cabeça que precisa ir atrás de Sonya, ela pode estar
correndo muito mais perigo do que imaginávamos.
- Precisamos falar com Belikov. Ele é muito bom em proteger as pessoas. E não vai dormir se o convencermos de que ela está em perigo, o que parece bem provável depois
do ataque com a espada.
Notei que, pela primeira vez, Adrian havia falado de Dimitri sem nenhuma amargura. Na verdade, o elogio soava sincero. Ele realmente acreditava na capacidade de
Dimitri. No entanto, não comentei nada sobre isso. Para Adrian superar o ódio que sentia por Dimitri, ele precisaria ir aos poucos e sem nenhuma ajuda externa.
Deixei Adrian na casa dele com planos para conversarmos depois. Assim que cheguei a Amberwood, a sra. Weathers me chamou. O que será dessa vez?, pensei. Estava me
preparando para ouvir que Angeline tinha botado fogo em alguma coisa. Mas, em vez disso, o rosto da sra. Weathers estava plácido e até agradável, então me atrevi
a esperar pelo melhor.
- Chegou uma coisa para você, querida - ela disse. Do pequeno gabinete atrás de sua mesa, ela retirou dois cabides com roupas envoltas num saco com zíper. - Uma
baixinha agitada deixou isso aqui.
- Lia - eu disse, pegando os cabides, curiosa para ver o que tinham dentro. - Obrigada.
Estava prestes a ir embora quando a sra. Weathers continuou a falar.
- Mais uma coisa. A sra. Terwilliger deixou isto para você.
Tentei manter a expressão neutra. Já estava com tarefas da sra. Terwilliger até o pescoço. O que seria dessa vez? A sra. Weathers me entregou um grande envelope,
do tamanho de um livro, em que estava escrito: Isto não faz parte dos estudos. Talvez você não odeie. Voltei a agradecer a sra. Weathers e segui meu caminho para
o quarto. Depois de colocar os sacos com as roupas na cama sem abrir, rasguei o envelope de imediato. Algo no bilhete dela me incomodara.
Não fiquei surpresa ao ver que se tratava de outro livro de feitiços. O que me surpreendeu foi o fato de aquele ser diferente dos outros livros que ela costumava
me passar para os estudos. Era recente, moderno. Não havia o nome da editora, então imaginei que fosse uma publicação independente, mas estava claro que tinha sido
impresso e encadernado nos últimos anos. Era espantoso. Propositalmente, nunca havia perguntado à sra. Terwilliger sobre seus amigos bruxos ou sobre o estilo de
vida deles, mas sempre supus que eles lessem aqueles velhos livros empoeirados que ela me dava para traduzir e copiar. A ideia de que pudessem estar trabalhando
por conta própria em livros novos e atualizados nunca havia me passado pela cabeça - embora devesse.
Contudo, não tive tempo para me culpar, não depois de ver o título do livro: A adaga invisível: Feitiços práticos de ataque e defesa. Ao folheá-lo, vi que os feitiços
eram exatamente como o título sugeria, mas escritos em um estilo mais moderno do que eu estava acostumada. Havia referências às origens de cada um, que variavam
muito, mas sua eficácia dos feitiços era sempre a mesma. Todos podiam ser lançados em pouquíssimo tempo, ou então poderiam ser feitos previamente e produziriam efeitos
destrutivos imediatos, como o amuleto de fogo.
Era exatamente o tipo de feitiço sobre o qual eu tinha perguntado à sra. Terwilliger.
Furiosa, enfiei o livro de volta no envelope. Que audácia a dela tentar me atrair desse jeito! Será que ela achava que aquilo compensaria tudo o que me fez passar?
A sra. Weathers ainda devia estar lá embaixo, e eu estava quase decidida a deixar o livro com ela dizendo que me enviaram por engano. Ou eu poderia simplesmente
deixar na escrivaninha da sra. Terwilliger logo na manhã seguinte. Desejei nem ter aberto o envelope. Devolvê-lo à remetente fechado teria sido uma reafirmação poderosa
de que ela não me convenceria a entrar em nenhum grupo de magia só porque encontrara um tópico do meu interesse.
No entanto, a sra. Weathers sabia da minha ligação com a sra. Terwilliger e, caso eu tentasse devolvê-lo ainda naquela noite, ela simplesmente diria para eu entregá-lo
à sra. Terwilliger na manhã seguinte. Então eu teria de ficar com aquilo até de manhã de qualquer jeito. Me consolei pegando uma fita adesiva. Afinal, se não tinha
como voltar atrás e não abrir o envelope, pelo menos havia algo psicologicamente reconfortante em lacrá-lo novamente.
Porém, quando comecei a desenrolar a fita, minha mente me levou de volta à noite com Adrian e Wolfe. Wolfe havia me acalmado um pouco com seus lembretes constantes
de que, em sua maioria, os ataques eram fortuitos e causados por descuidos da vítima. Saber daquilo e aprender a que deveria me atentar me fizera sentir no controle
da situação. Ele havia mencionado alguns ataques de caráter mais premeditado ou pessoal, mas esses obviamente não eram seu foco. Entretanto, eles me lembraram da
conversa com Adrian. E se as histórias de Clarence fossem verdadeiras? E se os caçadores de vampiros realmente existissem? Sabíamos que o ataque contra Sonya não
tinha sido por acaso, mas se ela realmente estava lidando com uma facção que existia desde a Idade Média... então meus temores e os de Adrian estavam certos. Eles
iriam atrás dela novamente, e não se deteriam mesmo que evitássemos estacionamentos escuros e isolados ou caminhássemos com confiança.
Olhei para o envelope e decidi que era melhor não lacrar por enquanto.
13
NO DIA DA FESTA, considerei seriamente voltar à loja de fantasias e comprar aquele vestido branco inflamável.
O vestido da Lia era... um pouco além do que eu esperava.
Ela tinha feito um trabalho aceitável copiando o estilo da túnica usada na Grécia antiga, isso eu admiti. O vestido não tinha mangas e era preso por alfinetes nos
ombros, formando um decote drapeado maior do que o que eu considerava confortável. O vestido ia até o chão, e eu não sabia como ela tinha acertado minha altura com
tamanha perfeição sem me medir. Mas as semelhanças históricas acabavam por aí. O material era uma espécie de seda, um tecido leve que fluía em volta de mim, ressaltando
mais minha silhueta do que se esperaria de um vestido como aquele. Qualquer que fosse o material, não era nada que os gregos teriam produzido, e era... vermelho.
Nem conseguia lembrar a última vez que vestira alguma peça vermelha. Talvez quando criança. Claro, algumas variações do uniforme de Amberwood tinham detalhes em
vinho, mas num tom suave. Aquilo era de um escarlate vivo e flamejante. Eu nunca usava cores tão intensas. Não gostava de chamar atenção. Para reforçar, ela tinha
acrescentado vários detalhes em dourado. Um fio dourado dançava ao longo das bordas do vestido, reluzindo sob a luz. O cinto também era dourado, mas bem diferente
daquele de plástico vagabundo da fantasia. Os alfinetes que seguravam o vestido eram de ouro (ou, pelo menos, de algum metal de alta qualidade que parecia com ouro),
assim como os acessórios que ela tinha mandado: um colar e brincos feitos de pequenas moedas. E até uma presilha dourada cravejada de cristais vermelhos.
Experimentei o vestido no dormitório e fitei no espelho a criatura vermelha e cintilante que eu havia me tornado.
- Não - eu disse em voz alta.
Alguém bateu à porta e fiz uma careta. Levaria uma eternidade para trocar o vestido, então não tive escolha senão atender usando a fantasia. Felizmente, era Jill.
Ela estava abrindo a boca para falar alguma coisa mas, ao me ver, ficou parada em silêncio.
- Eu sei - eu disse. - É ridículo.
Ela se recuperou depois de alguns instantes e respondeu:
- Não... não! É maravilhoso. Ai, meu Deus.
Fiz com que ela entrasse rápido no quarto antes que alguma colega pudesse me ver. Ela também estava vestida para a festa, numa roupa azul-clara de fada, feita de
um tecido leve que caía perfeitamente em sua silhueta esguia de Moroi.
- É vermelho - eu disse. Caso não estivesse óbvio, acrescentei: - Nunca uso vermelho.
- Eu sei - ela disse, de olhos arregalados. - Mas deveria. Fica lindo em você. Você devia queimar todas as suas roupas cinza e marrons.
- Não posso usar isso - respondi, abanando a cabeça. - Se sairmos agora, ainda dá tempo de irmos à loja de fantasias para comprar outra coisa.
Jill deixou a perplexidade de lado e assumiu uma expressão decidida e obstinada que parecia um pouco exagerada para a situação.
- Não. De jeito nenhum. Você precisa usar isso. Seu namorado vai ficar louco. E precisa pôr um pouco de maquiagem também. Eu sei, eu sei. Você não gosta de nada
muito exagerado, mas só um delineador mais escuro e um batonzinho. Precisa ficar à altura da intensidade do vestido.
- Viu? Esta cor já está causando problemas.
Ela não ia desistir.
- Vai levar só um minuto. E é todo o tempo que temos. Se não sairmos logo, você vai se atrasar. Seu namorado está sempre adiantado, não é?
Não respondi na hora. Mas ela tinha razão. Brayden estava sempre adiantado e, por mais que aquela fantasia me angustiasse, não podia suportar a ideia de deixá-lo
esperando, ainda mais porque ele não poderia entrar na festa sem estar acompanhado por uma estudante de Amberwood.
- Tudo bem - assenti, com um suspiro. - Vamos.
Jill sorriu, triunfante.
- Mas, primeiro, a maquiagem.
Aquiesci e, no último minuto, coloquei minha cruz no pescoço, que não combinava em nada com o tema da fantasia e foi instantaneamente escondida pela joia dourada
mais chamativa, mas me fez sentir melhor. Era um toque de normalidade.
Quando finalmente saímos, encontramos Eddie esperando por nós no saguão. Ele estava usando roupas normais e seu único adereço de Dia das Bruxas era uma máscara que
lembrava O fantasma da ópera. Fiquei tentada a perguntar se ele tinha mais uma daquelas para eu poder me trocar rápido e simplesmente ir de máscara.
Ele pulou da cadeira, com o olhar embevecido ao ver Jill em sua glória celestial azulada. Sinceramente, como ninguém conseguia ver o quanto ele era apaixonado por
ela? Era dolorosamente óbvio. Ele a bebia com o olhar, como se estivesse prestes a desmaiar ali mesmo. Então, voltou-se para mim e esfregou os olhos. Sua expressão
era mais estupefata que apaixonada.
- Eu sei, eu sei. - Já pude notar um padrão se formando naquela noite. - É vermelho. Nunca uso vermelho.
- Mas deveria - ele disse, repetindo as palavras de Jill. Ele alternou o olhar de mim para ela e então chacoalhou a cabeça. - É uma pena que somos “parentes”. Senão
tiraria vocês para dançar. Mas, como a minha prima já quer sair comigo, acho melhor não provocarmos mais boatos.
- Coitada da Angeline - Jill disse, no caminho para o carro. - Ela queria tanto ir.
- É melhor assim. Alguém da administração da escola poderia vê-la - eu disse.
Eddie parou ao chegarmos ao Pingado.
- Posso dirigir? Sinto que eu preciso ser o chofer hoje. Vocês parecem da realeza. - Ele sorriu para Jill. - Quer dizer, você sempre é da realeza. - Em seguida,
abriu uma das portas traseiras e chegou a fazer uma reverência. - Depois de você, milady. Estou aqui para servi-la.
O prático e estoico Eddie raramente brincava assim e pude ver que isso pegou Jill de surpresa.
- O... obrigada - ela disse, entrando no carro.
Ele a ajudou a colocar a cauda do vestido para dentro e ela o observou deslumbrada, como se nunca tivesse prestado atenção nele antes. Depois disso, não tive como
negar seu pedido e lhe entreguei as chaves.
A festa de Dia das Bruxas aconteceria num salão muito bonito ao lado de um jardim botânico. Eu e Eddie tínhamos dado uma checada no lugar antes para verificar se
era seguro. Micah encontraria Jill lá, mas por motivos diferentes dos de Brayden. Ônibus supervisionados estavam levando a maioria dos estudantes da escola para
a festa. Estudantes mais velhos, como eu e Eddie, tinham permissão de ir com seu próprio carro e de levar seus parentes, como Jill. Tecnicamente, ninguém ficaria
sabendo se ele a levasse para casa mais tarde, mas, por enquanto, ela só podia sair do campus de carona com a família.
- Espero estar pronta para isso - murmurei, ao pararmos no estacionamento.
O vestido havia me incomodado tanto que não tivera tempo de pensar na minha outra preocupação: a festa. Todas as minhas inseguranças sociais vieram à tona. O que
eu iria fazer? O que era normal ali? Não havia tido coragem de perguntar a nenhum dos meus amigos.
- Vai ficar tudo bem - Eddie disse. - Seu namorado e Micah vão ficar de queixo caído.
- Esta é a terceira vez que ouço “seu namorado” - resmunguei, tirando o cinto de segurança. - O que está acontecendo? Por que ninguém consegue falar o nome do Brayden?
Nenhum dos dois respondeu imediatamente. Por fim, Jill disse, inocente:
- Porque a gente nunca lembra o nome dele.
- Ah, vai! Esperava isso de Adrian, mas não de vocês. Não é um nome tão estranho assim.
- Não - Eddie admitiu. - Mas alguma coisa nele é tão... Não sei dizer. Pouco memorável. Fico contente que ele faça você feliz, mas não consigo prestar atenção em
nada que ele fala.
- Não acredito nisso - eu disse.
Brayden estava nos esperando na porta, sem dúvida havia pelo menos dez minutos. Senti um frio na barriga quando ele me olhou de cima a baixo. Não fez nenhum comentário,
mas seus olhos se arregalaram um pouco. Aquilo era bom ou ruim? Mostrei minha carteira de estudante para que pudéssemos entrar, e Jill quase imediatamente se juntou
a Micah. O breve acesso romântico de Eddie desapareceu conforme ele assumia sua postura profissional. Uma expressão momentânea de sofrimento perpassou seu rosto,
desaparecendo tão rapidamente quanto surgiu. Toquei no braço dele e perguntei, baixinho:
- Você vai ficar bem?
- Vou, sim - ele respondeu, com um sorriso. - Divirta-se.
Ele se afastou, desaparecendo na multidão de alunos, me deixando sozinha com Brayden. O silêncio caiu entre nós, o que não era raro. Às vezes levávamos alguns minutos
para nos aquecermos e a conversa fluir.
- Então - ele disse, avançando mais pelo salão -, vocês têm um DJ. Estava curioso para saber se seria DJ ou banda.
- A escola acabou de ter uma experiência bem ruim com uma banda - disse, pensando em Angeline.
Brayden não pediu detalhes; em vez disso, ficou observando a decoração. Teias de aranha falsas e luzes pisca-pisca cobriam o teto. Esqueletos e bruxas de papel estavam
dependurados na parede. Em uma mesa ao longe, alguns alunos se serviam do ponche em um imenso caldeirão de plástico.
- Incrível, né? - Brayden disse. - Como uma festa pagã celta se tornou um evento tão comercial.
Assenti.
- E um evento completamente laico. Quer dizer, tirando as tentativas de misturar com o Dia de Todos os Santos.
Ele sorriu. Sorri de volta. Estávamos seguros em território acadêmico conhecido.
- Quer experimentar o ponche? - perguntei.
Uma música agitada estava tocando e muitas pessoas se encaminhavam para a pista. Esse tipo de música não fazia muito meu estilo. Não sabia se Brayden gostava, e
temia que ele quisesse se juntar aos outros.
- Claro - ele disse, parecendo aliviado por ter o que fazer. Algo me dizia que ele tinha ido a tantas festas quanto eu, ou seja, nenhuma.
O ponche nos deu a chance de discutir a diferença entre açúcares e adoçantes artificiais, mas eu não estava muito concentrada na conversa porque outra coisa me incomodava.
Brayden não havia dito uma palavra sobre meu vestido, e isso me angustiava. Será que ele estava tão em choque quanto eu? Será que estava escondendo sua opinião?
Eu não tinha o direito de esperar um elogio se eu mesma não fizesse um, então decidi me arriscar.
- Sua fantasia é ótima - comentei. - É de uma companhia de teatro, né?
- Sim. - Ele olhou para a túnica e alisou as dobras. - Não é completamente fiel, claro, mas serve.
A túnica ia até os joelhos e era presa por um alfinete em um dos ombros. Era feita de uma lã cor de creme, muito leve. Sobre a túnica usava uma capa de lã tingida
de marrom-escuro, fiel à época. Mesmo com a capa, boa parte dos braços e do peito dele ficava exposta, mostrando um corpo de quem praticava corrida, levemente musculoso.
Sempre o achei fofo, mas até aquele momento nunca havia pensado nele como sexy. Esperava que aquilo desencadeasse algum sentimento mais forte em mim, mas não foi
o caso.
Ele estava esperando que eu dissesse alguma coisa.
- A minha também não é totalmente... fiel.
Brayden examinou o vestido vermelho de maneira inexpressiva.
- Não - ele concordou. - Não mesmo. Quer dizer, o corte não é assim tão diferente, acho. - Ele ficou pensando por mais alguns instantes. - Mesmo assim, acho que
fica muito bonito em você.
Relaxei um pouco. Vindo dele, “muito bonito” era um grande elogio. Apesar de geralmente ser muito eloquente em quase todos os outros assuntos, ele economizava palavras
em questões sentimentais. Eu não deveria ter esperado algo além de uma mera constatação dos fatos, então aquilo era grande coisa.
- Uau, Melbourne. Onde você se escondeu esse tempo todo? - Trey caminhou até nós e começou a encher seu copo com uma dose generosa do ponche verde fluorescente.
- Você parece durona. E gostosa. - Ele lançou um olhar de desculpas para Brayden. - Não me entenda mal. Só estou jogando a real.
- Entendi - Brayden disse.
Mal pude conter o riso. Trey vinha se comportando de uma maneira estranha nos últimos dias e era bom vê-lo de volta ao normal.
Ele me lançou mais um olhar de admiração e então virou para Brayden.
- Ei, saca só. Nós dois viemos de toga. Toca aqui, romano! - ele exclamou, levantando a mão, mas Brayden o deixou no vácuo.
- Este é um quitão grego - Brayden explicou, paciente. Ele examinou a toga de Trey, que parecia ter sido feita em casa com um lençol. - Isso daí, hum, não.
- Gregos, romanos - Trey deu de ombros. - Qual a diferença?
Brayden abriu a boca e eu sabia que ele estava prestes a explicar exatamente a diferença. Me apressei em entrar na conversa.
- Fica bem em você - eu disse a Trey. - Parece que todas aquelas horas de treinamento estão dando resultado... e finalmente posso ver a tatuagem.
A túnica de Trey também era amarrada num dos ombros, mostrando parte das costas. Trey, assim como metade da escola, tinha uma tatuagem. Mas, ao contrário do resto,
a dele não era uma das tatuagens sombrias e anabolizantes feitas com sangue de vampiro que haviam tomado conta do corpo estudantil. A de Trey era um sol com raios
muito estilizados, feita com tinta comum de tatuagem azul-escura. Eddie havia me falado dela, mas eu nunca a vira antes, já que Trey não ficava sem camisa perto
de mim.
Parte do entusiasmo de Trey diminuiu e ele se virou um pouco, mantendo as costas longe das nossas vistas.
- É bem suave comparada com a sua. É bom vê-la de novo, aliás.
Distraída, toquei a bochecha. Costumava cobrir o lírio dourado com maquiagem, mas imaginei que, ali no baile, poderia dizer que fazia parte da fantasia caso algum
professor perguntasse.
Outra música agitada começou a tocar e Trey abriu um sorriso.
- Hora de exibir meus passos na pista. Vocês vêm? Ou vão ficar vigiando o ponche a noite toda?
- Não costumo dançar essas músicas - Brayden disse, fazendo-me relaxar, aliviada.
- Eu também não - concordei.
- Nossa, que surpresa - Trey ironizou, com um sorriso conformado antes de sair.
No fim das contas, Brayden e eu passamos boa parte da noite perto do ponche, continuando nossa discussão sobre as origens do Dia das Bruxas e a sujeição imposta
a tantas outras festas pagãs. Alguns amigos passavam de vez em quando, e Kristin e Julia em particular não conseguiam parar de elogiar meu vestido. De quando em
quando, avistava Eddie patrulhando a multidão, silencioso e discreto. Talvez devesse ter se fantasiado de fantasma. Quase todo o tempo, ele estava onde podia ver
Jill e Micah, mas focar-se na função de guardião pareceu evitar que ele sofresse tanto.
Brayden e eu paramos de falar quando finalmente tocaram uma música lenta. Trocamos alguns olhares tensos, sabendo o que estava por vir.
- Certo - ele disse. - Não podemos evitar isso pra sempre.
Quase caí numa gargalhada, que Brayden respondeu com um sorriso tímido. Ele também tinha plena consciência da nossa inaptidão social. Por algum motivo, aquilo era
reconfortante.
- É agora ou nunca - concordei.
Fomos para a pista de dança, junto a outros casais abraçados. Chamar o que a maioria deles fazia de “dança” era um pouco forçado. A maioria apenas balançava, com
o corpo duro, de um lado para o outro, dando umas voltinhas pelo salão. Outros simplesmente aproveitavam a oportunidade para se agarrar e dar uns amassos. Os monitores
eram rápidos em separá-los.
Segurei uma das mãos de Brayden e ele pousou a outra no meu quadril. Com exceção do beijo, aquele provavelmente era o contato mais íntimo que havíamos tido até então.
Poucos centímetros nos distanciavam, e eu não pude deixar de me sentir oprimida com a redução dos limites do meu espaço pessoal. Precisei me lembrar de que gostava
de Brayden e confiava nele, e de que não havia nada de estranho naquilo. Como sempre, não me sentia cercada por corações ou arco-íris, mas também não me sentia ameaçada.
Tentando não pensar em nossa proximidade, prestei atenção na música e imediatamente entendi a contagem dos passos. Cerca de um minuto depois, Brayden percebeu o
que eu estava fazendo.
- Você... você sabe dançar - ele disse, abismado.
- Claro - respondi, levantando os olhos. Não estava exatamente deslizando numa grande valsa pelo salão, mas todos os meus movimentos eram sincronizados com as batidas
da música. Não concebia outra maneira de dançar. Brayden, por sua vez, não diferia muito dos movimentos rígidos da maioria dos casais. - Não é difícil - acrescentei.
- É um pouco matemático.
Depois que coloquei nesses termos, Brayden entrou no clima. Ele aprendeu rápido e passou a contar as batidas comigo. Logo parecia que tínhamos feito aulas de dança
a vida toda. Mais surpreendente ainda foi quando, ao olhar para ele, esperando vê-lo contando, concentrado, vi que, na verdade, ele estava com uma expressão terna...
carinhosa, até. Envergonhada, desviei o olhar.
Por incrível que pareça, ele ainda exalava aquele cheiro de café, mesmo sem ter trabalhado naquele dia. Supus que nenhum banho fosse suficiente para se livrar daquele
aroma. No entanto, por mais que adorasse eau de café, me peguei pensando no cheiro da colônia de Adrian durante a aula de Wolfe.
Quando a próxima música agitada começou, Brayden e eu paramos um pouco, e ele saiu para falar com o DJ. Quando voltou, recusou-se a explicar a conversa misteriosa,
mas parecia extremamente satisfeito consigo mesmo. Uma música lenta tocou em seguida e voltamos para a pista.
E, novamente, nossa conversa silenciou. Bastava dançar por um tempo. É assim que se leva uma vida comum, pensei. É isso que as pessoas da minha idade fazem. Sem
grandes maquinações ou embates entre o bem e o...
- Sydney?
Jill estava atrás de mim, com o rosto apreensivo. Meus alarmes internos dispararam de imediato, tentando adivinhar o que a fizera sair tão rapidamente daquela atitude
alegre e despreocupada de antes.
- O que houve? - perguntei.
Minha primeira reação foi temer que Adrian não estivesse bem e que ela sentira alguma coisa através do laço. Tentei afastar essa ideia. Precisava me preocupar com
Moroi assassinos, não com o bem-estar dele.
Jill não disse nada; em vez disso, apenas apontou com a cabeça para a mesa do ponche, quase no mesmo local em que eu e Brayden estávamos havia pouco tempo. Trey
tinha voltado para lá, e conversava alegremente com uma menina de máscara veneziana. Era uma máscara azul muito bonita, decorada com folhas e flores prateadas, que
eu já vira em algum lugar. Jill tinha usado uma igual no desfile de Lia, que lhe dera a máscara de presente. Também já tinha visto a roupa da menina mascarada -
uma camiseta amarrotada e um short jeans rasgado...
- Ah, não - eu disse, reconhecendo o longo cabelo loiro-avermelhado. - Angeline. Como ela conseguiu entrar aqui? Bem, não importa. - Havia inúmeras pessoas com quem
ela poderia entrar despercebida. E os monitores provavelmente nem a teriam notado no ônibus de excursão. - Precisamos tirá-la daqui. Se a pegarem, vão expulsá-la,
sem dúvida.
- A máscara consegue esconder o rosto dela - Jill apontou. - Talvez ninguém note.
- A sra. Weathers vai notar - retruquei, suspirando. - Aquela mulher tem um sexto sentido pra... Ai. Tarde demais.
A sra. Weathers monitorava o outro lado do salão, mas seus olhos de águia não deixavam escapar nada. Do outro lado da tumultuada pista de dança, avistei-a seguindo
em direção ao ponche. Não achava que já tivesse reconhecido Angeline, mas sua suspeita sem dúvida estava crescendo.
- Qual é o problema? - Brayden perguntou, alternando o olhar entre mim e Jill, ambas, sem dúvida, com a mesma expressão apreensiva.
- Nossa prima está prestes a entrar numa grande enrascada - respondi.
- Precisamos fazer alguma coisa - Jill disse, com os olhos inquietos e arregalados. - Precisamos tirá-la daqui.
- Como? - exclamei.
A sra. Weathers chegou à mesa de bebidas no mesmo instante em que Trey e Angeline saíram em direção à pista de dança. Ela estava começando a segui-los, mas não foi
muito longe... porque o caldeirão de ponche explodiu de repente.
Bem, não o caldeirão em si. O ponche dentro dele explodiu, espalhando-se numa chuva espetacular de líquido verde-claro. Várias pessoas que estavam por perto gritaram
quando os respingos caíram sobre elas, mas foi a sra. Weathers quem levou a pior.
Brayden recuperou o fôlego e disse:
- Como é que isso foi acontecer? Deve ter... Sydney?
Eu tinha dado um grito e um pulo para trás, sabendo exatamente o que havia feito o caldeirão explodir. Brayden imaginou que minha reação fosse por medo de me machucar.
- Está tudo bem - ele disse. - Estamos muito longe para que algum caco chegue até aqui.
Na mesma hora, olhei para Jill, que deu de ombros levemente, como se dissesse: O que mais eu poderia fazer? Minha reação normal à magia Moroi era de repulsa e medo.
Naquela noite, porém, choque e consternação se juntaram a isso. Não podíamos atrair a atenção para nós. Tudo bem que ninguém sabia ou poderia imaginar que Jill usara
sua magia de água para criar a distração do ponche, mas isso não importava. Não queria que nenhuma notícia sobre fenômenos estranhos ou inexplicáveis vazassem de
Amberwood. Precisávamos permanecer fora do radar.
- Vocês estão bem? - Eddie aparecera ao nosso lado... ou melhor, ao lado de Jill. - O que aconteceu?
Ele sequer olhava para o ponche. Sua atenção estava totalmente voltada para Jill e, como da outra vez, ela realmente pareceu notar. Quem respondeu foi Brayden, com
os olhos acesos pela curiosidade intelectual enquanto observava os professores correndo para tentar limpar a bagunça.
- Algum tipo de reação química, eu diria. Pode ser tão simples quanto refrigerante quente. Ou algum tipo de dispositivo mecânico, talvez?
- Alguém armou uma pegadinha - eu disse, com um olhar incisivo para Eddie. - Qualquer um pode ter feito isso.
Eddie olhou para mim e então para Jill. Acenou lentamente com a cabeça.
- Entendi. Melhor tirar você daqui - ele disse a Jill. - Nunca se sabe o que...
- Não, não - intervi. - Tire Angeline daqui.
- Angeline? - O rosto do Eddie parecia incrédulo. - Mas como...?
Apontei para onde ela estava com Trey na pista de dança. Assim como muitos outros, eles olhavam assombrados para o resultado da explosão do ponche.
- Não sei como ela conseguiu chegar aqui - eu disse -, mas isso não tem importância agora. Ela precisa ir. A sra. Weathers quase a pegou.
Um brilho de compreensão perpassou os olhos de Eddie.
- Mas o ponche a distraiu?
- Exatamente.
Sua atenção voltou-se para Jill e ele sorriu.
- Bem a tempo.
Ela retribuiu o sorriso.
- Acho que tivemos sorte desta vez.
Seus olhares se entrelaçaram, e quase senti remorso ao interromper.
- Vá - eu disse a Eddie. - Leve Angeline.
Ele deu uma última olhada em Jill e em seguida partiu para a ação. Não pude ouvir a conversa entre ele, Trey e Angeline, mas pela expressão em seu rosto ele não
aceitaria nenhum argumento. Pude ver que Trey cedeu à autoridade familiar e, depois de discutir mais um pouco, Angeline acabou cedendo também. Rapidamente, Eddie
a levou para fora e, para o meu alívio, nem a sra. Weathers nem ninguém pareceu notar.
- Jill - eu disse. - Talvez seja melhor você e Micah irem embora logo também. Não precisa ser já... mas quanto antes, melhor.
Jill assentiu, chateada.
- Eu entendo.
Mesmo que ninguém pudesse associar aquilo a Jill, seria melhor ela não estar por perto. Algumas pessoas já se agrupavam em torno da mesa, tentando, como Brayden,
entender o que poderia ter causado aquele estranho fenômeno. Ela desapareceu na multidão. Por fim, Brayden desviou os olhos da confusão. Ele estava prestes a me
dizer algo, quando de repente voltou a cabeça para o DJ.
- Ah, não - ele disse, pesaroso.
- Quê? - perguntei, preparando-me para ver o equipamento do DJ caindo em cima de alguém ou alguma caixa de som pegando fogo.
- Esta música. Eu pedi pra você... mas já está quase terminando.
Inclinei a cabeça para ouvir. Não conhecia a música, mas era lenta e romântica, e me fez sentir... bem, um pouco culpada. Quando finalmente Brayden fazia um gesto
sentimental, ele acabava arruinado pelas loucuras da minha “família”. Segurei a mão dele.
- Mas ainda não terminou. Vem.
Conseguimos dançar ao som do último minuto da música, mas Brayden ficou visivelmente desapontado. Queria compensá-lo e, apesar de tudo o que havia acontecido, viver
a experiência de uma festa normal de escola.
- A noite é uma criança - provoquei. - Vou pedir uma para você também, e aí você pode tentar adivinhar qual é quando tocar.
Como eu não costumava ouvir rádio, imaginei que não seria muito difícil adivinhar. Fiz o pedido e então continuei a dançar outra música lenta com ele. Ainda estava
um pouco preocupada com o que havia acontecido, mas repeti a mim mesma que agora estava tudo bem. Jill tinha ido embora. Eddie tinha tomado conta de Angeline. Tudo
que eu queria era relaxar e...
No meio da dança, fui pega de surpresa por uma vibração. Estava usando uma bolsa vermelha, perdida nas dobras do meu vestido, mas o som de mensagem do meu celular
era inconfundível. Pedi desculpas a Brayden e parei de dançar para verificar. Era de Adrian: A gente precisa conversar.
Ótimo, pensei, sentindo o coração afundar. Será que esta noite pode virar um desastre ainda pior?
Respondi: Estou ocupada.
A resposta dele: Vai ser rápido. Tô perto daí.
Uma sensação de pavor tomou conta de mim: Perto, onde?
A resposta foi quase tão ruim quanto eu esperava: No estacionamento.
14
- AI, DEUS - exclamei.
- Que foi? - Brayden perguntou. - Está tudo bem?
- Não sei dizer. - Coloquei o celular de volta na bolsa. - Detesto fazer isso, mas preciso resolver uma coisa lá fora. Volto o mais rápido possível.
- Quer que eu vá com você?
Hesitei.
- Não, tudo bem. - Não fazia ideia do que me esperava lá fora. Era melhor não expor Brayden a isso. - Vai ser rápido.
- Sydney, espere - Brayden disse, segurando meu braço. - Esta... esta é a música que você pediu, não é? - A que vínhamos dançando tinha terminado e uma nova começava
a tocar... ou, melhor dizendo, uma velha, de trinta anos antes.
Suspirei.
- Sim, é ela. Vai ser rápido, prometo.
A temperatura do lado de fora estava agradável - quente, mas não demais. Tinham dito que choveria um pouco. Enquanto seguia para o estacionamento, algumas das lições
de Wolfe me vieram à mente. Examine os arredores. Cuidado com pessoas à espreita atrás dos carros. Fique na luz. Procure...
- Adrian!
Todos meus pensamentos racionais desapareceram. Adrian estava deitado em cima do meu carro.
Corri para o Pingado o mais rápido que pude com aquele vestido.
- O que você está fazendo? - perguntei. - Saia já daí!
Automaticamente, procurei por algum amassado ou arranhão. Como se não bastasse, Adrian estava fumando deitado no capô, olhando para o céu. Era possível entrever
uma meia-lua entre as nuvens que se moviam.
- Relaxa, Sage. Não deixei nenhum arranhão. Sinceramente, este carro é surpreendentemente confortável para um carro de família. Esperava...
Ele virou a cabeça para mim e ficou paralisado. Nunca o tinha visto tão imóvel... ou tão silencioso. O choque foi tão grande e intenso que ele chegou a derrubar
o cigarro.
- Ahh - gritei, pulando para a frente, tentando evitar que o carro fosse queimado pelo cigarro. Ele acabou caindo, inofensivo, no asfalto, e o apaguei depressa com
o calcanhar. - Pela última vez, dá pra sair daí?
Adrian se sentou lentamente, com os olhos arregalados. Saiu do capô sem deixar nenhuma marca aparente. Obviamente, seria preciso confirmar depois.
- Sage - ele disse -, que vestido é esse?
Suspirei e abaixei os olhos.
- Eu sei. É vermelho. Nem começa. Estou cansada de ouvir isso.
- Engraçado - ele disse. - Acho que nunca vou cansar de ficar olhando.
Isso me pegou de surpresa e senti uma onda de calor. O que ele queria dizer com aquilo? Será que eu estava tão bizarra que ele não conseguia parar de olhar para
aquele espetáculo esdrúxulo? Ele... Ele não podia estar dizendo que eu estava bonita...
Logo recuperei a compostura, lembrando que precisava pensar no garoto que estava lá dentro, e não no que estava ali fora.
- Adrian, estou no meio de um encontro. Por que você está aqui? E em cima do meu carro?
- Desculpe interromper, Sage. Não estaria no seu carro se tivessem me deixado entrar na festa - ele disse.
Parte do seu espanto anterior esmaeceu e ele relaxou, assumindo uma postura mais típica dele, recostando-se no Pingado. Pelo menos ele estava em pé, então havia
menos chance de causar dano ao carro.
- Pois é. Eles não costumam deixar caras de vinte e poucos anos entrarem em festas do ensino médio. O que você quer?
- Conversar com você.
Esperei que ele continuasse, mas a única reação que recebi foi um rápido relâmpago atravessando o céu. Era sábado e eu havia passado o dia inteiro no campus. Ele
podia ter ligado facilmente durante esse período. Ele sabia que eu iria à festa naquela noite. Então, ao sentir o cheiro de álcool que ele exalava, percebi que nada
que ele fizesse naquela noite deveria me surpreender.
- Por que não esperou até amanhã? - perguntei. - Você realmente tinha que vir até aqui hoje e... - Franzi a testa e olhei ao redor. - Como você conseguiu chegar
até aqui?
- Peguei o ônibus - respondeu, quase com orgulho. - Foi muito mais fácil do que chegar na Carlton. - A Faculdade Carlton era onde ele estudava arte e, sem um carro
próprio, ele dependia bastante do transporte público, o que era novidade para ele.
Minha esperança era que Sonya ou Dimitri o tivessem levado até lá, o que significaria que poderiam levá-lo de volta. Mas é claro que isso não iria acontecer. Nenhum
deles teria levado um Adrian bêbado até lá.
- Então acho que preciso levar você pra casa - eu disse.
- Ei, eu cheguei aqui sozinho. Então consigo ir embora sozinho.
Ele começou a pegar outro cigarro, ao que eu adverti, rígida:
- Nem pense nisso. - Ele deu de ombros e guardou o maço. - E preciso levar você para casa, sim. Vai desabar um temporal daqui a pouco. Não vou fazer você andar na
chuva.
Outro raio enfatizou minhas palavras, e uma leve brisa agitou o tecido do vestido.
- Ei - ele disse. - Não quero ser um estorv...
- Sydney? - Brayden estava atravessando estacionamento. - Está tudo bem?
Não, não mesmo.
- Vou ter que sair um pouquinho - respondi. - Preciso levar meu irmão pra casa. Tudo bem se você me esperar? Não devo demorar muito. - Só de sugerir isso, me senti
mal. Brayden não conhecia quase ninguém da minha escola. - Você pode encontrar o Trey, talvez?
- Claro - Brayden disse, hesitante. - Ou posso ir com você.
- Não - respondi rápido, sem querer que ele entrasse no mesmo carro que Adrian bêbado. - Volte e se divirta.
- Bela toga - Adrian disse a Brayden.
- É um quitão - Brayden respondeu. - Grego.
- Certo. Esqueci que é o tema da noite. - Adrian examinou Brayden, olhou para mim e depois de volta para Brayden. - Então, o que você acha da roupa da nossa garota
hoje? Demais, não? Parece a Cinderela. Ou uma Cinderela grega, talvez.
- Não tem nada de grego de verdade nessa roupa - Brayden disse. Pestanejei. Sabia que ele não queria ser insensível, mas suas palavras me machucaram um pouco. -
O vestido é historicamente impreciso. Quer dizer, é bonito, mas as joias são anacrônicas, e o tecido não é nenhum que as mulheres gregas teriam. Muito menos dessa
cor.
- E que tal aquelas outras mulheres gregas? - Adrian perguntou. - As inteligentes e espalhafatosas. - Franziu a testa, como se estivesse usando cada centímetro do
cérebro para encontrar a palavra que queria. E, para minha surpresa, acabou encontrando. - As heteras.
Sinceramente, não conseguia acreditar que ele tinha guardado alguma coisa da nossa conversa em San Diego. Me esforcei para não sorrir.
- As heteras? - Brayden parecia ainda mais surpreso do que eu e me examinou de cima a baixo. - Sim... sim. Acho que, supondo que esses materiais existissem naquela
época, isso seria algo que você esperaria uma hetera usar, e não uma mãe de família grega comum.
- E elas eram prostitutas, certo? - Adrian perguntou. - Essas heteras?
- Algumas eram - Brayden concordou. - Mas não todas. Acho que o termo correto é “cortesã”.
Adrian permaneceu completamente inexpressivo.
- Então você está dizendo que minha irmã está vestida como uma prostituta.
Brayden deu uma olhada no meu vestido.
- Bem, sim, se ainda estivermos falando em termos hipotéticos...
- Quer saber? - interrompi. - Precisamos ir embora. Vai chover a qualquer momento agora. Vou levar Adrian para casa e encontro você aqui na volta, tudo bem? - Me
recusei a deixar que Adrian continuasse a jogar um de seus joguinhos para atormentar Brayden e, por extensão, me atormentar. - Mando uma mensagem quando estiver
voltando.
- Certo - Brayden disse, com o ar incerto.
Ele voltou para a festa e comecei a entrar no carro, até perceber que Adrian estava tentando, sem sucesso, abrir a porta do passageiro. Com um suspiro, caminhei
até ele e abri.
- Você está mais bêbado do que eu pensei - comentei. - E olha que pensei que você estivesse muito bêbado.
Ele sentou com dificuldade, e voltei para o meu lado do carro no exato instante em que as gostas de chuva começaram a cair sobre o para-brisa.
- Bêbado demais para a Chave de Cadeia sentir alguma coisa - ele disse. - O laço está entorpecido. Ela pode ter uma noite livre de mim.
- Muito atencioso da sua parte - ironizei -, embora eu ache que esse não seja o verdadeiro motivo para você ter enchido a cara. Ou ter vindo até aqui. Até onde eu
sei, tudo o que você conseguiu foi encher o saco do Brayden.
- Ele chamou você de prostituta.
- Não! Você o manipulou para que dissesse isso.
Adrian passou a mão no cabelo e encostou a cabeça no vidro, observando a tempestade, que ficava cada vez mais forte.
- Não importa. Não vou com a cara dele.
- Porque ele é inteligente demais? - perguntei, antes de lembrar o que Jill e Eddie haviam comentado. - E “pouco memorável”?
- Não. Só acho que você pode fazer melhor.
- Como?
Adrian não respondeu, e tive de ignorá-lo por um tempo para prestar atenção na estrada. Embora raras, as tempestades em Palm Springs eram violentas e vertiginosas.
Enchentes inesperadas não eram incomuns, e a chuva estava ficando torrencial, dificultando a visibilidade. Felizmente, Adrian não morava muito longe dali, o que
era uma bênção porque, quando estávamos a alguns quarteirões de seu apartamento, ele disse:
- Não estou me sentindo muito bem.
- Não - resmunguei. - Por favor, por favor, não vomite no meu carro. Estamos quase chegando. - Mais ou menos um minuto depois, estacionei em frente ao prédio dele.
- Sai. Agora.
Ele obedeceu e eu o segui, embaixo de um guarda-chuva. Olhando de soslaio para mim enquanto seguíamos para o prédio, ele perguntou:
- Nós moramos num deserto e você tem um guarda-chuva no carro?
- Claro que sim. Por que não teria?
Ele derrubou as chaves e as peguei do chão, imaginando que seria mais fácil eu abrir a porta. Apertei o interruptor mais próximo, e nada aconteceu. Ficamos parados
por um tempo, juntos no escuro, sem nos mexer.
- Tenho umas velas na cozinha - Adrian disse, cambaleando naquela direção. - Vou acender algumas.
- Não - ordenei, imaginando o prédio todo ardendo em chamas. - Deite no sofá. Ou vomite no banheiro. Eu cuido das velas.
Ele escolheu o sofá, aparentemente não se sentindo tão mal quanto temia. Enquanto isso, fui atrás das velas - eram daquele tipo horrível com aroma artificial de
pinho. Pelo menos faziam um pouco de luz, então levei uma até ele, junto com um copo de água.
- Aqui. Beba isso.
Ele pegou o copo e conseguiu se sentar para dar alguns goles. Então me devolveu o copo e se jogou no sofá de novo, colocando um dos braços sobre os olhos. Puxei
uma cadeira por perto e me sentei. As velas de pinho lançavam uma luz fraca e vacilante entre nós.
- Obrigado, Sage.
- Você vai ficar bem se eu for embora? - perguntei. - Tenho certeza de que a luz vai voltar até amanhã.
Ele não respondeu à minha pergunta. Em vez disso, falou:
- Sabe, eu não bebo só pra ficar bêbado. Quer dizer, faz parte, claro. Grande parte. Mas às vezes o álcool é a única coisa que me mantém lúcido.
- Isso não faz o menor sentido. Tome - eu disse, dando-lhe a água. Enquanto isso, olhei de relance no relógio do celular, preocupada com Brayden. - Beba mais um
pouco.
Adrian obedeceu e então voltou a falar, com o braço sobre os olhos.
- Você sabe como é sentir que tem alguma coisa corroendo seu cérebro?
Estava prestes a dizer que precisava ir, mas as palavras dele me deixaram aturdida. Lembrei o que Jill havia dito sobre a relação dele com o espírito.
- Não - respondi honestamente. - Não sei como é... mas, pra mim, é uma das coisas mais assustadoras que posso imaginar. Meu cérebro... é quem eu sou. Acho que preferiria
sofrer qualquer lesão a ter meu cérebro prejudicado.
Não podia deixar Adrian daquele jeito. Simplesmente não podia. Mandei uma mensagem para Brayden: Vou demorar um pouco mais do que imaginava.
- É assustador - Adrian disse. - E estranho, na falta de uma palavra melhor. E parte de você sabe... bem, parte de você sabe que aquilo não está certo. Que o que
você está pensando não é certo. Mas o que você pode fazer? Tudo o que fazemos depende de como pensamos, de como vemos o mundo. Se você não pode confiar na sua própria
mente, em que você pode confiar? No que os outros dizem?
- Não sei - eu disse, por falta de uma resposta melhor. As palavras dele me atingiram e me fizeram pensar em como boa parte da minha vida tinha sido guiada pelos
comandos de outras pessoas.
- Uma vez Rose me falou de um poema que havia lido. Tinha um verso que era: “Se seus olhos não estivessem abertos, você não saberia a diferença entre sonhar e estar
acordado”. Sabe do que tenho medo? Que algum dia, mesmo com os olhos abertos, eu não saiba.
- Ah, Adrian, não. - Senti meu coração partindo e sentei no chão, ao lado do sofá. - Isso não vai acontecer.
Ele suspirou.
- Pelo menos o álcool... Ele acalma o espírito e então eu sei que, se as coisas parecerem estranhas, deve ser porque estou bêbado. Não é um motivo nobre, mas é um
motivo, sabe? Pelo menos eu realmente tenho um motivo para me sentir assim além de não confiar em mim mesmo.
Brayden respondeu a mensagem: Quanto tempo? Irritada, respondi: Quinze minutos.
Levantei os olhos para Adrian. Seu rosto ainda estava coberto, mas a luz das velas iluminava bem os traços harmoniosos de seu perfil.
- Foi por isso... foi por isso que você bebeu hoje? O espírito está perturbando você? Quer dizer, você parecia estar melhorando nos últimos dias...
Ele respirou fundo.
- Não. Está tudo bem com o espírito... na medida do possível. Na verdade, fiquei bêbado hoje porque... era o único jeito de eu conseguir falar com você.
- A gente conversa o tempo todo.
- Preciso saber de uma coisa, Sage. - Ele tirou o braço do rosto para me olhar e de repente percebi como estava próxima dele. Por um momento, quase não consegui
prestar atenção no que ele dizia, porque a dança vacilante de luz e sombra conferia uma beleza misteriosa ao seu belo rosto. - Você mandou Lissa conversar com meu
pai?
- Quê? Ah. Isso. Espere um segundo.
Peguei o celular e mandei outra mensagem para Brayden: Ou melhor, trinta minutos.
- Tenho certeza de que alguém pediu para ela fazer isso - Adrian continuou. - Quer dizer, Lissa gosta de mim, mas tem muita coisa acontecendo na vida dela e ela
não teria acordado um dia e pensado: “Ah, preciso ligar para Nathan Ivashkov e dizer como o filho dele é incrível”. Você deve ter pedido para ela fazer isso.
- Na verdade, nunca falei com ela - eu disse. Não me arrependia do que tinha feito, mas me senti estranha ao ser confrontada. - Mas, bem, posso ter pedido para Sonya
e Dimitri falarem com ela em seu favor.
- E depois ela conversou com o velho.
- Algo assim.
- Eu sabia - ele disse. Pelo tom, não consegui identificar se estava contrariado ou aliviado. - Sabia que alguém tinha levado ela a fazer isso e, não sei por que,
sabia que tinha sido você. Ninguém mais faria isso por mim. Não sei o que Lissa disse mas, cara, ela deve ter conquistado mesmo o velho. Ele ficou tão impressionado
que vai me mandar dinheiro pra comprar um carro. E aumentar minha mesada a um valor aceitável.
- Isso é bom - eu disse -, não é?
Meu celular vibrou com outra mensagem de Brayden. Até lá a festa já vai ter terminado.
- Mas por quê? - ele perguntou. Ele sentou no chão ao meu lado, com o olhar quase angustiado. Inclinou-se para perto de mim e então pareceu surpreso ao perceber
o que estava fazendo. Recuou um pouco para trás, mas só um pouco. - Por que você fez isso? Por que fez isso por mim?
Antes que eu pudesse responder, recebi outra mensagem. Você vai chegar a tempo? Não consegui não ficar irritada com a falta de compreensão de Brayden. Sem pensar,
respondi: Talvez seja melhor você ir embora. Amanhã te ligo. Desculpe. Virei o celular para não ver caso chegassem outras mensagens. Voltei a olhar para Adrian,
que me observava atentamente.
- Porque ele não foi justo com você. Porque você merece crédito pelo que faz. Porque ele precisa entender que você não é a pessoa que ele sempre pensou que fosse.
Ele precisa vê-lo como você realmente é, não pelas ideias e preconceitos que construiu em torno de você. - A intensidade do olhar de Adrian era tão forte que continuei
falando, não querendo retribuir aquele olhar em silêncio. Além disso, parte de mim temia que, se eu refletisse demais sobre minhas palavras, perceberia que elas
eram tão pertinentes à minha relação com meu pai quanto à de Adrian com o dele. - Falar pra ele quem você é, mostrar pra ele quem você é, já devia ser o bastante,
mas ele não ouve. Não gosto da ideia de usar outras pessoas para fazer o que nós mesmos poderíamos fazer, mas essa me pareceu a única saída.
- Bom - Adrian disse, por fim -, acho que funcionou. Obrigado.
- Ele disse a você como entrar em contato com a sua mãe?
- Não. Ele não ficou orgulhoso de mim a esse ponto.
- Acho que consigo descobrir onde ela está - eu disse. - Ou... tenho certeza de que Dimitri consegue. Como você mesmo disse, eles devem deixar ela receber cartas.
Ele quase abriu um sorriso.
- Lá vem você de novo. Por quê? Por que continua me ajudando?
Eu tinha milhões de respostas na ponta da língua, desde É a coisa certa a fazer até Não faço ideia. Em vez disso, respondi:
- Porque eu quero.
Dessa vez conquistei um sorriso sincero, mas havia algo sombrio e introspectivo nele. Ele se aproximou de mim novamente e perguntou:
- Porque você tem pena desse cara maluco?
- Você não vai ficar maluco - eu disse, firme. - Você é mais forte do que imagina. Da próxima vez que se sentir assim, se concentre em alguma coisa, para se lembrar
de quem você é.
- Como o quê? Você tem algum objeto mágico em mente?
- Não precisa ser mágico - eu disse, vasculhando meu cérebro. - Aqui. - Desprendi a cruz dourada do pescoço. - Isso sempre serviu para mim. Talvez possa ajudar você
- eu disse, e estendi a mão para colocar na dele, mas ele segurou a minha antes que eu pudesse tirá-la.
- O que é isso? - ele perguntou. Examinou mais de perto. - Espera... Já vi isso antes. Você usa o tempo todo.
- Comprei faz tempo, na Alemanha.
Ele ainda segurava a minha mão enquanto examinava a cruz.
- Sem ornamentos. Sem firulas. Sem símbolos secretos gravados.
- É por isso que gosto dela - eu disse. - Não precisa de enfeite. Muitas antigas crenças alquimistas se concentravam na pureza e na simplicidade. É isso que ela
representa. Talvez possa ajudar você a ficar com a mente lúcida.
Ele estava fitando a cruz, mas então levantou o olhar até encontrar o meu.
Alguma emoção que não pude identificar passou pelo seu rosto. Ele parecia ter descoberto alguma coisa, algo que o perturbava profundamente. Respirou fundo e, ainda
segurando a minha mão, me puxou para perto. Seus olhos verdes estavam escurecidos sob a luz das velas, mas mantinham o mesmo magnetismo. Seus dedos apertaram os
meus e senti um ardor se espalhar por meu corpo.
- Sage...
De repente a energia voltou, enchendo a sala de luz. Aparentemente, sem se preocupar com a conta, ele havia deixado todas as luzes acesas ao sair. O encanto se quebrou
e nós dois piscamos com a luminosidade súbita. Adrian deu um pulo para trás, deixando a cruz dourada na minha mão.
- Você não tem uma festa, um toque de recolher ou coisa assim? - ele perguntou abruptamente, sem me encarar. - Não quero prender você aqui. Nossa, não devia ter
te atrapalhado. Desculpe. Foi Aiden que te mandou mensagem, não foi?
- Brayden - eu disse, levantando. - E está tudo bem. Ele foi embora e agora vou voltar para Amberwood.
- Desculpe - ele repetiu, me acompanhando até a porta. - Desculpe por ter acabado com a sua noite.
- Com isso? - Contive o riso, pensando em todas as coisas malucas com que já havia me deparado na vida. - Não. Precisaria de muito mais para acabar com a minha noite.
- Dei alguns passos e então parei. - Adrian?
Ele finalmente olhou nos meus olhos, mais uma vez me abalando com aquela intensidade.
- Sim?
- Da próxima vez... Da próxima vez que quiser conversar sobre alguma coisa comigo, qualquer coisa, não precisa beber pra ganhar coragem. É só dizer.
- Falar é fácil.
- Fazer também.
Continuei a caminhar para a porta e, dessa vez, foi ele que me deteve, colocando a mão sobre meu ombro.
- Sage?
- Sim? - perguntei, me virando.
- Sabe por que não gosto dele? Do Brayden? - Fiquei tão surpresa por ele ter acertado o nome que não consegui formular nenhuma resposta, embora muitas me viessem
à mente. - Por causa do que ele disse.
- Que parte?
Brayden havia dito muitas coisas, com muitos detalhes, então não ficou totalmente claro a que Adrian estava se referindo.
- “Historicamente impreciso.” - Adrian apontou para mim com a mão que não estava no meu ombro. - Quem consegue olhar para você e dizer “historicamente impreciso”?
- Bem - eu disse -, tecnicamente é verdade.
- Ele não devia ter dito isso.
Eu me mexi, sem jeito, sabendo que devia me afastar... mas não me afastei.
- Ah, é só o jeito dele.
- Ele não devia ter dito isso - Adrian repetiu, com uma seriedade inquietante. Então aproximou o rosto do meu. - Não importa se ele não faz o tipo emocional nem
o tipo que elogia nem sei lá o quê. Ninguém pode olhar para você nesse vestido, com todo esse fogo e esse ouro, e ficar falando de anacronismos. Se eu fosse ele,
teria dito que você é a criatura mais linda que já caminhou sobre a terra.
Perdi o fôlego com o que ele disse e com o jeito que havia dito. Me senti estranha. Não sabia o que pensar, exceto que precisava sair dali, ir para longe de Adrian,
para longe do que não conseguia entender. Me afastei dele e fiquei surpresa ao perceber que eu estava tremendo.
- Você ainda está bêbado - eu disse, colocando a mão na maçaneta.
Ele inclinou a cabeça, ainda me observando com o aquele olhar desconcertante.
- Algumas coisas são verdade, bêbado ou sóbrio. Você devia saber disso. Você está sempre lidando com fatos.
- É, mas isso não é... - Não conseguia argumentar sob aquele olhar. - Eu preciso ir. Ah... você não pegou a cruz - eu disse, estendendo para ele.
- Não. Fique com ela. Acho que tenho outra coisa para me ajudar a pôr a vida nos eixos.
15
NO DIA SEGUINTE, me senti tão culpada pelo que tinha feito com Brayden que cheguei a ligar para ele em vez de mandar uma mensagem ou e-mail como de costume.
- Sinto muito - eu disse. - Por ir embora daquele jeito... Não costumo fazer isso. Não mesmo. Não teria ido se não fosse uma emergência de família.
Talvez estivesse exagerando. Talvez não.
- Tudo bem - ele disse. Sem poder ver seu rosto, não sabia dizer se estava tudo bem mesmo. - Acho que as coisas já estavam degringolando mesmo.
Fiquei pensando o que ele queria dizer por “coisas”. Será que estava se referindo à festa em si? Ou à nossa relação?
- Vamos sair para que eu possa compensar - eu disse. - Você sempre faz as coisas, então vou cuidar de tudo pra variar um pouco. O jantar vai ser por minha conta
e eu até busco você.
- Na perua?
Ignorei o tom de desprezo.
- Você topa ou não?
Ele topou. Combinamos os detalhes e desliguei me sentindo melhor em relação a tudo. Brayden não estava bravo. A visita surpresa de Adrian não tinha arruinado meu
relacionamento incipiente. As coisas estavam voltando ao normal - pelo menos para mim.
Passei o dia seguinte à festa cuidando das minhas coisas, para não ficar para trás nos trabalhos da escola e não precisar me preocupar com assuntos sociais. A manhã
de segunda deu início à semana, de volta às aulas como de costume. Eddie chegou ao restaurante do campus leste na mesma hora que eu, e esperamos juntos na fila para
pegar a comida. Ele queria saber o que Adrian tinha ido fazer na festa, e contei uma versão resumida da noite, dizendo simplesmente que ele havia bebido demais e
precisava de uma carona para casa. Não mencionei que eu tinha dado um jeito de fazer com que a rainha falasse bem dele para o pai, nem a parte sobre eu ser “a criatura
mais linda que já caminhou sobre a terra”. E certamente não contei sobre o jeito que me senti quando Adrian me tocou.
Eddie e eu fomos até a mesa e encontramos Angeline tentando alegrar Jill, algo raro de se ver. O normal teria sido eu repreender Angeline pelo que ela fez na festa,
mas não havia acontecido nada de ruim... daquela vez. Além disso, fiquei distraída demais com Jill. Era impossível vê-la triste sem imediatamente supor que havia
algo de errado com Adrian. Antes que eu falasse alguma coisa, Eddie se adiantou, percebendo o que eu não havia percebido.
- Micah não veio? Ele saiu antes de mim. Pensei que já estivesse aqui.
- Você tinha que perguntar, né? - Angeline disse, com a cara amarrada. - Eles brigaram.
Eu podia jurar que Eddie parecia mais triste que a própria Jill.
- Sério? Ele não me contou nada. O que aconteceu? Vocês pareciam estar se divertindo tanto no sábado.
Jill assentiu com a cabeça, devagar, sem desviar os olhos da comida em que nem havia tocado. Pude ver lágrimas em seus olhos.
- Pois é, nos divertimos tanto que ele veio falar comigo ontem e perguntou se... se eu queria passar o Dia de Ação de Graças com a família dele. Eles são de Pasadena.
Ele imaginou que poderia pedir a permissão da escola ou falar com vocês.
- Não parece tão ruim - Eddie disse, cuidadoso.
- Passar o fim de semana com a família dele é assunto sério! Uma coisa é ficarmos aqui, mas se começarmos a ir além... Se virarmos um casal fora da escola... - Ela
suspirou. - As coisas vão andar rápido demais. Por quanto tempo eu conseguiria esconder quem eu sou? E mesmo se esse não fosse o problema, é perigoso. O motivo de
eu estar aqui é justamente por ser um ambiente seguro e controlado. Não posso simplesmente sair para encontrar pessoas estranhas.
Aquele era outro passo para Jill em seu processo de aceitação das dificuldades de um relacionamento “casual” com Micah. Procurei fazer um comentário neutro:
- Parece que você pensou muito a respeito disso.
Jill levantou a cabeça abruptamente, como se só então tivesse notado que eu estava lá.
- Pois é. Acho que sim. - Ela me examinou por alguns instantes e, estranhamente, sua expressão desolada se abrandou, e ela sorriu. - Você está muito bonita hoje,
Sydney. Essa luz... favorece muito você.
- Humm, obrigada - eu disse, sem saber o que havia provocado aquele comentário. Tinha quase certeza de que não havia nada de especial em mim naquele dia. Meu cabelo
e maquiagem eram os de sempre, e eu estava usando a camiseta branca e a saia xadrez do uniforme, para compensar o excesso de cores do fim de semana.
- E a bainha vinho da sua saia realça muito a cor de âmbar dos seus olhos - Jill continuou. - Não é tão bom quanto aquele vermelho-vivo, mas ainda assim fica muito
bem. Claro, você fica bem com qualquer cor, mesmo as mais sem graça.
Eddie ainda estava focado em Micah.
- Como começou a briga?
Para meu alívio, Jill tirou os olhos de mim e se dirigiu a ele.
- Ah, então. Disse a ele que não sabia se poderia ir no feriado de Ação de Graças. Talvez, se eu tivesse dado só um motivo, estaria tudo bem. Mas comecei a entrar
em pânico, pensando em todos os problemas, e disparei a falar que talvez fôssemos passar na Dakota do Sul, ou que talvez minha família viesse para cá ou que talvez
vocês não fossem deixar... ou, enfim, um monte de outras desculpas. Acho que ficou bem claro pra ele que eu meio que estava inventando tudo, e então ele me perguntou
na cara dura se eu queria mesmo ficar com ele. Eu disse que sim, mas que era complicado. Ele perguntou o que eu queria dizer, mas claro que eu não pude explicar
tudo, e aí... - Ela jogou as mãos para o alto. - Aí tudo foi pelos ares.
Nunca tinha pensado muito sobre o Dia de Ação de Graças nem que conhecer a família fosse um rito de passagem no namoro. A família de Brayden também morava no sul
da Califórnia... será que era esperado que eu fosse conhecê-los algum dia?
- Micah não faz o tipo que guarda rancor - Eddie disse. - Além disso, ele é bastante razoável. Simplesmente conte a verdade.
- Que verdade? Que eu sou uma das últimas vampiras da minha linhagem e que para minha irmã manter o trono eu preciso estar viva e escondida? - Jill perguntou, incrédula.
A sombra de um sorriso passou pelos lábios de Eddie, embora eu pudesse ver que ele estava se esforçando muito para ficar sério em respeito a ela.
- Acho que esse é um caminho. Mas, não... O que quero dizer é: conte uma versão simplificada disso. Você não quer nada muito sério. Você gosta dele, mas quer que
as coisas andem mais devagar. Faz sentido, sabe. Você tem quinze anos e está “namorando” há menos de um mês.
Ela ponderou as palavras dele.
- Você não acha que ele vai ficar bravo?
- Não se ele realmente gostar de você - Eddie afirmou, com veemência. - Se ele realmente gosta, vai entender e respeitar sua vontade, e ficar feliz por ter uma chance
de ficar com você.
Fiquei imaginando se Eddie estava se referindo a Micah ou a si mesmo, mas era melhor ignorar esse pensamento. O rosto de Jill se iluminou.
- Obrigada - ela disse a Eddie. - Não tinha pensado nisso. Você está certíssimo. Se ele não puder aceitar como me sinto, não tem por que estarmos juntos. - Ela olhou
de relance para um relógio de parede e levantou em um pulo. - Acho que vou procurar Micah antes que seja tarde.
E assim, de repente, ela foi embora.
Bom trabalho, Eddie, pensei. Você acabou de ajudar a menina dos seus sonhos a voltar para o namorado dela. Quando o olhar dele encontrou o meu, a expressão em seu
rosto me disse que ele estava pensando exatamente a mesma coisa.
Com os olhos apertados de tanto pensar, Angeline ficou observando Jill sair rápido do restaurante.
- Mesmo se eles voltarem, não acho que vá durar. Nessa situação... não tem como dar certo.
- Pensei que você fosse a favor de relações entre vampiros e humanos - comentei.
- Ah, claro. De onde eu venho, não tinha problema. Mesmo neste mundo de vocês, acho que não tem problema. Mas Jill é um caso à parte. Ela precisa ficar escondida
e em segurança para ajudar a família. Namorar esse garoto não ajuda em nada, por mais que ela queira acreditar nisso. No fim, ela vai fazer a coisa certa. É o dever
dela. É maior do que suas vontades pessoais. Jill entende isso.
Em seguida, Angeline falou que precisava voltar para o alojamento para fazer algumas tarefas da escola. Eu e Eddie ficamos observando.
Ele meneou a cabeça, surpreso.
- Nunca pensei que veria Angeline tão...
- ... calma? - sugeri.
- Eu ia dizer... coerente.
- Ah, vai - eu disse, rindo. - Ela é coerente muitas vezes.
- Você entendeu o que eu quis dizer - ele argumentou. - O que ela acabou de falar é totalmente verdade. Foi sábio da parte dela. Ela entende Jill e a situação toda.
- Acho que ela entende muito mais do que a gente pensa - eu disse, me lembrando de como ela vinha se comportando melhor desde o show, exceto pela parte de entrar
de penetra na festa. - Ela só precisa de tempo para se acostumar, o que faz sentido considerando como foi uma mudança drástica para ela. Você iria entender se tivesse
visto o lugar de onde ela veio.
- Talvez eu a tenha julgado mal - ele admitiu, surpreso com as próprias palavras.
Parte de mim estava esperando uma bronca de Trey por ter deixado Brayden sozinho na festa. Em vez disso, não o vi em nenhuma aula de manhã. Estava quase preocupada
quando lembrei que o primo dele ainda estava na cidade, talvez o enrolando em “questões de família”. Trey era capaz. Ele daria conta do que quer que estivesse acontecendo.
Então por que todos aqueles machucados?, me perguntei.
Quando cheguei ao estudo independente com a sra. Terwilliger, ela estava esperando ansiosamente por mim, o que tomei como um mau sinal. Normalmente ela continuava
trabalhando com afinco em sua escrivaninha e só me fazia um aceno de confirmação com a cabeça quando eu pegava os livros. Naquele dia ela estava de pé, em frente
à escrivaninha, com os braços cruzados e olhando para a porta.
- Srta. Melbourne, espero que tenha tido um bom fim de semana. Sem dúvida você foi a mais bela da festa do Dia das Bruxas.
- Você me viu? - perguntei.
Por um momento, pensei que ela fosse dizer que tinha assistido tudo pela bola de cristal ou coisa assim.
- Claro. Eu estava lá como monitora. Meu posto era ao lado do DJ, então não é nenhuma surpresa você não ter me visto. Até porque não fui nenhum destaque como você.
Devo dizer que aquele vestido que você estava usando era uma lindíssima reprodução neogrega.
- Obrigada - respondi, cansada de receber elogios a torto e a direito naquele dia, embora o dela fosse muito menos assustador do que o de Jill.
- Então - a sra. Terwilliger disse, retomando a postura profissional -, pensei que poderia ser interessante discutirmos alguns feitiços que você tem pesquisado para
o meu projeto. Anotá-los é uma coisa. Entendê-los é outra.
Senti um frio na barriga. Apenas anotar e traduzir feitiços repetitivamente, sem ter que pensar muito e evitando falar com ela, era uma situação confortável para
mim. Enquanto não tínhamos de estudá-los com profundidade, me sentia segura de que não estava tendo nenhum contato real com a magia. Temia o que ela tinha em mente,
mas não haveria como protestar se tudo estivesse expresso nos termos do meu estudo e não envolvesse nenhum mal a mim ou a outras pessoas.
- Pode fazer a gentileza de fechar a porta? - ela pediu. Obedeci, e a minha sensação de desconforto aumentou. - Queria examinar aquele livro extra que dei a você,
o de feitiços de proteção.
- Não estou com ele, senhora - disse, aliviada. - Mas, se a senhora quiser, posso ir buscá-lo no meu dormitório.
Se eu pegasse o ônibus certo - ou seja, o errado -, poderia passar uma parte gigantesca da aula no trajeto de ida e volta.
- Tudo bem. Comprei aquela cópia para seu uso pessoal - ela disse, pegando um exemplar da escrivaninha. - Tenho o meu. Vamos dar uma olhada?
Não tive como esconder minha decepção. Sentamos em carteiras lado a lado, e ela começou simplesmente lendo o sumário comigo. O livro era separado em três seções:
Defesa, Ataques Planejados e Ataques Instantâneos. E cada seção era dividida por níveis de dificuldade.
- A parte de Defesa inclui vários amuletos de proteção e feitiços de fuga - ela me disse. - Por que você acha que eles vêm antes no livro?
- Porque o melhor jeito de vencer uma briga é evitar que ela aconteça - respondi imediatamente. - O resto é supérfluo.
Ela pareceu surpresa com a minha resposta.
- Sim... exatamente.
- É o que Wolfe disse - expliquei. - O instrutor do curso de defesa pessoal que estou fazendo.
- Bem, ele está certo. A maioria dos feitiços nesta seção faz exatamente isso. Este aqui... - ela disse, avançando algumas páginas no livro. - Este aqui é bem básico,
mas muito útil. É um feitiço de ocultamento. Muitos componentes físicos, como é de se esperar de um feitiço para iniciantes, mas vale muito a pena. Você cria um
amuleto e mantém o último ingrediente, pó de gipsita, em mãos. Quando estiver pronta para ativá-lo, basta acrescentar a gipsita e o amuleto ganha vida. Fica praticamente
impossível alguém ver você. Aí você consegue sair do cômodo ou do local em segurança, sem ser vista, antes que a magia perca a força.
A escolha das palavras dela não passou despercebida e, apesar da minha resistência interna, não pude deixar de perguntar:
- Praticamente impossível?
- Não vai funcionar se souberem que você está lá - ela explicou. - Você não pode lançar e simplesmente ficar invisível, embora existam feitiços avançados para isso.
Mas, se a pessoa não estiver esperando ver você... não vai conseguir vê-la.
Ela me mostrou outros, muitos dos quais eram básicos e precisavam apenas de um amuleto e de um método parecido de ativação. Um que ela classificou como intermediário
tinha um efeito inverso, fazendo com que todas as pessoas em determinado raio de alcance ficassem temporariamente cegas. Somente quem lançava o feitiço mantinha
a visão. Ao ouvir aquilo, me contorcia com a ideia de usar a magia para afetar os outros diretamente. Me ocultar era uma coisa. Mas cegar uma pessoa? Deixá-la tonta?
Fazê-la dormir? Isso passava dos limites, usando meios repreensíveis e nada naturais para fazer algo que os humanos não tinham o direito de fazer.
Ainda assim... lá no fundo, parte de mim reconhecia a utilidade daquilo. O ataque me havia feito reconsiderar várias coisas. Por mais que me doesse admitir, agora
podia ver que ceder meu sangue para Sonya talvez não fosse tão ruim assim. Talvez. Mas eu ainda não estava pronta para isso, absolutamente.
Ouvi com paciência enquanto ela folheava o livro, o tempo todo imaginando qual seria a intenção dela com aquilo tudo. Por fim, quando faltavam cinco minutos para
o fim da aula, ela disse:
- Para a segunda que vem, quero que você recrie um destes, assim como fez com o amuleto de fogo, e escreva um relatório.
- Sra. Terwilliger... - comecei.
- Eu sei, eu sei - ela disse, fechando o livro e levantando. - Conheço muito bem seus argumentos e objeções, sobre como os humanos não têm o direito de usar esses
poderes e toda essa baboseira. Respeito seu direito de pensar assim. Ninguém vai obrigar você a usar nada disso. Só quero que você continue a se familiarizar com
a construção de um amuleto.
- Não consigo - respondi, obstinada. - Não vou fazer isso.
- Não é muito diferente de dissecar um sapo na aula de biologia - ela argumentou. - Botar as mãos na massa para entender o assunto.
- Acho que sim... - cedi, pesarosa. - Qual a senhora quer que eu faça?
- O que você quiser.
Essa ideia me incomodou ainda mais.
- Prefiro que a senhora escolha.
- Não seja boba - ela disse. - Você tem liberdade para escolher o tema da sua dissertação e para isso também. Não ligo para qual você faça, desde que cumpra a tarefa.
Escolha o que interessá-la mais.
Aí estava o problema. Ao me dar a opção de escolha, ela me obrigava a me envolver com a magia. Para mim era fácil alegar que não tinha participação nenhuma naquilo
e dizer que tudo que fiz foi sob coação. Mesmo que ela tenha ordenado a tarefa, essa pequena escolha me obrigava a ser proativa.
Sendo assim, adiei a decisão, o que era quase inédito para mim em se tratando de lições de casa. Em parte eu pensava que, talvez, se ignorasse a tarefa, ela desapareceria
ou a professora mudaria de ideia. Além disso, eu tinha uma semana. Não havia por que me estressar com isso ainda.
Embora eu soubesse que não devíamos nada a Lia por ela ter nos dado as fantasias, pensei que o certo seria devolvê-las, só para não deixar dúvidas sobre minhas intenções.
Depois que a sra. Terwilliger me liberou, coloquei as roupas nos sacos com zíper e fui para o centro. Jill ficou triste por ter de devolver a dela, mas concordou
que era a coisa certa a fazer.
Lia, porém, pensava de outro modo.
- O que vou fazer com isso? - ela perguntou quando apareci na loja. Fiquei tonta só de ver seus enormes brincos de argola cravejados com pedrinhas de strass. - Foram
feitos sob medida para vocês.
- Tenho certeza de que você pode ajustá-los. Além disso, não devem ser muito diferentes do seu padrão de tamanhos. - Fiz menção de entregar os cabides, mas ela cruzou
os braços, obstinada. - Veja, eles ficaram lindos. Ficamos muito felizes pelo que você fez. Mas não podemos ficar com eles.
- Vocês vão ficar com eles - ela declarou.
- Se você não pegar, vou simplesmente deixar aqui no balcão - adverti.
- E eu vou mandar de volta para o seu alojamento.
Suspirei.
- Por que isso é tão importante pra você? Por que você não consegue aceitar um “não” como resposta? Tem um monte de meninas bonitas em Palm Springs. Você não precisa
de Jill.
- Exatamente por isso - Lia disse. - Um monte de meninas bonitas que não destoam umas das outras. Jill é especial. Ela não tem consciência de que nasceu para isso.
Ela pode alcançar muito sucesso algum dia.
- Algum dia - repeti. - Mas não agora.
Lia tentou outra abordagem:
- A campanha é de chapéus e cachecóis. Não posso usar máscaras de novo, mas posso colocar óculos escuros nela, especialmente se tirarmos as fotos ao ar livre. Já
pensei em tudo...
- Lia, por favor. Nem tenta.
- Apenas me ouça - ela pediu. - A gente faz o ensaio fotográfico. Depois, vocês olham todas as fotos, uma por uma, e descartam as que não atenderem aos critérios
esdrúxulos da sua religião.
- Não - insisti. - E vou deixar os vestidos aqui.
Coloquei-os sobre o balcão e saí, apesar dos protestos de Lia sobre todas as coisas maravilhosas que ela poderia fazer por Jill. Talvez um dia, pensei. Quando todos
os problemas de Jill tiverem acabado. Mas algo me dizia que esse dia estava muito, muito distante.
Apesar da minha fidelidade ao Spencer’s, um pequenino café francês chamou minha atenção no caminho até o carro. Ou melhor, o cheiro do café deles chamou minha atenção.
Não tinha nenhum compromisso na escola e parei para tomar uma xícara. Eu estava com um livro da matéria de inglês e decidi ler um pouco sentada em uma das pequenas
mesas do lugar. Passei metade do tempo trocando mensagens com Brayden. Ele queria saber o que eu estava lendo e trocamos algumas de nossas citações favoritas de
Tennessee Williams.
Estava lá havia menos de dez minutos quando sombras pairaram sobre mim, bloqueando o sol do fim da tarde. Eram dois homens, ambos desconhecidos, um pouco mais velhos
que eu. Um era loiro de olhos azuis, e o outro moreno e muito bronzeado. Suas expressões não eram hostis, mas também não eram simpáticas. Ambos eram fortes, como
se treinassem regularmente. E então, olhando mais atentamente, percebi que reconhecia, sim, um deles. O rapaz moreno era o que havia falado comigo e com Sonya na
rua, alegando conhecê-la do Kentucky.
Imediatamente, todo o pânico que eu vinha tentando reprimir naquela semana voltou a tomar conta de mim, me afogando naquela sensação de estar encurralada e indefesa.
Mas bastou lembrar que estávamos num lugar público, cercados por outras pessoas, para que eu pudesse encará-los com uma calma surpreendente.
- Pois não? - perguntei.
- Precisamos falar com você, alquimista - o rapaz loiro disse.
Não movi um músculo do rosto.
- Acho que vocês estão me confundindo com alguém.
- Mais ninguém aqui tem uma tatuagem de lírio - o outro sujeito disse. No outro dia, ele havia se apresentado como Jeff, mas duvidava que fosse verdade. - Seria
ótimo se você pudesse dar uma voltinha com a gente.
Naquele dia, minha tatuagem estava coberta, mas algo me dizia que aqueles caras estavam me seguindo havia algum tempo e não precisavam ver o lírio para saber que
ele estava lá.
- De jeito nenhum - retruquei. Nem precisava dos lembretes de Wolfe para saber que aquela era uma péssima ideia. Eu estava segura no meio da multidão. - Se quiserem
conversar, é melhor puxarem uma cadeira. Senão, façam o favor de ir embora.
Baixei os olhos para o livro, como se não estivesse nem aí. Meu coração, porém, estava acelerado e precisei de todo o meu autocontrole para que minhas mãos não começassem
a tremer. Alguns segundos depois, ouvi o som de metal sendo arrastado no concreto, e os dois rapazes se sentaram à minha frente. Levantei os olhos e dei de cara
com seus rostos impassíveis.
- É preciso pedir o café lá dentro - comentei. - Eles não servem aqui fora.
- Não estamos aqui para falar sobre café - Jeff disse. - Estamos aqui para falar sobre vampiros.
- Por quê? Vocês estão fazendo um filme ou coisa assim? - perguntei.
- Nós sabemos que você anda com eles - o loirinho disse. - Incluindo aquela Strigoi, Sonya Karp.
Parte da magia da tatuagem de lírio servia para impedir que os alquimistas revelassem informações sobre o mundo dos vampiros a estranhos. Nós literalmente não conseguíamos.
A magia entraria em ação e nos impediria caso tentássemos. Como aqueles sujeitos já sabiam sobre a existência dos vampiros, a tatuagem não censuraria o que eu dissesse.
Em vez disso, porém, preferi me censurar por conta própria. Algo me dizia que fingir ignorância era a melhor tática naquele caso.
- Vampiros não existem - eu disse. - Olha, se isso é algum tipo de piada...
- Nós sabemos o que vocês fazem - o loirinho continuou. - Vocês os odeiam tanto quanto nós. Então por que os estão ajudando? Como seu grupo se desnorteou tanto a
ponto de perder de vista nosso objetivo original? Séculos atrás, nós formávamos um único grupo, unido, determinado a varrer todos os vampiros da face da terra em
nome da luz. Seus irmãos traíram esse objetivo.
Já tinha outro protesto pronto quando notei um brilho dourado na orelha de Jeff. Ele estava usando um brinco minúsculo, uma esfera dourada com um ponto escuro no
meio. Não pude evitar dizer:
- Seu brinco - eu disse. - É o símbolo do Sol, o símbolo do ouro.
Era exatamente o mesmo símbolo que estava gravado no cabo da espada que pegamos no beco.
Ele tocou o brinco e assentiu.
- Não esquecemos a missão ou nosso propósito original. Nós servimos à luz. Não às trevas que encobrem os vampiros.
Ainda assim, me recusei a reconhecer qualquer coisa que dissessem sobre vampiros.
- Foram vocês que me atacaram quando eu estava com a minha amiga no beco, semana passada.
Nenhum dos dois negou.
- Sua “amiga” é uma criatura das trevas - o loirinho disse. - Não sei como ela conseguiu fazer esse encantamento, fazendo-se passar pelo outro tipo de vampiro, mas
vocês não podem se deixar enganar. Ela é demoníaca. Vai matar você e muitas outras pessoas.
- Vocês são malucos - respondi. - Nada disso faz sentido.
- Só nos diga onde é o covil dela - Jeff disse. - Sabemos que não é naquele apartamento do outro lado do centro. Temos vigiado e ela não voltou para lá desde nossa
última tentativa de destruí-la. Se você não quer nos ajudar ativamente, essa informação bastará para livrarmos o mundo do mal que ela representa.
Temos vigiado. O apartamento de Adrian. Senti um calafrio atravessar meu corpo. Há quanto tempo vinham espionando a casa dele? E até que ponto? Será que simplesmente
ficavam num carro do lado de fora, como os policiais dos filmes? Ou será que tinham equipamentos de vigilância altamente tecnológicos? Wolfe havia nos aconselhado
sobre como evitar perseguições em estacionamentos, não em nossas próprias casas. Meu único consolo era que eles obviamente não sabiam nada sobre a mansão de Clarence.
A vigilância deles não devia ter sido tão eficiente se ninguém a seguira até lá ainda. Mas será que estavam me seguindo? Será que sabiam onde eu estudava?
E, com suas palavras, eles haviam confirmado a terrível realidade sobre a qual eu mal me atrevia a especular. Aquela realidade confirmava que existiam forças ocultas
à visão supostamente onisciente dos alquimistas, forças que trabalhavam contra nossos objetivos.
Caçadores de vampiros eram reais.
Com essa descoberta, vieram à tona centenas de outras questões ainda mais aterrorizantes. O que isso representava para os Moroi? Será que Jill estava em perigo?
E Adrian?
- A única coisa que vou fazer é chamar a polícia - respondi. - Não sei quem vocês são ou por que estão obcecados com a minha amiga, mas nós não temos nada a ver
com vocês. Vocês são ainda mais loucos do que eu pensava se acham que vou dizer onde ela está para que possam persegui-la.
E então, por pura sorte, vi uma policial descendo a rua. Os dois rapazes seguiram meu olhar e, obviamente, adivinharam meus pensamentos. Seria muito fácil chamá-la
até ali. Não havíamos feito nenhum boletim de ocorrência sobre o ataque no beco, mas acusar aqueles rapazes de um ataque recente os deteria, sem a menor sombra de
dúvida. Em sincronia, ambos se levantaram.
- Você está cometendo um erro grave - Jeff disse. - Poderíamos ter erradicado esse problema há séculos se nossos grupos trabalhassem juntos. Primeiro os Strigoi,
depois os Moroi. A decadência desnorteada do seu grupo à corrupção dos vampiros quase pôs tudo a perder. Felizmente, ainda seguimos o verdadeiro caminho.
O fato de ele ter mencionado o nome dos dois grupos de vampiros era particularmente alarmante. Sem dúvida aqueles caras eram perigosos, mas nem tanto se falassem
sobre vampiros em termos vagos e obscuros. Usar “Moroi” e “Strigoi” indicava um grande conhecimento.
O loirinho colocou um pequeno panfleto caseiro sobre a mesa.
- Leia isso e talvez você encontre a luz. Entraremos em contato.
- Não faria isso se fosse vocês - respondi. - Mexa comigo de novo e farei muito mais do que ter uma conversinha agradável.
Minhas palavras saíram mais agressivas do que eu esperava. Talvez estivesse convivendo demais com Dimitri e Wolfe.
Jeff riu conforme os dois começaram a se afastar.
- É uma pena que você fique metida nos livros - ele disse. - Você tem espírito de caçadora.
16
NÃO ESPEREI PARA REUNIR O GRUPO. Aquilo era muito importante. Ainda não sabia o nível do perigo que estávamos enfrentando, mas não queria correr o risco. Escolhi
a casa de Clarence como ponto de encontro, já que os caçadores ainda não sabiam nada sobre ela. Mesmo assim, fiquei insegura. Teria ficado insegura mesmo se nos
encontrássemos no abrigo subterrâneo dos alquimistas.
E, aparentemente, “caçadores” não era o termo certo. De acordo com aquele panfleto caseiro, eles se autodenominavam “Guerreiros da Luz”. Não sei se mereciam um título
tão pomposo, ainda mais porque, no texto sobre sua missão, escreveram “pressipício” em vez de “precipício”. O panfleto era realmente muito vago, declarando simplesmente
que havia um mal andando em meio à humanidade e que os guerreiros eram a força destinada a destruí-lo. Eles pediam insistentemente aos outros humanos que estivessem
prontos e permanecessem puros. Nenhum vampiro era mencionado pelo nome - o que me deixou aliviada. O panfleto também não falava muito sobre o histórico que diziam
ter em comum com os alquimistas.
Antes de irmos até a casa de Clarence, Eddie verificou se havia algum dispositivo de rastreamento no Pingado. Só essa ideia já me causava arrepios, assim como a
ideia de ter sido vigiada na casa de Adrian. Aquilo tudo me dava uma sensação de violação. Apenas minha falta de fé na tecnologia deles me fez me sentir um pouco
melhor.
- Acho improvável que eles estejam tão avançados - eu disse a Eddie, enquanto ele se contorcia embaixo do carro. - Quer dizer, aquele panfleto parecia ter sido impresso
numa máquina dos anos 1980. Não sei se é porque eles usam o mesmo panfleto há muito tempo ou se realmente têm uma máquina daquelas... mas, enfim, eles não parecem
do tipo que curte altas tecnologias.
- Talvez - ele concordou, com a voz um tanto abafada. - Mas não podemos arriscar. Não sabemos do que eles são capazes. Tudo que sabemos é que estão tentando se aliar
aos alquimistas para terem acesso à tecnologia.
Senti um calafrio. A ideia de que os alquimistas e aquele grupo dissidente violento pudessem estar relacionados era repulsiva. Era uma loucura o que eu e Adrian
tínhamos especulado, e ainda difícil de aceitar mesmo em face de provas tão contundentes. Agora pelo menos eu tinha informações suficientes para levar aos meus superiores
sem ser ridicularizada. Mesmo sem eu nunca ter ouvido falar de caçadores como aqueles, parecia plausível que, em algum momento, eles tivessem tentado se aliar à
organização. Com sorte, algum alquimista poderia ajudar.
Eddie saiu rapidamente de debaixo do Pingado.
- Está limpo. Vamos.
Jill e Angeline estavam esperando ao meu lado, ambas tensas e ansiosas. Jill lançou um olhar admirado para Eddie.
- Não imaginava que você sabia fazer essas coisas. Nunca nem teria pensado nisso.
- Você achava que o treinamento dos guardiões era só dar porrada? - ele disse, limpando o suor da testa.
- Meio que sim - ela respondeu, vermelha.
- Você poderia me ensinar essas coisas algum dia? - Angeline perguntou. - Acho que seria bom eu saber isso.
- Claro - Eddie respondeu, parecendo sincero, o que a fez abrir um sorriso radiante.
Ele andava muito mais calmo perto de Angeline desde que ela ficara mais séria e contida. Acho que esse bom comportamento foi um dos fatores para que eu conseguisse
permissão para ela nos acompanhar naquela noite. Tecnicamente, ela ainda estava suspensa, mas eu consegui uma dispensa especial com base na “religião” de nossa família.
Tinha usado uma justificativa parecida quando Jill fora suspensa no mês anterior e eu precisava levá-la aos fornecimentos. Mesmo assim, tínhamos que obedecer ordens
muito rigorosas em relação a Angeline naquela noite. Ela não poderia ficar fora por mais de duas horas, e o custo daquilo seria acrescentar mais um dia de suspensão
ao seu castigo.
Pegamos uma rota incomum para a casa de Clarence, e Eddie ficou observando a traseira do carro atentamente, procurando qualquer sinal de que estaríamos sendo seguidos.
Ele tentou nos explicar algumas coisas em que deveríamos prestar atenção quando estivéssemos sozinhos. Eu estava tão nervosa que mal conseguia ouvir. Após um trajeto
tenso, chegamos em segurança à mansão de Clarence, onde encontramos Adrian, que já esperava por nós. Aparentemente, Dimitri havia passado no centro mais cedo e dado
uma carona para ele, certamente tomando as mesmas precauções que Eddie tomara ao longo do caminho.
Eu já havia dado informações sobre os caçadores a Eddie e Dimitri, mas todos pediram uma explicação mais detalhada. Nos reunimos no lugar de sempre, a sala de estar,
enquanto Dimitri andava de um lado para o outro, como se estivesse se preparando para um ataque a qualquer momento. Clarence, sentado em sua poltrona, tinha o olhar
distraído de sempre. Contudo, quando peguei o panfleto, ele se manifestou.
- São eles! - gritou. Pensei que daria um salto da poltrona e arrancaria o folheto da minha mão. - São os símbolos deles! - Quase todos os símbolos alquimistas desenhados
na espada estavam na capa do panfleto. - Esse círculo. Eu me lembro desse círculo.
- O símbolo do ouro - confirmei. - Ou, no caso deles, o símbolo do Sol, já que são tão obcecados com a luz e as trevas.
Clarence olhou ao redor, agitado.
- Eles voltaram! Precisamos sair daqui. Vim para esta cidade para escapar deles, mas eles me encontraram. Não temos muito tempo. Onde está Dorothy? Cadê o Lee? Preciso
fazer as malas!
- Sr. Donahue - eu disse, com o tom mais gentil possível -, eles não sabem que o senhor está aqui. O senhor está seguro. - Não sabia se eu mesma acreditava naquilo,
mas esperava que tivesse soado convincente.
- Ela está certa - Dimitri disse. - E, mesmo se soubessem, o senhor pode ter certeza de que eu não os deixaria machucá-lo. - Havia tanta convicção e força na maneira
como Dimitri falava que tive a sensação de que acreditaríamos nele mesmo se um grupo de Strigoi estivesse invadindo a casa e ele dissesse: “Está tudo bem, vocês
estão seguros”.
- Se o que você está dizendo for verdade - Sonya falou -, então sou eu que estou em perigo. - Ela parecia muito mais calma do que eu estaria no lugar dela.
- Eles não vão causar nenhum mal a você - Dimitri disse, incisivo. - Principalmente se você não sair desta casa.
- Mas a pesquisa... - ela começou.
- ... não é tão importante quanto sua segurança - ele concluiu. A força em seu olhar dizia que ele não estava disposto a ouvir nenhum argumento. - Você precisa voltar
para a Corte. Já estava nos seus planos, afinal. Apenas adiante a viagem.
Sonya não parecia nada contente com essa ideia.
- E deixar vocês correndo perigo?
- Talvez não estejamos correndo perigo - Eddie disse, apesar de a tensão em seu corpo dizer outra coisa. - Pelo que Sydney disse, e pelo manifesto deles, o foco
do grupo são os Strigoi, não os Moroi. - Ele olhou de soslaio para Jill. - Não que devamos baixar a guarda. Se eles acham que Sonya é uma Strigoi, vai saber de que
outra loucura eles são capazes. Mas não se preocupem. Não vou deixar que se aproximem de você. - Jill parecia prestes a desmaiar.
- É uma boa ideia - eu disse. - Eles acham que os Moroi são uma ameaça, mas não tão grande quanto os Strigoi.
- Assim como os alquimistas - Adrian disse. Ele estava sentado numa poltrona no canto, em silêncio até então. Eu não o via desde a noite da festa, nem tinha me comunicado
com ele de outro jeito, o que era estranho. Mesmo quando ele não mandava os e-mails patéticos sobre os experimentos, quase sempre tinha alguma piada espertinha para
me mandar.
- Verdade - admiti, com um sorriso. - Mas não estamos tentando matar nenhum de vocês. Nem mesmo os Strigoi.
- E tem um problema - Dimitri acrescentou. - Esses guerreiros têm certeza de que Sonya é Strigoi e está usando algum tipo de truque para se disfarçar.
- Eles podem ter algum sistema de rastreamento ou um banco de dados - Sonya disse. - Devem acompanhar vários Strigoi pelo país, tentando caçá-los.
- Mas mesmo assim não sabiam nada sobre você - eu disse, apontando para Dimitri. Ele permaneceu inexpressivo, mas eu sabia que devia ser difícil lembrar de seu período
como Strigoi. - E, até onde eu sei, você era bem mais... hum... famoso do que Sonya. - Basicamente, ele tinha sido um Strigoi mafioso. - Então, se você não foi identificado
por eles, é provável que não tenham uma cobertura internacional... ou pelo menos não na Rússia.
Angeline se inclinou para a frente, com os dedos entrelaçados, e olhou para Clarence com um sorriso digno de seu nome angelical.
- O que o senhor sabe sobre eles? Como foi que os encontrou pela primeira vez?
A princípio, ele parecia com medo até de responder, mas acho que a doçura dela o tranquilizou.
- Bem, eles mataram minha sobrinha.
Todos sabíamos que fora Lee quem matara a sobrinha de Clarence, mas ele não acreditava nisso, assim como também não acreditava que Lee estava morto.
- Você os viu fazerem isso? - Angeline interrogou. - Já os viu alguma vez?
- Não, não quando Tamara foi morta - ele admitiu. Seus olhos assumiram um ar distante, como se fitasse o passado. - Mas eu sabia os sinais que precisava procurar.
Eu já os havia encontrado antes, quando morava em Santa Cruz. Eles gostam da Califórnia, sabe. E do sudeste dos Estados Unidos. Tem a ver com a fixação deles pelo
Sol.
- O que aconteceu em Santa Cruz? - Dimitri perguntou.
- Um grupo de guerreiros jovens começou a me perseguir. Tentaram me matar.
Trocamos olhares nervosos.
- Então eles perseguem Moroi - Eddie disse, e se aproximou de Jill.
Clarence fez que não com a cabeça.
- Normalmente, não. Pelo que Marcus me disse, eles preferem os Strigoi. Esses guerreiros eram uns moleques indisciplinados da ordem, que caçavam por conta própria,
sem que seus superiores soubessem. Acho que foi um do mesmo tipo que matou Tamara.
- Quem é Marcus? - perguntei.
- Marcus Finch. Ele me salvou dos caçadores há alguns anos. Me defendeu durante um ataque e depois entrou em contato com a ordem para manter aqueles delinquentes
longe de mim. - Clarence estremeceu com a lembrança. - Não que eu tenha ficado por lá depois daquilo. Peguei Lee e fui embora. Foi nessa época que nos mudamos para
Los Angeles e ficamos lá por um tempo.
- Esse Marcus - Dimitri começou - era um guardião?
- Humano. Ele tinha mais ou menos a sua idade naquela época. Sabia tudo sobre os caçadores.
- Imagino, já que conseguiu entrar em contato com eles - Dimitri cogitou. - Mas ele devia ser amigo dos Moroi para ter ajudado o senhor, não?
- Ah, sim - Clarence respondeu. - Muito amigo.
Dimitri se virou para mim.
- Você acha que...
- Sim - respondi, adivinhando a pergunta. - Vou ver se conseguimos encontrar esse tal de Marcus. Seria bom ter uma fonte de informações sobre esses guerreiros malucos.
Vou reportar tudo isso também, na verdade.
- Eu também - Dimitri disse.
Embora Clarence não fosse um especialista em caçadores como esse misterioso Marcus, o velho Moroi nos forneceu uma quantidade surpreendente de informações, informações
essas a que nenhum de nós tinha dado ouvidos antes. Ele confirmou o que já havíamos deduzido sobre a “devoção à luz” dos caçadores. O foco do grupo (por enquanto)
eram os Strigoi, e todas as suas caçadas eram planejadas e organizadas com cuidado. Eles seguiam uma série de rituais, sobretudo em relação a membros mais jovens
- por isso o grupo independente que perseguira Clarence fora impedido. Pelo que Clarence havia descoberto, eles eram bastante duros com os jovens recrutas, enfatizando
disciplina e excelência.
Como faltava pouco tempo para o fim da suspensão da pena de Angeline, precisávamos terminar logo a conversa. Também fiquei encarregada de levar Adrian para casa,
pois imaginamos que seria melhor eliminar quaisquer chances de Dimitri ser seguido na volta para a mansão depois. Além disso, pude notar que Dimitri estava ansioso
para colocar certas coisas em marcha. Ele queria finalizar os detalhes da partida de Sonya e verificar com os guardiões a possibilidade de Jill ser realocada. O
rosto dela refletiu meu sentimento sobre essa possibilidade. Estávamos muito apegadas a Amberwood.
Enquanto ele dava as últimas instruções a Eddie, puxei Sonya de lado para uma conversa reservada.
- Eu estive... pensando uma coisa - disse.
Ela me examinou atentamente, talvez lendo minha aura e linguagem corporal.
- O quê? - ela perguntou.
- Se quiser... se quiser muito, posso ceder um pouco do meu sangue.
Era uma concessão muito, muito grande. Eu definitivamente não queria fazer aquilo; ainda tinha os mesmos medos instintivos de dar meu sangue a um Moroi, mesmo que
para fins científicos. No entanto, os acontecimentos do dia anterior, somados ao ataque no beco, me fizeram repensar minha visão de mundo. Os vampiros não eram os
únicos monstros à solta. Mal se podia dizer que eles eram monstros, ainda mais se comparados aos tais caçadores. Como eu poderia julgar um inimigo com base na raça?
Cada vez mais eu pensava que os humanos eram tão capazes de causar o mal quanto os vampiros - e que os vampiros também eram capazes de fazer o bem. O importante
eram as ações, e as de Sonya e Dimitri eram nobres. Eles lutavam para destruir o mal maior e, por mais reservas que eu tivesse em relação a ceder o meu sangue, sabia
que era a coisa certa a fazer para ajudá-los.
Sonya entendia o tamanho do sacrifício que aquilo representava para mim. Ela permaneceu calma, sem pulos de alegria, e assentiu, séria.
- Estou com o meu kit aqui. Posso colher uma amostra antes de você ir embora, se tiver certeza.
Mas já? Bem, por que não? Era melhor acabar com aquilo de uma vez por todas, ainda mais se Sonya realmente iria embora da cidade mais cedo do que esperávamos. Fizemos
a coleta na cozinha, que parecia um pouco mais higiênica do que a sala de estar. Sonya não era médica, mas seu treinamento era igual ao que eu observara nos hospitais.
Antisséptico, luvas e uma seringa nova. Ela seguiu todos os procedimentos adequados e, com uma picada rápida da agulha, colheu uma amostra do meu sangue.
- Obrigada, Sydney - ela disse, colocando um band-aid. - Sei como deve ter sido difícil pra você. Mas acredite, isso pode ajudar muito a pesquisa.
- Eu quero ajudar - eu disse. - Muito mesmo.
Ela sorriu.
- Eu sei. E estamos precisando de toda ajuda que conseguirmos. Depois de ter sido um deles... - Seu sorriso desbotou. - Mais do que nunca acredito que o mal que
eles representam precisa ser detido. Você pode ser a chave para esse mistério.
Por um segundo, as palavras dela me inspiraram - talvez eu poderia representar um papel maior na batalha contra o mal e até detê-lo. Imediatamente, essa ideia foi
substituída pelo velho pânico de sempre. Não. Não. Eu não era nada especial. Não queria ser. Faria um esforço sincero para ajudar, mas tinha certeza de que não resultaria
em nada.
Voltei para buscar os outros. Adrian e Jill estavam tendo uma conversa séria num canto. Eddie e Angeline também conversavam, e eu a ouvi dizer:
- Vou passar mais tempo com Jill na escola, só para garantir. Não podemos deixar que ela seja envolvida em algum acidente ou que a tomem pela pessoa errada.
Eddie concordou e pareceu impressionado com a sugestão dela.
- Ótimo.
Incrível, pensei.
Logo depois, saí com o carro cheio e passei no centro para deixar Adrian. Ao estacionar em frente ao seu prédio, vi uma coisa que me deixou boquiaberta. Admiração
e descrença recaíram sobre mim. Com a baliza mais desajeitada que já fizera em toda a minha vida, estacionei o Pingado de qualquer jeito e saí do carro assim que
tirei as chaves da ignição. Os outros me seguiram momentos depois.
- O que... - eu disse, tomando fôlego - ... é isso?
- Ah - Adrian disse, com um tom casual. - É o meu carro novo.
Avancei alguns passos e então me detive, com medo de me aproximar, como alguém que hesita diante da realeza.
- É um Ford Mustang 1967 conversível - eu disse, sentindo que meus olhos estavam prestes a saltar da órbita. Comecei a andar em torno dele. - O ano em que fizeram
uma mudança geral e aumentaram o tamanho para ficar à altura dos concorrentes de alta potência. Estão vendo? É o primeiro modelo com lanternas traseiras côncavas,
mas o último com o nome da Ford em maiúsculas na frente até 1974.
- Que diabo de cor é essa? - Eddie perguntou, nem um pouco impressionado.
- Amarelo-primavera - Adrian e eu dissemos em coro.
- Eu chutaria verde-torta-de-limão - Eddie disse. - Acho que dá para mandar pintar.
- Não! - exclamei. Larguei minha bolsa na grama e, com cuidado, toquei a lateral do carro. De repente, o lindo Mustang novo de Brayden não passava de algo comum.
- Foi retocada, claro, mas é uma cor clássica. Qual é o código do motor? C, não é?
- Humm... não lembro - Adrian disse. - Mas sei que o motor é V8.
- Claro que sim - respondi, me controlando para não revirar os olhos. - É um 289. Quero saber quantos cavalos tem.
- Deve estar escrito na papelada - Adrian disse, sem graça.
Foi só então que realmente processei o que Adrian havia dito. Levantei os olhos para ele, sabendo que meu rosto transbordava descrença.
- Este carro é realmente seu?
- Sim - ele disse. - Falei pra você. Meu pai me arranjou a grana.
- E você escolheu este? - perguntei, espiando o interior pela janela. - Bacana. Interior preto, transmissão manual.
- Pois é - Adrian disse, com um tom constrangido na voz. - Esse é o problema.
Voltei o olhar para ele.
- Qual? Preto é ótimo. E o couro está em ótimas condições. Assim como todo o carro.
- Não, não o interior. A transmissão. Não sei dirigir com câmbio manual.
Fiquei em choque.
- Como não?
- Eu também não sei - Jill disse.
- Você não tem carteira - eu a lembrei. Se bem que minha mãe havia me ensinado a dirigir antes de eu tirar a carteira de motorista, tanto com transmissão manual
quanto automática. Eu sabia que não devia ficar surpresa com o fato de o câmbio ser uma arte perdida, por mais brutal que essa carência me parecesse. Isso, claro,
não era nada perto do problema óbvio. - Por que você foi comprar um carro como este se não sabe dirigir com transmissão manual? Existem inúmeros carros, veículos
novos, com transmissão automática. Seria um milhão de vezes mais fácil.
- Eu gostei da cor - Adrian respondeu, dando de ombros. - Combina com a sala.
Eddie segurou o riso.
- Mas você não sabe dirigi-lo - ressaltei.
- Achei que não seria tão difícil. - Adrian parecia extremamente despreocupado com o que eu via como um absurdo. - É só praticar um pouco dando umas voltas no quarteirão
que pego o jeito.
Não podia acreditar no que estava ouvindo.
- O quê? Você está maluco? Vai destruir o carro se não souber o que está fazendo!
- O que mais eu posso fazer? - ele perguntou. - Por acaso você vai me ensinar?
Olhei novamente para o magnífico Mustang.
- Vou - respondi, obstinada. - Se isso for preciso para proteger o carro de você.
- Também posso ensinar você - Eddie disse.
Adrian o ignorou e se concentrou em mim.
- Quando podemos começar?
Repassei mentalmente o horário escolar, sabendo que falar com os alquimistas sobre os Guerreiros da Luz era minha prioridade. Então, tive a ideia mais óbvia.
- Ah. Quando formos ao Wolfe esta semana. Vamos levar essa belezinha para passear.
- Você quer mesmo me ajudar? - Adrian perguntou. - Ou só está a fim de dirigir o carro?
- As duas coisas - respondi, sem medo de admitir.
Faltava pouco para o tempo de Angeline acabar, por isso tínhamos de ir embora logo. Dirigi três quadras até lembrar que esquecera a bolsa na grama. Com um resmungo,
dei meia-volta até o prédio de Adrian. Minha bolsa estava lá, mas o Mustang não.
- Cadê o carro? - perguntei, em pânico. - Ninguém pode ter roubado tão rápido.
- Ah - Jill, que estava sentada atrás de mim, disse, com a voz um pouco nervosa. - Eu vi pelo laço. Ele... mudou o carro de lugar.
Era bom ter o laço como fonte de informações, mas as palavras dela me deixaram mais nervosa do que eu teria ficado se o carro realmente tivesse sido roubado.
- Ele fez o quê?
- Não está muito longe - ela respondeu depressa. - Atrás do prédio. Esta rua tem umas regras estranhas contra estacionar à noite.
Fechei a cara.
- Que bom que o carro não vai ser rebocado, mas ele devia ter pedido para eu mudá-lo de lugar! Mesmo sendo uma distância curta, ele podia destruir a transmissão.
- Tenho certeza de que vai ficar tudo bem - Jill disse, com a voz um pouco estranha.
Não respondi. Jill não era especialista em carros. Nenhum deles era.
- É como deixar um bebê à solta numa sala cheia de porcelanas - resmunguei. - O que ele tinha na cabeça? Em relação a isso tudo?
Ninguém soube responder. Chegamos a Amberwood a tempo do toque de recolher de Angeline, e me refugiei na calma e na sanidade do meu quarto. Assim que garanti que
meus amigos passariam a noite em segurança, mandei um e-mail relatando o que havíamos descoberto sobre os caçadores para Donna Stanton, uma alquimista do alto escalão
com quem, inexplicavelmente, eu havia criado boas relações. Cheguei a tirar fotos do panfleto e enviá-las por e-mail junto. Feito isso, recostei-me na cadeira, tentando
lembrar se havia mais alguma informação que eu pudesse dar a ela para ajudar.
Foi só depois de repassar exaustivamente todas as opções (e atualizar minha caixa de entrada algumas vezes para ver se ela já havia respondido) que finalmente passei
para os trabalhos da escola. Como de costume, me concentrei em cada tarefa, exceto uma.
A da sra. Terwilliger.
Aquele livro idiota repousava sobre a minha escrivaninha, como se me encarasse, me desafiando a abri-lo. Eu ainda tinha alguns dias até o fim do prazo e poderia
continuar protelando. Mas estava começando a aceitar que a tarefa não iria simplesmente desaparecer. Considerando que alguns dos preparativos levavam tempo, talvez
fosse melhor segurar o touro pelos chifres e acabar com aquilo de uma vez por todas.
Decidida, levei o livro para a cama e abri no sumário, examinando alguns feitiços que ela havia lido comigo. Senti um embrulho no estômago diante da maioria, e todos
os meus instintos me diziam que era errado tentar fazer aquilo. Magia é para vampiros, não para humanos.
Eu ainda acreditava nisso, mas a parte analítica do meu cérebro não podia deixar de imaginar como seria lançar alguns dos feitiços defensivos em diversas situações.
Assim como minha decisão sobre ceder sangue, os acontecimentos recentes me levaram a enxergar o mundo de outra forma. A magia era algo errado? Sim. Mas aquele feitiço
para cegar as pessoas teria sido útil no beco. Outro feitiço, um que imobilizava as pessoas temporariamente, poderia ter sido usado para fugir dos caçadores no café.
Claro, ele só durava trinta segundos, mas era tempo suficiente para escapar.
Repassei a lista repetidamente. Todos eram tão errados e ao mesmo tempo... tão úteis. Se não tivesse visto com meus próprios olhos o amuleto de fogo que eu havia
feito incendiar uma Strigoi, não acreditaria que nada daquilo fosse possível. Mas todos os indícios indicavam que era.
Tanto poder... a possibilidade de me proteger...
Imediatamente me repreendi por essa ideia. Não precisava de poder. Esse tipo de pensamento foi o que levou aberrações como Liam a querer se transformar em Strigoi.
No entanto... será que era realmente a mesma coisa? Eu não queria a imortalidade. Não queria ferir ninguém. Só queria ser capaz de me proteger e proteger as pessoas
de que gostava. Wolfe poderia me ensinar muitas coisas, mas suas técnicas preventivas não ajudariam se caçadores de vampiros obstinados voltassem a encurralar Sonya
e eu. Com o tempo, estava ficando claro que os caçadores eram mesmo obstinados.
Voltei para o sumário, encontrando vários feitiços que poderiam ser úteis e que eu seria capaz de fazer. De acordo com a sra. Terwilliger, uma pessoa como eu tinha
um excelente potencial para a magia por causa de um talento inato (algo em que eu não acreditava muito), e do rigoroso treinamento alquimista em relação a medidas
e atenção aos detalhes. Não foi difícil imaginar quanto tempo eu levaria para produzir qualquer um dos possíveis candidatos.
A questão era: qual feitiço eu faria? Para qual eu tinha tempo?
A resposta era perturbadoramente simples.
Eu tinha tempo para fazer todos eles.
17
DIRIGIR O CARRO DE ADRIAN ERA COMO UM SONHO.
Quando sentei ao volante, quase me esqueci de verificar se alguém estava nos seguindo. Na verdade, quase esqueci que deveria ir ao curso de Wolfe e mostrar para
Adrian como usar o câmbio, de tão arrebatada que fiquei com o rugido do motor ao nosso redor e o cheiro de couro. Ao sair do bairro, tive de me segurar para não
guiar o carro em alta velocidade pelas ruas movimentadas do centro de Palm Springs. Aquele carro pedia para ser dirigido livremente numa estrada vazia. Eu admirava
o Mustang de Brayden, mas aquele eu venerava.
- Estou me sentindo como se estivesse segurando vela - Adrian comentou assim que pegamos a estrada. Ninguém havia nos seguido do centro, então me sentia muito mais
segura. - Estou me intrometendo entre vocês dois? Se preferir me deixar em algum lugar, eu entendo.
- Ahn?
Eu estava prestando muita atenção na maneira como o carro atingia as velocidades mais altas, tanto pelo som como pela sensação física. O Mustang estava em perfeita
forma. As pessoas normalmente acham que carros clássicos são caros. E são, quando estão em boas condições. Mas a maioria não está. Quando uma coisa fica muitos anos
sem cuidado, é inevitável que se deteriore, e é por isso que muitos carros antigos estão caindo aos pedaços. Não era o caso do carro de Adrian. Ele tinha sido cuidado
e restaurado ao longo dos anos, e provavelmente nunca havia deixado o estado da Califórnia, o que significava que nunca tinha enfrentado invernos severos. Tudo isso
resultava num preço alto, o que tornava ainda mais esdrúxulo o fato de Adrian ter comprado um carro que não sabia dirigir.
Soltei um suspiro.
- Desculpe. Não sei onde estava com a cabeça. - Na verdade, sabia, sim. Estava pensando quais eram as chances de eu levar uma multa se desrespeitasse o limite de
velocidade para ver o quão rápido poderíamos correr. - Devia ter começado a ensinar assim que dei partida no carro. Prometo que vou ensinar na volta, passo a passo.
Por enquanto, posso dar uma resumida. Esta é a embreagem...
Adrian não pareceu incomodado com a minha falta de atenção. Na verdade, parecia estar achando graça, e simplesmente ouviu minhas explicações com um sorriso calmo
e singelo no rosto.
Wolfe estava com a mesma aparência infame da semana anterior, que ficava completa com o tapa-olho e, ao que me pareceu, usava a mesma bermuda de antes. Tinha esperança
de que ele pelo menos tivesse lavado a bermuda. Apesar da aparência, ele pareceu disposto diante da turma reunida, competente como sempre. Apesar de ressaltar novamente
a importância de evitar conflitos e estar sempre atento aos arredores, ele repassou esses pontos de maneira rápida e se concentrou na prática de maneiras mais físicas
de se defender.
Como Adrian tinha reclamado sobre a “chatice” da conversa sobre segurança na aula anterior, imaginei que ele ficaria mais animado ao passarmos direto para a ação.
Em vez disso, o ar divertido que ele tinha no carro desapareceu e deu lugar a uma tensão crescente à medida que Wolfe explicava o que queria que fizéssemos em nossos
exercícios em dupla.
Quando chegou a hora de praticar, Adrian parecia visivelmente descontente.
- Qual é o problema? - indaguei. De repente me lembrei da última aula, quando Adrian surtou por causa do meu “ataque”. Talvez ele não esperasse que teria de fazer
algum esforço ali. - Vamos lá, os movimentos são simples. Você não vai se sujar.
Mesmo quando ensinava ações mais combativas, Wolfe defendia manter os ataques simples e rápidos. O objetivo não era aprender a espancar alguém. Aquelas manobras
eram maneiras eficazes de distrair o agressor para poder escapar. A maioria delas nós fazíamos com os bonecos, já que não tentaríamos enfiar o dedo nos olhos dos
colegas. Adrian fez esses movimentos com atenção e em silêncio. Aparentemente, o problema era quando trabalhava diretamente comigo.
Wolfe também percebeu quando passou por nós.
- Vamos lá, garoto! Não tem como ela tentar fugir se você não tentar segurá-la. Ela não vai machucar você e você não vai machucá-la, não se preocupe.
A manobra em questão teria sido muito útil na noite em que fui atacada no beco. Por isso, estava com muita vontade de praticá-la e fiquei frustrada com a ajuda frouxa
de Adrian. Infelizmente, seus esforços eram tão parcos e sua chave de braço tão fraca que eu não precisava de nenhuma técnica especial para escapar dele. Bastava
sair andando.
Com Wolfe por perto, Adrian se fez passar por um agressor um pouco melhor, mas logo que ficamos sozinhos ele retomou a frouxidão anterior.
- Vamos trocar - eu disse, finalmente, quase querendo arrancar os cabelos. - Você tenta escapar para compensar a última vez.
Não conseguia acreditar que o problema era a preguiça de Adrian. Eu imaginava que o empecilho seria eu não querer tocar num vampiro, mas isso já não me incomodava
nem um pouco. Não via Adrian como um vampiro. Ele era Adrian, meu parceiro no curso. Precisava dele para aprender o golpe. Era tudo muito pragmático. Se não o conhecesse
melhor, chegaria a dizer que era ele quem estava com medo de me tocar, o que não fazia sentido. Os Moroi não tinham esse tipo de reservas. Será que havia alguma
coisa errada comigo? Por que Adrian não queria me tocar?
- Qual é o problema? - perguntei quando entramos no carro, a caminho da cidade. - Eu sei que você não é nenhum atleta, mas o que aconteceu lá dentro?
Adrian se recusava a me olhar nos olhos; em vez disso, olhava fixo para a paisagem.
- Acho que não é a minha praia. Estava animado com a ideia de brincar de super-herói, mas agora... não sei. Acho que foi uma má ideia. É mais trabalhoso do que eu
imaginava - ele disse, com um tom petulante de desprezo que eu não escutava havia tempos.
- O que aconteceu com a sua promessa de terminar as coisas que começa? - indaguei. - Você disse que tinha mudado.
- Isso valia para a arte - Adrian respondeu depressa. - Ainda estou no curso, não estou? Não abandonei o navio. Só não quero mais fazer isso. Não se preocupe. Agora
que eu tenho mais dinheiro, posso devolver a grana da inscrição pra você. Você não vai sair no prejuízo.
- Não é esse o problema - argumentei. - Continua sendo um desperdício. Ainda mais porque Wolfe não está ensinando nada muito difícil. Não estamos nos acabando de
treinar, como Eddie e Angeline fazem. Por que é tão difícil para você levar isso a sério e aprender? - Minha dúvida anterior retornou. - É comigo que você não quer
trabalhar? Tem... tem alguma coisa errada comigo?
- Não! Claro que não. De jeito nenhum - Adrian disse. Pelo canto do olho, vi que finalmente olhava para mim. - Talvez eu esteja tentando aprender coisas demais ao
mesmo tempo. Quer dizer, eu também deveria estar aprendendo a dirigir com câmbio manual. Não que isso esteja acontecendo.
Quase dei um tapa na testa. Fiquei tão frustrada com a aula que me esqueci completamente de ensinar Adrian a dirigir. Me senti idiota, mesmo que ainda estivesse
brava por ele desistir do curso de Wolfe. Olhei no relógio. Tinha coisas a fazer naquela noite em Amberwood, mas me sentia obrigada a compensá-lo.
- Vamos praticar quando estivermos perto da sua casa - prometi. - Vamos começar devagar, e ensinarei tudo o que você precisa saber. Se prestar atenção, deixo até
você dar umas voltas no quarteirão hoje.
A mudança no humor de Adrian foi gigantesca. Ele passou de sem graça e contrariado para enérgico e animado. Não consegui entender por quê. Claro que eu achava dirigir
algo fascinante, mas, tecnicamente falando, havia muito mais detalhes a aprender sobre transmissão manual do que sobre as técnicas de fuga de Wolfe. Por que elas
eram difíceis para ele e a embreagem era fácil?
Fiquei com ele mais uma hora depois que chegamos. Tive que admitir que Adrian prestou muita atenção a tudo o que eu dizia, apesar de suas respostas serem inconsistentes
sempre que eu o testava ou quando deixava que fizesse alguma coisa. Às vezes, respondia como um profissional. Outras, parecia completamente perdido em coisas que
eu podia jurar que ele tinha aprendido. Ao fim de uma hora, me senti segura o bastante para deixá-lo dirigir o carro em baixas velocidades e ruas vazias. Ainda demoraria
muito para que ele pudesse dirigir na estrada ou no trânsito movimentado de uma cidade grande.
- Acho que teremos outras aulas mais para a frente - eu disse a ele, quando terminamos. Tinha estacionado o carro atrás do prédio e estávamos voltando a pé para
a entrada principal, onde o Pingado tinha ficado. - Não leve esse carro muito longe daqui. Eu vi o hodômetro. Vou ficar sabendo.
- Anotado - ele disse, com o mesmo sorriso malandro. - Quando será a próxima aula? Quer voltar amanhã à noite?
- Amanhã eu não posso - respondi. - Vou sair com Brayden.
Fiquei surpresa com a minha ansiedade. Não só queria compensar pela festa, mas também buscava uma pitada de normalidade... Quer dizer, pelo menos o tipo de normalidade
que eu e Brayden tínhamos juntos. Além disso, as coisas com Adrian estavam ficando um tanto estranhas...
- Ah. - O sorriso de Adrian desapareceu. - Eu entendo. Amor e romance e tudo o mais.
- Vamos ao museu de tecidos - comentei. - É bem legal, mas não sei se vou encontrar muito amor e romance por lá.
Adrian ficou em choque.
- Existe um museu de tecido aqui? O que as pessoas fazem lá?
- Ah, elas olham... os tecidos. Na verdade, está tendo uma grande exposição de...
Parei quando chegamos à frente do prédio, onde, atrás do Pingado, estava um veículo conhecido: o carro alugado que Sonya e Dimitri estavam usando. Olhei para Adrian,
intrigada.
- Você estava esperando a visita deles?
- Não - ele respondeu, continuando a caminhar para a porta. - Mas eles têm a chave, então acho que podem se sentir à vontade. Eles fazem isso bastante, na verdade.
Ele come a minha comida e ela usa minhas coisas de cabelo.
Eu o segui.
- Espero que seja apenas o Dimitri.
Depois das revelações recentes sobre os caçadores, Sonya estava praticamente em prisão domiciliar. Pelo menos era o que eu pensava. Quando entrei no apartamento,
ela estava sentada no sofá. Não se via Dimitri em lugar nenhum. Ela levantou os olhos do laptop para nós.
- Graças a Deus que você chegou - ela disse, olhando para mim. - Jill disse que vocês tinham saído e eu esperava conseguir falar com você antes que voltasse para
Amberwood.
Algo me dizia que dali não podia vir coisa boa, mas tinha preocupações maiores no momento.
- O que você está fazendo aqui? - perguntei, achando que os caçadores iriam passar pela porta a qualquer momento. - Você devia ficar no Clarence até ir embora da
cidade.
- Vou depois de amanhã - ela confirmou, levantando do sofá, com os olhos acesos pelo misterioso motivo que a havia levado até lá. - Mas eu tinha que falar com você...
pessoalmente.
- Eu teria ido encontrá-la - protestei. - Não é seguro você sair na rua.
- Eu estou bem - ela disse. - Tomei cuidado para não ser seguida. Não dava pra esperar - ela disse, agitada e sem fôlego.
Mais importante do que ser capturada por aspirantes a caçador de vampiros? Duvidava muito.
Adrian cruzou os braços, parecendo surpreendentemente desaprovativo.
- Agora é tarde. Qual é o problema?
- Chegaram os resultados do exame de sangue de Sydney - Sonya explicou.
Meu coração parou. Não, pensei. Não, não e não.
- Não apareceu nenhuma alteração fisiológica, assim como o resultado de Dimitri - ela disse. - Nada de diferente com as proteínas, os anticorpos ou coisa assim.
Meu coração se encheu de alívio. Eu estava certa. Não havia nada de especial em mim, nenhuma qualidade inexplicável. Mesmo assim... ao mesmo tempo senti uma pontinha
de decepção. Não seria eu quem resolveria tudo.
- Dessa vez, mandamos para um laboratório Moroi, e não para um alquimista - Sonya continuou. - Um dos pesquisadores, que era usuário de terra, sentiu um zumbido
de magia de terra. Assim como Adrian e eu sentimos o espírito no sangue de Dimitri. O técnico pediu para usuários de outros tipos de magia examinarem sua amostra,
e eles detectaram todos os quatro elementos básicos.
O pânico voltou a tomar conta de mim, colocando-me numa montanha-russa de emoções que me deixava enjoada.
- Magia... no meu sangue? - Um segundo depois, entendi. - Claro que sim - disse devagar, tocando minha bochecha. - A tatuagem contém sangue de vampiro e magia. É
isso. Ela contém graus diferentes de encantos de vários usuários. Deve ser isso que apareceu na amostra.
Senti um calafrio. Mesmo com aquela explicação lógica, era assustador aceitar que havia magia correndo no meu sangue. Ainda achava os feitiços da sra. Terwilliger
abomináveis, mas pelo menos era um consolo saber que eles tiravam a magia de fora de mim. Mas saber que eu tinha algo dentro de mim era assustador. Mesmo assim,
não podia ficar surpresa com essa descoberta, sabendo da tatuagem. Sonya concordou com a cabeça.
- Sim, claro. Mas deve ter alguma coisa nessa combinação que é repulsiva para os Strigoi. Pode ser a chave para toda a nossa pesquisa!
Para minha surpresa, Adrian deu alguns passos na minha direção, e havia uma tensão em sua postura que era quase... protetora.
- Então você descobriu que existe magia no sangue alquimista - ele disse. - Não é nenhuma novidade. Caso encerrado. O que mais você quer dela?
- Outra amostra, para começar - Sonya respondeu, afoita. - O primeiro frasco que peguei acabou depois do teste. Sei que parece estranho, mas também seria bom se
um Moroi pudesse... bem, pudesse experimentar o seu sangue para saber se tem o mesmo gosto repulsivo que tem para os Strigoi. O ideal seria sangue fresco, mas não
tenho a ilusão de que você se submeteria a um fornecimento. Podemos apenas coletar outra amostra sua e...
- Não - interrompi, cambaleando para trás, horrorizada. - De jeito nenhum. Não importa se é direto no pescoço ou com uma agulha, não vou dar meu sangue para alguém
experimentar. Você tem ideia de como isso é errado? Sei que vocês fazem isso o tempo todo com os fornecedores, mas eu não sou um deles. Não devia ter dado a primeira
amostra a você. Vocês não precisam de mim. O segredo está no espírito. Lee é prova de que são os ex-Strigoi que vocês precisam examinar, e não a mim.
Sonya não se deixou intimidar com a minha reação. Ela continuou, mas seu tom era ainda mais calmo.
- Eu entendo seu medo, mas pense em como isso pode ser útil! Se algo no seu sangue a torna resistente aos Strigoi, você pode salvar inúmeras vidas!
- Alquimistas não são resistentes - eu disse. - A tatuagem não nos protege, se é aí que você quer chegar. Você acha que, em toda a nossa história, nenhum alquimista
foi transformado em Strigoi?
- Bem, claro - ela disse, hesitando, o que me incentivou a continuar.
- Então a magia que vocês sentiram em mim é irrelevante. É só a tatuagem. Todos os alquimistas têm. Talvez nosso sangue tenha um gosto ruim, mas isso não tem nada
a ver com a transformação em Strigoi. Ela também pode acontecer com a gente. - Eu estava fugindo do assunto, mas não me importava.
Sonya ficou perplexa, processando as implicações do que eu havia dito.
- Mas todos os alquimistas têm sangue de gosto ruim? Se sim, como um Strigoi conseguiria drená-los?
- Talvez varie de pessoa para pessoa - especulei. - Ou talvez alguns Strigoi sejam mais resistentes do que outros. Não sei. Seja como for, não é em nós que vocês
têm que se concentrar.
- A menos que tenha alguma coisa de especial em você - Sonya sugeriu.
Não. Eu não queria aquilo. Não queria ser examinada minuciosamente, trancafiada atrás de uma parede de vidro como Keith. Não podia. Torci para que ela percebesse
o tamanho do meu medo.
- Ela é especial em muitos aspectos - Adrian interrompeu, seco. - Mas o sangue dela não é objeto de disputa. Por que você está insistindo nisso de novo?
Sonya fixou os olhos nele.
- Não estou fazendo isso por motivos egoístas, e você sabe disso! Quero salvar nosso povo. Quero salvar os nossos povos. Não quero ver mais nenhum novo Strigoi no
mundo. Ninguém pode viver daquele jeito. - Uma faísca de terror pairou sobre seus olhos com o peso de uma lembrança antiga. - Essa sede de sangue, essa falta total
de compaixão por qualquer criatura viva... Ninguém pode imaginar como é viver daquele jeito, vazio por dentro. Você vira um pesadelo ambulante e... nem se importa
com isso...
- Engraçado - Adrian disse -, considerando que foi você quem decidiu virar Strigoi.
Sonya ficou pálida, e me senti dividida. Ficava grata por Adrian me defender, mas senti pena de Sonya. Uma vez ela me explicara como a instabilidade do espírito
- a mesma que Adrian temia - a havia levado a se tornar Strigoi. Em retrospecto, arrependia-se amargamente dessa decisão. Sonya teria se submetido à punição, mas
nenhum tribunal soube lidar com a situação dela.
- Foi um erro - ela disse, friamente. - Aprendi com ele e é por isso que desejo tanto salvar outras pessoas desse destino.
- Bem, então encontre uma maneira de fazer isso sem enfiar Sydney no meio. Você sabe como ela se sente em relação a nós - Adrian titubeou ao me olhar de relance,
e me surpreendi ao notar um quê de amargura em sua voz. - Você sabe como os alquimistas se sentem. Se continuar envolvendo Sydney nisso, ela vai se meter em confusão
com eles. E se você tem tanta certeza de que eles têm as respostas, peça por voluntários e faça os experimentos.
- Posso ajudar a conseguir voluntários autorizados para você - ofereci. - Posso falar com os meus superiores. Eles querem dar um fim aos Strigoi tanto quanto vocês.
Como Sonya demorou a responder, Adrian adivinhou por quê.
- Ela sabe que eles diriam não, Sage. É por isso que está apelando diretamente para você, e foi por isso que não mandou seu sangue para um laboratório alquimista.
- Por que vocês não conseguem enxergar a importância disso? - Sonya inquiriu, com um desejo desesperado de fazer o bem que me fez me sentir culpada e dividida.
- Eu consigo - Adrian disse. - Você acha que não quero ver todos aqueles malditos Strigoi varridos da face da terra? Eu quero! Mas não às custas de forçar as pessoas
a fazerem o que elas não querem.
Sonya lançou-lhe um olhar longo e direto.
- Acho que você está deixando seus sentimentos interferirem nisso tudo. Isso ainda vai acabar com a nossa pesquisa.
Ele sorriu.
- Então que bom que você vai se ver livre de mim daqui a dois dias.
Sonya alternou o olhar de mim para ele, parecendo prestes a dizer algo, mas então pensou melhor e, sem dizer outra palavra, foi embora, derrotada. Mais uma vez me
senti dividida. Em teoria, sabia que ela estava certa... mas meus instintos não podiam aceitar essa ideia.
- Não queria ter chateado Sonya - eu disse por fim.
A expressão de Adrian não demonstrava qualquer solidariedade.
- Ela que não devia ter chateado você. Sonya sabe como você se sente.
Ainda me senti um pouco mal, mas não conseguia abandonar a sensação de que, caso cedesse, eles continuariam a me pedir mais e mais. Me lembrei do dia em que Eddie
e Dimitri foram cobertos pela magia do espírito. Eu não queria correr o risco de me envolver até esse ponto. Já estava ultrapassando meus limites.
- Eu sei... mas é difícil - falei. - Gosto de Sonya. Dei a primeira amostra a ela, então entendo por que ela achou que seria fácil conseguir a segunda.
- Não importa - ele disse. - Não é não.
- Acho que vou mesmo falar sobre isso com os alquimistas - eu disse. - Talvez eles queiram ajudar.
Eu não achava que teria muitos problemas por ter cedido a primeira amostra. Afinal, os alquimistas apoiavam os experimentos iniciais, e provavelmente eu ganharia
pontos por me recusar a dar uma segunda amostra mesmo diante da pressão do grupo.
Ele deu de ombros.
- Se quiserem, ótimo. Se não, a culpa não é sua.
- Bom, obrigada por me defender bravamente de novo - brinquei. - Talvez você se envolveria mais no treinamento de Wolfe se tivesse de proteger outra pessoa, e não
a si mesmo.
Aquele velho sorriso voltou aos seus lábios.
- Não gosto de ver as pessoas sendo pressionadas, só isso.
- Mas você devia voltar à aula de Wolfe comigo - insisti. - Você precisa de uma chance para tentar ganhar de mim.
De repente, ele ficou sério novamente e desviou o olhar.
- Não sei, Sage. Vamos ver. Por enquanto, quero me concentrar em aprender a dirigir... quando você puder fugir do namorado, claro.
Fui embora pouco depois, ainda confusa com o comportamento estranho dele. Será que era algum efeito maluco do espírito? Num minuto, ele estava corajoso e protetor.
No outro, tristonho e fechado. Talvez houvesse um padrão ou algum tipo de raciocínio por trás daquilo que estava além da minha capacidade analítica.
De volta a Amberwood, fui diretamente para a biblioteca pegar um livro para a aula de inglês. A sra. Terwilliger havia aliviado parte das minhas tarefas usuais para
que eu pudesse “dedicar mais tempo” à realização dos feitiços. Como o estudo independente com ela - que deveria ser minha matéria mais fácil - tomava mais tempo
do que todo o resto, era um alívio poder me concentrar em outra coisa para variar um pouco. Ao sair da seção de literatura inglesa, avistei Jill e Eddie estudando
juntos numa mesa. Aquilo não era exatamente estranho. Estranho era Micah não estar junto com eles.
- Oi, gente - eu disse, puxando uma cadeira. - Dando duro?
- Tem ideia de como é estranho cursar o último ano de novo? - Eddie perguntou. - E eu nem posso matar aula. Preciso tirar notas decentes para continuar aqui.
- Ah, todo conhecimento é válido - respondi, abrindo um sorriso.
Ele mostrou os papéis à sua frente.
- Ah, é? E você tem algum conhecimento sobre a primeira mulher a ganhar o Pulitzer de ficção?
- Edith Wharton - respondi automaticamente. Ele rabiscou alguma coisa no papel e me virei para Jill. - Como vão as coisas? Cadê o Micah?
Jill estava com o queixo apoiado na mão, me encarando com uma expressão muito estranha, quase... contemplativa. Ela levou alguns segundos para se recuperar do torpor
e responder. O olhar contemplativo deu lugar a um constrangimento que, por sua vez, se transformou em desalento. Ela baixou os olhos para o livro.
- Desculpa. Estava pensando em como você fica bem de bege. O que você perguntou?
- Micah? - insisti.
- Ah, certo. Ele... tem umas coisas para fazer.
Tinha certeza quase absoluta de que aquela era a explicação mais curta que ela já havia me dado. Tentei me lembrar da última notícia que ouvira sobre a situação
dos dois.
- Vocês se entenderam, né?
- Sim. Acho que sim. Ele entendeu sobre o Dia de Ação de Graças - ela respondeu, e em seguida abriu um sorriso. - Ei, Eddie e eu estávamos falando sobre isso. Você
acha que poderíamos comemorar o Dia de Ação de Graças na casa de Clarence, como uma grande família? Você acha que ele iria se importar? Todos podemos ajudar e seria
bem divertido. Tipo, mesmo tirando o disfarce, nós realmente somos uma família. Eddie disse que pode fazer o peru.
- Acho que Clarence iria adorar - eu disse, contente por voltar a vê-la sorrindo. Então, repensei o que ela havia dito e me dirigi a Eddie, incrédula. - Você sabe
preparar um peru? Onde aprendeu isso? - Pelo que eu sabia, a maioria dos dampiros passava quase o ano todo nas escolas desde a mais tenra idade, sem muito tempo
para aprender a cozinhar.
- Ei - ele respondeu, sério. - Todo conhecimento é válido.
- Ele também não quis me contar - Jill comentou, rindo.
- Sabia que Angeline diz que sabe cozinhar também? - Eddie falou. - Estávamos conversando sobre isso no café da manhã. Ela diz que sabe fazer peru também, então,
se juntarmos forças, pode ser que dê certo. Claro que ela provavelmente vai querer caçar e matar o peru dela com as próprias mãos.
- Provavelmente - eu disse. Era incrível vê-lo falando sobre trabalhar em equipe com Angeline. Ainda mais incrível era que estivesse falando dela quase com carinho,
sem fazer nenhuma careta. Cada vez mais eu achava que o showzinho dela na assembleia da escola tinha sido uma coisa boa. Não precisávamos de mais discórdia no grupo.
- Bem, já peguei o que vim pegar, agora vou para o alojamento. Vejo vocês amanhã.
- Até mais - Eddie se despediu.
Jill não disse nada e, quando olhei para ela, ainda me observava com aquela expressão estranha e deslumbrada. Ela soltou um suspiro feliz.
- Adrian se divertiu muito com você na aula hoje, sabia?
Quase revirei os olhos.
- Nada é segredo para o laço. Ele não parecia estar se divertindo o tempo todo.
- Ah, mas ele realmente se divertiu - ela me garantiu, com um sorriso bobo no rosto. - Ele adora o fato de que você gosta mais do carro dele do que ele mesmo, e
acha fantástico como você está indo bem no curso de defesa pessoal. Não que seja uma surpresa. Você é sempre boa em tudo o que faz, sem nem perceber. Você não se
dá conta de metade das coisas que faz, como o jeito que cuida dos outros sem nunca pensar em si mesma.
Até mesmo Eddie pareceu um tanto surpreso com aquilo. Trocamos olhares desnorteados.
- Bem - respondi, constrangida, realmente sem saber como reagir àquela declaração de amor. Pensei que fugir seria a melhor opção. - Obrigada. Vejo vocês depois e...
Ei, onde você conseguiu isso?
- Hum? - ela indagou, saindo do torpor.
Jill estava usando um lenço de seda no pescoço, pintado em tons de pedras preciosas que quase lembravam uma cauda de pavão. Também me lembrava de mais alguma coisa,
mas eu não conseguia identificar o quê.
- O lenço. Nunca vi esse lenço antes.
- Ah - ela disse, passando os dedos pelo tecido macio. - Lia me deu.
- Quê? Quando você viu a Lia?
- Ela passou no alojamento ontem para devolver os vestidos. Não falei nada porque sabia que você ia querer entregar para ela de novo.
- E eu quero - respondi, firme.
Jill suspirou.
- Ah, vamos ficar com eles, vai. São tão bonitos. E você sabe que ela vai trazer de volta de qualquer jeito.
- Depois a gente conversa. Agora me diga qual é a do lenço.
- Não é nada de mais. Ela estava tentando me convencer sobre a coleção de lenços...
- Sim, sim, ela também me contou. Que acha que consegue fazer você ficar irreconhecível. - Sacudi a cabeça, sentindo uma raiva súbita. Será que nada mais estava
sob meu controle? - Não acredito que ela fez isso pelas minhas costas! Por favor, me diga que você não saiu com ela às escondidas para fazer um ensaio.
- Não, não - ela rapidamente respondeu. - Claro que não. Mas você não acha... não acha que exista algum jeito de ela conseguir esconder meu rosto?
Tentei me manter calma. Afinal, era com Lia que eu estava brava, não com Jill.
- Talvez sim. Talvez não. Você sabe que não podemos arriscar.
Jill fez que sim, entristecida.
- Sei.
Saí tão distraída com a minha irritação que quase trombei com Trey. Quando ele não respondeu meu oi, percebi que estava ainda mais distraído do que eu. Seu olhar
parecia assombrado, e seu corpo, exausto.
- Você está bem? - perguntei.
Com esforço, ele abriu um sorriso fraco.
- Sim, sim. Apenas sentindo muita pressão por todos os lados. Nada de mais. E você? Normalmente não precisam expulsar você daqui? Ou finalmente cansou de ficar oito
horas na biblioteca?
- Só vim pegar um livro - respondi. - E só fiquei dez minutos aqui. Passei quase a noite toda fora.
Ele franziu a testa.
- Saiu com Brayden?
- Vou sair com ele amanhã. Hoje eu tive... umas questões de família para resolver.
Ele franziu ainda mais a testa.
- Você tem saído muito, Melbourne. Tem um monte de amigos fora da escola, hein?
- Nem tanto - respondi. - Não tenho saído pra curtir a noite, se é o que você está pensando.
- Certo. Mas tome cuidado. Ouvi dizer que estão acontecendo umas coisas de meter medo ultimamente.
Lembrei que ele também havia demonstrado preocupação com Jill. Eu costumava acompanhar o noticiário local e não tinha ouvido nada de alarmante nos últimos dias.
- O quê? Tem alguma onda de crimes em Palm Springs que eu deveria saber?
- Só tome cuidado - ele respondeu.
Quando estávamos nos afastando, eu o chamei.
- Trey? Eu sei que isso não é da minha conta, mas se você estiver com algum problema... e quiser conversar, eu estou aqui, viu? - Isso era um grande avanço da minha
parte, visto que não tinha lá muitas habilidades sociais.
Trey abriu um sorriso melancólico e disse:
- Certo.
Voltei meio abalada para o alojamento. Adrian, Jill, Trey. Acho que, contando Eddie e Angeline se dando bem, todo mundo na minha vida estava se comportando de um
jeito esquisito. Faz parte do trabalho, pensei.
Assim que cheguei ao quarto, liguei para Donna Stanton, dos alquimistas. Nunca sabia ao certo em que fuso horário ela estava, então não me preocupei por ser tão
tarde. Ela atendeu imediatamente e não parecia cansada, o que tomei como um bom sinal. Ela não havia respondido meu e-mail sobre os guerreiros e eu estava ansiosa
por notícias. Eles representavam uma ameaça grande demais para que fossem ignorados.
- Srta. Sage - ela disse. - Estava pensando em ligar logo mais para você. Está tudo bem com a garota Dragomir?
- Jill? Sim, ela está ótima. Queria confirmar algumas coisas. A senhora recebeu minhas informações sobre os Guerreiros da Luz?
Stanton soltou um suspiro.
- Era sobre isso que eu queria falar com você. Houve algum outro confronto?
- Não. E parece que não estão mais nos seguindo. Talvez tenham desistido.
- Acho pouco provável. - Ela pareceu hesitar antes de dizer a frase seguinte. - Pelo menos de acordo com o que observamos no passado.
Congelei, perdendo a fala por um momento.
- No passado? Quer dizer... quer dizer que já tivemos contato com eles antes? Tinha esperanças de que fossem só... sei lá. Um grupo de malucos locais.
- Infelizmente, não. Já os encontramos antes. Acontece esporadicamente. Mas eles surgem por toda a parte.
Não estava acreditando nos meus próprios ouvidos.
- Mas sempre me disseram que os caçadores tinham desaparecido havia séculos. Por que ninguém fala sobre isso?
- Honestamente? - Stanton disse. - A maioria dos alquimistas não sabe. Queremos conduzir uma organização eficiente, que lide com o problema dos vampiros de um jeito
organizado e pacífico. Algumas pessoas no grupo podem querer tomar ações mais extremistas. Por isso, é melhor manter a existência de um grupo dissidente radical
em segredo. Não teria nem contado a você, mas com todos os encontros que você anda tendo, precisa estar preparada.
- Grupo dissidente... então eles têm mesmo uma relação com os alquimistas! - eu disse, sentindo-me enjoada.
- Há muito tempo não. - Ela também parecia não gostar nem um pouco daquilo. - Quase não há mais nenhuma semelhança. Eles são um bando de bárbaros malucos. O único
motivo para os deixarmos em paz é porque só costumam perseguir os Strigoi. Essa situação com Sonya Karp é mais delicada. Ela voltou a sofrer alguma ameaça?
- Não. Eu a vi hoje... Aliás, este é outro motivo para eu ter ligado...
Dei a Stanton um resumo dos vários experimentos com sangue, incluindo minha primeira doação. Descrevi em termos muito científicos, mostrando como poderia ser útil
como dado adicional. Então, fiz o possível para parecer devidamente assustada pelo segundo pedido, o que, diga-se de passagem, não foi nada difícil.
- De jeito nenhum - Stanton disse, sem hesitar. Normalmente as decisões alquimistas passavam pelas cadeias de comando, mesmo no caso de alguém com um cargo tão importante
como ela. Sua reação indicava que a ideia era tão contrária às crenças alquimistas que ela não precisava consultar ninguém. - Sangue humano para controle é uma coisa.
O resto que ela sugeriu está fora de questão. Não vou permitir que humanos sejam usados nesses experimentos, ainda mais quando as evidências são tão claras no sentido
de que o foco precisa ser nos ex-Strigoi, e não em nós. Além do mais, isso pode ser uma manobra dos Moroi para conseguir mais do nosso sangue por razões pessoais.
Não acreditava nem um pouco nessa última parte e tentei encontrar uma maneira delicada de dizer isso.
- Sonya parece acreditar sinceramente que isso pode nos ajudar a descobrir como nos proteger dos Strigoi. Ela só parece não entender como nos sentimos em relação
a isso.
- Claro que não - ela disse, com desdém. - Nenhum deles entende.
Voltamos a nos concentrar nos caçadores de vampiros. Os alquimistas estavam investigando algumas pistas na região. Ela não queria que eu fizesse nenhuma investigação
ativa por conta própria, mas fiquei incumbida de relatar imediatamente qualquer informação que chegasse até mim. Ela supunha que os Guerreiros da Luz estavam operando
a partir de um local na região e que, quando descobrissem onde era, os alquimistas “dariam um jeito neles”. Não sabia ao certo o que isso significava, mas seu tom
me causou um arrepio. Como ela mesma havia dito, não éramos um grupo particularmente agressivo... embora fôssemos ótimos em nos livrar de problemas.
- Ah - eu disse, quando estávamos prestes a desligar - Vocês chegaram a descobrir alguma coisa sobre o tal do Marcus Finch?
Eu havia tentado localizar o humano misterioso que Clarence mencionara que o havia salvado dos caçadores, mas não encontrara nada. Tinha esperanças de que Stanton
tivesse mais meios para isso.
- Não. Mas vamos continuar procurando. - Fez uma pausa breve e acrescentou: - Srta. Sage... não tenho palavras para expressar o quanto estamos contentes com todo
o seu trabalho. Você enfrentou mais problemas do que esperávamos e, mesmo assim, lidou com todos eles com competência e eficiência. Até seu comportamento com os
Moroi é excepcional. Uma pessoa mais fraca poderia ter cedido ao pedido de Karp. Você se recusou e entrou em contato comigo. Fico muito orgulhosa de ter apostado
em você.
Senti um aperto no peito. Muito orgulhosa. Não conseguia me lembrar da última vez que alguém afirmara ter orgulho de mim. Minha mãe vivia me dizendo isso, mas ninguém
ligado ao meu trabalho como alquimista já o tinha feito. Durante muito tempo, quis que meu pai dissesse. Por fim, acabei desistindo de esperar sentada. Dificilmente
poderia dizer que Stanton era uma figura paterna, mas suas palavras desencadearam uma felicidade em mim que eu não sabia que estava esperando para sair.
- Obrigada - eu disse, quando finalmente consegui abrir a boca.
- Continue assim - ela disse. - Quando puder, vou tirar você desse lugar e colocá-la num cargo que não envolva tanto contato com eles.
E, naquele momento, meu mundo caiu. Senti uma culpa súbita. Ela realmente havia apostado em mim e agora eu a estava iludindo. Eu não era como Liam, prestes a entregar
minha alma aos Strigoi, mas também não estava me mantendo objetiva em relação à minha missão. Aulas de direção. Dia de Ação de Graças. O que Stanton teria a dizer
se soubesse de tudo isso? Eu era uma farsa, colhendo glórias que não merecia. Se realmente fosse uma alquimista dedicada, mudaria minha vida ali. Pararia com todas
as atividades supérfluas com Jill e os outros. Sequer assistiria às aulas em Amberwood e aceitaria a oferta de morar fora dali. Só iria até lá para ver o grupo quando
fosse absolutamente necessário.
Se conseguisse fazer essas coisas, então, e só então, eu seria verdadeiramente uma boa alquimista.
E também, percebi, seria uma pessoa triste e terrivelmente solitária.
- Obrigada - eu disse.
Foi a única resposta que consegui dar.
18
NA MANHÃ SEGUINTE, Jill não me olhou com o mesmo brilho nos olhos, o que foi um alívio. Micah ressurgiu das cinzas e, apesar de não estarem flertando como antes,
conversavam animadamente sobre o projeto de ciências que ela estava fazendo. Eddie e Angeline também estavam absortos numa conversa, fazendo planos para quando ela
estivesse livre da suspensão. Os olhos dela faiscavam de felicidade e percebi que ela alimentava um sentimento sincero por ele. Não havia dado em cima dele apenas
pela conquista. Me perguntei se Eddie tinha noção disso.
Em vez de sentir que estava sobrando, fiquei contente de ver meu pequeno grupo se dando bem. Ainda estava num conflito interno por conta da conversa com Stanton,
mas não havia nada de errado em apreciar a paz que reinava ali. Estaria mais feliz ainda se Trey tivesse voltado ao normal, mas ao entrar na aula de história mais
tarde, vi que ele tinha faltado de novo. Podia apostar que ele alegaria mais algum problema de família, mas minhas antigas suspeitas ressurgiram - e se a família
dele fosse responsável por todos aqueles ferimentos? Será que eu devia comunicar minhas preocupações a alguém? Quem? Por outro lado, não queria tirar conclusões
precipitadas, o que me deixava num impasse.
Sempre sentava ao lado de Eddie na sala, e me inclinei para perto dele antes do sinal tocar, abaixando a voz para falar de outro assunto.
- Ei, você percebeu que a Jill anda estranha perto de mim?
- Ela anda com muita coisa na cabeça - ele disse, sempre rápido em defendê-la.
- É, eu sei, mas você deve ter notado ontem à noite. Na biblioteca? Quer dizer, considerando que sou péssima para perceber essas coisas, parecia que ela estava apaixonada
por mim ou algo do tipo.
Ele riu com a ideia.
- Ela estava exagerando mesmo, mas não acho que precise se preocupar com alguma questão amorosa. Ela admira muito você, só isso. Parte dela ainda quer ser uma guerreira
valente... - Ele fez uma pausa para saborear a ideia, com um misto de orgulho e encantamento no rosto, antes de voltar a olhar para mim. - Mas, ao mesmo tempo, você
está mostrando a ela que há muitas outras formas de ser forte.
- Obrigada - agradeci, um tanto confusa. - Mas, por falar nela como uma guerreira valente... - Examinei-o, curiosa. - Por que você não a treina mais? Não quer que
ela aperfeiçoe as habilidades de luta?
- Ah. Bem... tenho alguns motivos para isso. Um é que preciso me concentrar em Angeline. Outro é que simplesmente não quero que Jill se preocupe com isso. Sou eu
que preciso protegê-la. - Eu havia imaginado exatamente esses motivos, mas não o que veio a seguir: - E acho que... outra coisa é que não me sinto bem tendo contato
físico com ela. Quer dizer, sei que não significa nada pra ela... mas significa pra mim.
De novo, minhas habilidades sociais levaram um tempo para processar a ideia.
- Você quer dizer que não gosta de ter de tocá-la?
Eddie ficou vermelho.
- Isso não me incomoda nem um pouco, e esse é o problema. É melhor passarmos tempo juntos sem encostar um no outro.
Não esperava por isso, mas consegui compreender. Deixando Eddie com seus próprios demônios, segui o meu dia, pensando o que poderia ter acontecido com Trey. Tinha
esperanças de que ele entrasse na aula atrasado, o que acabou não acontecendo. Na realidade, ele não apareceu durante o dia todo, nem mesmo no final do meu estudo
independente, como pensei que faria para pegar as lições.
- Você parece preocupada - a sra. Terwilliger me disse, observando enquanto eu arrumava as coisas depois que o sinal tocou. - Com medo de não conseguir entregar
o projeto dentro do prazo?
- Não. - Na verdade, eu já havia terminado dois amuletos, mas obviamente não ia contar isso a ela. - Estou preocupada com Trey. Ele anda faltando muito. A senhora
sabe por que ele não tem vindo? Quer dizer, se puder me contar.
- A secretaria nos avisa quando o aluno falta o dia todo, mas não diz por quê. Se faz você se sentir um pouco melhor, Juarez avisou que faltaria de manhã. Ele não
desapareceu.
Quase mencionei meus medos em relação à família dele, mas me contive. Ainda precisava de mais evidências.
Em meio às preocupações com Trey, o trabalho da sra. Terwilliger, os guerreiros, Brayden e toda a minha miríade de complicações, eu sabia que não podia desperdiçar
meu tempo livre. Mesmo assim, fui à casa de Adrian depois da aula numa missão que não poderia recusar. No caminho de volta da aula de Wolfe, Adrian havia mencionado,
como quem não quer nada, que não mandara um mecânico dar uma olhada no Mustang antes de comprá-lo. Apesar da minha avaliação amadora não ter encontrado nenhum problema
no carro, insisti que Adrian levasse o veículo para uma vistoria, o que obviamente significava que eu tive de procurar uma oficina especializada e marcar uma hora.
O horário era pouco antes do meu encontro no museu de tecidos, mas tinha certeza de que daria tempo de fazer tudo.
- O antigo dono parecia bem confiável - Adrian disse, depois de deixarmos o carro no mecânico. Ele nos avisara que o olharia na mesma hora e que poderíamos dar uma
volta enquanto esperávamos. A oficina ficava nos arredores de uma área residencial, então Adrian sugeriu que déssemos uma volta pela vizinhança. - E tudo correu
bem no test-drive, por isso imaginei que não tinha nenhum problema.
- Mas pode ter algum problema que você não viu. É melhor prevenir do que remediar - eu disse, ciente de que estava sendo implicante. - Já é ruim o bastante ter comprado
um carro que você não sabe dirigir.
Ao olhar para ele, vi a sombra de um sorriso em seu rosto.
- Com a sua ajuda, vou ficar profissional rapidinho. Claro que, se você não quiser ajudar mais, posso me virar e aprender sozinho.
Resmunguei:
- Você sabe o que eu tenho a dizer sobre iss... Uau.
A região em que estávamos era muito rica. Eu diria que as casas eram verdadeiras mansões. Paramos diante de uma que parecia um misto de hotel-fazenda e mansão sulista,
grande e larga com um alpendre sustentado por pilares e revestimento de estuque cor-de-rosa. O jardim ostentava uma mistura de climas, grama verde e palmeiras ladeando
o caminho até a casa. As árvores pareciam sentinelas tropicais.
- Incrível - eu disse. - Adoro arquitetura. Em outra vida, teria estudado isso, em vez de química e vampiros. - Conforme seguíamos adiante, vimos mais casas semelhantes,
cada qual tentando superar as outras. Todas tinham cercas altas e sebes protegendo os quintais. - Queria saber o que tem lá atrás. Piscinas, provavelmente.
Adrian parou em frente a uma delas, amarela como seu carro, que exibia outra mistura de estilos, como se fosse uma versão sulista de um castelo medieval, adornada
por pequenas torres.
- Bela justaposição - ele comentou.
Virei para ele, sabendo que meus olhos estavam arregalados de surpresa.
- Você acabou de usar “justaposição” numa frase ou é impressão minha?
- Sim, Sage - ele respondeu, com paciência. - O termo é usado o tempo todo em arte quando se misturam componentes diferentes. E eu sei consultar o dicionário. -
Ele desviou o olhar e voltou a examinar a casa, pousando os olhos num jardineiro que podava as cercas vivas. Um sorriso maroto perpassou seus lábios. - Quer ver
como é lá atrás? Vem.
- O que voc...
Antes que eu pudesse dizer outra palavra, Adrian avançou a passos largos pela trilha de granito e cortou caminho pelo gramado até onde o rapaz estava trabalhando.
Não queria ter nada a ver com aquilo, mas a parte responsável em mim não podia deixar Adrian entrar em apuros. Corri atrás dele.
- Os donos estão em casa?
O jardineiro parou de podar e fixou os olhos em Adrian.
- Não.
- Quando eles voltam?
- Depois das seis.
O simples fato de o sujeito estar respondendo àquelas perguntas me deixou espantada. Se me perguntassem aquilo, eu pensaria que a pessoa estava planejando um assalto.
Então notei o olhar vítreo do jardineiro e entendi o que estava acontecendo.
- Adrian...
Os olhos dele não pararam de encarar fixamente o rosto do rapaz.
- Leve a gente para o quintal dos fundos.
- Claro.
O jardineiro deixou a tesoura cair e seguiu em direção a um portão na lateral da casa. Tentei chamar a atenção de Adrian para pôr um fim àquilo, mas ele estava andando
mais rápido que eu. Nosso guia parou no portão, digitou um código de segurança e nos levou para os fundos. Meus protestos cessaram quando olhei ao redor.
A área dos fundos era quase três vezes maior que a da frente. Mais palmeiras cercavam o quintal, ladeado por um jardim repleto de plantas nativas e não nativas da
região. O espaço era dominado por uma piscina oval gigantesca, cujo tom turquesa contrastava com o cinza do granito ao redor. Ao lado dela, alguns degraus subiam
até uma piscina quadrada e menor, em que caberiam algumas poucas pessoas. Uma queda-d’água jorrava entre esta piscina e a maior. Tochas e mesas rústicas completavam
o ambiente luxuoso.
- Obrigado - Adrian disse ao jardineiro. - Volte para o seu trabalho. Não tem problema ficarmos aqui. Nós conhecemos a saída.
- Claro - o rapaz respondeu, voltando pelo caminho que havíamos entrado.
Voltei subitamente ao mundo real.
- Adrian! Você usou compulsão no moço. Isso... sério, isso é...
- Fenomenal? - Adrian sugeriu, seguindo em direção aos degraus que levavam para a piscina menor. - É, eu sei.
- É errado! Tudo isso. Invadir essa casa, usar a compulsão... - Apesar do calor escaldante, senti um calafrio. - É imoral controlar a mente de outra pessoa. Você
sabe disso. Nossos povos concordam nesse ponto.
- Ei, ninguém saiu ferido. - Ele subiu ao topo da piscina e ficou de pé na beirada, como se vigiasse seu império. O sol destacava o brilho castanho de seu cabelo.
- Acredite, aquele cara foi fácil de controlar. Não tinha a menor força de vontade. Mal precisei usar a compulsão.
- Adrian...
- Sem essa, Sage. Ninguém saiu ferido. Vem cá olhar essa vista.
Estava quase com medo de ir até lá. Era tão raro ver os Moroi usando magia que ficava fácil fingir que ela não existia. Ver Adrian fazendo uso dela, da maneira mais
traiçoeira possível, fez minha pele arrepiar. Como tinha dito à sra. Terwilliger em nossa conversa sobre feitiços, ninguém deveria ser capaz de controlar outras
pessoas daquela forma.
- Vem cá - Adrian insistiu. - Não está com medo de que eu vá usar a compulsão para fazer você vir até aqui, está?
- Claro que não - respondi, e falava sério. Não sabia por quê, mas parte de mim tinha certeza de que Adrian nunca, em hipótese alguma, me causaria algum mal.
Relutante, fui até onde ele estava, na esperança de convencê-lo a ir embora. Quando cheguei ao topo, porém, meu queixo caiu. A piscina menor não parecera tão alta,
mas proporcionava uma visão espetacular das montanhas ao longe, escarpadas e majestosas contra o azul do céu. A piscina maior brilhava abaixo de nós e a cascata
davam a impressão de que havíamos entrado em algum tipo de oásis místico.
- Da hora, hein? - ele comentou.
Adrian sentou à beira da piscina menor, arregaçou a barra da calça e tirou o tênis e as meias.
- O que você está fazendo agora? - indaguei.
- Aproveitando o máximo possível. - Ele colocou os pés na água. - Vem. Faça alguma coisa errada para variar um pouco. Não que isso seja muito errado. Não estamos
destruindo o lugar nem nada do tipo.
Hesitei, mas a água me chamava, como se também fosse capaz de usar a compulsão. Me acomodando, imitei Adrian e mergulhei os pés descalços na água. O frescor dela
era espantoso - e delicioso - sob aquele calor intenso.
- Poderia viver à base disso - admiti. - E se os donos da casa chegarem antes?
Ele deu de ombros.
- Posso livrar a gente dessa.
Aquilo não era muito tranquilizador. Virei-me para a vista magnífica e para a casa majestosa. Eu não fazia o tipo que se dava a devaneios, mas voltei a pensar no
que dissera sobre levar outra vida. Como seria ter uma casa como aquela? Permanecer num só lugar? Passar os dias à beira da piscina, mergulhando sob o sol, sem ter
que me preocupar com o destino da humanidade? Fiquei tão absorta nesse faz de conta que perdi a noção do tempo.
- Precisamos voltar para a oficina - exclamei. Ao olhar para Adrian, fiquei surpresa ao perceber que ele me observava com uma expressão de contentamento no rosto.
Seus olhos pareciam examinar cada um dos meus traços. Ao ver que eu o tinha flagrado, ele desviou o olhar imediatamente, retomando a expressão sarcástica de sempre
no lugar daquele ar contemplativo.
- O mecânico pode esperar - ele disse.
- Sim, mas marquei de encontrar Brayden daqui a pouco. Vou chegar... - Foi então que dei uma olhada melhor em Adrian. - O que você fez? Olhe pra você! Você não devia
ficar aqui.
- Não é tão mal.
Ele estava mentindo e nós dois sabíamos disso. Era fim de tarde e o sol estava impiedoso. Eu mesma sentira isso, apesar de o frescor da água ter ajudado a me distrair.
Somado ao fato de que não era uma vampira. Claro que tinha medo de queimaduras e insolações, mas gostava muito do sol e tinha uma tolerância alta. Não era o caso
dos vampiros.
Adrian estava pingando de suor; a camiseta e o cabelo estavam ensopados. Manchas cor-de-rosa cobriam seu rosto. Eu sabia o que era aquilo: já tinha visto em Jill
quando ela fora obrigada a praticar esportes ao ar livre na aula de educação física. Se não fossem tratadas, poderiam virar queimaduras. Levantei num pulo.
- Vamos, você precisa sair daqui antes que piore. O que você tinha na cabeça?
A expressão dele era surpreendentemente calma para alguém que parecia prestes a desmaiar.
- Valeu a pena. Fez você... feliz.
- Isso é maluquice.
- Não foi a coisa mais louca que já fiz na vida. - Adrian sorriu ao levantar os olhos para mim. Eles pareciam um tanto desfocados, como se não vissem apenas eu.
- O que é uma loucurazinha de vez em quando? Eu deveria estar fazendo experimentos... Que tal analisar o que brilha mais: sua aura ou o sol?
Fiquei perturbada pela maneira como ele me olhava e falava comigo, e me lembrei do que Jill havia dito sobre o espírito ser capaz de enlouquecer os usuários aos
poucos. Adrian não parecia exatamente louco, mas sem dúvida algo o assombrava, uma diferença clara em relação ao seu humor ácido de sempre. Parecia que alguma coisa
tinha tomado conta dele. Me lembrei daquele verso sobre sonhar e estar acordado.
- Vamos - repeti, oferecendo a minha mão. - Você não devia ter usado o espírito. Precisamos sair daqui.
Ele pegou minha mão e levantou, cambaleante. Senti uma onda de calor e eletricidade passar pelo meu corpo, como da última vez em que nos tocamos, e nossos olhares
se cruzaram. Por um momento, só conseguia pensar no que ele havia dito: Fez você feliz...
Afastei esses sentimentos e tirei Adrian dali o mais rápido que pude, descobrindo, no fim, que o mecânico ainda não tinha terminado a vistoria. Pelo menos na oficina
pudemos arranjar um pouco de água para Adrian e ar-condicionado. Enquanto esperávamos, mandei uma mensagem para Brayden. Vou chegar uma hora atrasada por causa de
uns problemas de família. Desculpe. Vou para aí assim que possível. Cerca de trinta segundos depois, o celular vibrou: Só vai sobrar uma hora para visitarmos o museu
de tecidos.
- É pouco tempo - Adrian disse, com cara de pau.
Não tinha notado que ele estava lendo por cima do meu ombro. Virei o celular e sugeri a Brayden que nos encontrássemos apenas para jantar. Ele concordou.
- Estou um desastre - murmurei, ao me olhar no espelho. Definitivamente havia pagado o preço por ficar no sol: estava suada e exausta.
- Não se preocupe - Adrian disse. - Se ele não viu como você estava linda naquele vestido vermelho, é provável que não note nada agora. - Hesitou e então acrescentou:
- Não que haja alguma coisa para notar. Você está bonita como sempre.
Estava prestes a me irritar com ele por me provocar, mas quando o olhei, sua expressão parecia extremamente sincera. Qualquer que fosse a resposta que eu planejava
dar, ela esmoreceu nos meus lábios e me levantei apressada para checar a situação do carro e esconder o quanto aquilo me perturbara.
O mecânico finalmente terminou o serviço, sem encontrar nenhum problema, e Adrian e eu seguimos para o centro. Ficava observando-o, preocupada, com medo de que fosse
desmaiar.
- Pare de se preocupar, Sage. Estou ótimo - ele disse. - Mas... ficaria melhor com um sorvete. Até você precisa admitir que um sorvetinho cairia bem agora.
Cairia mesmo, mas não daria essa satisfação a ele.
- Qual é o seu lance com doces gelados? Por que você vive querendo um?
- Porque nós moramos num deserto.
Não havia argumento contra isso. Chegamos ao prédio e trocamos os carros de lugar. Antes que ele entrasse, o enchi de recomendações para beber muita água e repousar
bastante. E então, falei o que vinha queimando dentro de mim.
- Obrigada pelo passeio na piscina - eu disse. - Tirando a parte em que você quase teve uma insolação, foi incrível.
Ele abriu um sorriso presunçoso.
- Talvez você acabe se acostumando com a magia dos vampiros.
- Não - respondi automaticamente. - Nunca vou me acostumar com aquilo.
Seu sorriso desapareceu.
- Claro que não - murmurou. - Até mais.
Finalmente cheguei ao jantar. Eu havia escolhido um restaurante italiano, repleto do aroma de alho e queijo. Brayden estava sentado a uma mesa no canto, bebericando
água sob o olhar fixo da garçonete, que parecia impaciente para que ele fizesse o pedido. Sentei à frente dele, colocando minha bolsa do lado.
- Mil desculpas - eu disse. - Tinha que resolver uma coisa com meu... irmão.
Se Brayden estava bravo, não demonstrou. Era o jeito dele. No entanto, me lançou um olhar inquisidor.
- Era algum esporte? Parece que você correu uma maratona.
Aquilo não era um insulto, de maneira nenhuma, mas me pegou de surpresa, principalmente porque me fez lembrar do comentário de Adrian. Brayden não tinha quase nada
a dizer sobre minha fantasia do Dia das Bruxas, mas tinha prestado atenção naquilo?
- Nós estávamos em Santa Sofia, levando o carro dele para uma vistoria.
- É um lindo lugar. Se continuar subindo a estrada, vai parar no Parque Nacional Joshua Tree. Você já foi lá?
- Não. Só li a respeito.
- É um lugar icônico. A geologia é fascinante.
A garçonete passou e fiquei feliz ao pedir um latte gelado. Brayden estava mais do que contente ao me falar sobre a geologia do parque, e logo caímos no ritmo confortável
das nossas discussões intelectuais. Não sabia sobre a formação específica do parque, mas sabia mais do que o suficiente sobre geologia em geral para acompanhá-lo.
Na verdade, conseguia conversar no piloto automático enquanto minha mente devaneava de volta para Adrian. Lembrei novamente o que ele havia dito sobre o vestido
vermelho. Também não conseguia esquecer o comentário sobre me fazer feliz e como isso tinha feito seu sofrimento valer a pena.
- O que você acha?
- Ahn? - Percebi que acabara perdendo o fio da conversa, no fim das contas.
- Perguntei que tipo de deserto você acha mais interessante - Brayden explicou. - O deserto de Mojave é mais famoso, mas sinceramente prefiro o deserto do Colorado.
- Ah. - Retomei a conversa lentamente. - Humm, Mojave. Gosto mais das formações rochosas.
Isso desencadeou um debate sobre aquelas regiões enquanto comíamos, e Brayden parecia cada vez mais contente. Percebi que ele realmente gostava de ter alguém que
acompanhasse o nível de sua conversa. Nenhum dos meus livros tinha dito nada sobre fisgar o homem pelos debates acadêmicos, mas eu não me importava. Gostava da conversa,
mas ela não me causava nenhum frio na barriga. Precisei me lembrar de que ainda estávamos no começo do relacionamento - se é que podia chamar assim. Sem dúvida,
a parte da paixão chegaria em breve.
Conversamos por muito tempo depois do fim do jantar. Sem que pedíssemos, a garçonete trouxe o cardápio de sobremesas quando terminamos e me surpreendi ao dizer:
- Nossa... não consigo acreditar na vontade que estou sentindo de um sorvete italiano. Isso nunca acontece comigo. - Talvez o suor tivesse esgotado todos os meus
nutrientes... ou talvez ainda estivesse com Adrian na cabeça.
- Nunca vi você pedindo sobremesa - Brayden disse, colocando o cardápio dele de lado. - Não é açúcar demais pra você?
Essa era outra das frases insólitas dele que podiam ser interpretadas de inúmeras maneiras. Será que ele estava me criticando? Achava que eu não devia comer nenhum
doce? Eu não sabia dizer, mas aquilo bastou para eu fechar o cardápio e colocá-lo sobre o dele.
Sem mais nada programado para a noite, decidimos dar um passeio depois do jantar. A temperatura estava mais amena e ainda estava claro o bastante para eu não ficar
com medo de que os Guerreiros da Luz fossem surgir a cada esquina. Nem por isso ignorei os ensinamentos de Wolfe. Continuei de olho nos arredores, atenta a qualquer
coisa suspeita.
Chegamos a um pequeno parque e encontramos um banco vazio num canto. Sentamos ali e, enquanto observávamos as crianças brincarem do lado oposto do gramado, continuamos
nossa conversa sobre observação de pássaros no Mojave. Brayden colocou o braço ao redor de mim enquanto conversávamos, até que eventualmente o assunto acabou, e
ficamos simplesmente sentados num silêncio confortável.
- Sydney...
Desviei o olhar das crianças e me virei para ele, surpresa pelo seu tom inseguro, completamente diferente do que ele tinha acabado de usar para defender a superioridade
do pássaro-azul-da-montanha em relação ao pássaro-azul-ocidental. Havia doçura em seu olhar enquanto me fitava. A luz do crepúsculo fazia seus olhos cor de avelã
ficarem num tom mais dourado do que de costume, mas ocultava completamente o verde, o que era uma pena.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele se inclinou na minha direção e me beijou. Foi um pouco mais intenso do que o último, mas ainda estava longe dos beijos
cinematográficos avassaladores. Dessa vez, ele pôs a mão no meu ombro, puxando-me delicadamente. O beijo também durou mais do que os anteriores, e tentei relaxar
e me deixar levar pela sensação dos lábios de outra pessoa.
Foi ele quem interrompeu, um pouco mais abruptamente do que eu esperava.
- Des... desculpe - ele disse, desviando o olhar. - Não devia ter feito isso.
- Por que não? - perguntei, não por estar morrendo de vontade de beijá-lo, mas porque aquele parecia o lugar ideal para um beijo: um parque romântico ao pôr do sol.
- Estamos em público. Acho que é um pouco vulgar. - Vulgar? Eu nem tinha tanta certeza assim de que estávamos em público, já que não havia ninguém por perto e estávamos
escondidos à sombra de algumas árvores. Brayden soltou um suspiro, desanimado. - Acho que perdi o controle. Não vai acontecer de novo.
- Tudo bem - eu disse.
Não me pareceu uma perda de controle tão grande, mas quem era eu para dizer? Fiquei pensando que, talvez, uma pequena perda de controle aqui e ali não fosse algo
tão ruim. Não era esse tipo de coisa que resultava numa paixão? Mas isso eu também não sabia. Tudo o que sabia era que aquele beijo fora muito parecido com o anterior:
bom, mas nada espetacular. Senti um aperto no peito. Havia algo errado comigo. Todo mundo vivia falando sobre como eu era socialmente inapta. Será que isso se estendia
ao romance também? Será que eu era tão fria que passaria o resto da vida sem sentir absolutamente nada?
Acho que Brayden interpretou mal meu desânimo e pensou que eu estava chateada com ele. Ele levantou e estendeu a mão para mim.
- Ei, vamos até uma casa de chá aqui perto. Eles têm uns quadros de um pintor da cidade que acho que você vai gostar. Além disso, chá não tem calorias, certo? Melhor
que sobremesa.
- Certo - eu disse. Pensar no sorvete italiano não me animou em nada. O restaurante italiano tinha um de romã que parecia a melhor coisa do mundo. Ao me levantar,
meu celular tocou, pegando ambos de surpresa. - Alô?
- Sage? Sou eu.
Não tinha por que ficar brava com Adrian depois do que ele havia feito por mim, mas por algum motivo fiquei irritada com aquela interrupção. Estava me esforçando
para aproveitar ao máximo a noite com Brayden, e Adrian vinha atrapalhar tudo.
- Que foi? - perguntei.
- Você ainda está no centro? Precisa vir para cá, agora.
- Você sabe que estou com Brayden - eu disse. Aquilo era demais, até mesmo para Adrian. - Não posso largar tudo para ficar divertindo você.
- O problema não é comigo. - Foi então que notei que sua voz estava dura e séria. Senti um aperto no peito. - É Sonya. Ela desapareceu.
19
- ELA NÃO IA SAIR DA CIDADE? - lembrei.
- Só amanhã.
Percebi que ele estava certo. Na conversa da noite anterior, Sonya havia dito que partiria em dois dias.
- Você tem certeza de que ela desapareceu mesmo? - perguntei. - Talvez só tenha... saído.
- Belikov está aqui, e ele está histérico. Disse que ela não voltou para casa ontem à noite.
Quase deixei o telefone cair. Ontem à noite? Sonya já estava desaparecida havia tanto tempo? Fazia quase vinte e quatro horas.
- Como ninguém notou até agora? - perguntei.
- Não sei - Adrian disse. - Você pode vir para cá, Sydney? Por favor?
Quando ele me chamava pelo primeiro nome, me desarmava. Sempre levava as coisas a outro grau de gravidade, ainda que essa situação não precisasse de nenhuma ajuda
para isso. Sonya. Desaparecida havia vinte e quatro horas. Pelo que sabíamos, ela já nem estaria viva se tivesse sido pega por aqueles malucos com espadas.
O rosto de Brayden expressava um misto de incredulidade e desapontamento quando disse a ele que precisava ir embora.
- Mas você... Assim... - Foi um dos raros momentos em que perdeu a fala.
- Sinto muito - eu disse, sinceramente. - Ainda mais depois de ter me atrasado e arruinado o passeio no museu. Mas é uma emergência familiar.
- Sua família tem um monte de emergências, hein?
Nem me fale, pensei. Em vez de dizer isso, porém, continuei a pedir desculpas:
- Mil desculpas. Eu... - Quase cheguei a dizer que compensaria depois, mas já havia dito isso na festa do Dia das Bruxas. Aquela noite era para ser a compensação.
- Sinto muito mesmo.
A casa de Adrian era perto o bastante para eu ir a pé, mas Brayden insistiu em me levar de carro, já que o sol estava se pondo. Não foi nada difícil aceitar.
- Uau - Brayden disse, quando estacionou ao lado prédio. - Belo Mustang.
- Pois é. É um exemplar de 1967 - respondi automaticamente. - Ótimo motor. É do meu irmão. Ele mudou de lugar de novo! Espero que não tenha ido muito longe com o
carro... Uau. O que é aquilo?
Brayden seguiu meu olhar.
- Um Jaguar?
- Claro. - O carro preto lustroso estava estacionado na frente ao Mustang. - De onde será que ele surgiu?
Brayden não sabia, claro. Depois de mais alguns pedidos de desculpa e uma promessa de que entraria em contato, saí. Não houve nenhuma tentativa de beijo, de tão
desapontado que ele estava com o fim do nosso encontro, e de tão preocupada que eu estava com Sonya. Tanto é que esqueci completamente de Brayden enquanto caminhava
para o prédio. Eu tinha problemas maiores.
- É do Clarence - Adrian disse, ao abrir a porta.
- Hein? - perguntei.
- O Jaguar. Pensei que você quisesse saber. Ele deixou Belikov vir com ele já que Sonya estava com o alugado. - Ele me deu passagem para entrar, meneando a cabeça
em desalento. - Você acredita que o carro estava trancado na garagem o tempo todo que morei com ele? Ele disse que esqueceu que tinha! E eu lá, sendo obrigado a
andar de ônibus.
Em outras circunstâncias eu teria dado risada, mas, ao ver a expressão de Dimitri, todo bom humor desapareceu. Ele caminhava de um lado para o outro da sala como
um animal aprisionado, irradiando frustração e ansiedade.
- Eu sou um idiota - ele murmurou. Não entendi se estava falando sozinho ou com a gente. - Não percebi que ela saiu ontem à noite e depois passei metade do dia achando
que ela estava cuidando do jardim.
- Você tentou ligar pra ela? - Eu sabia que era uma pergunta idiota, mas precisava começar em termos lógicos.
- Sim - Dimitri disse. - Ela não atende. Por via das dúvidas, chequei duas vezes se o voo dela não tinha sido alterado, e depois ainda conversei com Mikhail para
ver se ele sabia de alguma coisa. Ele não sabia de nada. Tudo o que consegui foi preocupá-lo.
- Ele tem motivos para se preocupar - murmurei, sentada à beira do sofá. Nada de bom podia ter acontecido. Sabíamos que os guerreiros estavam obcecados com Sonya,
e agora ela havia desaparecido depois de sair sozinha.
- Acabei de descobrir que ela veio ver vocês - Dimitri acrescentou. Ele parou de andar e nos encarou. - Ela disse alguma coisa que dava a entender para onde estava
indo?
- Não - respondi. - A conversa... não terminou muito bem entre nós.
Dimitri assentiu.
- Adrian deu a entender a mesma coisa.
Levantei os olhos para Adrian e pude ver que, assim como eu, ele não queria entrar no assunto.
- Nós tivemos uma discussão - ele admitiu. - Ela estava tentando forçar Sydney a participar de uns experimentos, e Sydney recusou. Como Sonya continuou insistindo,
me meti na conversa e ela acabou indo embora. Não disse para onde ia.
O rosto do Dimitri ficou ainda mais sombrio.
- Então qualquer coisa pode ter acontecido. Ela pode ter sido pega aqui na frente. Ou pode ter ido a algum lugar e ter sido raptada depois.
Ou ela pode estar morta. Nos termos em que o Dimitri estava falando, ela ainda estaria viva, mas eu não tinha tanta certeza. Os caçadores que haviam nos atacado
no beco pareciam muito determinados a matá-la ali mesmo. Se ela não voltara para casa na última noite, eram grandes as chances de que eles a tivessem encontrado.
Vinte e quatro horas era um tempo longo demais para manter uma “criatura das trevas” viva. Estudando o rosto do Dimitri, percebi que ele tinha consciência de tudo
isso. Apenas estava trabalhando em cima da esperança de que tínhamos chance de fazer algo, de que não estávamos de mãos atadas.
Resoluto, Dimitri caminhou em direção à porta.
- Preciso avisar a polícia.
- Comunicar o desaparecimento? - Adrian perguntou.
- Isso e, o que é mais importante, arranjar um mandado de busca para o carro. Se ela tiver sido sequestrada... - Ele hesitou, reprimindo o medo que rondava a todos
nós. - Se ela está presa em algum esconderijo, vai ser muito difícil localizar o cativeiro. Mas é muito mais difícil esconder um carro do que uma mulher. Se a polícia
divulgar a descrição do carro, podemos ter alguma pista se ele aparecer. - Fez menção de abrir a porta e então voltou a nos encarar. - Vocês têm certeza de que não
se lembram de nada que possa ajudar?
Adrian e eu repetimos que não. Dimitri saiu, dando instruções desnecessárias para que o avisássemos imediatamente se lembrássemos de alguma coisa ou se, por algum
milagre, Sonya aparecesse. Assim que saiu, soltei um suspiro e disse:
- É culpa minha.
Adrian me encarou, surpreso.
- Por que você diz isso?
- Sonya veio até aqui, saiu de casa quando não devia, por minha culpa. Por culpa do meu sangue. Vai saber o que teria acontecido se eu não tivesse recusado? Talvez
com uma diferença de alguns minutos os caçadores não estariam mais por perto. Ou talvez, se ela não estivesse tão nervosa, poderia ter conseguido se defender melhor.
- Mil lembranças rodaram na minha cabeça. Sonya fazendo o lírio crescer para mim. Sonya conversando com a rainha em favor de Adrian. Sonya mostrando fotos dos vestidos
de dama de honra. Sonya trabalhando com diligência para deter os Strigoi e se redimir. Tudo aquilo poderia estar perdido.
- Talvez, talvez, talvez. - Adrian sentou perto de mim no sofá. - Você não pode pensar desse jeito e, poxa, não pode ficar se culpando pelos atos de um grupo de
marginais loucos.
Sabia que ele estava certo, mas não me senti nem um pouco melhor.
- Preciso ligar para os alquimistas. Temos contatos na polícia também.
- Pode ser uma boa ideia - ele disse, sem muito entusiasmo. - É só que tenho um mau pressentimento com esses caras. Mesmo se... bem, se ela estiver viva, não sei
como poderemos encontrá-la. Não temos nenhuma solução mágica e miraculosa.
Congelei.
- Ai, meu Deus.
- Que foi? - ele perguntou e me encarou, preocupado. - Você lembrou de alguma coisa?
- Sim... mas não o que você está pensando. - Fechei os olhos e respirei fundo. Não, não, não. A ideia que passou pela minha cabeça era maluca. Não devia nem considerar
aquela possibilidade. Dimitri estava certo. Precisávamos nos focar em métodos normais e concretos de localizar a Sonya.
- Sage? - Adrian tocou meu braço de leve, e me sobressaltei ao sentir seus dedos contra a minha pele. - Você está bem?
- Não sei - respondi baixinho. - Acabei de ter uma ideia maluca.
- Bem-vinda ao meu mundo.
Desviei o olhar, em conflito sobre que decisão tomar. Aquilo que estava considerando... algumas pessoas poderiam dizer que não era muito diferente do que eu já havia
feito antes. Mesmo assim, tudo se resumia à linha tênue entre fazer algo por escolha própria e fazer porque era obrigada. Não havia dúvida ali. Aquilo era uma escolha.
Um exercício do livre-arbítrio.
- Adrian... e se eu tiver um jeito de encontrar Sonya, mas ele for contra tudo o que acredito?
Ele levou alguns segundos para responder.
- Você acredita em trazer Sonya de volta? Se sim, não vai estar contra tudo o que acredita.
Por mais distorcida que fosse, aquela lógica me deu o empurrão de que precisava. Peguei o celular e disquei um número para o qual quase nunca ligava, embora recebesse
mensagens e ligações dele o tempo todo. Fui atendida depois de dois toques.
- Sra. Terwilliger? É a Sydney.
- Srta. Melbourne. O que posso fazer por você?
- Preciso encontrar a senhora. É meio urg... Não, nada de meio. É urgente. A senhora está na escola?
- Não. Por incrível que pareça, eu volto pra casa de vez em quando. - Ela fez uma pausa e então acrescentou: - Mas... claro que você é bem-vinda aqui.
Não sei por que aquilo me deixou incomodada. Afinal, passava muito tempo na casa de Clarence. Sem dúvida, a vasta mansão de um vampiro era muito pior do que a casa
de uma professora do ensino médio. Claro, a professora em questão também era uma bruxa, então não sabia ao certo se deveria esperar um típico apartamento de classe
média ou uma casa feita de doces.
Engoli em seco.
- Você tem tantos livros de feitiços em casa quanto na escola?
Adrian arqueou a sobrancelha ao ouvir a palavra “feitiços”.
A sra. Terwilliger hesitou por muito mais tempo dessa vez.
- Sim - ela disse. - Até mais.
Ela me passou o endereço e, antes mesmo que eu pudesse desligar, Adrian disse:
- Vou com você.
- Você nem sabe aonde estou indo.
- Verdade - ele disse. - Mas a falta de informações nunca me impediu antes. Sei que tem alguma coisa a ver com Sonya, e isso já basta. Além disso, você parece estar
morrendo de medo. Não vou deixar você ir sozinha de jeito nenhum.
Cruzei os braços.
- Já enfrentei coisas muito mais assustadoras e, até onde eu sei, você não tem que me “deixar” fazer nada. - Porém, havia tanta preocupação em seu rosto que eu sabia
que não podia recusar... Até porque realmente estava com um pouco de medo. - Você tem que me prometer que não vai contar a ninguém o que vamos fazer. Ou sequer o
que virmos lá.
- Caramba. O que está acontecendo, Sage? - ele perguntou. - Estamos falando de sacrifício animal ou coisa assim?
- Adrian - adverti, baixinho.
Ele voltou a ficar sério.
- Prometo. Nenhuma palavra, a menos que você diga o contrário.
Não precisei estudar seu rosto para saber que podia confiar nele.
- Tudo bem, então. Mas, antes, preciso da sua escova de cabelo.
A sra. Terwilliger morava em Vista Azul, o mesmo bairro nobre onde ficava Amberwood. Para minha surpresa, a casa realmente não parecia nada fora do comum. Era pequena
mas, tirando isso, parecia muito com as outras casas antigas do bairro. O sol já havia se posto quando chegamos, e eu sabia que faltava pouco para o toque de recolher
da escola. Quando ela nos convidou para entrar, encontrei um interior um pouco mais parecido com o que eu tinha em mente. Claro, havia uma TV e móveis modernos,
mas a decoração também incluía algumas velas e estátuas de vários deuses e deusas. O aroma de incenso indiano pairava no ar. Contei pelo menos três gatos nos primeiros
cinco minutos e não tinha dúvidas de que havia mais.
- Srta. Melbourne, bem-vinda. - A sra. Terwilliger olhou para Adrian com interesse. - E boas-vindas para o seu amigo também.
- Meu irmão - corrigi, incisiva. - Adrian.
A sra. Terwilliger, que sabia sobre o mundo dos Moroi, abriu um sorriso.
- Sim. Claro. Você frequenta a Carlton, certo?
- Sim - Adrian respondeu. - Foi a senhora que me ajudou a entrar, não é? Obrigado.
- Bem - a sra. Terwilliger disse, dando de ombros -, sempre fico feliz em ajudar alunas talentosas, ainda mais quando são tão dedicadas em me trazer café. Agora,
qual é o assunto tão urgente que fez vocês virem até aqui no meio da noite?
Meus olhos já estavam fixos em uma estante enorme na sala de estar, com as prateleiras atulhadas de livros velhos com capa de couro, do mesmo tipo em que ela sempre
me fazia trabalhar.
- A senhora... a senhora tem algum feitiço que possa ajudar a localizar uma pessoa? - perguntei, sentindo uma pontada de dor a cada palavra. - Eu sei que eles existem.
Já passei por alguns durante as minhas pesquisas. Mas estava pensando que talvez a senhora poderia recomendar algum.
A sra. Terwilliger riu baixinho, e desviei o olhar.
- Ora, ora, se este não é um bom motivo para uma visita noturna. - Estávamos na sala de jantar e ela puxou uma cadeira entalhada para sentar. Um dos gatos roçou
a perna dela. - Existem vários feitiços de localização, sem dúvida, mas nenhum está exatamente no seu nível. E por “seu nível” me refiro à sua recusa constante de
praticar ou se aperfeiçoar.
Franzi a testa.
- Tem algum que a senhora possa fazer?
Ela meneou a cabeça.
- Não. Este problema é seu. É você quem tem que fazer. Você precisa.
- Mas não se estiver além da minha capacidade! - protestei. - Por favor. Esse é um assunto de vida ou morte. - Além disso, eu não queria sujar as minhas mãos com
a magia. Já era humilhante demais pedir aquilo a ela.
- Fique calma. Eu não a obrigaria a fazer se não achasse que fosse capaz - ela disse. - Mas, para funcionar, é imperativo ter alguma coisa que nos ligue à pessoa
que estamos procurando. Existem feitiços em que isso não é necessário, mas esses definitivamente estão além das suas capacidades.
Tirei a escova de Adrian da bolsa.
- Como um fio de cabelo?
- Exatamente - ela disse, claramente impressionada.
Havia me lembrado de quando Adrian reclamou que Sonya vivia usando seus utensílios pessoais. Por mais que, pelo visto, ele limpasse a escova regularmente (e, para
ser sincera, não esperava nada menos de alguém que passava tanto tempo mexendo no cabelo), ainda restavam alguns fios ruivos nela. Com cuidado, puxei o mais longo
dos que estavam enrolados nas cerdas e o segurei no alto.
- O que preciso fazer? - perguntei. Estava me esforçando para me manter firme, mas minhas mãos tremiam.
- É o que nós vamos descobrir. - Ela se levantou e entrou na sala de estar, onde vasculhou as prateleiras.
Adrian se voltou para mim.
- Ela está falando sério? - Ele fez uma pausa e reconsiderou. - Você está falando sério? Feitiços? Magia? Digo, não me entenda mal. Eu bebo sangue humano e controlo
a mente das pessoas. Mas nunca tinha ouvido falar nisso.
- Nem eu, até um mês atrás. - Suspirei. - E, infelizmente, estou falando sério. Pior: ela acha que eu tenho jeito pra coisa. Você lembra quando uma das Strigoi no
seu apartamento pegou fogo?
- Vagamente, mas sim. Afastei tudo da cabeça e nunca pensei muito nisso. - Ele franziu a testa, perturbado pela lembrança. - Eu estava meio desligado por causa da
mordida.
- Aquilo não foi um acidente casual. Foi... magia. - Apontei com a cabeça para a sra. Terwilliger. - E eu fui a responsável.
Seus olhos se arregalaram.
- Você é tipo uma humana mutante? Como uma usuária de fogo? E falo “mutante” como um elogio, você sabe. Eu não teria uma opinião pior sobre você.
- Não é como a magia dos vampiros - eu disse. Parte de mim achava que eu deveria ficar grata por Adrian ainda ser simpático com uma “mutante” como eu. - Não é uma
conexão interna com os elementos. Segundo ela, alguns humanos conseguem usar magia extraindo-a do mundo. Parece maluquice, mas... eu consegui botar fogo numa Strigoi,
afinal.
Pude notar que Adrian ainda estava absorvendo tudo aquilo quando a sra. Terwilliger voltou. Ela colocou sobre a mesa um livro com capa de couro vermelho e folheou
até encontrar o que queria. Esticamos o pescoço para ler.
- Não está na nossa língua - Adrian disse, prestativo.
- É grego, nada de mais - retorqui, passando os olhos pela lista de ingredientes. - Não parece precisar de muita coisa.
- É porque grande parte do feitiço é a sua concentração mental - a sra. Terwilliger explicou. - É mais complicado do que parece. Vai levar pelo menos algumas horas.
Vi o horário no relógio de pêndulo ornamentado.
- Eu não tenho algumas horas. Falta pouco para o toque de recolher.
- Ah, isso não é problema - a sra. Terwilliger respondeu e, pegando o celular de cima da mesa, discou um número de cabeça. - Oi, Desiree? É a Jaclyn. Sim, tudo bem.
Obrigada. Estou em casa agora com a Sydney Melrose, que está me ajudando num projeto importantíssimo. - Quase revirei os olhos. Pelo jeito ela sabia perfeitamente
meu sobrenome quando precisava dele. - Infelizmente, acho que vai passar da hora do toque de recolher do alojamento e estava pensando se você faria a gentileza de
permitir uma prorrogação. Sim... sim, claro. Mas é muito importante para o meu trabalho e, convenhamos, o histórico dela é exemplar; não precisamos nos preocupar
com ela, a srta. Melrose não faz o tipo que abusaria desses privilégios. Sem dúvida é uma das alunas mais confiáveis que eu conheço. - Ao ouvir isso, Adrian abriu
um sorriso irônico.
Mais trinta segundos e eu estava livre do toque de recolher.
- Quem é Desiree? - perguntei, assim que a sra. Terwilliger desligou.
- A responsável pelo seu alojamento. Weathers.
- Sério? - Pensei na corpulenta e maternal sra. Weathers. Nunca teria imaginado que seu primeiro nome fosse Desiree. Era um nome que eu associava a mulheres mais
atraentes e sedutoras. Talvez ela tivesse uma vida mais chocante fora da escola, que não conhecíamos. - Então, eu tenho a noite toda livre?
- Não sei se podemos exagerar - a sra. Terwilliger respondeu. - Mas temos tempo o bastante para esse feitiço, sem dúvida. Não posso fazê-lo por você, mas posso ajudar
com os ingredientes e instrumentos.
Peguei o livro, esquecendo meu medo conforme examinava a longa lista. Detalhes como aqueles me levavam de volta à minha zona de conforto.
- A senhora tem todos?
- Claro.
A sra. Terwilliger nos levou por um corredor que saía da cozinha, por onde pensei que chegaríamos aos quartos. Conforme seguíamos, pude até entrever uma cama num
dos cômodos, mas nosso destino final era algo completamente diferente: uma oficina. Parecia uma mistura de esconderijo de bruxa com laboratório de um cientista maluco.
Parte do cômodo tinha equipamentos muito modernos: provetas, uma pia, bicos de gás etc. O resto parecia vindo de outra época: frascos de óleos e ervas desidratadas
ao lado de pergaminhos e caldeirões de verdade. Vasos de plantas cobriam o peitoril da janela escura. Havia mais dois gatos ali, que certamente não eram os mesmos
que eu tinha visto na sala.
- Parece um caos - a sra. Terwilliger disse. - Mas ouso dizer que está bastante organizado, até mesmo para os seus padrões.
Depois de olhar mais atentamente, percebi que ela estava certa. Todos os frascos e plantas tinham rótulos e estavam em ordem alfabética. Os vários instrumentos também
estavam identificados, com o tamanho e o material especificados. No centro da sala, havia uma grande mesa de pedra lisa, onde pus o livro, com cuidado para não perder
a página de que precisava.
- E agora? - perguntei.
- Agora, você começa - ela disse. - Quanto mais você fizer por conta própria, mais forte será sua relação com o feitiço. Claro, pode me chamar se tiver algum problema
com os ingredientes ou com as instruções. Fora isso, quanto mais foco e concentração você colocar nisso, melhor.
- Onde a senhora vai ficar? - perguntei, assustada. Por mais que não gostasse da ideia de trabalhar com ela naquele laboratório escuro e assustador, gostava menos
ainda de pensar em ficar lá sozinha.
Ela apontou para o lugar de onde tínhamos vindo.
- Ah, logo ali. Vou fazer sala para o seu “irmão”, já que é extremamente necessário que você faça isso sozinha.
Fiquei ainda mais nervosa. Havia protestado contra o pedido de Adrian de ir até lá, mas agora o queria por perto.
- Posso tomar um café, pelo menos?
Ela riu, divertindo-se.
- Normalmente eu diria que sim, ainda mais se estivesse fazendo algum trabalho pesado, como um amuleto ou uma poção. Mas como você vai usar o poder da mente, a magia
vai funcionar muito melhor se seus pensamentos estiverem livres de qualquer substância que afete seu estado mental.
- Cara, isso me lembra de alguma coisa - Adrian murmurou.
- Tudo bem, então - eu disse, decidindo ser firme. - Preciso começar logo. Sonya está esperando. - Supondo que ela ainda estivesse viva.
A sra. Terwilliger saiu, avisando-me para chamá-la no último estágio do feitiço. Adrian se deteve mais um minuto para falar comigo.
- Você tem certeza de que está bem com tudo isso? Quer dizer, pelo que conheço de você e dos alquimistas... Bem, achei que não fosse ficar nada bem em relação isso.
- E não estou - concordei. - Como eu disse, isso vai contra tudo em que acredito, tudo o que me ensinaram. É por isso que você não pode contar nada a ninguém. Você
ouviu a indireta dela sobre eu não praticar? Ela está no meu pé há muito tempo, querendo que eu desenvolva minhas “habilidades mágicas”, e eu continuo recusando,
porque acho isso errado. Então ela me obriga a pesquisar livros de feitiços para o estudo independente, esperando que eu aprenda por osmose.
- Isso é errado - ele disse, meneando a cabeça. - Você não precisa fazer isso. Você não precisa fazer nada que não quiser.
Abri um sorrisinho.
- Bem, eu quero encontrar Sonya. Então preciso fazer isso, sim.
Ele retribuiu o sorriso.
- Está bem. Mas eu vou ficar ali fora, tomando um chazinho com os gatos dela ou seja lá o que for que ela tem em mente. Se precisar de mim, grite. Se quiser ir embora,
nós vamos. Eu tiro você deste lugar, custe o que custar.
Senti alguma coisa apertar no meu peito e, por um instante, todo o universo se reduziu ao verde dos seus olhos.
- Obrigada.
Adrian saiu e fiquei sozinha. Bem, quase. Um dos gatos continuou por ali; ele tinha o pelo preto e brilhante e os olhos amarelados. Deitado em uma das prateleiras
mais altas, me observava, curioso, como se duvidasse que eu realmente conseguiria fazer aquilo funcionar. Éramos dois.
Por um momento, não consegui me mexer. Estava prestes a realizar magia por vontade própria. Todos os protestos e discussões que havia tido com a sra. Terwilliger
eram palavras ao vento agora. Comecei a tremer e me senti sem ar. Então pensei em Sonya. A doce e corajosa Sonya, que havia dedicado tanto tempo e energia para fazer
o que achava certo. Eu não tinha o direito de fazer menos que o possível.
Como tinha dito para a sra. Terwilliger, o feitiço era simples. Não exigia metade das etapas do amuleto de fogo. Precisava deixar a água ferver no caldeirão de cobre
e acrescentar vários ingredientes, a maioria deles óleos transparentes que precisavam ser medidos com um cuidado minucioso. Logo o ar ficou pesado com os aromas
de bergamota, baunilha e heliotrópio. Algumas etapas tinham a mesma redundância ritualística que eu já conhecia. Por exemplo, precisava colher treze folhas de menta
frescas de uma das plantas dela, jogando uma por vez enquanto as contava em grego. Em seguida, depois de ficarem em infusão por treze minutos, precisava retirá-las,
uma a uma, com uma colher de pau feita de jacarandá.
Antes de sair, a sra. Terwilliger havia me dito para me manter focada, pensando, ao mesmo tempo, nas etapas do feitiço e no objetivo final que pretendia atingir.
Portanto, voltei os pensamentos para Sonya e a necessidade de encontrá-la, torcendo para que isso funcionasse. Quando finalmente terminei as etapas iniciais, vi
que já havia passado quase uma hora. Nem tinha notado. Limpei o suor da testa, surpresa por ter transpirado tanto por causa do vapor que enchia o ambiente. Fui até
onde a sra. Terwilliger e Adrian estavam, sem saber em que estranha atividade os encontraria. Estavam, porém, numa situação bem trivial, assistindo à TV. Ambos levantaram
os olhos quando me aproximei.
- Pronto? - ela perguntou.
Fiz que sim.
- Está com cheiro de chá - Adrian comentou, enquanto me seguiam até a oficina.
A sra. Terwilliger examinou o pequeno caldeirão e aprovou com a cabeça.
- Parece excelente. - Não sabia como ela podia dizer isso só com uma simples olhadela, mas não tinha alternativa senão acreditar nela. - Agora, a clarividência em
si envolve uma travessa de prata, certo? - Ela olhou para a prateleira de louças e apontou para algo. - Ali. Use aquilo.
Retirei uma travessa perfeitamente redonda com cerca de trinta centímetros de diâmetro. Era lisa e sem nenhum ornamento; havia sido tão polida que refletia praticamente
como um espelho. Podia ter passado sem essa, já que meu cabelo e minha maquiagem deixavam evidente todo o cansaço daquele dia. Perto de qualquer outra pessoa, me
sentiria constrangida. Coloquei a travessa na mesa e joguei um copo do líquido do caldeirão na superfície prateada. Todos os outros ingredientes haviam sido retirados
e o líquido exibia uma transparência perfeita. Quando parou de ondular, o efeito de espelho retornou. A sra. Terwilliger me entregou um pequenino pote de incenso
de gálbano, que segundo o livro deveria ser queimado durante o último estágio. Com uma vela, acendi a resina, fazendo subir um aroma acre de ervas que contrastava
com o perfume doce do líquido.
- Ainda está com o fio de cabelo? - a sra. Terwilliger perguntou.
- Claro. - Coloquei o fio sobre a superfície translúcida. Parte de mim queria ver algo acontecendo, como fumaça ou faíscas, mas havia lido as instruções e sabia
que não aconteceria nada disso. Coloquei um banco ao lado da mesa, onde me sentei, permitindo que observasse o líquido de cima. - Agora eu fico olhando?
- Agora você fica olhando - ela confirmou. - Sua mente precisa estar ao mesmo tempo concentrada e aberta. Você precisa pensar nos componentes do feitiço, na magia
que possuem e no seu desejo de encontrar essa pessoa. Ao mesmo tempo, precisa manter uma clareza de mente perfeita para se manter concentrada nessa sua tarefa sem
desviar o foco.
Abaixei os olhos para o meu reflexo e tentei fazer todas aquelas coisas que ela tinha acabado de descrever. Nada aconteceu.
- Não estou vendo nada.
- Claro que não - ela respondeu. - Não passou nem um minuto. Falei pra você que este é um feitiço avançado. Pode levar um tempo para dominar por completo a força
e o poder necessários. Mantenha-se concentrada na tarefa. Estaremos esperando.
Os dois saíram. Cravei os olhos na água, querendo saber o que ela queria dizer com “um tempo”. Antes, estava animada pela aparente simplicidade do feitiço. Agora,
queria que houvesse mais ingredientes para misturar ou mais encantamentos para declamar. Essa magia avançada, que dependia da força de vontade e da energia mental,
era muito mais difícil, principalmente por ser intangível. Eu gostava do concreto. Gostava de saber exatamente do que precisava para fazer algo acontecer. Causa
e efeito.
Mas aquilo? Era apenas olhar e olhar, torcendo para me “manter concentrada” na tarefa, “sem desviar o foco”. Como poderia saber se estava fazendo aquilo certo? Mesmo
se alcançasse esse estado, poderia levar um tempo para que aquilo de que precisava se manifestasse. Tentei não pensar nisso ainda. Sonya. Sonya era tudo que importava
agora. Toda a minha força de vontade devia se concentrar no resgate dela.
Fiquei repetindo isso a mim mesma enquanto os minutos passavam. Toda vez que tinha certeza de que devia parar e perguntar à sra. Terwilliger o que fazer, forçava-me
a continuar fitando a água. “Sonya. Sonya. Pense em Sonya.” E, mesmo assim, nada acontecia. Por fim, quando a dor nas costas tornou insuportável continuar sentada,
me levantei para me alongar. Começava a ter cãibra em todos os músculos. Voltei para a sala; quase uma hora e meia havia se passado.
- Alguma coisa? - a sra. Terwilliger perguntou.
- Não - respondi. - Devo estar fazendo alguma coisa errada.
- Você está com a mente focada? Pensando nela? Em encontrá-la?
Eu estava cansada de ouvir falar sobre “foco”. Meu antigo medo da magia dava lugar à frustração.
- Sim, sim e sim - respondi. - Mas ainda não está funcionando.
Ela deu de ombros.
- E é para isso que temos uma prorrogação do toque de recolher. Tente outra vez.
Adrian me lançou um olhar solidário e fez menção de dizer alguma coisa, mas achou melhor ficar quieto. Eu estava quase saindo, mas um pensamento perturbador me deteve.
- E se ela não estiver viva? - perguntei. - Pode ser por isso que não está funcionando?
- Não - a sra. Terwilliger disse. - Você veria alguma coisa mesmo se ela não estivesse viva. E... bem, você iria saber.
Voltei para a oficina e tentei novamente, com os mesmos resultados. Quando fui falar outra vez com a sra. Terwilliger, vi que ainda não havia passado mais nem uma
hora.
- Estou fazendo alguma coisa errada - insisti. - Ou isso ou fiz alguma besteira no estágio inicial. Ou então esse feitiço realmente está além das minhas capacidades.
- Se bem conheço você, o feitiço está impecável - ela disse. - E, não, ele não está além da sua capacidade, mas só você tem o poder de fazer acontecer.
Estava cansada demais para pensar na filosofia esotérica sem nexo dela. Eu me virei sem dizer uma palavra e me arrastei de volta para a oficina. Ao chegar, descobri
que tinha sido seguida. Levantei os olhos para Adrian e suspirei.
- Sem distrações, lembra? - eu disse.
- Eu não vou ficar - ele disse. - Só queria ter certeza de que você está bem.
- Sim... Quer dizer, sei lá. Tão bem quanto dá para ficar com isso tudo. - Apontei para a travessa de prata. - Talvez realmente precise que você me tire daqui.
Ele pensou por um instante e fez que não com a cabeça.
- Não acho que seja uma boa ideia.
Eu o encarei, incrédula.
- O que aconteceu com aquele Adrian que dizia que não sou obrigada a fazer nada que não quiser? E que me defendia tão nobremente?
A sombra de um dos seus típicos sorrisos marotos passou pelo rosto dele.
- Aquilo valia quando você não queria fazer isso porque ia contra todas as suas crenças. Agora você já ultrapassou essa linha, e parece que seu único problema é
um pouco de pessimismo e falta de fé em si mesma. E, sinceramente, isso é bobagem.
- Um pouco de pessimismo?! - exclamei. - Estou olhando para essa travessa de água há duas horas! É quase uma e meia da madrugada. Estou exausta, quero café, e todos
os músculos do meu corpo estão latejando. Ah, e eu estou quase vomitando por causa daquele incenso.
- Isso tudo é um saco - ele concordou. - Mas acho que me lembro de ouvir você dando um sermão para todos nós um dia desses, sobre ter que aguentar as dificuldades
para fazer o que é certo. Você está dizendo que não consegue fazer isso para ajudar Sonya?
- Faria qualquer coisa para ajudar Sonya! Quer dizer, qualquer coisa dentro da minha capacidade. E não acho que esse seja o caso.
- Sei não - ele ponderou. - Fiquei um bom tempo conversando com Jackie. Ela me deixa chamá-la assim, sabia? Mas, enfim, descobri um monte de coisas sobre esse negócio
de magia humana. Dá pra fazer de tudo com isso.
- É errado - resmunguei.
- E, mesmo assim, aqui está você, com o poder de encontrar Sonya nas mãos. - Adrian hesitou e, em seguida, tomando uma decisão, deu um passo à frente e colocou as
mãos nos meus ombros. - Jackie me disse que você é uma das pessoas com mais talento natural para isso que ela já encontrou na vida. Ela disse que, com um pouquinho
de prática, um feitiço como este vai ser fichinha pra você, e tem certeza de que é capaz de fazê-lo agora. E eu acredito nela. Não porque possua provas de que você
tem algum talento mágico, mas porque já vi como cuida de todas as outras coisas. Não vai fracassar nisso. Você nunca fracassa em nada.
Estava tão exausta que pensei que desataria a chorar. Queria desabar e que ele me levasse embora dali, como havia me prometido antes.
- Esse é o problema. Eu nunca fracasso, mas tenho medo de que fracasse agora. Não sei como é fracassar. E isso me deixa apavorada. - Ainda mais porque a vida de
Sonya depende de mim.
Adrian levantou a mão e contornou o lírio na minha bochecha com o dedo.
- Você não precisa descobrir como é fracassar hoje, porque não vai fracassar. Você consegue. E eu vou ficar aqui o tempo que precisar, tudo bem?
Respirei fundo e procurei me acalmar.
- Tudo bem.
Assim que ele saiu, voltei para o meu banquinho e tentei ignorar o cansaço do corpo e da mente. Pensei no que ele havia dito, que eu não fracassaria. Pensei na confiança
que depositava em mim. E, sobretudo, pensei em Sonya. Pensei em como estava desesperada para ajudá-la.
Todas essas coisas se alvoroçavam dentro de mim enquanto eu olhava fixamente para o líquido cristalino e para o fio de cabelo que boiava sobre ele: uma linha vermelha
em meio a toda aquela prata. Parecia uma faísca de fogo, uma faísca cujo brilho foi se intensificando diante dos meus olhos até tomar uma forma mais definida, um
círculo com linhas estilizadas irradiando dele. Um sol, percebi. Alguém havia pintado um sol laranja numa tabuleta de madeira pendurada em uma grade de ferro. Apesar
da má qualidade do material, o artista havia tido muito cuidado ao pintá-lo, estilizando os raios e tomando cuidado para que tivessem comprimentos uniformes. A grade
em si era feia e industrial, e avistei o que parecia ser uma caixa de força presa a ela. A paisagem era estéril e amarronzada, mas as montanhas ao fundo indicavam
que ainda era nos arredores de Palm Springs, numa área semelhante àquela em que Wolfe morava, fora da cidade e longe da vegetação. Através da cerca, atrás da tabuleta,
avistei uma construção grande e larga...
- Ai!
A visão sumiu enquanto minha cabeça batia no chão - eu havia caído do banco.
Com dificuldade, consegui me sentar, mas minhas forças não me permitiam mais nada. O mundo estava girando ao meu redor, e sentia náuseas e o estômago vazio. Não
soube dizer se haviam passado três segundos ou três horas quando ouvi o som de passos e vozes. Com seus braços fortes, Adrian me levantou. Me apoiei na mesa enquanto
ele erguia o banco e me ajudava a sentar. A sra. Terwilliger tirou a travessa de prata da minha frente e, no lugar, pôs um prato simples com queijo e biscoitos salgados.
Logo depois, trouxe também um copo de suco de laranja.
- Coma isso - ela disse. - Você vai se sentir melhor.
Eu estava tão fraca e desorientada que não hesitei. Comi e bebi como se não me alimentasse havia uma semana, enquanto Adrian e a sra. Terwilliger aguardavam, pacientes.
Foi só quando limpei o prato que percebi o que havia comido.
- Queijo e suco de laranja? - resmunguei. - É gordura e açúcar demais a essa hora da noite!
- Que bom que não ficou nenhuma sequela - Adrian caçoou.
- Pode ir se acostumando se for usar muito a magia - a sra. Terwilliger advertiu. - Feitiços podem esgotar você. Não é raro a pressão cair depois deles. O suco de
laranja vai virar seu melhor amigo.
- Nunca vou me acostumar porque não vou... - Perdi o fôlego conforme as imagens que havia visto na travessa de prata voltavam a se formar na minha mente. - Sonya!
Acho que eu vi onde ela está! - Descrevi o que tinha visto, embora nenhum de nós tivesse ideia de onde aquele lugar ficava ou o que era.
- Tem certeza que era um sol normal? Com raios? - Adrian perguntou. - Porque pensei que os caçadores usassem aquele sol dos antigos alquimistas, o círculo com o
ponto.
- Eles usam, mas esse definitivamente era... Ai, meu Deus. - Levantei o olhar para Adrian. - Precisamos voltar para Amberwood. Agora.
- Não depois de tudo isso - a sra. Terwilliger disse. Ela estava usando sua voz rígida de professora. - O feitiço exigiu mais de você do que eu esperava. Durma aqui
e vou tomar as providências para que tudo seja esclarecido com a Desiree e a escola amanhã.
- Não. - Eu levantei e senti minhas pernas começarem a fraquejar, mas, no fim, aguentaram o peso do meu corpo. Adrian me envolveu com seu braço como apoio, visivelmente
descrente na minha recuperação. - Preciso voltar pra lá. Acho que sei como podemos descobrir onde fica esse lugar.
Adrian estava certo sobre o sol que eu tinha acabado de descrever: não era o mesmo desenho da espada ou do folheto dos alquimistas. Não era o símbolo antigo. O sol
da minha visão era uma versão mais moderna, e aquela não era a primeira vez que eu o via.
O sol da minha visão era exatamente igual ao da tatuagem de Trey.
20
ENCONTRAR TREY ERA MAIS FÁCIL falar do que fazer. Entrar no alojamento masculino num horário normal já seria difícil para mim. Mas, depois do toque de recolher,
no meio da madrugada, era praticamente impossível. Precisei recorrer a opções criativas e liguei para Eddie enquanto levava Adrian até a casa dele. Uma coisa sobre
a qual eu nunca precisava me sentir culpada era ligar para Eddie a qualquer hora do dia ou da noite. Ele mantinha o toque bem alto (para a infelicidade de Micah,
sem dúvida) e eu suspeitava que dormia com o celular ao lado do travesseiro.
- Alô? - A voz de Eddie soou alerta e disposta, como se não estivesse dormindo. Era simplesmente o jeito dele.
- Preciso que você tente acordar o Trey - disse a ele. - Sonya foi raptada e está sendo mantida em cativeiro num lugar estranho com um logotipo que é igual à tatuagem
dele. Precisamos descobrir o que ele sabe.
Essa era a primeira vez que Eddie ouvia falar sobre o sequestro de Sonya, mas não pediu nenhuma informação extra, tampouco perguntou como eu havia descoberto a localização
dela. Ele sabia que Sonya havia corrido perigo recentemente, e essa mensagem rápida era o bastante para fazê-lo entrar em ação. Não sabia o que realmente aconteceria
quando Eddie encontrasse Trey, já que eu não teria como conversar com ele pessoalmente até a manhã seguinte. Mesmo assim, precisávamos começar por algum lugar.
- Certo - Eddie disse. - Eu cuido disso. Depois ligo para você.
Desligamos, e contive um bocejo.
- Lá vamos nós. Espero que Eddie consiga descobrir alguma coisa.
- De preferência, sem espancar Trey no caminho - Adrian ironizou, aconchegando-se no banco do passageiro, o único sinal de que também estava cansado com aquela longa
noite. Fazia muito tempo que ele havia abandonado a rotina noturna, típica dos vampiros. - Isso limitaria muito o quanto vamos descobrir.
Franzi a sobrancelha.
- Se Trey estiver envolvido nisso, não tenho certeza se quero pegar leve com ele. Mesmo assim... não consigo acreditar que esteja.
- As pessoas vivem mentindo umas para as outras. Olhe para você. Acha que Trey sabe que você faz parte de uma sociedade secreta que ajuda a esconder os vampiros
do resto do mundo?
- Na verdade... sim. - Parei no sinal vermelho e relembrei alguns comportamentos estranhos de Trey. - Tenho quase certeza de que ele sabe que Jill é Moroi. Não notou
de imediato, mas desde que percebeu, ficou me dizendo para mantê-la escondida. Então, depois que Sonya foi atacada, disse para eu tomar cuidado. - Uma terrível descoberta
tomou conta de mim. - Ele sabia. Sabia que eu era amiga de Sonya. Provavelmente sabia do ataque e nunca me disse nada!
- Não é nenhuma surpresa se o grupo dele estiver trabalhando contra o seu. - O tom de Adrian se abrandou. - Se faz você se sentir melhor, parece que ele estava em
conflito se tentou avisá-la.
- Não sei se me faz sentir melhor. Ah, Adrian. - Estacionei na frente do prédio e vi o Mustang amarelo iluminado pela luz dos postes. - Você deixou o carro na rua.
Sorte sua que não foi rebocado.
- Vou mudar de lugar - ele disse. - E não me olhe assim. É uma volta de menos de um quilômetro. Não estou quebrando suas regras.
- Só tome cuidado - murmurei.
Ele abriu a porta do Pingado e voltou o olhar para mim.
- Tem certeza de que quer voltar para a escola? Você vai ficar presa lá até amanhã de manhã.
- Não tem muita coisa que eu posso fazer até lá, de qualquer forma. Quero estar na escola no segundo em que puder falar com Trey. Por enquanto, vou apostar todas
as minhas fichas no Eddie.
Adrian parecia relutante em me deixar sozinha, mas acabou concordando.
- Ligue se precisar de alguma coisa. Vou continuar tentando procurar Sonya nos sonhos dela. Não tive muita sorte até agora.
Um dos poderes mais perturbadores do espírito era a capacidade de entrar no sonho das outras pessoas.
- Será que ela não está dormindo?
- Ou isso ou foi drogada.
Nenhuma das opções era reconfortante. Ele me lançou um último olhar demorado antes de sair. Voltei para Amberwood, onde um segurança sonolento fez sinal para eu
entrar sem nenhum comentário. A sra. Weathers já tinha ido embora havia um tempo, e seu substituto noturno não parecia muito interessado nas minhas idas e vindas.
Enquanto subia a escada, meu celular tocou. Era Eddie.
- Então, demorou um século, mas finalmente acordei o colega de quarto do Trey - ele disse.
- E?
- Ele não está lá. E acho que também não esteve na última noite. Algum tipo de emergência de família.
- Nenhuma informação sobre quando ele volta? - Estava começando a achar que aqueles “problemas de família” de Trey eram muito mais perigosos do que eu pensava. Também
podia apostar que ele não era o único com a tatuagem de sol.
- Não.
Acordei várias vezes ao longo da noite. Meu corpo estava exausto por causa da magia, mas a ideia de encontrar Sonya me pesava tanto que não conseguia me entregar
completamente ao sono. Toda vez que acordava, checava o celular, com medo de ter perdido alguma ligação, embora ele estivesse no volume máximo. Acabei desistindo
e levantei algumas horas antes de começarem a servir o café no restaurante. Depois de tomar banho, me vestir e ligar a cafeteira na potência máxima, o campus já
estava aberto. Não que isso tenha feito alguma diferença.
Fiz duas ligações depois disso. A primeira para ver se Trey estava trabalhando. Imaginava que não estivesse, mas era uma boa justificativa para descobrir se ele
tinha ido trabalhar nos últimos dias. Não tinha. A segunda foi para Stanton, comunicando o desaparecimento de Sonya. Falei que tínhamos uma pista que ligava um dos
meus colegas de classe aos caçadores de vampiros e que era provável que Sonya estivesse presa num complexo industrial fora da cidade. Não entrei em detalhes sobre
como fiquei sabendo disso, e Stanton ficou tão preocupada com o desaparecimento que não pediu detalhes.
No café da manhã, encontrei minha “família” sentada com Micah no restaurante do campus oeste. As feições angustiadas de Eddie, Angeline e Jill mostravam que todos
já sabiam sobre Sonya. Micah falava animadamente sobre alguma coisa e tive a sensação de que a presença dele era o que impedia os demais de conversarem sobre o que
realmente queriam. Quando Micah se virou para perguntar alguma coisa a Eddie, me aproximei da orelha de Jill e murmurei:
- Tire Micah daqui.
- Falo para ele ir embora? - ela perguntou, num sussurro.
- Se precisar, sim. Ou vá com ele.
- Mas eu quero...
Jill mordeu o lábio quando a atenção de Micah voltou para ela. Ela não parecia nada contente com o que precisava fazer, mas logo assumiu uma expressão resoluta que,
nos últimos tempos, era frequente nela. Em seguida, apontou com a cabeça para o prato de Micah e perguntou:
- Ei, você está terminando? Preciso confirmar uma coisa com a srta. Yamani. Você vem comigo?
Micah abriu um sorriso.
- Claro.
Depois que foram embora, me virei para Eddie e Angeline.
- Algum sinal de Trey? - perguntei.
- Não - Eddie respondeu. - Chequei hoje de manhã de novo. O colega de quarto dele está começando a me odiar. Não posso culpá-lo por isso.
- Isso está me deixando louca! - exclamei, com vontade de bater com a cabeça na parede. - Estamos tão perto e ao mesmo tempo tão longe. Cada minuto que passa é um
a menos na vida de Sonya.
Ele fechou a cara.
- Você tem certeza de que ela está viva?
- Estava ontem à noite - respondi.
Eddie e Angeline me olharam, confusos.
- Como você sabe disso? - Angeline perguntou.
- Hum, bem, eu... Não pode ser! - Meu queixo caiu quando olhei para trás de Eddie. - É o Trey!
Trey, com o olhar exausto, havia acabado de entrar no restaurante. Seu cabelo molhado mostrava que ele havia acabado de tomar banho, mas os machucados e arranhões
espalhados por todo o corpo não podiam mais ser atribuídos ao futebol americano.
Antes que eu dissesse outra palavra, Eddie já estava em movimento, comigo e Angeline logo atrás dele. Estava achando que Eddie iria jogar Trey no chão ali mesmo.
Em vez disso, parou na frente dele, bloqueando seu caminho para a fila do bufê. Cheguei bem no momento em que Eddie disse:
- Sem café da manhã pra você hoje. Você vai vir com a gente.
Trey estava prestes a protestar, mas então me viu ao lado de Angeline. Jill também surgiu de repente, depois de ter se livrado de Micah. Uma expressão triste passou
pelo rosto dele, parecendo derrotado, e fez que sim com a cabeça, visivelmente exausto.
- Vamos lá fora.
Assim que nos afastamos da porta, Eddie agarrou Trey e o jogou contra a parede.
- Onde está Sonya Karp? - Eddie demandou. Trey pareceu surpreso, o que era compreensível, considerando que, apesar de Eddie ser enxuto e musculoso, a maioria das
pessoas subestimava sua força.
- Eddie, vai com calma! - sussurrei, olhando ao redor, apreensiva. Claro que eu tinha a mesma pressa que ele, mas nosso interrogatório não iria muito longe se um
professor passasse por ali e pensasse que estávamos surrando um colega.
Eddie soltou Trey e deu um passo para trás, ainda com o mesmo brilho perigoso no olhar.
- Onde é esse complexo em que vocês estão mantendo Sonya?
Isso fez Trey reagir:
- Como vocês sabem disso?
- Quem faz as perguntas aqui somos nós - Eddie retorquiu. Ele não voltou a pôr as mãos em Trey, mas sua postura e proximidade não deixavam dúvidas de que chegaria
a extremos se fosse preciso. - Sonya está viva?
Trey hesitou, e eu estava quase esperando que ele fosse negar que sabia de alguma coisa.
- S-sim. Por enquanto.
Eddie irrompeu novamente, agarrando e puxando Trey pelo colarinho.
- Juro que se você ou seus colegas malucos mexerem num fio de cabelo dela...
- Eddie - adverti.
Por um instante, Eddie não se mexeu; depois, relutante, soltou a camisa de Trey, mas permaneceu no mesmo lugar.
- Trey - comecei, mantendo o mesmo tom ponderado que havia acabado de usar com Eddie. Afinal, Trey e eu éramos amigos, não? - Você precisa nos ajudar. Por favor,
nos ajude a encontrar a Sonya.
Ele fez que não com a cabeça.
- Não posso, Sydney. É para o bem de vocês. Ela é maligna. Não sei que artimanha usou com vocês nem como conseguiu criar essa ilusão que esconde sua verdadeira identidade,
mas vocês não podem confiar nessa mulher. Ela vai se virar contra todos vocês. Nós vamos... vamos fazer o que for preciso.
As palavras estavam todas de acordo com a propaganda dos guerreiros. Mas havia algo no tom e na postura de Trey... Não sabia apontar o quê, mas algo me fazia duvidar
dele. As pessoas zombavam da minha incapacidade de perceber indícios sociais, mas eu tinha quase certeza de que ele não estava totalmente disposto a fazer o que
seu grupo queria que ele fizesse.
- Esse não é você, Trey - eu disse. - Conheço você o suficiente para saber que não mataria uma mulher inocente.
- Ela não é inocente. - Mais uma vez aquelas emoções conflitantes. Dúvidas. - Ela é um monstro. Vocês conhecem esses demônios. Sabem do que eles são capazes. Não
os como ela - disse, apontando para Jill. - Mas os outros. Os mortos-vivos.
- Sonya parece morta-viva pra você? - Eddie indagou. - Você viu algum olho vermelho nela?
- Não - Trey admitiu. - Mas nós temos relatos. Testemunhas que a viram no Kentucky. Relatos de suas vítimas.
Era difícil manter o rosto tranquilo ao ouvir isso. Eu chegara a ver Sonya como Strigoi. Ela era horripilante e, se tivesse a oportunidade, acabaria comigo e com
meus companheiros num piscar de olhos. Era difícil aceitar que, quando alguém era transformado em Strigoi, perdia o controle sobre seus sentidos e sobre sua alma.
Essas pessoas perdiam o contato com sua humanidade (ou o correspondente Moroi, seja lá qual fosse), e já não eram as mesmas de antes. Sonya havia feito coisas muito,
muito terríveis, mas não era mais aquela criatura das trevas.
- Sonya mudou - eu disse. - Ela não é mais um deles.
Os olhos de Trey se estreitaram.
- Isso é impossível. Vocês estão sendo enganados. Tem algum tipo de... não sei... magia negra envolvida.
- Isso não está nos levando a lugar nenhum - Eddie resmungou. - Ligue para Dimitri. Nós dois juntos conseguiremos arrancar dele a localização desse complexo. Já
invadi uma prisão. Entrar nesse lugar não deve ser muito difícil.
- Ah, você acha, é? - Trey disse, abrindo um sorriso frio. - Aquele lugar é rodeado por cerca elétrica e repleto de homens armados. Além disso, ela está sob forte
segurança. Você não pode simplesmente ir entrando.
- Por que ela ainda está viva? - Angeline perguntou. Ela pareceu notar o quanto aquilo soou estranho e logo acrescentou: - Quer dizer... fico feliz que ela esteja.
Mas, se vocês acham que ela é tão perversa, por que já não deram um fim nela? - Ela lançou um olhar para mim e meus amigos. - Desculpa.
- É uma boa pergunta - Eddie disse.
Trey levou um bom tempo para responder. Tive a impressão de que ele estava dividido entre a obrigação de manter os segredos do grupo e a vontade de justificar seus
atos para nós.
- Porque todos nós estamos sendo testados - ele respondeu, finalmente. - Para ver quem é digno de fazer a execução.
- Meu Deus - Jill disse.
- Por isso todos esses machucados - eu disse. Meu temor de violência doméstica não estava tão errado assim. - Você está competindo para matar uma mulher que não
fez nada contra você.
- Pare de dizer isso! - Trey gritou, parecendo realmente perturbado. - Ela não é inocente.
- Mas você não tem tanta certeza - falei. - Ou tem? Seus olhos não conseguem acreditar no que seus amigos caçadores dizem.
Ele fugiu da acusação.
- Minha família espera isso de mim. Todos precisam tentar, ainda mais depois do nosso fracasso no beco. Perdemos a autorização de matar a vampira por causa daquilo,
por isso o conselho ordenou que fizéssemos esses testes, para nos redimirmos e provarmos que estamos à altura da tarefa. - Conseguir “autorização” para matar alguém
era repulsivo, mas a outra parte do que ele disse me deixou em choque.
- Você estava lá - eu disse, incrédula. - No beco e... foi você! Foi você que me segurou! - O ataque me voltou à memória, assim como a surpresa e a hesitação do
meu agressor.
O rosto de Trey confirmou aquilo.
- Eu sabia que você era amiga deles. Bastava olhar pra vocês pra saber, por mais que não tenha notado vocês dois a princípio - ele disse, dirigindo-se a Eddie e
Angeline. Trey se voltou para mim. - Reconheci sua tatuagem quando te conheci. Só ignorei porque não achava que você estivesse envolvida nos mesmos problemas que
eu. Pensei que só andasse com vampiros inofensivos; não podia imaginar que estaria lá naquela noite. Nunca quis ferir você. Ainda não quero e é por isso que você
precisa esquecer essa história.
- Isso está me cansando - Eddie disse. Era um milagre sua paciência ter durado tanto tempo. - Precisamos invadir esse lugar e...
- Espera, espera. - Uma ideia estava se formando na minha cabeça... e era mais uma ideia maluca. - Trey, você disse que Eddie não pode simplesmente ir entrando naquele
lugar. Mas eu posso?
- Do que você está falando? - Trey perguntou, com um misto de desconfiança e perplexidade no rosto.
- Você sabe o que eu sou. Você sabe o que eu faço. - Trey assentiu com a cabeça. - Nossos grupos já foram um só. Aqueles homens que me pararam na rua disseram até
que deveríamos trabalhar juntos. Os guerreiros querem os recursos dos alquimistas.
- Então, o quê? Você quer fazer uma troca? - Trey perguntou, franzindo a testa.
- Não. Só quero conversar com esse conselho de vocês. Explicar por que Sonya não é... hum, por que ela não é mais o que era antes. Existe um Moroi que usa um certo
tipo de magia que pode mostrar a vocês...
- Não - Trey disse de imediato. - Nenhum deles pode entrar lá dentro. Eles são tolerados, nada mais do que isso. Vocês, híbridos, também não são permitidos. - Mais
uma vez, dirigia-se a Eddie e Angeline. Nunca tinha ouvido o termo “híbridos” antes, mas seu sentido era claro.
- Certo - respondi. - Só humanos. Eu sou humana. Seu grupo quer trabalhar com o meu. Me deixe ir com você. Desarmada. Vou falar com seus líderes e...
- Sydney, não - Eddie protestou. - Você não pode ir pra lá sozinha! Pelo amor de Deus, eles tentaram decapitar Sonya. E lembra o que Clarence disse sobre os radicais
que o perseguiam?
- Não ferimos humanos - Trey respondeu, com firmeza. - Ela estará segura.
- Eu acredito em você - eu disse a ele. - E também sei que nunca deixaria nada de mal acontecer comigo. Veja, você não está curioso para saber por que Sonya não
é mais como antes? Pode aceitar a possibilidade de que o seu grupo esteja cometendo um grave erro? Você disse que toleram os Moroi. Ela é Moroi. Deixe-me explicar.
Não estou pedindo nada além de uma chance de me pronunciar.
- E uma garantia de segurança - Angeline acrescentou, quase tão revoltada quanto Eddie, que aprovou as palavras dela com um aceno de cabeça. - Vocês se importam
com esse lance de honra, não é? Precisam prometer que ela vai ficar segura.
- É a honra que nos leva a fazer o que fazemos - Trey respondeu. - Se prometermos que ela vai ficar segura, ela vai ficar.
- Então peça a eles - reiterei. - Por favor? Você faria isso por mim? Como amigo?
Trey assumiu uma expressão condoída. Havia um tempo, ele dera a entender que me devia uma por ter ajudado a colocar um fim no esquema de tatuagens ilícitas no mês
anterior. Qualquer amigo seria obrigado a cumprir essa promessa, ainda mais um com tamanho senso de honra. Eu também sabia que outras coisas, além da honra, estavam
em jogo ali. Eu e Trey éramos amigos, e tínhamos muito mais em comum do que eu imaginava. Nós dois fazíamos parte de grupos que queriam controlar nossas vidas, muitas
vezes de maneiras nada agradáveis. Também tínhamos pais autoritários. Se Trey e eu não tivéssemos objetivos tão opostos, poderíamos rir daquilo tudo.
- Vou pedir - Trey concordou. Algo me dizia que ele também estava pensando no que tínhamos em comum. - Porque é para você. Mas não posso prometer nada.
- Então peça agora - Eddie grunhiu. - Não temos tempo a perder. E acho que Sonya também não.
Trey não refutou. Eu hesitei, reconsiderando se aquela era uma boa ideia. O que aconteceria se perdêssemos Trey de vista? Seria melhor se realmente o tivéssemos
levado até Dimitri? E Sonya... quanto tempo ela ainda tinha?
- Agora - insisti. - Você precisa entrar em contato com eles agora. Não vá para a aula. - Aquela foi provavelmente a primeira e a última vez que eu disse essas palavras.
- Eu juro - Trey prometeu. - Vou ligar pra eles agora.
O sinal tocou, pondo fim à nossa reunião. No entanto, se tivéssemos a chance de salvar Sonya naquele exato momento, sabia que todos os meus amigos teriam saído do
campus imediatamente. Deixamos Trey ir e ele voltou para o alojamento, em vez de seguir para as salas. Angeline, recém-liberada da suspensão, partiu com Jill, enquanto
Eddie e eu fomos juntos para a aula de história.
- Isso foi um erro - ele disse, com o rosto sombrio, olhando na direção que Trey seguira. - Ele pode desaparecer, e aí vamos perder a única chance que temos de salvar
Sonya.
- Não acho que ele vá desaparecer - respondi. - Eu conheço Trey. Ele é uma boa pessoa e pude ver que, mesmo que ache que os Strigoi precisam ser exterminados, ele
não tem tanta certeza a respeito de Sonya. Ele vai fazer o possível. Acho que está dividido agora, entre aquilo que ensinaram para ele durante a vida toda e o que
está começando a ver por conta própria.
Parece alguém que você conhece?, perguntou uma voz dentro de mim.
Admito que tinha esperanças de que Trey fosse dar uma resposta imediatamente, por exemplo, já na aula de química. Mas ele também não apareceu lá, nem em nenhum outro
lugar da escola durante o dia todo. Pensei que essas coisas deviam levar um tempo, e minha paciência e confiança foram recompensadas no fim do dia com uma mensagem:
Tentando ainda. Alguns estão dispostos a conversar. Outros precisam ser convencidos.
Quando mostrei a Eddie, ele não considerou a mensagem de Trey uma prova concreta. Porém, eu imaginava que Trey não iria dizer nada se tivesse dado o fora da cidade.
Eddie queria se reunir com Dimitri para discutir uma estratégia a partir dos desdobramentos recentes. Então decidimos ir em grupo para o centro. Convoquei todos
para que nos reuníssemos na frente do alojamento leste em meia hora. Jill foi a primeira a chegar e parou de repente ao me ver.
- Nossa, Sydney... o seu cabelo.
Levantei os olhos da mensagem que estava digitando para Brayden, dizendo que não poderia sair naquele final de semana.
- O que que tem?
- O jeito como as camadas estão penteadas. Enquadra seu rosto perfeitamente.
Ela estava me olhando daquele jeito estranho de novo.
- Pois é - eu disse, tentando mudar de assunto. - Foi... um bom corte. Desculpe por ter feito você se livrar do Micah hoje de manhã.
Levou alguns segundos, mas a mudança de assunto a fez sair do transe induzido pelo meu cabelo.
- Ah, não. Tudo bem. Quer dizer, as coisas estavam ficando meio estranhas entre a gente mesmo.
- Ah, é? - Micah parecia falante como sempre da última vez que o vi. - Vocês ainda estão com problemas?
- Então... Acho que eu é que estou. Gosto muito dele. Adoro sair com ele e com os amigos dele. Mas fico lembrando o tempo todo que nada pode acontecer entre a gente.
Hoje de manhã, por exemplo. Existe uma série de coisas acontecendo de que ele não pode fazer parte. E eu não suporto a ideia de ficar mentindo para ele ou mantendo-o
longe da minha vida. Acho que preciso fazer isso... de vez. Terminar tudo. Sei que já disse isso antes, mas agora é pra valer.
- Pode contar com a gente se precisar - eu disse. Tecnicamente, eu estava sendo sincera, mas se Jill viesse chorando depois me pedindo conselhos, eu não saberia
bem o que dizer. Talvez conseguisse encontrar um livro sobre como aconselhar pessoas passando por fim de namoro antes que ela terminasse de fato.
Ela abriu um sorrisinho torto.
- Sabe o que é engraçado? Quer dizer, não quero sair pulando de um cara para o outro, e eu ainda gosto do Micah, mas estou começando a notar como Eddie é um cara
legal.
- Ele é ótimo - confirmei.
- Relacionamentos entre Moroi e dampiros costumam ser desaconselhados quando eles são mais velhos, mas agora... Digo, conheci alguns que ficaram juntos na São Vladimir.
- Ela riu, constrangida. - Eu sei, eu sei... Não devia nem estar pensando nisso. Um menino de cada vez. Mas, mesmo assim... quanto mais vejo Eddie... Ele é tão corajoso
e confiante. Faria qualquer coisa por nós, sabe? Parece um herói dos contos de fada, só que no mundo real. Mas ele é tão dedicado que eu acho que nunca se interessaria
por uma garota como eu. Não tem tempo para namorar.
- Na verdade - eu disse -, acho que ele se interessaria muito por você.
- Sério? - ela disse, arregalando os olhos.
Queria contar tudo a ela. Em vez disso, como Eddie me pedira para deixar que ele mesmo cuidasse dos problemas pessoais, escolhi as palavras cuidadosamente para não
revelar seus segredos.
- Ele vive falando como você é inteligente e competente. Acho que realmente existe essa possibilidade. - Ele também dizia que não era digno do amor dela, mas essa
ideia poderia perder força se Jill tomasse a iniciativa.
Ela ficou pensativa, e nada mais foi dito sobre o assunto quando Eddie e Angeline se aproximaram. Fomos para a cidade de carro, deixei Jill e os dois dampiros na
casa de Adrian e fui resolver algumas coisas. Esperar por Trey era agonizante e eu precisava me distrair. Além disso, estava com poucas provisões alquimistas e queria
garantir que estivesse com força total antes de qualquer aventura no terreno dos guerreiros.
O celular tocou enquanto empacotava as coisas. Era Trey; saí da loja de ervas para atender a ligação.
- Tudo certo - ele disse. - Pode vir. Vão receber você hoje à noite... só você.
Adrenalina e ansiedade correram pelo meu corpo. Naquela noite. Parecia surpreendentemente cedo, mas era exatamente isso que eu queria. Precisava tirar Sonya daquele
lugar.
- Vou levar você até lá às sete - Trey continuou. - E... bem, desculpa, mas você vai ter que ir vendada. E vou ficar de olho para garantir que não seremos seguidos.
Se nos seguirem, o acordo será cancelado.
- Entendo - respondi, embora a venda tornasse a incursão muito mais assustadora. - Estarei esperando. Obrigada, Trey.
- Mais uma coisa - ele acrescentou. - Queremos a espada de volta.
Combinei com ele para me pegar no prédio de Adrian, já que imaginava que Eddie e Dimitri teriam muitas recomendações para fazer antes do encontro. E liguei para
eles assim que terminei a ligação com Trey, para falar que estava tudo acertado. Também liguei para Stanton para atualizá-la dos fatos. Pensei que deveria ter consultado
ela antes, mas queria ter uma resposta definitiva de Trey primeiro.
- Não gosto nem um pouco da ideia de você ir até lá sozinha - ela disse. - Mas parece improvável que machuquem você. Eles parecem respeitar os humanos, especialmente
nós. E, se houver alguma chance de tirar Karp de lá... Bem, isso evitaria uma crise entre nós e os Moroi. - O tom de Stanton, porém, me dizia que, mesmo achando
que eu estaria segura, ela não estava tão otimista em relação a Sonya. - Tenha cuidado, srta. Sage.
O apartamento de Adrian estava carregado de tensão quando cheguei. Dimitri, Eddie e Angeline estavam visivelmente agitados, talvez porque fossem ficar de fora da
ação. Surpreendentemente, Adrian também parecia inquieto, embora eu não conseguisse entender por quê. Jill o observava, preocupada, e mantinha o olhar fixo nos olhos
dele, sem dúvida recebendo mensagens invisíveis através do laço. Por fim, ele desviou o olhar, como se terminasse uma conversa. Jill suspirou e foi se juntar aos
outros na cozinha.
Comecei a conversar com Adrian, mas Eddie me chamou com um gesto.
- Estamos discutindo se você deve ou não levar uma arma - ele disse.
- Bem, a resposta é não - retruquei imediatamente. - Nem pensar! Eles vão me vendar. Acham que não vão me revistar também?
- Deve haver um jeito - Dimitri disse. Como estávamos sob o ar-condicionado, ele vestia seu sobretudo. - Não posso deixar você entrar lá desarmada.
- Não vou correr perigo - respondi, sentindo como se estivesse repetindo aquele mantra o dia todo. - Eles podem ser loucos, mas Trey disse que, se eles deram a palavra
deles, não vão me fazer mal.
- Sonya não tem essa garantia - Dimitri observou.
- Nenhuma arma vai me ajudar a salvar Sonya além dos meus argumentos. E vou estar armada até os dentes com eles.
Os dampiros ainda não pareciam satisfeitos com isso. Voltaram a discutir entre si enquanto eu levantava para pegar água. Adrian gritou da sala:
- Tem refrigerante diet na geladeira.
Abri o refrigerador. De fato, havia todo tipo de refrigerante lá. Aliás, nunca tinha visto tanta comida na vida: outro fruto da generosidade de Nathan Ivashkov.
Peguei uma lata de Coca Diet e sentei ao lado de Adrian no sofá.
- Obrigada - eu disse, abrindo a lata. - Melhor que isso, só se você tivesse sorvete italiano.
Ele arqueou a sobrancelha.
- Sorvete? Isso é sobremesa, Sage.
- Pois é - admiti. O assunto mundano era reconfortante em meio a toda aquela tensão. - É culpa sua por ter falado disso ontem. Agora não consigo parar de pensar
no sorvete. Quis tomar um ontem à noite no jantar e Brayden me convenceu a não pedir; talvez seja por causa disso que fiquei ainda mais obcecada. Já aconteceu isso
com você? Não conseguir ter alguma coisa e isso só aumentar a vontade?
- Sim - ele respondeu, amargurado. - Acontece o tempo todo.
- Por que você está tão desanimado? Também acha que eu deveria levar uma arma? - Era muito difícil imaginar para onde as mudanças de humor de Adrian poderiam levá-lo.
- Não, eu entendo o seu ponto de vista e acho que está certa - ele disse. - Não que eu aprove a ideia de você ir até lá.
- Preciso ajudar Sonya - eu disse.
Ele me examinou e abriu um sorriso.
- Eu sei. Queria poder ir com você.
- Ah, é? Você iria me proteger e me tirar de lá como ameaçou fazer ontem? - brinquei.
- Ei, se fosse preciso, sim. Você e Sonya. Era só colocar uma em cada ombro. Muito másculo, não?
- Muito - respondi, contente de vê-lo voltar a fazer piadas.
Seu sorriso se desfez e ele ficou sério de novo.
- Queria te perguntar uma coisa. O que é mais assustador: entrar no esconderijo de um bando de humanos doidos assassinos, ou ficar com alguns vampiros e meio-vampiros
inofensivos, ainda que um pouco excêntricos? Eu sei das reservas que vocês, alquimistas, têm em relação a nós, mas a lealdade à sua espécie é tão forte que... sei
lá... as pessoas em particular não importam?
Aquela era uma pergunta incrivelmente profunda para Adrian. Também me fazia lembrar da minha incursão pelo esconderijo alquimista onde Keith estava. Lembrei como
o pai de Keith não se importava com o caráter do filho, desde que ele não mantivesse boas relações com os vampiros. Também me lembrei da obstinação dos guerreiros
no beco em não ouvir qualquer verdade que não a deles. E, por fim, olhei para os dampiros discutindo na cozinha, ainda buscando meios secretos de manter Sonya e
eu em segurança, a qualquer custo.
Voltei a olhar para Adrian.
- Eu ficaria com os vampiros. A lealdade à espécie tem limites.
Algo no rosto de Adrian se transformou, mas eu mal prestei atenção. Estava surpresa demais ao perceber que as palavras que acabara de pronunciar corresponderiam
a uma grave traição no mundo dos alquimistas.
Mais tarde, Eddie e Angeline saíram para buscar o jantar, e deixei que fossem com o meu carro contanto que Eddie dirigisse. Enquanto eles estavam fora, Dimitri tentou
me passar mais algumas técnicas de defesa pessoal, mas era difícil aprender muito em tão pouco tempo. Ficava lembrando de Wolfe nos dizendo para evitar locais perigosos.
O que ele diria se soubesse que eu estava prestes a entrar no esconderijo de um bando de caçadores de vampiros armados?
Eddie e Angeline ficaram fora por um tempo e, quando finalmente voltaram, estavam furiosos com a demora do restaurante.
- Achei que não voltaríamos a tempo - Eddie disse. - Estava com medo de que você não comesse antes da missão.
- Nem sei se consigo comer - admiti. Apesar das minhas palavras corajosas de antes, estava começando a ficar nervosa. - Ah, pode ficar com elas, para o caso de precisar
do carro.
Ele tinha acabado de colocar as chaves na minha bolsa.
- Tem certeza?
- Absoluta.
Ele deu de ombros e então pegou as chaves de novo. Para minha surpresa, Adrian o observava com os olhos apertados e parecia incomodado com alguma coisa. Não estava
conseguindo acompanhar as mudanças de humor dele naquele dia. Ele se levantou e caminhou até Eddie. Depois de alguns momentos, se afastaram ainda mais de nós e pareceram
ter uma discussão aos sussurros, envolvendo algumas olhadelas para mim. Todos os demais pareciam pouco à vontade com a situação e, de repente, irromperam a falar
sobre todo e qualquer assunto. Só conseguia olhar de um lado para o outro, sentindo que havia perdido alguma coisa importante.
Trey me ligou às sete em ponto, dizendo que estava me esperando na frente do prédio. Eu me levantei da cadeira, peguei a espada e respirei fundo.
- Me desejem sorte.
- Eu acompanho você até lá fora - Adrian disse.
- Adrian - Dimitri advertiu.
Adrian revirou os olhos.
- Eu sei, eu sei. Não se preocupe. Eu prometi.
Prometeu o quê? Ninguém falou mais nada. Não era uma caminhada muito longa porque ele morava no térreo, mas, assim que saímos, segurou meu braço com suavidade. Um
choque perpassou meu corpo, tanto pelo toque quanto pelo gesto inesperado. Suas poucas demonstrações de carinho costumavam ser com Jill.
- Sage - ele disse. - Tome cuidado. De verdade. Não vá bancar a heroína; tem uma cambada de heróis aqui dentro. E... aconteça o que acontecer, quero que você saiba
que nunca duvidei da sua missão. É muito inteligente e corajosa.
- Do jeito que você fala, parece que já aconteceu e não deu certo - eu disse.
- Não, não. Eu só... só quero que você saiba que eu confio em você.
- Está bem - respondi, sentindo-me um tanto confusa. Voltei a ter a sensação de que estavam me escondendo alguma coisa. - Espero que meu plano funcione.
Eu precisava ir embora, para longe do toque de Adrian, mas não conseguia. Por algum motivo, estava hesitante em ir. Havia segurança e conforto ali. Depois que saísse,
entraria na cova dos leões. Permaneci mais alguns instantes na segurança daquele círculo que havíamos formado, e então me afastei, relutante.
- Por favor, tome cuidado - ele repetiu. - Volte a salvo.
- Eu vou voltar. - Sem pensar, tirei a cruz do pescoço e a pressionei contra a mão dele. - Desta vez, fique com ela pra valer. Apegue-se a ela até eu voltar. Se
ficar preocupado demais, olhe para ela e saiba que preciso voltar para buscá-la. Ela combina muito com roupas cáqui e de cores neutras.
Temia que ele a devolvesse, mas em vez disso simplesmente assentiu e segurou a cruz com força. Saí me sentindo um pouco vulnerável sem ela, mas torcendo para que
o deixasse mais calmo. De repente, meu desconforto pareceu pequeno comparado ao meu desejo de que Adrian ficasse bem.
Sentei no banco do passageiro do carro de Trey e imediatamente lhe entreguei a espada. Ele parecia tão angustiado quanto antes.
- Tem certeza de que quer ir adiante com isso?
Por que todo mundo ficava me perguntando aquilo?
- Tenho. Certeza absoluta.
- Deixe-me ver seu celular.
Entreguei o celular a ele, ele desligou e me devolveu junto com uma venda.
- Vou confiar em você para colocar a venda em si mesma.
- Obrigada.
Comecei a colocá-la e então, num impulso, olhei para trás, em direção ao prédio, uma última vez. Adrian ainda estava lá, parado, com as mãos no bolso e o rosto preocupado.
Ao perceber meu olhar, ele entreabriu um sorriso e estendeu a mão em sinal de... quê? Adeus? Uma bênção? Não consegui identificar, mas aquilo fez eu me sentir melhor.
A última coisa que vi foi o reflexo da cruz sob a luz do sol, imediatamente antes de cobrir os olhos com a venda, mergulhando na escuridão.
21
EM FILMES, já tinha visto pessoas vendadas que conseguiam saber para onde estavam sendo levadas graças a um talento natural para sentir movimento e direção. Não
era o meu caso. Depois de algumas curvas, já não sabia dizer em que parte de Palm Springs estávamos - ainda mais porque suspeitava que Trey estivesse fazendo um
caminho cheio de voltas, para garantir que não estávamos sendo seguidos. O único momento em que me localizei foi quando entramos na interestadual, simplesmente pela
sensação de correr livre na estrada. Não sabia em que direção estávamos indo e não tinha como dizer por quanto tempo viajamos.
Trey não parecia muito disposto a conversar, mas dava respostas curtas sempre que eu fazia alguma pergunta.
- Quando você se alistou nos caçadores de vampiros?
- Guerreiros da Luz - corrigiu. - Já nasci no meio disso.
- É por isso que você sempre fala em pressão familiar e que esperam muito de você, não é? É por isso que seu pai se preocupa tanto com seu desempenho atlético.
Tomei o silêncio do Trey como um sim e insisti, a fim de conseguir o máximo de informações possível.
- Com que frequência vocês têm esses... encontros? Vocês sempre fazem provas tão brutais? - Até pouco tempo, não havia nada que sugerisse que a vida de Trey fosse
muito diferente da de qualquer outro atleta do ensino médio: ele tinha boas notas, um emprego e uma vida social ativa. Na verdade, pensando em todas as coisas que
Trey fazia normalmente, era difícil imaginar que ele tivesse tempo para os guerreiros.
- Nós não temos encontros frequentes - ele respondeu. - Quer dizer, não os integrantes do meu nível. Esperamos até uma convocação, geralmente quando uma caçada está
em andamento. Ou às vezes organizamos competições para testar nossa força. Nossos líderes viajam para certos lugares e, então, guerreiros de várias localidades se
reúnem para se preparar.
- Se preparar para quê?
- Para o dia em que pudermos exterminar o mal dos vampiros de uma vez por todas.
- E você realmente acredita que essa caçada é o caminho? Que é a coisa certa a se fazer?
- Você já viu um deles? - ele perguntou. - Um dos mortos-vivos diabólicos?
- Já vi alguns.
- E não acha que eles precisam ser destruídos?
- Não é isso que estou tentando dizer. Não gosto nem um pouco dos Strigoi, acredite em mim. A questão é que Sonya não é um deles.
Mais silêncio.
Depois de um tempo, senti que estávamos saindo da estrada. Continuamos mais um pouco, até que ele reduziu a velocidade e entrou numa estrada de cascalho. Paramos
logo depois e Trey baixou o vidro.
- Essa é ela? - perguntou uma voz de homem.
- Sim - Trey respondeu.
- Você desligou o celular dela?
- Sim.
- Leve a garota para dentro. Vão cuidar do resto da revista.
Ouvi o rangido de um portão sendo aberto e, em seguida, continuamos pela estrada de cascalho até entrarmos no que parecia uma área de terra batida. Trey estacionou
e desligou o carro. Abriu sua porta ao mesmo tempo que alguém do lado de fora abria a minha. Uma mão no meu ombro me empurrou para a frente.
- Venha. Saia.
- Tome cuidado com ela - Trey advertiu.
Fui levada do carro para dentro de um prédio. Só quando ouvi uma porta sendo fechada e trancada tiraram a minha venda. Estava numa sala austera com paredes de reboco
e lâmpadas expostas. Quatro outras pessoas estavam em volta de mim e Trey, três homens e uma mulher. Eles pareciam ter vinte e poucos anos, todos armados, entre
eles os dois rapazes que me interpelaram no café.
- Esvazie a bolsa. - Era Jeff, o rapaz de cabelo preto moderninho, que usava um brinco dourado com o antigo símbolo do Sol.
Obedeci, jogando o conteúdo da bolsa em cima de uma mesa improvisada, composta por um pedaço de madeira sobre blocos de cimento. Enquanto examinavam o conteúdo,
a mulher me revistou em busca de escutas. Ela tinha o cabelo oxigenado e a cara fechada, mas pelo menos a revista foi profissional e eficiente.
- O que é isso? - o loirinho do café perguntou, pegando um pequeno saco plástico recheado de ervas e flores secas. - Você não parece o tipo que usa drogas.
- É um pot-pourri - respondi prontamente.
- Você guarda um pot-pourri na bolsa? - ele perguntou, incrédulo.
Dei de ombros.
- Guardamos todo tipo de coisa na bolsa. Mas tirei todos os ácidos e substâncias químicas antes de vir para cá.
Ele descartou o pot-pourri como inofensivo e jogou numa pilha com outros itens liberados, como minha carteira, antisséptico para as mãos e um bracelete liso de madeira.
Notei, então, que a pilha também incluía um par de brincos dourados em forma de discos, cobertos por espirais intrincadas e minúsculas pedras preciosas. Eram bonitos,
mas eu nunca os vira antes.
Mas é claro que não chamaria a atenção para nada, ainda mais quando a mulher apanhou meu celular.
- Vamos destruir isso.
- Eu desliguei - Trey disse.
- Ela pode ligar de novo. Pode ser rastreado.
- Ela não faria isso - Trey argumentou. - Além do mais, isso é um pouco paranoico, não? Ninguém usa esse tipo de tecnologia no mundo real.
- Você que pensa - ela respondeu.
Ele estendeu a mão e disse:
- Dê o celular pra mim. Vou guardar comigo em segurança. Ela está aqui em missão de paz.
A mulher hesitou até Jeff assentir com a cabeça. Trey colocou o celular no bolso, o que me deixou grata. Havia muitos números salvos e daria um trabalhão cadastrá-los
novamente. Depois que minha bolsa foi considerada segura, deram permissão para recolocar as coisas dentro dela e levá-la comigo.
- Certo - o loirinho disse. - Vamos para a arena.
Arena? Era difícil imaginar o que uma arena faria num lugar como aquele. A visão na travessa de prata não me mostrara nenhuma parte significativa do prédio, apenas
que era térreo, com um aspecto velho e sujo. Aquele salão parecia seguir bem essa temática. Se os folhetos antiquados serviam como exemplo da noção de estilo dos
guerreiros, supunha que essa “arena” ficasse em algum tipo de garagem.
Não podia estar mais errada.
Tudo o que faltava às outras áreas de operação dos Guerreiros da Luz, eles haviam investido na arena - ou, como me disseram ser o nome oficial, Arena do Resplendor
Divino do Ouro Sagrado. A arena tinha sido construída numa área cercada por várias construções. Eu não me atreveria a chamar aquilo de um simples pátio. Era maior,
em um terreno de terra batida igual àquele em que estacionamos o carro. A infraestrutura estava longe de ser refinada ou altamente tecnológica, mas, enquanto observava
aquilo tudo, não conseguia deixar de pensar no comentário de Trey de que os guerreiros haviam chegado à cidade naquela semana.
Porque terem montado aquilo tão rápido... era muito impressionante. E apavorante. Duas arquibancadas de madeira frágil foram erguidas em lados opostos do lugar.
Uma abrigava cinquenta espectadores, em sua maioria homens, de várias idades, com olhares desconfiados e até mesmo hostis, voltados para mim enquanto eu era guiada
arena adentro. Quase podia sentir seus olhares fixos cravados na minha tatuagem. Será que todos sabiam dos alquimistas e da nossa história? Sem exceção, vestiam
roupas normais, mas avistei brilhos dourados aqui e ali. Muitos usavam algum tipo de ornamento - um broche, um brinco etc. -, fosse com o símbolo do Sol moderno
ou antigo.
A outra arquibancada estava praticamente vazia. Três homens mais velhos, da idade do meu pai, estavam sentados um ao lado do outro, vestindo mantos amarelos cobertos
por bordados dourados cintilando sob a luz laranja do poente. Nos elmos dourados que cobriam suas cabeças estava gravado o antigo símbolo do Sol, o círculo com o
ponto no meio. Eles também me observavam, e procurei manter a cabeça erguida, tentando esconder o tremor nas mãos. Não conseguiria apresentar uma defesa convincente
em favor de Sonya se parecesse intimidada.
Em torno da arena, dispostos em mastros, agitavam-se estandartes de todas as formas e tamanhos. Feitos de tecidos grossos e suntuosos, lembravam tapeçarias medievais.
Obviamente não eram tão antigos, mas davam ao lugar uma aura luxuosa e cerimonial. Os desenhos nos estandartes eram muito variados. Alguns realmente pareciam ter
vindo direto da Idade Média, exibindo combates entre cavaleiros estilizados e vampiros. A visão deles me causou arrepios. Realmente havia voltado no tempo, para
a congregação de um grupo cuja história era tão antiga quanto a dos alquimistas. Outros estandartes eram mais abstratos, reproduzindo antigos símbolos alquimistas.
Outros, ainda, pareciam modernos, retratando o mesmo sol tatuado nas costas de Trey. Me perguntei se aquela reinterpretação do sol tinha o objetivo de atrair a juventude
moderna.
Durante todo o tempo, fiquei pensando: Menos de uma semana. Montaram isso em menos de uma semana. Viajaram para cá com tudo, prontos para levantar isso de uma hora
para a outra a fim de fazer essas competições ou execuções. Eles podem ser primitivos, mas isso não faz deles menos perigosos.
Embora a grande multidão de espectadores tivesse a aparência agressiva, como algum tipo de milícia rural, era um alívio não parecerem armados. Só a minha escolta
estava armada. Uma dúzia de armas já era demais para o meu gosto, mas, se aquilo fosse tudo, não era tão ruim assim - e restava esperar que mantivessem as armas
apenas por ostentação. Chegamos à base da arquibancada vazia e Trey veio ficar ao meu lado.
- Este é o grande conselho dos Guerreiros da Luz - Trey disse. Em seguida, apontou para cada um deles. - Mestre Jameson, mestre Angeletti e mestre Ortega. Esta é
Sydney Sage.
- Você é muita bem-vinda aqui, irmãzinha - mestre Angeletti disse com sua voz grave, sob a longa barba desgrenhada. - Uma oportunidade para a reconciliação de nossos
grupos há muito se faz necessária. Seremos muito mais fortes depois que colocarmos nossas diferenças de lado e nos tornarmos um só.
Abri o sorriso mais cortês que consegui e decidi não chamar atenção à improbabilidade de os alquimistas aceitarem fanáticos com metralhadora em punho em nossas fileiras.
- É um prazer conhecer os senhores. Obrigada por permitirem minha visita. Gostaria de falar sobre...
Mestre Jameson levantou a mão para me deter. Seus olhos pareciam pequenos demais para o restante do rosto.
- Tudo a seu tempo. Primeiro, gostaríamos de mostrar a você a diligência com que treinamos nossos jovens para o embate na grande cruzada. Assim como vocês encorajam
a excelência e a disciplina na mente, nós as encorajamos no corpo.
Após alguma deixa silenciosa, a porta por onde tínhamos acabado de entrar voltou a se abrir. Um rosto conhecido entrou na arena: Chris, o primo de Trey, com calças
de ginástica e sem camisa. Era possível ver claramente o sol irradiado tatuado em suas costas. Com o olhar selvagem, caminhou até o centro da arena.
- Creio que já conhece Chris Juarez - mestre Jameson disse. - Ele é um dos finalistas nessa última rodada de combates. O outro, claro, você também conhece. É uma
grande ironia que os primos estejam se enfrentando, mas também é conveniente, já que ambos fracassaram no primeiro ataque contra o demônio.
Estupefata, me voltei para Trey.
- Você? Você é um dos... competidores para matar Sonya? - Mal conseguia pronunciar essas palavras. Alarmada, voltei a me dirigir ao conselho. - Disseram que eu teria
a chance de me pronunciar a favor de Sonya.
- Você terá - mestre Ortega afirmou, num tom que sugeria que seria um esforço em vão. - Mas, primeiro, devemos determinar o vencedor. Competidores, tomem seus lugares.
Notei então que Trey também estava usando calças esportivas, como se estivesse a caminho de um treino de futebol americano. Também tirou a camisa e, por falta do
que fazer com ela, a entregou para mim. Eu a segurei e fiquei olhando para ele, ainda incapaz de acreditar no que estava acontecendo. O olhar dele encontrou o meu
por um breve instante, mas logo se desviou. Ele se afastou em direção ao primo, e mestre Jameson me convidou para sentar.
Trey e Chris se encararam. Me senti meio envergonhada por analisar dois rapazes sem camisa, mas não havia nada de sexual acontecendo. Minhas impressões sobre Chris
não mudaram muito desde que o conhecera. Tanto ele como Trey estavam em excelente forma, musculosos e fortes, com o tipo de corpo de quem treina e se exercita regularmente.
A única vantagem de Chris, se é que havia alguma, era a altura dele, o que eu também havia notado antes. A altura dele. Como um raio, as memórias do ataque no beco
voltaram à minha cabeça. Pouco se podia ver dos agressores, mas o que carregava a espada era mais alto. Originalmente, Chris devia ser o encarregado de matar Sonya.
Outro homem vestido de manto surgiu pela porta. Seu manto tinha um corte um pouco diferente daquele dos conselheiros e exibia ainda mais bordados em ouro. Em vez
de um elmo, portava um barrete parecido com o de um sacerdote, o que ele parecia ser já que Chris e Trey se ajoelharam diante dele. O sacerdote marcou suas testas
com óleo e recitou algum tipo de bênção que não consegui ouvir. Então, para minha surpresa, fez o sinal contra o mal no ombro - o mesmo sinal dos alquimistas.
Acredito que, mais do que qualquer discurso sobre vampiros malignos ou o uso compartilhado de símbolos antigos, aquilo foi o que realmente deixou evidente o fato
de que nossos dois grupos um dia tiveram um parentesco. O sinal contra o mal era uma pequena cruz traçada com a mão direita sobre o ombro. Sobrevivera entre os alquimistas
desde os tempos antigos. Um calafrio percorreu meu corpo. Realmente já havíamos sido um único grupo.
Quando o sacerdote terminou, outro homem deu alguns passos adiante e entregou a cada um dos primos um bastão de madeira liso, bem parecido com o cassetete que policiais
muitas vezes usam para reprimir as multidões. Trey e Chris se voltaram um contra o outro, assumindo posturas agressivas e portando os bastões em posição de ataque.
Um burburinho de euforia correu a multidão, cujo desejo por violência só crescia. A brisa vespertina levantava poeira ao redor dos primos, mas nenhum deles vacilou.
Me virei para o conselho, incrédula.
- Eles vão se atacar com aqueles bastões? - inquiri. - Eles podem se matar!
- Ah, não - mestre Ortega disse, calmo demais para o meu gosto. - Há anos que não ocorrem mortes nessas provas. Eles vão se machucar, claro, mas isso só fortalece
os guerreiros. Todos os nossos jovens rapazes são ensinados a suportar a dor e continuar lutando.
- Jovens rapazes - repeti. Meu olhar se dirigiu à garota loira que me levara até lá. Ela estava de pé, perto da nossa arquibancada, segurando a arma ao seu lado.
- E as mulheres?
- Nossas mulheres também são fortes - mestre Ortega disse. - E sem dúvida são valorizadas. Mas nunca nem sonharíamos em deixá-las lutar nas arenas ou caçar vampiros
ativamente. Parte do motivo é mantê-las em segurança. Estamos combatendo esse mal para o bem delas e das nossas crianças.
O homem que entregou os bastões anunciou as regras com uma voz sonora e retumbante que ecoou pela arena. Para o meu alívio, os primos Juarez não se espancariam irracionalmente.
Havia um sistema de regras para o combate em que estavam prestes a entrar. Podiam se acertar apenas em determinadas partes do corpo. Acertar outras renderia penalidades.
Um golpe bem-sucedido renderia um ponto. O primeiro a alcançar cinco pontos seria o vencedor.
Contudo, assim que o embate começou, ficou evidente que ele não seria tão civilizado quanto eu gostaria que fosse. Chris acertou o primeiro golpe imediatamente,
atingindo Trey com tanta força que me arrepiei toda. Aclamações e gritos selvagens reverberaram na multidão sedenta por sangue, ecoados pelas vaias dos que torciam
por Trey. Ele não demonstrou nenhuma reação e continuou tentando atingir Chris, mas pude notar que aquilo viraria um belo machucado depois. Ambos eram muito rápidos
e alertas, capazes de desviar da maioria das tentativas de golpe. Saltavam em todas as direções, tentando pegar o outro desprevenido e levantando ainda mais poeira,
que se grudava ao suor da pele deles. Me vi debruçada, com os punhos cerrados de tensão. Com a boca seca, não conseguia articular nenhum som.
De certo modo, aquilo me lembrou um pouco o treinamento de Eddie e Angeline. Sem dúvida, eles também saíam feridos. Nos treinos deles, porém, eles representavam
guardião e Strigoi. Havia uma diferença entre isso e dois rapazes tentando causar o máximo de estrago possível um ao outro. Assistir a Trey e Chris fez meu estômago
dar um nó. Não gostava de violência, muito menos num espetáculo bárbaro como aquele. Era como se tivesse sido levada de volta ao tempo dos gladiadores.
O fervor da multidão continuava a crescer. Em pé, torciam e incentivavam loucamente os dois primos. Suas vozes retumbavam pela noite no deserto. Apesar de ter sido
golpeado primeiro, Trey claramente conseguia se manter firme. Eu observava enquanto ele lançava um golpe atrás do outro contra Chris e não sabia ao certo o que me
repugnava mais: ver meu amigo ferido ou vê-lo ferindo outra pessoa.
- Isso é terrível - eu disse, quando finalmente recuperei a voz.
- É a excelência no combate - mestre Angeletti corrigiu. - Não é nenhuma surpresa, já que os pais deles também são guerreiros extraordinários. Também lutaram muito
na juventude. São aqueles ali, na primeira fileira.
Olhei para onde ele indicou e vi dois homens de meia-idade, lado a lado, com expressões exultantes, gritando frases de incentivo para os garotos. Nem precisava das
palavras de mestre Angeletti para deduzir que eram parentes. Os traços da família Juarez eram tão fortes naqueles homens quanto em seus filhos. Os pais torciam com
tanta sofreguidão quanto a massa, sem sequer vacilar quando Trey ou Chris eram machucados. Eram exatamente como meu pai ou o pai de Keith: nada importava mais do
que orgulhar a família e jogar de acordo com as regras do grupo.
Eu havia perdido a contagem dos pontos, até que mestre Jameson disse:
- Ah, isso vai ser bom. O próximo ponto determinará o vencedor. Sempre fico orgulhoso quando os competidores são tão equilibrados. Mostra que fizemos a coisa certa.
Não conseguia ver nada certo naquilo. Lágrimas ardiam nos meus olhos, sem que eu soubesse se eram por conta do ar seco e empoeirado ou apenas de nervosismo. O suor
escorria nos corpos de Trey e Chris, ambos ofegantes pelo esforço do combate, cobertos de arranhões e ferimentos que se somavam às antigas marcas de batalha. A tensão
na arena era evidente conforme todos esperavam para ver quem acertaria o golpe final. Os primos pararam por um instante, medindo um ao outro, percebendo que aquela
era a hora da verdade. Aquele seria o golpe que contaria pra valer. Com o rosto ardente e exaltado, Chris foi o primeiro a se mover, lançando-se à frente a fim de
acertar uma pancada contra o flanco de Trey. Prendi a respiração, levantando-me alarmada junto com a maior parte da multidão. O som era ensurdecedor. Ficou claro
pela expressão de Chris que ele já podia sentir o gosto da vitória e me perguntei se ele já se imaginava dando o golpe que poria um fim a Sonya. O poente banhava
seu rosto com uma luz sangrenta.
De tanto ver Eddie lutar, talvez eu tivesse aprendido o bastante dos princípios básicos para de repente me dar conta de uma coisa. O movimento de Chris fora impulsivo
e descuidado demais. Dito e feito. Trey conseguiu desviar do golpe e soltei um suspiro de alívio. Me afundei novamente no assento. Aqueles que estavam certos de
que ele estava prestes a ser eliminado bradaram em protesto.
Isso deu a Trey uma bela abertura para atingir Chris. Minha tensão voltou a crescer. Será que isso seria mesmo melhor? Trey “ganhar” o direito de tirar uma vida?
Discutível. Trey não desferiu o golpe. Franzi a testa enquanto observava. Ele não pareceu se atrapalhar, mas algo não estava certo. Existe um ritmo na luta, em que
instinto e respostas automáticas assumem o comando do corpo. Era quase como se Trey tivesse impedido deliberadamente seu próximo golpe instintivo, que dizia ataque
agora! Ao fazer isso, ele abriu a guarda, levando um golpe de Chris, que o lançou ao chão. Pus a mão no peito como se sentisse o golpe na minha pele.
A multidão foi à loucura. Mesmo os mestres decorosos pularam dos assentos, gritando em aprovação ou pesar. Precisei me esforçar para continuar sentada. Todas as
partes do meu corpo queriam descer correndo para ver se Trey estava bem, mas tinha a impressão de que algum membro armado da escolta atiraria ou me jogaria no chão
antes que eu desse dois passos. Minha preocupação diminuiu um pouco, bem pouco, quando vi Trey se levantar, cambaleando. Chris deu uma palmadinha benevolente nas
costas de Trey, abrindo um sorriso de orelha a orelha enquanto a multidão gritava seu nome.
Trey logo se retirou para a arquibancada lotada, dando espaço ao vencedor. Seu pai o recebeu com um olhar de desaprovação, mas não disse nada. O homem que lhes entregara
os bastões se aproximou de Chris com a espada que eu havia devolvido. Chris a ergueu, recebendo ainda mais aplausos. Ao meu lado, mestre Jameson se levantou e clamou:
- Tragam a criatura!
Dificilmente poderia descrever Sonya Karp como “criatura” quando quatro guerreiros armados a arrastaram até o meio da arena coberta de pó. Suas pernas pareciam fraquejar
e, mesmo à distância, pude notar que estava drogada. Era por isso que Adrian não conseguia chegar até ela através dos sonhos. Também explicava por que ela não havia
usado nenhum tipo de magia para tentar escapar. Seu cabelo estava desgrenhado e ela usava as mesmas roupas que vestia naquela última noite no apartamento do Adrian.
Estavam sujas, mas fora isso não parecia haver nenhum sinal de abuso físico no corpo dela.
Dessa vez, não pude evitar me levantar. A garota loira imediatamente pôs a mão no meu ombro, fazendo-me me sentar novamente. Contemplei Sonya, desejando desesperadamente
poder ajudá-la, mas sabia que estava impotente. Reprimindo o medo e a fúria, voltei a me sentar lentamente na arquibancada e me virei para o conselho.
- Vocês disseram que eu teria a chance de falar. - Lembrei de seu senso de honra. - Vocês deram sua palavra. Ela não significa nada pra vocês?
- Nossa palavra significa tudo - mestre Ortega disse, parecendo ofendido. - Você terá a sua oportunidade.
Atrás da guarda de Sonya vieram dois outros homens puxando um bloco de madeira enorme com tiras para prender os braços. Parecia ter vindo diretamente de um cenário
de filme medieval, e meu estômago se revirou quando me dei conta do objetivo dele: decapitação. A escuridão estava aumentando, o que levou os homens a trazerem tochas
que lançavam uma luz sinistra e bruxuleante ao redor da arena. Era impossível acreditar que estava na Califórnia em pleno século XXI: me senti transportada para
um castelo bárbaro.
E, de fato, aqueles caçadores eram bárbaros. Um dos guardas de Sonya a empurrou para a frente, fazendo com que caísse de joelhos, e forçou a cabeça dela contra a
superfície do bloco de madeira, enquanto prendia suas mãos com as tiras de couro. Considerando como estava desorientada, não era preciso usar nem metade da força
que ele empregou. Não podia acreditar que eram capazes de agir com tamanha certeza de serem os donos da verdade quando estavam prestes a pôr fim à vida de uma mulher
que sequer conseguia oferecer alguma resistência. Todos gritavam pedindo pelo sangue dela e me senti prestes a vomitar.
Mestre Angeletti se levantou e um silêncio tomou conta da arena.
- Nós nos reunimos aqui, vindos de todas as partes do país, para um acontecimento grandioso. É um dia raro e abençoado quando de fato temos um Strigoi em cativeiro.
- Porque ela não é Strigoi, pensei, enfurecida. Eles nunca conseguiriam capturar um Strigoi vivo. - Eles atormentam os humanos decentes como nós, mas hoje enviaremos
uma de volta para o Inferno, uma que é particularmente perigosa por sua capacidade de ocultar sua verdadeira natureza e fingir ser um dos demônios mais benignos,
os Moroi, com os quais ainda haveremos de lidar um dia. - Um burburinho de aprovação correu pelo amontoado de gente. - Antes de começarmos, porém, uma irmã alquimista
gostaria de se pronunciar em favor dessa criatura.
A aprovação desapareceu, sendo substituída por murmúrios e olhares furiosos. Tensa, me perguntei se os guardas que apontavam suas armas para mim se voltariam contra
um dos membros de seu grupo caso eu fosse atacada. Mestre Angeletti ergueu as mãos e os silenciou.
- Vocês precisam mostrar respeito à nossa irmãzinha - ele disse. - Os alquimistas são nossos semelhantes e, outrora, formamos um único grupo. Seria um acontecimento
da grande importância se pudéssemos voltar a unir forças.
Com isso, sentou-se e fez um gesto na minha direção. Nada mais foi dito e supus que isso significava que o palco era meu. Não sabia ao certo como ou onde deveria
fazer minha defesa. O conselho tomava as decisões, mas pensei que aquilo era algo que todos deveriam ouvir. Me levantei e esperei que a garota armada impedisse que
eu me movesse, mas ela não impediu. Lenta e atentamente, desci a arquibancada e parei no meio da arena, com cuidado para não me aproximar demais de Sonya. Imaginei
que aquilo não acabaria bem.
Mantive o corpo de frente para o conselho, mas virei a cabeça esperando alcançar os demais. Já havia feito relatórios e apresentações em público antes, mas sempre
numa sala de conferência. Nunca havia me dirigido a uma multidão irada, muito menos havia tratado de assuntos relacionados aos vampiros com um grupo tão gigantesco.
Em sua maioria, os rostos lá em cima estavam cobertos por sombras, mas eu conseguia imaginar os olhos loucos e sedentos por sangue cravados em mim. Minha boca ficou
seca e, como muito raramente acontecia, minha mente deu um branco. Um momento depois, consegui vencer o medo (ainda que não por completo) e me concentrei no que
queria dizer.
- Os senhores estão cometendo um engano - comecei. Minha voz saiu baixa e pigarreei, me forçando a projetar o som com mais força. - Sonya Karp não é Strigoi.
- Temos registros dela no Kentucky - mestre Jameson interrompeu. - Testemunhas que a viram matar.
- Isso porque ela era Strigoi naquela época, mas não é mais. - Não parava de pensar que a tatuagem me impediria de falar, mas aquele grupo já sabia bastante sobre
o mundo dos vampiros. - No ano passado, os alquimistas descobriram muito sobre os vampiros. Os senhores devem saber que os Moroi, que vocês denominam “demônios benignos”,
praticam magia elemental. Recentemente descobrimos a existência de um tipo novo e raro de magia, ligado a poderes psíquicos e à cura. Esse poder tem a capacidade
de restaurar um Strigoi à sua forma original, seja ela humana, dampira ou Moroi.
As negativas logo se tornaram frenéticas. A mentalidade de massa em ação. Foi preciso mestre Jameson para silenciá-los novamente.
- Isso - ele disse, simplesmente - é impossível.
- Documentamos três, ou melhor, quatro casos de pessoas com quem isso aconteceu. Três Moroi e um dampiro que já foram Strigoi e agora retornaram à sua identidade
e alma prévias. - Falar sobre Lee no presente não era exatamente verídico, mas não precisava entrar em detalhes. Além do mais, descrever um ex-Strigoi que queria
voltar a ser Strigoi provavelmente não ajudaria a minha causa. - Olhem para ela. Ela parece Strigoi? Ela está sob o sol. - Não havia muito sol restante, mas mesmo
aqueles raios remanescentes do ocaso seriam suficientes para matar uma Strigoi. Pela maneira como eu suava de medo, poderia muito bem estar sob sol escaldante. -
Vocês dizem que isso é obra de alguma magia perversa, mas em algum momento a viram na forma Strigoi aqui em Palm Springs?
Ninguém admitiu imediatamente. Por fim, mestre Angeletti disse:
- Ela derrotou nossas forças na rua. É óbvio que retomou sua verdadeira forma.
- Não - desdenhei. - Quem derrotou suas forças foi Dimitri Belikov, um dos melhores guerreiros dampiros do mundo. Sem ofensa, mas apesar de todo o treinamento, seus
soldados não tiveram a menor chance contra dele. - Recebi olhares ainda mais agressivos, o que me fez perceber que aquela provavelmente não fora a melhor coisa a
se dizer.
- Vocês estão sendo enganados - mestre Angeletti disse. - Não é nenhuma surpresa, já que seu grupo vem se envolvendo com os Moroi por trás dos panos há muito, muito
tempo. Vocês não são como nós, que descemos até as trincheiras. Não enfrentam os Strigoi cara a cara. Eles são criaturas malignas e sedentas por sangue que precisam
ser destruídas.
- Concordo com isso. Mas Sonya não é Strigoi. Olhem para ela. - Eu estava ganhando coragem, e minha voz crescia e se tornava mais clara na noite deserta. - Os senhores
ficam se vangloriando por terem capturado um monstro terrível, mas tudo o que estou vendo é uma mulher drogada e amarrada. Belo trabalho. Realmente um inimigo digno.
Ninguém no conselho parecia tão tolerante comigo quanto antes.
- Nós apenas a subjugamos - mestre Ortega disse. - É um indício da nossa proeza termos conseguido isso.
- Os senhores subjugaram uma mulher inocente e indefesa. - Não sabia se trazer à tona esse argumento ajudaria alguma coisa, mas imaginei que mal não poderia fazer
considerando a visão tão distorcida e cavalheiresca que eles tinham das mulheres. - E sei que os senhores já cometeram erros antes. Sei sobre Santa Cruz. - Não tinha
ideia se aquele era o mesmo grupo de homens que perseguiram Clarence, mas estava apostando que o conselho pelo menos tinha conhecimento daquilo. - Alguns de seus
zelosíssimos membros perseguiram um Moroi inocente. Os senhores reconheceram o erro na época quando Marcus Finch lhes disse a verdade. Não é tarde demais para corrigir
este erro também.
Para minha surpresa, mestre Ortega abriu um sorriso.
- Marcus Finch? Você está elevando Marcus Finch a algum status de herói?
Não, na verdade não. Nem sabia quem ele era. Mas se era um humano que conseguira convencer aquele povo maluco do que era certo, então devia ter algum tipo de integridade.
- Por que não? - indaguei. - Ele conseguiu distinguir o certo do errado.
Então, até o velho mestre Angeletti deu uma risadinha.
- Nunca pensei que veria uma alquimista elogiar o senso de “certo e errado” dele. Pensei que suas visões sobre isso fossem imutáveis.
- Do que vocês estão falando? - Não queria fugir do assunto, mas não conseguia entender aqueles comentários.
- Marcus Finch traiu os alquimistas - mestre Angeletti explicou. - Você não sabia? Pensei que um alquimista renegado fosse a última pessoa que você usaria para sustentar
sua defesa.
Fiquei sem palavras por um momento. Ele estava dizendo... que Marcus Finch fora um alquimista? Não. Não poderia ser. Se tivesse sido, Stanton saberia quem ele era.
A menos que ela tenha mentido quando afirmou não ter nenhum registro dele, uma voz na minha cabeça advertiu.
Aparentemente, mestre Jameson já havia ouvido o bastante de mim.
- Agradecemos sua visita e respeitamos sua tentativa de defender aquilo em que acredita. Também estamos contentes por ter presenciado a força que desenvolvemos.
Espero que transmita essa notícia à sua ordem. Pelo menos, suas tentativas aqui demonstraram o que nós já sabíamos há muito tempo: nossos grupos precisam um do outro.
Os alquimistas claramente reuniram muitos conhecimentos ao longo dos anos que nos poderiam ser muito úteis, assim como nossa força poderia ser útil a vocês. Mesmo
assim - ele disse, olhando para Sonya com uma careta -, a questão agora continua sendo que, apesar de suas intenções, você realmente foi enganada. Mesmo que exista
uma minúscula chance de você estar certa, de que ela seja mesmo uma Moroi... não podemos correr o risco de que ela ainda esteja corrompida. Mesmo que ela acredite
ter sido restaurada, ainda pode estar sob uma influência subconsciente.
Voltei a ficar muda - mas não só porque, aparentemente, havia perdido a causa. As palavras do mestre Jameson eram quase idênticas às que o pai de Keith me dissera
quando contou que seu filho seria levado de volta à reeducação. O sr. Darnell ecoara o sentimento de que não se podia correr o risco de que existisse algum vestígio
sutil influenciando Keith. Eram necessárias medidas extremas. Nós somos iguais, pensei. Os alquimistas e os guerreiros. Os anos nos separaram, mas chegamos ao mesmo
lugar, tanto nos objetivos como nas atitudes cegas.
E, então, mestre Jameson pronunciou a fala mais chocante de todas:
- E se ela for mesmo Moroi, não vai ser nenhuma grande perda. Mais dia, menos dia, iremos atrás deles também, assim que derrotarmos os Strigoi.
Congelei ao ouvir aquelas palavras. A garota loira avançou e, mais uma vez, me forçou a sentar na primeira fileira da arquibancada. Não ofereci resistência, tamanho
era meu choque com o que acabara de ouvir. O que queriam dizer com ir atrás dos Moroi? Sonya podia ser apenas o começo, depois viria o resto dos meus amigos, e depois
Adrian...
Mestre Angeletti me fez voltar ao presente ao se dirigir a Chris com um gesto magnânimo:
- Pelo poder divino a nós concedido para trazer luz e pureza a este mundo, você está autorizado a destruir essa criatura. Comece.
Chris ergueu a espada, com um brilho fanático no olhar. Um brilho de felicidade, até. Ele queria fazer aquilo. Queria matar. Dimitri e Rose mataram inúmeras, inúmeras
vezes, mas nenhum deles jamais me dissera que sentia alguma alegria naquilo. Eles estavam contentes em fazer o que era certo e defender os outros, mas não sentiam
prazer em causar a morte. Sempre fui ensinada que a existência dos vampiros era errada e perversa, mas o que eu estava prestes a presenciar era uma verdadeira atrocidade.
Aqueles eram os verdadeiros monstros.
Eu queria gritar, chorar ou me atirar na frente de Sonya. A morte de uma pessoa brilhante e generosa aconteceria a qualquer momento. Então, sem o menor aviso, o
silêncio da arena foi rompido pelo som de tiros. Chris parou e ergueu a cabeça, surpreso. Tive um sobressalto e olhei imediatamente para a direção da escolta armada,
me perguntando se eles haviam assumido por conta própria a função de esquadrão de fuzilamento. Eles pareciam tão surpresos quanto eu - a maioria, pelo menos. Dois
não demonstraram emoção alguma: estavam caídos no chão.
E foi então que Dimitri e Eddie irromperam na arena.
22
OUTROS DISPAROS ECOARAM PELA ARENA, derrubando mais alguns guerreiros armados. Percebi que Dimitri e Eddie não estavam sozinhos, pois nenhum deles empunhava armas.
Os tiros vinham do telhado do complexo ao redor da arena. O caos tomou conta quando os espectadores aglomerados levantaram-se agitados para entrar no meio da briga.
Perdi o fôlego ao notar que muitos também tinham armas. Em choque, percebi que o guerreiro caído no chão ao meu lado não estava sangrando. Um pequeno dardo pendia
em seu ombro. A munição dos atiradores de elite eram tranquilizantes. Quem eram eles?
Olhei novamente para a entrada e vi que outros homens que pareciam guardiões invadiram a arena e lutavam contra outros guerreiros, incluindo Chris, o que deu cobertura
para que Dimitri e Eddie libertassem Sonya. Ao vislumbrar um brilho loiro-avermelhado perto deles, reconheci o corpo ágil de Angeline. Eficiente, Dimitri cortou
as amarras de Sonya e ajudou a levá-la até Eddie. Um guerreiro fervoroso veio correndo na direção deles e, sem perder tempo, Angeline o nocauteou, como se não passasse
de um palestrante educativo.
Do meu lado, um dos mestres gritou:
- Peguem a garota alquimista como refém! Eles vão negociar por ela!
A garota alquimista. Certo. Ele estava falando de mim.
No calor do combate, quase ninguém o ouviu, exceto uma pessoa. A loira oxigenada tinha conseguido evitar os dardos de tranquilizante e correu na minha direção. De
repente, perdi o medo com a descarga de adrenalina. Usando reflexos que mal sabia ter, peguei minha bolsa e tirei dela o tal “pot-pourri”. Rasguei o invólucro, fazendo
o conteúdo voar ao meu redor, e gritei um encantamento em latim que se podia traduzir grosseiramente por algo como “não veja mais”. Comparando ao feitiço de localização,
era surpreendentemente simples. Exigia força de vontade, claro, mas a maior parte da magia estava ligada aos componentes físicos, e não exigia horas de concentração
como o outro. Senti o poder surgir através de mim quase instantaneamente, me preenchendo com um frenesi que não esperava.
A garota gritou e lançou as mãos aos olhos, deixando a arma cair. Gritos angustiados dos mestres ao meu lado indicaram que eles também haviam sido afetados. Eu havia
lançado um feitiço de cegamento que afetava todos ao meu redor durante cerca de trinta segundos. Parte de mim sabia que usar magia era errado, mas de resto me senti
triunfante ao deter alguns daqueles fanáticos armados, mesmo que temporariamente. Não perdi nenhum daqueles preciosos segundos. Pulei de onde estava sentada e corri
através da arena, para longe do embate perto da entrada.
- Sydney!
Não sei como consegui ouvir meu nome em meio a toda aquela confusão. Olhando para trás, vi Eddie e Angeline carregando Sonya através da porta. Eles pararam, e uma
expressão de sofrimento passou pelo rosto de Eddie enquanto olhava ao redor, avaliando a situação. Podia adivinhar o que se passava pela sua cabeça. Ele queria que
eu fosse com eles. A maioria dos guerreiros reunidos ali tinha avançado correndo para o centro da arena, na tentativa de impedir o resgate de Sonya. Eles estavam
em um número muito maior, como uma muralha entre mim e meus amigos. Mesmo se eu não tivesse de lutar contra ninguém, parecia impossível passar despercebida, principalmente
porque muitas pessoas ainda gritavam sobre “a garota alquimista”.
Obstinada, fiz que não com a cabeça e gesticulei para que Eddie saísse sem mim. Apesar do conflito estampado em seu rosto, torci para que ele não tentasse atravessar
a multidão para me resgatar. Apontei para a porta, voltando a insistir para que fosse embora. Sonya estava incapacitada. Eu encontraria uma saída. Sem esperar para
ver o que ele faria, me virei e continuei a seguir o caminho para onde estava indo. Havia muito espaço aberto a percorrer, mas menos guerreiros para me impedir.
Vários prédios cercavam a arena, alguns com portas e janelas. Segui na direção deles, embora não tivesse nada com que quebrar o vidro. Duas das portas tinham cadeados,
mas duas não. A primeira que tentei abrir se revelou trancada por algum cadeado que eu não conseguia ver, e não abria de maneira nenhuma. Nervosa, corri para a segunda
e ouvi um grito atrás de mim. A loira oxigenada tinha recuperado a visão e estava correndo na minha direção. Girei a maçaneta desesperadamente. Nada aconteceu. Tirei
da bolsa o que os guerreiros haviam tomado por antisséptico para as mãos. Despejei o ácido na maçaneta de metal, e ela derreteu diante dos meus olhos. Confiei que
aquilo tivesse destravado a fechadura e joguei o ombro contra a porta, fazendo-a ceder. Então, arrisquei olhar para trás. Minha perseguidora jazia no chão, vítima
de um dardo tranquilizador.
Respirei aliviada e atravessei a porta. Estava esperando outra garagem como aquela a que tinha sido levada no começo; em vez disso, me vi em uma espécie de prédio
residencial, cujos corredores vazios seguiam fazendo curvas de um lado para o outro, o que me deixou desorientada. Todos estavam no vale-tudo da arena. Passei por
quartos improvisados, onde havia colchonetes, mochilas e malas parcialmente desfeitas. Quando notei o que parecia ser um escritório, hesitei diante do batente. Dentro,
mesas dobráveis estavam cobertas por papéis, e me perguntei que informações úteis poderiam conter sobre os guerreiros.
Queria muito entrar e investigar. Aqueles guerreiros eram um mistério para os alquimistas. Quem podia saber quais informações secretas aqueles papéis continham?
E se houvesse informações que poderiam proteger os Moroi? Hesitei por alguns segundos e, relutante, continuei andando. Os guardiões estavam usando tranquilizantes,
mas os guerreiros tinham armas de verdade, armas essas que não teriam medo de apontar para mim.
Por fim, alcancei o outro lado do prédio e olhei pela janela. Estava tão escuro do lado de fora que mal conseguia enxergar. Não tinha mais a ajuda das tochas. A
única coisa que podia dizer com certeza era que não estava mais perto da arena. Isso me bastava, embora fosse melhor se houvesse uma porta que levasse para o lado
de fora. Precisava improvisar. Peguei uma cadeira e atirei-a contra a janela, me surpreendendo com a facilidade com que o vidro se quebrou. Alguns estilhaços caíram
em mim, mas nenhum era grande o bastante para me machucar. Subindo na cadeira, consegui alcançar a janela sem ferir as mãos.
Fui recebida por uma noite escura e quente. Não se via sinal de luz elétrica à frente, apenas terras escuras. Pensei que aquele era um indício de que estava do lado
oposto ao complexo a que Trey me trouxera. Não havia estradas, tampouco se ouvia o barulho da rodovia por onde viajamos. Também não havia sinal de vida em parte
alguma, o que parecia um bom sinal. Felizmente, todos os guardas dos guerreiros que geralmente patrulhavam a área estavam ocupados combatendo os guardiões. Se Sonya
já tivesse saído, minha esperança era de que os guardiões estivessem começando a bater em retirada - e me levassem junto pelo caminho. Mesmo se isso não acontecesse,
não achava indigno caminhar de volta para a interestadual e pedir carona.
O complexo se esparramava para todos os lados e me confundia, e conforme seguia ao redor dele, sem ver sinal da estrada, comecei a ficar cada vez mais tensa. A que
distância eu estava? Tinha um tempo muito limitado para sair daquela propriedade. Os guerreiros podiam estar me caçando naquele exato momento. Também havia o pequeno
problema de que, depois de atingir as extremidades do complexo, teria de lidar com a cerca elétrica. Mesmo assim, talvez fosse melhor parar de procurar a estrada
e simplesmente seguir para o limite do acampamento dos guerreiros para ten...
Uma mão agarrou meu ombro, e soltei um grito.
- Calma, Sage. Não sou nenhum lunático armado. Lunático sim, armado não.
Olhei incrédula, sem conseguir distinguir o vulto alto e escuro à minha frente.
- Adrian? - Tinha a mesma altura e constituição física. Enquanto eu o fitava atentamente, tinha cada vez mais certeza. Suas mãos acalmaram o tremor dos meus ombros.
Fiquei tão contente de encontrar um rosto amigo, de encontrar Adrian, que praticamente me afundei em seus braços, aliviada. - É você. Como me encontrou?
- Você é a única humana por aqui com uma aura amarela e roxa - ele disse. - Assim fica fácil de localizar.
- Não, digo, como me encontrou aqui no complexo?
- Vim com os outros. Eles me mandaram não vir, mas... enfim. - Sob a tênue luz do luar, mal consegui notar seu encolher de ombros. - Não sou muito bom em seguir
ordens. Quando Castile saiu com Sonya dizendo que você tinha entrado por uma porta qualquer, pensei em dar uma olhada rápida nas redondezas. Acho que não era para
ter feito isso também, mas os guardiões estavam meio ocupados.
- Você é maluco - vociferei, por mais que estivesse contente de saber que não tinha sido abandonada naquele lugar terrível. - Os guerreiros estão tão furiosos que
matariam qualquer Moroi à primeira vista.
Ele puxou minha mão. Apesar do tom de brincadeira, suas palavras apresentavam um tom severo. Ele estava plenamente ciente do perigo que estávamos correndo.
- Então é melhor darmos o fora daqui.
Adrian me guiou de volta por onde eu tinha vindo, depois demos a volta para o lado oposto do prédio. Ainda não via as luzes da estrada, mas logo ele se virou e começou
a correr na direção dos entornos do terreno. Corri ao seu lado, ainda segurando sua mão.
- Para onde estamos indo? - perguntei.
- Os guardiões estão reunidos atrás do complexo para não serem vistos. Essa parte da cerca foi desativada, se você conseguir escalar.
- Claro que consigo. Sou quase um prodígio na educação física - salientei. - A pergunta é: você consegue, sr. Fumante?
A cerca começou a ficar visível conforme nos aproximamos, sobretudo porque seu contorno bloqueava a visão de algumas estrelas.
- É aquela parte. Atrás do arbusto bizarro - Adrian disse. Eu não conseguia ver nenhum arbusto, mas confiava nos olhos dele. - Depois, você vai encontrar uma estrada
rural que os guardiões estão usando como ponto de encontro. Estacionei lá.
Paramos diante da cerca, ambos um tanto esbaforidos. Levantei os olhos.
- Tem certeza de que ela ainda está desativada?
- Estava quando entramos - Adrian respondeu, mas pude notar um tom de incerteza na sua voz. - Você acha que eles já se organizaram o bastante para consertar?
- Não - admiti. - Mas seria bom termos certeza. Quer dizer, a maior parte das cercas elétricas comerciais não machuca muito, mas nunca se sabe.
Ele olhou ao redor.
- Podemos atirar um graveto?
- Madeira não conduz eletricidade. - Remexi a bolsa e encontrei o que queria: uma caneta de metal com cabo de espuma. - Se tivermos sorte, a espuma vai bloquear
o pior caso a cerca esteja mesmo ativada. - Me esforçando para não fazer uma careta, estendi a mão e encostei o tubo da caneta na cerca, quase esperando que uma
carga intensa me lançasse para trás. Nada aconteceu. Devagar, passei a caneta pela cerca, já que a maioria das cercas elétricas tinha vibração intermitente. Era
preciso contato contínuo. - Parece desligada - eu disse, respirando aliviada e me virando para Adrian. - Acho que podemos... Ahh!
Uma luz incandescente ardeu em meus olhos, me cegando e anulando a pouca visão noturna que tinha adquirido até ali. Adrian também soltou um grito.
- É a garota! - uma voz masculina exclamou. - E... um deles!
A luz da lanterna desviou do meu rosto e, embora manchas ainda dançassem na minha vista, pude identificar dois vultos grandes se aproximando rapidamente. Estariam
armados? Minha mente disparou. Armados ou não, eles ainda eram uma ameaça óbvia já que, aparentemente, os guerreiros gostavam de surrar uns aos outros em seu tempo
livre, enquanto Adrian e eu não.
- Não se mexam - um deles disse. Uma lâmina reluziu sob a luz da lanterna abaixada. Não era tão ruim quanto uma arma de fogo, mas também não era nada bom. - Vocês
dois vão voltar com a gente lá pra dentro.
- Devagar - o outro acrescentou. - Sem nenhum truque.
Para o azar deles, eu ainda tinha alguns truques na manga. Rapidamente, coloquei a caneta de volta na bolsa e peguei outro suvenir da lição de casa da sra. Terwilliger:
um bracelete circular fino de madeira. Antes que qualquer um dos guerreiros pudesse fazer alguma coisa, quebrei o círculo em quatro partes e as joguei no chão, declamando
outro encantamento em latim. Voltei a sentir uma onda de poder e sua exultação. Os homens gritaram - eu havia lançado um feitiço de desorientação, que mexia com
o equilíbrio das pessoas e tornava a visão turva e surreal. Funcionou de maneira muito parecida com o feitiço de cegamento, afetando todos ao redor.
Avancei e empurrei um dos agressores para trás. Ele caiu com facilidade, incapacitado demais para resistir. O outro estava tão fora de si que deixou a lanterna cair
e já estava quase no chão por conta do desequilíbrio. Mesmo assim, acertei um belo chute em seu peito para garantir que continuasse agachado, enquanto pegava a sua
lanterna. Não precisava muito dela com a visão noturna de Adrian à disposição, mas aqueles dois ficariam perdidos no escuro depois que os efeitos do feitiço passassem.
- Sage! O que você fez comigo?
Ao me virar, vi que Adrian estava se agarrando à cerca para continuar em pé. Na ânsia de deter os guerreiros, esqueci que o feitiço afetava todos ao meu redor.
- Ah - eu disse. - Desculpa.
- Desculpa? Minhas pernas não estão funcionando!
- Na verdade, é o seu ouvido interno que não está. Venha. Segure-se na cerca e comece a subir. Uma mão depois da outra.
Também me agarrei à cerca e o incitei a continuar. Não era a cerca mais difícil de escalar - não estava eletrificada nem tinha arame farpado - e tê-la como apoio
anulava parte da desorientação de Adrian. Mesmo assim, estávamos subindo muito devagar. Aquele feitiço durava um pouco mais do que o de cegamento, mas infelizmente
eu sabia bem que, assim que Adrian voltasse ao normal, os guerreiros também voltariam.
Apesar de todas as dificuldades, chegamos ao topo da cerca. Passar para o outro lado era muito mais difícil, e eu precisei fazer muitas acrobacias para ajudar Adrian
e ainda me manter firme. Por fim, coloquei Adrian na posição para descer.
- Tudo bem - eu disse. - Agora simplesmente faça o contrário do que estava fazendo, uma mão embaixo da...
Um pé ou mão escorregou e Adrian despencou no chão. Não era uma queda tão grande e sua altura ajudava um pouco, embora ele não estivesse em condições de usar as
pernas e cair de pé. Estremeci.
- Ou você pode pegar o atalho - eu disse.
Desci rapidamente e o ajudei a levantar. Além da debilidade causada pelo feitiço, ele não parecia ter sofrido outros danos. Colocando um braço em torno dele e deixando
que apoiasse o peso em mim, tentei correr na direção da estrada que ele havia mencionado, que agora estava um pouco mais visível. Porém, “correr” era difícil. Era
complicado manter Adrian em pé e eu não parava de tropeçar. Mesmo assim, aos poucos fomos nos distanciando do complexo, o que já era bom. O estado de Adrian o deixava
pesado e desajeitado, e sua altura dificultava muito.
Então, sem aviso, os efeitos do feitiço passaram e Adrian se recuperou instantaneamente. Suas pernas reganharam a firmeza e seu andar desajeitado se endireitou.
De repente, parecia que era ele quem estava me carregando e praticamente tropeçávamos um no outro tentando nos ajustar.
- Você está bem? - perguntei, ao soltá-lo.
- Agora, estou. Que raios foi aquilo?
- Não importa. O que importa é que aqueles sujeitos também se recuperaram. Talvez eu tenha golpeado com força suficiente para atrasá-los. - Isso parecia meio improvável.
- Mesmo assim, corra.
Corremos e, apesar dos pulmões de um fumante inveterado, as pernas longas de Adrian compensavam. Ele conseguia me ultrapassar com facilidade, mas reduzia a velocidade
para continuarmos lado a lado. Sempre que começava a se adiantar, voltava a segurar minha mão. Ouvimos gritos atrás de nós e apaguei a lanterna para ficarmos menos
visíveis.
- Ali - Adrian disse. - Está vendo os carros?
Aos poucos, em meio à escuridão, surgiram dois carros utilitários esportivos, ao lado de um Mustang amarelo muito mais chamativo.
- Bem escondido - murmurei.
- A maioria dos guardiões já foi embora - Adrian disse. - Mas não todos.
Antes que eu pudesse responder, alguém me agarrou por trás. Numa manobra que teria deixado Wolfe orgulhoso, consegui dar um chute para trás que ele tinha se esforçado
muito para ensinar. Peguei meu agressor de surpresa e ele me soltou, mas seu companheiro me jogou no chão.
Três vultos correram dos carros em nossa direção e se lançaram contra os agressores. Graças ao sobretudo inconfundível, percebi que era Dimitri quem liderava o grupo.
- Saiam daqui - ele gritou para mim e para Adrian. - Sabem o ponto de encontro. Vamos dar cobertura para vocês. Dirijam rápido; pelo jeito eles não vão demorar muito
para pegar a estrada.
Adrian me ajudou a levantar e continuamos a correr juntos. Na queda, tinha machucado o tornozelo e por isso me movia devagar, mas Adrian me ajudou a seguir em frente
e deixou que eu me apoiasse nele. Enquanto isso, meu coração ameaçava saltar pela boca, mesmo quando chegamos à segurança do Mustang. Ele me guiou para o lado do
passageiro.
- Você consegue entrar?
- Estou bem - respondi, entrando devagar no carro, sem querer admitir que a dor piorava cada vez mais. Esperava não ter nos atrasado demais. Não conseguiria aceitar
a ideia de ser responsável pela captura de Adrian.
Satisfeito, Adrian correu para o lado do motorista e deu partida. O ronco do motor ganhou vida e ele seguiu as ordens de Dimitri ao pé da letra - saiu cantando pneu
numa velocidade que me causou inveja. Parecia improvável haver algum policial no meio daquela estrada rural. Olhei para trás algumas vezes, mas, ao chegarmos à interestadual,
ficou claro que ninguém havia nos seguido. Suspirei aliviada e recostei a cabeça no assento, mas estava muito longe de ficar calma. Não podia supor que estávamos
seguros.
- Certo - eu disse. - Como vocês conseguiram me achar?
Adrian não respondeu imediatamente. Quando respondeu, pude notar que foi com grande relutância.
- Eddie pôs um rastreador na sua bolsa lá em casa.
- Quê? Não pode ser! Eles me revistaram.
- Então, tenho certeza de que não parecia uma escuta. Não sei o que ele acabou arranjando. Ele pegou com o seu grupo, na verdade. Assim que Trey confirmou a sua
visita hoje, Belikov ligou para todos os guardiões num raio de duas horas, tentando recrutar apoio. Ele ligou para os alquimistas também e os convenceu a disponibilizar
alguns equipamentos.
Havia tantas loucuras no que ele tinha acabado de dizer que eu não sabia por onde começar. Todo o transporte e a negociação tinham se passado sem que eu me desse
conta. E, mesmo quando tudo estava decidido, ninguém me disse nada sobre aquilo. Para completar, os alquimistas estavam envolvidos? Ajudando os guardiões a me rastrear?
- Os brincos - eu disse. - Foi daí que eles surgiram. O rastreador devia estar num deles. Nunca teria imaginado.
- O que não é nenhuma surpresa, considerando como vocês trabalham.
Comecei a absorver tudo o que tinha acontecido naquela noite. Meu último medo perdeu força, sendo substituído pela raiva.
- Você mentiu pra mim! Todos vocês mentiram! Deviam ter me dito o que estavam fazendo, que estavam me rastreando e planejando uma invasão! Como você pôde esconder
isso de mim?
Ele soltou um suspiro.
- Eu queria contar, juro. Falei várias vezes que precisavam colocar você na jogada. Mas todo mundo estava com medo que você se recusasse a levar o equipamento se
soubesse dele. Ou que cometeria algum deslize e acabaria revelando o plano para aqueles malucos. Mas eu não acreditava nisso.
- E ainda assim não se deu ao trabalho de me dizer - vociferei, ainda furiosa.
- Eu não podia! Eles me fizeram prometer.
Por algum motivo, a traição dele me magoou mais do que a dos outros. Eu tinha passado a confiar em Adrian totalmente. Como ele pôde fazer aquilo comigo?
- Ninguém acreditava que eu conseguiria convencer os guerreiros, então simplesmente fizeram planos de emergência sem mim. - Não importava que eu realmente não tivesse
conseguido convencê-los. - Alguém devia ter me contado. Você devia ter me contado.
Havia dor e uma angústia sincera em sua voz.
- Estou te dizendo: eu queria contar. Mas eu não tinha escapatória. De todas as pessoas, você é quem deveria saber melhor como é ficar encurralado entre dois grupos,
Sage. Além disso, lembra o que eu falei antes de você entrar no carro de Trey?
Na verdade, sim. Quase que palavra por palavra. Aconteça o que acontecer, quero que você saiba que nunca duvidei da sua missão. É muito inteligente e corajosa.
Me recostei ainda mais no assento e senti que estava à beira das lágrimas. Adrian estava certo. Eu sabia como era ter a lealdade dividida entre dois grupos diferentes.
Entendi a posição em que ele esteve. Mas certo egoísmo da minha parte preferia que a lealdade dele tivesse pendido mais para mim. Ele tentou, uma voz na minha cabeça
me disse. Ele tentou me avisar.
No fim, o ponto de encontro de que Dimitri havia falado era a casa de Clarence, que fervilhava de guardiões, uns fazendo curativos nos ferimentos dos outros. Não
houve mortes de nenhum dos lados, algo com que os guardiões tomaram muito cuidado. Os Guerreiros da Luz já os consideravam perversos e corruptos. Não precisavam
de mais lenha na fogueira.
Não que o ataque daquela noite fosse ajudar muito. Eu não tinha a menor ideia de como os guerreiros iriam reagir e se teriam alguma retaliação letal na manga. Supunha
que os guardiões e os alquimistas haviam levado isso em consideração. Amargamente, me perguntei se algum deles conversaria comigo sobre isso.
- Já sei que não adianta me oferecer para curar você - Adrian me disse, enquanto passávamos por um grupo de guardiões. - Sente na sala enquanto pego alguns cubos
de gelo pra você.
Estava prestes a dizer que eu mesma poderia pegar, mas a dor no meu tornozelo só estava aumentando. Com um aceno, me separei dele e abri caminho em direção à sala.
Alguns guardiões que eu não conhecia estavam lá, na companhia de um Clarence radiante. Para minha surpresa, Eddie e Angeline também estavam na sala, sentados lado
a lado - de mãos dadas?
- Sydney! - ele exclamou. Imediatamente, soltou a mão de Angeline e correu na minha direção, me deixando estupefata com um abraço. - Graças a Deus você está bem.
Foi terrível deixar você lá. Não era parte do plano. Era para eu ter levado você e Sonya.
- Pois é, então talvez da próxima vez alguém possa me deixar a par do plano - eu disse, em tom acusatório.
Eddie se encolheu.
- Sinto muito por isso. Desculpa mesmo. A gente só...
- Sei, sei. Não acharam que eu concordaria, estavam com medo de que alguma coisa desse errado etc. etc.
- Desculpa.
Não o perdoei inteiramente, mas estava cansada demais para insistir no assunto.
- Só me responde uma coisa - eu disse, baixando a voz. - Você estava de mãos dadas com Angeline?
Ele ficou vermelho, o que parecia um absurdo depois de toda a agressividade que havia demonstrado no complexo.
- É... sim. Só estávamos... conversando. Quer dizer... Acho que vamos sair um dia desses. Não na escola, claro, já que todo mundo lá acha que somos parentes. E acho
que não vai ser nada sério. Quer dizer, ela ainda é meio doidinha, mas não é tão terrível quanto eu pensava que fosse. E hoje ela foi incrível na batalha, de verdade.
Acho que talvez eu deva tirar da cabeça aquela fantasia com Jill e tentar ter um relacionamento normal. Se você me emprestar seu carro.
Senti meu queixo cair até o chão.
- Claro - respondi. - Longe de mim impedir um novo romance. - Será que eu deveria dizer a ele que, no fim das contas, talvez Jill não fosse uma fantasia tão grande
assim? Não queria me intrometer. Eddie merecia ser feliz, mas eu não conseguia não me sentir culpada por ter dito a Jill que ele poderia estar interessado nela.
Torci para não ter complicado as coisas ainda mais.
Adrian voltou com uma bolsa de gelo. Sentei numa poltrona e ele me ajudou a colocá-la sobre o tornozelo depois que apoiei o pé num banquinho. O gelo começou a anestesiar
a dor e eu relaxei, torcendo para não ter quebrado nada.
- Não é emocionante? - Clarence perguntou. - Finalmente vocês puderam ver os caçadores de vampiros com seus próprios olhos!
Acho que não seria capaz de descrever aquela noite com tanto entusiasmo, mas precisava admitir que ele tinha razão em um ponto.
- O senhor estava certo - eu disse. - Peço desculpas por não ter acreditado antes.
Ele abriu um sorriso complacente.
- Tudo bem, querida. Acho que eu também não teria acreditado num velho lelé da cuca.
Sorri de volta e então me lembrei de uma coisa.
- Sr. Donahue... o senhor disse que, quando encontrou os caçadores antes, um humano chamado Marcus Finch interveio em seu nome.
Clarence assentiu, encantado.
- Sim, sim. Muito bom rapaz aquele Marcus. Queria poder encontrá-lo de novo algum dia.
- Ele era um alquimista? - perguntei. Ao notar a confusão dele, apontei para a minha bochecha. - Ele tinha uma tatuagem como a minha?
- Como a sua? Não, não. Era diferente. É difícil explicar.
Me debrucei, interessada.
- Mas ele tinha uma tatuagem na bochecha?
- Sim. Você viu na foto?
- Que foto?
O olhar de Clarence se distanciou.
- Podia jurar que tinha mostrado algumas fotos antigas, de quando Lee e Tamara eram pequenos... Ah, bons tempos.
Precisei me esforçar para não perder a paciência. Às vezes era difícil manter os momentos de coerência de Clarence estáveis.
- E Marcus? O senhor tem uma foto dele também?
- Claro. Uma muito bonita de nós dois juntos. Qualquer dia eu encontro para mostrar a você.
Queria pedir a ele que me mostrasse naquela hora mesmo, mas a sua casa estava tão amontoada de gente que não parecia o momento certo.
Dimitri chegou logo depois, com os últimos guardiões que haviam ficado no complexo. Imediatamente perguntou sobre Sonya, que, pelo que tinham me falado, estava descansando
no quarto. Adrian se ofereceu para cicatrizar os ferimentos dela, mas Sonya estava com clareza de espírito suficiente para recusar, dizendo que só precisava de sangue,
repouso e deixar os efeitos das drogas passarem naturalmente.
Depois de se tranquilizar com essa notícia, Dimitri veio falar diretamente comigo, baixando os olhos de sua altura imponente para onde eu estava sentada com minha
bolsa de gelo.
- Desculpe - ele disse. - A essa altura, você já deve ter descoberto o que aconteceu.
- Que eu fui enviada para uma situação de risco com metade das informações de que precisava? - perguntei. - Pois é, ouvi dizer.
- Não sou fã de mentiras e meias verdades - ele disse. - Queria que tivesse outro jeito. Nós tínhamos muito pouco tempo, e essa pareceu a melhor alternativa. Ninguém
duvidava da sua capacidade de argumentar e ganhar a causa. Era na capacidade dos guerreiros de ouvir e enxergar a razão que não acreditávamos.
- Entendo por que vocês não confiavam no meu plano. - Notei que Adrian, ao meu lado, se encolheu quando eu disse “vocês”. Não quis dizer nada de mais com aquilo,
mas percebi como soava condescendente e alquimista, Nós contra Eles. - Mas ainda não consigo acreditar que os alquimistas tenham topado e aceitado me manter por
fora da situação.
Não havia mais nenhuma cadeira vazia, então Dimitri simplesmente se sentou no chão, de pernas cruzadas.
- Não sei muito quanto a isso. Como eu disse, foi tudo muito rápido e, quando conversei com Donna Stanton, ela achou que seria mais seguro se você não soubesse o
que iria acontecer. Se faz você se sentir melhor, ela foi muito firme em insistir que cuidássemos de sua segurança quando chegássemos lá.
- Talvez - respondi. - Seria melhor se ela tivesse pensado em como eu me sentiria quando descobrisse que não confiaram a mim informações tão importantes.
- Ela pensou, sim - ele replicou, parecendo um pouco incomodado. - Ela disse que você não se importaria, porque entende a importância de não questionar as decisões
dos seus superiores e sabe que o que eles fazem é para o bem de todos. Ela chamou você de uma alquimista exemplar.
Não questione. Eles sabem o que é melhor. Não podemos correr nenhum risco.
- Claro que ela disse - falei. Eu nunca questiono nada.
23
SONYA LEVOU ALGUNS DIAS PARA SE RECUPERAR, o que acabou atrasando seu retorno para a Pensilvânia. Quando ela estava pronta para ir ao aeroporto, me ofereci para
levá-la de carro. O carro alugado havia sido encontrado, mas Dimitri o estava usando para limpar os rastros depois da missão. Em menos de vinte e quatro horas, os
guerreiros tinham abandonado o complexo, que descobrimos ser alugado e usado normalmente para retiros. Eles não tinham deixado quase nenhum vestígio de sua presença,
mas isso não impediu que os guardiões esquadrinhassem cada milímetro do complexo abandonado.
- Obrigada, de novo - Sonya disse para mim. - Sei como você deve estar ocupada.
- Não é incômodo nenhum. É fim de semana e, além disso, é para isso que estou aqui. Para ajudar vocês.
Ela riu baixinho. Sua recuperação nos últimos dias havia sido impressionante e, agora, estava tão bonita e radiante como sempre. O cabelo ruivo estava solto, caindo
em ondas flamejantes que emolduravam os delicados traços de seu rosto.
- Verdade, mas parece que você tem ido muito além das atribuições do seu trabalho.
- Só estou contente que você esteja bem - respondi, sinceramente. Tinha me tornado próxima de Sonya e era triste vê-la partir. - Lá na arena... foi muito assustador.
Seu sorriso se desfez.
- Foi mesmo. Eu estava apagada na maior parte do tempo e não conseguia processar muito bem o que estava acontecendo ao redor. Mas lembro das suas palavras. Você
foi incrível, sem falar da coragem de enfrentar aquela multidão só para me defender. Sei como deve ter sido difícil para você se opor à própria raça.
- Aquelas pessoas não são da minha raça - respondi, firme. Parte de mim se perguntou qual seria exatamente a minha raça. - O que vai acontecer com a sua pesquisa
agora?
- Ah, vai continuar na Costa Leste. Dimitri também vai voltar logo pra lá, e temos outros pesquisadores que podem nos ajudar na Corte. Ter um usuário de espírito
objetivo como Adrian ajudou muito e nós temos muitos dados para trabalhar, graças às amostras de sangue e as observações de aura. Vamos deixar Adrian continuar com
a arte dele e entrar em contato só se precisarmos de mais alguma coisa.
Eu ainda não conseguira me livrar da culpa de que o sequestro de Sonya teria sido causado indiretamente pela minha recusa em doar sangue.
- Sonya, sobre o meu sangue...
- Não se preocupe com isso - ela interrompeu. - Você estava certa: eu fui insistente demais e precisamos nos focar no Dimitri primeiro. Além disso, parece que estamos
avançando para conseguir ajuda alquimista.
- Sério? - Stanton parecia bem contrária a essa ideia quando nos falamos. - Eles concordaram?
- Não, mas disseram que vão dar um retorno ao nosso pedido.
- No caso deles - eu disse, rindo -, essa é uma resposta bem positiva.
Fiquei em silêncio por um tempo, pensando se isso significava que todos esqueceriam sobre meu sangue. Em meio aos guerreiros e ao possível auxílio dos alquimistas,
sem dúvida meu sangue não era mais importante. Afinal, o primeiro exame não havia encontrado nada de especial. Não havia mais motivo para se preocupar com ele. Exceto
que... eu estava um tanto preocupada. Afinal, por mais que temesse me submeter a novos experimentos, aquela pergunta inoportuna não saía da minha cabeça: por que
aquela Strigoi não conseguira beber meu sangue?
A menção de Sonya sobre auras me fez lembrar de outra dúvida que não queria calar.
- Sonya, o que o roxo significa na aura de uma pessoa? Adrian disse que viu roxo na minha, mas não quis contar o que significa.
- Típico - ela comentou, rindo. - Roxo... Vejamos. Pelo que já observei, roxo é uma cor complexa. É espiritual, mas também impetuosa; tem a ver com pessoas que amam
de uma maneira profunda e também buscam um chamado superior. É interessante porque tem muita profundidade. Branco e dourado costumam ser cores associadas a poderes
superiores e à metafísica, enquanto vermelho e laranja estão mais ligados ao amor e aos instintos primitivos. O roxo meio que tem o melhor de cada uma dessas. Queria
poder explicar melhor.
- Não, faz sentido - eu disse, virando na entrada para carros do aeroporto. - Bem, mais ou menos. Não parece muito comigo.
- Na verdade essa não é nenhuma ciência exata. E ele está certo: tem mesmo em você... - Tínhamos parado no meio-fio e percebi que ela me estudava minuciosamente.
- Nunca tinha notado antes. Quer dizer, claro que a cor sempre esteve aí, mas todas as vezes que olhava pra você, só via o amarelo da maioria dos intelectuais. Adrian
não é nenhum adepto de leitura de auras como eu, por isso me surpreende um pouco ele ter percebido uma coisa que eu não vi.
Ela não era a única. Espiritual, impetuosa... Eu era mesmo assim? Será que Adrian me considerava assim? A ideia me aqueceu por dentro. Fiquei contente e... confusa.
Sonya pareceu prestes a comentar outra coisa sobre o assunto, mas mudou de ideia, pigarreou e disse:
- Bem, aqui estamos nós. Obrigada pela carona.
- Sem problemas - respondi, com a cabeça ainda imersa em visões roxas. - Boa viagem.
Ela abriu a porta do carro e então parou.
- Ah, trouxe uma coisa pra você. Clarence me pediu para entregar.
- Clarence?
Sonya vasculhou a bolsa e encontrou um envelope.
- Aqui. Ele queria muito que isso fosse entregue em mãos... Sabe como ele é quando fica animado com alguma coisa.
- Sei. Obrigada.
Sonya saiu com a bagagem e a curiosidade me fez abrir o envelope antes de ir embora dali. Dentro, havia uma foto mostrando Clarence e um rapaz, mais ou menos da
minha idade, que parecia humano. Abraçados, eles sorriam para a câmera. O rapaz tinha o cabelo loiro, liso, quase roçando o queixo, e lindos olhos azuis que se destacavam
no rosto bronzeado. Sua beleza era chocante e, por mais que os olhos também parecessem sorrir, notei uma tristeza neles.
Fiquei tão absorta pela beleza dele que demorei para perceber sua tatuagem. Era na bochecha esquerda, um desenho abstrato composto por meias-luas de diferentes tamanhos
e orientações agrupadas, dispostas juntas de forma a lembrar um cacho. Era bonita e exótica; a forte tinta azul combinava com os olhos dele. Olhando o desenho mais
de perto, notei alguma coisa familiar naquele formato e podia jurar entrever um tênue brilho dourado contornando os traços azuis. Quase deixei a foto cair tamanha
foi minha surpresa. As meias-luas tinham sido tatuadas sobre um lírio alquimista. Olhei para o verso da foto, em que um nome fora rabiscado: Marcus.
Marcus Finch, que os guerreiros alegaram ser ex-alquimista. Marcus Finch, que os alquimistas alegaram não existir. O mais estranho daquilo era que, a menos que contassem
pessoas aprisionadas como Keith, não havia nada parecido com “ex-alquimistas”. Era um trabalho para a vida inteira. Ninguém podia simplesmente abandonar. Mesmo assim,
aquele lírio ocultado falava por si próprio. A menos que Marcus tivesse usado um nome falso e conseguido enganar os alquimistas, Stanton e os demais mentiram para
mim quando disseram não saber quem ele era. Mas por quê? Será que havia acontecido alguma espécie de rompimento? Uma semana antes, eu teria dito que era impossível
Stanton não ter me dito a verdade sobre ele. Agora, porém, sabendo a cautela com que as informações eram - ou não - compartilhadas, não dava para ter certeza.
Fiquei observando a foto por mais alguns instantes, aprisionada pelo mistério daqueles olhos azuis. Então guardei a fotografia e voltei para Amberwood, decidida
a manter segredo sobre ela. Se os alquimistas queriam negar a existência de Marcus Finch para mim, eu deixaria que continuassem mentindo até descobrir por quê. Isso
reduzia minhas pistas à história de Clarence e aos guerreiros. Mesmo assim, já era um começo.
Algum dia eu encontraria esse Marcus Finch e conseguiria as respostas que buscava.
Quando cheguei, fiquei surpresa ao encontrar Jill sentada na frente do alojamento. Ela estava na sombra, claro, podendo aproveitar o clima agradável sem toda a intensidade
do sol. Tínhamos acabado de entrar numa espécie de outono californiano, embora vinte e sete graus não fosse a temperatura que eu costumava associar ao clima fresco
do outono. Jill parecia absorta, mas sorriu ao me ver.
- Ei, Sydney. Queria falar com você. É difícil encontrar você sem seu celular.
Fiz uma careta.
- Pois é, preciso arranjar outro. Está bem difícil.
Ela assentiu, compassiva.
- Você levou Sonya?
- Sim. Ela já está a caminho da Corte e de Mikhail e, se tudo der certo, de uma vida mais calma também.
- Que bom - ela disse, antes de desviar os olhos e morder o lábio.
Conhecia Jill o bastante para reconhecer os sinais de que ela estava se preparando para me contar alguma coisa. Também sabia que era melhor não insistir, por isso
esperei pacientemente.
- Eu terminei - ela disse, finalmente. - Falei para Micah que está tudo terminado... de vez.
Senti o alívio tomar conta de mim. Menos um problema para me preocupar.
- Sinto muito - eu disse. - Imagino como deve ter sido difícil.
Ela tirou um cachinho do rosto enquanto refletia.
- Sim. E não. Eu gosto dele. Queria continuar saindo com ele... como amigos, se ele quisesse. Mas não sei. Ele não levou numa boa... E nossos amigos em comum...
Eles não estão muito felizes comigo agora. - Me esforcei para não soltar um suspiro. O status de Jill em Amberwood havia avançado tanto, e agora tudo tinha ido pelos
ares. - Mas é melhor assim. Micah e eu vivemos em mundos diferentes, e eu não teria futuro ao lado de um humano mesmo. Além do mais, tenho pensado muito sobre o
amor... tipo, um amor épico. - Ela levantou os olhos para mim por um instante, com o rosto mais calmo. - E não era isso que nós tínhamos. Acho que, para ficar com
alguém, é isso que preciso sentir.
Pensei que amor épico era um pouco demais para alguém da idade dela, mas achei melhor não dizer isso.
- Você vai ficar bem?
Ela voltou à realidade.
- Sim, acho que sim. - Ela entreabriu um sorriso. - E, depois que isso passar, talvez Eddie queira sair algum dia desses. Longe do campus, claro, já que somos “parentes”.
As palavras dela eram quase uma repetição do que ele dissera naquela noite na casa de Clarence, e fiquei pasma conforme me dava conta.
- Você não sabe... Pensei que soubesse, já que Angeline é sua colega de quarto.
Jill franziu a testa.
- Do que você está falando? O que eu não sei?
Ai, meu Deus. Por quê? Por que logo eu tinha que dar aquela notícia? Por que não podia estar enfurnada no quarto ou na biblioteca fazendo alguma coisa agradável,
como a lição de casa?
- Eddie... bem, ele chamou Angeline para sair. Não sei quando isso vai acontecer, mas ele resolveu dar uma chance a ela. - Ele não tinha pegado meu carro emprestado,
então imaginei que ainda não tivessem saído.
Jill parecia ter levado uma facada.
- Como assim? Eddie e Angeline? Mas ele... ele não a suporta...
- Alguma coisa mudou - eu disse, sem graça. - Não sei exatamente o quê. Não é como... um amor épico, mas eles ficaram mais próximos nas últimas semanas. Sinto muito.
Jill parecia mais devastada com isso do que com o término com Micah. Ela desviou o olhar e conteve as lágrimas.
- Tudo bem. Quer dizer, eu nunca incentivei Eddie. Ele ainda deve achar que estou com Micah. Por que ele ficaria me esperando? Ele precisa ficar com alguém.
- Jill...
- Está tudo bem. Eu vou ficar bem. - Ela parecia muito triste, mas, surpreendentemente, seu rosto conseguiu ficar ainda mais melancólico. - Ah, Sydney. Você vai
ficar tão brava comigo.
Eu ainda estava pensando na vida amorosa dela, e fiquei completamente confusa com a mudança de assunto.
- Por quê?
Ela enfiou a mão na mochila, tirando uma revista de capa brilhante. Era uma espécie de guia de turismo sobre o sul da Califórnia, com artigos e anúncios publicitários
que exaltavam a região. A revista estava marcada numa página e folheei até chegar nela. Era uma propaganda da Lia Stefano, uma colagem de fotos com várias criações
suas cobrindo uma página inteira.
E uma das fotos era de Jill.
Levei um tempo para perceber. A foto era de perfil, e Jill estava usando óculos escuros e um chapéu fedora, além do lenço de pavão que Lia havia dado para ela. O
cabelo encaracolado de Jill caía atrás dela e os traços de seu rosto estavam lindos. Se não a conhecesse tão bem, nunca a teria identificado naquele figurino chique,
embora, para qualquer um que soubesse o que procurar, estivesse óbvio que ela era uma Moroi.
- Como? - perguntei, exasperada. - Como isso foi acontecer?
Jill respirou fundo, pronta para assumir a culpa.
- Quando ela trouxe as fantasias e me deu o lenço, perguntou se podia tirar uma foto para ver como as cores sairiam. Ela estava com alguns acessórios no carro e
eu os coloquei também. Ela queria provar que, com a cobertura certa, poderia esconder minha identidade. Mas eu nunca pensei... Quer dizer, ela não disse que ia usar.
Deus, estou me sentindo muito idiota.
Talvez não idiota, mas ingênua sem dúvida. Quase amassei a revista. Estava furiosa com Lia. Parte de mim queria processá-la por usar a foto de uma menor sem autorização,
mas havia problemas muito maiores. Qual seria a circulação da revista? Se a foto de Jill ficasse restrita à Califórnia, talvez ninguém fosse reconhecê-la. Mesmo
assim, uma modelo Moroi poderia causar espanto. Quem poderia prever os problemas que isso iria nos causar?
- Sydney, me desculpa - Jill disse. - O que posso fazer para consertar isso?
- Nada - respondi -, além de se manter longe de Lia. - Estava me sentindo mal. - Vou dar um jeito isso. - Mas realmente não sabia como. Só podia rezar para que ninguém
notasse a foto.
- Faço o que for preciso se você tiver alguma ideia. Eu... Ah. - Seus olhos se ergueram para alguém atrás de mim. - Talvez seja melhor conversarmos depois.
Olhei para trás. Trey estava vindo na nossa direção. Mais um problema para resolver.
- Acho que é uma boa - respondi. O sofrimento e a publicidade de Jill teriam de esperar. Ela saiu quando Trey chegou ao meu lado.
- Melbourne - ele disse, tentando abrir um de seus velhos sorrisos, mas vacilando um pouco.
- Não sabia que ainda estava na cidade - eu disse. - Achei que tivesse fugido com os outros. - Os guerreiros tinham sumido. Trey havia dito que eles viajavam para
as “caçadas” deles, e mestre Angeletti também mencionara ajuntamentos em várias partes do país. Supunha que cada um havia retornado ao lugar de onde viera. E pensei
que Trey também iria desaparecer simplesmente.
- Não - ele disse. - É aqui que eu estudo e onde meu pai quer que eu fique. Além disso, os outros guerreiros nunca tiveram uma base permanente aqui em Palm Springs.
Eles se mudam para onde...
Ele não conseguiu terminar a frase, então terminei por ele:
- Para onde haja uma pista sobre monstros que vocês podem executar com brutalidade?
- Não é bem assim - ele disse. - Achávamos que ela era Strigoi. Ainda achamos.
Estudei seu rosto, o rosto que antes via como amigo. Tinha certeza de que ele ainda era meu amigo.
- Mas você, não. Por isso desistiu da luta.
- Eu não desisti - ele protestou.
- Desistiu, sim. Eu vi você hesitando quando podia ter derrubado Chris. Você não queria vencer. Não queria matar Sonya porque não tinha certeza se ela era Strigoi.
Ele não negou.
- Ainda acho que todos eles precisam ser exterminados.
- Eu também. - Então, reconsiderei. - A menos que haja uma maneira de salvá-los, mas isso é incerto. - Apesar de tudo o que havia dito enquanto defendia Sonya, não
achava bom deixá-lo a par dos segredos e dos experimentos. - Se os guerreiros viajam pelo mundo, o que vai acontecer da próxima vez que eles vierem para essa região?
Ou mesmo para Los Angeles? Você vai se juntar a eles de novo? Vai viajar para a próxima caçada?
- Não - a resposta dele foi dura, quase grosseira.
Senti uma esperança nascer.
- Você decidiu sair do grupo?
Era difícil ler as emoções que se acumulavam no rosto do Trey, mas nenhuma parecia feliz.
- Não. Eles decidiram nos cortar, meu pai e eu. Fomos expulsos.
Fiquei parada por alguns momentos, procurando as palavras certas. Não gostava dos guerreiros ou do envolvimento de Trey com eles, mas não era exatamente isso que
eu buscava.
- Por minha culpa?
- Não. Sim. Sei lá. - Ele encolheu os ombros. - Indiretamente sim, acho. Eles não culpam você pessoalmente ou mesmo os alquimistas. Puxa, eles ainda querem se juntar
aos alquimistas. Eles acham que vocês apenas se comportaram de sua maneira desorientada de sempre. Mas eu? Eu insisti em deixar você entrar, jurei que tudo correria
bem. Então eles me culparam pela falta de discernimento e pelo desastre que aconteceu depois. Outros também estão sendo acusados: o conselho por concordar, a segurança
por não impedir a invasão... mas isso não me deixa melhor. Meu pai e eu fomos os únicos exilados.
- Eu... sinto muito. Não imaginei que nada assim fosse acontecer.
- Você não tinha como imaginar - ele respondeu, pragmático, embora seu tom ainda fosse triste. - De certa forma, eles têm razão. Fui eu quem colocou você lá dentro.
A culpa é toda minha e eles estão castigando meu pai pelo que eu fiz. Isso é o pior. - Trey estava se fazendo de indiferente, mas eu conseguia enxergar a verdade.
Ele havia se esforçado tanto para impressionar o pai e acabara lhe causando a pior humilhação de todas. As palavras que Trey disse a seguir confirmaram isso: - Os
guerreiros eram a vida do meu pai. Ser expulso desse jeito... Bem, ele não está encarando isso muito bem. Preciso encontrar um jeito de voltar. Por ele. Não acho
que você saiba onde tem algum Strigoi fácil de matar, sabe?
- Não - respondi. - Ainda mais porque nenhum deles é fácil de matar. - Hesitei, sem saber como continuar. - Trey, o que isso significa para nós? Vou entender se
não pudermos mais ser amigos... já que eu, bem, arruinei a missão da sua vida.
Um de seus velhos sorrisos passou de leve por seu rosto.
- Nada está definitivamente arruinado. Eu falei: vou dar um jeito de resolver isso. E, se não for matando um Strigoi, vai saber? Talvez, se eu aprender mais sobre
o seu grupo, eu possa criar uma ponte entre os dois para todos trabalharmos em harmonia. Isso me daria alguns pontos.
- Sua tentativa é bem-vinda - respondi, diplomática, por mais que achasse que isso realmente não iria acontecer e ele soubesse disso.
- Bom, vou pensar em alguma coisa então, algum grande feito para chamar a atenção dos guerreiros e fazer com que eu e meu pai sejamos aceitos de volta. Preciso fazer
isso. - Sua expressão voltou a esmorecer, mas então o vestígio de um sorriso reapareceu, ainda que com traços de tristeza. - Sabe outra coisa que é um saco? Agora
não posso sair com Angeline. Andar com você é uma coisa, mas, mesmo banido, não posso arriscar ser amigo de Moroi ou de dampiros. Muito menos ficar com uma. Quer
dizer, já sabia que ela era dampira antes, mas podia me fazer de bobo. Aquele ataque na arena meio que acabou com a possibilidade disso. Os guerreiros também não
gostam deles, sabe. Dampiros ou Moroi. Adorariam que eles fossem derrotados também; só acham que seria muito difícil e menos importante agora.
Algo naquelas palavras me causou um calafrio, especialmente porque lembrei do comentário casual dos guerreiros sobre um dia virem a destruir os Moroi. Claro que
os alquimistas não adoravam os dampiros ou Moroi, mas também não chegavam perto de desejar a destruição deles.
- Preciso ir. - Trey enfiou a mão no bolso e me entregou algo que me deixou contente: meu celular. - Imaginei que estaria sentindo falta.
- Sim! - Ansiosa, peguei e liguei o celular. Até então não sabia se o teria de volta e estava prestes a comprar um novo. Aquele já tinha três meses e estava praticamente
ultrapassado mesmo. - Obrigada por guardar. Ah. Nossa! - exclamei, olhando para a tela. - Tem, tipo, um milhão de mensagens de Brayden. - Não tinha falado com ele
desde a noite do desaparecimento de Sonya.
Trey retomou o olhar malandro que eu tanto gostava de ver nele.
- Melhor ir, então. O amor verdadeiro não espera ninguém.
- Amor verdadeiro, hein? - Meneei a cabeça, exasperada. - Bom ter você de volta.
Isso me rendeu um sorriso sincero.
- Até mais.
Assim que fiquei sozinha, mandei uma mensagem para Brayden: Desculpa pelo sumiço. Perdi meu telefone por três dias. Sua resposta foi quase imediata: Estou no trabalho;
daqui a pouco tenho um intervalo. Quer passar aqui? Considerei. Como não tinha que salvar nenhuma vida, aquele parecia um bom momento. Respondi dizendo que estava
saindo de Amberwood naquela hora mesmo.
Brayden tinha deixado meu latte preferido pronto quando cheguei ao Spencer’s.
- Com base na hora em que você saiu, calculei quando precisaria fazer para estar quente quando você chegasse.
- Obrigada - respondi, pegando o café e me sentindo um pouco culpada por me emocionar mais ao ver o café do que ao ver Brayden.
Ele disse para o outro barista que ia fazer uma pausa e me levou para uma mesa mais afastada.
- Não vai demorar muito - Brayden disse. - Sei que você deve ter um monte de coisas para fazer no fim de semana.
- Na verdade, as coisas estão começando a ficar mais tranquilas - eu disse.
Ele respirou fundo, mostrando o mesmo nervosismo que eu já o vira assumir ao me chamar outras vezes para sair.
- Sydney - ele disse, numa voz formal -, acho que a gente devia parar de sair.
Parei no meio de um gole.
- Peraí... O quê?
- Sei como deve ser horrível pra você - ele acrescentou. - E admito que não é nada fácil pra mim também. Mas, diante dos últimos acontecimentos, ficou claro que
você ainda não está pronta para um relacionamento.
- Últimos acontecimentos?
Ele assentiu, sério.
- A sua família. Você cancelou vários de nossos encontros para ficar com eles. Por mais que eu ache admirável esse tipo de devoção familiar, simplesmente não posso
ter um relacionamento tão volátil.
- Volátil? - Eu ficava repetindo palavras-chaves que ele pronunciava e, por fim, me obriguei a retomar o controlar. - Então... deixe-me ver se entendi: você está
terminando comigo?
Ele pensou um pouco.
- Sim. Sim, estou.
Fiquei esperando alguma reação interna. Alguma tristeza desmedida. Meu coração se partindo. Mas tudo o que sentia era um pouco de surpresa e perplexidade.
- Hum - eu disse.
Para Brayden, essa pareceu uma reação angustiada.
- Por favor, não torne as coisas mais difíceis do que já são. Admiro muito você. Acho que você é a garota mais inteligente que já conheci. Mas simplesmente não posso
me envolver com alguém tão irresponsável como você.
Olhei fixamente.
- Irresponsável?
Brayden concordou de novo com a cabeça.
- Sim.
Não sei bem onde começou - talvez entre o estômago e o peito - mas, de repente, uma gargalhada incontrolável se apoderou de mim. Não conseguia parar. Precisei colocar
o café na mesa para não derrubar. Mesmo depois, precisei afundar o rosto nas mãos para secar as lágrimas de riso.
- Sydney? - Brayden perguntou, cauteloso. - Isso é algum tipo de reação histérica de sofrimento?
Levei quase um minuto para me acalmar a ponto de responder a pergunta.
- Ah, Brayden. Você me fez ganhar o dia. Me deu uma coisa que jamais pensei que teria. Obrigada. - Peguei o café e me levantei. Ele parecia completamente perdido.
- ... De nada?
Saí da cafeteria, ainda rindo como uma idiota. No último mês, todas as pessoas viviam me dizendo o quanto eu era responsável, disciplinada, exemplar. Fui chamada
de muitas coisas. Mas nunca, nunca mesmo, tinha sido chamada de irresponsável.
E não é que eu gostei?
24
COMO AQUELE DIA NÃO PODIA FICAR ainda mais estranho, decidi passar na casa de Adrian. Estava muito curiosa para fazer uma pergunta que até então não tivera a chance
de fazer.
Quando bati à porta, ele abriu com um pincel na mão.
- Ah - ele disse. - Que surpresa.
- Estou interrompendo alguma coisa?
- Lição de casa, só. - Ele abriu caminho para me deixar entrar. - Não se preocupe. Não é nenhuma crise pra mim como seria pra você.
Entrei na sala e fiquei contente ao vê-la novamente repleta de telas e cavaletes.
- Você montou seu estúdio de novo.
- Sim - ele confirmou, guardando o pincel e limpando as mãos num pedaço de pano. - Agora que o apartamento não é mais um centro de pesquisas, pude restituir o estado
artístico normal que ele tinha.
Ele se recostou no assento do sofá xadrez e ficou observando enquanto eu ia de uma tela a outra. Uma delas me deteve.
- O que é isso? Parece um lírio.
- E é - ele respondeu. - Sem ofensa, mas esse lírio é melhor que o seu. Se os alquimistas quiserem comprar os direitos para começar a usar, estou disposto a negociar.
- Anotado - respondi.
Ainda estava sorrindo por causa do término com Brayden, e aquilo contribuiu para o meu bom humor. Embora precisasse admitir que a pintura dele me deixava um tanto
perdida, algo comum diante da natureza abstrata de sua arte. O lírio, apesar de mais estilizado do que o ostentado na minha bochecha, podia ser claramente identificado.
Era até feito em tinta dourada. Manchas de tinta escarlate em formas abstratas cercavam o lírio e, em torno do vermelho, havia um padrão quase cristalino em azul.
Era impressionante, mas se havia algum sentido mais profundo, não consegui identificar.
- Você está de muito bom humor, hein? - ele observou.- Comprou um monte de calças cáqui na promoção?
Desisti de formular minha interpretação artística e me virei para ele.
- Não. Brayden terminou comigo.
Seu sorriso sarcástico se desfez.
- Ah. Que merda. Desculpa. Você... quer uma bebida? Quer, sei lá, chorar ou alguma coisa assim?
Dei risada.
- Não. Por incrível que pareça, estou bem. Não está me incomodando nem um pouco, pra falar a verdade. Mas deveria, não é? Talvez haja algo de errado comigo.
Os olhos verdes de Adrian me analisavam.
- Acho que não. Nem todo término é uma tragédia. Ainda assim... talvez você precise de algum tipo de consolo.
Ele se endireitou e caminhou até a cozinha. Sem entender nada, observei enquanto ele tirava alguma coisa do congelador e remexia sua gaveta de talheres. Voltou para
a sala e me presenteou com um pote de sorvete de romã e uma colher.
- O que é isto? - perguntei, aceitando a oferta em virtude do choque.
- É para você, claro. Era de romã que você queria, não era?
Relembrei a noite no restaurante italiano.
- Era... mas não precisava...
- Ah, mas você queria - ele respondeu, pragmático. - Além do mais, você deu sua palavra.
- Minha palavra?
- Lembra quando você me disse que beberia uma lata de refrigerante normal se eu passasse um dia sem fumar? Então, eu calculei as calorias, e são as mesmas de uma
porção desse sorvete. Acredite ou não, tem quatro porções nesse potinho minúsculo.
Quase deixei o sorvete cair no chão.
- Você... ficou um dia inteiro sem fumar?
- Quase uma semana, na verdade - ele respondeu. - Pode tomar o pote inteiro, se quiser.
- Por que você fez isso? - indaguei.
Ele deu de ombros.
- Sei lá, foi você que fez o desafio. Além disso, fumar não é um hábito muito saudável, né?
- É... - respondi, ainda estupefata.
- Tome o sorvete, senão vai derreter.
Devolvi o pote para ele.
- Não consigo. Não com você olhando. É meio estranho. Posso tomar depois?
- Claro - ele respondeu, colocando de volta no congelador -, desde que você tome mesmo. Conheço você.
Cruzei os braços diante dele.
- Ah, é?
Ele me lançou um olhar tão severo que me deixou desconcertada.
- Talvez todo mundo ache que seu desprezo pela comida é bonitinho, mas eu não. Eu vejo como você olha para Jill. Deixa eu te falar uma coisa, para o seu próprio
bem: você nunca, nunca vai ter o corpo dela. Nunca. É impossível. Ela é Moroi. Você é humana. É uma questão biológica. Você tem um corpo lindo, que a maioria das
humanas invejaria. E ficaria ainda mais bonita se engordasse um tiquinho. Dois quilos para começar. Esconder as costelas. Usar um sutiã maior.
- Adrian! - eu disse, horrorizada. - Você está maluco? Não tem o direito de me dizer essas coisas! Nenhum direito!
Ele riu, zombeteiro.
- Tenho o direito sim, Sage. Sou seu amigo e ninguém mais vai dizer isso a você. Além do mais, sou o rei dos hábitos nada saudáveis. Você acha que não reconheço
um quando vejo? Não sei de onde isso veio: da sua família, dos Moroi ou da sua natureza obsessiva, mas estou dizendo que você não precisa ser assim.
- Então, isso é algum tipo de intervenção?
- Não, é a verdade - ele respondeu, simplesmente. - Dita por alguém que se importa com você e que quer que seu corpo seja tão saudável quanto a sua mente é.
- Não vou ouvir isso - eu disse, me afastando. Uma mistura de emoções fervilhava dentro de mim. Raiva. Indignação. E, por estranho que pareça, um tiquinho de alívio.
- Vou embora. Não devia nem ter passado aqui.
A mão dele no meu ombro me deteve.
- Espere... ouça o que tenho a dizer. - Relutante, me virei para ele. Sua expressão ainda era séria, mas sua voz estava mais suave. - Não estou querendo ser maldoso.
Você é a última pessoa a quem eu faria mal... mas também não quero que você faça mal a si mesma. Você pode simplesmente ignorar tudo o que falei, mas eu precisava
colocar isso pra fora. Não vou falar isso de novo. Só você pode mandar na sua vida.
Desviei o olhar e contive as lágrimas.
- Obrigada - eu disse. Eu deveria ter ficado contente que ele iria se conter dali em diante. Em vez disso, senti uma dor no peito, como se ele tivesse aberto uma
ferida que eu vinha tentando ignorar e manter longe de mim. Uma verdade inconveniente que eu não queria admitir para mim mesma, o que eu sabia que era uma atitude
hipócrita para alguém que alegava lidar com fatos e dados concretos. E, independentemente de querer ou não concordar com ele, sabia que ele tinha razão sobre um
ponto: ninguém mais me teria dito o que ele acabara de me dizer.
- Por que você passou aqui mesmo? - ele perguntou. - Tem certeza de que não quer transformar minha pintura genial no novo logo alquimista?
Não pude conter o riso. Voltei a levantar os olhos para ele, disposta a ajudá-lo a mudar de assunto logo.
- Não. Uma coisa muito mais séria.
Ele pareceu aliviado com meu riso e retribuiu com um de seus sorrisos irônicos.
- Deve ser sério pra caramba.
- Naquela noite no complexo. Como você conseguiu dirigir o Mustang? - O sorriso esvaneceu. - Porque você dirigiu. Dirigiu sem nem hesitar. Tão bem quanto eu dirigiria.
Comecei a pensar que talvez outra pessoa estivesse ensinando você. Mas, mesmo que estivesse tendo aulas diariamente desde que comprou o carro, não teria dirigido
daquela forma. Você mudava de marcha como se dirigisse com câmbio manual desde criança.
Adrian desviou o olhar abruptamente e caminhou para o lado oposto da sala.
- Talvez eu só seja talentoso - ele disse, sem me encarar.
Foi engraçado como invertemos os papéis tão rapidamente. Num minuto, ele me encurralou na parede, forçando-me a ver coisas que eu me recusava a enxergar. No minuto
seguinte, era a minha vez: eu o segui até a janela e o obriguei a me encarar.
- Estou certa, não estou? - insisti. - Você dirige com embreagem desde sempre!
- Nem os Moroi dão carta de motorista para crianças, Sage - ele ironizou.
- Não muda de assunto. Você entendeu o que eu quis dizer. Faz anos que você sabe dirigir com embreagem.
Seu silêncio foi a resposta de que eu precisava, por mais que fosse difícil ler sua expressão.
- Por quê? - perguntei. Agora eu estava quase implorando. Todos viviam dizendo que minha inteligência era fora do comum, que eu conseguia juntar coisas aleatórias
e tirar conclusões extraordinárias. Mas aquilo estava além da minha capacidade e eu não sabia lidar com algo que fizesse tão pouco sentido. - Por que você fez isso?
Por que fingiu que não sabia dirigir?
Milhares de pensamentos pareceram passar pela mente de Adrian, nenhum dos quais ele quis me revelar. Por fim, meneou a cabeça, exasperado, e disse:
- Não é óbvio, Sage? Não, claro que não é. Eu fingi que não sabia para ter uma desculpa para ficar perto de você, uma desculpa que você não iria recusar.
Fiquei mais confusa do que nunca.
- Mas... por quê? Por que você queria ficar perto de mim?
- Por quê? - ele indagou. - Porque era a coisa mais próxima que eu podia ter disto.
Ele estendeu os braços e me puxou para perto dele, com uma mão na minha cintura e a outra atrás do meu pescoço. Levantou minha cabeça e encostou os lábios nos meus.
Fechei os olhos, sentindo o meu corpo todo derreter, consumido por aquele beijo. Eu não era nada. Eu era tudo. Arrepios percorreram minha pele e uma chama ardia
dentro de mim. Senti seu corpo pressionar o meu e joguei meus braços ao redor de seu pescoço. Seus lábios eram mais cálidos e suaves do que tudo o que eu poderia
imaginar, mas ao mesmo tempo firmes e poderosos. Meus lábios respondiam com voracidade e me agarrei com mais firmeza ainda a ele. Seus dedos deslizavam pela minha
nuca, traçando seu contorno e eletrizando todos os lugares por onde passavam.
Mas talvez a melhor parte de tudo foi que eu, Sydney Katherine Sage, culpada de analisar constantemente o mundo todo ao meu redor, parei de pensar.
E foi maravilhoso.
Pelo menos até eu voltar a pensar.
De repente, meu cérebro, e todas as suas preocupações e considerações reassumiram o controle. Me afastei de Adrian, apesar dos protestos do meu corpo. Dei um passo
para trás, sabendo que meus olhos estavam arregalados de pavor.
- O que... o que você estava fazendo?
- Não sei - ele respondeu, com um sorriso. Então, deu um passo na minha direção. - Mas tenho quase certeza de que você estava fazendo também.
- Não. Não. Não se aproxime! Você não pode fazer isso de novo. Entendeu? Não podíamos... Jamais deveríamos... Ah, meu Deus. Não. Isso nunca pode voltar a acontecer.
Foi um erro. - Toquei meus lábios, como se quisesse limpar o que havia acabado de acontecer, mas acabei sendo lembrada da doçura e do calor da boca dele contra a
minha. Baixei a mão imediatamente.
- Um erro? Não sei, Sage. Sinceramente, essa me pareceu a coisa mais certa que aconteceu comigo nos últimos tempos. - Mesmo assim, ele manteve a distância.
Balancei a cabeça, histérica.
- Como você pode dizer uma coisa dessas? Você sabe como as coisas funcionam. Não existe... ah, você sabe. Humanos e vampiros não podem... não. Não pode haver nada
entre eles. Entre nós.
- Ah, mas deve ter existido em algum momento - ele disse, ensaiando um tom racional. - Ou então não existiram dampiros hoje em dia. Além disso, e os Conservadores?
- Os Conservadores? - Quase soltei uma gargalhada, mas nada daquilo parecia engraçado. - Os Conservadores moram em cavernas e lutam ao redor de fogueiras por causa
de um ensopado de carne. Se quiser viver aquela vida, fique à vontade. Se quiser morar no mundo civilizado com o restante de nós, não me toque de novo. E quanto
a Rose? Você não é completamente apaixonado por ela?
Adrian parecia calmo demais para aquela situação.
- Acho que um dia eu fui. Mas já faz... o quê? Quase três meses? E, sinceramente, faz tempo que não penso nela. Sim, ainda me sinto magoado e um pouco usado, mas...
na verdade, ela não é mais a pessoa que não sai da minha cabeça. Não é o rosto dela que eu vejo antes de dormir. Não é com ela que eu fico me imaginando...
- Não! - exclamei, recuando ainda mais. - Não quero ouvir isso. Não vou mais ouvir isso.
Com alguns passos rápidos, Adrian voltou a ficar na minha frente. A parede estava apenas alguns centímetros atrás de mim e eu não tinha para onde fugir. Não esboçou
nenhum movimento ameaçador, mas pegou minhas mãos e as segurou na altura do peito enquanto se inclinava para mim.
- Não, você vai ouvir. De uma vez por todas, você vai ouvir alguma coisa que não se encaixa no seu mundinho organizado e compartimentalizado, feito de ordem, lógica
e razão. Porque isso não é racional. Se você está com medo, acredite em mim: isso também me deixa apavorado. Você perguntou sobre Rose? Eu tentei ser uma pessoa
melhor por causa dela, mas era para deixá-la impressionada, para fazer com que ela me desejasse. Mas quando eu estou com você, eu quero ser uma pessoa melhor porque...
bem, porque parece certo. Porque eu quero. Você me faz querer ser uma pessoa melhor. Eu quero me superar. Você me inspira em todas as ações, todas as palavras, todos
os olhares. Eu olho para você e você parece... luz transformada em carne e osso. Eu disse isto a você no Dia das Bruxas e estava falando sério: você é a criatura
mais linda que já caminhou sobre a terra. E você nem sabe. Você nem tem ideia da própria beleza ou do brilho da sua luz.
Eu sabia que precisava me desvencilhar, soltar minhas mãos das dele. Mas não conseguia. Ainda não.
- Adrian...
- E eu sei, Sage - ele continuou, com os olhos inflamados. - Sei como vocês, alquimistas, se sentem em relação a nós. Eu não sou idiota, e acredite em mim: tentei
tirar você da cabeça. Mas não tem bebida, arte, nem nenhuma outra distração no mundo que faça isso. Precisei parar de ir ao curso de Wolfe porque era muito difícil
ficar tão perto de você, mesmo que só estivéssemos fingindo lutar. Não aguentava tocar em você. Era agonizante, porque aquilo significava alguma coisa pra mim e
eu sabia que não significava nada pra você. Vivia me dizendo para me manter o mais longe possível, mas acabava encontrando uma desculpa ou outra... como o carro...
qualquer coisa para ficar perto de você de novo. Hayden era um babaca, mas pelo menos enquanto você estava com ele eu tinha um motivo para manter distância.
Adrian ainda segurava minhas mãos, com ansiedade, pânico e desespero estampados no rosto enquanto abria o coração para mim. Meu próprio coração batia incontrolável
por conta de todas aquelas emoções. Ele estava com aquele olhar distraído e arrebatado... o olhar que ostentava quando o espírito tomava conta dele, fazendo-o tagarelar
a esmo. Torci para que aquilo tudo não passasse de algum acesso de insanidade induzida pelo espírito. Podia ser, não?
- O nome dele é Brayden - respondi, finalmente. Devagar, consegui acalmar meu nervosismo e recuperar um pouco do autocontrole. - E, mesmo sem ele, você tem um milhão
de motivos para manter distância. Você disse que sabe como nos sentimos. Mas sabe mesmo? De verdade? - Soltei minhas mãos e apontei para minha bochecha. - Você sabe
o verdadeiro significado do lírio dourado? É uma promessa, um juramento a um modo de vida e a um conjunto de crenças. Você não pode jogar algo assim no lixo. Isto
não iria deixar, nem mesmo se eu quisesse. E, para ser sincera, eu não quero! Acredito no que nós fazemos.
Calmamente, Adrian me observou. Não tentou pegar minhas mãos de novo, mas também não se afastou. Sentia minhas mãos dolorosamente vazias sem as dele.
- Esse “modo de vida”, esse “conjunto de crenças” que você está defendendo só usou você, e continua usando. Eles tratam você como uma peça de uma máquina em que
você não pode pensar... e você é melhor do que isso.
- Algumas partes do sistema têm falhas - admiti. - Mas os princípios são sólidos e eu acredito neles. Existe uma linha entre humanos e vampiros, entre mim e você,
que nunca pode ser ultrapassada. Nós somos muito diferentes. Não fomos feitos para ficar... assim, desse jeito. De nenhum jeito.
- Ninguém foi feito para ficar deste ou daquele jeito - ele retorquiu. - Nós decidimos o que queremos ser. Você me disse uma vez que não existem vítimas aqui, que
todos temos o poder de escolher o que queremos.
- Não tente usar minhas palavras contra mim - adverti.
- Por quê? - ele perguntou, com um leve sorriso nos lábios. - Elas foram boas pra caramba. Você não é nenhuma vítima. Não é prisioneira desse lírio. Você pode ser
o que quiser. Pode escolher o que quer ser.
- Você está certo. - Escapuli, sem encontrar nenhuma resistência da parte dele. - E eu não escolho você. É isso que você não está entendendo.
Adrian ficou em silêncio. Seu sorriso se desfez e então ele disse:
- Não acredito em você.
- Deixe-me adivinhar - escarneci. - Porque eu o beijei? - Aquele beijo me fez sentir mais viva do que jamais me sentira naquelas últimas semanas, e tive a impressão
de que ele sabia disso.
- Não. Porque não existe ninguém no mundo que entenda você como eu entendo.
Fiquei esperando por mais.
- É isso? Não vai explicar o que isso significa?
Aqueles olhos verdes me prenderam.
- Acho que não precisa.
Precisei desviar os olhos, embora não soubesse por quê.
- Se você me conhecesse tão bem, entenderia por que eu estou indo embora.
- Sydney...
Me movi em direção à porta.
- Adeus, Adrian.
Corri até a porta, temendo que ele voltasse a me deter. Se me detivesse, eu não tinha certeza se conseguiria ir embora. Mas ele não me tocou. Não fez nenhum esforço
para me impedir. Só quando cheguei à metade do gramado em frente ao seu prédio, ousei olhar para trás. Adrian estava lá, encostado no batente da porta, me observando
com o coração nos olhos. No meu peito, meu próprio coração se partia. Na minha bochecha, o lírio me lembrava de quem eu era.
Virei de costas e continuei me afastando, recusando-me a olhar para trás.

 

 

                                                   Richelle Mead         

 

 

 

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