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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O Lírio Vermelho / Nora Roberts
O Lírio Vermelho / Nora Roberts

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Lírio Vermelho

 

Sempre houve um Harper na Harper House, a secular mansão nos arredores de Memphis. E, desde que há memória, a fantasmagórica Noiva Harper vagueia pelos corredores, cantarolando músicas de embalar à noite...

Hayley Phillips procura em Memphis um novo começo, para si e para a criança que traz no ventre. Aí encontra um lar e grandes amizades - incluindo Harper, que se torna o homem dos seus sonhos...

Mas Hayley receia ceder ao desejo, especialmente porque suspeita que os sentimentos que a invadem já não são só seus.

Imagens do passado e um comportamento imprevisível levam-na a acreditar que a Noiva Harper encontrou maneira de se introduzir na sua mente e no seu corpo. Está na altura de dar descanso à Noiva de uma vez por todas, para que Hayley possa perceber de novo o seu coração - e saber se está disposta a correr o risco...

O mistério que assombra a histórica casa é agora revelado e as três mulheres podem, por fim, prosseguir as suas vidas.

 

Memphis Janeiro de 1893

Estava desesperada, desamparada e demente.

Em tempos fora uma mulher bela, uma mulher inteligente, com uma ambição ilimitada. Luxo. Alcançara-o, usando o corpo para seduzir e a mente para maquinar. Tornara-se amante de um dos homens mais ricos e mais poderosos do Tennessee.

A sua casa era um museu, decorado à sua vontade - e com o dinheiro de Reginald. Tinha criados para todas as tarefas, um guarda-roupa que rivalizava com os das mais procuradas cortesãs de Paris. Jóias, amigos divertidos, a sua própria carruagem.

Dava festas alegres. Era invejada e desejada.

Ela, a filha de uma criada servil, tivera tudo o que o seu coração avaro desejara.

Tivera um filho.

Isso mudara-a, essa vida que não desejara ter dentro de si. Tornara-se o centro do seu mundo, a única coisa que amava mais do que a si própria. Fizera planos para o seu filho, sonhara com ele. Cantara-lhe enquanto ele dormia no seu ventre.

Trouxera-o ao mundo com dor, muita dor, mas também com alegria. A alegria de saber que, quando a dor passasse, teria o seu precioso filho nos braços.

Disseram-lhe que tinha dado à luz uma menina. Disseram-lhe que o bebé nascera morto.

Mentiam.

Ela soubera-o mesmo na altura, mesmo louca de dor, mesmo enquanto mergulhava nas profundezas do desespero. Mesmo quando enlouqueceu, sabia que era uma mentira. O seu filho vivia.

Tinham-lhe roubado o seu bebé. Tinham-no feito refém. Como podia ser de outra forma quando ela sentia o coração dele a bater, com tanta certeza como sentia o seu?

Mas não fora a parteira nem o médico que tinham levado o seu filho. Reginald levara o que era dela, usando o seu dinheiro para comprar o silêncio daqueles que o serviam.

Como recordava bem o dia em que o vira na sua saleta, procurando-a apenas depois de meses de dor e preocupação. Já não precisava dela, pensou, enquanto abotoava o vestido cinzento com dedos trémulos. Já não precisava dela, agora que tinha o que sempre quisera. Um filho, um herdeiro. A única coisa que a sua mulher de sangue frio nunca lhe conseguira dar.

Usara-a, roubara o seu único tesouro, como se tivesse esse direito. Oferecera-lhe em troca dinheiro e uma viagem a Inglaterra.

Ele pagaria, ele pagaria, ele pagaria, repetia a sua mente enquanto ela se arranjava. Mas não com dinheiro. Oh, não. Não com dinheiro.

Ela estava praticamente na penúria, mas encontraria uma forma. Claro que encontraria uma forma, assim que tivesse o seu adorado James nos seus braços.

Os criados - ratos a fugirem do navio - tinham-lhe roubado algumas das suas jóias. Ela sabia. Tivera de vender a maior parte das restantes e fora enganada no preço. Mas o que podia esperar daquele joalheiro horroroso de lábios finos? Afinal de contas, era também um homem.

”Mentirosos, vigaristas e ladrões. Todos eles.”

Pagariam todos.

Não encontrava os rubis - a pulseira de rubis e diamantes, pedras em forma de coração, sangue e gelo - que Reginald lhe dera quando soubera que ela estava grávida.

Era uma bijutaria, na verdade. Demasiado delicada, demasiado pequena para o seu gosto. Mas ela queria-a e virou de pernas para o ar a confusão do seu quarto de vestir à sua procura.

Chorou como uma criança quando, em vez dela, encontrou um broche de safiras. Quando as lágrimas secaram, enquanto os seus dedos se fechavam sobre o pregador, esqueceu a pulseira e como a desejara desesperadamente. Esqueceu que estava à procura dela. Sorriu olhando para o brilho das pedras azuis. Seria o bastante para começar, para ela e para James. Levá-lo-ia para longe, talvez para o campo. Até se sentir novamente bem, novamente forte.

Era tudo muito simples, na realidade, decidiu com um sorriso sinistro enquanto se via ao espelho. O vestido cinzento era discreto, digno - o tom adequado para uma mãe. Não podia evitar que lhe ficasse largo no corpo, como se estivesse pendurado num cabide. Já não tinha criados, já não tinha costureiras que lhe fizessem as alterações necessárias. Recuperaria a sua silhueta depois de ela e James encontrarem a sua bonita casinha no campo.

Arranjara o cabelo em caracóis no alto da cabeça e, com alguma pena, decidiu não pôr rouge. Um ar discreto era melhor, concluiu. Um ar discreto era tranquilizador para uma criança.

Ia simplesmente buscá-lo. Ia à Harper House e traria de volta o que lhe pertencia.

A viagem da cidade até à grandiosa mansão Harper foi longa, fria e dispendiosa. Já não tinha a sua própria carruagem e em breve, muito em breve, os agentes de Reginald viriam expulsá-la da casa, como já tinham ameaçado fazer.

Mas valia bem o preço de uma carruagem de aluguer. De que outra forma poderia trazer James para Memphis, onde subiria com ele as escadas até ao seu quartinho, o deitaria carinhosamente no seu berço e lhe cantaria até ele adormecer?

- Lavender’s blue, dilly dilly - cantou suavemente, retorcendo os dedos finos enquanto olhava para as árvores de Inverno que ladeavam a estrada.

Trouxera o cobertor que lhe mandara vir de Paris, o gorrinho e as botinhas azuis. Na sua mente, ele ainda era um recém-nascido. Na sua mente destroçada, os seis meses desde o seu nascimento não tinham existido.

A carruagem percorreu o longo caminho de acesso e ela viu a Harper House, em toda a sua glória, dominando a paisagem.

A pedra amarela, o remate branco, formavam um conjunto caloroso e gracioso contra o céu cinzento e desagradável. A casa de três pisos era altiva e forte, a sua beleza acentuada por árvores, arbustos e um relvado ondulado.

Ouvira dizer que em tempos vagueavam pavões pela propriedade, exibindo as suas caudas coloridas como jóias. Mas Reginald não gostava dos seus gritos e livrara-se deles quando se tornara o senhor da casa.

Ele governava como um rei. E ela dera-lhe o seu príncipe. Um dia, um dia, o seu filho usurparia o pai. Ela governaria na Harper House com James. O seu querido, querido James.

Apesar de as janelas da grande casa estarem mudas e espelhadas pelo sol - como olhos secretos que a fitavam -, imaginou-se a viver ali com o seu James. Viu-se a cuidar dele, a levá-lo a passear nos jardins, a ouvir o seu riso ecoar pelos corredores.

Um dia seria assim, claro. A casa era dele, logo, era dela também. Viveriam ali felizes, apenas os dois. Como devia ser.

Saiu da carruagem, uma mulher pálida e magra com um vestido cinzento largo, e dirigiu-se lentamente à porta da frente.

Sentiu o coração a palpitar ao fundo da garganta. James estava à sua espera.

Bateu e, como não conseguia ter as mãos quietas, cruzou-as com força sobre a cintura.

O homem que abriu vestia de preto, com dignidade, e, apesar de a ter olhado de cima a baixo, o seu rosto não revelou nada.

- Minha senhora, em que posso ajudar?

- Vim buscar o James.

Ele ergueu ligeiramente a sobrancelha esquerda.

- Lamento, minha senhora, mas não há nenhum James nesta casa. Se está à procura de um criado, a entrada é pelas traseiras.

- O James não é um criado. - Como se atrevia? - É o meu filho. O seu patrão. Vim buscá-lo. - Ultrapassou o limiar da porta num gesto de desafio.

- Vá buscá-lo imediatamente.

- Creio que se enganou na casa, minha senhora. Talvez...

- Não conseguirão escondê-lo de mim. James! James! A mamã chegou.

- Correu para as escadas, arranhou e mordeu quando o mordomo lhe segurou no braço.

- Danby, o que se passa aqui? - Uma mulher, também uma criada vestida de preto, cruzou rapidamente o vestíbulo.

- Esta... mulher. Está muito agitada.

- No mínimo. Senhorita? Por favor, senhorita, eu sou Havers, a governanta. Tem de se acalmar e dizer-me o que se passa.

- Vim buscar o James. - Tinha as mãos a tremer quando as levantou para ajeitar os caracóis. - Tem de mo trazer imediatamente. Está na hora da sesta dele.

Havers tinha um rosto amável e sorriu docemente.

- Compreendo. Talvez queira sentar-se durante um instante para se recompor.

- E depois traz-me o meu James? Tem de me dar o meu filho.

- Na saleta, que me diz? A lareira está acesa. Está muito frio hoje, não está? - Lançou um olhar a Danby e este soltou-a. - Venha, deixe-me acompanhá-la.

- É um truque. Outro truque. - Amélia correu para as escadas, gritando por James enquanto corria. Chegou ao primeiro andar antes de as pernas fracas lhe falharem.

Uma porta abriu-se e a senhora da Harper House saiu. Sabia que era a mulher de Reginald, Beatrice. Vira-a no teatro uma vez e nas lojas.

Era bela, mas de uma beleza austera, com olhos como pedras de gelo azul, nariz fino e afilado e lábios cheios, arrepanhados num esgar desdenhoso. Vestia um vestido de seda rosa, com gola alta e cintura apertada.

- Quem é esta criatura?

- Peço desculpa, minha senhora. - Havers, mais rápida do que o mordomo, chegara primeiro à porta da sala de estar. - Não me disse o nome. - Instintivamente, ajoelhou-se e passou o braço à volta dos ombros de Amélia. - Parece estar perturbada e está completamente gelada.

- James. - Amélia estendeu a mão e Beatrice afastou deliberadamente a saia. - Vim buscar o James. O meu filho.

Um tremor fugaz passou pelo rosto de Beatrice antes de comprimir os lábios numa linha fina.

- Traga-a para aqui. - Virou-se e entrou de novo na sala. - E espere.

- Senhorita. - Havers falou calmamente enquanto ajudava a mulher trémula a levantar-se. - Não tenha medo, ninguém lhe vai fazer mal.

- Por favor, vá buscar o meu bebé. - Os seus olhos eram suplicantes quando segurou a mão de Havers. - Por favor, traga-me o meu filho.

- Pronto, pronto, entre e converse com a sr.a Harper. Minha senhora, quer que sirva um chá?

- Com certeza que não - retorquiu Beatrice secamente. - Feche a porta. Dirigiu-se a uma bonita lareira de granito e virou-se de costas para o fogo.

Os seus olhos permaneceram frios enquanto a porta se fechava silenciosamente.

- Você é... era - corrigiu, com um esgar de desdém - uma das putas do meu marido.

- Sou Amélia Connor. Vim...

- Não lhe perguntei como se chamava. Não tenho qualquer interesse nisso. Presumi que as mulheres da sua laia, as que se consideram concubinas em vez de prostitutas comuns, tivessem inteligência e estilo suficientes para não porem os pés na casa daquele a quem chamam protector.

- Reginald. O Reginald está? - Olhou em volta, observando esgazeada a bonita sala, com os seus candeeiros pintados e almofadas de veludo. Não se lembrava bem de como viera aqui parar. O frenesim e a fúria tinham-se esgotado, deixando-a fria e confusa.

- Ele não está em casa e devia dar-se por feliz. Estou perfeitamente a par da vossa... relação e perfeitamente ciente de que ele acabou com essa relação e de que foi generosamente recompensada.

- Reginald? - Viu-o, na mente destroçada, de pé em frente de uma lareira, mas não esta, não esta. A sua lareira, na sua sala.

”Achas que permitiria que o meu filho fosse criado por alguém como tu?” Filho. O seu filho. James.

- James. O meu filho. Vim buscar o James. Tenho o cobertor dele na carruagem. Vou levá-lo para casa.

- Se acha que lhe vou dar dinheiro para garantir o seu silêncio sobre este assunto inconveniente, está muito enganada.

-Eu... eu vim buscar o James.-Com um sorriso trémulo nos lábios, deu um passo em frente, de braços estendidos. - Ele precisa da mamã.

- O bastardo que deu à luz, e que me foi imposto contra minha vontade, chama-se Reginald, como o pai.

- Não, eu pus-lhe o nome de James. Disseram-me que estava morto, mas eu ouvi-o a chorar. - Uma expressão de preocupação invadiu-lhe o rosto quando olhou em volta. - Não o ouve a chorar? Tenho de o encontrar, cantar-lhe para o adormecer.

- Devia estar num hospício. Quase tenho pena de si - disse Beatrice, com o fogo a crepitar atrás de si. - Não tem mais escolha neste assunto do que eu. Mas eu, pelo menos, sou inocente. Sou a mulher dele. Dei à luz os seus filhos, filhos nascidos dentro dos laços do casamento. Sofri a perda de filhos e o meu comportamento foi sempre irrepreensível. Fiz vista grossa e ouvidos moucos aos casos do meu marido e nunca lhe dei uma única razão de queixa. Mas nunca lhe dei um filho homem e esse, esse é o meu pecado mortal.

Tinha agora as faces coradas de fúria.

- Acha que quero o seu fedelho? O filho bastardo de uma puta, que um dia me chamará de mãe? Que herdará tudo isto? - Abriu os braços. - Tudo isto. Quem me dera que ele tivesse morrido no seu ventre, e você com ele.

- Dê-me o meu filho, dê-mo. Tenho o cobertor dele. - Olhou para as mãos vazias. - Tenho o cobertor dele. Eu levo-o.

- O que está feito, feito está. Somos prisioneiras na mesma ratoeira, mas pelo menos você merece o seu castigo. Eu não fiz nada.

- Não pode ficar com ele, se não o quer. Não pode ficar com ele. Precipitou-se para a frente, de olhar desvairados lábios arreganhados. E a bofetada estalou sobre a sua face, projectando-a para trás e atirando-a ao chão.

- Saia desta casa - disse Beatrice calmamente, como se estivesse apenas a distribuir uma tarefa menor a uma criada. - Nunca mais falará sobre este assunto ou garanto-lhe que a colocarei no manicómio. A minha reputação não será manchada pelos seus desvarios, garanto-lhe. Nunca mais volte aqui, nunca mais ponha os pés na Harper House ou na propriedade Harper. Nunca verá a criança... esse será o seu castigo, embora, na minha opinião, não seja nem de longe o suficiente.

- James, vou viver aqui com o James.

- Está louca - disse Beatrice num tom levemente divertido. - Volte para a prostituição. Tenho a certeza de que encontrará um homem que terá todo o prazer em lhe pôr outro bastardo no ventre.

Dirigiu-se à porta e abriu-a.

- Havers! - esperou, ignorando os soluços lancinantes atrás dela. - Diga a Danby que retire esta coisa da minha casa.

Mas ela voltou. Eles expulsaram-na, ordenaram ao cocheiro que a levasse. Mas ela voltou, na noite fria. Tinha a mente despedaçada, mas conseguiu fazer esta última viagem numa carroça roubada, com o cabelo encharcado da chuva, a camisa de noite branca colada ao corpo.

Queria matá-los. Matá-los a todos. Rasgá-los em farrapos, cortá-los em pedaços. Depois podia levar o seu James nas mãos ensanguentadas.

Mas nunca lho permitiriam. Nunca teria o seu bebé nos braços. Nunca veria o seu rostinho doce.

A menos, a menos...

Deixou a carroça quando as sombras e o luar deslizavam sobre a Harper House, enquanto as janelas negras brilhavam e todos dormiam lá dentro.

Parara de chover; o céu estava limpo. A neblina serpenteava sobre o solo, cobras cinzentas que se afastavam em frente dos seus pés descalços e gelados. A bainha da camisa de dormir arrastava sobre a lama enquanto caminhava. E ela cantarolava baixinho.

Eles iam pagar. Pagariam bem caro.

Ela fora à mulher do vodu e sabia o que tinha a fazer. Sabia o que podia fazer para assegurar tudo o que queria, para sempre. Para sempre.

Atravessou os jardins, o chão gelado do Inverno, e dirigiu-se à cocheira, onde encontraria o que precisava.

Estava a cantar quando o trouxe consigo, caminhando sob o ar húmido em direcção à grandiosa casa, com a sua pedra amarela iluminada pelo luar.

- Lavender’s blue - cantou. - Lavender’s green.

 

Harper House Julho de 2005

Cansada até à medula, Hayley bocejou até os ossos do maxilar estalarem. A cabeça de Lily era um peso morto sobre o seu ombro, mas de cada vez que parava de a embalar a bebé agitava-se e choramingava e os seus dedinhos fechavam-se sobre a camisola de alças de algodão que Hayley usava para dormir.

”Para tentar dormir”, corrigiu Hayley, murmurando sons tranquilizadores enquanto recomeçava a baloiçar a cadeira.

Sabia que deviam ser perto das quatro da manhã e já se levantara duas vezes para embalar e tentar acalmar a sua filha rabugenta.

Às duas da manhã tentara aconchegar a bebé na sua cama para que ambas conseguissem dormir alguma coisa. Mas Lily não sossegava senão na cadeira de baloiço.

E assim Hayley baloiçava-se e dormitava, baloiçava-se e bocejava, e perguntava a si própria se alguma vez voltaria a dormir oito horas seguidas na vida.

Não sabia como as outras pessoas conseguiam. Especialmente as mães solteiras. Como é que faziam? Como é que enfrentavam todas as exigências feitas ao coração, à mente, ao corpo... e à carteira?

Como é que ela teria conseguido se estivesse completamente sozinha com Lily? Que tipo de vida teriam se não tivesse ninguém para a ajudar com as preocupações, a escravidão pura, as brincadeiras e as patetices? Era aterrorizador pensar nisso.

Fora tão ridiculamente optimista e confiante, e estúpida, pensava ela agora.

Recordou como deixara tudo, grávida de quase seis meses, despedindo-se do emprego, vendendo a maior parte das suas coisas e enfiando o resto naquela carripana velha.

Céus, se soubesse o que sabia hoje, nunca o teria feito.

Portanto talvez tivesse sido melhor que não soubesse. Porque não estava sozinha. Fechando os olhos, encostou a face ao cabelo escuro e macio de Lily. Tinha amigos - não, família -, pessoas que gostavam dela e de Lily e que estavam dispostas a ajudar.

Não tinham apenas um tecto sob o qual morar, mas sim o tecto maravilhoso da Harper House. Tinha Roz, uma prima distante e apenas por afinidade, que lhe oferecera um lar, um emprego, uma oportunidade. Tinha Stella, a sua melhor amiga neste mundo, com quem conversar, a quem fazer queixas, com quem aprender.

Tanto Roz como Stella tinham sido mães sozinhas. ”E tinham-se desenrascado”, recordou a si própria. Não, muito mais do que isso, e Stella tivera dois rapazinhos para criar sozinha. E Roz três.

E aqui estava ela a perguntar-se como é que conseguiria, mesmo com toda a ajuda que tinha.

Havia David, que cuidava da casa e fazia as refeições. E que era maravilhoso. E se ela tivesse de cozinhar todos os dias depois de vir do trabalho? E se tivesse de tratar das compras, das limpezas, das arrumações, de tudo, para além do emprego e de cuidar de um bebé de catorze meses?

Graças a Deus que não sabia o que isso era.

Havia Logan, o espectacular marido de Stella, que estava sempre disposto a ver o que se passava com o seu carro quando este resolvia fazer birra. E os filhos de Stella, Gavin e Luke, que não só gostavam de brincar com Lily como davam a Hayley uma ideia daquilo que a esperava nos próximos anos.

Havia Mitch, tão inteligente e doce, que gostava de pegar em Lily às cavalitas e de a passear de um lado para outro enquanto ela ria perdidamente. Agora ele estaria oficialmente e sempre aqui, assim que ele e Roz regressassem da lua-de-mel.

Fora tão bom, tão divertido, ver Stella e Roz apaixonarem-se. Hayley sentira-se parte disso - a excitação, as mudanças, o alargamento do seu novo círculo familiar.

Claro que o casamento de Roz significava que Hayley teria de começar a mexer-se para encontrar a sua própria casa. Os recém-casados tinham direito à sua privacidade.

Desejou que houvesse alguma coisa perto. Até mesmo na propriedade. Como a antiga cocheira. A casa de Harper. Suspirou enquanto esfregava as costas de Lily.

Harper Ashby. O primogénito de Rosalind Harper Ashby, uma delícia para os olhos. Claro que não pensava nele dessa maneira. Não muito, pelo menos. Era um amigo, um colega de trabalho e a primeira paixoneta da sua menina. E, ao que parecia, o sentimento era mútuo.

Bocejou de novo, embalada como a bebé pelo ritmo da cadeira de baloiço e pelo silêncio da madrugada.

Harper era... bom, simplesmente fantástico com Lily. Paciente e engraçado, descontraído e carinhoso. Secretamente, ela pensava nele como o pai substituto de Lily - sem os benefícios da marmelada com a mãe de Lily.

Às vezes Hayley brincava ao faz-de-conta - que mal tinha? - e na sua fantasia a parte do substituto deixava de existir. Mas a marmelada existia. Afinal de contas, que rapariga de sangue nas veias - e privada de sexo há tanto tempo como ela - não teria de vez em quando fantasias com um homem alto, moreno e estupidamente atraente, em particular quando ele tinha também um sorriso de morrer, olhos castanhos de derreter o coração e um traseiro que só apetecia beliscar?

Não que ela alguma vez o tivesse beliscado. Mas, em teoria...

Além disso, era mesmo inteligente. Sabia tudo o que havia para saber sobre plantas e flores. Ela adorava vê-lo a trabalhar na estufa de enxertia do centro de jardinagem. A forma como as mãos dele seguravam uma faca ou atavam a ráfia.

Ele estava a ensiná-la, e ela estava-lhe grata. Demasiado grata para fazer o que lhe apetecia, que era dar-lhe uma bela dentada e tirar-lhe um pedaço.

Mas imaginá-lo não fazia mal nenhum.

Parou de baloiçar a cadeira, susteve a respiração e esperou. As costas de Lily continuaram a subir e descer calmamente debaixo da sua mão.

”Graças a Deus.”

Levantou-se devagar, dirigindo-se ao berço com os passos furtivos e decididos de uma mulher a tentar fugir da prisão. Com os braços doridos, a cabeça tonta de fadiga, inclinou-se sobre o berço e, suavemente, muito devagar, pousou Lily no colchão.

Assim que a tapou, Lily começou a agitar-se. Ergueu a cabeça, abriu a boca e desatou a berrar.

- Oh, Lily, por favor, querida - Hayley deu-lhe palmadinhas, acariciou-a, mal se tendo de pé. - Chiu, vá lá. Deixa a mamã descansar um bocadinho.

As palmadinhas pareceram funcionar - enquanto tinha a mão nas costas de Lily, a cabecinha dela ficava na almofada. Assim Hayley sentou-se no chão e enfiou o braço entre as grades do berço. E deu palmadinhas, e palmadinhas.

E adormeceu.

Foi a canção que a acordou. Tinha o braço dormente e deixou-o onde estava mesmo depois de abrir os olhos. O quarto estava frio; a parte do chão onde estava sentada, ao lado do berço, era um quadrado de gelo. Sentiu picadas no braço todo, do pulso ao ombro, quando o moveu para encostar a mão de forma protectora às costas de Lily.

A figura de vestido cinzento estava sentada na cadeira de baloiço, cantando baixinho a antiga canção de embalar. Os seus olhos cruzaram-se com os de Hayley, mas continuou a cantar, continuou a baloiçar-se.

O choque afastou as teias de aranha do sono da mente de Hayley e o coração deu-lhe um salto no peito.

Que é que se podia dizer a um fantasma que não se via há várias semanas? ”Olá, como estás? Bem-vinda a casa?” Qual era a reacção apropriada, especialmente tendo em conta que o fantasma em questão era totalmente marado?

Hayley estava gelada quando se levantou, lentamente, para se colocar entre o berço e a cadeira de baloiço. Pelo sim, pelo não. Apertou contra o corpo o braço dormente e esfregou-o energicamente para tentar livrar-se dos milhares de agulhas que pareciam estar a picá-lo.

”Repara em todos os pormenores”, pensou para si própria. ”Mitch vai querer saber todos os detalhes.”

Ela parecia bastante calma para um fantasma psicopata, observou Hayley. Calma e triste, como da primeira vez em que Hayley a vira. Mas também já a vira com os olhos dementes e esbugalhados.

- Ah... ela levou umas injecções hoje. Vacinas. Fica sempre irrequieta na noite depois das vacinas. Mas acho que já sossegou. Vai ter de se levantar daqui a duas horas, por isso provavelmente vai estar rabugenta, na ama, até à hora da sesta. Mas... mas agora é melhor deixá-la dormir, por isso devias ir-te embora.

A figura desapareceu segundos antes de o som da sua voz se desvanecer.

David fez-lhe panquecas de mirtilo para o pequeno-almoço. Ela tinha-lhe dito para não se preocupar em cozinhar para ela ou para Lily enquanto Roz e Mitch não estivessem em casa, mas ele cozinhava sempre. Uma vez que ficava muito engraçado na cozinha, ela não se esforçava muito para o desencorajar.

Além disso, as panquecas eram deliciosas.

- Tens andado com um ar um bocadinho macilento - disse David, beliscando-lhe a bochecha; depois repetiu o gesto com Lily para a fazer rir.

- Não tenho dormido muito bem. Ontem à noite tive uma visita.

Abanou a cabeça quando ele ergueu as sobrancelhas e sorriu de forma

maliciosa.

- Não foi um homem, infelizmente, para meu azar. A Amélia.

A expressão divertida desapareceu de imediato, substituída por outra de preocupação, e David sentou-se em frente dela.

- Houve algum problema? Está tudo bem?

- Ela estava apenas sentada na cadeira de baloiço, a cantar. E quando lhe disse que a Lily estava bem e que era melhor ir-se embora, desapareceu. Não fez nada de mal.

- Talvez ela tenha sossegado de novo. Podemos sempre ter esperança. Tens estado preocupada com isso? - Estudou atentamente o rosto dela, reparando nas olheiras por baixo dos olhos azuis, na palidez por baixo do blush cuidadosamente aplicado nas faces. - É por isso que tens dormido mal?

- Em parte, suponho. As coisas andaram muito estranhas por aqui durante alguns meses. Andávamos constantemente assustados. E agora esta calmaria. Quase que é pior.

- Tens o papá David cá em baixo, se precisares de alguma coisa. Estendeu a mão e acariciou a dela com os dedos compridos de pianista. E a Roz e o Mitch chegam hoje. A casa já não parecerá tão grande e vazia.

Ela soltou uma gargalhada, aliviada.

- Também o sentiste? Não queria dizer nada, não queria que pensasses que a tua companhia não me chegava. Porque chega...

- Eu sei, coração, e a tua também. Mas estragaram-nos, não foi? Há um ano que temos sempre a casa cheia. - Olhou para as cadeiras vazias. Tenho saudades dos miúdos.

- Ah, seu sentimentalão. Continuamos a ver-nos constantemente, mas é estranho estar tudo tão silencioso.

Como se compreendesse o que ela tinha dito, Lily atirou o copo de plástico, que acertou na ilha central e bateu no chão com estrondo.

- Linda menina - disse-lhe David.

- E sabes que mais? - Hayley levantou-se para apanhar o copo. Era alta e esguia e, para seu desgosto, os seios tinham regressado ao seu tamanho pré-gravidez. Pensava neles como uma copa A-menos. -Acho que estou a ficar em baixo. Não quero dizer propriamente deprimida, porque adoro trabalhar nos viveiros e ainda ontem à noite estava a pensar, quando a Lily acordou pela centésima vez, em como tenho sorte de estar aqui, de termos todas estas pessoas nas nossas vidas.

Abriu os braços e deixou-os cair ao longo do corpo.

- Mas, não sei, David, sinto-me meio... blah.

- Precisas de uma sessão de terapia de compras.

Ela sorriu e pegou num pano para limpar o rosto sujo de doce de Lily.

- É a cura número um para quase tudo. Mas acho que preciso de uma mudança. Algo mais importante do que um par de sapatos novos.

Deliberadamente, ele arregalou os olhos e abriu a boca.

- Há alguma coisa mais importante?

- Acho que vou cortar o cabelo. Achas que devia cortar o cabelo?

- Hum. - Ele inclinou a cabeça e examinou-a com os bonitos olhos azuis. - Tens um cabelo fabuloso, adoro esse castanho-avermelhado brilhante. Mas gostava muito do corte que tinhas quando te mudaste para cá.

- A sério?

- Os comprimentos diferentes, meio despenteado, casual, diferente. Sexy.

- Bem... - Passou a mão pelo cabelo. Deixara-o crescer e agora chegava-lhe praticamente aos ombros. Um comprimento fácil de prender para tratar dos seus deveres de mãe. Talvez fosse esse o problema. Começara a escolher os caminhos mais fáceis porque deixara de procurar arranjar tempo ou de tentar fazer um esforço para se preocupar com o seu aspecto.

Limpou Lily e tirou-a da cadeirinha para ela poder andar pela cozinha.

- Talvez o corte, então. Talvez.

- E compra uns sapatos novos na mesma, querida. Nunca falha.

No pino do Verão, o negócio no centro de jardinagem abrandava. Nunca diminuía muito na loja, mas em Julho a afluência alucinante do final do Inverno e da Primavera tinha acabado. Um calor húmido abatia-se sobre o oeste do Tennessee e só os maiores entusiastas da jardinagem se sujeitavam a enfrentá-lo para dar vida nova aos seus canteiros.

Aproveitando esse facto e o seu estado de espírito, Hayley marcou uma visita ao cabeleireiro e pediu uma hora de folga a Stella.

Quando voltou ao trabalho, depois da hora de almoço alargada, tinha um novo penteado, dois pares de sapatos novos e uma atitude muito mais alegre.

Tinha de confiar mais em David, pensou.

Adorava o centro de jardinagem. Na maior parte dos dias, nem se sentia como se estivesse a trabalhar. E, na sua opinião, isso era o melhor que se podia dizer de um emprego.

Gostava de olhar para o bonito edifício branco, que parecia mais um lar bem cuidado do que um negócio, com os canteiros sazonais que se estendiam desde o alpendre e os vasos cheios de flores coloridas junto à porta.

Gostava da zona industrial do outro lado do amplo parque de estacionamento - as pilhas de turfa e adubo vegetal, as pedras de calçada e as madeiras decorativas. As estufas cheias de plantas e de promessa, os armazéns.

Quando havia muitos clientes a vaguear pelos caminhos, puxando carrinhos cheios de plantas e vasos - cheios de novidades ou planos -, parecia mais uma pequena aldeia do que um espaço comercial.

E ela fazia parte disto.

Entrou e deu uma voltinha em frente de Ruby, a empregada de cabelo branco que cuidava do balcão.

- Estamos muito modernas - comentou Ruby.

- E sinto-me muito moderna. - Passou os dedos pelo cabelo curto e revolto, depois deixou-o cair. - Não fazia nada ao cabelo há um ano. Mais. Quase me tinha esquecido de como era estar sentada num cabeleireiro e deixar alguém tratar de mim.

- Temos tendência a desleixar-nos um bocadinho quando temos um bebé. Como está a nossa menina?

- Ontem à noite esteve irrequieta, depois das vacinas. Mas esta manhã já estava bem. Eu é que mal conseguia abrir os olhos. Mas agora estou cheia de força. - Para o provar, flectiu os braços para mostrar os pequenos bíceps.

- Ainda bem. A Stella quer tudo regado, e quero dizer mesmo tudo. E estamos à espera de uma grande entrega de vasos novos. Têm de ser etiquetados e arrumados nas prateleiras quando chegarem.

- Eu trato disso.

Começou lá fora, no calor abafado e modorrento, regando as plantas ornamentais, as anuais e as perenes que ainda não tinham encontrado um lar. Faziam-lhe lembrar aqueles miúdos desajeitados, na escola, que nunca eram seleccionados para a equipa. Por isso, tinha um fraquinho por elas e desejava ter um sítio onde pudesse enterrá-las no solo, deixá-las florescer, deixá-las desenvolver o seu potencial.

Um dia teria esse sítio. Plantaria jardins, poria em prática aquilo que aprendera aqui. Faria algo belo, algo especial. Teria de haver lírios, naturalmente. Lírios vermelhos, como os que Harper lhe levara quando ela estava a ter Lily. Uma grande mancha exuberante de lírios vermelhos, ousados e perfumados, que regressariam ano após ano para lhe recordar a sorte que tinha.

O suor escorria-lhe pela nuca e tinha os sapatos de lona molhados. O borrifo suave aborreceu as abelhas que cobriam a erva-pinheira. ”Voltem quando eu acabar”, pensou, enquanto as abelhas se afastavam com um zumbido irritado. ”Andamos todos à procura do mesmo.”

Avançou lentamente, meio distraída, ao longo das mesas onde estava o stockc seleccionado.

Imaginou que um dia teria um jardim, imaginou Lily a brincar nele. ”Com um cachorrinho”, decidiu. Devia haver um cachorrinho gorducho, fofinho e brincalhão. Se pudesse ter isso tudo, não podia acrescentar um homem? Alguém que as amasse, a ela e a Lily, um homem divertido e inteligente que fizesse o seu coração bater mais depressa quando olhasse para ela?

Ele podia ser atraente. De que adiantava ter uma fantasia se o homem não fosse um borracho? Alto, seria alto, com ombros largos e pernas compridas. Olhos castanhos, de um castanho profundo-e delicioso, e com muito cabelo escuro onde ela pudesse enfiar as mãos. Boas maçãs do rosto, daquelas que só apetece mordiscar até chegar à boca forte e sexy. E depois...

- Céus, Hayley, estás a afogar essas coreópsis.

Ela deu um salto, levantando a mangueira, depois soltou uma exclamação aflita e voltou a baixá-lo, mas não sem antes acertar com o jacto em cheio em Harper.

”Na barriga”, pensou, dividida entre o embaraço e a vontade de rir. Ele olhou para a camisa ensopada e para as calças de ganga com uma expressão sombria de resignação.

- Tens licença de porte de arma para essa coisa?

- Desculpa! Desculpa, a sério. Mas não devias aparecer sorrateiramente atrás de mim.

- Eu não apareci sorrateiramente. Vinha a andar de forma normal.

A voz dele soava irritada, com o sotaque típico de Memphis, enquanto o sotaque dela só ficava carregado quando estava excitada ou perturbada.

- Bom, para a próxima faz mais barulho. Mas peço desculpa. Acho que estava distraída.

- Com este calor, é fácil a mente de uma pessoa começar a vaguear e depois deitar-se a dormir uma sesta. - Afastou a camisa molhada da barriga.

- O que é que fizeste ao cabelo?

- O quê? - Instintivamente ergueu a mão e passou os dedos pelo cabelo.

- Cortei-o. Gostas?

- Sim, claro. Está giro.

Ela esforçou-se por não carregar no gatilho da mangueira.

- Pára, por favor. Tantos elogios ainda me vão subir à cabeça. Harper sorriu. Tinha um sorriso tão fantástico - meio lento, que lhe alterava os ângulos do rosto e iluminava aqueles olhos castanhos, escuros e profundos - que ela quase lhe perdoou.

- Vou a casa um bocadinho. A minha mãe já chegou.

- Já chegaram? Como estão eles? Divertiram-se? Claro que ainda não sabes, porque ainda não foste a casa. Diz-lhes que estou ansiosa por os”ver e que por aqui está tudo bem, e que a Roz não precisa de se preocupar em começar a trabalhar assim que puser os pés em casa. E...

Ele inclinou a cabeça e enfiou a mão no bolso das velhas calças de ganga.

- Queres que tome nota do recado?

- Oh, vai-te lá embora. - Mas riu-se enquanto lhe acenava. - Eu falo com eles depois.

- Até logo.

E o homem das suas fantasias afastou-se a pingar água.

”Tenho mesmo de parar de pensar em Harper”, disse a si própria em tom de aviso. ”Esquecer esses pensamentos e não os deixar voltar.” Ele não era para ela, e Hayley sabia-o. Dirigiu-se aos arbustos e às trepadeiras para os regar.

Nem sequer tinha a certeza de querer alguém para ela - pelo menos para já. Lily era a sua primeira prioridade e, a seguir a Lily, vinha o emprego. Queria que a sua bebé fosse feliz, saudável e tivesse segurança. E queria aprender mais, fazer mais nos viveiros. Quanto mais aprendesse, menos seria um emprego e mais uma carreira.

Cumprir as suas obrigações estava muito bem, mas ela queria mais.

Depois de Lily, do trabalho e da família que encontrara aqui, vinha a tarefa fascinante e fantasmagórica de identificar Amélia, a Noiva Harper - e de lhe dar o repouso que ela merecia.

A maior parte dessa tarefa cabia a Mitch. Era ele o genealogista e, a par de Stella, a mente mais organizada do grupo. Não era fantástico que ele e Roz se tivessem conhecido e apaixonado um pelo outro depois de Roz o ter contratado para estudar a árvore genealógica da família e tentar descobrir onde Amélia se encaixava? Não que Amélia tivesse gostado muito da parte de se terem apaixonado. Bolas, tinha sido verdadeiramente intratável a esse respeito.

E podia voltar a ficar má, pensou Hayley. Agora que eles estavam casados e Mitch vivia na Harper House. Estava sossegada há algum tempo, mas isso não queria dizer que continuasse assim.

Se e quando o turbilhão recomeçasse, Hayley tencionava estar preparada para ele.

 

hayley entrou na Harper House - ah, que frescura abençoada - com Lily ao colo. Pôs Lily no chão, depois largou a mala e o saco das fraldas no primeiro degrau para ficarem a jeito para levar para cima. Era para cima que ela queria ir. Queria tomar um duche de... oh, dois ou três dias devia chegar... depois beber uma cerveja gelada de uma assentada.

Mas, antes de fazer fosse o que fosse, queria ver Roz.

Enquanto pensava nisso, Roz saiu da saleta. Ela e Lily soltaram gritos de alegria. Lily mudou de direcção e, enquanto se dirigia a Roz, esta correu para ela e levantou-a nos braços.

- Aqui está a minha batatinha querida. - Abraçou Lily com força, fez-lhe cócegas com a boca no pescoço e, depois de sorrir a Hayley, olhou de novo para a bebé e escutou com ar de espanto a sua algaraviada excitada e incompreensível.

- Ora, nem acredito que aconteceu isso tudo numa semana apenas! Não sei o que faria se não estivesses aqui para me pôr a par dos mexericos locais. - Sorriu de novo a Hayley. - E como está a tua mamã?

- Estou bem. Estou óptima - Hayley aproximou-se e abraçou-as às duas

- Bem-vinda a casa. Sentimos a tua falta.

- Ainda bem. Gosto que sintam a minha falta. E olhem para isto - passou os dedos pelo cabelo de Hayley.

- Cortei-o hoje mesmo. Acordei com bicho-carpinteiro. Oh, estás tão bonita!

- Deixa-te disso.

Mas era verdade, sempre verdade. A lua-de-mel de uma semana nas Caraíbas adicionara um novo brilho à sua beleza natural. O sol dourara a pele clara e os olhos escuros de Roz pareciam ainda mais profundos. O cabelo curto e liso emoldurava um rosto de uma beleza clássica e intemporal, à qual Hayley sabia que nunca poderia aspirar.

- Gosto desse corte - comentou Roz. - É tão jovem e descontraído!

- Deu uma injecção de moral ao meu ego. A Lily e eu tivemos uma noite complicada. Ela foi levar as vacinas ontem.

- Hum. - Roz abraçou outra vez Lily. - Nada divertido. Vamos ver se conseguimos compensá-la. Anda cá, minha linda - disse Roz, levando Lily para a saleta. - Anda ver o que eu te trouxe.

A primeira coisa que Hayley viu foi uma boneca enorme com uma juba de cabelo ruivo e um sorriso doce e pateta.

- Oh, é tão querida! Quase do tamanho da Lily.

- Era essa a ideia. Foi o Mitch que a viu primeiro, e tínhamos de a trazer para a Lily. O que achas, querida?

Lily espetou o dedo no olho da boneca algumas vezes, puxou-lhe o cabelo, depois sentou-se no chão com ar satisfeito para a conhecer melhor.

- É o tipo de boneca à qual ela pode dar um nome dentro de um ano, mais ou menos, e manter no quarto até ir para a universidade. Obrigada, Roz.

- Ainda não acabou. Havia uma lojinha que tinha uns vestidos adoráveis. - Começou a tirá-los do saco e Hayley arregalou os olhos. Algodão macio franzido, renda pregueada, ganga bordada. - E olha para estes macacões. Quem poderia resistir?

- São maravilhosos. São lindos. Vais estragá-la com mimos.

- Ora, com certeza.

- Não sei como... Ela não tem av... quer dizer, ninguém que a mime desta maneira.

Roz ergueu uma sobrancelha e dobrou um macacão.

- Podes dizer a palavra ”avó”, Hayley. Eu não vou desmaiar de horror. Gosto de pensar em mim própria como a avó honorária da Lily.

- Tenho tanta sorte. Temos tanta sorte.

- Então porque estás a chorar?

- Não sei. Ultimamente tenho andado a pensar muito. - Fungou e limpou os olhos com as costas da mão. - Sobre onde estou, como aqui cheguei, como as coisas teriam sido para nós se eu estivesse sozinha com a Lily como pensava que estaria.

- Não adianta nada pensar no que podia ter sido.

- Eu sei. Mas estou tão contente por ter vindo para cá. Ontem à noite estava a pensar que devia começar a procurar um sítio.

- Um sítio para quê?

- Para viver.

- Há alguma coisa errada com esta casa?

- É a casa mais linda que vi em toda a minha vida. - E aqui estava ela, Hayley Phillips de Little Rock, a viver nela, a viver numa casa que tinha uma saleta mobilada com belas antiguidades e almofadas fofas e caras, com janelas enormes que davam para uma vasta extensão de mais beleza.

- Estava a pensar que devia procurar uma casa, mas não quero. Pelo menos para já. - Olhou em volta e viu Lily a arrastar a boneca pela sala. Mas quero que me digas, e sei que somos amigas o suficiente para seres sincera, quando quiseres que eu comece a procurar.

- Está bem. Assunto resolvido?

- Claro.

- Não queres ver o que trouxe para ti?

- Também tenho uma prenda? - Os olhos de Hayley iluminaram-se de excitação. -Adoro presentes. Não tenho vergonha de o dizer.

- Espero que gostes deste. - Tirou uma caixa de um saco e entregou-lha. Sem perder tempo, Hayley abriu-a.

- Oh, oh! São lindos!

- Achei que o coral vermelho te ficaria bem.

- Adoro-os! - Tirou os brincos da caixa e, encostando-os às orelhas, correu para um dos espelhos antigos na parede para ver como lhe ficavam. Os trios de bolas vermelhas, delicadas e exóticas, pendiam de um triângulo de prata cintilante. - São maravilhosos. Meu Deus, tenho uma coisa de Aruba. Nem acredito.

Correu de novo para Roz e abraçou-a.

- São lindos de morrer. Obrigada, obrigada. Mal posso esperar por uma ocasião para os usar.

- Podes experimentá-los logo à noite, se quiseres. A Stella, o Logan e os miúdos vêm cá. O David disse-me que temos um jantar de boas-vindas.

- Oh, mas deves estar cansada!

- Cansada? Achas que tenho oitenta anos, ou quê? Acabo de voltar de férias.

- Lua-de-mel - corrigiu Hayley com um sorriso malicioso. - E aposto que não dormiste muito.

- Dormimos até tarde todas as manhãs, espertinha.

- Nesse caso, vamos fazer uma festa. A Lily e eu vamos lá acima tomar banho e pormo-nos bonitas.

- Eu ajudo-te a levar estas coisas todas para cima.

- Obrigada. Roz? - Hayley sentia-se inundada de felicidade. - Estou mesmo contente por estares em casa.

Era tão divertido pôr os brincos novos, vestir Lily com um dos seus bonitos fatinhos novos, perder algum tempo a tratar de si e da filha. Abanou a cabeça só para sentir a forma como o cabelo caía e os brincos baloiçavam

”Pronto”, pensou, ”já não me sinto aborrecida e blah.” Uma vez que estava com um estado de espírito festivo, calçou também os sapatos novos. As sandálias pretas de salto alto e fino eram pouco práticas e desnecessárias. O que fazia com que fossem perfeitas.

- E estavam em saldo - disse a Lily. - De certeza que são mais divertidas do que Prozac ou coisa do género.

Era óptimo usar vestido - vestido curto - e sapatos sexy. Corte de cabelo novo. Batom vermelho.

Deu uma volta em frente do espelho e fez uma pose. Talvez fosse mais a dar para o magricela, mas não podia fazer nada a esse respeito. Mas as roupas caíam-lhe bem, se é que podia dizê-lo. Com o novo corte de cabelo, os brincos novos e os sapatos novos, não estava mal de todo.

- Senhoras e senhores, acho que estou de volta.

Lá em baixo, Harper estava esparramado numa poltrona, bebendo uma cerveja e observando a forma como Mitch tocava na sua mãe - no cabelo, no braço - enquanto contavam alguns episódios da sua viagem a Logan, a Stella e aos miúdos.

Já ouvira a maior parte quando passara em casa durante a tarde. Não estava a prestar atenção. Estava apenas a observar e a pensar que isto era bom, que ainda bem que a mãe encontrara alguém tão obviamente apaixonado por ela.

Estava feliz por ela - e aliviado. Embora a mãe soubesse muito bem tomar conta de si própria, quanto a isso não havia a menor dúvida, era um conforto saber que ela tinha um homem inteligente e capaz ao seu lado.

Depois do que acontecera na última Primavera, se Mitch não tivesse ido viver para a casa, ele próprio o teria feito. E isso era capaz de ser um bocado complicado, com Hayley a viver lá também.

Era mais... confortável, admitiu, para todos, se ele continuasse a viver na casa que era a antiga cocheira. A distância em termos geográficos podia não ser muita, mas psicologicamente era mais do que suficiente.

- Eu disse-lhe que era maluco - continuou Roz, gesticulando com o copo de vinho numa mão e dando uma palmadinha na perna de Mitch com a outra. - Windsurff Em nome de Deus, porque havíamos de querer andar em cima de um pedacinho de madeira com uma vela? Mas ele tinha de experimentar.

- Eu experimentei uma vez. - Stella estava sentada, com os caracóis ruivos soltos sobre os ombros. - Nas férias, na universidade. Foi divertido, depois de lhe apanhar o jeito.

- Foi o que ouvi dizer - murmurou Mitch, fazendo Roz sorrir.

- Ele punha-se em cima da coisa e, dois segundos depois, zás. Água. Punha-se outra vez em cima e eu pensava, esperem, agora é que apanhou o jeito. Zás, água.

- Deram-me uma prancha com defeito - reclamou Mitch com uma cotovelada brincalhona a Roz.

- Claro que sim. - Roz revirou os olhos. - Uma coisa temos de dizer em relação ao nosso Mitchell, é persistente. Nem sei quantas vezes ele se içou da água para cima daquela prancha.

- Seiscentas e cinquenta e duas.

- E tu? - perguntou Logan, grande, forte e rude, sentado ao lado de Stella com uma cerveja na mão.

- Oh, bom, não gosto de me gabar - disse Roz, examinando as unhas.

- Claro que gosta. - Mitch deu um gole do seu refrigerante e esticou as pernas compridas. - Oh, podem crer que gosta.

- Mas gostei muito da experiência.

- Ela simplesmente... - Mitch fez deslizar a mão pelo ar para ilustrar o que queria dizer. - Era como se tivesse nascido em cima duma maldita prancha.

- Nós, os Harpers, temos tendência para ter excelentes capacidades atléticas e um equilíbrio fora do comum.

- Mas ela não gosta de se gabar - observou Mitch, depois ergueu os olhos ao ouvir o som de saltos altos sobre as tábuas do soalho.

Harper fez o mesmo e sentiu tremer os seus fortes alicerces.

Ela estava fantástica. O vestido vermelho curto e os sapatos de salto alto faziam com que parecesse ter pernas intermináveis. O tipo de pernas que um homem era capaz de se imaginar a percorrer durante horas. O cabelo estava muito sexy com aquele corte, e os lábios sensuais e vermelhos.

Ela trazia um bebé ao colo, recordou a si próprio. Não devia estar a pensar no que gostaria de fazer àquela boca e àquele corpo quando ela tinha Lily ao colo. Tinha de ser errado.

Do outro lado da sala, Logan soltou um longo assobio e o rosto de Hayley iluminou-se.

- Olá, linda. Estás mesmo apetitosa. E tu também estás bonita, Hayley. Ao ouvir isto, ela soltou uma das suas gargalhadas roucas e aproximou-se para largar Lily no colo de Logan.

- Só por causa disso, toma lá.

- Queres um pouco de vinho? - ofereceu Roz.

- Para dizer a verdade, apetecia-me mesmo era uma cerveja fresca.

- Eu vou buscar - disse Harper, quase saltando da cadeira, e, antes que ela conseguisse responder, já ia no corredor. Esperava que a viagem até à cozinha voltasse a normalizar a sua tensão arterial.

Ela era uma prima, mais ou menos, recordou a si próprio. E uma empregada. Hóspede da sua mãe. Ela própria era mãe. Todas essas razões implicavam distância. Se as somasse, Hayley estava completamente interdita. Além disso, ela não pensava nele dessa maneira, nem por sombras.

Um homem que se atirasse a uma mulher nestas circunstâncias estava mesmo a pedir para estragar uma boa amizade.

Tirou uma cerveja do frigorífico e, enquanto a servia, ouviu um guinchinho e o som de passos rápidos. Olhou e viu Lily a correr e Hayley atrás dela.

- Ela também quer uma cerveja?

Com uma gargalhada, Hayley pegou em Lily, mas a bebé ficou vermelha e contorceu-se para se libertar.

- Quer ir para ti. Como sempre.

- Linda menina. - Pegou-lhe e atirou-a ao ar. O rostinho irritado ficou imediatamente doce e iluminado por um sorriso. Fingindo-se amuada, Hayley acabou de servir a cerveja.

- Mostra bem onde eu estou nas prioridades dela.

- Tu ficas com a cerveja, eu fico com a miúda.

Lily passou o braço pelo pescoço de Harper e apoiou a cabeça ao rosto dele. Hayley acenou e levantou o copo num brinde.

- É o que parece.

Era maravilhoso ter toda a gente de novo à volta da mesa, toda a família da Harper House, como Hayley pensava neles, sentados juntos, atacando o presunto com mel de David.

Ela sentia falta de ter uma família grande. Enquanto crescera, fora apenas Hayley e o pai. Não que se tivesse sentido privada de alguma coisa, pensou de forma alguma. Ela e o pai eram uma equipa, uma unidade, e ele fora o mais amável, engraçado e carinhoso dos homens que ela conhecera.

Mas sentia falta de refeições assim, uma mesa cheia, montes de vozes até mesmo as discussões e o drama que, na

sua mente, faziam parte de ter uma família grande.

Lily cresceria com isso, porque Roz as recebera de braços abertos. Assim, Lily teria uma vida inteira de refeições como esta, cheias de tios e tias e primos. ”E avós”, pensou, olhando de lado para Roz e Mitch. E quando os outros filhos de Roz, ou o filho de Mitch, os viessem visitar, isso só aumentaria a riqueza da família.

Um dia, os filhos de Roz e Josh, o filho de Mitch, casariam também. Provavelmente teriam um rebanho de filhos entre os quatro.

Olhou para Harper e fez um esforço consciente para ignorar a ligeira dor que sentira ao pensar nele casado, a fazer bebés com alguma mulher cujo rosto não conseguia imaginar.

Claro que seria linda, isso era um dado adquirido. Provavelmente loura, voluptuosa e de sangue azul. A cabra.

Quem quer que fosse, independentemente do seu aspecto ou maneira de ser, Hayley estava decidida a fazer amizade com ela. Nem que isso a matasse.

- Passa-se alguma coisa com as batatas? - murmurou David ao lado dela.

- Hum? Não, estão óptimas.

- Parecia-me que estavas a engoli-las como se fossem um remédio amargo, querida.

- Oh, estava só a pensar numa coisa que vou ter de fazer, mas que não me agrada. A vida está cheia de coisas assim. Mas isso não inclui comer estas batatas. Na verdade, estava a pensar em pedir-te para me mostrares como fazes algumas coisas. Sei cozinhar bastante bem. O meu pai e eu dividíamos as tarefas e safávamo-nos bem com o básico... até com algumas coisas mais elaboradas de vez em quando. Mas a Lily está a crescer acostumada aos teus cozinhados, por isso eu tenho de ser capaz de manter o padrão quando for preciso.

- Hum, uma aprendiza de cozinheira. Para eu moldar à minha imagem e semelhança. Adorava.

Quando Lily começou a atirar delicadamente para o chão os pedacinhos de comida que ainda lhe restavam no prato, Hayley levantou-se. -Adivinhem quem já acabou?

- Gavin, porque é que tu e o Luke não levam a Lily lá para fora para brincar um bocadinho?

- Oh! - Hayley abanou a cabeça ao ouvir a sugestão de Stella. - Não quero que eles tenham de tomar conta dela.

- Nós conseguimos fazer isso - interveio Gavin. - Ela gosta de correr atrás da bola e do disco.

- Bem... - Quase com dez anos, Gavin era alto para a idade. E Luke, que acabara de fazer oito, não lhe ficava muito atrás. Eram capazes de tomar conta de Lily, e já o tinham feito, no relvado do quintal. - Por mim, se não se importarem... ela vai adorar. Mas, quando estiverem fartos dela, tragam-na para dentro.

- E, como recompensa, gelados mais daqui a pouco. O anúncio de David foi recebido com gritos de alegria.

Depois de a hora de brincar acabar e de os gelados estarem devorados, Hayley levou Lily para cima, para a preparar para dormir, e Stella levou os rapazes para a sala que em tempos tinham partilhado para verem televisão.

- A Roz e o Mitch querem falar sobre a Amélia - disse-lhe Stella. - Não sabia se tinhas percebido.

- Não, mas pode ser. Vou para baixo assim que ela adormecer.

- Precisas de ajuda?

- Desta vez não, mas obrigada. Já está com os olhos quase fechados. Era bom ouvir os sons abafados de uma guerra espacial qualquer na televisão da sala e a tagarelice animada dos dois rapazes a comentarem a acção. Sentia falta desses sons desde que Stella casara.

Acomodou Lily para o resto da noite - esperava ela -, verificou o monitor e a luz de presença, depois deixou a porta entreaberta e desceu.

Encontrou os adultos na biblioteca, o local de reunião habitual para as conversas sobre o fantasma. O Sol ainda não se pusera, pelo que a sala estava banhada por uma luz com uma leve tonalidade rosada. Do outro lado dos vidros das janelas, os jardins de Verão exibiam toda a sua plenitude e sumptuosidade, com hastes de alfazema a dançarem sobre lagos de alegrias-do-lar brancas, animadas por pontos de elegantes brincos-de-princesa de um rosa-vivo.

Viu o verde penugento e suave da betónica, o charme das begónias, as corolas invertidas das centáureas, com as suas cabeças castanhas e espinhosas.

Não dera o seu passeio habitual ao final do dia com Lily, recordou, e prometeu a si própria que levaria a filha para um passeio pelos jardins no dia seguinte.

Por hábito, aproximou-se da mesa onde estava o monitor de bebé, ao lado de uma jarra com lírios vermelhos.

Depois de se certificar de que estava ligado, voltou a sua atenção para o resto da sala.

- Agora que estamos todos aqui - começou Mitch -, pensei em começar por vos pôr ao corrente das novidades.

- Não vais partir-me o coração e dizer que andaste a fazer pesquisa durante a lua-de-mel - interveio David.

- O teu coração está em segurança, mas consegui arranjar tempo para discutir várias teorias. O que se passa é que recebi alguns e-mails do nosso contacto em Boston. A descendente da governanta dos Harpers durante o reinado de Reginald e Beatrice.

- Ela descobriu alguma coisa? - Harper preferira sentar-se no chão do que numa das cadeiras.

- Tenho estado a informá-la daquilo que sabemos e disse-lhe o que encontrámos no diário de Beatrice Harper relativamente ao teu bisavô, Harper. Que ele não era filho dela, mas sim de Reginald e da sua amante... que temos de presumir que seria a Amélia. Ela ainda não conseguiu encontrar quaisquer cartas ou diários de Mary Havers, a governanta. Encontrou algumas fotografias e vai mandar-nos cópias.

Hayley olhou para o segundo nível da biblioteca, para a mesa coberta de livros, para o computador portátil de Mitch. E para o quadro ao lado dele, cheio de fotografias, cópias de cartas e entradas de diários.

- Em que é que isso nos ajudará?

- Quanto mais elementos visuais tivermos, melhor - disse ele. - Ela também tem falado com a avó, que já não está muito bem, apesar de ainda ter alguns momentos de lucidez. A avó afirma recordar-se de ouvir a mãe e uma prima, que também trabalhou aqui na época, falarem sobre os seus dias na Harper House. Muita conversa sobre festas e coisas do género. Lembra-se também de a prima falar do jovem patrão, era assim que ela se referia a Reginald Jr. E de dizer que a cegonha ficara rica quando entregara aquele bebé. Lembra-se de ouvir a mãe mandar a prima calar-se, porque, independentemente do dinheiro ensanguentado e das maldições, a criança era inocente. Quando lhe perguntou o que queria dizer, a mãe não quis falar no assunto, excepto para dizer que cumprira o seu dever com a família Harper e teria de viver com isso. Mas que o dia mais feliz da sua vida fora quando saíra por aquela porta pela última vez.

- Ela sabia que o meu avô fora roubado à mãe. - Roz tocou no ombro de Harper. - E, se as recordações desta mulher estão correctas, parece que a Amélia não estava disposta a desistir dele.

- Dinheiro ensanguentado e maldições - repetiu Stella. - Quem é que foi pago e quem é que foi amaldiçoado?

- Deve ter havido um médico ou uma parteira, talvez ambos, junto da Amélia quando ela deu à luz. - Mitch abriu as mãos. - Quase de certeza que o seu silêncio foi comprado. E alguns dos criados da casa podem ter sido também subornados.

- Sei que isso é horrível - disse Hayley. - Mas não se pode chamar a isso dinheiro ensanguentado, pois não? Dinheiro de silêncio faria mais sentido.

- Exactamente - disse-lhe Mitch. - Se houve dinheiro ensanguentado, onde é que está o sangue?

- A morte da Amélia. - Logan inclinou-se para a frente. - Ela assombra esta casa, portanto morreu aqui. Não conseguimos encontrar qualquer registo disso, logo temos de partir do princípio de que a morte dela foi encoberta. E a maneira mais fácil de encobrir seja o que for é com dinheiro.

- Concordo - disse Stella, com um aceno. - Mas como é que ela veio aqui parar? A Beatrice não faz menção à Amélia em nenhum dos seus diários. Nunca menciona a amante de Reginald pelo nome, nem conta que ela tenha vindo à Harper House. Escreve sobre o bebé e sobre os seus sentimentos em relação a Reginald o ter trazido para cá, esperando que ela fingisse que o dera à luz. Não teria ficado igualmente ultrajada e mencionado esse facto, se ele tivesse instalado a Amélia na mesma casa?

- Ele nunca o faria - disse Hayley calmamente. - Por tudo aquilo que descobrimos sobre ele, aposto que nunca traria uma mulher da classe dela, uma mulher que ele considerava apenas uma conveniência, um meio para atingir um fim, para a casa de que tanto se orgulhava. Não quereria que ela estivesse perto do filho dele, do filho que ele estava a fazer passar por legítimo. Seria um lembrete constante.

- Bem visto. - Harper esticou as pernas e cruzou-as ao nível dos tornozelos. - Mas, se partirmos do princípio de que ela morreu aqui, temos de considerar que ela estava aqui.

- Talvez passasse por criada - sugeriu Stella. Gesticulou e a aliança de casamento cintilou sob a luz suave. - Se a Beatrice não a conhecesse, se não soubesse como ela era, a Amélia podia ter conseguido um trabalho na casa para poder estar perto do filho. Ela canta às crianças da casa, está obcecada por todas as crianças daqui, à sua maneira. Não o estaria ainda mais pelo próprio filho?

- É uma possibilidade - comentou Mitch. - Não encontrámos nada sobre ela nos registos do pessoal, mas é uma possibilidade.

- Ou então ela veio cá para tentar levar o filho. - Roz olhou para Stella e depois para Hayley. - Uma mãe, nervosa, desesperada e bastante desequilibrada. De certeza que não enlouqueceu só depois de morrer. A minha credulidade não vai tão longe. Não acham provável que ela tenha vindo aqui e algo tenha corrido terrivelmente mal? Se ela veio cá, temos de pôr a hipótese de ter sido assassinada. Dinheiro ensanguentado para encobrir o crime.

- Então a casa está amaldiçoada. - Harper encolheu os ombros. - E ela assombra-a até quando? Até ser vingada? Ou quê?

- Talvez apenas reconhecida - corrigiu Hayley. - Até que lhe seja feita justiça, suponho. Tu és do sangue dela - disse a Harper. - Talvez seja preciso sangue dos Harper para ela poder descansar.

- Tenho de admitir que parece lógico - disse David, estremecendo. E sinistro.

- Somos um grupo de adultos racionais e estamos aqui sentados a falar de um fantasma - recordou-lhe Stella. - Não pode ser muito mais sinistro do que isto.

- Eu vi-a ontem à noite.

Todos os olhos se voltaram para Hayley.

- E não disseste nada? - perguntou Harper.

- Disse ao David esta manhã - retorquiu ela. - E estou a dizer-vos agora. Não quis falar no assunto em frente dos miúdos.

- Vamos gravar. - Mitch levantou-se e foi buscar o gravador.

- Não foi nada de especial.

- Concordámos na Primavera passada, depois das duas últimas aparições violentas, que tínhamos de registar tudo. - Sentou-se de novo e pousou o gravador na mesa. - Conta-nos.

Falar para um gravador fazia-a sentir-se algo embaraçada, mas Hayley relatou tudo o que acontecera.

- Às vezes ouço-a cantar, mas normalmente, quando vou ver, ela já desapareceu. Sei apenas que lá esteve. Às vezes oiço-a no quarto dos miúdos... no antigo quarto de Gavin e Luke. Às vezes está a chorar. E uma vez pensei...

- Pensaste o quê? - Mitch encorajou-a a continuar.

- Pensei tê-la visto a andar lá fora. Na noite depois de vocês partirem em lua-de-mel, depois da festa de casamento aqui? Acordei... suponho que tinha bebido um pouco mais de vinho do que devia... e doía-me a cabeça. Tomei uma aspirina e fui ver a Lily. Julguei ver alguém pela janela. Havia luar suficiente para distinguir o cabelo louro e o vestido branco. Parecia ir na direcção da antiga cocheira. Mas, quando abri as portadas para ir ao terraço ver melhor, ela já tinha desaparecido.

- Não tínhamos combinado, depois de a mamã finalmente decidir informar-nos que quase morrera afogada na banheira, pôr tudo nos registos?

- perguntou Harper em tom zangado. - Não esperamos uma semana para dar uma notícia dessas.

- Harper - disse Roz secamente. - O que está feito, feito está. Não vale a pena ficares aborrecido.

- Tínhamos combinado...

- Eu não tive a certeza - disse Hayley também irritada, lançando um olhar irado a Harper. - E ainda não tenho. Lá porque pensei ver uma mulher a dirigir-se à tua casa, não quer dizer que fosse um fantasma. Podia provavelmente ser... muito provavelmente... alguém de carne e osso. O que querias que eu fizesse, Harper, que te telefonasse para perguntar se estavas a dar uma queca?

- Por amor de Deus!

- Bom, aí tens. - Satisfeita, acenou com ar decidido. - Não seria a primeira vez que lá tinhas companhia feminina.

- Está bem, está bem. Mas, para vossa informação, nessa noite não tive companhia feminina, pelo menos de carne e osso. Da próxima vez, informa-te.

- Meninos - disse Mitch calmamente, batendo com o lápis no bloco de notas como um professor. - Podes dizer-nos mais alguma coisa sobre aquilo que viste, Hayley?

- Honestamente, foram apenas alguns segundos. Eu estava ali, à espera de que a aspirina fizesse efeito, e vislumbrei um movimento. Vi uma mulher... de cabelo louro ou claro, vestida de branco. O meu primeiro pensamento foi que o Harper tinha tido sorte.

- Oh, por favor - comentou Harper entre dentes.

- Depois pensei na Amélia, mas, quando saí para ver melhor, ela já tinha desaparecido. Só falei nisso agora porque, se era de facto ela e suponho que era, é a segunda vez que a vejo numa semana. E isso é muito, para mim.

- Eras a única mulher na casa durante essa semana - observou Logan. Ela mostra-se mais frequentemente às mulheres.

- Isso faz sentido. - E também fazia com que se sentisse melhor.

- Além disso, foi a noite depois de eu e o Mitch casarmos - disse Roz. Ela pode ter ficado ofendida.

- E é a segunda vez que temos um relato em primeira mão da Amélia a dirigir-se à antiga cocheira. Há qualquer coisa lá - disse Mitch a Harper.

- Ela nunca mo deu a entender. Pelo menos até agora.

- Entretanto, vamos continuar à procura. Achamos que ela devia viver na região, portanto a melhor aposta é que o Reginald a tivesse instalado numa das suas propriedades. - Mitch levantou as mãos. - Ainda estou a investigar esse ângulo.

- Se descobrirmos o nome dela, o nome completo - perguntou Hayley -, conseguirias investigá-la como investigaste a família Harper?

- Seria um ponto de partida.

- Talvez ela nos diga, se encontrarmos a maneira certa de lhe perguntar. Talvez... - Calou-se quando ouviu uma voz a cantar no monitor de bebé. Ela está com a Lily e esta noite apareceu mais cedo do que o costume. Vou lá acima ver se está tudo bem.

- Eu vou contigo - disse Harper, levantando-se.

Hayley não discutiu. Mesmo após mais de um ano, o som daquela voz triste ainda a deixava arrepiada. Tal como era seu hábito, deixara as luzes acesas na sua ala da casa, para não ter de regressar às escuras. A claridade era agora reconfortante, pois o Sol praticamente se pusera e já nem se ouviam os sons de Luke e Gavin a brincarem na sala da televisão.

- Sabes, se te sentes assustada por estares aqui sozinha, podias mudar-te para a outra ala, para perto da minha mãe e do Mitch.

- Era mesmo do que os pombinhos recém-casados precisavam. Eu e uma bebé a servirmos de pau-de-cabeleira. Seja como for, estou bastante habituada. Ela não se calou. - Baixou a voz para um murmúrio. - Cala-se quase sempre antes de eu chegar à porta.

Instintivamente, pegou na mão de Harper enquanto abria a porta, que deixava sempre encostada.

Estava frio, mas ela já estava à espera disso. Mesmo depois de Amélia desaparecer, o frio permanecia durante algum tempo. Mas Lily nunca se sentia incomodada por ele. Viu a pequena nuvem da sua própria respiração quando se sobressaltou com o estalido característico da cadeira de baloiço.

”Esta é nova”, pensou Hayley. ”Oh, céus.”

Amélia estava sentada na cadeira de baloiço com o seu vestido cinzento. Tinha as mãos pousadas no colo e cantava. A sua voz era bonita, amadora mas leve e melodiosa. Reconfortante, como deve ser uma voz que entoa canções de embalar.

Mas, quando virou a cabeça, quando olhou para a porta, Hayley sentiu o sangue tão gelado como o ar do quarto.

Não era um sorriso que via no seu rosto, mas um esgar. Tinha os olhos esbugalhados e orlados de vermelho.

- É isto que eles fazem. É isto que eles dão.

Enquanto falava - pensava - a sua forma começou a desintegrar-se. A carne desintegrou-se até ficar apenas um esqueleto envolto em farrapos. Depois desapareceu completamente.

- Por favor, diz-me que viste aquilo - pediu Hayley com voz trémula. E que ouviste aquilo.

- Sim. - Apertando firmemente a sua mão, puxou Hayley através do quarto até ao berço. - Aqui está menos frio, sentes? Está quente em volta do berço.

- Ela nunca fez nada que assustasse a Lily. Mesmo assim não quero voltar a descer. Sentia-me melhor se ficasse perto dela esta noite. Podes contar-lhes o que aconteceu?

- Posso dormir aqui hoje. Num dos quartos de hóspedes.

- Não é preciso. - Ajeitou melhor o cobertor de Lily. - Nós ficamos bem. Ele puxou-lhe a mão e ela saiu com ele para o corredor.

- Foi a primeira vez, não foi?

- Para mim, de certeza. Vou ter pesadelos.

- Tens a certeza de que ficas bem? - Levou a mão à face dela e passou-lha pela cabeça. Era algo que fazia pela primeira vez. Estavam muito perto, a mão dela na dele, os dedos dele no rosto dela.

Tudo o que ela tinha de fazer era dizer: ”Não. Fica comigo.” E depois? Podia começar algo e estragar tudo o resto.

- Sim. Ela não está propriamente zangada comigo. Não tem razões para isso. Nós ficamos bem, não te preocupes. É melhor desceres e contares-lhes o que aconteceu.

- Se te sentires assustada durante a noite, telefona-me que eu venho logo...

- É bom saber. Obrigada.

Retirou a mão da dele, recuou e entrou no quarto.

Não, Amélia não tinha razões para estar zangada com ela, pensou Hayley. Não tinha namorado, nem marido, nem amante. O único homem que desejava estava-lhe interdito.

- Por isso podes ficar descansada - murmurou. - Parece que vou continuar sozinha durante mais algum tempo.

 

Foi procurá-la no dia seguinte, a meio da manhã. Mas tinha de ser discreto. Conhecia-a suficientemente bem para ter a certeza de que ela o enxotaria se pensasse que ele estava a tentar ajudar, a tentar distraí-la, a tentar dar-lhe algum tipo de apoio.

Hayley Phillips transmitia permanentemente: ”Estou bem, não se preocupem comigo.”

Não que isso tivesse algum mal, pensou Harper. No lugar dela, muitas mulheres não teriam problemas em se aproveitarem da generosidade da mãe, ou pelo menos em tomar essa generosidade como garantida. Mas Hayley não fazia uma coisa nem outra e ele respeitava-a por isso. Conseguia admirar a postura dela - até certo ponto. Mas, muitas vezes, na sua opinião, ela passava o limite e a sua atitude transformava-se numa teimosia obstinada.

Portanto manteve uma atitude casual, mesmo quando teve de espreitar para dentro de duas estufas e por fim dirigir-se ao edifício principal, onde a encontrou a arranjar uma nova mostra de plantas de interior.

Ela vestia um dos aventais dos viveiros por cima de calções pretos e de uma camisola de alças com decote em V O avental estava sujo de terra húmida e o braço dela também. Só o desejo reprimido podia ser responsável pelo facto de ele achar isso terrivelmente sexy.

- Olá, como vai isso?

- Menos mal. Esgotaram-se os arranjos. Uma cliente levou cinco para usar como centros de mesa no almoço da reunião das ex-colegas de escola. E convenci-a a levar a cica para o jardim de Inverno dela.

- Muito bem. Tens estado atarefada, então. Ela olhou por cima do ombro.

- Não muito. A Stella quer fazer mais arranjos, mas está ocupada com o Logan... o que não é tão sexy como parece. Apareceu um trabalho grande e ela fechou-o no escritório para lhe arrancar todos os pormenores sobre o contrato. Da última vez que passei por lá, ele não parecia muito satisfeito.

- Nesse caso, ainda devem demorar um bocado. Ia fazer uns enxertos de borbulha. Dava-me jeito uma ajuda, mas...

- A sério? Posso ajudar-te eu? Posso levar um dos walkie-talkies para o caso de a Ruby ou a Stella precisarem de mim.

- Precisava mesmo de outro par de mãos.

- As minhas vêm já. Espera aí.

Saiu a correr e voltou trinta segundos depois, já sem o avental e a prender um walkie-talkie à cintura. E oferecendo-lhe um rápido vislumbre da pele macia da sua barriga.

- Li umas coisas, mas não me lembro do que é a enxertia de borbulha.

- É um método antigo - disse-lhe ele ao saírem. - Mais usado agora do que antigamente. O que vamos fazer é trabalhar em algumas plantas que estão ao ar livre, as ornamentais. O Verão é a altura certa para o fazer.

O calor atingiu-os como uma parede molhada.

- E não há dúvida de que estamos no Verão.

- Vamos começar com as magnólias. - Pegou num balde de água que tinha deixado à porta. - São sempre populares.

Caminharam sobre a gravilha, entre as estufas, e dirigiram-se aos campos.

- Não houve mais confusão ontem à noite?

- Nem um som depois do espectáculo que vimos. Espero que ela não tencione repetir aquele truque. Muito estranho, não foi?

- Uma coisa é certa, ela sabe como chamar as atenções. Muito bem, aqui estamos. - Parou em frente de uma magnólia alta e cheia de folhas. Primeiro vou cortar alguns rebentos maduros, um ramo desta estação. Queremos rebentos mais ou menos da grossura de um lápis, com borbulhas bem desenvolvidas. Estás a ver este?

Com a mão nua puxou gentilmente um rebento para baixo.

- Muito bem, e depois?

- Corto-o. - Tirou a tesoura de poda do saco das ferramentas. - Estás a ver aqui, onde a base está a começar a ficar lenhosa? É disso que estamos à procura. Não queremos os rebentos verdes, esses ainda são muito fracos.

Depois de o cortar, Harper pôs o rebento no balde de água.

- Temos de o manter molhado. Se secar, não se unirá. Agora apanha tu um. Ela começou a rodear a árvore, mas ele segurou-lhe na mão.

- Não, é melhor trabalharmos no lado do sol.

- Está bem. - Ela mordeu o lábio enquanto procurava e seleccionava.” Que tal este?

- Muito bem. Toma, corta-o.

Ela pegou na tesoura e, uma vez que estava perto, Harper sentiu o perfume dela - sempre leve, com um poder surpreendente - misturado com o perfume do jardim.

- Quantos vais fazer?

- Uma dúzia, mais ou menos. - Enfiou as mãos nos bolsos e inclinou-se para a observar, para a cheirar. E disse a si próprio que estava a sofrer por uma boa causa. - Escolhe outro.

- Não venho muitas vezes para o campo. - Ela escolheu outro rebento, olhou para Harper e este acenou em sinal de aprovação. - É diferente, aqui. Diferente de vender e fazer montras, de falar com os clientes.

- És muito boa nisso.

- Sim, eu sei, mas estar aqui é meter as mãos na massa. A Stella sabe estas coisas todas, e a Roz sabe tudo. Quanto mais soubermos, melhores vendedores somos.

- Eu preferia espetar esse rebento no olho do que ter de estar ao balcão todos os dias.

Ela sorriu, continuando a trabalhar.

- Mas tu és um solitário no fundo, não és? Eu ficava maluca se tivesse de estar o dia inteiro enfiada na estufa de enxertia, como tu. Gosto de ver pessoas e de falar com elas sobre o que procuram e porquê. Também gosto de vender. ”Tome, aqui tem esta coisa bonita e passe para cá o dinheiro.”

Riu-se e pôs outro rebento no balde.

- É por isso que tu e a Roz precisam de alguém como eu, para poderem esconder-se cada um na sua toca e trabalhar com as plantas durante horas, enquanto eu as vendo.

- Parece estar a resultar.

- Uma dúzia, já está. E agora?

- Aqui temos rebentos com raízes que eu tirei de plantas com raízes estimuladas.

- Hum, eu sei o que isso é. - Olhou para o canteiro e para a fila de rebentos direitos e esguios. - Ah... faz-se montes com a terra para estimular o rebentamento das raízes, podam-se no Inverno, depois tiram-se as raízes da... como é que se chama... da planta-mãe e plantam-se.

- Tens andado a ler.

- Gosto de aprender.

- Nota-se. - E era mais um clique para ele. Nunca conhecera uma mulher que lhe interessasse física e emocionalmente e que partilhasse o seu amor pela jardinagem. - Muito bem. Vamos usar uma faca limpa e afiada. Vamos tirar todas as folhas dos rebentos que acabámos de cortar. Mas temos de deixar um pequeno coto, cerca de trinta milímetros do pecíolo... o caule da folha.

- Eu sei o que é um pecíolo - murmurou ela, observando enquanto Harper demonstrava antes de lhe passar a vez.

Ele tinha boas mãos, pensou. Rápidas, hábeis, seguras. Apesar dos calos e pequenos cortes - ou talvez por causa deles - eram umas mãos elegantes e masculinas.

Pensou que aquelas mãos reflectiam perfeitamente quem ele era, aquela combinação de uma educação privilegiada com trabalho duro.

- Cortas a ponta macia de cima, vês? Agora olha. - Desviou-se para ela poder ver e as cabeças de ambos inclinaram-se juntas. - Queremos a primeira borbulha na base, é aí que vamos cortar o caule, um bocadinho abaixo daqui. Vês como tens de fazer um corte inclinado, para baixo, depois outro por cima, atrás da borbulha, em direcção ao primeiro corte. E... - Suavemente, segurando no rebento pelo caule da folha, ergueu-o.

- Eu consigo fazer isso.

- Força. - Enfiou o rebento num saco de plástico e observou-a enquanto ela trabalhava.

Hayley era cuidadosa, o que era um alívio para ele, e Harper ouviu-a murmurar as suas instruções a cada passo.

- Consegui!

- Bom trabalho. Vamos tratar dos outros.

Harper fez sete no tempo que ela demorou a fazer três, mas Hayley não se importou. Ele mostrou-lhe como colocar uma perna de cada lado do rizoma para retirar os rebentos laterais e as folhas dos trinta centímetros inferiores.

Ela sabia que era um truque, e provavelmente arrepender-se-ia mais tarde, mas enganou-se propositadamente na sua primeira tentativa.

- Não, tens de o posicionar entre as pernas, assim.

Como ela esperara, ele aproximou-se, colocou-se por trás dela, encostando o corpo ao seu e envolveu-a com os braços, deixando-a com o coração na garganta quando lhe segurou nos pulsos.

- Inclina-te um bocadinho, com os joelhos soltos. Assim. Agora... - Guiou a mão dela para o corte. - Apenas uma lasca da casca - murmurou, e a sua respiração deslizou sobre a orelha dela. - Vês, ali está o câmbio. Tens de deixar uma borda saliente na base, onde o rebento assentará.

Ele cheirava a árvores, um cheiro quente a terra. O corpo dele era firme, encostado ao seu. Desejou poder virar-se, para ficarem encostados de frente. Bastar-lhe-ia pôr-se em bicos de pés para os lábios de ambos ficarem alinhados.

Era um truque, e ela devia ter vergonha, mas olhou por cima do ombro, para os olhos dele. E sorriu.

- Está melhor assim?

- Sim. Melhor. Muito.

Como ela esperara, ele baixou os olhos e fixou-os nos lábios dela. ”Uma manobra clássica”, pensou Hayley. ”O resultado clássico.”

- Eu... mostro-te como fazer o resto.

Harper pareceu perdido por um momento, como um homem que se esquecera do que estava a fazer. Hayley não podia ter ficado mais deliciada.

Depois, ele recuou e tirou a fita de enxertia do saco de ferramentas.

Fora tão agradável, pensou ela. Corpo a corpo, calor com calor, apenas por alguns segundos. Claro que agora se sentia deveras agitada, mas era bom, era óptimo sentir tudo dentro de si a tremer.

Mas, para se redimir do seu calculismo, portou-se bem a partir daí, desempenhando o papel de estudante ávida enquanto colocava o rebento no tronco de forma que os câmbios encaixassem tão perfeitamente como o corpo dela encaixara no de Harper.

Prendeu o rebento usando a fita à volta e por cima da borbulha, conforme as instruções de Harper.

- Óptimo. Perfeito. - Ele ainda estava um pouco ofegante e limpou as palmas das mãos suadas aos joelhos das calças. - Daqui a seis semanas, talvez dois meses, os rebentos estarão unidos e poderemos tirar a fita. No final do Inverno, cortaremos o topo da planta, logo acima desta borbulha, e durante a Primavera a parte enxertada formará um rebento e pronto.

- É divertido, não é? Como tiramos um bocadinho de uma coisa, um bocadinho de outra, juntamos os dois e criamos mais.

- É esse o plano.

- Um destes dias podes mostrar-me as outras técnicas? Como o que fazes na estufa de enxertia? - Tinha o corpo inclinado e debruçou-se sobre o rizoma seguinte. - A Roz e a Stella mostraram-me algumas das técnicas de propagação. Já fiz alguns canteiros sozinha. Gostava de experimentar alguma coisa na estufa de enxertia.

Sozinho com ela lá dentro, naquele calor húmido. Provavelmente afogar-se-ia numa poça do seu próprio desejo.

- Claro, claro. Quando quiseres.

- Harper? - Ela ajoelhou-se para unir o rebento ao rizoma. - Alguma vez pensaste, quando a tua mãe começou com este negócio, que seria assim?

Ele tinha de se concentrar nas palavras dela, no trabalho, e ignorar - ou pelo menos tentar aguentar - a reacção do seu corpo à proximidade dela.

”É a mãe da Lily”, recordou a si próprio. Uma hóspede na sua casa. Uma empregada. A situação não podia ser mais complicada.

”Céus, meu Deus. Socorro.”

- Harper?

- Desculpa. - Harper enrolou a fita de enxertia. - Pensei. - Erguendo a cabeça, olhou em volta, para lá dos campos e dos canteiros, até às estufas e aos telheiros, e acalmou-se. - Suponho que conseguia imaginá-lo porque era também o que eu desejava. E sei que, quando a minha mãe põe qualquer coisa na cabeça e deita mãos ao trabalho, é para funcionar.

- E se ela não tivesse querido fazer isto? O que estarias a fazer?

- O que faço. Se ela não se tivesse decidido, eu teria começado sozinho. E como era o que eu queria, ela ter-se-ia juntado a mim, portanto acho que teríamos mais ou menos o mesmo resultado.

- Ela é o máximo, não é? É bom que o saibas, que percebas a sorte que tens. Vejo que isso existe entre vocês. Dão o devido valor um ao outro. Espero que eu e a Lily também sejamos assim um dia.

- Parece que já são.

Ela sorriu e avançou para o rizoma seguinte.

- Achas que tu e a Roz são como são um com o outro, um para o outro... e com os teus irmãos também... por não terem tido pai durante a maior parte das vossas vidas? Quer dizer, eu acho que era mais chegada ao meu pai, por sermos só os dois, do que teria sido noutras circunstâncias. Tenho pensado nisso.

- Talvez. - O cabelo dele, um emaranhado negro, caiu-lhe para a cara enquanto trabalhava. Desviou-o, aborrecido por se ter esquecido de trazer um chapéu. - Lembro-me de a ver com o meu pai, lembro-me de como eles eram quando estavam juntos. Era especial. Ela tem algo parecido com o Mitch... mas não é a mesma coisa. Suponho que nunca é a mesma coisa, nem devia ser. Mas eles têm algo bom e especial. É o que ela merece.

- Alguma vez pensas em encontrar alguém? Uma mulher boa e especial?

- Eu? - Ele ergueu bruscamente a cabeça e quase cortou o próprio dedo. - Não. Não. Bom, um dia. Porquê? Tu pensas?

Ouviu-a suspirar enquanto avançava ao longo do canteiro.

- Um dia.

Quando acabaram e depois de ela se ir embora, Harper dirigiu-se ao lago. Esvaziou os bolsos, atirou os óculos de sol para a relva e mergulhou.

Era algo que fazia - com ou sem roupa - desde pequeno. Nada como um mergulho no lago para arrefecer uma pessoa num dia quente de Verão..

Estivera quase a beijá-la. Mais do que isso, admitiu, e mergulhou abaixo da superfície, ao longo das folhas de nenúfar e dos lírios amarelos. Fora mais do que um beijo - mesmo ardente e ávido - aquilo que lhe passara pela cabeça quando pusera as mãos nela.

Tinha de afastar essas ideias - para bem longe - como fazia há já mais de um ano. Ela via-o como um amigo. Deus o ajudasse, provavelmente via-o como uma espécie de irmão.

Portanto tinha de continuar a sufocar esses sentimentos pouco fraternais até apagar todas as faíscas. Ou até ficar completamente consumido.

O melhor que tinha a fazer era voltar a entrar em circulação. Estava a passar demasiado tempo em casa, e muito desse tempo passava-o sozinho. Talvez fosse à cidade esta noite, talvez fizesse uns telefonemas, procurasse uns amigos. Melhor ainda, talvez arranjasse um encontro. Jantar, música. Talvez se insinuasse até à cama de alguma rapariga disposta a isso.

O problema era que não conseguia pensar em nenhuma rapariga com quem quisesse estar, jantar, ouvir música ou ir para a cama. Bastava isso para ilustrar o deplorável estado de coisas, pensou. Ou falta delas.

Não estava simplesmente com disposição para o ritual de acasalamento que acabava entre os lençóis. Não conseguia forçar-se a telefonar a outra mulher, a desempenhar o papel esperado, quando a mulher que ele queria estava a dormir na sua própria casa.

E tão fora do seu alcance como a lua.

Saiu da água e abanou-se como um cachorro. De qualquer maneira, talvez fosse à cidade. Pegou no resto das suas coisas e enfiou-as nos bolsos encharcados. Podia ver se algum dos seus amigos solteiros queria ir ao cinema, comer um churrasco, ir a um bar. Alguma coisa, qualquer coisa, para o distrair por uma noite.

Porém, quando chegou a casa, não estava com disposição de sair. Arranjou desculpas para si próprio: estava demasiado calor, estava cansado demais, não lhe apetecia conduzir. O que lhe apetecia mesmo era um duche frio e uma cerveja gelada. Tinha quase a certeza de que havia uma piza congelada no meio dos restos que David estava sempre a fornecer-lhe. Dava um jogo na televisão.

Não precisava de mais nada.

A não ser de um corpo quente com quilómetros de pernas e pele macia. Lábios voluptuosos e grandes olhos azuis.

Uma vez que isso não constava da ementa, decidiu fechar completamente a água quente do duche.

Ainda tinha o cabelo a pingar e vestia apenas uns velhos calções de ganga quando entrou na cozinha à procura da tal cerveja.

Tal como o resto da casa, era uma cozinha em pequena escala. Ele não precisava de coisas grandes, afinal crescera numa casa grande. E gostava do charme e comodidade das suas pequenas divisões. Pensava na antiga cocheira de dois pisos remodelada como uma espécie de casa de campo. A forma como estava separada da casa principal, rodeada pelos jardins com os seus caminhos curvos, entre a sombra das velhas árvores, dava-lhe uma solidão e privacidade que lhe agradavam. E era suficientemente perto da casa principal para estar por perto caso a mãe precisasse dele.

Se quisesse companhia, bastava-lhe dar um passeio até lá. Caso contrário, ficava em casa. Na maioria das vezes, admitiu, ficava em casa.

Lembrava-se de quando decidira mudar-se e o seu maior plano de decoração era pintar as paredes todas de branco e pronto. Tanto a mãe como David lhe tinham caído em cima.

”E com razão”, admitiu. Gostava das paredes cor de salva prateada na cozinha e dos balcões de pedra cinzenta, da madeira dos armários. Reconhecia que a cor o tinha inspirado a avivar um pouco a casa com peças de porcelana ou cerâmica antiga, especiarias que cresciam no parapeito da janela.

Era um espaço agradável, nem que fosse para estar apenas a comer uma sanduíche encostado ao lava-loiça. Gostava de estar aqui, de olhar para a sua pequena estufa e para a explosão dos jardins de Verão.

As hortênsias este ano eram tão grandes como bolas de futebol reparou, e a infusão de ferro que lhes dera tornara-as de um azul-forte sobrenatural. Talvez cortasse algumas e as pusesse algures dentro de casa.

As borboletas acumulavam-se em volta do jardim que ele e a mãe tinham plantado para as atrair. Uma mancha de asas coloridas deslizou sobre as acolhedoras flores de centáurea, coreópsis da cor do sol, verbena perfumada e os fiáveis ásteres. Em fundo, via a dança elegante dos lírios.

Talvez apanhasse também alguns e os levasse para a casa grande, para o quarto de Lily. Ela gostava de flores, gostava quando ele a levava a passear pelos jardins e a deixava tocar-lhes.

E os seus olhos, azuis como os da mãe, ficavam muito grandes e sérios quando ele recitava os nomes. Como se estivesse a apanhar tudo, a arquivar tudo.

Cristo, quem havia de pensar que ele ficaria tão perdido por uma criança?

Mas era tão encantadora a forma como ela caminhava com a mãozinha na dele, depois parava e estendia os braços, virando o rostinho lindo para cima, esse rostinho cheio de luz porque sabia que ele lhe pegaria ao colo. Depois a forma como passava o braço à volta do pescoço dele ou lhe dava palmadinhas no cabelo. Matava-o, pura e simplesmente.

Era fantástico amar e ser amado dessa forma aberta e sem complicações.

Bebeu um gole de cerveja e abriu o congelador para procurar a piza. Ouviu uma pancada rápida na porta segundos antes de esta se abrir.

- Espero estar a interromper uma orgia - disse David. Entrou e olhou para Harper com a cabeça inclinada para o lado. - O quê, não há strippers?

- Acabaram de sair.

- Vejo que te rasgaram a roupa primeiro.

- Sabes como são as strippers. Queres uma cerveja?

- É tentador, mas não. Estou a poupar-me para um martini Crey Coose excepcional. É a minha noite de folga, vou a Memphis encontrar-me com umas pessoas. Porque não tapas esse peito másculo e vens comigo?

- Está muito calor.

- Eu conduzo, tenho ar-condicionado. Vá lá, calça os teus sapatos de dança. Vamos a uns bares.

Harper apontou a cerveja ao amigo.

- Sempre que vou a uns bares contigo, alguém se atira a mim. E nem sempre são mulheres.

- Destruidor de corações! Eu protejo-te, atiro-me contra quem tente apalpar-te o rabo. O que vais fazer, Harp, ficar aqui a destilar com uma cerveja e macarrão com queijo de pacote?

- macarrão com queijo de pacote é o jantar pronto dos campeões. Mas esta noite optei por uma piza congelada. Além disso, vai dar um jogo na televisão.

- Estás mesmo a partir-me o coração. Harper, és novo, és giro. És hetero, eu sou gay, o que significa que cobrimos todo o terreno disponível e duplicamos as possibilidades de ter sorte. Os dois juntos podemos deixar um rasto de apaixonados por Beale Street. Já não te lembras, Harp? - Segurou-lhe nos ombros e abanou-o num gesto dramático. - Não te lembras como reinámos, em tempos?

Harper riu-se.

- Bons velhos tempos.

- Novos velhos tempos.

- Não te lembras como em tempos nos fartámos de vomitar na sarjeta?

- Oh, doces memórias. - David sentou-se em cima do balcão e deu um gole na cerveja de Harper. - Deveria estar preocupado contigo?

- Não, porquê?

- Quando foi a última vez que desentupiste os canos?

- Por amor de Deus, David. - Bebeu um gole de cerveja.

- Houve uma época em que as jovens núbeis faziam fila até à tua porta. Agora o mais próximo que chegas de foguetes é a fazer pipocas no microondas.

David estava demasiado perto da verdade.

- Estou numa licença sabática. Acho que me fartei - disse, encolhendo os ombros. - Além disso, as coisas têm estado bastante movimentadas e intensas por aqui de há algum tempo para cá. Esta história da Noiva, especialmente descobrir que ela foi minha tetravó. Alguém lhe fez mal, fê-la enlouquecer. Alguém frio e insensível. Não quero continuar a ser insensível.

- Nunca o foste. - Agora mais sério, David-saltou do balcão. - Há quanto tempo somos amigos? Quase desde sempre. Nunca te vi ser insensível com ninguém. Se estás a falar de sexo, és a única pessoa que conheço que fica amigo das namoradas depois de a paixão desaparecer. Não és frio com as pessoas, Harper. Lá porque o Reginald era um filho-da-mãe, ao que parece, isso não significa que tu estejas condenado a sê-lo.

- Eu sei, eu sei. Não estou obcecado com isso, nem nada. Mas resolvi fazer uma pausa. Descontrair um pouco até descobrir o que quero para a próxima fase.

- Se quiseres companhia, posso aceitar a tal cerveja e inventar qualquer coisa consideravelmente menos revoltante do que piza congelada.

- Eu gosto de piza congelada. - E David era mesmo capaz de o fazer, pensou Harper. Abandonaria os seus planos apenas para ficar com ele,


para ser um amigo. - Vai-te embora, está um martini à tua espera. - Deu uma palmada no ombro de David e empurrou-o em direcção à porta. Come, bebe, diverte-te.

- Tenho o telemóvel, se mudares de ideias.

- Obrigado. -Abriu a porta e encostou-se à ombreira. - Mas, enquanto tu estiveres a derreter por Beale Street, eu vou estar aqui sentado à fresca, a ver os Braves trucidarem os Mariners.

- Deplorável, meu filho, simplesmente deplorável.

- E a beber cerveja em roupa interior, algo cuja importância nunca é demais realçar. - Calou-se repentinamente e sentiu um aperto no estômago quando viu Hayley e Lily contornarem uma curva do jardim.

- Ali está uma bonita visão.

- Sim, estão com bom aspecto. - A bebé trazia uma espécie de jardineiras às riscas brancas e cor-de-rosa, com um lacinho rosa no cabelo escuro, como o da mãe. Parecia doce como um chupa-chupa.

E a mamã... calções azuis e curtos, um metro de pernas, descalça. Um top branco reduzido na parte de cima e óculos de sol. Uma espécie de chupa-chupa completamente diferente. Talvez fosse doce, mas era, sem dúvida uma brasa.

Levantou a cerveja para refrescar a garganta e Lily viu-os. Soltou algo entre um guincho e um grito de alegria e, soltando-se de Hayley, correu em direcção à velha cocheira tão depressa quanto as suas perninhas curtas lhe permitiam.

- Mais devagar, batatinha. - David avançou para lhe pegar e atirou-a ao ar. Ela deu-lhe palmadinhas na cara com ambas as mãos, tagarelou e depois estendeu os braços para Harper.

- Como sempre, eu sou comida requentada quando tu estás por perto

- Dá-ma cá. - Harper apoiou-a na anca, e ela agitou as pernas de alegria e fez um sorriso radiante. - Olá, bonita.

Em resposta, ela inclinou a cabeça e encostou-a ao ombro dele.

- Que namoradeira - comentou Hayley quando se aproximou. - Estávamos a ter uma conversa agradável, coisas de raparigas, e assim que vê dois homens bonitos borrifa-se completamente para mim.

- Porque não a deixas com o Harper, não enfias um vestido de festa e vens comigo até Memphis?

-Oh, eu...

- Claro. - Harper manteve um tom cuidadosamente neutro enquanto baloiçava Lily. - Ela pode ficar comigo. Podes trazer aquela coisa portátil e eu deito-a quando ela estiver cansada.
- É muito simpático da tua parte, obrigada, mas tive um dia muito longo. Acho que não estou com coragem para ir até Memphis.

- Velhos e velhas, Lily. - David inclinou-se para lhe dar um beijo. Estou rodeado de velhos e velhas. Sendo assim, estou por minha conta e é melhor meter-me a caminho. Adeus a todos.

- Não me importo de ficar com ela, se quiseres sair um pouco.

- Não. Daqui a nada vou deitá-la e descansar também. Porque não vais tu?

- Está muito calor- disse, decidindo que era a desculpa genérica mais fácil.

- Pois está. E estás a deixá-lo entrar em casa. Anda, Lily.

Mas, quando tentou pegar na bebé, esta esquivou-se e agarrou-se a Harper como uma trepadeira a uma árvore. O som que emitiu era distintamente parecido com pa-pa.

Harper corou e Hayley deu uma gargalhada embaraçada.

- Isso não quer dizer nada. Os sons com P são os mais fáceis de fazer, mais nada. Ela diz pa-pa por tudo e por nada. Anda, Lily.

Desta vez, a bebé apertou os braços à volta do pescoço de Harper e começou a chorar.

- Não queres entrar um bocadinho?

- Não, não - disse ela, agora muito depressa, tropeçando nas palavras.

- Viemos só dar um pequeno passeio, estávamos quase a ir para casa, e ela tem de tomar banho antes de dormir.

- Eu vou com vocês até casa. - Virou a cabeça, beijou a face de Lily e murmurou-lhe ao ouvido até ela começar a rir e se aninhar ao colo dele.

- Ela não pode ter tudo o que quer.

- Tem tempo para aprender isso - disse Harper, fechando a porta.

Hayley tratou do banho e de pôr a filha na cama e distraiu-se com as necessidades de Lily até ela estar a dormir.

Tentou ler, tentou ver televisão. Demasiado inquieta para ambas as coisas, pôs uma cassete de ioga que tinha comprado no centro comercial. Depois desceu para ir buscar bolachas. Pôs música e desligou-a.

À meia-noite, ainda estava nervosa e irrequieta, portanto desistiu e saiu para a varanda, para apanhar o ar quente da noite.

As luzes na velha cocheira estavam acesas. ”A luz do quarto dele”, presumiu. Nunca tinha estado no primeiro andar, aquilo a que ele chamava o sótão. Onde ele dormia. Onde estava provavelmente neste momento, na cama, a ler um livro. Nu.

Nunca devia ter ido para aqueles lados com Lily. Tantos sítios para onde se virar e tinha ido direitinha para a velha cocheira. Tão perdida de amores como a filha.

Céus, quase sentira os joelhos a derreter quando virara a esquina e o vira. Encostado à ombreira da porta, apenas com os velhos calções de ganga. Peito duro, bronzeado, o cabelo húmido todo encaracolado. Aquele sorriso indolente no rosto, enquanto bebia um gole da cerveja.

”Ele estava tão sexy.” Como um anúncio sexy, emoldurado pela porta da casa, rodeado de flores, atraente no calor. Ficara espantada de conseguir dizer alguma coisa com sentido, pois estava totalmente dormente, por dentro e por fora, enquanto ali estivera com ele.

E não tinha nada que se sentir assim por Harper. Isto tinha mesmo de parar. Porque não podiam as coisas voltar a ser como antes? Quando estava grávida, sentia-se confortável junto dele. Mesmo nos primeiros meses depois de Lily nascer, estava à vontade na companhia dele. Quando é que isso começara a mudar?

Não sabia, não conseguia precisar. Só sabia que era assim.

E não podia ser. Lily não era a única que não podia ter tudo o que queria.

 

Hayley sentia-se estranha e desconcentrada no trabalho. Como se a sua pele fosse demasiado pequena, a cabeça demasiado pesada. ”Ioga a mais para uma novata”, concluiu. Demasiado trabalho, poucas horas de sono. Talvez devesse tirar umas breves férias. Tinha alguns dias para gozar e dinheiro suficiente para isso. Podia pegar no carro e voltar a Little Rock, visitar alguns dos velhos amigos e colegas. Exibir a sua Lily.

Mas isso implicava mexer nas poupanças que estava a fazer para levar Lily ao Disneylândia no seu terceiro aniversário. Por outro lado, não gastaria muito dinheiro, pois não? Umas centenas de dólares, e a mudança de cenário talvez lhe fizesse bem.

Limpou a testa com as costas da mão. O ar na estufa parecia demasiado abafado e pesado. Os seus dedos, enquanto tentava fazer os arranjos, pareciam grossos e desajeitados. Não percebia porque lhe tinham impingido este trabalho. Podia ser Stella a fazê-lo, ou Ruby. Ela podia ter ficado no balcão - até um macaco podia fazer o trabalho do balcão nesta altura do ano, pensou irritada.

Devia ter tirado o dia. Afinal, não fazia muita falta. Devia ter ficado em casa, ao fresco, a relaxar para variar. Mas aqui estava ela, a suar e toda suja a enfiar plantas em tigelas porque Stella lhe dissera para o fazer. Ordens, ordens, ordens. Quando é que poderia fazer o que quisesse, quando quisesse?

Olhavam para ela de cima porque não tinha o mesmo sangue, não tinha a mesma educação, não tinha as mesmas raízes aristocráticas que os tornava a todos tão importantes. Mas ela era tão boa como eles. Melhor ainda. Era melhor porque abrira caminho sozinha. Subira do nada porque...

- Eh, eh, estás a partir as raízes dessa orquídea.

- O quê? - Olhou para a planta, consternada, enquanto Stella lha tirava dos dedos moles. - Desculpa. Matei-a? Não sei o que estava a pensar.

- Não faz mal. Pareces perturbada. O que se passa?

- Nada. Não sei. - Estremeceu e corou, envergonhada pelos seus pensamentos. - É o calor que me está a deixar irritadiça, com dor de cabeça. Lamento ainda não ter acabado isto. Parece que não me consigo concentrar.

- Não há problema. De qualquer maneira, vinha com intenções de te dar uma ajuda.

- Eu trato disso. Não percas tempo.

- Hayley, sabes bem como eu gosto de mexer na terra sempre que posso. Toma. - Tirou duas garrafas de água da mala térmica debaixo da bancada e estendeu-lhe uma. - Faz uma pausa.

”O que é que lhe passara pela cabeça há pouco”, pensou Hayley, bebendo um trago de água fresca. Pensamentos desagradáveis e mesquinhos. Não percebia como lhe tinham ocorrido coisas tão más. Não era o que sentia. Mas, por um minuto ou dois, sentira-se assim e agora sentia-se horrível.

- Não sei o que se passa comigo, Stella.

De testa franzida, Stella pousou a mão na testa de Hayley, num gesto clássico de mãe.

- Talvez estejas a chocar uma constipação de Verão.

- Não, acho que estou em baixo. Nem sequer posso dizer que estou deprimida, apenas em baixo. De vez em quando fico assim e não sei porquê. Tenho a bebé mais linda do mundo. Adoro o meu trabalho. Tenho bons amigos.

- Podes ter isso tudo e mesmo assim sentires-te em baixo. - Stella tirou um avental de um cabide e observou Hayley enquanto o colocava. - Há mais de um ano que não sais com um homem.

- Quase dois. - E isso exigia mais um gole de água. - Já pensei nisso. Tive alguns convites. Sabes o filho do sr. Bentley, o Wyatt? Esteve aqui há umas semanas, a comprar um cesto suspenso para o aniversário da mãe, e namoriscou comigo descaradamente. Perguntou-me se queria jantar com ele um destes dias.

- Ele é giro.

- Sim, tem aquele ar sexy de desportista, e eu ainda pensei nisso, mas depois não me apeteceu dar-me a esse trabalho e pus o assunto de lado.

- Parece que me lembro de tu me empurrares pela porta fora depois de eu dizer que não me apetecia dar-me a esse trabalho quando o Logan me convidou para sair pela primeira vez.

- Pois foi. - Hayley sorriu. - Falo demais, é o que é.

Antes de começar a mexer nas plantas, Stella prendeu a massa de cabelo encaracolado num rabo-de-cavalo.

- Talvez estejas apenas um pouco nervosa por entrares novamente no circuito?

- Nunca fiquei nervosa por sair com rapazes. é um dos meus principais talentos. Gosto de sair. E sei que, se eu quisesse, tu ou a Roz ou o David tomariam conta da Lily. - Isso fê-la sentir mais uma pontada de culpa pelos pensamentos rancorosos que se tinham introduzido há pouco na sua mente. - Sei que ela ficaria bem, portanto isso não é desculpa. Mas parece que não consigo persuadir-me a mim própria.

- Talvez ainda não tenhas conhecido ninguém que te faça ter vontade

- Talvez... - Bebeu mais um gole e encheu-se de coragem. - O que se passa, Stella...

Quando o silêncio se prolongou, Stella ergueu os olhos do vaso que estava a compor.

- O que é que se passa?

- Primeiro, tens de prometer, jurar, que não dizes nada a ninguém Nem mesmo ao Logan. Não podes dizer nada.

- Está bem. -Juras por tudo?

- Não vou cuspir na mão, Hayley. Tens a minha palavra.

- Está bem, está bem. - Percorreu o corredor entre as mesas, depois voltou para trás. - O que se passa é que gosto do Harper.

Stella acenou em sinal de encorajamento.

- Claro que sim. Eu também.

- Não! - Frustrada e embaraçada por ter de o dizer em voz alta, Hayley pousou a garrafa de água e escondeu o rosto nas mãos. - Céus!

Demorou um minuto a fazer-se luz.

- Oh! - disse Stella, arregalando os olhos. - Oh, oh! - repetiu, arrastando a sílaba. Depois franziu os lábios. - Oh.

- Se não consegues dizer nada mais interessante, vou ter de te bater.

- Estou a tentar assimilar a informação.

- é uma loucura. Eu sei que é uma loucura. - Hayley baixou as mãos. Sei que não está certo, nem sequer é uma hipótese. Mas... esquece que eu falei nisso. Elimina os últimos minutos.

- Eu não disse que era uma loucura, é apenas inesperado. Quanto a não estar certo, não percebo porquê.

- Ele é filho da Roz. A Roz, a mulher que me recolheu do meio da rua.

- Oh, referes-te a quando apareceste aqui sem um tostão, nua e com uma rara doença debilitante? Foi uma atitude de santa da parte dela acolher-te, vestir-te e dar-te canjinha à boca noite após noite.

- Tenho direito a exagerar quando estou a ser palerma - retorquiu Hayley.

- Mas é verdade que ela me acolheu, deu-me um emprego. Deu-me um lar, a mim e à Lily, e aqui estou eu a imaginar como é que hei-de enfiar-me na cama do seu primogénito.

- Se te sentes atraída pelo Harper...

-Apetece-me morder-lhe o rabo. Apetece-me despejar-lhe mel no corpo todo e lambê-lo, centímetro a centímetro. Apetece-me...

-Já percebi. - Stella ergueu uma mão e pousou a outra no coração. Por favor não me ponhas mais imagens dessas na cabeça. Vamos dizer apenas que te sentes atraída por ele.

- Terrivelmente. E não posso fazer nada a esse respeito porque somos amigos. Vê como as coisas se complicaram com o Ross e a Rachel. Claro que a Monica e o Chandler é outra história, mas...

- Hayley...

- Eu sei que isto não é uma série de televisão - murmurou Hayley enquanto Stella dava uma gargalhada. - Mas sabes como a vida imita a arte? Além do mais, ele não pensa em mim dessa maneira.

- Queres dizer a maneira de lamber mel? O olhar de Hayley desfocou-se.

- Oh, meu Deus, agora fiquei eu com essa imagem na cabeça.

- Bem feita. De qualquer maneira, tens a certeza de que ele não pensa em ti dessa maneira?

- Nunca fez nada, pois não? Não é que lhe tenham faltado oportunidades. E se eu tomasse a iniciativa e ele ficasse, sei lá, horrorizado?

- E se não ficasse?

- Isso podia ser ainda pior. Tínhamos uma sessão de sexo animal e selvagem e depois ficaríamos ambos... - Levantou as mãos e agitou-as no ar. - Oh, meu Deus, íamos pensar no que tínhamos feito e sentir-nos-íamos pouco à vontade um com o outro. E eu tinha de pegar na Lily e mudar-me para a Georgia ou outro sítio qualquer. E a Roz nunca mais me dirigiria a palavra.

- Hayley. - Stella deu-lhe uma palmadinha no ombro. - Isto é apenas a minha impressão, apenas a minha opinião, mas tenho quase a certeza de que a Roz sabe que o Harper já não é virgem.

- Sabes muito bem o que eu quero dizer. É diferente quando ele tem sexo com mulheres que ela não conhece.

- Oh, sim, tenho a certeza de que ela fica perfeitamente encantada por o filho ter sexo com desconhecidas. Desconhecidas para ela, pelo menos acrescentou com uma gargalhada. - E naturalmente que ficaria aterrada com a possibilidade de ele ser íntimo de uma mulher que ela conhece e de quem gosta. Sim, isso seria uma facada no coração.

- É uma espécie de traição.

- Não é nenhuma espécie de traição. Ele é um homem adulto, Hayley e as escolhas que faz em termos de relações só a ele dizem respeito. A Roz seria a primeira a dizê-lo e a primeira, de certeza, a dizer-te que não quer ser um dos ângulos deste triângulo que tu estás a formar.

- Bom, talvez, mas...

- Talvez, talvez, mas, mas... - Stella agitou a mão com tal entusiasmo que Hayley teve de se baixar. - Se estás interessada no Harper, devias demonstrá-lo, ver o que acontece. Além disso, eu acho que ele tem um fraquinho por ti desde o princípio.

- Não tem nada.

Stella encolheu os ombros.

- É apenas a minha impressão, a minha opinião.

- A sério? - O salto que o seu coração deu quando pensou nisso era ao mesmo tempo doloroso e doce. - Não sei. Acho que, se ele tem um fraquinho por alguém, é pela Lily. Mas posso pensar em dar-lhe um empurrãozinho e ver o que acontece.

- Pensamento positivo. Agora vamos tratar destes arranjos.

- Stella. - Hayley enfiou um dedo na terra. - Jura que não vais dizer nada disto à Roz.

- Oh, por amor de Deus! - Stella estendeu a mão e, imitando o ritus sagrado que vira os filhos fazer, cuspiu na palma.

Quando Stella lhe estendeu a mão, Hayley olhou para ela e disse:

- Blaaargh!

Sentiu-se melhor depois. Saber que mais alguém sabia o que ela pensava e sentia tirava-lhe um peso de cima. Principalmente quando esse alguém era Stella. Que não ficara chocada, recordou Hayley a si própria. Surpreendida sim, mas não chocada, o que era bom.

Tal como era bom tirar um ou dois dias para pensar nisso. Na verdade, estava a pensar no assunto, meio distraída, quando se esticou no sofá da sala depois de deitar Lily, para descontrair com um pouco de televisão.

Distraidamente, saltou de canal em canal enquanto pensava como era bom não ter nada que fazer durante uma hora. No entanto, repetições, reposições e mais uma chachada de Verão não era o que lhe apetecia para uma hora de descontracção, decidiu.

Mudou para um velho filme a preto-e-branco, algo que não reconheceu. Parecia um drama romântico, daqueles em que as pessoas usavam roupas maravilhosas e iam dançar todas as noites em clubes elegantes com orquestras e cantoras voluptuosas.

Toda a gente bebia highballs.

”Porque lhe chamarão highballs?”, pensou, bocejando e aconchegando-se mais. ”Porque os copos eram altos, sim, mas porquê balls?” Tinha de investigar quando se lembrasse.

Como seria usar um daqueles vestidos fabulosos e deslizar por uma pista de dança rodeada por uma decoração Art Deco, tudo a cintilar? Ele vestiria um smoking, claro. Apostava que Harper ficaria de morrer num smoking.

E se ambos tivessem ido com outra pessoa, mas depois se vissem? Através de toda a seda e de todo o brilho, os seus olhos encontravam-se. E eles sabiam.

Dançariam, e tudo o resto desapareceria. Era assim nos filmes a preto-e-branco. Não era preciso ser complicado; tudo o que os separasse podia ser vencido ou ultrapassado. E depois tudo se desvaneceria lentamente excepto eles, juntos, enquanto a música final subia num crescendo.

E nessa altura estariam nos braços um do outro, o rosto dela erguido para o dele enquanto os lábios de ambos se encontravam num beijo perfeito de cinema. Aquele tipo de beijo que se sentia até à planta dos pés, o tipo de beijo que significava que se amariam para sempre.

Um beijo muito, muito suave, muito terno, enquanto a mão dele acariciava o cabelo dela, e depois mais profundo, mais quente, quando os braços dela se fechavam à volta do pescoço dele. E ela se punha em bicos de pés, para apoiar o corpo no dele.

Linhas, ângulos, curvas, tudo maravilhosamente encaixado.

E depois, depois de o ecrã ficar negro, as mãos dele percorreriam o corpo dela, tocando-lhe onde vibrava e doía. Acariciando seda e pele, o beijo entrecortado agora por pequenos gemidos.

* Nome de cocktails servidos em copos altos; à letra, ”bolas altas”. (N. da T.)

O sabor desse beijo era tão forte, tão intenso, um sabor que percorria todo o seu sistema, despertando tudo, enchendo tudo.

E tudo o que antes estava frio e lasso, aquecia de novo, porque ela desejava e era desejada.

As velas tremeluziam. Fumo e sombras. Flores perfumavam a sala. Lírios, tinham de ser lírios. As flores que ele lhe trouxera, ousadas, vermelhas e apaixonadas. Os olhos dele, castanho-escuros, de uma profundidade sem fim, diziam-lhe tudo o que ela queria. Que ela era linda e preciosa para ele.

Quando se despissem, o vestido dela cairia numa lagoa de branco cintilante contra o negro do casaco dele. Pele com pele, finalmente. Macia e suave. Poeira de ouro e leite. Os ombros dele sob as mãos dela, as suas costas, para que conseguisse sentir os músculos ficarem tensos enquanto o excitava.

A forma como ele lhe tocava, com tanta avidez, enchia-a de desejo e, quando ele a tomou nos braços - oh -, ela tremia, desejando-o. Ele pousou-a na cama, a grande cama branca com lençóis macios como água, e depois afundou-se ao lado dela.

Os lábios dele roçaram-lhe o pescoço, capturaram-lhe o seio e o desejo intensificou-se, e a dor, aquela dor surda e líquida no ventre dela que”a fazia dizer num gemido o nome dele.

Luz de velas. Chamas na lareira. Flores. Não lírios, mas rosas. As mãos dele eram macias - as mãos de um cavalheiro. Mãos ricas. Ela retesou-se debaixo delas, arqueando as costas, soltando gemidos roucos. Os homens gostavam que as suas prostitutas fizessem barulho. Passou a mão pela erecção dele. Estava pronto, mais do que pronto, pensou. Mas ia provocá-lo um pouco mais. Eram as esposas que se deitavam, passivas, que deixavam os homens fazer o que quisessem, para se despacharem.

Era por isso que eles a procuravam, que precisavam dela. Era por isso que lhe pagavam.

Levantou os ombros do monte de almofadas, de modo que o cabelo dourado caísse para trás. E rebolou com ele, as ancas e os seios voluptuosos para o seduzir, virou-o na cama e deslizou, mordiscando e lambendo o corpo dele, para fazer aquilo que a esposa fria e decorosa nunca faria.

Os gemidos e arquejos dele eram a satisfação dela.

Ele tinha agora as mãos no cabelo dela, puxando e empurrando enquanto ela lhe dava prazer. O corpo dele era elegante e ela conseguia retirar dele algum prazer, mas, mesmo que fosse gordo como um porco, ela tê-lo-ia convencido de que era um deus para ela. Era tão fácil.

Quando o montou, olhando para o seu rosto atraente, viu o desespero e a fome nos olhos dele e sorriu. Recebeu-o dentro dela, rápido e duro, e pensou que nada encaixava tão bem dentro de si como um homem rico.

Hayley saltou do sofá como se tivesse sido disparada por um canhão. Tinha o coração a bater desvairadamente no peito. Sentia os seios pesados como se, oh, céus, como se tivessem sido acariciados. Um formigueiro nos lábios. Em pânico, levou as mãos ao cabelo e quase chorou de alívio quando sentiu que era o seu.

Alguém se riu e ela recuou, com passos inseguros, até embater no sofá e quase cair de novo sobre ele. ”A televisão”, viu, enquanto cruzava os braços sobre o peito num gesto protector. Era só a televisão, um drama sofisticado a preto-e-branco.

Deus do céu, o que lhe acontecera?

Não fora um sonho. Pelo menos, não apenas um sonho. Não podia ter sido.

Saiu a correr da sala para ir ver Lily. A bebé dormia, aninhada com o cão de peluche.

Esforçando-se para manter a calma, desceu as escadas. Mas, quando chegou à biblioteca, hesitou. Mitch estava sentado à mesa da biblioteca, escrevendo no seu computador portátil. Ela não queria incomodar, mas tinha de saber. Tinha de ter a certeza. Esperar até de manhã estava fora de questão.

Entrou.

- Mitch?

- Hum? O quê? Onde? - Ele ergueu o rosto e pestanejou por trás dos óculos. - Olá.

- Desculpe. Estava a trabalhar.

- Só a responder aos e-mails. Precisas de alguma coisa?

- Queria apenas... - Ela não era tímida e não era pudica, mas não sabia bem como havia de contar o que acabara de viver ao marido da sua patroa.

- Hum, será que a Roz está ocupada?

- Posso telefonar lá para cima e perguntar.

- Não quero incomodá-la se... Sim, sim, quero. Não se importa de lhe pedir para descer?

- Está bem. - Ele pegou no telefone e marcou a extensão do quarto. Aconteceu alguma coisa, não foi?

- Sim. Mais ou menos. Talvez. - Para resolver uma das questões, aproximou-se da parede atrás da mesa e estudou as fotografias presas no quadro de trabalho de Mitch.

Olhou para a cópia de uma fotografia de um homem com traje formal, feições fortes, cabelo escuro, olhos frios.

- Este é o Reginald Harper, não é? A primeira?

- Exacto. Roz, podes descer à biblioteca? Está aqui a Hayley. Ela precisa de falar contigo. Está bem. - Desligou. - Ela vem já. Queres alguma coisa... água, café?

Ela abanou a cabeça.

- Não, obrigada. Estou bem, só um pouco assustada. Ah... quando a Stella veio para cá, quando começou a viver aqui, ela tinha sonhos. Foi nessa altura que isto começou realmente, não foi? Quero dizer, antes disso houve... incidentes. Visões. Mas nunca aconteceu nada perigoso... pelo menos de que a Roz tenha conhecimento. Em relação à Noiva, é o que quero dizer.

- Parece que sim. Houve uma espécie de escalada, que pelos vistos começou quando a Stella e os filhos se mudaram para cá.

- E eu cheguei algumas semanas depois. Portanto, ficámos as três a viver aqui, na Harper House. - Ainda sentia a pele gelada. Esfregou os braços nus e desejou ter trazido uma camisola de manga comprida. -- Eu estava grávida, a Stella tinha os rapazes e a Roz, bom... a Roz é da mesma linhagem de sangue.

Ele acenou.

- Continua.

- A Stella tinha esses sonhos. Sonhos intensos, que de alguma maneira lhe eram colocados no subconsciente pela Amélia. Não é uma forma muito científica de explicar, mas...

- Percebo o que queres dizer.

- E quando a Stella e o Logan... - Interrompeu-se quando Roz entrou. Desculpa ter-te arrastado cá para baixo.

- Não faz mal. O que aconteceu?

- Termina primeiro o teu raciocínio - sugeriu Mitch.

- Bom... A Stella e o Logan envolveram-se e a Amélia não gostou. Os sonhos da Stella começaram a ficar mais perturbadores, mais nítidos, houve incidentes violentos que culminaram naquela noite em que ela nos impediu de entrar no quarto dos rapazes... na primeira noite em que o Mitch cá esteve.

- Nunca me esquecerei.

- Ela disse-nos como se chamava nessa noite - comentou Roz. - A Stella conseguiu chegar até ela e ela deu-nos o seu primeiro nome.

- Sim. Não notam que, desde então, ela praticamente nunca mais incomodou a Stella? Ela teria falado nisso se continuasse a ter sonhos ou se lhe acontecesse alguma coisa directamente.

- O foco foi transferido para a Roz - disse Mitch.

- Sim. - Satisfeita por ver que pareciam estar a seguir a mesma linha de raciocínio, Hayley acenou. - E foi ainda mais intenso, certo? Como sonhar acordada, Roz?

- Sim, e houve uma escalada do comportamento violento.

- Quanto mais te aproximavas do Mitch, mais louca ela ficava. Esse é o tipo de coisa que a irrita. Quase te matou. Veio em teu socorro, por assim dizer, quando estavas com problemas, na hora da verdade, mas antes disso atacou-te. Mas, desde então, desde que tu e o Mitch ficaram noivos e casaram, ela afastou-se.

-Aparentemente, pelo menos por enquanto - Roz aproximou-se e passou a mão pelo braço de Hayley. - Está a começar a virar-se para ti agora, não está?

- Acho que sim. Acho que o facto de estarmos as três na casa, tu, eu e a Stella, talvez a tenha levado a mudar de comportamento. - Olhou para Mitch e levantou as mãos. - Não sei como hei-de explicar, exactamente, mas foi nessa altura que as coisas começaram a acontecer a sério, e parece que estão a ganhar dimensão e velocidade, se me faço entender.

- Estou a perceber o que estás a dizer e é interessante. Vocês as três, três mulheres em fases diferentes da vida, todas sem compromissos quando se juntaram. A vossa ligação estabeleceu uma ligação com ela, podemos dizê-lo. E quando a Stella e depois a Roz se envolveram emocional e romanticamente, isso fez com que o comportamento da Amélia se deteriorasse.

- Minha querida, ela fez-te mal?

- Não. - Hayley pressionou os lábios e olhou de Roz para Mitch. - Sei que temos de contar tudo, para o Mitch acrescentar aos registos. Só não sei como hei-de contar isto. Pelo menos de forma delicada. É um bocadinho embaraçoso.

- Queres que eu saia? - perguntou-lhe Mitch. - Para poderes falar a sós com a Roz?

- Não, que disparate... da minha parte, quero eu dizer. Ela depois teria de lhe contar, de qualquer maneira. - Para se preparar, Hayley respirou fundo. - Muito bem, eu tinha tirado uma hora para relaxar, estava a ver televisão lá em cima, na sala. Estava a dar um filme antigo e eu comecei a fantasiar, suponho. A roupa fabulosa e a iluminação perfeita, os clubes elegantes onde as pessoas iam dançar. Estava a imaginar como seria estar muito bem vestida e encontrar alguém.

Calou-se por um instante. Não precisava de dizer que esse alguém era Harper. Isso não era relevante.

- Seja como for, nós dançávamos, apaixonávamo-nos e dávamos aquele grande beijo cinematográfico, sabem ao que me refiro?

Roz sorriu.

- Claro que sim.

- Bom, nessa altura acho que estava meio a dormitar e comecei a pensar: o que acontecerá depois do fim do filme? A pensar em sexo, suponho

- disse, e pigarreou. - Uma fantasia inocente: velas e flores e uma grande cama branca, estar apaixonada. Fazer amor. - Baixou a cabeça e escondeu o rosto nas mãos. - Isto é terrivelmente embaraçoso.

- Não sejas palerma. Se uma rapariga saudável como tu não pensasse em sexo é que eu ficaria preocupada. - Roz segurou-lhe no ombro e abanou-a carinhosamente.

- Estava a ser agradável, romântico e excitante. Depois, mudou. Ou eu mudei. E era calculista. Estava a pensar em como havia de fazer as coisas. Sentia a pele, e as formas, e o calor. Havia rosas. Sentia o cheiro de rosas, mas na minha fantasia eu tinha lírios, e agora eram rosas e uma lareira. E as mãos dele eram diferentes... macias e suaves. Ricas, foi o que pensei. E pensei que a mulher dele não faria o que eu fazia e que era por isso que ele me procurava. E me pagava. E senti o meu cabelo e vi-o. Comprido, louro e ondulado. Vi-o quando me caiu sobre o rosto, não como se estivesse a observar, mas como se estivesse lá. Era eu. E vi-o. O rosto dele.

Virou-se para o quadro e apontou para Reginald.

- O rosto dele. Ele estava dentro de mim e vi o rosto dele. Respirou fundo mais uma vez.

- E pronto.

Depois de um minuto de silêncio, Roz falou.

- Não sei se seria assim tão estranho a tua mente criar uma coisa dessas sozinha, Hayley. Todos passamos muito tempo a pensar nestas pessoas, a tentar encaixar as peças do puzzle. Sabemos que ela era amante dele, sabemos que teve um filho dele, portanto sabemos que eles tinham sexo. E, para ela, podemos presumir ou mesmo especular que era, pelo menos em parte, uma espécie de acordo de negócios.

- Sabes quando o teu corpo sente que tiveste sexo? Fisicamente. Não me refiro à sensação depois de um sonho sexual, mas sim quando estiveste fisicamente com um homem. Posso não estar com ninguém desde que engravidei, mas não me esqueci da sensação. E foi assim que me senti quando acordei, ou quando despertei. Roz, eu senti o cheiro daquelas rosas. Sei qual era a forma do corpo dele.

Teve de respirar fundo e engolir em seco.

- Senti-o dentro de mim. Dentro dela, suponho, mas era como se eu fosse ela enquanto estava a acontecer. Ela estava a gostar de estar com um homem atraente e hábil. Não importaria se fosse feio como o pecado uma desgraça na cama, mas isto era como um bónus. Ser rico era o que interessava... o resto era secundário. Sei-o porque estava dentro da cabeça dela. Ou ela da minha. Não foi imaginação.

- Eu acredito - disse-lhe Mitch.

- Acreditamos - corrigiu Roz. - Tu és de nós a que está mais próxima da idade que ela tinha quando morreu, pelo menos da idade que pensamos que ela tinha. Talvez ela esteja a relacionar-se com isso, contigo, e a tentar chegar até ti para nos explicar como foi para ela.

- É possível. - Mitch inclinou a cadeira para trás e Roz olhou para ele e ergueu as sobrancelhas. - Talvez isto possa dar-nos mais informações sobre ela, sobre o que aconteceu e porquê. O que mais podes dizer-nos sobre ela?

- Bom, acho que ela não tinha grande prazer com o sexo... com o poder, com o controlo, sim, mas não com o resto. Era apenas aquilo que fazia e, a julgar pela... ah, pela reacção dele, ela era boa no que fazia. O corpo dela era muito melhor do que o meu.

Com um sorriso acanhado, ergueu as mãos em frente dos seios, indicando uma mulher bem dotada nessa área.

- E era fria por dentro. Durante o tempo todo, enquanto o faziam, ela estava a pensar no que poderia conseguir dele. Havia um sentimento de desprezo... é o melhor que consigo descrevê-lo... pelas mulheres casadas com homens como ele. E acho que é tudo.

- Dificilmente se pode considerar o seu lado melhor. Ou talvez seja, do ponto de vista dela - disse Mitch. - Controlava a situação a fazer o que escolhera fazer. Jovem, bela, desejada por um homem poderoso e controlando esse homem através do sexo. Interessante.

- Sinistro, é o que é. E se eu alguma vez voltar a ter sexo, gostava que fosse com o meu próprio corpo. Mas, seja como for, sinto-me melhor por ter contado tudo. Acho que vou voltar para cima, talvez fazer um pouco de ioga. Não acredito que ela me incomode enquanto eu tento torcer-me na posição do guerreiro, ou lá o que é. Obrigada por me terem ouvido.

- Quero saber tudo o que acontecer - disse-lhe Roz.

- Está prometido.

Roz esperou até Hayley sair e voltou-se para Mitch.

- Vamos ter de nos preocupar com ela, não vamos?

- Não vamos saltar já para a preocupação. - Ele pegou-lhe na mão. Vamos limitar-nos a estar atentos.

 

Da janela da cozinha de Stella, Hayley conseguia ver os jardins das traseiras, o pátio, o caramanchão, a casa da árvore que Logan e os rapazes tinham construído aninhada nos ramos de um sicómoro.

Viu Logan empurrar Lily num baloiço encarnado pendurado de outro ramo, enquanto os rapazes atiravam uma bola velha para Parker ir buscar.

Era, pensou ela, uma espécie de quadro animado de um fim de tarde de Verão. O tipo de satisfação indolente que só acontece em dias parados de Verão, antes de as crianças serem chamadas para o jantar e de as luzes do alpendre se acenderem. Luzes amarelas para afastar as traças e brilhar num círculo que diz: estamos em casa.

Lembrava-se muito claramente de como era ser criança em Agosto, de adorar o calor, de correr para apanhar cada gota de sol antes de ele se pôr.

Agora, esperava ela, estava a aprender a ser mãe. A estar do outro lado da porta de rede. A ser quem acendia a luz do alpendre.

- Achas que nos habituamos ou ainda olhas para uma cena destas, às vezes, e pensas ”sou a mulher mais feliz do mundo”?

Stella aproximou-se da janela e sorriu.

- As duas coisas. Queres sentar-te no pátio com esta limonada?

- Daqui a pouco. Não quis falar disto no trabalho. Não só por ser o trabalho, mas por pertencer à propriedade Harper. E ela está na propriedade. Não pode vir até aqui.

- A Roz contou-me o que aconteceu. - Stella pousou a mão no ombro de Hayley.

- Eu não lhe disse que era o Harper. Quando estava a fantasiar, era com o Harper. Recuso-me a dizer-lhe que estava a fantasiar com o filho dela todo nu.

- Acho que, até ver, foi uma omissão sensata. Aconteceu mais alguma coisa depois disso?

- Não, nada. E não sei se hei-de querer que aconteça alguma coisa ou que não aconteça nada. - Viu Logan defender a bola roída e molhada que rebolou até ele e atirá-la, lançando o cão e os miúdos numa correria louca enquanto Lily se agitava no baloiço e batia palmas.

- Posso dizer-te uma coisa, se tenho mesmo de participar na vida e na época de alguém, preferia que fosse na tua.

-Julgo ser uma boa amiga, Hayley, mas não te vou deixar ter sexo com o Logan.

Hayley soltou uma gargalhada e deu uma cotovelada a Stella.

- Desmancha-prazeres. Embora não fosse isso que eu queria dizer, aposto que... uau!

O sorriso de Stella era indolente como o de um gato.

- E apostas bem.

- Bom, seja como for, estava apenas a pensar como seria ter alguém tão louco por mim como o Logan é por ti. Se juntares a isso dois filhos fantásticos e uma casa linda que construíram juntos, quem é que precisa de fantasias?

- Um dia também encontrarás aquilo que procuras.

- Oiçam bem, quem me ouvir há-de pensar que sou a enteada rejeitada. Não sei o que se passa comigo ultimamente. - Encolheu os ombros como se quisesse libertar-se de um peso. - Estou sempre a dar comigo cheia de pena de mim própria. Não é coisa minha, Stella. Sou feliz. E, mesmo quando não sou, procuro uma maneira de ficar. Não sou pessoa de cismar e de me queixar. Quase nada, pelo menos.

- Eu sei que não és.

- Talvez tenha uma paixoneta pelo Harper, mas um bocadinho de frustração não é suficiente para me deitar abaixo. Da próxima vez que me ouvires a lamentar a minha sorte, dá-me uma palmada.

- Claro. Para que servem os amigos?

E estava a ser sincera. Não era o tipo de pessoa que se senta pelos cantos a enumerar as coisas negativas da sua vida para ver se ultrapassam as positivas. Se alguma coisa estava errada ou se faltava alguma coisa, ela agia. Resolvia o problema e seguia em frente. Ou, se o problema não pudesse ser resolvido, encontrava a melhor forma de viver com ele.

Quando a mãe a deixara, ficara triste, assustada e magoada. Mas não havia nada que pudesse fazer para a trazer de volta. Portanto, passara sem ela - e saíra-se bastante bem, pensou Hayley”enquanto conduzia de regresso à Harper House.

Aprendera a contribuir para construir um lar e ela e o pai tinham tido uma boa vida. Eram felizes, ela era amada. E era útil.

Saíra-se bem na escola. Conseguira um emprego para ajudar nas despesas. Sabia trabalhar e sabia apreciar o trabalho. Gostava de aprender e de vender coisas que deixavam as pessoas felizes.

Se tivesse ficado em Little Rock, na livraria, teria chegado a gerente. E tê-lo-ia merecido.

Depois o pai morrera. Isso abrira uma brecha nas fundações da sua vida e abalara-a como nada conseguira abalá-la antes ou depois. Ele era a rocha dela, e ela a dele. Depois de ele morrer, nada parecia firme ou seguro e a sua dor era constante.

Voltara-se para um amigo - na verdade, era tudo o que ele era, admitiu ao entrar no caminho de acesso à Harper House. Um bom rapaz, um conforto.

Lily era o resultado disso e não se envergonhava. Talvez conforto não fosse amor, mas era um acto positivo, um gesto generoso. Como podia ter recompensado essa bondade forçando o rapaz a casar com ela ou impondo-lhe essa responsabilidade quando ele já seguira o seu caminho na altura em que ela se apercebera de que estava grávida?

Não se afundara na depressão - quase nada. Não amaldiçoara Deus ou os homens por muito tempo. Aceitara a responsabilidade das suas acções, como fora ensinada a fazer, e tomara a decisão mais correcta para ela.

Ficar com o bebé e criá-lo sozinha.

No entanto, as coisas não tinham corrido bem como ela imaginara, pensou com um sorriso enquanto estacionava. Little Rock, a livraria, a casa que partilhara com o pai, deixaram de ser as suas zonas de conforto quando a barriga começou a crescer. Quando os olhares e as perguntas e os murmúrios começaram.

Portanto, começar de novo.

Saiu do carro, contornou-o para abrir a porta de trás e tirou Lily da sua cadeirinha.

Vendera tudo o que podia vender, armazenara o resto. Uma mudança positiva, seguir em frente. Tudo o que tinha em mente quando se dirigira para aqui era a possibilidade de Roz lhe dar um emprego. Mas o que encontrara fora uma família.

Mais uma prova, na sua opinião, de que aconteciam coisas boas quando uma pessoa agia, quando trabalhava para isso - e quando se tinha a sorte de encontrar pessoas prontas a dar aos outros uma oportunidade de fazer o seu melhor.

- É isso que nós somos, Lily. - Pegou na bebé ao colo e cobriu-lhe o rosto de beijos. - Somos duas raparigas de sorte.

Pôs o saco das fraldas ao ombro e fechou a porta do carro com a anca. Mas, ao começar a caminhar em direcção à casa, surgiu-lhe uma ideia.

Talvez fosse altura de tentar novamente a sua sorte.

Se ficarmos sentados à espera de que as coisas aconteçam, nunca acontece nada. Mas, se agirmos, podemos falhar ou ser bem sucedidos. Qualquer das opções era melhor do que não fazer nada.

Contornou a casa, com passo lento, só para ver se conseguia persuadir-se a si própria a abandonar a ideia. Mas agora ganhara raízes e não conseguia encontrar nenhuma razão suficientemente boa para as arrancar.

Talvez ele ficasse chocado ou aturdido ou até aterrorizado. Bom, isso seria problema dele. Pelo menos ela saberia alguma coisa e poderia pôr de lado as malditas dúvidas.

Quando contornou a curva do caminho pousou Lily e deixou a filha correr até à porta da frente de Harper.

Talvez ele não estivesse em casa, talvez tivesse saído com alguma mulher. Ou, pior, tivesse alguma mulher em casa. Claro, isso seria mau, mas ela era capaz de lidar com a situação.

Estava na altura de lidar com a situação.

Embora a escuridão da noite ainda não fosse total, as luzes do caminho estavam acesas, aquelas bonitas lanternas verdes de luz suave colocadas na beira do caminho de tijolo para indicar o trajecto. Alguns pirilampos piscavam por cima das flores e desapareciam nas sombras do bosque para lá do relvado.

Aspirou o perfume de alegrias-do-lar, ervilhas-de-cheiro, rosas, e o aroma mais pungente da terra. Todos estes cheiros, bem como os diferentes tons de verde, recordá-la-iam para sempre de Harper e deste lugar.

Alcançou Lily e bateu à porta. Por impulso, recuou e afastou-se para o lado, deixando a filha a bater palmas em frente da porta de Harper, onde a luz do alpendre estava acesa, projectando um círculo de luz amarela.

Quando a porta se abriu, ouviu Lily fazer o seu cumprimento habitual. Algo entre um olá e um grito de prazer.

- Vejam bem o que encontrei à minha porta.

Do ponto vantajoso onde se encontrava, Hayley viu Lily erguer os braços e Harper baixar os dele. Quando lhe pegou, Lily já estava a tagarelar excitadamente na sua língua incompreensível.

- Não me digas? Lembraste-te de passar por aqui para me dizer olá? Talvez seja melhor entrares e comeres uma bolacha, mas se calhar devíamos procurar primeiro a tua mamã.

- Estou aqui. - Rindo, Hayley aproximou-se da porta. - Desculpa, mas foi tão giro. Sabes que ela não consegue passar por aqui sem querer ver-te, por isso bati e deixei-a sozinha.

Estendeu os braços, mas, como era habitual sempre que Harper estava por perto, Lily abanou a cabeça e agarrou-se com força ao seu rapaz preferido.

- Já lhe falei em bolachas. Entra que eu vou ver se encontro alguma para ela.

- Não estás ocupado?

- Não. Estava a pensar em beber uma cerveja e tratar de uns papéis. Não me aborrece nada adiar a parte dos papéis.

- Gosto sempre de vir aqui. - Olhou em volta, enquanto ele levava Lily para a cozinha. - E és muito arrumadinho para um homem heterossexual solteiro.

- Resultado de viver com a minha mãe, acho eu. - Com Lily apoiada na anca, abriu um armário e tirou a caixa de bolachas que tinha sempre à mão para ela. - Como é que isto veio aqui parar, hein?

Abriu a caixa e deixou-a tirar uma.

- Queres uma cerveja?

- Pode ser. Passei por casa da Stella depois do trabalho. Acabei por comer hambúrgueres grelhados, mas não bebi vinho. Não gosto de beber quando vou conduzir e tenho a Lily no carro, por pouco que seja.

Ele ofereceu-lhe uma cerveja e tirou outra para si.

- Como estás? - Quando ela inclinou a cabeça para o lado sem responder, ele encolheu os ombros. -As notícias correm. Soube o que aconteceu. De qualquer maneira, estamos todos envolvidos nisto, portanto as notícias têm mesmo de correr.

- É um bocadinho embaraçoso pensar que as notícias dos meus sonhos eróticos andam a correr por aí.

- Não foi bem assim. Além disso, um bom sonho erótico não tem nada de mal.

- Preferia que o próximo saísse inteiramente da minha cabeça. - Bebeu um gole de cerveja, observando-o. - Pareces-te um pouco com ele, sabes?

- Com quem?

- Com o Reginald, especialmente agora que o vi naquilo a que podemos chamar uma situação mais íntima. Algo mais pessoal do que uma fotografia antiga. Tens o mesmo tom de pele, o mesmo feitio de rosto... de boca. Mas o corpo dele não era tão bom como o teu.

- Oh... bem... - Ele levantou a cerveja e bebeu um grande gole.

- Ele era magro, mas macio. Como as mãos. E era mais velho do que tu, já tinha alguns cabelos grisalhos. E traços duros em torno da boca e dos olhos. Mas, ainda assim, muito atraente, muito viril.

Tirou o copo de sumo e o cubo musical de Lily do saco das fraldas. Com o suborno, conseguiu tirá-la dos braços de Harper e pousá-la no chão.

- Tu tens ombros melhores e não tens uma saliência aqui. - Espetou o dedo na barriga dele.

- Certo.

Lily sentou-se com o seu cubo musical, brincando com ele para mudar de música.

- Reparei nisso tudo - disse Hayley - porque estávamos todos nus e transpirados.

-Aposto que sim.

- Reparei especialmente na semelhança... as parecenças e as diferenças... porque quando comecei a fantasiar... a minha parte da fantasia... foi contigo.

- Foi... o quê?

”Um bocadinho chocado, mas mais confuso do que outra coisa”, observou ela, e continuou:

- Começou contigo, mais ou menos assim.

Pousou a mão na nuca dele e pôs-se em bicos de pés. Parou com os lábios a milímetros dos dele, para saborear o instante em que a respiração fica suspensa e o coração dá um salto. Depois eliminou a distância.

Suave, como imaginara que seria suave. E quente. O cabelo dele era um peso sedoso nas costas da sua mão e era um prazer estar encostada ao corpo dele.

Ele ficara imóvel, à excepção do seu coração, que batia furiosamente contra o dela. Depois Hayley sentiu a mão dele nas suas costas, o punho que fez quando agarrou na camisa dela.

No chão, o cubo musical de Lily era uma cacofonia jubilante de som.

Hayley forçou-se a recuar. ”Um passo de cada vez”, recordou a si própria. Embora tivesse o estômago contraído, esforçou-se por parecer natural quando bebeu um gole de cerveja enquanto ele a fitava com aqueles olhos escuros.

- Então, o que pensas?

Ele levantou a mão e voltou a baixá-la.

- Parece que perdi a capacidade de formar qualquer pensamento racional.

- Quando a recuperares, diz qualquer coisa. Virou-se para arrumar as coisas da bebé.

- Hayley. - Ele estendeu a mão, agarrou-a pela cintura das calças de ganga e puxou-a. - Nem pensar.

O coração dela deu um salto de alegria. Olhou por cima do ombro.

- E isso quer dizer o quê?

- Quer dizer que não podes entrar aqui, beijar-me dessa maneira e sair outra vez. Uma pergunta. Isso foi uma demonstração para me pôr a par do que está a acontecer com a Amélia ou foi outra coisa?

- Tenho andado a pensar em como seria, por isso decidi descobrir.

- Está bem. - Ele virou-a para si, olhou para o lado para se certificar de que Lily ainda estava entretida e encurralou-a contra o balcão.

Ainda tinha as mãos nas ancas dela quando a beijou. Quando a língua avançou para um contacto mais íntimo, essas mãos subiram, passeando-se sobre ela, lançando descargas eléctricas sob a sua pele.

Depois recuou e passou o polegar pelos lábios dela.

- Também tenho andado a pensar em como seria. Acho que ambos sabemos, agora.

- É o que parece - conseguiu ela dizer, ofegante.

Como Lily lhe estava a puxar as calças, Harper pegou-lhe e apoiou-a na anca.

- Suponho que é complicado.

- Sim, é. Muito. Temos de ir com calma, pensar bem em tudo.

- Claro. Ou podemos dizer ”que se lixe” e eu posso passar pelo teu quarto mais logo.

- Eu... eu quero dizer que sim. Estou a pensar que sim - disse ela precipitadamente. - Dentro da minha cabeça estou a gritar sim e não sei porque não estou a dizer sim. É precisamente o que eu quero.

- Mas... - Ele acenou afirmativamente. - Não faz mal. Devíamos esperar algum tempo. Ter a certeza.

- Ter a certeza - repetiu ela, e começou a apanhar rapidamente as coisas de Lily. - Tenho de ir, antes que me esqueça dessa história do tempo e de ter a certeza, porque, bolas, beijas mesmo bem. E tenho de preparar Lily para dormir. Não quero dar cabo das coisas, Harper. Não quero mesmo dar cabo das coisas.

- Não vai acontecer.

- Não pode acontecer. - Pegou em Lily, apesar de a bebé choramingar desesperadamente ao ser arrancada a Harper. - Vemo-nos no trabalho.

- Sim, mas posso acompanhar-te.

- Não. - Quase correu para a porta com Lily a debater-se e a chorar nos seus braços. - Isto já lhe passa.

O choro transformou-se numa birra em grande escala, com pontapés, costas arqueadas e gritos de rebentar os tímpanos.

- Por amor de Deus, Lily, vais vê-lo amanhã. Ele não vai propriamente partir para a guerra.

O saco das fraldas escorregou-lhe do ombro e ficou pendurado como uma âncora no seu braço, enquanto a sua doce bebé se metamorfoseava num demónio saído das profundezas do inferno. Os pequenos sapatos pontapearam-na na anca, na barriga e nas coxas enquanto Hayley se esforçava por transportar nove quilos de fúria sob aquele calor abafado.

- Eu também gostava de ter ficado, sabes - disse, com voz cortante devido à frustração. - Mas não podemos, é assim a vida e vais ter de aguentar.

O suor escorria-lhe para os olhos, desfocando-lhe a visão, e por um momento a grande e velha casa pareceu flutuar como uma miragem. Uma ilusão que nunca alcançaria.

Continuaria a afastar-se, a ficar cada vez mais longe, porque não era real. Não para ela. Ela nunca ali pertencera verdadeiramente. Seria melhor, mais inteligente e mais fácil se fizesse as malas e seguisse a sua vida. A casa e Harper eram o mesmo - coisas que nunca seriam dela. Enquanto aqui estivesse, ela era a ilusão.

- Olá, o que é isto?

Viu Roz através da luz trémula do calor, do lusco-fusco do crepúsculo, e sentiu o seu próprio corpo oscilar enquanto tudo voltava a ficar nítido. Uma vaga de náusea apertou-lhe o estômago. Depois Lily, com o rosto coberto de lágrimas, praticamente atirou-se dos seus braços para os de Roz.

- Ela está zangada comigo - disse Hayley com voz fraca e sentindo as lágrimas a arderem também nos seus olhos quando Lily abraçou Roz e começou a soluçar no ombro dela.

- Não será a última vez. - Roz esfregou as costas de Lily, fazendo instintivamente movimentos de embalar, enquanto estudava o rosto de Hayley. O que a deixou assim?

- Viu o Harper e queria ficar com ele.

- É difícil deixar o nosso rapaz preferido.

- Precisa de um banho e de ir para a cama. Já lá devia estar. Desculpa se te incomodámos. Imagino que os gritos dela se deviam ouvir em Memphis.

- Não me incomodaram. Ela não é o primeiro bebé que já ouvi com uma birra e não será o último.

- Eu levo-a para cima.

- Deixa estar. - Roz virou-se para os degraus que levavam ao primeiro andar. - Vocês esgotaram-se uma à outra. É o que acontece quando os bebés querem uma coisa e a mamã sabe que precisam de outra. Depois acabamos a sentir-nos culpadas porque eles agem como se fosse o fim do mundo e fomos nós que lhes puxámos o tapete. Uma lágrima deslizou-lhe pelo rosto e Hayley limpou-a.

- Detesto desiludi-la.

- Como é que fazer o melhor para ela é desiludi-la? A bebé está cansada

- disse Roz, abrindo a porta do quarto de Lily e acendendo a luz. - E transpirada. Precisa do seu banho, um pijaminha e um pouco de sossego. Vai preparar o banho, eu dispo-a.

- Não é preciso, eu posso...

- Querida, tens de aprender a partilhar.

Uma vez que Roz já se estava a afastar com Lily, agora mais calma, Hayley entrou na casa de banho. Abriu a água, juntando a espuma de que Lily gostava, o pato e as rãs de borracha. E deu por si a combater as lágrimas meia dúzia de vezes.

- Tenho aqui uma bebé toda nua - ouviu Roz dizer. - Ah, pois tenho. E olhem para esta barriguinha, mesmo a pedir umas cócegas.

O riso de Lily fez Hayley engolir mais algumas lágrimas quando Roz entrou.

- Porque não vais também tomar um duche? Estás cheia de calor e deprimida. A Lily e eu vamos divertir-nos um bocadinho na banheira.

- Não quero que tenhas de fazer tudo.

- Já cá estás há tempo suficiente para saberes que eu não me ofereço para fazer uma coisa se não quiser fazê-la. Vai, lava-te, refresca-te.

- Está bem. - Uma vez que temia irromper em lágrimas a qualquer instante, saiu a correr.

Estava mais limpa e mais fresca, embora não muito mais calma, quando voltou e encontrou Roz a vestir um pijama de algodão leve a Lily, que estava quase a dormir.

O quarto cheirava a talco e a sabonete, e a sua bebé estava calma.

- E aqui está a tua mamã que veio dar-te beijinhos de boas-noites. Pegou em Lily e a bebé estendeu os braços para Hayley. - Vem até à sala de estar depois de a deitares.

- Está bem. - Apertou Lily contra si, cheirando-lhe o cabelo, a pele. Obrigada, Roz.

Ficou parada onde estava, segurando a sua menina, deixando o abraço acalmá-la.

- Desculpa a mamã, querida. Dava-te o mundo, se pudesse. O mundo inteirinho e uma caixa de prata para o guardares.

Trocaram beijos e murmúrios enquanto ela pousava Lily no berço com o seu cãozinho de peluche. Deixando a luz de presença acesa, saiu silenciosamente do quarto e percorreu o corredor até à sala.

- Roubei-te umas garrafas de água para nós. - Roz estendeu-lhe uma. Queres?

- Quero. Oh, Roz, sinto-me tão estúpida. Não sei o que faria sem ti.

- Farias tudo bem. Estás melhor comigo, mas o mesmo pode dizer-se de toda a gente. - Roz sentou-se e esticou as pernas. Estava descalça e tinha as unhas dos pés pintadas de cor-de-rosa-claro. - Se continuares a fustigar-te sempre que a tua filha fizer uma birra, vais ficar com nódoas negras permanentes antes de chegares aos trinta.

- Eu sabia que ela estava cansada. Devia tê-la trazido directamente para casa em vez de a deixar visitar o Harper.

- E aposto que ela gostou tanto da visita como ele. Agora está a dormir sossegada no seu berço e não houve danos.

- Não sou uma mãe terrível, pois não?

- Com certeza que não. Aquela bebé é feliz, saudável e amada. Tem uma maneira de ser encantadora. Também sabe o que quer e quando quer, e isso, na minha opinião, é um sinal de personalidade. Tem direito ao seu feitio, não tem, como qualquer outra pessoa?

- Não há dúvida de que tem um feitiozinho... Não sei o que se passa comigo, Roz. - Hayley pousou a garrafa sem beber. - Estou emotiva e rezingona num minuto, eufórica no minuto seguinte. Parece que ando outra vez grávida, se isso não fosse impossível... a menos que a Segunda Vinda esteja para breve.

- Talvez esteja aí a resposta. És jovem e saudável. Tens necessidades e elas não estão a ser satisfeitas. O sexo é importante.

- Talvez, mas não aparece facilmente, ou com segurança, para alguém na minha situação.

- Também sei o que isso é. Sabes que, se estiveres interessada em começar a sair novamente, tens uma data de baby-sitters disponíveis.

- Eu sei.

- Na verdade, Hayley, acho que o sexo pode ser uma das chaves para a Amélia.

- Desculpa, Roz, faria quase qualquer coisa para ajudar, mas tenho de traçar o meu limite em ter sexo com a Amélia. Fantasma, mulher e maluca. Três contras de peso.

- Essa é a Hayley que eu conheço - disse Roz com uma gargalhada. O Mitch e eu estivemos a falar sobre o que te aconteceu na outra noite, a tentar desenvolver as nossas teorias. O sexo era o que a Amélia usava para conseguir o que queria na vida. Era a sua mercadoria. Seja como for, foi essa a nossa conclusão: ela era amante de Reginald. E, obviamente, foi assim que concebeu uma criança.

- Bom, talvez ela o amasse. A Amélia. É possível que ela tenha sido seduzida por ele, que estivesse apaixonada por ele. Na verdade, só temos o ponto de vista da Beatrice, retirado dos seus diários, e ela não era propriamente uma fonte imparcial.

- Bem observado e sim, é possível. - Roz bebeu um gole de água com expressão pensativa. - Mas isso aponta na mesma para o sexo. Mesmo que ela estivesse apaixonada e estivesse a ser usada, tudo se resume a sexo. O Reginald procurou-a para o seu prazer e para os seus objectivos. Para conceber um herdeiro do sexo masculino. Não é muito rebuscado partir do princípio de que a visão do sexo que a Amélia tinha estava longe de ser saudável.

- Sim.

- Depois entramos nós, as três, a vivermos juntas nesta casa. A Stella ouve-a, vê-a... o que não é invulgar, uma vez que havia crianças envolvidas. Mas apareceu o Logan e o que se passou entre eles não foi apenas emocional, mas também sexual. E os episódios começaram a crescer de intensidade. Passamos para mim e para o Mitch, outro contacto sexual, e mais intensificação. Agora tu.

- Eu não ando a ter sexo. - ”Ainda”, pensou. ”Oh, céus.”

- Estás a pensar nisso. Estás a pôr essa hipótese. Tal como a Stella estava. E eu.

- Então... achas que ela está concentrada agora em mim, porque a energia sexual é o íman. E as coisas vão crescer novamente de intensidade.

- Acho que pode ser esse o caso, particularmente se essa energia sexual se misturar com um afecto genuíno. Com amor.

- Se eu me envolvesse com alguém, emocionalmente, sexualmente, ela podia fazer mal a essa pessoa. Ou à Lily. Ela podia...

- Espera aí. - Roz pousou a mão sobre a de Hayley. - Ela nunca fez mal a uma criança. Nunca, em todos estes anos. Não há absolutamente nenhuma razão para pensar que faria algum mal à Lily. Mas, em relação a ti, é”1 outra história.

- Ela podia fazer-me mal, ou pelo menos tentar. Eu percebo. - Hayley soltou um suspiro trémulo. - Portanto tenho de garantir que isso não acontecerá. Ela também pode fazer mal a mais alguém. A ti, ao Mitch, ao David, a qualquer um de nós. E se eu gostasse de alguém, se eu desejasse alguém, ele seria o alvo mais provável, não achas?

- Talvez. Mas sei que não podes viver a tua vida com base em ”talvez”. Tens direito a viver. Hayley, não quero que te sintas obrigada a ficar cá ou a continuar a trabalhar aqui.

- Queres que me vá embora?

- Não, não quero. - Roz apertou-lhe a mão com mais força. - A um nível puramente egoísta, quero-te aqui. És a filha que eu nunca tive, juro por Deus. E aquela criança no outro quarto é uma das luzes mais brilhantes da minha vida. É por causa daquilo que significas para mim que te estou a dizer para ires.

Hayley respirou fundo e levantou-se, aproximando-se da janela. Olhou para os jardins de Verão, tão ousados e brilhantes na obscuridade. E, para lá deles, a velha cocheira com a luz do alpendre acesa.

- A minha mãe deixou-nos. O meu pai e eu não éramos o bastante para a segurar. Ela não nos amava o suficiente. Quando ele morreu, eu nem sequer sabia para onde havia de escrever para lhe dizer. Ela nunca conhecerá a neta. É uma pena para ela, acho eu. Mas não para a Lily. A Lily tem-te a ti. Eu tenho-te a ti. Vou, se me mandares ir. Posso procurar outra casa, outro emprego. E ficarei longe da Harper House o tempo que for preciso. Mas primeiro tens de me dizer uma coisa, e sei que me dirás a verdade porque dizes sempre a verdade.

- Está bem.

Hayley voltou-se e fitou Roz nos olhos.

- Se estivesses no meu lugar, se tivesses de decidir se devias ou não deixar as pessoas que amas... especialmente quando sei que posso ajudar... deixar um sítio que adoras, um trabalho que adoras... E se tivesses de decidir fazer isso porque podia acontecer alguma coisa, podia haver problemas, podias ter de enfrentar dificuldades... O que farias, Roz?

Roz levantou-se.

- Suponho que vais ficar.

- Suponho que sim.

- O David fez tarte de pêssego.

- Oh, meu Deus! Roz estendeu a mão.

- Vamos comer uma grande fatia e eu falo-te sobre a loja de flores que estou a pensar acrescentar para o ano.

Na velha cocheira, Harper assaltou o seu armazenamento de restos. E pensou em Hayley enquanto comia a galinha frita de David.

Ela mudara as regras do jogo e ele não sabia bem o que havia de fazer com a bola. Passara o último ano e meio a reprimir os seus sentimentos e desejos por Hayley e a partir do princípio - pela atitude dela, por todos os malditos sinais - de que ela o via apenas como um amigo. Até mesmo, Deus nos valha, como uma espécie de irmão.

E fizera o seu melhor para desempenhar esse papel.

Agora ela entrava por ali adentro e atirava-se a ele. Beijava-o até o deixar zonzo, ao som do raio da música do cubo de Lily.

Ele nunca mais conseguiria ouvir aquela canção sem ficar com calores.

Que raio havia de fazer agora, convidá-la para sair? Ele era bom a convidar mulheres para sair. Isso era normal, mas não havia nada normal nesta situação, não depois de ele estar convencido de que ela não estava interessada nele dessa maneira. De que ele também não devia estar.

E, além do mais, trabalhavam juntos. Ela vivia na casa principal com a mãe dele, por amor de Deus. E depois havia Lily. Partira-lhe o coração a maneira como ela chorara por ele quando Hayley a levara para casa. E se ele e Hayley ficassem juntos e algo corresse mal? Lily não sofreria também as consequências?

Ele tinha de garantir que isso não aconteceria, ponto final. Tinha de ter cuidado, de fazer as coisas com calma.

O que afastou qualquer ideia que pudesse estar a fermentar no fundo da sua mente de ir ao quarto de Hayley depois de escurecer e deixar a natureza seguir o seu curso.

Arrumou a cozinha, como era seu hábito e subiu para o sótão onde tinha o quarto, uma casa de banho e uma pequena divisão que usava como escritório. Passou uma hora de roda da papelada, forçando a mente a concentrar-se no trabalho sempre que ela se desviava para Hayley.

Ligou a televisão num canal desportivo, pegou num livro e dedicou-se à sua actividade preferida das noites que passava sozinho em casa. Ler no intervalo dos jogos. A dada altura da última parte, com Boston a perder por dois e os Yankees prestes a marcar de novo, adormeceu.

Sonhou que ele e Hayley estavam a fazer amor no estádio de Fenway Park, rebolando nus sobre a relva enquanto o jogo se desenrolava à volta deles. De alguma forma, ele sabia que o batedor tinha uma média de três e dois, mesmo quando Hayley apertou as pernas compridas à sua volta e ele mergulhou nela. Naquele calor, naqueles olhos azuis suaves.

O estrondo acordou-o e a sua mente adormecida ouviu o som alegre do bastão a bater na bola. Estava a pensar nisso quando acordou, sacudindo a cabeça para afastar as teias do sono.

Céus! Esfregou o rosto. Estranho, muito estranho, apesar de combinar duas das suas actividades preferidas, desporto e sexo. Rindo sozinho, afastou o livro.

O segundo estrondo no andar de baixo foi como um tiro, e não era decididamente um sonho.

Pôs-se de pé numa fracção de segundo e, pegando no bastão de basebol que recebera no seu décimo segundo aniversário, correu para baixo.

O seu primeiro pensamento foi que Bryce Clerk, o ex-marido da mãe, tivesse saído da cadeia e estivesse de volta para causar mais problemas. ”Se for, vai arrepender-se amargamente”, pensou Harper, apertando o bastão. Tinha o sangue acelerado enquanto corria na direcção do barulho.

Acendeu as luzes a tempo de ver um prato a voar na sua direcção. O instinto fê-lo girar o bastão. O prato desfez-se, projectando estilhaços.

Depois instalou-se um silêncio total.

A cozinha que ele arrumara antes de subir parecia ter sido invadida por um grupo de vândalos particularmente destrutivos. Pratos partidos cobriam o chão, juntamente com cerveja entornada e os estilhaços das respectivas garrafas. A porta do frigorífico estava aberta, todo o conteúdo espalhado no chão. Os balcões e as paredes estavam cobertos do que parecia ser uma mistura repugnante de ketchup e mostarda.

Não estava mais ninguém presente a não ser ele. E Harper viu a sua própria respiração formar nuvens no frio que ainda se mantinha no ar.

- Filha-da-mãe. - Passou a mão pelo cabelo. - Filha-da-mãe.

Ela usara ketchup - pelo menos esperava que fosse esse condimento benigno e não o sangue que parecia ser - para escrever a sua mensagem na parede.

”Não descansarei.”

Harper olhou para o caos à sua volta.

- E não és a única.

 

Mitch ajeitou os óculos e olhou mais atentamente para as fotografias. Harper fora minucioso, pensou, tirando fotografias de todos os ângulos, grandes planos e panorâmicas gerais.

O rapaz tinha a mão firme e a cabeça fria.

Mas...

- Devias ter-nos chamado quando isto aconteceu.

- Era uma da manhã. De que adiantava? Estão a ver agora.

- Parece que a irritaste. Alguma ideia porquê? - -Não.

Mitch espalhou as fotografias, arrumando-as por ordem, enquanto David espreitava por cima do seu ombro.

- Limpaste esta porcaria toda? - perguntou David a Harper.

- Sim. - O mau humor notava-se na postura tensa dos seus ombros. Parece que a maldita encontrou os pratos todos que havia lá em casa.

- Não se perdeu grande coisa. Eram feios, de qualquer maneira. O que é isto? - David pegou numa das fotografias. - Bollycaos? Que idade tens tu, doze anos? Harper... - Com uma expressão de comiseração, David abanou a cabeça. - Preocupo-me contigo.

- Eu gosto de Bollycaos. Mitch ergueu a mão.

- Independentemente da escolha que pensas...

- Os Bollycaos são bombas de açúcar, gordura e conservantes. - Interrompendo Mitch, David tentou agarrar no pneu de Harper.

- Pára com isso. - Mas o gesto, como fora sua intenção, fez passar algum humor pela muralha da indisposição de Harper.

- Meninas - disse Mitch, calmamente. - Vamos voltar ao assunto. Esta é mais uma alteração de padrão. Ela nunca, que se saiba, entrou na velha cocheira, nem te causou qualquer problema específico. - Olhou para Harper em busca de confirmação.

- Não. - Um olhar para as fotografias que tirara trouxe de volta o choque, a fúria e o tempo que perdera a lidar com a destruição. - E é uma estreia em grande.

- A tua mãe vai ter de saber.

- Sim, sim. - Ainda furioso, Harper aproximou-se da porta das traseiras e olhou para a neblina matinal de testa franzida. Esperara deliberadamente que a mãe saísse de manhã, como era habitual. - Dou valor à vida, podem estar descansados. Mas queria que nós estudássemos o caso primeiro, antes de falarmos com ela. - Olhou para o tecto, imaginando que Hayley devia estar a começar o seu dia. - Com qualquer uma delas.

- Estratégias para proteger as mulherzinhas? - disse David. - Não que não concorde, meu filho, mas a Roz não vai gostar nada disso. - Apontou para o tecto com o polegar. - E ela também não.

- Só não quero que elas percam a cabeça com isto. Se pudéssemos minimizar a coisa... Afinal de contas, foram só pratos e coisas da cozinha.

- Um ataque pessoal, Harper, não a ti, mas à tua propriedade, à tua casa. Foi o que foi e é assim que elas o verão - Mitch ergueu a mão antes que ele conseguisse falar. - Já lidámos com coisas piores, todos nós, e também lidaremos com isto. O mais importante é perceber porque aconteceu.

- Talvez por ela ser louca - retorquiu Harper. - Talvez isso seja um pequeno factor a ter em conta.

- Sai à mamã quando está irritado - interveio David. - Maldisposto e teimoso.

- Já reparei. A Amélia já foi vista a caminhar em direcção à cocheira, no passado. - Mitch encostou-se à mesa. - Vocês próprios a viram, quando eram pequenos. Podemos partir do princípio que, em alguma altura da sua vida, ela esteve lá. Podemos presumir que terá sido depois de Reginald Harper ter trazido o seu filho ilegítimo para aqui, para o fazer passar por herdeiro legítimo.

- E podemos presumir que ela era louca varrida - acrescentou David. Pelo seu aspecto.

- Contudo, tanto quanto sabemos, ela nunca se incomodou com a cocheira desde que o Harper vive lá. Há quanto tempo?

- Merda, sei lá. - Encolheu os ombros e tamborilou com os dedos nas calças de trabalho. - Desde a universidade. Há seis ou sete anos.

- Mas agora entrou lá, e de forma destrutiva. Pode ser louca, mas tem de haver uma razão. Tudo o que fez até agora teve uma raiz e uma razão. Puseste alguma coisa recentemente em casa, alguma coisa nova?

-Ah... não. -A pergunta fê-lo pensar. - Plantas. Faço rotação de plantas, mas já o faço há anos. E as coisas habituais, mercearias, CDs, roupa. Nada de particular ou invulgar.

- Alguém?

- Como?

- Tiveste lá alguém que nunca lá tivesse estado antes? Uma mulher? -Não.

- Isso é muito triste - disse David, passando o braço pelos ombros de Harper. - Estás a perder o jeito?

- O meu jeito continua intacto. Tenho andado ocupado.

- E antes de isto acontecer, o que estavas a fazer?

- Estava lá em cima, no quarto, a ver o jogo e a ler. Adormeci e acordei com o barulho.

Ouviu a vozinha alegre de Lily e fez uma careta.

- Raios, aí vêm elas. Mitch, deixa-me guardar essas fotografias, isto tudo, até...

Calou-se abruptamente, amaldiçoando-se por não ter sido mais rápido, quando Lily entrou a correr, seguida por Hayley. A bebé correu directamente para ele, toda sorrisos, de braços estendidos.

- Ela ouviu a tua voz - disse Hayley, enquanto ele pegava em Lily. - O seu rosto iluminou-se logo.

- O jeito dele não se perdeu - disse David secamente -, pelo menos com bebés.

- Sem dúvida que é a sua maneira preferida de começar o dia. - Hayley dirigiu-se ao frigorífico para ir buscar sumo e, quando se virou com a garrafa numa mão e o copo de Lily na outra, viu as fotografias. - O que é isto?

- Não é nada. Apenas uma aventurazinha nocturna.

- Meu Deus, que confusão! Deste uma festa e não nos convidaste? Depois pestanejou e empalideceu, inclinando-se para a frente. - Oh... Oh! A Amélia. Estás bem? Não estás ferido? - Largou o copo de Lily e virou-se para ele. - Harper, ela fez-te mal?

- Não, não - respondeu ele, acariciando a mão que ela estava a passar pelo seu rosto, pelo seu braço. - Foram só os pratos.

David baixou-se para apanhar o copo de plástico e, quando se levantou, olhou para Mitch de sobrancelhas erguidas e

murmurou, entre dentes:

- Pois.

- Mas olha para as tuas coisas. - Ela pegou numa fotografia. - A tua bonita cozinha. O que é que ela quer? Por que diabo tem de ser tão má?

- Estar morta provavelmente aborrece-a um bocadinho. Acho que a Lily quer o sumo dela.

- Está bem, está bem. Se não é uma coisa é outra... estou a falar da Amélia, não da Lily. Começo a ficar farta. - Serviu o sumo, tapou o copo e estendeu-o a Lily. - Toma, bebé. O que vamos fazer em relação a isto? inquiriu, voltando-se para Mitch.

- Eu sou um espectador inocente - recordou-lhe ele, erguendo as mãos.

- Todos somos, não é? Mas isso não significa nada para ela, pelos vistos. Cabra! - Sentou-se, cruzando os braços.

- Sentes-te melhor? - perguntou David, servindo-lhe café.

- Nem sei o que sinto.

- Foram só pratos - disse Harper, sentando Lily na sua cadeirinha. E, segundo o David, pratos feios.

Hayley sorriu, mesmo contra vontade.

- Não eram assim tão feios. Lamento muito, Harper. - Tocou-lhe na mão. - A sério.

- Lamentas o quê? - perguntou Roz, entrando.

- Aí está a sineta para o segundo round. - David pegou na cafeteira. Acho que vou fazer crepes.

Hayley não conseguia concentrar-se. Entregou-se à rotina dos clientes, registando as suas compras em piloto automático. Quando achou que não aguentava trocar nem mais uma palavra de circunstância com os clientes, dirigiu-se ao escritório de Stella para se pôr à sua disposição.

- Dá-me um trabalho manual qualquer, por favor. Qualquer coisa que me faça suar. Tira-me daquele balcão. Estou à beira de um ataque de nervos e não quero estar com clientes quando isso acontecer.

Stella afastou a cadeira e olhou para Hayley.

- Porque não fazes antes uma pausa?

- Se parar de trabalhar, vou começar a pensar. E se pensar vou ver outra vez aquelas imagens da cozinha do Harper.

- Eu sei que é perturbador, Hayley, mas...

- A culpa é minha.

- Como é que aquilo que aconteceu na cozinha do Harper pode ser

culpa tua? Tiveste alguma coisa a ver com a jarra partida na minha sala?

É que ninguém lá em casa quer assumir a responsabilidade. Neste momento, o culpado parece ser o ”Não sei”.

- O ”Não sei” é o bode expiatório clássico.

- Entre ele e o ”Eu não fui”, nada está em segurança, nada é sagrado. Hayley respirou fundo e deixou-se cair numa cadeira.

- Está bem, vou fazer uma pausa, só alguns minutos. Podes parar também um bocadinho para conversar comigo?

- Claro. - Stella afastou o monitor com a sua folha de cálculo.

- Ontem à noite, quando saí da tua casa, fui a casa do Harper. Decidi entrar em acção, fazer um gesto, dar um passo, percebes? Se ele quer pensar em mim como a prima Hayley, ou a mãe da Lily, ou seja o que for, tudo bem. Mas tinha de lhe dar uma amostra e ver o que ele pensava disso.

-Uau! E...?

- Beijei-o. Ali mesmo na cozinha dele, avancei e pespeguei-lhe um daqueles beijos que querem dizer ”é só para veres o que andas a perder”.

Stella sorriu.

- E como reagiu ele?

- Pode dizer-se que bem. O beijo que me deu em troca foi mais do género ”já que estás a abrir o portão, vou entrar a toda a força”. Ele tem uma boca fantástica. Já imaginava que sim, mas agora que tive umas boas amostras percebo que o subestimei. Consideravelmente.

- Isso é bom, não é? Era o que querias.

- Isto não tem a ver com o que eu quero. Ou talvez tenha. - Pôs-se de pé, mas não tinha espaço para caminhar de um lado para o outro no pequeno escritório. - Talvez seja precisamente essa a questão. Na cozinha dele, Stella. Beijei-o na cozinha dele e, poucas horas depois, ela aparece e destrói tudo. Não é preciso ser um génio para somar dois e dois. Abri o portão, é verdade, mas foi ela que entrou.

- Estás a misturar as metáforas. Não digo que estejas completamente errada - acrescentou, esticando-se na cadeira para abrir o minifrigorífico e tirar uma garrafa de água. - Mas acho que a culpa não é tua. Ela é uma presença volátil, Hayley, e nenhum de nós é responsável pelas acções dela ou pelo que lhe aconteceu.

- Pois não, mas vai lá dizer-lhe isso. Obrigada - disse, quando Stella lhe estendeu uma das garrafas.

- O que estamos a fazer é tentar descobrir e talvez corrigir as coisas da melhor maneira possível, mas temos de continuar a viver as nossas vidas enquanto o fazemos.

- Tem a ver com energia sexual e relacionamentos emocionais. É o que a Roz acha, e eu penso que ela tem razão.

- Falaste-lhe sobre ti e o Harper? Hayley bebeu um longo trago de água.

- Não, não, quero dizer em termos gerais. E não existe isso de ”eu e o Harper”, na realidade. A Roz e o Mitch pensam que é a tensão sexual e as emoções em desenvolvimento que a despertam, pelo menos em parte. Portanto, tenho de me livrar desta tensão e destes sentimentos.

- Mesmo que conseguisses, não estás a levar em consideração a tensão e os sentimentos do Harper.

- Posso tratar disso. É só quando são dirigidos a mim. Caso contrário, ela já o teria atacado. - Apertou a garrafa de plástico, mas controlou-se antes de a água transbordar do gargalo. - Podes apostar que ele já fez muito mais do que beijar uma mulher na cozinha daquela casa, antes da noite passada, e ela nunca se incomodou com isso.

- Mais uma vez, tens razão. Mas, se está relacionado contigo e com o Harper, deve ter algum significado. Talvez seja algo importante. Como eu e o Logan somos importantes um para o outro, ou a Roz e o Mitch.

- Não posso pensar nisso. Pelo menos para já. Só quero livrar-me deste nervoso miudinho. Dá-me qualquer coisa física para fazer.

- Quero todo o stock excedente fora da estufa número um e colocado na parte da frente em exibição. Uma mesa para anuais, outra para perenes, marcadas com um desconto de trinta por cento.

- Vou já tratar disso. Obrigada.

- Não te esqueças de me agradecer quando desmaiares por causa do calor - gritou Stella enquanto ela saía.

Carregou vasos e floreiras para um carrinho e transportou-os até à parte da frente do edifício. Foram precisas quatro viagens. Arrastou as mesas que queria, posicionando-as onde teriam mais probabilidades de chamar a atenção a quem passasse de carro. ”Possíveis compras de impulso”, decidiu.

Ainda tinha de parar de vez em quando para falar com clientes ou lhes dar indicações, mas, na maior parte do tempo, graças aos céus, eles deixaram-na em paz.

O ar estava abafado e pesado, tempo de trovoada. Esperava que trovejasse. Sabia-lhe bem uma boa tempestade. Tinha tudo a ver com o seu estado de espírito.

No entanto, o trabalho manteve-lhe a mente ocupada. Dedicou-se a identificar e a recitar o nome de cada espécime, à medida que os descarregava. Muito em breve, podia ser tão boa como Stella ou Roz a reconhecer as plantas. E estava bastante certa de que, quando acabasse o trabalho, estaria demasiado exausta para pensar fosse no que fosse.

- Hayley, tenho andado à tua procura. - Harper franziu as sobrancelhas quando se aproximou. - Que diabo estás a fazer?

- A trabalhar. - Limpou a testa suada com o braço. - É o que eu faço por aqui.

- Está demasiado calor para este tipo de trabalho e a qualidade do ar hoje é muito baixa. Vai para dentro.

- Não és meu chefe.

- Tecnicamente sou, já que sou co-proprietário do local.

Ela estava um pouco ofegante e o maldito suor não parava de lhe escorrer para os olhos, o que só a deixava mais irritada.

- A Stella disse-me para tratar disto e é o que vou fazer. Ela é a minha chefe directa.

- Nunca ouvi tão grande disparate... - Calou-se, entrou e dirigiu-se ao escritório de Stella.

- Que diabo se passa contigo? Porque mandaste a Hayley andar a carregar pesos de um lado para o outro com este calor?

- Meu Deus, ela ainda está a fazer isso? - Alarmada, afastou a cadeira da secretária. - Não fazia ideia de que ela...

- Dá-me uma garrafa de água. Stella tirou uma do frigorífico.

- Harper, nunca pensei que ela... Mas ele levantou a mão.

- Não digas nada, por favor.

Saiu intempestivamente e dirigiu-se a Hayley. Ela tentou sacudi-lo quando ele lhe agarrou no braço, mas Harper puxou-a para longe da frente do edifício.

- Deixa-me! O que pensas que estás a fazer?

- A levar-te para a sombra, para começar. - Empurrou-a até às traseiras, entre mesas e arbustos, pelo meio das estufas, até chegarem aos bancos junto do lago, que estavam à sombra.

- Senta-te. Bebe.

- Não gosto de ti assim.

- Igualmente. Agora bebe essa água e considera-te uma mulher de sorte por eu não te atirar para o lago para te arrefecer. Não esperava uma coisa destas da Stella - disse, enquanto Hayley esvaziava a garrafa de água. - Mas a verdade é que, apesar de este ser o seu segundo Verão, ela é do Norte. Tu nasceste e foste criada aqui. Sabes muito bem o que este calor pode fazer.

- E sei como lidar com ele. E não culpes a Stella. - Mas tinha de admitir, agora que parara, que estava um pouco tonta e enjoada. Cedendo, deitou-se na relva. - Talvez me tenha excedido. Distraí-me com o que estava a fazer, mais nada. - Virou a cabeça e olhou para ele. - Mas não gosto que mandem em mim, Harper.

- E eu não gosto de mandar em ninguém, mas às vezes tem de ser. Tirou o boné e abanou-o sobre a cara dela para agitar o ar. - E, uma vez que estás da cor de um carro de bombeiros, acho que esta era uma dessas situações.

Era difícil discutir quando lhe estava a saber tão bem esticar-se na relva, e era tão bom ele estar a abaná-la com o velho boné transpirado.

O sol estava atrás dele, filtrado pelas folhas altas das árvores, o que o fazia parecer romântico e atraente, ali sentado na sombra de Verão.

Todo aquele cabelo escuro, um pouco encaracolado nas pontas por causa do calor e da humidade. E os grandes olhos cor de chocolate que eram tão... deliciosos. As maçãs do rosto definidas, a forma sexy dos lábios cheios.

”Era capaz de ficar aqui deitada horas a olhar para ele”, pensou. A ideia era suficientemente pateta para a fazer sorrir.

- Desta vez, estás desculpado. Eu tinha muito em que pensar e o trabalho pesado ajuda-me.

- Tenho uma maneira melhor. - Baixou-se, depois parou e inclinou a cabeça quando ela ergueu a mão entre ambos.

- Estamos no horário de trabalho.

- Pensava que estávamos a fazer uma pausa.

- No ambiente de trabalho. - O trabalho, apesar de exaustivo, cumprira o seu objectivo. Ela tomara a sua decisão. O que interessava não era o que ela queria, mas sim o que estava certo. - Além disso, apercebi-me de que esse tipo de coisa não é boa ideia.

- Que tipo de coisa?

- Tu e eu. - Sentou-se, sacudiu o cabelo e sorriu-lhe. Seria demasiado triste se deixassem de ser amigos. - Gosto de ti, Harper. Significas muito para mim, para a Lily, e quero que continuemos amigos. Se metermos o sexo ao barulho, sim, pode ser bom durante algum tempo, mas depois vai tornar-se constrangedor e embaraçoso.

- Não tem de ser assim.

- Mas é provável que seja. - Tocou-lhe no joelho e acariciou-o. - Ontem, eu estava para aí virada. Gostei de te beijar. Foi agradável.

- Agradável?

- Claro. - Como sabia que a expressão dele, ou melhor, a ausência de expressão significava que ele estava zangado, abriu mais o sorriso. - Beijar um homem bonito é sempre agradável. Mas eu tenho de pensar para lá disso, e o melhor para mim é deixar as coisas como estão.

- As coisas já não são o que eram. Tu mudaste isso.

- Harper, dois beijinhos entre amigos não é assim tão grave. - Deu-lhe uma palmadinha na mão e fez menção de se levantar, mas ele segurou-lhe no pulso.

- Foi mais do que isso.

O mau génio dele estava a vir ao de cima, percebeu Hayley. E, pelas poucas vezes em que o vira irritado, ela sabia que era uma visão impressionante. Mas era melhor ele ficar furioso, pensou rapidamente. Era melhor para ele ficar irritado, ou revoltado, ou mesmo magoado durante algum tempo.

- Harper, eu sei que provavelmente não estás habituado a que as mulheres te digam ”não”, mas não vou ficar aqui a discutir porque não vou para a cama contigo.

- É mais do que isso.

Mais. Essa pequena palavra deixou o seu coração a pulsar.

- Não é. E eu não quero que seja.

- O que é isto, algum jogo? Tu é que me procuraste, tu é que deste o primeiro passo. E agora dizes que foi agradável mas não estás interessada?

- Resumidamente, sim. Tenho de voltar ao trabalho.

A voz dele manteve-se calma e controlada; um sinal perigoso.

- Sei o que sentiste quando te pus as mãos em cima.

- Bom, por amor de Deus, Harper, claro que senti alguma coisa. Não tenho direito a nada há meses.

Os dedos dele apertaram-na mais, depois soltaram-na.

- Então andavas apenas à procura de um amigo com quem dar umas quecas.

Desta vez não foi o seu coração que deu uma volta, mas o seu estômago.

- Fiz algo, por impulso, que agora percebo quê não devia ter feito. Se queres ser grosseiro, estás à vontade.

Sentiu a visão tremida e pareceu-lhe estar a olhar para ele através de uma onda de calor. A raiva dentro dela veio ao de cima, tão violentamente que a sentiu arder na garganta.

- Os homens reduzem sempre tudo ao sexo, a mentiras e traições e a pagar para terem o que querem. E, depois de o conseguirem, a mulher não passa de uma puta para ser usada outra vez ou posta de lado. Os homens é que são as putas, sempre a planearem e a maquinarem o próximo cio.

Os olhos dela tinham mudado. Harper não conseguia dizer exactamente como, mas sabia que não era para Hayley que estava a olhar. O calor da sua raiva transformou-se num medo gelado.

- Hayley...

- É isto que queres, patrão Harper? - Com um sorriso malicioso, levou as mãos aos seios e acariciou-os. - E isto? - Enfiou a mão entre as pernas. Quanto pagas?

Ele segurou-lhe nos ombros e sacudiu-a.

- Hayley, pára com isso.

- Queres que faça de conta que sou uma senhora? Sou muito boa nisso. Suficientemente boa para me usares para procriação.

- Não. - Tinha de ficar calmo, embora sentisse os dedos a tremer. Quero-te exactamente como és. Hayley. - Pegou-lhe no queixo, sem tirar os olhos dos dela. - Estou a falar contigo. Temos coisas para fazer aqui, depois tens de ir buscar a Lily. Não podes atrasar-te a ir buscar a Lily.

- O quê? Eh. - De testa franzida, afastou a mão dele. - Já disse que não quero...

- O que é que me disseste? - Ele deslizou as mãos para os ombros dela, acariciando-os suavemente. - Diz-me o que acabaste de me dizer.

- Disse... disse que fiz algo por impulso. Disse... Oh, meu Deus.-A cor desapareceu-lhe do rosto. - Não. Não queria...

- Lembras-te?

- Não sei. Não me sinto bem. - Levou a mão suada ao estômago e uma vaga de náusea percorreu-a. - Estou maldisposta.

- Muito bem, vou levar-te a casa.

- Não queria dizer aquelas coisas, Harper. Estava perturbada. - Tinha os joelhos a tremer quando ele a ajudou a levantar. - Digo coisas estúpidas quando estou perturbada, mas não estava a falar a sério. Não sei de onde veio aquilo.

- Não faz mal. - O seu tom era sério enquanto a amparava. - Eu sei.

- Não compreendo. - Ela só queria deitar-se outra vez na relva, deitar-se à sombra até a cabeça parar de andar à roda.

- Primeiro deixa-me levar-te a casa, depois falamos.

- Tenho de dizer à Stella...

- Eu digo-lhe. Não trouxe o meu carro. Onde estão as tuas chaves? -Ah... na minha mala, atrás do balcão. Harper, sinto-me mesmo... estranha.

- Entra no carro. - Abriu-lhe a porta e ajudou-a a entrar. - Vou buscar a tua mala.

Stella estava atrás do balcão quando ele entrou apressadamente.

- A mala da Hayley? Vou levá-la a casa.

- Oh, Harper, ela está maldisposta? Lamento muito. Não queria...

- Não é isso. Explico-te mais tarde. - Arrancou a mala da mão de Stella.

- Diz à minha mãe, diz-lhe que venha. Diz-lhe que preciso dela em casa.

Embora Hayley protestasse, assegurando-lhe que se sentia melhor, Harper levou-a praticamente em braços para dentro de casa e virou-se para David.

- Arranja-lhe qualquer coisa. Chá.

- O que se passa com a nossa rapariga?

- Vai buscar chá, David. E o Mitch. Chama o Mitch. Anda cá, deita-te aqui.

- Harper, não estou propriamente doente. É só o excesso de calor ou qualquer coisa. - Mas era difícil discutir com um homem que estava a deitá-la num sofá.

- É a parte do ”qualquer coisa” que me preocupa. Ainda estás pálida. Passou os nós dos dedos pela face dela.

- Talvez por estar tão embaraçada com o que me saiu pela boca fora. Não devia ter dito aquelas coisas, Harper, mesmo que estivesse zangada.

- Não estavas assim tão zangada. - Olhou para o lado quando Mitch entrou na sala.

- O que se passa?

- Tivemos uma... uma situação.

- Então, menina, o que se passa? - Mitch aproximou-se do sofá e agachou-se.

- Foi o calor, mais nada. - A fraqueza estava a passar e conseguiu esboçar um sorriso embaraçado. - Deixou-me um bocadinho maluca.

- Não foi o calor - corrigiu Harper. - E não és tu que estás maluca. A minha mãe vem a caminho. Vamos esperar por ela.

- Não arrancaste a Roz ao trabalho por causa disto, pois não? Queres mesmo que eu fique a sentir-me mal?

- Está sossegada - ordenou Harper.

- Olha, não te censuro por estares zangado comigo, mas não vou ficar aqui deitada e...

- Vais, sim. Só é preciso ir buscar a Lily daqui a duas horas. Um de nós pode ir.

Uma vez que a única resposta dela foi abrir a boca, virou-se quando David entrou na sala com um tabuleiro de chá.

- Podes ir buscar a Lily à ama, não podes?

- Claro que sim.

- Uma vez que ela é minha filha, sou eu que a vou buscar ou decido quem vai - disse Hayley secamente.

- A cor está a regressar - observou Harper. - Bebe o teu chá.

- Não quero chá nenhum.

- Vá lá, querida, é chazinho verde - disse David em tom tranquilizador enquanto pousava o tabuleiro e servia. - Porta-te bem.

- Gostava que parassem todos de me fazer sentir uma idiota. - Fez uma expressão amuada, mas aceitou a chávena. -

- Mas, já que és tu a pedir, David, aceito. - Continuou com cara amuada enquanto bebia o chá, depois praguejou entre dentes quando ouviu Roz a entrar em casa.

- O que se passa? O que aconteceu?

- O Harper está todo alvoraçado - disse Hayley.

- Harper, andas alvoraçado outra vez? - Roz passou-lhe a mão pelo braço e afastou-o para olhar para Hayley. - Quando é que te vais deixar dessas coisas?

- Roz, lamento imenso esta confusão toda - começou Hayley. - Apanhei calor a mais e fiquei um bocadinho tonta, mais nada. Eu compenso amanhã as horas de hoje.

- Oh, óptimo, assim sendo não tenho de te despedir. Alguém pode dizer-me que diabo se está a passar?

- Primeiro, ela estava a arranjar maneira de apanhar uma insolação disse-lhe Harper.

- Excedi-me um bocadinho, o que não é a mesma coisa...

- Não te disse já para estares sossegada? Ela pousou a chávena violentamente.

- Não sei qual é a tua ideia ao falares comigo nesse tom.

O olhar que ele lhe lançou era tão impressionante como o seu tom.

- Uma vez que não está a funcionar, cala-te de uma vez. Eu levei-a para a sombra, dei-lhe água - continuou. - Conversámos durante alguns minutos, depois tivemos uma discussão. E, a meio, já não era ela que estava a falar. Era a Amélia.

- Não. Lá porque eu disse coisas que não devia ter dito...

- Hayley, não eras tu que estavas a dizê-las. Até a voz parecia diferente

- disse a Mitch. - Uma qualidade tonal diferente, por assim dizer. E o sotaque era tipicamente de Memphis. Nem um vestígio do Arkansas. E os seus olhos, não sei como descrevê-los exactamente... Eram mais velhos. Mais frios.

Tudo dentro de Hayley se afundou e estremeceu.

- Não é possível.

- Sabes muito bem que é. Sabes que aconteceu.

- Está bem. - Roz sentou-se ao lado de Hayley. - O que aconteceu, Hayley, do teu ponto de vista?

- Eu não estava a sentir-me muito bem... por causa do calor. Depois o Harper e eu começámos a discutir. Ele irritou-me, só isso, e eu ripostei. Disse coisas. Disse...

Com a mão a tremer, pegou na de Roz.

- Oh, meu Deus, meu Deus... Sentia-me... distante, afastada. Não sei como descrever. E, ao mesmo tempo, estava cheia de raiva. Não sabia o que estava a dizer. Era como se não estivesse a dizer nada. Depois ele disse o meu nome e eu fiquei irritada. Por um segundo, não conseguia lembrar-me. O meu cérebro parecia um pouco entorpecido, como quando acordamos de uma sesta. E estava um bocadinho agoniada.

- Hayley - disse Mitch, meigamente. - Isto já aconteceu antes?

- Não. Não sei. Talvez. - Fechou os olhos por um instante. - Tenho andado com uns pensamentos, uns estados de espírito, que não parecem coisa minha. Muito rezingona, mas pensei que estava apenas a sentir-me stressada. Céus, o que hei-de fazer?

- Mantém a calma - aconselhou Harper. - Havemos de chegar a alguma conclusão.

- É fácil para ti dizê-lo - retorquiu ela. - Não és tu que estás possuído por um fantasma psicopata.

Capítulo 7

 

- Isto faz lembrar os velhos tempos - comentou Stella enquanto se instalava na sala de estar do primeiro andar com Roz e Hayley. E uma garrafa de vinho branco fresco.

- Devia estar a dar o jantar à Lily.

Roz serviu o vinho e tirou uma uva branca da travessa que David preparara.

- Hayley, sabes muito bem que ela está não só a ser alimentada, mas a lidar muito bem com os homens.

- E é bom para o Logan praticar. Estamos a pensar em tentar ter um bebé.

- A sério? - Pela primeira vez em horas, Hayley sentiu uma alegria genuína. - Acho fantástico. Um bebé vosso será lindo, e o Gavin e o Luke iam adorar ter um irmão ou uma irmã.

- Ainda estamos só a falar nisso, mas somos capazes de passar à acção em breve.

- Sentes-te melhor? - perguntou Roz a Hayley.

- Sim, muito. Desculpem ter-me ido abaixo.

-Acho que podemos dar-te um desconto. E algum espaço. Não quiseste falar sobre aquilo a que o Mitch chama o gatilho... a razão da discussão entre ti e o Harper. Precisavas de algum tempo para entrar em pânico e chorar, e já o tiveste.

- E como... Nada esvazia uma sala de homens tão depressa como uma mulher histérica.

- O que, creio eu, era o que tu querias. - Roz ergueu as sobrancelhas e enfiou outra uva na boca. - Não querias falar sobre isto com o Mitch, no motivo da discussão, o que disseste ao Harper... ou melhor, o que a Amélia disse.

Em vez de retribuir o olhar de Roz, Hayley manteve os olhos fixos na travessa, como se a cura para o cancro estivesse escondida entre as uvas brilhantes e as folhas de morangueiro.

- Não vejo que importância possa ter o que eu disse. O importante é que aconteceu. Acho que devíamos todos...

- Chega de disparates. - A voz de Roz era enganadoramente suave. Tudo é importante, todos os pormenores. Não pressionei o Harper em relação a isto, mas podes ter a certeza de que o farei. Preferia saber da tua boca, e todas nós já estivemos intimamente envolvidas com esta coisa. Portanto, engole o orgulho, ou seja lá o que for, e fala.

- Desculpa. Aproveitei-me de ti.

- Como assim?

Hayley bebeu um gole de vinho para ganhar coragem.

- Atirei-me ao Harper. -E...?

- E...? - Isso deixou-a sem palavras durante um minuto. - Recebeste-me na tua casa, a mim e à Lily. Trataste-nos como se fôssemos família. Mais do que isso. Tu...

- E não me faças arrepender disso inventando regras que eu nunca impus. O Harper é um homem adulto e toma as suas próprias decisões em relação a várias coisas, incluindo às mulheres da sua vida. Se te atiraste a ele não tenho a menor dúvida de que ele teve capacidade para se defender ou retribuir.

Como Hayley ficou calada, Roz recostou-se com o copo de vinho na mão, pôs as pernas em cima do sofá e bebeu um gole.

- E, a menos que eu não conheça ou compreenda o meu filho tão bem como penso, apostava na última hipótese.

-Aconteceu na cozinha. Fui eu que fiz com que acontecesse. Foram só uns beijos - disse Hayley rapidamente quando se apercebeu do que parecia. - A Lily estava ali e foi a primeira vez...

- Na cozinha - murmurou Roz.

- Sim, sim. Estás a ver? - Estremeceu. - E nessa mesma noite ela destruiu a cozinha. Portanto, percebi que isto não acontecera apenas por eu estar... por me sentir atraída pelo Harper. Disse-lhe que afinal não estava interessada e provavelmente magoei-o. Mas é melhor que fique magoado agora, em vez de lhe acontecer qualquer coisa mais grave.

- Hum? - Roz acenou enquanto olhava para Hayley por cima da borda do copo. - Imagino que ele não tenha reagido muito bem.

- Não propriamente e eu estava a tentar explicar-lhe que não era assim tão grave. - Pousou o copo para conseguir gesticular livremente com as mãos.

- Depois ele disse uma coisa deliberadamente grosseira e isso perturbou-me. Porque não foi como ele estava a dizer. Foi apenas um beijo... bom, dois beijos - corrigiu. - Mas não foi como se tivéssemos arrancado a roupa para fazer sexo selvagem no chão da cozinha.

- Era difícil, com a Lily presente - comentou Roz.

- Sim, mas mesmo que ela não estivesse ali, eu não sou assim, apesar de ter engravidado da Lily como engravidei. Pode parecer que sou uma vadia, mas...

- Não parece nada - interveio Stella. - Nem por sombras. Todas sabemos como é precisar de alguém. Quer seja apenas momentaneamente ou não. Pessoalmente, não gosto de te ouvir falar de uma amiga minha dessa maneira nem de te ouvir sugerir que eu poderia pensar uma coisa dessas.

Roz sorriu e inclinou-se para a frente para tocar com o copo no de Stella.

- Muito bem.

- Obrigada.

- Esqueci-me do que estava a dizer- disse Hayley passado um instante.

- Estavas a discutir com o Harper. - Ajudou Stella. - Sua grande vadia. Isso fê-la rir e acalmar-se um pouco.

- Certo. Estávamos a discutir e depois aconteceu, como já vos disse. Senti-me como se estivesse a recuar dentro de mim própria e começaram a sair-me coisas da boca, palavras que não eram minhas. Comecei a dizer que os homens eram todos mentirosos e traiçoeiros e que só queriam ir para a cama com as mulheres e que as tratavam como putas. Foi muito feio e não é verdade. Muito menos em relação ao Harper.

- A primeira coisa que tens de ter em mente é que não eras tu que estavas a falar - recordou-lhe Stella. - E a segunda é que tudo isso encaixa com aquilo que sabemos da Amélia, com o seu padrão de comportamento. Os homens são o inimigo e o sexo é um gatilho.

- Durante a discussão, antes da participação da Amélia, o Harper disse qualquer coisa que te fez sentir reles.

Hayley pegou de novo no copo e olhou para Roz.

- Ele não quis dizer aquilo como eu interpretei.

- Não estejas a arranjar desculpas para o meu filho. - Roz inclinou a cabeça. - Se fosse perfeito, não seria meu. A questão é que tu o sentiste assim e ela aproveitou.

- Roz, quero que saibas que não vou dar seguimento a esta coisa com o Harper. Esta coisa pessoal.

- Ah, sim? - Roz ergueu as sobrancelhas. - Ele tem alguma coisa errada?

- Nada. - Hayley pestanejou e olhou para Stella em busca de apoio, mas esta limitou-se a encolher os ombros e a sorrir. - Não tem nada errado.

- Então sentes-te atraída por ele, não há nada errado com nenhum dos dois, mas deste-lhe com os pés antes mesmo de as coisas começarem. Porquê?

- Bom, porque ele é...

- Meu filho? - terminou Roz por ela. - Nesse caso, há alguma coisa errada comigo?

- Nada! - Desorientada, Hayley escondeu o rosto nas mãos. - Nem acredito como isto é embaraçoso.

- Espero que tu e o Harper resolvam os vossos assuntos deixando-me completamente de fora da questão. Vou fazer apenas uma observação, como mãe dele. Se ele soubesse que lhe estás a fechar a porta para o proteger de possíveis danos futuros, dava meia-volta e arrombava essa porta a pontapé. E eu batia palmas.

- Não lhe vais dizer, pois não?

- Não me cabe a mim dizer-lhe, mas sim a ti. - Levantou-se. - E agora vou lá abaixo discutir este assunto com o Mitch enquanto jantamos. Entretanto, tens mais uma hora para amuar. Depois disso, espero que estejas recomposta.

Stella ergueu o copo quando Roz saiu e bebeu um gole lento, com satisfação.

- Ela é mesmo fantástica, não é?

- Tu não ajudaste muito - queixou-se Hayley.

- Por acaso, ajudei. Estava de acordo com tudo o que ela disse agora no fim, mas não abri a boca. E parece-me que isso foi uma ajuda. Vejo que estás a aproveitar a hora que ela te deu para amuar. E ainda só passaram dois minutos - acrescentou.

- Talvez devesses continuar de boca fechada.

- Gosto muito de ti, Hayley.

- Oh, merda.

- E estou preocupada contigo. Estamos todos. Portanto, vamos resolver isto. Trabalho de equipa e tudo o mais. Entretanto, tens de decidir o que é melhor para ti em relação ao Harper. Não podes deixar que seja a Amélia a conduzir o comboio.

- É complicado, quando ela já o sequestrou e enfiou o chapéu do maquinista. Ela estava dentro de mim, Stella. Não sei como, mas estava.

Stella levantou-se, sentou-se no sofá ao lado de Hayley e passou o braço sobre os ombros da amiga.

- Estou seriamente assustada - murmurou Hayley.

- Eu também.

Hayley sentia-se como se caminhasse em cima de cascas de ovos. Mas eram cascas de ovos afiadas como lâminas. Deu por si a questionar tudo o que fazia, pensava ou dizia.

Parecia ser tudo seu, concluiu, enquanto se despia para dormir. Fora ela que saboreara a salada de massa e os tomates frescos ao jantar. Era a sua cabeça que latejava com uma enxaqueca devido ao stresse e foram as suas mãos que aconchegaram Lily no berço.

Mas durante quanto tempo conseguiria continuar tão extraordinariamente consciente de cada acção, de cada respiração, sem ficar também ela maluca?

Havia coisas que podia fazer e ia começar a fazê-las no dia seguinte. A primeira prioridade era comprar um computador portátil com o seu cartão de crédito. A Internet estava provavelmente cheia de informações sobre possessão.

Era isso que chamariam ao que lhe estava a acontecer. Possessão.

O que sabia sobre o assunto vinha de livros, essencialmente de ficção. Pensar que em tempos gostara da sensação arrepiante transmitida por esse tipo de histórias... Talvez pudesse pegar em algumas das coisas que lera e aplicá-las à sua situação. Embora o primeiro livro que lhe vinha à cabeça fosse Christine, de Stephen King. Mas ela era uma mulher, não um carro clássico, e, pensando bem, a solução de destruir o carro não parecia muito prática. Além disso, não resultara.

Havia O Exorcista, mas ela não era católica - e essa história tinha a ver com demónios. No entanto, estaria disposta a experimentar um padre se as coisas piorassem. Na verdade, assim que a sua cabeça começasse a dar voltas de trezentos e sessenta graus, correria para a igreja mais próxima.

Provavelmente estava a exagerar, pensou, enfiando uns calções e uma camisola de alças. Lá porque acontecera uma vez, não queria dizer que voltaria a acontecer. Em especial agora que estava atenta. Podia impedir que acontecesse, provavelmente. Força de vontade, força de carácter.

Tinha de fazer mais ioga. Quem sabe se o ioga não seria a cura para a possessão?

Não, o que ia fazer era apanhar um pouco de ar. A tempestade que desejara estava a começar. O vento era mais forte e os clarões dos relâmpagos iluminavam as janelas. Abriria as portas do terraço para deixar o vento entrar. Depois leria qualquer coisa ligeira, uma boa comédia romântica, e desligaria o cérebro para dormir.

Aproximou-se das portas e abriu-as com um gesto dramático.

E deu um grito.

- Céus! - Harper agarrou-a antes que ela gritasse de novo. - Não sou um psicopata assassino. Calma.

- Calma? Calma? Estás aí escondido, pregas-me um susto de morte e queres que me acalme?

- Não estava escondido. Ia bater quando tu abriste as portas. Acho que me rebentaste o tímpano.

- Espero bem que sim. O que estás a fazer aqui? Vem aí uma tempestade.

- Uma ou duas coisas. A primeira foi que vi a tua luz acesa e quis ter a certeza de que estavas bem.

- Bom, estava, antes de me causares um ataque cardíaco.

- Óptimo. - O olhar dele percorreu-lhe o corpo e voltou a subir. - Belo pijama.

- Oh, pára com isso. - Aborrecida, cruzou os braços sobre o peito. Não é diferente do que eu usaria para andar a brincar no jardim com as crianças.

- Sim, já te vi a brincar no jardim. A segunda coisa é que estive a pensar no que aconteceu esta tarde.

- Harper, eu ainda não consegui pensar noutra coisa. - Cansada, passou os dedos pelo cabelo e pressionou as têmporas. - Acho que não consigo pensar mais nisso esta noite.

- Nem precisas, só quero que me respondas a uma pergunta. - Quando ele fez menção de entrar, ela empurrou-o para trás com firmeza.

- Não te convidei para entrar. E não acho que seja boa ideia estares aqui quando eu não estou vestida.

Ele levantou as sobrancelhas e encostou-se à ombreira da porta descontraidamente. ”Como se fosse dono de tudo o que o rodeava”, pensou ela. O que era verdade, claro.

- Deixa-me dizer que já cá estás há cerca de um ano e meio. Durante todo esse tempo, eu consegui, sabe-se lá como, controlar-me para não te atacar. Acho que posso impor essa política durante mais alguns minutos.

- Estás muito sarcástico, não estás?

- Essencialmente, estou irritado. Em especial, se vais ser melodramática e insistir em ter esta conversa comigo aqui fora e tu aí dentro.

As primeiras gotas grossas de chuva começaram a cair e ele ergueu novamente as sobrancelhas. Tal e qual como a mãe costumava fazer.

- Oh, está bem, entra lá. Não faz sentido ficares todo ensopado como um idiota.

- Céus, muito obrigado.

- E deixa as portas abertas. - Apontou para elas porque o gesto a fazia sentir-se mais segura. - Porque não vais cá ficar.

- Tudo bem. - O vento entrou numa rajada, seguida pelo ribombar de um trovão. E Harper olhou para ela, com os polegares enfiados nos bolsos das calças coçadas.

Mesmo no meio da irritação, Hayley teve de fazer um esforço para não se babar.

- Sabes - começou ele -, depois de me ter acalmado... tanto quanto possível... em relação a isto tudo, voltei a rever mentalmente o que aconteceu e ocorreu-me algo interessante.

- Vais fazer um discurso ou a tal pergunta?

Ele inclinou a cabeça, num gesto que de alguma forma pareceu régio, apesar das calças de ganga coçadas, da T-shirt e dos pés descalços.

- Tens-me zurzido forte e feio desde que chegaste. E eu tolerei-o muito bem, por certas razões. Mas já chega. Voltando à minha questão, a coisa interessante que me ocorreu foi a sequência temporal. Eis como eu vejo as coisas: tu vieste a minha casa, tomaste a iniciativa, eu retribuí. Tivemos um momento, dois momentos. Tu quiseste ir com calma, eu percebi. Depois, na próxima vez que estivemos juntos, decidiste que afinal de contas não estavas interessada, tinha sido apenas um impulso, nada de especial, vamos ser só amigos.

- Exacto. E se a tua pergunta é se mudei de ideias...

- Não é. Entre esses dois interlúdios, eu recebi uma visita da nossa louca residente, que por acaso decidiu destruir a minha casa. A cozinha, mais precisamente, o cenário do interlúdio número um. Portanto, a minha pergunta é: que papel é que esse evento desempenhou na decisão que me comunicaste no interlúdio número dois?

- Não sei o que queres dizer.

- Agora estás a mentir descaradamente.

Hayley sentiu que fazia uma expressão patética, sentiu nitidamente essa expressão invadir-lhe o rosto.

- Gostava que te fosses embora, Harper. Estou cansada e dói-me a cabeça. Não foi propriamente um dia muito fácil para mim.

- Voltaste atrás porque achaste que ela não gostava de nos ver juntos. O suficiente para disparar aquilo a que podemos chamar um tiro de aviso.

- Voltei atrás porque voltei atrás. E isso devia ser suficiente.

- E seria, teria de ser, se fosse verdade. Se fosse tudo. Não vou impor-me a ti nem a qualquer mulher que não me queira. Sou demasiado orgulhoso para isso e fui muito bem educado.

Endireitou-se e deu um passo em direcção a ela.

- E é exactamente por essas mesmas razões que não viro costas a uma luta, tal como não deixo ninguém pôr-se à minha frente para me defender quando há problemas.

Inclinou novamente a cabeça e balançou ligeiramente o corpo.

- Portanto, nem sequer sonhes em te pôr à minha frente, Hayley, em desistir seja do que for para me protegeres dela.

Hayley cruzou os braços sobre o peito.

- Dizes que não te queres impor, mas eu sinto que estás a...

- Quero-te desde o primeiro minuto em que te vi. Os braços dela caíram, sem forças, ao lado do corpo.

- Não é verdade.

- Desde o primeiro momento... foi como ser atingido por uma luz que me inundasse da cabeça aos pés. - Com os olhos nos dela, levou a mão fechada ao peito. - Acho que gaguejei. Mal conseguia falar.

- Oh, meu Deus. - Ela levou a mão ao coração, tentando acalmá-lo. Isso é uma coisa terrível para me dizeres.

- Talvez. - Ele sorriu e os seus olhos ficaram mais quentes. - Nesse caso, acho que vou enveredar também por um comportamento terrível. - Estendeu os braços e puxou-a para si.

- Harper, não devíamos mesmo estar a... - Foi um belo truque, pensaria ela mais tarde, quando conseguisse pensar de novo. Uma deslocação subtil, um leve movimento, e estavam encaixados um no outro. Ângulo com ângulo, curva com curva, de tal forma que cada centímetro do seu corpo sentiu o choque.

- Oh - murmurou ela. - Oh...

Um sorriso surgiu nos lábios de Harper e depois esses lábios colaram-se aos dela. Quentes e doces como açúcar líquido. O beijo foi uma sedução lenta e irresistível, um entorpecimento dos sentidos, enquanto as mãos dele percorriam o corpo dela num toque leve e vagaroso. ”Um toque”, pensou ela indistintamente, ”de um homem suficientemente confiante para se demorar, seguro de que tinha tempo para muito mais.”

E os lábios dele roçaram os dela como seda, até Hayley poder jurar que se sentia tremeluzir.

Era como ser gradualmente, habilmente, completamente derretida, corpo e vontade, coração e mente, até não lhe restar outra escolha senão render-se.

Gemeu por ele, emitindo um som suave e desesperado de prazer. E pouco a pouco, cedeu ao poder erótico do beijo, até que os dedos que seguravam os ombros dele perderam a força.

Quando ele se afastou, os olhos dela desfocaram-se e os seus lábios entreabriram-se.

- Hayley? -Hum?

- Essa não é a reacção de uma mulher que não está interessada.

Ela conseguiu pôr outra vez a mão no ombro dele, mas sem grande força.

- Isso não foi justo.

- Porque não?

- Porque... essa boca. - Não conseguia tirar os olhos dela. - Devias ser obrigado a ter uma licença para beijar assim.

- Quem diz que não tenho?

- Bom, nesse caso... beija-me outra vez, está bem?

- Era essa a minha intenção.

Foi a mesma sensação, com o vento a entrar pela porta e a boca dele a incendiar pequenos fogos dentro dela. Pequenas chamas, pensou Hayley, que iam consumi-la por inteiro até pura e simplesmente desaparecer.

- Harper. - Disse-o com o beijo, estremecendo com a sensação dos lábios de ambos a moverem-se juntos.

- Hum?

- Temos mesmo de parar com isto. - Não conseguiu resistir a dar uma dentadinha naquele lábio inferior tão sexy, muito ao de leve. - Brevemente.

- Mais tarde. Para a semana, talvez.

Ela teve de se rir, mas foi um riso trémulo, que terminou com um gemido quando a boca dele se afastou da sua e deslizou sobre a sua pele até encontrar um ponto mágico por baixo da orelha dela.

- Isso é bom, isso é... excepcional. Mas acho mesmo que temos de esperar, só algum... Oh! - Inclinou a cabeça para trás quando a boca errante dele encontrou outro ponto mágico. - Isso é tão...

Virou a cabeça para lhe dar melhor acesso e entreabriu os olhos. E depois arregalou-os.

- Harper.

Quando ela ficou tensa nos seus braços ele apertou-a mais.

- O que foi? Ainda não estamos na semana que vem.

- Harper. Oh, meu Deus, pára. Olha.

Amélia estava à porta, com a tempestade a rugir nas suas costas. Atrás dela, através dela, Hayley conseguia ver as árvores fustigadas pelo vento e as nuvens negras que cobriam o céu.

O cabelo dela estava pastoso e desgrenhado, a camisa de dormir branca manchada de lama que pingava, ou parecia pingar, numa poça imunda à volta dos seus pés descalços e ensanguentados. Trazia uma lâmina comprida e curva numa mão, uma corda na outra. E o seu rosto era uma máscara de raiva e amargura.

- Estás a vê-la, não estás? Estás a vê-la. - Hayley estremeceu, agora com frio e medo.

- Sim, estou a vê-la. - Num gesto rápido, Harper mudou de posição e deixou Hayley atrás de si. - Tens de ultrapassar o que te aconteceu - disse a Amélia. - Estás morta. Nós não estamos.

A força do golpe levantou-o do chão e projectou-o um metro e meio no ar até embater contra a parede. Sentiu o sabor de sangue na boca enquanto se levantava.

- Pára! Pára! - gritou Hayley. A força de vontade e o medo fizeram-na correr contra o vento gelado para Harper. - Ele é o teu tetraneto. Veio de ti. Cantaste para ele quando era pequeno. Não podes fazer-lhe mal agora.

Avançou, sem saber o que faria se chegasse junto de Amélia. Antes que Harper conseguisse segurá-la, uma rajada de vento atirou-a ao chão. Pensou ouvir alguém gritar de raiva ou dor. Depois não havia mais nada senão o som da tempestade.

- Estás doida? - Harper caiu de joelhos ao lado dela e amparou-a.

- Não, e tu? Tu é que estás a sangrar da boca. Ele limpou-a com as costas da mão.

- Estás ferida?

- Não. Ela desapareceu. Pelo menos foi-se embora. Cristo, Harper, ela tinha uma faca.

- Uma foice. E sim, isso é novidade.

- Mas não pode ser real, pois não? Quer dizer, ela não é corpórea, portanto o resto também não pode ser real. Ela não podia cortar-nos, não achas?

- Não. - Mas Harper pensou que talvez ela conseguisse fazê-los pensar que tinham sido cortados ou feridos de qualquer maneira enquanto tentavam defender-se.

Hayley ficou no chão, recuperando o fôlego, encostada a ele e de olhos postos nas portas abertas.

- Quando cheguei aqui, quando estava grávida, ela às vezes vinha ao meu quarto. Era um bocadinho assustador, claro, mas de certa forma reconfortante. Parecia que ela estava a tomar conta de mim, a ver se eu estava bem. E transmitia-me uma sensação de melancolia. E agora...

Assim que ouviu a voz a cantar no monitor de bebé, levantou-se e correu.

Foi rápida, mas Harper era mais rápido e chegou à porta de Lily dois passos à frente dela. O suficiente para estender o braço e lhe bloquear o caminho.

- Está tudo bem, não faz mal. Não vamos acordá-la.

Lily estava a dormir no seu berço, enroscada debaixo do cobertor com o seu cão de peluche. Na cadeira de baloiço, Amélia cantava. Tinha o vestido cinzento, o cabelo arranjado em canudos e o rosto calmo e sereno.

- Está tanto frio.

- Mas não está a incomodar a bebé. Nunca me incomodou quando eu era pequeno. Não sei porquê.

Na sua cadeira, Amélia virou a cabeça e olhou para eles. Havia dor no seu rosto, sofrimento e, pensou Hayley, arrependimento. Continuou a cantar em voz baixa e doce, mas tinha agora os olhos postos em Harper.

Quando a canção acabou, ela desapareceu.

- Estava a cantar para ti - disse Hayley. - Uma parte dela lembra-se. Uma parte dela sabe e ela lamenta. Como será ser louca durante cem anos?

Juntos, aproximaram-se do berço onde Hayley ajeitou o cobertor.

- Ela está bem, Hayley. A Lily está bem. Anda.

- Às vezes, acho que não vou aguentar esta montanha-russa na casa assombrada. - Afastou o cabelo do rosto enquanto voltavam ao quarto de Hayley. - Num minuto está a atirar-nos ao chão, no minuto seguinte a entoar canções de embalar.

- Uma lunática morta - observou ele. - Mesmo assim, talvez seja uma maneira de nos dizer que pode vir atrás de ti ou de mim, mas que nunca fará mal à Lily.

- E se eu fizer? E se ela entrar em mim como fez no lago e me fizer magoar a Lily ou outra pessoa qualquer?

- Tu não vais deixar que isso aconteça. Senta-te um bocadinho. Queres alguma coisa? Uma água?

-Não.

Sentaram-se lado a lado na beira da cama.

- Ela nunca fez mal a ninguém nesta casa. Talvez quisesse fazer. Talvez até tenha tentado, mas nunca conseguiu. - Pegou na mão dela e, como ainda estava fria, esfregou-a entre as suas. - Isso seria algo que se saberia.

Se uma mulher louca atacasse um Harper ou mesmo um criado, teria ficado registado e ela teria sido detida, fechada na prisão ou num manicómio.

- Talvez. Mas, e a foice, e a corda? Isso diz: vou amarrar alguém e cortá-lo às fatias.

- Nunca ninguém foi cortado às fatias na Harper House. - Levantou-se e fechou as portas do terraço.

- Que tu saibas.

- Está bem, que eu saiba. - Sentou-se de novo. - Vamos contar o que aconteceu ao Mitch. Talvez ele possa investigar os arquivos da polícia. É uma possibilidade.

- Tens essa superfície calma - disse ela passado um momento. - É enganadora, uma vez que há pequenos vulcões por trás. Mostra-me que não te conheço tão bem como pensava.

- Igualmente.

Ela suspirou e olhou para as mãos.

- Não posso ir para a cama contigo. Pensei que podia... ao princípio. Depois pensei: não posso saltar de cabeça para uma coisa dessas. Se o fizer, ele vai sair magoado. Ela vai magoá-lo. - Ergueu os olhos. - Tinhas razão nesse aspecto.

Ele limitou-se a sorrir.

- Claro que tinha.

Ela deu-lhe uma palmadinha no braço.

- Achas-te muito esperto e inteligente?

- Só porque sou. Podes perguntar à minha mãe, quando ela estiver bem-disposta.

- És uma pessoa cordata, excepto quando não és. - Estudou o rosto dele, tentando absorver todas as coisas novas que estava a aprender. - Acho que gosto disso, de descobrir os vulcões por debaixo da superfície. E Deus sabe que é um prazer olhar para ti.

- Estás a preparar-me para um desgosto, não é?

- Não... - Abanou a cabeça, levantou-se e começou a percorrer o quarto. - Tenho uma data de sentimentos acumulados e de necessidades. Seria tão fácil libertá-los contigo.

- Não me lembro de ter resistido.

- Eu não sabia que olhavas para mim dessa maneira. Sabê-lo agora só agrava a situação. Nunca ninguém me beijou assim em toda a minha vida, e já fui beijada bastante bem algumas vezes. Se ela não tivesse aparecido, o mais provável é que neste momento estivéssemos na cama, pelo caminho que aquele beijo estava a levar-nos.

- Não é assim que vais fazer com que eu goste mais da minha tetravó.

- Também não estou a gostar muito dela neste momento. Mas deu-me tempo para pensar em vez de apenas sentir. - Forçando-se a ser sensata, por ambos, Hayley sentou-se no braço de uma cadeira. - Não sou tímida em relação ao sexo e acho que, se tu e eu estivéssemos noutro lugar, noutra situação, poderíamos ser amantes sem todas as complicações extra.

- Porque é que as pessoas acham sempre que uma relação não pode ser complicada?

Ela franziu a testa e abanou a cabeça.

- Bom, essa é uma boa pergunta. Não sei.

- Parece-me - disse ele, aproximando-se dela - que há os casos, que são relações simples por natureza. Não têm nada de mal. Mas uma relação de mais do que uma noite ou duas, isso deve ter peso. E, quando há peso, tem de haver algumas complicações.

- Tens razão, não posso dizer que não tens. Mas há muita coisa a levar em consideração antes de darmos um passo destes. Acho que precisamos de ter a certeza de que é a coisa certa para ambos antes de darmos esse passo. Há coisas que não sabemos um do outro e que talvez devêssemos saber.

- Que tal jantar?

Ela ergueu os olhos para ele.

- Estás com fome?

- Não é agora, Hayley. Estou a convidar-te para sair. Para jantares comigo. Vamos até à cidade, jantamos, ouvimos um pouco de música.

Os ombros dela relaxaram e o nó no seu estômago desfez-se.

- Seria bom.

- Amanhã? - disse ele, puxando-a para a pôr em pé.

- Se a tua mãe ou a Stella puderem ficar com a Lily, amanhã está bem. Ah, e temos de lhes contar o que aconteceu. Com a Amélia.

- De manhã.

- É um bocadinho embaraçoso explicar que tu estavas aqui e o que estávamos a fazer quando...

- Não. - Ele pegou-lhe no rosto e pousou os lábios nos dela. - Não é. Ficas bem?

- Sim. - Hayley olhou por cima do ombro para as portas que ele fechara.

- A tempestade está a passar, é melhor ires agora antes que comece a chover outra vez.

- Vou dormir no antigo quarto da Stella.

- Não tens de fazer isso.

- Ambos dormiremos melhor assim.

Ela sentiu-se de facto melhor, apesar de que imaginá-lo ao fundo do corredor não fosse exactamente bom para chamar o sono. Nem imaginar como seria fácil ir até lá em bicos de pés e enfiar-se na cama ao lado dele.

Não tinha dúvidas de que ambos dormiriam muito melhor dessa maneira.

Era uma chatice ser madura e responsável.

E uma chatice ainda maior perceber que gostava mais dele do que queria. ”Mas isso é bom, não é?”, pensou, às voltas na cama. Ela não era uma vadia que saltava para a cama com um homem apenas porque ele era bonito e sexy.

Algumas pessoas podiam pensar o contrário, por causa de Lily, mas não tinha sido assim. Ela gostara do pai de Lily. Sentia carinho por ele. Talvez tivesse sido descuidada, mas não fora reles.

E quisera o bebé. Talvez não ao princípio, admitiu. Mas depois do pânico e da autocomiseração, da raiva e da negação, ela desejara o bebé. Nunca desejara nada com tanta força em toda a sua vida.

O seu lindo bebé.

Não roubara nada ao pai, pois não? O filho-da-mãe cobarde e egoísta que se aproveitara da sua dor para conseguir o que queria. Isso não fora estúpido. Fizera bem em não lhe dizer, em se vir embora, em ficar com a criança só para si. Só sua. Para sempre.

Mas podia ter mais, não podia? Estava a pensar na situação da maneira errada. Porque havia de ter de trabalhar? Trabalhar como uma escrava, contentar-se com um quarto na casa grande. Podia ter tudo. O seu bebé podia ter tudo.

Ele desejava-a. Ela podia usar isso a seu favor. Oh, sim, ninguém sabia usar um homem melhor do que ela. Ele acabaria aos seus pés, a implorar, e ela prendê-lo-ia a si.

E depois a Harper House seria sua, sua e do seu filho.

Finalmente.

 

Na estufa de propagação, Hayley observou Roz enquanto esta preparava uma estaca de lilás-da-califórnia.

- Tens a certeza de que não te importas de ficar com a Lily?

- Porque havia de me importar? O Mitch e eu vamos passar a noite a estragá-la com mimos enquanto tu não estás por perto para interferires.

- Ela adora estar contigo. Roz, sinto-me tão esquisita em relação a isto tudo...

- Não sei por que razão te sentes esquisita por sair com o Harper. Ele é um homem atraente e encantador.

- E é teu filho.

- Sim. - Roz sorriu enquanto mergulhava outra estaca no composto de enraizamento. - Não sou uma mulher de sorte? E tenho mais dois filhos atraentes e encantadores, e não me surpreenderia nada que também tivessem encontros esta noite.

- Mas com o Harper é diferente. É o teu primeiro filho, é o teu sócio. E eu trabalho para ti.

-Já discutimos este assunto, Hayley.

- Eu sei. - E conhecia bem aquele tom impaciente. - Mas acho que não consigo encarar a situação com tanta descontracção como tu.

- Talvez conseguisses, se relaxasses. Sai e diverte-te - Roz ergueu os olhos antes de enfiar a estaca no encaixe. - Não te fazia mal se tentasses fazer uma sesta antes. Vê se consegues esconder essas olheiras.

- Não dormi muito bem.

- O que não admira, tendo em conta a situação.

A música na estufa de propagação era um concerto de piano complicado, muito romântico. Hayley tinha mais jeito para identificar plantas do que compositores clássicos, portanto deixou a música deslizar à volta dela enquanto trabalhava.

- Tive sonhos estranhos, pelo menos acho que tive. Não me lembro bem de nenhum. Roz, estás com medo?

- Estou preocupada. Toma, faz tu o próximo. - Afastou-se para Hayley ocupar o seu lugar. - E zangada, também. Ninguém bate no meu rapaz a não ser eu. E, se tiver oportunidade, faço questão de dizer isso à Amélia em termos bem claros. Muito bem - disse, com um aceno, ao ver Hayley trabalhar. - Este tipo de estaca de madeira dura precisa de um meio de enraizamento seco ou apodrece.

- Ela pode ter arranjado a foice e a corda na cocheira. Na altura, é o que quero dizer. Talvez tenha tentado usá-los e alguém a tenha impedido.

- Há muitos ”talvez”, Hayley. Uma vez que a Beatrice não voltou a mencionar a Amélia em nenhum dos seus diários, podemos nunca saber tudo o que aconteceu.

- E, se não soubermos, podemos nunca conseguir livrar-nos dela. Roz, há pessoas, especialistas no paranormal, que se podem contratar para limpar a casa. - Ergueu os olhos e franziu a testa. - Não sei porque estás a sorrir. Não é uma ideia tão estranha como isso.

- Acabo de ver uma imagem de uma data de pessoas a correrem pela

casa armadas com baldes e vassouras, e aquela arma de raios que Bill Murray usava no Caça-Fantasmas.

- Raios de protões... e não faço a mínima ideia como sei isso. Mas a sério, Roz, bem sei que é uma ciência alternativa, mas há estudos sérios e legítimos. Talvez precisemos de ajuda exterior.

- Se chegar a esse ponto, logo veremos.

- Andei a procurar sites na Internet.

- Hayley...

- Eu sei, eu sei, só em último caso.

Ambas olharam quando a porta se abriu. Mitch entrou e algo na sua expressão fez com que Hayley sustivesse a respiração.

- Acho que a encontrei. Quando é que consegues despachar as coisas aqui e vir para casa?

- Uma hora - disse Roz. - Mas, por amor de Deus, Mitchell, não nos deixes assim. Quem era ela?

- Chamava-se Amélia Connor. Amélia Ellen Connor, nascida em Memphis no dia 12 de Maio de 1868. Não existe certidão de óbito nos arquivos.

- Como é que...

- Explico-vos o resto em casa. - Lançou-lhe um sorriso radiante. - Reúne as tropas, Rosalind. Até já.

- Bem, por amor de Deus - murmurou ela depois de Mitch sair. - Não é mesmo típico de homem? Vou acabar as coisas aqui, Hayley. Vai dizer à Stella e ao Harper que acabem o que estão a fazer. Deixa-me pensar disse, levando os dedos à testa. -A Stella pode contactar o Logan, se quiser que ele esteja presente, e tem de deixar a Ruby a tomar conta da loja, pedir-lhe que seja ela a fechar hoje. Parece que vamos sair umas horas mais cedo.

Amélia Ellen Connor. Hayley fechou os olhos e pensou no nome quando entrou no vestíbulo da Harper House. Não aconteceu nada, não houve nenhuma revelação ou aparição fantasmagórica, nenhuma inspiração súbita. Sentiu-se um pouco palerma, porque estava convencida de que algo aconteceria se se concentrasse no nome quando estivesse dentro da casa.

Tentou dizê-lo baixinho, mas obteve o mesmo resultado. Ela queria ser encontrada, pensou Hayley. Queria ser reconhecida. Muito bem.

- Amélia Ellen Connor - disse bem alto. - Estou a reconhecer-te como mãe de Reginald Edward Harper.

Mas o silêncio foi a sua única resposta, e o cheiro do óleo de limão de David e das rosas de Verão de Roz.

Decidindo manter a experiência falhada para si, dirigiu-se à biblioteca.

Roz e Mitch já lá estavam, Mitch a matraquear nas teclas do seu computador portátil.

- Diz que quer despachar umas coisas enquanto ainda estão frescas na sua cabeça - explicou-lhe Roz em tom levemente exasperado. - A Stella está na cozinha com o David. Os miúdos ficaram com os avós. O Logan vem assim que puder. Imagino que o mesmo se aplica ao Harper.

- Ele disse que vinha. Tinha apenas de acabar... - Encolheu os ombros.

- Uma coisa qualquer.

- Senta-te - Roz agitou a mão. - O dr. Carnegie parece decidido em manter-nos em suspense.

- Chá gelado e bolinhos de limão - anunciou David, que entrou empurrando um carrinho e seguido por Stella. - Já conseguiste quebrá-lo? indicou Mitch com um aceno.

- Não, mas não falta muito. Mitch!

- Cinco minutos.

- É um nome tão simples, não é? - Hayley encolheu os ombros quando Roz olhou para ela. - Desculpa, estava a pensar. Amélia, é um nome leve e feminino. Mas o resto... Ellen Connor. É sólido e simples. Seria de esperar que o resto também fosse leve ou um pouco exótico. Por outro lado, Amélia significa trabalhadora... fui à procura do significado.

- Claro que sim - disse Roz em tom carinhoso.

- Não soa ao significado que tem. Acho que Ellen deriva de Helen, o que me faz pensar em Helena de Tróia, portanto acaba por ser mais feminino e exótico, bem vistas as coisas. E nada disso é importante.

- Mas é sempre interessante ver como a tua cabeça funciona. E aqui vem o resto do nosso alegre grupinho.

- Encontrei o Harper lá fora. - Logan aproximou-se de Stella e beijou-a.

- Desculpa, estou todo suado. Vim directamente do trabalho. - Pegou num copo de chá gelado que David servira e bebeu-o até ao fim.

- Então, que se passa? - Harper foi directo aos bolinhos, tirou três e deixou-se cair numa cadeira. - Temos o nome dela, grande coisa.

- É impressionante que o Mitch tenha conseguido descobrir o nome dela a partir do pouco que tínhamos - retorquiu Hayley.

- Não estou a dizer o contrário, apenas a perguntar o que vamos fazer com isso.

- Primeiro, gostava de saber como é que ele o encontrou. Mitchell disse Roz, cada vez mais impaciente. - Não me obrigues a fazer-te mal em frente das crianças.

- Muito bem. - Mitch afastou-se do teclado, tirou os óculos e limpou-os na camisa. - Reginald Harper tinha várias propriedades, incluindo casas. Aqui no condado de Shelby e fora dele. Algumas estavam arrendadas, claro, propriedades de investimento, para rendimento. Mas encontrei algumas, através dos velhos registos, listadas como ocupadas durante certos períodos mas que não geravam qualquer rendimento.

- Livros falsificados? - sugeriu Harper.

- Possivelmente. Ou essas residências podiam ser onde ele instalava as suas amantes.

- No plural? - Logan pegou noutro copo de chá. - Era um rapaz muito ocupado.

- O diário da Beatrice fala de mulheres, não de uma mulher, portanto faz sentido. Faz também sentido, uma vez que ele era um homem astuto, com o objectivo de ter um filho homem, custasse o que custasse, que mantivesse mais do que uma candidata até conseguir o que queria. Mas os diários também indicam que a Amélia era da região, portanto concentrei-me nas propriedades locais.

- Duvido que ele registasse uma amante como inquilina - disse Roz.

- Tens razão. Mas, entretanto, andei a estudar as listas dos censos. Muitos nomes e muitos anos para cobrir. Depois tive uma ideia e consegui reduzir a busca aos anos em que Reginald teve estas propriedades locais, antes de 1892. Ainda era muito para procurar, mas tive sorte no censo de

1890.

O seu olhar esquadrinhou a sala e parou no carrinho.

- São bolinhos?

- Por amor de Deus, David, dá um bolinho ao homem antes que eu tenha de o matar. O que é que encontraste em 1890?

- Amélia Ellen Connor, residente numa das casas de Reginald em Memphis. Uma casa que não produziu qualquer rendimento desde a segunda metade desse ano até Março de 1893. Na verdade, uma casa que ele registou como estando desocupada durante esse período.

- Quase de certeza que é ela - disse Stella. - Seria demasiada coincidência se não fosse.

- E ela não acredita em coincidências - comentou Logan.

- Se não for a nossa Amélia, é sem dúvida um raio de uma coincidência

- concordou Mitch, atirando os óculos para cima da mesa. - O guarda-livros de Reginald, que era muito meticuloso, anotou nos livros de Reginald uma série de despesas em que ele incorreu durante o período em que a propriedade estava, supostamente, vazia, embora o censo registasse a sua ocupante como sendo Amélia Connor. Em Fevereiro de 1893, foram registadas várias despesas consideráveis relacionadas com a remodelação da casa antes da entrada de novos inquilinos, estes a pagar. A casa foi vendida, se estiverem interessados, em 1899.

- Então sabemos que ela vivia em Memphis - começou Hayley -, pelo menos até poucos meses depois de o bebé nascer.

- Mais do que isso. Amélia Ellen Connor. - Voltou a pôr os óculos e leu os seus apontamentos. - Nasceu em 1868, filha de Thomas Edward Connor e Mary Kathleen Connor, Bingham em solteira. Embora Amélia diga no censo que ambos os pais estavam mortos, isso só era verdade em relação ao pai, que morreu em 1886. A mãe estava viva e possivelmente de boa saúde, e só morreu em 1897. Trabalhava para a família Lucerne como criada, numa casa junto ao rio chamada...

- Os Salgueiros - terminou Roz. - Conheço essa casa. É mais antiga do que esta. É hoje uma pousada, muito bonita. Foi comprada e restaurada há pelo menos vinte anos.

- Mary Connor trabalhava lá - continuou Mitch -, e, embora não tenha indicado qualquer filho no censo, os registos demográficos mostram que ela tinha uma filha... Amélia Ellen.

- Viviam afastadas, suponho - disse Stella.

- O bastante para a filha dar a mãe como morta e a mãe não reconhecer a filha. Há outra coisa interessante. Não existe qualquer registo de Amélia ter tido um filho, tal como não há registos da sua morte.

- O dinheiro pode olear as engrenagens ou emperrá-las - interveio Hayley.

- O que se segue? - perguntou Logan.

- Vou estudar os jornais antigos, mais uma vez, mas agora à procura de qualquer menção da morte dela... mulher não identificada, esse tipo de coisa. E vamos continuar a tentar encontrar informações através dos descendentes dos criados. Vou ver se os antigos proprietários dos Salgueiros me deixam dar uma vista de olhos a quaisquer papéis ou documentos desse tempo que possam ter.

- Eu abro-te caminho - ofereceu-se Roz. - Os velhos nomes de família também podem olear as engrenagens.

Saía com um homem pela primeira vez em... na verdade, era triste pensar há quanto tempo. E estava muito bonita, modéstia à parte. O pequeno top vermelho deixava ver os ombros e os braços, que estavam bem tonificados devido ao esforço de carregar Lily, ao ioga e ao trabalho na terra.

E estava um tipo com um ar fantástico sentado em frente dela num restaurante barulhento e animado em Beale Street. E ela não conseguia concentrar-se no momento.

- Vamos falar no assunto - disse Harper, pegando no copo de vinho que ela ignorara e entregando-lho. - Vais sentir-te melhor se puseres tudo para fora, em vez de estares a esforçar-te tanto por não dizer nada.

- Não consigo deixar de pensar nisso. Nela. Ela tinha um bebé, Harper, e ele simplesmente tirou-lho. Não é difícil perceber por que razão ela é tão rancorosa em relação aos homens.

- Estás a fazer de advogada do Diabo? Ela vendeu-se.

- Mas, Harper...

- Espera aí. Ela vinha de uma família da classe trabalhadora. Em vez de escolher trabalhar, escolheu ser uma mulher sustentada. Foi a escolha dela, e não tenho nenhum problema em relação a isso. Mas ela trocou sexo por uma casa com criados.

- E isso dava o direito a Reginald de lhe tirar o bebé?

- Não estou a dizer isso, nem por sombras. Estou a dizer que é pouco provável que ela fosse uma inocente de faces rosadas. Ela viveu naquela casa como amante dele durante mais de um ano antes de engravidar.

Hayley não estava disposta a deixar que ele reduzisse tudo ao nível mais baixo.

- Talvez ela o amasse.

- Talvez amasse a vida que levava. - Ele encolheu os ombros.

- Não sabia que eras tão cínico. Ele limitou-se a sorrir.

- E eu não sabia que eras tão romântica. Muito provavelmente a verdade está algures entre o cinismo e o romance, portanto vamos dividir a razão.

- Parece justo. Mas eu nem sempre gosto de ser justa.

- Seja como for, sabemos que ela era uma pessoa doente, Hayley. É muito provável que já o fosse antes de tudo isto acontecer. Isso não quer dizer que ela o merecesse, mas aposto que ela tinha um lado muito frio. É preciso ter, para registar a mãe como morta no censo quando ela vivia a poucos quilómetros.

- Sim, é verdade que o retrato não é bonito. Suponho que parte de mim quer vê-la como uma vítima, como a heroína, quando as coisas não são assim tão simples.

Bebeu um gole de vinho.

- Muito bem, já chega. É tudo a que ela tem direito por esta noite.

- Óptimo.

- Só tenho de fazer uma coisa. Harper enfiou a mão no bolso.

- Toma, usa o meu telemóvel. Com uma gargalhada, ela aceitou-o.

- Eu sei que ela está bem com a Roz e o Mitch. Só quero verificar.

Ela comeu peixe-gato e bolinhos de milho e bebeu dois copos de vinho. Era espantosa a sensação de liberdade que era estar sentada ali, o tempo que lhe apetecesse, a falar do que lhe viesse à cabeça.

- Já me tinha esquecido de como era. - Podia dar-se ao luxo de se recostar na cadeira, e fê-lo. - Uma refeição inteira sem interrupções. Ainda bem que finalmente me convidaste para sair.

- Finalmente?

- Tiveste muito tempo - observou ela. - Se o tivesses feito, eu não teria sido obrigada a dar o primeiro passo.

- Eu gostei do teu primeiro passo. - Estendeu o braço e pegou-lhe na mão.

- Foi um dos meus melhores, Harper. - Relaxada, inclinou-se para a frente, de olhos postos nos dele. - é mesmo verdade que sempre pensaste em mim desta maneira?

- Fiz um grande esforço para não pensar em ti desta maneira. E consegui, durante parte do tempo.

- Porquê? Porque te esforçaste tanto?

- Parecia-me... rude - era a melhor palavra que lhe ocorria - imaginar-me a seduzir uma hóspede, ainda por cima grávida. Uma vez ajudei-te a sair do carro... no dia da festa para o bebé.

- Oh, meu Deus, eu lembro-me. - Riu-se, escondendo o rosto com a mão livre. - Fui horrível para ti. Estava com tanto calor e sentia-me gorda e infeliz.

- Estavas fantástica. Cheia de vida. Essa foi a primeira impressão que tive de ti. Luz e energia e, bom... sexo, mas tentei não pensar muito nisso. Mas nesse dia, quando te ajudei a sair do carro, o bebé mexeu-se. Senti-o mexer-se. Foi...

- Assustador?

- Marcante e, sim, um pouco assustador. E vi-te dar à luz. Ela ficou calada e corou até às orelhas.

- Oh, céus, já me tinha esquecido disso. - Fechou os olhos com força.

- Oh, não.

Ele pegou-lhe nas mãos e puxou-as para si para as beijar.

- É impossível descrevê-lo. Depois de passar a fase do ”tirem-me daqui”, foi simplesmente avassalador. Vi-a nascer. Estou apaixonado por ela desde então.

- Eu sei. - O embaraço desvaneceu-se e sentiu os olhos encherem-se de lágrimas. - Eu sei. Nunca fizeste perguntas sobre o pai dela.

- Não é da minha conta.

- Se vamos levar isto para a frente, devia ser. Devias pelo menos saber. Podemos ir dar um passeio?

- Claro.

Afastaram-se das luzes e da actividade de Beale Street e caminharam em direcção ao rio. Também havia turistas a passear pelo parque ou parados a olhar para a água, mas no relativo sossego era mais fácil para Hayley recuar na sua mente e levar Harper consigo.

- Eu não o amava. Quero dizer isto já, porque algumas pessoas ainda gostam de pensar: ”Pobrezinha, um tipo qualquer engravidou-a e depois deixou-a.” E pensam que um idiota qualquer me partiu o coração. Mas não foi assim.

- Ainda bem. Seria uma pena se o pai da Lily fosse um idiota. Ela riu-se e abanou a cabeça.

- Vai ser fácil contar-te. Tens jeito para facilitar as coisas. Ele era um bom rapaz, um estudante universitário que eu conheci quando trabalhava na livraria. Flirtámos um com o outro, demo-nos bem, saímos algumas vezes. Depois o meu pai morreu.

Atravessaram a pequena ponte sobre o rio, passando entre os casais sentados em bancos de pedra.

- Eu fiquei muito triste, muito perdida. Ele passou o braço sobre os ombros dela.

- Acho que, se acontecesse alguma coisa à minha mãe, seria como ficar cego. Tenho os meus irmãos em quem me apoiar, mas não consigo imaginar o mundo sem ela.

- É assim mesmo, como se não conseguisses ver. Não sabes o que fazer a seguir, o que dizer a seguir. Por mais simpáticas que as pessoas sejam... e houve muitas pessoas simpáticas, Harper... sentes-te perdido. As pessoas gostavam do meu pai, era impossível não gostar dele. Portanto havia vizinhos e família e amigos, as pessoas com quem eu trabalhava, com quem ele trabalhava. Mas, apesar disso, ele era o centro da minha vida, de tal forma que eu me senti sozinha, isolada num vazio de sofrimento.

- Eu era muito mais novo quando o meu pai morreu e suponho que, de certa forma, isso tornou tudo mais fácil. Mas sei que temos de passar por uma fase em que achamos que nada vai voltar a estar bem ou voltar a ser sólido.

- Sim, exactamente. E quando ultrapassamos essa fase e recomeçamos a sentir, dói. Este rapaz esteve ao meu lado. Foi muito querido, muito reconfortante, e foi assim que uma coisa levou à outra.

Inclinou a cabeça e fitou-o nos olhos.

- Apesar disso, nunca fomos mais do que amigos. Mas não foi uma aventura, foi...

- Uma cura.

Ela sentiu um calor espalhar-se pelo coração.

- Sim. Ele voltou para a universidade e eu segui com a minha vida. Primeiro, não percebi que estava grávida. Os sinais não me entravam na cabeça. E quando percebi...

- Ficaste com medo. Ela abanou a cabeça.

- Fiquei chateada. Fiquei mesmo zangada. Por que diabo isto me havia de ter acontecido? Não teria já bastante com que me preocupar? Eu não era pessoa de dormir com um e com outro, não era irresponsável, que diabo vinha a ser isto? Uma piada? Meu Deus, Harper, não foi tudo suspiros e tremores. Fiquei furiosa. Cheguei a entrar em pânico durante pouco tempo, mas rapidamente ultrapassei o pânico para voltar a estar furiosa.

- Era uma situação complicada, Hayley. Estavas sozinha.

- Não queiras desculpar-me. Eu não queria estar grávida. Não queria um bebé. Tinha de trabalhar, tinha de chorar o meu pai, e já estava mais do que na altura de alguém lá em cima me deixar em paz.

Dirigiram-se ao rio e ela continuou a falar em voz baixa enquanto olhava para a água.

- Agora ia ter de fazer um aborto e isso significava que tinha de tirar alguns dias do trabalho e arranjar dinheiro para o pagar.

- Mas não o fizeste.

- Arranjei uns folhetos, encontrei uma clínica, mas depois comecei a pensar que talvez fosse melhor dar o bebé para adopção. Inscrevi-me numa dessas agências. Lemos tanta coisa sobre casais inférteis desesperados por um bebé. Pensei que talvez fosse uma coisa positiva que eu podia fazer.

Ele acariciou-lhe o cabelo e disse, baixinho:

- Mas também não fizeste isso.

- Arranjei folhetos também, comecei a pesquisar. E, enquanto andava de um lado para o outro, a amaldiçoar Deus e o Diabo, pensava por que raio é que o tal rapaz nunca mais aparecera na loja nem me telefonara. Parte do que eu pensava, quando me acalmava um pouco, era que tinha de lhe dizer, ele tinha de saber. Eu não engravidara sozinha, e ele bem podia assumir parte da responsabilidade. E no meio de tudo isto, a certa altura, tornou-se real. Eu ia ter um bebé. Se tivesse um bebé, já não estaria sozinha. Era um raciocínio egoísta e foi a primeira vez que me apercebi de que estava a pensar em ficar com ele. Para mim.

Respirou fundo e virou-se para ele.

- Decidi ficar com o bebé porque me sentia sozinha. Nessa altura, isso foi o que mais pesou.

Ele não disse nada durante algum tempo.

- E o estudante?

- Fui procurá-lo, para lhe dizer. Fui à universidade, pronta para lhe dizer: ”Ops, olha o que aconteceu, e eis o que eu decidi fazer, portanto podes saltar a bordo.”

Uma brisa agitou-lhe o cabelo e ela deixou-o voar. Deixou o ar húmido e quente deslizar-lhe sobre o rosto.

- Ele ficou contente por me ver, um pouco embaraçado, acho eu, por não ter mantido o contacto. A questão era que ele se apaixonara por outra pessoa. Uma grande explosão de amor - disse ela, abrindo os braços para ilustrar. - Estava tão feliz e excitado e, quando falava dela, emanava ondas de amor.

- Então não lhe disseste.

- Não lhe disse. O que havia de fazer? Dizer-lhe: ”Que bom, ainda bem que encontraste alguém que completa o teu mundo. O que achas que ela vai pensar do facto de me teres engravidado? É pena teres dado cabo do resto da tua vida por seres um amigo para mim quando eu precisei.” Ainda por cima, eu não o queria. Não queria casar com ele nem nada, que sentido fazia?

- Ele não sabe da Lily?

- Mais uma decisão egoísta, talvez um pouco menos egoísta porque era o melhor para ele. Mais tarde tive dúvidas, quando a gravidez se tornou mais real, quando a barriga começou a notar-se e o bebé a dar pontapés dentro de mim. Mas mantive a minha decisão.

Fez uma curta pausa. Era mais difícil do que ela pensara continuar a falar quando ele estava tão calado, quando a escutava com tanta intensidade.

- Eu sei que ele tem o direito de saber. Mas fiz o que fiz e voltaria a fazer o mesmo. Ouvi dizer que ele casou com a tal rapariga em Abril e que se mudaram para a Virgínia, de onde é a família dele. Penso que fiz o que era certo para todos nós, independentemente das minhas razões. Talvez ele amasse a Lily ou talvez ela fosse apenas um erro para ele. Não quero saber. Porque ela foi um erro para mim durante aqueles primeiros meses e odeio sabê-lo. Só comecei a amá-la, a amá-la verdadeiramente, quando estava grávida de quase cinco meses e nessa altura foi... oh, foi como se tudo dentro de mim se abrisse e ela me tornasse plena. Foi nessa altura que soube que tinha de sair de casa. Ambas precisávamos de começar de novo, com uma página em branco.

- Foste corajosa e fizeste a coisa certa.

Era tão simples a resposta dele, nada como aquilo que ela estava preparada para ouvir.

- Foi uma loucura.

- Foi corajoso - repetiu ele. Parou deliberadamente ao lado de um canteiro de lírios amarelos. - E certo.

- Acabou por correr bem. Eu ia chamar-lhe Eliza. Era o nome que tinha escolhido se fosse uma menina. Depois tu trouxeste-me aqueles lírios vermelhos, no hospital, e eram tão lindos, tão brilhantes... Quando ela nasceu, pensei ”É tão linda e tão brilhante. Chama-se Lily.” E pronto... - Respirou fundo. - É este o grande círculo, do princípio ao fim.

Ele inclinou-se e beijou-a suavemente.

- Sabes a coisa engraçada sobre os círculos? Podes continuar a alargá-los.

- Isso é uma forma de dizer que não ficaste muito aborrecido com a minha telenovela pessoal e que gostavas de fazer isto outra vez?

- Uma coisa que nunca fizeste foi aborrecer-me. - Deu-lhe a mão e continuaram a andar. - E, sim, gostava de fazer isto outra vez.

- Longe de casa. Longe dela.

- Podemos fazer isso. Mas vivemos lá, Hayley. Trabalhamos lá. Não podemos evitá-la.

Era bem verdade, pensou Hayley ao entrar no seu quarto. Todas as gavetas da cómoda estavam abertas. A roupa, tanto da cómoda como do roupeiro, estava empilhada em cima da cama. Aproximou-se e pegou numa camisa, depois num par de calças. Não havia estragos, pelo menos.

Não estava nada fora do sítio no quarto de Lily quando fora espreitá-la, e isso era mais importante. Curiosa, entrou na casa de banho. Todos os seus artigos de toilette estavam num monte em cima do balcão.

- É a tua forma de me recordar de que este não é o meu lugar? perguntou em voz alta. - Que me podem mandar fazer as malas a qualquer momento? Talvez tenhas razão. Se isso acontecer, lido com o assunto na devida altura, portanto tudo o que conseguiste foi dar-me uma hora de trabalho antes de ir para a cama.

Começou a arrumar os cremes e perfumes, os batons e o rímel. Marcas brancas, na sua maioria, com uma ou duas extravagâncias pelo meio. E talvez fosse verdade que gostaria de poder comprar coisas melhores.

Lily também significa ”lírio” em inglês. (N. da T.)

O mesmo se aplicava à roupa, admitiu, enquanto entrava no quarto para a arrumar. Que mal tinha desejar poder comprar tecidos bons ou marcas conhecidas?

Não estava propriamente obcecada com isso.

Mas não seria maravilhoso poder pendurar vestidos fabulosos em vez de imitações compradas em saldos? Sedas e caxemiras. Seria tão bom senti-los sobre a pele.

A Roz tinha roupas incríveis e andava com camisas velhas durante metade do tempo. Mais do que metade. De que adiantava ter tanto e depois não o aproveitar? Deixar as coisas penduradas quando outra pessoa podia usá-las. E usá-las melhor. Uma pessoa mais nova, que soubesse viver. Que o merecesse, que o tivesse conquistado, em vez de simplesmente lhe terem dado tudo de mão beijada.

E todas aquelas jóias a desperdiçarem-se, guardadas num cofre quando ficariam tão bonitas no seu pescoço. A cintilar.

Devia simplesmente tirá-las, uma ou outra peça de vez em quando. Quem daria pela diferença?

Tudo o que ela queria estava aqui, à mão de semear, então porque não...

Largou a camisa que segurava. Que estava a segurar, apercebeu-se, em frente do corpo, como uma mulher a segurar um belo vestido. A pavonear-se em frente do espelho. E a pensar em roubar.

”Não era eu.” A tremer, olhou para o seu reflexo.

- Não era eu - disse em voz alta. - Eu não preciso do que tu precisas. Não quero o que tu queres. Talvez possas entrar dentro de mim, mas não podes obrigar-me a fazer uma coisa dessas. Não podes.

Pôs o resto da roupa numa cadeira e deitou-se sobre a cama completamente vestida. E dormiu de luz acesa.

 

Sentia-se contente por estar a trabalhar ao balcão, grata pelo fluxo constante de clientes que a mantinham ocupada. Amélia não parecia estar interessada nela quando estava a trabalhar. Pelo menos até agora.

Fizera uma lista, documentando todos os incidentes que recordava claramente, para os arquivos de Mitch. Anotou os locais: o lago, o quarto dela, o quarto da bebé. Não tinha a certeza absoluta, mas achava que podia ter


havido outras alturas em que os seus pensamentos não eram realmente seus. No jardim da Harper House, quando sonhava acordada enquanto trabalhava.

Depois de estar tudo por escrito, concluiu, não parecia assim tão grave.

Pelo menos à luz do dia, com pessoas à sua volta.

Ergueu os olhos quando entrou uma nova cliente. Jovem, bons sapatos, belo corte de cabelo. Um bom rendimento líquido, deduziu Hayley, com esperança de a ajudar a deixar algum na loja.

- Bom dia. Posso ajudá-la a encontrar alguma coisa?

- Bom, eu... desculpe, acho que me esqueci do seu nome.

- Hayley. - Concentrou-se melhor, tentando ao mesmo tempo manter uma expressão simpática. Cabelo louro solto, rosto estreito, olhos bonitos. Um pouco tímida.

Depois arregalou os olhos.

- Jane? Jane, a prima da Roz? Meu Deus, olhem bem para si! A mulher corou.

- Eu... cortei o cabelo - disse, passando a mão pelo bonito corte.

- E está fantástica, absolutamente fantástica.

Hayley vira Jane apenas uma vez, quando ajudara Roz e Stella a tirar as poucas coisas dela do apartamento quente e apinhado na cidade, governado por Clarissa Harper. A mulher que tinham de lá tirado às escondidas juntamente com os diários que Clarissa roubara da Harper House - era deselegante e desinteressante, como um esboço a lápis que mal se via no papel.

Agora, o cabelo louro sem graça tinha madeixas, estava mais claro e curto, num penteado moderno que não prolongava o rosto comprido e magro.

As suas roupas eram simples, mas a camisa de algodão e as calças curtas e leves estavam muito distantes da saia comprida que vestia quando a tinham ajudado a fugir.

- Tenho de dizer, uau! Parece que acabou de sair de um daqueles programas de transformações, como O Que Não Vestir. Oh, e o que acabei de dizer foi terrivelmente rude.

- Não, não faz mal. - O sorriso alargou-se e ela ficou ainda mais vermelha. - Suponho que me sinto transformada. A Jolene... conhece a Jolene, a madrasta da Stella?

- Sim, é fantástica.

- Ela ajudou-me a arranjar emprego na galeria e, no dia antes de começar, apareceu no meu novo apartamento. E simplesmente... raptou-me. Disse que ia ser a minha fada madrinha por este dia. Quando dei por mim, estavam a cortar-me o cabelo e a pôr folha de alumínio no que sobrou. Estava demasiado aterrorizada para dizer alguma coisa.

- Aposto que está contente por não ter dito nada.

- Estava aturdida. Ela arrastou-me para o centro comercial e disse que íamos começar por três mudas completas, da cabeça aos pés. Depois disso, esperava que eu enchesse o resto do guarda-roupa de maneira semelhante.

Sorriu de orelha a orelha, com os olhos húmidos.

- Foi o dia mais maravilhoso da minha vida.

- É uma história enternecedora. - Hayley sentiu também as lágrimas nos olhos. - Bem merecia uma fada madrinha, depois da forma como aquela bruxa malvada a tratou. Sabe, historicamente, os contos de fadas eram histórias de mulheres, passadas de boca em boca numa altura em que as mulheres não tinham muitos direitos.

-Sim?

- Desculpe, tenho a cabeça cheia destas informações inúteis. Lembrei-me disso por estarmos a falar de coisas tão femininas. Tenho de chamar a Stella.

- Não queria interromper nada. Mas estava com esperança de ver a prima Rosalind, para lhe agradecer.

- Vamos chamá-la também. - Hayley correu para o escritório de Stella.

- Mas a Stella vai querer ver isto. - Enfiou a cabeça no escritório sem bater.

- Tens de chegar aqui fora um instante.

- Há algum problema?

- Não, mas acredita em mim e chega aqui.

- Hayley, ainda tenho meia dúzia de telefonemas para fazer antes de...

- Calou-se e colocou automaticamente a cara de atender o público quando viu Jane. - Desculpe, posso fazer alguma... Oh, meu Deus. É a Jane.

- Nova e melhorada - disse Hayley, depois encolheu-se e fez uma careta.

- Desculpe.

- Não faz mal. É precisamente assim que me sinto.

- A Jolene disse-me que lhe ia dar o seu tratamento especial. - Encantada, Stella fez um círculo à volta de Jane. - E não há dúvida de que o fez. Adoro o seu cabelo.

- Também eu. A sua madrasta tem sido tão boa para mim.

- E tem adorado todos os minutos. Tenho recebido os relatórios, mas devo dizer que uma imagem vale mais que mil palavras. Espero que esteja tão bem como parece.

- Adoro o meu emprego. Adoro o meu apartamento. Adoro mesmo sentir-me bonita.

- Oh... - Os olhos de Stella encheram-se de lágrimas.

- Aconteceu-me o mesmo - disse Hayley, tirando um walkie-talkie de trás do balcão. - Roz - chamou pelo aparelho. - Precisamos de ti no balcão.

Desligou o walkie-talkie, interrompendo as queixas de Roz sobre estar muito ocupada.

- Não quero afastá-la do trabalho.

- Ela vai querer vê-la. E eu quero que ela a veja. Meu Deus, isto é tão divertido!

- Conte-nos que mais tem andado a fazer - pediu Stella.

- O trabalho é a coisa principal. Gosto mesmo dele e estou a aprender tanto! Já fiz alguns amigos.

- Homens? - inquiriu Hayley.

-Ainda não estou pronta para isso. Mas há um homem no meu prédio que é muito simpático...

- E giro? Raios, um cliente - resmungou Hayley quando um cliente apareceu ao fundo com um carrinho cheio. - Não falem sobre nada sexy enquanto eu estiver ocupada.

- Pensava que ficaria embaraçada por vos voltar a ver. - Jane voltou-se para Stella enquanto Hayley atendia o cliente.

- Porquê?

- Daquela vez, quando vos conheci, eu era tão choramingas e horrível.

- Não era nada, estava apenas assustada e perturbada. E com boas razões. Estava a dar um grande passo, ao deixar-nos entrar para a Roz poder trazer os diários.

- Pertenciam-lhe a ela. A Clarissa não tinha o direito de os tirar da Harper House.

- Pois não. Mas não deixou de ser um grande passo para si deixar a Roz recuperá-los, sair de casa, começar um novo emprego, uma nova vida. Eu sei como isso é assustador. E a Hayley também sabe.

Jane olhou por cima do ombro para Hayley, que estava a registar as compras e a conversar com o cliente.

- Ela não parece ter medo de nada. Foi o que pensei quando a conheci, a ela e a si. Que vocês as duas nunca teriam medo de se defender, nunca se deixariam pisar como eu deixei.

- Todos temos medo de vez em quando e nem sempre fazemos algo radical e positivo em relação a isso.

Roz entrou, batendo com as luvas na coxa em sinal de irritação.

- Há algum problema?

- De maneira alguma. - Stella apontou para Jane. - A Jane queria ver-te. Roz ergueu as sobrancelhas e abriu lentamente um grande sorriso.

- Ora, vejam bem. A Jolene é uma mulher de palavra. Estás resplandecente. - Enfiou as luvas no bolso de trás e ficou

sem fôlego quando Jane a abraçou. - Também estou contente por te ver.

- Obrigada. Muito obrigada. Nem tenho palavras.

- Não tens que agradecer.

- Estou tão feliz.

- Estou a ver que sim. E a sentir.

- Desculpa. - Fungando, Jane soltou-a. - Não tencionava fazer isto. Queria vir, agradecer-te e dizer-te que estou a fazer um bom trabalho no emprego novo. Já tive um aumento e estou a fazer alguma coisa por mim própria.

- Também estou a ver que sim. Nem preciso de te perguntar se estás bem. Fico muito feliz por ti. E, mesmo que isso não abone muito em meu favor, estou absolutamente encantada por te ver tão bonita e excitada com a tua vida, porque isso deve estar a dar cabo da escanzelada da prima Rissa.

Jane deu uma gargalhada trémula.

- É verdade, está mesmo. Ela veio ver-me.

- O que é que perdi, o que é que perdi? - inquiriu Hayley, regressando.

- Voltem atrás e repitam as partes interessantes.

- Acho que estávamos agora a chegar lá. - Roz inclinou a cabeça. Então a Rissa tirou a vassoura da despensa e foi visitar-te?

- Ao meu apartamento. Suponho que a minha mãe lhe deve ter dado a morada, apesar de eu lhe ter pedido que não o fizesse. Foi há cerca de um mês. Espreitei pelo óculo da porta e lá estava ela. Estive quase para não abrir.

- E quem pode censurá-la? - Hayley deu uma palmadinha de solidariedade nas costas de Jane.

- Mas depois pensei: não posso continuar escondida como um rato no meu próprio apartamento. Por isso abri a porta e ela entrou sem cerimónias, farejou o ar, ordenou-me que lhe arranjasse um chá e sentou-se.

- Deus a abençoe - disse Roz com ironia. - Aquele ego nunca se vai abaixo.

- Em que andar é o apartamento? - Hayley semicerrou os olhos, tentando recordar-se. - Terceiro ou quarto, se bem me lembro. Fazia uma bela mossa no passeio se a tivesse atirado pela janela.

- Gostava de poder dizer que o fiz, mas em vez disso arranjei-lhe um chá. Estava a tremer. Quando voltei, ela disse-me que eu era uma rapariga ingrata e malvada e que podia cortar o cabelo, arranjar um buraco qualquer, convencer alguma idiota sem cérebro a dar-me um emprego para o qual não era certamente qualificada, mas isso não mudava aquilo que eu era. Também disse uma data de coisas pouco simpáticas sobre ti, Roz.

- Oh, conta-me tudo.

- Bom, ah... Meretriz intriguista foi uma delas.

- Sempre quis ser chamada meretriz. Aí está uma palavra que não usamos tanto quanto devíamos hoje em dia.

- Foi isso que começou a irritar-me. Pensei que talvez ela tivesse o direito de me chamar ingrata, porque o fui. - Jane fechou as mãos e aprumou-se. - O meu apartamento não é um buraco qualquer, é encantador, mas com o gosto dela é possível que lhe pareça um buraco, e ela não conhece a Carrie... a minha patroa... portanto podia muito bem achar que ela fora idiota em me dar uma oportunidade. Mas chamar-te nomes, quando foi ela que te roubou coisas, era demais.

Jane endireitou os ombros e acenou com expressão decidida.

- E foi o que eu lhe disse.

- Na cara. - Com uma gargalhada, Roz segurou o rosto de Jane com as mãos. - Não podia estar mais orgulhosa de ti.

- Os olhos quase que lhe saltaram da cara. Não sei de onde me saíram as palavras. Não tenho mau génio, a sério, mas estava tão furiosa. Caí-lhe em cima e disse-lhe todas as coisas que quase nem me atrevera a pensar enquanto vivia com ela, quando não era mais do que uma criada. Disse-lhe que era má e rancorosa e que ninguém gostava dela. Que era mentirosa e ladra e que tinha sorte por tu não teres chamado a polícia.

- Agora percebo. - Hayley deu-lhe uma cotovelada. - Isso foi melhor do que atirá-la pela janela.

- E não fiquei por aqui.

- Continue - pediu Hayley.

- Disse-lhe que preferia mendigar na rua do que voltar a ser escrava dela. Depois mandei-a sair do meu apartamento. -Jane levantou o braço e apontou. - Apontei para a porta, assim. Talvez tenha sido demais, mas estava fora de mim. Ela disse que eu me arrependeria. Acho que disse que havia de lamentar aquele dia, mas eu estava tão enervada que nem prestei atenção. E depois saiu.

Soltou a respiração e abanou-se com a mão.

- Bolas!

- Meu Deus, Jane, és uma valente. - Roz pegou-lhe na mão e apertou-a. -Quem diria?

- Não acabou aí. Ela tentou fazer com que me despedissem.

- A cabra! - Uma sombra passou pelo rosto de Hayley. - O que é que ela fez?

- Foi ter com a Carrie e disse-lhe que eu era uma mulher de moral duvidosa, que tinha tido um caso com um homem casado e que a roubara depois de ela generosamente me ter recebido em sua casa. Disse-lhe que achava ser seu dever cristão avisá-la a meu respeito.

- Sempre achei que devia haver assentos na primeira fila especiais no Inferno para cristãos como a Clarissa - comentou Roz.

- Quando a Carrie me chamou ao seu gabinete, me disse que ela tinha estado lá e me contou o que ela dissera, eu tive a certeza de que ia ser despedida. Em vez disso, ela perguntou-me como tinha aguentado viver com aquela velha horrível. Foi o que lhe chamou. E que o facto de eu ter aguentado só mostrava que eu tinha muita paciência e força de espírito, características que ela considera boas qualidades num empregado. E, uma vez que assim era e que eu estava disposta a trabalhar arduamente e aprendia depressa, deu-me um aumento.

- Eu gosto da Carrie - decidiu Hayley. - Gostava de lhe pagar um copo.

- Não há nada melhor do que um final feliz. - A não ser, reflectiu Hayley, estar sentada à sombra, no baloiço, a beber uma bebida fresca enquanto Lily brincava na relva. E com Harper sentado ao seu lado.

- É sempre um final feliz quando a prima Clarissa ouve o que merece. Eu tinha um medo de morte dela quando era miúdo, sempre que ela vinha cá a casa. Antes de a mamã correr com ela.

- Sabes o que a Jane disse que ela chamou à tua mãe?

- Não. - A expressão relaxada ficou dura e fria como pedra. - O quê?

- Uma meretriz.

- Uma... - A expressão de pedra quebrou-se numa gargalhada que fez Lily bater palmas. - Uma meretriz. Meu Deus, a mamã deve ter adorado.

- E adorou. Conhece-la mesmo bem, não é? Foi uma manhã tão boa. Fez-me esquecer todas as coisas más durante algum tempo. Ver alguém que se descobriu a si própria, como a Jane, que ainda está a descobrir-se. Quando a conheci ela era praticamente invisível. Agora está... bom, está uma brasa.

- Sim? Muito?

Ela riu-se e deu-lhe uma cotovelada.

- Esquece. Uma prima de cada vez.

- Afinal como é que nós somos primos? Nunca consegui perceber.

- Acho que o teu pai e o meu eram primos em terceiro grau, o que faz de nós primos em quinto grau. Acho eu. Talvez em quarto grau. Nunca consegui perceber bem como isso funciona. Mas também somos meios-primos, pelo segundo casamento da minha bisavó...

Provavelmente foi melhor que ele a calasse com um beijo.

- Ficamos por primos que se beijam - decidiu ele.

- Para mim, serve. - E inclinou-se para o beijar de novo.

Lily interrompeu-os com algumas palavras ininteligíveis e puxou as calças de Harper até ele lhe pegar. A bebé passou o braço pelo pescoço dele e empurrou Hayley.

- Bom, acho que isso me pôs no meu lugar. - Divertida, Hayley inclinou-se outra vez para Harper e Lily voltou a empurrá-la e apertou-o com mais força.

- As raparigas estão sempre a lutar por minha causa - disse ele. - É uma maldição.

- Imagino. Aquela com quem estavas o ano passado, na noite de Ano Novo, parecia capaz de arranhar e morder.

Ele sorriu a Lily.

- Não sei do que ela está a falar.

- Oh, sabes muito bem. A loura com um metro de cabelo e seios perfeitos, como uma modelo de lingerie.

- É verdade, estou a lembrar-me dos seios.

- Que coisa horrível de dizer!

- Foste tu que começaste. A Amber - disse, com uma gargalhada, levantando a bebé no ar para a fazer rir.

- Claro. Tinha cara de Amber.

- É advogada.

- Não é nada.

-Juro por Deus. - Ergueu a mão como se estivesse em tribunal. - Bonita não implica necessariamente burra, e tu és a prova disso.

- Bem disfarçado. Era uma relação séria? Esquece que perguntei. Detesto quando os homens... ou as mulheres, neste caso... metem o nariz nas relações do passado.

- Tu falaste-me sobre a tua. Não era nada sério. Ela não queria uma coisa séria e eu também não. Neste momento, está concentrada na sua carreira.

- Alguma vez tiveste uma relação séria?

-Já estive perto disso algumas vezes. Mas nunca atravessei a fronteira.

- Sentou Lily entre ambos, de forma a poder baloiçar-se também.

”É melhor deixar as coisas por aí”, pensou Hayley. Deixar as coisas num plano confortável, os três a preguiçarem no baloiço, com as abelhas a zumbirem à sua volta no calor e as flores a explodirem com as suas cores vivas de Verão.

- Esta é a melhor parte do Verão - disse ela. - O final da tarde. Parece que era capaz de ficar aqui sentada durante horas, sem nada importante para fazer.

- Não queres ir dar uma volta?

- Hoje não. Não posso deixar a Lily duas noites seguidas.

- Estava a pensar que podíamos levá-la a comer um gelado depois de jantar.

Surpreendida, Hayley olhou para ele. Depois perguntou a si própria porque ficara surpreendida com a sugestão.

- Ela ia adorar. E eu também.

- Então está combinado. Na verdade, porque não vamos já, comemos um hambúrguer e deixamos o gelado para a sobremesa?

- Melhor ainda.

O Julho tórrido transformou-se num Agosto abrasador, com dias de céus brancos e noites paradas. Parecia quase normal, quase pacífico, quando o dia se fundia com a noite.

- Começo a pensar que terá sido suficiente termos descoberto o nome dela - disse Hayley, enquanto colocava granzas cor-de-rosa e amarelas em vasos. - Talvez o facto de nos termos esforçado para o descobrir e de sabermos que ela era bisavó da Roz a tenha acalmado, deixado satisfeita.

- Achas que ela desapareceu? - perguntou-lhe Stella.

- Ainda a oiço cantar no quarto da Lily, quase todas as noites. Mas nunca mais fez nada de mau. De vez em quando, sinto alguma coisa ou pressinto alguma coisa, mas desaparece rapidamente. Não tenho feito nada esquisito ultimamente, pois não?

- No outro dia estavas a ouvir Pink e a falar em fazer uma tatuagem.

- Isso não é esquisito. Acho que ambas devíamos fazer tatuagens... um tema floral. Eu podia fazer um lírio vermelho e tu uma dália azul. Aposto que o Logan ia achar tremendamente sexy.

- Nesse caso, ele que faça a tatuagem.

- Só uma pequenina. Feminina.

- Acho que uma tatuagem feminina é uma contradição.

- De forma alguma - protestou Hayley. - Flores, borboletas, unicórnios, esse tipo de coisas. Aposto que conseguia convencer a Roz a fazer uma.

A ideia fez Stella atirar os caracóis ruivos para trás e rir.

- Fazemos assim, se conseguires convencer a Roz a fazer uma tatuagem, eu... Não, mesmo assim não me juntava à festa.

- Historicamente, as tatuagens são antigas formas de arte, que remontam aos egípcios. E eram muitas vezes usadas para controlar o sobrenatural.

Uma vez que temos problemas com o sobrenatural, seria como um talismã, e uma afirmação pessoal.

-A minha afirmação pessoal será recusar-me a deixar um tipo qualquer chamado Tank cravar um símbolo... feminino ou não... na minha pele. Podes chamar-me antiquada. Esses arranjos estão bonitos, Hayley. Muito amorosos.

- A cliente queria uma coisa amorosa e o amarelo e o cor-de-rosa são as cores do casamento da filha. Vão dar bonitos centros de mesa para a despedida de solteira. Pessoalmente, acho que preferia algo mais ousado, mais forte. Talvez tons de pedras preciosas.

- Há alguma coisa que não estejas a contar-me? -Hum?

- Andas a pensar em casamento?

- Oh, não. - Hayley riu-se e pôs um vaso terminado para o lado. - Não, nada disso. O Harper e eu estamos a levar as coisas com calma. Muita, muita calma - acrescentou, suspirando.

- Não era isso que querias?

- Sim, era. E é. Não sei. - Soprou de novo, fazendo esvoaçar a franja. - Sei que é mais inteligente, mais sensato, ir com calma. Há muita coisa em jogo, coisas que a maior parte das pessoas não tem de levar em consideração. Como a nossa amizade, o trabalho, a nossa relação com a Roz. Não podemos simplesmente ir para a cama apenas porque eu... estou com comichões.

- Mas queres ir para a cama com ele. Hayley olhou para Stella.

- Estava mais a pensar em atirar-me, de cabeça.

- Porque não lhe dizes, Hayley?

- Fui eu que dei o primeiro passo. Agora tem de ser ele a dar este. E espero bem que se despache.

- Estou a tentar não a apressar. - Na cozinha, Harper esvaziou de um trago a maior parte de uma lata de Coca-Cola. Raramente parava para almoçar, mas a esta hora não havia ninguém em casa senão David.

- Já a conheces há quase dois anos, Harp. Isso não é levar as coisas com calma, é estar parado.

- Antes era diferente. Só agora começámos a ver-nos um ao outro desta maneira. Ela disse que queria ir com calma. Acho que está a matar-me.

- Não me parece que as pessoas possam morrer de frustração sexual.

- Óptimo. Serei o primeiro. Posso entrar postumamente para os anais da medicina.

- E eu posso dizer que te conheci. Toma, come.


Com expressão desconfiada, Harper olhou para a sanduíche que David pusera à sua frente.

- O que é isto?

- Delicioso.

Sem grande interesse, Harper pegou na sanduíche.

- O que é isto? - perguntou de novo depois de dar uma dentada. Borrego? Borrego frio?

- Com um toque de chutney de nectarina.

- É bem bom. Onde é que vais buscar essas... não, não vamos desviar-nos do assunto. - Deu mais uma dentada na sanduíche. - Sou bom a perceber as mulheres, mas não consigo perceber a Hayley, esta situação. Nunca nada foi tão importante para mim e estou à toa.

Também com uma sanduíche, David sentou-se em frente dele.

- Ainda bem que vieste ter comigo, jovem aprendiz, pois eu sou o mestre.

- Eu sei. Pensei em aparecer uma noite, talvez com uma garrafa de vinho, e bater-lhe à porta do terraço. A abordagem directa.

- É um clássico por alguma razão.

- Mas ela tem receio da Amélia, de ter qualquer tipo de... enfim, de encontro, dentro de casa. Pelo menos é o que eu acho.

- Encontro é o teu código para sexo escaldante?

- Raios, és esperto demais para os meus estratagemas deploráveis. Seja como for, podia convidá-las para jantar, a ela e à Lily, e depois de a bebé estar a dormir... um pouco de vinho, um pouco de música. - Encolheu os ombros e sentiu que estava a andar em círculos.

- Também há uma razão para os bons hotéis terem serviços de quarto e sinais de ”Não Incomodar”.

- Serviço de quartos?

- Vê lá se consegues acompanhar, Harp. Leva-la a jantar... um jantar fino. No Peabody, por exemplo. Têm quartos encantadores, um bom serviço, boa comida... e servem jantares nos quartos.

Mastigando com ar pensativo, Harper pesou a sugestão.

- Levá-la a jantar... num quarto de hotel? Não achas que isso é um pouco... É brilhante. -Admitiu, após uns instantes.

- Pois. Vinho, velas, música, o serviço completo, tudo na privacidade elegante de uma suite de hotel. Na manhã seguinte dás-lhe pequeno-almoço na cama.

Harper lambeu chutney do polegar.

- Precisava de uma suite de dois quartos, por causa da Lily.

- A tua mãe, o Mitch e eu teríamos todo o prazer em entreter a encantadora Lily por uma noite. E, para demonstrar a tua espantosa capacidade de previsão... ou a minha... vou fazer uma mala de uma noite para a Hayley. Tu só tens de arranjar o quarto, levar as coisas dela, combinar o serviço e o cenário. Depois leva-a para lá e encanta-a.

- É boa ideia, David. Devia ter sido eu a pensar nisso, o que só prova como ela me deixa desorientado. Tenho de voltar e convencer a Stella a alterar os nossos horários para podermos ir. Obrigado.

- Estou sempre aqui para servir o verdadeiro amor, ou, pelo menos, sexo escaldante num hotel.

Ela vestiu o seu vestido vermelho. Era o melhor que tinha e gostava de se ver com ele. Mas preferia que ele lhe tivesse dado tempo de sair e comprar alguma coisa nova. Todos os outros encontros tinham sido informais.

Ele já a vira com este vestido. Na verdade, já a vira com tudo o que ela tinha.

Apesar disso, tinha uns sapatos fantásticos. Os jimmy Choo de Roz, que provavelmente tinham custado três vezes mais do que o vestido. E valiam cada cêntimo, admitiu Hayley, dando uma volta em frente do espelho de corpo inteiro. Vejam bem o que faziam às suas pernas. Sensuais em vez de magricelas, concluiu.

Talvez devesse prender o cabelo. Franzindo os lábios, apanhou-o ao alto, inclinando a cabeça de um lado para o outro para ver o efeito.

- O que achas? - perguntou a Lily, que estava sentada no chão ocupada a enfiar brinquedos numa mala velha de Hayley. - Preso ou solto? Acho que preso não me fica mal de todo, se não for demasiado arranjadinho. E assim podia pôr aqueles brincos giros. Vamos experimentar.

Quando um homem convidava uma mulher para sair, para um jantar especial, pensou enquanto se arranjava, o mínimo que ela podia fazer era dar o seu melhor em termos de aparência.

Até ao pormenor da roupa interior. Pelo menos essa era nova e tinha sido comprada recentemente, a pensar que, eventualmente, ele a veria com ela.

Talvez esta noite, se conseguissem estender um bocadinho a noite. Ele podia voltar com ela. Ela teria de conseguir afastar Amélia da cabeça. Bloquear a ideia de que a mãe de Harper estava a um corredor de distância. De que a sua própria filha estava no quarto do lado.

Por que raio tinha de ser tão complicado?

Ela desejava-o. Eram ambos jovens, livres, sem compromissos, saudáveis. Devia ser simples.

Tornarem-se amantes devia ter peso. Recordou as palavras de Harper. Bom, a situação tinha peso. Estava na altura de começar a pensar nisso como um pró em vez de um contra.

- Sou eu que estou a complicar, Lily. Parece que não consigo evitar. Mas vou tentar.

Pôs os brincos dourados, compridos e vistosos, pensou em usar um colar e desistiu da ideia. Os brincos chegavam para o espectáculo.

- Bem. - Recuou e deu uma voltinha para a filha. - O que achas? A mamã está bonita?

A resposta de Lily foi um sorriso radiante enquanto despejava novamente tudo de dentro da mala.

- Vou considerar isso um sim - disse Hayley, e olhou de novo para o espelho para uma última verificação.

Ficou sem fôlego tão depressa que se sentiu tonta.

Tinha um vestido vermelho, mas não o vestido curto de alças que comprara há mais de dois anos.

Era comprido e elaborado, com um decote baixo que lhe empurrava os seios para cima, emoldurados pela seda, e com uma cascata de rubis e diamantes sobre a pele exposta.

Tinha o cabelo preso no alto da cabeça, num penteado complexo de canudos dourados, com alguns caídos em volta de um rosto belo, com lábios vermelhos sensuais e olhos cinzentos ardentes.

- Não sou eu - murmurou ela. - Não sou.

Virou costas, deliberadamente, e agachou-se para apanhar os brinquedos espalhados com dedos trémulos.

- Sei quem sou. Sei quem ela é. Não somos a mesma pessoa. Não somos iguais.

Gelada por um pânico súbito, rodopiou de novo, com receio de ver Amélia sair do espelho e tornar-se de carne e osso. Mas desta vez viu-se apenas a si própria, com os olhos demasiado arregalados e escuros em contraste com o rosto pálido.

- Anda, fofa. - Pegou em Lily e, depois de a bebé soltar um guincho de protesto, agarrou na bolsa velha e na mala de noite.

Obrigou-se a caminhar a um ritmo normal e abrandou ainda mais ao aproximar-se das escadas. Roz veria o choque no seu rosto e não queria falar nisso agora. Por uma noite, queria continuar com a ilusão de normalidade.

Assim, com calma, recuperou o fôlego e controlou a expressão do rosto. Entrou na sala com Lily ao colo e um sorriso no rosto.

 

Os relâmpagos de calor crepitavam no céu, em clarões abafados, enquanto se dirigiam a Memphis. O tráfego estava tão denso como a noite, mas Harper parecia imune a ele. A viagem podia estar a ser lenta, mas o ar dentro do carro estava fresco e o som dos Coldplay brotava das colunas.

De vez em quando ele tirava a mão do volante e pousava-a na dela. Um gesto casual e íntimo que fazia o coração de Hayley suspirar.

Fizera bem em não dizer nada sobre a visão, ou aparição, o que quer que fosse, que vira no espelho do quarto. Amanhã seria mais do que suficiente.

- Nunca jantei aqui - disse, quando ele entrou no parque de estacionamento do hotel. - Aposto que é maravilhoso.

- Uma das melhores jóias de Memphis.

- Já estive no átrio. É impossível vir a Memphis sem ver a caminhada dos patos no Peabody. Seria como não ver Graceland ou Beale Street.

- Estás a esquecer-te da Sun Records.

- Oh! É um sítio fantástico, não é? - lançou-lhe um olhar severo. - E acho que te estás a rir de mim.

- Talvez um sorriso. Não propriamente a rir-me.

- Bom, seja como for, o Peabody tem um átrio fabuloso. Sabes que já fazem a caminhada dos patos há mais de setenta e cinco anos?

- Não me digas.

Ela empurrou-o, na brincadeira, enquanto caminhavam em direcção à entrada.

- Imagino que sabes tudo o que há para saber, uma vez que és de cá.

- Estou sempre a descobrir mais coisas - disse ele, conduzindo-a ao átrio.

- Talvez possamos beber qualquer coisa aqui antes de jantar, ao pé da fonte. - Imaginou algo fresco e sofisticado, para condizer com a forma como estava a sentir-se. Um cocktail de champanhe ou um cosmopolitan.

- Temos tempo?

- Podíamos fazer isso, mas acho que vais gostar ainda mais daquilo que eu tenho em mente. - Caminhou com ela até aos elevadores.

Hayley olhou para trás com algum pesar. Todo aquele mármore encantador e vidro colorido...

- Há uma sala de jantar lá em cima? Não é no telhado, pois não? Sempre achei restaurantes no alto dos edifícios muito elegantes. A menos que chova. Ou faça muito vento. Ou esteja demasiado calor - acrescentou, com uma gargalhada. - Acho que os restaurantes no alto dos edifícios só são muito elegantes nos filmes.

Ele limitou-se a sorrir e afastou-se para ela entrar no elevador à frente dele.

-Já te disse que estás muito bonita esta noite?

- Já, mas há certo tipo de repetições que não me incomodam nada.

- Estás linda. - Roçou os lábios nos dela. - Devias andar sempre de vermelho.

- E olhem para ti. - Passou os dedos pelas lapelas do casaco escuro que ele trazia. - Muito elegante, de fato. As outras mulheres no restaurante nem conseguirão comer com inveja da minha sorte.

- Se assim é, talvez seja melhor deixá-las comer descansadas. - Pegou-lhe na mão quando as portas se abriram e conduziu-a ao longo do corredor. - Vem comigo.

- O que se passa?

- Espero que gostes. - Parou em frente de uma porta e tirou uma chave do bolso. Abriu a porta e fez um gesto com o braço. - Faça favor.

Ela entrou e ficou sem fôlego ao ver a sala espaçosa. Levou a mão ao peito enquanto caminhava sobre as lajes pretas e brancas, até uma sala onde tremeluziam velas e havia lírios vermelhos sumptuosamente espalhados em jarras de vidro.

As cores eram profundas e quentes, e as janelas compridas deixavam ver as luzes cintilantes da cidade. Em frente de uma delas, estava uma mesa posta para dois, com uma garrafa de champanhe aninhada num balde de prata reluzente.

Havia música a tocar, baixinho, blues suaves de Memphis. Aturdida, ela girou sobre si própria e viu a escada em espiral que levava a um segundo piso.

- Tu... tu preparaste tudo isto?

- Queria estar a sós contigo.

Ela ainda tinha o coração aos saltos quando se virou para ele.

- Fizeste isto por mim?

- Por nós os dois.

- Esta sala maravilhosa... só para nós. Flores e velas e, meu Deus, champanhe. Estou sem palavras.

- E quero que estejas. - Aproximou-se dela e pegou-lhe nas mãos.

- Quero que esta noite seja especial, inesquecível. - Levou as mãos dela aos lábios. - Perfeita.

- Não há dúvida de que começa bem. Harper, nunca ninguém se deu a tanto trabalho por minha causa. Nunca me senti tão especial.

- É apenas o princípio. Já encomendei o jantar. Chegará dentro de quinze minutos. Temos muito tempo para a tal bebida. Champanhe, que te parece?

- Parece-me que neste momento não me contentaria com menos do que isso. Obrigada. - Encostou-se a ele e beijou-o longamente.

- É melhor abrir a garrafa ou ainda me esqueço do alinhamento dos eventos.

- Há um alinhamento?

- Mais ou menos. - Ele afastou-se e tirou a garrafa do balde. - E, para que possas estar descansada, dei o número daqui à minha mãe. Ela tem esse número, o teu telemóvel, o meu, e obriguei-a a prometer que ligaria se a Lily tivesse nem que fosse soluços.

Abriu a garrafa e ela riu-se.

- Está bem. Tenho confiança na Roz para manter tudo controlado. Ela rodou sobre si própria, sem conseguir controlar-se.

- Sinto-me como a Cinderela. Sem as irmãs malvadas e, bom, a abóbora. Mas, tirando isso, eu e a Cinderela somos praticamente gémeas.

- Se o sapato te serve...

- Vou regalar-me ao máximo com tudo isto, Harper, mais vale dizer-te já. Não sei se conseguirei ser muito sofisticada quando só me apetece dar saltos de alegria e correr a ver tudo. Aposto que as casas de banho são fantásticas. Achas que aquela lareira funciona? Eu sei que está demasiado calor para a acender, mas não me importo.

- Nesse caso, vamos acendê-la. Toma. - Estendeu-lhe um copo e tocou com o seu no dela. - Aos momentos inesquecíveis.

Ela prolongou o momento, saboreando-o.

- E aos homens que os fazem acontecer. Oh, uau - disse, depois do primeiro gole. - É mesmo bom. Talvez eu esteja a sonhar.

- Se estiveres, eu também estou.

- Nesse caso, está tudo bem.

Ele tocou-lhe, passando os dedos levemente pela sua nuca, exposta pelo cabelo preso. Depois, com uma leve pressão, puxou-a para si. Quando bateram à porta, sorriu ironicamente.

- Muito pontuais. Eu abro. Depois de servirem o jantar, ficaremos completamente sozinhos.

”Ele fez tudo isto acontecer”, pensou ela. O cenário geral e os pequenos pormenores, de tal maneira que a noite se desenrolou para ela como as páginas de um livro de contos. E, graças a ele, estava sentada numa suite elegante, a bebericar champanhe, com o romantismo da luz de velas e das chamas que tremeluziam na lareira. Flores perfumavam o ar. Havia uma refeição deliciosa que ela mal conseguia saborear devido à excitação que lhe subia pela garganta.

Esta noite, iam fazer amor.

- Conta-me como foi a tua vida enquanto crescias - pediu ela.

- Gostei de ter irmãos, mesmo quando eles me chateavam.

- Vocês são chegados. Vejo isso sempre que eles vêm visitar-vos. Apesar de viverem longe de Memphis, vocês os três são uma equipa.

Ele encheu-lhe o copo.

- Gostavas de ter tido irmãos, quando eras pequena?

- Gostava. Tinha amigos e primos com quem brincar, mas gostava. Principalmente se fosse uma irmã. Alguém a quem contar segredos no meio da noite ou mesmo com quem discutir. Tu tiveste tudo isso.

- Quando éramos miúdos, era como se fôssemos um gangue. Especialmente quando o David se juntava a nós.

- Aposto que vocês os quatro davam com a Roz em doida. Ele sorriu e levantou o copo.

- Fazíamos o que podíamos. Os Verões eram longos, como devem ser quando se é criança. Dias quentes e compridos, e o jardim e os bosques eram o mundo inteiro. Lembro-me do cheiro, verde e denso. E nesta altura do ano ouviam-se as cigarras durante a noite inteira.

- Eu costumava deixar a janela um bocadinho aberta à noite para as ouvir melhor. Imagino que vocês se deviam meter em todo o tipo de sarilhos.

- Provavelmente mais do que devíamos. A mamã não deixava passar nada. Tinha uma espécie de radar, chegava a ser assustador. Lembro-me de ela estar no jardim ou em casa a fazer qualquer coisa e, quando eu aparecia, ela sabia logo que tinha estado a fazer alguma coisa que não devia.

Ela apoiou o cotovelo na mesa e o queixo na mão.

- Por exemplo?

- O mais espantoso, pelo menos na altura, foi quando eu estive com uma rapariga pela primeira vez. - Mergulhou um morango nas natas e estendeu-o para ela morder. - Cheguei a casa depois de ter tido a primeira amostra do Paraíso no banco de trás do meu adorado Camaro, cerca de seis meses antes de fazer dezasseis anos. Ela entrou no meu quarto na manhã seguinte e pôs uma caixa de preservativos em cima da minha cómoda.

Abanou a cabeça e engoliu o resto do morango.

- Ela disse, e lembro-me muito bem disso, que já tínhamos conversado sobre sexo e responsabilidade, sobre segurança e ser esperto e ter cuidado, portanto partia do princípio de que eu usara protecção e continuaria a usar. Depois perguntou-me se tinha alguma pergunta ou comentário.

- O que disseste?

- Disse: ”Não, mamã.” E quando ela saiu enfiei a cabeça debaixo dos cobertores e perguntei a Deus como raio é que a minha mãe sabia que eu tinha tido sexo com a Jenny Proctor no meu Câmara. Foi ao mesmo tempo espantoso e humilhante.

- Espero conseguir ser assim.

Ele levantou as sobrancelhas e pegou noutro morango.

- Espantada e humilhada?

- Não, tão inteligente como a tua mãe. Tão sensata como ela em relação à Lily.

- A Lily não tem autorização para ter sexo antes dos trinta anos e só depois de já estar casada pelo menos há dois.

- Naturalmente, isso nem é preciso dizer. - Mordeu o morango que ele lhe ofereceu e soltou um gemido de prazer. - O que aconteceu à Jenny Proctor?

-Jenny? - A expressão dele, uma espécie de meio sorriso, disse a Hayley que ele recuara no passado. - Ora, ficou perdida de amores por mim. Foi obrigada a ir para a universidade na Califórnia, onde casou com um guionista e acabou por ficar por lá.

- Coitadinha. Não devia beber mais - disse, quando ele lhe encheu novamente o copo. - Já estou meio tonta.

- Não tem jeito nenhum deixar as coisas a meio.

Ela inclinou a cabeça e lançou-lhe um olhar deliberadamente provocador.

- Faz parte do alinhamento de que falaste embriagares-me com champanhe para poderes fazer comigo o que quiseres?

- Estava nos planos.

- Graças a Deus. E ainda falta muito? Acho quê não consigo ficar aqui sentada a olhar para ti durante muito mais tempo sem tu me tocares.

Os olhos dele ficaram mais escuros quando se levantou e estendeu a mão.

- O meu plano era este: ia convidar-te para dançar, para te poder ter nos braços, mais ou menos assim.

Ela encostou-se a ele.

- Até agora não encontrei uma única falha no teu plano.

- Depois ia beijar-te, aqui. - Roçou os lábios na têmpora dela. - E aqui.

- Na face. - E aqui. - Finalmente na boca, um beijo lento e cada vez mais profundo, até aquele encontro de lábios ser o centro do universo.

- Quero-te tanto. - Ela encostou-se a ele, aninhando-se. - Não aguento mais. Por favor, Harper, fico louca se não me fizeres tua.

Ele fê-la rodopiar até aos degraus, parou junto deles e fitou-a nos olhos.

- Vem para cima e fica comigo.

Com a mão na dele, Hayley começou a subir e depois soltou uma gargalhada, meio ofegante.

- Tenho as pernas a tremer. Nem sei se é por causa dos nervos ou da excitação. Já me imaginei contigo tantas vezes, mas nunca imaginei que estaria nervosa.

- Vamos com calma. Não há pressa.

Ela tinha o coração aos saltos, mas ainda havia uma coisa que tinha de dizer.

- Ah... eu estou a usar uma coisa... anticoncepcional... mas acho que devíamos... não trouxe preservativos.

- Eu trato disso.

- Devia ter imaginado que tu pensarias em tudo.

- Estou sempre preparado.

- Foste escuteiro?

- Não, mas namorei com algumas ex-escuteiras. Isso fê-la rir, e sentiu-se relaxar de novo.

- Acho... - Mas ficou sem palavras quando entrou no quarto. Havia velas à espera de serem acesas e a iluminação era suave. A cama já estava aberta, com um lírio vermelho pousado na almofada.

Todo aquele romantismo era esmagador.

- Oh, Harper...

- Espera. - Ele deu a volta ao quarto, acendendo as velas, e apagou a luz. Depois pegou na flor e ofereceu-lha. - Trouxe-te estas flores porque é como penso em ti, como penso em ti desde que te conheci. Nunca pensei em mais ninguém da mesma maneira.

Ela encostou as pétalas à face, aspirou o seu perfume e pousou a flor.

- Despe-me.

Ele levantou a mão, fez cair a alça fina do seu ombro e pousou os lábios onde ela estivera. Hayley, por sua vez, com o coração a bater como um tambor, despiu-lhe o casaco.

Depois as bocas de ambos encontraram-se enquanto os dedos dela abriam os botões da camisa dele e ele abria o fecho ecler nas costas do vestido dela. As mãos dele deslizaram sobre as suas costas e as dela sobre o peito dele. Quando o vestido caiu no chão, ela deu um passo para trás e susteve a respiração quando ele se afastou para olhar para ela.

Hayley vestia apenas pedacinhos de tecido leve e encarnado que tremeluziam sob a luz das velas contra a sua pele clara. E saltos muito altos, com pernas muito compridas. O desejo, já impossivelmente forte, apertou o ventre de Harper.

- És fantástica.

- Sou magrinha. Só ângulos e nada de curvas.

Ele abanou a cabeça e estendeu a mão para traçar com um dedo a curva subtil do seio dela.

- Delicada, como o caule de um lírio. Porque não soltas o cabelo? De olhos nos dele, ela ergueu as mãos para retirar os ganchos, depois passou os dedos pelo cabelo. E esperou.

- Fantástica - repetiu ele. Pegou-lhe na mão e puxou-a para a cama. Senta-te - disse, ajoelhando em frente dela para lhe descalçar os sapatos.

Deslizou os lábios sobre a perna dela e as mãos de Hayley apertaram a beira da cama.

- Oh, meu Deus...

- Deixa-me fazer as coisas que sonhei fazer. - Os dentes dele mordiscaram a parte de trás do seu joelho. - Todas.

Nunca pensaria em negá-lo e nenhuma palavra conseguiria ultrapassar a vaga de sensações que a invadia. A língua dele deslizou pela sua coxa, a boca queimando-lhe a pele, enquanto as mãos subiam, acariciando-lhe os seios com as pontas dos dedos até a dor do desejo se sobrepor ao bater louco do seu coração.

Estremeceu e chamou o nome dele, caindo de costas sobre a cama.

Agora podia apertá-lo contra si, tocar-lhe como estava a ser tocada. Saborear como estava a ser saboreada. O prazer invadiu-a - o deslizar das mãos dele, o calor dos seus lábios, a sua respiração enquanto rolavam juntos à procura de mais.

Não havia pressa, dissera-lhe ele, mas não conseguia forçar as mãos a serem mais lentas. Elas queriam mais e mais. Os seios dela nas suas mãos, na sua boca, pequenos e firmes e suaves como seda, e quando os saboreou ela arqueou as costas, expondo as linhas longas da garganta.

Por fim, ela era sua.

As unhas dela cravaram-se nas suas costas, roçaram-lhe as ancas. Uma ligeira dor excitante. Depois ela estava por cima dele, a sua boca tão ávida como a dele, os seus gemidos rugindo na cabeça dele como uma tempestade.

A luz das velas reflectia-se sobre a pele dela, uma pele húmida com o calor que passava entre ambos. O dourado daquelas luzes tremeluzentes brilhava no azul profundo dos olhos de Hayley quando ele fez deslizar a mão sobre ela, encontrando-a quente, encontrando-a húmida.

O orgasmo foi como uma explosão de luz, um clarão atordoante que a deixou cega, que lhe incendiou o corpo e o deixou a brilhar. Sentiu-se deslizar para o esquecimento, depois voltar a um mundo brilhante de sensações vertiginosas. O seu corpo estava acordado, vivo.

Depois a boca dele encontrou a sua e lançou-a numa espiral para lá do prazer. Era um calor fervilhante que aumentava cada vez mais até por fim se derramar através dela, deixando-a fraca e tonta quando ele a puxou até ficar de joelhos.

Olhou para ela, para dentro dela, era o que parecia, tão profundamente que Hayley pensou que ele devia estar a ver tudo o que ela era. E a sua boca apoderou-se da dela num beijo que lhe fez tremer o coração.

Então era isto o amor, pensou ela. Esta confiança total, esta rendição. Esta dádiva total do coração que a deixava aberta, indefesa. E repleta de felicidade.

Levou a mão à face de Harper, abrindo os lábios num sorriso enquanto enrolava as pernas à volta dele.

- Sim - disse, e recebeu-o dentro de si. - Sim. - E arqueou as costas com um gemido quando a beleza a esmagou.

Ele encostou a testa ao ombro dela, quase incapaz de respirar enquanto ela se fechava à volta dele. Mas puxou-a para si, coração contra coração. Não era suficientemente perto, pensou. Nunca seria suficientemente perto.

Os braços dela fecharam-se à volta dele e a sua boca encontrou a dele enquanto se conduziam um ao outro até ao limite e para lá dele.

Provavelmente haveria coisas mais relaxantes do que estar deitada numa cama grande, entrelaçada com o seu amor depois de sexo escaldante, mas Hayley achava que deviam ser todas ilegais.

E, fosse como fosse, ela preferia este bem-estar.

Em termos de noites românticas, esta deixava muito longe tudo o que ela já vivera. Ainda nas nuvens, aproximou o corpo um pouco mais do dele e sorriu com ar sonhador quando a mão de Harper lhe acariciou as costas.

- Foi maravilhoso - murmurou. - Tu és maravilhoso. É tudo maravilhoso. Acho que, se saísse para a rua agora, esta luz dentro de mim cegaria toda a população de Memphis.

- Se saísses para a rua agora, eras presa. - A sua mão deslizou mais para baixo. - É melhor ficares aqui comigo.

- Provavelmente tens razão. Hum, sinto-me tão relaxada. - Espreguiçou-se como um gato. - Acho que estava bastante bloqueada, sabes? O faça-você-mesmo não é de longe tão satisfatório como... oh, meu Deus, nem acredito que disse isto.

Ele riu e prendeu-a contra si antes que ela conseguisse afastar-se.

- Fico feliz por ter sido útil.

Hayley escondeu o rosto no ombro dele.

- Às vezes as coisas saltam-me da boca. Não sou nenhuma maníaca sexual, nem nada.

- Oh, acabas de despedaçar os meus sonhos. Ela aconchegou-se e ergueu o rosto.

- É bom estar aqui, assim. Só estar assim - disse, passando os dedos pelo cabelo dele. - Quente e confortável, aninhada na cama. Gostava que pudéssemos ficar e que esta noite nunca acabasse.

- Podemos ficar e, quando a noite acabar, podemos tomar o pequeno-almoço aqui mesmo na cama.

- Parece delicioso, mas sabes que não posso. A Lily...

- Está a dormir profundamente no berço que pusemos na sala de estar da minha mãe esta tarde. - Quando ela arregalou os olhos, ele beijou-lhe a testa. - A mamã estava praticamente a esfregar as mãos de contente com a perspectiva de ficar com ela uma noite inteira.

- A tua mãe... - soergueu-se sobre o cotovelo. - Meu Deus, toda a gente sabia disto menos eu?

- Praticamente.

- A Roz sabe que nós... isso é muito estranho. Mas acho que não devia...

- A minha mãe disse-me para te recordar que ela conseguiu criar três rapazes, que sobreviveram todos e nenhum dos quais está na prisão.

- Mas... sou uma mãe terrível. Quero ficar aqui.

- Não és uma mãe terrível. És uma mãe fantástica. - Sentaram-se e ele segurou-lhe nos ombros. - Sabes que a Lily está bem e sabes que a minha mãe adora ficar com ela.

- Eu sei. Eu sei disso, mas... e se ela acordar e chamar por mim? Está bem - disse, com um suspiro, quando Harper ergueu as sobrancelhas. - Se ela acordar, a Roz estará lá. E a Lily adora estar com ela e com o Mitch. Estou a ser pateta.

- Uma pateta linda.

Ela olhou em volta. Um quarto lindo, sumptuoso... liberdade total.

- Podemos mesmo ficar?

- Estou com esperança de que queiras ficar. Ela mordeu o lábio.

- Não tenho... nada, sabes? Nem sequer uma escova de dentes. Uma escova de cabelo. Não tenho a minha...

- O David fez-te uma mala.

- O David... bom, está bem, então. Ele sabe do que eu preciso. - Sentiu a felicidade invadi-la. - Vamos mesmo ficar?

- É esse o plano. Se tu quiseres.

- Se eu quiser? - repetiu Hayley, e os seus olhos brilhavam quando se lançou nos braços dele. - Deixa-me mostrar-te o que penso a esse respeito.

Mais tarde, ela saiu a correr da casa de banho.

- Harper, já viste estes roupões? São tão grandes e macios. - Esfregou a manga contra a face. - Há dois, um para cada um de nós.

Preguiçosamente, ele abriu um olho. ”Esta mulher”, pensou, ”está a revelar-se insaciável.” Deus o ajudasse.

- Giro.

- Tudo aqui é maravilhoso.

- Suite Romeu e Julieta - murmurou ele, quase a dormir.

- O quê?

- A suite. É a suite Romeu e Julieta.

- A sério? Mas isso... - Franziu a testa. - Bom, se pensarmos melhor, eles eram apenas dois adolescentes com tendências suicidas.

Harper riu-se e abriu os olhos.

- Só mesmo tu.

- Nunca achei a história romântica. Foi apenas trágica... e muito estúpida. Não a peça - corrigiu-se, dando uma volta para fazer rodar o roupão. A peça é brilhante, mas aqueles dois? Ops, ela morreu, vou beber este veneno. Ops, ele morreu, vou apunhalar-me no coração. Quer dizer, por amor de Deus... e não estou a dizer coisa com coisa.

- Tu és fascinante... - disse ele, sem tirar os olhos dela.

- Tenho opiniões muito fortes em relação aos livros. Mas, seja qual for o nome, esta suite é fabulosa. Dá-me vontade de dançar toda nua.

- Eu sabia que devia ter trazido a máquina fotográfica.

- Não me importava. - Segurando o roupão como uma capa, Hayley deu mais uma volta. - Acho que era sexy tirarmos fotografias um do outro todos nus. Assim, quando eu fosse velhinha e enrugada, podia olhar para elas e lembrar-me de ser jovem.

Saltou para cima da cama.

- Tens alguma fotografia tua, todo nu?

- Até agora, não.

- Olhem para ele. - Fez-lhe cócegas no joelho. - Estás embaraçado.

- Só um bocadinho. - Oh, sim, ela era fascinante, pensou. - E tu, tens alguma?

- Nunca confiei em ninguém o suficiente, até agora. E tenho esta constituição ossuda. Mas parece que tu não te importas.

- Acho que és linda.

Ele estava a ser sincero, não era um milagre? Hayley conseguia vê-lo nos olhos dele. Sentira-o no seu toque.

- Sinto-me bonita esta noite. - Levantou-se e enrolou-se no roupão branco. - Sumptuosa, sensual e supérflua.

- Vamos mandar vir sobremesa. Ela parou de rodopiar.

- Sobremesa? Mas são quase duas da manhã.

- Eles têm uma invenção maravilhosa chamada serviço de quartos vinte e quatro horas por dia.

- A noite toda? Sou mesmo pacóvia. Mas não me importo. - Atirou-se de novo para cima da cama. - Podemos comer aqui em cima? Na cama?

- As regras do serviço de quartos dizem que tudo o que se pedir depois da meia-noite tem de ser comido na cama. Em pêlo.

Ela dirigiu-lhe um sorriso malicioso.

- Regras são regras.

Pouco tempo depois estavam deitados de barriga para baixo, voltados um para o outro, com um prato de bolo de chocolate entre eles.

- Provavelmente vou ficar maldisposta - disse ela enquanto comia mais uma garfada. - Mas é tão bom.

- Toma. - Ele esticou o braço e conseguiu apanhar um dos copos que estavam no chão. - Para empurrar.

- Nem acredito que pediste outra garrafa de champanhe.

- Não podemos comer bolo de chocolate nus sem champanhe. É falta de classe.

- Se tu o dizes. - Bebeu um gole, tirou mais uma garfada de bolo e estendeu-o a Harper. - Sabes... - disse, abanando o garfo

-na escala de romantismo, vais ter muito trabalho para superar esta noite. Acho que não me contentarei com nada menos do que, oh, não sei, um fim-de-semana em Paris ou talvez um saltinho à Toscânia para fazer amor entre as vinhas.

- E que tal uma semana de sexo e sol em Bimini?

- Semana de sexo e sol. - Ela riu-se. - Diz isso três vezes muito depressa. - Com um gemido, virou-se de costas. - Se comer mais uma dentada, acho que me vou arrepender para o resto da vida.

- Isso não pode ser. - Ele tirou o prato da cama. Depois chegou-se para cima e pousou os lábios nos dela, num beijo de cabeça para baixo.

- Hum. - Ela lambeu os lábios quando ele se afastou. - Tens um sabor muito potente.

- É do chocolate.

Hayley sorriu enquanto ele deslizava sobre ela, as mãos percorrendo-lhe os seios, o tronco, a barriga. Depois prendeu a respiração quando ele mordiscou.

- Oh, meu Deus, Harper...

- Esqueci-me de mencionar esta parte da sobremesa. - Estendeu o braço, enfiou o dedo nas natas e no chocolate e esfregou-o no seio dela. Ops... é melhor limpar isso.

Ela sentia-se tão importante e cosmopolita ao sair do elevador no átrio com o saco na mão. Era quase meio-dia e estava apenas a começar o dia. Tomara o pequeno-almoço na cama. Na verdade, pensou, fizera na cama praticamente tudo o que estava disponível no estado do Tennessee.

Imaginou que até as unhas dos pés deviam estar a brilhar.

- Vou tratar das contas - disse ele, beijando-lhe os lábios ao de leve. Porque não te sentas?

- Vou dar uma vista de olhos. É tudo tão bonito. E quero comprar umas coisas na loja de recordações.

- Volto já.

Ela soltou um suspiro feliz. Queria recordar tudo. As pessoas, a fonte, os paquetes muito bem fardados, as vitrinas com arte e jóias.

Comprou um pequeno pato que fazia ”quá-quá” para Lily e uma moldura de prata como prenda de agradecimento para Roz. Depois havia sabonetes em forma de pato e a touca amarela que ficaria tão gira na Lily. E...

- Nenhum homem no seu perfeito juízo deixa uma mulher sozinha numa loja de recordações - disse Harper atrás dela.

- Não consigo evitar. É tudo tão bonito. Não - disse, quando viu que ele estava a tirar a carteira. - Eu pago isto. - Pousou os artigos em cima do balcão e, depois de a empregada os registar, pegou numa caixa. - Isto é para ti.

- Sabonete em forma de pato? Ela inclinou a cabeça.

- Para comemorar a nossa estada. Divertimo-nos imenso - disse à empregada.

- Ainda bem que gostaram do hotel. Negócios ou prazer?

- Apenas prazer. - Hayley pegou no saco. - Montes e montes de prazer.

- Enfiou a mão livre na de Harper e regressaram ao átrio. - É melhor voltarmos para casa antes que a Lily se esqueça de mim e... oh, céus, olha para aquela pulseira!

A montra de um joalheiro local brilhava e cintilava, mas tudo o que Hayley conseguia ver era a pulseira delicada com diamantes brancos emoldurando corações feitos de rubis.

- É fantástica, não é? Quer dizer, é elegante, até mesmo delicada, e os corações tornam-na romântica, mas tem qualquer coisa que diz: ”Eh, sou uma peça importante.” Talvez por ser uma peça de época. As jóias antigas têm tanta... qual é a palavra? Classe - concluiu.

- É gira.

- Gira. - Ela revirou os olhos e olhou para ele. - Homens. É deslumbrante, é o que é. Algumas das outras peças têm pedras maiores, mais diamantes, seja o que for, mas é esta que se destaca. Pelo menos para mim.

Ele procurou o nome e a morada da loja.

- Vamos comprá-la.

- Claro. - Ela riu-se e olhou para ele. - Porque não compramos um carro novo pelo caminho, já agora?

- Gosto do meu carro. A pulseira ficava-te bem. Os rubis devem ser a tua pedra.

- Harper, a minha pedra é o plástico.

Puxou-lhe a mão mas ele continuou a inspeccionar a pulseira. E quanto mais olhava para ela, mais claramente a via em Hayley.

- Vou só falar com o recepcionista.

- Harper. - Agora perturbada, ela recuou. - Eu estava só a olhar. É o que as raparigas fazem... gostamos de ver montras.

- Quero comprá-la para ti.

Agora era mais do que perturbação, era quase pânico.

- Não podes comprar-me uma coisa destas. Provavelmente custa... nem faço ideia.

- Então vamos descobrir.

- Harper, espera. Não quero que me compres jóias caras. Não espero que faças coisas como esta. - Fez um gesto largo para abranger o hotel. Foi a noite mais incrível de toda a minha vida, mas não... Harper, não é por isso que estou contigo.

- Hayley, se fosse por isso, garanto-te que não estarias aqui. A noite passada foi para nós dois, e teve tanto significado para mim como para ti. Sou suficientemente parecido com a minha mãe para que saibas que, se faço uma coisa destas, é porque quero. Quero comprar-te esta pulseira e, se não estiver fora das minhas possibilidades, é isso que vou fazer. - Beijou-a na testa. - Espera um minuto.

Sem palavras, Hayley viu-o dirigir-se à recepção.

E, na viagem até casa, continuou sem palavras enquanto olhava para o brilho dos corações de rubis, nas suas molduras de diamantes, sobre o pulso dela.

 

Passou o resto da tarde a mimar Lily. Era um acto de compensação estranho e, supunha ela, estritamente maternal tentar equilibrar o facto de ter sentido falta da sua bebé com o facto de se ter divertido imenso sem ela. A culpa, pensou, tomava muitas formas. Quando Roz chegou do trabalho, Hayley sentia-se extremamente culpada.

- Bem-vinda a casa. - Roz endireitou as costas e olhou para Hayley, que estava de pé no vestíbulo. - Divertiste-te?

- Sim, muito. Foi maravilhoso. Mais do que maravilhoso. Devia começar por dizer que criaste um homem incrível.

- Era esse o objectivo.

- Roz, não sei como te agradecer por teres ficado com a Lily. - Inconscientemente, cobriu a pulseira com a outra mão. - Era mais do que eu podia esperar.

- Gostei muito de ficar com a Lily. Gostámos todos. Onde está ela?

- Consegui esgotá-la - disse Hayley com um sorriso embaraçado. - Quase lhe arranquei a pele com tantos beijos. Está a fazer uma sesta. Trouxe-te um presente.

- Que simpática. - Roz pegou na caixa e dirigiu-se à sala para a abrir. Sorriu ao ver a moldura, já com uma fotografia dela com Lily. - Adoro esta fotografia. Vou pô-la na secretária da minha sala.

- Espero que ela não tenha dado trabalho ontem à noite.

- Nenhum. Divertimo-nos imenso.

- Eu... nós... o Harper... Raios. Podemos sentar-nos um minuto?

Roz sentou-se obedientemente no sofá e pôs os pés em cima da mesa.

- Será que o David fez limonada? Era capaz de beber um litro.

- Eu vou buscar.

Roz apontou para uma cadeira.

- Eu já trato disso. Diz-me o que tens a dizer.

Hayley sentou-se, de costas muito direitas, com as mãos cruzadas no colo.

- Cheguei a conhecer as mães de alguns dos rapazes com quem namorei. Sempre nos demos bem. Mas nunca... é tão surreal ser amiga da mãe de um homem com quem estou... romanticamente envolvida.

- Eu diria que, de uma maneira geral, isso seria considerado um bónus.

- Não o ponho em causa. Talvez fosse menos surreal se eu te conhecesse e se tivéssemos ficado amigas depois de eu e ele estarmos...

- Romanticamente envolvidos.

- Sim. Não sei como hei-de falar contigo sobre o assunto, porque os elos entre nós se entrelaçam. Mas queria dizer-te que criaste um homem espantoso. Sei que já o disse, mas quero dizê-lo outra vez. O Harper deu-se a tanto trabalho, teve tanto cuidado para me dar algo especial. Não há muitos homens assim, pelo menos na minha experiência.

- Ele é um homem muito especial. Ainda bem que o vês e o aprecias.

- Sim, claro que sim. Ele arranjou uma suite linda, flores e velas. Champanhe. Nunca ninguém tinha feito nada assim por mim. Não me refiro apenas ao luxo, percebes? Eu ficaria contente com um prato de costeletas e um quarto de motel. E agora fui grosseira - murmurou, fechando os olhos.

- Grosseira não. Honesta. E refrescante.

- O que quero dizer é que nunca ninguém despendeu tanto tempo e tanto cuidado para planear uma noite a pensar em mim.

- É uma sensação desconcertante sermos conquistadas assim.

- É mesmo. - O alívio invadiu-a. - Sim, é exactamente isso. Ainda tenho a cabeça a andar à roda. Queria que soubesses que eu nunca me aproveitaria da natureza dele, da sua delicadeza.

- Ele comprou-te essa pulseira.

Hayley deu um salto e tapou-a com a mão.

- Sim. Roz...

- Tenho estado a admirá-la desde que entrei. E a ver-te escondê-la, como se te sentisses culpada. Como se a tivesses roubado.

- Sinto-me como se o tivesse feito.

- Oh, não sejas ridícula. - Roz franziu a testa e agitou a mão. - Vais irritar-me.

- Eu não a pedi. Disse-lhe para não a comprar. Tudo o que fiz foi admirá-la na montra e, quando dei por isso, ele já estava a falar com o recepcionista e com a joalharia. Não me quis dizer quanto custou.

- Espero bem que não - disse Roz firmemente. - Não foi assim que o eduquei.

- Roz, são pedras verdadeiras. É uma antiguidade. É uma antiguidade genuína.

- Passei a maior parte do dia em pé. Não me obrigues a levantar-me para a ver melhor.

Com as emoções num turbilhão, Hayley levantou-se, aproximou-se e estendeu o pulso. Roz puxou-a e fê-la sentar-se no sofá.

- É uma beleza e não há dúvida de que te fica bem. Quantos corações de rubis tem?

- Não os contei - começou Hayley a dizer, depois baixou o rosto sob o olhar divertido de Roz. - Catorze - confessou. - Com dez diamantes em volta e dois entre cada coração. Meu Deus, sou mesmo rude.

- Não, és uma rapariga. E uma rapariga com excelente gosto. Não a uses no trabalho, por mais que te apeteça, para não a sujares.

- Não estás aborrecida?

- O Harper é livre de gastar o seu dinheiro como bem entender e tem o bom senso de o gastar com algum discernimento. Deu-te uma prenda maravilhosa. Porque não consegues simplesmente apreciá-la?

- Pensei que ficarias zangada.

- Nesse caso, subestimas-me.

- Não, não. - Os seus olhos encheram-se de lágrimas e abraçou-se a Roz. - Adoro-te. Desculpa, estou tão confusa. Estou tão feliz, tão assustada. Estou apaixonada por ele. Estou apaixonada pelo Harper.

- Sim, querida. - Roz passou o braço sobre os ombros de Hayley e acariciou-a gentilmente. - Eu sei.

- Sabes? - Fungando, Hayley recuou e olhou para ela.

- Olha para ti. - Com um sorriso, Roz afastou o cabelo de Hayley das suas faces molhadas. - Aqui sentada a chorar, lágrimas de felicidade e de medo. O tipo de lágrimas que uma mulher derrama por um homem que descobriu amar loucamente, sem saber bem como diabo isso lhe aconteceu.

- Não tinha a certeza antes da noite passada. Sabia que gostava dele, que tinha carinho por ele, mas essencialmente pensava que queria saltar-lhe para cima. Depois... oh, meu Deus, meu Deus, disse mesmo isto? Mortificada, levou as mãos aos olhos. - Vês por que razão isto é surreal? Acabo de dizer à mãe do Harper que queria saltar-lhe para cima.

- Admito que a situação é relativamente original. Mas penso que a minha sensibilidade consegue aguentar.

- Tudo se abriu dentro de mim ontem à noite, abriu-se e transbordou. Nunca me senti assim. - Hayley levou a mão ao coração e os rubis cintilaram. - Nunca estive apaixonada antes, não completamente. E ontem pensei: é isto, é isto que sentimos quando estamos perdidas. Não lhe digas. Pegou na mão de Roz. - Por favor, não lhe digas.

- Não sou eu que tenho de lhe dizer. És tu, quando estiveres pronta. O amor é uma dádiva, Hayley, para ser dada e recebida livremente.

- O amor é uma mentira, uma ilusão criada por mulheres fracas e homens interesseiros. Uma desculpa para a classe média procriar e ignorar os que estão acima deles, para que estes possam casar dentro do seu próprio meio e acumular mais riqueza.

Roz sentiu um estremecimento percorrê-la e a respiração ficar-lhe presa na garganta. Mas endireitou-se e continuou a olhar para os olhos que já não pertenciam a Hayley.

- É assim que justificas as escolhas que fizeste?

- Vivi muito bem com as minhas escolhas. - Ela levantou o braço e sorriu enquanto acariciava a pulseira com o dedo. - Muito bem. Melhor do que aquela que me deu à luz. Ela dava-se por satisfeita em trabalhar de joelhos. Eu preferia trabalhar deitada. Podia ter vivido aqui.

Levantou-se e percorreu a sala.

- Devia ter vivido aqui. E agora estou aqui. Para sempre.

- Mas não és feliz. O que aconteceu? Porque estás aqui e porque és tão infeliz?

- Eu criei vida. - Girou sobre si própria e levou a mão à barriga. - Tu sabes o poder que isso representa. A vida a crescer em mim, de mim. E ele levou-o. O meu filho. - Olhou em volta, com olhos a faiscar. - O meu filho. Vim buscar o meu filho.

- Ele também já partiu. - Roz levantou-se lentamente. - Há muito tempo. Era o meu avô. Era um homem bom.

- Um bebé. O meu bebé. Um rapazinho pequeno e doce. Meu. Os homens, os homens são mentirosos, ladrões, traiçoeiros. Devia tê-lo matado.

- A criança?

Os olhos cintilaram, brilhantes e duros como os diamantes no seu pulso.

- Ao pai. Devia ter encontrado uma forma de o matar, de os matar a todos. Queimar a casa com eles lá dentro, enviar-nos a todos para o Inferno.

O ar estava frio e a piedade que Roz em tempos sentira não conseguia ultrapassar aquele gelo.

- O que fizeste?

- Vim, vim de noite. Silenciosa como um rato. - Levou o dedo aos lábios e desatou a rir. - Nada - girou num círculo, de braços erguidos, com os rubis e os diamantes a cintilarem. - Nada, ninguém. Não restava nada para mim. - Inclinou a cabeça e o seu olhar voltou-se para o monitor de bebé, onde Lily, que acordara, choramingava.

- O bebé. O bebé está a chorar.

A cabeça tombou-lhe e caiu redonda no chão.

- Mitch! David! - Roz correu para Hayley e ajoelhou-se ao seu lado.

- Estou um bocadinho tonta - murmurou Hayley, passando a mão pelo rosto. Depois olhou em volta e apertou a mão de Roz. - O que foi? O que foi?

- Está tudo bem. Deixa-te estar deitada um minuto. David. - Roz olhou por cima do ombro quando os dois homens entraram apressadamente na sala. - Vai buscar um pouco de água e o brandy.

- O que aconteceu? - inquiriu Mitch.

- Ela teve um ataque, um episódio.

- Lily... A Lily está a chorar.

- Eu vou lá - disse Mitch, tocando no ombro de Hayley. - Eu vou buscá-la.

- Lembro-me... acho eu. Mais ou menos. Dói-me a cabeça.

- Muito bem, querida. Vamos levar-te para o sofá.

- Estou um bocadinho enjoada - disse Hayley quando Roz a ajudou a levantar-se. - Não me apercebi de nada, Roz. De repente ela estava aqui... e foi mais forte desta vez. Muito mais.

David trouxe água e brandy e, sentando-se do outro lado de Hayley, pôs-lhe um copo de água na mão.

- Aqui tens, boneca, bebe um pouco de água.

- Obrigada. Estou bem, já me sinto melhor. Só um pouco abalada.

- Não és a única - disse Roz.

- Tu falaste com ela.

- Tivemos uma conversa interessante.

- Fizeste-lhe perguntas. Não sei como conseguiste manter a calma.

- Bebe um pouco de brandy - sugeriu Roz, mas Hayley franziu o nariz.

- Não gosto. Estou melhor, a sério.

- Então eu bebo a tua parte. - Roz pegou no copo e bebeu um grande gole. Mitch entrou com Lily.

- Ela deve querer sumo. Gosta de um pouco de sumo quando acorda da sesta.

- Eu vou buscar - disse Mitch a Hayley.

- Não, eu levo-lhe o sumo. Gostava de fazer alguma coisa normal durante uns minutos. - Levantou-se e estendeu os braços para Lily, que já estava a estender os braços para ela. - Minha linda menina. Voltamos já.

Roz levantou-se quando Hayley saiu da sala.

- Vou chamar o Harper. Ele vai querer saber o que se passou.

- Eu próprio gostava de saber o que se passou - recordou-lhe Mitch.

- Vais precisar do bloco e do gravador.

- Estávamos apenas aqui sentadas a conversar. Eu contava à Roz como me diverti ontem à noite e mostrei-lhe a pulseira. E... desculpa, Harper... mas estava a dizer-lhe que me sentia culpada por tu ma teres comprado. Acho que fiquei um pouco emotiva. - Lançou um olhar suplicante a Roz, implorando-lhe que não traísse a sua confiança. - E depois ela estava aqui.

De repente. As minhas memórias são um pouco vagas. Era como estar a ouvir uma conversa... como quando encostamos um copo à parede para ouvir o que as pessoas estão a dizer na sala do lado. Muito agudo e cheio de eco.

- Na minha opinião, ela estava divertida, mas não no bom sentido começou Roz, e relatou-lhes o resto da conversa.

- Ela estava habituada a receber presentes em troca de sexo - disse Mitch, escrevinhando no seu bloco de notas. - Portanto seria assim que entenderia a pulseira que Hayley tem posta. Não seria capaz de compreender - continuou, apercebendo-se do gemido angustiado de Hayley. - Generosidade ou o prazer de dar apenas por dar. Quando alguém lhe dava alguma coisa, era uma troca. Nunca uma manifestação de afecto.

Hayley acenou em sinal de compreensão e continuou sentada no chão com Lily.

- Ela veio aqui - continuou ele. - Segundo as suas próprias palavras, veio aqui de noite. Queria fazer mal ao Reginald, talvez a todos os habitantes da casa. Talvez até fossem esses os seus planos. Mas não o fez. Podemos presumir que lhe aconteceu algo de mau a ela, aqui. Disse que agora estava aqui, para sempre.

- Morreu aqui - disse Hayley com um aceno. - E continua aqui. Sim. Foi a sensação que tive. Quase como se conseguisse ver o que se passava na cabeça dela. E foi essa a sensação que tive. Ela morreu aqui, por isso vai ficar aqui. E pensa no filho que teve como se ainda fosse um bebé. Ela é como era na altura e, na sua cabeça... acho eu... o filho também.

- Ela sente empatia, é atraída por crianças - terminou Harper. - Depois de crescerem, deixam de servir como substitutos do filho. Especialmente se crescem e se tornam homens.

- Ela veio em minha ajuda quando eu precisei - recordou-lhes Roz. Reconhece a relação de sangue. Pelo menos quando lhe interessa. As emoções exacerbadas de Hayley trouxeram-na ao de cima. Mas depois respondeu a perguntas, falou de forma inteligente.

- Então eu sou uma espécie de canal - disse Hayley, reprimindo outro arrepio. - Mas porquê eu?

- Talvez por teres sido mãe há pouco tempo - sugeriu Mitch. - Tens mais ou menos a idade que ela tinha quando morreu, estás a criar uma criança... algo que lhe foi negado. Ela criou vida. E foi-lhe roubada. Quando a vida é roubada, o que resta?

- A morte - disse Hayley com um arrepio. Ficou onde estava quando Lily correu para Harper e levantou os braços para ele lhe pegar ao colo. Ela está a ficar mais forte, foi o que senti. Gosta de ter um corpo à sua volta, de poder falar. E quer mais ainda. Quer...

Deu por si a brincar com a pulseira e olhou para ela.

- Esqueci-me - murmurou. - Oh, céus, esqueci-me. Ontem à noite, quando estava a vestir-me, olhei para o espelho e ela estava ali.

- Tiveste uma experiência destas ontem à noite? - inquiriu Harper.

- Não. Quer dizer, não como esta. Ela estava no espelho em vez de mim. Não fui... - abanou a cabeça, impaciente. - Eu era eu, mas o reflexo era dela. Não disse nada porque não queria passar a noite a falar nisso. Só queria sair um pouco e depois, com tudo o que aconteceu... nunca mais me lembrei, até agora. Ela não estava como das outras vezes em que a vimos.

- Como assim? - perguntou Mitch, de lápis em punho.

- Estava toda arranjada. Tinha um vestido encarnado, mas não o que eu tinha. Era um vestido elegante, decotado, sem ombros. Um vestido de baile, suponho, trazia muitas jóias. Rubis e diamantes. O colar era... - calou-se e olhou para a pulseira, muda de choque.

- Rubis e diamantes - repetiu. - Ela tinha isto. Esta pulseira. Tenho a certeza. Quando a vi no hotel, senti-me atraída por ela. Não conseguia ver mais nada daquela montra. Ela trazia esta pulseira no pulso direito. Era dela. Isto era dela.

Mitch levantou-se, agachou-se no chão ao lado de Hayley e examinou a pulseira.

- Não percebo nada de jóias antigas. Harper, o joalheiro disse-te alguma coisa sobre a pulseira?

- Foi feita por volta de 1890 - respondeu Harper com uma voz tensa. Nunca me ocorreu tal coisa.

- Talvez ela te tenha forçado a comprá-la para mim. - Hayley levantou-se. - Se ela...

- Não. Eu quis dar-te alguma coisa. É tão simples como isso. Se te sentes pouco confortável por a usar, ou impressionada, podes guardá-la no cofre.

”Confiança total”, recordou ela. Era isso o amor.

- Não. Não foi uma troca, foi um presente. - Aproximou-se dele e beijou-o levemente nos lábios. - Ela que se lixe.

- Aí está a minha menina.

Lily bateu-lhe no rosto até ele olhar para ela, depois encostou a boca à dele.

- Ou melhor, uma das minhas meninas - acrescentou Harper.

A noite, já estava novamente calma. E ficou ainda mais calma quando se sentou na cadeira de baloiço com Lily. Dava muito valor a estes momentos, quando o quarto estava silencioso e podia embalar a sua bebé até ela adormecer. Cantava para ela e, apesar de não ter grande voz, Lily parecia gostar.

Era isto que Amélia queria, talvez aquilo que mais queria, por trás de toda a loucura. Apenas estes momentos de unidade e de paz, uma mãe a adormecer o filho com uma canção de embalar.

Tentaria recordar-se disso, prometeu Hayley a si própria, sempre que se sentisse demasiado assustada ou zangada. Tentaria lembrar-se do que Amélia perdera e do que lhe fora roubado.

Cantou ”Hush, Little Baby”, porque sabia a letra toda. E geralmente Lily já estava a dormir quando a canção chegava ao fim.

Estava quase a acabar quando um movimento na porta fez com que o coração lhe saltasse no peito. Depois acalmou-se quando viu Harper a sorrir-lhe. Na mesma voz sussurrada com que estava a cantar, avisou-o:

- Ela não adormece se te vir.

Ele acenou, olhou para elas durante mais um instante e desapareceu. Cantarolando, Hayley levantou-se e aninhou Lily no berço, com o seu cão de peluche ao alcance das mãozinhas.

- Quando tiveres três anos, a mamã arranja-te um cãozinho a sério. Está bem, quando tiveres dois, mas é a minha última oferta. Boa noite, bebé.

Deixando a luz de presença acesa, saiu e deixou a filha a dormir. Harper estava à porta do terraço e virou-se quando ela entrou no quarto.

- Era uma imagem muito bonita, tu e a Lily naquela cadeira. A minha mãe diz que costumava embalar-nos até adormecermos naquela cadeira.

- É por isso que sabe tão bem. Já muito amor se sentou naquela cadeira.

- Está mais fresco hoje. Talvez possamos sentar-nos lá fora um bocadinho.

- Está bem. - Pegou no monitor de bebé e acompanhou-o.

Em frente do corrimão, havia três vasos de cobre enormes a florirem ao ar livre. Este ano fora ela que ficara encarregada de seleccionar as plantas e de as colocar nos vasos, e ficava sempre encantada quando via a mistura de cores, formas e texturas.

- Não me importo com o calor, pelo menos a esta hora. - Inclinou-se e cheirou uma flor roxa. - Daqui a pouco, os pirilampos aparecem e as cigarras começam a cantar.

-Apanhei um susto quando a minha mãe me chamou, há bocado.

- Imagino.

- O que te quero dizer é isto. - Passou a mão distraidamente pelo braço dela. - Não devias ficar aqui depois desta noite. Podes ir uns tempos para casa do Logan e da Stella. Tira uns dias - continuou, quando ela se virou para olhar para ele.

- Uns dias?

- Os viveiros também pertencem à Harper House. Era melhor afastares-te durante algum tempo. O Mitch e eu vamos tentar ver o que podemos descobrir sobre a pulseira, se é que isso adiantará alguma coisa.

- Estás a dizer que devo fazer as malas e mudar-me para casa da Stella, deixar o trabalho?

- Eu não disse deixar. Tirar uns dias.

A sua voz era muito paciente, o tipo de paciência que a irritava como unhas a raspar num quadro negro.

- Uns dias.

- Sim. Já falei com a minha mãe a esse respeito e com a Stella sobre ficares com eles durante algum tempo.

- Ah sim? Já falaste com eles?

Harper sabia ver quando uma mulher estava prestes a explodir

- Não vale a pena ficares ofendida. É a coisa mais sensata a fazer.

- Então achas que a coisa mais sensata é tomares decisões por mim, discuti-las com as outras pessoas e depois apresentares-me os factos consumados? - Deliberadamente, deu um passo atrás, como se quisesse mostrar-lhe que era independente. - Não podes dizer-me o que fazer, Harper, e eu não vou sair desta casa a menos que a Roz me ponha na rua.

- Ninguém te está a pôr na rua. Qual é o mal de ficares com uma amiga durante uns dias?

Parecia tão razoável. Era irritante.

- Porque esta é a minha casa, agora. É aqui que eu vivo e os viveiros são onde eu trabalho.

- E continuará a ser a tua casa, continuará a ser onde vives e onde trabalhas. Por amor de Deus, não sejas tão casmurra.

O acesso de mau génio deixou-a deliciada. Significava que podia responder da mesma maneira.

- Não me fales nesse tom e não me chames nomes.

- Não estou a... - Engoliu o resto das palavras, enfiou as mãos nos bolsos e começou a percorrer o terraço com passo irritado enquanto tentava controlar o mau génio. - Disseste que ela estava a ficar mais forte. Por que raio hás-de querer ficar aqui, correr o risco de que te aconteça alguma coisa, quando tudo o que tens de fazer para estar em segurança é mudares-te para uma casa a três quilómetros daqui? Temporariamente.

- Quanto tempo é temporariamente? Já calculaste isso também? Esperas que fique sentada na casa da Stella a olhar para o ar até tu decidires que posso voltar?

- Até ser seguro.

- E como sabes quando será seguro, se alguma vez será seguro? E, se estás assim tão preocupado, porque não estás a fazer as tuas malas?

- Porque eu... - Pigarreou e olhou para o jardim.

- Muito sensato da tua parte controlar a língua antes de fazeres algum comentário do género ”porque eu sou um homem”. Mas eu vi no teu rosto que era isso que ias dizer. - Empurrou-o com força. - Não penses que não vi o que esteve quase a sair-te da boca.

- Não me queiras dizer o que esteve quase a sair-me da boca e não ponhas nela palavras que eu não disse. Quero que estejas em algum lado onde eu não tenha de me preocupar contigo.

- Ninguém te está a pedir que te preocupes. Já tomo conta de mim própria há muitos anos. Não sou tão estúpida ou tão casmurra que não esteja preocupada com o que se está a passar. Mas também sou suficientemente inteligente para saber que talvez eu seja a última hipótese. Talvez me caiba a mim pôr um fim a isto tudo. A Roz falou com ela, Harper. Para a próxima vez, pode haver respostas que nos digam o que aconteceu e o que é preciso fazer para corrigir as coisas.

- Para a próxima vez? Ouve bem o que estás a dizer. Não quero que ela te toque.

- A decisão não é tua, e eu não sou pessoa de desistir. Conheces-me assim tão mal para achares que eu ia dizer ”sim, Harper” e obedecer como um cachorrinho bem-comportado?

- Raios, Hayley, não estou a tentar mandar na tua vida. Estou apenas a tentar proteger-te.

Claro que estava. E parecia tão aflito e frustrado que ela teve de se enternecer. Um bocadinho.

- Não podes. Não desta maneira. E a única coisa que vais conseguir fazendo planos pelas minhas costas, sem falar comigo primeiro, é aborrecer-me.

- Que novidade. Então dá-me uma semana. Afasta-te durante uma semana e deixa-me tentar...

- Harper, eles tiraram-lhe o filho. Enlouqueceram-na. Talvez ela já estivesse a caminho da loucura, mas sem dúvida que lhe deram o último empurrão. Eu faço parte disto há mais de um ano. Não posso virar costas agora.

Levantou a mão e acariciou a pulseira que continuava a usar.

- Ela mostrou-me isto. De alguma maneira. Estou a usar algo que era dela. Que tu me deste. Significa alguma coisa. Tenho de descobrir o que é.

E preciso muito de ficar aqui, perto de ti. - A sua expressão suavizou-se e tocou-lhe no rosto. - Tinhas de saber que eu ficaria. O que disse a tua mãe quando lhe contaste que me ias pedir para ir para casa da Stella? Ele encolheu os ombros e aproximou-se do corrimão.

- Tal como eu imaginava. E imagino que a Stella terá dito o mesmo.

- O Logan concordou comigo.

- Aposto que sim. - Aproximou-se dele, abraçou-o e encostou o rosto às suas costas.

Ele tinha umas costas fortes. Um homem trabalhador, o príncipe do castelo. Que combinação fascinante.

- Agradeço a intenção, embora não aprecie o método. Isso ajuda?

- Não muito.

- Então e se eu disser... é agradável saber que gostas de mim o suficiente para tentares mandar em mim?

- Não é querer mandar em ti... - Calou-se. Soltou uma imprecação e suspirou. Voltou-se e viu Hayley a sorrir. - Não vais ceder.

- Nem um centímetro. Acho que algum do sangue dos Ashby, por mais diluído que esteja em mim, deve ter glóbulos de teimosia. E quero participar na descoberta das respostas para tudo isto, Harper. É importante para mim, talvez ainda mais importante agora que partilho uma espécie de consciência com ela. Bolas, isto soa muito bizarro, mas não sei de que outra forma posso dizê-lo.

- Podias dizer a verdade, que ela te invade. Hayley ficou séria.

- Está bem, é justo. Ainda estás zangado e isso também é natural. Suponho que não me importo de saber que estás preocupado comigo o bastante para ficares zangado.

- Se vais ser razoável em relação a isto, ainda vou ficar mais irritado. Pousou as mãos nos ombros dela e acariciou-os. - Gosto muito de ti, Hayley, e estou mesmo preocupado.

- Eu sei. Mas lembra-te de que eu também gosto de mim e estou suficientemente preocupada para ser tão cuidadosa quanto possível.

- Vou ficar contigo esta noite. Não vou ceder em relação a isso.

- Ainda bem, porque é precisamente onde te quero. Sabes... - Deslizou as mãos pelo peito dele e cruzou-as na sua nuca. - Se começarmos com... intimidades, pode ser que ela faça alguma coisa. Acho que devíamos fazer o teste. - Pôs-se em bicos de pés e roçou os lábios nos dele. Uma espécie de experiência.

- Na minha área de trabalho, vivemos para as experiências.

- Anda para dentro. - Recuou e segurou as mãos dele nas suas. - Vamos montar o laboratório.

Mais tarde, deitados no escuro, virados um para o outro, Hayley acariciou o cabelo de Harper.

- Parece que desta vez ela não estava interessada.

- É impossível prever o que fará um fantasma que devia estar a assombrar um manicómio.

- Suponho que tens razão. - Aconchegou-se mais a ele. - És uma espécie de cientista, não és?

- Mais ou menos.

- Quando os cientistas fazem experiências, geralmente têm de tentar mais do que uma vez, talvez com algumas variáveis, ao longo de um determinado período de tempo. Foi o que ouvi dizer.

- É verdade.

- Então - ela fechou os olhos, quase a ronronar sob o toque da mão dele - temos de experimentar outra vez, noutra oportunidade. Não achas?

- Acho. E acho que a oportunidade está a dar sinal. Ela abriu os olhos e riu-se.

- Na minha terra, não é oportunidade que lhe chamam.

 

David virou o mapa de pernas para o ar e passou o dedo sobre a linha que representava uma estrada.

- Somos como detectives. Como Batman e Robin.

- Eles não eram detectives - corrigiu Harper. - Eram combatentes contra o crime.

- Chato. Está bem, como Nick e Nora Charles.

- Cala-te e diz-me onde tenho de virar, Nora.

- Deve ser à direita dentro de três quilómetros. - David pousou o mapa no colo e virou-se para apreciar o cenário. - Agora que estamos no rasto das jóias misteriosas, o que vamos fazer se e quando descobrirmos de onde veio originalmente a pulseira?

- O conhecimento é poder. - Harper encolheu os ombros. -Algo desse género. E eu estou farto de não fazer nada e esperar que algo aconteça. O joalheiro disse que a pulseira viera da herança da família Hopkins.

- Grande lábia. -O quê?

- Grande lábia - repetiu David. - És um mestre a fazer conversa. ”A minha namorada adorou a pulseira. O aniversário dela é dentro de pouco tempo e, uma vez que a pulseira fez tanto sucesso, gostava de saber se tem mais alguma peça do mesmo conjunto. Talvez da mesma herança? É a herança Kent, não é?” O tipo disse-te tudo o que querias saber, apesar de ainda ter tentado vender alguns anéis de muito mau gosto. O gosto da Ethel Hopkins não era completamente impecável. Mas devias ter comprado os brincos. A Hayley teria adorado.

-Acabo de lhe oferecer uma pulseira. Uns brincos, nesta altura, seriam um exagero.

- A curva à direita está a aproximar-se. Brincos nunca são um exagero acrescentou, depois de Harper fazer a curva. - Mais ou menos oitocentos metros por esta estrada. Fica do lado esquerdo.

Harper estacionou num caminho largo, ao lado de um Town Car do último modelo, e ficou sentado, a tamborilar com os dedos no volante, enquanto estudava a propriedade.

A casa era grande e bem mantida, numa vizinhança antiga e abastada. Era uma casa Tudor com dois pisos, com uma boa selecção de plantas, um velho carvalho e um corniso muito bonito na parte da frente. O relvado estava bem aparado e verdejante, o que significava que havia um jardineiro ou aspersores automáticos.

- Muito bem, o que temos aqui? - disse. - Classe média-alta bem estabelecida.

- E a única filha ainda viva da Ethel, chama-se Mae Hopkins Ives Fitzpatrick - leu David nos apontamentos que retirara dos registos públicos.

- Tem setenta e seis anos. Foi casada duas vezes, ficou viúva duas vezes. E podes agradecer-me por ter desenterrado estas informações tão depressa graças às minhas observações brilhantes dos métodos do Mitch.

- Vamos ver se conseguimos conquistá-la com o nosso charme e convencê-la a dizer-nos se se lembra de onde a mãe arranjou a pulseira.

Dirigiram-se à porta, tocaram à campainha e esperaram no calor opressivo.

A mulher que abriu tinha cabelo castanho curto e olhos azul-claros por trás das lentes de uns óculos elegantes com armações douradas. Era baixa, com pouco mais de um metro e meio, e parecia em forma, numas calças de algodão azuis e uma camisa branca. Tinha um colar de pérolas ao pescoço, safiras enormes nos dedos anelares de ambas as mãos e argolas de ouro delicadas nas orelhas.

- Não parecem vendedores - disse, numa voz rouca, sem tirar a mão da maçaneta da porta de rede.

- Não, senhora. - Harper abriu mais o sorriso. - Eu sou Harper Ashby e este é o meu amigo David Wentworth. Gostaríamos de falar com Mae Fitzpatrick.

- É o que estão a fazer.

Boa sorte genética ou, mais provavelmente, um hábil cirurgião plástico, pensou Harper, tinham retirado uns bons dez anos aos seus setenta e seis.

- Muito prazer, sr.a Fitzpatrick. Sei que isto é uma intrusão, mas seria possível entrarmos para conversar um pouco consigo?

A cor dos seus olhos podia já não ser muito viva, mas a sua expressão era cortante como um bisturi.

- Acha que eu pareço o tipo de mulher ingénua que deixa entrar homens desconhecidos na sua casa?

- Não, senhora. - Mas não conseguiu evitar pensar que, para uma mulher que afirmava ter bom senso, achar que uma porta de rede era grande protecção não fazia muito sentido. - Nesse caso, se não se importar, gostava de lhe fazer algumas perguntas relativamente a...

- Ashby, foi o que disse?

- Sim, minha senhora.

- Alguma ligação com Míriam Norwood Ashby?

- Sim, senhora, era minha avó paterna.

- Conheci-a, embora apenas vagamente.

- Eu não posso dizer o mesmo.

- Imagino que não, uma vez que ela já morreu há bastante tempo. Deve ser o filho da Rosalind Harper, então.

- Sim, o mais velho.

- Já estive com ela uma ou duas vezes. A primeira no seu casamento com o John Ashby. Você é parecido com ela, não é?

- Sim, senhora, é verdade.

O seu olhar desviou-se para David.

- Não é seu irmão.

- Um amigo da família, sr.a Fitzpatrick - disse David com um sorriso radiante. - Vivo na Harper House e trabalho para a Rosalind. Talvez se sentisse mais à vontade se contactasse a sr.a Harper antes de falar connosco. Teríamos todo o prazer em dar-lhe um número onde pode contactá-la e em esperar enquanto fala com ela.

Em vez disso, ela abriu a porta de rede.

- Não acredito que o neto da Miriam Ashby me vá dar uma pancada na cabeça para me roubar. Entrem.

- Obrigado.

A casa era tão bonita e bem arranjada como a sua dona, com soalhos de carvalho polidos e paredes de um tom verde discreto. Ela introduziu-os numa sala de estar generosa, mobilada num estilo contemporâneo, quase minimalista.

- Suponho que vos sabia bem uma bebida fresca.

- Não queremos dar trabalho, sr.a Fitzpatrick - disse Harper.

- Chá gelado não dá trabalho nenhum. Sentem-se. Volto já.

- Elegante - comentou David depois de ela sair da sala. - Um pouco austera, mas elegante.

- A casa ou ela?

- As duas. - Sentou-se no sofá. - Ashby-Harper foi uma entrada muito inteligente. O charme não teria resultado com ela.

- É interessante ela ter conhecido a minha avó... é bastante mais nova... e ter sido convidada para o casamento da minha mãe. Todas estas pequenas ligações. Será que algum dos seus antepassados conheceu o Reginald ou a Beatrice?

- As coincidências só são coincidências se uma pessoa não tiver a mente aberta.

-Viver com um fantasma é capaz de ajudar muito nessa abertura. - Harper levantou-se quando Mae entrou com um tabuleiro com copos. - Deixe-me ajudar. Agradecemos muito o seu tempo, sr.a Fitzpatrick. - Pousou o tabuleiro na mesinha de café. - Vamos tentar não abusar dele.

- A sua avó era uma mulher de bom coração. Apesar de eu não a conhecer muito bem, o seu avô e o meu primeiro marido tiveram um negócio juntos, há muitos anos. Um negócio imobiliário - acrescentou - que foi satisfatoriamente lucrativo para todos os envolvidos. Então o que leva o neto dela a bater à minha porta?

- Tem a ver com uma pulseira da herança da sua mãe. Ela inclinou a cabeça, com curiosidade.

- A herança da minha mãe?

- Sim, senhora. Acontece que eu comprei essa pulseira ao joalheiro que a adquiriu.

- E a pulseira tem algum defeito?

- Não, não. Estava com esperança de que talvez conseguisse recordar alguma coisa sobre a história dela, pois estou muito interessado nas suas origens. Disseram-me que foi feita por volta de 1890. Tem corações de rubis rodeados por diamantes.

- Sim, sei qual é a peça. Vendi-a recentemente, junto com outras, uma vez que não eram do meu agrado pessoal e não vi razão para as ter fechadas num cofre, como estavam desde a morte da minha mãe há alguns anos.

- Bebeu um gole de chá e olhou para ele. - Está curioso em relação à história da pulseira?

- Sim, senhora, estou.

- Mas não me vai dizer quais são os seus motivos.

- Estranhamente, tenho razões para acreditar que a pulseira... ou outra muito parecida... esteve em tempos na minha família. Quando o descobri, achei interessante e pensei que, para satisfazer a minha curiosidade, valeria a pena perder algum tempo a tentar localizar as suas origens.

- Ah, sim? Ora, isso é interessante. A pulseira foi oferecida pelo meu avô à minha avó em 1893, como presente de aniversário. É possível que tenha sido feita mais do que uma com aquele desenho, na altura.

- Sim, é possível.

- No entanto, há uma história por trás dela, se estiver interessado.

- Gostaria muito de a ouvir.

Ela ofereceu o prato de bolachas que trouxera com o chá e esperou que cada um dos homens se servisse. Depois recostou-se com um leve sorriso no rosto.

- Os meus avós não tinham um casamento feliz. O meu avô era um pouco marialva. Gostava de jogar, de negócios escusos e da companhia de mulheres de moral duvidosa... isto segundo a minha avó, que viveu até aos noventa e oito anos, portanto eu conheci-a bastante bem.

Levantou-se, aproximou-se de uma estante e ergueu uma fotografia numa moldura de prata.

- Os meus avós - disse, passando a fotografia a Harper. - Um retrato formal tirado em 1891. Como vê, marialva ou não, ele era bastante atraente.

- Ambos eram. - E, reparou Harper, o estilo de vestuário, os penteados, até o tom da fotografia, eram muito semelhantes às cópias das fotografias que Mitch tinha no seu quadro de trabalho.

- Ela é uma beleza - disse David. - E a senhora tem algumas parecenças com ela.

- Já mo têm dito. Tanto fisicamente como em temperamento. - Obviamente satisfeita, voltou a arrumar a fotografia. - A minha avó afirmava que dois dos dias mais felizes da sua vida tinham sido o dia do seu casamento, quando era demasiado jovem e tola para saber onde se estava a meter, e o dia em que ficou viúva... cerca de doze anos mais tarde... quando pôde começar a gozar a vida sem o fardo de um homem em quem não podia confiar.

Sentou-se novamente e pegou no chá.

- Um homem atraente, como viram. Um homem encantador, segundo todos os relatos, e que tinha um sucesso considerável nos seus negócios escusos e no jogo. A minha avó era uma mulher de moral. Mas conseguia vergar essa moral apenas o suficiente para gozar os resultados do sucesso do marido ao mesmo tempo que o rebaixava.

Pousou o chá e recostou-se, evidentemente apreciando o seu papel.

- Muitas vezes ela contava a história de como descobrira, durante uma das confissões embriagadas do meu avô, que a prenda de aniversário... os corações de rubis... tinham vindo de uma fonte muito pouco respeitável. Ele adquirira-a como pagamento de uma dívida de jogo de um homem que comprava jóias e outro tipo de coisas por tuta-e-meia a pessoas pobres ou desesperadas o suficiente para terem de vender os seus bens rapidamente. Muitas vezes, pessoas que tinham roubado esses bens e que o usavam como receptador.

Sorriu abertamente.

- A pulseira pertencera à amante de um homem rico e fora-lhe roubada por um dos criados depois de o seu protector a ter abandonado. A história, segundo a minha avó, era que a mulher enlouquecera e posteriormente desaparecera.

Pegou no chá e bebeu um gole.

- Sempre tive curiosidade em saber se a história seria verdadeira.

Harper procurou primeiro a mãe e ajoelhou-se ao lado dela no jardim. Distraidamente, começou a ajudá-la a arrancar as ervas daninhas.

- Ouvi dizer que tiraste uma folga hoje - começou ela.

- Precisava de fazer uma coisa. Porque é que não tens chapéu?

- Esqueci-me. Quando saí não era para me demorar, depois comecei a fazer isto...

Ele tirou o boné e enfiou-o na cabeça da mãe.

- Lembras-te que, muitas vezes, se eu estivesse a trabalhar aqui fora quando tu chegavas da escola, te sentavas ao meu lado e me ajudavas a limpar ou a plantar e me contavas os teus problemas ou o que tinha corrido bem nesse dia? - disse Roz.

- Lembro-me de que tu estavas sempre pronta a ouvir. A mim, ao Austin e ao Mason. Por vezes aos três ao mesmo tempo. Como é que conseguias?

- Uma mãe tem ouvidos para as vozes de todos os seus filhos. Como um maestro que ouve cada instrumento separado na sua orquestra, mesmo no meio de uma sinfonia. Quais são os teus problemas, meu bebé?

- Tinhas razão em relação à Hayley.

- Ter razão é a minha política. Em relação a quê, mais precisamente?

- Quando disseste que ela não se mudaria para casa do Logan se eu lho pedisse.

Sob a pala do boné, Roz ergueu as sobrancelhas.

- Se lhe pedisses?

- Pedir, dizer... - Ele encolheu os ombros. - Qual é a diferença, quando temos o bem-estar da pessoa em mente?

Ela soltou uma gargalhada rouca e acariciou-lhe a face com a mão suja de terra.

- És mesmo homem.

- Há um minuto atrás era o teu bebé.

- O meu bebé é mesmo homem. Não vejo isso como um defeito. Às vezes é engraçado, como agora, de vez em quando é intrigante e em raras ocasiões é muito irritante. Estão zangados? Não me pareceu, quando desceram juntos para o pequeno-almoço esta manhã.

- Não, está tudo bem. Se não gostas que eu durma com ela lá em casa, eu compreendo.

- Então serias capaz de respeitar a santidade do nosso lar e dormir com ela noutro lado?

- Sim.

- Eu dormi com homens com quem não era casada na Harper House. Não é uma catedral, é um lar. E é tanto teu como meu. Se tens sexo com a Hayley, mais vale que o tenhas confortavelmente. E em segurança. -Acrescentou, com um olhar directo.

Mesmo depois de tantos anos, Harper baixou os olhos.

- Eu compro os meus próprios preservativos, hoje em dia.

- Ainda bem.

- E não era sobre isso que queria falar. Confirmei que a pulseira era da Amélia.

Ela arregalou os olhos e sentou-se sobre os calcanhares.

- Sim? Isso é que foi trabalho rápido.

- Trabalho rápido, coincidência, golpe de sorte. Não tenho bem a certeza qual. Veio da herança de Ethel Hopkins. Ela já morreu há alguns anos, ao que parece, e a filha decidiu vender algumas das coisas de que não gostava ou com as quais não queria ficar. Mae Fitzpatrick. Ela diz que te conhece.

- Mae Fitzpatrick. - Roz fechou os olhos e tentou folhear os vastos arquivos mentais dos seus conhecimentos. - Lamento, não me parece familiar.

- Ela foi casada antes... espera aí... Ives?

- Mae Ives também não me diz nada.

- Bom, ela diz que se viram apenas uma ou duas vezes, uma delas quando casaste com o papá. Ela esteve no teu casamento.

- Sim? Isso é interessante, mas não muito surpreendente. Acho que entre a minha mãe e a do John, tínhamos todas as pessoas do condado de Shelby e a maioria do estado do Tennessee no nosso casamento.

- Ela conhecia a avó Ashby.

Sentou-se no caminho do jardim e contou-lhe a conversa que tivera com Mae Fitzpatrick.

- Espantoso, não é? - disse ela. - Todas estas peças diferentes e como tudo se encaixa.

- Eu sei. Mamã, ela percebeu. É demasiado bem-educada para o dizer claramente, mas somou dois e dois e percebeu que o Reginald Harper era o homem rico que tinha abandonado a amante. Provavelmente vai falar sobre isso com outras pessoas.

- E pensas que isso me incomoda? Querido, o facto de o meu bisavô ter amantes, sustentar mulheres e as pôr de lado, e viver uma vida de infidelidade não se reflecte sobre mim nem sobre ti. O comportamento dele não é da nossa responsabilidade, algo que eu gostaria muito que a Amélia compreendesse.

Arrancou mais algumas ervas.

- Quanto ao resto do seu comportamento, que é mais do que deplorável, também não é culpa nossa. O Mitch está a escrever sobre o assunto. A menos que tu e os teus irmãos estejam firmemente convencidos de que esta história deve ser mantida o mais possível dentro da família, eu quero que ele escreva este livro.

- Porquê?

- Não é culpa nossa nem responsabilidade nossa. Tudo isso é verdade disse, olhando para ele. - Mas sinto que trazer a história a público vingará a Amélia, de certa forma. É uma forma de reconhecer uma antepassada que, independentemente do que ela tenha feito, daquilo em que se tornou, foi tratada miseravelmente na melhor das hipóteses, monstruosamente na pior.

Levantou a mão e encostou a palma suja de terra à dele.

- Ela é do nosso sangue.

- Isso torna-me insensível por querer que ela desapareça, que ela se vá embora, depois do que quase te fez a ti, do que está agora a fazer à Hayley?

- Não. Significa que a Hayley e eu estamos no teu coração. Basta, por hoje. - Limpou as mãos às calças de jardinagem. - Vamos derreter neste calor húmido se ficarmos cá fora muito mais tempo. Anda comigo para dentro. Podemos sentar-nos à sombra e beber uma cerveja.

- Diz-me uma coisa. - Olhou para a casa enquanto percorriam o caminho. - Como soubeste que o papá era o tal?

- Estrelas nos meus olhos. - Riu-se e, apesar do calor, enfiou o braço no dele. - Juro, estrelas nos meus olhos. Eu era tão jovem, e ele pôs estrelas nos meus olhos. Mas isso era paixão. Acho que soube que ele era meu quando, uma noite, conversámos durante horas. Eu escapei-me de casa à socapa para me encontrar com ele. Céus, o meu pai esfolava-o vivo, se soubesse. Mas tudo o que fizemos foi falar, hora após hora, debaixo de um salgueiro. Ele era apenas um rapaz, mas eu soube que o amaria toda a minha vida. E assim foi. Soube porque ficámos ali sentados, quase até de manhã, e ele me fez rir e me fez pensar e sonhar e tremer. Nunca pensei voltar a amar. Mas agora estou novamente apaixonada. Isso não diminui em nada o que sinto pelo teu pai, Harper.

- Mamã, eu sei. - Fechou a mão sobre a dela. - Como soubeste com o Mitch?

- Acho que fui demasiado cínica para as tais estrelas, pelo menos ao princípio. Foi mais lento e mais assustador. Ele faz-me rir e pensar e sonhar e tremer. E houve uma altura, durante aquele longo e lento processo, em que olhei para ele e senti o coração aquecer de novo. Já me tinha esquecido de como era sentir esse calor no coração.

- Ele é um bom homem e ama-te. Olha sempre para ti quando entras numa sala, quando sais. Estou contente por o teres encontrado.

- Eu também.

- Qual foi o salgueiro? Com o papá?

- Oh, foi uma grande árvore velha e maravilhosa, lá ao fundo, por trás dos velhos estábulos. - Fez uma pausa, olhou na direcção das ruínas e apontou. - John queria voltar depois e gravar as nossas iniciais no tronco, mas no outro dia um relâmpago atingiu-a, partiu-a ao meio e... Oh, meu Deus.

- Amélia - disse ele suavemente.

- Só pode ter sido. Nunca me tinha ocorrido antes, mas lembro-me de que não houve uma tempestade. Os criados estavam a falar sobre a árvore, como o relâmpago lhe acertara sem sequer haver trovoada.

- Então, já nessa altura, ela desferia uns golpes sujos - disse Harper.

- Que mesquinho, que maldade da parte dela. Chorei por causa dessa árvore. Apaixonei-me debaixo dela e chorei quando vi os caseiros recolherem os ramos e arrancarem o tronco.

- Não te perguntas se terá havido outras coisas? Pequenos actos violentos, considerados coisas da natureza ou caprichos estranhos, enquanto toda a gente pensava nela como sendo benevolente?

Olhou para a casa, pensando no que significava para ele e no que vagueara nela muito antes de ele nascer.

- Ela nunca foi benevolente, na realidade.

- Todo aquele ódio e aquela fúria acumulados. Aprisionados.

- Libertando-se de vez em quando, como água pela fenda de uma barragem. E agora está a libertar-se mais depressa e com mais força. E não conseguimos tapar a fenda, mamã. O que temos de fazer é esvaziar a barragem, esvaziá-la até à última gota.

- Como?

- Acho que temos de destruir a barragem, enquanto somos nós que temos o martelo na mão.

Era crepúsculo quando Hayley saiu para passear pelos jardins. A bebé estava a dormir e Roz e Mitch estavam atentos ao monitor. O carro de Harper estava lá, portanto ele tinha de se encontrar em algum lado. Mas não na velha cocheira, porque ela batera à porta, espreitara e chamara por ele.

Não tinham propriamente de andar sempre colados um ao outro, recordou a si própria. Mas ele não ficara para jantar. Dissera que tinha uma coisa para fazer, que voltaria antes de anoitecer.

Bom, já era quase noite e ela andava apenas a passear.

Além disso, gostava de caminhar pelos jardins ao anoitecer. Mesmo nestas circunstâncias. Era tranquilizador e Hayley precisava de alguma calma depois de rever uma e outra vez a história que ele lhe contara sobre a pulseira.

Estavam a aproximar-se das respostas, Hayley tinha a certeza disso. Mas já não tinha tanta certeza de que tudo acabaria pacificamente assim que as obtivessem.

Amélia podia não estar disposta a prescindir dos seus últimos elos com este mundo e a passar - supunha que era esse o termo correcto - para o próximo.

Ela gostava de habitar um corpo. Se é que se podia chamar-lhe habitar. Partilhar um corpo? Deslizar através de um corpo? Fosse o que fosse, Amélia gostava, Hayley estava certa disso. Tal como estava certa de que era algo tão novo para Amélia como para si própria.

Se voltasse a acontecer - quando, corrigiu-se, forçando-se a enfrentar os factos. Quando voltasse a acontecer, ela ia lutar para ficar mais desperta, para ter mais controlo.

E não era isso que estava a fazer aqui fora, sozinha, à meia-luz? Não valia a pena tentar negar que este era um gesto deliberado. Uma espécie de desafio. ”Anda lá, cabra.” Queria ver se conseguia controlá-la, até que ponto conseguia controlá-la, sem ninguém por perto que pudesse interferir. Ou magoar-se.

Mas não estava a acontecer nada. Sentia-se completamente normal, completamente ela própria.

E era completamente ela própria quando os sons provenientes das sombras a fizeram dar um salto. Parou, dividida entre fugir ou lutar, esforçando-se por ouvir. O som rítmico e repetitivo fê-la franzir a testa, intrigada, e aproximar-se lentamente.

Parecia... mas não podia ser. Mesmo assim, o seu coração batia como asas enquanto se aproximava, imaginando uma figura fantasmagórica a abrir uma campa.

A campa de Amélia. Podia ser. Esta podia ser a resposta, por fim. Reginald assassinara-a e enterrara-a aqui, na propriedade. Ela ia mostrar-lhe a campa - em terreno não consagrado. Podiam mandá-lo abençoar, ou assinalar a campa, ou... bom, tinha de pesquisar o que era costume fazer-se em circunstâncias destas.

E depois a assombração da Harper House desapareceria.

Abriu caminho silenciosamente entre as ruínas dos estábulos, aproximando-se do edifício tanto quanto se atrevia. Tinha as palmas das mãos húmidas e a respiração ofegante.

Contornou a esquina, seguindo o som, preparando-se para ficar aterrorizada e espantada.

E viu Harper de tronco nu, a t-shirt atirada para o chão, a abrir um buraco.

O anticlímax fê-la soltar a respiração num sopro.

- Harper, por amor de Deus, pregaste-me um susto de morte. O que estás a fazer?

Ele continuou a cravar a pá no solo, atirando a terra para um monte ao lado do buraco. Embora ainda estivesse nervosa, Hayley olhou para o céu e caminhou na direcção dele.

- Eu disse... - Ele saltou uns bons trinta centímetros no ar quando ela tocou nas suas costas. Hayley gritou, sobressaltada, ele rodopiou sobre si próprio, erguendo a pá acima do ombro como um bastão. Conseguiu controlar o movimento e soltou uma fiada de imprecações enquanto ela tropeçava e caía sobre o traseiro.

- Valha-me Deus! - exclamou ele, tirando os auscultadores dos ouvidos. - Que raio estás a fazer, a andar sorrateiramente na escuridão?

- Não estava a andar sorrateiramente, eu chamei-te. Se não tivesses a música tão alta, conseguirias ouvir as pessoas quando falam contigo. Pensei que me ias dar com essa pá na cabeça. Pensei...

Começou a rir e tentou conter-se.

- Devias ter visto a tua cara. Tinhas os olhos deste tamanho. - Ergueu as mãos fechadas, depois desatou a rir descontroladamente enquanto ele lhe lançava um olhar furioso. - Oh, vou fazer chichi nas calças, espera, espera.

- Fechou os olhos com força, tentando conter o riso. - Está bem, já passou. O mínimo que podias fazer era ajudar-me a levantar depois de me teres atirado ao chão.

- Eu não te atirei ao chão. Mas foi por pouco. - Estendeu a mão e puxou-a.

- Pensei que fosses o Reginald a escavar a campa prematura da Amélia. Ele abanou a cabeça e apoiou-se na pá, olhando para ela.

- E vinhas fazer o quê, dar-lhe uma ajudinha?

- Bom, tinha de ver, não achas? Que diabo estás a fazer, a abrir um buraco no escuro?

- Não está escuro.

- Disseste que estava escuro quando gritaste comigo. O que estás a fazer?

- A apanhar ar.

- Não vejo porque hás-de estar aborrecido. Eu é que caí e quase fiz chichi nas calças.

- Desculpa. Magoaste-te?

- Não. Vais plantar aquela árvore? - Finalmente viu o jovem salgueiro. Por que raio estás a plantar uma árvore, Harper, aqui atrás e a estas horas da noite?

- É para a minha mãe. Ela contou-me hoje uma história, como se esgueirou para fora de casa uma noite, para se encontrar com o meu pai, e ficaram sentados a conversar debaixo de um salgueiro que costumava haver aqui. Foi quando ela se apaixonou por ele. No dia seguinte, a árvore foi atingida por um relâmpago. Amélia - disse, tirando mais uma pazada de terra. - A minha mãe nunca tinha pensado nisso antes, mas é lógico. Portanto, vou plantar um salgueiro para ela.

Hayley ficou calada durante um instante, enquanto ele avaliava a profundidade do buraco, depois o tamanho da árvore, e cavava mais um pouco.

- Isso é muito querido da tua parte. Deixas-me toda derretida, Harper. Posso ajudar ou é algo que queres fazer sozinho?

- O buraco já está. Podes ajudar-me a pô-la cá dentro.

- Nunca plantei uma árvore.

- Vês, tens de fazer um buraco três vezes mais largo do que a bola das raízes, mas não mais profundo. A terra, nas paredes à volta do buraco, tem de ficar solta para as raízes poderem espalhar-se.

Pegou na árvore e colocou-a no buraco.

- Que te parece?

- Parece-me bem, como tu disseste.

- Agora abres a saca de serapilheira do tronco principal e vemos a linha do solo original, pelo menos veríamos, se acendesses essa lanterna, porque está a ficar escuro. Demorei algum tempo a encontrar tudo o que precisava.

Ela acendeu a lanterna, agachou-se e apontou.

- Está bem assim?

- Óptimo. Vês? - Tocou com o dedo numa marca na base. - É a linha do solo, e temos de conseguir a profundidade certa. Temos aqui umas raízes que precisam de ser podadas. Passa-me a tesoura.

Ela obedeceu.

- Sabes, abrir um buraco para uma árvore parece-se com abrir uma sepultura.

Ele lançou-lhe um olhar divertido.

- Já viste alguém a abrir uma sepultura?

- Em filmes.

- Certo. Vamos encher o buraco, mas pouco a pouco e calcando a terra. Não tenho outras luvas. Toma.

- Não - disse ela quando Harper fez menção de tirar as suas luvas de trabalho. - Um bocadinho de terra não me vai fazer mal. Estou a fazer bem?

- Sim, isso mesmo. Vai enchendo e calcando, formando uma espécie de cone à volta da base e deixando uma vala à volta do buraco.

- Gosto da sensação da terra nas mãos.

- Sei o que queres dizer. - Quando acabaram, ele pegou na faca, aparou a serapilheira que ficara à vista e endireitou-se. - Temos de lhe dar muita água, pomo-la no rebordo em volta do monte, estás a ver?

Pegou num dos baldes que enchera e acenou quando ela pegou no outro.

- Pronto, já plantaste uma árvore.

- Ajudei a plantar uma, pelo menos. - Recuou e pegou na mão dele. Está linda, Harper. Vai significar muito para a Roz teres feito isto por ela.

- Significou muito para mim fazê-lo. - Apertou-lhe a mão e baixou-se para recolher as ferramentas. - Provavelmente devia ter esperado até à Primavera, mas queria fazê-lo já. Uma espécie de desafio. Podes derrubá-las, que nós vamos continuar a plantá-las. Quis fazê-lo agora.

- Estás mesmo zangado com ela.

-Já não sou um miúdo que se deixe encantar por cantigas de embalar. Vi-a como ela é realmente.

Hayley abanou a cabeça e estremeceu um pouco no ar da noite.

- Acho que nenhum de nós a viu como ela realmente é. Ainda.

 

A estufa de enxertia era mais do que um espaço de trabalho para Harper. Era também em parte casa de brincar, em parte santuário e em parte laboratório. Ele podia, e fazia-o muitas vezes, perder-se durante horas naquele espaço quente e repleto de música, a trabalhar, a fazer experiências ou apenas a deliciar-se por ser o único ser humano entre as plantas.

Muitas vezes, preferia as plantas aos seres humanos. Embora não soubesse bem o que isso dizia a seu respeito, não estava muito preocupado.

Encontrara a sua paixão na vida e considerava-se uma pessoa de sorte por poder ganhar a vida a fazer algo que o deixava completamente feliz.

Os irmãos tinham tido de sair de casa para encontrar as suas paixões. Era um bónus para ele poder ficar no sítio que adorava, a fazer aquilo de que gostava.

Tinha a sua casa, o seu trabalho, a sua família. Durante toda a sua vida adulta, tivera mulheres de quem gostara e cuja companhia apreciara. Mas nenhuma delas o fizera pensar, nenhuma o levara a reflectir sobre o próximo degrau na escada daquilo em que pensava vagamente como sendo o futuro.

Isso nunca o preocupara. A sua visão do casamento reflectia aquilo que sabia que os pais tinham tido juntos. Amor, dedicação, respeito e, para unir tudo o resto, como uma liga de aço, uma amizade inabalável.

Compreendia que a mãe encontrara tudo isso uma segunda vez, com Mitch. Não fora propriamente um relâmpago que caíra uma segunda vez no mesmo sítio, mas mais um enxerto perfeito que se unira para criar uma planta nova e saudável.

Na sua mente, nada menos forte e menos importante do que isso compensava o tempo ou o risco.

Portanto apreciara as mulheres que tinham passado pela sua vida e nunca imaginara nenhuma delas como a tal.

Até conhecer Hayley.

Agora, uma grande parte do seu mundo mudara enquanto outras partes permaneciam, confortavelmente, na mesma.

Hoje pusera a tocar Chopin para as suas plantas. E tinha rock a abrir nos seus auscultadores.

O espaço onde trabalhava podia não parecer muito organizado, com os grupos de plantas em várias fases de crescimento, os baldes de gravilha ou aparas de madeira, fios e fitas espalhados, molas da roupa e etiquetas. Havia retalhos de serapilheira, pilhas de vasos, sacos de terra, montes de elásticos. Tabuleiros com facas e tesouras. Mas ele sabia onde encontrar aquilo de que precisava quando precisava.

Podia haver alturas em que não encontrava um par de meias lavadas, mas encontrava sempre a ferramenta que queria.

Caminhou ao longo da estufa, arejando as tendas e caixas que albergavam as suas plantas, como fazia todas as manhãs. Alguns minutos destapadas bastariam para secar qualquer humidade que pudesse ter-se condensado nas raízes. Os fungos eram sempre uma preocupação. Por outro lado, ar a mais podia secar a união. Enquanto as arejava, inspeccionava o seu progresso e procurava sinais de doença ou de apodrecimento. Estava particularmente satisfeito com a camélia que enxertara no Inverno. Os espécimes demorariam ainda um ano, talvez dois, até florirem, mas acreditava que valeria a pena a espera.

O trabalho exigia paixão, mas também paciência e fé.

Tomou notas que mais tarde passaria para o computador. Os rebentos de Astrophytum que ele protegera debaixo de uma cobertura transparente estavam a crescer activamente e os enxertos das suas clematites pareciam fortes e saudáveis.

Na segunda ronda, voltou a cobrir as plantas. Tinha de ir ao lago mais tarde, para estudar os nenúfares e as íris que hibridizara. Uma experiência pessoal que esperava que viesse a revelar-se compensadora.

Além do mais, dar-lhe-ia uma desculpa para dar um mergulho para refrescar do calor do dia.

Mas, por agora, tinha de tratar de várias plantas de estufa.

Reuniu as ferramentas de que necessitava e seleccionou um rizoma saudável da sua lantana de vaso, fez o corte oblíquo e uniu-o com um enxerto de viburno. Os perímetros eram suficientemente semelhantes para poder usar a simples inclinação de cada um para os unir, de forma que os câmbios de ambos os lados se unissem na perfeição.

Usando elásticos, manteve a pressão ligeira e uniforme enquanto os unia. Quando se deu por satisfeito, usou cera de enxertia para selar a união. Colocou-o num tabuleiro, cobriu as raízes e o enxerto com terra húmida a mistura especial da sua mãe - e etiquetou-o.

Depois de repetir este processo várias vezes, cobriu o tabuleiro e virou-se para o computador para registar o trabalho.

Antes de se dedicar aos espécimes seguintes, mudou a sua música para Michelle Branch e tirou uma Coca-Cola da mala térmica.

Quando acabou, Michelle já chegara ao fim e o trabalho da manhã também.

Agarrou num saco com ferramentas e material, deixou os auscultadores para trás e saiu para verificar as plantas nos campos e no lago.

Havia alguns clientes por ali, a examinar os produtos com desconto, à sombra, ou a espreitar para as estufas abertas ao público. Sabia que, se não escapasse rapidamente, um deles podia apanhá-lo.

Não se importava de falar sobre plantas ou de indicar a um cliente onde estava aquilo que procurava. Simplesmente preferia manter a mente no trabalho e neste momento o seu trabalho era ir verificar as plantas.

Conseguiu passar pela portulaca antes de ouvir chamar o seu nome. ”Devia ter trazido os auscultadores”, pensou, mas virou-se, preparando o sorriso que reservava para os clientes.

A morena tinha um corpo curvilíneo, que ele já tivera ocasião de ver nu por várias vezes. Neste momento, exibia-o com calções de cintura descaída e uma camisola curta concebida para fazer os homens darem graças pelo calor de Agosto.

Com uma gargalhada deliciada, ela pôs-se em bicos de pés, passou os braços à volta do pescoço dele e deu-lhe um beijo sonoro. Ainda sabia a cerejas pretas, o que lhe trouxe uma vaga de recordações igualmente doces.

Instintivamente, Harper abraçou-a com força antes de se afastar para a ver melhor.

- Dory, o que estás a fazer por aqui? Como estás?

- Estou óptima e acabo de me mudar de novo para cá. Há duas semanas. Arranjei emprego numa empresa de relações públicas local. Fartei-me de Miami e tinha saudades de casa.

Ela provavelmente mudara de penteado desde a última vez que a vira. As mulheres estavam sempre a mudar de penteado. Mas, uma vez que não tinha a certeza absoluta, recorreu ao cumprimento genérico:

- Estás fantástica.

- E sinto-me fantástica. E olhem para ti, todo bronzeado. Ia telefonar-te, mas não tinha a certeza se ainda vivias naquela casinha encantadora.

- Sim, ainda vivo lá.

- Estava com esperança de que assim fosse. Sempre adorei aquela casa. Como está a tua mãe, e o David, e os teus irmãos, e toda a gente? - Riu efusivamente e abriu os braços. - Sinto-me como se tivesse estado a viver em Marte durante os últimos três anos.

- Estão todos bons. A minha mãe casou há algumas semanas.

- Já ouvi dizer. A minha mãe pôs-me a par de algumas das novidades locais. Ouvi dizer que tu não.

- Não o quê? Oh, não.

- Estava a pensar que podíamos pôr a escrita em dia. - Dory passou o dedo pelo peito dele. - Adorava ver outra vez a tua casa. Podíamos mandar vir comida chinesa, uma garrafa de vinho... Como nos bons velhos tempos.

- Ah... bem...

- Uma espécie de boas-vindas pelo meu regresso a casa e de agradecimento por me ajudares a escolher algumas plantas para a minha casa nova. Fazes isso, não fazes, Harper? Gostava de levar algumas especiais.

- Claro. Quer dizer, posso ajudar-te a escolher as plantas. Mas...

- E se entrássemos? Está tanto calor aqui fora. Podes contar-me o que tens feito enquanto me ajudas. Mas guarda alguma coisa para depois.

Ela pegou-lhe na mão e apertou-a enquanto o puxava.

- Tive saudades tuas. Mal tivemos oportunidade de falar quando eu estive cá uns dias o ano passado. Eu andava com aquele fotógrafo nessa altura, lembras-te? Eu contei-te.

- Sim. - Recordava-se vagamente. - E eu...

- Bom, isso está mais do que acabado. Não sei porque desperdicei um ano da minha vida com um homem tão egoísta. Só pensava nele, sabes? Por que raio achei que queria envolver-me com um artista?

-Eu...

- Portanto livrei-me dele, sacudi a areia dos sapatos e aqui estou.

Lá dentro, virou-se para Harper e enfiou as mãos nos bolsos de trás das calças dele. Um velho hábito que trouxe a Harper mais uma vaga de recordações.

- Tive mesmo saudades tuas. Estás contente por me ver, não estás, Harper?

- Claro. Claro que estou. Mas a questão, Dory, é que estou envolvido com uma pessoa.

- Oh - os lábios cheios franziram-se num beicinho. - Alguma coisa séria?

- Sim.

- Oh, enfim. - Deixou as mãos nos bolsos dele durante mais um instante, depois tirou-as e deu uma palmadinha no traseiro de Harper. - Suponho que seria muita sorte da minha parte estares solteiro. Há quanto tempo andam juntos?

- Depende. Quer dizer, já a conheço há algum tempo, mas só começámos... só nos envolvemos recentemente.

- Parece que devia ter vindo mais cedo. Mas ainda somos amigos, certo? Bons amigos.

- Sempre fomos.

- Foi disso que me lembrei e acho que era o que me fazia falta com o Justin, o fotógrafo. Nunca conseguimos ser amigos e de certeza que éramos tudo menos amigos quando nos separámos. Já contigo, por outro lado... ainda no outro dia estava a dizer a uma amiga que nunca nenhum homem me deu com os pés tão gentilmente como tu.

Riu-se, pôs-se em bicos de pés e deu-lhe um beijo rápido.

- És um espécime raro, Harper.

Recuou e, segundos depois, Hayley entrou pelas portas de vidro.

- Desculpem, estou a interromper? Posso ajudá-la com alguma coisa?

- Não, obrigada. O Harper vai dar-me uma ajuda - disse Dory, enfiando o braço no de Harper. - Não percebo nada de plantas, portanto tenho de procurar o especialista.

- Hayley, esta é a Dory. Foi minha colega na universidade.

- Ah, sim? - Hayley sorriu abertamente. - Acho que nunca a tinha visto por aqui.

- Estive muito tempo em Miami. Acabo de regressar. Emprego novo, começar de novo, sabe como é.

- Acredite que sei - disse Hayley, abafadamente, ainda com o mesmo sorriso fixo.

- Decidi procurar o Harper para pôr a escrita em dia e arranjar umas plantas para dar vida ao meu apartamento novo. Espera até o veres Harper, está muito longe daquele buraco que eu tinha na universidade.

- Qualquer coisa seria melhor. Espero que te tenhas livrado daquele divã.

- Queimei-o. O Harper odiava-o - disse a Hayley. - Até se ofereceu para me comprar uma cama, mas eu tinha um espacinho minúsculo... apenas uma divisão. Com três pessoas lá dentro estávamos tão em cima uns dos outros que era meio caminho para uma orgia.

- Belos tempos - disse Harper, e Dory riu-se.

- Não eram? Bom, é melhor mostrares-me o que devo levar, senão ficamos aqui a dar à língua o resto do dia.

- Vou deixá-los à vontade - disse Hayley, saindo.

Voltou ao trabalho, mas fez questão de não estar na caixa quando Dory foi pagar as plantas que Harper a ajudara a escolher. Mas conseguia ouvir o riso de Dory - um riso particularmente irritante, na sua opinião - enquanto reabastecia as prateleiras do outro lado da sala.

Harper encostou-se ao balcão enquanto ela pagava, reparou Hayley pelo canto do olho. E sempre com aquele sorrisinho malicioso enquanto falavam sobre amigos mútuos e os bons velhos tempos.

E Dory não parava de lhe tocar. Pequenas palmadinhas e toques enquanto atirava o cabelo para trás. O vapor começou a subir-lhe da barriga para a garganta quando Harper empurrou o carrinho com as plantas até ao carro de Dory.

Hayley decidiu que precisava de verificar as prateleiras junto da janela. E, se uma pessoa olhasse por acaso para fora enquanto trabalhava, isso não era espiar. Era um acidente.

Um acidente suficiente para ver Harper inclinar-se e beijar a coleguinha de escola nos lábios.

Filho-da-mãe.

Depois acenou-lhe um adeus e contornou o edifício descontraidamente, como se não fosse um maldito traidor e falso. Pior ainda, o tipo de traidor capaz de a trair mesmo debaixo do seu nariz.

Seria de pensar que ele tinha a cortesia, pelo menos a educação, de o fazer pelas costas dela.

Bom, não fazia mal. Não ia deixar que isso tivesse importância. Estar-se-ia positivamente a borrifar.

E também não tencionava ir lá fora dizer-lhe o que pensava. Ia sair apenas para ver se havia algum cliente a precisar de ajuda.

Era para isso que lhe pagavam. Não para namorar, não para passar metade do dia a falar dos velhos tempos. E certamente não para dar beijos aos clientes antes de lhes acenar adeusinho.

Estava quase na estufa de enxertia quando o viu nos campos. Ele já estava agachado, a examinar os enxertos das magnólias que ela o ajudara a fazer e a plantar algumas semanas antes.

Harper lançou-lhe um olhar e um sorriso quando ela se aproximou.

- Anda ver. Estão a crescer muito bem. Mais duas semanas e podemos tirar a fita.

- Se tu o dizes.

- Sim, estão com bom ar. Tenho de ver as outras ornamentais. Acho que vamos ter umas pereiras e cerejeiras ornamentais muito bonitas na próxima estação. Já te mostrei as pereiras de fruto que fiz? As anãs?

- Não. A tua amiga conseguiu aquilo que queria?

- Hum, sim. - Levantou-se e dirigiu-se ao outro lado para verificar o equilíbrio das copas das suas árvores de ramos pendentes. - Decidiu-se pela simplicidade - disse, distraidamente, enquanto inspeccionava a árvore. - Coisas que exigem pouca manutenção. O que fiz aqui foi usar Pyrus communis para o rizoma... plantas de três anos, e enxertei três pendulares. É preciso ter a certeza de que o espaçamento está certo, para dar uma forma bonita.

- E tu sabes tudo sobre formas.

- Sim. Gosto de fazer enxertos. Estas foram feitas há duas Primaveras, e estas na Primavera passada. Estás a ver como se desenvolveram?

- Estou a ver muitas coisas a desenvolverem-se. Fiquei espantada por não teres ido com ela, para lhe levares as plantinhas até à porta.

- Quem? Oh, a Dory. - Lançou um olhar distraído a Hayley e o sarcasmo passou-lhe ao lado. - Ela consegue sozinha em duas viagens.

Continuou a andar, a examinar.

- Estás a ver aqui? Para estas cerejeiras ornamentais, usei o rizoma de uma semianã. Deve dar uma árvore bonita para espaços mais pequenos. Lá para Outubro vou tirar rebentos maduros das Colt. O que fazemos é uni-los num feixe e enterrá-los numa vala no viveiro, de forma a ficarem três quartos soterrados. Depois, na Primavera seguinte, levantamos os feixes, plantamos as estacas e no Verão estão prontos para usar para rizoma.

- Isso é tudo fascinante, Harper. Passaste aquele tempo todo com a Dory a dar-lhe lições sobre os malditos rizomas?

- Hum. - A distracção de Harper era evidente no seu rosto quando olhou em volta. - Ela não está interessada neste tipo de trabalho. Trabalha em relações públicas.

- E privadas também, por aquilo que vi.

- O quê?

- Estive quase a voltar para trás para lhes sugerir que arranjassem um quarto. Devias saber que não é boa ideia namorar nas áreas de venda ao público.

Desta vez, ele olhou para ela de boca aberta.

- O quê? Nós não estávamos a... estávamos apenas...

- As portas são de vidro, Harper, caso te tenhas esquecido. Eu vi-os, e tu devias ter mais respeito pelo teu local de trabalho e não estares com essas coisas nas áreas públicas durante o horário de expediente. Mas o patrão és tu, suponho que podes fazer o que muito bem entenderes.

- A minha mãe é que é a patroa e eu não estava a fazer nada. A Dory e eu somos velhos amigos. Estávamos apenas...

- Aos beijos, e aos toques, e a flirtar, e a marcar encontros. É pouco profissional, na minha opinião, fazer isso no horário de trabalho. Mas é simplesmente rude fazê-lo à minha frente.

- Pelas tuas costas seria melhor?

Como ele fizera eco dos seus pensamentos mais desagradáveis, os olhos dela faiscaram, ardentes como sóis.

- Deixa-me apenas dizer: vai à merda, Harper.

Uma vez que era a melhor tirada de que conseguia lembrar-se com o cérebro quase a explodir, Hayley deu meia-volta. E virou-se de novo quando ele lhe puxou o braço.

Harper já não parecia distraído, reparou ela. Parecia louco de fúria.

- Eu não estava a flirtar nem a marcar encontros.

- Então estavas apenas aos beijos e aos toques.

- Beijei-a porque ela é uma amiga, uma boa amiga, que não via há bastante tempo. Beijei-a como se beija uma amiga. O que é muito diferente disto, por exemplo.

Deu-lhe um puxão que a desequilibrou e fez o seu corpo colidir com o dele. Depois apertou-a contra si, agarrou-lhe no cabelo e esmagou a boca contra a dela.

Não foi um beijo doce, nem carinhoso, mas sim ardente com o calor da raiva. Ela debateu-se, chocada por estar tão apertada contra ele que não conseguia libertar-se. Um fio de medo entreteceu-se com a raiva e começava a apertar quando ele a soltou.

- É assim que eu beijo as mulheres de quem não me sinto amigo.

- Achas que tens o direito de me tratar dessa maneira?

- Tanto quanto tu tens o direito de me acusar de fazer algo ou de ser algo que não sou. Eu não engano e não minto, e não vou pedir desculpa pelo meu comportamento. Se queres saber alguma coisa sobre a minha relação com a Dory ou com qualquer outra pessoa, no passado ou no presente, pergunta. Mas não me venhas atacar com acusações.

- Eu vi...

- Talvez tenhas visto o que querias ver. O problema é teu, Hayley. E agora tenho de voltar ao trabalho. Se tens mais alguma coisa a dizer sobre este assunto, podes dizê-la depois do trabalho.

Afastou-se em direcção ao lago, não lhe deixando outra escolha, na opinião de Hayley, senão afastar-se na direcção oposta.

- Depois teve a lata, a lata, de discutir comigo e agir como se eu é que estivesse errada. - Hayley caminhava de um lado para o outro no alpendre de Stella, enquanto Lily corria pela relva atrás de Parker. - Agindo como se eu tivesse uma mente suja ou fosse uma bruxa ciumenta, apenas porque tenho uma queixa legítima e razoável quanto ao facto de ele andar a lambuzar-se com outra mulher. E debaixo do meu nariz.

- Antes disseste que ela é que se tinha lambuzado com ele.

- Foi uma lambuzadela mútua. E quando eu o confrontei, depois de ter visto tudo isto através da porta de vidro, ele agiu como se não fosse nada. Nem sequer teve a delicadeza de parecer embaraçado ou nervoso.

- Já me disseste. - ”Duas vezes”, pensou Stella, mas compreendia a natureza da amizade entre mulheres e não mencionou a repetição. - Querida, ambas conhecemos o Harper há algum tempo. Não achas que ele ficaria embaraçado se fosse apanhado a fazer alguma coisa que não devia?

- Suponho que não sou importante o suficiente para ele se sentir embaraçado.

- Pára com isso. Sabes que não é verdade.

- Mas parece. - Hayley deixou-se cair nos degraus. - Sinto-me pessimamente.

- Eu sei. - Sentando-se ao lado dela, Stella passou-lhe o braço sobre os ombros. - Eu sei que sim. Lamento muito que estejas magoada.

- Ele nem quer saber.

- Claro que quer. Talvez o que viste te tenha parecido outra coisa devido ao que sentes por ele.

- Stella, ele beijou-a.

- Também já me beijou a mim.

- Não é a mesma coisa.

- Se não me conhecesses e o visses a beijar-me, o que pensarias?

- Antes ou depois de te arrancar mentalmente os pulmões pelo nariz?

- Bolas! Não estou a dizer que não tenha parecido errado, apenas que existe a possibilidade de teres interpretado mal aquilo que viste. Estou a dizer isto porque conheço o Harper e por causa da reacção dele.

- Estás a dizer que a minha reacção foi exagerada.

- Estou a dizer que, se fosse a ti, primeiro tentava ter a certeza.

- Ele dormiu com ela. Está bem, está bem - murmurou quando Stella olhou para ela. - Foi antes, e o passado é o passado, blá-blá-blá. Mas ela era tão bonita. Tinha um corpo fantástico e uns olhos escuros e exóticos. E um brilho, sabes. Oh, raios.

- Vais falar com ele.

- Suponho que sim.

- Queres que eu fique com a Lily?

- Não - Hayley suspirou. - Ela tem de jantar daqui a pouco e, além disso, se eu a levar comigo há menos probabilidades de gritarmos um com o outro.

- Está bem. Podes telefonar-me, se quiseres, para me contar como correu. Ou podes passar por cá. Tenho gelado.

- Do jeito que me estou a sentir, vou precisar de um quilo.

Estava de mão dada com Lily quando bateu à porta da velha cocheira. Harper saíra há pouco do duche, reparou quando ele abriu a porta. Ainda tinha o cabelo húmido. Mas, se a expressão grave do seu rosto servisse de barómetro, isso não o tinha ajudado a arrefecer.

- Queria falar contigo - disse ela secamente. - Se tiveres tempo.

Ele não disse nada e baixou-se para pegar em Lily, que já tinha os braços à volta da sua perna. Virou-se, sem dirigir uma palavra a Hayley, e levou a bebé para a cozinha.

- Olá, linda. Olha o que eu tenho aqui.

Abriu um armário, tirou duas tigelas de plástico, procurou uma grande colher de plástico numa gaveta e pousou tudo no chão, em frente de Lily. Esta começou alegremente a tocar tambor.

- Queres beber alguma coisa? - perguntou a Hayley.

- Não, não. Quero perguntar-te...

- Vou beber uma cerveja. Queres leite ou sumo para a Lily?

- Não trouxe o copo dela.

- Eu tenho um.

- Oh! - O facto de ele ter um copo para bebés fez o seu coração começar a derreter. - Podes dar-lhe um bocadinho de sumo. Mas tens de o diluir.

- Já vi como se faz. - Ele preparou o sumo, deu-o a Lily e tirou uma cerveja do frigorífico. - Então? - perguntou, levando o gargalo à boca.

- Queria perguntar... Não, queria dizer que sei que não firmámos nenhum compromisso um com o outro. Mas dormir com alguém é uma forma de compromisso, pelo menos para mim, o bastante para me sentir insultada se vejo alguém com quem eu dormi a beijar e a flirtar com outra mulher. E não me parece que isso seja pouco razoável da minha parte.

Ele bebeu mais um gole, lentamente, com ar pensativo.

- Sabes que, se tivesses dito as coisas dessa maneira hoje à tarde, eu não me teria sentido insultado nem irritado. Vou voltar a dizer que não estava a flirtar com a Dory, não no sentido que tu lhe estás a dar.

- Se te atiras assim a todas as mulheres...

- Não estava a atirar-me a ela. E tem cuidado ou vais irritar-me outra vez. Se queres saber o que se passou, porque não perguntas?

- Não gosto de estar nesta posição.

- Bom, nem eu. Se é assim que queres deixar as coisas, tenho de arranjar qualquer coisa para o jantar. Não almocei.

- Muito bem. - Começou a inclinar-se para pegar em Lily, depois parou. - Porque tens de ser tão difícil?

- E tu tão desconfiada?

- Eu vi-te. Ela estava a abraçar-te. Pôs as mãos nos teus bolsos e apalpou-te o rabo. E tu não estavas propriamente a debater-te, Harper.

- Está bem, tens uma certa razão. Era algo que ela costumava fazer e nem pensei nisso quando o fez hoje. Estava mais a pensar em como havia de lhe dizer que não podíamos recomeçar onde tínhamos parado, que não podíamos ser mais do que amigos, porque eu tinha outra pessoa.

- Quanto tempo demora a dizer isso?

- Um bocadinho mais do que demoraria se ela não tivesse as mãos no meu rabo. - Ela abriu a boca, mas Harper ergueu as sobrancelhas e Hayley fechou-a novamente e esperou. - Quer isso seja certo ou errado, Hayley. Mas disse-lhe, mesmo antes de tu entrares.

- Antes? Mas... tu nem sequer hesitaste quando me viste, Harper.

E vocês os dois estavam todos... - Agitou a mão, tentando acabar a frase. -

Encostados. E ela beijou-te quando a acompanhaste ao carro.

Ele semicerrou os olhos.

1 - Estavas a espiar-nos.

- Não. Sim. E depois?

- Foi pena não teres arranjado forma de colocar um aparelho de escuta no meu bolso. Se o tivesses feito, esta conversa seria desnecessária. Ela cruzou os braços e aceitou o insulto de cabeça erguida.

- Também não vou pedir desculpa pelo meu comportamento.

- Muito bem. Primeiro, por que raio havia eu de ter hesitado? Não estava a fazer nada que me fizesse sentir culpado. Segundo, Dory é uma pessoa que gosta de tocar. Ela consegue estabelecer contacto com as pessoas, e é provavelmente por isso que é boa em relações públicas. E sim, beijei-a antes de ela se ir embora. E provavelmente vou beijá-la da próxima vez que a vir. Gosto dela. Temos um passado juntos. Conhecemo-nos no liceu, acabámos na faculdade juntos... e namorámos durante um ano. Na universidade, Hayley, por amor de Deus. Quando nos separámos, continuámos amigos. Se conseguires pôr os ciúmes de lado por um minuto, provavelmente acabarás amiga dela também.

- Não gosto de sentir ciúmes. Nunca tive ciúmes a sério antes e não gosto.

- Se tivesses ouvido a nossa conversa ao pé do carro dela, terias ouvido a Dory dizer-me que esperava que tu e eu pudéssemos ir um dia ter com ela à cidade, beber um copo, para ela te conhecer. Ela disse que tinha sido

bom ver-me e que estava contente por me ver feliz. Eu disse mais ou menos a mesma coisa e dei-lhe um beijo de despedida.

- É só que... pareciam um casal.

- Não somos. Tu e eu é que somos um casal. É assim que eu me sinto - disse, quando ela o fitou sem dizer nada. - É isso que eu quero. Não sei o

que fiz para te levar a duvidar de mim ou dos meus sentimentos.

- Nunca me tinhas dito...

Ele aproximou-se dela e segurou-lhe o rosto nas mãos.

- Não quero estar com ninguém para além de ti. Tu és a única, Hayley.

Fui suficientemente claro?

- Sim. - Pousou a mão na dele e virou o rosto para lhe beijar a palma.

- Então já está tudo bem entre nós?

- Parece que sim. Disseste-lhe que era comigo que estavas?

- Não foi preciso. Assim que tu saíste, ela deu-me um murro no braço e disse: ”Ela é mais alta do que eu, mais magra do que eu e tem um cabelo

mais bonito.” Qual é a vossa paranóia com o cabelo?

- Esquece. Que mais disse ela?

- Que já era suficientemente mau eu estar a dar-lhe para trás, e ainda por cima por causa de uma rapariga como tu. Pensei que devia ser uma espécie de elogio feminino tortuoso.

- E é. Agora sinto-me culpada. Aposto que ia gostar dela e isso irrita-me um bocadinho. - Ficou séria por um minuto, depois dirigiu-lhe um sorriso radiante. - Mas isto passa. Não vou pedir desculpa, propriamente, porque... enfim, as mãos no teu rabo. Mas ofereço-me para te fazer o jantar.

- Vendido - disse ele sem hesitar.

- Tens alguma coisa em mente?

- Nada. Surpreende-me. Surpreende-nos - corrigiu, baixando-se para apanhar Lily e a pendurar de cabeça para baixo. - Eu tomo conta da baixinha enquanto trabalhas. Vamos fazer o caos na sala do lado.

E assim, simplesmente, pensou ela, a sua vida estava de novo como devia estar. Enquanto os murmúrios de Harper e as gargalhadas de Lily chegavam até ela, abriu o frigorífico para examinar o conteúdo.

Deplorável, constatou. Um sortido totalmente masculino de cerveja, refrigerantes, água, o que parecia ser uma perna de galinha frita antiquíssima, dois ovos, manteiga e um pedaço de queijo bolorento.

Abriu o congelador e encontrou o filão. Várias caixas de restos cuidadosamente etiquetadas. David em acção. Mas era uma pena não poder cozinhar qualquer coisa, impressionar Harper.

”Quem é que é deplorável, afinal? Ele exibe outra mulher debaixo do teu nariz e tu rastejas aos pés dele. Agora queres cozinhar para ele, como uma criada. As mulheres não passam de criadas para os homens. Para as conveniências deles.”

”Ele mente como todos os homens mentem, e tu acreditas porque és fraca e tola.”

”Obriga-o a pagar. Todos deviam pagar.”

- Não - disse baixinho, quando deu por si parada em frente do congelador aberto. - Não. Estes pensamentos não eram meus. E recuso-me a tê-los na minha cabeça.

- Disseste alguma coisa? - perguntou Harper da sala.

- Não, nada - respondeu Hayley, mais calma.

Não havia nada a dizer. Nada a pensar. Ela ia arranjar uma refeição e iam comer. Como um casal. Ou até, um pouco, como uma família. Os três, juntos. Apenas os três.

 

Sentir-se tão acomodado era um pouco assustador para Harper. Tinham-se habituado a jantar juntos todas as noites. Sentavam-se juntos na cozinha, Lily presa na cadeirinha alta que ele trouxera da casa grande, ele e Hayley à mesa, e a conversa parecia tão fácil que o deixava nervoso.

Estavam a caminhar para algo sólido, como um barco a navegar em direcção à costa com vento suave. Harper não tinha a certeza se, quando chegassem à costa, acabariam magoados e feridos ou sãos e salvos.

”Não parecia Hayley também nervosa com esta naturalidade?”, pensou. ”Ou estaria apenas a projectar nela a sua própria inquietação?”

Era tudo tão normal, o comerem juntos ao final do dia, falando sobre o trabalho ou sobre o último feito de Lily. E, contudo, no meio daquela tranquilidade, havia intensidade, sentimento. Uma sensação de ”aqui estamos nós e aqui vamos ficar, pelo menos por esta noite”.

Até quando estaria ele, estariam ambos, dispostos a manter o ”pelo menos”?

- Estava a pensar - começou ele - que, se amanhã as coisas estiverem calmas, podia ensinar-te a hibridizar.

- Já sei um bocadinho. A Roz mostrou-me com uma boca-de-lobo.

- Estava a pensar num lírio. São bons espécimes para isso e podíamos experimentar. Estava a pensar que podíamos tentar um mini, qualquer coisa em cor-de-rosa. E dar-lhe o nome da Lily.

O rosto de Hayley iluminou-se.

- A sério? Criar um novo espécime para ela? Oh, Harper, isso seria fantástico!

- Pensei em cor-de-rosa... mas um rosa-vivo... e podíamos tentar uns laivos de vermelho nas pétalas. O vermelho é a tua cor, portanto seria como o Lily de Hayley. Foi o que pensei.

- Vais fazer-me chorar.

- Depois de algum tempo a polinizar à mão, és mesmo capaz de chorar. Não é um trabalho que dê gratificação imediata.

- Gostava muito de experimentar.

- Então vamos trabalhar nisso. O que te parece, baixinha? - perguntou a Lily. - Queres uma flor só tua?

Lily pegou delicadamente num feijão verde, com dois dedos, e atirou-o cuidadosamente para o chão.

- Aposto que vai gostar da flor mais do que gosta de legumes. Este é o sinal dela para dizer que já acabou. - Hayley levantou-se. - Vou limpá-la.

- Eu podia tratar disso. Dar-lhe banho.

Com uma gargalhada, Hayley tirou o tabuleiro da cadeirinha.

- Alguma vez deste banho a um bebé?

- Não, mas já tomei banho algumas vezes. Basta encher a banheira, atirá-la lá para dentro e dar-lhe o sabonete. E voltar para a limpar depois de beber mais uma cerveja. Estou a brincar - disse, quando Hayley arregalou os olhos. Soltou Lily da cadeira e pegou-lhe. - A tua mamã acha que eu sou um idiota. Vamos mostrar-lhe como é.

- Oh, mas...

- Ficar sempre com ela. Nunca virar costas. Água tépida, não quente. Blá-blá-blá - continuou ele enquanto se afastava. Por cima do ombro, Lily fez-lhe adeus alegremente.

Hayley foi ver como as coisas estavam a correr três vezes, mas tentou ser subtil.

Quando acabou de arrumar a cozinha, Lily já corria de um lado para o outro, toda cor-de-rosa e pó-de-talco, vestindo apenas a fralda. Alguns homens, concluiu Hayley, tinham um jeito natural para crianças. E Harper parecia ser um deles.

- O que se segue na agenda dela?

- Geralmente deixo-a brincar uma horinha, para se cansar. Depois podemos ler um livro ou parte de um livro, se ela ficar sossegada tempo suficiente para isso. Harper, não queres livrar-te de nós?

- Não. Estava com esperança de que ficassem. Posso montar a cama portátil no quarto de hóspedes. Assim, ouvimo-la se ela acordar. E assim podias ficar comigo. - Pegou nas mãos de Hayley e inclinou-se para a beijar. - Quero que fiques comigo esta noite.

- Harper... - Ela afastou-se e correu atrás de Lily. - Espera - disse, e parou à entrada da sala quando Lily correu para um monte de carrinhos e camiões de plástico. - De onde é que isto apareceu?

- Eram meus. Há coisas que guardamos.

Imaginou Harper em criança, a brincar com os seus camiões e a fazer barulhos de motores, mais ou menos como a sua bebé estava a fazer agora.

- Harper, isto é tão difícil.

- O quê?

- Não me apaixonar perdidamente por ti.

Ele não disse nada por um instante, depois virou-a para si.

- E se te apaixonasses?

- É isso que eu não sei. Estás a ver, é isso que eu não sei. - Sentiu um soluço na garganta e tentou engoli-lo. - Há muita coisa envolvida. Só começámos a namorar há algumas semanas e com tudo o que está a acontecer... Não sei o que tu queres, aquilo que procuras.

- Ainda estou a tentar descobrir.

- Ainda bem para ti, Harper, a sério. Mas... e se eu me apaixonar? Imagina que eu te amo e tu descobres que o que queres na realidade é uma viagem a Belize e seis meses a vadiar na praia? Tenho de pensar na Lily. Não posso...

- Hayley, se eu quisesse ser um vadio de praia acho que já o tinha percebido.

- Tu sabes o que eu quero dizer.

- Sim, está bem. E se eu me apaixonar por ti e tu decidires que queres voltar para Little Rock com a Lily e abrir os teus próprios viveiros?

- Eu nunca conseguiria... Ele levantou a mão.

- Claro que conseguias. Esse é o tipo de risco que as pessoas correm quando se envolvem. Talvez te apaixones e talvez a outra pessoa não queira aquilo que tu queres.

- Então vamos ser sensatos? Viver um dia de cada vez?

- Podíamos fazer isso, sim.

- E se eu não quiser ser sensata? - disparou ela. - E se eu quiser olhar para ti agora mesmo e dizer-te que te amo? O que farias?

- Não tenho a certeza, uma vez que pareces irritada com isso.

- Claro que estou irritada. - Hayley ergueu os braços. - Estou apaixonada por ti, Harper, raios, e tu queres ser sensato, viver um dia de cada vez. E, para mim, essa atitude é irritante.

Harper considerava-se um tipo bastante descontraído, embora tivesse um temperamento perigoso, que ele conseguia controlar na maior parte do tempo. Como, pensou, é que se apaixonara desta maneira por uma mulher cujo humor saltava de um lado para o outro como uma bola de walppers?

O que só provava, supôs, que o amor não era lógico.

- Em vez de explodires, devias ouvir. Eu disse que podíamos ser sensatos. Podíamos viver um dia de cada vez. Mas, uma vez que eu também estou apaixonado por ti, a ideia não me agrada por aí além.

- Estás sempre a fazer coisas românticas, e refiro-me a coisas românticas de filme. E depois coisas enternecedoras, como dar banho à minha menina, e esperas que eu seja sensata? O que queres que eu faça, Harper, o que esperas de mim quando tu...

Susteve a respiração e soltou-a lentamente enquanto ele olhava para ela, com aquele meio sorriso no rosto.

- O que é que disseste depois daquela parte de eu dever ouvir?

- Disse que também estava apaixonado por ti.

- Oh... Oh! - Agachou-se quando Lily lhe trouxe um dos camiões. Muito bonito, querida. Vai buscá-lo. - Empurrou o camião para o outro lado da sala e voltou a levantar-se. - Não estás a dizer isso só porque eu sou chata?

- Geralmente, a minha política não inclui dizer a uma mulher que a amo quando ela está a ser chata. Na verdade, nunca o disse a ninguém antes, porque é uma coisa que tem muito peso. Devia ter peso. Portanto, tu és a primeira.

- Não é por causa de gostares tanto da Lily? Ele ergueu os olhos para o céu.

- Por amor de Deus.

- Estou a ser parva. - Ergueu as mãos e agitou-as. - Oiçam o que estou a dizer. Estou sem fôlego. Fazes-me tão feliz que tenho andado infeliz.

- Sim, estou a ver que isso faz sentido. Nenhum.

- Tenho andado tão assustada. - Riu-se e abraçou-o. - Estava com tanto medo de me apaixonar por ti e depois acabaríamos amigos como aquela mulher que apareceu nos viveiros no outro dia. Não quero ser tua amiga, Harper. Se isto não resultar - beijou-o com força -, vou odiar-te para sempre.

- Ainda bem. Acho eu.

Ela soltou um longo suspiro e encostou o rosto ao dele.

- O que fazemos agora?

- Uma vez que isto é novidade para mim, gostava de aproveitar a sensação durante uns tempos. É bastante embriagante. Mais a curto prazo, diria que devíamos brincar com a Lily. Deixá-la bem cansada, para depois de a pores na cama dela eu poder levar-te para a minha.

- Gosto desse plano.

Depois de deitarem Lily, Harper pôs música. Hayley sabia que ele raramente estava sem música. Embora ainda não fosse completamente de noite, ele tinha velas a tremeluzir no quarto. E flores - um toque que ela raramente vira noutro homem, mas que se habituara a esperar dele.

- Ela está sossegada? - perguntou-lhe Harper.

- Está. É fácil adormecê-la, embora nem sempre fique assim tão sossegada a noite inteira.

- Nesse caso, devíamos aproveitar. - Deslizou as mãos sobre os braços dela, depois pelas suas costas. - Adoro fazer amor contigo. Tocar-te. Olhar para ti quando te toco. A forma como o teu corpo se move com o meu.

- Talvez isto seja apenas desejo.

- Já senti apenas desejo por outras mulheres. - Roçou os lábios no queixo dela. - Achas mesmo que é só isso?

- Não. - Ela virou a cabeça e os lábios de ambos encontraram-se. - Não só.

- Penso em ti. No teu aspecto, na tua voz, na sensação da tua pele. E aqui estamos nós.

Hayley passou os braços pelo pescoço de Harper enquanto ele a pousava na cama. As suas mãos deslizaram pelo corpo dela e pararam no seu seio.

- És perfeita. Perfeita, perfeita. - Mordiscou-lhe o pescoço, depois o mamilo, ao de leve, através da camisola, até ela estremecer debaixo dele.

Depois abriu-lhe a camisa e tocou-lhe na pele.

Mais do que excitação, pensou ela, enquanto o seu corpo se arqueava em resposta, havia felicidade no meio da excitação, como bolhas no champanhe. Ele amava-a. Harper, com as suas mãos pacientes e o seu temperamento fogoso, amava-a.

Acontecesse o que acontecesse, ela era amada. E o amor que se erguia tão forte dentro dela era bem-vindo. Não havia dádiva que ela pudesse apreciar mais.

Para lhe mostrar, e como precisava de lhe mostrar, entregou-se num beijo, numa torrente desse amor.

Envolveu-o nesse amor e Harper sentiu o coração doer com aquele fogo. Ele amava. Nunca o tinha sentido antes, esta vaga atordoante de emoção que lhe enchia alma e coração, corpo e mente. Esta mulher, esta mulher que se movia com ele, que se fundia com ele, fora ela que o despertara.

Saboreou o perfume e o sabor da sua pele enquanto o céu escurecia e um noitibó começava a cantar na macieira do lado de fora da janela.

Lá dentro, o ar era suave e denso, latejando com os sons de suspiros. Sentiu-a erguer-se, tremer e tremer até alcançar o auge, depois descer a flutuar num gemido que era o nome dele. A sua pele tremia onde ele a tocava e a dele aquecia quando as mãos dela deslizavam sobre si.

Os lábios dela. Podia mergulhar neles até o prazer invadir as mentes de ambos como neblina.

Quando ela rebolou para cima dele, se ergueu sobre ele, viu o rosto dela à luz das velas. O seu brilho, emoldurado pelo cabelo escuro, o azul delicado dos olhos nublados de paixão.

Os lábios dela reclamaram os seus, suaves, suaves mesmo depois de o beijo se tornar mais profundo. E depois o gemido rouco quando o recebeu dentro de si. Harper fechou os olhos, mergulhando na sensação quando ela se fechou à volta dele.

- É isto que tu queres - murmurou ela. - É isto que vocês todos querem. A mudança foi como um estalar de dedos, o frio como um sudário de gelo. Olhou para ela e tudo dentro de si ficou paralisado.

- Não.

- Penetrar. Mergulhar.

- Pára. - Enquanto ela se movia sobre ele, a excitação misturada com horror, Harper segurou-lhe as ancas para a fazer parar.

- São capazes de dizer tudo. Amor. Promessas. Mentiras. Tudo para se apanharem no meio das pernas de uma mulher. - As coxas dela apertaram-no, como um torno. Era o corpo de Hayley, ele sabia-o, mas não era Hayley. A repugnância cresceu dentro dele.

- Pára. - Ergueu as mãos e o que estava dentro dela riu-se.

- Queres que te faça vir? Queres que te monte como um pónei até... Ele empurrou-a para trás e ela continuou a rir, nua sob a luz trémula.

- Deixa-a em paz. - Puxou-a para si. - Não tens direito a ela.

- Tanto como tu. Mais. Somos iguais, ela e eu. Iguais.

- Não, não são. Ela não procura o caminho mais fácil. É carinhosa, forte e honesta.

- Eu também podia ter sido. - Algo diferente surgiu-lhe nos olhos. Pesar, dor, necessidade. - Posso ser. E sei melhor do que ela o que se pode fazer com este corpo. - Encostou-o ao dele e começou a murmurar sugestões eróticas ao seu ouvido.

Com um pânico doentio no estômago, ele abanou-a.

- Hayley! Raios, Hayley. Tu és mais forte do que ela. Não a deixes fazer isto. - E, embora ainda fosse outra coisa que olhava para ele, apesar de os lábios dela estarem frios, tão frios, beijou-a. Docemente. - Amo-te. Hayley, amo-te. Volta para mim.

Soube quando ela voltou, o instante preciso. E apertou-a com força contra si enquanto ela tremia.

- Harper...

- Chiu, está tudo bem.

- Ela estava... Oh, meu Deus. Não era eu. Eu não queria dizer aquelas coisas. Harper...

Consolá-la, pensou Harper, não era a resposta, não aqui, não agora.

- É a ti que eu quero. - Os seus lábios deslizaram pela face dela e as suas mãos acariciaram-na para a aquecer. - Só tu, só eu. Não vamos permitir que ela nos toque. Olha para mim.

Segurou as mãos dela nas suas e entrou nela.

- Olha para mim - repetiu. - Fica comigo.

O frio tornou-se calor, o horror tornou-se alegria. Ela ficou com ele. Unidos.

Hayley não conseguia falar, mesmo depois de ele pousar a cabeça na sua barriga e de o noitibó ter dado lugar às cigarras. Tanta coisa se agitava dentro dela que não conseguia separar o choque do medo, o medo da vergonha.

Ele beijou-lhe a pele da barriga e levantou-se.

- Vou buscar água e ver a Lily.

Ela teve de sufocar as palavras. Súplicas para que não a deixasse sozinha, nem por um momento. Mas isso era uma loucura, e impossível. Não podia ser vigiada todos os minutos. Mais ainda, não suportava a ideia de que ele pudesse sentir que tinha de a vigiar, à espera de que Amélia a usasse de novo. Sentou-se, puxou os joelhos para o peito e apoiou a testa neles.

Ainda estava nessa posição quando ele voltou e se sentou na cama ao lado dela.

- Harper, não sei o que dizer.

- A culpa não foi tua, vamos já deixar isso bem claro. E tu conseguiste expulsá-la ou empurrá-la, o que quer que tenha sido.

- Não sei como suportaste tocar-me depois.

- Achas que a deixava vencer? Achas que a deixaria levar a melhor? A fúria mal contida na voz dele fê-la erguer a cabeça.

- Tu... estavas dentro de mim quando ela... é tão sinistro.

- Toma. - Ele estendeu-lhe a água. - É sinistro para ambos - concordou. - E um pouco incestuoso para mim. Céus. Não há nada como ser íntimo da nossa tetravô.

- Ela não estava a pensar em ti dessa maneira. Não sei se isso ajuda. Reprimindo um arrepio, devolveu-lhe a água. - Ela estava... senti como se ela o estivesse a ver a ele. Ao Reginald. Ela estava... eu estava... muito excitada, sabes, e depois houve uma pontada de raiva através da excitação. Mas o tipo de raiva que ainda torna a excitação maior. Mais sombria. E depois ficou tudo misturado. Ela e eu, tu e eu. E eu estava tão descontrolada que não consegui fazer nada. Depois disseste que me amavas, beijaste-me, e consegui agarrar-me a isso.

- Ela tentou usar-nos. E nós não deixámos. - Pousou a água antes de a deitar ao seu lado, de a apertar contra o peito. - Vai correr tudo bem.

Mas mesmo ali, deitada ao lado dele, a salvo e segura nos seus braços, Hayley não conseguia acreditar completamente nisso.

Era embaraçoso, mas Harper achava que Mitch devia saber de qualquer incidente que envolvesse Amélia. Mesmo que esse incidente tivesse acontecido quando ele estava na cama com Hayley.

Pelo menos era uma conversa de homem para homem. Se a mãe tinha de saber, Harper preferia que a informação fosse filtrada através de Mitch.

- Quanto tempo durou? - perguntou Mitch.

- Talvez uns dois minutos. Pareceu mais, tendo em conta a situação, mas provavelmente não passou disso.

- Ela não foi violenta.

- Não. Mas sabes... - Teve de fazer uma pausa e olhar para o quadro de trabalho na biblioteca. - A violação não é sempre violenta, mas não deixa de ser... Seja como for, foi como me senti. Como se estivesse a ser violado. Uma coisa de poder. Tenho-te preso por onde quero e sou eu que mando.

- Encaixa no perfil de personalidade que temos vindo a construir. Ela não conseguiria compreender que, embora o que existe entre ti e a Hayley seja sexual, o sexo pelo sexo não é a força motora. Deves ter ficado muito abalado.

Harper limitou-se a acenar afirmativamente. Ainda havia um vestígio de náusea no seu estômago.

- Que mais precisamos de saber antes de podermos acabar com isto?

- Gostava de poder dizer-te. Temos o nome dela, as circunstâncias da sua vida. Sabemos que a tua linhagem deriva dela. Sabemos que o bebé lhe foi tirado e estamos a presumir que foi sem o seu consentimento. Ou que, depois de o dar, ela se arrependeu. Sabemos que veio aqui, à Harper House, e parece que morreu aqui. Talvez se descobrirmos como, mas não há garantias.

Ele nunca contara com garantias, nem na vida nem no trabalho. O pai morrera quando tinha sete anos, o que pusera fim a qualquer tipo de garantia de uma família tradicional. O seu trabalho era uma série de experiências, riscos calculados, capacidades aprendidas e pura sorte. Nenhuma delas garantia o sucesso.

Harper considerava o fracasso um adiamento, na pior das hipóteses, e outro passo do processo, na melhor.

Mas as coisas eram consideravelmente diferentes quando envolviam a mulher que amava e o seu bem-estar, a sua felicidade.

Recordou-se novamente disso quando a encontrou a regar.

Ela vestia os calções de algodão e a camisola de alças que eram uma espécie de uniforme de Verão nos viveiros. Tinha os pés enfiados em chinelos de lona que podiam ser molhados e o rosto protegido pela pala de um dos bonés dos viveiros.

Parecia triste e pensativa. E isso provou-se quando deu um salto ao ouvir a voz dele. -Olá.

- Céus, assustaste-me.

- É o que dá estares a sonhar acordada no trabalho. Por falar nisso, vou começar a hibridização e dava-me jeito uma ajuda.

- Ainda queres fazer isso?

- Porque não?

- Pensei que talvez, depois de pensares melhor, quisesses manter a distância durante algum tempo.

Ele limitou-se a aproximar-se dela, afastou cuidadosamente a mangueira e beijou-a.

- Acho que estás enganada.

- Acho que sim. Sorte a minha.

- Vem ter comigo quando estiveres despachada. Já avisei a Stella de que te ia roubar por algum tempo.,

Entreteve-se a preparar o trabalho, alinhando as ferramentas e as plantas que queria usar. Registou as espécies, nome e características das plantas desejadas nos seus ficheiros.

Uma vez que não podia pôr os auscultadores, pois não ia trabalhar sozinho, trocou Beethoven por Loreena McKennitt. Calculou que agradaria às plantas e ele estaria muito mais satisfeito.

Quando Hayley entrou, ele estava a acabar uma Coca-Cola e tirou outras duas.

- Isto é excitante. Harper deu-lhe a lata.

- Primeiro, diz-me o que sabes sobre hibridização.

- Bom, é como se tivéssemos uma mãe e um pai. Duas plantas diferentes... podem ser do mesmo tipo ou de... como é?

- Géneros.

- Géneros diferentes. Portanto, queremos plantas com características estáveis e cruzamo-las polinizando à mão. Tiramos pólen de uma, semente da outra... como sexo.

- Nada mau. Vamos usar esta miniatura que eu tenho estado a preparar como planta-mãe. E esta matizada será a outra, a semente-mãe. Vês que a protegi com um saco... isso impede que os insectos polinizadores cheguem a ela, e agora vamos remover os estames antes de ela poder autopolinizar-se. Pu-las em vasos, trouxe-as no Inverno passado para que pudessem desenvolver-se.

- Há algum tempo que andas a pensar em fazer isto.

- Sim, desde que a Lily nasceu, mais ou menos. Seja como for, hoje vamos trabalhar com o pólen da planta-mãe. Sabes como?

- A Roz já o fez, mas eu limitei-me a observar.

- Desta vez, vais experimentar. Já cortei esta, logo acima do nó, estás a ver? Tem estado dentro de água e agora está completamente aberta. Vês como as anteras estão divididas? Estão prontas para o pólen.

- Então já trataste dos preliminares.

- Uma das minhas especialidades. Ela revirou os olhos.

- A quem o dizes.

- Agora tu.

- Oh, bolas... Tenho de arrancar as pétalas, não é?

- Puxões rápidos e suaves, trabalha para o interior até veres as anteras. -Aqui vai disto.

- Muito bem - disse ele, enquanto a observava. - Tem cuidado para deixares as anteras intactas. Sim, bom trabalho, belas mãos.

- Estou nervosa. Detesto fazer as coisas mal.

- Não estás a fazer mal. - Os dedos dela eram rápidos e precisos enquanto arrancavam as pétalas. - E, se te enganares, apanhamos outra.

- É assim? Está bom?

- O que vês?

Ela mordeu o lábio.

- As pequenas anteras estão todas nuas.

- Próximo passo. - Pegou numa escova de pêlo de camelo limpa. Tens de recolher o pólen. Usa isto, passa-a sobre as anteras. Vamos guardá-lo neste prato, mantê-lo seco. Vês, está fofo, quer dizer que está maduro. Vou etiquetar o prato.

- Isto é divertido. Nem imaginas como eu era má em química na escola.

- Só precisavas de um parceiro melhor. Os meus parceiros de laboratório tinham todos excelentes notas. Agora vamos preparar a semente. Estás a ver isto? - Ergueu o lírio que escolhera. - Não queremos que esteja completamente aberto. Estamos à procura de plantas bem desenvolvidas mas com anteras imaturas... antes que possa acontecer a autopolinização. Tiramos as pétalas e as anteras.

- Despimo-la toda.

- Por assim dizer. Não podem ficar fragmentos, pois dariam origem a fungos e estragariam tudo. Queremos estigmas bem expostos.

- Faz tu essa parte. Assim é como se fôssemos uma equipa.

- Está bem. - Ele arrancou as pétalas, depois pegou na pinça e arrancou habilmente as anteras. - Agora espera até amanhã pelo pólen. Isso dá tempo de os estigmas ficarem peganhentos. Depois transferimos o pólen maduro para os estigmas. Podemos usar uma escova, mas eu gosto de usar o dedo. Pronto. Recuou.

- É só isso?

- Essa é a primeira. Vamos fazer a seguinte. Temos uma boa dúzia de sementes aqui. Acho que podemos tentar o pólen de umas duas plantas. Para ver o que sai.

Repetiram os passos do processo à vez. ”Num ritmo agradável, sociável”, pensou Hayley, ”e tranquilizador.”

- Como escolheste as plantas?

- Ando a estudá-las há algum tempo, a seguir os hábitos de crescimento e a forma, os padrões de cor.

- Desde que a Lily nasceu.

- Sim, praticamente.

- Harper, lembras-te de quando eu disse que se as coisas não resultassem entre nós te odiaria para o resto da vida?

- Sim, lembro-me.

- Bom, é verdade, mas vou tentar disfarçar o mais possível porque sei que tu a amas. Mesmo a sério.

- Tenho de admitir que ela me conquistou. Amanhã, vamos polinizar, etiquetar e registar. Depois, vamo-la mantendo debaixo de olho. Provavelmente demorará uma semana até vermos o ovário inchar, se formos bem sucedidos.

- Ovários inchados. Isso traz-me recordações. Ele sorriu e continuou a trabalhar.

- Mais duas semanas, a vagem deve estar formada, depois leva cerca de um mês para a semente amadurecer. Saberemos que está madura quando o topo começar a abrir.

- Sim, conheço a sensação.

- Pára com isso, é estranho.

Dirigiu-se ao computador e os dedos compridos martelaram as teclas enquanto introduzia os dados.

- O que vamos fazer é pegar nas sementes, secá-las e plantá-las no fim do Outono. Gosto de fazer assim para só germinarem na Primavera.

- Plantamo-las lá fora?

- Não, aqui dentro. Com a mistura de terra da minha mãe, em vasos de dez centímetros. Quando estiverem suficientemente grandes, pomo-las em canteiros nos viveiros. Vão demorar um ano a florir e só nessa altura saberemos o que realmente conseguimos.

- Felizmente, não faço a mínima ideia de como é uma gravidez de dois anos.

- Sim, as mulheres safam-se só com nove mesinhos. Um piscar de olhos.

- Queria ver-te a ti.

- Sou fã da maneira como as coisas funcionam. Pronto. Os registos estão actualizados e, se tudo correr bem, eventualmente veremos flores novas e algumas delas terão características de ambas as plantas-mãe. - Olhou para o trabalho e acenou. - Conseguiremos o que pretendíamos ou, mesmo que não seja exactamente o que pretendíamos, esperemos que seja algo parecido o suficiente para podermos fazer outra geração ou tentaremos com outra planta-mãe.

- Por outras palavras, isto pode demorar anos.

- A hibridização a sério não é para meninos.

- Eu gosto. E gosto que não seja uma coisa rápida. Toda esta expectativa. E talvez não consigamos exactamente o que temos em mente, mas algo diferente. Não necessariamente melhor, mas igualmente bonito.

- Agora estás a falar bem.

-Sinto-me bem.-Afastou-se da mesa de trabalho. - Estava a ter um dia horrível. Não parava de pensar no que aconteceu ontem à noite.

- A culpa não foi tua.

- Eu sei... na minha cabeça. Mas mesmo assim não conseguia deixar de pensar se alguma vez conseguiríamos voltar a estar à vontade ao pé um do outro... pelo menos tão depressa. Não sabia se tu estarias, não sei, constrangido e nervoso. Parecia que a oportunidade que tínhamos de gozar o nosso amor estava estragada.

- Nada mudou para mim.

- Eu sei. - Estavam lado a lado na mesa de trabalho e ela apoiou a cabeça no ombro dele. - E sinto-me mais calma por saber disso.

- Mais vale dizer-te já que contei ao Mitch o que aconteceu.

- Oh! - Ela susteve a respiração e encolheu-se. - Suponho que tinha de ser e antes tu do que eu. Foi horrível?

- Não. Apenas um pouco estranho. Passámos muito tempo a falar no assunto sem olharmos um para o outro.

- Não vou pensar nisso - decidiu Hayley. - Não vou. - Virou-se e beijou-o. - É melhor voltar ao trabalho para o qual me pagam. Vemo-nos em casa.

Mais tarde, enquanto trabalhava a cantarolar, Stella passou por ela e parou, de mãos nas ancas.

- A hibridização fez-te bem.

- Sinto-me óptima. Amanhã é a segunda fase.

- Ainda bem. Parecias um bocadinho em baixo esta manhã.

- Não dormi muito bem, mas já recuperei. - Olhou em volta para se certificar de que ninguém a podia ouvir. - Estamos apaixonados. - Sorrindo, usou os indicadores das duas mãos para desenhar um coração no ar. Eu e o Harper. Juntos.

- Uau, que novidade!

Com uma gargalhada, Hayley continuou a carregar sacos de terra do carrinho para a prateleira.

- Mesmo apaixonados, a sério. Dissemos ”amo-te” um ao outro.

- Estou muito feliz por ti. - Abraçou Hayley. - A sério.

- Eu também estou feliz. Mas houve uma... tenho de te contar o que aconteceu. - Cautelosa, Hayley olhou de novo em volta e relatou o incidente a Stella em voz baixa.

- Meu Deus! Estás bem?

- Foi horrível, tão horrível, que ainda me dá a volta ao estômago pensar nisso. Não sabia como o Ultrapassaríamos. Isso era quase pior do que a experiência propriamente dita. Mas ultrapassámos. Conseguimos. Não imagino como ele se deve ter sentido, mas não se afastou de mim.

- Ele ama-te.

- É verdade. Ama-me mesmo. - ”Milagres por todo o lado”, pensou ela. - Stella, sempre acreditei que um dia me apaixonaria, mas nunca pensei que seria assim. Agora que sei, não consigo imaginar ficar sem ele. Percebes?

- Claro. Devias estar feliz. Devias saber que o resto não tem nada a ver com isso. E tu e o Harper deviam gozar esta fase de encantamento porque é preciosa.

- Sinto-me como se tudo na minha vida fosse um prelúdio para isto, para ele. O bom e o mau. Consigo aguentar o mau porque sei que encontrámos algo um no outro que é realmente importante. Suponho que é lamechas, mas...

- Não. É felicidade.

 

O computador portátil em segunda mão fora uma boa compra, e usá-lo fazia Hayley sentir que estava a fazer qualquer coisa activa. Uma hora ou duas de pesquisa podiam não lhe ter dado muitas informações novas, pelo menos que se aplicassem à sua situação, mas tinham pelo menos servido para lhe garantir que ela não estava sozinha.

Havia muitas pessoas que acreditavam ter tido experiências com fantasmas e assombrações. Ela já estava a compilar os conselhos mais importantes de todos os sites que visitava. Mas, com o computador, podia organizar as informações em vez de as escrevinhar à mão num bloco de notas.

E era divertido poder enviar e-mails aos seus amigos de Little Rock.

Claro que se perdia a navegar na Internet, tal como se perdia no meio de livros. Havia tanta informação, tantas coisas interessantes. E uma levava invariavelmente a outra, pelo que, se não tivesse cuidado, ficaria acordada pela noite dentro, debruçada sobre o teclado.

Tinha o queixo apoiado na mão, a mente concentrada num relato de Toronto sobre um bebé fantasma que chorava, quando uma mão lhe roçou o ombro.

Não saltou e conteve o grito. Fechou os olhos e falou num tom de voz quase normal.

- Por favor, diz-me que é uma mão real.

- Espero que seja, uma vez que está presa ao meu pulso.

- Roz. - Hayley soltou lentamente a respiração. - Uma salva de palmas para mim, por não ter saltado até ao candeeiro como um desenho animado.

- Era capaz de ter sido engraçado - disse Roz, semicerrando os olhos para ler o que estava no ecrã. - ”cacadoresdefantasmas.com”?

- Um de muitos - disse-lhe Hayley. - Na verdade, tem coisas muito interessantes. Sabias que uma das formas tradicionais de desencorajar fantasmas de entrar numa divisão era espetar alfinetes ou pregos de ferro à volta da porta? É como se eles ficassem presos e não conseguissem entrar. Claro, se fosse feito depois de eles já lá estarem dentro, significava que não podiam sair.

- Se te apanho a pregar alguma coisa nas minhas madeiras, esfolo-te. -Já calculava. Além disso, não vejo como poderia funcionar. - Empurrou a cadeira para trás e afastou o rosto do ecrã. - Dizem que se deve tentar falar com o fantasma, delicadamente, simplesmente pedindo-lhe para sair. Lamento muito o teu azar e estares morto e tudo mais, mas esta é a minha casa e estás a incomodar-me, portanto, se não te importas, vai andando.

- Eu diria que nós já tentámos algumas variações disso.

- Sim, não resultou. - Quando Roz se sentou no sofá, Hayley percebeu que ela não viera apenas falar de Amélia. Os seus nervos começaram a ficar tensos. - Claro, dizem que se deve documentar tudo, mas o Mitch já está a tratar disso. E tirar fotografias. Podíamos contratar um caçador de fantasmas, mas suponho que não queres uma data de estranhos na tua casa.

- E supões muito bem.

- Ou podíamos pedir a um padre que abençoasse a casa. Mal não fazia.

- Estás com medo.

- Mais do que antes, sim. Mas sei que estas coisas - continuou, apontando para o ecrã - não ajudam muito, porque o que estamos a fazer, o que sempre tencionámos fazer, foi descobrir quem, como e porquê. E mesmo que conseguíssemos correr com ela agora, ainda não saberíamos tudo. Mas gosto de recolher informação.

- Tu e o Mitch são farinha do mesmo saco. Já documentaste o que aconteceu na outra noite contigo e com o Harper?

- Sim. - Sentiu as faces vermelhas. - Mas ainda não o dei ao Mitch.

- É muito pessoal. Eu não gostaria de partilhar esse tipo de experiência com uma pessoa de fora.

- Mas não és uma pessoa de fora. Nem o Mitch. Nenhum de vocês o é.

- Qualquer pessoa, por mais que a amemos, está de fora quando se trata de assuntos de cama, Hayley. Quero que saibas que eu compreendo isso. Quero também que saibas que não precisas de poupar os meus sentimentos nesse aspecto. Esperei uns dias antes de te falar nisso, na esperança de que já não fosse tão constrangedor.

- Sei que o Harper falou com o Mitch, e sabia que ele te contaria. Mas eu não consegui, Roz. Se tivesse sido com outro homem... não que eu quisesse estar com mais alguém senão o Harper... Isto é terrível.

- Não é nada.

- O Harper é teu.

- Sim, é verdade. - Pôs os pés em cima da mesa, a sua posição habitual.

- Eu soube quando ele se apaixonou por ti, apesar de tu não teres percebido e acredito que nem ele próprio.

- Acho que foi na noite em que ficámos no Peabody. Roz abanou a cabeça.

- Isso é romance e muito precioso. Mas não foi aí. Quem segurou na tua mão quando a Lily nasceu?

- Oh! - Hayley levou a mão à garganta. - Foi ele. Foi o Harper, e acho que ele estava quase tão assustado como eu.

- Quando vi e compreendi, senti o coração apertado. Só por um instante. Saberás o que quero dizer quando for a vez da Lily. E se tiveres sorte, como eu tenho, verás a tua filha apaixonar-se por alguém que tu também conseguirás amar, respeitar e admirar, de quem te sentirás próxima e que te fará rir. Portanto esse aperto no coração é felicidade e gratidão.

As lágrimas deslizaram pelas faces de Hayley.

- Acho que não podia ter mais sorte do que tenho. Tens sido tão boa para mim. Não, por favor, ouve - disse, quando Roz abanou a cabeça. Isso significa muito para mim. Quando aqui cheguei, julgava-me tão esperta e forte, tão preparada. Se ela me puser na rua, pensei, seguirei em frente. Hei-de encontrar um emprego, um apartamento, ter este bebé. Vai correr tudo bem. Se eu soubesse o que implica ter um filho... não só o tempo, o esforço, mas também o amor e a preocupação que nos enchem quando somos mães... ter-me-ia atirado aos teus pés e implorado ajuda. Mas tudo o que precisei de fazer foi pedir.

- Dei-te um emprego e um sítio para ficar porque és família e por causa da situação em que te encontravas. Mas não é por isso que ainda aqui estás. Conquistaste o teu lugar aqui, no centro de jardinagem, e o teu lugar nesta casa. Podes ter a certeza de que, se assim não fosse, eu já te teria mostrado a porta da rua.

- Eu sei. - E sabê-lo fez Hayley sorrir. - Queria provar-te o meu valor e orgulho-me de o ter conseguido. Mas, Roz, como também sou mãe, sei o que o Harper significa para ti. E parte da razão por que estou assustada, mais assustada do que estava, é o meu medo de que a Noiva possa fazer-lhe mal.

- Porque pensas isso?

- Ela viu o Reginald nele. Talvez uma das razões para ter começado a possuir-me seja o sentimento que eu comecei a ter pelo Harper. Quando o conheci, lembro-me de ter pensado que, se não estivesse grávida, ele não me escaparia.

Quando Roz se riu, Hayley corou.

- Estás a ver as coisas que me saem da boca? - perguntou. - Meu Deus, tu és mãe dele!

- Esquece isso por um minuto. Continua.

- Bom, na altura eu não tinha condições psicológicas nem físicas para poder pensar a sério num homem, numa relação. Simplesmente achei-o giro e depois, quando o conheci melhor, doce, engraçado e inteligente. Gostava muito dele e de vez em quando ficava irritada por ele ser tão giro e eu estar grávida e rabugenta e muito longe do meu melhor. Depois de a Lily nascer, tentei pensar nele como uma espécie de irmão ou um primo. Bom, ele é um primo, mas sabes o que quero dizer.

- Como pensas no David, no Logan ou nos meus outros filhos.

- Sim. Fiz um sério esforço para pôr o Harper nessa mesma categoria. E havia tanta coisa para fazer e aprender que era fácil ignorar aquele formigueiro distante que sentia por dentro. Sabes a que me refiro.

- Graças a Deus, sei - disse Roz com sentimento.

- Mas depois começou a ser mais difícil e os meus sentimentos por ele tornaram-se mais fortes. Parece-me que foi quando comecei a ser honesta comigo própria, quando comecei a imaginar como seria estar com ele, que a Amélia começou a fazer das suas.

- E quanto mais fortes eram os teus sentimentos, mais fortes e mais expressivas as objecções dela.

-Tenho medo de que ela lhe faça mal através de mim. Vendo o Reginald em vez do Harper. Tenho medo de não conseguir controlá-la. Roz franziu a testa.

- Parece-me que não estás a dar ao Harper o crédito de saber cuidar de si próprio.

- Talvez não. Mas ela é terrivelmente forte, Roz. Acho que está mais forte do que nunca. - Recordando a sensação de sentir a sua personalidade ser empurrada para trás, Hayley respirou fundo. - E parece-me que ela teve muito tempo para pensar na vingança.

- O Harper é mais forte do que ela julga. E tu também.

Hayley esperava que Roz tivesse razão. Deitada na cama, sem conseguir dormir, com Harper ao seu lado, esperou ter a coragem e a inteligência para combater a vingança de um espírito vingativo. Pior ainda, um espírito pelo qual sentia alguma simpatia.

Mas Harper não era responsável por aquilo que acontecera a Amélia. Nenhuma das pessoas que viviam hoje na Harper House era responsável. Tinha de haver uma forma, uma maneira qualquer, de fazer Amélia compreender isso. De lhe mostrar que Harper era, não só o rapaz para quem ela em tempos cantara, mas também um homem bom e carinhoso. E nada parecido com Reginald.

Como seria ele, na realidade? Reginald Harper. Um homem tão obcecado com a ideia de ter um filho que era capaz de engravidar uma mulher que não era sua esposa. Quer Amélia tivesse consentido ou não - e eles não tinham maneira de o saber -, fora um acto egoísta e ofensivo da parte dele. Depois levar a criança, obrigar a sua própria mulher a aceitá-la como sua. Ele não podia ter amado ninguém. Nem a mulher, nem Amélia e nem a criança, certamente.

Não admirava que Amélia o desprezasse e que, com a sua mente ou espírito e coração despedaçados, juntasse todos os homens no mesmo saco.

Como teria sido para ela? Para Amélia?

Sentou-se em frente do toucador, maquilhando cuidadosamente as faces à luz do candeeiro a gás. A gravidez roubara-lhe a cor. Apenas mais uma indignidade, depois dos horríveis enjoos, manhã após manhã, do alargamento da cintura, do cansaço constante.

Contudo, havia benefícios. Mais do que ela alguma vez imaginara. Sorriu enquanto pintava os lábios. Como havia de adivinhar que Reginald ficaria tão satisfeito? Ou que seria tão generoso?

Levantou o braço para estudar os corações de rubis e diamantes que lhe enfeitavam o pulso. A jóia era um pouco delicada demais para o seu gosto, na realidade, mas não podia dizer que não fosse valiosa.

E ele contratara-lhe outra criada, dera-lhe carta branca para adquirir um novo guarda-roupa que se adaptasse ao seu corpo em mutação. Mais jóias. Mais atenção.

Visitava-a agora três vezes por semana e nunca aparecia de mãos vazias. Nem que fosse apenas para lhe trazer chocolates ou frutas cristalizadas quando ela mencionava os seus apetites por doces.

Como era fascinante que a perspectiva de um filho pudesse deixar um homem tão dócil.

Imaginava que ele também devia ter sido muito solícito com a mulher, em tempos. Mas depois ela enchera-lhe a casa de raparigas, em vez do rapaz que ele tanto queria.

Ela dar-lhe-ia um filho. E, ao dar, colheria os benefícios disso para o resto da sua vida.

”Para começar, uma casa maior”, decidiu. ”Roupas, jóias, peles, uma carruagem nova, talvez uma pequena casa de campo também.” Ele tinha dinheiro para isso. Reginald Harper não se pouparia a despesas com o seu filho, mesmo que fosse um filho bastardo, ela tinha a certeza disso.

E, como mãe desse filho, ela nunca mais teria de procurar outro protector, nunca mais teria de namoriscar, seduzir e negociar com homens de dinheiro e poder, oferecendo sexo e conforto em troca do tipo de vida que desejava. Que merecia. Que conquistara.

Levantou-se do toucador e, com o cabelo dourado a brilhar, com o vermelho e branco das jóias a cintilar, o vestido prateado a reluzir, deu uma volta em frente do espelho.

Esta era a sua moeda de troca, agora. Esta barriga saliente. Como parecia estranha e desajeitada, gorda e deselegante, apesar do belo vestido. E mesmo assim Reginald cobria-a de mimos. Acariciava o alto da barriga, mesmo durante o calor da paixão. E nesses momentos de paixão era mais carinhoso, mais gentil do que nunca. Ela quase conseguia amá-lo nessas alturas, quando as mãos dele eram ternas em vez de exigentes. Quase.

Mas o amor não fazia parte do jogo e isto não passava de um jogo. Esta troca de prazer por estatuto. Como podia ela amar alguém tão fraco, tão traiçoeiro, tão arrogante? Uma ideia ridícula, tão ridícula como sentir pena das mulheres traídas por ela. Mulheres que pressionavam os lábios finos e fingiam não saber. Que passavam por ela na rua de nariz empinado. Ou mulheres como a sua própria mãe, que trabalhavam como escravas por meia dúzia de tostões.

Ela estava destinada a coisas maiores, pensou, e pegou num pesado frasco de cristal para pôr perfume no pescoço. Ela estava destinada a sedas e diamantes.

Quando Reginald chegasse, ia fingir-se um pouco amuada. E falaria do broche de diamantes que vira nessa tarde. Dir-lhe-ia como se sentia consumida de desejo por ele.

A consumição não era boa para a criança. Calculava que o broche seria seu dentro de um dia.

Soltou uma gargalhada e virou-se.

Depois parou e ficou muito quieta. A sua mão tremia quando a levantou para a encostar à barriga.

Mexera-se.

Dentro dela, um tremor, um esticão. Pequenas asas a baterem.

O espelho reflectiu a sua imagem, de pé com o vestido brilhante, os dedos abertos sobre a pequena barriga como se quisesse guardar o que estava lá dentro.

Dentro dela. Vivo. O seu filho.

Dela.

Hayley recordava-o vivamente. Mesmo de manhã, não havia aquela sensação fragmentada ou indistinta de um sonho normal.

- Suponho que foi uma espécie de tentativa de despertar compreensão. Mais empatia, até. - Segurou a chávena com ambas as mãos e bebericou o seu café da manhã.

- Como assim? - Mitch trouxera o gravador e o bloco de notas, como ela pedira. - Ela alguma vez falou directamente contigo?

- Não, porque não era ela, era eu. Ou éramos ambas. Não estava propriamente a sonhar, era mais como se estivesse lá. Senti, vi, pensei. Ela não estava apenas a mostrar-me, mas a reviver o momento. Se é que isso faz algum sentido.

- Come os teus ovos, querida - disse David. - Estás pálida. Ela enfiou obedientemente uma garfada na boca.

- Ela era linda. Nada parecida com aquilo que costumamos ver dela, sinceramente. Vibrante e podre de boa... desculpem a expressão. Havia tanta coisa a passar pela cabeça dela... pela minha... nem sei. Irritação por causa das alterações no corpo, a inconveniência, planos e maquinações para extorquir mais coisas ao Reginald, surpresa pela reacção dele à sua gravidez, desprezo por homens como ele, pelas suas mulheres, inveja, cobiça. Tudo misturado num grande turbilhão. Fez uma pausa e respirou fundo.

- Acho que ela já era um bocadinho louca.

- E como é que pretende despertar simpatia com isso? - perguntou-lhe Harper. - Por que raio havias de ter pena de uma pessoa assim?

- Foi a mudança. Foi sentir o bebé a mexer-se. Eu também o senti. Aquele choque de sentir, a compreensão súbita de que há vida dentro de nós. E ao mesmo tempo uma grande vaga de amor. Nesse momento, o bebé tornou-se dela. Deixou de ser um estratagema ou um inconveniente e passou a ser filho dela, e ela começou a amá-lo. - Olhou para Roz.

- Sim, eu sei.

- Era isso que ela me estava a mostrar. Eu amava o meu filho, queria-o. E o homem, o tipo de homem capaz de usar uma mulher como eu, tirou-mo. Ela tinha a pulseira. A pulseira dos corações. E eu tive pena dela. Não acho que ela fosse boa pessoa, certamente que não era uma pessoa simpática, e, mesmo nessa altura, antes de tudo o resto que lhe aconteceu, acho que já era desequilibrada. Mas amava a criança, queria tê-la. Acho que o que ela me mostrou era real e mostrou-mo porque queria que eu compreendesse. Sim, tive pena dela.

- A empatia não faz mal nenhum - disse Mitch. - Mas não podes baixar a guarda. Ela está a usar-te, Hayley.

- Eu sei e não vou baixar as defesas. Posso ter pena dela, mas não tenho de confiar nela.

Os dias passaram e Hayley esperou pelo próximo acontecimento, pela próxima experiência, porém, Agosto deu tranquilamente lugar a Setembro. A experiência mais dolorosa que teve foi quando o seu velho carro se avariou entre o trabalho e a ama de Lily e teve finalmente de aceitar que estava na altura de o substituir.

- Não é só por causa do dinheiro - disse a Harper enquanto percorriam o stande de automóveis usados, empurrando Lily no seu carrinho. - Suponho que é um dos últimos elos que tenho com a minha infância. O meu pai comprou aquele carro em segunda mão. Foi nele que aprendi a conduzir.

- Tenho a certeza de que irá para um bom lar.

- Raios, Harper, vai para a sucata e ambos sabemos disso. Pobre calhambeque. Mas sei que tenho de ser sensata. Não posso andar com a Lily num carro que não é de confiança. Terei sorte se o vendedor que o levou para ser avaliado não me disser que ainda tenho de lhe pagar para se livrar dele.

- Deixa-me lidar com ele.

- Nem pensar. - Parou junto de uma carrinha e deu-lhe um pontapé nos pneus. - Sabes o que mais detesto? Detesto que a maior parte dos vendedores de automóveis, mecânicos e essa raça toda trate as mulheres como se fossem lambisgóias sem cérebro só porque não têm um pénis. Como se toda a informação e conhecimento sobre automóveis estivesse armazenado nessa parte do corpo.

- Bolas, Hayley. - Ele riu-se e fez uma careta.

- É verdade. Portanto, eu fiz a minha pesquisa. Sei o que quero e qual é o preço justo. Se ele não quiser negociar comigo, vou a outro lado.

Parou junto de um automóvel, encostou-se a ele e abanou a mão em frente do rosto.

- Deus do céu, está mesmo calor. Parece que todos os fluidos do meu corpo se evaporaram.

- Estás um bocadinho pálida. Porque não entras e descansas um minuto?

- Estou bem. Simplesmente não tenho andado a descansar como deve ser. Mesmo a dormir, sinto-me como se estivesse alerta, como nas primeiras semanas depois de a Lily nascer. Isso deixa-me lenta e irritável. Se eu descarregar em cima de ti, tenta ter paciência.

Ele acariciou-lhe as costas.

- Não te preocupes.

- Agradeço-te muito teres vindo comigo, a sério. Mas não te sintas obrigado a intervir.

- Já alguma vez compraste um carro?

Ela lançou-lhe um olhar aborrecido e continuou a empurrar o carrinho de Lily.

- Lá porque nunca comprei um carro, isso não quer dizer que seja uma campónia acabada de chegar à cidade. Já comprei muitas outras coisas e posso garantir-te que tenho mais experiência a negociar preços do que tu. Menino rico.

Ele sorriu.

- Sou apenas um simples jardineiro.

- Podes trabalhar para viver, mas tens um pé-de-meia guardado para um dia de chuva. Ora aqui está o que eu procuro.

Parou e inspeccionou um Chevy de cinco portas com ar robusto.

- Tem muito espaço, mas não é demasiado grande e está limpo. De certeza que anda mais do que o meu carro velho e não dá nas vistas.

Franziu a testa quando viu o preço marcado.

- Se conseguir que ele baixe um pouco o preço, ficará dentro do meu orçamento. Mais ou menos.

- Não lhe digas que...

- Harper.

-Já cá não está quem falou. - Ele abanou a cabeça e enfiou as mãos nos bolsos.

E quase teve de morder a língua quando o vendedor apareceu, todo sorrisos, e anunciou a mísera quantia que lhe davam pelo seu carro velho.

- Oh, só isso? - Hayley arregalou os olhos azuis e bateu as pestanas. Suponho que o sentimento não conta, pois não? Mas talvez possa oferecer mais qualquer coisinha, por pouco que seja, conforme aquilo que eu comprar. Este é bonito. Gosto da cor.

Harper percebeu que ela estava a fazer-se de ingénua. Até carregara mais o sotaque. Seguiu-os enquanto o vendedor lhes mostrava algumas opções mais caras, viu-a morder o lábio, fazer um sorriso radiante e voltar a conduzi-lo com firmeza para aquilo que queria.

Já conseguira dar-lhe a volta, pensou Harper, enquanto ela convencia o vendedor a baixar o preço e tirava Lily do carrinho para a sentar atrás do volante. Harper concluiu que ninguém conseguia resistir a estas duas raparigas.

Duas horas depois, estavam a sair do stande com Lily a dormir na cadeirinha e Hayley radiante atrás do volante.

- Oh, sr. Tanner, não percebo nada de carros. É tão simpático da sua parte ajudar-me desta maneira...” - Harper abanou a cabeça. - Quando estavas sentada lá dentro a tratar da papelada, quase tive pena dele.

- Ele fez uma boa venda, vai ganhar a sua comissão e eu consegui aquilo que procurava. É isso que interessa. - Mas deu uma gargalhada. Gostei quando ele tentou meter-te no negócio, abriu o capô e tu coçaste a cabeça como se estivesses a olhar para um míssil de cruzeiro. Acho que o fizemos sentir-se bem por me estar a dar aquilo de que eu precisava por um preço que podia pagar. E isso também conta. Da próxima vez que tiver de comprar um carro, vou direitinha ao sr. Tanner.

- Não fez mal nenhum quando ficaste com os olhos cheios de lágrimas.

- Isso foi real. Tive pena de vender o velho calhambeque... e não penses que estas prestações não me vão custar. -Além disso, pensou, ficara com um nó na garganta quando o sr. Tanner presumira que eles eram uma família.

- Se precisares de ajuda...

- Nem comeces, Harper. - Mas deu-lhe uma palmadinha na mão, para mostrar que agradecia a oferta. - Eu e a Lily vamos ficar bem.

- Nesse caso, que me dizes se eu as levar a almoçar, para festejar?

- Boa ideia. Estou esfaimada.

E pareciam uma família, pensou ela. Uma família jovem normalíssima, a comprar um carro em segunda mão, a almoçar num restaurante, a dar gelado à bebé.

Porém, pensar assim era apressar demasiado as coisas, para todos. Eram apenas um homem e uma mãe solteira que estavam envolvidos romanticamente. Não um casal.

Em casa, decidiu aproveitar o resto do dia fazendo uma sesta com Lily.

- Estamos bem, não estamos, bebé? - murmurou enquanto Lily brincava com o cabelo dela, de olhos pesados, quase a dormir. - Estou a tratar-te bem? Pelo menos estou a tentar.

Aconchegou-se um pouco mais a ela.

- Estou tão cansada. Tenho um milhão de coisas para fazer, mas estou tão cansada. Tratamos disso mais tarde, certo?

Fechou os olhos e começou a calcular as suas finanças, fazendo malabarismo com os fundos, alterando os depósitos semanais. Mas não conseguia concentrar-se.

A sua mente não parava de voltar ao stande de automóveis usados e ao sr. Tanner a apertar-lhe a mão antes de se virem embora. Como ele lhe sorrira e lhe desejara boa sorte, a ela e à sua encantadora família.

Depois recordou-se de estar sentada no terraço com Harper, a beber vinho fresco numa noite quente.

Dançar com ele no ambiente romântico da suite no Peabody.

Trabalhar ao lado dele na casa de enxertia.

Vê-lo pôr Lily às cavalitas.

”Devia ser mais fácil estar apaixonada”, pensou, ensonada. Devia ser mais simples. Não devia fazer uma pessoa desejar mais quando o amor era tudo.

Suspirou e disse a si própria para gozar aquilo que tinha, porque o resto acabaria por acontecer.

E a dor súbita foi como punhaladas no seu ventre, chocante, aguda e horrível. Todo o seu corpo lutou contra ela e gritou com a sensação de estar a ser rasgada em dois.

O calor, a dor. Insuportável. Como podia algo que tanto amara, que tanto desejara, castigá-la desta maneira? Ia morrer, de certeza que ia morrer. E nunca veria o seu filho.

O suor escorria-lhe pelo corpo e o cansaço era quase tão mau como a dor.

Sangue, suor e agonia. Tudo pelo seu filho, o seu menino. O seu mundo. Nenhum preço era demasiado elevado para lhe dar vida.

E enquanto a dor a cortava ao meio, a lançava numa espiral de agonia em direcção à inconsciência, ouviu o choro frágil do nascimento.

Hayley acordou ensopada em suor, com o corpo ainda a tremer de dor. E a sua própria filha a dormir tranquilamente na curva protectora do seu braço.

Libertou-se com cuidado e pegou no auscultador do telefone.

- Harper? Podes vir?

- Onde estás?

- No meu quarto. A Lily está a dormir aqui, não posso deixá-la. Estamos as duas bem - acrescentou rapidamente. - Estamos bem, mas aconteceu uma coisa. Por favor, podes vir?

- Dois minutos.

Fez um muro de almofadas em volta da bebé, mas mesmo assim sabia que não podia sair do quarto. Lily podia rebolar de alguma maneira ou trepar por cima das almofadas e cair. Mas podia caminhar de um lado para o outro no quarto, apesar de sentir as pernas fracas.

Abriu a porta quando ouviu os passos de Harper a correr pelas escadas.

- Disseram-lhe que era um nado-morto. - Cambaleou e os joelhos quase cederam. - Disseram-lhe que o seu bebé estava morto.

 

Na sala, onde a luz era suave, filtrada pelas cortinas finas, e o ar doce com o perfume de rosas, Harper parou junto à janela com os punhos enfiados nos bolsos.

- Ela estava arrasada - disse, de costas para a sala. - Perdeu as forças quando eu lá cheguei e mesmo depois de se recompor parecia doente.

- Ela não está ferida. - Mitch ergueu a mão quando Harper girou sobre si próprio. - Sei como te sentes, a sério. Mas ela não foi fisicamente afectada e isso é importante.

- Desta vez - retorquiu ele. - Mas isto está descontrolado. Esta história toda está completamente descontrolada.

- Mais uma razão para nos mantermos juntos e não perdermos a calma.

- Estarei calmo quando ela não estiver nesta casa.

- A Amélia - perguntou Logan - ou a Hayley?

- Nesta altura? As duas.

- Sabes que ela pode ficar connosco. E, se eu estivesse no teu lugar, a minha vontade seria fazer-lhe as malas e tirá-la daqui. Mas, por aquilo que percebo, tentaste fazer isso uma vez e não resultou. Se achas que agora terás mais sorte, eu ofereço-me para levar a mala.

- Ela não vai ceder. Que diabo se passa com estas mulheres?

- Elas sentem-se ligadas. - David abriu as mãos. - Mesmo quando vêem o pior da Amélia, sentem uma ligação. Sentem-se comprometidas. Seja certo ou errado, Harper, há uma espécie de solidariedade.

- E é a casa dela - acrescentou Mitch. - Tanto como é tua ou minha. Ela não vai virar costas e deixar as coisas por acabar. Tal como nenhum de nós o faria. - Olhou em volta. - Portanto vamos acabar as coisas.

A lógica, por mais razoável que fosse, não conseguia diminuir a raiva de Harper nem a sua preocupação.

- Vocês não a viram depois do que aconteceu.

- Não, mas temos uma ideia pelo que tu nos contaste. Ela também é importante para mim, Harper. Para todos nós.

- Um por todos, parece-me lindamente. - Olhou para as portas da sala e a sua mente subiu as escadas, até Hayley. - Mas é ela que está na linha de fogo.

- De acordo. - Mitch inclinou-se para a frente para chamar a atenção de Harper. - Vamos analisar o que aconteceu. A Hayley foi conduzida através do parto e de um rescaldo dramático, em que disseram à Amélia que o bebé estava morto. E passou por tudo isto enquanto estava a dormir com a Lily. Mas a Lily não foi perturbada. Isso diz-me que ela não tinha intenção de fazer mal à bebé, nem mesmo de a assustar. Caso contrário, não achas que a Hayley seria a primeira a querer sair daqui?

- Talvez seja verdade, mas para conseguir o que quer que seja que pretende, a Amélia vai continuar a usar a Hayley.

- Sim - concordou Mitch com um aceno. - Porque funciona. Porque desta maneira ela está a dar-nos informações que de outra forma talvez nunca conseguíssemos descobrir. Sabemos agora que não só o filho lhe foi roubado, como lhe disseram, cruelmente, que estava morto. Não admira que a mente dela, que já parecia ser um pouco desequilibrada, se tenha despedaçado.

- Podemos partir do princípio de que ela veio aqui pelo filho - sugeriu Logan. - E que morreu aqui.

- Bom, a criança também está morta. Tão morta como ela, tão morta como o disco sound - Harper deixou-se cair numa cadeira. - Ela não vai encontrar o filho aqui.

No andar de cima, Hayley acordou de um sono leve. As cortinas estavam fechadas e a luz era fraca, à excepção de um raio que passava pelo intervalo destas. Viu Roz sentada, a ler um livro à luz desse estreito raio de sol.

- Lily...

Roz pôs o livro de lado e levantou-se.

- Está com a Stella. Ela levou-a para a outra ala, com os rapazes, para brincarem e tu poderes descansar um pouco. Como te sentes?

- Exausta. E ainda um pouco sensível por dentro. - Mas suspirou, confortada, quando Roz se sentou na cama e lhe acariciou o cabelo. - Foi mais difícil do que quando tive a Lily, mais duro e mais demorado. Sei que na realidade foram apenas alguns minutos, mas pareceram horas. Horas e horas de dor e calor. E depois uma horrível sensação de névoa, para o final. Deram-lhe qualquer coisa que a fez flutuar, mas de alguma forma essa sensação era quase pior.

- Láudano, imagino. Não há nada como uma injecção de um opiáceo.

- Ouvi o bebé chorar. - Esforçando-se por relaxar, Hayley virou-se de lado, soerguendo a cabeça para olhar para Roz. - Sabes como é, independentemente do que tenha acontecido nas horas antes, tudo dentro de nós se eleva quando ouvimos o nosso bebé a chorar pela primeira vez.

- O bebé dela. - Roz pegou na mão de Hayley. - Não o teu.

- Eu sei, eu sei, mas por aquele instante ele era meu. E a horrível dor lancinante, a incredulidade e a estupefacção quando o médico disse que era nado-morto, isso também foi meu.

- Nunca perdi um filho - disse-lhe Roz. - Nem sequer consigo imaginar a dor.

- Eles mentiram-lhe, Roz. Suponho que ele lhes deve ter pago também. Mentiram, mas ela sabia. Ela ouviu o bebé chorar e sabia. Isso levou-a à loucura.

Roz mudou de posição e pousou a cabeça de Hayley no colo. E ficou em silêncio, a olhar para aquela fina lança de luz entre as cortinas.

- Ela não merecia isso - disse Hayley.

- Não. Não o merecia.

- Independentemente de quem era, do que tinha feito, não merecia ser tratada daquela maneira. Ela amava o bebé, mas...

- Mas o quê?

- Não o amava da maneira certa. Não era um sentimento saudável. Ela não teria sido uma boa mãe.

- Como sabes?

- Senti... - Obsessão, pensou, ânsia. Era impossível descrever as suas dimensões. - Tinha de ser um rapaz, percebes? Uma menina não teria tido importância para ela. Uma menina não teria sido apenas uma desilusão, mas um ultraje. E se ela tivesse tido um rapaz e tivesse ficado com ele, tê-lo-ia prejudicado. Não de propósito, mas ele nunca teria sido o homem que foi. Não teria sido a pessoa que amava o seu cão e o sepultou sob uma lápide, e que amou a tua avó. E nada seria como é.

Virou a cabeça para olhar para Roz.

- Tu, o Harper. Nada seria igual. Mas isso não torna certo o que aconteceu, apesar de tudo.

- Não seria bom se houvesse sempre equilíbrio no mundo? Se o que estava certo vencesse sempre e o que estava mal fosse punido? Sem dúvida que seria simples.

Hayley sorriu.

- Nesse caso o Justin Terrell, que me traiu no décimo ano, seria hoje gordo e careca e estaria a servir batatas fritas e hambúrgueres em vez de ser co-proprietário de um bem sucedido bar de desporto e de se parecer fortemente com o Toby McCuire.

- É mesmo assim, não é?

- Por outro lado, talvez eu fosse para o Inferno por não ter dito nada sobre a Lily ao seu pai biológico.

- Os teus motivos eram puros.

- Maioritariamente. Suponho que fazer o que é melhor nem sempre é fazer o que está certo. Foi melhor para aquele bebé ser criado aqui, na Harper House.

- Não é a mesma coisa, Hayley. Nesse caso ninguém tinha motivos puros, nem de longe. Mentiras e enganos, crueldade e frieza, egoísmo. Tremo só de pensar o que teria sido daquela criança se fosse uma menina. Já te sentes melhor?

- Muito.

- E se eu fosse lá abaixo arranjar-te alguma coisa para comer? Posso trazer um tabuleiro.

- Eu desço. Sei que o Mitch quer registar tudo isto. Sei que o Harper provavelmente já lhe contou, mas é melhor se ouvir o relato da minha boca. E creio que me sentirei melhor depois de o fazer.

- Se tens a certeza...

Ela acenou e sentou-se na cama.

- Obrigada por teres ficado comigo. Foi bom saber que estavas aqui enquanto eu dormia.

Olhou para o espelho e estremeceu.

- Primeiro vou pôr um pouco de maquilhagem. Posso estar possuída por um fantasma, mas não preciso de parecer um fantasma.

- É assim mesmo. Vou dizer à Stella que já estás a pé.

Hayley pensou que, mais uma vez, estava em dívida para com Roz, quando percebeu que estava tudo preparado para ela se sentar com Mitch na biblioteca, sozinhos, para documentar a experiência.

De certa forma, era mais fácil falar apenas com ele. Era tão inteligente e erudito, de uma forma carismática. ”Uma espécie de Harrison Ford com óculos de armações de massa”, concluiu.

Com a fadiga e o choque amortecidos por um pouco de sono e muito carinho, sentia-se mais calma e controlada.

De qualquer maneira, adorava esta sala. Todos os livros, todas as histórias, todas as palavras. Jardins do lado de fora das janelas, grandes poltronas confortáveis do lado de dentro.

Quando chegara à Harper House, por vezes descia à noite, em bicos de pés, apenas para se sentar nesta sala - a sua preferida - e a admirar.

E gostava da forma como Mitch abordava todo o projecto de Amélia. Com os seus quadros de trabalho, o computador, os ficheiros e apontamentos, fazia com que tudo parecesse racional, praticável, razoável.

Olhou para o quadro, com as longas listas e colunas que compunham a árvore genealógica de Harper.

- Quando tudo isto acabar, também gostava de ter uma árvore genealógica para mim.

-Hum?

- Desculpa. - Olhou para ele e agitou a mão. - Tinha a mente noutro sítio.

- Não faz mal, deves ter muito em que pensar. - Pousou o bloco e fixou a sua atenção nela.

- Claro que posso fazer a tua árvore genealógica. Basta dares-me os elementos básicos que conheces... o nome completo do teu pai e da tua mãe, datas e locais de nascimento.

- Gostaria muito. Seria interessante. O Harper e eu cruzámo-nos há algumas gerações, numa espécie de ramo lateral. Ele está muito zangado comigo?

- Não, querida. Porque havia de estar?

- Ele estava perturbado. Queria agarrar em mim e na Lily e levar-nos para casa da Stella. Mas eu não quis ir. Não posso ir.

Mitch rabiscou num bloco.

- Se eu pudesse ter tirado a Roz desta casa há alguns meses, tê-lo-ia feito... nem que fosse preciso dinamite.

- Discutiram por causa disso?

- Nem por isso. - Uma expressão divertida brilhou-lhe nos olhos. - Mas eu sou mais velho, mais sábio e mais consciente das limitações que um homem enfrenta quando tem de lidar com uma mulher teimosa.

- Estarei errada?

- Não me cabe a mim dizê-lo.

- Cabe sim, se eu perguntar.

- Estás a pôr-me entre a espada e a parede. - Recostou-se e tirou os óculos. - Compreendo exactamente como o Harper se sente e porquê, e ele não está errado. Respeito o que tu sentes e as tuas razões, e também não estás errada. Que tal?

Ela conseguiu sorrir.

- Muito inteligente... e nada útil.

- Outro benefício desta fase mais adiantada e sábia da vida. Mas vou acrescentar uma coisa, como homem potencialmente superprotector que sou. Acho que não devias passar muito tempo sozinha.

- Ainda bem que gosto de pessoas. - Quando o telemóvel dele tocou, ela levantou-se. - Vou andando, deixo-te trabalhar.

Como vira Harper lá fora, saiu pela porta lateral. Esperava que Stella não se importasse de ficar a cuidar de Lily mais um pouco. Percorreu o trilho até ao local onde ele estava a trabalhar.

O Verão ainda tinha o mundo preso nas suas garras transpiradas, mas o calor era forte e vital. Real. E ela agradecia toda a realidade que podia ter. Os arbustos estavam pesados com as enormes hortênsias, os lírios erguiam-se no seu caule elegante e as flores do maracujá pintavam o caramanchão com manchas roxas.

O ar estava carregado de aromas e do som de pássaros a cantar, e por todo o lado esvoaçavam borboletas desvairadas.

Harper estava a seguir à curva, de pernas abertas, corpo ligeiramente inclinado, enquanto os dedos rápidos e hábeis arrancavam as flores secas e as punham num saco que trazia preso ao cinto. Aos seus pés tinha um pequeno cesto onde se encontravam já margaridas e bocas-de-lobo, esporeiras e cosmos.

De alguma forma, era tão romântico - o homem, o final da tarde, o mar de flores - que sentiu o coração apertado e um nó na garganta.

Um colibri, uma mancha cor de esmeralda e safira, passou por ela e pairou sobre o cálice de uma flor vermelho-escura.

Viu Harper parar o que estava a fazer para observar a ave, com uma mão num caule e a outra a segurar uma flor seca. E desejou saber pintar. Todas as cores vivas do final do Verão, fortes e quentes, e o homem tão imóvel, tão paciente, a parar o seu trabalho para partilhar as flores com um pássaro.

Sentiu-se inundada de amor.

O pássaro afastou-se como uma jóia voadora. Harper ficou a observá-lo, enquanto Hayley o observava a ele.

- Harper.

- Os colibris gostam de erva-cidreira - disse, pegando na tesoura e cortando uma flor. - Mas há o suficiente para todos. E são bons polinizadores.

- Harper - disse ela outra vez, aproximando-se por trás dele, abraçando-o pela cintura e encostando o rosto às suas costas. - Eu sei que estás preocupado e não te vou pedir que não estejas. Mas por favor não fiques zangado.

- Não estou zangado. Saí para me acalmar. Geralmente resulta. Já só estou irritado e preocupado.

- Eu estava preparada para vir discutir contigo. - Esfregou a face na camisa dele. Sentiu o seu cheiro de sabonete e suor, saudável e masculino.

- Depois vi-te, e não quero discutir. Não quero mesmo. Não posso fazer o que tu queres que eu faça quando tudo dentro de mim me diz para fazer o contrário. Mesmo que esteja enganada, não posso.

- Não tenho grande escolha em relação a isso. - Ele cortou mais flores para o cesto, arrancou mais umas cabeças secas. - E tu não tens escolha no que eu decidi. Vou mudar-me para a casa grande. Preferia que tu e a Lily fossem para a minha casa, mas faz mais sentido eu mudar-me para o teu quarto por agora, uma vez que vocês são duas e eu sou só um. Quando isto acabar, reavaliamos a situação.

- Reavaliamos?

- Exactamente. - Ainda não olhara para ela, e agora afastou-se alguns passos para cortar mais umas flores. - É um pouco difícil perceber para onde vamos, o que havemos de fazer, nestas circunstâncias.

- Portanto, achas que podemos viver juntos, nestas circunstâncias, e quando as circunstâncias mudarem analisamos de novo a situação.

- Isso mesmo.

Afinal, talvez lhe apetecesse discutir.

- Já ouviste falar em perguntar a opinião da outra pessoa envolvida?

- Ouvi falar. Mas não o vou fazer. Nos viveiros, vais trabalhar sempre com a Stella, com a minha mãe ou comigo.

- Quem é que te disse que mandavas em mim?

Com mãos firmes e olhos seguros, ele continuou a trabalhar.

- Um de nós vai acompanhar-te sempre no trajecto para o trabalho e para casa.

- E também quando eu for à casa de banho?

- Se for preciso. Já que estás decidida a ficar, estas são as condições. O colibri aproximou-se de novo, mas desta vez ela não se deixou influenciar pela sua beleza.

- Condições? De repente és rei e senhor? Ouve, Harper...

- Não. É assim que vai ser. Estás decidida a ficar, a levar isto até ao fim. Eu estou igualmente decidido a cuidar de ti. Amo-te, e acabou a conversa.

Ela abriu a boca, voltou a fechá-la e respirou fundo para se acalmar.

- Se tivesses começado por dizer isso... que me amas... talvez eu estivesse mais aberta à discussão.

- Não há discussão nenhuma.

Hayley semicerrou os olhos. Ele ainda não parara o que estava a fazer para olhar para ela.

- Não há dúvida de que consegues ser uma mula quando metes alguma coisa na cabeça.

- Não foi preciso muito esforço. - Baixou-se, tirou as flores do cesto e prendeu-as num bouquet improvisado. Finalmente virou-se e os olhos castanhos fitaram os dela. - Toma.

Ela aceitou as flores e olhou para elas de testa franzida.

- Apanhaste-as para mim?

O sorriso indolente surgiu no rosto dele.

- Para quem havia de ser?

Ela suspirou. Harper juntara flor-de-tabaco ao ramo e, quando inalou, sentiu o seu perfume forte.

- Juro que é exasperante a maneira como consegues ser autoritário num minuto e doce no minuto seguinte. São muito bonitas.

-Também tu.

- Sabes, outro homem qualquer talvez tivesse começado pelas flores, os elogios e os ”amo-te” para me amansar para o resto. Mas tu tinhas de fazer tudo ao contrário.

Ele manteve o olhar firmemente fixo nela.

- Não estava preocupado em amansar-te.

-Já percebi. Não estás à espera de que eu diga: ”Está bem, Harper, vamos fazer isto à tua maneira.” Simplesmente vais fazer as coisas como queres.

- Estás a ver como percebeste depressa?

Ela teve de se rir e, apertando as flores numa mão, desistiu e passou a outra pelo pescoço dele.

- Caso estejas interessado, estou contente por ficares comigo. Da próxima vez que acontecer alguma coisa, é bom saber que vais estar lá.

- Vou estar.

- Se tens mais trabalho para fazer aqui fora... Interrompeu-se quando Logan se aproximou.

- Desculpem. Há novidades - disse. - É melhor entrarem.

Hayley sentiu a excitação como um zumbido no ar assim que entraram na biblioteca. Olhou rapidamente em volta, viu Lily a brincar com Gavin e Luke no chão, junto da lareira, que David enchia de flores durante os meses de Verão.

Ao ver a mãe, Lily começou a palrar e interrompeu a brincadeira para se aproximar e lhe mostrar um camião. Mas, assim que Hayley lhe pegou, Lily estendeu os braços para Harper.

- Sou sempre a segunda escolha quando tu estás por perto - comentou Hayley enquanto lhe passava a bebé.

- Ela sabe que eu compreendo as subtilezas dos brinquedos Fisher-Price. Podes largar - disse. - Já a segurei. O que se passa? - perguntou à mãe.

- Vou deixar o Mitch explicar. Ah, David, podemos sempre contar contigo.

Ele entrou a empurrar um carrinho com bebidas frescas e petiscos para os miúdos.

- Não podemos separar corpo e alma. - Piscou o olho aos rapazes. Muito menos nesta casa.

- Sirvam-se do que quiserem e sentem-se - ordenou Roz.

Embora o vinho parecesse tentador, Hayley optou por um chá gelado. Ainda não tinha o estômago a cem por cento.

- Obrigada por tomares conta da minha menina - disse a Stella.

- Sabes que eu adoro. Fico sempre espantada ao ver como os rapazes gostam de brincar com ela. - Stella acariciou o braço de Hayley. - Como te sentes?

- Ainda um bocadinho em baixo, mas muito melhor. Sabes o que se passa?

- Não tenho a mais pequena ideia. Senta-te, pareces esgotada. Hayley sentou-se e sorriu.

- Estás a ficar com um leve vestígio de sotaque sulista. Sulista ianque, mas já se nota. É giro.

- Deve ser por estar em minoria. - Preocupada por Hayley ainda parecer muito pálida, sentou-se no braço da cadeira dela.

- Quanto tempo vai durar este suspense? - queixou-se Logan, e Mitch levantou-se e colocou-se em frente da mesa da biblioteca.

”Como um professor”, pensou Hayley. Às vezes esquecia-se de que ele já o fora.

- Todos vocês sabem que estou há já alguns meses em contacto com uma descendente da governanta que trabalhava aqui no tempo de Reginald e Beatrice Harper.

- A advogada de Boston - disse Harper, sentando-se no chão com Lily e o seu camião.

Mitch acenou afirmativamente.

- Consegui despertar o interesse dela e, quanto mais procurava informações, quanto mais falava com pessoas, mais interessada ficava.

- Além disso, o Mitch fez a genealogia dela... grátis - acrescentou Roz.

- Uma mão lava a outra - disse ele. - E, de qualquer forma, precisávamos de alguma dessa informação. Até agora, ela ainda não tinha conseguido encontrar muito que nos servisse de alguma coisa. Mas hoje teve sorte.

- Estás a matar-nos - comentou Stella.

- Uma carta, escrita pela governanta em questão. A Roni... a Verónica, o meu contacto... encontrou uma caixa cheia de cartas no sótão de uma das suas tias-avós. Era bastante material para estudar, para ler. Mas hoje ela encontrou uma carta escrita por Mary Havers para uma prima. A carta tem a data de 12 de Janeiro de 1893.

- Poucos meses depois de o bebé nascer - acrescentou Hayley.

- Exactamente. A maior parte da carta fala apenas de questões familiares ou faz o tipo de observações casuais que seria de esperar... particularmente numa era em que as pessoas ainda escreviam cartas longas. Mas no corpo da carta... - Ergueu alguns papéis. - Ela enviou-me cópias por fax. Vou ler as partes pertinentes.

- Mãe! - gritou a voz irritada de Luke. - O Gavin está a olhar para mim com aquela cara!

- Gavin, agora não. Estou a falar a sério. Desculpem - pediu Stella. Respirou fundo e decidiu ignorar a discussão murmurada atrás de si. - Continuem.

- Esperem só um minuto. - Logan levantou-se, dirigiu-se aos rapazes, agachou-se e teve uma conversa com eles. Ambos soltaram um grito de alegria e levantaram-se.

- Vamos brincar com a Lily lá para fora - anunciou Gavin, enchendo o peito de ar. - Anda, Lily. Queres ir lá para fora?

Agarrada ao camião, ela abandonou Harper, acenou adeus e pegou na mão de Gavin. Logan fechou a porta atrás deles.

- Mais tarde temos de os levar a comer gelado - disse a Stella enquanto regressava ao seu lugar.

- Suborno. Bem pensado. Desculpa, Mitch.

- Não faz mal. Isto foi escrito para a prima de Mary Havers, Lucille. Encostando-se à mesa da biblioteca, Mitch ajeitou os óculos e começou a ler:

- ”Não devia estar a escrever sobre isto, mas estou tão perturbada, de coração e de espírito. O Verão passado falei-te do nascimento do menino dos meus patrões. É uma criança linda, o menino Reginald, de carácter muito doce. A ama que o sr. Harper contratou é muito competente e parece carinhosa e bastante ligada ao menino. Tanto quanto eu sei, a senhora nunca entrou no quarto da criança. A ama fala apenas com o sr. Harper e com mais ninguém. Cá em baixo, a Alice, a ama, tem tendência a falar demais, como todas as raparigas. Mais do que uma vez a ouvi comentar que a senhora nunca vê a criança, nunca lhe pega ao colo, nunca pergunta como ele está.”

- Cabra de coração frio - disse Roz baixinho. - Ainda bem que ela não é minha antepassada de sangue. Prefiro uma pessoa maluca do que uma cruel.

- Depois levantou a mão. - Desculpa, Mitch. Não devia interromper-te.

- Não faz mal. Já li isto várias vezes e concordo contigo. Mary Havers continua: ”Não me cabe a mim criticar, claro. No entanto, parece pouco natural que uma mãe não mostre qualquer interesse pelo filho, especialmente pelo menino que era tão desejado nesta casa. Não se pode dizer que a senhora seja uma mulher carinhosa ou naturalmente maternal, contudo, com as meninas, sempre esteve relativamente envolvida nas suas actividades diárias. Nem sei quantas amas e governantas já entraram e saíram desta casa nos últimos anos. A sr.a Harper é muito exigente. Contudo, nem por uma vez deu instruções a Alice relativamente ao menino Reginald.

”Conto-te isto, Lucy, porque, embora ambas saibamos que, regra geral, os patrões se interessam pouco pelos pormenores da gestão da casa, a menos que haja algum inconveniente, julgo que há algo perturbador neste caso, e tenho de contar a alguém os meus pensamentos, os meus receios.”

- Ela sabia que havia alguma coisa errada - interrompeu Hayley. - Desculpem - disse, olhando em redor. - Mas percebe-se, apesar de ela não o dizer directamente.

- E gostava do bebé - disse Stella, rodando o copo de vinho nas mãos.

- Estava preocupada por ele. Também se percebe. Continua, Mitch.

- Ela diz: ”Embora te tenha falado sobre o nascimento do bebé, não te tinha mencionado nas cartas anteriores que não houve qualquer sinal nos meses anteriores de que a sr.a Harper estava de esperanças. As suas actividades e a sua aparência permaneceram as mesmas. Nós, que servimos, estamos a par dos pormenores mais íntimos de uma casa e daqueles que nela vivem. É inevitável. Não houve qualquer preparação para esta criança. Ninguém falou em amas, em enxoval, a sr.a Harper nunca esteve de repouso, o médico nunca a veio visitar. Muito simplesmente o bebé apareceu na casa uma certa manhã, como se tivesse sido de facto trazido pela cegonha. Embora tenha havido algumas conversas cá em baixo, eu não permiti que continuassem, pelo menos na minha presença. Não nos cabe a nós questionar estes assuntos.

”No entanto, Lucille, ela tem estado tão afastada desta criança que é de partir o coração. Portanto, sim, é verdade que também me questionei. Não há dúvidas sobre a paternidade desta criança, pois o menino é a cara chapada do sr. Harper. Quanto à maternidade, contudo, a história é outra, pelo que posso entender.”

- Então eles sabiam. - Harper virou-se para a mãe. - Ela sabia, esta Havers, e os restantes criados sabiam. E ninguém fez nada.

- O que podiam eles fazer? - perguntou Hayley, com a voz embargada pela emoção. - Eram criados, empregados. Mesmo que tivessem feito barulho, quem os ouviria? Teriam sido despedidos e expulsos e nada teria mudado.

- Tens razão. - Mitch bebeu um gole de água. - Nada teria mudado. E nada mudou. Ela escreve mais.

Pousou o copo e virou para a página seguinte.

- ”Hoje, apareceu uma mulher na Harper House. Estava tão pálida e magra, e nos seus olhos, Lucy, havia algo que não era apenas desespero, mas também alguma loucura. Danby...” Era o mordomo na altura - explicou Mitch. - ”Danby pensou que fosse alguém à procura de trabalho, mas ela forçou a entrada na casa pela porta da frente, possuída por algo selvagem. Afirmava vir buscar o bebé, o bebé dela. O seu filho, a quem chamava James. Disse ouvi-lo a chorar por ela. Mesmo que a criança tivesse chorado, ninguém poderia ouvi-la no vestíbulo, pois o menino estava no seu quarto no andar de cima. Não consegui impedi-la de entrar e ela correu desvairada pelas escadas acima, chamando pelo filho. Não sei o que eu poderia ter feito, mas a minha patroa apareceu e ordenou-me que levasse a mulher para a sua saleta. Esta pobre criatura tremia como varas verdes. A patroa não me permitiu que lhe trouxesse sequer um pouco de água. Não devia ter feito o que fiz a seguir, algo que nunca fiz em todos os meus anos de serviço. Fiquei a escutar à porta.”

- Então ela veio aqui. - Havia piedade na voz de Stella, que pousou a mão no ombro de Hayley. - Veio à procura do seu bebé. Pobre Amélia.

- ”Ouvi as coisas cruéis que a senhora disse a esta infeliz mulher” continuou Mitch. - ”Ouvi as coisas frias que ela disse sobre a criança. Desejando-lhe a morte, Lucy, Deus a perdoe, desejando que o menino e esta pobre mulher estivessem mortos, enquanto ela, que dizia chamar-se Amélia Connor, pedia que lhe devolvessem o filho. Recusou-lho. Ameaçou-a. Expulsou-a. Sei agora que o patrão teve esta criança, este filho que tanto desejava, com esta pobre mulher, a sua amante, e lhe tirou o bebé para o impingir à esposa, para que o criasse aqui como seu herdeiro. Pelo que sei, o médico e a parteira que assistiram ao parto receberam ordens para lhe dizer que tinha dado à luz uma menina. Morta.

”Sempre soube que o sr. Harper podia ser frio e determinado nos seus negócios, nos seus assuntos privados. Nunca vi afecto entre ele e a mulher ou da parte dele para com as filhas. No entanto, nunca o julgaria capaz de um acto tão monstruoso. Não julgaria a senhora capaz de alinhar numa farsa destas. A senhorita Connor, com o seu vestido cinzento largo e os seus olhos desesperados, foi forçada a sair, ameaçada com a polícia se alguma vez voltasse ou falasse sobre o que se passara naquela sala. Eu fiz o meu dever, Lucille, e acompanhei-a à porta. Vi a sua carruagem afastar-se. E desde então nunca mais tive sossego.

”Sinto que devia tentar ajudá-la, mas o que posso fazer? Não será o meu dever cristão oferecer alguma assistência, ou pelo menos consolo, a esta mulher? E contudo o meu dever para com os meus patrões, aqueles que me dão um tecto, me põem comida na mesa e me dão o dinheiro que me proporciona independência, é manter o silêncio. Lembrar-me de qual é o meu lugar.

”Vou rezar para saber qual a coisa certa a fazer. Vou rezar por esta jovem mulher, que veio à procura do filho que deu à luz e foi escorraçada.”

Mitch pousou as páginas e o silêncio instalou-se na sala.

As lágrimas deslizavam pelas faces de Hayley. Tinha a cabeça baixa, como estivera durante a última página da leitura de Mitch. Por fim ergueu-a e, com as lágrimas a brilharem nos olhos, sorriu.

- Mas eu voltei.

 

- Hayley.

- Não. - Mitch avançou quando Harper se levantou de um salto. Espera.

- Eu voltei - repetiu Hayley - por aquilo que era meu.

- Mas não conseguiste chegar à criança - disse Mitch.

- Não? Não? - Na cadeira, Hayley levantou os braços, com as palmas das mãos para cima. - Não estou aqui? Não o vigiei, não cantei para ele adormecer, noite após noite? E todos os outros que vieram depois? Nunca se livraram de mim.

- Mas isso já não é o suficiente.

- Quero o que é meu! Quero o que me é devido. Quero... - Os seus olhos percorreram a sala. - Onde estão as crianças? Onde estão?

- Lá fora - disse Roz calmamente. - A brincar lá fora.

- Gosto das crianças - disse Hayley com ar sonhador. - Quem havia de dizer? Criaturinhas tão barulhentas e egoístas. Mas tão doces, tão suaves e doces quando dormem. É quando dormem que mais gosto delas. Eu ter-lhe-ia mostrado o mundo, ao meu James. O mundo. E ele nunca me deixaria. Julgam que quero a piedade dela? - disse, num súbito acesso de raiva. - Uma governanta? Uma criada? Julgam que quero a piedade dela? Maldita seja, ela e todos os outros. Devia tê-los matado enquanto dormiam.

- E porque não o fizeste?

Ela desviou o olhar e fixou-o em Harper.

- Há outras maneiras de fazer mal. Tão bonito. És tão parecido com ele.

- Não sou. Sou teu. Sou o bisneto do teu filho.

Uma sombra passou pelos olhos dela e os seus dedos brincaram com as calças.

- Do James? O meu James? Eu vigiei-te. Um bebé tão doce. Um rapazinho tão bonito. Vim até ti.

- Eu lembro-me. O que queres?

- Encontrem-me. Estou perdida.

- O que te aconteceu?

- Tu sabes! Foste tu. És amaldiçoado por isso. Amaldiçoei-te com o meu último fôlego. Eu terei o que é meu. - A cabeça de Hayley tombou para trás e levou a mão à barriga antes de todo o seu corpo estremecer. - Céus respirou fundo. - Muito intenso.

Harper pegou-lhe nas mãos e ajoelhou-se em frente dela.

- Hayley.

- Sim, sou eu. - Tinha os olhos desfocados, o rosto branco como a cal.

- Posso beber um pouco de água?

Ele levou as mãos dela ao rosto.

- Não podes continuar a fazer isto.

- E preferia não ter de o fazer. Ela estava chateada. Obrigada - disse a David, que lhe estendeu um copo de água. Bebeu-o como se estivesse a morrer de sede. - Chateada, depois triste, depois chateada outra vez... sempre nos extremos da escala emocional. A carta afectou-a. Bom, a mim também.

Virou-se para Mitch, ainda com as mãos presas nas de Harper.

- Tive tanta pena dela e da governanta. Consegui ver tudo, percebem, como quando estamos a ler um livro. A casa, as pessoas. Imaginei como seria se alguém tivesse a Lily e eu não pudesse fazer nada para a recuperar. Claro que a primeira coisa que eu teria feito seria dar um murro na Beatrice. Filha-da-mãe. Suponho que estava a ficar bastante transtornada, e a Amélia aproveitou e entrou.

Apertou os dedos de Harper.

- Ela está confusa em relação a ti. Está confusa de uma maneira geral, mas lembra-se de ti em bebé, em rapazinho, sente amor por ti porque és do sangue dela. Mas és do sangue dele, também. E és parecido com ele, de certa forma. Pelo menos é o que me parece. É tudo muito confuso quando acontece.

- És mais forte do que ela - disse-lhe Harper.

- Menos louca, de qualquer maneira. Muito menos.

- Portaste-te lindamente. - Mitch pôs o gravador de lado. - E eu diria que já chega, por hoje.

- Tem sido um dia muito ocupado. - Esforçou-se por sorrir e olhou em volta. - Deixei-os todos arrepiados?

- Pode dizer-se que sim. Olha, sobe, deita-te um bocadinho - sugeriu Stella. - O Logan vai ver dos miúdos, não vais?

-Claro. -Aproximou-se primeiro de Hayley e deu-lhe uma palmadinha no ombro. - Vai, linda, descansa.

- Acho que é o que vou fazer, obrigada. - Harper endireitou-se e pegou-lhe na mão para a ajudar a levantar-se. - Não sei o que faria sem vocês todos, não sei mesmo.

Roz esperou até eles saírem da sala.

- Isto está a esgotá-la. Nunca a vi tão cansada. Regra geral, a Hayley é um furacão de energia. Deixa-me cansada só de olHar para ela.

- Temos de pôr fim a isto. - Logan dirigiu-se à porta e abriu-a. E depressa - acrescentou, antes de sair.

- O que podemos fazer? - Stella abriu as mãos. - Esperar e observar não parece ser suficiente. Não sei em relação a vocês, mas ver o que aconteceu aqui deixou-me terrivelmente abalada.

- Eu podia ir a Boston ajudar a Verónica a estudar os documentos. Mitch abanou a cabeça. - Mas não me sinto bem em sair daqui neste momento.

- Achas que é mais seguro estarmos todos juntos? - Roz estendeu a mão para a dele e apertou-a. - Eu sinto o mesmo. Para dizer a verdade, nesta altura nem sequer me agrada que o David passe tanto tempo sozinho em casa.

- Ela não me incomoda. - David servira-se de um copo de vinho e ergueu-o numa espécie de brinde. - Talvez por eu não ser um homem do mesmo sangue. E ainda por cima gay, imagino que não devo ter muito interesse para ela. E o mais provável é que me veja como um criado, o que me coloca no fundo da cadeia alimentar.

- Ela não percebe nada de nada - respondeu Roz. - Mas tem lógica, do ponto de vista dela, e de certa forma deixa-me mais aliviada. ”Encontrem-me.” Ela já disse isso antes.

- A sua campa - sugeriu Mitch.

- Acho que estamos todos de acordo. - Roz levantou-se e bebeu um gole do vinho de David. - E como diabo havemos de fazer isso?

Mais tarde, mesmo com a casa sossegada e Lily a dormir no seu berço, Hayley não conseguia descansar.

- Num minuto estou quase a cair para o lado, no outro estou toda acelerada. Devo ser mesmo chata.

- Agora que falas nisso... - Com um sorriso, Harper puxou-a para o seu lado, no sofá. - E se víssemos o jogo? Posso assaltar a cozinha e arranjar uns petiscos.

- Queres que me sente aqui a ver basebol?

- Pensava que gostavas de basebol.

- Sim, mas não o suficiente para vegetar em frente da televisão.

- Está bem - disse ele com um suspiro exagerado. - Estou prestes a fazer o último dos sacrifícios para a minha espécie. Ir buscar um DVD. Podemos ver um filme, mesmo que seja um filme de mulheres.

Ela afastou-se e olhou para ele.

- A sério?

- Mas tens de fazer tu as pipocas.

- Estás a dizer que eras capaz de ficar aqui sentado a ver um filme para mulheres sem fazer comentários sarcásticos?

- Não me lembro de ter prometido nada sobre os comentários.

- Sabes, eu gosto de filmes de acção.

- Agora já estamos a falar melhor.

- Mas adorava ver uma coisa romântica, com uma ou duas cenas de fazer chorar as pedras da calçada. Obrigada! - Deu-lhe um beijo repenicado e levantou-se de um salto. - Vou fazer pipocas carregadas de manteiga. À porta, parou e olhou para ele com um sorriso radiante. -Já me sinto melhor.

Hayley nunca tivera tantos altos e baixos em toda a sua vida. De uma energia frenética à exaustão, da alegria ao desespero. Parecia que percorria o espectro completo todos os dias. E sob as oscilações de humor, os acessos de mau génio e as depressões, havia sempre o nervosismo e a expectativa do que aconteceria a seguir. E quando.

Quando se sentia ir-se abaixo, tentava lembrar-se daquilo que tinha. Uma filha linda, um homem maravilhoso que a amava, amigos, família, um trabalho bom e interessante. Apesar disso, quando a espiral descendente começava, parecia não conseguir controlar a queda.

Estava com receio de que houvesse algo fisicamente errado consigo. Um desequilíbrio químico, um tumor no cérebro. Talvez estivesse a ficar tão louca como a Noiva.

Sentindo-se perseguida e exausta, passou pelo supermercado na sua manhã de folga para comprar fraldas, champô e alguns outros artigos básicos. Podia agradecer a Deus este pequeno interlúdio de tempo só para si. Ou melhor, para si e para Lily, corrigiu-se, enquanto sentava a filha no carrinho de compras.

Pelo menos ninguém se sentia obrigado a vigiá-la quando não estava na Harper House nem no trabalho. E era de vigilância que se tratava. Vigiavam-na como falcões.

Ela compreendia porquê, e claro que apreciava a preocupação e o cuidado. Mas isso não impedia que se sentisse sufocada. Mal podia escovar os dentes sem que aparecesse alguém a oferecer-se para lhe pôr a pasta na escova.

Percorreu os corredores, pegando distraidamente naquilo de que precisava. Depois fez um desvio pelos cosméticos, pensando que um batom novo talvez a animasse. Mas todos os tons pareciam demasiado claros ou escuros, demasiado vivos ou baços. Nada lhe agradava.

Andava tão pálida e descorada ultimamente que, se pusesse alguma coisa muito viva nos lábios, eles dariam demasiado nas vistas.

Talvez um perfume novo. Mas todas as amostras que cheirou a deixavam ligeiramente enjoada.

- Esquece - murmurou, e olhou para Lily, que estava a tentar esticar o braço para chegar a um expositor de eyeliner e rímel.

- Não tão cedo, minha menina. Mas é divertido ser rapariga, vais ver. Podemos brincar com montes de brinquedos. - Escolheu um dos rímeis, atirou-o para o carrinho. - Mas parece que ando sem paciência para me arranjar. Vamos lá buscar as tuas fraldas. E, se te portares bem, talvez um novo livro de bonecos.

Virou para outro corredor, sem grande vontade de se ir embora. Quando saísse do supermercado, teria de levar Lily à ama e ir para o trabalho. Onde teria alguém colado a ela durante o resto do dia.

Queria fazer qualquer coisa normal, raios. Mais, queria que lhe apetecesse fazer alguma coisa. Qualquer coisa.

E um olhar distraído para a sua direita fê-la estacar subitamente.

Algo que era ao mesmo tempo pânico e náusea, com uma luz de compreensão repentina, cresceu dentro dela. E continuou a crescer enquanto ela fazia cálculos rápidos de cabeça.

Enquanto tudo dentro de si se afundava, Hayley fechou os olhos, Abriu-os de novo, olhou para o rosto alegre de Lily e pegou no teste de gravidez.

Deixou Lily na ama e manteve o sorriso no rosto até sair e se dirigir ao carro. Com medo sequer de pensar, manteve a mente vazia enquanto conduzia até casa. Não ia pensar, não ia projectar. Ia simplesmente chegar a casa e fazer o teste. Duas vezes. Quando desse negativo, como era evidente que aconteceria, esconderia as embalagens em algum lado até poder livrar-se delas sem ninguém as ver e perceber que ela tivera um ataque de pânico.

Não estava outra vez grávida. Não podia de maneira alguma estar outra vez grávida.

Estacionou e certificou-se de que as caixas comprometedoras estavam escondidas no fundo do saco. Mas ainda não dera dois passos dentro de casa quando David apareceu, como um génio mágico.

- Olá, linda, queres ajuda?

- Não. - Apertou o saco contra o peito como se fosse um tesouro. Não - repetiu, mais calmamente. - Vou só levar estas coisas para cima. E tenho de ir à casa de banho, se não te importas.

- Não me importo nada. Muitas vezes, eu próprio tenho de ir à casa de banho.

Sabendo que o seu tom fora desagradável, Hayley passou a mão pelo rosto.

- Desculpa. Estou num daqueles dias.

- Outra coisa que eu também tenho muitas vezes. - Tirou um pacote de rebuçados do bolso e escolheu um de cereja. - Abre a boca.

Ela sorriu e obedeceu.

- Vamos ver se isto te adoça - disse ele, colocando o rebuçado na boca dela. - Não posso deixar de me preocupar contigo, querida.

- Eu sei. Se não voltar dentro de quinze minutos, podes chamar a cavalaria. Combinado?

- Combinado.

Subiu rapidamente as escadas e despejou o saco em cima da cama. Por amor de Deus, esquecera-se das fraldas. Praguejando, pegou nos dois testes de gravidez e correu para a casa de banho.

Por um momento, parecia que não conseguiria fazer chichi. Era mesmo só o que faltava. Fez um esforço para se acalmar, respirou fundo várias vezes. Murmurou uma oração.

Momentos depois, com a doçura do rebuçado de cereja ainda na língua, estava a olhar para o teste onde a palavra GRÁVIDA aparecia, clara como o dia.

- Não. - Agarrou no teste e abanou-o como se fosse um termómetro e esse gesto fizesse as coisas voltarem ao normal. - Não, não, não, não! O que é isto? Que diabo é que eu sou? - Olhou para baixo e bateu ao de leve na barriga. - Algum tipo de íman para esperma?

Desfeita, sentou-se na tampa da sanita e escondeu o rosto nas mãos.

Embora só lhe apetecesse enfiar-se no armário por baixo do lavatório, enrolar-se no escuro e ficar lá durante os próximos nove meses, não tinha muito tempo para ceder à autocomiseração. Lavou a cara, tentando eliminar todos os sinais do ataque de choro.

- Sim, chorar vai fazer uma grande diferença - ralhou a si própria.

- É mesmo isso que vai resolver o problema. Vai mudar tudo e, quando olhares outra vez para aquele teste estúpido, o maldito vai dizer: ”Ora, Hayley, claro que não estás grávida. Só precisavas de te sentar na sanita e berrar durante dez minutos.” Idiota.

Fungou para conter outro ataque de choro e olhou para o seu reflexo no espelho.

- Brincaste com o fogo, agora tens de aguentar as consequências. Uma sessão rápida de maquilhagem ajudou. Os óculos escuros que tirou da mala ajudaram mais ainda.

Escondeu as caixas dos testes de gravidez no fundo da gaveta da roupa interior, nervosa como um toxicodependente a esconder a droga.

Quando saiu, David já vinha a subir as escadas.

- Estava quase a ir buscar o meu cornetim. Ela olhou para ele.

-O quê?

- Para chamar a cavalaria, querida. Demoraste mais do que quinze minutos.

- Desculpa, tive de... Desculpa.

David começou a sorrir e a dizer que não fazia mal, mas depois abanou a cabeça.

- Não, não vou fingir que não sei que estiveste a chorar. O que se passa?

- Não posso. - Bastaram essas duas palavras para a sua voz tremer. Vou chegar atrasada ao trabalho.

- Imagino que o mundo deve continuar a girar. O que vais fazer é sentares-te imediatamente no meu gabinete. - Pegou-lhe na mão e puxou-a até ela se sentar nos degraus com ele. - Conta todos os teus problemas ao tio David.

- Não tenho problemas. Estou metida em problemas. - Não tencionava dizer-lhe, nem a ele nem a ninguém. Pelo menos enquanto não tivesse tempo para pensar, para lidar com a situação. Para enterrar a cabeça na areia durante alguns dias. Mas ele passou o braço pelos seus ombros para a abraçar e as palavras saltaram-lhe da boca.

- Estou grávida.

- Oh! - Ele acariciou-lhe o braço. - Bom, admito que isso é algo que o meu abastecimento secreto de superbombons de chocolate não pode resolver.

Ela virou a cabeça e encostou o rosto ao ombro dele.

- Sou uma espécie de bomba de fertilidade, David. O que hei-de fazer? O que diabo hei-de fazer agora?

- Aquilo que for certo para ti. Tens a certeza? Fungando, ela soergueu-se e tirou o teste do bolso.

- O que diz aí?

- Hum... vem aí a cegonha. - Carinhosamente, segurou-lhe no queixo e levantou-lhe o rosto. - Como te sentes?

- Maldisposta, assustada. Estúpida! Tão estúpida. Nós usámos protecção, David. Não somos propriamente dois adolescentes loucos de desejo no banco de trás de um Chevy. Eu devo ter superóvulos, ou qualquer coisa do género, que ignoram todas as barreiras e sugam o esperma.

Ele riu-se e apertou-a contra si.

- Desculpa, eu sei que isto não tem graça nenhuma para ti. Vamos acalmar-nos e olhar para o quadro geral. Estás apaixonada pelo Harper.

- Claro que estou, mas...

- Ele está apaixonado por ti.

- Sim, mas... Oh, David, isso está apenas a começar. O estarmos apaixonados, o estarmos juntos. Talvez eu conseguisse imaginar isto mais para a frente. Mas ainda não fizemos quaisquer planos a longo prazo. Nem sequer falámos sobre o assunto.

- Mais vale tarde do que nunca, querida. Agora têm de falar.

- Como é que um homem, qualquer homem, não há-de sentir-se encurralado quando uma mulher lhe diz que está grávida?

- Ficaste nesse estado sozinha?

- A questão não é essa.

- Hayley. - Recuou e baixou-lhe os óculos de sol para lhe ver os olhos.

- A questão é exactamente essa. Com a Lily, tu fizeste o que era certo para ti e o que sentias, no teu coração, ser o mais certo para o pai e para o bebé. Certa ou errada... e eu, pessoalmente, acho que estavas certa... de uma maneira ou de outra, foi uma decisão corajosa. Agora tens de ser novamente corajosa, fazer o que é mais correcto para todos os envolvidos. Tens de dizer ao Harper.

- Não sei como. Fico doente só de pensar nisso.

- Nesse caso, por muito que o ames, não lhe estás a dar o crédito devido por ser o homem que é.

- Estou, sim, o problema é esse. - Olhou de novo para o teste e para a palavra que parecia gritar dentro da sua cabeça. - Ele assumirá. E como hei-de saber se é por me amar ou apenas porque se sente responsável?

David inclinou-se para ela e beijou-a na testa.

- Na altura saberás.

Soava tudo muito bem. Soava razoável, lógico e adulto. Mas não tornava mais fácil aquilo que ela tinha de fazer.

Desejou poder adiá-lo, simplesmente ignorar o assunto durante uns dias. Até mesmo fingir que o problema desapareceria. E isso era infantil e egoísta.

Quando chegou ao trabalho, enfiou-se numa das casas de banho dos funcionários para fazer o segundo teste. Engoliu quase um litro de água e abriu a torneira para ajudar. Começou a cruzar os dedos, mas disse a si própria para não ser idiota.

Apesar disso, leu o resultado com um olho aberto e outro fechado.

O que não alterou o resultado.

”Bom, continuo grávida”, pensou. Desta vez não chorou nem amaldiçoou o destino. Simplesmente enfiou o teste no bolso, abriu a porta e preparou-se para fazer o que tinha de ser feito. Tinha de contar a Harper.

Porquê? Porque é que ele tinha de saber? Podia ir-se embora já, pensou. Fazer as malas e desaparecer. O bebé era dela.

Ele era rico, era poderoso. Ficaria com a criança e livrar-se-ia dela. Ficaria com o seu filho. Pela glória do grandioso nome Harper, ele usá-la-ia como um recipiente e depois roubaria aquilo que crescia dentro dela.

Ele não tinha qualquer direito ao que era seu. Nenhum direito ao que ela carregava dentro de si.

- Hayley?

- O que é? - Sobressaltada como um ladrão apanhado em flagrante, olhou para Stella.
Estava no meio das plantas de sombra, rodeada por árvores verdes como a Irlanda. A muitos metros da casa de banho.

Há quanto tempo estaria ali a ter pensamentos que não eram seus?

- Sentes-te bem?

- Um bocadinho em baixo - respirou fundo. - Desculpa ter chegado atrasada.

- Não há problema.

- Eu compenso mais tarde. Mas preciso... tenho de falar com o Harper. Antes de começar, preciso de ir falar com ele.

- Ele está na estufa de enxertia. Disse para o avisares quando chegasses. Hayley, gostava que me dissesses o que se passa.

- Primeiro preciso de falar com o Harper. - Antes que perdesse a coragem ou a sanidade mental.

Afastou-se com passo rápido entre as mesas de plantas, atravessou o caminho de asfalto e passou pelas estufas. O negócio estava a ficar mais movimentado, reparou, depois da calmaria do pino do Verão. As temperaturas estavam a baixar, aos poucos, e as pessoas começavam a pensar nas plantações de Outono. Os filhos de Stella iam voltar à escola. Os dias estavam a ficar mais pequenos.

O mundo não parava apenas porque ela tinha uma crise entre mãos.

Hesitou à porta da estufa de enxertia, apercebendo-se de que a sua mente

- tão cheia ainda há um instante - era agora um vazio total.

Havia apenas uma coisa a fazer, decidiu. E era entrar.

A casa estava quente e cheia de música. Condizia tão bem com ele, plantas em várias fases de crescimento e desenvolvimento, o cheiro a terra e a verde.

Ela não conhecia a música que estava a tocar, qualquer coisa com harpas e flautas. Mas sabia que, fosse o que fosse, não era o que ele estava a ouvir nos seus auscultadores.

Ele estava no extremo mais distante, e a caminhada pareceu a Hayley a mais longa de toda a sua vida. Mesmo quando ele se voltou, a viu e sorriu.

- Ora, mesmo a pessoa que eu queria ver. - Chamou-a com um gesto enquanto tirava os auscultadores. - Anda cá ver.

- O quê?

- Os nossos bebés.

Uma vez que se virou para as plantas, Harper não viu o salto que ela deu.

- Estão dentro das previsões - continuou ele. - Vês, as secções dos ovários já incharam.

- Não são as únicas - murmurou ela, mas aproximou-se e parou ao lado dele para inspeccionar as plantas que tinham enxertado algumas semanas antes.

- Vês? Os casulos já estão completamente formados. Vamos dar-lhes mais três ou quatro semanas para amadurecerem. Depois o topo vai dividir-se, recolhemos as sementes e plantamo-las em vasos. Mantemo-las ao ar livre, expostas. E, na Primavera, elas germinarão. Quando tiverem cerca de seis centímetros, transplantamo-las para canteiros nos viveiros.

Ficar ali parada a conversar sobre um projecto mútuo não era adiar o inevitável. Era... uma questão de educação.

- E depois?

- Geralmente, conseguimos flores na segunda estação. Depois estudamo-las e registamos as diferenças, as semelhanças, as características. Esperamos que pelo menos uma... e estou a apostar em mais... seja uma mini cor-de-rosa-vivo, com laivos vermelhos. Se conseguirmos, temos o Lily de Hayley.

- E se não conseguirmos?

- O pessimismo não é amigo do jardineiro, mas se não conseguirmos teremos outra coisa qualquer igualmente interessante. E tentaremos de novo. Seja como for, pensei que talvez quisesses trabalhar comigo numa rosa, para a minha mãe.

- Oh, hum... - Se fosse uma menina, deveriam chamar-lhe Rose? Gostava muito. É muito atencioso da tua parte.

- Bom, a ideia foi do Mitch, mas ele não conseguiria cultivar nem uma erva daninha. Quer experimentar negra. Nunca ninguém conseguiu uma rosa verdadeiramente negra, mas pensei que podíamos brincar um bocadinho e ver o que sai. É a época certa do ano... está na altura de limpar, desinfectar e arejar este local. A higiene é muito importante neste tipo de trabalho e as rosas são muito delicadas. E também exigem muito tempo, mas acho que será divertido.

Ele parecia tão excitado, pensou ela, com a ideia de começar algo novo. Como é que ficaria quando ela lhe dissesse que já tinham começado?

- Quando fazes isto, escolhes os pais... a planta para o pólen, a planta para a semente. Selecção deliberada, para características específicas.

Os olhos azuis dela, os castanhos de Harper. A paciência dele, a sua impulsividade. A quem sairia?

- Exacto. Tentamos cruzá-las, criar algo com as melhores características, ou pelo menos as que pretendemos, ou ambas as coisas.

O temperamento quente dele e a teimosia dela. Oh, céus.

- Com as pessoas não funciona assim.

- Hum. - Ele virou-se para o computador e começou a introduzir dados nos seus arquivos. - Não, suponho que não.

- E com as pessoas, nem sempre se consegue... ou se quer... planear as coisas desta maneira. As pessoas nem sempre se juntam e dizem: ”Olha, vamos hibridizar.”

Ele riu-se e olhou para ela por cima do ombro.

- Aí está uma tirada que nunca pensei em usar num bar para engatar uma rapariga. Guardava-a, mas como já tenho uma rapariga não serviria de nada.

- Nunca usaste nenhuma frase de engate comigo - disse-lhe ela. - Seja como for, hibridizar é criar alguma coisa, uma coisa distinta. Não é só pela diversão.

- Hum. É verdade, já te mostrei o viburno? Os rebentos têm sido um problema, mas estou bastante satisfeito com os progressos.

- Harper. - As lágrimas estavam a ameaçar surgir de novo. - Harper, lamento muito.

- Não faz mal - disse ele distraidamente. - Eu sei como lidar com os rebentos.

- Estou grávida.

Pronto, pensou ela. Dissera-o. Rápido e sem enfeites. Como arrancar um penso de uma ferida.

- O que é que disseste? - Ele parou de escrever e virou-se lentamente no banco.

Ela não conseguia interpretar a expressão dele. Talvez porque a sua própria visão estava desfocada. Não conseguia interpretar o tom de voz dele, com o rugido que soava nos seus ouvidos.

- Eu devia ter percebido. Devia ter percebido. Tenho andado tão cansada, e o período não me apareceu... esqueci-me completamente dele... e de vez em quando sinto-me enjoada e muito temperamental. Nem pensei. Pensei que era por causa do que tem estado a acontecer com a Amélia. Lamento muito.

As palavras saíram de rajada, numa frase desconexa que ela própria mal conseguia compreender. Calou-se quando ele levantou a mão.

- Grávida. Disseste que estás grávida.

- Meu Deus, queres que te faça um desenho? - Sem saber bem se queria chorar ou gritar de fúria, tirou o teste do bolso. - Toma, lê tu próprio. G-R-Á-v...

- Espera. - Ele tirou-lhe o teste da mão e olhou para ele. - Quando é que descobriste?

- Hoje, agora. Há bocadinho. Estava no supermercado a comprar umas coisas. Esqueci-me das fraldas da Lily e comprei rímel. Que raio de mãe sou eu?

- Acalma-te. - Ele levantou-se, segurou-lhe nos ombros e sentou-a no banco. - Sentes-te bem? Não tens dores, nem nada?

- Claro que não tenho dores. Por amor de Deus.

- Ouve, não descarregues em cima de mim. - Passou a mão pelo cabelo enquanto olhava para ela. Com a mesma expressão, pensou Hayley, com que olhava para o progresso das suas plantas. - Tudo isto é novidade para mim. Até que ponto estás grávida?

- Completamente, diria eu.

- Raios, Hayley, queria dizer de quanto tempo ou lá como se diz?

- Acho que de seis semanas. Cinco ou seis.

- De que tamanho é ele aí dentro? Ela passou os dedos pelo cabelo.

- Não sei. Para aí do tamanho de um bago de arroz.

- Uau! - Ele olhou para a barriga de Hayley e pousou a mão nela. Uau. Quando é que começa a mexer-se? Quando é que lhe nascem os dedos das mãos e dos pés?

- Harper, podemos concentrar-nos na questão?

- Não sei nada dessas coisas. Quero saber. Precisas de ir ao médico, certo? - Pegou-lhe na mão. - Devíamos ir já.

- Não preciso de ir já ao médico. Harper, o que havemos de fazer?

- Como assim, o que havemos de fazer? Vamos ter um bebé. Meu Deus! - Levantou-a do banco e ergueu-a meio metro no ar. O rosto que ergueu para ela estava iluminado por um sorriso radiante. - Vamos ter um bebé.

Ela teve de se apoiar nos ombros dele.

- Não estás zangado.

- Porque havia de estar zangado?

Agora ela sentia-se tonta, esmagada pelas emoções, abalada até ao íntimo.

- Porque... porque...

Ele baixou-a, lentamente, até estar de novo sentada no banco. E agora a sua voz era cuidadosa e fria.

- Não queres o bebé.

- Não sei. Como hei-de pensar no que quero? Como hei-de pensar seja no que for?

- A gravidez afecta as ondas cerebrais. Interessante. -Eu...

- Mas tudo bem, eu trato da parte de pensar. Tens de ir ao médico para termos a certeza de que está tudo bem. Casamos. E na próxima Primavera temos um bebé.

- Casar? Harper, as pessoas não devem casar só porque...

Embora estivesse encostado à mesa de trabalho, continuou a rodeá-la com os braços.

- No meu mundo, onde o céu é azul, as pessoas que se amam e vão ter bebés casam-se constantemente. Talvez isto seja um pouco adiantado em relação ao programa preestabelecido, mas é o tipo de notícia de última hora que não se pode ignorar.

- Tínhamos um programa preestabelecido?

- Eu tinha. - Estendeu a mão e acariciou-lhe o cabelo, prendendo uma madeixa atrás da orelha dela. - Eu quero-te, sabes bem que sim. Quero o bebé. Vamos fazer isto como deve ser, e é assim que vai ser.

- Então estás a ordenar-me que case contigo.

- Eu tinha planeado persuadir-te com o meu encanto, um pouco mais à frente. Mas uma vez que as circunstâncias mudaram... e que a gravidez anulou a tua capacidade de pensamento... vamos por este caminho.

- Nem sequer estás aborrecido.

- Não, não estou aborrecido. - Fez uma pausa, como se estivesse a efectuar uma introspecção. - Um bocadinho assustado, bastante deslumbrado. Meu Deus, a Lily vai adorar isto. Um irmãozinho ou uma irmãzinha para atormentar. Espera até eu dizer aos meus irmãos que vão ser tios. Espera até eu dizer à minha mãe que vai ser...

- Avó - terminou Hayley e acenou, subversivamente satisfeita por ver por fim uma centelha de dúvida nos olhos dele. - Como achas que ela se vai sentir em relação a isso?

- Suponho que vamos descobrir em breve.

- Eu não consigo... encaixar tudo isto. - Levou as mãos às têmporas como se isso pudesse impedir a sua cabeça de rodopiar. - Nem sequer sei o que sinto. - Deixou cair as mãos no colo e olhou para ele. - Harper, não achas que isto é um erro?

- O nosso bebé não é um erro. - Puxou-a para si e sentiu a respiração de Hayley presa por um soluço enquanto ela se debatia com as lágrimas. Mas é uma surpresa das grandes.

 

Harper passou o resto do dia numa espécie de neblina aturdida. Havia muito a levar em consideração, a decidir, a planear. Os passos iniciais eram para ele claros como água, tão claros e precisos como os primeiros passos de qualquer enxerto.

Tinham de levar Hayley ao médico, ver como estava ela e o bebé. Ia começar a ler coisas sobre bebés - coisas sobre úteros - para compreender o processo, para ter imagens mais nítidas na mente do que se estava a passar lá dentro.

Casariam o mais rapidamente possível, mas não tão rapidamente que tivesse de ser algo apressado, frio e prático. Ele não queria um casamento assim para Hayley, nem, pensando bem, para si próprio.

Queria casar na Harper House. Nos jardins que ele ajudara a criar, à sombra da casa onde crescera. Queria fazer aí as suas promessas a Hayley, as suas promessas a Lily e a este novo bebé que era agora do tamanho de um grão de arroz.

Era isto que ele queria, era em direcção a isto que caminhara toda a sua vida, de alguma forma. Era algo em que nunca tinha pensado antes e sobre o qual tinha agora tanta certeza como do seu próprio nome.

Hayley e Lily mudar-se-iam para a casa na velha cocheira. Falaria com a mãe sobre a possibilidade de a aumentar, criando mais espaço sem se afastar do estilo tradicional.

Mais espaço para os seus filhos, pensou, para que também eles pudessem crescer na Harper House, com os seus jardins, os seus bosques, a sua história, que seria deles tal como era sua.

Conseguia ver tudo isso, sabia tudo isso. Mas o que não conseguia ver era a criança. A criança que ele ajudara a criar.

Um grão de arroz? Como é que algo tão pequeno podia ser tão enorme? E já tão amado?

Mas agora havia um passo que tinha de ser dado antes de todos os outros.

Encontrou a mãe no jardim, a plantar alguns ásteres e crisântemos num dos seus canteiros.

Usava luvas de algodão finas, manchadas por anos de trabalho. Calças curtas de algodão, azuis, já sujas de castanho e verde do trabalho. Estava descalça e Harper viu os chinelos que ela descalçara antes de se ajoelhar junto do canteiro.

Quando era criança, acreditava que ela era invencível, quase sobrenatural. Ela sabia tudo, quer ele quisesse ou não. Tinha as respostas quando ele precisava delas, dera-lhe abraços... e um ou outro safanão. Alguns dos quais ele ainda hoje tinha vontade de contestar.

Acima de tudo estivera presente, estivera invariavelmente presente. Nas melhores alturas, nas piores, e em todas as outras.

Agora, seria a vez dele.

Roz ergueu a cabeça quando ele se aproximou, passando as costas da mão pela testa num gesto distraído. Harper reparou como ela era bonita, com o chapéu inclinado sobre os olhos, o rosto tão sereno.

- Tive um dia bom - disse ela. - Apeteceu-me prolongá-lo e ajeitar este canteiro. Vai chover esta noite.

- Sim. - Automaticamente, ele olhou para o céu. - Esperemos que seja um bom aguaceiro para ensopar a terra.

- Deus te oiça. - Franziu os olhos contra o sol enquanto o observava. Meu Deus, estás com um ar muito sério. Não te queres sentar antes que eu apanhe um torcicolo?

Ele agachou-se.

- Preciso de falar contigo.

- É o que acontece geralmente quando ficas com esse ar tão sério.

- A Hayley está grávida.

- Bem - ela pousou cuidadosamente a pá. - Bem, bem, bem.

- Descobriu hoje. Julga que está de cerca de seis semanas. Confundiu os sintomas... suponho que se chamam sintomas... com tudo o resto que se tem estado a passar.

- É compreensível. Ela está bem?

- Um pouco perturbada, um pouco assustada, suponho. Roz tirou os óculos de sol e olhou para ele.

-E tu?

- Estou a assimilar a novidade. Eu amo-a, mamã.

- Eu sei que sim. Estás feliz, Harper?

- Estou muitas coisas. Feliz é uma delas. Sei que não era assim que esperavas que eu fizesse as coisas.

- Harper, o que eu quero ou o que eu esperava não interessa. - Cuidadosamente, escolheu um áster azul e colocou-o no buraco que já tinha aberto. As mãos continuaram a trabalhar, calcando a terra, enquanto falava. - O que importa é o que tu e a Hayley querem. O que importa é aquela menina e a criança que vocês fizeram.

- Eu quero a Lily. Quero casar com a Hayley e tornar a Lily minha, legalmente. E quero este bebé. Eu sei que pode parecer que acabo de largar um comprimido num copo de água, zás, família instantânea, mas... Não chores. Por favor, não chores.

- Tenho o direito de chorar quando o meu filho mais velho me diz que vai fazer de mim avó. Tenho todo o direito a algumas lágrimas. Onde raio está o meu lenço?

Harper tirou-lho do bolso de trás e deu-lho.

- Tenho de me sentar um minuto. - Roz sentou-se, limpou os olhos e assoou-se. - Uma pessoa sabe que este dia há-de chegar, mais cedo ou mais tarde. Desde que seguramos um filho nos braços, sabemos. Não é a primeira coisa em que pensamos, nem sequer é um pensamento consciente, mas está lá, esse conhecimento de que o fio está a desenrolar-se. Ciclos de vida. As mulheres conhecem-nos. E os jardineiros. Harper...

Abriu os braços.

- Vais ser papá.

- Sim. - E apertou o rosto contra o pescoço dela, como sempre fizera, como sempre pudera fazer.

- E eu vou ser avó. Dois netos pelo preço de um. - Beijou-o nas faces.

- Adoro aquela pequenita. Ela já é nossa. Quero que tu e a Hayley saibam que é o que sinto. Que estou feliz por vocês. Apesar de terem arranjado maneira de o bebé novo nascer na estação mais movimentada do ano.

- Ops... ainda não me tinha lembrado disso.

- Estão perdoados. - Riu-se e tirou as luvas para poder tocar nas mãos dele. - Pediste-a em casamento?

- Mais ou menos. Basicamente disse-lhe que ia casar comigo. E não olhes para mim assim.

Ela manteve as sobrancelhas erguidas, lançando-lhe um olhar cortante como aço.

- É exactamente o olhar que mereces.

- Vou resolver esse assunto, está descansada. - Olhou para as mãos de ambos entrelaçadas, depois levou as dela aos lábios. - Adoro-te, mamã. Tu elevaste os padrões.

- Que padrões?

Ele fitou-a nos olhos.

- Nunca me contentaria com alguém que amasse ou respeitasse menos do que te amo e respeito a ti.

As lágrimas encheram-lhe novamente os olhos.

- Daqui a pouco vou precisar de mais do que só esse lenço.

- Vou dar a Hayley o meu melhor. E, para começar, gostava de ter os anéis da avó. O anel de noivado e a aliança de casamento da avó Harper. Disseste que quando eu casasse...

- Aí está o meu rapaz. - Com um sorriso, beijou-o levemente. - Este é o homem que eu criei. Vou buscá-los.

Uma das outras coisas que ele nunca tinha imaginado era como pedir uma mulher em casamento. A mulher. Um jantar elegante e vinho? Um piquenique descontraído? Um ”QUERES CASAR COMIGO” gigante no quadro dos resultados durante um jogo?

Tudo muito pouco original.

O melhor, decidiu, era o local e o tom que mais condizia com ambos.

Assim, levou-a a passear pelos jardins ao cair do dia.

- Não me sinto bem por deixar a tua mãe outra vez com a Lily. Estou grávida, não estou inválida.

- Ela quis. E eu queria esta hora a sós contigo. Não comeces. Céus, já consigo adivinhar o que te vai na cabeça. Eu sou louco pela Lily e não vou perder tempo a dizer-te o que é tão óbvio.

- Eu sei. Eu sei que a adoras. Mas estou a ter dificuldades em encaixar tudo isto. Não andei propriamente a saltar para a cama de todos os homens em dois estados. E no entanto aqui estou eu, pela segunda vez.

- Não, desta vez é diferente. Esta é a primeira vez. Estás a ver aquela ameixoeira de flor?

- Só consigo distingui-las quando estão em flor.

- Esta. - Parou e estendeu o braço para tocar numa das folhas verdes. Os meus pais plantaram-na quando eu nasci. Vamos plantar uma para a Lily e outra para este bebé. Mas estás a ver esta? Tem quase trinta anos e eles plantaram-na para mim. Isso sempre me deixou feliz. Sempre senti que este era um dos meus locais, aqui mesmo. Nós os dois vamos criar outros sítios nossos, mas comecemos aqui, num que já existe.

Tirou o estojo do bolso, viu-a entreabrir os lábios trémulos e erguer os olhos para o rosto dele.

- Oh, meu Deus!

- Não vou pôr-me de joelhos. Não quero sentir-me um idiota num momento destes.

- Acho que tem a ver com uma garantia de lealdade. Foi por isso que os homens começaram a ajoelhar-se.

- Terás de aceitar a minha palavra em relação à minha lealdade. Quero esta vida que criámos. Não só o bebé, mas aquilo que começámos juntos. Tu e eu, e a Lily, e agora este bebé. Quero viver essa vida contigo. És a primeira mulher que eu amo verdadeiramente. E serás a última.

- Harper... deixas-me sempre sem fôlego.

Ele abriu a caixa e sorriu quando os olhos dela se arregalaram.

- Este anel era da minha avó. Um bocado antiquado, suponho.

- Eu... - Hayley engoliu em seco. - Prefiro a expressão clássico ou herança de família. Ou, honestamente, uau. Harper, a Roz deve...

- Foi-me prometido. Foi-me dado a mim para te dar a ti, à mulher com quem quero passar o resto da minha vida. Quero que o uses. Casa comigo, Hayley.

- É lindo, Harper. Tu és lindo. -Ainda não acabei.

- Oh! - Ela deu uma gargalhada nervosa. - Não imagino o que mais possa haver.

- Quero que tenhas o meu nome. Quero que a Lily tenha o meu nome. Quero o pacote completo. Não posso contentar-me com menos.

- Sabes o que estás a dizer? - Pousou a mão no rosto dele. - Sabes o que estás a fazer?

- Sei perfeitamente. E é melhor responderes depressa, porque detestaria estragar este momento romântico atirando-te ao chão e enfiando-te o anel no dedo à força.

- Não vai ser preciso. - Fechou os olhos por um momento, pensando em ameixoeiras de flor, em gerações de tradição. - Eu sabia que me pedirias para casar contigo quando soubesses que eu estava grávida. É assim que tu és, foste criado para fazer a coisa correcta. A coisa mais honrada.

- Não é...

- Agora é a minha vez. - Abanou a cabeça veementemente. - Eu também te ouvi. Sabia que mo pedirias, e parte da razão porque tudo isto me deixou doente era porque receava nunca vir a ter a certeza. Receava que me pedisses apenas porque sentias que era o que tinhas de fazer. Mas agora sei, e sei que não é por isso. Caso contigo, Harper, e aceito o teu nome. E a Lily também. E amar-te-emos para o resto da vida.

Ele tirou o anel da caixa e enfiou-lho no dedo.

- Está largo - murmurou, quando levou a mão dela aos lábios.

- Nem penses que o vou devolver.

Ele fechou a mão sobre a dela para segurar o anel.

- Só o tempo suficiente para o mandar apertar.

Ela conseguiu acenar afirmativamente e atirou-se para os braços dele.

- Amo-te, amo-te, amo-te.

Rindo, ele inclinou a cabeça para a beijar.

- Estava com esperança de que dissesses isso.

Sentiu-se um pouco embaraçada quando entrou com Harper para dar a novidade à mãe dele e a Mitch, com David a servir champanhe. Teve autorização para beber meio copo e teve de o fazer render para ambos os brindes.

Um ao noivado, outro ao bebé.

Roz apertou-a num abraço sentido e murmurou-lhe ao ouvido:

- Tu e eu temos de falar. E em breve.

- Oh... Suponho que sim.

- E se fosse já? Harper, vou roubar a tua noiva por alguns minutos. Há algo que quero mostrar-lhe.

Sem esperar a resposta, Roz enfiou o braço no de Hayley e saiu com ela da sala, conduzindo-a às escadas.

-Já pensaste no tipo de casamento que queres?

- Eu... não. É tanta coisa...

- Estou certa disso.

- O Harper... ele disse qualquer coisa sobre casarmos aqui.

- Estava com esperança de que assim fosse. Podíamos usar a sala de baile, se quiserem algo em grande. Ou os jardins e o terraço se quiserem uma coisa mais íntima. Falem sobre isso e depois digam-me. Estou morta por começar a meter o bedelho e faço tenções de dar muitas opiniões, portanto vais ter de me vigiar como um falcão.

- Não estás zangada.

- Estou espantada por me dizeres uma coisa dessas.

- Estou a tentar pôr-me no teu lugar - disse Hayley enquanto subiam as escadas. - E não estou a conseguir.

- Isso porque cada uma tem o seu lugar. E eu gosto de ter o meu só para mim. - Virou para a sua ala.

- Não engravidei de propósito.

A entrada do quarto dela, Roz parou e olhou para os olhos marejados de Hayley.

- É isso que te vai na cabeça? Achas que eu penso que isto foi calculado da tua parte?

- Não... não exactamente. Mas muitas pessoas pensariam.

- Fico feliz por poder dizer que não sou a maioria das pessoas. E sou também uma excelente avaliadora de carácteres, apenas com um falhanço sério em toda a minha ilustre carreira. Se eu te julgasse capaz de uma coisa dessas, Hayley, não estarias a viver na minha casa.

- Pensei... quando disseste que tínhamos de falar...

- Oh, já chega destes disparates. - Roz aproximou-se da cama e abriu a caixa que estava pousada em cima dela. De dentro da caixa, tirou o que parecia ser uma nuvem azul-clara.

- Este era o cobertor do Harper, que eu mandei fazer quando ele nasceu. Mandei fazer um para cada um dos meus filhos, e é uma das coisas que guardei para passar para a próxima geração. Se tiveres uma menina, vais usar algo da Lily ou uma coisa nova e feminina. Mas espero que, se tiveres um rapaz, uses este. Seja como for, é teu.

- É lindo.

Roz encostou-o ao rosto por um momento.

- Sim, é. O Harper é um dos grandes amores da minha vida. Não há nada que eu queira mais neste mundo do que a felicidade dele. E tu faze-lo feliz. Isso é mais do que suficiente, para mim.

- Serei uma boa esposa para ele.

- Ai de ti que não sejas. E agora, sentamo-nos e choramos um bocadinho?

- Oh, sim. Sim, isso seria bom.

Deitada ao lado dele na escuridão, Hayley escutou o tamborilar da chuva nas janelas.

- Não sei como é possível estar tão feliz e tão assustada ao mesmo tempo.

- Eu estou aqui ao teu lado.

- Esta manhã, parecia que tudo me tinha caído sobre a cabeça, como uma estante, e que todos os livros me tinham acertado com a lombada. Agora parece que afinal eram flores e estou coberta de pétalas suaves e perfume.

Ele pegou-lhe na mão, a esquerda, onde o polegar não parava de tocar no anelar. O anel estava no estojo, na cómoda.

- Levo-o ao joalheiro amanhã.

- Não sei se gosto da ideia de estar casada com alguém que consegue ler-me a mente. - Depois rolou para cima dele e atirou o cabelo para trás.

- Acho que também consigo ler a tua. E é mais ou menos isto.

Baixou os lábios para os dele.

Suave e macia, era como se sentia com ele. Encantadora e descontraída. E, acima de tudo, amada. Independentemente daquilo que procurava envolvê-la em sombras, independentemente do que a noite lhes reservasse, ela conseguiria ter este tempo com ele.

Segura, a salvo. Seduzida.

Podia confiar e entregar-se nos braços dele, como agora, com os corpos quentes, os lábios macios. Podia sentir-se forte com o gosto dele na língua.

Moveram-se juntos, lenta e facilmente, enquanto a chuva tamborilava musicalmente sobre as pedras do terraço. O coração dela batia ao mesmo ritmo. Prazer e expectativa. Conhecia-o tão bem. Amigo e companheiro, e agora amante. Marido.

Dominada pela emoção, encostou a face à dele.

- Amo-te, Harper. Parece que te amo desde sempre.

- E ainda temos para sempre.

Passou os dedos pelo rosto dela, pelas suas faces, têmporas, cabelo. Conseguia vê-la na penumbra, a sua forma, o brilho dos seus olhos. Fascinante e misteriosa sob a luz de tempestade, mas, apesar disso, sua. Podia olhá-la e ver o longo futuro que se estendia à frente deles. Tocar-lhe e conhecer a beleza simples do presente.

Provou os lábios dela, a sua pele, a linha da garganta, a curva subtil do seio. O coração dela batia sob os seus lábios, num ritmo constante como a chuva. E acelerou quando a sua boca se apoderou dela.

Lentamente, guiado pelos seus suspiros, percorreu-a com as mãos e os lábios. O tronco delgado, tão branco, tão delicado sob a luz fraca, e o tremor dos músculos onde ele tocava diziam-lhe que ela estava excitada.

Pousou os lábios suavemente, muito suavemente, na sua barriga, e encostou a face por um momento, maravilhado com o que crescia dentro dela. A mão de Hayley acariciou-lhe o cabelo.

- O nome do meio tem de ser Harper - murmurou. - Rapaz ou rapariga, seja qual for o primeiro nome que escolhermos, é importante que passemos o nome Harper.

Ele virou a cabeça e beijou de novo o filho de ambos.

- E se for Cletis? Cletis Harper Ashby. Esforçou-se por não rir quando a mão dela parou.

- Estás a brincar, certo?

- O pequeno Cletis, ou Hermione, se for uma menina. Não há tantas Hermiones como devia haver nos dias que correm.

Subiu pelo seu corpo com beijos suaves até ter os lábios sobre os dela.

- Havias de te arrepender se eu me apaixonasse por esses nomes e insistisse neles. Já não teria tanta piada, pois não?

- Talvez Clemm. - Beijou-lhe o canto da boca. - Ou Certrude. Os dedos de Hayley pressionaram as suas costelas.

- Parece que o melhor é ser eu a preencher a certidão de nascimento. Especialmente porque estou a pensar que devíamos continuar com nomes de flores. Begónia é o meu preferido.

- E se for uma rapariga?

Ela agarrou-lhe nas orelhas e puxou-o, depois desatou a rir. E estava a rir quando ele entrou nela.

Ela estava tão quente, tão satisfeita, aconchegada ao lado dele, prestes a adormecer. O ruído surdo da chuva era música, uma canção de embalar para a levar à terra dos sonhos.

Imaginou-se a caminhar em direcção a ele, com o longo vestido branco a brilhar ao sol, um ramo de lírios vermelhos nos braços, como uma criança. Ele esperaria por ela, esperaria para lhe pegar na mão, para fazer promessas. Para tomar os votos que significavam para sempre.

Até que a morte os separasse.

Não. Agitou-se e sentiu um aperto no peito. Não queria ouvir falar de morte no dia do seu casamento. Não queria nenhuma promessa ligada à morte.

A morte trazia sombras, e as sombras bloqueavam o sol.

Promessas vazias. Palavras pronunciadas de cor, sem qualquer intenção de serem mantidas. Nuvens sobre o sol e a chuva a transformar o seu vestido branco num cinzento baço e sórdido.

Estava frio, desagradável. Mas havia nela um tal calor... O ódio era como uma fornalha, a raiva era a lenha que a alimentava.

Que estranho, como era extraordinário que se sentisse tão viva, tão viciosamente viva, por fim.

A casa estava escura. Como um túmulo. Todos estavam mortos lá dentro. Apenas o seu filho vivia e viveria sempre, para sempre. Sem fim. Ela e o filho viveriam para sempre, estariam juntos até ao fim dos tempos, enquanto os outros apodreciam.

Era essa a sua vingança. A sua única missão.

Ela dera vida. A vida crescera dentro do seu corpo, ela trouxera-a ao mundo com uma dor que a levara à loucura. Não permitiria que lha roubassem. Era sua.

Ela ficaria naquela casa com o seu filho. E seria aVerdadeira senhora da Harper House.

Depois desta noite, ela e James nunca mais seriam separados.

A chuva ensopava-a enquanto caminhava, cantarolando entre dentes a sua canção de embalar, arrastando pela lama a camisa de dormir encharcada.

Brincariam nos jardins sob a luz da Primavera. Como haviam de se rir! As plantas a florir, os pássaros a cantar, apenas para eles. Chá e bolos, sim, chá e bolos para o seu precioso menino.

Em breve, muito em breve, uma Primavera eterna para ambos.

Caminhou sob a chuva, entre o nevoeiro. De vez em quando, julgava ouvir um som - vozes, risos, choro, gritos.

De vez em quando, julgava ver movimento pelo canto do olho. Crianças a brincar, uma velha a dormir numa cadeira, um jovem a plantar flores.

Mas eles não pertenciam ao seu mundo, ao mundo que ela procurava.

No seu mundo, eles seriam as sombras.

Percorreu os caminhos, pisou os canteiros de Inverno, de pés descalços e imundos. Os olhos loucos como raios de luar.

Viu a silhueta dos estábulos. O que precisava estaria lá, mas também haveria pessoas. Criados, moços de estrebaria no cio, lacaios porcos.

Levou o dedo aos lábios, como que a pedir silêncio, mas uma gargalhada escapou-se-lhe. Talvez pegasse fogo aos estábulos, um fogo que se ergueria no céu. Oh, como os cavalos relinchariam e os homens correriam.

Um fogo escaldante numa noite gélida.

Sentia-se como se conseguisse atear fogos apenas com o pensamento. E, pensando, virou-se para a Harper House. Podia reduzi-la a cinzas com a mente. Todas as divisões a rebentarem de calor. E ele, o grande Reginald Harper, e todos os que a tinham traído morreriam no inferno que ela criaria.

Mas não a criança. Não, não, a criança não. Levou as mãos à boca e baniu o pensamento antes que a faísca voasse. Não era esse o caminho para o seu filho.

Ele tinha de vir com ela. Estar com ela.

Caminhou em direcção à cocheira. O seu cabelo emaranhado à volta do rosto caía-lhe sobre os olhos, mas caminhou sem pressas.

Não havia fechaduras, constatou em frente das portas largas. Quem se atreveria a invadir os terrenos dos Harpers?

Ela.

A porta rangeu quando a empurrou. Mesmo na penumbra, via o brilho das carruagens. Nada de rodas baças para o grande senhor. Grandes carruagens cintilantes para o transportar, a ele e à pega da sua mulher, às suas filhas lamurientas, para onde quisessem ir.

Enquanto a mãe do filho dele, a criadora de vida, conduzia uma carroça roubada.

Oh, mas ele pagaria.

Parou à entrada, cambaleante enquanto a mente girava num turbilhão, em círculos de raiva e confusão e um amor terrível. Esqueceu-se de onde estava, o que ia fazer, porquê. Depois o seu objectivo ficou claro mais uma vez.

Poderia arriscar acender uma luz? Atrever-se-ia? Tinha de ser, tinha de ser. Não conseguia ver no escuro.

Ainda não.

Embora os dedos lhe tremessem de frio enquanto acendia uma candeia, não o sentiu. O calor ainda ardia através dela e fê-la sorrir quando viu o rolo de corda.

Ali estava, aquilo serviria, serviria muito bem.

Deixou a candeia acesa e a porta aberta quando voltou a sair para a chuva.

Quando Harper se virou à procura dela, Hayley não estava lá. Meio desperto, esticou mais o braço à espera de encontrar a sua pele.

- Hayley?

Murmurou o nome dela e soergueu-se sobre o cotovelo. O seu primeiro pensamento foi que ela teria ido ver Lily mas não se ouvia nada no monitor colocado ao lado da cama.

Demorou alguns segundos a perceber o que se ouvia.

O barulho da chuva estava demasiado próximo. Sentando-se rapidamente, viu as portas do terraço abertas. Saltou da cama e agarrou nas calças.

- Hayley! - Enfiou as calças enquanto corria para a porta. Não viu nada senão chuva e escuridão.

Com a chuva a cair sobre ele, sentiu o coração apertado e gelado no peito. Com uma imprecação assustada, voltou para dentro e correu para o quarto de Lily.

A bebé dormia tranquilamente. Hayley não estava lá.

Voltou ao quarto, agarrou no monitor e, enfiando-o no bolso de trás, saiu para a procurar.

Gritando o seu nome, desceu os degraus de pedra. ”A cocheira”, pensou. Sempre acreditara que Amélia estivera lá. Na noite em que a vira no jardim, quando era pequeno, ficara com a certeza de que era para lá que ela se dirigia.

”A sua camisa de dormir estava molhada e enlameada”, recordou-se enquanto corria. Como se tivesse estado à chuva.

Sabia o caminho, mesmo no escuro. Não havia curva do caminho que não lhe fosse tão familiar como a palma da mão. Viu a porta da frente da sua casa aberta e sentiu uma onda de alívio.

- Hayley! - Acendeu a luz e entrou.

O chão estava molhado e havia pegadas enlameadas no chão, até à cozinha. Soube que a casa estava vazia mesmo antes de gritar novamente o nome dela, porque a percorreu rapidamente à sua procura, de coração aos saltos no peito.

Desta vez agarrou no telefone e marcou um número enquanto corria de novo para fora.

- Mamã, a Hayley desapareceu. Saiu cá para fora. Não a consigo encontrar. Ela... oh, meu Deus, estou a vê-la. No segundo andar. Está no terraço do segundo andar.

Atirou o telefone para o chão e continuou a correr.

Ela não se virou quando ele gritou o seu nome e continuou a atravessar o terraço como um fantasma. Os pés de Harper escorregaram nas pedras molhadas e esmagaram as flores quando saltou sobre os canteiros para cortar caminho até às escadas.

Com os pulmões a arder, o coração aos gritos, subiu-as duas a duas.

Chegou ao segundo andar quando ela estava a abrir uma porta.

Ela hesitou quando ele a chamou e virou-se lentamente para ele. E sorriu.

- Morte pela vida.

- Não.

Cobriu a distância que os separava de um salto, segurou-lhe no braço e puxou-a para dentro.

- Não - disse de novo, apertando os braços à volta dela. - Sente-me. Sabes quem eu sou. Sabes quem tu és. Sente-me.

Apertou-a mais quando ela se debateu. Manteve-a junto de si, tentando aquecê-la, mesmo quando ela abanou a cabeça de um lado para o outro e arreganhou os dentes como um cão raivoso.

- Hei-de ter o meu filho!

- Tens uma filha. Tens a Lily. A Lily está a dormir. Hayley, fica connosco. Pegou-lhe ao colo quando o corpo dela perdeu as forças.

- Tenho frio. Harper, tenho frio.

- Está tudo bem. Vai correr tudo bem. - Atravessou a grande sala de baile com ela nos braços, por entre os fantasmagóricos lençóis que cobriam a mobília, enquanto a chuva fustigava as janelas.

Antes de chegar à porta, Mitch abriu-a de rompante. Depois de um olhar rápido, respirou fundo.

- A tua mãe foi ver a Lily. O que aconteceu?

- Agora não. - Com Hayley a tremer nos seus braços, Harper passou por Mitch. - Falamos mais tarde. Temos de a limpar e de a aquecer. O resto tem de esperar.

 

Enrolou-a num cobertor do pescoço aos pés e sentou-se atrás dela na cama, enquanto lhe limpava o cabelo com uma toalha.


- Não me lembro de me levantar. Não me lembro de sair.

- Estás mais quente?

- Sim. - Excepto pelo gelo que sentia dentro dos ossos. Duvidava que algum calor voltasse a chegar tão fundo dentro dela. - Não sei quanto tempo estive lá fora.

- Agora estás aqui.

Ela pousou a mão sobre a dele. Harper precisava tanto de calor e de conforto como ela.

- Tu encontraste-me.

Ele beijou-lhe o cabelo húmido.

- E hei-de encontrar-te sempre.

- Levaste o monitor da Lily. - E isso, pensou ela, significava ainda mais.

- Lembraste-te de o levar. Não a deixaste sozinha.

- Hayley. - Envolveu-a nos seus braços e encostou o rosto ao dela. Nunca deixarei nenhuma das duas sozinha. - Depois pousou a mão na barriga dela. - Nenhum dos três. Juro.

- Eu sei. A Amélia não acredita em promessas, ou em fé, ou em amor. Mas eu acredito. Acredito em nós com todas as minhas forças. - Virou a cabeça para o beijar ao de leve nos lábios. - Nem sempre acreditei, mas agora acredito. Eu tenho tudo. Ela não tem nada.

- Consegues ter pena dela? Depois disto? Depois de tudo?

- Não sei o que sinto por ela. Ou em relação a ela. - Era tão bom poder encostar a cabeça para trás, apoiá-la naquele ombro forte e seguro. - Pensava que a compreendia, pelo menos um pouco. Ambas passámos por uma situação mais ou menos parecida. Ambas engravidámos e, ao princípio, nenhuma de nós quis o bebé.

- Não são nada parecidas.

- Harper, põe de lado as personalidades e os teus sentimentos por um minuto. Olha para a situação com objectividade, como fazes no trabalho. Ambas éramos solteiras quando engravidámos. Nenhuma de nós amava o pai da criança nem queria que a sua vida mudasse, não queria o fardo de um filho. Depois ambas começámos a desejar o bebé. De formas diferentes, por razões diferentes, mas começámos a desejar muito o bebé.

- Formas diferentes e razões diferentes - repetiu ele. - Mas sim, percebo o que queres dizer. À superfície, parece haver um padrão comum.

A porta abriu-se. Roz entrou com um tabuleiro.

- Não quero incomodar. Harper, vê se ela consegue beber isto. - Depois de pousar o tabuleiro aos pés da cama, Roz contornou-a até junto de Hayley. Segurou-lhe o rosto nas mãos e beijou-a na face. - Descansa.

Harper estendeu o braço e pegou na mão da mãe por um instante.

- Obrigada, mãe.

- Se precisares de alguma coisa, chama.

- Ela não tinha ninguém que cuidasse dela - disse Hayley baixinho quando a porta se fechou atrás de Roz. - Ninguém que se preocupasse com ela.

- E ela gostava de alguém? Preocupava-se com alguém? Obsessão não é amor - acrescentou antes que Hayley pudesse abrir a boca. Afastou-se suavemente para servir o chá. - O que lhe fizeram foi horrível. Não há discussão a esse respeito. Mas sabes que mais? Não há heróis nesta triste história.

- Devia haver. Devia sempre haver heróis. Mas não. - Pegou na chávena.

- Ela não era heróica. Nem sequer trágica, como Julieta. Apenas triste. E amargurada.

- Calculista - acrescentou ele. - E louca.

- Isso também. Ela nunca te teria compreendido. Acho que a conheço suficientemente bem para ter a certeza disso. Ela não compreenderia o teu coração, a tua honestidade. Isso também é triste.

Harper dirigiu-se às portadas do terraço. A carga de água que pedira fora-lhe concedida, e viu a terra beber a chuva.

- Ela sempre foi triste. - Olhou para dentro, para lá da raiva, e encontrou a piedade. - Percebia-se, mesmo quando eu era pequeno e ela aparecia no meu quarto a cantar. Triste e perdida. Apesar disso, eu sentia-me seguro ao pé dela, como nos sentimos com alguém que gosta de nós. De certa maneira, ela gostava de mim, dos meus irmãos. Suponho que isso tem de contar para alguma coisa.

- E ainda gosta, eu sinto-o. Simplesmente está confusa. Harper, não consigo lembrar-me.

Baixou a chávena e a emoção invadiu-lhe o olhar.

- Não foi como das outras vezes. Das outras vezes, eu conseguia ver, pelo menos parte de mim conseguia. Não sei explicar. Mas desta vez está tudo confuso e não consigo ver, pelo menos a totalidade. Porque é que ela foi ao salão de baile? O que foi lá fazer?

Harper queria dizer-lhe para descansar, para não pensar. Mas como podia ela fazê-lo? Sentou-se de novo ao seu lado.

- Estiveste na velha cocheira, de certeza. A porta estava aberta e vi as tuas pegadas até à cozinha. O chão estava molhado.

- Foi onde ela esteve naquela noite, na noite em que morreu aqui. De certeza que morreu aqui nessa noite. Outra coisa não faria sentido. Nós vimo-la daquela vez, tu e eu. De pé no terraço, molhada e enlameada. Ela tinha uma corda.

- Podia haver corda na cocheira. Provavelmente havia.

- Porque precisaria de uma corda para ir buscar o bebé? Para amarrar a ama?

- Não me parece que fosse para isso que ela queria a corda.

- E tinha aquela foice, também. - ”Brilhante, a cintilar”, recordou Hayley. Afiada. - Talvez tencionasse matar qualquer pessoa que tentasse detê-la. Mas a corda... O que poderia fazer com a corda, se não era para amarrar alguém?

Arregalou os olhos e pousou a chávena com mãos trémulas quando viu a expressão nos olhos dele.

- Oh, meu Deus... para se matar? Para se enforcar, é isso que estás a pensar? Mas porquê? Porque viria até aqui para isso? Porque se arrastaria no meio da chuva para se enforcar no salão de baile?

- O quarto das crianças, nessa altura, ficava no segundo andar. A pouca cor que Hayley tinha nas faces desapareceu de novo.

- O quarto das crianças.

”Não”, pensou, enquanto a imagem lhe surgia na mente, nunca mais conseguiria estar completamente quente.

Nos seus dias de folga, Hayley estava habituada a que as horas voassem. Tinha o tempo sempre tão ocupado com tarefas - compras, roupa, arrumar o que ficara desarrumado durante os dias de trabalho, cuidar de Lily e a miríade de outros afazeres que surgiam sempre - que mal se lembrava de como era ter aquilo a que as pessoas que não trabalhavam a tempo inteiro e não tinham filhos pequenos chamavam tempo livre.

Quem havia de dizer que não gostava muito?

Ver-se com tempo livre nas mãos deixava-a inquieta e pensativa. Mas, quando o patrão nos mandava tirar o dia, não havia discussão possível. Pelo menos quando o patrão era Rosalind Harper.

Fora corrida para casa de Stella por um dia, sem ter sequer Lily para a distrair. Tinham-lhe dito que descansasse e ela tentara. Tentara mesmo. Mas o prazer que habitualmente retirava da leitura hoje não a satisfazia; a pilha de DVDs que Stella lhe deixara não a entretinha, e a casa silenciosa e vazia punha-a a contar os minutos em vez de a embalar.

Passou algum tempo a vaguear pelas divisões, divisões que ela ajudara a pintar. Stella e Logan tinham transformado a casa num lar, misturando a queda de Stella para os pormenores e para o estilo com a percepção de espaço de Logan. E os rapazes, claro, pensou quando parou junto do quarto que Gavin e Luke partilhavam, com os seus beliches e prateleiras carregadas de livros de banda desenhada e camiões. Era um lar criado com crianças em mente, cheio de luz e cor, com o grande jardim que fazia fronteira com o bosque. Apesar da elegância dos jardins - e aqui só podiam mesmo ser maravilhosos -, era um jardim onde as crianças e o cão podiam correr à vontade.

Pegou em Parker - o cão fora a sua única companhia durante o dia - e acariciou-o enquanto voltava para o andar de baixo.

Seria ela tão habilidosa como Stella quando tivesse um lar e uma família? Tão carinhosa, viva e equilibrada?

Nunca planeara as coisas desta maneira. Stella é que era a mulher dos planos. Ela limitara-se a viver um dia depois do outro, satisfeita com o seu emprego na livraria, ajudando o pai a cuidar da pequena casa que partilhavam. De vez em quando, pensava em fazer um curso de gestão, numa preparação para o sonho distante de um dia abrir a sua própria livraria. Um dia.

Pensara em apaixonar-se - um dia. A maioria das raparigas pensava nisso, supunha. Mas não tinha qualquer pressa de que acontecesse, esse grande amor e aquilo que se lhe seguiria. Permanência, lar, filhos. Toda essa rotina estava para ela tão distante como a Lua. A anos de distância. Anos-luz.

Mas as coisas tinham acontecido e tinham-na empurrado para direcções imprevistas. E aqui estava ela, ainda antes dos vinte e seis anos, grávida do segundo filho, a trabalhar numa área sobre a qual não sabia praticamente nada dois anos antes.

Tão estupidamente apaixonada que praticamente expirava coraçõezinhos.

E, para rematar, um espírito enigmático e certamente psicopata decidira pedir emprestado o seu corpo de vez em quando.

Quando Parker se agitou, pô-lo no chão e seguiu-o até à cozinha, onde ele parou junto da porta das traseiras, olhando fixamente para ela.

- Está bem, está bem, podes sair. Suponho que hoje não sou a mais agradável das companhias.

Deixou-o sair e ele correu através do quintal, desaparecendo no bosque como se estivesse atrasado para algum compromisso.

Hayley saiu também. Estava um dia bonito. A chuva refrescara as coisas, arrefecera um pouco o ar. Podia dar um passeio, apanhar algumas ervas daninhas. Ou podia estender-se na espreguiçadeira no pátio e ver se aqui fora conseguia fazer uma sesta.

Sem grande esperança, inclinou a cadeira e pensou em ir buscar um livro. E estava a dormir minutos depois.

Acordou um pouco tonta, com o barulho de alguém a ressonar. Desorientada, levou a mão à boca, mas o som continuou. Estava tapada com uma leve colcha de algodão e o guarda-sol fora inclinado para a deixar à sombra.

O ressonar vinha de Parker, que estava deitado no chão ao lado da cadeira, de costas, com as patas para cima, como um cão de brinquedo que tivesse sido derrubado da sua prateleira.

A vida dela podia ser estranha neste momento, mas não lhe parecia que um cão pudesse ter deslocado o guarda-sol ou trazido um cobertor para a tapar.

Enquanto pigarreava e se soerguia, Stella apareceu na porta das traseiras com dois copos de chá gelado.

- A sesta foi boa? - perguntou.

- Não sei. Dormi o tempo todo. Obrigada - acrescentou quando ela lhe estendeu o copo. - Que horas são? Uau! - exclamou, quando olhou para o relógio. - Dormi quase duas horas.

- Ainda bem. Estás com melhor aspecto.

- Espero bem que sim. Onde estão os miúdos?

- O Logan foi buscá-los à escola. Eles gostam de ir com ele para o trabalho. Está um dia maravilhoso, não está? Perfeito para beber chá no pátio.

- Está tudo bem nos viveiros? Este tipo de tempo traz sempre clientes.

- E trouxe. Estivemos ocupados. Olha para aquela flor-de-merenda. Adoro este jardim - disse, com um suspiro.

- Tu e o Logan fizeram um trabalho fantástico, estava a pensar nisso hoje. Formam uma boa equipa.

- Parece que sim. Quem diria que um sabe-tudo desorganizado e rabugento e uma obsessiva maníaca pelo trabalho encontrariam o verdadeiro amor e a felicidade?

- Eu. Desde o princípio.

- Suponho que sim, espertinha. Já comeste?

- Não estava com fome. Stella abanou o dedo.

- Mas alguém aí dentro é capaz de estar. Vou preparar-te uma sanduíche.

- Não te incomodes, Stella.

- Manteiga de amendoim e doce? Hayley abanou a cabeça e desistiu.

- Não é justo. Conheces as minhas fraquezas.

- Deixa-te estar aí sentada. O ar fresco faz-te bem. Volto já.

Pouco depois Stella estava de volta com um prato com a sanduíche, um cacho de uvas pretas, bocadinhos de queijo e meia dúzia de bolachas-de-água-e-sal.

Hayley olhou para o prato no seu colo e depois para Stella.

- Queres ser a minha mamã?

Com uma gargalhada, Stella sentou-se na espreguiçadeira aos pés de Hayley e começou a massajá-los, fazendo todos os músculos do corpo de Hayley suspirarem de alívio.

- Uma das minhas coisas preferidas quando estava grávida era ser mimada de vez em quando.

- Senti falta disso nos primeiros meses, da outra vez.

- Então desta vez vamos compensar-te. - Stella deu uma palmadinha na perna de Hayley. - Como te sentes... nesse aspecto?

- Bem. Cansada, sabes, e com altos e baixos emocionais, mas bastante bem. E agora ainda melhor - disse, depois de mais uma dentada na sanduíche. - Detesto admitir, mas uma boa sesta e um bom lanchinho fazem maravilhas. Vou tratar bem de mim, Stella, prometo. Tive cuidado quando estava grávida da Lily e também vou ter cuidado desta vez.

- Eu sei que sim. Além disso, ninguém te vai dar hipótese do contrário.

- Fico... - Encolheu os ombros - Fico esquisita, quando toda a gente está preocupada comigo.

- Então vai-te habituando, porque nós não conseguimos evitar, com tudo o que se está a passar.

- Ontem à noite, foi tão... acho que já esgotei as palavras. Forte, estranho, bizarro, intenso. Mas esta vez foi a pior de todas. Stella, não contei tudo ao Harper. Não consegui.

- O que queres dizer?

- Não lhe contei o que senti. Ele ia-se passar, como qualquer homem. Estou a confiar em ti, espero que não lhe digas nada.

- Conta-me o que se passa.

- É uma sensação... e não sei se é apenas causada pelo stresse ou se é real. Mas senti-a. Stella, ela quer o bebé. Este bebé. - Hayley encostou a mão à barriga.

- Como...

- Não pode. Nenhum poder neste mundo, nenhum poder seja em que mundo for, é suficientemente forte para me afastar. Tu sabes, porque já tiveste uma criança dentro de ti. Mas o Harper ficava louco se soubesse.

- Explica-me melhor.

- Ela está confusa, é a melhor forma que tenho de o explicar. Entre o aqui e o agora e o seu próprio tempo. Salta para trás e para a frente. Quando está no agora, quer o que eu tenho. Esta criança, a vida, o corpo. Mais ainda, riqueza e privilégio. Quer as sensações e os benefícios. Estás a compreender?

-Até aqui, sim.

- É muito mais assustadora, muito mais egoísta, quando a sua mente está no presente. Quando está no passado, quando está envolvida naquilo que lhe aconteceu, é como se estivesse a acontecer. Nessa altura fica apenas zangada e vingativa, e quer que alguém pague pelo que lhe aconteceu. Ou então está triste e miserável, e quer apenas que tudo acabe. Ela está cansada. O Harper acha que ela se suicidou.

- Eu sei, estive a conversar um bocadinho com ele hoje.

- Ele acha que ela se enforcou no quarto do bebé. Ali mesmo, enquanto o filho dela dormia. E é possível que o tenha feito. Ela estava suficientemente louca e perdida para o ter feito.

- Também sei disso. - Stella levantou-se e dirigiu-se à orla do pátio, para espreitar para o jardim. - Tenho andado a ter outra vez sonhos.

- O quê? Quando?

- Não aqui, não à noite. Sonhos enquanto estou acordada, suponho. No trabalho. Em terreno dos Harpers. Imagens, como antes, da dália. A dália azul. Só que é monstruosa. É assim que ela quer que eu a veja. Pétalas como lâminas, à espera para me retalharem os dedos se eu lhes tocar. Mas desta vez não está a crescer num jardim. - Virou-se e fitou Hayley nos olhos. - Está numa campa. Uma campa sem lápide, coberta de terra negra. A dália é a única coisa que cresce nela.

- Quando é que isso começou?

- Há poucos dias.

- Achas que a Roz também os tem?

- Temos de lhe perguntar.

- Stella, temos de ir lá acima ao antigo quarto das crianças.

- Sim. - Voltou para junto de Hayley e pegou na mão que ela lhe estendia. - Temos de o fazer.

Era fácil falar sem os homens quando a actividade anunciada era o planeamento do casamento. Os homens, reparou Hayley, dispersavam como formigas assim que eram mencionadas expressões como lista de convidados e esquemas de cores.

Portanto, conseguiram sentar-se no pátio de Stella, sob o ar ameno do final da tarde, passando Lily dos braços de uma para os braços de outra, quando não estava a brincar com Parker na relva.

-Não pensei que fosse tão fácil livrar-me do Harper-queixou-se Hayley. -Julgava que ele também havia de querer dar opiniões sobre os planos do casamento. Afinal, ele também se vai casar.

Roz e Stella trocaram um olhar divertido e Roz estendeu a mão e deu uma palmadinha no braço de Hayley.

- Coitadinha, tão querida e inocente.

- Suponho que não tem importância, uma vez que não é disso que vamos falar. Mas, mesmo assim... - Irritada consigo própria, Hayley agitou a mão. - Seja como for. A Amélia também tem andado a interferir contigo?

- Duas vezes - confirmou Roz. - Em ambas as ocasiões eu estava sozinha na estufa de propagação. Estava a trabalhar e de repente vi-me noutro lado. Estava escuro, demasiado escuro para perceber onde era, e frio. Muito frio. Eu estava de pé ao lado de uma campa aberta. Quando olhei para baixo, vi-a a olhar para mim. Tinha as mãos fechadas sobre o caule de uma rosa negra. Pelo menos parecia negra, na escuridão.

- Porque não nos disseste? - inquiriu Stella.

- Podia perguntar-te o mesmo. Tencionava dizer-vos e tencionava dizer ao Mitch. Mas tem havido bastantes distracções.

Hayley puxou Lily para o seu colo e admirou a grossa pulseira de plástico com que ela estava a brincar.

- Sei que quando tudo isto começou e eu sugeri uma sessão espírita, toda a gente achou que eu estava a brincar. Mas talvez devêssemos experimentar. Nós as três temos uma ligação com ela. Talvez, se tentássemos, se tentássemos realmente comunicar, ela nos dissesse o que quer.

- Não tenho qualquer intenção de puxar do turbante e da bola de cristal

- disse Roz em tom decidido. - Seja como for, acho que ela própria não sabe o que quer. Quero dizer, ela quer ser encontrada... e penso que se refere à sua campa ou aos seus restos mortais. Mas ela não sabe onde está.

- Não podemos ter cem por cento de certeza de que fica na propriedade Harper - disse Stella.

- Pois não. O Mitch está a fazer todos os possíveis para encontrar certidões de óbito, registos de funerais. Mas achamos que não existe nada relativo a ela.

- Um enterro secreto. - Hayley acenou afirmativamente. - Mas ela quer que nós saibamos o que lhe aconteceu. Isso ainda a irrita - Encolheu os ombros e sorriu. - É uma das coisas que consigo captar muito nitidamente. Se ela foi morta ou se se matou dentro da casa, temos de descobrir.

- O quarto do bebé - disse Roz. - Ainda era usado quando eu nasci.

- Tu ficaste lá quando eras bebé? - perguntou Hayley.

- Foi o que me disseram. Pelo menos durante os primeiros meses, com a ama. A minha avó não aprovava, a avó Harper. Ao que parece, ela usava essa sala apenas quando tinham visitas. Usou a sua influência sobre os meus pais, que era considerável, até eles me mudarem para um quarto no primeiro andar. Nunca o usei para os meus filhos.

- Porquê?

Roz franziu os lábios e reflectiu sobre a pergunta de Hayley.

- Primeiro, não os queria tão longe de mim. E é verdade que não gostava da sensação que aquele quarto me transmitia. Algo que eu não conseguia explicar, mas na altura não lhe dei muita importância.

- A mobília do quarto da Lily veio de lá.

- Sim. Depois de o Mason deixar de dormir no berço mandei levar tudo novamente para cima. Comecei a guardar as coisas dos rapazes lá em cima à medida que eles deixavam de as usar. Regra geral, não usamos o segundo andar. A manutenção é demasiado dispendiosa e tem mais espaço do que nós conseguimos usar. Embora já tenha dado algumas festas na sala de baile, no passado.

- Nunca estive lá em cima - comentou Hayley. - O que é estranho, agora que penso nisso, porque gosto de percorrer as casas, de ver como são, imaginar como eram, esse tipo de coisa. Mas em todo o tempo que vivo naquela casa, nunca me passou sequer pela cabeça ir lá acima. E tu, Stella?

- Também não, e tens razão, é estranho. Os rapazes viveram naquela casa durante mais de um ano. Seria de pensar que numa ou noutra altura eu teria de os ter ido buscar lá acima. Mas acho que eles também nunca lá estiveram. Mesmo que o tivessem feito às escondidas, o Luke teria dado com a língua nos dentes. Não consegue guardar segredos.

- Acho que devíamos ir lá. - Hayley olhou de uma para outra. - Acho que temos de o fazer.

- Esta noite? - perguntou Stella.

- Não me parece que consiga aguentar mais. Isto está a dar comigo em doida.

- Se é o que vamos fazer, vamos fazê-lo juntos. Os seis - disse Roz. Sem as crianças. O David pode ficar com eles lá em baixo. Tens de ter a certeza, Hayley. Segundo parece, nesta altura, de todos nós, tu és a que está mais próxima dela.

- Tenho a certeza. Mas não apenas por mim, e esse é outro assunto de que vos queria falar. O Harper. Os sentimentos dela por ele, em relação a ele. - Um pouco arrepiada, Hayley esfregou os braços. - São terrivelmente confusos e fortes. Ela ama-o... por ser o filho do filho do seu filho. E odeia-o... é um homem, um homem Harper, do sangue do Reginald. Olhou para Stella e para Roz.

- Essa combinação de sentimentos é muito forte. Acho que talvez seja ainda mais forte por causa do que eu e o Harper sentimos um pelo outro.

- Amor, sexo, laços de sangue, vingança, dor. - Roz acenou. - E loucura.

- Os sentimentos dele em relação a ela também são bastante confusos.

- Hayley suspirou. - Não sei se tem importância, mas acho que, nesta altura, tudo é importante. Acho que devemos estar a chegar perto do fim.

- Aleluia - disse Stella.

- Eu sei. Quero que isto acabe. Quero mesmo fazer planos para o casamento e para este bebé. Quero sentar-me aqui com vocês as duas a falar de flores e de música e do vestido que vou usar.

Roz segurou as mãos de Hayley.

- E havemos de o fazer.

- Ontem à noite, antes de tudo acontecer, foi como se eu estivesse a imaginá-lo, a ver-me num vestido comprido branco, com as flores... Mas suponho que essa hipótese está excluída. - Encolheu os ombros e deu uma palmadinha na barriga. - Suponho que não tenho direito a um vestido comprido branco.

- Querida. - Roz apertou a mão de Hayley. - Todas as noivas têm direito a um vestido comprido branco.

Primeiro veio a comida, uma refeição em família, o tipo de ritual que os juntava a todos, em que se punha flores na mesa e as crianças tagarelavam. Roz dissera que essas coisas eram importantes e Hayley compreendia o objectivo.

”É isto que nós somos”, parecia querer dizer. ”O que somos e o que seremos, independentemente dos problemas. Talvez por causa deles.”

Fora-lhe dado isto, esta família. Uma mãe, uma irmã, um marido, irmãos e amigos. Uma criança que era amada por todos e outra a caminho.

E ela faria o que fosse preciso para manter este mundo intacto e seguro.

Portanto comeu. Falou e ouviu, ajudou a limpar a mesa e disfarçou o nervosismo sob o tesouro da normalidade.

Falaram de flores e livros, de escola e de livros. E aqui estava a conversa sobre os planos de casamento que ela tanto desejara.

- Suponho que a Hayley te disse que gostávamos de casar aqui, mamã, se não te importares.

- Acho uma ideia esplêndida. - Roz pousou o garfo. - Nos jardins? Vamos acreditar que o tempo vai estar bom, mas reservar tendas pelo sim, pelo não. Tenciono arregaçar as mangas e tratar de tudo o que é flores. Insisto que me dêem a liderança nesse aspecto. Vão querer lírios, imagino.

- Sim. Eu quero que o meu ramo seja de lírios vermelhos.

- Nesse caso, cores vivas, esqueçam os pastéis. Não há problema. Sei que não querem nada demasiado formal e, uma vez que já tivemos dois casamentos este ano, acho que podemos tratar dos pormenores sem grande dificuldade.

- Afasta-te já - disse Logan a Harper em tom de aviso. - Salva a tua pele. Vai dizendo só: ”Parece-me boa ideia.” E se te derem duas opções em relação a qualquer coisa, não caias na armadilha. Diz que são as duas fantásticas e pede-lhe que ela escolha.

- Ele acha que tem muita piada - disse Stella secamente. - Só não lhe dou um pontapé por baixo da mesa porque tem razão.

- Porque é que estão todos a casar? - inquiriu Gavin. - Porque é que temos de usar gravata?

- Porque elas gostam de nos torturar - disse-lhe Logan. - As mulheres são assim.

- Elas deviam ter de usar gravatas também.

- Eu levo gravata - ofereceu-se Stella. - E tu levas saltos altos.

- Eu sei porque é que as pessoas se casam - interveio Luke. - Para poderem dormir na mesma cama e fazer bebés. Tu e o Mitch já fizeram um bebé? - perguntou a Roz.

- Nós já fechámos a loja há algum tempo. A propósito. - Roz afastou-se da mesa. - Acho que está na altura de vocês os dois ajudarem o David a levantar a mesa para poderem comer gelado na cozinha.

- Muito bem, tropas. Em sentido. Tu também, soldado. - Antes que Hayley pudesse fazer alguma coisa, David tirou Lily da cadeirinha. - Lá porque és baixinha, não penses que te escapas ao serviço da cozinha. Ela gosta de me ajudar a pôr a loiça na máquina - disse a Hayley. - Eu fico com ela.

- Só preciso de falar contigo um minuto na cozinha.

- Limpar e empilhar, cavalheiros - ordenou, enquanto levava Lily da sala de jantar. - Nós tratamos de tudo - disse a Hayley. - Não precisas de te preocupar.

- Não, não é isso. Sei que a Lily está muito bem contigo. É sobre o casamento. Preciso de te pedir uma coisa.

Ele pousou Lily e deu-lhe um tacho e uma colher para ela brincar.

- O que precisas?

- Eu sei que isto pode parecer estranho, mas acho que uma noiva deve poder adaptar o dia do casamento da maneira que mais lhe agrada, certo?

- Se não for nesse dia, quando há-de ser?

- Exactamente. Portanto estava a pensar... gostava muito que me levasses ao altar.

- O quê? - perguntou David sem compreender. - Eu?

- Sei que não tens idade suficiente para ser meu pai, nem nada. Mas não estava a pensar nisso dessa maneira. Estava a pensar que és um dos meus melhores amigos, e do Harper também. Que somos como família. E que um dia como esse deve ter a ver com família. Não tenho o meu pai, nem ninguém de família de quem goste tanto como de ti. Por isso, gostava que me levasses ao altar... por assim dizer... e me entregasses ao Harper. Significaria muito para mim.

David tinha os olhos húmidos quando a abraçou.

- É a coisa mais doce que já me disseram - murmurou. - A coisa mais doce.

- Aceitas? Ele recuou.

- Será uma honra. - Segurando-lhe nas mãos, virou-as e beijou as palmas. - Uma honra enorme.

- Uff... estava com medo que achasses um disparate.

- Nem por sombras. Estou muito orgulhoso e comovido. E, minha querida, se não saíres daqui depressa, vais fazer-me passar uma vergonha em frente das tropas.

- E eu também. - Fungou. - Falamos melhor mais tarde. - Agachou-se para beijar Lily, que a ignorou completamente. - Porta-te bem, bebé.

- Hayley? - David respirou fundo quando ela parou. - O teu pai também estaria muito orgulhoso.

Ela não conseguiu responder senão com um aceno. Limpou as lágrimas enquanto se dirigia às vozes na sala, depois fez uma pausa quando se apercebeu do tom irritado de Harper.

- Não gosto desta ideia, nem um bocadinho. E muito menos do facto de vocês as três andarem a maquinar sozinhas.

- Nós, as mulheres - disse Roz num tom tão carregado de sarcasmo que Hayley sentiu o seu peso mesmo fora da sala.

- O facto de serem mulheres não é responsabilidade minha - retorquiu ele. - Mas o facto de a minha mulher estar grávida é. Não quero correr riscos.

- Muito bem, tens uma certa razão. Mas o que tencionas fazer com ela nos próximos sete, oito meses?

- Protegê-la.

- Não é fácil discutir contigo.

- Discutir não vai ajudar em nada - interveio a voz da razão de Mitch.

- Podemos discutir e debater, e dificilmente estaremos completamente de acordo em todos os aspectos. Mas temos de tomar algumas decisões.

Hayley endireitou as costas e entrou na sala.

- Peço desculpa, mas era difícil não vos ouvir. Harper, ia pedir-te para vires comigo lá fora para poder falar contigo, mas acho que o que tenho para dizer deve ser dito aqui, a todos.

- Tenho algumas coisas para dizer que talvez preferisses ouvir em privado. Ela limitou-se a sorrir.

- Terás muito tempo para gritar comigo em privado. Uma vida inteira. Sei que estiveste calado até agora por causa dos miúdos. Mas gostava que me ouvisses antes de dizeres seja o que for.

Pigarreou e avançou para o centro da sala.

- Hoje, quando estava sozinha, estive a pensar em como tinha chegado aqui. Nunca pensei que sairia do local onde cresci e teria dois filhos antes mesmo de decidir o que realmente queria fazer, para onde queria ir. Casar, ter filhos, isso seria mais tarde, depois de construir algo para mim própria, depois de me ter divertido bastante. E aqui estou eu, a viver noutro estado. Tenho uma filha que ainda não fez dois anos e outro bebé a caminho. Vou casar. Estou a trabalhar numa área em que nunca pensei trabalhar. Como é que cheguei aqui? O que estou eu a fazer aqui?

- Se não estás feliz...

- Por favor, ouve-me. Fiz essas perguntas a mim própria. Ainda tenho opções. Há sempre opções. Por isso perguntei a mim própria: é isto que eu quero, é aqui que quero estar, é isto que quero fazer? E é. Amo-te. Não sabia que era capaz de um sentimento assim.

Manteve os olhos em Harper, apenas em Harper, e cruzou as mãos sobre o coração.

- Não sabia que era capaz de amar uma criança como amo a Lily. Não sabia que era capaz de amar um homem como te amo a ti. Se tivesse todas as opções do mundo, era esta que escolheria. Estar contigo, com os nossos filhos, aqui. Porque, percebes, ainda há isso, Harper. Adoro esta casa, adoro este local. Tanto como tu. Aquilo que é, aquilo que representa, o que será para os nossos filhos e para os filhos deles.

- Eu sei. Os meus pensamentos percorreram também esse caminho. É por isso que és a pessoa certa para mim.

- Não posso ir-me embora daqui. Por favor, não me peças isso. Não posso afastar-me desta casa, desta família, do trabalho que entretanto me apaixonou. E a única maneira de poder ficar é tentar fazer isto, tentar resolver isto. Corrigir um erro ou pelo menos compreender. Talvez eu estivesse destinada a fazê-lo. Talvez nos tenhamos encontrado um ao outro porque nós estávamos destinados a fazê-lo. Não sei se serei capaz se não estiveres comigo. - Olhou em volta. - Se não estiverem todos comigo. Depois olhou para Harper.

- Fica ao meu lado, Harper. Confia em mim. Confia em nós. Ele aproximou-se e encostou a testa à dela.

- Eu estou contigo.

 

Não há garantias de que vá acontecer alguma coisa. - Mitch enfiou uma cassete extra no bolso.

- Acho que consigo fazer com que aconteça. O que quero dizer... Hayley humedeceu os lábios...

- acho que consigo atraí-la. Ela quer isto... uma parte dela quer, há um século que o quer.

- E a outra parte? - perguntou Harper.

- Quer vingança. Na hora da verdade, é mais provável que ela queira fazer-te mal a ti do que a mim.

- E ela consegue fazer-nos mal - recordou Roz. -Já vimos isso.

- Então vamos lá acima armados com câmaras e gravadores. - Logan abanou a cabeça.

- Todos juntos - declarou Mitch.

- Bom, ela subiu a parada - Logan pegou na mão de Stella. - Uma vez que nenhum de nós está disposto a desistir, vamos cobrir a aposta dela.

- Ficamos juntos - disse Roz enquanto começavam a subir as escadas. Aconteça o que acontecer. Nunca a confrontámos em grupo antes. Acho que há alguma força nisso.

- Ela teve sempre a vantagem, deu sempre o primeiro passo - concordou Harper. - Sim, vamos ficar juntos.

Quando chegaram ao segundo andar, Roz virou em direcção à sala de baile. Seguindo o seu instinto, avançou e empurrou as portas duplas.

- Havia aqui festas maravilhosas. Lembro-me de subir sorrateiramente, à noite, para ver as pessoas dançarem.

Estendeu a mão para o interruptor da luz, que banhou as mobílias cobertas de lençóis e o padrão encantador do chão de madeira.

- Quase vendi estes candelabros, uma vez. - Olhou para o trio deslumbrante, suspenso de medalhões de gesso ornamentados. - Mas não consegui, embora isso me tivesse facilitado a vida do dia-a-dia. Também dei aqui algumas festas, em tempos. Acho que está na altura de voltar a fazê-lo.

- Ela entrou por aqui, naquela noite. Tenho a certeza. - Embora já estivesse de mão dada com Harper, Hayley apertou-a mais. - Não me largues.

- Nem pensar.

- Ela entrou pelas portas do terraço. Não estavam trancadas. Podia ter partido os vidros, se estivessem. Entrou e... Oh, dourados e cristal, o cheiro a cera e a óleo de limão. A chuva a cair, a pingar das goteiras. Acende as luzes.

-Já acendi - disse Roz calmamente.

- Não, ela acende as luzes. Harper.

- Estou aqui.

- Consigo ver. Consigo ver.

O nevoeiro entrou pelas portas atrás dela, espalhando humidade pelos soalhos brilhantes. Os seus pés estavam cobertos de lama, ensanguentados nos locais onde se cortara nas pedras, e deixavam um rasto de lama e sangue onde ela pisava.

Ainda viva. O coração a bombear sangue.

Assim, era assim que eles viviam na Harper House. Salas grandiosas, iluminadas por candelabros cintilantes, espelhos com molduras douradas nas paredes, mesas compridas e polidas e palmeiras envasadas, tão luxuriantes que cheiravam aos trópicos.

Ela nunca estivera nos trópicos. Ela e James iriam um dia, um dia passeariam por areias brancas como açúcar, à beira de um mar quente e azul.

Mas não, não, as suas vidas eram aqui, na Harper House. Eles tinham-na expulso, mas ela estaria aqui. Sempre aqui. Para dançar nesta sala de baile, iluminada por gotas de cristal.

Baloiçou-se numa valsa sem par, com a cabeça inclinada numa pose coquete. A lâmina que trazia na mão reflectiu a luz no seu gume afiado.

Dançaria aqui, noite após noite, se assim o entendesse. Beberia champanhe, usaria jóias finas. Ensinaria James a valsar com ela. Como ele seria bonito, enrolado no seu cobertor azul e macio. Que lindo retrato fariam. Mãe e filho.

Tinha de ir ter com ele agora, com o seu James, para que pudessem ficar juntos para sempre.

Saiu do salão. Onde seria o quarto do bebé? Na outra ala, claro. Claro. As crianças e aqueles que cuidavam delas não tinham lugar perto de salas de baile grandiosas, de salas elegantes. O cheiro da casa! Como era rico o seu perfume. O lar do seu filho. E agora o dela também.

A carpete era macia como pêlo debaixo dos seus pés. E mesmo tão tarde, mesmo com toda a casa a dormir, os candeeiros a gás emitiam um brilho fraco.

”Não poupavam nas despesas!”, pensou. Dinheiro para queimar.

Oh, ela devia queimá-los a todos.

Nas escadas, parou. Deviam estar a dormir lá em baixo, o filho-da-mãe e a sua pega. O sono dos ricos e dos privilegiados. Podia descer, matá-los. Cortá-los em pedaços, banhar-se no sangue deles.

Distraidamente, passou o polegar pela lâmina curva da foice, cobrindo-a de sangue vermelho. Seria o sangue deles azul? Sangue Harper. Seria tão maravilhoso vê-lo a derramar-se das suas gargantas pálidas, encharcando de azul os belos lençóis de linho.

Mas alguém podia ouvir. Um dos criados podia ouvir e detê-la antes de terminar o seu trabalho.

Muito silenciosa. Levou o dedo à face e conteve o riso. Silenciosa como um rato.

Silenciosa como um fantasma.

Caminhou até à outra ala, abrindo as portas que estavam fechadas e espreitando lá para dentro.

Soube - era o seu coração de mãe a falar - assim que estendeu a mão trémula para a maçaneta da porta seguinte. Soube que James dormia dentro daquele quarto.

Havia uma luz de presença acesa e ela conseguia ver as prateleiras de brinquedos e livros, a cadeira de baloiço, as pequenas cómodas e arcas.

E, ali, o berço.

As lágrimas deslizaram-lhe pelas faces quando se aproximou. Ali estava ele a dormir, o seu precioso filho, com o cabelo escuro, limpo e macio, as faces rechonchudas rosadas de saúde.

Nunca houvera um menino mais bonito do que o seu James. Tão lindo e terno no seu berço. Precisava que cuidassem dele, que o embalassem, que lhe cantassem. Canções doces para o seu doce filho.

Esquecera-se do cobertor dele! Como podia ter-se esquecido do cobertor dele? Agora teria de usar o que outra pessoa lhe comprara quando fosse altura de o levar consigo.

Suavemente, muito suavemente, passou os dedos pelo cabelo macio e cantou a sua cantiga de embalar.

- Estaremos juntos de novo, James. Nada nos voltará a separar.

Sentou-se no chão e deitou mãos ao trabalho.

Usou a lâmina para cortar a corda. Era difícil formar o nó corredio, mas achou que o fizera bem. O suficiente. Largando a foice, pegou numa cadeira e colocou-a sob o candeeiro do tecto. E cantou suavemente enquanto atava a corda aos braços do candeeiro.

Puxou-a com força e, ao ver que aguentava, sorriu.

Tirou o feitiço que trazia num saco preso por uma fita à volta do pescoço. Memorizara o cântico que a rainha do vodu lhe vendera, mas agora debateu-se com as palavras enquanto espalhava o feitiço num círculo em volta da cadeira.

Usou a lâmina para cortar a palma da mão e deixou o seu próprio sangue pingar sobre o feitiço, para ligar o trabalho.

O seu sangue. Amélia Ellen Connor. O mesmo sangue que corria no seu filho. O sangue de uma mãe, magia potente.

Tinha as mãos a tremer mas continuou a cantarolar enquanto se dirigia ao berço. Pela primeira vez desde que ele nascera, segurou o seu filho nos braços, sujando de sangue o seu cobertor e a sua face rosada.

Ah, tão quente, tão doce! Chorando de alegria, aninhou a criança contra a sua camisa de dormir molhada e imunda. Quando ele se agitou e choramingou, apertou-o mais contra si.

- Chiu, chiu, meu adorado. A mamã está aqui. A mamã nunca mais te deixará. - Ele moveu a cabeça e tacteou com a boca, como se estivesse à procura de um mamilo. Mas quando, com um soluço de alegria, ela abriu a camisa e o encostou contra o seu seio, ele arqueou as costas e soltou um grito.

- Chiu, chiu, chiu. Não chores, não faças barulho. Meu doce, doce menino. - Embalando-o nos braços, dirigiu-se à cadeira. - A mamã já te pegou. E nunca, nunca mais te deixará. Vem com a mamã, meu querido James. Vem com a mamã agora, para onde nunca conhecerás dor nem sofrimento. Onde poderemos valsar na sala de baile, beber chá e comer bolos no jardim.

Subiu para a cadeira, meio desequilibrada pelo peso dele, pelos movimentos dele. Enquanto ele chorava, ela sorriu-lhe e enfiou o laço à volta do seu pescoço. Cantando baixinho, colocou o laço mais pequeno à volta do pescoço dele.

- Agora, estamos juntos.

A porta de comunicação abriu-se, deixando passar um clarão de luz que a fez voltar a cabeça, arreganhando os dentes como um tigre a proteger a sua cria.

A ama, com os olhos inchados de sono, gritou, levando as mãos ao rosto ao ver aquela mulher de camisa de dormir imunda, com o bebé nos seus braços a chorar de medo e de fome, com uma corda à volta do pescoço.

- Ele é meu!

Quando ela empurrou a cadeira, a ama saltou para a frente.

Os gritos deram lugar ao frio e à escuridão.

Hayley estava sentada no chão do que fora em tempos o quarto do bebé, a chorar nos braços de Harper.

Continuava gelada, mesmo depois de algum tempo na sala com um cobertor sobre as pernas, apesar do fogo que Mitch acendera na lareira.

- Ela ia matá-lo - disse-lhes. - Ia matar o bebé. Meu Deus, meu Deus, ela tencionava enforcar o próprio filho.

- Para ficar com ele - disse Roz, olhando para o fogo. - Isso é mais do que loucura.

- Se a ama não tivesse entrado naquele momento, se não o tivesse ouvido chorar e não tivesse chegado rapidamente, ela tê-lo-ia feito.

- Que mulher tão egoísta.

- Eu sei, eu sei. - Hayley levantou as mãos e esfregou os ombros. - Mas não o fez para o magoar. Ela acreditava que ficariam juntos e seriam felizes, e... oh, céus. Ela estava completamente destroçada. Depois, no fim, quando perdeu mais uma vez... - Hayley abanou a cabeça. - Continua à espera dele. Acho que o deve ver em todas as crianças que aparecem na Harper House.

- Uma espécie de inferno, não é? - disse Stella. Nunca o esqueceria, pensou Hayley. Nunca.

- A ama salvou o bebé.

- Não consegui localizá-la - interveio Mitch. - Eles tiveram mais do que uma ama enquanto ele era bebé, mas o enquadramento temporal aponta para uma rapariga chamada Alice Jameson... o que também coincide com a carta de Mary Havers para Lucille. A Alice deixou a Harper House em Fevereiro de 1893, e não descobri mais nada sobre ela.

- Eles mandaram-na embora. - Stella fechou os olhos. - Foi o que fizeram. Pagaram-lhe, talvez, ou simplesmente ameaçaram-na.

- Ambas as coisas, seria o meu palpite - disse Logan.

- Vou continuar a tentar tudo por tudo para a encontrar - prometeu Mitch, e Roz virou-se para ele com um sorriso.

- Gostaria muito. Se não fosse ela, eu não estaria aqui nem os meus filhos.

- Não era isso que ela queria que nós descobríssemos - disse Hayley baixinho. - Pelo menos, não era tudo. Ela não sabe onde está. Onde está enterrada. O que fizeram com ela. Não conseguirá partir, descansar, passar para o outro lado, seja o que for, enquanto não a encontrarmos.

- Como? - perguntou Stella, abrindo as mãos.

- Tenho uma ideia em relação a isso. - Roz olhou para eles. - Uma ideia que acho que vai dividir este pequeno grupo ao meio.

- Para quê? - objectou Harper. - Para a Hayley a ver tentar enforcar um bebé outra vez?

- Para que ela, ou um de nós, consiga ver o que aconteceu a seguir. Espero eu. E quando digo nós, refiro-me a mim, à Hayley e à Stella.

Pela primeira vez desde que tinham subido as escadas, Harper largou a mão de Hayley e levantou-se do sofá.

- Essa é uma ideia estúpida.

- Não fales comigo nesse tom, Harper.

- É o único tom possível quando a minha mãe perde o juízo. Não viste o que acabou de acontecer? A forma como a Hayley saiu da sala de baile para o antigo quarto do bebé? A forma como ela falava, como se estivesse a ver as coisas acontecerem, como se fosse parte do que estava a acontecer?

- Vi perfeitamente. É por isso que temos de voltar.

- Tenho de dar razão ao Harper desta vez, Roz. - Logan encolheu os ombros. - Não me estou a ver ficar sentado aqui em baixo enquanto três mulheres vão lá acima sozinhas. Estou-me borrifando se isso faz de mim um machista.

-Já estava à espera. Mitch? - Ergueu as sobrancelhas quando ele olhou para ela de testa franzida. - Ora, vais surpreender-me outra vez.

- Não podes estar seriamente de acordo com ela. - Harper virou-se para o padrasto.

- O problema, Harper, é que estou. Não me agrada, mas percebo o que ela quer fazer e porquê. E, antes de me saltares em cima, pensa nisto: elas vão acabar por o fazer mais cedo ou mais tarde, numa altura em que nenhum de nós estiver por perto.

- Que aconteceu ao ”vamos ficar todos juntos”?

- Foi um homem que a usou, que abusou dela, que lhe roubou o filho e que a abandonou. Ela tem andado a aproximar-se novamente de mim e da Stella. Não vai confiar em vocês. Talvez consigamos convencê-la a confiar em nós.

- E talvez ela vos atire do terraço do segundo andar.

- Harper. - Roz aproximou-se dele com um sorriso tão frio como uma lâmina. - Se alguém for atirado para fora desta casa, será ela. É uma promessa. A minha compaixão por ela chegou ao fim. A tua ainda não - acrescentou, virando-se para Hayley. - E ainda bem, provavelmente será uma vantagem. Mas a minha acabou. O que ela teria feito, se não tivesse havido intervenção, é imperdoável para mim. Quero-a fora desta casa. Consegues voltar? - perguntou a Hayley.

- Sim, consigo. Quero fazê-lo. Acho que nunca mais estarei um momento descansada enquanto isto não acabar.

- Estás a pedir-me que arrisque perder-te - disse Harper.

- Não. - Hayley olhou para ele. - Estou a pedir-te que acredites em mim.

- É como nos filmes, quando a loura estúpida, geralmente vestida com qualquer coisa transparente, desce à cave sozinha quando ouve um barulho, especialmente se houver um assassino psicopata à solta!

Paradas no patamar do segundo andar, Roz riu-se para Hayley.

- Nós não somos estúpidas.

- E nenhuma de nós é loura - acrescentou Stella. - Prontas? Deram as mãos e começaram a percorrer o corredor.

- O problema com isto - começou Hayley, numa voz que soava distante aos seus próprios ouvidos - é que, se ela não sabe o que lhe aconteceu, como é que nós havemos de saber?

- Um passo de cada vez. - Roz apertou a mão de Hayley. - Como te sentes?

- Tenho o coração a cem à hora. Roz, quando isto acabar, podemos abrir novamente este quarto? Fazer, não sei, uma sala de brincar, talvez. Qualquer coisa com luz e cor.

- Uma ideia maravilhosa.

- E aqui vamos nós - declarou Stella. Entraram juntas.

- Como era antes, Hayley? - perguntou-lhe Roz.

- Hum... o berço estava ali. - Apontou com o queixo. - Contra a parede. As luzes eram fracas. Candeeiros a gás, como naquele filme com a Ingrid Bergman. Aquele onde o Charles Boyer tenta levá-la à loucura. Havia uma cadeira de baloiço ali, e outra, normal... a que ela usou... ali. Prateleiras ali - apontou - com brinquedos e livros. E um...

A sua cabeça tombou para trás e revirou os olhos. Parecendo sufocar, as pernas dobraram-se debaixo do seu corpo.

Através do rugido nos seus ouvidos, ouviu Roz a gritar para a tirarem dali. Mas Hayley abanou a cabeça violentamente.

- Esperem, esperem. Céus, arde! O bebé está a gritar e a criada, a ama, também. Não me larguem.

- Vamos tirar-te daqui - disse Roz.

- Não, não. Só não me larguem. Ela está a morrer... é horrível... e está tão zangada. - Hayley deixou cair a cabeça contra o ombro de Roz. - Está escuro. Está escuro onde ela está. Estava. Não há luz, nem ar, nem esperança. Ela perdeu. Eles levaram-no de novo e agora ela está sozinha. Estará sempre sozinha. Não consegue ver, não consegue sentir. Tudo parece muito longe.

Muito frio, muito escuro. Há vozes, mas ela não consegue ouvi-las, apenas ecos. É tão vazio. Ela está a cair, a cair, muito pesada. Só consegue ver escuridão. Não sabe onde está. Está a flutuar.

Suspirou e deixou a cabeça no ombro de Roz.

- Não consigo evitar, mesmo neste quarto. Tenho pena dela. Ela era fria e egoísta, calculista. Uma puta, sem dúvida, no sentido mais baixo da palavra. Mas pagou por isso, não pagou? Mais do que cem anos perdida, a olhar pelos filhos dos outros sem nunca ter tido mais do que um momento de loucura com o seu. Ela pagou.

- Talvez. Estás bem?

Hayley acenou afirmativamente.

- Não foi como antes, quando a sentia a puxar por mim. Desta vez eu fui mais forte. Preciso da vida mais do que ela. Acho que ela está cansada. Quase tão cansada como nós.

- É possível. Mas não baixes as defesas. - Stella olhou para cima, para o local onde em tempos houvera um candeeiro a gás. - Nem por um minuto.

- Vamos voltar.

Stella levantou-se e ajudou Hayley a pôr-se de pé.

- Fizeste o que podias. Todas fizemos.

- Não parece suficiente. Foi uma morte brutal. Não foi rápida, e ela viu a criada sair a correr com o bebé. Estendeu os braços para ele, mesmo enquanto morria estrangulada.

- Isso não é amor de mãe, independentemente do que ela pensasse disse Roz.

- Não, não é. Não era. Mas era tudo o que ela tinha. - Hayley humedeceu os lábios, desesperada por um copo de água. - Ela amaldiçoou-o... ao Reginald. Amaldiçoou-os a todos, todos os Harpers. Ela... ela forçou-se a ficar aqui. Mas está cansada. Parte dela, a parte que entoa cantigas de embalar, está muito cansada e perdida.

Suspirou, depois sorriu quando viu Harper no patamar.

- Todos nós temos muito mais do que ela teve. Nós estamos bem. Deixou as outras mulheres e dirigiu-se a ele. - Suponho que não conseguimos o que procurávamos, mas estamos bem.

- O que aconteceu?

- Vi-a morrer e senti a escuridão. Horrível. Ela estava na escuridão, com frio e sozinha. Perdida. - Encostou-se a ele e deixou-o conduzi-la pelas escadas. - Não sei o que lhe aconteceu, o que fizeram com ela. Ela estava a cair no escuro, no escuro e no frio.

- Enterrada?

- Não sei. Era mais... como se flutuasse no escuro, descendo até onde não conseguia ver nem ouvir, nem encontrar saída. - Inconscientemente, esfregou a garganta, recordando a sensação da corda a morder. - Talvez fosse uma coisa de alma... sabes, o oposto do túnel de luz.

- Flutuar, cair? - Harper olhou para ela. - E que tal afundar-se?

- Ah... sim, suponho que sim.

- O lago - disse ele, olhando para ela. - Nunca pensámos no lago.

- Isto é uma loucura. - Hayley estava de pé à beira do lago sob a luz fraca da madrugada. - Pode demorar horas, mais do que isso. Devíamos ter ajuda. Podíamos chamar outras pessoas. Pessoas especializadas.

Roz passou o braço pelos ombros dela.

- Ele quer fazer isto. Precisa de o fazer. - Viu Harper calçar as barbatanas. - Está na altura de nós lhes darmos espaço para agirem.

O lago parecia tão escuro e fundo, com uma leve camada de nevoeiro sobre a superfície. Os nenúfares, os caules dos juncos e as íris, plantas que sempre lhe tinham parecido tão encantadoras, pareciam agora sinistras, estranhas, como saídas de um conto de fadas, e assustadoras.

Mas lembrou-se de ver Harper do lado de fora, no patamar, quando ela estava no quarto do bebé.

- Ele confiou em mim - disse Hayley baixinho. - Agora eu tenho de confiar nele.

Mitch agachou-se ao lado de Harper e entregou-lhe uma lanterna à prova de água.

- Tens tudo de que precisas?

- Sim. Há algum tempo que não mergulho. - Respirou fundo várias vezes, lentamente, para expandir os pulmões. - Mas é como o sexo, nunca nos esquecemos dos movimentos.

- Posso arranjar alguns estudantes, amigos do meu filho, que também conhecem os movimentos. - Tal como Hayley, Mitch estudou a superfície vasta e brumosa da água. - É um lago muito grande para uma pessoa sozinha.

- Independentemente do resto, ela era minha antepassada, portanto cabe-me a mim procurá-la. O que a Hayley disse ontem à noite, que talvez fosse o nosso destino ajudar a encontrá-la... começo a pensar o mesmo.

Mitch apertou-lhe o ombro.

- Está atento ao relógio, vem à superfície de trinta em trinta minutos. Caso contrário, a tua mãe atira-me lá para dentro à tua procura.

- Entendido. - Olhou para Hayley e sorriu-lhe.

- Olá. - Ela aproximou-se e agachou-se. Com uma mão na face dele, beijou-lhe os lábios. - Para dar sorte.

- Preciso de toda a que conseguir arranjar. Não te preocupes. Já nado neste lago... - Olhou para a mãe, e vieram-lhe à cabeça memórias vagas das suas próprias mãozinhas a chapinhar na água enquanto ela o segurava.

- Bom, desde que me lembro.

- Não estou preocupada.

Ele beijou-a de novo e testou o bocal. Depois, ajeitando a máscara, deslizou para dentro do lago.

Nadara aqui vezes sem conta, pensou enquanto mergulhava, seguindo o raio da lanterna através da água. Para refrescar em tardes de Verão ou num mergulho impulsivo de manhã, antes de ir trabalhar.

Ou quando trazia uma rapariga para casa, depois de uma saída, e a levava para um mergulho, nus sob a luz da lua.

Chapinhara com os irmãos neste lago, recordou, passando a luz sobre o fundo lamacento antes de olhar para o relógio e para a bússola. A mãe ensinara-os a nadar aqui. Lembrava-se dos risos, dos gritos e dos momentos de frescura e calma.

Teria tudo isso acontecido sobre a campa de Amélia?

Mentalmente, dividiu o lago em fatias, como uma tarte, e começou a inspeccioná-las metodicamente.

Ao fim de trinta minutos veio à superfície. Depois, uma hora. Sentou-se na beira, com os pés dentro de água, enquanto Logan o ajudava a mudar a garrafa de oxigénio.

-Já cobri quase metade. Encontrei algumas latas de cerveja, garrafas de refrigerante. - Inclinou o rosto para a mãe. - E não olhes para mim, eu tenho respeito pela natureza.

Ela estendeu o braço e passou a mão pelo seu cabelo molhado.

- Eu sei que tens.

- Se me arranjarem um saco, posso ir apanhando o lixo.

- Preocupamo-nos com isso depois.

- Não é fundo, talvez cinco metros e meio na parte mais profunda, mas a chuva agitou a lama e a água está um pouco turva.

Hayley sentou-se ao lado dele, mas Harper reparou que ela teve o cuidado de não molhar os pés.

- Gostava de poder ir contigo.

- Talvez para o ano eu te ensine a mergulhar. - Deu-lhe uma palmadinha na barriga. - Fica aqui e toma conta da Hermione.

Mergulhou de novo.

Era um trabalho entediante, sem nada da aventura ou da excitação que sentia quando mergulhava em férias. O esforço para ver através da água turva, sempre de olhos fixos no círculo de luz, estava a dar-lhe dores de cabeça.

O único som que ouvia, o da sua própria respiração, inspirando oxigénio do tanque, era monótono e cada vez mais irritante. Desejou já ter acabado, estar despachado, sentado na cozinha quente e seca a beber café, em vez de andar a nadar nestas malditas águas escuras à procura dos restos mortais de uma mulher que, nesta altura, apenas o irritava.

Estava cansado, farto e saturado de ter uma parte tão grande da sua vida dependente de uma maluca suicida - uma mulher que, se não tivesse sido impedida, teria matado o próprio filho.

Talvez Reginald não fosse o vilão da história, afinal. Talvez ele tivesse roubado a criança para a proteger. Talvez...

Sentiu um ardor na barriga, não tanto um enjoo mas uma bola quente de fúria. O tipo de fúria, percebeu Harper, que podia fazer um homem esquecer-se de que estava a mais de quatro metros de profundidade.

Olhou de novo para o relógio, deliberadamente, prestou mais atenção à respiração e seguiu o trajecto da luz.

Que raio se passava com ele? Reginald fora um filho-da-mãe, sem dúvida. Tal como Amélia era egoísta e tresloucada. Mas a pessoa que derivara dessa união egoísta fora forte e boa. Carinhosa. O que resultara dessa união tinha importância.

Portanto, isto tinha importância. Encontrar Amélia era importante.

Provavelmente ela estaria enterrada no bosque, pensou. ”Mas, raios, porquê abrir um buraco no solo em pleno Inverno quando havia um lago privado mesmo à mão?” Parecia fazer sentido, tanto que estranhou nunca terem pensado nisso antes.

Por outro lado, talvez não tivessem pensado nisso antes porque era pouco original. As pessoas usavam o lago, mesmo nessa altura. Para nadar, para pescar. Os cadáveres que eram atirados à água voltavam muitas vezes à superfície.

Porquê arriscar?

Passou a outra área, movimentou a lanterna.

Passou quase mais uma hora no meio da lama, na escuridão. Teria de desistir por hoje, decidiu. Reabastecer os tanques e continuar amanhã. Dentro em pouco, os clientes começariam a chegar e nada prejudicaria mais o negócio como ouvir dizer que havia alguém à procura de um cadáver.

Passou a lanterna pelas raízes dos nenúfares, pensando fugazmente que talvez tentasse hibridizar um vermelho. Algo que chamasse a atenção. Estudou as raízes, satisfeito com a saúde e o progresso daquilo que começara, e decidiu vir à superfície.

A sua luz apanhou algo em baixo dele, ligeiramente para sul. Olhou para o relógio, viu que estava quase a ficar sem tempo, mas agitou as pernas, mergulhou e inspeccionou.

E viu-a, ou o que restava dela. Ossos sujos de lama, cobertos de vegetação. Presos ao fundo, viu, com uma pontada de comiseração, tijolos e pedras atados àqueles ossos, mãos, pernas, cintura, com a corda com que ela se enforcara, calculou.

A corda que tencionara usar no seu filho.

Apesar disso, não devia ter vindo à superfície? Porque é que a corda não apodrecera, porque é que os pesos não se tinham movido? Era uma questão de física básica, não era?

Mas a física básica não levava em conta fantasmas e maldições.

Aproximou-se mais dela.

O golpe projectou-o para trás, numa pirueta, e arrancou-lhe a lanterna da mão.

Estava na escuridão com um cadáver e quase sem ar.

Lutou para não entrar em pânico, para relaxar o corpo de forma que este fosse ao fundo e pudesse então dar impulso para voltar à superfície.

Mas outra onda empurrou-o.

Viu-a a deslizar pela água, com a camisa de dormir branca a ondular, o cabelo a flutuar em madeixas emaranhadas. Os seus olhos reflectiam a loucura, a mão estendida, os dedos curvos como garras.

Sentiu-os fecharem-se à volta do seu pescoço, apertarem, embora ainda a conseguisse ver a alguma distância, suspensa na água por cima dos seus próprios ossos.

Debateu-se, mas não havia nada com que lutar. Tentou subir à superfície, mas ela segurava-o tão firmemente como os tijolos e pedras que a tinham arrastado para o fundo.

Ela estava a matá-lo, como planeara matar o próprio filho. Talvez tivesse sempre sido esse o plano, pensou indistintamente. Levar um Harper consigo.

Pensou em Hayley à sua espera lá em cima, pensou na criança que ela trazia no ventre. Na filha que ela já lhe dera.

Não desistiria deles.

Olhou de novo para os ossos, tentando encontrar um vestígio da pena que sentira antes. E olhou para Amélia, eternamente louca.

”Eu lembro-me de ti.” Pensou-o com todas as suas forças. ”Cantavas para mim. Eu sabia que nunca me farias mal. Lembra-te de mim. A criança que veio do teu filho.”

Procurou a sua faca de mergulho e cortou a palma da mão com a lâmina. Tal como ela em tempos cortara a sua. O sangue dele correu, formou uma nuvem na água turva entre ambos e deslizou na direcção dos ossos sujos.

”Este é o teu sangue em mim. Sangue Connor, tanto quanto Harper. De Amélia para James, de James para Robert, de Robert para Rosalind, e de Rosalind para mim. Foi por isso que te encontrei. Deixa-me ir. Deixa-me levar-te para casa. Não precisas de continuar sozinha ou perdida.”

Quando a pressão na sua garganta diminuiu, lutou contra o impulso de subir imediatamente para a superfície. Ainda conseguia vê-la e, não sabia como, viu lágrimas a deslizarem-lhe pelas faces.

”Voltarei para te vir buscar. Juro.”

Deu impulso com as pernas e julgou ouvi-la cantar, com a voz suave e doce da sua infância. Quando olhou para trás, viu o raio da sua lanterna a perfurar a escuridão a partir do fundo, iluminando-a.

E viu-a desvanecer-se como um sonho.

Rompeu a superfície, arrancou o bocal e inspirou o ar que lhe queimou a garganta seca. O sol incidiu-lhe nos olhos, encadeando-o, e, por entre o rugido nos seus ouvidos, havia vozes a chamarem o seu nome. Através do brilho estonteante, viu Hayley de pé à beira do lago, com a mão encostada à barriga. No pulso dessa mão, corações de rubis cintilavam como esperança.

Nadou entre os nenúfares até ela, para longe da morte e em direcção à vida. Logan e Mitch ajudaram-no a sair da água e ficou deitado de costas, com a respiração ofegante, a olhar para os olhos de Hayley.

- Encontrei-a.

 

Os raios de sol filtrados pelas folhas dos sicómoros e dos carvalhos formavam bonitos padrões de luz e sombra sobre o verde da relva. Nos ramos, os pássaros cantavam, enchendo o ar quente de música.

As lápides erguiam-se para o céu, mármore branco e granito cinzento, gravado para identificar os mortos. Em algumas campas havia flores com as pétalas a perderem a cor, a flutuarem na brisa leve. Tributos aos que já não estavam neste mundo.

Harper estava de pé entre a mãe e Hayley, segurando as mãos delas enquanto o caixão era baixado.

- Não me sinto triste - declarou Hayley. - Já não. Sinto que estamos a fazer a coisa certa. Mais do que certa, é um gesto de bondade.

- Ela conquistou o direito a estar aqui. Ao lado do filho. - Roz olhou para as campas, para os nomes. Reginald e Beatrice, Reginald e Elizabeth.

E ali, os pais dela. Os tios e tias, os primos, todos elos na longa cadeia de Harpers.

- Na Primavera - disse -, poremos uma lápide para ela. Amélia Ellen Connor.

-Já pusemos, de certa forma - disse Mitch, virando-se para lhe beijar o cabelo. - Ao enterrar com ela a roca do filho, a fotografia dele. Hayley tem razão. É um gesto de bondade.

- Sem ela, eu não estaria aqui. Sem ela, o Harper, o Austin e o Mason não existiriam. Nem os filhos que eles terão. Ela merece este lugar.

- Independentemente do que tenha feito, ela merecia melhor do que aquilo que lhe fizeram - disse Stella com um suspiro. - Estou orgulhosa por ter feito parte disto, por lhe ter devolvido o seu nome e, espero, por lhe ter dado paz. - Sorriu para Logan e depois para David e todos os outros. Todos fizemos parte disso.

- Atirada ao lago. Como lixo. - Logan acariciou as costas de Stella. E tudo para proteger o quê? Uma reputação.

- Ela foi encontrada - disse David. - Fizeste bem, Roz, em pressionar as autoridades para que ela fosse enterrada aqui.

- O nome Harper ainda tem peso suficiente junto dos burocratas. Para dizer a verdade, eu queria dar-lhe isto, quase tanto como a queria fora da minha casa, longe das coisas e das pessoas que amo. - Pôs-se em bicos de pés e beijou Harper na face. - O meu rapaz. O meu corajoso rapaz. É a ti que ela deve mais.

- Não acho - discordou ele.

- Tu voltaste lá. - Hayley pressionou os lábios. - Mesmo depois de ela tentar fazer-te mal, voltaste para a ajudar.

- Disse-lhe que voltaria. Os Ashbys são fiéis à sua palavra, tanto como os Harpers. E eu sou as duas coisas. - Apanhou um punhado de terra, estendeu a mão sobre a campa e deixou a terra escorrer-lhe por entre os dedos. - Está feito.

- O que podemos dizer sobre a Amélia? - Roz ergueu uma rosa vermelha. - Ela era louca... sejamos honestos. Morreu mal e não viveu muito melhor. Mas cantou para mim e para os meus filhos. A vida dela deu-me a minha. Portanto, descansa agora, bisavó. - Deixou cair a rosa sobre o caixão.

Cada um dos outros lançou também uma rosa para dentro da campa e recuou.

- Vamos dar-lhes um minuto sozinhos - disse Roz, apontando para Harper e Hayley.

- Ela foi-se. - Hayley fechou os olhos e pôs ordem na sua mente. Sinto-o. Soube que ela desaparecera antes mesmo de tu vires à superfície. Soube que a tinhas encontrado antes de nos dizeres. Foi como se a corda que me prendia a ela tivesse sido cortada.

- O dia mais feliz da minha vida. Por enquanto.

- Ela conseguiu aquilo de que precisava, o que quer que fosse. - Olhou para o caixão, para as flores caídas sobre ele. - Tive tanto medo, quando estavas no lago, de que não voltasses para mim.

- Ainda há muita coisa que quero fazer contigo. - Virou-a para si, para o sol, de costas para a campa. - Temos uma vida para viver. Agora é a nossa vez.

Tirou o anel do bolso e enfiou-lho no dedo.

- Já te serve. Agora é teu. - Beijou-a. - Vamos casar.

- Acho uma excelente ideia.

De mãos dadas, viraram costas à morte e dirigiram-se ao amor e à vida.

Na Harper House, os corredores largos e as salas graciosas estavam silenciosos, cheios de sol, cheios de memórias. Cheios de passado, abertos ao amanhã.

Ninguém cantava.

Mas os jardins floriam.

 

                                                                                            Nora Roberts

 

 

                      

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