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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O LIVRE ARBÍTRIO / Santo Agostinho
O LIVRE ARBÍTRIO / Santo Agostinho

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

“Prometi mostrar-te que há um Ser,

muito mais sublime do que o nosso espírito e a nossa razão.

Ei-lo: é a própria Verdade!” (II,13,35)

 

“Será a sabedoria outra coisa a não ser a Verdade,

na qual se contempla e se possui o sumo bem?” (II,9,26).

 

“Ó sabedoria! Luz suavíssima da mente purificada.” (II,13,35)

 

 

 

 

  1. Dados e ocasião da obra

 

            Após sua conversão, em Milão, no ano 386, Agostinho viveu alguns meses na feliz tranqüilidade da chácara de Cassicíaco, com sua mãe, familiares e diminuto número de discípulos. Dedicavam-se aí aos trabalhos campestres, à contemplação e á reflexão filosófica. Colhemos os frutos de seus colóquios, nos famosos diálogos: “Contra os Acadêmicos”, “A vida feliz”, “A Ordem” e nos “Solilóquios”.

            Na páscoa de 387, ele recebeu a graça do batismo das mãos do bispo de Milão, santo Ambrósio. Propunha-se retornar à sua terra natal, em Tagaste, na África do Norte, para aí consagrar-se com seus amigos a uma vida de oração e estudo, como monges.

            Enquanto aguardavam a partida da embarcação, em Óstia, porto de Roma, no mês de outubro, sua santa mãe Mônica falece, após breve enfermidade. Passada a comoção do desenlace, Agostinho decide permanecer em Roma o inverno de 387 e todo o ano de 388.

            Preocupado como estava de defender-se do maniqueísmo e alertar a seus amigos, compôs diversos tratados, entre outros: “De moribus Ecclesiae Catholicae” e “De moribus maniquaeorum”, e a presente obra: “De libero arbitrio”. A redação desta última, porém, iniciada em 388, não pôde ser terminada. Após o regresso a Tagaste, continuou-a, mas não havia ainda sido concluída, quando, em 391, foi constrangido a ser ordenado padre, por insistência do povo de Hipona. Somente aí, como presbítero, Agostinho conseguiu pôr termo ao trabalho, entre 394 e 395. (p.11)

            Como prova desta data, temos uma carta sua ao amigo Paulino, bispo de Nola (carta 31,7), do início do ano 396. Junto à missiva, enviava um exemplar dos três livros de “O livre-arbítrio”, recém-terminado.

 

  1. Evódio

 

            A obra, em forma dialogada, é em grande parte o relato das conversas de Agostinho com Evódio, seu amigo e conterrâneo. Era este já homem formado, quando conheceu Agostinho. Fora a princípio militar, tendo depois se dedicado às Letras. Convertido em Milão, recebeu o batismo pouco antes de Agostinho. Ficou a seu lado, após a morte de Mônica, em Roma, e em seguida foi para Tagaste, participar da primeira comunidade de monges. Mais tarde, em 396, tornou-se bispo de Upsala, perto de Útica, na África proconsular.

            Neste diálogo como em outro, igualmente mantido com Agostinho, o “De quantitate animae” (“Sobre a grandeza da alma”), vemo-lo sempre ser tratado com muita deferência e respeito. Suas insistências contribuem a trazer aos diálogos mais vida, mais rigor nas provas e, por vezes, mais complexidade e desenvolvimento. Acontece que no livro II da presente obra, Evódio, a partir do cap. 5,12, aparece brevemente uma única vez, no cap. 12,46. Deve-se essa ausência pelo fato de ele não ter acompanhado seu amigo até Hipona.

            Entre as epístolas agostinianas, conservam-se 4 cartas por ele dirigidas a Agostinho. A essas, deve-se acrescentar uma, descoberta há alguns anos por Dom Bruyne. São as de números: 158, 160, 161 e 163. E do bispo de Hipona a ele, conservaram-se apenas três cartas: números 159, 162 e 164.

            Morreu Evódio seis anos antes de seu mestre e amigo, em 424. (p.12)

 

  1. Formação ideológica do livro

 

            Esta importante obra tem como tema o problema da liberdade humana e o da origem do mal moral. Desde a sua adolescência, Agostinho preocupava-se com tais questões, e uma das causas de sua adesão ao maniqueísmo foi a esperança de aí encontrar uma solução para as suas dúvidas. Contudo, as fábulas heréticas não o satisfizeram por muito tempo. Teve que prosseguir a angustiante busca da verdade. Essa fase é bem descrita em suas “Confissões”. Leia-se o l. III, caps. 3 e 7.

            Não podia Agostinho suportar a idéia de que Deus fosse a causa do mal. Enfim, em Milão, enquanto a eloqüência de Ambrósio trazia-o de volta ao catolicismo, a   leitura do neoplatônico Plotino trouxe-lhe a luz tão desejada. Todavia, ainda, não uma resposta definitiva e plena.

            É em direção a Deus que Plotino conduziu Agostinho, para levá-lo à certeza de um Criador bom e poderoso, fonte de toda realidade. Desse modo, o mal não podia ter lugar entre os seres, nem prejudicar a excelência da obra divina. Tampouco poderia o mal impedir ao homem que o quisesse, encontrar em Deus a paz e a felicidade. O problema já fora por Agostinho tratado em seu diálogo “A Ordem”. Mas a temível dificuldade que em Cassicíaco ele não ousara enfrentar, consistia na existência do “pecado”. Com efeito, é bastante fácil demonstrar que o mal físico resolve-se com a Providência divina. Isso porque o mal visto no conjunto não é mais um malefício, mas sim uma contribuição ao bem comum e à beleza da ordem.

            Até esse ponto, a tese neoplatônica o satisfazia. Mas poderia ser dito o mesmo do mal moral, que se opõe diretamente à vontade de Deus? Plotino dava resposta inadmissível a essa questão perturbadora. Alegava ser a matéria essencialmente má, e a responsável pelo mal. Agostinho não levou em consideração tal resposta. Mas, guiado por seu gênio graças (p.13) às preciosas retificações que a fé católica lhe proporcionava, ele propõe, com coragem, uma solução racional.

            O intento geral de “O livre-arbítrio” aparece assim com clareza, desse ponto de vista. Segundo os dados da fé, Deus todo-poderoso e Bem supremo criou todas as coisas por meio de seu Verbo, e nada pode escapar à ordem de sua Providência. Todas as suas obras são boas. O pecado não pode lhe ser imputado, nem ficar fora da ordem providencial. Diz Agostinho: “É preciso compreender aquilo em que cremos” (I,2,4; II,2,6). Ele procura explicar pela razão a origem do pecado e seu papel na obra de Deus. Em conclusão, chega a afirmar em síntese: a fonte do mal moral, o pecado, está no abuso da liberdade, mas esta é um bem. Insiste nisso com tamanha força que os pelagianos, mais tarde, invocarão, sem razão, suas afirmações para sustentar as próprias teses.

 

  1. Breve síntese das idéias fundamentais

 

            Antes de tudo, para descobrir a origem do pecado, é preciso saber qual a sua essência. Ora, cometer o mal não é nada mais do que submeter sua vontade às paixões, ou preferir aos bens propostos pela fé eterna uma satisfação pessoal. E isso só é possível pela livre opção de nossa vontade (livro I).

            O livro II é o coração da obra. Num método ascensional, Agostinho prova a existência de Deus, autor de todo bem. E à vontade livre, mesmo fraca, não se pode recusar um lugar honroso entre os bens criados.

            O livro III é complemento e esclarecimento dos livros anteriores. Trata da Providência de Deus em face ao seres livres. Portanto, sempre louvar a Deus por ter criado a vontade livre, mesmo pecadora, como um elemento da vontade universal. Por certo, o pecado não depende da presciência divina, e não é necessário à ordem. Sua presença, porém, não consegue tornar a ordem atual indigna (p.14) de Deus. A última palavra a respeito do pecado, como do mal físico, será sempre: “Louvores a Deus!”

            Tal é a trama essencial, simples e poderosa de “O livre-arbítrio”.

 

  1. Análise do andamento dos três livros

 

            Note-se que a divisão em capítulos e números está conforme o original latino. Todavia, as divisões em partes e secções, assim como os títulos dados, para melhor compreensão da leitura, é de autoria da tradutora.

            Nas Notas complementares encontrar-se-ão sínteses dos assuntos tratados, à medida do decorrer dos temas.

 

  1. O livre-arbítrio e o maniqueísmo

 

            Sem dúvida alguma, este diálogo foi especialmente escrito contra os erros dos maniqueus, sem, todavia constituir uma obra polêmica. Tendo-se convertido e sentindo-se no caminho da verdade, Agostinho sentia necessidade de recuperar-se, a si e aos amigos.

            Eis uma breve síntese da teoria maniquéia: Para os maniqueus, havia duas divindades supremas a presidir o universo: o princípio do Bem e o do Mal – a luz e as trevas. Como conseqüência moral, afirmavam ter o homem duas almas. Cada uma presidida por um desses dois princípios. Logo, o mal é metafísico e ontológico. A pessoa não é livre nem responsável pelo mal que faz. Este lhe é imposto.

 

  1. A solução do problema do mal na interpretação de Agostinho

 

            Ao grande problema do mal, conseguiu Agostinho apresentar uma explicação que se tornou ponto de referência durante séculos e ainda hoje conserva a sua validade. (p.15)

            - Se tudo provém de Deus, que é o Bem, de onde provém o mal? Depois de ter sido vítima da explicação dualista maniquéia, como vimos, ele encontra em Plotino a chave para resolver a questão: o mal não é um ser, mas deficiência e privação de ser.

            E ele aprofunda ainda mais a questão. Examina o problema do mal em três níveis: a) metafísico-ontológico; b) moral; c) físico.

            - a) Do ponto de vista metafísico-ontológico, não existe mal no cosmos, mas apenas graus inferiores de ser, em relação a Deus, graus esses que dependem da finitude do ser criado e dos diferentes níveis dessa finitude. Mas mesmo aquilo que, numa consideração superficial, parece “defeito” (e, portanto, poderia parecer mal), na realidade, na ótica do universo, visto em seu conjunto, desaparece. As coisas, as mais ínfimas, revelam-se momentos articulados de um grande conjunto harmônico.

            - b) O mal moral é o pecado. Esse depende de nossa má vontade. E a má vontade não tem “causa eficiente”, e sim muito mais, “causa deficiente”. Por sua natureza, a vontade deveria tender para o Bem supremo. Mas, como existem muitos bens criados e finitos, a vontade pode vir a tender a eles e, subvertendo a ordem hierárquica, preferir a criatura a Deus, optando por bens inferiores, em vez dos bens superiores. Sendo assim, o mal deriva do fato de que não há um único bem, e sim muitos bens, consistindo precisamente o pecado na escolha incorreta entre esses bens. O mal moral, portanto, é “aversio a Deo” e “conversio ad creaturam”. O fato de se ter recebido de Deus uma vontade livre é para nós grande bem. O mal é o mau uso desse grande bem.

            - c) O mal físico, como as doenças, os sofrimentos e a morte, tem significado bem preciso para quem reflete na fé: é a conseqüência do pecado original, ou seja, é conseqüência do mal moral. A corrupção do corpo que pesa (p.16) sobre a alma não é a causa, mas a pena do primeiro pecado (cf. G. Reale, D. Antiseri, “Hist. Da Filosofia” I, Paulus, pp. 455. 456).

 

  1. As “Retractationes” e a resposta aos pelagianos

 

            No precioso livro de revisão de suas obras, tão conscienciosamente elaborado pelo bispo de Hipona, no final de sua vida, a notícia a respeito de “O livre-arbítrio” é das mais longas e importantes. Encontramo-la no l. I, 9,1-6.

            A posição de Agostinho é muito clara. Explica ele que se tratava então, naquela ocasião, de refutar os maniqueus, os quais negam o livre-arbítrio da vontade e pretendem fazer recair em Deus a responsabilidade pelo mal e pelo pecado. É contra eles que o tratado insiste, valorizando grandemente o papel da liberdade humana. A tal ponto que, na controvérsia pelagiana, advinda anos após, Pelágio não hesitou em se servir do “De libero arbítrio” para atacar a doutrina católica do pecado original. Pretendeu até tirar da obra argumentos de certas fórmulas antimaniquéias de Agostinho. O doutor de Hipona assinala 13 passagens das quais os pelagianos poderiam abusar contra ele. Mas, em vez de responder sucessivamente às dificuldades apresentadas por essas passagens, ele prefere lembrá-las em bloco. No final, toma resolutamente a ofensiva para explicar em que sentido falou sobre a liberdade. E lembra, vitoriosamente, que, pelo menos em quatro lugares, fez menção da ação indispensável da graça de Deus. Na verdade, não se pode argumentar do mesmo modo contra a doutrina dos maniqueus e a dos pelagianos...

            Leiam-se as notas complementares desta edição:

            - no l. I: n. 28(12, 26); 30(13, 28); 33(14,30);

            - no l. II: n. 2(1,2); 60(18,47);

            - no l. III: n. 32(18, 50); 34(18, 52); 40(20, 58). (p.17)

            Em conclusão, constatamos que se é certo que Agostinho, no presente diálogo, não fala com insistência sobre a graça como medicina e socorro do livre-arbítrio, porém, insinua-a várias vezes. Numa delas, uma e mil vezes, é que o homem é livre para fazer o bem e que não é forçado a cometer o mal por nenhuma necessidade. Se o homem peca, a culpa é sua. Agostinho insiste fortemente na bondade essencial e infinita de Deus. Sem o livre-arbítrio não haveria mérito nem desmérito, glória nem vitupério, responsabilidade nem irresponsabilidade, virtude nem vício (cf. BAC III, Introdução, p.246).

            Santo Agostinho na verdade, constitui-se o defensor de nossa liberdade e da graça divina, ao mesmo tempo.

 

  1. A vontade, a liberdade e a graça

 

            Etienne Gilson resumiu de modo muito eficaz o pensamento agostiniano sobre as relações entre a liberdade, a vontade e a graça, da seguinte forma: “Duas condições são exigidas para fazer o bem: um dom de Deus que é a graça e o livre-arbítrio. Sem o livre-arbítrio não haveria problemas; sem a graça, o livre-arbítrio (após o pecado original) não quereria o bem ou, se o quisesse, não conseguiria realizá-lo. A graça, portanto, não tem o efeito de suprimir a vontade, mas sim de torná-la boa, pois ela se transformara em má. Esse poder de usar bem o livre-arbítrio é precisamente a liberdade. A possibilidade de fazer o mal é inseparável do livre-arbítrio, mas o poder de não fazê-lo é a marca da liberdade. E o fato de alguém se encontrar confirmado na graça, a ponto de não poder mais fazer o mal, é o grau supremo da liberdade. Assim, o homem que estiver mais completamente dominado pela graça de Cristo será também o mais livre: ‘libertas vera (p.18) est Christo servire’” (cf. Gilson, “Introduction à l’étude de Saint Augustin”, pp. 202ss).

 

  1. Agostinho, filósofo ou teólogo?

 

            A presente obra é considerada como uma das que melhor apresenta o pensamento filosófico de Agostinho. Mas sabemos que, para ele, o estudo da filosofia sempre foi caminhada para Deus e não pura ocupação intelectual. E a sabedoria, certa posse beatificante de Deus. Dessa maneira, Agostinho foi, sobretudo teólogo, e até os seus trabalhos filosóficos são dirigidos para a teologia. “O livre-arbítrio” é exemplo típico disso.

            Não obstante, em suas pesquisas racionais, a Revelação não intervém diretamente. Mostra-se apenas como um ponto de apoio indireto. O teocentrismo agostiniano é fundante. Será pela idéia de Deus que se estabelece a comunicação entre filosofia e teologia. Inclusive a idéia de Deus, em plano natural, encontra-se necessariamente enriquecida por toda uma contribuição sobrenatural. Repousa sobre ela, como em sua base normal.

            As principais passagens em que Agostinho refere-se expressamente ao plano teológico, nesta obra, são as seguintes:

  1. I: 2,5; 6,14;
  2. II: 2,6; 8,24; 11,30; 14,37; 15,39; 20,54;
  3. III: 9,28; 10,31 e quase toda a 3ª Parte: 17,47 a 25,76.

 

  1. Apreciação geral da obra

 

            Este livro é realmente um grande tratado de porte e duração. Obra extensa, profunda e decisiva, de importância excepcional, pelos múltiplos e graves problemas estudados, sobretudo aquele fundamental, a respeito da natureza (p.19), origem e causa do pecado, assim como a responsabilidade humana por seus atos livres (cf. Pe. E. Seijas, BAC III, p. 240).

            Apresenta Agostinho uma demonstração racional da moral, fundamentando-a. não seria suficiente, para ele, uma explicação psicológica do livre-arbítrio. Tampouco, contenta-se com a contribuição da fé, pois recorre expressamente à razão (II,2,5.6).

            O que há de mais valioso na obra é a prova da existência de Deus.

            É ela original de Agostinho. Já fora exposta de modo abreviado em “A verdadeira religião” (30,54-56; 31,57), todavia encontra-se aqui exposta de maneira mais extensa. É denominada a prova pela verdade, pelas idéias eternas, ou melhor, prova pela via do espírito. Só a razão argumenta.

            Outro ponto de particular valor é a doutrina exposta sobre a Providência, no l. III. Já foi dito ser esse um dos mais possantes faróis a iluminarem constantemente o pensamento do genial Agostinho. Essa tese que dominou toda sua vida, dominou também toda a Idade Média.

 

  1. Influência exercida por Agostinho, em particular através desta obra

 

            Agostinho é considerado, sem contestação, um dos maiores gênios de todos os tempos.

            Diz B. Altaner na sua Patrologia: “Agostinho é o mais exímio filósofo dentre os Padres da Igreja e, sem dúvida, o mais insigne teólogo de toda a Igreja. Já em vida, suas obras lhe granjearam numerosos admiradores. Exerceu profunda influência na vida da Igreja ocidental, e que perdura até a época moderna. Isso não só na filosofia, dogmática, na teologia moral e mística, mas ainda na vida social e caritativa, e também na formação ad cultura medieval” (cf. op. cit., p.415). (p.20)

            Em particular, foi imensa a influência operada por meio deste diálogo filosófico, no transcurso dos séculos. Não há escritor, em toda a Idade Média, que fale ou trate da questão do livre-arbítrio e do pecado que não tenha ido beber nesta fonte agostiniana.

            E até os nossos dias, os temas debatidos na presente obra permanecem de real atualidade. A leitura refletida e degustada será muito enriquecedora a todos os que buscam conhecimento mais profundo sobre as temáticas expostas.

 

LIVRO I

 

O PECADO PROVÉM DO LIVRE ARBÍTRIO

 

INTRODUÇÃO (1.1-2,5)

 

O PROBLEMA DO MAL

 

Capítulo I

 

É Deus o autor do mal?

 

  1. Evódio Peço-te que me digas, será Deus o autor do mal?¹

            Agostinho Dir-ti-ei, se antes me explicares a que mal te referes. Pois, habitualmente, tomamos o termo “mal” em dois sentidos: um, ao dizer que alguém praticou o mal; outro, ao dizer que sofreu algum mal.

            Ev. Quero saber a respeito de um e de outro.

            Ag. Pois bem, se sabes ou acreditas que Deus é bom – e não nos é permitido pensar de outro modo -, Deus não pode praticar o mal. Por outro lado, se proclamamos ser ele justo – e negá-lo seria blasfêmia -, Deus deve distribuir recompensas aos bons, assim como castigos aos maus. E por certo, tais castigos parecem males àqueles que os padecem. É porque, visto ninguém ser punido injustamente – como devemos acreditar, já que, de acordo com a nossa fé, é a divina Providência que dirige o universo -, Deus de modo algum será o autor daquele primeiro gênero de males a que nos referimos, só do segundo.

            Ev. Haverá então algum outro autor do primeiro gênero de mal, uma vez estar claro não ser Deus?

            Ag. Certamente, pois o mal não poderia ser cometido sem ter algum autor. Mas caso me perguntes quem seja (p.25) o autor, não o poderia dizer. Com efeito, não existe um só e único autor. Pois cada pessoa ao cometê-lo é o autor de sua má ação. Se duvidas, reflete no que já dissemos acima: as más ações são punidas pela justiça, se não tivessem sido praticadas de modo voluntário.²

 

O mal vem por ter sido ensinado?

 

  1. Ev. Ignoro se existe alguém que chegue a pecar, sem antes o ter aprendido. Mas caso isso seja verdade, pergunto: De quem aprendemos a pecar?

            Ag. Julgas a instrução (disciplinam) ser algo de bom?

            Ev. Quem se atreveria a dizer que a instrução é um mal?

            Ag. E caso não for nem um bem nem um mal?

            Ev. A mim, parece-me que é um bem.

            Ag. Por certo! Com efeito, a instrução comunica-nos ou desperta em nós a ciência, e ninguém aprende algo se não for por meio da instrução. Acaso tens outra opção?

            Ev. Penso que por meio da instrução não se pode aprender a não ser coisas boas.

            Ag. Vês, então, que as coisas más não se aprendem, posto que o termo “instrução” deriva precisamente do fato de alguém se instruir.

            Ev. De onde hão de vir, então, as más ações praticadas pelos homens, se elas não são aprendidas?

            Ag. Talvez, porque as pessoas se desinteressam e se afastam do verdadeiro ensino, isto é, dos meios de instrução. Mas isso vem a ser outra questão. O que, porém, mostra-se evidente é que a instrução sempre é um bem, visto que tal termo deriva do verbo “instruir”. Assim, será impossível o mal ser objeto de instrução. Caso fosse ensinado, estaria contido no ensino e, desse modo, a instrução não seria um bem. Ora, a instrução é um bem, (p.26) como tu mesmo já o reconheceste. Logo, o mal não se aprende. É em vão que procuras quem nos teria ensinado a praticá-lo. Logo, se a instrução falar sobre o mal, será para nos ensinar a evitá-lo e não para nos levar a cometê-lo. De onde se segue que, fazer o mal, não seria outra coisa do que renunciar à instrução. (pois a verdadeira instrução só pode ser para o bem).

 

  1. Ev. Não obstante, julgo que há duas espécies de instrução: uma que nos ensina a praticar o bem, e outra a praticar o mal. Mas ao me perguntares se a instrução era um bem, o amor mesmo do bem absorveu-me a atenção de tal modo a me fazer considerar, unicamente, o ensino relativo às boas ações, motivo pelo qual respondi que ele era sempre um bem. Mas dou-me conta, agora, que existe um outro ensino, que reconheço seguramente ser mau, e de cujo autor indago.

            Ag. Vejamos. Admites pelo menos o seguinte: será a inteligência integralmente um bem?

            Ev. A ela, com efeito, considero de tal modo ser um bem, que nada vejo poder existir de melhor no homem. De maneira alguma posso considerar a inteligência como um mal.

            Ag. Mas quando alguém for ensinado e não se servir da inteligência para entender, poderá ser ele considerado como alguém que fica instruído? O que te parece?

            Ev. Parece-me que ele não o pode de modo algum.

            Ag. Logo, se toda a inteligência é boa, e quem não usa da inteligência não aprende, segue-se que todo aquele que aprende procede bem. Com efeito, todo aquele que aprende usa da inteligência e todo aquele que usa da inteligência procede bem. Assim, procurar o autor de nossa instrução, sem dúvida, é procurar o autor de nossas boas ações. Deixa, pois, de pretender descobrir (p.27) não sei que mau ensinante. Pois e, na verdade, for mau, ele não será mestre. E caso seja mestre, não poderá ser mau. ³

 

Capítulo 2

 

Por qual motivo agimos mal?

 

  1. Ev. Seja como dizes, já que tão fortemente me obrigas a reconhecer que não aprendemos a fazer o mal. Dize-me, entretanto, qual a causa de praticarmos o mal?

            Ag. Ah! Suscitas precisamente uma questão que me atormentou por demais, desde quando era ainda muito jovem. Após ter-me cansado inutilmente de resolvê-la, levou a precipitar-me na heresia (dos maniqueus), com tal violência que fiquei prostrado. Tão ferido, sob o peso de tamanhas e tão inconsistentes fábulas, que se não fosse meu ardente desejo de encontrar a verdade, e se não tivesse conseguido o auxílio divino, não teria podido emergir de lá nem aspirar à primeira das liberdades – a de poder buscar a verdade. 4 Visto que a ordem seguida, então, atuou em mim com tanta eficácia para resolver satisfatoriamente essa questão, seguirei igualmente contigo aquela mesma ordem pela qual fui libertado. Seja-nos, pois, Deus propício e faça-nos chegar a entender aquilo em que acreditamos. Estamos, assim, bem certos de estar seguindo o caminho traçado pelo profeta que diz: “Se não acreditardes não entendereis”. 5 Ora, nós cremos em um só Deus, de quem procede tudo aquilo que existe. Não obstante, Deus não é o autor do pecado. Todavia, perturba-nos o espírito uma consideração: se o pecado procede dos seres criados por Deus, como não atribuir a Deus os pecados, sendo tão imediata a relação entre ambos? (p.28).

 

Pontos fundamentais da fé

 

  1. Ev. Acabas de formular, com toda clareza e precisão, a dúvida que cruelmente me atormentou o pensamento, e que justamente me levou a me empenhar nesta reflexão contigo.

            Ag. Tem coragem e conserva a fé naquilo que crês. Nada é mais recomendável do que crer, até no caso de estar oculta a razão de por que isso ser assim e não de outro modo. Com efeito, conceber de Deus a opinião mais excelente possível é o começo mais autêntico da piedade. 6 E ninguém terá de Deus um alto conceito, se não crer que ele é todo-poderoso e que não possui parte alguma de sua natureza submissa a qualquer mudança. Crer ainda que ele é o Criador de todos os bens, aos quais é infinitamente superior; assim como ser ele aquele que governa com perfeita justiça tudo quanto criou, sem sentir necessidade de criar qualquer ser que seja, como se não fosse auto-suficiente. Isso porque tirou tudo do nada.

            Entretanto, ele gerou, não criou, de sua própria essência, aquele que lhe é igual, o qual é como professamos, o Filho único de Deus. É aquele a quem nós denominamos, procurando as expressões mais acessíveis: “Força de Deus e Sabedoria de Deus” (1 Cor 1,24). Por meio dele, Deus fez tudo o que tirou do nada.

            Tudo isso tendo sido estabelecido, contando com a ajuda de Deus, procuremos agora, com empenho, compreender a questão por ti proposta, seguindo a ordem que se segue. (p.29).


 

PRIMEIRA PARTE (3,6-6,15)

 

ESSÊNCIA DO PECADO – SUBMISSÃO DA RAZÃO ÀS PAIXÕES

 

Capítulo 3

 

Busca da origem do pecado

 

  1. Ev. Tu me perguntas: Qual a causa de procedermos mal? É preciso examinarmos, primeiramente, o que seja proceder mal. Dize-me o que pensas a esse respeito. Ou, se não podes resumir todo o teu pensamento em poucas palavras, pelo menos, dá-me a conhecer tua opinião, mencionando algumas más ações, em especial.

            Ev. Os adultérios, os homicídios e os sacrilégios, 7 sem falar de outros maus procedimentos, os quais não posso enumerar, por me faltar tempo e memória. Quem não considera aquelas ações como más?

            Ag. Dize-me, primeiro, por que consideras o adultério como má ação? Não será porque a lei o proíbe de ser cometido?

            Ev. Por certo que não. Ele não é um mal precisamente por ser proibido pela lei, mas, ao contrário, é proibido pela lei por ser mal.

            Ag. Pois bem! Mas se alguém insistir junto a nós, exagerando os prazeres do adultério e perguntando-nos por que o julgamos mau e condenável? Seria preciso, na tua opinião, recorrer à autoridade da lei, junto àqueles que desejam não somente crer, mas também entender? Pois eu também, como tu, creio inabalavelmente e até (p.30) proclamo que todas as nações e povos devem admitir ser o adultério um mal. Agora, porém, a respeito dessas verdades confiadas à nossa fé, esforçamo-nos de ter igualmente um conhecimento pela razão, mantendo-as com certeza plena. 8 Reflete, pois, o quanto puderes, e dize-me por quais motivos crês que o adultério é um mal.

            Ev. Sei que é um mal porque não quisera ser eu mesmo vítima dele, na pessoa de minha esposa. Ora, quem quer que faça um mal o qual não quer que lhe façam, procede mal.

            Ag. Então! E se a paixão inspirasse a alguém de entregar sua própria esposa a outro, e de aceitar voluntariamente que ela fosse violentada, desejando ele, por sua vez, obter a mesma permissão em relação à esposa do outro? Conforme tua opinião, não faria ele mal nenhum?

            Ev. Ao contrário, ele agiria muito mal.

            Ag. Mas conforme a regra proposta há pouco por ti, esse homem não peca, porque não faz o que não gostaria de suportar. Procura, por conseguinte, outra razão para me convenceres de que o adultério é mal.

 

Razões insuficientes da origem do mal

 

  1. Ev. Parece-me ser o adultério ato mau, porque muitas vezes tenho visto homens serem condenados por esse crime.

            Ag. Ora! Não se tem condenado também, com freqüência, a muitos homens, por suas boas ações? Recorda aquela história, e já não te envio a outros livros profanos, mas à história que é mais excelente que todas as outras, por gozar da autoridade divina (os Atos dos Apóstolos). Encontrarás aí o quanto deveríamos ter em má opinião os apóstolos e todos os mártires, se aceitássemos ser a condenação de um homem por outros o sinal certo de má ação. Pois todos aqueles cristãos foram julgados dignos de (p.31) condenação por terem confessado a sua fé. De modo que, se for mal o que os homens condenam, segue-se que, naquele tempo, era crime crer em Cristo e confessar a própria fé. Mas se nem tudo o que é condenado pelos homens é mal, será preciso que procures outra razão que te permita me garantir que o adultério é mal.

            Ev. Nada encontro para te responder.

 

O mal provém da paixão interior

 

  1. Ag. Talvez seja na paixão que esteja a malícia do adultério. Pois ao procurares o mal num ato exterior visível, caíste em impasse. Para te fazer compreender que a paixão é bem aquilo que é mal no adultério, considera um homem que está impossibilitado de abusar da mulher de seu próximo. Todavia, se for demonstrado, de um modo ou de outro, qual o seu intento e que o teria realizado se o pudesse, segue-se que ele não é menos culpado por aí do que se tivesse sido apanhado em flagrante delito (Mt 5,28).

            Ev. Nada é tão evidente. Vejo já não ser mais preciso longos discursos para me convenceres do mesmo a respeito do homicídio, do sacrilégio e, enfim, de todos os outros pecados. Com efeito, é claro que em todas as espécies de ações más é a paixão que domina. 9

 

Capítulo 4

 

Objeção: e os homicídios cometidos sem paixão?

 

  1. Ag. Sabes que essa paixão é também denominada concupiscência? 10

            Ev. Sei.

            Ag. E o que pensas? Entre essa concupiscência e o medo, há alguma diferença ou nenhuma? (p.32).

            Ev. Parece-me haver grande diferença entre eles.

            Ag. Acho que és dessa opinião porque a concupiscência tende para o objeto e que o medo o foge?

            Ev. É bem como dizes.

            Ag. Pois bem! Se um homem matar a outro, não pelo desejo de conseguir alguma coisa, mas pelo temor de que lhe suceda algum mal? Não seria esse homem homicida?

            Ev. Certamente, o seria. Mas nem por isso sua ação deixaria de ser dominada pela concupiscência. Pois aquele que mata um homem levado pelo medo, deseja, sem dúvida, viver sem medo.

            Ag. E parece-te que viver sem medo é algum bem de somenos?

            Ev. Ao contrário, parece-me ser um bem muito grande. Mas de modo algum esse bem deve chegar ao homicida por meio de crime.

            Ag. Não pergunto o que pode chegar a esse homem, mas o que deseja. Pois, por certo, visa a um bem quem deseja uma vida isenta de medo. Por isso, não podemos condenar tal desejo. Caso contrário, deveríamos declarar culposos todos aqueles que desejam algum bem. Logo, somos forçados a reconhecer que há uma espécie de homicídio no qual não se pode encontrar a primazia de mau desejo. Portanto, não será exato dizer que todo pecado, para que seja mal, nele a paixão deve dominar. Ou em outras palavras, haveria uma espécie de homicídio que poderia não ser pecado.

            Ev. De fato. Se o homicídio consiste no ato de matar um homem, pode acontecer que isso seja, por vezes, sem pecado. Pois o soldado mata o inimigo; o juiz ou seu mandante executa o criminoso; e também, talvez, o lançador de flechas, quando uma delas escapa de suas mãos, sem o querer ou por inadvertência. Todas essas pessoas não me parecem pecar ao matar um homem. (p.33).

            Ag. Concordo. Mas comumente essas pessoas sequer são chamadas homicidas. Assim, responde agora: se algum escravo, temendo graves tormentos, mata o seu senhor, pensas que ele deve ser incluído ou não entre aqueles que matam nessas circunstâncias que não merecem o nome de homicídio?

            Ev. Vejo uma grande diferença entre esse último homem, o escravo, e os outros. Pois estes, ou bem atuam conforme a lei, ou então nada fazem contra ela ao passo que o crime desse último não tem a aprovação de lei alguma.

 

  1. Ag. Outra vez, tu me conduzes à autoridade, como razão última. Não deves esquecer, porém, o que nós nos propusemos neste momento: compreender aquilo a que damos crédito. Ora, quanto à lei, nós cremos nela, mas é preciso tentar, na medida do possível, compreender este ponto: a lei ao punir tal ato, se assim o faz ou não, com razão.

            Ev. De modo algum a lei pune sem razão neste caso. Pois ela pune o escravo que, sabendo e querendo, matou o seu senhor. O que não acontece nos outros casos supracitados.

            Ag. Como? Não te lembras teres dito, há um instante, que a paixão domina em toda má ação e que essa se torna má, por isso mesmo?

            Ev. Recordo-me perfeitamente.

            Ag. E ainda: não concedeste, igualmente, que se alguém deseja viver sem medo não possui mau desejo?

            Ev. Também me recordo disso.

            Ag. Logo, quando aquele senhor é morto pelo escravo, levado este pelo desejo de viver sem temor, não o mata por desejo culpável. Por conseqüência, ainda não compreendemos qual o motivo de essa ação ser criminosa. Posto que estamos concordes em que todas as ações más unicamente (p.34) são más por causa da paixão pela qual são praticadas, isto é, por desejo culpável.

            Ev. Agora, aquele escravo parece-me ser condenado injustamente. Mas, na verdade, não ousaria afirmar isso, se pudesse encontrar alguma outra razão a apresentar.

            Ag. Será possível que te tenhas convencido de se dever declarar impune crime tão grande, antes de examinares com cuidado se acaso esse escravo não desejava, no fundo, libertar-se do temor de eu senhor, unicamente para satisfazer as suas paixões? Com efeito, desejar vida sem temor, não só é próprio de homens bons, como também dos maus. Com esta diferença, porém: os bons o desejam renunciando ao amor daquelas coisas que não se podem possuir sem perigo de perdê-las. Os maus, ao contrário, desejam uma vida sem temor, para gozar plena e seguramente de tais coisas, e para isso esforçam-se de qualquer modo para afastar todos os obstáculos que o impeçam. Levam então vida criminosa e perversa – vida que deveria antes ser chamada de morte.

            Ev. Confesso meu erro, e alegro-me muito de haver compreendido claramente a natureza desse desejo culpável que se chama paixão. Agora, vejo com evidência em que consiste esse amor desordenado por aquelas coisas terrenas que se podem perder contra a própria vontade.

 

Capítulo 5

 

Outra objeção: e os homicídios cometidos em autodefesa, admitidos pela lei civil?

 

  1. Ev. Procuremos pois agora, caso te agrade, se é a paixão que também domina nos sacrilégios, os quais vemos, muitas vezes, serem cometidos por superstição. (p.35).

            Ag. Considera se não é prematura tal questão. A mim parece-me ser preciso examinar, primeiramente, se acaso pode-se matar, sem nenhuma espécie de paixão, a um inimigo que violentamente nos ataca ou a um assaltante que se lança contra nós de modo traiçoeiro. Isso em defesa, seja da própria vida, seja da liberdade ou do pudor.

            Ev. Como poderia pensar que estejam sem paixão aqueles que lutam para salvaguardar essas coisas, as quais só poderiam via perder contra a própria vontade? ou então, caso não as percam desse modo, qual seria a necessidade de as defender de causar a morte de um homem?

            Ag. Não serão então justas as leis que permitem a um viajante matar a seu assaltante, para que ele mesmo não seja morto? Ou ainda, o fato de ser permitido a um homem ou a uma mulher, cuja virtude querem violentar, de exterminarem o seu agressor, antes de serem estuprados? Ora, a própria lei ordena ao soldado de matar o inimigo. E no caso de ele se recusar a isso, teria punição por parte de seus chefes. Porventura, ousaríamos afirmar que tais leis são injustas e mesmo não serem leis? Porque a mim me parece que uma lei que não seja justa não é lei. 11

 

Poder matar um agressor não significa dever matá-lo

 

  1. Ev. Quanto à lei, eu a vejo suficientemente defendida dessa acusação, pelo fato de ela permitir ao povo, ao qual rege, delitos menores para impedir que se cometam outros piores. Com efeito, a morte de agressor injusto é mal menor do que a de um homem que mata em legítima defesa. E que um homem seja violentado em seu corpo contra sua vontade é coisa bem mais horrível do que o fato de o autor de tamanha violência ser morto por aquele a quem intentava agredir. Quanto ao soldado ao matar o inimigo, é ele mesmo o ministro da lei. Razão pela qual lhe (p.36) é fácil cumprir seu dever, sem qualquer paixão. Além do mais, a própria lei que foi promulgada para a defesa do povo não merece acusação alguma de ser portadora de qualquer paixão. Porque se aquele que fez a lei a decretou para proteger o povo, conforme a ordem de Deus, isto é, de acordo com as prescrições da justiça eterna, ele a decretou sem se sentir movido pela paixão. Mas mesmo se tivesse sido movido por alguma paixão ao legislar, não se segue daí que se deva ceder à paixão, ao observá-la. Pois uma boa lei pode ser dada por mau legislador. Por exemplo, se um tirano, tendo chegado ao poder, recebe uma soma de dinheiro de certo cidadão, a quem isso interessa, para ser decretado que a ninguém seja lícito raptar uma mulher – nem mesmo para se casar com ela -, acaso será má essa lei, pelo fato de ter sido dada por injusto e corrompido tirano? Pode-se portanto, sem paixão, conformar-se à lei, a qual, para proteger os cidadãos, manda repelir com força o assalto violento do inimigo. E pode-se dizer a mesma coisa acerca de todos aqueles que estão jurídica e hierarquicamente sob as ordens de qualquer autoridade.

            Entretanto, em relação àquelas outras pessoas de que falávamos, não vejo como, após termos justificado a lei, possam elas mesmas serem desculpadas. Visto que a lei não as obriga a matar. Deixa-lhes somente a possibilidade de o fazer. Ficam elas assim livres de não matar a ninguém, em defesa daqueles bens que poderiam perder contra a própria vontade e que devido a isso não deveriam amar com tanto apego. Assim, quanto à vida, alguém se poderá perguntar, talvez, se ela é ou não tirada, com a morte do corpo. Caso não possa ser tirada, então é um bem menos apreciável. Caso não possas, nada há para se temer.

            Quanto ao pudor, quem duvida que ele reside na própria alma, visto ser uma virtude? De onde se segue (p.37) que não poderá ser arrebatado pela profanação involuntária do corpo. Por conseguinte, não está em nosso poder conservar tudo o que aquele injusto agressor poderia nos arrebatar, ele a quem se pode infligir a morte.

            Assim, não compreendo em que sentido podemos dizer que esse bem, a vida do corpo, é chamado “nosso”. Malgrado isso, não condeno a lei que autoriza matar os agressores. Mas não encontro como justificar aos que de fato os matam.

 

As paixões – desculpadas pela lei civil, condenadas pela lei divina

 

  1. Ag. E eu encontro menos motivo ainda, por qual razão procuras defender esses homens aos quais nenhuma lei considera como culpados.

            Ev. Talvez, não os condene nenhuma dessas leis exteriores que os homens podem ler. Mas não sei eles mesmos não estão sujeitos a outra lei, muito mais rigorosa, e bem secreta, já que a divina Providência nada deixa de governar neste mundo. Diante dessa lei divina, com efeito, como poderiam estar isentos de pecado aqueles que se mancham com sangue humano, para defender coisas dignas de menos apreço? Parece-me, pois, que a lei escrita para governar os povos autoriza, com razão, atos que a Providência divina pune. Isso porque a lei humana está encarregada de reprimir crimes, em vista de manter a paz entre homens carentes de experiência, e o quanto estiver ao alcance do governo, constituído de homens mortais. Quanto às outras faltas, é certos que existem para elas penalidades adequadas, as quais, a meu parecer, só mesmo a sabedoria pode libertar. 12

            Ag. Louvo e aprovo esta distinção que propões, ainda que apenas esboçada e imperfeita. É ela, entretanto, (p.38) promissora em vista de reger a sociedade civil. Parece tolerar e deixar impunes muitas ações que, não obstante, serão punidas pela Providência divina, com razão. Isso é verdade, mas se a lei humana não faz tudo, não será por isso motivo de reprovação pelo que faz.

 

Capítulo 6

 

Solução: saber distinguir a lei eterna das leis temporais

 

  1. Ag. Se te agrada, procuremos agora, com cuidado, até que ponto as más ações devem ser castigadas pela lei humana que modera os povos nesta vida. Em seguida, vejamos o que cabe à ação punitiva da Providência divina, de certo modo oculto, mas inevitável.

            Ev. O meu desejo, caso seja possível, é atingir os limites dessa questão. Pois a mim parece-me que estamos roçando algo sem fim.

            Ag. Pois bem, coragem! Envereda nos caminhos da razão, confiando-te na piedade. Na verdade, nada existe que seja tão árduo e difícil que não se torne, com a ajuda divina, bem simples e fácil. E assim, orientados para Deus e implorando-lhe o auxílio, havemos de investigar o tema que nos propusemos. 14

            Responde-me, primeiramente: essa lei que se promulga nos códigos é ela, na verdade, útil aos homens que vivem aqui na terra?

            Ev. Evidentemente que sim, pois os povos e as cidades são constituídos por homens.

            Ag. E esses homens e povos pertencem eles à categoria das coisas que não podem perecer nem mudar, por serem eternos, ou, ao contrário, são eles mutáveis e sujeitos ao fluxo do tempo? (p.39).

Ev. Quem duvida que a espécie humana seja mutável e sujeita às vicissitudes do tempo?

Ag. Logo, quando um povo for de costumes moderados e dignos, guardião diligente da utilidade pública, a ponto de cada um preferir o bem comum ao seu interesse particular, não seria justo ao dito povo poder promulgar uma lei que lhe permitisse nomear para si magistrados encarregados de administrar os seus negócios, isto é, os negócios públicos?

Ev. Seria muito justo, sem dúvida.

Ag. Contudo, no caso de esse mesmo povo ir caindo aos poucos, depravando-se, e caso ponha o seu interesse público, e vier a vender o seu sufrágio livre, por dinheiro? Além do mais, corrompido por aqueles que ambicionam as honras, confiar o governo a homens malvados e criminosos, não seria justo – caso ainda se encontrasse um só homem de bem, revestido de influência excepcional – que esse homem tirasse do povo a faculdade de poder distribuir as honras, para depositar a decisão 15 nas mãos de alguns poucos cidadãos honestos ou mesmo de um só que fosse? 16.

Ev. Isso também seria muito justo.

Ag. Eis, pois, duas leis que parecem estar em contradição entre si. Um delas confere ao povo o poder de eleger os seus magistrados; a outra recusa-lhe essa prerrogativa. E a segunda lei mostra-se expressa em tais moldes que as duas não podem de modo algum coexistir juntas, na mesma cidade. Assim sendo, haveríamos de dizer que uma delas é injusta e não deveria ter sido promulgada?

Ev. De modo nenhum.

Ag. Denominemos, pois, se o quiseres, de temporal a essa lei que a princípio é justa, entretanto, conforme as circunstâncias dos tempos, pode ser mudada, sem injustiça.

Ev. Assim seja. (p.40).

 

Noção da lei eterna

 

  1. Ag. Mas quanto àquela lei que é chamada a Razão suprema de tudo, 17 à qual é preciso obedecer sempre e em virtude da qual os bons merecem vida feliz 18 e os maus vida infeliz, é ela o fundamento da retidão e das modificações daquela outra lei que justamente denominamos temporal, como já explicamos? Poderá a lei eterna parecer, a quem quer que reflita a esse respeito, não ser imutável e eterna ou, em outros termos, poderá ela ser alguma vez considerada injusta, quando os maus tornam-se desaventurados e os bons, bem-aventurados? Ou então, que a um povo de costumes pacíficos seja dado o direito de eleger os seus próprios magistrados, ao passo que a um povo dissoluto e pervertido seja-lhe retirado esse direito?

            Ev. Reconheço que tal lei é eterna e imutável.

            Ag. Reconhecerás também, espero, que na lei temporal dos homens nada existe de justo e legítimo que não tenha sido tirado da lei eterna. Assim, no mencionado exemplo do povo que, às vezes, tem justamente o direito de eleger seus magistrados e, às vezes, não menos justamente, não goza mais desse direito, a justiça dessas diversidades temporais procede da lei eterna, conforme a qual é sempre justo que um povo sensato eleja seus governantes e que um povo irresponsável não o possa. Acaso és de opinião diferente?

            Ev. Sou dessa mesma opinião.

            Ag. Então, para exprimir em poucas palavras, o quanto possível, a noção impressa em nosso espírito dessa lei eterna, direi que ela é aquela lei em virtude da qual é justo que todas as coisas estejam perfeitamente ordenadas. 19 Se tens, porém, outra opinião, apresenta-a.

            Ev. Nada tenho a te contradizer, pois dizes a verdade. (p.41).

            Ag. E como tal lei superior é a única sobre a qual todas as leis temporais regulam as mudanças a serem introduzidas no governo dos homens, poderá ela, por causa disso, variar em si mesma de algum modo?

            Ev. Compreendo que não o possa de modo algum. Com efeito, nenhuma força, nenhum acontecimento, nenhuma catástrofe nunca conseguirá fazer com que não seja justo que todas as coisas estejam conformes a uma ordem perfeita. (p.42).

 

 

SEGUNDA PARTE (7,16-11,22)

 

A CAUSA DO PECADO – O ABUSO DA VONTADE LIVRE

 

Capítulo 7

 

O homem – superior aos animais pela razão

 

  1. Ag. Prossigamos e vejamos agora como o homem está perfeitamente ordenado em si mesmo. Pois já vimos que uma nação constitui-se de homens unidos entre si, sob uma única lei, que é, como foi dito, a lei temporal. Mas dize-me, primeiramente, se para ti é certeza absoluta o fato de viveres?

            Ev. E o que haveria de mais evidente do que isso?

            Ag. Pois bem! E poderias distinguir o seguinte: uma coisa é viver, e outra coisa saber que se vive?

            Ev. Por certo, sei que ninguém pode saber que vive, sem estar vivo. Mas se todo ser vivo. Mas se todo ser vivo sabe que vive, eu o ignoro.

            Ag. Como quisera que entendesse isso, tal como acreditas que os animais carecem de razão. 20 Nossa reflexão, então, haveria de passar rapidamente acima dessa dificuldade. Entretanto, como afirmas ignorá-lo devemos nos estender em longo desenvolvimento. Isso porque não se trata de assunto cuja omissão pudesse nos permitir adiantar na obtenção do objeto proposto, com a conexão de raciocínio que sinto ser necessária.

            Responde-me, pois, o seguinte: muitas vezes temos visto animais domados pelos homens, isto é, dominados, (p.43) não somente em relação ao corpo, mas também quanto a seu princípio vital, de tal forma que obedecem à vontade dos homens por uma espécie de instinto ou hábito. Ora, o que te parece? Poderia acontecer jamais o caso de um animal feroz, tivesse ele grande corpulência e uma prodigiosa força, ou os sentidos mais penetrantes, a ponto de tentar, por sua vez, dominar o homem, esforçando-se por subjugá-lo? Digo isso porque muitos animais seriam capazes, por sua ferocidade ou por sua astúcia, de esquartejar o corpo de qualquer homem.

            Ev. Estou seguro de que tal possibilidade é inteiramente impossível de acontecer.

            Ag. Muito bem! Mas dize-me ainda: Não é evidente que quanto à força e outras habilidades corporais, o homem é facilmente ultrapassado por certo número de animais? Assim sendo, qual é pois o princípio que constitui a excelência do homem, de modo que animal algum consiga exercer sobre ele sua força, ao passo que o homem exerce seu poder sobre muitos deles? Não será por aquilo que se costuma denominar razão ou inteligência? 21

            Ev. Não encontro outra coisa. Pois é no espírito que reside a faculdade pela qual nós somos superiores aos animais. E se eles fossem seres inanimados, eu diria que nossa superioridade vem do fato de que possuímos uma alma, e eles não. Mas acontece que também eles são animados. Contudo, existe alguma coisa que, não existindo na alma deles, existe na nossa, e por isso acham-se submetidos a nós. Ora, é claro para todos que essa faculdade não é um puro nada, nem pouca coisa. E que outro nome lhe daríamos mais correto do que o de razão?

            Ag. Eis, pois, com que facilidade obtivemos, com a ajuda de Deus, o que podíamos considerar como muito (p.44) difícil. Pois, quanto a mim, eu te confesso que essa questão agora está resolvida. E pensara eu haver de nos reter por muito tempo nela, talvez mais do que tudo o que já dissemos desde o início de nossa reflexão. Assim, pois, retém esta verdade com cuidado, para continuarmos o encadeamento das idéias. Com efeito, creio que já não ignoras: o que denominamos saber não vem a ser nada mais do que se perceber pela razão.

            Ev. Assim é com efeito.

            Ag. Por conseguinte, aquele que sabe que vive, não está privado da razão?

            Ev. Isso se segue.

            Ag. Ora, os animais vivem, como já nos apareceu com clareza, mas não são dotados de razão.

            Ev. Evidente.

            Ag. Eis, então, que agora entendes o que me respondeste ignorar: nem todo ser vivo sabe que vive, ainda que todo aquele que sabe que vive seja necessariamente ser vivo.

 

É melhor saber que se vive do que apenas viver

 

  1. Ev. Não tenho mais dúvidas. Prossegue no que tens em vista. Com efeito, uma coisa é viver, e outra coisa saber que se vive. Já o aprendi suficientemente.

            Ag. E qual dessas duas coisas te parece ser a melhor?

            Ev. A qual, pensas, senão a consciência (scientia) da vida?

            Ag. A consciência da vida parece-te melhor do que a própria vida? Ou talvez queiras dizer que o conhecimento é uma vida mais alta e mais pura, a qual ninguém pode alcançar a não ser que seja dotado de inteligência? Ora, o que é ter inteligência a não ser viver com mais perfeição e esplendor, graças à luz mesma da mente? É porque, se não me engano, tu não preferiste algo distinto (p.45) da própria vida, mas sim uma vida melhor do que uma vida qualquer.

            Ev. Compreendeste e expuseste meu pensamento de maneira correta. Visto que o conhecimento nunca pode ser mal.

            Ag. Na minha opinião, não o pode ser de modo algum, a não ser quando, por metáfora, falamos de conhecimento para significar experiência. Porque experimentar nem sempre é bem, como, por exemplo, experimentar suplícios. Mas aquela ciência que se denomina pura e propriamente conhecimento, tendo sido adquirida pela razão e pela inteligência, como poderia ser ela mal?

            Ev. Percebo também essa distinção. Passa a outro ponto.

 

Capítulo 8

 

O lugar do homem na escala da perfeição dos seres

 

  1. Ag. Eis o que quero te explicar agora: o que põe o homem acima dos animais, seja qual for o nome com que designemos tal faculdade, seja mente ou espírito, ou com mais propriedade um e outro indistintamente, porque encontramos esses dois vocábulos também nos Livros Sagrados – quando pois esse elemento superior domina no homem e comanda a todos os outros elementos que o constituem, ele encontra-se perfeitamente ordenado. Com efeito, vemos que temos muitos elementos comuns, não somente com os animais, mas também com as árvores e plantas, tais como: ingerir alimento, crescer, gerar, fortificar-se. Vemos que todas essas propriedades são concedidas igualmente às árvores, as quais pertencem a um grau bem ínfimo, entre os seres vivos. Constatamos ainda, e (p.46) devemos reconhecer, que os animais podem ver, entender e sentir os objetos corporais, por meio do olfato, do gosto, do tato e, frequentemente, com mais penetração do que nós. Além do que há neles força, vigor, solidez dos membros, rapidez e grande agilidade de movimentos corporais. Em tudo isso, nós somos superiores a alguns deles, iguais a outros e, a vários dentre eles, inferiores. Sem dúvida, possuímos natureza genérica comum com os animais. Entretanto, a busca dos prazeres do corpo e a fuga dos dissabores constituem atividade da vida animal.

            Há ainda outras propriedades que não parecem convir aos animais, sem que, todavia sejam no homem as mais perfeitas, como, por exemplo, divertir-se e rir. Por certo, são expressões características do homem, mas as menos importantes, no julgamento de quem julga a natureza humana. Vem a seguir, o amor aos elogios e à glória e o desejo de dominar, tendências essas que também não pertencem aos animais. Contudo, não devemos nos julgar melhores do que eles, por possuirmos essas paixões. Pois tais inclinações, ao se revoltarem contra a razão, nos tornam infortunados. Ora, ninguém jamais se pretendeu superior a outros, por sua miséria.

            Por conseguinte, só quando a razão domina a todos os movimentos da alma, o homem deve se dizer perfeitamente ordenado. Porque não se pode falar de ordem justa, sequer simplesmente de ordem, onde as coisas melhores estão subordinadas às menos boas. Acaso não te parece ser assim?

            Ev. É evidente que é dessa maneira.

            Ag. Então, quando a razão, a mente ou o espírito governa os movimentos irracionais da alma, é que está a dominar na verdade no homem aquilo que precisamente deve dominar, em virtude daquela lei que reconhecemos como sendo a lei eterna.

            Ev. Compreendo e sigo teu raciocínio. (p.47).

 

 

Capítulo 9

 

O homem sábio – aquele que vive submisso à razão

 

  1. Ag. Quando um homem está assim constituído e ordenado, não te pareces ser ele sábio?

            Ev. Não concebo outro tipo de homem que poderia parecer-me sábio, se esse não o for.

            Ag. Sabes, também, eu o penso, que a maioria dos homens é formada de insensatos (stultos)?

            Ev. Isso é fato bastante comprovado.

            Ag. Pois bem, o insensato é o oposto do homem sábio, conforme a idéia que adquirimos a respeito de um sábio. Compreendes, agora, o que seja o insensato?

            Ev. A quem não será evidente que o insensato é aquele em quem a mente não reina como autoridade suprema?

            Ag. O que dizer então quando um homem se encontra nessa situação? É a mente que lhe falta ou, então, apesar de ela estar presente, falta-lhe o domínio que lhe corresponde?

            Ev. É antes o que acabas de dizer por último.

            Ag. Gostaria de ouvir de ti por quais indícios constatas num homem a presença da mente, mesmo quando não exerce o seu domínio?

            Ev. Oxalá, queiras tu mesmo assumir esse encargo, porque não me é fácil apresentar o que propões.

            Ag. Podes, pelo menos, te lembrar facilmente do que dissemos há pouco (cf. 7,16.17), a saber: que os animais, domados e domesticados pelos homens, os dominariam por sua vez – como nos demonstrou sobre eles alguma superioridade. Ora, essa superioridade não a descobrimos nos corpos (p.48). Assim, como nos pareceu, reside na alma. E não encontramos para ela outro nome mais adequado do que o de razão. Ainda que a seguir nós nos lembramos de que ela também pode ser denominada mente ou espírito. Mas se é verdade que a mente é uma coisa e a razão outra, em todo caso é certo que somente a mente pode se servir da razão. Donde a conseqüência: aquele que é dotado de razão não pode estar privado da mente.

            Ev. Lembro-me perfeitamente dessas conclusões e as admito.

            Ag. Pois bem! É a tua opinião que os domadores de animais ferozes não podem ser encontrados a não ser entre homens sábios? E denomino sábio a quem a verdade manda assim ser chamado. Isto é, aquele cuja vida está pacificada pela total submissão das paixões ao domínio da mente.

            Ev. Seria ridículo considerar como sábio a todos os que comumente são chamados domadores. Ou ainda, os pastores, vaqueiros ou cocheiros e todos os que vemos dominar os animais domesticados ou os que logram submeter a si, por sua habilidade, os animais indômitos.

            Ag. Agora, tens por aí um sinal certíssimo para reconhecer claramente a existência do homem de uma mente, ainda que essa mente não exerça o seu domínio. Os homens, a que te referiste, possuem de fato a mente, pois não realizariam ações que executam se não a tivessem. Mas essa mente não exerce o domínio sobre eles mesmos, e assim são uns insensatos. E é sabido que o reino da mente não pertence a não ser aos sábios.

            Ev. É espantoso que, esse assunto já tendo sido refletido acima, não me tenha ocorrido nenhuma resposta conveniente ao me perguntares a esse respeito. 22 (p.49).

 

Capítulo 10

 

Nada força a razão a submeter-se às paixões

 

  1. Ev. Mas passemos agora a outros aspectos. Já demonstramos que no homem o senhorio da mente constitui a sabedoria, entretanto a mente pode não exercer de fato esse seu senhorio.

            Ag. Julgas que a paixão seja mais poderosa do que a mente, à qual sabemos que por lei eterna foi-lhe dado o domínio sobre todas as paixões? Quanto a mim, não o creio de modo algum, pois, caso o fosse, seria a negação daquela ordem muito perfeita de que o mais forte mande no menos forte. Por isso, é necessário, a meu entender, que a mente seja mais poderosa do que a paixão e pelo fato mesmo será totalmente justo e correto que a mente a domine.

            Ev. Também sou do mesmo parecer.

            Ag. Então! Haverás de hesitar em pôr toda e cada virtude acima de qualquer espécie de vício, de tal forma que quanto mais uma virtude for nobre e sublime, mais ela será forte e invencível?

            Ev. Quem o poderia duvidar?

            Ag. Logo, nenhuma alma viciada pode dominar outra munida de virtudes.

            Ev. É bem verdade.

            Ag. E ainda: qualquer espírito há de ser mais nobre e poderoso do que qualquer ser corporal. Isso tampouco o negarás, espero?

            Ev. Ninguém o negará. O que é fácil verificar, ao ver que se deve preferir um ser vivo a um ser não vivo; e que a substância que dá vida vale mais do que aquela que a recebe.

            Ag. Com mais forte razão, por conseguinte, um corpo, seja ele qual for, não poderia vencer um espírito dotado de virtude? (p.50).

            Ev. Evidentíssimo que não.

            Ag. Então! O espírito justo, e a mente firme em seu direito e conservando seu domínio, poderá afastar-se de sua força e submeter à paixão outra mente que reina com igual equidade e virtude?

            Ev. De modo algum. Não somente porque a excelência é igual em uma e outra, mas, também, a primeira mente não poderia obrigar a outra a se tornar viciada, sem ela mesma decair de sua justiça e tornar-se viciada, ficando por isso mesmo mais fraca.

           

21a.     Ag. Compreendeste-me bem. É porque não te resta agora senão responder a esta questão, se puderes: Existe na tua opinião, algo mais nobre do que a mente dotada de razão e sabedoria?

            Ev. A meu ver, nada existe, exceto Deus.

            Ag. Essa é igualmente a minha opinião. Mas por ser o assunto difícil, e o momento ainda não haver chegado para plena compreensão, ainda que aí esteja uma das verdades que precisamos crer com fé firmíssima, reservemos para esse tema uma exposição completa, diligente e cautelosa, em outro tempo.

 

Capítulo 11a

 

O Ser supremo não constrange a mente humana a ser escrava das paixões

 

21b.     Ag. Com efeito, por enquanto, baste-nos saber que esse Ser, seja ele qual for, capaz de ultrapassar em excelência a mente dotada de virtude, não poderia de modo algum ser um Ser injusto. Tampouco, ainda que tivesse esse poder, ele não forçaria a mente a submeter-se às paixões. (p.51).

            Ev. Não há ninguém que deixe de admitir essa afirmação, sem hesitação alguma.

 

O responsável pela submissão às paixões só pode ser o livre-arbítrio

 

21c.     Ag. Logo, só me resta concluir: se, de um lado, tudo o que é igual ou superior à mente que exerce seu natural senhorio e acha-se dotada de virtude não pode fazer dela escrava da paixão, por causa da justiça, por outro lado, tudo o que lhe é inferior tampouco o pode, por causa dessa mesma inferioridade, como demonstram as constatações precedentes. Portanto, não há nenhuma outra realidade que torne a mente cúmplice da paixão a não ser a própria vontade e o livre-arbítrio. 23

            Ev. Não vejo conclusão nenhuma tão necessária quanto essa.

 

O pecado porta em si muitos males

 

  1. Ag. Logo, deve te parecer também lógico que a mente seja punida por tão grande pecado.

            Ev. Não o posso negar.

            Ag. Julgaremos que para mente poderá ser um pequeno castigo ser dominada pela paixão e despojada das riquezas da virtude, tornar-se pobre e desgraçada, ser puxada por ela em todos os sentidos? Às vezes, aprovar a falsidade em vez da verdade; outras vezes, parecer mesmo defender o erro; outras condenar o que até então aprovava; e não obstante, precipitar-se em novos erros? Numa hora, suspender o seu julgamento até temer as razões que a esclareceriam; noutra, desesperar de jamais encontrar a verdade e mergulhar totalmente nas trevas da loucura. Amanhã, esforçar-se por abrir-se na direção da luz da inteligência, para de novo recair extenuada. Ao mesmo (p.52) tempo, o império das paixões ao lhe impor sua tirania, perturba todo o espírito e a vida desse homem, pela variedade e oposição de mil tempestades, que tem de enfrentar. Ir do temor ao desejo; da ansiedade mortal à vã e falsa alegria; dos tormentos por ter perdido um objeto que amava ao ardor de adquirir outro que ainda não possui; das irritações de uma injúria recebida ao insaciável desejo de vingança. E de todo lado a que se volta, a avareza cerca esse homem, a luxúria o consome, a ambição o escraviza, o orgulho o incha, a inveja o tortura, a ociosidade o aniquila, a obstinação o excita, a humilhação o abate. E finalmente, quantas outras inumeráveis perturbações são o cortejo habitual das paixões, quando elas exercem o seu reinado. Enfim, poderemos considerar como pouca coisa essas penas que necessariamente suportam todos aqueles que não aderem à verdadeira sabedoria, assim como bem o percebes. 24 (p.53).

 

 

TERCEIRA PARTE (11,23-16,35)

 

A ATUAÇÃO DA BOA VONTADE PROVA

QUE O PECADO VEM DO LIVRE-ARBÍTRIO

 

Capítulo 11b

 

Dúvidas de Evódio

 

  1. Ev. Por certo, considero que é de fato grande essa punição, e muito justa, no caso de ser aplicada a alguém que, já se achando estabelecido nas alturas da sabedoria, resolvesse descer de lá, para se pôr ao serviço das paixões. Mas será possível encontrar alguém que tenha querido ou que queira realizar tal coisa? É bem incerto. Na verdade, cremos pela fé que o homem foi criado por Deus e formado de modo perfeito, e que foi por si mesmo e por sua própria vontade que se precipitou de lá, nas misérias desta vida mortal. Entretanto, mesmo guardando essas verdades com uma fé muito firme, eu ainda não consigo entender tudo isso muito bem. Assim, se julgas, por enquanto, ser preciso retardar um exame sério acerca dessa questão, tu o farás, mas muito contra a minha vontade. 25

 

Capítulo 12

 

Uma hipótese do platonismo

 

  1. Ev. Mas eis o que me preocupa ainda mais. Por qual motivo padecemos nós todas essas espécies de penas tão cruéis, nós que certamente estamos entre os insensatos, (p.54) sem que nunca tenhamos sido sábios. Ora, isso seria preciso para que se diga que tais males nos afligem com justiça, pelo fato de havermos desertados da fortaleza da virtude e termo-nos entregues à escravidão da paixão. Se podes me esclarecer esse ponto por algum argumento, não deixarei de modo algum que isso seja remetido para mais tarde.

            Ag. Falas como se tivesses convicção de nunca termos sido sábios. Isso, por não levares em conta a não ser o tempo a partir do qual nascemos para esta vida. Entretanto, como a sabedoria reside na alma, pergunto-me se acaso não terá esta vivido outra vida, antes de se unir a este corpo. E assim, terá desfrutado antes algum tempo de posse da sabedoria. Eis uma grande questão, um profundo mistério, o qual será preciso considerarmos a seu tempo. 26 apesar disso, aliás, nada impede de esclarecermos, o quanto possível, a questão que no momento nos ocupa.

 

O papel da boa vontade

 

  1. Ag. E assim, pergunto-te: Existe em nós alguma vontade?

            Ev. Não o sei dizer.

            Ag. E queres sabê-lo?

            Ev. Também o ignoro.

            Ag. Então, nada mais me perguntes de agora em diante.

            Ev. Por quê?

            Ag. Porque não devo responder às tuas perguntas, a não ser que queiras conhecer as respostas. Além do mais, se não queres chegar à sabedoria, é inútil conversar contido sobre tais questões. Enfim, não mais poderá ser meu amigo, se não me quiseres bem. Pelo menos, considera o seguinte, em relação a ti mesmo: não tens vontade alguma de levar vida feliz?

            Ev. Vejo que não se pode negar que todos tenhamos desejo disso. Continua, vejamos o que queres concluir por aí. (p.55).

            Ag. Eu o farei. Mas, antes, dize-me ainda: tens consciência de possuir boa vontade?

            Ev. O que vem a ser a boa vontade? 27

            Ag. É a vontade pela qual desejamos viver com retidão e honestidade, para atingirmos o cume da sabedoria. Considera agora, se não desejas levar uma vida reta e honesta, ou se não queres ardentemente te tornar sábio. Ou pelo menos, se ousarias negar que temos a boa vontade, ao querermos essas coisas.

            Ev. Nada disso eu nego, porque admito que não somente tenho uma vontade, mas, ainda, uma boa vontade.

            Ag. E que apreço dás a essa boa vontade? achas que se possa compará-la de algum modo com as riquezas, com as honras ou com os prazeres do corpo, ou ainda, com todas essas coisas reunidas?

            Ev. Deus me livre de loucura tão perniciosa.

            Ag. Ser-nos-á preciso, então, alegrar-nos só um pouco, por possuirmos em nosso espírito esse tesouro, quero dizer, essa boa vontade? Em comparação a ela, seria preciso julgar dignos de desprezo todos aqueles outros bens sobre os quais nos referimos. No entanto, para a sua posse, vemos multidão de homens não recuar diante de nenhum cansaço, de perigo algum.

            Ev. É preciso alegrar-nos e muito, por possuirmos a boa vontade.

            Ag. Pois bem! E aqueles que não desfrutam dessa alegria, sofrerão apenas pouco dano, pela privação de tão grande bem?

            Ev. Ao contrário, seria para eles o maior de todos os danos.

 

A boa vontade está em nossas mãos

 

  1. Ag. Portanto, penso que agora já vês: depende de nossa vontade gozarmos ou sermos privados de tão grande e verdadeiro bem. Com efeito, haveria alguma coisa (p.56) que dependa mais de nossa vontade do que a própria vontade? 28 Ora, quem quer que seja que tenha esta boa vontade, possui certamente um tesouro bem mais preferível do que os reinos da terra e todos os prazeres do corpo. E ao contrário, a quem não a possui, falta-lhe, sem dúvida, algo que ultrapassa em excelência todos os bens que escapam a nosso poder. Bens esses que, se escapam a nosso poder, ela, a vontade sozinha, traria por si mesma. Por certo, um homem não se considerará muito infeliz se vier a perder sua boa reputação, riquezas consideráveis ou bens corporais de toda espécie? Mas não o julgarás, antes, muito mais infeliz, caso tendo em abundância todos esses bens, venha ele a se apegar demasiadamente a tudo isso, coisas essas que podem ser perdidas bem facilmente e que não são conquistadas quando se quer? Ao passo que, sendo privado da boa vontade – bem incomparavelmente superior -, para reaver tão grande bem, a única exigência é que o queira!

            Ev. Nada há de mais verdadeiro.

            Ag. É, pois com toda justiça que os homens insensatos padeçam aquela miséria de que falamos. E isso mesmo sem nunca terem sido sábios é questão problemática e bem obscura.

            Ev. Concordo.

 

Capítulo 13

 

Nossa boa vontade implica o exercício das quatro virtudes cardeais

 

  1. Ag. Considera, agora, se a prudência não te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas. 29

            Ev. Parece-me que assim é. (p.57).

            Ag. Pois bem! E a força, não é ela aquela disposição da alma pela qual nós desprezamos todos os dissabores e a perda das coisas que estão sob nosso poder?

            Ev. Assim o penso.

            Ag. E quanto à temperança, é ela a disposição que reprime e retém o nosso apetite longe daquelas coisas que constituem uma vergonha o ser desejadas? Ou acaso és de outra opinião?

            Ev. Pelo contrário, penso como dizes.

            Ag. E finalmente sobre a justiça, o que diremos ser ela, senão a virtude pela qual damos a cada um o que é seu?

            Ev. Conforme minha opinião é essa a definição da justiça e nenhuma outra.

            Ag. Consideremos, pois, uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vêm proclamando a excelência, já há algum tempo. Ela abraça-a a ela somente, com verdadeiro amor, nada possuindo de melhor. Goza de seus encantos. Põe, enfim, seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela, considerando-a quanto é excelente e o quanto é impossível ela lhe ser arrebatada. Isto é, ser-lhe subtraída, sem seu consentimento. Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporá a todas as coisas que sejam contrárias a esse único bem?

            Ev. É absolutamente necessário que assim seja.

            Ag. Podemos deixar de crer que essa pessoa não esteja também dotada de prudência, ela que vê a obrigação de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe é oposto?

            Ev. De modo algum, parece-me alguém ser capaz disso, sem a prudência.

            Ag. Bem. Mas por que não atribuiríamos também a força a essa pessoa? Com efeito, ela não poderia amar nem estimar em alto preço todas aquelas coisas que não estão sob o nosso poder. Porque tais coisas só são amadas pela má vontade, à qual ela deve resistir, por serem inimigas de seu maior bem. Ora, já que tal pessoa não ama essas coisas perecíveis, não se entristecerá de as perder, posto (p.58) que as despreza totalmente. E é essa obra de força, como foi dito e aceito por nós.

            Ev. Demos, pois, a virtude da força a essa pessoa, porque não compreendo que se possa denominar a alguém de forte com mais acerto do que aquele que suporta, com igualdade e tranqüilidade de ânimo, a privação desses bens cuja aquisição ou conservação não estão em nosso poder. Ora, que aquela pessoa age assim é um fato evidente.

            Ag. Considera ainda se acaso poderás recusar-lhe a temperança, sendo essa a virtude que reprime as paixões? Ora, o que há de mais oposto à boa vontade do que a concupiscência? Compreenderás que por ela, certamente, quem ama a boa vontade resiste por todos os modos a essas paixões e opõe-se a elas. Por isso, tal pessoa é designada com razão de temperante.

            Ev. Prossegue. Sou de tua opinião.

            Ag. Resta a justiça. Mas como poderá ela faltar a essa pessoa, por certo não o vejo. Porque quem possui e ama a boa vontade e resiste, como dissemos, ao que lhe é contrário, não pode querer mal a ninguém. Donde se segue que ela não causa dano a ninguém. Mas, na verdade, pessoa alguma pode praticar a justiça sem dar a cada um o que é seu. Ora, ao dizer o que constitui a justiça, tu já o provaste. Lembras-te disso, acho eu?

            Ev. Sim, eu o lembro, e confesso que encontramos facilmente naquela pessoa que tanto estima e ama a sua boa vontade todas essas quatro virtudes, as quais, há pouco, descreveste de acordo comigo.

 

Levar vida feliz ou infeliz depende de nossa boa vontade

 

  1. Ag. O que pode nos impedir, então, de reconhecermos como louvável a vida dessa pessoa?

            Ev. Nada absolutamente. Ao contrário, tudo nos convida e até nos obriga a isso. (p.59).

            Ag. Pois bem! E podes de algum modo deixar de julgar que é preciso evitar a vida infeliz?

            Ev. Julgo com convicção que assim seja. E penso que nada senão isso deve ser feito, e com grande empenho.

            Ag. Mas não achas, com certeza, que a vida louvável deva ser evitada?

            Ev. Considero, antes, que é preciso procurá-la com afinco.

            Ag. Portanto, não é a vida infeliz que deve ser louvada?

            Ev. É bem isso que se segue.

            Ag. Agora, penso que não te será nada difícil admitires que a vida feliz é precisamente aquela que não é infeliz.

            Ev. É mais do que evidente.

            Ag. Aceitemos, portanto, isto: é feliz o homem realmente amante de sua boa vontade e que despreza, por causa dela, tudo o que se estima como bem, cuja perda pode acontecer, ainda que permaneça a vontade de ser conservado.

            Ev. Como não aceitarmos as conclusões a que nos levam as premissas admitidas anteriormente?

            Ag. Compreendeste muito bem. Mas dize-me, eu te peço: amar a sua boa vontade e tê-la em tão grande preço, como antes dissemos, não é isso justamente a própria boa vontade?

            Ev. Dizes a verdade.

            Ag. Mas se julgamos com razão ser feliz o homem de boa vontade, não se deveria também, com boa razão, declarar ser infeliz aquele que possui vontade contrária a essa?

            Ev. Com muito boa razão.

            Ag. Logo, que motivo existe para crer que devemos duvidar – mesmo se até o presente nunca tenhamos possuído aquela sabedoria – que é pela vontade que merecemos e levamos uma vida louvável e feliz; e pela mesma vontade, que levamos uma vida vergonhosa e infeliz? 30

            Ev. Constato que chegamos a essa conclusão fundamentando-nos em razões certas e inegáveis. (p.60).

  1. Ag. Ainda outra coisa. Retiveste, penso eu, a definição dada por nós a respeito da boa vontade. Dissemos ser ela a vontade pela qual desejamos viver justa e honestamente.

            Ev. Sim, eu me recordo.

            Ag. Portanto, se por nossa boa vontade amamos e abraçamos essa mesma boa vontade, preferindo-a a todas as outras coisas, cuja conservação não depende de nosso querer, a conseqüência será, como nos indica a razão, que nossa alma esteja dotada de todas aquelas virtudes cuja posse constitui precisamente a vida conforme a retidão e a honestidade. De onde se segue esta conclusão: todo aquele que quer viver conforme a retidão e a honestidade, se quiser pôr esse bem acima de todos os bens passageiros da vida, realiza conquista tão grande, com tanta facilidade que, para ela, o querer e o possuir serão um só e mesmo ato.

            Ev. Digo-te, com toda verdade: posso dificilmente conter uma exclamação de alegria, vendo de repente surgir diante de mim tão grande bem e de maneira tão fácil de ser adquirido. 31

            Ag. Pois bem, essa mesma alegria pela aquisição de tão grande bem, ao elevar a alma na tranqüilidade, na calma e constância, constitui a vida que é dita feliz. A não ser que não consideres a vida feliz como gozo de bens verdadeiros e seguros?

            Ev. Considero-a tal como tu mesmo.

 

Capítulo 14

 

Motivo de nem todos conseguirem a desejada felicidade

 

  1. Ag. Perfeitamente! Mas na tua opinião haverá um só homem sequer que não queira e deseje, de todos os modos, viver vida feliz? 32 (p.61).

            Ev. Todo home a deseja. Quem pode duvidar disso?

            Ag. Por qual motivo, então, nem todos eles a obtêm? Porque, como nós o dissemos e concordamos, é voluntariamente que os homens a merecem. E acontece que voluntariamente também chegam a uma vida de infortúnios. E assim, recebem o que merecem. Mas eis que surge não sei qual contradição a tentar derrubar – se não fizermos um exame atento e minucioso – as nossas conclusões de há pouco, tão bem elaboradas e tão fortemente apoiadas. Com efeito, como se explica que os homens sofram voluntariamente uma vida infeliz, se de modo algum ninguém quer viver no infortúnio? E como se explica que, sendo por sua própria vontade que o homem obtém vida feliz, quando acontece que tantos são infelizes, apesar de todos quererem ser felizes? Será que isso não vem do fato de que uma coisa é querer viver bem ou mal e outra coisa muito distinta é merecer o resultado por uma boa ou má vontade? Com efeito, aqueles que são felizes – para isso é preciso que sejam também bons – não se tornaram tais só por terem querido viver vida feliz – visto que os maus também o querem. Mas sim, porque os justos o quiseram com retitude, o que os maus não o quiseram. Nada de estranhar, então, que os homens desventurados não obtenham o que querem, isto é, vida feliz. Com efeito, o essencial, o que acompanha a felicidade e sem o que ninguém é digno de obtê-la – o fato de viver retamente -, eles não o querem. Ora, a lei eterna, em consideração da qual já é tempo de voltar a nossa atenção, decretou com firmeza irremovível o seguinte: o merecimento está na vontade. 33 Assim, a recompensa ou o castigo serão: a beatitude ou a desventura.

            É porque, ao afirmarmos que os homens são voluntariamente infelizes, não o dizemos por aí que eles queiram ser infelizes, mas que possuem tal vontade, que a desgraça se segue necessariamente, mesmo contra o desejo de felicidade. Não há, pois, nada de contraditório ao raciocínio procedente: todos querem ser felizes, mas sem poder sê-lo. Pois nem todos (p.62) querem viver com retidão, e é só com essa boa vontade que têm o direito à vida feliz. A menos que tenhas alguma objeção a fazer?

            Ev. Não, nada tenho a opor.

 

Capítulo 15

 

Relação da boa vontade com a lei eterna e a temporal

 

  1. Ev. Vejamos agora, sem mais demora, que relação existe em tudo isso com a questão das duas leis já colocadas anteriormente: a lei eterna e a temporal.

            Ag. Seja. Antes, porém, responde-me: aquele que ama viver retamente tem certamente prazer nisso, de tal modo que encontra não apenas o bem verdadeiro, mas ainda real doçura e alegria. Essa pessoa não há de apreciar também sobre todas as coisas, com dileção especial, essa lei em virtude da qual a vida feliz é atribuída à boa vontade e a vida infeliz, à má vontade? 34

            Ev. Sem dúvida, ama-a, e com veemência, porque é observando-a que ele vive como o faz.

            Ag. Pois bem! Ao amá-la, será que ama a algo variável e temporal ou a algo estável e eterno?

            Ev. Certamente, a algo que é eterno e imutável.

            Ag. E o que dizes daqueles que perseveram em sua má vontade e desejam apesar disso ser felizes? Podem eles amar essa lei que lhes determina o infortúnio, como justo salário?

            Ev. De modo algum, penso eu.

            Ag. E a nada mais algum.

            Ev. Pelo contrário, amam muitas outras coisas, precisamente aquelas a cuja aquisição e conservação sua má vontade persiste em procurar. (p.63).

            Ag. Queres te referir, penso eu, às riquezas, às honras, aos prazeres, à beleza do corpo e a todas as demais coisas que podem não ser obtidas mesmo quando desejadas, ou então perdidas contra a própria vontade?

            Ev. Refiro-me precisamente a tais coisas.

            Ag. E julgas que esses bens sejam eternos, quando tu os vês sujeitos à mobilidade do tempo?

            Ev. Quem poderia pensar assim, a não ser um louco?

            Ag. Logo, é evidente que há duas espécies de homens: uns, amigos das coisas eternas; e outros, amigos das coisas temporais. E já concordamos que há também duas leis: uma eterna, outra temporal. Dize-me, caso tenhas o senso da justiça: quais desses homens devem estar colocados entre os submissos à lei eterna e quais à lei temporal?

            Ev. A resposta, penso eu, é bem fácil. Aqueles a quem o amor dos bens eternos torna felizes, devem, a meu ver, viver sob os ditames da lei eterna. Ao passo que aos insensatos está imposto o julgo de lei temporal.

            Ag. Julgaste bem, contanto que tenhas como certo, o que aliás à razão já demonstrou claramente, isto é: os que se submetem à lei temporal não podem entretanto se isentar da lei terna, da qual deriva, como dissemos, tudo o que é justo e tudo o que pode ser mudado com justiça. Quanto àqueles cuja boa vontade se submete à lei eterna, eles não têm necessidade da lei temporal. Compreendestes isso suficientemente, ao que me parece.

            Ev. Compreendi tudo o que disseste.

 

Maneira como governa a lei temporal

 

  1. Ag. Logo, a lei eterna ordena desapegar-nos do amor das coisas temporais e voltar-nos purificados para as coisas eternas?

            Ev. Realmente, ela ordena. (p.64).

            Ag. E por seu lado, a lei temporal, o que ordena ela a teu parecer senão que esses bens que os homens desejam e podem ter por algum tempo e considerá-los como seus, de tal forma que os possuam, a fim de que a paz e a ordem na sociedade sejam salvaguardadas? Isso o quanto for possível, tratando-se dessa classe de bens. Ora, eis quais são eles: em primeiro lugar, o corpo e os bens denominados corporais, tais como uma boa saúde, a integridade dos sentidos, a força, a beleza e outras qualidades das quais umas são inerentes às artes liberais, e por aí, mais desejáveis que outras de menor apreço. Em seguida, está o bem da liberdade. Sem dúvida, não existe verdadeira liberdade a não ser entre pessoas felizes, as quais seguem a lei eterna. Neste momento, eu refiro-me àquela liberdade dos que se julgam livres por não ter ninguém como senhores seus; ou aquela que é desejada por todos os que aspiram a ser libertados de seus senhores. Consideramos ainda como bens: os pais, os irmãos, o cônjuge, os filhos, os parentes, os próximos, os aliados, os servos e todos os que nos estão unidos por algum laço de convivência. E também a pátria, a qual habitualmente apreciamos como mãe. E ainda, as honras, os louvores e o que chamamos de glória popular. Em último lugar, vem o dinheiro: compreendendo sob essa designação todos os bens dos quais somos os donos legítimos ou de que julgamos ter o poder de vender ou doar. O modo como a lei temporal distribui esses bens a cada um o que é seu seria difícil e muito longo de explicar. Aliás, é claro ser inútil para a finalidade a que nos propusemos. Baste-nos constatar que o poder dessa lei temporal em aplicar seus castigos limita-se a interditar e a privar desses mesmos bens, ou de uma parte deles, aqueles a quem pune. É, pois pelo temor que ela reprime, e assim dobra e faz inclinar o ânimo dos desafortunados, ao que ela manda e proíbe. Foi justamente para o governo dessas pessoas que ela foi feita. Com efeito, pelo (p.65) fato de temerem de perder os seus bens, elas observam, as normas necessárias para a sociedade ser constituída e mantida. Isso o quanto é possível ser feito entre homens desse tipo. Entretanto, essa lei não pune o pecado cometido por serem amados com apego demasiado esses bens, mas unicamente aquela falta que consiste em subtraí-los injustamente de outro.

            Dito isso, vê agora se não cumprimos o programa que tu julgavas ser uma questão sem fim (cf. I,6,14). Pois, na verdade, nós nos havíamos proposto procurar até onde se estende o direito da lei temporal de punir, ela que rege os povos e as nações da terra.

            Ev. Sim, vejo que chegamos a nosso objetivo.

 

Conseqüência do apego ou desapego dos bens deste mundo

 

  1. Ag. Portanto, vês igualmente que não existiria a penalidade – seja a que é infligida aos homens de modo injusto, seja a que é de modo justificável pela aplicação da lei -, caso eles não amassem aquelas coisas que podem lhes ser tiradas contra a própria vontade.

            Ev. Vejo-o, muito bem.

            Ag. Assim, pois, as mesmas coisas podem ser usadas diferentemente: de modo bom ou mal. E quem se serve mal é aquele que se apega a tais bens de maneira a se embaraçar com eles, amando-os demasiadamente. Com efeito, submete-se àqueles mesmos bens que lhe deveriam estar submissos. Faz dessas coisas bens aos quais ele mesmo deveria ser um bem, ordenando-as e fazendo delas bom uso.

            Assim, quem se serve dessas coisas de modo ordenado mostra que elas são boas, não para si, pois elas não o tornam nem bom nem melhor, mas antes é ele mesmo que as torna melhores. Por isso, ele não as ama até se deixar (p.66) prender e não faz delas como se fossem membros de sua própria alma – o que seria feito, caso as amasse a ponto de recear que elas, vindo a lhe faltar, lhe fossem como cruéis e dolorosos ferimentos. Mas se ele se mantiver acima dessas coisas, pronto a possuí-las e governá-las, caso seja preciso, e mais ainda, pronto a perdê-la ou a se passar delas. Visto que assim é, crês que seria preciso condenar o ouro e a prata por causa dos avarentos; ou o vinho por causa dos que se embriagam; ou o encanto das mulheres por causa dos libertinos e dos adúlteros, e assim em relação a tudo mais? Especialmente quando podes ver um médico fazer bom uso do fogo e um envenenador, uso criminoso até do pão?

            Ev. Isso é bem verdade, não se pode considerar as coisas por elas mesmas, mas sim os homens que podem fazer mau uso delas.

 

 

Capítulo 16

 

Conclusão: a definição da essência do pecado

mostra que ele procede do livre-arbítrio

 

  1. Ag. Muito bem! 35 nós já começamos a compreender, penso eu, qual seja o valor de lei eterna. E reconhecemos também até onde pode ir a lei temporal, em sua repressão com castigos. Distinguimos também, com clareza suficiente, as duas espécies de realidades, umas eternas e outras temporais. E as duas classes de homens, uns seguindo e amando as coisas eternas e outros, as coisas temporais. Estabelecemos ainda que é próprio da vontade escolher o que cada um pode optar e abraçar. E nada, a não ser a vontade, poderá destronar a alma das alturas de onde domina, e afastá-la do caminho reto. Do mesmo modo, é evidente ser preciso não censurar o objeto do qual se (p.67)

usa ma, mas sim a pessoa que dele mas se serviu. Voltemos, agora, se concordares, àquela questão proposta no começo deste diálogo, e vejamos se ela já está resolvida. Tínhamo-nos proposto de procurar a definição do que seja cometer o mal (malefacere) (cf. I,3,6). Foi nesse intento que dissemos tudo o que precede até aqui. Em conseqüência, agora é o momento de examinarmos com cuidado se cometer o mal é outra coisa do que menosprezar e considerarmos os bens eternos – bens dos quais a alma goza por si mesma e atinge também por si mesma, e aos quais não pode perder, caso os ame de verdade, e em busca dos bens temporais, como se fossem grandes e admiráveis. Bens esses, experimentados com o corpo, a parte menos nobre do homem, e que nada têm de seguro. Para mim, todas as más ações, isto é, nossos pecados podem estar incluídos nessa única categoria. Espero que me dês a conhecer o teu parecer a esse respeito.

 

35a.     Ev. É bem como dizes e eu concordo em que todos os pecados encontrem-se nessa única categoria, a saber: cada um, ao pecar, afasta-se das coisas divinas e realmente duráveis para se apegar às coisas mutáveis e incertas, ainda que estas se encontrem perfeitamente dispostas, cada uma em sua ordem, e realizem a beleza que lhes corresponde.

            Contudo, é próprio de uma alma pervertida e desordenada escravizar-se a elas. A razão é que, por ordem e direito divinos, foi a alma posta à frente das coisas inferiores, para as conduzir conforme o seu beneplácito.

            Ao mesmo tempo, o outro problema que nós nos tínhamos proposto, após a primeira questão: “O que é proceder mal?”, parece-me já termos resolvido com clareza, a saber: “De onde vem praticarmos o mal?” (cf. I,2,4). Se não me engano tal como a nossa argumentação mostrou (p.68), o mal moral tem sua origem no livre-arbítrio de nossa vontade (cf. I,11a,21c).

 

Transição ao livro II

 

35b.     Ev. Mas quanto a esse livre-arbítrio, o qual estamos convencidos de ter o poder de nos levar ao pecado, pergunto-me se Aquele que nos criou fez bem de no-lo ter dado. Na verdade, parece-me que não pecaríamos se estivéssemos privados dele, e é para se temer que, nesse caso, Deus mesmo venha a ser considerado o autor de nossas más ações. 36

            Ag. Não tenhas receio algum a esse respeito. Mas para fazermos um exame mais atento, reservaremos outro momento. Pois este nosso diálogo já pede limite e fim. Quisera te ver persuadido de que nós, por assim dizer, estamos batendo à porta de grandes e profundas questões. Mas quando, sob a guia de Deus, tivermos começado a penetrar nesses segredos, tu julgarás, certamente, que existe grande distância entre o atual discurso e os seguintes. E o quanto esses últimos vão se revelar mais excelentes, não somente pela penetração da investigação, mas também pela sublimidade do assunto e pela esplêndida luz da verdade. Peçamos que a piedade seja a nossa única companheira, a fim de que a Providência divina nos permita perseverar até o fim na caminhada encetada.

            Ev. Aceito tua vontade com gosto e bons votos. Com prazer, associo a minha vontade à tua. (p.69).

 

 

 

 

LIVRO II

 

A PROVA DA EXISTÊNCIA DE DEUS REVELA-O COMO FONTE DE TODO BEM. DEUS NÃO É O AUTOR DO MAL, MAS DO LIVRE-ARBÍTRIO, QUE É UM BEM

 

INTRODUÇÃO (1,1-2,6)

 

POR QUE NOS DEU DEUS A LIBERDADE DE PECAR?

 

Capítulo 1

 

O livre-arbítrio vem de Deus

 

  1. Ev. Se possível, explica-me agora a razão pela qual Deus concedeu ao homem o livre-arbítrio da vontade, já que, caso não o houvesse recebido, o homem certamente não teria podido pecar.

            Ag. Logo, já é para ti uma certeza bem definida haver Deus concedido ao homem esse dom, o qual supões não dever ter sido dado.

            Ev. O quanto me parece ter compreendido no livro anterior, é que nós não só possuímos o livre-arbítrio da vontade, mas acontece ainda que é unicamente por ele que pecamos.

            Ag. Também me recordo de termos chegado à evidência a respeito desse ponto. Mas, no momento, eu te pergunto o seguinte: esse dom que certamente possuímos e pelo qual pecamos, sabes ¹ que foi Deus quem no-lo concedeu?

            Ev. Na minha opinião, ninguém senão ele, pois é por ele que existimos. E é dele que merecemos receber o castigo ou a recompensa, ao pecar ou ao proceder bem.

            Ag. Mas o que eu desejo saber é se compreendes com evidência esse último ponto. Ou se, levado pelo argumento da autoridade, crês de bom grado, ainda que sem claro entendimento. (p.73).

            Ev. Na verdade, devo afirmar que, sobre esse ponto, eu aceitei-o primeiramente dócil à autoridade. Mas o que poderia haver de mais verdadeiro do que as seguintes asserções: tudo o que é bom procede de Deus. E tudo o que é justo é bom. Ora, existe algo mais justo do que o castigo advir aos pecadores, e a recompensa aos que procedem bem? Donde a conclusão: é Deus que atribui o infortúnio aos pecadores e a felicidade aos que praticam o bem.

 

  1. Ag. Nada tenho a opor. Mas apresento-te esta outra questão: Como sabes que existimos por virmos de Deus? Isso de fato não é o que acaba de explicar, mas sim que dele nos vem o merecer, seja o castigo, seja a recompensa.

            Ev. Parece-me ser isso igualmente evidente, visto que não por outra razão, a não ser porque temos já por certo que Deus castiga os pecados, visto que toda justiça dele procede. Ora, se é próprio da bondade fazer o bem a pessoas estranhas, não é próprio da mesma justiça infligir castigos a quem não são devidos. Por onde, ser evidente que nós lhe pertencemos, posto que ele é para conosco não somente cheio de bondade, concedendo-nos seus dons, mas ainda justíssimo, ao castigar-nos. Além de que, já o afirmei antes, e tu o aprovaste, todo bem procede de Deus. Porque o próprio homem, enquanto homem, é certo bem, pois tem a possibilidade, quando o quer, de viver retamente?

 

  1. Ag. Realmente, e se é essa a questão por ti proposta, já está claramente resolvida. Pois, se é verdade que o homem em si seja certo bem, e que não poderia agir bem, a não ser querendo, seria preciso que gozasse de vontade livre, sem a qual não poderia proceder dessa maneira. Com efeito, não é pelo fato de uma pessoa poder se servir da vontade também para pecar, que é preciso supor que Deus no-la tenha concedido nessa intenção. Há, pois, uma razão suficiente (p.74) para ter sido dada, já que sem ela o homem não poderia viver retamente. Ora, que ela tenha sido concedida para esse fim pode-se compreender logo, pela única consideração que se alguém se servir dela para pecar, recairão sobre ele os castigos da parte de Deus. Ora, seria isso uma injustiça, se a vontade livre fosse dada não somente para se viver retamente, mas igualmente para se pecar. Na verdade, como poderia ser castigado, com justiça, aquele que se servisse de sua vontade para o fim mesmo para o qual ela lhe fora dada?

            Assim, quando Deus castiga o pecador, o que te parece que ele diz senão estas palavras: “Eu te castigo porque não usaste de tua vontade livre para aquilo a que eu a concedi a ti”? Isto é, para agires com retidão. Por outro lado, se o homem carecesse do livre-arbítrio da vontade, como poderia existir esse bem, que consiste em manifestar a justiça, condenando os pecados e premiando as boas ações? Visto que a conduta desse homem não seria pecado nem boa ação, caso não fosse voluntária. Igualmente o castigo, como a recompensa, seria injusto, se o homem não fosse dotado de vontade livre. Ora, era preciso que a justiça estivesse presente no castigo e na recompensa, porque aí está um dos bens cuja fonte é Deus.

Conclusão, era necessário que Deus desse ao homem vontade livre.

 

Capítulo 2

 

Objeção: já que o livre-arbítrio foi-nos dado para fazer o bem, como se volta ele para o mal?

 

  1. Ev. Eu já admito que Deus nos concedeu a vontade livre. Mas não te parece, pergunto-te, que se ela nos foi dada para fazermos o bem, não deveria poder levar-nos a pecar. É o que acontece com a própria justiça dada ao homem para viver bem. Acaso alguém poderia viver mal, em (p.75) virtude de sua retitude? Do mesmo modo, ninguém deveria pecar por meio de sua vontade, caso esta lhe tivesse sido dada para viver de modo honesto.

 

Primeira condição para a solução do problema:

colocar-se no ponto de vista de Deus

 

            Ag. Deus há de me conceder, como o espero, que consiga te responder. Ou melhor, de conceder que tu mesmo te respondas, instruindo-te interiormente, por aquela Verdade – Mestra soberana e universal. ³ Mas antes, dize-me um pouco, eu te peço – uma vez que tens como evidente e certo o que já te perguntei, a saber: que foi Deus que nos concedeu a vontade livre, nesse caso, poderíamos afirmar que Deus não nos deveria ter dado tal dom? Isso, já reconhecemos ser ele mesmo que o deu a nós. Com efeito, se fosse incerto que Deus nos tenha concedido a vontade livre, nós teríamos o direito de indagar se foi bom ela nos ter sido dada. Desse modo, se descobríssemos que foi bom, igualmente, reconheceríamos o doador naquele que deu ao homem todos os bens. Ao contrário, se descobríssemos que foi mal , teríamos de compreender que o doador não é Aquele a quem não é permitido incriminar algo que seja. Mas sendo certo que o próprio Deus nos deu essa vontade livre, qualquer seja a forma como recebemos esse dom, devemos confessar que Deus não estava obrigado de no-lo dar como foi dado nem de modo diferente. Na verdade, quem no-lo deu foi Aquele a quem de modo algum podemos criticar com justiça as ações.

 

Segunda condição:

não se limitar à fé, mas procurar o seu entendimento

 

  1. Ev. Apesar de crer em tudo isso com fé inabalável, todavia, como não possuo ainda pleno entendimento, continuemos procurando como se tudo fosse incerto. Com (p.76) efeito, pelo fato de ser incerto a vontade livre nos ter sido dada, para com ela agirmos bem – já que podemos também pecar -, decorre esta outra incerteza: se foi um bem ou não, ela nos ter sido dada. Porque, se é incerto ela nos ter sido dada, para agirmos corretamente, tampouco é certo que seja um bem ela nos ter sido dada. Por aí, não é igualmente certo que seja Deus o doador. Com efeito, a incerteza sobre a conveniência do dom torna incerta a origem, isto é, o fato de ser Aquele a quem não nos é permitido crer que conceda algo que não deveria ter concedido.

            Ag. Pelo menos, uma coisa é certa para ti: Deus existe?

            Ev. Isso também considero como verdade incontestável, mas pela fé e não pelo entendimento.

            Ag. Pois bem, supõe que um desses homens néscios, sobre os quais está escrito: “Diz o insensato em seu coração: Deus não existe!” (Sl 52,1), viesse te dizer isso. Supõe, por hipótese, que ele se recuse a crer no que tu crês pela fé, contudo desejasse conhecer se o objeto de tua crença é verdadeiro. Abandonarias esse homem à sua incredulidade ou acharias ser teu dever lhe demonstrar, de alguma forma, aquilo em que crês firmemente? Sobretudo, no caso de ele pretender não discutir com obstinação, mas sim procurar com sinceridade conhecer a verdade.

            Ev. O que acabas de dizer me sugere suficientemente o que lhe deveria responder. Pois, ainda que fosse ele uma pessoa muito insensata, seguramente concordaria comigo que nada se deve discutir, principalmente a respeito de assunto tão sério, como alguém de má fé e obstinação. Uma vez admitido isso, ele seria o primeiro a me levar a crer que se dispunha em busca com boa intenção: a de querer ser alguém que nada esconde em seu interior, e assim nada haver nele de falso ou de obstinação. Então, eu (p.77) lhe demonstraria o seguinte, coisa muito fácil para qualquer, na minha opinião: se acaso ele não fazia questão de ser acreditado por outro, por testemunho, quando revelasse algo sobre os sentimentos ocultos de seu espírito, a respeito dos quais ele unicamente conhecia. Se assim fosse, quanto mais justificado seria que ele também acreditasse por testemunho alheio, que Deus existe – em razão dos escritos de homens tão notáveis que deixaram testemunhado em livros haverem convivido com o Filho de Deus. Com efeito, essas testemunhas atestam, por escrito, ter presenciado coisas que nunca poderiam ter acontecido se Deus não existisse. E esse homem – o meu interlocutor – seria por demais estulto se me recriminasse por crer em tais testemunhas, quando pretendia que eu acreditasse em seu testemunho pessoal. Ora, assim como não poderia me condenar, com razão, de modo nenhum encontraria desculpa para não querer me imitar.

            Ag. Mas então, se a respeito do problema da existência de Deus, a teu parecer julgas basta crer, sem temeridade alguma, em homens dignos de fé – porque, pergunto-te, sobre os presentes pontos que estão sendo investigados por nós, como incertos e manifestamente desconhecidos pela intelecção, não pensas do mesmo modo, isto é: que devíamos crer firmemente na autoridade desses mesmos homens tão ilustres, e assim não mais nos cansarmos a investigar esses problemas?

            Ev. Sim, mas é que pretendemos saber e entender aquilo em que cremos. 4

 

  1. Ag. Vejo que tens boa memória. Foi, na verdade, isso que decidimos no início de nosso diálogo precedente, e não o podemos negar. Com efeito, se crer não fosse uma coisas e compreender outra 5, e se não devêssemos, primeiramente, crer nas sublimes e divinas verdades que desejamos (p.78) compreender, seria em vão que o profeta teria dito: “Se não o crerdes não entendereis” (Is 7,9, na LXX). 6

            O próprio nosso Senhor, tanto por suas palavras quanto por seus atos, primeiramente exortou a crer àqueles a quem chamou à salvação. Mas em seguida, no momento de falar sobre esse dom precioso que havia de oferecer aos fiéis, ele não disse: “A vida eterna consiste em crer”, mas sim: “A vida eterna é esta: que eles te conheçam a ti, único Deus verdadeiro e aquele que tu enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17,3). Depois disse àqueles que já eram crentes: “Procurai e encontrareis” (Mt 7,7). Pois não se pode considerar como encontrado aquilo em que se acredita sem entender. 7 E ninguém se torna capaz de encontrar a Deus se antes não crer no que há de compreender.

            É porque, dóceis aos preceitos do Senhor, sejamos constantes na busca. Porque aquilo que procuramos, sob a divina exortação, nós o encontraremos, graças a ele. Isso o quanto podem ser encontradas essas maravilhas nesta vida e por homens como somos nós. Com efeito, é preciso que creiamos – nós mesmos, e as melhores pessoas, enquanto vivem neste mundo. E certamente, depois desta vida, todos os homens bons e piedosos possuirão e contemplarão essas coisas, com mais evidências e perfeição. Quanto a nós, podemos esperar que assim também será conosco. Nessa esperança, desprezando os bens terrestres humanos, desejemos e amemos com todas as forças as verdades divinas. (p.79).

 

 

PRIMEIRA PARTE (3,7-7,19)

 

INÍCIO DA ASCENSÃO A DEUS PARA CHEGARMOS À PROVA DE SUA EXISTÊNCIA

 

A: BUSCA DO QUE HÁ DE MAIS NOBRE NO HOMEM (3,37-6,14)

 

Capítulo 3

 

As primeiras intuições do espírito: o existir, o viver, o entender

 

  1. Ag. Se o quiseres, investigaremos na seguinte ordem: 9

 

            1ª – procuremos como provar com evidência a existência de Deus;

            2ª – se na verdade tudo o que é bem, enquanto bem, vem de Deus;

            3ª – enfim, se será preciso contar, entre os bens, a vontade livre do homem.

 

            Uma vez essas questões esclarecidas, aparecerá suficientemente, eu o penso, se essa vontade foi dada aos homens com justeza.

            Assim pois, para participarmos de uma verdade evidente, eu te perguntaria, primeiramente, se existes. 10 Ou, talvez, temas ser vítima de engano ao responder a essa questão? Todavia, não te poderias enganar de modo algum, se não existisse.

            Ev. É melhor passares logo adiante, às demais questões.

            Ag. Então, visto ser claro que existes – e disso não poderias ter certeza tão manifesta, caso não vivesses (p.80) -, é também coisa clara que vives. Compreendes bem, que há aí duas realidades muito verdadeiras?

            Ev. Compreendo-o perfeitamente.

            Ag. Logo, é também manifesta terceira verdade, a saber, que tu entendes?

            Ev. É claro.

            Ag. Qual dessas três realidades (existir, viver e entender) parece a ti a mais excelente?

            Ev. O entender. 11

            Ag. Por que te parece assim?

            Ev. Por serem três as realidades: o ser, o viver e o entender. É verdade que a pedra existe e o animal vive. Contudo, ao que me parece, a pedra não vive. Nem o animal entende. Entretanto, estou certíssimo de que o ser que entende possui também a existência e a vida. É porque não hesito em dizer: o ser que possui senão uma ou duas delas. Porque, com efeito, o ser vivo por certo também existe, mas não se segue daí que entenda. Tal é, como penso, a vida dos animais. Por outro lado, o que existe não possui necessariamente a vida e a inteligência. Posso afirmar, por exemplo, que um cadáver existe. Ninguém, porém, dirá que vive. Ora, o que não vive, muito menos entende.

            Ag. Então, admitimos que dessas três perfeições faltam duas ao cadáver, uma ao animal; e nenhuma ao homem.

            Ev. É verdade.

            Ag. E admitimos, igualmente, que a melhor das três é a que só o homem possui, juntamente com as duas outras, isto é, a inteligência, que supõe nele o existir e o viver.

            Ev. Com efeito, nós admitimos isso sem dúvida alguma. 12 (p.81).

O conhecimento – advindo pelos sentidos externos,

pelo sentido comum e pela razão 13

 

  1. a) Os sentidos exteriores

 

  1. Ag. Dize-me, agora, se sabes com certeza que possuis os tão bem conhecidos sentidos corporais: a vista, o ouvido, o olfato, o gosto e o tato?

            Ev. Sim, eu os conheço, com certeza.

            Ag. Conforme o teu parecer, o que pertence ao sentido da vista? Em outros termos, temos a sensação do quê, ao enxergar?

            Ev. De todos os objetos corporais.

            Ag. Temos também, pela vista, a sensação de dureza e de moleza dos corpos?

            Ev. Não.

            Ag. Qual é, pois, o objeto próprio da vista pela sensação de enxergar?

            Ev. A cor.

            Ag. E o que pertence aos ouvidos?

            Ev. O som.

            Ag. E ao olfato?

            Ev. Os odores.

            Ag. E ao paladar?

            Ev. Os sabores.

            Ag. E ao tato?

            Ev. A moleza e a dureza, o liso e o áspero, e muitas outras qualidades similares.

            Ag. Pois bem! E a respeito das formas corporais, enquanto grandes ou pequenas, quadradas ou redondas, e de outras propriedades semelhantes, não temos também a sensação delas pelo tato, como pela vista, de modo a não podermos atribuir como próprio a um único desses sentidos, mas a ambos?

            Ev. Entendo que seja assim. (p.82).

            Ag. Compreendes pois, igualmente, que cada sentido tem certos objetos próprios sobre os quais nos informam, e que alguns dentre eles percebem objetos de modo comum?

            Ev. Compreendo também isso.

 

  1. b) o nosso sentido interior

 

            Ag. E podemos, por acaso, discernir por alguns desses cinco sentidos, o que pertence a cada um em particular, e o que lhes seja comum a todos ou a alguns dentre eles?

            Ev. De modo algum, pois é por meio de certo sentido interior que nós o distinguimos.

            Ag. Não seria talvez pela razão, da qual os animais estão privados? Pois, na minha opinião, se nós percebemos essas distinções, e se sabemos que tudo se passa assim, é por meio da razão.

            Ev. Eu penso, antes, que seria pela razão que nós compreendemos a existência desse certo sentido interior, ao qual os cinco sentidos externos transmitem todos os seus conhecimentos a respeito dos objetos. Pois por um sentido é que o animal vê e por outro, que ele evita ou busca aquilo que viu. Com efeito, o primeiro sentido tem sua sede nos olhos. Ao contrário, o segundo, no íntimo mesmo da alma. Graças a esse sentido interior, todos os objetos, não somente os apreendidos pela vista, mas também pelo ouvido e pelos outros sentidos corporais, são: procurados e apossados pelos animais, no caso de isso lhes causar agrado; ou bem, evitados e rejeitados, no caso de lhes serem nocivos. Mas esse sentido interior não se pode dizer que seja, nem a vista, nem o ouvido, nem o olfato, nem o gosto, nem o tato. Ele é, não sei que outra faculdade diferente, que governa universalmente a todos os sentidos exteriores, por igual. A razão é que nos faz compreender isso, como já disse. Não posso, porém, identificar essa (p.83) faculdade com a razão, porque está também manifestamente nos animais, e estes não possuem a razão.

 

  1. c) A nossa razão

 

  1. Ag. Admito a existência dessa faculdade, seja ela qual for, e sem hesitação denomino-a sentido interior. Pois, a não ser ultrapassando esse mesmo sentido interior, o objeto transmitido pelos sentidos corporais poderá chegar a ser objeto de ciência. Porque tudo o que nós sabemos, só entendemos pela razão – aquilo que será considerado ciência. Ora, sabemos, entre outras coisas, que não se pode ter a sensação das cores pela audição; nem a sensação do som pela vista. E esse conhecimento racional nós não o temos pelos olhos, nem pelos ouvidos, e tampouco por esse sentido interior, do qual os animais não estão desprovidos. Por outro lado, não podemos crer que os animais conheçam a impossibilidade de sentir, seja a luz pelos ouvidos, seja os sons pelos olhos; visto que nós mesmos só o discernimos pela observação racional e pelo pensamento.

            Ev. Não posso dizer que tenha compreendido o que acabas de dizer. O que se seguiria, com efeito, se mediante o sentido interior do qual os animais não estão desprovidos, conforme o admites, chegassem a perceber também, como nós, a impossibilidade de sentir as cores pelo ouvido, ou os sons pela vista?

            Ag. Mas acaso crês que eles possam mesmo distinguir entre si um sentido do outro: a cor da qual têm a sensação; o sentido que tem sua sede nos olhos; aquele outro, o interior, que está na alma; e até a razão que define e classifica tão bem cada uma dessas coisas?

            Ev. De modo algum.

            Ag. O que te pareces? Poderia a própria razão distinguir esses quatro fatores entre si e determinada-los, definindo-os, se ela não percebesse, por comunicação, a cor pelo (p.84) sentido da vista; esse mesmo sentido pelo sentido interior, que o comanda; e esse último, enfim, por si mesmo, se é que não haja outros intermediários?

            Ev. Não vejo como poderia ser de outra forma.

            Ag. E o que pensar? Percebes que o sentido da vista percebe a cor, sem se perceber a si mesmo? Porque pelo sentido que vê a cor, com efeito, não vês o ato mesmo da visão.

            Ev. Não, não o vejo de modo algum.

            Ag. Empenha-te ainda em distinguir bem o seguinte: pois não o negarás, penso eu: uma coisa é a cor e, outra, o ato de ver a cor. Outra coisa, enfim, muito distinta, na ausência da cor, a posse de um sentido capaz de a ver, caso ela lá estivesse.

            Ev. Distingo também essas três coisas e concordo que diferem entre si.

            Ag. Agora, dessas três coisas, a qual vês pelos olhos, senão a cor?

            Ev. Nada mais.

            Ag. Dize-me, então, por qual faculdade vês as duas outras? Pois não poderias distingui-las sem as ver.

            Ev. Ignoro. Sei apenas que elas existem, nada mais.

            Ag. Ignoras, pois, se é a própria razão que exerce essa função vital que chamamos de sentido interior, bem superior aos sentidos corporais, ou então algum outro princípio?

            Ev. Ignoro.

            Ag. Sabes, pelo menos, que somente a razão pode definir essas coisas e que ela, unicamente, pode agir sobre objetos submetidos a seu exame?

            Ev. É certo;

            Ag. Logo, qualquer seja outra faculdade capaz de ter o sentimento de tudo o que sabemos, ela está ao serviço da razão à qual apresenta e traz tudo o que apreende. De maneira que os objetos percebidos possam ser (p.85) diferenciados entre si e conhecidos não somente pelos sentidos, mas ainda por conhecimento racional.

            Ev. É bem verdade.

            Ag. Pois bem! Mas essa mesma razão que distingue entre um e outro, isto é, os sentidos, seus servidores, e os objetos que eles lhe apresentam; e que reconhece ainda a diferença existente entre eles e La, afirmando sua preeminência sobre eles, acaso essa razão compreende-se a si mesma por meio de outra faculdade que não seja ela mesma? Saberias que possuis a razão, caso não percebesses a mesma razão?

            Ev. Isso é bem verdadeiro.

 

Os sentidos exteriores não se percebem a si mesmos

 

            Ag. Por conseguinte, já que, percebendo a cor pelo sentido da vista, nós não percebemos a nossa própria sensação – se, ouvindo um som, não ouvimos nossa própria audição; se, cheirando uma rosa, nosso olfato não inala em si nenhum perfume; se degustando algo, nosso paladar não sente na boca o próprio paladar; se, apalpando um objeto, não podemos tocar o sentido mesmo do tato, é evidente que esses cinco sentidos não podem ser sentidos por si mesmos, ainda que por eles todos os objetos corporais sejam sentidos por nós.

            Ev. É evidente.

 

Capítulo 4

 

Percebe-se o sentido interior a si mesmo?

 

  1. Ag. Creio ser também evidente que esse sentido interior não somente sente as impressões que recebe dos cinco sentidos externos, mas percebe igualmente os mesmos (p.86) sentidos. Se assim não fosse, o animal não se moveria de seu lugar ara apodera-se de algo ou para fugir de alguma coisa. Mas não o sente, de modo a ter conhecimento ordenado à ciência, porque isso é próprio da razão. Contudo, percebe-se suficientemente para se mover. Ora, até isso ultrapassa a simples percepção dos cinco sentidos externos.

            Todavia, se a coisa te resta obscura, ele haverá de se esclarecer ao considerares o que se passa, por exemplo, em um desses cinco sentidos, em particular. Por exemplo, o da vista. Com efeito, um animal não poderia de modo algum abrir os olhos, nem os mover, em direção ao que deseja ver, se não sentisse que não vê o tal objeto, ao ter os olhos fechados, ou sem dirigir seu olhar naquela direção. Ora, se ele percebe em si a ausência da visão quando não está olhando para aquele determinado objeto, é necessário também que ele perceba sua visão, quando está a enxergar de fato. Já que não é da mesma maneira que ele move os olhos ao ver o objeto cobiçado e os mantém fixos quando não o enxerga. Isso mostra bem que o animal sente diferentemente uma coisa e outra. Mas por outro lado, essa vida interior que percebe assim as próprias sensações de objetos corporais terá ela também consciência de si mesma? A questão é menos clara, a não ser que se diga que cada um, ao se observar a fundo interiormente, constate que todo ser vivo foge da morte. Ora, sendo essa o oposto da vida, é preciso, ao que parece, que também a vida tome consciência de si mesma, para fugir desse modo a seu oposto.

            Todavia, se a questão ainda não está bastante evidente, passemos adiante, a fim de avançarmos, unicamente apoiados em provas certas e evidentes. Ora, o evidente até o presente é o seguinte:

            - que os sentidos corporais percebem os objetos corporais; (p.87)

            - que esses mesmos sentidos não podem ter a sensação de si mesmos;

            - que o sentido interior percebe não só os objetos corporais por intermédio dos exteriores, mas percebe até mesmo esses sentidos;

            - enfim, que a razão conhece tudo isso e conhece-se a si mesma;

            - visto que todos esses conhecimentos tornam-se objeto de ciência.

            Aí estão evidências, não te parece assim?

            Ev. Com efeito, assim me parece.

            Ag. Pois bem, vejamos, agora: Qual a questão cuja ambicionada solução nos fez percorrer tão longa caminhada?

 

 

Capítulo 5

 

O sentido interior, juiz e guia dos sentidos exteriores

 

  1. Ev. Pelo que me recordo, das três questões que nos propusemos no início do atual diálogo (II,3,7), ao traçarmos o plano desta nossa discussão, a primeira é justamente esta da qual tratamos agora, a saber: como poderíamos chegar, sem deixarmos de aderir com muito firme e inquebrável, à prova racional da existência de Deus?

            Ag. Tu o relembras com exatidão. Mas desejo que te recordes também, com diligência, que ao te perguntar eu se conhecias, com certeza, a tua própria existência, pareceu-te que conhecias não apenas isso, mas ainda mais duas outras realidades (o viver e o pensar).

            Ev. Recordo-me igualmente disso.

            Ag. Pois bem, considera, no momento, a qual dessas três realidades podem pertencer os objetos dos sentidos (p.88) corporais, isto é, em que categoria de realidades, na tua opinião, é preciso classificar toda ordem de conhecimentos adquiridos pelos sentidos, seja o da vista, seja o de qualquer outro órgão corporal. Porventura, na categoria das coisas que unicamente existem, ou mesmo nas que existem, vivem e, além disso, são inteligentes?

            Ev. Na categoria das coisas que somente existem.

            Ag. E o próprio sentido, em qual das três categorias está ele, no teu parecer?

            Ev. Na dos seres vivos.

            Ag. Assim, sendo, qual dos dois, por conseguinte, julgas ser melhor: o sentido ou o objeto que o sentido percebe?

            Ev. Evidentemente, o sentido.

            Ag. E por qual motivo?

            Ev. Porque o ser que também goza da vida é melhor do que aquele que só existe.

 

O princípio de subordinação

 

  1. Ag. Pois bem! E aquele sentido interior que, conforme nossas buscas anteriores, está abaixo da razão e nos é também comum com os animais, será que hesitarias a antepô-lo ao sentido pelo qual percebemos os corpos e que já reconheceste ser preferível ao corpo, ele mesmo?

            Ev. Não hesitaria de forma alguma.

            Ag. Mas quisera também ouvir de ti por qual motivo não o hesitarias. Posto que não poderás pretender classificar esse sentido interior no gênero dos que possuem a inteligência, mas unicamente classificá-lo entre as coisas que existem e vivem, embora privadas de inteligência. Isso porque ele também encontra-se entre os animais que são carentes de inteligência.

            Assim sendo, desejo saber por que antepões o sentido interior aos sentidos exteriores, visto que ambos pertencem (p.89) ao simples gênero de seres que vivem. Por outro lado, antepuseste os sentidos exteriores que atingem os corpos a esses mesmos corpos, porque estes classificam-se entre as coisas que somente existem e os sentidos entre as que vivem. Mas como o sentido interior pertence também a esse último gênero, dos que vivem, dize-me por que os consideras melhor do que os sentidos exteriores?

            Caso respondas: é porque um sente os outros – creio que não terias encontrado uma norma que nos permita proclamar: “Todo ser dotado de sensação é melhor do que o objeto de sua sensação”, posto que seríamos talvez forçados a conceder também que: “Todo ser dotado de inteligência é melhor do que o objeto de sua intelecção”, o que é falso. Com efeito, o homem compreende o que seja a sabedoria e, contudo, não é superior à sabedoria. Considera, pois, por qual motivo, na tua opinião, é preciso antepor o sentido interior aos exteriores, pelos quais sentimos os corpos?

            Ev. É porque eu reconheço no sentido interior um guia e um juiz dos sentidos exteriores. De fato, quando estes faltam em algo de suas funções, o sentido interior reclama os seus serviços, como junto a um servidor, conforme dissemos em nossa conversa anterior. Na verdade, o sentido da vista, por exemplo, não vê a presença ou a ausência de sua visão. E porque não vê, não pode julgar sobre o que lhe falta ou lhe basta. Esse é o papel do sentido interior. É esse que no próprio animal adverte-o a abrir o olho fechado, e a seguir a falta que percebe haver. Ora, ninguém duvida desta regra: “Quem julga é superior àquele sobre o que julga”. 14

            Ag. Parece-te, pois, que os sentidos exteriores fazem, igualmente, certo julgamento sobre os corpos? Porque lhes pertence, com efeito, o prazer ou a dor conforme eles impressionam o corpo, com doçura ou aspereza. E do (p.90) mesmo modo, como o sentido interior, julga que falta ou basta algo do sentido da vista, para ter, por exemplo, uma visão clara e perfeita. Igualmente, o sentido próprio da vista julga ao que falta ou basta quanto às cores. De modo semelhante, assim como o sentido interior julga a nossa audição, considerando-a deficiente ou suficientemente atenta, também o próprio ouvido, por sua vez, julga os sons, distinguindo os que o impressionam com doçura daqueles que ressoam com respeito.

            Inútil prosseguirmos examinando em relação aos outros sentidos exteriores, pois já percebeste, eu penso, o que quero dizer, a saber: que o sentido interior julga os sentidos corporais, aprovando um bom funcionamento ou exigindo um mau serviço. Do mesmo modo, os próprios sentidos externos, eles mesmos julgam os objetos corporais, aceitando seu contato, caso seja agradável, ou rejeitando-o, caso contrário. 15

            Ev. Eu percebo, por certo, e concordo ser tudo isso bem verdadeiro.

 

Capítulo 6

 

A razão transcende a tudo mais no homem

 

  1. Ag. Considera, agora, se a mesma razão também julga o sentido interior. Pois já não te pergunto se o julgas melhor do que os sentidos exteriores, pois não duvido que penses assim. Tampouco te pergunto se é para investigarmos se a razão julga o sentido interior. Com efeito, para todas as realidades inferiores a ela: os corpos, os sentidos exteriores e o próprio sentido interior, quem, pois, a não ser a mesma razão nos declara como um é melhor do que outro, e o quanto ela mesma ultrapassa-os a todos? E quem nos informará sobre isso a não ser a mesma razão? (p.91) De nenhum modo poderia fazê-lo, se tudo não estivesse submetido a seu juízo.

            Ev. É evidente.

            Ag. Portanto, acima da natureza – que apenas existe, sem viver nem compreender, como acontece com os corpos inanimados – vem a natureza que não somente existe, mas que também vive, sem contudo ter a inteligência, como acontece com a alma dos animais; e por sua vez, acima dessa última vem aquela natureza que ao mesmo tempo existe, vive e entende, aquela que é a alma racional do homem.

            Sendo assim, crês que em nós, isto é, entre esses elementos constitutivos de nossa natureza humana, pode-se encontrar algum elemento mais nobre do que aquele que enumeramos em terceiro lugar? Porque, manifestamente, nós possuímos um corpo e também uma alma que anima o corpo e é a causa de seu desenvolvimento. Dois elementos que também vimos nos animais. Enfim, a mais, temos um terceiro elemento, que por assim dizer é como a cabeça ou o olho de nossa alma. A menos que se encontre um nome mais adequado para designar a nossa razão ou inteligência, faculdade que a natureza dos animais não possui. Vê, pois, eu te peço, se podes encontrar na natureza do homem algo mais excelente do que a razão. 16

            Ev. Não encontro absolutamente nada que possa ser melhor.

 

Última etapa – acima da razão, só Deus

 

  1. Ag. Pois bem! O que dirias se pudéssemos encontrar alguma realidade, cuja existência não só se conhecesse, mas também fosse superior à nossa razão? Hesitarias, qualquer que fosse essa realidade, afirmar ser ela Deus? (p.92)

            Ev. Não, de imediato. Se eu pudesse descobrir algo superior à parte mais excelente de minha natureza, eu não a chamaria logo Deus. Porque a mim não agrada chamar de Deus aquele a quem minha razão é inferior, mas sim aquele a quem ser algum é superior.

            Ag. É justamente assim. E é Deus mesmo que deu à tua razão tão piedoso e verdadeiro sentimento, a respeito dele. Pergunto-te, porém: se não encontrasse nada acima de nossa razão a não ser o que é eterno e imutável, hesitarias chamá-lo de Deus? Pois os corpos são mutáveis, tu o sabes, e a vida pela qual os corpos são animados, em meio à variedade de seus estados, mostra com evidência que essa vida está sujeita a mutações. E até a própria razão, por seu lado, que por vezes se esforça por chegar à verdade, por vezes, não – por vezes a atinge e por vezes, não – mostra-se seguramente estar sujeita a mutações. Se, pois, sem a ajuda de órgão algum corporal, nem do tato, nem do paladar, nem do olfato, do ouvido ou dos olhos, nem por sentido algum que seja inferior a essa dita razão; mas por si mesma, ela percebe algo de eterno e imutável, é necessário que a dita razão se reconheça, ao mesmo tempo, inferior a essa realidade e que esse Ser seja o seu Deus. 17

            Ev. Quanto a mim, certamente, reconheceria como Deus esse ser do qual se teria provado que nada existe de superior.

            Ag. Está entendido. Pois bastar-me-á, então, mostrar a existência de tal realidade que, ou bem aceitarás como Deus; ou bem, caso haja outro ser acima dela, concordarás que esse mesmo ser é verdadeiramente Deus. Assim, haja ou não algum ser superior a essa realidade, será evidente que Deus existe, desde que, com a ajuda desse mesmo Deus, eu tiver conseguido demonstrar, como o prometi, a existência de uma realidade superior à razão. 18

            Ev. Demonstra, pois, o que me prometeste. (p.93).

 

 

B: O QUE É INDIVIDUAL E O QUE É COMUM A TODOS (7,15-19)

 

Capítulo 7

 

Características de cada sentido exterior

 

  1. a) quanto ao sentido da vista

 

  1. Ag. Assim o farei. Mas, primeiramente, eu te pergunto: Meus sentidos corporais são os mesmos que os teus ou, pelo contrário, os meus só pertencem a mi e os teus somente a ti? Porque se assim não fosse, não poderia ver com meus olhos um objeto que tu não visses igualmente.

            Ev. Concordo plenamente – ainda que todos nós tenhamos sentidos da mesma natureza, entretanto cada um possui os seus próprios sentidos: o da vista, o da audição e todos os outros. Pois qualquer homem pode não somente ver, mas também ouvir o que outro não vê nem escuta. E o mesmo acontece com todos os outros sentidos – qualquer pode perceber o que outra pessoa não percebe. É manifesto, por aí, que teus sentidos são só teus e os meus, só meus.

            Ag. E quanto ao sentido interior, será que essa mesma resposta seria dada, ou outra diferente?

            Ev. Sem dúvida, nenhuma outra. Porque os meus sentidos interiores percebem as minhas próprias sensações e os teus, as tuas. É por isso que, frequentemente, alguém ao ver determinado objeto pergunta-me se também eu o vejo, porque sou só eu mesmo que percebo, se enxerguei ou não, e não o meu interlocutor.

            Ag. E quanto à razão? Não pensas que cada um de nós possui também a sua própria? Pois, com efeito, pode acontecer que eu compreenda alguma realidade que tu (p.94) não tenhas compreendido. E nem possas saber se eu a compreendi, ao passo que eu mesmo o sei muito bem.

            Ev. Evidentemente, quanto à mente racional, cada um de nós também possui a sua própria. 19

 

  1. b) Quanto ao sentido da audição

 

  1. Ag. Acaso poderias também dizer que cada um de nós possui seu próprio sol, ou sua própria lua, estrelas, ou outras coisas semelhantes, posto que os contemplamos cada um com os próprios sentidos?

            Ev. De modo algum, eu diria isso.

            Ag. Podemos, por conseguinte, muitos de nós juntos e ao mesmo tempo ver um único objeto, embora possuindo cada um os seus próprios sentidos. Permitem-nos eles ver juntamente e ao mesmo tempo um objeto único. Assim, ainda que meus sentidos sejam uns, e outros os teus, pode acontecer que o objeto de nossa visão não seja distinto para ti da que é para mim mesmo. Que um único objeto, porém, esteja presente a nós dois, e que o vejamos igualmente e ao mesmo tempo.

            Ev. Isso é bem evidente.

            Ag. Podemos de igual modo ouvir, ao mesmo tempo, uma mesma voz, e assim, ainda que meu ouvido seja um, e outro o teu, contudo a voz que ouvimos não será uma para ti e outra para mim. Tampouco, uma parte dessa voz vai a teu ouvido e outra, ao meu. Mas, pelo contrário, o som tal como foi emitido, em sua identidade e totalidade, faz-se ouvir igualmente e ao mesmo tempo a cada um de nós.

            Ev. Isso também é evidente.

 

  1. c) Quanto aos sentidos do olfato e do paladar

 

  1. Ag. Agora, convém também notar, em relação aos demais sentidos corporais, que o que se refere à questão presente não dizemos que eles se comportam de maneira totalmente semelhante à dos dois sentidos referidos: o da (p.95) vista e do ouvido; nem de maneira totalmente diferente. Com efeito, podemos, eu e tu, encher nossas narinas com o mesmo ar, ou perceber pelo odor a qualidade deste ar. E do mesmo modo, um e outro podemos degustar um mesmo mel ou qualquer outro alimento ou bebida, e perceber seu gosto pelo paladar, ainda que esse mel seja único e que nossos sentidos nos pertençam a cada um em particular – o teu a ti e o meu, a mim. Destarte, enquanto ambos sintamos um e mesmo odor ou um só e mesmo sabor, não é, contudo, nem por um órgão único que nos poderia pertencer em comum a cada um de nós. Mas o meu sentido pertence totalmente a mim e o teu, a ti; ainda que nós dois sintamos um único odor ou sabor. Donde se segue que esses dois sentidos, o do olfato e o do paladar, possuem algumas propriedades semelhantes às que possuem os dois outros sentidos: o da vista e o da audição.

            Quanto ao que se refere a nosso presente assunto, porém, eles diferem nisto: se bem que inspiremos um e outro, pelo nariz, um único ar, ou que degustemos um mesmo alimento, contudo, eu não inspiro a mesma porção de ar que tu, e tampouco ingiro a mesma porção de alimento que tu. Mas eu tomo uma e tu, outra. E assim, ao respirar, eu inspiro uma parte de toda a massa de ar, o quanto me é suficiente. Igualmente tu, da massa total de ar, inspiras outra parte, o quanto te convém. E quanto ao alimento, ainda que um único em sua totalidade seja absorvido por um e outro de nós, ele não pode, entretanto, ser absorvido totalmente por mim, nem totalmente por ti; da mesma maneira, uma única palavra é ouvida inteiramente por mim e por ti ao mesmo tempo. É tal como acontece quanto a qualquer imagem visual. Ela é visível tanto por mim quanto por ti, e ao mesmo tempo. Quanto ao alimento e à bebida, porém, necessariamente será uma (p.96) a parte que eu recebo e outra, a que tu recebes. Talvez não compreendas bastante tudo isso?

            Ev. Muito bem, pelo contrário. Convenho que tudo está inteiramente claro e certo.

 

  1. d) Quanto ao sentido do tato

 

  1. Ag. Acaso não te parece que se pode comparar o sentido do tato ao dos olhos e dos ouvidos, do ponto de vista que ora tratamos? Pois não somente podemos nós dois perceber pelo tato um mesmo corpo, mas que poderás também tocar a mesma parte que eu tiver tocado. De sorte que não seria somente o mesmo corpo, mas também a mesma parte desse corpo que nós percebemos ambos pelo tato? Porque não sucede com o sentido do tato o mesmo que acontece com o alimento que nos é apresentado. Pois este não pode ser tomado todo inteiro por mim e por ti, quando o ingerimos. Pelo contrário, para o tato, o objeto que eu tocar tu podes também o tocar – o mesmo e todo inteiro; de modo que nós o tocamos ambos, e não cada um, apenas uma parte, mas cada um toca-o em sua totalidade.

            Ev. Confesso que sob esse aspecto o sentido do tato tem muita semelhança com os dois outros sentidos precedentes: o da vista e o da audição. Vejo, porém, uma diferença nisto: simultaneamente, isto é, num só e mesmo tempo é que podemos um e outro ver e ouvir totalmente uma só e mesma coisa. Ao passo que, quanto ao tato, não podemos certamente um e outro tocar no mesmo objeto por inteiro, ao mesmo, apenas em partes distintas. Quanto à minha parte, seria somente cada um em tempos diversos. Isso porque em parte alguma onde tu tocas, eu posso aplicar o meu tato, a não ser que tenhas retirado o teu. 20

 

  1. Ag. Respondeste com bastante tino. Mas deves ainda considerar o seguinte: como explicar que entre todos (p.97) objetos que nós sentimos, há alguns que sentimos ao mesmo tempo que outros, e há outro que sentimos cada um separadamente? E por outro lado, quanto a nossos sentidos, eles mesmos, como cada um de nós percebe sozinho os seus, de maneira que de minha parte não percebo os teus, nem tu os meus. Uma vez isso estabelecido, convém que advirtas ainda outro fato: entre as coisas que percebemos pelos sentidos externos, isto é, entre os objetos corpóreos, aquilo que não podemos perceber juntos, mas cada um à parte, é unicamente o que se torna nosso, a tal ponto que podemos convertê-lo e transformá-lo em nossa própria substância. Está nesse caso, por exemplo, o alimento e a bebida. Nenhuma das partes por mim absorvidas poderá sê-lo também por ti. Com efeito, ainda que seja verdade que as amas tenham mastigado os alimentos antes de os servirem às crianças, entretanto, o que o paladar assimilou e transformou em sua própria carne não poderá de forma alguma ser devolvido para servir de alimento à criança alguma. Porque quando a boca degusta com prazer algum alimento, ela reserva para si uma parte, por mínima que seja, e de modo irreversível. Isso acontece conforme as exigências da natureza do corpo. Se assim não fosse, não teria sabor algum na boca, depois de os alimentos terem sido mastigados e dados a outros.

            E pode-se dizer, com igual razão, quanto às partes do ar que inspiramos pelas narinas. Porque ainda que possas também inspirar alguma porção do ar que eu expirei, não poderás, entretanto, inspirar também aquilo que foi convertido em algo que me é próprio, e que não pode ser devolvido. Com efeito, os médicos ensinam que nós também nos alimentamos, ao respirar. E não posso devolver o mesmo ar expirando, para que possas, por tua vez, recebê-lo, aspirando por tuas narinas. (p.98).

            Quanto, porém, aos outros objetos sensíveis que percebemos, mas sem entretanto os mudar em nossa substância corporal, alterando-os, nós podemos, eu e tu, senti-los, ou ao mesmo tempo, ou então alternadamente, um depois do outro, de modo que podes também sentir seja a totalidade do objeto, seja a mesma parte do que eu sinto. Tais são, por exemplo, a luz, o som ou os corpos que tocamos, sem entretanto alterá-los.

            Ev. Compreendo.

            Ag. Está, pois, claro que os objetos percebidos por nossos sentidos corporais, sem entretanto os transformarmos, ficam, estranhos à natureza de nossos sentidos. E assim são eles um bem comum, porque não são convertidos nem transformados em algo próprio nosso, e por assim dizer, naquilo que é de nosso uso privativo.

            Ev. Concordo perfeitamente.

            Ag. Portanto, é preciso entender como sendo coisa própria e de ordem privada o que pertence a cada um de nós em particular, e assim somente cada um percebe em si mesmo, como pertencente propriamente à sua natureza. E, por sua vez, é preciso entender como coisas comum e de ordem pública o que, sem nenhuma alteração nem mudança, é percebido por todos. 21

            Ev. Assim acontece. (p.99).

 

 

SEGUNDA PARTE (8,20-14,38)

 

A INTUIÇÃO DE DEUS – ACIMA DA RAZÃO

 

Capítulo 8

 

Os números e suas leis – superiores à razão

 

  1. Ag. Coragem! Atende agora, e dize-me, se há alguma coisa que possa ser objeto comum da visão a todos os seres capazes de raciocinar. Todavia que a veja, cada um, com sua própria razão e espírito. Alguma coisa visível a todos e que estando, à disposição geral, entretanto não sofre alteração pelo uso dos que dela se servem à vontade, o que não acontece com o alimento e a bebida. Mas que permanecem inalteráveis em sua integridade, seja ela vista ou não. Em tua opinião, talvez nada exista com tais propriedades?

            Ev. Ao contrário. Eu vejo muitas coisas dessa natureza. Basta lembrar a razão e a verdade dos números. Apresentam-se elas a todos os que raciocinam, de tal forma que aqueles que fazem cálculos, cada um baseado em sua própria razão e inteligência, esforçam-se para adquiri-la. Uns conseguem-no mais facilmente, outros mais dificilmente; outros ainda não o conseguem de modo algum. Todavia, ela mostra-se igualmente a todos os que são capazes de captá-la. E quando alguém a percebe, ninguém a transforma nem a converte em si mesmo, como se fosse alimento. E caso alguém se engane a seu respeito, ela não fica desvirtuada. Permanece em toda sua verdade e integridade. Apenas a pessoa que se engana, (p.100) afunda tanto mais no erro quanto menos consegue vê-la perfeitamente. 22

 

  1. Ag. Sem dúvida, isso é bem exato. Vejo que, como homem bem informado nessa matéria, soubeste encontrar pronta resposta. Entretanto, se te fosse dito que esses números estão impressos em nosso espírito, não em virtude de alguma propriedade de sua natureza, mas por efeito das coisas sensíveis percebidas, sendo, portanto como imagens dos objetos visíveis, o que responderias? Ou acaso és também desse parecer?

            Ev. De modo algum penso dessa maneira. Pois se é pelos sentidos que percebo os números, não se segue que também possa perceber por esses mesmos sentidos a lei da divisão e da audição dos ditos números. É pela luz de meu espírito que corrigirei o indivíduo, seja ele quem for, que numa adição ou subtração me apresentar um resultado errôneo. Do mesmo modo, de tudo o que percebo pelos sentidos corporais, como o céu, esta terra e os diversos corpos que aqui se encontram, eu ignoro a sua duração futura. Mas, ao contrário, sei com certeza que sete mais três são dez. e isso não somente agora, mas para sempre. E que nunca, de modo algum, sete mais três cessaram no passado e não cessarão no futuro de ser dez. Tal é, pois uma verdade inalterável dos números, que é, como disse, possuída em comum por mim e por qualquer ser dotado de razão. 23

 

  1. Ag. Nada tenho a objetar ás tuas respostas tão cheias de verdade e de certeza. Mas verás igualmente que os próprios números não são percebidos por meio dos sentidos corporais. E isso, com facilidade, quando consideramos que qualquer número recebe sua designação de número em virtude das vezes que contém a unidade. Por exemplo, se contém duas vezes a unidade é chamado dois. (p.101) Se três vezes, chama-se três. E caso possua dez vezes a unidade, então denomina-se dez. e assim todo número, sem exceção, é denominado pelo número de vezes que contém a unidade.

            Ora, todo aquele que reflete sobre a verdadeira noção da unidade constata que ela não pode ser captada pelos sentidos corporais. Porque todo objeto atingido por um de nossos sentidos, seja ele qual for, não é constituído pela unidade, mas sim pela pluralidade que o forma. Com efeito, por ser um corpo, pó aí mesmo, possui inúmeras partes. Assim, sem falar de todos os corpos, do menor e dos menos distintos, um corpúsculo, por exemplo, por menor que seja possui, sem dúvida, ao menos uma à direita e outra à esquerda, uma parte superior e outra inferior, uma anterior e outra posterior, extremidades e uma parte do meio. Devemos admitir que todas essas partes encontram-se na exigüidade da menor massa corpórea que seja. É porque não podemos admitir que corpo algum seja pura e realmente uma unidade. Se bem que não se possa contar nele tal infinidade de partes, senão quando as distinguimos pelo conceito da mesma unidade.

            Com efeito, quando procuro a unidade num corpo e que estou certo de não a encontrar, por certo eu sei o que aí procurava e que não encontraria, nem poderia encontrar. Ou melhor dito, o que não existe de forma alguma. Sabendo, pois, que não existe um corpo uno, eu sei entretanto o que seja a unidade. Porque se ignorasse não poderia contar no corpo essa pluralidade e diversidade de partes. Em todo lugar, porém, onde conheço a unidade, por certo nunca será por meio dos sentidos corporais, pois que eles me informam unicamente sobre os corpos, nos quais a unidade pura e verdadeira está ausente, como já o provamos.

            Por outro lado, se nós não percebemos a unidade pelos sentidos corporais, tampouco percebemos por meio (p.102) deles o número, pelo menos nenhum daqueles números que nós intuímos pela inteligência. Porque não há nenhum que exista a não ser por quantas vezes contém a unidade. Ora, essa percepção escapa aos sentidos corporais.

            Tomemos, por exemplo, a metade dessas duas metades, cada uma delas possui ainda a sua metade. Essas duas partes estão no corpo, sem serem elas mesmas simplesmente duas partes indivisíveis. Ao contrário, o número denominado dois, porque possui duas vezes o que é simplesmente um, vê sua metade, que é precisamente o um puro e simples, incapaz de ter ele mesmo uma metade, ou um terço, ou uma outra fração por ser simples e realmente um (uno e único). 24

 

A constante ordem dos números

 

  1. Ag. Além do mais, seguindo a série dos números, vemos que depois de um vem o dois, e esse número comparado ao precedente é o seu dobro. Contudo, o dobro de dois não vem logo depois dele, mas sim o três, por meio do qual se chega ao quatro, que é o dobro de dois. E essa relação estende-se a toda série dos outros números conforme uma lei absolutamente certa e imutável. De maneira que, depois de um, isto é, depois do primeiro de todos os números e prescindindo deste, o primeiro a seguir é o que realizará o seu duplo, o dois. Por sua vez, depois do dois, imediatamente após esse segundo número e este descontado, só será o segundo número que realizará o seu dobro. Porque depois de dois vem primeiramente o número três e só em segundo lugar o quatro, que é o dobro de dois. Depois do terceiro número, isto é, do três e, sendo este descontado, será o terceiro número que realizará o dobro. Porque depois de três vem primeiramente o quatro, e em (p.103) seguida o cinco, e só em terceiro lugar o seis, que é o dobro de três. E do mesmo modo, depois do quatro e prescindindo deste, o quarto número, que é o dobro dele. Porque vem primeiramente o cinco, em segundo lugar o seis e em terceiro o sete e só em quarto, o oito, que é o dobro do quatro. Assim, pois, vai acontecer com todos os outros o que foi verificado com o primeiro par de números, isto é, com o um e o dois, a saber: acrescentando a um número qualquer a série de unidades que ele conta, a totalidade obtida é o seu dobro. Pois bem, essa lei da qual constatamos a imutabilidade, a estabilidade e a inalterabilidade, que vemos cumprida em toda série de números – por meio de qual faculdade e de onde temos seu conhecimento? 25

            Com efeito, pessoa alguma, por nenhum de seus sentidos corporais, pode abraçar o conhecimento de todos os números, por serem eles inumeráveis. E como sabemos ser essa relação a mesma para todos eles? Por meio de que imaginação ou em que imagem essa verdade tão certa – a da série indefinida dos números – mostra-se a nós com tanta constância em casos inumeráveis, a não ser por uma luz interior, ignorada pelos sentidos corporais? 26

 

A lei dos números é universal e acessível a todos os que raciocinam

 

  1. Ag. Por essas provas e muitas outras semelhantes, todos aqueles que raciocinam e a quem Deus concedeu o espírito, mas igualmente a quem a teimosia não envolveu nas trevas, são forçados a reconhecer que a lei e a verdade dos números escapam ao domínio dos sentidos corporais, e que essas leis são invariáveis e puras, oferecendo-se universalmente aos olhos de todos aqueles que são capazes de raciocínio. 27

            É certo que muitas outras verdades podem ser encontradas, que se apresentam, por assim dizer, pública e (p.104) universalmente a todos os que refletem. E cada um em seu espírito e sua razão, e não com os sentidos corporais, deixam-nas invioláveis e imutáveis.

            Foi, pois, por algum motivo que eu te permiti com boa vontade, quando ao responderes àquela minha questão (II,8,21), de abordares principalmente estas leis e esta verdade dos números.

            Pois, de fato, não é em vão que os nossos Livros Santos uniram intimamente o número á sabedoria, ao escreverem: “Explorei, igualmente, o meu próprio coração para conhecer, examinar e escrutar a sabedoria e o número” (Eclo 7,26). 28

 

Capítulo 9

 

Manifestações de sabedoria natural

 

  1. Ag. Todavia, peço que me digas o que te parece precisarmos pensar a respeito da sabedoria. Julgas que cada um dos homens sábios possui uma sabedoria particular? Ou, então, crês que haja uma única sabedoria à disposição de todos, como um bem comum, ao qual, quanto mais uma pessoa participa, mais torna-se sábia?

            Ev. Mas ainda não sei de que sabedoria queres falar? Pois vejo os homens opinarem de modo diferente sobre o que seja agir ou falar com sabedoria. Por exemplo:

            - Aqueles que abraçam o serviço militar crêem estar agindo de maneira sábia.

            - Ao contrário, os que menosprezam esse estado e empenham-se a trabalhar na agricultura, louvam de preferência essa ocupação, atribuindo-a à sabedoria. (p.105).

            - Por outro lado, aqueles que são hábeis em cogitar meios de se enriquecer, crêem por aí serem sábios.

            - Em contradição, os que, desprezando ou repelindo todas essas coisas e qualquer espécie de bens temporais, aplicam todos os seus esforços na busca da verdade a fim de adquirir o conhecimento de Deus e de sim mesmos e julgam que tal seja a grande função da sabedoria.

            - E por sua vez, existem aqueles que se recusam a entregar-se ao lazer da busca da contemplação da verdade, para dedicarem-se antes a cuidados e ocupações bem penosas, tornando-se úteis aos homens e consagrando-se à ocupação de governar e organizar com justiça as tarefas humanas. Esses também consideram-se como sábios.

            - Finalmente, há aqueles que fazem uma coisa e outra, vivendo em parte na busca da contemplação da verdade e em parte nas tarefas do serviço que julgam dever à sociedade humana. Pensam eles levar a palma da sabedoria.

            Isso, omitido aquelas inumeráveis agremiações das quais não existe nenhuma que, pondo seus seguidores acima de todos, não pretenda que só elas possuem o título de sábios.

            Desse modo, como se trata agora entre nós de responder não conforme ao que cremos, mas conforme ao que admitimos com compreensão clara, ser-me-á impossível responder à tua questão, antes de saber não só pela fé, mas também pela luz da razão: em que consiste a sabedoria, ela mesma? 30

 

Sabedoria – Bem supremo e Verdadeiro beatificante

 

  1. Ag. Acaso, em tua opinião, será a sabedoria outra coisas a não ser a verdade, na qual se contempla e se possui o sumo Bem, 31 ao qual todos desejamos chegar, sem (p.106) dúvida alguma. Com efeito, todos aqueles de quem acabas de citar as opiniões divergentes, na busca da sabedoria, desejam o bem e fogem do mal. Mas a razão da divergência de seus sentimentos encontra-se nas diversas acepções que têm do bem. Ora, quem quer que, conseqüentemente, deseja aquilo que não deveria desejar, não deixa de estar no erro – ainda que não desejasse a não ser o que lhe parecia como bem. Pelo contrário, é impossível o erro, no caso de alguém não ter desejo algum, ou desejar apenas o que devia desejar.

            Na medida, pois, em que todos os homens desejam a vida feliz, não erram. Mas na medida em que alguém abandona o caminho da vida que leva à beatitude, mesmo quando declara e proclama não querer senão chegar até à beatitude, nessa mesma medida erra. Com efeito, há erro quando seguimos um caminho que não pode nos conduzir aonde pretendemos chegar. E quanto mais uma pessoa erra no caminho da vida, menos ela é sabia, porque tanto mais afasta-se da verdade, na qual se contempla e se possui o Bem supremo. Ora, uma vez alcançando o sumo Bem, cada um torna-se feliz, o que sem contestação todos nós queremos. 32

            Portanto, como é certo que todos queremos ser felizes, é também certo que queremos possuir a sabedoria. Pois ninguém é feliz sem a posse do sumo Bem, cuja contemplação e posse encontram-se nessa verdade que denominamos sabedoria.

            Desse modo, assim como antes de sermos felizes possuímos impressa em nossa mente a noção da felicidade, visto ser por ela, com efeito, que sabemos com firmeza, sem nenhuma hesitação afirmamos que queremos ser felizes. Assim também, antes de sermos sábios, nós temos impressa em nossa mente a noção da sabedoria. 33 Em virtude da qual cada um de nós, ao ser questionado se quer ser sábio, responde sem sombra de hesitação que o quer. (p.107).

 

Sabedoria – bem comum e supremo de todos

 

  1. Ag. Logo, estamos de acordo sobre a natureza da sabedoria. Talvez as tuas palavras não puderam exprimir essa definição, mas se teu espírito não o tivesse percebido de algum modo, ignorarias totalmente que queres ser sábio, e que tens a obrigação de o querer – o que não negarás, eu o penso. Nessas condições, quisera que me dissesses agora se és da opinião que a sabedoria oferece-se, ela também tal as leis e a verdade dos números, como um bem comum para todos os que gozam do uso da razão. Ou então, que existem tantas sabedorias quanto se possa contar de sábios, porque há tantas inteligências humanas quantos homens – o que faz com que nada possa eu ver da tua mente, nem tu da minha.

            Ev. Se o Bem supremo é único e o mesmo para todos, é preciso também que a verdade o seja. Pois é nela que é visto e adquirido esse bem, isto é, a sabedoria.

            Ag. Mas tens, acaso, alguma dúvida de que o Bem supremo, seja ele qual for, venha a ser o mesmo para todos os homens?

            Ev. Sim, tenho certas dúvidas, porque vejo umas pessoas pondo o seu deleite em coisas muito diversas, como se essas fossem o seu Bem supremo.

            Ag. Na verdade, quisera que ninguém tivesse dúvida sobre o Bem supremo, assim como ninguém tem sobre a necessidade de se possuir esse Bem supremo, seja ele qual for, para ser feliz. Mas essa é uma grande questão que talvez exija outra longa exposição. Portanto, suponhamos que haja, com efeito, tantos bens supremos quantos os objetos distintos procurados por pessoas diversas, como sendo o seu bem supremo. Talvez, deverá seguir-se daí que a própria sabedoria não seja a única e comum a todos, pelo fato de os bens que os homens vêm e escolhem nela serem múltiplos? Se crês isso, podes também (p.108) duvidar de que a luz do sol seja única, pelo fato de os objetos vistos por ela serem múltiplos e diversos. E entre essa multiplicidade de seres, cada um escolhe a seu gosto. Por exemplo, aquilo que alguém desejar pelo sentido da vista. Um olha com agrado a altura de um monte, e goza desse espetáculo. Outro prefere a regularidade da planície. Este, a profundidade dos vales. Aquele outro, o verde das florestas. Outro, a mobilidade da superfície do mar. E outro, finalmente, reúne todas essas belezas ou algumas delas simultaneamente, para a alegria de sua vista.

            Dessa maneira, assim como – apesar da diversidade e multiplicidade dos objetos que os homens vêem à luz do sol, entre os quais escolhem para deleite de sua contemplação – não há, entretanto, senão uma só e mesma luz, na qual o olhar atento de cada um descobre e abraça como objeto de seu especial deleite. Do mesmo modo, apesar da multiplicidade e diversidade dos bens entre os quais cada um escolhe o que prefere para dele gozar, contemplando-o e possuindo-o, e para fazer dele o seu real e verdadeiro Bem supremo, não obstante, é bem possível que a luz mesma da sabedoria, mediante a qual se pode contemplar e possuir esses bens, seja ela mesma única e comum para todos os sábios. 34

            Ev. Concordo que seja possível, e nada impede que haja sabedoria única e comum a todos, apesar da diversidade e multiplicidade dos bens. Mas quisera saber se assim é de fato. Pois admitir a possibilidade de alguma coisa ser, de certa maneira, não constitui que ela o seja na realidade.

            Ag. Sabemos, pois, por agora, que existe a sabedoria, mas não sabemos ainda se ela é única e comum a todos, ou se cada um dos sábios possui a sua sabedoria própria, como cada um possui a sua alma e a sua inteligência própria.

            Ev. É bem assim. (p.109).

 

Capítulo 10

 

Certezas imutáveis das leis da sabedoria

 

  1. Ag. Pois bem! O que te parece? Quando afirmamos com segurança que existe a sabedoria e que existem homens sábios, e que todos queremos ser felizes, de onde vêm essas verdades? Pois não ousarias duvidar de que sabes isso e que é essa de fato a verdade? 35

            Ora, tu não as vês como vês o pensamento que tens, o qual eu ignoro totalmente, a não ser que tu mo comuniques? Ou então, tu as vês compreendendo que eu também possa vê-las, embora tu não o comuniques a ti.

            Ev. Não duvido de que tu também possas ver tais verdades, mesmo que eu não as queira comunicar a ti.

            Ag. Então, uma verdade única que ambos vemos, cada um por sua própria inteligência, não será ela algo de comum a nós dois?

            Ev. Evidentemente.

            Ag. Do mesmo modo não negarás, suponho eu, que devemos aplicar-nos ao estudo da sabedoria, e concordarás que aí está também uma verdade?

            Ev. Disso não duvido de forma alguma.

            Ag. Poderíamos, além disso, negar que essa verdade seja uma e ao mesmo tempo comum, aos olhos de todos aqueles que a percebem, não obstante, cada um a perceber pela própria inteligência e não pela minha ou a tua, ou de quem quer que seja? Pois, finalmente, o objeto dessa percepção apresenta-se universalmente à disposição de quantos a contemplem.

            Ev. De modo algum podemos negar isso.

            Ag. E se for dito, igualmente: é preciso viver conforme a justiça, subordinar as coisas menos boas às melhores; comparar entre si as semelhantes; e dar a cada um o (p.110) que lhe é devido. Não concordarás que tudo isso é muito verdadeiro e apresenta-se universalmente à minha disposição como à tua, e a todos aqueles que o considerarem?

            Ev. Estou de acordo.

            Ag. Bem! E se for dito: o que não é corrompido, isto é, o íntegro é melhor do que o corrompido; o eterno vale mais do que o temporal; o ser inviolado mais do que aquele sujeito à violação. Poderás negar isso?

            Ev. Quem o poderia?

            Ag. Logo, cada um pode apropriar-se, dizendo serem só suas, essas verdades, quando elas se apresentam de maneira imutável à contemplação de todos aqueles que as podem considerar?

            Ev. Ninguém poderia, sem erro, declarar essas verdades serem de sua propriedade particular, visto serem, igualmente, únicas e comuns a todos, enquanto verdadeiras.

            Ag. Do mesmo modo, é preciso afastar sua alma da corrupção e a dirigir para a pureza, isto é, urge amar, não a corrupção, mas a integridade. Quem o negará? E uma vez admitida a existência dessa verdade, como não compreender que ela seja imutável, e possa ser entendida por todas as inteligências capazes de a perceber?

            Ev. Isso é muito exato.

            Ag. E se for dito: uma vida que adversidade alguma desvia do caminho certo e honesto é melhor do que outra vida facilmente dividida e sacudida pelas provações temporais. Poderá alguém duvidar disso. 36

            Ev. Quem o duvidaria?

 

  1. Ag. Já não procurarei exemplos desse gênero. Basta que reconheças comigo e que me concedas como algo muito certo que essas verdades são como regras e espécie de luminares das virtudes; 37 e ainda, que essas máximas são verdadeiras e imutáveis, prestando-se, seja isolada, seja conjuntamente, como um objeto comum de compreensão a (p.111) todos aqueles que as podem perceber, cada um por meio de sua própria inteligência e razão. Mas eu te pediria, ainda, se essa regra e luzeiro das virtudes, conforme teu julgamento, pertencem à sabedoria. Pois julgarás, penso eu, que todo homem tendo alcançado a sabedoria é sábio?

            Ev. Assim me pareces de fato.

            Ag. E que dizer? Aquele que vive conforme à justiça, poderia fazê-lo se não visse quais são as coisas inferiores a serem subordinadas às superiores; e quais as iguais a serem postas no mesmo plano; e quais as coisas particulares que devem ser evolvidas a cada um?

            Ev. Uma pessoa sem a sabedoria não saberia agir assim.

            Ag. Negarás, pois, que uma pessoa que vê essas coisas, contempla-as como sábio?

            Ev. Não o nego.

            Ag. E o que dizer daquele que vive com prudência? Não escolhe ele a incorruptibilidade, julgando ser preciso preferi-la à corrupção?

            Ev. É claro.

            Ag. Assim, pois, quando uma pessoa escolhe para dirigir o seu espírito aquelas coisas na opinião de todos devem escolhidas, pode-se negar que sua escolha seja feita com sabedoria?

            Ev. Não o negarei de modo algum.

            Ag. Por conseguinte, uma pessoa ao dirigir seu espírito na direção de quem escolhe sabiamente, é indubitável que está agindo com sabedoria?

            Ev. Sim, é indubitável.

            Ag. Dessa maneira, aquele que nem por medo, nem por ameaças afasta-se do fim escolhido, e para o qual dirige-se sabiamente, age ele, sem dúvida, com sabedoria?

            Ev. Com efeito, sem dúvida alguma.

            Ag. Por conseguinte, é manifesto que tudo o que chamamos de regras e luminares das virtudes pertencem (p.112) à sabedoria. Com efeito, quanto mais alguém acomoda sua vida a elas e vive e age desse modo, tanto mais vive com sabedoria. Ora, nenhuma ação feita com sabedoria pode-se dizer que esteja desligada da sabedoria.

            Ev. É bem assim.

            Ag. Portanto, quanto verdadeiras e imutáveis são aquelas leis dos números, das quais, como dizias anteriormente, apresentam-se de modo imutável e universal a todos os que as consideram; e tanto são igualmente verdadeiras e imutáveis as regras de sabedoria. Algumas delas, eu as submeti especialmente à tua apreciação, e te pareceram verdadeiras e evidentes. Concordaste serem elas comuns a todas as inteligências capazes de as perceber.

 

Capítulo 11

 

A sabedoria e os números encontram sua fonte na Verdade imutável

 

  1. Ev. Não posso ter dúvidas acerca disso. Mas bem quisera saber se essas duas realidades, a saber, a sabedoria e o número pertencem a um só e mesmo gênero, já que as próprias santas Escrituras, como lembraste, reúnem-as num mesmo plano ao mencioná-las. 38 Ou acaso, procederia uma da outra ou, ainda, uma subsistiria na outra? Será que o número procede da sabedoria ou subsiste nela? 39 Com efeito, se a sabedoria procede do número ou subsiste nela, eu não ousaria afirmá-lo. Na verdade, não sei como explicar o fato de, conhecendo um grande número de estudiosos de aritmética e calculadores, ou sejam eles designados de modo diferente, esses que sabem perfeita e admiravelmente calcular e, por outro lado, conhecendo eu bem pouco sábios ou mesmo nenhum, a sabedoria parece-me um bem mais venerável do que o primeiro. (p.113).

            Ag. Dizes algo que eu costumo estranhar. Pois quando considero em mim a verdade imutável dos números e, por assim dizer, as moradas ou o santuário ou região sublime onde habitam, ou se conseguirmos encontrar qualquer outro nome mais conveniente para designar essa espécie de habitação e sede dos números, nesse caso, eu me sinto bem longe do mundo corpóreo. 40 E se nessa região sublime descubro alguma realidade, na qual talvez me seja possível pensar, nada encontro que possa ser traduzido em palavras. Caio então no cansaço e volto aos objetos que nos cercam, a fim de conseguir me exprimir. E falo de coisas que estão diante de nossos olhos como de costume.

            Acontece-me isso, igualmente, quando me aplico a pensar na sabedoria, com toda atenção que posso e muito esforço.

            Fico assim muito perplexo, visto que essas duas realidades – a sabedoria e o número – pertencem à verdade indubitável, a mais secreta e certa. E acrescento ainda o testemunho das Escrituras, onde essas duas coisas, como lembrei acima, estão mencionadas conjuntamente. Portanto, muito de admiro de que o número seja tido como sem valor para a imensa multidão de homens, ao passo que a sabedoria lhes seja de muito apreço. Pois, incontestavelmente, são uma só e mesma realidade. Não obstante, nos Livros Sagrados é dito também, sobre a sabedoria, que “ela atinge com força de uma extremidade à outra, e dispõe todas as coisas com suavidade” (Sb 8,1). Esse poder pelo qual “ela designa talvez o número. E aquele, em virtude do qual “ela dispõe tudo com suavidade”, denominaria já em sentido próprio a sabedoria. Já que uma e outra coisa pertencem a uma só e mesma sabedoria.

 

  1. Ag. Mas por que Deus deu o número a todos os seres, até mesmo aos menores e àqueles que se encontram no (p.114) limite das coisas? Pois os corpos também possuem seus números, ainda que estejam no último lugar na escada dos seres. Ao contrário, Deus não deu a sabedoria aos corpos, nem a todos os seres vivos, mas somente às almas racionais. É como se estabelecesse nelas, como em seu trono, para de lá dispor sobre todas as coisas, até as mais ínfimas, as quais são certamente dotadas de números. Assim como nós julgamos facilmente os corpos como objetos ordenados, inferiores a nós, e que neles vemos impressos números, supomos que estes também estejam abaixo de nós, e por isso serem de menor valia do que a sabedoria. Contudo, se nos dispusermos a voltar, por assim dizer, em direção ao alto, descobriremos que os mesmos números ultrapassam as nossas mentes e permanecem imutáveis na verdade, ela mesma.

            É por isso que bem poucas pessoas podem ser sábias, ao passo que a possibilidade de fazer contas é concedida até aos néscios. É também porque os homens admiram a sabedoria e apreciam menos os números. Mas aqueles que são instruídos e os verdadeiros estudiosos quanto mais se afastam das impurezas terrestres, tanto melhor contemplam na própria verdade o número como a sabedoria, e a ambas atribuem grande estima. Em comparação a essa verdade, não somente o ouro e a prata, mas todos os outros bens, para a obtenção dos quais os homens se disputam, e até a si mesmos, são julgados como vis. 41

 

  1. Ag. Não te admires, pois, se os homens fazem pouco caso dos números e apreciam a sabedoria como muito preciosa. É precisamente porque é mais fácil para eles fazer contas do que ser sábio. Não vês que eles também estimam mais o ouro do que a luz de uma lâmpada, em comparação da qual o ouro possui apenas um valor irrisível? Dá-se assim mais apreço a uma coisa bem inferior, porque (p.115) até um mendigo pode acender para si uma lâmpada, ao passo que, ao ouro, bem poucos o possuem.

            Quanto à sabedoria, longe de mim considerá-la inferior, em comparação ao número, visto que ela lhe é idêntica. Requer, porém, olhos capazes de a contemplar. Do mesmo modo como no fogo percebe-se a luz e o calor, que são por assim dizer consubstanciais, sem poderem ser separados um do outro, contudo, o calor atinge somente os objetos que se colocam perto dele. A luz, entretanto, difunde-se também nos lugares mais distantes e espaçados. De igual maneira, o poder da inteligência, inerente à sabedoria, inflama com seu calor os seres mais próximos a ela, como são as almas racionais. Quanto aos seres mais afastados, como os corpos, esses não são tão atingidos pelo calor da sabedoria, também se inundados pela luz dos números.

            Tudo isso pode talvez ser obscuro para ti, pois não se pode, de modo adequado, adaptar alguma comparação de coisas visíveis a algo invisível. Observa somente um ponto que aliás bastaria como conclusão para a questão em pauta. Será ele evidente até para espíritos humildes como os nossos. Se não podemos saber claramente se o número está contido na sabedoria ou se procede dela; ou ainda, se a própria sabedoria vem do número ou existe nele; finalmente, se é possível ver uma mesma realidade sob nome duplo, o que é evidente, em qualquer caso é que a sabedoria, como o número, é verdadeira e imutavelmente verdadeira. 42

 

Capítulo 12

 

A Verdade imutável – o próprio Deus

 

  1. Ag. Conseqüentemente, de modo algum poderias negar a existência de uma verdade imutável que contém em si todas as coisas mutáveis e verdadeiras. 43 E não as (p.116) poderias considerar como sendo tua ou como exclusivamente minha, nem de ninguém. Pelo contrário, apresenta-se ela e oferece-se universalmente a todos os que são capazes de contemplar realidades invariavelmente verdadeiras. É ela semelhante a uma luz admiravelmente secreta e pública ao mesmo tempo. Ora, a respeito de algo que pertence assim universalmente a todos os que raciocinam e compreendem, poder-se-ia dizer que pertence como própria à natureza particular de alguém?

            Tu lembras, penso eu, de nossas considerações precedentes (II,15-19) sobre os sentidos corporais? 44 A respeito daqueles objetos que percebemos em comum pelos sentidos da vista ou do ouvido, tal como as cores e os sons, nós os vemos ou entendemos conjuntamente, tanto eu como tu. E contudo, esses objetos não pertencem à natureza de nossos olhos ou ouvidos, mas nos são comuns, enquanto objetos de percepção. Assim, não dirias sobre esses objetos que nós percebemos um e outro em comum, cada um com sua própria mente, que eles constituam a natureza individual da mente de qualquer de nós. Porque se os olhos de duas pessoas vêem juntos, ao mesmo tempo, um objeto, será impossível esse objeto ser identificado com os olhos desta ou daquela. Será esse objeto terceira coisa para a qual se dirigem os olhares de uma pessoa e outra.

            Ev. Nada de mais claro e verdadeiro.

 

Inferioridade da mente diante da verdade: incapaz de julgá-la e susceptível de constante mutabilidade

 

  1. Ag. Portanto, esta verdade sobre a qual estamos falando há tanto tempo e a qual mesmo sendo uma só nos faz perceber tantas coisas, será ela, no teu parecer, mais excelente do que a nossa mente? Igual a ela? Ou até inferior?

            Se fosse inferior nossos julgamentos, longe de se regulamentarem sobre ela, julgariam a ela mesma, tal (p.117) como nós julgamos os corpos. E acontece isso porque estes são inferiores a mente humana. Dizemos dos corpos muitas vezes não somente que são ou não assim, que deviam ser ou não de tal modo. E igualmente sobre nossa alma sabemos não apenas que ela possui tal ou tal maneira de ser, mas que talvez deveria possuir tal ou tal outro modo de ser. De fato, a respeito dos corpos é desse modo que julgamos, ao dizer: “este é menos branco do que deveria ser” ou: “é menos quadrado”, e ainda a respeito de muitas outras propriedades. Sobre nossa alma, dizemos: “ela é menos capaz do que deveria ser”, ou: “menos condescendente”, ou: “menos corajosa”, conforme a modalidade com que se apresenta nosso estado moral. E nós formamos esses julgamentos de acordo com aquelas regras interiores da verdade que todos possuímos em comum. E de modo algum ninguém vem a julgar essas mesmas regras. Com efeito, quando alguém afirma: “as coisas eternas são superiores às temporais”, ou então: “sete e três são dez”, ninguém diz: “isso deveria ser assim”. Pelo contrário, cada um apenas constata ser assim. Ninguém corrige como se fosse algum censor, mas registra com alegria como uma descoberta.

            Por outro lado, se a verdade fosse igual às nossas mentes, ela se tornaria mutável como elas são, já que nosso entendimento, às vezes, vê de modo mais claro; outras vezes, menos. E por aí revela ser mutável. Ao passo que a verdade, permanecendo a mesma em si mesma, não ganha nada quando a vemos mais claramente nem nada perde quando a vemos menos bem. Ela guarda sempre sua integridade e sua inalterabilidade. 45 Aqueles que matem seu olhar voltado para ela, alegram-se, pois são iluminados. E ficam cegos os que se recusam olhar em sua direção.

            E que dizer ainda? Não é também em conformidade com a verdade que emitimos juízos sobre a nossa própria mente, sem que ninguém possa proferir, de modo algum, (p.118) juízos a respeito da verdade ela mesma? Com efeito, afirmamos: “fulano compreende menos do que devia”, ou: “compreende tanto quanto devia”. Ora, a medida conforme a qual a mente humana deve compreender é a medida mesma com que consegue aplicar-se e unir-se à verdade imutável.

            Assim, pois, se a verdade não é nem inferior, nem igual a nossa mente, segue-se que ela só pode ser superior e mais excelente do que ela. 46

 

Capítulo 13

 

Exortação a abraçar a Verdade – fonte única da felicidade

 

  1. Ag. Eu te havia prometido, se te lembras, de haver de provar que existe uma realidade muito mais sublime do que a nossa mente e nossa razão (cf. II,6,14). Ei-la diante de ti: é a própria Verdade! Abraça-a, se o podes. Que ela seja o teu gozo! “Põe tuas delícias no Senhor e ele concederá o que teu coração deseja!” (Sl 36,4). Pois o que desejas senão ser feliz? E haverá alguém mais feliz do que aquele que goza da inabalável, imutável e muito excelente Verdade? 47

            Por certo, os homens dizem-se felizes quando abraçam belos corpos, objetos de seus ardentes desejos, sejam os de suas esposas, sejam os de suas amantes. E duvidaríamos nós de nossa felicidade, quando abraçamos a Verdade?

            Proclamam-se felizes os homens quando, para refrescar a garganta ressequida pelo calor, chegam até uma fonte abundante e pura. Ou quando famintos, encontram para saciar a fome a refeição do meio-dia ou a da noite, abundante e esmerada. E negaríamos nós que somos (p.119) felizes, quando a mesma Verdade sacia nossa sede e nossa fome?

            Muitas vezes, ouvimos a voz daqueles que se dizem felizes, porque descansam em leito de rosas e flores variadas. Ou ainda, deleitam-se com os mais delicados perfumes. Mas existe algo mais perfumado, algo mais agradável do que o sopro da Verdade? E duvidaríamos nós de nos dizer felizes quando a suspiramos?

            Muitos põem a felicidade de sua vida em ouvir cantos de vozes humanas e o som de instrumentos musicais. Se lhes faltam tais prazeres, consideram-se infelizes. Mas caso lhes sejam devolvidos, transbordam de alegria. E nós? Quando certo silêncio eloqüente e harmonioso da Verdade penetra, por assim dizer, sem qualquer ruído em nossa mente, haveríamos de procurar outra vida feliz, em vez de gozarmos desta tão presente e segura em nós?

            Os homens crêem-se felizes quando – deleitados com o brilho do ouro ou da prata, com o brilho das pedras preciosas ou de outros objetos coloridos ou com o esplendor e encanto da própria lua destinada a iluminar nossos olhos corporais, venha ela do fogo da terra, das estrelas, da luz ou do sol – não são afastados desse deleite, por desgosto nem necessidade alguma; sentem-se deveras felizes e desejariam viver para sempre desse modo, a fim de gozar de tais prazeres. E nós, temeríamos pôr a felicidade de nossa vida na contemplação da luz da Verdade?

 

A Verdade vive na mente humana

 

  1. Ag. Muito pelo contrário, já que é na verdade que conhecemos e possuímos o Bem supremo, e já que essa Verdade é a Sabedoria, fixemos nela nossa mente para captarmos esse Bem e gozarmos dele. Pois é feliz aquele que desfruta do sumo Bem! (p.120).

            Com efeito, essa verdade contêm em si todos os bens verdadeiros, entre os quais os homens, conforme o grau de sua inteligência escolhem para si um só ou diversos deles, para seu gozo. Ora, há homens que à luz do sol fixam com agrado seus olhos sobre certo objeto para o contemplar com deleite. Talvez haja entre esses homens alguns cujos olhos sejam mais vigorosos, mais sadios e potentes. Esses nada olham com maior prazer do que o próprio sol pelo qual são iluminados todos os outros objetos. E é justamente nesses objetos que os olhos dos mais fracos encontram o seu deleite.

            A mesma coisa acontece quanto a uma inteligência mais vigorosa e forte, depois de ter considerado, com certeza racional, um bom número de verdades imutáveis, seu olhar dirige-se para a Verdade mesma, da qual toda verdade recebe sua luz. Aderindo a ela, eles como que esquecem tudo mais, gozando nela só, e ao mesmo tempo de todas as outras coisas. Pois tudo o que agrada nas verdades particulares ira evidentemente o seu encanto da própria Verdade. 48

 

Capítulo 14

 

A Verdade – fonte de liberdade e segurança

 

  1. Ag. Eis que consiste a nossa liberdade: estarmos submetidos a essa Verdade. É ela o nosso Deus mesmo, o qual nos liberta da morte, isto é, da condição de pecado. Pois a própria Verdade que se fez homem, conversando com os homens, disse àqueles que nela acreditavam: “Se permanecerdes na minha palavra sereis, em verdade, meus discípulos e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,31.32). 49 Com efeito, nossa alma de nada goza com liberdade se não o gozar com segurança. (p.121).

            Ora, ninguém pode viver com segurança no meio de bens que pode vir a perder contra a sua vontade. A verdade e a sabedoria ninguém as pode perder contra a própria vontade. Pois ninguém pode ficar separado delas por distâncias de lugar. O que se pode entender por ficar separado da verdade e da sabedoria será o amor dos bens inferiores. Aliás, ninguém quer alguma coisa sem de fato o querer.

            Logo, nós possuímos na verdade um bem do qual todos podemos gozar igualmente e em comum. Nesse gozo não existe estreiteza alguma, nem defeito nenhum. A qualquer inveja. Ela dá-se a todos do mesmo modo e permanece pura em relação a cada um. Nunca alguém virá a dizer a outro que está junto da verdade: “Retira-te para que eu possa também me aproximar dela. Afasta teus braços, para que eu também a abrace!” Não! Todos lhe estão estreitamente unidos, todos a retêm ao mesmo tempo. Oferece-se em alimento a todos sem ter de se repartir em diversas partes. Tu nada bebes dela sem que eu não possa também beber. Pois nada que dela recebes torna-se tua propriedade exclusiva. Pelo contrário, o que dela recebes permanece também para mim em toda sua integridade. O que dela inspiras não espero que o tenhas exalado para que venha a inspirar por minha vez. Pois nada da verdade torna-se propriedade de um só ou apenas de alguns, mas simultaneamente ela é toda inteira e comum a todos. 50

 

A transcendência da Verdade

 

  1. Ag. Conseqüentemente, esta verdade possui menos analogia com os objetos dos sentidos do tato, do gosto e do olfato do que com os objetos atingidos pelos sentidos do ouvido e da vista. Pois toda palavra escutada é ouvida ao (p.122) mesmo tempo totalmente por todos e cada um. E assim também, quanto aos objetos postos diante dos olhos. Tanto vê uma pessoa quanto outra, ao mesmo tempo.

            Mas essas semelhanças ainda, sem dúvida, muito imperfeitas. De fato, cada palavra, seja qual for, não soa inteiramente ao mesmo tempo. Ela estende-se no espaço por intervalos e prolonga-se no tempo. Uma de suas partes soa primeiro, outra só depois. Do mesmo modo, toda imagem visual ocupa certo campo no espaço e não é vista totalmente em toda parte. Além do mais, todas essas coisas podem nos ser arrebatadas sem que o queiramos, e muitas são as dificuldades que podem nos impedir a possibilidade de gozar delas.

            Realmente, se um cantor pudesse ter uma voz muitíssimo melodiosa, e prolongar indefinidamente, os amantes do canto apressar-se-iam á porfia para escutá-lo. Empurrar-se-iam mutuamente e disputariam os lugares. Isso tanto mais quanto mais numerosos fossem, a fim de cada um poder ficar mais perto do dito cantor. Mesmo assim, da melodia ouvida não poderiam reter nada que pudessem conservar consigo. Pelo contrário, não haveriam de perceber senão sons esparsos.

            Do mesmo modo, se quiséssemos contemplar o sol, e se o pudéssemos fazer sem interrupção, ele não só nos deixaria no momento do poente, mas também poderia ficar oculto à nossa vista, devido às nuvens. Além do mais, muitos outros obstáculos nos fariam perder o prazer de o contemplar, contra nossa vontade.

            Enfim, ainda que eu tivesse sempre presente o encanto da luz para minha vista, e o do canto para os meus ouvidos, o que retiraria eu de glorioso de tudo isso, sendo essas coisas comuns a mim e aos animais?

            Pelo contrário, aquela beleza da Verdade e da Sabedoria, enquanto persistir a vontade de gozar de modo perseverante, nem a multidão de ouvintes amontoados (p.123) em sua volta exclui os recém-chegados. Tampouco o tempo lhe põe um fim, nem ela muda de lugar para lugar. A noite não a interrompe. Nem as trevas a podem esconder. E ela não está subordinada aos sentidos corporais. Está perto de todos aqueles que a amam e voltam-se para ela, em qualquer parte do mundo. Para todos, ela está sempre próxima e para todos dura eternamente. Não está em lugar nenhum e apesar disso nunca está ausente de parte alguma. Adverte-nos do exterior e ensina-nos interiormente. 51 Torna melhores todos os que a contemplam e ninguém é seu juiz, mas sem ela ninguém pode ser julgado com retidão.

            A verdade é, pois, sem contestação superior e mais excelente do que nós, porque ela é uma e ao mesmo tempo torna sábia, separadamente, cada uma de nossas mentes e as faz juízes das outras coisas todas. Jamais, porém, a mente é juiz em relação á Verdade transcendente. (p.124).

 

 

TERCEIRA PARTE (15,39-20,54)

 

TUDO O QUE É BOM E PERFEITO VEM DE DEUS

 

Capítulo 15

 

Conclusão de toda a argumentação anterior: Deus existe!

 

  1. Ag. Ora, (Evódio), tu admitiste que se te eu demonstrasse a existência de uma realidade superior à nossa mente, reconhecerias ser Deus essa realidade. Mas só no caso de nada existir acima dessa realidade. E ao aceitar essa concessão, disse eu, que me bastaria, com efeito, fazer tal demonstração. Pois se houvesse alguma realidade mais excelente, essa precisamente seria Deus. E se não houvesse nada mais excelente do que ela, então, imediatamente, essa mesma verdade seria Deus. Em ambos os casos, todavia, não poderias negar que Deus existe. E precisamente era esta a questão que nós nos tínhamos proposto debater e discutir. 52

            Agora, se em vista disso estás perplexo, recorda aquilo em que cremos conforme o ensino sagrado de Cristo, ou seja, que existe o Pai da Sabedoria. Lembra-te desta outra doutrina pertencente também à nossa fé: que a Sabedoria gerada pelo Pai eterno lhe é perfeitamente igual. É porque nada há mais a discutir, no momento, a respeito desse ponto, mas somente guardarmos esse ensino com fé inabalável. Deus, pois, existe! Ele é a realidade (p.125) verdadeira e suma, acima de tudo. E eu julgo que essa verdade não somente é objeto inabalável de nossa fé, mas que nós chegamos a ela, pela razão, como sendo uma verdade certíssima, ainda que sua visão não nos seja muito profunda, pelo conhecimento. 53 Mas basta-nos isso para podermos explicar os outros aspectos de nosso assunto. A não ser que tenhas alguma objeção a opor a essas conclusões?

            Ev. Quanto a mim, sinto-me inundado por uma alegria realmente incrível, minhas palavras não conseguem exprimi-la. Aceito estas tuas conclusões, proclamando-as certíssimas. Exclamo, pois, com minha voz interior, a qual exprime o desejo de ser atendido pela Verdade mesma, e de unir-me a ela. E essa união, eu o confesso, não somente é um bem, mas o sumo Bem, fonte de beatitude. 54

 

O desejo de sabedoria é inerente a nosso espírito

 

  1. Ag. Muito bem! Igualmente alegro-me profundamente. Mas dize-me: Somos nós, porventura, desde agora, sábios e felizes ou estamos ainda a caminho desse estado a ser atingido?

            Ev. Penso que ainda tendemos a isso.

            Ag. De onde, pois, tiras a compreensão dessas verdades e certezas das quais dizes te alegrar? Pois concedes que elas pertencem à sabedoria? Poderá um ignorante (insipiens) conhecer a sabedoria?

            Ev. Enquanto for ignorante não o poderá.

            Ag. Portanto, ou já te tornaste sábio ou então ainda és ignorante.

            Ev. Na verdade, ainda não sou sábio. Mas tampouco me considero como ignorante, posto que conheço a sabedoria. Com efeito, as conclusões a que cheguei são certas. E não posso negar que elas pertençam à sabedoria.

            Ag. Peco-te de me dizer: não concordas que aquele que não é justo é injusto? E quem não é prudente é (p.126) imprudente? E quem não é temperante é intemperante? Pode-se duvidar de alguma dessas afirmações?

            Ev. Concordo que um homem, quando não é justo, é injusto. E responderia o mesmo a respeito do prudente e do temperante.

            Ag. Agora, por que então quando alguém não é sábio deixará de ser ignorante?

            Ev. Aceito também que aquele que não é sábio é ignorante.

            Ag. Pois bem! E tu qual dessas coisas és?

            Ev. Qualquer que seja a maneira como me denominar não me atrevo ainda a me considerar sábio. Por outro lado, pelo que concordei segue-se, eu o constato, que não devo hesitar em me ter como ignorante.

            Ag. Logo, o ignorante conhece a sabedoria! Com efeito, como dissemos, ele não estaria certo de desejar ser sábio, nem que isso seja de fato irrecusável – caso a idéia de sabedoria não estivesse inerente a seu espírito. Assim, está em ti a idéia dessas realidades obtidas e sobre as quais respondeste muito bem, quando te propus questões. Essas coisas pertencem de fato á sabedoria cujo conhecimento te causou tanta alegria.

            Ev. É bem como dizes.

 

Capítulo 16

 

A sabedoria manifesta-se aos que a procuram,

graças aos números impressos em cada ser

 

  1. Ag. Quando nós nos esforçamos para nos tornar sábios, o que fazemos a não ser concentrar toda nossa alma, com o maior zelo possível, ao que contemplamos com a mente, colocando-a aí de modo estável? Ela assim não se compraz mais com seu “eu” particular ligado às coisas transitórias, (p.127) mas, despojada de toda afeição às coisas sujeitas ao tempo e ao espaço, procura abraçar o Ser, que é uno e sempre idêntico a si mesmo. Pois, na verdade, assim como a alma é toda a vida do corpo, do mesmo modo toda vida bem-aventurada da alma é Deus. Enquanto vamos executando esse trabalho até o levarmos à sua hora de perfeita realização, estamos ainda a caminho. E já que nos é concedido gozar desses bens verdadeiros e seguros, embora sejam como espécie de lampejos em nossa viagem ainda tenebrosa, observa se não seria o que a Escritura diz sobre a Sabedoria, referindo-se à sua conduta em relação àqueles que a amam, que vêm a seu encontro e a procuram. Com efeito, está dito: “Ela se mostrará a eles, jubilosamente, nos caminhos e irá a seu encontro, com toda a solicitude” (Sb 6,16).

            Efetivamente, em qualquer lugar onde olhares, a sabedoria te fala pelos vestígios que imprimiu em todas as suas obras. E quando recais de novo no amor às coisas exteriores, é valendo-se da própria beleza dos seres exteriores que ela te chama a teu interior. E isso a fim de que, vendo tudo quanto te encanta nos corpos e te seduz, através dos sentidos corporais, reconheças que está repleto de números. Ao indagares de onde vem isso, entra em ti mesmo e compreende tua importância de julgar para o bem ou para o mal os objetos percebidos por teus sentidos. Pois não poderias aprovar ou desaprová-los, se não tivesses dentro de ti certas leis estéticas, às quais confrontas todas as belezas sensíveis do mundo exterior.

 

A sabedoria regula pelos números a harmoniosa evolução do universo

 

  1. Contempla o céu, a terra, o mar e todos os seres neles contidos, brilhando nas alturas ou rastejando a teus pés, voando ou nadando. Todos possuem beleza, porque têm seus números. Suprima-os e eles nada mais serão. 55 Logo, (p.128) de onde vêm eles, a não ser daquele de onde procede todo número? Visto que o ser que neles está não existe a não ser na medida que realiza os números que possui.

            Até os artistas humanos possuem, em sua própria mente, números de todas as belezas corporais para conformar a eles as suas obras. Com as mãos e os instrumentos, eles trabalham até que o objeto que modelam exteriormente seja relacionado com a luz interior que possuem dos seus números. Isso para que sua obra possa adquirir toda a perfeição possível. Será ela expressa pelos sentidos, de modo a agradar o juiz interior, o qual intui os números transcendentes. Indaga depois quem move os membros do próprio artista: Não será também pelo número que eles são movidos, com regularidade, conforme as leis dos números? E se tiras das mãos a obra que o artista modela, e de sua alma a intenção de a elaborar, e se não houver outra finalidade a não ser dar prazer ao movimento de seus membros, não será isso o que se denomina dança? Verifica o que agrada na dança, e o número responder-te-á ainda: Sou eu!

            Contempla, agora, a beleza de um corpo bem formado: são os números a ocupar o seu lugar. Observa a beleza dos movimentos corporais: são os números atuando no tempo. Penetra na região de onde procedem os números. Examina aí o tempo e o espaço: a arte não está em nenhum lugar e em tempo algum. Contudo, aí reina o número. Sua mansão não está no espaço Enem sua duração, nos dias. Contudo, os aprendizes, dobrando-se às regras da arte, a que estão a aprender, com o desejo de se tornarem artistas, movem seu corpo no tempo e no espaço. Ao passo que a alma só se move no tempo, pois é com o andar do tempo que a arte é aperfeiçoada.

            Ultrapassa, agora, a mesma alma do artista e fixa-te até vislumbrar o número sempiterno. A sabedoria então resplandecerá diante de ti, vinda de seu trono mais secreto, e do próprio santuário da Verdade. E se teu olhar, (p.129) ainda muito fraco, ficar ofuscado à sua vista, reconduz o olhar de teu espírito na direção daquele caminho onde ela se revelava tão amigavelmente.

            Lembra-te, porém, apenas que deixaste para mais tarde essa contemplação, para a retomares quando ficares mais robusto e mais vigoroso.

 

Infelizes os que não reconhecem nos seres criados o reflexo da sabedoria de Deus

 

  1. Ó sabedoria, luz vastíssima da mente purificada! Infelizes os que te abandonam. A ti, que és o seu guia, e, assim, extraviam-se entre os vestígios! Ai dos que amam teus sinais, em vez de amar a ti, esquecendo-se do que ensinas! Pois tu não cessas de nos dar a entender quem és e quão grande és! São acenos teus todas as belezas das criaturas. Já que até o artista insinua, por assim dizer, a quem contempla a sua obra, para que, contemplando a beleza que elaborou, não se retenha totalmente nela, mas ao percorrer com os olhos a beleza da obra criada não seja de tal maneira que suscite apenas seu afeto e admiração para com aquele que a executou.

            A quem se parecem os que amam as tuas obras, em vez de te amar a ti? Assemelham-se a homens que, ao ouvirem um sábio falar com eloqüência, escutam-no avidamente – a suavidade de sua voz é a cadência de seus períodos. Isso Atal ponto que perdem de vista o principal, Ito é, o conteúdo do pensamento do orador. Ora, as palavras são apenas um sinal.

            Infelizes daqueles que se afastam de tua luz e mergulham com delícia na própria obscuridade! Será como se voltassem as costas para ti, ó Sabedoria! E precipitassem em sua obras carnais, como na própria sombra. Entretanto, isso mesmo que lhes causa prazer é apenas irradiação de tua luz. Mas essas sombras que amam tornam o olhar da alma mais débil e incapaz de gozar de tua vista. (p.130) É porque o homem afunda mais e mais nas trevas, à medida que abraça com mais gosto aquilo a que a sua fraqueza adapta-se com maior facilidade. Começa assim a menosprezar o Ser supremo, e a não mais julgar como mal tudo o que engana sua imprevidência, seduz sua indigência ou atormenta a sua escravidão.

            Ora, esses sofrimentos são a justa punição por tua perversão, pois nada do que é conforme a justiça pode ser mal.

 

A sabedoria comunicada a todos os seres

 

  1. Portanto, sejam quais forem os seres mutáveis que vês, não os podes perceber, nem pelos sentidos corporais, nem pela aplicação do espírito a não ser que eles recebam certa perfeição própria dos números, sem a qual recairiam no nada.

            Logo, não duvides que existe uma forma eterna e imutável, em virtude da qual esses seres mutáveis não se desfazem, mas antes, com seus movimentos compassados e grande variedade de formas, compõem uma espécie de poemas temporais. Esse Ser eterno e imutável não está contido nem se difunde por lugares, nem se prolonga e varia no correr dos tempos. Mas é por sua Perfeição (forma) que puderam se formar todas as coisas que nos rodeiam, ajustarem-se e serem produzidas conforme os números próprios, de acordo com o seu gênero no tempo e no espaço. 56

 

Capítulo 17

 

O princípio de participação.

Todo bem e toda perfeição é recebida de Deus

 

  1. Todo ser mutável é necessariamente também susceptível de perfeição (formabilis est), pois assim como denominamos mutável o que pode ser mudado, do mesmo modo (p.131) chamamos perfectível o que pode receber uma perfeição. Ora, coisa alguma pode se aperfeiçoar a si mesma, porque coisa alguma pode se dar a si aquilo que não possui. E por certo é para receber uma perfeição que o ser é aperfeiçoável. Se, pois, todo ser que já possui uma perfeição não precisa receber o que já possui; e pelo contrário, se todo ser que não possui a perfeição não pode se dar o que não tem, em conseqüência nenhuma realidade pode se aperfeiçoar a si mesma, como dissemos. 57

            E o que direi a mais sobre a mutabilidade da alma e do corpo? Por certo, o que afirmamos anteriormente é suficiente. O que já ficou estabelecido, pois, se impõe: a alma e o corpo devem receber sua perfeição de outro ser, a Perfeição imutável e terna. Aquela da qual foi dito: “Tu os mudarás e eles ficarão mudados; mas tu permaneces sempre o mesmo e os teus anos jamais findarão” (Sl 101,27,28). Esses “anos que jamais findarão” estão postos por “eternidade”, nessa expressão do profeta. Igualmente, dessa Perfeição ainda está dito que “permanece em si mesma, sem nada mudar, ela tudo renova” (Sb 7,27).

            Isso é para que se compreenda também que todas as coisas são governadas por uma Providência. Visto que todas as realidades que existem recairiam completamente no nada, caso fossem privadas de sua perfeição própria. É porque aquela imutável Perfeição pela qual todos os seres mutantes subsistem é ela mesma uma Providência.

            Esses seres realizam-se, movem-se, conforme os números de suas próprias perfeições. Realmente, essas realidades não teriam existência se aquela Suma Perfeição não existisse.

            Assim, todo aquele que se dirige para a sabedoria constata, olhando e considerando as criaturas do universo, que essa sabedoria revela-se a ele, no caminho. Ela vem a seu encontro, com um semblante alegre, plena de toda solicitude e providência. É porque o seu ardor em (p.132) percorrer esse caminho inflama-se tanto melhor quanto mais o próprio caminho recebe sua beleza daquela sabedoria junto a qual deseja ardentemente chegar.

 

Conclusão

 

  1. Mas (ó Evódio) se acaso encontras:

            - além dos seres que têm a existência, mas não a vida;

            - dos que têm a existência e a vida, mas esta sem a inteligência;

            - e dos que têm a existência, a vida e a mais, a inteligência; digo, se encontras além desses algum outro gênero de seres, então não receies afirmar que existe algum bem que não procede de Deus. 58

            Esses três gêneros de seres, com efeito, podem ainda ser designados simplesmente por dois nomes: corpo e vida. Pois esse termo “vida” convém muito bem, seja aos seres não tendo senão a vida sem inteligência, tais os animais; seja aos que possuem a inteligência, como os homens.

            Ora, esses dois princípios, a saber: o corpo e a vida, são evidentemente tomados aqui enquanto pertencentes às criaturas (porque o Criador também possui a vida, e essa ao supremo grau). Ora, aquelas duas criaturas, o corpo e a vida, sendo perfectíveis, como já dissemos acima, e podendo recair no nada pela perda total de suas perfeições, mostram-nos bastante que elas tiram sua existência daquela Perfeição que é sempre idêntica a si mesma. É porque todos os bens, sejam eles quais forem, do maior ao menor, não procedem senão de Deus.

            Com efeito, o que há de mais excelente entre as criaturas do que a vida da inteligência? E o que há de mais inferior do que o corpo? Ora, sejam quais forem as deficiências (p.133) a qual estão sujeitos, e mesmo se tenderem muito de perto para o não-ser, todavia, resta-lhes certa perfeição que lhes dá de algum modo a existência. Pois bem, esse pouco de perfeição que sobra ao ser, seja qual for, procede daquela Perfeição, a qual desconhece a mutabilidade e a deficiência, e que não permite aos próprios movimentos dos seres que estão em decadência ou em progresso saírem das leis de seus respectivos números.

            Por essa razão, tudo o que se observa de admirável na natureza das coisas no universo, e que julgamos dignos de admiração, intensa ou fraca, deve ser referido com incomparável e inefável louvor ao Criador.

            A menos que tenhas alguma objeção a fazer?

 

Capítulo 18

 

O livre-arbítrio é um bem em si mesmo

 

  1. Ev. Declaro estar suficientemente convicto de que existe um modo – o quanto é possível nesta vida para homens como nós – de tornar evidente estes dois princípios primários:

            - que Deus existe;

            - e que todos os bens procedem de Deus.

            Isso porque todos os seres existentes:

            - os que têm a inteligência, a vida e a existência;

            - os que somente possuem a vida e a existência;

            - como os que possuem somente a existência, todos vêm de Deus.

            Vejamos, agora, se é possível esclarecer a terceira questão proposta, a saber: convém considerar a vontade livre do homem entre os bens? Uma vez esse ponto demonstrado, concederei, sem hesitação, que Deus no-la deu e que convinha no-la ter dado. 59 (p.134).

            Ag. Tu te lembraste com exatidão dos assuntos propostos. Notaste perfeitamente que a segunda questão: Que todo bem procede de Deus, está explicada. Mas deverias ter notado que também esta, a terceira, está resolvida. Pois parecia a ti, como dizias, que o livre-arbítrio da vontade não devia nos ter sido dado, visto que as pessoas servem-se dele para pecar. Eu opunha à tua opinião que não podemos agir com retidão a não ser pelo livre-arbítrio da vontade. 60 E afirmava que Deus no-lo deu, sobretudo em vista desse bem. Tu me respondeste que a vontade livre devia nos ter sido dada do mesmo modo como nos foi dada a justiça, da qual ninguém pode se servir a não ser com retidão.

            Essa resposta lançou-nos a entrar em múltiplos rodeios neste diálogo, com a finalidade de te provar que todos os bens, os menores como os maiores, chegam-nos unicamente por meio de Deus. Mas tal conclusão não teria sido posta com clareza, se não tivéssemos antes refutado o sentimento ímpio d o insensato que diz em seu coração: “Deus não existe” (Sl 13,1). Empenhamo-nos, então, em uma discussão capaz de nos trazer alguma evidência, certos da proteção do mesmo Deus, em tão arriscada viagem.

            Ora, essas duas verdades: que Deus existe e que todos os bens vêm dele, nós já admitimos com fé inabalável. Entretanto, nós as expusemos de tal forma que a terceira verdade também se torna plenamente evidente, a saber: que a vontade livre deve ser contada entre os bens recebidos de Deus.

 

Ainda que o homem possa usar mal da liberdade, a sua

vontade livre deve ser considerada como um bem

 

  1. Ag. Com efeito, a discussão precedente já demonstra, e nós o admitimos, a natureza corpórea ser de grau inferior à natureza espiritual. E daí se seguir que o (p.135) espírito é um bem maior à do que o corpo. Ora, entre os bens corpóreos, encontra-se no homem alguns de que ele pode abusar, sem que por isso digamos que esses bens não lhes deveriam ter sido dados, pois reconhecemos serem eles um bem. Sendo assim, o que há de espantoso que exista no espírito também abusos de alguns bens, mas que, por serem bens, não puderam ter sido dados a não ser por Aquele de quem procedem todos os bens?

            Com efeito, vês que grande privação é para o corpo não ter as mãos, e, contudo acontece que há quem use mal das próprias mãos. Realizam com elas ações cruéis ou vergonhosas.

            Se visses uma pessoa sem pés, afirmarias que lhe falta à integridade do corpo, um bem muito valioso. Entretanto, aquele que se serve de seus pés para prejudicar ao próximo ou se avilta a si mesmo, estaria usando mal de seus pés. Negarias isso?

            Com os olhos vemos esta luz do dia e distinguimos as diversas formas corporais. São eles elementos de máxima beleza em nosso corpo. Assim, estão eles colocados como no ápice, em tributo à sua dignidade. Seu uso contribui para salvaguardar o homem e trazem eles à nossa vida muitas vantagens. Entretanto, muitos se servem deles para praticarem grande número de ações vergonhosas e obrigam-nos a servir às suas paixões. Ora, compreendes quão precioso bem falta ao rosto quando lhe faltam os olhos. Todavia, se eles existem, quem no-los deu a não ser Deus, o dispensador de todos os bens?

            Por conseguinte, do mesmo modo como aprovas a presença desses bens no corpo e que, sem considerar os que deles abusam, louvas o doador, de igual modo deve ser quanto à vontade livre, se a qual ninguém pode viver com retidão. Deves reconhecer: que ela é um bem e um dom de Deus, e que é preciso condenar aqueles que abusam desse bem, em vez de dizer que o doador não deveria tê-lo dado a nós. (p.136).

 

Entre os três graus de bens, a liberdade ocupa um grau médio

 

  1. Ev. Primeiramente, desejo que me proves que a vontade livre é um bem. Concederei, logo em seguida, que ela é um dom de Deus, porque reconheço que todos os bens procedem de Deus.

            Ag. Mas, enfim, já te provei, não sem grande esforço, em nossa discussão precedente, e tu reconheceste que toda beleza e toda perfeição corporal decorrem da Perfeição (Forma) suprema de todas as coisas, isto é, da Verdade. E tu concedeste todas elas serem um bem. De fato, até os nossos cabelos são contados (Mt 10,30), como nos diz no Evangelho a própria Verdade. Ou será que esqueceste o que dissemos sobre a sublimidade do número, de seu poder que se estende de uma extremidade a outra? Logo, podes julgar extravagância considerar nossos cabelos entre os bens, sem dúvida diminutos, dos mais desprezíveis, mas enfim bens, sem encontrar-mos outro doador senão Deus, criador de todos os bens? Porque todos os bens, tanto os maiores como os menores, são dados por Aquele de quem procede todo bem. E assim, por outro lado, como duvidar, ainda, a respeito da vontade livre do homem, sem a qual, conforme o parecer daqueles mesmos que levam vida perversa, ninguém poderia viver? Agora, responde-me, eu te peço: o que te parece melhor em nós: aquilo sem a qual não se pode viver retamente?

            Ev. Perdoa-me, eu te rogo. Sinto vergonha de minha cegueira. Quem hesitaria de achar muito melhor um bem sem o qual não há vida honesta?

            Ag. Assim sendo, negarás, agora, que um cego possa viver honestamente?

            Ev. Longe de mim uma demência tão grande. (p.137).

            Ag. Se, pois, concedes que os olhos são no corpo um bem cuja carência, contudo, não impede de se viver honestamente, a vontade livre poderá te parecer não ser um bem, quando, sem ela, ninguém pode viver honestamente?

 

Capítulo 19

 

Entre os grandes bens, as virtudes cardeais

 

  1. Ag. Considera agora a justiça, da qual ninguém pode abusar. Ela é contada entre os maiores bens que existem no homem. Como também o são todas as virtudes da alma, com as quais se pode levar vida boa e honesta. Tampouco, ninguém poderá abusar da prudência, nem de força, nem da temperança. Com efeito, nelas, como na justiça, a qual te referiste, reina a reta razão, sem a qual virtude alguma pode existir. Por certo pessoa alguma pode abusar dessa reta razão.

 

O livre-arbítrio não é o bem mais perfeito

 

            Ag. Aí estão, bens muito excelentes. Convém, porém, te lembrares de que não somente os grandes bens, mas também os pequenos, só podem provir daquele por quem existem todos os bens, isto é, de Deus. Tal foi a conclusão da qual ficamos convencidos na discussão precedente (cf. II,17,45), à qual destes com freqüência e com alegria o teu consentimento.

            Portanto, as virtudes pelas quais as pessoas vivem honestamente pertencem à categoria de grandes bens. As diversas espécies de corpos sem os quais pode-se viver com honestidade, contam-se entre os bens mínimos. E por sua vez, as forças do espírito, sem as quais não se pode viver de modo honesto, são bens médios. (p.138).

            Das virtudes, ninguém usa mal; todavia dos outros bens, isto é, dos médios e dos inferiores, pode-se fazer seja bom, seja mau uso. O motivo pelo qual ninguém usa mal das virtudes é que a obra virtuosa consiste precisamente no bom uso daquelas coisas das quais podemos também abusar. Ora, o bom uso nunca pode ser um abuso.

            Assim Deus, na superabundância e na grandeza de sua bondade, pôs à nossa disposição não somente grandes bens, mas também bens médios e outros inferiores. Essa bondade divina deve ser glorificada de preferência pelos grandes bens doados, mais do que pelos médios. Da mesma forma, mais pelos bens médios do que pelos pequenos. Todavia, por todos eles, Deus deve ser glorificado. Pois isso é melhor do que se eles não nos tivessem sido concedidos.

 

Digressão: a vontade livre que se serve de tudo mais, serve-se também de si mesma

 

  1. Ev. De acordo. Um ponto, porém, me preocupa ainda. Com efeito, estamos tratando agora a respeito da vontade livre. Verificamos que ela mesma pode servir-se ora bem, ora mal das coisas. Assim, como poderemos nós contá-la entre as coisas das quais nos servimos?

            Ag. Da mesma maneira como os conhecimentos requeridos pela ciência nos são conhecidos pela razão, e, entretanto, a própria razão está posta no número dos objetos conhecidos por ela mesma. Porventura, esqueceste isso? Quando procurávamos quais os objetos que se conhecem pela razão, tu afirmaste que se conhece a razão por meio da mesma razão (cf. II,6,13). Não te admires, pois, se usando das outras coisas, por meio da vontade livre, nós possamos também usar da mesma vontade livre, servindo-nos dela por meio dela mesma. De modo que, de certa forma, a vontade que se serve de tudo mais (p.139) serve-se de si mesma, tal como a razão que conhecendo o restante conhece-se a si mesma. Sucede igualmente o mesmo com a memória; que não só percebe todos os outros objetos dos quais nós nos lembramos. Pois, assim como em não nos esquecemos que temos uma memória, esta retém, em nosso modo de viver, a si mesma em nós. Pois ela não se lembra unicamente das outras coisas, mas também de si mesma. Ou melhor, somos nós mesmos, por seu intermédio, que nos lembramos das outras coisas e dela mesma.

 

A vontade livre – entre o Bem supremo e os bens mutáveis

 

  1. Conseqüentemente, quando a vontade – esse bem médio – adere ao Bem imutável, e não é privativo de ninguém, do mesmo modo aquela Verdade da qual temos dito tantas coisas, sem nada termos podido falar dignamente – quando a vontade adere ao Sumo Bem, então o homem possui a vida feliz.

            Ora, essa vida feliz mesma é o que o espírito sente quando adere ao Bem imutável. Este torna-se para o homem como um bem privativo, o principal de todos. Ele possui então, além do mais, todas as virtudes, das quais não é possível usar mal.

            Por outro lado, acontece que, se todos esses bens estão entre os maiores e principais no homem, entretanto eles são – o que se compreende facilmente – privativos a cada um e não comuns a todos. Com efeito, é graças à mesma Verdade e Sabedoria, que são comuns a todos os homens, que todos aqueles que aderem a ela tornam-se sábios e felizes.

            Mas não é graças à felicidade de outrem que alguém adquire a felicidade, pois mesmo quando este, para vir a ser feliz, imita o primeiro, aspira a tornar-se feliz pelos meios os quais vê que ele assim se tornou, a saber, pela (p.140) verdade comum e imutável. Do mesmo modo, ninguém torna-se prudente pela prudência de determinada pessoa. Nem forte, nem temperante, nem justo, pela força, pela temperança ou pela justiça de outro homem. Mas sim, conformando seu espírito àquelas regras imutáveis, aqueles luzeiros de virtudes que subsistem inalterados numa vida incorruptível, no seio mesmo da Verdade e da Sabedoria, comum a todos. Regras às quais ele mesmo se conformou e uniu seu espírito, isto é, aquelas virtudes às quais se propôs imitar. 61

 

Conseqüências da aversão ou da conversão ao sumo Bem

 

  1. Assim, pois, a vontade obtém, no aderir ao Bem imutável e universal, os primeiros e maiores bens do homem, embora ela mesma não seja senão um bem médio. Em contraposição, ela peca, ao se afastar do Bem imutável e comum, para se voltar para o seu próprio bem particular, seja exterior, seja inferior. Ela volta-se para seu bem particular, quando quer ser senhora de si mesma; para um bem exterior, quando se aplica a apropriar-se de coisas alheias, ou de tudo o que não lhe diz respeito; e volta-se para um bem inferior, quando ama os prazeres do corpo.

            Desse modo, o homem torna-se orgulhoso, curioso e dissoluto; e fica sujeito a um tipo de vida a qual, em comparação à vida superior anteriormente descrita, é antes morte. Apesar de tudo, é claro que sua vida continua submissa ao governo da Providência divina, que põe todas as coisas em seu lugar e retribui a cada um conforme os seus méritos.

            Acontece que aqueles bens desejados pelos pecadores não são maus de modo algum. Tampouco é má a vontade livre do homem, a qual, como averiguamos, é preciso ser contada entre os bens médios. Mas o mal consiste na (p.141) aversão da vontade ao Bem imutável para se converter aos bens transitórios. Por sua vez, essa aversão e essa conversão não sendo forçadas, mas voluntárias, o infortúnio que se segue será um castigo justo e merecido. 62

 

Capítulo 20

 

O mal origina-se da deficiência do livre-arbítrio

 

  1. Ag. Talvez, tu me perguntas: Já que a vontade move-se, afastando-se do Bem imutável para procurar um bem mutável, de onde lhe vem esse impulso? Por certo, tal movimento é mal, ainda que a vontade livre, sem a qual não se pode viver bem, deva ser contada entre os bens. E esse movimento, isto é, o ato de vontade de afastar-se de Deus, seu Senhor, constitui, sem dúvida, pecado. Poderemos, porém, designar a Deus como o autor do pecado? Não! E assim, esse movimento não vem de Deus. Mas de onde vem ele? A tal questão eu te contristaria, talvez, se te respondesse que não o sei. Contudo, não diria senão a verdade. Pois não se pode conhecer o que é simplesmente nada. 63 Quanto a ti, contenta-te, por enquanto, de conservar inabalável esse sentimento irremovível de piedade, de modo a professar não ser possível apresentar-se a teus sentidos, nem à tua inteligência, nem em geral a teu pensamento, bem algum que não venha de Deus.

            Com efeito, não pode existir realidade alguma que não venha de Deus. De fato, em todas as coisas nas quais notares que há medida, número e ordem, não hesites em atribuí-las a Deus, como seu autor. Aliás, a um ser ao qual tiveres retirado completamente esses três elementos, nele nada restará, absolutamente. Porque, mesmo se nele permanecesse um começo qualquer de (p.142) perfeição, desde que aí não encontres mais a medida, nem o número, nem a ordem: visto que em toda parte onde se encontrarem esses três elementos existe a perfeição plenamente realizada – tu deverias retirar mesmo um início de perfeição que parecesse até ser apenas certa matéria oferecida ao artífice para que trabalhe com ela e a aperfeiçoe. Porque – se a perfeição em sua realização completa é um bem – o começo dessa perfeição já é certo bem. Assim, se acontecesse a supressão total do bem, o que restaria não é uma quase nada, mas sim um absoluto nada.

            Ora, todo bem procede de Deus. Não há, de fato, realidade alguma que não proceda de Deus. Considera, agora, de onde pode proceder aquele movimento de aversão que nós reconhecemos constituir o pecado – sendo ele movimento defeituoso, e todo defeito vindo do não-ser, não duvides de afirmar, sem hesitação, que ele não procede de Deus.

            Tal defeito, porém, sendo voluntário, está posto sob nosso poder. Porque, se de fato o temeres, é preciso não o querer; e se não o quiseres, ele não existirá. Haverá, pois, segurança maior do que te encontrares em uma vida onde nada pode te acontecer quando não o queiras? Mas é verdade que o homem que cai por si mesmo não pode igualmente se reerguer por si mesmo, tão espontaneamente. 64

            É porque, do céu, Deus nos estende sua mão direita, isto é, nosso Senhor Jesus Cristo. Peguemos essa mão, com fé firme, esperemos sua ajuda com esperança confiante e desejemo-la com ardente caridade.

            Mas se na tua opinião ainda alguma coisa a pesquisar com mais diligência, sobre a origem do pecado – quanto a mim, penso não ser de modo algum necessário -, entretanto, se julgas o contrário, nós o deixaremos para outro diálogo. (p.143).

            Ev. Seja, concordo com teu desejo de diferir para outro momento o que me preocupa ainda. Mas não concordo com que a questão esteja, como pensas, suficientemente elucidada. (p.144).

 

 

 

LIVRO III

 

LOUVOR A DEUS PELA ORDEM UNIVERSAL, DA QUAL O LIVRE-ARBÍTRIO É UM ELEMENTO POSITIVO, AINDA QUE SUJEITO AO PECADO

 

INTRODUÇÃO (1,1-3)

 

Capítulo 1

 

O movimento culpável da vontade

que se afasta de Deus vem do livre-arbítrio

 

  1. Ev. Vejo já, claramente, que é preciso contar a vontade livre entre os bens, e não dos menores. Portanto, precisamos reconhecer a vontade como dom de Deus e quanto foi conveniente ela nos ter sido dada.

            Nessas condições, desejo agora saber de ti, caso o julgues oportuno, de onde procede a inclinação pela qual a mesma vontade afasta-se daquele Bem universal e imutável, para se voltar em direção a bens particulares, alheios e inferiores, todos, aliás, sujeitos a mutações.

            Ag. E o que te parece necessário saber?

            Ev. O seguinte: uma vez que a vontade nos foi dada de tal forma que essa inclinação aos bens inferiores lhe seja natural, então ela tem necessariamente de se voltar para tais bens. Ora, não se pode descobrir culpa alguma onde a necessidade e a natureza dominam.

            Ag. Julgas que esse movimento é bom ou não?

            Ev. Acho mal.

            Ag. Então tu o condenas?

            Ev. Por certo, eu o condeno.

            Ag. Logo, condenas um movimento que não é culpável para a alma?

            Ev. Não condeno um movimento não culpável para a alma, mas ignoro se não existe alguma culpa no fato de alguém abandonar o Bem imutável para se voltar para as coisas mutáveis.

            Ag. Condenas, então, o que ignoras? (p.147).

            Ev. Não me impugnes com palavras. Eu disse: “Ignoro se não existe alguma culpa”, para dar a entender que, sem dúvida, há uma culpa. Com efeito, pela palavra dita: “Ignoro”, por certo declarei suficientemente ridícula uma dúvida a respeito de coisa tão evidente.

            Ag. Considera, pois, que a verdade tão certa será essa que te levou a esquecer assim rapidamente de se voltar para os bens mutáveis existe, vindo da natureza ou devido à necessidade, ele não pode de modo algum ser culpável. Ora, tu o consideras agora com firmeza tão absoluta, que crês até ser digno de zombaria qualquer dúvida a respeito de coisa tão certa. Por que, então, pareceu a ti que era preciso afirmar ou pelo menos exprimir sob forma duvidosa o que tu mesmo estás convencido de ser manifestamente falso? Na realidade, disseste: se a vontade livre nos foi dada de tal forma que esse movimento lhe é natural, então volta-se ele, necessariamente, para tais bens mutáveis, e não se pode reconhecer falta alguma onde a natureza e a necessidade dominam. Entretanto, a vontade não nos foi dada dessa forma e disso não deverias duvidar de modo algum, já que não duvidas que tal movimento é culpável.

            Ev. Eu disse considerar esse mesmo movimento culpável e ser por isso que ele me desagradava. Não posso duvidar que não seja repreensível. Mas nego que a alma, levada por qualquer movimento que a distancie do Bem imutável, em direção às coisas mutáveis, possa ser culpada, caso seja ela impulsionada, necessariamente, por sua própria natureza. ¹

 

  1. Ag. Pertence a quem esse movimento que, concordas certamente, deve ser culpável?

            Ev. Vejo que o sinto na alma, mas não sei a quem hei de o atribuir. (p.148).

            Ag. Negas, porventura, ser a alma movida por esse movimento?

            Ev. Não o nego.

            Ag. Negas, portanto, que o movimento pelo qual uma pedra é movida pertence à mesma pedra? Pois não falo, é claro, daquele movimento pelo qual movemos uma pedra, ou daquele que ela recebe de alguma força estranha, como, por exemplo, quando é lançada ao ar. Mas sim daquele outro movimento pelo qual ela volta para a terra em virtude de seu próprio peso e aí cai.

            Ev. Não nego, é verdade, que o movimento pelo qual a pedra é impelida, como o dizes, e cai para baixo, não lhe pertença; mas isso lhe é natural. Se a alma possuir dessa mesma forma seu movimento para as coisas inferiores, evidentemente, este também lhe será natural, e não se poderá censurar, com razão, o fato de ela seguir um movimento próprio à sua natureza. Porque, mesmo se ela o seguisse para sua própria perda, seria constrangida pela necessidade da natureza. Assim, pois, se não hesitamos de declarar culpável esse movimento na alma, para isso é preciso que neguemos absolutamente que ele lhe seja natural. Por conseguinte, tal movimento não se assemelha àquele que move a pedra que cai naturalmente.

            Ag. Pergunto: acaso teremos chegado a algo conclusivo nos dois diálogos precedentes?

            Ev. Evidentemente.

            Ag. Penso, portanto, que tu te lembras como em nosso primeiro diálogo (I,11,21) ficou suficientemente estabelecido que nada pode sujeitar o espírito à paixão, a não ser a própria vontade. porque nem um agente superior nem um igual podem constrangê-la a esse vexame, visto que seria injustiça. Tampouco, um agente inferior, porque esse não possui poder para tal. Resta, portanto, que seja próprio da vontade aquele movimento pelo qual ela se afasta do Criador e dirige-se às criaturas, para (p.149) usufruir delas. Se, pois, ao declarar esse movimento culpável (e para ti apenas duvidar disso parecia irrisório), certamente, ele não é natural, mas voluntário.

            Aliás, assemelha-se, de fato, ao movimento que arrasta a pedra para baixo, sob este aspecto que, assim como tal movimento é próprio da pedra, assim também é próprio da alma. Mas diferencia-se nisto, que a pedra não possui o poder de reter o movimento que a arrasta, e ela pode não o querer. Ela não é arrastada ao abandono dos bens superiores para escolher os inferiores. Assim, o movimento da pedra é natural e o da alma, voluntário. ²

            Tanto assim que, se fosse dito a pedra cometer pecado porque por seu próprio peso ela tende para baixo, seríamos julgados, não digo, mais estúpidos do que uma pedra, mas indiscutivelmente uns loucos. Ao contrário, podemos acusar a alma de pecado, quando verificamos que claramente ela prefere os bens inferiores, em abandono dos superiores.

            Ainda nos será necessário investigar de onde procede esse movimento que desvia a vontade do Bem imutável para os bens mutáveis, já que reconhecemos que ele procede da própria alma e é ademais voluntário e, por aí, culpável. Assim, todo ensinamento a esse respeito deve ter como meta: condenar e reprimir tal movimento da queda para os bens mutáveis, e orientar nossa vontade a escolher os bens ternos, conduzindo-a ao gozo do Bem imutável.

 

  1. Ev. Vejo, e por assim dizer, toco e percebo a verdade do que dizes. Pois não sinto nada de mais firme e mais íntimo do que o sentimento de possuir uma vontade própria e de ser por ela levado a gozar de alguma coisa. Ora, não encontro, realmente, o que chamaríamos de meu, a não ser a vontade, pela qual quero e não quero. E já por seu intermédio eu cometo o mal, a quem atribuir a não ser a mim mesmo? (p.150).

            Certamente, quem me fez é um Deus bom e, como não posso praticar nenhuma boa ação a não ser por minha vontade, fica, pois, bastante claro que é acima de tudo para fazer o bem que a vontade me foi dada por esse Deus tão bom.

            Quanto ao movimento pelo qual a vontade se inclina de um lado e de outro, se não fosse voluntário e posto em nosso poder, o homem não seria digno de ser louvado quando sua vontade se orienta para os bens superiores, tampouco ser inculpado quando, girando, por assim dizer, sobre si mesmo, inclina-se para os bens inferiores. Nesse sentido, não se deveria exortar a desprezar os bens transitórios para adquirir os bens eternos? E a renunciar à má vida para viver honestamente? Ora, quem quer que estime não haver motivo para serem dadas aos homens essas espécies de advertência merece ser excluído do número dos viventes. (p.151).

 

 

PRIMEIRA PARTE (2,4-4.11)

 

CONCILIAÇÃO ENTRE O PECADO E A PRESCIÊNCIA DE DEUS

 

Capítulo 2

 

Objeção: não acontece necessariamente o que Deus prevê?

 

  1. Ev. Assim sendo, sinto-me sumamente preocupado com uma questão: como pode ser que, pelo fato de Deus conhecer antecipadamente todas as coisas futuras, não venhamos nós a pecar, sem que isso seja necessariamente? De fato, afirmar que qualquer acontecimento possa se realizar sem que Deus o tenha previsto seria tentar destruir a presciência divina com desvairada impiedade.

            É porque, se Deus sabia que o primeiro homem havia de pecar – o que deve concordar comigo todo aquele que admite a presciência divina em relação aos acontecimentos futuros -, se assim se deu, eu não digo que por isso ele não devesse ter criado o homem, pois o criou bom, e o pecado em nada pode prejudicar a Deus. Além do que, depois de Deus ter manifestado toda a sua bondade criando-o, manifestou sua justiça, punindo o pecado, e ainda sua grande misericórdia, salvando-o. desse modo, não digo que ele não devia ter criado o homem, mas, já que previra seu pecado como futuro, afirmo que isso devia inevitavelmente realizar-se. Como, pois, pode existir uma vontade livre onde é evidente uma necessidade tão inevitável? (p.152).

 

Condições para o entendimento do problema – crer na Providência e cultivar sentimentos de piedade

 

  1. Ag. Insististe com veemência! Que a misericórdia de Deus nos venha em ajuda e abra a porta, a nós que nela batemos. Contudo, eu acreditaria facilmente que, se os homens em sua maioria são atormentados por essa questão, o único motivo é que eles não procuram a solução com piedade. E estão mais prontos a se desculparem do que a se acusarem de seus pecados. Com efeito, alguns admitem, de bom grado, que nenhuma Providência divina preside as coisas humanas. E assim, abandonando ao destino sua alma e corpo, entregam-se a toda espécie de vícios que os golpeiam e despedaçam. Negando os julgamentos de Deus, e menosprezando os dons dos homens, crêem livra-se dos que os acusam, apelando para a proteção da sorte. Acostumaram-se a representar essa sorte pintando-a como pessoa cega. Assim, pensam ter eles mesmos mais valor do que ela, pela qual se crêem governados. Ou, então, confessam partilhar sua cegueira, ao sentir e falar dessa maneira. Poder-se-ia, sem absurdo, conceder a tais pessoas que todas as suas atividades são uma seqüência de acasos, visto que caem em cada uma de suas ações. ³

            Contra essa opinião, porém, cheia de erros loucos e insensatos, creio que já tratamos suficientemente em nosso segundo diálogo (cf. II,17,45).

            Há outras pessoas que, sem ousar negar que a Providência de Deus governa a vida humana, preferem crer, entretanto, por erro ímpio, que essa Providência é importante, injusta, até mesmo má. Isso ao invés de confessarem os seus próprios pecados com piedade suplicante. Não obstante, se todas essas pessoas se deixassem persuadir, pensando no melhor dos Seres, o mais justo e poderoso, creriam que a bondade, a justiça e o poder de Deus são bem maiores e mais elevados do que todas as concepções do (p.153) próprio espírito. Caso se vissem obrigadas a considerar-se a si mesmas, entenderiam que deveriam render graças a Deus, mesmo se ele tivesse querido lhes dar uma natureza inferior àquela que possuem.

            Exclamariam elas, no mais íntimo de sua consciência: “Eu dizia: Senhor, tende piedade de mim; curai minha alma, porque pequei contra vós” (Sl 40.5). essas pessoas seriam então conduzidas ao tempo da sabedoria pelos caminhos seguros da misericórdia divina. E sem conceber orgulho algum por suas descobertas, nem perturbação alguma diante do que lhes falta entender, tornar-se-iam, pela ciência, mais aptas à contemplação. E reconhecendo sua ignorância, mais pacientes para tentar novas investigações.

Quanto a ti, porém, Evódio, não duvido de estares persuadido de tudo isso. Considera com quanta facilidade poderei agora te responder sobre problema tão grande, depois de me teres respondido a algumas poucas questões.

 

Capítulo 3

 

A presciência divina, longe de destruir o ato livre, exige a sua existência

 

  1. Ag. Com efeito, eis o que é causa de preocupação e admiração: como não admitir contradição e repugnância no fato de Deus, por um lado, prever todos os acontecimentos futuros e, por outro, nós pecarmos por livre vontade e não por necessidade? Tu dizes: realmente, se Deus prevê o pecado do homem, este há de pecar necessariamente. Ora, se isso é necessário, não há, portanto, decisão voluntária no pecado, mas sim irrecusável e imutável necessidade. E desse raciocínio, receias precisamente chegarmos a uma das duas seguintes conclusões: ou negar em Deus, (p.154) impiamente, a presciência de todos os acontecimentos futuros; ou bem, caso não possamos negá-lo, de admitir que pecamos, não voluntária, mas necessariamente. Mas haverá outro motivo de tua perplexidade?

            Ev. Não, nada mais, no momento.

            Ag. Então, tudo o que Deus prevê acontece, ao teu parecer, necessariamente, e não de modo voluntário ao homem?

            Ev. É bem essa a minha opinião.

            Ag. Desperta, enfim, e após refletir um pouco dentro de ti, dize-me, se puderes, que tipo de atos de vontade terás amanhã: o de pecar ou de agir corretamente?

            Ev. Não sei.

            Ag. O que dizes? E Deus mesmo, pensarás que também o ignora?

            Ev. Nunca pensaria isso.

            Ag. Logo, se ele conhece qual deve ser a tua vontade de amanha. Igualmente prevê qual a vontade de todos os homens, quer os existentes, quer os que virão a existir. Com maior razão, prevê sua própria conduta em relação aos justos e aos ímpios.

            Ev. Certamente, se digo que Deus tem a presciência de minhas ações, direi com maior segurança que ele também tem a presciência das suas próprias e assim prevê, com absoluta certeza, o que fará.

            Ag. Ora, acaso tu não temes dizer que Deus fará também todas as suas obras por necessidade e não voluntariamente, visto haver de acontecer tudo o que Deus prevê, necessária e não livremente?

            Ev. Ao dizer que todos os acontecimentos previstos por Deus acontecem necessariamente, eu tinha só em mente aqueles que acontecem com os seres criados e não os que acontecem com ele mesmo. Com efeito, esses, na realidade, não acontecem, pois são eternos.

            Ag. Então, Deus não atua sobre as suas criaturas? (p.155).

            Ev. Ele estabeleceu, uma vez por todas, como deve decorrer a ordem do universo que criou, e nada dispõe com novo querer.

            Ag. Acaso não cria o Criador ninguém feliz?

            Ev. Certamente o cria.

            Ag. E ele o faz, por certo, no momento em que essa pessoa se torna feliz?

            Ev. Assim é.

            Ag. Se pois, por exemplo, tu deves te tornar feliz daqui a um ano, só será daqui a um ano que serás feliz?

            Ev. Sim.

            Ag. Nesse caso, Deus prevê hoje o que farás daqui a um ano?

            Ev. Sempre o previu e ainda agora o prevê. E admito que assim deve suceder no futuro.

 

  1. Ag. Peço-te que me digas: não és tu uma criatura de Deus, e a tua felicidade não há de se realizar em ti?

            Ev. Por certo, eu sou não só sua criatura, como é em mim mesmo que se realizará a minha felicidade.

            Ag. Mas, então, não será voluntária, mas necessariamente que a tua felicidade realizar-se-á em ti, por disposição de Deus?

            Ev. A vontade de Deus constitui para mim uma necessidade.

            Ag. Então, serás feliz contra tua vontade?

            Ev. Ah! Se estivesse em meu poder o ser feliz, sem dúvida alguma, eu o seria desde agora. E se não o sou, é porque não sou eu, mas ele que me torna feliz.

            Ag. De modo maravilhoso a verdade se manifestou por tua voz! Pois não poderias, de fato, encontrar nada que esteja em nosso poder senão aquilo que fazemos quando o queremos. Eis por que nada se encontra tão plenamente em nosso poder do que a própria vontade. Pois esta, desde que o queiramos, sem demora, estará disposta à execução (p.156). 4 Assim, podemos muito bem dizer: não envelhecemos voluntariamente, mas por necessidade. Ou: não morremos voluntariamente, mas por necessidade. E outras coisas semelhantes. Contudo, que não queiramos voluntariamente aquilo que queremos, quem, mesmo em delírio, ousaria afirmar tal coisa?

            É porque, ainda que Deus preveja as nossas vontades futuras, não se segue que não queiramos algo sem vontade livre. Pois, ao dizer, a respeito da felicidade, que tu não te tornas feliz por ti mesmo, disseste isso como se talvez o tivesse negado. Ora, o que eu disse foi: quando chegares a ser feliz, tu não o serás contra a tua vontade, mas sim querendo-o livremente. Pois se Deus prevê tua felicidade futura, e nada te pode acontecer senão o que ele previu, visto que, caso contrário, não haveria presciência. Todavia, não estamos obrigados a admitir a opinião, totalmente absurda e muito afastada da verdade, que tu poderás ser feliz sem o querer.

            Ora, a vontade de ser feliz que terás, quando começares a sê-lo, certamente não te é tirada pela presciência de Deus, que já desde hoje volta-se com certeza sobre tua felicidade futura. Assim também, a vontade culpável, se acaso estiver em ti, não deixará de ser vontade livre, pelo fato de ter Deus previsto a existência futura dela. 5

 

  1. Ag. Considera, agora, eu te rogo, com quanta cegueira dizem: “Se Deus previu minha vontade futura – visto que nada pode acontecer senão o que ele previu – é necessário que eu queira o que ele previu. Ora, se isso fosse necessário, não seria mais voluntariamente que eu quis – forçoso é reconhecê-lo -, mas por necessidade”. Ó insólita loucura! Pois como não pode acontecer nada senão o que foi previsto por Deus – a vontade da qual ele previu a existência futura é vontade livre! (p.157).

            Desprezo, igualmente, outra afirmação monstruosa como a que acabo de atribuir àquele mesmo opositor que diz: “É necessário que eu queira de determinado modo”. Pois, por aí, pelo fato de essa pessoa supor a necessidade de querer de certo modo, ela tenta eliminar a mesma vontade livre. Já é inevitável querer dessa maneira, de onde tirará ela o seu querer, visto que não haverá mais o ato livre da vontade?

            E se esse homem afirmar que não quis dizer isso, contudo ao dizer que, visto haver necessidade de querer, a vontade não possui mais aquele seu poder de liberdade, então poderá ele ser refutado com o que tu mesmo respondeste quando te perguntei se era contra tua vontade que havias de te tornar feliz. Com efeito, respondeste-me que serias logo feliz, se tivesse tal poder, porque tinhas a vontade, mas não a possibilidade, conforme disseste. Ao que eu acrescentei que essa era a exclamação mesma da verdade, provinda de tua voz (cf. 3,7).

            Realmente, não podemos negar que algo não está em nosso poder, quando aquilo que queremos não se encontra à nossa disposição. Entretanto, quando queremos, se a própria vontade nos faltasse, evidentemente não o quereríamos. Mas se, por impossível, acontecer que queiramos sem o querer, está claro que a vontade não falta a quem quer. E nada mais está tanto em nosso poder, quando temos à nossa disposição o que queremos. Conseqüentemente, nossa vontade sequer seria mais vontade, se não estivesse em nosso poder. 6 Ora, por isso mesmo, por ela estar em nosso poder, é que ela é livre para nós. Pois é claro que aquilo que não é livre para nós é o que não está em nosso poder, ou que não se encontra à nossa disposição.

            Eis por que, sem negar que Deus prevê todos os acontecimentos futuros, entretanto nós queremos livremente aquilo que queremos. Porque, se o objeto da presciência (p.158) divina é a nossa vontade, é essa mesma vontade assim prevista que se realizará. Haverá, pois, um ato de vontade livre, já que Deus vê esse ato livre com antecedência. E por outro lado, não seria ato de nossa vontade, se ele não devesse estar em nosso poder. Portanto, Deus também previu esse poder.

            Logo, essa presciência não me tira o poder. Poder que me acontecerá tanto mais seguramente, quanto mais a presciência daquele que não pode se enganar previu que me pertenceria.

            Ev. Eis que agora não nego mais, antes admito que tudo o que Deus previu acontece necessariamente. Mas se ele previu os nossos pecados, foi de tal forma que haveríamos de guardar nossa vontade. E esta não deixa de ser livre, e estar sempre posta sob nosso poder. 7

 

Capítulo 4

 

Obscuridade da relação entre presciência divina e liberdade humana

 

  1. Ag. O que então te embaraça ainda? Talvez esqueceste as conclusões de nosso primeiro diálogo (cf. III,1,2.3) e por isso negas que sem sermos forçados por ninguém, nem por agente superior, nem por inferior, nem por igual, não pecamos senão por nossa própria vontade?

            Ev. Não ouso negar nenhuma dessas verdades. Entretanto, confesso que não vejo ainda como não se contradizem estes dois fatos: a presciência divina de nossos pecados e a nossa liberdade de pecar.

            Porque, enfim, Deus é justo. É preciso reconhecê-lo. E ele prevê tudo. Mas quisera saber em virtude de que justiça ele castiga os pecados que não podem deixar de acontecer. Ora, como o que ele previu não pode deixar de acontecer (p.159) necessariamente, como não se há de atribuir ao Criador o que em suas criaturas inevitavelmente acontece?

 

Resposta: prever não é forçar

 

  1. Ag. Conforme teu parecer, de onde vem a oposição a nosso livre-arbítrio em face à presciência de Deus? Da presciência ou do caráter divino dessa presciência?

            Ev. Sobretudo por ser presciência de Deus.

            Ag. Então, se fosse tu a prever, com alguma certeza, que alguém haveria de pecar, não seria necessariamente que ele haveria de pecar?

            Ev. Ao contrário, seria necessário que ele viesse a pecar. De outra maneira, minha previsão não seria uma presciência, por não se referir a fatos verídicos.

            Ag. Nesse caso, se as coisas previstas acontecem necessariamente, não é porque a presciência de Deus, mas somente porque há uma presciência. Porque, se a coisa prevista não fosse certa, haveria presciência.

            Ev. De acordo, mas aonde tudo isso nos levará?

            Ag. Se não me engano, não se segue da tua previsão que tu forçarias a pecar aquele de quem previste que haveria de pecar; nem a tua presciência mesma o forçaria a pecar. Ainda que, sem dúvida, ele houvesse de pecar, pois de outra forma não terias tido a presciência desse acontecimento futuro. Assim também, não há contradição a que saibas, por tua presciência, o que outro realizará por sua própria vontade. Assim Deus, sem forçar ninguém a pecar, prevê, contudo, os que hão de pecar por própria vontade.

           

  1. Ag. Por que, pois, como justo juiz, não puniria ele os atos que sua presciência não forçou a cometer? Porque, assim como tu, ao lembrares os acontecimentos passados, não os força a se realizarem, assim Deus, ao prever os (p.160) acontecimentos futuros, não os força. E assim, como tens lembrança de certas coisas que fizeste, todavia não fizeste todas as coisas de que te lembras, do mesmo modo Deus prevê tudo de ele mesmo é o autor, sem, contudo ser o autor de tudo o que prevê. Mas dos atos maus, de que não é o autor, ele é o justo punidor.

            Compreende, destarte, com que justiça Deus pune os pecados: pois ainda que os sabendo futuros, ele não é quem os faz. Porque se não tivesse de castigar os pecadores porque prevê os seus pecados, ele não teria tampouco de recompensar os que procedem bem. Visto que não deixa de prever tampouco as suas boas ações.

            Reconheçamos, pois, pertencer à sua presciência o fato de nada ignorar dos acontecimentos futuros. E também, visto o pecado ser cometido voluntariamente, ser próprio de sua justiça julgá-lo, e não deixar que seja cometido impunemente, já que a sua presciência não os forçou a serem cometidos. (p.161).

 

 

SEGUNDA PARTE (5,12-16,46)

 

RELAÇÕES ENTRE O PECADO E A PROVIDÊNCIA DIVINA

 

A: REGRA FUNDAMENTAL:

LOVAR A DEUS POR TER DADO O SER ÀS CRIATURAS RACIONAIS, AINDA QUE PECADORAS

 

Capítulo 5

 

Louvemos a Deus por todas as obras criadas – as superiores como as inferiores

 

  1. Ag. Quanto à tua terceira pergunta: Como é possível não atribuir ao Criador tudo o que em suas criaturas acontece necessariamente? 8 Temos um esclarecimento fácil, nesta regra de piedade, a qual convém lembrarmos: “É para nós um dever de sempre darmos graças a nosso Criador”. Certamente, será muito justo louvá-lo por sua bondade tão generosa, mesmo no caso de ele nos criar entre seres de alguma forma inferiores. Pois nossa alma, mesmo corrompida por pecados, será, contudo, sempre mais nobre e melhor do que se fosse, por exemplo, esta luz material visível. Entretanto, tu mesmo vês quantos louvores são atribuídos a Deus pela excelência da luz, até pelos que vivem entregues aos sentidos do corpo.

            Logo, pelo fato de serem as almas pecadoras censuradas, não fiques perturbado, a ponto de dizeres em teu coração: “Seria melhor para elas que não existissem”. Pois saibas que é comparando a elas mesmas que as condenas, pensando no que seriam se não tivessem cometido pecado algum. Todavia, Deus, seu Criador, não é menos digno dos (p.162) mais magníficos louvores de que o homem é capaz de lhe atribuir. E isso não somente por tê-las mantido na ordem por ele estabelecida, em toda justiça, mesmo sendo pecadoras, mas também por tê-las criado em tal dignidade, que, ainda manchadas pelo pecado, elas não cedem em nobreza de modo algum à luz material, pela qual justamente o louvamos. 9

 

  1. Eis aqui ainda outro conselho: toma cuidado para não dizeres: “Seria melhor se estas coisas não existissem”, mas de preferência: “Elas poderiam ter sido constituídas de outro modo”. Pois tudo o que a razão apresenta, com verdade, como sendo melhor, saiba que Deus o fez, sendo ele o autor de todos os bens. 10

            Ora, não é mais uma razão verdadeira, mas uma mesquinha inveja, o fato de não se querer admitir que tendo pensado que uma coisa melhor deveria ter sido produzida, nada de menos bom seja feito. Como, por exemplo, se tendo visto o céu não quisesses que a terra fosse criada. Ora, isso seria uma total iniqüidade. Tua censura, sem dúvida, seria justa, caso visses que o céu, tendo sido omitido na série de seres, a terra tenha sido produzida. Pois poderias dizer que ela deveria ter sido feita conforme a idéia que pudeste conceber do céu. Então, quando tivesses visto realizado o céu naquele grau de perfeição ao qual querias levar a terra, ele te pareceria claramente produzido sob o nome de “céu”, e não sob o de “terra”. Julgo que tu, não estando privado de algo melhor, de modo algum deverias achar mal a produção de outra realidade inferior, neste caso a existência da terra. Por sua vez, esta mesma terra apresenta em todas as suas partes tal variedade, que nada pode se oferecer a quem reflete sobre os elementos de sua beleza que não seja, em toda a sua totalidade, produzida por Deus, autor de todas as coisas. Com efeito, da parte mais fértil e (p.163) aprazível da terra, até à mais árida e estéril, passa-se por graus tão bem dispostos que não ousarias dizer que nenhuma dessas partes é má, a não ser comparada a outra melhor. E assim sobes no louvor, por todos os degraus. Entretanto, isso, de maneira que ao se encontrar no ápice na melhor espécie de terra, não possas querer que ela seja a única.

            Ora, entre toda a terra e o céu, qual não é a distância! Entre eles, com efeito, interpõem-se os corpos úmidos e os gasosos. E a partir desses quatro elementos (terra, céu, água e ar) resulta outra infinita variedade de formas e espécies, que só Deus pode enumerar.

            Podes pois, conforme isso, existir na natureza certas coisas que tua razão não consegue conceber. Mas que algo concebido por tua razão, dotado de verdadeira idéia, não exista, isso não é possível. Pois tu não podes conceber uma coisa melhor entre os seres criados que tenha escapado ao autor da criação. Com efeito, a alma humana está em união natural com os exemplares divinos, 11 dos quais ela depende. Assim, quando afirma: “Seria melhor ter sido feito isto em vez daquilo”, diz uma verdade, e a alma vê o que diz. Ela a vê nesses exemplares aos quais está ligada. Logo, que creia que Deus fez tudo o que ela, por sua razão dotada de verdade, mostrar que ele deveria ter feito, mesmo se ela não o vê, como uma realidade entre as coisas realizadas. Porque, mesmo se ela não pudesse ver o céu com os seus olhos, e, entretanto, concluísse por sua razão dotada de verdade, que tal coisa deveria ter sido feita, ela deveria crer em sua existência. Onde veria ela, com efeito, por seu pensamento, que essa criatura deveria ter sido feita, a não ser nesses exemplares conforme os quais tudo foi feito? Quanto às coisas que não se encontram nesses exemplares, ninguém pode concebê-lo como verídico, na medida mesma em que estão desprovidas de verdadeira realidade. (p.164).

 

A vontade, mesmo pecadora, é um bem

 

  1. Constitui um erro comum à maioria dos homens quando, ao conceber em seu espírito a existência de realidades melhores, não as procura com os olhos corporais, em seus lugares próprios. Seria, por exemplo, como se alguém, percebendo pela razão a perfeita redondeza do círculo, se irritasse por não o encontrar em uma noz, caso ainda não tivesse visto nenhum outro corpo redondo além dessa fruta. Semelhantes a esse homem são aqueles que vêem em sua mente, por uma idéia verdadeira, que uma criatura seria melhor, se, mesmo dotada de vontade livre, ficasse sempre fixa em Deus, sem nunca haver de pecar. E de outro lado, ao constatar os pecados dos homens, se contristassem, não de que eles continuem a pecar, mas de que tenham sido criados em condição de poder pecar. Dizem: Deus deveria nos ter criado de tal modo que sempre quiséssemos gozar de sua imutável verdade, sem jamais aceitar o pecado.

            Que cessem esses elementos e não censurem ao Criador! Pois, criando-os, Deus não os forçou a pecar, visto que lhes deu o poder de os cometer ou não, caso o quisessem. E por outro lado, não existem os anjos, que nunca pecaram, nem pecarão jamais? Na verdade, se te comprazes com uma criatura cuja vontade persevera até o fim sem pecar, certamente tens razão de a preferir àquela que peca. Mas assim como tu a preferes em teu pensamento, assim também Deus, seu Criador, a prefere na ordem das coisas. Crês na existência de tal criatura, a qual se encontra no grau supremo dos seres e no mais alto dos céus. Porque, se o Criador manifestou sua bondade produzindo uma criatura de quem previa os pecados futuros, como não teria podido manifestar também sua bondade, produzindo aquela de quem previa igualmente não dever jamais pecar! 12 (p.165).

 

  1. Essa tão sublime criatura, a mais elevada de todas, está na posse definitiva de sua felicidade. Pois goza para sempre de seu Criador, como o merece por sua vontade indefectível de se manter sempre unida à justiça.

            Mas, abaixo dela, a criatura pecadora possui o lugar que lhe compete pelo princípio da ordem. Ela perdeu a bem-aventurança pecando, mas não pode perder a possibilidade de a recuperar. Essa criatura está acima, certamente, daquela outra que permanece para sempre obstinada em sua vontade de pecar. Entre esta última e aquela primeira, que permanece fixa em sua vontade de não se separar da justiça, a segunda representa uma espécie de meio termo, pois pode recobrar sua grandeza pela humildade da penitência.

            Ora, mesmo quanto àquela criatura sobre a qual Deus previu não somente que ela pecaria, mas ainda que perseveraria em sua vontade de pecar, nem dela Deus afastou a efusão de sua bondade, deixando-a de criar. Pois do mesmo modo que um cavalo que se extravia é melhor do que uma pedra que não pode se extraviar, ficando sempre em seu lugar próprio, por faltar-lhe movimento e sensibilidade, assim uma criatura que peca por sua vontade livre é melhor do que aquela outra que é incapaz de pecar por carecer dessa mesma vontade livre.

            De igual maneira, eu louvarei o vinho – coisa boa em seu gênero – e censuraria o homem que tivesse se embriagado com esse mesmo vinho. E contudo, esse homem que eu censurei e que se encontra embriagado, eu o preferiria ao vinho que enalteci e com o qual ele se embriagara. Acontece o mesmo com as criaturas materiais. Cada ser com todo direito é digno de louvor, conforme seu grau de perfeição; enquanto se deve censurar os que abusam, e assim afastam seu olhar da percepção da verdade. E, contudo, esses seres, corrompidos e como que em estado de embriaguez – não por motivo de (p.166) seus vícios, mas devido ao que conservam da dignidade de sua natureza -, permanecem preferíveis àqueles outros, simplesmente materiais.

 

A excelência das almas espirituais

 

  1. Assim, pois, qualquer alma vale mais do que todo ser corporal, e nenhuma alma pecadora, seja qual for a profundidade de sua queda, por mudança alguma, torna-se jamais um corpo. Nem se pode retirar-lhe nada da perfeição que faz dela uma alma. Portanto, ela conservará sempre sua superioridade sobre o corpo.

            Ora, entre os corpos materiais, a luz ocupa o lugar mais excelente. Segue-se que a última das almas deve ser colocada acima desse principal ser, entre os corpos materiais. Pode acontecer que certo corpo prevaleça sobre outro, naturalmente unido a uma alma, mas ele de modo algum pode estar acima de alma alguma.

            Por que motivo, então, não se há de bendizer a Deus e glorificá-lo com inefáveis louvores quando, tendo criado almas destinadas a perseverar na observância das leis da justiça, nosso Criador deu a vida também a outras almas que ele previu haver de pecar e mesmo perseverar em seu pecado? Visto que estas últimas almas são ainda superiores em bondade aos seres animados que são incapazes de pecar, seja por falta de razão, seja por carecer do livre-arbítrio da vontade. E, além disso, as almas mesmo impenitentes são ainda mais nobres e excelentes do que qualquer brilho esplêndido dos corpos luminosos. Esses que muitos homens cometem o erro grosseiro de venerar como sendo a substância própria de Deus altíssimo. 13

            Ora, no mundo dos seres corpóreos, desde a harmonia das constelações siderais até o número de nossos cabelos, encontra-se a bondade e a perfeição de todas as coisas ordenadas de modo tão gradual e maravilhoso que seria (p.167) grande ignorância perguntar: O que é isto? Para que serve aquilo? Porque cada ser foi criado dentro de sua ordem correspondente. Sendo assim, quanto mais dará prova de ignorância quem perguntar o mesmo em relação a qualquer alma. Pois esta, por mais que se tenha degenerado da beleza a que chegara e tenha caído em algum defeito, estará sempre, sem dúvida alguma, em dignidade muito acima do que todos os corpos materiais.

 

Julgamentos incorretos e o certo, conforme a razão

 

  1. Com efeito, um é o julgamento da razão e outro, bem diferente, o do próprio interesse pessoal. A razão aprecia segundo a luz da verdade e assim subordina as coisas inferiores às superiores, conforme um julgamento correto. Mas o interesse pessoal inclina-se mais frequentemente a julgar conforme a vantagem que lhe proporcionam as coisas, a ponto de fazer maior caso de coisas que a razão demonstra serem de menor valor. Por exemplo, enquanto a razão coloca os corpos celestes bem acima dos corpos terrestres, não obstante, acontece que o que o homem carnal prefira ver até mesmo o céu privado de diversos astros a ter o seu campo privado de um só arbusto, ou o seu rebanho de uma única vaca.

            Vemos as pessoas adultas desprezarem por completo ou, pelo menos, esperarem pacientemente que o tempo corrija os julgamentos das crianças. Pois estas, excetuando algumas pessoas em cujo amor se comprazem, preferem que morra qualquer homem, mais do que um passarinho seu. E muito mais, se esse tal homem lhes causa medo, e o seu passarinho for belo e canoro.

            Semelhantemente, as pessoas em cuja alma já surgiu a sabedoria encontram-se, habitualmente, com homens que, não sabendo julgar as coisas conforme a razão, louvam a Deus pelas criaturas ínfimas por serem estas adaptadas a seus sentidos carnais, enquanto abstém-se (p.168) de louvá-lo ou louvam pouco, pelas criaturas superiores, e portanto, mais excelentes. Encontram-se também com outras certas pessoas que ousam até censurar a Deus e corrigi-lo, e até mesmo recusam-se de crer que ele seja o autor dos seres inferiores. Devem os sábios habituarem-se a desprezar totalmente os julgamentos de tais indivíduos. Mas caso não consigam corrigi-los, enquanto esperam sua correção, toleram-nos e suportem-nos pacientemente.

 

Capítulo 6

 

Não atribuir a Deus a causa do pecado

 

18a.     Nessas condições, as pessoas afastam-se muito da verdade, ao supor que têm direito de atribuir ao Criador os pecados das criaturas, dizendo que aquilo que Deus previu como futuro deva acontecer necessariamente. Longe da verdade também estavas tu, (ó Evódio), 14 ao dizeres que não compreendias como atribuir ao Criador o que em sua criatura acontece necessariamente. Eu, pelo contrário, não encontro, e mesmo certifico de que não existe, nem pode existir, meio de atribuir a Deus o que em suas criaturas acontece necessariamente. Ao contrário, que tudo se realiza de tal forma que sempre fica intacta a vontade livre do pecador.

 

B: OBJEÇÃO – E O DESEJO DA PRÓOPRIA MORTE?

 

Ninguém quer deixar de existir

 

18b.     Realmente, se alguém me dissesse: “Gostaria mais de não existir do que de ser infeliz na vida”, responder-lhe-ia: Mentes! Pois neste mesmo momento és infeliz e, entretanto, não queres morrer, senão em vista de existires. Assim, (p.169) sem quereres ser infeliz, queres ser apesar disso viver. Dá, portanto, graças a Deus de que existes, conforme o teu querer, a fim de seres libertado daquilo que és contra a tua vontade. Pois existes voluntariamente, e és infeliz contra tua própria vontade. Ora, se és ingrato pelo que és voluntariamente, com razão, serás forçado a ser o que não queres, isto é, infeliz. Pois bem, eu louvo a bondade do Criador de que, mesmo ingrato, tu possuis o que queres; e louvo a justiça do divino Ordenador, pelo fato de que possuis os dissabores, mesmo sem o quereres, devido à tua ingratidão. 15

 

Louvar a Deus por sua bondade e justiça

 

  1. E se essa mesma pessoa replicasse, dizendo: “Se eu não quero morrer, não é precisamente por amar mais ser infeliz do que não existir em absoluto. Mas é por recear ser mais infeliz ainda, depois da morte”. Então, eu haveria de responder: Se tal estado fosse injusto, esse seria o teu. Se, porém, fosse justo, louvemos Aquele cujas leis te são impostas.

            E caso ela insistisse ainda: “E como poderei pensar que se tal estado fosse injusto não seria o meu?” Eu explicar-lhe-ia: Pelo seguinte: caso dependa de teu próprio poder, ou não serás infeliz, ou então, por te comportares sem justiça, serás justamente infeliz. Se ao contrário, querendo te comportar com justiça e não o conseguindo, então não dependerias de ti mesmo. Estarias, assim, ou sob o poder de outra pessoa ou mesmo não dependendo de ninguém. Ora, isso seria voluntariamente, ou contra tua vontade, porque não podes estar assim contra teu querer, a não ser que estejas vencido por alguma força exterior e superior. Ra, aquele que não está sob o poder de ninguém não pode ser vencido por força estranha alguma. Mas se é voluntariamente que não estás sob o poder de ninguém, isso quer dizer que estás sob o teu próprio poder. Então, se te comportas sem probidade, serás com razão infeliz. E então o que for que te aconteça será por (p.170) tua vontade. Encontrarás nisso, ainda, motivos para dar graças à bondade de teu Criador.

            E no caso de tu não sentires sob teu próprio poder será um ser mais fraco que tu ou um mais forte, que te manterá sob sua dependência. Se for um ser mais fraco, isso será por tua culpa, e assim tua infelicidade será justa, porque poderias vencer algo mais fraco, caso o quisesses. Mas se for alguém mais forte, que retém tua fraqueza sob seu poder, essa situação é tão razoável que não terias motivo algum para considerá-la injusta. Portanto, é plena verdade o que te dizia: Se esse teu estado fosse injusto não seria o teu. Se, porém, fosse justo, louvemos Aquele por cujas leis tu te encontras nesse estado.

 

Capítulo 7

 

A existência é amada porque vem do sumo Ser

  1. Se, todavia alguém me disser: “Se, embora sendo infeliz, prefiro existir a não existir de modo algum, é porque acontece que atualmente eu existo. Entretanto, se tivesse podido ter sido consultado antes de existir, teria escolhido não existir a viver de um modo infeliz. Com efeito, agora, este meu receio de perder a existência, apesar de ser infeliz, é efeito da minha miséria, que me impede de querer o que na verdade deveria pretender. Pois, na presente condição, deveria preferir o não-ser a uma existência infeliz. Agora, confesso que prefiro a existência mesmo infeliz ao não-ser. Mas essa vontade é tanto mais insensata quanto mais miserável; e é tanto mais miserável quanto vejo com maior verdade que não a deveria querer”.

            Responderia a essa resposta. Tem cuidado em não te enganares, lá mesmo onde julgas estar com a verdade. Pois, se fosses feliz, gostarias certamente antes existir do (p.171) que não existir. E agora que existes, mesmo infeliz, preferes ainda existir, infeliz que sejas, a não existir em absoluto, embora recuando-te a ser infeliz. Considera, pois, o quanto podes, quão excelente bem é a existência em si mesma, objeto do querer dos felizes e dos infelizes. Pois, se prestares bastante atenção, verás primeiramente que és infeliz na medida mesma em que não te aproxima do Ser supremo. Por outro lado, crês preferível o não-ser a uma existência miserável, na mesma medida em que perdes de vista esse sumo Ser. Entretanto, tu te apegas à existência, porque recebeste o ser d’Aquele que é o Ser supremo.

 

Resolução – Amar mais e mais a vida r aspirar ao amor das coisas eternas

 

  1. Logo, se queres fugir da infelicidade, ama em ti esse mesmo “querer-ser”. Com efeito, quanto mais quiseres ser, mais aproxima-te d’Aquele que existe acima de tudo. E dá graças a Deus, desde já, por existires. Pois mesmo sendo inferiores aos bem-aventurados, contudo és superior aos seres que não possuem sequer o desejo da felicidade. Entretanto, apesar disso, muitos desses seres inferiores são exaltados pelos próprios desafortunados. Todavia, todos os seres, pelo fato de existirem, são, com todo direito, dignos de serem apreciados. Porque, pelo simples fato de existirem, são bons. Assim, pois, quanto mais amares a existência tanto mais desejarás a vida eterna e aspirarás a te transformar, de tal maneira que tuas disposições não sejam transitoriamente impressas em ti, como que gravadas pelo amor das realidades efêmeras. Pois as coisas temporais nada são antes de existirem; ao existirem, passam; e tendo passado, voltam ao nada. Logo, quando são futuras ainda não existem; ao terem passado não existirão mais. Como, pois retê-las a fim de que permaneçam, essas realidades para as quais iniciar a existir é idêntico a caminhar para o nada? Mas quem ama a existência (p.172) aprova e utiliza essas coisas caducas, enquanto existem, mas dá o seu grande amor ao Ser que permanece sempre. E se o amor daquelas realidades o tornava inconstante, fortificar-se-á por esse amor ao Ser que sempre é. E caso se desesperar amando coisas passageiras, firmar-se-á amando o Ser que é permanente. Fixar-se-á e obterá aquele mesmo Ser que desejava quando temia deixar de existir e não podia se fixar, arrastado pelo amor das coisas fugazes. 16

            Logo, não te entristeças, mas ao contrário te alegres e muito, pelo fato de que prefiras existir, mesmo infeliz, deixar de ser infeliz, por não mais existires. Com efeito, se a partir desse “querer-ser” inicial cresces, mais e mais, no amor ao ser, elevarás o templo de tua alma em direção ao Ser supremo. Assim, tu te preservarás de toda queda, pela qual passam à não existência os seres inferiores, os quais existem apenas para voltar ao nada, levando em sua ruína as forças e o ser de quem ama tais coisas.

            Quanto àquele que prefere não ser para escapar da miséria, como isso não pode se dar, ele não tem outra alternativa do que suportar de ser infeliz. Pelo contrário, aquele que possui maior amor à existência do que aversão a viver infeliz, que aumente esse amor à existência e assim se afastará daquilo a que tem tanta aversão. Pois logo que conseguir possuir perfeitamente aquela existência que convém à sua condição, não será mais infeliz.

 

Capítulo 8

 

Nem mesmo aqueles que se suicidam preferem o não-ser

 

  1. Efetivamente, considera o absurdo e a contradição desta declaração: “Gostaria de não existir do que de ser infeliz”. Pois ao se dizer: gosto mais disto do que (p.173) daquilo, escolhe-se alguma coisa. Ora, o não-ser não é coisa alguma, mas um simples nada e, por conseguinte, é absolutamente impossível que se faça uma escolha conveniente, quando nada há a ser escolhida.

            Sem dúvida, dizes ainda: “Eu queria existir, mesmo sendo infeliz, mas não deveria ter querido isso?”. O que deverias, então, querido? “De preferência não existir”, respondeste. Se tivesses tido de querer isso, então tal havia de ser o melhor. Ora, o nada não pode ser o melhor. Logo, não é isso que deverias ter querido. E o sentimento que te leva a não querer o nada é mais conforme à verdade do que o parecer pelo qual crês que deverias ter querido tal coisa.

            Além disso, quando alguém faz uma boa escolha é preciso que o objeto desejado, uma vez obtido, torne melhor aquele que optou por ele. Ora, é impossível tornar-se melhor alguém que já existe. Logo, ninguém pode escolher de modo conveniente não mais existir.

            Nem nós devemos nos deixar impressionar pelo julgamento daqueles que, sob o peso da miséria, se deram à morte. Com efeito, ou bem eles procuraram refúgio lá onde julgavam estar melhor – e isso não parece contrário a nosso raciocínio -, seja da maneira que for como o supuseram, ou bem menos ainda, caso tenham acreditado em seu total desaparecimento, essa escolha absurda das pessoas em escolher o nada deve nos inquietar. Realmente, como posso seguir um homem a quem, se eu lhe perguntasse o que escolhe ele me respondesse: “Nada!” Pois aquele que escolhe não-ser, certamente fixa sua opção sobre o nada, ainda que se negue a admitir essa resposta.

 

No fundo, o suicídio procura encontrar a própria tranqüilidade

 

  1. não obstante, para exprimir o meu pensamento sobre toda essa questão, se isso for possível, direi: parece-me que ninguém que se suicida ou que deseja a morte de (p.174) qualquer maneira possui o sentimento de que não será nada depois da morte. Ainda que isso entre um pouco em sua idéia. Com efeito, o parecer racional reside no erro ou na verdade, obtidos por via do raciocínio ou da fé, em testemunhos dados. Pelo contrário, o sentimento tira seu valor da própria natureza ou do hábito. Ora, pode acontecer que o parecer lógico diga uma coisa e o sentimento íntimo, outra. Constata-se isso facilmente pelo fato de que em muitos casos cremos que deveríamos fazer de que em muitos casos cremos que deveríamos fazer uma coisa, mas agrada-nos, na realidade, fazer outra.

            Por vezes, o sentimento íntimo é mais verdadeiro do que o parecer formalizado. Isso quando esse vem do erro e o sentimento, da natureza. Por exemplo, frequentemente um doente encontra prazer em tomar água gelada e isso com proveito, ainda que acreditando que lhe será nocivo.

            Outras vezes, o parecer formalizado é mais verdadeiro do que o sentimento íntimo. Por exemplo, no caso de o doente crer, conforme a recomendação competente do médico, que a água fria lhe será nociva, posto que, com efeito, ela realmente o seja, ainda que o dito doente tenha prazer de bebê-la.

            Por vezes, o parecer lógico e o sentimento são igualmente verdadeiros, como acontece quando uma coisa útil não somente é tida como tal, mas ainda ocasiona prazer.

            Enfim, há vezes em que o erro de um lado e doutro, quando uma coisa nociva é julgada benéfica e causa prazer.

            Habitualmente, porém, um parecer certo corrige um mau hábito e um mau parecer costuma corromper uma natureza correta. Isso por ser muito forte o domínio e a supremacia da razão.

            Assim acontece quando uma pessoa crê que após a morte não mais existirá, e que, entretanto – levada por tristezas intoleráveis, inclina-se com todo seu desejo em direção à morte – resolva abraçá-la e, com efeito, se (p.175) suicida. Há em seu parecer a crença errônea de completo aniquilamento. Não obstante, existe, pelo contrário, em seu sentimento, o desejo natural do repouso. 17

            Ora, o que permanece na tranqüilidade não pode ser um puro nada. Bem ao contrário, possui mais instabilidade do que aquilo que é instável. Posto que a instabilidade é causa de afetos tão opostos que mutuamente um destrói o outro. Pelo contrário, o repouso implica a permanência, a qual se tem em vista quando se diz de algo: Isto existe, é!

            Desse modo, todo desejo daquele que quer morrer é dirigido, não para cessar de existir pela morte, mas para encontrar a tranqüilidade. E assim, enquanto crê, por engano, obter o não-ser, sua natureza está a aspirar pela tranqüilidade, isto é, deseja possuir uma realidade mais perfeita.

            Logo, assim como não pode absolutamente ser crível que alguém goste de não existir, não se pode de modo algum admitir que alguém seja ingrato para a bondade de seu Criador, pelo ser do qual frui.

 

 

 

C: O PECADO E A ORDEM DO UNIVERSO

 

Capítulo 9

 

É indevido censurar a Deus pela criação de seres menos perfeitos

 

  1. Se fosse dito: “Entretanto, não seria difícil nem laborioso para a onipotência de Deus proporcionar a cada uma de suas obras o que lhe convém dentro de sua ordem, de maneira que nenhuma viesse a ser infeliz. Pois sua onipotência não poderia ser incapaz disso nem sua bondade haveria de ser avara desse dom”. (p.176)

            Responderia a essa objeção: a ordem hierárquica das criaturas desde a mais elevada até a mais ínfima decorre em graus tão bem proporcionados que só a inveja poderia levar a dizer: “Esta realidade não deveria existir assim”. Ou ainda: “Aquela deveria ser de outro modo”. Com efeito, caso se pretendesse que uma criatura se assemelhasse a tal outra que lhe fosse superior, essa já deveria existir e com excelência suficiente para que nada pudesse lhe ser acrescentado por ser perfeita. Então, alguém ao afirmar: “Gostaria que esta realidade fosse como aquela outra”, caso pretendesse acrescentar perfeição à criatura superior já perfeita, por aí, seria exagerado e injusto. Ou ainda, se alguém pretender suprimir a realidade mais imperfeita seria mau e iníquo.

            E aquele que dissesse: “Esta aqui não deveria existir” seria igualmente mau e invejoso, visto que, ao recusar-lhe a existência, ver-se-ia forçado a considerar tal outra menos perfeita. Seria, por exemplo, como se dissesse: “A lua não deveria existir”. Ora, a claridade de uma candeia que seja, ainda que bem inferior, continua bela em seu gênero e agradável, quando as trevas cobrem a terra, e assim mostra-se ela bem apropriada aos afazeres noturnos. Devido a tudo isso, meu interlocutor deve bem confessar que a referida candeia é digna de ser louvada em sua humilde limitação. Negá-lo, seria próprio de um doido ou de um obstinado.

            Como, pois, ousar dizer convenientemente: “A lua não deveria existir entre os seres”, quando ao dizer: “A candeia não deveria existir”, essa pessoa já é digna de zombaria? E caso não afirmasse: “A lua não deveria existir”, mas sim: “Deveria ser semelhante ao sol”, ela não se daria conta de que esse desejo reduz-se a: “A lua não deveria existir, mas deveria haver dois sóis”. Nisso engana-se duplamente, porque acrescentar ao mesmo tempo nova perfeição às coisas que já são perfeitas em sua (p.177) natureza é desejar como que outro sol. E diminuir a sua perfeição é como desejar eliminar a lua.

 

Deus é digno de louvores pela criação da variedade dos seres

 

  1. Talvez meu interlocutor dirá, a propósito desse exemplo, que ele não se lamentará de modo algum a respeito da lua, porque o esplendor menor que ela possui não é de natureza a torná-la infeliz. Mas que é a respeito das almas que ele se contrista. Não devido à obscuridade delas, mas, precisamente, por causa do seu estado de desgraça.

            Seja, mas que ele considere, então, atentamente, que se alua é infeliz por sua opacidade, do mesmo modo o sol não é feliz por seu brilho. Pois, ainda que sendo corpos celestes, são, contudo, corpos e, pelo que diz respeito à luz, são capazes de serem percebidos por nossos olhos corporais: nunca, porém, os corpos como corpos podem sentir felicidade ou desdita, ainda que possam ser corpos de seres felizes ou infelizes.

            Mas a comparação tirada desses corpos luminosos ensina-nos o seguinte: contemplando a diversidade dos corpos, vês uns mais brilhantes do que outros, mas estarias no erro ao pedir a supressão dos mais obscuros ou o nivelamento com os mais brilhantes. Pois, se os consideras a todos em sua relação com a perfeição do universo, quanto mais eles diferem de brilho entre si, mais te é fácil constatar que todos eles existem.

            Aliás, o conjunto não te parece perfeito, senão porque coexistem corpos mais nobres com outros mais humildes. Considera, por aí, igualmente, a diversidade existente nas almas e encontrarás como compreender que essa miséria da qual te lamentas também possui seu papel na perfeição do universo. Essa perfeição faz com que nada falte, sequer essas almas que tiveram de se tornar infelizes (p.178) por terem livremente serem pecadoras. E não se pode dizer que Deus devia ter dado a existência a essas almas. Igualmente, é erro afirmar que ele não seja digno de louvor por ter dado o ser a outras criaturas ainda bem inferiores do que essas almas infortunadas.

 

O pecado nada tira da ordem do universo

 

  1. Entretanto, parecendo não compreender bem o que foi dito, meu interlocutor apresenta ainda outra objeção: “Com efeito, argumenta ele, se nossa miséria completa a perfeição do universo, viria então a faltar algo a essa perfeição, caso todos nós sempre fôssemos felizes? Por conseguinte, se a alma não se torna infeliz a não ser pecando, segue-se que até os nossos próprios pecados são necessários à perfeição do universo criado por Deus. 18 Como, então, pune Deus com justiça os pecados, sem os quais a sua criação não teria nem a sua plenitude nem a sua perfeição?”

            A isso se responde: não são os pecados mesmos, nem as desgraças mesmas, que são necessários à perfeição do universo, mas as almas enquanto almas, as quais se não quiserem pecar não pecam, mas tendo pecado tornam-se infelizes. Se, absolvidos os seus pecados, a sua miséria continuasse, ou mesmo se esta precedesse qualquer pecado, com razão seria dito que uma brecha foi introduzida na ordem e no governo do universo. Por outro lado, caso se cometam pecados, mas não exista a pena, a ordem ficaria igualmente abalada pela injustiça.

            Inversamente, quando os justos encontram a felicidade, então aparece perfeita a ordem do universo. E porque não faltam almas pecadoras que encontram o castigo, nem as almas a cujas boas obras segue-se a felicidade, o universo não deixa de conservar a sua perfeição. Porque, na verdade, nem o pecado nem o castigo do pecado (p.179) são seres à parte, mas estados acidentais dos seres. O pecado voluntário leva a um estado acidental de desordem vergonhosa, ao qual se segue o estado penal, precisamente para o colocar no lugar que lhe corresponde, para não haver uma desordem dentro da ordem universal. Força o castigo a harmonizar-se o pecado com a ordem do universo. Assim, a pena do pecado vem a reparar a ignomínia do mesmo. 19

 

A penalidade sofrida pelas almas pecadoras contribui para a perfeição do universo

 

  1. Daí provém que, se uma criatura superior pecar, será punida por criaturas inferiores. Porque ainda que estas estejam em condição bem mais baixa, podem ser de certo modo elevadas pelas almas pecadoras. Ajustam-se assim à ordem e harmonia do universo. Com efeito, o que há numa casa de mais nobre do que a pessoa humana, e o que há de mais baixo e abjeto do que o esgoto da casa? Contudo, um escravo, preso por uma falta que o faz ser encarregado de limpar o esgoto, dignifica aquele lugar por meio de sua mesma ignomínia. E essas duas coisas, a indignidade do escravo e o ato de limpar o esgoto, reunidas e formando agora uma só espécie de unidade, contribuem para a boa disposição da casa. Inserem-se tão bem uma na outra que concorrem ao arranjo daquela residência numa ordem cheia de harmonia. Contudo, se esse escravo não tivesse querido pecar, nem por isso à administração doméstica teria faltado outro meio para fazer executar as limpezas necessárias.

            De modo semelhante, haverá algo de mais ínfimo entre os seres do que um corpo formado da terra? E, entretanto, a alma, mesmo pecadora, dignifica tão bem essa carne corruptível que lhe dá uma forma admiravelmente constituída, assim como o movimento vital. Por (p.180) isso, se não é conveniente que uma alma pecadora habite o céu devido a seu pecado, não obstante convém-lhe habitar a terra, como castigo.

            Assim, seja qual for a opção da alma, permanecerá sempre a beleza deste universo, do qual Deus é o criador e administrador e cuja ordem consiste na harmoniosa conveniência de suas partes. Quanto ás almas nobres, ao habitarem em seres de baixa condição, elas os dignificam, não por suas misérias, pois não as possuem, mas pelo bom uso que fazem dessas criaturas.

            Todavia, se fosse permitido às almas pecadoras habitarem em lugares mais elevados, haveria por certo desordem, porque elas não se adaptariam a tais lugares, não podendo usar deles de modo conveniente nem lhes trazer esplendor algum.

 

  1. É porque nosso mundo, ainda que destinado às coisas corruptíveis, conserva, entretanto, o quanto lhe é possível, a imagem de seres superiores e não cessa de oferecer exemplos e sinais disso.

            Com efeito, se virmos um homem bom e de caráter nobre, levado pelo dever e a honra, a deixar que seu corpo se consuma pelas chamas, não classificamos esse fato como castigo infligido pelas chamas, mas como prova de força e paciência. E nós muito o admiramos, caso uma terrível destruição dizimar seus membros corporais – mais do que se não tivesse tido de sofrer nada semelhante. Pois reconhecemos com admiração que a natureza da alma é tal que não sofre alteração pela modificação do corpo.

            Por outro lado, se acontecer serem consumidos os membros do corpo de um bandido que observamos pelo mesmo suplício, caso seja dentro da ordem e da lei, nós admitimos o fato. Logo, esses dois tipos de homens dignificam seus tormentos, mas um demonstrando o que vale a sua virtude e outro, o que merece o seu pecado. (p.181)

            Ora, se após essa prova de fogo, ou mesmo antes dela, víssemos aquele homem santo de que falamos em primeiro lugar tornar-se digno das moradas celestes, ser transportado para os céus, por certo alegrar-nos-íamos.

            Pelo contrário, se fosse o bandido que víssemos, seja antes de seu suplício, seja depois, conservando ele a malícia de sua vontade, elevar-se aos céus para ser colocado num trono de eterna glória, quem não ficaria chocado?

            Conclui-se, pois, que um e outro puderam dignificar os seres inferiores, mas só um deles, os seres superiores.

 

Aplicando do que foi dito à punição do pecado original e à redenção

 

            Isso leva-nos a observar que a mortalidade de nosso corpo foi danificada pelo primeiro homem, de modo que o pecado encontrou aí seu castigo proporcionado. E também, foi o corpo humano dignificado por nosso Senhor, de modo que a sua a misericórdia fez dele o meio de nos libertar do pecado. 20

            Por outro lado, o justo podia, permanecendo justo, possuir um corpo mortal; mas, inversamente o pecador, enquanto se mantiver pecador, não pode atingir a imortalidade dos anjos. Não me refiro à imortalidade sublime dos anjos, daqueles que o apóstolo diz: “Não sabeis que julgaremos os mesmos anjos?” (1 Co 6,3). Mas sim daqueles de quem o Senhor diz: “Eles serão semelhantes aos anjos de Deus” (Lc 20,36). Com efeito, aqueles que desejam a igualdade com os anjos, movidos por própria vanglória, não querem por aí elevar-se a uma medida igual à dos anjos, mas sim rebaixarem os anjos à sua própria condição. É porque, perseverando em tal pretensão, serão igualados ao castigo dos anjos prevaricadores, que amam o seu próprio poder mais do que o de Deus todo-poderoso. Realmente, tais homens encontrar-se-ão do (p.182) lado esquerdo, no juízo final, porque não terão procurado a Deus pela porta da humildade, a qual o Senhor Jesus Cristo mostrou-nos em si mesmo. Viveram eles cheios de orgulho, sem nenhuma misericórdia. Então, ser-lhes-á dito: “Ide agora para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos” (Mt 25,41).

 

Capítulo 10

 

Conseqüências do pecado original

 

  1. São duas as fontes do pecado: uma, o pensamento espontâneo; outra, a persuasão de outrem. Penso que é a isso que se refere a palavra do profeta: “De meus pecados ocultos, purificai-me, Senhor, e das faltas alheias preservai vosso servo” (Sl 18,13.14). Todavia, num e noutro caso, o pecado é sem dúvida voluntário. Isso porque, assim como ninguém ao pensar espontaneamente vem a pecar contra a própria vontade, do mesmo modo, ao consentir a uma má sugestão, certamente não consente sem ser por vontade própria.

            Entretanto, pecar por si mesmo sem ser induzido a isso por ninguém, e persuadir a outrem a cometer pecado, por inveja e dolo, é certamente mais grave do que ser levado ao pecado por persuasão alheia.

            Deus observou plenamente a justiça, punindo um e outro pecado (o do demônio e dos homens). Pois foi tudo pesado na balança da equidade. Assim, o fato de não ser recusado ao demônio o possuir de certa o homem sob o seu poder – posto que lhe fora submetido por haver aceito as suas más sugestões. Com efeito, não seria justo impedi-lo de dominar sobre aquele a quem havia capturado.

            Por outro lado, absolutamente não podia acontecer que a justiça perfeita de Deus soberano e verdadeiro, que (p.183) se estende por toda parte, se omitisse, sem remeter em ordem os estragos dos pecadores. É porque ao homem sendo menos culpado do que o demônio, foi encontrado um meio de restauração e salvação, pelo fato mesmo de estar sujeito ao demônio, até na própria mortalidade de sua carne. Pois o demônio é o príncipe deste mundo, quero dizer, da parte mortal e ínfima da criação, isto é, ele é o chefe de todos os pecados e senhor da morte.

            O homem, tornando-se menos seguro pela consciência de ser mortal, temendo a ferocidade da parte dos animais, os mais vis e abjetos e até mesmo dos menores, em meio a mil incômodos, acha-se, por outro lado, incerto do futuro. Habituou-se, então, a reprimir as alegrias culpáveis e, sobretudo a dominar o seu orgulho, cujas más sugestões levaram-no a perder-se. Tal orgulho afasta por ele só o remédio preparado pela misericórdia divina. Quem há, com efeito, que tenha mais necessidade de misericórdia do que o mísero? E também, o que há de mais indigno de misericórdia do que o orgulhoso infortunado?

 

A obra da redenção

 

  1. Aconteceu, então, que o Verbo de Deus, “por quem tudo foi feito” e cujo gozo constitui toda a bem-aventurança dos anjos, estendeu sua clemência até a nossa miséria” e o Verbo fez-se carne e habitou entre nós” (Jo 1,3.14).

            Poderia assim o homem chegar a comer o pão dos anjos, sem ainda ser igualado aos anjos, já que Ele mesmo, o Pão dos anjos, se dignava igualar-se aos homens. E desceu Ele até nós, sem, contudo abandonar os anjos. Ele está, ao mesmo tempo, inteiramente junto a eles e inteiramente junto a nós. Nutre a eles, aos anjos, interiormente por seu ser de Deus. E ensina-nos a nós, por fora, por tudo o que somos. 21 Torna-nos capazes pela fé de participarmos com os anjos do alimento da visão beatífica. (p.184)

            Na verdade, a criatura racional nutre-se desse Verbo como de seu melhor alimento. Ora, a alma humana é racional. Está, porém, retida por castigo de seu pecado em liames mortais. Ela é reduzida, assim, a um estado de grande debilidade. Deve esforçar-se para perceber as realidades invisíveis, por conjecturas, através das realidades visíveis. É porque o alimento da criatura racional tornou-se visível. Sem nada mudar em sua natureza, revestiu-se da nossa, a fim de levar a Ele, que é invisível, aqueles que só procuram as coisas visíveis. Desse modo, Aquele que a alma por seu orgulho abandonara, em seu interior, ela reencontra-o fora dela, na humildade. E só será imitando essa humildade visível que voltará à sua elevação invisível.

 

A submissão ao Senhor livra-nos do poder do demônio

 

  1. É porque o Verbo de Deus,o Filho único de Deus, que sempre teve e sempre terá o demônio às suas leis, tendo se revestido de nossa humanidade, submeteu igualmente o demônio ao homem. Para isso, nada lhe exigiu com violência. Mas venceu-o pela lei da justiça. Posto que o demônio, tendo enganado a mulher e feito cair o homem por meio dela – certamente animado pelo desejo perverso de causar dano, entretanto, com todo direito -, pretendia submeter à lei da morte todos os descendentes do primeiro homem, a título de pecadores.

            Em conseqüência, esse poder não deveria perdurar senão até o dia em que o demônio poria o Justo à morte, Àquele em quem nada podia encontrar digno de morte. E Ele, não somente foi condenado à morte, sem crime algum, como também nasceu sem concupiscência alguma, pela qual o demônio subjugava a todos os seus cativos, como frutos de sua árvore. Isso sem dúvida levado por um desejo muito perverso. Não obstante, sem lhe ter faltado certo direito de (p.185) propriedade. Por conseguinte, é com toda justiça que o demônio está constrangido a libertar aqueles que crêem naquele a quem submeteu à morte injustamente.

            Desse modo, se os homens morrem de morte temporal, que essa morte seja para liquidar sua dívida; e se vivem da vida eterna, que seja para viver naquele que pagou por eles uma dívida que ele próprio não tinha.

            Para aqueles, porém, a quem o demônio tiver persuadido de perseverar na infidelidade, com direito ele os terá como companheiros na danação eterna.

            Assim, pois, aconteceu que o homem não foi arrancado por violência ao demônio, tal como este não havia se apropriado por violência do homem, mas por persuasão. Dessa maneira, foi submetido o homem que com direito havia sido humilhado, a ponto de se tornar escravo daquele a quem dera o consentimento para o mal. Com direito, também, foi libertado por Aquele a quem dera o consentimento para o bem. Isso porque o homem forma menos culpado consentindo ao mal do que o demônio a persuadir a fazê-lo.

 

 

Capítulo 11

 

Toda criatura justa ou pecadora contribui para a ordem universal

 

  1. Deus é, pois, o Criador de todas as naturezas: não somente daquelas que haviam de perseverar na virtude e na justiça, como daquelas que haveriam de pecar. Estas Deus as criou não pra que pecassem, mas para que acrescentassem algo à beleza do universo, quer consentindo, quer não ao pecado.

            Se aqueles seres espirituais que ocupam o cume da ordem universal tivessem falhado e aceitado pecar, o (p.186) universo ter-se-ia enfraquecido e deteriorado e algo de grande teria faltado à criação. Pois faltaria aquilo cuja ruína perturbaria o equilíbrio e a harmonia dos seres. Tais são aquelas criaturas tão excelentes, santas e sublimes, potestades celestes e ou supracelestes, das quais só Deus é o Senhor e ao qual o mundo inteiro está submetido. Sem a função delas, cheia de justiça e de perfeição, nosso universo não subsistiria.

            Do mesmo modo, aquelas outras criaturas que podem pecar ou não, no caso de não existirem, a ordem do universo não se alteraria. Nesse caso, entretanto, muito de considerável teria faltado. Posto que, com efeito, são almas racionais, por certo dessemelhantes por suas funções daqueles espíritos superiores, mas igualando-os em sua natureza.

            E abaixo delas, há ainda muitos outros graus de ser que, sendo obras do Deus supremo, permanecem dignas de louvor. 23

Função dos seres angélicos e dos homens

 

  1. Logo, possui uma função sublime essa natureza a qual, não somente se não existisse, mas ainda se pecasse, diminuiria a ordem do universo.

            Função menos sublime exerce aquela outra natureza cuja inexistência somente, e não seu pecado, diminuiria essa perfeição universal.

            Aos primeiros seres (os angélicos) foi dado o poder de suster todas as coisas como função própria. Deles, a ordem universal não se poderia passar. Aliás, a razão de sua perseverança na vontade do bem não vem da nobre função que receberam porque sua perseverança foi prevista por Aquele que confiou neles. Ademais, não é por sua própria autoridade que eles mantém todas as coisas na ordem, mas por aderirem à (p.187) autoridade e obedecerem com total dedicação às ordens d’Aquele de quem, por quem e em quem 24 todas as coisas foram feitas.

            Por sua parte, aquela segunda natureza (a humana), quando não peca, recebe também a função e o grandíssimo poder de sustentar todas as coisas na ordem. Não, porém, como próprias, mas em união com os primeiros seres, por ter sido previsto que ele seria capaz de pecar.

            Os seres espirituais podem unir-se entre si, sem nada ganhar com isso; e separarem-se também sem se diminuírem em nada. Assim, os seres superiores nada ganham em facilidade nas suas ações, se os inferiores unirem-se a eles. Tampouco sua ação torna-se mais difícil, se os inferiores abandonarem sua função, pecando.

            Pois mesmo que os seres espirituais tivessem um corpo, não é pelos lugares ou volumes corporais que essas criaturas espirituais podem unir-se ou separar-se, mas pela semelhança ou dessemelhança de suas disposições.

 

Ação dos anjos e das almas sobre os seres inferiores

 

  1. Ora, a alma humana que desde o pecado encontra-se em seu lugar em corpos frágeis e mortais, governa cada uma o seu corpo, não totalmente conforme sua própria vontade, mas como o permitem as leis universais.

            Contudo, não se segue que essa alma seja inferior aos corpos celestes, 25 aos quais estão submissos os corpos terrestres. Pois até as roupas esfarrapadas de um escravo condenado estão longe de valer o mesmo que as vestes de um servo fiel, estabelecido com honra junto a seu senhor. Mas o próprio escravo vale muito mais do que não importa que veste preciosa, pelo fato de ser homem.

            Portanto, aquele espírito (angélico) superior, unido a Deus, e num corpo celeste, pode, por seu poder angélico, embelezar e governar os mesmos corpos terrestres, conforme (p.188) lhes ordena Aquele de quem compreende inefavelmente a vontade.

            Quanto à alma (humana), inferior por sua vez, morando em corpo mortal, governa com dificuldade, interiormente, esse mesmo corpo que a oprime. Contudo, ela o embeleza o quanto pode. Quanto aos corpos exteriores que a circundam, ela influencia-os conforme sua possibilidade, com uma ação ainda que muito mais fraca.

 

 

Capítulo 12a

 

Nada pode perturbar o governo de Deus sobre o universo

 

  1. Donde se segue esta conclusão: a criatura corpórea – até a de condição mais ínfima – não estaria privada de beleza singularíssima, mesmo no caso de o homem não ter querido pecar.

            Com efeito, quem pode governar o todo pode também governar uma parte. Não se segue, que aquele que pode menos possa algo mais. Assim, por exemplo, um médico pode ser competente para curar eficazmente qualquer doença da pele. Entretanto, não se segue que aquele médico que trata com sucesso tais males, necessariamente cure toda espécie de doenças no homem.

            Na verdade, a razão pode perceber uma idéia certa que faça ver com evidência que deve existir uma criatura que nunca tenha pecado e nunca houvesse de pecar jamais; e essa mesma razão pode mostrar também outra verdade: que essa criatura abstém-se de pecar por sua livre vontade, e isso sem ser forçada por necessidade alguma, mas por si mesma. E mesmo se ela pecasse, ainda que de fato não o tenha feito, como Deus o previu, apesar de todo, bastaria a autoridade divina cujo poder é inefável (p.189) para governar todo este universo, de modo que, dando a cada um o que lhe convém e é devido, Ele não haveria de tolerar em todo seu domínio nada de disforme ou indecoroso.

            Porque, supondo que se Deus se passasse de todo poder, criado para esse mesmo fim, como seria o caso de os seres angélicos todos eles virem a falhar, pecando contra os seus mandamentos, Deus governaria todas as coisas por sua ação cheia de bondade e de ordem, em sua suprema majestade.

            Entretanto, nem sequer por inveja deixaria de querer a existência de seres espirituais. Ele, que também criou com muita bondade os seres corporais, ainda que bem abaixo dos espirituais.

            É assim que ninguém pode contemplar com inteligência o céu, a terra e todos os seres visíveis com suas proporções e sua ordem conforme seu gênero próprio sem reconhecer que Deus somente é o autor de todas as coisas, e sem admitir que é preciso lhe tributar inefáveis louvores.

            Todavia, até na hipótese de melhor disposição das coisas não poder ser obtida sem que o poder angélico, pela excelência de sua natureza e bondade de sua vontade, esteja no plano supremo da organização universal – ainda assim, a defecção de todos os anjos não teria desprovido o Criador do governo de seu império. Com efeito, nem essa bondade, como decorrente de qualquer desgosto; nem seu poder, devido a qualquer dificuldade, faltar-lhe-iam para criar outros seres angélicos e colocá-los nos tronos abandonados pelos prevaricadores. Enfim, se as criaturas espirituais fossem condenadas por seus pecados, tal como mereciam, no maior número que se suponha, isso não poderia prejudicar a ordem. Porque se prestariam com toda equidade e conveniência à ordem, a qual leva ao castigo todos aqueles que fossem dignos de serem condenados.

(p.190)

            Assim, pois, de qualquer lado que se dirija a nossa reflexão, ela encontra a Deus, digno de louvores inefáveis. Ele, o Criador excelente e o governador muito justo de todos os seres.

 

D: O PECADO E A BONDADE DAS CRIATURAS

 

Capítulo 12b

 

Contemplação da beleza da criação

 

36a.     Enfim, deixemos a visão da beleza das coisas para serem contempladas por aqueles que a podem ver, graças ao auxílio de Deus. Quanto àqueles que são incapazes de a ver, não tentemos levá-los a contemplar o inefável mistério, por palavras. Não obstante, por causa de certos homens palradores, ignorantes ou sofistas, examinemos tão grande questão com a maior brevidade que nos seja possível. 26

 

Capítulo 13

 

Princípio fundamental: todo ser é bom. O mal é uma privação

 

36b.     Toda natureza (natura) que pode tornar-se menos boa, todavia, é boa. De fato, ou bem a corrupção não lhe é nociva, e nesse caso ela é incorruptível; ou bem, a corrupção atinge-a e então ela é corruptível. Vem a perder a sua perfeição e torna-se menos boa. Caso a corrupção a privar totalmente de todo bem, o que dela restará não poderá mais se corromper, não tendo mais bem algum cuja (p.191) corrupção a possa atingir e, assim, prejudicá-la. Por outro lado, aquilo que a corrupção não pode prejudicar também não pode se corromper, e assim esse ser será incorruptível. Pois eis algo totalmente absurdo: uma natureza tornar-se incorruptível por sua própria corrupção.

            Por isso se diz, com absoluta verdade, que toda natureza enquanto tal é boa. Mas se ela for incorruptível será melhor do que a corruptível. E se ela for corruptível – já que a corrupção não pode atingi-la senão tornando-a menos boa, ela é indubitavelmente boa. Ora, toda natureza ou é corruptível ou incorruptível. Portanto, toda natureza é boa.

            Denomino “natureza” o que habitualmente se designa pela palavra “substância”. Conseqüentemente, posso dizer que toda substância é Deus ou procede de Deus, e assim tudo o que é bom é Deus ou procede de Deus.

 

A reprovação devida aos defeitos vem a ser louvor ao Deus supremo

 

  1. Uma vez essas verdades tendo sido firmemente estabelecidas, como ponto de partida de nosso raciocínio, atende, (ó Evódio), ao que vou dizer: toda natureza racional, tendo sido criada com o livre-arbítrio da vontade, é, sem dúvida alguma, digna de louvor, caso se mantenha fixa no gozo do Bem supremo e imutável. A mesma coisa quanto à natureza que se esforça por se fixar nele permanentemente deve ela igualmente ser louvada. Pelo contrário, toda natureza que não esteja fixa naquele Bem supremo e recusar-se a trabalhar para aí se manter, é digna de ser censurada (vituperanda est), na medida em que aí não estiver e não fizer o necessário para isso.

            Logo, se é digna de louvor uma natureza racional, que não é senão criatura, não há dúvida que também deve ser louvado Aquele que a criou. E caso ela seja censurada, (p.192) ninguém duvida que seu Criador vem a ser igualmente louvado por essa censura. Com efeito, se o que reprovamos nessa criatura é precisamente o fato de não querer gozar do Bem supremo e imutável, isto é, de seu Criador – é bem este a quem louvamos, sem dúvida alguma.

            Ó quão grande é, pois a bondade divina, e de quantos inefáveis louvores todas as línguas e todos os pensamentos devem celebrar e honrar o Deus, criador de todas as coisas. Visto que não podemos, sem o louvar a ele mesmo, ver dirigidos a nós louvores ou censuras! Com efeito, não podemos ser reprovados por não permanecermos unidos a ele, a não ser porque essa união constitui o nosso grande, supremos e primeiro bem. E donde procede tudo isso, se não porque Deus é o inefável?

            Como, pois, poder-se-ia encontrar em nossos pecados algo de censura, em referência a Ele, quando não podemos condenar tais pecados, sem proclamarmos os seus louvores?

 

Não se pode reprovar o vício sem louvar a natureza

  1. Pois bem! Nas mesmas coisas que reprovamos, não é unicamente o defeito ou vício (vitium) que reprovamos? 27 ora, não se pode reprovar o vício de natureza alguma sem louvar implicitamente a essa natureza. Com efeito, ou bem aquele que censuras é conforme à natureza do seu ser, e então não é um defeito, e é a ti que convém corrigir o julgamento errôneo, para que saibas censurar a propósito, e assim o teor de tua reprovação não seja indevido. Ou então, caso se trate de um vício, para ser justamente reprovado, tem forçosamente de ser contrário à mesma natureza. Porque todo vício, pelo fato mesmo de ser vício, é contrário à natureza. Efetivamente, se não prejudicar a natureza não será tampouco vício. Inversamente, se for vício por afetar a natureza de modo nocivo, é claro ser também vício pelo fato de ser contrário à natureza. (p.193)

            Agora, se uma natureza for corrompida não por seus próprios vícios, mas pelos de outra natureza, então ela será censurada injustamente. Devemos antes procurar se a outra natureza da qual o vício a pôde corromper não está ela mesma corrompida por seus próprios vícios.

            Mas o que é ser viciado a não ser estar corrompido pelo vício? Ora, uma natureza que não está viciada não possui vício algum. Ao passo que a natureza cujo vício pôde corromper outra natureza certamente esta viciada. Logo, a primeira está corrompida por seu próprio vício. Ela, cujo vício pôde corromper as outras naturezas. Donde se segue esta conclusão: todo vício é contrário à natureza, exatamente daquela mesma natureza da qual vem tal vício.

            É porque se conclui que em todas as coisas não se reprova a não ser o vício e este não vem a ser constituído vício, senão por sua oposição à natureza do ser onde se encontra. E não se pode reprovar com justeza o vício de coisa alguma, a não ser que se louve a natureza dessa mesma coisa.

            Com efeito, nada pode com razão te desagradar no vício, a não ser o fato de que ele vicia o que te agrada na natureza.

 

 

Capítulo 14

 

Dois complementos:

 

1º) Natureza alguma corrompe-se sem já estar viciada

 

  1. É preciso considerar igualmente este outro aspecto: será verdade dizer que uma natureza se corrompe pela influência do vício de outra natureza, sem que ela mesmo não tenha vício algum? Realmente, se uma natureza ao aproximar-se de outra com intenção de corrompê-la, com seus próprios vícios, caso não encontre nela algo de corruptível, (p.194) não pode corrompê-la. E caso o encontre, ela não realiza a corrupção de sua natureza, a não ser pela influência dos vícios que ali encontra. Porque, em primeiro lugar, se for uma natureza mais forte em face de outra mais fraca que a influencia, evidentemente ela não será corrompida, a não ser que o queira. E caso queira, ela começa a ser corrompida por seu próprio vício, antes de o ser por um vício alheio.

            Em segundo lugar, caso se trate de uma natureza diante de outra de igual força, tampouco poderá ser corrompida, no caso de se recusar a isso. Porque desde que qualquer natureza atingida por um vício aproximar-se de outra isenta de vício, para a corromper, pelo fato mesmo, não se apresenta mais como igualdade, mas como menos forte, devido a já estar viciada.

            Finalmente, se uma natureza mais forte corrompe outra mais fraca, essa corrupção dá-se, ou bem pelo vício das duas, se for o fruto das paixões depravadas de ambas, ou bem pela influência do vício da mais forte, caso esta goze de tal superioridade que, mesmo viciada, guarde a prioridade sobre a natureza inferior à qual corrompe.

            Assim quem, com razão, poderia reprovar os frutos da terra, pelo fato de não se servirem bem deles os homens que já estão corrompidos por seus próprios vícios, e que corromperam aqueles bons frutos, abusando deles para satisfazerem sua própria luxúria? Entretanto, seria de louco duvidar de que a natureza humana, mesmo viciada, não possua excelência e força maior do que não importa qual fruto da terra, mesmo isento de qualquer defeito.

 

2º) Nem toda corrupção é digna de ser censurada

 

  1. Pode ainda acontecer que uma natureza mais forte corrompa outra mais fraca, e isso sem que haja vício algum, nem de um lado nem de outro. Porque só chamamos vício ao que é digno de reprovação (vituperatio). (p.195)

            Quem, por exemplo, ousaria censurar algum homem frugal que nos frutos da terra não procure nada mais do que o sustento para a sua natureza? Ou ainda, censurar esses mesmos frutos, pelo fato de se corromperem ao serem consumidos como alimento pelo homem? Nesse caso, nem é mesmo costume de se falar em corrupção, porque habitualmente esse termo “corrupção” designa sobretudo vício.

            Por outro lado, facilmente pode-se observar, em referência às coisas comuns, que frequentemente não é senão para se servir em vista de satisfazer a sua própria indigência que uma natureza mais forte corrompe outra mais fraca. Ou ainda, por vezes, para manter em ordem quanto à justiça, ao punir alguma falta. Temos conforme esse princípio as palavras do Apóstolo: “Se alguém destrói o templo de Deus, Deus o destruirá” (1 Co 3,12).

            Por vezes, a vituperação é em vista de guardar a ordem própria das coisas mutáveis, que estão sujeitas umas às outras conforme a leis cheias de sabedoria muito adequadas, as quais regem o universo, segundo o grau de força dado a cada um.

            Por exemplo, se os olhos de alguém, por causa de sua pouca força natural, são incapazes de suportar a luz, e por isso padecem corrupção pelo brilho direto do sol, não seria para supor que o sol produza essa transformação para suprir o que falta à sua própria luz. Ou o que faz por algum vício que tenha. Tampouco seria preciso recriminar os próprios olhos por terem obedecido, seja a seu dono, abrindo-se àquela luz tão forte, seja à mesma luz, e serem por isso queimados.

            Conseqüentemente, de todas as corrupções, só a viciosa é reprovável com justeza. Quanto às outras, ou bem não devem sequer ser designadas como corrupção. Ou então, não sendo viciadas, não podem por certo serem dignas de reprovação.

            Desse modo, presume-se que a mesma palavra “reprovação” (vituperatio) tirou esse nome por ser uma preparação para a reprovação, ou seja, por estar apta e ser devida (p.196) com justiça somente ao vício. Por isso, foi chamada em latim: “vituperatio”, isto, vitio paratio.

 

Louvar os seres é louvar a Deus, criador das naturezas

 

  1. Como eu dizia no começo, o vício não é um mal senão por sua oposição à natureza daquela mesma coisa à qual ele atinge. Por isso, será evidente que a natureza de alguma coisa da qual se reprova o vício é uma natureza digna de louvor. Devemos, pois, declarar absolutamente que reprovar os vícios é sempre louvar a natureza, a saber, a natureza da qual reprovamos os vícios. Com efeito, estes se opondo à natureza, o mal deles cresce tanto mais quanto mais diminui a bondade integral dessa natureza. Portanto, quando reprovas um vício, certamente louvas a coisa da qual desejas a integridade. E que integridade, senão a da natureza? Uma natureza perfeita não somente não merece nenhuma reprovação, mas dentro de sua condição é digna de louvor. Logo, o que vês faltar à perfeição de uma natureza, eis o que chamas de “vício”, testemunhando bastante por aí, que essa natureza te agrada, visto que não acusas a sua imperfeição senão porque gostarias de a ver perfeita. 28

 

E: O PECADO E A JUSTIÇA

 

Capítulo 15

 

Motivos de louvar a Deus

 

  1. Se, pois, reprovar os vícios é proclamar a beleza e a dignidade das naturezas, mesmo atingidas de vícios, quanto mais deve Deus ser louvado como Criador de todas as naturezas, até por motivo dos vícios dessas naturezas. (p.197)

            A razão é que dele elas recebem essa natureza que possuem e não se tornam viciadas senão na medida que se afastam daquela “arte divina”, conforme a qual foram produzidas. E não são elas com justeza dignas de reprovação, senão na medida em que a pessoa que as reprova tem a visão dessa arte, conforme a qual foram formadas. Poderia ele reprovar nas criaturas algo que não fosse o fato de não estarem seguindo o seu modelo?

            E se essa mesma arte pela qual todas as coisas foram feitas, isto é, a suprema e imutável sabedoria de Deus, possui uma existência verdadeira e suma, como de fato a possui, considera para onde se dirigem as naturezas que dela se desviam, isto é, dessa arte divina. 29

            Esse defeito (do desvio da idéia de Deus), entretanto, não seria censurável se não fosse voluntário. Peco-te de considerar-se, com razão, censurarias uma coisa que fosse tal como deve ser? Penso que não, pelo contrário, censurarias aquilo que não fosse como devia ser. Ora, ninguém deve o que não recebeu e aquele que é devedor a quem deve ele a não ser Àquele de quem recebeu algo, com obrigação de devolver? Pois aquilo mesmo que se devolve, entrega-se Àquele de quem se havia recebido.

            E o que se devolve aos legítimos herdeiros dos credores é certamente devolvido aos mesmos credores, aos quais os herdeiros sucederam legitimamente. De outra forma dever-se-ia falar, não de restituição, mas de simples entrega de dons, ou como se queira denominar.

 

As criaturas inferiores, ao perecerem, não faltam ao que devem

 

            Seria, portanto, absurdo dizer que nenhum ser temporal deveria desaparecer. A razão é porque essa ordem de seres está disposta de tal forma que, se não desaparecessem, as coisas futuras não poderiam suceder às passadas (p.198), nem, portanto, permitir que a beleza dos tempos pudesse se desenvolver em sua espécie.

            Com efeito, o quanto tais seres inferiores recebem, assim executam e devolvem Àquele a quem são devedores, por tudo o que são e enquanto são. Portanto, se alguém se lamenta pelo desaparecimento de tais seres, que faça atenção à forma de se exprimir em seu próprio discurso, no qual expressa o seu pensamento, e examine se o considera justo e inspirado pela prudência. Porque, nessa sua alocução, caso ele se limitasse ao som das palavras, se viesse a preferir o som de uma única palavra ou sílaba, não querendo que cessasse mais, e cedesse o lugar às sílabas seguintes, que por sua vez, ao terminar, houvessem de suceder a outras, formando a trama de todo o discurso – no caso de alguém assim fazer, não seria ele taxado como um grande demente? Visto que a linguagem compõe-se de sílabas e palavras, que se sucedem ininterruptamente.

 

  1. É porque, em referência aos seres que pertencem por não lhes ter sido dado existir mais longamente, a fim de permitir a todas as coisas de se realizarem a seu tempo, ninguém tem motivo de censurar o seu desaparecimento. Pois ninguém pode afirmar: esse ser deveria permanecer na existência, já que ele não poderia ultrapassar os limites que lhe foram assinalados. 30

 

A razão leva-nos a reprovar o mal e praticar o bem, como uma dívida para com Deus

 

            Entretanto, quando se trata de criaturas racionais, pecadoras ou não, as quais concorrem de certo modo maravilhoso à beleza do universo, o fato de alguém desejar: “Sejam essas criaturas isentas de pecado!” é absurdo, porque peca até mesmo aquele que condena como pecado (p.199) o que não é. Ou ainda, supor que os pecados não devam ser reprovados, não seria menos absurdo, porque assim se chegaria até a não se louvar mais as boas ações, e sim as más. Nesse caso, é a direção total do espírito humano que estaria perturbada e a vida transformada.

            Ou supor, ainda, que uma boa ação praticada devia ser, deva ser reprovada, resultaria disso uma abominável loucura, ou para dizê-lo em termos mais suaves: um erro muito deplorável.

            Por outro lado, resta, enfim, a verdadeira razão da censura: condenar tudo o que é pecado, e tudo o que com justiça é censurável, por não existir como deveria sê-lo.

            Procura, pois, de que uma natureza pecadora está em dívida e reconhecerás: das boas ações. Procura, também, em relação a quem ela está em dívida e reconhecerás: em relação a Deus. Porque d’Aquele de quem ela recebeu o poder de agir bem, querendo-o livremente, recebeu também o poder de ser feliz, caso não o fizer. Entretanto, será feliz se praticar o bem.

 

Caso a vontade livre não devolver a Deus o que lhe deve pela prática da virtude, dará glória a Deus por um justo castigo

 

  1. Como ninguém passa por cima das leis do Criador todo-poderoso, a alma não tem outra saída senão pagar a sua dívida. Ora, paga-a, seja usando bem o dom que recebeu, seja perdendo aquilo que não quis empregar corretamente. É porque, se ela não devolver cumprindo a justiça, ela o devolverá padecendo o castigo.

            Num e noutro caso, emprega-se a seguinte idéia: devolver o que é devido. O que se acaba de dizer poderia também se exprimir desta maneira: se a criatura racional não devolver o que deve, cumprindo o que deve, ela o devolverá padecendo o devido castigo. (p.200)

            E não há nenhum intervalo de tempo entre os termos dessa alternativa, como se fosse o tempo onde o culpado não faz o que devia fazer e outro no qual padece o que merece. Isso está assim disposto, a fim de que a beleza do universo não seja alterada um só instante, caso a desordem do pecado se manifestasse sem ter uma reparação por um justo castigo. Fica, porém, reservado ao julgamento futuro a manifestação clara de tudo o que agora está sendo executado em grande segredo. E será, então, levado à maior intensidade o sentimento de infortúnio do pecador.

            Com efeito, assim como o fato de não estar desperto é dormir, assim também quem quer que não faça o que deve padece sem tardança o que merece. Pois tão grande é a felicidade que se encontra na justiça que ninguém pode se afastar dela, sem se voltar logo em direção à infelicidade.

            Portanto, em resumo, em todos os casos em que haja defeitos na natureza, ou aconteça de muitas coisas se extinguirem por não terem recebido o poder de existir por mais tempo, aí não há culpa. Como também não há culpa no ser que durante sua existência não recebeu a capacidade de ser mais perfeito do que foi.

            Enfim, só há culpa no caso de um ser recusar-se a ser o que tinha o poder de ser, se o quisesse. E porque aí se trata de recusar um bem que lhe foi dado, a alma se torna culpada.

 

Capítulo 16

 

Deus nada nos deve, nós tudo lhe devemos

 

  1. Ora, Deus nada deve a ninguém, porque tudo dá gratuitamente. E se alguém afirmasse que algo lhe é devido por seus méritos, ao menos é certo que a própria (p.201) existência não lhe é devida, visto que a quem ainda não existia, nada lhe é devido.

            Mas embora supondo um pretendido mérito, o qual haveria de ser, pelo fato de te voltares Àquele de quem recebeste a existência, a fim de que ele mesmo te torne melhor, após te haver dado o ser? Que vantagens tens para que possas reclamar dele, com justiça, sendo que, no caso de te recusares a voltar para Deus, ele nada perde com isso? Ao passo que tu perderás Aquele mesmo, sem quem nada serias, e só por quem és alguma coisa. A tal ponto que se não te voltares para Ele e não lhe devolveres o que dele recebeste, virás a cair, não no nada, certamente, mas na infelicidade.

            Logo, todos os seres lhe devem primeiramente tudo o que são, enquanto natureza existente. Em seguida, aqueles seres que receberam a capacidade de querer, devem-lhe tudo o que lhes é possível para progredir, se o quiserem. Devem assim tudo o que têm a obrigação de ser.

            Em conseqüência, ninguém é responsável pelo que não recebeu. Contudo, é culpado, com justiça, se não fizer o que devia. Ora, é dever fazê-lo quem recebeu uma vontade livre e uma capacidade suficientemente grande para isso.

 

Conclusão: o pecado é causado pala vontade livre.

Deus não é a causa do pecado.

Louvor ao Criador em todas as circunstâncias

 

  1. Dessa forma, quando alguém não faz o que deve, o Criador fica a tal ponto isento de culpa que é preciso, na verdade, louvá-lo. Isso porque o culpado padece o que deve, e ainda porque, nessa mesma reprovação que merece por não ter feito o que deve, existe um louvor prestado Àquele a quem o pecador é devedor. Posto que, se te louvam quando vês o que deves fazer, ainda que não o (p.202) vejas senão naquele que é a Verdade imutável, quanto mais é preciso louvar Aquele que de antemão também determinou quereres isso, e deu-te o poder para tanto. E Ele não deixará impune a tua desobediência.

            Cada um é responsável pelo que recebeu. Portanto, se o homem tivesse sido criado de tal modo que pecasse inevitavelmente, seu dever seria pecar. E ao pecar, tanto, faria o que devia, e não faria senão seguir a lei da natureza. Mas já que seria crime falar dessa maneira, segue-se que ninguém é obrigado por sua natureza a pecar. Tampouco é obrigado a ser levado por uma natureza alheia, porque ninguém peca sujeitando-se ao que não quer, por própria vontade. Com efeito, caso se sujeitar justamente a isso, seu pecado não está em que se sujeitou contra sua vontade. Mas só peca quando age voluntariamente, de maneira a dever padecer com toda justiça o que não teria querido sofrer. Pois por outro lado, se o aceitasse injustamente, como pecaria? Efetivamente, o pecado não consiste em suportar alguma coisa injustamente, mas sim em praticar algo injustamente. Posto que ninguém está forçado a pecar, nem por sua própria natureza, nem pela natureza de outro, logo só vem a pecar por sua própria vontade.

            Enfim, se quisesses atribuir o pecado ao Criador, desculparias o pecador, que nada teria cumprido fora dos desígnios de seu Criador. E então, poderias desculpá-lo com justiça, pois não haveria pecado algum. Logo, se não houver pecado, nada mais existe que possas atribuir à responsabilidade do Criador.

            Louvemos, pois o Criador, se o pecador puder ser desculpado. E caso não o possa, louvemos ainda o Criador. Pois se o pecador é defendido conforme a justiça, ele não será mais pecador.

            E caso ele não possa ser defendido, será pecador na medida em que se afasta voluntariamente de seu Criador (p.203). Nesse caso, tampouco há razão para não louvar o Criador.

            Conseqüentemente, na verdade, eu não encontro o meio e certifico absolutamente não haver nenhum, que possa levar a atribuir nossos pecados a Deus, nosso Criador. Pelo contrário, encontro ocasião para louvá-lo nesses mesmos pecados, não somente porque Ele os pune, mas, ainda, porque não são cometidos senão quando alguém se afasta de sua vontade.

            Ev. Aceito tudo isso e o aprovo com boa vontade. Creio ser tudo absolutamente verdadeiro e concordo contigo que não se pode de modo algum atribuir com razão nossos pecados ao Criador. (p.204)

 

 

TERCEIRA PARTE (17,47-25,77)

 

PROBLEMAS DIVERSOS

 

A: A VONTADE LIVRE - CAUSA PRIMEIRA DO PECADO

 

Capítulo 17

 

Posição do problema: sem liberdade não há pecado

 

  1. Ev. Não obstante, quisera saber, se possível, por que aquelas criaturas que Deus previu não haverem de pecar não pecam; e por que pecam aquelas outras que Ele previu haverem de pecar?

            Na verdade, não creio mais que a presciência divina força estas últimas a pecar, e aquelas outras a não pecar. Sem dúvida, se não houvesse alguma causa, não haveria entre as criaturas racionais tal divisão, de modo que umas nunca venham a pecar e outras persistam pecando. E ainda, outros seres de natureza racional fiquem de certa forma como no meio, entre os dois grupos. Por vezes, cometem pecados e, por vezes, convertem-se para o bem. Por qual razão estão eles assim divididos em três grupos?

            Não quero, porém, que me respondas simplesmente: É devido à própria vontade, porque eu procuro a causa determinante dessa vontade. Com efeito, não é sem alguma causa que uma criatura nunca queira pecar, e que outra não queira jamais abandonar o pecado. E enfim, que uma terceira por vezes o queira e por vezes não, uma vez que todas elas são dotadas de uma mesma natureza racional. (p.205).

            Eis a única coisa, penso eu, estar a ver claramente tal tríplice divisão da vontade entre as criaturas racionais não pode existir sem alguma causa. Ignoro, porém, qual seja ela. ³¹

 

A raiz de todos os males é a vontade desregrada

 

  1. Ag. Entretanto, sendo a vontade a causa do pecado, como indagas a causa do mesmo ato da vontade? Caso eu pudesse encontrá-la, não irias perguntar, ainda, qual a causa dessa causa? E assim, onde haveríamos de terminar a busca? Onde estaria o final da investigação e da discussão? Não obstante, nada podes investigar além da mesma raiz da questão. Com efeito, não penses que se possa dizer nada de mais verdadeiro do que esta máxima: “A raiz de todos os males é a cobiça” (1 Tm 6,7), isto é, a disposição de querer além daquilo que é suficiente e que cada natureza exige conforme sua própria condição a fim de se conservar.

            De fato a cobiça (ou amor ao dinheiro) é denominada em grego “filarguria”, isto é, amor da prata, termo esse que não é dito somente a respeito desse metal, mas da moeda da qual foi tirado o seu nome, porque as moedas, entre os antigos, eram feitas, o mais frequentemente, de prata pura ou de alguma mistura, à base da prata. O termo deve ser entendido de todas as coisas desejadas com imoderação. Enfim, encontra-se a cobiça em tudo o que alguém quer além do que lhe é suficiente. Tal cobiça é cupidez, e a cupidez é uma vontade desregrada (improba).

            Logo, é a vontade desregrada a causa de todos os males. Se essa vontade estivesse em harmonia com a natureza, certamente esta a salvaguardaria e não lhe seria nociva. Por conseguinte, não seria desregrada. De onde se segue que a raiz de todos os males não está na natureza. E isso basta, por enquanto, para refutarmos todos aqueles que pretendem responsabilizar a natureza dos seres pelos pecados. Quanto (p.206) a ti, se pretendes ainda investigar qual seja a causa dessa raiz, como poderia ser a vontade a raiz de todos os males? Com efeito, essa raiz seria causa da cobiça, mas essa, uma vez tendo sido encontrada, como eu dizia acima, seria preciso procurar ainda a causa dessa primeira causa e não haveria limite algum para as tuas buscas.

 

O que motiva a vontade

 

  1. Ag. Mas enfim, anteriormente à vontade, qual poderia ser a causa determinante da vontade? Realmente, ou bem é a vontade ela mesma, e não se sai dessa raiz da vontade; ou bem não é a vontade, e então não há pecado algum. Logo, ou a vontade é a causa primeira do pecado, e a nada se pode imputar o pecado senão ao próprio pecador. Logo, não se pode imputar justamente o pecado a não ser a quem seja dono da vontade. Ou, afinal, a vontade não será mais a causa do pecado e, assim, não haverá mais pecado algum.

            Desse modo, não sei por que tu te empenhas tanto em procurar outra causa fora da vontade. Além do mais, qualquer seja a causa da vontade, ou ela será justa ou injusta. Se for justa, quem quer que lhe obedeça o impulso não pode pecar. Se for injusta, que cada um resista a ela, e não mais poderá.

 

Capítulo 18

 

Pode alguém pecar em coisas que não pôde evitar?

 

  1. Será talvez que essa causa leva ao pecado a agir com tanta violência a ponto de forçar a quem não quer? Ora, será preciso que tenhamos de repetir tantas vezes as mesmas idéias? Recorda os nossos longos desenvolvimentos anteriores sobre a questão do pecado e da vontade livre (cf. III, caps. 3 e 4). (p.207).

            Mas se é difícil para ti tudo conservar na memória, retém ao menos esta breve sentença: qualquer seja a causa que move a vontade, se acontecer lhe ser possível resistir, e vier a cair sob a violência, não haverá pecado. Mas cão possa resistir que não ceda, e então certamente não haverá pecado.

            Todavia, talvez essa tentação venha induzir ao erro, no caso de estar alguém desprevenido? Então, que tome suas precauções para não se deixar enganar! Entretanto, será que esse engano é tão astucioso que contra ele nada valem as cautelas tomadas? Se assim for, admito não poder haver pecado algum. Quem poderia ser culpado num ato inevitável?

            Em todo caso, ninguém pode negar que o pecado existe. Logo, será possível ao homem evitá-lo. ³²

 

B: A NOSSA SITUAÇÃO ATUAL DEVIDA AO PECADO ORIGINAL

 

  1. Apesar de tudo, acontecem certas ações que mesmo cometidas por ignorância foram condenadas, com obrigação de serem reparadas. Lemos nas Sagradas Escrituras o Apóstolo dizer: “Obtive misericórdia porque agi por ignorância” (1 Tm 1,13). E o rei-profeta: “Não recordes, ó Senhor, meus desvios da juventude e os meus pecados por ignorância” (Sl 24,7).

            Existem também ações condenáveis, ainda que praticadas por necessidade. Isso quando pretende agir bem e não o consegue. Pois de onde viriam estas palavras: “Não faço o bem que eu quero, mas pratico o mal que não quero? E estas outras: “Pois o querer o bem está ao meu alcance, não, porém, o praticá-lo” (Rm 7,19.18)? e ainda: “A carne tem aspirações contrárias ao espírito e o espírito contrárias às da carne. Opõem-se reciprocamente, de sorte que não fazeis o que quereis” (Gl 5,17)?

            Mas tudo isso pertence aos homens, enquanto suas ações são derivadas da primitiva condenação à morte. (p.208) Pois senão existisse aí uma punição dada ao homem, mas apenas uma conseqüência de sua natureza, não haveria nesses atos pecado algum.

            Na verdade, se o homem não se afasta nisso da condição conforme à qual foi criado naturalmente, de modo que não pode se encontrar num estado melhor, ele está executando o que deve, ao fazer essas coisas.

            Todavia, se o homem fosse bom, agiria de outra forma. Agora, porém, porque está nesse estado, ele não é bom nem possui o poder de se tornar bom. Seja porque não vê em que estado deve se colocar, seja porque, embora o vendo, não tem a força de se alçar a esse estado melhor, no qual sabe que teria o dever de se pôr. Assim sendo, que duvidaria que haja aí uma penalidade?³³

            Ora, toda penalidade se for justa é a punição do pecado e denomina-se castigo. Se nossa condição fosse injusta, visto que ninguém hesita a ver aí uma penalidade, é bem evidente que teria sido imposta ao homem por algum denominador injusto. Ora, só um louco duvidaria da onipotência e da justiça de Deus. Logo, a penalidade é justa, e está destinada a punir algum pecado. Posto que nenhum dominador injusto poderia subtrair o homem ao poder de Deus, sem que ele o percebesse. Tampouco, arrebatá-lo desse mesmo Deus, contra a sua verdade, como se fosse algum adversário menos forte, empregando ameaças ou violência, para depois vir a atormentar os homens com punições injustas. Resta, portanto, que essa justa penalidade é fruto da condenação do homem.

           

  1. Nada de espantoso, aliás, se o homem, em conseqüência da ignorância, não goze do livre-arbítrio de sua vontade na escolha do bem que deve praticar. Ou ainda, se diante da violência de seus maus hábitos carnais tornados, de certo modo, disposições naturais por efeito do que há de brutal na geração da vida mortal, o homem veja perfeitamente o bem (p.209) a ser feito e o queira, sem, contudo poder realizá-lo. De fato, essa é a punição muito justa do pecado: fazer perder aquilo que não foi bem usado, quando seria possível tê-lo feito, sem dificuldade alguma, caso o quisesse. Em outras palavras, é muito justo que quem, sabendo, mas não querendo agir bem, seja privado de perceber o que é bom. E quem não querendo agir bem, quando podia, perca o poder de praticá-lo quando o quer de novo.

            Na verdade, tais são as duas reais penalidades para toda alma pecadora: a ignorância e a dificuldade. Da ignorância, provém o vexame do erro; e da dificuldade, o tormento que aflige. 34

            Ora, aprovar o falso como se fosse a verdade, e assim enganar-se sem o querer, tornando-se incapaz de se abster de atos libidinosos, em conseqüência das resistências e dos dolorosos tormentos dos vínculos carnais – essa não é a natureza primitiva do homem, mas, sim, o seu castigo depois de ter sido condenado.

            Mas quando falamos da vontade livre para agir bem, evidentemente falamos daquela vontade com a qual o homem foi criado.

Capítulo 19

 

Se foram Adão e Eva que pecaram, que culpa temos nós?

 

  1. Apresenta-se aqui aquela questão que algumas pessoas costumam comentar entre si. Ao pecar, estão prontas a acusar seja o que for, exceto a si mesmas. Declaram elas: Se foram Adão e Eva que pecaram, que fizemos nós, pobres infelizes, para nascermos na cegueira da ignorância e nos tormentos da dificuldade?

            Vagamos primeiramente no erro, ignorando o que devemos fazer. Em seguida, quando os preceitos da justiça (p.210) começam a nos ser manifestos e quereríamos cumpri-los, não sei por qual resistência da concupiscência carnal, e por qual necessidade, tornamo-nos incapazes de fazê-lo.

 

A negligência é culpável

 

            Dirijo uma breve resposta a essas pessoas para que se tranqüilizem e deixem de murmurar contra Deus. Pois poderiam, talvez, se lamentar com razão se homem algum houvesse existido que não tenha podido triunfar do erro e da concupiscência. Uma vez, porém, que Deus se acha em tudo presente e que de tantas maneiras se serve das criaturas para chamar a si – a ele, que é o Senhor – esse seu servo que dele se desviou, a fim de instruí-lo, caso creia; consolá-lo, caso espere; encorajá-lo, caso ame; ajudá-lo, caso faça esforço; e escutá-lo, caso implore. Não te recriminam pelo fato de ignorares, contra tua vontade, mas de negligenciares procurar saber o que ignoras.

            Tampouco te é imputado como culpa não poderes curar teus membros feridos, mas de menosprezares Aquele que te quer curar. Enfim, são esses os teus verdadeiros pecados. 36

            Visto que não existe homem tão desprovido de inteligência que não conheça a utilidade de procurar aquilo que não traz vantagem alguma de ser ignorado, e o dever de confessar humildemente suas fraquezas, a fim de obter para quem procura com humildade a ajuda d’Aquele que não está sujeito ao erro nem à fraqueza alguma, quando vem trazer algo.

 

As fraquezas humanas não são verdadeiros pecados, mas penalidades pelo primeiro pecado

 

  1. As más ações que cometemos por ignorância e as boas que não conseguimos praticar, apesar da boa vontade, denominam-se “pecados”, visto tirarem sua origem daquele (p.211) pecado cometido por livre vontade. Esse, com efeito, como antecedente, mereceu os outros pecados, como conseqüentes.

            Assim, de modo semelhante, costumamos denominar “língua” não apenas o órgão que pomos em movimento na boca ao falarmos, mas também aquilo que resulta desses movimentos, isto é, a forma e a seqüência sonora das palavras. Nesse sentido, dizemos: uma língua grega; outra, a latina.

            Da mesma maneira, denominamos “pecado” não apenas o que em sentido próprio é pecado, por ter sido cometido conscientemente e por livre vontade, mas também o que é a conseqüência necessária do mesmo pecado, como castigo do mesmo.

            Igualmente, quanto ao termo “natureza”. Entendemos de um jeito, quando falamos em sentido próprio, isto é, a respeito da natureza específica, na qual o homem foi primeiramente criado no estado de inocência. De modo diferente, entendemos o termo “natureza” quando tratamos dessa natureza na qual, como conseqüência do castigo imposto ao primeiro homem, após sua condenação, nascemos mortais, ignorantes e escravos da carne, tal como disse o Apóstolo: “Como eles (os pagãos), nós (os judeus) também andávamos outrora nos desejos de nossa carne, satisfazendo as vontades da carne e os seus impulsos, e éramos por natureza como os demais, filhos da ira” (Ef 2,3).

 

Capítulo 20

 

Justiça e bondade de Deus na condição atual de fraqueza dos homens

 

  1. Dessa maneira, aprouve justamente a Deus, que governa soberanamente todas as coisas, que nascêssemos daquele primeiro casal, com ignorância e dificuldade (p.212) no esforço e na mortalidade. Isso porque, ao pecarem, eles foram precipitados no erro, na dor e na morte. Assim, na origem do homem devia se manifestar a justiça daquele que pune; e no decorrer de sua vida, a misericórdia daquele que liberta.

            Posto que, se os primeiros homens, desde a sua condenação, perderam a sua felicidade, não perderam por aí a sua fecundidade. Logo, a sua descendência, mesmo carnal e mortal, poderia tornar-se em seu gênero certo elemento de honra e ornamento para o universo.

            Na verdade, não era justo que o primeiro homem gerasse filhos melhores do que ele mesmo era. Por outro lado, convinha, ao se converter para Deus, que qualquer pudesse triunfar do castigo que havia merecido ao nascer, no afastamento de Deus. Outro sim, não convinha que essa boa vontade de regresso a Deus fosse impedida. Pelo contrário, que fosse ajudada.

            O Criador de todas as coisas mostrava além do mais, por esse meio, com quanta facilidade o primeiro homem teria podido, se o quisesse, manter-se no estado no qual havia sido criado, visto que sua descendência pôde vir a triunfar do estado em que nascera.

 

Em qualquer hipótese a respeito da origem das almas – Deus é sempre justo

 

  1. Em seguida, se supusermos que Deus criou uma só alma, da qual tiraram sua origem as almas de todos os homens que nascem, quem poderia negar não ter cada homem pecado, ao pecar o primeiro homem? 37

            No caso, porém, de as almas serem criadas separadamente, uma a uma, na ocasião do nascimento de cada homem, 38 não se pode achar ser contra a razão, mas, ao (p.213) contrário, perfeitamente conveniente e bem conforme a ordem que os desméritos da primeira alma sejam conaturais à alma seguinte, e que o mérito da segunda seja conatural à antecedente.

            Com efeito, o que há de indigno para o Criador se, ainda assim, ter ele querido demonstrar a dignidade da alma – natureza espiritual – ultrapassar de muito os seres corporais, e que o grau de profundidade ao qual uma alma chegou, em sua degradação, possa ser o ponto de origem de outra alma?

            Eis por que, quando a alma, ao pecar, cai na ignorância e nas dificuldades, fala-se então, com razão,, de castigo, visto que, certamente, ela foi melhor antes de tal castigo. Logo, em conseqüência, não apenas antes de pecar, mas desde o começo de sua vida, se uma alma começa por encontrar-se em estado semelhante àquele em que outra tornou-se, após toda uma vida de pecado, ela possui, entretanto, um bem considerável, do qual deve dar graças a seu Criador. Visto que, desde o seu nascimento e seu próprio começo, ela é superior a não importa qual ser apenas corporal, em sua total perfeição.

            Com efeito, não é um bem de pouco valor, não apenas o fato de ser uma alma, cuja natureza já ultrapassa qualquer corpo, mas também de ser capaz, com a ajuda do Criador, de aperfeiçoar-se a si mesma e, por um piedoso empenho, poder adquirir e possuir as virtudes por meio das quais poderá vir a libertar-se dos tormentos da dificuldade e da cegueira do erro.

            Se assim é, a ignorância e a dificuldade dessas almas, no momento de nascer, não serão para elas o castigo do pecado – mas sim um estímulo ao progresso e um início de perfeição. Pois não é pouca coisa, antes mesmo de qualquer boa obra meritória, ter a alma recebido a capacidade de um julgamento natural, por meio do qual prefere a sabedoria ao erro e o repouso à dificuldade (p.214). Assim, pode ela chegar àquela Sabedoria e repouso, não por seu nascimento, mas pela constância nos esforços.

            E caso a alma recusar-se de agir, com razão será considerada culpada de pecado, por não ter usado bem da possibilidade que recebeu. Pois, se bem que tenha nascido na ignorância e nas dificuldades, contudo necessidade alguma a obrigava a permanecer nesse estado em que nascera.

            Afinal, ninguém de modo algum, a não ser Deus onipotente, pode ser o Criador de tais almas, de dar-lhes a existência, antes mesmo de ter sido amado por elas. E reformá-las, amando-as; e aperfeiçoá-las, quando por elas amado. É Ele que dá o ser às almas que não existem ainda. E àqueles que o amam como autor de sua existência, concede-lhes o poder de serem felizes. 39

           

  1. Por outro lado, ao admitirmos que talvez as almas já tenham preexistido em algum lugar secreto disposto por Deus, e serem elas enviadas para animar e governar os corpos de cada uma das pessoas que for nascendo – nesse caso, estão elas destinadas a esse ofício para dar uma boa direção ao corpo em que nascem, sujeito à penalidade do pecado, isto é, padecendo a mortalidade devida ao pecado do primeiro homem.

            Fazem isso dominando o corpo por meio das virtudes, para submetê-lo a uma servidão perfeitamente legítima e conveniente, para lhe fazer adquirir assim progressivamente, conforme a ordem, em tempo oportuno, um lugar na morada incorruptível do céu.

            Essas almas, ao entrarem na vida presente, sujeitando-se ao encargo de reger membros mortais, devem também submeter-se ao esquecimento da vida precedente, assim como aceitar os trabalhos desta vida. Aí (p.215) está a explicação daquela ignorância e dificuldades que foram para o primeiro homem o castigo de sua queda mortal: é para assim ser expiada a miséria da própria alma. Mas para as outras almas, elas encontram, desse modo, acesso à sua função de recuperar para o corpo a incorruptibilidade.

            Assim, tampouco, são denominados pecados a ignorância e a fraqueza, a não ser no sentido de que o corpo, provindo da geração de pecador, comunica às almas que vêm a unir-se a elas aquela mesma ignorância e dificuldade. Mas nem essas almas, nem o Criador devem ser julgados responsáveis, como de uma falta.

            Pois Deus deu-lhes a capacidade de agir bem, nos deveres penosos, e também ensinou-lhes o caminho da fé, em meio à cegueira da ignorância. E acima de tudo, deu-lhes esse reto julgamento pelo qual toda alma reconhece que é preciso procurar tudo o que não lhe traz utilidade alguma em ignorar. Deu-lhes ainda o poder de fazer esforços perseverantes no cumprimento de seus deveres, para vencerem a dificuldade de agir bem. Implorarem assim a ajuda ao Criador para a obtenção de auxílio divino nos seus esforços.

            Deus mesmo ordena que se façam esforços, seja de modo exterior por intermédio da lei, seja por convites pessoais, no íntimo do coração. E ao mesmo tempo, prepara a glória daquela cidade bem-aventurada para os vencedores (do demônio), que arrastou o primeiro homem a tal miséria, tendo-o vencido por uma pérfida persuasão. E é precisamente aceitando essa misérias que os homens triunfam do demônio pela excelência de sua fé. Não é um fato de pouca glória o de vencerem o demônio, tomando sobre si aquele mesmo suplício pelo qual o espírito das trevas glorificava-se de ter vencido os homens. (p.216).

            Ora, quem quer que negligencie esse combate, seduzido pelo amor desta vida, não terá o direito de atribuir o castigo de sua deserção a uma ordem do grande Rei.

            Pelo contrário, ver-se-á submetido ao Senhor de todas as coisas, relegado por ele ao lugar que lhe corresponde nos domínios do mesmo demônio, sob cujas ordens aprouve militar, tendo traído a sua bandeira.

 

  1. Finalmente, se admitirmos a suposição de que as almas, antes de sua união com o corpo, encontravam-se em algum lugar e não forma enviadas pelo Senhor nosso Deus, mas, ao contrário, vieram espontaneamente unir-se aos corpos, a conseqüência é então fácil de ser compreendida. Tudo o que elas experimentam de ignorância e dificuldades, sendo conseqüência de sua própria vontade, não há aí, de modo algum, nada que se possa incriminar ao Criador.

            Aliás, mesmo se o próprio Senhor Deus tivesse enviado essas almas, uma vez que não as privou, até em meio da ignorância e das dificuldades, da vontade livre, nem da faculdade de pedir, de procurar e de esforçar-se, propondo-se Ele a dar às que lhe pedissem, de mostra-se às que procurassem e de abrir-se às que batessem, Ele seria totalmente isento de qualquer culpa.

            Ele consentiria, assim, a essas almas zelosas e de boa vontade, poderem obter triunfo sobre a ignorância, as dificuldades, e dar-lhes-ia um meio de adquirir a coroa de glória.

            Quanto às almas negligentes, que pretendem desculpar seus pecados por meio de suas fraquezas, o Senhor Deus não consideraria como crime essa mesma ignorância ou dificuldade. Entretanto, por terem preferido permanecer envoltas nelas, em vez de chegar á verdade e à facilidade, procurando e esforçando-se com zelo, confessando com humildade suas faltas e orando, Ele as haveria de punir com justo castigo. 40 (p.217).

 

Capítulo 21

 

O que é preciso crer e que tipos de erros prejudicam a nossa felicidade

 

  1. Há, pois, quatro opiniões sobre a origem da alma:

            - ou todas elas provêm de uma só, transmitidas por geração (20,55);

            - ou bem, a cada nascimento humano, uma nova alma é criada (56);

            - ou então, as almas já existentes em qualquer outro lugar são enviadas, por Deus, aos corpos daqueles que nascem (57);

            - ou, enfim, elas descem por sua própria vontade para os corpos dos que nascem (58).

            Dessas quatro opiniões, nenhuma deveria ser adotada afirmativamente, de modo temerário. Pois essa questão ainda não foi desenvolvida e esclarecida pelos intérpretes católicos dos Livros Sagrados, o quanto exigiriam sua obscuridade e complexidade. Ou caso já o tenham feito, tais obras ainda não nos chegaram às mãos.

            Contentemo-nos, por enquanto, de estarmos firmes na fé, para não aceitar opinião falsa alguma, ou que seja indigna da natureza do Criador. Pois em direção a Ele é que tendemos pelo caminho da piedade. Pois se nossa opinião a respeito de Deus não for conforme ao que Ele é, nosso esforço nos levará, forçosamente, não para a bem-aventurança, mas em direção à vacuidade.

            Quanto aos seres criados, caso adotemos uma opinião que não corresponda à realidade, não há perigo algum, contanto que não o consideremos essas idéias como algo certo e evidente. (p.218)

            Pois não é em direção aos seres criados que somos ensinados a nos dirigir para nos tornar felizes, mas sim em direção ao próprio Criador.

            Logo, se em relação a Ele persuadem-nos de crer o que não é certo e conforme à realidade, abusam de nossa confiança com erro muito pernicioso. Porque, caminhando na direção de meta que não existe ou que, se existe, não nos torna felizes, ninguém pode chegar à vida bem-aventurada.

 

  1. Mas para podermos chegar à contemplação da eterna Verdade, e sermos capazes de gozar dela e a ela aderirmos, foi-nos proporcionando um meio vindo das coisas temporais e preparado de modo adaptado á nossa fraqueza. Consiste, quanto às coisas futuras e passadas, em crer apenas o suficiente para aqueles que, como nós, caminham em direção às realidades da eternidade. Ora, tal ensino de fé possui a mais alta autoridade, sendo dirigido pela misericórdia de Deus.

            Quanto às coisas presentes, relacionadas às criaturas, nossos sentidos percebem-nas através da mobilidade e mutabilidade do corpo e da alma, como objetos transitórios. Nesse domínio, a respeito de tudo o que escapa à nossa experiência, não podemos ter nenhuma espécie de conhecimento direto.

            Por conseguinte, é preciso crer, sem hesitação alguma, em tudo o que nos afirmam sobre os seres criados, em relação ao passado ou ao futuro, uma vez sendo garantido pela autoridade do testemunho divino. Uma parte desses relatos, na verdade, já se passou sem que tenhamos podido nos dar conta. Outra parte ainda não foi posta ao alcance de nossos sentidos. Contudo, possuem todos eles uma grande eficácia para fortalecer nossa esperança e excitar nosso amor, exortando-nos a atenção sobre o quanto Deus cuida de nossa libertação, através da sucessão perfeitamente ordenada dos tempos. (p.219)

            Mas seja qual for o erro, mesmo servindo-se este da máscara da autoridade divina, será refutado, sobretudo se constatarmos:

            - seja a existência de qualquer natureza mutável, além dos seres criados por Deus;

            - seja afirmar a existência de uma beleza mutável, na própria natureza de Deus;

            - ou ainda, caso se pretenda que essa divina natureza é algo a mais ou algo a menos do que a Trindade.

            Pois é em vista de compreender com piedade e discrição a Trindade que se aplica toda a vigilância cristã, e a esse fim é que tendem todos os seus progressos.

            Entretanto, quanto a tratarmos da unidade e da igualdade das Pessoas dessa Trindade, e do que nela é próprio a cada uma das pessoas divinas, não é este o lugar de fazê-lo. Com facilidade, poderíamos apresentar outras considerações sobre o Senhor nosso Deus, autor, formador e ordenador de todas as coisas e sobre certas verdades que pertencem a nossa fé muito salutar. É com elas que se nutre como de leite aquele que começa a se elevar das coisas da terra para as do céu, encontrando um útil apoio para esse intento. Seria, na verdade, muito fácil fazer essas considerações e muitos já o realizaram. Não obstante, aprofundar tudo o que é relativo à Trindade, por completo, e desenvolver de tal modo que toda inteligência humana, o quanto é possível nesta vida, fique conquistada pela evidência da argumentação, quer se trate de realizá-lo com palavras ou simplesmente pelo pensamento, sem dúvida é um empreendimento muito difícil e pouco acessível, seja para qualquer homem, seja certamente para mim.

            Logo, conforme nosso propósito, cheguemos a termo, na medida em que para isso temos força e o quanto formos ajudados por Deus. (p.220)

            Primeiramente, sem sombra de dúvida, creiamos tudo o que é nos é proposto em relação aos seres criados, seja a respeito das coisas do passado, seja como predição do futuro, para nos servir a melhor estimar a nossa religião, em sua pureza, excitando-nos a um amor muito sincero para com Deus e o próximo.

            Por outro lado, é preciso nos precaver contra os incrédulos, o suficiente para esmagarmos sua infidelidade ao peso da autoridade divina. Ou então, para lhes demonstrar o quanto possível, em primeiro lugar, que não há insensatez alguma em crer tais afirmações. Em seguida, que, pelo contrário, existe grande loucura em não crer nelas.

            Todavia, são as falsas doutrinas concernentes não tanto ao passado e ao futuro, quanto às relativas ao presente e, sobretudo às realidades imutáveis que é preciso refutar, e sobre as quais urge triunfar o quanto possível, por demonstrações evidentes.

 

O problema de nossa origem é menos importante do que o de nosso destino

 

  1. Na verdade, na série das realidades temporais é preciso preferir a expectativa das coisas futuras à verificação das passadas. Pois mesmo nos Livros Sagrados o relato das coisas passadas encerra em si uma prefiguração, uma promessa, ou ainda, um testemunho das que devem acontecer. Além do mais, até a respeito dos acontecimentos desta vida, na prosperidade ou adversidade, poucos se preocupam tanto com o estado em que se encontravam anteriormente, fosse ele próspero ou adverso, mas todo o ardor de suas preocupações concentra-se de preferência sobre o que esperam do futuro. Porque, devido a não sei que sentimento íntimo e natural, as coisas que nos aconteceram, por serem passadas (p.221), são consideradas apenas como um instante de felicidade ou infortúnio, ou como se nunca tivessem acontecido.

            Que inconveniente haveria, pois, para mim, o fato de ignorar quando comecei a existir, se constato que agora existo e não desespero de continuar a existir no futuro? Porque não é em direção ao passado que me dirijo, e não será para temer como um erro pernicioso o fato de possuir uma opinião contrária ao que as coisas foram na realidade. Mas é em direção ao meu estado futuro que dirijo o meu caminhar, sob a conduta da misericórdia do meu Criador. Portanto, se em relação à minha situação futura e sobre Aquele junto a quem hei de estar, o fato de ter crenças ou idéias não conformes à verdade, isso sim, seria um erro a respeito do qual devo acautelar-me, a todo custo. Pois é para temer que não me prepare o suficiente, ou que não possa atingir o fim mesmo d eminhas aspirações, caso tome uma coisa por outra.

            Assim, por exemplo, como nenhum inconveniente seguir-se-ia na compra de uma veste, caso não me lembrasse mais do inverno passado, mas haveria um real inconveniente, se não cresse na iminência do frio a vir. Do mesmo modo, não haveria inconveniente algum para minha alma o fato de ter esquecido o que talvez tenha suportado outrora. Isso se ela considera agora, com cuidado e mantém bem presente, o fim para o qual doravante deve se preparar.

            E ainda, por exemplo, não haveria prejuízo algum para um navegante que se dirigisse a Roma, se viesse a esquecer de que porto seu navio desatracou. Contanto que não ignorasse para onde deva dirigir a proa de sua embarcação, a partir de onde se encontra presentemente. Por outro lado, não haveria vantagem alguma em se lembrar de onde teve lugar sua partida, se tendo uma (p.222) falsa indicação sobre o porto de Roma viesse a se chocar contra os recifes.

            De igual maneira, se não me recordo mais do início de minha vida, não se seguirá daí, para mim, inconveniente algum. Contanto que saiba onde encontrar o repouso final. De modo semelhante, não haveria utilidade nenhuma para mim eu me lembrar ou conjecturar de que maneira minha vida de iniciou, se tendo a respeito de Deus – única meta dos trabalhos da alma – convicções indignas dele, eu me arremetesse contra os arrecifes do erro.

 

  1. Ao falar assim, essas palavras não devem crer a ninguém que queiramos impedir aos pesquisadores competentes de examinar, conforme as Escrituras divinamente inspiradas, se a alma provém uma de outra, por geração; ou se são elas criadas uma a uma, em cada corpo que vivifica; ou ainda se elas são enviadas de algum lugar, por ordem divina, para animar e governar os corpos; ou, enfim, se elas introduzem-se nele por própria vontade (cf. III,21,59).

            Isso caso a razão exija serem considerados e discutidos tais problemas, em vista de resolver alguma questão muito necessária.

            Ou então, caso alguém encontre tempo, deixando outras questões mais necessárias, e prefira abordar essas pesquisas e exposições.

            Na verdade, eu disse tudo o que precede, sobretudo a fim de que ninguém, nessa questão a respeito da origem da alma, se irrite temerariamente contra outro, que talvez por hesitação muito humana não opine exatamente como ele próprio. E também para que, se alguém tiver podido perceber nessa questão alguma evidência e certeza, não creia que os demais tenham perdido a esperança dos bens futuros, por não se recordar dos inícios de sua existência. (p.223)

 

Capítulo 22

 

Os pecados são atribuíveis à própria vontade, não a Deus

 

  1. Seja como for a respeito desse problema – quer o deixemos definitivamente, quer o suspendamos por certo tempo, para examinarmos melhor mais tarde -, nada impede constatarmos claramente esta conclusão: as almas estão sujeitas a um castigo merecido por seus próprios pecados, sem que seja atingida em nada a integridade, a justiça e a irredutível firmeza e imutabilidade do Criador, em sua natureza e majestade. Porque os pecados, como já expusemos longamente, não devem ser atribuídos senão à própria vontade. E não é para se buscar outra causa além dessa.

 

Hipótese: e se o estado atual do homem fosse conforme à sua natureza, sem que tenha havido o pecado original?

 

  1. Suponhamos que a ignorância e as dificuldades na luta sejam naturais à alma, sendo a partir daí que ela progrida e eleve-se ao conhecimento e ao repouso, até conseguir a plena realização da vida bem-aventurada. 41 Ora, para esse progresso, empregando os mais nobres esforços e piedade, os meios não lhe são recusados.

            Mas caso ela for negligente por sua própria vontade, será justo que seja relegada a uma ignorância mais ampla e a dificuldades mais graves, onde encontrará então sua punição. E conforme a ordem e a harmonia reinantes no governo das coisas, ficará ela colocada num plano inferior.

            Não é sua ignorância natural, nem sua incapacidade natural que lhe seriam imputadas como pecado, mas o (p.224) fato de sua falta de aplicação em relação ao saber e seu pouco esforço para adquirir a facilidade de proceder bem.

            De modo análogo, por exemplo, não saber nem poder falar, vemos ser algo natural às crianças pequeninas. E essa ignorância e dificuldade de expressão não apenas estão isentas de censura dos professores, mas até parecem ser agradáveis e encantadoras para o coração humano. Com efeito, não se pode dizer que a criança tenha negligenciado de adquirir sua capacidade de falar, por qualquer maldade, nem mesmo ter perdido o hábito, por sua falta.

            É porque, se nossa felicidade consistisse na eloqüência e se fossem consideradas como crime as faltas cometidas nas ações da vida, por certo não se poderia censurar a ninguém de ter cometido pecado com seu defeito natural de pronúncia. É fato próprio da vida infantil, pois partimos dela para a aquisição da eloqüência. Contudo, seria censurado como razão se alguém, por sua má vontade, tivesse recaído no defeito da infância e tivesse querido nele permanecer.

            Agora, da mesma maneira: se a ignorância da verdade e a dificuldade de tender para o bem fossem naturais ao homem, como sendo o ponto de onde parte para alcançar a felicidade e, portanto, elevar-se até à posse da sabedoria e da paz, ninguém poderia, sem injustiça, censurar à alma como sendo pecado esse começo natural.

            Mas caso ela não queira progredir ou se o quiser, após certo progresso, retroceder ao começo, padeceria o castigo, com toda razão.

 

Conclusão: é preciso louvar a Deus em qualquer hipótese

 

  1. O Criador da alma merece, pois, em tudo, louvores:

- seja por ter posto na alma desde a sua origem um começo de aptidão para ascender até o sumo Bem; (p.225)

- seja porque Ele a ajuda a progredir;

- seja porque dá a esses progressos contínuos um complemento e coroamento;

 

            - ou seja, enfim, porque, por uma muito justa e merecida condenação, ele a faz entrar na ordem conforme os seus deméritos, quando ela peca, isto é, quando recusa desde os seus primeiros passos se elevar para a perfeição, ou que retroceda após alguns progressos.

            Pois é certo que a alma não foi criada má, pelo fato de não ser ainda tão perfeita quanto a capacidade que recebeu de vir a sê-lo, ao progredir. Visto que bem abaixo de sua perfeição inicial encontram-se todas as perfeições dos corpos. Entretanto, apesar da inferioridade, esses corpos são em seu gênero dignos de louvor, conforme o bom julgamento de todo aquele que julga as coisas com sanidade.

            Logo, se a alma ignora o que há de fazer, é porque isso provém de uma perfeição ainda não obtida. Ela a obterá, porém, se usar bem o que lhe foi já dado. Ora, o que lhe foi dado é a capacidade de procurar com cuidado e piedade, caso o queira.

            Assim também, quando a alma, conhecendo o que deve fazer, fica ainda incapaz de o realizar, isso provém de uma perfeição ainda não adquirida.

            Pois existe nela uma parte mais sublime, essa que toma a dianteira para perceber o bem que lhe convém fazer. Outra parte, porém, é mais preguiçosa e carnal e não se deixa dirigir logo como deveria, por tal caminho. E essa resistência é para advertir a alma de implorar, a fim de conseguir seu acabamento, o auxílio d’Aquele que ela sabe ser o autor de seus inícios. Assim, deve Ele se tornar para ela mais amado, visto não ser por suas próprias forças, mas graças à bondade divina que ela tem a sua existência. Assim, também, deverá ela à sua misericórdia o fato de ser elevada à beatitude. (p.226)

            Ora, quanto mais for amado Aquele que a fez, mais lhe está assegurado o repouso, que ela possuirá nele, e mais abundante será a alegria que ela há de gozar em sua eternidade.

            Pois, de modo semelhante, se só um primeiro rebento brota de um pequeno arbusto, uma árvore não merece de modo algum ser denominada estéril, ainda que tenha de atravessar muitos verões sem fruto, à espera do tempo oportuno para manifestar a sua fecundidade.

            Desse modo, por que não havemos nós de dirigir nossos louvores como um dever de piedade ao Criador da alma, se Ele lhe deu não só um início, mas o tempo de se preparar, pela aplicação e progresso moral, para chegar ao fruto da sabedoria e da justiça? E ainda mais, por lhe ter consentido essa grande dignidade de ter em seu poder o tender, caso o queira, até à beatitude?

 

C: PROBLEMAS ACERCA DAS CRIANÇAS

 

Capítulo 23

 

A morte prematura das crianças e o sofrimento que padecem não são contrários à ordem universal

 

  1. Alguns ignorantes costumam objetar a tais argumentos uma objeção caluniosa, concernente à morte das crianças e acerca dos sofrimentos corporais pelos quais nós as vemos frequentemente serem afligidas. Dizem eles: Que necessidade tinha essa criança de nascer, pois, se antes mesmo de ter realizado qualquer obra meritória, deixa a vida? E em que categoria será preciso colocar, no momento do julgamento final, aquele pequeno ser cujo (p.227) lugar não está entre os justos, pois não praticou nenhuma boa ação, nem entre os maus, posto que não cometeu pecado algum?

            Respondemos a isso: considerando o conjunto do universo e a ordem perfeita que une todas as criaturas através do espaço e tempo, chaga-se à conclusão da impossibilidade de homem algum ser criado inutilmente, visto que nenhuma folha de árvore tenha sido criada sem motivo.

            Entretanto, é por certo supérfluo interrogar sobre os méritos de alguém que nada mereceu. Porquanto não é para temer que não possa haver uma espécie de vida média entre a virtuosa e a pecaminosa.

            E em referência a um juiz, pode ser que ele tome uma decisão média entre a recompensa e o castigo.

 

E as crianças que morrem sem batismo?

  1. Nesse sentido, há ainda o costume, entre aquelas mesmas pessoas, de indagarem para que pode servir às criancinhas o sacramento do batismo de Cristo, quando muitas delas, após tê-lo recebido, morrem antes de ser capazes de nada entender.

            Quanto a esse problema, conforme uma crença sólida, piedosa e razoável, o que é de fato útil à mesma criança batizada é a fé daqueles que a oferecem para ser consagrada a Deus. Essa opinião é recomendada pela autoridade muito salutar da Igreja.

            Por aí, cada um pode aquilatar quanta utilidade constitui para si a própria fé pessoal, já que a de uma pessoa estranha pode ser comunicada com benefício a outros, que não a possuem ainda. Nesse sentido, qual o proveito que o filho daquela viúva encontrou com sua própria fé, visto que, uma vez estando morto, já não a possuía mais? Entretanto, a fé de sua mãe lhe foi de tanta (p.228) utilidade que lhe obteve a ressurreição (Lc 7,11ss). Logo, com quanta mais forte razão a fé de uma outra pessoa pode aproveitar a uma criança à qual, certamente, não se pode inculpar de falta de fé. 42

 

As dores das criancinhas são compatíveis com a bondade divina

 

  1. Reflitamos, agora, sobre o caso dos sofrimentos corporais com os quais as crianças pequenas são atormentadas, as quais, devido à sua idade, estão isentas de qualquer pecado.

            Na suposição de as almas que vivificam as crianças não terem já começado a existir antes, costumam alguns erguer lamentações maiores, como se tivessem pena, e dizem: “Que mal fizeram para sofrer assim?”. Falam como se pudesse haver algum mérito devido à inocência, antes de alguém poder cometer algum mal.

            E no caso de Deus pretender obter alguma coisa de bom para a correção dos adultos, quando os prova pelas dores e morte das crianças, que lhe são queridas, por qual razão não haveria de fazê-lo? Posto que, uma vez tendo passado esses sofrimentos, tudo será como se não tivessem existido, para aqueles a quem aconteceram?

            E quanto àqueles em cuja intenção tais coisas terão acontecido, ou eles se tornarão melhores, no caso de se corrigirem por meio dessas aflições temporais, e assim terem optado por viver com mais retidão, ou, no caso contrário, não terão desculpa alguma diante da punição no julgamento futuro, pois recusaram, apesar das angústias da vida presente, a voltarem os seus desejos em direção da vida eterna.

            Aliás, quem é que pode saber o quanto a essas crianças cujos tormentos visaram abalar a dureza do coração dos mais velhos ou pôr em prova sua fé, ou ainda manifestar a (p.229) sua piedade, quem, pois, poderá saber qual será a feliz compensação que Deus reserva a essas crianças, no segredo de seus julgamentos? Porquanto, se elas não praticarem ainda bem algum, foi também sem haver pecado em nada que suportaram tais sofrimentos. Assim, lembremos aquelas crianças postas à morte, quando Herodes procurava o Senhor Jesus Cristo para o matar (Mt 2,6). Não é em vão que a Igreja as apresenta à nossa veneração, reconhecendo-as no número glorioso dos mártires.

 

Mártires providenciais das doares dos animais

 

  1. Além disso, aqueles homens caluniadores desprovidos do zelo necessário para examinar tais problemas e na verdade, perturbadores muito loquazes, tentam ainda abalar a fé dos fiéis menos instruídos, a propósito das dores e cansaço dos animais. Dizem: “Que mal cometeram os animais, para sofrerem tão grandes penas, ou que bem esperam em troca, para serem provados, com padecimentos tão excessivos?”

            Mas se falam e sentem assim, é porque julgam as coisas de modo muito iníquo. São eles incapazes de contemplar a natureza e a grandeza do sumo Bem. Pretendem que tudo seja semelhante ao que pensam. Eles não podem conceber o sumo Bem acima daqueles corpos colocados no plano supremo, que são os corpos celestes, e por essa razão menos sujeitos à corrupção. Reclamam assim de maneira totalmente contrária à lei da ordem universal, de que os corpos dos animais sofram a morte e qualquer corrupção, como se eles não fossem mortais. Ora, na verdade, eles encontram-se na ínfima categoria dos seres. Ou consideram-nos como se fossem maus, pelo fato de valerem menos do que os corpos celestes?

            Todavia, a dor sentida pelos animais põe em relevo na alma desses mesmos animais um poder admirável e (p.230) e digno de estima em seu gênero. Por aí, aparece suficientemente o quanto a alma aspira à unidade, ao vivificar e governar os respectivos corpos. Pois o que é a dor, a não ser uma sensação de resistência à divisão e à corrupção?

            Graças a isso, aparece mais claramente do que a luz, o quanto a alma desses animais está ávida de unidade, no conjunto do corpo, e o quanto deseja isso. Pois não é com prazer, nem indiferença, mas antes com esforço e resistência que ela reage contra o sofrimento de seu esforço, não aceitando, a não ser com penas, de ver assim a sua unidade e integridade serem abaladas.

            Se não fosse a dor dos animais não se poderia ver suficientemente, quão grande é a aspiração à unidade, até na ordem inferior das criaturas denominadas animais.

            E sem isso, nós não estaríamos bastante advertidos o quanto todas as coisas são feitas pela soberania sublime e inefável unidade do Criador.

 

Conclusão: toda criatura canta a unidade suprema de Deus

 

  1. Na verdade, tu o verás, se atenderes piedosa e diligentemente, como toda a beleza e o movimento das criaturas, submetidos às reflexões do espírito humano, estabelecem uma linguagem apta a nos instruir. E esses diversos movimentos e disposições são as línguas variadas, que clamam em todos os lugares e nos conjuram ao conhecimento do Criador.

            Não há coisa alguma entre as criaturas que não possua o sentimento da dor ou do prazer, que não chegue à perfeição própria de seu gênero ou não consiga, em absoluto, a estabilidade devida à sua natureza, a não ser em virtude de certa unidade.

            De modo semelhante, nenhuma criatura existe, entre as que sentem, quer os incômodos da dor, quer a (p.231) satisfação do prazer, que ao fugir da dor ou buscando o prazer, não ateste por aí, suficientemente, que está a fugir da desagregação e à procura da unidade.

            Ora, de onde nos vem o mal-estar provocado por tudo o que é equívoco, a não ser porque lhe falta a exata unidade? Uma coisa, pois, se segue daí: todos os seres, quer eles causem dano ou sofram dano; quer causem agrado ou recebam agrado, insinuam e proclamam a unidade do Criador.

            Mas caso a ignorância pelas quais esta vida deve necessariamente ter o seu começo não são próprias da natureza das almas, resta que ou bem foram impostas como uma obrigação ou bem infligidas como uma punição.

            Sobre esses assuntos, julgo que apresente argumentação tenha sido suficiente.

 

D: QUESTÕES SOBRE O PRIMEIRO PECADO

DO HOMEM E O DO DEMÔNIO

 

Capítulo 24

 

Foi o homem criado em estado de sabedoria ou de insensatez?

 

  1. Mas vamos agora, de preferência, procurar saber em que estado foi criado o primeiro homem, mais do que indagar como se propagou a sua descendência. (p.232)

            Ora, alguns imaginam propor a dificuldade com habilidade ao indagar: Se o primeiro homem foi criado sábio, como se explica ter sido ele seduzido? E caso tenha sido criado insensato, como não há de ser Deus o autor dos defeitos dele, visto que a insensatez (stultitia) é o maior de todos? 43

            Como se a criatura humana não fosse suscetível entre os dois extremos: insensatez e sabedoria, de conhecer um estado intermédio, o qual não possa ser denominado nem uma coisa nem outra.

            Pois o homem não começa a ser insensato ou sábio, de maneira a ser chamado necessariamente por uma das duas denominações, a não ser no momento em que esteja em condições de possuir a sabedoria, caso não seja negligente, e sua vontade não se torne responsável pela insensatez. Assim, ele poderá possuir a sabedoria, sendo sua vontade a culpada pelo defeito da insensatez.

            De fato, ninguém perde o juízo a ponto de chamar insensato uma criança, ainda que haja absurdo maior chamá-la de sábia. Por conseguinte, uma criança não pode ser denominada nem insensata, nem sábia, embora já possua a natureza humana. Por aí se vê que a natureza do homem nasce em um estado intermédio, que não é nem a estultice, nem a sabedoria. Assim também, se alguém estivesse alienado por um estado de espírito em sua constituição natural, semelhante ao das pessoas que carecem de sabedoria, e não por negligência em adquiri-la, ninguém teria razão de o chamar de insensato, visto estar nesse estado por natureza, e não em conseqüência de sua culpa.

            A insensatez é, efetivamente, a ignorância – não qualquer uma, mas a acarretada por vício – das coisas que devem ser desejadas ou evitadas. Daí, não chamarmos tampouco insensato o animal desprovido de razão, por não ter recebido a capacidade de se tornar sábio. (p.233)

            Entretanto, muitas vezes, nossa maneira de falar é frequentemente analógica, e não tomada em sentido próprio. Assim, por exemplo, a cegueira, que é o mal supremo dos olhos, não é contudo, um defeito para os cachorrinhos recém-nascidos. Nem nesse caso pode ser chamada propriamente de “cegueira”.

 

O primeiro pecado não pode ser imputado a Deus, mas sim ao orgulho do homem

 

  1. Em conseqüência, o homem foi criado em um estado tal que, sem ainda ser sábio, era capaz, entretanto, de receber um preceito com o evidente dever de obedecer a ele. Não é, pois, para se estranhar que pudesse ter sido seduzido. Nem é injusto que tenha sido castigado, por não haver obedecido a tal preceito. Por outro lado, resulta que o seu Criador não é o autor dos defeitos, porque a ausência de sabedoria ainda não era um defeito para o homem, uma vez que ele não tinha ainda recebido a capacidade de a possuir.

            Não obstante, o homem tinha o meio, se o quisesse, de se ouvir dela, convenientemente. Elevar-se assim até aquela sabedoria que ainda não desfrutava. Pois uma coisa é gozar da razão, outra coisa ser sábio. A razão torna todo homem capaz de receber um preceito, ao qual deve fidelidade na execução do que é prescrito. Ora, assim como a natureza racional e capaz de perceber um preceito, assim também a observância deste conduz à sabedoria.

            Dessa maneira, o que a natureza faz para a compreensão do preceito, a vontade o faz para a observância do mesmo. E de modo semelhante, assim como para a natureza racional é como um mérito receber um preceito, assim a observação deste pela vontade é como o fundamento para a recepção da sabedoria.

 

O primeiro pecado não pode ser imputado a Deus, mas sim ao orgulho do homem

 

  1. Em conseqüência, o homem foi criado em um estado tal que, sem ainda ser sábio, era capaz, entretanto, de receber um preceito com o evidente dever de obedecer a ele. Não é, pois, para se estranhar que pudesse ter sido seduzido. Nem é injusto que tenha sido castigado, por não haver obedecido a tal preceito. Por outro lado, resulta que o seu Criador não é o autor dos defeitos, porque a ausência de sabedoria ainda não era um defeito para o homem, uma vez que ele não tinha ainda recebido a capacidade de a possuir.

            Não obstante, o homem tinha o meio, se o quisesse, de se servir dela, convenientemente. Elevar-se assim até aquela sabedoria que ainda não desfrutava. Pois uma coisa é gozar da razão, outra coisa ser sábio. A razão torna todo homem capaz de receber um preceito, assim como a natureza racional e capaz de perceber um preceito, assim também a observância deste conduz à sabedoria.

            Dessa maneira, o que a natureza faz para a compreensão do preceito, a vontade o faz para a observância do mesmo. E de modo semelhante, assim como para a natureza racional é como um mérito receber um preceito, assim a observância deste pela vontade é como o fundamento para a recepção da sabedoria. (p.234)

            Todavia, no momento em que o homem começa a ser capaz de compreender um preceito, começa por aí mesmo, a poder pecar.

            Ora, antes de chegar a ser sábio, é de duas maneiras que ele peca: ou não se sujeitando a aceitar o preceito, ou então não o observando após o ter aceito. Quanto ao sábio, ele peca ao afastar-se da sabedoria.

            Com efeito, assim como o preceito não procede daquele que o recebe, mas daquele que o impõe, do mesmo modo a sabedoria não procede daquele que é iluminado por ela, mas daquele que ilumina.

            Conseqüentemente, de que não deve ser louvado o Criador do homem? Pois o homem é um bem superior ao animal, em virtude de ser capaz de receber um preceito. E ele torna-se ainda melhor, depois de obter aceito. E muito mais ainda, após ter obedecido a ele. Enfim, é ainda muitíssimo melhor do que tudo isso, quando a luz da sabedoria eterna o torna bem-aventurado.

            Por outro lado, o pecado é um mal que consiste em negligenciar: seja o aceitar um preceito; seja de perseverar na contemplação da sabedoria. De onde se pode compreender como o primeiro homem, mesmo tendo sido criado sábio, podia, no entanto, ser seduzido. E como a esse pecado cometido livremente, seguiu-se justamente o castigo, por disposição divina.

            Assim fala o apóstolo Paulo: “Jactando-se de possuir a sabedoria, tornaram-se néscios” (Rm 1,22). Pois o orgulho, com efeito, afasta sabedoria e a insensatez é uma conseqüência dessa aversão. 44

            A insensatez é uma espécie de cegueira, como diz o mesmo apóstolo: “Seu coração insensato obscureceu-se (Rm 1,21). Ora, de onde vem esse obscurecimento, a não ser porque o homem se afasta da luz da sabedoria? E de onde vem esse afastamento, a não ser de que o homem, do qual Deus é o único bem, quer se tornar ele mesmo, o seu (p.235) próprio bem, como Deus o é para si? É porque está dito: “No dia em que comerdes o fruto, os vossos olhos vão se abrir e sereis como deuses” (Gn 3,5).

 

Como se dá a passagem da insensatez à sabedoria

 

  1. O que perturba os que refletem sobre essas questões é o seguinte: “Será por insensatez que o primeiro homem afastou-se de Deus, ou será que foi ao se afastar que ele se tornou insensato?”. Pois se responderes: “Foi por insensatez que ele se afastou da sabedoria, pareceria que o homem tinha sido insensato já antes de se afastar da sabedoria, visto essa insensatez ter sido a causa de seu afastamento. Do mesmo modo, se responderes: “Foi ao se retirar que ele se tornou insensato”, perguntar-se-ia: “Caso ao se retirar, comportou-se ele com insensatez ou com sabedoria?”. Pois se foi com sabedoria, agiu bem, não tendo cometido pecado algum. Se foi com insensatez, ele já devia ter dentro de si essa insensatez, pela qual ele se produziu o seu afastamento. Pois nada poderia ele ter feito com insensatez sem ser, antes um estulto.

            De onde fica claro que existe um certo meio termo por onde se passa da insensatez para a sabedoria. E essa passagem não pode ser chamada nem um ato de insensatez, nem um ato de sabedoria.

            Acontece que os homens enquanto vivem nesta vida presente não chegam a compreender, a não ser por termos opostos. Com efeito, nenhum mortal torna-se sábio senão passando da insensatez à sabedoria. Ora, essa passagem faz-se néscia ou sabiamente. Caso se realize com insensatez, por certo, não é uma boa ação o que não pode ser dito sem grande absurdo. E caso se efetue com sabedoria, esta já se encontra no homem antes de sua passagem para a sabedoria – o que não é menos absurdo. (p.236)

            De onde se vê que existe realmente um termo médio, do qual não se pode dizer que seja nem uma coisa nem outra.

            E quando o primeiro homem passou do santuário da sabedoria para a insensatez, essa passagem não pertencia nem à sabedoria nem à insensatez. Acontece o mesmo no caso da passagem do sono para o estado de vigília. Estar prestes a pegar no sono não é precisamente a mesma coisa do que estar acordado, mas sim uma certa transcrição de um estado para outro.

            Há, porém, uma diferença: esses últimos atos (do dormir e acordar) acontecem o mais freqüentemente, de modo involuntário. Ao contrário, aqueles primeiros atos (concernentes à sabedoria e à insensatez) não se realizam nunca, a não ser voluntariamente. É porque sanções muito justas são a conseqüência.

 

Capítulo 25

 

Confronto entre o orgulho e a sabedoria

 

  1. O que pôde mover a vontade de nossos primeiros pais? Mas a vontade não fica solicitada a um determinado ato, a não ser por meio de algum objeto, o qual vem a perceber. E se cada pessoa tem o poder de escolher o que aceita ou rejeita, ninguém possui o poder de escolher o que vai aceitar ou rejeitar. Ninguém pode determinar qual o objeto cuja vista o impressionará. 45

            Ora, é preciso reconhecer: a alma fica impressionada pela vista de objetos, sejam superiores, sejam inferiores, de tal modo que a vontade racional pode escolher entre os dois lados o que prefere. E será conforme o mérito dessa escolha que se seguirá para ela o infortúnio ou a felicidade. (p.237)

            Assim, no paraíso terrestre, havia como objeto percebido: vindo do lado superior, o preceito divino, e vindo do lado inferior, a sugestão da serpente. Pois nem o que o Senhor ia prescrever, nem o que a serpente ia sugerir foi deixado ao poder do homem.

            Contudo, ele estava certamente livre de resistir à vista das seduções inferiores, pois o homem tendo sido criado na sanidade da sabedoria achava-se isento de todos os liames que dificultavam a sua escolha. Podemos compreender isso pelo fato de os próprios insensatos chegarem a vencer-se e se elevarem até à sabedoria, ainda que lhes seja penoso renunciar às doçuras envenenadas de seus hábitos funestos. 46

 

O que moveu a vontade do demônio para se voltar para o mal?

 

  1. Aqui pode ser colocada uma questão: uma vez que o primeiro homem encontrou-se na presença de dois objetos percebidos, de ordem oposta: de um lado, o preceito vindo de Deus e, de outro, a sugestão da serpente – pergunta-se de onde teria vindo ao próprio demônio o desígnio de preferir a impiedade que o precipitou do alto de seu trono? Na verdade, se não tivesse sido impressionado pela vista de objeto algum, ele não teria escolhido de fazer o que fez. Pois, se nada lhe tivesse ocorrido ao espírito, não teria voltado de modo algum sua intenção para o mal. Logo, de onde lhe veio ao espírito o pensamento, fosse qual fosse o conteúdo dessa sugestão, de formar esse projeto que o levou a passar do estado de anjo bom que era ao de demônio? 47

            Pois, realmente, aquele que quer, por certo quer alguma coisa. E ele não poderia querer esse intento se não lhe fosse assinalado exteriormente pelos sentidos, ou se não tivesse sido apresentado a seu espírito de alguma maneira secreta. (p.238)

            É preciso distinguirmos duas espécies de objeto de conhecimento: uma provindo de uma sugestão exterior premeditada, como foi o caso da tentação do demônio, a quem o homem cedeu, tornando-se pecador; outra provindo das realidades que estão submetidas à atenção de nosso espírito, 48 ou à percepção de nossos sentidos corporais.

            O que poderia vir a cair sob o pensamento direto do espírito, por certo, não seria a imutável Trindade, que não somente escapa ao domínio de nosso entendimento, mas ainda ultrapassa de muito a alma. Cai sob a ação do espírito, precisamente, o próprio espírito pelo qual o espírito governa. É porque em cada ação ele move os membros que devem ser postos em movimento, quando preciso. Enfim, os sentidos corporais, que têm por objeto direto o conhecimento dos seres corpóreos.

 

O orgulho – principal fonte de toda má opção

 

  1. Que a alma mutável possa se contemplar, comprazer-se de certa maneira em si mesma, na contemplação da suprema sabedoria, a qual sendo imensa não é a própria alma, isso vem de que ela, por não ser igual a Deus, possui entretanto, belezas que, depois de Deus, podem encantá-la.

            Sua beleza torna-se perfeita quando, perdendo-se de vista no amor de Deus imutável, esquece-se totalmente em sua presença. 49

            Mas se, ao contrário, indo por assim dizer a seu próprio encontro, ela se compraz em si mesma, como por uma espécie de arremedo perverso de Deus, até pretender encontrar o seu gozo na própria independência, então se faz tanto menor quanto mais deseja se engrandecer. (p.239)

            Esse é o sentido das palavras: “O orgulho é o começo de todo pecado” (Eclo 10,13). E destas outras: “O início do orgulho é afastar-se de Deus” (Eclo 10,12). 50

            Foi esse o pecado do demônio que acrescentou a inveja, a mais odiosa, até persuadir ao homem esse mesmo orgulho, em razão do qual ele tinha consciência de ter sido condenado. Mas aconteceu que a punição infligida ao homem foi destinada a corrigi-lo, mais do que a dar ao mesmo homem a morte.

            Visto que o demônio apresentou-se ao homem como exemplo de orgulho, o Senhor apresentou-se a nós como exemplo de humildade e com a promessa de vida eterna. Em seu amor infinito, Deus quis que resgatados pelo sangue de Cristo, derramado após trabalhos e sofrimentos inexprimíveis, nós nos uníssemos ao nosso Libertador até ele, por luzes tão brilhantes, que a vista de realidade inferior alguma possa nos afastar da contemplação do Bem supremo.

            Outrossim, se alguma sugestão procedente do apetite de bens inferiores vier a solicitar nossa atenção, deveríamos ser reconduzidos ao bem, pelo exemplo da condenação e dos tormentos eternos do demônio.

 

Conclusão: a excelência da sabedoria

 

  1. Tão grande é a beleza da justiça, tão grande o encanto da luz eterna, isto é, da Verdade e da Sabedoria imutável, que mesmo se não nos fosse permitido gozar delas, a não ser pelo espaço de um único dia, em troca ter-se-ia plenamente razão em menosprezar por elas inumeráveis anos desta vida, embora repletos de delícias e transbordantes de bens temporais. Pois o salmista não se enganou ao dizer com tanto fervor: “Um só dia em teu santuário vale mais do que mil anos longe de ti” (Sl 83,11). 51 (p.240)

            Ainda que se possam interpretar essas palavras em outro sentido, compreendendo por mil dias a mutabilidade da eternidade.

 

Curta conclusão geral

 

            Ignoro se, ao responder às tuas questões (ó Evódio), o quanto o Senhor dignou-se me conceder não haver eu omitido alguns pontos, dos quais constatarás a ausência. Contudo, mesmo se os encontrares, a extensão deste livro obriga-nos a finalizá-lo, suspendendo as presentes argumentações. (p.241)

 

 

 

 

 

 

 

                      

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