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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O LIVRO DE MERLIN / T. H. White
O LIVRO DE MERLIN / T. H. White

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

 

O Rei Arthur da Inglaterra está, agora, em sua tenda de campanha, à véspera da batalha. No campo, amanhã, ele enfren­tará Mordred, o filho bastardo, e seu exército de jovens Surradores tipo nazistas.

Seu reinado vinha sendo dolorosamente longo, e ele estava curvado pela idade, tristeza e fracasso. Depois de uma juventude feliz no castelo de Sir Ector, na Floresta Sauvage, onde o mago Merlin o apresentara às ideologias políticas encontradas no reino animal, transformando-o temporariamente em vários bichos, Ar­thur foi colocado no trono pelo destino, levado por seu sentido de justiça e harmonia a criar o "mundo civilizado" e a famosa Távola Redonda, a estimular a Busca do Santo Graal no esforço de evitar que homens matassem homens.

Um destino mais negro, porém, impôs que, sem saber, ele geras­se um filho ilegítimo em sua própria meia-irmã e jogasse sua esposa Guenevere e Lancelot, seu melhor cavaleiro, nos braços um do outro, provocando assim rivalidade, engano e inveja entre os cavaleiros.

Isso veio ocasionar a ruína do velho Rei. Suas conquistas a favor do Poder da Justiça e da paz na terra foram esquecidas. Como esquecida também foi sua própria angústia de ter tentado o melhor de si e fracassado. A Busca não conduziu a lugar nenhum, a Távola Redonda foi dispersada. Agora Mordred e seus Surradores estavam sitiando Guenevere na Torre de Londres e Lancelot estava exilado na França, ambos vítimas da obsessão de Mordred de conquistar o trono de Arthur.

Portanto, Arthur agora está só, cumprindo seus deveres reais ao examinar, distraído, os papéis do dia, sentindo suas perdas e sua dor. Um movimento na porta de sua tenda o faz levantar os olhos.

 

 

 

 

Ele pensou um pouco e disse:

Descobri que o Jardim Zoológico é de muita valia para meus pacientes. Vou receitar para o Sr. Pontifax uma série de visitas aos grandes mamíferos. Não o deixem, pensar que é para fins medicinais...

 

Não era o Bispo de Rochester.

O rei virou a cabeça, tirando os olhos do visitante, indiferente quanto à sua identidade. As lágrimas que corriam soltas por suas faces, lenta e penosamente, o fariam sentir vergonha se fosse visto: no entanto, estava por demais derrotado para esconde-las. Desviou-se teimosamente da luz, incapaz de fazer mais do que isso. Tinha chegado ao estágio em que já não valia a pena esconder o infortúnio de um velho.

Merlin sentou-se a seu lado e lhe tomou a mão gasta, o que fez as lágrimas correrem mais rápidas. O mago deu palmadinhas na mão do Rei, segurando-a, calmo, com o polegar em suas veias azuis, esperando a vida reviver.

— Merlin? — perguntou o Rei.

Não parecia surpreso.

— Você é um sonho? — perguntou. — A noite passada sonhei que Gawaine vinha me ver, em companhia de lindas damas. Ele disse que a elas fora permitido vir porque ele as salvara quando ainda era vivo, e elas vinham avisar que amanhã todos estaríamos mortos. En­tão, tive outro sonho, que estava sentado em um trono atado no topo de uma roda, e a roda girou, e fui jogado em um poço de serpentes.

— A roda fez seu giro completo: eu estou aqui.

— Você é um sonho ruim? — ele perguntou. — Se for, não me atormente.

Merlin ainda segurava a mão. Afagou-a ao longo das veias, tentando fazê-las desaparecer dentro da carne. Acalmou a pele escamosa e lhe injetou vida com misteriosa concentração, encorajando-a a se recuperar. Tentou fazer o corpo ficar flexível sob as pontas de seus dedos, ajudando o sangue a correr, colocando viço e maciez nas juntas intumescidas, mas sem falar.

— Você é um sonho bom — disse o Rei. — Espero que conti­nue sonhando.

— Absolutamente, não sou um sonho. Eu sou o homem de quem você se lembrou.

— Oh, Merlin, tem sido tanta desgraça desde que você foi embora! Tudo que você ajudou a fazer deu errado. Todo o seu en­sinamento foi um engano. Nada valeu a pena. Você e eu seremos esquecidos, como pessoas que nunca existiram.

— Esquecidos? — perguntou o mago. Ele sorriu à luz da vela, olhando em volta da tenda como se para se certificar das peles, das cotas de malha faiscantes e das tapeçarias e velinos.

— Houve um rei — ele disse — sobre quem Nennius escreveu, e Geoffrey de Monmouth. Dizem que o Arquidiácono de Oxford também, e mesmo aquele tolo delicioso, Gerald, o Galés. Brut, Layamon e todo o resto: que bando de mentiras todos eles inventaram para contar! Alguns disseram que ele era um Britânico pintado de azul, outros que usava malha de corrente para se adequar às idéias dos romanceiros normandos. Alguns desajeitados alemães o coloca­ram competindo com seus aborrecidos Siegfrieds. Outros fizeram dele medalha, como seu amigo Thomas de Hutton Coniers, e outros ainda, sobretudo um elisabetano romântico chamado Hughes, reco­nheceram seu extraordinário problema de amor. Depois teve um poeta cego que tentou justificar os desígnios de Deus para o homem, e contrapôs Arthur a Adão, perguntando-se qual foi o mais impor­tante dos dois. Ao mesmo tempo vieram mestres da música como Purcell, e mais tarde alguns titãs como os românticos, sonhando com nosso Rei interminavelmente. Vieram homens que o vestiram com armaduras e lauréis, e os que fizeram todos os seus amigos se ergue­rem sobre ruínas, emaranhados nas sarças, ou então desfalecidos, com a névoa suave beijando-lhes os lábios. Também houve o senhor de Victoria. Até as pessoas mais inesperadas tiveram a ver com ele, pessoas como Aubrey Beardsley, que ilustrou sua história. Depois de um tempo, teve o pobre velho White, que achou que representáva­mos as idéias da cavalaria. Ele disse que nossa importância assenta­va-se em nossa decência, em nossa resistência à mente sangrenta do homem. Que anacrônico ele foi, meu caro! Imagine começar com Guilherme, o Conquistador, e terminar com a Guerra das Rosas... E ainda houve as pessoas que transformaram a Morte d'Arthur em on­das místicas como as de rádio, e outros, em um hemisfério não des­coberto, que chegaram a alegar que Arthur e Merlin eram seus pró­prios pais naturais em retratos que se mexiam. A Questão Britânica! Certamente seremos esquecidos, Arthur, se mil e quinhentos anos, e ainda outros mil, forem a medida do esquecimento.

— Quem é esse Wight?

— Um sujeito — respondeu, distraído, o mago. — Agora escute, por favor, enquanto recito um poema de Kipling? — E o velho cava­lheiro passou a entoar com paixão o famoso parágrafo de Pook’s Hill "Vi Sir Huon e uma tropa de sua gente zarpando do Castelo de Tintagel, rumo a Hy-Brazil,* na ponta de uma ventania do sudoeste, com a espuma passando por cima do castelo de proa, e os Cavalos da Colina tremendo de pavor. Mar adentro iam eles numa calmaria, guinchando como gaivotas, e de volta eram lançados umas boas cinco milhas ter­ra adentro antes de poderem se virar para o vento favorável... Era Má­gica — Mágica tão negra quanto a que Merlin podia fazer, e o mar todo era de fogo verde e espuma branca com sereias cantando. E os Cavalos da Colina abriam caminho de uma onda para outra sob os brilhos dos relâmpagos! Assim é que era nos velhos tempos!".

 

* Nome dado originalmente à maior das ilhas dos Açores; mais tarde, foi assim que se chamou a legendária ilha localizada na costa oeste da Irlanda. (N.T.)

 

— Há descrição sua — acrescentou, quando terminou o pará­grafo. — Há prosa. Não estranha que Dan tenha gritado "Esplên­dido!" no final. E tudo foi escrito sobre nós e sobre nossos amigos.

— Mas, Mestre, eu não entendo.

O mago levantou-se, olhando para seu antigo aluno todo perplexo. Enroscou a barba em vários caminhos de rato, pôs as pontas na boca, torceu os bigodes e estalou as juntas dos dedos. Estava assustado com o que tinha feito ao Rei, sentindo-se como se estivesse tentando reviver, com respiração boca-a-boca, um homem afogado já quase perdido. Mas não estava envergonhado. Quando você é um cientista deve pressionar sem remorso, se­guindo a única coisa de alguma importância, a Verdade.

Mais tarde ele chamou, com calma, como se chamasse alguém que dormia:

— Wart?

Não teve resposta.

— Rei?

A resposta amarga foi: “Le roy s'advisera"*.

 

* Resposta cortês usada pela realeza para rejeitar uma petição. Literalmente, significa que o rei procurará conselho sobre a questão. (N.T.)

 

Pior do que ele temia. Sentou-se, pegou a mão flácida e come­çou a animá-lo.

— Uma tentativa a mais — disse. — Ainda não acabamos.

— Para que tentar?

— É uma coisa que as pessoas fazem.

— Então, são tolas.

O velho cavalheiro respondeu com franqueza:

— As pessoas são tolas, e também perversas. Isso é que torna interessante tentar melhorá-las.

Sua vítima abriu os olhos, mas fechou-os outra vez, abatido.

— O que você estava pensando antes que eu chegasse, Rei, era verdade. Quero dizer, sobre o Homo ferox. Mas os falcões também são ferae naturae: é por isso que são interessantes.

Os olhos permaneceram fechados.

— O que você estava pensando sobre... sobre as pessoas como máquinas: isso não era verdade. Ou, se é verdade, não tem impor­tância. Pois se somos todos máquinas, nós mesmos, então não tem ninguém com quem se importar.

— Entendo.

Curiosamente, ele de fato entendeu. Também seus olhos se abriram e permaneceram abertos.

— Você se lembra do anjo na Bíblia que estava pronto para pou­par cidades inteiras desde que um único homem justo fosse encontra­do? Havia um? Isso se aplica ao Homo ferox, Arthur, mesmo agora.

Os olhos começaram a observar atentamente a visão à sua frente.

— Você tem seguido meus conselhos muito literalmente, Rei. Não acreditar no pecado original não significa que se deva acredi­tar na virtude original. Só significa que não se deve acreditar que as pessoas são completamente perversas. Perversas, sim, e mesmo muito perversas, mas não completamente. Senão, concordo, não haveria motivo para tentar.

Com um de seus sorrisos encantadores, Arthur disse:

— Este é um sonho bom. Espero que seja longo.

Seu mestre pegou os óculos, limpou-os, colocou-os no nariz e examinou cuidadosamente o velho. Houve um sinal de satisfação por trás das lentes.

— Se você não tivesse vivido isso, não saberia — disse. — E preciso viver o próprio conhecimento. Como você se sente?

— Bastante bem. E você?

— Muito bem.

Eles apertaram-se as mãos, como se tivessem acabado de se conhecer.

— Você vai ficar?

— Na verdade, eu mal vou estar aqui — o nigromante res­pondeu, agora soprando furiosamente pelo nariz para esconder seu júbilo, ou talvez para esconder seu arrependimento. — Vim lhe trazer um convite.

Ele dobrou seu lenço e recolocou-o dentro de seu chapéu.

— Algum camundongo? — perguntou o Rei, com um débil brilho nos olhos. A pele de seu rosto crispou-se, ou se esticou, por uma fração de segundo, de maneira que se podia ver por baixo dela, talvez no osso, a fisionomia sardenta, atrevida, de um menino que uma vez ficou encantado com Archimedes. Com condescendência, Merlin tirou seu chapéu pontudo.

— Um — respondeu. — Acho que era um camundongo, mas estava um pouco atrofiado. E aqui, estou vendo, está o sapo que peguei no verão. Durante a seca, passaram por cima dele, pobre criatura. Uma silhueta perfeita.

Ele examinou-o, complacente, antes de voltar a colocá-lo no lugar, depois cruzou as pernas e examinou sua companhia da mesma maneira, procurando agradá-lo.

— O convite — disse. — Estávamos esperando que você nos fizes­se uma visita. Sua batalha pode cuidar de si mesma até amanhã, não pode?

— Nada importa em um sonho.

Isso pareceu chatear o mago, pois ele exclamou, um pouco aborrecido:

— Gostaria que você parasse com os sonhos! Deve levar as ou­tras pessoas em consideração.

— Tudo bem.

— O convite, então. É para visitar minha caverna, onde a jo­vem Nimue me colocou. Você se lembra dela? Tem alguns amigos lá, esperando para revê-lo.

— Seria maravilhoso.

— Sua batalha já está preparada, acredito, e de qualquer forma você não dormiria muito. Essa visita talvez alegre seu coração.

— Nada está preparado — disse o Rei. — Mas os sonhos se preparam por si mesmos.

Com isso, o velho cavalheiro pulou de sua cadeira, apertando a testa como se tivesse levado um tiro ali, e levantou sua varinha de pau-santo para o céu.

— Poderes Misericordiosos! Sonhos de novo!

Com um gesto majestoso, ele tirou seu chapéu cônico, olhou de maneira penetrante para a figura de barba à sua frente, que pa­recia tão velho quanto ele, e deu uma batida em sua testa com sua própria varinha, como um ponto de exclamação. Sentou-se, então, meio atordoado por ter calculado mal a ênfase.

O velho Rei observou-o com a mente acesa. Agora que estava sonhando de maneira tão vivida com o amigo havia tanto tempo perdido, começou a perceber por que Merlin sempre tinha bancado o palhaço de propósito. Era uma maneira de ajudar a pessoa a aprender de um modo alegre. Começou a sentir a maior das afei­ções, também misturada com admiração reverente, pela coragem antiga de seu tutor: que continuava acreditando e tentando com indômita excentricidade, apesar dos séculos de experiência. Começou a se alegrar ao pensar que a benevolência e o valor poderiam persis­tir. Com a alegria em seu coração, ele sorriu, fechou os olhos e caiu no sono para valer.

 

Quando abriu os olhos, ainda estava escuro. Merlin estava lá, coçando pensativo as orelhas do galgo e resmungando. Antes, ele já salvara o pupilo dos seus tormentos sendo bravo, quan­do era um jovem rapaz chamado Wart, mas sabia que, agora, o po­bre velho à sua frente já sofrerá demasiado para o truque funcionar de novo. A segunda melhor coisa a fazer era distrair a atenção do Rei, ele deve ter pensado, porque, assim que os olhos dele se abri­ram, se pôs a trabalhar de uma maneira que todos os magos enten­dem. Eles estão acostumados a impingir algo a alguém sob a ilusão da tagarelice.

— Bem — ele disse. — Sonhos. Precisamos acabar com isso de uma vez por todas. Fora a enlouquecedora indignidade de ser chamado de um sonho; pessoalmente, porque confunde você e confunde também as outras pessoas. E quanto aos leitores cultos? E é degradante para nós mesmos. Quando eu era um mestre-escola de terceira classe, no século vinte — ou foi no dezenove —, to­dos os rapazes que encontrei escreviam seus trabalhos para mim terminando da seguinte maneira: Então, ele acordou. Podia-se di­zer que o Sonho era a única convenção literária dessas degradadas salas de aula. E isso que vamos ser? Nós somos a Questão Britâni­ca, lembre-se. E quanto à crítica ao onirismo, eu pergunto? O que os psicólogos vão fazer com isso? A matéria de que os sonhos são feitos são asneiras e absurdos, em minha opinião.

— Sim — disse o Rei, dócil.

— Dou a impressão de ser um sonho?

— Sim.

Merlin pareceu ofegar de irritação, depois pôs a barba toda dentro da boca de uma só vez. Então, assoou o nariz e se afastou para um canto, onde ficou de pé, com o rosto virado para a lona, e começou um solilóquio indignado.

— Quanta perseguição e escárnio — declarou. — Como um nigromante pode provar que não é uma visão quando acusado de tal baixeza? Um fantasma pode provar que está sendo beliscado: mas um sonho, por nossa Real Senhora, não. Pois, veja bem, você pode sonhar com um beliscão. No entanto, sim! Existe o remédio assina­lado, no qual o sonhador belisca a própria perna. Arthur — ele disse, girando-se como um pião —, tenha a delicadeza de se beliscar.

— Sim.

— Agora, isso prova que você está acordado?

— Tenho minhas dúvidas.

A visão examinou-o com tristeza.

— Eu receava que não funcionasse — concordou; e retornou a seu canto, onde começou a recitar algumas passagens complicadas de Burton, Jung, Hipócrates e Sir Thomas Browne.

Depois de cinco minutos, bateu no punho com a palma da outra mão e voltou para a luz da vela, inspirado pela cama de Cleópatra.

— Escute — Merlin anunciou. — Alguma vez você sonhou com um cheiro?


— Sonhar com um cheiro?

— Não precisa repetir.

— Eu mal posso...

— Vamos, vamos. Você já sonhou com uma paisagem, não? E com um sentimento: todo mundo já sonhou com um sentimento. Você pode até ter sonhado com um gosto. Lembro-me de que uma vez, quando esqueci de comer por quinze dias, sonhei com um pu­dim de chocolate que nitidamente degustei, mas desapareceu. A questão é: alguma vez você sonhou com um cheiro?

— Acho que não, nunca sonhei.

— Tenha certeza. Não fique me olhando como um idiota, meu prezado, mas responda à questão que está sendo tratada. Você algu­ma vez já sonhou com o seu nariz?

— Nunca. Não consigo me lembrar de ter sonhado com um cheiro.

— Tem certeza?

— Tenho.

— Então cheire isto! — gritou o nigromante, tirando da cabe­ça o seu chapéu e colocando-o debaixo do nariz de Arthur, com sua carga de camundongos, sapos e alguns camarões para a pesca de sal­mão que ele havia esquecido.

— Arghh!

— Então, eu sou um sonho?

— Não cheira como um.

— Então, bem...

— Merlin — disse o Rei. — Não faz nenhuma diferença você ser ou não um sonho, contanto que esteja aqui. Sente-se e tenha um pouco de paciência, se puder. Diga-me a razão de sua visita. Fale. Diga que veio nos salvar desta guerra.

O velho cavalheiro tinha resolvido a questão da respiração boca-a-boca da melhor maneira que conseguira; agora, sentou-se confortavelmente e embarcou na questão colocada.

— Não — disse. — Ninguém pode ser salvo de nada, a menos que eles mesmos se salvem. É inútil fazer coisas para as pessoas — na verdade, com freqüência é muito perigoso fazer qualquer tipo de coisa — e a única coisa que vale a pena fazer pela raça humana é aumentar o seu estoque de idéias. Assim, se você tornar disponí­vel um estoque maior, as pessoas terão a liberdade de usá-las para ajudarem a si mesmas. Dessa maneira, os meios de aprimoramen­to são oferecidos, para serem aceitos ou rejeitados, livremente, e há uma tênue esperança de progresso no decorrer do milênio. Esse é o ofício do filósofo, abrir novas idéias. Não é seu ofício impô-las às pessoas.

— Você não tinha me dito isso antes.

— Como não?

— Durante toda a minha vida você me encorajou a fazer coi­sas... os Cavaleiros da Távola Redonda que você me fez inventar, o que foi isso senão um esforço para salvar as pessoas e conseguir que as coisas fossem feitas?

— Eram apenas idéias — disse o filósofo, com firmeza —, idéias rudimentares. As ações pelas quais você foi passando com di­ficuldades eram idéias, canhestras, claro, mas tinham que ser esta­belecidas como um fundamento antes que pudéssemos começar a pensar seriamente. Você tem ensinado os homens a pensar com a ação. Agora é tempo de pensar com nossas cabeças.

— Então minha Távola não foi um fracasso... Mestre?

— Certamente não. Foi um experimento. Experimentos levam a novos experimentos, e é por isso que vim aqui para levá-lo até nos­sa toca.

— Estou pronto — ele disse, admirado de ver que estava se sentindo feliz.

— O Comitê descobriu que houve algumas lacunas em sua educação, duas delas, e foi determinado que deveriam ser corrigidas antes de concluir a etapa ativa da Idéia.

— Que comitê é esse? Soa como se eles estivessem fazendo um relatório.

— E fizemos isso. Você os encontrará a todos na caverna. Mas agora, perdoe-me que o mencione, há uma questão que precisamos resolver antes de partir.

Aqui, Merlin examinou seus dedos dos pés com um olhar du­vidoso, hesitando em continuar.

— Os cérebros dos homens — ele explicou por fim — parecem se petrificar à medida que envelhecem. A superfície torna-se gasta, como couro usado, e já não guarda as impressões. Você chegou a perceber isso?

— Sinto uma rigidez na cabeça.

— Mas as crianças têm cérebros flexíveis e moldáveis — conti­nuou o mago, aliviado, como se estivesse falando sobre sanduíches de caviar. — Podem guardar impressões antes que você termine de dizer Jack Robinson. Aprender uma língua quando você é jovem, por exemplo, pode literalmente ser considerado uma brincadeira de criança, mas depois da meia-idade a pessoa acha que é um diabo.

— Ouvi as pessoas comentarem isso.

— O que o comitê sugeriu foi que, se você tem que aprender essas coisas sobre as quais estamos falando, deve — aham —, você deve ser um menino. Eles me forneceram um medicamento paten­teado que faz isso. Entenda: você tem que se tornar Wart outra vez.

— Não se eu tiver que levar minha vida de novo — retrucou o velho Rei, com tranqüilidade.

Eles olharam um para o outro como imagem e objeto em um espelho, os cantos externos dos olhos puxados para baixo com as pálpebras encapuzadas da idade.

— Seria só por uma noite.

— O Elixir da Vida?

— Exatamente. Pense nas pessoas que tentaram fazer isso.

— Se um dia eu encontrasse uma coisa assim, eu a atiraria longe.

— Espero que você não esteja sendo tolo em relação às crian­ças — disse Merlin, olhando-o de maneira vaga. — Temos o gran­de privilégio de voltar a nascer outra vez, como crianças. Ultima­mente, os adultos têm desenvolvido um hábito desagradável, eu reparei, de se auto-consolarem pela degradação, alegando que as crianças são infantis. Confio que estamos livres disso, certo?

— Todo mundo sabe que as crianças são mais inteligentes que seus pais.

— Você e eu sabemos disso, mas as pessoas que vão ler este li­vro não.

— Nossos leitores dessa época têm exatamente três idéias em seus magníficos miolos — continuou o nigromante com voz sotur­na. — A primeira é que a espécie humana é superior às outras. A se­gunda, que o século vinte é superior aos outros séculos. E, terceiro, que os adultos humanos do século vinte são superiores aos jovens. Essa ilusão toda pode ser rotulada de Progresso, e qualquer pessoa que questione isso é chamada de pueril, reacionária ou escapista. A Marcha do Homem, Deus os proteja.

Ele refletiu sobre esses fatos por um momento, depois acres­centou:

— E um quarto pedaço da armadilha científica na qual cairão regozija-se com o nome de antropomorfismo. Mesmo as crianças são consideradas tão superiores aos animais que não se deve men­cionar as duas criaturas no mesmo tom de voz. Se você começa a considerar homens como animais, eles giram a coisa do outro lado e dizem que você está considerando os animais como homens, um pecado que eles julgam ser pior do que bigamia. Imagine um cien­tista sendo apenas um animal, eles dizem! Uma heresia, ou puro palavrório!

— Quem são esses leitores?

— Os leitores do livro.

— Que livro?

— O livro em que estamos.

— Nós estamos em um livro?

— É melhor começarmos os trabalhos — disse Merlin, rapida­mente.

Ele pegou sua varinha, enrolou as mangas e encarou seu pacien­te com o olhar duro.

— Você concorda? — perguntou. Mas o velho Rei o interrompeu.

— Não — disse, com uma espécie de defesa firme. — Ganhei meu corpo e mente com muitos anos de trabalho. Seria indigno mudá-los. Não sou demasiado orgulhoso para me tornar criança, Merlin, mas demasiado velho. Se fosse o meu corpo que devesse se tornar jovem, seria inadequado manter uma mente velha den­tro dele. Por outro lado, se você tivesse que mudar os dois, o tra­balho de ter vivido todos esses anos seria vão. Não há nada a fa­zer, Mestre. Devemos manter a etapa da vida na qual o Senhor quis nos chamar.

O mago abaixou a varinha.

— Mas seu cérebro — ele se queixou. — É como uma esponja fossilizada. E você não gostaria de ser jovem, sair dando saltos e sen­tir seus joelhos outra vez? As pessoas jovens são felizes, não são? Nós pensamos nisso como um prazer.

— Seria com certeza um prazer, e obrigado por pensar nisso. Mas a vida não foi inventada para a felicidade, é o que acredito. Ela foi feita para outra coisa.

Merlin mascou a ponta de sua varinha enquanto pensava.

— Você está certo — disse no final. — Eu estava contra a proposta desde o início. Mas algo deve ser feito para amaciar seu intelecto, apesar de tudo, ou você nunca compreenderá a nova idéia. Suponho que você não faça objeção a uma massagem cere­bral, se é que consigo fazê-la. Tenho que pegar minhas baterias galvânicas, meus extravermelhos e subvioletas; meu giz francês e minhas pitadas disso e daquilo; um toque de adrenalina e uma pitada de alho. Você conhece esse tipo de coisa?

— Não, mas se acha que está certo...

Ele estendeu a mão para o éter, com um gesto bem lembrado, e o equipamento começou a se materializar obedientemente: tudo misturado como era usual.

 

O tratamento foi desagradável. Era como ter o cabelo esco­vado vigorosamente do jeito errado, ou como ter o torno­zelo torcido flexionado por aquele aflitivo tipo de massagista que exorta a pessoa a relaxar. O Rei apertou as mãos nos braços da ca­deira, fechou os olhos, trincou os dentes e suou. Quando os abriu pela segunda vez aquela noite, estava em um mundo diferente.

— Por Deus! — ele exclamou, pulando da cadeira. Ao sair da cadeira, não colocou seu peso sobre os pulsos, como um velho, mas sobre as palmas das mãos e as falanges. — Veja os olhos encovados do cachorro! As velas estão refletidas no fundo, não na frente, como se estivessem no fundo de um copo. Como nunca reparei nisso an­tes? E olhe isto: tem um buraco no banho de Bathseba, que precisa de cerzido. Que entrada é esta no livro de registros? Susp.?1 Quem cometeu a deslealdade de nos levar a enforcar pessoas? Ninguém merece ser enforcado. Merlin, por que não há reflexo nos seus olhos quando coloco as velas entre nós? Por que nunca pensei sobre isso? A luz que vem de uma raposa é vermelha, verde de um gato, ama­rela de um cavalo, cor de açafrão de um cachorro... E olhe aquele bico do falcão: tem um dente como um serrote. Açores e gaviões não têm dentes. Deve ser uma peculiaridade de falco. Que coisa ex­traordinária é uma tenda! A metade dela tenta puxá-la para cima, e a outra metade tenta puxá-la para o chão! Ex nihilo res fit.2 E veja essas peças de jogo de xadrez! Um cheque-mate, é verdade! Ora, vamos ter que tentar outra manobra!

 

1 Abreviatura de suspendatur, "que o enforquem".

2 "Alguma coisa vem do nada." Esta é uma paródia ou adaptação do familiar ex nihilo nihilfit, isto é, "nada vem do nada" (embora esta não seja a forma exata) de Lucrécio e Pércio.

 

Imagine um ferrolho enferrujado na porta do jardim, que foi co­locado de maneira errada, ou a porta se vergou em suas dobradiças depois que foi colocada, e durante anos esse ferrolho nunca fechou de maneira eficiente: a não ser que se batesse nele ou levantasse a porta um pouco, para fazê-lo se encaixar com esforço. Imagine então que o velho ferrolho é desparafusado, lixado com esmeril, banhado em pa­rafina, polido com areia fina, generosamente azeitado, e recolocado por um trabalhador habilidoso com tanta maestria que ele fecha e desfecha com a pressão de um dedo — com a pressão de uma pena —, quase como se você pudesse soprá-lo para abrir ou fechar. Você pode imaginar os sentimentos desse ferrolho? São os mesmos sentimentos de glória das pessoas convalescentes, depois de uma febre. Ele espe­raria ansiosamente que o fechassem, desejando ardentemente sentir o arroubo de seu movimento delicado e bem-sucedido.

Pois a felicidade é tão-só um subproduto, como a luz é um subproduto da corrente elétrica atravessando os fios. Se a corrente não puder fluir de maneira eficiente, a luz não chega. É por isso que ninguém encontra a felicidade, se a procura por si mesma. Mas o homem deve procurar ser como o ferrolho que funciona; como a corrida desimpedida da eletricidade; como o convalescente cujos olhos, há muito frustrados em suas órbitas pela dor de cabeça e pela febre, de tal modo era intensa a dor de movê-los, agora cintilam de um lado para o outro, com a desenvoltura de peixes limpos em água clara. Os olhos estão funcionando, a corrente está funcionando, o ferrolho está funcionando. Assim a luz resplandece. Isto é felicida­de: funcionar bem.

— Espere — disse Merlin. — Afinal, não temos que pegar ne­nhum trem.

— Nenhum trem?

— Perdão. É uma citação que um amigo meu costumava em­pregar em relação ao progresso humano. De qualquer maneira, como você parece estar se sentindo melhor, vamos partir para a ca­verna agora?

— Imediatamente.

Sem mais delongas, levantaram a aba da porta da tenda e par­tiram, deixando o galgo adormecido vigiando o solitário falcão en­capuzado. Escutando a aba da porta ser levantada, o pássaro cego deu um grito rouco por atenção.

Foi uma caminhada revigorante para os dois. O vento impe­tuoso e a velocidade dos seus passos puxavam suas barbas para a es­querda ou para a direita sobre os ombros; assim, eles não o encara­vam exatamente de frente, o que dava uma sensação de apertão na raiz dos cabelos, como se estivessem enroscados para fazer perma­nente. Percorreram velozmente a campina de Salisbury, o monu­mento provocador de pensamentos de Stonehenge, onde Merlin, ao passar, gritou uma saudação aos velhos deuses que Arthur não era capaz de ver: a Crom, Bell e outros. Giraram em Wiltshire, transpuseram Dorset e se apressaram passando por Devon, tão rá­pidos como uma lâmina cortando o queijo. As campinas, colinas, florestas, charnecas e outeiros ficavam para trás. Os rios cintilantes ficavam para trás como os raios da roda que gira. Na Cornualha, pararam ao lado de um outeiro antigo, parecido com um gigantes­co monte de toupeira, com um buraco escuro à sua frente.

— Vamos entrar.

— Já estive nesse lugar antes — disse o Rei, paralisado como em uma espécie de catalepsia.

— Sim.

— Quando?

— Diga você mesmo.

Ele tateou às apalpadelas, procurou em sua mente, sentindo que a revelação estava em seu coração. Mas...

— Não — ele disse —, não consigo lembrar.

— Entre e veja.

Eles desceram pelo labirinto dos corredores, passando pelas curvas que levavam aos quartos de dormir, ao sítio dos refugos, aos depósitos e ao lugar aonde você vai quando quer lavar as mãos. Por fim, o Rei parou, com seus dedos no fecho de uma porta no final de um corredor, e anunciou:

— Eu sei onde estou. Merlin observou.

— E a toca do texugo.

— Sim.

— Merlin, seu canalha! Passei metade de minha vida lamen­tando por você porque achei que estivesse fechado como um sapo num buraco, mas todo esse tempo você estava sentado na Sala do Acordo, debatendo com o texugo!

— Abra a porta e veja.

Ele abriu. Era a sala bem lembrada. Ali estavam os quadros dos texugos falecidos, famosos por sua erudição ou religiosidade; ali estavam as luzes de pirilampos e os leques de mogno e o tabuleiro em declive para circular os decantadores. Ali estavam as togas pre­tas antiquadas e as cadeiras de couro gravado. Mas, melhor do que tudo, ali estavam seus amigos de juventude — o absurdo comitê.

Todos se levantaram timidamente para saudá-lo. Sentiam-se confusos em seus sentimentos humildes porque, por um lado, esta­vam também esperando ansiosamente pela surpresa e, por outro, nunca tinham se encontrado com verdadeiros reis antes — portan­to receavam que ele pudesse estar diferente. No entanto, estavam determinados a fazer as coisas com elegância. Tinham combinado que a coisa apropriada seria levantaram-se e talvez se curvarem e sorrirem um pouco. Houve consultas solenes entre eles sobre se deviam se dirigir ao Rei como "Sua Majestade" ou como "Senhor", sobre se deveriam beijar-lhe a mão, sobre se ele estaria muito mu­dado e até, pobres almas, se ele ainda se lembraria deles!

Estavam todos em um círculo em frente à lareira: o texugo pondo-se com esforço e timidamente em pé enquanto uma avalan­che perfeita de manuscritos caía de seu colo até o guarda-fogo da lareira; T. natrix se desenrolando e deixando entrever sua língua negra, com a qual se mostrava disposto a beijar a mão real, se ne­cessário; Archimedes bamboleando-se para cima e para baixo de prazer e expectativa, meio que abrindo suas asas e fazendo-as esvoaçar, como um pequeno pássaro, pedindo para ser alimentado; Balin parecendo pela primeira vez vencido na vida, porque tinha medo de ter sido esquecido; Cavall, tão agoniado pelo fulgor de seus senti­mentos que teve de se retirar para um canto, com náuseas; a cabra, que fizera a saudação do imperador em um lance de antevisão mui­to antes; o ouriço, de pé, leal e ereto, no fundo da roda, onde fora obrigado a se sentar distante dos outros por causa de suas pulgas, mas cheio de patriotismo e ansiedade para, se possível, ser notado. Mesmo o enorme lúcio empalhado, que era uma novidade sobre o consolo da lareira abaixo do Fundador, parecia observá-lo com olhar suplicante.

— Oh, meu povo! — exclamou o Rei.

Então todos se ruborizaram bastante, e arrastaram os pés, e disseram que ele por favor desculpasse a humildade da casa, ou Seja

Bem-vinda Sua Majestade, ou Nós pensamos em colocar uma ban­deira mas ela se perdeu, ou Seus pés reais estão confortáveis?, ou Aí vem o escudeiro, ou Oh, é tão maravilhoso revê-lo depois de tantos anos! O ouriço saudou, tenso: Governe a Britânia!

No momento seguinte, um Arthur rejuvenescido estava aper­tando as mãos de todos eles, beijando-os e dando batidas em suas costas, até que as lágrimas encheram os olhos de cada um.

— Nós não sabíamos... — fungou o texugo.

— Nós receamos que tivesse nos esquecido...

— Devemos tratá-lo de Sua Majestade ou de Senhor?

Com sensibilidade, ele respondeu às perguntas por seu mere­cimento.

— É Sua Majestade para um imperador, mas para um rei co­mum é Senhor.

Assim, a partir desse momento pensaram nele como Wart, sem tratar mais do assunto.

Quando a excitação passou um pouco, Merlin fechou a porta e começou a controlar a situação.

— Muito bem — disse. — Temos muitas tarefas a cumprir e muito pouco tempo para isso. Aqui está você, Rei: eis a sua cadeira à cabeceira do círculo, porque é nosso líder, é quem faz o trabalho pesado e sofre as dores. E você, ouriço, é sua vez de ser Ganymede, portanto, por favor, busque logo o vinho Madeira e rápido. Sirva um bom copo para todos, e então começaremos a reunião.

O ouriço serviu primeiro a Arthur, e o fez com reverência, com o joelho dobrado, segurando o copo com o dedo. Depois, enquan­to ele passava por todo o círculo, o antigo Wart teve tempo para olhar em volta.

A Sala do Acordo mudara desde sua última visita, uma mudan­ça que aludia fortemente à personalidade de seu tutor. Pois ali, em todas as cadeiras sobressalentes e no chão e nas mesas, abertas em passagens significativas, havia milhares de livros de todos os tipos, cada um deles esquecido desde que fora deixado aberto para refe­rência futura, e todos cobertos com uma fina camada de poeira. Ali estava Thierry e Pinnow e Gibbone e Sigismondi e Duruy e Prescott e Parkman e Juserand e Dalton e Tácito e Smith e Trevelyan e Heródoto e Dean Millman e MacAllister e Geoffrey de Monmouth e Wells e Clausewitz e Giraldus Cambrensis — inclusive os volu­mes perdidos sobre a Inglaterra e a Escócia — e Guerra e paz de Tolstói e a Comic History of England e a Saxon Chronide e o Four Masters. Ali estavam o Vertebrate Zoology de Beer, o Essays on the Evolution de Elliott-Smith, o Senses oflnsects de Eltringham, Vulgar Enrors de Browne, Aldrovandus, Matthew Paris, um Bestiário por fisiologistas, Frazer em edição completa, e até Zeus por A. B. Cook. Havia enciclopédias, diagramas do corpo humano e outros corpos, livros de referência como Witherby, sobre todo tipo de pássaros e animais, dicionários, tábuas de logaritmos, e toda a série do D.N.B. Na parede, uma compilação feita com a escrita à mão de Merlin, que mostrava, em colunas paralelas, uma conformidade das histórias das raças humanas nos últimos dez mil anos. Os Assírios, Sumários, Mongóis, Astecas etc, cada um em tinta diferente, e o ano a.C. ou d.C. estava escrito em uma linha vertical à esquerda das colunas, de maneira que parecia um gráfico. Depois, em outra parede, que era até mais interessante, havia um verdadeiro gráfico que mostrava a ascensão e queda de várias raças de animais nos últimos milhares de milhões de anos. Quando uma raça se tornava extinta, sua linha se encontrava com a assíntota horizontal e desaparecia. Uma das últi­mas a fazer isso era a do alce irlandês. Um mapa, feito por diversão, mostrava a posição dos ninhos das aves locais na primavera anterior. Em um canto da sala, distante da lareira, havia uma mesa de traba­lho com um microscópio sob cujas lentes estava uma peça delicada para microdissecação, o sistema nervoso de uma formiga. Na mes­ma mesa, viam-se caveiras de homens, macacos, peixes e gansos sel­vagens, também dissecados, com o objetivo de mostrar a relação entre o neocórtex e o corpo estriado. Em outro canto havia um tipo de laboratório, onde, em confusão indescritível, se encontravam retortas, tubos de testes, centrífugas, culturas de germes, biqueiras e garrafas rotuladas Pituitária, Adrenalina, Cera de Móvel, Mistu­ra de Ventricatchellum, ou Gin De Kuyper's. Este último tinha uma inscrição feita a lápis no rótulo que dizia: O nível desta garrafa está MARCADO. Por fim, havia depósitos contendo espécimes vivos de louva-deus, gafanhotos e outros insetos, e os resíduos no chão continham ruínas das loucuras passageiras do mágico. Continham malhos de croqué, agulhas de tricô, sobras de pastéis, ferramentas para cortar linóleo, pipas, bumerangues, colas, caixas de charutos, instrumentos de sopro feitos em casa, livros de receitas culinárias, um berrante, um telescópio, uma lata de graxa de sapateiro e um baú com tampa com a marca Fortnum and Mason's no fundo.

Na sua juventude, Arthur foi apresentado pelo mago Merlin às ideologias políticas encontradas no reino animal, transformando-se temporariamente em vários bichos.

O velho Rei soltou um suspiro de contentamento e se esque­ceu do mundo real.

— Agora, texugo — disse Merlin, que estava eriçado de impor­tância e autoridade —, dê-me a minuta da última reunião.

— Não fizemos nenhuma. Faltou tinta.

— Não importa. Dê-me as notas sobre a Grande Insolência Vitoriana.

— Usamos para acender a lareira.

— Com a breca! Então passe as Profecias.

— Aqui estão — disse o texugo, com orgulho, e se abaixou para juntar a avalanche de papéis que caíra sobre o guarda-fogo da larei­ra quando ele se levantou. — Já estavam prontas — ele explicou — a propósito.

Elas estavam pegando fogo, no entanto, e, quando ele soprou para salvá-las das chamas e as entregou ao mago, descobriu-se que todas as páginas tinham se queimado pela metade.

— Realmente, isto é um vexame! O que você fez com as Teses sobre o Homem e a Dissertação Referente à Força?

— Estavam nas minhas mãos um momento atrás.

E o pobre texugo, que supostamente era o secretário do comi­tê, mas não muito bom, começou a esquadrinhar miopemente ao redor, entre os bumerangues, com um ar muito envergonhado e preocupado.

Archimedes disse:

— Talvez seja mais fácil continuar sem os papéis, Mestre, só fa­lando.

Merlin lançou-lhe um olhar frio.

— Só temos que explicar — sugeriu T. natrix. Merlin também lhe lançou outro olhar frio.

— E o que vamos ter que fazer no final — disse Balin —, de qualquer forma.

Merlin desistiu dos olhares frios e ficou mal-humorado.

Cavall, que se aproximara sem ser visto, colocou-se sorrateira­mente no colo do Rei com um olhar suplicante, e não foi impedido. A cabra olhou fixo para o fogo, com seus olhos de gema. O texugo sentou-se outra vez com expressão culpada, e o ouriço, sentado em­pertigado em seu canto afastado dos outros, com as mãos cruzadas no colo, deu um incentivo inesperado.

— Conta pr'ele — disse.

Todos o olharam surpresos, mas ele não ia desistir. Sabia por que as pessoas se afastavam quando ele chegava perto delas, mas um bravo tem direitos, afinal.

— Conta pr'ele — repetiu. O Rei disse:

— Eu apreciaria muito se vocês realmente me contassem. No momento, não entendo nada, exceto que fui trazido aqui para preencher algumas lacunas dessa extraordinária educação. Vocês poderiam me explicar do começo?

— O problema — disse Archimedes — é que é difícil decidir qual é o começo.

— Falem sobre o comitê, então. Por que vocês formaram um comitê e o que aconteceu?

— Pode-se dizer que somos o Comitê sobre a Força no Ho­mem. Temos tentado entender o seu enigma.

— É uma Comissão Real — explicou o texugo, orgulhoso. — Pensou-se que uma mistura de animais seria capaz de aconselhar diferentes departamentos...

Aqui, Merlin não pôde mais se conter. Mesmo mal-humorado, era impossível se segurar quando se tratava de falar.

— Permitam-me — ele disse. — Eu sei exatamente onde come­çar, e agora o farei. Todos devem escutar.

— Meu querido Wart — continuou, depois que o ouriço disse "Escutem-escutem" e, como uma reflexão posterior, "Ordem-ordem" — para começar, devo lhe pedir que dirija seus pensamen­tos para o momento em que comecei suas lições como seu tutor. Recorda-se?

— Foi com animais.

— Exatamente. E lhe ocorreu por acaso que isso não foi por diversão?

— Bem, era divertido...

— Mas por que, é o que estamos lhe perguntando, com ani­mais?

— Suponho que você deveria me dizer.

O mago cruzou os joelhos, dobrou os braços e franziu a testa com importância.

— No mundo, existem duzentas e cinqüenta mil espécies dife­rentes de animais — ele disse —, sem contar os vegetais vivos, e des­ses não menos que dois mil e oitocentos e cinqüenta são mamíferos como o homem. Todos eles têm uma ou outra forma de política — foi o único erro que meu velho amigo Aristóteles cometeu quando definiu o homem como o Animal Político — e, no entanto o próprio homem, essa pobre ficção entre duzentas e quarenta e nove mil e novecentas e noventa e nove outras, fica dizendo bobagens sobre sua trágica trilha política, sem nunca levantar os olhos para um quarto de milhões de exemplos que o rodeiam. O que faz tudo ainda mais ex­traordinário é que o homem é um recém-chegado entre os outros, e quase todos já resolveram seus problemas de uma maneira ou de outra, muitos milhares de anos antes de o homem ser criado.

Houve um murmúrio de admiração vindo do comitê, e a ser­pente acrescentou gentilmente:

— Foi por isso que ele tentou lhe dar uma idéia da natureza, Rei, porque se esperava que o senhor, quando estivesse enfrentando o enigma, olharia ao seu redor.

— A política de todos os animais — disse o texugo — trata do controle da Força.

— Mas eu não vejo... — ele começou, só para ser interrompido.

— Certamente você não vê — disse Merlin. — Você ia dizer que os animais não têm política. Aceite meu conselho e pense duas vezes.

— Eles têm?

— É claro que têm, e algumas são muito eficientes. Algumas são comunistas ou fascistas, como muitas das formigas; outras são anarquistas, como a do ganso. Algumas são socialistas, como a das abelhas, e, na verdade, entre as três mil famílias das próprias formi­gas, existem outras formas de ideologia além do fascismo. Nem to­das são feitoras-de-escravos ou guerreiras. Existem as financistas, como a dos esquilos, ou a dos ursos que hibernam em sua gordura. Qualquer ninho ou toca ou zona de alimentação é uma forma de propriedade individual, e como você acha que os corvos, coelhos, peixinhos de água doce e todas as outras criaturas gregárias dão um jeito de viver juntas se não encararem as questões da Democracia e do Poder?

Evidentemente, era um tópico já bem discutido, pois o texugo interrompeu antes que o Rei pudesse retrucar.

— Você nunca nos deu nem nos dará — ele disse — um exem­plo de capitalismo no mundo natural.

Merlin parecia infeliz.

— E já que você não pode nos dar um exemplo — acrescentou —, isso apenas demonstra que o capitalismo é antinatural.

O texugo, talvez deva ser mencionado, estava inclinado a ser russo em seu ponto de vista. Ele e outros animais tinham discutido tanto com o mago nos últimos séculos que todos tinham acabado adotando termos sumamente mágicos para se manifestar, falando de bolcheviques e nazistas com tanta desenvoltura como se eles fossem pouco mais dos que os Lollardos e os Surradores da histó­ria contemporânea.

Merlin, que era um sólido conservador — o que o fazia na ver­dade um progressista quando se considera que ele vivia de trás para a frente —, defendeu-se debilmente.

— O parasitismo é um comportamento antigo e respeitável da natureza, desde o cuco à pulga.

— Não estamos falando de parasitismo. Estamos falando de capitalismo, que já foi definido com exatidão. Você pode me dar um único exemplo, além dos homens, de uma espécie cujos indivíduos exploram o valor do trabalho de indivíduos da mesma espécie? Nem as pulgas exploram as pulgas.

Merlin disse:

— Existem alguns macacos que, quando em cativeiro, têm que ser atentamente observados pelos seus guardadores. Caso contrário, os indivíduos dominantes privarão seus companheiros de comida, até mesmo obrigando-os a regurgitá-la, e os companheiros morre­rão de fome.

— Parece um exemplo duvidoso.

Merlin dobrou as mãos e pareceu mais infeliz que nunca. Final­mente ele espremeu sua coragem ao máximo, deu um suspiro pro­fundo e encarou a verdade.

— É um exemplo duvidoso — concordo. — Acho impossível mencionar um exemplo de verdadeiro capitalismo na natureza.

Tão logo ele disse isso, suas mãos se desdobraram como um raio, e o punho de uma bateu como um relâmpago na palma da outra.

— Achei! — ele gritou. — Eu sabia que estava certo sobre o capitalismo. Nós estamos procurando do jeito errado.

— Em geral é o que acontece.

— A especialização principal de uma espécie é quase sempre antinatural para as outras espécies. Só porque não tem exemplos de capital na natureza, isso não significa que o capital é antinatu­ral para o homem, no sentido de ser errado. Vocês poderiam tam­bém dizer que é errado para uma girafa comer os topos das árvo­res, porque não existem outros antílopes com pescoços tão compridos quanto o dela, ou que é errado para os primeiros anfí­bios rastejarem para fora da água, porque não havia outros exem­plos de anfíbios na época. O capitalismo é uma especialidade do homem, assim como o seu cérebro. Não existem outros exemplos na natureza de uma criatura cora o cérebro como o do homem. Isso não significa que é antinatural para o homem ter um cérebro. Ao contrário, significa que ele tem que seguir adiante com ele. E da mesma maneira com o capitalismo. Ele é, como o cérebro, uma especialidade, uma jóia da coroa! Agora que penso nisso, o capitalismo pode ser na verdade uma conseqüência da posse de um cérebro desenvolvido. Senão, como o nosso único outro exemplo de capitalismo — aquele dos macacos que mencionei — ocorre entre os antropóides cujos cérebros são aparentados com os dos humanos? Sim, sim, eu sabia que o tempo todo estava cer­to em meu postulado. Eu sabia que havia uma razão sensata para os russos de minha juventude mudarem suas idéias. O fato de ser único não significa que é errado: ao contrário, significa que está certo. Certo para o homem, claro, não para os outros animais. Significa que...

— Você percebe — perguntou Archimedes — que sua audiên­cia não entendeu uma única palavra do que você está dizendo há vá­rios minutos?

Merlin parou abruptamente e olhou para seu aluno, que esta­va seguindo a conversa com os olhos mais do que qualquer outra coisa, olhando de um rosto para o outro.

— Desculpe.

O Rei falou distraído, quase como se estivesse falando consigo mesmo.

— Eu tenho sido estúpido? — ele perguntou devagar. — Estú­pido por não ter reparado nos animais?

— Estúpido! — gritou o mago, outra vez triunfante, pois ele estava intensamente deliciado com sua descoberta sobre o capital. — Pelo menos tem uma migalha de verdade num par de lábios hu­manos! Nunc dimittis 3

 

3 Literalmente, "agora você manda embora" ou "agora pode deixar que parta", do Cântico de Simeão (Lucas 2, 29). Era usado em um sentido geral, significando "Já vi tudo, agora posso morrer feliz".

 

E imediatamente pulou sobre seu cavalo de pau para galopar em todas as direções.

— O atrevimento da raça humana é algo para derrubar você no chão — ele exclamou. — Comece com o impensável universo; afu­nile para o minúsculo Sol dentro dele; passe para o satélite do Sol que temos o prazer de chamar de Terra; dê uma olhada nas miríades de algas, ou seja lá como for que essas coisas são chamadas, do mar, e nos incontáveis micróbios, indo ao revés para a infinidade ne­gativa que nos habita. Dê uma passada de olhos naquele quarto de milhão de outras espécies que mencionei, e na expansão incomensurável dos tempos através dos quais elas viveram. Então olhe para o homem, um novo-rico cujos olhos, falando do ponto de vista da natureza, abrem pouco mais do que os de um filhote. Aí está ele, uma... uma figura grotesca. — Ele estava ficando tão excitado que não tinha tempo de pensar nos epítetos adequados. — Aí está ele, apelidando a si mesmo de Homo sapiens, francamente, proclamando-se a si mesmo o senhor da criação, como aquele jumento do Napo­leão que se coroou a si mesmo! Aí está ele, condescendente com os outros animais: condescendente até mesmo, que Deus proteja mi­nha alma e meu corpo, com seus ancestrais! E a Grande Insolência Vitoriana, a espantosa, inefável presunção do século dezenove. Veja esses romances históricos de Scott, nos quais os humanos sendo eles mesmos, porque vivem um par de séculos atrás, são colocados falan­do como se imitassem comida requentada! O homem, o orgulhoso homem, aqui está no século vinte, complacentemente acreditando que a raça "progrediu" no curso de miseráveis mil anos, e se ocu­pando em explodir seus irmãos em pedaços. Quando aprenderão que leva um milhão de anos para um pássaro modificar uma única de suas penas primárias? Aí está ele, o destruidor estúpido, fingindo que tudo ficou diferente porque ele fez um motor de combustão interna. Aí está ele, desde Darwin, porque ouviu falar que existe uma coisa chamada evolução. Desconsiderando completamente que a evolução acontece em ciclos de milhões de anos, ele acha que evoluiu desde a Idade Média. Talvez o motor de combustão tenha evoluído, mas não ele. Veja-o esnobando seus próprios progenitores, sem falar nos outros tipos de mamíferos, naquele insuportável Ianque de Connecticut na Corte do Rei Arthur. A pura, insuportável insolência disso! E fazendo Deus à sua própria imagem! Acredite, as assim chamadas raças primitivas que adoravam os animais como deuses não eram tão malucas como as pessoas escolheram fingir que são. Pelo menos eram humildes. Por que Deus não poderia ter vindo à terra como uma minhoca? Existem muitíssimo mais mi­nhocas do que homens, e elas fazem muitas coisas muito melhor. E de que estamos tratando, afinal? Onde está essa superioridade maravilhosa que faz o século vinte superior à Idade Média, e a Ida­de Média superior às raças primitivas e aos animais do campo? O homem c assim tão particularmente bom em dominar sua Força e sua Ferocidade e sua Propriedade? O que ele faz? Ele massacra os membros de sua própria espécie como um canibal! Você sabe que foi calculado que, entre 1100 e 1900, os ingleses estiveram em guerra por quatrocentos e dezenove anos e os franceses por tre­zentos e setenta e três? Você sabe que Lapouge concluiu que de­zenove milhões de homens são mortos na Europa a cada século, de maneira que a quantidade de sangue derramado daria para alimen­tar uma fonte de sangue com setecentos litros por hora desde o co­meço da história? E deixe-me lhe dizer uma coisa, caro senhor. A guerra, na própria Natureza sem contar o homem, é tão rara que nem se pode dizer que existe. Em todas aquelas duzentas e cinqüen­ta mil espécies, só existe cerca de uma dúzia que guerreia. Se a Na­tureza alguma vez se desse ao trabalho de olhar para o homem, a pe­quena atrocidade, ela ficaria completamente fora de si.

"E finalmente — concluiu o mago, já a meio galope —, deixan­do a sua moral de lado, será que essa criatura odiosa é importante ao menos em um sentido físico? Será que a Natureza neutra seria obrigada a notá-lo, mais do que ao gafanhoto ou ao inseto do coral, por causa das mudanças que ele realizou na superfície da Terra?

 

O Rei respondeu educadamente, atordoado com tal quanti­dade de declamação.

— Certamente que sim. Certamente não somos importantes pelo que fizemos?

— Como? — demandou furiosamente o tutor.

— Bom, é preciso reconhecer. Veja os edifícios que construí­mos sobre a terra, as cidades, e os campos aráveis...

— A Grande Barreira de Corais — observou Archimedes, olhando para o teto — é uma construção de mil e seiscentos quilô­metros de comprimento, e foi inteiramente construída por insetos.

— Mas é apenas um recife...

Merlin jogou o chapéu no chão, do seu jeito habitual.

— Será que você nunca vai aprender a pensar impessoalmen­te? — perguntou. — O inseto do coral teria o mesmo direito de lhe responder que Londres é apenas uma cidade... Mesmo assim, se todas as cidades do mundo fossem emen­dadas umas com as outras...

Archimedes disse:

— Se você começar a somar todas as cidades do mundo, eu co­meço a emendar todos os atóis e ilhas de coral. Depois pesamos tudo cuidadosamente e comparamos uns com outros, e veremos o que tivermos que ver.

— Talvez os insetos do coral sejam mais importantes que os homens então, mas esta é apenas uma espécie...

A cabra assinalou astutamente:

— Em algum lugar por aí o comitê tem uma nota sobre o castor, acho, na qual se informa que ele construiu mares e continentes inteiros...

— Os pássaros — começou Balin com estudada indiferença —, ao carregar as sementes das árvores no seu cocô, reconhecidamente construíram florestas enormes...

— Os coelhos — interrompeu o texugo — povoaram a Austrylia da noite pro dia...

— E os foraminíferos, cujos corpos são de fato os componen­tes dos rochedos brancos de Dover...

— Os gafanhotos... Merlin levantou a mão.

— Conte-lhe sobre a humilde minhoca — disse com majestade. Então os animais recitaram em uníssono:

— O naturalista Darwin assinalou que em cada acre de campo existem cerca de vinte e cinco mil minhocas, e que só na Inglaterra estas revolvem trezentos e vinte milhões de toneladas de solo por ano, e que são encontradas em quase todas as regiões do mundo. Em trinta anos elas alterarão toda a camada da superfície da terra. "A terra sem as minhocas", disse o imortal Gilbert White, "logo fi­caria fria, dura como uma rocha, sem fermentação e, por conseguin­te, estéril."

 

— A mim, me parece — disse o Rei, feliz, pois esses grandes assuntos pareciam levá-lo para longe de Mordred e Lancelot, para longe do lugar onde, como colocam no Rei Lear, a humanidade necessariamente cai sobre si mesma como os monstros das profundidades, até o mundo pacífico onde as pessoas pensam, conversam e amam umas às outras sem sofrer por isso. — A mim, me parece, se o que vocês dizem é verdadeiro, que faria bem aos meus companheiros humanos se rebaixarem um pouco. Se eles pu­dessem aprender a ver a si mesmos como uma das espécies de ma­mífero, poderiam achar essa novidade estimulante. Digam-me a que conclusões o comitê chegou, pois tenho certeza de que anda­ram discutindo o assunto sobre o animal humano.

— Tivemos muita dificuldade com o nome.

— Que nome?

— Homo sapiens — explicou a cobra. — Ficou evidente que sapiens era um adjetivo inadequado, mas a dificuldade foi achar outro.

Archimedes disse:

— Você se lembra de uma vez quando Merlin explicou a razão do tentilhão ser chamado coeleb*? Um bom adjetivo para uma espécie tem que ser adequado a alguma de suas peculiaridades como aquela.

 

* Do latim = celibatário, solteiro. Ver volume I, A espada na pedra. (N. T.)

 

— A primeira sugestão — disse Merlin — foi naturalmente ferox, já que o homem é o mais feroz dos animais.

— E curioso você mencionar ferox. Pensava nessa palavra uma hora atrás. Mas você está exagerando, é claro, quando diz que o homem é mais feroz que um tigre.

— Estou?

— Sempre achei que os homens fossem, em geral, decentes...

Merlin tirou os óculos, suspirou fundo, poliu suas lentes, colo­cou-os novamente e examinou seu discípulo com curiosidade, como se a qualquer momento começassem a crescer nele umas orelhas pontudas, macias e peludas.

— Tente se lembrar da última vez que você saiu para dar uma volta — sugeriu ele, suavemente.

— Uma volta?

— Sim, um passeio pelas trilhas rurais inglesas. Lá vai o Homo sapiens, despreocupado, na fresca da tarde. Imagine a cena. Lá está um melro cantando nos ramos. Será que fica em silêncio e voa para longe com uma maldição? Nem pensar. Canta ainda mais alto e se empoleira no ombro dele. E por ali vai um coelho mascando a rel­va fresca. Será que dispara aterrorizado para dentro da sua toca? De jeito nenhum. Vai dando pulinhos na direção dele. Por lá passeiam o arganaz, a cobra-coral, a raposa, o ouriço e o texugo. Será que se escondem, ou aceitam a presença dele?

— Ora — gritou de repente o velhote, inflamado com uma in­dignação antiga e peculiar —, não há um humilde animal na Ingla­terra que não fuja da sombra do homem, como uma alma queimada foge do purgatório. Nem um mamífero, nem um peixe, nem um pássaro. Estenda a caminhada até a margem de um rio e veja como os peixes disparam para longe. É preciso muita coisa, pode acredi­tar, para ser temido por todos os elementos que existem.

— E não pense — acrescentou rapidamente, pousando a mão no joelho de Arthur — nem imagine que eles fogem da presença uns dos outros. Se uma raposa passasse na trilha talvez o coelho dispa­rasse, mas o pássaro na árvore e o resto dos animais aceitariam sua presença. Se um gavião voasse por ali, talvez o melro se escondesse, mas a raposa e os demais permitiriam sua chegada. Só o homem, só o principal sócio da Sociedade da Invenção da Crueldade para com os Animais, apenas ele, é temido por todas as coisas vivas.

— Mas esses animais não são exatamente o que você chamaria de selvagens. Um tigre, por exemplo...

Merlin levantou de novo a mão, interrompendo-o.

— Vamos caminhar na profundeza das selvas — disse ele —, se você quiser. Não há um tigre, nenhuma cobra, nenhum elefante da selva africana que não fuja do homem. Alguns tigres enlouquecidos com dor de dente podem atacá-lo, e a cobra, se acuada, lutará em autodefesa. Mas se um homem sadio encontra um tigre sadio numa trilha da selva, é o tigre que dará a volta. Os únicos animais que não fogem do homem são os que nunca o viram, as focas, os pingüins, os dodôs ou baleias dos mares árticos, e esses, como conseqüência, são imediatamente levados à beira da extinção. Até as poucas cria­turas que fazem do homem sua presa, o mosquito ou a mosca para­sita, mesmo esses ficam apavorados com seu hospedeiro, e tomam muito cuidado para ficar longe do alcance de seus dedos.

— Homo ferox — continuou Merlin, sacudindo a cabeça —, essa raridade da natureza, um animal que mata por prazer! Não há uma única besta nesta sala que não rejeite matar, salvo para se alimentar. *J homem finge indignação diante do picanço, que mantém uma pequena despensa de caramujos etc, enfiados em espinhos. No entanto, a sua bem estocada despensa está rodeada de criaturas encan­tadoras como os bois que mugem, e as ovelhas de rosto sensível e inteligente, que são mantidos apenas para serem abatidos nas portas da maturidade e devorados por seus pastores carnívoros, cujos den­tes nem são projetados para serem de carnívoros. Você deveria ler a Carta de Lamb para Southey, sobre assar toupeiras vivas, e as brin­cadeiras com besouros e gatos dentro de bexigas, e as de retalhar ar­raias e xarrocos, esses "mansos infligidores de dores intoleráveis". Homo ferox, o Inventor da Crueldade Contra os Animais, que cria faisões a custo enorme tão-somente para matá-los, que se dá ao tra­balho de treinar outros animais para matar, que queima ratos vivos para que seus guinchos intimidem os outros, como vi em Eriu; que forçadamente degenera o fígado dos gansos domésticos para produ­zir uma comida deliciosa para si; que serra os chifres nascentes dos gados por conta da conveniência de transportá-los; que cega pintas­silgos com uma agulha para fazê-los cantar; que ferve lagostas e ca­marões vivos, apesar de escutar os pios desesperados; que ataca os de sua própria espécie na guerra e mata dezenove milhões a cada cem anos; que assassina publicamente seus semelhantes quando os julga criminosos; e que inventou uma maneira de torturar suas próprias crianças com vara, ou as exporta para campos de concen­tração chamados Escolas, onde a tortura pode ser aplicada por procuração... Sim, você está certo ao perguntar se o homem pode ser adequadamente descrito como ferox, pois certamente a palavra, em seu sentido natural de vida selvagem entre animais decentes, jamais deveria ser aplicada a tal criatura.

— Deus do céu — disse o Rei. — Você gosta de exagerar. Mas o velho mágico não estava para se acalmar.

— A razão — disse — pela qual tivemos dúvidas sobre usar ferox foi porque Archimedes sugeriu que stultus* era mais adequado.

 

* Do latim = estúpido. (N. T.)

 

— Stultus? Pensei que fôssemos inteligentes.

— Em uma das miseráveis guerras quando eu era um jovem — disse o mágico, respirando fundo —, achou-se necessário fazer que o povo da Inglaterra recebesse um conjunto de cartões impressos que lhe permitisse comprar comida. Esses cartões tinham que ser preenchidos à mão, antes de a comida ser comprada. Cada indiví­duo tinha que escrever um número numa parte do cartão, seu nome em outra parte e o nome do vendedor de comida numa terceira par­te. Tinha que cumprir essas três façanhas intelectuais — um núme­ro e dois nomes — ou então não podia receber comida e morreria de fome. Sua vida dependia da operação. No fim se descobriu que dois terços da população era incapaz de cumprir a seqüência sem erros. E essas pessoas — nos diz a Igreja Católica — são dotadas de alma imortal!

— Tem certeza sobre esses fatos? — perguntou o texugo, em dúvida.

O velho fez a gentileza de enrubescer.

— Não anotei — disse —, mas, se não nos detalhes, em essên­cia são verdadeiros. Lembro claramente, por exemplo, que uma mulher foi descoberta na fila para comprar alpiste, nessa mesma guerra, e que, interrogada, revelou não possuir nenhum passarinho.

Arthur objetou.

— Isso não prova muito, mesmo se fossem incapazes de escre­ver essas três coisas corretamente. Se fossem qualquer outro animal, seriam completamente incapazes de escrever.

— A resposta direta para isso — respondeu o filósofo — é que nenhum ser humano pode furar uma bolota com o nariz.

— Não compreendo.

— Bem, o inseto chamado Balaninus elephas é capaz de furar bolotas da maneira que mencionei, mas não pode escrever. O ho­mem pode escrever, mas não pode furar bolotas. Essas são suas es­pecializações. A diferença importante, entretanto, é que enquanto o Balaninus fura seus buracos com a maior eficiência, o homem, como já mostrei, não escreve com eficiência nenhuma. É por isso que eu digo que, espécie por espécie, o homem é mais ineficiente, mais stultus, que seus colegas animais. Realmente, nenhum obser­vador sensível poderia esperar o contrário. O homem está há tão pouco tempo no globo que não se pode esperar que tenha muita maestria.

O Rei descobriu que estava começando a ficar deprimido.

— Vocês pensaram em muitos outros nomes?

— Houve uma terceira sugestão, feita pelo texugo.

Com isso o feliz texugo arrastou satisfeito os pés, olhou de esguelha a companhia pelo canto dos óculos e examinou as unhas compridas.

— Impoliticus — disse Merlin. — Homo impoliticus. Você se lem­bra que Aristóteles nos definiu como animais políticos. O texugo sugeriu que examinássemos isso e, depois que examinamos sua po­lítica, impoliticus nos pareceu ser a única palavra usável.

— Prossiga, por favor.

— Descobrimos que as idéias políticas do Homo ferox eram de dois tipos: ou os problemas podiam ser resolvidos pela força, ou podiam ser resolvidos pela argumentação. Os homens-formigas do futuro, que acreditam na força, acham que podem determinar se duas vezes dois é quatro derrubando as pessoas que não concor­dam. Os democratas, que deverão acreditar na argumentação, acham que todos os homens têm direito a ter uma opinião, porque todos nascem iguais: "Sou um homem tão bom quanto você" é a primeira exclamação instintiva do homem que não o é.

— Se não se pode confiar nem na força nem no argumento — disse o Rei —, não vejo o que possa ser feito.

— Nem força, nem argumento, nem opinião — disse Merlin com a maior sinceridade — são pensamentos. Um argumento é apenas uma exibição de força mental, uma espécie de esgrima com pontos para obter uma vitória, não a verdade. As opiniões são os becos sem saída dos homens preguiçosos ou estúpidos, que são incapazes de pensar. Se um verdadeiro político alguma vez refletir realmente so­bre nosso tema sem paixão, até o Homo stultus será compelido a acei­tar suas descobertas no final. A opinião jamais pode se comparar à verdade. Na atualidade, entretanto, o Homo impoliticus se contenta ou em argumentar com opiniões ou em lutar com os punhos, em vez de esperar descobrir a verdade com a sua cabeça. Vai demorar um milhão de anos antes que a massa dos homens possa ser chama­da de animais políticos.

— Então o que somos nós, agora?

— Descobrimos que hoje em dia a raça humana politicamente se divide em um sábio, nove patifes e noventa idiotas entre cada cem. Isto é, por um observador otimista. Os nove patifes se reúnem sob a bandeira do maior patife entre eles, e se tornam "políticos"; o sábio se afasta, pois sabe que está irremediavelmente em minoria, e se devota à poesia, matemática ou filosofia. Enquanto isso, os no­venta idiotas se arrastam atrás das bandeiras dos nove vilões, con­forme a sua escolha, pelos labirintos da cavilação, da malícia e da guerra. E agradável comandar, observa Sancho Pança, até mesmo um rebanho de ovelhas, e é por isso que os políticos levantam suas bandeiras. Para as ovelhas também é mais ou menos a mesma coisa, seja qual for a bandeira. Se for uma democracia, os nove patifes vi­ram membros do parlamento; se for fascismo, se transformam em líderes partidários; se for comunismo, se tornam comissários. Nada será diferente, salvo o nome. Os idiotas continuam idiotas, os pati­fes ainda lideram e o resultado ainda é exploração. Quanto ao sábio, seu destino é o mesmo seja qual for a ideologia. Na democracia ele vai morrer de fome num sótão, sob o fascismo vai parar num cam­po de concentração e sob o comunismo será liquidado. Esta é uma constatação otimista, mas, no todo, científica, dos hábitos do Homo impoliticus.

O Rei disse amargamente:

— Bem, sinto muito. Suponho que o melhor é eu ir embora e me afogar. Sou insolente, insignificante, feroz, estúpido e não polí­tico. Dificilmente parece valer a pena continuar.

Mas dessa vez os animais ficaram preocupados. Levantaram-se todos e o rodearam, o abanaram e lhe ofereceram uma bebida.

— Não — disseram. — Realmente, não queremos ser rudes. Honestamente, tentávamos ajudar. Pronto, não se ofenda. Temos certeza de que deve haver muitos homens que são sapiens e nem um pouco ferozes. Nós estávamos lhe dizendo essas coisas como uma espécie de alicerce, de forma que ficasse mais fácil para você, mais tarde, resolver o dilema. Vamos, tome uma taça de Madeira e não pense mais nisso. Na verdade, achamos o homem a criatura mais maravilhosa, na verdade o melhor de todos.

E se voltaram para Merlin, dizendo zangados:

— Olhe só o que você fez! É o resultado de todo seu falatório! O pobre Rei sente-se absolutamente miserável, e tudo isso porque você perdeu a mão e exagerou, e fala como uma matraca.

Merlin apenas respondeu:

— Até mesmo a definição grega de Anthropos, Aquele que Olha para Cima, não é precisa. Depois da adolescência o homem rara­mente olha para cima de sua própria altura.

 

O novo Arthur, dobradiça azeitada, foi adulado até ficar outra vez de bom humor, mas imediatamente cometeu a asneira de abrir o assunto de novo.

— Certamente — disse — os afetos dos homens, seu amor e heroísmo e paciência: essas são coisas respeitáveis?

Seu tutor não ficou embaraçado com o carão que tinha toma­do. Aceitou o desafio com prazer.

— Você supõe que os outros animais — perguntou — não têm amor ou heroísmo ou paciência ou, o que é mais importante, ne­nhuma afeição cooperativa? A vida amorosa dos corvos, o heroísmo de um bando de doninhas, a paciência dos passarinhos cuidando dos filhotes, o amor cooperativo das abelhas... Todas essas coisas se mostram muito mais aperfeiçoadas em todos os aspectos na natureza do que jamais se mostraram no homem.

— Mas certamente — perguntou o Rei — o homem deve ter algum traço respeitável, não?

Com isso o mágico cedeu.

— Sou inclinado a pensar — disse — que pode haver um. Este, insignificante e infantil quanto possa parecer, eu menciono a despei­to de todas as elucubrações daquele sujeito Chalmers-Mitchell. Refi­ro-me à relação entre o homem e seus animais domésticos. Em alguns lares existem cães inúteis como guardas ou caçadores, e gatos que se recusam a caçar ratos, mas que são tratados por seus companheiros humanos com uma espécie de afeição viçaria, a despeito da inutilida­de e até mesmo dos problemas que causam. Não posso deixar de pen­sar que qualquer troca de amor, que seja platônica e não dada em tro­ca de outros benefícios, certamente é admirável. Uma vez conheci um asno, que vivia no mesmo campo que um cavalo do mesmo sexo. Os dois eram profundamente ligados, apesar de ninguém poder dizer que um deles proporcionasse algum benefício material ao outro. Essa relação existe, me parece, numa extensão bem respeitável entre o Homo ferox e seus cães, em alguns casos. Mas também existe entre as formigas, portanto não podemos colocar muita ênfase nisso.

A cabra observou à socapa:

— Parasitas.

Com isso, Cavall saltou do colo de seu mestre, e ele e o novo Rei caminharam pisando duro na direção da cabra. Cavall pela primeira e última vez em sua longa vida falou com voz humana, em uníssono com seu mestre. Sua voz soava como a de um teutão falando através de um trompete.

— Você disse parasitas? — perguntaram. — Basta dizer isso mais uma vez, por favor, para darmos uns cascudos em você.

A cabra observou-os com afeição divertida, mas recusou-se a provocar confusão.

— Se vocês me derem uns cascudos — disse —, vão machucar os nós dos dedos. Além do mais, retiro tudo.

Os dois se sentaram novamente, enquanto o Rei se congratu­lava por ter algo de bom em seu coração. Cavall evidentemente achava a mesma coisa, pois lambeu seu nariz.

— O que eu não consigo compreender — disse Arthur — é por que se dão ao trabalho de refletir sobre o homem e seus problemas, ou reunir um comitê para isso, se a única coisa respeitável nele é a maneira como trata alguns animais domésticos. Por que não deixar que ele se extinga de uma vez sem maiores confusões?

Isso colocou um problema para o comitê. Eles ficaram senta­dos pensando sobre o assunto, segurando os leques de mogno entre seus rostos e a lareira, e observando as chamas invertidas no mar­rom esfumaçado do Madeira.

— É porque nós o amamos, Rei — finalmente disse Archimedes. Foi o cumprimento mais maravilhoso que ele jamais recebera.

— E porque a criatura é jovem — disse a cabra. — Criaturas jo­vens e desamparadas fazem instintivamente que se queira ajudá-las.

— Porque ajudar é uma boa coisa, de qualquer jeito — disse T. natrix.

— Há alguma coisa importante na humanidade — disse Balin. — Só que agora não consigo descrevê-la.

Merlin disse:

— Ê porque é bom consertar as coisas, jogar com as possibili­dades.

O ouriço deu a melhor das razões, que era simples:

— E pruque que não?

Depois ficaram em silêncio, meditando com as chamas.

— Talvez eu tenha pintado um quadro sombrio dos humanos disse Merlin ambiguamente —, não totalmente negro, mas podia ter um tom mais claro. Foi porque queria que você compreendesse o assunto observando os animais. Não queria que pensasse que o ho­mem era demasiado superior para fazer isso. No decurso da longa experiência com a raça humana, aprendi que jamais se pode fazer com que compreendam algo, a menos que se esfregue na cara deles. Vocês querem que eu descubra alguma coisa, aprendendo com os animais.

— Sim. Finalmente estamos chegando ao objetivo de sua visita. Existem duas criaturas que esqueci de lhe mostrar quando você era pequeno e, a menos que os visite agora, não poderemos avançar.

— Farei o que você quiser.

— São a Formiga e o Ganso Selvagem. Queremos que os co­nheça esta noite. É claro que vai ser apenas uma espécie de formiga, dentre centenas delas, mas é um tipo que queremos que conheça.

— Muito bem — disse o Rei. — Estou pronto e desejoso.

— Você está com o encantamento da Sangüínea, meu texugo? O infeliz animal imediatamente começou a remexer em sua cadeira, procurando entre as costuras, levantando os cantos dos ta­petes, e virando papeletas cobertas com a letra de Merlin por todos os lados.

A primeira papeleta tinha como título Mais Insolência sob Victo­ria. Dizia: "O Dr. John de Gaddesden, médico da corte de Edward II, alegou ter curado a varíola do filho do rei enrolando o paciente com pano vermelho, colocando cortinas vermelhas nas janelas e cui­dando que tudo que havia no quarto fosse vermelho. Isso provocou uma alegre risada vitoriana às expensas da simplicidade medieval, até que o Dr. Niels Finsen de Copenhagen descobriu no século vin­te que o vermelho e a luz infra-vermelha realmente afetam as pús­tulas da varíola, ajudando mesmo na cura da doença".

A papeleta seguinte informava brevemente: "Meia rosa nobre em qualquer caminho do Moleiro Dourado".

A terceira, que tinha um forte perfume de Quelques Fleurs e não era escrita com a letra de Merlin, dizia: "Monumento da Rainha Philippa em Charing Cross, sete e meia, debaixo do pináculo da torre". Havia muitos beijos na parte de baixo e, nas costas, algumas anotações para um poema a ser dirigido à remetente. Essas estavam na letra de Merlin e diziam: Hurra? Xuxu? Chop-suey? O poema propriamente dito, que começava

 

             Xuxu

             Nimue

 

estava apagado.

Outra papeleta estava intitulada: "Outras raças, Condescendência Vitoriana para com, assim como para com Ancestrais Próprios, Animais etc". Dizia: "O coronel Wood-Martin, antiquário, escrevendo em 1895, observa com uma risadinha que 'uma das raças mais deprava­das, a dos atualmente extintos tasmanianos, acreditava que as pedras, especialmente certos tipos de cristais de quartzo, podiam ser usadas por médiuns, ou como meios de comunicação... com pessoas vivas à distância! Alguns anos depois dessa nota, o telégrafo sem fio foi importado para o hemisfério ocidental. Prefiro conjeturar que esses povos depravados estavam um milhão de anos adiante do coronel, no mesmo viciado caminho, e que foram extintos por escutarem constantemente música dançante nos seus rádios de cristal".

— Aqui está — disse o texugo. — Acho que é esta. Entregou uma papeleta na qual estava escrito: "Fórmica est exemplo magni laboris* Dativo do Propósito".

 

* Do latim = A formiga é um exemplo de grande indústria (N.T.)

 

Viu-se que não era.

Finalmente todos foram ordenados a se levantarem, procura­rem em suas cadeiras, nos bolsos etc. O ouriço, apresentando um fragmento rasgado e coberto de lama seca e folhas esmagadas, sobre o qual estivera sentado, perguntou:

— Sé qué isso?

Depois de limpo, desamassado e desempoeirado, descobriu-se que dizia: Dragguls uoht, Tna eht ot og, e Merlin disse que era o que precisava.

Assim um par de formigueiros foi retirado da despensa, onde ficavam apoiados em pires com água. Foram colocados na mesa no meio da sala, enquanto os animais sentavam-se para observar, já que se podia ver dentro dos formigueiros através de placas de vidro co­loridas de vermelho. Arthur foi sentado à mesa ao lado do maior formigueiro, o pentagrama invertido foi desenhado, e Merlin pro­nunciou solenemente o encantamento.

 

Ele achou estranho visitar outra vez os animais na sua idade.

Talvez, pensou consigo mesmo, envergonhado, esteja so­nhando com minha segunda infância, talvez tenha sucumbido à caduquice.

Mas isso o fez lembrar-se vividamente de sua primeira infân­cia, os tempos felizes nadando nos fossos ou voando com Archi­medes, e compreendeu que tinha perdido algo desde aqueles dias. Era algo que agora ele pensava como a capacidade de se maravi­lhar. Naquela época, seus prazeres tinham sido indiscriminados. Sua atenção, ou seu sentimento de beleza, ou seja lá como deve­ria ser chamado, era fortemente atraído para ninharias. Talvez, enquanto Archimedes estava discursando sobre o vôo dos pássa­ros, ele mesmo estivesse perdido na admiração pela forma como o pêlo do rato se movia nas garras da coruja. Ou o grande Sr. M. poderia estar discursando sobre Ditadura, enquanto ele, o tempo todo, só via seus grandes dentes, e meditava sobre eles num êxta­se de experiência.

Isso, essa faculdade de se maravilhar, tinha-o abandonado, por mais que Merlin tenha massageado seu cérebro. Foi trocada pela capacidade de discernimento, ele supunha. Agora ele teria es­cutado Archimedes ou o Sr. M. Não teria prestado atenção na pele cinzenta ou nos dentes amarelados. Não se sentia orgulhoso com a mudança.

O velho bocejou — pois formigas, sim, bocejam, e também se esticam, tal como os seres humanos, depois de tirar uma soneca — e depois se preparou para o assunto era pauta. Ele não sentia prazer em ser uma formiga, como teria se tivesse sido transportado para vi­rar uma nos velhos tempos, mas só pensou consigo mesmo: bem, é uma tarefa que tenho de cumprir. Como começar?

Os formigueiros eram feitos espalhando-se terra numa fina ca­mada, cerca de um centímetro de espessura, em pequenas mesas como tamboretes. Então, em cima de cada camada de terra, coloca­va-se um vidro, com um pano por cima, para proporcionar escuri­dão para as creches. Ao remover o pano, podiam-se ver os abrigos subterrâneos como se tivesse um corte transversal. Podia-se ver a câmara circular onde as pupas eram cuidadas como se fosse uma estufa com teto de vidro.

Os verdadeiros formigueiros estavam apenas na ponta do tam­borete, com o vidro cobrindo menos do que a metade. Na frente havia esplanadas simples de terra, abertas ao céu, e na outra ponta de cada tamborete estavam as ampulhetas onde se deixava o melado para comida. Não havia comunicação entre os dois formigueiros. Os tamboretes estavam separados, lado a lado, mas sem se tocarem, com as pernas dentro dos pires.

E claro que não parecia assim naquela época. O lugar onde ele se encontrava parecia um grande campo de pedregulhos, com uma fortaleza achatada numa ponta — entre as placas de vidro. Penetra­va-se na fortaleza por túneis na rocha e, em cima da entrada de cada túnel, havia um letreiro onde estava escrito:

TUDO O QUE NÃO É PROIBIDO É OBRIGATÓRIO PELA NOVA ORDEM

Ele leu o aviso com desagrado, apesar de não entender seu sig­nificado. Pensou consigo mesmo: Vou explorar um pouco, antes de entrar. Por alguma razão o aviso provocou nele uma relutância em avançar, fazendo o túnel tosco parecer sinistro.

Balançou cuidadosamente suas antenas, considerando o aviso, familiarizando-se com seus novos sentidos, plantando firmemente os pés no mundo dos insetos, como para se agarrar nele. Limpou as antenas com as patas dianteiras, alisando-as e torcendo-as de tal maneira que parecia um vilão vitoriano retorcendo os bigodes. En­tão, tomou consciência de algo que estivera aguardando ser perce­bido — que havia um ruído articulado em sua cabeça. Ou era um ruído ou um cheiro complicado, e a maneira mais fácil de explicar era dizer que parecia uma transmissão de rádio. Chegava através das antenas, como música.

A música tinha um ritmo monótono como um pulsar, e as pa­lavras que a acompanhavam eram sobre junho-punho-cunho, ou mamã-mamã-mamã, ou aqui-ali, ou lá-dá-cá. No começo, ele esta­va gostando, principalmente das que falavam de amor-flor-calor, até descobrir que não variavam. Depois de uma ou duas horas, isso o fez ficar enjoado.

Havia também uma voz em sua cabeça, durante as pausas da música, que parecia estar dando ordens. Dizia: "Todos os que têm dois dias de idade devem se mover para a Ala Oeste", ou "Número 210397/WD deve se apresentar ao esquadrão de sopa, em substitui­ção ao número 333105/WD que caiu do formigueiro". Era uma voz frutada, mas de alguma forma parecia impessoal — como se seu en­canto fosse o resultado de uma longa prática, como um truque de circo. Era sem tom.

O Rei, ou talvez devêssemos dizer a formiga, afastou-se da fortaleza logo que se sentiu preparado para zanzar por ali. Inquieto, começou explorando o deserto de pedregulhos, relutando era visi­tar o lugar de onde vinham as ordens, e também chateado com a vi­são estreita. Descobriu pequenos caminhos entre os pedregulhos, trilhas esparsas e ao mesmo tempo sem sentido e propositais, que levavam ao depósito de melado e também a várias outras direções que ele não conseguia compreender. Uma dessas trilhas terminava num torrão com uma cavidade natural por baixo. Na cavidade — mais uma vez com a estranha aparência de propósito sem sentido — descobriu duas formigas mortas. Estavam deitadas e arrumadas, mas ao mesmo tempo desarrumadas, como se uma pessoa muito arru­mada as tivesse levado até ah, e depois esquecido a razão quando lá chegou. Estavam dobradas, e não pareciam nem alegres nem tristes por estarem mortas. Estavam lá, como um par de cadeiras.

Enquanto observava os cadáveres, uma formiga viva desceu pela trilha carregando uma terceira.

A formiga disse:

— Salve, Sangüínea!

O Rei respondeu — Salve! — com educação.

Em um ponto, sobre o qual nada sabia, ele tinha sorte. Merlin se lembrara de lhe dar o cheiro adequado para esse formigueiro — pois, se cheirasse a qualquer outro formigueiro, teria sido morto imediatamente. Se a Senhorita Cavell fosse uma formiga, teria que escrever em sua estátua: CHEIRAR NÃO É SUFICIENTE,

A nova formiga colocou o cadáver distraidamente no chão e começou a arrastar os outros dois em várias direções. Parecia não saber onde colocá-los. Ou melhor, sabia que uma certa arrumação devia ser feita, mas não conseguia imaginar como seria. Era como um homem com uma xícara de chá numa mão e um sanduíche na outra querendo acender um cigarro com um fósforo. Mas quando o homem pensaria em deixar a xícara e o sanduíche — antes de pegar o cigarro e o fósforo —, essa formiga deixaria o sanduíche e pegaria o fósforo, depois deixaria o fósforo no chão para pegar o cigarro, depois colocaria o cigarro no chão e levantaria o sanduíche, depois abaixaria a xícara e levantaria o cigarro, até finalmente abaixar o sanduíche e pegar o fósforo. A formiga tendia a depender de uma série de acidentes até alcançar seu objetivo. Era paciente e não pen­sava. Depois de ter colocado as três formigas mortas em várias po­sições, estas finalmente ficaram alinhadas embaixo do torrão, e isso era o que ela tinha que fazer.

O Rei observou esses arranjos primeiro com surpresa, depois com aflição e, finalmente, com desagrado. Queria perguntar como era possível não pensar nas coisas com antecedência — esse senti­mento incômodo que as pessoas têm ao ver um serviço ser mal exe­cutado. Mais tarde começou a desejar poder fazer várias perguntas, tais como "Você gosta de cuidar dos mortos?" ou "Você é um escra­vo?" ou mesmo "Você é feliz?".

A coisa extraordinária é que ele não podia fazer essas pergun­tas. Para poder fazê-las, teria que traduzi-las para a língua das for­migas através das antenas — e descobria agora, com uma sensação de impotência, que não existiam palavras para o que queria dizer. Não havia palavras para felicidade, liberdade, gostar, assim como não havia palavras para seus opostos. Sentia-se como um mudo ten­tando gritar "Incêndio!". O mais próximo que conseguia chegar até mesmo de Certo e Errado era dizer Feito e Não-Feito.

A formiga terminou de mexer com os cadáveres e voltou para a trilha, deixando-os jogados ao acaso. Então viu que Arthur estava no caminho, e parou, mexendo suas antenas em direção a ele, como um tanque. Com o rosto mudo e ameaçador como se fosse um elmo, seu aspecto peludo e coisas parecidas com esporas nas juntas das pernas, talvez se parecesse mais com um cavaleiro de armadura ou com um cavalo de armadura, ou uma combinação dos dois: um centauro peludo de armadura.

A formiga disse novamente:

— Salve, Sangüínea!

— Salve.

— O que você está fazendo?

O Rei respondeu com a verdade, mas não sabiamente:

— Não estou fazendo nada.

A formiga ficou desconcertada com isso durante vários segun­dos, como você ficaria se Einstein lhe contasse suas últimas idéias sobre o espaço. Em seguida, estendeu os doze segmentos de sua an­tena e falou por cima dele para o azul.

Disse:

— 105978/UDC contatando do quadrado cinco. Tem uma for­miga maluca aqui no quadrado cinco. Câmbio.

A palavra que usou para maluca foi Não-Feita. Mais tarde, ele descobriria que havia apenas duas qualificações na linguagem, Fei­to e Não-Feito, que se aplicavam a todas as questões de avaliação. Se as sementes que os coletores achavam eram doces, eram semen­tes Feitas. Se alguém as tivesse temperado com um pó venenoso, se­riam sementes Não-Feitas, e assim por diante. Mesmo os punhos, as mamas, as flores etc. ficavam completamente descritos, nas trans­missões, quando se declaravam que eram Feitos.

A transmissão parou um momento e a voz frutada disse:

— G.H.Q. respondendo a 105978/UDC. Qual é o número dela? Câmbio.

A formiga perguntou:

— Qual o seu número?

— Não sei.

Quando essa notícia foi transmitida para o quartel-general, veio uma mensagem dizendo para perguntar se ele podia fazer um relató­rio sobre si mesmo. A formiga perguntou ao Rei. Usou as mesmas palavras que a transmissão usara, e na mesma voz. Isso o fez sentir desconfortável e com raiva, duas emoções das quais não gostava.

— Sim — disse com sarcasmo, pois era óbvio que a criatura não percebia o sarcasmo —, caí de ponta-cabeça e não me lembro de nada.

— 105978/UDC relatando. Formiga Não-Feita esqueceu de tudo porque caiu do formigueiro. Câmbio.

— G.H.Q. respondendo a 105978/UDC. Formiga Não-Feita é o número 42436/WD, que caiu do formigueiro hoje de manhã quando trabalhava no esquadrão da papa. Se for competente para continuar com seus deveres — era mais fácil dizer "Se for compe­tente para continuar com seus deveres" na linguagem das formigas, pois era simplesmente Feito, como tudo o mais era Não-Feito. Mas chega de questões de linguagem. — Se for competente para conti­nuar com seus deveres, instrua 42436/WD para voltar ao esquadrão da papa, dispensando 210021/WD, que foi enviado para substituí-lo. Câmbio.

A noite passada sonhei que Gawaine vinha me ver, em companhia de lindas damas. Ele disse que a elas fora permitido vir porque ele as salvara quando ainda era vivo e elas vinham avisar que amanhã todos estaríamos mortos.

— Você compreende? — perguntou a formiga.

Parece que, mesmo se quisesse, ele não podia ter dado melhor explicação do que dizer que tinha caído de ponta-cabeça, pois as formigas de vez em quando caem mesmo, e Merlin, se as notasse, as colocaria de volta com a ponta do lápis.

— Sim.

A arrumadora de cadáveres não prestou mais atenção nele e se arrastou pela trilha atrás de outra formiga morta, ou qualquer outra coisa que precisasse ser removida.

Arthur foi pelo caminho oposto, para unir-se ao esquadrão da papa. Memorizou seu próprio número e o número da unidade que teria de substituir.

 

O esquadrão da papa estava postado diante de uma das câma­ras externas da fortaleza como se fosse um círculo de ado­radores. Ele se uniu ao círculo, anunciando que 210021/WD devia voltar para o formigueiro central. Depois começou a se empanturrar com a papa doce, como os demais. Faziam a papa raspando as se­mentes que os outros tinham coletado, mastigando as migalhas até que estas se transformavam numa espécie de papa ou sopa, e depois engolindo-a para armazená-la em seu próprio papo. No início, a coisa lhe pareceu deliciosa, e começou a comer com vontade, mas depois de poucos segundos perdeu a graça. Não conseguia com­preender por quê. Mastigava e engolia rapidamente, imitando o res­to do esquadrão, mas era como se comessem um banquete de nada, ou como um jantar no palco, representado. De certa forma, era -orno um pesadelo, no qual se continuava a comer enormes quanti­dades de gororoba sem ser capaz de parar.

Uma procissão que ia e vinha circulava em torno da pilha de sementes. As formigas, depois de encherem o papo até a borda, caminhavam de volta para a fortaleza, substituídas por uma procissão de formigas vazias que vinham da mesma direção. Nunca apareciam formigas novas na procissão, apenas aquela mesma dúzia indo e vol­tando, como fariam durante toda a vida.

De repente, ele compreendeu que o que comia não ia para seu estômago. Uma pequena porção daquilo penetrara em seu ser pri­vado no começo, mas agora o volume principal estava sendo arma­zenado numa espécie de estômago superior, ou papo, de onde podia ser removido. Ocorreu-lhe então que, quando entrasse na corrente que voltava, teria que vomitar a provisão em um balde ou coisa pa­recida.

O esquadrão da papa conversava entre si enquanto trabalhava. No começo, achou que isso era um bom sinal, e ficou atento para ouvir o que pudesse.

— Oh, escute só — disse um deles. — Nuss ouviduss chega de novuss a canção mamã-mamã-mamã. Eu achuss essa canção mamã-mamã-mamã adorávelss (Feita). É tão classudass (Feita).

Outra observação:

— Eu achuss que nossa amada Líder é maravilhosa, concor-dass? Dizem que ela foi picada maiss de trezentass vezess na última guerra, e recebeuss a Cruzzz de Valor das formigasss.

— Que sorte termuss nasciduss na raça da Sangüínea, concor-dass? Não seria horrorosuss ser uma dessasss imundas Formicae fuscael

— Que coisa terrívelss essa históriass sobre 310099/WD! Eu achuss que é claruss que ela foiss imediatamente executada, por or­dem direta de nossa amada Líder.

— Oh, escute só! Aí vem de novuss aquela canção mamã-mamã-mamã. Eu achuss...

Dirigiu-se com o papo cheio para o formigueiro, deixando de dar outra volta. Elas não tinham novidades, nenhum escândalo, nada sobre o que conversar. Ali não aconteciam novidades. Mesmo as observações sobre a execução eram feitas em fórmulas, e só variavam quanto ao número de registro da criminosa. Quando termina­vam com a mamã-mamã-mamã, voltavam para a Amada Líder, e de­pois para as imundas fuscae e para a última execução. E assim iam em círculo. Mesmo as amadas, maravilhosas e coisas assim eram todas Feitas, e as horríveis eram Não-Feitas.

Ele se viu no saguão da fortaleza, onde centenas e centenas de formigas estavam lambendo ou se alimentando nas creches, carregan­do larvas para várias alas para conseguir uma temperatura estável, e abrindo e fechando as passagens de ventilação. No meio, a Líder sen­tava-se complacentemente, pondo ovos, ouvindo as transmissões, dando instruções ou ordenando execuções, rodeada por um mar de adulação. (Mais tarde ele aprendeu com Merlin que o método de sucessão entre essas Líderes variava de acordo com as diferentes espécies de formiga. Nas Bothriomyrmex, por exemplo, a ambiciosa fundadora de uma Nova Ordem invadiria um formigueiro de Tapinoma e pularia nas costas da antiga tirana. Ali, disfarçada pelo cheiro da invadida, lentamente cortava-lhe a cabeça, até ela mesma adqui­rir o direito à Liderança.)

Não havia nenhum balde para depositar a papa, afinal. Quando alguém queria uma refeição, o parava, fazia com que abrisse a boca, e se alimentava direto dali. Não o tratavam como pessoa e, realmen­te, eram mesmo impessoais. Ele era um garçom-robô do qual os comedores-robôs se alimentavam. Nem mesmo seu estômago era seu.

Mas não precisamos entrar em muitos detalhes sobre as formi­gas — não é um assunto agradável. Ele continuou a viver entre elas, adaptando-se a seus hábitos, observando-as de forma a compreender o mais que pudesse, mas incapaz de fazer perguntas. Isso não apenas porque a linguagem delas não dispunha das palavras que interessa­vam aos humanos — seria impossível perguntar-lhes se acreditavam na Vida, na Liberdade e na Busca da Felicidade —, mas também porque era perigoso fazer perguntas. A vida não era questionável: era dirigida. Ele rastejava do formigueiro para as sementes e depois de volta, exclamava que a canção da mama era adorável, abria o papo para regurgitar, e tentava compreender o mais que pudesse.

Ele tinha chegado ao estágio de gritar quando a enorme mão baixou das nuvens, segurando uma palha. Colocou a palha entre os dois formigueiros, que antes estavam separados, de forma que agora havia uma ponte entre eles. E depois se retirou.

 

Mais tarde, uma formiga negra zanzou pela nova ponte: uma das desprezíveis fuscae, raça humilde que só luta em autodefesa. Foi descoberta por um dos coletores e assassinada.

As transmissões mudaram depois que essa notícia foi divulgada — ou melhor, mudaram depois que espiãs descobriram que o for­migueiro fusca também tinha seu depósito de sementes.

Mamã-mamã-mamã foi substituída por Terra das Formigas, Terra das Formigas acima de tudo, e a corrente de ordens foi inter­rompida para dar lugar a palestras sobre guerra, patriotismo ou sobre a situação econômica. A voz frutada disse que sua pátria amada estava sendo cercada por uma horda de imundas fuscae, no que o coro irradiado cantava:

 

     Quando o sangue de fusca jorrar das picadas,

     Então tudo estará bem...

 

Também explicava que a Formiga-Antepassada ordenara em sua sabedoria inescrutável que as formigas negras deviam sempre ser escravas das formigas vermelhas. Atualmente, sua amada pátria não tinha escravos, uma situação lamentável que tinha de ser reme­diada para a raça eleita não perecer. Uma terceira declaração dizia que a propriedade nacional das Sangüíneas estava ameaçada: seus alimentos iam ser roubados, seus animais domésticos, os besouros, seriam seqüestrados e seu estômago comunal, esvaziado. O Rei es­cutou com atenção duas dessas transmissões, para que pudesse se lembrar bem depois.

A primeira estava arranjada da seguinte maneira:

 

  1. Somos tão numerosos que estamos famintos.
  2. Portanto, devemos encorajar famílias ainda maiores para que sejamos mais numerosos e mais famintos.
  3. Quando formos tão numerosos e famintos como devemos ser, obviamente teremos o direito de tomar os estoques de sementes dos outros. Além do mais, teremos, então, um exército numeroso e faminto.

 

Só depois que esse exercício de lógica foi posto em prática, e a produção dos viveiros triplicada — ambos os formigueiros, nesse ínterim, recebendo de Merlin papa suficiente para todas suas neces­sidades, pois temos que admitir que nações famintas nunca parecem estar tão famintas que não possam arranjar meios para adquirir ar­mamentos muito mais caros que as outras —, é que o segundo tipo de conferência começou.

Era assim que esta se desenrolava:

 

  1. Somos mais numerosos que eles, portanto temos direito à sua papa.
  2. Eles são mais numerosos que nós, portanto estão perversa­mente tentando roubar nossa papa.
  3. Somos uma raça poderosa e temos o direito natural de sub­jugar esses fracotes.
  4. Eles são uma raça poderosa e, contra a natureza, estão ten­tando subjugar nossa raça indefesa.
  5. Temos que atacá-los como autodefesa.
  6. Eles vão nos atacar para se defenderem.
  7. Se não atacarmos hoje, eles nos atacarão amanhã.
  8. De qualquer forma, não estamos, de maneira alguma, atacando-os. Estamos lhes oferecendo benefícios incalculáveis.

 

Depois desse segundo tipo de palestra começaram os serviços religiosos. Estes vinham — descobriu ele — de um passado tão fa­buloso e antigo que dificilmente se poderia datá-lo, um passado no qual as formigas ainda não tinham adotado o socialismo. Vinham de uma época em que as formigas eram como os homens, e alguns des­ses serviços eram impressionantes.

O salmo de um deles — começando, se relevarmos a diferença de linguagens, com as palavras bem conhecidas, "A Terra e tudo que há nela é da Espada, até onde alcançam os bombardeiros e o que lá bombardeiam" — termina com a conclusão terrível: "Explodi vos­sas cabeças, O vós, Portões, e sejam explodidas vós, Portas Eternas, para que o Rei da Glória possa entrar. E quem é o Rei da Glória? Também o Senhor dos Fantasmas, Ele é o Rei da Glória".

 

Uma característica estranha é que as formigas comuns não se emocionavam com as canções, nem se interessavam pelas palestras. Aceitavam tudo isso como fatos naturais. Para elas, eram rituais, como as canções da mama ou as conversas sobre a Amada Líder. Não percebiam essas coisas como boas ou más, excitantes, racionais ou terríveis. Não se importavam nadinha com elas, mas as aceitavam como Feitas.

Bem, chegou o momento da guerra de escravização. Os pre­parativos estavam prontos, os soldados treinados ao máximo, as muralhas do formigueiro tinham slogans patrióticos pintados, como "Ferrões ou papa?" ou "Consagro-me a vós, meu Cheiro", e o Rei estava desesperado. Achava que jamais tinha estado entre essas cria­turas horríveis, a menos que fosse na época em que vivera entre os homens, e estava começando a ficar doente de desgosto. As vozes que repetiam dentro de sua cabeça, e que não podia desligar, a falta de privacidade, quando alguns comiam do seu estômago e outros cantavam dentro do seu cérebro, o terrível vazio que substituía o sentimento, a privação de todos salvo dois valores, a monotonia to­tal mais do que a maldade: tudo isso matou a alegria de viver que tinha sido o dom de Merlin no começo da noite. Ele se sentia tão miserável quanto estava quando o mago o encontrou chorando so­bre seus papéis, e agora, quando finalmente o Exército Vermelho marchava para a guerra, ele subitamente deu a volta no meio da ponte de palha, como um louco, pronto a impedir a passagem delas com sua própria vida.

 

— Deus do céu — disse Merlin, que enxugava as gotas de suor da testa com um lenço —, você realmente tem o dom de se meter em confusão. Esse foi um momento difícil.

Os animais o examinaram, ansiosos, para ver se havia algum osso quebrado.

— Você está bem?

— Perfeitamente.

Descobriram que ele estava furiosamente zangado. Suas mãos tremiam de raiva.

— As brutas! — exclamou. — As brutas!

— Elas não são atraentes.

— Não me importaria se elas tivessem sido maldosas — ele desabafou —, se quisessem ser maldosas. Não me importaria se ti­vessem escolhido a maldade, por alguma razão, ou para se diver­tir. Mas elas não sabem, elas não escolheram. Elas... elas... não existiam!

— Sente-se — disse o texugo — e descanse um pouco.

— Criaturas horríveis! Era como se eu falasse com minerais que não pudessem se mexer, como estátuas falantes ou máquinas. Se você dissesse alguma coisa adequada para o mecanismo, então funciona­va: se não, não funcionava, ficava parado, em branco, sem expressão. Oh, Merlin, que horrível! Eram zumbis. Quando morreram? Será que alguma vez tiveram sentimento? Agora não têm nenhum. São como aquela porta do conto de fadas, que abria quando se dizia Sé­samo. Acho que só conhecem meia dúzia de palavras, ou coleção de palavras. Um homem que as conhecesse poderia fazer com que elas executassem tudo aquilo, e então... Então seria preciso começar de novo! De novo e de novo! Era como estar no inferno. Só que nenhu­ma delas sabia que estava ah. Nenhuma delas sabia nada. Será que existe algo mais terrível que o movimento perpétuo, do que fazer e fazer e fazer sem razão, sem consciência, sem mudança, sem fim?

— As formigas são o Moto Perpétuo — disse Merlin. — Supo­nho. Nunca pensei nisso.

— A coisa mais aflitiva sobre elas era que pareciam seres hu­manos; não humanos, mas como humanos, uma cópia ruim.

— Não há nada surpreendente nisso. No passado infinito, as formigas adotaram a linha política com a qual o homem flerta agora. Elas a aperfeiçoaram trinta milhões de anos atrás, de forma que ne­nhum desenvolvimento posterior foi possível, e, desde então, elas estacionaram. A evolução parou nas formigas há uns trinta milhões de anos antes do nascimento de Cristo. Elas são o perfeito estado comunista.

Aqui Merlin levantou devotamente os olhos para os céus e assinalou:

— Meu velho amigo Marx pode ter sido um economista de pri­meira classe, mas, Deus do céu, era uma tristeza quando se metia com a História natural.

O texugo, que sempre via o lado melhor de todo mundo, mesmo de Karl Marx, cuja arrumação de seus materiais, dito seja, era quase tão transparente quanto o do texugo, disse:

— Mas isso certamente não é justo com o comunismo de hoje.

Eu diria que as formigas são mais parecidas com os fascistas de Mordred do que com os comunistas de John Bali...

— Um é uma etapa do outro. Na perfeição, são a mesma coisa.

— Mas num mundo realmente comunista...

— Dê um pouco de vinho ao Rei — disse Merlin. — Ouriço, que diabos você está pensando?

O ouriço disparou para buscar o decantador, e o trouxe com uma taça. Enfiou o nariz úmido pela orelha do Rei, respirando pesa­do com um hálito que cheirava a cebolas, e sussurrou roucamente:

— A gente tatava olhando, totodo mundo. Foi foi. O shenhor ia dar uma surrinha nelas, nas bandidinhas. Bestinhazinhas infernais.

E balançou repetidamente a cabeça, derramando o Madeira e fazendo movimentos de boxeador no ar com o decantador numa mão e a taça na outra.

— Bravo bravo pra sua "mágica estade", é o que nós vamamos di­zer. Deix'ele pega elas, é isso, pra acabar com a dureza. Isso era o que a gente quereria, nisso a gente é bambambã, só que ninguém deixa.

O texugo não queria aceitar a derrota de seu argumento. Co­meçou de novo, com paciência, logo que o Rei foi servido.

— As formigas guerreiam — disse ele —, então não podem ser comunistas. No verdadeiro mundo comunista não haveria guerra porque o mundo seria uma união. Você não pode esquecer que o co­munismo não será alcançado de verdade até que todas as nações do mundo sejam comunísticas, e fundidas numa só União de repúblicas socialistas soviéticas. Ora, os formigueiros não estão fundidos uns com os outros numa união, portanto não são inteiramente comunísticos, e é por isso que lutam.

— Eles não estão unidos — disse Merlin, mal-humorado — apenas por causa de seu tamanho minúsculo, comparado com a grandeza do mundo, e dos obstáculos naturais como os rios e coisas assim, que torna impossível a comunicação entre os animais do tamanho das formigas e com aquele número de dedos. Ainda assim, se quiser, concordarei que elas são Surradores perfeitos, impedidas de se trans­formarem em perfeitos Loüardos por razões físicas e geográficas.

— Portanto você deve retirar a crítica que fez a Karl Marx.

— Retirar minha crítica?! — exclamou o filósofo.

— Sim, pois Marx na verdade resolveu o quebra-cabeça do rei sobre a guerra, com sua União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

A cara de Merlin ficou azul, ele mordeu e arrancou um bom pedaço de sua barba, puxou tufos de cabelo e os jogou ao ar, orou fervorosamente por orientação, sentou ao lado do texugo e, segu­rando sua mão, olhou implorante por trás dos óculos.

— Mas você não percebe — perguntou pateticamente — que a união de qualquer coisa resolve o problema da guerra? Não pode haver guerra numa união, porque é preciso haver uma divisão antes que ela comece. Não haveria guerra se o mundo consistisse numa união de bistecas de carneiro. Mas isso não quer dizer que todos de­vemos correr e nos transformarmos em bistecas de carneiro.

— De fato — disse o texugo, depois de ponderar por algum tempo —, você não está definindo as formigas como fascistas ou co­munistas porque lutam em guerras, mas porque...

— Estou é amontoando as três seitas juntas por causa da sua premissa básica que é, em última instância, negar os direitos do in­divíduo.

— Percebo.

— A teoria delas é totalitária: homens ou formigas existem pelo bem do Estado ou do mundo, e não o contrário.

— E por que você disse que Marx era ruim em história natural?

— O caráter do meu velho amigo Karl — disse severo o mago — está fora do escopo deste comitê. Por favor, lembre-se de que nossa pauta não é o comunismo, mas o problema do assassinato organizado. E é tão-somente na medida em que o comunismo é parte da guerra que nos preocupamos com ele. Com essa observa­ção respondo da seguinte maneira à sua pergunta: Marx era um naturalista ruim porque cometeu o erro grosseiro de superestimar o crânio humano em primeiro lugar, porque jamais considerou os gansos, e porque subscreveu à Falácia da Égalité, que é contra a natureza. Os seres humanos não são mais iguais em seus méritos e habilidades do que são iguais no rosto ou na estatura. Da mesma maneira, você poderia insistir que todas as pessoas do mundo deve­riam usar botas do mesmo número. Essa idéia ridícula da igualdade foi adotada pelas formigas há mais de trinta milhões de anos e, ao acreditar nisso durante todo esse tempo, conseguiram transformá-la em verdade. Agora vejam só a confusão em que estão metidas.

— Liberdade, Igualdade e Fraternidade.... — começou o texugo.

— Liberdade, Brutalidade e Obscenidade — contrapôs de ime­diato o mago. — Você devia tentar viver em algumas das revoluções que usam esse lema. Primeiro eles o proclamam; depois anunciam que os aristocratas devem ser liquidados, pelo bem da moral, para que se possa purgar o partido ou aparar a comuna ou tornar o mun­do seguro para a democracia; e depois estupram e assassinam todos em quem conseguem pôr as mãos, mais com tristeza do que com raiva, ou os crucificam, ou os torturam de maneiras que não quero nem mencionar. Você devia ter experimentado a Guerra Civil Espa­nhola. Sim, essa é a igualdade do homem. Assassine quem seja me­lhor que você e logo todos seremos bem iguais. Todos igualmente mortos.

 

  1. Natrix falou de repente.

— Vocês, humanos — disse —, não têm idéia dessa eternida­de sobre a qual falam infantilidades, com suas almas e purgatórios e coisas assim. Se algum de vocês realmente acreditasse na Eterni­dade, ou mesmo em grandes períodos de Tempo, pensariam duas vezes sobre igualdade. Não posso imaginar nada mais apavorante que uma Eternidade cheia de homens iguais. A única coisa que tornou a vida suportável no longo passado foi a diversidade de criaturas na superfície do globo. Se todos fôssemos iguais, todos uma única espécie de criatura, já teríamos implorado pela eutanásia há muito tempo. Felizmente, na natureza não existe uma coisa chamada igualdade de habilidades, méritos, oportunidades ou re­compensas. Todas as espécies de animais que ainda estão vivas — deixemos de lado coisas como as formigas — são intensamente in­dividualistas, graças sejam dadas a Deus. De outra maneira, morre­ríamos de aborrecimento, ou nos transformaríamos em autômatos. Mesmo os esgana-gatas, que, numa primeira inspeção, parecem muito uns com os outros; mesmo entre eles há gênios e idiotas, to­dos competindo pelos bocados de comida, e são os gênios que a conseguem. Havia um homem que alimentava seus esgana-gatas colocando um jarro de vidro dentro do aquário, com a comida lá dentro. Alguns deles descobriam o caminho depois de duas ou três tentativas e se lembravam disso, enquanto outros, tanto quanto eu saiba ou me importe, ainda estão tentando. Se não fosse assim, se­ria terrível contemplar a Eternidade, porque estaria desprovida de diferenças e, portanto, de mudanças.

— Nada disso está em questão. Supõe-se que estejamos discu­tindo a guerra.

— Muito bem.

— Rei — perguntou o mago —, já pode enfrentar os gansos ou precisa descansar? É impossível — ele acrescentou entre parênteses — considerar o assunto razoavelmente enquanto não dispuser de todos os fatos.

O velho disse:

— Acho que preciso descansar. Já não sou mais tão jovem, a despeito de sua massagem, e vocês têm insistido para que eu apren­da muitas coisas em pouco tempo. Podem me dar uns minutinhos?

— Certamente. As noites são longas. Ouriço, molhe este lenço com vinagre e o coloque na cabeça dele. Pronto, coloque os pés numa cadeira e feche os olhos. Agora todo mundo deve ficar quieto e lhe dar espaço.

Assim os animais ficaram quietos como camundongos, cutucan­do um ao outro quando tossiam, e o Rei, com olhos fechados e uma sensação de gratidão, mergulhava em seus próprios pensamentos.

Eles estavam pressionando muito. Era difícil aprender tudo numa noite só, e ele era apenas humano, assim como idoso.

Talvez, afinal, a atormentada pessoa que tinha sido trazida da tenda em Salisbury não devesse nunca ter sido a escolha de Merlin.

Tinha sido uma criança comum, apesar de amorosa, e estava longe de ser um gênio. Talvez, afinal, toda a nossa longa história tenha sido sobre um cavalheiro idoso e confuso, que estaria melhor em Cranford ou no campo de golfe do texugo, cuidando do críquete da aldeia ou da apresentação do coral.

Havia algo sobre o que ele queria pensar. Seu rosto, com os olhos empapuçados, há muito deixara de ser como o de um garoto. Parecia cansado, e era o Rei: isso fazia os outros o olharem com se­riedade, com medo e pena.

Eles eram bons e gentis, ele sabia. Eram pessoas cujo respeito ele valorizava. Mas o problema deles não era o problema humano. Esta­va bom para eles, que já tinham resolvido suas questões sociais antes mesmo de o homem aparecer na Terra, agora deliberarem sabiamen­te em seu feliz Colégio da Vida. Aquela benevolência, com vinho e lareira e a confiança de um em relação aos demais, era mais fácil para eles do que lhe era seu triste trabalho de instrumento deles.

Com os olhos fechados, o velho Rei deslizou de volta ao mun­do real de onde tinha vindo, a esposa raptada, seu melhor amigo ba­nido, seus sobrinhos assassinados, seu filho em seu pescoço. O pior era o impessoal: que todos seus semelhantes estivessem nisso. Era realmente verdade que o homem era feroz, como os animais tinham dito. Eles podiam dizer isso abstratamente, até mesmo com um cer­to júbilo dialético, mas para ele era o concreto: ele é que tinha que viver no meio dos brutamontes de carne e osso. Ele mesmo era um deles, cruel e bobo como eles, e ligado a eles por esse estranho con­tinuo da consciência humana. Era um inglês, e a Inglaterra estava em guerra. Por mais que a odiasse, ou desejasse interrompê-la, ela estava imbricada no real mas intangível mar de sentimentos ingle­ses que não podia controlar. Ir contra isso, lutar contra o mar, era mais do que seria capaz de enfrentar novamente.

E ele tinha trabalhado toda sua vida. Sabia que não era um ho­mem esperto. Guiado pela consciência daquele velho cientista que tinha amarrado sua alma na juventude, atormentado e consumido, sobrecarregado como Sinbad, roubado de si mesmo e exigido im­piedosamente pelo trabalho abstrato, ele labutara por Gramarye desde antes que pudesse se lembrar. Nem sequer compreendera completamente o que estava fazendo, besta de carga seguindo a trilha. E sempre, agora ele sabia, Merlin estava por trás dele — aquele velho e impiedoso crente — e o homem na frente: feroz, estúpido, não político.

Eles queriam, agora percebia, que ele voltasse ao trabalho: fazer tudo pior, e mais. Justo quando ele tinha desistido, justo quando es­tava chorando e derrotado, justo quando o velho boi tinha desabado no sulco, eles tinham vindo outra vez para levantá-lo. Tinham vindo para ensinar mais uma lição, e mandar que prosseguisse.

Mas ele jamais tivera uma felicidade própria, nunca tivera a si mesmo: nunca desde que era um menino na Floresta Sauvage. Não foi justo terem roubado tudo dele. Eles o tinham feito como o pin­tassilgo dourado cego do qual falavam, que tinha que cantar para o homem até arrebentar o coração, mas sempre cego.

Ele sentia, agora que o tinham tornado mais novo, a intensa beleza do mundo que lhe negaram. Ele queria ter alguma vida; dei­tar na terra e sentir seu cheiro. Olhar para o céu como anthropos, e se perder nas nuvens. De repente soube que ninguém, vivendo no mais remoto e estéril penhasco do oceano, podia se queixar da pai­sagem maçante enquanto pudesse levantar os olhos. No céu havia uma paisagem nova a cada minuto, e em cada poça dos rochedos marinhos, um novo mundo. Ele queria tempo livre para viver. Não queria ser mandado de volta para puxar, de olhos baixos, o enfado­nho jugo. Ainda não era realmente velho, mesmo agora. Talvez fos­se capaz de viver mais uns dez anos — mas anos ao sol, anos sem cargas, anos com os pássaros cantando como ainda cantavam, sem dúvida, embora tivesse deixado de notá-lo até que os animais o fizessem se lembrar.

Por que teria que voltar ao Homo ferox, provavelmente para ser morto por aqueles que tentava ajudar, e se não, com certeza, exer­cer seu ofício até o fim da vida, quando podia abdicar do trabalho? Podia sair agora, direto do outeiro, e jamais ser visto. Os monges da Tebaida, os santos primitivos na Skellig Michael: essas pessoas afor­tunadas tinham escapado do homem, para uma natureza rodeada de paz. E era isso que ele queria, descobriu, mais que qualquer outra coisa — apenas Paz. Mais cedo naquela noite ele desejara a morte, e estava pronto a aceitá-la; mas agora eles tinham deixado que vis­lumbrasse a vida, a velha felicidade e as coisas que ele amava. Eles tinham revivido, cruelmente, sua meninice. Ele queria ser deixado só, não ter deveres como um menino, retirar-se talvez para um claustro, ter tranqüilidade para seu próprio e velho coração.

Mas eles o despertaram com palavras, suas armas cruéis e bri­lhantes.

— Agora vamos, Rei. Temos que ver os gansos, antes que a noite termine.

— Está se sentindo melhor?

— Alguém viu a poção mágica?

— Você parece cansado.

— Toma um gole de vinho antes de ir.

 

O lugar onde ele estava agora era absolutamente liso. No mundo humano raramente vemos superfícies lisas, pois as árvores e casas e sebes dão um perfil ondulado à paisagem. Mesmo a grama estende a miríade de suas lâminas. Mas aqui, no ventre da noite, a lama molhada, ilimitada, era tão lisa quanto um pudim ne­gro. Se fosse areia molhada, mesmo isso, teria aquelas pequenas marcas de ondas, como o palato da boca.

Nessa enorme vastidão lisa, vivia um elemento — o vento. Pois o vento era um elemento. Era uma dimensão, um poder da es­curidão. No mundo humano, o vento vem de algum lugar e vai para outro e, nessa caminhada, passa por lugares — árvores ou ruas ou cercas-vivas. Este vento vinha de nenhum lugar. Passava pela planura de nenhum lugar, até nenhum outro. Horizontal, sem ruí­do, exceto por uma ressonância tangível, seu peso dimensional as­sombroso que se estendia pela lama. Podia ter sido traçado com uma régua. Sua titânica linha cinzenta era inamovível e sólida. Você podia pendurar nele um guarda-chuva, e ele ali ficaria pendurado.

O Rei, rosto voltado para esse vento, sentia-se como não cria­do. Exceto pela solidez molhada sob seus pés palmípedes, vivia no nada — um nada sólido, como o caos. Suas sensações eram as de um ponto geométrico, existindo misteriosamente na menor distância entre dois pontos; ou as de uma linha desenhada numa superfície plana que tivesse comprimento, largura, mas nenhuma magnitude. Nenhuma magnitude! Era a própria essência da magnitude. Era energia, corrente, força, direção, uma torrente do mundo sem vi­bração mas constante, no limbo.

Fronteiras tinham sido colocadas nesse purgatório profano. Longe ao leste, talvez a uns dois quilômetros de distância, havia uma inquebrantável parede de som. Ela oscilava um pouco, pare­cendo se expandir e se contrair, mas era sólida. Era ameaçadora, desejosa de vítima: pois era o imenso, o implacável oceano.

Cerca de três quilômetros a oeste havia três pontos de luz for­mando um triângulo. Eram as fracas lamparinas das cabanas de pes­cadores, que tinham se levantado cedo para pegar a maré nos canais complicados do pântano de sal. Suas águas às vezes corriam na di­reção contrária à do oceano. Essas eram as características completas de seu mundo — o ruído do mar e essas três pequenas luzes; escu­ridão, planura, vastidão e umidade; e, no golfo da noite, a corrente do golfo.

Quando a luz do dia começou a aparecer, ele descobriu, por premonição, que estava de pé no meio de uma multidão de indiví­duos como ele. Estavam pousados na lama, que agora começava a ser perturbada pelo mar raivoso, baixo, que retornava, ou então já estavam correndo na água, despertados por ela, mas fora da pertur­bação da arrebentação. Os que estavam pousados eram grandes chaleiras, os bicos enfiados debaixo das asas. Os que nadavam, às vezes mergulhavam as cabeças e as sacudiam. Alguns, despertando na lama, levantavam-se e sacudiam vigorosamente as asas. O silên­cio profundo era quebrado pelo tagarelar de uma conversa. Havia cerca de quatrocentos deles na vizinhança cinzenta — criaturas muito bonitas, os Gansos Selvagens de testa branca, os quais, uma vez vistos de perto, homem algum jamais esquece.

Muito antes de o Sol aparecer, todos já estavam se preparando para o vôo. Grupos familiares constituídos no ano anterior iam se reunindo em bandos, e esses bandos por sua vez se uniam a outros, possivelmente sob o comando de um avô, ou de um líder proemi­nente do bando. Quando os grupos se completavam, surgia um leve tom de excitação nas falas. Começavam a mover as cabeças de um lado para o outro, às sacudidelas. Então, voltando-se para o vento, de repente estavam todos voando juntos, catorze ou quarenta de uma vez, com as amplas asas escavando a escuridão e um grito de triunfo nas gargantas. Depois giravam, subindo rapidamente, e desapareciam de vista. Vinte metros acima e já desapareciam na escuridão. As primeiras saídas não vocalizavam muito. Tendiam a ser taciturnos antes de o Sol nascer, fazendo apenas observações ocasionais, ou gritando seu aviso de alarme de uma nota só ao perceberem alguma ameaça. Escutando o aviso, todos subiam verticalmente para o céu.

Ele começou a se sentir incomodado. Os esquadrões nas som­bras ao seu redor, muito próximos a ele, largando a cada minuto, o contagiavam. Começou a ficar inquieto e a querer seguir o exem­plo deles, mas estava acanhado. Talvez os grupos familiares, pensou, se ressentissem com sua intrusão. E não queria voar sozinho. Queria se juntar e desfrutar do exercício do vôo matinal, que evi­dentemente era um prazer. Havia camaradagem, disciplina livre e joie de vivre.

Quando o ganso que estava a seu lado estendeu as asas e sal­tou, ele automaticamente fez o mesmo. Uns oito dos que estavam perto tinham batido os bicos e ele os imitara como se aquilo fosse contagioso, e agora, com os mesmos oito, se viu asa a asa subindo horizontalmente pelo ar. No momento em que deixou a terra, o vento tinha desaparecido. Sua agitação e brutalidade sumiram, como se cortadas por uma faca. Ele estava dentro dele, e em paz.

Os oito gansos estenderam sua formação de linha, com espaços regulares entre si, ele no final. Tomaram o rumo leste, onde estavam as luzes fracas e agora, diante deles, a bola do Sol começava a apa­recer. Uma explosão de laranja-vermelho rompeu a escuridão do banco de nuvens para além da terra. O resplendor se espalhou, o pântano salgado tornando-se cada vez mais visível abaixo. Ele o via como uma charneca ou pântano de características indefinidas que se tornara marítimo por acidente — suas urzes, ainda parecendo urzes, tendo se associado com algas marinhas até se tornarem urzes salga­das e encharcadas, com frondes escorregadias. Os riachos que de­viam correr pela charneca eram de água do mar sobre lama azulada. Havia redes compridas aqui e ali, levantadas em postes, nas quais gansos distraídos podiam se chocar. Esses, ele agora se dava conta, devem ter sido a origem dos avisos. Dois ou três marrecos pendiam de uma delas, e bem longe, a leste, um homem, que parecia uma mosca, laborava em cima da lama, com diminuta persistência, para encher sua bolsa.

O Sol, quando se levantou, tingiu de chamas o mercúrio dos riachos e a própria lama brilhante. Os maçaricos, que piavam suas queixas fúnebres desde muito antes de a luz aparecer, saíram voando do meio das ervas daninhas. Os patos selvagens, que ti­nham dormido na água, chegavam piando suas notas duplas, como os silvos de um foguetinho. Os marrecos, penosamente, le­vantavam vôo da terra, contra o vento. As narcejas corriam e se acotovelavam como camundongos. Uma nuvem de pequenas narcejas do norte, mais compactas que os estorninhos, giravam no ar com o ruído de um trem. Aos gritos animados, a guarda ne­gra dos corvos subiu dos pinheiros das dunas. Pássaros costeiros de todos os tipos povoavam a linha da maré, enchendo-a de ati­vidade e beleza.

O alvorecer, o alvorecer marinho e a maestria do vôo coorde­nado tinham beleza tão intensa que ele quis cantar. Todos os pesa­res de seus pensamentos sobre o homem, os miseráveis desejos de paz que o tinham assediado nos últimos tempos na Sala do Acordo, todos saíram dele naquele momento na glória de suas asas. Queria cantar um coro à vida e, já que mil gansos estavam a seu lado no ar, não teve que esperar muito. As linhas dessas criaturas, ondulantes como a fumaça nos céus ao saudar o nascer do Sol, cantavam e riam ao mesmo tempo. Cada esquadrão tinha uma voz diferente, alguns na pândega, outros triunfantes, outros sentimentais ou alegres. A abóbada da alvorada se enchia de arautos, e isso é o que cantavam:

 

Tu, mundo que giras, deslizando sob nossas asas aladas,

Levanta o venerável Sol para saudar os favoritos da alvorada.

Veja, em cada peito, o escarlate e o vermelhão,

Escuta, de cada garganta, o clarim e o carrilhão.

Escuta as selvagens linhas em formações vibrantes,

Trompetes e caçadores celestiais, corcéis da aurora brilhante.

Livre, livre; longe e longe; e belo em asa ondulante,

Chega o ganso de testa branca com seu som cantante.

 

Ele se viu em um campo comum, em plena luz do dia. Seus com­panheiros de vôo pastavam à sua volta, arrancando a relva com puxões laterais dos bicos pequenos e flexíveis, inclinando os pesco­ços em voltas abruptas, bem diferentes das curvas graciosas do cisne. Sempre, enquanto se alimentavam, um deles ficava de guarda, o pes­coço levantado como se fosse uma cobra. Haviam se acasalado nos meses de inverno, ou então nos invernos anteriores, assim tinham a tendência de se alimentar aos pares dentro da família e do esquadrão. A jovem fêmea, sua vizinha na planura de lama, estava em seu pri­meiro ano. Mantinha um olhar inteligente em sua direção.

O velho que tinha se lembrado de sua juventude, observando-a secretamente, não pôde evitar achá-la bela. Até mesmo sentiu ternura por seu peito penugento; por sua compleição compacta e roliça e o conjunto de sulcos no pescoço. Esses sulcos, ele verifi­cou com os cantos dos olhos, eram o resultado de uma diferença na plumagem. As penas eram côncavas, o que separava umas das outras, formando uma textura de cristas que ele achou graciosa.

Naquele instante a jovem gansa lhe deu um empurrão com o bico. Ela estava de sentinela.

— Agora é a sua vez — disse, abaixou a cabeça sem esperar res­posta e, no movimento, começou a pastar. Para se alimentar, ela saiu de perto dele.

Ele ficou de sentinela. Mas não sabia o que estava vigiando, nem conseguia perceber inimigo algum, só as moitas de capim e seus companheiros bicando. Mas não estava chateado de ficar de sentinela para eles. Surpreendeu-se ao constatar que não lhe abor­recia aparentar masculinidade, caso a dama o estivesse observando. Era ainda muito inocente, depois de todos seus anos, para saber que ela certamente estaria fazendo isso.

— O que você está fazendo? — ela perguntou, passando por ele depois de uma meia hora.

— Estou de guarda.

— Então, continue — ela disse com um risinho, ou seria um grasnido? — Você é bobo.

— Por quê?

— Você sabe.

— Honestamente — ele disse — não sei. Estou agindo errado? Não compreendo.

— Bique o seguinte. Você já está aí pelo menos o dobro do tempo que lhe toca.

Fez como ela tinha dito, e o ganso adiante dele assumiu o pos­to, e então ele foi comer ao lado dela. Eles mordiscavam, observan­do um ao outro com os olhos redondos.

— Você acha que eu sou estúpido — disse ele timidamente, confessando pela primeira vez a um animal o segredo de sua verda­deira espécie —, mas isso é porque não sou um ganso. Nasci huma­no. Na verdade este é o meu primeiro vôo com o povo cinza.

Ela ficou levemente surpresa.

— Não é comum — disse. — Os humanos geralmente experimentam os cisnes. Os últimos que andaram por aqui foram os Filhos de Lir. De qualquer forma, acho que todos somos anseriformes.

— Já ouvi falar dos Filhos de Lir.

— Eles não gostaram. Eram definitivamente nacionalistas e re­ligiosos, sempre circulando ao redor de uma das capelas na Irlanda. Pode-se dizer que mal notaram os outros gansos.

— Eu estou gostando.

— Achei que sim. Por que o mandaram para cá?

— Para minha educação.

Os dois pastaram em silêncio, até que suas próprias palavras o lembraram de algo que queria perguntar.

— As sentinelas — perguntou. — Estamos em guerra? Ela não compreendeu a palavra.

— Guerra?

— Estamos combatendo pessoas?

— Combatendo? — ela perguntou em dúvida. — As vezes, os machos combatem por suas fêmeas e coisas assim. Mas é claro que não se derrama sangue, é só uma rixa, para saber quem é o melhor. E isso que você quer dizer?

— Não. Quero dizer combater contra exércitos, contra outros gansos, por exemplo.

Ela estava se divertindo.

— Que ridículo! Você quer dizer um bando de gansos ficar se atracando ao mesmo tempo. Seria divertido ver.

Seu tom o surpreendeu.

— Divertido vê-los se matando?

— Se matando? Um exército de gansos matando uns aos ou­tros?

Ela começou a compreender a idéia, devagar e cheia de dúvi­das, com uma expressão de desgosto no rosto. Quando compreen­deu, saiu de perto. Foi para outra parte do campo em silêncio. Ele a seguiu, mas ela lhe deu as costas. Dando voltas para captar seu olhar, ficou surpreendido com o desgosto que viu — como se ele ti­vesse feito alguma sugestão obscena. Ele disse, queixoso:

— Desculpe-me, você não compreende.

— Pare de falar sobre o assunto.

— Desculpe-me.

Depois acrescentou, aborrecido:

— Uma pessoa pode perguntar, acho. Parece uma pergunta natural sobre as sentinelas.

Mas ela estava realmente zangada, quase às lágrimas.

— Pare com isso de uma vez! Que mente horrível você deve ter! Não tem o direito de dizer essas coisas. E claro que existem sen­tinelas. Aí estão os falcões e as águias, não é? E as raposas e os arminhos e os humanos com suas redes? Todos são inimigos naturais. Mas que tipo de criatura pode ser tão baixa a ponto de sair em ban­dos para assassinar outros de seu próprio sangue?

Ele pensou: é uma pena que não existam grandes animais pre­dadores dos homens. Se houvesse dragões e pássaros rocas em nú­mero suficiente, talvez a humanidade voltasse seu poder contra eles. Infelizmente os predadores dos homens eram os micróbios, que são pequenos demais para serem considerados.

Depois, alto, ele disse:

— Estava tentando aprender.

Ela se abrandou, esforçando-se para ser compreensiva. Se pu­desse, gostaria de ter uma mente aberta e, na verdade, tinha tendên­cias literárias.

— Você tem um longo caminho pela frente.

— Então você precisa me ensinar. Tem que me contar sobre o povo dos gansos, para que eu desenvolva minha mente.

Ela ficou em dúvida, depois do choque que ele lhe dera, mas seu coração não tinha malícia. Como todos os gansos, ela era tão gentil que podia perdoar facilmente. Logo ficaram amigos.

 

O homem, o orgulhoso homem, esta aqui no século vinte, complacentetnente acreditando que a raça "progrediu" no curso de mise­ráveis mil avôs, e se ocupando de explodir seus irmãos em pedaços.

 

— O que você gostaria de saber depois?

Ele descobriu, nos dias seguintes, pois passaram muito tempo juntos, que Lyó-lyok era uma pessoa encantadora. Ela lhe disse seu nome logo no começo, e tinha lhe aconselhado que escolhesse um para si. Eles tinham escolhido Kee-kwa, um título prestigioso tira­do dos raros gansos de peito vermelho que conhecera na Sibéria. Depois disso, quando já se tratavam pelo nome, ela se empenhou com afinco na sua educação.

A mente de Lyó-lyok não se dedicava somente ao flerte. Ela as­sumia um interesse racional pelo amplo mundo, da maneira pru­dente que a caracterizava e, apesar de ficar intrigada pelas pergun­tas dele, aprendeu a não se chocar com elas. A maior parte dessas perguntas estava baseada na sua experiência com as formigas, e por isso é que a intrigavam.

Ele queria saber sobre nacionalismo, sobre os controles esta­tais, liberdade individual, propriedade e coisas assim: as coisas cuja importância tinham sido mencionadas na Sala do Acordo, ou que ele tinha notado no formigueiro. Como a maior parte dessas coisas tinha que primeiro ser explicada a ela, antes que ela pudesse se ex­plicar, eram tópicos interessantes para conversar a respeito. Eles conversavam amigavelmente, e, na medida em que sua educação prosperava, o velho surpreso começou a sentir uma espécie de hu­mildade profunda e mesmo afeição pelos gansos — muito parecidos com os sentimentos que Gulliver deve ter sentido entre os cavalos.

Não, ela lhe explicava: não havia controles estatais entre as pes­soas cinzas. Eles não tinham posses comunitárias, nem reclamavam qualquer parte do mundo. O adorável globo, pensavam, não podia pertencer a ninguém, senão a si mesmo, e todos os gansos tinham acesso às suas matérias-primas. Tampouco havia disciplina estatal imposta aos pássaros individualmente. A história de como uma for­miga ao regressar podia ser condenada à morte se não vomitasse um pouco de comida quando solicitada simplesmente a revoltou. Entre os gansos, disse ela, todos comiam o tanto que pudessem agüentar e, se avançassem no território de um indivíduo que tivesse desco­berto um trecho suculento de grama, este adequadamente os bica­ria. E sim, disse ela, eles tinham propriedade privada além da comi­da — um casal voltava sempre para o mesmo ninho, ano após ano, ainda que tivessem viajado milhares de quilômetros entre uma e ou­tra ocasião. O ninho era particular, assim como a vida familiar. Os gansos, ela explicou, não eram promíscuos em suas relações amoro­sas, salvo na adolescência, o que, ela acreditava, era como deveria ser. Quando eles se casavam, casavam para o resto de suas vidas. A política deles, pelo menos na medida em que tinham alguma, era patriarcal ou individualista, baseada na livre escolha. E é claro que jamais faziam guerra.

Ele lhe perguntou sobre o sistema deles de liderança. Era ób­vio que certos gansos eram aceitos como líderes — geralmente eram cavalheiros veneráveis cujos peitos eram muito listrados — e que es­ses líderes voavam na frente da formação. Lembrando das rainhas formigas que, como os Bórgias, assassinavam umas às outras pelos postos mais altos, ele perguntou como os capitães dos gansos eram eleitos.

Eles não eram eleitos, disse ela, pelo menos de maneira formal. Eles simplesmente se tornavam capitães.

Quando ele a pressionou mais sobre o assunto, ela disparou uma longa fala sobre migração. Foi assim que ela colocou:

— Suponho que o primeiro ganso que voou da Sibéria até o Lincolnshire e voltou para lá — disse ela — deve ter criado sua fa­mília na Sibéria. Então, quando o inverno chegou e foi necessário encontrar mais comida, deve ter tentado refazer o caminho pela rota que só ele conhecia. Deve ter sido seguido por sua família cres­cente, ano após ano; foi seu piloto e almirante. Quando chegou seu momento de morrer, obviamente os melhores pilotos eram seus filhos mais velhos que tinham percorrido a rota com ele mais vezes do que os outros. Naturalmente os filhos mais novos e os recém-emplumados estariam inseguros quanto ao caminho e, portanto, devem ter ficado agradecidos por ter alguém para seguir. Talvez, entre os filhos mais velhos, houvesse alguns reconhecidos por todos como estúpidos, e a família dificilmente confiaria neles.

"É assim que se escolhe um almirante — disse ela. — Pode ser que Wink-wink no outono venha até nossa família e diga: "Descul­pem-me, mas será que por acaso vocês têm um piloto confiável? O pobre vovô morreu na época das cerejas, e o Tio Onk não é eficien­te. Estamos procurando alguém a quem seguir". E aí nós diremos: "O Tio-avô vai ficar feliz se vocês pegarem carona conosco. Mas, vejam bem, não nos responsabilizamos se as coisas não forem boas". "Muito obrigado", ele dirá. "Tenho certeza de que podemos confiar no Tio-avô. Vocês se importam se eu tocar nesse assunto com os Honks, que, fiquei sabendo, estão com a mesma dificuldade?". "De maneira nenhuma."

“E assim — explicou ela — foi como o Tio-avô se tornou um almirante”.

— É uma boa maneira.

— Olha só as divisas dele — ela disse, com respeito, e ambos deram uma olhada no imponente patriarca, cujo peito realmente era cheio de listras negras, tal como as fitas douradas na manga dos al­mirantes.

Em outra ocasião ele perguntou sobre as alegrias e ambições dos gansos. Ele contou, se desculpando, que entre os seres humanos uma vida sem ações espetaculares, ou mesmo sem guerra, tenderia a ser vista como tediosa.

— Os humanos — ele disse — fazem para si mesmos grandes quantidades de ornamentos, riquezas, luxos e prazeres e assim por diante. Isso lhes dá um objetivo na vida. Também se considera que leva à guerra. Mas receio que caso se vissem reduzidos a um míni­mo de posses, com o que vocês gansos ficam satisfeitos, eles ficariam infelizes.

— Com certeza ficariam. Os cérebros deles são formados de maneira diferente dos nossos. Se você tentasse fazer os humanos viverem exatamente como os gansos, seriam tão infelizes quanto seriam os gansos se você tentasse fazê-los viver como os humanos. Isso não quer dizer que uns não possam aprender um pouco com os outros.

— Começo a achar que os gansos não podem aprender muito conosco.

— Nós estamos há milhões de anos na Terra mais que vocês, po­bres criaturas, portanto vocês não podem ser considerados culpados.

— Mas me conte sobre seus prazeres, suas ambições ou objeti­vos, seja lá como vocês chamem — pediu ele. — Certamente são muito limitados?

Ela riu com isso.

— Nosso principal objetivo na vida é estarmos vivos — ela res­pondeu, divertida. — Acho que vocês humanos devem ter se esque­cido disso. Nossos prazeres, entretanto, se forem comparados com ornamentos e riquezas, não são tão aborrecidos quanto parecem. Temos uma canção sobre eles, chamada Dádiva da vida.

— Cante-a.

— Farei isso, num minuto. Mas devo dizer, antes de começar, que sempre me pareceu uma pena que uma grande dádiva tenha sido deixada de fora. Supõe-se que as pessoas na canção estão can­tando sobre as alegrias dos gansos, e ninguém menciona viajar. Acho isso uma bobagem. Viajamos mil vezes mais que os humanos, e vemos tantas coisas interessantes, e temos mudanças deliciosas e novidades o tempo todo, que não compreendo como o poeta pode ter se esquecido disso. Ora, minha avó foi até Micklegarth; tive um tio que foi até Burma, e um tio-bisavô dizia que tinha visitado Cuba.

Como o Rei sabia que Micklegarth era o nome escandinavo para Constantinopla, mas mal tinha escutado T. natrix falar de Bur­ma e Cuba ainda não tinha sido inventada, ficou realmente impres­sionado.

— Deve ser uma maravilha viajar — disse ele.

Ele pensou nas adoráveis asas, e nas canções de vôo, e no mun­do se derramando, sempre novo e novo enquanto eles voavam.

— Esta é a canção — disse ela sem mais preâmbulos, e come­çou a cantá-la graciosamente no tom de um ganso selvagem.

 

A Dádiva da Vida

Ky-yow respondeu: a dádiva da vida é a saúde.

Pé de pato, Pena lisa, Pescoço flexível, Olho limpo:

Esses têm a riqueza do mundo.

Velho Ank respondeu: a honra é toda nossa.

Desbravador de caminhos, Provedor do povo, Planejador e Sábio comandante:

Estes ouviram a chamada.

Lyó-lyok, a alegre, disse: Amor tive por vida.

Penas macias, Passos suaves, Ninho quente e Caminhar na linha:

Esses vivem para sempre.

Aahng-ung era por Apetite. Ah, ele disse:

Comer! Comedor de gororoba, Rasgador de grama, Espreitador de Restolho,

Enchedor de papo: Esses batem as asas.

Wink-wink louva a Camaradagem, a livre e justa Fraternidade.

Alinhem-se à popa, Escalonem, Ponta a frente, Sobre as nuvens:

Estes aprendem a Eternidade.

Mas eu escolhi as fortes cadências que ficam no ar.

Música de trompete, Canções de risos, Coração épico, Imitador do mundo.

Esse é Lyow, o cantor.

 

Era uma bela canção, de certa forma, pensou ele, cantada com suave gravidade. Ele começou a contar nos dedos as dádivas que ela havia mencionado — mas como só tinha três na frente e uma espé­cie de calombo atrás, teve que dar duas voltas. Viagem, saúde, hon­ra, amor, apetite, camaradagem, música, poesia e, como ela tinha declarado, o próprio fato de estar vivo.

Não parecia ser uma lista tão má assim na sua simplicidade, particularmente porque ela poderia ter acrescentado algo como Sa­bedoria.

 

Mas havia uma excitação crescente no bando. Os jovens gan­sos flertavam abertamente ou se reuniam em grupos para discutir sobre seus pilotos. Também faziam brincadeiras, como crianças na expectativa de uma festa. Um desses jogos consistia em fazer um círculo, enquanto jovens machos, um depois do outro, iam até o meio com os pescoços esticados, fingindo assobiar. Quando estavam no meio do círculo corriam o último pedaço batendo as asas. Mostravam, assim, como eram valentes e que almirantes exce­lentes seriam quando crescessem. Também começou a se espalhar entre eles o estranho hábito de sacudir os bicos para os lados, que era comum antes do vôo. Os anciãos e sábios, que conheciam as ro­tas de migração, também começaram a ficar inquietos. Ficavam atentos às formações de nuvens, avaliando o vento e sua força, e de onde estavam vindo. Os almirantes, cheios de responsabilidades, desfilavam pelo tombadilho com passadas imponentes.

— Por que estou inquieto? — ele perguntou. — Por que estou com essa sensação no meu sangue?

— Espere e verá — disse ela, misteriosamente. — Amanhã, tal­vez, ou depois de amanhã...

E seus olhos assumiram uma expressão sonhadora, um olhar ao longe e de muito tempo atrás.

Quando o dia chegou, havia uma diferença entre o pântano sal­gado e a lama da margem. O homem que parecia uma formiga cami­nhando pacientemente todas as manhãs entre suas grandes redes, com as marés bem gravadas na cabeça — pois um erro ali significava a morte certa —, ouviu um clarim distante no céu. Já não viu milhares nas planícies de lama, e não viu nenhum nos pastos, de onde viera. A seu modo, era um sujeito simpático — pois ficou solenemente para­do e tirou o chapéu de couro da cabeça. Ele fazia isso religiosamente todas as primaveras, quando os gansos selvagens o deixavam, e todos os outonos, quando via o primeiro bando regressar.

Quanto tempo se leva para cruzar o Mar do Norte? Num va­por, são dois ou três dias, muitas horas passando por cima das águas viscosas. Mas para os gansos, para os marinheiros do ar, para as cu­nhas angulares que fazem retalho das nuvens, para os cantores dos céus com o vento por trás — uns cento e dez quilômetros por hora atrás de outros cento e dez —, para esses misteriosos geógrafos — a quase cinco quilômetros acima, dizem, com os cúmulos a seus pés em vez de água —, para eles a coisa era diferente.

O Rei jamais tinha visto seus amigos tão alegres. As canções que cantavam, hora após hora, estavam cheias de alegria. Algumas eram vulgares, que deixaremos para transcrever outra hora, outras eram sagas belas para além de qualquer comparação, outras até leves. Uma boba que o divertiu era assim:

 

Zanzamos pelos céus ao som de donk

E baixamos sobre os pastos com um plonk

Hank-hank, Hink-hink, Honk-honk.

Baixamos o pescoço, soltando um plink

Conto a água pinga na pia com um tlink

Honk-honk, Hank-hank, Hink-hink.

Vamos comer em grupo fazendo hank

Rasgando a relva com um yank

Hink-hink, Honk-honk, Hank-hank.

Mas Hink ou Honk gostamos todos de Plonk,

E Honk ou Hank gostamos todos do yank

E Hank ou Hink fazemos todos umyink .

Para Honk, ou Hank ou Hink!

 

Uma sentimental era assim:

 

Selvagem e livre, selvagem e livre.

Tragam meu ganso de volta para mim, para mim.

 

E uma vez, quando passavam por uma ilha rochosa habitada por gansos-bernacas, que pareciam solteironas com luvas de couro preto, chapéus de cozinheiro cinzas e contas azeviche, todo o esqua­drão disparou, escarnecendo:

 

Bernaca Branta se espoja na lama,

Bernaca Branta se espoja na lama,

Bernaca Branta se espoja na lama,

Enquanto voando vamos nós

Glória, glória, vamos lá, querida.

Glória, glória, vamos lá, querida.

Glória, glória, vamos lá, querida.

Vara o Pólo Norte voando juntos.

 

Mas não adianta tentar falar sobre a beleza. Era simplesmente que a vida era bela além de qualquer crença, e que era um tipo de alegria que tem que ser vivida.

Às vezes, quando desciam da altura dos cirros para apanhar melhores ventos, viam-se no meio de rebanhos de cúmulos, imen­sas torres moldadas com vapor, tão brancas quanto roupa recém-lavada e sólidas como merengues. Às vezes, uma dessas florescências do céu, esses salpicos brancos de neve de um gigantesco Pégaso, se estenderiam diante deles por quilômetros e quilômetros. Eles esta­beleciam o curso em direção a elas, observando como ficavam cada vez silenciosa e imperceptivelmente maiores, um crescimento imó­vel — e então, quando estavam quase nelas, quando estavam pres­tes a chocar os narizes contra aquela massa aparentemente sólida, o sol obscurecia. Espectros de bruma subitamente se moviam como serpentes do ar, girando ao redor deles por um segundo. A umida­de cinza os envolvia, e o sol, moedinha de cobre, se esvanecia. As asas próximas às suas próprias asas sombreavam o nada, até que cada pássaro era um som solitário, uma presença depois da não-criação. E lá pairavam no nada não mapeado, aparentemente sem velocida­de, sem direita nem esquerda, sem topo nem fundo, até que então, de repente, a moedinha de cobre brilhava e as serpentes encolhiam. Então, num instante, estavam novamente no mundo adornado de jóias — o mar abaixo deles como turquesa e todos os belos lugares do paraíso recém-criados, com o orvalho do Éden ainda pairando.

Um dos marcos da migração chegava quando passavam uma falésia sobre o oceano. Havia outros marcos quando, por exemplo, a linha de vôo cruzava com uma fila indiana de cisnes que iam para Abisco, fazendo um ruído que parecia o latido de cães abafado por um lenço, ou quando ultrapassavam uma coruja chifrada avançan­do, intrépida, sozinha, entre cujas penas quentes da costa, dizia-se, um pequeno filhote pegava carona. Mas a ilha solitária era o melhor. Era uma cidade de pássaros. Todos chocando, todos discutin­do e, no entanto, todos amistosos. No alto do rochedo, onde a tur­fa curta era encontrada, uma miríade de mergulhões ocupava-se com suas tocas. Abaixo deles, na Rua do Bico Afiado, os pássaros es­tavam tão próximos uns dos outros, e em plataformas tão estreitas, que tinham de ficar de costas para o mar, segurando-se fortemente com as patas. Na Rua das Alcas, abaixo daquela, as alcas mantinham seus rostos afilados, que pareciam brinquedos, virados para cima, tal como os tordos quando estão chocando. Mais embaixo estavam os Cortiços das Gaivotas-de-Bico. E todos os pássaros que, como os humanos, só punham um ovo cada um estavam tão apertados que suas cabeças se entrelaçavam — e tinham tão pouco desse nosso fa­moso espaço vital que, quando um novo pássaro insistia em pousar na saliência que já estava lotada, um dos outros tinha que cair fora. Eram como uma multidão incontável de vendedoras de peixe na maior banca de mercado do mundo, se metendo em brigas particu­lares, comendo em sacos de papel, xingando os árbitros, ralhando com seus filhos e se queixando dos maridos.

— Mexa um pouco para lá, titia — diziam. Ou:

— Saia do caminho, vovó.

— A danada da Flossie foi para lá e se sentou em cima dos pe­quenos.

— Guarde o caramelo no bolso e assoe o nariz.

— Ora, ora, se não é o tio Albert com a cerveja.

— Tem espaço para uma criança?

— Lá se foi tia Emma. Caiu da plataforma.

— Meu chapéu está no lugar?

— Droga, que confusão.

As espécies se mantinham mais ou menos juntas, mas não brigavam por isso. Aqui e ali, na Rua das Alcas, via-se às vezes uma gaivota cinza sentada em uma saliência, decidida a manter seus direitos. Havia talvez meio milhão deles e o barulho que faziam era ensurdecedor.

O Rei não podia deixar de pensar em como uma cidade huma­na de raças misturadas se arranjaria numa situação assim.

Depois vinham os fiordes e ilhas da Noruega. Foi sobre uma dessas ilhas, aliás, que o grande W. H. Hudson escreveu uma his­tória verdadeira de ganso, que devia fazer as pessoas pensarem. Havia um fazendeiro na costa, conta ele, cujas ilhas sofriam com as raposas — então ele colocou uma armadilha para raposas em uma delas. Quando foi ver a armadilha no dia seguinte, descobriu que um velho ganso selvagem fora capturado, obviamente um Grande Almirante, por causa da sua dureza e das muitas divisas. Esse fazendeiro levou o ganso vivo para sua casa, cortou as pon­tas das asas para que não voasse, amarrou suas pernas e o soltou com seus próprios patos e galinhas no quintal. Ora, um dos efei­tos da praga de raposas era que o fazendeiro tinha de trancar o galinheiro à noite. Ele costumava juntá-las ao entardecer e, en­tão, trancava a porta. Depois de um tempo, começou a notar uma coisa curiosa: as galinhas já não precisavam ser reunidas; ficavam esperando por ele na choça. Ele observou esse processo uma tar­de, e viu que o potentado cativo assumira a responsabilidade de reuni-las, o que descobrira com sua própria inteligência. Toda noite, na hora de fechar, o velho almirante sagaz convocava seus companheiros domésticos, cuja liderança tinha assumido, e pru­dentemente os reunia, com esforço próprio, no lugar adequado, como se tivesse compreendido totalmente a situação. E os gansos selvagens livres, que haviam sido liderados por ele, nunca mais pousaram na ilha — que anteriormente era um de seus abrigos — onde seu capitão tinha sumido.

Finalmente, para além das ilhas, estava o pouso de destino do primeiro dia de viagem. Oh, sopro de delícia e autocongratulação! Eles desabavam dos céus, deslizando de lado, fazendo acrobacias e até mergulhos giratórios de nariz para baixo. Estavam orgulhosos de si mesmos e de seu piloto, ansiosos pelos prazeres familiares que os aguardavam.

Percorriam o último trecho planando, com as asas curvadas para baixo. No último momento cavavam o vento com elas, agitando-as vigorosamente. Depois — bump — estavam no chão. Manti­nham as asas acima da cabeça por um instante e logo as dobravam rápida e graciosamente. Tinham cruzado o Mar do Norte.

 

O pantanal siberiano, ao qual chegaram alguns dias depois, era uma concavidade de luz do Sol. Suas montanhas ainda mantinham uma renda de neve que, quando se derretia, criava ria­chos que escorriam como uma inundação de cerveja. Os lagos bri­lhavam sob nuvens de mosquitos e, entre as bétulas anãs ao redor de suas margens, as renas amigáveis vagavam curiosamente, cheirando os ninhos dos gansos, enquanto estes assobiavam na sua direção.

Lyó-lyok imediatamente começou a construir seu berçário, apesar de ainda estar solteira, e o Rei teve tempo para pensar.

Ele não era um homem crítico, certamente não amargo. A trai­ção à que fora submetido por sua raça humana mal tinha começado a lhe pesar. Nunca tinha colocado nesses termos para si mesmo, mas a verdade é que tinha sido traído por todos, até por sua própria es­posa e por seu amigo mais antigo. Seu filho era o menor dos traido­res. Sua Távola tinha se voltado contra ele, ou pelo menos metade dela, e da mesma maneira metade do país pelo qual labutara toda sua vida. Agora lhe pediam que voltasse para servir aos homens da traição, e finalmente compreendia, pela primeira vez, que fazer isso significava seu fim. Pois que esperança tinha ele entre a humanida­de? Eles tinham assassinado, quase invariavelmente, todas as pes­soas decentes que lhes falaram desde o tempo de Sócrates. Tinham até assassinado seu Deus. Qualquer um que lhes dissesse uma ver­dade se tornava objeto legítimo de sua traição, e a sentença que Merlin tinha lhe imposto era a morte.

Mas ali, ele compreendia, entre os gansos, para os quais assas­sinato e traição eram obscenidades, estava feliz e descansado. Ali ha­via esperança para uma pessoa com bom coração. Às vezes um ho­mem cansado, com vocação religiosa para se tornar monge, sentia o anseio ardente de ir para o claustro, para um lugar onde poderia ex­pandir sua alma como uma flor e crescer em direção à sua idéia do bem. Era isso que o velho sentia com repentina intensidade, salvo que seu claustro era o pântano inundado de Sol. Ele desejava liqui­dar o homem dentro de si, e se acomodar.

Se acomodar com Lyó-lyok, por exemplo — parecia-lhe que um espírito fraco podia fazer pior. Ele começou a compará-la me­lancolicamente com as mulheres que tinha conhecido, nem sempre com desvantagem. Ela era mais saudável, e jamais tivera os capri­chos, humores ou histerias. Era tão saudável quanto ele mesmo, tão forte e capaz no vôo. Não havia nada que ele pudesse fazer que ela também não fizesse — assim, a comunidade de interesses seria per­feita. Ela era dócil, prudente, fiel, conversadora. Era muito mais limpa que a maioria das mulheres, pois passava metade do dia se alisando com o bico e a outra metade na água, e seu rosto não era des­figurado por nenhuma mancha de maquiagem. Uma vez casada, não aceitaria outros amantes. Era mais bela que a média das mulheres, pois suas formas eram naturais e não artificiais. Era graciosa e não gingava, pois todos os gansos selvagens caminham graciosamente, e ele tinha aprendido a achar bela a plumagem dela. Seria uma mãe amorosa.

Ele descobriu em seu velho coração um sentimento cálido por Lvó-lyok, mesmo se houvesse pouca paixão. Admirava suas pernas vigorosas, com a saliência no alto, e seu bico limpo. Era serreado como se tivesse dentes, e uma grande língua que parecia ocupar todo o espaço. Ele gostava dela por nunca se apressar.

A preparação do ninho a encantava, o que o fez observar tudo com prazer. Não era um triunfo arquitetônico, mas era o necessá­rio. Meticulosamente, ela cuidou de escolher a relva para o forro, e, depois que finalmente se decidiu, forrou a cavidade na turfa, que pa­recia ser feita de um papel mata-borrão marrom úmido e amassado, com urze, liquens, musgos e lanugem do seu próprio peito. Tudo fi­cou suave como uma teia. Ele tinha contribuído com um pouco de grama, como um presente, mas o que trazia em geral tinha a forma errada. Ao arrancá-la, ele tinha acidentalmente descoberto o mara­vilhoso universo do lodaçal sobre o qual caminhavam.

Pois era um mundo em miniatura, do mesmo tipo que dizem que os japoneses montam em vasos. Mas nenhum jardineiro japo­nês jamais criou uma árvore anã mais parecida com uma verdadeira como o é um ramo de urze, com seus nós regulares pelo tronco, como botoeiras. Ali, a seus pés, havia florestas de árvores nodosas, com clareiras e paisagens. Havia a superfície de musgo parecendo relva e uma camada abaixo de liquens. Havia troncos de árvores caí­das pitorescamente, e até uma estranha espécie de flor: um minús­culo pedúnculo verde-cinza, muito seco e quebradiço, com uma bo­lha escarlate na ponta, como cera de lacre. Havia cogumelos microscópicos, só que suas sombrinhas estavam viradas para baixo, como porta-ovos. E pelo ressequido cenário boscoso corriam, em vez de coelhos e raposas, besouros de um negrume brilhante que pareciam oleosos, e que ajustavam suas asas girando suas pontas. Eram os dragões do encantamento, em vez de coelhos, e eram de infinita variedade — besouros verdes como jóias, aranhas pequenas como cabeças de alfinete, joaninhas como esmalte vermelho. Nas depressões da turfa, elástica à pressão dos pés, havia pequenos po­ços de água marrom povoados por dragões marinhos — salamandras aquáticas e escorpiões-d'água. Ali, no solo mais úmido, via-se uma multidão de musgos, cada um diferente do outro — alguns com pedúnculos vermelhos e cabeça verde, como um milho especial para liliputianos. Ali, onde a urze tinha sido queimada por algum fe­nômeno natural, como o Sol brilhando por trás de uma gota de água — e não pelo homem, que prefere queimar os brejos na primavera, quando estão cheios de ninhos de pássaros —, havia uma desolação de tocos queimados, com minúsculas conchas de lesmas completa­mente descoloridas, não maiores que grãos de milho, e também liquens cor de resina parecidos com esponjas ressecadas, com pe­dúnculos ocos quando ele os quebrava.

E havia a vastidão de tudo aquilo, por cima do tamanho mi­croscópico — havia o cheiro do brejo e o ar limpo, que é mais pun­gente nos brejos —, havia o Sol, positivamente martelando com seu vigor e que só dormia um par de horas por noite. E, Deus nos de­fenda, havia os mosquitos.

Muitas vezes ele pensou que devia ser uma chateação para as aves ficarem sentadas em cima dos ovos. Agora ele sabia que Lyó-lyok teria um universo diante dela para observar, um mundo intei­ro agitando-se embaixo do seu nariz.

Ele propôs o casamento uma tarde, não de forma ardente, pois já conhecia demasiado do mundo, mas com gentileza e esperança, quando estavam no deslumbrante lago. Suas águas, dentro da mol­dura marrom, refletiam o céu numa tonalidade ainda mais profun­da de azul, tão azul quanto os ovos de melros sem as manchas. Ele nadou na direção dela, com a cauda levantada da água, cabeça e pes­coço esticados, como uma cobra nadadora. Falou-lhe de seus sofri­mentos, sua natureza indigna, e sua admiração. Contou-lhe que, ao se unir a ela, esperava escapar de Merlin e do mundo. Lyó-lyok, como sempre, não pareceu surpresa. Ela também abaixou o pesco­ço e nadou em direção a ele. Ele ficou muito feliz ao ver a doçura dos olhos dela.

Mas uma mão negra desceu para agarrá-lo, como você deve ter adivinhado. Ele se viu puxado para trás, não pelas asas, não migran­do mas arrastado pelo imundo funil da magia. Ele agarrou uma pena flutuante enquanto desaparecia, e Lyó-lyok não estava mais diante de seu rosto.

 

— Agora — gritou o mágico, quase antes de o viajante se materializar. — Agora podemos seguir adiante com a idéia principal. Finalmente começamos a ver a luz.

— Dê-lhe um tempo — disse a cabra. — Ele parece infeliz.

Merlin descartou a sugestão.

— Infeliz? Bobagem. Ele está perfeitamente bem. Eu dizia que podemos seguir adiante...

— Comunismo — começou o texugo, que era míope e estava tomado pelo assunto.

— Não, não. Já acabamos com os bolcheviques. Ele tem a pos­se dos dados, e podemos começar a lidar com a Força. Mas temos que permitir que ele pense por si mesmo. Rei, pode escolher qual­quer animal que lhe convier, e eu explicarei por que eles vão ou não vão para a guerra.

"Não há nenhum engano — ele acrescentou, inclinando-se para a frente como se quisesse impor os animais à sua vítima impo­tente, como se fossem docinhos, com um sorriso fascinante. — Pode escolher qualquer animal que lhe agrade. Serpentes, amebas, antílopes, macacos, asnos, axolotles....

— Suponha que ele escolha formigas e gansos — sugeriu ner­vosamente o texugo.

— Não, não. Os gansos não. Gansos são muito fáceis. Temos que ser justos e deixar que ele escolha o que quiser. Que tal as gra­lhas?

— Muito bem — disse o texugo. — Gralhas.

Merlin reclinou-se em sua cadeira, juntou as pontas dos dedos, e limpou a garganta.

— A primeira coisa que temos que fazer — disse ele —, antes de considerar os exemplos, é definir o assunto. O que é Guerra? Guerra, suponho, pode ser definida como o uso agressivo da força entre grupos da mesma espécie. Deve ser entre grupos, pois de ou­tra maneira seria apenas agressão e espancamento. O ataque de um lobo raivoso a uma matilha de lobos não seria uma guerra. E, certa­mente, deve ser entre membros da mesma espécie. Pássaros predando gafanhotos, gatos caçando ratos, ou mesmo atuns caçando arenques — isto é, peixes de uma espécie atuando como predadores de peixes de outra —, nenhum desses é um exemplo verdadeiro de guerra. Portanto vemos que existem duas coisas essenciais: que os combatentes sejam da mesma família, e que essa família seja gregária. Podemos, portanto, começar descartando todos os animais que não são gregários, antes de procurar exemplos de guerra na nature­za. Tendo feito isso, nos vemos com um grande número de animais, tais como os estorninhos, carpas, coelhos, abelhas e milhares de ou­tros. Ao começar nossa busca de guerra entre eles, entretanto, nos deparamos com poucos exemplos. Quantos animais que vocês con­seguem pensar agem agressivamente e de maneira combinada con­tra grupos de sua própria espécie?

Merlin esperou por dois segundos para o velho responder e continuou com seu discurso.

— Exatamente. Você ia mencionar alguns insetos, o homem, vários micróbios ou corpúsculos do sangue — se é que esses podem ser considerados da mesma espécie — e depois não iria encontrar mais nada. A grande imoralidade da guerra é, como já mencionei antes, uma extravagância da natureza. Sentemo-nos, portanto, ali­viados por essa feliz coincidência de poder descartar um monte de dados que poderiam ser realmente difíceis de manejar, e examine­mos as peculiaridades especiais daquelas espécies que realmente se engajam em hostilidades. E o que descobrimos? Descobrimos, como postulariam os famosos comunistas do texugo, que são as es­pécies que possuem propriedade privada as que lutam? Ao contrá­rio, descobrimos que os animais guerreiros são exatamente aqueles que tendem a limitar ou banir posses individuais. São as formigas e as abelhas, com seus estômagos e territórios comunitários, e o ho­mem, com suas propriedades nacionais, que cortam os pescoços uns dos outros; enquanto os pássaros, com suas esposas, ninhos e terri­tórios de caça privados, os coelhos, com suas tocas e estômagos, as carpas, com seus domicílios individuais, e as liras, com suas casas de tesouro e clubes de campo privados, permanecem em paz. Vocês não devem desprezar meros ninhos e territórios de caça como for­mas de propriedade — são tão formas de propriedade para os ani­mais quanto o lar e os negócios para o homem. E o mais importan­te é que são propriedade privada. Os possuidores de propriedades privadas na natureza são pacíficos, enquanto os que inventaram a propriedade pública vão à guerra. Isto, como podem observar, é exatamente o oposto da doutrina totalitária.

"E claro que os possuidores de propriedades privadas na na­tureza às vezes são obrigados a defender suas posses contra a pira­taria de outros indivíduos. Mas isso raramente termina em derra­mamento de sangue, e os homens, eles mesmos, não precisam temer isso, pois nosso Rei já os persuadiu a adotarem o princípio da força policial.

"Mas talvez vocês queiram objetar e dizer que o traço que une os animais guerreiros não seja o nacionalismo: talvez eles façam guerra por outras razões — porque são todos fabricantes, ou todos proprietários de animais domésticos, ou todos agricultores como al­gumas das formigas, ou porque todos têm depósitos de comida. Não vou perturbá-los com a discussão das possibilidades, pois vocês podem examiná-las por si mesmos. As aranhas são grandes fabrican­tes e, no entanto, não guerreiam; abelhas não têm animais domésti­cos nem agricultura e, no entanto, vão à guerra; muitas das belige­rantes formigas não têm estoque de comida. Através de um processo mental como este, tal como achar o Máximo Divisor Comum na matemática, vocês terminarão com a explicação que lhes ofereci. Uma explicação que é, realmente, auto-evidente quando examina­da. A guerra é provocada pela propriedade comunitária, a própria coisa que é defendida por quase todos os demagogos que mascateiam o que chamam de Nova Ordem.

"Já esgotei meus exemplos. Temos que voltar para instâncias concretas, para examinar o caso. Examinemos os viveiros.

"Eis aqui um animal gregário, como a formiga, que vive na companhia de suas camaradas em comunidades aéreas. O corvo é consciente de seu nacionalismo até o ponto de molestar outros cor­vos de congregações distantes, se tentarem construir em suas árvo­res. O corvo não apenas é gregário, como também levemente nacio­nalista. Mas o fato importante é que não reivindica nenhuma propriedade nacional em seus territórios de alimentação. Qualquer campo adjacente que seja rico em sementes ou vermes será freqüen­tado não apenas pelos corvos daquela comunidade como também por todos das comunidades próximas e, na verdade, também pelos pombos e gralhas das vizinhanças, sem que haja hostilidade. Os cor­vos, de fato, não reivindicam propriedade nacional salvo no sentido reduzido da sua área de ninhar, e o resultado é que estão livres do flagelo da guerra. Eles aceitam a verdade natural óbvia de que o acesso às matérias-primas deve ser livre para as empresas privadas. "Voltemos, então, aos gansos: uma das raças mais antigas, uma das mais cultas e uma das mais bem supridas com linguagem. Mú­sicos e poetas admiráveis, mestres do ar há milhões de anos sem ja­mais terem jogado uma bomba, monógamos, disciplinados, inteli­gentes, gregários, morais, responsáveis, sabemos que são inflexíveis em sua crença de que os recursos naturais do mundo não podem ser apossados por nenhuma seita ou família particular de sua tribo. Se existir um bom canteiro de Zostera marina ou um bom campo de restolhos, ali pode estar uma centena de gansos hoje, dez mil ama­nhã. Em um bando de gansos que muda de um campo de alimenta­ção para um campo de descanso podemos encontrar testas-brancas misturadas com pés-rosados e gansos selvagens ou até mesmo com bernacas. O mundo é livre para todos. Mas não pense que são co­munistas. Cada ganso individualmente está preparado para atacar seu vizinho pela posse de uma batata podre, e suas esposas e seus ni­nhos são estritamente privados. Eles não têm nem casa nem estô­mago comunal, como as formigas. E essas belas criaturas, que mi­gram livremente por toda a superfície do globo sem reclamar nenhum pedaço como seu, jamais fizeram uma guerra.

"E o nacionalismo, as exigências de pequenas comunidades por partes da terra indiferente como propriedade comunal, que constitui a maldição humana. Os mesquinhos e bobos defensores do nacionalismo polonês ou irlandês: esses são os inimigos dos ho­mens. Sim, e os ingleses que podem ostensivamente fazer uma grande guerra pelos "direitos das pequenas nações", enquanto eri­gem um monumento para uma mulher que foi martirizada por ob­servar que o patriotismo não era bom o bastante, essas pessoas só podem ser vistas como uma coleção de imbecis benevolentes diri­gidos por vigaristas desnorteados. Nem é justo se fixar nos ingle­ses ou nos poloneses ou nos irlandeses. Todos nós estamos meti-os nisso. E a idiotice geral do Homo impoliticus. Sim, e quando falo rudemente dos ingleses sobre esse assunto, gostaria de imedia­tamente acrescentar que vivi entre eles durante vários séculos. Mesmo sendo uma coleção de vigaristas imbecis, pelo menos se preocupam e são benevolentes, o que não posso deixar de achar preferível à tirania cínica e estúpida dos Hunos que lutam contra eles. Não se enganem sobre isso.

— E qual — perguntou educadamente o texugo — é a solução prática?

— A mais simples e fácil do mundo. Devem-se abolir coisas tais como barreiras tarifárias, passaportes e leis de imigração, con­vertendo a humanidade numa federação de indivíduos. De fato, de­vem-se abolir as nações, e não apenas as nações como também os Estados. De fato, não se deve tolerar unidade maior que a família. Talvez seja necessário limitar os ganhos privados numa escala gene­rosa, por recear que as pessoas muito ricas se tornem uma espécie de nação em si mesmas. Que os indivíduos devam se transformar em comunistas ou qualquer outra coisa é realmente desnecessário, entretanto, e é contra as leis da natureza. No decorrer de mil anos podemos esperar ter uma linguagem comum se tivermos sorte, mas o principal é que temos que tornar possível para um homem que viva em Stonehenge empacotar seus trapos da noite para o dia e buscar sua sorte, sem nenhum impedimento, em Timbuctu...

"O homem pode se tornar migratório — acrescentou como um adendo, com alguma surpresa.

— Mas isso seria um desastre! — exclamou o texugo. — Tra­balhadores japoneses... O comércio seria solapado.

— Bobagem. Todos os homens têm a mesma estrutura física e necessidades de nutrição. Se um cule pode arruiná-lo ao viver com um prato de arroz no Japão, é melhor você ir para o Japão e comprar um prato de arroz. Assim você poderá arruinar o cule, que por então estará, suponho, se divertindo em Londres com o seu Rolls-Royce.

— Mas seria um golpe mortal para a civilização! Iria diminuir o padrão de vida...

— Lorota. Iria aumentar o padrão de vida do cule. Se ele for tão bom quanto você em competição aberta, ou melhor, boa sorte para ele. Ele é o homem que precisamos. Quanto à civilização, olhe só para ela.

— Isso significaria uma revolução econômica!

— Você prefere uma série de Armagedões? Nada de valor ja­mais foi conseguido neste mundo, meu caro texugo, sem que se ti­vesse que pagar por isso.

— Certamente — concordou o texugo de repente —, parece que é o que deve ser feito.

— Agora você percebeu. Deixe os homens envolvidos com suas tragédias mesquinhas, se eles preferem assim, e olhe à sua volta para os duzentos c cinqüenta mil outros animais. Eles, pelo menos, com algumas poucas exceções, têm bom senso político. É uma escolha simples entre a formiga e o ganso, e tudo o que nosso Rei precisará fazer, quando voltar, vai ser tornar óbvia essa situação.

O texugo, que era um feroz opositor de todos os tipos de exa­gero, objetou fortemente.

— Certamente, é uma peça de raciocínio confuso — disse ele — dizer que o homem deve escolher entre as formigas e os gansos. Em primeiro lugar, o homem pode não ser nenhum dos dois e, em segundo lugar, como sabemos, as próprias formigas não se sentem infelizes.

Merlin imediatamente aceita esse argumento.

— Não devia ter dito isso. Era só uma maneira de falar. Na verdade nunca há mais que duas escolhas disponíveis para uma es­pécie: ou evoluem segundo suas próprias linhas de evolução, ou en­tão são liquidadas. As formigas têm que escolher entre serem formi­gas ou serem extintas, e os gansos tiveram que escolher entre a extinção e serem gansos. Não é que as formigas estejam erradas e os gansos certos. Formiguismo é o certo para as formigas e o gansismo é o certo para os gansos. Da mesma forma, os homens terão que es­colher entre serem liquidados ou serem homens de verdade. E uma grande parte de ser homem está na solução inteligente precisamen­te para esses problemas da força, que estivemos examinando sob os olhos de outras criaturas. É isso que o Rei deve tentar fazer que eles percebam.

Archimedes tossiu e disse:

— Desculpe, Mestre, mas sua visão posterior hoje está sufi­cientemente clara para nos dizer se ele terá sucesso?

Merlin coçou a cabeça e limpou seus óculos.

— No final, terá — ele finalmente disse. — Disso eu tenho certeza. Caso contrário, a raça vai perecer como as torcazes ame­ricanas, as quais, devo acrescentar, eram consideravelmente mais numerosas que a família humana, e no entanto se extinguiram no decorrer de uma dúzia de anos no final do século dezenove. Mas, se isso ocorrerá nesta época ou em alguma outra, ainda está obs­curo para mim. A dificuldade de viver de frente para trás e de pen­sar adiante é que fico confuso sobre o presente. Esse também é o motivo pelo qual prefiro escapar para o abstrato.

O velho cavalheiro cruzou as mãos por cima da barriga, aque­ceu os pés na lareira e, refletindo sobre suas próprias dificuldades com o tempo, começou a recitar um de seus autores favoritos.

— Eu vi — ele citou — histórias de homens mortais de dife­rentes raças serem representadas diante dos meus olhos... reis e rai­nhas e imperadores e republicanos e patrícios e plebeus varridos em ordem inversa diante da minha visão... O tempo corre para trás em visões tremendas. Grandes homens morreram antes de conquistar sua fama. Reis foram depostos antes de serem coroados. Nero e os Bórgias, Cromwell e Asquith e os jesuítas desfrutaram da infâmia eterna e depois começaram a merecê-la. Minha pátria mãe... dissol­veu-se na bárbara Britânia; Bizâncio dissolveu-se em Roma; Veneza no Heneti Altino; a Hélade em inumeráveis migrações. Golpes caíram, e todos foram atacados.

No silêncio que se seguiu a esse impressionante quadro, a cabra retornou a um tópico anterior.

— Ele parece infeliz — disse —, seja lá o que você diga.

Então eles olharam o Rei pela primeira vê desde seu regresso e todos ficaram em silencio.

 

Ele os observava com a pena em sua mão. Segurava-a incons­cientemente, seu fragmento de beleza. Manteve-os a distância com ela, como se fosse uma arma capaz de detê-los.

— Eu não vou — disse ele. — Vocês devem procurar outro boi para puxar para vocês. Por que me trouxeram de volta? Por que devo morrer pelo homem quando vocês mesmos a ele se referem de forma tão desdenhosa? Pois seria minha morte. E mesmo verdade que as pessoas são ferozes e estúpidas. Já me impuseram todas as pe­nas, menos a morte. Acham que ouvirão a sabedoria, que o simpló­rio compreenderá e abandonará suas armas? Não, ele me matará por isso: me matará como as formigas matariam uma albina.

"E, Merlin — ele lamentou —, eu tenho medo de morrer por­que nunca tive a oportunidade de viver! Nunca tive vida própria, nem tempo para a beleza, e mal comecei a descobri-la. Você me mostrou a beleza e a arrancou de mim. Você me movimenta como uma peça de xadrez. Você tem o direito de pegar minha alma e tor­cê-la em seu molde, de roubar a mente de minha própria mente?

"Oh, animais, eu falhei com vocês, eu sei. Traí sua confiança. Mas não consigo enfrentar a coleira mais uma vez, porque vocês me levaram longe demais. Por que deveria eu abandonar Lyó-lyok? Nunca fui esperto, mas era paciente, e até mesmo a paciência aca­ba. Ninguém pode agüentar isso a vida inteira.

Eles não ousavam responder, não conseguiam achar nada para dizer.

Sua sensação de culpa e de amor frustrado o fizera infeliz, e agora ele tinha se encolerizado em autodefesa.

— Sim, você é esperto. Você conhece as palavras difíceis e como brincar com elas. Se a frase é bonita, você ri e a diz. Mas você está tagarelando agora sobre almas humanas, e foi para minha alma, a única que tenho, que você apontou. E Lyó-lyok tinha uma alma. Quem fez de vocês deuses para mexerem com o destino, ou lhes deu poder sobre os corações para fazê-los se unirem e depois separá-los? Não vou mais fazer esse trabalho sujo; não vou mais me misturar com seus planos sujos. Vou me retirar para algum lugar tranqüilo com o povo-ganso, onde poderei morrer em paz.

Sua voz quebrou e virou a de um velho e miserável mendigo, enquanto se jogava de volta à cadeira, cobrindo os olhos com as mãos.

O ouriço estava de pé no meio do assoalho. Com seus dedinhos arroxeados firmemente enlaçados, o nariz truculento procurando opositores, respirando pesado, tufos de pêlos mortos eriçados, pe­queno, indignado, vulgar e mordido de pulgas, o ouriço enfrentou o comitê e os desafiou.

— Já chega, tá bem? — exigiu. — Dêem no pé, tá certo? O garoto mererece uma chance.

E colocou seu vigoroso corpo entre eles e seu herói, preparado para derrubar o primeiro que interferisse.

— Ora — ele disse, com sarcasmo. — Um bando de sabibichões, é o que digo. Um belo grupo de Pilatos convencidos, que­rendo dispor do Homem. Trelelé-trololó, trelelé-trololó. Mas se mexererern um dedinho quebro o pescocim de todinhos vocês.

Merlin protestou, infeliz:

Quanto tempo se leva para cruzar o Mar do Norte? Num vapor, são dois ou três dias, muitas horas passando por cima das águas viscosas. Mas para os transas, para os marinheiros do ar, para as cunhas angulares que fazem retalho das nuvens, para os cantores dos céus com o vento por trás — uns cento e dez quilômetros por hora atrás de outros cento e dez —, para esses misteriosos geógrafos — quase cinco quilômetros acima, dizem, com os cúmulos a seus pés em vez de água —, para eles a coisa era diferente.

— Ninguém ia querer que ele fizesse alguma coisa que ele não quisesse fazer...

O ouriço caminhou até ele, colocando seu nariz irrequieto a um dedo dos óculos do mágico, que recuou alarmado, e soprou em seu rosto.

— Ora — disse ele. — Ninguém nunquinha quer nunca nada. Isso é só pra lembrar que sua poderosidade quer pensar as coisas ele mesmo.

Depois voltou-se para o Rei de coração partido, parando a dis­tância com tato e dignidade por causa de suas pulgas.

— Não, Mistre — disse. — Isso aqui já foi longe demais. Venhai cá com esse velho ouriço pra poderer cheirar o ar do bom Deus por vosso naririz e descansar vossa cuca no colozim da terra.

"E não temai nada desses velhos sabibichões — continuou. — Deix'eles discutirirem os asteriscos entre si, que é como gostam. Venhai cá cheirar um bom bocadim do ar com vosso humildim servim e terer o prazer de ver o céu.

Arthur estendeu sua mão para o ouriço, que a pegou relutante, depois de limpar a sua nas costas espinhentas.

— São todim uns vermes — explicou com pesar —, mas são gente honesta.

Caminharam juntos até a porta, onde o ouriço, voltando-se, examinou o campo.

— Até mais a verer — observou com bom humor, observando o comitê com desprezo inexprimível. — Cuidadim para não destruirirem o universo antes da gente voltarar. E para não criarerem ou­tro, olhe lá.

E inclinou-se sarcasticamente na direção do chocado Merlin.

— Deus Paizim.

E para o infeliz Arquimedes, que se esticava, fechava os olhos e se virava para o outro lado.

— Deus Filhim.

E para o texugo implorante.

— E o Santo Carteirim de Deus.

 

Não há nada tão maravilhoso quanto estar ao ar livre numa noite de primavera no campo; principalmente na última par­te da noite e, melhor ainda, se você puder estar a sós. Então, você pode ouvir o mundo selvagem à solta, e as vacas ruminando logo an­tes de você tropeçar nelas, e as folhas com sua vida secreta, e as bi­cadas e a grama arrancada e a corrente de seu sangue em suas pró­prias veias; você pode ver por si mesmo o vulto das árvores e colinas contra a escuridão mais profunda e as estrelas rodopiando em seus sulcos azeitados; há apenas uma luz brilhando distante em algum chalé, assinalando alguém doente ou que se levanta cedo para alguma tarefa misteriosa; as patas do cavalo puxando a carroça gemedora para algum mercado desconhecido arrastam homens amontoados em cima de sacos, adormecidos; os cães sacodem as correntes nas fa­zendas, as raposas regougam uma vez, e as corujas já estão em silên­cio: então é um grande momento para estar vivo e bem consciente, quando tudo o mais que é humano está inconsciente, dentro de casa, enfiado nas camas, à mercê do espírito da meia-noite.

O vento descansou. As estrelas poeirentas se expandem e con­traem no sereno, construindo uma cena que tiniria se fosse um som. O grande pináculo no qual subiam se levantava contra o céu, envol­vido em majestade, como um horizonte que aspira.

O pequeno ouriço, arrastando-se de moita em moita, caía ge­mendo nas poças enlameadas, arquejando ao lutar com rochedos em miniatura. O fatigado Rei o ajudava nas passagens mais difíceis, levantando-o para que firmasse o pé ou o empurrando por trás, repa­rando em como eram patéticas e indefesas suas pernas despidas vis­tas de trás.

— Brigado — dizia ele. — Muito brigado, simsim.

Quando chegaram no pico, ele se sentou resfolegando, e o ve­lho sentou-se a seu lado para admirar a paisagem.

Era a Inglaterra que aparecia vagarosamente, enquanto a lua tardia se erguia. Seu real domínio de Gramarye. Estendida a seus pés, espalhava-se para longe até o remoto norte, inclinando-se na direção das Hébridas imaginadas. Era sua bela terra. A lua tornava as árvores mais imponentes por suas sombras que por si mesmas, deslizava pelos rios que pareciam de mercúrio, amaciava os campos de pasto que pareciam de brinquedo, cobria tudo com uma suave neblina. Mas ele sentiu que reconheceria sua terra, mesmo sem a luz. Sabia que aquele devia ser o rio Severn, com suas planícies e seus picos ao longe — todos ainda invisíveis, mas fazendo parte do seu lar. Naquele campo um cavalo branco devia estar pastando, na­quele outro a roupa secava num varal. A terra tinha necessidade de ser ela mesma.

Subitamente ele sentiu o intenso e triste encanto de ser um ser, para além do certo e do errado — que, na verdade, o simples fato de ser era a coisa mais profundamente certa. Começou a amar a terra diante dele com orgulho ardente, não porque fosse boa ou má, mas porque era. Pelas sombras dos montes de cereal numa tarde dou­rada; pelos rabos das ovelhas que balançam quando elas correm, e pelos cordeiros que, ao mamar, mexem os rabos como pequenas on­das; pelas nuvens que vagueiam sobre ela formando sombras e lu­zes; pelos esquadrões de tarambolas verdes e douradas serpentean­do pelos pastos e avançando em investidas curtas e unânimes, cabeça contra o vento; pelas garças fiandeiras que mantêm os pes­coços retos como espinhas de peixe segundo David Garnett e caem desmaiadas se um garoto as espreita e grita antes que elas o vejam; pela fumaça dos lares como uma barba azul que se extravia pelos céus; pelas estrelas que brilham mais nas poças do que no firma­mento; pelas poças, sarjetas mal vedadas e montes de estéreo onde crescem papoulas; pelo salmão no rio que de repente salta e volta a mergulhar; pelos brotos de castanha, ao vento cálido da primavera, saltando de seus galhos como caixas de surpresa, ou como pequenos espectros que levantam suas mãos verdes para assustá-lo; pelas gra­lhas que, ao construir, ficam paradas no ar com ramos no bico, mais belas do que qualquer pombo regressando para casa; pelo dom pra­teado do sono, a maior das bênçãos de Deus ao mundo, que se es­tende lá em baixo, ao luar.

Ele descobriu que a amava — mais que a Guenevere, mais que a Lancelot, mais do que a Lyó-lyok. Era sua mãe e sua filha. Ele co­nhecia a fala do seu povo e podia senti-la mudar abaixo dele, se pu­desse voar sobre ela como o ganso que um dia fora, de Zumerzet até Ochaye. Podia dizer como as pessoas comuns se sentiam a respei­to das coisas, sobre todo tipo de coisas, antes mesmo de perguntar. Ele era seu Rei.

E eles eram seu povo, sua própria responsabilidade de stultus ou ferox, a responsabilidade como a do velho almirante ganso na fa­zenda. Agora eles não eram ferozes, porque estavam adormecidos.

A Inglaterra estava aos pés do velho, como um homem-criança adormecido. Quando desperto ficava circulando, agarrando coisas e quebrando-as, matando borboletas, puxando o rabo do gato, alimentando seu ego com mestria amoral e incansável. Mas no sono abdicava de sua força masculina. O homem-criança agora se espalhava indefeso, vulnerável, um bebê confiando que o mundo o deixaria dormir em paz.

Toda a beleza de seus humanos caiu sobre ele, em vez de seus horrores. Ele viu o grande exército de mártires que eram suas tes­temunhas: jovens que tinham partido até mesmo durante as primei­ras alegrias do casamento para serem mortos em sujos campos de batalha como Bedegraine, pelas crenças de outros homens. Mas que tinham ido voluntariamente; mas que tinham ido porque pensavam que era o correto; mas que tinham ido apesar de odiar fazê-lo. Tal­vez fossem jovens ignorantes, e as coisas pelas quais tenham morri­do fossem inúteis. Mas a ignorância deles era inocente. Tinham fei­to algo terrivelmente difícil em sua inocente ignorância, e que não era para eles mesmos.

Ele viu de repente todas as pessoas que tinham aceitado se sa­crificar: eruditos sedentos pelo saber, poetas que recusaram com­promissos em troca do sucesso, pais que tinham engolido seu pró­prio amor para deixar os filhos viverem, doutores e santos que morreram para ajudar, milhões de cruzados, geralmente estúpidos, que tinham sido massacrados por sua própria estupidez — mas que tinham tido boas intenções.

Era isso, ter boas intenções! Ele percebeu um lampejo daque­la extraordinária faculdade do homem, a estranha, altruísta, a rara e obstinada decência que fazia que escritores e cientistas mantivessem sua verdade mesmo com risco de morte. Eppur si muove, Galileu di­ria: de qualquer maneira se move. Eles iam mandar queimá-lo se ele insistisse com essa bobagem ridícula de a Terra se mover ao redor do Sol, mas ele insistiu na afirmativa sublime porque havia algo que ele valorizava mais que a si mesmo. A Verdade. Reconhecer e afir­mar O Que É. Essa era a coisa que o homem podia fazer, que seus ingleses podiam fazer, seus amados, seus adormecidos, seus agora indefesos ingleses. Eles podem ser estúpidos, ferozes, não-políticos, quase incorrigíveis. Mas aqui e ali, oh tão raramente, oh tão escas­samente, oh tão gloriosamente, havia aqueles que, de qualquer ma­neira, enfrentariam a tortura, o carrasco, e até mesmo a pura e sim­ples extinção, por uma causa maior que eles mesmos. A verdade, essa coisa estranha, o gracejo de Pilatos. Muitos jovens estúpidos ti­nham pensado que morriam por ela, e muitos continuariam a fazê-lo, talvez por milhares de anos. Não era preciso que estivessem cer­tos sobre sua verdade, como Galileu estaria. Bastava que eles, os poucos e martirizados, estabelecessem uma grandeza, uma coisa aci­ma da soma de tudo que ignorantemente tinham.

Mas então mais uma vez a onda de tristeza o assolou, o pensa­mento sobre o homem-criança quando despertasse; a visão daquela maioria cruel e brutal, na qual os mártires eram exceções tão raras. Mas se move, apesar de tudo. Quão poucos e miseravelmente pou­cos eram os que estavam determinados a sustentar isso!

Ele poderia chorar de pena do mundo, por sua horripilância que, ainda assim, era digna de pena.

O ouriço comentou:

— Lugarzim bonito, num é?

— Sim, meu bom homem. Mas não há nada que eu possa fazer por eles.

— Já haveis feito, campeão.

Um chalé despertou no vale. Seu olho de luz piscou, e ele podia sentir o homem que o havia acendido: provavelmente um caçador clandestino, alguém tão lento e desajeitado e paciente como o texugo, calçando suas pesadas botas.

O ouriço perguntou:

— Shenhor?

— Senhor, homem. E é Majestade, não "mágica estade".

— Majestade?

— Sim, bom homem.

— Lembra que a gente cantarorou pro senhor?

— Lembro bem. Era A Ponte Rústica e Genoveva e... e...

— Lar Doce Lar.

O Rei subitamente fez uma mesura com a cabeça.

— Podemos cantarar de novo, Majestade camararada?

Ele não pôde fazer mais que assentir.

O ouriço levantou-se sob o luar, assumindo a atitude certa para cantar. Plantou os pés firmemente no chão, cruzou as mãos sobre o estômago, fixou os olhos em um objeto distante. Depois, com sua clara voz de tenor rural, cantou para o Rei da Inglaterra sobre o Lar Doce Lar.

A música simples e boba terminou — mas não era boba sob o luar, não numa montanha em seu reino. O ouriço arrastou os pés, tossiu, estava ávido por mais. Mas o Rei não tinha palavras.

— Majestade — ele disse, com timidez —, tem outra, bem no­vinha.

Não houve resposta.

— Quando ficamomos sabendo que o senhor vinha, aprendedemos uma novinha. Era pra lhe dar boa-vinda. Aprendedemos lá com aquele Merlin.

— Cante-a — arfou o velho.

Ele tinha esticado os ossos sobre a urze, porque tudo aquilo era demasiado.

E ali, nas alturas da Inglaterra, com uma boa pronúncia porque tinha cuidadosamente aprendido de Merlin, o tom da música de Parry vinda do futuro, com sua espada de gravetos em uma das mãos cinzentas e uma charrete de folhas bolorentas na outra, o ouriço se levantou para construir Jerusalém, e era para valer.

Dê-me o arco de brilhante ouro

Traga-me as flechas do desejo.

Traga minha lança.

Oh, nuvens abram-se.

Traga minha charrete de fogo.

Não deixarei de porfiar e desejar

Nem minha espada dormirá na minha mão

Até que eu construa Jerusalém

Na verde e amável terra da Inglaterra.

 

Os rostos pálidos do comitê, inclinados sobre a fogueira, viraram-se na direção da porta em um único movimento, e seus pares de olhos culpados se grudaram no Rei. Mas foi a Inglaterra que entrou.

Não era preciso dizer nada, nem havia necessidade de explicar: tudo podia ser visto em seu rosto.

Então, todos se levantaram e foram em sua direção, colocan­do-se humildemente ao seu redor. Merlin, para sua surpresa, era um velho cujas mãos tremiam como folhas. Ele assoava o nariz, dema­siadas vezes na verdade, dentro do chapéu cônico, do qual caía uma perfeita chuvarada de camundongos e rãs. O texugo chorava amar­gamente c, distraído, sacudia cada lágrima quando esta chegava na ponta do seu nariz. Archimedes tinha virado a cabeça completamen­te para trás, para esconder sua vergonha. Cavall trazia uma expres­são atormentada. T. natrix havia encostado a cabeça sobre o pé real, uma lágrima clara escorrendo de cada narina. E a membrana piscadora de Balin se agitava com a rapidez do código Morse.

— Deus salve o Rei — disseram.

— Podem sentar-se.

Então todos se sentaram respeitosamente, depois que ele to­mou a primeira cadeira: um Conselho Privado.

— Logo voltaremos — disse ele — para nosso belo reino. An­tes de irmos, há que se fazer algumas perguntas. Em primeiro lugar, tem-se dito que haverá um homem como John Bali, que deve ser um mau naturalista porque alega que os homens devem viver como as formigas. Qual é a objeção a essa alegação?

Merlin levantou-se e tirou o chapéu.

— É uma questão da moralidade natural, Senhor. O comitê su­gere que é moral para as espécies se especializarem em suas próprias especialidades. Um elefante deve cuidar da sua tromba, uma girafa, ou o camelopardo, do seu pescoço. Seria imoral que um elefante voasse, porque não tem asas. A especialidade do homem, tão desen­volvida nele quanto o pescoço no camelopardo, é seu neocórtex. Esta é a parte do cérebro que, em vez de ser devotada ao instinto, está relacionada com a memória, dedução e as formas de pensamen­to que resultam no reconhecimento, pelo indivíduo, de sua perso­nalidade. O cocoruto do homem o torna consciente de si mesmo como um ser à parte, o que não acontece com freqüência em ani­mais e selvagens, portanto, qualquer forma enfática de coletivismo na política é contrária à especialidade do homem.

"Isso, aliás — prosseguiu o velho cavalheiro vagarosamente, es­tendendo um filme sobre seus olhos como se ele mesmo fosse um urubu míope —, é a razão pela qual tenho, na vida inteira que se es­tende para trás por vários cansativos séculos, travado minha peque­na guerra contra o poder em todas as suas formas, e é por isso que, certo ou errado, seduzi outros para travar a mesma luta. É por isso que outrora o persuadi, Senhor, a desprezar os Maníacos por Jogos; a opor sua sabedoria contra os barões da Força Maior; a acreditar na justiça em vez da força; e a pesquisar com integridade mental, como tentamos fazer durante esta longa noite, as causas das lutas que esta­mos travando; pois a guerra é força desenfreada, a galope. Não me engajei nessa cruzada pelo fato de a força poder ser considerada er­rada, num sentido abstrato. Para a sucuri, que é praticamente apenas um músculo enorme, seria literalmente certo dizer que o Poder é o Certo; para a formiga, cujo cérebro não é constituído como o cére­bro humano, é literalmente verdade que o Estado é mais importan­te que o Indivíduo. Mas para o homem, cuja especialidade repousa nas pregas reconhecedoras de personalidade do seu neocórtex — tão desenvolvido nele quanto os músculos na sucuri —, é igualmente verdadeiro dizer que a verdade mental, não a força, é o certo; e que o Indivíduo é mais importante que o Estado. É tão mais importante que deveríamos aboli-lo. Devemos deixar que as sucuris se admirem por serem atletas musculosas: Mania por Jogos, Force Majeur e coi­sas assim estão certas para elas. Talvez as reticulações da píton real­mente sejam uma forma de camiseta reforçada. Devemos deixar que as formigas louvem as glórias do Estado: o totalitarismo, sem dúvi­da, é seu tipo de país. Mas para o homem, e não numa definição abs­trata do certo e do errado, mas na definição concreta da natureza de que uma espécie deve se especializar em sua própria especialidade, o comitê sugere que o poder nunca foi o certo; que o Estado nunca deve sobrepujar o indivíduo; e que o futuro repousa na alma pessoal.

— Talvez você deva falar sobre o cérebro.

— Senhor, existem muitas e muitas coisas acontecendo nessa velha caixa cerebral, mas para os propósitos de nossa pesquisa deve­mos nos limitar a dois compartimentos, o neocórtex e o corpo estriado. Neste último, para dizer de maneira simples, são determina­das minhas ações instintivas e mecânicas. No primeiro, mantenho a razão em honra da qual nossa raça foi curiosamente apelidada de sapiens. Talvez possa explicar isso com uma dessas comparações perigosas e freqüentemente enganosas. O corpo estriado é como um único espelho, que reflete as ações instintivas para fora, em re­torno aos estímulos que chegam. No neocórtex, entretanto, existem dois espelhos. Eles podem ver um ao outro e, por essa razão, sabem que existem. Homem, conhece a ti mesmo, disse alguém. Ou, como ou­tro filósofo colocou, o próprio estudo da humanidade é o homem. Isso porque ele se especializou no neocórtex. Em outros animais com cérebro que não o homem, a ênfase não é na sala com o duplo espelho, mas naquela que só tem um. Poucos animais, salvo o ho­mem, são conscientes de sua própria personalidade. Mesmo nas ra­ças primitivas da família humana ainda existe a confusão entre o in­divíduo e seu ambiente — pois o índio selvagem, como vocês devem saber, distingue tão pouco entre si mesmo e o mundo exterior que ele próprio cuspirá, se quiser que as nuvens chovam. Pode-se dizer que o sistema nervoso das formigas só tem um espelho, como o dos selvagens, e é por isso que é adequado para as formigas serem co­munistas, perderem-se dentro da multidão. Mas é em virtude de o cérebro do civilizado ter o espelho duplo que ele sempre terá que se especializar na individualidade, no reconhecimento de si mesmo, ou seja lá como queiram chamar isso. É por causa dos dois espelhos que refletem um ao outro que ele jamais poderá ser um membro com­pletamente altruísta do proletariado. Ele tem que ter um ser e tudo o que vai com um ser tão altamente desenvolvido — inclusive o egoísmo e a propriedade. Por favor, desculpem minha comparação, se parece que a usei de maneira inadequada.

— O ganso tem neocórtex?

Merlin levantou-se novamente.

— Sim, e bem desenvolvido para um pássaro. As formigas têm um sistema nervoso diferente, mais parecido com o corpo estriado.

"A segunda questão trata da guerra. Foi sugerido que devemos aboli-la, de uma maneira ou de outra, mas ninguém lhe deu a opor­tunidade de se defender. Talvez haja algo favorável a ser dito sobre a guerra. Gostaríamos de saber.

Merlin pôs o chapéu no chão e sussurrou para o texugo, que, para admiração de todos, depois de remexer na sua pilha de papéis, apareceu com o papel que era o certo.

— Senhor, esta questão já foi apresentada antes ao comitê, que se aventurou a elaborar uma lista dos prós e dos contras, que esta­mos prontos para recitar.

Merlin limpou a garganta e anunciou em voz alta:

— PRÓ.

— A favor da guerra — explicou o texugo.

— Número um — disse Merlin. — A guerra é uma das fontes do romance. Sem guerra não haveria Rolandos, Macabeus, Lawrences ou Hodson do Cavalo de Hodson. Não haveria Victoria Cross. É um estimulante das assim chamadas virtudes, tais como a coragem e a cooperação. De fato, a guerra tem momentos de glória. Deve-se também notar que, sem guerras, perderíamos pelo menos metade da nossa literatura. Shakespeare está sobrecarregado dela.

"Número dois. A guerra é uma maneira de diminuir a popula­ção, apesar de ser um método horrendo e ineficaz. O próprio Shakes­peare que, no que se refere à questão da guerra, parece concordar com os alemães e com seu delirante apologista Nietzsche, diz, numa cena que supostamente escreveu para Beumont & Fletcher, que a guerra cura com sangue a terra quando esta está doente e cura o mun­do do congestionamento de pessoas. Talvez eu possa mencionar en­tre parênteses, sem irreverência, que o Bardo parece ter sido curiosa­mente insensível ao assunto da guerra. Rei Henrique V é a peça mais revoltante que conheço, e o próprio rei é o caráter mais revoltante.

"Número três. A guerra de fato proporciona uma abertura para a ferocidade contida do homem e, enquanto o homem permanecer um selvagem, algo desse tipo parece ser necessário. O comitê consi­dera, a partir de um exame da história, que a crueldade humana sem­pre acha uma maneira de se manifestar, se lhe for proibida outra. Nos séculos dezoito e dezenove, quando a guerra era um exercício limitado, confinado aos exércitos profissionais recrutados entre as classes criminosas, a grande massa da população apelava para execu­ções públicas, operações dentais sem anestesia, esportes brutais e chicotear suas crianças. No século vinte, quando a guerra se esten­deu para abarcar as massas, os enforcamentos, tortura, luta de galos e espancamentos saíram de moda.

"Número quatro. No momento o comitê está levando a cabo uma pesquisa complicada sobre a necessidade física ou psicológi­ca. Não consideramos proveitoso que um relatório seja feito na atual etapa, mas acreditamos ter observado que a guerra respon­de a uma necessidade real do homem, talvez ligada à ferocidade mencionada no Parágrafo Terceiro, mas talvez não. E de nosso conhecimento que o homem se torna inquieto ou abatido depois de uma geração de Paz. O imortal, se não onisciente Bardo de Avon, assinala que a Paz parece produzir uma doença que, alcan­çando a cabeça como uma espécie de úlcera, se arrebenta com a guerra. "A guetra", diz ele, "é o abscesso de muita riqueza e paz, que simplesmente irrompe, não mostrando causa externa pela morte do homem." Diante dessa interpretação, é a paz que é vis­ta como uma doença lenta, enquanto a ruptura do abscesso, a guerra, deve ser assumida como benéfica, e não o contrário. O comitê sugeriu duas maneiras pelas quais a Riqueza e a Paz po­dem destruir a raça, se a guerra for evitada: emasculando-a ou tornando-a comatosa através de perturbações glandulares. Sobre o assunto da emasculação, deve-se notar que as guerras dobram a taxa de nascimentos. A razão pela qual as mulheres toleram a guerra é que ela promove a virilidade do homem.

"Número cinco. Finalmente, aqui está a sugestão que prova­velmente seria feita por todos os outros animais da face da Terra, exceto o homem, ou seja, de que a guerra é uma bênção inestimá­vel para a criação como um todo porque oferece uma longínqua possibilidade de extermínio da raça humana.

"CONTRA — anunciou o mágico, mas o Rei o interrompeu.

— Conhecemos as objeções — disse ele. — A idéia de que seja útil pode ser avaliada um pouco mais. Se há alguma necessidade de Poder, por que o comitê está pronto para liquidá-lo?

— Senhor, o comitê está tentando traçar as bases fisiológicas, possivelmente de origem pituitária ou adrenal. Possivelmente, o sis­tema humano exige doses periódicas de adrenalina, para permitir que continue saudável. (Os japoneses, como exemplo de atividade glandular, são conhecidos por comer grandes quantidades de peixe, o que, ao carregar os corpos deles com iodo, expande suas tireóides e os torna irritáveis.) Até que esta questão seja adequadamente pes­quisada o assunto permanece vago, mas o comitê deseja assinalar que a necessidade fisiológica pode ser suprida por outros meios. A guerra, como já foi observado, é um meio ineficaz de manter baixa a população; pode ser também um meio ineficaz de estimular as glândulas adrenais através do medo.

— Que outros meios?

— No Império Romano, a experiência de oferecer espetáculos sanguinários no circo foi tentada como substituto. Eles proporcio­nam a Purgação mencionada por Aristóteles, e alguma alternativa desse tipo pode se revelar eficaz. A ciência, entretanto, sugeriria cu­ras mais radicais. Ou a deficiência glandular poderia ser suprida por injeções periódicas de adrenalina em toda a população — ou seja lá qual for a deficiência que se constate — ou então alguma forma de cirurgia possa ser eficaz. Talvez a raiz da guerra possa ser removida, como o apêndice.

— Fomos informados de que a guerra era causada pela Proprie­dade Nacional e agora vocês dizem que se deve a uma glândula.

— Senhor, as duas coisas podem estar relacionadas, embora uma não seja conseqüência da outra. Por exemplo, se as guerras se devessem exclusivamente à propriedade nacional, deveríamos espropriedade nacional — ou seja, o tempo todo. Descobrimos, en­tretanto, que são interrompidas por calmarias freqüentes, chamadas de Paz. E como se a raça humana ficasse cada vez mais comatosa nesses períodos de trégua e, quando o que se poderia chamar de ponto de saturação de deficiência de adrenalina é alcançado, lança-se mão da primeira desculpa que aparece para se tomar uma boa dose de medo-estimulante. A desculpa à mão é a propriedade nacio­nal. Mesmo quando as guerras são embonecadas com pretextos re­ligiosos, tais como as cruzadas contra Saladino ou os Albigenses, ou Montezuma, as bases permanecem as mesmas. Ninguém iria se preocupar em estender os benefícios do cristianismo a Montezuma se suas sandálias não fossem feitas de ouro, e ninguém pensaria que o ouro fosse uma tentação suficiente se não estivessem precisando de uma dose de adrenalina.

— Então você sugere uma alternativa como o circo enquanto aguarda a solução de uma pesquisa na sua glândula? Vocês já con­sideraram isso?

Archimedes inesperadamente deu uma risadinha.

— Merlin quer organizar uma feira internacional, Senhor. Quer muitos aparelhos de acrobacias e rodas-gigantes e ferrovias numa reserva com belos cenários, e todos devem ser levemente pe­rigosos, de forma a matar, digamos, um homem a cada cem. O in­gresso é voluntário, pois ele diz que uma coisa insuportavelmente má da guerra é o recrutamento obrigatório. Ele diz que as pessoas irão a essa feira por vontade própria, seja por tédio ou deficiência de adrenalina ou seja lá qual a razão, e que provavelmente sentirão essa necessidade entre os vinte e cinco, trinta ou quarenta anos de idade. Deve virar moda e ser glorioso ir para lá. Cada visitante receberá uma medalha comemorativa, e aqueles que forem cinqüenta vezes vão receber a Medalha de Serviços Distinguidos, ou a Victoria Cross quando forem cem vezes.

O mágico parecia envergonhado e estalou os dedos.

— A sugestão — disse humildemente — era mais para provo­car pensamentos do que para ser considerada.

— Certamente não parece uma sugestão prática para este ano da graça. Enquanto isso, não existem panacéias para a guerra que possam ser usadas?

— O comitê sugeriu um antídoto que pode ter efeito temporá­rio, como a soda para acidez estomacal. Seria inútil para curar a doença, mas pode aliviá-la. Pode salvar alguns milhões de vidas em um século.

— Qual é esse antídoto?

— Senhor, já deve ter notado que as pessoas que são responsáveis pela declaração e pela alta direção das guerras não tendem a ser as mesmas pessoas que sofrem seus efeitos extremos. Na Batalha de Be­degraine, Vossa Majestade lidou com algo assim. Os reis e generais e os líderes de batalhas têm uma aptidão peculiar para não morrerem nelas. O comitê sugeriu que, depois de cada guerra, todos os oficiais do lado perdedor que tiverem um posto mais alto que coronel deve­riam ser imediatamente executados, independentemente de seus erros na guerra. Sem dúvida haveria uma certa quantidade de injustiça nes­sa medida, mas a consciência de que a morte seria o resultado de per­der uma guerra teria um efeito intimidador sobre os que as promovem e regulam, e isso poderia, ao evitar algumas guerras, salvar milhões de vidas entre as classes mais baixas. Até mesmo um Führer como Mor­dred pensaria duas vezes sobre encabeçar hostilidades se soubesse que sua própria execução seria o resultado se não se saísse bem.

— Parece razoável.

— É menos razoável do que parece, em parte porque a respon­sabilidade pela guerra não cabe integralmente aos líderes. Afinal, um líder tem que ser escolhido ou aceito pelos que lidera. As mul­tidões com cabeças de hidras não são tão inocentes quanto preten­dem. Elas deram um mandato a seus generais e devem responder pela responsabilidade moral.

— Ainda assim, teria o efeito de fazer os líderes relutarem a ser impelidos para a guerra pelos seus seguidores, e até mesmo isso ajudaria.

— Ajudaria. A primeira dificuldade reside em persuadir as clas­ses dominantes a concordar com essa convenção. Ademais, receio que se constate que sempre há um tipo de maníaco, ansioso por no­toriedade a qualquer preço, ou mesmo pelo martírio, que aceitaria a pompa da liderança até com maior alacridade porque esta estaria enaltecida pelas penalidades melodramáticas. Os reis da mitologia irlandesa eram compelidos por sua situação a marchar à frente nas batalhas, o que provocava uma tremenda mortalidade entre eles, no entanto parece que jamais houve falta de reis ou batalhas na histó­ria da Ilha Verde.

— E essa lei moderna que nosso Rei andou inventando? — per­guntou, de repente, a cabra.— Se os indivíduos podem ser dissuadi­dos de assassinar por medo da pena de morte, por que não pode ha­ver uma lei internacional sob a qual as nações possam ser dissuadidas de ir à guerra por meios semelhantes? Uma nação agressiva poderia ser mantida em paz por saber que, se começasse uma guerra, uma força policial internacional a sentenciaria a se dispersar, por exem­plo, transportando sua população em massa para outros países.

— Existem duas objeções a isso. Primeiro, se estaria tentando curar a doença, não preveni-la. Segundo, sabemos pela experiência que a existência da pena de morte de fato não elimina o assassinato. Poderia, no entanto, ser um passo temporário na direção correta.

O velho cruzou as mãos dentro das mangas, como um chinês, e olhou ao redor da mesa do Conselho esperando, obstinado, mais perguntas. Seus olhos começaram a intimidar os demais.

— Ele está escrevendo um livro chamado Libellus Merlini, as Profecias de Merlin — continuou Archimedes, travesso, quando viu que o assunto tinha terminado —, que pretendia ler em voz alta para Vossa Majestade, assim que chegasse.

— Ouviremos a leitura.

Merlin torceu as mãos.

— Senhor — disse —, é uma simples adivinhação, apenas tru­ques de cigano. Tinha que ser escrito porque havia uma enorme agitação sobre isso no século doze, depois do qual o perderemos de vista até o século vinte. Mas, Senhor, é um simples truque de audi­tório, não vale a atenção de Vossa Majestade no momento.

— De qualquer maneira, leia-me alguns pedaços.

Assim o humilhado cientista, que na última hora tinha perdido toda sua capacidade de fazer gracejos e argumentar, sacou o manus­crito chamuscado do guarda-fogo da lareira e distribuiu uma cole­ção de folhas ainda legíveis, como se fosse mesmo um jogo de cena. Os animais os leram por turnos, como se fossem provérbios, e foi isso o que disseram:

— Deus prove e o dodô anota.

— O urso cura a dor de cabeça cortando a própria, mas isso o deixa com o traseiro dolorido.

— O Leão se deitará com a Águia, dizendo: Finalmente os animais estão unidos! Mas o diabo vai perceber a piada.

— As estrelas que ensinaram o Sol a se levantar têm que con­cordar com ele ao meio-dia, ou desaparecer.

— Uma criança parada na Broadway irá gritar: Olha só, ma­mãe, lá está um homem!

— Como é demorado construir Jerusalém, dirá a aranha, descansando exausta em sua teia no piso térreo do Empire State Building.

— Espaço vital produz espaço para o caixão, observou o besouro.

— Força produz força.

— Guerras de comunidade, condado, país, credo, continente, cor. Depois disso a mão de Deus, se não antes.

— Imitação antes da ação salvará a humanidade.

— O alce morreu porque seus chifres cresceram demais.

— Não foi preciso nenhuma colisão com a Lua para exterminar os Mamutes.

— O destino de todas as espécies é a extinção como tal, feliz­mente para elas.

Houve uma pausa depois do último provérbio, enquanto os ouvintes matutavam sobre eles.

— Qual o significado desse com uma palavra em grego?

— Senhor, uma parte do seu significado, mas apenas uma pe­quena parte, é de que a esperança para a raça humana deve repousar na educação sem coerção. Confiado formulou assim:

 

Para propagar a virtude pelo mundo, tem-se primeiro que dirigir seu próprio país.

Para dirigir seu próprio país, tem-se primeiro que dirigir a própria família.

Para dirigir a própria família, tem-se primeiro que regular o próprio corpo através do treinamento moral.

Para regular o próprio corpo, tem-se primeiro que regular a própria mente.

Para regular a mente, tem-se primeiro que ser sincero em suas intenções.

Para ser sincero em suas próprias intenções, tem-se primeiro que aumentar o próprio conhecimento.

 

— Percebo.

— O resto tem algum significado relevante? — perguntou o Rei.

— Nada de nada.

— Mas uma pergunta antes de nos levantarmos. Você disse que a política está descartada, mas ela parece estar tão ligada à questão da guerra que deve ser enfrentada de alguma forma. Num momento an­terior você alegou ser um capitalista. Tem certeza dessas afirmações?

— Se disse isso, Majestade, não foi o que quis afirmar. O texugo estava falando comigo como se fosse um comunista dos anos mil novecentos e vinte, o que me fez falar como um capitalista como au­todefesa. Eu sou um anarquista, como qualquer pessoa sensível. De fato, a corrida vai fazer comunistas e capitalistas mudarem tanto du­rante as eras que terminarão indistintamente como democratas. Da mesma forma, os fascistas também se modificarão. Mas quaisquer que sejam as deformações adotadas por esses três ramos do coletivismo, e por muitos que sejam os séculos nos quais se massacrem uns aos outros por causa de raivas infantis, o que permanece é o fato de que todas as formas de coletivismo são equivocadas, em relação ao cérebro humano. O destino do homem é individualista, e é nes­se sentido que posso ter sugerido uma aprovação restrita do capita­lismo. O desprezado capitalista vitoriano, que pelo menos permitiu um bom espaço de diversão para o indivíduo, provavelmente era mais autenticamente futurista na sua política do que todas as Novas Ordens aclamadas no século vinte. Ele era do futuro, porque o in­dividualismo repousa no futuro do cérebro humano. Não era tão antiquado quanto os fascistas e comunistas. Mas é claro que era consideravelmente antiquado apesar de tudo isso, e é por essa razão que prefiro ser anarquista: ou seja, ser um pouco atualizado. Os gansos são anarquistas, você se lembra. Eles compreendem que o sentido moral deve vir de dentro, e não de fora.

— Pensei — disse o texugo, queixoso — que o comunismo fos­se um passo na direção da anarquia. Pensei que quando o comunis­mo fosse realmente alcançado o Estado desapareceria.

— Pessoas já me disseram isso, mas duvido. Não consigo ver como se pode emancipar um indivíduo criando primeiro um Estado onipotente. Não existem estados na natureza, exceto entre mons­truosidades como as formigas. Parece-me que pessoas que saem criando estados, como Mordred está tentando fazer com seus Surradores, têm tendência a se envolver neles, e portanto se tornam incapazes de escapar. Mas talvez o que você diz seja verdade. Espe­ro que seja. De qualquer maneira deixemos essas questões dúbias da política para os tiranos sombrios que as procuram. Daqui a dez mil anos talvez seja o momento para os educados se preocuparem com tais coisas, mas por enquanto é preciso esperar que a raça cresça. De nossa parte, nós oferecemos esta noite uma solução para o problema especial da força como árbitro: a obviedade de que a guerra se deve à propriedade nacional, sendo o ginete esti­mulado por certas glândulas. Por enquanto fiquemos por aqui, pelo amor de Deus.

O velho mago afastou suas notas com a mão tremendo. Ele fica­ra profundamente magoado com as críticas anteriores do ouriço por­que, no segredo de seu coração, amava profundamente seu aluno. Agora ele sabia, já que seu herói real tinha voltado vitorioso de sua es­colha, que sua própria sabedoria não era o final. Sabia que havia ter­minado sua tutela. Uma vez dissera ao Rei que ele jamais voltaria a ser Wart, mas tinha sido apenas um encorajamento, não o dissera a sério. Agora, falava a sério, agora sabia que ele mesmo cedera o lugar, tinha abdicado da autoridade de conduzir ou dirigir. Essa abdicação custa­ra-lhe a alegria. Já não seria capaz de continuar com suas arengas rui­dosas, nem dardejar e mistificar com as dobras cintilantes de sua capa mágica. A condescendência de ensinar agora lhe provocava escrúpu­los. Estava se sentindo velho e envergonhado.

O velho Rei, cuja infância também havia desaparecido, brincava com um pedaço de papel deixado sobre a mesa. Ele aplicava o tru­que de observar as próprias mãos, enquanto pensava. Dobrava o pa­pel de um jeito e depois o desdobrava cuidadosamente. Era uma das fichas de anotação de Merlin, que o texugo tinha misturado com as Profecias: uma citação de um historiador chamado Frei Clynn, que morrera em 1348. Esse frade, empregado como cronista de sua aba­dia para cuidar dos registros históricos, tinha visto a Morte Negra chegar para agarrá-lo — possivelmente para agarrar o mundo inteiro, pois já tinha matado um terço da população da Europa. Com cuida­do, ele deixou algumas peças de pergaminho branco dentro do livro que já não terminaria e concluíra com a seguinte mensagem, que uma vez despertara em Merlin um estranho respeito: "Vendo essas muitas enfermidades — ele tinha escrito em latim — e como se o mundo todo tivesse sido mergulhado na malignidade, esperando entre os mortos que a morte venha até mim, escrevi o que verda­deiramente ouvi e examinei. E para que o escrito não pereça com o escritor, ou o trabalho' fracasse com o trabalhador, estou deixan­do aqui um pouco de papel para sua continuação — para o caso de se por sorte algum homem permanecer vivo no futuro, ou se algu­ma pessoa da raça de Adão escapar desta pestilência, poder prosse­guir o trabalho que um dia comecei".

O Rei o dobrou cuidadosamente, confrontando-o com a mesa. Eles o observavam, sabendo que ele estava prestes a se levantar, e prontos para seguir-lhe o exemplo.

— Muito bem — disse ele. — Nós compreendemos o enigma. Ele deu uma pancadinha na mesa com o papel e ficou de pé.

— Devemos regressar antes do amanhecer.

Os animais estavam também se levantando. Eles o conduziram até a porta, acotovelando-se para beijar sua mão e se despedir. Seu agora aposentado tutor, que devia levá-lo até a casa, segurava a por­ta para ele passar. Fosse ele um sonho ou não, começava a bruxulear, como todos os demais. Eles disseram:

— Bom sucesso para Vossa Majestade, uma saída rápida e bem-sucedida.

Ele sorriu gravemente, dizendo:

— Esperamos que seja rápida.

Mas ele estava se referindo à sua morte, como um deles sabia.

— É apenas por esta vez, Majestade — disse T. natrix. — Lembre-se da história de São Jorge, e o Homo sapiens ainda é assim. Vós fracassareis porque é da natureza do homem matar, se não pela ignorância, pela ira. Mas o fracasso constrói o sucesso e a natureza muda. O exemplo de um homem bom sempre instrui o ignorante e diminui sua raiva, pouco a pouco através das eras, até que o espírito das águas esteja contente. Portanto, grande coragem para Vossa Majestade, e um coração tranqüilo.

Ele inclinou sua cabeça para aquele que sabia, e voltou-se para sair.

No último instante, uma pequena mão puxou sua manga, lembrando-o do amigo que ele tinha esquecido. Ele levantou o ouriço com ambas as mãos em seus sovacos, e o manteve a distância do braço, face a face.

— Ah, amigo — disse ele. — Temos que lhe agradecer em nome da realeza. Adeus, amigo, e vida alegre para você e suas can­ções.

Mas o ouriço pedalava os pés como se estivesse numa bicicle­ta, porque queria descer. Puxou outra vez a manga, logo que ficou a salvo no chão, e o velho abaixou a cabeça para ouvir o sussurro.

— Não, de jeito nenhum — falou roucamente, agarrando sua mão e olhando direto no seu rosto. — Não diga adeus.

Puxou de novo pela manga, baixando a voz ao limite do silêncio.

— Até mais a verer — sussurrou o ouriço. — Até mais a verer.

 

Bem, finalmente chegamos ao final de nossa intrincada história.

Arthur da Inglaterra voltou ao mundo para cumprir seu dever da melhor maneira possível. Pediu uma trégua a Mordred, depois de se decidir a oferecer metade de seu reino para obter a paz. Para dizer a verdade, ele estava preparado para ceder tudo, se necessário. Como posse, o reino havia muito tinha deixado de ter valor para ele, e agora tinha certeza de que a paz era mais importante que o reino. Mas achava que era seu dever reter uma metade se pudesse, e era por esta razão: se tivesse pelo menos meio mundo onde trabalhar, talvez ainda fosse capaz de introduzir, nele, os germes daquele bom senso que tinha aprendido com os gansos e animais.

A trégua foi feita, os exércitos alinhados para o combate, fren­te a frente. Cada um tinha um estandarte feito de um mastro de na­vio colocado em rodas, no topo de cada qual uma pequena caixa continha a Hóstia consagrada, enquanto, do mastro, pendiam as bandeiras do Dragão e do Cardo. Os cavaleiros do bando de Mor­dred usavam armaduras negras, suas plumas também eram negras e, em suas armas, o chicote escarlate do escudo de Mordred brilhava com o tom sinistro do sangue. Talvez parecessem mais terríveis do que se sentiam. Foi explicado às tropas que não deveriam fazer ne­nhuma demonstração de hostilidade, e que todos deviam manter as espadas embainhadas. Apenas, com medo de traição, foi-lhes dito que poderiam atacar em socorro, se alguma espada fosse vista desembainhada enquanto parlamentavam.

Arthur avançou para o espaço entre os exércitos com seu pes­soal, e Mordred, com seu próprio pessoal usando as vestimentas negras, veio encontrá-lo. Eles ficaram frente a frente, e o velho Rei mais uma vez viu o rosto de seu filho. Estava tenso e pertur­bado. Ele também, pobre homem, tinha vazado mais além da Pena e da Solidão no país de Kennaquhair; mas fora sem guia e tinha se perdido.

Para a surpresa de todos, o tratado foi concluído mais facil­mente do que ele esperara. O Rei ficou com metade de seu reino. Por um instante, a alegria e a paz estavam na balança.

Mas, naquele momento crucial, o velho Adão levantou-se de uma forma diferente. A guerra feudal, a opressão dos barões, o po­der individual, e mesmo a rebelião ideológica: tudo isso ele tinha conseguido resolver, de uma forma ou de outra, só para ser venci­do, no último momento, pelo fato episódico de que o homem era um assassino por instinto.

Uma cobra mexeu-se pelo prado onde estavam, perto de um oficial do pessoal de Mordred. Esse oficial recuou instintivamente e girou a mão pelo corpo, o bracelete com o chicote aparecendo num segundo como um relâmpago. A espada brilhante apareceu flamejando, vibrando para matar a assim chamada víbora. Os exércitos que esperavam, tomando isso por traição, levantaram o grito do ódio. As lanças dos dois lados se aprestaram. E, enquanto o Rei Arthur corria em direção a seu próprio esquadrão, um velho de cabelos brancos tentando represar a maré interminável, levantando as mãos nodosas no gesto de fazê-los recuar, lutando até o fim contra a torrente da Força que, em toda a sua vida, irrompeu em um novo lugar sempre que ele a rechaçava, então o tumulto se formou, os gritos de guerra soaram, e as águas chocaram-se por cima de sua cabeça.

Lancelot chegou tarde demais. Ele tinha vindo na maior rapi­dez, mas foi em vão. Tudo que pôde fazer foi pacificar o país e en­terrar os mortos. Então, quando uma aparência de ordem foi res­taurada, correu para Guenevere. Ela ainda deveria estar na Torre de Londres, pois o cerco de Mordred tinha fracassado.

Mas Guenevere tinha ido embora.

Naquela época as regras dos conventos não eram tão estritas quanto são agora. Muitas vezes não eram mais que hospedarias para seus patronos bem-nascidos. Guenevere tinha vestido o véu em Amesbury.

Ela achou que eles tinham sofrido o bastante, e causado dema­siado sofrimentos a outros. Recusou-se a ver seu antigo amor ou conversar sobre sua decisão. Disse, o que era evidentemente menti­ra, que queria fazer as pazes com Deus.

Guenevere nunca tinha se importado com Deus. Era uma boa teóloga, mas isso era tudo. A verdade é que estava velha e sábia: sa­bia que Lancelot se importava com Deus apaixonadamente, e era essencial que ele se voltasse nessa direção. Assim, pelo bem dele, para tornar a coisa mais fácil para ele, a grande rainha renunciava agora àquilo pelo qual lutara toda a sua vida, agora dava o exemplo, e sustentou sua escolha. Saiu do cenário.

Lancelot adivinhou uma boa parte disso tudo e, quando ela se recusou a vê-lo, subiu pelo muro do convento com galanteria gaé­lica e envelhecida. Ele a emboscou para censurá-la, mas ela foi bra­va e inflexível. Alguma coisa em relação a Mordred parecia ter que­brado sua paixão pela vida. Eles se separaram, para jamais se verem novamente nesta terra.

Guenevere tornou-se uma abadessa mundana. Governava seu convento com eficiência, realeza, com uma espécie de des­prezo superior. Os pequenos alunos de sua escola eram educados na grande tradição da nobreza. Eles a viam caminhar pelos ter­renos, reta, rígida, os dedos brilhando com anéis, as roupas lim­pas e finas e perfumadas contra as regras de sua ordem. As novi­ças a adoravam de forma unânime, com paixão de escolares, e sussurravam sobre seu passado. Ela se tornou a Velha Grande Dama. Quando finalmente morreu, seu Lancelot veio buscar o corpo, com seus cabelos brancos como a neve e a face enrugada, para levá-lo até a tumba do esposo. Lá, na renomada tumba, ela foi enterrada: um rosto calmo e real, lacrada com pregos e escon­dida na terra.

Quanto a Lancelot, este se transformou definitivamente num eremita. Com sete de seus cavaleiros como companheiros, entrou num mosteiro em Glastonbury e dedicou sua vida à devoção. Ar­thur, Guenevere e Elaine se foram, mas seu amor fantasmal per­maneceu. Ele rezava por todos eles duas vezes por dia, com todo seu poder jamais vencido, e vivia em contente austeridade afasta­do dos homens. Chegou até a aprender a distinguir os cantos dos pássaros, e ter tempo para todas as coisas que lhe tinham sido ne­gadas pelo Tio Dap. Tornou-se um jardineiro excelente, e um santo reputado.

"Ipse", diz um poema medieval sobre outro velho cruzado, um grande senhor como Lancelot em seu tempo, e que também se retirou do mundo:

 

Ipse post militiae cursum temporalis,

Illustratus gratia doni spiritualis,

Esse Christi cupiens miles specialis,

In hac domo monachus factus est claustralis.

 

Ele, depois do alvoroço das guerras mundanas,

Iluminado com a graça de um dom espiritual,

Ávido por ser o soldado especial de Cristo,

Nesta casa se tornou monge enclausurado.

Mais do que em geral plácido, gentil e benigno,

Branco como um ganso por conta de sua velha idade,

Brando, afável e louvável,

Possuía em si a graça do Espírito Santo.

Pois freqüentemente ia à Santa Igreja,

Alegremente ouvia os mistérios da Missa,

Proclamava tais louvores quanto era capaz

E mentalmente ruminava a glória celestial.

Sua conversação gentil e jocosa,

Altamente louvável e religiosa,

Era assim agradável a toda fraternidade,

Já que não era nem presunçosa nem melindrosa.

Ele, sempre que vagava pelo claustro,

Inclinava-se de um lado para o outro diante dos monges,

E saudava com uma inclinação da cabeça, assim,

Aqueles a quem amava mais intimamente.

 

Hic per claustrum quotiens transiens meavit,

Hinc e hinc ad monarchos caput inclinavit,

Et sic nutu capitis eos salutavit,

Quos affectu intimo plurimum amavit.

 

Quando sua própria hora final chegou, foi acompanhada por visões no monastério. O velho abade sonhou com sinos tangendo belamente, e com anjos, de riso alegre, levando Lancelot para o Paraíso. Eles o encontraram morto em sua cela, no ato de completar o terceiro e último de seus milagres. Pois tinha morrido naquilo que se chamava Odor de Santidade. Quando os santos morrem, seus corpos enchem o quarto com olor adorável, talvez do feno novo, ou de floração na primavera, ou de praia marinha limpa.

Ector fez o lamento fúnebre do irmão, uma das peças mais to­cantes de prosa do idioma. Ele disse:

— Ah, Lancelot, foste a cabeça dos cavaleiros Cristãos. E ago­ra ouso dizer, quando aí jazes, que nunca jamais a mão terrena de nenhum cavaleiro foi par para a tua. E que foste o mais cortês cava­leiro que jamais portou escudo. E que foste o amigo mais verdadei­ro de teu amor que jamais montou numa sela. E que foste o mais verdadeiro dos amantes entre os pecadores que jamais amaram uma mulher. E que foste o mais gentil homem que portou uma espada. E que foste o mais santo dentre todos os cavaleiros. E que foste o homem mais meigo e gentil que jamais esteve numa sala com da­mas. E que foste o mais rigoroso cavaleiro diante do inimigo mor­tal e que jamais descansou sua lança.

A Távola Redonda fora esmagada em Salisbury, seus poucos sobreviventes se dizimando ao passar dos anos. No final restavam apenas quatro deles: o misógino Boris, Bleoberia, Ector e Demaris. Esses velhos homens fizeram uma peregrinação até a Terra Santa pelo repouso de todos os seus camaradas, e lá morreram todos numa Sexta-Feira Santa, os últimos da Távola Redonda. Agora não resta­va mais nenhum deles: só os cavaleiros da ordem do Bath e de ou­tras ordens degradadas.

Sobre o Rei Arthur da Inglaterra, aquele coração gentil e centro de tudo isso, um mistério permanece até hoje. Alguns acham que ele e Mordred pereceram um com a espada do outro. Robert de Thornton menciona que ele foi atendido por um cirurgião em Salerno que, ao examinar seus ferimentos, descobriu que ele jamais poderia se curar e então "ele disse In manusk corajosamente no lugar onde estava... e não mais falou". Aqueles que aderem a esse relato alegam que ele foi enterrado em Glastonbury, sob uma pedra que diz: HIC JACET ARTURUS REX QUONDAM REX QUE FUTURUS,7 e que seu corpo foi exumado por Henrique II como contragolpe ao nacionalis­mo gales — pois os Cymry8 alegavam já então que o grande Rei ja­mais tinha perecido. Acreditavam que ele regressaria para liderá-los, e também mentirosamente asseguravam, como sempre, sua naciona­lidade britânica. Adam de Dormerham nos conta, por outro lado, que a exumação aconteceu em abril de 1278, sob Eduardo II, e que ele mesmo testemunhou os procedimentos; ao mesmo tempo se sabe que uma terceira busca aconteceu em vão sob Eduardo III — que, dito seja, reviveu a Távola Redonda em 1344, como uma séria ordem da cavalaria como a da Jarreteira. Seja qual tenha sido a data verdadeira, a tradição mantém que os ossos, quando exumados, eram de estatura gigantesca, e que os cabelos de Guenevere eram dourados.

 

6 "Em Tuas mãos." A frase inteira da morte de Jesus (Lucas 23, 46) é "em Tuas mãos encomendo meu espírito".

7 "Aqui jaz Arthur, o único e eterno Rei."

8 Cymry em gaélico significa "conterrâneos", e toda uma linhagem de lendas arturianas coloca nosso personagem como um grande celta — especificamente galés — vencedor dos saxões.

 

Quanto a Lancelot, este se transformou num eremita. Com sete de seus cavaleiros como companheiros, entrou num mosteiro em Glastonbury e dedicou sua vida a devoção.

Então existe outro conto, amplamente apoiado, falando que nosso herói foi transportado para o vale do Affalach por uma cole­ção de rainhas em um bote mágico. Acreditam que elas o levaram cruzando o Severn até seu próprio país, onde curaram suas feridas.

Os italianos se apoderaram da idéia de um certo Arturo Mag­no que se trasladou para o monte Etna, onde ainda pode ser visto ocasionalmente, dizem. Don Quixote, o espanhol, cavalheiro muito culto, que realmente enlouqueceu por conta disso, sustenta que ele se transformou num corvo — uma asserção que pode não ser tão ridícula para os que leram nossa pequena história. E também há os irlandeses, que o misturaram com um dos Fitzgeralds e declaram que ele cavalga ao redor de uma fortificação pré-histórica irlandesa, com a espada levantada, cantando o Londonderry Air. Os escoceses, que têm uma lenda sobre

 

         Arthur Cavaleiro

         Que cavalga na noite

         Com espora dourada

         E luz de candelabros,

 

ainda juram que ele está em Edimburgo, onde acreditam que preside do Arthur's Seat9. Os bretões alegam escutar seu corno e ter visto sua armadura, e também acreditam que ele regressará. Um li­vro chamado The High History of the Holy Gr ail, traduzido por um erudito irascível chamado Dr. Sebastian Evans, diz, ao contrário, que ele foi enterrado em segurança numa casa religiosa "que está si­tuada na ponta dos Pântanos Aventurosos". Uma senhorita Jessie L. Eston menciona um manuscrito que ela tem o prazer de denominar 1533, apoiada pela Morte d Arthur, no qual se declara que a rainha que chegou para levá-lo não era outra senão a envelhecida Morga­na, sua meia-irmã, e que ela o levou para uma ilha mágica. O Dr. Sommer considera o relato absurdo. Um grupo de pessoas chama­das Wolfram von Eschenbach, Ulrich von Zatzikhoven, Dr. Wechssler, Professor Simmer, Sr. Nutt e outros mais ou desprezam completamente o assunto ou permanecem numa confusão erudita. Chaucer, Spenser, Shakespeare, Milton, Wordsworth, Tennyson e várias outras testemunhas confiáveis concordam que ele ainda vive sobre a terra: Milton inclina-se a acreditar que ele está sob a terra (Arturumque etiam sub terris bella moventem),10 enquanto Tennyson é de opinião que ele voltará a nos visitar, "como um moderno cava­lheiro de porte Imponente", possivelmente como o Príncipe Con­sorte. A contribuição de Shakespeare é colocar o amado Falstaff, em sua morte, não no seio de Abraão, mas no de Arthur.

 

9 Monte nas redondezas de Edimburgo.

10 "E Arthur, também, ainda atiçando guerras sob a terra."

 

As lendas das pessoas comuns são belas, estranhas e afirmati­vas. Gervase de Tilbury, escrevendo em 1212, diz que, nas flores­tas da Bretanha, "os couteiros contam que em dias alternados, por volta do meio-dia, ou à meia-noite quando a lua está cheia e bri­lhante, muitas vezes vêem um bando de caçadores que, ao respon­der às perguntas, dizem que são da casa e companheiros de Ar­thur". Estes, entretanto, provavelmente eram verdadeiros bandos de caçadores clandestinos saxões, como os seguidores de Robin Wood, que apelidaram seu bando em honra ao antigo Rei. Os ho­mens de Devon estão acostumados a apontar "a cadeira e o forno" de Arthur nos rochedos de sua costa. Em Somersetshire existem algumas aldeias chamadas de Camellot do Leste e do Oeste, men­cionadas por Leland, envolvidas por lendas sobre um rei que ain­da reina com uma coroa dourada. Deve-se notar que o rio Ivel, onde, segundo Drayton, nossas "façanhas cavalheirescas e bravos sucessos brotaram", está na mesma região. Assim também é Cadbury do Sul, cujo pároco afirma que seus paroquianos relatam como "as pessoas dizem que na noite de lua cheia o Rei Arthur e seus homens cavalgam pela colina, e seus cavalos estão ferrados de prata, e uma ferradura de prata foi descoberta na trilha por onde passam, e quando terminam de cavalgar pela colina param para dar. água a seus cavalos na fonte dos desejos". Finalmente há a pe­quena aldeia de Bodmin, na Cornualha, cujos habitantes têm cer­teza de que o Rei habita um túmulo local. Em 1113 eles chegaram a assaltar, dentro do santuário, um grupo de monges da Bretanha — coisa jamais vista — porque tinham duvidado da lenda. Há que se admitir que algumas dessas datas dificilmente podem se encai­xar no espinhoso assunto da cronologia arturiana, e Malory, esse grande homem que é a fonte mais nobre de toda esta história, mantém cautelosa reserva.

Quanto a mim, não posso me esquecer do último adeus do ou­riço, ligando-o à deixa do Quixote sobre os animais e o sonho sub­terrâneo de Milton. É pouco mais que uma teoria, mas talvez os ha­bitantes de Bodmin devam procurar nos outeiros e, se este for como um enorme montículo como os das toupeiras, com uma abertura es­cura em um lado, e particularmente se houver rastros de texugo nas vizinhanças, podemos chegar a nossas próprias conclusões. Pois sou inclinado a acreditar que meu amado Arthur do futuro está neste exato momento sentado entre seus amigos eruditos, na Sala do Acor­do do Colégio da Vida, e que lá estão gastando o bestunto sobre os melhores meios de ajudar nossa curiosa espécie. E, por mim, eu es­pero que algum dia, quando não apenas a Inglaterra, mas o mundo inteiro precisar deles, e quando estiverem prontos para ouvir a razão, se isso acontecer, sairão de sua fortificação com alegria e poder. E en­tão, talvez, mais uma vez nos proporcionarão felicidade no mundo, e cavalheirismo, e a velha bênção medieval de algumas pessoas simples que tentaram, de alguma maneira, e de sua forma limitada, deter o antigo e brutal sonho de Atila, o Huno.

 

Explicit líber Regis Quondam, graviter et laboriose scriptus inter annos MDCCCCXXXVI e MDCCCCXLII, nationibus in diro bello certantibus. Hk etiam incipit, si forte in futuro homo superstes pertilen-ciam possit evadere et opus continuare inceptum, spes Regis Futuri. Ora pro Thoma Malory Equite, discipuloqúe humili ejus, qui nunc sua sponte libros deponit ut pro specie pugnet.

 

                                                                                T. H. White  

 

 

                      

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