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O LIVRO DE SALADINO / Tariq Ali
O LIVRO DE SALADINO / Tariq Ali

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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As Cruzadas não foram uma aventura de cavaleiros em armaduras reluzentes, lutando para civilizar povos bárbaros e libertar a cidade santa da cristandade. As Cruzadas foram um espetáculo de selvageria, repleto de saques, brutalidade, vandalismo e desrespeito pela cultura islâmica, mais antiga e mais sólida que a dos invasores. Assim é a história descrita em O livro de Saladino, obra que faz parte de um ambicioso projeto de Tariq Ali de cinco romances rememorando os embates entre o mundo árabe e o cristão, de uma perspectiva islâmica. Este é o segundo livro da série, iniciada com Sombras da romãzeira e ao qual se seguiram Mulher de pedra e Um sultão em Palermo.
O livro de Saladino é uma crônica da vida do soldado curdo Salah al-Din, que se tornou sultão do Egito e da Síria e conquistou Jerusalém em 1187, derrotando os cruzados numa guerra santa. Quem narra a epopéia é o escriba judeu Ibn Yakub, cuja vida é contada nos intervalos. Os episódios são ditados em parte pelo próprio sultão, em parte por seus parentes e amigos, reconstruindo a história de um combatente reconhecido por sua bravura e lealdade. Como cenário, um ambiente de sabores e odores, arte e sensualidade.


                                Nota explicativa

Toda reconstrução literária da vida de uma figura histórica traz um problema para o escritor. A realidade histórica deve ser desprezada em favor de uma boa história?
Acredito que não. Na verdade, quanto mais se explora a vida pessoal dos personagens, mais importante é manter a fidelidade aos fatos e eventos, mesmo no caso das Cruzadas, cujos acontecimentos costumam ser interpretados de forma diferente pelos cronistas cristãos e muçulmanos.
A tomada de Jerusalém pela Primeira Cruzada, em 1099, chocou o mundo islâmico, que estava no auge de suas conquistas. Damasco, Cairo e Bagdá eram grandes cidades, com uma população total de cerca de dois milhões de habitantes, formando uma civilização urbana desenvolvida numa época em que Londres e Paris tinham menos de 50 mil habitantes cada. O califa de Bagdá ficou impressionado com a facilidade com que a onda bárbara subjugou os exércitos islâmicos. Seria uma longa ocupação.
Salah al-Din (para os ocidentais, Saladino) foi o guerreiro curdo que retomou Jerusalém em 1187. Os principais personagens masculinos deste livro baseiam-se em personagens históricos. São eles: o próprio Saladino, seus irmãos, o pai, o tio e sobrinhos.
Ibn Maimun é o grande médico-filósofo judeu Maimônides.
O narrador e Xadi foram criados por mim e assumo total responsabilidade por eles.
As mulheres — Jamila, Halima e as demais — são fictícias.
As mulheres são um tema sobre o qual a história medieval costuma se deter. Sabemos que Saladino teve dezesseis filhos, mas não há qualquer registro sobre as irmãs e mães deles.
O califa era o soberano espiritual e laico no início do islamismo, eleito por aclamação pelos primeiros Companheiros do Profeta) Disputas de facções dentro do islamismo causaram rivalidades o surgimento da facção xiita dividiu os herdeiros políticos de Maomé. Os muçulmanos sunitas obedeciam ao califa de Bagdá mas a guerra civil e as vitórias xiitas levaram à criação do califado fatímido no Cairo, enquanto a facção sunita deposta pelos abássidas chegou ao auge com a fundação de um califado em Córdoba, Espanha muçulmana.
A vitória de Saladino no Egito causou a dissolução da dinastia fatímida e levou toda a região árabe à soberania nominal do califado de Bagdá. Saladino foi nomeado sultão (rei) da Síria e do Egito e tornou-se o líder mais poderoso do mundo árabe medieval. O califado de Bagdá foi destruído pelos exércitos mongóis em 1258 e só veio a renascer na Turquia otomana.

 

 

 


 

 

 


Cairo

1

Por recomendação de Ibn Maimun,
passo a ser o escriba de confiança do sultão

Há muitos anos não penso em nossa antiga casa. O incêndio ocorreu faz tempo. Minha casa foi queimada, e minha esposa, minha filha e meu neto de dois anos ficaram presos dentro dela 'como animais numa jaula. Não fosse o destino, eu também podia ter me transformado em cinzas. Quantas vezes desejei ter estado lá para sentir a mesma agonia.

São lembranças dolorosas. Mantenho-as escondidas. Mas hoje, ao começar a escrever esta história, volta forte à minha mente a imagem daquela sala de teto arredondado, onde um dia tudo começou. São incríveis as cavernas que existem na nossa memória. Coisas das quais não lembramos há muito tempo ficam ocultas em cantos escuros e, de repente, vêm à tona. Agora vejo tudo. Minhas lembranças voltam nítidas, como se o tempo tivesse parado.

Era uma noite fria no inverno do Cairo, no ano de 1181 do calendário cristão. O miado dos gatos era o único som que vinha da rua. O rabino Musa ibn Maimun, velho amigo e médico da nossa família, tinha vindo à minha casa depois de dar uma consulta ao cádi alFadil, que estava indisposto há vários dias.

Tínhamos terminado a refeição e tomávamos nosso chá de hortelã em silêncio, cercados de espessos tapetes de lã colorida e almofadas de seda e cetim. Um grande braseiro redondo cheio de carvão brilhava no centro da sala e enviava ondas suaves de calor. Reclinados no chão, podíamos ver o reflexo do fogo na abóbada no alto, como se o céu escuro estivesse iluminado.

Eu refletia sobre o que tínhamos falado. Meu amigo mostrou uma faceta amarga e zangada, o que me surpreendeu e, ao mesmo tempo, me tranqüilizou. Nosso santo era tão humano quanto qualquer pessoa. A máscara que usava era só para os que não o conheciam. Discutimos as razões que levaram Il Maimun a fugir da Andaluzia e iniciar sua longa jornada de quinze anos, de Córdoba até o Cairo. Passou dez desses anos na cidade magrebiana de Fez. Lá, a família dele foi obrigada a fingir que era seguidora do profeta do islamismo. Ibn Maimun ficou zangado ao lembrar-se disso. Esse fingimento o incomodou, não gostava de hipocrisia.

Nunca o ouvira falar daquele jeito. Ficou transtornado. Seus olhos brilhavam e ele cerrou os punhos. Fiquei pensando se foi essa experiência que o deixou preocupado com a religião, principalmente com uma religião no poder, uma fé imposta pelo poder da espada. Quebrei o silêncio.

— Ibn Maimun, pode haver um mundo sem religião? Os antigos tinham muitos deuses. A veneração a um deus era motivo de luta contra os que gostavam de outro deus. Agora temos un deus e somos obrigados a lutar por causa dele. Tudo se transformou numa guerra de interpretação. Como sua filosofia explica ess¦ fenômeno?

Ele gostou da pergunta, mas, antes que respondesse, ouvimos uma batida forte na porta e seu sorriso sumiu.

— Está esperando alguém? Neguei. Ele se inclinou para aquecer as mãos no braseiro. Estávamos enrolados em cobertores de lã e, mesmo assim, sentiamos frio. Minha intuição me dizia que a batida na porta, àquela ora da noite, era de alguém procurando meu amigo. — Só um emissário de um homem poderoso bate desse jeito — suspirou Ibn Maimun. — Talvez o cádi tenha piorado e terei de ir vê-lo.

Meu criado, Amad, entrou na sala carregando uma tocha que tremia em suas mãos. Vinha seguido de um homem de 'altura mediana, de traços pouco nítidos na luz da sala e cabelo ruivo e lustroso. Estava envolto numa manta e mancava um Pouco da perna direita. Vi um súbito temor passar pelo rosto de Ibn Maimun quando se levantou e fez uma reverência para ovisitante. Eu nunca tinha visto aquele homem. Não era o cádi, que eu conhecia.

Também me levantei e fiz uma reverência. Meu visitante sorriu ao ver que eu não sabia quem era ele.

— Desculpe interromper a essa hora. O cádi informou-me que Ibn Maimun estava em nossa cidade, passando a noite na sua ilustre casa. Estou na residência de Isaac ibn Yakub, pois não?

Assenti. — Espero que me perdoe por ter vindo sem avisar — disse o estranho, fazendo uma ligeira mesura. — Não é sempre que tenho a oportunidade de encontrar dois grandes eruditos no mesmo dia. Meus pensamentos voavam, sem saber se era melhor dormir cedo ou conversar com Ibn Maimun.

E concluí que suas palavras poderiam ter um efeito mais benéfico do que o sono. Por isso, cá estou.

— Todo amigo de Ibn Maimun é bemvindo aqui. Por favor, sente-se. Podemos lhe oferecer uma sopa?

— Acho que isso lhe fará bem, Comandante dos Bravos — disse Ibn Maimun com voz calma.

Percebi então que estava na presença do sultão. Era Yusuf Saladino em pessoa. Na minha casa. Caí de joelhos e toquei seus pés.

Perdoe-me por não reconhecer Sua Majestade. Seu servo lhe pede perdão.

Ele riu e me pôs de pé.

— Não dou muita importância a servos, são dados a rebeliões Mas aceito um pouco de sopa.

Depois que tomou a sopa, perguntou de onde eram as tigelas de barro em que fora servida.

— São da terra vermelha da Armênia? Concordei, surpreso.

— Minha avó tinha algumas muito parecidas, que só usava em casamentos e velórios. Costumava me contar que eram da aldeia onde nasceu, nas montanhas armênias.

Mais tarde, o sultão explicou a Ibn Maimun que precisava contratar um escriba de confiança, a quem pudesse ditar suas memórias. Seu secretário particular estava envolvido em todo tipo de intrigas, não merecia confiança. Era capaz de distorcer o sentido das palavras para um dia usá-las como melhor lhe conviesse.

— Você bem sabe, meu amigo, que às vezes nossas vidas correm perigo a cada minuto — disse o sultão, olhando firme para Ibn Maimun. — Estamos cercados pelo inimigo.

Não temos tempo para pensar em outra coisa senão em sobreviver. Só quando existe paz podemos nos dar ao luxo de ficarmos a sós com nossos pensamentos.

— Como agora? — perguntou Ibn Maimun.

— Como agora — concordou o sultão. — Preciso de um homem de confiança e que não tema contar a verdade depois que eu tiver me transformado em pó.

— Sei de quem precisa — disse Ibn Maimun.

— Mas seu pedido tem um problema: Sua Majestade nunca fica na mesma cidade por muito tempo. O escriba vai ter que viajar junto, ou o senhor precisará de outro em Damasco.

O sultão sorriu.

— Por que não? E numa terceira cidade, pois espero visitar logo al-Kadisia. Portanto, talvez precise de três escribas, um para cada lugar. Como autor do relato, vou me esforçar para não me repetir.

Meu amigo e eu ficamos ansiosos. Mal conseguíamos disfarçar nosso nervosismo, o que pareceu agradar ao nosso augusto hóspede. Jerusalém — al-Kadisia para o mundo islâmico — era uma cidade ocupada pelos cruzados, que tinham se tornado presunçosos e arrogantes. O sultão acabara de anunciar, na minha casa, que pretendia expulsar o inimigo.

Há três anos nós, que sempre vivemos nessa região, estávamos nos engalfinhando com os cruzados, que chegaram pelo mar. Jerusalém foi dominada em 1099. A cidade antiga foi destruída e suas ruas ficaram encharcadas de sangue judeu e muçulmano. A luta entre os bárbaros e o nosso mundo tinha sido mais brutal do que nas cidades litorâneas. Todos os judeus e muçulmanos foram mortos. Os fiéis nas mesquitas e sinagogas ficaram horrorizados quando a notícia dessa atrocidade se espalhou pela região. Eles amaldiçoaram os bárbaros do oeste e juraram vingar esse ato ignóbil. Talvez tivesse chegado a hora. Talvez houvesse uma razão para a tranqüila confiança desse homem. Meu coração batia descompassado.

— Meu amigo Ibn Yakub, cuja casa Sua Majestade honra com sua visita esta noite, é um dos mais confiáveis eruditos de nossa comunidade. Não conheço outro melhor para seu escriba. Não dirá uma só palavra a ninguém.

O sultão ficou me olhando durante um bom tempo.

— Você aceita?

— Estou a seu serviço, Comandante dos Leais. Com uma só condição.

— Diga.

— Li muitos livros sobre os reis antigos. O soberano costuma ser mostrado como um deus ou um diabo, dependendo de o relato ter sido escrito por um cortesão ou um inimigo. Livros desse tipo não valem nada. Quando a verdade e a mentira se enroscam na mesma cama, é difícil separá-las. Preciso da autorização de Sua Majestade para fazer perguntas que me ajudem a esclarecer um determinado acontecimento em sua vida. Pode ser desnecessário, mas todos nós sabemos da responsabilidade que recai sobre seus ombros e eu...

Ele me interrompeu com uma risada. — Pode me perguntar o que quiser. Concedo-lhe este privilégio. Mas posso, às vezes, não responder. É o meu privilégio.

Fiz uma reverência.

— Como você virá sempre ao palácio, isso não poderá ficar em segredo, mas valorizo a discrição e a precisão. Muitos que vivem à minha volta vão invejá-lo, inclusive meu muito amado cádi, alFadil. Afinal, nosso al-Fadil é um escritor talentoso e apreciado. Ele certamente poderia escrever o que eu ditar, mas usa uma linguagem muito floreada, afetada demais para o meu gosto. Veste os fatos com tantas palavras que às vezes fica difícil entender o sentido. É um ilusionista da palavra, um mágico do disfarce.

"Quero que escreva exatamente o que digo, sem qualquer tipo de adorno. Venha ao palácio amanhã e começaremos logo cedo. Agora, se me permite, gostaria de consultar Ibn Maimun sobre um assunto pessoal.

Saí da sala. Uma hora depois voltei para perguntar se gostariam de mais um pouco de canja e ouvi o som forte e claro da voz de meu amigo.

— Já disse muitas vezes ao seu cádi que as emoções de nossas almas, o que sentimos dentro de nós, causam a maior parte das alterações em nossa saúde. Todas as emoções que perturbam Sua Majestade deveriam ser afastadas. Suas causas deveriam ser descobertas e tratadas. Ouviu bem?

Não houve resposta. Minutos depois o sultão saiu de minha casa. Nunca mais voltaria. Seus emissários viriam sempre trazer presentes para minha família e carneiros ou cabras para comemorar o festival muçulmano de al-Fitr, que lembra o sacrifício de Abraão. Desde aquela noite até o dia em que partiu para Jerusalém, vi o sultão diariamente.

Às vezes ele não me deixava voltar para casa, e por isso me destinaram aposentos particulares no palácio. Nos oito meses seguintes, minha vida ficou por conta do sultão Yusuf Saladino ibn Ayub.


2

Encontro Xadi e o sultão começa a ditar suas memórias

Ibn Maimun tinha me avisado que o sultão acordava cedo. Levantava-se antes do amanhecer, fazia suas abluções e tomava uma taça de água morna, depois percorria a cavalo as colinas Mucatan, nos arredores da cidade. Era lá que a fortaleza estava sendo construída. O sultão, um aplicado aluno de arquitetura, discordava do mestre da obra. Só Saladino sabia que a nova construção não era para defender o Cairo dos cruzados, mas para defender o sultão de uma rebelião popular.

A cidade era conhecida por sua agitação. Tinha crescido rapidamente e atraía vagabundos e rebeldes de todo tipo. Por isso o Cairo assustava seus soberanos.

Era nesses passeios também que o sultão testava sua habilidade e a de seu cavalo. Às vezes, levava junto Afdal, seu filho mais velho. O menino tinha apenas dez anos e era a primeira vez que passava uma temporada mais longa no Cairo. O sultão aproveitava o tempo para treiná-lo nas artes e engenhos da guerra. Afinal, é no campo de batalha que as dinastias são conquistadas ou perdidas. Saladino aprendeu isso com seu pai, Ayub, e seu tio Xirkuh.

Naquela manhã, quando o sultão voltou, eu já estava à espera. Toquei minha testa, num cumprimento silencioso.

Chegou em boa hora, Ibn Yakub — disse ele, saltando do cavalo. Estava corado e suado, seus olhos brilhavam como os de uma criança. Seu rosto mostrava felicidade e alegria. — É um bom começo para o nosso trabalho, meu amigo. Vou tomar um banho e encontro você para tomarmos o café da manhã na biblioteca. Temos uma hora até o cádi chegar. Xadi vai lhe mostrar o caminho.

Um velho guerreiro curdo de mais de noventa anos, barba branca como a neve das montanhas, segurou meu braço e me guiou gentilmente até a biblioteca. Pelo caminho, contou sua história. Tinha sido assistente do pai do sultão muito antes de Yusuf ter nascido e de Ayub e seu irmão Xirkuh terem-se mudado para as planícies da Mesopotâmia.

— Fui eu, Xadi, quem ensinou o seu sultão a montar e empunhar uma espada quando ainda não tinha oito anos. Fui eu, Xadi, que...

Se a situação fosse mais normal, eu teria prestado atenção ao que o velho dizia e perguntado todos os detalhes, mas naquele dia meus pensamentos estavam alhures.

Era a primeira vez que ia ao palácio e seria inútil negar que estava muito agitado. De repente, minha estrela tinha brilhado. Estava prestes a me transformar no confidente do soberano mais poderoso do mundo.

Eu estava sendo conduzido à mais famosa biblioteca particular de nossa cidade. Só de livros de filosofia, tinha mais de mil volumes. Estava tudo lá, de Aristóteles ao sábio Ibn Rushd; dos livros de astronomia aos de geometria. Era lá que Ibn Maimun ia quando queria consultar as fórmulas medicinais de al-Kindi, Sahlan ibn Kaisan e Abul Fadl Daud. Além, claro, do próprio mestre alRazi, o maior de todos. Ibn Maimun queria que seus livros e manuscritos fossem guardados ali após sua morte.

Ao entrar na biblioteca, fiquei encantado com sua amplidão e logo me perdi em pensamentos. Aqueles livros, tão perfeitamente arrumados, eram o repositório de séculos de estudos e conhecimentos. Havia uma seção só de exemplares únicos, considerados heréticos. Esses livros, para dizer em outras palavras, poderiam ampliar mentes estreitas. Só podiam ser lidos nas salas da Dar al-hikma se o leitor tivesse condição de oferecer ao bibliotecário um presente muito generoso.

Mesmo assim, nem todos os livros podiam ser consultados.

O livro Sirat al-Bakri, de Abul Hassan al-Bakri, por exemplo, tinha sumido das livrarias e das bibliotecas públicas. Um pregador de al-Azhar denunciou o livro, uma biografia do profeta do islamismo, como sendo mentiroso. Ele disse aos fiéis durante as preces da sexta-feira que al-Bakri estava assando no inferno por causa de sua blasfêmia.

E agora o livro da injúria estava na minha frente. Minhas mãos tremeram um pouco quando o retirei da estante e li as primeiras linhas. Parecia bastante ortodoxo.

Fiquei tão absorto que não notei a figura de Xadi prostrado sobre um tapete de reza, na direção de Meca, nem o anúncio da chegada do sultão. Ele interrompeu meu devaneio.

— Sonhar e saber é melhor do que rezar e ser ignorante. Concorda, Ibn Yakub?

— Perdão, Majestade, eu estava... Fez sinal para que nos sentássemos. O café da manhã foi servido. O sultão estava preocupado e eu, de repente, fiquei nervoso.

Fizemos a refeição em silêncio.

— Qual é o seu método de trabalho? Fui pego de surpresa.

— Temo não ter entendido sua pergunta, Comandante dos Bravos.

Ele riu.

— Ora, meu amigo. Ibn Maimun disse que você é um especialista em História. Disse também que gostaria muito de compilar a história de seu povo. Será que minha pergunta é tão difícil assim?

— Sigo o método do grande Tabari. Escrevo de acordo com a cronologia dos fatos. E confirmo a veracidade de cada acontecimento importante falando com testemunhas oculares. Quando tenho várias versões diferentes para um mesmo fato, feitas por vários narradores, costumo informar o leitor a respeito de todas.

O sultão riu muito.

— Você está se contradizendo. Como pode haver mais de uma versão para um mesmo fato? Claro que só houve um fato. Portanto, só um relato é correto e os demais são falsos.

— Sua Majestade está se referindo a fatos. Eu estou falando em História.

Ele sorriu.

— Podemos começar? Concordei e peguei meus apetrechos de escrita.

— Devemos partir do começo?

— Creio que sim — murmurou ele -, já que você dá tanta importância à cronologia. Acho que seria melhor começar contando a primeira vez que vi o Cairo, não?

— O começo, ó sultão, o começo. Suas primeiras lembranças.

Eu tinha sorte. Não era o filho mais velho. Por isso não esperavam muito de mim. Deixavam que ficasse sozinho muito tempo e eu gostava da liberdade. Minha aparência e meu jeito não ameaçavam ninguém. Fui um menino comum. Você agora me vê como sultão, rodeado pelos símbolos do poder. Está impressionado e, talvez, até um pouco assustado. Você pensa que, se tomar certas liberdades, sua cabeça pode rolar pelo chão. Esse medo é normal. É a conseqüência do poder em relação aos assuntos ligados ao sultão. Mas esse mesmo poder é capaz de transformar até a personalidade mais ínfima em algo muito grande. Olhe para mim. Se tivesse me conhecido quando eu e Xahan Xá, meu irmão mais velho, éramos crianças, jamais pensaria que eu pudesse ser o sultão de Misr — e estaria certo. O destino e a História tramaram para fazer de mim o que sou hoje.

A única pessoa que notou alguma coisa em mim foi minha avó paterna. Quando eu tinha nove ou dez anos, ela me viu com um grupo de amigos tentando matar uma serpente.

Nós, meninos, gostávamos de competir nessas bobagens. Tentávamos agarrar a serpente pela cauda e rodá-la antes de esmagar sua cabeça numa pedra ou, como faziam os mais corajosos, pisar nela.

Depois de assistir a essa cena, minha avó me chamou.

— Yusufi Yusuf ibn Ayub! Venha já aqui! Os outros meninos foram embora correndo e eu me aproximei dela, esperando levar um tapa na orelha. O gênio de minha avó era famoso e Xadi me contou que uma vez ela esbofeteou meu pai no rosto quando ele já era homem. Ninguém ousou perguntar o porquê dessa manifestação em público. Meu pai saiu da sala e, dizem, mãe e filho não se falaram durante um ano. E foi meu pai quem acabou pedindo desculpas.

Mas, para minha surpresa, naquele dia minha avó me abraçou e beijou meus olhos.

— Você é corajoso, menino, mas tome cuidado. Algumas serpentes podem reagir, mesmo quando presas pela cauda.

Lembro que ri de alívio. Ela então me contou o sonho que teve quando nasci.

— Você ainda estava no ventre de sua mãe. Acho que chutava muito, pois ela costumava reclamar que parecia que ia dar à luz um potro. Uma noite, sonhei que um homem-serpente rastejava na direção de sua mãe, que estava deitada ao sol. Ela abriu os olhos e começou a transpirar. Queria se mexer, mas não conseguia levantar-se. Devagar, a serpente ia se aproximando. Então, de repente, como se fosse a porta de uma caverna mágica, o ventre de sua mãe se abriu. Um bebê saiu lá de dentro, espada na mão e, de um só golpe, cortou a cabeça da serpente. Depois, olhou para a mãe e voltou ao ventre dela. Você vai ser um grande guerreiro, meu filho. Está escrito nas estrelas e o próprio Alá será seu guia.

Meu pai e meu tio riram da avó com seus sonhos ingênuos, mas, mesmo naquela época, essa interpretação foi boa para mim. Minha avó foi a primeira pessoa a me levar a sério.

As palavras dela devem ter causado algum efeito. Depois desse incidente, percebi que Asad al-Din Xirkuh, meu tio, passou a prestar atenção em mim. Ele se interessou por meu aprendizado de equitação e de luta com espada. Foi quem me ensinou tudo o que sei sobre cavalos. Ibn Yakub, sabe que conheço a linhagem de todos os grandes cavalos de nossos exércitos, não? Você parece surpreso; um dia conversaremos sobre cavalos.

Se fechar os olhos e pensar nas minhas lembranças mais remotas, a primeira imagem que surge é das ruínas dos antigos templos gregos em Baalbek. A imponência deles causava um tremor de admiração e medo. Os portais que levavam ao pátio ainda estavam em perfeito estado. Foram mesmo construídos para os deuses. Meu pai, como representante do grande sultão Zengui de Al-Mawsil, era o responsável pela defesa da fortaleza contra os rivais do sultão. Cresci nessa cidade. Os antigos a chamavam de Heliópolis e lá adoravam Zeus, Hermes e Afrodite.

Quando crianças, costumávamos nos dividir em grupos ao pé das estátuas dos deuses e brincar de esconder. Nada como uma ruína para excitar a imaginação infantil.

Aquelas velhas pedras eram mágicas. Eu costumava devanear, pensando nos tempos antigos. Quando eu era menino, o mundo dos antigos era um total enigma. E adorar deuses era a pior heresia para nós, algo que tinha sido banido do mundo por Alá e nosso profeta. Mesmo assim, aqueles templos, e as estátuas de Afrodite e Hermes em particular, eram muito bonitos.

Nós gostávamos de pensar como teria sido interessante viver naquela época. Às vezes, lutávamos com os deuses. Eu torcia por Afrodite, enquanto meu irmão mais velho, Turan Xá, gostava de Hermes. Quanto a Zeus, ficaram as pernas da estátua, que não eram lá muito bonitas. Acho que o resto fora usado para construir a fortaleza onde morávamos.

Xadi, preocupado com os efeitos nocivos desses resquícios do passado, tentava nos assustar para sairmos das ruínas. Dizia que os deuses podiam transformar seres humanos em estátuas e outros objetos, mas deixavam que continuassem pensando como gente. E inventava histórias de reuniões de demônios e outras criaturas más naqueles lugares em noite de lua cheia. Ficavam discutindo como agarrar e comer as crianças. Centenas de milhares de crianças tinham sido comidas ali pelos demônios durante séculos — ele nos contava com uma voz soturna. Depois, vendo como ficávamos assustados, consertava o que dizia. Nada poderia nos acontecer, pois estávamos protegidos por Alá e o profeta.

As histórias de Xadi só serviam para nos deixar mais interessados ainda nas estátuas. Fazíamos perguntas sobre os três deuses e alguns eruditos na biblioteca falavam sobre os antigos e suas crenças. Diziam que os deuses e deusas eram como homens e mulheres comuns. Lutavam, amavam e tinham outras emoções iguais às dos seres humanos. O que os distinguia de nós era o fato de serem imortais. Viviam para sempre no céu deles, um lugar bem diferente do nosso paraíso.

— Eles continuam nesse céu até hoje? — lembro que perguntei para minha avó uma noite.

Ela ficou zangada.

— Quem anda enchendo sua cabeça com essas bobagens? Seu pai vai mandar cortar a língua dele. Esses deuses sempre foram só estátuas e nada mais, seu bobo. As pessoas naqueles tempos eram muito simplórias. Adoravam ídolos. No nosso mundo, o próprio profeta, que descanse em paz, destruiu as estátuas e acabou com sua influência.

Tudo o que nos contavam aumentava nosso fascínio. Não havia jeito de nos afastarmos dos templos. Numa noite de lua cheia, as crianças mais velhas, chefiadas por meu irmão, resolveram visitar o templo de Afrodite. Planejaram me deixar para trás, mas ouvi quando combinaram e ameacei contar para nossa avó. Meu irmão me deu um chute, mas percebeu que não era boa idéia me excluir.

Era uma noite fria. Muito fria. Nós nos enrolamos em mantas, acho que éramos uns seis ou sete meninos. Saímos devagarzinho da fortaleza. Estávamos assustados e lembro dos outros meninos reclamando porque precisei parar duas vezes para urinar no tronco das árvores. Ficamos mais tranqüilos quando nos aproximamos de Afrodite. O único som que ouvíamos era das corujas piando e dos cachorros latindo. Nenhum demônio apareceu.

Mas, quando entramos no pátio do templo iluminado pela lua, ouvimos sons estranhos. Quase morri de susto e me grudei em Turan Xá, que também estava apavorado.

Aos poucos, nos aproximamos de onde vinham os sons. Vimos então as costas nuas de Xadi subindo e descendo, com seu cabelo negro balançando ao vento. Estava copulando com um jumento e quando vimos que era ele, não conseguimos nos conter. Nosso riso ecoou pelo pátio vazio, atingindo Xadi como um punhal. Ele se virou e começou a gritar conosco. Corremos. No dia seguinte, meu irmão foi tomar satisfações com ele.

— Xadi, na noite passada o traseiro do demônio era bem conhecido, não?

Saladino fez uma pausa e riu das lembranças. Por coincidência, na mesma hora Xadi entrou na biblioteca com um recado. Antes de ouvi-lo, o sultão riu ainda mais alto. O confuso assistente olhou para nós e quase não consegui me controlar, pois estava rindo por dentro.

Para entender o que estava acontecendo, Xadi ouviu de novo a história que tinha acabado de ser contada. Enrubesceu, dirigiu-se a Saladino em dialeto curdo e saiu furioso da sala.

O sultão riu outra vez.

— Ele ameaça se vingar. Vai contar para você coisas que ocorreram quando eu era jovem em Damasco, que acha que esqueci.

Terminamos nossa primeira sessão.

Saímos da biblioteca e o sultão fez um gesto para que eu o acompanhasse. Os corredores e salas por onde passamos eram guarnecidos com uma infinita variedade de sedas e brocados e as paredes tinham espelhos com molduras de ouro e prata. Eunucos tomavam conta de cada relíquia. Eu nunca tinha visto tanto luxo.

O sultão não me deu tempo para pensar. Andava depressa, seus movimentos faziam a túnica flutuar. Entramos na sala de audiência. Um guarda núbio ficou na porta, com uma cimitarra à cintura. Ao entrarmos, curvou-se num cumprimento. O sultão sentou-se num tablado coberto com sedas vermelhas e cercado de almofadas de cetim e brocado dourado.

O cádi já tinha chegado ao palácio para fazer seu relato diário e dar consultas. Foi convocado à sala e, ao entrar, inclinou-se num cumprimento. Fiz menção de sair, mas, para minha surpresa, o sultão pediu-me que continuasse sentado. Queria que eu observasse e anotasse tudo o que achasse necessário.

Eu já tinha visto várias vezes o cádi al-Fadil nas ruas da cidade, cercado de guardas e assistentes, símbolos de poder e autoridade. A cara do Estado. Era esse o homem que governava o Diwan al-insha, a chancelaria do Estado, o homem que garantia o funcionamento correto e tranqüilo do Misr. Ele tinha servido aos califas fatímidos e seus ministros com o mesmo zelo que agora dedicava ao homem que os derrubara. Representava a continuidade das instituições do Misr. O sultão confiava no cádi como conselheiro e amigo, que nunca se furtava de dar um conselho que fosse importuno. Era ele também quem escrevia as cartas oficiais e particulares, depois de o sultão dar as coordenadas do que gostaria de dizer.

O sultão me apresentou como escriba muito especial e particular. Levantei-me e fiz uma pequena mesura para o cádi. Ele sorriu.

— Ibn Maimun me falou muito de você, Ibn Yakub. Ele respeita seus conhecimentos e seu talento. Para mim, é o suficiente.

Inclinei a cabeça em sinal de agradecimento. Ibn Maimun tinha me avisado que, se o cádi ficasse enciumado do sultão e incomodado com minha presença, podia me tirar deste mundo sem muito problema.

— E o que diz de minha escolha, alFadil? — perguntou o sultão. — Ela não vale nada? Admito que não sou um grande pensador ou um poeta como você, nem um filósofo ou médico como nosso bom amigo Ibn Maimun. Mas há de admitir que sei julgar as pessoas. Fui eu que escolhi Ibn Yakub.

— Sua Majestade zomba de seu humilde servo — respondeu o cádi de um jeito meio aborrecido, como se quisesse mostrar que naquele dia não estava disposto a brincadeiras.

Depois de algumas discussões preliminares, nas quais o cádi não aceitou mais provocações de seu amo, ele resumiu os principais acontecimentos da semana anterior.

Era um relato de rotina sobre os aspectos mais triviais da administração do Estado, mas era difícil não ficar encantado com o domínio que o cádi tinha da linguagem. Cada palavra era escolhida com cuidado, cada sentença tinha um ritmo perfeito e a conclusão vinha em versos emparelhados. Era mesmo um homem incrível. O relato completo durou uma hora, sem que o cádi precisasse consultar nenhum papel. Um prodígio de memória!

O sultão estava acostumado com o estilo do cádi e pareceu fechar os olhos várias vezes durante o primoroso discurso de seu chanceler.

— Agora eu gostaria de falar de um assunto especial para o qual preciso de sua decisão, Majestade. Trata-se da morte de um de seus oficiais, assassinado por outro.

O sultão ficou bem atento.

— Por que não me informou antes?

— O fato ao qual me refiro ocorreu há apenas dois dias. Passei ontem o dia todo apurando a verdade.

Agora posso relatar a história inteira.

— Estou ouvindo, al-Fadil. O cádi começou a falar.


3

Uma paixão incontrolável:
a história de Halima e como o sultão a julgou

Como Sua Majestade deve saber, Messud al-Din era um de seus soldados mais corajosos. Lutou a seu lado em várias ocasiões. Dois dias atrás, foi morto por um homem bem mais jovem, Kamil ibn Zafar, que, segundo me informaram, era um dos melhores espadachins de nossa cidade. Quem me deu a notícia da morte foi Halima, pivô da briga entre os dois homens. Está escondida sob minha proteção até a situação melhorar. Se o sultão a visse, entenderia por que Messud está morto e por que Kamil está prestes a ter o mesmo destino. Ela é linda.

Halima era órfã e teve uma infância difícil. Era como se soubesse os problemas que estava destinada a provocar. Quando cresceu, sua beleza, inteligência e audácia causavam espanto. Foi trabalhar como criada na casa de Kamil ibn Zafar, onde servia à esposa e cuidava dos filhos dele.

Kamil poderia ter feito o que quisesse com ela. Poderia ter usado seu corpo quando estivesse dominado pelo desejo ou fazer com que ela morasse na casa como concubina oficial. Mas ele a amava. Ela não pediria para se casar. Foi ele quem insistiu e o casamento se realizou.

Halima quis continuar vivendo como se nada tivesse mudado. Recusava-se a ficar em casa o dia inteiro. Servia a Kamil em casa e ficava na sala quando os amigos dele estavam presentes. Ela me disse que, embora Kamil fosse um homem gentil e atencioso, a paixão que tinha por ela não era recíproca. Halima achava que casar era o único meio que ele tinha para transformá-la em sua propriedade para sempre. Sim, senhor, foi essa a palavra que usou: propriedade.

A primeira vez que Messud viu Halima foi na casa de seu amigo Kamil, que abriu seu coração contando o que sentia. Kamil disse a Messud que amava Halima e não podia viver sem ela. Os dois falaram dela durante um bom tempo e Messud ficou sabendo de todas as suas grandes qualidades.

Às vezes, quando Messud aparecia para beber alguma coisa com o amigo e Kamil não estava em casa, aceitava um copinho de chá que Halima oferecia. Ela lhe falava como se fosse uma igual e deleitava-o com as notícias e boatos mais recentes que circulavam pelo bazar e que em geral versavam sobre seu cádi, ó misericordioso sultão. Outras vezes, as maldades eram sobre o califa de Bagdá e até a seu respeito, bom sultão.

A mãe de Kamil e a esposa mais velha ficavam chocadas com o comportamento de Halima. Reclamavam muito, mas Kamil não se importava.

— Messud é como se fosse meu irmão — explicou ele para as duas.

— Combato sob suas ordens no glorioso exército de Yusuf Saladino. A família dele mora em Damasco, por isso minha casa é como se fosse dele também. Quero que o considerem como uma pessoa da família. Halima entende meus sentimentos melhor que vocês. Se não gostam de Messud, então evitem encontrá-lo, não vou obrigá-las a gostar dele.

Nunca mais se falou no assunto. Messud passou a ser uma presença constante.

Foi Halima quem deu o primeiro passo. Nada é mais desejado que o fruto proibido. Uma tarde, quando Kamil e a família estavam no enterro do sogro dele, pai da primeira mulher, Halima ficou sozinha em casa. Os criados e assessores armados acompanharam o senhor ao enterro. Messud, o inocente Messud, sem saber da morte na família, veio cear com o amigo. Encontrou a bela Halima, que o recebeu no pátio vazio. O brilho do sol poente em seu cabelo ruivo deve ter feito Messud lembrar-se das lindas princesas do Cáucaso.

Halima não contou direito como nosso nobre guerreiro Messud terminou a noite com seu corpo saciado, repousando sobre o dela, a cabeça delicadamente recostada sobre seus seios de pêssego. Sei que Sua Majestade gosta de saber de todos os detalhes, mas hoje minha modesta imaginação não é capaz de satisfazê-lo. A paixão dos dois virou uma espécie de veneno de efeito retardado.

À medida que os meses passaram, Messud procurava motivos para enviar Kamil em missões especiais. Foi destacado para Fustat, depois para supervisionar a construção da nova fortaleza, treinar jovens soldados na arte da espada e para qualquer missão que viesse à cabeça obcecada e aturdida de Messud.

Halima contoume que os dois se encontravam num lugar perto do bairro Mamudia, onde ela morava. Mas ela não sabia que a mãe de Kamil tinha mandado um criado segui-la, depois que os encontros dos amantes viraram rotina. Um dia, a mãe, fingindo estar às portas da morte, mandou um mensageiro buscar seu filho. Preocupado, Kamil voltou depressa e ficou aliviado ao ver que a mãe estava bem. Mas o olhar dela dizia tudo. Sem pronunciar uma palavra, ela apenas apontou o criado-espião, um menino de doze anos, e mandou o filho acompanhá-lo. Kamil ia deixar sua espada em casa, mas a mãe disse que era melhor levála, poderia precisar dela dali a pouco.

O menino andava rápido e Kamil seguiu-o, assustado. Sabia que a mãe não gostava de Halima. E que, aonde quer que estivesse indo, iria encontrála. Mas não estava preparado para a cena que viu ao entrar no quarto. Lá estavam Messud e Halima, deitados nus no chão, felizes.

Kamil gritou. Foi um grito terrível, cheio de sentimentos de ódio, traição, ciúme. Messud vestiu-se e levantou-se do chão, com o rosto transtornado de culpa. Não esboçou reação. Sabia de sua culpa e esperou pacientemente pelo castigo. Kamil enfiou a espada no coração do amigo.

Halima não gritou. Vestiu sua túnica e saiu do quarto. Não viu seu marido ficar enlouquecido diante do sangue que escorria do corpo do homem que ela amava. Mas o menino assistiu a tudo e viu seu amo mutilar o amigo morto. Viu quando ele cortou o órgão causador da ofensa. Depois que sua raiva foi vingada, Kamil sentou-se no chão e chorou. Falou com seu amigo morto. Implorou que lhe explicassem por que Messud achou que o corpo de Halima era mais importante que a amizade que unia os dois.

— Se tivesse me pedido, eu a teria dado a você — gritou para o corpo.

Nessa altura da história, o sultão interrompeu o cádi.

— Basta, al-Fadil , já ouvimos o suficiente. É uma história horrível. Um dos meus melhores cavaleiros está morto. Morto, não pelos cruzados, mas por seu melhor amigo. Meu dia tinha começado tão bem com Ibn Yakub, mas agora você o estragou com essa história triste. Não há solução para esse problema. A solução está dentro do problema. Não é?

O cádi deu um sorriso sem graça.

— Claro. De certa forma, Sua Majestade tem razão. Mas, do ponto de vista do Estado, este é um delito sério, uma questão de disciplina.

Kamil matou um oficial que lhe era superior. Se ficar impune, a notícia vai se espalhar. Vai desmoralizar os soldados, principalmente os sírios, que gostavam de Messud. Acho que é preciso um castigo. Ele não devia ter feito justiça com as próprias mãos. Nos domínios de Sua Majestade, fazer justiça compete a mim e a mais ninguém. Só Sua Majestade pode anular uma decisão minha. O que sugere?

— O que quiser, al-Fadil.

— Quero a cabeça de Kamil.

— Não! — gritou o sultão.

— Mande açoitá-lo, se quiser, mas só. O delito foi provocado por uma paixão incontrolável. Até você, meu amigo, teria tido dificuldade em controlar-se numa situação como essa.

— Como queira o sultão. O cádi continuou sentado. Ele sabia por intuição, depois de longos anos de serviços prestados ao sultão, que Saladino ainda não tomara uma decisão. Por alguns minutos, nós três ficamos calados.

— Diga, al-Fadil, o que foi feito da moça? — perguntou aquela voz que lhe era tão familiar.

— Pensei que talvez quisesse interrogá-la pessoalmente e tomei a liberdade de trazê-la ao palácio. Deveria ser apedrejada até a morte por ter cometido adultério.

Compete ao sultão decidir a sentença. Seria um julgamento de muita repercussão entre o povo. No bazar, só se fala que ela está possuída pelo demônio.

— Estou curioso. Que tipo de animal é ela? Quando sair, faça com que a tragam até aqui.

O cádi fez uma reverência e, sem tomar qualquer conhecimento da minha presença, saiu da sala.

— O que ainda não entendi, Ibn Yakub — disse o sultão -, é por que al-Fadil trouxe esse caso para minha apreciação. Talvez não quisesse assumir o risco de executar um oficial egípcio sem meu consentimento. Acho que foi por isso, mas nunca se deve subestimar al-Fadil , ele é um camelo astuto. Tenho certeza de que há outro motivo.

Nesse instante entrou um criado e anunciou que Halima tinha chegado. O sultão fez um gesto e trouxeram-na. Ela se ajoelhou diante do sultão e tocou os pés dele com a testa.

— Basta — ordenou ele com a voz ríspida de um soberano num julgamento.

— Sente-se à nossa frente.

Quando ela se sentou, vi seu rosto pela primeira vez. Era como se uma lâmpada tivesse iluminado a sala. Tinha uma beleza rara. Apesar da tristeza, seus olhos marejados de lágrimas eram vivos e espertos. Não era uma pessoa que aceitaria a execução de bom grado. Ela lutaria, a resistência estava escrita em seu rosto.

Quando me virei para o sultão, com a pena de escrever parada no ar, esperando que falasse alguma coisa, vi que também estava impressionado com aquela jovem. Ela devia ter uns vinte anos, no máximo.

Os olhos de Saladino denunciavam uma doçura que jamais vi, mas eu nunca tinha estado com ele na presença de uma mulher. Olhava-a com uma intensidade que teria assustado qualquer outra pessoa, mas Halima o encarava de frente. Foi o sultão que acabou desviando os olhos. Ela ganhara o primeiro tento.

— Estou aguardando — disse ele, finalmente.

— Diga por que não devo entregá-la ao cádi, que vai deixar que apedrejem você até morrer por seu crime.

— Se amar é crime — começou ela, numa voz humilde -, então, Comandante dos Misericordiosos, mereço morrer.

— O amor não é crime, desventurada mulher, mas o adultério. Trair seu marido diante de Alá.

Ao ouvir isso, os olhos dela brilharam mais. A tristeza sumiu e ela começou a falar. Sua voz também mudou, ficou segura, sem qualquer sinal de humildade. Tinha recuperado a confiança e dirigiu-se ao sultão com voz firme, como se falasse a um igual.

— Eu não conseguia entender como o mundo podia ser tão pequeno para duas pessoas. Quando Messud não estava comigo, a lembrança dele virava um tormento. Não me importa se vou viver ou morrer, aceitarei o castigo imposto pelo cádi. Pode mandar me apedrejar até morrer, não vou implorar misericórdia, nem gritar de arrependimento para os abutres. Estou triste, mas não me arrependo de nada. Tive uma curta fase de felicidade, que foi maior do que imaginava ser possível nesta vida.

O sultão perguntou se Halima tinha algum parente, ela negou. Ele então pediu que contasse sua história.

Eu tinha dois anos quando fui vendida para a família de Kamil ibn Zafar. Diziam que eu era órfã e que comerciantes curdos me encontraram bem longe, abandonada.

Ficaram com pena de mim, mas esse sentimento durou só dois anos. A mãe de Kamil ibn Zafar não podia mais ter filhos. O marido, segundo me contaram na época, tinha morrido. Ela morava na casa do pai, um senhor muito gentil, que comprou para a filha uma criança de rua. Era como se eu fosse uma mercadoria em oferta. É só o que sei sobre meu passado.

Na época, Kamil tinha dez ou onze anos. Já era gentil e carinhoso comigo e estava sempre atento às minhas necessidades. Tratava de mim como se eu fosse mesmo uma irmã. Mas a mãe dele era diferente: jamais soube se me tratava como filha ou como escrava. Quando cresci, deixou bem claro quais eram minhas funções na casa.

Continuei a fazer as refeições na mesa com a família, o que incomodava os outros criados, mas fui treinada para ser sua criada particular. Minha vida não era ruim, embora eu me sentisse muito sozinha. As outras criadas não confiavam em mim.

Todos os dias, um velho vinha nos ensinar a sabedoria do Corão e contar as façanhas do profeta e de seus companheiros. Pouco tempo depois, Kamil deixou de assistir às aulas. Preferia andar a cavalo com os amigos e atirar flechas no alvo. Um dia o professor de textos sagrados pegou minha mão e a colocou entre as pernas dele.

Gritei, e a mãe de Kamil entrou correndo na sala.

O professor, chamando por Alá, disse que eu era indecente e devassa. Na frente dele, a mãe de Kamil deu-me dois tapas no rosto e pediu desculpas a ele. Quando Kamil voltou, contei-lhe a verdade. Ele ficou zangado com a mãe, e o professor nunca mais teve permissão para se aproximar de nossa casa. Acho que a mãe não gostava do afeto que Kamil demonstrava por mim e logo encontrou uma esposa para ele. Escolheu a sobrinha, Zenóbia, dois anos mais velha que eu.

Depois do casamento de Kamil, passei a atender sua jovem esposa. Gostava dela, nós nos conhecíamos desde que entrei na casa e costumávamos trocar confidências. Quando Zenóbia deu um filho a Kamil, fiquei tão feliz quanto todos eles. Cuidava muito da criança e passei a gostar dela como se fosse meu filho. Tinha inveja de Zenóbia porque Alá concedeu-lhe a bênção de ter muito leite para seu filho.

Estava tudo muito bem — a mãe de Kamil também estava simpática comigo — até o fatídico dia em que ele me puxou para um lado dizendo que me amava e não era só como irmão. Alá é testemunha de que fiquei muito surpresa. No início me assustei, mas Kamil insistiu, me queria. Resisti durante muito tempo. Tinha muito afeto por ele, mas não era paixão. Nem sombra de paixão.

Não sei o que poderia ter acontecido, nem como tudo teria terminado, se a mãe de Kamil não tivesse tentado me casar com o filho do aguadeiro. Era um homem rude, não me atraía. Mas, como sabe Sua Majestade, mulher não escolhe casamento. Se minha senhora tinha decidido meu destino, eu teria de casar com o filho do aguadeiro.

Kamil não gostou da notícia. Disse que aquele casamento jamais se realizaria e pediu-me para ser sua esposa. A mãe ficou chocada e a esposa disse que estava humilhada por ele escolher a criada dela como segunda esposa. As duas ficaram sem falar comigo durante vários meses.

Imagine minha situação. Eu não tinha com quem conversar sobre meus problemas. Na cama, à noite, eu chorava com saudade da mãe que jamais conheci. Analisei friamente as minhas chances. Pensar no filho do aguadeiro me deixava doente, preferia morrer ou fugir a ser tocada por ele. Kamil, que sempre fora gentil e carinhoso comigo, era a única escolha. Aceitei ser esposa dele.

Kamil ficou muito feliz. Gostei e fiquei contente, embora Zenóbia me odiasse e a mãe de Kamil me tratasse como se eu fosse lama da rua. O passado dela também obscurecia sua vida como uma nuvem. Ela não podia esquecer que o pai de Kamil a abandonara por outra mulher quando ela ainda carregava o filho no ventre. Uma noite, ele foi embora do Cairo e nunca mais voltou. Soube que tem família em Bagdá, onde é comerciante de pedras preciosas. Nunca pronunciavam seu nome, embora Kamil pensasse muito nele. Tudo o que contei agora é a versão da mãe.

Na cozinha, corria uma outra versão da história. As criadas só me contaram quando tiveram certeza de que não ia fazer intrigas com a senhora. Pois a verdade é que o pai de Kamil foi embora de nossa cidade quando descobriu, ao voltar de uma longa viagem ao estrangeiro, que sua esposa tinha estado com um comerciante da cidade. A criança no ventre dela podia não ser filho dele. Kamil confirmou essa história para mim depois que nos casamos. A mãe sabia que me contaram tudo, e só de pensar nisso ficava muito irritada. O que iria nos acontecer, só Alá podia saber.

Foi então que Messud, com olhos cor de amêndoa e lábios doces como mel, entrou em minha vida. Ele me contava histórias de Damasco e das lutas ao lado do sultão Yusuf Saladino ibn Ayub. Não pude, nem quis, resistir a ele. O que senti foi algo que nunca havia sentido antes.

Esta é minha história, ó grande sultão. Sei que Sua Majestade terá sempre sorte na vida, que conseguirá grandes vitórias, que vai nos governar, nos julgar e garantir que seus filhos sejam criados como deseja. Sua ventura fez com que chegasse onde está. Esta criatura inculta, perdida e desabrigada confia no sultão. Que seja feita a vontade de Alá.

Enquanto Halima falava, Saladino bebia suas palavras, observando cada gesto e cada faísca de seus olhos. O olhar dela era o de um gato selvagem, mas acuado. Ele agora a observava da maneira firme e impassível de um cádi, como se seu rosto fosse de pedra. A intensidade do olhar do sultão deixou a moça nervosa. Desta vez, foi ela quem desviou o olhar.

Ele sorriu e bateu palmas para chamar Xadi. O sempre fiel assistente apareceu e o sultão falou num dialeto curdo, que eu não entendia. O som fez vibrar uma corda no fundo do coração de Halima. Ao ouvi-los falar sua língua, ficou assustada e ouvi atentamente.

— Siga este homem, ele vai garantir sua segurança, longe das pedras do cádi — disse o sultão.

Halima beijou os pés do sultão e Xadi segurou-a pelo braço? levando-a para fora da sala.

— Diga sinceramente, Ibn Yakub. Sua religião tem muitas recomendações que nós acatamos. Se estivesse no meu lugar, permitiria que uma criatura com essa beleza fosse apedrejada até morrer do lado de fora do Bab-el-Barkia?

Neguei.

— Sua Alteza, eu não permitiria que isso ocorresse, mas os seguidores mais ortodoxos da minha religião concordariam com o grande cádi.

— Claro que você compreende, meu bom escriba, que al-Fadil , na verdade, não queria que ela morresse. É esse o ponto, ele queria que eu decidisse, é só. Podia ter resolvido tudo sozinho e me informaria quando já fosse tarde demais para eu interferir. O cádi pediu-me que ouvisse a história dela porque sabia que a livraria da cruel incerteza de um destino ignorado. Ele me conhece bem. Sabia que eu a deixaria viver. Para ser sincero, acho que nosso cádi também está encantado por Halima.

Mas ela estará segura no harém.

Ah, hoje foi um dia cansativo. Agora você vai comer um pouco de pão comigo, não?


4

Um eunuco mata o grande sultão Zengui,
provocando uma reviravolta no destino da família Saladino.
A história de Xadi

Na manhã seguinte, cheguei ao palácio na hora combinada e Xadi me levou até a biblioteca. O sultão não apareceu, por isso fui olhar alguns livros que nem sabia que tinham sido escritos.

Ao meio-dia, um mensageiro, acompanhado por Xadi, informou que o sultão estava ocupado com problemas de Estado e não dispunha de tempo para mim.

Eu estava quase indo embora quando Xadi piscou para mim. Eu desconfiava daquele velho curvado, que ainda era suficientemente vaidoso para pintar a barba branca com hena e cuja careca brilhava ao sol. Meu rosto deve ter mostrado que fiquei indeciso.

— Problemas de Estado? O velho riu, um riso cético, vulgar, alto e estridente, como se respondesse à minha pergunta.

— Acho que o Defensor dos Fracos não está inspecionando a fortaleza, como deveria estar a esta hora. Está explorando os altos e baixos da moça de cabelos ruivos.

Senti um pequeno sobressalto, não sei se fiquei mais perturbado com as palavras de Xadi ou com seu significado. Seria verdade? O sultão era famoso pela rapidez com que galopava em seu cavalo e fiquei pensando se teria a mesma rapidez nos movimentos da cama. E Halima? Teria consentido sem resistir ou, pelo menos, pedido para ele se conter? Teria sido uma sedução ou um estupro?

Provavelmente, a notícia era verídica. Fiquei louco para conseguir mais informações, mas me contive, sem querer encorajar Xadi a falar. Isso o irritou. Ele estava querendo criar intimidade comigo partilhando um segredo e interpretou meu silêncio como desprezo.

Rapidamente, me despedi e fui para casa.

Para minha surpresa, quando voltei na manhã seguinte, encontrei o sultão à minha espera na biblioteca. Sorriu quando entrei, mas quis começar a ditar imediatamente, sem perder tempo com conversa. Pressenti, acho, que havia alguma coisa de Halima nele, antes que a voz familiar do sultão obrigasse meus pensamentos a se concentrar em suas palavras. Minha mão começou a se movimentar sobre o papel como se fosse empurrada por uma força superior.

A primavera sempre chegava a Baalbek como um viajante cheio de histórias para contar. à noite, o céu parecia uma colcha estampada de estrelas. Durante o dia, o céu era de um azul forte, com o sol sorrindo sobre todas as coisas. Nós gostávamos de deitar na grama e sentir o perfume das flores da amendoeira.

Quando ficava mais quente e o verão se aproximava, apostávamos quem seria o primeiro a mergulhar no pequeno lago de águas claras, abastecido por inúmeros riachos.

O lago ficava escondido no meio das árvores e considerávamos esse lugar segredo nosso, embora todo mundo em Baalbek soubesse de sua existência.

Um dia, quando estávamos nadando, vimos Xadi correndo na nossa direção. Naquele tempo, ele ainda conseguia correr, embora não tanto quanto na juventude. Minha avó costumava contar que Xadi era capaz de ir de uma aldeia na montanha a outra, atravessando distâncias de mais de trinta quilômetros, pelas antigas picadas árabes. Ele saía depois da oração matinal e voltava a tempo de servir o café da manhã para meu avô. Isso foi há muito tempo, em Dvin, antes de nossa família mudar-se para Takrit. Xadi mandou que saíssemos da água e corrêssemos o mais rápido possível para a fortaleza. Nosso pai estava nos chamando. Xadi jurou que nos castigaria se não obedecêssemos na hora. O rosto dele estava tenso de preocupação. Daquela vez, acreditamos no que disse.

Meu irmão mais velho, Turan Xá, perguntou por que tanta pressa e Xadi olhou assustado, disse que nosso pai queria nos informar da tragédia que atingira nossa fé.

Preocupados, voltamos o mais rápido possível. Lembro-me de Turan Xá resmungando algo sobre os cruzados. Se estivessem nos portões da fortaleza, ele lutaria, mesmo que para isso precisasse roubar uma espada.

Quando nos aproximamos da fortaleza, ouvimos o som habitual das mulheres se lamuriando de dor. Lembro-me de que segurei na mão de Turan Xá e olhei para ele, nervoso.

Xadi percebeu e entendeu meu nervosismo. Ele me levantou do chão e me colocou nos ombros, segredando baixinho no meu ouvido para me acalmar.

— Seu pai está vivo e bem. Daqui a pouco você vai vê-lo — disse.

Não era o nosso pai, mas o sultão Zengui que tinha morrido. O Defensor da Fé fora assassinado por um eunuco bêbado quando dormia em sua tenda à beira do Eufrates.

O sultão Zengui estava totalmente envolvido na Guerra Santa contra os cruzados e tinha posto meu pai no comando de Baalbek. E meu pai estava preocupado porque precisaríamos dobrar nossas tendas e mudar de cidade outra vez.

Foi Zengui quem venceu os cruzados e, depois de um mês de cerco, tomou a cidade de al-Ruha, que chamavam de Edessa. A cidade tinha-se transformado numa jóia na espada da nossa fé, cada vez que olhávamos na direção de al-Kadisia e da mesquita do califa Omar.

Ainda me lembro das palavras do poeta, que os soldados e os escravos de Baalbek costumavam cantar. Nós acompanhávamos e acho que basta começar para lembrar-me dos versos:

“Ele cavalga em meio a uma nuvem de cavaleiros que correm sobre a terra como um rio.

Suas lanças falam com o inimigo como línguas cheias de sangue. Ele é misericordioso e clemente mas, no auge da batalha, o ódio e o fogo têm a força como única lei.”

Meu pai tinha uma relação afetuosa com o sultão Zengui ficou muito triste com a causa e a forma da morte dele. Anos depois, Xadi me contou a verdadeira história.

Zengui gostava de vinho. Na noite em que morreu, tinha tomado uma garrafa inteira. Quando ainda estava bebendo, mandou chamar um jovem soldado que tinha visto durante o cerco. O sultão usou o jovem para satisfazer sua lascívia.

O eunuco que matou Zengui, chamado Yaruktaxe, amava o rapaz e não suportou imaginar que seu corpo esbelto tinha sido corrompido por um velho afoito. Num gesto de ciúme, seguiu o rapaz e viu o que aconteceu. O eunuco deu vinho aos guardas que ficavam fora da tenda do sultão e eles se embriagaram.

Enquanto dormiam, o eunuco entrou devagar na tenda e apunhalou seu sultão, ajudado pelo jovem soldado, cujo corpo ainda tinha o calor dos braços de Zengui. Foi um crime passional.

Os escribas que relataram essa história fingiram que o eunuco e seus amigos tinham roubado o vinho de Zengui. Depois, com medo de serem descobertos, teriam matado o sultão em meio a uma bebedeira. Mas essa versão não faz sentido. Xadi me contou toda a verdade. Deve ter ouvido de meu pai ou de meu tio, que sabiam tudo que acontecia.

Na época, eu soube muito pouco ou quase nada a respeito. E também não estava muito interessado nas coisas daquele outro mundo onde viviam os adultos. Mais uma vez, tive a vantagem de não ser o filho primogênito. Esse privilégio era de Xahan Xá. Ele era obrigado a sentar-se ao lado de meu pai nas preces da sexta-feira e quando os homens discutiam os problemas que ocorriam. Estava sendo treinado na arte de governar. Turan Xá e eu às vezes nos esforçávamos para não rir quando Xahan Xá começava a falar igual a meu pai.

A ocupação de nossas cidades litorâneas e até de al-Kadisia, que os cruzados chamavam de Reino de Jerusalém, passou a ser uma das coisas mais simples do mundo para mim. Às vezes, eu ouvia meu pai e meu tio falando do passado na presença das crianças. Os dois conversavam, mas na verdade estavam falando para nós. Foi a forma que encontraram para nos fazer entender a gravidade do que acontecera em nossas terras.

Falavam de quando os bárbaros chegaram pela primeira vez, que comiam carne humana e não gostavam de tomar banho. Contavam sempre histórias tristes sobre o destino de al-Kadisia. Os bárbaros tinham decidido matar todos os fiéis. Tenho certeza de que você, Ibn Yakub, sabe disso melhor que eu: todo o seu povo foi levado para o templo de Suleimã, as portas foram trancadas e os cruzados incendiaram o santuário sagrado. Queriam apagar o passado e reescrever o futuro de al-Kadisia, que um dia pertenceu a nós, o Povo do Livro.

Quando eu era criança, a única história que me emocionava era a de al-Kadisia. A crueldade dos bárbaros era como um veneno que emudece os homens. Al-Kadisia esteve sempre presente no nosso mundo de fantasia. Costumávamos montar em nossos cavalos e fazer de conta que estávamos expulsando os cruzados de al-Kadisia, fato que costumava ser encenado mandando Xadi sair da cozinha. Mas não está longe o dia em que isso vai acontecer, Ibn Yakub. Nosso povo vai voltar logo para al-Kadisia.

As cidades de Tiro e Acre, Antióquia e Trípoli serão nossas outra vez.

Era óbvio que os cruzados precisavam ser vencidos, mas como seria possível se os fiéis estavam tão divididos? Para começar, havia dois califas: um, em Bagdá, era soberano só no nome, e outro, no Cairo, que era fraco. A queda do califado provocou o surgimento de pequenos reinos por toda parte. No dia em que Zengui foi morto, meu pai nos disse que, se não nos uníssemos, jamais derrotaríamos os cruzados. Ele falou por alto, mas suas palavras eram verdadeiras num sentido mais amplo e mais espiritual.

As disputas dentro de nossa própria facção eram profundas. Éramos melhores na luta contra nossos rivais do que na resistência aos cruzados. Nunca me esqueci dessas palavras.

E seu pai? Ainda não disse nada sobre ele. Que tipo de homem era? — perguntei ao sultão.

Meu pai, Ayub, era um bom homem. Era sensato e leal. Quando nos explicava alguma coisa, depois sempre perguntava com sua voz suave: "Está claro? Vocês entenderam?"

Se vivesse num mundo mais tranqüilo, ele estaria satisfeito cuidando de uma grande biblioteca ou administrando os banhos públicos do Cairo. Você está sorrindo, Ibn Yakub. Pensa que estou subestimando as qualidades de meu pai. De modo algum. Estou dizendo apenas que somos criaturas que têm um destino e nossas vidas dependem da época em que vivemos. Nossas biografias são escritas pelos fatos.

Basta considerar Ibn Maimun, por exemplo. Se a família dele não fosse obrigada a sair da Andaluzia, ele poderia ser vizir de Granada. Se al-Kadisia não tivesse sido ocupada, você estaria morando lá, e não no Cairo.

E pense no nosso profeta. Por sorte, ele teve a revelação numa época em que dois grandes impérios começavam a entrar em decadência. Trinta anos depois de sua morte, os fiéis, guiados por Alá, conseguiram prosperar mais do que seríamos capazes de imaginar. Se não conseguimos civilizar as terras dos cruzados, foi só por culpa nossa. Foi um erro não termos educado e circuncidado os cruzados. O profeta sabia que não bastava confiar em Alá. Ele uma vez não disse: "Confie em Alá, mas amarre antes seu camelo"?

Meu pai, entenda bem, jamais gostou de viajar. Era um homem de hábitos sedentários, ao contrário de meu avô, que aliás também se chamava Xadi, e do meu tio Xirkuh.

Os dois não paravam num lugar. Meus inimigos gostam de se referir à nossa família como um bando de aventureiros e arrogantes. Até o profeta, que descanse em paz eterna, foi chamado de arrogante, por isso não me importo. Quanto a sermos aventureiros, acho que é verdade. A única forma de avançar nesse mundo é na aventura.

Se você fica parado num lugar, o sol queima seu corpo e você morre. Apesar disso, sei que meu pai gostaria de ter ficado em Dvin, na Armênia.

A notícia do assassinato de Zengui não foi um golpe só para ele. Essa morte significava revoltas e problemas. Os dois filhos de Zengui não perderam tempo e assumiram logo o poder em Mosul e Aleppo. Meu pai achava que eles não tinham competência. Claro que os fatos mostraram que estava errado, mas quem poderia imaginar na época que o severo e puritano Nur al-Din chegaria a tais alturas?

Os temores de meu pai logo se confirmaram. Poucas semanas depois, os exércitos do soberano de Damasco estavam às portas de Baalbek. Meu pai sabia que era inútil resistir e que não havia razão para derramar o sangue dos fiéis. Ele negociou uma rendição pacífica, e o povo ficou muito grato.

Anos depois, quando meu pai e eu estávamos cavalgando nos arredores de Damasco, o céu de repente ficou vermelho-dourado. Meu pai foi o primeiro a perceber, e nós paramos nossos cavalos por um tempo que pareceu bem longo, numa homenagem silenciosa à inigualável beleza da natureza. Voltamos para casa em silêncio. Continuávamos encantados com o céu, que mudou outra vez quando as primeiras estrelas começaram a surgir. Quando chegamos em Bab Shark, meu pai falou com sua voz suave: — Costumamos esquecer que, mesmo quando uma guerra é necessária, a maioria do povo a considera uma calamidade. Eles sempre sofrem mais do que nós, sempre. Lembre-se sempre disso, meu filho. Só entre em guerra quando não houver outra solução.

Por que será que esquecemos fatos importantes e precisamos nos esforçar para lembrá-los, enquanto outros ficam tão claros em nossa memória? Ainda me lembro daquele dia, está bem marcado. Alguns anos antes, meu irmão mais velho, Xahan Xá, morrera de repente e meu pai ainda não se recuperara do golpe. Continuava desorientado.

Por alguma razão, nunca teve uma relação muito próxima com Turan Xá. Meu irmão, de quem eu gostava muito, era indisciplinado e teimoso, o que irritava meu pai.

Um dia, ouvi minha mãe gritando com ele: "Turan Xá, não basta que você amargue a boca de seu pai e ainda precisa me preocupar. Você só dá problema e preocupação.

Você ouviu..." Já tinham jogado tantas pedras nele que não se assustava mais e ria de nossa mãe.

Como Turan Xá estava fora da linha de sucessão, eu era o próximo a receber as atenções de meu pai.

Eu tinha dezesseis anos e ganhei de presente um gavião-caçador e um ótimo cavalo vindo de Kufa. Acho que foi a primeira vez que meu pai me levou a sério. Tratou-me como se eu fosse igual a ele e discutimos muitos problemas. Ele falou de seus temores e preocupações, do futuro e de quando não estivesse mais presente para me orientar.

Só de pensar que ele iria morrer, eu tinha calafrios e começava a tremer. Queria abraçá-lo e beijar seu rosto, chorar em seu ombro e gritar: "Não quero que morra!", mas me continha. Há uma ligação sagrada entre pai e filho, que não pode ser quebrada pela emoção. Os lábios se calam, o coração fica indefeso.

Percebi isso alguns anos depois de sairmos de Baalbek. Meu pai entregou a fortaleza, mas impôs condições: recebeu um feudo de oito aldeias perto de Damasco, uma grande quantia em dinheiro e uma casa no centro da cidade antiga. Mais uma vez, estávamos de mudança. Fiquei triste por deixar os velhos templos e os riachos de Baalbek. Tinha crescido lá, onde minha vida foi feliz e segura. Até hoje, quando lembro, meus lábios sorriem.

Mas foi Damasco que me transformou num homem.

Para alívio meu, o sultão tinha parado de falar e eu podia descansar a mão. Ele percebeu meu cansaço, chamou seu assistente e deu-lhe ordens. Deviam me dar um banho e passar óleo em meu corpo. Minhas mãos deviam ser massageadas até recuperar cada um dos dedos. Depois, eu devia receber uma refeição e descansar até o sultão voltar. Naquele dia, ele queria que fizéssemos uma sessão vespertina. Ia percorrer a cidade a cavalo para inspecionar a construção da nova fortaleza. Os criados o prepararam para isso.

Pouco antes de sair de sua presença, fiquei surpreso ao ver uma nova Halima chegar. Não era a chorosa criatura de olhos tristes, cuja história tínhamos escutado em silêncio poucos dias antes. Ela entrou na sala com uma segurança que me espantou. O sultão fora seduzido.

Halima queria visitar a fortaleza com ele. Sua audácia surpreendeu Saladino, que recusou o pedido. Ela insistiu, ameaçando disfarçar-se de soldado e seguir a cavalo atrás dele. Os olhos do sultão endureceram e ele ficou sério. Foi ríspido, avisando-a para não sair do palácio sem permissão. Fora daqueles muros protegidos, ela corria risco de vida. Kamil tinha sido chicoteado em público no dia anterior, mas a multidão, inclusive várias mulheres, pediu que Halima fosse apedrejada.

A notícia de que conseguira se refugiar no palácio não tinha sido bem recebida.

Halima manteve o olhar desafiador, mas a vontade do sultão prevaleceu. Ele sugeriu, como numa atitude conciliadora, que fizesse a refeição do meio-dia comigo.

Halima lançou-me um olhar desdenhoso e saiu da sala.

— Às vezes — murmurou o sultão com voz cansada — acho que julgo melhor os cavalos do que as pessoas. Halima é mais teimosa que uma potranca. Se quiser almoçar com você hoje, Ibn Yakub, tenho certeza de que lhe dará algum conselho sensato.

Halima não me concedeu a honra de sua presença. Fiquei muito desapontado. Quando estava começando a comer, Xadi apareceu, o que não foi suficiente para melhorar meu humor. Não estava disposto a ouvir as histórias do velho, mas, por cortesia, era obrigado a almoçar com ele e uma coisa leva a outra. Dali a pouco ele estava contando vantagem sobre suas conquistas. Todas as histórias mencionavam sua agilidade como cavaleiro.

Antes desse encontro, nunca tinha passado muito tempo com ele, nem o levado muito a sério. Mas observei-o enquanto falava e vi algo em seu jeito que me pareceu familiar. Isso me alertou sobre a verdadeira razão para que fosse tratado com tanto respeito pelos criados e pelo sultão. Ele tinha o hábito de levantar a mão direita e a sobrancelha exatamente como Saladino.

Afastei o pensamento. Aquela não era uma observação muito surpreendente. Afinal, Xadi devia ter passado mais tempo ao lado do sultão que qualquer outra pessoa, e o menino assimilou um pouco do jeito de seu assistente. Mesmo assim, quando o velho continuou a falar, voltei a pensar nisso. E interrompi o que el dizia.

— Respeitado tio, tenho uma pergunta a fazer. Você fala muito de suas aventuras e conquistas passadas, e suas histórias têm grande valor para me ajudar a entender o sultão. Mas gostaria de saber uma coisa a seu respeito. Quem foi seu pai? E sua mãe?

Não pergunto só por curiosidade, mas...

Ele me interrompeu, ríspido.

— Judeu impertinente! Já matei muitos homens por menos que isso!

Empalideci e ele começou a rir sem parar.

Custo a crer que você possa temer um velho como eu. Já que seus escritos só serão publicados depois que todos nós estivermos mortos, vou responder à sua pergunta. Minha mãe era uma pobre mulher de Dvin, única filha de um lenhador que fornecia madeira para muitas casas da região. A mãe dela morreu de parto e o pai nunca mais se casou. Isso era um fato raro na época, e nunca se tinha ouvido falar em algo assim quando meu avô era jovem, há quase um século. Ele era grande como um gigante e sua destreza com o machado era conhecida em todas as aldeias próximas. Era capaz de derrubar uma árvore mais depressa que qualquer homem naquela parte do mundo.

Meu avô ficou muito amigo de um jovem cozinheiro da casa de Xadi ibn Marwan, o avô do sultão, e resolveu que seria esse o marido para a sua filha de quinze anos.

Os dois se casaram. Minha mãe passou a fazer parte da casa de Ibn Marwan. Não contei, escriba, que minha mãe era tão famosa por sua beleza quanto meu avô o era pela força. E o que tinha de acontecer aconteceu. O sultão percebeu a presença de minha mãe e realizou seu desejo. Ela não resistiu e eu sou o resultado disso.

Quando nasci, o pai já falecido do sultão, Ayub, e seu tio Xirkuh já tinham uns dez anos de idade. A mãe deles era uma senhora brava. Quando soube da novidade, ela ordenou que dessem dinheiro para o cozinheiro e minha mãe — eu ainda estava no ventre dela — e que os dois fossem enviados para uma aldeia próxima.

Xadi ibn Marwan cedeu à vontade da mãe. Quando nasci, minha mãe me deu o nome de Xadi, para incomodar todo mundo. minha história terminaria aí, se não fosse o fato de minha mãe ter ficado viúva quando eu tinha sete anos. O marido dela tinha sido um bom pai, tratando-me como a seu próprio filho, que era um ano mais jovem que eu.

Não sei como a notícia chegou a Ibn Marwan. Só sei que um dia, com seu séquito aguardando na porta, ele veio até nossa aldeia e conversou a sós com minha mãe.

Só Alá sabe o que falaram. Enquanto isso, me distraí admirando os cavalos e suas lindas selas coloridas.

Quando terminaram de conversar, minha mãe me chamou e me abraçou com força. Beijou meus olhos, tentando disfarçar suas lágrimas, e disse que, a partir daquele momento, eu devia trabalhar na casa de Xadi ibn Marwan e obedecer-lhe cegamente.

Fiquei muito preocupado e chorei durante meses. Sentia muita falta dela. Ia visitá-la uma ou duas vezes por ano e ela preparava meus bolos preferidos, feitos com milho e adoçados com mel da montanha.

Só quando estávamos indo embora de Dvin, rumo ao sul na direção de Takrit, descobri quem era meu verdadeiro pai. Fui me despedir de minha mãe sabendo que nunca mais a veria. Ela vivia com meu irmão, a mulher dele e os filhos; sabia que a amavam e cuidariam dela, mas mesmo assim eu estava muito triste. Quando nos despedimos, ela beijou minha testa e me contou tudo. Não lembro o que senti na hora. Faz muito, muito tempo. Gostei de saber a verdade e, ao mesmo tempo, fiquei zangado.

A história de Xadi confirmava minha suspeita e eu estava ansioso para fazer outras perguntas. Mas, antes que pudéssemos falar qualquer coisa, o sultão voltou, acompanhado dos dois filhos. Fui apresentado a eles, mas era óbvio que tinham vindo à procura de Xadi: vendo os meninos, os olhos dele se iluminaram. Quando Xadi os levou, o sultão perguntou num sussurro: — Ela veio?

Balancei a cabeça, negando, e ele riu muito.


5

A sabedoria de Ibn Maimun
e suas recomendações médicas

Uma tarde, depois de dois longos e cansativos dias com o sultão, voltei para casa e encontrei Raquel, minha esposa, numa conversa animada com Ibn Maimun. Ela estava reclamando de mim com nosso grande mestre, já que ele impunha respeito e tinha influência em nossa casa. Quando entrei na sala, ouvi-a dizendo que, por causa do tempo que eu passava no palácio, estava mudando minha forma de pensar, minha personalidade e minha atitude em relação aos "mortais menos privilegiados".

E, além do mais, minha mulher me acusava de estar negligenciando meus deveres com ela e com nossa família.

— Acho que esse é um problema para o cádi resolver — avaliou Ibn Maimun, cofiando a barba, pensativo.

— Quer que eu transmita sua reclamação e peça para Ibn Yakub ser castigado?

Achei graça e Raquel não gostou, saindo da sala com o rosto duro como o pão dormido que teve de servir ao nosso hóspede inesperado. Ibn Maimun estava cansado.

Seu trabalho com o cádi era exaustivo, pois ele morava em Fustat, a cerca de três quilômetros do palácio do cádi, aonde ia todas as manhãs para cuidar dele, dos filhos e das pessoas do harém.

Assim, ele passava quase o dia todo no Cairo, voltando para casa no final da tarde. Lá, uma grande mistura de pessoas o aguardava: judeus e gentios, nobres e plebeus, amigos e inimigos, crianças e seus avós. Eram os seus pacientes. Todos procuravam seu atendimento. O número de doentes aumentava todo dia e, como bom médico, não podia recusar-se a atender ninguém.

Às vezes, quando precisava muito descansar, passava a noite em nossa casa na Juderia, a poucos passos do palácio. Ele me disse que lá podia encontrar uma paz absoluta e recuperar as energias. Pedi desculpas pelo desabafo de Raquel.

— Tome cuidado, Ibn Yakub. Sua esposa é uma boa mulher, mas sua energia e o amor que tem por você estão diminuindo aos poucos. Ela não vai agüentar suas ausências para sempre. Você parece passar mais tempo no palácio do sultão do que em casa. Por que não diz ao sultão que precisa estar com sua família no Sabat?

Dei um suspiro. Eu também estava aborrecido e cansado naquela tarde.

— Compreendo o que diz, meu amigo, mas não foi você quem me recomendou a Saladino? Admito que às vezes me sinto como um prisioneiro. Mas não seria sincero se dissesse que estou infeliz. O fato é que gosto do sultão. Gostaria de estar montado num cavalo ao lado dele quando nos aproximarmos do Reino de Jerusalém e de estar presente quando a cidade se render aos nossos exércitos, voltando a ser al-Kadisia e quando pudermos rezar no templo outra vez. Nós enterramos o sol que brilhava sobre Jerusalém, mas voltaremos a nos encontrar lá. Eu daria a vida para ver esse dia. Um tempo novo e brilhante está chegando à nossa cidade sagrada. Acredito em Saladino: com seu jeito tranqüilo, depois de pensar bem, vai conseguir retomar Jerusalém.

O sábio concordou.

— Entendo o que diz, mas a carência de Raquel é tão importante quanto a vontade que você tem de participar da História. Encontre um meio-termo.

A felicidade é como a saúde; você só sente falta dela quando a perde.

Depois de nosso curto diálogo, Ibn Maimun foi para seu quarto. Sozinho, refleti sobre seu conselho. Qual seria a melhor forma de conciliar o trabalho com a família?

Raquel queria que eu voltasse para casa e terminasse o livro sobre a história de nosso povo. Para ela, isso era muito mais importante do que ser escriba na corte.

Ela não entendia que Ibn Maimun quisesse me afastar desse livro por temer que minhas pesquisas me criassem problemas com os rabinos. Preocupado com a nossa delicada situação no mundo, ele não queria que eu provocasse uma briga com nossos grandes eruditos religiosos, cuja compreensão do passado baseava-se apenas nas Escrituras.

Ibn Maimun concordava comigo que o deslocamento de nosso povo em direção ao Ocidente começara muito antes da tomada do templo ou do cerco de Massada. Discutimos isso várias vezes.

Saí para o pátio em busca de ar fresco e me surpreendi com o brilho do céu estrelado. Fiquei olhando as estrelas durante muito tempo. tinham formas diversas e,coisa estranha, podia jurar que vi a beleza simples de Halima refletida no brilho de uma constelação. Tinha ficado fascinado por ela. Não conseguia tirá-la do pensamento.

Por que não foi almoçar comigo naquele dia, se Saladino tinha pedido? E por que ele pediu? Será que me considerava um eunuco? Será que estava na cama com ele naquela noite ou o sultão já teria se saciado de beber naquele oásis e teria procurado outro?

Já era tarde da noite, mas todas essas perguntas continuavam me atormentando enquanto ia para o quarto. Raquel estava acordada e ainda zangada. Falei com calma, mas ela não respondeu às minhas perguntas. Nem se submeteu ao meu desejo. Naquela noite, o sono deixou ambos frustrados e ficamos deitados em silêncio, esperando o dia nascer.

Ibn Maimun começava o dia tomando uma grande taça de água morna. Sempre que ficava em minha casa, eu tinha de assistir ao mesmo ritual. Ele garantia que a água morna limpava o interior de nosso corpo, preparando-o para enfrentar o novo dia. As receitas de Ibn Maimun eram principalmente preventivas.

O segredo de seu sucesso como médico estava na importância que dava à alimentação — e na quantidade ingerida. Beber oito copos de água nos meses de inverno e o dobro no verão era fundamental para a boa saúde.

Ele era bem rígido nesses assuntos. Não adiantava discutir. Seria mais fácil conversar sobre os defeitos e as qualidades da nossa religião. Este assunto não o incomodava em absoluto, ele só insistia na eficiência de suas receitas médicas. Nunca entendi o motivo de tanta firmeza. Talvez fosse porque ganhava a vida como médico, e, se os pacientes soubessem que não tinha muita certeza sobre seus tratamentos, procurariam outro médico. Talvez. não. Os pacientes o procuravam porque sabiam que ele curava.

Naquele instante, ele estava ocupado em preparar um ungüento para o cádi. A sala ficou com cheiro de cebola e alho, aos quais estava juntando mostarda, arsênico, amêndoas amargas trituradas e vinagre. O cheiro me enjoou e fui abrir a porta do pátio em busca de ar fresco. Ele sorriu.

— O cádi está indisposto? — perguntei.

— Ou você está preparando um veneno para ele? Só com o cheiro eu já iria direto para a cova.

Não está doente, mas está muito nervoso.

— Por quê?

— Está começando a perder o cabelo e não quer ficar careca.

É mais velho que nós, mas continua vaidoso. Talvez esteja interessado numa jovem.

— Se estivesse interessado numa jovem, ela lhe seria oferecida numa bandeja de ouro. A falta de cabelo não teria muita importância. Mudando de assunto, que efeito vai fazer essa mistura fedorenta?

— O ungüento vai fortalecer e deixar mais encorpados os fios de cabelo que ainda restam. Pode ser até que faça nascer mais.

— Por que o grande al-Fadil está tão preocupado com isso? Queda de cabelo é sinal de maturidade. Antigamente, num lugar não muito distante daqui, os antigos sacerdotes e reis costumavam raspar a cabeça para demonstrar poder.

— É verdade. Mas o profeta do islamismo tinha uma farta cabeleira. Não queria ficar grisalho, por isso pintava o cabelo com uma mistura de anêmona vermelha e óleo de murta. Pelo menos, é o que diz a tradição.

Eu estava prestes a contestar, mas o rosto do médico mostrava que ele não estava querendo responder mais nada sobre o tratamento rejuvenescedor do nosso cádi.

Então começou a falar da competência do cádi como administrador, seu senso de justiça, sua habilidade para contestar até as decisões do sultão e, acima de tudo, os bons conselhos que dava ao soberano.

Quando saímos de minha casa em direção ao palácio, Ibn Maimun fez uma pergunta que me surpreendeu.

— Responda com sinceridade, Ibn Yakub: seu coração abandonou Raquel?

Neguei, sacudindo a cabeça com firmeza. Mas meu coração começou a bater um pouco mais forte, como se quisesse me contestar. Fiquei confuso, não conseguia falar.

Ele continuou perguntando.

— Tem certeza de que não ficou encantado pelas belas e fartas tranças de uma nova moradora do palácio do sultão?

Sacudi a cabeça outra vez. Como é que ele podia saber de Halima? Não falei nada com ninguém. Nem sabia direito o que sentia. Mas, céus, como é que Ibn Maimun tinha chegado a essa conclusão? Por um instante, fiquei surpreso demais para falar. Quando me refiz, pedi-lhe que fosse mais claro, mas o médico deu de ombros e não respondeu.

Insisti.

— No meu trabalho, tenho ocasião de ouvir os problemas de muitos lares. O que Raquel disse não é novidade. É uma velha história. Pediu-me que rezasse por ela, mas recusei: saber e dormir é melhor do que rezar e ignorar.

— Nós dois não conseguimos dormir na noite passada. Tenho a consciência limpa, minha alma não sente culpa.

— E seu coração?

— Ele sonha. Você sabe do que estou falando: um mundo sem sonhos não é pior do que o inferno?

— Converse com ela, Ibn Yakub. Converse com Raquel, conte seus sonhos. O destino nunca permitiu que nosso povo saboreasse muito mel.

Nós nos despedimos.


6

As lembranças da infância de Saladino em Damasco.
Xadi conta como foi a primeira relação sexual do sultão

Mandaram que eu seguisse um servo até os aposentos do sultão. Ele estava descansando, mas sentou-se quando cheguei, encostado em almofadas de todos os tamanhos e padrões. O sultão deu-me um sorriso fraco. Estava respirando com dificuldade e com dor de garganta. Sugeri voltar quando ele melhorasse, mas mexeu a cabeça com força, insistindo que o dia não devia ser desperdiçado.

— A vida é curta, Ibn Yakub. Em tempo de guerra, Alá pode levar deste mundo qualquer um dos seus ghazis.

Esperei em silêncio enquanto os servos preparavam um remédio. Ferveram água com gengibre até ficar com uma cor escura; depois, Saladino cheirou a mistura e virou o rosto. O segundo servo adoçou o líquido com bastante mel. Dessa vez, o paciente fez uma careta, mas bebeu devagar. Fez um sinal para que levassem o jarro com o remédio. Os servos fizeram uma reverência e foram embora. Assim que saíram, Xadi entrou e pôs a mão na testa do sultão.

— Não tem febre. Beba todo o remédio. Quanto a você, Ibn Yakub, não demore muito. Hoje ele precisa descansar a língua.

Xadi saiu sem esperar uma resposta do sultão, que consistiu num palavrão e num sorriso. A voz dele era um murmúrio rouco.

Hoje estou com saudade de minha velha cidade. Sempre que não me sinto bem, lembro-me de meu quartinho em Damasco. Morávamos numa casa que ficava perto da fortaleza, na parte ocidental da cidade. Um dia, quando eu estava de cama com uma febre que parecia ter sido mandada pelo próprio demônio, Xadi entrou no meu quarto — como acabou de fazer agora — e pôs a mão em minha testa. Depois disse baixinho no meu ouvido: "Ibn Ayub, fique bom. Fique bom."

Era o jeito dele de contar que nossa família tinha sofrido uma perda. Eu não estava em condições de entender seu recado, mas lembro que naquela noite tive pesadelos.

Na manhã seguinte, a febre tinha passado. No mesmo dia, meu pai entrou no quarto para avisar que minha avó morrera. Chorei muito e meus soluços devem ter emocionado meu pai. Foi a única vez na minha vida que ele me abraçou e afagou minha cabeça com carinho.

Ele quis me tranqüilizar. Disse que Alá, em sua infinita misericórdia, concedera-lhe uma longa vida e que ela deixara este mundo sem arrependimentos. As últimas palavras que falou ao filho foram a meu respeito. Segundo meu pai, minha avó criticou-o por não dar muita atenção a mim e ao meu futuro. Enquanto dizia isso, ele segurava o amuleto que você pode ver agora no meu peito.

Foi minha avó quem o colocou no meu pescoço. Todo ano ela o retirava, colocava um cordão mais comprido e rezava para uns deuses desconhecidos — nunca a ouvi invocar Alá nessas preces especiais — me fazerem forte.

O amuleto me dá sorte. Gosto dele por causa de minha avó, mas acabou fazendo parte de mim. Antes de cada batalha, pego nele, passo sobre o meu coração e faço uma prece silenciosa para Alá garantir nossa vitória.

Foi em Damasco que me tornei homem. Nos primeiros meses, ainda senti falta da liberdade que tinha em Baalbek. Damasco era uma cidade cheia de perigos. Todo dia ficávamos sabendo do assassinato de alguém importante ou de um parente de alguém importante.

Como sempre, a intuição de meu pai estava certa. O atabegue de Damasco encarregara meu pai da fortaleza, ficando responsável pela defesa da cidade. Sua súbita ascensão ao poder fez com que tivesse inimigos. Os notáveis do local, muitos dos quais se diziam descendentes dos primeiros seguidores de Alá e seu profeta, eram francamente hostis e zombavam de nós. Para eles, meu pai e meu tio Xirkuh não passavam de aventureiros curdos, oportunistas espertos que vendiam seus serviços e suas almas pela melhor oferta. É difícil dizer que a opinião deles não tinha um fundo de verdade.

Na época em que chegamos, Damasco era governada pelo atabegue Muin al-Din Unur. Foi ele que, não suportando mais as crescentes divergências entre seus comandados, pediu a meu pai que reorganizasse a defesa da cidade. Unur era inimigo do sultão Zengui e do filho dele, Nur al-Din. Meu tio Xirkuh era comandante militar e trabalhava diretamente subordinado a Nur al-Din. Se eu fosse um turcomano leal a Unur e seu sultão Abak, também teria ficado bastante assustado. Afinal, todos sabiam que nosso clã era muito unido. Meu pai e seu irmão, longe de serem inimigos, eram unidos como cabo e espada. Mas Unur confiava em meu pai. Ficamos sabendo que, quando estava à morte, recomendou ao sultão Abak que continuasse com os serviços de meu pai.

Abak não estava muito convencido disso. Era um homem fraco, que gostava de vinho e de mulheres, além de ser facilmente influenciado por conselheiros inescrupulosos.

Mas, nesse caso, devo confessar que suas preocupações tinham fundamento. Se Nur al-Din atacasse Damasco, será que meu pai pegaria em armas contra um exército comandado por seu irmão Xirkuh? Era essa a pergunta que os atormentava dia e noite.

Meu pai gostava de manter uma máscara de neutralidade.

Era um grande cortesão, isto é, costumava ouvir muito e falar pouco. Quando Abak contou a ele os comentários que corriam, meu pai sorriu e disse: "Talvez eles tenham razão para desconfiar da minha lealdade. Você é o único juiz. Até hoje nunca menti, mas, se minha presença o incomoda, vou embora amanhã com minha família. Basta que mande."

O supremo governante de Damasco preferiu manter os serviços de meu pai. Foi um erro que lhe custou o trono, mas uniu os fiéis, e fez com que ficasse mais próximo o dia em que poderíamos retomar nossas terras aos cruzados.

Sei o que está pensando, Ibn Yakub. Você imagina o que teria acontecido se tivéssemos sido expulsos de Damasco. Não tenho a menor dúvida de que o resultado seria o mesmo, mas só depois de muito derramamento de sangue. Os atos de meu pai não eram pautados apenas pelas necessidades de sua família. Ele sentia nojo daquelas guerras de fiéis contra fiéis.

A conseqüência dessas disputas foi que nossa liberdade de meninos ficou mais limitada. Não podíamos cavalgar sozinhos. Estávamos proibidos de explorar a cidade depois do anoitecer. Avisaram para nunca entrarmos nas adegas e meu pai ameaçou nos chicotear em público se não respeitássemos essa proibição.

Como precisávamos estar sempre acompanhados, começamos a jogar chogan. Meu irmão al-Adil e eu tínhamos vários guarda-costas e resolvemos aproveitá-los. Todo dia saíamos de Bab-alDjabia ao amanhecer com os soldados que, em primeiro lugar, cumpriam seu dever — nos ensinavam a arte da espada. Depois, descansávamos um pouco, tomávamos refrescos e eles mostravam como se luta a cavalo. No final do treinamento, nos divertíamos ensinando os soldados a jogar chogan.

Não é estranho, Ibn Yakub, que quanto mais exercícios fazemos, menos cansados ficamos? Depois de montar durante duas horas, eu era capaz de montar o dia inteiro. Mas nos dias em que não podia sair de casa, eu ficava desanimado e cansado, como hoje. Meus médicos louvam Alá por isso e dizem que tem relação com o fluxo do sangue pelo corpo, mas será que eles têm certeza?

O sultão calou-se. Pensando que estivesse imerso em pensamentos, corrigi algumas coisas no texto, mas quando, com a pena em riste, voltei a olhá-lo, estava de olhos fechados. Dormia profundamente.

Eu ainda não tinha percebido que Saladino ibn Ayub só enxergava de uma vista. Ele ainda não tinha contado como perdera a outra e Ibn Maimun avisou-me que esse assunto era muito delicado. Eu jamais deveria mencioná-lo. Sendo um escriba disciplinado, afastei toda a curiosidade da minha cabeça. Para ser sincero, tinha me acostumado com essa deficiência do sultão e nunca pensei muito nela. Mas olhando-o assim, dormindo, com a vista ruim bem aberta, dava a impressão de que estava meio acordado.

Era um sultão onividente.

Aquilo me deu uma sensação esquisita. Queria saber como e quando perdera a vista. Teria sido num acidente na infância? Se foi, quem o provocou? Que problemas isso causava durante uma guerra? Minha cabeça estava cheia de perguntas.

Não sei quanto tempo fiquei ali, olhando o sultão adormecido. Um leve toque no meu ombro anunciou o onipresente Xadi. Pôs o indicador sobre os lábios pedindo silêncio e mostrou que eu devia sair do quarto.

Quando sentamos no pátio, desfrutando do sol de inverno, comendo pão embebido em labineh e rabanetes com cebolas, perguntei a Xadi a respeito do olho do sultão.

Ele sorriu, mas não respondeu. Insisti.

— Saladino vai lhe contar. É o único assunto que jamais comentamos.

— Por quê?

O velho não respondeu. Limpou o iogurte que pingava de seu bigode e deu um arroto. Talvez, pensei, esteja de mau humor porque alguma coisa o incomodou. Mas eu estava enganado, foi aquela história do olho que o emudecera.

Xadi perguntou se as crônicas que eu transcrevia já estavam no ponto em que Ayub e sua família chegam a Damasco. Balancei a cabeça afirmativamente.

— Então, o sultão contou suas escapadas quando jovem? perguntou Xadi com um sorriso malicioso.

— Ainda não.

— Ainda não, ainda não! — Ele imitou minha voz e riu muito. — Nunca vai contar. A memória dos grandes homens falha. Esquecem o passado com facilidade, mas felizmente para você, meu bom escriba, Xadi ainda está vivo. Vamos primeiro comer um pouco de cordeiro e depois eu conto as histórias de Damasco que nosso grande sultão nunca vai lembrar.

Quando terminamos a refeição, o velho começou a falar.

— Não vou aborrecê-lo contando nossas primeiras idas à mesquita umaiada, onde os grandes califas pregavam no sermão das sextas-feiras e onde, muito tempo atrás, a congregação tremeu numa raiva silenciosa quando Muawia levantou a camisa ensangüentada do califa Otamã, que foi assassinado. Deixo isso para o sultão contar.

Xadi riu alto, como se tivesse acabado de dizer algo muito engraçado. Ele costumava rir das próprias piadas e eu já tinha me acostumado, embora continuasse me irritando. Por fora, eu sorria e concordava educadamente, para neutralizar o olhar intenso que ele me dirigia depois dessas explosões de riso. Xadi bebeu mais uma taça de soro de leite, limpou os lábios e o bigode e começou a contar sua história.

Era uma tarde quente de verão e todos na casa estavam descansando. Seu sultão tinha catorze anos, talvez menos. Aproveitando o calor, ele desrespeitou a recomendação do pai e foi até as estrebarias. Pegou seu cavalo preferido, montou em pêlo e saiu sozinho da cidade. Era ingenuidade dele achar que podia atravessar os portões da cidade sem ser reconhecido. Fazer isso também era perigoso, já que o pai dele tinha inimigos na cidade, mas como conter os rompantes da juventude?

Os guardas dos portões ficaram surpresos. Sabiam que os filhos de Ayub não costumavam sair sozinhos. Um dos guardas correu até a casa da família e contou que Saladino saíra. Ayub foi acordado e informado do acontecido. Curiosamente, pareceu mais satisfeito do que zangado com a desobediência do filho. Eu o vi sorrindo.

Ayub me mandou sair a cavalo atrás de Saladino, mas sem chamar muita atenção. A ordem era segui-lo para ver aonde ia, mantendo uma distância segura. Ou seja, eu devia espionar. Claro que fiz o que foi pedido.

Não foi difícil seguir sua pista. Logo à saída de Bab alDjabia, como verá quando o sultão o levar com ele, há um grande mercado, cortado por um rio. Quando você fica sobre as ameias da fortaleza, a luz do sol poente pode iludir seus olhos e transformar o mercado num enorme tapete verde feito das melhores sedas. Era lá que Saladino e os irmãos jogavam chogan. Era lá que apostavam corrida a cavalo e aprendiam a manejar a espada e o arco e flecha. O rio corre por um grande bosque de álamos.

De longe, eu via o menino galopando com a cabeça descoberta e sem qualquer proteção. Vi quando parou o cavalo e desmontou. Fiz o mesmo e amarrei meu cavalo numa árvore. Depois, andei até onde o menino estava, cuidando para não ser visto. Encontrei um bom lugar atrás de uns arbustos, de onde podia observá-lo. Você está ficando impaciente com este velho bobo, Ibn Yakub, mas já estou chegando lá.

Saladino tirou a roupa e mergulhou no rio. Primeiro nadou a favor da correnteza e depois, contra. Ri sozinho: que menino estranho, por que não disse que queria nadar? Os guardas viriam junto, ficariam olhando até ele não querer mais e pronto.

Eu estava quase indo até a margem para chamá-lo quando, de repente, vi uma mulher, que também devia estar observando, chegar ao lugar onde ele tinha deixado as roupas. Pegou-as e dobrou-as. Depois, sentou-se e esperou que ele saísse da água. O menino nadou até ela e disse alguma coisa. Não dava para ouvir porque, quando vi a mulher, afastei-me outra vez. Ela estava rindo e balançando a cabeça. Ele insistia.

De repente, ela levantou, tirou a roupa e entrou na água.

Era uma mulher adulta, Ibn Yakub, devia ter pelo menos o dobro da idade do menino. O resto você pode imaginar. Quando os dois terminaram de nadar, ficaram se secando ao sol e essa feiticeira montou no nosso menino e ensinou a ele como ser homem. Alá seja louvado, Ibn Yakub, eles foram bem sem-vergonhas. Ali, sob o límpido céu azul, sob o olhar de Alá em seu céu, os dois fizeram como os animais.

Esperei com paciência, prestando bem atenção a tudo, como nosso amo mandou. Ela foi embora primeiro, pareceu sumir.

Ele ficou mais alguns minutos e começou a se vestir. A essa altura, como você pode imaginar, eu estava querendo aparecer.

Isso seria uma vingança por aquele fato que ocorreu em Baalbek, mas eu tinha de obedecer às ordens. Montei em meu cavalo e voltei para a cidade, sem esperar que o jovem Saladino se vestisse.

Quando cheguei em casa, disse para o pai dele que estava tudo bem.

Ayub, que descanse em paz, queria saber tudo. Felizmente, eu desfrutava de uma situação que me permitia dar os detalhes.

O que contei agora foi uma versão condensada, ó erudito escriba, mas naquela época estava tudo bem fresco na minha cabeça.

Para minha surpresa, Ayub bateu palmas e riu muito. Talvez estivesse satisfeito porque a iniciação de Saladino foi com uma mulher e não com um de seus soldados ou com uma potranca!': O rosto de Ayub voltou a ficar sério quando me ameaçou com um destino cruel se uma só palavra dita chegasse a Saladino.

Foi difícil para mim não contar nada para o menino. Sempre me senti tão próximo dele e, por diversas vezes, essa minha língua desrespeitou as ordens. Mas havia algo no tom de Ayub que me fez obedecer. Apesar da enorme tentação, obedeci.

— Quer dizer que até hoje o sultão não sabe o que aconteceu? Como? Xadi deu um risinho e coçou o nariz.

— Esperei o momento certo. Contei na noite em que ele se casou. Estava muito alegre e riu, mas eu já devia saber como ele era. Um mês depois, quando achei que já tinha esquecido tudo aquilo, pediu-me uma explicação.

Estava sério. Eu contei e ele ficou surpreso que seus pais jamais tivessem tocado no assunto com ele. Dei de ombros, não era problema meu.


7

O Festival da Primavera no Cairo.
Um teatro-de-sombras erótico no bairro turcomano

Passaram-se semanas. O inverno terminara, mas a primavera ainda não tinha chegado. Halima não deu qualquer notícia e o encantamento que me provocou tinha quase desaparecido. A conselho de Ibn Maimun, parei de atormentar meu coração pensando nela. Não a via há vários dias. Em casa, Raquel estava alegre outra vez. Nossas vidas tinham-se adaptado a uma nova rotina.

No palácio, o sultão se ocupava com os membros mais confiáveis da família, discutindo a estratégia para libertar al-Kadisia. Foi a única vez que me proibiram de entrar na sala do conselho. As resoluções que ele estava tomando não eram para ouvidos comuns. Eram conversas muito confidenciais. O sultão costumava dizer que uma indiscrição ou uma confidência insensata poderiam nos custar um exército inteiro e atrasar nossa causa por algumas décadas. Mas seria mentira dizer que eu não estava aborrecido. Pensava que era uma pessoa de total confiança do soberano. O sultão deve ter percebido isso, pois tentou acalmar meu orgulho ferido.

— Ibn Yakub, o que você está escrevendo só o cádi e mais três pessoas sabem — além de mim, claro. Se permitir que você assista ao nosso conselho militar, todos saberão quem é você e isso seria perigoso. Um dos meus irmãos ou sobrinhos poderia pensar que você sabe quem será meu sucessor, o que é segredo.

Poderiam torturá-lo ou matá-lo, depois forjar documentos dizendo o que quisessem para o povo acreditar. Entende?

Balancei a cabeça em sinal afirmativo, reconhecendo que suas palavras eram verdadeiras.

Os cairotas saudavam os primeiros sinais da primavera como faziam há séculos. As ruas da cidade eram invadidas por seus habitantes. No primeiro dia da primavera, era como se todos fossem iguais. Os estudantes não iam às aulas, preparando-se para as festas do final da tarde, ou iam à escola ou à faculdade e seqüestravam os professores, prendendo-os até que pagassem um resgate. O dinheiro era gasto em vinho e comida, distribuídos gratuitamente para os pobres o dia inteiro.

Nos últimos anos, tinha evitado ir às ruas nesse dia, desde que alguns arruaceiros atiraram Raquel numa fonte só para ver seus seios através da túnica ensopada.

Os protestos dela foram brandos perto dos meus, mas naquele ano eu tinha decidido passar o dia todo com as pessoas simples. Quem seria escolhido para as brincadeiras dessa vez? Nos três últimos anos, o alvo foi o cádi al-Fadil : fizeram pilhérias com os poemas dele, zombaram de sua afetação e imitaram com ironia seus modos cortesãos.

Ibn Maimun, que jamais perdeu um festival, contou que riu muito do falso julgamento de um jumento acusado de urinar num pregador. O estudante que fazia o papel de cádi ouviu a acusação, interrogou o jumento e deu o veredicto: o jumento devia ser humilhado em público. Seu pênis deveria ser cortado em cinco partes, colocado num prato e servido ao pregador ofendido. Depois, o jumento devia ser obrigado a zurrar em público pelo menos cinco vezes ao dia. Quando perguntaram se ele estava de acordo com o veredicto, o jumento soltou um grande peido.

— Eles não pensam nem fazem coisas muito recomendáveis — observou Ibn Maimun nessa ocasião.

— Mas só um surdo e cego negaria que eles são muito populares.

Raquel e eu fomos para o lugar onde o grande desfile deveria terminar. Naquele ano, todos os jovens estavam usando barbas ralas para rir e brincar nas ruas. Encantadores de serpente e jograis dividiam as atenções com acrobatas, contorcionistas e mágicos. Encantadas, as crianças andavam por toda parte e seu riso inocente alegrava até o adulto mais cético.

Compramos máscaras de leopardo e mal tínhamos coberto nossos rostos com elas, quando fomos cercados por outras pessoas com máscaras de todos os tamanhos. Começamos a nos cumprimentar e um mascarado estendeu o braço e começou a apalpar os seios de Raquel. Ela esmurrou aquelas mãos abusadas e o atacante correu.

Quem seria eleito emir do Festival da Primavera? Raquel viu primeiro os candidatos a emires. Um jovem subiu nos ombros de alguém e começou a apresentar os candidatos, que desfilavam enquanto a multidão manifestava sua preferência. Um homem travestido de dançarina, com o rosto exageradamente pintado e melões imitando seios, foi eleito emir por aclamação. Foi conduzido até um jumento que, conforme mandava o costume, estava pintado de vermelho, amarelo e púrpura, com as ancas verdes.

Segurando um leque, o emir montou no jumento e todos, inclusive Raquel e eu, começaram a cantar e dançar. O emir se abanava de um jeito exagerado, como se o verão já tivesse chegado. Quatro homens nus, com as partes cobertas por um mi'zar e os corpos lambuzados de um líquido branco, surgiram do meio do povo. Foram muito aplaudidos.

Dois deles carregavam pedaços de gelo e jarros com água fria e molharam o emir. Os outros dois vieram com uma tigela de sopa morna e colocaram um cobertor nos ombros dele para aquecê-lo.

A festa terminou e os quatro homens nus ficaram na frente do jumento e começaram a peidar, cada um tentando ser melhor do que o outro. Houve silêncio completo quando aguçamos os ouvidos para captar o som emitido pelos exímios peidadores. Essa peidaria musical era uma proeza muito apreciada nesses eventos, e o crescendo final, todos na mesma sintonia, merecia muitos aplausos e muito riso. A exibição parecia contagiante, pois os espectadores mais jovens tentaram imitar os mestres da arte pelo resto da tarde. Felizmente, não tinham muito talento e não precisamos pedir a Alá que nos enviasse uma brisa do céu para amenizar o cheiro.

Finalmente, o desfile começou a andar. Bem devagar, de propósito. Era para dar aos participantes tempo de comprar e beber dos pequenos frascos de vinho que os vendedores ofereciam nas ruas. Estávamos nos encaminhando para a grande praça em frente ao palácio do sultão. Será que ele iria aparecer para saudar a multidão? Era a primeira vez que estava no Cairo durante o festival.

Nos anos anteriores, o cádi al-Fadil apareceu rapidamente e foi saudado por centenas de pênis. Ele entrou rapidamente no palácio e se recusou a falar com o povo.

Nesse ano, como o sultão estava na cidade, o cádi não corria risco. Ele não podia permitir que o festival virasse uma orgia degradante. Seus inspetores apareceram nas ruas na noite anterior, com arautos que gritavam avisando: tudo o que for obsceno será punido severamente. A reação do povo também foi pesada: um travesti foi escolhido para ser o emir.

Quando chegamos à praça em frente ao palácio, o barulho tinha diminuído. Era como se todos tivessem sentido ao mesmo tempo a presença do sultão montado em seu cavalo e cercado pelos guarda-costas. Quando nosso emir se aproximou, Saladino dirigiu-se a ele. Os dois conversaram, mas só os travestis ouviram. No final do dia, uma centena de versões diferentes circulava pela cidade. Viram o sultão sorrindo e depois voltando para o palácio.

A festança continuou noite adentro e a maioria das pessoas, cansada e esfomeada, voltou para casa quando o sol começou a sumir. Raquel e eu tiramos nossas máscaras.

Estávamos comprando um pouco de vinho para levar quando alguém se aproximou de mim. O rosto me pareceu conhecido e ele se inclinou e falou no meu ouvido:

— Ibn Yakub, se quiser se divertir esta noite, vá ao bairro turcomano atrás do al-Azar. Este ano, não vá ao Bab alZuveila. O teatro-de-sombras vai mostrar uma peça como nunca se viu. Antes que eu pudesse responder, o homem sumiu. Por que o rosto dele me pareceu familiar? Onde o havia visto? O fato de não conseguir identificá-lo me irritou. Depois, enquanto fazíamos nossa refeição vespertina, lembrei quem era ele e isso me deixou nervoso. Era Ilmas, um dos eunucos que trabalhavam no harém.

Eu o vi uma vez falando com Xadi e segredando no ouvido do sultão. Ele devia ser um espião enviado para observar o teatro-de-sombras e relatar todas as cenas.

Ele me falou de um jeito intrigante, mas será que, no fundo, seu recado era uma ordem do sultão? Geralmente, os artistas se apresentavam do lado de fora do Bab alZuveila. Será que o eunuco Ilmas estava tentando me afastar de alguma coisa? Desisti de pensar e resolvi seguir o conselho dele.

As festividades estavam chegando ao auge quando passei, no meio da confusão de ruas iluminadas por lamparinas, pelo Bab alZuveila. Depois de confirmar que nada de estranho estava acontecendo lá, fui andando até o bairro turcomano. Na praça, à luz de lamparinas, as pessoas bebiam e comiam enquanto comentavam os fatos do dia.

Segundo os boatos no bairro, Saladino elogiara o emir pela maquilagem dos olhos e perguntara se ele e seus amigos poderiam vir comemorar a iminente conquista de al-Kadisia. Nesse ponto, é claro que o líder dos travestis perdeu a língua e fez só um sinal concordando, como uma criança diante de um mágico.

Em vários trechos da praça, senti o cheiro de haxixe, que não chegava a ser desagradável. De longe, dava para ver um pano transparente e por trás dele os músicos e atores se preparando para o primeiro espetáculo da noite.

A peça começou à meia-noite. Contava a história de uma linda moça cujo marido, furioso, surpreendeu-a com o amante. A platéia suspirou, lastimando que o amante fosse assassinado e a mulher arrancada de cena pelo marido.

Durante o intervalo, o destino da mulher era o único assunto das conversas. Debates acalorados tomaram conta da praça: será que o marido também a matou? Por que matou o amante, se a culpa era da esposa? Por que matar qualquer um dos dois? O amor era sublime e não existe lei, Alá seja louvado, que consiga evitar que uma pessoa se sinta atraída por outra.

A peça recomeçou e percebi que estávamos assistindo a uma história diferente. Eu tinha a impressão de conhecer todos aqueles personagens — ou seria minha imaginação fértil que via semelhanças inexistentes? A tensão na praça mostrava que eu não era o único a perceber as coincidências.

A segunda parte da peça não deixava qualquer dúvida. O marido foi condenado a ser açoitado em público no Bab alZuveila e a esposa pecadora foi enviada à presença de um pregador coxo e caolho. O pregador, em vez de dar apoio espiritual à mulher, acabou seduzindo-a e, a essa altura, a cortina começou a balançar. As sombras mostravam uma cópula, com um pepini simbolizando o pênis do pregador, e uma cabaça, a vagina da vítima.

Em geral, quando essas peças chegavam ao seu final obsceno, a platéia costumava rir muito e bater palmas, mas naquela noite não foi assim. Os músicos começaram a tocar um hino fúnebre, querendo nos dizer que aquela união não era feliz.

No segundo intervalo, o clima na platéia ficou mais contido. As pessoas falavam baixinho. Ocorriam muitos casos iguais ao da peça na cidade, mas todo mundo tinha percebido que o pregador caolho era uma versão disfarçada do sultão. Foi por isso que o eunuco Ilmas quis que eu fosse assistir. Seria a vingança de Halima? Senti uma mão em meu ombro e virei-me para ver o sorriso irônico de Ilmas.

— Como foi que nosso grande erudito soube dessa peça?

— Quem a escreveu, Ilmas? Quem?

— Você é capaz de adivinhar? Sacudi a cabeça.

— Acho — sussurrou ele — que antes da peça terminar vai ficar evidente quem é o autor.

Alguma coisa no jeito como ele falou fez um calafrio percorrer meu corpo. Sem querer, senti que tinha de sair dali antes do final da peça. Estava curioso para ver como terminaria, mas também estava com medo.

O sultão confiava em mim. Se soubesse que estive lá mas não fizera um relato detalhado, poderia duvidar da minha lealdade. Se ficasse até o fim, teria de contar para ele; se saísse naquela hora, estaria provado que achei a peça ruim e não merecia qualquer comentário.

Acenei para Ilmas, mostrando que ia embora, e ele não conseguiu disfarçar sua surpresa. Saí.


8

A história do xeque que, para viver na mesma casa que o amante,
obrigou a irmã a casar-se com ele;
as desastrosas conseqüências para os três

Acho melhor ir logo para a sala de audiência, Ibn Yakub. O sultão o espera e ele hoje não está de bom humor.

Fiquei preocupado com o tom das palavras de Xadi, mas não consegui perceber nada no olhar dele. Talvez eu estivessse me sentindo culpado por ter ido ao teatro-de-sombras e por isso interpretei mal o jeito de Xadi falar.

O sultão parecia sério mesmo, e não estava sozinho na sala: o cádi al-Fadil estava sentado na frente dele. Os dois sorriram quando entrei, o que serviu para me acalmar. Fiz uma reverência e sentei-me no meu lugar, pouco abaixo do trono do sultão.

— Que a paz esteja consigo, Ibn Yakub — saudou o sultão. — Fico contente por você não ter ficado até o final da peça no bairro turcomano, na noite passada. Al-Fadil e eu estávamos elogiando seu bom gosto e sensatez.

O cádi virou-se para mim com seu olhar severo. Encarei-o. Ele sorriu com os lábios, mas seus olhos continuaram duros.

— O eunuco que traiu a confiança do sultão foi executado hoje de manhã. Se você der uma volta à tarde pela cidade, poderá ver a cabeça dele enfeitando o Bab al-Zuveila.

Fiz um gesto com a cabeça, concordando. Será que eu deveria perguntar por que o idiota do Ilmas fez algo que acabou custando a cabeça ou seria melhor ficar quieto? A curiosidade foi mais forte. Olhei para al-Fadil .

— Por que o eunuco Ilmas resolveu...

— A resposta está na peça. Estava apaixonado pela ruiva endemoniada, mas ela o rejeitou várias vezes. A única forma que tinha de possuí-la era em imaginação.

— Chega! — disse Saladino, franzindo o cenho. — Temos assuntos mais importantes a tratar. Comece, al-Fadil , e prepare-se para anotar, escriba.

O cádi pegou uma taça de chá de hortelã morno e bebeu-o de um gole, como se precisasse de uma força suplementar. Al-Fadil tinha saúde frágil e Ibn Maimun disseme que sua alimentação não era saudável. Estava muito gordo para um homem da sua altura e sofria de um inchaço nos joelhos. Naquele dia, ao falar, fez várias pausas para tomar fôlego.

— Recentemente, uma jovem de menos de vinte anos foi levada pelo sogro à presença de um dos meus inspetores, acusada de adultério. A jovem confessou que realmente tinha um amante, mas insistiu que era porque seu marido se recusava a consumar o matrimônio. Segundo nossa lei, isso não é motivo para adultério. Portanto, não tive outra alternativa senão condenar a moça e seu amante a serem apedrejados até a morte.

"Ela é irmã caçula de Sayed alBukari, um de nossos xeques mais dignos e respeitados. É uma história, Comandante dos Valentes, que enche de tristeza meu coração.

Compete a Sua Majestade tomar a decisão final. O xeque alBukari aguarda sua resposta. tomei a liberdade de trazêlo comigo. É melhor ouvir a história dos lábios dele do que dos meus. Ditas por ele, suas palavras terão mais força. O que deseja o sultão?

Saladino ficou em silêncio. Estava avaliando. O que pensaria? Provavelmente, se não seria melhor o cádi encaminhar o problema e, se a decisão não fosse bem recebida pelo povo, o culpado seria al-Fadil.

— Mande alBukari vir à minha presença. Vamos ouvi-lo. Poucos minutos depois, um homem alto e esbelto, suficientemente vaidoso para pintar o cabelo grisalho, foi trazido à sala. Ajoelhou-se e tocou os pés do sultão com a cabeça.

— Sinto muito que o motivo do nosso encontro seja este, alBukari — disse o sultão, com voz muito calma.

— Lembro-me bem de sua presença em nossas discussões vespertinas, anos atrás. Admirei o que disse então, por isso aceitei ouvir sua história pessoalmente. Explique por que sua irmã não deve ser castigada, como ordenou nosso misericordioso cádi.

O xeque olhou para o rei com gratidão. Seu rosto tinha um sorriso triste quando ele começou a falar.

Se alguém deve ser castigado, ó misericordioso sultão, não é minha desditosa irmã, mas eu. Sou o culpado pela terrível desgraça que a atingiu.

Cerca de cinco anos atrás, um visitante misterioso entrou na sala apinhada onde eu costumava interpretar e comentar textos do hadith escritos por meu grande antepassado.

Que Alá me perdoe, pois eu não tinha a menor idéia de que iria desonrar meu ancestral.

Esse recém-chegado chamou minha atenção e a de todos os presentes. Era um jovem de belas feições. Os olhos escuros e brilhantes iluminavam seu rosto claro e ele tinha o cabelo da cor do trigo. Uma pergunta ficou estampada no rosto de todos os fiéis: quem seria ele?

Ele veio para o Cairo ainda criança, a bordo de uma embarcação mercantil da terra dos cruzados. O pai dele, negociante genovês, morreu de repente e os marinheiros não aceitaram a responsabilidade de levar o menino de volta porque órfão a bordo trazia má sorte. Essa gente tinha superstições primitivas. O menino, com sete ou oito anos na época, foi adotado por um negociante da rua dos Vendedores de Espadas. A primeira esposa do negociante não tinha filhos e criou o menino com muito carinho. Ele cresceu, Alá seja louvado, como um dos filhos da família.

Naturalmente, teve que ser circuncidado, e para isso sua nova família usou os serviços rituais do barbeiro de Sua Majestade, Abu Daniel.

Deram ao menino o nome de Jibril, e ele gostou muito, pois era a tradução do nome que recebera ao nascer Gabriel. Quando começou a falar nossa língua, sua mãe adotiva costumava mencionar a mãe e as irmãs verdadeiras dele, das quais o menino sentia muita falta. Os pais prometeram que, quando crescesse, deixariam Jibril voltar para Gênova. O menino teve uma educação tão esmerada que logo ficou difícil dizer que não era um dos nossos.

Ele cresceu e se tornou um lógico muito perspicaz, com grande interesse pelos textos de nossos amigos da Andaluzia. Esse interesse por lógica fez com que seus amigos sugerissem a ele assistir às minhas palestras. Achavam que eu poderia curar sua tendência à heresia. Realmente. eu poderia. mas só que ele era um jovem muito belo. Seu súbito aparecimento me deixou perturbado.

Ele vinha duas vezes por semana, e sentava-se aos meus pés, bebendo cada palavra que eu dizia. Seus olhos eram atentos e brilhantes, mas sempre questionadores. Será que era minha imaginação ou, às vezes, havia uma faísca de dor naqueles olhos escuros?

No final das palestras, enquanto os outros faziam perguntas gentis para me ajudar a esclarecer certos pontos, o jovem Jibril perguntava de um jeito que só o fato de responder fazia desmoronar a arquitetura de meus pensamentos.

Um dia, todos os alunos estavam atrasados para a aula e, quando chegaram, fiquei perplexo. Tinham bebido. Jibril estava completamente despido e os outros riam, sem que ele parecesse entender o motivo. Pedi para explicar o que houve e ele contou que tinham tentado estimular a memória tomando uma dose forte de infusão de nozes. Os outros ficaram descontrolados, só ele se manteve sóbrio. Eu o cobri com um lençol e o coloquei na cama.

Não posso mentir para o sultão, nem para seu grande cádi.

Devo confessar que me sentia enfeitiçado pelo comportamento desse jovem. Quando estava na sala, eu falava como se apenas ele estivesse presente.

Fui contaminado pelo antigo mal que os idólatras iunânis e os malditos romanos trouxeram para nosso mundo. Embora não fosse culpa dele, Jibril tornou-se a razão de todo o meu desespero. Se não vinha à aula, eu sentia uma dor de cabeça insuportável. Eu me ajoelhava e pedia: "Ó Alá, por que castigas teu escravo com tanta crueldade?"

Um dia, Jibril chegou quando eu estava sozinho em casa. Meu rosto deve ter demonstrado a emoção que meu coração se esforçava para ocultar. Jibril teve uma reação positiva e declarou o que sentia por mim. Que Alá me perdoe, mas nós nos tornamos amantes. O desabrochar dessa paixão fez com que me sentisse tão feliz como se estivesse no sétimo céu. Tínhamos provado o fruto proibido. Perdemos todos os escrúpulos, nada mais nos importava.

Vejo pelo rosto de nosso venerável cádi que minha franqueza só está provocando nojo. Não vou prosseguir nessa linha.

Sou o que sou, mas continuo sendo um de vocês. Por favor, tentem compreender.

Em pouco tempo, eu não agüentava mais ficar longe dele. Comecei a imaginar como poderia viver a seu lado para sempre. Um dia, quando o vi conversando com minha irmã, tive uma idéia. Ela é uma moça linda e percebi que os sentimentos dela por Jibril eram os mesmos que eu tinha. Por que os dois não se casavam? Assim ele poderia morar na nossa casa sem temer as más-línguas. Para ser sincero, eu não tinha nada contra a idéia de dividi-lo com minha irmã.

Jibril aceitou meu plano: o casamento foi realizado e ele se mudou para nossa casa. Mas, desde a primeira semana, ficou claro que minha irmã não estava feliz.

Jibril era muito frio com ela. Não sentia qualquer atração por mulheres e foi essa a causa da tragédia: minha irmã arranjou um amante. Jibril e eu ficamos muito felizes.

Vivíamos um para o outro. Nosso egoísmo, em vez de diminuir com o tempo, aumentava a cada hora. Nada parecia nos incomodar. O vento cansim soprava, jogando areia em nossos cabelos e ressecando nossas gargantas. Mas à noite as estrelas pareciam brincar de correr umas atrás das outras no céu. Minha irmã ficava sentada em silêncio, olhando pela janela, à espera de um recado do amado. O outono veio e se foi, chegou um inverno chuvoso. Nós dois jamais sentimos o frio da noite. O latido dos cães vadios nunca perturbou nossa paz. Jibril sabia amar e me ensinou as virtudes de uma ternura submissa.

Meu coração só ficou perturbado na manhã em que o misericordioso cádi, que Alá lhe conceda força interior, mandou me procurar. O resto todos sabem.

Ponho minha cabeça aos seus pés, Comandante dos Misericordiosos. Faça com ela o que quiser, aceitarei qualquer castigo que ordene, mas, em nome de Alá, imploro que poupe minha irmã de mais essa humilhação. Ela já sofreu demais por meus pecados.

O sultão ficou cabisbaixo, em silêncio. Parecia ter-se emocionado com a intensidade do amor descrito pelo xeque. O cádi e eu nos entreolhamos. Como o sultão resolveria esse caso? Será que pediria para conhecer Jibril e o manteria como criado no palácio?

— Tenho certeza de uma coisa, Sayed alBukari: sua irmã não merece nenhum castigo. Al-Fadil fará com que seja libertada ainda hoje e também que se case com o homem amado, sob os olhos e com a bênção de Alá. Quanto a você e Jibril, a decisão é mais complexa. Como erudito, talvez você possa me ajudar. O hadith diz alguma coisa que possa me ajudar a decidir sobre este assunto? Estudei-o quase inteiro, mas não me lembro de qualquer referência ao tema.

"Xeque, pense um pouco mais sobre isso e consulte outros eruditos. E acho que está na hora da família de Jibril cumprir a promessa e deixar que ele visite a cidade onde nasceu. Deixe que conheça as irmãs, e que a viagem seja bem demorada. Fui claro?

Nosso erudito barbudo tinha vindo ao palácio determinado a salvar a irmã do apedrejamento. Tinha certeza de que perderia sua cabeça e talvez até a de seu jovem amante. Quando viu que o sultão, na verdade, o perdoava, lágrimas de gratidão correram por seu rosto como uma catarata, molhando sua barba. Ele se ajoelhou e beijou os pés de Saladino.

Depois que o erudito barbudo foi embora — um homem em paz — nós não dissemos nada. Estava na hora da refeição do meio-dia e levantei-me para sair. Mas, para minha surpresa, o sultão pediu-me para que ficasse e almoçasse com ele e al-Fadil . Saímos da sala de audiência, que era escura e fria, para um sol ofuscante e um vento cálido, prenunciando a calamidade que estava por vir. O verão do Cairo estava chegando.

Entramos na sala de refeição e fomos recebidos por Afdal, filho mais velho do sultão. Ele correu para abraçar o pai, antes de inclinar-se cumprimentando o cádi e eu. Saladino ficou sério.

— Por que você não foi andar a cavalo hoje? — Estava dormindo. Os outros foram e me deixaram.

— Não foi o que eu soube. Disseram que quando Xadi e Otomã foram acordar você, ouviram muitos palavrões. Verdade ou mentira?

Afdal começou a rir.

— Verdade e mentira. Otomã jogou água fria na minha cabeça para me acordar, enquanto Xadi ficava atrás dele fazendo caretas e rosnando. Desse jeito, abu, foi difícil controlar minha língua e cavalgar com eles.

Os olhos espertos do menino de doze anos brilhavam, travessos. Afdal olhou para o pai, avaliando sua reação. Saladino sorriu e deu um tapinha na cabeça do filho.

— Esta tarde você vai comigo até a fortaleza.

— Quando fica pronta, abu?

— Depois que eu tiver morrido e, queira Alá, você estiver ocupando o meu lugar. Você vai inaugurá-la. Entendeu?

O rosto de Afdal pareceu anuviar-se. Ele segurou a mão do pai e balançou a cabeça. O sultão deu um abraço carinhoso no filho e levou-o até a porta da sala.

A refeição posta no chão diante de nós não podia, de modo algum, ser considerada um banquete. O povo tinha grande admiração pelos gostos austeros do sultão, que contrastavam com dos califas de Bagdá ou seus antecessores no Cairo. Mas nem todos sentiam a mesma admiração. A família e, principalmente o irmão do sultão, al-Adil, zombavam de sua simplicidade e não costumavam comer com ele. Ele só fazia uma refeição completa por dia, a vespertina.

Fomos servidos de pão para acompanhar um modesto prato de vagens cozidas e outro de pepinos frescos, cebola, alho, gengibre — e só. O cádi sofria de indigestão crônica e, por recomendação de Ibn Maimun, não podia comer vagens que, como se sabe, só servia para piorar o problema. Enquanto o sultão e eu comíamos a vagem com apetite, o cádi comeu pão, provou um pouquinho do pepino e bebeu um copo de suco de tamarindo.

Quando terminamos, o cádi não parecia muito bem. Saladino perguntou se ele estava contrariado por causa da pouca variedade de pratos.

— O sultão sabe que sigo recomendações médicas de Ibn Maimun. Ele me mandou fazer uma dieta rigorosa e me obrigou a comer menos. Não, não estou preocupado por causa da comida, mas com a grande generosidade de Sua Majestade.

O cádi estava triste porque Sayed alBukari fora perdoado. Achava que era um mau precedente. O sultão ouviu a reclamação calado. Os criados tiraram os pratos da mesa e colocaram uma grande travessa com frutas. Saladino continuava calado e nós também. O cádi sentiu o peso do silêncio, fez uma reverência e foi embora.

Assim que saiu, Saladino começou a rir sem parar.

— Conheço todas as manhas dele, não está preocupado com alBukari. Na verdade, até gostou da nossa decisão. Você sabia, Ibn Yakub, que al-Fadil costumava assistir às palestras de AlBukari?

Era amigo dele. Mas, se as pessoas disserem que o xeque recebeu uma punição muito branda, o cádi vai dar um suspiro de resignação, concordar e dizer que o problema é o nosso sultão, que às vezes tem um coração muito mole. E, quando surgir um novo caso, o cádi vai insistir num julgamento rigoroso para garantir nossa autoridade.

"Diga-me uma coisa, Ibn Yakub, mas seja sincero. Acha que comemos o suficiente ou você teria preferido, como de praxe, competir com Xadi para ver qual dos dois consegue comer mais pernil de carneiro? Seja sincero!

Decidi mentir. — A comida foi mais que suficiente, Comandante dos Generosos. A refeição podia ter sido preparada pelo próprio Ibn Maimun. Para ele, a única finalidade de comer é manter o corpo e a mente sadios. Quando ele se hospeda em nossa casa, minha esposa jamais serve carne.

Saladino sorriu.


9

A amada do jovem Saladino troca-o por um homem mais velho.
Por causa disso, ele se embriaga na taberna.

Seu tio Xirkuh resolve distraí-lo, levando-o numa curta missão para conquistar o Egito. Saladino torna-se vizir na corte do califado fatímido

Você acredita que eu não queria sair de Damasco, Ibn Yakub? Sempre gostei da cidade e, apesar das proibições de meu pai, conhecia todos os bairros e todas as ruas.

Saía sozinho, às vezes com meu irmão. Costumávamos comprar roupas com os mascates de rua. Esse disfarce simples era nossa defesa contra possíveis assassinos e assim eu ia aonde me desse vontade.

Numa noite de verão, vi a lua cheia iluminando a cúpula da mesquita umaiada. Eu tinha visto operários descalços carregando na cabeça pranchas com tijolos empilhados.

Deviam estar construindo uma casa de cinco andares para algum comerciante. Eu adorava Jogar pedras naqueles antigos fossos em volta dos muros de Damasco. E vi mulheres de olhos transparentes, da cor do mar, que eram compradas e vendidas no mercado em troca de alguns dinares. Gosto do Cairo, mas pode ter certeza de que Damasco é o centro do mundo. Os medos e temores da cidade passaram a ser os meus.

Até então, Baalbek tinha sido o lugar onde mais gostara de viver, mas deixou de ser e você sabe bem por que, não, meu bom escriba? Xadi contou-lhe sobre o meu primeiro amor. Você parece constrangido. Xadi lembra melhor do que eu, minha memória hoje está confusa. Só me lembro do dia em que ela me deixou, não por causa do adeus, mas porque algo muito mais importante do que nossas vidas insignificantes estava ocorrendo fora dos muros da cidade.

Essa mulher tinha uns dez anos mais que eu, no mínimo. Ela me deu muito prazer e me ensinou a desfrutar do corpo feminino. Um dia, tínhamos combinado de nos encontrar logo ao anoitecer, mas quando cheguei na clareira à margem do rio ela não estava. Fiquei esperando muito tempo e ela não apareceu. Estava quase indo embora quando a moça chegou, ofegante e com o rosto inchado: estivera chorando. Percebi que nosso romance tinha acabado. Ela beijou meu rosto e meus olhos. Tinha encontrado um homem que era mais da idade dela e eu, tão jovem, devo ter parecido meio bobo.

Claro que fiquei desapontado, mas o que fazer para diminuir minha dor? Não tinha ninguém com quem comentar o assunto porque, no mundo da fantasia em que eu vivia naquela época, achava que ninguém sabia. Era um segredo só nosso.

Então, montei em meu cavalo e voltei para Damasco sentindo uma raiva ciumenta, chorando de ódio e tristeza. Estava tão absorto que não percebi nada em volta. Cheguei em casa, troquei de roupa e tirei meu irmão da cama onde dormia. Fomos à única taberna da cidade que abria antes da refeição do meio-dia. Os donos eram armênios e ela ficava no bairro cristão. Eles não perguntaram nada e ainda nos serviram alguns dos melhores vinhos da cidade, que não eram trazidos pelos comerciantes da terra dos cruzados, mas eram feitos com uvas de Taif, cultivadas nos vinhedos das montanhas pouco acima de Meca. Dizia-se que o vinho de Taif era tão forte que transformava anões em gigantes.

Quando Adil e eu chegamos, a taberna estava quase vazia, só havia alguns eunucos que estavam se recuperando de uma noitada em algum outro lugar da cidade, embriagados demais para nos notarem.

Começamos a beber o vinho proibido por nosso Livro Sagrado. Adil percebeu que eu estava aborrecido, mas não perguntou nada. Olhava para mim de soslaio e tocava meu braço para me consolar. Ele sabia. Por instinto, da mesma forma que eu sabia que ele freqüentava bordéis e tinha-se apaixonado por uma jovem flautista. Ele podia ignorar a razão da minha tristeza, mas sabia que eu estava magoado.

Aos poucos, o vinho fez efeito. Meus olhos começaram a alterar o corpo da mulher que nos servia o vinho. Seria uma gazela? Fiquei cego para tudo o mais. Começamos a cantar músicas que falavam de mulheres que traíram seus amantes, da vingança, do amante e da raiva do cádi. Puseram comida na nossa frente e nem sabíamos o que estávamos comendo. Cantamos mais um pouco, a essa altura acompanhados pelos eunucos. Não sei quanto tempo ficamos lá, mas lembro-me de Xadi, meu anjo da guarda, sacudindo meu braço para me acordar. Se fechar os olhos agora, ainda lembro como ele estava preocupado, dizendo baixinho: "Yusuf Saladino. Yusuf Saladino. Vamos embora."

Só de pensar, ainda estremeço de vergonha. Sabe por que, Ibn Yakub? Porque naquele dia nosso grande sultão de Aleppo, Nur al-Din, filho mais velho do guerreiro morto Zengui, estava nos portões de Damasco. Ele queria tomar a cidade e a seu lado estava meu tio Xirkuh. Meu pai estava na cidade, comandando os exércitos do inimigo de meu tio, o rei de Damasco.

Duas semanas antes, meu tio enviara um mensageiro secreto para avisar meu pai. Os dois sabiam que um jamais lutaria contra o outro. A maior preocupação de meu pai era, como sempre, evitar derramamento de sangue. Ele negociou um acordo aceitável para o rei de Damasco e naquele dia nem uma gota de sangue manchou as ruas de nossa cidade. Nur al-Din tomou a cidade sem encontrar resistência. Tudo isso aconteceu enquanto eu estava bebendo, com pena de mim mesmo.

Cheguei a tempo de ver Xirkuh abraçando meu pai nas ameias da fortaleza. A princípio, pensei que fosse uma visão, mas depois meu tio me ergueu do chão para me abraçar. Foi um abraço tão forte que meu estômago se revirou e o vinho de Taif me fez passar mal. Vomitei aos pés de meu tio e só me lembro da cara assustada de meu pai e da risada de Xadi.

Nur al-Din foi o primeiro soberano a pensar em unir os fiéis e fazer com que expulsassem os cruzados. Ele acreditava que enquanto não houvesse um califa que concentrasse toda a autoridade, os cruzados sempre tirariam vantagem de nossas fraquezas e rivalidades. Nur al-Din era muito diferente de seu ilustre pai Zengui. O pai costumava usar a intuição para montar uma estratégia, mas o filho procurava os conselhos de seus comandantes e emires. Antes de tomar qualquer decisão, examinava todos os detalhes, avaliava cada situação e estudava bem os mapas preparados especialmente para ele. E, ao contrário do pai, jamais bebia um gole de vinho.

Nur al-Din estava disposto a conquistar o Reino de Jerusalém. Para isso, precisava que o Misr tivesse um governo poderoso e confiável, com um soberano suficientemente forte para resistir às tentativas dos cruzados de tomar o Cairo. O Misr era rico, mas tinha reis fracos. Era uma bela noiva esperando um marido.

Lembro que o sultão sempre perguntava a meu tio Xirkuh: "Tem alguma notícia do Misr?", e meu tio balançava a cabeça, fazendo uma cara estranha. "Não espere receber boas notícias de lá, meu senhor. O califa deles, o embusteiro al-Adid, é viciado em ‘banj’ e freqüentador de bordéis, vive rodeado de mães e avós que planejam e tramam cada minuto do seu dia. É o vizir quem governa, e cada vizir é sucedido pelo seu próprio assassino."

Um dia, chegaram notícias do Misr. Era o verão de 1163 e houve grande agitação no palácio. Soubemos que Xawar, o vizir que acabara de ser deposto, tinha fugido e chegado a Damasco.

Poucos dias depois, um mensageiro oficial chegou do Cairo trazendo uma carta de Dirgam, o novo vizir. Trazia também uma grande caixa de marfim cheia de pedras preciosas, com alguns dos mais belos diamantes já vistos na cidade.

Nur al-Din sorriu e entregou a caixa ao seu secretário, recomendando que a guardasse junto com os tesouros do estado. A carta que veio com os presentes trazia outros agrados e pedia ao sultão de Damasco que não desse ajuda a Xawar. Então, Nur alDin chamou meu pai e meu tio para sua sala do conselho: "Acho que vamos tomar o Misr. Vocês conseguem imaginar um país cujos soberanos pedem que nós os apoiemos, e não a um vizir deposto? Vão propor a mesma coisa aos cruzados. Precisamos chegar ao Cairo e a Alexandria antes do inimigo. Xirkuh, você vai comandar nossos soldados com a coragem de um leão da montanha. Trate Xawar como se ele fosse uma tâmara suculenta numa longa viagem pelo deserto. Quando não tiver mais utilidade, cuspa-o como se fosse um caroço. Não demore. Ele prometeu nos entregar um terço dos impostos sobre as colheitas no Cairo. Faça com que cumpra a palavra."

Xirkuh insistiu em me levar. Fiquei indeciso, embora gostasse da idéia de lutar. O fato é que cresci acostumado a encontrar alguns amigos quase todas as tardes; nesses encontros, discutíamos temas heréticos e também recitávamos e discutíamos poesia. Em algumas noites, eu marcava encontro perto dos banhos públicos para olhar e, às vezes, fazer um pouco mais com uma jovem com quem não teria permissão para casar.

Fiquei um tanto nervoso com a pressa de meu pai em concordar com o pedido do irmão. Não tive tempo para despedidas. Xadi também foi, para cuidar de mim. Três dias depois de ser tomada a decisão, estávamos a caminho do Cairo. A combinação de Ayub com Xirkuh foi fantástica. O "leão da montanha" era indomável, impulsivo, incauto e imprudente. Meu pai era astuto, mas cuidadoso. Era um grande organizador de suprimentos. Foi graças a ele que os artesãos das espadas e tendas foram informados das necessidades de Xirkuh. Garantiu que tivéssemos material para suprir nossa expedição com tudo o que fosse necessário.

Assim, começamos a percorrer o caminho que terminou nesse palácio. Naquela época, se um amigo tivesse brincado, dizendo que eu viraria sultão, meu tio e Xadi teriam rido sem parar até chegar ao Misr.

Nós jamais controlamos inteiramente os fatos que ocorrem em nossas vidas, Ibn Yakub. Alá nos manda numa direção, a coragem e a destreza de nossos comandantes podem mudar o curso de uma batalha, mas, no final, quem manda é o destino. Grande parte do que determina nosso futuro depende dos que vivem e sobrevivem ao campo de batalha, ou do lugar onde a luta vai ocorrer. Aprendi esse detalhe elementar na minha primeira campanha.

Cavalgamos durante vinte e cinco dias, seguindo o percurso do antigo rio que leva a Ácaba Eila, no mar Vermelho. Lá faríamos a parada mais longa antes de marcharmos até o Cairo.

Não é fácil, Ibn Yakub, cavalgar de Damasco ao Cairo com mais de nove mil homens e igual número de cavalos e camelos, cuidando para não ser atacado por tropas de cruzados. Poderíamos vencê-los, mas isso atrasaria nossa missão.

Os guias beduínos conheciam todos os caminhos do deserto, eram vinte e cinco homens acompanhando nosso exército. Não precisavam se guiar por mapas nem pelas estrelas no céu. Sabiam onde ficava cada oásis e conheciam até os menores poços do caminho. Sem a ajuda deles, seria impossível encher de água nossos cantis de couro de cabra. Qualquer soldado tem mais medo da sede do que do inimigo. Seria exaustivo lembrar ou descrever agora todos os detalhes, mas nessas marchas os bons comandantes descobrem muitas verdades a respeito dos homens que vão lutar sob suas ordens.

Os homens aprendem até a perceber a disposição de seus cavalos.

Foi Xadi quem me ensinou a cuidar dos cavalos. Até hoje é capaz de dizer quando um cavalo está confuso, vendo o mundo girar diante de seus olhos turvos. Imagine se acontece isso com seu cavalo quando você está no meio de uma batalha! Ah, o cavaleiro ficaria mais desorientado que o cavalo. Foi Xadi também quem me ensinou a ordenhar o doce e espumante leite das tetas duras da égua.

Durante a noite, fazíamos fogueiras e cantávamos para manter o entusiasmo. Como a maioria dos homens, eu dormia numa tenda, mas invejava os guias beduínos e os soldados subordinados a eles, pois deitavam na areia e se cobriam com mantas, bebiam vinho de tâmara em cantis de couro de camelo e contavam histórias do deserto anteriores às vitórias de nosso profeta. Dormiam sob a luz das estrelas.

Marchamos durante quinze dias até atingirmos nossa meta. Os guerrilheiros do vizir cairota Dirgam nos aguardavam em Tell Bastat, a uma distância de doze horas a cavalo de Bilbais. Meu bom tio Xirkuh só aceitava perder qualquer de seus homens se fosse por uma boa razão. Ele disse a Xawar que, como o problema era dos egípcios, Xawar e seus seguidores — os provocadores — é que deviam entrar em guerra. Ele, Xirkuh, só faria isso se fosse preciso. Xawar venceu. O califa do Cairo abandonou Dirgam. Xawar entrou na cidade passando pelo Bab alZuveila e foi reempossado como vizir. Só então as suspeitas de Nur al-Din começaram a se realizar.

Quando assumiu o poder, Xawar ficou irritado com nossa presença. Teria sido melhor se tivesse cumprido sua promessa, pois assim Nur al-Din nos mandaria voltar para Damasco. Mas, bobo e vaidoso como um pavão, Xawar achou que poderia aliar-se com os cruzados para nos vencer. Mandou um recado ao rei Amalric de Jerusalém, que se envolvera anteriormente em inúmeras intrigas com o malfadado Dirgam. Ao mesmo tempo, montou uma verdadeira pirâmide de explicações para provar que nossas forças não entrariam no Cairo. Xirkuh, que foi obrigado a sair correndo de Fustat, ficou furioso.

Sua intuição dizia que devia desafiar a lógica militar, invadir a cidade e capturar Xawar. Mas a logística dessa operação era Perigosa e sofreríamos muitas baixas.

Seus emires não quiseram enfrentar essa aventura. Desesperado, ele olhou para mim. "O que acha, Saladino?", perguntou.

Fiquei dividido entre a lealdade à família e o bom senso. Pensei muito e disse que discordava dele. Para minha surpresa, não ficou zangado, mas, no mínimo, impressionado com minha sensatez. Enquanto conversávamos, chegou um mensageiro com a notícia de que um exército cruzado sob o comando de Amalric estava chegando a Bilbais.

Como Nur al-Din, o rei cruzado percebera que, se não tomasse o Misr, nós tomaríamos, o que seria o fim do Reino de Jerusalém. De todos os nossos sultões e emires, Nur al-Din era o mais temido pelos cruzados. Tinham razão, pois ele estava determinado a expulsá-los de nossas terras. A raiva que tinha em seu coração dava a impressão de que ele considerava a ocupação como uma afronta pessoal.

Xawar não manteve sua promessa. Xirkuh ordenou que eu pegasse a metade de nossos soldados e ocupasse Bilbais. Cumpri a ordem. Xawar pediu ajuda a Amalric e Xirkuh veio me socorrer com parte de nosso exército. Durante três meses inteiros, Ibn Yakub, mantivemos os cruzados fora da cidade. Três meses em Bilbais. Não era o que se poderia chamar de uma doce vida. Depois, Nur al-Din percebeu que não poderíamos resistir por muito mais tempo, atacou os cruzados de surpresa e combateu-os do lado de fora da fortaleza de Harim, perto de Antióquia. Foi uma grande vitória. Os cruzados foram arrasados, perderam dez mil homens. Seus chefes, Balduíno de Antióquia e o Conde de Trípoli, foram presos. A notícia da vitória assustou Amalric, que se rendeu. Nós mantivemos nossa fama e o Leão da Montanha nos conduziu de volta a Damasco.

Antes, eu não tinha a menor idéia do que fosse uma guerra. Aprendi muito observando Xirkuh no comando do exército, mas estava exausto. Quando voltei, passei quase toda a primeira semana nos banhos, com meu corpo sendo massageado com óleos aromáticos. À noite, ia para a taberna desfrutar dos prazeres da poesia e do vinho. Depois, Ibn Yakub, algo estranho me aconteceu. Fiquei inquieto. A inutilidade da minha vida começou a me incomodar, e eu ansiava pelo companheirismo que desfrutara no campo de batalha. Tinha enfrentado os cruzados de frente e, de repente, voltaram à minha memória todas as histórias que ouvi quando criança, sobre a primeira invasão e ocupação de nossas terras. O destino tinha-nos estilhaçado como se fôssemos pedacinhos de vidro. Os cacos se espalharam por toda parte.

Lembrei-me da voz de Xadi sussurrando: "Filhos de Ayub, sabem o que os cruzados fizeram em Marra? Prenderam os fiéis e os puseram em panelas com água quente. Enfiaram criancinhas no espeto e as comeram assadas. São esses os animais selvagens que devoraram nosso país."

Para ser sincero, nunca acreditei muito no que Xadi dizia. Achava que fazia isso para nos assustar, assim não faltaríamos às aulas de equitação. Mas era tudo verdade.

A pura verdade, sem qualquer invenção. Li os manuscritos dos cronistas dos infiéis. Você também leu? Que bom: quando se lê, fica fácil entender por que meu peito se encheu de ódio na primeira vez que vi um cruzado, em Misr. Essa raiva não foi atenuada pelo óleo que as mulheres passaram em meu corpo, nem pelas alegrias do vinho de Taif, para não falar nas delícias do amor carnal. Eu achava que tudo isso não era nada comparado com as missões que nos aguardavam.

Antes de Nur al-Din tomar Damasco, nenhum sultão percebeu a necessidade premente de expulsar os cruzados, recuperar a Cúpula da Pedra e o templo de Salomão para o Povo do Livro. Antes de Nur al-Din, nossos emires e sultões ficavam felizes por estarem em paz com os inimigos. "Beije o braço que não puder quebrar e peça a Alá para quebrá-lo", como eles dizem. Mas nosso profeta não concordava com isso. Ele não disse: "Reze a Alá, mas veja antes se amarrou bem seu camelo?"

Satisfeito, o sultão riu muito. Claro que eu já tinha ouvido seu riso antes, mas era sempre contido, como convinha a um soberano.

Agora, ria descontroladamente. Achei que a frase do profeta tinha uma certa graça, mas Saladino ria sem parar e as lágrimas escorriam pelo rosto e pela barba. Quando se refez e enxugou as lágrimas, explicou: — Você parece surpreso com meu riso, escriba. É que pensei por que o profeta teria dito essa frase e veio uma imagem na minha cabeça dos primeiros fiéis que vieram rezar na mesquita. Confiando no poder de Alá, deixaram seus camelos do lado de fora e acabaram constatando que foram roubados. Isso não deve ter aumentado a fé deles em Alá, não, escriba? Bem, por hoje basta. Preciso discutir os novos impostos com alFadil, que acha que eles podem causar uma calamidade geral.

Pedi para ficar mais uma hora.

— Essa parte da narrativa está muito clara e definida. Temo que, se pararmos agora, talvez não voltemos a esse trecho. Sua Majestade não poderia acabar de contar a queda de Xawar e a volta para o Cairo?

Saladino suspirou e franziu o cenho. Finalmente, concordou e continuou a falar, mas não do jeito informal de sempre. Falava rápido, meus dedos precisaram correr para acompanhá-lo. As palavras do sultão costumavam ser anotadas por, no mínimo, cinco escribas, que depois comparavam os textos e faziam uma versão única. Mas, naquela hora, só havia eu para escrever tudo.

Xirkuh nunca esqueceu a traição de Xawar. Ele estava louco para se vingar e costumava dizer: "Esse Xawar, que gosta de foder com as cabras, nos usou para chegar ao poder e usou os cruzados para nos neutralizar."

Um dia, num conselho de guerra, Nur al-Din disse que estava na hora de Xirkuh e Saladino voltarem para o Misr. Foi a primeira vez que ele mencionou meu nome na presença de todos os emires. Meu peito estufou de orgulho. Meu pai também gostou, embora seu rosto, como sempre, não demonstrasse emoção. Xirkuh fez uma reverência, concordando.

E assim começou nossa grande aventura. Nossos espiões disseram que Xawar tinha feito um acordo com Amalric contra nós. Nosso mundo era assim, meu caro amigo. Os fiéis se aliavam aos infiéis contra outros fiéis. Xawar e Amalric tinham unido suas forças e aguardavam por nós à saída do Cairo. Xirkuh, que me ensinou tudo o que sei sobre guerra, era um grande comandante. Ele se recusou a lutar nos termos que propuseram. Preferiu que cruzássemos o Nilo. Marchamos para o norte do Cairo e montamos nosso acampamento perto das pirâmides de Gizé. O grande rio nos separava do inimigo.

De lá, Xirkuh mandou um recado para Xawar. Lembro-me bem dele, rugindo como um leão, lendo a mensagem para nossos soldados: "O inimigo cruzado está à nossa mercê, isolado de suas bases. Vamos unir nossas forças para acabar com ele. É a hora e pode ser que não tenhamos outra chance como esta."

Nossos homens deram gritos de apoio. Durante muito tempo, ou pelo menos foi o que pareceu, ouviam-se gritos de "Alá é grande" tão alto que as pirâmides pareciam estremecer. Todos os soldados queriam levar a mensagem para Xawar. Mas estavam todos exaustos. Quem Xirkuh iria escolher para essa missão?

Escolheu seu guarda-costas preferido, Nasir, um jovem arqueiro curdo cujos olhos espertos tinham salvado a vida de Xirkuh várias vezes.

Xawar recebeu a mensagem e mostrou-a na hora ao seu aliado, Amalric. E, para provar lealdade aos cruzados, mandou executar Nasir. A cabeça do jovem curdo, embrulhada num pano, foi devolvida a Xirkuh. Acho que nunca vi meu tio tão zangado como naquele dia. O sol estava se pondo e os soldados faziam suas abluções antes das orações vespertinas. Xirkuh interrompeu-os. Vestia só um pano amarrado na cintura e tinha nas mãos a cabeça de Nasir. Corria como um louco pelo acampamento, mostrando-a para todos. Nasir era um homem muito querido e tantas lágrimas foram derramadas naquela noite que o nível do Nilo deve ter subido.

Gritos atravessavam o acampamento. Xirkuh, ainda segurando a cabeça de Nasir, montou em seu cavalo. Os últimos raios do sol iluminavam seu cabelo enquanto ele gritava de ódio: "Juro pela cabeça deste menino que, como eu, veio das montanhas. Juro que Xawar terá a cabeça cortada. Vai morrer. Nem seus cruzados, nem seus eunucos, nem seu califa poderão salvá-lo. Juro a todos vocês, e que minha alma apodreça no inferno se não cumprir minha promessa."

O silêncio era completo, enquanto avaliávamos as conseqüências do que ele disse. Durante muito tempo, ninguém falou nada. Ficamos pensando na morte de Nasir, no destino cruel e em como estávamos longe de casa. Pensávamos em nós também. Xawar tinha declarado guerra, mas quem venceria? Enquanto pensávamos, o vento trouxe os sons dolentes de uma flauta, seguidos da voz de um beduíno cantando um lamento por Nasir. O nível do Nilo subiu mais um pouco.

Naquela noite, depois que terminamos a refeição, meu tio Xirkuh ficou andando de um lado para outro, fora de sua tenda, como um possesso. Eu estava sentado na areia, pensando em Damasco e observando as estrelas cadentes. Nunca tinha visto o céu sobre as pirâmides. Um mensageiro interrompeu meus pensamentos trazendo uma ordem de Xirkuh.

Os emires e comandantes já estavam reunidos quando cheguei. Xirkuh mostrou um lugar no chão para eu me sentar. Obedeci, sem saber o que iria acontecer. Para surpresa de todos, Xirkuh nos disse que não ia enfrentar Xawar e Amalric fora do Cairo e nem ali, onde tínhamos armado nosso acampamento. Ele planejava tomar o porto de Alexandria. Todos se surpreenderam com a audácia e, à luz de lamparinas, Xirkuh desenhou seu plano na areia, dando as instruções. Ele sabia que Amalric estava marchando para nos cercar e destruir. E sabia que tínhamos de enfrentar uma batalha antes de chegarmos a Alexandria. Recebi o comando dos soldados do centro e ordem para recuar quando o inimigo atacasse. Ao contrário de mim, Xirkuh pensou em todos os detalhes. Por isso, Ibn Yakub, até hoje acredito que ele foi nosso maior comandante militar. Não sou nada comparado com ele. Nada, nada.

Encontramos o inimigo em al-Babin. Quando Amalric e seus soldados me atacaram, fingi que estava com medo e recuei. Os cruzados desfraldaram seus estandartes e aceitaram o desafio. Começou a luta. Eles não tinham percebido que os flancos à direita e à esquerda de nosso exército tinham sido dispostos de forma a evitar que os cruzados recuassem. Quando dei o sinal, nossas forças pararam de atacar e deram a volta para enfrentar os cruzados. Pouco depois, eles perceberam como estavam expostos e isolados, mas já era tarde. Poucos guerreiros conseguiram escapar — um deles foi Amalric.

Xirkuh não deixou que comemorássemos a vitória. Naquele mesmo dia começamos a marchar para o norte, através do Misr, em direção a Alexandria. Foi a primeira vez que vi o mar. Gostaria de ficar horas ali, respirando a maresia e olhando a beleza da água. Mas Xirkuh não nos concedeu nem quinze minutos. Estávamos exaustos de corpo e alma. Ver aquela imensidão de água nos acalmou. Fiquei tranqüilo outra vez. Poucos dias depois, entramos em Alexandria e o povo da cidade nos cobriu de flores e nos saudou com alegria. Eles não apoiavam a aliança de Xawar com os cruzados.

Só me lembro do orgulho no rosto de Xirkuh, das lágrimas no meu e da alegria, a pura alegria, de sermos recebidos como salvadores. Naquele dia, Xirkuh ficou calado durante muito tempo. Ele sabia que não tínhamos muito tempo. Mas a cidade inteira tinha vindo nos receber e ele precisava fazer um discurso cheio de esperança.

Seu rosto estava cansado, ele não dormia há duas noites, tentava cochilar enquanto cavalgava, mas, quando viu o povo, despertou. Subiu num muro fora da fortaleza e a multidão calou-se. Xirkuh falou: "Vendo vocês agora, posso contar as estrelas do profeta em suas testas. O que estou fazendo, o que estamos fazendo, todo mundo é capaz de fazer. Assim que nosso povo entender essa verdade simples, os cruzados estarão perdidos. Dirijo-me a todos vocês, não só aos fiéis. Vocês dependem de mim e vou defendê-los. Mas os cruzados já estão a caminho.

Vamos comemorar, mas vamos também nos preparar."

Era assim o meu tio que tomou Alexandria. Era assim o meu tio que falou essas palavras tão simples e tão significativas. Fiquei muito emocionado. Quando ele desceu do muro, abracei-o e beijei seu rosto. Ele me disse baixinho algumas coisas muito boas de ouvir — que estava envelhecendo e logo eu teria de substituí-lo na luta.

Disse que ficou orgulhoso com minha atuação na batalha. Não sei o que mais diria, se os mensageiros não tivessem chegado com a resposta dos cruzados.

Xawar e Amalric ficaram surpresos com a rapidez com que viajamos do sul para o norte. Estavam reunindo um grande exército para nos combater e arrasar. Nessa hora, Xirkuh sentiu falta de meu pai, precisava de alguém para planejar a defesa da cidade e tomar providências para resistir ao cerco dos cruzados, garantir que os alimentos ficassem seguros e fossem distribuídos para todos, assegurar que os atiradores de tochas estivessem no porto para impedir que as embarcações dos cruzados desembarcassem seus cavaleiros pelas nossas costas. Na ausência de meu pai, todas essas tarefas foram confiadas a mim.

Como você sabe, Ibn Yakub, esse cerco está contado nos nossos livros de História. Não tenho nada mais a acrescentar, a não ser confessar a você que estava preparado para morrer. O medo, que assola todos nós, tinha sumido completamente. Estávamos cercados pelas embarcações dos cruzados e os cavaleiros deles estavam do outro lado dos muros da cidade com suas catapultas atirando tochas e pedras. Eu queria ter uma morte digna, assim como nosso exército. Não queria que fôssemos derrotados pela fome ou por doenças, que se alastravam porque a cidade estava paralisada. Mais uma vez, Xirkuh recusava-se a aceitar a rendição ou a luta a qualquer preço, pois, como tínhamos muito menos soldados que o inimigo, seríamos massacrados.

A coragem de Xirkuh era incomparável. Ele me pôs no comando da cidade, escolheu duzentos de nossos melhores soldados e saiu protegido pela escuridão da noite, galopando a toda velocidade por entre as surpresas colunas inimigas, rumo ao Cairo. Xadi o acompanhou e costumava contar que, quando Xirkuh passava pelas aldeias, os camponeses se aproximavam e gostavam porque ele falava uma linguagem que entendiam — meu tio comparou Xawar e Amalric a cocô de camelo e cavalo, e os camponeses riram muito.

Foi assim que convenceu os camponeses mais jovens a entrar para o exército.

Os cruzados, preocupados com essa manobra, concordaram em suspender o cerco e saímos de Alexandria sem perder um só soldado. Os cruzados recuaram e Xirkuh, vendo que estávamos em minoria, levou-nos de volta para Damasco. No relato que fez para Nur al-Din, na minha presença, previu que dentro de um ano Xawar e Amalric estariam engalfinhados numa luta. Esse seria então o melhor momento para voltarmos a atacar.

E assim foi, exatamente como ele disse. Xawar não quis pagar a Amalric a recompensa que prometera e os cruzados resolveram dar-lhe uma lição.

Um dia, chegou um mensageiro do Cairo. Era um espião que Xirkuh tinha introduzido entre os soldados de Xawar. Ele esteve presente nas negociações entre Amalric e o filho de Xawar. Os cruzados tinham pedido Bilbais em troca do apoio que dariam a Xawar contra nós. O filho de Xawar, irritado com esse pedido ultrajante, gritou: "Você acha que Bilbais é uma fatia de queijo para comer?" E Amalric respondeu: "Acho, e o Cairo é a manteiga."

Depois se viu que essas eram mais do que simples palavras. Amalric tomou Bilbais, matou e escravizou seus habitantes e queimou tudo. Continuou marchando para tomar o Cairo. Para retardar seus ex-amigos, Xawar queimou toda a cidade antiga e os cairotas fugiram para o lugar onde estamos hoje, que era o centro novo. O incêndio durou um mês inteiro. Xawar tentou outra vez acalmar Amalric e ofereceu ouro e carta branca no resto do país, mas sua proposta não foi aceita.

Nessa altura, o califa al-Adid mandou um mensageiro com um recado para nosso sultão. Nur al-Din chamou-me e contou o que estava ocorrendo. Mandou que eu fosse para Homs, para trazer Xirkuh. Quando chegamos, Nur al-Din ordenou que voltássemos para o Cairo. Fiquei sem saber o que fazer, pois ainda se via o sofrimento no rosto dos habitantes de Alexandria. Eu não queria enfrentar mais um cerco. Xirkuh chamou-me num canto. "Você é o filho de meu irmão ou de um cachorro? Acha que gosto de sofrimento? Desta vez vamos tomar o Cairo. Preciso que você esteja ao meu lado. Vá preparar seus cavalos."

Fiz o que ele mandou. Quando soube de nossa partida, Amalric decidiu recuar. Já percebera que os cairotas iriam combatê-lo, apesar das manobras de Xawar. Era o inverno de 1169 quando entramos na cidade. Como ocorrera em Alexandria no ano anterior, fomos bem recebidos e até os cavalos que meu tio e eu montávamos ao entrar no Cairo tiveram as melhores rações. Encontramos Xawar exatamente nesta sala, Ibn Yakub. Ele se levantou quando Xirkuh e eu entramos e fez de conta que estava satisfeito em nos receber, mas seus olhos não fitavam meu tio. Ele se ajoelhou e beijou os pés de Xirkuh. Perguntamos se o califa estava nos aguardando e Xawar disse que sim. "Então leve-nos até ele, seu fodedor de cabra", disse Xirkuh com um riso cruel.

Fomos levados até o palácio do califa, passando por corredores de teto arredondado e por uma série infinita de salas decoradas, todas vazias. Pássaros coloridos, trazidos de Ifriquia, faziam uma grande algazarra. Passamos por um jardim com filhotes de leões domesticados, um urso e duas panteras negras amarrados numa árvore.

Xirkuh não se impressionou com tudo isso, embora fosse difícil não ficar surpreso. Tentei imitar meu tio e fazer de conta que também não me impressionava. Depois entramos numa grande sala de teto abaulado e dividida por uma grossa cortina de seda vermelho-escura, na qual estavam costurados círculos de ouro e pedras preciosas do tamanho de ovos.

Xawar fez uma reverência na frente da cortina e colocou sua espada no chão. Ficamos parados, a cortina foi subindo devagar e al-Adid apareceu.

Pensei: então é essa figura patética e assustada, de no máximo dezoito anos, com olheiras mostrando sinais de excessos, cercado de eunucos e exibindo muita riqueza — é esse o califa fatímido. Ele pediu que Xawar saísse da sala, e o vizir derrotado sumiu como um animal fedorento.

Xirkuh não perdeu tempo: "Você pediu para salvarmos o Cairo. Estamos aqui. E, antes de mais nada, peço a cabeça de Xawar. Foi ele quem trouxe morte e destruição para nosso povo."

O califa fatímido concordou. Falava com uma voz estranha e ofegante, como se fosse um castrado — como, aliás, era a maioria dos homens à sua volta.

"Queremos que sejam bem-vindos ao Cairo. Temos muito prazer em nomeá-lo nosso vizir."

Xirkuh fez uma reverência para mostrar que aceitava e saímos do palácio. No dia seguinte, de posse de uma permissão escrita do califa, eu mesmo separei a cabeça de Xawar dos ombros, jogando-a aos pés de Xirkuh. Meu coração parecia tremer, mas minha mão foi firme. "Agora nosso Nasir está vingado", disse ele, com a voz suavizada pela lembrança de seu arqueiro preferido.

Dois meses depois desse dia, os céus escureceram. Nossa família foi atingida por uma terrível tragédia: meu tio Xirkuh morreu. Não fui o único a chorar quando a notícia chegou às fileiras de nosso exército. Xirkuh foi um comandante muito querido e até os emires de Damasco, que riam escondido do jeito como ele falava a língua do Corão, ficaram muito tristes. Quem iria nos liderar, agora que Alá tinha levado nosso leão da montanha?

Estamos sempre preparados para morrer a qualquer momento, mas a morte de Xirkuh não foi justa. A gula foi sua perdição. Tínhamos sido convidados para um banquete em que os convivas se serviram durante quase três horas. Carneiros inteiros assados, cabras no espeto, codornas, perdizes e todo o tipo de acepipes foram colocados à nossa frente. Xirkuh adorava comer. Mesmo quando era bem jovem, minha avó precisava tirá-lo da mesa à força. Naquele banquete, fiquei prestando atenção nele e lembrando velhas histórias. Ele costumava contar vantagem, dizendo que podia comer e beber mais do que qualquer homem de seu exército. Naquele dia, ele não conseguia parar de comer. Era uma cena triste e desagradável. Quando Xadi tentou avisá-lo baixinho que estava exagerando, meu tio Xirkuh não ligou. Depois, ficou entalado e começou a sufocar. Xadi deu um tapa nas costas dele e fez com que se levantasse, mas não adiantou. Meu tio desmaiou e morreu na nossa frente.

Xadi e eu nos abraçamos e choramos. Passamos a noite velando o corpo depois de ser banhado, envolto em panos e colocado sobre uma cama simples. Os soldados de Xirkuh, muitos dos quais veteranos que tinham lutado com ele quando eu ainda era criança, chegaram em pequenos grupos e se despediram do comandante. Era estranho ver aqueles soldados duros, para quem a morte fazia parte do trabalho cotidiano, chorando como crianças.

Depois da meia-noite, Xadi e eu ficamos sozinhos. Ele lembrou um fato que ocorrera há muito tempo, bem antes de eu ter nascido, e começou a chorar outra vez. Eu recordava de Xirkuh, de seus olhos brilhantes e alegres quando cantava para seus filhos e sobrinhos quase adultos. Uma vez, quando descobriu que eu tinha ido secretamente a uma taberna, chamou-me em sua sala. Ele estava sério, e eu, apavorado. Ele era bravo. "Você andou bebendo?", perguntou. Sacudi a cabeça, negando.

"Está mentindo, menino!" Concordei. Ele começou a rir e recitou os versos de Ibn Sina, que me obrigou a repetir com ele: O vinho é um inimigo terrível e um amigo prudente.

Em pequenas doses é um antídoto; muito, é veneno de cobra.

Em excesso, causa muito dano; pouco, é de bom proveito.

Ah, mas ele mesmo não aprendeu essa lição. A morte foi o preço que pagou por abusar da comida e do vinho. Desde o dia em que ele morreu na minha frente, não gosto de ver muita comida na mesa. Agora você entende por que insisto em manter uma dieta equilibrada, Ibn Yakub? No outro dia, quando repartimos um pão, senti que você não tinha gostado da refeição. Vamos conversar sobre isso outro dia. Agora, continuemos a escrever.

No dia seguinte, depois do enterro de Xirkuh, os emires de Damasco ficaram longe de mim. Formavam pequenos grupos e conversavam baixinho. Só bem mais tarde fui entender por que estavam assim.

Os conselheiros do califa fatímido me consideravam um jovem inexperiente e fraco — alguém que podia ser facilmente manipulado pela corte. Fui convidado a comparecer ao palácio e recebi o título de al-Malik al-Nasir — soberano vitorioso. Eles devem ter rido muito, pensando que tinham encontrado uma pessoa fácil de dominar.

Eu tinha consciência da honraria que estavam me concedendo, mas me senti perdido sem Xirkuh. Era como se eu fosse um rio cujo curso tivesse sido alterado e estivesse meio desorientado vendo a nova paisagem.

Precisava conversar com Xirkuh ou, na falta dele, com meu pai, que estava em Damasco com Nur al-Din. Quando pensei no nosso grande sultão, imaginei o que ele faria com minha promoção. Seus orgulhosos emires, homens de nobre estirpe, ficaram muito perturbados porque o novo vizir do Misr era um humilde curdo vindo das montanhas, que, na opinião deles, nem sabia falar direito a língua divina. Resolvi mandar uma mensagem para Nur al-Din insistindo que meu comandante era ele, e não o califa fatímido. Nur al-Din era a última pessoa no mundo com quem eu gostaria de competir.

O turbante branco de vizir, bordado a ouro, foi colocado na minha cabeça, recebi uma espada incrustada de jóias e ganhei um lindo corcel com sela e rédeas enfeitadas com pérolas e ouro. Depois marchei à frente do desfile protocolar, acompanhado de muita música e cantos. Viemos para este palácio e esta sala aqui, onde estamos sentados agora. É um bom lugar e esta é uma boa hora para terminarmos nosso trabalho por hoje, Ibn Yakub.

Foi bom você ter insistido para eu terminar esta história, mas vejo que seus dedos estão rígidos. Esta noite, sua esposa vai precisar passar óleo em suas mãos e meu fiel al-Fadil deve estar bem zangado comigo. Nunca o deixei esperando tanto tempo.


10

Às escondidas, encontro Halima para ouvir sua história.
Ela conta a vida no harém e fala da inteligência da sultana Jamila

No dia seguinte, veio um mensageiro do palácio. Trazia uma grande cesta de frutas, mais outros agrados para minha mulher e minha filha, e um recado para mim. O sultão e o cádi tinham saído da cidade por uns dias e eu podia descansar de minhas tarefas. Mas, de certa forma, me senti excluído. Achava que deviam ter-me perguntado se queria acompanhá-los. Aonde foram e por quê? Talvez o cádi estivesse me castigando por ficar tanto tempo com Saladino no dia anterior. Mas como eu poderia escrever um relato acurado sobre o sultão se era excluído assim, impedido de acompanhar seu trabalho cotidiano?

Depois que o mensageiro partiu, minha casa ficou bastante alegre. Havia várias semanas eu mal via Mariam, que estava zangada porque cheguei tarde na sua festa de dez anos, algumas semanas antes. Até Ibn Maimun me criticou. Raquel, claro, estava feliz com meu descanso temporário. Nossas relações tinham voltado ao normal, embora ela ainda se ressentisse do tempo que eu passava no palácio. Mas não demonstrava qualquer desagrado ao aceitar os presentes-surpresa que chegavam sempre à nossa casa. Os presentes não vinham do palácio, mas de comerciantes e cortesãos que achavam que eu tinha muita influência sobre o sultão.

Desde que comecei a trabalhar como escriba particular de Saladino, não gastamos um só dinar em comida ou óleo para lamparinas. E ainda havia as sedas e os cetins que costumavam ser caros demais para pessoas como nós. Raquel e Mariam agora seguiam a moda da nobreza na corte. Uma vez, quando fiz as contas de tudo isso para Raquel, ela riu sem qualquer pudor e disse: — Claro que minha tristeza por ficarmos longe diminui quando recebo todos esses presentes, mas ainda acho que, se colocasse você de um lado da balança do mercado e todos os presentes do outro, você ainda pesaria mais.

Naquela tarde, quando nós três estávamos passeando, vendo as ofertas das barracas de rua, uma mulher desconhecida entregou um bilhete e sumiu rapidamente, antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa. O recado não estava assinado e pedia para eu estar na biblioteca do palácio no dia seguinte. Raquel e eu achamos que era um bilhete de Xadi, por recomendação do sultão, mas me pareceu estranho o tipo de mensageiro. Alguma coisa me dizia que a mensagem não era de Xadi nem do sultão.

No dia seguinte, ao entrar na biblioteca, um funcionário informou que Saladino e al-Fadil ainda não tinham voltado do campo. Quando sentei à espera da pessoa que tinha mandado o bilhete, ouvi um barulhinho atrás de mim e, ao me virar, vi as estantes de madeira se movendo. Meio nervoso, dei um passo à frente e vi uma escada no piso e uma pessoa subindo devagar por ela. Era Halima. Ela riu da minha surpresa. Ilmas, o eunuco que foi executado, tinha contado a ela sobre essa passagem secreta ligando o harém à biblioteca. Fora construída pelo avô de al-Adid, um califa que permitia que suas esposas e concubinas freqüentassem a biblioteca. Depois o palácio foi entregue ao vizir e a passagem deixou de ser usada.

Era perigoso conversar na biblioteca. Halima queria que nos encontrássemos mais tarde na casa de uma amiga, perto dos banhos públicos. A mesma mulher que me entregara o bilhete se encontraria comigo dentro de algumas horas e me levaria até Halima.

Eu estava me metendo numa situação perigosa. Se eu a encontrasse e não contasse para o sultão, meu pescoço poderia acabar no fio de uma espada. Se contasse para Saladino, será que a vida de Halima valeria alguma coisa? Talvez fosse melhor não aceitar o convite. Ao entrar no pátio do palácio, vi Xadi, que me deu um abraço caloroso. Fazia algum tempo que não o encontrava e ele também estava aborrecido porque Saladino viajara sozinho, mas me disse que o sultão devia estar de volta ao palácio naquela noite.

Sentamos ao sol e conversamos. Era como se fôssemos grandes amigos há muito tempo. Ele perguntou sobre o Livro de Saladino e contei em que ponto estava a história.

Xadi confirmou o relato de Saladino sobre a morte de Xirkuh. Ao lembrar disso, o velho ficou triste. Resolvi desafiar meu destino e contei para Xadi o encontro com Halima. Para minha surpresa, ele riu.

— Cuidado com aquela potranca, Ibn Yakub. Cuidado, ela é perigosa. Antes que você perceba, estará montado nela, que vai galopar pelo deserto com você amarrado nas costas. Tem sangue curdo e essas mulheres da montanha, vou lhe dizer, têm gênio forte. Não sei o que vai contar, mas, seja o que for, você pode não resistir.

Quando uma mulher como ela resolve fazer uma coisa, não deixa que homem algum a impeça.

Protestei, alegando minha inocência e a de Halima.

— Ela só quer contar a história dela. Não é meu trabalho anotar?

O olhar incrédulo que fez mostrou que não tinha muita certeza. — Vá ao encontro e não tema o sultão. Se ele descobrir, diga que me contou e pensou que eu tivesse comunicado. Essas coisas não incomodam Saladino. Só se outras pessoas do harém descobrirem seu segredo é que Halima vai correr perigo. E você, meu amigo, tome cuidado. Ela é muito bonita e está carregando um filho do sultão.

A notícia me deixou aparvalhado. Senti uma onda de ciúme e raiva. Por que um soberano, mesmo sendo bondoso, tem o direito de se apropriar do corpo de qualquer mulher que, de repente, o atraia? Percebi que Xadi observava minha mudança de expressão e balançou a cabeça com um sorriso compreensivo e solidário. Retomei a compostura e lastimei ter reagido de forma tão irracional à notícia. Quando passei pelos portões do palácio, pensei ouvir Xadi sussurrando no meu ouvido: Cuidado, muito cuidado, Ibn Yakub. Mas a voz era imaginação.

Ibn Maimun garante que quando uma pessoa sente emoções muito fortes, pensa que está vendo ou ouvindo coisas ligadas a essas emoções. Uma vez ele me falou de um homem cujo cavalo preferido tinha sido morto como parte da vingança numa velha disputa entre famílias. Ele costumava ver o cavalo de repente, nos lugares mais inesperados. O mesmo ocorre com o objeto de afeto de alguém, mesmo se esse amor nunca foi declarado. De repente, fiquei sem vontade de encontrar Halima. Queria que estivesse morta. Esse sentimento durou poucos minutos, e enquanto aguardava no lugar marcado perto dos banhos públicos, bem atrás da rua dos Encadernadores de Livros, tive vergonha de mim mesmo.

A mensageira me viu de longe e fez sinal para segui-la. Ela andava rápido e, com medo de perdê-la de vista, não prestei atenção no trajeto. Quando entramos no pátio de uma casa modesta, não tinha a menor idéia de que bairro era aquele. A casa estava vazia. Ela me levou para uma salinha e, vendo que estava suando e ofegante, um criado me trouxe uma moringa de água. Não prestei muita atenção nele até ouvir sua voz estranha, fazendo-me pensar num eunuco.

— Quer descansar um pouco? — perguntou.

— Não, não, já estou ótimo. Esperei. O criado continuou a me olhar de um jeito familiar. O ar atrevido dele me incomodava, mas consegui dar um sorriso amarelo. Ele começou a rir, tirou o pano que tinha na cabeça e apareceu o cabelo ruivo de Halima. Estava disfarçada de homem.

— Ibn Yakub, nem você, que ficou me olhando durante tanto tempo naquele dia em que contei minha história no palácio, nem você me reconheceu. Fico satisfeita.

Ela demonstrou sua alegria batendo palmas como uma criança. Depois, deu um riso rouco, cujo som me surpreendeu como se fosse uma cascata e meu coração bateu mais forte. Depois dessa cena, gostei quando ela desapareceu por alguns minutos. Eu precisava de tempo para me recuperar. Ao voltar, usava braceletes de ouro e vestia uma túnica de brocado azul e verde com mangas compridas, que me lembrou mais uma vez as lendárias princesas caucasianas. Toda e qualquer irritação que eu pudesse ter sentido antes sumira. Não se podia ficar zangado diante de um tesouro tão exótico.

— Você virou idiota, escriba? Sorri e neguei, sacudindo a cabeça.

— Por que acha que pedi para se encontrar comigo?

— Pensei que quisesse me informar de alguma coisa. Pode ver que eu trouxe meus apetrechos para anotar tudo.

Ela ignorou minha prova de subserviência.

— Por que não ficou até o final do teatro-de-sombras? Ilmas me disse que você saiu antes da última cena.

Suspirei. — A humilhação pública do nosso sultão não agradou a meus olhos e ouvidos. Aprendi a gostar dele.

De repente, o rosto de Halima mudou. Seus olhos desfecharam faíscas de ódio que me atingiram em cheio. Emudeci. Ela bebeu um pouco de água e contou trinta riscas nos dedos das duas mãos. Com isso, a suavidade voltou ao seu rosto. Ficou balançando o corpo de um lado para o outro.

— Sabe tocar alaúde, escriba? Neguei.

— Então Mansura vai tocar para nós. Quando alguém está triste, o som do alaúde é como o ruído de água no deserto para um viajante sedento.

A criada começou a dedilhar um alaúde e uma paz estranha e mágica invadiu a sala. Halima começou a falar. Devagar, minha pena se moveu no mesmo ritmo de suas palavras.

Eu estava tão extasiado que quase não me dei conta do que ela dizia. Só quando voltei para casa foi que percebi a importância do que me falou.

Nas primeiras noites, eu não conseguia dormir. Saladino entrava em meu quarto e me possuía com uma paixão tão intensa que me excitava, embora eu não sentisse nada por ele. Depois que ele terminava, eu deixava seu corpo adormecido na cama e me lavava. Não queria ter um filho dele.

Vou lhe dizer a verdade. Após as primeiras noites, eu costumava fechar os olhos quando Saladino me montava, imaginando que era Messud. Você parece assustado, escriba.

Será que acha que minha falta de pudor pode lhe custar a vida? Não se preocupe. Meus lábios jamais falarão de nosso encontro, mas quero que saiba de tudo. Ou pensa que fiquei tão amargurada com seu sultão a ponto de pensar em me vingar? Por que faria isso? Ele salvou minha vida e se tornou meu senhor e meu amo. Sou grata por isso, mas na cama ele é um homem como outro qualquer.

O único homem que amei de verdade foi Messud. Talvez seja até bom que ele tenha morrido. Se estivesse aqui, eu arriscaria nossas vidas para ficar em seus braços mais uma vez. Cheguei a querer que me engravidasse e eu faria de conta que o filho era de Saladino. Será que o ouro cura a tristeza, escriba? Penso em Messud o tempo todo. Fico me torturando imaginando-o no paraíso, nos braços de uma huri, criatura muito mais atraente que eu. Continuo com ele no coração e tenho certeza de que não nos separamos. Ele sempre perturba meu sono. Seus olhos alegres, sua calma, sua voz tranqüila, o toque de suas mãos em meu corpo, tudo isso surge em meus sonhos e sei que não vai me largar.

Nas primeiras semanas no harém, quando era tarde da noite, eu ouvia as outras mulheres conversando em voz alta e rápida, contando suas vidas, falando do futuro e de mim. Elas riam de mim. Acho que pensavam que eu amava o sultão e que, quando ele passasse a pastar em outros campos, eu ficaria magoada e sozinha, tentando curar meu coração ferido. Ah, como estavam erradas, não sabiam nada a meu respeito naquela época. Isso foi há apenas seis meses, Ibn Yakub, mas parece uma eternidade.

As primeiras semanas foram ótimas, apesar dos problemas de ser a mais nova concubina do harém. A primeira esposa de Saladino, Najma, era uma mulher nobre, mas feia. É filha de Nur al-Din e ele me disse que a achava repelente, mas isso não o impediu de plantar sua semente nela. O casamento, como você pode imaginar, não devia ser muito agradável e tinha uma única finalidade, que foi cumprida depois que a mulher deu à luz três filhos, um atrás do outro. Ela também sentiu que tinha cumprido seu dever e nunca mais saiu de Damasco.

As visitas de Saladino, graças a Alá, tornaram-se cada vez mais esparsas e, quando fiquei com um filho no ventre, ele deixou de aparecer. Nessa época, todos no harém passaram a me tratar melhor. Fiquei surpresa na primeira vez que entrei lá e vi que não havia muitas mulheres. Além de mim, havia mais oitenta concubinas e duas esposas, mas não se fazia muita distinção entre nós quanto a desfrutar dos privilégios da corte — exceto pelo fato de termos seis servos para atender às concubinas, enquanto as esposas tinham oito ou nove.

Percebi logo na primeira semana que havia uma mulher que dominava o harém. Era Jamila, uma tocadora de alaúde que nasceu na Arábia, de berço nobre. O irmão do sultão mandou-a de presente e Saladino ficou encantado com sua beleza e seus talentos. Como você jamais vai conhecê-la, Ibn Yakub, vou descrevêla. Tem estatura mediana, não é tão alta quanto eu, a pele é escura, o cabelo é negro, e seus olhos têm cores que variam do cinza ao verde, dependendo do ângulo. Quanto ao corpo, como explicar? Vou constrangê-lo mais uma vez. Vou parar. Se pensa que Mansura parece mágica tocando o alaúde, devia ouvir Jamila.

Nas mãos dela, o alaúde fala. Quando ele ri, nós também rimos. Quando toca triste, nós choramos. Ela faz com que o instrumento seja quase humano. Jamila nos transmite vida. O pai dela era um sultão culto, que adorava a filha e insistiu para que fosse educada, exatamente como os irmãos. Queria muito que fosse instruída e tudo o que aprendeu ela tenta nos ensinar.

Fiquei entusiasmada quando ela começou a falar sobre nós, mulheres, de um jeito muito ousado. Não como mulheres do harém, mas como mulheres. O pai tinha dado a Jamila um manuscrito do andaluz Ibn Rushd, que ela citava num tom respeitoso. Jamila contou que Ibn Rushd tinha criticado nossos governos por não conseguirem descobrir e utilizar o talento das mulheres. Em vez disso, usavam as mulheres apenas para procriar, cuidar dos filhos e amamentar. Eu nunca tinha ouvido alguém falar algo assim e, a julgar pela expressão de seu rosto, você também não, meu caro escriba.

Jamila contou-nos que no Cairo, há muitos anos, um dos califas fatímidos, AlHakim, um dia chegou à conclusão de que as mulheres eram a causa de todos os males.

Imediatamente fez um decreto proibindo-as de andar nas ruas e, para garantir que não saíssem de casa, proibiu os sapateiros de fazer calçados para elas. O califa ordenou que todas as esposas e concubinas do palácio fossem colocadas em cestos e jogadas no rio. Jamila disse que AlHakim enlouquecera, mas era interessante que sua loucura fosse apenas em relação às mulheres.

Jamila e eu ficamos muito amigas. Contávamos tudo uma para a outra. Meus segredos mais íntimos eram dela e vice-versa. Ela já deu dois filhos a Saladino, que agora quase não a procura. Como aconteceu comigo, ela no começo ficou preocupada, mas agora lastima quando ele aparece. Não é mais a mesma coisa. Como nossas emoções mudam! Fico pensando o que seria de mim se não me lembrasse tanto de Messud. Jamila acha que Messud é uma fantasia que alimento para não enlouquecer. Sei que o passado acaba sumindo no coração, mas isso ainda não me aconteceu. Enquanto isso, Jamila deixa que eu sonhe. Às vezes ela me estimula a pensar em Messud, pois nunca teve um homem assim. Ela diz também para eu deixar de raspar os pêlos nas minhas partes pudendas.

Além dela, o único amigo que eu tinha era Ilmas, o eunuco. Ele estava no harém há muito tempo, antes de Saladino vir para cá. E contava cada história, Ibn Yakub.

Que Alá me proteja, não sou capaz de repeti-las nem para você. Talvez se você fosse um eunuco, mas isso é bobagem. Esqueça. Não tenho o direito de falar assim.

Ilmas era um poeta. Ainda não entendo que diabo aconteceu com ele. Por que escreveu aquela peça do teatro-de-sombras? Foi morto por contar a verdade, pois na última cena, que você foi covarde demais para assistir — ou foi seu sexto sentido que avisou? -, Ilmas descrevia o amor de uma mulher do harém por outra. O amor de uma concubina por uma de suas criadas. Acho que ele estava pensando em Mansura, porque o alaúde aparece com destaque na peça. Certamente, não estava se referindo a mim. Eu ainda não fui por esse caminho mas, se fosse, seria confortada pelo abraço afetuoso de Jamila. O sinal para mostrar a ela que estava disposta a dar esse passo seria não cortar mais os pêlos de meu corpo. Estou quase tomando essa decisão, os dias de tristeza estão perto de acabar.

Deixe que eu olhe seu rosto. Será que ele não está gostando do que ouve? Claro que um homem do mundo como você, Ibn Yakub, não vai se chocar com essas coisas.

Cairo e Damasco, para não falar em Bagdá, estão cheios de bordéis masculinos onde jovens imberbes satisfazem todos os desejos imagináveis dos que os visitam.

Isso é aceito, mas se alguém falar de uma mulher sentindo o perfume de almíscar do corpo de outra, é como se o céu fosse desabar.

Acho melhor parar. Parece que você está prestes a sufocar de raiva e seu amigo Ibn Maimun jamais me perdoaria se você adoecesse por minha causa. Você me desapontou, escriba. Acho que não vou mais chamá-lo.

Antes que eu pudesse responder, Mansura apareceu na porta e me levou para o pátio. Olhei para trás, tentando ver Halima pela última vez, mas não havia sinal dela.

Minha última lembrança ficou sendo um olhar estranho, obstinado, meio insolente, que foi sua despedida.

Nervoso e desorientado, cheguei à rua.


11

Xadi e a história do xeque cego.
Saladino conta como venceu seus inimigos

Fiquei completamente confuso por causa do meu encontro secreto com Halima. Estava ofendido — embora, ao recordar tudo o que ela disse, não encontrasse nada que me perturbasse. Acho que fiquei impressionado com a conclusão dela de que não se interessava mais por nenhum homem, exceto Messud. Minha reação não tinha nada de pessoal; eu estava chocado em nome de todos os homens ou, pelo menos, foi a explicação que me consolou.

Não foi tão simples convencer Xadi. Ansioso, ele estava à minha espera no palácio. O sultão tinha voltado, mas só poderia me receber no fim da tarde. Xadi queria saber como tinha sido meu encontro com Halima e fui obrigado a responder. Ele não ficou nem um pouco perturbado.

— Eu mataria você de vergonha se contasse certas coisas que aconteceram no harém — disse ele, rindo. — Eu também fiquei envergonhado, mas já vivi o bastante para saber que, de todos os seres criados por Alá, nós, humanos, somos os mais imprevisíveis. Não faça seu coração sofrer por causa de mulheres, Ibn Yakub. Deixe Jamila e Halima serem felizes. Jamais serão tão livres quanto você e eu.

Fiquei surpreso com a despreocupação de Xadi, e também aliviado. Tinha contado tudo para ele e, se o sultão descobrisse nosso segredo, nós dois seríamos culpados. O medo, que não me deixara dormir a noite inteira, sumiu e voltei a ficar contente. Vi que Xadi estava rindo e, quando perguntei o motivo, ele deu uma cusparada antes de explicar.

Tem um xeque cego que costuma ficar falando bobagens pouco depois do Bab alZuveila. É do tipo que vive da religião. Usa a cegueira como desculpa para atingir os homens com palavras doces, recitando o hadith sem parar. As pessoas lhe dão comida, roupas, dinheiro e, às vezes, até jóias. Seis meses atrás, um comerciante deu uma linda manta para ele se aquecer à noite. O xeque adorava a manta e enfiou uma argola fina na ponta dela, que puxava com força para mostrar aos discípulos como a lã era de qualidade. Uma noite, pouco depois de terminar suas orações, um homem entrou na casa dele. O xeque estava sentado num tapete no chão, desfiando o masbahah e fazendo invocações, preces e todas as coisas que esses charlatães dizem para enganar os pobres.

O homem chegou, rezou um pouco e colocou um pequeno pacote aos pés do pregador. Satisfeito com o presente, ele perguntou o nome do forasteiro, mas não teve resposta.

Os dois rezaram em silêncio durante algum tempo. Depois, o forasteiro falou: "Diga-me uma coisa, grande mestre. O senhor é cego mesmo?" O xeque balançou a cabeça, concordando. "Completamente cego?" O xeque concordou com mais ênfase, já um pouco irritado. "Então, se eu tirar a manta dos seus ombros, jamais saberá quem foi?", perguntou o homem, com voz suave e tranqüila.

O xeque achou a idéia engraçada e sorriu, enquanto o esperto ladrãozinho pegou a manta e foi embora calmamente. O santo homem saiu correndo atrás dele, bengala na mão. A máscara de contrição caiu quando ele começou a xingar o ladrão aos berros. Filho da puta, irmão de puta, filho de uma camela puta. Disse outras coisas piores, que não tenho coragem de repetir para você, Ibn Yakub. Depois, descobriram que o pacote que o ladrão trouxera para o xeque tinha três camadas de excrementos de pombo cobertos com palha!

Xadi riu de novo. Sua risada era contagiante e dei uma risadinha. Mas ele deve ter percebido que não achei tanta graça na história. Isso o incomodou e, para mostrar desaprovação, deu uma cusparada que traçou uma elegante curva por cima da minha cabeça. Depois ficou me olhando e piscou. Ri. A paz voltou.

Foi só no final da tarde que o sultão dignou-se a tomar conhecimento da minha insignificante presença. Estava de bom humor, e, quando perguntei se a viagem com o cádi tinha sido boa, ele suspirou. — Não é obrigação minha convencer o povo a pagar impostos ao governo, mas al-Fadil insistiu que eu devia ir ao norte. Como sempre, ele estava certo. Minha presença surtiu o efeito desejado. Em dois dias recolhemos os impostos que não eram pagos há dois anos. Então vamos continuar a nossa história. Onde havíamos parado?

Lembrei que foi no ponto em que ele se tornara vizir do Misr.

Eu estava preocupado, temendo que o sultão Nur al-Din sofresse influência de certos emires de Damasco. Eles mal conseguiam disfarçar a inveja e o desprezo que sentiam por mim. Mandei um bilhete para Nur al-Din e aguardei ansioso a resposta, que chegou uma semana depois. A forma de tratamento que ele usou mostrava que estava inquieto com minha promoção: continuava me chamando de emir Saladino, Chefe do Exército. Mandei logo outro bilhete enfatizando que ele, Nur al-Din, era meu sultão e que eu só obedecia às suas ordens. E solicitei autorização para que meu pai, Ayub, e toda a nossa família viessem morar comigo no Cairo. Sem eles, eu me sentia sozinho e abandonado. Depois de vários meses, consegui ser atendido. Fazia quase um ano que não via meus pais e ficamos muito felizes por nos reunirmos, graças a Alá.

Disse a meu pai que, se quisesse assumir o cargo de vizir, eu transferiria imediatamente o cargo e o poder para ele. Ele não aceitou, insistindo que Alá me escolhera e seria errado alterar uma decisão dele. Mas consegui convencê-lo a ser tesoureiro, um cargo importante. Sem o controle do tesouro, era impossível exercer um verdadeiro poder.

O califa fatímido e seus cortesãos ficaram irritados. Eles tinham me escolhido vizir porque achavam que eu era ineficiente e apagado. Mas agora viam que o poder estava escapando de suas mãos. O califa al-Adid era um homem fraco, manipulado por eunucos. Uma dessas criaturas, um núbio chamado Nejeh, de pele escura como seu coração, era o grande favorito de al-Adid. Nejeh fornecia ao amo ópio e histórias mentirosas.

O califa ambicionava ser vizir, mas achou que seria mais fácil ganhar poder na corte por meu intermédio. Uma tarde, os espiões infiltrados por al-Fadil contaram que o eunuco núbio Nejeh enviara um mensageiro secreto aos cruzados. O califa pedia que simulassem um ataque ao Cairo. Ele sabia que eu iria expulsar os invasores e, quando eu estivesse completamente aturdido na luta, Nejeh e seus núbios nos apunhalariam pelas costas.

A conselho de alFadil, resolvi que Nejeh deveria ser morto o mais rápido possível. Era difícil fazer isso quando ele estivesse no palácio, pois provocaria uma grande guerra. É preciso considerar, Ibn Yakub, que milhares de núbios seguiam Nejeh como se fosse um deus. Mas descobrimos que ele tinha um amante que costumava encontrar numa casa no campo, longe do palácio. Esperamos a hora certa e então Nejeh e seu amante foram mandados para o inferno. Meu pai tinha me ensinado que dois exércitos, com dois comandos diferentes, jamais poderiam coexistir por muito tempo. Mais cedo ou mais tarde, por Alá, um deles vencerá. E, durante aqueles meses, o que ocorria no Cairo era uma luta pelo poder. Eu disse ao califa fatímido que os soldados dele haviam feito contato com os inimigos de nosso profeta.

Disse que o eunuco Nejeh fora preso e executado. E que meu sultão Nur al-Din queria que as orações da sexta-feira em al-Azar fossem em nome do único e verdadeiro califa, o que ficava em Bagdá.

Ao ouvir isso, aquele menino patético começou a tremer. Ficou mudo. O medo tinha paralisado sua língua. Não conseguiu dizer nada. Eu não contei que Nur al-Din queria que me livrasse dele logo.

Na manhã seguinte, os núbios chegaram ao Bein al-Kaisrein. Armados até os dentes, com suas afiadas cimitarras brilhando ao sol, começaram a provocar meus soldados.

Tínhamos muitos soldados negros no nosso exército, mas os rudes núbios gritavam palavrões para nós. Meu pai me avisou para não ter pena daqueles demônios. Quando me viram, montado a cavalo e pronto para combatê-los, as fileiras de soldados começaram a se agitar de ódio e ouvi que cantavam uma música: "Os homens brancos são nacos de gordura e os negros são carvão em brasa."

Meus arqueiros estavam prontos para atirar, mas antes que começassem mandei um recado para os núbios. Se todos os brancos eram nacos de gordura, perguntei, por que Nejeh foi conspirar com os cruzados? Para Alá, somos todos iguais. Disselhes que se rendessem e entregassem as armas ou seriam massacrados. Um dos rebeldes pegou a espada e deu um talho no rosto do meu mensageiro. Sangue fora derramado, e nós declaramos guerra.

A batalha durou dois dias inteiros e os núbios queimaram ruas e casas para impedir nosso avanço. No terceiro dia, ficou claro que Alá tinha-nos concedido mais uma vitória. Quando incendiamos al-Mansuria, o bairro onde moravam quase todos os núbios, eles viram que seria insensato continuar resistindo. Foi uma vitória cara, Ibn Yakub, mas valeu cada vida perdida porque, a partir de então, o Misr ficou sob nosso controle total.

Todos os nossos emires queriam derrubar o califa fatímido e declarar nossa lealdade ao califa de Bagdá, o legítimo. Eu concordava com os emires, mas fiz uma consulta secreta a meu pai. Por prudência, ele pediu-me que evitasse mais derramamento de sangue. Lembrou-me de que foi o califa al-Adid que pôs o turbante de vizir na minha cabeça. Os motivos dele podiam ser infames, mas, para nosso clã, a falta de generosidade de nossa parte seria uma infâmia ainda maior. Esse argumento não me convenceu muito. Pressionei meu pai um pouco mais e finalmente, depois de verificar que ninguém estava escutando do lado de fora do quarto, ele disse baixinho no meu ouvido: "Esse maldito califa vai ajudar a manter Nur al-Din à distância. Destrua o califa e torne-se sultão. O que Nur al-Din, sultão de Damasco e Aleppo, vai achar se você fizer isso? Eu o conheço bem. Ele vai se perguntar: "Como é que um de meus mais jovens emires, um arrivista das montanhas curdas, um menino com tio e pai que são meus servos, como pôde esse novato transformar-se em sultão sem antes me oferecer o cargo?" Filho, tenha paciência. O tempo está a seu favor. É hora de consolidar nosso poder. Seus irmãos e primos devem ser colocados em todos os cargos importantes do Estado. Assim, quando um dia o califa fatímido fumar tanto ópio que só conseguirá dormir o sono do qual não se desperta, então nós poderemos garantir que a sucessão seja bem encaminhada."

"Que sucessão?" "A sua. No instante em que ele morrer, você vai abolir o califado e anunciar do púlpito em al-Azar que, a partir dessa hora, existe um só califa e ele fica em Bagdá. Todas as orações devem ser oferecidas em nome desse califa e você, Saladino, é o sultão dele."

Meu pai, que descanse em paz, era um grande conselheiro. Mais uma vez ele mostrou que estava certo. O califa adoeceu e eu imediatamente mandei o cádi mudar a intenção das orações. Daquele dia em diante, as preces na nossa cidade seriam em nome do único e verdadeiro califa. Quando essa notícia chegou a Bagdá, provocou grande alegria. Recebi do califa uma espada cerimonial e a bandeira negra dos abássidas. Foi uma grande honra.

Alguns dias depois, o último fatímido morreu. Mandei Kara Kush, que era dos homens mais espertos do Cairo na época e um dos meus conselheiros, dizer à família al-Adid que sua época terminara. Por quase três séculos os califas fatímidos dominaram o país. Fizeram isso em nome da facção xiita herege. O domínio deles tinha acabado e rezei agradecendo a Alá e seu profeta.

Tornei-me sultão, com autorização por escrito do califa de Bagdá. Nur al-Din aceitou minha promoção, mas seria exagero dizer que gostou. Recebi dois pedidos para encontrá-lo em Damasco, porém eu estava muito ocupado lutando contra os cruzados. Eles ficaram bastante assustados ao ver que o Misr agora estava sob nosso controle.

Tomei algumas fortalezas deles, inclusive Eila, necessária para fornecer salvo-conduto aos peregrinos que iam a Meca.

Alguns conselheiros de Nur al-Din disseram-lhe que eu só queria lutar contra os cruzados para não obedecer à ordem de voltar para Damasco. Foi um boato de má-fé.

Os cruzados estavam preocupados com nosso controle de Alexandria e Damieta, os dois portos que mais precisavam manter em mãos aliadas. Eles temiam, com razão, que eu usasse o controle desses portos para destruir a linha de comunicação que tinham com a Europa. Com o tempo, isso significaria o fim da ocupação deles em nossas terras. Virariam pó. Kara Kush sugeriu que atacássemos logo, mas não estávamos numa boa posição. Eu soube que o imperador de Constantinopla enviara mais de duzentas embarcações cheias de soldados para sitiar Damieta.

Nós recebíamos relatos periódicos sobre quantas torres móveis estavam sendo construídas para o cerco e quantos soldados tinha Amalric. Toda essa informação era conferida e enviada por mensageiro para Damasco.

Dizem, Ibn Yakub, que às vezes, em momentos críticos, não sou capaz de tomar decisões. Talvez seja verdade. Herdei a prudência de meu pai, mas muitos subordinados meus preferiam que tivesse herdado a impulsividade de meu tio. Tenho consciência dessa falha e procuro juntar as qualidades dos dois. Nem sempre é fácil decidir sobre assuntos que dizem respeito à vida de tantas pessoas.

O que transformou Nur al-Din num grande e verdadeiro líder foi sua capacidade de perceber um fato importante — ou seja, que, se não vencesse os cruzados, nosso povo jamais teria paz. Por isso, essa meta passou a ser nossa maior preocupação. O fato de ele estar irritado comigo era irrelevante.

Quando meus mensageiros chegaram a Damasco e informaram Nur al-Din que estávamos correndo perigo, ele não hesitou um instante. Preparou um grande exército e mandou-o para o Misr. Usamos esse exército para uma ofensiva contra os cruzados na Palestina, tirando a atenção deles de Damieta. Alá nos concedeu a vitória. Uma tempestade repentina nos ajudou a afundar as embarcações que o imperador, cuja irmã era casada com Amalric, tinha mandado de Constantinopla. A avestruz grega veio aqui para receber um par de chifres, mas foi obrigada a voltar sem orelhas. Nur al-Din era um homem de grande valor, como eu jamais poderia ser, e devo a ele tudo o que consegui.

Quando disse isso, Saladino deu um sorriso estranho, misto de júbilo, inveja e tristeza. Talvez estivesse pensando na ironia de ser ele, Saladino, e não seu velho chefe, o soberano que preparava a tomada de Jerusalém. Era ele que iria rezar na Cabat al-Sacra, o Domo da Pedra, e fazer com que voltasse às mãos dos fiéis.

Eu queria fazer mais algumas perguntas. Queria saber de Nur al-Din, mas vi pela cara do sultão que ele estava pensando em outras coisas. De repente, interrompeu meus pensamentos.

— Vá comer pão com Xadi, mas não vá embora. Esta tarde, venha comigo até a fortaleza.

Fiz uma reverência e saí. Quando passei pelos aposentos que levavam ao pátio, fiquei surpreso com o fato de o sultão ser uma pessoa tão simples. Vivia cercado de luxo. Embora tivesse banido os complicados rituais da corte dos califas, ainda havia muita ostentação de luxo e poder, parecendo querer mostrar aos simples mortais como eu que os dois — luxo e poder — sempre estiveram juntos. Eram antigos companheiros e nada jamais alteraria esse fato.

Saladino era famoso pela generosidade. Essa era uma das razões de sua grande popularidade entre os soldados. E vestia-se com simplicidade, a não ser nas cerimônias oficiais. Gostava de montar seu cavalo preferido sem arreios, em pêlo. Nada como o suor do cavalo para incitar sonhos de glórias — ele uma vez me disse isso, acrescentando que era no dorso de um cavalo, galopando pelos campos ou na areia, que suas idéias guerreiras se ajustavam. Era, disse ele, como se o galope do cavalo entrasse no ritmo dos saltos de seus pensamentos.

Dali a pouco eu estava com Xadi, comendo pernil de carneiro assado e três tipos de vagens, macias como manteiga. Xadi disse que devíamos aquela comida a ele, que tinha ameaçado ferver os cozinheiros no azeite se servissem carne dura outra vez. Ele chegou a perder um dente por causa disso. As ameaças surtiram efeito e a carne tenra estava deliciosa.

Comentei com Xadi sobre o sorriso estranho de Saladino quando falou em Nur al-Din e perguntei se ele sabia o motivo. O velho bufou como um cavalo exausto.

Às vezes, nosso sultão é muito astuto. Todos nós admirávamos Nur al-Din, era um homem puro. Nada manchou sua honra. Mas Saladino não gostava da autoridade dele.

Uma vez, acho que foi durante o cerco a um castelo cruzado, Nur al-Din apareceu e nosso sultão voltou para o Cairo com a desculpa de que havia ameaça de rebelião dos fatímidos restantes. Era verdade, mas não seria nada que os irmãos dele não conseguissem controlar. Ele apenas fugiu de Nur al-Din. Tinha medo de combatê-lo de frente. Por quê? Porque sabia que Nur al-Din podia mandá-lo de volta para Damasco. Nur al-Din ficou irritado, achou que Saladino fora insolente. Era um subordinado que se comportava como um igual. Ele precisava de uma lição. Resolveu marchar para o Cairo.

Agora vou lhe contar uma coisa, amigo. Eu e Ayub estávamos num encontro de emires e comandantes do exército quando o sultão nos informou que Nur al-Din estava a caminho. O sobrinho preferido de Saladino então disse, de repente, que Nur al-Din devia ser combatido como um cruzado. Saladino sorriu, complacente, mas Ayub, cortante como uma espada de Damasco, chamou o menino e deu-lhe um tapa no rosto. Ali, na frente de todos. Depois, levantou-se e disse para Saladino: "Vou lhe dizer uma coisa, menino! Se nosso sultão Nur al-Din chegasse aqui, eu apearia de meu cavalo e beijaria os pés dele. Se me mandasse cortar sua cabeça, eu cortaria sem perguntar nada, embora minhas lágrimas fossem se misturar com seu sangue. Estas terras pertencem a ele e todos nós somos seus servos. Mande um recado para ele hoje, Saladino. Diga-lhe que não precisa gastar suas energias viajando até aqui. Basta que mande um mensageiro montado num camelo para levar você até lá, com uma corda amarrada no pescoço. Agora todos podem sair, mas entendam uma coisa: somos soldados de Nur al-Din. Ele pode fazer conosco o que quiser."

Todos saíram da sala, menos Saladino e eu. Ayub criticou-o severamente por demonstrar sua ambição diante dos emires, que gostariam muito de vê-lo perder o cargo.

Saladino estava desolado, como se seu coração tivesse sido ferido por uma amante indiferente.

Ayub ficou olhando o filho durante algum tempo, o que fez seu rosto ficar muito triste. Depois, levantou-se e abraçou-o. Beijou-o na testa e disse: "Conheço bem Nur al-Din. Acho que sua carta de submissão vai surtir efeito. Se, por alguma razão, não conseguir acalmá-lo, lutarei ao seu lado."

Você entende agora, Ibn Yakub? Quando você viu aquele sorriso no rosto do sultão, talvez ele estivesse pensando na sagacidade do pai. Ele agora está sozinho. Ayub está com o Criador e Xirkuh também se foi. Às vezes, quando levo chá de hortelã de manhã cedo para ele, Saladino diz: "Xadi, só restou você da velha geração. Não vá morrer também."

Como se eu fosse morrer, ora. Quero ver al-Kadisia, Ibn Yakub, a cidade que seu povo chama de Jerusalém. Quero estar perto dele quando rezar na Cabat al-Sakra.

Não sou muito de rezar, como você sabe, mas nesse dia vou rezar. E não tenha dúvida, esse dia chegará. Isto é tão certo quanto o nascer e o pôr do sol. Saladino está resolvido a tomar a cidade a qualquer preço. Sabe que será um golpe mortal nos cruzados. Sabe também que, se conseguir, vai ser lembrado para sempre. Muito depois de nossos ossos terem fertilizado o solo, os fiéis vão lembrar o nome desse menino a quem um dia ensinei a usar a espada. E quantos lembrarão o nome de Nur al-Din?


12

O sultão visita a nova fortaleza no Cairo,
mas é chamado de volta para encontrar-se com Bertrand de Toulouse,
um cristão herege que fugiu de Jerusalém para escapar da fúria dos templários

Uma das razões para o sultão não me animar a acompanhá-lo em suas inspeções a cavalo ou nas visitas para supervisionar a construção da nova fortaleza era o fato lamentável de que eu não sabia montar. Isso o deixava constrangido, já que não gostava que uma pessoa de suas relações fosse incapaz de montar ou não apreciasse cavalos. Por isso nunca falava muito de cavalos na minha presença. Ele entendia bastante do assunto, quase tanto quanto conhecia o hadith. Era comum interromper o que estava contando para descrever determinado cavalo que tinha chegado, presente do irmão que morava no Iêmen. Começava discorrendo sobre a genealogia do animal e depois, vendo que eu ficava com o olhar distante, suspirava, ria e voltava ao relato.

Fiquei pensando nisso quando saí a cavalo pela cidade junto com a comitiva. Ele tinha mandado dois cavaleiros experientes para me escoltar, caso o animal desembestasse.

Isso não ocorreu e dali a pouco me acostumei com aquela desagradável experiência.

Sabia que no final do dia minhas costas estariam doendo, mas fiquei contente de sair com Saladino.

Ele montava muito bem. Não saiu em seu cavalo de batalha, mas num outro menor. Mesmo assim, Saladino acompanhava bem o trote. Deixava que o cavalo ficasse à vontade, cavalgando num ritmo que não era nem muito rápido, nem muito lento. Bastava um leve toque das esporas do sultão para o cavalo apressar o passo, obrigando todos nós a acompanhá-lo. Às vezes parecia que o cavalo e seu cavaleiro eram um só, como aquelas criaturas fantásticas que os gregos antigos cantavam em suas poesias.

Passamos pelo Bab alZuveila e dali a pouco estávamos nas ruas apinhadas de gente. As pessoas paravam de trabalhar para acenar ou cumprimentar seu soberano, mas, como ele não gostava de servilismo, preferiu passar rápido pela cidade. Queria fugir dos pedidos e das bajulações dos mercadores que ocupavam quase todas as ruas.

Logo passamos pelos destroços do incêndio no bairro de Mansuria, onde os soldados núbios do eunuco Nejeh tinham parado pela última vez, antes de serem expulsos da cidade. O sultão tinha ordenado que o bairro continuasse em ruínas, como um aviso cruel para todos os que um dia porventura pensassem em traição.

De repente, ele puxou as rédeas de seu cavalo e parou. Naquele dia, além de mim, o grupo era formado por três escribas da corte, para anotar as instruções do sultão para o cádi alFadil, e vinte guarda-costas escolhidos a dedo — quer dizer, por Xadi, que, verdade seja dita, só confiava em curdos ou em homens de sua família para a segurança do sultão. Saladino fez sinal para eu me aproximar. Estava rindo.

— Gosto de ver você montar, Ibn Yakub. Mas acho que Xadi deveria ter lhe dado algumas aulas de equitação. Sua boa esposa vai ter de passar óleos especiais hoje à noite para melhorar seu traseiro. Espero que essa cavalgada não vá atrapalhar nenhuma de suas funções.

Ele riu alto do próprio gracejo e balancei a cabeça em sinal de concordância. Deu um largo sorriso, mas, quando foi inspecionar os prédios do quarteirão queimado, sua expressão mudou.

— Tivemos sorte em sobreviver a essa rebelião. Se eles tivessem nos apanhado de surpresa, a história poderia ter sido bem diferente. Essa eterna situação de incerteza é uma praga do demônio contra os fiéis. É quase como se fosse nosso destino jamais nos unirmos contra o inimigo. Nenhum de nossos filósofos ou historiadores foi capaz de explicar isso. Esta tarde, vamos discutir o assunto com nossos eruditos.

Ele se inclinou na sela para afagar o pescoço do cavalo, sinal de que nossa excursão iria prosseguir. Dali a pouco saímos das ruas apinhadas e vimos, ao longe, as montanhas da cordilheira Mukatam. Os operários pareciam abelhas construindo a nova fortaleza. Pedras enormes eram carregadas por homens e jumentos e a construção envolvia milhares de operários.

Fiquei imaginando se alguém, vendo a cena, se lembraria dos antigos monumentos de Gizé, que devem ter sido construídos pelos antepassados dos operários que trabalhavam agora na grande fortaleza.

O encarregado da obra era o tesoureiro do sultão, o emir Kara Kush, a única pessoa em quem Saladino confiava para executar suas minuciosas recomendações arquitetônicas e supervisionar a construção durante os longos períodos em que se ausentava. O sultão ficou satisfeito ao ver os operários. Fez mais um afago no pescoço do cavalo e o grande animal obedeceu, saindo num galope que só seus guarda-costas conseguiam acompanhar.

Os três escribas da corte e eu seguimos num passo mais contido. Eles eram coptas cujos pais e avós tinham servido aos califas fatímidos durante séculos. Sorriram para mim e disseram coisas simpáticas. Mas eu sabia que, no fundo, estavam mortos de inveja. Não gostavam da minha convivência diária com seu senhor.

Saladino conteve o riso quando me viu desmontar. Minhas Pernas doíam quando subi a rampa de uma torre recém-construída.

O sultão estava discutindo como seria o trabalho de alvenaria com o emir Kara Kush. Esse enorme eunuco, de corpo esbelto e cabelo preto como carvão, tinha sido um dos escravos mamelucos de Xadi. Foi emancipado e transformado em emir por seu senhor. Xirkuh admirava muito sua capacidade administrativa e foi Kara Kush quem sugeriu ao califa fatímido que concedesse a Saladino o cargo de vizir.

Kara Kush estava contando que algumas pedras tinham sido trazidas das pirâmides de Gizé e mostrou como combinavam com as pedras da região. O sultão ficou muito impressionado e virou-se para falar comigo.

— Anote isso, escriba. Estamos construindo esta nova fortaleza para que seja inexpugnável, capaz de resistir a qualquer investida dos cruzados. Mas, se você observar como os muros e torres foram projetados, vai perceber que não teríamos problema para resistir a qualquer revolta local. Lembro sempre que quase fomos derrotados pelos eunucos e mamelucos que, liderados pelos núbios, nos atacaram de surpresa. Aqui, isso jamais ocorrerá.

Enquanto falávamos, Kara Kush apontou para a poeira levantada por dois cavaleiros que vinham a galope na nossa direção. Ele não estava aguardando ninguém e irritou-se com essa intromissão inesperada. Franziu o cenho e ordenou a dois guarda-costas do sultão que esperassem os cavaleiros na entrada da fortaleza. Saladino riu.

— Kara Kush está muito nervoso. Acha que nossos velhos amigos das montanhas enviaram alguém para me matar?

Kara Kush não respondeu. Quando os cavaleiros chegaram, esperou impaciente que os guarda-costas os interrogassem e os trouxessem até ele. A despreocupada observação do sultão quanto a tentativas de matá-lo não conseguiu distrair o tesoureiro. Quando os cavaleiros se aproximaram, ficamos aliviados: eram os mensageiros especiais do cádi alFadil, preparados para cavalgar com a rapidez de um raio em cavalos especiais para essas missões. Só eram usados em caso de urgência e o alívio por vê-los foi substituído pela preocupação com a mensagem que traziam.

Finalmente, chegaram à plataforma onde estávamos. Traziam uma carta do cádi para o sultão. Quando Saladino começou a ler, seu rosto ficou agitado, seu olho se movia rápido como um peixe no Nilo. Estava visivelmente satisfeito. Os mensageiros e guarda-costas foram dispensados e ele nos mostrou a carta, que dizia: "Um cavaleiro templário acaba de chegar ao Cairo pedindo asilo. Vem do acampamento de Amalric e tem muitas informações a respeito dos deslocamentos e planos deles.

Ignora-se por que o templário desertou e ele se recusa a contar seus segredos sem a presença de Sua Majestade. A julgar por seu comportamento, estou convicto de que é sincero, mas o emir Kara Kush, que sabe avaliar melhor a personalidade e as falhas humanas, precisa falar com ele antes de Sua Majestade encontrá-lo.

Aguardo instruções do sultão. Seu humilde cádi, Al-Fadil."

A reação imediata de Saladino foi pegar Kara Kush e a mim pelo braço e correr até onde os cavalos estavam amarrados, por um caminho cheio de lama. O sultão estava muito nervoso, parecia dominado por demônios. Montou seu cavalo e começou a galopar para o palácio com os guarda-costas, que quase não conseguiam acompanhá-lo.

Para minha grande satisfação, o emir Kara Kush não era um grande ginete, permitindo que eu o acompanhasse junto com sua comitiva. Eu nunca falara com ele antes, e era impressionante o conhecimento que tinha do Cairo e da riqueza das bibliotecas da cidade. Ele me disse que a tarefa que eu cumpria seria de grande valor para os historiadores e fiquei contente porque, ao contrário de alFadil, ele levava meu trabalho a sério.

Quando chegamos, o sultão nos aguardava. Queria que Kara Kush e eu estivéssemos presentes quando ele interrogasse o cruzado. Queria também que fosse logo, mas o sol já estava se pondo. Ele mandou que fôssemos imediatamente ao hammam do palácio Para um banho e depois voltássemos para a sala de audiência. Como nós dois sabíamos que Saladino não gostava da imponência de sua sala, sorrimos. Era óbvio que naquele dia queria impressionar o cavaleiro cruzado com a opulência de sua corte.

Refrescado pelo banho, voltei devagar, passando pelas salas onde os mamelucos seguravam tochas para iluminar nosso caminho até a sala de audiência. Lá estava Saladino, vestido de forma pouco habitual, com seus melhores trajes oficiais e o turbante de sultão brilhando com pedras raras. Fiz uma reverência e indicaram-me um lugar para sentar, pouco abaixo do trono do sultão. De um lado ficou Kara Kush; do outro, alFadil.

Sentados num semicírculo no chão estavam os maiores eruditos da cidade — inclusive, para minha satisfação, Ibn Maimun. A um sinal de Kara Kush, um mameluco saiu da sala. Poucos minutos depois, ouvi o som de um tambor indicando que o forasteiro estava a caminho. Ficamos em silêncio. O cruzado, precedido por um guarda de cimitarra à cintura, entrou e foi direto até o trono. Colocou sua espada aos pés do sultão e fez uma reverência, mantendo a cabeça inclinada até Kara Kush dar um sinal para ele se sentar.

— O sultão tem muito prazer em recebê-lo, Bertrand de Toulouse.

Os lábios que pronunciaram essas palavras eram bem conhecidos, mas a voz suave havia sumido. O cádi falava com uma firmeza e uma autoridade que me surpreenderam.

É assim, pensei, que deve se expressar quando está exercendo a justiça e distribuindo castigos para os condenados.

— Você está na presença de Yusuf ibn Ayub, sultão do Misr e Espada dos Fiéis. Gostamos de saber que fala nossa língua, embora de forma precária, e estamos ansiosos para saber o que o trouxe aqui.

Bertrand de Toulouse tinha estatura mediana e pele azeitonada, pouco mais escura que a de nosso sultão. Tinha cabelos pretos e olhos castanhos, mas uma feia cicatriz no lado esquerdo desfigurava seu rosto e chamava atenção, impedindo que se notasse seus outros traços. O corte, que devia ser de espada, não parecia ter mais de uma semana.

Bertrand ia responder, mas o sultão falou antes. Gostei de notar que sua voz estava normal.

— Como os demais, nós também estamos ansiosos para saber as razões de sua presença aqui. Mas, antes que comece, quero saber se, em minha ausência, deram-lhe as boas-vindas. Comeu pão?

Bertrand fez um sinal afirmativo e uma ligeira reverência.

— Então vamos oferecer-lhe um pouco de sal. Um criado trouxe uma salva de prata. Bertrand pegou uma pitada de sal e a pôs na língua.

— Agora pode falar, Bertrand de Toulouse — disse o sultão, fazendo sinal para o cruzado sentar-se.

Bertrand falava árabe com uma voz áspera, gutural, mas os sorrisos logo sumiram do rosto dos presentes quando constataram que ele dominava muito bem nossa língua.

— Sou grato a Sua Majestade por me receber logo após minha chegada e por confiar em mim. Sou Bertrand de Toulouse, membro da Ordem dos Cavaleiros Templários. Passei os últimos cinco anos com minha Ordem em Jerusalém, aqui chamada al-Kadisia, sob o comando de nosso rei Amalric, muito conhecido do sultão e vice-versa. Vocês estão todos se perguntando por que arrisquei a vida duas vezes, ao fugir do meu reino e ao entrar no seu. Na primeira vez, quando fugi da minha Ordem protegido pela escuridão, duas noites atrás. Quase fui capturado e o preço da liberdade foi o ferimento no meu rosto. A espada que me marcou pertencia ao grão-mestre. O segundo risco que corri foi de ser morto por seus soldados, que podiam não ter muita paciência para perguntar quem eu era e esperar minha resposta. O fato de falar sua língua, embora mal e de forma hesitante, ajudou-me a sobreviver à viagem e chegar vivo à sua corte. Permitam que comece a contar minha história com uma confissão.

Aos olhos da minha Igreja, sou um herege. Se a heresia é uma outra forma de expressar a luta pelo verdadeiro Deus, então sou herege e me orgulho disso.

Venho de uma pequena aldeia perto de Toulouse, onde recebi influência de um padre que condenava nossa Igreja e pregava 142

uma nova visão de Deus. Costumava dizer que as igrejas careciam de paróquias, que as paróquias careciam de padres, que os padres careciam de respeito e virtude e, finalmente, que os cristãos careciam de Cristo. Costumava dizer também que existem dois deuses, um bom e outro mau, e que esses dois poderes, eternos e iguais, estavam sempre em luta.

Ele costumava dizer ainda que a Santíssima Trindade dos cristãos era uma manifestação do demônio. O Espírito Santo era o espírito do mal, o Filho era da danação e o Pai não era outro senão o próprio Satanás. Costumava dizer que havia dois Cristos: o da esfera celestial era bom, mas o da terrestre era mau. Costumava dizer que Maria Madalena era a concubina terrena de Cristo e que João Batista era um precursor do AntiCristo. O Demônio era irmão mais jovem de Cristo e a cruz era inimiga de Deus, símbolo de sofrimento e tortura. Por isso esse símbolo devia ser destruído e não adorado.

Toda a nossa aldeia, que tinha umas trezentas almas no máximo, gostava desse padre e ajudou a espalhar sua mensagem pelas aldeias vizinhas. Surpresos, descobriram que outros já haviam dito a mesma coisa e logo vimos que os Condes de Toulouse concordavam com essas idéias, o que deixou nossa aldeia mais tranqüila. Quando eu tinha quinze anos, quase quinze anos atrás, neste mesmo mês em que estamos agora, destruímos todas as cruzes que encontramos pelo caminho. Pusemos fogo nelas ou usamos a madeira para fazer objetos que poderiam ser úteis na aldeia. Isso bastou para sermos considerados piores que o diabo e os vampiros, pois acredita-se que essas criaturas das trevas têm medo da cruz e portanto nós, hereges, fomos muito atrevidos.

Na nossa seita, há três estágios para se chegar a ser um verdadeiro crente. Começamos como ouvintes, aprendendo a nova verdade e a dupla arte de debater e disfarçar frente aos nossos inimigos cristãos. O estágio seguinte é o de crente, quando precisamos provar que somos capazes de trazer novos adeptos para nossa causa. Depois de conseguirmos cinqüenta novos ouvintes, passamos a ser chamados de perfeitos e podemos participar da eleição do Conselho dos Cinco, que toma todas as decisões importantes.

Sou um Perfeito. O Conselho pediu-me que ingressasse na Ordem dos Cavaleiros Templários para, disfarçadamente, trazêlos para nossa causa. Constantinopla mandou que o grão-mestre queimasse na fogueira da verdade as amargas e demoníacas imposturas dos hereges e nosso Conselho achou que devíamos ser representados na Ordem dos Cavaleiros para prevenir nossos seguidores sobre uma desgraça iminente.

O Conselho proíbe excessos nas relações sexuais e o consumo de álcool. Os membros do Conselho acreditam que a bebida e a lascívia nos enfraquecem e nos tornam vulneráveis.

Fui traído por um Ouvinte que, por estar bêbado, não percebeu a presença de um lacaio do mestre e ficou contando vantagem de nossas vitórias. Só fui saber disso quando ele já estava na prisão sendo torturado. Graças ao método adotado por nossa organização, ele só conseguiu dar o meu nome e os de outros dois membros.

O grão-mestre ficou furioso quando soube que meu nome foi citado. Não quis acreditar que fosse verdade. Por sorte, fui avisado de tudo por um crente do grupo do grão-mestre. Sabia que estavam me vigiando e cortei todos os contatos que mantinha com nosso povo. Alguns dias depois, fui detido e o grão-mestre me fez passar por cinco horas de interrogatório. Falei que não conhecia o Conselho e confiava plenamente nas igrejas de Roma e Constantinopla. Pensei que o tivesse convencido, já que me soltaram. Parecia que não estavam mais me vigiando e seguindo todos os meus passos.

Jerusalém tinha mais três Perfeitos. Uma noite, nós nos encontramos e fui avisado para ir embora e procurar asilo no Cairo. Na manhã seguinte, acordei antes do sol raiar e estava preparando meu cavalo quando um cavaleiro me ameaçou. Desconfiava de mim e usou uma palavra secreta que só os membros de nossa seita conhecem. Era óbvio que aprendeu a palavra quando torturava os três crentes. Ele me pegou de surpresa e reagi antes de conseguir ver seu rosto no escuro. Puxou a espada e eu o matei, mas antes ele marcou meu rosto. Corri como o vento, Majestade. Se fosse apanhado, eles me matariam da forma mais terrível.

Esta é minha história e estou agora à mercê do grande sultão Saladino, cuja generosidade é conhecida no mundo inteiro.

Enquanto Bertrand de Toulouse falava, apenas três rostos ficaram impassíveis: o do sultão, o de Kara Kush e o de alFadil. Os demais, entre os quais devo me incluir, ficaram se entreolhando. A descrição da heresia fez com que muitas mãos cofiassem as barbas de seus respectivos rostos puxando-as nervosamente, como se isso acalmasse a agitação que perturbava a cabeça dos donos.

— Ouvimos com muito interesse sua história, Bertrand de Toulouse — disse o sultão.

— Está preparado para responder às perguntas de nossos eruditos?

— Com muito prazer, Majestade. O cádi fez a primeira pergunta, dessa vez com uma voz melosa.

— O que a Igreja considera heresia é o fato de você ser contra a Santíssima Trindade e as imagens sacras. Nosso profeta também era contra a adoração de ícones ou imagens. Por acaso você estudou o Corão? Conhece a mensagem de nosso profeta, que a paz esteja com ele?

Bertrand de Toulouse não hesitou.

— Uma vantagem que vocês têm sobre todas as outras religiões é que ninguém pode duvidar da existência de seu profeta. Ele existiu e, portanto, não é possível conferir duplas atribuições a ele. Ele viveu, casou, teve filhos. Lutou, venceu, morreu. Sua história é conhecida. Esta magnífica cidade e todos vocês são algumas conseqüências da incrível visão de seu profeta. Claro que estudei o Corão e concordo com muita coisa dele, mas, para ser franco, acho sua religião muito ligada aos prazeres terrenos. Como vocês perceberam que não podiam viver apenas segundo o Livro, incentivaram a criação do hadith para ajudá-los a governar os impérios que conquistaram. Mas não é verdade que muitos hadith são contraditórios? Quem decide em que vocês acreditam?

— Temos eruditos dedicados exclusivamente ao estudo do hadith — explicou rapidamente o sultão. Ele não queria que o cádi dominasse a discussão. — Quando jovem, estudei o hadith com muita alegria e atenção. Concordo com você, o texto pode ter muitas interpretações. Por isso temos os ulemás para averiguar o grau de sua precisão. Precisamos delas, Bertrand de Toulouse, precisamos: sem essas tradições, nossa religião não poderia formar um código completo da vida.

— Como é que uma religião pode ser um código completo de vida se os fiéis divergem tanto sobre sua interpretação? Os seguidores dos califas fatímidos, para dar um exemplo bem recente, não professam sua crença, nem a do califa de Bagdá. O mesmo ocorre com nossa religião e com a dos judeus. Quem governa faz as leis.

— Você é mesmo um herege, meu amigo — riu Saladino, autorizando com um sinal qualquer dos presentes a falar com Bertrand, se quisesse.

Um velho erudito muito respeitado, vindo de al-Azar, levantou-se. Falou com voz fraca e rouca, quase um sussurro, mas tinha tanta autoridade que todos se esforçaram para ouvir cada palavra.

— Com a grata permissão do sultão, gostaria de explicar um fato ao nosso visitante. O maior medo de todo ser humano, qualquer que seja sua religião, é o da morte.

Todos sentem esse medo. A cada vez que lavamos e colocamos a mortalha num cadáver, vemos nele o nosso futuro. Na época em que ainda não tínhamos o Conhecimento e muito antes desse tempo, o medo era tão forte que muitas pessoas preferiam não aceitar a morte como algo real, mas como uma viagem para outro mundo. O islamismo acabou com esse medo da morte. Só isso já é uma de nossas maiores conquistas porque, se não acabássemos com esse medo, não poderíamos progredir. Ficaríamos impedidos.

Antes de qualquer outra pessoa, nosso profeta entendeu a importância dessa questão. É por isso, Bertrand de Toulouse, que nossos soldados chegaram até o litoral do continente e ao coração de vocês. É por isso que nada é capaz de impedir o sultão de tomar al-Kadisia, que vocês chamam de Reino de Jerusalém.

A seguir, Kara Kush falou.

— Com o consentimento do sultão, gostaria de fazer uma única pergunta a Bertrand de Toulouse. Bravo guerreiro, qual é a única e grande diferença entre os fiéis da sua religião e os do profeta?

Bertrand não mostrou qualquer hesitação.

— A fornicação. Os eruditos deram vários suspiros de espanto, mas Saladino sorriu.

— Explique-se, Bertrand de Toulouse.

— Só por insistência de Sua Majestade. Desde que vim para cá e aprendi sua língua, estive estudando o hadith e também alguns comentários do Corão. Acredito que o profeta e seus seguidores perderam muito tempo falando da fornicação e das condições em que deve ou não se realizar. No Corão, se não me falha a memória, o sura intitulado A Vaca contraria o tradicional tabu árabe do coito no período do jejum. Alguns hadith registram que o profeta disse que Alá determinou a quantidade de cópulas para cada homem, que as desfrutará como de praxe. Assim, todos os prazeres estão predestinados. O velho erudito acaba de explicar que sua religião afastou dos fiéis o medo da morte. Isso não está, pelo menos em parte, relacionado com a idéia que vocês fazem do paraíso? O céu de vocês é o mais libidinoso de todos. Não prometem a seus cavaleiros que morrem na luta, na jihad, os mais deliciosos prazeres celestiais? Ereções que duram uma eternidade e muitas huris para escolher, enquanto bebem rios de vinho. O céu de vocês exclui todas as proibições terrenas. Dessa forma, só um louco teria medo da morte. Tudo isso vem da segurança que seu profeta tinha. Era um homem sem muitas dúvidas. Não é verdade que, quando morreu, Ali, o genro dele, gritou, e Sua Majestade vai me perdoar, pois só conheço as palavras em latim: O propheta, o propheta, et in morte pênis tuus coelum versus erectus est? Sem entender as palavras, o sultão franziu o cenho até que o cádi sussurrou uma tradução em seu ouvido.

— O cruzado está se referindo à frase de Ali ao ver o corpo morto de nosso profeta: "Ó profeta, ó profeta, mesmo morto seu pênis está ereto e apontando para o céu."

Saladino riu muito. — Nosso profeta era de carne e osso, Bertrand de Toulouse. Ninguém jamais duvidou de sua virilidade. Até sua espada era chamada de al-Fehar, lança-chamas. Nosso profeta era um homem completo. Temos orgulho de seus feitos. Foi por nos agarrarmos ao estribo do cavalo de nosso profeta que Alá recompensou nosso povo. Quem dera que nós, simples mortais, fôssemos tão abençoados quanto nosso profeta e, mesmo depois de mortos, nosso pênis apontasse para o céu. Mas acredito que você esteja enganado. A força-motriz da nossa religião não é a libido, mas a relação entre Alá e o fiel. Você pode dizer que nossa visão de mundo é muito influenciada pelos negociantes e comerciantes. Parece que o surpreendo. Poderíamos afirmar que Alá é como um grande negociante e que tudo no mundo está avaliado por ele. Tudo contado e medido. A vida é um comércio em que há ganhos e perdas. Quem faz o bem, recebe o bem; quem faz o mal, merece o mal, mesmo na Terra.

O fiel faz um empréstimo a Alá. Em outras palavras, paga adiantado por um lugar no paraíso muçulmano. Na hora do ajuste final, Alá tem um livro de prestação de contas onde cada ato dos homens é lido e cuidadosamente avaliado. Cada um recebe o quanto merece. Nossa religião é assim e tem influência do nosso mundo, o mundo real, usando uma linguagem que pode ser entendida facilmente por qualquer pessoa, daí seu sucesso.

"Por hoje basta de teologia. Vamos comer e beber. Amanhã você vai nos contar os planos de Amalric e faremos muitas perguntas sobre as torres e muralhas de al-Kadisia.

Você vai ver que meus emires são menos gentis que nossos eruditos.


13

Xadi espiona Bertrand de Toulouse para saber por que o cátaro se nega a fornicar.
Jamila conta como Saladino desafiou a lei do profeta e ejaculou no seu ventre

Xadi e eu tínhamos acabado de comer e estávamos aproveitando a manhã no pátio do palácio, sob o sol do início da primavera. Ele falava dos segredos militares trazidos por Bertrand de Toulouse, que agora estavam bem guardados na cabeça do sultão. Não me explicou o tipo de segredo, só deu uma piscadela para dizer que já podíamos considerar al-Kadisia como nossa.

O encontro com Bertrand de Toulouse foi limitado à presença do sultão, seus seis emires mais confiáveis e Xadi, que ficou muito intrigado com o cavaleiro. Bertrand tentou convencer Xadi de que todas as religiões tinham um pouco de hipocrisia e superstição e todas as seitas eram corruptas. Os falsos profetas e oradores podiam ser comprados no bazar do Cairo ou de Damasco. O cruzado recusava-se a aceitar que os cátaros — como eles eram chamados pela Igreja — fossem depravados.

Xadi quis testar a resistência do cátaro à libido. Mandou uma das mais belas servas do harém, que era também uma das mais espertas, seduzir o cavaleiro. Se a moça conseguisse, receberia de Xadi uma boa recompensa. Mas, para desespero dele, Bertrand resistiu aos encantos da moça e expulsou-a do quarto gentilmente. mas com firmeza. A mente astuciosa de Xadi preparou então outra prova para o mais bemvindo hóspede do sultão. Certa noite, trouxeram um jovem prostituto de um bordel especial. reservado exclusivamente para a nobreza. Xadi havia contado seu plano ao mestre-cuca do palácio e a notícia se espalhou.

Nunca um amanhecer foi tão aguardado no harém, para onde Xadi me empurrou depois de fazermos a refeição matinal. Atendendo a um pedido da sultana Jamila, ele conseguira autorização de Saladino para que Halima e Jamila tivessem um encontro rápido comigo num aposento especial ao lado do harém. Ele me levou para lá enquanto fazia gestos e trejeitos para os eunucos, que eram cada vez mais numerosos à medida que nos aproximávamos do harém.

Halima sorriu quando cheguei. Não foi um sorriso qualquer. Seu rosto ficou iluminado, fazendo com que meu coração batesse mais rápido, embora a razão da felicidade de Halima não fosse o encontro com este fatigado escriba, mas a mulher que estava ao lado dela. Era a sultana Jamila — sem dúvida, uma mulher incrível. Eu via com meus próprios olhos. Era mais alta que o sultão e seu cabelo combinava com seus cílios negros, suas densas e curvas sobrancelhas e seus olhos brilhantes. Tinha pele escura, como Halima dissera, mas alguma coisa em seu jeito de gesticular, de me olhar e de falar comigo mostrava uma segurança e uma autoridade que não costumavam ser associadas às mulheres do harém — ou, pelo menos, foi o que pensei na hora. Estava enganado, claro. O retrato que Halima e Jamila pintaram de seus isolados aposentos no palácio conseguiu apagar para sempre da minha cabeça as antigas imagens que eu tinha.

Jamila olhou-me com astúcia e sorriu, como se dissesse: "Cuidado, escriba, a jovem ao meu lado contoume tudo o que preciso saber sobre você." Quando elas entraram, fiz uma reverência e Halima achou graça.

— Ibn Yakub — disse Jamila, e, embora sua voz fosse suave e firme, tinha uma segurança que vinha, creio, do fato de ser filha de um sultão e mulher de outro.

— Como foi que Bertrand de Toulouse descreveu o corpo morto de nosso profeta, que a paz esteja com ele? Quero saber, já que você estava presente. Pode repetir as palavras em latim, pois conheço essa língua.

Fiquei mudo de constrangimento. Não era essa a pergunta que eu esperava. Halima sorriu para me tranqüilizar, fazendo um sinal com a cabeça para eu responder à pergunta de Jamila. Repeti em latim as palavras que Bertrand atribuiu a Ali. Jamila traduziu-as para Halima e as duas riram muito.

— É verdade que o cruzado acha que nossa religião se preocupa demais com detalhes da libido?

Balancei a cabeça, confirmando. Elas riram novamente. Foi impossível não reparar no comportamento das duas, que riam e brincavam numa felicidade de amantes nos primeiros meses de encontro. Era estranho ver a voluntariosa Halima tão encantada por aquela sedutora do Iêmen, que agora me fazia outra pergunta.

— Saladino gostou da observação de Bertrand? — Gostou, nobre senhora. Ele riu e afirmou que era uma honra para os fiéis terem tido um profeta tão viril e forte.

Um homem no sentido amplo da palavra. E chegou a mencionar o nome da espada dele.

— É bom saber, pois falei isso para ele durante muitos anos — disse Jamila. — Alguns de nossos eruditos recriam nossa história como se fossem cozinheiros que preparam camelo com sabor de carneiro, o que não é saudável para o desenvolvimento do nosso intelecto. Seu sultão pode conhecer muito o hadith, mas não tanto quanto eu.

Lembro-me de uma vez, pouco depois que me tornei esposa dele. Estávamos na cama e de repente ele resolveu fazer o al-Azl, se afastando de mim quando atingiu o orgasmo e deixando sua semente cair na minha barriga. Fiquei um tanto surpresa, já que a principal finalidade de nosso encontro era dar a ele um ou dois filhos.

"Eu disse a Saladino que o al-Azl era condenado pelo hadith. Primeiro ele ficou desconcertado, depois riu muito, sem parar. Nunca mais consegui fazer com que risse tanto. Pensou que fosse invenção minha, mas recitei o hadith de Sahih Muslim e dei até o número, 3371, lembro-me ainda. Saladino não quis acreditar.

"Gritou chamando um mensageiro e mandou um bilhete para alFadil. Veja bem, Ibn Yakub, ainda era noite e as estrelas vagavam no céu. Imagine um mensageiro batendo na porta do nosso venerável cádi com uma pergunta urgente do sultão sobre um determinado hadith que se referia ao al-Azl. E se o cádi, naquele exato instante, estivesse ocupado nessa prática proibida? Uma hora depois, o mensageiro voltou com a resposta. Al-Fadil confirmou o que eu disse.

"Nos dois anos seguintes, Saladino montou-me como se eu fosse sua égua preferida. Nossas sementes se misturaram. Dei-lhe um filho e depois outro, e então ele me deixou. Costumava vir sempre aqui, como faz até hoje, para discutir assuntos de estado, poesia ou o hadith, mas não para desfrutar de qualquer intimidade. Era como se achasse que meu conhecimento me transformava numa pessoa igual a ele. Eu tinha virado uma espécie de homem.

"Você sabe como os cruzados chamam o al-Azl? Esse tipo de conhecimento, ai de mim, não estava arquivado na minha cabeça e ergui as mãos para o céu, mostrando minha ignorância. Jamila sorriu.

— Usam uma expressão bem mais poética que a nossa: o vôo dos anjos.

O riso dela foi contagiante e não pude deixar de rir também, o que divertiu as duas. A essa altura, entendi como e por que Halima se encantara por aquela mulher e perdoei ambas. De repente, tudo ficou claro e meu coração desanuviou-se. Elas me olharam, perceberam essa mudança e sentiram que podiam me considerar como amigo.

Durante algum tempo, as duas ignoraram minha presença e ficaram conversando. Jamila perguntou a Halima sobre uma terceira mulher, cujo nome eu nunca tinha ouvido e que estava muito infeliz porque Alá não a havia abençoado com um filho.

— Ela é como a laranjeira — disse Halima — que implora ao lenhador para cortá-la em pedaços porque não suporta mais ver sua sombra estéril.

As duas discutiram o que poderiam fazer para diminuir a infelicidade da mulher. Quando descobriram uma forma de consolar a amiga, Jamila olhou para mim.

— Acredita em vida depois da morte, Ibn Yakub? Mais uma vez, a sultana me desconcertou. Ibn Maimun e eu falamos muito sobre este assunto, mas, mesmo entre nós, tínhamos o cuidado de usar parábolas. Questionar os principais dogmas da fé era mais do que uma heresia — era quase uma insanidade. Ela me lançou um olhar intenso, provocador, como se quisesse me obrigar a revelar minhas próprias incertezas.

— Ó sultana, a senhora faz perguntas em que os simples mortais não ousam sequer pensar, temendo que seus pensamentos possam traí-los. Somos o Povo do Livro. Acreditamos em vida após a morte. Se a senhora perguntasse uma coisa dessas aos nossos rabinos, aos papas cristãos e ao califa de Bagdá, eles arrancariam sua língua e depois a matariam.

Ela não aceitou minha advertência. — Na corte de meu pai, ó sábio escriba, discuti sobre a vida e a morte sem qualquer restrição. Por que está tão nervoso? Nosso grande poeta Abu Ala al-Maari questionava tudo, inclusive O Corão. Ele viveu em Aleppo até uma idade avançada e jamais permitiu que nenhuma autoridade limitasse o reino da razão.

"Ibn Rushd e seus amigos na Andaluzia, que estudaram, entenderam e propagaram a filosofia grega, também tiveram dúvidas. A revelação divina, em todos os nossos grandes livros, é uma espécie de sabedoria. Ela se baseia na tradição para criar uma série de leis, um código de conduta que todos nós devemos seguir. Mas existe um outro tipo de sabedoria, como ensinaram os antigos iunani, que pode ser demonstrada sem falar em céu. Um dia, o tutor que eu tinha na casa de meus pais ensinou-me que essa sabedoria se chama razão. A fé e a razão às vezes entram em choque, não é, Ibn Yakub? É bom ver que você concorda. Ao contrário da razão, a verdade divina não pode ser comprovada. É por isso que a fé deve ser sempre cega, caso contrário deixa de ser fé.

"Agora vou repetir minha pergunta inicial. Você concorda que não há nada depois da morte? O fato é que homens e mulheres vivem e morrem, depois viram lama ou areia.

Não existem grandes viagens rumo ao céu ou ao inferno. Concorda, Ibn Yakub?

— Não tenho certeza, senhora. Não sei. Talvez a insensatez de Deus seja mais sábia que os homens. Mas é consolador saber que, se a senhora estiver errada e existir um céu, o sétimo — mencionado pelo seu grande profeta — é, certamente, o melhor de todos.

Desta vez Halima, com os olhos brilhando, se irritou: — Melhor para os homens, Ibn Yakub. Só para eles. Se Xadi for para esse céu, vai ter ereções que durarão sete anos e muitas virgens para escolher, como maçãs numa macieira. Mas nem o nosso Livro, nem o hadith falam no que acontecerá conosco, as mulheres. Não podemos virar virgens. Será que haverá jovens à nossa disposição ou teremos que nos contentar com a companhia das outras mulheres? Isso pode ser ótimo para Jamila e para mim, mas não para a maior parte de nossas amigas no harém. E o que dizer dos eunucos, Ibn Yakub? O que acontecerá com eles?

Levamos um susto ao ouvir a voz do sultão. — Por que aconteceria alguma coisa aos pobres eunucos? O que vocês três estão falando?

Jamila resumiu o que tinha dito e repetiu minha resposta. O rosto do sultão ficou mais terno e ele virou-se para mim.

— Concorda, bom escriba, que Jamila poderia competir com qualquer erudito do Cairo?

— Ela também poderia ser uma soberana prudente, ó Comandante dos Leais.

Jamila riu. — Um dos problemas da nossa grande religião é que impedimos a metade da população de enriquecer nossas comunidades. uma vez, Ibn Rushd observou que, se deixassem as mulheres pensar, escrever e trabalhar, os domínios dos fiéis seriam os mais fortes e ricos do mundo.

O sultão ficou pensativo. — Algumas pessoas afirmaram isso no tempo do califa Omar. Disseram a ele que Cadija, a primeira mulher do nosso profeta, era comerciante e contratou nosso profeta para trabalhar com ela, pouco antes de se unirem. Quando o profeta foi embora, sua esposa Aisha pegou em armas e lutou, o que foi aceito na época. Mas muitos hadith contestam isso e...

— Saladino ibn Ayub! Não me obrigue a falar no hadith outra vez.

Ele riu e a conversa passou para um assunto mais ameno. Comentamos o destino que aguardava Bertrand de Toulouse naquela noite. A maledicência de Xadi tinha chegado a todos os cantos do palácio. Halima e Jamila estavam tão intrigadas quanto o próprio sultão, curiosas para ver se o cavaleiro se enredaria no novo ardil de Xadi.

O cavaleiro estava num aposento cujo interior podia ser observado do quarto vizinho, por dois ângulos. Fora construído por um dos califas fatímidos, que gostava de ver suas concubinas tendo relações com os amantes. Mesmo assim, as infelizes mulheres eram depois executadas. Vê-las durante um ato sexual excitava mais o califa do que montá-las.


14

A morte do sultão Nur al-Din e a chance de Saladino

Eu estava absorto na biblioteca do palácio, concentrado no estudo de um mapa-múndi de al-Idrisi. O sultão mandara que eu verificasse se a cidade de Toulouse estava assinalada. Se estivesse, deveria mostrar o mapa a ele imediatamente.

Eu não tinha terminado minha tarefa quando Xadi entrou na biblioteca. Seu rosto tinha um ar demoníaco, um sorriso triunfante. Era óbvio que vencera a teima com Bertrand. Cumprimentei-o.

— Não quero chocá-lo, Ibn Yakub — disse ele, com uma voz solene. — Você é um grande erudito e escriba, mas ignora muitas coisas do mundo. Não vou me deter em detalhes sobre o que houve na noite passada na cama de nosso cavaleiro de al-Kadisia. Basta informar que ele gosta de mancebos, mas exige um ritual violento antes de usá-los.

O corpo do pobre rapaz foi testado ao máximo na noite passada, sua pele tenra tem queimaduras e chicotadas. Nosso tesouro real foi obrigado a pagar o triplo do preço combinado devido aos estranhos prazeres desses cavaleiros templários. Nossos espiões descreveram tudo, sem esquecer um detalhe. Se você quiser...

Antes que o velho diabo pudesse terminar a frase, um dos assistentes do sultão apareceu mandando que eu me apresentasse ao soberano imediatamente. Não tomei conhecimento da piscadela de Xadi e corri para a sala de audiência do sultão, sem encontrar a cidade de Toulouse no maravilhoso mapa de al-Idrisi. O sultão ficou desapontado, mas começou logo a ditar. Xadi, irritado com meu desinteresse pelas atividades noturnas de Bertrand, foi comigo até a sala do sultão. Ao ver o rosto de Saladino, percebeu que não era hora de contar os hábitos do cavaleiro. Ficou num canto como um velho cão fiel. Sem se importar com a presença dele, Saladino começou a falar.

A morte tem muitas formas de nos surpreender, Ibn Yakub. Dentre elas, a que menos aflige é a que ocorre no campo de batalha. Lá, todos esperam morrer. Se Alá decide que sua hora ainda não chegou, você vive para lutar e morrer num outro dia.

Nosso grande sultão Nur al-Din passou mal durante uma partida de chogan. Dizem que se descontrolou porque um dos emires zombou de uma tacada que deu durante o jogo. Ficou tão irritado que desmaiou. Foi carregado para a fortaleza em Damasco, mas não se recuperou. O médico particular queria aplicar nele uma sangria, mas o orgulhoso velho recusou com um olhar irônico, dizendo: "Um homem de sessenta anos não faz sangria." Morreu poucos dias depois. Sua morte foi um duro golpe para nosso mundo. Era um grande soberano e um digno seguidor de nosso profeta. Ele iniciou a jihad contra os infiéis e por isso todo o nosso povo gostava muito dele.

Os intrigantes, na maioria eunucos sem outra coisa para fazer, vinham me contar que Nur al-Din estava preparando um grande exército para tomar o Cairo e me fazer de vassalo, mas eu não dava ouvidos, eram boatos.

Nossas diferenças — sim, elas existiam — não eram por mera rivalidade. Ele sabia que fazer uma guerra contra mim só seria vantajoso para os cruzados. Nós discordávamos sobre o tipo de ataque a ser desfechado contra o inimigo. Nur al-Din era um rei justo e generoso, mas impaciente. Disse a ele muitas vezes que a hora de atacar deveria ser bem planejada. Se errássemos, toda a nossa causa poderia acabar em chamas. Essas não eram brigas entre dois inimigos, mas discordâncias dentro do campo dos fiéis.

Enquanto ele viveu, tive orgulho de lutar à sua enorme sombra, mas a morte mudou a situação. Se Cairo e Damasco ficassem desunidos, os cruzados tirariam vantagem misturando suborno com guerra, isolando as duas cidades e destruindo-as. No lugar deles, eu certamente teria tentado fazer o mesmo. Antes de ir para a guerra, seja ela política ou militar, disputada com palavras ou espadas, sempre me coloco no lugar do inimigo. Meu bom al-Fadil tem um dossiê com todas as atividades do inimigo que estamos prestes a enfrentar. Temos registros de suas forças e fraquezas de caráter ou propósito. Temos uma lista dos conselheiros e parentes deles, sabemos o que pensam e quais os problemas existentes entre eles. Com todas essas informações, eu me coloco no lugar do inimigo e imagino como ele tentaria nos vencer.

Nem sempre acerto, mas acerto com freqüência suficiente para saber que esse método simples é bastante recomendável.

Agora pense, Ibn Yakud, pense. Nur al-Din estava morto. Em Damasco, Aleppo e al-Mawsil, aqueles que queriam ocupar o lugar dele planejavam acabar com os inimigos.

Estavam aguardando minha chegada a Damasco para assistir ao enterro. Mas fiquei no Cairo. Deixei que dessem o primeiro passo. O filho de Nur al-Din, Salih, era apenas uma criança. Estavam tentando usá-lo para tomar o trono. Continuei quieto.

Então, chegou um mensageiro com uma carta de Imad al-Din, um dos mais confiáveis conselheiros de Nur al-Din e que hoje trabalha para mim. A carta pedia que eu protegesse o menino dos abutres de olhos cobiçosos que vigiavam a fortaleza dia e noite. Mandei um embaixador a Damasco e jurei fidelidade ao filho de Nur al-Din. Também avisei aos emires de Damasco que, se desestabilizassem o reino, teriam de enfrentar a fúria de minha espada.

Muitas vezes me pergunto por que reis fortes costumam deixar dinastias fracas. Será maldição de nossa fé que Alá tenha nos condenado à eterna instabilidade e ao caos? Os primeiros califas não foram escolhidos pelo princípio da hereditariedade, mas pelos próprios companheiros do profeta. As dinastias estabelecidas pelos umaiadas e abássidas foram um desastre. Os sultões e vizires incentivam o crescimento dos reinos para deixá-los para os herdeiros, mas o que acontece se os filhos não têm capacidade para governar, como vimos tantas vezes desde a morte de nosso profeta? Às vezes, acho que devíamos ter um Conselho de Sábios formado por homens como al-Fadil e Imad al-Din. Esses sábios decidiriam a sucessão. Você está sorrindo. Acha que eles acabariam criando suas próprias dinastias de filhos e netos sábios? Talvez tenha razão. Vamos continuar discutindo isso numa outra ocasião. Nosso amigo Xadi já está dormindo.

Apesar de Xadi roncar alto, recusei a proposta de deixar para outro dia. Sabia que o sultão agora só tinha um objetivo — a reconquista de Jerusalém. Ele ficou mais seguro com as informações dadas por Bertrand de Toulouse e acreditava que venceria Amalric.

Sugeri que talvez devêssemos continuar a história de sua vitória em Damasco, dominando todos os inimigos e tornando-se o mais poderoso soberano entre os que juraram submissão a Alá e seu profeta. Em breve, ele estaria envolvido em novas guerras. Teríamos pouco tempo e as lembranças de lutas passadas poderiam se apagar.

Saladino deu um suspiro e concordou em continuar. — Você é muito gentil, por isso não citou uma outra possibilidade, Ibn Yakub. Posso morrer na batalha e então sua história ficará pela metade. Seu argumento é pertinente. Vamos continuar, embora exista um perigo sobre o qual devo preveni-lo. Não estou me referindo a fatos que causaram muita emoção. Meus inimigos falaram de minhas conquistas como atos de ambição pessoal. Eu era um simples e apressado curdo montanhês. Só estava preocupado em deixar uma dinastia e enriquecer meu clã. Digo isso porque, se por acaso parecer que estou, involuntariamente, querendo enganá-lo, esteja à vontade para perguntar o que quiser. Entendeu?

Fiz um sinal afirmativo e ele continuou.

Um dia, um velho soldado trouxe notícias muito preocupantes de Damasco. Ele tinha deixado sua cidade natal com a família, seus camelos e todos os pertences, e atravessado o deserto até o Cairo. Xadi o viu mendigando em frente ao palácio. Esse velho lutara ao lado de meu pai e meu tio. Era um soldado corajoso, digno de confiança e muito apegado a meu pai. Xadi não perdeu tempo e trouxe-o na hora à minha presença. Arranjamos alojamento para a família dele, embora não tivesse ido lá para pedir favores.

Ele me informou que os emires de Damasco tinham pago uma grande quantia em ouro aos cruzados para garantir sua colaboração. Esse ato de traição tinha sido repetido centenas de vezes nas cartas em que pediam aos cruzados que ficassem contra mim. Você pode imaginar uma coisa dessas, Ibn Yakub? Estavam tão assustados com a possibilidade de perder o poder que preferiam entregar sua própria cidade ao inimigo. A mesma cidade em que a aflita população acabara de enterrar com tanta tristeza Nur alDin, com quem aprendemos que nossa primeira tarefa é expulsar aqueles gafanhotos que adoram imagens e dois pedaços de pau em forma de cruz.

Fiquei pálido de raiva. Na mesma hora decidi que tínhamos de garantir que os cruzados jamais entrariam em Damasco. A sorte nos ajudou. Desde a morte de Nur al-Din, as três grandes cidades — Damasco, Aleppo e Mosul — tinham-se dividido. O eunuco que governava Aleppo seqüestrou o filho de Nur al-Din e transformou-o num peão no jogo de xadrez que um dia fora o reino do pai. Os nobres de Damasco ficaram apavorados. Tinham perdido o peão para o inimigo e pediram ajuda a Saif al-Din, em Mosul, mas ele estava envolvido em seus próprios planos e não Quis ajudá-los.

A essa altura, vieram me procurar. Estávamos no inverno e Teríamos de cavalgar pelo frio da noite no deserto, o que era uma perspectiva pouco agradável. Convoquei meus comandantes e preparamos um exército de mil soldados cuidadosamente escolhidos.

Nos momentos críticos, a noção exata de tempo é tudo. Até um pequeno atraso é suficiente para transformar a vitória em derrota. Saímos no dia seguinte e cavalgamos como se estivéssemos a caminho do céu. Levamos um cavalo extra para cada soldado, a fim de que nossos animais pudessem descansar, mas nós não. Dormíamos enquanto cavalgávamos e, quatro dias depois, cheguei aos portões de Damasco. Veja você, confiável escriba, o motivo da minha pressa. Aqueles que, desesperados, tinham me pedido para salvá-los, poderiam mudar de idéia com a mesma rapidez se outros — os cruzados — aparecessem fora dos muros da cidade. Eu não queria dar essa chance a eles.

Quando entramos na cidade antiga, as lágrimas escorreram pelo meu rosto. Era a cidade da minha juventude. Fui direto para a casa de meu pai. As ruas estavam cheias de gente que saudava nossa chegada. Davam gritos de alegria e os nobres, com os rostos duros como bunda de camelo, fizeram-me uma reverência e beijaram minha mão. Teriam feito a mesma coisa com Amalric, embora não em público. Nosso povo teria se escondido dentro de casa se os cruzados tivessem entrado na cidade. Não estou me referindo apenas aos fiéis, Ibn Yakub. Seu povo sempre esteve ao nosso lado, mas nem os antigos cristãos de Damasco, que se diziam coptas, estavam dispostos a saudar os cavaleiros templários.

Foi um dia feliz e muitos de meus velhos amigos vieram me visitar. Imad al-Din, temendo os nobres e suas intrigas, saíra da cidade e se refugiara em Bagdá. Mandei buscá-lo, ele é o al-Fadil de Damasco. Esses dois homens bons são minha consciência e minha razão. Se todos os soberanos tivessem homens assim, nosso mundo seria mais bem governado. Deixei meu irmão mais jovem, Tuguetigin, cuidando de Damasco e fui cumprir a tarefa a que me propusera: reunificar o reino de Nur al-Din.

O inverno estava piorando e chegaram notícias de nevascas nas montanhas. Mas eu estava entusiasmado com o apoio do povo de Damasco. Resolvi não perder mais tempo.

Nossos soberanos costumam comemorar muito uma vitória, esquecendo que a festança pode lhes custar o reino.

De repente, o sultão calou-se. Parei de escrever e olhei para ele. Seu rosto estava cansado e ele parecia imerso em pensamentos. Era difícil saber por que ficara destruído. Será que se lembrou de outras guerras e carnificinas? Ou pensou em Xirkuh, cuja ajuda teria sido tão útil naquele momento?

Fiquei parado, esperando que me dispensasse, mas seu olhar era distante e ele parecia ter esquecido da minha presença. Estava indeciso, até sentir a mão de Xadi no meu ombro. Fez um sinal para segui-lo e saímos do aposento real sem fazer barulho para não perturbar o devaneio de Saladino. Ele nos viu e deu um sorriso estranho, gelado. Fiquei preocupado com a saúde dele, nunca o vira assim.

Quando cheguei em casa, percebi que também estava cansado depois daquele dia de trabalho. Ficara sentado no chão, de pernas cruzadas, escrevendo sem parar durante quatro horas. Minhas pernas, meu braço e minha mão precisavam de cuidados. Raquel aqueceu um pouco de óleo de amêndoas para massagear meus dedos. Bem mais tarde, esquentou mais um pouco de óleo para esfregar minhas pernas cansadas e excitar o órgão que estava murcho e inerte no meio delas.


15

A causa da melancolia de Xadi
e a história de seu amor trágico

Você ficou preocupado ontem, Ibn Yakub. Pensou que Saladino estivesse doente. Já vi aquele olhar no rosto dele. Aparece quando se lembra de algum problema. Esse menino é muito inteligente, mas inseguro. Mesmo quando era muito jovem ele entrava em transe, como nossos sufis no deserto. Sempre volta ao normal e se sente bem melhor. É como se tivesse tomado um purgante.

"Sim, este velho bobo que você acha que é um palhaço, um analfabeto das montanhas, sabe muito mais do que aparenta, meu bom amigo.

Naquela manhã, Xadi não estava animado como de costume. Seu olhar era triste, o que estranhei. Eu me sentia muito próximo do velho, que conhecia seu soberano melhor do que qualquer pessoa. Era evidente que o sultão gostava dele, mas Xadi, cuja familiaridade com Saladino deixava muita gente intrigada — inclusive o cádi -, jamais tirou vantagem de sua posição. Ele podia ter tudo o que quisesse: riquezas, feudos, concubinas, o que mais imaginasse. Mas era um homem de hábitos simples, Para quem a felicidade consistia em ficar perto de Saladino, que considerava como a um filho.

Perguntei por que estava triste.

— Estou ficando velho, daqui a pouco morro e esse menino não vai ter um ombro para chorar, ninguém para lhe dizer quando está sendo bobo e teimoso. Você sabe que quase nunca rezo, mas hoje desfiei as contas do masbahah e rezei para Alá me dar forças por mais alguns anos, para que eu possa ver Saladino entrar em al-Kadisia. Fiquei preocupado com medo de esse pedido não ser atendido.

Ele se calou e aquele silêncio tão incomum me emocionou, Mas logo se recuperou, o que me surpreendeu.

Saladino não vai mais falar dos problemas da época em que estava dominando os herdeiros de Zengui e de Nur al-Din. Acho que essa lembrança é dolorosa para ele.

Foram tempos difíceis, mas não pense que ele era tão ingênuo. Quem o ouvisse falando com você ontem, podia ficar com a impressão de que foi pego de surpresa pelos acontecimentos. Não é verdade.

O pai dele, Ayub, o havia preparado com paciência e cuidado para o dia em que Nur al-Din morresse. Lembro-me bem de Ayub avisando Saladino que a pressa para garantir a tomada do reino de Nur al-Din seria fatal. Saladino deveria agir sempre de acordo com os interesses do falecido sultão, ou pelo menos dar essa impressão às pessoas. O sultão seguiu o conselho do velho pai e, quando chegou a hora, agiu — e agiu certo. No dia em que entrou em Damasco, o povo chorou de alegria, jogou flores em nós e Saladino concluiu que havia chegado a hora. Precisava garantir aquelas terras e preparar-se para o grande encontro com nosso inimigo.

Hoje faz exatamente dez anos que ele venceu os exércitos de Al-Mawsil e Aleppo. Eram cinco soldados inimigos para cada um dos nossos. Querendo ganhar tempo, Saladino quis fazer um acordo com nossos inimigos, mas eles achavam que nossas cabeças já estavam dentro de seus alforjes. Sonhavam mostrar a cabeça do nosso sultão ao povo de Damasco e não aceitaram nossa proposta de trégua. Aí, o sultão ficou irritado, seu rosto mostrava desprezo Por aqueles idiotas. Falou com seus soldados, homens experientes e vividos do Cairo e de Damasco, que haviam lutado muitas vezes contra os cruzados. Disse a eles que a vitória naquele dia selaria o destino dos cruzados. Disse que teriam de lutar contra outros fiéis que traíram os princípios do grande Nur al-Din. Ele, Saladino, empunharia as cores do profeta preto e verde e afastaria os bárbaros daquelas terras.

Tínhamos tomado posição nas colinas chamadas de Chifres de Hamá. Lá embaixo ficava o vale banhado pelo Orontes. Saladino deu o grito de comando e seus soldados gritaram também, aclamando-o, mas os pavões de Al-Mawsil e Aleppo estavam tão certos da vitória que não se preocuparam com as táticas militares. Conduziram suas tropas pelo desfiladeiro e foram arrasados. Muitos soldados desertaram e passaram para nossas fileiras. Seus líderes derrotados imploraram misericórdia, e Saladino, lembrando sempre da prudência do pai, aceitou um acordo pelo qual recebeu tudo o que queria, menos a fortaleza de Aleppo. Mas acabaria ficando com ela também mais tarde.

Não foi uma vitória qualquer, meu caro escriba. Ela transformou seu sultão no soberano mais poderoso da terra. Foi nessa época que ele se proclamou sultão do Misr e de Sham. Foram cunhadas moedas de ouro com o nome dele, e o califa de Bagdá enviou os documentos que o confirmavam no novo cargo. Enviou também os trajes que ele deveria usar como sultão.

Mas a história não acaba aí. Não, ainda houve muita coisa. Com o orgulho ferido, os nobres de Aleppo fizeram uma última tentativa para se livrar daquele curdo intrometido. Mandaram um recado para o xeque Sinan, que era xiita e vivia nas montanhas. O xeque foi cercado por um bando de homens treinados na arte de perseguir e matar. Ele apoiava os fatímidos e tinha seus motivos Para acabar com nosso sultão.

O fato de o pedido não vir dos remanescentes fatímidos, mas de nobres sunitas, aumentou a determinação do xeque Sinan. Imad al-Din, que espero que você conheça logo, contou ao sultão que os seguidores do xeque Sinan costumavam fumar muito banj antes de sair para missões especiais. Só quando estavam bastante embriagados pelo haxixe e sonhando com outros prazeres é que esses hashishins cumpriam as ordens do xeque para matar. Fizeram dois atentados contra o sultão. No primeiro, dominaram seus seguranças e cercaram sua cama. Saladino teria morrido, se um soldado atento não tivesse o alarme e se o soberano não estivesse usando seu colete forrado contra o frio da noite no deserto. Ele foi atingido de raspão por um punhal e seus agressores foram presos em seguida.

Foi depois desses atentados que Saladino finalmente encontrou o xeque Sinan e fez um acordo. Uma vez, quando Sinan estava sendo ameaçado por um inimigo, chegamos a mandar soldados para defendê-lo. Mas o inimigo nunca mais apareceu. Circulavam muitas histórias a respeito do acordo. Algumas diziam que o xeque tinha poderes mágicos e era capaz de ficar invisível. Outras diziam que, quando nossos soldados o cercaram, o xeque conseguiu se defender com uma misteriosa força que o protegeu de todas as armas. Os hashishins espalhavam essas histórias para criar mitos de invencibilidade. Mas garanto uma coisa, Ibn Yakub. Fosse por causa do haxixe ou por sonharem com o paraíso, não há dúvida de que os soldados do xeque Sinan eram muito eficientes e capazes de executar qualquer tarefa. Quando Saladino e Sinan concordaram em se respeitar, todos nós ficamos aliviados e agradecemos a Alá.

Poucos meses depois, Saladino entrou em Aleppo e foi reconhecido como sultão de todos os territórios sobre os quais governava.

Ele indicou Es-salih, que era filho de Nur al-Din, como soberano de Aleppo. E confirmou o primo de Salih, Saif al-Din, para soberano de Al-Mawsil, e ele concordou em manter a paz durante seis anos. Acho que Saladino foi prudente demais. Estava agindo como o pai teria aconselhado, mas nessa época precisava ter o espírito do tio Xirkuh. Devia ter tirado es-Salih e contratado os cães de Mosul, homens tão maus que não hesitariam em urinar nas próprias mães.

Sim, eu disse isso para ele, mas Saladino sorriu como o pai. Ele tinha dado sua palavra, era o suficiente. O sultão sempre manteve a palavra, embora seus inimigos muitas vezes tirassem vantagem disso.

Os cruzados, por exemplo, como bons cristãos, achavam que nenhuma promessa feita a infiéis merecia ser cumprida. Sempre que lhes convinha, aqueles fodedores e adoradores de imagens rompiam os acordos. Nosso sultão foi muito honrado. Devia ser por causa de suas origens: nas montanhas, se um curdo dá sua palavra, jamais deixa de cumpri-la. Esse costume remonta a milhares de anos, desde muito antes do nascimento do nosso profeta, que a paz esteja com ele.

Amalric, rei de Jerusalém, tinha morrido e foi sucedido pelo filho de catorze anos, Balduíno, um pobre menino que sofria de lepra. Bertrand de Toulouse nos informara a respeito do tio do menino, Raimundo, conde de Trípoli, que passou a ser o verdadeiro mandante no reino dos cruzados. Saladino firmou uma trégua de dois anos com Balduíno. Não queria ser cercado no Misr enquanto estivesse desembarcando no litoral da Síria.

O irmão do sultão, Turan Xá, foi encarregado de governar Damasco, e o sultão, eu e os guarda-costas dele voltamos para o Cairo. Estivemos fora durante dois anos inteiros, mas não houve qualquer problema nesse período: o cádi al-Fadil tinha administrado o Estado na ausência do sultão.

Al-Fadil foi tão bom administrador que, quando Saladino o cumprimentou ao chegar, perguntou: 'Al-Fadil, diga-me uma coisa, será que um sultão é mesmo necessário?

Parece que esse Estado vai muito bem sem soberano!" Satisfeito, o cádi fez uma reverência, mas garantiu a Saladino que, sem sua autoridade e seu prestígio, ele, o cádi, não teria feito nada.

Quanto a mim, Ibn Yakub, acho que os dois tinham razão. Sabe de uma coisa? Nas montanhas da Armênia, o povo era fiel ao pai de Ayub e de Xirkuh porque sabia que ele era um dos seus. Defenderia o povo e seus rebanhos contra ataques das aldeias próximas.

Sei que estou ficando muito velho e posso ser simplório, mas acho que, se você consegue manter a paz e defender seu povo, não tem a menor importância o título que se atribui.

Olhei bem para aquele velho. As rugas de seu rosto pareciam ter se multiplicado desde que o conheci. Tinha só uns oito ou nove dentes na boca e era totalmente surdo do ouvido esquerdo. Mas sua cabeça tinha décadas de sabedoria, verdades que aprendeu na rica experiência que a vida lhe deu. Falava sempre o que queria, mas era respeitado tanto pelo sultão como por um mameluco.

Era esse talento para falar o que lhe vinha à cabeça que fez dele uma pessoa indispensável para Saladino, como antes fora para Ayub e Xirkuh. Costuma-se dizer que os poderosos preferem ter à volta bajuladores e sicofantas, em vez de pessoas que dizem verdades duras de ouvir. Mas isso só ocorre com soberanos fracos, incapazes de conhecer a si mesmos e, muito menos, de atender às necessidades de seus súditos. Os bons governantes, os sultões poderosos, precisam de homens como Xadi, que nada temem.

Enquanto eu o observava, mastigando amêndoas devagar sob o sol de inverno, fui tomado por uma onda de afeto. De repente, tive vontade de saber mais a respeito dele. Conhecia sua origem, mas será que algum dia foi casado? Teve filhos? Ou era um desses homens que preferem ficar sozinhos a ter a companhia de uma mulher?

Já pensara nisso antes, mas meu interesse se dispersou e nunca perguntei nada ao velho. Naquele dia, por alguma razão alheia a ele, fiquei curioso.

— Xadi — falei, com carinho -, você teve alguma mulher na vida?

Seu rosto, que repousava ao sol, ficou alerta. A pergunta o assustou. Olhou-me e seu cenho franzido fez uma grande sombra no rosto. Por alguns instantes, o silêncio foi opressivo. Depois, ele perguntou, zangado: — Alguém falou de mim para você? Quem? Neguei, sacudindo a cabeça. — Meu caro amigo. Só me falaram de você com carinho. Eu apenas queria saber por que uma pessoa tão interessante e sábia como você nunca teve uma família. Se o assunto for doloroso, esqueça minha intromissão. Vou embora.

Ele sorriu.

— É doloroso, escriba. Aconteceu há setenta anos, mas ainda me dói, bem aqui no coração. O passado é delicado, deve-se mexer nele com cuidado, como carvões em brasa. Nunca falei para ninguém sobre o que houve há tantos anos, mas você me perguntou com tal afeto que vou lhe contar minha história, embora ela só interesse a mim e não vá mudar nada. Xirkuh foi o único a saber. Devo preveni-lo de que é uma história comum, mas partiu meu coração, que nunca mais se recuperou.

Quer mesmo saber? Balancei a cabeça afirmativamente e apertei suas mãos enrugadas.

Eu tinha dezenove anos. Sempre que chegava a primavera, a seiva de meu corpo se manifestava e eu achava uma prostituta na aldeia para satisfazer meu desejo. Isso acontecia com qualquer rapaz, exceto, claro, com aqueles que tinham dificuldade para encontrar uma mulher e subiam a montanha à procura de ovelhas e cabras. Você parece surpreso, Ibn Yakub. Não se preocupe. Você perguntou minha história e estou contando, mas da minha maneira. Nós, meninos, costumávamos dizer que quem fodia com uma ovelha ficava com o pênis curto e grosso; se fosse com um bode, ficava fino e comprido!

Parece que isso não lhe interessa, mas a vida nas montanhas é muito diferente do Cairo e de Damasco. A verdadeira função dessas grandes cidades é tolher nossa espontaneidade e impor uma série de regras de comportamento. As montanhas são livres. Perto da nossa aldeia havia três montanhas. Nós podíamos ir até lá, deitar no chão, olhar o sol se esconder e deixar que a natureza nos dominasse.

Um dia, meu pai verdadeiro, que era avô do seu sultão, atacou uma caravana que passava e trouxe o produto do saque para casa. Parte dele consistia num grupo de jovens escravos — três irmãos, de oito, dez e doze anos, e a irmã, de dezessete.

Eram judeus de Burgos, na Andaluzia. Estavam viajando com a família pelos arredores de Damasco quando foram capturados por homens que caçavam bandidos para receber uma recompensa. O pai, o tio e a mãe foram mortos na estrada, o ouro que tinham foi apanhado pelos comerciantes. As crianças foram levadas para o mercado de Basra, onde seriam vendidas.

A tristeza dos olhos da menina deixou-me tão impressionado como nada antes ou depois disso. Ela apertava os irmãos no peito e aguardava o que o destino lhe reservaria.

Acabaram recebendo roupas, sendo alimentados e colocados na cama: nosso clã os adotou. Os meninos cresceram como curdos e lutaram em muitas de nossas batalhas.

Quanto à menina, Ibn Yakub, o que posso dizer? Ainda sou capaz de vê-la na minha frente com seu cabelo negro, comprido até a cintura, o rosto claro como a areia do deserto e os olhos tristes como os de uma pomba quando cai numa arapuca. Mas ainda era capaz de sorrir, e quando isso acontecia seu rosto inteiro mudava e iluminava o coração de quem tivesse a sorte de estar por perto.

Primeiro fiquei adorando-a de longe, depois começamos a conversar e mais tarde nos tornamos muito amigos. Sentávamos à beira do riacho, perto dos lírios perfumados, e contávamos histórias. Ela às vezes chorava quando lembrava que os pais foram mortos por bandidos. Eu não conseguia pensar em outra coisa, somente nela, Ibn Yakub. Eu lhe pedi que se tornasse minha esposa, mas ela sorria e negava. Dizia que era muito cedo para tomar uma decisão tão importante. Dizia que precisava ser independente antes de decidir qualquer coisa. Dizia que precisava tomar conta dos irmãos. Dizia qualquer coisa, menos que me amava.

Sabia que ela gostava de mim, mas fiquei desapontado com sua recusa. Passei a ficar frio e distante, ignorando-a quando se aproximava e tentava conversar, ou quando me trazia um copo de suco de damasco. Seus olhos me pediam mais tempo, mas continuei inflexível. Eu estava com o orgulho ferido e para nós, montanheses, caro escriba, o orgulho era a coisa mais importante do mundo.

Todos os meus amigos sabiam que eu estava perdendo a cabeça por causa dela. Viam que estava louco de amor, como aqueles personagens das músicas que costumávamos cantar nas noites enluaradas de verão, quando falávamos em conquistar o mundo. Meus amigos começaram a rir de nós dois. Por isso fiquei com mais vontade ainda de magoá-la e de ofender seus sentimentos.

Quantas vezes amaldiçoei o céu, a terra, minha cabeça, meu coração, este corpo feio e disforme por não ter entendido que ela era uma flor delicada que precisava de cuidado e proteção. Minha voracidade a assustou. Em pouco tempo, o prazer que ela sentia ao me ver virou melancolia. Quando eu me aproximava, seu rosto se entristecia, ela havia se transformado num pássaro da dor. Embora eu tivesse apenas vinte anos, comecei a achar que causava o mal às pessoas ternas e jovens.

Tudo isso foi há muito tempo, meu amigo, mas percebeu como minhas mãos tremem quando falo nela? Meu coração fica descompassado e começo a sentir fraqueza. Quero me enterrar no chão, morrer, o que não deve demorar muito a acontecer, queira Alá. Você está aguardando que eu termine esta história, mas não sei se consigo falar mais hoje. Agora você parece muito preocupado. Então vou terminar de contar, Ibn Yakub.

Uma tarde, fui com um grupo de amigos beber ‘tamr’, vinho de tâmara, e cantar o ‘khamria’ e ficamos cada vez mais bêbados e, no meu caso, infeliz. Era uma noite muito quente de verão. O céu estava todo estrelado e a luz tênue de uma lua minguante se refletia na água. Afastei-me do grupo e fui até a beira do riacho onde eu e ela costumávamos nos encontrar e conversar. A princípio, achei que estava imaginando que ela estava ali. Mas meus olhos não me enganavam. Com o calor da noite, ela tirou a roupa e ficou nua como quando nasceu, tomando banho à luz da lua. Quando vi, perdi a cabeça. Meus sentidos se apossaram de mim, Ibn Yakub. Que Alá me perdoe pelo que fiz naquela noite.

Vejo em seus olhos assustados que você adivinhou. Sim, tem razão, meu amigo. Eu estava dominado por um sentimento animalesco, embora a maioria dos animais se trate com docilidade. Forcei-a contra a vontade dela. Não gritou, mas jamais esqueci seu olhar, misto de medo e surpresa. Deixei-a à beira do riacho e voltei para a aldeia. Ela nunca mais voltou. Poucos dias depois, encontraram seu corpo. Tinha se afogado. Você poderia pensar que um animal como eu seria capaz de se recuperar disso, encontrar outras mulheres, casar e ter filhos maravilhosos. Mas talvez a morte dela tenha matado também o animal que existia dentro de mim. Meu coração certamente morreu e acho que está enterrado perto daquele riachinho nas montanhas da Armênia. Encontrei e perdi um tesouro de valor incalculável. Nunca mais olhei nem toquei outra mulher. Nunca mais bebi também. Alá tem muitas formas de nos castigar.

Em geral, depois de contar suas histórias, Xadi ficava esperando minha reação, discutindo detalhes e esclarecendo minhas dúvidas. Então, tomávamos um copo de água ou leite morno com amêndoas moídas — mas naquele dia foi diferente. Ele se levantou devagar e saiu, desanimado, talvez me maldizendo por obrigá-lo a recordar coisas tão dolorosas.

Ele tinha dito que o passado era delicado e, quando o vi de costas, indo embora, pensei que ele mesmo Simbolizava aquela palavra.

Fiquei perplexo com a história. Violentar mulheres não era um fato raro, mas o castigo que Xadi se infligiu era realmente único — Aquele velho, a quem eu já estava tão apegado, cresceu na minha estima.


16

Encontro o grande erudito Imad al-Din
e fico impressionado com sua prodigiosa memória

Como de hábito, entrei na biblioteca do palácio para olhar os livros enquanto esperava o sultão me chamar. Para minha surpresa, a pessoa que veio me buscar foi o grande erudito e historiador Imad al-Din. Embora tivesse quase sessenta anos, seus cabelos e sua barba não eram muito grisalhos. Era um homem grande, bem mais alto que o sultão e eu. Um de seus livros, Caridat alkasr wa-djaridat ahl al-asr, primorosa antologia da poesia árabe contemporânea, acabara de ser lançado e estava sendo muito bem recebido.

Ele preferia morar em Damasco, mas o sultão mandou que viesse ao Cairo para ajudar nos preparativos finais da nova jihad. Imad al-Din era considerado um homem de muito estilo. Quando recitava uma poesia ou lia um texto, era interrompido por exclamações de elogio e satisfação. Eu respeitava sua obra, mas, para minhas leituras particulares, preferia a simplicidade das escrituras. O estilo de Imad al-Din era muito floreado, elaborado e preciosista, faltava-lhe naturalidade para agradar ao meu gosto meio conservador.

Enquanto passávamos pelos diversos aposentos do palácio, ele contou que ouvira falar muito bem a meu respeito e que gostaria de um dia ter tempo para ler minha transcrição das palavras do sultão.

— Espero que melhore as palavras que nosso soberano usa, Ibn Yakub. Saladino, que reine para sempre, não dá muita atenção ao estilo. Essa tarefa compete a você, meu amigo. Se precisar de ajuda, esteja à vontade para me procurar.

Agradeci sua gentil oferta com um sorriso e um aceno da cabeça. Mas, por dentro, fiquei zangado. Imad al-Din era um grande erudito, sem qualquer dúvida. Mas que direito tinha de impor sua vontade sobre os projetos pessoais do sultão, tarefa que era minha e de mais ninguém? Chegamos aos aposentos de Saladino, mas só Xadi estava lá.

— Por favor, sentem-se e descansem — disse o velho, relutante. — Saladino foi chamado no harém, parece que Jamila criou algum problema.

Fez-se um silêncio estranho. A presença inibidora de Imad al-Din provava que eu não iria perguntar nada, nem Xadi daria qualquer informação a respeito de Jamila.

Era sabido que Imad al-Din não se interessava por nenhum tipo de mulher. Para ele, a verdadeira satisfação intelectual e afetiva só podia existir na companhia masculina.

Como se percebesse nosso nervosismo, Imad al-Din limpou a garganta, o que interpretei como um pedido de atenção a alguém de sua posição. Xadi, que não costumava respeitar ninguém, saiu da sala dando um grande peido e deixando-me a sós com o grande mestre.

Fiquei procurando um assunto para puxar conversa com o grande erudito, mas eu estava intimidado e constrangido. Dizia-se que Imad al-Din jamais esquecia qualquer coisa que visse ou ouvisse. Se alguém tivesse contado uma história anos antes e, sem lembrar do fato, começasse a recontá-la, ele se lembraria com tamanha exatidão que logo apontaria as diferenças entre as duas versões — causando grande embaraço a quem tinha contado a história.

Ele era capaz de lembrar-se não só da hora do dia ou da noite em que determinado fato ocorrera, mas de todos os detalhes. Uma vez, o sultão perguntou-lhe como conseguia ter uma memória assim. Ele explicou que seu método consistia, primeiramente, em lembrar-se dos detalhes como a árvore sob cuja sombra descansavam os ouvintes quando a história foi contada, ou se estavam numa viagem de barco, numa praia, e a hora — a partir daí, lembrava todo o resto. Eu estava presente quando essa conversa ocorreu, alguns meses antes, mas não consegui anotá-la. Fiquei tão fascinado com o jeito de Imad al-Din falar, sua voz suave e envolvente, que esqueci tudo.

— Com todo respeito, ó mestre, dizem que o senhor não pretendia ser secretário na chancelaria do sultão, mas concentrar seu grande talento em escrever suas próprias obras. Isto é verdade?

Ele me olhou com frieza, fazendo com que me sentisse um inseto insignificante. Lamentei ter perguntado, mas sua voz suave me deu confiança.

— Não, não é verdade. Quando estudei os textos e cartas escritos por al-Fadil no Cairo, percebi que podíamos fazer o mesmo em Damasco. Pensei que seria uma tarefa difícil, mas Alá me ajudou. Desprezei todas as velhas formas de escrever cartas oficiais e criei um estilo inteiramente novo. Meu caro jovem, o sultão da Pérsia e até o papa de Roma ficaram impressionados com meu estilo. O falecido sultão Nur al-Din, que descanse em paz, apreciava tanto meu trabalho que me transformou em ‘mushrif’. Fiquei encarregado de toda a parte administrativa do Estado. Isso incomodou muita gente, que achou que eu passei à sua frente. Essas pessoas tentaram me criar problemas.

"Lembro-me do dia em que chegou um enviado do califa de Bagdá com uma carta para Nur al-Din. Meus inimigos mesquinhos não me convidaram para a recepção oferecida ao mensageiro. O velho sultão sentiu minha ausência e ordenou que suspendessem tudo até a minha chegada. Quando entrei, ele me entregou a carta para ler e al-Kaisarini, que estava substituindo o vizir naquele dia, arrancou-a de minha mão. Não reagi, mas quando ele começou a ler, corrigi seus erros e o orientei nas vezes em que se perdeu no texto. Lembro que depois, a sós, Nur al-Din achou graça do que acontecera — e era um sultão sem muito tempo para rir de alguma coisa. Naquele dia, riu e me cumprimentou por minha habilidade diplomática.

Imad al-Din ia continuar, mas nossa conversa foi interrompida pela chegada do sultão. Levantei-me, fiz uma reverência enquanto Saladino segurava o ombro de Imad al-Din para impedir que se erguesse.

— Estava ensinando alguma coisa a Ibn Yakub? — Não, Majestade. Estava apenas corrigindo um erro de interpretação histórico em relação ao meu passado.

O sultão sorriu. — Não deve cansar sua memória, Imad al-Din. Às vezes, acho que você decora coisas demais. Preciso que esteja alerta para as guerras que vamos empreender agora. Pode ser que eu morra e só restará você para lembrar todos os detalhes da jihad e garantir que sejam divulgados entre os fiéis.

O secretário fez uma mesura e o sultão indicou que ele podia sair. Quando ficamos a sós, disse: — Como sabe, aprecio a sultana Jamila e sua grande inteligência. Mas de vez em quando me pergunto como uma mulher tão inteligente pode fazer tanta confusão. Parece que ela e Halima se isolaram das outras mulheres. Jamila formou um grupo de seis ou sete mulheres, que ela instrui e orienta. Isso provoca mal-estar e hostilidade, já que ela e Halima não se preocupam em disfarçar o desprezo que sentem pelas mulheres que preferem aproveitar os prazeres da vida e se recusam a exercitar também a cabeça. Essas mulheres vivem para o prazer e nada mais. Não estão preocupadas com a jihad nem com a filosofia de Ibn Rushd. Por isso, Jamila quer castigá-las.

Fui obrigado a repreendê-la e dizer que não deve mandar nas outras.

Ela concordou na frente das mulheres, mas não gostou. Saí em seguida. Fique certo, Ibn Yakub, ela vai encher os seus e os meus ouvidos antes do fim desta semana. Aquela mulher não se dá por vencida. Hoje não estou disposto a ditar, falaremos amanhã.

"Por favor, ao sair peça a Xadi para mandar alFadil, Imad al-Din e Kara Kush aos meus aposentos. Você parece surpreso. Há decisões importantes a serem tomadas nos próximos dias.

Fiquei desapontado por ter de sair da sala e, pela primeira vez, disse o que pensava.

— Farei o que Sua Majestade ordena, mas seria mais lógico se eu também estivesse aqui. Fui escolhido para escrever as memórias do sultão. Ficarei calado escrevendo e as notas poderão ser conferidas pelo cádi.

Ele pareceu achar tão estranho como se tivesse sido jogado ao chão por seu corcel preferido.

Ibn Yakub, há coisas que é melhor não contar. Não pense que não sei como se sente quando peço para sair das reuniões em que são discutidos os mais altos interesses do Estado. Faço isso para sua proteção e por sua segurança. Todos os meus inimigos sabem que você me encontra diariamente. Sabem também que é obrigado a sair quando planejamos as táticas para a próxima etapa da jihad.

"Nada que acontece neste palácio é segredo. As histórias chegam rápido ao harém e os boatos voam do palácio para a cidade. Se soubessem que você participa dos conselhos secretos de Estado, sua vida correria perigo. Esta é a razão. Mas a reunião desta noite não foi programada, então você pode sentar-se a certa distância, observar e anotar. Quem vai conferi-las não é alFadil, e sim Imad al-Din: ele se lembrará de tudo.

Fiz uma reverência para mostrar minha gratidão e saí. Fiquei satisfeito por ter tido coragem de discordar da decisão dele e, por alguma razão inescrutável, essa pequena vitória me causou enorme prazer. Encontrei Xadi fora do palácio e informei-o das ordens do sultão. Ele mandou um mensageiro dizer aos três homens que precisavam voltar ao palácio imediatamente. Depois, virou-se para mim.

— O que achou de nosso grande erudito, o nobre Imad Al-Din?

— Tive ótima impressão dele, embora não tão boa quanto ele tem de si próprio.

Xadi riu.

— Aquele filho da puta, al-Warani, escreveu mais uma música a respeito dele e de seu amante.

— Quem é o amante? — Um lindo rapaz de cabelos encaracolados. O cantor. Sabe quem é? Acho que se chama al-Murtada, isso mesmo. A música é assim:

‘Nosso grande erudito Imad al-Din sabe que seu texto preferido é al-Murtada, nu.

Os dois trepam como cães, de quatro, e bebem vinho no umbigo de escravas e prostitutas.’

Quando estávamos rindo da história, Imad al-Din passou por nós, conversando animadamente com o cádi alFadil. Fiquei sério, mas Xadi ria sem parar. As lágrimas corriam por suas bochechas. Deixei-o assim e acompanhei os dois homens de volta aos aposentos do sultão. Atrás deles, ouvi os passos suaves de Kara Kus. Esperei que me alcançasse e fomos juntos ao encontro do sultão.

Percebi que a discussão sobre a jihad vinha ocorrendo há vários dias. A principal questão a ser resolvida era a ida do sultão para Damasco. Achavam que, como o Cairo e o resto do país estavam em paz, era hora de o sultão voltar para Damasco, onde havia sérios problemas que exigiam sua atenção.

Imad al-Din lembrou que Farruk Xá, o sobrinho de Saladino que estava governando Damasco, não era um bom administrador.

Tinha tendência à lascívia, não via razão para a jihad e tomava decisões que desfalcavam as finanças do tesouro. Imad al-Di declarou-se totalmente a favor da mudança do Cairo para Damasco.

Kara Kush era contra, mas não foi convincente. Sem conseguir justificar sua opinião, passou simplesmente a desfiar elogios ao sultão, afirmando que, sem sua serena e nobre presença, temia que o país entrasse em decadência.

Esse tipo de atitude irritava o sultão, que criticou seu administrador e disse que só tomaria uma decisão depois de responder a uma pergunta simples: a mudança facilitaria a derrota do inimigo e a conquista de al-Kadisia? Ele não aceitava qualquer outra justificativa.

Al-Fadil falou a seguir: explicou que, prevalecendo a opinião do sultão, a mudança para Damasco seria inevitável: Al-Kadisia não seria conquistada se o centro das operações ficasse no Cairo. Ao mesmo tempo, o cádi estava preocupado com o que poderia ocorrer na cidade na ausência do sultão.

Saladino deixou que os homens falassem durante algum tempo, antes de interrompê-los com um gesto.

Acredito que os argumentos para fortalecer Damasco e as outras cidades do Sham são irrefutáveis. Se queremos tomar al-Kadisia, preciso garantir que todas as minhas cidades estejam em boas mãos. Não podemos confiar na sorte ou esperar que os fiéis não nos traiam. Como sempre digo ao nosso povo, essa é a maldição de nossa fé. Vamos sair do Cairo dentro de dez dias. Você, Ibn Yakub, virá conosco para Damasco, com sua mulher e filha, pois só Alá sabe quanto tempo ficaremos lá.

"Depois de cumprir nossa missão, voltaremos ao Cairo, se Alá assim quiser. Gosto da cidade, tenho boas lembranças dela.

"Sua função, Kara Kush, é garantir que, ao voltarmos, a fortaleza esteja pronta. É lá que vou morar e, como sabe, esses velhos palácios não me agradam muito.

Todos os presentes riram, mas Imad al-Din ficou sério e mostrou certa irritação ao falar.

— Todos sabem, ó sultão, que Sua Majestade prefere dormir em fortalezas, mas quero solicitar que controle um pouco as atividades de Kara Kush. Ele está vendendo todos os livros das bibliotecas do palácio. Alguns idiotas são tão ignorantes que compram os livros pelo peso e não pelo conteúdo. Sei que Kara Kush não dá importância ao conhecimento, mas o que está vendendo é propriedade e legado de todos nós. Só na biblioteca deste palácio temos a coleção mais completa de livros de medicina e filosofia e...

O sultão interrompeu-o antes que terminasse a frase. — Kara Kush! Não quero isso. Por favor, consulte Imad alDin antes de vender qualquer livro.

Kara Kush balançou a cabeça, concordando. — Só mais uma coisa. Bertrand de Toulouse expressou o desejo de voltar para seu país. De lá, vai nos ajudar mandando informações sobre os deslocamentos dos líderes cruzados. Quero que ele receba um salvo-conduto e um acompanhante num navio mercante. Providencie tudo o que ele precisar. Pode cuidar disso pessoalmente, alFadil? Quero que esse cavaleiro volte em segurança para a família.

O cádi concordou e Saladino bateu palmas, chamando os criados. Três deles, que eu conhecia porque estavam sempre à porta dos aposentos do sultão, entraram e arrumaram a mesa. Serviram uma refeição frugal, com os pratos que eu já imaginava: pão e três tipos de ensopado de vagem. Não houve qualquer concessão à presença de Imad al-Din, cujas preferências em matéria de comida todos conheciam. Seus banquetes incluíam diversos pratos, sempre com uma nova especialidade que deixava o convidado boquiaberto. Olhei para o nosso maior historiador vivo: não demonstrava qualquer emoção. Como todos nós, ele imitou o sultão e molhou o pão no ensopado. O sultão olhou para ele.

— Esta refeição tão simples é do seu agrado, Imad al-Din?

Não houve resposta, mas o eminente homem colocou a mão no coração para mostrar sua aprovação e gratidão. Quando saímos dos aposentos, ouvi-o comentando baixinho com alFadil: — Só quem estiver gripado ou sofrendo de prisão de ventre deve comer com Saladino.


17

Volto para casa inesperadamente
e encontro Ibn Maimun na cama com minha esposa

Eu tinha direito a um aposento no palácio e, às vezes, quando ficava trabalhando até muito tarde, não me preocupava em voltar para casa. Naquele dia, já passava de meia-noite, mas, como ouvi al-Fadil resmungando que precisou cancelar uma consulta com Ibn Maimun por causa de uma reunião com o sultão, resolvi não ficar no palácio. Fui para casa. Eu não via Ibn Maimun há muito tempo e queria que estivesse presente quando eu contasse a Raquel que teríamos de mudar para Damasco.

Quando entrei no pátio de casa, fiquei surpreso ao ver as lamparinas ainda queimando. Para não acordar nosso hóspede nem minha família, entrei em silêncio.

Qual não foi minha surpresa ao chegar ao quarto e ver Ibn Maimun deitado com a túnica puxada sobre o rosto e Raquel, a minha Raquel, subindo e descendo em cima dele, como se estivesse numa cavalgada matinal num pônei dócil. Completamente nua, seus seios balançavam no ritmo do corpo. Fiquei paralisado. Raiva, vergonha e medo me invadiram. Estava horrorizado. Seria imaginação? Um pesadelo? Estaria eu dormindo em meu aposento do palácio?

Fiquei no canto escuro do quarto, observando em silêncio enquanto eles continuavam. Tossi. Raquel me viu primeiro, gritou como se tivesse visto o demônio em pessoa e saiu correndo do quarto. Aproximei-me do nosso grande filósofo, que tinha conseguido cobrir seu pênis ereto.

— Que a paz esteja contigo, Ibn Maimun. Raquel o recebeu bem? Você estava tentando ajudá-la, mostrando um capítulo especial do seu Guia dos perplexos?

Ele não respondeu e sentou-se escondendo o rosto nas mãos. Ficamos quietos por muito tempo. Depois, com voz trêmula, pediu desculpas.

— Perdoe-me, Ibn Yakub. Imploro seu perdão. Cometi um erro pelo qual mereço ser duramente castigado. O que mais posso dizer?

— Talvez — falei com uma voz calma — eu deva simplesmente cortar seus testículos. Só assim salvaria minha honra, não?

— Todos nós erramos, Ibn Yakub. Somos humanos. Você teria resistido se Halima o tivesse convidado para a cama?

Fiquei surpreso e irritado com a audácia dele. Sem conseguir me controlar, segurei-o pela barba e dei tapas no seu rosto, primeiro de um lado, depois do outro.

Ele começou a chorar e saí do quarto.

Quando voltei, Raquel estava sentada no colchão, enrolada numa colcha. Tinha vergonha de me encarar. A raiva me deixou mudo; peguei uma manta e saí. Fui para o quarto de minha filha e deitei-me no chão, ao lado do colchão dela. Naquela noite e na seguinte, não consegui dormir.

Raquel chorou durante dois dias inteiros, implorando perdão. Para minha própria surpresa, aceitei, mas também sabia que eu não queria que fosse comigo para Damasco.

Apenas informei que o sultão pediu-me que o acompanhasse e que ficaria longe por muito tempo. Ela concordou. Fiz então a pergunta que corroía minha mente desde o momento em que a vi montada em Ibn Maimun.

— Foi a primeira vez? Diga a verdade, mulher! Ela sacudiu a cabeça negando, e começou a chorar.

— Você nunca me perdoou por não lhe dar um filho homem.

Será culpa minha se, depois de nossa filha nascer, não consegui mais engravidar? Você me deixou para ficar com o sultão e viver no palácio. Ibn Maimun passou a ser meu único consolo. Eu estava só. Você é capaz de entender isso?

Fiquei confuso. Meus lábios não conseguiram responder. Sentia uma raiva cega e, se não tivesse saído do quarto, teria batido nela. Fui até a cozinha e bebi dois copos de água para me acalmar e controlar minha emoção. Depois, lembrando que era uma das recomendações de Ibn Maimun para recuperar o controle, espatifei o copo no chão.

Na semana seguinte, enquanto me preparava para ir embora, não falei com Raquel. Primeiro, pensei em me vingar, fazendo uma denúncia ao cádi, acusando Raquel de adultério e Ibn Maimun de cumplicidade. Mas logo afastei essa idéia. Pensei então em contratar alguns homens para matar os dois. Depois, me acalmei. É estranho como essas emoções são passageiras e como a raiva, o ciúme e a vingança podem aparecer e sumir em minutos.

Com carinho, despedi-me de Mariam, minha filha de dez anos, a quem, para ser sincero, não dava atenção há muito tempo. Surpresa com minha demonstração de afeto, ela me abraçou e chorou muito. Olhei-a bem. Estava se transformando numa linda mulher, como a mãe. Era impressionante como se pareciam. Eu só podia desejar que, dentro de um ou dois anos, ela encontrasse um bom marido.

Era minha última noite no Cairo. Quebrei meu silêncio: Raquel e eu sentamos e conversamos quase a noite inteira. Falamos do passado. Do amor que tivemos. Do dia em que Mariam nasceu. Do riso que costumava ressoar pelo pátio de nossa casa. De nossos amigos. Enquanto falávamos, voltamos a ser amigos. Ela me criticou por relegar meu trabalho para atender a um sultão. Admiti que ela estava com razão, mas expliquei que meus horizontes tinham-se ampliado com a vida no palácio. Ela sempre me acusou de levar uma vida muito sedentária.

Agora eu ia viajar. Ela sorriu e seus olhos tinham uma expressão de súplica. Meu coração se desmanchou. Prometi que, assim que o sultão tomasse Jerusalém, eu mandaria buscar Mariam e ela. Nos despedimos como amigos.

Para grande desagrado do sultão, sua partida do Cairo transformou-se numa oportunidade para demonstração de comoção popular. Saladino preferia sair sem avisar, mas al-Fadil e Imad al-Din insistiram, por razões de Estado, que fosse um acontecimento público. Membros da corte, poetas, eruditos e xeques, sem falar numa avalanche de povo, juntaram-se perto do velho lago para despedir-se de seu sultão. Kara Kush e seus soldados abriram caminho a partir dos portões do palácio para a passagem do sultão e de sua comitiva — inclusive eu e, claro, Xadi.

A causa daquela agitação era óbvia. Todos sabiam que Saladino iria se ausentar por muito tempo. Não voltaria antes de vencer os cruzados fora dos muros de Jerusalém.

O povo queria que o sultão vencesse, mas sabia que a empreitada era cheia de perigos. O sultão podia morrer, como quase ocorrera um ano antes, em algumas escaramuças com o inimigo. Naquela ocasião, Saladino achou um camelo, montou-o e deu um jeito de voltar para a cidade com alguns guerreiros.

Os cairotas gostavam de seu sultão. Sabiam de seus hábitos simples e, ao contrário dos califas fatímidos, Saladino não exigia que o povo pagasse impostos para ele acumular uma fortuna pessoal. Recompensava muito bem seus soldados. Seus administradores impediram que o país fosse assolado pela fome. Por todas essas razões e outras mais, o povo, seus poetas e músicos queriam que Saladino se lembrasse deles. Queriam que voltasse.

Quando saímos do palácio e percorremos as ruas a cavalo, o povo gritava: 'Alá é grande, vitória para o Comandante dos Valentes, Alá é único e Maomé seu profeta, Saladino voltará vitorioso." O sultão ficou emocionado com essa demonstração. Andávamos devagar para dar ao povo simples a oportunidade de tocar o estribo do cavalo do sultão e abençoar sua empreitada.

Ao chegarmos perto do velho lago, encontramos os nobres da corte reunidos, vestidos com toda pompa. Saladino apressou seu cavalo. Claro que estava se impacientando com aquele ritual. No meio do lago seco, parou o cavalo. Foram feitas as despedidas. Um jovem poeta, muito bem escanhoado, subiu num estrado e declamou alguns versos. Aquilo foi demais para Xadi, que deu um arroto por antecipação. O rosto do sultão ficou impassível ao ouvir os versos:

 

Que Alá nunca lhe traga tristeza,

Que Alá nunca perturbe seu sono tranqüilo,

Que Alá nunca faça de sua vida uma taça de amargura,

Que Alá nunca permita que seu coração sofra,

Que Alá lhe dê força para vencer todos os inimigos.

Nós nos despedimos com o coração pesado,

E este peso só vai desaparecer quando o sultão retornar.’

 

Querendo ser ainda mais enfático, um velho, com a barba branca brilhando ao sol forte, subiu no estrado e recitou:

 

‘A primavera é a estação que muda o ano.

A grandeza de Iusuf Saladino é nossa eterna primavera.

Seu coração é governado pela sinceridade; Sua cabeça, pela espada.’

 

Neste ponto, o sultão fez um sinal para alFadil, indicando que era hora de ir. Cumprimentou os nobres e deu dois beijos no rosto de alFadil. Eu estava com lágrimas nos olhos, as quais, ao contrário das poesias, eram sinceras. Quando estávamos saindo, um velho aproximou-se para beijar as mãos do sultão. Era tão velho que não teve força para alcançar o estribo do cavalo do sultão. Saladino apeou e abraçou aquele que lhe queria desejar boa sorte. O velho disse alguma coisa no ouvido do sultão que fez sua expressão mudar. Saladino olhou bem para o velho, que dava um sorriso enrugado, mas olhá-lo não mudou. Xadi se aproximou do sultão.

— O que o velho disse? Saladino estava abatido.

— Disse que devo me despedir do Nilo porque está escrito nas estrelas que nunca mais vou vê-lo.

Xadi deu uma risada irônica, mas era evidente que aquela nota dissonante havia ofuscado os votos de boa sorte. Nenhum soberano gosta de ouvir maus presságios, mesmo os que dizem não acreditar neles. Nossa partida foi rápida. Saladino tocou seu cavalo, num gesto ríspido, e saímos da cidade.

Nosso grupo tinha três mil homens, na maioria soldados que lutavam há muitos anos ao lado do sultão. Eram espadachins e arqueiros experientes e de confiança, além de bons cavaleiros.

Notei a presença de três veteranos que, até nossa partida, freqüentavam a Escola de Fabricantes de Espadas. Lá aprenderam a arte de lutar com espada e de forjá-las. Os três eram de Damasco e estavam contentes de voltar para suas famílias.

Jamila, Halima e seu séquito haviam deixado o Cairo três dias antes, mas muitas escravas que deram filhos ao sultão não foram para Damasco. Fiquei imaginando o que Saladino estaria pensando. O sultão não costumava falar muito quando estava a cavalo, hábito que herdara do pai, e não do tio, que, segundo Xadi, achava difícil ficar calado em qualquer situação.

A notícia da partida não era segredo. Os cruzados sabiam que estava ocorrendo e mantinham seus soldados na fronteira, esperando para nos atacar. A fim de evitar uma emboscada, Saladino ordenou que os beduínos fizessem um caminho que não passasse pelos cruzados. Não estava disposto a exibir nem testar forças. Era um homem que só tinha uma idéia na cabeça. Todo o resto teria que esperar até que atingisse sua meta.

Mas, como no passado, as disputas locais não permitiriam que o sultão concentrasse suas energias na libertação de Jerusalém.

Um bom tempo depois da partida, quando chegamos ao deserto e armamos o acampamento para passar a noite, Saladino chamou os emires à sua tenda. Xadi e eu ficamos livres para admirar as estrelas. O velho estava carinhoso comigo, mas apesar disso fiquei surpreso com o rumo que a conversa tomou. Depois de falar sobre sua morte iminente, ele, de repente, mudou de assunto.

— Espero que você tenha mesmo perdoado sua esposa, Ibn Yakub. Sei que Alá considera o adultério com rigor, mas você precisa entender que o que houve entre ela e Ibn Maimun não teve muita importância. Vejo que você ficou chocado com essas palavras. Como sei disso? Um dos espiões do cádi vigia permanentemente o nosso grande médico — para protegê-lo, claro. Parece que o observou um pouco de perto demais. O cádi ouviu um relato do que estava acontecendo e, na minha presença, informou ao sultão. Saladino decidiu que você não deveria saber. O sultão me obrigou a fazer um velho juramento montanhês para garantir que eu não contaria nada. Ele tem muito respeito por você e não queria preocupá-lo. A certa altura, chegamos a falar em procurar uma nova mulher para você.

Fiquei em silêncio. Não era muito animador saber que aquelas pessoas conheciam tudo da minha vida. Eu não estava preocupado com Xadi e devia ter contado para ele, mas e o cádi e o sultão? Por que sabiam? Com que direito espionavam a vida de qualquer pessoa? Fiquei muito irritado. Amaldiçoei Raquel por ter me traído e, acima de tudo, fiquei envergonhado. Para eles, eu não era mais apenas um escriba, mas também um corno. Saí de perto de Xadi e fui andar um pouco. O deserto estava à minha frente, como um lençol negro. Sobre minha cabeça, as estrelas riam no céu.

E aquele foi apenas o primeiro dia de nossa viagem. Ainda haveria mais trinta. Olhei para trás, na direção de onde tínhamos vindo, mas só podia ver a escuridão e sentir o frio da noite do deserto. Enrolei-me no cobertor e cobri a cabeça dizendo adeus ao Cairo.


Damasco


18

Converso com os sobrinhos favoritos do sultão,
que comentam a libertação de Jerusalém

Parecia que tínhamos chegado a Damasco há pouco, mas já fazia quinze dias, tempo que precisei para me recuperar do horror que foram as quatro semanas de viagem.

Ninguém sentiu nada, só eu. Já conseguia montar e controlar o cavalo, mas não gostava. Meu rosto ficou muito queimado de sol e, não fossem os ungüentos de nossos guias beduínos, o ardor das queimaduras teria me matado.

Tinha de agradecer às estrelas por ter nascido judeu. Se fosse seguidor do profeta do islamismo, eu também seria obrigado, como faziam os soldados e emires, a me prostrar na direção de Meca e rezar cinco vezes por dia, geralmente no calor do sol do deserto. Nunca imaginei que o sultão fosse muito religioso, mas, como comandante das tropas, ele insistia em seguir os rituais. A falta de água para as abluções não foi problema, a areia serviu, e Xadi usou a idade como desculpa para não fazer as orações em grupo. Um dia, quando viu o sultão conduzindo as preces, segredou-me: — Ainda bem que os cruzados não estão por perto. Se virem três mil bons fiéis com os traseiros virados para cima, podem transformá-los num bom alvo.

À parte os padecimentos físicos da viagem, durante várias noites fui obrigado a sentar-me na tenda do sultão e ouvir a voz monótona de Imad al-Din contando histórias dos califas de Bagdá. Isso foi uma tortura para minha cabeça, pois eram histórias tiradas de livros que eu conhecia muito bem.

Para ser honesto com Imad al-Din, ele não tentou dizer que escreveu o Mural al-Dahab e o Quitab al-Tanbik. Falou que o autor era al-Masudi, mas seu estilo de recitar dava uma falsa impressão de autoridade. Talvez fosse imaginação minha. Talvez eu estivesse tão cansado no final de cada dia que ter de ouvir histórias que já lera não fosse muito interessante.

Fiquei completamente recuperado depois de duas semanas de repouso absoluto na nossa mais bela cidade. Bastou a alegria de poder tomar banho todo dia, da ótima comida fornecida pelas cozinhas da fortaleza e de não ter mais o sol batendo em cima de mim o dia inteiro.

O sultão, que seu coração seja abençoado, demonstrou muito interesse por minha recuperação. Ele também se sentia contente de estar em Damasco, embora por razões diferentes das minhas. Tinha vivido na cidade muitos anos e ali aprendera as artes da guerra e as delícias dos leitos femininos. Sentia-se seguro na cidade e sua presença na grande mesquita umaiada, na sexta-feira anterior, mostrou como ele tinha crescido aos olhos do povo. Xadi contoume que os damascenos o consideravam um jovem desregrado, dado aos prazeres do vinho e do sexo. As notícias de suas conquistas haviam chegado até lá e o povo quase não conseguiu reconhecer o sultão.

Ele se transformara num líder ainda maior que o piedoso e bem-amado Nur al-Din.

Notei muitos rostos agitados entre os fiéis que se reuniram° para as orações da sexta-feira na mesquita. O erudito de barba branca que subiu ao púlpito pediu que Alá concedesse longa vida a Saladino e o ajudasse a expulsar os cruzados para o mar. Chamou o sultão de “Espada do Islamismo” e os fiéis concordaram, repetindo a uma só voz: "Alá é único e Maomé é o seu profeta."

Os damascenos pareciam mais respeitosos e menos agressivos que os cairotas. Na minha cidade, era comum ouvir críticas ao cádi e até ao sultão, e os artistas que faziam o teatro-de-sombras costumavam ter uma platéia muito maior que em Damasco. Eu estava pensando nas diferenças entre as duas cidades e no comportamento de seus habitantes, quando um desconhecido bateu à porta e entrou no meu quarto.

Pelos trajes que usava, parecia um emissário do sultão, mas seu olhar tinha algo familiar que me intrigou. Ele fez uma reverência e se apresentou como Amjad al-Islam.

Era bem baixo, atarracado, e não usava barba. Disse que estava a serviço do sultão desde os dez anos de idade e que tio Xadi tinha lhe ensinado tudo o que sabia sobre o mundo.

— O sultão quer que jante com ele esta noite e tio Xadi deseja-lhe bom apetite. Vai almoçar com o senhor amanhã.

Com estas palavras, o seguro e sorridente Amjad saiu. Achei graça do recado de Xadi. O velho estava em seu elemento durante nossa marcha do Cairo para Damasco, embora cansado e mal-humorado. Desde que chegamos, não saiu de seus aposentos. Gostei de saber que estava bem-disposto e fiquei ansioso por encontrá-lo. Eu já tinha tomado banho e pensava em escrever um relato detalhado do deserto para meu livro particular, mas Saladino veio interromper minha obra outra vez.

O sultão estava sentado com dois homens que eu vira várias vezes com ele desde nossa chegada. Pelo jeito, deviam ser emires, mas eram também os sobrinhos preferidos do sultão, os irmãos Farruk Xá e Taki al-Din. Eram filhos do irmão mais velho do sultão, Xaham Xá, que morreu quando Saladino tinha apenas dez anos. O sultão adorava os dois, que competiam em ousadia no campo de batalha. Os dois faziam o sultão lembrar-se de Xirkuh, e dedicava-lhes muito afeto e confiança.

Fui apresentado aos rapazes, que se levantaram e me abraçaram. — Nosso futuro depende de você — disse, rindo, Taki alDin. — Se falar mal de nós, seremos esquecidos, mas, se anotar direito as conquistas de nosso clã, elas serão lembradas até que nosso Criador resolva acabar com este mundo.

— Diga, mestre escriba — perguntou o irmão -, existe verdade absoluta? Você faz versões diferentes de um mesmo acontecimento?

Consulta mais de uma fonte? Afinal, grande parte do que está escrevendo vem dos lábios de nosso estimado tio. Claro que ele não vai se referir aos fatos em que foi mal-sucedido.

Olhei para o sultão, que ria muito.

Posso não citar esses fatos, mas, como todos nós sabemos, Xadi é pessoa de confiança para suprir minhas falhas. E agora que estamos em Damasco, Ibn Yakub tem mais dois informantes na pessoa de vocês, dois diabos. Façam o favor de lembrar que Ibn Yakub está escrevendo minhas memórias, que só podem registrar o que vivi.

Esse pequeno diálogo familiar tornou desnecessária uma resposta minha. Sorri, como os bons escribas às vezes fazem, e não disse nada. Os pratos foram trazidos à mesa e com isso o assunto da conversa mudou. Os jovens olharam para mim — que observava os inúmeros pratos sendo servidos — e começaram a rir. Farruk Xá olhou-me, divertido.

Vejo que não está acostumado a fazer as refeições à mesa do meu tio! Esta noite, ele só vai comer um consomê, seguido de frutas como sobremesa. Temos aqui cordeiro marinado e assado em ervas. Era o prato preferido de nosso tio-avô Xirkuh e hoje é dia do aniversário dele. Vamos comer para nos lembrarmos dele do jeito que gostaria.

O sultão franziu o cenho ao ouvir essa frivolidade. — É melhor comerem no dia em que ele nasceu do que no dia em que morreu. Vi sua morte e foi muito triste. Espero que imitem as qualidades dele como grande líder e lutador, mas evitem seus vícios. Todos os nossos grandes especialistas em medicina previnem sobre os males causados por excessos de qualquer espécie.

A irritação de Saladino conteve os sobrinhos, que inclinaram a cabeça para mostrar que tinham entendido. O resto da refeição foi em completo silêncio, mas, depois que os pratos foram retirados da mesa e o chá de hortelã foi servido, percebi que aquela não era uma reunião comum. O sultão preparou-se para falar e fez um gesto indicando que eu deveria começar a escrever.

— Quero dar na presença deles minha opinião sobre os filhos de meu falecido irmão, Taki al-Din e Farruk Xá. Sinto-me mais próximo desses dois rapazes do que de qualquer pessoa da família. Não são apenas meus sobrinhos, são meus dois generais mais eficientes.

"Meus filhos são pequenos e, se algo me acontecer, espero que Taki al-Din e Farruk Xá os protejam dos abutres que vão sobrevoar as cidades que conquistamos. Se eu morrer logo, quero que Taki al-Din fique no Cairo e Farruk Xá governe Damasco. Os outros lugares devem ser divididos entre meus irmãos e seus filhos, mas Damasco e Cairo são as jóias da coroa. Sem elas, não seremos nada. Essas cidades vão permitir que expulsemos os cruzados.

"Durante quase noventa anos, os cruzados rondaram nossas terras como animais selvagens. Poucas pessoas — se ainda existe alguém — são capazes de lembrar de quando esses animais não estavam por aqui. Os primeiros cruzados chegaram e estávamos despreparados para enfrentá-los. Ficamos em pânico e traímos uns aos outros para tirar vantagem. Mais tarde, nos aliamos aos cruzados contra nossos próprios irmãos. O sultão Zengui e o grande sultão Nur al-Din compreenderam que a única forma de expulsar os cruzados era nos unindo. Como é sabido, essa união não ocorreu sem que muito sangue fosse sacrificado.

"Vejam como está a situação hoje. Os cruzados continuam ocupando muitas cidades litorâneas, além de al-Kadisia. Quero dividir nossos exércitos em três instrumentos cuidadosamente organizados, sob o meu comando e o de meus dois corajosos sobrinhos. Vou me concentrar em tomar Aleppo ou Al-Mawsil mas, de preferência, ambas. Com isso seremos os mais poderosos em nossas terras. Ao mesmo tempo, quero que você, Taki al-Din, ataque o cerne dos cruzados na Palestina. Deixe que pensem que isso faz parte de uma grande investida para tomar al-Kadisia, o amado Reino de Jerusalém deles. Vença-os, mas não fique muito tempo num só lugar. Assuste-os. Quero que fiquem tão preocupados que não tenham tempo para pensar em ajudar nossos inimigos em Aleppo e Al-Mawsil.

"Farruk Xá, você vai ficar aqui e proteger a cidade e seus arredores. Recebi relatos de seu estilo de vida extravagante e de sua tendência a esvaziar o tesouro do Estado. Não quero mais ouvir nenhuma reclamação. Seu pai e seu avô eram homens de hábitos simples. Para merecer o respeito do povo, e em particular de nossos soldados, aprendi que devemos nos acostumar a comer e a nos vestir como eles. Nós fazemos as leis, Farruk Xá. Devemos segui-las e dar o exemplo. Espero ter sido claro. Lembrem sempre que, apesar de governarmos, continuamos sendo vistos como forasteiros. O futuro da nossa família depende de nosso comportamento e de como governarmos. Nunca esqueça que um homem é aquilo que faz.

"Se ouvir que os cruzados estão enviando expedições exploratórias para testar nossas defesas, arrase-os. Vamos conversar amanhã outra vez, mas prepare-se para nossa partida dentro de uma semana.

"O nome do lugar para onde vamos deve ser mantido em segredo. Não quero que contem nem para suas esposas. Se alguém perguntar, respondam: "O sultão ainda está resolvendo." Espero que minha ausência seja breve, mas, se nesse período Damasco sofrer alguma ameaça séria, mandem me avisar imediatamente. Não podemos perder esta cidade nunca. Agora, podem sair e descansar. Quero falar com Ibn Yakub a sós.

Depois do que ouviram, os sobrinhos ficaram sérios, fizeram uma reverência e beijaram o tio nos dois lados do rosto.

Ele se levantou e os abraçou. Os dois me cumprimentaram e saíram.

— Gostaria que você viesse comigo, Ibn Yakub, mas estou preocupado com a saúde de Xadi. Ele sempre me acompanhou nas campanhas e, como você pode ver, a cada dia está parecendo mais velho e fraco. Qualquer dia desses, Alá pode chamá-lo para o céu. Ele é a única ligação que tenho com a geração mais velha. Todos os outros já se foram. E ele é, como você sabe, filho do meu avô. Tenho as melhores lembranças dele, que me influenciou muito na juventude e em quem sempre confiei. Alá me abençoou com conselheiros bons e fortes, como al-Fadil e Imad al-Din. Nenhum sultão poderia querer mais que isso, mas nem esses homens às vezes conseguem discordar de minhas decisões mais irracionais.

"Só Xadi não teme falar a verdade, me chamar de burro teimoso e tirar da minha cabeça alguma idéia insensata. Ele não é um erudito, mas tem grande intuição para o certo e o errado na política e na guerra.

"Às vezes, Ibn Yakub, estamos infelizes no amor, ou tristes por perder um amigo querido numa batalha, ou porque nosso cavalo preferido morreu. Nessas horas, quando nos sentimos à beira de um abismo, conselheiros estouvados ou bajuladores só servem para nos empurrar ainda mais rumo ao abismo. Com homens como Xadi, isso nunca acontece, pois são muito íntegros. Lastimo que nosso mundo não tenha muitos homens assim. Xadi salvou-me várias vezes, por isso tem mais importância para mim do que meus pais.

"Você está surpreso por ouvir isso e pensa no motivo, já que Xadi ainda está conosco, recuperando-se da viagem, podendo até viver mais do que nós. Eu costumava pensar como você, mas algo dentro de mim está me avisando que Xadi morrerá quando eu estiver longe. Pensar nisso me deixa muito mal, Ibn Yakub. Sei o quanto Xadi o respeita e gosta de você, e por isso não vou leválo. Será mais fácil ele aceitar minha decisão se você ficar com ele. Compreende?

Fiz um sinal afirmativo.

— Quero que ele descanse. Dei instruções para Amjad, o eunuco que levou meu recado para você, fornecer tudo o que Xadi precisar durante minha ausência. Amjad recebe ordens minhas e de mais ninguém.

"Xadi e Farruk Xá não são muito íntimos. Por quê? Porque a língua de Xadi não respeita as pessoas que, para ele, não se comportam como deviam. No passado, ele disse coisas horríveis para Farruk Xá, que, aliás, não é má pessoa. Falou na presença dos outros emires e Farruk ficou muito ofendido. Meu sobrinho reclamou amargamente, mas o que eu podia fazer? Você é capaz de me imaginar repreendendo Xadi? O problema é que Farruk ainda não esqueceu a ofensa. Tenho certeza de que não vai fazer nada para magoar Xadi, mas o problema não é esse. O velho agora precisa é de amigos e de muita atenção.

"Espero que minhas preocupações sejam infundadas. Rezo para Alá permitir que, quando voltar a Damasco, Xadi ainda esteja aqui, com informações detalhadas sobre os erros que cometi durante a campanha. Imad al-Din transmitirá essas informações para você e para ele.

"Talvez eu não esteja preocupado só com a morte de Xadi, mas com a minha. Até agora, Alá foi generoso comigo. Escapei da morte várias vezes, mas, quando se comanda um exército numa guerra, como sempre faço, como alvo principal do inimigo, é só uma questão de tempo até uma flecha atingir meu coração ou uma espada cortar minha cabeça. Estou me sentindo um tanto frágil, Ibn Yakub. Quero que saiba que sua família será bem cuidada no Cairo e deixei ordens para você receber um ordenado enquanto estiver aqui. Depois que atingirmos nossa meta, e se Alá poupar minha vida, vou lhe conceder um pequeno feudo em sua amada Jerusalém. Se eu for derrotado, deixei ordens com al-Fadil e Imad al-Din para você receber uma aldeia no lugar que escolher.

Surpreso, senti as lágrimas escorrendo por meu rosto. A generosidade do sultão era conhecida, mas eu não passava de um simples escriba. Fiquei encantado com o fato de ele se preocupar também com meu futuro. Quando me levantei para sair, ele também se levantou e me abraçou, murmurando no meu ouvido uma última ordem.

— Não deixe que o velho morra.


19

Xadi faz a cerimônia de circuncisão do filho de Halima.
A morte de Farruk Xá

O sultão partira há mais de três semanas. Estávamos no auge do verão. Fazia um calor insuportável em Damasco. Todos os seres — humanos e animais — só queriam sombra e água. Foi num desses dias que o eunuco Amjad entrou correndo nos meus aposentos no começo da noite, atrapalhando meu sono. Ele sorria quando me acordou para informar que a sultana estava me chamando. Desde que chegamos, eu não tinha visto Jamila nem Halima. Pensava sempre nas duas e achava que não as encontrava por causa das rígidas regras sociais de Damasco, que era uma cidade menos livre que o Cairo.

Meio sonolento, acompanhei Amjad, sem ver direito por onde passava, até chegar ao harém. Halima tinha dado à luz o filho de Saladino. Não a vi, naturalmente, mas fui levado a uma antecâmara onde Jamila ouvia Xadi recitar o qualima no ouvido do recém-nascido. O bebê estava no colo de uma ama-de-leite, escrava de grande beleza, que eu não conhecia. A criança recebeu o nome de Asad al-Din ibn Yusuf. Era o décimo filho do sultão e o linguajar libertino de Xadi fez com que oferecesse uma prece a Alá para controlar as sementes do sultão e não permitir que houvesse mais capim do que flores.

Jamila riu alto e disse baixinho ao velho que concordava com ele.

Xadi continuava muito bem-disposto três dias depois, quando realizou a cerimônia de circuncisão. Parecia ter se recuperado completamente do cansaço. Os emires locais e Farruk Xá eram os novos alvos de seu humor corrosivo. Ouvindo as coisas que ele dizia, era impossível não rir, chamando atenção. Sua raiva era sempre sincera e, em geral, pertinente, mas às vezes eu ficava preocupado com os mexeriqueiros da fortaleza, que gostariam muito de agradar ao chefe contando os comentários de Xadi. Quando eu falei de meus temores, ele riu, sem dar importância.

Uma das razões para Xadi estar irritado era o fato de ter sido, como eu, excluído dos conselhos secretos da corte. Não suportava isso, por ser tão próximo do sobrinho.

Nós dois sentíamos falta do sultão. Era estranho não tê-lo por perto e me surpreendi com a intensidade de meus sentimentos. Trabalhava para ele há apenas cinco anos. Xadi deveria estar muito mais ofendido por ter perdido seu posto, ao lado do sultão na guerra e na paz. É difícil mudar hábitos e costumes. Às vezes me via andando, absorto, até os aposentos de Saladino, depois voltando devagar para os meus, quase como se fosse um cão fiel, esquecido pelo dono descuidado.

Nos últimos anos, nossas vidas estavam tão concentradas na pessoa de Saladino que era difícil aceitar que ele não estivesse na fortaleza e nós a seu lado, onde quer que estivesse.

Um dia, Xadi disse:

— Imad al-Din, aquele pavão assado, deve estar escrevendo os despachos do sultão. Por que você não monta num cavalo e vai ao encontro de Saladino?

Pode dizer que eu o obriguei a sair de Damasco. Pode dizer também que Alá me fez recuperar a saúde e não preciso de você ao meu lado, esperando a morte aparecer.

Era uma ordem difícil de ser cumprida. Os deslocamentos de Saladino continuavam indefinidos. Mesmo que se soubesse onde ele estava, era bem possível que estivesse num lugar completamente diferente quando se chegasse lá. Há várias semanas não tínhamos notícias dele. Nenhum pombo-correio ou mensageiro havia chegado, e Farruk Xá estava um pouco preocupado. Dois dias antes, recebemos notícias da ação dos cruzados nos arredores de Damasco. E quando Xadi e eu estávamos conversando, apareceu um criado ordenando que fôssemos à presença de Farruk Xá. Ele tinha voltado naquele dia de um conflito com um grupo de cavaleiros cruzados, a meia hora de Damasco.

Farruk Xá não era o mais atilado dos governantes, mas sua generosidade e sua coragem eram conhecidas. Imad al-Din não exagerou quando reclamou das extravagâncias dele em matéria de dinheiro, mas não levou em conta o fato de Farruk Xá não gastar dinheiro com ele mesmo. Recompensava os que eram leais, como fazia o tio, com a diferença de que os gostos e hábitos austeros de Saladino eram tão notórios que nem o mais pobre dos pobres acreditaria que ele usava o dinheiro em proveito próprio. Alguns governantes gostam de atividades artísticas, outros, de viver bem, e outros ainda, de acumular riquezas. Mas o sultão só se preocupava com o bem-estar dos outros.

O céu estava enluarado quando atravessamos as ameias para chegar à sala de audiência. Não entrávamos lá desde que Saladino fora embora. Os emires já estavam reunidos quando chegamos. Fiz uma reverência para Farruk Xá, que parecia exausto, como se não dormisse há vários dias. Xadi ficou olhando para o sobrinho do sultão, que ignorou a presença do velho, mas veio me cumprimentar com muita cordialidade.

— Estou satisfeito por ter vindo, Ibn Yakub. Acaba de chegar uma carta de meu tio e recebemos ordens para que você e o velho Xadi fossem convidados para a leitura dela perante o conselho.

Fiz outra reverência, em agradecimento. Xadi fungou alto e engoliu o catarro. Um dos mais jovens escribas da corte, um 210

bonito rapaz louro, que não devia ter mais de dezoito anos, de pele delicada e grossas pestanas, fora escolhido para ler a carta.

— Veja só esse sirigaita sem-vergonha — sussurrou Xadi, olhando o escriba. — Deve ter vindo direto da cama de Farruk Xá e continua fazendo trejeitos para ele.

Olhei sério para meu velho amigo, esperando conter sua raiva, mas ele fez uma cara desafiadora.

O rapaz falou com uma vozinha fina. — Castrado! — murmurou Xadi.

— Silêncio! — gritou Farruk Xá. — Silêncio ao ouvir a carta de nosso sultão Saladino ibn Ayub para a corte.

O escriba começou a falar — de início, meio nervoso, mas, à medida que o texto de Imad al-Din foi se desenrolando, ficou mais confiante.

Esta carta é dirigida ao meu caro sobrinho Farruk Xá e a todos os nossos leais emires de Damasco. Estamos do lado de fora da cidade de Aleppo esperando, como sempre, evitar o desagradável espetáculo de um fiel matando outro. Por isso ofereci aos emires uma trégua honrosa, assim que invadirmos a fortaleza, mas não tenho certeza de que serão capazes de apreciar nossa generosidade.

Ontem, um dos emires veio ao nosso encontro. Usava muitas palavras floreadas e elogios, querendo me fazer recuar, oferecendo tesouros inimagináveis e jurando fidelidade eterna a nós em nome do Corão: "Ó grande sultão, somos seus amigos, e estaremos ao seu lado no dia que não vai tardar, quando Sua Majestade tomará al-Kadisia e expulsará os cruzados de nossas terras."

Essas belas palavras não me impressionaram, já que apenas três dias antes nossos espiões informaram que os nobres de Aleppo tinham enviado mensagens urgentes para os cruzados e os hashishin nas montanhas, oferecendo dinheiro se eles conseguissem me manter fora da cidade.

Esta foi minha resposta: "Acred, você diz ser meu amigo. Para mim, a amizade é uma confiança sagrada, mas quero saber 211

uma coisa: quem são seus inimigos? Diga quem são eles e eu direi quem são seus amigos. Para mim, amizade é, acima de tudo, ter inimigos em comum. Concorda?

O idiota concordou. Nesse ponto, mostrei a cópia de uma carta que o chefe dele enviara aos cruzados. Ele começou a transpirar e tremer, mas contive minha raiva.

Xadi, que seu coração seja abençoado, teria me aconselhado a mandar a cabeça daquele patife para Aleppo, e fiquei muito propenso a fazer isso, mas me controlei.

A raiva não é uma emoção positiva quando se trata de um problema mais grave. Mandamos o emir voltar para Aleppo, com a severa advertência de que, se continuassem a nos desafiar, eu não teria outra escolha senão tomar a cidade de assalto. Eu avisei que não deviam imaginar que, caso isso ocorresse, todos os habitantes da cidade iriam correr para defendê-los.

Queríamos mandar um comunicado para vocês depois que os exércitos de Al-Mawsil, apoiados por aliados, resolveram nos enfrentar na planície de Harzim, pouco antes de Mardin, mas esperamos por eles em vão. Devem ter avançado como homens, mas recuaram como mulheres. Tivemos vontade de ir atrás deles, mas preferi isolá-los completamente das cidades vizinhas.

Há dois dias tomamos a cidade de al-Amadia sem enfrentar grande resistência, embora nossos soldados tenham levado muito tempo para abrir passagem nos muros de pedra negra. Foi uma vitória prazerosa, pois a cidade tinha tesouros surpreendentes. Com essa vitória, conseguimos apreender muitas armas, suficientes para formar mais dois exércitos. Al-Fadil, que participou do cerco, e Imad al-Din só se interessaram pelos milhares de livros da biblioteca. As obras foram empilhadas sobre setenta camelos e, enquanto escrevo, estão sendo transportadas para Damasco. Quero que Ibn Yakub seja encarregado de garantir que os livros fiquem bem guardados na nossa biblioteca até a volta de Imad al-Din. Entre os livros, há três cópias do Corão que datam da época do califa Omar.

Os cruzados não conseguirão resistir, e esse é o principal motivo desta carta. Eles querem evitar que eu forme um grande exército. Penso que vão tentar uma manobra diversionista em Damasco e no Cairo. Se minha intuição está certa, vocês terão de impedir isso fazendo um ataque.

Você agiu bem, Farruk Xá. Tenho informações detalhadas sobre suas recentes vitórias, mas precisamos tomar Aleppo e AlM-awsil se quisermos expulsar os cruzados de nosso mundo e mandá-los de volta para o mar.

Amanhã marcharemos de volta para Aleppo. O ar da montanha nos fez muito bem e eliminou nosso cansaço. Os soldados sabem que o sol das planícies vai ser como o fogo do inferno, mas Aleppo será nosso céu. Levaremos quinze dias para chegar lá e, queira Alá, tomar a cidade. Só então voltarei a Damasco para os preparativos finais da jihad. Fiquem atentos para qualquer ataque-surpresa dos cruzados.

O tesoureiro fez um sinal indicando que a reunião estava encerrada, e, quando Xadi e eu nos levantamos para sair, fizemos uma reverência para Farruk Xá. Mas havia alguma coisa errada com ele e, de repente, os criados também perceberam que Farruk Xá havia desmaiado. Todos saíram da sala e os médicos foram chamados. Devo dizer que nenhum dos emires demonstrou medo ou pânico, como costuma ocorrer quando um soberano adoece. Talvez porque Farruk Xá não era sultão, apenas ocupava o cargo provisoriamente. Xadi ficou impassível, sem levar a doença a sério.

— Decerto ele bebeu muito, ou exagerou nos carinhos com aquele rapaz bobo que leu a carta de Saladino. Vá para a cama, Ibn Yakub.

Fui, mas estava preocupado demais para conseguir dormir. Levantei-me, vesti meu roupão e saí. A lua sumira e as estrelas apareceram. Fui devagar até o quarto de Farruk Xá, onde seu criado preferido me cumprimentou, chorando como criança, alto e descontroladamente. Temi o pior, mas Farruk Xá ainda estava vivo, embora continuasse inconsciente.

Na manhã seguinte, Farruk Xá piorou. E não se recuperou mais. Enquanto o sultão marchava para Aleppo, gritos e lamentos invadiam a fortaleza de Damasco, anunciando a todos que o sobrinho do sultão tinha dado o último suspiro.

Nós o enterramos no dia seguinte, com todas as honras de praxe. O evento não contou apenas com a presença de nobres. Centenas de pessoas simples, inclusive muitos andarilhos, vieram rezar à beira do túmulo. Diante disso, passei a achar que talvez a implicância de Xadi com o falecido fosse gratuita.


20

Halima abandona Jamila, que fica desolada

Na ausência do sultão, minha rotina diária mudou. Eu passava quase toda a manhã na biblioteca, estudando os manuscritos que encontrasse sobre o tema do meu livro particular. Damasco guardava o acervo de um grande erudito, Ibrahim ibn Suleiman, um senhor de quase noventa anos. A primeira pessoa a me falar dele e de sua biblioteca foi alguém cuja lembrança até hoje é dolorosa para mim. A imagem que guardo dessa pessoa é a de um animal satisfazendo sua lascívia no corpo de minha esposa. Nunca mais vou falar nele ou, pelo menos, assim espero.

Ibrahim era o rabino mais velho da cidade. Costumava vêlo quase todos os dias, quando ele ia para a sinagoga, pois a biblioteca ficava nos fundos do prédio. Estava sempre lá, a idade avançada ainda não afetara sua capacidade intelectual. Nas poucas vezes em que precisei lhe pedir conselho, Ibrahim mostrou as maravilhas de sua inteligência, fazendo com que me sentisse um pouco tolhido e deslocado. Ele ouvira coisas sobre os dotes intelectuais do homem cujo nome não quero citar outra vez, e um dia me chamou para saber tudo o que eu pudesse contar a respeito de Ibn Maimun.

Quebrei minha promessa. O maldito nome veio outra vez macular estas páginas. Mesmo assim, não podia me recusar a dar a informação que Ibrahim ibn Suleiman queria, com a avidez de um erudito de dezoito anos.

Assim, contra a minha vontade e para agradar a esse grande e generoso velho, falei sobre Ibn Maimun e o trabalho que estava realizando. Contei que ele estava escrevendo o Guia dos perplexos e, nesse momento, as rugas, que faziam o rosto de Ibrahim parecer um mapa, de repente se retorceram para emoldurar um sorriso muito puro. A mudança me surpreendeu; aquela era a face da verdadeira sabedoria.

— Agora posso morrer feliz, Ibn Yakub. Outra pessoa fez o que eu queria, mas não consegui. Vou escrever para Ibn Maimun e entregar a carta a você, que pode usar seu cargo de escriba favorito do sultão para mandá-la imediatamente ao Cairo. Vou acrescentar algumas coisas que escrevi sobre o tema e que podem ser úteis para ele. Você o conhece bem?

Se eu o conhecia bem? A pergunta ficou ecoando na minha cabeça. Senti uma dor profunda, que eu pensava haver superado, ao lembrar aquela noite horrível, que voltou com a força de uma tempestade, me invadiu e corroeu minhas entranhas. Não percebi as lágrimas escorrendo por meu rosto. Ibrahim enxugou-as com as mãos e me abraçou.

— Ele causou-lhe alguma tristeza? Balancei a cabeça, concordando.

— Pode contar o que foi, embora eu talvez não possa ajudar. E assim meu coração despejou para o patriarca todo o sofrimento reprimido há tanto tempo. Ele ficou ouvindo, como Moisés um dia deve ter ouvido os problemas dos filhos. Quando terminei de falar, vi que a tristeza desaparecera. E era para sempre, não voltaria mais.

O consolo que Ibrahim me ofereceu estava escrito em seu rosto. Seus olhos vivos, inteligentes, não pestanejaram. Ele entendeu, sem precisar dizer nada. Eu também compreendi. Meu problema, comparado com o sofrimento que nosso povo já tinha vivido, era um grão de areia. Nem mais, nem menos. Tudo isso foi dito apenas com a presença de Ibrahim. Como por milagre, minha cabeça subitamente desanuviou-se. A tristeza que ainda restava sumiu. Recuperei meu equilíbrio interior.

Podia ver tudo por uma perspectiva diferente, de séculos. Queria rir alto, mas me contive. Ele notou a mudança.

— Seu rosto se iluminou, Ibn Yakub. As rugas em sua testa desapareceram. Espero que as nuvens escuras que estavam em sua cabeça tenham deixado espaço para o sol entrar outra vez.

Concordei e ele sorriu. Quando voltei para a fortaleza, o sol estava a pino, atravessando minha túnica de musselina preta. Comecei a transpirar e me senti mal.

Cheguei e fui direto para os banhos. Fiquei deitado na água fria por muito tempo. Aos poucos, o calor e o desconforto de meu corpo se transformaram em tranqüilidade.

Enxuguei-me e voltei aos meus aposentos completamente recuperado. Bebi um pouco de água e deitei-me na cama. Tive sonhos muito claros, como costumam ser no repouso vespertino. Como o sono é leve, a memória é mais nítida. Sonhei com a sala de teto abaulado do Cairo e vi minha esposa e minha filha sentadas diante de um cântaro com água, que despejavam uma na outra. Não sei como o sonho terminaria porque meu cochilo foi interrompido por alguém me sacudindo. Abri os olhos e deparei-me, assustado, com a cara sorridente do eunuco Amjad.

— A sultana quer falar com o senhor agora, Ibn Yakub. Sentei-me na cama e, irritado, fiquei olhando para ele, que permaneceu impassível.

— Que sultana? — perguntei. O eunuco não respondeu, como de hábito, e fez apenas um gesto arrogante para que eu o acompanhasse. De certa maneira, ele me lembrava Ilmas, eunuco de triste fim.

Jamila estava me esperando na antecâmara que levava ao harém. Dispensou Amjad com o olhar. E não mostrava a exuberância habitual; seus olhos lânguidos estavam tristes.

Estivera chorando e sua aparência mostrava que passara muitas noites sem dormir. O que poderia ter perturbado aquela mulher cuja inteligência e força de caráter surpreendiam até o sultão? Ela ficou me olhando por um bom tempo, sem dizer nada.

— A sultana parece aturdida. Será que um humilde escriba pode ser de alguma ajuda?

Sua velha amiga Halima traiu minha confiança, Ibn Yakub. Pensei ter encontrado nela uma grande companheira. Ela concordava com minhas críticas ao nosso estilo de vida. Durante muitos meses, como você sabe, fomos inseparáveis. Perdemos a conta de quantos dias ficamos juntas. Ela aprendeu a apreciar a filosofia andaluza e o humor de nossa poesia satírica escrita no Cairo e em Damasco. Costumávamos rir das mesmas coisas. Tínhamos até as mesmas antipatias. Temo ofender sua delicada sensibilidade, por isso não vou falar das noites que tivemos, mas pode ter certeza, Ibn Yakub, ainda me emociono ao recordá-las. Nós duas combinávamos como a flauta e a lira. Preciso dizer mais? Quando ela me olhava e sorria, seu rosto parecia uma fonte de água pura, irradiando bondade e provocando a vontade de debruçar sobre ela e beber sua água refrescante. Quando sorria, era como se o mundo inteiro sorrisse também.

Desde que Halima teve o filho, alguma coisa mudou completamente. Ela começou a ficar estranha. Evitava minha presença. Ela acredita nas loucuras que as velhas bruxas supersticiosas dizem só para nos assustar e dominar. Amjad contoume que algumas velhas criadas do harém encheram a cabeça dela com todo tipo de bobagem. Contaram para Halima que o sultão preferia o filho dela aos meus, que o menino um dia poderia ser sultão, mas só se ela se separasse de mim. Disseram que eu era uma influência maléfica, que a tirara do bom caminho, daquele verdadeiro caminho traçado por Alá e seu profeta. Encheram os ouvidos dela com mentiras sobre meu passado. Amjad me contou tudo, e ele tem bons informantes.

Halima começou a achar que o mundo está cheio de demônios. Outro dia, ouvi quando perguntou a uma criada se o udar costumava atacar as crianças. Sabe o que é um udar, Ibn Yakub? É uma criatura que os beduínos inventaram há séculos para assustar seus inimigos no deserto.

O udar é uma espécie de monstro que seqüestra os homens e os deixa torrando no sol do deserto, depois de certificar-se de que os vermes fizeram ninhos nos ânus deles! Se uma pessoa ignorante acredita em toda essa bobagem, eu só posso rir, mas passei meses ensinando a Halima a mais alta filosofia. Pensei que ela tivesse entendido, mas agora acha que o udar existe e que Ibn Rushd e Ibn Sida são falsos. É como se a cabeça dela estivesse com uma nuvem escura, que ela se recusa a afastar.

Quando tento falar com ela, fica me olhando com uma expressão assustada, como se eu fosse um demônio ou uma bruxa. Não deixa que eu segure seu filho. Não deixa que eu a toque. Três noites atrás, ela me disse que tudo o que nós duas fizemos era mau, pecaminoso e repugnante. Disse que Alá iria nos castigar, deixando que ficássemos à mercê dos djins e de outros demônios. Tive vontade de gritar com ela, puxar seus cabelos, sacudi-la até que voltasse a si, mas me contive, tentando entender o que acontecera com ela.

Só uma vez, quando ela estava no banho, pareceu a mesma mulher. Estava sozinha e eu também tirei minhas roupas e entrei na água. Não dissemos nada. Peguei uma toalha e comecei a massagear suas costas macias e esguias. Isso deve tê-la feito lembrar.

Pela primeira vez em meses, virou-se e olhou para mim. Sorriu. Seus dentes reluziam como marfim e seu rosto voltou a ficar iluminado. Era a Halima que eu conhecia.

Meu coração se derreteu e acariciei a cabeça dela, depois toquei seus seios.

Nesse instante, foi como se um raio a atingisse. Halima mudou completamente, seu rosto endureceu e ela me olhou com raiva, saiu do banho e sumiu. Gritou chamando suas criadas, que apareceram com toalhas para enxugá-la. Sentei, Ibn Yakub, e fiquei olhando silenciosamente minhas lágrimas aumentarem o volume da água do banho.

Agora estou com o coração partido e desesperada. Isso mesmo, desesperada, e me magoa por constatar que também estou perdendo a calma e a razão, esquecendo os pensamentos sublimes e me distanciando de um amor totalmente sincero.

Ela era minha melhor amiga. Conversávamos a respeito de tudo, inclusive de como Saladino era fraco na cama. Agora que nos afastamos, não há ninguém com quem eu possa conversar sobre assuntos que me interessem. Pensei em você porque já foi amigo dela. Halima me falou bem de você e disse que era bom ouvinte. Hoje, encontrar um ouvinte inteligente não é fácil, principalmente quando se é casada com o sultão.

Como você explica a mudança de Halima? Tenho certeza, Ibn Yakub, que não foi só por ter tido um filho. Dei dois filhos homens a Saladino e não tive nada disso.

Como ela pode viver num mundo de fantasia?

Fiquei emocionado com a história de Jamila. Era difícil acreditar que Halima, um espírito tão livre como jamais se viu, uma mulher que o sultão um dia me descreveu como tão voluntariosa quanto um cavalo de raça, pudesse ser a assustada e patética pessoa descrita por Jamila. Tive uma idéia. Talvez Halima tivesse decidido terminar sua relação diferente com aquela mulher mais velha e a única forma que encontrou foi rejeitar não só Jamila, mas tudo o que estava relacionado com ela, tudo o que havia ensinado e tudo o que ela simbolizava neste mundo. Mesmo assim, Halima não precisava chegar ao ponto de acreditar em monstros e espíritos do mal. Ou será que fazia só uma cena para convencer Jamila de que estava tudo acabado e que ela mudara completamente? Falei: — Pensei um pouco, sultana, tentando entender os mistérios da mudança que a senhora relatou. Para mim, parece algo irreal, como se Halima estivesse num transe.

Não acredito que isto esteja relacionado com o parto, mas pode ser que algumas mulheres intrigantes, com ciúme de sua amizade, tenham envenenado os ouvidos dela.

— Isso aconteceu no Cairo também, Ibn Yakub, mas ela afastou os mexeriqueiros dizendo coisas tão duras que devem ter ferido os ouvidos deles. Por que ela estaria mais vulnerável em Damasco? Escrevi muitas coisas para ela. Contos, poemas e cartas para demonstrar minha paixão. Como resposta, recebi apenas um bilhetinho, algumas semanas atrás, dizendo assim: "Sou o que sou. Espero que você encontre outra pessoa melhor do que eu. Não quero mais lidar com a felicidade como se fosse um comerciante de caravana. Alá é meu único amor e seguirei o que manda seu profeta." Você entende isso, Ibn Yakub? Eu não consigo. É como levar um soco no coração e ouvir a voz dela dizendo: "Morra!"

"Quero lhe pedir uma coisa. Você poderia, por favor, falar com Halima e ver se é isso mesmo que está acontecendo ou se estou enganada? Talvez você consiga o que eu não consegui. O sultão não se incomoda que eu ou Halima nos encontremos com você sempre que quisermos. O rompimento já é do conhecimento geral e não haveria nada de sigiloso no fato de você procurá-la. Se não se importar, posso combinar tudo. Amjad irá buscá-lo na hora marcada. Antes que eu pudesse concordar com o pedido, ela sumiu do aposento. Aquilo não era um pedido, mas uma ordem.

Durante mais de uma semana fiquei meio confuso, como se Jamila tivesse me transmitido sua tristeza. Estava impressionado com o que ela dissera, mas não acreditava que a mudança de Halima fosse tão profunda quanto Jamila dera a entender.

Esperei com impaciência o eunuco Amjad, até que, certa manhã, ele veio me buscar. Seu sorriso sempre me irritava, mas percebi que ele não conseguia conter o tal sorriso. Era um tique nervoso. Eu o segui ansiosamente por um corredor comprido até a mesma antecâmara onde encontrara Jamila alguns dias antes.

Halima estava sentada numa grande almofada coberta de brocados. Quando me viu, deu um leve sorriso. Fiquei chocado com a aparência dela. O rosto estava pálido e os olhos pareciam sem vida, vazios. A voz era fraca.

— Quer falar comigo, Ibn Yakub.

Balancei a cabeça afirmativamente, sem dizer nada.

— Por quê?

— Queria cumprimentá-la pelo nascimento de seu filho e saber quais são suas preocupações. Posso ser um pouco ousado e perguntar por que parece tão mudada? O parto foi difícil?

— Foi — respondeu ela com uma voz tão baixa que precisei me esforçar para ouvi-la. — Foi muito difícil. Puseram uma pedra especial na minha mão para diminuir a dor e enrolaram uma pele de cobra nos meus quadris para apressar o parto. Você perguntou se houve alguma mudança em mim, Ibn Yakub. Pois houve. Meu filho nasceu sadio graças a três palavras mágicas escritas por um especialista da medicina. As palavras diziam que eu renunciava a todo o meu passado e, principalmente, à minha relação com Jamila. Mudei completamente depois que meu filho nasceu. Além das palavras mágicas, eu quis agradecer a Alá por ter me dado um filho deixando de me desviar do caminho que ele traçou para nós através de nosso profeta, que descanse em paz.

"Não foi fácil para mim. Como sabe, Jamila e eu estávamos sempre juntas. Nós nos divertíamos, rindo e falando bobagens. Se eu fosse contar ao cádi certas coisas que ela disse do nosso profeta, que a paz esteja com ele, nem o sultão conseguiria salvar o pescoço dela.

"Tudo o que ela me ensinou era mentira. Queria que eu duvidasse da palavra de Alá. Disse que a sabedoria dos escritos de al-Maari, Ibn Rushd e Ibn Sina era muito maior que a do nosso Livro Sagrado. Que Alá me perdoe por ter ouvido tanta bobagem. Estou arrependida, Ibn Yakub. Não sou mais uma pecadora. Rezo cinco vezes ao dia, Alá vai me perdoar e proteger meu filho. Quanto à Jamila, gostaria que não fôssemos obrigadas a viver nos mesmos aposentos. A presença dela só faz lembrar meu passado pecaminoso. Sei que vai ficar chocado com o que vou dizer, mas gostaria que ela estivesse morta.

Tudo isso foi dito com uma voz monótona e sem vida. Até a última frase foi como um sussurro melancólico. Halima estava muito mudada. Dava para ver isso e fiquei muito perturbado. Errei ao duvidar do que Jamila dissera. Halima não estava querendo só terminar a amizade, mas mudar toda a sua vida. Fiz uma última tentativa.

— Senhora Halima, se alguém tivesse me dito que estava tão mudada, eu teria rido na cara dessa pessoa. Mas, certamente, nem tudo o que a sultana Jamila lhe ensinou era ruim. Não lhe ensinou a gostar de poesia? Não aprendeu com ela as canções que ouvi a senhora cantar no Cairo?

Por um instante, o rosto dela se suavizou e, num relance, vi a Halima que um dia conheci. Mas seu rosto logo readquiriu a expressão dura.

— Ela foi uma má influência para mim. Pensei que me amasse, mas só queria me dominar. Queria que eu pertencesse a ela e a mais ninguém. Pertenço a mim, Ibn Yakub.

Tenho certeza de que você é capaz de entender a minha vontade de voltar a ser eu mesma.

— Não se lembra de que a conheci antes de você encontrar Jamila. Esqueceu Messud? Não lembra como falou com o sultão quando o cádi a levou ao palácio, no Cairo?

É verdade que, nessa época, não tinha sido apresentada à filosofia andaluza nem à poesia erótica de Valada, mas sua cabeça estava pronta para mudar. Jamila também percebeu isso e ajudou você a descobrir um novo mundo.

— Jamila me usou como se eu fosse um alaúde que alguém pega para tocar. Dizer isso era negar a verdade, mas não tive coragem de defender a sultana.

— Apesar de eu perceber o poder que a sultana exercia sobre você, ela soube tocar esse alaúde. A música que vocês tocavam causava inveja no palácio. Os eunucos falavam de vocês na cidade inteira. Comentavam sobre duas rainhas que não queriam saber de outra coisa, a não ser da verdade. Diziam que seus olhos eram como fornalhas quando denunciaram aqueles desgraçados que acreditavam em djins e outras criaturas imaginárias. A fama de vocês se espalhou por toda parte. Aquilo foi uma espécie de liberdade, Halima. Falo isso como seu amigo.

— Fala como um idiota, escriba. A verdadeira liberdade está em obedecer a Alá e seu profeta. Por que seríamos tão arrogantes a ponto de achar que só nós, uma minoria, falamos a verdade, enquanto a maioria dos fiéis, que se recusa a duvidar, é vítima do preconceito? Vou lhe dizer uma coisa. Agora eu sei que as blasfêmias de Jamila eram como um bafo vindo do inferno. Parece assustado, Ibn Yakub, mas não deveria estranhar. Como um judeu pode entender as peculiaridades de nosso profeta?

Olhei para ela. Ela desviou o rosto. Naquele instante, acabou tudo o que existia entre nós. Ela sucumbira às palavras melosas dos falsos profetas e à amargura dos que vivem de espalhar palavras mágicas.

Levantei-me, fiz uma reverência exagerada e saí do aposento. Estava zangado. Halima era uma alma perdida. Naquele instante, entendi o desespero de Jamila. Ela não estava apenas triste, como uma amante abandonada e rejeitada, ou por causa do abismo que se abrira entre as duas. Estava triste porque, junto com a relação, foram rejeitados todo o conhecimento e a compreensão do mundo que ela havia ensinado com tanta paciência para a amiga. Algo terrível acontecera, Jamila e eu percebemos.

A sede de compreensão de Halima tinha acabado. Os pássaros não estavam mais cantando. As flores haviam murchado.

Passei vários dias pensando na nossa conversa. As palavras de Halima se enroscavam na minha cabeça e eu discutia com ela sem parar, inutilmente. Ela era um navio que afundara. Falei com Jamila a respeito da minha preocupação e surgiu entre nós um laço que antes não existia, uma proximidade provocada por um sentimento mútuo de perda, perda de uma amiga cuja sabedoria se petrificara. Jamila tirou uma conclusão muito filosófica.

— Pensei muito no assunto, Ibn Yakub. E concluí que perder uma amiga íntima, com quem compartilhava tudo e na qual tinha completa confiança, é um golpe muito mais forte do que perder o contato físico. Enquanto falo com você, me pergunto se acredito mesmo nisso, ou se estou falando para me convencer de que o amor entre amigos tem mais valor do que o amor sensual. Às vezes — poucas — acredito exatamente no contrário, quando minha cabeça parece estar queimando e as chamas se espalham por meu corpo. Nesses momentos, eu seria capaz de trocar a amizade por um só e último abraço apaixonado.

"Você vê, Ibn Yakub, até uma pessoa como eu, forte e segura, pode sofrer por amor. É um mal terrível que, como nossos poetas dizem sempre, pode nos levar à loucura.

Sei que você foi apaixonado por ela. Será por isso que seu rosto também está coberto por um véu de tristeza?

Naquela hora, eu não estava me lembrando de Halima, a mulher forte e desafiadora no seu amor por Messud, de olhos ardentes de paixão, confessando o adultério ao sultão, na presença do cádi. Eu estava confuso por ver Jamila aguardando, ansiosa, uma resposta para sua pergunta.

— Ó sultana, estou triste por vê-la num estado tão deplorável. Minha paixão por Halima foi passageira. Tive um desejo pueril por algo inatingível, o que é muito comum em homens da minha idade. A paixão acabou há vários meses. Só me pergunto por que a senhora continua infeliz. A raiva, a amargura, o desejo de vingança — entendo tudo isso, embora seja indigno da senhora. Não convém a uma mulher com a sua inteligência ficar sofrendo por uma pessoa que mudou tanto que nos faz duvidar do que pensávamos, e se ela teria sido sempre assim. Será que a pessoa que a senhora e eu vimos antes era apenas uma máscara, com a única intenção de agradá-la, como aquelas máscaras das marionetes no teatro-de-sombras, no Cairo?

"Fico pensando também se a senhora sente falta realmente do amor e da amizade, ou de algo mais. Talvez o que a incomode seja perder algo que considerava seu. Halima sempre foi encantadora, mas era uma pessoa cheia de arestas. Ao aplainar essas arestas e proporcionar a ela a idéia de um mundo muito maior do que o palácio ou até a cidade, um mundo de idéias onde nada era proibido, a senhora pôs para fora as melhores qualidades dela. Todos os que viram as duas juntas, inclusive o sultão, ficaram encantados com a afinidade dessa amizade. Em outras palavras, ela se transformou em seu bem mais precioso e bens são proibidos de fugir. Será que não é isso que, no fundo, a incomoda?

Apesar da enorme tristeza, os olhos dela brilharam como fogo e vi a Jamila que conheci antes.

— Ouça, escriba. Nem você, nem aquele velho cão desdentado Xadi, nem esses malditos eunucos que contam tudo a ele têm a menor idéia do que houve entre Halima e mim. Não foi uma amizade unilateral. Aprendi muito com ela, a respeito de outros mundos e da vida das pessoas menos privilegiadas que eu, mas isso não é o que importa.

"Você e seu amado sultão vivem num mundo masculino. Vocês simplesmente não podem entender o nosso mundo. O harém é como um deserto onde nada pode crescer, fincar raízes. As mulheres competem entre si para desfrutar uma noite com o sultão. Às vezes, diminuem a frustração achando eunucos que entram sorrateiramente no quarto delas para acariciá-las. A falta do pênis não é empecilho para os eunucos darem prazer às mulheres.

"Assim, é impossível uma mulher ter uma boa amizade com um homem. Nesse ponto, meu pai era uma pessoa excepcional. Depois que minha mãe faleceu, ele virou um amigo sincero, com quem eu podia discutir. Como você bem sabe, gosto muito de Saladino. Sei que ele tem consideração por mim. Não sou só um amontoado de carne com o qual ele às vezes fazia sexo. Ele admite que sou capaz de pensar. Apesar disso, não posso dizer com sinceridade que sejamos grandes amigos. Como poderia, nos tempos em que vivemos e nessas condições? Com Halima, eu tinha uma relação completa em todos os níveis. E sem qualquer sentimento de posse: afinal de contas, todas nós pertencemos ao sultão.

"Sabe, Ibn Yakub, ainda acredito que ela voltará um dia. Não para mim, mas à razão, o que já será suficiente. Espero que, nesse dia, ela ensine a outras mulheres o que aprendeu comigo; assim, o tempo que passamos juntas não terá sido em vão. Não quero mais nada dela. Nada! Seu coração não escuta mais a minha voz. Está tudo acabado. Ela morreu para mim. Vou chorar sozinha e, mais cedo ou mais tarde, a solidão trará sua sabedoria tranqüilizadora. Minha serenidade voltará e serei feliz de novo. Entende o que digo?

Fiz um sinal afirmativo e um sorriso leve e triste surgiu no rosto dela quando saiu do aposento devagar, passo a passo, como se não quisesse voltar para o lugar onde sofria.

Pensei muito em Jamila depois daquele encontro. Se nosso mundo fosse diferente, poderíamos ser grandes amigos e eu teria muito a ganhar com isso. Mais do que qualquer mulher que eu já conhecera, ela era o melhor exemplo para justificar a reclamação de Ibn Rushd: o mundo dos seguidores de Alá e seu profeta era prejudicado pelo fato de metade de seu povo — ou seja, as mulheres — ser proibida de trabalhar no comércio ou de participar dos negócios de Estado.

Quando uma pessoa é excluída do que acontece no mundo fora da fortaleza, fatos como a transformação de Halima adquirem uma importância desmedida. Na hora em que os mensageiros, de rosto e roupas avermelhados pela areia do deserto, chegaram com despachos informando que Aleppo caíra sem uma só batalha, recuperei-me completamente.

Tudo se encaixou nos devidos lugares. Todos abraçaram o primeiro mensageiro a trazer a boa notícia. A população de Aleppo obrigou o idiota que resistiu ao sultão a fugir e voltar para Xinxar, onde nasceu.

Fora dos muros de Aleppo, os soldados que guardavam a cidade desfilaram diante do sultão, de cabeça baixa para mostrar respeito. O povo de Aleppo amara Nur al-Din e continuava fiel a seus sucessores, mas sabia que havia encontrado em Saladino um conquistador que defenderia os habitantes e a cidade, e não permitiria que nada atrapalhasse o caminho da jihad.

A queda de Aleppo trouxe uma onda de alegria a Damasco. Festejava-se nas ruas e as tavernas de todos os bairros ficaram cheias de jovens dispostos a beber muito.

Era como se todo o nosso mundo houvesse mudado com a notícia. As pessoas sentiam isso na pele. Nosso sultão tornara-se o soberano mais poderoso do mundo.

No dia seguinte, minha alegria foi tolhida pela notícia de que uma grande voz se calara. Ibrahim morreu enquanto dormia. Nossa amizade era recente, mas chorei por ele como se chora por um pai morto. Até as pessoas mais insensíveis choraram no enterro. Ele deixou para mim uma pequena coleção de livros de sua biblioteca particular, acompanhada de um bilhete. Só consegui lê-lo tarde da noite, na tranqüilidade de meu quarto.

"Servir aos grandes soberanos pode trazer recompensas, mas servir à verdade não traz recompensas e, por isso, tem muito mais valor."


21

Jamila sai de Damasco e volta para o palácio do pai,
esperando recuperar a tranqüilidade.
Saladino adoece e corro para perto dele

Dois dias depois, o eunuco Amjad entregou-me uma carta de Jamila. Ele não estava rindo, nem querendo contar nada: colocou a carta na minha mão e saiu.

Fiquei surpreso com a beleza da caligrafia. Jamais vi uma carta com letras tão bem desenhadas, exceto nos textos dos grandes mestres dessa arte. Não sei com quem ela aprendeu, mas devia ser um especialista ou discípulo de um calígrafo. Escrevo estas linhas tendo a carta na minha frente. Quando transcrevo as palavras, sou capaz de ouvir outra vez a voz clara de Jamila, como naquele dia em que Halima me apresentou a ela. Sua voz ecoa nos meus ouvidos e lembro-me de seu rosto marcante.

Caro amigo Ibn Yakub, Escrevo para lhe participar que estou indo embora de Damasco por alguns meses, talvez mais. Volto para ficar um pouco com meu pai, que está com quase oitenta anos e não tem passado bem; espero vê-lo antes que morra. O sultão, que seu coração seja abençoado, nunca se opôs a minhas viagens.

Uma vez, há muitos anos, passei algum tempo em Bagdá. Foi uma visita para ampliar meus conhecimentos. Assisti às palestras de um grande filósofo e poeta que me ensinou a importância da razão. Ainda posso vê-lo cofiando a barba branca, enquanto me ensinava este diálogo entre o profeta e Muadi ibn-Jabal, o cádi de al-Iaman: Profeta: Como sabes responder a uma pergunta? Muadi: Sigo o Livro de Alá. Profeta: E se não encontras nada no livro? Muadi: Sigo o sura do mensageiro de Alá.

Profeta: E se não encontras nada lá? Muadi: Então, uso minha razão. Quando voltei de Bagdá, contei isso para Saladino, que passou a citar o diálogo, principalmente em discussões com os teólogos dos califas fatímidos, no Cairo. Senti que aprendera algo e nunca esqueci essa viagem.

Desta vez, viajo para recuperar meu equilíbrio mental.

Sofri um duro golpe e tenho certeza de que em Damar as lembranças do Cairo e de Damasco não me incomodarão.

Quero sentir outra vez o perfume das flores no maravilhoso jardim criado por meu avô, cercado pelo mais belo muro que já vi, onde crescem as mais lindas plantas e flores. Sempre achei que o céu devia ser parecido com nosso jardim. Lá eu costumava passar muito tempo em silêncio, entre as árvores, vendo os pássaros voando do muro para beber água num riacho projetado para dar a impressão de ser natural.

Foi lá que construí meus sonhos. Costumava sentar-me na sombra durante horas e devanear, imaginando como seria o mundo fora dos muros de Damar. Os comerciantes falavam em Bagdá, no Cairo e em Damasco, em Basra e Calicute, nas coisas estranhas e maravilhosas que aconteciam nessas cidades. Eu então corria para meu pai e insistia que me deixasse ser comerciante quando crescesse, porque assim poderia ir até a China.

Quando eu estava com catorze anos, costumava andar a cavalo com meu pai. Às vezes íamos ver o mar. Como é relaxante observar as ondas suaves e admirar a obra da natureza. Meu pai costumava emparelhar seu cavalo com o meu, deixando nosso séquito de criados para trás. A maioria deles tinha medo do mar. Eles achavam que era cheio de djins em forma de peixes gigantes, que comiam gente. Lembro-me de galopar na areia e depois fazer meu cavalo andar pela beira do mar, com a água espirrando em mim.

Meu pai olhava para o mar e dizia: "Tudo isto vai durar mais do que nós e mais do que aqueles que vierem depois de nós. Esta mesma brisa será sentida pelas pessoas daqui a milhares de anos e elas vão ficar encantadas com a natureza, exatamente como nós. Esta brisa, minha filha, é a voz da eternidade."

Só bem mais tarde fui entender tudo o que ele estava querendo dizer. Percebi então minha sorte por ter um pai que não acreditava que o mundo terminaria antes de seus filhos crescerem. Muita gente pensava que Alá acabaria com tudo, os anjos abririam um livro e acertariam as contas de nossas vidas. Meu pai era muito diferente.

Fiquei triste por precisar deixar minha casa e meus amigos, mas não tinha outra escolha. Nem Saladino. Nossa união foi um acordo feito por nossos pais e abençoado pelo grande sultão Nur al-Din, que descanse em paz. Eu gostava da companhia de Saladino, mas não dos prazeres do matrimônio. Dei-lhe dois filhos, depois o sultão nunca mais veio me perturbar. Ficamos amigos e não insistia para passar as noites comigo. Essa é apenas minha experiência pessoal e talvez eu reagisse da mesma maneira se fosse com outro homem. Talvez meu corpo não tenha sido destinado a ser maculado por um homem. Só encontrei o amor puro e a felicidade em Halima, mas você conhece bem essa história.

Quando Ismat, a viúva de Nur al-Din, casou-se com Saladino, passou vários meses sem acreditar no que estava acontecendo. Acho que, depois do ascético Nur al-Din, que só devia montá-la por obrigação, Saladino lhe parecia um cavalo fogoso e indomável. Lembro-me que ela disse que nunca imaginara que o sexo pudesse lhe dar prazer.

Conto isso para que não julgue essa faceta de Saladino só pela minha experiência. Seria injusto com ele. A versão de Ismat é muito mais confiável e confirmada pelas outras mulheres do harém. Halima, como eu, era diferente. A lembrança de Messud era tão forte que ela estava mais receptiva. Confessou-me que, na primeira vez que o sultão a tocou, fechou os olhos e pensou em Messud, só para amenizar o desejo.

Pode ser que eu não fique muito tempo em Damar. Talvez seja inútil buscar um passado perdido ou achar que é possível curar a dor do presente recordando a infância e a juventude. Há detalhes da vida em Damar que me desagradam. Fico irritada com a eterna glorificação do velho estilo de vida das tribos do deserto. Não me interesso pelas histórias exageradas das vitórias dos beduínos contra a natureza e seus inimigos humanos. Meu pai também nunca incentivou nada disso. Mas essas coisas permanecem até hoje e os cortesãos gostam de escrever má poesia louvando os incansáveis camelos de raça ou um acampamento beduíno cercado por lobos e hienas, ou pela fome e a sede, e as delícias do leite de camela.

Se alguma dessas coisas continuar, volto para Damasco curada para sempre. Mas quero ver algumas pessoas. Como minha tia, irmã de minha mãe, que cuidou de mim e tornou-se minha amiga quando fiquei órfã. Ela me contava todos os seus temores e segredos. E eu contava os meus. Uma vez, veio me visitar no Cairo, mas eu estava tão enamorada de Halima que não tive tempo para me ocupar de minha pobre tia. Ela voltou triste, pensando, é claro, que eu me tornara uma mulher arrogante e sem consideração. Hoje, acho que devia ter contado tudo a ela e explicado como estava minha cabeça.

Não é bom ser dominado pelas emoções, Ibn Yakub. Concorda? Ao mesmo tempo, é difícil livrar-se delas. Nesse aspecto, minha viagem a Damar será útil e voltarei para Damasco recuperada, como era antes. Então, você e eu nos sentaremos e discutiremos filosofia e a história que estamos vivendo a cada dia. Se Saladino se envolver em outra guerra enquanto eu estiver longe, diga a ele que Jamila insistiu para você não ir. Que a paz esteja com você.

Mal tivera tempo para refletir sobre a carta de Jamila quando Xadi entrou no quarto. Escondi a carta só para evitar perguntas indiscretas, mas ele deu uma risada cacarejante.

— O eunuco Amjad já me contou o que está escrito na carta. Não há nada de muito interesse. Quer dizer então que ela está indo embora? Decerto tem outra mulher em Damar. Saladino provavelmente ficará aliviado, pois tinha um certo medo da língua afiada de Jamila. Eu o aborreci?

Antes que eu pudesse responder, o camareiro do sultão chegou, avisando com sua voz de trovão: — Trago más notícias, Ibn Yakub. Vim avisá-lo de que deve juntar seus pertences, sua pena, tintas e cadernos de anotação. O sultão estava retornando para cá, mas adoeceu numa aldeia que fica a dois dias daqui. Isso é ruim. Ordenou que nós fôssemos para lá. Partimos dentro de poucas horas.

Xadi começou a chorar, insistindo em nos acompanhar até a aldeia onde o sultão estava, mas o velho parecia tão frágil que tivemos de recusar o pedido e, enquanto arrumava minhas coisas, prometi mandar notícias. Já tinha me acostumado a andar a cavalo, mas não gostava muito da idéia.

Partimos para Damasco na calma do anoitecer, quando tudo era silêncio, exceto pelo ciciar das cigarras. Nosso grupo era formado por doze cavaleiros, dos quais oito eram soldados enviados para nos proteger. Os outros dois, além de mim e do camareiro, eram criados que levavam comida para a nossa viagem.

Eu estava preocupado com o fato de os médicos do sultão não conseguirem trazêlo para Damasco, onde teria mais conforto e outros médicos para atendê-lo. A única explicação seria a gravidade do seu estado, que o impediria de ser transportado. Fiquei assustado também por ter mandado me chamar, já que Imad al-Din estava participando dessa última campanha. Se Saladino quisesse ditar um testamento, o grande erudito seria mais indicado que eu para anotar os últimos desejos de seu amo.

Era tarde da noite quando paramos para acampar num pequeno oásis. Eu estava cansado demais para comer ou conversar com o camareiro, cuja grande lealdade ao sultão não correspondia à sua inteligência. Na verdade, era um sacrifício ouvir o que dizia, pois só se interessava por cavalos e bordéis, dois assuntos que não me atraíam.

No início da viagem, ele falou de um estranho prostíbulo que existia em Damasco e era o deleite dos soldados. Lá, segundo o camareiro, os clientes amarravam as prostitutas com correntes e as açoitavam, depois soltavam as mulheres para elas fazerem a mesma coisa com os clientes. Isso dava grande prazer a todos os participantes.

Olhei bem para o camareiro. Seu sorriso maldoso respondeu à pergunta que estava na minha cabeça. Ele já freqüentara esse bordel. Guardei o detalhe na cabeça para, na volta, perguntar a Xadi que tipo de pessoa era o camareiro.

Acordamos cedo, bem antes do nascer do sol, e retomamos a viagem. Para minha surpresa, chegamos à aldeia quando o sol estava a pino. Pensei que levaríamos pelo menos mais seis horas a cavalo, mas tínhamos dois soldados que eram da aldeia e nos levaram por um caminho bem mais curto.

Todos estavam ansiosos à nossa espera e fomos imediatamente levados para uma casinha. Lá, o sultão estava deitado, coberto com lençóis de musselina branca, com dois criados abanando seu rosto para afastar as moscas. Saladino estava de olhos fechados e levei um susto ao ver como seu rosto emagrecera. Sua voz estava fraca.

— Sei o que está pensando, Ibn Yakub, mas o pior já passou. Sua viagem foi inútil. Estou me sentindo muito melhor e amanhã volto a cavalo com você. Imad al-Din está em Aleppo e, quando chamei você, pensei que fosse morrer logo. Queria deixar todos os meus planos da jihad para meu sucessor poder realizar o que Alá, em sua infinita misericórdia, decidira que estava além da minha capacidade. Felizmente, o poderoso mudou de idéia e continuo vivo. Há apenas uma semana enterramos quatro emires aqui nesta aldeia. Acho que sobrevivi apenas por chupar o suco dos limões plantados aí no jardim. Não imagino outra razão, pois estava tão doente quanto os outros que morreram. Acredita que o limão tenha propriedades curativas? Meu médico diz que estou curado porque ele me fez uma sangria, mas ele a aplicou também nos emires que morreram. Escreva para Ibn Maimun e pergunte a opinião dele. E, a partir de agora, quero ter sempre limões à disposição, aonde quer que vá.

O sultão sorriu e sentou-se na cama. Seus olhos estavam brilhantes. Tinha sobrevivido. Considerei toda aquela história do suco de limão como uma espécie de delírio causado pela febre, mas agora me pergunto se não era verdade.

Saladino quis saber o que estava acontecendo em Damasco, com detalhes, parecendo irritado porque eu não podia responder a todas as perguntas. Tentei explicar que, na ausência dele, não compareci às reuniões do conselho e, portanto, só sabia o que me foi informado diretamente. Isso aumentou a irritação de Saladino, que mandou o camareiro perguntar por que, apesar de suas ordens expressas, não fui chamado para as reuniões em que eram tomadas importantes decisões de Estado.

O camareiro não tinha como se justificar e inclinou a cabeça num silêncio constrangido. Aquele que se gabava de ser um grande freqüentador de prostíbulos especiais tinha, de repente, perdido a língua. Com um gesto impaciente, o sultão mandou que ele saísse.

No dia seguinte, quando o sol começava a surgir, iniciamos a viagem de volta a Damasco. Nosso grupo era cem vezes maior.

Quando acampamos à noite, o sultão mandou me chamar e perguntou primeiro sobre o estado de saúde de Xadi. Quando garanti que ele estava apenas sofrendo das agruras da velhice, perguntou sobre Halima e Jamila. Fiquei desconcertado. Será que devia dizer qualquer coisa, que as duas estavam bem de saúde, e depois enfrentar sua ira, quando descobrisse que o enganei? Ou devia contar tudo o que sabia?

Infelizmente, ele estava mais atento do que eu esperava e notou minha leve hesitação. Falou numa voz firme, e seus olhos, brilhando como a luz de dez velas, fixaram-se nos meus:

— A verdade, Ibn Yakub. Quero ouvir a verdade. Eu contei.


22

O sultão declara seu ódio mortal a Reinaldo de Châtillon.
A morte de Xadi

Saladino não era um homem vingativo ou cruel. Não guardava rancor e costumava condenar a prática da retaliação. Uma vez ouvi quando disse que agir apenas por vingança era sempre perigoso, como beber um elixir até viciar-se. A vingança não era uma atitude política e fazia com que os fiéis se igualassem aos bárbaros. Embora ele sempre repetisse isso, jamais castigou seus comandados ou emires quando desprezavam seu conselho, não controlando as emoções mais primárias. Nessas ocasiões, o sultão dava um suspiro e balançava a cabeça mostrando sua desaprovação, como se dissesse que o maior juiz não era ele, mas Alá e seus anjos.

Mas até Saladino enfrentou uma situação especial. Foi com um cavaleiro cruzado chamado Reinaldo de Châtillon e está na hora de escrever sobre esse ódio, pois agora estamos bem perto das últimas batalhas do sultão contra os cruzados. Dentro de pouco tempo vamos nos deparar com esse desgraçado.

O sultão tinha muito ódio a Reinaldo, um ódio puro, que não era maculado por qualquer sentimento de perdão, generosidade, delicadeza ou mesmo arrogância, o que fazia aquele homem ser considerado apenas um verme, indigno de merecer até o desprezo de um sultão. Reinaldo era uma serpente venenosa cuja cabeça precisava ser esmagada a pedradas. Durante um conselho aberto, ouvi Saladino jurar por Alá que, se houvesse uma oportunidade, cortaria a cabeça de Reinaldo com sua própria espada. Os emires apreciavam esse tipo de observação por se sentirem mais próximos do soberano quando ele demonstrava ter emoções iguais às deles. O fato era que, desde a chegada dos primeiros cruzados, que surpreenderam nosso mundo com seus hábitos e costumes bárbaros, nosso povo tinha assimilado e absorvido suas piores práticas.

Cerca de um século antes, durante um cerco, os cruzados assaram prisioneiros numa fogueira e depois os comeram, saciando a fome. A notícia se espalhara por todas as cidades e nosso mundo foi tomado por um sentimento de pasmo e vergonha. Jamais tínhamos ouvido falar numa coisa daquelas, embora apenas trinta anos antes o grande Xirkuh tenha castigado um de seus emires por permitir que três prisioneiros cruzados fossem assados e comidos. O ulemá logo condenou tal prática, acusando-a de ser um pecado contra o profeta e o hadith.

Após as orações de sexta-feira na mesquita, o cádi de Aleppo apresentou um argumento que resolveu definitivamente o assunto: ele disse que comer carne de cruzado era um ato incompatível com os fiéis, pois nossos inimigos comiam muita carne de porco e, portanto, a carne deles estava conspurcada. Por estranho que pareça, este argumento teve um efeito muito mais convincente para acabar com a prática do que todas as referências ao hadith e da conveniente descoberta de novas tradições exatamente na hora em que eram necessárias.

Jamais me disseram por que o sultão tinha tanto ódio a Reinaldo. Todos apenas aceitavam o fato, como se aceita a existência de uma paisagem. Um dia fui à biblioteca de Imad al-Din e fiquei aguardando que o grande homem chegasse. Ao me ver, a primeira reação dele foi franzir o cenho, mas mudou de expressão, pondo uma máscara de grande boa vontade.

— Desculpe-me por aparecer assim de repente, mestre, mas gostaria de saber se pode me conceder alguns minutos de seu precioso tempo.

Seus lábios sorriram, mas seus olhos continuaram duros.

— Como posso recusar um pedido do escriba particular do sultão? Estou à sua disposição, Ibn Yakub.

— É uma honra para mim, senhor. Não vou tomar muito do seu tempo. Será que poderia esclarecer este escriba ignorante e explicar por que o sultão tem ódio mortal a Reinaldo de Châtillon?

Imad al-Din riu, um riso forte, gutural e muito espontâneo. Estava encantado com minha ignorância e muito satisfeito por poder aumentar meus conhecimentos sobre este ou qualquer outro assunto.

O bom amigo Ibn Yakub começa a entender o jeito de nosso sultão, mas até eu, que estou com ele há muito mais tempo que você, às vezes me surpreendo com seu estilo de tomar decisões. Para mim, o mais importante é o modo de agir, mas ele acha que só vale a intuição, intuição e intuição. Se meu método e a intuição dele coincidem, está tudo muito bem, mas às vezes eles se opõem. Então a intuição dele prevalece e, como conselheiro fiel, curvo-me à sua vontade.

Como devemos tratar os cruzados durante a jihad? Esse é um assunto sobre o qual sempre concordamos. Alguns idiotas estouvados acham que a jihad é um estado de guerra permanente com os cruzados, mas Saladino nunca simpatizou com essa posição. Ele acha que o inimigo, como nós, costuma estar dividido em facções. Da mesma forma que nossa crença em Alá e em seu profeta nunca impediu que um fiel cortasse a cabeça de outro, também os cruzados, apesar de adorarem ídolos e obedecerem ao papa, têm dificuldade para acabar com ridículas disputas internas.

O sultão agora governa o Cairo, Damasco, Aleppo e Mosul. Do Nilo ao Eufrates, existe uma só autoridade, exceto nos lugares dominados pelos cruzados. Não há outro soberano tão poderoso quanto ele, mas, apesar de sua força, fez uma trégua com o filho de Amalric — Balduíno, o leproso, que governa al-Kadisia. Balduíno pode ser fraco no corpo, mas tem a cabeça forte. Sabia que o sultão manteria a palavra e a paz seria útil para ele também. Graças a essa trégua, nossas caravanas não tiveram problemas para ir do Cairo a Damasco e muitas vezes ainda paravam nas aldeias dos cruzados para vender seus produtos.

Há quatro meses, como você sabe, o pobre rei leproso morreu, insistindo que seu filho de seis anos de idade subisse ao trono com o título de Balduíno Quinto.

Nossos espiões mandam relatórios semanais daquela cidade que, queira Alá, logo voltará a ser nossa.

O sultão está bem-informado. Ele sabe que há duas facções mais importantes entre os cruzados de al-Kadisia. Uma, liderada pelo conde de Trípoli, Raimundo ibn Raimundo al-Sanjili, descendente de São Gilles. Quem o vê, acha que poderia ser um emir de Damasco: tem a pele mais escura que a do sultão, um nariz de águia e fala fluentemente nossa língua.

O sultão gosta muito do conde e queria que vencesse a luta pelo poder. Você sabia que, para ajudá-lo, libertamos os cavaleiros dele que prendemos em diversas ocasiões nos últimos anos? Isso mostra como Saladino encara com seriedade o resultado da briga entre facções naquela cidade. E essa batalha prossegue agora, no momento em que estou conversando com você, Ibn Yakub.

Vou responder agora à pergunta que você fez antes. Reinaldo de Châtillon! Jamais houve um monstro tão sanguinário, nem mesmo no mundo dos cruzados. Ele foi preso por Nur al-Din e passou doze anos nos cárceres de Aleppo. Só foi solto depois que Nur al-Din morreu. Os cruzados pagaram um bom resgate pela liberdade dele, mas teria sido melhor que sua cabeça tivesse rolado pela areia.

Reinaldo é um homem que gosta de matar sem qualquer motivo. E tem um prazer especial em matar seu povo, Ibn Yakub. Acredita que os judeus venderam Isa para Pilatos.

Nós ficamos em segundo lugar na hierarquia do ódio dele. Soube que ele gosta de retirar as entranhas dos prisioneiros judeus e dar para seus cachorros comerem.

Conto tudo isso para você ver que, mesmo se ele não tivesse ofendido diretamente o sultão, continuaria sendo uma pessoa que desperta ódio. E irritou Saladino porque rompeu a trégua acertada com Balduíno, o leproso.

Há dois anos, ele atacou uma caravana de comerciantes que estava a caminho de nossa cidade santa de Meca. Todos os comerciantes e os que viajavam com eles foram mortos cruelmente. Para Reinaldo, a misericórdia é um vício, um sinal de fraqueza.

Entre os que perderam a vida naquele dia estava Samar, uma senhora de oitenta anos que desejava muito conhecer Meca antes de morrer. Mas o que viu foi a cara ameaçadora dos cruzados. Ela era a última tia viva do sultão, irmã caçula do pai dele.

Em nome do sultão, escrevi uma carta muito dura para Balduíno. Pedimos a ele que punisse e contivesse seu vassalo selvagem, mas Balduíno confessou que não tinha meios para isso. Como se não bastasse, Reinaldo atacou Meca e profanou nosso santuário sagrado. Seus cavalos defecaram na mesquita. A notícia dessas atrocidades chocou os fiéis do mundo inteiro. O califa de Bagdá recebeu mensagens indignadas, vindas de Granada e de outras cidades da Andaluzia, oferecendo ajuda em ouro e soldados para capturar a fera dos cruzados. Em todas as mesquitas foram feitas preces pedindo a cabeça de Reinaldo como vingança.

O sultão mandou um despacho urgente para seu irmão alAdil, no Cairo. Continha apenas uma frase: os criminosos devem ser castigados. Al-Adil fez o que lhe foi pedido, e a maioria dos criminosos foi presa, levada para Meca e decapitada em praça pública. Foi um castigo exemplar para aqueles que ousaram violar nossos locais sagrados e um aviso para os que pensarem em repetir tal sacrilégio. Mas, que lástima!, deixamos Reinaldo escapar de novo, ele que é um dos piores e mais perversos cruzados.

Para minha surpresa, o sultão sorriu quando foi informado disso. "Alá está guardando o demônio para mim, Imad al-Din. Vou matá-lo com minhas próprias mãos", disse ele.

— Será que isso responde à sua pergunta, Ibn Yakub?

— Melhor do que qualquer pessoa no reino poderia responder, ó grande mestre.

Ele gostou do elogio, mas não o suficiente para prolongar minha audiência, e assim, depois de agradecer outra vez, fui embora. Quando cheguei à porta, ouvi sua voz. — Acabo de dar instruções para você passar a receber uma pensão do tesouro, que será vitalícia. O sultão me pediu isso há várias semanas, antes de adoecer, mas esqueci porque estávamos em meio à guerra e eu fiquei muito ocupado em anotar os nomes e informações sobre os prisioneiros que capturamos. Perdoe minha negligência.

"Hoje, outra surpresa o aguarda, Ibn Yakub. Acho que vai gostar, e isto também foi por ordem direta do sultão. Se encontrar o camareiro no caminho, vai saber os detalhes por ele. O sultão se preocupa com seu bem-estar; deve estar satisfeito com você."

Será que havia um leve tom de inveja na forma como ele falou estas últimas palavras ou foi minha imaginação? Eu não tive muito tempo para pensar em Imad al-Din e suas suscetibilidades, pois as notícias que o camareiro deu me deixaram tão perplexo que precisei sentar e beber um pouco de água. Tinha certeza de que o sultão fizera aquilo com as melhores intenções, mas preferiria que tivesse me consultado antes.

Minha esposa e minha filha, além de todos os meus pertences e minha biblioteca, tinham sido levadas do Cairo para Damasco. Uma pequena casa, a pouca distância da fortaleza, tinha sido preparada para nós e um criado estava me levando para lá. Caminhei meio tonto, como aqueles que fumam mais banj do que seus corpos poderiam agüentar. O criado da fortaleza deixou-me na frente da casa. A porta estava aberta e o pátio resplandecia ao sol da tarde.

Da janela, Mariam me viu e saiu correndo para me abraçar. Não a via há quase quatro anos. As lágrimas molharam minha barba quando a apertei nos braços, antes de afastá-la devagar para ver como tinha mudado. Ela mudara, mas ainda dava para reconhecê-la. Era uma linda jovem de dezesseis anos, de olhos cor de mel e cabelos escuros como breu, compridos quase até o chão. Eu já tinha visto esta imagem antes.

Mariam era igualzinha a Raquel na primeira vez que a vi, andando com as amigas para pegar água no poço. Enquanto recordava, senti um toque no ombro, que pareceu queimar minha pele. Virei-me para abraçar Raquel. Tinha envelhecido, seu rosto estava enrugado e seu cabelo, cheio de fios brancos. Meu coração fraquejou, mas toda a mágoa sumiu quando beijei seus olhos. Foi uma atitude sensata do sultão não me avisar que ia mandar buscá-las. Eu era capaz de recusar e depois sofreria muito por causa disso.

Ia ser estranho voltar a morar numa casa, pois me acostumara ao luxo da fortaleza, onde tinha tudo o que precisava. Foi bom estar sempre próximo do poder, mas fiquei satisfeito por começar uma nova fase em minha vida. Mariam logo se casaria. Raquel e eu voltaríamos a ficar sozinhos, como nos quatro anos antes de Mariam nascer. Naquela época, queríamos tanto um filho, que tínhamos relações várias vezes por dia. Mas todo aquele empenho resultara apenas em Mariam. Não me foi concedido um filho homem. O que faríamos depois que Mariam saísse de casa?

Era estranho que uma pergunta assim surgisse na minha cabeça pouco depois da chegada de Raquel, mas um mensageiro da fortaleza veio nos perturbar. Trazia uma ordem para que eu voltasse imediatamente para lá. Raquel sorriu, compreensiva.

— Vai ser exatamente como no Cairo. Vá, mas não demore muito, esta é nossa primeira noite em muitos anos. Ontem à noite, quando a caravana passou pelo deserto, vi a mais bela lua crescente.

Não voltei para casa naquela noite. Fui chamado para ficar à cabeceira de Xadi. O velho estava morrendo e sorriu de leve quando entrei no quarto.

— Onde está Saladino? Por que meu menino não está aqui nas minhas últimas horas de vida?

Segurei a mão dele e apertei-a com carinho.

— O sultão está lutando contra os cruzados, meu velho amigo Xadi. Por favor, não nos deixe agora. Espere mais alguns meses.

— Alá finalmente me chamou. Mas ouça bem, ouça. Quando al-Kadisia cair e você passar pelos portões da cidade ao lado do meu menino, pense em mim, Ibn Yakub. Imagine que estou cavalgando ao lado do sultão, animando-o baixinho, exatamente como fiz quando lutou sua primeira batalha. Não poderei assistir à vitória do meu menino, mas tenho certeza de que ela chegará. Tanta certeza como a de que não estarei ao lado dele na hora. O nome de Saladino será lembrado para sempre. Mas quem vai se lembrar de Xadi?

— Saladino lembrará — sussurrei, enquanto as lágrimas escorriam por meu rosto.

— E eu também. Nunca esqueceremos de você.

Ele não respondeu. Senti sua mão esfriar e fiquei com um nó na garganta. Xadi se fora. Aquele velho, em cuja companhia eu passara tantas horas e que tanto enriquecera minha vida, estava morto.

Lembrei-me da primeira vez em que nos encontramos. Eu tinha um certo medo dele, ficava inseguro com a forma desrespeitosa com que tratava os superiores. Mas naquele mesmo dia, no fim da nossa primeira conversa, eu já estava querendo outra: percebi que ele era uma fonte inesgotável de informações sobre a história secreta de Saladino e da Casa dos Ayub.

Xadi não estava mais conosco, mas viveria para sempre dentro de mim. Não poderia haver uma separação definitiva. Tentei imaginar como seria o futuro. Sua voz, seu riso, suas ironias, seu jeito às vezes arrogante, sua intolerância com os tolos e pretensiosos eruditos religiosos, suas piadas indecentes e a história de seu amor trágico. Como eu poderia esquecê-lo? Ouviria sua voz enquanto vivesse. As lembranças ficariam comigo, mesmo depois que eu terminasse o livro do sultão Saladino e seu tempo.

Enterramos Xadi na manhã seguinte. O filho mais velho do sultão, alAfdal, comandou os rituais do velório, que foi restrito à família do sultão. O eunuco Amjad e eu éramos as únicas exceções. Nos últimos meses, Amjad tinha cuidado de Xadi, suprindo suas necessidades. Ele também se rendera ao encanto do velho e soluçava sem parar. Nós nos confortamos e, pela primeira vez, me senti próximo dele.

Eu não tinha dormido a noite toda. Depois que terminaram as preces fúnebres, voltei para casa. Agradeci a minha estrela por minha esposa e minha filha estarem em Damasco. Isto amenizaria a tristeza pela perda de Xadi.

Raquel sabia o que Xadi significou para mim. Eu falara muito nele nas primeiras semanas do meu trabalho no Cairo. Raquel sabia que Xadi tinha sido meu único amigo sincero no séquito do sultão. Não precisei dizer nada. Chorando, adormeci no colo dela.


23

Um traidor é executado.
Usamá distrai o sultão com temas leves e histórias lascivas

Saladino voltou a Damasco dez dias depois da morte de Xadi. Quando o sultão soube da notícia por um mensageiro, calou-se e, numa atitude inusitada, não falou com ninguém, só ordenou a suspensão do cerco e o retorno para casa. Insistiu em ficar completamente sozinho quando parou para rezar no túmulo de Xadi, antes de entrar na fortaleza.

À tarde, fui chamado aos aposentos dele. Para minha surpresa, ele me abraçou e chorou. Depois de se recompor, falou com uma voz emocionada e quase inaudível.

— Certa noite, durante o cerco, o céu escureceu e começou a chover. Cobrimos nossas cabeças com mantas e alguns soldados se aproximaram de mim trazendo um prisioneiro alto e moreno. O homem resmungava e insistiu em defender seu caso na minha presença. Meus soldados não tiveram outra saída senão atender ao pedido, já que minhas ordens de batalha são muito claras nesse aspecto. Qualquer prisioneiro condenado à morte tem o direito de apelar diretamente ao sultão. Perguntei por que queriam matar o prisioneiro e um dos soldados, um homem baixo que era dos meus melhores arqueiros, respondeu: "Comandante dos Bravos, este homem é um fiel, mas nos traiu.

Por causa dele não conseguimos tomar o castelo de Reinaldo."

"Olhei o prisioneiro, que estava de cabeça baixa. A chuva e o vento tinham amainado, mas a tarde continuava escura, sem uma estrela no céu. Olhei para aquele rosto barbado e cruel e me irritei.

'Você é um apóstata, maldito. Traiu a jihad, traiu seus companheiros por causa desse demônio, um carniceiro que matou sem dos nossos homens, mulheres e crianças.

E ousa me pedir clemência. Por tudo isso, não merece meu perdão.'

"Ele ficou quieto. Pedi que se explicasse, mas continuou quieto. Quando o carrasco estava preparando a espada para decapitá-lo, o traidor me disse, baixinho: 'No exato momento em que seu espadachim cortar minha cabeça também morrerá alguém que Sua Majestade ama.'

"Fiquei irritado e me afastei, não querendo honrar sua morte com minha presença. Depois soube, Ibn Yakub, que Xadi morreu naquela mesma noite, deixando-nos sós para contar os dias vazios que temos pela frente. Ele foi mais que um pai para mim e há muitos anos não saía do meu lado nas batalhas. Era como se eu tivesse dois pares de olhos. Ele me defendia como um leão. Era amigo, conselheiro, orientador, alguém que nunca se furtou a dizer a verdade, doesse ou não. Agora, foi atingido pela flecha cruel da morte. Homens como ele são raros e insubstituíveis. Gostaria que nossas lágrimas pudessem trazêlo de volta.

"Como poderia aquele blasfemo, punido diante dos olhos de Alá, saber que Xadi também ia morrer? Quando estávamos voltando para Damasco, um dos meus soldados contoume que o prisioneiro que executamos virou traidor porque Reinaldo violentara a esposa na frente dele e ameaçara chamar mais cem homens para fazer o mesmo antes de matá-la. Claro que me entristeci ao ouvir isso, mas não me arrependi do castigo. Bom escriba, precisamos estar preparados para todos os sacrifícios na guerra. Mesmo assim, respeito aquele homem por não ter contado seu sofrimento com a esposa. Reinaldo também será castigado. Jurei por Alá. A morte passou a ser uma guirlanda dependurada no meu pescoço.

"Esta noite quero que me distraiam, escriba. Chame Usamá e faça com que ele nos divirta ou, pelo menos, estimule nossas cabeças. Quero uma sessão de entretenimento hoje, ao anoitecer. Não quero dormir. Vamos recordar Xadi fazendo algo de que ele sempre gostou: testar nossa ironia contra a de Usamá. Ele está em Damasco ou nos deixou para desfrutar dos prazeres de Bagdá? Está aqui? Ótimo, mande um mensageiro buscá-lo, mas, por favor, faça a refeição com ele. Não estou com vontade de vê-lo devorando carne como um animal selvagem. Parece que você gostou desta idéia.

Sorri ao fazer uma reverência para sair do aposento real. Não ter de fazer uma refeição com o sultão era mesmo um alívio. Mandei o camareiro buscar Usamá ibn Munquid, como o sultão ordenara, mas fiquei pensando se o velho não estaria muito cansado demais para se apresentar de improviso. Usamá nascera pouco depois de os cruzados chegarem pela primeira vez às nossas terras. Tinha noventa anos, mas estava tão bem conservado e rijo como um tronco de mogno. Não tinha qualquer doença, embora andasse meio curvado. Falava com voz forte e profunda. Eu o vira a última vez no Cairo, ao lado de Xadi.

Ele bebeu, enquanto nós tomamos uma infusão de ervas, fazendo de conta que o acompanhávamos. Usamá tomou um frasco inteiro de vinho e não tirou da boca o cachimbo cheio de banj. Apesar disso, permaneceu alerta e nos regalou quase a noite inteira com histórias de seus amigos cruzados, que eram muitos. Costumavam convidá-lo para hospedar-se com eles e Usamá voltava cheio de histórias estranhas e maravilhosas.

Naquela noite no Cairo, ele comentou sobre o hábito pouco higiênico que os cruzados tinham de não raspar os pêlos púbicos. Uma vez, ele estava nos banhos quando seu anfitrião cruzado chamou a esposa para ver a virilha raspada de Usamá. O casal achou muito interessante e, na mesma hora, chamou um barbeiro para raspar seus pêlos. "Meu príncipe, não ficou excitado ao ver uma mulher nua na sua frente, raspando o cabelo que fica embaixo da barriga?", perguntou Xadi. Usamá pareceu embaraçado com a pergunta, deu uma baforada no cachimbo, olhou bem para Xadi e respondeu: "Não fiquei, não. O marido dela era bem mais atraente!"

Xadi e eu rimos muito até percebermos que Usamá não entendera a razão de tanto riso. Estava bem sério.

Usamá era um nobre de grande estirpe. O pai era príncipe de Xaizar e o filho foi criado como cavalheiro e guerreiro. Tinha viajado muito e estava no Cairo quando Saladino foi eleito sultão. Desde então, os dois ficaram amigos, mas Saladino jamais conseguiu usar a experiência e o tempo que Usamá passou entre os cruzados para entender as táticas militares deles.

O sultão ficou surpreso com o fato de Usamá não ter qualquer informação sobre o assunto, até o dia em que o velho confessou que jamais participara de qualquer batalha, nem treinara táticas militares. Disse que era um viajante e um nobre, gostava de observar os hábitos e costumes de povos diferentes. Anotava tudo o que via há trinta anos e estava escrevendo um livro de memórias.

Mais tarde naquela noite, eu continuava recordando o passado quando Usamá chegou e me cumprimentou com uma piscadela. Eu o esperava para compartilharmos a refeição vespertina, mas ele já tinha jantado. Desisti de comer e fomos lentamente para a sala de audiência do sultão. Usamá estava mais curvado, mas, de resto, não mudara muito nos últimos anos. Quando percebeu a presença de Imad al-Din, franziu o cenho — os dois não se suportavam — e cumprimentou Saladino com uma reverência. O sultão levantou-se e abraçou-o. — Lastimo que Xadi tenha morrido antes de mim — disse ele ao sultão. — Podia ao menos ter esperado para irmos juntos.

— Vamos fazer de conta que ele ainda está entre nós — sugeriu Saladino. — Imaginemos que está sentado ali no canto, ouvindo com um sorriso crítico tudo o que você fala. Esta noite estou precisando muito de suas histórias, Usamá ibn Munquid, mas nada que seja trágico ou romântico, só quero coisas engraçadas.

— É difícil obedecer às recomendações do sultão porque o riso vem sempre antes de qualquer romance. E por que a tragédia é tragédia? Porque não tem riso. Então, com todo respeito, informo ao sultão que sua vontade não pode ser atendida. Se o soberano quiser ouvir apenas coisas engraçadas, esta língua ficará calada.

Foi um bom começo do velho mágico. O sultão ergueu as mãos para o céu e riu.

— O sultão apenas propõe; Ibn Munquid dispõe. — Muito bem — disse o velho contador de histórias, e começou sem mais delongas. — Alguns anos atrás, fui convidado a me hospedar na casa de um nobre cruzado, que morava numa pequena fortaleza perto de Afca, nas proximidades do rio de Abraão. A fortaleza fora construída no alto de uma colina, de onde se avistava o rio. A colina era coberta por uma floresta de cedros e eu tinha grande prazer em apreciar aquela paisagem. Nos primeiros dias, fiquei admirando a vista e aproveitando a tranqüilidade do lugar. O vinho era de boa qualidade, e o haxixe, melhor ainda. O que mais eu podia querer?

— Se Xadi estivesse aqui — disse o sultão -, teria respondido: "Um belo rapaz!"

Usamá ignorou o comentário e prosseguiu. — No terceiro dia, meu anfitrião informou-me que seu filho de vinte anos estava muito doente e pediu-me que desse uma olhada nele. Eu já conhecia o rapaz e simpatizava com ele. Filho único, era muito mimado pelos pais e usava sua posição de herdeiro do senhor de Afca para conseguir qualquer mulher que visse pela frente. Meses antes, ele matara dois meninos camponeses que tentaram proteger a honra da irmã de doze anos. Dizer que ele era odiado pelos vassalos do pai seria pouco. Talvez as histórias a respeito dele, que passavam de uma aldeia para outra, fossem aumentando no caminho, talvez não. É difícil saber.

"Mas eu não podia recusar o pedido de meu amigo para examinar o rapaz. Eu não era um médico com prática, porém tinha estudado todas as fórmulas medicinais e meus amigos mais próximos foram médicos conhecidos. Depois que morreram, eu costumava ser consultado sobre problemas de saúde e até me surpreendia com meus conhecimentos e receitas, pois costumavam dar certo. Minha fama tinha aumentado.

"Mandei que retirassem as cobertas do rapaz e examinei seu corpo nu. Ele tinha abscessos nas duas pernas, que se espalharam e poderiam matá-lo, se não tomássemos providências drásticas. Não adiantava mais aplicar cataplasmas e uma dieta rigorosa. Avisei ao pai do rapaz que a única forma de salvá-lo seria cortar suas pernas na altura das coxas. Nessa hora, meu amigo chorou, e os gritos angustiados de sua esposa podiam comover até o coração mais empedernido.

"Finalmente, o pai consentiu e eu supervisionei a operação. O rapaz, naturalmente, desmaiou. Eu sabia, de experiências anteriores, que, quando voltasse a si, ele não perceberia que estava sem as pernas. Essa ilusão permanece por alguns dias. O pai pediu-me que perguntasse ao pobre rapaz o que ele mais queria no mundo, e faria todo o possível para que tal desejo fosse atendido. Esperamos o rapaz recobrar os sentidos. Levou mais de uma hora e, quando ele abriu os olhos, sorriu porque não sentia mais dor, e eu falei baixinho no ouvido dele: 'Diga-me, filho, o que você mais quer no mundo?' O rapaz mudou de expressão e sorriu de um modo cínico e lascivo. Inclinei-me para ouvir sua resposta.

"'Vovô', falou de forma irônica, e fiquei surpreso com o fato de que, mesmo no estado em que se encontrava, sua voz fosse marcada pela depravação, 'o que eu mais quero é ter um pênis maior que as pernas!"'

"'Você já tem, meu caro', respondi, um pouco constrangido com o prazer que tive ao dizer isso. 'Você já tem.'

Primeiro, o sultão olhou assustado para Usamá. Depois, começou a rir. Percebi que a história ainda não terminara. Pelo jeito, Usamá mostrava que ainda havia mais alguma coisa, alguns floreios e detalhes a acrescentar, mas o sultão não conseguia parar de rir. Se parasse, Usamá faria de conta que ia continuar a história e Saladino teria um novo ataque de riso. Eu também comecei a rir, participando desse tradicional ritual da corte. Diante dessa situação, Usamá, percebendo que ninguém o ouvia e que sua história não poderia ser concluída, resolveu deixar de lado o final e rir junto.

Recomposto, o sultão sorriu. — Você é um ótimo contador de histórias, Usamá ibn Munquid! Até Xadi, que descanse em paz, não conseguiria controlar o riso. Agora compreendo que o humor só diverte quando tem ligação com alguma outra coisa. Tem mais para esta noite?

Usamá ficou encantado com o elogio do sultão. As linhas de seu rosto se multiplicaram quando ele sorriu de prazer. Ao recordar outro acontecimento de sua longa vida, o velho deu um profundo suspiro e olhou para longe.

Há muitos anos, pouco antes de o soberano nascer, eu estava um dia numa taberna no bairro cristão de Damasco, onde só se discutiam assuntos elevados no sábado dos cristãos. Eu tinha uns dezenove ou vinte anos. Só queria tomar um bom vinho e pensar numa moça cristã que não me saía da cabeça havia vários meses.

A única razão para que eu fosse ao bairro naquele dia era vêla saindo da igreja com a família. Nós nos veríamos, mas não era só isso. Se ela estivesse com um lenço branco na cabeça, seria mau sinal, não poderíamos nos encontrar mais tarde.

Mas, se estivesse com um lenço colorido, poderíamos nos ver na casa de uma de suas amigas casadas. Lá, ficaríamos de mãos dadas, num terno silêncio. Todas as vezes em que tentei tocar seu rosto ou beijar seus lábios, fui rejeitado com firmeza. Na semana anterior ela me deixara surpreso ao reagir carinhosamente à minha delicada tentativa de ir além das mãos dadas. Ela me beijou e ainda colocou minha mão sobre seus seios mornos e suaves. Depois de me atiçar, ela não quis apagar as chamas do fogo que provocou e me deixou desapontado, num estado de grande desespero: "Uma fortaleza de cada vez, Usamá. Por que você é tão apressado?", perguntou ela num sussurro e sumiu, deixando-me só.

Por causa dessa mudança de atitude, aquele sábado era importante. Eu sonhava conquistar a fortaleza que ficava escondida sob a floresta de cabelos perfumados entre suas pernas.

Ao sair da igreja, ela estava com um lenço colorido. Sorrimos e fui andando, surpreso por conseguir me controlar. Minha vontade era pular e gritar para todos na rua que aquela tarde me reservava grandes emoções. Feliz é aquele que passou pelos sofrimentos, tempestades e paixões da vida, pois só ele é capaz de apreciar as frágeis e ternas delícias do amor.

Esperei-a na casa da amiga, mas ela não veio. Depois de duas horas, um menino de recados chegou com uma carta para a amiga dela. Minha amada cometera a insensatez de falar de seu amor para a irmã mais velha que, invejosa, contara para a mãe. Minha amada estava preocupada porque seus pais agora iam apressar a data de seu casamento com o filho de um comerciante da cidade. Ela me implorou para não tomar qualquer atitude impensada e esperar, pois me mandaria um recado.

Fiquei desolado. Andei sem rumo pela cidade como uma alma penada e fui à taberna dos pensamentos elevados só com uma idéia na cabeça: afogar minhas mágoas. Mas, para minha surpresa, a taverna não servia vinho naquele dia. O taberneiro recusou-se a me vender álcool e achei estranho, já que o vinho fazia parte do ritual da igreja pagã, simbolizando o sangue de Isa.

Reclamei e me explicaram com frieza que a proibição não tinha nada a ver com religião. Era apenas porque aquele dia era reservado aos pensamentos elevados. Sugeriram que eu fosse à taberna ao lado. Olhei em volta e notei que a freguesia também era estranha. Havia umas cinqüenta pessoas, principalmente homens, e uma dúzia de mulheres, na maioria velhas. Fora eu, a pessoa mais jovem do lugar devia ter quarenta anos.

A arrogância daquelas pessoas me intrigou, ao mesmo tempo que me distraiu dos problemas. Perguntei se podia participar da discussão deles e concordaram com um movimento da cabeça — principalmente as mulheres. As outras pessoas me olhavam com indiferença, como se eu fosse um cachorro perdido, louco para encontrar um osso.

Foi uma questão de orgulho: resolvi ficar para acabar com a frieza e a arrogância que formavam uma espécie de auréola em volta deles. Pela cara que faziam, vi que me achavam um jovem bobo, sem nada a lhes dizer. Talvez estivessem certos, mas aquilo me incomodou e fiquei louco para mostrar que estavam errados. A situação começava a me distrair do golpe que sofrera naquele mesmo dia, e só isso já me deixava muito grato.

Sentei-me no chão. O tema da discussão daquela tarde parecia bastante relevante para meus problemas: Solução para a ansiedade. O orador era Ibn Zaid, um viajante e historiador de Valência, na Andaluzia.

Eu sabia que seria interessante porque só os andaluzes eram capazes de dissecar o sentido de palavras e conceitos aos quais nós não dávamos importância. Por estarem tão distantes de Meca, suas mentes dispunham de uma liberdade que nossos próprios eruditos invejavam.

O sultão pode discordar, mas todos os nossos eruditos admitem isso. Até o grande Imad al-Din, que desaprova meus hábitos e a vida que levo, confirmaria esse fato conhecido. É verdade que já tivemos nossa cota de céticos, e um deles chegou a ser executado por ordem do sultão, embora aqui não seja como na Andaluzia. Mas podemos discutir o ceticismo num outro dia.

Com licença do sultão, vou continuar a triste história que ocorreu na minha juventude. Ibn Zaid devia estar com quarenta e tantos anos. Sua barba negra tinha uns poucos fios grisalhos. Ele falava a nossa língua com um ritmo andaluz, mas, apesar de seu sotaque estranho, a voz era como a dos barqueiros que cantam no Nilo, suave e, ao mesmo tempo, profunda.

Ibn Zaid começou dizendo que o tema da palestra não era de sua autoria, mas baseado na Filosofia da personalidade e do comportamento, de Ibn Hazm, cuja grandeza intelectual não tinha similar. Ele, Ibn Zaid, tinha algumas críticas àquela obra-prima, embora a considerasse fundamental.

Disse então que Ibn Hazm escrevera que todos os seres humanos têm uma meta na vida: evitar a ansiedade. Esse problema aflige ricos e pobres, os sultões e os mamelucos, os eruditos e os analfabetos, as mulheres e os eunucos, os que almejam os prazeres da carne e os ascetas. Todos querem se livrar da preocupação e poucos conseguem, mas o desejo de fugir da ansiedade tem sido meta comum da humanidade desde que o homem surgiu sobre a face da Terra.

Depois, ele tirou de sua malinha um livro de capa dourada que devia ser muito lido, pois estava gasto. Ibn Yakub e Imad alDin concordarão que nada é mais gratificante para um livro do que ser passado de mão em mão. A Filosofia, de Ibn Hazm, era um livro assim. O orador havia marcado alguns trechos, que leu a seguir em seu árabe peculiar.

Mais tarde, eu também consegui um exemplar do livro e li aquele trecho muitas vezes. Por isso, como muitos trechos de nosso livro divino, ele ficou gravado na minha memória: Há os que desejam a riqueza só para afastar do espírito o medo da pobreza; outros procuram a glória para se libertarem do medo de ser rejeitados; outros procuram prazeres sensuais para fugir ao sofrimento das privações; outros ainda procuram o conhecimento para não terem a incerteza da ignorância. Há também os que gostam de saber dos acontecimentos e de conversar para assim afastar a tristeza da solidão e do isolamento. Em resumo: o homem come, bebe, se casa, observa o mundo, se diverte, tem uma casa, cavalga, anda ou fica quieto com o único objetivo de expulsar as contrariedades e, de um modo geral, todas as outras ansiedades. Mas, por sua vez, cada uma dessas ações dá origem a novas ansiedades.

É só o que posso lembrar hoje, embora, até alguns anos atrás, eu fosse capaz de recitar um capítulo inteiro do livro. Nosso viajante da Andaluzia foi além do tema de Ibn Hazm, e quanto mais o ouvíamos, mais ficávamos encantados. Até então, eu nunca ouvira falar em filosofia e, de repente, percebi por que os teólogos a consideram um perigoso veneno.

Logo vimos que as críticas de Ibn Zaid à filosofia de Ibn Hazm jamais seriam reveladas pela simples razão de que não existiam. Ele adorava a obra de Ibn Hazm, mas achou mais sensato não se comprometer com ela, pois o cádi podia ter mandado alguns espiões assistir ao encontro. A essência da filosofia de Ibn Hazm estava na crença de que o homem podia, apenas por meio de seus atos, livrar-se de todas as ansiedades. Sem precisar de qualquer ajuda.

— Heresia! Blasfêmia! — gritou o sultão.

— Onde ficam Alá e seu profeta nessa filosofia?

— Isso mesmo, meu sultão — interrompeu Usamá. — Foi o que os teólogos perguntaram quando queimaram os livros de Ibn Hazm na frente das mesquitas. Mas isso foi há muitos anos, antes de os cruzados chegarem para profanar nossas terras. Nosso conhecimento hoje está muito mais adiantado e tenho certeza de que nossos grandes eruditos, como Imad al-Din, levariam poucos minutos para provar que Ibn Hazm estava errado.

Imad al-Din ficou rubro de raiva e olhou para Usamá. Não disse nada.

— Qual é a moral dessa história, Usamá? — perguntou o sultão.

— Você acabou conseguindo a moça cristã?

O velho riu. Ele havia mostrado as melhores iguarias da filosofia árabe ao sultão, mas Saladino só queria saber da moça.

— Não consegui, Comandante dos Hábeis, mas o final daquele dia na taberna dos pensamentos sublimes deixou-me surpreso, como ficará Vossa Majestade, se permitir que termine meu relato.

O sultão concordou.

No final da palestra, fiz várias perguntas, em parte porque o andaluz tinha me deixado muito curioso, e em parte para mostrar aos demais presentes que eu não era um bobo ignorante, que só estava interessado no prazer. Seria muito agradável contar o sucesso que fiz, mas, ao contrário de Imad al-Din, não costumo anotar todos os meus encontros. Digamos então que minhas observações causaram boa impressão em Ibn Zaid. Ele foi ficando cada vez mais entusiasmado e fomos para uma taberna que servia uma bebida mais forte do que pensamentos sublimes. Conversamos a noite inteira. Estávamos num estado de semi-embriaguez e, a certa altura, ele esticou a mão e segurou meu pênis. A cara que fiz deixou-o surpreso.

"Parece ansioso, meu jovem amigo. Não havíamos concordado que deveríamos expulsar a ansiedade de nosso espírito?"

Respondi: "Minha ansiedade só será expulsa se você largar meu pênis já." Ele obedeceu e começou a chorar.

Sem me comover, tirei-o do bairro cristão e voltei com ele para o nosso bairro. Depois o deixei alegremente ocupado, naquele bordel masculino freqüentado por muitos homens da fortaleza. Lembra em que rua fica, Imad al-Din? Não consigo lembrar-me agora, este é o preço que se paga pela idade.

Mais uma vez, Imad al-Din não respondeu e, mais uma vez, o sultão começou a rir e cumprimentou Usamá.

— Acho que a moral de sua história é que mesmo os homens de pensamentos mais sublimes podem decair para uma sensualidade aviltante. Estou certo, Usamá ibn Munquid?

Usamá ficou encantado com o elogio, mas não concordou com o sultão.

— Provavelmente, essa é uma das interpretações que se podem tirar do fato, Comandante dos Sábios.


24

A carta do califa e a resposta do sultão,
intermediada pela diplomacia e inteligência de Imad al-Din.
Jamila fala sobre o amor

Com seu traje oficial de trabalho, o sultão estava sentado de pernas cruzadas num tablado, rodeado pelos homens mais poderosos de Damasco. Naquele dia, eu fora chamado à fortaleza mais cedo, mas Saladino não teve tempo para falar comigo e fiquei num canto, esperando a cerimônia começar.

O camareiro bateu palmas duas vezes e Imad al-Din anunciou a chegada do embaixador do califa de Bagdá, que se ajoelhou diante do sultão. Levantou-se devagar e apresentou a Saladino uma carta de seu amo numa pequena salva de prata. Sem tocar na carta, o sultão fez um sinal para Imad al-Din que, com uma reverência, recebeu do embaixador o comunicado real.

Normalmente, esse tipo de carta era lido em voz alta para toda a corte, a fim de que a mensagem chegasse ao conhecimento de um público um pouco maior. Mas dessa vez, talvez para mostrar que estava irritado com Bagdá, o sultão ignorou a tradição e dispensou a corte. Só Imad al-Din e eu recebemos ordem para ficar.

O sultão não estava de muito bom humor. Olhou sério para seu secretário de Estado e perguntou:

— Suponho que saiba o que diz a carta. Imad al-Din fez um sinal com a cabeça, concordando.

— Não é muito bem escrita, o que significa que Saif al-Din deve estar doente ou preocupado com alguma coisa. A carta é longa, cheia de elogios tolos e frases malfeitas. Em quatro trechos, trata Sua Majestade de "Espada da Fé", mas o objetivo da carta está numa só frase. O Comandante dos Fiéis quer saber quando Sua Majestade deseja retomar a jihad contra os infiéis. Pergunta também se encontrará tempo para fazer uma peregrinação a Meca este ano e beijar a Caaba.

O rosto do sultão ficou sombrio.

— Anote minha resposta, Imad al-Din. Escreva exatamente como vou ditar. E você também, Ibn Yakub, assim teremos uma cópia simultânea.

Sei que Imad al-Din vai revestir de mel minhas palavras, por isso vamos comparar as duas versões e escolherei uma delas. Estão prontos?

Assentimos e mergulhamos nossas penas na tinta.

"Ao Comandante dos Fiéis. De seu humilde servo, Saladino ibn Ayub.

Pergunta-me quando pretendo retomar nossa guerra contra os cruzados. Respondo que só quando tiver certeza de que não há desavença em nosso próprio exército e quando você usar a autoridade que lhe foi atribuída por Alá e pelo profeta para avisar a todos os fiéis que colaboram com os cruzados por qualquer quantia para desistir porque estão prejudicando a nossa causa. Como você bem sabe, tentei acalmar alguns príncipes cujas fortalezas ficam próximas do Eufrates. Em todas as ocasiões, eles se recusaram a aceitar sua autoridade e estenderam as mãos para pedir dinheiro e apoio aos nossos inimigos. Se você conseguir manter esses canalhas sob controle, tomarei al-Kadisia no ano que vem.

Nos últimos anos, lutei em tantas batalhas que a pele de meu rosto ficou esturricada pelo sol. É lastimável que muitas dessas guerras tenham sido contra fiéis, o que enfraqueceu nossa causa.

Reinaldo — aquele mensageiro do inferno, que viu com seu olhar duro e frio a morte de tantas mulheres e crianças nossas, cuja maldade chega a silenciar os pássaros, cujo nome é usado para assustar os camponeses teimosos -, Reinaldo continua vivo, enquanto sua marionete em al-Kadisia, que eles chamam de rei Guy, não honra os termos de nosso acordo. Nossos soldados continuam apodrecendo nas masmorras de Carak, num desrespeito explícito a tudo o que acertamos de comum acordo.

Digo isso para que o Comandante dos Fiéis perceba que foram alguns dos chamados fiéis que me impediram de atingir nossos objetivos este ano. Felizmente para nós, os cruzados também estão divididos. O nobre Raimundo de Trípoli que, espero, um dia se tornará um fiel, mandou-me muitas informações valiosas. Esteja certo de que a jihad será retomada logo, desde que o Comandante dos Fiéis cumpra sua parte na campanha.

Compreendo sua preocupação pelo fato de, até hoje, eu não ter conseguido fazer a peregrinação a Meca. Sempre que faço minhas orações, peço perdão a Alá. São tantas as minhas obrigações como Espada da Fé que ainda não tive tempo de beijar a Caaba. Em breve corrigirei esta falha, depois de tomar al-Kadisia e, no Domo de Pedra, agradecer a Alá por nossa vitória. Rezo para que goze de boa saúde."

 

Assim que o sultão saiu um instante do aposento, Imad alDin explodiu.

— Esta carta é uma desgraça, Ibn Yakub. Uma desgraça. Terá de ser reescrita do princípio ao fim. Uma carta do mais poderoso sultão da terra para o califa, que goza de muita autoridade mas de pouco poder, deve estar à altura de Saladino.

"O que você transcreveu vai ofender o califa e não dará resultado. O texto usa linguagem crua, num tom petulante, com uma ironia que decepcionaria o califa e, ao mesmo tempo, assustaria seus conselheiros mais astutos.

A carta comete um erro sério a respeito de um fato. Nosso sultão gosta muito do conde Raimundo de Trípoli. É verdade que Raimundo já nos ajudou no passado, mas exatamente por isso foi acusado de traição e de colaborar com o inimigo. Os relatórios de nossos espiões dão a entender que ele agora está pacífico, jurou lealdade ao chamado rei de Jerusalém e está disposto a pegar em armas contra nós. O califa deve ser informado desse fato. A esperança que o sultão tem de que Raimundo se converta parece um sério erro de avaliação. Caso não se oponha, Ibn Yakub, quero também sua cópia para apresentar uma nova versão da carta amanhã.

Apesar da ordem contrária do sultão, não pude resistir à lógica do grande erudito. Entreguei humildemente minha cópia para Imad al-Din, que saiu do aposento com um sorriso vitorioso, deixando-me sozinho para enfrentar a ira de meu soberano. Mas, para meu prazer e alívio, Saladino voltou acompanhado da sultana Jamila.

O eunuco Amjad já me informara que ela estava de volta a Damasco. O sultão deu um sorriso cúmplice para mim, como para mostrar que não estava surpreso com a ausência de Imad alDin. Fiz uma reverência para a sultana, que tinha o rosto bronzeado de sol. Estava muito mais morena, e as olheiras e linhas que marcavam sua testa tinham desaparecido.

— Seja bem-vinda, princesa. A fortaleza ficou escura sem sua luz.

Ela riu e logo vi que estava curada da dor pela traição de Halima. Era o mesmo riso de antes e até seus ombros balançaram. Jamila olhou para mim e disse: — Um cumprimento vindo de você, meu bom amigo Ibn Yakub, é tão raro quanto um camelo de traseiro cheiroso. Eu também estou satisfeita por voltar. É maravilhoso que a distância seja o melhor remédio para curar nossas feridas mais profundas.

O sultão estava visivelmente contente com a volta dela, mas estranhei a espontaneidade de Jamila na presença de Saladino. Ele leu meus pensamentos.

— A sultana e eu agora somos bons amigos, escriba. Não temos segredos. Sabe o que essa mulher andou lendo no palácio do pai?

Sacudi a cabeça, respeitosamente.

— Blasfêmia. Filosofia maldita. Leu sobre os céticos. Jamila sorriu.

— Desta vez, ele tem razão. Devorei os textos de al-Farabi. Ele reforçou aquilo de que eu já desconfiava: a razão está acima de todas as fés religiosas, inclusive a nossa. Os textos de al-Farabi são mais convincentes do que as obras de Ibn Hazm.

O sultão fez uma careta e saiu, mas antes pediu-me para ficar.

— Estou preparando instruções para a última batalha da jihad, Ibn Yakub, que mostrará que nossa fé é superior à dos cruzados. Você pode ouvir as histórias de jamila, mas está proibido de acreditar nelas. Senão, certas cabeças podem rolar.

— Sou apenas uma contadora de histórias, ó grande sultão. Jamila tinha acendido um cachimbo com banj e sorriu ao ver minha surpresa.

— Uma vez por semana, me permito este prazer. Fumava mais que isso quando cheguei ao palácio de meu pai, ajudava a diminuir minha dor. O banj me relaxa, mas se fumar mais de um cachimbo por semana fico com o raciocínio lento. Quase não consigo pensar ou me concentrar num livro.

— É bom ouvir o riso da sultana outra vez, como antigamente. Espero que a senhora esteja completamente recuperada e que seu sofrimento tenha ficado no passado.

Ela se emocionou com meu interesse. — Obrigada, amigo. Pensei muito em você enquanto estava longe. Uma vez, cheguei a ter uma conversa imaginária com você, que foi muito tranqüilizadora. É estranho que nossas emoções mais sinceras e profundas possam ser tão passageiras. A literatura árabe e persa diz que, se desviam o curso do rio do amor, ele precisa passar por um vale de loucura. Um amante que perde seu amor, perde a cabeça. Mas isso é pura bobagem. Uma pessoa ama, mas é rejeitada. Então, sofre, mas você conhece alguém que tenha mesmo perdido a cabeça? Isso alguma vez aconteceu ou não passa de uma fantasia dos poetas?

Pensei por um bom tempo, até achar uma resposta à altura.

— O amor é a música que nossa alma ouve e transmite lentamente ao coração. Sei de casos em que um amante rejeitado passou a definhar e toda a sua vida mudou. Sentia uma forte e permanente dor de cabeça, e sua mente ficou entorpecida pelo sentimento de perda. Isso aconteceu com Xadi, que já não está entre nós.

Ela me interrompeu.

— Lastimo que ele tenha morrido, mas há uma certa confusão no que você diz, Ibn Yakub. Fala que o amor é a poesia da alma e, ao mesmo tempo, fala em Xadi, um cabrito montanhês rude e grosseiro. Está fazendo alguma brincadeira sem graça? Está zombando de mim?

Contei a ela a tragédia que atingira Xadi, com o suicídio da única mulher que amou e o preço que ele pagou por seu erro cruel. A história deixou Jamila surpresa.

— É estranho como podemos ver uma pessoa todos os dias e ignorar sua verdadeira história. Agradeço por me contar, Ibn Yakub. Mostra que o velho cabrito tinha um coração, mas você há de concordar que ele não enlouqueceu por perder seu amor. Não há a menor dúvida de que ele tinha grande capacidade de se distanciar dos fatos e das pessoas e encarar ambos com um racionalismo indiferente. O que mostra também que era uma pessoa muito sadia.

— A loucura pode assumir várias formas, sultana. Nossos poetas descrevem o amante desesperado como um jovem de cabelos compridos e precocemente embranquecidos, que vaga pelo deserto falando sozinho, ou senta à beira de um riacho e fica olhando a água e, refletida nela, vê a imagem de sua amada perdida. Na verdade, como a senhora sabe até melhor do que eu, a loucura pode fazer com que cometamos uma vingança cruel. Quem sofre, esconde seus sentimentos exibindo uma máscara gentil.

Fala com os amigos como se nada tivesse acontecido. Mas, por dentro, seu sangue ferve de raiva, ódio e ciúme, e sua vontade é de enfiar num espeto e assar na fogueira quem lhe causou tanta dor. Só pode fazer isso na imaginação, mas esses pensamentos ajudam a diminuir o tormento e, aos poucos, a pessoa consegue recuperar suas forças.

Ela me olhou e o sorriso triste de antigamente voltou.

— Quantas vezes você assou Ibn Maimun numa fogueira, meu amigo?

Jamila também sabia da minha história. — Não estava falando de mim, sultana. Vou dar-lhe outro exemplo. O caso do nosso jovem poeta Ibn Umar, de apenas dezenove anos, mas que compõe versos que fazem chorar homens adultos. Damasco inteira o admira. Em todas as tavernas, tomam vinho fazendo brindes a ele. Jovens falam com suas amadas usando a linguagem de Ibn Umar.

— Conheço tudo que esse rapaz escreveu — disse ela, impaciente.

— Mas o que houve com ele?

— Enquanto a senhora estava longe, ele se apaixonou por uma mulher casada, bem mais velha que ele. Ela o atraiu e ocorreu a tragédia inevitável. Tornaram-se amantes.

O marido dela soube do fato e a envenenou. Uma solução simples para um problema simples. Ibn Umar e seus amigos se recusaram a deixar que o assunto fosse esquecido.

Um dia, enquanto bebiam, planejaram uma vingança. O marido, que todos consideravam um homem honesto, foi atacado na rua e espancado até a morte. O cádi prendeu Ibn Umar, que confessou tudo.

"A cidade ficou dividida. As pessoas de menos de quarenta anos queriam a liberdade do poeta; os demais pediram sua execução. Ibn Umar não se importava com seu destino. Continuou escrevendo, até o sultão intervir.

— Ah, sim, o julgamento de Saladino — disse ela, rindo.

— Conte.

— Ibn Umar foi enviado para junto do filho do sultão, no exército que está reunido perto da Galiléia.

— É típico de Saladino — murmurou ela.

— O sultão perdeu o interesse pela poesia. Há vinte anos, era capaz de recitar poemas inteiros com muita emoção. Mandar um poeta lutar numa guerra é como assar um rouxinol. Vou mandar esse rapaz voltar.


25

Sonho com Xadi.
O sultão planeja a guerra

Nas montanhas, os camponeses costumavam esfregar a vagina das vacas enquanto eram ordenhadas para melhorar a qualidade e aumentar a quantidade do leite. Quando nós, os meninos, víamos eles fazerem isso, ficávamos excitados. Que parte de sua esposa deixa você mais excitado, Ibn Yakub? Os peitos ou o traseiro?

Xadi gostava de histórias assim. E tinha o hábito de perguntar sem esperar que eu respondesse. Depois dessa pergunta, ele riu. Um riso alto e grosseiro.

Eu estava sonhando com Xadi e a única razão para lembrar-me desse sonho bobo é que fui subitamente interrompido por uma batida forte e insistente no portão da frente.

Raquel estava dormindo, mas, quando pulei da cama, ela acordou e começou a se mexer. Abri o postigo. Ainda não era dia, embora os sinais da madrugada estivessem surgindo com uma fina risca vermelha no horizonte. Vesti minha túnica e corri pelo pátio para abrir o portão.

Fui saudado pelo sorriso familiar do eunuco Amjad. O sorriso, que costumava me irritar, agora parecia tranqüilizador.

— O sultão quer que compareça à sala do conselho antes do amanhecer. Podemos voltar juntos para a fortaleza?

— Não! — respondi, com a voz mais áspera do que pretendia e me arrependi na hora. — Desculpe, Amjad. Acabo de me levantar, preciso de alguns minutos para me preparar.

Vou daqui a pouco.

Ele sorriu e foi embora. Era estranho que Amjad não se ofendesse com quase nada. Nos primeiros meses que passei em Damasco, fui grosseiro com ele só por não gostar de sua expressão. Mas Xadi gostava dele e Jamila confiava inteiramente nele. Os dois fatos me fizeram mudar de atitude.

Raquel estava acordada quando voltei para nosso quarto. Sentada na cama, bebia um copo de água. Sua nudez me excitou e ri, vendo seus seios balançarem ao mexer os braços. Contei meu sonho para ela. Ela percebeu o desejo em meus olhos e, tirando o lençol que cobria parte do seu corpo, sorriu e abriu os braços, oferecendo um afago e, provavelmente, um pouco mais.

— O sultão está me esperando — comecei a dizer, me desculpando, mas ela me interrompeu.

— Estou vendo — garantiu, saindo da cama e pondo a mão entre as minhas pernas.

— O sultão está de pé, pronto para montar em seu cavalo e seguir na batalha.

Leitor, não consegui resistir. Fui correndo para a fortaleza. Damasco ainda estava adormecida, embora os muezins já limpassem a garganta, preparando-se para as orações matinais dos fiéis. Aqui e ali um cachorro, na porta de alguma casa, latia quando eu passava correndo para atender ao sultão.

— Hoje você está atrasado, Ibn Yakub — disse ele, mas sem mostrar desagrado.

— O abraço de sua esposa o manteve longe de nós?

Fiz uma pequena reverência, como um pedido de desculpas. Ele aceitou com um sorriso e, num gesto, indicou que eu devia me sentar logo abaixo dele.

Meus olhos ficaram pregados no sultão e só quando prestei atenção nas pessoas presentes foi que me assustei. Aquela não era uma reunião comum. Além do cádi al-Fadil e de Imad al-Din, estavam ali todos os emires que comandavam diferentes setores dos exércitos do sultão. Não, nem todos. Taki al-Din e Keuburi não estavam. O sultão se referira a eles como seus dois braços, sem os quais se sentia paralisado. Era sua forma de dizer que tinha confiança absoluta nos dois.

Em relação a Taki al-Din, a declaração não surpreendeu. Era o sobrinho preferido de Saladino, que o tratava como ele próprio um dia fora tratado por seu tio Xirkuh.

De fato, a presença de Taki al-Din fazia com que o sultão demonstrasse a prudência instintiva que herdara do pai. Um dia, Saladino contoume que, em todas as crises de governo, havia uma disputa renhida entre Ayub e Xirkuh para saber quem ficava com ele. A disputa era vencida por pura sorte. Taki al-Din fazia o sultão lembrar-se de sua própria juventude e, na verdade, preferia que seu sobrinho, e não seu filho alAfdal, fosse seu sucessor. Isso não foi dito a mim, mas ao velho Xadi, que logo passou a informação adiante. Xadi concordava inteiramente com Saladino.

O emir Keuburi era uma outra história. Apenas três ou quatro anos antes, Saladino causou incredulidade geral ao mandar prendêlo. Foi na época em que consolidava seu império, preparando-se para o dia que agora estava chegando. O sultão levou três dias, com a ajuda de Keuburi e seus soldados, para fazer as tropas atravessarem o rio Eufrates. Depois, marchou para Harran, onde passou uma manhã jogando chogan com seu anfitrião. Quando a partida terminou, os seguranças do sultão prenderam o emir Keuburi. Os pombos-correio levaram a notícia para o Cairo e Damasco. O cádi al-Fadil estava numa de suas viagens de inspeção pelos arredores do Cairo e não quis acreditar na notícia. Imediatamente, escreveu um pedido emocionado para Saladino. Ele me forneceu uma cópia da carta para meu livro. A carta dizia o seguinte:

"Mais magnânimo e mais generoso dos sultões, Recebi uma carta de Imad al-Din informando que Sua Majestade está zangado com Keuburi e mandou prendêlo. Lembro-me bem do calor e da poeira de Harran, que nos incomoda, e estou certo de que sua gentileza e sua generosidade vão mais uma vez prevalecer sobre sua raiva. Sei que Imad alDin está a seu lado, mas, se sentir que minha presença também pode ser útil ou agradável, esquecerei o desconforto que sinto em Harran. Monto numa mula, agüento o calor abrasador sem uma tenda para me proteger e logo estarei ao seu lado. Estou perturbado e um pouco confuso com a notícia. Acho que o sultão cometeu um erro de avaliação.

O emir Keuburi considera Sua Majestade como um pai. Sempre foi leal e provou isso ao convencer o irmão a apoiar Sua Majestade contra os senhores de Mosul. Ele foi um exemplo para todos os que desejavam servir à causa de Saladino. A intimidade que o soberano concedeu a Keuburi sem dúvida subiu-lhe à cabeça. Keuburi é como um cãozinho que, quando recebe muitos afagos do dono, às vezes morde. Mas essa mordida é um excesso de afeto, mais do que raiva. Estarei pronto a oferecer minha cabeça para a espada do carrasco, se Keuburi algum dia trair nossos interesses. Ele é jovem, ambicioso, e quer testar sua habilidade ao lado de Sua Majestade na batalha.

Na carta que recebi, Imad al-Din escreve que Sua Majestade está fazendo uma retaliação porque Keuburi prometeu doar 50 mil dinares ao tesouro real no dia em que o sultão chegasse a Harran, mas não cumpriu a promessa. Keuburi disse que o enviado prometeu a quantia sem consultá-lo. Já que o dinheiro é para ajihad, sei como o sultão deve estar irritado, mas sua generosidade é a fonte de toda a água pura e doce que corre por nossas terras. Conceda-lhe o perdão e posso garantir que ele vai aprender a lição. Seu humilde servo, al-Fadil."

Keuburi foi perdoado e nunca mais ofendeu o sultão. Mas o problema não era apenas a confusão sobre o pagamento de 50 mil dinares. O sultão me disse que o caso era bem mais sério. Keuburi fora o intermediário entre seu irmão, o emir de Irbil, e o sultão. Em retribuição por sua lealdade, Keuburi negociou a cessão de terras para o irmão. Como o sultão tinha controle total da região, Keuburi sugeriu que as terras dadas ao irmão passassem a ser dele. A proposta irritou Saladino, para quem a lealdade familiar era um teste importante do caráter de uma pessoa. Irritado, rejeitou a proposta e começou a duvidar da fidelidade de Keuburi.

Imad al-Din não comunicou isso a al-Fadil pelo simples fato de que nosso grande erudito estava totalmente apaixonado pelo emir de Harran, homem de rara beleza, mas pouco dado aos prazeres oferecidos por nosso grande amante das letras.

Alguns meses depois, Keuburi foi perdoado. Nunca mais decepcionou Saladino. Como al-Fadil sensatamente previu, Keuburi aprendeu que certas coisas neste mundo têm mais valor para o sultão do que toda a riqueza da China e da Índia. Uma delas é manter a palavra, seja para um amigo ou um inimigo. Nada seria capaz de mudar a opinião dele sobre este assunto e ninguém poderia convencê-lo do contrário.

O sultão voltara a confiar em Keuburi, e agora, enquanto aquela reunião se realizava, Keuburi e Taki al-Din estavam acampados no vale da Galiléia, esperando pacientemente a chegada de Saladino para que só então concluíssem os planos de guerra.

Percebi que, pela primeira vez, eu havia sido convidado para assistir a um conselho de guerra. O sultão já tinha falado durante algum tempo. Após a interrupção por causa de meu atraso, ele continuou a convencer os presentes com um misto de astúcia e bajulação.

— A realidade costuma nos desapontar, pois nem todos os nossos desejos são atendidos. Como diria o bom Imad al-Din, faz parte da vida. Poucos dentre nós podem dizer que conseguiram tudo o que desejavam. Meus inimigos, que não são poucos, dizem ao califa: "Saladino prefere nos atacar e esquecer os infiéis." Dizem também que só estou interessado em instalar meus parentes no poder e acumular riquezas. Na verdade, estão me acusando do que eles próprios fazem. Acredito que seja muito mais fácil jogar em mim a culpa que sentem. Mas, antes que este ano termine, essas línguas se calarão para sempre.

"Sei que alguns de vocês relutam em atacar os cruzados neste momento. Talvez esta apreensão seja correta, mas aqueles que esperam muito, aqueles que vão só até a metade do caminho, acabam cavando a própria sepultura.

"Vou ser franco: não temos mais tempo a perder. Só Alá sabe por quanto tempo ainda ficarei neste mundo. Ao olhar para vocês, vejo homens que lutaram em tantas batalhas que a natureza os envelheceu prematuramente. Vejo fios brancos em todas as barbas. Nenhum de nós tem muito mais tempo de vida.

"Nossos espiões dizem que os cruzados têm entre doze e quinze mil cavaleiros e vinte mil soldados de infantaria para defender seu reino de Jerusalém. Precisamos preparar um exército que destrua a espinha dorsal deles. Um exército de fiéis que escale os muros de al-Kadisia e garanta que o grito conhecido e incentivador — Alá é grande — volte a ser ouvido naquela grande cidade.

"Desta vez, precisamos atingi-los tão profundamente que saiam de nossas terras e nunca mais voltem. Só o nosso exército é capaz de conseguir isso. Não porque Alá nos tenha dado mais inteligência ou mais força, mas porque só nós temos esta determinação. É ela que vai dar força aos que lutam sob nossos estandartes. Logo vamos apagar para sempre a mancha da nossa derrota nas mãos desses bárbaros. Não gosto de contar vantagem, pois ela tem sido a perdição dos fiéis. Mesmo assim, estou muito confiante.

"Nossos soldados de Misr e Sham seriam suficientes para vencer o inimigo, mas todos agora querem estar do nosso lado. Os emires de Mosul, Sinjar, Irbil e Harran querem ter representantes dentro do nosso exército. Os curdos das montanhas que ficam além do Tigre prometem mandar um grupo de guerreiros. No passado, eles tinham raiva das vitórias de meu pai e de meu tio Xirkuh. Agora prometem participar da batalha por al-Kadisia ou morrer nela. O mensageiro deles chegou ontem e disse que só lutarão ao nosso lado se puderem ser os primeiros a entrar na cidade. Não é estranho, Imad al-Din, que o cheiro da vitória seja capaz de viajar até tão longe e com tanta rapidez?

O grande erudito tinha ficado de olhos fechados durante a maior parte do discurso do sultão, mas estava bem acordado.

— Não é apenas o aroma da vitória no nariz deles que faz com que nos procurem, ó Comandante dos Vitoriosos. Eles sabem muito bem que nossa história está sendo refeita. Querem contar aos filhos e netos que lutaram ao lado de Saladino nesse dia que está próximo.

Saladino, que não costumava dar ouvidos à mera bajulação, gostou das palavras de Imad al-Din.

— Amanhã saio de Damasco para encontrar o exército, na nossa última grande empreitada. Vamos partir em horários variados e passar por estradas diferentes, só para evitar uma possível emboscada dos cruzados. Se alguma coisa me acontecer, antes ou durante a batalha, não quero que vocês percam tempo com tristezas. Terminem a tarefa que Alá nos confiou e não deixem o inimigo pensar que a morte de uma só pessoa pode desbaratar nossas forças. Agora, podem sair, e que Alá lhes dê a força que precisamos para vencer. Alá é único e Maomé, o seu profeta.

Os emires saíram, mas antes todos foram abraçar o sultão e beijar seu rosto. Quando o ritual terminou, o sultão dirigiu-se ao cádi al-Fadil, a Imad al-Din e a mim.

— Quero todos vocês ao meu lado. Imad al-Din, para escrever as cartas pedindo rendição total; al-Fadil, para garantir que eu não cometa erros ao lidar com nossos emires, e Ibn Yakub para anotar tudo em pergaminho. O que quer que Alá tenha nos reservado, vitória ou derrota, nossos filhos e os filhos de nossos filhos jamais conseguirão esquecer o sacrifício que fizemos pelo futuro deles.

Essa foi a primeira vez que o sultão citou meu nome no mesmo nível de al-Fadil e Imad al-Din. Registrar aqui que fiquei lisonjeado seria pouco, pois ele reconheceu meu valor e isso já fazia com que me sentisse no céu. Estava ansioso, queria correr para casa e contar para Raquel, mas diminuí o passo ao lembrar que, mais uma vez, nós dois ficaríamos afastados por muito tempo.

Antes que conseguisse sair da fortaleza, a figura de cabelos brilhantes do eunuco Amjad apareceu na minha frente e eu resmunguei. Ele riu.

— Desta vez, o senhor está sendo chamado pela sultana Jamila. Pede que compareça à sua presença. Siga-me, por favor.

Nunca me arrependi de ter conversado com Jamila, que costumava aumentar meu conhecimento sobre nosso mundo e minha compreensão das emoções humanas. Mas, naquele dia, vibrando com a notícia de meu pequeno triunfo, queria compartilhar minha alegria com Raquel. Isso diminuiria a tristeza da partida, mas eu não passava de um escriba, obedecia a ordens. Assim, como um cão fiel, segui o eunuco Amjad até o aposento especial onde a sultana recebia visitantes masculinos. Seu rosto estava brilhando de alegria e ela sorriu quando entrei. O sorriso comoveu meu coração e sentime culpado por ter desejado evitar o encontro. Era a segunda vez que a via desde que ela voltara das terras do sul e confirmei que estava totalmente recuperada.

— Seja bemvindo, Ibn Yakub. Parabéns, soube que vai ser um dos três eruditos que acompanharão Saladino para assistir à maior de todas as batalhas. E serei a única mulher entre eles, erudita ou ignorante.

Ao ver a cara que fiz, ela começou a rir. — Saladino resistiu muito, mas venci. Com a autorização do seu sultão, terei minha tenda e uma guarda especial de eunucos, supervisionados por Amjad, e alguns mamelucos bem-treinados.

"Keuburi não pode saber que vamos. Como é do seu conhecimento, ele é casado com minha irmã caçula, que fará tudo para ficar na minha tenda. Mas Saladino me proibiu de contar para qualquer pessoa, menos para você, pois, quando não estiver ocupado escrevendo, faremos companhia um ao outro. Tenho muitas coisas a contar e podemos conversar durante a viagem. Partimos amanhã e já é quase meio-dia. Você precisa ficar um pouco com sua esposa e sua filha.

Agradeci e estava saindo quando ela voltou a falar: tinha algo a me contar. Sentei-me na almofada aos seus pés.

— Encontrei Halima na noite passada e jantamos juntas. Ela recebeu autorização para levar o filho para o Cairo, onde estará à disposição do sultão. Fiquei surpresa quando recebi um recado dela pedindo para encontrar-se comigo, mas isso não me perturbou. O que você disse uma vez que seu velho amigo Ibn Maimun escreveu a respeito das emoções?

Ao ouvir o nome de Ibn Maimun, levei um susto, mas também mantive a calma.

— Ele escreveu, acho, que as emoções causam um efeito na alma que afeta o funcionamento do corpo e produz grandes e profundas alterações na nossa saúde. Se as emoções causadoras de distúrbios e problemas não forem tratadas, a pessoa vai se sentir mal consigo mesma e com as pessoas próximas.

Ela riu outra vez. — O seu Ibn Maimun é mesmo um grande filósofo. Penetra no fundo de nossos corações e de nossas almas. Pode dizer a ele que está certo. Fiquei boa: as emoções que atormentavam minha alma sumiram para sempre.

"Quando encontrei Halima, não imaginava como reagiria. Não sabia o que esperar dela ou de mim. Foi como encontrar uma estranha. Fiquei fria, Ibn Yakub. Ela pediu desculpas por ter espalhado maledicências a meu respeito entre seus criados, amigos e até entre as pessoas mais humildes do harém. Queria que voltássemos a ser amigas e, com um sorriso triste, tentou me comover dizendo que os demônios tinham finalmente saído de sua cabeça e ela voltara a ser como antes.

"Eu não tinha a menor intenção de ser cruel ou de demonstrar minha indiferença, então sorri e disse que compreendia, mas não podíamos retomar o que estava perdido.

Ela pareceu magoada, seus olhos encheram-se de lágrimas, mas meu coração endurecido não sentiu nada. O lugar que ela um dia teve na minha vida já estava ocupado por outras coisas, inclusive pelas obras do grande al-Farabi. Assim, desejei-lhe boa sorte, que encontrasse bons amigos no Cairo e criasse o filho para ser um homem instruído e decente.

Depois, saí do aposento. Acha que fui muito dura, Ibn Yakub? Pode ser sincero.

Pensei um pouco e falei a verdade. — É difícil dizer alguma coisa, pois conheci as duas no auge da felicidade. Vi como a senhora a tratava e vice-versa. Eu invejava as duas. Depois, quando ela ficou mal da cabeça, não rejeitou apenas a senhora. Eu também fui descartado, pois lembrava seu passado diabólico. Se eu estivesse no seu lugar, sultana, teria feito exatamente a mesma coisa que a senhora, mas não estou, nem nunca estive. Se Halima pedisse, eu voltaria a ser seu amigo. Ela precisa de amigos.

— Você é um homem bom, escriba. Agora, vá encontrar sua esposa e faça suas despedidas. Partimos amanhã de madrugada.

Não pensei em Halima e Jamila enquanto ia da fortaleza para nossa casa. Minha cabeça não conseguia esquecer Ibn Maimun. A referência que Jamila fez não me atingiu na hora, mas depois ela reabriu as velhas feridas. Eu não tinha mais raiva de Raquel, mas sim daquele tão estimado sedutor. Se o visse na rua, pegaria uma pedra e racharia a cabeça dele. A violência dessa idéia me deixou muito perturbado, mas também serviu para me acalmar quando cheguei ao pátio de nossa casa.

Raquel me recebeu com novidades: nossa filha estava noiva do filho do solista do coro da sinagoga. Eu conhecia bem o pai dele, um homem inteligente e culto. Quanto ao filho, Raquel disse que era encadernador.

— Ele lê os livros que encaderna? — Pergunte à sua filha! Bastou olhar o rosto de Mariam para eu saber o que queria. A menina estava muito feliz com a escolha da mãe. Minhas perguntas se tornaram desnecessárias. Era uma sensação estranha.

Dentro de pouco tempo, aquela menina, em torno da qual tínhamos construído nossas vidas, sairia de casa e iria para a de outro homem. Como isso afetaria as relações entre Raquel e mim? Será que juntos envelheceríamos bem ou nos separaríamos? Não consegui pensar muito nisso; elas estavam insistindo que eu fosse conhecer o rapaz. Eu ainda não tinha contado as minhas novidades, mas, como ia viajar, precisava conhecer o jovem que levaria minha filha embora de casa. Foi difícil para mim, mas consegui convencer Raquel a não me acompanhar.

O cantor me abraçou quando entrei na sinagoga. Levou-me para sua casa, onde a filha fez chá para nós. A mãe do rapaz morrera alguns anos antes e a filha mais velha tomava conta da casa. A notícia de minha chegada devia ter voado. Ainda estávamos tomando o chá quando o rapaz entrou na casa e ficou parado na minha frente. Levantei-me e dei-lhe um abraço. Seu rosto parecia marcado pela bondade. A intuição me disse que era um bom rapaz, mas os avisos de Xadi ressoavam nos meus ouvidos. "Quanto mais simpáticos parecem, mais brutos são." Mas o velho estava se referindo aos cruzados e aquele rapaz era o filho de um amigo meu.

Mais tarde, quando voltamos para casa, concordei com o casamento. A agitação finalmente diminuiu e contei para Raquel que eu ia viajar no dia seguinte, por ordem expressa do sultão. Ela recebeu bem a notícia. Mãe e filha me abraçaram quando insisti em que o casamento se realizasse o mais rápido possível. Não precisavam aguardar meu retorno.

Naquela noite, na cama, Raquel segredou em meu ouvido:

— Pode imaginar um neto, meu esposo? Não pude lhe dar um filho, mas nossa Mariam vai ter um. E será logo, tenho certeza.

Com netos imaginários a caminho, compreendi por que a notícia da minha partida para uma guerra em que eu poderia perder a vida não provocara muita tristeza. Entendi, mas seria mentira se dissesse que não fiquei um pouco magoado.


Jerusalém


26

O sultão monta acampamento e os soldados começam
a chegar de todos os cantos do império

A viagem foi tranqüila. Levamos dois dias para chegar a Ashtara, mas isso não foi nada, comparado com o que sofri quando fomos do Cairo para Damasco. Só que, desta vez, fazia um calor insuportável. Depois que passamos pelos campos verdes e os rios dos arredores de Damasco, as árvores foram ficando cada vez mais escassas. Na mesma proporção, meu humor foi diminuindo. O fato mais desconcertante no deserto é que não há um único pássaro cantando para saudar o amanhecer.

A manhã surge de repente, e antes que se tenha tempo para acordar direito e se espreguiçar, o sol já começa a nos castigar.

O sultão ordenou que acampássemos em Ashtara, uma pequena cidade rodeada de extensas planícies, onde poderiam ser feitas batalhas simuladas e teríamos a bênção de muita água para consumir. A água é sempre um fator crucial, e passa a ser cem vezes mais importante quando se está numa guerra. Nos vinte e cinco dias que se seguiram, ficamos nos preparando para a batalha.

Soldados, arqueiros e espadachins começaram a chegar de todos os cantos do império. Aos poucos, nosso acampamento cresceu tanto que a cidade foi invadida por outra grande cidade de tendas que se espalhou em seu centro. Cem cozinheiros, com trezentos ajudantes, preparavam as refeições para o exército. O sultão fazia questão de que todos recebessem a mesma comida, e disse a seus emires e secretários que essa regra simples lembrava os primeiros tempos da sua fé. Era preciso mostrar, tanto aos amigos quanto aos inimigos, que numa jihad todos eram iguais aos olhos de Alá.

Para grande deleite dos emires, Imad al-Din não conseguia disfarçar seu aborrecimento. Reclamava baixinho que o início da religião deles fora há centenas de anos e agora seria mais importante mostrar aos cruzados a riqueza e a variedade da cozinha damascena. Mas a cara que o sultão fez acabou com essa frivolidade. O paladar de Imad al-Din era muito especial e só se satisfazia com os pratos preparados pelos cozinheiros de duas tabernas de Damasco. Mas, para a maioria das pessoas, o acampamento oferecia de tudo. Cada cozinheiro era responsável por trinta panelas e numa delas podiam caber nove cabeças de ovelha. Para completar, os soldados cavaram buracos no chão e cobriram com argila, para fazer banhos. O sultão sabia que cuidar do estômago e da higiene de um exército era fundamental para manter o moral das tropas.

A rotina do acampamento foi estabelecida desde o primeiro dia e os soldados que chegaram depois recebiam logo as instruções. Trombetas e um rufar de tambores, marcados pelo canto do muezim, acordavam o acampamento ao amanhecer. Era o único chamado para orações em grupo, que os cristãos e judeus não eram obrigados a fazer, embora tivessem de levantar na mesma hora que os demais. Depois, vinha uma farta refeição para manter os soldados bem alimentados até a refeição vespertina.

Seguia-se um intervalo de descanso, que os soldados costumavam aproveitar para fazer suas necessidades fisiológicas. Filas de homens saíam da cidade para usar as fossas cavadas com essa finalidade; a cada dois dias, elas eram cobertas de areia para reduzir o mau cheiro. Um segundo toque de tambor chamava os homens para rodadas de luta com espada, arcos e exibição de cavalaria. Os soldados da infantaria eram obrigados a correr duas horas por dia.

Estava sempre acontecendo alguma coisa. As cores do califa chegaram e foram oferecidas ao sultão em meio à aclamação geral e gritos de 'Alá é grande". Isso não impediu que al-Fadil sussurrasse para Imad al-Din, alto o bastante para que eu também ouvisse:

— Ainda bem que o califa enviou os estandartes abássidas, mas morrerá de medo se nosso sultão tomar al-Kadisia: Saladino vai se tornar o soberano mais poderoso do islamismo.

— É verdade — respondeu, rindo, o grande letrado.

— E os astrólogos de Saladino já o estão prevenindo para tomar cuidado com o primeiro homem que rezar sob o Domo da Pedra, pois ele irá a Bagdá e será saudado como o verdadeiro califa.

Não era segredo que o califa tinha inveja do nosso sultão. Todo comerciante que ia de Bagdá para Damasco tinha muitas intrigas da corte para contar, na maioria exageradas, mas algumas confirmadas por outras fontes — ou seja, os espiões de Imad alDin, que enviava ao sultão relatos regulares sobre a primeira cidade da fé.

Era estranho o desrespeito pelo califa demonstrado pelos dois homens mais próximos do sultão.

Estávamos em Ashtara há apenas uma semana e já nos sentíamos em casa. Não pelo conforto, mas pelo sentimento de solidariedade que dominava o ambiente. Até o cádi al-Fadil admitiu jamais ter visto nada parecido nas campanhas anteriores. Os soldados se dirigiam aos emires como iguais, sem desrespeitar a disciplina do exército.

Por recomendação expressa do sultão, os emires combinaram fazer a refeição vespertina com os soldados, mergulhando o pão na mesma tigela de molho e cortando carne do mesmo osso.

Foi com esse espírito que, certa manhã, as cores dos curdos surgiram à distância. Um mensageiro correu para prevenir o sultão, que naquele momento estava cavalgando com Taki al-Din e Keuburi. Eu, no meu mísero cavalo, tentava acompanhá-los. Os três homens discutiam se a tradicional tática de atacar e recuar — que surtiu muito efeito na batalha com os partianos e era ideal para pequenas formações de cavaleiros bem-treinados e preparados — poderia ser usada num exército das dimensões daquele que estava se formando em Ashtara.

Foi nesse instante crucial que o mensageiro anunciou a chegada dos guerreiros curdos. Os três generais começaram a rir, pois conheciam bem a indisciplina curda.

Xirkuh foi o único líder que conseguiu domar os instintos selvagens deles, que até então se recusavam a lutar sob o comando de Saladino. Diziam que ele não tinha a audácia do tio nem a astúcia do pai. Por isso, o sultão recebeu com alegria a notícia da chegada dos curdos e voltamos direto para o acampamento.

Os curdos estavam lá e cumprimentaram o sultão na língua deles. Os líderes beijaram Saladino nas duas faces. O sultão virou-se para mim com lágrimas nos olhos. Aproximei-me e ele me disse:

— Gostaria que Xadi estivesse aqui para ver tudo. Muitos desses homens lembram-se bem dele.

Naquela noite, o cheiro de damasco fermentado impregnou o acampamento. Até o sultão foi visto bebendo de um jarro forrado de couro, lustroso pelo uso constante.

Depois, os curdos cantaram músicas que eram uma mistura estranha de lamentos de amantes com cânticos de amor e esperança. Um guerreiro mais velho, que bebera grande quantidade do forte suco, interrompeu todo mundo com uma canção triste. Falava da mulher de seus desejos, que deveria ter uma vagina que queimasse como uma fornalha. Antes que pudesse continuar, seus filhos o levaram e só voltamos a vêlo no dia seguinte.

A noite terminou com uma dança guerreira dos soldados curdos, que pulavam aos pares sobre a fogueira, sérios, com as espadas desembainhadas, ao som bem marcado das espadas se chocando.

Quando voltava para minha tenda, vi o emir Keuburi e o eunuco Amjad em animada conversa com um homem de altura mediana, que não reconheci. Notava-se que era um nobre, provavelmente de Bagdá, pois usava as cores do califa e um turbante de seda negra que combinava com sua barba rala. Estava escuro, mas, mesmo assim, brilhava no centro de seu turbante um esplêndido rubi. Cumprimentei os três e Amjad me apresentou ao forasteiro. Era Ibn Said, de Aleppo, que perdera o dom da fala quando criança e só conseguia se comunicar por gestos.

— O que acha dos curdos, Ibn Yakub? — perguntou Keuburi.

— Eles dão ao exército do sultão um belo colorido — foi minha resposta cortês, mas o mudo de Aleppo começou a gesticular sem parar. O eunuco Amjad concordou com o que o homem dizia e traduziu os gestos dele.

— Ibn Said quer que o senhor saiba que os curdos só servem para saquear cidades. Eles são os abutres da nossa fé e deveriam ser usados para poucas coisas.

Keuburi franziu o cenho.

— Tenho certeza de que Ibn Said sabe que o próprio sultão é curdo e, portanto, não posso aceitar essa afronta.

Mais uma vez, o forasteiro começou a gesticular sem parar, chegando a tocar a pedra de seu turbante. Amjad acompanhou todos os movimentos como uma águia, concordando com tudo.

— Ibn Said está dizendo que conhece muito bem as origens do sultão. E que todas as pedras preciosas são ásperas antes de serem polidas. O sultão é uma pedra preciosa, mas os homens das montanhas ainda exigem muito polimento.

Keuburi sorriu e ia fazer um comentário quando Taki al-Din apareceu e o levou. Os dois tinham sido convidados para tomar chá com o sultão. Quando saíram, também fui andando e, de repente, o mudo começou a falar.

— Ibn Yakub, eu sabia que conseguiria enganar Keuburi, mas pensei que você fosse mais observador.

A voz era conhecida, mas o rosto... Nesse instante, Amjad riu e percebi que a barba e o turbante eram um disfarce. Por baixo deles estava o rosto familiar de Jamila.

Nós três rimos e fui convidado para ir à tenda de Ibn Said tomar café com ela e o eunuco Amjad. Jamila não conseguia ficar sem café. Os grãos eram enviados regularmente pelo pai e, depois, pela irmã que vivia em Harran. Sem dúvida, era o mais delicioso café de Damasco e Jamila estava certa ao dizer que era o melhor da Arábia e, portanto, do mundo.

Sentamos do lado de fora da tenda, saboreando o aroma do café e olhando as estrelas, sem muita vontade de conversar. Percebi isso no dia anterior também: os soldados e emires ficavam sentados em silêncio, pensativos, antes de dormir.

O que pensavam? O que passava pela cabeça deles? Será que, como eu, Jamila e Amjad, estavam pensando nas batalhas que estavam por vir? Vitória ou derrota? As duas possibilidades poderiam ocorrer. Era inegável o sentimento de grande solidariedade que havia entre todos aqueles homens quando marchavam. Uma solidariedade que vinha do conhecimento de que, se vencessem os cruzados fora dos muros de al-Kadisia, o exército que integravam seria lembrado pela História.

Essa solidariedade conferia a eles uma identidade coletiva ao pensarem só na vitória, mas esses soldados eram também seres humanos. Tinham pais e mães, irmãos e irmãs, esposas, filhos e filhas. Será que ainda veriam seus amados parentes? Claro que, por se tratar de uma jihad, se morressem iriam direto para o céu, sem necessitar de qualquer julgamento dos anjos. Mas o que aconteceria se os parentes dos soldados não entrassem no céu? E aí? Eram pensamentos assim que passavam pela cabeça deles enquanto apreciavam o céu noturno antes de fecharem os olhos para dormir. Sei disso porque falei com muitos soldados e ouvi suas histórias.

— Se perdermos — avaliou Jamila — e Saladino morrer, pego meus filhos e volto para a casa de meu pai. Não quero ficar em Damasco e assistir a mais guerras que terão como única finalidade saber quem será o sucessor dele. Acho que o pessimismo é natural, às vésperas de uma guerra, mas minha intuição diz o contrário. Tenho certeza de que ele vai vencer esta guerra. Vamos nos retirar para nossas tendas, Ibn Yakub, e cuidado para não trair meu segredo.

Desejei boa noite à barbuda Jamila, mas o sultão tinha outros planos para mim. Quando estava indo para a tenda, um dos seguranças dele me parou e mandou que eu fosse à sua presença imediatamente. Corri para minha tenda e peguei pena, tinta e papel. A tenda do sultão era incrivelmente modesta. Tinha dimensões pouco maiores que a minha e a cama colocada num canto era igual àquela em que eu dormia. O único sinal de poder era um grande tapete de seda sobre a areia, onde ele estava sentado, recostado numa pilha de almofadas. A seu lado estavam o emir Keuburi e Taki al-Din. Alegre, o sultão piscou para mim quando cheguei.

— Quem é esse Ibn Said de Aleppo que insulta meus guerreiros curdos?

— Um homem sem importância, Comandante dos Vitoriosos.

— Espero que esteja certo. Keuburi acha que é um espião.

— Espiões — argumentei — costumam ser hábeis em agradar o inimigo. Elogiam sempre, para enganar. O estranho de Aleppo é um cético, de língua afiada e inteligência tão cortante que pode partir um camelo ao meio.

O sultão riu e disse:

— Você acaba de descrever a sultana Jamila. Todos riram da piada, principalmente Keuburi, sem saber que era o alvo dela e querendo mostrar que gostou muito da descrição irônica da sua cunhada.

Antes que Keuburi pudesse descobrir a verdadeira identidade de Ibn Said, a fralda da tenda foi aberta e entrou o filho mais velho do sultão, alAfdal, de apenas dezessete anos. Fez uma reverência para o pai e deu um sorriso complacente para os demais. Ele tinha crescido desde a última vez que o vira, um ano antes. A barba era bem-feita e sua atitude era a de alguém que tinha autoridade. Comentei que me lembrava dele quando pequeno, aprendendo a montar junto com os irmãos, no Cairo.

Vi aquele menino recebendo instruções sobre luta com espada, no chão e a cavalo.

Pensando que pai e filho quisessem estar a sós, Taki al-Din, Keuburi e eu nos levantamos. O sultão deixou que os outros saíssem, mas me fez sinal para ficar. Depois que os dois foram embora, ele permitiu que o filho se sentasse.

Algumas semanas antes, o rapaz lutara em sua primeira batalha e enviou ao pai um relato entusiasmado, comparando sua primeira guerra com o defloramento de uma virgem, analogia que desagradou Imad al-Din. Ele resmungou, zangado, que, fosse lá o que fosse no futuro, o rapaz jamais seria um estilista da prosa. Saladino era um pai amoroso, mas severo. Quando o filho chegou, o sultão mudou de humor. Seu rosto ficou sério, o que não foi um bom sinal para o jovem príncipe, que percebeu isso ao mesmo tempo que eu. O rapaz franziu o cenho por causa da minha presença. Sorri gentilmente, mas ele virou o rosto e não olhou para o pai.

— Olhe para mim, Afdal! Estamos às vésperas de uma batalha em que posso morrer. Nossos espiões dizem que o rei dos cruzados, Guy, ofereceu uma grande recompensa para o cavaleiro que conseguir atingir meu coração com a lança.

O rapaz ficou tão emocionado que chorou.

— Estarei sempre ao seu lado. Terão que me matar primeiro. O sultão sorriu, mas seu rosto continuou sombrio quando falou.

— Escute, meu filho, você ainda é jovem. Precisa entender uma coisa: no campo de batalha, o respeito tem que ser conquistado. Meu tio Xirkuh deu-me a oportunidade de provar minha capacidade quando eu era jovem como você, mas só tive poder muito mais tarde. Xirkuh não acreditava que a autoridade pudesse ser herdada. "Sou grato a ele, embora na época me sentisse como um homem jogado num rio sem saber nadar: precisa, ao mesmo tempo, aprender a nadar e chegar ao outro lado. Você acha que, pelo fato de ser filho do sultão, os soldados e emires vão respeitá-lo. Eles podem fingir que respeitam, mas você seria um idiota se acreditasse.

Depois que lutar ao lado deles, sentir o gosto da areia e do sangue, eles podem começar a considerá-lo como um igual. E depois que lutar ao lado deles muitas vezes, podem começar a respeitá-lo. O direito de dar ordens não confere respeito.

"Você foi muito bem educado por Imad al-Din e al-Fadil. Sei que conhece toda a história das grandes batalhas que lutamos desde os tempos do profeta, que descanse em paz. Mas isso, embora seja importante, não servirá de ajuda no campo de batalha. O melhor professor na guerra é a experiência.

"O que você aprende nos livros pode esquecer facilmente, a menos que seja abençoado por uma memória como a de Imad alDin. Mas a experiência própria fica com você até o dia de sua morte.

"Mandei chamá-lo porque soube que, algumas semanas atrás, você desafiou a autoridade de seu primo e filho de meu irmão, Taki al-Din, diante dos emires, contrariando uma ordem dele. Taki al-Din é um homem disciplinado e por isso fez o que você mandou. Se meu tio Xirkuh e eu estivéssemos no lugar dele, teríamos esbofeteado sua cara imberbe. Por sorte, as suas ordens não causaram nenhum desastre, caso contrário eu teria que criticá-lo em público.

"Quero deixar bem claro o seguinte: Taki al-Din é meu braço direito, confio na avaliação dele. Confio plenamente. Se durante uma batalha Alá resolver que chegou minha hora, Taki al-Din é o único emir que os soldados respeitam de verdade e que poderia conduzir nosso lado à vitória. Deixo ordens a respeito disso. Você pode aprender muito, vendo como seu primo age e ficando ao lado dele, mas isso compete a você decidir. Amanhã de manhã, quero que você o procure, peça desculpas pelo que fez e beije o rosto dele. Está claro? Agora vá dormir.

O herdeiro escolhido pelo sultão estava agastado quando fez uma reverência na nossa frente e saiu da tenda.

— Acha que fui muito ríspido, Ibn Yakub?

— Ó sultão, como eu não tenho filho homem, não sou a pessoa certa para comentar a relação de um pai com seu filho, mas, como líder de homens, acho que foi muito justo. Ele ficou magoado, principalmente porque a crítica foi feita na minha presença. Teria aceitado melhor se eu não estivesse aqui, mas, como jovem príncipe que almeja ser um bom soberano, precisa aprender a abrir seu caminho neste mundo cruel.

— Eu não seria capaz de expressar isso tão bem quanto você, escriba. Queria que estivesse presente para anotar tudo, e tudo isso fará parte da história de nossa família. Se ele vier a ser um bom sultão, vai dar valor a essas palavras, pois talvez precise usá-las com seu próprio filho. Pode sair agora. Acho que vou passar a noite explorando os conhecimentos de Ibn Said. Vou mandar chamar nosso cético de Aleppo para aquecer minha cama e estimular meus pensamentos.

Olhei para ele, surpreso. Seus olhos brilhavam, mas como Jamila iria receber a notícia? Há muitos anos ela não freqüentava a cama do sultão e o olhar dele mostrava quais eram suas intenções.


27

A história do eunuco Amjad e como conseguia copular,
apesar de sua deficiência física

Ashtara, a três dias de viagem ao sul de Damasco, ficava num planalto sobre uma grande colina. Estávamos lá havia quase um mês. O sultão estava satisfeito com o progresso dos soldados. Embora pudesse sempre haver alguma discordância entre as unidades comandadas por ele, Saladino sabia que os soldados tinham entendido como ele queria lutar. Passaram um bom tempo aprendendo o significado dos diversos sinais e sons usados numa batalha. Cada unidade destacava um homem para observar a tenda do sultão.

As tropas que ficavam à distância precisavam entender os sinais transmitidos pelos estandartes, o que era uma questão de vida e morte. Da mesma forma, era importante que os soldados mais próximos do sultão interpretassem corretamente o toque do tambor.

Foi preciso muito tempo para explicar tudo isso aos emires e nobres no comando das diversas unidades e esquadrões do exército de Saladino.

Um dia, após as preces, o sultão fez a refeição matinal tendo como companhia somente Taki al-Din e eu. Ele olhou bem Para o sobrinho e disse, rindo: “A areia que levantar do chão quando meu exército marchar para al-Kadisia vai ofuscar a luz do sol”.

Foi a única vez que o vi entusiasmado com a perspectiva da guerra. Ele entrara no conflito naquele momento não por ter uma vantagem militar, mas por razões de Estado. Atrás dele estava o mais unido exército de fiéis que jamais existiu para derrotar os infiéis. Entre os soldados também havia judeus e cristãos, mas eram poucos. Muitos estavam apenas esperando uma oportunidade para se converter à fé do profeta do islamismo. Mas os coptas, não. A fé inabalável e a hostilidade implacável que tinham por Roma e Constantinopla faziam com que se tornassem os aliados naturais de Saladino.

Eu estava saindo da tenda do sultão quando o eunuco Amjad segurou meu braço e murmurou: — Ibn Said, o mudo, solicita a sua presença. Segui Amjad sem dizer uma palavra. Ainda não me acostumara com a nova identidade de Jamila. Só quando seus olhos brilhavam é que eu percebia a mulher por trás do disfarce ou quando ouvia sua voz, o que só acontecia dentro da tenda.

— Saladino contoume que deixou você chocado ao confessar que estava cheio de desejo por mim, algumas noites atrás. É verdade?

Eu não conseguia me acostumar com aquela mulher. Ela sempre me surpreendia. O eunuco Amjad riu do meu constrangimento. O que eu podia responder, diabos?

— Diga a verdade, Ibn Yakub. A verdade, como sempre!

— Não fiquei surpreso quando o sultão disse que gostaria que a senhora voltasse a compartilhar a cama dele.

É compreensível, pois a senhora é linda e...

Ela ficou impaciente.

— E a única mulher no acampamento. Sim, sei disso, mas o que o chocou, grande escriba?

— Pensar que seria uma humilhação para a senhora submeter-se às vontades de um homem.

Ela sorriu e cofiou a falsa barba.

— Pensei nisso também, e foi muito nobre de sua parte preocupar-se com a minha situação. Como vê, sobrevivi à experiência.

Estou acostumada com o seu sultão. Não seria capaz de submeter meu corpo a nenhum outro homem — nem a um eunuco.

O eunuco Amjad teve um sobressalto, como se tivesse tocado em fogo. Pareceu nervoso com a observação. Percebendo isso, Jamila pôs a mão na cabeça dele e pediu desculpas. Mas ele ficou alerta.

— Querer que Amjad fale de seu passado é como arrancar um dente da boca de um crocodilo.

O eunuco sorriu, satisfeito com a atenção que ela lhe dava. Jamila continuou a pressioná-lo.

— Sabe-se lá se algum de nós estará vivo nas próximas semanas? Hoje você precisa contar sua história, Amjad. Com a vantagem de estarmos com o escriba: Ibn Yakub anotará tudo em seu caderninho e você ficará imortalizado. O que acha, meu amigo de cabelos ruivos?

Pela primeira vez, prestei atenção no rosto de Amjad. A brancura de sua pele destacava o vermelho de seus cabelos. Tinha olhos castanhos e era muito mais alto que eu, e eu era mais alto que o sultão. Amjad nunca me interessou como pessoa, mas o fato de ser tão próximo de Xadi e de Jamila fez com que eu também gostasse dele. Falei:

— Xadi sempre me falava de você, Amjad. Tinha muito respeito por sua inteligência, mas, apesar disso, sei pouco a seu respeito e vice-versa. Quem é você? Quando chegou a Damasco e como foi parar na fortaleza como criado do sultão?

Seus olhos se entristeceram e ele suspirou, antes de falar com sua voz suave, sem fazer pausas: Nunca atendi aos pedidos da sultana para falar de minha vida porque conheço muito pouco do meu passado. Sou um saqalabi, como mostra meu tipo físico, e um eunuco, o que me transforma numa espécie de animal enjaulado.

Como ambos devem saber, há eunucos de todos os tipos e tamanhos. Há os que tiveram o pênis inteiro cortado e que são muito encontrados nos palácios de reis e sultões que vigiam suas mulheres como tigres, sempre prontos a atacá-las ao primeiro sinal de traição. Esses homens acham que um eunuco cujo sexo foi completamente retirado pode ser inteiramente confiável. É estranho como o grau de confiança de alguns nobres e emires depende do grau de mutilação do eunuco. Se eles quisessem mesmo impedir qualquer contato físico entre um eunuco e uma mulher, teriam de extirpar mais do que nosso pobre pênis. Os dedos das mãos e dos pés, a língua, tão deliciosamente ágil, também teriam de ser arrancados. Mas faz tempo que desisti de pensar nas bobagens que passam pela cabeça de emires e sultões.

Há outros eunucos como eu, que são castrados e vendidos para as igrejas, onde aprendem a cantar em louvor a Isa e, nas horas de folga, satisfazem o desejo carnal de padres e bispos. Tive sorte, nunca fiz isso. Não passei por uma provação dessas. Fui castrado aos quatro ou cinco anos de idade, comprado por comerciantes judeus na terra dos búlgaros e vendido no mercado em Andaluzia. Lá, fui comprado por outro comerciante, que acreditava em Alá e seu profeta, e me trouxe para Damasco.

Quem me contou tudo isso foi a família que me comprou aos sete anos.

Como a sultana sabe, nossa fé proíbe expressamente a castração de meninos e homens. Portanto, a única forma de atender aos emires e sultões que querem comprar eunucos é buscá-los nas igrejas ou livrá-los da tirania dos padres quando uma cidade cristã é tomada pelos seguidores do profeta. Assim nos tornamos fiéis e aceitamos nos converter a Alá, pois dessa forma seremos bem-tratados e teremos poder e influência como nunca.

A sultana sabe que a inteligência de um homem não está no pênis, mas na cabeça. Considerar os eunucos como incapazes apenas pelo fato de serem emasculados é idiotice, como muitos soberanos aprenderam — entre eles, o falecido sultão Zengui, que pagou com a vida por ignorar isso.

Sei de pelo menos três conspirações tramadas por eunucos, só dentro da fortaleza. Eles são leais ao sultão, mas depois que ele morrer, tomarão partido na luta pela sucessão. Não pertenço a nenhum desses grupos e por isso confiam e desconfiam de mim ao mesmo tempo. É uma boa situação porque contam o que quero saber, mas escondem seus golpes. Gosto disso também, pois se tivesse conhecimento de algum plano para matar alAfdal, contaria ao camareiro na mesma hora.

O senhor, bom e sábio Ibn Yakub, pediu que eu contasse as lembranças de minha infância. Mas não recordo nada de meus pais, nem de quando e por que me venderam.

Talvez fossem camponeses muito pobres e precisassem de dinheiro. Há muitos eunucos em Damasco que me contaram terem sido castrados pelos próprios pais e vendidos a comerciantes. Os pais fizeram isso com conhecimento do patriarca de Constantinopla.

Não lembro da viagem da terra dos búlgaros até a Andaluzia, nem daí para Damasco. Fui vendido pelo comerciante que me comprou na Andaluzia para o mercador Danial ibn Yusuf, cuja família me tratou muito bem. Aprendi a ler e escrever como se fosse um dos filhos deles. Recebia roupas e era bem alimentado. Sempre soube que era diferente do resto da família porque não dormia na casa. Vivia no mesmo lugar que o cozinheiro — um quarto quente e fedorento, com um cheiro que vinha do corpo e das roupas dele. O homem nunca me maltratou nem abusou de mim, e como era um bom cozinheiro, perdoei seu mau cheiro.

Quando eu estava com dezesseis anos, o dono da casa comentou que eu tinha uma habilidade natural para lidar com números e passou a me levar com ele para o suk todas as manhãs. Lá, era dono de duas lojas: uma, de roupas e tapetes caros, cetins e brocados de Samarkand, seda chinesa, musselina e mantas da Índia, e tapetes persas.

A outra loja, que ficava ao lado, vendia apenas espadas, também da melhor qualidade. O dono contoume que uma das espadas do sultão Saladino havia sido comprada em sua loja, embora o falecido Xadi dissesse mais tarde que não era verdade. Todas as armas do sultão são feitas sob encomenda por artesãos exclusivos, no Cairo e em Damasco.

O fato é que um dia a loja de roupas recebeu a visita da sultana Ismat, que descanse em paz, e seu séquito. Nessa época ela era casada com o grande Nur al-Din, e não com o sultão. Eu estava na loja e ela gostou do jeito como atendi as senhoras que a acompanhavam. Não aceitei as tentativas de pechinchar e mantive os preços das peças conforme foram marcados pelo dono da loja. Não sabia quem eram aquelas senhoras, nem de onde vinham.

A sultana riu do meu desaforo e uma semana depois me transferiu para a fortaleza. Quando soube que eu era eunuco, ficou muito contente. Fui colocado no harém como mensageiro especial dela para assuntos fora da fortaleza. Após a morte de Nur al-Din, ela se casou com o sultão. O resto da história os senhores sabem e lastimo que minha vida tenha tão poucas histórias.

Percebi então por que Amjad era tão valorizado pelos que confiavam em sua discrição. Ele sabia os piores segredos da vida na fortaleza, mas não os espalhou. Talvez minha presença o estivesse inibindo. Ou talvez não falasse na frente de Jamila, pois ela acharia que, se ele falava dos outros na frente dela, poderia fazer o contrário também, e ela perderia a confiança.

No mesmo dia, após a refeição vespertina, não participei dos jogos que os soldados faziam para se divertir. Não estava com vontade de ficar na companhia deles.

Minha cabeça começou a se encher de pensamentos mórbidos. Voltei para minha tenda e fiquei pensando no ponto a que minha vida chegara. Seria ela prematuramente interrompida nas semanas ou nos meses seguintes?

A tenda começou a me parecer opressiva e, querendo afastar as teias de aranha da minha cabeça, resolvi andar para recuperar a calma interior, respirando o ar frio da noite e observando o movimento das estrelas.

Estava sentado num pequeno monte de areia, pensando em Raquel, quando tocaram no meu ombro. Pensei que estivesse sozinho ali, e o toque provocou um arrepio de medo no meu corpo. Numa época daquelas, só se pensava em espiões cruzados, mas a voz que ouvi era conhecida.

— Peço sinceras desculpas por tê-lo assustado, Ibn Yakub. Esta noite, eu também não estava me sentindo bem no acampamento e resolvi segui-lo. Devia ter avisado, mas achei que o senhor precisava ficar sozinho um pouco.

Era Amjad. O alívio que senti dissipou a raiva por ser seguido furtivamente. Ele tinha um motivo para agir assim.

— Percebi que não acreditou muito no relato de minha vida que fiz ao senhor e à sultana esta manhã.

Discordei, dizendo que não tinha motivo para duvidar da veracidade do que ele contou. Só fiquei insatisfeito porque sabia que ele tinha conhecimento de muito mais coisas do que contou. Jamila tinha mais certeza ainda que eu, e se irritou pelo que interpretou como uma recusa de Amjad em tomar qualquer partido. O eunuco sorriu quando falei na irritação dela.

— Sei por que ela ficou zangada. No passado, contei tudo para ela. O que despertava o interesse dela e da senhora Halima era minha incapacidade de desfrutar dos prazeres da cama.

"Um dia, elas insistiram muito para eu mostrar o que sobrou dos meus genitais. Fiquei indeciso e elas continuaram insistindo. Acabei concordando e elas não olharam muito, mas usaram isso para fazer chantagem comigo. Se eu não contasse tudo o que as outras mulheres do harém faziam, elas diriam ao sultão que eu havia mostrado para elas o que restava do meu pênis. A senhora Halima fez uma espécie de ameaça. A sultana viu como fiquei amedrontado e, na mesma hora, garantiu que era uma brincadeira e mandou que eu esquecesse tudo aquilo.

"Mesmo assim, a senhora Halima queria sempre saber das outras mulheres e eu tinha de contar tudo. Às vezes, inventava um pouco para diverti-la. Estava tudo bem enquanto as duas eram muito amigas. Os problemas só surgiram quando a relação delas acabou. A senhora Halima contou para suas novas amigas o que eu falara delas, e uma tarde, cinco mulheres, incitadas pela senhora Halima, me cercaram e açoitaram minhas costas nuas. Ainda tenho as marcas dessa humilhação.

"Depois disso, duas pessoas me ajudaram muito. Quando contei a Xadi o que tinha sofrido, ele ficou tão zangado que quis falar com o sultão. Precisei usar todas as artimanhas para impedi-lo mas acho que Xadi mandou um recado para a senhora Halima dizendo que, se ela continuasse daquele jeito, passaria o resto de seus dias enfiada numa cabaninha de uma aldeia distante.

"A sultana também ficou muito chocada e irritada. Por isso, ficamos muito amigos e, na presença dela, jurei em nome de Alá e de nosso santo profeta que jamais contaria mais nada.

Até poucas semanas atrás, a sultana me ajudou a honrar essa promessa. Mas uma tarde, de repente, ela começou a fazer perguntas sobre a senhora Halima. Balancei a cabeça, negando-me a falar. Meu silêncio a irritou e não nos vimos mais até hoje de manhã. Talvez ela tenha pensado que, na presença do senhor, minha língua pudesse se soltar. Sei o que ela quer saber e compreendo por quê, mas fiz uma jura por Alá e tive de desapontar a sultana.

Naquela noite, ouvindo Amjad falar sob a luz das estrelas, entendi por que Xadi e Jamila ficaram atraídos pela voz suave daquele eunuco. Agora, eu estava fascinado por ele e intrigado pela referência que fez a Halima. O que ele poderia saber? O que sabia?

— Também estou desapontado com sua história, Amjad. Compreendo por que Xadi queria contar a Saladino, pois resolveria o problema imediatamente. Respeito sua promessa de não contar nada e não quero que você a quebre. Mas é claro que Jamila queria saber a verdade sobre Halima. Você prometeu não contar mentiras ou histórias inventadas.

Estou certo?

Durante algum tempo ele não respondeu, e o silêncio majestoso da noite no deserto ficou opressivo. Eu já ia repetir minha pergunta, quando ele começou a falar.

— Como sempre, o senhor está certo, Ibn Yakub. Mas o que Jamila queria saber envolve a mim também. Se eu contasse toda a verdade, acabaria com a confiança que deposita em mim, e que é grande. E essa confiança é a coisa mais valiosa que tenho no mundo. A triste verdade é que, uma noite, quando eu estava dormindo, a senhora Halima foi ao meu quarto. Tirou a túnica, ficou nua, deitou-se ao meu lado, encostou-se no meu corpo e começou a passar a mão naquela parte que ela e a sultana tinham olhado um dia.

"Em nome de Alá, juro ao senhor, Ibn Yakub, que achei que estava sonhando. Foi só quando ela montou em mim e começou a se mover para cima e para baixo sobre a pequena tamareira sem frutos que fica entre minhas pernas que percebi que era verdade, mas aí era tarde demais para resistir ou reclamar. Nem as maiores dúvidas resistem ao prazer. Quando terminou, ela foi embora. Não dissemos uma só palavra. Fiquei me sentindo um animal e talvez ela tenha sentido o mesmo fastio que eu, talvez não.

"Ela voltou muitas vezes, nós copulamos em silêncio e tudo acabou como começou. De repente. Depois, evitávamos nos olhar, ela se esquivava de mim e, como eu soube mais tarde, costumava comentar obscenidades a meu respeito com suas novas amigas. Uma delas, que depois rompeu com a senhora Halima, contou que ela dissera a todas as mulheres que montar em mim era a única forma de se livrar do fantasma de Jamila que a perseguia por todo canto.

"O harém não permite que nada fique em segredo. Tenho certeza de que a senhora Halima foi seguida e que línguas más contaram para a sultana, que, naturalmente, queria se certificar do que aconteceu, ouvindo tudo de minha boca. Eu não podia fazer isso, Ibn Yakub. Ela ficaria muito magoada e estragaria nossa amizade. Para mim, passar uma tarde conversando com a sultana vale mais que todas as noites com a senhora Halima. Nem são prazeres que eu possa colocar no mesmo nível. As idéias de Jamila provocam um efeito afrodisíaco em mim; quando rimos juntos, o sol brilha no meu coração. É a única que eu amo de verdade e seria capaz de morrer se me pedisse. Agora o senhor sabe de tudo. Contei finalmente o meu segredo.

Fiquei atordoado com a confissão de Amjad. Um eunuco tinha conseguido o que eu não conseguira. Olhei as estrelas e rezei em silêncio, pedindo que o céu caísse sobre minha cabeça. Queria apagar todas as lembranças.

Naquela noite, acordei com um pesadelo. Estava sendo castrado por uma mulher de rosto desfigurado por um olhar lascivo. Era Halima.


28

Tomamos conhecimento de dissidências entre os cruzados

Dois espiões nossos, comerciantes da seita copta instalados no acampamento cruzado, contaram a Taki al-Din que o reino de Jerusalém estava envolvido numa disputa ferrenha entre os dois principais cavaleiros do rei Guy. O conde Raimundo de Trípoli recomendava que o rei fosse prudente e cuidadoso, ou seja, que ficasse em Jerusalém e não marchasse para ser capturado na armadilha que Saladino estava preparando. Mas o rei estava mais propenso a aceitar a opinião de Reinaldo de Châtillon, cavaleiro experiente, que sentira o cheiro de sangue. Ele duvidava da integridade do conde Raimundo, acusando-o de ser amigo de Saladino e falso cristão. Além disso, Reinaldo achava que o equilíbrio de forças era favorável aos cruzados, cujos cavaleiros e soldados de infantaria poderiam manobrar e dominar o exército de Saladino.

A certa altura da discussão, os dois homens estavam quase se esmurrando. Teriam se agredido, se o rei não tivesse apanhado uma cruz de madeira e se colocado entre eles. Convenceu então seus dois cavaleiros a jurar que parariam a briga e lutariam juntos para derrotar os infiéis sarracenos.

Taki al-Din fez muitas perguntas aos dois espiões. Quis saber o tamanho do exército de Guy, a quantidade de suprimentos de que precisariam para sobreviver fora dos muros da cidade, quem eram os homens que comandariam os templários e hospitalários, e quanto tempo os dois espiões levariam para nos trazer informações sobre a localização exata do exército cruzado — caso seus comandantes fossem tão idiotas a ponto de sair da Cidade Santa e ir ao encontro do sultão em seu próprio campo. Os comerciantes se entreolharam e riram. O mais velho respondeu: — O emir não precisa se preocupar com isso. Meu irmão é o responsável pelo fornecimento de suprimentos para Guy e Reinaldo. Ele vai nos passar a informação na hora. Os pombos-correio já estão preparados.

Taki al-Din sorriu.

— Meu tio sempre me elogiou por saber julgar o caráter das pessoas. Vocês nunca me deram falsas informações, nem traíram minha confiança.

Por isso, serão generosamente recompensados pelo sultão. A tenda de vocês está pronta, depois dessa longa viagem. Por favor, descansem e recuperem as forças até a refeição vespertina.

Dois dias depois, chegou a notícia que aguardávamos. Reinaldo de Châtillon vencera a disputa: Guy preferiu seguir seu conselho. Os soldados cruzados estavam se preparando para sair da Cidade Santa e vir lutar no nosso campo. Ao ouvir isso, o rosto do sultão se iluminou, mas ele insistiu em confirmar a notícia. Precisamos esperar mais um dia até outro informante chegar com a confirmação. Só então Saladino ordenou a revista de todas as tropas a serem reunidas na manhã seguinte em Tell Tasil, nove quilômetros ao norte de Ashtara, na estrada principal para o vale do rio Jordão.

— Quero ficar num lugar alto, de onde possa avistar todo o exército, Ibn Yakub — disse ele.

— Os rabanetes são como os homens, têm várias formas e tamanhos, como costumava dizer nosso amigo Xadi. Com exceção dos meus esquadrões, a maior parte dos homens se alistou agora. São rabanetes de campos que não semeei, vamos ver se eles se parecem com os nossos.

A notícia de que os cruzados tinham saído da Cidade Santa para nos combater atravessou o acampamento inteiro em meia hora. Esse tipo de informação não fica em segredo por muito tempo e causou uma mudança radical no comportamento dos soldados. Até então, eles estavam calmos e um pouco confiantes demais, mas a informação de que deviam entrar em combate dentro de poucos dias fez com que ficassem nervosos, um pouco impacientes e, no fundo, com medo.

O sultão sabia que, às vésperas de uma batalha, o moral da tropa podia se alterar e atrapalhar o ânimo até do melhor exército. Ordenou então que o acampamento fosse desmontado. Eu nunca o vira daquele jeito, parecia estar em todo canto ao mesmo tempo. Numa hora, estava com seus emires, correndo para inspecionar os suprimentos e orientar os chefes de estoque. Vistos de longe, com suas túnicas esvoaçando ao vento, eles pareciam enormes corvos. Deram ordens a respeito dos camelos, das mulas que carregavam os suprimentos e dos preparativos das carroças; mandaram desarmar as tendas e enrolá-las ao amanhecer. Em seguida, para minha surpresa, o sultão subiu numa recém-construída torre-de-sítio para testar sua solidez. Fiquei assustado com o fato de ele correr um risco tão desnecessário, mas o jovem alAfdal, que estava ao meu lado observando o pai, riu da minha preocupação.

— Estamos acostumados a vê-lo fazer isso antes de uma batalha. Gosta de se arriscar porque acha que dá confiança aos soldados. Se o sultão pode morrer, eles também podem.

— E ele vai deixar que você arrisque sua vida, meu jovem príncipe?

Seu rosto mudou de cor.

— Não. Meu pai diz que preciso viver, caso ele morra. Então minha tarefa nesta batalha é transmitir as ordens e ficar ao lado da tenda e do estandarte dele o tempo todo. Falei com meu primo Taki e pedi para acompanhá-lo na luta, mas ele também obedece a ordens. Não é justo eu ficar nessa função, já lutei em duas batalhas, e esta vai ser a mais importante de todas.

— Paciência, Ibn Yusuf. Sua vez também chegará. Você também terá sorte. Vai governar e julgar, e criar seus filhos como foi criado, O sultão faz isso para o seu bem. Uma plantinha precisa ser protegida do vento forte para poder crescer e dar frutos.

O herdeiro do sultão ficou petulante. — Ibn Yakub, por favor, não tente ser igual a Xadi. Ele era único.

Com essas palavras arrogantes, o jovem me deixou sozinho, embora por pouco tempo. O eunuco Amjad apareceu, inusitadamente sério, e soprou no meu ouvido que Ibn Said, o mudo, estava à minha espera. Enquanto nos encaminhávamos para a tenda, Amjad avisou-me que a sultana estava irritada e ficaria a sós comigo. Logo vi a causa da irritação: — Saladino deu ordens para que eu não acompanhe o exército — contou Jamila. — Diz que é muito perigoso e minha presença é desnecessária. Tive a paciência de explicar que ele estava falando como um homem cujo cérebro tinha sido substituído pelo ânus de um camelo. Ele ficou muito irritado, empurrou-me e chegou a mandar Amjad preparar minha viagem de volta a Damasco. Assim, enquanto todos estarão marchando para tomar al-Kadisia, os eunucos e uma mulher estarão voltando para Damasco.

"Estou lhe avisando, Ibn Yakub. Desta vez, não vou obedecer. Amjad, esse pobre idiota, está apavorado. Não ousa desobedecer a Saladino, embora eu tenha dito que posso muito bem cuidar de mim. O que você acha?

Ela estava furiosa e, seguindo o conselho de Ibn Maimun em situações similares, ofereci-lhe um copo de água. Ela bebeu devagar e ficou um pouco mais calma.

— Sultana, sinto-me honrado e privilegiado por ser seu amigo, mas peço que desta vez obedeça ao sultão. Ele já tem muitos problemas com que se preocupar e não pode ficar pensando em sua segurança. Sei que a senhora não consegue obedecer a ordens cegamente. Sua primeira reação é sempre resistir, mas sei o quanto ele a ama e como preza seus conselhos. Já o ouvi dizer várias vezes que a senhora é mais inteligente do que ele. Por uma vez, faça a vontade dele.

Ela sorriu.

— Então, você também é capaz de fingir. Que revelação. Estou pronta a aceitar seu conselho, desde que responda a uma pergunta. Aceita o trato?

Achei a proposta tão estranha que, sem pensar, concordei na hora.

— Quando Amjad caminhou com você pela noite do deserto, alguns dias atrás, contou quantas vezes deixou Halima montar nele?

Eu caíra numa grande armadilha: ela me pegou de surpresa e não precisei dizer uma só palavra. Minha cara culpada deu a resposta que ela queria.

— Amjad! — gritou ela.

— Seu puto nojento, deviam ter cortado tudo. Venha cá!

Achei que era uma boa hora para sair da tenda sem ser notado.

Na manhã seguinte, à luz rósea do amanhecer no deserto, cavalgamos rumo a Tell Tasil. Estávamos animados, mas o timbre esquisito do riso dos emires, um tanto alto e entusiasmado demais, mostrava o nervosismo deles. Chegamos logo a Tell Tasil. Geralmente, Saladino passava em revista as tropas, montado em seu cavalo, do alto de uma colina. Naquele dia, entretanto, quebrou a tradição. Mandou os soldados de infantaria empurrarem uma torre-de-sítio até onde ele estava e me convidou a subir nela, mas minha cara o fez rir e cancelar o convite. Saladino subiu com alAfdal, enquanto eu fiquei ao pé da enorme construção de madeira que costumava ser usada para escalar os muros das fortalezas inimigas.

Ao chegar ao topo, ele fez um sinal levantando o braço. Os trombeteiros tocaram uma mensagem e o som de um tambor deu início ao desfile. Precedidos pelos estandartes negros dos califas abássidas e pelo do sultão, Taki al-Din e Keuburi empunharam suas espadas e olharam firme ao passarem com as tropas frente à torre. Foi uma bela cena. Os dez mil cavaleiros seguidos pelos arqueiros montados em camelos e pela longa fila de soldados da infantaria.

Até os guerreiros curdos conseguiram se comportar à altura: passaram diante do sultão em perfeita formação. O desfile durou mais de uma hora e a areia se transformou numa nuvem espessa. Saladino parecia satisfeito quando desceu da torre. Pela primeira vez, ele estava muito emocionado com o que vira; as experiências anteriores pareciam ter dissipado sua habitual precaução.

— Com este exército, queira Alá, posso vencer qualquer um. Daqui a um mês, Ibn Yakub, sua sinagoga na cidade que você chama de Jerusalém e nossa mesquita na cidade que para nós será sempre al-Kadisia, estarão repletas outra vez. Não tenho a menor dúvida.

Naquela mesma sexta-feira, dia em que o sultão costumava iniciar uma jihad, marchamos em direção ao lago da Galiléia. Chegamos a al-Ukuvana pouco depois do anoitecer.

Lá, montamos o acampamento para passar a noite.


29

O início da batalha

Os observadores avançados do sultão tinham avisado que os cruzados estavam reunindo seus cavaleiros e soldados em Safuria. Alguns emires queriam expulsá-los para um pouco mais longe, mas Saladino discordou.

— Vamos deixá-los ali, por enquanto. Vocês atravessarão o rio e irão aguardá-los nas colinas, perto de Cafar Sebt. Eles virão correndo quando eu tomar Teveria.

Vão ficar furiosos, e a raiva nessa hora pode ser fatal. Quando vocês receberem a notícia de que Alá nos recompensou com uma grande vitória, virão para cá e postarão guardas perto de cada poço, oásis e rio. Depois, esperarão com suas lanças, alertas como as presas de um leão. Talei al-Din virá comigo. Keuburi comandará o exército aqui. Lembrem-se de que as terras dos cruzados são cheias de florestas e há sempre alguma sombra próxima. Alá vai mostrar a eles a força do sol. Deixem que assem dentro de suas armaduras até não conseguirem nem tocá-las, de tão quentes.

Os emires não conseguiram conter a admiração. Deram gritos de apoio e começaram a tecer elogios ao sultão.

— Aqueles que depositam suas esperanças em Sua Majestade jamais se decepcionam. O soberano é o único que protege todos os seus súditos contra os cruzados. Em Sua Majestade, nós...

O sultão calou-os com um gesto irritado. Logo se espalhou a notícia de que o sultão decidira tomar Teveria, cidade que os romanos chamavam de Tiberíades. Muitos voluntários se apresentaram para tomar a fortaleza dos cruzados. Situada no extremo sul do lago da Galiléia, no passado a cidade fora poupada em conseqüência de um acordo entre Saladino e o conde Raimundo de Trípoli. Agora que Raimundo estava apoiando as forças cruzadas em Safuria, estávamos livres para conquistá-la.

A ansiedade dos homens para lutar era motivada não tanto por ser uma guerra com uma causa maior — combater o erro e defender a verdade, arrasar os infiéis e fortalecer os fiéis — quanto pela esperança de se obter uma vitória fácil. Acima de tudo, os soldados pensavam que as riquezas daquele mundo prestes a desabar poderiam cair nas suas mãos. Saladino não aceitou voluntários; ele mesmo escolheu seus soldados mais experientes e treinados.

— Eles são o carvão ardente de nossa fé. Com eles, tomarei Teveria de assalto.

Enquanto ele marchava para conquistar a antiga fortaleza romana, Keuburi atravessou o rio. Algumas horas depois, montou o acampamento, dez quilômetros a leste de onde estavam os cruzados, sobre um pequeno platô, ao sul da aldeia chamada Hattin. Fiquei muito aborrecido quando o sultão mandou que eu ficasse com o exército principal. Só posso concluir agora que ele estava dispensando a bagagem inútil e querendo centrar sua força de ataque nos guerreiros mais experientes. Gostei da lógica, mas isso não serviu para diminuir meu desapontamento.

A decisão de acampar ali fora tomada dois dias antes, conforme os relatos enviados pelos observadores avançados. Eles informaram que a região tinha dois rios de água fresca e borbulhante, cercados de árvores frutíferas e oliveiras. Chegamos com o sol a pino. Homens e cavalos estavam igualmente exaustos por causa do calor.

O rosto do emir Keuburi transpirava e as gotas se misturavam com a espuma do suor de seu cavalo.

Assim que chegamos à margem do rio, Keuburi tirou toda a roupa, bebeu um pouco de água e mergulhou. Ficou de olhos fechados enquanto a água escorria por seu corpo.

Ficamos olhando, loucos para fazer o mesmo, mas, enquanto o sultão teria dado sinal para o exército todo entrar na água com ele, seu comandante favorito manteve seu privilégio. Depois de muito tempo — pelo menos, foi o que pareceu — ele mergulhou de novo, levantou-se rapidamente e saiu da água. Dois criados cobriram seu corpo com um pano branco e o secaram dos pés à cabeça. Ele entrou em sua tenda, que havia sido armada à sombra perfumada de laranjeiras.

Na hora em que ele sumiu de vista, ouviu-se um murmúrio de alegria. Não esperamos autorização. Entramos na água para aliviar as gargantas secas, deitar na corredeira e relaxar das agruras da viagem. Grande parte dos novos soldados ainda não chegara aos dezesseis ou dezessete anos. Era bom observar suas brincadeiras, o som dos risos se misturando com o reconfortante barulho da água. Os soldados mais experientes da jihad banhavam-se em silêncio, tentando, certamente, não pensar muito no que estava por vir. Muitos ainda não tinham trinta anos, mas já haviam presenciado horrores suficientes para o resto da vida, ou mais até. Alguns tinham visto os desamparados habitantes de cidades ou aldeias destruídas, expulsos de suas casas pelos cavaleiros cruzados. Haviam participado de batalhas que deixaram lembranças dos corpos de seus companheiros empilhados ao lado de covas coletivas. Tinham visto um amigo querido ser atingido por uma lança e ficar com o corpo despedaçado.

Muitos perderam irmãos, primos e tios. Outros viram filhos chorando pelos pais mortos e pais chorando por seus filhos.

Depois de me banhar e secar, sentei-me à sombra de um bosque de oliveiras e meu pensamento ficou vagando. Minha filha estava grávida. Teria um filho homem? Jamila devia estar segura na fortaleza, em Damasco. Estaria com raiva do eunuco Amjad? De que forma o estaria castigando? Como sempre, lembrei-me de Xadi e estávamos quase iniciando uma conversa imaginária quando um criado tossiu discretamente para se anunciar. Meu soberano queria que eu me apresentasse.

No início daquela tarde, antes de se separar de nós, Saladino concedera aos soldados um tempo para se prepararem para a viagem. Enquanto isso, bebeu água e comeu algumas tâmaras secas. Parecia pensativo e percebi também uma certa tristeza em seus olhos. Ele me havia dito em várias ocasiões que, depois da morte de Xadi, uma solidão costumava se agarrar à sua alma, mesmo quando estava na companhia de homens que estimulavam suas idéias. Eu sabia o que era aquilo.

— O que Alá nos reserva, Ibn Yakub? As batalhas não costumam ser vencidas só pela superioridade de homens ou armas. O que decide é a motivação, acreditar que se está engajado numa missão de Alá. Você acha que os soldados percebem a importância que as próximas semanas terão?

Assenti. — Comandante dos Vitoriosos, permita que eu diga o que Xadi diria. Ele sempre quis estar ao seu lado nesse dia, sabia que iria chegar e que Sua Majestade faria essa pergunta. E a resposta dele seria: "Conheço nossos soldados. Eles sabem muito bem o que significa reconquistar al-Kadisia. Estão prontos para morrer por esta causa." Ouvi os soldados conversando e Xadi não gostaria que eu mudasse uma palavra.

O sultão sorriu e cofiou a barba.

— Também tenho esta impressão. Vamos esperar que a crença deles na honradez de nossa causa seja suficiente. Vamos rezar para que as crueldades do destino e o infortúnio do acaso não se unam para ajudar os infiéis. Diga a Keuburi para garantir que os soldados sejam bem alimentados esta noite.

Não era preciso transmitir este recado para o emir Keuburi.

Ao contrário de seu comandante, ele adorava comer. Só de provar um prato, ele era capaz — ou, pelo menos, era o que se dizia de identificar as ervas e os condimentos usados para temperar a carne. Ele já dera ordens aos cozinheiros e, pouco antes do anoitecer, o cheiro de carne assada envolvia o acampamento, estimulando nosso apetite. Até o sultão, que todos sabiam detestar carne, notou o delicioso aroma.

Os cozinheiros tinham preparado um sikbaj, assado muito apreciado pelos barqueiros do Eufrates. Era doce e ácido, cozido com ervas frescas, imersas em vinagre e mel. O efeito era soporífero. Até os curdos, que apreciavam carne grelhada, tiveram de admitir que o prato daquela noite tinha sido celestial.

Na manhã seguinte, fomos despertados pelo toque de um tambor. O cansaço desaparecera e os soldados pareciam relaxados. Para grande alívio da maioria deles, Keuburi não exigiu que fizessem as orações matinais, pois queria ir ao encontro do sultão em Tiberíades. Não esperou que os suprimentos fossem carregados e deixou o acampamento.

Junto com ele foram mil cavaleiros e eu.

Estávamos cavalgando meia hora quando uma nuvem de areia surgiu à nossa frente, deixando todos inquietos. Keuburi mandou dois observadores correrem para verificar quantos eram os soldados e quais os estandartes dos cavaleiros. Se fossem cruzados, teríamos de combater e mandar outro observador avisar Saladino. Esperamos, mas os dois homens não voltaram. A areia continuava vindo na nossa direção.

Keuburi e três emires que cavalgavam ao lado dele trocaram idéias e dividiram nossas tropas em três partes. De repente, ouvimos gritos de 'Alá o Akbar" (Alá é grande). Todos sorriram e relaxaram. O grupo que se aproximava era de companheiros nossos. Nesse instante, os observadores voltaram, informando ao emir que Saladino conquistara Tiberíades e estava a caminho.

Keuburi deu um grito de alegria, e fomos ao encontro do conquistador da cidade que acabara de ser tomada. A areia baixou. Keuburi saltou de seu cavalo e correu para beijar a túnica do sultão. Saladino, emocionado com o gesto, desmontou e abraçou o jovem emir com muito carinho. Os dois foram envolvidos pelos cantos de alegria dos fiéis.

— Os cruzados agora virão retomar a cidade e pegarão estrada mais curta, que vai diretamente do Acre para a planície de Hattin. Hoje temos que rezar pedindo a virtude da paciência. Se fosse vivo, até meu tio Xirkuh, com sua enorme impaciência, concordaria comigo. Vamos voltar para o acampamento e encontrar um bom lugar de onde possamos observar Guy com seus templários e hospitalários. O céu está limpo, o sol brilha como uma fornalha e nós estamos controlando todas as vertentes de água.


30

A batalha de Hattin

Saladino sabia que o nobre Raimundo de Trípoli tentaria encontrar um plano alternativo, mais defensivo. A esposa dele estava na fortaleza da cidade capturada.

Raimundo deveria saber que Saladino teria de enfrentar os cruzados quando eles estivessem entrincheirados numa boa posição. O sultão dependia da pressa e da estupidez dos líderes cruzados. Ele acreditava que a desconfiança e o ódio cegos do conde de Trípoli por Guy e por Reinaldo de Châtillon faria os cruzados recusarem qualquer plano sugerido por ele. No terceiro dia de julho, uma sexta-feira, os observadores que acompanhavam os deslocamentos dos cruzados chegaram ao nosso acampamento muito excitados. Keuburi os acompanhou até a entrada da tenda do sultão, que estava descansando. Enquanto isso, eu ensinava a um de seus guardas os lances básicos do xadrez. Ali, sob os limoeiros, todos esperavam que o sultão terminasse seu repouso.

Os rostos dos dois observadores estavam riscados pela areia e seus olhos estavam fundos por causa da vigília. Pelo jeito deles, as notícias que traziam eram importantes e Taki al-Din ordenara que fossem transmitidas diretamente a Saladino. Por isso comentei que o sultão talvez gostasse de ser despertado e Keuburi entrou na tenda dele. Saladino saiu de peito nu, usando apenas um pano enrolado na cintura.

Os observadores deram o recado baixinho. As previsões de Saladino foram confirmadas, e ele, muito satisfeito, se permitiu demonstrar suas emoções. Deu gritos de alegria.

— Alá o Akbar! Eles abandonaram as fontes de água e estão nas garras de Satanás. Agora eu os apanho.

Trombetas e tambores alertaram emires e soldados. A velocidade com que nosso exército ficou de prontidão para a guerra demonstrou que os soldados haviam adquirido grande disciplina e alto moral nas semanas de treinamento em Ashtara. A tomada de Teveria teve um efeito febril nos homens que tinham ficado à espera. O sultão, usando sua armadura, o turbante verde e a espada na cintura, colocados por criados atentos, dava as últimas ordens a Taki al-Din e Keuburi. Os dois fizeram uma reverência e saíram, depois de beijar o rosto de Saladino.

Como animais espreitando a presa, os arqueiros do sultão faziam uma ronda na colina, ansiosos. A vontade que tinham de matar os deixava nervosos e impacientes.

Apesar de meus esforços para ficar calmo, não conseguia me controlar. Naquele dia, fiz a refeição matinal com o grande Imad al-Din, que se dedicava com afinco a escrever o relato da batalha prestes a ser iniciada. Quando ele saiu por um instante da tenda, li e copiei seu parágrafo de abertura: "O vasto mar de seu exército instalou-se em torno do lago. As tendas pareciam barcos ancorados e os soldados surgiam, onda após onda. Formou-se um outro céu de areia, no qual espadas e lanças com ponta de ferro brilhavam como estrelas." Ele escrevia com tal facilidade, que as palavras fluíam de sua pena mais depressa do que a tinta que lhes dava forma.

Pensei, de novo, no motivo que teria levado o sultão a preferir que eu e não ele escrevesse seu livro.

Ao meio-dia, vimos o inimigo pela primeira vez. O sol se refletia nas pesadas armaduras dos cavaleiros cruzados e o brilho atravessava a areia que flutuava no ar.

Quando os cruzados se aproximaram do alto da colina, o sultão deu o sinal. Taki al-Din e Keuburi fizeram uma manobra lateral com seus esquadrões e surpreenderam os cruzados. Cercaram o inimigo, afastaram seus soldados dos suprimentos de água e fecharam todas as saídas. O sultão continuou controlando a colina.

Fiquei ao lado de al-Afdal, perto da tenda de Saladino e longe da batalha. O sultão iria sair cavalgando para observar a batalha de diversos ângulos, ouvir os primeiros relatos e em seguida voltar para onde estava seu estandarte, ficando comigo e com al-Afdal. Depois, enviaria novas instruções. Seus olhos brilhavam como lamparinas e seu rosto estava despreocupado. Sentia-se muito satisfeito, mas mantinha-se sempre precavido. Naquele dia, pude observá-lo de perto.

Não era um comandante que gostasse de intervir, pois já havia planejado cuidadosamente a batalha e transmitido suas ordens. Durante o dia inteiro, os mensageiros chegavam a cavalo, rostos sujos de areia, trazendo informações e voltando com as ordens dele. Uma das mais importantes vitórias na história do islamismo foi surpreendentemente tranqüila.

Fiquei muito abalado ao ver soldados nossos mortos ou feridos. E achei estranho que nem o sultão, nem o emir — aliás, nem os próprios soldados — demonstrassem muito pesar pelos que tinham perdido a vida naquele dia. É esquisito como, depois de apenas um dia de batalha, fica difícil lembrar como era a vida antes e todas as suas aflições.

Quando os cavaleiros cruzados caíam mortos, a única emoção que eu sentia era de alívio. Por temperamento, não sou uma pessoa vingativa, mas quando vi a areia escurecer com o sangue dos cruzados, lembrei-me dos relatos do que eles tinham feito com meu povo em Jerusalém e outras cidades. Orei em silêncio, pedindo ao Poderoso para apressar a vitória de nosso sultão. Não que Saladino precisasse de minhas preces naquele dia. Suas estratégias tinham dado bom resultado e, embora nenhum de nós percebesse isso na hora, garantiram a ele a vitória em Hattin. Ao contrário dos cruzados, tivemos poucas baixas no primeiro dia. Podíamos ter ido atrás deles e terminado a tarefa ao anoitecer, mas al-Afdal fez sinal, da entrada da tenda do sultão, para deixar que eles recuassem. Não tinham para onde ir, todas as saídas estavam fechadas e as fontes de água estavam sob nosso controle.

As provisões dos cruzados foram tomadas e parte dela já estava sendo descarregada no nosso acampamento Os cruzados pensaram que, como ocorreu no passado, seus cavaleiros atacariam e romperiam o cerco para permitir a retirada do seu exército. Mas eles subestimaram o tamanho de nossas forças. Era impossível fazer o que queriam.

Naquela noite, enquanto os dois inimigos estavam acampados, nada indicava que a batalha tinha terminado. Nervoso, o sultão fez uma reunião com os emires e pediu os nomes dos combatentes de cada esquadrão. Demonstrou ter uma memória prodigiosa ao relacionar os nomes dos arqueiros que queria em ação no dia seguinte. Ele observara atentamente os novos arqueiros em Ashtara e anotara os nomes dos que mais acertavam no alvo. Eles receberam quatrocentas lanças. Saladino acompanhou a distribuição de armas e chamou pelo nome seu arqueiro favorito.

— Nizam al-Din, diga a seus homens que devem resistir à tentação de desperdiçar lanças tentando atingir os cavaleiros cruzados. Não conseguirão furar a armadura deles. O alvo deve ser o cavalo, fazendo boa pontaria para derrubá-lo. Um cavaleiro desmontado é como um arqueiro sem arco: inútil. Quando conseguir atingir os cavalos, Taki al-Din e nossos cavaleiros virão como uma onda e decapitarão esses infiéis enquanto eles estiverem tentando se equilibrar em pé. Está claro?

A resposta veio de todos os arqueiros, que aguçavam os ouvidos para captar todas as palavras do sultão.

— Alá é único e Maomé é seu profeta — gritaram.

— Concordo, mas não quero que tão cedo Alá receba vocês no céu. Esta guerra ainda não terminou — argumentos sultão.

Antes de a batalha recomeçar, o sultão deu instruções aos emires em relação a Raimundo de Trípoli.

— Ele é um bom homem, que já foi nosso amigo. Apesar disso, os adoradores de ícones o obrigaram a lutar contra nós, mas não tenho inimizade por ele. Não devem matá-lo. Quero-o vivo e, se não for possível, deixem que fuja. Iremos encontrá-lo outra vez.

Nossos homens iniciaram as escaramuças, testando as intenções do inimigo. O sultão, ladeado por Taki al-Din e Keuburi, esperou um pouco antes de mandar o exército entrar na batalha. Os cruzados revidaram, sofremos algumas baixas e Saladino fez sinal para outro grupo de mamelucos entrar na luta. Dessa vez, os cavaleiros cruzados recuaram. Imad al-Din, que estava comigo naquele dia, riu ao ver isso.

— Os leões foram transformados em ouriços — disse ele, mas um olhar do sultão fez com que se calasse. Xadi ensinara a Saladino que cantar vitória antes da hora trazia má sorte.

Saladino ordenou que suas duas alas começassem a operação de flanqueamento e seus arqueiros de confiança tomaram posição. A um sinal dele, as flechas foram atiradas e caíram sobre os cruzados, desmontando muitos cavaleiros. Outro sinal foi dado e tocaram fogo em tudo, piorando a situação dos cruzados. As chamas eram quase invisíveis à luz do dia. Os cavaleiros apavorados e suas montarias corriam de um lado para outro, sentindo que não podiam ficar parados, querendo fazer alguma coisa, mas não tinham saída. O cheiro de carne de homens e cavalos queimados começou a soprar em nossa direção, junto com a brisa do final da tarde. Os cavaleiros cruzados que conseguiram resistir ao ataque procuravam, desesperados, chegar aos rios, mas encontraram os arqueiros do sultão esperando por eles. Alguns caíram no chão de puro cansaço. Outros foram queimados vivos. O sultão recebia as notícias sem demonstrar qualquer emoção. Só uma vez comentou comigo que alguns dos melhores cavalos de raça da Arábia haviam morrido na batalha, o que era lastimável.

Ouvi com meus dois ouvidos os gritos desesperados dos soldados cruzados. Acossados pela sede e pela inclemência do sol, imploravam água, rezando ao Deus deles e depois a Alá, para desgosto dos cavaleiros das ordens dos templários e hospitalários.

Pude ver então um de seus comandantes, aquele aventureiro impuro e infantil, Reinaldo de Châtillon, sobre o qual já escrevi. Tinha uma horrível cicatriz no rosto, lembrança permanente da habilidade de um desconhecido espadachim nosso. Reinaldo montava um suado cavalo negro que relinchava, arrogante como seu cavaleiro. Ele estacou de repente. O barulho dos soldados começou a diminuir e um mensageiro chegou correndo para falar com seu comandante. Reinaldo desmontou e o mensageiro disse alguma coisa em seu ouvido. Depois, sumiu de vista. Então, diante de nós, os cruzados deixaram a formação e se dispersaram, sem rumo.

Eles se moviam instintivamente na direção do lago de Tiberíades, mas nossos soldados impediram a passagem. Centenas de soldados cruzados se renderam ao sultão, caindo de joelhos e gritando "Alá o Akbar". Converteram-se imediatamente à religião do profeta e receberam comida e água.

Milhares desses soldados subiram até o alto de uma colina, mostrando que estavam desertando. Não obedeceram às ordens para descer: estavam sedentos, não podiam lutar assim. Muitos morreram ao serem atirados contra as pedras por seus próprios companheiros. Alguns foram aprisionados por nós. Ficou evidente que os cruzados tinham perdido a batalha.

Saladino recebeu a notícia de vitória com o rosto impassível. Estava observando as tendas que ficavam em torno da cruz simbólica dos cruzados. Lá se instalavam o rei e seus guarda-costas e elas ficaram firmes durante a batalha.

Enquanto olhávamos, o jovem al-Afdal começou a pular e gritar: — Agora, vencemos. Mas teve que se calar quando uma investida dos cruzados fez nossos soldados recuarem, o que, pela primeira vez na batalha, causou uma ruga na testa do sultão.

— Cale a boca, menino! — disse ao filho.

— Só venceremos quando aquela tenda cair.

Ao apontar para a tenda do rei Guy, ela desmoronou. Vimos nossos soldados pegando a "verdadeira cruz". Então, Saladino abraçou o filho e o beijou na testa.

— Alá seja louvado! Agora vencemos, meu filho! Ele ordenou que os tambores dessem o toque de vitória e ouviram-se gritos de alegria nas colinas e planícies em volta da aldeia de Hattin. Taki al-Din e Keuburi chegaram a cavalo, carregando muitos estandartes cruzados, que jogaram aos pés do sultão. Desmontaram de seus cavalos, com os olhos cheios de lágrimas de alegria e alívio, e beijaram as mãos de Saladino, que fez os dois se levantarem. Pôs um braço no ombro de cada um e agradeceu pelo que conseguiram. Taki al-Din então falou: — Deixei que o conde Raimundo fugisse, ó Comandante dos Vitoriosos, como havia ordenado, embora meus arqueiros estivessem se esforçando para desmontá-lo.

— Fez bem, Taki al-Din. Foi a vez de Keuburi falar.

— Comandante dos Vitoriosos, prendemos quase todos os cavaleiros dos cruzados. Entre eles, o homem que chamam de rei Guy, o irmão dele, Humphrey de Toron, Joscelin de Courtenay e Reinaldo de Châtillon. Guy deseja falar com Sua Majestade.

O sultão ficou emocionado e concordou. — Monte minha tenda no centro do campo onde vencemos esta batalha. Coloque nossos estandartes na frente. Nessa tenda encontrarei Guy e quem mais ele queira. Imad al-Din! Quero o número exato de homens mortos e feridos.

O grande erudito balançou a cabeça afirmativamente. — Hoje não vou levar muito tempo para fazer isso, ó grande sultão. Em comparação com os cruzados, cujas cabeças cobrem o chão como uma plantação de melões, tivemos poucas vítimas. Perdemos o emir Anuar al-Din, que vi caindo quando os cruzados nos atacavam, pouco antes de sofrerem a derrota final.

— Foi um bom soldado. Lave seu corpo e mande-o para Damasco. Nenhum homem nosso deve ser enterrado em Hattin a menos que seja daqui.

— Quem diria que o sucesso de nossas estratégias militares transformaria essa insignificante aldeia de Hattin num nome que vai ressoar pela História? — perguntou Imad al-Din, pensativo.

— Alá decidiu a sorte dos cruzados — foi a modesta resposta do sultão.

Imad al-Din sorriu, mas, ao contrário do que costumava acontecer, ficou em silêncio.

De longe, vimos a tenda do sultão ser armada na planície lá embaixo. Ele esporeou seu cavalo e nosso grupo — al-Afdal e uma centena de guardas, com Imad al-Din e eu atrás — saiu a galope, passando sobre cadáveres que começavam a se decompor ao sol e sobre braços e pernas espalhados, em direção ao lugar onde a tenda fora armada.

Estávamos eufóricos e só conseguíamos pensar que naquela noite os animais selvagens fariam um banquete.

Imad al-Din, como principal secretário, e eu, o humilde cronista da vida de Saladino, sentamo-nos ao lado dele. O sultão mandou um guarda avisar Keuburi que estava pronto para receber o "rei de Jerusalém". E assim foi. Keuburi trouxe Guy, acompanhado de Reinaldo de Châtillon, e declarou, com uma formalidade que estranhei:

— Comandante dos Vitoriosos, aqui estão o autodenominado rei de Jerusalém e seu cavaleiro, Reinaldo de Châtillon. O terceiro homem é intérprete e acaba de decidir se converter. Aguardo suas ordens.

— Agradeço, emir Keuburi — respondeu o sultão.

— Dê um pouco de água ao rei.

Demonstrar hospitalidade a Guy era a primeira prova de que ele não seria decapitado na hora. Sedento, Guy bebeu um copo de água fresca. Passou o copo para Reinaldo, que também bebeu, mas isso fez o rosto do sultão ficar lívido de raiva. Olhou para o intérprete.

— Diga a esse rei — falou com uma voz cheia de desprezo e asco — que foi ele quem ofereceu água a esse desgraçado, e não eu.

Guy começou a tremer de medo e curvou a cabeça para mostrar que concordava com as palavras de Saladino. Depois, o sultão levantou-se e encarou os frios olhos azuis de Reinaldo.

— Você ousou cometer um sacrilégio contra nossa cidade santa de Meca. Depois, completou seus crimes atacando caravanas indefesas, e cometeu traição. Duas vezes jurei por Alá que mataria você com minhas próprias mãos. Chegou a hora de cumprir minha promessa.

Os olhos de Reinaldo ficaram alerta, mas ele não pediu clemência. O sultão desembainhou a espada e enfiou-a no coração do prisioneiro. — Que Alá mande sua alma para o inferno, Reinaldo de Châtillon.

Reinaldo caiu, mas ainda não estava morto. Os guardas do sultão puxaram seu corpo para fora e, com dois golpes de espada, arrancaram sua cabeça.

Dentro da tenda, as narinas se contraíram sentindo um cheiro horrível. O rei cruzado, assustado com o destino de seu cavaleiro, tinha sujado as calças.

— Não matamos reis, Guy de Jerusalém — avisou o sultão.

— Aquele homem era um animal e transgrediu todos os códigos de honra. Tinha de morrer, mas você pode viver.

Saia e vá se lavar. Vamos lhe dar roupas limpas. Estou mandando você e seus cavaleiros para serem exibidos ao povo de Damasco. Esta noite, montarei acampamento fora dos muros de al-Kadisia, e amanhã a cidade que seu povo um dia tomou à força será devolvida ao Povo do Livro. Vamos nos instalar no mesmo lugar onde você ficava. Mas, ao contrário de você, faremos justiça e evitaremos beber o elixir da vingança. Vamos reparar os danos que você causou a nossas mesquitas e às sinagogas dos judeus, e não profanaremos suas igrejas. No nosso governo, al-Kadisia voltará a prosperar. Keuburi, leve o prisioneiro, mas trate-o bem.

Assim, Guy e seus nobres mais destacados foram para Damasco Antes, puderam ver trezentos cavaleiros das duas ordens militares dos hospitalários e templários, a caminho da execução.

O sultão decretou que aqueles cavaleiros tinham de morrer pois, se os deixássemos vivos, voltariam a nos atacar. É a lógica fatal de um conflito que há muito tempo envenenava nosso mundo. Eu só conseguia pensar na hora em que entraríamos em Jerusalém.


31

O sultão pensa em Zubaida,
o rouxinol de Damasco

Saladino só permitiu uma modesta comemoração na noite da nossa grande vitória. Foram enviados mensageiros ao Cairo e a Bagdá, levando notícias da batalha que vencemos.

Antes de morrer, o conde cruzado disse que perdera quinze mil soldados. Imad al-Din confirmou o número e anotou que havia três mil nobres, cavaleiros e soldados presos.

A carta enviada ao irmão de Saladino no Cairo, al-Adil, também continha uma ordem: mandar imediatamente o exército do Egito para a Palestina, onde ele seria usado para completar a jihad.

O sultão estava feliz, mas, como sempre, não se excedia em otimismo. Disse a Taki al-Din que Hattin não era uma vitória decisiva. Ainda havia muito a fazer, e avisou que não devíamos superestimar nossas forças.

Preocupado com a possibilidade de que os cruzados se reunissem e atacassem fora dos muros de Jerusalém, Saladino fez um plano cuidadoso. Um grande ataque no litoral destruiria todas as tropas cruzadas. Depois, a Cidade Santa cairia no colo do sultão como uma ameixa madura cai de uma árvore balançada suavemente.

Os soldados, embriagados com a vitória, saudaram o sultão quando ele passou a cavalo pelas fileiras e contou seus novos planos. Sonhavam com o tesouro que os aguardava.

Só Imad al-Din e eu, exaustos depois dos acontecimentos dos últimos dias, estávamos ansiosos para que o sultão nos liberasse, Tínhamos planejado voltar a Damasco — nós nos juntaríamos ao enorme exército assim que ele marchasse rumo a Jerusalém. Mas o sultão não estava disposto a concordar com nosso desejo. Disse: — Vocês são dois homens sinceros, cultos, eloqüentes e generosos. Você, Ibn Yakub, é cordial, não tem arrogância nem falsa modéstia. Imad al-Din é prestativo e fácil de lidar. Por todas essas qualidades, preciso de ambos ao meu lado.

Ele queria que Imad al-Din escrevesse as cartas oficiais e eu observasse e anotasse todos os seus atos. Antes da batalha, Saladino prometera que toda noite ditaria suas impressões do dia. Mas, na prática, isso foi impossível, pois ele passava horas reunido com os emires, depois tomava banho e ia dormir.

Quatro dias depois da nossa vitória em Hattin, o exército do sultão estava diante dos muros de Acre, uma rica cidadela litorânea dominada pelos cruzados desde que eles vieram pela primeira vez poluir aquelas praias. O sultão tinha certeza de que Acre se renderia, mas deu a seus governantes apenas uma noite para pensar.

Das ameias da fortaleza, os cruzados viram o tamanho do nosso exército e mandaram representantes para negociar a rendição. Saladino não era um homem vingativo: ofereceu generosas condições, que foram aceitas na hora.

O sultão entrou na cidade, que parecia um lugar inabitado. Imad al-Din comentou que era sempre assim, quando novos conquistadores tomavam um lugar. Temendo represálias, o povo ficava em casa. Mas naquele dia podia haver uma outra razão: o sol estava inclemente e os que passaram pelos portões de Acre suavam como animais.

Era uma sexta-feira. O sultão, acompanhado do filho al-Afdal todo orgulhoso, cavalgou com os emires até a fortaleza. Quando desmontou, Saladino olhou para o céu e uniu as mãos numa prece.

Oramos em silêncio enquanto ele recitava os versos do Corão: Conferes poder a quem queres e exoneras a quem queres. Exaltas a quem queres E humilhas a quem queres. Tuas mãos contêm tudo de bom; Tens poder sobre todas as coisas.

Depois, eles tomaram banho e mudaram de roupa. E, cheios de alegria e livres da areia no corpo, comemoraram a tomada da cidade ofertando preces a Alá na antiga mesquita, que durante muito tempo foi usada pelos cruzados como igreja cristã.

Após as orações da sexta-feira, o sultão abraçou seus emires e voltou para a fortaleza. Ele havia convocado uma reunião do conselho para aquela tarde e al-Afdal foi enviado para confirmar que todos compareceriam. Saladino queria lembrar a seus subordinados que a guerra ainda não terminara. Sozinho comigo e com Imad al-Din, ditou uma carta para o califa, informando sobre a vitória em Acre. Depois, de repente, seu rosto mudou de expressão e se enterneceu.

— Sabem o que eu gostaria muito de fazer esta noite? Sorrimos, discretos, esperando que ele continuasse. — Gostaria de ouvir uma moça cantar, sentada no chão, de pernas cruzadas e tocando o alaúde de quatro cordas.

Imad al-Din riu.

— Será que o Comandante dos Vitoriosos lembrou-se dos dons e das qualidades de Zubaida?

O rosto do sultão empalideceu um pouco ao ouvir aquele nome, mas concordou.

— Ela ainda mora em Damasco. Não é mais jovem, mas eu soube que sua voz não mudou muito. Se o sultão permitir, farei uma sondagem na cidade para verificar...

— Não, Imad al-Din! — interrompeu o sultão.

— Foi um instante de fraqueza minha. Damasco é uma cidade de comerciantes e um rouxinol não conseguiria viver lá. Acha mesmo que pode haver outra Zubaida? Agora, vocês dois saiam e descansem. Peço que estejam presentes ao conselho e, numa concessão especial a Imad al-Din, não vou obrigá-lo a fazer a refeição comigo.

Desde os primeiros dias no Cairo, eu nunca tinha visto o sultão tão à vontade. Quando foi para Damasco, costumava ficar tenso e preocupado com os problemas de Estado.

Mais tarde, no banho, enquanto os criados esfregavam minhas costas e as do grande mestre da prosa, perguntei a Imad al-Din sobre Zubaida. Ele achou estranho que Xadi nunca tivesse falado nas paixões juvenis de Saladino. Enquanto os criados nos secavam na sala ao lado, ele fez um relato que, mais uma vez, mostrou sua espantosa memória.

Foi o amor de um rapaz de dezessseis anos por uma mulher de rara beleza. Você ri, Ibn Yakub, e sei o que está pensando: como é que eu posso apreciar a beleza de uma mulher. Acertei? Você ri outra vez, o que confirma minha intuição. Compreendo sua dúvida. É verdade que até o seu corpo desconjuntado é capaz de me excitar mais do que o corpo de qualquer mulher, mas Zubaida tinha algo estranho por causa de sua voz profunda e rouca que tocava a alma de todos que a ouviam cantar. É verdade, meu amigo, ela era única.

Não sei nada sobre as origens dela. Diziam que era filha de uma escrava que fora aprisionada numa batalha. Zubaida nunca falou de seu passado. Não conversava muito com ninguém, mas alFadil, que também se sentia atraído por ela, me disse uma vez que ela só falava na presença de, no máximo, duas pessoas. Este privilégio eu não tive.

Mas eu estava presente quando o jovem e arrogante Saladino a viu pela primeira vez, acompanhado do pai Ayub e do tio Xirkuh e, claro, do onipresente Xadi. Foi na casa de um comerciante, que estava louco para agradar a Ayub e por isso contratou Zubaida para uma apresentação. Foi a primeira vez que a ouvimos cantar e Saladino ficou seduzido na hora. Era quase possível ver seu coração em chamas, com uma paixão tão pura que podia incendiar tudo.

Zubaida ainda não tinha trinta anos. Era bonita, de cabelos negros e grandes olhos que brilhavam como duas lamparinas celestiais. Quando sorria, seus dentes fariam inveja às pérolas. Era pequena e, se é que posso fazer essa comparação, lembrava um lindo rapaz de Bagdá por quem fui apaixonado. Às vezes, seu olhar ficava distante, como se ela estivesse num transe, e seu rosto parecia uma lua envolta em nuvens. Sem querer sair do assunto, gostaria que ela fosse um rapaz.

Naquela noite, ela usava uma túnica de seda azul da cor do céu, toda bordada com rouxinóis dourados e tinha na cabeça um longo véu negro, debruado de vermelho.

Os braços estavam enfeitados com pulseiras de prata, mas ninguém notava esses detalhes quando ela começava a cantar. Era um som celestial, meu caro. Simplesmente celestial.

Tiveram de arrancar Saladino da sala à força para ir embora. Seu tio Xirkuh quis comprar Zubaida para ele, mas a própria idéia de que ela pudesse ser comprada era considerada pelo jovem uma ofensa ao amor que sentia. Ao sair junto com Xadi, o protetor de todas as horas, Saladino estava lívido, dava para ver o sangue pulsando em suas veias. Depois daquela noite, ele nunca perdia uma oportunidade de ouvi-la cantar. Mandou presentes e declarou seu amor. Mas ela apenas sorria com olhos tristes, acariciava a cabeça dele e dizia baixinho que mulheres como ela não serviam para a cama de jovens príncipes. Na mesma época, ele começou a escrever poemas, sentado sob a pereira do pátio da mansão de Ayub. Mandava para ela versos rimados, um dos quais mais tarde me chamou atenção: dizia que Zubaida era mais bonita que a lua cheia no céu porque sua beleza permanecia mesmo depois de a madrugada chegar. Como você pode imaginar, a qualidade dos poemas era medíocre, mas não há dúvida de que continham muito sentimento.

Zubaida ficou comovida com o amor do menino, mas tinha sua vida — que certamente não incluía Saladino. Ele não quis compreender o que ela estava tentando dizer, nem aceitou que estivesse sendo desprezado e rejeitado. Você não vai acreditar, Ibn Yakub, mas as coisas chegaram a tal ponto que esse precavido e sensato sultão ameaçou se matar se não se casasse com ela. O tio Xirkuh resolveu o problema levando-o para o Cairo. O resto você sabe: Saladino se transformou em sultão e Zubaida continuou uma cortesã.

Conhecendo a firmeza e a obstinação de Saladino, fiquei surpreso por ele deixar a cantora com tanta facilidade. Claro que lastimou separar-se dela, mas podia procurá-la se quisesse e até casar-se com ela mais tarde. Ele não se incomodava muito com o fato de Zubaida ser uma cortesã; afinal, todo mundo sabia que as cortesãs costumavam se transformar nas esposas mais fiéis.

Fiquei intrigado com o fato de Xadi jamais ter me contado nada. Nunca. O grande erudito podia estar exagerando uma história juvenil, ou então havia outra razão que não me contaram. Insisti um pouco mais com o Sultão da Memória e pedi que me contasse tudo.

Imad al-Din deu um suspiro.

— Sabe, meu amigo, ela era protegida do pai de Saladino. Quando o rapaz soube desse fato terrível por seu tio Xirkuh, alguma coisa morreu dentro dele. Tenho certeza de que, a partir daquele dia, ele passou a concentrar todas as suas energias na guerra. Quando um amante me rejeita, concentro-me nos livros que estou escrevendo. Já Saladino passou a se dedicar à luta de espadas e à equitação. Era como se, impedido de amar Zubaida, ele transferisse esse amor para os cavalos. Pode rir, Ibn Yakub, embora essa não tenha sido minha intenção.

"A recusa de Zubaida atingiu o coração dele como um punhal. Ele custou a se recuperar. Como você sabe, a conseqüência disso foi que ele se casou bem mais tarde que a maioria dos homens de sua posição. Quando os filhos começaram a chegar, passou a ser tão ativo sexualmente quanto seu cavalo favorito. Tinha uma concubina por noite e gerou mais filhos que o pai e o tio juntos.

"Apesar de ter uma enorme família, ninguém podia mencionar o nome de Zubaida na frente dele. A lembrança dela foi apagada e decerto foi por isso que Xadi nunca lhe contou. Sabia que era um assunto doloroso.

"Hoje eu me arrisquei um bocado, pois sabia que Saladino estava pensando nela. Queria festejar a vitória com ela, dizer: 'Olhe bem para este homem, Zubaida. Ele ultrapassou o pai.' Percebi isso e tomei a liberdade de falar no nome dela. E fiquei muito surpreso com a reação, pois podia ter me mandado sair da tenda. Acho que a dor finalmente foi aplacada. Veremos se vai mandar chamá-la quando voltar para Damasco.

Fiquei com uma vontade enorme de conhecer Zubaida, ouvir sua voz e vê-la tocar o alaúde de quatro cordas. Decidi encontrála quando voltasse a Damasco. Talvez ela pudesse acrescentar alguma coisa à história. Talvez o caso não tivesse muita importância para ela. Será que Saladino, tão cauteloso na guerra, também era cauteloso no amor? Eu não podia desprezar este assunto. Imad al-Din contoume tudo o que sabia, mas senti que havia mais. Estava decidido a descobrir a verdade e, se Zubaida não quisesse falar, eu perguntaria a Jamila. Era a única pessoa que podia ficar enchendo o sultão de perguntas até ele contar tudo o que ela queria saber. Xadi, o único que poderia ter me contado a história completa, traiu-me. Enquanto eu me preparava para assistir ao conselho de guerra, ele ficou na minha cabeça e tivemos uma discussão imaginária.


32

O último conselho de guerra

Apesar de Imad al-Din ter me dito que o sultão considerava o conselho de guerra a reunião mais importante daquela jihad, eu não estava muito convencido.

Achei que falou isso apenas para valorizar sua importância como conselheiro de confiança do sultão.

Mas, desta vez, eu estava enganado. Pensava que o conselho fosse uma mera formalidade, uma comemoração da vitória durante a qual o sultão anunciaria nossa partida para Jerusalém. às vezes, pensamos coisas das quais depois é melhor rir. Essa foi uma delas.

Quando entrei na sala apinhada de emires, senti tensão e incerteza no ar. Do fundo da sala, vi o sultão conversando com al-Afdal, Imad al-Din e Taki al-Din. Este último parecia estar falando, enquanto os demais concordavam enfaticamente. Os emires abriram caminho para que eu me aproximasse do sultão, mas como se fosse o bichinho de estimação do soberano. Não demonstraram simpatia ou consideração por mim, e até Keuburi parecia nervoso.

Só entendi por que os emires estavam zangados quando cheguei à plataforma onde o sultão estava sentado: Saladino e os membros mais próximos de sua família estavam terminando a divisão dos saques de guerra, o que era sempre um momento delicado após a conquista de uma cidade.

Os emires sabiam o que Saladino gostaria de fazer. Mandaria separar parte do dinheiro para a jihad, e o resto seria dividido igualmente entre todos os fiéis que tinham marchado sobre a cidade. Mas al-Afdal o lembrou de uma outra tradição respeitada pelos governantes durante uma guerra santa: deixar tudo para os filhos.

Sob muita pressão, Saladino deu a cidade e todas as suas construções de presente para al-Afdal. Taki al-Din recebeu a refinaria de açúcar e Imad al-Din, o grande homem de letras, um palacete. Al-Afdal já havia comunicado tudo isso aos emires, o que foi um erro. Se o próprio sultão desse a notícia, eles iriam reclamar, mas aceitariam. Imad al-Din não gostou da idéia e sugeriu que tudo fosse colocado na arca onde guardavam o dinheiro para custear as próximas guerras.

— Ó sultão, esteja certo de que os cruzados mandarão ajuda por mar e que chegarão mais cavaleiros — disse Imad al-Din.

— Precisaremos de mais dinheiro, se eles iniciarem uma terceira cruzada!

Saladino concordou, mas deu de ombros, resignado. Depois, levantou-se para falar com os emires e, por um instante, o silêncio só foi quebrado pelas cigarras do lado de fora.

— Sei que alguns de vocês não entendem por que estou adiando a marcha para al-Kadisia. Vou explicar: não quero que a cidade volte a ser dos infiéis. Mas seria um grande erro nós a conquistarmos amanhã — o que, com ajuda de Alá, poderíamos fazer sem muito problema, já que os cruzados perderam seus melhores cavaleiros em Hattin. Pensem um pouco e entenderão o que estou dizendo. Os cruzados continuam ocupando as cidades litorâneas e portos por onde chegarão, vindas de longe, as embarcações com mais cavaleiros, mais armas, mais cruzes, mais álcool. Eles se juntarão com os infiéis que continuam aqui e sitiarão al-Kadisia. É simples.

"Por isso, vamos dividir nosso exército e tomar todas as cidades do litoral. Vocês sabem que não gosto quando nosso exército e seus emires se separam para comandar esquadrões em diferentes batalhas. Mas é o que vamos fazer antes de chegar a al-Kadisia. Quero balançar a laranjeira com tanta força que todas as laranjas caiam, menos uma. Essa, vou colher como se fosse uma flor rara e linda. Vamos tirar os infiéis do litoral.

"Para mim, a cidade de Tiro é mais importante até do que al-Kadisia. Se controlarmos o porto dessa cidade, estaremos com os cruzados na coleira para sempre. Os cavaleiros que vierem pelo mar sentirão a força de nossas armas quando ainda estiverem dentro de suas embarcações. Querem saber meu plano? É simples, ouçam bem: Ascalon.

Jaffa. Saida. Beirute. Jubail. Tartus. Jabala. Latakia, Tiro e, então, al-Kadisia.

"Se os cruzados fossem nossos únicos inimigos, nós, com ajuda de Alá, já os teríamos expulsado dessas terras há anos. Mas temos mais três inimigos, além deles: o tempo, a distância e aqueles fiéis que preferem ficar em suas torres, acompanhando a guerra de longe. Como hienas na toca, eles têm muito medo de sair e ver os tigres se atracarem. Foram esses fiéis que causaram tanta vergonha, covardia e desgraça em nome do nosso profeta, que a paz esteja com ele. Deixem que saibam que venceremos e que eles serão amaldiçoados e desprezados por todos os fiéis. Alá nos ajudará a dominar todos eles.

Os emires ficaram surpresos com as palavras do sultão. Enquanto ele falava, sorriram, concordaram e, quando terminou, disseram em uníssono:

— Alá é único e Maomé é o seu profeta. Keuburi foi o primeiro a se dirigir a ele.

— Comandante dos Vitoriosos, tenho certeza de que falo em nome de todos os presentes ao dizer que realmente Alá o favorece. Eu também achava que não devíamos adiar o cerco a al-Kadisia, mas Sua Majestade convenceu-me de que eu estava errado e que a impaciência não é um bom guia numa guerra.

"Com sua permissão, gostaria de fazer uma pergunta. O sultão concordou em ouvi-la.

— A única forma de conquistarmos o litoral logo é dividindo nosso exército, mas...

— Também me preocupo com isso, Keuburi. Sempre fico temeroso quando mando minha família ou meus companheiros mais próximos fazerem viagens em que ficam entregues à própria sorte, mas desta vez não temos outra alternativa. É preciso ser rápido. Quero que nossos soldados ocupem as praias como formigas. Você, Keuburi, em quem deposito tanta confiança, vai limpar a estrada de Teveria até aqui em Acre: tome todas as cidades e aldeias, a começar por Nazaré, onde nasceu Isa. e invada o castelo al-Fula, dos cavaleiros templários. Hissam al-Din conquistará Sebaste e Nablus. Badr al-Din vai para o sul e tomará Haifa, Arsuf e Kaisaria. Taki al-Din marchará para Tibnin e Tiro, e eu tomarei Beirute e Saida. Imad al-Din trabalhou muito e vai fazer para vocês uma avaliação da resistência que deverão encontrar em cada uma dessas cidades. Acho que Nablus, onde os fiéis são em número maior que os cruzados, na proporção de cem para um, é a única cidade onde eles irão se render. Os cruzados têm conhecimento das nossas vitórias, e em outros lugares poderão querer prolongar sua agonia. Nesse caso, não tenham dúvida: ataquem sem piedade. Se aceitarem negociar uma rendição, sejam generosos, pois não é só a vida dos cruzados que está em risco. Que Alá os acompanhe. Partimos amanhã. No dia seguinte, vestido com seu manto de honra e usando um colar de pérolas brancas e negras, Saladino deixou a cidade com seu séquito. Estava com todos os emires, que vieram se despedir antes da partida. O sultão escolhera seus espadachins, lanceiros e arqueiros, homens que lutavam com ele há anos. Imad al-Din e eu cavalgamos ao lado de Saladino.

Quando passamos pelos portões de Acre, demos uma parada a fim de que o sultão trocasse as últimas palavras com os emires. Taki al-Din e Keuburi conduziram seus cavalos até ele, desmontaram e beijaram seu manto. O rosto do sultão se enterneceu ao ver aqueles dois jovens, que ele tinha visto crescer e nos quais confiava como em si mesmo. Sorriu e disse que podiam ir.

— Nosso próximo encontro será nos portões de al-Kadisia.

A seguir, al-Afdal, de armadura completa e garboso como costumam ser os jovens de dezessete anos, veio a galope num cavalo negro-carvão. Quase não conseguia conter o animal, o que divertiu Saladino, que precisou se controlar para não sorrir. Al-Afdal saltou do cavalo e beijou o manto do pai, num gesto exagerado.

— Que Alá oriente você para governar bem esta cidade, al-Afdal — disse o pai.

— Um dia nós dois faremos uma peregrinação a Meca, mas só depois de conquistarmos al-Kadisia. Agora volte para sua cidade e lembre que somos todos mortais e governamos apenas porque o povo assim permite. Evite a cobiça e jamais ostente riqueza. Os soberanos que fazem isso estão apenas demonstrando insegurança. Depositei minhas esperanças em você, al-Afdal, e a maior delas é que nunca me desapontará.

Com essas palavras, o sultão ergueu o braço direito e nosso exército saiu marchando de Acre.


33

Saladino é aclamado como grande conquistador,
mas, apesar do conselho de Imad al-Din,
resolve não conquistar Tiro

Cavalgamos tranqüilos. O sultão não queria cansar seus soldados inutilmente. As cidades e aldeias não ofereceram resistência e somaram-se às conquistas dele, que começavam a parecer uma guirlanda de pérolas. Em toda parte, o povo — fosse ele formado por fiéis ou cristãos, ou até pelos da minha fé — se juntava para olhá-lo com curiosidade. Muitas vezes, traziam crianças para serem abençoadas e Saladino tocava a cabecinha delas. Os fiéis se regozijavam e não houve olhares de repúdio.

Eu já notara que era muito comum o povo xingar os derrotados e cantar loas aos vitoriosos. É uma regra da guerra e a forma que o povo tem de se defender das incertezas.

Mas em cada cidade e aldeia há sempre os que demonstram uma alegria falsa. Juram fidelidade ao novo conquistador e aviltam o nome do antecessor, fazendo piadas sem graça e ofendendo a reputação dele, como cães vadios atraídos por carniça. Essas pessoas costumam ser as mesmas que não ofereceram qualquer resistência aos cruzados, mas, ao sentirem a derrota chegando, mudam de comportamento e se transformam em grandes vingadores.

Um homem desse tipo contou que tinha encurralado um cruzado perto de um riacho e, ao decapitá-lo, tingiu a água com sangue. Outro foi mais longe, com mais bazófias. Disse que, certa noite, pegou um cavaleiro cruzado violando uma donzela que, naturalmente, era uma fiel do profeta. O homem então enfiou sua espada no coração do cavaleiro, depois cortou os testículos dele e jogou-os para os cães.

Após ouvir algumas histórias assim, o sultão ordenou: quem contasse mentiras, seria açoitado em público. Todos ficaram sabendo que aquele sultão não era grande apreciador de fantasias e, com isso, o número de mentirosos diminuiu. Saladino se irritou porque alguns fanfarrões inúteis estavam contando vantagem à custa dos cadáveres de homens que, apesar de errados, pelo menos foram capazes de morrer lutando.

Quando nos aproximamos de Tiro, nosso exército sofreu uma dissensão interna. Imad al-Din achava que a cidade devia ser tomada imediatamente, apesar de suas fortificações e embora fôssemos encontrar resistência. Ele foi apoiado pela maioria dos emires. Eles disseram que, como o sultão decidira conquistar Tiro — que ele considerava mais importante até do que Jerusalém -, não tinha sentido adiar o ataque.

Lembro bem daquela tarde em que montamos acampamento no meio dos laranjais e das flores silvestres. Chego a sentir o perfume delas ainda agora, ao recordar. O céu estava cheio de nuvens e Saladino andava de um lado para outro no acampamento. Não falava com ninguém. De vez em quando, tirava uma laranja de uma árvore, descascava e comia. Ele ouviu o som de trovão ao longe e, quando olhou para cima, a chuva começou.

Saladino estava sozinho há mais de uma hora, enquanto os emires e Imad al-Din esperavam do lado de fora da tenda, mas, com a chuva, eles entraram para se abrigar.

O que estaria pensando? Ficou olhando para os emires por um bom tempo. Sabia o que pensavam. Depois, foi até a entrada da tenda e olhou para fora. Continuava chovendo.

Voltou e disse a eles que acabara de decidir não tomar Tiro. Marcharíamos para Saida e depois para Beirute. Tiro teria de esperar até voltarmos de Jerusalém.

Todos os rostos mostravam desapontamento, mas ninguém contestou a decisão do sultão. Até Imad al-Din, habituado a dizer o que pensava, ficou quieto. Mais tarde, ele me disse que sabia que aquela decisão era errada, mas não tinha patente militar necessária para desafiar o sultão. A decisão dele não tinha muita relação com as necessidades da jihad e foi um ato inusitado de puro sentimentalismo.

— Sei que eles acham que estou errado, Ibn Yakub — ele confessou naquela noite, pouco depois da refeição de ervilha cozida que tanto apreciava. — O fato é que meu velho amigo Raimundo de Trípoli está escondido na fortaleza de Tiro. Deixei que ele fugisse em Hattin, mas o orgulho não permitirá que ele se renda agora e, ao mesmo tempo, não quero matá-lo. O destino conspirou para nos tornar inimigos, embora eu ainda goste dele. A amizade é uma confiança sagrada. Meu pai e meu tio me ensinaram isso quando eu ainda era menino e nunca esqueci.

Minha cabeça diz que estou errado, mas meu coração não permitirá a quebra de confiança. Você entende? Ou será que, como Imad al-Din, ficou tão envolvido por nossas vitórias que a confiança e a amizade viraram palavras vazias e sem valor? É sempre a mesma coisa. Nós, que entramos na luta, compreendemos as limitações dela melhor do que os que ficam em suas tendas escrevendo.

Aproveitei a oportunidade que ele teve a gentileza de me proporcionar para dizer que não compartilhava as idéias de Imad Al-Din. Mas que não era só o grande erudito que estava preocupado. Os emires e alguns soldados também achavam errado não conquistar Tiro. Depois que falei isso, o sultão voltou a ficar pensativo e me dispensou pelo resto da noite. Soprava uma brisa suave quando saí da tenda. Tinha parado de chover. As nuvens sumiram e o céu formava um tapete de estrelas. De repente, todos os meus sentidos foram invadidos por uma mistura de perfume naquele bosque de laranjais. Flores sIlvestres. Jasmins. Laranjas. Ervas. Terra molhada. Cada lado exalava um cheiro diferente e a mistura deles era irresistível. Resolvi 338

dar uma volta, mas Imad al-Din não permitiu que eu desfrutasse da solidão. Seu criado estava me aguardando à entrada da tenda do sultão e disse que o amo esperava ansiosamente por mim. Diante de tal situação, que escolha tem um humilde escriba? Desisti do meu passeio e acompanhei o criado até a tenda de Imad al-Din, que estava de mau humor. As guerras e a vida dura de um acampamento não combinavam com aquele grande homem. Ele sentia falta dos seus confortos, dos seus rapazes, seu vinho, sua comida e sua Damasco. Resmungou quando cheguei.

— E então? Fiz de conta que não entendi a pergunta.

— Em nome de Alá, por que Saladino resolveu ignorar Tiro? É uma decisão muito insensata! Sorri e dei de ombros.

— Sou apenas o escriba. Ele não me conta tudo.

— Você é um fingido, mentiroso filho de uma... Pedi-lhe que não completasse a frase.

— Alguns anos atrás, no Cairo, quando o sultão resolveu contratar meus serviços, deixou claro que tudo que me dizia era confidencial. E também não permitiu que eu freqüentasse as reuniões do conselho de guerra, temendo que os cruzados me seqüestrassem e torturassem para saber quais eram os planos de guerra. Não faço a menor idéia das razões militares para ele não tomar Tiro.

Imad al-Din ficou de pé, levantou a perna direita e soltou um grande peido.

— Você ficou um pouco esperto demais. Não houve motivo militar para esse fato, o que houve foi sentimento. O amigo dele, Raimundo de Trípoli, está em Tiro. Todos nós sabemos. Se Raimundo fosse amante dele, eu ainda criticaria a decisão, mas compreenderia. Não há espaço para amizade no meio de uma jihad em que o futuro de nossa fé está em jogo. Saladino teve uma intuição errada. O grande Nur al-Din jamais cometeria tamanha insensatez!

— Talvez você esteja certo — respondi.

— Mas o fato é que o esforçado Nur al-Din, apesar de tanto desejar, não conseguiu tomar Jerusalém. Nosso sultão vai conseguir.

— Espero que sim — disse Imad al-Din — e rezo para que isso aconteça, embora não tenha certeza. Não existe certeza na História. Dois dias depois, Saida rendeu-se e marchamos sobre a cidade. Tiro foi deixada de lado naquele momento. O sultão estava satisfeito por não termos sofrido perdas humanas. Ele queria deixar um pequeno exército na cidade e na mesma tarde marchar em direção a Beirute. Mas os nobres o convenceram a conceder a honra de ficar na cidade, nem que fosse só por uma noite.

Saladino relutou em aceitar o convite — não gostava dessas formalidades inúteis -, mas Imad al-Din ficou horrorizado ao pensar na recusa. Fez uma reverência ao sultão e cochichou no ouvido dele: recusar o convite seria uma enorme descortesia, disse. Como em outros assuntos diplomáticos, o sultão aceitou o conselho e todos suspiraram de alívio. Os soldados estavam com calor e cansados, e Saida era uma bela cidade.

Saladino, seus emires, Imad al-Din e eu fomos descansar na fortaleza. De lá pudemos ver os soldados correndo para a praia, tirando as roupas e mergulhando nas ondas frias do mar. Os banhos da cidadela eram quentes e apertados.

Naquela noite, o sultão se retirou cedo, enquanto Imad alDin e eu fomos jantar, a convite dos notáveis locais. Foi um grande banquete. Eu nunca tinha comido tantas variedades de peixe desde que saíra do Cairo. Os peixes do Nilo, embora fossem assados de outra forma, eram parecidos com os do Cairo. Naquela noite em Saida, a diversidade dos frutos do mar foi exibida com todo o esplendor. E não era só a comida: os copos de vinho estavam sempre cheios, servidos por lindas moças que não tentavam disfarçar seus predicados. Claro que não causaram qualquer impressão em Imad al-Din, mas provocaram grande impacto nos três emires de Damasco, que logo estavam sonhando com as delícias que os aguardavam e com a noite que tinham pela frente. Eu também gostaria de ter desfrutado desses prazeres, mas o grande erudito não tinha tempo para esse tipo de frivolidade. Quando a refeição terminou, bebemos água morna com essência de flor de laranjeira e ele então se levantou, agradeceu aos nossos anfitriões e insistiu que eu o acompanhasse até seu aposento.

— Desculpe incomodá-lo esta noite, Ibn Yakub. Vi que seus olhos estavam cheios de desejo por aquelas moças que serviam, mas preciso conversar a respeito de algo importante. Na verdade, preciso de sua ajuda. Estou preocupado com Saladino.

Sempre achei que Imad al-Din me considerava pouco mais que um judeuzinho escriba, que conseguira se insinuar no fechado círculo do sultão. Antes, tratava-me com ironia ou complacência. Por que teria mudado tanto? Fiquei intrigado, mas também lisonjeado por me tratar como um igual.

— Por que está preocupado?

— A saúde dele. Ele sofre de cólicas e Alá pode tirá-lo de nós qualquer dia. Se adiar muito a tomada de al-Kadisia, a vitória pode nos escapar para sempre. Se ele morrer, a maioria dos emires vai se engalfinhar. Eles vão esquecer o inimigo que têm em comum. Essa é a maldição da minha religião, Ibn Yakub. É como se Alá, depois de nos guiar durante a vida do profeta, nos punisse agora por nossa cobiça. Eu já disse ao sultão — e al-Fadil me apoiou com firmeza — que, depois de Beirute, ele não pode mais perder tempo no litoral. Deve tomar al-Kadisia. Quero que você também o aconselhe a fazer isso.

Fiquei perplexo. Será que ele estava querendo dizer que era o terceiro homem na trindade?

— Não perca tempo com modéstia, Ibn Yakub. Sabemos q o sultão respeita sua opinião. Não nos desaponte.

Dois dias depois, estávamos acampados perto dos muros de Beirute, avistando o mar. Era um dia úmido e o sultão era influenciado pelo clima: estava irritadiço e impaciente. Imad al-Din também estava mal, sentia dores fortes na barriga e enjôo.

Marwan,

o médico do sultão, mandou que ele fizesse uma dieta. Foi tratado com infusões de ervas, refeições à base de vegetais e proibido de comer carne. Começou a melhorar, mas dois dias depois as dores voltaram. Marwan sugeriu ao sultão que o doente fosse enviado para Damasco, onde seus sintomas poderiam ser observados e tratados adequadamente. O médico era especialista em ferimentos.

Saladino, sempre mais preocupado com a saúde dos amigos do que com a própria, ordenou que um esquadrão levasse o secretário doente para Damasco. Imad al-Din reclamou sem muita convicção; no fundo, eu sabia que estava satisfeito. Quando nos despedimos, ele piscou para mim.

— Solidão, Ibn Yakub. Sinto necessidade de solidão. A jihad é necessária, mas meu trabalho fica prejudicado. Não é fácil avaliar o passado quando o presente parece tão incerto e os cruzados nos ameaçam com a morte. Minha ausência vai deixar o sultão aborrecido, faça o que puder para ajudar.

Assenti e falei qualquer coisa a respeito de encontrá-lo logo, recuperado, em Damasco. Mas, quando ele foi carregado numa liteira, a voz de Xadi ecoou na minha cabeça.

— Ele não gosta da vida no campo de batalha, é? Precisa de solidão, é? Acho estranho, pois esse comedor de bunda já teve tantos jovens soldados que perdi a conta.

A doença dele é só frescura.

O sultão acreditava que Beirute, como as cidades litorâneas, se renderia pacificamente, mas o mensageiro que enviamos voltou com más notícias. Os cruzados estavam decididos a lutar.

Saladino respirou fundo.

— Eu esperava não ver mais cadáveres até chegarmos às trincheiras de al-Kadisia. Por que aqueles idiotas querem combater, Ibn Yakub?

Imad al-Din ou al-Fadil teriam uma resposta pronta, mas eu estava tão acostumado a ouvir o que ele dizia e anotar, que só dava opinião quando ele pedia. O sultão franziu o cenho.

— Então? Você não tem nenhuma explicação?

Sorri sem graça e sacudi a cabeça, negando. Ele falou mais alto:

— Esses idiotas acham que, se oferecerem uma pequena resistência e perderem alguns cavaleiros, seus chefes vão recompensá-los. Querem mostrar que não se rendem facilmente. Escreva uma resposta minha, Ibn Yakub. Diga que, se não houver uma rendição imediata, vão enfrentar a ira de Alá. Vamos atacá-los e destruir a cidade.

E que por causa da impertinência deles, não vamos oferecer condições generosas na rendição.

Fiz uma reverência e fui para minha tenda. Lá, comecei a escrever a carta do sultão. Sentia-me honrado por estar substituindo Imad al-Din, mas fiquei sem saber se escrevia no estilo dele ou no meu. Imad al-Din estava tão habituado a escrever as cartas do sultão que Saladino as lia achando que ele mesmo escrevera tudo.

Às vezes, embora não fosse habitual, se envaidecia com os elogios que recebia por suas cartas. Só al-Adil, seu irmão caçula, ousava espezinhá-lo. Alguns meses antes, terminada a refeição vespertina, al-Adil perguntou a Imad al-Din o que ele achava da carta enviada naquele dia para Raimundo de Trípoli. O erudito pensou um pouco e respondeu:

— Não é das melhores que o sultão já escreveu. Saladino ficou surpreso quando al-Adil replicou:

— Ora, Imad al-Din, não se finja de modesto, não combina com você.

Passei a noite inteira redigindo os termos de rendição. O documento ficou bem curto e reescrevi várias vezes até ter certeza de que estava perfeito. O sultão o viu depois das orações matinais e franziu o cenho.

— Muito rebuscado. Muito pedante. Demora demais para chegar nas condições que temos a oferecer. Ponha o lacre e mande agora.

Fiquei magoado com a crítica, mas sabia que continha mais do que um grão de verdade. Percebi então que eu não devia ter tentado copiar o estilo de Imad al-Din.

Mas não pude pensar mais sobre o assunto, pois fui abruptamente interrompido por um mensageiro do inimigo. Nossos generosos termos de rendição foram recusados. Os nobres cruzados se recusavam a entregar Beirute. A raiva do sultão se espalhou pelo exército inteiro. Ele mandou que a cidade fosse atacada imediatamente e as torres-de-sítio começaram a ser empurradas para perto dos muros de Beirute. Eu cavalgava ao lado de Saladino, privilégio que me fora concedido pela primeira vez, mas não entendi bem o que passava pela cabeça dele naqueles momentos. Estava calado. Nossas estratégias tinham sido postas em prática e testadas. Os emires que chefiavam os esquadrões sabiam muito bem o que deveriam fazer. Mas, pela segunda vez, os defensores nos surpreenderam: não ficaram dentro da cidade, tentando repelir nosso avanço, mas abriram os portões e saíram para lutar na frente das fortificações.

Tinham medo de nossos sapadores e queriam impedir a ação deles a qualquer custo.

Saladino não precisou se envolver na batalha. Seus emires causaram pesadas perdas nas hostes inimigas, fazendo com que recuassem para trás dos muros, o que teve um efeito desastroso no moral do povo. Os habitantes pensaram que nós tínhamos invadido a cidade e correram apavorados para o porto e a segurança do mar. Na cidade, proliferavam os saques e a confusão geral.

Os líderes cruzados, até então divididos entre tigres, prontos a atacar, e cordeiros, prontos a se render, perceberam que os cordeiros eram mais espertos. Mandaram então seus mensageiros, aceitando os termos de rendição que eu redigira alguns dias antes. O sultão poderia castigá-los por nos fazer perder tempo, mas sorriu com benevolência e aceitou a cidade.

— Bem, Ibn Yakub, parece que os cruzados foram menos críticos do que eu ao avaliar seu documento.

Cavalgamos por mais uma cidade conquistada, mas o povo estava abatido e silencioso por causa das mortes inúteis e do prejuízo que sofreram — na verdade, por falha dos seus próprios líderes. Mas preferiram descarregar a culpa sobre nós.

Pelas ruas, ouvia-se a voz do arauto anunciando o desastre:

— O grande sultão Yusuf Saladino ibn Ayub entrou em nossa cidade. Eis os termos da rendição!

Naquela noite, depois de tomar banho e descansar, o sultão ficou a meu lado nas ameias da fortaleza, olhando as ondas que batiam nas pedras lá embaixo. O sol estava prestes a sumir. Saladino olhava para o horizonte. A majestade do mar o deixou calmo e imerso em pensamentos. Durante um tempo que pareceu bem longo, ficamos calados. Depois, ele virou-se para mim com um olhar estranho, distante, e disse:

— Sabe de uma coisa, Ibn Yakub? Se Alá permitir que conquistemos este litoral, e assim que retomarmos al-Kadisia, vou dividir meu império. Vou deixá-lo para meus filhos e irmãos. Depois, farei uma peregrinação a Meca e cumprirei minha obrigação com Alá.

"A seguir, vou me preparar para enfrentar esse mar turbulento cuja calma, Ibn Yakub, é ilusória. Vou até as terras onde vivem os cruzados, perseguir esses patifes até que todos eles se convertam a Alá e seu profeta. Farei isso, nem que precise morrer. Vale a pena, porque outros tomarão minha espada e terminarão a empreitada que não puder completar. Se não destruirmos os cruzados pela raiz, eles continuarão devorando nossa carne, como gafanhotos que escurecem o céu e acabam com nossas plantações.


34

Halima morre no Cairo.
Circulam boatos de que Jamila é a culpada

O sultão não descansou em Beirute. Assim que os cruzados foram desarmados, ele indicou um dos emires e algumas tropas escolhidas a dedo para controlar a cidade.

O resto foi para Damasco, tendo apenas as estrelas como guias. Chegamos à cidade ao amanhecer. Despedi-me de Saladino quando ele começou a subir a rampa da fortaleza e fui para casa.

Raquel não estava e, por um instante, meu coração ficou descompassado, lembrei-me daquele fatídico dia no Cairo. Mas nosso criado, esfregando os olhos para afastar o sono, me tranqüilizou: Raquel estava com nossa filha e só aguardava minha volta para dali a vários meses.

Mandei o criado à procura dela, enquanto me lavava no poço do pátio. Estava exausto depois de uma noite inteira de cavalgada. Embora já tivesse me acostumado com o cavalo, não conseguia ficar tão à vontade quanto o sultão. Minha bunda estava assada, e minhas pernas, rígidas e doloridas. A água ajudou a melhorar um pouco.

Entrei em casa e deitei-me na nossa cama.

Era meio-dia quando uma criança fazendo gu-gu bem ao lado do meu rosto me assustou. Sentei-me na cama e vi os rostos sorridentes de minha esposa e minha filha.

O menino era grande e saudável, mas chorou quando o peguei e beijei seu rõsto. Raquel o segurou enquanto eu abraçava minha filha e depois a mãe dela, que cochichou no meu ouvido:

— Esta criança é um prêmio que recebemos por anos de sofrimento e problemas. Você está vivo e bem, Deus seja louvado.

— Pode ser que as vitórias do sultão tenham me ajudado a ficar vivo.

Rimos, e ela disse:

— Mariam e eu achamos que seria ótimo visitar nossa casa no Cairo e passarmos o inverno lá este ano. O marido dela também vai, tem muitos amigos na cidade, embora não a conheça. Estávamos aguardando sua autorização.

— Claro que têm minha permissão. Gostaria muito de ir com vocês, mas partimos daqui a alguns dias para Jerusalém. O sultão não vai mais esperar. Quer rezar na mesquita de alAqsa antes do final do mês, e eu visitarei nossa antiga sinagoga. Depois, se ele me liberar por alguns meses, encontrarei vocês no Cairo.

Raquel sorriu. Ela achava que eu jamais iria querer pôr os pés naquela casa outra vez, por causa do que falei muitos anos antes e das lembranças infelizes que o quarto de teto abaulado me traria. Mas o ciúme tem limites. Se eu perdoara Raquel e até esquecera a traição de Ibn Maimun, como ainda poderia ter raiva da casa?

O erro não está nas pedras das paredes, mas em nós mesmos. Mais tarde, quando ficamos a sós, disse tudo isso para Raquel e muito mais. A serenidade tinha voltado.

Ficamos abraçados e sentimos que o passado fora finalmente enterrado.

Más notícias me aguardavam na fortaleza, naquela mesma tarde. Nervoso, o eunuco Amjad estava à minha espera e correu para me abraçar com muito carinho. Quando se afastou de mim foi que notei meu rosto molhado pelas lágrimas dele.

— Halima morreu no Cairo alguns dias atrás. O sultão ficou um pouco preocupado e mandou Ibn Maimun investigar e mandar um relatório até o fim da semana.

A notícia me deixou perplexo. Desde que a conheci, Halima não tinha ficado doente um só dia. O que poderia ter sido? Passaram imagens dela pela minha cabeça, uma atrás da outra. Vi seu rosto pálido e inerte sob a mortalha. Chorei.

— Como Jamila reagiu à notícia? Amjad continuou calado. Repeti a pergunta.

— Ela me olhou firme e continuou muito calma. Muito calma. Seu rosto não demonstrou nenhuma emoção. Nenhuma emoção. Talvez estivesse usando uma máscara para esconder seu sofrimento. Talvez.

Não consegui me concentrar depois da notícia do fim repentino de Halima. Fiquei numa espécie de torpor durante o conselho de guerra. A voz suave do sultão, os apartes irados de Imad al-Din e alFadil, o nervosismo e a expectativa de todos os emires pareciam uma espécie de som de fundo. Eu queria encontrar logo Jamila, demonstrar meu pesar, lembrar de Halima, chorar e saber o que sentiu com a morte de uma pessoa que foi tão importante para ela e vice-versa.

Pela primeira vez desde que trabalhava para o sultão, não cumpri as obrigações das quais o gentil soberano me incumbira. Leitor: não anotei o que se passou naquela reunião crucial, que decidiu o destino de Jerusalém. As páginas de meu caderno ficaram em branco.

Mais tarde, Imad al-Din ajudou-me a reconstruir a reunião, mas, como sempre, ele se atribuiu o papel mais importante e disse que o sultão só tomou uma decisão depois que ele se pronunciou. Sei muito bem que não foi assim, por isso dispensei o testemunho do grande erudito, já que só defendia interesses próprios, um ato indigno dele. Nas semanas seguintes, ficou claro que todos os que participaram do conselho foram unânimes naquela noite fatídica: iam tomar Jerusalém.

Minha cabeça continuava atormentada pela morte ocorrida no Cairo. Pedi para encontrar Jamila, mas só dois dias depois ela concordou. Amjad, triste e silencioso como nunca, veio me buscar em casa.

Jamila estava me aguardando na antecâmara habitual, onde eu tinha encontrado Halima muitas vezes. Por um instante, vi o rosto de Jamila misturado com o da mulher morta, mas, para afastar essa imagem, apertei minhas mãos com tanta força que doeu. Voltei a mim. Olhei para ela e lembrei-me da descrição que Amjad fez: seu rosto não tinha qualquer traço de tristeza.

— Você pediu este encontro, Ibn Yakub. Minha única resposta foi chorar. Achei que ela ficou insegura, mas logo se recompôs e me olhou de um jeito estranho.

— Sultana, vim manifestar minha tristeza pela morte dela. Sei que a separação de vocês duas foi dolorosa, mas...

Ela me interrompeu com um olhar zangado.

— Nossa separação foi sem problemas. Ela queria que ficássemos amigas. Isso era impossível, mas concordamos em afastar qualquer ódio ou amargura. Acha que sou fria e insensível?

Respirei fundo.

— Às vezes, a tristeza é inútil, Ibn Yakub. A morte dela é dolorosa, seu rosto surge e some da minha frente a toda hora. O coração pode virar uma pedra. Vou dizer algo que vai surpreendêlo, Ibn Yakub. A notícia da morte dela me afetou de uma forma estranha, que me ajudou a descobrir minha felicidade interior.

Achei que isso o chocaria, mas é a verdade. Estou tranqüila comigo mesma outra vez. Uma página sofrida de minha vida agora está definitivamente virada. Só restam as lembranças: algumas são felizes, mas a maioria é triste. Assim, meu amigo, posso escolher o que lembrar, depende só de mim, do que eu preferir, e isso, posso lhe garantir, é um grande alívio. Desde que nos separamos, eu não conseguia escrever. Agora voltei a escrever e um dia deixarei que leia meus manuscritos.

A dureza dela me assustou. Como poderia estar tão indiferente quanto ao destino de Halima? Ela percebeu essa pergunta no meu rosto.

— Sei o que está pensando, Ibn Yakub. Acha que sou uma criatura sem coração, uma mulher cruel. Esquece que, para mim, Halima morreu há muito tempo. Chorei muito por ela e a dor da separação durou muitos meses. Eu não conseguia dormir. Tudo isso acabou há algum tempo. Quando o eunuco Amjad veio, chorando, contar-me que ela havia morrido, não senti nada. Você compreende isso?

Ela me olhou e sorriu.

— Compreendo, sultana, mas para mim a realidade é que ela não existe mais. Nunca mais ouviremos seu riso, o que, certamente, é diferente da morte imposta ao seu sentimento pela razão.

Ela ficou irritada.

— Não! imposta à minha razão pelo sentimento. As últimas notícias que soube dela no Cairo diziam que tinha outra vez abandonado os braços dos homens. Encontrou uma mulher mais jovem, de idade mais próxima da dela que da minha, como escreveram meus informantes, e que as duas estavam sempre juntas.

Senti uma onda de ciúme e raiva e foi só, mais nada. Para mim, ela estava acabada para sempre. Morta. Soube que foi envenenada pelo último amante, um pobre mameluco iludido. Ele vai sofrer mais ainda se Saladino descobrir a verdade...

Chegou-se à conclusão de que a informação de Jamila era verdadeira. Ibn Maimun fez uma autópsia e constatou que havia uma alta dose de veneno no corpo de Halima.

Todos culparam o mameluco, que jurou inocência, mas foi executado por ordem do cádi. Só o eunuco Amjad não estava convencido da história.

— Ela foi envenenada, Ibn Yakub. A pobre mulher foi morta, mas quem deu a ordem? Nunca saberemos a verdade. Aquele pobre mameluco era como eu, foi usado por ela para satisfazer suas necessidades físicas. Só isso. Se ela tivesse sido envenenada em Damasco, eu poderia ter sido executado! Então, sinto uma certa pena daquele pobre homem. No fundo do coração, sinto que Jamila mandou o veneno junto com a ordem.

— Basta dessa conversa inútil, Amjad! Seus pensamentos são piores do que o veneno que matou Halima. Tire-o de seu coração maldoso, antes de morrer com esse veneno.

O eunuco empalideceu.

— Não contei minhas suspeitas para ninguém. Precisava falar com o senhor, mas seu conselho é sensato. Se eu não afastar esses pensamentos, eles vão acabar comigo. Pode ter certeza, Ibn Yakub, vou tirá-los da cabeça. Nenhuma gota de tormento contamina meu sangue.

Por mais que eu tentasse, não conseguia afastar da cabeça as palavras de Amjad. Aquele eunuco amargurado tinha colocado uma semente venenosa na minha cabeça também.

Seria verdade o que ele disse? Jamila poderia ter ordenado o envenenamento de sua ex-amante? Só de pensar, achava incrível. Depois de algumas horas de agonia, cheguei à conclusão de que Jamila era inocente. A tristeza envenenara Amjad completamente.

Meus pensamentos foram interrompidos pela voz familiar de Imad al-Din.

— Parece preocupado, escriba. Gostaria que me acompanhasse esta noite na visita à casa do mais puro rouxinol de Damasco. Lembra quem é? Zubaida. A mulher que conquistou o coração de Saladino quando ele era apenas um menino, mas que se recusou a oferecer seu corpo.

— Como poderia esquecê-la? — respondi.

— Você me pegou num momento inoportuno. Eu estava lastimando a morte trágica da sultana Halima.

O rosto de Imad al-Din ficou sério. — Boatos desagradáveis flutuam sobre o Nilo. Al-Fadil contoume que o mameluco executado pelo crime insistiu em falar com ele a sós. Quando foi recebido, o condenado sussurrou no ouvido de alFadil: "Eu dei o veneno, mas ele me foi enviado pela sultana Jamila, que prometeu cuidar da minha família." Naturalmente, al-Fadil não contou ao sultão nem a ninguém, só a mim. Só estou contando a você porque era amigo das duas.

"O amor é capaz de nos enlouquecer. O ciúme é o seu filho mais cruel. O que Jamila fez é imperdoável, impensável e, mesmo assim, para ser honesto, a notícia não me surpreende. Para entender Jamila, é preciso ter sofrido a perda de um amor. Mas você é uma pessoa de cabeça fria, Ibn Yakub. Nunca vai entender. Venha comigo ouvir o rouxinol cantar. Zubaida fará com que esqueça tudo.

Concordei em acompanhá-lo, mas estava uma noite muito quente e por isso disse a ele que iria até minha casa para tomar banho e mudar de roupa. Como Zubaida morava perto de mim, ele concordou em passar lá uma hora depois. O frescor da noite ainda não chegara e a falta de brisa fazia com que eu transpirasse muito no caminho para casa. Contei a Raquel a história da morte de Halima, sem citar o nome da nobre envenenadora. Tirei a roupa no pátio e despejei sobre meu corpo tinas de água fresca do poço. Raquel me trouxe uma toalha.

Eu estava aturdido e a única pessoa que queria ver naquela noite era Jamila. Queria comparar as acusações de Amjad, al-Fadil e Imad al-Din com o que ela diria. Queria repetir as acusações bem alto e observar a reação dela. Queria a verdade, mas não queria perder a amizade de Jamila. Queria que ela cuspisse no rosto dos que espalharam calúnias tão maldosas. Queria que jurasse inocência. Depois que me vesti, escrevi um bilhete e mandei para ela, pedindo uma audiência no dia seguinte.

O criado de Imad al-Din bateu à porta. Ofereci ao grande erudito um pouco de chá, mas ele recusou, apontando para o lado esquerdo do rosto. Quando o encontrei antes, não notei aquele inchaço. Imad al-Din parecia estar sentindo dores.

— É um dente estragado, Ibn Yakub — resmungou ele.

— Mastiguei dentes de alho para diminuir a dor, mas o dente vai ter de ser arrancado amanhã. Na verdade, a única vontade que tenho esta noite é de ficar na solidão do meu quarto. Mas Zubaida não canta há anos, será um acontecimento que você jamais esquecerá, algo que poderá contar aos seus netos.

O arauto da cidade foi na nossa frente pelas ruas estreitas abrindo caminho em meio a grupos de famílias e crianças barulhentas que buscavam um pouco de ar fresco.

— Abram caminho, abram caminho para o grande Imad alDin, conselheiro do sultão Yusuf Saladino ibn Ayub.

Vimos rostos conhecidos do lado de fora da casa de Zubaida. Os guardas pessoais do sultão estavam de serviço, desembainharam as espadas quando nos aproximamos, mas abaixaram-nas quando nos reconheceram. O mudo núbio, que estava a serviço do sultão há tanto tempo quanto eu, sorriu quando chegamos e apressou-se a abrir a porta que dava para o pátio. O evento era ao ar livre. O pátio estava iluminado por lamparinas; tapetes e almofadas cobriam o chão. Não havia mais de quinze pessoas presentes — entre elas, para meu espanto, a sultana Jamila. Ela deu um sorriso simpático. Meu coração disparou.

Fizemos uma reverência para o sultão, que sorriu e fez um sinal para sentarmos ao seu lado. Apresentou-nos a Zubaida. Ela estava com quase setenta anos, mas seu rosto irradiava uma atração que me intrigou. Seu cabelo branco brilhava no escuro e iluminava seu rosto. O cabelo não estava pintado com hena para disfarçar a idade. Sua pele era escura como a de Jamila, que eu estava tentando esquecer naquela noite e cuja presença deixou-me atordoado.

Zubaida tinha olhos grandes e vivos, sem qualquer sombra de tristeza ou amargura. Era evidente que ela teve uma vida boa, mas não teria sofrido? Será que existe vida sem sofrimento? Ela viu que eu a observava e, de repente, sorriu. Seus dentes, para meu assombro, eram brancos como a neve. Por Alá, como ela conseguiu conservar dentes tão lindos?

Foi como se ela tivesse ouvido minha pergunta:

— Saladino me falou de você, Ibn Yakub.

— A voz dela era rouca e agradável.

— Sei o que está pensando. Compreenda que minha alma está calma e tranqüila. Não desejo mais nada, nem me arrependo de nada. Espero que a morte, quando vier, seja rápida como a espada de Saladino quando atinge um cruzado.

— Umm, Zubaida. Viemos para ouvi-la cantar — disse o sultão, com uma voz mais suave que a normal.

Havia dois músicos presentes, aguardando pacientemente, dedilhando seus alaúdes. Ela olhou para eles e pôs o dedo sobre os lábios: o gesto indicava que naquela noite queria cantar sem acompanhamento. Houve uma agitação de expectativa e então ela cantou. Ouvir sua voz era como entrar no céu. Realmente, inimitável. Nunca ouvira nada parecido. A música era de autoria dela e, embora fosse simples e curta, durou uma hora, pois cada verso era repetido várias vezes, com entonações diferentes.

 

CANÇÃO DE AMOR DE ZUBAIDA

Numa noite cálida, tomávamos vinho

E uma brisa suave acariciou meu rosto.

Ele me levou até o balcão e mostrou a lua

E tentou me dizer que gostava de outra.

Ri.

Chorei.

Não acreditei no que ele disse.

 

— Você é bobo — falei , é jovem, confunde a realidade e os sonhos. Ele sorriu e me deixou. Uma só lágrima salgada molhou meu rosto e eu sabia Que era eu que estava confusa. Eu, sim. Eu. Eu. Eu.

Naquela noite, Zubaida só cantou essa música. Os músicos tocaram durante o jantar, que tinha sido preparado com esmero pela cozinha da casa de Zubaida. O sultão não bebeu, mas a dor de dente de Imad al-Din não pareceu impedi-lo de provar quatro tipos diferentes de carne que nos ofereceram.

Após a refeição, enquanto a música continuava, Jamila preparou-se para ir embora. Ela me pediu que eu acompanhasse a 354

liteira na qual seria levada para a fortaleza. O sultão concordou, e me despedi da grande cantora, que me convidou para visitá-la a fim de que pudesse me contar sua história.

Jamila não esperou que eu falasse. — Quer dizer que você está sabendo dos boatos?

— Têm fundamento, sultana?

— Você sabe muito bem que meu amor é tão puro quanto meu ódio. O ciúme é um veneno que precisa ser extirpado de nossas cabeças, deixando espaço para temas mais sublimes. É só o que tenho a dizer sobre o assunto.

Fui andando em silêncio, enquanto os liteireiros acertavam o passo para facilitar a subida até a fortaleza. Ela me dispensou com uma risada cruel.

— Pode voltar para sua esposa, Ibn Yakub. Aproveite os abraços dela, pois amanhã você vai para al-Kadisia e sabe-se lá o que Alá reserva para todos vocês?

Raquel, que tinha o temperamento mais tranqüilo do mundo, parecia nervosa e tensa quando cheguei em casa.

— Os cruzados farão o sultão pagar caro antes de entregarem Jerusalém — disse.

— Temo que você faça parte desse preço. Sinto um pressentimento terrível de que nunca mais vou vê-lo.

Acalmei-a. Disse que Saladino sempre me deixava afastado de qualquer perigo. Zombei de suas premonições e tentei fazer graça, mas foi inútil. Parecia que nada era capaz de afastar as preocupações dela. Queria amá-la, mas ela estava evasiva e ficamos abraçados, sem dizer nada, até que adormeci.

Um criado da fortaleza acordou-me pouco antes do amanhecer. Raquel não conseguira dormir. Sentou-se na cama e ficou vendo eu me aprontar. Depois, quando fui me despedir dela, quase me sufocou num abraço apertado, não querendo me largar. Aos poucos, soltei suas mãos e beijei seus olhos.

— Depois da vitória em Jerusalém, irei à nossa casa no Cairo para comemorarmos juntos — cochichei no ouvido dela.

— Vou escrever sempre para você.

Ela não respondeu.


35

Nos arredores de Jerusalém,
escrevo uma carta entusiasmada
para minha boa esposa no Cairo

Minha Esposa Muito Querida,

É estranho pensar que você está novamente naquela antiga casa tão cheia de lembranças — na maioria, felizes. Estou enviando esta carta pelo mensageiro que leva os despachos de al-Adil para o palácio, assim você vai recebê-la mais depressa do que se eu usasse as caravanas.

Há quase um mês estou longe, e esta é a primeira oportunidade que tenho de sentar e escrever para você. Estamos morando em tendas, de onde avistamos os muros de Jerusalém. É uma sensação esquisita estar tão perto da Cidade Santa. O sultão apresentou seus termos de rendição aos cristãos, mas alguns desses idiotas querem morrer segurando suas malditas cruzes.

Agora você já deve ter sabido por nossos amigos no palácio por que as coisas estão tão demoradas. Quando saímos de Damasco, o sultão foi acometido de uma de suas habituais crises de indecisão. Jerusalém poderia esperar até ele limpar o litoral, e mais uma vez ele tentou tomar Tiro, mas houve muita resistência. Os emires estavam agora dispostos a tomar a cidade sem se importar com as baixas que poderíamos sofrer. Achavam que a cidade tinha-se transformado num símbolo da resistência dos cruzados e devia ser apagada do mapa. Saladino estava aborrecido porque já perdera muito tempo ali. Decidiu ir embora e sitiamos Ascalon.

Os cruzados resistiram durante quase quinze dias, mas o sultão mandou buscar o rei Guy em Damasco e ofereceu a liberdade dele em troca da rendição. Guy tinha permissão deles para negociar e concordou prontamente com as condições impostas pelo sultão. Não perdemos muitos homens. O dia em que invadimos a cidade esfriou de repente quando o sol se escondeu completamente. Naquele mesmo dia, uma delegação de nobres de Jerusalém chegou a Ascalon. O sultão ofereceu boas condições para a rendição da Cidade Santa e eles prometeram recomendálas a seus cavaleiros. Mas, quando voltaram, o patriarca os criticou duramente: a Igreja não queria ceder sem resistência a cidade onde Jesus tinha sido crucificado.

O sultão não se abateu com a notícia. Estava animado outra vez, apesar dos obstáculos que enfrentou em Tiro. Em parte, isso se deve à presença de al-Adil, que continuou sendo seu irmão preferido desde que ambos eram crianças. Quanto ao resto, Saladino está convencido de que tomará Jerusalém antes da mudança da lua, o que significa que tem exatos dezessete dias.

Ao saber que o patriarca e os cavaleiros cruzados, como Balian de Ibelin, estavam se preparando para pegar em armas contra ele, o sultão ordenou que todos os soldados da região marchassem com ele e armassem suas tendas perto dos muros de Jerusalém. Com isso, queria fazer uma demonstração de força, mas estava preparado para o embate, se não houvesse outra saída. Ontem, transferimos nossas tendas para o lado oriental da cidade. Os cruzados pensaram que estávamos indo embora e, das ameias da fortaleza, fizeram gestos irônicos de despedida. Al-Adil achou muita graça. Mas ficamos com nossas torres-de-sítio a postos, pouco acima do vale que eles chamam de Quidron. Ali, os muros pareciam mais vulneráveis.

Do lugar de onde escrevo estas linhas, posso ver os estandartes do sultão flutuando à brisa do Monte das Oliveiras. Nossos homens trabalharam a noite inteira para garantir que a fortaleza fosse atingida.

Milhares de soldados nossos agora impedem os cruzados de passar pelos dois portões mais importantes da cidade. Nossos arqueiros estão postados logo abaixo das ameias, aguardando ordens. O cádi al-Fadil descreveu as lanças deles como "palitos nos dentes das ameias". É uma descrição adequada, endossada até por Imad al-Din que, aliás, esperava que al-Fadil ficasse no Cairo para que ele pudesse ser o único cronista sério da vitória.

Como você sabe, minha queridíssima Raquel, eles sequer se dignam a considerar seu marido como um rival. Para eles, sou apenas um escrevinhador que atraiu a atenção do sultão na hora certa. É o que Imad al-Din demonstra em público. Mas, quando estamos a sós, costuma me contar histórias, esperando que sejam atribuídas a ele e garantam sua inclusão no Grande livro de Saladino. O cádi al-Fadil é mais sutil, mais cuidadoso, preocupa-se mais com o livro que está escrevendo. Não me leva muito a sério, embora esteja sempre pronto a ajudar quando preciso conferir algum fato com ele.

Ontem, o sultão recebeu a visita de Balian de Ibelin, que foi poupado da morte em Hattin e jurou não lutar mais contra o sultão pelo resto da vida. Ele contou que seu patriarca perdoou esse juramento.

— O seu Deus vai perdoá-lo com a mesma facilidade? — perguntou o sultão.

Balian não respondeu e evitou olhar para o sultão. Tentou então ameaçar Saladino: se nossos soldados não recuassem, os cruzados matariam suas mulheres e filhos, depois iriam incendiar a mesquita de al-Aqsa antes de derrubar a pedra sagrada. E matariam também os milhares de fiéis da cidade e marchariam para a planície com as espadas desembainhadas e morreriam lutando contra os infiéis.

O sultão sorriu. Ele tinha prometido tomar a cidade à força, mas ofereceu aos cruzados um acordo generoso: todos os cristãos poderiam sair da cidade, desde que pagassem uma quantia ao tesouro. Os cristãos pobres seriam libertados à custa do dinheiro do tesouro do rei, que ficava guardado com os hospitalários. Saladino deu um prazo de quarenta dias para eles conseguirem o dinheiro do resgate.

— Balian, quando vocês, cruzados, tomaram a cidade pela primeira vez, abateram os judeus e fiéis como se fossem gado. Poderíamos fazer o mesmo com vocês, mas a vingança cega é um elixir perigoso. Por isso, deixaremos seu povo ir em paz. É a última chance que dou a seus líderes. Se não aceitarem, atearei fogo nessas ameias e não terei pena de ninguém. Vocês decidem.

Hoje é sexta-feira, dia santificado do islamismo, dois de outubro — dia vinte e sete no calendário muçulmano, sétimo mês do Rajab. Nesse dia, o profeta teve o famoso sonho em que visitava esta cidade. E foi nesse mesmo dia, como até o muçulmano menos ortodoxo repete desde o amanhecer, que os cruzados capitularam e assinaram o documento de rendição. Quando a notícia circulou, ouviu-se um forte grito de Alá o Akbar e milhares de homens se ajoelharam na areia e se prostraram na direção de Meca para agradecer a Alá.

A seguir, fez-se um silêncio de incredulidade. Nos entreolhamos assustados, sem saber se aquilo acontecera mesmo ou era apenas sonho. Após noventa anos, Jerusalém — ou al-Kadisia — voltava a ser nossa. De todos nós!

Daqui a exatamente uma hora, o sultão percorrerá a cidade a cavalo, e eu, minha querida Raquel, estarei ao lado dele. Nesse momento, penso em você e em nossa pequena família, mas penso também no meu velho amigo Xadi. Este era um dia que ele queria muito ver chegar e sei que o fantasma dele vai estar montado num cavalo logo atrás de Saladino, sussurrando daquele jeito que só ele podia: — Olhe para a frente. Você é um soberano, não abaixe os olhos. Lembre-se, você é o sultão que reconquistou nossa al-Kadisia, não é o califa de Bagdá. Neste momento, o chamado califa está morrendo de satisfação.

Xadi falaria assim com Saladino e concordo com ele, mas não tenho condição de dizer. Imad al-Din está a caminho de Damasco e al-Fadil não está aqui. O que irão aconselhar a Saladino depois que ele tomar a cidade?

Estou sozinho com ele, e isso é uma enorme responsabilidade. O que direi, se ele me pedir conselho? É em momentos como este que me sinto muito vulnerável e percebo que, talvez, eu não seja nada mais que um mero escriba.

Beijo seu rosto e espero vê-la em breve. Beije nossa filha e nosso neto. Gostei muito de saber que mais um neto está a caminho. Talvez você devesse vir a Jerusalém, acho que vou ficar aqui por algum tempo.

Seu marido, Ibn Yakub.


36

Saladino conquista Jerusalém.
Imad al-Din cobiça um belo tradutor copta.
Jamila se reconcilia com a lembrança de Halima

Entramos na Cidade Santa pelo portão de Bab al-Daud. O sultão não precisou de Xadi para dizer-lhe que erguesse bem a cabeça. Saladino foi direto para a mesquita, que tinha o fedor dos cruzados e seus animais, pois os hospitalários e templários a usavam como estrebaria. Saladino não quis esperar que limpassem o lugar sagrado. Saltou do cavalo e, cercado por seus emires, ofereceu preces de agradecimento a Alá. Depois, os soldados começaram a lavar tudo.

Quando passamos pelas ruas, o sultão ficou emocionado com a visão patética dos cristãos se lamentando e chorando. Mulheres puxavam os cabelos, velhos beijavam os muros da cidade, crianças assustadas se agarravam às mães e avós. Saladino parou seu cavalo e mandou um mensageiro buscar o cavaleiro cruzado Balian.

Enquanto esperávamos, o sultão olhou para o alto e sorriu. Seu estandarte estava sendo içado na fortaleza e os cânticos de exaltação e alegria dos soldados por um instante abafaram o som do desespero dos cristãos. Lembrei-me outra vez de Xadi. Saladino também e, com lágrimas nos olhos, disse:

— Meu pai e meu tio Xirkuh não acreditavam que isso pudesse acontecer, mas Xadi sempre soube que meu estandarte um dia estaria no alto de al-Kadisia. Neste momento, sinto falta dele mais que de qualquer outra pessoa.

Fomos interrompidos pela chegada de Balian.

— Por que eles choram tanto? — perguntou o sultão a Balia.

— As mulheres choram, senhor, por seus maridos presos ou mortos; os velhos choram por medo de nunca mais verem esses sagrados muros, e as crianças estão assustadas.

— Diga a seu povo que não vamos tratá-lo como seus antepassados nos trataram ao tomarem a cidade. Quando criança, eu soube de tudo que Godofredo e Tancredo fizeram com meu povo.

Lembre a esses cristãos assustados o que os fiéis e os judeus sofreram há noventa anos: exibiram as cabeças de nossas crianças em estacas; homens e mulheres de todas as idades foram torturados e queimados. Balian, estas ruas ficaram cheias do nosso sangue'

Alguns emires gostariam que isso se repetisse, só que com o sangue de vocês. Lembraram-me que todos nós acreditamos na lei que manda cobrar olho por olho e dente por dente.

"Eu os tranqüilizei dizendo que somos o Povo do Livro e que esta cidade pertence a todos os que acreditam no Livro. Diga a suas mulheres que elas podem ir embora, mesmo que não tenham dinheiro para pagar o resgate.

"Pena que não temos os poderes de seu profeta Isa e não podemos ressuscitar os mortos. Vamos soltar os cavaleiros que estão presos, desde que eles jurem nunca mais nos enfrentar. é bom abrir os olhos, Balian de Ibelin. Você também jurou. E um juramento em nome de Alá não pode ser desrespeitado por nenhum ser humano, seja ele o patriarca ou o papa. Se entenderem isso nós seremos generosos. Se você souber que qualquer dos meus soldados desrespeitou a honra de uma só cristã que seja, pode me comunicar. E se souber que qualquer dos seus lugares sagrados está sendo saqueado, por favor, avise-me imediatamente. Não permitirei que isso aconteça. É minha palavra de sultão.

Balian ajoelhou-se e beijou a túnica de Saladino.

— O senhor está demonstrando uma generosidade que não merecemos, ó grande rei. Basta isso para jamais o esquecermos.

E juro por Deus todo-poderoso que nunca mais pegarei em armas contra o senhor.

Saladino balançou a cabeça concordando, e nosso grupo seguiu pelas ruas em direção à fortaleza. Os arautos estavam proclamando nossos termos de rendição e dizendo aos cristãos que podiam ir às suas igrejas e seus locais sagrados. As pessoas ficaram em silêncio quando passamos, olhando para Saladino com um misto de curiosidade e temor.

Naquela noite, recebi uma mensagem escrita, assinada por um homem chamado João de Jerusalém. Era neto de um velho judeu que se salvara noventa anos antes cortando a barba e os caracóis do cabelo para se passar por cristão. Mas manteve sua fé em segredo e criou o filho como judeu.

— Não sou circuncidado — escreveu João de Jerusalém -, mas meu pai era e tinha orgulho de sua fé. Foi impossível para mim, por medo de ser descoberto. Quando soube que o escriba do sultão tinha a mesma fé nossa, senti necessidade de escrever para o senhor. Seria uma grande honra para minha família se pudesse fazer uma refeição conosco, em qualquer dia desta semana.

Assim, fui parar numa casa pequena, de dois cômodos, tomando vinho com João e sua linda esposa Mariam, que tem uma bela cabeleira. O filho deles, que deve ter uns dez anos, ficou olhando em silêncio. Estava assustado.

— É fácil entender por que temos medo. Na última vez, como o senhor sabe melhor que eu, Ibn Yakub, nosso povo sofreu terrivelmente. Os cruzados mataram todos os judeus. Jamais esqueceremos aquele dia, nem eles. Eles acharam que o sultão e seu exército, mobilizados do lado de fora da cidade, iriam executar uma vingança terrível. As lágrimas que eles choram são de culpa e medo. Eles chegaram ao poder passando por um monte de cadáveres, e agora têm medo de virem se juntar a esse monte.

"Quando soubemos que os nobres cruzados haviam concordado com seus termos de rendição, houve um estranho silêncio nas ruas. Nada se mexia. O silêncio foi quebrado pelo tropel de cavalos, o som de homens marchando e a voz desagradável dos soldados deles, que pareciam alterados, falavam alto e riam, mas estavam inseguros. Pobres idiotas. Estavam tentando se convencer de que aquele era um dia como outro qualquer. O senhor já percebeu que, se as pessoas estão inseguras, falam alto e são cruéis com aqueles que consideram inferiores?

"Quando o seu sultão entrou pelo Portão de Davi, uma onda de medo invadiu a cidade. O povo ainda está chocado. Deus os abandonou e permitiu que Alá vencesse. Eles ainda não acreditam que continuam vivos e foram bem-tratados. Alguns acham que isso é um golpe e que serão mortos em breve. Embora minha opinião não tenha muita importância, gostaria que o senhor comunicasse ao sultão que não deve confiar nos cruzados. Vivi no meio deles a vida inteira. Sei o que pensam e sentem. São pessoas soturnas e amargas. É melhor mantê-los como reféns contra a má sorte que virá pelo mar, tão certo como a noite vem depois do dia. E eles não terão pena de ninguém. Por favor, comunique isso ao sultão, dito por um de seus humildes admiradores. Em segredo, eu costumava rezar para que este dia chegasse.

Quando a notícia de nossa vitória se espalhou, houve alegria e orações de agradecimento a Alá em todos os domínios do califa. Cádis e eruditos chegavam a Jerusalém em número cada vez maior.

Jamila foi a primeira das mulheres do sultão a chegar. Desta vez, não estava sozinha nem disfarçada de homem: entrou na cidade com seu séquito de guardas armados, eunucos e damas de companhia. Era como se ela quisesse mostrar a Jerusalém que ela — e nenhuma outra mulher — era a sultana do conquistador da Cidade Santa.

Saladino foi supervisionar pessoalmente a limpeza do Domo da pedra e da mesquita de al-Aqsa, onde o primeiro khutba seria realizado dentro de catorze dias. Muitos cristãos preferiram ficar na cidade, embora, em sua maioria, fossem coptas ou pertencessem a seitas que nunca foram reconhecidas pelas ordens religiosas dos cruzados.

Imad al-Din estava como gostava. Cercado por seis escribas, atarefado ditando despachos para todos os soberanos do mundo islâmico. Uma tarde, fui informá-lo de que o sultão precisava ouvi-lo a respeito de uma mensagem meio insolente e fora de hora enviada por Frederico I Barba Roxa, o santo imperador romano, avisando o sultão que nem pensasse em tomar Jerusalém. A carta, escrita em latim, foi lida em voz alta, em árabe, pelo novo intérprete do sultão, um copta de dezoito anos chamado Tarik ibn Isa, e que causou muito boa impressão. O copta tinha um rosto tão bonito que até aqueles que não nadavam nessa praia ficaram atarantados. Eu sabia que o grande erudito não iria resistir. Descrevi a cena em detalhes para Imad al-Din e ele riu, mas a pergunta que se formou em seus lábios sensuais era sobre o copta.

— Só tem dezoito anos? Incrível. É nascido aqui? Encolhi os ombros, não tinha a menor idéia. Quando entramos nos aposentos do sultão, o ambiente estava ameno.

Imad al-Din pegou a carta que estava com Tarik ibn Isa e começou a rir.

— Que trecho da carta você acha mais interessante? — perguntou o sultão.

— As ameaças dele, Comandante dos Vitoriosos. Ouça só: "Se não desistir, vai aprender o que é experimentar o ódio dos teutônicos. Vai ver como é o ódio dos renanos, dos grandes bávaros, dos espertos suábios, dos cautelosos franconianos, dos saxões, que brincam com suas espadas. Turíngios, vestfalianos, os fogosos borgonheses, os lépidos montanheses alpinos, os frísios com seus dardos, os boêmios que morrem sorrindo, os poloneses, mais fortes do que animais da floresta, e minha mão direita que, apesar da idade, ainda consegue empunhar uma espada."

"O interessante nesta carta é que ele não encontrou palavras assustadoras para definir os toscanos e pisanos. Talvez, quando respondermos à carta, devêssemos perguntar a respeito dessa omissão. Quanto aos fogosos borgonheses, será que Sua Majestade se lembra do cavaleiro da Borgonha que encontramos alguns anos atrás? A única coisa fogosa que tinha era o peido, tão forte que eu precisava sair da tenda para livrar meu nariz do cheiro.

Ao lembrar, o sultão começou a rir.

— Acho que não é preciso contar isso ao rei alemão. Prepare uma resposta agora, Imad al-Din. O jovem aqui presente também é escriba e anotará suas palavras.

Imad al-Din olhou para o rapaz e, no mesmo instante, foi dominado pelo desejo. O escriba copta desviou o olhar e o secretário do sultão começou a ditar, de vez em quando apreciando o corpo esguio de Tarik.

"Ao grande rei Frederico da Alemanha, em nome de Alá, o misericordioso, o poderoso, o vitorioso.

Agradecemos sua carta e lastimamos que tenha chegado tarde demais. Com a bênção de Alá, já nos apoderamos de al-Kadisia, que vocês chamam de Jerusalém. Só restam três cidades nas mãos dos cristãos — Tiro, Trípoli e Antióquia -, mas fique certo, poderoso rei, que elas também serão nossas.

Foi impossível não notar que você não encontrou palavras em sua carta para descrever os toscanos, venezianos e pisanos. Ficamos intrigados, pois sabemos muito bem como são valorosos os homens dessas regiões. São belos de corpo e alma, e proporcionaram muito prazer aos nossos beduínos, que estavam sedentos de amor e alegria no deserto. Gostaríamos muito de encontrá-los outra vez.

Se quer guerrear, estamos aguardando, mas saiba de uma coisa: quando chegar aqui, haverá um mar entre você e suas terras. Mas nada nos separa do nosso povo e de nossos domínios. Por isso, vamos vencê-lo para sempre, até o dia do Julgamento Final. Desta vez, não nos satisfaremos com suas cidades no nosso litoral, mas vamos atravessar o mar e Alá ficará satisfeito por tomarmos todas as suas terras, pois seus soldados ficarão enterrados lá, sob a areia.

Esta carta foi escrita no ano 584 por graça de Alá e seu profeta, e traz a assinatura do conquistador de al-Kadisia.

Yusuf ibn Ayub."

Imad al-Din olhou para o grupo, encantado com o impacto que sua carta provocou. O que mais lhe agradou foi o sorriso tímido no rosto de Tarik, mas o sultão queria uma carta num tom mais sério. Saladino estava consciente de seu lugar na História. As delegações de eruditos que se reuniam na cidade e as mensagens que recebeu dos fiéis do mundo inteiro, sem esquecer, claro, os cumprimentos bastante efusivos do califa e seus nobres de Bagdá, confirmaram sua confiança em si mesmo. Por isso, queria que todos os despachos levassem a marca de sua nova posição como salvador da fé. Mandou Imad al-Din para o escritório, a fim de reescrever a carta em termos mais dignos e apresentá-la na manhã seguinte, para que o sultão colocasse o lacre.

Quando saí do aposento, senti um tapinha no ombro. Era o eunuco núbio, o velho mudo de cabelo grisalho, que eu vira muitas vezes na fortaleza de Damasco. Com muitos gestos, fez sinal para que o seguisse. Levou-me até a entrada de um aposento e foi embora.

— Entre, Ibn Yakub — disse a voz tão conhecida, por trás da porta de gelosia. Era a sultana Jamila.

Entrei e fiz uma reverência. Ela respondeu antes que eu perguntasse:

— Amjad? É pena, não está mais conosco. Espalhou tintas calúnias para tanta gente que precisei pedir que fosse mandado embora. O camareiro cuidou disso. Não fique tão preocupado, ele continua vivo.

Antes que eu pudesse demonstrar alívio, ela mudou de assunto.

— Será que o coração tem uma linguagem, Ibn Yakub? Sorri, mas não consegui responder. Ela mudara de assunto — da demissão sumária do eunuco Amjad para o mundo particular de sua filosofia.

— Vamos, escriba, pense bem. Não? Talvez seu coração seja mudo. A maioria dos corações fala uma estranha mistura de realidades e sonhos, embora em proporções variáveis, já que, afinal, tudo depende das circunstâncias externas. O coração não é um livro que você pode abrir sempre na mesma página. Se um coração é partido em pedaços, pode sangrar durante muitos dias, mas depois, de repente, vira pedra. Concorda?

Fiz um sinal com a cabeça, concordando. Sabia muito bem por que ela estava dizendo aquilo, mas ela queria que eu perguntasse — e foi o que fiz.

— Como chegou a essa conclusão numa hora destas, sultana? Estamos comemorando a tomada de Jerusalém e fico surpreso por estar mergulhando profundamente em si mesma.

— Meu coração passou por muitas transformações, Ibn Yakub. Ele ficou leve durante vários meses, mas parece que um peso se agarrou a ele outra vez. Hoje, por exemplo, fiquei amargurada de remorso. Deveria ter me reconciliado com Halima antes que ela se sentisse forçada a se afastar da minha ira e se refugiar no Cairo. Um dia ela me procurou, com os olhos muito tristes, pedindo para voltarmos à nossa amizade. Meu coração estava empedernido, Ibn Yakub. Não aceitei, rejeitei a proposta com desdém. Por quê? Porque a amizade que durante algum tempo coexistiu com amor e paixão, não vale sozinha. Tentar juntar os dois é sinal de loucura e quem acha que consegue, mais cedo ou mais tarde vai se desiludir.

"Depois, ela morreu. Línguas ferinas me acusaram de ter mandado o veneno mortal. Isso é uma mentira, dita por um homem que estava prestes a encontrar o Criador e cheio de ciúme. Aquele mameluco, incapaz de suportar o amor de Halima por outra mulher, resolveu me culpar pelo seu ato insensato. Como você sabe, eu também não gostei de saber que Halima encontrara outra mulher, mas jamais pensaria em castigá-la com a morte. Teria preferido prolongar sua vida até descobrir um bom jeito de torturá-la. Vou dizer uma coisa que vai chocá-lo, Ibn Yakub, mas faz parte da linguagem do meu coração. Quando soube da morte dela e de como ocorreu, não fiquei abalada.

"Ela envenenou o nosso amor. Matou uma coisa que era preciosa para nós duas. Em represália, foi envenenada. Minha reação foi cruel e indigna, mas era o que meu coração dizia na hora. Por isso comecei a investigar as ligações entre coração e mente. Terminarei meus escritos sobre a lógica do coração antes do primeiro khutba na Grande Mesquita. Não seja muito rigoroso comigo. É hora de comemorar: Saladino tomou al-Kadisia. Meu coração está cheio de alegria.

Na manhã seguinte, acordei tarde, com o calor do sol queimando meu rosto. Não tinha dormido direito. As palavras de Jamila passavam pela minha cabeça num torvelinho.

A dureza dela em relação a Halima me irritara muito, mas agora, apesar de todas as minhas dúvidas, vi que admirava sua força e honestidade. Era uma mulher que, ao contrário de seu estimado e muito amado esposo, não acreditava em aprisionar pessoas.

Às vezes eu queria que, por alguns meses, um bom djin transformasse a sultana no sultão.


37

O cádi de Aleppo prega na mesquita.
O sultão recebe uma carta de Bertrand de Toulouse.
Minha família é queimada viva num ataque dos cruzados ao Cairo

Dez dias depois, estávamos todos reunidos na grande mesquita de al-Aqsa. Ela havia sido completamente lavada e as pedras tinham o brilho do paraíso. Todos os emires e cádis do império de Saladino estavam presentes, assim como seu filho al-Afdal, seu sobrinho Taki al-Din e seu comandante favorito, o emir Keuburi.

O púlpito, construído por ordem do falecido sultão Nur alDin, tinha vindo de Damasco. Quando o cádi de Aleppo, vestido de negro e com um turbante verde, subiu os degraus, nós, que estávamos sentados na frente, podíamos ver suas mãos tremendo. Ele sabia que as palavras que diria naquele dia seriam lembradas por muito tempo.

Sabia também que o sultão tinha pouca paciência e não gostava muito de sermões longos. O cádi falou com uma voz suave e, como convinha à ocasião, iniciou com um resumo das vitórias dos seguidores do profeta, conquistadas num curto espaço de tempo.

— Começamos em nome de Alá, o misericordioso, o beneficente, e seu profeta, que nos mostraram o verdadeiro caminho. Nosso sultão Yusuf Saladino ibn Ayub trouxe o Crescente de volta à Cidade Santa. Ele é o guardião da verdadeira fé, o vencedor daqueles que adoram uma cruz e imagens esculpidas. Alá fez renascer o império do Comandante dos Fiéis em Bagdá. Rezemos para que Alá e os anjos possam sempre guardar os estandartes do sultão e preservá-lo para manter o futuro de nossa fé. Que Alá guarde Saladino e seus filhos para sempre.

"Foi aqui que Omar, cuja memória reverenciamos, usou pela primeira vez as cores de nossa fé, pouco depois do falecimento do profeta, que descanse em paz. Aqui, então, foi construída esta grande mesquita. Todos vocês que lutaram para que este dia chegasse são abençoados para sempre. Vocês reacenderam o espírito da batalha de Badr, foram firmes como Abu Bakr, destemidos e generosos como Omar. Vocês nos lembram o ímpeto de Otman e Ali. Hoje, os primeiros quatro califas, que olham vocês do céu, estão sorrindo. Todos aqueles que lutaram para conquistar esta cidade vão para o paraíso.

"Pouco depois, nossos exércitos com suas espadas levaram o Santo Corão pelos desertos da África, as montanhas da Andaluzia e as terras dos cruzados. Foi a partir daqui que nossa mensagem foi levada para as terras dos adoradores de fogo. Assim que Alá nos indicou o verdadeiro caminho, o povo da Pérsia foi o primeiro a se converter à nossa causa. Como o sultão já ouviu muitas vezes, uma das razões para a Pérsia cair em nossas mãos como um damasco maduro foi que até o homem mais pobre entre os pobres, oprimido e explorado por padres corruptos, ficou surpreso ao ver nossos grandes chefes comendo do mesmo prato que os soldados comuns. Eles constataram que, aos olhos de Alá, somos todos iguais.

"Chegamos ao grande rio indiano de Indus e lá também os pobres se juntaram em volta de nossos estandartes. Neste mesmo instante em que falamos, nossos comerciantes transmitem nossa mensagem para o sul da Índia, as ilhas de Java e até para a China. Pergunto a vocês: isso não mostra que Alá nos permitiu alcançar todos os cantos da Terra em tão pouco tempo?

"Por isso, é ainda mais infame o fato de os cruzados terem podido ocupar nosso litoral e esta Cidade Santa por tanto tempo, sem medo de serem castigados. Yusuf Saladino ibn Ayub, é graças a Sua Majestade e à sua persistência, coragem e disposição para sacrificar a própria vida — que é preciosa para os fiéis de toda parte — que estamos outra vez rezando em al-Aqsa. Oramos para Alá prolongar sua vida e seu governo nestas terras. Numa das mãos, Sua Majestade carrega uma espada afiada.

Na outra, uma tocha acesa...

O sermão durou uma hora. Não foi um grande discurso, mas todos ficaram encantados com a grandiosidade do momento. Depois que o cádi de Aleppo terminou de falar, toda a congregação ofereceu uma prece de agradecimento a Alá. O cádi desceu do púlpito, foi abraçado e beijado pelo sultão, que fez o mesmo com al-Fadil e Imad al-Din. Al-Fadil estava muito alegre, e, quando o sultão perguntou o que achara do sermão, a resposta foi poética:

— Ó Comandante dos Vitoriosos, ao ouvir o sermão, o céu chorou lágrimas de alegria e as estrelas se moveram no firmamento, não para cair sobre os perversos, mas para comemorar conosco.

Imad al-Din, que depois disse que achara o sermão enfadonho e sem inspiração, aplaudiu al-Fadil e deu um sorriso complacente para o cádi de Aleppo.

Naquela mesma tarde, o sultão convocou um conselho de guerra. Os únicos presentes eram Taki al-Din, Keuburi, al-Afdal, Imad al-Din, al-Fadil e eu. O sultão estava de bom humor e tranqüilo.

— Vamos agradecer em primeiro lugar a Imad al-Din, que sempre destacou a importância de conquistar esta cidade. Meu caro amigo, você tinha razão, como de hábito.

Keuburi insistiu para que sitiássemos Tiro. Os dois estavam certos. Quero que o exército tome Tiro imediatamente. Deixem que os soldados descansem, comemorem, depois tomaremos Tiro. Esta manhã chegou uma carta de Bertrand de Toulouse. Lembram dele? O cavaleiro cuja vida salvamos da ira dos templários e que voltou em segurança para casa, graças aos nossos comerciantes. Imad al-Din vai agora ler a carta. Sei que todos nós preferíamos a presença do lindo rapaz copta, que traduz o latim para nossa língua com tanta graça que até os que não nadam nas mesmas praias de Imad alDin foram obrigados a admirar a beleza dele. É uma pena que ele não esteja aqui, meu velho mestre, por isso sugiro que tome o lugar dele.

Se Imad al-Din ficou surpreso com a indelicadeza do sultão, conseguiu disfarçar bem. Todos os presentes trocaram sorrisos significativos. Era sabido que Imad al-Din estava encantado com Tarik ibn Isa e que o perseguia como um lobo na décima quarta noite de lua. Imad al-Din leu a carta de Bertrand de Toulouse.

— Se o sultão e os emires me permitem, vou resumir a carta. Ao contrário do rapaz copta, não sou bom tradutor. Nosso amigo de Toulouse escreve que os cruzados estão preparando um grande exército para retomar Jerusalém. Diz que o papa já chamou os reis da Inglaterra, da França e da Alemanha para que unam seus exércitos e salvem a dignidade dos adoradores da cruz. Escreve que dois dos três reis têm a cabeça cheia de fantasias imperiais. Só um deles deve ser temido, pois parece um animal: trata-se de Ricardo da Inglaterra, que ele descreve na carta como um mau filho e um marido pior ainda, que não consegue satisfazer sua mulher nem qualquer outra. Tem uma queda por rapazes, é um governante egoísta, um homem mau e corrupto, mas muito corajoso. Toulouse não sabe quando as embarcações vão partir, mas acha que deve ser dentro de um ano ou mais, já que o dinheiro para financiar a guerra ainda vai ser arrecadado. Aconselha que aproveitemos esse tempo invadindo todos os portos, para que possamos destruir as embarcações deles quando ainda estiverem ao largo. Também aconselha o sultão a preparar uma frota para lutar no mar. Ele acha que é uma falha nossa jamais termos feito uma guerra no mar com tanto afinco como fazemos em terra. Ele se assina como o mais humilde servo do sultão e seguidor de Alá, e reza para que chegue o dia em que nossos exércitos atravessarão o mar e aprisionarão o papa. Informa que um dos cavaleiros que acompanham Ricardo, um tal de Roberto de Saint Albans, é, no fundo, um herege, ou seja, um verdadeiro fiel, que será útil para nossa causa.

O sultão sorriu.

— Acho que devemos pedir ao nosso amigo que volte para o nosso lado. Bertrand é um pensador astuto. Esta carta faz com que a tomada de Tiro passe a ser nossa meta mais importante. Estão de acordo? Anotou tudo, Ibn Yakub?

Assenti. Na tarde seguinte, eu estava me preparando para acompanhar João de Jerusalém ao local do antigo templo, onde estavam reunidos outros seguidores de nossa fé que tinham retornado a Jerusalém para oferecer preces de agradecimento pela volta da cidade aos domínios do sultão. Nesse momento, um criado chegou e insistiu que Saladino estava me aguardando. Achei estranho, já que ele me autorizara a participar daquela cerimônia. Mesmo assim, acompanhei o criado até os aposentos reais.

O sultão estava sentado na cama, com uma expressão preocupada. Deveria ter sabido de alguma notícia antes de todos os demais. Quando entrei, ele levantou-se e, para meu espanto, abraçou-me e beijou-me nas duas faces. Seus olhos estavam cheios de lágrimas. Eu sabia que alguma coisa terrível devia ter acontecido com minha Raquel.

— Recebemos um despacho do Cairo, Ibn Yakub. As notícias são ruins e você precisa tomar coragem para ouvi-las. Um pequeno bando de cavaleiros cruzados, irritado por ter perdido esta cidade e embriagado de raiva, foi para o Cairo e fez um ataque-surpresa ao quarteirão onde vive seu povo. Queimaram algumas casas e mataram velhos, antes de o alarme ser dado e nossos soldados prenderem todos eles. Foram executados na manhã seguinte. Mas sua casa, meu amigo, é uma das que foram queimadas.

Ninguém sobreviveu. Mandei al-Fadil tomar providências para que você siga para o Cairo amanhã cedo. Pode ficar lá o tempo que quiser.

Fiz uma reverência e saí. Voltei para minha casa. Durante mais de uma hora, não consegui chorar. Sentei-me no chão e fiquei olhando a parede. Eu tinha sido atingido por uma tragédia. A angústia me deixou mudo; nem palavras nem lágrimas poderiam expressar a dor que sentia. Pensei em Raquel e Mariam, com o filho agarrado ao peito, os três dormindo tranqüilamente na hora em que os bárbaros incendiaram nossa casa.

Quando comecei a juntar minhas coisas, percebi que estava chorando alto. Lembrei de todas as coisas que tinha pensado sobre Raquel, mas que não disse a ela. Morreu sem saber o quanto eu a amava. E minha pequena Mariam, que eu queria que fosse feliz e criasse os filhos em paz com seu marido.

Não quis dormir. Fui até as ameias da fortaleza e fiquei observando o eterno movimento das estrelas, deixando que lágrimas silenciosas escorressem pelo meu rosto.

Estava amargurado e furioso, queria vingança. Queria cozinhar os cavaleiros cruzados em fogo lento e rir alto quando sentissem a agonia da morte.

Partimos ao amanhecer, ao som do canto lamentoso do papa-figo e mais uma vez meu rosto ficou molhado de lágrimas. Não guardo lembranças daquela viagem de Jerusalém para o Cairo, não sei quantas vezes paramos, nem onde dormimos. Só sei que o mensageiro do sultão foi muito gentil e me ofereceu uma vasilha de couro com água; bebi um pouco e usei o resto para lavar o rosto e tirar a areia. Lembro também que, a certa altura dessa viagem tão sofrida, de repente eu quis voltar para o palácio do sultão. Achei que era inútil vasculhar as cinzas da tragédia. Queria esquecer. Não adiantava ver os restos carbonizados de minha casa e daquele quarto de teto abaulado. Não adiantava mais.

Ibn Maimun estava à minha espera nas ruínas da casa. Nos abraçamos e choramos, sem dizer nada. A tristeza apagara as velhas rusgas e os ressentimentos. Ele me levou para sua casa. Durante vários meses, vivi num torpor. Perdi toda a noção de tempo e não tinha idéia do que acontecia no mundo exterior.

Mais tarde, comecei a acompanhar o grande médico ao Cairo. Ele atendia seus pacientes no palácio e revi meus velhos amigos na biblioteca — os livros que tinha lido logo que passei a ser escriba do sultão. Às vezes, eles provocavam lembranças dolorosas e Raquel não saía da minha cabeça. As lágrimas acabavam com minha concentração na leitura.

Ibn Maimun me tratava como amigo e paciente muito especial. Oferecia peixe fresco do Nilo, assado no carvão e servido com arroz integral, e todas as noites me fazia beber misturas de ervas para melhorar meus nervos esgotados e ajudar a dormir. Havia dias em que eu não falava uma palavra com ninguém. Costumava andar até o riacho que ficava perto da casa de Ibn Maimun, sentar numa pedra e ficar olhando os meninos que tentavam pescar. Eu ia embora quando eles riam muito alto, aquela alegria me incomodava.

Eu estava longe do mundo. Tinha perdido todo o sentido de tempo, vivia cada dia, sem esperar nada nem dar nada. No momento em que escrevo estas linhas, não consigo lembrar-me do que eu fazia durante os dias, além de ler os livros da grande biblioteca de Ibn Maimun e ficar fascinado pelos tratados de medicina. Li Galeno e Ibn Sina muitas vezes e sempre encontrava novos significados nos textos deles. Quando não conseguia entender o que esses mestres escreveram, consultava Ibn Maimun, que me cumprimentava pelo meu aprendizado. Ele sugeriu que me tornasse médico e o ajudasse.

Passaram-se muitos meses. Perdi contato com o mundo do sultão. Não sabia o que estava acontecendo no campo da guerra e também não me interessava.

Um dia, Ibn Maimun contoume que um novo destacamento de cruzados havia chegado ao litoral disposto a retomar Jerusalém. os olhos dele estavam marejados.

— Eles não podem nos tirar aquela cidade outra vez, Ibn Yakub. Nunca.

Talvez fosse o tom da voz do meu amigo que reacendeu meu interesse pelo mundo. Talvez eu estivesse recuperado. Qualquer que fosse a razão, senti que voltara a ser eu mesmo. Por dentro, a sensação de perda ainda existia, mas a dor tinha sumido. Mandei uma carta para Imad al-Din perguntando se eu poderia encontrar o sultão.

Quatro semanas depois, quando a primavera chegava ao Cairo como um sopro de riso, surgiu um mensageiro de Damasco. O sultão ordenava que eu voltasse sem demora.

Estava sentado no pátio, aproveitando o sol sob uma árvore cheia de galhos retorcidos que permaneceu igual durante as quatro estações. Fiquei muito apegado a essa árvore porque se parecia comigo, eu também não sentia os prazeres da primavera.

Fiz uma despedida emocionada de Ibn Maimun. Nós, que um dia fomos tão próximos, estávamos juntos outra vez. Uma pequena fatia de felicidade tinha sido recuperada do fundo da tragédia que me atingira. Combinamos nunca mais perder o contato. Eu não tinha mais vontade de continuar escrevendo a história de Saladino, mas Ibn Maimun ficou assustado com essa idéia. Disse que eu devia continuar:

— Se isso o ajudar, Ibn Yakub, escreva tudo para mim. Vou guardar suas cartas aqui, junto com esses cadernos que você me entregou.


Cartas para Ibn Maimun


38

Volto e sou recebido pelo sultão.
Ricardo da Inglaterra ameaça Tiro.
Imad al-Din sofre do mal de amor

Caro Amigo,

Gostaria que estivesse aqui para podermos conversar, em vez de confiar no serviço de mensageiros, que nem sempre é seguro. Como você sabe, eu estava nervoso com a idéia de voltar a Damasco, mas todos me receberam bem. Alguns emires chegaram ao ponto de dizer que consideravam meu retorno um sinal de boa sorte, porque enquanto estive com o sultão ele não perdeu uma só batalha.

Está tudo diferente. As coisas mudam como o preço dos diamantes no mercado do Cairo. Quando me afastei do sultão, há quase dois anos, ele estava no auge do sucesso.

Seus olhos brilhavam, o sol coloria seu rosto e sua voz era calma e feliz. O sucesso tira o cansaço. Ao encontrá-lo esta manhã, ele ficou visivelmente contente, levantou-se e beijou meu rosto, mas estranhei sua aparência. Tinha os olhos fundos, estava mais magro e muito pálido. Ele percebeu minha surpresa.

— Estive doente, escriba. A guerra contra aqueles malditos infiéis começou a me fatigar, mas ainda conseguia enfrentá-los. O problema é que não estou preocupado apenas com o inimigo, mas com o nosso próprio lado. Nossa fé é emocional e impulsiva.

A vitória na batalha causa nos fiéis um efeito semelhante ao do banj. Eles são capazes de lutar sem cessar para repetir nosso sucesso, mas se, por alguma razão, nos frustramos, se precisamos mais de paciência e habilidade do que de simples coragem, então nossos homens começam a desanimar. Surgem brigas e algum emir idiota sempre vai pensar: "Talvez este Saladino não seja tão invencível quanto achávamos. Talvez seja melhor salvar minha pele e a dos meus soldados." Pensando dessa forma ignóbil, o emir deserta do campo de batalha. Também pode ocorrer que outro grupo de emires, desmoralizado pelo nosso insucesso, ache que nos últimos seis meses eles e seus homens ainda não receberam saques de guerra. E que meus irmãos, filhos e sobrinhos estão recebendo esses saques. Por isso, os emires brigam e voltam para Aleppo. É cansativo, Ibn Yakub.

"Tenho de lutar em duas frentes ao mesmo tempo. Foi por isso que não tomei Tiro meses atrás, quando você ainda estava comigo. Achei que os soldados não seriam capazes de agüentar um longo cerco, mas eu estava enganado. Superestimei a presença dos cruzados na cidade, mas, se tivesse confiança nos meus soldados, eu teria corrido o risco. A conseqüência disso, meu amigo, foi uma confusão. Os reis cruzados estão chegando pelo mar com mais soldados e mais ouro. Eles não desistem, não? Seja bemvindo de volta à sua casa, Ibn Yakub. Senti sua falta. Al-Fadil foi para o Cairo esta manhã e Imad al-Din não vem me ver há uma semana. Diz que está com dor de dente, mas meus espiões contam que a dor é do coração. Lembra de Xadi? Ele chamava Imad al-Din de chupador de pênis de jumento!

Ao lembrar disso, Saladino riu alto e eu também, satisfeito pelo fato de minha chegada ter melhorado o humor dele.

Na tarde daquele mesmo dia fui procurar Imad al-Din, que me recebeu com muita gentileza. Os informantes do sultão estavam certos: o grande mestre sofria por causa de um desengano amoroso, mas reclamou amargamente que o tesouro não pagava seu salário há vários meses e por isso ele resolvera não visitar o sultão.

Fiquei surpreso, insisti um pouco e ele resolveu confessar a verdadeira razão do seu estado de ânimo. Despejou todos os problemas — e não existe coisa mais enfadonha, Ibn Maimun, do que ouvir um adulto choramingar por estar com o coração partido, como se tivesse quinze anos de idade e acabasse de descobrir os desencantos do amor. Como eu tinha ido visitá-lo, era difícil cortar a conversa.

Você deve lembrar de um certo tradutor copta que mencionei uma vez, chamado Tarik ibn Isa. É aquele que o olhar lascivo do nosso grande erudito cobiçou em Jerusalém, pouco depois que tomamos a cidade. O sultão apreciou o talento do jovem e, a conselho de Imad al-Din, o copta passou a fazer parte da equipe de Saladino. Foi assim que Tarik veio para Damasco, onde Imad al-Din, louco para despejar seu fogo sobre o jovem, perseguiu-o sem qualquer pudor. Escreveu versos, contratou menestréis para cantar diante da janela do jovem em noites enluaradas, chegou a ameaçar demitir o rapaz se ele não se sujeitasse a todos os seus desejos. O rapaz então sumiu, para consternação de toda a corte, e o grande homem está inconsolável.

Claro que não é assim que o mais erudito secretário do sultão vê a situação: ele conta outra história e quero que o julgue com sua sabedoria, Ibn Maimun.

Falando naquela voz harmoniosa que eu conhecia tão bem, e que achava agradável apenas porque jamais a ouvira por tanto tempo, ele me disse: Não consigo entender, Ibn Yakub, a resistência obstinada desse jovem bobo. Está achando estranho? Sei o que pensa: talvez esse rapaz não sinta atração por homens.

Também pensei nisso, mas estava enganado. Mandei espioná-lo e descobri que está apaixonado por um homem pouco mais jovem que eu, mas bem diferente de mim.

O amante de Tarik é um herege, um blasfemo, um cético. Veio de Aleppo para pregar o mal nesta que é a mais pura de nossas cidades. Afirma ser descendente de Ibn Awjal. Você conhece bem a nossa fé, Ibn Yakub. Já ouviu falar em Ibn Awjal? Não' É estranho. Ele viveu em Kufa, um século depois da morte do profeta, Pertenceu à sua fé, depois converteu-se à nossa e era louco para ficar famoso. Queria ser um homem conhecido, então publicou quatrocentos hadiths e foi considerado um erudito, só que os hadiths eram totalmente falsos. Ele inventou tudo e pôs linguagem erótica e blasfema na boca de nosso profeta. Dizem que um dos hadiths afirmava que o profeta determinara que qualquer mulher que deixasse um homem vê-la nua, mesmo por acaso, era obrigada a se entregar a esse homem. Se recusasse, o homem teria o direito de possuí-la à força. Que Alá queime este filho da puta no fogo do inferno. Havia outros textos parecidos, e até piores. Num deles, Ibn Awjal dizia que o profeta afirmara o seguinte: "Fornique com seu camelo sempre, mas nunca numa estrada aberta." Outro dizia que o anjo Gabriel aprovava que os fiéis satisfizessem seus desejos carnais do jeito que quisessem. E que o profeta disse a seu genro Ali para não mostrar a bunda para ninguém — mas que faltavam duas palavras no hadith original. Essas idéias amalucadas não poderiam ficar sem castigo. Abusar dessa forma do nosso profeta é inconcebível. Ibn Awjal foi preso pelo cádi de Kufa e confessou ter inventado os hadiths. A justiça agiu rápido e ele foi executado logo após o julgamento.

O amante de Tarik dizia descender de Ibn Awjal e começou a espalhar entre seus seguidores que muitos hadiths escritos por seu antepassado blasfemo eram autênticos.

Quando ouvi isso, recusei-me a acreditar no meu informante, que tinha se aproximado dos amigos mais íntimos do herege. Informei ao cádi, que prendeu todos eles, exceto Tarik. Ao contrário de seu corajoso antepassado, esse porco cético negou o que meu informante contara na corte. Teve a audácia de afirmar que forjei provas falsas para tirá-lo do meu caminho, por razões que eu sabia melhor que ninguém. O cádi foi inflexível, o sultão concordou e o amante de Tarik foi executado. No mesmo dia, Tarik sumiu e não foi mais visto, ninguém sabia dele. Constava que tinha se matado; outros boatos diziam que seu corpo estava boiando no rio.

Dizem que sua amiga Jamila ficou irritada quando soube da execução. Entrou como um furacão nos aposentos de Saladino e atacou-o com sua língua afiada. Essa mulher não consegue disfarçar nem ser discreta, não? Mandou-me uma carta acusando-me de ser um terrível fornicador devasso, dando a entender que a cidade ficaria mais limpa se eu fosse castrado. São esses os verdadeiros motivos da minha tristeza, Ibn Yakub, embora eu não possa negar que o tesouro parece ter esquecido que existo, o que também me deixa muito aborrecido.

Quando saí da casa de Imad al-Din, estava pensativo. Caminhava lentamente para minha casa, temendo o silêncio que encontraria no pátio. A casa está cheia de lembranças de Raquel; acho que devo tirar meus pertences de lá e mudar-me para a fortaleza. Pensava numa carta que escreveria para o camareiro, quando se aproximou o conhecido mudo núbio, que me entregou um bilhete da sultana Jamila solicitando minha presença. Nada mudara na cidade. Dei um rápido sorriso e fui atrás do mudo até a fortaleza.

Não é estranho, Ibn Maimun, como voltamos a um lugar depois de muito tempo e vemos que está tudo do mesmo jeito? O sultão faz suas guerras, Imad al-Din fica em casa de mau humor e a sultana me chama para conversar.

Fui recebido como um grande amigo. Pela primeira vez, ela tocou em mim: acariciou minha cabeça e disse que lastimava muito que eu tivesse perdido minha família.

Depois, cochichou no meu ouvido:

— Nós dois perdemos nossos entes queridos e isso nos aproxima. Você não pode mais nos deixar, o sultão e eu precisamos de você.

Claro que ela sabia que estive na casa de Imad al-Din. Sempre lhe contam tudo, até a conversa mais banal que diga respeito ao sultão ou aos que o cercam. Isso faz dela uma das pessoas mais bem-informadas do reino. Tem tamanha autoridade que poucos se recusam a contar o que ela deseja saber.

Jamila queria um relato detalhado de nossa conversa. Ia começar a falar quando percebi que ela não estava sozinha. Num banquinho atrás dela estava sentada uma moça de grande beleza e cujo rosto, de olhos tristes e expressivos, era estranhamente familiar. A jovem usava uma túnica de seda amarela combinando com um lenço que cobria sua cabeça. Uma tinta escura realçava a beleza de seus olhos — embora não fosse preciso realçar nada nela. Surpreso com a presença daquela estranha tão atraente, olhei interrogativamente para Jamila.

— Esta é Zaina, minha escriba. Anota minhas palavras tão depressa que meus pensamentos precisam correr para acompanhála. Você teria inveja da velocidade dela, Ibn Yakub. Agora, pode contar: o que aquele velho charlatão disse?

Enquanto contava nossa conversa, as duas mulheres se entreolharam várias vezes. Depois, Jamila falou, irritada, e sua linguagem me surpreendeu.

— Xadi estava certo quando chamava esse homem de chupador de pênis de jumento! Tudo o que ele contou para você é mentira. Ele executou um homem inocente, um homem cujo único crime foi o de ser cético, mas isso eu também sou e Imad al-Din também, até você é conhecido por expressar pensamentos heréticos. Só os simplórios não querem duvidar de nada. Mas um mundo que não duvida não pode andar para a frente. Quando jovem, Saladino também era cético. Você se surpreende com isso? Por que acha que ele nunca fez a peregrinação a Meca? Agora ele está louco para ir lá e contentar o Criador, mas quando teve oportunidade não foi. Imad al-Din ordenou a execução por ciúme. Trata-se de um velho que não suporta pensar que foi rejeitado e fica procurando um bode expiatório. Acho horrível isso, e disse a seu sultão para castrar o secretário. Todos os rapazes de Damasco correm risco quando a seiva do desejo escorre por aquela árvore velha.

Nesse ponto, ela parou para rir e olhou para Zaina buscando aprovação, mas os olhos da jovem estavam marejados, o que fez Jamila ficar irritada outra vez.

— Olhe bem para Zaina, escriba. Imagine-a em trajes masculinos, traduzindo uma carta em latim para o sultão.

Fiquei pasmo. Descobri então de onde conhecia aquele rosto: de Jerusalém! Ela devia ser irmã gêmea de Tarik ibn Isa.

— Irmã dele não, seu bobo. Ela é Tarik ibn Isa. O pai de Zaina, um velho erudito copta, educou-a como se ela fosse um rapaz. Eles viviam em Jerusalém e rezavam pela libertação. Os cavaleiros cruzados não davam muita importância aos coptas, que consideravam maus cristãos e hereges. Quando o camareiro de Saladino procurou um tradutor, o pai de Zaina vestiu-a de homem e mandou-a para a corte. O resto você sabe. Deixe Imad al-Din pensar que provocou a morte de Tarik ibn Isa, deixe que ele sofra pelo resto da vida. Estamos pensando em disfarçar Zaina de fantasma e mandá-la ficar na cabeceira da cama de Imad al-Din. Você acha que isso mataria o velho?

Olhei para Zaina. Ela recuperava a calma e gostou de ver que sua história me surpreendera. Pelo olhar de Jamila, dava para perceber que ela havia encontrado uma substituta para Halima.

Ao contrário do que se diz, Ibn Maimun, o coração das mulheres é tão volúvel que jamais conseguiremos nos equiparar a ele.

Meus calorosos cumprimentos à sua família.

Seu velho amigo, Ibn Yakub.


39

A praga dos cruzados volta a assolar Acre.
Saladino fica deprimido e
me faz confidências sobre suas incertezas

Tenho inveja de você, meu caro amigo Ibn Maimun. Invejo sua linda casa nos arredores do Cairo. Invejo sua paz de espírito e gostaria de jamais ter deixado o refúgio que você me ofereceu na hora em que necessitei.

Estou em falta com você. Não escrevo há meses, mas estive acompanhando nosso sultão para todo lado. Como as coisas mudaram outra vez. Os destinos desta guerra estão sempre flutuando. Escrevo de Acre, que está sitiada pelos cruzados. A decisão deles de atacar a cidade nos pegou de surpresa. Saladino ficou fora dois dias e voltou com um número de soldados menor que o dos cruzados.

Nosso sultão tem tanto poder que só a notícia de que ele estava chegando bastou para assustar o inimigo. Eles não lutaram, apenas recuaram para o acampamento.

Mandamos alguns de nossos soldados para Acre e despachamos mensageiros para pedir ajuda. Taki al-Din deixou seu posto de observação próximo de Antióquia e veio nos encontrar, assim como Keuburi. Como você sabe, são os dois emires nos quais o sultão confia plenamente, por isso alegrou-se com a chegada deles.

A reação dos outros acampamentos de soldados foi limitada A luta interna entre os governantes de Hamadan, Sinjar e outras cidades mostrava que não estavam mais apoiando Saladino.

Quando os cruzados finalmente entraram em luta, o resultado não ficou bem definido, pois nenhum dos lados tinha vencido ou perdido. Ficamos numa posição bem inferior e os cruzados estão cada dia mais audaciosos, mas a vitória final pode ser nossa. No momento em que escrevo, a situação está assim: imagine os cruzados tentando sitiar Acre e nos pegar de surpresa. Agora, feche os olhos e imagine que nosso Saladino veio chegando silenciosamente por trás dos cruzados e transformou os atacantes em atacados. Nas palavras imortais de Imad al-Din, "Depois de serem as pestanas que cercam o olho, eles viraram o olho cercado pelas pestanas". É uma ótima imagem, mas acho que, na verdade, disfarça o desespero dele. Este ano começou com Saladino sendo considerado o maior soberano da Palestina. Agora, mais uma vez, estamos lutando para sobreviver e o sultão às vezes pensa que seria melhor não ter saído do Cairo.

Saladino jamais descansa. Costuma dormir de duas a três horas por noite. Gostaria que você estivesse aqui para ensiná-lo a cuidar da saúde. Ele parece uma vela que ainda mantém a chama firme, mas que vai se consumindo lentamente. Está com mais de cinqüenta anos de idade, mas conduz seus soldados na batalha como se tivesse vinte anos, empunhando a espada completamente descuidado. Mas eu sei que ele está muito preocupado com seu exército e isso começa a afetar sua saúde física e espiritual.

Não dormiu nos últimos três dias, está com o rosto pálido, e os olhos, que costumam ser alertas e vivos, estão apáticos. Sinto que ele precisa de alguém com quem possa conversar sobre todas as suas idéias conturbadas. Como sempre, gostaria que Xadi estivesse aqui, mas até Imad al-Din e nosso grande cádi al-Fadil serviriam.

Pode comentar minha preocupação com alFadil, se esta carta conseguir chegar às suas mãos. Não sou um bom substituto para nenhum desses três homens, mas sou o único aqui

que o conhece e está ao lado dele há mais de dez anos. Foi mesmo há dez anos que você me recomendou ao sultão, Ibn Maimun? O tempo é cruel. Ele conversa muito comigo e às vezes tenho a impressão que não quer mais que eu seja escriba. Ele olha para mim esperando uma resposta que possa consolá-lo e dar-lhe coragem, mas, como você bem sabe, não entendo de assuntos militares e sei muito pouco a respeito dos emires de Damasco e suas rivalidades. Até fazermos esta viagem, eu nunca tinha percebido minhas deficiências. Quando Saladino precisou de mim, não pude ajudá-lo.

Lembro-me de você, muito tempo atrás, explicando-me que, quando um amigo está com problemas, o melhor que podemos fazer por ele é sentar e ouvir seus infortúnios.

Quando as pessoas estão assim, dificilmente seguem um conselho e podem até se ofender se alguém disser algo que não querem ouvir. Você falou tudo isso em relação a problemas de amor, mas o mal de Saladino é a indecisão para enfrentar o inimigo. Ele pensa em duas ou três soluções, mas não sabe qual delas seguir.

Sentei-me e fiquei ouvindo ele falar com voz triste. Ontem, quando a lua estava no meio do céu e eu dormia, fui chamado à tenda dele. Enquanto andava até lá, o ar frio refrescou minha cabeça. Estas são exatamente as palavras que o sultão me disse: Ibn Yakub, quase todas as noites sinto que Alá está me chamando. Não tenho mais muito tempo de vida, escriba. Passei cinqüenta anos neste mundo, o que é uma bênção de Alá. Ocorre uma coisa estranha com o homem quando ele chega aos cinqüenta anos. Deixa de pensar no futuro e passa cada vez mais tempo pensando no passado; ele sorri com as boas lembranças e sofre com os erros que cometeu.

Nas últimas semanas, pensei muito em meu pai, Ayub. Durante sua vida, meu nobre pai, que seja feliz no céu, nunca precisou se ajoelhar para agradar a um soberano.

Sempre manteve a cabeça erguida. Não gostava de ouvir elogios e era surdo à bajulação, que faz parte do cotidiano na fortaleza. Sempre gostou de ser útil aos outros.

Foi um homem generoso. Mas Xadi deve ter lhe contado que ele tinha uma queda por criadas. Parece surpreso, Ibn Yakub. Será que devo acreditar que o superindiscreto Xadi jamais lhe disse isso? Alá me proteja! Estou pasmo. O fato não era segredo. Era só chegar perto de uma criada para meu pai sentir o desejo — e ele não desperdiçava suas sementes. Uma vez, minha mãe ficou zangada por causa disso e ele jogou um hadith na cabeça dela, que dizia, se é possível acreditar, "O homem está predestinado a copular e fará isso em qualquer circunstância". Minha mãe, que era uma mulher simples, depois de dizer alguns dos piores xingamentos curdos, que não vou repetir agora, perguntou como podia existir um hadith justificando tudo o que os homens faziam com as mulheres, mas não existia para a situação inversa?

Por que estou falando disso com você? Chamei-o para discutir problemas urgentes, mas sua presença sempre me lembra o velho Xadi e fico falando como costumava fazer com ele. Jamais conseguiria fazer isso com al-Fadil ou Imad al-Din, e nem mesmo com meus irmãos.

A maioria dos meus emires e soldados acha que tenho solução para todos os nossos problemas, mas você e eu sabemos que não é bem assim. Um soberano, seja ele forte ou fraco, é sempre solitário. Até o último califa fatímido no Cairo — que vivia cercado de eunucos e viciados em banj que o mantinham distante da realidade -, até ele um dia chorou na minha frente e confessou que sentia falta de um único amigo sincero, e isso o entristecia muito, mais até do que se perdesse o poder.

Tenho tido sorte. Tive bons amigos e conselheiros, mas esta guerra foi longe demais. Não nego meus erros. Devíamos ter conquistado Tiro depois de al-Kadisia. Foi um grande engano ir para o litoral, mas esse problema não era insolúvel. Estou começando a achar que há alguma coisa dentro de todos nós, seguidores de Alá e seu profeta. É quase como se esse credo estivesse tão enraizado em nós que não sentimos obrigação de acreditar em outra coisa. De que outro modo pode-se explicar a degradação que ocorreu em Bagdá? Nem o Comandante dos Fiéis ousaria se comparar aos quatro primeiros califas.

Nossa fé, que nos primeiros tempos nos inspirou a construir um império que incluía mares e desertos e se espalhou por três continentes, agora parece apenas uma sombra do que foi. Adoramos ficar em situações extremas. Quando, contra todas as probabilidades, Alá nos deu uma vitória dramática, ficamos contentes como crianças que venceram no jogo de pedrinhas. Passamos os meses seguintes vivendo da nossa vitória. Alá foi louvado e tudo estava bem.

Depois de uma derrota, descemos ao fundo do poço da tristeza. Não compreendemos que não existem vitórias sem derrotas. Todos os grandes conquistadores da História sofreram reveses. Mas nós somos incoerentes. Depois de alguns contratempos, nosso espírito se enfraquece e nossa disciplina desaparece. Será que isso está escrito nas estrelas? Será que nunca mudaremos? Será que o destino cruel nos obriga a ser sempre instáveis? O que diremos ao anjo Gabriel no dia do Julgamento, quando ele perguntar: "Ó seguidores do grande profeta Maomé, por que vocês, quando mais precisavam, não se uniram contra o inimigo?"

Nossos emires se desmoralizam e desanimam facilmente. É ótimo obter uma vitória fácil, mas, quando a vontade de Alá é frustrada pelos infiéis, nossos emires entram em pânico. Quando seus comandados percebem isso, também ficam desapontados e comentam: "Nosso emir está sentindo falta de vinho e mulheres. Eu também sinto falta da minha família. Há muitos meses não recebemos nenhum tesouro. Talvez seja melhor voltarmos para nossas aldeias esta noite, quando o acampamento estiver adormecido."

Não é fácil manter sempre alto o moral de um exército enorme. Os cruzados têm uma vantagem sobre nós. Seus soldados vêm pelo mar, não podem desertar com tanta facilidade quanto nós. Tudo isso me ensina que os homens só lutam por uma causa maior que seus próprios interesses quando estão convencidos de que ela trará benefícios para todos.

Quando eu era criança, em Baalbek, e o sol brilhava no céu azul, eu costumava ir com meus irmãos brincar perto do rio. De repente, nuvens escuras cobriam o céu como um lençol, e antes que pudéssemos correr, vinha a tempestade, nos assustando com seus raios. Só quando meus soldados agem como uma tempestade, eu posso ser como um raio. É isso que eles não entendem e que os emires, com raras exceções, não conseguem ensinar-lhes. O resultado é o que se vê à nossa volta. Um exército desbaratado. Nosso bom amigo Imad al-Din está dominado pelo medo e pela preocupação. Escreve dizendo que os cruzados estão, como uma praga, fora de nosso controle.

Enquanto o mar continuar trazendo soldados e nossas terras continuarem a lhes oferecer conforto, eles vão conquistar tudo. Nosso grande erudito mostrou que confia em mim: montou no seu cavalo e correu para a segurança de Damasco, sugerindo que eu fizesse o mesmo. Suponho que ele prefere ser cumprimentado por estar em segurança do que ser elogiado depois de morto. Pena, essa é uma estrada feita especialmente para os eruditos de nosso reino. Não é um caminho que trilharei.

Escrevi exatamente como foi dito, e as palavras podem lhe dar uma idéia do estado dele. Se ele ficar mal de saúde, nossa causa ficará também, e os cruzados então poderão retomar Jerusalém e queimar nossa gente como fizeram da outra vez.

Espero que esta carta encontre você gozando de boa saúde e que sua estimada família tenha conseguido sobreviver ao verão do Cairo.

Seu humilde discípulo, Ibn Yakub.


40

A queda de Acre.
A história de Imad al-Din sobre Ricardo Bunda-de-Leão.
A morte de Taki al-Din

Meu Caro e Muito Apreciado Amigo,

Tenho várias razões para explicar por que não escrevo há meses. Andei viajando muito, de um acampamento a outro, acompanhando o sultão como um cão fiel, feliz com minha tarefa. Antigamente, antes de minha família acabar num incêndio, eu às vezes achava ruim ser chamado de repente à presença real. Mas agora sinto que ele precisa muito de mim. Talvez seja pura fantasia, mas sei que eu preciso dele. A seu lado não penso no passado, pois minha cabeça precisa estar atenta para acompanhar os acontecimentos de cada dia.

Às vezes, ao escrever para você, lembro-me da antiga casa no bairro judeu do Cairo e choro. Isso costuma ocorrer em noites frias como a de hoje, quando estou sentado na tenda, enrolado numa manta, aquecendo minhas mãos no fogareiro. Lembro-me das noites de inverno no Cairo, muitos anos atrás. Esta foi uma das razões da demora em escrever. A outra é que não sabia se você tinha mesmo recebido minhas cartas anteriores, e não tive tempo para confirmar por causa da calamidade que foi a perda de Acre. Todos nós ficamos muito tristes.

Por tudo isso, fiquei muito satisfeito com o recado que enviou pelo mensageiro do sultão e gostei de saber que recebeu minhas cartas. Também fiquei emocionado com o fato de você se preocupar com minha saúde, mas fique tranqüilo. Meu único problema é o sultão: ele é capaz de cavalgar cinqüenta dias, descansando apenas três horas por noite e servindo de exemplo para todos os seus soldados, mas temo que qualquer dia desses ele caia morto e nos deixe órfãos para chorar sozinhos.

Compreendo sua irritação com Imad al-Din, mas você não tem muita razão. Como já comentamos antes, ele tem vários maus hábitos. É muito arrogante e costuma fazer coisas agressivas, principalmente a mania de levantar a nádega esquerda quando solta um peido. Mas esse defeito é compensado por numerosas qualidades que fazem esquecer suas fraquezas. É um homem de espírito romântico, o timbre de sua alma é delicado. Basta de falar nele agora. Depois voltarei ao tema.

O enorme fracasso que sofremos em Acre não pode ser subestimado. Filipe da França e Ricardo da Inglaterra tomaram finalmente a cidade. Não tínhamos embarcações para resistir às galés deles, e foram inúteis as tentativas de Saladino para desviar a atenção deles com um ataque de surpresa nos acampamentos. O grande arsenal que tínhamos em Acre dispunha de todas as armas do litoral, além de outras trazidas de Damasco e Aleppo. Os emires na fortaleza mandaram várias mensagens ao sultão pedindo ajuda e informando que, se não recebessem reforço, não teriam alternativa, a não ser renderem-se aos cruzados.

As coisas se passaram assim: quando a situação começou a piorar, três emires importantes fugiram da cidade num barquinho, protegidos pela escuridão da noite. Esse ato de covardia só foi notado de manhã e fez com que os soldados ficassem com o moral ainda mais baixo. Sentindo a proximidade da derrota, o comandante Kara Kush, que você conhece bem melhor que eu, do tempo em que ele morava no Cairo, pediu um encontro com os sultões da Inglaterra e da França para negociar uma rendição e a retirada de nossos soldados. Filipe estava pronto a concordar com os termos propostos por Kara Kush, mas Ricardo queria humilhar nosso exército e não aceitou.

Saladino mandou uma mensagem proibindo a rendição, mas, embora nosso exército tivesse recebido reforço, não podíamos romper o cerco. Kara Kush rendeu-se sem ouvir o sultão e Ricardo impôs condições muito duras, que Kara Kush foi obrigado a aceitar.

Foi o maior revés já sofrido por Saladino. Ele não era derrotado há catorze anos e chorou como uma criança. Eram lágrimas de raiva, de desespero e frustração. Ele sabia que, se houvesse uma liderança mais forte dentro da cidade, ela não teria caído. Ele se culpou, criticou as discussões inúteis e xingou a covardia dos emires.

Prometeu que jamais desistiria da luta para testar o espírito e a fé dos fiéis. Falou da luz que fica temporariamente oculta por uma nuvem e jurou em nome de Alá que as estrelas voltariam a brilhar antes do amanhecer. Foi difícil não ficar comovido com as lágrimas e as palavras dele.

Ricardo da Inglaterra mandou um mensageiro para pedir um encontro particular com o sultão, na presença apenas de um intérprete, mas o Comandante dos Leais recusou o pedido com desdém. Ele mandou um recado pelo mensageiro: "Diga ao seu rei que não falamos a mesma língua."

Em várias ocasiões, Ricardo deixou de cumprir o que prometeu. Prometera a Saladino que soltaria nossos prisioneiros se mantivéssemos nossa parte no acordo de rendição.

Mantivemos. Mandamos a primeira parcela de dinheiro. Os líderes cruzados responderam com a desonestidade que os caracteriza desde que chegaram em nossas terras pela primeira vez.

Numa sexta-feira, dia santo para os seguidores do profeta Maomé, Ricardo ordenou a execução pública de três mil prisioneiros e seus cavaleiros chutaram na areia as cabeças decepadas. Quando a notícia chegou ao nosso acampamento, um grito de dor rasgou os céus, os soldados se ajoelharam e rezaram por seus companheiros mortos. Saladino jurou vingança e ordenou que, dali em diante, nenhum cruzado deveria ser deixado vivo. Até ele, o mais magnânimo dos soberanos, chegou à conclusão de que era olho por olho.

O sultão passou uma semana sem comer até que, numa manhã, após uma deliberação secreta, Taki al-Din, Keuburi e eu pedimos de joelhos que quebrasse o jejum. Ele então pegou a tigela com canja de galinha que lhe ofereci e começou a beber devagar. Nós três nos entreolhamos, sorrimos e demos um suspiro de alívio. Depois que ele terminou de comer, teve uma conversa muito franca com o sobrinho, Taki al-Din, de quem gosta mais ainda que dos filhos e que, no fundo, gostaria que fosse seu sucessor, mas teme um conflito fratricida se insistir nesta escolha.

— Nunca direi isso em público — disse o sultão, com voz fraca -, mas vocês três são os amigos mais próximos e nos quais deposito maior confiança. Não estou triste por causa de Acre: perdemos outras cidades no passado e uma única derrota não muda muita coisa. O que me aborrece é a falta de unidade entre os fiéis. Os amigos de Imad al-Din na corte do califa em Bagdá disseram a ele que, no fundo, o califa gostou que tivéssemos perdido Acre. Vocês não estão acreditando? Desde que tomei al-Kadisia, o Comandante dos Fiéis e seus conselheiros mais próximos passaram a ter medo de mim. Acham que sou tão poderoso porque o povo gosta mais de mim que do califa. Suas mentes doentias, estragadas pelo banj, acreditam que a vitória deles depende da nossa derrota.

Essa foi a primeira vez que, na minha presença, o sultão duvidou da lealdade e da liderança do califa. Fiquei chocado, mas gostei de ser considerado um conselheiro de confiança, no mesmo nível de Imad al-Din e seu amigo, o inimitável cádi alFadil.

Desde a queda de Acre sofremos outra grande derrota em Arsluf e o sultão agora quer que concentremos nossas forças na defesa de Jerusalém. As vitórias não foram fáceis para os cruzados. Tiveram grandes perdas, e alguns soldados, que acabam de chegar pelo mar, não estão conseguindo se adaptar ao calor de agosto na Palestina. Ricardo pediu uma audiência com o sultão. O pedido foi recusado, mas al-Adil compareceu e eles conversaram durante muito tempo. Ricardo queria que cedêssemos a Palestina, mas a audácia da proposta irritou al-Adil, que a recusou rispidamente.

Nos últimos noventa anos, mesmo quando houve uma trégua nessa longa guerra, sempre consideramos essas pessoas apenas uns usurpadores — forasteiros que estavam aqui contra a nossa vontade e por causa de nossa fraqueza. Ricardo foi apenas o último de uma seqüência de cavaleiros cruéis que chegaram a essas praias. E o manto de nossa diplomacia esconde um punhal. O sultão costuma se perguntar se esse pesadelo nunca vai acabar, ou se nosso destino, como habitantes do lugar onde nasceram Moisés, Jesus e Maomé, é estar sempre em guerra. Ontem ele quis saber se eu achava que Jeová, Deus e Alá algum dia viveriam em paz. Não fui capaz de responder. Você é, caro amigo?

Imad al-Din chegou de Damasco na mesma manhã em que al-Adil recusou rispidamente a proposta de paz de Ricardo. Passou quase o dia inteiro conversando com alguns cavaleiros cruzados que capturamos de surpresa e que deveriam ser executados ao anoitecer. Três deles se converteram à fé do profeta e foram poupados, mas todos estavam ansiosos para falar com Imad al-Din.

Na manhã seguinte, eu estava fazendo minhas necessidades fisiológicas numa extremidade do acampamento quando Imad al-Din veio fazer o mesmo. Depois de nos lavarmos e sentarmos para a refeição matinal, ele começou a contar histórias sobre Ricardo que eu ignorava.

Um dos cavaleiros cruzados disse que Ricardo luta com a ferocidade de um leão e por isso é chamado de Coração de Leão. Os outros cavaleiros confirmaram, e pelo que vimos de suas atividades bélicas, podemos concordar com essa característica de sua personalidade. Ele luta como um animal. Ele é um animal. Como sabemos, caro amigo Ibn Yakub, o leão não é a criação mais refinada de Alá.

Mas, mesmo se aceitarmos o título como um elogio, nem todos os cruzados concordam. Três cavaleiros, com os quais falei individualmente, têm outra opinião. Segundo eles, Ricardo luta com ferocidade só quando está rodeado por outros cavaleiros. Eles garantem que Ricardo toma atitudes vis, de traição e covardia, e quando sente que vai ser derrotado sabe-se que deserta do campo de batalha antes de qualquer de seus soldados. A execução de nossos prisioneiros em Acre foi obra de um chacal, não de um leão.

Este rei será lembrado como Ricardo Bunda-de-Leão. Vejo que você acha graça da minha previsão, Ibn Yakub, mas estou falando sério. Já vi várias vezes o ânus de um leão morto e sempre fiquei muito impressionado com o tamanho. É um dos mistérios inexplicáveis da natureza.

Mas não foi a natureza que deu a Ricardo um ânus grande.

Segundo meus informantes, ele já foi penetrado por exércitos inteiros, mas não se saciou. Na verdade, ele gostaria de ser possuído por al-Adil, o querido irmão de nosso sultão. Saladino riu quando soube disso e, na minha presença, observou para o irmão: "Meu bom irmão al-Adil, para ajudar a causa de Alá, preciso que cumpra o seu dever e faça este grande sacrifício."

Ri um pouco alto demais do que deveria ser uma piada, e os dois ficaram em silêncio olhando para mim, depois se entreolharam. Eu sabia o que estavam pensando: achavam que eu poderia ser a pessoa indicada para fazer esse grande sacrifício e penetrar na bunda do leão. Como você pode imaginar, meu caro amigo, não dei tempo para que amadurecessem esta idéia idiota. Alegando uma urgente necessidade fisiológica, saí da tenda do sultão e não voltei.

Escrevi o texto acima há três dias. Houve mais uma tragédia. O sobrinho favorito do sultão, o jovem emir Taki al-Din, foi morto num embate desnecessário com os cruzados. Ele não queria essa luta, mas foi convencido por alguns jovens soldados e obrigado a comandá-los, e só então viu que o inimigo era muito mais numeroso. Saladino recebeu mal a notícia e ainda está muito abalado. Na verdade, ele gostava mais de Taki al-Din que dos próprios filhos. O pai de Taki morreu há muito tempo e o sultão o adotou, tratando-o como um filho e, mais que isso, como um amigo.

Aconteceu assim: fui chamado à tenda do sultão junto com al-Adil e alguns emires de Damasco. Quando chegamos, Saladino estava chorando. Soluçava alto e, ao ver al-Adil, seu desespero aumentou. Ficamos tão perturbados, sem saber por que ele chorava daquele jeito, que também choramos. Quando soubemos o que acontecera, ficamos apavorados. Taki al-Din não era apenas sobrinho dele, mas um dos poucos emires de confiança que entendiam a razão dessa guerra e que, o sultão esperava, conseguiriam acompanhála até o fim. A coragem desse emir era fonte de inspiração para seus soldados e para o tio, que também conhecia sua alma gentil, qualidade que ele mais apreciava. Sem Taki, tornou-se necessário conseguir todas as vitórias possíveis para desmoralizar os cruzados e mandar seus líderes de volta ao mar.

Na manhã seguinte, o sultão entregou-me um pedaço de papel com uma homenagem ao sobrinho morto. Na ausência de Imad al-Din, ele queria que eu lesse os versos e os aperfeiçoasse, antes de enviá-los para os irmãos e sobrinhos. O grande erudito costumava ser rigoroso com tudo o que o sultão escrevia, mas eu não tinha autoridade nem segurança suficientes para fazer qualquer alteração no texto. Na verdade, Ibn Maimun, gostei dos versos e mandeios para muitas pessoas do jeito que estavam.

Concorda comigo?

Sozinho no deserto, faço as contas de quantos jovens nossos tiveram suas vidas apagadas. Quantos ficaram nesses campos de extermínio? Quantos mais ainda vão morrer?

Não podemos chamá-los de volta à vida com o som da flauta, nem com canções.

Mas em cada manhã, ao nascer do sol, lembrarei todos eles em minhas preces. A lança cruel da morte atingiu Taki al-Din e os muros do mundo se fecharam à minha volta. Está tudo escuro. Só existe desolação. Poderemos iluminar o caminho outra vez?

Seu amigo, Ibn Yakub. (Escriba particular do sultão Saladino ibn Ayub)


41

Bunda-de-Leão volta para a Inglaterra
e o sultão se retira para Damasco

Caro Amigo Ibn Maimun,

Ficamos absolutamente perplexos. Houve tanta desavença entre os emires que, se Ricardo sitiasse Jerusalém, quem sabe não teria conseguido tomar a cidade? Várias vezes o sultão foi à mesquita de al-Aqsa e deixou os tapetes de oração úmidos com suas lágrimas. Ele também achava que os emires e soldados não teriam condições de resistir a uma investida.

Num conselho de guerra, um emir foi áspero com Saladino, dizendo: "A queda de Jerusalém não causará dano à fé. Afinal, sobrevivemos durante muitos anos sem ela, que é apenas uma cidade de pedra. Nosso mundo tem muita pedra." Eu nunca vira o sultão ficar tão irritado em público. Ele se levantou e todos nós nos levantamos junto. Saladino foi até o emir e olhou bem na cara dele. O emir desviou o olhar e se ajoelhou. O sultão não disse nada. Voltou para seu lugar e afirmou, num tom calmo, que Jerusalém seria defendida até o último homem e, se ela caísse, ele cairia junto, para que no futuro seus filhos lembrassem e compreendessem que aquela não era apenas uma cidade de pedra, mas um lugar onde o futuro de nossa fé foi decidido. Depois, saiu do aposento. Ninguém falou e, aos poucos, a sala se esvaziou.

Fiquei sentado sozinho, pensando nos agitados acontecimentos dos últimos anos. Tínhamos ficado muito confiantes depois de nossa vitória em Jerusalém. Eu gostava do sultão como se fosse meu pai, mas ele tinha uma falha de personalidade. Na hora em que precisava ser firme, tomar decisões que não agradariam ao povo, ter certeza de que sua intuição estava correta, ficava indeciso e era influenciado por homens menos importantes. Muitas vezes tive vontade de deixar de lado minha posição de escriba e falar com ele como amigo, como você faz comigo. Você está imaginando o que eu diria? Eu também não sei direito.

Talvez eu lhe dissesse baixinho: "Não perca a coragem se algum emir o abandonar, se os camponeses não obedecerem às suas ordens e derem comida aos cruzados. Sua intuição é boa. O senhor costuma acertar, mas a garantia de nossa vitória final está numa enorme relutância em render-se, na sinceridade ao falar com nossos soldados e em cortar todos os compromissos com os que vacilam. O segredo das vitórias de seu tio Xirkuh estava em manter essa diretriz, firme e direta como uma lança no ar.

Felizmente para nós, Ricardo também estava com medo da derrota. Ele temia o sol. Tinha medo de poços envenenados. Tinha medo de nossa ira, mas, acima de tudo, tinha medo do sultão. E estava louco para voltar para casa. Uma das poucas vezes em que vi o sultão rir foi quando um de nossos espiões contou que havia sérias desavenças no acampamento inimigo. Ricardo e o rei francês não concordavam em absolutamente nada. Começaram a se odiar tanto que suas brigas sobrepujaram a preocupação de nos vencerem.

— Alá seja louvado, não é só o nosso lado que tem disputas mesquinhas e rivalidades — disse o sultão entre risos.

Ele achou que era uma boa hora para acertar um acordo de paz. Os cruzados podiam ficar com suas cidades litorâneas. Que ficassem com Tiro, Jaffa, Ascalon e Acre.

Elas não são nada, comparadas com o que temos agora e, embora não os tivéssemos mandado de volta para o mar, o tempo estava a nosso favor. Foi o que o sultão pensou — e tinha razão.

Ricardo foi embora da nossa costa. Ficou dois anos e não conseguiu tomar a Cidade Santa. Sua expedição deu em nada. Pode ter sentido prazer em executar prisioneiros indefesos, mas sua cruzada fracassou, e essa é a nossa vitória.

Nosso sultão continua sendo o único soberano de toda a região. Sei que você não estranhará ao saber que, assim que Ricardo se despediu de nossas praias, começamos a receber delegações de nobres cruzados desesperados, querendo se defender dos outros cruzados sob a proteção do sultão. Querem comprar sua segurança e aceitam se transformar em vassalos.

Foi assim que voltamos para a fortaleza em Damasco, de onde escrevo estas linhas. Agora tenho três grandes aposentos à minha disposição e sou tratado como um convidado, não como empregado. O camareiro vem sempre aqui para verificar se estou bem atendido. Faz isso por ordem expressa de seu amo. É como se Saladino quisesse recompensar minha eficiência durante todos esses anos, garantindo que meus últimos anos sejam agradáveis e confortáveis.

Vejo o sultão todos os dias. Ele costuma falar no pai e no tio, mas é de nosso velho amigo Xadi que mais sente falta — o guerreiro curdo que era também seu tio de sangue e jamais temia dizer a verdade. Ontem ele lembrou-se da "capacidade que Xadi tinha de transformar a retórica em lógica" e nós rimos, não como um soberano e seu empregado, mas como dois amigos lastimando a perda de algo precioso.

Estou preocupado com ele, Ibn Maimun, e gostaria muito que você pudesse vir até aqui e ser seu médico. Ele precisa de cuidados. Seu rosto está vincado de rugas e mostra sinais de cansaço. A barba está cheia de cabelos brancos; ele se cansa à toa e não dorme direito à noite. Será que você poderia indicar algumas infusões de ervas?

Ontem, animado depois do repouso vespertino, ele mandou chamar Imad al-Din. O grande homem só veio bem mais tarde, muito depois de terminarmos a refeição da noite.

Desculpou-se dizendo que só recebera o recado do sultão meia hora antes. Saladino sorriu e fez de conta que acreditou. Todos sabem que Imad al-Dir evita comer com o sultão por causa de seus hábitos frugais.

— O que comeu esta noite e onde, Imad al-Din? — perguntou o sultão, sério.

O secretário ficou surpreso com a pergunta inesperada. Arregalou os olhos e ficou alerta.

— Foi uma refeição simples, ó Comandante dos Bravos. Um pouco de carneiro grelhado, depois um dos pratos que inventei, codornas cozidas em coalhada de leite de ovelha e temperadas com sal e alho. SorRimos, e ele também. Depois de uma troca de amenidades, o sultão anunciou que gostaria de fazer a peregrinação a Meca e pediu a Imad al-Din que tomasse as providências necessárias. O secretário franziu o cenho.

— Neste momento, não recomendaria essa viagem. O califa já anda com inveja de Sua Majestade. Ele sabe que o povo o ama. Vai achar que sua visita a Meca é uma ameaça indireta à autoridade dele em Bagdá.

O sultão interrompeu a fala de seu conselheiro-chefe sobre assuntos de protocolo: — Isso é bobagem, Imad al-Din. Todo fiel tem obrigação de visitar Meca uma vez por ano.

— Sei disso, sultão — respondeu o secretário.

— Mas o califa poderia perguntar por que quer ir agora visitar Meca pela primeira vez. Ele pode até dar ouvido às más línguas que dizem que Sua Majestade era cético e, como tal, devia dar pouca importância aos rituais de nossa fé.

— Faça o que estou mandando, Imad al-Din — foi a resposta seca.

— Visitarei Meca antes do fim do ano. Comunique ao califa e pergunte delicadamente se devemos parar para cumprimentá-lo no caminho.

Depois que o assunto foi acertado, Imad al-Din fez menção de ir embora, mas o sultão mandou que ficasse.

— Não temos tido o prazer da sua companhia com freqüência nos últimos dias, Imad al-Din. Diga-me, está com um novo amante?

O sultão não costumava fazer perguntas tão íntimas. Por isso o secretário ficou surpreso e um pouco lisonjeado com a familiaridade do soberano. Reagiu à pergunta com uma piada que o sultão e eu achamos sem graça. Frustrado com a excessiva discrição de Imad al-Din, Saladino ficou sério.

— Sei que você estudou muito a fé cristã, Imad al-Din. É verdade que os primeiros cristãos, de quem os coptas se dizem descendentes, tinham a mesma aversão que nós por ícones e imagens? Incluo aqui os seguidores da crença de Ibn Yakub e os seguidores de Musa que, como nós, rejeitam a adoração de imagens. Como foi que os cristãos deixaram de acreditar nisso e começaram a venerar imagens? Se aconteceu com eles, não pode acontecer conosco também?

Por um instante Imad al-Din ficou imerso em pensamentos, cofiando a barba. Quando conseguiu encontrar uma resposta, falou devagar como se estivesse explicando a uma criança.

— Os primeiros cristãos achavam uma grande ofensa a adoração de imagens. Eram, na maioria, descendentes do povo de Musa e, como tal, adotavam muitos dos antigos preceitos judeus. E detestavam os gregos. Na verdade, alguns cristãos costumavam zombar dos pagãos dizendo que, se as estátuas e imagens que eles tinham fossem capazes de pensar e sentir, só poderiam gostar de quem as criou.

"A mudança ocorreu trezentos anos depois, quando os pagãos foram totalmente derrotados. Os luminares da Igreja achavam que imagens de Isa e dos santos e relíquias como a cruz de Isa poderiam funcionar como uma ponte entre eles e uma multidão de céticos que tinha saudade do passado e ainda se lembrava dos aspectos mais agradáveis dos rituais pagãos. Se os seguidores de Pitágoras só poderiam ser convertidos por imagens de Isa pregado na cruz, então os bispos estavam prontos a tolerar esse rompimento com o passado.

"Pagãos recém-convertidos acharam que a sua fé precisava de uma Atena, uma Diana, uma Vênus, e acalmaram seu novo rebanho transformando a mãe de Isa, Maria, numa das imagens mais populares da religião deles. Precisavam da figura de uma mãe, já que governavam países onde as deusas foram adoradas durante séculos. Nosso profeta, que descanse em paz, sabia disso, mas resistiu aos apelos de Satanás.

"O sultão pergunta se pode acontecer o mesmo conosco. Acredito que não. A essência de nossa fé está tão ligada à adoração de Alá, e apenas dele, que adorar imagens de qualquer pessoa não seria apenas um ato profano, mas ameaçaria a autoridade do Comandante dos Fiéis. Afinal, se o poder está numa relíquia ou numa imagem, por que aceitar o poder de um ser humano? Sei o que está pensando, ó Comandante dos Inteligentes: e o papa em Roma? Também refleti sobre isso e acredito que, com o passar dos anos, a fé deles sofrerá cismas e ameaças à autoridade do papa. Esta é a lógica da adoração de imagens.

"Se nós fôssemos por esse caminho, nossa fé, ao contrário da dos cristãos, não suportaria o golpe. Ela acabaria.

O sultão cofiou a barba, pensativo, mas não se convenceu com a lógica de Imad al-Din.

— O poder do papa ou de nosso califa pode ser ameaçado, Imad al-Din. Nesse ponto, concordo com você, mas nem tudo é por causa da adoração de imagens e ícones.

Você não me convenceu, e o assunto me interessa muito. Fale com o camareiro e peça-lhe que convoque uma reunião de eruditos na próxima semana a fim de discutirmos melhor esse tema. Não vou prendêlo mais aqui. Tenho certeza de que, em algum lugar de Damasco, um belo jovem está esperando pacientemente que você chegue à sua cama.

O secretário não respondeu, mas deu um sorriso e beijou o manto do sultão antes de ir embora. Ainda era cedo, mas Saladino estava cansado. Dois criados entraram com panos, sabonetes e óleos para levá-lo ao banho. Ele me olhou com um sorriso triste.

— Jamila vai se irritar por eu ter ficado tanto tempo com você hoje. Está louca para falar com você. Como eu, ela passou a valorizar muito sua amizade. Sua presença lhe dá confiança. É melhor que amanhã você passe o dia com ela.

Fiz uma reverência quando ele saiu, com os braços apoiados nos ombros dos criados. Ambos carregavam lamparinas na mão direita, e, enquanto ele andava entre os dois, as chamas iluminaram o rosto de Saladino. Por um instante, pareceu uma luz de outro mundo. Do paraíso. Ele às vezes fala dos dons inesperados que recebeu de um destino generoso e se refere a si mesmo como um mero instrumento de Alá. Tem consciência de sua mortalidade. Ibn Maimun, ele não está bem, e isso me entristece.

No dia seguinte, cumpri a ordem do sultão e fui oferecer meus préstimos à sultana Jamila. Ela me recebeu a sós e foi muito gentil. Entregou-me um manuscrito e, quando o folheei, comecei a tremer de medo — por ela e por mim. Nós dois poderíamos ser decapitados: ela, por escrever aquele texto transgressor e eu, por lê-lo calmamente, sem comunicar ao cádi. O texto continha blasfêmias tão evidentes que até o sultão acharia difícil protegêla da ira dos xeques. Discutirei isso quando nos encontrarmos novamente, Ibn Maimun. Tenho medo de repeti-las numa carta que será levada por um mensageiro. É bem provável que nossas cartas sejam lidas por olhos curiosos e o conteúdo seja comunicado a al-Fadil e Imad al-Din. Depois, recebem o lacre e são enviadas.

Implorei a Jamila para queimar aquele manuscrito.

— O papel pode queimar, escriba — retrucou ela, com os olhos brilhando -, mas os meus pensamentos continuarão os mesmos. O que você não entende é que algo terrível me aconteceu, quero partir para o sul e não voltar mais. Não consigo mais sorrir, o vento queimou meus lábios.

Quero morrer no lugar onde nasci e, até esse dia chegar, continuarei a pôr meus pensamentos no papel. Não pretendo destruir este manuscrito. Ele será guardado em lugar seguro e lido pelos que entendem minha busca da verdade.

Embora pudesse ler a resposta nos olhos dela, perguntei qual a calamidade que a atingira. Jamila estava farta da linda moça copta. Seu coração saciado sentiu uma súbita repugnância. Ela não explicou por que isso aconteceu, e eu também não perguntei. Estava procurando Halima na moça copta e não a encontrou. Será que continuaria a busca quando voltasse para o sul ou se resignara a uma vida de estudos? Ia perguntar isso, quando ela me fez uma proposta inesperada.

— Ibn Yakub, sua vida também sofreu reveses. Você conquistou respeito e elogios de todos, mas nós somos como os mendigos. Não temos nada. É verdade que tenho dois filhos sadios, mas estão longe e morrerão lutando, defendendo alguma fortaleza nesta maldita guerra. Não acredito que eles chegarão a me dar netos para me ajudar na velhice. Pressinto que você e eu teremos uma vida vazia depois que o sultão morrer. Por que não vem comigo para o sul? A biblioteca do palácio de meu pai tem muitos manuscritos raros, inclusive alguns de céticos andaluzes. Você sempre terá algo para ler. O que diz, escriba? Precisa de tempo para pensar?

Fiz um sinal afirmativo e agradeci por me dispensar tanta gentileza. A verdade, Ibn Maimun, é que eu gostaria de voltar para o Cairo, encontrar um quartinho em algum lugar e ficar perto de você.

Seu fiel amigo, Ibn Yakub.


42

Adeus ao sultão

Caro Amigo,

Enquanto escrevo estas linhas, a fortaleza está coberta por uma neblina de inverno, que não é nada em comparação com as nuvens escuras que toldaram nossos corações nos últimos sete dias. Acostumado à guerra, ele agora descansa em paz à sombra da Grande Mesquita.

Meu futuro é incerto. O sultão foi sucedido por seu filho alAfdal, e ele deseja que eu continue aqui como escriba. Jamila prepara sua partida para o sul e quer que eu a acompanhe. Acho que vou alegar que não estou bem de saúde e voltar para o Cairo, a fim de pôr as idéias em ordem e refletir um pouco sobre a vida desse homem que partiu nos deixando perdidos na escuridão.

Como escrevi antes, a saúde dele não estava boa. Nas últimas semanas em Jerusalém, ele suspirava e reclamava da falta de sono, mas insistia em jejuar, o que os médicos diziam ser desnecessário. O jejum o enfraqueceria ainda mais e eu costumava vêlo de cabeça baixa, olhando para o chão.

Ele melhorou ao voltar para Damasco e isso fez com que sua morte fosse ainda pior para nós, por ter sido inesperada. No último mês, ele passou muito tempo com o irmão al-Adil e os filhos. A saúde parecia ter voltado, ele se alimentava bem e estava com o rosto corado. O sultão, o irmão e os filhos riam muito quando saíam da cidade a cavalo para caçar.

Um dia, estávamos sentados no jardim quando o filho mais velho, alAfdal, veio cumprimentá-lo. O sultão me falava do amor que tinha pelo sobrinho morto, Taki al-Din, e calou-se ao ver alAfdal chegar e beijar as mãos do pai. O sultão lançou-lhe um olhar severo.

— Estou deixando para vocês um império que se estende do Tigre ao Nilo. Nunca se esqueça de que a base de nossas vitórias foi o apoio que temos de nosso povo.

Se você se isolar do povo, não vai durar muito no poder.

Em outra ocasião, ele recomendou que al-Adil defendesse os interesses de seus filhos. Como o irmão, Saladino sabia que os clãs montanheses não respeitam muito a hereditariedade: escolhem o homem mais forte do grupo para comandar e defender os interesses de todos. O irmão caçula do sultão, al-Adil, tinha uma enorme semelhança com o tio Xirkuh, com sua personalidade e suas preferências. Saladino e o irmão sabiam que, pela vontade dos criados e soldados, al-Adil deveria ser o novo sultão.

Ele pediu a al-Adil que protegesse Afdal, Aziz e Zair de conspirações. O irmão caçula se inclinou, beijou o sultão nas duas faces e perguntou: — Por que está tão triste? Alá vai me levar muito antes de você. Ele precisa de você para expulsar os infiéis do litoral.

Quando al-Adil disse isso, concordei. O sultão estava animado e me fez recordar aqueles primeiros dias no Cairo, quando estava aprendendo a arte de governar. Mas o sultão deve ter tido um pressentimento.

Certa manhã, ele mandou me acordar para ir ao seu encontro. Como não conseguiu ir a Meca, queria receber os peregrinos que voltavam da viagem fora dos muros da cidade. Acho que ele lamentava sinceramente não ter conseguido fazer a peregrinação. Quando jovem, isso era um ato de rebeldia, mas, quando ficou mais velho, achou que foi uma perda. Durante duas décadas, Saladino se ocupou da guerra contra os cruzados e agora estava cansado demais para fazer a viagem. Imad al-Din usara a rivalidade com o califa para impedir a viagem, mas o secretário me confidenciou que na verdade temia que o sultão não agüentasse a jornada. Pela mesma razão, seus médicos o proibiram de ir. Ele concordou, embora não gostasse, e a vontade de saudar os peregrinos era uma forma de compensar seu próprio fracasso.

Quando saímos a cavalo, começou a chover. Era um frio aguaceiro de inverno, que caiu de repente e gelou nossos rostos. Vi que o sultão sentia frio e percebi que estava sem sua jaqueta forrada. Peguei meu manto e tentei colocá-lo nos ombros dele, mas ele riu e o devolveu. Achou graça porque eu, que ele considerava uma pessoa fraca, estava tentando protegê-lo da chuva.

A chuva caiu com tal intensidade que a estrada ficou dividida por duas correntezas intransponíveis. Os cavalos começaram a patinhar na lama, mas ele quis continuar e nós fomos atrás. Sou capaz de vê-lo ainda agora, com as roupas e a barba respingadas de lama, enquanto olhava os peregrinos ensopados e os saudava.

Quando voltamos, a chuva tinha parado e o céu estava limpo. O povo de Damasco, usando suas melhores roupas, veio para as ruas cumprimentar o sultão e dar boas-vindas à caravana que chegava de Meca. Nós evitamos as multidões e pegamos um atalho para chegar à ponte levadiça.

Naquela noite, ele teve muita febre. Acho que nem um médico com a sua competência teria conseguido salvá-lo, Ibn Maimun. A febre subiu e o sultão ficou quase inconsciente.

Via os filhos e al-Adil todos os dias. Não saí da cabeceira dele, pensando que poderia se recuperar para ditar o último testamento, mas, no décimo dia, ele adormeceu e não acordou mais. Tinha acabado de completar cinqüenta e cinco anos.

A cidade chorou durante três dias inteiros. Os comerciantes, embora não fossem obrigados, fecharam suas portas e as ruas ficaram desertas. Nunca tinha visto uma manifestação tão grande de tristeza coletiva. Toda a cidade estava presente quando nós, caminhando em completo silêncio, acompanhamos o corpo até seu derradeiro lugar de descanso. O médico Abd al-Latif, que também era um homem idoso, cochichou no meu ouvido que não se lembrava de outro caso em que a morte de um sultão tivesse tocado tão sinceramente o coração do povo.

Imad al-Din, com o rosto desfigurado pela dor e com as lágrimas escorrendo, rezou em voz alta:

— Ó Alá, aceita esta alma e abre as portas do paraíso, e assim conceda a ele a última vitória, que sempre almejou.

Quando voltamos, a fortaleza estava em absoluto silêncio. Parecia que os emires e criados não conseguiam suportar o som das próprias vozes. O filho do sultão, alAfdal, veio me abraçar, mas não dissemos nada.

Na mesma tarde, senti enjôo e mal-estar. Estava com calafrios, meu corpo parecia queimar. Tomei três frascos de água e dormi.

Acordei na manhã seguinte já curado, mas estava fraco e com um pressentimento de desastre. Sentei-me na cama e percebi que o desastre já ocorrera. O sultão estava morto.

Minha tarefa está terminada. Não tenho mais nada a escrever. Que a paz esteja contigo, até nos encontrarmos.

Seu amigo fiel, Ibn Yakub. (Escriba do falecido sultão Saladino ibn Ayub)

 

 

                                                   Tariq Ali         

 

 

 

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