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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O LIVRO DE SAN MICHELE / Axel Munthe
O LIVRO DE SAN MICHELE / Axel Munthe

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

O navio correio de Sorrento arreou a vela latina e eu saltei em terra. Enxames de garotos nus banhavam os corpos luzidios e bronzeados nas águas ou brincavam na praia. Diante dos barcos fundeados estavam sentados velhos pescadores com seus gorros frígios, remendando as redes. Em frente da pontezinha havia meia dúzia de burros albardados e com as cabeças enfeitadas com flores. À volta deles riam e cantavam outras tantas raparigas com a spadetta de prata nas tranças negras e um lenço encarnado atado à nuca. O burrico que me havia de levar a Capri chamava-se Rosina e a rapariga Gioia. Seus brilhantes olhos negros irradiavam alegre juventude; os lábios eram vermelhos como o colar de coral que trazia ao pescoço, os dentes, fortes e brancos, resplandeciam como um fio de pérolas no sorriso alegre. Disse-me que tinha quinze anos, e eu senti-me mais jovem do que nunca. Mas Rosina era velha, «é antica», dizia Gioia. Apeei-me e subi lentamente pelo caminho que serpenteava em direcção à povoação. Diante de mim bailava Gioia descalça com uma grinalda de flores na cabeça, como jovem bacante, e atrás arrastava-se Rosina com os seus diminutos e bonitos cascos negros, com a cabeça baixa, com as orelhas murchas, embebidas em profundos pensamentos. Não me sobrava sequer tempo para pensar, sentia a imaginação cheia dum encanto extático, e o meu coração transbordava da alegria de viver: o Mundo era belo e eu tinha dezoito anos. Percorríamos o nosso caminho através de giestas em flor. Mirtos e muitas outras florinhas, que nunca vira na pátria de Linneu, erguiam as corolas cheias de encanto para nos ver passar.

- Como se chama esta flor? - perguntei a Gioia.

Tirou-me a flor da mão e, examinando-a, respondeu:

- Fiore.

-E esta, como se chama?

Examinou-a com a mesma carinhosa atenção e respondeu:

- Fiore!

- E aquela como se chama?

- Fiore, Bello! Bello!

 

 

 

 

Apanhou um raminho de mirtos olorosos, mas não mo quis dar. Disse-me que as flores eram para San Constanzo, o padroeiro de Capri, que era de prata maciça e tinha operado muitos milagres: San Constanzo, bello, bello!

Uma comprida fila de raparigas com cântaros à cabeça aproximava-se lentamente de nós, em solene procissão, como as cariátides do Erecteon. Uma das jovens, sorrindo, pôs-me na mão uma laranja. Era irmã de Gioia. E ainda mais linda que ela, pensei. Sim, em casa eram oito, entre irmãos e irmãs, e dois estavam já no Paraíso. O pai andava ao longe, pescando coral na Berberia. E aquele era o lindo colar de coral que acabava de lhe mandar. Che bella collana! bella! bella!

- Tu também és bella, Gioia, bella! Bella!

- Sim - disse.

O pé tropeçou-me numa coluna de mármore quebrada. - Roba de Timberio! (1) - explicou Gioia- Timberio cattivo, Timberio mal’occhio, Timberio cammorrista! - e cuspiu sobre o mármore.

- Sim - disse - com Tácito e Suetónio - Timberio cattivo!

Desembocámos na estrada e chegámos à Piazza, onde dois marinheiros estavam junto do parapeito que dava para a Marinha; outros indígenas sonolentos sentavam-se diante da estalagem de Don António, e à porta da igreja havia meia dúzia de padres gesticulando vivamente em animada conversa: Moneta! Moneta! Molta moneta! Poco moneta! Niente moneta!

Gioia corre a beijar a mão a Don Giacinto, seu confessor, um verdadeiro santo, se bem que a cara o não mostrasse. Gioia confessava-se duas vezes por mês - e eu, quantas vezes me confessava? Nunca!

Cattivo! Cattivo!

Seria Gioia capaz de contar a Don Giacinto que eu a tinha beijado debaixo dos limoeiros? Não, por certo. Atravessámos a aldeia e detivemo-nos diante de Punta

Tragara.

- Quero trepar ao cimo dessa rocha - disse eu, indicando o mais escarpado dos três Faraglioni, que brilhavam como ametistas aos nossos pés.

Mas Gioia estava certa de que eu não conseguiria fazê-lo. Um pescador que intentara encarrapitar-se nele, para apanhar um ovo de gaivota, fora precipitado no mar por um espírito maligno que ali habitava, sob a forma dum lagarto azul-azul

 

Nota 1: O velho imperador que passou os últimos onze anos da sua vida na ilha de Capri e que ainda sobrevive nos lábios dos habitantes que lhe chamara sempre «Tibério».

 

como a Gruta Azul - para custodiar o tesouro que o próprio Tibério tinha escondido.

Nas alturas, por cima da amorável aldeiazinha, destacavam-se a oeste os imponentes contornos do Monte Solaro, com suas severas encostas e sinistros escolhos.

- Quero subir imediatamente àquela montanha - declarei.

Mas Gioia decididamente não gostava da ideia. Setecentos e setenta e sete degraus verticais escavados na rocha pelo próprio Tibério conduziam lá acima e, a meio do caminho, numa caverna sombria, vivia um lobo, enorme e feroz, que tinha devorado grande quantidade de cristiani. Ao topo das escadas encontrava-se Anacapri, mas aí só vivia gente selvagem, muito má, e nunca lá tinha subido nenhum estrangeiro, nem ela própria lá estivera nunca. Seria muito melhor ir até à quinta de Timberio ou à Grotta Matromania.

- Não, não tenho tempo, hei-de subir imediatamente àquela montanha.

Voltámos à Piazza no momento em que os velhos sinos davam doze badaladas, para anunciar que os macarrões estavam preparados. Não quereria eu pelo menos almoçar debaixo da grande palmeira do Albergo Pagano? Tre piatti, vino à volontá, prezzo una lira. Não, não precisava de comer. Tinha que trepar à montanha. Addio, Gioia, bella! Bella! Addio, Rosina!

- Addio, addio e presto ritorno. Ai! presto ritorno!

É um pazzo inglese - foram as derradeiras palavras que ouvi dos rubros lábios de Gioia, quando, impelido pelo meu fado, subi correndo os degraus fenícios em direcção a Anacapri. A meio do empinado caminho encontrei uma mulher com um cesto de laranjas à cabeça. - Buon giorno, Signorino. Baixou o cesto e deu-me uma laranja. Por cima das laranjas levava um maço de cartas e jornais embrulhado num lenço encarnado. Era a velha Maria Porta-Lettere, que levava duas vezes por semana a correspondência a Anacapri; depois foi minha amiga durante toda a vida; vi-a morrer com noventa e cinco anos. Buscou, trémula, o maço das cartas, escolheu o sobrescrito maior e queria saber se era para Nonnina la Caprara (1), que esperava ansiosamente carta do marido, que estava na América. Não, não era para ela. Era para a signora Desdemona Vacca.

 

Nota 1: A pastora das cabras.

 

- La Signora Desdemona Vacca - repetiu a velha Maria Porta-Lettere, desconfiada. Talvez seja a moglie dello scartluzzo-acrescentou, pensativa. A outra era para o signor Ulisse Desiderio. Isso deve ser para Capolimone (2), que o mês passado recebeu uma carta

Nota 2: Cabeça de limão.

 

do mesmo tamanho. A carta seguinte era para a Gentilissima Signorina Rosina Mazzarella. Parecia mais difícil identificar esta senhora. Seria por acaso a Cacciacavallare ? (1) ou a opparella? (2) ou a Captosta? (3) ou a Femina Antica? (4) ou Rosinella Pane Asciuto? (5) ou talvez a Fesseria?-sugeriu outra mulher com uma grande cesta de peixe à cabeça, que casualmente se tinha aproximado de nós. Sim, era com certeza para a Fesseria, a não ser que fosse para a moglie di Pane e Cippolla (6). Mas não havia nenhuma carta para Peppinellan coppo di camposanto (7), nem para Mariuccella Caparossa (8) nem para Giovannina Ammazzacane (9), que estava esperando carta da América?

 

Notas - 1: A mulher dos queijos.

2: A Coxa.

3: Cabeça dura.

4: A velha.

5: Rosillena pão seco.

6: Para a mulher de pão e cebola.

7 Pepinela acima do cemitério.

8 Mariucella cabeça de cenoura.

9: Joaninha Matacães.

 

Tinha muita pena, declarei, mas não havia. Os jornais eram para o reverendo pároco Don Antonio di Giuseppe e para o cónego Don Natale di Tommaso, bem o sabia, porque eram de toda a aldeia os únicos assinantes. O pároco era muito instruído e lia sempre os endereços das cartas, mas nesse dia estava em Sorrento, de visita ao arcebispo. Por isso a mulher me pedira que lesse os sobrescritos.

A velha Maria ignorava os anos que tinha, mas estava certa de que levava o correio desde os quinze anos, quando sua mãe teve que o deixar. Naturalmente não sabia ler. Quando lhe disse que tinha chegado essa manhã de Sorrento, no barco correio, e que estava ainda sem comer, presenteou-me com nova laranja, que comi com a casca, e a outra mulher ofereceu-me da cesta frutti di mare, que me produziram viva sede. Havia alguma estalagem em Anacapri? Não; mas Annarella, la moglie dei sagrestano, podia dar-me um excelente vinho da vinha de Don Dionisio, seu tio, «um vinho maravilhoso». E também ali estava a Bella Margherita, que eu devia conhecer de nome; devia também saber que a tia dela se tinha casado com «um lorde inglês». Não, não sabia, mas tinha grande vontade de conhecer a Bella Margherita.

Chegámos finalmente ao cimo dos setecentos e setenta e sete degraus e passámos por baixo duma abóbada ainda com os grandes marcos de ferro da primeira ponte levadiça fixos à rocha. Estávamos em Anacapri. Todo o golfo de Nápoles se via a nossos pés, circundado por Schia, Procida, Posillipo, ornado de pinheiros, a cintilante e branca fímbria de Nápoles, o Vesúvio com a rosada nuvem de fumo, a planura de Sorrento resguardada pelo Monte Sant’Angelo e, mais para além, os Apeninos, cobertos de neve. Não muito acima, sobre as nossas cabeças, viam-se, como ninhos de águia na rocha escarpada, as ruínas duma capelinha. O tecto, em abóbada, tinha caído, mas as paredes desmoronadas sustentavam ainda enormes blocos que formavam um estranho desenho geométrico.

- Roba di Timberio! - explicou a velha Maria.

- Como se chama essa capelinha? - perguntei, precipitadamente.

- San Michele.

- San Michele, San Michele! - repetia comigo.

Na vinha, por baixo da capela, um ancião cavava sulcos profundos para as videiras novas. Buon giorno, Mastro Vincenzo! A vinha era dele, assim como a casita ao lado; tinha-a construído com suas próprias mãos, na maior parte com pedras e resíduos da Roba di Timberio, que estavam espalhados pelo jardim. Maria Porta-Lettere contou-lhe tudo o que sabia acerca de mim e Mastro Vincenzo convidou-me a sentar-me no seu jardim e a beber um copo de vinho. Olhei para a casinha e para a capela. O coração começou a palpitar-me tão violentamente que me custava falar.

- Quero subir ali imediatamente - disse para Maria Porta-Lettere.

Mas a velha Maria observou-me que seria preferível ir antes com ela comer qualquer coisa, pois, caso contrário, nada encontraria. Obrigado pela fome e pela sede, decidi-me, de má vontade, a seguir o seu conselho. Cumprimentei Mastro Vincenzo e disse-lhe que não tardaria em voltar. Caminhámos por algumas pequenas ruas desertas até uma piazzetta.

- Ecco la Bella Margherita!

A Bella Margherita colocou sobre a mesa uma garrafa de vinho cor-de-rosa e um ramo de flores e disse-me que os macarrões estariam prontos dentro de cinco minutos. Era loura como a Flora de Tiziano, com um rosto de primoroso talhe e puro perfil grego. Pôs-me diante um enorme prato de macarrões e sentou-se a meu lado, olhando-me com risonha curiosidade. Vino del parroco, proclamava com orgulho, cada vez que me enchia o copo. Bebi à saúde do pároco, à de Margherita e à de sua irmã de olhos negros, a Bella Giulia, que se nos tinha juntado com as mãos cheias de laranjas, que eu lhe vira apanhar da árvore no quintal. Os pais das duas tinham morrido e, quanto ao irmão Andrea, era marinheiro e só Deus sabia onde estava; a tia habitava numa herdade em Capri; com certeza que eu sabia que se tinha casado com um «lorde inglês». Sim, naturalmente que o sabia, mas não me lembrava do nome. Lady Grantley, disse orgulhosamente a Bella Margherita. Por pouco me esquecia de lhe fazer uma saúde; e depois disto lembro-me apenas de que o Céu era azul como uma safira, o vinho do Parroco vermelho como um rubi, e de que a Bella Margherita estava sentada a meu lado, com cabelos de oiro e lábios sorridentes.

- San Michele! - ecoara de súbito aos meus ouvidos. San Michele!, repetia nas profundidades do meu coração.

- Addio, Bella Margheríta!

- Addio e presto ritorno!

- Ai! presto ritorno!

Dirigi-me para a vinha de Mastro Vincenzo, através de ruas estreitas e desertas. Era a hora sagrada da sesta. Toda a aldeia estava adormecida. A praça, abrasada pelo Sol, era deserta; a igreja, fechada; só pela porta semi-aberta da escola municipal soava no silêncio a voz estentórea do Reverendo Canónico Don Natale, com sonolenta monotonia: Io mi ammazzo, tu ti ammazzi, egli si ammazza, noi ci ammazziamo, voi vi ammazzate, essi si ammazzano, e uma dúzia de rapazes, com a perna ao léu, sentados em círculo no chão, aos pés do mestre, repetia ritmicamente, em coro.

Mais adiante, no prado, encontrei uma majestosa matrona romana. Era Annarella, que me fazia amigáveis gestos com as mãos para que entrasse. Porque havia ido eu à casa da Bella Margherita em vez da sua? Não sabia, por acaso, que o seu cacio cavallo era o melhor queijo de toda a povoação? Quanto ao vinho, toda a gente sabia que o do Parroco não podia competir com o do Reverendo Don Dionisio. -É muito diferente do vinho do Parroco - acrescentou, encolhendo os ombros, por sinal bastante vigorosos. Enquanto me encontrava debaixo da latada, diante duma garrafa de vinho branco de Don Dionisio, comecei a pensar que talvez ela tivesse razão; mas quis ser equitativo e esvaziar toda a garrafa para poder dar opinião definitiva. Porém, quando sua filha, Gioconda, me encheu, sorrindo, outro copo duma nova garrafa, decidi-me. Sim, o vinho branco de Don Dionisio era o melhor. Parecia um raio de sol líquido, tinha o sabor do néctar dos deuses e Gioconda, quando me enchia o copo, semelhava uma jovem Hebe. -Não lhe tinha dito que era muito diferente do vinho do Parroco? - exclamava, rindo, Annarella. - É um vino miracoloso. - Milagroso, na verdade; porque em breve comecei a falar um italiano corrente, com volubilidade vertiginosa, por entre as gargalhadas da mãe e da filha. Começava já a sentir grande simpatia por Don Dionisio. Agradava-me o seu nome, gostava do seu vinho, pensava que me seria agradável travar conhecimento com ele. Nada mais fácil, porque tinha de pregar naquela noite na igreja das Filhas de Maria.

- É homem muito instruído - disse Annarella. - Sabe de cor o nome de todos os mártires e de todos os santos e até foi a Roma beijar a mão ao Papa. - E ela tinha ido a Roma? Não. E a Nápoles? Não. Tinha estado uma vez em Capri, no dia do casamento, mas Gioconda não fora lá nunca. Capri estava cheio de gente malamente. Disse-lhe que, naturalmente, sabia tudo do seu padroeiro, os milagres que tinha feito e o bonito que era, todo de prata maciça. Com isto fez-se um silêncio embaraçoso.

- Sim, dizem que o seu San Constanzo é de prata maciça - murmurou Annarella, encolhendo desdenhosamente os ombros.

- Mas sabe-se lá! Além disso, os seus milagres podiam contar-se pelos dedos, enquanto que Sant’Antonio, o santo padroeiro de Anacapri, já fez mais de cem. É muito diferente de San Constanzo. No mesmo instante me fiz partidário de Sant’António, esperando com todo o coração que algum novo milagre seu me levasse quanto antes à sua encantadora aldeola. A confiança da gentil Annarella no poder milagroso de Sant’António era tão grande que se negou absolutamente a aceitar-me dinheiro.

- Pagherete un’altra volta.

- Addio, Annarella, addio, Gioconda.

- Arrivederla, presto ritorno. Sant’António vi benedice. La Madonna vi acompagni.

O velho Mastro Vincenzo continuava a trabalhar na sua vinha, cavando para as novas cepas sulcos profundos na terra doce e perfumada. De vez em quando apanhava um pedaço de mármore avermelhado e um troço de stuco encarnado e atirava-os para o outro lado da muralha, dizendo: - Roba di Timberio.

Sentei-me numa coluna partida de granito encarnado, ao lado do meu novo amigo.

- É molto duro a rompersi - disse Mastro Vincenzo.

A meus pés, um franguinho esgaravatava, procurando um verme, e, olhando o chão, vi uma moeda. Apanhei-a e reconheci à primeira vista a nobre cabeça de Augusto, «Divus Augustus Pater». Mastro Vincenzo afirmou que não valia um real. Ainda a conservo. Tinha construído, ele só, o jardim e plantado com suas próprias mãos todas as vides e figueiras.

- Duro trabalho - disse Mastro Vincenzo, mostrando-me as mãos grandes e calosas - porque toda a terra estava cheia de Roba di Timberio, colunas, capitéis, fragmentos de estátuas e cabeças de cristãos e tinha que cavar e tirar todos aqueles restos para poder plantar a vinha. Havia partido as colunas para construir as escadas do jardim e aproveitara muitos mármores na construção da casa; o resto fora lançado ao precipício. Considerava grande sorte ter descoberto inesperadamente uma grande estância subterrânea, precisamente debaixo da casa, tendo as paredes encarnadas pintadas com muitos cristãos completamente nus, tutti spogliati, que dançavam como loucos, com as mãos cheias de flores e de cachos de uvas. Tinha levado vários dias a raspar todas as pinturas e a cobrir a parede com cimento, bem pequeno trabalho comparado com o que lhe seria necessário se tivesse de fazer ir o rochedo pelos ares, para construir uma nova cisterna - disse Mastro Vincenzo, com sorriso malicioso. Sentia-se velho e quase não podia tratar da vinha, e o filho, que vivia em Piano di Sorrento, com três vacas e uma dúzia de filhos, queria que vendesse a casa e fosse viver com ele.

O meu coração começou outra vez a bater com força. - E a capela também lhe pertencia? - Não. Não era de ninguém, e dizia-se que a habitavam duendes. Ele próprio, quando pequeno, tinha visto um grande monge debruçado sobre o parapeito, e alguns marinheiros, ao subir as escadas da aldeia, altas horas da noite, tinham ouvido tocar o sino da capela. A razão de tudo isso, explicou-me Mastro Vincenzo, é que, quando Tibério habitava o palácio ali em cima, tinha fatto amazzare Gesú Cristo (feito matar Jesus Cristo), e desde então a sua alma condenada vinha de vez em quando pedir perdão aos frades, sepultados debaixo do lajedo da capela. Também se dizia que aparecia ali na forma duma grande serpente negra. Os monges tinham sido assassinados por um bandido que se chamava Barbarrossa, que havia chegado à ilha com as suas naves e que levara como escravas todas as mulheres refugiadas no castelo, que por isso foi chamado o Castello di Barbarrossa. O padre Anselmo, o ermitão, que era um homem instruído e seu parente, tinha-lhe contado isso e também que os Ingleses haviam escolhido a capela como fortaleza e que depois, por sua vez, foram mortos pelos Franceses.

- Ora veja - disse Mastro Vincenzo, indicando um monte de balas de canhão junto da vedação do jardim. - Olhe - acrescentou, apanhando um botão de metal dum soldado inglês. - Os Franceses - continuou dizendo-tinham instalado um grande canhão ao pé da capela e feito fogo contra a povoação de Capri, ocupada pelos Ingleses. Bem feito - acrescentou, rindo-i capresi son tutta gente cattiva. Depois, os Franceses transformaram a capela em paiol e ficou-se-lhe chamando sempre a polveriera. Já não passava duma ruína, mas fora muito proveitosa para si, porque dali tirara quase toda a pedra para a vedação do jardim.

Trepei ao muro e segui pelo carreiro que vai dar à capela. O solo estava coberto até a altura dum homem pelos restos da abóbada derrubada; os muros vestidos de hera e de madressilvas, e centos de lagartos brincavam alegremente entre moitas de mirto e de rosmaninho, interrompendo-se de vez em quando para me olharem com olhos brilhantes e o peito arquejante. De um canto escuro ergueu-se uma coruja com suas asas silenciosas, e uma grande serpente, que dormia no ensolhado pavimento de mosaico do terraço, desenrolou lentamente os negros anéis e entrou rastejando na capela, com um silvo ameaçador para o intruso. Seria o espírito do velho e sinistro imperador passeando nas ruínas do que outrora fora seu palácio imperial?

A meus pés estava a ilha maravilhosa. Como pôde ele viver em lugar tão belo e ser tão cruel? - pensei. - Como pôde conservar a alma tão negra sob aquela luz radiante do Céu e da Terra? Como pôde deixar estas paragens e retirar-se ao seu palácio, ainda mais inacessível, situado nos rochedos a leste, que conserva o seu nome e onde passou os três últimos anos da vida?

Viver num lugar tal! Morrer num lugar tal! Se acaso a morte pode jamais vencer a alegria eterna duma vida tal!...

Que audacioso sonho fizera bater, havia um instante ainda, o meu coração, quando Mastro Vincenzo me disse que estava velho e cansado e que o filho queria que vendesse a casa?

Que ideia insensata atravessou o meu cérebro impetuoso quando me disse que a capela não tinha dono? Porque não havia de ser minha? Porque não comprar a casa de Mastro Vincenzo e unir a casa e a capela com grinaldas de vinha, áleas de ciprestes e colunas sustentando loggias brancas, povoadas de deuses de mármore e imperadores de bronze? Cerrei os olhos com receio de que a bela visão se desvanecesse; e, pouco a pouco, foram aparecendo no crepúsculo as transfigurações das coisas reais.

Uma alta figura, envolta em rico manto, estava a meu lado.

- Será tua - disse, com a voz melodiosa, indicando com a mão o horizonte. - A capela, o jardim, a casa, a montanha com o castelo, tudo será teu, se estás disposto a pagar o que vale.

- Quem és, fantasma invisível?

- Sou o espírito imortal deste lugar. O tempo não tem significação para mim. Há dois mil anos já aqui estava, onde agora estamos, ao lado de outro homem, que o destino aqui trouxera como trouxe agora a ti. Não pedia, como tu, a felicidade; só ansiava paz e esquecimento, que julgava encontrar nesta ilha solitária. Disse-lhe o preço que tinha a pagar: um nome sem mancha teria de ser infamado por toda a eternidade. Aceitou a transacção e pagou o preço. Onze anos viveu rodeado de alguns amigos fiéis, todos homens de honra íntegra. Duas vezes intentou voltar ao seu palácio do Palatino. E de ambas lhe faltou o valor para isso. Roma não voltou a vê-lo. Morreu na viagem do regresso, na quinta do seu amigo Lúculo, no promontório que dali se avista. As suas últimas palavras foram para pedir que o levassem ao barco que o devia conduzir à ilha.

- E a mim, que preço pedes?

- A renúncia à ambição de seres célebre na tua profissão; o sacrifício da tua carreira.

- E que será então de mim?

- Um falhado.

- Retiras-me tudo o que dá valor à vida?

- Enganas-te; dou-te o que vale a pena viver.

- Queres deixar-me ao menos a piedade? Não posso viver sem ela, muito mais se for médico.

- Deixar-ta-ei, ainda que seria melhor ficares sem ela.

- Que mais me exiges?

- Antes da tua morte terás de pagar noutra moeda, e preciosa, mas, antes que esse dia chegue, haverás contemplado deste mesmo lugar, durante muitos anos, o ocaso de bastantes dias felizes, sem nuvens, e erguer-se a Lua na noite estrelada de sonhos.

- Morrerei aqui?

- Não queiras receber resposta a essa pergunta: o homem não poderia suportar a vida se conhecesse a hora da morte.

Poisou-me a mão no ombro e percorreu-me todo o corpo um calafrio.

- Amanhã estarei contigo, depois do crepúsculo, neste mesmo lugar. Tens, até lá, tempo para reflectir.

- É inútil toda a reflexão. Terminaram as minhas férias e esta mesma noite devo voltar ao meu trabalho quotidiano, longe desta formosa terra. Além disso, sou incapaz de reflectir. Aceito o contrato e pagarei o preço, qualquer que ele seja. Mas como hei-de comprar esta casa se nada possuo?

- Nada possuis, mas as tuas mãos são fortes; o teu cérebro impetuoso, mas claro; a tua vontade segura; triunfarás.

- Mas como posso construir a casa, se nada sei de arquitectura?

- Eu te ajudarei. Que estilo preferes? Não gostarias do gótico? A mim agrada-me muito, com a sua penumbra e o seu mistério inquietante.

- Criarei um estilo para mim, ao qual nem tu mesmo poderás dar nome. Não quero sombras medievais. A minha casa será aberta ao sol, ao vento e à voz do mar, como um templo grego; e terá luz, luz, luz, por todos os lados.

- Teme a luz! Teme a luz! A claridade não convém aos olhos dos mortais.

- Quero colunas de mármores preciosos, sustentando pórticos e formando galerias, magníficos vestígios do passado dispersos no meu jardim; a capela transformada em biblioteca, com estalas de claustro contra as paredes e sinos melodiosos tocando as Ave-Marias, ao terminar cada dia feliz.

- Não gosto de sinos.

- Aqui, onde estamos, com esta ilha maravilhosa surgindo do mar como uma esfinge, aqui mesmo, quero uma esfinge de granito trazida da terra dos Faraós. Mas onde hei-de encontrar tudo isso?

- Estás no lugar onde existiu um dos palácios de Tibério. Tesouros sem preço, datando desse tempo, jazem sepultados debaixo das vinhas, da capela, da casa. O velho imperador pisou esses pedaços de mármore vermelho que Mastro Vincenzo arrojou, diante de ti, por cima do muro do seu jardim; os frescos apagados, com seus faunos dançantes e suas bacantes coroadas de flores, decoravam outrora as paredes do palácio. Repara - acrescentou, indicando a clara profundidade do mar a mil pés abaixo de nós não te disse o teu Tácito, na escola, que, quando chegou a esta ilha a notícia da morte do imperador, os seus palácios foram precipitados no mar?

Quis atirar-me imediatamente do alto das rochas abruptas e mergulhar no mar à procura das minhas colunas.

- Não tenhas tanta pressa - disse, rindo. - Há dois mil anos que os corais tecem redes à sua volta e que as vagas as vão sepultando cada vez mais nas areias. Esperarão por ti até que a tua hora chegue.

- E a esfinge, onde encontrarei a esfinge?

- Numa planície solitária existia outrora a sumptuosa residência dum outro imperador, que tinha trazido uma esfinge das margens do Nilo para ornar o seu jardim. Do palácio resta apenas um montão de pedras; mas nas entranhas profundas da terra a esfinge repousa ainda. Procura e encontrarás. Trazê-la para aqui custar-te-á a vida, quase, mas consegui-lo-ás.

- Dir-se-ia que conheces o futuro tão bem como o passado.

- Passado e futuro valem para mim o mesmo. Conheço tudo.

- Não invejo a tua ciência.

- As tuas palavras são superiores à tua idade. Quem tas ensinou?

- Aprendi-as hoje nesta ilha; compreendi que esta boa gente, que não sabe nem ler nem escrever, é bem mais feliz do que eu, que desde criança fatigo os olhos para adquirir a sabedoria. Tu fizeste o mesmo, a julgar pelas tuas palavras. És um sábio, e conheces Tácito de memória.

- Sou filósofo.

- Sabes latim?

- Sou doutor em Teologia pela Universidade de Iena.

- Ah! Por isso julguei descobrir um ligeiro acento alemão na tua voz.

- É possível - pronunciou em tom sarcástico.

Olheio-o atentamente. O seu porte e maneiras eram dum grande senhor. Notei, pela primeira vez, que usava espada sob o manto vermelho e que na sua voz havia um som áspero que eu tinha a impressão de já ter ouvido.

- Desculpe-me, cavalheiro, mas parece-me que já nos encontrámos em Auerbach Keller, em Leipzig; não se chama o senhor...

Quando pronunciava estas palavras começaram os sinos da igreja de Capri a tanger as Ave-Marias. Voltei a cabeça para o ver. Tinha desaparecido.

 

                       «QUARTIER LATIN»

QUARTIER LATIN. Um quarto de estudante no Hotel de l’Avenir, montões de livros por toda a parte, nas mesas, nas cadeiras, empilhados no chão, e na parede uma pálida fotografia de Capri. Manhãs nas salas da Salpêtrière, do Hôtel-Dieu e na Pitié, passando de cama em cama, para ler, capítulo por capítulo, o livro da dor humana, escrito com sangue e lágrimas. Tardes nas salas de Anatomia e nos anfiteatros da École de Médecine ou nos laboratórios do Institut Pasteur, olhando ao microscópio, com olhos maravilhados, o mistério do mundo invisível, os seres infinitamente pequenos, árbitros da vida e da morte do homem. Noites de vigília no Hotel de L’Avenir, cheias de trabalho para dominar os difíceis problemas, os sintomas clássicos das perturbações e enfermidades, estudados e analisados pelos observadores de todos os países, tão necessários e tão insuficientes para a formação de um médico. Trabalho, trabalho, trabalho! Férias de Verão nos cafés vazios do Boulevard Saint-Michel. École de Médecine fechada, laboratórios e anfiteatros desertos, clínicas quase vazias. Mas não há férias para os que sofrem nas salas do Hospital; não tem férias a Morte. No Hotel de L’Avenir não há feriados. Nem outra distracção além dum passeio de vez em quando sob as tílias dos jardins do Luxemburgo, ou uma hora de alegria avidamente saboreada no Museu do Louvre. Nem amigos, nem cão. Nem sequer uma amante. A Vida de Boémia, de Henri Murger, não existia já, mas a sua Mimi não desaparecera ainda, e, risonha, continuava pelo Boulevard Saint-Michel, pelo braço do seu estudante, ao aproximar-se a hora do aperitivo, ou remendava-lhe o casaco e lavava-Ihe a roupa na mansarda, enquanto ele se preparava para o exame.

Eu não tinha Mimi. Sim, eles, os meus felizes camaradas, podiam fazer o que lhes aprouvesse, passar as noites chalrando às mesas dos cafés, rindo, vivendo e amando. O seu delicado cérebro latino era muito mais ágil do que o meu e não tinham uma fotografia fanada de Capri na parede da mansarda para os estimular, nem colunas de mármores preciosos que os esperassem, enterrados na areia do Palazzo al Mare. Muitas vezes, durante as longas noites de vigília que passava no Hotel de L’Avenir, com a cabeça inclinada sobre as Maladies du Système Nerveux, de Charcot, ou sobre a Clinique de V Hôtel-Dieu, de Trousseau, um terrível pensamento cruzava-me o cérebro, como um raio: Mastro Vincenzo é velho; se ele morresse, enquanto aqui estou, ou fosse vender a outro aquela casita sobre os rochedos, alicerces da minha futura morada! Corria-me pela fronte um suor frio e, de medo, o coração deixava de bater. Com os olhos fitos na pálida fotografia de Capri, parecia-me vê-la desvanecer-se cada vez mais, até desaparecer, misteriosa e enigmática, formando apenas o contorno dum sarcófago no qual estava enterrado o meu sonho... Esfregava os olhos cansados, afundava-me outra vez na leitura, com frenético furor, como um cavalo de corridas, cruelmente esporeado para alcançar a meta. Sim, chegou a ser uma corrida, uma corrida para alcançar prémios e trofeus. Os meus camaradas começaram a apostar sobre mim como sobre um vencedor seguro; e até o mestre, com a sua fronte de César e o seu olhar de águia, me tomou por um homem de futuro-único diagnóstico errado, que eu saiba, do professor Charcot, durante anos de esmerada observação, de juízo infalível, nas salas da Salpêtrière ou na consulta particular do Boulevard St. Germain, cheia de enfermos de todas as partes do Mundo. Este erro seu custou-me caro. Custou-me o sono e quase me ia custando a luz dos olhos. Tal era a minha confiança na infalibilidade de Charcot, e na sua capacidade para conhecer o cérebro humano, que por algum tempo julguei que tivesse razão. Estimulado pela ambição de realizar a sua profecia, insensível ao cansaço, ao sono e até à fome, excitei todas as fibras do ser até aos últimos limites da tensão, para triunfar a todo o custo. Acabaram-se os passeios por entre as tílias dos jardins do Luxemburgo, acabaram-se as visitas ao Louvre. De manhã à noite, os meus pulmões respiravam a atmosfera impura das salas dos hospitais e dos anfiteatros; da noite à manhã, o fumo do meu eterno cigarro, no asfixiante quarto do Hotel de l’Avenir. Exames após exames, em rápida sucessão, demasiado rápida para serem de algum valor. Trabalho, trabalho sem descanso. Tinha de licenciar-me na Primavera. Êxito em tudo que empreendia, um êxito infalível, pasmoso, quase mágico. Já havia aprendido a conhecer a estrutura da maravilhosa máquina que se chama o corpo humano, a harmónica acção de todas as suas partes quando estão sãs, as perturbações durante as enfermidades e a sua destruição final na morte. Tinha-me familiarizado com a maior parte das doenças que algemam os pacientes nas camas do hospital. Já aprendera a manejar as afiadas armas da cirurgia, a combater com melhores probabilidades a implacável inimiga que, armada da foice, sempre pronta a ferir, errava pelas salas a toda a hora do dia e da noite. Com efeito, parecia que a Morte se tinha alojado definitivamente no velho e tenebroso hospital que durante séculos albergara tanto padecimento e tanta dor. Às vezes punha-se a correr pelas salas, ferindo à direita e à esquerda, jovens e velhos, com cego furor, como louca, aqui, estrangulando uma vítima com o estreito enclavinhar da mão, ali, arrancando a outra o penso da ferida aberta, até manar a última gota de sangue. Por vezes chegava na ponta dos pés, silenciosa e calma, e, com dedos quase mimosos, fechava os olhos de outro desgraçado, que assim ficava para sempre estendido e quase sorridente depois da sua partida. Eu, que estava ali para impedir que ela se aproximasse, muitas vezes não dava pela sua presença. Só os pequeninos, que estavam encostados ao seio das mães, acordavam em sobressalto, com um grito agudo, sentindo-a passar. Amiúde, também, as velhas monjas, que tinham levado toda a vida naquelas salas, viam-na chegar a tempo de pôr um crucifixo na cama. A princípio, quando a Morte se encontrava vitoriosa dum lado da cama e eu permanecia impotente do outro lado, pouca atenção lhe dava. A Vida era então tudo para mim; sabia que a minha missão acabava quando a sua começava, e limitava-me a apartar o olhar da sinistra colega, contristado com a minha derrota. Mas, à medida que me fui familiarizando com Ela, pus-me a observá-la com crescente atenção, e, quanto mais a via, mais desejava conhecê-la e compreendê-la. Comecei a dar-me conta de que Ela tinha a sua parte de trabalho como eu, e, como eu, uma missão a cumprir; que afinal éramos colegas e que, quando o combate por uma existência estava terminado e Ela saía vitoriosa, era preferível olhá-la de frente, sem temor, e ficarmos amigos. Mais tarde, chegou o momento de pensar que era Ela a minha única amiga; desejei-a e quase a amei, ainda que não desse mostras de importar-se comigo. Quantas coisas me poderia ter ensinado, se eu ao menos pudesse ter lido no seu rosto impenetrável! Quantas lacunas da minha mísera ciência sobre o sofrimento humano Ela podia ter preenchido! Ela, que é a única a ler o último capítulo que falta nos meus livros de medicina, onde tudo se explica, todos os enigmas apresentados são resolvidos e toda a pergunta feita tem resposta.

Mas como podia ser tão cruel quem sabia também ser tão doce? Como podia cortar com uma das mãos tanta juventude e vida e com a outra dar tanta felicidade e paz? Por que razão a pressão dos seus dedos era tão lenta ao redor da garganta duma das suas vítimas e tão rápido o golpe da outra? Por que motivo lutava tanto com a vida de uma criança e permitia que a dum velho se apagasse num plácido sonho? A sua missão era castigar e matar? Era juiz e verdugo? Que fazia dos que matava? Haviam deixado de existir ou estariam apenas adormecidos? Para onde os levava? Era Ela a regente suprema do reino da morte ou era apenas vassalo, simples instrumento nas mãos dum soberano mais poderoso, o rei da vida? Hoje vencia, mas o seu triunfo era definitivo? Quem seria o verdadeiro vencedor? Ela ou a Vida?

Mas terminava, em verdade, a minha missão quando a sua começava? Deveria eu assistir, espectador impassível, à última e desigual batalha? E permanecer impertérrito e insensível enquanto ela cumpria a sua obra de destruição? Deveria apartar os meus olhos dos que imploravam o socorro, quando a luta de há muito estava perdida? Devia soltar a mão daqueles dedos trémulos que apertavam os meus do mesmo modo que se agarra a uma tábua o homem que se afoga? Estava derrotado, mas não desarmado, tinha sempre na minha mão uma arma poderosa. Ela tinha o seu eterno narcótico; mas eu também tinha o meu, que me confiara a benévola Mãe Natureza. Quando Ela tardava muito em administrar o seu remédio, porque não aplicaria o meu, com o seu poder misericordioso de mudar a angústia em paz e a agonia em sono? A minha missão não era ajudar a morrer os que não podia ajudar a viver? A velha monja tinha-me dito que eu cometeria um pecado terrível; que Deus omnipotente, com a Sua impenetrável sabedoria, assim o quisera, e que. quanto mais profundo era o sofrimento que Ele nos infligia à hora da morte, mais clemente seria o perdão no dia do Juízo. Até a doce irmã Filomena me lançara um olhar de censura, quando, único entre os meus camaradas, viera com a seringa de morfina, depois da partida do velho sacerdote com o Santo Sacramento.

Em todos os hospitais de Paris continuavam existindo, com seus toucados brancos, as doces irmãs de S. Vicente de Paulo, símbolos do sacrifício. O crucifixo continuava dependurado na parede de cada sala e o sacerdote ainda dizia missa todas as manhãs diante do altarzinho da sala de Santa Clara. A Madre Superiora, «Minha Mãe», como todos lhe chamavam, andava de cama em cama, todas as noites, depois de tocar Ave-Marias.

A laicização dos hospitais não se volvera ainda no ardente desejo do dia e o grito rouco de «Abaixo os padres! Abaixo o crucifixo! Fora com as irmãs!» não soara também. Depois, vi-as partir todas, com que piedade! Sem dúvida tinham seus defeitos, as irmãs. Sem dúvida manejavam mais o rosário do que a escova de unhas; estariam mais acostumadas a meter os dedos na água benta do que na solução de ácido fénico, que era por então o desinfectante omnipotente nas nossas salas de Cirurgia; mas eram tão cândidos seus pensamentos, tão puros seus corações, sua vida tão dedicada ao trabalho, pedindo apenas que as deixassem rezar por aqueles que lhes confiavam! Nem mesmo os seus piores inimigos se atreviam a negar a sua abnegação e a sua infinita paciência. Os que diziam que as monjas cumpriam a sua missão com cara triste e sombria, que os seus pensamentos se encaminhavam mais para a salvação da alma do que do corpo, que tinham nos lábios mais palavras de resignação do que de esperança, enganavam-se redondamente. Pelo contrário, aquelas irmãs, novas e velhas, estavam invariavelmente alegres e eram felizes, dispostas a gracejar e a rir infantilmente, e causava admiração ver como sabiam comunicar aos outros a sua felicidade. Também eram tolerantes. Crentes e ateus, todos eram iguais para elas. Pareciam mesmo mais ansiosas de ajudar os últimos; sentiam grande compaixão por eles e não mostravam nenhum ressentimento pelas suas injúrias e maldições. Que amáveis e amigas se mostravam todas comigo! Bem sabiam que eu não pertencia à sua religião, que não me confessava, nem fazia o sinal da cruz ao passar em frente do altarzito. Ao princípio, a Madre Superiora fizera algumas tentativas para me converter à mesma fé que a induzira a sacrificar a vida pelos outros, mas depressa abandonou a ideia, abanando com piedade a cabeça branca. Também o amável e velho padre perdera toda a esperança de salvar-me a alma, desde que eu lhe disse que teria muito prazer em discutir com ele acerca da possibilidade dum purgatório, mas que me negava absolutamente a acreditar no Inferno. E que, em todo o caso, estava decidido a injectar morfina em grandes doses aos moribundos, quando a sua agonia fosse demasiadamente dolorosa e longa. O velho sacerdote era um santo, mas as discussões não constituíam o seu forte e em breve abandonámos por completo esses temas de controvérsia. Conhecia a vida de todos os santos, e foi ele quem me contou pela primeira vez a doce lenda de Santa Clara, que dera o nome à sala. Foi ele também quem me chamou a atenção para os maravilhosos rasgos do seu predilecto S. Francisco de Assis, o amigo de todos os humildes, de todas as criaturas do Céu e da Terra, e que depois se havia de tornar o amigo de toda a minha vida. Mas a irmã Filomena, tão nova, e tão linda, no seu hábito de Santo Agostinho, ensinou-me ainda mais: a amar a Virgem, de quem tinha as mesmas lindas feições. Doce irmã Filomena! Vi-a morrer com a cólera, poucos anos depois, em Nápoles. Nem mesmo a morte se atreveu a desfigurá-la. Foi para o Céu tal como era.

O irmão António, que vinha todos os domingos ao hospital para tocar o órgão na capelinha, era meu amigo íntimo. Não tinha eu, naqueles tempos, outra ocasião de ouvir música, de que tanto gostava, e quase nunca deixava de ir ouvi-la. Ainda que não pudesse ver as irmãs que cantavam, junto do altar, reconhecia a voz clara e pura da irmã Filomena. Precisamente na véspera do Natal, o irmão António caiu doente, e na sala de Santa Clara sussurrou-se de cama para cama, com grande mistério, que, depois duma grande conversa entre a Madre Superiora e o velho sacerdote, fora eu designado para ocupar o seu posto no órgão, para salvar a situação.

Tinha ainda naquele tempo outro ensejo de ouvir música quando o pobre velho Don Caetano vinha, duas vezes por semana, tocar no velho realejo debaixo da varanda do Hotel de l’Avenir. A sua peça forte era o Miserere do Trovador, e a velha e melancólica ária harmonizava-se bem consigo e com a macaca, meio gelada de frio, que se agachava em cima do realejo, vestida com a sua Garibaldi vermelha:

Ah! che la morte ogn’ora. É tarda nel venir!

Harmonizava-se igualmente com o pobre velho o sr. Alfredo que andava pelas ruas cobertas de neve, com a casaca no fio e o original da sua última tragédia debaixo do braço. E também com os seus amigos do bairro italiano, em Montparnasse, que se agachavam à roda dum braseiro meio apagado, sem dinheiro para comprar uns cêntimos de carvão e se aquecerem. Havia dias em que a triste melodia parecia ser também o natural acompanhamento dos meus pensamentos, quando, diante dos livros abertos, no Hotel de l’Avenir, me faltava o ânimo para me defrontar com um novo dia; quando tudo me parecia igualmente negro e sem esperança, e a pálida fotografia de Capri se tornava mais longínqua. Deitava-me então na cama, cerrava os olhos cansados, e logo Santo António começava a fazer outro milagre. Caminhava, longe de todas as minhas preocupações, para a encantadora ilha dos meus sonhos. Gioconda, sorrindo, servia-me um copo de vinho de Don Dionisio, e de novo um sangue rico e forte começava a afluir-me ao cérebro. O Mundo era belo, eu era novo e estava pronto para a luta, com a certeza de vencer. Mastro Vincenzo, sempre trabalhando na vinha, dizia-me adeus com a mão, enquanto eu subia a vereda por detrás do jardim, direito à capela. Sentava-me no terraço e olhava, em baixo, fascinado, a formosa ilha que se estendia a meus pés, perguntando a mim mesmo como poderia um dia levantar, no cume da rocha, a esfinge de granito vermelho. Seria, em verdade, um trabalho difícil; mas naturalmente fá-lo-ia sozinho e com bastante facilidade. «Adeus, bela Gioconda! Adeus, e até breve! Sim, com certeza, voltarei depressa, muito depressa, no meu próximo sonho». Um novo dia nascia, e iluminava, pela janela aberta, o sonhador. Abria os olhos, e, com um sorriso, acolhia o recém-chegado, sentando-me de novo à mesa com o livro na mão.

Veio logo a Primavera e deixou na minha varanda o primeiro ramo de flores de castanheiro das árvores do caminho. Era o sinal. Terminaram os exames e deixei o Hotel de l’Avenir com o meu diploma no bolso: era o médico mais novo da França,

 

                 AVENIDA DE VILLIERS

«AVENIDA de Villiers... Dr. Munthe - Das 2 às 3». Dia e noite tocava a campainha da porta e chegavam mensageiros com cartas urgentes e recados. O telefone, arma mortal nas mãos de mulheres desocupadas, não tinha ainda começado a sua atormentadora campanha contra as horas dum descanso bem ganho. A sala de consulta enchia-se rapidamente de doentes de todos os aspectos e classes, na sua maioria nervosos e do sexo fraco. Muitos estavam doentes, gravemente doentes; eu escutava com paciência a descrição dos seus males e visitava-os com o maior cuidado que podia, seguro de poder ajudá-los, tivessem o que fosse. Não me sinto disposto a falar aqui destes casos, mas talvez um dia alguma coisa tenha que dizer sobre eles.

Muitos não estavam doentes e talvez nunca o houvessem estado se não tivessem vindo consultar-me. Imaginavam achar-se doentes e esses eram os que contavam uma história mais comprida; falavam da avó, da tia ou da sogra, ou tiravam do bolso uma folha de papel e começavam a ler uma lista interminável de sintomas e transtornos - o doente do papelinho, como dizia Charcot. Tudo isso era novo para mim, que não tinha nenhuma experiência fora dos hospitais, onde não havia tempo a perder com fantasias, e por isso fazia muitas tolices. Mais tarde, quando comecei a conhecer melhor a natureza humana, aprendi a tratar melhor esses doentes, ainda que nunca estivéssemos de acordo. Mostravam-se quase ofendidos quando lhes dizia que tinham bom aspecto e boa cor, mas protestavam de pronto se lhes afirmava que tinham a língua suja - o que geralmente era verdade. Na maioria dos casos diagnosticava que comiam demais, muitos pastéis e doces de dia, e ceias demasiadamente abundantes à noite. Provavelmente era o diagnóstico mais exacto que eu então fazia, mas não tinha nenhum êxito. Ninguém queria ouvir falar em tal. Não agradava a ninguém. O diagnóstico de que todos mais gostavam era o de apendicite. Naquela época estavam em moda as apendicites entre as pessoas da melhor sociedade, que procuravam uma enfermidade. Todas as mulheres nervosas a tinham no cérebro, à falta de a terem no abdómen, e davam-se excelentemente com ela, assim como os seus médicos. Deste modo, optei pela apendicite e curei grande número de casos com resultados diversos. Mas, quando começou a correr a voz de que um cirurgião norte-americano tinha empreendido uma campanha para cortar todos os apêndices dos Estados Unidos, os meus casos começaram a diminuir duma maneira impressionante. Consternação!

- Cortar o apêndice? O meu apêndice? - diziam as senhoras da moda, agarrando-se desesperadamente ao seu processus vermicularis como uma mãe ao próprio filho. - Que farei sem ele?

- Cortar os apêndices, os seus apêndices! - diziam os médicos, consultando a lista dos doentes. - Nunca ouvi maior estupidez na minha vida! Mas se não há nada nos seus apêndices, não hei-de sabê-lo eu, que tenho de examiná-los duas vezes por semana? Sou de opinião absolutamente oposta.

Depressa se tornou evidente que as apendicites passavam de moda e que tinha de descobrir-se uma nova doença para satisfazer o pedido geral. Então a Faculdade mostrou-se à altura e lançou no mercado uma nova enfermidade, uma nova palavra cunhada, uma verdadeira moeda de oiro; a Colite. Era uma enfermidade conveniente, ao abrigo do bisturi do cirurgião e adaptável a todos os gostos. Ninguém sabia quando vinha nem quando ia, mas sabia eu que muitos dos meus previdentes colegas a tinham ensaiado com grande êxito nos seus doentes; para mim, até então, fora-me contrária a fortuna.

Um dos meus últimos casos de apendicite creio que foi o da condessa X, que veio consultar-me recomendada por Charcot, segundo ela dizia. Charcot mandava-me doentes de vez em quando, e eu, como é natural, anelava fazer quanto podia por eles, ainda que fossem menos atraentes do que ela. A jovem condessa olhava o oráculo com mal dissimulada decepção nos seus grandes olhos e dizia que queria falar com Monsieur le Docteur lui-même e não com o seu ajudante - este era o primeiro cumprimento que eu estava acostumado a receber de cada novo enfermo. A princípio não sabia se tinha apendicite, e nem tão-pouco Monsieur le Docteur lui-même, mas não tardou em convencer-se disso, e eu do contrário. Quando lho disse, com certa brusquidão, impressionou-se muito. O professor Charcot tinha-lhe dito que eu descobriria com certeza a sua doença e a ajudaria e, em vez disso... Desatou a chorar, o que eu senti deveras.

- Que tenho eu? - dizia, entre soluços, estendendo as duas mãos para mim, num gesto desesperado.

- Dir-lho-ei, se promete estar tranquila.

Deixou de chorar de súbito, e, enxugando a última lágrima dos seus grandes olhos, disse valorosamente:

- Tudo suportarei. Já tenho sofrido tanto!... Não tenha receio, que não volto a chorar. Que tenho eu?!

- Colite.

Os seus grandes olhos tornaram-se ainda maiores, coisa que eu não julgava possível.

- Colite! É exactamente o que sempre julguei. Estou certa de que o doutor tem lazão. Colite! Diga-me: o que é a colite?

Desejaria bem evitar aquela pergunta, porque nem eu próprio o sabia, como, aliás, ninguém. Disse-lhe que duraria muito e que era difícil de curar, e nisto tinha razão. A condessa sorria-me amavelmente. E seu marido, que dizia que eram apenas nervos! Disse-me que não havia tempo a perder e queria começar o tratamento naquele mesmo momento; e deste modo decidimos que ela viria à Avenida de Villiers duas vezes por semana. Voltou pontualmente no dia seguinte, e eu, que começava a acostumar-me às imprevistas variações dos meus enfermos, não pude deixar de admirar-me da sua alegre aparência e do seu rosto brilhante, tanto que lhe perguntei quantos anos tinha.

Tinha apenas vinte e cinco anos. Tinha vindo, só para me perguntar se a colite era contagiosa.

- Sim, muito.

Mal essa palavra tinha saído dos meus lábios, quando descobri que a dama era bem mais esperta do que eu.

- Não podia eu dizer ao conde que era mais prudente que não dormissem no mesmo quarto?

Assegurei-lhe que de modo nenhum isso era necessário; e, ainda que não tivesse a honra de conhecer Monsieur le Comte, estava certo de que ela o não contagiaria. A doença somente era contagiosa para as pessoas impressionáveis como a condessa.

Ela objectava-me que decerto eu a não julgaria nervosa - e os seus grandes olhos erravam inquietos pelo gabinete.

- Sim, com certeza.

- Não podia eu curá-la?

- Não.

Querida Ana: Imagina que tenho colite. Estou contentíssima... contentíssima por me teres recomendado esse médico sueco - ou terá sido Charcot? Seja quem for, eu disse que tinha sido Charcot, para ter a certeza de que me dedicaria mais tempo e mais atenção. Tens razão, é muito inteligente, ainda que o não pareça. Tenho-o recomendado a todos os meus amigos, e convenço-me de que poderia fazer muito por minha cunhada, que continua sem poder erguer-se da cama, por causa da queda que deu no cotillon; estou certa de que tem colite. Sinto muito, querida, que não nos vejamos amanhã, no jantar de Josefina; já lhe escrevi, dizendo-lhe que tenho a colite e que não posso ir de modo nenhum. Gostaria que ela o pudesse adiar para depois de amanhã.

Tua afectuosíssima Julieta.

  1. S. - Pensei que o Sueco devia ver tua sogra, que está tão preocupada com a surdez. Já sei que a marquesa não quer ver mais médicos - e quem o quer? Mas não poderíamos arranjar maneira dela o encontrar como por casualidade? Não me surpreenderia se a colite fosse a causa de tudo. Não me desagradaria convidar o doutor a cear aqui um dia, se tu pudesses convencer a marquesa a vir também, em petit comité, naturalmente. Sabes que descobriu que eu tinha a colite, só ao olhar-me, através das lunetas? Além disso, quero que meu marido o conheça; ainda que os médicos sejam tanto do seu gosto como o são da tua sogra, estou certa de que este lhe há-de agradar.

Uma semana depois tive a inesperada honra de ser convidado para cear no palácio da condessa, no Faubourg Saint-Germain, e de sentar-me ao lado da marquesa viúva. Contemplava-a respeitosamente com o meu olhar de águia, enquanto ela devorava um enorme prato de patê de foie em majestoso silêncio. Não me dizia uma única palavra e as minhas tímidas tentativas para entabular conversa detiveram-se quando descobri que era surda como uma porta. Depois da ceia, Monsieur le Comte acompanhou-me ao salão de fumar. Era um homem muito delicado, assaz gordo, com uma face plácida, quase tímida; tinha pelo menos o dobro da idade da mulher; um perfeito cavalheiro em tudo. Ofereceu-me um cigarro e disse-me efusivamente:

- Nunca me cansarei de agradecer-lhe o ter curado a apendicite de minha mulher - o simples nome dessa doença é-me odioso. Confesso francamente que tomei os médicos em grande antipatia. Tenho visto muitos até agora e nenhum podia fazer qualquer bem à minha mulher; ainda que deva confessar que ela nunca lhes deu uma boa oportunidade para isso, pois logo chamava outro. Vale mais adverti-lo, pois estou certo de que lhe vai suceder o mesmo.

- Não estou tão certo disso.

- Mais vale assim. É inegável que tem uma grande confiança em si, o que já é uma vantagem.

- É o essencial.

- No que a mim se refere confesso-lhe que, a princípio, não me inspirou grande simpatia; mas agora, que nos conhecemos, anseio por emendar essa primeira impressão, e - acrescentou, cortesmente - creio que estamos no bom caminho. E a propósito, que é a colite?

Tirou-me do meu embaraço, acrescentando com bondade:

- Seja o que for, não será pior do que a apendicite, e, creia-me, em breve saberei do assunto tanto como o doutor.

Não pedia muito. Gostei tanto dos seus modos francos e amáveis, que me atrevi a dirigir-lhe uma pergunta.

- Não - respondeu-me com um ligeiro embaraço. - Estamos casados há cinco anos e por agora não há o menor sinal. Queira Deus que os tenhamos. Saiba que nasci nesta velha casa, como meu pai, e o castelo de Touraine pertence-nos há três séculos. Sou o último da família e é muito triste sê-lo e... Não há remédio algum para esses terríveis nervos? Não tem nada a aconselhar-me?

- Creio que este enervante ar de Paris não convém à condessa; porque não vão, para variar, para o seu castelo de Touraine?

Iluminou-se-lhe o rosto.

- O doutor é precisamente o homem que me convém! - disse o conde, estendendo-me a mão. - Não peço outra coisa. Ali tenho a caça e as minhas grandes terras para vigiar, e gosto de lá viver; mas a condessa aborrece-se mortalmente e, na verdade, o lugar é um pouco isolado para ela, que gosta de ver as amigas todos os dias e ir todas as noites às festas e ao teatro. Nem chego a compreender como pode ter forças para viver assim meses e meses, ela que diz estar sempre cansada. Eu não durava muito. Agora diz que tem de permanecer em Paris por causa da colite; antigamente era por causa da apendicite. Mas não quero que a julgue egoísta: pelo contrário, pensa sempre em mim e até queria que eu fosse sozinho para Château-Rameaux, porque sabe como ali sou feliz. Mas como hei-de deixá-la em Paris? É tão nova e tem tão pouca experiência!

- Quantos anos tem a condessa?

- Apenas vinte e nove.

- Sim, parece quase uma menina.

Permaneceu silencioso um momento.

- A propósito, quando tem o doutor férias?

- Há três anos que as não tenho.

- Razão demais para as ter este ano. É bom caçador?

- Não mato animais, se o posso evitar. Porque mo pergunta?

- Porque temos excelente caça em Château-Rameaux, e estou certo de que uma semana de completo repouso lhe faria muito bem. Pelo menos assim o pensa minha mulher, que diz que o doutor trabalha demais; e isso vê-se bem.

- O conde é muito amável, mas estou bem. Não tenho nada, só me custa dormir.

- Dormir! Se eu pudesse dar-lhe uma parte do meu sono... Tenho bem mais do que o que necessito. Saiba que mal ponho a cabeça na almofada, adormeço profundamente e nada pode despertar-me. Minha mulher é madrugadora; mas nem uma só vez a ouço levantar-se, e o criado de quarto que me traz o café às nove tem de abanar-me para me despertar. Tenho pena de si. E, a propósito, sabe o doutor de algum remédio para não ressonar?

O caso era claro.

Reunimo-nos com as senhoras no salão. Fizeram-me sentar ao lado da venerável marquesa para a consulta não oficial, tão habilmente preparada pela condessa. Depois doutra tentativa para começar uma nova conversa, gritei-lhe pela corneta acústica que ainda não tinha colite, mas que tinha a certeza de que não tardaria em tê-la se não se privasse do seu patê de foie.

- Eu bem o disse - sussurrava a condessa.

A marquesa queria conhecer imediatamente todos os sintomas da colite e sorria-me contente, enquanto eu, astutamente, vertia, gota a gota, o veneno na sua corneta. Quando me levantei para partir tinha perdido a voz, mas havia encontrado uma nova doente.

Uma semana depois, uma elegante berlinda parou na Avenue de Villiers e um lacaio subiu correndo a escada com uma cartinha escrita precipitadamente pela condessa. Suplicava-me que fosse imediatamente à casa da marquesa, que tinha adoecido de noite com todos os sintomas da colite.

Fizera a minha entrada na sociedade parisiense.

A colite espalhava-se como fogo devorador por todo o Paris. Não tardou que a minha sala de espera estivesse tão cheia de gente que a casa de jantar passou a sala de espera suplementar. Sempre para mim foi um mistério que toda aquela gente tivesse vagar e paciência para permanecer tanto tempo sentada à espera. Às vezes, horas inteiras. A condessa vinha regularmente duas vezes por semana; mas, de vez em quando, não se encontrava muito bem e tinha de vir mais dias. Era evidente que a colite lhe ia melhor que a apendicite. O rosto tinha perdido a lânguida palidez e os formosos olhos brilhavam com fogo juvenil.

Um dia, quando saía do palácio da marquesa, a quem fora cumprimentar porque partia para o campo, encontrei a condessa junto da minha carruagem, em amável conversa com Tom, que estava deitado em cima dum enorme pacote meio escondido sobre a manta. A condessa ia directamente ao Bazar do Louvre comprar um pequeno presente para a marquesa, que festejava no dia seguinte a santa do seu nome, e não sabia bem o que escolher.

Propus-lhe um cão.

-Um cão! Que boa ideia!

Recordou-se de que, quando era pequena e a levavam a casa da marquesa, a encontrava sempre com um doguezito ao colo, tão gordo que mal podia andar, e ressonava de tal modo que se ouvia em toda a casa. A tia tinha chorado semanas inteiras quando o cão morreu. Uma boa ideia, na verdade. Caminhámos a pé até à esquina da rua Cambon, onde havia a loja dum conhecido vendedor de cães. Ali, entre meia-dúzia de cães cruzados e de toda a espécie, achava-se precisamente o cão que eu queria, um animal aristocrático, que rosnava desesperadamente para nos chamar a atenção sobre o seu triste destino e implorando com os olhos injectados de sangue que o tirássemos daquela sociedade mista, à qual tinha sido arrojado por mera desgraça e não por culpa sua. Quase se afogava de comoção, quando se inteirou da sua sorte. Puseram-no num carro e levaram-no ao palácio do bairro de Saint-Germain. A condessa ia também ao Bazar do Louvre provar um chapéu novo. Disse-me que desejava ir a pé, logo a seguir que queria ir de carro, e eu ofereci-lhe o meu. Titubeou um momento. - Que diriam se me vissem de passeio no seu carro? Depois aceitou amavelmente. Mas não me afastaria do meu caminho para a levar ao Louvre? Na realidade eu não tinha que fazer naquele momento.

- Que tem nesse pacote? - perguntou com feminina curiosidade a condessa.

Ia dizer-lhe outra mentira quando Tom, que tinha terminado a sua missão de único guarda do precioso pacote, saltou para o seu habitual posto no assento a meu lado. Abriu-se o pacote e assomou a cabeça duma boneca.

- Como? Então o doutor passeia com bonecas? Para quem são?

- Para as crianças.

Não sabia que eu tivesse filhos, e quase parecia ofendida pela minha reserva em assuntos privados. Quantos filhos tinha, uma dúzia?

Não havia meio de escapar. Tinha que revelar-lhe todo o segredo.

- Venha comigo - disse-lhe animosamente - e à volta levá-la-ei a ver o meu amigo Jack, o gorila do Jardim das Plantas. Fica-nos em caminho.

A condessa, que, sem dúvida, estava naquele dia de magnífico humor e disposta para tudo, disse que teria nisso muito prazer. Depois de passar pela gare de Montparnasse, começou a perder a orientação e daí a pouco não sabia onde estava. Percorremos algumas vielas escuras e mal cheirosas. Dezenas de rapazitos esfarrapados brincavam na valeta cheia de porcarias de toda a casta; em quase todas as portas havia uma mulher com uma criança ao peito e à sua volta outros pequenos apertados à roda dum braseiro.

- Isto é Paris? - perguntou a condessa, com uma expressão quase de temor nos olhos.

- Sim, isso é Paris, La Ville Lumière. E este o impasse Rousselle - respondi, enquanto parávamos à entrada dum beco sem saída, húmido e escuro como o fundo dum poço.

A mulher de Salvatore estava sentada na única cadeira da família, com Petruccio, seu filho, doente, no regaço e mexia a polenta para a ceia da família, avidamente vigiada pelas duas filhas mais velhas. O pequeno mais novo arrastava-se pelo chão, atrás dum gato.

Disse à mulher de Salvatore que tinha levado comigo uma amável senhora, que desejava fazer um presente aos pequenos. Pela sua timidez, compreendi que era a primeira vez que a condessa entrava em casa de gente pobre. Ruborizou-se visivelmente ao dar a primeira boneca à mãe de Petruccio, porque este não podia agarrar nada com a mão atrofiada; era paralítico de nascimento. Petruccio não deu nenhum sinal de alegria porque o seu cérebro era tão parado como os seus membros, mas a mãe afirmava que ele tinha gostado muito da boneca. Cada uma das irmãs recebeu também a sua boneca e correram contentes a esconder-se atrás da cama, a brincar de mães.

- Quando julgava eu que Salvatore sairia do hospital? Havia quase seis semanas que caíra dum andaime e tinha partido uma perna.

- Sim, vi-o há pouco no Hospital Lariboisière; estava bastante bem e esperava que saísse breve. E ela, como se dava com o novo senhorio?

- Graças a Deus, muito bem. Era muito amável. Até lhe tinha prometido pôr-lhe uma chaminé na casa, para o próximo Inverno. E não fora uma atenção ter-lhe posto aquela clarabóia? Não me lembrava acaso de como era escura aquela casa antes? Repare como agora é clara e alegre. Siamo in Paradiso - disse a mulher de Salvatore.

- Era certo quanto lhe havia contado Arcangelo Fusco que, no dia em que o velho senhorio a pusera na rua, tirando-lhe tudo o que ela possuía, eu dissera a esse homem que Deus o castigaria pela sua crueldade com os pobres e que o havia amaldiçoado tanto que poucas horas depois ele se tinha enforcado?

- Sim, era certíssimo, e não me arrependia disso.

Quando saíamos, o meu amigo Arcangelo Fusco, que compartilhava a casa com a família de Salvatore, voltava do trabalho, de vassoura ao ombro. Era varredor, fare la scopa (naquela época quase todos os varredores de Paris eram italianos). Gostei de o apresentar à condessa: era o menos que podia fazer para lhe agradecer o grande favor que me tinha feito indo comigo à Polícia para confirmar o meu testemunho sobre a morte do velho senhorio. Deus sabe em que trabalhos estaria metido, se não fosse Arcangelo

Fusco. E assim mesmo pouco faltou para isso. Por pouco não me prendem por homicídio (1).

 

Nota 1: Já contei noutro lugar este estranho episódio.

 

Arcangelo Fusco, que trazia uma rosa atrás da orelha, à moda italiana, ofereceu-a com galantaria meridional à condessa, que a aceitou, como se nunca tivesse recebido homenagem mais graciosa à sua bela juventude.

Era já tarde para ir ao Jardim das Plantas e por isso acompanhei a condessa ao palácio. Estava silenciosa, e eu intentei reanimá-la contando-lhe a alegre história daquela amável senhora que, tendo lido casualmente um artigo meu sobre bonecas no Blackwood’s Magazine, se dedicou a fabricá-las às dezenas para as crianças pobres de que eu falara. Não tinha visto como algumas delas estavam bem vestidas? Sim, tinha reparado nisso. E essa senhora era bonita? Sim, muito bonita. Estava em Paris? Não. E vira-me obrigado a convencê-la de que não fizesse mais bonecas porque os meus doentes não chegavam para tantas, e tinha-lhe aconselhado Saint-Moritz como mudança de ares.

Ao despedir-me da condessa, em frente da sua casa, pedi-lhe desculpa por não haver tido tempo de visitar o gorila do Jardim das Plantas; supunha, no entanto, que não se desgostaria por me ter acompanhado.

- Não me desgostou e estou-lhe muito agradecida. Mas, mas... Sinto tanta vergonha!... E, soluçando, entrou precipitadamente no palácio.

 

                       UM MÉDICO DA MODA

ESTAVA convidado para jantar todos os domingos no palácio do Faubourg Saint-Germain. O conde tinha-se reconciliado com os médicos; e, comigo, era amabilíssimo. Jantar de família; apenas Monsieur l’abbé e um primo da condessa, o visconde Maurice, que me tratava com um desdém quase insolente. Antipatizei com ele desde o primeiro dia e não tardei em descobrir que não desagradava só a mim. Era evidente que ele e o conde não faziam boa liga. Monsieur Vabbé era um sacerdote à antiga e um homem da sociedade que conhecia muito melhor do que eu a vida e a natureza humana. A princípio mostrou-se muito reservado comigo, e muitas vezes, quando dava com ele a olhar-me fixamente, convencia-me de que sabia de colite muito mais do que eu. Quase me sentia envergonhado diante daquele velho e tinha ganas de falar com ele com clareza, pondo as cartas na mesa. Mas nunca se apresentou ocasião; não tive oportunidade de o ver a sós. Um dia, ao entrar na sala de jantar para tomar qualquer coisa, antes de começar as consultas, surpreendeu-me encontrá-lo à minha espera. Disse-me que tinha vindo espontaneamente, como um velho amigo da família, e que desejava que eu ocultasse esta visita.

- O doutor - começou por dizer-me - alcançou um grande êxito com a condessa e todos lhe estamos muito agradecidos. Também o devo felicitar pela marquesa. Agora mesmo venho de sua casa, sou seu confessor, e assombra-me o muito que tem melhorado, sob todos os pontos de vista. Mas hoje venho falar-lhe do conde. Estou muito preocupado; tenha a certeza de que ele sofre dum mal oculto. Não sai quase nunca de casa; a maior parte do dia passa-a metido no quarto, fumando enormes charutos; dorme horas inteiras depois de comer, e mesmo durante o dia várias vezes o encontro adormecido na poltrona, com o charuto na boca. No campo é outro homem; dá todos os dias um passeio matutino a cavalo; é activo, alegre e interessa-se muito pela direcção das suas grandes propriedades. O seu único desejo é partir para o seu castelo de Touraine; e, se a condessa não se persuade a deixar Paris, como suponho necessário, creio que deveria ir sozinho. Tem muita confiança em si e, se quisesse dizer-lhe, doutor, que lhe era indispensável à saúde deixar Paris, decerto o faria.

- Sinto não poder satisfazê-lo, senhor abade.

Olhou-me com verdadeira surpresa, quase desconfiado.

- Permite-me que lhe pergunte a causa dessa negativa?

- A condessa não pode deixar Paris, e, por outro lado, seria

perfeitamente natural que acompanhasse o conde.

- Não poderia curar a colite no campo? Há um médico muito bom e de confiança no castelo, que a tratou em tempo, quando padecia da apendicite.

- Com que resultado?

Não me respondeu.

- Posso por minha vez dirigir-lhe uma pergunta? - disse-lhe eu. - Supondo que a condessa pode curar-se instantaneamente da colite, poderia o senhor convencê-la a partir de Paris?

- Falando francamente, não. Mas por que razão devo supô-lo, quando ouço dizer que essa doença é demorada e muito difícil de curar?

- Poderia curar a colite da condessa num dia.

Olhou-me estupefacto.

- Nesse caso, por que razão, em nome de todos os santos, o não faz o doutor? Assume uma responsabilidade enorme.

- Não me assusta a responsabilidade, pois, se assim não fosse, não estaria aqui. Agora falemos claro. Sim, poderia curar num dia a condessa, que tem tanto a colite como o abade ou como eu, e que nunca teve apendicite. Tudo isso o tem apenas na cabeça e nos nervos. Se lhe tirasse a colite com demasiada rapidez, poderia perder totalmente o equilíbrio mental ou buscar coisa pior, como a morfina ou um amante. Se posso continuar a ser útil à condessa, é o que resta ver. Ordenar-lhe que saia de Paris, agora, seria um erro psicológico. Provavelmente negar-se-ia; e, quando se atrevesse a desobedecer-me uma vez, teria acabado para sempre a confiança que deposita em mim. Dê-me quinze dias e sairá de Paris por sua própria vontade, ou pelo menos nessa convicção. É uma questão de táctica. Obrigar o conde a partir sozinho seria um erro de outra natureza. E Vossa Excelência, senhor abade, sabe-o tão bem como eu.

Olhou-me atentamente, e não disse nada.

- Falemos agora da marquesa. É uma amabilidade felicitar-me pelo que fiz por ela e eu aceito a lisonja. Como médico nada fiz, nem nada podia ter feito. As pessoas surdas sofrem terrivelmente com o seu isolamento forçado, principalmente as que não têm em si nenhum recurso espiritual, que são a maioria. Unicamente o que se pode fazer por elas é desviar-lhes a atenção da sua desgraça. Agora os pensamentos da marquesa dedicam-se à colite em vez de se dedicarem à surdez, e o senhor viu os resultados. Eu mesmo começo a estar farto de colite, e agora, que a marquesa vai para o campo, vou substituí-la por um cãozinho, mais próprio para a vida da aldeia.

Quando já se retirava, o capelão voltou-se, no limiar da porta, e olhou-me atentamente:

- Quantos anos tem?

- Vinte e seis.

- Vous irez loin, mon fils! Vous irez loin!

Sim, pensei eu. Irei longe, muito longe desta vida humilhante de charlatanismo e logros, muito longe de toda esta gente artificial. Voltarei à ilha encantadora, à velha Maria Porta-Lettere, a Mastro Vincenzo e à Gioconda, a purificar a alma na casita branca, em cima dos rochedos. Até quando hei-de perder ainda o tempo nesta horrível cidade? Quando é que Santo António fará o milagre?

Na minha mesa encontrei uma carta de despedida da marquesa, cheia de agradecimentos e de elogios. Continha uma grande soma. Olhei a apagada fotografia de Capri e guardei o dinheiro no bolso. Que foi feito de todo esse dinheiro, que ganhei em dias de prosperidade e fortuna? Devia tê-lo poupado para a casa de Mastro Vincenzo; mas a verdade é que nunca tinha dinheiro para pôr de lado. Dinheiro de pecado? Talvez, mas se assim fosse, toda a Faculdade estaria em falência, porque todos estávamos nas mesmas condições, tanto os professores como os meus colegas, todos com clientela igual à minha. Por fortuna tinha também outros doentes, muitos e os suficientes para não me tornar completamente charlatão. Naquela época havia muito menos especialistas do que agora. Tinha que saber de tudo, inclusivamente cirurgia. Necessitara de dois anos para compreender que não possuía disposições para a cirurgia; mas receio que os meus doentes não precisassem de tanto tempo para o compreender. Ainda que fosse especialista de doenças nervosas, fiz tudo quanto um médico pode fazer, até obstetrícia, e Deus ajudava a mãe e o filho. Era com efeito surpreendente que a maioria dos doentes resistisse à cura. Quando Napoleão, com o seu olhar de águia, percorria a lista dos oficiais propostos para promoção a generais, punha à margem dum nome: «Tem sorte?» Eu tinha sorte, uma sorte surpreendente, quase mágica, em tudo onde punha as mãos e com todos os enfermos que tratava. Os meus estudos foram apressados, a minha formação no hospital demasiadamente breve, mas não havia a menor dúvida de que era um médico triunfante. Qual o segredo do êxito? Inspirar confiança. E que é a confiança? Donde vem? Da cabeça ou do coração? Deriva da camada superior da inteligência ou é uma poderosa árvore da ciência do bem e do mal, com raízes que partem da profundidade do ser? Através de que meandros comunicava com os outros? É visível aos olhos e perceptível nas palavras? Não sei; sei apenas que não se pode adquirir lendo livros nem à cabeceira da cama dos doentes. É um dom mágico dado a um homem por direito de progenitura e negado a outros. O médico que tem esse dom pode quase ressuscitar os mortos. O que o não tem verá que lhe preferem qualquer outro colega, até num simples caso de sarampo. Depressa compreendi que esse dom imprescindível me tinha sido outorgado, sem nenhum mérito meu. Descobri-o a tempo, pois começava a tornar-me vaidoso e a estar satisfeito de mim mesmo. Esse descobrimento fez-me compreender a minha insuficiência e induziu-me a buscar conselho e auxílio na Madre-Natureza, a velha e prudente mestra, a quem recorria ainda mais do que dantes. Talvez chegasse a ser um bom médico, se tivesse continuado os meus trabalhos no hospital e junto dos doentes pobres. Mas perdi todas as ocasiões propícias por me haver tornado um médico da moda. Se vos encontrardes com um destes médicos, observai-o a distância, atentamente, antes de vos confiardes a ele. Pode acontecer que seja bom médico; mas, em muitos casos, não o é. Primeiro, porque estará demasiadamente ocupado para ouvir com paciência a vossa longa história. Segundo, porque sofre inevitavelmente o risco de se tornar um snob, se ainda o não é, e de deixar passar a condessa em primeiro lugar, e de examinar o fígado do conde com mais atenção do que o do criado; a ir ao Garden-Party da Embaixada Britânica, em vez de visitar o vosso pequenito, que piorou da coqueluche. E, em terceiro lugar, porque, se não tem um coração sensível, dará sinais evidentes de endurecimento precoce, tornar-se-á indiferente e insensível aos padecimentos dos outros, tal como as pessoas que o rodeiam e que só procuram prazeres. Não se pode ser um bom médico quando se não é igualmente compassivo.

Muitas vezes, terminado o meu dia de trabalho, eu, que sempre me interessei pela psicologia, perguntei a mim mesmo por que razão aquela estúpida gente permanecia horas inteiras à minha espera na sala de consulta. Porque me obedeciam todos, e até, às vezes, só de tocá-los com as mãos, podia melhorá-los? Por que razão, depois de terem já perdido a fala, com os olhos espantados pelo terror da morte, sossegavam se eu lhes punha a mão na fronte? E os loucos do Asilo de Sant’Ana, espumando de raiva e proferindo gritos de animais selvagens, por que razão se tornavam serenos e dóceis mal lhes deslaçava a camisa de forças e tomava as suas mãos nas minhas? Havia em mim um poder natural, sabiam-no todos os guardas e muitos dos meus companheiros e professores. Esse rapaz tem o diabo no corpo! - diziam eles. Sempre senti uma secreta simpatia pelos loucos e passeava com absoluta indiferença pela sala dos agitados, como entre amigos.

Mais duma vez me preveniam de que esse atrevimento acabaria mal; mas eu tinha a certeza de saber mais do que eles a tal respeito. Um dia, um dos meus melhores amigos deu-me uma martelada na cabeça, sem que ninguém pudesse saber onde fora buscar o martelo, e levaram-me desmaiado à enfermaria. Fora uma pancada terrível; esse amigo era ferreiro e conhecia bem o ofício. A princípio, julgaram que me tinha fracturado o crânio. Mas não; foi apenas uma comoção cerebral, e essa desventura trouxe-me um lisonjeiro cumprimento do Director da Clínica:

- Este diabo do sueco tem cabeça de urso! Não terá ele partido o martelo?!

- Afinal, essa virtude pode estar na cabeça e não na mão - dizia comigo próprio, quando o cérebro começou a trabalhar depois de vinte e quatro horas de repouso.

Enquanto jazia durante uma semana inteira na enfermaria, com uma bolsa de gelo na «cabeça de urso», sem visitas nem livros que me fizessem companhia, comecei a pensar muito no meu caso, e nem o martelo do ferreiro pôde fazer-me abandonar a minha teoria: que todo o poder reside na mão.

Por que razão podia eu meter a mão por entre as grades da jaula da pantera negra, na Ménagerie-Pezon, e, com a condição de ninguém o irritar, obrigar o enorme gato a pôr-se de barriga para cima, ronronando amavelmente, com a minha mão entre as garras e abrindo a bocarra desmesuradamente? E por que motivo me era permitido abrir um abcesso no pé de Leonie e tirar-lhe a lasca que obrigara a coxear sem descanso a grande leoa durante mais de uma semana, com dores terríveis? A anestesia local não dera resultado algum, e a pobre Leonie gemia como uma criança quando lhe apertei a pata para fazer sair o pus! Apenas quando desinfectei a ferida se tornou um pouco impaciente; mas não havia cólera no tom submisso da voz; unicamente mágoa por não se lhe permitir lambê-la com a língua áspera. Quando terminou a operação e me dispunha a partir, levando debaixo do braço o macaquito que Monsieur Pezon me tinha dado, em vez dos honorários, o famoso domador de leões disse-me:

- Doutor: errou a profissão; devia ter sido domador.

E Ivan, o grande urso polar do Jardin des Plantes, não saía da piscina ao ver-me, para, posto nas patas contra as grades da jaula, estender o negro focinho e acercá-lo do meu nariz, recebendo pela maneira mais amável o peixe que eu lhe dava à mão? Dizia-me o guarda que a mais ninguém o fazia; certamente me considerava como uma espécie de compatriota. Não digam agora que era o peixe e não a mão, porque, quando já não tinha que oferecer-lhe, continuava na mesma posição, enquanto eu ali permanecesse, olhando-me fixamente com seus olhos negros e brilhantes, sob as pestanas brancas, e cheirando-me a mão. Claro está que falávamos sempre em sueco, com certo acento polar, que eu tomara dele. Estou convencido de que me entendia perfeitamente quando lhe dizia, em voz baixa e monótona, quanto o lastimava e lhe contava que, quando era criança, tinha visto dois parentes seus que nadavam junto da nossa barca, por entre os blocos de gelo, no nosso país natal.

E o pobre Jacques, o famoso gorila do Jardim Zoológico, o primeiro da sua tribo que foi capturado e trazido ao frio país dos seus inimigos? Não punha também, com toda a confiança, a mão calosa na minha, mal me avistava? E não gostava que eu lhe acariciasse o dorso? Ficava-se quieto durante minutos e apertava-me a mão sem dizer nada. Muitas vezes punha-se a olhá-la com muita atenção, como se tivesse algumas noções de quiromancia; dobrava-me os dedos, um após outro, como para examinar o funcionamento das articulações; depois, deixava-ma e examinava a sua com a mesma atenção; ria-se consigo mesmo, com o ar de quem diz que não havia diferença entre as duas, no que tinha toda a razão. A maior parte do tempo ficava sentado e quieto, brincando com uma palha a um canto da jaula, onde os visitantes não podiam vê-lo; raras vezes se servia do balouço que lhe tinham dado, na esperança grotesca de que o pudesse confundir com o flexível ramo de sicômoro no qual dormia a sesta nos tempos da sua liberdade. Dormia numa cama baixa, feita de bambus, como o sérir dos árabes, mas era madrugador, e só o encontrei deitado quando caiu doente. O guarda tinha-o ensinado a comer sentado numa cadeira, diante duma mesa baixa, com um guardanapo atado ao pescoço. Tinham-lhe mesmo dado uma faca e um garfo, mas nunca se habituou a servir-se deles; gostava muito mais de comer com os dedos, como faziam os nossos antepassados até há duzentos anos, e como o faz ainda a maioria dos homens. Mas tomava com grande prazer o leite numa chávena, assim como o café da manhã, com bastante açúcar. É certo que se assoava aos dedos; mas a Laura, de Petrarca, Maria, rainha da Escócia, e o Rei-Sol faziam o mesmo.

Pobre Jacques! A nossa amizade durou até ao fim. Adoeceu depois do Natal e tornou-se cor de cinza; cavaram-se-lhe as faces e os olhos enterraram-se-lhe mais nas órbitas. Tornou-se inquieto e agitado, emagrecendo a olhos vistos, e não tardou a aparecer-lhe uma tosse seca de mau agoiro. Várias vezes lhe tomei a temperatura, mas era preciso estar com atenção, porque, como as crianças, partia o termómetro para ver o que mexia dentro. Um dia, que estava sentado nos meus joelhos, com a minha mão na sua, teve um violento ataque de tosse, que provocou uma ligeira hemoptise. A vista do sangue apavorou-o; o mesmo acontece a muita gente. Notei muitas vezes durante a guerra que os soldados mais valentes, os mesmos que olhavam com indiferença as feridas abertas, empalideciam ao ver algumas gotas de sangue vivo. Ia perdendo cada vez mais o apetite e só com grande trabalho se conseguia persuadi-lo a comer uma banana ou um figo. Uma manhã encontrei-o estendido na cama, com a cabeça tapada com a manta, tal como os doentes da sala de Santa Clara quando estavam mortalmente cansados e aborrecidos de tudo. Devia ter-me ouvido chegar, porque tirou a mão debaixo da roupa e agarrou a minha. Não queria contrariá-lo e sentei-me ao lado, com a sua mão na minha, ouvindo-lhe a respiração irregular e difícil e o estertor que lhe saía da garganta. Um agudo acesso de tosse sacudiu-lhe todo o corpo. Sentou-se na cama e levou as mãos às fontes com um gesto de desespero. Transtornara-se-lhe a expressão da cara. Abandonara a máscara de animal, convertendo-se num ser humano que morria. Acercara-se tanto de nós que acabou por ver-se privado do único privilégio que Deus Omnipotente concede aos animais como compensação dos infinitos padecimentos que o Homem lhes inflige: o de uma morte fácil. A agonia foi terrível; morreu lentamente, asfixiado pelo mesmo verdugo que eu com tanta frequência vira trabalhar na sala de Santa Clara. Reconhecia muito bem a lenta pressão daqueles dedos.

E depois? Que foi feito do meu pobre amigo Jacques? Sei que o corpo descarnado foi parar ao Instituto Anatómico e que o esqueleto, com o grande crânio, continua, de pé, no Museu Dupuytren. Mas é tudo?

 

                               ENFERMOS

SENTIA muito a falta dos jantares de domingo no Faubourg Saint-Germain. Uns quinze dias depois da minha conversa com o capelão, a condessa, com o seu temperamento impulsivo, sentira de repente a necessidade de mudar de ares e decidira-se a acompanhar o conde ao seu castelo da Touraine. Foi uma surpresa para todos; só o sacerdote o devia ter adivinhado porque, no último dia em que ali comi, notei um lampejo de malícia nos seus inteligentes olhos. A condessa teve a amabilidade de me mandar uma informação semanal, para eu estar ao corrente do que se ia passando; e o próprio capelão me dava notícias de vez em quando. Tudo ia bem. O conde dava todas as manhãs o seu passeio a cavalo, já não dormia de dia e fumava muito menos. A condessa dedicava-se à música, cuidava assiduamente dos pobres da aldeia e não se queixava nunca da colite. O cura dava-me também notícias da marquesa, que habitava numa quinta a menos de uma hora de distância do palácio. Estava muito bem. Em vez de sentar-se na poltrona, triste e solitária, atormentando-se com a surdez, dava um grande passeio pelo jardim duas vezes ao dia, por causa do seu Lulu bem-amado, que tinha engordado muito e precisava de exercício.

«É um monstro horrível - escrevia-me o abade. - Senta-se-lhe no regaço, ladra e mostra os dentes a toda a gente; até já mordeu duas vezes a criada de quarto. Todos o detestam, mas a marquesa adora-o e todo o dia o cumula de mimos. Ontem, durante a confissão, vomitou de repente sobre o belo vestido da dona, e isto inquietou-a de tal modo que tive de interromper o acto. Agora quer a marquesa que eu lhe pergunte se esta indisposição não poderá degenerar em colite e suplica-lhe que lhe receite alguma coisa; diz que tem a certeza de que o doutor compreenderá este caso melhor do que ninguém».

Nisto não estava a marquesa longe da verdade, pois eu começava já a ser reputado como um bom médico de cães, mas não atingira ainda a alta situação que mais tarde obtive junto dos meus clientes, amigos desses animais. Reconheço que as opiniões sobre a minha proficiência, como médico dos meus semelhantes, eram muitas vezes discordantes, mas ouso afirmar que a minha reputação como médico de cães nunca foi seriamente atacada. Não sou suficientemente vaidoso para negar que isto se deva à falta de jalousie du métier, que não encontrei neste ramo da minha profissão e nos outros encontrei de sobra.

Para chegar a ser um bom médico de cães é preciso não só amá-los, mas também compreendê-los; acontece o mesmo com os nossos semelhantes, com a diferença, apenas, de que é mais fácil compreender um cão do que um homem, e principalmente mais fácil amá-lo. Não esqueçam nunca que a mentalidade dum cão difere totalmente da de qualquer outro. A aguda inteligência que cintila nos olhos brilhantes dum fox-terrier reflecte uma actividade mental absolutamente diferente do sereno equilíbrio que brilha nos olhos calmos dum S. Bernardo ou dum velho cão de pastor. A inteligência dos cães é proverbial; mas há grandes diferenças de grau, perceptíveis até nos cachorros, logo que abrem os olhos. Há também cães estúpidos, mas a proporção é menor neles que nos homens. É fácil compreender o cão e ler-lhe os pensamentos. O cão não pode enganar, nem dissimular, nem mentir, porque não pode falar. O cão é um santo. É dum natural franco e honesto. Se, em alguns casos excepcionais, se encontram no cão alguns sinais de vícios hereditários, recebidos como herança dos seus antepassados selvagens, que tinham de contar com a astúcia na luta pela existência, esses estigmas desaparecerão logo que a experiência lhe ensine que pode contar com um tratamento franco e justo da nossa parte. Se tais estigmas persistem num cão bem tratado (caso muito raro), esse cão não é normal e deve condenar-se à morte sem sofrimento. Um cão admite alegremente a superioridade do dono, aceita os seus juízos como definitivos, mas, contrariamente ao que pensam muitas vezes os amigos dos cães, não se considera como um escravo. A sua submissão é voluntária e quer que lhe respeitem os seus pequenos direitos: o dono é o seu rei, quase o seu Deus, e espera que o seu Deus seja severo, se é necessário, mas também que seja justo. Sabe que o seu Deus pode ler-lhe no pensamento e que é inútil tentar escondê-lo. E ele pode ler os pensamentos do seu Deus? Com certeza. A Society for Psychical Research pode dizer o que quiser, mas a telepatia entre os homens não está ainda provada, ao passo que a telepatia entre o cão e o Homem foi muitas vezes averiguada. O cão pode ler no pensamento do dono, compreender os seus diferentes estados de alma e prever as suas decisões. O seu instinto diz-lhe quando é indesejável; fica horas inteiras tranquilamente deitado, enquanto o seu rei trabalha activamente, como trabalham muitas vezes os reis, ou, pelo menos, como deveriam trabalhar. Mas quando o seu rei está triste ou preocupado, sabe que chegou a sua hora, e, rastejando, poisa-lhe a cabeça nos joelhos. «Não te atormentes! Não importa que todos te abandonem; estou aqui para substituir todos os teus amigos e combater contra todos os teus inimigos! Anda, vem passear e esqueçamos tudo!».

É curioso e bem comovente observar a atitude de um cão quando o dono adoece. Advertido pelo seu instinto infalível, o cão tem medo da doença e da morte. Um cão acostumado há muitos anos a dormir na cama do dono não continua lá de boa vontade quando este adoece. Até os que fazem excepção à regra, e são raros, deixam o dono quando se aproxima a morte e escondem-se num canto do quarto, chorando lamentosamente. Aconteceu-me algumas vezes ser advertido pela atitude dum cão da aproximação da morte. Que sabe o cão da morte? Pelo menos tanto como nós; provavelmente muito mais. Escrevendo estas linhas recordo-me duma mulher em Anacapri, pobre forasteira, que morria lentamente de tuberculose, tão lentamente que, uma após outra, as poucas comari que a iam ver cansaram-se e abandonaram-na à sua sorte. O seu único amigo era um cão vulgar, que, excepção à regra, não deixou nunca o seu lugar aos pés da cama. Era, de resto, o único sítio onde podia deitar-se, a não ser o chão húmido da cave onde a pobre mulher viveu e. morreu. Um dia, que por ali passava, encontrei Don Salvatore, único dos doze eclesiásticos da terra que mostrava algum interesse pelos pobres e os enfermos. Perguntou-me se não julgava chegada a hora de lhe dar os últimos sacramentos. A doente parecia como de costume; o pulso não estava pior e ela própria nos disse que nos últimos dias se sentia um pouco melhor - la miglioria della morte - declarou Don Salvatore. Muitas vezes me espantei da extraordinária tenacidade com que a pobre se agarrava à vida e disse ao padre que a doente poderia viver ainda uma semana ou duas. Concordámos, pois, em esperar para os sacramentos. No momento em que deixávamos o quarto, o cão saltou da cama com um uivo desesperado e deitou-se a um canto, chorando lamentosamente. Não vi nenhuma mudança no aspecto da doente, mas verifiquei, com surpresa, que o pulso se tornara imperceptível. Fez um esforço desesperado para falar, mas a princípio não pude compreendê-la. Fixou-me com os olhos muito abertos e levantou muitas vezes o braço emaciado na direcção do cão. Desta vez compreendi, e penso que ela me compreendeu também quando, inclinando-me, lhe afirmei que tomaria conta do cão. Moveu a cabeça, tranquilizada, cerraram-se-lhe os olhos, e a paz da morte estendeu-se-lhe sobre o rosto. Respirou profundamente, algumas gotas de sangue apareceram-lhe nos lábios, e tudo acabou. A causa imediata da morte desta mulher foi, evidentemente, uma hemorragia interna. Como foi o cão advertido antes de mim? À noite, quando vieram buscar a dona para a levarem para o cemitério, seguiu, sozinho, o caixão.

No dia seguinte, o velho Pacciale, o coveiro, que já então era muito meu amigo, disse-me que o cãozinho continuava deitado sobre a sepultura. Choveu a potes todo o dia e na noite seguinte, mas de manhã o animal continuava ali. À tarde mandei Pacciale com uma coleira para o decidir, com carícias, a deixar-se conduzir a San Michele, mas o cão acolheu-o rosnando de cólera e não se mexeu. No terceiro dia fui eu próprio ao cemitério e consegui, a muito custo, que me seguisse até casa; aliás conhecia-me muito bem. Nessa época havia oito cães em San Michele e por isso receava bastante o acolhimento ao recém-chegado. Mas tudo se passou bem, graças a Billy, o macaco, que, coisa inexplicável, se lhe afeiçoou desde o primeiro dia, e o cão, apenas se tranquilizou, breve se volveu seu amigo inseparável. Todos os meus cães detestavam e temiam o macacão, que reinava como senhor no jardim de San Michele, e não tardou que a própria Barbarossa, a feroz cadela de Marema, deixasse de mostrar os dentes ao cãozinho. Ali viveu durante dois anos uma vida feliz e ali repousa sob a hera, com os meus outros cães.

Pode ensinar-se a um cão seja o que for, encorajando-o afectuosa e pacientemente e dando-lhe um biscoito quando ele mostrou boa vontade em aprender a lição. Não vos impacienteis nunca, não useis de violência. Bater num cão inteligente é uma vergonha que recai sobre o dono. É, aliás, um erro psicológico.

Dito isto, permito-me acrescentar que os cães maus, tal como as crianças antes da idade da razão, e não depois, merecem muito bem algumas correcções de vez em quando, se se obstinam demasiadamente em desconhecer as leis da boa educação. Pessoalmente nunca ensinei habilidades aos meus cães, admitindo que muitos destes animais, depois de terem aprendido a lição, sentem grande prazer em mostrar os seus talentos. Exibir-se num circo é completamente diferente, é uma degradação para um cão inteligente. No entanto, estes cães-sábios são geralmente bem tratados, por causa do rendimento que dão, e infinitamente mais felizes do que os seus camaradas, os animais selvagens das ménageries. Quando um cão está doente, submete-se a quase tudo, até a uma operação dolorosa, contanto que se lhe explique, com voz doce mas firme, que assim é necessário e a razão por quê. Não obrigueis nunca um cão doente a comer; a maior parte das vezes só o fará para vos comprazer, até quando o instinto aconselha a privar-se de todo o alimento, o que, geralmente, basta para o melhorar. Não vos inquieteis por essa abstinência: os cães, como as crianças, podem, sem inconveniente, estar alguns dias sem nenhum alimento. Um cão pode suportar o sofrimento com grande coragem; mas, certamente, gostará de ouvir-vos dizer quanto o lastimais. Talvez que os amigos dos cães sintam alguma consolação se lhes disser que, em meu entender, a sensibilidade deles é menos aguda do que se pensa. Não perturbeis nunca um cão doente, a menos que haja uma absoluta necessidade disso. A maior parte das vezes a vossa intempestiva intervenção servirá apenas para perturbar a cura natural. Todos os animais desejam que os deixem tranquilos quando estão doentes ou para morrer. Ah! a vida dum cão é tão curta! E todos nós sofremos já a perda dum desses amigos. E o primeiro movimento e as primeiras palavras, depois de o termos enterrado à sombra duma árvore, é para jurarmos que nunca, nunca mais, teremos outro cão; que nenhum outro o poderia substituir e ser para nós o que aquele foi. Enganamo-nos; não é um cão que nós amamos, mas o cão. São todos mais ou menos semelhantes, todos prontos a amar-nos e a ser amados por nós. Todos são a expressão mais adorável e, moralmente falando, a mais perfeita criação de Deus. Se tivestes por esse amigo desaparecido o carinho que merecia, podereis passar sem outro? Ah! também ele teve de separar-se de vós, pois os amados de Deus morrem cedo. Quando a sua hora tenha soado, lembrai-vos do que vos vou dizer. Não o envieis à sala de asfixia, nem recorrais ao médico de coração compassivo para lhe dar uma morte doce por anestesia. Não será doce, mas dolorosa. Os cães resistem às vezes à acção mortal desses gases e drogas duma maneira atroz. Uma dose que mataria um homem permite muitas vezes a um cão viver minutos intermináveis de sofrimento físico e moral. Várias vezes assisti a esses massacres nas salas de asfixia, eu próprio dei morte a muitos cães por anestesia, e sei o que digo. Nunca mais o farei. Rogai a alguém de confiança e que goste dos cães, o que é indispensável, que leve o vosso cão para o jardim; que lhe atire um osso e, enquanto o rói, lhe dê um tiro de revólver no ouvido; é a morte instantânea e sem dor; extingue-se a vida como uma vela com um sopro. Muitos dos meus velhos cães foram assim mortos por mim. Todos estão enterrados à sombra do cipreste de Materita, e sobre a sua sepultura ergue-se uma coluna de mármore antigo. Ali repousa também um outro cão, fiel amigo, durante doze anos, duma graciosa Senhora (1) que o destino quis que fosse a mãe dum país inteiro, do meu país. E, não obstante, guardava-lhe no coração lugar bastante para lhe trazer à campa um ramo de flores, todas as vezes que vinha a Capri.

 

Nota 1: A rainha da Suécia.

 

Quis o destino que o mais adorável de todos os animais fosse atormentado pela mais terrível das doenças, a raiva. Assisti, no Instituto Pasteur, às primeiras fases da longa e indecisa batalha travada entre a ciência e essa terrível inimiga; assisti também à vitória final, tão dificilmente conquistada à custa duma hecatombe de cães e também de algumas vidas humanas. Tinha o costume de ir visitar os animais contagiados e aliviá-los o melhor que podia, o que se me tornou tão penoso que por algum tempo renunciei a frequentar o Instituto Pasteur. Mas nunca duvidei da justeza do que se fazia. Assisti a muitos desastres. Vi morrer muitos doentes, tanto antes como depois do tratamento. Pasteur foi atacado com violência, não somente por incontestados amigos de cães, cheios de ignorância e boas intenções, mas até por muitos dos colegas; chegaram a acusá-lo da morte de muitos dos seus doentes. Quanto a si, prosseguia o caminho sem se deixar abater pelos desastres sofridos; mas os que o viram nessa época sabem bem quanto sofria por ter de torturar os cães, porque era também um dos seus amigos. Era um homem de grande coração. Ouvi-lhe dizer um dia que nunca teria coragem de matar um passarinho. Fizeram-se impossíveis para atenuar o sofrimento dos cães de laboratório; o guarda do canil de Villeneuve l’Etang, um tal Pernier, foi designado para este posto pelo próprio Pasteur, pela sua reputação de amigo dos cães. Nestes canis havia sessenta inoculados de soro que, em datas fixas, eram conduzidos ao canil do velho Liceu Rollin para serem mordidos por cães raivosos que estavam ali encerrados, em número de quarenta. O manejamento destes últimos, com a baba a cair-lhes da boca, era tarefa perigosa, e muitas vezes admirei a coragem de que toda a gente dava provas. O próprio Pasteur não mostrava o mais pequeno temor. Vi-o, desejoso de obter uma amostra da saliva dum cão hidrófobo, aspirar, com um tubo de vidro entre os lábios, algumas gotas da saliva mortal da goela dum bull-dog atingido de raiva, que dois ajudantes mantinham na mesa, com as mãos protegidas por luvas de coiro. Na maior parte estes cães de laboratório eram uns pobres cães errantes, apanhados pela polícia nas ruas de Paris; muitos pareciam ter conhecido dias melhores; aqui sofriam e morriam obscuramente, soldados desconhecidos na guerra travada pelo génio humano contra a doença e a morte. Perto dali, em Bagatelle, no elegante cemitério de cães criado por Sir Richard Wallace, estavam enterradas duas centenas de cãezinhos e de cães de luxo; sobre as campas, nas cruzes de mármore, mãos amorosas tinham feito gravar episódios das suas vidas inúteis e luxuosas.

Foi naquele tempo que se deu o terrível episódio dos seis camponeses russos mordidos por uma matilha de lobos raivosos e enviados ao Instituto Pasteur, a expensas do czar. Todos tinham mordeduras horríveis na cara e nas mãos, e imediatamente se viu que as probabilidades de cura eram quase nulas. Já então se sabia também que a hidrofobia dos lobos era muito mais perigosa do que a dos cães e que com as mordeduras no rosto a morte era quase certa. Pasteur sabia tudo isso melhor do que ninguém e, se não fosse a alma que era, certamente se teria negado a tratá-los. Passaram meses numa sala isolada do Hôtel-Dieu, visitados pelo professor Tillaux, o mais eminente cirurgião de Paris daquele tempo, ajudante e grande amigo de Pasteur. O próprio Pasteur acompanhava todos os dias Tillaux e dava as injecções aos feridos, observando-os com ansiedade, dia após dia. Ninguém podia entender uma palavra do que diziam. Uma tarde (era o nono dia), estava eu tentando meter umas gotas de leite na garganta dum dos camponeses, um gigante, que tinha a cara quase arrancada, quando de repente brilhou no olhar do enfermo algo de selvagem e sinistro. Contraíram-se-lhe as maxilas, abriu as mandíbulas com um ruído seco, e da boca aberta e espumante, saiu um grito espantoso, como jamais ouvira a homem ou a animal algum. Fez um esforço violento para saltar da cama e quase me derrubou quando tentei detê-lo. Os braços fortes como as garras dum urso apertaram-me como um torno. Sentia o hálito fétido da sua boca espumante tão perto da minha que a saliva envenenada me salpicava o rosto. Agarrei-o pelo pescoço; caiu a venda da horrenda ferida e, quando retirei as mãos daquelas mandíbulas contraídas, tinha-as tintas de sangue. Agitou-me o corpo um tremor convulsivo enquanto os seus braços afrouxavam a pressão e caíam inertes ao longo do corpo. Corri para a porta em busca do mais enérgico desinfectante que pudesse encontrar. No corredor estava sentada a irmã Marta, tomando o seu café da tarde. Apoderei-me da chávena, enquanto ela me olhava aterrorizada, vendo-me prestes a desmaiar. Graças a Deus, não tinha a mais leve arranhadura nem na cara nem nas mãos. A irmã Marta era muito minha amiga. Manteve a palavra; e, que eu saiba, a ninguém revelou este segredo. Tinha boas razões para o esconder; haviam-nos dado ordens severas para não nos aproximarmos daqueles homens, a não ser quando absolutamente necessário, e, nesse caso, com as mãos bem protegidas por grossas luvas. Contei-o logo ao Professor, e ele zangou-se muito, e com razão, mas, como tinha por mim uma oculta preferência, não tardou em perdoar-me, como já outras vezes o havia feito por diversas faltas.

- Sueco endemoninhado - murmurou. - Tu es aussi enragé que le moujik. À noite, o camponês, atado de mãos e pés à cama de ferro, foi trasladado para um pavilhão separado, isolado de todos. Fui vê-lo na manhã seguinte, com a irmã Marta. O quarto estava mal alumiado. A venda tapava-lhe quase todo o rosto e não se lhe viam mais do que os olhos. Nunca me esquecerá a expressão daqueles olhos que, durante muitos anos, foram uma obsessão para mim. A respiração era curta e irregular, com intervalos periódicos, como a respiração Cheyne-Sthokes, o sintoma tão precursor da morte. Falava com espantosa rapidez e com voz rouca, interrompida de vez em quando por um grito de selvagem angústia ou um gemido quase apagado, que dava calafrios. Escutei um momento aquele fluxo de palavras incompreensíveis, meio afogadas pela saliva que corria, e de pronto pareceu-me entender uma palavra repetida incessantemente, com acento desesperado:

- Crestitsa! Crestitsa! Crestitsa!

Olhei-o atentamente nos olhos, uns olhos bons, humildes, suplicantes.

- Está com todos os sentidos - disse a irmã Marta. - Quer alguma coisa. Gostaria tanto de saber o que é! Ora oiça.

- Crestitsa! Crestitsa! Crestitsa! - exclamava sem cessar.

- Corra a buscar um crucifixo! - disse eu à irmã.

Apoiámos o crucifixo contra o leito e a chuva de palavras cessou instantaneamente. Permanecia em completo silêncio, com o olhar cravado no crucifixo. A respiração tornou-se cada vez mais débil. De repente, os músculos daquele corpo gigantesco, numa última e violenta contracção, adquiriram a rigidez da morte e o coração deixou de funcionar.

No dia seguinte, outro dos camponeses manifestou indiscutíveis sintomas de hidrofobia, depois outro, e passados três dias todos estavam loucos furiosos. Podiam ouvir-se os gritos em todo o Hôtel Dieu, até na Praça de Notre-Dame, segundo diziam. Ninguém queria aproximar-se da sala; até as monjas, sempre tão valorosas, estavam horrorizadas. Parece-me estar vendo ainda o rosto pálido de Pasteur, enquanto passava de cama em cama, olhando com infinita compaixão aqueles homens condenados. Torno a vê-lo sentado numa cadeira, com a cabeça entre as mãos. Costumado, como eu estava, a vê-lo todos os dias, não tinha ainda reparado no seu aspecto doente e consumido e, naquele momento, compreendi, por uma imperceptível hesitação nas suas palavras e um ligeiro embaraço ao estreitar-me a mão, que já recebera o primeiro aviso do destino que o esperava em breve. Tillaux, que foi chamado quando estava operando, penetrou na sala com a bata manchada de sangue. Aproximou-se de Pasteur e pôs-lhe a mão no ombro. Ambos se olharam em silêncio. Os carinhosos olhos azuis do grande cirurgião, que tanto horror e tanto padecimento tinham visto, olharam ao redor da sala os pobres raivosos e o rosto tornou-se-lhe branco como um lençol!

- Não posso suportar este espectáculo - exclamou com voz dorida, e saiu a correr da sala.

Naquela mesma noite esses dois homens reuniram-se e consultaram-se. Poucos sabem a decisão que eles tomaram, mas foi a única justa e honrosa para os dois. Na manhã seguinte tudo na sala era silêncio. Durante a noite os camponeses russos, já condenados, foram ajudados a morrer docemente.

A impressão produzida em Paris foi enorme. Todos os jornais vinham cheios de descrições horrendas da morte dos camponeses russos, e durante muitos dias não se falou de outra coisa.

Pouco depois, numa noite da semana seguinte, um norueguês, pintor animalista bem conhecido, chegou precipitadamente à Avenida Villiers, num estado de agitação terrível.

Acabava de ser mordido na mão por um cão que ele adorava, um bull-dog enorme, de aspecto particularmente feroz, mas até então completamente inofensivo e um dos meus grandes amigos; o seu retrato, pintado pelo dono, fora exposto no Salon do ano precedente. Dirigimo-nos imediatamente de carro ao Studio, na Avenida de Ternes. O cão estava encerrado no quarto; o dono queria matá-lo imediatamente, mas dizia-se sem coragem para tanto. O cão corria em todos os sentidos, escondendo-se debaixo da cama e rosnando com ar feroz. O quarto estava tão escuro que meti a chave no bolso, decidindo voltar no dia seguinte, de manhã. Depois de ter desinfectado a ferida, dei um suporífero ao norueguês. No dia seguinte examinei o cão atentamente e decidi adiar a execução, porque, apesar das aparências, não tinha a certeza de que estivesse raivoso. Os erros de diagnóstico no começo da raiva são muito frequentes. Até o sintoma clássico que deu o nome ao temível mal - hidrofobia significa horror da água - não é prova infalível. O cão raivoso nem sempre tem o horror da água. Vi-os muitas vezes beber com avidez numa taça que lhes punha à disposição. Esse sintoma só tem valor nos homens atingidos de raiva. Um grande número, talvez a maioria dos cães que matámos sob o pretexto de hidrofobia, sofre de outras doenças relativamente inofensivas. Mas, admitindo que se possa ter a prova respectiva por um exame post mortem (não há um médico ou um veterinário sobre dez capaz de o fazer), é de ordinário extremamente difícil convencer aquele que foi mordido. Persiste o temor da terrível doença e a obsessão da raiva é tão perigosa como o próprio mal. O melhor é encerrar o cão suspeito, dando-lhe de comer e beber. Se está vivo ao fim de dez dias, não tem, com certeza, a raiva, e tudo irá normalmente.

No dia seguinte, de manhã, quando observei o cão pela porta entreaberta, vi-o olhar-me amigavelmente com os olhos injectados de sangue, mexendo a cauda. Mas, como estendesse a mão para o acariciar, pôs-se a rosnar e meteu-se debaixo da cama. Não sabia que pensar! Em todo o caso, disse ao dono que o não julgava atacado de raiva; não quis ouvir-me e pediu-me de novo que o matasse. Recusei-me e declarei-lhe que desejava esperar ainda um dia. O norueguês passara a noite no estúdio, passeando dum lado para o outro, e em cima da mesa via-se um tratado de Medicina em que os sintomas de hidrofobia no homem e no cão estavam marcados com um lápis. Deitei o livro ao fogo. Um vizinho seu, escultor russo, que me prometera conservar-se todo o dia a seu lado, disse-me nessa noite que ele não tinha querido comer nem beber, que enxugava constantemente a saliva dos lábios e não falava senão de hidrofobia. Insisti para que tomasse uma chávena de café; lançou-me um olhar desesperado e disse que não podia engolir. Como lhe estendesse a chávena, vi, com horror, que os músculos da maxila se distendiam convulsivamente, pôs-se a tremer todo e caiu numa poltrona, soltando um grito de angústia espantoso. Dei-lhe uma injecção de morfina e afirmei-lhe que tinha a certeza de que o cão não tinha nada e que estava disposto a voltar ao quarto onde se encontrava, ainda que, na verdade, me faltasse a coragem. Como a morfina começava a agir, deixei-o meio adormecido na poltrona. Quando voltei, já noite adiantada, disse-me o escultor que toda a casa tinha estado numa agitação; que o proprietário havia mandado dizer pelo porteiro que queria o cão morto imediatamente, e que ele acabava de matá-lo com uma bala de revólver, atirada da janela. O cão tinha-se arrastado até à porta e ele acabara-o com uma segunda bala; ali jazia banhado em sangue e o dono estava sentado na poltrona com o olhar fixo e sem dizer uma palavra. O olhar não me dizia nada de bom; tirei o revólver de sobre a mesa e meti-o no bolso; ainda tinha uma bala; acendi uma vela e pedi ao escultor que me ajudasse a levar o cão para o meu carro; queria levá-lo imediatamente a Pasteur, para que o fizesse autopsiar. Junto da porta estava um grande charco de sangue, e o cão tinha desaparecido.

- Feche a porta! - gritou o escultor detrás de mim, no momento em que o cão, saindo de debaixo da cama, saltava sobre mim com um rosnar feroz, a goela aberta, escorrendo sangue.

A vela escapou-se-me das mãos, atirei ao acaso, na escuridão, e o cão caiu morto a meus pés. Pusemo-lo no carro e parti com ele para o Instituto Pasteur. O dr. Roux, que era o braço direito de Pasteur, e mais tarde foi o seu sucessor, disse-me que o caso lhe parecia bastante suspeito e prometeu-me fazer a autópsia e comunicar-me o resultado, o mais cedo possível. No dia seguinte, ao chegar à Avenida des Ternes, encontrei o escultor à porta do estúdio. Tinha passado a noite com o amigo, que, preso duma grande agitação, não deixara de passear no quarto sem descansar; acabara enfim por adormecer na poltrona uma hora antes. O russo tinha ido ao quarto dele para se lavar, e, ao voltar, havia um momento, encontrara a porta do estúdio fechada à chave por dentro.

- Ora, oiça - disse-me quase para se desculpar de haver desobedecido às ordens que lhe dera de não deixar o amigo sozinho, um segundo que fosse - está bem, dorme, não ouve como ressona?

- Ajude-me a arrombar a porta! - gritei. - Não ressona, é o estertor da...

A porta cedeu e precipitámo-nos no estúdio. O pintor estava estendido no divã e respirava dificilmente, com um revólver apertado na mão. Tinha disparado um tiro num olho. Levámo-lo para o meu carro e partimos a toda a velocidade para o Hospital Beaujon, onde foi imediatamente operado pelo professor Labbé. O revólver de que se havia servido era de calibre inferior ao do que eu lhe tirara; a bala foi extraída. Quando me retirei, continuava ainda sem conhecimento. À noite recebi uma carta do dr. Roux, informando-me de que o resultado da autópsia fora negativo: o cão não estava raivoso. Corri ao Hospital Beaujon. O norueguês delirava. «Prognóstico gravíssimo» - disse-me o famoso cirurgião. Ao terceiro dia declarou-se uma febre cerebral. Não morreu, deixou o hospital um mês depois, cego. As últimas notícias que dele tive diziam-me que estava recluso num manicómio norueguês.

Neste lamentável caso a minha intervenção não foi satisfatória. Fiz tudo quando pude, mas não bastava. Se este acontecimento se desse dois anos mais tarde, aquele homem não atentaria contra a vida. Eu teria sabido dominar o seu terror, seria o mais forte, como depois me sucedeu, imobilizando, várias vezes, a mão armada de revólver dos que tinham medo à vida.

Compreenderão algum dia os que se opõem à vivissecção que, reclamando a proibição absoluta das experiências sobre animais vivos, pedem o que não é possível conceder-lhes? A vacina de Pasteur contra a raiva reduziu ao mínimo a mortalidade nesta terrível doença e o soro antidiftérico de Behring e Roux salva a vida a mais de cem mil crianças por ano. Estes dois exemplos não serão bastantes para convencer os amigos bem intencionados dos animais de que os descobridores de mundos novos, tais como Pasteur, ou de remédios contra doenças até então incuráveis, tais como Koch, Ehrlich e Behring, devem ter o campo livre para prosseguir as suas investigações sem incómodas restrições e sem que os perturbe a ingerência dos profanos? Aliás, os que merecem uma liberdade completa são tão poucos que podem contar-se pelos dedos. Com os outros, sem dúvida nenhuma, é preciso exigir as mais severas restrições, possivelmente até a interdição absoluta. Mas vou mais longe ainda: um dos argumentos mais poderosos contra muitas das experiências sobre os animais vivos é que o seu valor prático é muito reduzido, dada a diferença fundamental, sob o ponto de vista patológico e fisiológico, entre o corpo humano e o dos animais. Mas por que razão se hão-de limitar tais experiências ao corpo dos animais? Porque não se tentam igualmente sobre homens vivos? Por que razão aos criminosos, aos malfeitores inveterados, condenados a passar o resto da vida nas prisões, inúteis e muitas vezes perigosos para si e para os outros, por que razão, dizíamos, a esses reincidentes do crime, não se lhes há-de oferecer uma redução na pena se consentirem em dar os seus corpos vivos, anestesiados, para certas experiências, em benefício da Humanidade?

Se o juiz, antes de pronunciar a sentença de morte, pudesse dar a escolher entre a forca ou os trabalhos forçados durante alguns anos, não faltariam, decerto, os candidatos.

Porque não se há-de autorizar o doutor Voronoff, qualquer que seja o valor prático da sua descoberta, a abrir uma secção de recrutamento nas prisões para os que quiserem inscrever-se e substituir os desgraçados macacos? Por que motivo os amigos dos animais, tão bem intencionados, não reúnem os seus esforços para acabar com as exibições nos circos e nas ménageries? Enquanto este escândalo for tolerado pelas nossas leis, temos poucas probabilidades de sermos considerados civilizados, junto das gerações futuras. Se quereis saber até que ponto somos verdadeiros bárbaros, basta-vos entrar na barraca duma ménagerie ambulante; o animal selvagem não está por detrás das grades, mas na frente.

A propósito de macacos e de ménageries, ouso gabar-me, modéstia à parte, de ter sido na mocidade um bom médico de macacos. É uma especialidade extremamente difícil, entravada por toda a espécie de complicações imprevistas e de armadilhas, em que uma grande rapidez de juízo e um conhecimento profundo da natureza humana são condições essenciais de êxito. É completamente absurdo supor que a principal dificuldade provém do facto de o doente, à semelhança das crianças, não poder falar. Os macacos exprimem-se excelentemente quando querem. A grande dificuldade está em que à nossa lenta compreensão custa acompanhar a sua viva inteligência. É possível enganar um homem doente, e a ilusão, ai de nós!, pertence ao arsenal das nossas armas: a verdade é com frequência demasiado triste. Pode enganar-se um cão, pois este acredita cegamente em tudo o que se lhe diz; mas é impossível fazê-lo a um macaco, o qual instantaneamente adivinha as nossas intenções. O macaco pode enganar-vos quando queira, e rejubila com isso. O meu amigo Júlio, o velho babuíno do Jardim das Plantas, põe as mãos no ventre com um ar de esgotamento lamentável - é muito mais fácil levar um macaco que uma criancinha a mostrar a língua - e declara ter perdido de todo o apetite, tanto que, só para me dar prazer, come a maçã que lhe ofereci. E, sem me dar tempo a abrir a boca para lhe dizer quanto me aflige o seu estado, arrancou-me a última banana, comeu-a e atirou-me com a casca do alto da jaula.

- Queres fazer-me o favor de observar esta borbulha encarnada nas minhas costas? - diz-me Eduardo. - A princípio julguei que não passava duma picadela de pulga, mas agora arde como uma pústula. Já não posso suportá-la. Não poderias livrar-me desta dor? Não é aí, mais acima; chega-te mais; bem sei que és um pouco míope, deixa-me mostrar-te o sítio certo... - No mesmo instante ei-lo sobre o trapézio, rindo-se na minha cara, para logo me arrancar os óculos, que faz em pedaços, a fim de oferecê-los como recordação aos camaradas, transportados de pasmo. Os macacos gostam de se rir de nós, mas a menor suspeita de troça da nossa parte irrita-os profundamente. Nunca devemos rir-nos dum macaco, porque o não podem suportar. Possuem um sistema nervoso extremamente sensível. Um medo súbito transforma-se neles quase em ataque de nervos, e não é raro terem convulsões; já tratei um, até de epilepsia. A um ruído inesperado podem empalidecer. Coram com grande facilidade, não por modéstia, porque Deus sabe que não são modestos, mas de cólera. Todavia, para observar este fenómeno, não devemos olhar-lhes apenas para a cara; coram muitas vezes em lugar imprevisto. As razões do Criador para escolher precisamente esse lugar para uma carnação tão rica e variável, para um desdobramento tão pródigo de cores vivas, carmezim, azul e alaranjado, permanecem aos nossos olhos ignaros um mistério. Muitos espectadores, surpresos, não hesitam, à primeira vista, em declarar que é horrendo. Mas não devemos esquecer que as opiniões sobre o belo e o feio são variáveis em épocas e países diferentes. Os Gregos, árbitros, como nenhuns outros, da beleza, pintaram de azul os cabelos de Afrodite. Gostais dos cabelos azuis?

Entre os macacos esta esplêndida carnação é, com toda a evidência, um atributo de beleza irresistível aos olhos das damas, e acontece com frequência que o feliz possuidor dum tão animado colorido a posteriori volta as costas aos espectadores de rabo erguido, para se fazer admirar.

Certas macacas são excelentes mães, mas nunca tenteis ocupar-vos de seus filhos; como as mulheres árabes e até as napolitanas, crêem que tendes mau olhado. O sexo forte é donjuanesco; e terríveis dramas passionais se desenrolam constantemente na grande jaula dos macacos do Jardim Zoológico, onde o mais pequeno saguim se volve num furioso Otelo, pronto a bater-se com um chimpanzé. As damas assistem ao torneio com olhadelas simpáticas aos respectivos campeões e têm furiosas querelas entre si. Os macacos cativos, enquanto estão com outros, levam vida suportável; vivem tão ocupados em descobrir o que se passa dentro e fora da jaula, em intrigas e murmurações, que não lhes sobra o tempo para serem desgraçados. A existência dum macaco dos grandes, gorila, chimpanzé ou orangotango, é evidentemente uma vida de mártir, nem mais nem menos. Caem todos numa profunda hipocondria, quando a tuberculose se demora a terminar com eles. Esta doença, como é sabido, ocasiona a morte de quase todos os macacos cativos, grandes ou pequenos. Os sintomas da evolução, o termo da doença, são exactamente os mesmos que nos homens. Não é o ar frio, mas a falta de ar, que origina o mal. A maioria dos macacos suporta excelentemente o frio quando dispõe dum espaço vasto para se distrair e de uma instalação confortável partilhada durante a noite com um coelho que lhe dê calor. Mal o Outono chega, a vigilante Mãe Natureza, que vela tanto sobre os macacos como sobre os homens, põe-se ao trabalho para lhes cobrir os corpos friorentos com mantos suplementares de pêlo, próprios dos Invernos do Norte. É o caso da maioria dos animais dos trópicos enjaulados nos nossos climas nórdicos, e que morreriam mais tarde se os deixassem viver ao ar livre! A maior parte dos jardins zoológicos dir-se-ia que ignoram este facto. Talvez seja melhor assim. Será para desejar a prolongação da existência desses desgraçados animais? Meditai sobre isto. Por mim respondo: não. A morte é mais piedosa do que nós.

 

                       O CASTELO DE RAMEAUX

PARIS no Verão é uma estância encantadora para os que se divertem; mas, se por acaso pertenceis ao Paris que trabalha, o caso é diferente. Sobretudo, se tiverdes de combater uma epidemia de tifo em La Villette, entre centenas de operários escandinavos, ou a difteria no bairro de Montparnasse, entre os vossos amigos italianos e a sua numerosa prole. Na verdade não faltavam também crianças escandinavas em La Villette, e as poucas famílias que as não tinham parece que haviam escolhido precisamente esta ocasião para as dar ao Mundo, a maior parte das vezes sem mais assistência do que a minha, nem sequer uma parteira. Na grande maioria as crianças, sem idade para apanhar o tifo, tiveram a escarlatina ou a coqueluche. Como, naturalmente, ninguém tinha dinheiro para pagar a um médico francês, foi a mim que coube a tarefa de as cuidar o melhor que pôde ser. Não é gracejo: havia mais de trinta casos de tifo entre os operários escandinavos, isto só em La Villette. Apesar disso, consegui ir todos os domingos à igreja sueca do Boulevard Ornano, para dar prazer ao pastor sueco meu amigo, que me dizia que era um bom exemplo para os outros.

A assistência estava reduzida a metade, pois a outra ou estava na cama ou cuidava dos enfermos. O pastor conservava-se de pé de manhã até à noite, assistindo ou auxiliando os doentes e os pobres; nunca vi coração melhor. Por isso tinha a bolsa vazia. Como compensação levou a infecção para sua casa. Dos seus oito filhos, os dois mais velhos apanharam o tifo, cinco a escarlatina e o mais novo engoliu uma moeda de dois francos e esteve à beira da morte por oclusão intestinal. Depois disso, o cônsul da Suécia, homem completamente pacífico, tornou-se de súbito doido furioso e por um triz não me matou, história que prometo contar-vos de outra vez.

No Bairro Montparnasse a situação tornara-se bem mais grave, ainda que, por várias razões, a minha tarefa se me afigurasse um pouco mais fácil. Envergonho-me ao dizer que me entendia bem melhor com os pobres italianos do que com os meus próprios compatriotas, com frequência difíceis de suportar, descontentes, melindráveis, quando não exigentes e egoístas. Pelo contrário, os italianos, que do seu país haviam trazido apenas uma paciência a toda prova, alegria e maneiras encantadoras, mostravam-se sempre satisfeitos, reconhecidos e extremamente serviçais entre si. Quando a difteria se declarou em casa dos Salvatore, o varredor Arcangelo Fusco abandonou imediatamente o trabalho e tornou-se o mais dedicado enfermeiro dessa pobre gente. As três pequenas mais novas apanharam a difteria. A mais velha morreu e no dia seguinte a mãe, esgotada, contraiu o terrível mal. Só o desgraçado Petruccio, idiota e paralítico, foi poupado pelos insondáveis desígnios do Senhor Todo Poderoso. O beco da Rousselle foi contaminado duma ponta à outra; a doença entrara em todas as famílias, cada uma das quais contava muitas criancinhas. Os dois hospitais de crianças estavam repletos. E, ainda quando houvesse uma cama livre, eram poucas as probabilidades de que fosse para um destes pequenos estrangeiros. Por consequência, Arcangelo Fusco e eu tivemos de cuidá-los, e aqueles a quem não era possível visitar, e não eram poucos, tiveram de viver ou morrer, conforme puderam. Não haverá médico que tenha afrontado esta prova de lutar inteiramente só contra uma epidemia de difteria num bairro inteiro de indigentes, sem meios suficientes de desinfecção, nem para os outros nem para si, que recorde uma tal aventura sem um estremecimento, por mais endurecido que tenha o coração. Tinha de estar sentado durante horas a pintar e a rasgar, uma após outra, a garganta de cada uma dessas crianças, pois nesse tempo pouco mais havia que fazer. Mas quando se tornava impossível desprender as membranas infectadas que obstruíam as vias respiratórias, quando a criança se tornava lívida e sufocava, quando a urgência da traqueotomia se impunha com uma rapidez fulminante?!

Devia operar imediatamente, sem ter sequer uma mesa onde deitar a criança? Neste catre? Ou sobre os joelhos da mãe? À luz duma miserável candeia de azeite e sem mais auxílio que o de um varredor? Não poderia esperar até ao dia seguinte e encontrar um cirurgião melhor do que eu? Poderia esperar? Ousaria fazê-lo? Ai de mim! Esperar o dia seguinte, quando havia tamanha urgência, era ver morrer a criança diante dos meus olhos. Operar ali mesmo era talvez a salvação do doente, mas podia operá-lo e ver morrer o inocente sob o bisturi. O meu caso era pior ainda do que o da maior parte dos médicos em situação semelhante, porque eu tinha medo mortal da difteria, medo que nunca fui capaz de vencer. Arcangelo Fusco não tinha medo; conhecia o perigo tão bem como eu, pois vira a temível infecção propagar-se de um a outro, mas sempre sem o menor cuidado com a segurança pessoal, só pensando nos outros. Quando a epidemia acabou, fui felicitado por todos, até pela Assistência Pública, mas ninguém dirigiu uma palavra a Arcangelo Fusco, que vendera o fato dos domingos para pagar o enterro da pequenita.

Sim, chegou o dia em que tudo terminou, em que Arcangelo Fusco voltou a varrer as ruas e eu a visitar os meus doentes mundanos. Enquanto eu passava os dias em La Villette ou em Montparnasse, os parisienses cuidavam afanosamente de preparar as malas para ir para os castelos ou praias preferidas. Os boulevards pertenciam aos estrangeiros ávidos de prazeres, que tinham inundado Paris, vindos de todos os cantos do mundo civilizado ou bárbaro gastar o dinheiro que lhes sobrava. Viam-se na minha sala de espera muitas clientes lendo febrilmente o Baedeker, insistindo em passar em primeiro lugar e reclamando a maior parte das vezes apenas um tónico a quem, mais do que elas, o necessitava. Outras, estendidas comodamente nas suas chaises-longues, com as mais elegantes toilettes da tarde, última criação de Worth, chamavam-me às suas luxuosas residências, às horas mais insólitas do dia e da noite, e exigiam-me que as pusesse em estado de ir ao baile no dia seguinte. Não me chamavam segunda vez, o que não me surpreendia.

Quanto tempo perdido! - pensava, ao voltar a casa, arrastando as pernas cansadas pelo asfalto dos boulevards, sob os castanheiros empoeirados, com as folhas murchas, suspirando por um sopro de ar fresco.

- Eu bem sei o que nos falta, a vocês e a mim - dizia aos castanheiros: - necessitamos de outro ar, sair da atmosfera desta grande cidade. Mas como sair deste inferno? Vós, com as raízes doridas presas ao asfalto e essa grande argola de ferro aos pés, eu com todas essas ricaças americanas na minha sala de espera e tantos outros enfermos de cama? E se me fosse embora, quem cuidaria dos macacos do Jardim das Plantas? Quem levaria um pouco de alegria ao urso polar, agora que está a chegar a pior época para ele ?Não compreenderia uma só palavra que outras pessoas amáveis lhe dissessem, pois só entende o sueco.

E Montparnasse! Montparnasse! Estremecia ao atravessar-me a mente essa palavra. Via o rosto lívido dum pequenino à luz débil duma candeia; via o sangue brotar do corte que eu lhe praticara na garganta e ouvia o grito de angústia da mãe. Que diria a condessa? A condessa? Não! Verdadeiramente não estava bom da cabeça; era mais que tempo de me ocupar também dos meus nervos, já que podia ver e ouvir coisas destas no Boulevard Malesherbes. Que diabo tinha eu que ver com a condessa? Ela estava optimamente no seu castelo da Touraine, segundo o abade me dizia na última carta, e eu passava maravilhosamente em Paris, a mais bela cidade do Mundo. Só tinha necessidade de dormir um pouco. E que diria o conde se eu lhe escrevesse esta noite, a dizer-lhe que aceitava com alegria o seu amável convite e que partiria amanhã?

Se ao menos pudesse dormir esta noite! Porque não havia de tomar um desses suporíferos que prescrevia aos meus doentes? Um narcótico que me mergulhasse num sono de vinte e quatro horas e me fizesse esquecer tudo: Montparnasse, o castelo da Touraine, a condessa, e tudo o mais? Estendi-me na cama, sem me despir, tão cansado estava. Mas não tomei o narcótico; «les cuisiniers n’ont pás faim», como se diz em Paris. No dia seguinte, ao entrar no meu gabinete, encontrei uma carta sobre a mesa. Era do Senhor Abade, com um P. S. do conde:

«Ouvi-lhe dizer um dia que gostava imenso do canto da cotovia. Por enquanto ainda canta, mas não será por muito tempo. Melhor seria não se demorar». A cotovia! E eu que há dois anos ouvia apenas os pássaros das Tulherias!

Eram belos os cavalos que me foram buscar à estação, belo o castelo, que datava de Richelieu, com seu parque de tílias seculares, belos os móveis Luís XVI do meu quarto luxuoso, belo o enorme S. Bernardo, que me seguiu pelas escadas, tudo era formoso. Formosa era também a condessa, no seu vestido branco, muito simples, com uma única rosa la France na cinta. Pareceram-me os seus olhos maiores do que nunca. O conde era outro homem, com as faces coradas e os olhos vivos. O seu acolhimento, cheio de amabilidade, dissipou logo a minha timidez; eu era ainda um bárbaro da Última Thule, e nunca me vira num ambiente tão sumptuoso. O abade recebeu-me como a um velho amigo. O conde disse que tínhamos o tempo justo para dar uma volta pelo parque antes da hora do chá, a não ser que eu preferisse deitar uma vista de olhos às cavalariças? Deram-me um cesto cheio de cenouras para distribuir pelos doze magníficos cavalos, cobertos com belas mantas, alinhados nos box de carvalho encerado. - O doutor faria bem se lhes desse uma cenoura suplementar para captar a sua amizade - disse-me o conde. - Enquanto aqui estiver, fica este cavalo ao seu serviço, e este groom igualmente - acrescentou, designando-me um jovem inglês que me cumprimentou levando a mão ao boné.

- Sim, a condessa estava muito bem - dizia-me o conde, quando regressávamos, através do jardim. - Já quase não fala da colite; todas as manhãs vai visitar os pobres e estuda com o médico da terra a maneira de transformar uma velha casa da quinta em dispensário para crianças enfermas. No dia dos seus anos convidou todas as crianças da aldeia a vir ao castelo, ofereceu-lhes café e bolos e deu uma boneca a cada uma das pequenitas. Foi uma encantadora lembrança, não é verdade? Se ela lhe falar das bonecas, não deixe de lhe dizer uma palavra amável.

- Com certeza, não deixarei de fazê-lo, tenho muito prazer nisso.

O chá foi servido debaixo duma grande tília, em frente da casa.

- Apresento-te um amigo meu, querida Ana - disse a condessa a uma senhora que estava sentada a seu lado, quando nos aproximávamos da mesa. - Sinto dizer-te que parece preferir a companhia dos cavalos à nossa; ainda não teve tempo para dirigir-me uma só palavra, mas passou uma meia-hora nas cavalariças a conversar com os cavalos.

- E eles pareciam gostar muito de ouvi-lo - disse o conde, rindo. - Até o meu velho cavalo de caça, de quem conheces o mau humor com os estranhos, encostou o focinho à cara do doutor e relinchou da maneira mais amigável.

A baronesa Ana declarou-se encantada de me ver e deu-me excelentes novas da sogra, a marquesa viúva.

- Até julga que ouve melhor. Tenho dúvidas a esse respeito, porque ela não ouve o Lulu ressonar e fica furiosa quando meu marido lhe diz que o ouve em baixo, na sala de fumo. Em todo o caso, o seu Lulu foi uma sorte para todos nós. Outrora não podia ficar só e cansava-nos estar sempre a falar-lhe pela corneta; agora passa horas com o seu Lulu ao colo, e se o doutor a visse todas as manhãs correr pelo jardim para passeá-lo, nem acreditaria nos seus olhos. Ela, que nunca deixava a poltrona! Quando me lembro de que o doutor lhe recomendava que andasse um pouco todas as manhãs e parecia zangar-se quando ela dizia que não tinha forças para tal! É, na verdade, uma mudança maravilhosa. O doutor dirá, naturalmente, que foram os remédios que lhe fizeram bem, mas eu digo que foi o Lulu. Abençoado seja! E que ressone tanto quanto lhe apeteça!

- Olhe o Leo - disse o conde, mudando de conversa. - Pôs a cabeça nos joelhos do doutor como se o conhecesse desde que nasceu; até se esqueceu de reclamar o seu biscoito.

- Que é isso, Leo? - disse a condessa. - Toma cuidado, olha que o doutor hipnotiza-te. Trabalhou com Charcot na Salpêtrière e pode obrigar as pessoas a fazer o que quer só com o olhar. Porque não obriga Leo a falar consigo em sueco, doutor?

- De maneira alguma! Nenhuma linguagem é para mim mais agradável que o silêncio dele; não sou um hipnotizador, mas um grande amigo dos animais, e isto todos eles o compreendem e imediatamente se tornam meus amigos também.

- Parece-me que o doutor tenta fascinar aquele esquilo que está naquele ramo por cima da sua cabeça - disse a baronesa. - Tem estado todo esse tempo com o olhar fito nele, sem nos prestar a menor atenção. Porque não o obriga a descer da árvore e a sentar-se nos seus joelhos, ao lado de Leo?

- Se a baronesa me dá uma noz e me deixam sozinho, creio que poderei fazer que ele venha comê-la à minha mão.

- É muito amável - exclamou a condessa, rindo. - Vem, querida Ana, o doutor quer que nos vamos e o deixemos sozinho com o esquilo.

- Não se ria de mim; ninguém mais do que eu deseja que fiquem; sinto-me tão feliz em tornar a vê-la!

- Está muito amável, senhor doutor; é a primeira vez que me dirige um cumprimento, e eu adoro recebê-los!

- Aqui não sou o médico, sou seu hóspede.

- E o nosso médico não pode dirigir-nos uma amabilidade?

- Não, se o doente se parece consigo e o médico não tem idade para ser seu pai; não, ainda que tenha muito desejo do contrário.

- Muito bem! O que posso afirmar é que, se o doutor alguma vez teve essa tentação, resistiu-lhe lindamente, tratou-me sempre com brusquidão e, da primeira vez que nos vimos, foi mesmo tão pouco delicado que estive quase a ir-me embora. Lembra-se? Querida Ana: sabes o que me disse? Olhou-me severamente e, com o seu terrível acento sueco, exclamou:

- A senhora condessa precisa mais de disciplina que de drogas! Disciplina! Se isto é maneira de um médico sueco falar a uma mulher nova, a primeira vez que o vai consultar!

- Não sou um médico sueco; formei-me em Paris.

- Sim? Pois eu consultei dezenas de colegas seus em Paris e nenhum ousou nunca falar-me em me corrigir.

- Ora aí está a razão que a obrigou a consultar tantos.

- Sabes o que disse à minha sogra? - insistiu a baronesa. - Que, se ela não lhe obedecesse, não voltaria a vê-la, ainda que tivesse a colite, e isto com uma voz tão irritada!... Eu própria o ouvi, do salão, e quando vim, correndo, julguei que a marquesa ia ter um ataque. - O doutor sabe que o recomendo a todas as minhas amigas; não se formalize se lhe digo que os médicos suecos são demasiadamente severos para nós, latinos. Muitas doentes suas me têm dito que as suas maneiras são deploráveis. Não estamos habituadas a ser mandadas como crianças na escola.

- Porque não procura ser um pouco mais amável, doutor? - disse, sorrindo, a condessa, que se divertia com este jogo.

- Vou tentá-lo.

- Conte-nos uma história - pediu a condessa, quando nos reunimos no salão, depois de jantar. - Os médicos conhecem tanta gente extravagante e vêem-se envolvidos em tanta situação estranha! O doutor há-de saber mais da vida que o vulgar das pessoas. Tenho a certeza de que, se quisesse, nos podia contar muita coisa interessante.

- É possível que tenha razão, mas os médicos não podem falar dos doentes, e, quanto à vida, temo ser novo demais para a conhecer bastante.

- Diga-nos ao menos o pouco que sabe - insistiu a baronesa.

- Sei que a vida é bela, mas sei também que muitas vezes a dissipamos e a convertemos numa farsa estúpida ou num drama ou nos dois conjuntamente, de modo que, no final, não sabemos se vale mais rir ou chorar. É mais fácil chorar, mas o melhor é rir, com a condição de gozar interiormente.

- Conte-nos uma história de animais - disse a condessa - para pisarmos terreno mais seguro. Dizem que no seu país abundam ursos; conte nos uma história de ursos.

- Era uma vez uma dama que habitava uma antiga casa senhorial, à orla duma grande selva, muito ao norte. Esta senhora tinha um urso domesticado, do qual gostava muito. Haviam-no encontrado na selva, morto de fome, tão pequeno e tão fraco que teve de ser alimentado a biberon pela senhora, ajudada pela velha cozinheira. Passara-se isto alguns anos antes; o urso havia crescido e era agora tão grande e forte que, se quisesse, podia matar uma vaca e levá-la entre as patas. Mas não queria tal; era o melhor dos ursos e não pensava em fazer mal nem aos homens nem aos animais. Permanecia sentado junto da casota, olhando, com os olhitos inteligentes, o gado que pastava no campo, ao lado. Era muito conhecido dos três poldritos montanheses da cavalariça, que não se incomodavam nada quando ele por ali entrava com a dona. As crianças trepavam-lhe para cima e mais duma vez as encontraram dormindo entre as suas patas, na casota. Os três cães lapões gostavam muito de brincar com ele; puxavam-lhe pelas orelhas e pelo rabo, procurando arreliá-lo de mil maneiras, mas ao urso nada importava tudo aquilo. Nunca havia provado carne, comia como os cães, muitas vezes no mesmo prato, pão, batatas, couves e nabos. Tinha um belo apetite, mas a sua amiga, a cozinheira, cuidava em que lhe não faltasse o alimento necessário. Os ursos são vegetarianos quanto podem sê-lo e gostam principalmente de fruta. No Outono sentava-se a olhar com os olhos cobiçosos as maçãs que amadureciam no pomar e, quando era mais novo, sucedeu-lhe algumas vezes não poder resistir à tentação de trepar à árvore e comer algumas. Os ursos parecem lentos e pesados em seus movimentos, mas, postos ao pé duma macieira, vereis que podem competir em ligeireza com qualquer rapaz de escola. Agora já sabia que o não devia fazer, mas conservava-se de olho alerta para não perder nenhuma das que caíam no chão. Haviam-no tentado também as colmeias, e, por causa disso, ficara com o focinho em sangue, e fora castigado com dois dias de prisão, atado com a corrente, e não reincidiu. Só de noite o prendiam com a corrente, o que era justo, porque o urso, como o cão, tem tendência a irritar-se se o conservam muito tempo preso, o que não é de admirar. Também aos domingos o atavam com a corrente, quando a dona ia passar a tarde com uma irmã casada que vivia numa casa isolada, na outra margem do lago, na serra, a uma boa hora de caminho através da floresta espessa. Julgavam pouco prudente deixá-lo errar na selva, tão cheia de tentações; valia mais deixá-lo em lugar seguro. Para mais, era fraco marinheiro, e um dia assustou-se tanto com um repentino golpe de vento que fez virar o barco, e dona e urso tiveram que ganhar a nado a outra margem. Agora, quando, aos domingos, a dona vinha prendê-lo com a corrente e, dando-lhe uma palmada amigável na cabeça, lhe prometia uma maçã ao voltar se ele se comportasse bem, sabia perfeitamente o que isso significava. Ficava triste mas resignado quando a dona lhe dizia que não podia levá-lo a passeio. Um domingo que ela o prendera como de costume, e quando já se encontrava na floresta, pouco mais ou menos a meio caminho, julgou sentir o ruído dum ramo partido no carreiro tortuoso, por detrás dela. Voltou-se e ficou grandemente contrariada ao ver o urso, que chegava a toda a pressa. Os ursos aparentam mover-se com grande lentidão, mas, com seus passos arrastados, avançam bem mais depressa que um cavalo a trote. Alcançou-a num ápice, arquejante e farejando, e tomou o lugar do costume atrás dela, como um cão. A dama ficou furiosa; já ia atrasada para o almoço, não tinha tempo de o reconduzir a casa, não queria que ele a acompanhasse, e, além disso, era bem feia acção da parte dele ter-lhe desobedecido e quebrado a corrente. Com voz severa, ordenou-lhe que voltasse imediatamente para trás, ameaçando-o com a sombrinha. O urso deteve-se um momento e considerou-a com olhos maliciosos; era evidente que não queria voltar para trás e continuou a farejá-la. Quando a dama notou que ele inclusivamente perdera a coleira nova, mais se irritou e bateu-lhe no focinho com a sombrinha, que se partiu em duas. O urso deteve-se novamente, abanou a cabeça e abriu a bocarra várias vezes, como se pretendesse dizer alguma coisa. Depois voltou-se e retomou tranquilamente o caminho por onde viera, parando ainda de quando em quando para olhar a dama, e desapareceu por fim. Quando ela, à noite, entrou, o urso estava, como de ordinário, sentado junto da casota e com ar bem triste. A dama continuava grandemente irritada; acercou-se-lhe e começou a ralhar-lhe com severidade, dizendo-lhe que não teria nessa noite nem maçã nem ceia, e que, além disso, o mandaria acorrentar dois dias seguidos. A velha cozinheira, que adorava o urso como um filho, saiu precipitadamente da cozinha, gritando furiosa: «Porque lhe ralha a senhora? Comportou-se como uma estampa durante todo o dia. Benza-o Deus!

Ficou aí sentado sobre o traseiro, meigo como um anjo, espreitando através da grade a sua chegada».

Tinha sido outro urso.

Deram onze horas no relógio da torre.

- São horas de deitar - lembrou o conde. - Mandei aprestar os cavalos para as sete da manhã.

- Boa noite e sonhos agradáveis - disse-me a condessa, quando eu subia para o quarto.

Dormi pouco, mas sonhei muito.

No dia seguinte, às seis da manhã, Leo veio arranhar a minha porta, e, ao dar as sete, o conde e eu descíamos a cavalo a avenida das esplêndidas e veneráveis tílias, que conduzia aos bosques.

Em breve nos encontrámos numa verdadeira floresta de olmos e de faias, com alguns magníficos carvalhos à mistura. Os bosques estavam silenciosos; apenas se ouvia de quando em quando o toc toc cadenciado do pica-pau, o arrulho do pombo bravo ou o gorjeio profundo do melro soltando as últimas estrofes da sua balada. Não tardou que chegássemos a uma vasta extensão de campos e pradarias inundados de sol. E eis a cotovia bem-amada, num frémito de asas invisíveis, ao alto, em pleno espaço, lançando ao Céu e à Terra, no seu cântico, o coração transbordando de alegria de viver. Ergui o olhar para a avezinha, que abençoei, como tantas vezes fizera na minha infância, nos países gelados do Norte, quando me esquecia a seguir com o olhar reconhecido a pequena e escura mensageira do Estio, persuadindo-me enfim de que terminara o duro Inverno.

- É o seu último concerto - disse o conde. - Breve será forçada a alimentar os filhos e não terá tempo de cantar. Dou-lhe razão; não há maior artista: a cotovia canta do fundo do próprio coração.

- Quando pensamos que há homens capazes de matar a inocente e pequena cantora! Se for às Halles de Paris, lá as vê às centenas, para serem vendidas a outros homens com ânimo de as comer. A voz da cotovia enche de alegria todo o Céu, mas o seu corpo é tão pequeno que cabe na mão duma criança, e todavia comemos com avidez essas pobres avezinhas, como se não tivéssemos nada mais para nos alimentar. Estremecemos só de ouvir falar em canibais e enforcamos o selvagem que não resiste a esse hábito ancestral; mas assassinar e devorar as avezinhas é um crime impune.

- Querido doutor, o senhor é um idealista.

- Não; há quem lhe chame, com mofa, sentimentalismo. Que se riam à vontade, é-me indiferente. Mas ouça bem: há-de chegar um dia em que deixem de rir, em que entendam que o mundo animal foi posto pelo Criador sob a nossa protecção e não à nossa mercê, que os animais têm tanto direito à vida como nós e só a legítima defesa da própria vida pode justificar que atentemos contra a deles. Há-de chegar um dia em que o prazer de matar por matar se extinga no homem. Enquanto esse costume dure o homem não tem direito a intitular-se civilizado; não passa dum bárbaro, um elo apenas entre os selvagens antepassados, que se matavam entre si com as achas de sílex por um pedaço de carne crua, e o homem futuro. A necessidade de matar os animais ferozes é indiscutível; mas os seus executores, os orgulhosos caçadores de hoje, desceram ao nível dos magarefes.

- Talvez tenha razão - disse o conde, erguendo os olhos para o Céu uma última vez, ao dar meia volta aos cavalos para regressar ao palácio.

Durante o almoço um criado entregou à condessa um telegrama, que ela estendeu por sua vez ao conde. Este leu-o sem dizer palavra.

- Creio que já conhece o meu primo Maurício - disse-me ela. - Virá jantar connosco, se apanhar o comboio das quatro. Está na guarnição de Tours.

Com efeito, o visconde Maurício jantou connosco. Ah! sim; era um alto e belo moço, de fronte estreita e fugidia, de orelhas enormes, queixada cruel e um bigode à Gallifet.

- Que agradável surpresa encontrá-lo aqui, senhor Sueco, uma grande surpresa, na verdade.

Desta vez teve a condescendência de me estender a mão, uma pequena mão mole e flácida, particularmente desagradável ao apertar, o que me permitiu classificar o dono. Faltava-me apenas ouvi-lo rir-se, o que não tardou. As suas risadas estrepitosas e monótonas fizeram ressoar a sala durante toda a refeição. Começou logo a contar à condessa a escandalosa história que acabava de se dar com um dos seus camaradas, o qual encontrara a amante na cama do impedido. O abade já não estava muito à vontade, quando o conde cortou de súbito a conversa falando, através da mesa, para a mulher, do passeio matinal a cavalo, do formoso aspecto dos trigais, da abundância do trevo e da cotovia retardatária, cujo último concerto nos tinha embevecido.

- Histórias!... - disse o visconde. - Ainda há muitas que cantam. Ontem, mesmo, matei uma e foi o melhor tiro da minha vida. O passarinho não parecia maior que uma borboleta.

Corei até à raiz dos cabelos, mas o abade deteve-me a tempo, poisando-me a mão no joelho.

- É uma brutalidade matar uma cotovia, Maurício! - disse a condessa.

- E porque não hei-de matá-las? Há muitas e, além disso, são um alvo excelente para me exercitar, ainda que não conheço nada melhor do que as andorinhas. Sabes, querida Julieta, que sou o melhor atirador do regimento e se não me exercito não tardarei a enferrujar-me. Felizmente, há infinidade de andorinhas à roda do quartel e centenas delas fizeram o ninho no beiral do telhado das cavalariças. Neste momento andam atarefadíssimas para sustentar os filhos e passam e repassam sem cessar, como flechas, diante da minha janela. É divertidíssimo! Todas as manhãs me exercito sobre elas, sem ter que sair, sequer, do quarto. Ontem apostei mil francos com Gastão como sobre dez mataria seis e, talvez não acreditem, matei oito! Não conheço melhor treino que atirar às andorinhas. Sempre disse que o deviam tornar obrigatório em todas as escolas de tiro.

Deteve-se um instante para contar cuidadosamente as gotas que tirou dum frasco de remédio para o seu copo de Bordeaux.

-Vamos, querida Julieta, não te faças piegas. Vem amanhã comigo a Paris; precisas de divertir-te um pouco, depois de tantas semanas neste país solitário. Será um espectáculo magnífico, o melhor concurso de todos os que se têm feito; virão os melhores atiradores de França e, tão certo como chamar-me Maurício, verás o presidente da República entregar a teu primo a medalha de oiro. Comeremos uma boa ceia no Café dos Ingleses e iremos depois ao Falais Royal ver a «Noite de Núpcias». É uma peça encantadora, tudo o que há de mais divertido; já a vi quatro vezes, mas gostaria imenso de a tornar a ver contigo!

«A cama está no centro da cena e o amante escondido debaixo dela; o marido, que é um velho»...

O conde, visivelmente irritado, fez um sinal à mulher e levantámo-nos da mesa.

- Por mim, nunca poderia matar uma cotovia - disse o conde.

- Não, querido Roberto - exclamou o visconde, rindo às gargalhadas -, porque erravas o tiro.

Entrei no quarto quase a chorar, com uma cólera surda e a vergonha de a não ter deixado explodir.

Preparava-me para fazer a mala, quando o abade entrou. Pedi-lhe que dissesse ao conde que fora chamado a Paris e me via obrigado a tomar o comboio da meia-noite.

- Não quero tornar a ver esse bruto, senão parto-lhe aquele monóculo insolente na cabeça oca.

- Aconselho-o a que o não tente, porque ele matá-lo-ia. É um famoso atirador; não sei quantas vezes já se bateu em duelo e está sempre a disputar com toda a gente. Tem uma língua detestável. Tudo o que lhe peço é que conserve o sangue-frio durante vinte e seis horas. Parte amanhã à noite para o concurso de Paris, e posso assegurar-lhe que me sentirei tão feliz como o doutor em o ver pelas costas.

- Por que razão?

O abade calou-se.

-Digo-lhe eu por quê, senhor abade! Está enamorado da prima; o senhor detesta-o porque não lhe merece a menor confiança.

- Já que o doutor, sabe Deus como, adivinhou a verdade, vale mais que eu lhe diga que ele quis desposá-la, mas ela recusou. Felizmente, não lhe agrada.

- Não lhe agrada, mas tem-lhe medo, o que é talvez pior.

- O conde vê com muito maus olhos a intimidade dele com a mulher e foi por isso que não quis deixá-la sozinha em Paris, onde ele a acompanha constantemente a festas e a teatros.

- Não creio que parta amanhã.

- Parte, com certeza; está com muita vontade de obter a medalha de oiro, o que é muito provável; é, na verdade, um atirador excepcional.

- Gostaria de o ser também; e de o matar, para vingar as andorinhas! Não sabe nada da sua família? Aposto em como há alguma coisa de anormal na ascendência.

- A mãe era uma condessa alemã muito formosa, e é dela que ele tem as feições, mas creio que era um casal muito infeliz. O pai, homem irascível e estranho, abusava da bebida. No final da vida tornou-se quase louco. Alguns afirmam que se suicidou.

- Espero sinceramente que o filho lhe siga o exemplo, e quanto mais cedo melhor. Doido, não está muito longe de o ser.

- O doutor tem razão. A verdade é que o visconde é por vezes bastante estranho. Por exemplo, é forte como um cavalo e está sempre preocupado com a saúde e com medo de apanhar toda a sorte de doenças. Da última vez que aqui veio, o filho do jardineiro teve o tifo e ele foi-se logo embora. Anda sempre a tomar remédios. Notou, certamente, que ao jantar tomou um.

- Sim, porque foi o único momento em que esteve calado.

- Consulta constantemente novos médicos; é pena que o doutor não lhe agrade; estou certo de que teria nele um novo cliente. De que se ri, doutor?

- Rio-me com uma ideia divertidíssima que me passou pela cabeça. Não há nada como uma boa gargalhada quando se está furioso. O abade reparou na minha disposição quando entrou no quarto? Decerto lhe dá prazer que eu lhe diga que me sinto outra vez bem e do melhor humor. Mudei de opinião e já não parto esta noite. Vamos descer e ter com os outros ao salão de fumo. Prometo-lhe que me comportarei admiravelmente.

O visconde, com o rosto congestionado, estava em pé diante do espelho, torcendo nervosamente o bigode à Gallifet. O conde, sentado perto da janela, lia o Figaro.

- Que surpresa e que prazer vê-lo aqui, senhor Sueco - exclamou o visconde, olhando-me através do monóculo, como para se dar conta da minha resistência às suas impertinências. - Espero que não o traga por aqui nenhum novo caso de colite?

- Por enquanto não, mas nunca se sabe.

- Têm-me dito que o doutor é um especialista da colite; pena é que ninguém saiba nada dessa doença tão interessante; que o doutor guarde tudo para si... Quereria ser tão amável que me dissesse o que é a colite? É contagiosa?

- No sentido vulgar da palavra, não.

- Perigosa?

- Se é tratada logo no começo e devidamente, não é. - Pelo doutor, suponho eu.

- Aqui não sou médico. O conde teve a amabilidade de me chamar como convidado.

- Seriamente? Mas que vai ser então de todos os seus doentes de Paris?

- Suponho que se curam.

- Eu tenho a certeza. - E desatou a rir às gargalhadas.

Tive de ir sentar-me ao pé do abade e pegar num jornal para me acalmar. O visconde deitou um olhar impaciente para o relógio da chaminé.

- Subo a buscar Julieta para darmos um passeio no parque. É um crime estar dentro de casa com este luar magnífico.

- Minha mulher já se foi deitar - disse o conde secamente do fundo da poltrona. - Não se sentia muito bem.

- Por que demónio não mo tinhas dito ainda? - retorquiu o visconde, aborrecido, enchendo mais um copo de soda com brandy.

O abade lia o Jornal des Débats, mas eu notei que o seu olhar astuto não nos deixava.

- O que há de novo, senhor abade?

- Lia, precisamente, a propósito do concurso da Sociedade de Tiro de França de depois de amanhã, que o presidente da República oferece uma medalha de oiro ao vencedor.

- Aposto com o abade mil francos em como a ganho - exclamou o visconde, batendo com o punho no vasto peito - a não ser que o expresso de Paris descarrile amanhã ou que eu apanhe a colite - acrescentou, dirigindo-me um olhar de mofa.

- Basta de cognac, Maurício - disse o conde do seu canto. - Já bebeste mais da conta e estás a cair de bêbedo.

- Coragem, doutor Colite, não esteja com esse ar tão abatido! Tome uma soda com brandy; nem tudo estará perdido para si. Tenho muita pena de não lhe poder ser agradável, mas porque não há-de atacar o senhor abade, que está sempre a queixar-se do fígado e de má digestão? Senhor abade: não quer ser amável com o doutor Colite, que arde em desejos de lhe ver a língua?

O abade continuava lendo o jornal sem dizer palavra.

- Não está disposto; e tu, Roberto? Estiveste durante todo o jantar com ar aborrecido; porque não mostras a língua ao sueco? Estou certo de que tens a colite. Não queres dar esse prazer ao doutor? Não? Então, doutor Colite, está sem sorte. Mas, para o consolar, vou eu mostrar-lhe a língua. Olhe-a a gosto e quanto tempo queira.

Deitou-me a língua de fora, soltando uma gargalhada diabólica. Parecia uma dessas cabeças de grifos da Notre-Dame.

Levantei-me e examinei-lhe atentamente a língua.

- Está com uma língua péssima - disse gravemente. - Uma língua péssima.

Voltou-se imediatamente, para mirar a língua ao espelho. Língua suja de fumador inveterado. Peguei-lhe na mão e tomei-lhe o pulso, que estava muito agitado, devido à excitação causada por uma garrafa inteira de champagne e três de soda com brandy.

- Pulso muito rápido - disse eu.

Pus-lhe a mão na cabeça ardente.

- Dói-lhe a cabeça?

- Não.

- Será para amanhã de manhã, ao despertar, com certeza.

O abade deixou cair o jornal.

- Desaperte as calças! - acrescentei, severamente.

Obedeceu automaticamente, dócil como um cordeiro. Dei-lhe uma pancada rápida no diafragma, o que provocou um soluço.

- Ah! - resmunguei. Olhei-o fixamente nos olhos e depois, com vagar, acrescentei: - Obrigado, isto basta.

O conde deixou cair o Figaro. O abade, de boca aberta, ergueu os braços ao Céu. O visconde permanecia ali plantado, diante de mim, sem voz.

- Torne a abotoar as calças! - ordenei-lhe - e tome uma soda com brandy. Vai ser-lhe necessário.

Abotoou maquinalmente as calças e engoliu sem parar a bebida que lhe estendi.

- À sua saúde, senhor visconde - disse eu, levando o copo aos lábios -, à sua saúde!

O homem limpou o suor da fronte e voltou-se mais uma vez para observar a língua no espelho. Fez um esforço desesperado para se rir, mas não o conseguiu.

- Quer então dizer? Pensa que? Quer dizer...

- Não digo nada, não tenho nada que dizer-lhe, pois não sou seu médico.

- Mas que devo então fazer? - tartamudeou.

- Meter-se na cama o mais breve possível, ou será necessário que o levem para lá.

Aproximei-me da chaminé e toquei a campainha.

- Acompanhe o senhor visconde ao quarto - ordenei. - E recomende ao criado de quarto dele que o meta na cama imediatamente.

Pesadamente apoiado ao ombro do criado, o visconde encaminhou-se para a porta, com os passos vacilantes.

No dia seguinte dei sozinho um magnífico passeio a cavalo. A cotovia librava-se ainda nas alturas celestes, cantando o seu hino matinal ao Sol.

- Vinguei as tuas irmãs assassinadas - exclamei, na direcção da cotovia. - Mais tarde será a vez das andorinhas.

Estava sentado a almoçar no meu quarto, quando bateram à porta. Um homenzinho tímido entrou e cumprimentou-me com grande polidez. Era o médico da aldeia, que vinha, segundo declarou, apresentar os seus respeitos ao colega de Paris. Roguei-lhe, lisonjeado, que se sentasse e fumasse um cigarro que lhe ofereci. Falou-me de alguns casos interessantes que tivera ultimamente; e, como a conversação começasse a cair, ergueu-se para sair. - A propósito: chamaram-me esta noite para o visconde Maurício e venho agora de vê-lo.

Disse-lhe que sentia que o visconde estivesse indisposto, mas que esperava não fosse nada de gravidade; tinha tido o gosto de jantar com ele na véspera e estava de perfeita saúde e de bom humor.

- Não sei - disse o doutor -, o caso é ainda pouco claro; penso que é mais prudente diferir uma opinião definitiva.

- Vejo que é prudente, caro colega; certamente lhe prescreveu que não se levantasse.

- Evidentemente. É desagradável, pois o visconde tinha de ir a Paris, mas nem pensar em tal.

- Com certeza. E tem a cabeça bem?

- Pouco mais ou menos.

- Tanto quanto se pode esperar dele, suponho.

- Falando com franqueza, a princípio pensei que se tratava dum simples embaraço gástrico, mas acordou com violentas dores de cabeça, e agora está com um soluço pertinaz. Parece-me muito abatido; está convencido de que tem a colite. Confesso que nunca tratei um caso de colite; queria dar-lhe óleo de rícino, porque tem a língua muito suja; mas, se a colite se parece, por pouco que seja, com a apendicite, julgo mais prudente evitar esse purgante. Que diz o colega? Ele está constantemente a tomar o pulso e a examinar a língua; mas o que é estranho é que tem fome e enfureceu-se por eu não lhe permitir que almoçasse.

- Fez o colega muito bem; vale mais ser severo e, até amanhã, é pô-lo a água.

- Perfeitamente.

- Não me compete aconselhá-lo; o colega sabe bem o que faz, mas, quanto ao óleo de rícino, não estou muito de acordo. Se fosse eu, receitar-lhe-ia uma dose forte, não estava com meias medidas; três colheres de sopa far-lhe-iam um bem enorme.

- O colega disse três colheres de sopa?

- Sim, pelo menos. E principalmente jejum absoluto; nada mais que água.

- Muito bem.

Agradou-me esse médico da aldeia, e separámo-nos como bons amigos.

De tarde fui, com a condessa, cumprimentar a marquesa viúva. Um passeio magnífico por caminhos umbrosos, cheios de trinados de aves e de zumbidos de insectos. A condessa estava de excelente humor e não parecia importar-se nada com a súbita indisposição do primo. A marquesa estava óptima, ia-me ela dizendo, mas na semana anterior estivera inquietíssima por causa da desaparição súbita de Lulu; em casa ninguém se deitara à procura dele, durante a noite. A marquesa não pregara olho e estava ainda sobre a cama, esgotada, quando à tarde apareceu o Lulu com uma orelha rasgada e um olho quase vazado. Telefonou imediatamente ao veterinário de Tours e o cãozito restabeleceu-se.

Lulu e eu fomos apresentados um ao outro, segundo todas as regras, pela marquesa.

- Já vira cão mais lindo?

Afirmei-lhe que não, que nunca vira outro igual.

- Como é isso? - protestou Lulu, rosnando. - Tu, que pretendes gostar de cães, não irás agora afirmar que me não conheces? Não te lembras de mim? Foste tu que me tiraste dessa horrível loja de cães na...

Ansioso por mudar a conversa, estendi a mão a Lulu, que se calou imediatamente e se pôs a cheirá-la, dedo por dedo.

- Sim, senhor, sinto muito bem o teu cheiro. Lembro-me bem dele, depois que estiveste na loja; gosto muito do teu cheiro. Ah! que agradável! Mas, por S. Roque, patrono de todos os cães, tu cheiras a osso, a um grande osso? Onde o tens? Porque mo não deste? Estes estúpidos nunca me dão um osso; julgam que faz mal a um cão pequeno. Que tolos! A quem deste o osso? Saltou-me para os joelhos, cheirando-me furiosamente.

- Isto é demais! Outro cão! Um cão grande! Um cão enorme! Com a saliva a cair-lhe dos cantos da boca! Será um S. Bernardo! Não passo dum cãozito pequeno e sofro um bocado de asma, mas tenho o coração no seu sítio, e melhor é que digas a esse elefante que tenha cuidado e não se aproxime de mim nem da minha dona, ou o como vivo. Pôs-se a cheirar desdenhosamente. Spratts Dog biscuits. Foi então isso que ontem jantaste, grande animal! Só o cheiro desses desagradáveis biscoitos ingleses, que me obrigavam a comer na loja dos cães, me causa náuseas! Prefiro os Albert, o pão de especiarias, ou um pedaço daquela torta de amêndoas que está em cima da mesa. Spratts! - E, tão depressa quanto as gordas pernas lho permitiram, retomou o seu lugar no colo da ama.

- Volte por aqui, antes de regressar a Paris, doutor - dizia-me a marquesa com amabilidade.

- Oh! sim, volta - rosnou Lulu-, afinal não és má pessoa.

Quando me levantava para me despedir, chamou-me com um sinal.

- Ouve cá: amanhã é lua cheia, sinto-me bastante excitado e gostaria de poder escapar-me. - Piscou-me um olho com malícia. - Não conhecerás tu, por acaso, na vizinhança, algumas damas cachorras? Não fales disto à minha ama, que não pesca nada destas coisas... Devo dizer-te que o tamanho não tem importância e me convém seja o que for.

Sim; Lulu tinha razão, era lua cheia. Esta estrangeira misteriosa tem roubado muito sono aos meus olhos e sussurrado demasiados sonhos em meus ouvidos. O Sol não tem mistérios; deus radioso do dia, que trouxe a vida e a luz ao nosso escuro Mundo, que continua velando por nós, olhando-nos com o seu olhar brilhante, quando, há muito já, todos os outros deuses que mandavam no Olimpo, no Nilo e nos Wahallala desapareceram nas trevas. Mas ninguém sabe nada desta pálida viajante, que vagabundeia entre as estrelas, que nos olha obstinadamente do fundo da imensidade, com seus frios e brilhantes olhos e o sorriso irónico. O conde não se interessava pela Lua; preferia a paz da poltrona e ficar na sala de fumo, com o charuto e o Figaro. A condessa adorava a Lua. Gostava da sua luz misteriosa e dos sonhos doces; gostava de estender-se no fundo do barco, silenciosa, olhando as estrelas, enquanto eu atravessava, remando docemente, o lago luminoso. Gostava de divagar sob as velhas tílias do parque, banhadas numa luz de prata, ora imersas em tão profunda sombra, que tinha de encostar-se ao meu braço para encontrar o caminho. Gostava de sentar-se num banco solitário e fitar com seus grandes olhos a noite silenciosa. Falava de vez em quando, muito poucas vezes, mas o seu silêncio era-me tão agradável como o som da sua voz.

- Doutor, porque não gosta da Lua?

-Não sei, mas julgo que tenho medo dela.

- Medo, e porquê?

- Não sei. O luar é tão claro que posso ver os seus olhos

semelhantes a duas estrelas; e no entanto está tão escuro que tenho medo de perder-me. Sou um estrangeiro neste país de sonho.

- Dê-me a sua mão, que eu o guiarei. Julgava a sua mão tão forte, e treme tanto! Sim é verdade, é um sonho; não fale para que não se desvaneça. Escute! É o rouxinol!

- Não, é o gorjeio da toutinegra.

- Tenho a certeza de que é um rouxinol. Ora escute, escute!

Julieta começou a cantar com a sua voz doce e tão acariciadora como a brisa ao entardecer:

Ah! Não! Não é o dia,

Não é a cotovia,

Nem o seu hino alegre à luz do Sol;

Sob o luar de prata,

Soluça uma sonata,

Canta, ébrio de amor, um rouxinol!

- Não fale! Não fale!

Ouviu-se o pio dum mocho numa árvore, sobre as nossas cabeças. Julieta ergueu-se sobressaltada. E, em silêncio, regressámos ao palácio.

- Boas-noites - disse-me ao deixar-me no vestíbulo. - Amanhã é lua cheia. Até amanhã.

Leo dormia no meu quarto. Era um grande segredo; e os dois sentíamo-nos, por isso, um pouco culpados.

- Onde tens estado e porque estás tão pálido? - perguntava-me Leo, enquanto subíamos furtivamente as escadas. - Todas as luzes do palácio estão apagadas e não se ouvem os cães da aldeia. Deve ser muito tarde.

- Estive muito longe, num país desconhecido, cheio de mistérios e de sonhos, e por pouco não me perdi no caminho.

- Estava quase a dormir no meu nicho quando o mocho me despertou. Mal tive tempo de me meter no hall quando chegaste.

- Também a mim me despertou o mocho, querido Leo. Gostas do mocho?

- Não; prefiro um faisão tenro; acabo de comer um. Vi-o correr à luz da Lua, mesmo diante do meu focinho. Bem sei que é proibido, mas não pude resistir à tentação. Não me vais denunciar ao guarda, não é verdade?

- Não, amigo, nem tu irás dizer ao criado que entrei tão tarde?

- Claro que não.

- Leo: estás ao menos arrependido de teres comido o tenro faisão?

- Estou procurando arrepender-me.

- Mas não é coisa fácil? - perguntei eu.

- Não - murmurou Leo, lambendo os beiços. - Leo: és um ladrão, e aqui não és o único, e também um mau cão de guarda. Tu que estás aqui para afugentar os ladrões, porque não despertas agora mesmo o teu dono, com o teu vozeirão, em vez de estares aí a olhar-me com olhos tão ternos?

- Não posso fazer outra coisa. Gosto de ti.

- Leo: a culpa de tudo isto cabe a esse guarda sonolento que está lá no alto, no Céu. Porque não dirigiu os raios do seu fanal por todos os cantos escuros do parque onde havia um banco debaixo duma velha tília, em vez de cobrir a cabeça calva com as nuvens, como se fosse uma touca, e pôr-se a dormir deixando ao seu amigo mocho o encargo de vigiar? Talvez fingisse apenas que dormia e continuasse a vigiar-nos com o canto do olho, com malícia, velhaco pecador, velho D. João, pavoneando-se entre as estrelas como qualquer idiota pelas avenidas, mas gostando de ver os outros cobrir-se de ridículo.

- Há pessoas que julgam a Lua uma dama encantadora - disse Leo.

- Não acredites nisso, amigo. A Lua é uma velhaca solteirona, que espia de longe, com olhos traiçoeiros, a imortal tragédia do amor mortal.

- A Lua é um fantasma - disse Leo.

- Um fantasma? Quem te disse tal?

- Ouviu-o um dos meus antepassados dizer há séculos, no desfiladeiro de S. Bernardo, a um velho urso que o sabia por Atta Troll, que, por sua vez, o ouvira à Ursa Maior, que reina sobre todos os ursos. Sim, toda a gente tem medo à Lua, lá no alto dos Céus. Não admira nada que também nos cause medo e lhe ladremos, pois a própria Sírius, tão brilhante, a Estrela dos Cães, que governa em todos, empalidece quando ela, rastejando, sai da tumba e ergue sua face sinistra nas trevas. Crês talvez ser o único que não pode dormir quando há luar? Pois fica sabendo que todos os animais selvagens, tudo o que mexe e se arrasta nos bosques e nos campos deixa os covis e corre atemorizado dos seus raios malfazejos. Muito ocupado devias estar esta noite no parque, a olhar alguém, para não veres que era um fantasma que te espreitava, fantasma que gosta de deslizar por entre as tílias dum velho parque, aparecer nas ruínas dum palácio ou duma igreja e errar num velho cemitério, inclinando-se sobre as campas para ler o nome dos mortos. Adora sentar-se e contemplar com seus olhos de aço a desolação dos campos de neve cobrindo a terra com um lençol, ou insinuar-se por entre uma janela para despertar, com um sonho sinistro, alguém que dorme tranquilo.

- Basta, Leo; não falemos mais na Lua, senão ficaremos despertos toda a noite; fazes-me calafrios. Dá-me as boas-noites, amigo, e vamos deitar-nos.

- Mas vais fechar as persianas, não é verdade? - disse Leo.

- Fecho-as sempre quando há luar.

No dia seguinte, quando almoçávamos, disse a Leo que era obrigado a voltar imediatamente a Paris, porque nesse dia era lua cheia, eu tinha vinte e seis anos e a sua dona vinte e cinco... ou vinte e nove. Tinha-me visto preparar a mala e todos os cães sabem o que isto significa. Baixei ao quarto do abade e contei-lhe a clássica mentira. - Fora chamado para uma consulta importante e tinha que partir no comboio da manhã. Disse-me que o sentia muito; e o conde, que nessa ocasião se preparava para sair a cavalo, mostrou-se muito contrariado; claro que era impossível incomodar a condessa a hora tão matinal. Além disso, eu devia voltar muito breve.

No caminho da estação encontrei o meu colega da aldeia, que, na sua charrett inglesa, voltava de visitar o visconde. O doente estava muito por baixo, pedia de comer em altos gritos, mas o médico fora inabalável, declarando que não assumia tal responsabilidade e não lhe permitia senão água.

A cataplasma no estômago e o gelo na cabeça tinham sido renovados toda a noite, com grande prejuízo do sono do doente. Perguntou-me se eu propunha mais alguma coisa.

Não, tinha a certeza de que o doente estava em excelentes mãos. Talvez, se o estado do enfermo se mantivesse estacionário, poderia, para variar, pôr o saco de gelo no estômago e a cataplasma na cabeça.

- Quanto tempo, em meu entender, e não sobrevindo complicações, deveria o doente estar de cama?

- Pelo menos uma semana, enquanto houvesse luar.

O dia custou a passar. Senti-me feliz em me encontrar na Avenue Villiers. Fui direito para a cama. Não me sentia bem, e a mim mesmo perguntava se não teria um bocado de febre; mas os médicos nunca sabem se têm febre ou não. Adormeci, mal me deitei, tão cansado estava. Não sei há quanto tempo havia adormecido, quando de repente senti que não estava sozinho no quarto. Abri os olhos e vi no vidro da janela uma face lívida que fixava em mim os olhos brancos e vazios: esquecera-me de cerrar as persianas. Lentamente, silenciosamente, qualquer coisa se insinuou no quarto e, rastejando, estendeu um longo braço, semelhante aos tentáculos dum enorme polvo, até alcançar o leito.

- Afinal, e apesar de tudo, queres voltar ao palácio? - exclamou com a boca desdentada e os lábios exangues, com um riso mau. - Que linda estava a noite e que bem te sentias sob a tília, não é verdade? Comigo por testemunha e os rouxinóis a cantar à volta? Rouxinóis no mês de Agosto! Que longe devíeis estar os dois, em que longínquo país! E agora querias voltar, nesta mesma noite! hem? Pois toca a vestir-te, trepa para esse raio de luar que tu, com tanta galantaria, classificaste de tentáculo de polvo, e eu te levarei num minuto para debaixo das tílias; a minha luz viaja tão depressa como o teu sonho.

- Não sonho, estou bem desperto, espectro de Mefisto!

- Agora sonhas que estás acordado e ainda não esgotaste o vocabulário das estúpidas invectivas! Espectro de Mefisto! e já me chamaste velho devasso! e D. João! e solteirona bisbilhoteira! É certo que te espiei ontem no parque, mas gostaria bem de saber qual de nós dois faria figura de D. João, a não ser que prefiras que te chame Romeu! Juro, por Júpiter, em como não te pareces com ele! Cego e imbecil é que tu és! imbecil, que não vês sequer o que viu o teu cão; não tenho idade, nem sexo, nem vida, sou um fantasma!

- Fantasma de quê?

- Dum mundo desaparecido. Desconfia dos fantasmas. Farias melhor em calares os insultos, ou te cego com um dos meus raios subtis e mais perigosos para os olhos dos homens que a flecha doirada do Deus Sol. É a minha última palavra, sonhador blasfemo! Já no céu do Oriente se vêem os primeiros alvores da madrugada; tenho que voltar ao meu sepulcro para me não perder no caminho. Estou velha e cansada. Julgas que é cómodo errar da direita para a esquerda da noite à manhã, quando tudo repousa? Dizes que sou sombria e sinistra! Julgas que é fácil ser alegre quando é preciso viver num túmulo? Se chamas a isto viver?! Também um dia descerás ao sepulcro, e a própria terra onde vives lá descerá igualmente, como tu condenada a morrer.

Reparei com atenção no fantasma e, pela primeira vez, notei o seu ar velho e fatigado e quase me senti apiedado, se a ameaça de me tornar cego não tivesse de novo excitado a minha cólera.

- Fora daqui, velho agoirento! - gritei. Aqui nada tens que fazer, sinto-me cheio de vida!

- Sabes? - com um riso mau rastejou, deslizou o longo braço sobre o meu ombro. - Sabes porque é que meteste na cama esse cretino do visconde com um saco de gelo no estômago? Para vingar as andorinhas? Deixa-te de histórias! És um Otelo ridículo! Foi unicamente para o impedir de passear ao luar com a...

- Encolhe essa pata venenosa, velha aranha peçonhenta, ou salto da cama e te esmago.

Fiz um esforço para mover os membros adormecidos e acordei coberto de suor.

O quarto estava banhado numa doce e prateada claridade. De repente rasgou-se o véu que me obscurecia os olhos e, pela janela aberta, vi a lua cheia, doce e serena, contemplando-me do alto dum céu sem nuvens.

- Oh! Lua, virginal e divina! Chegar-te-á a minha voz, através do silêncio da noite? Tens um ar tão doce e tão triste! Podes compreender a minha mágoa? E perdoar? Podes curar as minhas feridas com o bálsamo da tua pura luz? Ensinar-me como se pode esquecer? Vem, doce irmã, vem sentar-te ao pé de mim; que fadiga sinto! Põe a tua mão branca sobre a minha fronte ardente e acalma os meus pensamentos desordenados. Dize-me ao ouvido o que devo fazer e onde devo ir para esquecer a canção das sereias.

Fui à janela e fiquei muito tempo seguindo com o olhar a Rainha da noite prosseguindo o caminho entre as estrelas; aprendi a conhecê-las nas minhas noites de insónia e comecei a chamá-las, cada uma por seu nome: Sírius, flamejante; Castor e Pólux, adoradas dos marinheiros na antiguidade; Arcturo, Aldebaran, Capela, Vega, Cassiopeia! E qual era o nome desta estrela luminosa, mesmo por cima da minha cabeça, e que parecia chamar-me com sua doce e serena claridade? Bem a conhecia. Muitas vezes de noite dirigi a minha barca sobre as ondas alterosas, guiado pela sua luz, e muitas vezes me mostrou o caminho através dos campos de neve e das florestas do país onde nasci! Stella Pollaris. Estrela Polar!

- Eis o teu caminho, segue-me e estarás salvo.

O médico ausentou-se por um mês. Queiram fazer o favor de dirigir-se ao Dr. Norstrot, Bd. Haussmam, 66.

 

                             LAPÓNIA

JÁ o Sol se escondera por detrás de Vassorjaervi, mas era ainda dia claro, a luz, cor de chama, escurecendo lentamente, passava por todos os tons do alaranjado e do rubi. Uma névoa doirada descia das montanhas azuis; e, nessa luz do ocaso, eram de púrpura as manchas de neve, e as árvores, dum amarelo vivo, tomavam um tom prateado, sob o alvor da primeira geada.

Terminara o trabalho do dia. Os homens voltavam ao acampamento com os laços de prender os animais aos ombros, e as mulheres transportando grandes ferradas feitas de bétula, cheias de leite. O rebanho de mil renas, vigiado pelos mastins, estava reunido junto do acampamento, em sítio seguro, para passar a noite ao abrigo do lobo e do lince. O mugido dos vitelos e o ruído das patas contra o solo foi-se extinguindo lentamente. Tudo ficou silencioso e só de vez em quando o ladrar dum cão ou o grito estridente dum mocho na montanha longínqua vinha perturbar aquela serenidade. Eu estava sentado no lugar de honra, junto do velho Turi, na tenda cheia de fumo. Ellekare, sua mulher, deitou na panela, suspensa por cima do lume, um grande pedaço de queijo de rena e depois serviu a sopa espessa, aos homens em primeiro lugar, em seguida às mulheres e crianças; e eu comi em silêncio. O resto da sopa que ficara na panela foi distribuído pelos cães, que, por estarem de folga, se introduziram na tenda, aninhando-se junto do lume. Tomámos, por turno, nas únicas duas chávenas que havia em casa, um café excelente; depois todos tiraram dos surrôes de coiro os curtos cachimbos e começámos a fumar tranquilamente. Os homens secaram as botas de rena e estenderam diante do fogo a secar as ervas que as revestiam. Os lapões não usam meias. De novo admirei a forma perfeita dos seus pequenos pés, elásticos e graciosos. Algumas mulheres tiraram os filhos dos berços de casca de bétula, cheios de brando musgo, suspensos dos paus da tenda, para lhes dar de mamar. Outras começaram a explorar a cabeça dos maiorzitos, deitados no regaço.

- Tenho pena de que nos deixes tão depressa - disse o velho Turi. - A tua visita foi muito agradável; gosto de ti.

Turi falava bem o sueco. Tinha estado, havia muitos anos, em Lulea, para expor as queixas dos lapões contra os novos colonos ao governador da província, que era um tio meu e grande defensor da sua causa perdida. Turi era um homem poderoso, chefe indiscutível do seu acampamento, composto de cinco tendas, nas quais, com as mulheres e as crianças, viviam os filhos casados, ocupados de manhã à noite em cuidar do rebanho de mil renas.

- Não tardará que também nós tenhamos de levantar o acampamento e partir - ia dizendo Turi. - Estou certo de que o Inverno há-de chegar cedo. Em breve a neve estará demasiadamente dura e as renas não poderão atingir a erva. Temos de baixar aos pinhais antes do fim do mês. Pela maneira como os cães uivam compreendo que já farejam os lobos. Não disseste que viste ontem as pegadas do velho urso, quando passavas nas gargantas de Sulmo? - perguntou a um jovem que acabara de entrar e se acocorou junto do lume.

Sim, tinha-as visto e também numerosas pistas de lobos.

Disse-lhes que me alegrava de saber que ainda havia ursos por ali, pois me tinham afiançado que já restavam pouquíssimos. Turi declarou que era verdade. O urso de que falavam era já muito velho; vivia ali há muitos anos e várias vezes o viam a deambular pelos desfiladeiros. Por três vezes quase o tinham cercado no Inverno, quando dormia, mas sempre conseguira escapar. Era um urso velho, cheio de astúcia. Turi havia até disparado, mas ele abanara apenas a cabeça e olhara-o com olhos maliciosos; sabia perfeitamente que uma bala ordinária não podia matá-lo. Era necessária uma bala de prata, fundida de noite, perto dum cemitério, pois vivia protegido pelos Uldra.

- Os Uldra?

- Sim, não conheces os Uldra, o pequeno povo que vive debaixo da terra? Quando o urso adormece no Inverno, os Uldra levam-lhe alimento durante a noite; evidentemente que nenhum animal poderia dormir durante todo o Inverno sem comer - disse-me Turi, rindo-se, com ar entendido. - A lei do urso proíbe-lhe matar um homem. Se a transgredisse, os Uldra não lhe levariam o sustento e não poderia dormir durante o Inverno.

O urso não era velhaco e traidor como o lobo. Tem a força de doze homens e a astúcia dum só. O lobo, ao contrário, tem a malícia dos doze e a força de um apenas.

O urso gosta dum combate leal. Se encontrar um homem e este lhe disser: «Vamos bater-nos, não tenho medo de ti», o urso derriba-o e deita a correr sem lhe fazer mal algum. O urso nunca ataca uma mulher; basta que ela lhe mostre que não é homem.

Perguntei a Turi se alguma vez vira os Uldra. Ele nunca, mas a mulher vira-os uma vez, e as crianças, com frequência. Turi apenas os ouvira algumas vezes agitarem-se debaixo do chão. Os Uldra movem-se durante a noite; de dia dormem porque não vêem quando há claridade. Algumas vezes acontece que os lapões armam as tendas por cima dum sítio habitado pelos Uldra, e estes previnem-nos de que têm que mudar de lugar. Os Uldra são afáveis se os deixam tranquilos. Se os incomodam espalham sobre o musgo um pó que mata as renas, por dezenas. Acontecia até por vezes roubarem um pequeno lapão, pondo no berço em seu lugar um dos filhos. Estes tinham o corpo coberto de pêlos negros e a boca guarnecida de dentes longos e afiados.

Há quem diga que é preciso, quando tal acontece, bater no filho dos Uldra com uma vara de bétula inflamada, até que a mãe, não podendo suportar mais os gritos dele, corra a buscá-lo, dando-vos em troca o vosso. Afirmam outros, pelo contrário, que é preciso tratá-los muito bem, como os próprios filhos, até que a mãe Uldra, reconhecida, vos restitua o que tinha roubado.

Enquanto Turi falava, levantou-se sobre este assunto uma animada discussão entre as mulheres que, inquietas, apertavam os filhos contra si.

O lobo era o maior inimigo do lapão. Não ousava atacar um rebanho de renas; ficava imóvel, esperando que o vento lhes levasse o odor; logo que as renas o sentiam, dispersavam-se, aterrorizadas, em todos os sentidos, e então o lobo caía sobre elas e matava-as uma após outra, até chegar a doze numa noite. Deus tinha criado todos os animais, menos o lobo, que fora engendrado pelo Diabo. Se um homem comete um crime de morte e não confessa o delito, o Diabo transforma-o muitas vezes em lobo. O lobo tinha o poder de adormecer os lapões que de noite guardam os rebanhos, fixando sobre eles, na sombra, os olhos faiscantes. Ninguém pode matar um lobo com uma bala corrente, a não ser que a tenha levado no bolso à igreja, durante dois domingos. A melhor maneira era correr sobre ele com os skis na neve mole e, ao alcançá-lo, dar-lhe uma pancada com um pau na ponta do focinho. Então cai redondo e não tarda a morrer. O próprio Turi havia, por esta forma, matado dezenas deles; uma única vez tinha falhado a pancada e o lobo mordera-o numa perna: enquanto falava mostrou-me a feia cicatriz da ferida. O Inverno passado, um lobo, depois de cair, ainda mordeu o agressor; este perdeu tanto sangue que caiu adormecido na neve e no dia seguinte foi encontrado morto, gelado, junto do lobo. Há ainda o glutão, que salta à garganta da rena, justamente sobre a veia jugular, e ali fica dependurado durante léguas, até ao momento em que o animal, tendo perdido todo o sangue, cai morto. Havia ainda a águia real, que arrebata nas garras os vitelos recém-nascidos, quando as mães os deixam sós um instante. Faltava ainda o lince, que, rastejando sorrateiramente, como um gato, salta sobre uma rena tresmalhada do rebanho e perdida no caminho.

Turi declarou-me que não compreenderia nunca como em tempos recuados os lapões conseguiam reunir os rebanhos antes de se terem associado com o cão. Outrora o cão caçava a rena em companhia do lobo; mas, como é o mais inteligente dos animais, breve compreendeu quanto lhe seria mais proveitoso trabalhar com os lapões do que com os lobos. Então o cão ofereceu-se para entrar ao serviço dos lapões, mas com a condição de ser tratado como amigo toda a vida e de o enforcarem quando estivesse prestes a morrer. E eis porque, ainda hoje, os lapões enforcam os cães quando estão demasiadamente velhos para trabalhar; e até os cachorros que é forçoso eliminar por falta de alimento são enforcados sempre. Os cães perderam o dom da palavra quando esta foi dada ao homem, mas podem compreender tudo o que se lhes diga. Um tempo houve em que todos os animais podiam falar, e até as flores, as árvores e as pedras, e mesmo as coisas inanimadas, pois todas foram criadas pelo mesmo Deus que deu vida ao homem. E por isto o homem deve ser bom para todos os animais e tratar as coisas inertes como se pudessem ouvir e compreender. Chegado o dia do juízo final, os animais serão chamados em primeiro lugar por Deus para depor contra os homens; eles dirão o que tiverem a dizer e só depois serão chamados como testemunhas os seus semelhantes.

Perguntei a Turi se havia algum Stalo por aqueles sítios; tanto ouvira falar deles na minha meninice, que daria tudo para me encontrar com um desses grandes ogres.

- Deus nos defenda! - disse Turi, pouco à vontade. - Saiba que o rio que amanhã há-de atravessar a vau ainda tem o nome de rio Stalo, em lembrança do velho ogre que ali viveu outrora com a bruxa da mulher. Tinham apenas um olho para os dois; e por esse motivo querelavam-se e pelejavam sobre qual dos dois o devia pôr para ver. Comiam sempre os filhos, e o mesmo faziam aos pequenos lapões quando se lhes oferecia ensejo. Dizia o Stalo que os bebés lapões eram mais gostosos e que os seus próprios filhos sabiam demasiadamente a enxofre.

Um dia, quando atravessavam o lago em trenó puxado por doze lobos, puseram-se, como de ordinário, a testilhar sobre o olho, e o Stalo zangou-se tão furiosamente que rebentou o lago até ao fundo e por ali todos os peixes se escaparam, de sorte que mais nenhum voltou. Por esse motivo se lhe chama o lago Siva; vai atravessá-lo amanhã a remo e há-de ver com os seus próprios olhos que não lhe resta nem um peixe.

Perguntei a Turi o que sucedia quando os lapões estavam doentes e como se arranjavam sem ter um médico. Respondeu-me que raras vezes adoeciam, principalmente no Inverno, a não ser quando os invernos eram muito rigorosos, e então chegavam a morrer gelados alguns recém-nascidos. Um médico vinha vê-los duas vezes no ano, por ordem do rei, e Turi entendia que era suficiente. Para ali chegar tinha de cavalgar durante dois dias por caminhos pantanosos, depois andar um dia inteiro a pé através da montanha; da última vez que viera esteve prestes a morrer afogado ao atravessar o ribeiro a vau. Felizmente havia entre eles muitos curandeiros, que podiam tratar a maior parte das suas doenças melhor que o médico do rei. Os curandeiros eram bem vistos dos Uldra, que lhes tinham ensinado a arte. Alguns destes curandeiros podiam suprimir a dor poisando apenas a mão sobre a parte doente. O que dava melhores resultados na maior parte das doenças eram as sangrias e as fricções. O mercúrio e o enxofre também eram muito bons, assim como uma colherzita de rapé misturado numa chávena de café. Duas rãs cozidas durante duas horas eram um remédio excelente para a tosse; se em vez de rãs se pudesse encontrar um grande sapo, melhor era. Os sapos vinham das nuvens; quando estas andam baixas, os sapos caem por centenas na neve. Não havia outra explicação para o facto de se encontrarem nos campos mais desolados, onde não se via sinal de coisa viva.

Dez piolhos fervidos em leite com muito sal, tomados em jejum, eram um remédio radical contra a icterícia, doença muito frequente entre os lapões na Primavera. As mordeduras de cão curavam-se esfregando-as com o sangue do próprio animal. Friccionando a chaga com lã de cordeiro, a dor desaparecia instantaneamente, porque Jesus Cristo falou muitas vezes no cordeiro. Quando alguém está para morrer é sempre avisado por uma gralha ou um corvo que vêm poisar no mastro da tenda; não se deve falar nem emitir o mais leve som, porque a vida, assustada, pode fugir, e o moribundo arrisca-se a viver durante uma semana entre dois mundos. Se o cheiro dum cadáver nos penetra nas narinas, nós mesmos podemos morrer.

Perguntei a Turi se haveria na vizinhança algum desses curandeiros; gostaria muito de lhe falar.

Não; o curandeiro mais próximo, um velho lapão chamado Mirko, vivia do outro lado da montanha. Era muito velho. Quando Turi era rapazito já o conhecia. Era um curandeiro maravilhoso, muito querido dos Uldra. Todos os animais se aproximam dele confiantes, nenhum lhe faz o menor mal, porque os animais reconhecem imediatamente os que são amados dos Uldra. Pode curar uma dor tocando apenas com a mão. Se colocarmos na palma da mão dum curandeiro um pássaro com a asa partida, não se moverá, pois compreende que é um curandeiro. Pode conhecer-se um curandeiro pela forma da mão.

Estendi a mão a Turi, que não suspeitava que eu fosse médico.

Olhou-a atentamente, sem uma palavra; dobrou-lhe os dedos cuidadosamente um após outro, mediu o afastamento do polegar e do índex e segredou qualquer coisa à mulher, que, por sua vez, me tomou a mão na sua diminuta e escura pata de ave, com uma expressão inquieta nos olhitos oblíquos.

- Tua mãe disse-te se nasceste com muito pêlo? Porque não te deu de mamar? Quem te amamentou? Que língua falava a tua ama? Pôs alguma vez sangue de corvo no teu leite? Dependurou-te ao pescoço a garra dum lobo? Fez-te tocar no crânio dum morto quando eras pequeno? Viste alguma vez os Uldra? Nunca ouviste as campainhas de prata das renas brancas no fundo duma floresta? É um curandeiro! - exclamou a mulher de Turi, lançando um olhar rápido e inquieto.

- É um protegido dos Uldra! - repetiram todos, com uma expressão quase de temor nos olhos.

Retirei a mão, quase assustado também.

Turi disse que era tempo de dormir, o dia fora longo, e eu tinha de partir ao amanhecer.

Estendemo-nos todos à volta do lume abafado. Em breve tudo foi escuridão na tenda cheia de fumo. Não podia ver mais do que a Estrela Polar, que me enviava a sua luz pela abertura da chaminé da tenda. Durante o sono sentia sobre o peito o peso tépido dum cão e na minha mão o doce contacto do seu focinho. Erguemo-nos ao amanhecer; todo o acampamento estava em movimento para nos ver partir. Distribuí pelos meus amigos pequenos presentes de tabaco e bombons, tão apreciados por eles, e todos me desejaram boa viagem.

Se tudo corresse bem, chegaria no dia seguinte a Forsstugan, o mais próximo lugar habitado naquele deserto de lagunas, de torrentes, de lagos e florestas, terra dos lapões sem pátria. Ristin, neta de Turi, com seus dezasseis anos, devia ser meu guia. Sabia algumas palavras de sueco, já uma vez havia ido a Forsstugan, e tinha que ir mais adiante, até à próxima aldeia paroquial, onde havia uma igreja, para entrar de novo numa escola de lapões.

Ristin caminhava na frente, com sua longa túnica de rena branca e um gorrito de lã encarnada. Cingia-lhe o busto um cinto de coiro bordado de fios azuis e amarelos e enfeitado de argolas e quadrados de prata maciça. Suspensos à cinta levava a faca, a bolsa de tabaco e o copo para beber. Reparei também numa pequena machada para cortar lenha, passada entre o cinto. Levava polainas de pele de rena, macias e brancas, presas às compridas calças de coiro. Os pequenos pés estavam calçados duns lindos sapatos de rena branca, graciosamente adornados com fio azul. Às costas levava o laukos, um surrão de casca de bétula que continha as coisas de seu uso e as nossas provisões. Era duas vezes maior que o meu, mas parecia não lhe pesar nada.

Subia a íngreme encosta com o passo rápido e silencioso dum animal, saltava como uma lebre um tronco abatido ou um charco. De vez em quando, ágil como uma cabra, trepava a uma rocha escarpada para olhar em volta.

Ao pé da colina encontrámo-nos com um largo ribeiro; mal tinha perguntado a mim mesmo como o havíamos de atravessar, e já ela estava na água até à cinta; não tive outro remédio senão segui-la na água glacial. Não tardei em aquecer, ao subir a colina oposta com uma velocidade incrível. Ristin quase me não falava, mas isso pouco importava, pela dificuldade que tinha em entendê-la: falava tão mal o sueco como eu o lapão. Sentámo-nos sobre o musgo macio para comer um almoço excelente: biscoito de centeio, manteiga fresca, queijo, língua de rena fumada e a deliciosa água fresca da montanha no copo de Ristin.

Acendemos os cachimbos e mais uma vez tentámos conversar.

- Como se chama este pássaro?

- Lahol - respondeu Ristin, sorrindo, reconhecendo imediatamente o silvo doce como uma flauta de certa ave, favorita dos lapões, que partilha com eles a solidão.

Dum salgueiro próximo brotou a canção maravilhosa doutra ave.

- Jilow! Jilow - disse, rindo, Ristin.

Os lapões dizem que esse passarito tem uma campainha na garganta e que pode cantar cem canções diferentes. Muito alta, por cima das nossas cabeças, estava suspensa uma cruz negra, pregada no Céu azul. Era a águia real vigiando, com as suas asas imóveis, o seu desolado reino. Do lago da montanha chegava-nos o apelo estranho do mergulhão.

- Ro, Ro, raik - pôs-se a dizer Ristin. E ensinou-me que isto significava: «Bom tempo hoje! bom tempo hoje!». Quando o mergulhão dizia: Varluk, varluk, luk, luk, queria dizer: «Vai chover ainda, vai chover ainda, ainda, ainda» - explicou-me Ristin.

Estendido no chão, sobre o brando musgo, fumava o meu cachimbo e olhava Ristin, que guardava cuidadosamente as coisas de seu uso no laukos. Um pequeno chale de lã azul, uns sapatinhos brancos de pele de rena, um lindo par de luvas vermelhas para levar à igreja e uma Bíblia. De novo me chamou a atenção a forma elegante das suas pequeninas mãos, peculiares a todos os lapões. Perguntei-lhe o que levava na caixita de bétula; e, como eu não conseguia perceber uma só palavra da sua longa explicação, mistura de sueco, de finlandês e de lapão, sentei-me e abri a caixa. Pareceu-me que continha um punhado de terra. Para que servia aquilo? De novo se esforçou por me explicar e de novo me foi impossível compreender. Ristin abanou a cabeça, impacientada, e estou certo de que me julgou profundamente estúpido. De repente, estendeu-se a todo o comprimento na relva e ficou rígida, com os olhos fechados. Depois sentou-se, escavou o musgo e apanhou um punhado de terra, que me entregou com uma expressão de gravidade. Então compreendi o que havia na caixa de madeira de bétula: um punhado de terra da sepultura dum lapão enterrado na neve no último Inverno. Ristin tinha de levá-la ao padre, para que rezasse sobre ela e a espalhasse no cemitério.

De novo pusemos aos ombros as mochilas e retomámos o caminho. À medida que descíamos a encosta, o aspecto da paisagem mudava cada vez mais. Errávamos através das estepas imensas, cobertas de carex, salpicado de amarelo vivo das framboesas silvestres, que colhíamos e comíamos ao passar. Bétulas anãs formavam bosquedos prateados, misturados de álamos e de freixos; salgueiros, sabugueiros, cerejeiras e groselhas silvestres formavam matas espessas. Em breve penetrámos numa espessa floresta de pinheiros majestosos. Duas horas depois caminhávamos por um profundo desfiladeiro flanqueado de rochas e carpadas cobertas de musgo. O Céu, sobre as nossas cabeças, permanecia iluminado pela luz da tarde; mas no barranco já era escuro. Ristin deitou à roda um olhar inquieto; era evidente que desejava sair da garganta antes de cair a noite. De repente, vi-a parar de golpe; ouvi o ruído de um ramo partido e a vinte metros de mim ergueu-se uma grande massa escura.

- Corre! - murmurou Ristin, com o rosto lívido e a mãozinha crispada na acha que tinha à cinta.

Eu bem queria correr, mas não podia, e fiquei imóvel, cravado no mesmo sítio, com uma cãibra violenta numa perna. Agora podia vê-lo perfeitamente. Estava de pé, enterrado até aos joelhos nos tufos de mirtilos, tendo ainda pendente da bocarra um ramo coberto do seu fruto favorito; era evidente que o tínhamos interrompido em meio do jantar. Era duma estatura pouco comum; e, pelo aspecto da pele rapada, tratava-se sem dúvida dum urso muito velho, certamente o mesmo de que me falara Turi.

- Corre! - disse eu por minha vez, em voz baixa, a Ristin, com a intenção cavalheiresca de me conduzir como um homem e cobrir a sua retirada. O valor moral desta intenção era no entanto diminuído pelo facto de que eu continuava incapaz de me mexer.

Ristin não fugiu. Pelo contrário, fez-me assistir a uma cena que por si só valia a viagem de Paris à Lapónia. Deixo-vos a liberdade de não acreditar no que vou dizer; pouco importa. Ristin, com a mão na acha, avançou alguns passos em direcção ao urso; com a outra ergueu a túnica, mostrando as compridas calças de coiro usadas por todas as mulheres na Lapónia. O urso deixou cair o ramo de mirtilos, farejou ruidosamente duas vezes e retirou-se com um passo arrastado através do cerrado pinhal.

-Gosta mais dos mirtilos do que de mim - disse Ristin, pondo-se a caminho a toda a pressa.

Contou-me Ristin que, quando a mãe a foi buscar à escola de lapões, na Primavera, tinham encontrado o velho urso quase naquele mesmo sítio e que ele se pusera a andar, mal a mãe lhe mostrara as calças.

Não tardou que saíssemos do barranco, e errámos então através da floresta, sobre um tapete de musgo dum cinzento prateado, doce como o veludo, bordado de tufos de flores. Não havia claridade nem escuridão, mas o maravilhoso crepúsculo das noites estivais do Norte. Ao meu fraco entendimento era incompreensível como Ristin conseguia orientar-se na floresta, sem caminho. De repente encontrámo-nos de novo com o regato nosso amigo. Mal tive tempo para me inclinar e apoiar os lábios sobre o seu rosto fresco como a noite, enquanto ele passava correndo junto de nós. Ristin declarou que eram horas da ceia; e, com incrível rapidez, cortou alguma lenha com a acha e acendeu uma fogueira entre duas pedras. Depois de termos comido e fumado os nossos cachimbos, em breve adormecemos profundamente com as mochilas debaixo da cabeça. Despertou-me Ristin, oferecendo-me o seu boné vermelho cheio de mirtilos. Compreendo que o velho urso fosse tão guloso desses frutos; nunca tive almoço mais saboroso. Prosseguimos o nosso caminho e de novo encontrámos o regato amigo, dançando alegremente sobre os montículos e os rochedos, murmurando-nos ao ouvido que melhor seria descermos com ele até ao lago da montanha. E assim fizemos, não fosse ele perder o seu caminho na meia obscuridade. De vez em quando perdíamo-lo de vista, mas ouvíamo-lo sempre cantando consigo próprio. Às vezes detinha-se à nossa espera junto dum rochedo escarpado ou duma árvore abatida, para logo se precipitar mais rápido e ganhar o tempo perdido. Em breve já não foi de temer que ele perdesse o caminho na escuridão, pois a noite, com seus ágeis pés de duende, fugira para o fundo da floresta. Uma chama de luz doirada tremia no cimo das árvores.

- Piavi - disse Ristin. - «Nasce o Sol».

Através do nevoeiro do vale, a nossos pés, um lago da montanha abriu a pupila.

Aproximei-me do lago com o desagradável pressentimento de outro banho gelado. Felizmente enganei-me. Ristin parou de repente diante duma pequena eka, barca de fundo chato, meio escondida por um pinheiro abatido. Não tinha dono, era de toda a gente; servia aos lapões, nas suas raras visitas à paróquia mais próxima, quando iam trocar as peles de rena por café, açúcar e tabaco, os três únicos luxos de sua existência. A água do lago era azul-cobalto, mais belo ainda que o azul-safira da Gruta Azul, em Capri. Era tal a sua transparência, que me parecia quase ver o buraco que o terrível Stalo abrira no fundo. A meio caminho encontrámos dois majestosos viajantes nadando lado a lado, com a soberba armadura erguida fora da água. Felizmente tomaram-me por um lapão e pudemos acercar-nos tanto deles que consegui ver os seus belos e doces olhos fitando-nos sem temor. Há qualquer coisa de estranho nos olhos do alce e da rena; de qualquer sítio que os vejamos parecem olhar-nos sempre direito nos olhos. Subimos à pressa o talude da outra margem e mais uma vez errámos na imensa planície pantanosa, sem mais guia que o Sol. As minhas tentativas para explicar a Ristin o funcionamento da minha bússola de algibeira tiveram tão pouco resultado que eu próprio deixei de consultá-la, fiando-me no seu instinto de animal semi-selvagem. Era evidente a pressa com que caminhava. Não tardou que eu tivesse a impressão de que não estava segura do caminho. Por vezes corria o mais depressa que podia numa direcção, parava de repente, aspirando o vento com as narinas palpitantes, partia noutro sentido e repetia a mesma manobra. Algumas vezes inclinava-se sobre a terra e cheirava-a como um cão.

- Rog - exclamou subitamente, designando uma nuvem que se dirigia para nós com extraordinária rapidez, através das lagunas. Nevoeiro! Era verdade. Num minuto fomos rodeados duma espessa bruma, tão impenetrável como um nevoeiro de Outono em Londres. Tivemos de caminhar de mãos dadas, para não nos perdermos de vista. Lutámos uma hora ou duas, metidos até aos joelhos na água gelada. Finalmente Ristin declarou que havia perdido a direcção e que tínhamos de esperar que o nevoeiro passasse. Quanto tempo podia semelhante situação durar?

Ristin não o sabia; talvez um dia e uma noite, talvez uma hora apenas, tudo dependia do vento.

Foi uma das piores provas que tenho atravessado. Sabia perfeitamente que, dado o nosso equipamento sumário, o nevoeiro nestes imensos pântanos era bem mais perigoso que o encontro dum urso na floresta. Sabia também que não havia outra coisa a fazer senão esperar onde estávamos. Durante algumas horas permanecemos sentados sobre as mochilas, com o nevoeiro colado à pele como um lençol de água gelada. O meu desespero foi completo quando, querendo acender o cachimbo, encontrei o bolso do colete cheio de água. Olhava ainda consternado a caixa de fósforos encharcada e já Ristin tinha acendido o seu cachimbo com o isqueiro. Outra derrota para a civilização foi quando, querendo pôr umas peúgas secas, vi que a minha mochila impermeável, do melhor que se fazia em Londres, estava completamente alagada e que todas as coisas de Ristin, no seu laukos, feito em casa com casca de bétula, estavam secas como feno. Esperávamos que a água fervesse para fazermos café - tanta necessidade tínhamos de o tomar! - quando uma brusca rajada de vento apagou a minha lâmpada de álcool. Ristin levantou-se velozmente, partiu na direcção do vento e voltou logo para me ordenar que pusesse a mochila ao ombro.

Em menos de um minuto um vento forte e cortante pôs-se a açoitar-nos o rosto, e a cortina de nevoeiro ergueu-se rapidamente por cima das nossas cabeças. Ao longe, no fundo do vale, mesmo a nossos pés, avistei um ribeiro que brilhava ao Sol como uma espada. Na margem oposta, um sombrio pinhal estendia-se até onde a vista alcançava. Ristin ergueu a mão para uma delgada coluna de fumo que se levantava por cima das árvores.

- Forsstugan - disse ela.

Lançou-se pela encosta abaixo e, sem hesitação, mergulhou na ribeira até ao pescoço, e eu fiz outro tanto. Em breve perdemos pé e atravessámos a água a nado, tal como os alces tinham atravessado o lago. Depois duma meia-hora de marcha através da floresta, do outro lado da ribeira, chegámos a uma clareira visivelmente trabalhada pela mão do Homem. Um grande cão lapão precipitou-se para nós, em grande carreira, ladrando furiosamente. Depois de nos cheirar largamente, manifestou viva alegria em ver-nos e pôs-se a mostrar-nos o caminho, caminhando à frente e dando ao rabo com satisfação.

Diante da sua casa pintada de vermelho, Lars Anders, de Forsstugan, com seus seis pés e meio de altura, envolto no comprido casaco de pele de carneiro e calçado de tamancos de madeira, estava plantando.

- Benvindo sejas na floresta - disse Lars Anders. - Donde vens? Porque não deixaste que a pequena atravessasse sozinha a ribeira e viesse pedir-me o barco? Põe mais uma cavaca no lume, Kristin! - gritou à mulher, para dentro da casa. - Atravessou a nado a ribeira com a pequena lapoa; precisam de secar a roupa.

Ristin sentou-se comigo sobre o banquito em frente do lume.

- Está molhado como uma lontra - disse a mãe Kristin, ajudando-me a tirar as peúgas, as ceroulas, a camisa e a camisola, que dependurou, para secarem, numa corda.

Ristin tinha já tirado a túnica de pele de rena, as polainas, as calças e a veste de lã. Camisa não usava. Estávamos sentados, lado a lado, no banco, diante do lume flamejante, completamente nus, tais como o Criador nos fizera. Os dois velhos pensavam que não havia nisso nenhum mal, e com efeito não havia.

Uma hora depois, vestido com o longo casaco dos domingos do tio Lars, feito de lã preta, tecida à mão, e calçado de tamancos, inspeccionava o meu novo alojamento, enquanto Ristin permanecia sentada na cozinha, junto do forno, onde a tia Kristin estava muito ocupada a cozer o pão. O estrangeiro que viera na véspera com um lapão da Finlândia tinha comido todo o pão que havia. O filho dos velhos estava longe, na outra margem do lago. Eu ia dormir no seu pequeno quarto, por cima do curral das vacas. Esperavam que o cheiro delas não me incomodasse. De maneira nenhuma, agradava-me, pelo contrário. O tio Lars disse que ia à cabana das roupas buscar uma pele de carneiro para a minha cama; tinha a certeza de que me seria necessária, porque as noites começavam a arrefecer. A cabana das roupas (herbre) erguia-se sobre quatro esteios bem sólidos de madeira, à altura dum homem, para estar ao abrigo dos visitantes de quatro patas e da neve profunda do Inverno. O armazém estava cheio de roupas e de peles dependuradas em armações de veados que tinham espetado ao longo das paredes: o casaco do tio Lars, feito de pele de lobo, os agasalhos de pele da mulher e ainda uma meia-dúzia de peles de lobo. No chão estava estendida uma manta de trenó, feita duma magnífica pele de urso. Num outro cabide tinham dependurado o vestido de casamento da tia Kristin, a blusa de seda de cores vivas magnificamente bordada de fios de prata, a comprida saia de lã verde, a romeira de pele de esquilo, a touca enfeitada de rendas verdadeiras e o cinto de coiro vermelho com fechos de prata maciça. Quando descíamos a escada da cabana, disse ao tio Lars que ele se havia esquecido de fechar a porta à chave. Respondeu-me que não importava, pois os lobos, as raposas e os texugos não podiam levar as roupas nem as peles e não havia nada que comer dentro da cabana. Depois de um pequeno passeio na floresta, sentei-me debaixo dum grande pinheiro, junto da porta da cozinha, para comer um jantar esplêndido: trutas da Lapónia, as melhores do Mundo, pão acabado de sair do forno, queijo fresco e cerveja preparada também em casa. Queria que Ristin comesse à minha mesa; mas, evidentemente, era contra a etiqueta. Ristin tinha que comer na cozinha, com os pequenos. Os dois anciãos estavam sentados a meu lado, assistindo ao meu jantar.

-Viste o rei?

Não o vira, pois não passara por Estocolmo; tinha vindo directamente dum outro grande país e duma cidade muitas vezes maior do que Estocolmo.

O tio Lars não sabia que houvesse uma cidade maior do que Estocolmo. Eu disse à tia Kristin quanto tinha admirado o seu vestido de boda. Sorriu, explicando-me que a sua mãe o vestira também no dia do casamento, Deus sabe há quantos anos fora.

- Mas, na verdade, deixam a cabana das roupas aberta de noite? - perguntei.

- E por que não? Dentro não há nada que comer e já lhe disse que nem os lobos nem as raposas levarão, decerto, as nossas roupas.

- Mas, estando a cabana isolada no bosque, a mais de cem metros da vossa casa, qualquer pessoa as podia levar. Somente a pele de urso valia muito dinheiro; e qualquer antiquário de Estocolmo daria de boa vontade alguns centenares de riksdalers pelo vestido de casamento.

Os dois velhos olharam-se com evidente surpresa.

- Não me ouviste dizer-te que fui eu quem matou o urso e os lobos? Não compreendes que é o vestido de casamento da minha mulher e que ela o herdou da mãe? Não compreendes que todas estas coisas nos pertencem enquanto formos vivos e serão do nosso filho quando nós morrermos? Quem poderia levá-las? Que queres tu dizer?

O tio Lars e sua mulher olhavam-se e quase pareciam melindrados com a minha pergunta. De repente, Lars Anders coçou a cabeça com uma expressão de malícia nos velhos olhos.

- Agora compreendo o que ele quer dizer - disse para a mulher, rindo docemente. - Refere-se a essas pessoas a quem chamam ladrões.

Perguntei a Lars Anders o que sabia ele do lago Siva, se era exacto, como Turi me havia dito, que o Stalo tinha aberto um grande buraco no fundo por onde haviam desaparecido todos os peixes. Sim, era muito certo; não havia um único peixe nesse lago, ao passo que todos os outros da montanha regurgitavam deles; mas não podia afirmar que fosse o gigante Stalo o causador desse mal. Os lapões eram supersticiosos e ignorantes. Nem sequer eram cristãos e ninguém sabia donde tinham vindo. Falavam uma língua que se não parecia com nenhuma outra língua do Mundo.

Perguntei-lhe se havia gigantes ou duendes por aqueles sítios.

- Noutro tempo havia, com certeza - disse o tio Lars. - Quando era criança ouvira falar do gigante Troll, que vivia lá em baixo, na montanha. Era muito rico e possuía centos de anões muito feios, que guardavam o oiro que tinha escondido sob a montanha, e milhares de renas, brancas de neve e com guizos de prata ao pescoço. Agora, desde que o rei mandara saltar as rochas para procurar o minério e se construíra o caminho de ferro, não ouvira mais falar de Troll. Bem entendido, ainda existe a Skogsra, a bruxa da selva, que tenta arrastar os caminhantes para o mais profundo do bosque para que percam o caminho. Ora os chama com um gorjeio de ave, ora com a voz doce duma mulher. Muita gente dizia que era uma verdadeira mulher, muito má e muito bela. Quem a encontrar na floresta deve fugir imediatamente e não voltar a cabeça uma só vez para a olhar, senão está perdido. Ninguém deve sentar-se nunca na floresta debaixo duma árvore em noite de luar; a bruxa viria logo sentar-se a seu lado, deitar-lhe-ia os braços à volta do pescoço como uma mulher que quer ser amada. Mas o seu único desejo é sugar o sangue do coração.

- Tem os olhos muito grandes e negros? - perguntei, inquieto.

Lars Anders não o sabia, pois nunca a tinha visto, mas um irmão da mulher havia-a encontrado no bosque, numa noite de luar. Desde então não podia dormir e não estava muito bom da cabeça.

- Havia gnomos por estes sítios?

- Sim, uma multidão deles agitava-se furtivamente na sombra. Um pequeno gnomo vivia no curral das vacas; as crianças viam-no muitas vezes. Era absolutamente inofensivo, a não ser que o irritassem ou não lhe pusessem o prato de papas de aveia no canto do costume. Era preciso não troçar dele. Uma vez um engenheiro do caminho de ferro, que devia construir uma ponte sobre a ribeira, passara a noite em Forsstugan. Embebedou-se e cuspiu no prato das papas, exclamando: «Má morte me mate se existem gnomos!» Naquela mesma noite, quando atravessava o lago gelado, o cavalo escorregou e foi devorado por uma matilha de lobos. Na manhã seguinte os que voltavam da igreja encontraram-no assentado no trenó, morto pelo frio. Matara dois lobos a tiro; mas, se não fora a espingarda, ele mesmo teria sido devorado.

- Que distância havia de Forsstugan à povoação mais próxima?

- Oito horas de caminho através da floresta, num bom cavalo.

- Ainda agora, quando andava a passear no bosque, ouvi o ruído de chocalhos; deve haver muitos rebanhos por estes arredores.

Lars Anders cuspiu o tabaco que mascava e disse bruscamente que eu estava enganado. Não havia gado nos bosques a menos de cem léguas dali, e as suas quatro vacas estavam no curral.

Repeti-lhe que tinha a certeza de ter ouvido os chocalhos ao longe, na floresta; havia mesmo notado que tinham um bonito som, como se fossem de prata.

Lars Anders e Kristin olharam-me perturbados, mas não disseram nada. Dei-lhes as boas noites e subi ao meu quarto, por cima do estábulo das vacas. Diante da janela erguia-se, silenciosa e escura, a floresta. Acendi a vela de sebo em cima da mesa e estendi-me sobre a pele de carneiro, caindo de sono e de fadiga. Escutei durante uns minutos o ruído das vacas dormindo. Julguei ter ouvido o pio dum mocho no bosque. Olhei para a vela que ardia, com luz débil, sobre a mesa; era-me agradável olhá-la, lembrando-me das que vira, em criança, na velha casa paterna. Parecia-me ver, por entre as pálpebras semicerradas, um pequenito caminhando com dificuldade na neve, numa manhã de Inverno, a caminho da escola, com um maço de livros em bandoleira e uma vela de sebo na mão. Cada um de nós tinha de levar a sua vela para a acender na sua carteira, na aula. Alguns levavam uma vela grossa, outros uma vela fininha, tal como aquela que brilhava agora em cima da mesa. Eu era rico e na minha carteira ardia uma vela grossa. Na mesa ao lado ardia a vela mais delgada de toda a aula, porque a mãe do pequeno que estava a meu lado era muito pobre. Mas eu fiquei reprovado no meu exame de Natal e aquele pequenito foi o primeiro classificado, porque tinha mais luz no cérebro.

Pareceu-me ouvir mexer na mesa. Devia ter dormido algum tempo, porque a luz da vela vacilava, prestes a extinguir-se. Mas pude ver distintamente um homenzinho, do tamanho da palma da minha mão, sentado com as pernas cruzadas em cima da mesa, com o relógio na mão e inclinando de lado a cabeça grisalha para escutar o tiquetaque. Estava tão interessado que não notou que eu me sentara na cama e olhava para ele. De repente deu por mim, deixou cair o relógio, deslizou pela perna da mesa à maneira dum marinheiro e deitou a correr para a porta, tão depressa quanto as suas pequenas pernas lho permitiam.

- Não tenhas medo, gnomozinho - disse-lhe eu. - Estou sozinho. Não fujas que eu te mostro o que há nesta caixita de oiro, que te interessa tanto. Pode tocar como um sino da igreja ao domingo.

Deteve-se imediatamente e olhou-me com seus olhitos doces.

- Não compreendo nada - disse o gnomo. - Julguei sentir o cheiro duma criança neste quarto, de contrário não teria entrado, e tu pareces um homem. Na verdade... - exclamou, encarrapitando-se na cadeira junto da cama. - Na verdade nunca esperei esta sorte! Encontrar-te aqui neste lugar perdido! És precisamente a mesma criança que eu vi pela última vez no quarto das crianças na tua velha casa; de contrário, nunca me poderias ter visto esta noite sentado na mesa. Não me reconheces? Era eu que todas as noites ia ao teu quarto das crianças, quando toda a casa dormia, e punha ordem nas tuas coisas e acalmava os teus desgostos de cada dia. Era a mim que trazias sempre um pedaço do teu bolo e as nozes, os bombons da árvore de Natal e nunca te esquecias de me trazer o meu prato de papas de aveia. Porque deixaste a velha casa paterna, no fundo da floresta? Então estavas sempre alegre; porque tens agora um ar tão sombrio?

- Porque a minha cabeça não tem repouso. Não estou bem em nenhures; não posso esquecer nem dormir.

- Nisso és como teu pai. Quantas vezes o observei passeando dum lado para outro, toda a noite, no quarto!

- Conta-me alguma coisa de meu pai. Lembro-me tão pouco!...

- Teu pai era um homem estranho, sombrio e silencioso. Era bom para os pobres e para todos os animais, mas parecia muitas vezes duro para os que estavam a seu lado. Batia-te muito, mas a verdade é que eras uma criança terrível. Não obedecias a ninguém, e parecia que não estimavas nem pai nem mãe, nem irmã, nem irmão, nem ninguém. Sim, creio que gostavas da tua ama; recordas-te dela, de Lena? Eras, aliás, o único a estimá-la; toda a gente a temia. Haviam-na tomado para ama por extrema necessidade, porque tua mãe não podia criar-te. Ninguém sabia donde viera. Tinha a pele escura, como a pequena lapoa que te guiou até aqui; mas era muito alta. Costumava cantar-te canções numa língua desconhecida, quando te amamentava, o que fez até alcançares dois anos. Ninguém, nem mesmo tua mãe, se atrevia a aproximar-se dela, que grunhia como uma loba furiosa quando alguém pretendia tirar-te dos seus braços. Por fim mandaram-na embora; mas ela voltou de noite e tentou roubar-te. Tua mãe teve tal susto que tornou a tomá-la. Para brincares, trazia-te toda a espécie de animais: morcegos, ouriços, esquilos, ratos, serpentes, corujas e corvos. Uma vez vi-a, com os meus próprios olhos, cortar o pescoço a um corvo e pôr algumas gotas de sangue no teu leite. Um dia, quando tu tinhas quatro anos, veio a polícia e levou-a algemada. Ouvi dizer que suspeitavam que tivesse matado um filho. Foi uma alegria em toda a casa, mas tu estiveste doente uns poucos de dias. A maior parte das tuas desventuras eram causadas pelos bichos. O teu quarto estava cheio de toda a espécie de animais; dormias com eles na cama. Não te lembras de teres levado uma grande tareia por teres querido chocar ovos? Todos os ovos de pássaros que podias apanhar os querias chocar na cama. Naturalmente uma criança não pode ficar desperta toda a noite; todas as manhãs a tua cama estava num lastimoso estado por causa dos ovos partidos, e todas as manhãs tu levavas açoites. Mas não valia de nada. Não te lembras daquela noite em que teus pais, ao regressarem a casa já tarde, à volta duma festa, encontraram tua irmã sentada em cima da mesa, debaixo dum guarda-chuva, gritando aterrorizada? Todos os bichos tinham fugido do teu quarto; um morcego dependurara-se-lhe nos cabelos; todas as serpentes, os sapos, os ratos corriam pelo chão e na tua cama foram encontrar uma ninhada de ratitos. Teu pai deu-te uma tareia mestra e tu lançaste-te contra ele e mordeste a mão de teu próprio pai. No dia seguinte fugiste de casa ao amanhecer, depois de teres assaltado a despensa durante a noite e enchido a mochila de quantas coisas encontraste de comer, e depois de partires o mealheiro da tua irmã para levares as suas economias. Tu nunca tinhas economias. Durante todo o dia e toda a noite os criados andaram a procurar-te em vão. Por fim, teu pai, que tinha ido a cavalo a todo o galope à aldeia vizinha prevenir a polícia, encontrou-te profundamente adormecido na neve, à beira da estrada; o teu cão pusera-se a ladrar na ocasião em que ele passava a cavalo. Ouvi, por acaso, ao cavalo de caça de teu pai contar na cavalariça aos outros cavalos como ele te levara na sela sem dizer uma palavra, entrara em casa contigo e te fechou num quarto escuro a pão e água durante dois dias e duas noites. No terceiro dia levaram-te ao quarto de teu pai e ele perguntou-te por que motivo havias fugido. Respondeste que ninguém te compreendia em casa e que querias emigrar para a América. Perguntou-te se estavas arrependido de o teres mordido na mão e disseste-lhe que não. No dia seguinte mandaram-te para a escola da cidade e só te permitiram voltar a casa nas férias de Natal. No dia de Natal foram todos à igreja, de madrugada, para a missa de alva. Uma grande matilha de lobos seguiu o trenó a galope sobre o lago gelado. O Inverno fora extremamente rigoroso e os lobos tinham muita fome. A igreja estava toda iluminada pelas duas árvores de Natal colocadas em frente do altar-mor. Toda a assistência se levantou para cantar o hino de Natal. Quando terminaram disseste a teu pai que tinhas pena de o ter mordido na mão e ele acariciou-te na cabeça, carinhosamente. À volta tentaste saltar do trenó para o lago; dizias que querias seguir a pista dos lobos para ver onde tinham ido. Pela tarde tornaste a desaparecer e todos te procuraram inutilmente durante a noite inteira. O guarda do bosque encontrou-te pela manhã na floresta, adormecido debaixo dum grande pinheiro. Havia pegadas de lobo à volta da árvore e o guarda disse que só por milagre não foras comido pelos lobos. Mas o pior foi nas férias grandes, quando a criada encontrou um crânio humano debaixo da tua cama, e que ainda tinha um chumaço de cabelos ruivos aderentes à nuca. Toda a casa ficou num alvoroço. Tua mãe desmaiou e teu pai deu-te uma tareia, como nunca te dera ainda, e tornou a fechar-te no quarto escuro, a pão e água. Descobriram que, na noite anterior, tinhas ido no teu poldro ao cemitério da aldeia, havias penetrado no ossuário e roubado uma caveira dum montão de ossos ali depositado. O pároco, que tinha sido director duma escola de rapazes, disse a teu pai que era um facto sem precedentes que uma criança de dez anos tivesse cometido crime tão atroz contra Deus e os homens. Tua mãe, que era muito piedosa, nunca mais se repôs desse desgosto. Parecia ter medo de ti, e não era só ela. Dizia que não compreendia como podia ter dado à luz um monstro semelhante. Teu pai afirmava que, seguramente, não fora engendrado por ele, mas pelo próprio Diabo. A velha governanta afirmou que tudo era por culpa da ama, que te havia embruxado com qualquer coisa que pusera no teu leite e te havia dependurado ao pescoço uma garra de lobo.

- Mas é verdade tudo o que me contas da minha infância? Com efeito devia ser uma criança bem estranha.

- O que te disse é a verdade duma ponta à outra - respondeu o gnomo. - O que tu podes dizer aos outros não o garanto. Parece que misturas sempre a realidade e os sonhos, como fazem todas as crianças.

- Já não sou nenhuma criança. Para o mês que vem faço vinte e sete anos.

- Claro que és uma criança grande; não poderias ver-me, se o não fosses. Só as crianças podem ver os gnomos.

- E tu, que idade tens, gnomozinho?

- Seiscentos anos. Sei-o por acaso, porque nasci no mesmo ano do velho pinheiro que estava junto da janela do teu quarto e onde o grande mocho tinha o ninho. Teu pai dizia sempre que era a árvore mais velha da floresta. Não te lembras do velho mocho? Não te lembras como se empoleirava e te olhava de lado, através da janela?

- És casado?

- Não, sou solteiro - disse o gnomo. - E tu?

- Ainda não, mas...

- Não caias nessa! Meu pai dizia-nos sempre que o matrimónio é uma empresa muito perigosa e que todos os cuidados são poucos para escolher a sogra.

- Seiscentos anos! Deveras? Não tens aspecto disso. Nunca o julgaria, vendo como escorregaste pela perna da mesa e correste pelo quarto quando me viste sentado na cama.

- As minhas pernas estão sólidas, obrigado, mas os olhos começam a estar fatigados; não vejo quase nada de dia. Sinto também uns estranhos ruídos nos ouvidos, depois que os homens, como tu, se puseram a fazer explodir essas terríveis minas na montanha, à nossa volta. Há gnomos que dizem que quereis roubar aos Trolls o oiro e o ferro; outros afirmam que é para fazer um buraco para essa grande serpente amarela que tem riscas pretas no dorso e avança, torcendo-se, através dos campos e florestas, vomitando pela boca fumo e fogo. Todos temos medo dela. Todos os animais da floresta e dos campos, todas as aves do Céu, todos os peixes dos rios, e dos lagos, até os Trolls, por baixo das montanhas, fogem para o Norte, aterrorizados ao vê-la aproximar-se. Que será de nós, pobres gnomos? Que sucederá a todas as crianças, quando nós já não formos aos seus quartos adormecê-las com os contos de fadas e velar-lhes os sonhos? Quem há-de vigiar os cavalos nas cavalariças? Quem velará para que não escorreguem na neve e não partam as pernas? Quem despertará as vacas e as irá ajudar a cuidar das crias? Digo-te que os tempos são duros, e há no Mundo alguma coisa desarranjada. Não há paz em parte alguma. Toda esta agitação incessante, todo este ruído me contende com os nervos. Não ouso estar mais tempo contigo. Já os mochos têm sono e tudo o que rasteja na selva se esconde para dormir; os esquilos roem as pinhas, o galo vai em breve cantar e as terríveis explosões do outro lado do lago não tarda que recomecem. Digo-te que já não posso suportá-las. Esta é a última noite que aqui passo. É forçoso que me esforce por atingir Kebnokajse, a montanha mais alta da Suécia, e que chegue lá cima antes de ser dia.

- Kebnokajse!? Kebnokajse está a centenas de milhas daqui, para o Norte; como diabo te arranjas para lá chegares com essas pernas tão curtas?

- Talvez que alguma gralha ou pato selvagem queira levar-me; reúnem-se todos agora para o grande voo em direcção aos países onde não há Inverno. No pior dos casos, farei uma parte do caminho às costas dum urso ou dum lobo; são todos amigos dos gnomos. Tenho que partir.

- Não te vás embora; fica comigo ainda um bocado, que eu vou mostrar-te o que há nesta caixa de oiro que te interessava tanto.

- Que tens tu nessa caixita de oiro? É algum animal? Pareceu-me ouvir o latido do seu coração no interior dela.

- O que tu ouves são as pulsações do coração do Tempo.

- O que é o Tempo? - perguntou o gnomo.

- Não posso explicar-to, nem ninguém te poderá dizer o que significa o Tempo. Dizem que se compõe de três coisas diferentes: o Passado, o Presente e o Futuro.

- E traze-lo sempre contigo nessa caixinha de oiro?

- Sim, não descansa nunca. Não dorme e não se cansa de repetir a mesma palavra ao meu ouvido.

- E compreendes o que ele diz?

- Ai de mim! Por demais o entendo. Diz-me a cada segundo, a cada momento, a cada hora do dia e da noite, que envelheço e que hei-de morrer. Antes de deixar-me, dize-me, gnomo, tens medo da morte?

- Medo de quê?

- Medo do dia em que o teu coração deixará de bater, em que a engrenagem e as rodas da máquina caiam em pedaços, em que o teu pensamento se apague e a vida se extinga, vacilando, como a luz desta frágil vela de sebo que está em cima da mesa.

- Quem te meteu essas patranhas na cabeça? Não dês ouvidos a essa voz que está dentro da caixa de oiro, com esses disparates sobre o Passado, o Presente e o Futuro. Não compreendes que tudo isso é a mesma coisa? Não percebes que há alguém que faz troça de ti dentro da caixa? Se estivesse no teu lugar, atirava ao rio essa estranha caixa de oiro e afogaria o mau génio que está escondido dentro dela. Não acredites numa só palavra do que te diz; tudo são mentiras. Ficarás sendo criança toda a vida, nunca envelhecerás nem nunca morrerás. Deita-te e dorme um bocado. Não tarda que o Sol se erga por cima dos pinheiros e que um novo dia entre pela janela, e tu verás mais claro do que nunca viste à luz da vela de sebo. Tenho de ir-me embora. Adeus, sonhador! Que feliz encontro!

- Alegrou-me tornar a ver-te, gnomito!

Saltou da cadeira que estava junto da cama e encaminhou-se para a porta, batendo no chão com os tamanquitos que calçava. Enquanto revistava os bolsos, à procura da chavezita do quarto, prorrompeu de repente numa gargalhada tão formidável que teve de segurar o ventre com as duas mãos.

- A morte! - exclamou, rindo. - Na verdade, é tudo o que tenho ouvido de mais extraordinário! Que cegos e idiotas são esses grandes macacos, comparados a nós, pequenitos gnomos! A morte! Nunca ouvi tolice semelhante!

Quando despertei e olhei pela janela, a terra estava toda branca de neve recém-caída. Lá no alto, no Céu, ouvi o bater de asas e os apelos dum bando de patos selvagens. «Boa viagem, gnomozinho!»

Sentei-me à mesa para almoçar: um prato de farinha de aveia, leite fresco de vaca e uma chávena de café excelente.

O tio Lars disse-me que se tinha levantado duas vezes durante a noite; o cão não cessara, de rosnar, inquieto, como se visse ou ouvisse qualquer coisa. Ele próprio julgou ter visto uma forma escura, que bem podia ser um lobo, rondando à volta da casa; num certo momento pareceu-lhe ouvir o som de vozes no curral das vacas e ficou bem aliviado quando compreendeu que era eu falando a sonhar. As galinhas haviam cacarejado, e toda a noite estiveram muito agitadas.

- Vês? - disse o tio Lars, mostrando-me com o dedo pegadas na neve em direcção à minha janela. - Deviam ser pelo menos três. Já aqui vivo há trinta anos e nunca vi sinais de lobos tão perto da casa. Vês ali? - disse, indicando-me outros vestígios de passos na neve, tão grandes como o pé de um homem. - A princípio, quando os vi, julguei sonhar. Tão verdade como eu chamar-me Lars Anders, a ursa esteve aqui de noite, com o filhote. Há dez anos que não mato um urso nesta floresta. Ouves todo esse ruído no pinheiro, junto do curral? São pelo menos vinte esquilos, e em toda a vida nunca vi tantos numa só árvore. Ouviste o pio do mocho na floresta e o apelo do mergulhão no lago durante toda a noite? Não entendo nada. Em geral a floresta é muda como um túmulo, logo que escurece... Porque vieram esta noite aqui todos esses animais? Nem eu nem Kristin pudemos fechar os olhos. Kristin julga que foi a pequena lapoa que enfeitiçou a casa, mas ela diz que foi baptizada em Rukne, no ano passado. Mas nunca se sabe, com estes lapões; são todos cheios de artes do Diabo. Pelo sim pelo não, pu-la a andar ao amanhecer; ela tem o pé leve, e antes do pôr-do-Sol estará na escola de Rukne. E tu, quando partes?

Respondi-lhe que não tinha pressa e que me agradaria passar ali ainda dois dias; gostava muito de Forsstugan.

Lars disse-me que o filho devia regressar à noite e que não havia quarto para mim. Retorqui-lhe que não me importava de dormir no palheiro, porque gostava muito do cheiro do feno.

Esta ideia não pareceu sorrir, nem ao tio Lars, nem à tia Kristin. Não pude deixar de sentir que desejavam desembaraçar-se de mim; mal me dirigiam a palavra e quase pareciam ter medo de mim. Interroguei o tio Lars sobre o estrangeiro que viera dois dias antes a Forsstugan e que tinha comido o pão todo. Não sabia uma palavra de sueco, disse Lars Anders; o lapão da Finlândia, que trazia os seus aparelhos e canas de pesca, declarou-me que ele se havia perdido no caminho. Estavam meio mortos de fome quando chegaram; e comeram quanto havia em casa. O tio Lars mostrou-me uma moeda que ele quisera por força dar às crianças. Seria oiro, deveras?

Era um soberano inglês. No chão, ao pé da janela, estava um número do Times dirigido a Sir John Scott. Abri-o e li, em letras enormes:

TERRÍVEL EPIDEMIA DE CÓLERA EM NÁPOLES MAIS DE MIL CASOS DIÁRIOS

Uma hora depois, Pelle, o neto do tio Lars, estava em frente da casa, com o felpudo cavalito norueguês.

O tio Lars quase perdeu a respiração, quando eu lhe quis pagar ao menos as provisões que levava na mochila; disse-me que jamais ouvira coisa semelhante. Afirmou-me também que não tinha que preocupar-me de coisa alguma; Pelle conhecia perfeitamente o caminho. Era uma viagem fácil e agradável naquela época do ano. Oito horas a cavalo na floresta até Rukne, seguindo a corrente; três horas para descer a ribeira na barca de Liss Jocum; seis horas a pé na montanha até à aldeia paroquial; duas horas para atravessar o lago de Losso Jaervi, e dali, oito horas de carro, sem dificuldades, até à estação do caminho de ferro mais próxima.

Não havia ainda comboios para viajantes, mas o maquinista deixar-me-ia, com certeza, ir em pé, na locomotiva, para apanhar na próxima estação o comboio de mercadorias.

Tinha razão o tio Lars; foi uma viagem bastante agradável; pelo menos assim me pareceu então. Como me pareceria hoje?

Igualmente fácil e agradável foi a viagem através da Europa Central, nos horríveis comboios dessa época, quase sem dormir. Da Lapónia a Nápoles! Vejam no mapa!

 

                             NÁPOLES

SE alguém desejar pormenores da minha estada em Nápoles, procure-os nas Letters from a mourning Town (Cartas duma

cidade enlutada) se conseguir pôr a mão num exemplar, o que não é provável, porque o livrito está há muito esgotado e esquecido. Acabo mesmo de ler essas Cartas de Nápoles, como lhes chamaram no original sueco. Um livro assim já não o escreveria hoje, nem pelo preço da própria vida. Há nessas cartas bastante exuberância juvenil, e bastante suficiência, para não dizer vaidade. Era evidentíssimo que eu estava, sobretudo, contente comigo, por me ter precipitado do fundo da Lapónia sobre Nápoles, precisamente quando os outros a abandonavam. Há bastante fanfarronada nas minhas idas e vindas, de dia e de noite, nos bairros infectados, coberto de piolhos, alimentado com frutos podres, dormindo em qualquer albergue infecto. Tudo é absolutamente verdadeiro, não tenho que retratar-me de nada; a minha descrição de Nápoles durante o período da cólera é exactamente como a vi, com os olhos dum entusiasta.

Bem menos exacta é a descrição que fiz de mim próprio. Tive a audácia de escrever que não tinha medo da cólera nem da morte. Menti. Desde o começo ao fim ambas me causaram um medo horrível. Descrevi na primeira carta como, meio asfixiado pelo ácido fénico no comboio vazio, desci uma noite na Piazza deserta, como cruzei na rua longas filas de carros e ónibus cheios de cadáveres, a caminho do cemitério do cólera; e como passei toda a noite junto dos moribundos, nos miseráveis bairros baixos. Mas calei-me sobre o que fiz duas horas depois da chegada; como voltei à estação, me informei ansiosamente do primeiro comboio para Roma, para a Calábria, os Abruzzos, fosse para onde fosse, quanto mais longe melhor, simplesmente para sair daquele inferno. Se tivesse havido comboio, não teriam existido as Cartas de Nápoles. Mas sucedeu que, antes do meio-dia do dia seguinte, não havia nenhum comboio, pois as comunicações com a cidade contaminada estavam quase suprimidas. Não tinha mais remédio senão ir banhar-me a Santa Lúcia, ao amanhecer, e voltar aos bairros pobres com a cabeça refrescada, mas tremendo ainda de medo. Nessa tarde foi aceito o meu oferecimento para fazer parte da equipe de médicos do hospital de coléricos de Santa Madalena. Dois dias depois desapareci do hospital; havia descoberto que o meu lugar não era entre os moribundos do hospital, mas entre os moribundos das mansardas.

Quanto melhor seria para eles e para mim, pensava eu, se ao menos a sua agonia fosse mais curta e menos terrível! Para ali estavam durante horas e dias em stadium algidum, frios como cadáveres, com a boca e os olhos muito abertos, com todas as aparências da morte e no entanto ainda vivos. Sentiriam alguma coisa? Compreenderiam? Tanto melhor para os raros deles que ainda podiam engolir a colher de laudanum, que um dos voluntários da Croce Bianca vinha à pressa meter-lhes na boca. Ao menos podiam acabar antes de que os soldados e os coveiros, meio borrachos, chegassem pela noite para os lançar, uns por cima dos outros, na imensa fossa do Campo Santo dei Colerosi. Quantos foram ali lançados ainda vivos? Talvez algumas centenas. Todos pareciam absolutamente iguais; eu mesmo fora por vezes incapaz de dizer se estavam mortos ou vivos. Não havia tempo a perder; eram às dezenas em cada canto e havia ordens severas para os enterrar na mesma noite.

Quando a epidemia atingiu o apogeu, não tive já que lastimar as agonias longas. Puseram-se a cair nas ruas como feridos pelo raio; a polícia recolhia-os e levava-os ao hospital do cólera, onde morriam algumas horas depois. O cocheiro que alegremente me levou uma manhã à prisão de Granatelo, perto de Portici, e me devia reconduzir a Nápoles, estava morto no carro quando vim procurá-lo, ao anoitecer. Ninguém quis ocupar-se dele em Portici. Ninguém quis ajudar-me a tirá-lo do carro. Tive de subir à boleia e levá-lo eu próprio a Nápoles. Ali ninguém quis interessar-se por ele; e por fim tive eu de levá-lo ao cemitério do cólera, para me desfazer daquele cadáver.

Muitas vezes, ao voltar de noite à locanda, achava-me tão cansado que me atirava para cima da cama tal qual estava, sem me despir nem me lavar. E para que servia lavar-me naquela água imunda? Para que desinfectar-me, quando tudo à minha volta estava infectado: os alimentos que comia, a água que bebia, a cama onde dormia, o próprio ar que respirava?! Muitas vezes também tinha medo de deitar-me, medo de estar sozinho. Tinha de lançar-me de novo à rua para passar numa igreja o resto da noite. Santa Maria del Carmine era o meu poiso de noite preferido; o melhor sono que eu então dormi foi num banco da nave esquerda dessa velha igreja. Tinha quantas igrejas quisesse para dormir quando não me atrevia a voltar a casa. As centenas de igrejas e capelas de Nápoles estavam abertas toda a noite, resplandecentes dos círios votivos e a transbordar de gente. Todos os seus centenares de santos e virgens trabalhavam febrilmente dia e noite, visitando os moribundos nos bairros respectivos. Desgraçado daquele que se atrevesse a aparecer no bairro dum dos rivais. A venerável Virgem do Cólera, ela própria, que tinha salvo a cidade na terrível epidemia de 1834, havia sido apupada alguns dias antes em Bianchi Nuovi.

Mas não era somente do cólera que eu tinha medo. Do princípio até ao fim fui também aterrorizado pelas ratazanas. Pareciam sentir-se tanto em sua casa nos fondaci, bassi e sotterranei dos bairros pobres como os miseráveis seres humanos que ali viviam e morriam. Para ser justo, devo dizer que as ratazanas eram inofensivas e estavam bem educadas, pelo menos no que respeitava aos vivos; ocupavam-se no seu mister de limpadoras de todas as imundícies, monopólio que conservavam do tempo dos Romanos. Eram os únicos habitantes dos bairros pobres, seguros de poderem saciar-se. Estavam quase tão domesticadas como os gatos e eram pouco mais pequenas do que eles. Um dia encontrei uma pobre mulher velha, nada mais que pele e osso, quase nua, estendida num enxergão de palha apodrecida, numa espécie de gruta. Disseram-me que era la vavama, a avó. Paralítica e completamente cega, ali jazia havia anos. No chão imundo da caverna uma meia-dúzia de ratazanas, sentadas sobre o traseiro, devoravam o almoço inqualificável. Olharam-me com interesse, quase com simpatia, e não se mexeram. A velha estendeu o braço esquelético e gritou com a voz rouca: «Pane, pane!»

Mas quando a comissão sanitária empreendeu a vã tentativa de desinfectar os esgotos, a situação mudou; e o medo que eu tinha converteu-se em terror. Milhões de ratazanas, que viviam tranquilas desde o tempo dos Romanos, invadiram a parte baixa da cidade. Intoxicadas pelas exalações do enxofre e do ácido fénico, precipitaram-se nos bairros pobres como cães raivosos. Nunca vi ratas semelhantes. Eram absolutamente peladas, com os rabos vermelhos, extraordinariamente grandes, olhos ferozes injectados de sangue e dentes negros e afiados, tão longos como os do furão. Se lhes batíamos com um pau, voltavam-se e mordiam-nos como buldogues. Nunca em minha vida tive tanto medo dum animal como daquelas ratas enraivecidas; tenho a certeza de que estavam raivosas. Todo o bairro do Basso Porto vivia aterrorizado. Homens, mulheres, crianças, mais duma centena, gravemente mordidos, foram levados ao hospital dos Pelligrini, precisamente no primeiro dia da invasão. Algumas crianças pequeninas foram literalmente devoradas. Nunca esquecerei uma noite num fondaco no Vicolo della duchessa. O quarto ou, melhor dizendo, o antro, estava quase às escuras, apenas iluminado pela lâmpada de azeite que ardia diante da Virgem. O pai tinha morrido havia dois dias, mas o corpo continuava ali, debaixo dum montão de farrapos; a família conseguira ocultá-lo à polícia, que procurava os mortos para os levar para o cemitério, hábito corrente nesses bairros.

Eu, sentado junto da filha, já fria mas ainda consciente, espantava as ratas com a minha bengala. Ouvia ao lado o ruído das outras que roíam sem interrupção o cadáver do pai. Por fim, de tal modo me enervei, que tive de ir metê-lo num canto, rígido e em pé, como um relógio de parede. Não tardou que as ratas voltassem a devorar-lhe gulosamente as pernas e os pés. Não pude suportar por mais tempo, e fugi dali, desfalecendo de horror.

A farmácia de San Gennaro era também um dos meus refúgios favoritos quando tinha medo de estar só. Achava-se aberta dia e noite. Don Bártolo, sempre de pé, manipulava as suas drogas e remédios milagrosos, tirados de recipientes de faiança do século xvii, com inscrições latinas, na maior parte desconhecidas para mim. Em dois bocais de vidro, uma serpente e um feto metidos em álcool adornavam a estante. Diante da estatueta de San Gennaro, patrono de Nápoles, ardia a lâmpada sagrada e do meio das teias de aranha do tecto pendia o cadáver embalsamado dum gato com duas cabeças. A especialidade da farmácia era a famosa poção anticolérica de Don Bártolo, com uma etiqueta com a imagem de San Gennaro dum lado e do outro uma caveira encimada por estas palavras: Morte alla colera! A sua composição era um segredo de família, transmitido de pai a filho desde a epidemia de 1834, quando, em colaboração com San Gennaro, havia salvo a cidade. Uma outra especialidade da farmácia era uma garrafa misteriosa, tendo na etiqueta um coração traspassado por uma seta de Cupido - un filtro d’amore. A fórmula, que era também um segredo da família, compreendi que era muito solicitada. Os clientes de Don Bártolo pareciam provir na sua maioria dos conventos e igrejas próximos. Havia ali sempre alguns padres ou frades, sentados em cadeiras em frente do mostrador, discutindo animadamente os acontecimentos do dia, os últimos milagres obrados por este ou aquele santo e a eficácia das diferentes virgens: La Madonna dei Carmine, la Madonna dell’Aiuto, la Madonna della Buona Morte, la Madonna della Colera, l’Adorata, la Madonna Egiziaca. Raras vezes, muito raras vezes, ouvi pronunciar o nome de Deus; o do Seu Filho, nunca. Um dia atrevi-me a expressar a minha surpresa a um velho frade andrajoso, que era meu amigo pessoal, por aquela omissão do Cristo nas suas discussões. O frade não me ocultou a sua opinião pessoal: Cristo devia a Sua fama unicamente ao facto de ter tido por mãe a Virgem. Que ele soubesse, nunca o Cristo salvara ninguém do cólera. A Sua Santa Mãe chorara por Ele lágrimas de sangue! E Ele, como Lhe agradecera? «Mulher: que há de comum entre Ti e Mim?»

Percio ha finito male (por isso acabou mal).

À aproximação do sábado os nomes dos santos e madonas desapareciam cada vez mais das conversas. Na sexta-feira à noite a farmácia estava cheia de gente, gesticulando freneticamente e discutindo as possibilidades de ganhar no dia seguinte ao Banco di Lotto.

Trentaquatro! sessentanove! quarentatre! diciasette! Don Antonio sonhara que uma tia dele tinha morrido subitamente, deixando-lhe cinco mil liras - morte súbita - 49; dinheiro - 70; Don Honorato havia consultado o corcunda da Via Forcella e estava seguro do seu turno - 9, 39, 20! A gata de Don Bártolo tinha tido sete filhos na noite anterior - número 7, 16, 64! Don Dionóisio acabava de ler no Pungolo que um «cammorrista» havia apunhalado um barbeiro em Immacolatella. Barbeiro - 21 - faca 41; Don Pascoal tinha os números que lhe indicara o guarda do cemitério, que os ouvira claramente sair do túmulo - o morto que fala - 48.

Foi na farmácia de San Gennaro que encontrei pela primeira vez o Dr. Villari. Soube por Don Bártolo que ele viera para Nápoles dois anos antes, como assistente do velho dr. Rispu, médico bem conhecido de todos os conventos e congregações do bairro, e que ao morrer trespassara a sua numerosa clientela ao jovem assistente. Tinha sempre muito prazer em encontrar este meu colega, por quem, desde o primeiro momento, senti uma grande simpatia. Era um homem de rara beleza, com maneiras afáveis, muito diferente do tipo ordinário do napolitano. Era dos Abruzzos. Foi ele quem me falou do convento das Sepolte vive, o velho casarão sombrio, ao canto da rua, com suas janelas góticas e a grande porta de ferro maciço sempre fechada, tétrico e silencioso como um túmulo. Era verdade que as monjas entravam por esta porta, amortalhadas e deitadas num caixão? E que dali não podiam sair enquanto vivas?

Sim, era perfeitamente verdade; as monjas não tinham nenhuma relação com o mundo exterior. Ele mesmo, durante as suas raras visitas profissionais ao convento, era precedido por uma velha monja, que tocava uma sineta para as prevenir e encerrarem-se nas celas.

Era verdade o que eu ouvira ao padre Anselmo, confessor no convento, que o jardim do claustro estava cheio de mármores antigos?

Era certo; havia reparado em muitos fragmentos dispersos; haviam-lhe dito que o convento estava situado nas ruínas dum templo grego.

O meu colega parecia comprazer-se em conversar comigo; dizia-me que não tinha amigos em Nápoles, e, como todos os seus conterrâneos, detestava e desprezava os napolitanos. O que havia visto depois da aparição do cólera fazia com que os detestasse mais do que nunca. Era difícil não acreditar que Deus castigava a cidade corrompida. Sodoma e Gomorra não eram nada, comparadas a Nápoles. Não via o que se passava nos bairros pobres, nas ruas, nas casas contaminadas, até nas igrejas, enquanto rezavam a um santo e amaldiçoavam o outro? Um frenesi de luxúria apoderara-se de Nápoles inteira; imoralidade e vício por toda a parte, mesmo sob os olhos da Morte. As violências contra mulheres tornaram-se tão frequentes que nenhuma mulher séria se atrevia a sair de casa.

Não parecia ter medo do cólera; dizia-me que se sentia completamente seguro sob a protecção da Madonna. Quanto eu invejava a sua fé! Mostrou-me as duas medalhas que a mulher lhe pusera ao pescoço quando apareceu o cólera: uma Madonna dei Carmine e uma Santa Lúcia, a santa padroeira da mulher, que se chamava Lúcia. Desde criança que sempre trouxera essa medalha. Disse-lhe eu que conhecia Santa Lúcia, que sabia que era a protectora dos olhos. Muitas vezes tivera desejos de acender uma vela diante do seu altar, pois durante muitos anos temera ficar cego. Disse-me que pediria à mulher que me recomendasse nas suas orações a Santa Lúcia, que também perdera a vista, mas dava aos outros a luz dos olhos. Contou-me que, desde que pela manhã saía de casa, a mulher se sentava à janela, espreitando o seu regresso. Só o tinha a ele no Mundo. Havia-a desposado contra a vontade dos pais, e agora, quando a quisera fazer partir da cidade contaminada, recusara-se redondamente. Perguntei-lhe se a morte lhe causava medo. Disse-me que não pelo que lhe dizia respeito, mas que a temia pelo amor de sua mulher. Se ao menos a morte pelo cólera não fosse tão repugnante! Mais valia ser levado no mesmo instante para o cemitério que ser assim visto por uns olhos amantes.

- Estou certo de que tudo se passará bem - disse-lhe. - O colega tem ao menos quem reze por si. Eu não tenho ninguém.

Pelo seu rosto passou uma sombra.

- Prometa-me, se...

- Não falemos na morte - interrompi-o com um calafrio.

A pequena Osteria dell’Allegria, por detrás da Piazza Mercato, era um dos meus lugares de repouso favorito. A comida era abominável mas o vinho excelente, e eu bebia muito. Não poucas vezes passava ali a maior parte da noite, quando me faltava coragem para voltar a casa. César, que fazia serviço de noite, não tardou em tornar-se meu amigo. Depois do terceiro caso de cólera na locanda em que vivia, resolvi trasladar-me para um quarto vago na casa onde ele morava. A nova instalação era tão suja como a que abandonara, mas César tinha razão ao afirmar que era bem melhor estar acompanhado. A mulher morrera, mas a Mariuccia, a filha, estava viva, e de que maneira! Dizia ter quinze anos, mas já desabrochava; com os olhos negros e os lábios vermelhos, parecia-se com a pequena Vénus do Museu do Capitólio. Lavava-me a roupa, cozia-me os macarrões e fazia-me a cama, quando se lembrava. Eu era o primeiro estrangeiro que conhecia. A cada instante entrava no meu quarto com um cacho de uvas, uma talhada de melancia, ou um prato de figos. Quando não tinha nada para me oferecer tirava a rosa vermelha dos cabelos negros em caracóis e estendia-ma com seu encantador sorriso de sereia e nos olhos uma interrogação ardente: não gostaria eu de aceitar também os seus lábios vermelhos? Todo o dia na cozinha a ouvia cantar alto, com sua voz aguda: Amore! Amore!

Durante a noite sentia-a mexer-se na cama, do outro lado do tabique. Dizia-me que não podia dormir, que tinha medo de estar sozinha de noite, medo de dormire sola. E perguntava-me se eu não tinha medo de estar sozinho. Dormite, signorino?

Não, não dormia, estava bem desperto; também, como ela, não gostava de dormire solo.

Que novo anseio fazia bater-me o coração em tumulto e correr-me o sangue nas veias com o ardor da febre? E por que razão, meio adormecido na nave lateral de Santa Maria del Carmine, só agora notava aquelas lindas raparigas de mantilhas negras, ajoelhadas junto de mim, no chão de mármore, sorrindo-me furtivamente em meio das suas orações e esconjuros? Como pudera durante duas semanas passar todos os dias diante da fruttivendola, vendedora de fruta, ao canto da rua, sem me deter a chalrar com Nannina, sua encantadora filha, cujas faces tinham a cor dos pêssegos que vendia? E porque não havia até ali notado que a fioraia da Piazza Mercato tinha o mesmo sorriso sedutor da Primavera do Boticelli? Como pudera passar tantas noites na Osteria dell’Allegria, sem me dar conta de que não era o vinho de Gragnano, mas o brilho dos olhos de Carmela que me subia à cabeça? Como era possível que até ali não ouvisse mais que os gemidos dos moribundos e o dobrar dos sinos, quando todas as ruas estavam cheias de risos e canções de amor? Quando em cada portal havia uma rapariga falando em voz baixa com o seu amoroso?

 

O Mari! O Mari! quanto somno ho perso per te!

Fammi dormire,

abbracciato un poco con te. (1) cantava um rapazola, debaixo da janela de Mariuccia.

 

Nota 1: Oh! Maria, oh! Maria, quanto sono perdido por tua causa! Faz-me dormir um pouco apertado nos teus braços!

 

O Carme! O Carme! - cantava, outro diante da hospedaria.

Vorrei bacciare i tuoi capelli neri (2) - cantava uma voz na Piazza Mercato.

 

Nota 2: Queria beijar os teus cabelos negros.

 

Vorrei bacciare i tuoi capelli - repetia o eco aos meus ouvidos, enquanto eu, estendido na cama, ouvia por detrás do tabique a respiração de Mariuccia dormindo.

Que me havia sucedido? Estava enfeitiçado? Alguma dessas raparigas teria posto no meu vinho um pouco desse filtro d’amore de Don Bártolo? Que havia sucedido a toda essa gente à minha volta? Tinham-se emborrachado todos com o vinho novo ou desvairava-os a luxúria mesmo em frente da Morte?

Morta la colera e viva la gioia! (1)

 

Nota 1: Morra o cólera e viva a alegria!

 

Estava sentado à mesa habitual na hospedaria deserta, diante duma garrafa de vinho. Era mais de meia-noite, e pensava que era melhor esperar e voltar para casa com César, quando ele acabasse o trabalho. Um pequeno acercou-se vivamente da mesa e entregou-me um bocado de papel.

«Venha!» - estava escrito em letras quase ilegíveis.

Cinco minutos depois parávamos diante da grande grade de ferro do convento das Sepolte vive. Fui introduzido por uma velha irmã que me precedia através do jardim, tocando uma campainha. Seguimos um imenso corredor deserto; uma outra irmã levantou uma lanterna à altura do meu rosto e abriu a porta dum quarto dèbilmente iluminado. Havia um colchão no solo e nele estava o dr. Villari. À primeira vista mal o reconheci. O Padre Anselmo administrava-lhe a extrema-unção. Achava-se já em stadium algidum, todo o corpo estava frio, mas, pelo olhar, vi que ainda estava consciente. Olhei aquele rosto com um calafrio; não era o amigo que via, mas a Morte, a terrível e repugnante Morte!

Levantou para mim por várias vezes as mãos, o rosto macabro, torcido por um esforço desesperado para falar. De seus lábios contraídos saiu distintamente a palavra specchio (espelho). Uma irmã trouxe um pequeno espelho que eu coloquei diante dos olhos semicerrados. Meneou a cabeça algumas vezes e foi esse o último sinal de vida que deu. Uma hora mais tarde o coração deixava de bater.

Diante da grade do convento estava o carro que devia levar duas monjas mortas naquele dia. Sabia que só de mim dependia fazê-lo levar também ou deixá-lo ali até ao dia seguinte de manhã. Ter-me-iam acreditado se dissesse que vivia ainda; parecia exactamente tal como quando cheguei. Não disse nada. Duas horas depois o seu corpo foi lançado, com centenas de outros, na fossa comum do cemitério do cólera. Havia compreendido porque levantara as mãos para mim e meneara a cabeça quando pus o espelho diante dos seus olhos. Não queria que sua mulher visse o que ele vira e queria que eu a avisasse quando tudo estivesse acabado.

Quando cheguei em frente da casa dele, vi uma face pálida de mulher, quase uma criança, à janela. Atirou-se para trás, com o terror no olhar quando eu abri a porta. «É o doutor estrangeiro de que ele me tem falado tanto? Ainda não entrou e toda a noite a passei de pé, à janela. Onde está ele?»

Deitou um xale sobre os ombros e encaminhou-se para a porta. «Leve-me já para o seu lado, quero vê-lo imediatamente!» Retive-a, dizendo-lhe que tinha de falar-lhe primeiro. Disse-lhe que ele havia caído doente no convento das Sepolte vive, que toda a casa estava contaminada e que ela não podia ir ali; devia pensar na criança que em breve ia nascer.

- Ajude-me a descer! Ajude-me a descer! Tenho de ir imediatamente para o pé dele! Porque não me ajuda? - exclamou, soluçando.

De repente soltou um grito agudo e caiu quase desmaiada na cadeira.

- Não é verdade! Não é verdade! Não morreu! Porque não me leva para junto dele? Mentiroso! Ele não podia morrer sem eu o tornar a ver.

De novo correu à porta.

- Quero vê-lo! Quero vê-lo!

Segurei-a novamente.

- Não pode vê-lo, não está lá, está...

Atirou-se a mim como um animal raivoso.

- Não tinha o direito de o fazer levar sem que eu o visse - gritou como louca. - Era a luz dos meus olhos; roubou-me a luz dos meus olhos. Mentiroso! Assassino! Santa Lúcia: tira-lhe a luz dos olhos como ele tirou a minha! Arranca-lhe os olhos, como arrancaste os teus!

Uma velha irrompeu no aposento com as mãos estendidas, como para apanhar-me o rosto.

- Santa Lúcia: cega-o! cega-o! - gritou em alta voz.

Desci as escadas correndo, ouvindo-a gritar do patamar:

- Potess’essere ciecato! Potess’essere ciecato! (Uma cegueira te dê! Uma cegueira te dê!)

A terrível maldição, a mais terrível com que podiam ferir-me, retumbou aos meus ouvidos durante toda a noite. Não ousava voltar a casa, tinha medo da obscuridade. Passei o resto da noite em Santa Maria del Carmine e julguei que o dia não voltava mais.

Quando entrei de manhã na farmácia de San Gennaro para tomar o meu costumado cordial, uma das especialidades de extraordinária eficácia de Don Bártolo, disseram-me que acabava de sair dali o padre Anselmo, deixando-me um recado para ir ao convento.

Encontrei-o na maior das agitações: acabavam de dar-se no convento três novos casos de cólera. Disse-me o padre Anselmo que, em consequência duma larga conversa entre ele e a Abadessa, fora decidido que eu substituísse o meu falecido colega, pois não havia outro médico disponível. Apavoradas, as monjas corriam pelos corredores, ou rezavam e cantavam cânticos na capela. Três estavam em suas enxergas nas celas. Uma delas morreu à noite. De manhã, a velha irmã que me ajudava foi, por sua vez, atacada. Substituiu-a uma noviça, que eu já notara na minha primeira visita. Na verdade, seria difícil não a ter notado, pois, além de jovem, era duma extraordinária beleza. Jamais me dirigia a palavra. Nem sequer me respondeu quando lhe perguntei o nome; mas, pelo padre Anselmo, soube que era a Irmã Úrsula. Mais tarde, nesse mesmo dia, pedi para falar à Abadessa e fui conduzido à sua cela por Soror Úrsula. A velha Abadessa mirou-me com seus olhos frios e penetrantes, severos e perscrutadores como os de um juiz. Tinha o rosto rígido e sem vida, como se fora de mármore; os lábios delgados pareciam jamais haver sorrido. Disse-lhe que todo o convento estava contaminado e em condições sanitárias espantosas; a água do poço, no jardim, infectada; e, se não se evacuasse o convento, todas morreriam do cólera.

Respondeu-me que não era possível sair, por ser contrário às regras da Ordem; que uma vez entrada no convento, nenhuma monja podia sair dele com vida. Tinham de continuar todas ali; estavam entre as mãos da Madonna e de San Gennaro.

Salvo uma visita à farmácia, para uma dose copiosamente aumentada do milagroso cordial de Don Bártolo, não deixei o convento durante aqueles inolvidáveis dias de terror. Tive de dizer ao padre Anselmo que necessitava de mais vinho, e não tardou que o tivesse em abundância, talvez demasiada. Sono quase não tinha, e parecia não ter necessidade de dormir. Nem creio que pudesse dormir se houvera tido ocasião; o medo e as inumeráveis taças de café haviam levado todo o meu mecanismo mental a um grau de excitação extraordinário, que abolia toda a fadiga. O meu único repouso era poder refugiar-me no jardim do claustro, onde ficava sentado, fumando cigarro após cigarro, no velho banco de mármore sob um cipreste. Esparsos por todo o jardim, jaziam vários fragmentos de mármore antigo; até o rebordo do poço havia sido talhado no que outrora fora um cippo, um altar romano. Está hoje no pátio de San Michele. A meus pés estava um fauno mutilado em rosso antico e, meio escondido entre os ciprestes, erguia-se um pequeno Eros, ainda de pé sobre a sua coluna de mármore africano. Por duas vezes encontrara a Irmã Úrsula sentada no banco. Disse-me que lhe era necessário respirar um pouco de ar fresco, para não desmaiar com o mau cheiro que havia em todo o edifício, um dia trouxe-me uma chávena de café e ficou em pé diante de mim, esperando que a tomasse; eu bebia o café o mais lentamente possível, para ali a reter. Parecia-me que olhá-la era um repouso para os meus olhos fatigados. Em breve essa contemplação se tornou alegria, porque era formosíssima. Compreenderia ela o que lhe diziam os meus olhos e os meus lábios calavam? Que era novo e ela formosa? Por momentos parecia-me quase que sim.

Perguntei-lhe porque viera enterrar a juventude no túmulo das Sepolte vive. Não sabia ela que, fora deste lugar de terror, o Mundo era belo, que a vida estava cheia de alegria e não somente de tristezas?

- Sabe o que é este menino? - disse-lhe, designando o pequeno Eros, oculto pelos ciprestes.

Ela pensava que era um angelo.

- Não, não era um anjo! Era um deus, o maior de todos os deuses e talvez o mais antigo. Reinava já no Olimpo e continua reinando no Mundo. Este convento eleva-se sobre as ruínas dum templo antigo, cujas paredes caíram, tornadas em pó pelo tempo e pelo Homem. Só aquele menino permaneceu onde se encontra, com as flechas na mão, pronto a erguer o arco. É indestrutível porque é imortal. Os antigos chamavam-lhe Eros, o deus do Amor.

Ao pronunciar esta palavra sacrílega, o sino do convento começou a tocar, chamando as monjas para a oração da noite. Ela benzeu-se e saiu do jardim a toda a pressa.

Um momento depois uma outra irmã precipitou-se direita a mim para me levar junto da Abadessa. Havia desmaiado na capela e acabavam de levá-la à sua cela. A Abadessa olhou-me com os seus terríveis olhos. Levantou a mão e designou o crucifixo, na parede. Trouxeram-lhe os Santos Sacramentos. Não voltou a si, não tornou a falar; o coração batia cada vez mais dèbilmente, extinguindo-se rapidamente. Assim esteve todo o dia, com o crucifixo sobre o peito, o rosário na mão e os olhos fechados; o corpo ia arrefecendo lentamente, uma ou duas vezes pareceu-me ouvir o coração palpitar dèbilmente; depois não senti mais nada. Contemplava o rosto rígido e cruel da velha Abadessa, que nem a própria morte pudera suavizar. Era quase um sossego para mim que aqueles olhos se tivessem fechado para sempre; havia neles qualquer coisa que me aterrorizava. Olhei para a Irmã Úrsula, junto de mim.

- Não posso estar aqui mais tempo - disse-lhe. - Não durmo desde que para aqui vim; tenho a cabeça à roda, não me sinto em mim, não sei o que faço, tenho medo de mim próprio, medo de si, medo de...

Não tive tempo de acabar a frase, nem ela o teve para retroceder; havia-a enlaçado nos braços e sentia o tumulto do seu coração contra o meu.

- Pietà! (Piedade!) - murmurou.

De repente apontou-me para o leito e atirou-se para fora do quarto, soltando um grito de terror. Os olhos da Abadessa, muito abertos, olhavam-me fixamente, terríveis e ameaçadores. Inclinei-me para ela e pareceu-me ouvir um débil latir do coração. Estava morta ou viva? Teria visto? Voltariam a falar aqueles lábios? Não ousava olhá-la nos olhos; cobri-lhe a cara com o lençol e fugi da cela das Sepolte vive para nunca mais lá voltar.

No dia seguinte perdi os sentidos na Strada Piliero. Quando voltei a mim, estava estendido num fiacre, junto dum polícia aterrorizado, sentado na minha frente, íamos a caminho de Santa Madalena, o hospital dos coléricos.

Contei noutro lugar como terminou este passeio; como, três semanas mais tarde, a minha estada em Nápoles findou com uma travessia maravilhosa na baía, na melhor barca à vela de Sorrento, em companhia duma dúzia de pescadores de Capri, e como estivemos imóveis durante um dia inteiro junto da Marina de Capri, não podendo desembarcar por causa da quarentena.

Nas Cartas de Nápoles tive o cuidado de esconder o que havia sucedido no convento das Sepolte vive. Nunca me atrevi a contá-lo a ninguém, nem mesmo ao meu fiel amigo Dr. Norstrom, que possuía um caderno escrito com a maior parte dos erros da minha mocidade. A lembrança da minha vergonhosa conduta perseguiu-me durante anos. Quanto mais nela pensava mais incompreensível me parecia. Que me sucedera? Que força misteriosa se abatera sobre mim, fazendo-me perder o domínio dos sentidos, imperiosos, decerto, mas até esse dia menos fortes do que a minha razão? Não era noviço em Nápoles; já havia conversado e rido com essas ardentes raparigas do Sul. Muitas vezes dançara com elas a Tarantela nas quentes noites de Verão em Capri. A uma que outra havia roubado beijos, mas conservara sempre o comando da nave, perfeitamente capaz de reprimir a menor insubordinação da equipagem. No tempo em que era estudante no Bairro Latino quase me havia apaixonado por Soeur Philomêne, a jovem e linda irmã da sala de Santa Clara; quanto me atrevi a fazer foi estender-lhe timidamente a mão, quando deixei para sempre o hospital, e ela nem sequer a tomou. Em Nápoles tive desejos de apertar nos braços quantas raparigas encontrava, e sem dúvida o teria feito se não tivesse desmaiado na Strada Piliero, no dia em que beijei uma monja junto do cadáver duma abadessa!

Recordando esses dias napolitanos após tantos anos passados, não posso ainda hoje desculpar a minha conduta; mas, até certo ponto, talvez possa explicá-la.

Observei demasiado durante tantos anos a batalha entre a Vida e a Morte para não conhecer os dois combatentes. A princípio, quando vi trabalhar a Morte na sala do hospital, tratava-se duma simples luta entre os dois, um jogo de crianças, comparado com o que vi mais tarde. Em Nápoles via-a assassinar mais de mil pessoas por dia. Em Messina, sepultar mais de cem mil homens, mulheres e crianças, debaixo das casas derruídas, num minuto. Mais tarde via-a em Verdun, com os braços vermelhos de sangue até ao cotovelo, chacinando quatrocentos mil homens nas planícies da Flandres e do Somme, ceifando a flor dum exército inteiro. Foi somente depois de a ter visto operar em grande escala que comecei a compreender a táctica da guerra. E um estudo fascinador, cheio de mistério e de contradições. A princípio tudo parece um caos enlouquecedor, uma chacina às cegas, sem nenhum sentido, cheio de confusão e de erros. Ora a Vida avança triunfantemente, brandindo uma nova arma, ora recua um momento depois, vencida pela Morte. Não é assim. A batalha está regulada, até às mais pequenas minúcias, por uma lei de equilíbrio imutável entre a Vida e a Morte. Apenas esse equilíbrio é perturbado por uma causa acidental, seja epidemia, sismo ou guerra, a Natureza vigilante põe-se imediatamente ao trabalho para regular a balança, para fazer surgir novos seres que ocupem o lugar dos desaparecidos. Escravos duma força irresistível à lei da Natureza, homens e mulheres caem nos braços uns dos outros, cegos pela concupiscência, sem se lembrarem de que é a Morte que preside a essa união, tendo numa das mãos o seu afrodisíaco, noutra o seu narcótico, Morte doadora e destrutora da Vida, princípio e fim.

 

                               REGRESSO A PARIS

EM vez de um, estivera três meses ausente. Tinha a convicção de que os meus doentes permaneceriam fiéis ao meu amigo Dr. Norstrom, que na minha ausência os havia tratado. Enganava-me; todos voltaram a procurar-me, uns melhores, outros mais doentes, não regateando os elogios ao meu colega, mas a mim também. Não me desgostaria que se tivessem afeiçoado a Norttrom; eu tinha demasiados doentes e sabia que a sua clientela ia diminuindo cada vez mais, tendo-se visto obrigado a deixar a casa do Boulevard Haussmann e a alugar outra mais modesta na Rue Pigalle. Norstrom fora sempre um amigo leal, e ajudara-me a sair de muitos apuros, no princípio da minha carreira, quando me dedicava com pouco êxito à cirurgia. Estava sempre pronto a partilhar a responsabilidade dos meus erros. Recordo-me bem, por exemplo, do que se passou com o barão B... Creio que será melhor contar-vos a história, para compreenderdes que espécie de homem era o meu amigo.

O barão B..., um dos mais antigos membros da colónia sueca, de saúde muito delicada, fora durante anos tratado por Norstrom. Um dia, este, com a sua funesta timidez, sugeriu a ideia de me chamarem para uma consulta. O barão tomou por mim uma viva simpatia. Um novo médico é sempre considerado como bom até prova em contrário. Norstrom queria que se operasse imediatamente, ao que eu me opunha. O barão escreveu-me, declarando-se farto da figura triste de Norstrom e pedindo-me que me encarregasse do seu tratamento. Como era natural, recusei, mas Norstrom insistiu para se retirar e ceder-me o doente. O estado geral do barão melhorou rapidamente; todos me felicitavam. Um mês depois tornou-se-me evidente que Norstrom acertara no diagnóstico, mas que era demasiado tarde para uma intervenção; o doente estava condenado. Escrevi a um sobrinho que ele tinha em Estocolmo para vir buscá-lo, de sorte que fosse morrer no seu país. Consegui com muito custo persuadir o doente. Não queria deixar-me; eu era o único médico que compreendia o seu caso. Dois meses mais tarde recebi uma carta do sobrinho, dizendo-me que o tio me deixara em testamento um cronómetro de repetição, de oiro, dum grande valor, em lembrança do que eu fizera por ele. Forço-o amiúde a dar as horas, para não me esquecer de como é feita, muitas vezes, a reputação dum médico.

Havia algum tempo que a situação entre mim e Norstrom se tinha modificado um pouco. Eu era, cada vez mais, chamado para os seus doentes, demasiadamente até. Acabava, naquela mesma tarde, de ver morrer um da maneira mais inesperada, o que foi para Norstrom uma verdadeira falta de sorte, pois o doente era um dos membros mais conhecidos da colónia. Norstrom ficou consternadíssimo; levei-o a cear comigo ao Café da Régence, para o animar um pouco.

- Gostaria bem que tu pudesses explicar-me o segredo do teu êxito e a falta do meu - disse-me Norstrom, olhando-me tristemente por cima duma garrafa de Saint-Julien.

- É, antes de mais nada, uma questão de sorte - respondi-lhe. - Há também entre ti e mim uma diferença de temperamento, que me permite agarrar a Fortuna pelos cabelos, enquanto tu deixas voar a deusa, tranquilamente sentado com as mãos nos bolsos. Estou certo de que tu conheces melhor do que eu o corpo humano; mas pode acontecer que, tendo metade da tua idade, eu saiba mais do que tu sobre o espírito humano. Para que havias de dizer ao professor russo, que eu te enviei, que ele tinha uma angina pectoris? E para que havias de explicar-lhe todos os sintomas da doença?

- Insistiu para conhecer a verdade e tive de dizer-lha; sem isso não me teria obedecido.

- Eu não lhe diria nada, e no entanto havia de obedecer-me. Mentiu-te quando te afirmou que queria saber a verdade e que não tinha medo da morte. Ninguém quer saber que está muito doente, toda a gente tem medo de morrer, e com justa razão. Esse homem está agora ainda pior, com a vida atormentada pelo medo, e tudo por culpa tua.

- Tu estás sempre a falar de nervos e do moral, como se o nosso corpo não fosse nada mais. A causa da angina pectoris está na arteriosclerose das artérias coronárias.

- Pergunta ao professor Richard o que aconteceu a semana passada na clínica, enquanto ele nos explicava um caso. A doente teve de repente um terrível ataque; o próprio professor o julgou fatal. Pedi-lhe permissão para tentar deter a crise por um tratamento mental, no que ele consentiu, não obstante estar convencido da inutilidade. Pus a minha mão na fronte da doente e afirmei-lhe que o mal ia passar imediatamente; ao fim dum minuto o terror havia desaparecido do olhar; respirou profundamente, disse-me que se sentia completamente bem. Dizes, naturalmente: era uma pseudo-angina, uma falsa angina de peito. Posso provar-te o contrário. Quatro dias depois teve outra crise, idêntica segundo todas as aparências, e morreu em menos de cinco minutos. Tu estás sempre pronto a explicar o que tu mesmo nem a ti sequer podes explicar. Esqueces que é uma questão de fé e não de ciência, como a fé em Deus. A Igreja Católica nunca explica coisa alguma e continua sendo a maior potência do Mundo; a Igreja protestante esforça-se por dar a explicação de tudo e a pouco e pouco cai em pedaços. Quanto menos os teus doentes conheçam a verdade, tanto melhor para eles. Nunca foi previsto que o funcionamento dos órgãos do nosso corpo devia ser vigiado pelo cérebro; fazer pensar os doentes nas suas enfermidades é contrário às leis da Natureza. Dize-lhes que façam isto ou aquilo, que tomem este ou aquele remédio para melhorarem, e que, se não quiserem obedecer-te, que procurem outro médico. Não vás vê-los muitas vezes, a não ser quando necessitem absolutamente de ti; não lhes fales muito, ou não tardarão a adivinhar o pouco valor da nossa magra sabedoria. Os médicos, como as testas coroadas, devem manter-se à parte o mais possível, de contrário o seu prestígio sofrerá. Tanto uns como outros ganharão em mostrar-se a uma luz um pouco velada. Repara no que se passa com a família dum médico! Prefere sempre ir consultar outro. Agora mesmo trato eu às escondidas a mulher de um dos mais célebres médicos de Paris; ainda hoje ela veio mostrar-me a última receita do marido para eu lhe dizer se lhe faria bem.

- Tu sempre tens damas à tua volta. Ah! Se elas gostassem tanto de mim como gostam de ti! Até a minha velha cozinheira se enamorou de ti, depois que a curaste da zona.

- Oxalá não gostassem tanto. De boa vontade te cederia todas essas nevróticas. Sei que lhes devo em grande parte a minha reputação de suposto médico da moda; mas deixa-me dizer-te que são por vezes um grande aborrecimento, e muitas, até, um grande perigo. Queres que as mulheres gostem de ti? Pois então não lho digas, não faças muito caso delas, não consintas que mandem em ti, não obedeças aos seus caprichos. As mulheres, ainda que pareçam ignorá-lo, preferem muito mais obedecer do que ser obedecidas. Pretendem ser iguais a nós, mas sabem muito bem que o não são, felizmente para elas, porque, se o fossem, agradar-nos-iam bem menos. No fundo, tenho bem melhor opinião das mulheres que dos homens, mas não lho digo. São muito mais corajosas, afrontam a doença e a morte muito melhor do que nós, são mais compassivas e menos vaidosas. Apesar de tudo, o seu instinto é um guia mais seguro na sua existência do que a nossa inteligência, e não se cobrem de ridículo cometendo loucuras tantas vezes como nós. O amor é mais fundamental para uma mulher do que para um homem; é tudo para ela. E não é uma questão dos sentidos, como o homem geralmente imagina. Uma mulher pode enamorar-se dum homem feio, até dum velho, se ele soube despertar a sua imaginação. Um homem não pode enamorar-se duma mulher se ela não desperta o seu instinto sexual, que, contrariamente aos propósitos da Natureza, no homem moderno sobrevive à sua virilidade. Não há, pois, limite de idade para o amor; Richelieu era irresistível aos oitenta anos, quando as pernas já não podiam com ele, e Goethe tinha setenta anos quando perdeu a cabeça por Ulrike von Levetzow.

«O próprio amor, como a flor, tem a vida curta. No homem, morre de morte natural no casamento; na mulher sobrevive muitas vezes até ao fim, transformado numa ternura puramente maternal pelo herói caído dos seus sonhos. As mulheres não podem compreender que o homem seja polígamo por natureza. Ela pode submeter-se ao nosso recente código de moral social; mas o seu irredutível instinto está apenas adormecido. Continua sendo o mesmo animal feito pelo Criador, pronto a proceder segundo o seu instinto, sem cuidar de vãos entraves.

«A mulher não é menos inteligente do que o homem; é mesmo, talvez, em geral, mais inteligente. Mas a sua inteligência é diferente. Não pode negar-se o facto de que o peso do cérebro dum homem é superior ao do cérebro da mulher. As circunvoluções cerebrais, que já se podem notar num recém-nascido, são completamente diferentes nos dois cérebros. As diferenças anatómicas são ainda mais evidentes quando se compara o lóbulo occipital nos dois cérebros; é precisamente por causa da pseudo-atrofia deste lóbulo do cérebro na mulher que Husche lhe atribui uma tal importância psíquica. A lei da diferenciação dos sexos é uma lei imutável da Natureza, que se verifica em toda a criação e se acentua cada vez mais à medida que os tipos evoluem. Há quem diga que tudo pode explicar-se pelo facto de havermos monopolizado toda a instrução, como coisa privativa do nosso sexo, e que a mulher nunca pode, equitativamente, experimentar as suas possibilidades. Não é verdade. Já em Atenas a condição da mulher não era inferior à do homem; todos os caminhos da cultura lhe estavam abertos. Os Jónicos e os Dóricos reconheceram sempre a sua independência; entre os Lacedemónios era até excessiva. Durante o Império romano, com quatro séculos de cultura superior, as mulheres gozaram duma grande independência. Basta lembrar que podiam dispor inteiramente dos seus bens pessoais. Durante a Idade-Média a instrução das mulheres era muito superior à dos homens. Os cavaleiros manejavam melhor a espada do que a pena; os monges eram instruídos, mas havia muitos conventos de mulheres onde as religiosas encontravam as mesmas facilidades para instruir-se. Repara na nossa profissão, em que as mulheres não são recém-vindas. Havia professoras na escola de Salerno; Luísa de Borgonha, médica de Maria de Médicis, a mulher de Henrique IV, escreveu um livro, sem valor, sobre obstetrícia. Margarida la Marche foi parteira-chefe no Hôtel-Dieu em 1677; madame La Chapelle e madame Boivin escrevinharam intermináveis livros sobre as doenças das mulheres, montão de coisas sem valor. Durante os séculos xvII e xvIIi houve abundância de mulheres professoras nas famosas Universidades de Itália, Bolonha, Pavia, Ferrara, Nápoles. Nunca nenhuma fez coisa alguma pelo progresso da ciência que cultivava; e foi precisamente por a obstetrícia e a ginecologia terem sido abandonadas às mãos das mulheres que estes dois ramos da nossa profissão estiveram durante tanto tempo desesperadamente imóveis. Só começaram a avançar quando os homens tomaram conta deles. Hoje mesmo nenhuma mulher, quando a sua vida ou a de um filho está em perigo, se fiará numa médica.

«Vê agora a música. Todas as damas da Renascença tocavam luth e mais tarde clavicórdio e harpa. Durante um século todas as raparigas da melhor sociedade estudaram piano; até hoje, não conheço nenhuma composição de valor de qualquer mulher; não sei de nenhuma que possa executar a meu gosto o Adagio sustenuto, op. 106, de Beethoven. Pode dizer-se que não há jovem que não se dedique à pintura; e, que eu saiba, não há uma tela de verdadeiro merecimento assinada por uma mulher, exceptuando talvez Rosa Bonheur, que, para pintar, tinha de fazer a barba e vestir-se de homem.

«Um dos maiores poetas dos tempos antigos foi uma mulher. Da coroa de rosas que cingia aquela fronte sedutora apenas restam algumas pétalas fragrantes de Primavera. Que imortal alegria, e que mortal tristeza, tem para os nossos ouvidos o eco desse canto de sereia, vindo das margens longínquas da Hélade! Bela Safo! Tornarei a ouvir ainda a tua voz? Talvez se ouça ainda nalgum fragmento de antologia, guardado sob a lava de Herculano!

- Não quero ouvir mais falar da tua Safo! - replicou-me Norstrom, mal humorado. - O que sei dela e das suas admiradoras já é de sobra. Não me fales mais de mulheres. Bebeste mais do que devias e tens dito uma série de disparates. Vamo-nos!

Ao descermos o boulevard, o meu amigo quis cerveja e sentámo-nos na terrasse dum café.

- Bonsoir, chéri - disse ao meu amigo uma dama que estava na mesa vizinha. - Não me pagas uma cerveja? Estou sem jantar.

Norstrom, com voz irritada, disse-lhe que o deixasse em paz.

- Boa noite, Cloé - disse eu. - Como vai Flopette?

- Passeia nas ruas afastadas; só depois da meia-noite serve para os boulevards.

Enquanto assim falava, apareceu Flopette, sentando-se junto da colega.

- Tornaste a beber, Flopette? - perguntei-lhe. - Decididamente queres ir parar ao Inferno.

- Sim - respondeu com voz rouca. - Lá não se pode estar pior do que aqui.

- Não és difícil nas tuas relações - resmungou Norstrom, deitando sobre as duas meretrizes um olhar horrorizado.

- Tenho tido relações piores do que estas - disse-lhe. - Aliás, sou seu médico. Ambas são sifilíticas e com a ajuda do álcool acabarão em Saint-Lazare ou na valeta, não tarda muito. Ao menos não se querem fazer passar pelo que não são. E não esqueças que um homem as conduziu a este caminho e que outro as espera em frente, ao canto da rua, para receber delas o dinheiro que nós lhes damos. Não são tão desprezíveis como podes julgar estas prostitutas; continuam sendo mulheres, com todos os defeitos e algumas das suas virtudes, que resistem à sua degradação. Ainda que pareça estranho são capazes de amar, no sentido mais elevado da palavra, e não podes imaginar coisa mais pungente. Conheci uma meretriz que se enamorou de mim e tornou-se tímida e receosa como uma donzela; corava a ponto de notar-se com toda a pintura que usava. Até esta repugnante criatura que está na mesa ao lado podia ter sido uma mulher simpática, se a sorte a tivesse ajudado. Deixa-me contar-te a sua história.

- Recordas-te - disse-lhe, enquanto descíamos lentamente o boulevard, de braço dado -, recordas-te da escola de raparigas de Passy, dirigida pelas Irmãs de Santa Teresa, onde me levaste o ano passado para ver uma pequenita sueca que morreu de tifo? Pouco tempo depois houve ali um novo caso que eu tratei, uma linda rapariguita francesa de uns quinze anos. Uma noite, quando saía do colégio, acercou-se-me, da maneira costumada, uma mulher que passeava dum lado para o outro no passeio fronteiro. Como eu lhe dissesse com maus modos que me deixasse em paz, suplicou-me com voz humilde que a ouvisse. Tinha esperado a minha saída durante uma semana inteira e nunca tivera coragem bastante para me falar, por ser ainda de dia. Chamava-me Monsieur le Docteur, e perguntou-me em voz trémula como estava a pequenita que tinha o tifo e se estava em perigo.

- Tenho de a ver antes que morra - disse soluçando e com as lágrimas a cair pelas faces pintadas -, tenho que a ver; sou mãe dela.

As Irmãs não sabiam de nada; a criança estava ali desde os três anos e a importância do internato recebiam-na dum Banco. Ela própria não tornara a ver a filha, a não ser de fugida, postada ao canto da rua, quando as educandas saíam a passeio, às quintas-feiras.

Disse-lhe que estava muito preocupado com o estado da doente e que a avisaria se ela piorasse. Não quis dar-me a morada e suplicou-me que consentisse que ela me esperasse na rua todas as noites para saber notícias. Durante uma semana ali a encontrei, tremendo de ansiedade. Tive de dizer-lhe que a criança estava cada vez pior; não me era possível fazer com que aquela pobre meretriz visse a filha moribunda; apenas pude prometer-lhe que a avisaria quando o fim se aproximasse, consentindo ela em dizer-me onde vivia. Na noite seguinte fui procurá-la a casa, numa rua mal afamada, por detrás da Ópera-Cómica. O cocheiro sorriu-se e propôs-me ir buscar-me passada uma hora. Disse-lhe que me bastavam quinze minutos. Trocadas algumas palavras com a dona do estabelecimento, levou-me esta à presença duma dezena de mulheres, seminuas, com umas túnicas de musselina verde, amarela ou encarnada. Disse-me que escolhesse. Respondi-lhe que já havia escolhido e que queria Flopette. A patroa mostrou-se desolada. Mademoiselle Flopette não tinha ainda descido; desde algum tempo que descuidava muito o seu trabalho, ainda estava a arranjar-se no quarto.

Eram vinte francos pagos adiantados e uma gorjeta para Flopette, à minha discrição, se ficasse satisfeito com ela, como com certeza ficaria. Era uma rapariga encantadora, para tudo, e muito divertida. Queria que levassem uma garrafa de champanhe ao quarto?

Flopette estava sentada diante do espelho, muito ocupada a besuntar-se com cosméticos. Levantou-se de repente, tomou um xale para esconder o horroroso uniforme que a deixava quase nua; e voltou para mim o rosto ansioso de clown, pintada nas faces, com um olho negro e outro vermelho das lágrimas.

- Não, ainda não morreu, mas está muito doente. A monja que a trata está extenuada, e eu disse-lhe que levaria esta noite uma das minhas enfermeiras para a substituir. Limpe essa horrível pintura da cara, alise os cabelos com azeite, vaselina ou o que queira; tire esse horrível vestido de musselina e ponha o uniforme que está neste embrulho. Emprestou-mo uma das minhas enfermeiras e creio que lhe servirá porque as estaturas são idênticas. Dentro de meia hora virei buscá-la.

Com os olhos fixos e sem dizer palavra, viu-me descer a escada.

- Já? - disse a patroa, muito surpreendida ao ver-me.

Disse-lhe que desejava que mademoiselle Flopette passasse a noite comigo e que voltaria a buscá-la. Meia hora depois, quando regressei, Flopette apareceu-me com a capa de enfermeira, rodeada de todas as mulheres com seu uniforme de musselina, quase inexistente.

- Que sorte tiveste, velhinha! - clamavam as outras em coro, rindo descaradamente; levarem-te ao baile de máscaras no último dia de Carnaval!... Estás muito elegante e com um ar respeitável; se ao menos este senhor nos quisesse levar a todas!

- Divirtam-se, filhos - disse a patroa, sorrindo, acompanhando Flopette ao carro, que eu deixara à espera. - São cinquenta francos, pagos adiantadamente.

Pouco havia que fazer. A pequenita extinguia-se rapidamente, estava sem conhecimento e era evidente que o fim se aproximava. A mãe esteve toda a noite sentada junto da cama, mirando, por entre as lágrimas, a filha moribunda.

- Dê-lhe um último beijo - disse-lhe, quando a agonia começou. - Já está inconsciente.

Inclinou-se sobre a criança, mas recuou bruscamente.

- Não me atrevo a beijá-la - exclamou soluçando. - Sou toda podridão.

A primeira vez que a tornei a ver estava a cair de bêbeda. Na semana seguinte atirou-se ao Sena. Retiraram-na com vida. Tentei fazê-la admitir em S. Lázaro, mas não havia uma cama disponível. Um mês depois bebeu um frasco de láudano; estava já meio morta quando eu cheguei; não posso perdoar a mim mesmo tê-la salvo. Tinha na mão crispada um sapatito de criança e nele um caracol de cabelo.

Começou a entregar-se ao álcool, veneno de resultados tão seguros como qualquer outro, mas, desgraçadamente, lento. Em todo o caso, não durará muito e acabará mal.

Detivemo-nos em frente da casa de Norstrom, na Rua Pigalle.

- Boa noite! - disse o meu amigo. - Obrigado por esta agradável noite.

- Igualmente - respondi.

 

                      O CONDUTOR DE MORTOS

(Der Leichenbegleiter)

DA viagem que fiz naquele Verão à Suécia parece-me que quanto menos fale melhor.

Norstrom, o plácido compilador de quase todas as minhas aventuras juvenis, dizia que era a pior história que eu lhe havia contado. Hoje só a mim pode prejudicar, e por isso bem a posso inserir nestas páginas.

O professor Bruzellius, então o mais célebre médico da Suécia, pediu-me que fosse a San Remo para acompanhar à Suécia um dos seus doentes, mancebo de dezoito anos e que havia passado o Inverno num estado avançado de tuberculose. Acabava de ter várias hemoptises. Achava-se em estado tão grave que só aceitei acompanhá-lo com a condição de ir também um membro da família, ou, ao menos, uma boa enfermeira sueca. Havia que encarar a possibilidade de o doente falecer no caminho. Quatro dias mais tarde a mãe chegava a San Remo. Devíamos interromper a viagem em Basileia e em Heidelberga, e tomar o vapor sueco de Lubeque a Estocolmo. Chegámos a Basileia à noite, depois de uma viagem angustiosa. Durante a noite a mãe teve uma crise cardíaca, que esteve para levá-la. O especialista, a quem chamei pela manhã, esteve de acordo comigo em que aquela senhora não podia viajar antes de algumas semanas. Eu tinha de escolher entre deixar morrer o rapaz em Basileia ou continuar a viagem sozinho com ele. Como todos os que vão morrer, estava ansioso por voltar à pátria. Com razão ou sem ela, resolvi prosseguir a viagem com ele para a Suécia.

No dia seguinte, após a nossa chegada a um hospital de Heidelberga, teve uma nova hemoptise e houve que abandonar toda a esperança de prosseguir a viagem. Disse-lhe que tínhamos de esperar a mãe durante alguns dias. Mostrou grande contrariedade em adiar a viagem por um dia que fosse. À noite pôs-se a estudar ansiosamente o horário dos comboios. Quando, pela meia-noite, fui vê-lo, dormia sossegadamente. Pela manhã encontrei-o morto na cama, sem dúvida em consequência duma hemorragia interna. Telegrafei ao meu colega de Basileia para comunicar à mãe esta notícia e me transmitir as suas instruções. O professor telegrafou-me, dizendo-me que o estado da mãe era tão grave que não se atrevia a dar-lhe a notícia. Convencido de que ela desejava que seu filho fosse enterrado na Suécia, pus-me em comunicação com uma casa fúnebre para as formalidades necessárias. Informaram-me de que, segundo a lei, o cadáver tinha de ser embalsamado; preço: dois mil marcos. Sabia que a família não era rica, e decidi embalsamá-lo eu próprio. Não havia tempo a perder; estávamos em Julho e o calor era extraordinário. Ajudado por um empregado do Instituto Anatómico, fiz, durante a noite, um embalsamamento sumário com uma despesa de uns duzentos marcos. Era o primeiro que fazia em minha vida, e devo dizer que não foi um êxito, bem longe disso. O caixão de chumbo foi soldado na minha presença e o caixão interior, de carvalho, foi encerrado numa caixa ordinária de embalagem, segundo o regulamento do caminho de ferro. O resto dizia respeito à empresa, que se encarregara de transportar o corpo por caminho de ferro até Lubeque e dali, por mar, até Estocolmo. O dinheiro que havia recebido da mãe para a viagem mal bastou para pagar a conta do hotel. Em vão protestei contra o preço exorbitante que me reclamavam pela cama e o tapete do quarto onde o mancebo morrera. Quando saldei a conta, restava-me à justa o necessário para a minha viagem até Paris. Não tinha ainda saído do hotel desde a minha chegada e tudo o que havia visto de Heidelberga era o jardim do Hotel da Europa, debaixo das janelas. Pensei que podia ir ao menos deitar uma vista de olhos às famosas ruínas do velho castelo, antes de deixar Heidelberga, onde esperava nunca mais voltar. Quando estava debruçado sobre o parapeito do terraço do castelo, dominando o vale do Neckar, a meus pés, um cão precipitou-se para mim tão depressa quanto lho permitiam as pernitas torcidas e começou a lamber-me a cara. Seus olhos maliciosos haviam descoberto o meu segredo à primeira vista. O meu segredo! Toda a vida desejara possuir um cãozito Waldmann, como chamam a esses cães no país de origem. Apesar de estar quase sem dinheiro, comprei Waldmann, sem hesitar, por cinquenta marcos e voltámos triunfantes ao hotel; Waldmann a trotar atrás de mim, livre e convencido de que o seu dono era eu e mais ninguém! No dia seguinte houve mais um suplemento a propósito de não sei quê concernente ao tapete do meu quarto. Esgotou-se-me a paciência; já tinha pago oitocentos marcos em tapetes no hotel. Duas horas mais tarde mandei de presente a um velho sapateiro, que vira a trabalhar à porta duma pobre casa, o tapete do quarto do moço falecido. O director do hotel ficou furioso, mas o sapateiro teve o tapete. Como a minha missão em Heidelberga havia terminado, decidi tomar o comboio para Paris. Durante a noite mudei de parecer e resolvi ir à Suécia. Já havia tomado as minhas disposições para uma ausência de quinze dias, e Norstrom, em Paris, devia ocupar-se dos meus doentes; telefonara a meu irmão, dizendo-lhe que ia passar quarenta e oito horas com ele na nossa velha casa, e, certamente, não teria nunca uma ocasião semelhante para passar umas férias na Suécia. Só pensava em sair do hotel. Como já era tarde para tomar o comboio de passageiros, decidi tomar o de mercadorias da noite - o mesmo que levava o cadáver do jovem para Lubeque - e continuar no mesmo barco a viagem para Estocolmo. Quando me sentava para cear, no bufete da estação, disse-me o criado que os cães estavam verboten (proibidos) ali. Meti-lhe na mão cinco marcos e Waldmann, debaixo da mesa, ia começar a comer, quando uma voz de estentor gritou da porta:

- Der Leichenbegleiter!

Todos levantaram os olhos dos pratos, olhando-se uns aos outros, mas ninguém se mexeu.

- Der Leichenbegleiter!

O homem fechou a porta e voltou daí a pouco com outro homem a quem reconheci como o empregado da agência funerária. O proprietário da voz de estentor chegou-se a mim e gritou-me ao nariz: Der Leichenbegleiter! Todos me olharam com atenção. Respondi-lhe que me deixasse em paz, que queria cear. Não; tinha de ir naquele instante ao chefe da estação, que queria falar-me dum assunto urgente. Um gigante, com bigodes hirsutos como um porco-espinho e com óculos com armadura de ouro, estendeu-me um maço de papéis e gritou-me ao ouvido qualquer coisa a respeito do fourgon, que tinha de ser selado e no qual eu tinha de ocupar o meu posto imediatamente. Disse-lhe, no meu melhor alemão, que já tinha reservado o meu lugar numa carruagem de segunda classe. Respondeu-me que isso era verboten e que tinha de encerrar-me sem tardança no fourgon onde ia o ataúde.

- Que diabo de cantiga é essa?

- O senhor não é o Leichenbegleiter? Não sabe que na Alemanha é verboten um cadáver viajar sem o seu Leichenbegleiter e que têm de ir encerrados juntos?

Mostrei-lhe o meu bilhete de segunda classe para Lubeque e disse-lhe que era um viajante independente, que ia passar umas férias à Suécia, e que nada tinha que ver com o ataúde.

- É ou não é der Leichenbegleiter? - gritou furioso.

- Claro que não. Estou disposto a fazer seja o que for, mas recuso-me a ser um Leichenbegleiter; não gosto dessa palavra.

O chefe da estação considerou, perplexo, a papelada e declarou que, se dentro de cinco minutos não aparecesse o Leichenbegleiter, o fourgon com o ataúde seria desviado para uma das vias da garage e ficaria em Heidelberga. Enquanto ele falava, um corcunda com olhos esquadrinhadores, o rosto marcado de bexigas, precipitou-se para o chefe da estação com as mãos cheias de documentos.

- Ich bin der Leichenbegleiter - disse, com incontestável dignidade.

Pouco me faltou para o abraçar. Tive sempre uma secreta simpatia pelos corcundas. Disse-lhe que me alegrava muito em conhecê-lo, que ia para Lubeque no mesmo comboio que ele e tomaria o mesmo barco para Estocolmo. Tive de agarrar-me à mesa do chefe para não cair quando ele declarou que não ia a Estocolmo, mas a S. Petersburgo com o general russo e dali a Nijni-Novgorod.

O chefe da estação ergueu os olhos daquele montão de documentos e eriçaram-se-lhe os bigodes de porco-espinho.

- Potzdonnerwetter! Há dois corpos que vão para Lubeque neste comboio e só tenho um ataúde no fourgon; não se podem meter dois cadáveres no mesmo caixão, é verboten. Onde está o outro ataúde?

O corcunda explicou que naquele momento estavam a tirar o caixão do general do carro fúnebre para o fourgon. Que tudo era culpa do carpinteiro, que só terminara o segundo caixote de embalagem à última hora. Quem poderia imaginar que ele teria de fornecer dois caixotes daquele tamanho num só dia!

O general russo! Lembrou-me bruscamente ter ouvido dizer que um velho general russo morrera de apoplexia num hotel em frente do meu e no mesmo dia que o jovem que eu acompanhava. Recordei também ter visto da minha janela um ancião de aspecto feroz e com uma grande barba numa cadeira de rodas, no jardim do hotel. O porteiro dissera-me que era um famoso general russo, um herói da guerra da Crimeia. Nunca vira um homem de aspecto mais terrível.

Ao passo que o chefe da estação voltava a examinar a sua complicada papelada, chamei de lado o corcunda, dei-lhe umas pancadinhas carinhosas no ombro e ofereci-lhe cinquenta marcos de contado e outros cinquenta que eu esperava me emprestasse o cônsul sueco em Lubeque, se ele tomase a responsabilidade de ser Leichenbegleiter do caixão do jovem, ao mesmo tempo que do russo. Aceitou imediatamente a minha proposta. O chefe da estação disse que era um caso sem precedentes, que atacava um ponto delicado da lei, que estava certo de que era verboten que dois cadáveres viajassem com um só Leichenbegleiter, que tinha de consultar o Oeberliche Eisembahn Amt Direktion de Berlim e que seria necessário esperar pelo menos uma semana pela resposta. Waldmann salvou a situação. Havia já notado por várias vezes, durante a nossa conversa, por detrás das lunetas de oiro do chefe da estação, um olhar carinhoso para o cãozito, e, além disso, havia estendido já a manápula para acariciar as sedosas orelhas de Waldmann. Tentei um último e desesperado esforço para o enternecer. Sem dizer palavra pus-lhe Waldmann nos joelhos. À medida que o cãozito lhe lambia a cara e mordiscava os bigodes de porco-espinho, os seus duros traços foram-se abrandando gradualmente num sorriso de bonomia perante a nossa atrapalhação. Cinco minutos depois o corcunda havia assinado uma dúzia de documentos, na qualidade de Leichenbegleiter dos dois ataúdes, e eu, com Waldmann e a minha maleta, fui empurrado para um compartimento de segunda classe, quando o comboio já se punha em marcha. Waldmann começou a brincar com a gorda dama que tinha ao lado. Esta olhou-me severamente e disse que estava verboten levar um cão numa carruagem de segunda classe, e perguntou-me se ao menos estava stubenrein (bem educado). Sem dúvida, era educadíssimo, sempre o tinha sido. Waldmann voltou a sua atenção para o cesto que a senhora obesa tinha nos joelhos, cheirou-o avidamente e desatou a ladrar furiosamente. Ainda ladrava quando o comboio parou na estação seguinte.

A dama chamou o revisor e mostrou-lhe o cão. O empregado declarou que estava verboten viajar com um cão sem açaime. Em vão abri a boca do Waldmann para mostrar ao revisor que ele mal tinha ainda dentes, em vão lhe dei também a última moeda de cinco marcos; era preciso conduzir Waldmann imediatamente ao compartimento dos cães. Sedento de vingança, indiquei o cesto que a dama obesa tinha no regaço e perguntei ao revisor se não estava verboten viajar com um gato sem bilhete? Sim, estava verboten. Dama e revisor puseram-se a discutir enquanto eu saltava do comboio. A instalação de viagem para os cães era então uma coisa vergonhosa, um buraco escuro precisamente por cima das rodas, saturado das emanações da locomotiva; como ia eu deixar ali Waldmann? Precipitei-me para o fourgon das bagagens e supliquei ao guarda que se encarregasse do cãozito; disse-me que era verboten. As portas corrediças do fourgon vizinho abriram-se com precaução, e apenas o suficiente para deixar passar a cabeça do Leichenbegleiter, com um grande cachimbo na boca. Com a agilidade dum gato, trepei ao fourgon com Waldmann e a maleta. Cinquenta marcos pagos à chegada se ele escondesse Waldmann no vagon até Lubeque. Antes que ele pudesse responder-me, as portas cerraram-se por fora, ouviu-se o silvo da locomotiva e o comboio pôs-se em marcha. O vasto fourgon estava vazio, salvo os dois grandes caixotes que continham os ataúdes. O calor era asfixiante, mas havia sítio suficiente para estender as pernas. O cãozito não tardou em adormecer em cima do meu casaco; o Leichenbegleiter tirou uma garrafa de cerveja quente do cesto das provisões, acendemos os cachimbos e sentámo-nos no soalho para analisar a situação. Estávamos tranquilos; ninguém me vira entrar dum salto com o cão, e o meu companheiro afiançou-me que nunca um revisor ali punha os pés. Quando ao fim duma hora o comboio diminuiu a marcha para parar, declarei ao Leichenbegleiter que só à força dali me podiam tirar; que ali continuaria a viagem até Lubeque. Passávamos as horas em amena conversação, sustentada principalmente pelo Leichenbegleiter; eu falava o alemão bastante mal, mas compreendia-o bem. O meu novo amigo contou-me que havia feito muitas vezes aquela viagem; sabia até o nome de todas as estações em que parávamos, apesar de irmos encerrados naquela prisão e nada vermos do mundo exterior. Era Leichenbegleiter havia mais de dez anos; a profissão, agradável e confortável, permitia-lhe viajar e ver novos países, coisa de que muito gostava. Já havia estado seis vezes na Rússia; os Russos eram-lhe simpáticos, sempre queriam que os enterrassem no seu país. Muitos vinham a Heidelberga consultar os seus numerosos e célebres professores. Eram os melhores clientes. A mulher dele era Leichenwarcherin! Era raro que um embalsamamento de alguma importância se fizesse sem eles. Designando o segundo caixão, disse-me que se sentia vexado por nem ele nem a mulher terem sido chamados para o senhor sueco. Suspeitava de que era vítima de qualquer intriga; havia grande inveja entre eles e os colegas. Tudo fora rodeado dum certo mistério e nem sequer pudera descobrir quem fora o médico que praticara o embalsamamento. Nem todos tinham competência para isso. O embalsamamento era um trabalho delicado e complexo, e não se sabia o que podia acontecer em viagem, por um tempo tão quente. Perguntou-me se eu assistira a muitos embalsamamentos.

- A um apenas - retorqui, com um calafrio.

- Gostaria de lhe mostrar o general russo - disse o Leichenbegleiter, entusiasmado, indicando com o cachimbo o outro caixote. - Ficou maravilhosamente; o senhor não poderia acreditar que seja um cadáver, até tem os olhos abertos. Espanta que o chefe da estação fizesse tantas histórias por sua causa; é certo que é novo demais para um Leichenbegleiter, mas, tanto quanto parece, é pessoa suficientemente respeitável. Tem apenas necessidade de barbear-se e escovar-se; o fato está coberto de pêlos de cão; e, com certeza, não vai amanhã apresentar-se no Consulado da Suécia com essa barba; tenho a certeza de que a não faz há uma semana; mais parece um bandido do que um Leichenbegleiter. Que pena que eu não tenha trazido as minhas navalhas! Aqui mesmo o barbearia na próxima paragem.

Abri a maleta e disse-lhe que lhe agradeceria muito que me livrasse de tal maçada; nunca me barbeava, se tinha quem mo fizesse. Examinou as minhas navalhas com olhos de conhecedor e declarou-me que as navalhas suecas eram as melhores do Mundo, e que nunca empregava outras. Tinha a mão ligeira; havia barbeado centenas de pessoas e nunca ouvira uma queixa. Nunca em minha vida fiquei tão bem barbeado, e disse-lho, felicitando-o, quando o comboio se pôs de novo a caminho.

- Não há como viajar por países estrangeiros - disse eu, limpando o sabão da cara. - Todos os dias se aprende alguma coisa de novo e de interessante. Quanto mais conheço este país, maior conta me dou das diferenças fundamentais que existem entre os Alemães e os outros povos. Os Latinos e os Anglo-saxões têm forçosamente que sentar-se para que os barbeiem; na Alemanha, fazem-nos estender ao comprido. Questão de gostos; cada um tem a sua maneira de «matar pulgas».

- Questão de hábito - explicou. - Não se pode fazer sentar um cadáver. O senhor é o primeiro homem vivo que eu barbeio.

O meu companheiro estendeu um guardanapo limpo sobre um caixote e abriu a cesta do farnel. Chegou-me às narinas um agradável cheiro de chouriço, queijo e de sauerkraut. Waldmann despertou instantaneamente; os dois mirámos o festim com olhos famintos. Fiquei contentíssimo quando me convidou a cear com ele; até o sauerkraut deixou de me parecer horrível ao paladar. Conquistou-me o coração oferecendo a Waldmann uma grossa fatia de blutwurst. O efeito foi fulminante e durou até Lubeque. Depois da segunda garrafa de Moselle, o meu amigo e eu não tínhamos já segredos um para o outro. Eu guardava apenas comigo ciosamente um segredo: que era médico. A minha experiência do Mundo tinha-me ensinado que a menor alusão a uma diferença de classes entre o meu hospedeiro e eu me teria privado da ocasião única de poder ver a vida pelo prisma dum Leichenbegleiter. O pouco que sei da psicologia devo-o a uma certa facilidade inata de me adaptar ao nível social do meu interlocutor. Quando ceio com um duque, sinto-me absolutamente à vontade e em tudo seu igual. Se com um Leichenbegleiter, torno-me tanto quanto possível outro que tal.

Na verdade, quando abrimos a terceira garrafa de Moselle, pouco faltava para me tornar um Leichenbegleiter.

- Ri-te um bocado, Fritz - disse o meu companheiro, piscando-me com os olhos a luzir. - Não estejas tão sorumbático. Sei que estás sem vintém e que alguma coisa te saiu mal. Paciência, mais um copo e falemos seriamente. Não é em vão que eu sou Leichenbegleiter há dez anos: sei com que classe de gente tenho de tratar. Com um pouco de sorte pode viver-se sem inteligência. Tenho a certeza de que nasceste com uma boa estrela, de contrário não estarias aqui sentado a meu lado. Esta é a ocasião para ti, a mais bela ocasião da tua vida. Leva o teu ataúde à Suécia, enquanto eu acompanho o meu à Rússia, e volta a Heidelberga no primeiro comboio. Faço-te meu sócio. Enquanto o professor Friederich viver, haverá trabalho para dois Leichenbegleiter, tão certo como eu chamar-me Zacarias Shweinfuss! A Suécia para ti não serve. Ali não há professores célebres; Heidelberga está cheia deles, e Heidelberga é que te convém.

Agradeci efusivamente ao meu amigo e disse-lhe que de manhã lhe daria uma resposta definitiva, quando o meu cérebro estivesse mais lúcido. Alguns minutos mais tarde dormíamos, deitados um ao lado do outro, no soalho do Leichenwagon (vagão fúnebre). Passei uma noite excelente; Waldmann um pouco pior. Quando o comboio chegou a Lubeque era dia claro. Um empregado do Consulado da Suécia estava na gare para vigiar o transporte do ataúde para bordo do vapor sueco que o levaria a Estocolmo. Depois de um cordial Aufwiedersehen (até à vista) ao Leichenbegleiter, dirigi-me de carro ao Consulado. Mal o cônsul avistou o cãozito, preveniu-me de que estava proibida a importação de cães, porque houvera ultimamente alguns casos de hidrofobia na Alemanha do Norte. Disse-me que poderia tentar convencer o capitão do navio, mas que estava seguro de que Waldmann não seria admitido a bordo. Encontrei o capitão de muito mau humor, como sucede sempre a todos os marinheiros quando levam no carregamento um ataúde. Todas as minhas súplicas foram vãs. Animado com o êxito que tivera em Heidelberga com o chefe da estação, decidi-me a tentá-lo aqui também com o cãozito. Em vão Waldmann lhe lambeu toda a cara. Então procurei enternecê-lo com meu irmão. Sem nenhuma dúvida, conhecia muito bem o comandante Munthe; haviam navegado juntos no Vanadis como aspirantes, eram grandes amigos. Seria tão cruel que fosse capaz de abandonar entre gente completamente estranha aquele cãozito tão querido de meu irmão? Não, não podia ser tão cruel. Cinco minutos mais tarde Waldmann estava encerrado na minha cabina para sair clandestinamente, sob a minha inteira responsabilidade, ao chegarmos a Estocolmo.

Eu adoro o mar, o barco era confortável, ceei com o capitão e toda a gente me testemunhava as maiores atenções. A criada de quarto mostrou-se mal humorada quando de manhã veio arrumar a minha cabina; mas logo se tornou nossa aliada quando o culpado se pôs a lamber-lhe o rosto; nunca havia visto um cãozito mais sedutor. Quando Waldmann apareceu fraudulentamente na ponte, todos os marinheiros se puseram a brincar com ele, e o capitão voltou-se para o outro lado para não ver. Era já muito tarde quando naquela noite chegámos a Estocolmo, e eu saltei em terra, da proa do navio, com Waldmann ao colo. De manhã procurei o professor Bruzellius, que me mostrou um telegrama de Basileia, dizendo que a senhora sueca estava livre de perigo e que o enterro do filho se adiaria até à chegada dela, uns quinze dias mais tarde. O professor esperava que eu estivesse na Suécia, pois a mãe certamente desejaria ouvir da minha boca pormenores dos últimos momentos do filho; e era natural, também, que eu assistisse ao funeral. Disse-lhe que ia visitar meu irmão antes de voltar a Paris, onde tinha grande pressa de regressar, por causa dos meus doentes.

Nunca havia perdoado a meu irmão ter-me atirado para cima com a terrível Mamsell Ágata, fatal herança nossa, de que mais tarde falarei. Por causa disso, havia-lhe escrito uma carta furibunda; mas, por fortuna, meu irmão parecia ter esquecido o caso; disse-me que tinha grande alegria em tornar a ver-me, e que tanto ele como sua mulher esperavam que eu me demorasse pelo menos uns quinze dias na nossa velha casa.

Dois dias depois dizia-me que muito se admirava de que um médico, tão sobrecarregado de trabalho como eu, pudesse deixar por tanto tempo os seus doentes, perguntando-me quando pensava partir. Minha cunhada tornara-se de gelo. Com as pessoas que não gostam de cães não há mais nada a fazer do que lastimá-las, deixá-las, partir com a nossa mochila e o nosso cão. Nada melhor para este do que acampar ao ar livre e dormir junto dos amigos pinheiros, sobre um tapete de relva, tão macia como um tapete de Smyrna. Minha cunhada estava com a enxaqueca e não saiu do quarto para o pequeno almoço na manhã da minha partida. Quis ir fazer-lhe as minhas despedidas; mas meu irmão aconselhou-me que o não fizesse. Não insisti, quando ele me contou que a criada acabava de encontrar debaixo da minha cama o melhor chapéu da mulher, as suas pantufas bordadas, a boa de penas, dois volumes da Enciclopédia Britannica em mil pedaços, os restos dum coelho e o seu gatito querido, que, depois de mil buscas, encontraram com a cabeça quase arrancada.

Quanto ao tapete de Smyrna da sala, aos maciços de flores do jardim e aos seus patitos do lago!... Aterrado, consultei o relógio e disse a meu irmão que gostava de chegar com bastante tempo à estação.

No momento de partirmos meu irmão gritou para o velho cocheiro de meu pai:

- Pelo amor de Deus, faze todo o possível para que o doutor não perca o comboio!

Quinze dias depois estava de novo em Estocolmo. O professor Bruzellius comunicou-me que o enterro estava marcado para o dia seguinte e que, naturalmente, era preciso que eu assistisse. Com grande terror meu, acrescentou que a pobre mãe insistia em ver o filho uma última vez; e era preciso abrir o ataúde no dia seguinte, muito cedo. Evidentemente que eu não teria nunca embalsamado o cadáver se semelhante eventualidade me tivesse passado pela cabeça. Sabia que havia procedido com a melhor intenção, mas que o resultado fora mau e que, provavelmente, a abertura do ataúde revelaria um espectáculo terrível.

A minha primeira ideia foi escapar-me, tomando o comboio da noite para Paris. A segunda foi ficar onde estava e tentar a sorte. Não havia tempo a perder. Com a poderosa protecção do Dr. Bruzellius consegui, com grande custo, que me fosse concedida autorização para abrir o caixão, com o fim de fazer uma desinfecção sumária dos restos, se houvesse necessidade disso, como eu estava convencido. Pouco depois da meia-noite baixei à cripta da igreja acompanhado do guarda do cemitério e dum operário que havia de abrir os caixões. Assim que a tampa do caixão de chumbo foi dessoldada, os dois homens retiraram-se respeitosamente diante da morte. Tomei a lanterna das mãos do guarda e descobri o rosto. A lanterna caiu-me das mãos, e eu cambaleei como ferido por mão invisível.

Tenho-me maravilhado muitas vezes da minha presença de espírito nessa noite; devia ter então nervos de aço.

- Tudo está bem - disse eu, cobrindo à pressa o rosto do morto. - Torne a soldar a tampa, que não é preciso fazer nenhuma desinfecção. O corpo está em perfeito estado de conservação. Dirigi-me muito cedo a casa do professor Bruzellius. Disse-lhe que o espectáculo que eu vira naquela noite atormentaria a pobre mãe toda a sua vida; que a todo o custo era preciso impedir que se abrisse o caixão.

Assisti ao enterro. Nunca mais quis assistir a nenhum outro.

O caixão foi levado à sepultura aos ombros de seis camaradas do jovem. O padre, num discurso emocionante, disse que Deus, em Sua insondável sabedoria, havia querido que aquela mocidade tão cheia de promessas fosse ceifada pela cruel morte. «Era ao menos uma consolação, para aqueles que choravam junto da sepultura tão cedo aberta, que ele tivesse voltado para repousar junto dos seus, na terra onde havia nascido. Saberiam, sequer, onde levar as flores da saudade e rezar».

Um coro de estudantes de Upsala cantou o tradicional integer vitae scelerisque purus. Desde esse dia detesto essa ode magnífica de Horácio.

Carinhosamente amparada, a mãe avançou para o túmulo aberto e depôs sobre o caixão um ramo de muguets.

- Era a sua flor favorita - disse entre soluços. Um após outro, aqueles que o choravam aproximaram-se da tumba com seus ramos de flores, olhando-a com os olhos cheios de lágrimas no último adeus. O coro cantou o velho responso do ritual: Requiescat in pace (Repousa em paz); o combate acabou. Os coveiros começaram a encher a cova de terra e terminou a cerimónia. Quando todos haviam partido, olhei por minha vez a cova meio aberta.

- Sim, repousa em paz, rude e velho guerreiro; terminou o combate! Não me persigas mais com teus olhos abertos, ou endoideço! Porque me olhaste com expressão tão horrível, quando descobri o teu rosto esta noite na capela? Pensas que me alegrei mais em ver-te do que tu em olhar-me? Ter-me-ias tomado por um ladrão de sepulturas, que houvesse forçado o teu ataúde para roubar esse santo de oiro que tens sobre o peito? Julgas que fui eu que te trouxe para aqui? Não, não fui eu. Tanto quanto me parece, foi o próprio Mefisto que, na forma daquele corcunda bêbedo, aqui te conduziu. Somente Satanás, com seu eterno escárnio, seria capaz de montar a sinistra farsa que acaba de se representar! Pareceu-me ouvi-lo rir, com seu diabólico riso, através dos cânticos sagrados; Deus me perdoe, mas eu próprio estive quase a rir-me quando desceram a esta cova o teu caixão. Mas que importa saber a quem pertence esta tumba? Tu não podes ler o nome na cruz de mármore; e que te importa o nome? Não podes ouvir a voz dos vivos por cima de ti; que te importa a língua que falam? Não repousas aqui entre estrangeiros, mas entre os teus semelhantes. O mesmo se passa com o jovem sueco que foi sepultado para o seu último sono no coração da Rússia, enquanto a fanfarra do teu velho regimento tocava «As armas», diante da tua sepultura.

O reino da morte não tem fronteiras. O túmulo não tem nacionalidade. Agora sois um só e mesmo povo, e em breve tereis o mesmo aspecto. Qualquer que seja o sítio onde vos deixem para o repouso eterno, todos tereis o mesmo destino: sereis esquecidos e reduzidos a pó, porque é essa a lei da vida. Repousa em paz; findou o combate!

 

                             MADAME REQUIN

PERTO da Avenida de Villiers vivia um médico estrangeiro, especialista, segundo compreendi, de ginecologia e obstetrícia. Era um indivíduo cínico, que me havia chamado duas vezes em consulta, menos para ser iluminado pelos meus conhecimentos superiores do que para descarregar uma parte das suas responsabilidades sobre os meus ombros.

Da última vez chamara-me para assistir à agonia duma jovem, morta de peritonite em condições bastante suspeitas, de tal modo que hesitei em pôr a minha assinatura ao lado da sua na certidão de óbito. Uma noite, ao regressar a casa, já tarde, encontrei à porta um fiacre que me esperava e um recado urgente seu pedindo-me que fosse imediatamente à sua clínica privada, na Rua Granet. Havia decidido não ter mais contactos com ele; mas o recado era tão urgente que me pareceu conveniente aproveitar o fiacre e saber do que se tratava. Fui introduzido por uma mulher obesa, com aspecto desagradável, que se apresentou como Madame Requin, parteira de 1.a classe, e me conduziu a um quarto do andar superior, o mesmo onde havia falecido a jovem de quem acabo de falar. Ensopados em sangue, toalhas, lençóis, cobertas, haviam sido atirados para todos os lados; o sangue gotejava debaixo da cama com um ruído sinistro. O médico agradeceu-me com efusão a minha vinda; estava num estado de extrema agitação. Disse-me que não havia tempo a perder; e nisso não se enganava, porque a mulher que jazia sem conhecimento no seu lit de travail parecia mais morta do que viva. Depois dum rápido exame, perguntei-lhe, encolerizado, por que razão não mandara chamar um cirurgião ou um parteiro, em meu lugar, pois sabia bem que nem eu nem ele estávamos indicados para um caso daqueles. A doente reanimou-se um pouco, depois de duas injecções de éter canforado. Vencida a primeira hesitação, decidi-me a subministrar-lhe um pouco de clorofórmio, enquanto me preparava para operar. Com a minha sorte habitual, tudo se passou bastante bem e, depois duma enérgica respiração artificial, a criança, meio asfixiada, voltou à vida, com grande surpresa nossa.

Já não restava nem algodão, nem pano, espécie nenhuma de pensos para deter a hemorragia. Felizmente descobrimos uma mala entreaberta, cheia de fina roupa interior de mulher, que rasgámos rapidamente para fazer com ela tampões.

- Nunca vi roupa branca mais bela - disse o meu colega, levantando nos dedos uma fina camisa de linon - e repare! - exclamou, mostrando-me uma coroa bordada a vermelho por cima da letra M. - Por vida minha, caro colega, estamos com gente da alta! Posso afiançar-lhe que é uma bela mulher, ainda que pouco o pareça agora; uma rapariga formosíssima; gostaria de entabular conhecimento com ela, se sair daqui com vida. Oh! Que lindo broche! - exclamou, ao apanhar um broche de diamantes, que evidentemente havia caído da mala quando a revolvemos. - Parece-me que isto poderá saldar a minha conta, se o caso tomar mau rumo. Nunca se sabe, com estas estrangeiras; pode dar-lhe na cabeça desaparecer tão misteriosamente como veio. Deus sabe donde!

- Ainda lá não chegámos - disse eu, arrancando-lhe o broche dos dedos ensanguentados e metendo-o no bolso. - A lei francesa faz cobrar a factura da agência fúnebre antes da do médico; ignoramos qual das duas será apresentada primeiro. Quanto à criança...

- Não se preocupe com isso - riu sarcàsticamente. - Temos aqui mais do que as necessárias para a substituir no pior dos casos. Madame Requin envia todos os meses uma meia-dúzia pelo comboio da estação de Orleães. Mas é necessário que a mãe não me escape; em duas semanas já assinei dois atestados de óbito nesta clínica.

A doente estava ainda meio adormecida quando dali saí, ao amanhecer; mas o pulso tinha-se reanimado e eu disse ao médico que, em minha opinião, estava salva. Eu próprio devia estar num estado bem lamentoso para aceitar a chávena de café que me ofereceu Madame Requin no seu sinistro salão, quando desci as escadas cambaleando.

- Ai! Que lindo broche - exclamara Madame Requin quando eu lho entregara para que o guardasse. - Julga que as pedras são verdadeiras? - perguntou-me, mirando-o à luz do gás.

Era um belíssimo broche de diamantes com uma coroa de rubis encimada pela letra M. O brilho das pedras era claro, mas o dos olhos da parteira era bastante turvo.

- Não - disse-lhe eu, para reparar a tolice que havia feito em lhe dar o broche. - Tenho a certeza de que é falso.

Madame Requin esperava que eu estivesse em erro. A dama não tivera tempo de pagar adiantadamente, como era da regra no estabelecimento, pois havia chegado à última hora, quase desmaiada; e não havia nome nas bagagens; apenas a etiqueta: Londres.

- Isso basta; não se preocupe, que lhe pagarão.

Madame Requin exprimiu-me o seu desejo de tornar a ver-me em breve, e eu saí daquela casa com um calafrio. Umas duas semanas depois recebi do meu colega uma carta dizendo-me que tudo se passara bem e que a dama havia partido para um destino desconhecido, mal se pudera ter de pé; todas as contas haviam sido pagas; e Madame Requin ficara depositária duma soma elevada, com o fim de colocar a criança em casa de alguma família respeitável. Devolvi-lhe a importante quantia que me enviara, com algumas palavras em que lhe dizia que não tornasse a mandar-me chamar quando estivesse na disposição de assassinar alguém. Esperava não ter mais ocasião de vê-lo, nem a Madame Requin.

Quanto ao médico, realizou-se a minha esperança. Mas da parteira falar-vos-ei de novo em seu devido tempo.

 

                                 O «GIGANTE»

COM o andar do tempo fui-me apercebendo cada vez mais de que a clientela de Norstrom diminuía rapidamente, e que não tardaria que se visse na necessidade de fechar a clínica. Até mesmo a numerosa clientela escandinava começou a emigrar da Rua Pigalle para a Avenida de Villiers. Em vão tentei deter a corrente; felizmente Norstrom jamais duvidou da minha lealdade e conservámo-nos amigos até ao fim. Deus sabe quão pouco lucrativa era aquela clientela escandinava! Durante todo o tempo em que fui médico em Paris foi para mim como que uma pedra ao pescoço, que poderia ter-me afogado, se não fosse ter conseguido uma sólida posição nas colónias inglesa e americana, e até entre os Franceses. Em todo o caso, roubava-me uma grande parte do meu tempo e pôs-me em toda a classe de apertos; acabou até por me levar à prisão. É uma história curiosa; muitas vezes a tenho contado aos meus amigos que escrevem romances policiais, como uma aplicação patente da lei das coincidências, o tão explorado cavalo de batalha dos nossos autores.

Além dos operários escandinavos de Pantin e de la Villette, uns mil, ao todo, tendo constantemente necessidade dum médico, havia a colónia dos artistas de Montmartre e de Montparnasse, sempre sem dinheiro, centenas de pintores, de escultores, de autores de obras-primas em prosa e em verso, ainda por escrever, sobreviventes exóticos da Vie de Bohème, de Henri Murger. Alguns dentre eles começavam já a ser conhecidos, tais como Edelfeld, Carl Larson, Zorn e Strindberg, mas a maior parte contentava-se com viver de esperanças. Gustavo Cederstrom, no seu elegante e hospitaleiro estúdio da Rue des Ternes, era o mesmo bom rapaz de sempre. Zorn era já uma estrela de primeira grandeza, como se havia previsto desde os seus começos; Josephson produzia obras-primas umas após outras, mas ninguém as comprava. Forsberg trabalhava heroicamente na sua gelada oficina, nos esboços para «A morte dum herói». Pelle Ekstrom, que pintava formosos poentes, vestido de farrapos, passava o dia assobiando para enganar a fome. O pequeno Skorberg, sempre de chapéu ao lado, colete branco e uma flor na lapela, as calças bem vincadas, era o árbitro das elegâncias na colónia dos pintores. Strindberg vivia em Passy e raras vezes se via entre os seus companheiros. Eu visitava-o amiúde, como amigo e como médico, e, se alguém podia escrever sobre a vida no lar daquele génio enfermo e até da sua vida espiritual naquela época, era eu.

O maior de todos em tamanho e o mais pequeno em fortuna era o meu amigo Gigante, como todos lhe chamávamos, com sua barba loira, ondulada, de Viking, e seus inocentes olhos azuis. Aparecia raras vezes no café de l’Hermitage, onde a maior parte dos seus camaradas passava as noites. Como ele conseguia alimentar aquele corpo de dois metros de estatura era para todos um mistério.

Vivia num enorme e glacial barracão, em Montparnasse, transformado em estúdio de escultor; ali trabalhava, cozinhava, lavava a camisa e sonhava os seus sonhos de glória futura. Do que necessitava era de espaço, para si próprio e para as suas esculturas, todas de proporções sobre-humanas e jamais acabadas, por falta de barro. Um dia apareceu-me na Avenida de Villiers para me pedir que fosse padrinho do seu casamento na igreja sueca; seguir-se-ia uma recepção para inaugurar o seu novo estado na sua nova casa. A eleita do seu coração era uma frágil sueca, que pintava miniaturas e não lhe chegava à cinta. Como é natural, aceitei com alegria. Terminada a cerimónia, o capelão sueco fez um breve e gracioso discurso dedicado aos novos esposos, sentados um ao lado do outro diante do altar. Lembrava-me a colossal estátua de Ramsés II, sentado no templo de Luxor, ao lado da sua pequena rainha. Uma hora depois batíamos à porta do seu estúdio, curiosos por ver o que nos esperava.

Com muitas precauções, fomos introduzidos pelo Gigante, através dum vestíbulo liliputiano de papel, até ao salão, onde nos convidou cordialmente a tomar um refresco e a sentarmo-nos à vez na única cadeira que ali havia. Seu amigo Skorberg - cujo retrato de tamanho natural figurou no Salon daquele ano, fácil de recordar porque era o corcunda mais pequeno que conheci em minha vida - propôs uma saúde ao noivo. Ao erguer o copo com um gesto largo e entusiasta, deitou abaixo o tabique de papel, e aos nossos olhos maravilhados apareceu o quarto com o leito nupcial, que mãos hábeis haviam construído com o caixote de embalagem dum grande Bechstein de concerto. Enquanto Skorberg terminava o brinde sem mais incidentes, o Gigante reconstruiu rapidamente o tabique com dois números do Figaro; depois levantou uma cortina e mostrou-nos, com um olhar malicioso dirigido à esposa, que se ruborizou, um outro quarto construído inteiramente com números do Petit Journal: era o quarto das crianças.

Fui sentar-me na cozinha de papel e compus uma poesia dedicada aos noivos, que foi cantada e constituiu o maior êxito literário da minha vida. Ao escrever estas linhas ainda me acodem à memória algumas dessas estrofes.

Deixámos a casa de papel uma hora depois, para nos reunirmos numa ceia na brasserie Montmartre. Como eu ainda tinha alguns doentes para visitar, era quase meia-noite quando me reuni à comitiva. No centro da sala principal estavam sentados os meus amigos, todos congestionados e cantando a plenos pulmões o hino sueco, num coro ensurdecedor, entremeado dos solos tonitruantes do Gigante e dos trémulos agudos do corcundita. Quando eu procurava abrir caminho através da sala repleta, uma voz gritou: «Fora, prussianos! Fora, prussianos!» Um copo de cerveja voou por cima da minha cabeça e atingiu o Gigante no rosto. Gotejando sangue, deu um pulo da cadeira e, agarrando pelo pescoço um desgraçado francês, atirou-o como uma bola de ténis por cima do balcão contra as pernas do proprietário, que desatou aos gritos: «A polícia! A polícia!»

Outro copo veio ter-me ao nariz e quebrou-me as lunetas; um outro atirou com Skorberg para debaixo da mesa.

- Rua! Rua! - gritava à nossa volta toda a cervejaria, empurrando-nos de todos os lados.

O Gigante, com uma cadeira em cada mão, malhava nos assaltantes como em trigo maduro, e o corcundita saiu debaixo da mesa, gritando e mordendo como um macaco enraivecido, até que outro copo o fez cair sem sentidos. Levantou-o o Gigante, bateu-lhe no ombro com ternura e, metendo-o debaixo do braço, cobriu do melhor modo que pôde a nossa inevitável retirada para a porta, onde fomos presos por meia-dúzia de polícias, que nos escoltaram até ao Comissariado da Rua de Douai. Depois de darmos os nossos nomes e moradas, meteram-nos num quarto com as janelas gradeadas. Estávamos no xelindró. Após duas horas de meditação, levaram-nos à presença do chefe, que, dirigindo-se-me com voz rude, me perguntou se eu era o dr. Munthe, da Avenida de Villiers. Respondi-lhe afirmativamente. Olhou-me o nariz inchado, com o dobro do volume, o fato rasgado e sujo de sangue, e disse-me que não tinha ar disso. Perguntou-me se eu não tinha nada a declarar, pois parecia o menos borracho daquele bando de alemães selvagens, e o único que falava o francês. Disse-lhe que éramos uma pacífica gente que celebrava a boda dum sueco e que tínhamos sido brutalmente atacados na cervejaria, certamente porque nos haviam tomado por alemães. À medida que prosseguia o interrogatório, a sua voz tornava-se menos severa e de vez em quando lançava uma olhadela admirativa ao Gigante, que tinha nos joelhos, como uma criança, o pequeno Skorberg meio desmaiado. Por fim, com uma galantaria toda francesa, disse-nos que seria realmente uma pena deixar que uma noiva esperasse uma noite inteira tão magnífico exemplar de marido e que nos ia pôr em liberdade provisória. Agradecemos-lhe efusivamente e levantámo-nos para partir. Mas, com profunda estupefacção minha, acrescentou: «Peço-lhe que fique. Tenho de lhe falar». Examinou novamente os seus papéis, consultou um registo que tinha sobre a mesa e disse com severidade:

- O senhor deu um nome falso, o que, previno-o, é um grave delito. Para lhe mostrar a minha boa vontade, dou-lhe ainda a oportunidade de retirar a declaração que fez à polícia. Como se chama?

Disse-lhe que era o dr. Munthe.

- Posso demonstrar-lhe que não - respondeu severamente. - Olhe para aqui - e designou-me o registo. - O dr. Munthe, da Avenida de Villiers, é cavaleiro da Legião de Honra; vejo bastantes manchas vermelhas no seu fato, mas não a roseta vermelha.

Disse-lhe que raras vezes a punha. Olhou a lapela vazia e declarou, rindo, que jamais ouvira dizer que existisse em França um homem que tivesse a roseta vermelha e não a usasse. Propus-lhe mandar chamar a porteira da minha casa para me identificar; respondeu-me que era inútil; tratava-se dum caso que tinha de ser esclarecido pelo próprio comissário de polícia na manhã seguinte. Tocou a campainha.

- Apalpem-no! - ordenou aos agentes.

Protestei indignadamente, dizendo-lhe que não tinha o direito de me mandar revistar. Respondeu que tinha não só o direito, mas até, segundo os regulamentos de polícia, o dever, e para minha própria segurança; a prisão regurgitava de toda a sorte de velhacos; não podia garantir-me que os objectos de valor que eu trouxesse comigo não fossem roubados. Disse-lhe que não tinha comigo nada de valor, a não ser uma pequena quantia, que lhe estendi.

- Revistem-no! - tornou a ordenar.

Naquela época eu era bastante vigoroso; tiveram de sujeitar-me dois agentes, enquanto um terceiro me revistava. Encontraram-me nos bolsos dois relógios de ouro de repetição, dois velhos relógios marca Breguet, e ainda outro de proveniência inglesa.

Não me disseram uma palavra e fui imediatamente encerrado numa cela pestilenta. Atirei-me sobre a enxerga, perguntando a mim próprio o que me iria ainda suceder. Evidentemente, a única coisa a fazer seria insistir para comunicar com a Legação da Suécia, mas resolvi esperar pela manhã seguinte. Abriu-se a porta, deixando passar um indivíduo de aspecto sinistro, com ar de apache, que à primeira vista me fez compreender a sabedoria do regulamento que me haviam aplicado ao revistar-me.

-Vamos, Charlot, não te vás abaixo! - gritou-me o recém-chegado. - Com que então, pescado? Não faças essa cara, homem, não há de quê. Se tens sorte, num ano retomas o trabalho. E, aqui entre nós, sorte não te falta, a prova é que surripiaste cinco relógios num só dia. Que trabalhinho! De se lhe tirar o chapéu! Não há como um inglês para tal esperteza!

Disse-lhe que não era inglês e que coleccionava relógios. Respondeu-me que também ele. Atirou-se para a outra enxerga, desejou-me boas-noites e doces sonhos, e um minuto depois já ressonava. Do outro lado do tabique, uma voz rouca, de mulher bêbeda, pôs-se a cantar. Cheio de cólera, gritou-lhe:

- Cala a boca, Fifine, ou corto-te as goelas!

A cantora calou-se instantâneamente e segredou-lhe:

- Afonso tenho uma coisa importante a dizer-te. Estás sozinho?

Respondeu-lhe que estava com um simpático e jovem amigo que queria saber que horas eram porque, desgraçadamente, se havia esquecido de dar corda aos cinco relógios que tinha no bolso.

Não tardou a adormecer de novo, e o cochicheio daquelas damas foi-se extinguindo a pouco e pouco e tudo ficou em silêncio, interrompido apenas pelo guarda, que de hora a hora vinha observar-nos pelo postigo. Quando davam as sete horas em St. Augustin, tiraram-me da cela e levaram-me à presença do comissário. Escutou atentamente o relato que lhe fiz da minha aventura, sem deixar de olhar-me com seu olhar inteligente e penetrante. Mas, quando lhe contei a minha mania pelos relógios de parede e de bolso, e que todo o dia havia querido ir a casa de Le Roy para os mandar consertar e que me havia esquecido completamente de que os tinha no bolso quando me revistaram, desatou a rir, dizendo que era a melhor história que ouvira em sua vida, Balzac puro. Abriu uma gaveta da mesa e estendeu-me os meus cinco relógios.

- Não é em vão que há vinte anos me sento a esta mesa: aprendi um pouco a classificar as minhas visitas. Está livre.

Tocou a campainha para chamar o cabo que me tinha mandado encarcerar:

- O senhor fica suspenso por oito dias, por ter infringido o regulamento; devia ter comunicado com o cônsul da Suécia. Imbecil!

 

                                 MAMSSELL ÁGATA

DAVAM as sete e meia no velho relógio do vestíbulo quando entrei na minha casa da Avenida de Villiers, silencioso como um fantasma. A essa hora, com rigorosa pontualidade, Mamssell Ágata punha-se a limpar a patina da mesa antiga, na casa de jantar; era uma bela ocasião, para mim, de chegar ao meu quarto, meu único refúgio, sem que ela me visse. O resto da casa estava totalmente nas mãos de Mamssell Ágata. Silenciosa e sem descanso, andava todo o dia dum lado para outro, com um pano de pó na mão, à procura de alguma coisa que limpar ou de carta rasgada que apanhar. Ao abrir a porta do meu gabinete de consulta, parei aniquilado. Mamssell Ágata, em pé, junto da escrivaninha, examinava o meu correio da manhã. Ergueu a cabeça e os olhos brancos fixaram-se, sinistros e silenciosos, sobre o meu fato rasgado, sujo de sangue; pela primeira vez a sua boca sem lábios não encontrou logo a palavra desagradável a atirar-me.

- Donde vem ele, meu Deus? - guinchou, enfim.

Quando se encolerizava, sempre dizia: «ele». Ai de mim, raras vezes me tratava de outro modo.

- Tive um acidente na rua - disse-lhe.

Havia muito que me habituara a mentir-lhe em legítima defesa. Examinou-me o fato roto com o olhar agudo do conhecedor, sempre à espreita de qualquer coisa que pontear ou consertar. Pareceu-me que a voz se tornou menos dura quando me ordenou que lhe entregasse imediatamente toda a minha roupa. Esquivei-me para o meu quarto, tomei um banho e não tardou que Rosália me trouxesse o café. Ninguém o fazia como Mamssell Ágata.

- Pobre senhor! - disse Rosália, quando eu lhe entreguei o fato para o levar a Mamssell Ágata. - Não está ferido?

- Não - disse eu. - Não; tenho medo, nada mais.

Rosália e eu não tínhamos segredos um para o outro no que se referia a Mamssell Ágata; vivíamos os dois no receio constante e mortal dessa mulher; éramos companheiros na luta terrível pela existência diária. Rosália, que era mulher a dias, viera em meu auxílio no dia em que a cozinheira se despediu; e, depois que a criada de quarto se pôs também a andar, ficou comigo, um pouco como criada para tudo. Desgostou-me muito perder a cozinheira, mas não tardei em reconhecer que nunca comi tão bem como depois que Mamssell Ágata se apoderou da cozinha. Estava também muito satisfeito com a antiga criada de quarto, uma mocetona bretã, que havia observado escrupulosamente as minhas indicações de não se aproximar da minha mesa de trabalho nem tocar nos móveis antigos. Oito dias depois da chegada de Mamssell Ágata, a saúde daquela pareceu comprometida, puseram-se-lhe a tremer as mãos e deixou cair o mais belo jarrão de porcelana que eu possuía; pouco depois desapareceu tão precipitadamente que esqueceu até os aventais. No próprio dia da sua partida Mamssell Ágata deitou-se ao trabalho, esfregando e encerando as delicadas cadeiras Luís XVI, batendo sem piedade as preciosas carpettes persas e lavando com água e sabão o pálido rosto de mármore da minha Madonna florentina. Conseguiu até tirar todo o brilho ao vaso de Gubbio, que eu tinha sobre a mesa de trabalho. Se Mamssell Ágata houvesse nascido há uns quatrocentos anos, não restaria hoje o mais pequeno traço da arte medieval. Mas a que época remontaria o seu nascimento? Parecia-me tal qual a conhecera durante a meninice, na minha velha casa da Suécia. Meu irmão mais velho havia-a herdado, quando o antigo lar se desfez. Homem duma coragem excepcional, conseguiu desfazer-se dela e passar-ma. Escreveu-me dizendo que Mamssell Ágata era verdadeiramente a pessoa que eu necessitava; não existia melhor governanta. Nisto tinha razão. Tentei depois, por minha vez, desfazer-me dela. Tinha por costume convidar a almoçar os meus amigos celibatários e diversos conhecimentos; todos gabavam a minha sorte em possuir tão notável cozinheira. Disse-lhes que estava para casar, e que Mamssell Ágata só gostava de solteiros e procurava outra casa. Todos se mostraram interessados e pediam para a ver. O caso ficava imediatamente arrumado; por sua vontade, nunca mais a tornariam a olhar.

Descrevê-la como era é superior às minhas forças. Tinha a cabeça loira coberta de miúdos caracóis. - Rosália dizia que era uma perruca, mas não posso assegurá-lo. - A testa era duma altura e estreiteza excepcionais; não tinha sobrancelhas; os olhos eram pequenos e sem cor; no rosto pequeno só se avistava um grande nariz dependurado sobre uma fenda que raras vezes se abria para mostrar uns dentes compridos e aguçados como os de um furão. A cor do rosto e das mãos era dum azul cadavérico; a mão era viscosa e fria como a dum morto. O sorriso - não, creio que me é impossível descrevê-lo - era o que eu e Rosália mais temíamos. Mamssell Ágata só conhecia o sueco, mas ralhava correctamente em francês e em inglês. Creio que acabou por compreender um pouco o francês; de outro modo não poderia ter-se inteirado de tudo quanto sabia dos meus doentes. Muitas vezes a surpreendi a espreitar atrás da porta do meu gabinete de consulta, principalmente quando recebia senhoras. Tinha um grande fraco pelos mortos e sempre me parecia mais alegre quando um dos meus doentes estava para morrer; raras vezes deixava de ir à varanda quando passava um enterro na Avenida de Villiers. Detestava as crianças e nunca perdoou a Rosália o ter dado um pedaço de bolo de Natal aos pequenos da porteira. Ao meu cão, não podia vê-lo; andava por todos os cantos a deitar pós de Keating, e nos tapetes; e, quando me via, como sinal de protesto, coçava-se furiosamente. O cão detestava-a também desde que a viu, talvez por causa do cheiro muito especial que emanava de toda a sua pessoa. Aquele cheiro a rato fazia-me recordar o primo Pons, de Balzac, mas com uma particularidade que lhe era própria e que só uma vez notei em toda a minha vida. Foi, bastantes anos mais tarde, quando penetrei num túmulo abandonado do Vale dos Reis, em Tebas, cheio de centenas de morcegos enormes, agarrados às paredes, em grandes cachos negros.

Mamssell Ágata nunca saía de casa, salvo ao domingo, em que ia sentar-se sozinha num banco da igreja sueca do boulevard Ornano, para rezar ao Deus da Ira. O banco ficava sempre vazio, pois ninguém ousava sentar-se a seu lado. O capelão sueco, meu amigo, disse-me que pela primeira vez que lhe deu a Santa Comunhão ela lhe deitara um olhar tão feroz que tivera medo, que o mordesse nos dedos.

Rosália havia perdido toda a alegria de outrora; estava magra e abatida e falava em ir viver com a irmã, casada na Touraine. Para mim o caso era mais simples, pois estava todo o dia fora de casa. Mal entrava, parecia que me abandonavam todas as forças, e um cansaço mortal, uma tristeza, caíam como poeira no meu cérebro. Quando descobri que Mamssel Ágata era sonâmbula, as minhas noites tornaram-se ainda mais agitadas; parecia-me sentir o cheiro da sua presença até no meu quarto. Por último, desabafei com o capelão sueco, que vinha visitar-me amiúde e que, segundo creio, havia suspeitado a terrível verdade. «Porque não a despede?» - disse-me um dia. - «Não pode assim continuar. Começo a crer deveras que tem medo dela. Se não se atreve a despedi-la, despeço-a eu por si». Ofereci-lhe mil francos para a igreja, se ele conseguisse desembaraçar-me dela.

- Esta mesma noite despacharei Mamssell Ágata; não tenha cuidado. Venha amanhã à sacristia, depois da missa, e dar-lhe-ei boas notícias.

No dia seguinte não houve missa na igreja sueca; o capelão havia adoecido de repente na véspera, já tarde, e não houvera tempo de procurar um substituto. Dirigi-me imediatamente a casa dele, na Praça de Ternes. A esposa disse-me que ia nesse momento mandar-me chamar. O capelão havia regressado na noite anterior quase desmaiado e com todo o ar de ter visto um espectro, disse-me ela.

- Talvez tenha visto algum - pensava eu, encaminhando-me para o seu quarto.

Disse-me o capelão que mal começara a dar conta do seu encargo a Mamssell Ágata e quando esperava que esta se mostrasse furiosa, ela, pelo contrário, pusera-se a sorrir. De repente, sentiu um cheiro estranho e teve a impressão de que ia desmaiar, sem dúvida por causa daquele mau odor.

- Não - disse-lhe eu - foi o sorriso.

Ordenei-lhe permanência na cama até ao meu regresso. Perguntou-me o que tinha e respondi-lhe que não sabia. Mas menti-lhe; sabia muito bem, reconheci os sintomas.

- A propósito - disse, ao levantar-me para partir. - Gostaria que me dissesse alguma coisa de Lázaro. O senhor, que é padre, decerto sabe mais sobre esse assunto do que eu. Não há uma velha lenda...

- Lázaro - disse o capelão, com voz débil - foi aquele que do túmulo, onde estivera três dias e três noites, voltou vivo a casa. Não há a menor dúvida acerca do milagre, que foi visto por Maria e Marta e muitos dos seus amigos de outrora.

- Pergunto a mim mesmo em que estado voltaria.

- Diz a lenda que a decomposição produzida em seu corpo pela morte e detida por um poder milagroso se via ainda na cor cadavérica do rosto e nos seus compridos dedos frios, do gelo da morte. As unhas, negras, tinham crescido desmesuradamente e o cheiro repugnante do sepulcro impregnava ainda as suas roupas. Lázaro avançava por entre a multidão que havia acorrido para o felicitar pelo seu regresso à vida, mas os gritos alegres de boas-vindas morriam em todos os lábios, e uma terrível sombra, como poeira, envolvia todos os pensamentos. Um após outro, todos fugiram, gelados de terror.

À medida que o capelão contava a velha lenda, a voz ia-se tornando cada vez mais fraca; voltou-se inquieto na cama e o rosto tornou-se-lhe pálido como o travesseiro onde repousava.

- Está seguro de que Lázaro foi o único que voltou do túmulo? - perguntei eu. - Tem a certeza de que não tinha nenhuma irmã?

O padre escondeu a cara nas mãos com um grito de terror.

Na escada encontrei o coronel Staff, adido militar, que vinha saber notícias do capelão. O coronel convidou-me a regressar com ele no carro, pois desejava falar-me dum assunto urgente. Tinha servido com distinção no Exército francês em 70 e havia sido ferido em Gravelotte. Desposara uma francesa e era muito considerado na alta sociedade parisiense.

- Olha - disse o coronel, quando nos sentámos a tomar o chá. - Sabes que sou teu amigo e que tenho mais do dobro da tua idade; não vás ofender-te com o que vou dizer-te, em teu próprio interesse. Nestes últimos tempos, tanto eu como minha mulher temos ouvido algumas queixas a teu respeito, sobre a maneira tirânica como tratas os teus doentes. Ninguém gosta de ouvir constantemente palavras de disciplina e de obediência. As senhoras, e principalmente as senhoras francesas, não estão habituadas a ser tratadas com tanta rudeza por um rapaz da tua idade; já te puseram a alcunha de Tibério. O pior, segundo creio, é que te parece natural mandar e ser obedecido. Enganas-te, meu jovem amigo, ninguém gosta de obedecer, todos querem mandar.

- Protesto; a maior parte das pessoas e quase todas as mulheres preferem obedecer.

- Quando te casares, então me dirás - exclamou, deitando uma olhadela para a porta do salão. - E agora passemos a um assunto mais grave - prosseguiu ele. - Corre o boato de que te preocupas pouco com as aparências, no que toca à tua vida privada; diz-se que vive contigo uma mulher misteriosa, uma suposta governanta. A própria mulher do cônsul inglês aludiu a isso diante de minha mulher, que te defendeu energicamente. Que diriam o ministro da Suécia e a mulher, que te tratam como filho, se este rumor lhes chegasse aos ouvidos? E cedo ou tarde há-de suceder. Digo-te, meu amigo, que esta situação não convém a um médico que tem uma posição como a tua, a cuja casa vão em consulta tantas senhoras inglesas e francesas. Repito-te: isso não convém. Se queres ter uma amante, é lá contigo.

Mas, pelo amor de Deus, tira-a de tua casa. Os próprios franceses não tolerariam semelhante escândalo!

Agradeci ao coronel, e disse-lhe que lhe dava toda a razão, que várias vezes havia já tentado tirá-la de casa, mas que não tinha forças para isso.

- Bem sei que a coisa não é fácil - condescendeu o coronel.

- Eu também fui rapaz, como tu. Se não tens coragem para consegui-lo, eu te ajudarei. Sou o homem de quem precisas; nunca tive medo de ninguém, nem de homem, nem de mulher; ataquei os Prussianos em Gravelotte e afrontei a morte em seis grandes batalhas...

- Espere por defrontar-se com Mamssell Ágata Swenson - disse-lhe eu.

- É sueca? Tanto melhor. No pior dos casos, faço com que a Legação a expulse de França. Amanhã, pelas dez horas, irei a tua casa; espera-me a essa hora.

- Não, obrigado, não estarei em casa; nunca me aproximo dela se o posso evitar.

- E dormes com ela! - exclamou o coronel, lançando-me um olhar estupefacto.

Estive quase a vomitar sobre o tapete, mas ele estendeu-me um brandy com soda, bem forte, que foi o que valeu, e saí de lá meio aturdido, depois de haver aceitado o convite que me fez de ir jantar com ele no dia seguinte, para celebrar o triunfo.

No dia seguinte, jantei só com madame Staff. O coronel não se sentia bem e tinha que vê-lo depois do jantar; o antigo ferimento de Gravelotte incomodava-o ainda, segundo a opinião da mulher. O valoroso coronel estava estendido na cama, com uma compressa fria na cabeça. Parecia mais velho e muito abatido. Os olhos tinham uma expressão desvairada, que nunca lhe havia visto.

- Sorriu-se? - perguntei-lhe.

Estremeceu todo e estendeu a mão para o seu brandy com soda.

- Reparou naquela grande unha negra do polegar, como uma garra de morcego?

Tornou-se pálido e enxugou o suor da fronte.

- Que hei-de fazer? - disse eu, aniquilado, com a cabeça entre as mãos.

- Só te resta uma tábua de salvação - respondeu-me o coronel, com voz débil. - Casa-te, de contrário acabarás por embebedar-te.

 

                                   O VISCONDE MAURÍCIO

NÃO me casei, nem me entreguei à bebida. Tomei outra determinação. Abandonei definitivamente a Avenida de Villiers. Pelas sete horas da manhã, Rosália trazia-me ao quarto o meu chá e o Figaro; meia hora depois, saía e só voltava às duas para a consulta. Partia com o último cliente e só regressava a altas horas da noite, metendo-me furtivamente no quarto, como um ladrão. Dobrei o ordenado a Rosália. Manteve-se valorosamente no seu lugar, queixando-se apenas de só servir para abrir a porta. Tudo o mais: bater os tapetes, consertar a roupa, limpar o calçado, lavar a roupa, fazer a comida, era da incumbência de Mamssell Ágata.

Compreendendo que carecia duma ligação com o mundo exterior e tendo necessidade de alguém com quem discutir, Mamssell Ágata tolerava agora a presença de Rosália com sombria resignação. Chegou mesmo a sorrir-lhe uma vez, dizia Rosália, com um ligeiro tremor na voz. Não tardou que o meu cão Tom abandonasse também a Avenida de Villiers, com medo de Mamssell Ágata. Passava os dias de carro, comigo, fazendo as visitas aos doentes e raras vezes comia em casa. Na cozinha não penetrava nunca, como é tanto do gosto de todos os cães. Apenas chegava do meu trabalho quotidiano, Tom metia-se no cesto, no meu quarto, onde se sabia em relativa segurança.

À medida que aumentava a minha clientela, tornava-se mais difícil roubar um momento para a nossa escapada habitual do domingo à tarde, pelo bosque de Bolonha. Os cães, tal como os homens, têm necessidade de sentir o cheiro da terra para manter o moral. Nada melhor do que um bom passeio por entre as árvores acolhedoras, ainda que sejam as árvores domesticadas do bosque de Bolonha, e jogar às escondidas com um amigo de encontro, nas moitas.

Um dia, quando vagabundeávamos numa álea afastada, contentes por estarmos juntos, ouvimos de repente, longe e por detrás de nós, um arquejar desesperado, acompanhado de crises de tosse e sufocação. Julguei que se tratasse de algum asmático; mas Tom compreendeu imediatamente que era um dog ou cãozito de água que, meio sufocado, chegava correndo, suplicando-nos, sem poder respirar, que o esperássemos. Um minuto depois, Lulu caiu, sem forças, a meus pés. Era gordo demais para respirar e estava demasiadamente exausto para poder falar; a língua negra quase lhe saía da goela; os olhos injectados de sangue parecia que lhe saíam das órbitas, de alegria e de comoção.

- Lulu! Lulu! - gritava uma voz desesperada, do fundo dum coupé que passava na álea principal.

- Lulu! Lulu! - gritava o lacaio, que corria para nós por entre as moitas.

Disse-me o lacaio que ia com a marquesa e Lulu, no seu passeio habitual, caminhando ao lado do coupé, quando de repente o cãozito se pôs a cheirar desesperadamente em todas as direcções e deitou a correr com tal velocidade que em breve o perderam de vista. A marquesa, quase desmaiada, fora conduzida ao carro pela criada; e ele havia corrido durante meia hora atrás de Lulu, enquanto o cocheiro subia e descia a grande álea, perguntando a todos os transeuntes se haviam visto Lulu.

A marquesa desatou a chorar de alegria, quando eu lho pus no regaço, ainda sem voz e sufocada. Soluçava. Lulu ia ter um ataque de apoplexia. Pela corneta acústica, gritei-lhe que não era nada, apenas a comoção. Na verdade, o cãozito estava bem perto dum ataque, tanto quanto o pode estar um velho cãozinho obeso. Como autor involuntário do desastre, aceitei o convite que me fez a marquesa de ir tomar chá com ela. Quando Tom saltou para os meus joelhos, Lulu teve um acesso de raiva que quase o afogou. Durante o resto do caminho, conservou-se estendido e imóvel no regaço da ama, num completo estado de prostração, desafiando ferozmente Tom com um olho e olhando-me com o outro carinhosamente.

- Tenho cheirado bastantes coisas em minha vida - dizia-me aquele olho - mas nunca esqueci o teu cheiro particular, que prefiro a qualquer outro. Que alegria ter-te encontrado de novo! Põe-me nos teus joelhos, anda, em vez desse negro renegado. Não tenhas dúvida: assim que eu possa respirar ajustaremos contas.

- Bem me importa o que tu dizes, monstro de nariz esborrachado - respondeu Tom, com nobreza. - Nunca vi nada mais ridículo! Quase me envergonho de ser cão! Um cão de água, como eu, não arreganha os dentes a um cãozito de nada, mas melhor será que metas no saco essa língua negra, ou ta arranco.

Depois da nossa segunda chávena de chá, entrou no salão o senhor abade, que vinha fazer a sua habitual visita dos domingos. O bom do padre censurou-me por não o haver informado do meu regresso a Paris; o conde perguntava por mim amiúde e teria muito gosto em ver-me. A condessa havia ido para Monte-Carlo, para mudar de ares. Estava muito bem, física e moralmente. Desgraçadamente, não podia dizer o mesmo do conde, que retomara a sua vida sedentária e passava dias inteiros sentado na poltrona, fumando enormes charutos. Informou-me que pensava ser de seu dever advertir-me de que o visconde estava furioso comigo pela partida que lhe fizera em Château-Rameaux. Dizia que eu os havia hipnotizado, a ele e ao médico da aldeia, convencendo-os de que tinha colite, para o impedir de ganhar a medalha de ouro no concurso da Société de tir de France. O sacerdote suplicou-me que não me pusesse no seu caminho; era conhecido pelo seu carácter violento e arrebatado, e estava sempre em disputas; ainda no mês anterior se batera em duelo, e Deus sabe o que poderia suceder se nos encontrássemos.

- Não sucederá nada - disse-lhe eu. - Não tenho nada a temer desse bruto, porque me teme. Esse Outono, no salão de fumo, em Château-Rameaux, provei que era o mais forte e alegra-me ouvir-lhe dizer que ele não esqueceu a lição que lhe dei. A única superioridade que tem sobre mim é a de ser capaz de matar uma andorinha ou uma cotovia a cinquenta metros, ao passo que eu, provavelmente, errava um elefante à mesma distância. Mas há poucas probabilidades de que se aproveite dessa superioridade; não me desafiará nunca, porque me considera seu inferior. Falou-me de hipnotismo! Dir-lhe-ei que essa palavra começa a cansar-me; constantemente ma atiram à cara, só porque fui aluno de Charcot. Direi duma vez para sempre que todas essas tolices sobre o poder hipnótico fazem parte dum sistema antiquado que a ciência moderna não reconhece. Não se trata de hipnotismo, mas de imaginação. Esse imbecil imagina que eu o hipnotizei, mas não fui eu que lhe meti essa estúpida ideia na cabeça; foi ele próprio; a isso chamamos nós auto-sugestão. Tanto melhor para mim. Desse modo será impotente para prejudicar-me, pelo menos frente a frente

-Mas o doutor, se quisesse, podia hipnotizá-lo?

- Sim, com facilidade; é um caso excelente. Charcot ficaria contentíssimo se o pudesse ter para as suas conferências experimentais das terças-feiras, na Salpêtrière.

- Mas, visto dizer-me que o poder hipnótico não existe, admite, por exemplo, que eu possa fazer com que ele me obedeça, como ao doutor?

- Sim, com a condição de que ele creia que o abade possui esse poder; e, certamente, não acredita nisso.

- E porquê?

- Aqui começa a verdadeira dificuldade; actualmente não se pode responder satisfatoriamente a essa pergunta. É uma ciência relativamente nova; está na infância.

- Poderia fazer-lhe cometer um crime?

- Não, a não ser que ele fosse capaz de cometê-lo por sua própria iniciativa. Como estou convencido de que esse homem tem instintos criminosos, a minha resposta, nesse caso particular, é afirmativa.

- Poderia conseguir que renunciasse à condessa?

- Não, a não ser que ele próprio o desejasse e se submetesse a um tratamento metódico de sugestão hipnótica. Assim mesmo, seria necessário bastante tempo, porque o instinto sexual é a força dominante na natureza humana.

- Prometa-me evitá-lo. Ele afirma que o esbofeteará a primeira vez que o encontre.

- Quando queira, que experimente. Sei bem o que hei-de fazer numa ocasião dessas, não tenha receio; sei perfeitamente defender-me.

- Felizmente está para Tours, com o regimento; há poucas probabilidades de que volte a Paris, tão cedo.

- Meu querido abade: é ainda mais ingénuo do que eu pensava; neste momento, encontra-se ele em Monte-Carlo, com a condessa e estará de volta a Paris, quando ela regressar da sua mudança de ares.

Logo no dia seguinte o conde mandou-me chamar, como médico. O abade não se enganara. Encontrei-o em condições pouco satisfatórias, tanto físicas como morais. Não se pode fazer grande coisa por um homem que já não é novo, e que passa dias inteiros numa poltrona, fumando charutos sobre charutos, pensando apenas na mulher, que é jovem e linda, e foi para Monte-Carlo mudar de ares. E menos ainda se pode fazer quando ela volta e retoma o seu lugar entre as mulheres mais admiradas e mais cobiçadas da sociedade parisiense, passando os dias em casa de Worth, a provar vestidos, e as noites no teatro ou no baile, depois de ter dado as boas-noites ao marido com um beijo glacial. Quanto mais via o conde, mais simpatizava com ele. Era o tipo mais perfeito do grande senhor francês do antigo regime que eu havia encontrado. A verdadeira razão da minha simpatia por ele provinha, sem dúvida, da compaixão que me inspirava. Nessa época não suspeitava ainda de que só gostava verdadeiramente daqueles a quem lastimava.

Suponho que foi esse motivo que fez com que a condessa me deixasse indiferente da primeira vez que a vi, depois do nosso encontro debaixo da tília, em Château-Rameaux, ao luar, quando o mocho me impediu de a amar demasiado. Não, não me impressionou absolutamente nada, quando a observei, sentada do outro lado da mesa, ao pé do abade, rindo alegremente dos estúpidos gracejos do visconde Maurício, alguns deles à minha custa, como adivinhava pelas suas olhadelas insolentes. Nem um nem o outro me dirigiram a palavra. O único sinal de conhecimento que a condessa me deu foi um distraído aperto de mão, antes do jantar. O visconde parecia ignorar totalmente a minha presença. A condessa estava mais bela do que nunca, mas não era a mesma mulher. Trasbordava saúde e bom humor, a languidez do olhar havia desaparecido. Vi, à primeira vista, que houvera luar em Monte-Claro, no jardim, sem mochos que piassem nas tílias. O visconde parecia muito satisfeito de si próprio, e havia em toda a sua atitude um visível ar de herói conquistador, particularmente irritante.

- Caso consumado - disse eu ao abade, quando nos sentámos no salão de fumo, depois do jantar. - É indiscutível a cegueira do amor, se é que se pode chamar a isto amor. Ela merecia melhor sorte do que cair nos braços desse degenerado imbecil.

- Saiba que o conde pagou as suas dívidas de jogo, há pouco mais de um mês, para evitar que o expulsassem do Exército; correm mesmo rumores sobre um cheque protestado. Diz-se que gasta somas fabulosas com uma cocotte célebre. E pensar que é este homem que vai acompanhar hoje a condessa ao baile de máscaras da Ópera!

- Ah! Se eu ao menos fosse bom atirador!

- Pelo amor de Deus, não fale desse modo! Estou ansioso por que parta; é quase certo que virá por aqui pelo seu brandy com soda.

- Melhor faria se tivesse cuidado no que bebe. Não notou como a mão lhe tremia ao deitar as gotas do medicamento no copo de Bordeaux? Em todo o caso, é um bom augúrio para as andorinhas e as cotovias. Não olhe para a porta com essa inquietação. Ele está no paraíso, fazendo a corte à condessa, no salão. De resto, vou-me embora; tenho o carro defronte da porta.

Subi um momento para ver o conde, antes de partir; estava para deitar-se e disse-me que tinha muito sono. Feliz mortal! Quando lhe dava as boas-noites, ouvi em baixo o ganir desesperado dum cão. Sabia que Tom me esperava no hall, no canto costumado, que o conde, grande amigo dos cães, lhe havia reservado, fazendo colocar ali um tapete para que estivesse com mais comodidade. Corri pela escada abaixo, o mais depressa que pude. Tom, deitado por terra, todo enroscado contra a porta de entrada, gemia dèbilmente com o sangue a manar-lhe da boca. Em pé, e inclinado para ele, o visconde Maurício dava-lhe furiosos pontapés. Caí tão de imprevisto sobre o bruto que este perdeu o equilíbrio e rolou por terra. Um segundo sopapo bem aplicado derribou-o novamente, quando tentava levantar-se. Tomei à pressa o chapéu e o sobretudo, e com o cão nos braços corri para o carro e mandei seguir a toda a pressa para a Avenida de Villiers. Desde o primeiro momento me pareceu evidente que o meu pobre cão sofria de lesões internas graves. A respiração tornou-se-lhe cada vez mais difícil, e a hemorragia não parou. De manhã eu próprio abati o meu fiel amigo com uma bala de revólver, para lhe evitar novos sofrimentos.

Foi um alívio para mim quando, de tarde, recebi uma carta de dois oficiais do regimento do visconde Maurício, pedindo-me que os pusesse em ligação com as minhas testemunhas: o visconde, depois de alguma hesitação, decidira-se a fazer-me a honra de etc., etc.

Custou-me a convencer o coronel Staff, adido militar sueco, a que me servisse de padrinho. O meu amigo Edelfeld, o pintor finlandês bem conhecido, devia ser o outro. Norstrom dava-me o seu concurso como cirurgião.

- Nunca em toda a minha vida tive tanta sorte como nestas vinte e quatro horas - disse a Norstrom, quando, como de costume, nos sentámos à mesa, no Café de la Régence, para cear. Para dizer a verdade, tinha um medo horrível de ter medo, mas, ao contrário, a curiosidade de saber como afrontaria aquela prova absorveu-me de tal modo que não tive tempo de o ter. - Sabes como me interesso pela psicologia.

Norstrom não tinha pela psicologia o menor interesse naquela noite e, de resto, jamais o interessara. Estava particularmente silencioso e solene; notei nos seus olhos baços uma certa expressão de ternura que quase me fez ter vergonha de mim próprio.

- Ouve, Axel - disse-me com a voz um pouco rouca. - Escuta-me...

- Não me olhes dessa maneira e sobretudo não te faças sentimental, que isso não convém ao teu género de beleza. Coça a tua velha cabeça de imbecil e trata de compreender a situação. Como pudeste imaginar, um minuto que fosse, que eu era tão tolo que ia encontrar-me com esse selvagem amanhã de manhã, no bosque de St. Cloud, se não soubesse que ele não pode matar-me? A ideia é demasiadamente absurda para me deter nela um segundo. Aliás esses duelos não passam duma blague, sabe-lo tão bem como eu. Como médicos, ambos temos assistido a várias dessas representações teatrais, em que os actores acertam por vezes nas árvores mas nunca no adversário. Vamos! Uma garrafa de Chambertin e toca a deitar. O Borgonha faz-me sono; quase não tornei a dormir desde a morte do meu pobre cão e esta noite é preciso dormir a todo o custo.

A manhã estava fria e brumosa. Tinha o pulso sereno, com oitenta pulsações, mas sentia um tremor estranho nas pernas e uma grande dificuldade em falar; não obstante todos os meus esforços, não consegui engolir uma gota do cognac que Norstrom me ofereceu, dum frasco que levava, quando descemos do carro. As intermináveis formalidades preliminares pareceram-me particularmente enervantes; não compreendia uma palavra do que diziam. Que estupidez e que perda de tempo! - pensava eu.

- Quanto mais simples não era uma boa luta à inglesa e acabar com isto! Um dos presentes notou que o nevoeiro se dissipara o suficiente para permitir uma boa visibilidade. Surpreendeu-me ouvi-lo, pois me parecia que a neblina era cada vez mais espessa. No entanto via perfeitamente o visconde Maurício em pé, defronte de mim, com o seu habitual ar de despreocupada insolência, um cigarro na boca e muito à vontade, segundo me parecia.

Naquele momento um pintarroxo entrou a cantar num arbusto por detrás de mim; e, precisamente, começava a perguntar a mim próprio o que fazia aquele passarito em estação tão avançada, nos bosques de St. Cloud, quando o coronel Staff me pôs na mão uma grande pistola.

- Pontaria baixa! - murmurou-me.

- Fogo! - gritou uma voz aguda.

Ouvi um tiro, e vi o visconde que deixava cair o cigarro dos lábios e o professor Labbé, que se precipitava para ele. Um minuto depois estava sentado no carro do coronel Staff, com Norstrom na minha frente, o rosto aberto num largo sorriso. O coronel dava-me umas palmadinhas no ombro, mas ninguém dizia palavra.

- Que sucedeu? Porque não atirou ele? Não aceito nenhum favor desse animal, vou procurá-lo por minha vez, vou...

- Não vais fazer nada disso, vais mas é dar graças a Deus, que te livrou por milagre - interrompeu o coronel. - Ele fez tudo o que pôde para dar cabo de ti, e tê-lo-ia conseguido, sem dúvida, se lhe tivesses dado tempo de disparar uma segunda vez. Felizmente os tiros partiram ao mesmo tempo. Se tivesses demorado uma fracção de segundo não estarias agora sentado ao pé de mim. Não ouviste a bala assobiar por cima da tua cabeça? Repara!

De repente, ao olhar o meu chapéu, caiu o pano sobre a minha representação de herói. Despojado do mal ajustado disfarce de homem valente, o homem verdadeiro apareceu, o homem que tem medo à morte. Todo a tremer, conservei-me prostrado num canto do carro.

- Estou orgulhoso de ti, meu jovem amigo - prosseguiu o coronel. - Foi consolador para o meu velho coração de soldado observar-te; eu próprio não faria melhor! Quando nós carregámos sobre os Prussianos, em Gravelotte...

Os dentes batiam-me de tal modo que não pude apanhar o fim da frase. Sentia náuseas e vertigens, queria dizer a Norstrom que mandasse parar, mas não podia articular uma palavra. Desejaria abrir de repente a portinhola e fugir como uma lebre, mas não podia mover braços nem pernas.

- Perdia muito sangue - disse Norstrom, com um meio sorriso sarcástico. - O professor Labbé afirmou que a bala lhe atravessara de lado a lado a base do pulmão direito, e muita sorte terá se escapar com dois meses de cama.

Os meus dentes deixaram instantaneamente de bater e pus-me a escutar com atenção.

- Não sabia que era tão bom atirador - disse o bravo coronel. - Porque me disseste que nunca havias pegado numa pistola?

Bruscamente desatei a rir, sem saber por quê.

- Não há motivo para rir - disse o coronel, severamente. - O visconde está gravemente ferido e o professor Labbé tinha o ar muito preocupado; tudo isto pode acabar em tragédia.

- Tanto pior para ele - respondi, recobrando milagrosamente a palavra. - Matou a pontapés o meu pobre cão indefeso e ocupa as horas vagas em matar andorinhas e cotovias; tem o que merece. Sabe o coronel que o Areópago de Atenas condenou um rapazito à morte por haver furado os olhos a uma ave?

- Mas tu não és o Areópago de Atenas.

- Não, mas também não sou a causa da morte desse homem, se porventura ele morrer. Nem sequer tive tempo de apontar; a pistola disparou-se sozinha. Não fui eu que enviei a bala que lhe atravessou o pulmão; outro seria. Além disso, já que o coronel tem tanta pena desse bruto, permita-me que lhe pergunte se foi para eu errar o alvo que me sussurrou que apontasse baixo, quando me entregou a pistola?

- Alegro-me que a tua língua já funcione, incorrigível trocista - disse o coronel, sorrindo. - Não entendia palavra do que tu resmungavas, quando te arrastei para o carro, e tu tão pouco o entenderias; resmoneavas sem descanso não sei o quê a propósito dum pintarroxo...

Quando entrámos pela porta Maillot, estava já senhor dos meus estúpidos nervos e sentia-me contente comigo. Ao aproximar-me da Avenida de Villiers, a cabeça de medusa de Mamssell Ágata pareceu-me surgir da bruma matinal e fixar-me ameaçadora com os seus olhos brancos. Olhei para o relógio; eram sete horas e meia, e voltou-me a coragem.

- É precisamente a hora em que ela está a raspar toda a patina da mesa de jantar, pensei. Mais um pouco de sorte e conseguirei deslizar, sem ser visto, até ao meu quarto e chamar Rosália, para que me traga o chá. Rosália veio em bicos de pés trazer-me o pequeno almoço e o Figaro.

- És uma pérola, Rosália. Vê se consegues afastá-la do vestíbulo. Vou esquivar-me daqui dentro de meia-hora. Escova-me o fato e o chapéu, minha boa Rosália; estão bastante precisados.

- Mas, em verdade, o senhor doutor não pode ir visitar os doentes com este chapéu tão velho! Olhe para ele! Tem um buraco adiante e outro atrás. Que curioso! Não podem ser as traças, toda a casa tresanda a naftalina desde que chegou Mamsell Ágata. Seria um rato? O quarto dela está cheio deles. Mamssell Ágata adora os ratos.

- Não, Rosália; foi o besoiro da morte, que tem dentes tão duros como ferro e pode fazer um buraco, como o do chapéu, na cabeça dum homem que não tenha sorte.

- Porque não dá o senhor doutor este chapéu a Don Caetano, o tocador de órgão? É hoje o dia de vir tocar debaixo da varanda.

- Dá-lhe o chapéu que quiseres, mas este não. Tenho intenção de guardá-lo. É-me agradável olhar estes dois buracos - da sorte!

- Porque não há-de usar um chapéu alto, como fazem os outros médicos? É muito mais elegante.

- Não é o chapéu que faz o homem, é a cabeça. E a minha vale alguma coisa, contanto que tu consigas ter Mamssell Ágata fora da minha vista.

 

SENTEI-ME para almoçar e ler o meu Figaro. Não havia nada interessante. De repente os meus olhos caíram sobre um eco em grandes caracteres:

UM CASO ESCURO

Madame Requin, parteira de primeira classe, domiciliada na Rua Granet, acaba de ser presa, em consequência do falecimento duma jovem por maneira suspeita. Há igualmente mandado de prisão contra um médico estrangeiro. Teme-se que este haja conseguido passar a fronteira. Madame Requin é também acusada de ter feito desaparecer muitos recém-nascidos confiados aos seus cuidados.

O jornal caiu-me das mãos. Madame Requin, parteira de primeira classe, da Rua Granet! Tantos sofrimentos, tantas tragédias se haviam desenrolado à minha volta e sob os meus olhos nos últimos anos, que esquecera completamente aquela história. Enquanto lia o Figaro, sem poder despegar os olhos, a visão da terrível noite em que conhecera aquela mulher reviveu no meu espírito, como se fora na véspera, e não iam passados menos de três anos. Tomando o chá, reli a notícia, sentindo grande satisfação por saber que aquela horrível mulher fora enfim presa. Não me alegrava menos a lembrança de que naquela noite inolvidável conseguira salvar duas vidas, uma mãe e um filho, que essa mulher e o seu abominável cúmplice iam sacrificar. Subitamente, e rápido como um relâmpago, outro pensamento me cruzou o cérebro. Que havia eu feito por esses dois seres que chamara à vida? Que fizera pela mãe, já abandonada por outro homem, na hora em que maior necessidade tinha dele?

- John! John! - gritara sob a acção do clorofórmio, com acento desesperado. - John! John!

Procedera eu melhor? Não a tinha também abandonado quando mais precisava de mim? Por quantos transes não haveria passado, antes de cair nas mãos daquela terrível mulher e do bruto do companheiro, que a teriam assassinado sem a minha intervenção? E que agonia a sua quando, ao voltar a si, a consciência lhe mostrasse o horror da sua situação. E a criança, meio asfixiada, que me olhara com seus olhos azuis, ao aspirar o primeiro sopro de ar vivificador que eu lhe insuflara nos pulmões, com os meus lábios contra os seus! Que fizera por ela? Arrancara-as aos braços da misericordiosa morte, para as arrojar aos de Madame Requin! Quantos inocentes teriam já sugado a morte naquele enorme seio? Que teria ela feito do bebé de olhos azuis? Estaria incluído nos oitenta por cento dos pequeninos viajantes do comboio das amas, que, segundo a estatística oficial, sucumbiam no primeiro ano de vida, ou entre os vinte restantes que sobreviviam talvez para um destino pior?

Uma hora depois havia solicitado e obtido do director da prisão a licença para visitar Madame Requin. Reconheceu-me imediatamente e fez-me tão caloroso acolhimento que me senti verdadeiramente comprometido diante do guarda que me havia acompanhado à cela. O pequenito estava na Normandia, muito contente, e ela acabava de receber excelentes notícias dos pais adoptivos, que o amavam ternamente. Desgraçadamente, não podia lembrar-se da direcção. O seu livro de registos era muito confuso. Era bem possível, provável mesmo, que o marido se recordasse.

A minha impressão era de que a criança teria morrido, mas, para não desprezar nenhuma possibilidade, disse-lhe severamente que, se dentro de quarenta e oito horas não me comunicassem a direcção que desejava, a denunciaria à justiça como causadora da morte da criança e também pelo roubo dum broche de diamantes de grande valor que lhe tinha confiado. Conseguiu arrancar algumas lágrimas dos olhos duros e jurou que não havia roubado o broche; conservara-o como recordação daquela jovem tão bela que tratara com tanto carinho como se fora sua própria filha.

-Dou-lhe quarenta e oito horas - repeti. E deixei-a entregue às suas meditações.

Dois dias depois recebi a visita do digno marido de Madame Requin, com a cautela de penhor, correspondente ao broche, e o nome de três aldeias da Normandia para onde a mulher havia mandado crianças naquele ano. Escrevi imediatamente aos regedores das aldeias respectivas, pedindo-lhes que descobrissem se um pequenito de olhos azuis, duns três anos de idade, não estaria entre as crianças adoptadas nas aldeias. Depois duma longa espera, recebi resposta negativa de dois deles e nenhuma do terceiro. Então escrevi aos três párocos dessas aldeias, e, depois de muitos meses sem notícias, o cura de Villeroy informou-me de que descobrira em casa dum sapateiro um pequenito que talvez correspondesse aos sinais que eu lhe dava. Viera de Paris havia três anos e tinha os olhos azuis. Eu nunca havia estado na Normandia; acercava-se o Natal e pensei que merecia bem umas férias. No próprio dia de Natal, bati à porta do sapateiro. Ninguém respondeu. Entrei num compartimento escuro, com uma mesa baixa, de sapateiro, junto da janela. Espalhados pelo chão, sapatos enlameados e velhos, de todos os tamanhos; numa corda, camisas e saias acabadas de lavar estavam a secar. A cama por fazer; os lençóis e as cobertas sujos. Nas lajes da cozinha nauseabunda, um pequenito, quase nu, comia uma batata crua. Os olhos azuis lançaram-me um olhar aterrorizado; deixou cair a batata e levantou o braço emaciado como para proteger-se de algum açoite e a quatro patas fugiu o mais depressa que pôde para o quarto contíguo. Apanhei-o justamente quando se metia debaixo da cama e sentei-me à mesa do sapateiro para lhe examinar a dentição. Sim, o pequenito deveria ter três anos e meio; parecia um pequeno esqueleto com pernas e braços descarnados, o peito estreito e o ventre inchado, que tinha o dobro do volume normal. Conservou-se sentado nos meus joelhos e não emitiu qualquer som nem mesmo quando lhe abri a boca para examinar os dentes. Não havia nenhuma dúvida sobre a cor dos olhos lassos e tristes; eram tão azuis como os meus.

A porta abriu-se brutalmente e o sapateiro entrou, a cair de bêbedo, praguejando. Por detrás dele, no vão da porta, estava uma mulher, que dava de mamar a um bebé, com dois pequenitos agarrados às saias, olhando-me estupefacta. O sapateiro disse-me que era para ele um alegrão desembaraçar-se daquele fedelho, mas era preciso que lhe pagassem o dinheiro que lhe deviam. Havia escrito muitas vezes a Madame Requin, sem obter nunca resposta. Pensava talvez que ia alimentar esse miserável garoto com o que ganhava com tanto trabalho? A mulher acrescentou que, agora, que já tinha um filho e dois pequenos pensionários, ficaria contentíssima se lho levassem. Sussurrou qualquer coisa ao marido e ambos olharam atentamente o meu rosto e o da criança. Desde que eles entraram, os olhos do pequenito reflectiam uma expressão de terror; a mãozita, que eu tinha na minha, tremia ligeiramente. Felizmente, tinha-me lembrado de que era Natal e tirei do bolso um cavalito de madeira. Tomou-o em silêncio, sem interesse algum; ao contrário do que fazem todas as crianças, parecia não lhe ligar importância.

- Olha que lindo cavalito teu pai te trouxe de Paris! Júlio, não gostas dele? - exclamou a mulher.

- O nome dele é João - disse eu.

- É uma criança muito triste - disse a mulher. - Nunca diz uma palavra, nem sequer mamã, e não sorri nunca.

Embrulhei-o na manta de viagem e fui com ele a casa do cura, que teve a bondade de deixar ir a governanta comprar uma camisa de lã e um xale bem quente para a viagem. O cura olhou-meatentamente e disse-me:

- Como sacerdote, é de meu dever condenar a imoralidade e o vício, mas não posso impedir-me de lhe dizer, meu jovem amigo, que o estimo por ter, ao menos, procurado atenuar a sua culpa, tanto mais odiosa quanto o castigo cai sobre a cabeça de inocentes crianças. Era tempo de levá-lo; tenho enterrado dezenas destes infelizes abandonados e o seu pequenito não tardaria que o enterrasse também. Conduziu-se bem e agradeço-lhe - disse o velho sacerdote, batendo-me amigavelmente no ombro.

Não havia tempo para dar-lhe explicações, pois nos expúnhamos a perder o express da noite para Paris. John dormiu toda a noite, bem embrulhado no xale; sentado a seu lado, perguntava a mim próprio o que poderia fazer por ele. Creio, realmente, que, se não fosse Mamssell Ágata, o levaria directamente para a Avenida de Villiers. Em vez disso, dirigi-me à Rua de Seine, à Creche de S. José. Conhecia bem as irmãs. Prometeram-me guardar o pequenito vinte e quatro horas, até que lhe tivessem encontrado uma casa capaz. Conheciam um casal respeitável; o homem trabalhava numa fábrica norueguesa de margarina, em Pantin, e acabavam de perder o seu único filho. Agradou-me essa ideia.

Fui imediatamente falar-lhes e no dia seguinte a criança ficou instalada na sua nova residência. A mulher parecia inteligente e séria, um pouco irritável, a julgar pelo olhar, mas as irmãs tinham-me dito que havia sido para o filho uma mãe carinhosa. Entreguei-lhe o dinheiro necessário para comprar roupas ao pequenito e pagar-lhe três meses de pensão, menos do que me custam os meus cigarros. Preferi não dar a minha direcção; Deus sabe o que poderia suceder se Mamssell Ágata tivesse conhecimento da existência dessa criança. Josefina devia prevenir as monjas, se fosse necessário alguma coisa ou a criança adoecesse.

Não tardou em o fazer. John adoeceu com escarlatina e esteve à morte. Todas as crianças escandinavas do bairro de Pantin tiveram a escarlatina; ali tive de ir constantemente. As crianças com essa doença não têm necessidade de nenhum medicamento; simplesmente cuidados constantes e um brinquedo para os entreter na sua longa convalescença. A John não faltaram uns nem outros; a ama foi muito carinhosa com ele; e eu aprendera havia muito a incluir na minha farmacopeia bonecas e cavalos de madeira.

- É uma criança estranha - dizia Josefina. - Nunca fala, nem diz sequer mamã, e não sorriu nem mesmo quando recebeu o velho Natal, que o senhor doutor lhe mandou.

Era outra vez no Natal! O pequenito estava havia um ano em casa da mãe adoptiva; um ano de trabalho e preocupações para mim, mas de felicidade relativa para ele.

Josefina possuía, sem dúvida, um carácter irascível. Mostrava-se muitas vezes impertinente comigo, quando tinha que repreendê-la porque a criança não andava limpa ou não lhe abria a janela. Mas nunca a ouvi falar-lhe com rudeza; e ainda que, em meu entender, a criança não se lhe afeiçoara, via na expressão do olhar que a não temia. Parecia ter por tudo e por todos uma estranha indiferença. Pouco a pouco, tornei-me cada vez mais inquieto a seu respeito e descontente com a mãe adoptiva. A criança voltara a ter no olhar a mesma expressão assustada; e era evidente que Josefina se desleixava cada vez mais. Tive várias cenas com ela, que geralmente acabava por dizer-me que, se não estava satisfeito, valia mais que o levasse, porque já estava farta de o aturar. Compreendi bem o motivo: por sua vez ia também ser mãe. As coisas pioraram com o nascimento do filho, e eu acabei por declarar-lhe que estava disposto a levar a criança, logo que encontrasse um lugar adequado. Instruído pela experiência, estava resolvido a evitar novos erros.

Dois dias mais tarde, entrando para a minha consulta, ao abrir a porta, ouvi uma voz furiosa de mulher que vinha da sala de espera. A sala estava cheia de gente, que me esperava com a habitual paciência. John estava sentado, encolhido num canto do sofá, junto da mulher do pastor inglês. No meio da casa, Josefina, de pé, fazia grandes gestos, falando e gritando. Mal me avistou correu para o sofá, agarrou em John e quase mo atirou para cima; apenas tive tempo para o apanhar nos braços.

- Pois claro, eu não sou digna de criar um menino como o senhor John - gritou Josefina. - Vale mais que fique com o doutor, que eu já estou farta dos seus ralhos e das suas mentiras para me fazer acreditar que é órfão. Basta ver-te os olhos para saber quem é o teu pai.

Ergueu o reposteiro e saiu a correr, pouco faltando para atirar ao chão Mamssell Ágata, que, com seus olhos brancos, me deitou um olhar tão terrível que me deixou pregado no chão. A mulher do pastor levantou-se do canapé e saiu da sala; ao passar na minha frente cerrou contra si as saias, escandalizada.

- Faça favor de levar esta criança para a casa de jantar e de a guardar até que eu volte - disse a Mamssell Ágata.

Estendeu os braços para a frente, num gesto de horror, como para se proteger de algum impuro; a fenda que tinha por baixo do nariz adunco abriu-se num horrível sorriso e desapareceu atrás da mulher do pastor.

Sentei-me para almoçar, dei uma maçã a John e chamei Rosália.

- Rosália - disse-lhe. - Tome lá dinheiro e vá comprar um vestido de chita, dois aventais brancos e o mais que for necessário para ficar apresentável. Desde hoje fica para criada deste menino.

Esta noite dorme no meu quarto; a partir de amanhã, irá dormir consigo, no quarto de Mamssell Ágata.

- Mas Mamssell Ágata? - perguntou Rosália, aterrorizada.

- Mas Mamssell Ágata? Eu mesmo a despedirei no fim do almoço.

Despachei prontamente os meus doentes e dirigi-me para o seu quarto. Por duas vezes levantei a mão para bater à porta, e por duas vezes a deixei cair. Não chamei. Decidi que era mais prudente adiar a entrevista para depois do jantar, quando os meus nervos estivessem um pouco mais calmos.

Mamssell Ágata permaneceu invisível. Rosália serviu-me ao jantar um cozido excelente e um pudim de leite, que eu partilhei com John. Todas as francesas da sua classe são boas cozinheiras.

Depois de alguns copos de vinho suplementares, para acalmar os nervos, dirigi-me, na intenção de chamar, à porta de Mamssell Ágata, ainda fremente de cólera. Não bati. Pensei de repente que todo o meu sono daquela noite ficaria perdido, se eu tivesse uma cena com ela a tais horas, e que o sono me era mais necessário do que tudo. Era preferível deixar a entrevista para o dia seguinte de manhã.

Ao tomar o pequeno almoço, cheguei à conclusão de que o melhor meio era preveni-la por escrito.

Sentei-me para lhe escrever uma carta fulminante; mas, mal havia começado, entrou Rosália, trazendo-me algumas palavras na diminuta e aguda letra de Mamssell Ágata, em que me dizia que nenhuma pessoa honrada podia permanecer um dia mais em minha casa; que partia para sempre naquela mesma tarde e que desejava não tornar mais a ver-me... Precisamente as mesmas palavras que eu me preparava para lhe escrever.

A invisível presença de Mamssell Ágata embruxava ainda a casa quando, na Primavera, fui comprar uma camita para John e um cavalo de baloiço, com a intenção de o recompensar do que lhe devia. A cozinheira voltou no dia seguinte, feliz e contente. Rosália não cabia em si de satisfação; até John me pareceu alegre, no seu novo ambiente, quando à noite o fui ver na sua camita confortável. Eu próprio me sentia feliz como um estudante em férias.

Mas em férias não podia pensar. Trabalhava sem descanso de manhã à noite, junto dos meus doentes, e também, muitas vezes, dos doentes de alguns colegas que começavam a chamar-me a conferências, para partilhar das suas responsabilidades - com grande espanto meu, porque já então nenhuma responsabilidade me causava temor. Compreendi mais tarde que estava nisso um dos segredos do meu êxito. Outro era a minha sorte persistente, mais assombrosa que nunca, de tal modo que acabei por acreditar que tinha uma mascotte em casa. Comecei até a dormir melhor, depois que tomei o hábito de ir deitar um olhar ao pequenito adormecido na sua caminha, antes de deitar-me.

A mulher do pastor inglês abandonara-me, mas muitos dos seus compatriotas vieram substituí-la no canapé da minha sala de espera. Era tal o esplendor que iluminava o nome do doutor Charcot que um pouco dessa claridade se reflectia ainda sobre os seus mais diminutos satélites. Os Ingleses pareciam estar convencidos de que os seus melhores médicos sabiam menos de doenças nervosas do que os seus colegas franceses. Não sei se tinham razão ou não, mas por certo era para mim uma fortuna. Cheguei mesmo, nessa época, a ser chamado em consulta a Londres. Naturalmente sentia-me lisonjeado e resolvi fazer o melhor que pudesse. Não conhecia a doente, mas havia tido muita sorte com um membro da sua família, o que explicava, sem dúvida, aquela chamada.

Era um mau caso, um caso desesperado, na opinião dos meus colegas ingleses, que, em pé, junto da cama, me olhavam com tristeza, enquanto eu examinava a enferma. O pessimismo deles envenenara toda a casa; a vontade da doente de curar-se estava paralisada pelo desalento e o medo da morte. É muito provável que os meus colegas conhecessem a sua patologia melhor do que eu. Mas eu sabia uma coisa que evidentemente eles ignoravam: que não há remédio tão poderoso como a esperança, e que o menor sinal de pessimismo no rosto dum médico pode custar a vida ao doente.

Sem entrar em minúcias médicas, basta dizer que o exame da doente me deixou a convicção de que os sintomas mais graves provinham de perturbações nervosas e de atonia mental. Os meus colegas, que me observavam, encolheram os ombros quando, poisando-lhe a mão na fronte, disse à doente, com voz tranquila, que não precisava de morfina para a noite. Dormiria bem sem isso, e de manhã estaria muito melhor e livre de perigo, antes que eu deixasse Londres, no dia seguinte.

Alguns minutos mais tarde dormia ela profundamente; durante a noite a temperatura baixou, talvez mesmo mais rapidamente do que eu desejava; o pulso tornou-se regular, e de manhã a doente sorriu-me, dizendo-me que se encontrava muito melhor.

A mãe suplicou-me que ficasse um dia mais em Londres para ver uma cunhada que os trazia a todos preocupados. O marido, um coronel, queria que ela consultasse um especialista dos nervos; ela própria tentara em vão fazê-la ver pelo Dr. Phillips; estava convencida de que a enferma melhoraria, se pudesse ter um filho. Desgraçadamente, tinha uma inexplicável antipatia pelos médicos e certamente recusaria consultar-me; mas podiam dispor-se as coisas de maneira que à mesa ficasse ao lado dela, para poder formular uma opinião acerca do seu caso. Talvez Charcot pudesse fazer alguma coisa por ela!... O marido adorava-a e ela possuía tudo o que a vida pode dar: vivia num magnífico palácio na Grosvenor Square, uma das mais antigas residências de Kent. Acabavam de chegar dum longo cruzeiro pelas Índias, no seu yacht. Nunca tinha descanso; errava constantemente dum sítio para outro, como à procura de alguma coisa. Tinha no olhar uma tristeza profunda, como que uma obsessão. Outrora interessara-se pelas artes, pintava excelentemente e passara até um Inverno em Paris, no atelier de Julien. Agora, não se interessava por nada, coisa alguma a prendia; não, interessava-se pela sorte das crianças e subscrevia largamente para as colónias de férias e os orfanatos.

Consenti em ficar, com bastante custo. Estava ansioso por voltar a Paris, porque me inquietava a tosse de John.

A dona da casa esquecera-se apenas de dizer-me que a cunhada, que estava sentada ao meu lado à mesa, era uma das mulheres mais belas que eu tenho visto. Também me chamou a atenção a tristeza dos seus magníficos olhos negros. Todo o rosto parecia, até certo ponto, privado de vida. Dir-se-ia que a minha presença a incomodava e não procurava dissimulá-lo. Disse-lhe que, no Salon daquele ano, havia alguns quadros de valor e que soubera pela cunhada que ela havia estudado no atelier de Julien. Conhecera Maria Baschkirtzeff? Não, mas ouvira falar dela. Sim, como toda a gente. «Moussia» dedicava a maior parte do seu tempo a pôr-se em destaque. Eu conhecia-a muito bem; era uma das jovens mais inteligentes que me fora dado encontrar; mas não tinha coração; era, acima de tudo, uma poseuse, incapaz de amar alguém, a não ser ela própria.

A minha vizinha parecia mais aborrecida do que nunca. Na esperança de ser mais bem sucedido, disse-lhe que passara a tarde no hospital de crianças de Chelsea. Havia sido uma revelação para mim, que frequentava o hospital das Crianças Expostas, em Paris.

Ela julgava que os nossos hospitais para crianças eram muito bons. Disse-lhe que não era assim, que em França a mortalidade infantil, dentro e fora dos hospitais, era aterradora. Falei-lhe dos milhares de recém-nascidos abandonados, enviados à província no «comboio das amas». Pela primeira vez voltou para mim os seus olhos tristes; a expressão dura e sem vida desaparecera; disse comigo mesmo que, apesar de tudo, talvez fosse uma mulher sensível.

Ao despedir-me da dona de casa, assegurei-lhe que não era um caso - nem para mim nem para o próprio Charcot - o Dr. Phillips estava indicado: a cunhada curar-se-ia quando tivesse um filho.

John pareceu contente ao ver-me; mas encontrei-lhe um ar pálido e abatido, ao sentar-se na sua cadeira, junto de mim, para almoçar. Rosália disse-me que tossia muito de noite. Ao anoitecer, a temperatura subiu um pouco e eu tive-o na cama dois dias. Retomou o ramerrão quotidiano da sua pequena vida; assistia, silencioso e grave, como sempre, ao meu almoço e de tarde Rosália levava-o ao Parque Monceau.

Um dia, uma quinzena depois do meu regresso de Londres, fiquei surpreendido ao encontrar o coronel sentado na minha sala de espera. A mulher mudara de parecer e resolvera vir a Paris fazer algumas compras, e deveriam ir encontrar o yacht, em Marselha, para um cruzeiro no Mediterrâneo. Convidou-me para almoçar no dia seguinte no Hotel do Rheno e disse-me que a mulher ficaria encantada se eu quisesse levá-la depois a visitar um hospital de crianças.

Como não pude aceitar o convite, combinámos que ela passaria pela Avenida de Villiers, depois da minha consulta.

A sala estava ainda cheia quando o seu elegante landau parou diante da porta. Mandei descer Rosália para lhe pedir que fosse dar uma pequena volta e tornasse meia hora mais tarde, a menos que não preferisse esperar, na sala de jantar, que eu acabasse a consulta. Meia hora depois, fui ali encontrá-la com John sentado nos joelhos, e vivamente interessada pelas explicações que ele lhe dava sobre os seus brinquedos.

- Tem os seus olhos - disse-me ela, olhando para John e para mim. - Não sabia que o doutor era casado.

Disse-lhe que era solteiro e ela, corando ligeiramente, voltou a folhear o livro de estampas de John. Não tardou a tranquilizar-se; e, com a tenaz curiosidade feminina, perguntou-me se a mãe era sueca. Tinha os cabelos tão loiros e os olhos tão azuis!

Compreendi bem aonde ela queria chegar. Sabia que Rosália, o porteiro e o padeiro estavam convencidos de que eu era o pai de John; ouvira o meu cocheiro, referindo-se a ele, dizer: «o filho do senhor». Qualquer explicação seria inútil; não teria conseguido desenganá-los; de resto, eu próprio quase acabei por acreditá-lo também. Mas pensei que aquela senhora, tão carinhosa, tinha o direito de saber a verdade. Disse-lhe, rindo, que era tanto pai dele como ela era mãe. Que o pequenito era órfão e que a sua história era bem triste. Era preferível que não ma perguntasse; só podia entristecê-la. Ergui-lhe a manga do vestido e mostrei-lhe uma feia cicatriz que ele tinha no braço. Agora está em boas mãos, entregue a mim e a Rosália; mas só estarei seguro de que esqueceu o passado quando o veja sorrir. Não sorri nunca.

-É verdade - disse ela, com doçura. - Não sorriu uma única vez, como é costume das crianças quando mostram os brinquedos.

Disse-lhe que conhecíamos bem pouco da mentalidade das crianças; éramos estranhos ao mundo em que viviam. Somente o instinto das mães podia orientar-se de vez em quando no caminho dos seus pensamentos.

Como única resposta, inclinou-se para ele e beijou-o com ternura. John olhou-a, com seus olhos azuis cheios de surpresa.

- É, sem dúvida, o primeiro beijo que ele recebe - disse eu.

Rosália veio buscá-lo para o levar ao costumado passeio da tarde, ao Parque Monceau; mas a sua nova amiga propôs levá-lo no seu landau. Eu, que estava encantado de escapar desse modo à projectada visita ao hospital, aceitei com prazer.

Desde esse dia, começou uma vida nova para John, e, segundo creio, para outra pessoa também. Todas as manhãs ela aparecia no quarto dele com um novo brinquedo; todas as tardes o levava de carruagem ao Bosque de Bolonha, com Rosália, vestida com o seu melhor vestido, no assento detrás. Muitas vezes o pequeno dava uma volta, com o seu ar sério, no dorso dum camelo do Jardim de Aclimatação, escoltado por um bando de alegres pequenitos.

- Não lhe traga tantos brinquedos caros; as crianças apreciam de igual modo os brinquedos baratos; e há tantas que não têm nenhum! Tenho notado muitas vezes que uma insignificante boneca de pouco valor tem sempre o maior êxito, até entre as crianças mais ricas. Quando as crianças começam a compreender o valor do dinheiro, são expulsas do seu Paraíso, e deixam de ser crianças. Além disso, John tem já demasiados brinquedos e é tempo de ensinar-lhe a dar alguns aos que não têm. É uma lição um pouco difícil de ensinar a algumas crianças. A facilidade maior ou menor com que a aprendem é um seguro indício sobre o homem ou a mulher que virão a ser.

Disse-me Rosália que, quando regressavam do passeio, aquela formosa senhora insistia sempre para ser ela a levar John ao colo. Não tardou que se deixasse ficar para assistir ao seu banho; e, em breve, ela própria se encarregava de lho dar, e Rosália não tinha mais que passar-lhe as toalhas. Rosália disse-me uma coisa que me enterneceu. Depois de enxugar o corpito do pequeno, e antes de vesti-lo, aquela dama beijava sempre a cicatriz do braço. Dentro em pouco ela própria o despia e metia na cama, conservando-se junto dele até que adormecesse.

Quanto a mim, via-a raras vezes. Estava fora de casa todo o dia e temo que o pobre coronel a visse também pouco tempo, pois ela passava todo o dia com o pequenito. Disse-me o coronel que haviam renunciado ao cruzeiro no Mediterrâneo; permaneceriam em Paris, não sabia por quanto tempo. De resto, não lhe importava; contanto que a mulher estivesse contente... E nunca estivera melhor de que naqueles dias. O coronel tinha razão: a expressão do rosto mudara completamente e uma infinita ternura brilhava nos seus olhos negros.

A criança dormia mal; muitas vezes quando, antes de deitar-me, ia vê-la, parecia-me que lhe encontrava febre. Rosália dizia-me que tossia muito de noite. Uma manhã ouvi, no vértice do seu pulmão direito, uma rala de mau augúrio. Por demais sabia eu o que aquilo significava. Tive de o confessar à sua nova amiga. Respondeu-me que já o sabia; provavelmente soube-o primeiro do que eu. Quis tomar uma enfermeira para ajudar Rosália, mas ela não consentiu em tal, suplicando-me que a aceitasse a ela, e eu acedi. De resto não havia outra coisa a fazer, pois a criança parecia agitada, mesmo dormindo, logo que ela saía do quarto. Rosália foi dormir com a cozinheira na água-furtada, e a filha do duque dormia na cama da criada, no quarto de John. Dez dias depois teve uma ligeira hemoptise; de tarde a temperatura subiu e tornou-se evidente que a doença teria um curso rápido.

- Não viverá muito - disse Rosália, limpando os olhos chorosos. - Já tem o rosto dum anjo.

John gostava de estar ao colo da sua carinhosa enfermeira, quando Rosália lhe arranjava a cama para a noite. Eu sempre considerara o pequenito como uma criança inteligente e de doce expressão, mas nunca o classificaria de bonito. Olhando-o agora, pareciam-me diferentes as suas feições; os olhos haviam-se tornado maiores e mais belos. Transformara-se numa formosa criança, bela como o Génio do Amor ou da Morte. Olhando aqueles dois rostos juntos, face contra face, fiquei maravilhado. Seria possível que o amor infinito, que irradiava do coração daquela mulher por esta criança moribunda, pudesse remodelar os doces contornos daquela carita e a tornasse parecida à sua? Era eu testemunha dum novo mistério da vida? Ou seria a Morte, esse poderoso escultor, que com mão de mestre estava já ao trabalho para remodelar e enobrecer os traços desta criança, antes de lhe cerrar as pálpebras? A mesma fronte pura, a mesma curva deliciosa das sobrancelhas, as mesmas pestanas compridas! Até o contorno dos lábios seria o mesmo se o pudesse ver sorrir, como a vi sorrir a ela, na noite em que, em seu sono, ele murmurou pela primeira vez aquela palavra que todas as crianças querem pronunciar e todas as mulheres adoram ouvir: «Mamã! Mamã!». Deitou-o na camita; ele passou uma noite agitada e ela não lhe deixou a cabeceira. Pela manhã, a respiração pareceu um pouco mais fácil e a criança adormeceu docemente. Recordei àquela senhora a promessa que fizera de obedecer-me, e a custo consegui que se deitasse um pouco na cama. Rosália chamá-la-ia logo que ele despertasse. Quando, ao amanhecer, voltei ao quarto, Rosália, pondo um dedo nos lábios, disse-me em voz baixa que ambos dormiam.

- Repare - murmurou ela. - Repare: está a sonhar!

O rosto estava calmo e sereno, os lábios entreabriram-se num sorriso. Pus-lhe a mão sobre o coração. Estava morto. Os meus olhos foram do rosto sorridente da criança ao da mulher adormecida na cama de Rosália. Era o mesmo rosto.

Levantou-se e vestiu-o pela última vez. Nem sequer permitiu que Rosália o deitasse no caixão. Por duas vezes lhe mandou buscar a almofada que desejava, pois lhe parecia que a cabeça do pequenito não estava bem repousada.

Suplicou-me que adiasse o funeral até ao dia seguinte, para fechar o caixão. Respondi-lhe que ela conhecia a amargura da vida, mas conhecia muito pouco a da morte. Eu era médico e conhecia-as ambas. Disse-lhe que a morte tinha dois rostos: um belo e sereno, outro repelente e terrível. A criança havia deixado a vida com um sorriso nos lábios; mas a morte não tardaria em roubar-lho. Era necessário fechar o caixão naquela mesma noite.

Baixou a cabeça e não disse mais nada. Quando colocava a tampa, pôs-se a soluçar e disse-me que não poderia separar-se dele e deixá-lo sozinho num cemitério estrangeiro.

- E porque há-de separar-se dele? - disse-lhe. - Porque não há-de levá-lo consigo! Pesa tão pouco! Porque não há-de levá-lo para a Inglaterra, no seu yacht, para o enterrar junto da linda igreja de Kent?

Sorriu-se, através das lágrimas, com o mesmo sorriso da criança.

- Posso? Posso? - exclamou, quase com alegria.

- Pode, se me deixar fechar o caixão. Não há tempo a perder ou levá-lo-ão amanhã ao cemitério de Passy.

Pôs um ramito de violetas junto da cara do pequeno.

- Não tenho outra coisa para lhe dar - disse, soluçando. - Gostaria tanto de lhe dar alguma coisa minha para levar consigo!

- Creio que ele gostaria de levar isto - disse eu, tirando do bolso o broche de diamantes e espetando-lho na almofada. - Pertenceu à mãe dele.

Não respondeu nada; estendeu os braços para o filho e caiu inanimada no chão. Tomei-a nos braços e depu-la na cama de Rosália. Fechei o caixão e dirigi-me à agência fúnebre. Tive uma conversa particular com o gerente, com quem, por desgraça minha, já me havia encontrado. Autorizei-o a gastar o que fosse preciso, contanto que o caixãozito pudesse embarcar num yacht inglês no porto de Calais, no dia seguinte. Disse-me que era coisa realizável, se eu não olhasse a despesas. Respondi-lhe que o gasto era o menos. Dali fui ao Hotel do Rheno, despertar o coronel, a quem disse que a esposa desejava que o yacht estivesse em Calais doze horas mais tarde. Enquanto ele redigia o telegrama ao capitão, sentei-me para escrever algumas apressadas linhas à esposa, avisando-a de que o caixão estaria a bordo do yacht, no porto de Calais, no dia seguinte. Em P. S., acrescentava que tinha de deixar Paris no dia seguinte, muito cedo e me despedia daquele modo.

Vi o túmulo de John. Repousa no cemitério duma das mais belas igrejas da paróquia de Kent. Primaveras e violetas crescem na sua campa e os melros cantam à volta.

Não tornei a ver a mãe. Melhor foi assim.

 

                                     VIAGEM À SUÉCIA

CREIO ter-me já referido à doença do cônsul da Suécia. Foi precisamente nessa época. Mas eu lhes conto a história. O cônsul era um homenzinho agradável e tranquilo, casado com uma americana, e já com dois filhos pequenos. Tinha estado pela tarde em casa dele. Um dos pequenos estava doente, mas queria por força levantar-se para festejar o regresso do pai, que voltava da Suécia naquela mesma noite. A casa estava cheia de flores e tinha-se permitido às crianças cearem à mesa, em honra do feliz acontecimento. A mãe mostrou-me, satisfeitíssima, dois telegramas do marido, muito carinhosos, enviados de Colónia e de Berlim, e anunciando a chegada. Pareceram-me demasiado longos. À meia-noite, a mulher chamava-me com toda a urgência. Abriu-me a porta o próprio cônsul, em camisa de dormir. Disse-me que tinham demorado a ceia, para esperar a chegada do rei da Suécia e do presidente da República Francesa, que acabava de oferecer-lhe a Grã-Cruz da Legião de Honra. Comprara o Petit Trianon para residência de Verão da família e estava furioso com a mulher por ela não querer usar o colar de pérolas de Maria Antonieta, que ele lhe havia oferecido. Ao filho, chamava Delfim e ele próprio se anunciava como Robespierre. Loucura das grandezas! As crianças gritavam aterrorizadas no seu quarto; a mulher estava prostrada pela dor, e o seu fiel cão uivava com medo junto da mesa. De repente, o meu pobre amigo tornou-se furioso; tive de encerrá-lo no quarto, onde despedaçou tudo, pouco faltando para nos atirar a ambos pela janela. De manhã, foi transportado para o hospício do Dr. Blanche, em Passy. O célebre alienista pensou imediatamente na paralisia geral; dois meses depois, o diagnóstico confirmou-se: era um caso incurável.

Como a Maison Blanche era muito cara, decidi-me a transferi-lo para o hospício oficial de Lund, pequena povoação do Sul da Suécia. O Dr. Blanche opunha-se. Dizia que era uma empresa cara e perigosa, que não havia que fiar na sua lucidez passageira, e que em todo o caso teria de ser acompanhado por dois enfermeiros competentes. Respondi-lhe que o pouco dinheiro que restava havia que economizá-lo para as crianças; a viagem tinha de fazer-se o mais economicamente possível, e por essa razão eu próprio o conduziria à Suécia.

Quando assinei a folha de saída do manicómio, o Dr. Blanche renovou, por escrito, as suas advertências; mas sobre o caso eu sabia mais do que ele. Levei imediatamente o cônsul à Avenida de Villiers. Durante o jantar, esteve perfeitamente calmo e razoável, salvo na ocasião em que se pôs a cortejar Mamssell Ágata, que em sua vida jamais tivera semelhante sorte. Duas horas depois, estávamos fechados num compartimento de primeira classe do rápido da noite para Colónia. Nesse tempo não havia carruagens com corredor. Como eu era médico dum dos Rothschild, proprietários dos caminhos de ferro do Norte, conseguira que fossem dadas ordens para que nos facilitassem de todos os modos a nossa viagem e não nos incomodassem, pois a vista de estranhos punha o enfermo mais agitado.

Permanecia muito sossegado e dócil, e estendemo-nos nas nossas camas para dormir. Despertei com a pressão das mãos do louco na garganta; duas vezes o atirei por terra, duas vezes ele se atirou a mim com a agilidade da pantera e por pouco não me estrangula. A última coisa de que me lembro é de lhe ter dado uma pancada na cabeça, que pareceu aturdi-lo. Ao entrarmos em Colónia, pela manhã, encontraram-nos, aos dois, estendidos no chão do compartimento, e transportaram-nos para o Hotel do Norte, onde ficámos durante vinte e quatro horas, cada um na sua cama, mas no mesmo quarto. Como tive de dizer a verdade ao médico que veio curar a minha ferida - o louco tinha-me quase arrancado uma orelha com os dentes - o proprietário mandou-me prevenir de que não se admitiam loucos no hotel. Decidi-me a continuar para Hamburgo pelo comboio da manhã. O enfermo esteve muito bem durante toda a viagem até Hamburgo; e, no carro que dali nos conduzia à estação de Kiel, pôs-se a cantar a Marselhesa.

Embarcámos, sem incidentes, no vapor para Korsuer, então o caminho mais curto entre o continente e a Suécia. A duas milhas da costa dinamarquesa, o barco foi bloqueado pelos bancos de gelo atirados do Kategat por uma violenta tempestade nórdica, aventura que não é rara durante um Inverno rigoroso. Tivemos de caminhar durante mais de uma milha por entre os gelos flutuantes, o que divertiu muito o meu amigo. Quando entrávamos no porto de Korsuer, o enfermo atirou-se ao mar, e eu atrás dele. Recolheram-nos, e tomámos um comboio sem aquecimento até Copenhague, com o fato gelado: a temperatura era de vinte graus abaixo de zero. O resto da viagem foi excelente; o banho frio parecia ter feito um bem imenso ao meu amigo. Uma hora depois da travessia de Malmoe, entreguei o doente na estação de Lund a dois empregados do manicómio. Dirigi-me de carro para o hotel - naquela época era o único que havia em Lund - e pedi um quarto e almoço. Disseram-me que podiam dar-me almoço mas não quarto, pois todos haviam sido tomados por uma troupe de artistas dramáticos que davam naquela noite uma representação de gala no teatro municipal. Enquanto eu comia veio o criado trazer-me, com visível orgulho, o programa da representação da noite: Hamlet, tragédia em cinco actos de Guilherme Shakespeare. o Hamlet em Lund! Deitei uma olhadela à distribuição:

Hamlet, príncipe da Dinamarca... Erick Carolus Malmborg! O prospecto caiu-me das mãos. Erick Carolus Malmborg! Seria possível que fosse o meu antigo camarada da Universidade de Upsala?

Nesse tempo, Erick Carolus pensava em ordenar-se. Havia-o preparado para os exames, escrevera-lhe o primeiro sermão de ensaio, e até, durante todo o trimestre, as cartas de amor para a noiva. Todas as noites lhe dava uma boa tunda, quando ele me aparecia bêbedo para dormir no quarto que eu tinha reservado para os amigos, pois ele, pela sua desregrada conduta, fora expulso do seu domicílio. Havia-o perdido de vista quando saí da Suécia, e muitos anos tinham passado. Sabia que o tinham expulso da Universidade e que ia de mal a pior. De repente, lembrei-me também de que ouvira dizer que se dedicara ao teatro, e por certo o Hamlet daquela noite era o meu velho e desgraçado amigo. Mandei-lhe ao quarto o meu cartão de visita, e ele acorreu como uma tromba, contentíssimo por me ver ao cabo de tantos anos. Contou-me uma triste história. Depois duma série desastrosa de representações em Malmoe, com o teatro vazio, a companhia, reduzida a um terço do efectivo, chegara a Lund na noite anterior, para tentar contra o destino uma última batalha. Em Malmoe, os credores haviam-se apoderado da maior parte do vestuário e móveis, das jóias da rainha-mãe, da própria espada de Hamlet, com que ele devia atravessar o corpo de Polonius, e até da caveira de Yorik. Ao Rei, atacara-o um agudo ataque de ciática e não podia andar nem sentar-se no trono; Ofélia tinha uma fortíssima constipação, e o Espectro embebedara-se na ceia de despedida em Malmoe e perdera o comboio. Ele era o único que se encontrava excelentemente; o Hamlet era a sua melhor criação, e dir-se-ia que o papel fora escrito expressamente para si. Mas como podia ele, sozinho, carregar com aquele peso imenso duma tragédia em cinco actos? Todos os lugares estavam tomados para a representação da noite; e se fosse preciso devolver o dinheiro a quebra seria inevitável. Poderia eu emprestar-lhe duzentas coroas em nome da nossa velha amizade? Estive à altura da situação. Convoquei as estrelas da troupe, infundi um sangue novo naqueles corações desalentados, graças a várias garrafas de ponche sueco; cortei sem piedade toda a cena dos actores, a cena dos coveiros, a morte de Polonius, e declarei que, com Espectro ou sem ele, se realizaria o espectáculo.

Foi uma noite memorável nos anais do teatro de Lund. Às oito horas em ponto, o pano ergueu-se sobre o palácio real de Elsenor, que ficava a uma hora dali. O teatro, à cunha, com grande concorrência de estudantes turbulentos da Universidade, era menos fácil de comover do que nós esperávamos. A entrada do príncipe da Dinamarca passou quase desapercebida; até o seu famoso «ser ou não ser» deixou o público frio. O rei arrastou-se com dificuldade através da cena e deixou-se cair, com um gemido, sobre o trono. A constipação de Ofélia adquirira proporções aterradoras. Era evidente que Polonius não sabia que fazer. Foi o Espectro que salvou a situação. O Espectro era eu. Quando avançava com passos fantasmagóricos sobre as muralhas do castelo de Elsenor, abrindo a custo caminho através dos caixotes de embalagem que as formavam, todo aquele edifício desabou de repente e fui precipitado dentro dum dos caixotes, onde fiquei só com a cabeça de fora. Que seria de esperar dum espectro em semelhante ocorrência? Devia meter a cabeça para dentro e desaparecer inteiramente, ou continuar como estava e esperar os acontecimentos? Belo problema a resolver! Uma terceira solução sugeriu-ma o próprio Hamlet, em voz baixa e angustiada: por que diabo não saía eu daquele infernal caixote? Isso, sim, que era impossível; tinha as pernas presas nos rolos de cordas e em toda a espécie de acessórios daquela geringonça.

Bem ou mal, resolvi-me a ficar como estava, disposto para os acontecimentos. O meu desaparecimento inesperado no caixote foi acolhido com aplausos pelo público; mas isso não foi nada comparado com o êxito que tive quando, só com a cabeça de fora do caixote, continuei, com voz lúgubre, a minha tirada a Hamlet. Os aplausos tornaram-se tão frenéticos que tive de agradecê-los com um gesto amigo da mão; na delicada posição em que me encontrava, não podia fazer outra coisa. O público tornou-se doido de alegria e os aplausos não cessaram até ao fim. Quando o pano caiu, no último acto, apareci com as estrelas da companhia para agradecer ao público, que gritava «O espectro! O espectro!». Era tal a insistência que tive de avançar sozinho ao proscénio, uma e muitas vezes, a mão no coração, para agradecer aqueles aplausos.

Estávamos todos contentíssimos. O meu amigo Malmborg declarou que nunca tivera uma noite mais afortunada. À meia-noite, reunimo-nos numa ceia das mais animadas. Ofélia foi amabilíssima comigo e Hamlet, ao brindar-me, ofereceu-me, em seu nome e no dos companheiros, a direcção da troupe. Disse-lhe que era caso para reflexão. Todos me acompanharam ao comboio. Quarenta e oito horas depois estava em Paris e retomava o meu trabalho sem a menor fadiga. Ai! Mocidade! Mocidade!

 

                       MÉDICOS

UM grande número de médicos estrangeiros exercia clínica em Paris, nessa época. Havia entre eles grandes rivalidades de ofício; nelas tinha a minha parte, o que é natural. Dos nossos colegas franceses, não éramos mais estimados; monopolizávamos a clientela estrangeira, que, evidentemente, era mais lucrativa que a deles. Ultimamente, tinham criado na Imprensa um movimento de protesto contra o número sempre crescente de médicos estrangeiros em Paris, insinuando que muitos deles nem sequer possuíam os necessários diplomas de Universidades reconhecidos. Como consequência disto, o comissário de polícia ordenou que todos os médicos estrangeiros teriam de apresentar os seus diplomas, para verificação, até ao fim do mês. Por mim, estava evidentemente em regra, com o meu diploma da Faculdade de Paris; pouco faltou para que esquecesse completamente esta história, e só no último dia me apresentei ao comissário de Polícia do meu bairro. Este, que me conhecia vagamente, pediu-me informações do Dr. X, que habitava na mesma avenida que eu. Disse-lhe que sabia apenas que tinha uma numerosa clientela; que ouvia muitas vezes o seu nome e que não poucas admirara o elegante carro que o esperava à porta. Disse-me o comissário que pouco tempo já teria para o admirar: estava na lista negra, não tinha ainda apresentado o diploma porque o não tinha e era um charlatão; enfim, que ia prendê-lo. Passava por ganhar mais de duzentos mil francos por ano, mais que a maior parte das celebridades de Paris. Disse-lhe que não havia nenhuma razão para que um charlatão não fosse um bom médico; que os doentes se importavam pouco com o diploma, contanto que aquele os curasse. O fim da história soube-o dois meses mais tarde, pelo próprio comissário. O Dr. X apresentara-se à última hora e pedira uma entrevista particular ao comissário. Apresentara-lhe um diploma duma Universidade alemã bem conhecida e suplicara-lhe que lhe guardasse o segredo, declarando-lhe que devia a sua enorme clientela ao facto de passar aos olhos de todos por um charlatão. Disse ao comissário que esse homem não tardaria em ser milionário por pouco que fosse tão bom médico como era psicólogo. Ao voltar a casa, a pé, não invejava os duzentos mil francos do meu colega, mas invejava-o por conhecer a quanto montavam exactamente os seus rendimentos. Eu sempre desejara saber quanto ganhava. Que ganhava muito, era certo; tinha sempre disponibilidades à discrição, quando precisava para o que quer que fosse. Tinha uma bela casa, um carro elegante, uma excelente cozinheira; depois da partida de Mamssell Ágata, levava muitas vezes os meus amigos a jantar à Avenida de Villiers, e oferecia-lhes o que havia de melhor. Havia ido duas vezes a Capri: a primeira para comprar a casa de Mastro Vincenzo; a segunda para oferecer uma avultada quantia ao proprietário desconhecido da pequena capela em ruínas de San Michele - e foram-me precisos dez anos para ultimar este contrato. Já então me interessavam, amorosa e apaixonadamente, as coisas de arte; a minha casa da Avenida de Villiers estava cheia de tesouros dos tempos passados; e mais de doze relógios antigos me faziam ouvir as horas nas minhas noites, tantas vezes de insónias. Por qualquer razão inexplicável, estes períodos de prosperidade eram muitas vezes interrompidos por momentos em que não tinha nada. Sabia-o Rosália, a porteira, e até os fornecedores o sabiam. Norstrom sabia-o também, pois muitas vezes tive de pedir-lhe dinheiro emprestado. Dizia-me ele que a única explicação estava em qualquer desarranjo do meu mecanismo mental; que o remédio era fazer todos os dias as minhas contas e enviar aos meus doentes com regularidade a nota dos meus honorários. Disse-lhe que não havia a mais pequena esperança de vir a fazer as minhas contas, e que, quanto a passar facturas, nunca o fizera e não ia fazê-lo. A nossa profissão não era um comércio mas uma arte, e essa maneira de traficar com o sofrimento era para mim uma humilhação. Corava até à raiz dos cabelos quando um cliente punha um louis sobre a mesa; mas, se mo punha na mão, dava-me vontade de lhe bater. Norstrom disse-me que tudo isso não era mais do que orgulho e vaidade; que devia receber, quanto mais melhor, como todos os meus colegas, ainda que o dinheiro proviesse do dono duma agência funerária. Respondi-lhe que a nossa profissão era uma missão sagrada, tanto ou mais do que a do padre; e que nela os ganhos excessivos deviam ser proibidos por lei. Os médicos deviam ser pagos e bem pagos pelo Estado, como os juízes em Inglaterra. Aqueles a quem isto não conviesse não tinham mais que renunciar à profissão, dedicar-se à Bolsa ou abrir uma loja. Os médicos viveriam como sábios, honrados e protegidos de todos. Deveriam ter direito de cobrar aos ricos quanto quisessem para os seus doentes pobres e para si próprios, mas não contar visitas nem redigir facturas. Para um coração de mãe quanto valia a vida dum filho que o médico salvara? Que salário atribuir por haver dissipado o terror da morte, dum olhar atormentado, só com uma palavra carinhosa ou simples toque na mão? Em quanto avaliar cada segundo duma vida arrancada à morte, em luta com ela? Por quanto tempo ainda impor à humanidade doente todos esses medicamentos caros e essas drogas catalogadas com nomes modernos, mas cujas raízes remontam à superstição medieval? De sobra sabemos que as drogas eficazes se podem contar pelos dedos, e que a benévola mãe Natureza as põe ao nosso alcance por um preço mínimo! E por que razão eu, médico da moda, havia de passear numa elegante carruagem, quando o meu colega dos bairros excêntricos tinha de andar a pé? Porque gasta o Estado muitas centenas de vezes mais para ensinar a arte de matar que a de curar? Porque não construímos mais hospitais e menos igrejas? Pode invocar-se Deus em qualquer sítio, mas não se pode operar na rua! Porque se constróem tantas habitações confortáveis para os assassinos e os ladrões profissionais e tão poucas para os pobres sem abrigo? Não há homem nem mulher que não seja capaz, mesmo encerrado numa prisão, de ganhar o pão quotidiano, se for o caso comer ou não comer. Constantemente nos repetem que os que povoam as prisões são na maior parte pobres de espírito, desprovidos de inteligência, indivíduos mais ou menos irresponsáveis. É um erro. As suas faculdades intelectuais são, em geral, não inferiores, mas superiores à média. Todos os que caem pela primeira vez deviam ser condenados a menos tempo de prisão e a um regime alimentar reduzido, aliado a castigos corporais, repetidos e rigorosos. Deviam ceder o lugar aos pais dos filhos ilegítimos abandonados e aos souteneurs que actualmente andam em liberdade. A crueldade para com os animais indefesos é, aos olhos de Deus, um crime bem maior do que o roubo, e apenas se castiga com uma pequena multa. Todos sabemos que a acumulação excessiva de riquezas é, muitas vezes, um roubo feito aos pobres e habilmente dissimulado. Nunca vi um milionário no cárcere. A habilidade para tirar dinheiro, não importa de que maneira, é um dom especial dum valor moral bem duvidoso. Os que possuem esta faculdade só deveriam autorizar-se a fazer uso dela nas mesmas condições que as abelhas; que uma grossa fatia dos seus raios doirados fosse distribuída por aqueles que não têm mel para barrar o pão.

Quanto aos habitantes das prisões, criminosos inveterados, assassinos a sangue-frio, em vez de passarem a vida num bem-estar relativo, mais caro do que uma cama num hospital, deviam condená-los à morte sem dor, não como castigo, porque não temos o direito de julgar nem de punir, mas como medida de segurança. Como sempre, a Inglaterra tem razão. Deste modo os malfeitores não tinham razão para se queixar de serem maltratados pela sociedade. Obteriam como preço dos seus crimes o mais precioso privilégio que pode conceder-se ao Homem, privilégio muitas vezes recusado aos seus semelhantes como preço das suas virtudes: uma morte rápida.

Norstrom aconselhou-me a renunciar a modificar a sociedade, com que nada tinha, e que me entregasse à Medicina. Até ali não possuía o direito de queixar-me dos resultados. Mas Norstrom tinha graves dúvidas de que fosse bom o meu método de cuidar os enfermos trocando os meus serviços por objectos. Mantinha o seu ponto de vista de que o mais seguro era o antigo sistema de enviar a conta. Respondi que não estava certo disso. Apesar de que alguns dos meus clientes, depois de me escreverem duas vezes pedindo a nota dos meus serviços, partiam sem ter pago nada, nunca tal sucedia com os Ingleses; havia muitos que me pagavam, com frequência, importância superior ao que eu teria reclamado se lhes enviasse a conta. E, ainda que a maior parte dos meus clientes parecia preferir pagar a despojar-se das suas coisas, muitas vezes apliquei o meu sistema com êxito. Um dos objectos a que tenho mais apego é uma velha capa que recebi de miss C., no dia em que partiu para a América. Passeávamos na minha carruagem, e ela, para não perder tempo, ia-me exprimindo o seu reconhecimento eterno, a impossibilidade em que se encontrava de agradecer todas as minhas atenções, quando eu notei sobre os seus ombros uma velha capa de Loden. Era precisamente o que eu desejava. Estendi-a sobre os joelhos e disse-lhe que ficava com ela. Respondeu-me que a comprara havia dez anos e que gostava muito dela. Também eu, foi a minha resposta. Propôs-me ir imediatamente ao Old England, pois teria muito prazer em me oferecer uma capa escocesa, do melhor que tivessem. Disse-lhe que não queria nenhuma capa escocesa. Devo prevenir de que miss C. era possuidora dum génio irascível, que me dera bastante que fazer durante anos. Irritou-se a ponto de descer do carro sem me dizer adeus e partiu no dia seguinte para a América. Não a vi mais.

Recordo também o que se passou com Lady Maud B., que veio procurar-me à Avenida de Villiers antes de partir para Londres. Disse-me que me tinha escrito três vezes, sem resultado pedindo-me a conta, e que esava preocupadíssima e sem saber que fazer. Confundia-se em louvores aos meus méritos e à minha amabilidade; o dinheiro nada tinha que ver com o seu reconhecimento; tudo quanto possuía era insuficiente para me recompensar de lhe haver salvo a vida. Eu achava delicioso ouvir tudo aquilo da boca duma mulher tão encantadora. Enquanto ela falava, admirava eu o lindo vestido de seda vermelha que vestia e ela fazia o mesmo, olhando-se de lado e às furtadelas no grande espelho de Veneza da chaminé. Sem deixar de olhar a sua figura elegante e fina, disse-lhe que aceitaria o seu vestido, que era esse, exactamente, o preço que desejava. Desatou a rir alegremente, mas o riso mudou-se em consternação, quando a preveni de que mandaria Rosália às sete horas, ao hotel, buscar o vestido.

Ergueu-se, pálida de raiva, e disse-me que nunca ouvira coisa semelhante. Respondi-lhe que era bem possível, mas, tendo-me ela assegurado que não havia nada que não me desse, eu escolhera o vestido, por motivos particulares. Desatou a chorar e saiu precipitadamente.

Na semana seguinte encontrei a mulher do embaixador de Inglaterra na legação da Suécia. Esta amável senhora disse-me que não se haviam esquecido da minha recomendada inglesa, doente do peito; que a haviam até convidado para um garden-party oferecido por ela à colónia inglesa.

- Parece-me, na verdade, estar doente - disse-me a embaixatriz. - Mas não deve ser tão pobre como o doutor julga. Estou certa de que se veste na casa Worth.

Sentia-me verdadeiramente ofendido quando ouvia Norstrom afirmar que a minha incapacidade para enviar a conta e meter ao bolso os meus honorários era devida ao meu orgulho e à minha vaidade. Se Norstrom tivesse razão, forçoso era que eu reconhecesse que todos os meus colegas estavam singularmente isentos desses defeitos. Todos enviavam as suas contas como alfaiates, e guardavam com a maior sem-cerimónia o louis de oiro que lhes estendiam os doentes. Em muitos consultórios era de uso que o doente pusesse o seu dinheiro na mesa, antes de abrir a boca para falar das suas desgraças. Nas operações era da praxe que metade do importe se pagasse adiantado. Ouvi falar dum caso em que o doente foi despertado do clorofórmio e a operação adiada, para se poder verificar a validade dum cheque. Se qualquer de nós, astros de menor grandeza, chamava à conferência uma celebridade, esta punha nas mãos do modesto colega uma pequena parte dos seus honorários como coisa natural. Lembro-me da minha estupefacção, da primeira vez que recorri a um especialista embalsaImador, e ele me entregou quinhentos francos dos seus honorários. A tarifa dum embalsamamento era escandalosa.

Muitos dos professores que eu consultava nos casos difíceis eram homens de reputação universal, especialistas consumados, de diagnóstico extraordinariamente exacto e prodigiosamente rápido. Charcot, por exemplo, era quase sobrenatural, de tal modo ia direito à origem do mal, muitas vezes depois dum simples olhar, na aparência superficial, dos seus olhos de águia sobre o enfermo. Nos últimos anos de vida, possivelmente confiaria demasiado no seu olhar clínico e frequentemente o exame dos doentes era por demais rápido e superficial. Nunca queria reconhecer que se havia enganado e ai de quem ousasse dizer-lho! Aliás, era surpreendentemente reservado para uma prognose fatal, mesmo nos casos em que não havia nenhuma esperança. «O imprevisto é sempre possível», dizia.

Charcot foi o médico mais célebre da sua época. A sua sala de consulta do faubourg Saint-Germain enchia-se de doentes de todas as partes do Mundo, tendo muitas vezes de esperar semanas inteiras antes de serem admitidos ao santuário interior, onde ele os recebia sentado junto da janela da sua biblioteca. Baixo, com tronco de atleta e pescoço de toiro, era um homem que se impunha à primeira vista. Tinha o rosto pálido e barbeado, a testa baixa, os olhos frios e penetrantes, o nariz aquilino e os lábios sensuais; uma face de imperador romano. Quando se irritava, o brilho dos olhos era tão temível como o do raio; quem os visse assim uma vez, nunca mais os poderia esquecer. A voz era dura, imperativa, por vezes sarcástica! O aperto da mão pequena e gorda era desagradável. Possuía poucos amigos entre os colegas, e era temido de enfermeiros e ajudantes, para quem raras vezes tinha uma palavra de estímulo em troca do trabalho sobre-humano que lhes impunha. Interessava-se muito pouco pelos doentes, desde o dia em que pronunciava o seu diagnóstico até ao da autópsia. Entre os seus ajudantes tinha favoritos, a quem muitas vezes elevava a posições privilegiadas muito superiores aos seus méritos. Uma palavra de recomendação de Charcot bastava muitas vezes para decidir do resultado de qualquer exame ou concurso; em resumo, era o tirano supremo de toda a Faculdade de Medicina.

Como sucede com todos os especialistas de doenças nervosas, rodeava-o uma guarda de senhoras nevróticas, idólatras incondicionais. Por sorte sua, as mulheres não o interessavam. O seu único repouso em meio do trabalho incessante era a música. A ninguém era permitido dizer uma palavra sobre Medicina durante as suas veladas musicais das quintas-feiras. Beethoven era o favorito. Gostava muito dos animais, e, todas as manhãs, quando descia do seu landau, no pátio interior da Salpêtrière, tirava do bolso um pedaço de pão que dava aos dois velhos rocinantes. Interrompia toda a conversação sobre desportos ou morte de animais: creio que a sua antipatia pelos Ingleses provinha do seu ódio pelo fox hunting.

Naquele tempo, além de Charcot, havia em Paris outra grande celebridade médica, o professor Potain. Não existiam dois tipos mais diferentes. O famoso clínico do Hospital Necker era um homem simples e insignificante, e passaria despercebido numa multidão onde a cabeça de Charcot se distinguiria entre mil. Ao lado do seu ilustre colega, parecia quase um miserável, com sua velha casaca mal cortada. Um rosto triste, poucas palavras, dicção difícil. Mas era adorado como um deus por todos os seus doentes; pobres e ricos valiam para ele o mesmo. Sabia o nome de todos os enfermos do seu imenso hospital, acariciava a face de cada um deles, novo ou velho; escutava com uma paciência infinita a história dos seus padecimentos e muitas vezes pagava do seu bolso algumas guloseimas para os que não tinham apetite. Examinava os doentes mais pobres, no hospital, com a mesma atenção minuciosa com que observava as cabeças coroadas e os milionários, que não lhe faltavam. Nenhum sintoma de lesão de pulmões ou do coração parecia escapar ao seu ouvido prodigiosamente fino. Creio que nunca houve quem, melhor do que ele, soubesse o que se passava no peito de outrem. O pouco que sei de doenças do coração a ele o devo. O professor Potain e Guéneau de Mussy eram quase os únicos médicos a quem me atrevia a dirigir-me, quando tinha necessidade dum conselho para um doente pobre.

O professor Tillaux, o célebre cirurgião, era o terceiro. A sua clínica no Hôtel-Dieu estava organizada da mesma maneira que a de Potain no Hospital Necker. Era como um pai para os seus doentes; quanto mais pobres, mais parecia interessar-se pelo seu bem-estar. Como mestre, nunca encontrei outro melhor. A sua obra sobre Anatomia Topográfica é, de resto, o que de melhor se tem escrito sobre o assunto. Era um operador maravilhoso; ele próprio fazia todos os pensos. Quase o tomariam por um homem do Norte, com os seus olhos azuis e suas maneiras simples e naturais; com efeito, era um bretão. Comigo era cheio de bondade e de paciência; comigo e as minhas numerosas faltas, e, se não cheguei a ser um grande cirurgião, não foi, seguramente, por culpa sua. Devo-lhe muito, e estou convencido de que lhe devo o poder andar. De resto, parece-me preferível contar-vos agora esta história.

Havia trabalhado muito durante todo aquele Verão calmoso, sem um dia de repouso, atormentado pelas insónias e o seu companheiro habitual - o abatimento. Tinha-me tornado irascível com os meus doentes, e de mau humor com toda a gente; e, quando chegou o Outono, o meu fleumático amigo Norstrom começou a perder a paciência. Um dia, que jantávamos juntos, acabou por dizer-me que, se eu não me resolvia a ir fazer uma cura de repouso dumas três semanas, pelo menos, acabaria por adoecer gravemente. Capri era demasiado quente, a Suíça seria o ideal. Sempre havia acatado o bom-senso do meu amigo. Sabia que estava na razão, ainda que se enganasse quanto à natureza do mal. Não era o surmenage, mas outra coisa que me tinha reduzido àquele estado lamentável. Mas não falemos agora em ta

Três dias depois cheguei a Zermatt e tratei logo de procurar saber se a vida era mais alegre sobre as neves eternas do que cá em baixo. O pau ferrado foi para mim o novo brinquedo no velho jogo ao ganha-perde entre a Vida e a Morte. Comecei por onde costumam acabar os outros alpinistas: o monte Cervino. Atado ao pau ferrado, fixado numa rocha inclinada, duas vezes maior que a minha mesa de jantar, passei a noite no espinhaço da montanha, em meio duma terrível tempestade de neve. Interessou-me saber, pelos meus dois guias, que estavam agarrados à mesma rocha, donde haviam sido precipitados no abismo, a mais de quatro mil pés de profundidade, Hadow, Hudson, Lord Francis Douglas e Michel Croz, na sua primeira ascensão a Whymper. Ao amanhecer, encontrámos Burckhardt. Raspei a neve recente que lhe cobria o rosto, sereno e imóvel como se estivera dormindo. Morrera gelado. Encontrámos depois os seus dois guias, que arrastavam o outro companheiro meio aturdido, Davies, e a quem haviam salvo a vida com perigo da sua.

Dois dias mais tarde, o Schreckhorn, gigante irascível, lançou, como de costume, contra os intrusos, uma chuva de rochas. Não nos acertou; mas, àquela distância, não fora mal visado: um bloco de rocha que teria pulverizado uma catedral passou-nos a menos de vinte metros. Dois dias depois, contemplámos maravilhados o Jungfrau, vestido de neve imaculada. Mal apercebíamos a face rosada da Virgem sob o seu branco véu. Parti sem demora à conquista da feiticeira. A princípio parecia acessível; mas, quando eu tentava colher alguns edelweiss na orla do seu manto, assustou-se e escondeu-se atrás duma nuvem. Por mais que fizesse, não consegui aproximar-me da bem-amada. Quanto mais avançava, mais parecia afastar-se de mim. Não tardou que um véu de névoa, todo iluminado pelo Sol levante, a escondesse completamente aos nossos olhos, tal como a cortina de fogo e as chamas que descem em torno de sua irmã, a virgem Brunilde, no último acto das Walkyrias. Uma velha bruxa, encarregada de velar pela bela donzela, como ama ciosa, cada vez nos afastava mais da nossa meta, por entre cimos desolados e precipícios abertos, prestes a engolir-nos a cada instante. Em breve nos declararam os guias que tínhamos perdido o caminho, e que só nos restava voltar por onde tínhamos vindo, e quanto mais depressa melhor. Vencido e despeitado, fui arrastado para o vale, agarrado à sólida corda dos meus guias. Sentia-me desamparado, e não admira! Pela segunda vez naquele ano, fora repelido por uma mulher. Mas a mocidade é uma grande farmacopeia para as feridas do coração. Com um pouco de sono e a cabeça sólida, a cura não tarda. Sono não tinha; mas, felizmente, não perdi a cabeça.

No domingo seguinte (recordo bem a data porque era a do meu aniversário) fumava o meu cachimbo no cimo do Monte Branco, onde, no dizer dos guias, na maior parte, as pessoas chegam com a língua de fora, sem poder respirar e sem forças. Contei, noutro lugar, o que me sucedeu naquele dia; mas, como esse livrito está esgotado, tenho de repeti-lo aqui, para que compreendam quanto devo ao professor Tillaux.

A ascensão ao Monte Branco, tanto no Inverno como no Verão, é relativamente fácil. Mas é preciso ser doido para a intentar no Outono, antes que o Sol, de dia, e o gelo, de noite, tenham fixado a neve fresca nos flancos da montanha. O rei dos Alpes conta com as avalanches de neve para se defender dos intrusos, tal como o Schreckhorn com os projécteis de rochas. Era a hora do almoço, quando acendi o meu cachimbo na cúspide da montanha. Nos hotéis de Chamonix, todos os estrangeiros observavam, à vez, pelos telescópios, as três moscas que se arrastavam na copa do branco chapéu de neve do gigante das montanhas. Enquanto eles almoçavam, procurávamos nós uma passagem através da neve do Monte Maldito, para em breve tornarmos a aparecer nos seus telescópios no Grand Plateau. Ninguém falava; todos sabíamos que até o som da voz podia desencadear a avalanche. De repente, Boisson olhou para trás e, com o pau ferrado, designou uma linha negra que parecia desenhada pela mão dum gigante e cortava toda a vertente.

- Estamos perdidos - murmurou, ao mesmo tempo que o imenso campo de neve se fendia em dois, desencadeando a avalanche com o ruído dum trovão e precipitando-nos com uma rapidez vertiginosa.

Eu não senti, nem compreendi nada. De súbito, a mesma Reflexa que na famosa experiência de Spallanzani obriga a rã decapitada a dirigir a pata para o ponto que ele picava com uma agulha, aquele mesmo impulso levou o grande animal inconsciente a erguer a mão para atenuar a dor aguda que sentia no crânio. A obtusa sensação periférica despertou no meu cérebro o instinto de conservação, sempre o último a desaparecer. Com um esforço desesperado, trabalhei por libertar-me da camada de neve sob a qual estava sepultado. À minha volta estavam as muralhas brilhantes, de neve azulada, e por cima de mim via a luz do dia através duma abertura do abismo em que a avalanche me tinha precipitado. Recordo-o com estranheza: no meu espírito, nem medo, nem consciência do passado, do presente, nem do futuro. Pouco a pouco, começou a formar-se uma sensação confusa que, através do entorpecimento do cérebro, abria lentamente passagem para atingir, enfim, o meu entendimento. Reconheci-a imediatamente: era a minha velha mania, a minha curiosidade incurável para saber tudo o que se pode saber da Morte. Chegara a minha última hora; se pudesse ao menos conservar a minha lucidez e olhá-la bem de frente, sem temor! Bem sabia que Ela estava ali, quase me parecia vê-la avançar para mim, no seu sudário de neve. Que iria dizer-me? Seria dura e implacável ou teria piedade de mim, abandonando-me ali, onde eu estava, e deixando-me gelar num sono eterno? Por incrível que pareça, creio, verdadeiramente, que foi esta sobrevivência da minha mentalidade normal - a minha curiosidade perante a Morte - que me salvou a vida. De repente, senti a pressão dos meus dedos no pau ferrado, e a corda em torno da cinta. A corda! Onde estavam os meus dois companheiros? Puxei pela corda com toda a força que pude e, numa sacudidela imprevista, a cabeça e a barba negra de Boisson saíram da neve. Respirou profundamente e, à pressa, enrolou a corda à sua volta, retirando do túmulo o camarada meio desmaiado.

- Quanto tempo é preciso para morrer gelado? - perguntei.

Os olhos vivos de Boisson passearam à roda da parede da nossa prisão e detiveram-se sobre uma delgada ponte de gelo que ligava as paredes inclinadas, como o aéreo botaréu duma catedral gótica.

- Se tivesse um pau ferrado e pudesse atingir aquele ponto - disse-me - creio que poderia abrir uma saída.

Estendi-lhe o pau, que os meus dedos cerravam com uma pressão quase cataléptica.

- Aguente-se bem, pelo amor de Deus, aguente-se! - repetia-me, trepando-me aos ombros.

E, com um impulso, atingiu a ponte, por sobre as nossas cabeças. Suspenso pelas mãos à muralha inclinada, foi talhando um caminho, degrau por degrau e puxou-me com a corda. Com grande dificuldade, içámos o outro guia, ainda meio aturdido. A avalanche havia varrido todos os pontos de referência e apenas possuíamos um piolet para nos proteger da queda nalguma abertura dissimulada pela neve fresca. A cabana estava quase sepulta na neve; tivemos de abrir um buraco no telhado, para podermos entrar. Caímos estendidos no chão. Bebi até a última gota o azeite rançoso da lamparina, enquanto Boisson, depois de ter aberto com um canivete os meus sapatos de alpinista, me esfregava os pés com a neve.

A expedição de socorro enviada de Chamonix, depois de ter passado toda a manhã procurando em vão os nossos corpos em todo o percurso da avalanche, foi encontrar-nos profundamente adormecidos no chão da cabana. No dia seguinte, levaram-me num carro de palha até Genebra, e aí meteram-me no rápido da noite para Paris.

O professor Tillaux lavava as mãos, no intervalo de duas operações, quando eu, na manhã seguinte, entrei cambaleando no anfiteatro do Hôtel-Dieu. Quando me tiraram o algodão que me envolvia as pernas, ele considerou com pasmo os meus pés, que a mim próprio me espantavam, pois se haviam tornado completamente negros.

- Donde vens tu, sueco dos diabos? - trovejou o professor.

Os seus bondosos olhos azuis olharam-me com ansiedade que me encheu de vergonha. Disse-lhe que tinha feito uma cura de repouso na Suíça, e que sofrera um pequeno acidente de montanha, coisa que pode acontecer a qualquer turista. Bem o lamentava.

- Mas é ele - exclamou um interno. - É ele, com certeza!

E, tirando o Figaro do bolso da blusa, pôs-se a ler em voz alta um telegrama de Chamonix em que se relatava o milagroso salvamento de um estrangeiro que fora arrebatado com os dois guias por uma avalanche, ao descer do Monte Branco.

- Com mil diabos! Vai-te, danado sueco! Que vens fazer aqui, se o teu lugar é entre os doidos do Asilo de Santa Ana? Deixem-me apresentar-lhes o crânio dum urso lapão - continuou ele, ao mesmo tempo que pensava o feio golpe que me retalhava o alto da cabeça. - Vejam este golpe terrível, que teria atordoado um elefante! Pois a ele nem a menor fractura, nem sequer uma comoção cerebral! Para que fizeste essa longa viagem a Chamonix? Bem poderias haver trepado ao cimo duma torre de Notre-Dame e precipitares-te na Praça, debaixo das nossas janelas, pois nenhum perigo corres desde que caias de cabeça.

Sentia-me encantado sempre que o professor se ria de mim. Era indício seguro de que estava nas suas boas graças. Quis que me conduzissem imediatamente à Avenida de Villiers, mas Tillaux pensou que seria melhor hospitalizar-me durante dois dias num quarto particular.

Fora, por certo, o seu pior aluno; não obstante, Tillaux ensinara-me o bastante de cirurgia para que eu pudesse adivinhar a sua intenção de me amputar. Cinco dias seguidos e três vezes por dia, o professor veio examinar as minhas pernas; ao sexto já estava estendido no meu canapé da Avenida de Villiers, fora de todo o perigo.

Apesar de tudo, o castigo não deixou de ser severo, pois estive durante seis semanas estendido, e tornei-me tão nervoso que tive de escrever um livro. Sosseguem: está esgotado. Durante mais de um mês ainda, tive de me apoiar a duas bengalas, até que voltei à normalidade.

Tremo ao pensar o que me haveria sucedido se fosse dar às mãos de qualquer dos outros grandes cirurgiões que então havia em Paris. O velho Papá Richet, na outra ala do Hôtel-Dieu, ter-me-ia deixado morrer à certa, que era a especialidade da sua clínica medieval. O famoso Pean, o terrível carniceiro do Hospital de S. Luís, ter-me-ia amputado imediatamente as duas pernas, que haveria atirado para cima de outros braços e pernas já cortados, e mais meia-dúzia de ovários e úteros e vários tumores amontoados no chão, a um canto do anfiteatro encharcado de sangue, como um matadouro. A seguir, com as manápulas ainda empapadas no meu sangue, teria afundado a faca, com a habilidade dum prestidigitador, na vítima mais próxima, meio consciente, graças a uma anestesia insuficiente, enquanto outra meia-dúzia gritava com terror nas suas camas, esperando a vez do martírio. Terminada a matança, Pean teria enxugado o suor da testa, limpando alguma mancha de sangue ou de pus do colete branco e da casaca (operava sempre com trajo de noite) e dizendo um «Por hoje acabou, senhores!», teria abandonado o anfiteatro, precipitando-se no seu pomposo landau para correr a toda a velocidade para a sua clínica particular da Rue de la Santé e abrir os ventres de meia-dúzia de mulheres ali arrastadas, como ovelhas impotentes ao matadouro de La Villete, por uma propaganda gigantesca.

 

                                     A SALPÊTRIÈRE

NUNCA deixava de assistir às famosas lições das terças do professor Charcot, na Salpêtrière, então dedicadas à grande histeria e ao hipnotismo. O vasto anfiteatro regurgitava dum público multiforme, que acorria de todo o país: escritores, jornalistas, actores e actrizes, semimundanas elegantes, todos espicaçados por uma curiosidade mórbida de presenciar o surpreendente fenómeno do hipnotismo, quase esquecido desde os dias de Mesmer e Braid.

Foi precisamente numa daquelas conferências que travei conhecimento com Guy de Maupassant, já então famoso pela sua Boule de Suif e a inolvidável Maison Tellier. Falava sempre de hipnotismo e de toda a espécie de perturbações mentais, e não se cansava de interrogar-me para conhecer o pouco que eu sabia desses assuntos. Reunia ele então materiais para a sua terrível obra Le Horla, quadro fiel do seu trágico futuro. Uma vez acompanhou-me até Nancy, para visitar a clínica do professor Bernheim, o que me abriu os olhos sobre os erros da escola da Salpêtrière quanto ao hipnotismo. Também fui durante dois dias hóspede a bordo do seu iate. Recordo-me perfeitamente duma noite inteira que passámos falando da morte, no salãozinho do seu Bel-Ami, ancorado no porto de Antibes. Maupassant temia a morte; disse-me que a ideia da morte quase nunca o abandonava. Queria saber as propriedades dos diferentes venenos, a sua rapidez de acção e relativa ausência de dor. Insistia particularmente sobre a morte no mar. Disse-lhe que supunha que a morte no mar, sem uma cinta de salva-vidas, era relativamente fácil; mas, com cinturão, devia ser a mais terrível de todas. Ainda me parece estar a vê-lo contemplando com seus olhos profundos as cintas salva-vidas colocadas na porta e a ouvir-lhe dizer que na manhã seguinte as deitaria à água. Perguntei-lhe se pensava em afogar-se durante o nosso projectado cruzeiro à Córsega. Permaneceu um momento silencioso e no fim respondeu que não, que pensava morrer nos braços duma mulher. Respondi-lhe que tinha as maiores probabilidades, com a vida que fazia, de conseguir o seu desejo. Enquanto falava, Ivone despertou e, meio adormecida, pediu outra taça de champanhe, voltando a adormecer com a cabeça nos joelhos de Maupassant. Era uma bailarina de dezoito anos, costumada às viciosas carícias dos velhos que frequentam os bastidores da Ópera, e que ia a caminho de perder-se completamente a bordo do Bel-Ami, nos braços do seu terrível amante. Bem sabia que nenhum salva-vidas a poderia salvar; que a jovem o teria repelido, se alguém lho oferecesse; que, juntamente com o corpo, tinha dado o coração àquele insaciável macho, que só pedia o primeiro. Sabia qual seria o seu destino, pois não era a primeira rapariga a quem vira adormecida com a cabeça nos joelhos do escritor.

Até onde era ele responsável dos seus actos, eis outro problema. O temor que lhe acossava o cérebro, dia a dia atormentado, transluzia-lhe nos olhos; e eu já o considerava como um homem perdido. Sabia que o subtil veneno da sua Boule de Suif já começara a destruir aquele magnífico cérebro. Também ele o suspeitava? Assim me pareceu com frequência. Sobre a mesa que havia entre nós dois estava o original da sua obra Sur VEau, alguns capítulos da qual acabava de ler-me, e que eu reputava o melhor de tudo quanto havia escrito. Continuava produzindo com velocidade febril obras-primas, umas atrás das outras, estimulando o excitado cérebro com champanhe, éter, e toda a espécie de drogas. Mulheres, umas a seguir às outras, em interminável sucessão, precipitavam o colapso, mulheres recrutadas em todos os bairros, desde o faubourg Saint-Germain até aos boulevards: actrizes, bailarinas, costureiras, rameiras vulgares. Os amigos chamavam-lhe «o toiro triste». Mostrava-se desmedidamente orgulhoso dos seus êxitos; aludia a senhoras misteriosas introduzidas na sua casa da Rua Clauzel pelo seu fiel criado François - primeiro sintoma da sua próxima loucura de grandezas. Subia às vezes a correr as escadas da Avenida de Villiers, sentava-se a um canto do meu gabinete, olhando-me em silêncio com aquela mórbida fixidez de olhar que tão bem lhe conhecia. Permanecia com frequência dez minutos parado, a contemplar-se no espelho da chaminé, como se olhasse um estranho. Contou-me um dia que, enquanto, sentado na sua cadeira, escrevia uma nova obra, sentira uma viva surpresa ao ver entrar no gabinete um estranho, apesar da severa vigilância do criado. O intruso sentou-se na sua frente e começou a ditar-lhe o que ele ia a escrever. Dispunha-se a chamar François, para o pôr fora, quando viu com horror que o intruso era ele próprio.

Dois dias depois estava eu ao pé dele, na Ópera, entre os bastidores, olhando Ivone, que bailava um pas-de-quatre, sorrindo, às escondidas, ao amante, cujos olhos reluzentes nunca se apartavam dela. Ceámos tarde, no elegante andar que ele acabava de alugar para Ivone. Quando ela tirou um pouco as cores do rosto, fiquei surpreso ao ver como estava pálida e gasta, em comparação com a primeira vez que a vi no iate. Disse-me que continuava tomando éter quando bailava; que não havia nada melhor do que o éter como reconstituinte; todas as suas companheiras o tomavam e até o próprio Senhor Director do Corpo de Baile. Com efeito, vi-o morrer, por isso mesmo, anos depois, na sua casa de Capri. Queixava-se Maupassant de que Ivone emagrecia muito e de noite não o deixava dormir com a sua tosse pertinaz. A seu pedido, auscultei-a na manhã seguinte: mostrava graves sintomas no vértice dum pulmão. Disse a Maupassant que a jovem tinha de observar um repouso absoluto, e aconselhei-lhe que a mandasse, durante o Inverno, para Menton. Maupassant respondeu-me que faria com muito gosto quanto pudesse por ela. Aliás, não lhe agradavam as mulheres débeis. A rapariga negou-se em absoluto a partir, preferindo morrer a deixá-lo. Deu-me muito que fazer durante o Inverno, e trouxe-me muitos e novos doentes. Uma a seguir a outra, as suas companheiras começaram a mostrar-se pela minha casa da Avenida de Villiers, para consultar-me às escondidas, com receio de que o médico titular da ópera as pudesse deixar a meio soldo. Os bastidores do corpo de baile representavam para mim um mundo novo, não isento de perigo para um explorador inexperiente; porque, desgraçadamente, não era só no altar da deusa Terpsicore que aquelas jovens vestais depunham as grinaldas da sua mocidade. Felizmente, a deusa daquelas pobres raparigas foi expulsa do meu Olimpo com os últimos e inolvidáveis sons da Chaconne, de Gluck, e do Minuete, de Mozart; o que restava não representava aos meus olhos mais do que simples acrobacia. O mesmo não acontecia com os habitués dos bastidores. Não cansava de assombrar-me da facilidade com que aqueles decrépitos Tenórios perdiam o equilíbrio próprio, contemplando aquelas raparigas seminuas, que mantinham o seu na ponta dos pés.

Ivone teve a primeira hemorragia e a doença progredia seriamente. Maupassant, como todos os escritores que descreviam a doença e a morte, aborrecia vê-las de perto. Ivone tomava dúzias de frascos de óleo de fígado de bacalhau para engordar, pois sabia que o amante não gostava de mulheres magras. Tudo em vão. Em breve tempo, da sua curta juventude não restavam mais do que os olhos maravilhosos, incendiados pela febre e pelo éter. A bolsa de Maupassant continuava a abrir-se-lhe, mas de pronto os braços apertaram o corpo duma das suas companheiras. Ivone arrojou uma garrafa de vitríolo à face da rival. Por fortuna, mal acertou, e escapou com dois meses de cadeia, graças à poderosa influência de Maupassant e a um atestado meu, em que declarava que a rapariga não tinha mais de dois meses de vida. Ao sair da prisão, negou-se a voltar à casa onde vivera com Maupassant, apesar dos seus rogos. Desapareceu na imensidade desconhecida da vasta cidade, como um animal condenado que se esconde para morrer.

Um mês depois encontrei-a, por acaso, numa cama do hospital de Saint-Lazare, última estação da Via Crucis das mulheres perdidas de Paris. Disse-lhe que o iria comunicar a Maupassant, o qual, estava certo, não tardaria em procurá-la. Nessa mesma tarde fui a casa do escritor. Não havia tempo a perder. Era fora de dúvida que à pobre não restavam muitos dias de vida. O fiel François mantinha-se no seu habitual posto de cão Cerbero, defendendo o amo contra os intrusos. Em vão tentei ser recebido: as ordens eram terminantes. Visita alguma, sob qualquer pretexto, podia ser introduzida: era a costumada história da senhora misteriosa. Como único recurso, fui obrigado a escrever um pequeno bilhete, referindo-lhe o caso, que François prometeu entregar. Nunca logrei saber se lhe chegou às mãos. Suponho que não. É muito provável, porque François procurava sempre afastar do amo as histórias molestas de mulheres. Quando, um dia depois, fui a Saint-Lazare, Ivone estava morta. Disse-me a monja que tinha passado a manhã a pintar a cara, a pentear os cabelos, e pedira até a uma velha prostituta da cama ao lado que lhe emprestasse o seu pequeno xale de seda encarnada, último vestígio dum passado esplendor, para esconder os ombros esquálidos. A monja dissera que esperava o seu senhor; inquieta, esperou durante todo o dia; mas este não foi. Na manhã seguinte, encontraram-na morta no leito. Ingerira até à última gota a poção de cloral.

Dois meses volvidos, vi Guy de Maupassant em Passy, no conhecido manicómio da Maison Blanche. Dava voltas pelo braço do seu fiel François, atirando pedrinhas aos canteiros de flores, com o gesto do Semeador, de Millet. - Olha, olha! - dizia ele. - Se vier chuva, hão-de nascer todas na Primavera como outros tantos Maupassant.

Para mim, que durante anos dedicara a maior parte do tempo que tinha livre a estudar o hipnotismo, aquelas representações do cenário da Salpêtrière ante todo o público de Paris não eram mais do que uma absurda farsa, uma mescla inexplicável de verdade e mentira. Algumas daquelas médiuns eram, sem dúvida, verdadeiras sonâmbulas que executavam em estado de vigília os diversos actos que lhes haviam sido sugeridos durante o sono - sugestão pós-hipnótica. Muitas eram apenas charlatãs que sabiam o que esperavam delas, contentes por se mostrarem em público, enganando os médicos, e até aquele, com a surpreendente astúcia das histéricas. Estavam sempre dispostas para um ataque de grande histeria clássica de Charcot, a exibir as suas três famosas fases do hipnotismo: letargo, catalepsia e sonambulismo, inventadas todas pelo Mestre e muito raramente observadas fora da Salpêtrière. Algumas cheiravam com deleite um frasco de amoníaco, se lhes afirmavam que era água de rosas; outras tragavam um pedaço de carvão, se lho davam como chocolate. Arrastava-se outra de gatas pelo chão, ladrando com fúria, se lhe diziam que era um cão. Esta agitava os braços para voar, quando lhe insinuavam que era pomba. Aquela levantava as fraldas, gritando com horror, quando atiravam uma luva ao chão e lhe diziam que era uma serpente. Outra, enfim, embalava e beijava ternamente um cilindro que lhe apresentavam como um filho seu. Hipnotizadas a torto e a direito, dúzias de vezes ao dia, por médicos e estudantes, muitas daquelas desgraçadas raparigas passavam o dia em estado de semiletargo, com os cérebros aturdidos por toda a classe de sugestões absurdas, meio inconscientes e seguramente sem ter responsabilidade dos seus actos, destinadas mais cedo ou mais tarde a terminar os seus dias na Sala dos Agitados, ou no manicómio. Ainda que se condenem esses espectáculos de gala das terças-feiras no anfiteatro, como não científicos e indignos da Salpêtrière, seria injusto não reconhecer que na sala se realizava um trabalho sério para investigar muitos dos sintomas, ainda então obscuros, do hipnotismo. Também eu, com autorização do chefe de clínica, ensaiei algumas experiências de telepatia com uma daquelas raparigas, uma das melhores sonâmbulas que tinha encontrado.

Desde logo tive grandes dúvidas acerca da exactidão das teorias de Charcot, que eram recebidas sem a menor oposição pelos seus discípulos e pelo público, o que pode explicar-se por uma espécie de sugestão colectiva. Voltava eu da minha última visita à clínica do professor Bernheim, de Nancy, obscuro mas decidido defensor da chamada escola de Nancy, que se opunha à lição de Charcot. Falar então da escola de Nancy, na Salpêtrière, era quase considerado como delito de lesa-majestade. O próprio Charcot só de ouvir o nome do professor Bernheim ficava furioso. Um dos ajudantes do Mestre que me detestava cordialmente mostrou-lhe um artigo meu, na Gazeta dos Hospitais, inspirado na minha visita a Nancy. Durante vários dias, Charcot simulou ignorar por completo a minha presença. Depois apareceu no Figaro um violento artigo, firmado com o pseudónimo de Ignotus - um dos principais jornalistas de Paris - denunciando aquelas demonstrações de hipnotismo em público, como espectáculos ridículos, perigosos, sem valor científico e indignos enfim do grande Mestre da Salpêtrière. Estava presente quando mostraram o artigo a Charcot, durante a sua visita matutina, e fiquei estupefacto perante o ressentimento que mostrou contra um simples artigo de jornal, a que eu julgava não daria a menor importância. Entre os seus discípulos havia grande inveja, do que me tocava abundante parcela. Não sei de quem partiu a mentira; mas em breve soube, com horror, correr a voz de que Ignotus tinha sabido por mim a parte mais nociva da sua informação. Charcot não me disse nunca uma palavra sobre o assunto; mas desde aquele dia variaram muito as cordiais atenções que tinha comigo. Breve recebi o golpe, um dos mais amargos que sofri na vida. O destino preparara a armadilha; e nela me deixei cair com a minha habitual e louca temeridade. Um domingo, quando deixava o hospital, vi um par de velhos camponeses sentados num banco, sob os plátanos do pátio interior. Emanava deles o olor a campo, a horta, a prados e vacas. Vê-los alegrava o coração. Perguntei-lhes donde vinham e o que faziam ali. O velho, de blusa azul, levou a mão ao boné; a velha, de linda coifa branca, fez-me uma reverência e um sorriso amistoso. Tinham, chegado naquela manhã, da sua aldeia da Normandia, para visitar a filha, que era ajudante de cozinha na Salpêtríère, havia dois anos. Era uma excelente colocação, que lhe conseguira uma monja da mesma aldeia, segunda-cozinheira do hospital. Mas o trabalho aumentara na granja, já tinham três vacas e seis porcos, e vinham para recolher a filha e levá-la para casa. Era uma rapariga forte e sã e eles sentiam-se demasiadamente velhos para dar conta sozinhos de tanta lida. Sentiam-se tão cansados pela longa viagem nocturna no comboio, que eram forçados a buscar um pouco de repouso naquele banco. Perguntaram-me se eu queria ser tão amável que lhes ensinasse onde estava a cozinha. Disse-lhes que teriam de cruzar três pátios e passar por intermináveis corredores. Era preferível que eu os acompanhasse e auxiliasse a buscar a filha. Sabe Deus quantas criadas fervilhavam na imensa cozinha onde se preparava a comida para quase três mil bocas. Para ali os encaminhei; e a boa velha não se cansava de me falar das suas macieiras, da apanha das batatas, do tratamento dos porcos, das vacas, e do excelente queijo que fabricava. Tirou da cesta um pequeno queijo de nata, que acabava de ser fabricado para Genoveva, mas disse-me que tinha muito gosto em que eu o aceitasse. Olhei-a com atenção no rosto, enquanto me oferecia o queijo.

- Quantos anos tem a sua Genoveva?

- Apenas vinte.

- É loira e muito linda?

- Diz o pai que é o meu vivo retrato - respondeu com simplicidade a velha mãe.

O ancião meneava a cabeça, em sinal de aprovação.

- E estão certos de que ela está empregada na cozinha? - perguntei, com um estremecimento, perscrutando de novo o arrugado rosto da mãe.

Por única resposta o velho meteu a mão no imenso bolso da blusa e tirou a última carta de Genoveva. Durante vários anos havia-me entregado à grafologia, e reconheci à primeira vista a curiosa, torcida e ingénua mas muito clara letra, pouco a pouco melhorada por centenas de exercícios de escrita automática, efectuada sob a minha vigilância.

- Por aqui - disse-lhes, conduzindo-os sem hesitação para a sala Santa Inês, a das grandes histéricas.

Genoveva estava sentada, balouçando as pernas calçadas de seda, sobre a larga mesa, no meio da sala, com um exemplar de Le Rire, que tinha o seu retrato na portada. A seu lado encontrava-se Lisette, uma das principais estrelas da companhia. Genoveva tinha os cabelos penteados com coquetterie e atados com uma fita de seda azul; no colo luzia um colar de pérolas falsas; e dissimulava com pintura a palidez das faces e dos lábios. Mais do que uma enferma do hospital, parecia uma costureira passeando atrevidamente pelos boulevards. Genoveva era a prima-dona das representações cénicas das terças e, acarinhada por todos, sentia-se satisfeitíssima de si e do ambiente. Os dois velhos camponeses olharam com assombro a filha. Esta ficou como tonta, indiferente, e nem pareceu reconhecê-los à primeira vista. De repente, começou a contrair-se-lhe a face e, com um grito agudo, caiu a toda a largura no chão, presa de violentas convulsões, seguida imediatamente de Lisette, com o seu clássico arc-en-ciel. Obedecendo à lei da imitação, uma a uma as outras histéricas desataram em ataques nas suas camas; esta rindo convulsivamente, aquela prorrompendo em pranto desabalado.

Mudos de terror, os dois velhos foram rapidamente impelidos pelas monjas para fora da sala. Reuni-me a eles nas escadas e levei-os de novo ao banco, sob os plátanos. Estavam ainda por demais aterrados para chorar. Não era fácil explicar aquela situação aos pobres camponeses. Nem eu próprio soubera dizer-lhes como a filha chegara da cozinha à sala das histéricas. Falei-lhes com doçura e disse-lhes que em breve a filha estaria curada. A velha mãe começou a chorar, e os olhos brilhantes do pai reluziram duma luz de mau agoiro. Convenci-os a que regressassem à sua aldeia e prometi-lhes que a filha lhes chegaria a casa o mais pronto possível. O pai queria levá-la imediatamente; mas a mãe apoiava-me, dizendo que era mais prudente deixá-la onde estava até que se curasse, pois tinha a certeza de que a filha se encontrava em boas mãos. Depois de lhes repetir a promessa de que eu faria todo o possível junto do professor e do director do hospital, para lhes mandar Genoveva acompanhada duma enfermeira, consegui, com grande dificuldade, metê-los num carro que os levou à estação de Orleães, para partirem pelo primeiro comboio.

Não dormi toda a noite, a pensar nos dois velhos camponeses. Como poderia cumprir a promessa que fizera? Por demais sabia quanto naquele momento eu era o menos adequado para falar do caso de Genoveva com Charcot, tanto mais que também esta jamais consentiria em sair da Salpêtrière e voltar espontaneamente à velha e humilde casa. Havia apenas uma solução: dominar a vontade da rapariga e substituí-la pela minha. Sabia que Genoveva era uma excelente sonâmbula. Fora induzida por mim e por outro experimentador a seguir sugestões pós-hipnóticas, que logo se transformaram em actos com a fatalidade duma pedra que cai, com exactidão quase astronómica, e, por demais, com amnésia, isto é, a completa ignorância nos estados de vigília do que lhe haviam sugerido durante a hipnose.

Dirigi-me ao chefe da clínica para continuar com Genoveva as minhas experiências de telepatia, então na ordem do dia. Ele próprio se interessava vivamente pelo assunto e ofereceu-me o seu gabinete para que eu pudesse trabalhar nele uma hora todas as tardes, sem que ninguém me incomodasse, e, ao dizê-lo, desejou-me os melhores resultados. Mentira-lhe. Nesse próprio dia sugeri a Genoveva, enquanto se encontrava em profunda hipnose, que se deixasse ficar na cama na próxima terça-feira, em vez de ir ao anfiteatro, e que tomasse aversão à sua vida na Salpêtrière, dispondo-se a voltar para casa de seus pais.

Durante uma semana, repeti-lhe estas sugestões, sem qualquer resultado aparente. Na semana seguinte esteve ausente e notou-se muito a sua falta no anfiteatro, durante a representação da terça. Disseram-me que ficara de cama, constipada. Volvidos dois dias, encontrei-a com um guia de caminho de ferro na mão, que imediatamente escondeu no bolso apenas me viu. Podia, pois, contar com a sua amnésia. Pouco depois, sugeri-lhe a ideia de ir ao Bon Marché, na próxima quinta-feira, dia de saída, para comprar um chapéu novo. No dia seguinte, vi-a a mostrá-lo com orgulho a Lisette. Ao cabo de dois dias ordenei-lhe que no dia seguinte deixasse a sala Santa Inês ao meio-dia, quando as monjas estavam ocupadas a distribuir a comida, e que se escapasse pela portaria enquanto o porteiro jantava, e fosse imediatamente num carro à Avenida de Villiers.

Ao voltar a casa para as minhas consultas, encontrei-a sentada na sala de espera. Perguntei-lhe o que tinha; parecia profundamente perturbada e murmurou qualquer coisa como quem desejava ver os cães e o macaco de que lhe tinha falado. Rosália entreteve-a na sala de jantar, deu-lhe café e levou-a em seguida a um carro, para voltar ao hospital.

- É uma bonita rapariga - disse Rosália, pondo um dedo na testa. - Mas creio que tem macaquinhos no sótão. Disse-me que ignorava inteiramente a razão que aqui a trouxera.

O êxito desta experiência preliminar decidiu-me, com o meu carácter impulsivo, a pôr imediatamente em prática o meu plano. Ordenei a Genoveva que voltasse à Avenida de Villiers, com as mesmas precauções e à mesma hora, dois dias depois. Era segunda-feira, e convidara Norstrom a comer comigo, porque desejava que ali estivesse como testemunha, caso sobreviessem complicações imprevistas. Quando lhe contei o meu projecto, fez-me ver a série de consequências que daí poderiam vir, quer no caso de êxito, quer de malogro, acrescentando que por certo a jovem não viria.

- Supõe tu que o comunicou a alguém - disse Norstrom.

- Não pode contar a ninguém o que ela própria não sabe; e não saberá que tem de vir à Avenida de Villiers até que batam as doze.

- Mas não podem obrigá-la a falar, enquanto está em sono hipnótico?

- Só um homem o poderia fazer: o próprio Charcot. Mas, como se interessa muito pouco por ela fora das suas conferências das terças, eliminei essa hipótese. Disse-lhe que era demasiado tarde para discutir, que estava seguro de que a rapariga já saíra do hospital e apareceria antes de dez minutos.

O relógio do vestíbulo deu meio-dia e um quarto; acreditei que estivesse adiantado, mas pela primeira vez aquele som profundo irritou-me.

- Gostaria que deixasses todas essas loucuras de hipnotismo - disse Norstrom, acendendo um enorme charuto. - Não sei como se te meteu tal na cabeça. Acabarás por volver-te também louco, se já não estás. Por mim, não creio no hipnotismo; intentei hipnotizar várias pessoas sem o menor resultado.

- E eu não acreditaria no hipnotismo se o tivesses conseguido - repliquei, encolerizado.

Soou a campainha. Corri a abrir a porta. Era miss Andersen, a enfermeira que eu mandara vir à uma, para acompanhar Genoveva a sua casa. Devia partir com ela no rápido da noite para a Normandia, com uma carta minha dirigida ao pároco, na qual lhe explicava o caso e lhe rogava que impedisse a todo o custo o regresso de Genoveva a Paris. Sentei-me à mesa, fumando furiosamente cigarros um atrás do outro.

- Que diz a tudo isto a enfermeira? - perguntou Norstrom.

- Não diz nada; é inglesa. Conhece-me e tem plena confiança em mim.

- Oxalá eu a tivesse também - murmurou Norstrom, chupando o charuto.

O relógio da chaminé bateu a uma e meia, confirmada com irritante precisão por meia dúzia de relógios dos outros quartos.

- Foi um fiasco - pronunciou fleumàticamente Norstrom. - É melhor é assim. Estou bem satisfeito de não te ver metido em tais assados.

Não preguei olho naquela noite; mas desta vez foi Genoveva, e não os dois velhos, que me teve desperto. Tantas e tantas vezes a fortuna me havia favorecido, que os meus nervos não podiam suportar a ideia duma derrota. Que haveria sucedido?

Quando, na manhã seguinte, entrei no anfiteatro da Salpêtrière, sentia medo de desmaiar. Charcot tinha começado a sua lição sobre o hipnotismo. Genoveva não estava no seu posto de sempre, no cenário. Saí e trepei até à sala dos guardas. Um dos internos disse-me que na véspera, enquanto comia, o tinham chamado da sala Santa Inês, onde fora encontrar Genoveva em estado de coma cataléptico - interrompido pelas mais violentas convulsões que tinha visto. Uma das monjas encontrara-a meia hora antes fora do Hospital, quando se dispunha a subir para um carro. Parecia tão agitada que a monja, a grande custo, a conduziu à portaria, donde tiveram de a subir em braços para a sala Santa Inês. Toda a noite tinha lutado desesperadamente como um animal selvagem que tenta fugir da jaula; e fora necessário vestir-lhe a camisa de forças. Naquele momento, estava encerrada num quarto isolado, com uma forte dose de brometo e um saco de gelo na cabeça. Ninguém compreendia a causa de tão imprevista variação. O próprio Charcot a tinha visitado e com grande dificuldade conseguira adormecê-la.

Fomos interrompidos pela entrada do chefe da clínica, o qual me disse que me andara buscando por todo o Hospital, pois Charcot queria falar-me, e devia conduzir-me ao seu escritório, apenas terminada a lição no anfiteatro.

Não me dirigiu uma única palavra, enquanto passávamos pelos laboratórios adjacentes. Chamou à porta e entrei no meu tão conhecido santuário do Mestre, pela última vez na minha vida. Charcot estava sentado no lugar do costume, junto da mesa, inclinado sobre o microscópio. Ergueu a cabeça e cravou em mim os seus terríveis olhos. Falando lentamente, com uma voz profunda, que tremia de raiva, disse-me que eu havia intentado atrair a minha casa uma enferma do seu hospital, uma rapariga nova, uma desequilibrada, irresponsável dos seus actos. Segundo confissão dela própria, já uma vez havia estado em minha casa, e o meu diabólico plano de aproveitar-me dela pela segunda vez só se havia malogrado por casualidade. Era uma ofensa criminosa; devia entregar-me à polícia, mas, pela honra da profissão e pela roseta encarnada que eu usava, limitava-se a despedir-me do hospital e esperava não me tornar a ver mais.

Senti-me de repente como ferido por um raio; travou-se-me a língua na boca e não pude pronunciar uma palavra. Mas, tendo compreendido o significado da sua abominável acusação, perdi todo o temor. Ripostei-lhe, enfurecido, que ele e os seus sequazes, e não eu, é que haviam levado à ruína aquela pobre rapariga, que entrara no hospital como uma aldeã, sã e forte, e a tornariam numa louca, se ainda permanecesse ali muito tempo. Eu havia adoptado o único caminho possível para a devolver aos seus velhos pais. A minha pena era não ter podido salvá-la.

- Basta! - gritou Charcot.

Voltou-se para o chefe da clínica e disse-lhe que me acompanhasse até à portaria, com a ordem de proibição da entrada no hospital, acrescentando que, se a sua autoridade não fosse suficiente para me excluir da sua clínica, denunciaria o facto à Assistência Pública.

Levantou-se da cadeira e saiu da sala com o seu passo lento e pesado.

 

                               HIPNOTISMO

As famosas representações no cenário da Salpétríère, causa daquela cena penosa, foram condenadas durante muito tempo por todos quantos têm estudado a sério o fenómeno hipnótico. As teorias de Charcot sobre o hipnotismo, impostas apenas pelo peso da sua autoridade a toda uma geração de médicos, caíram em descrédito, depois de terem atrasado por mais de vinte anos o nosso conhecimento acerca da verdadeira natureza desse fenómeno. Demonstrou-se que quase todas as teorias de Charcot relativas ao hipnotismo são erróneas. O hipnotismo não é, como ele disse, uma nevrose introduzida artificialmente, que se encontra apenas no histerismo, nos hipersensíveis, nos de mente débil e nos desequilibrados. A verdade é o contrário disso. Os indivíduos histéricos são, em geral, menos fáceis de hipnotizar do que as pessoas bem equilibradas e de mente sã. As pessoas inteligentes, de carácter forte e dominadoras, são mais facilmente hipnotizáveis do que os patetas, os estúpidos, os superficiais e os de escassa inteligência. Os idiotas e os loucos são os mais refractários à influência hipnótica. Os que asseguram não acreditar no hipnotismo costumam ser os mais fáceis de adormecer. As crianças são facilmente hipnotizáveis. O sono hipnótico não pode produzir-se só com meios mecânicos. As bolas de cristal, os espelhos usados pelos caçadores de pássaros, os imãs, o fixar os olhos no indivíduo, os clássicos passes mesmerianos usados na Salpétríère e na Charité, são verdadeiros contra-sensos.

Não é para desprezar o valor terapêutico do hipnotismo, como dizia Charcot. Pelo contrário, é considerável se o adoptam médicos competentes, de clara inteligência e de mãos limpas, possuindo a sua complicada técnica. As estatísticas de milhares de casos bem comprovados provam-no sem discussão. Quanto a mim, que nunca fui o que se chama um hipnotizador, mas apenas um especialista de enfermidades nervosas, obrigado a usar essa arma quando os remédios são inúteis, obtive com frequência resultados maravilhosos desse mal compreendido método de curar. Transtornos mentais de várias classes, com perda da vontade ou sem ela, alcoolismo, morfinomania, cocainomania, ninfomania, podem curar-se muitas vezes por esse meio.

A inversão sexual é mais difícil de vencer. Em muitos, senão na maioria dos casos, não pode considerar-se propriamente como uma doença, mas como um desvio do instinto sexual em certos indivíduos, nos quais uma intervenção enérgica só pode produzir mais mal do que bem. A forma como as nossas leis sociais deveriam intervir é questão muito complicada, que não penso discutir aqui. O certo é que o actual espírito da lei se baseia na situação equívoca e insuportável que essa classe de pessoas tem entre nós. Não são criminosas, mas simples vítimas duma momentânea distracção da madre Natureza, talvez no momento do seu nascimento ou da sua concepção. Que explicação tem o aumento enorme da inversão sexual? Será que a Natureza se vingue da rapariga masculinizada de hoje, tirando das suas ancas estreitas e do peito chato um filho efeminado? Ou será que sejamos espectadores inconscientes duma nova fase da evolução, dum amálgama gradual dos dois instintos animais, num animal novo, desconhecido até agora, último sobrevivente duma raça condenada num planeta que está no ocaso, último elo que falta entre o Homo sapiens de hoje e o misterioso Super-Homo de amanhã?

O grande benefício derivado da anestesia hipnótica nas operações cirúrgicas e nos partos está hoje reconhecido por todos. E mais surpreendente é ainda o efeito benéfico deste método na mais dolorosa de todas as operações, que, regra geral, deve suportar-se sem anestesia: a morte. O que me foi dado fazer a muitos dos nossos soldados moribundos, durante a última guerra, é suficiente para dar graças a Deus por me haver posto nas mãos tão poderosa arma.

No Outono de 1915, passei dois dias e duas noites inolvidáveis entre uns duzentos soldados moribundos, cobertos com capotes ensanguentados, agrupados no pavimento da igreja duma aldeia de França. Não havia nem morfina, nem clorofórmio, nem anestésico de nenhuma classe para aliviar os seus tormentos e abreviar a sua agonia. Muitos morriam sob o meu olhar, insensíveis e alheios, às vezes com o sorriso nos lábios, a minha mão na sua fronte e nos ouvidos o som das minhas palavras de esperança e de consolo, lentamente repetidas. A pouco e pouco, dos seus olhos semicerrrados ia desaparecendo o terror da morte.

Que misteriosa força era aquela que quase parecia emanar da minha mão? Donde vinha? Procedia da corrente de consciência que circulava em mim, sob a minha vida exterior, ou consistia, no fundo, no fluido magnético dos antigos mesmerianos? Naturalmente a ciência moderna prescindiu dos fluidos magnéticos, substituindo-os por uma dezena de novas teorias mais ou menos ingénuas. Conheço-as a todas; e, até hoje, não me satisfez nenhuma.

A simples sugestão, que é a verdadeira chave da teoria do hipnotismo, aceite agora universalmente, não pode explicar todos os seus assombrosos fenómenos. A palavra «sugestão», tal como foi usada pelos seus principais promotores, isto é, pela escola de Nancy, só no nome se diferencia daquela força odílica de Mesmer, posta actualmente a ridículo. Admitamos que o milagre não o conseguiu o operador, mas a mente subconsciente do indivíduo. Mas como explicar o êxito dum operador e o malogro de outro? Por que razão a sugestão dum cai como uma voz de mando na profundidade da mente dum indivíduo, pondo em acção as suas forças latentes, ao passo que a mesma sugestão feita por outro é interceptada pela consciência do indivíduo e não produz nenhum resultado? Mais do que ninguém desejo sabê-lo, porque desde criança compreendi que possuía esse poder, seja qual for o nome que se lhe tenha dado. Na maioria os meus doentes, novos ou velhos, homens e mulheres, pareciam descobri-lo mais cedo ou mais tarde e dele me falavam com frequência. Todos os meus companheiros das salas dos hospitais o sabiam; havia chegado também ao conhecimento de Charcot, que o utilizava amiúde. O professor Voisin, o famoso alienista do Asilo Santa Ana, fez-me presenciar muitas vezes as suas desesperadas tentativas para hipnotizar alguns dos seus loucos. Trabalhávamos horas, dias quase inteiros, com aqueles pobres dementes, que gritavam e tremiam de raiva nas camisas de forças e que não podiam fazer outra coisa senão cuspir-nos na cara, o que sucedia com frequência. Na maior parte dos casos, era negativo o resultado dos nossos esforços; mas em diversas ocasiões consegui acalmar alguns, quando o próprio professor fracassava, apesar da sua maravilhosa paciência. Todos os guardas do Jardim Zoológico e da Ménagerie Pezon o sabiam. Era uma especialidade minha pôr as suas serpentes, lagartos, tartarugas, papagaios, corujas, ursos e grandes felinos em estado de letargo; e amiúde conseguia mesmo induzi-los ao sono profundo. Creio já haver dito como abri um abcesso e extraí uma lasquita de madeira da garra de Leónia, a magnífica leoa da Ménagerie Pezon. Apenas pode explicar-se o facto como um caso de anestesia local, sob a influência duma ligeira hipnose. Os macacos, apesar do seu constante movimento, são fáceis de hipnotizar, graças à sua elevada inteligência e ao seu impressionável sistema nervoso. O encantamento das serpentes é, naturalmente, um fenómeno hipnótico. Eu mesmo pus em estado de catalepsia uma cobra, no templo de Karnak. Creio também que a domesticação dos elefantes selvagens tem qualquer coisa de influência hipnótica. A maneira como uma vez ouvi falar horas inteiras a um mahout, conversando com um elefante do Jardim Zoológico que se tinha tornado recalcitrante, parecia totalmente sugestão hipnótica. Na maioria os pássaros são facilmente hipnotizáveis; todos sabemos quão simples é hipnotizar as galinhas. Em todas as relações com os animais selvagens ou domésticos, a influência do som monótono das palavras, repetidas lentamente, qualquer observador a pode comprovar; quase parece que aqueles compreendem o verdadeiro significado do que lhes dizemos. O que não daria eu para compreender o que eles me dizem! Mas, evidentemente, aqui é impossível falar de sugestão mental. Deve haver em acção algum outro poder, e pergunto em vão ainda qual seja.

Entre os doentes que entreguei a Norstrom, quando da minha viagem à Suécia, havia um caso grave de morfinomania, quase curado pela sugestão hipnótica. Como eu desejava que o tratamento não fosse interrompido, procurei que Norstrom presenciasse a última sessão. Disse-me que a coisa era fácil e que parecia ser simpático à enferma. No meu regresso a Paris, esta voltara a cair no seu velho hábito; o meu colega fora incapaz de hipnotizá-la. Disse-lhe que me explicasse a causa do seu malogro; respondeu-me que nem ele nem ela o sabiam; que a doente estava muito desgostosa, pois havia feito quanto podia, assim como ele, Norstrom, com quem ela simpatizava, mas sem resultado.

Uma vez enviou-me Charcot um jovem diplomata, um caso bem claro de inversão sexual. O professor Kraft-Ebing, o famoso especialista de Viena, e o próprio Charcot tinham sido impotentes para hipnotizar esse homem, que anelava curar-se. Vivia com o constante temor de ser descoberto e estava abatidíssimo pelo seu fracasso. Dizia que estava certo de que era aquele o único caminho da salvação, e que tinha a perfeita convicção de curar-se se o pudessem adormecer.

- Mas já está adormecido! - disse-lhe, tocando-lhe apenas na fronte com as pontas dos dedos. Nada de passes, nem de fixar os meus olhos nos seus, nenhuma sugestão.

Mal me haviam saído aquelas palavras da boca, cerraram-se-lhe as pálpebras com um ligeiro estremecimento e em menos de um minuto caiu em sono hipnótico. A princípio, tudo prometia ir bem; um mês depois voltou ao seu país, cheio de confiança no futuro, muito mais confiado do que eu ficava. Disse-me que pediria a mão duma jovem de quem se tinha enamorado; ansiava casar-se e ter filhos. Perdi-o de vista. Um ano depois, por mera casualidade, soube que se havia suicidado. Se esse homem me tivesse consultado alguns anos depois, quando eu já possuía mais conhecimentos da inversão sexual, nunca haveria intentado a impossível missão de o curar.

Fora da Salpêtrière, nunca tropecei com as famosas fases hipnóticas de Charcot, tão surpreendentemente expostas nas suas conferências das terças. Todas tinham sido inventadas por ele, aplicadas aos seus indivíduos histéricos e aceitas pelos discípulos pela potente sugestão do Mestre. Outro tanto pode afirmar-se do fraco especial, a grande histeria, que então invadia toda a Salpêtrière, de sala em sala, e hoje quase desapareceu. A única explicação possível da sua incapacidade para compreender a natureza destes fenómenos é que todas as suas experiências se faziam com indivíduos histéricos. Se fora certa a declaração da escola da Salpêtrière de que só os histéricos são hipnotizáveis, então, pelo menos, oitenta por cento da Humanidade padecia de histerismo.

Mas num ponto tem seguramente razão Charcot, por mais críticas que possam dirigir-lhe as escolas de Nancy, Forel, Moll e outras mais. As experiências sobre o hipnotismo não são inócuas, nem para os pacientes nem para os espectadores. Pessoalmente, penso que as demonstrações públicas do fenómeno hipnótico deviam ser proibidas por lei. Os especialistas de enfermidades nervosas e mentais não podem prescindir do hipnotismo, assim como os cirurgiões não podem passar sem o clorofórmio e o éter. Basta citar os milhares e milhares de casos desesperados de várias nevroses traumáticas, durante a última guerra, curados como por encanto por esse método. Na maioria dos casos, o tratamento hipnótico não requer sono hipnótico com abolição da consciência. Um operador que esteja muito familiarizado com a sua complicada técnica e que compreenda alguma coisa de psicologia - ambas as condições são necessárias para o êxito - obterá geralmente notáveis e por vezes surpreendentes resultados com a chamada sugestão em estado de vigília. Afirma a escola de Nancy que o sono natural e o hipnótico são idênticos. Não é assim. Até agora ainda não sabemos o que é o sono hipnótico; e, enquanto o não soubermos, será preferível abstermo-nos de usá-lo com os nossos pacientes, salvo em caso de absoluta necessidade.

E, dito isto, quero acrescentar que muitas das acusações contra o hipnotismo são exageradas. Até agora não sei de nenhuma prova autêntica de um acto criminoso cometido por alguém sob a influência da sugestão hipnótica. Nunca vi que uma pessoa faça em estado de hipnose uma coisa que se negaria a fazer em estado normal de vigília. Afirmo que, se um malfeitor sugere a uma mulher, em estado de profunda hipnose, que se lhe entregue, e ela obedece, também o teria feito se a sugestão lhe fora imposta em condições normais de vida consciente. Não existe a obediência cega. Os pacientes sabem perfeitamente tudo quanto sucede durante o sono hipnótico, o que querem e o que não querem fazer. Camila, a famosa sonâmbula do professor Liégeois, que permanecia impassível se lhe cravavam uma agulha no braço ou lhe metiam na mão uma brasa, tornava-se vermelha como o fogo, se o professor simulava desordenar-lhe os vestidos, e despertava instantaneamente. Esta é uma das muitas e desconcertantes contradições tão familiares aos que estudam o fenómeno hipnótico, e muito difícil de ser compreendida pelos profanos. Um indivíduo não pode ser hipnotizado contra vontade - tenham-no em conta os alarmistas. Pretender que alguém pode ser hipnotizado a distância, sem consciência disso e contra a sua vontade, é rematada tolice. E, a respeito da Psicanálise, pouco me falta para pensar o mesmo.

 

                                 INSÓNIA

JANTÁVAMOS os dois juntos, Norstrom e eu, à nossa mesa habitual no Café da Regência. Jantar lúgubre. Norstrom coçava a cabeça, silencioso e meditativo, buscando a maneira de encontrar para o dia seguinte os três mil francos que devia ao senhorio, e eu, que havia duas noites não dormia, estava tão silencioso como ele.

De repente, o meu olhar dirigiu-se miraculosamente da garrafa de Medoc, que estava entre os dois, às mãos gigantescas de Norstrom.

- Já fizeste alguma vez maçagens? - perguntei-lhe, à queima-roupa.

Como resposta, Norstrom abriu as largas mãos de homem honrado e mostrou-me com orgulho as suas enormes palmas, grossas como laranjas grandes. Não havia dúvida: falava verdade ao declarar que outrora praticara muito as maçagens na Suécia.

Disse ao criado que trouxesse uma garrafa de Clicquot, a melhor que ele pudesse encontrar, e ergui a taça ao seu próximo triunfo.

- Não me disseste ainda agora que estavas à divina? - disse Norstrom, olhando para a garrafa de champanhe.

- Não quer dizer nada - respondi-lhe a rir. - Acaba de passar-me pela cabeça uma ideia luminosa, que vale mais de cem garrafas de Clicquot. Mais uma taça, enquanto a amadureço.

Norstrom dizia sempre que eu tinha dois cérebros, que funcionavam alternadamente na minha cabeça: o cérebro bem desenvolvido dum imbecil e o cérebro mal desenvolvido duma espécie de génio. Olhou-me estupefacto quando eu lhe disse que no dia seguinte ia à Rua Pigalle, à hora da sua consulta, entre as duas e as três, para lhe explicar tudo. Respondeu-me que era a melhor hora para conversarmos tranquilamente, e que podia ter a certeza de encontrá-lo só. Saímos de braço dado do Café da Regência, Norstrom perguntando ainda de qual dos meus dois cérebros teria surgido a tal ideia, e eu entusiasmado com o meu novo projecto.

No dia seguinte, às duas em ponto, entrei na Rua do Circo, no sumptuoso gabinete do professor Guéneau de Mussy, famoso médico da família de Orleans, com quem partilhara o exílio, e então uma celebridade médica de Paris. O professor, que sempre fora muito amável comigo, perguntou-me em que me poderia servir. Disse-lhe que, quando o visitara na semana precedente, ele me dera a honra de apresentar-me a Monseigneur le Duc d’Aumale, no momento em que este saía do salão, amparado pelo criado e apoiando-se pesadamente numa bengala. Dissera-me que o duque sofria de ciática, que os joelhos se lhe dobravam e estava quase impossibilitado de andar e que havia consultado, sem resultado, os melhores cirurgiões de Paris. Acrescentei que tomara a liberdade de procurá-lo de novo, para lhe dizer que, em meu entender, a menos que não estivesse muito em erro, o duque poderia curar-se com maçagens. Um dos meus compatriotas, autoridade reconhecida em matéria de ciática e maçagens, estava actualmente em Paris e eu tomava a liberdade de aconselhar que o chamassem para examinar o duque.

Guéneau de Mussy, como a maior parte dos médicos franceses de então, ignorava quase tudo acerca de maçagens e aceitou imediatamente. Como o duque partia no dia seguinte para o palácio de Chantilly, ficou combinado que eu me dirigiria imediatamente com o meu compatriota ao seu hotel.

Nessa tarde, eu e Norstrom fomos recebidos pelo professor Guéneau, que nos esperava. Norstrom fora aconselhado por mim a fazer quanto pudesse para dar a impressão dum famoso especialista da ciática, mas evitando a todo o transe qualquer dissertação sobre o tema. Um rápido exame revelou-nos a ambos, claramente, que era um caso em que a maçagem e os movimentos passivos seriam excelentes. No dia seguinte, partia o duque para Chantilly, acompanhado de Norstrom.

Quinze dias mais tarde, li no Figaro que o famoso especialista sueco Dr. Norstrom, de reputação mundial, fora chamado a Chantilly para tratar o duque de Aumale. O duque passeava já sozinho, sem nenhum auxílio, pelo parque do palácio; era uma cura maravilhosa. O Dr. Norstrom tratava igualmente o duque de Montpensier, atacado de gota havia muitos anos e que se encontrava também bastante melhor.

Chegou depois a vez da princesa Matilde, seguida em breve de D. Pedro, Imperador do Brasil, de dois grão-duques da Rússia, de uma arquiduquesa austríaca e da Infanta Isabel de Espanha.

O meu amigo Norstrom, que, depois do seu regresso de Chantilly, me obedecia cegamente, foi proibido por mim de aceitar doentes que não fossem de família real. Assegurei-lhe que era excelente táctica, baseada em factos psicológicos sólidos.

Dois meses depois, Norstrom voltara ao seu luxuoso andar do boulevard Haussmann e o seu gabinete abarrotava de doentes de todos os países, principalmente norte-americanos. No Outono, apareceu o seu Manual de Maçagem Sueca, pelo Dr. Gustavo Norstrom, Paris, Livraria Hachette, compilado por nós ambos, à pressa, com diversos ingredientes de origem sueca; ao mesmo tempo, aparecia em Nova-Iorque uma edição americana. No começo do Inverno, Norstrom foi chamado a Newport para prestar os seus cuidados ao velho senhor Vanderbilt; seria ele mesmo quem fixaria os honorários. Com grande espanto seu, proibi-lhe que fosse; e um mês depois o velho milionário veio à Europa esperar o seu turno entre os doentes de Norstrom, propaganda viva, com letras gigantescas, visíveis em todos os Estados Unidos. Norstrom trabalhava de manhã à noite, esfregando os doentes com os seus enormes polegares. Não tardou que tivesse de privar-se até de ir aos sábados à noite ao Clube Escandinavo, onde, a escorrer suor, dançava com todas as senhoras, uma atrás de outra, por causa do fígado. Dizia que não havia melhor do que dançar e suar para manter o fígado em bom estado.

Deu-me tanta alegria o êxito de Norstrom, que durante algum tempo me esqueci dos meus próprios males. Mas, ai! bem cedo me voltaram à mente com todo o horror, no meu sono, primeiro, depois nos meus pensamentos. Muitas vezes, precisamente quando estava quase a adormecer, via sob as pálpebras semicerradas a última e ignominiosa cena da tragédia, antes do cair do pano sobre o meu futuro. Via os terríveis olhos de Charcot brilharem na obscuridade; via-me acompanhado dos seus ajudantes, como um delinquente entre dois polícias, ao sair da Salpêtrière pela última vez. Reconheci a minha loucura, compreendi que o diagnóstico de Norstrom - uma temeridade quixotesca e uma desmedida presunção - era afinal de contas exacto. Outro D. Quixote!

Não tardou que me fosse impossível dormir; tive uma crise de insónias tão terrível que me ia enlouquecendo. A insónia não mata um homem, se este não se mata a si mesmo, e a falta de sono é uma das causas mais frequentes do suicídio. Mas mata a alegria de viver, mina as suas forças, suga-lhe o sangue do cérebro e do coração, como um vampiro. Lembra-lhe, de noite, o que o sono benéfico lhe deveria fazer esquecer. Faz-lhe esquecer, de dia, aquilo de que se devia lembrar. A memória é a primeira a soçobrar; logo, a amizade, o amor, o sentimento do dever, a própria piedade, tudo é varrido, um após outro. Só o desespero permanece a bordo do navio condenado, para o empurrar para cima dos rochedos e o destruir completamente. Voltaire tinha razão quando punha ao mesmo nível o sono e a esperança.

Nem perdi a razão, nem me matei. Cambaleante, continuava a trabalhar o melhor que podia, negligentemente, sem cuidado comigo nem com os meus doentes. Guardai-vos dum médico que sofra de insónias. Os meus doentes começavam a queixar-se de que era rude e impaciente; muitos deixaram-me, outros conservaram-se fiéis, e tanto pior para eles. Unicamente quando os via morrer despertava do meu torpor; a Morte continuava a interessar-me, ainda quando a Vida perdera todo o interesse para mim. Continuava à espreita da minha sinistra colega, com tanta pertinácia como no tempo em que era estudante na sala de Santa Clara, esperando, contra toda a esperança, arrancar-lhe o seu terrível segredo. Podia ainda ficar uma noite inteira junto dum doente na agonia, depois de o ter descuidado quando talvez o pudesse haver salvo. Louvavam a minha bondade em velar toda a noite, quando os outros médicos se iam embora. Mas que importava a mim ficar sentado numa cadeira junto da cama de outrem, ou estendido na minha sem poder dormir? Felizmente para mim, a minha desconfiança cada vez maior pelas drogas e os narcóticos salvou-me duma destruição completa; era raro que eu tomasse algum dos numerosos narcóticos que tinha de prescrever aos outros. Rosália foi o meu médico. Tomava docilmente tisanas sobre tisanas que ela elaborava à francesa, com as inumeráveis ervas milagrosas da sua farmacopeia. Inquietava-se por mim. Descobri até que, frequentemente, por sua própria iniciativa, despedia os doentes quando me julgava demasiadamente fatigado. Intentei protestar, mas não me restavam forças para o fazer. Norstrom estava também muito preocupado por minha causa. As nossas respectivas posições tinham mudado. Ele escalava os degraus escorregadios do êxito; eu descia-os. Isso tornava-o melhor do que nunca, e sempre me maravilhava a paciência que tinha comigo. Vinha muitas vezes partilhar comigo o meu jantar solitário à Avenida de Villiers. Não comia nunca fora, não convidava ninguém, não frequentava a sociedade como outrora fazia. Em meu entender, era tempo perdido e só duas coisas me interessavam: solidão e sono.

Norstrom queria que eu partisse para Capri, para um repouso completo de algumas semanas; estava convencido de que à volta retomaria o meu trabalho, de todo restabelecido. Disse-lhe que se partisse não voltaria mais a Paris; cada vez detestava mais a vida artificial da grande cidade. Não queria continuar a desperdiçar o meu tempo nesta atmosfera de náusea e podridão. Ir-me-ia por uma vez. Não queria ser um médico da moda. Quanto mais clientes tinha, mais pesados me pareciam os meus grilhões. Tinha motivos maiores de interesse na vida do que ocupar-me de ricaços americanos ou de estúpidas damas nevróticas. Era inútil dizer-me que sacrificava «as minhas esplêndidas possibilidades». Sabia perfeitamente que eu não tinha o estofo necessário para ser um médico de primeira ordem. E não ignorava que nem sabia ganhar dinheiro nem guardá-lo. Aliás, o dinheiro não me importava; não sabia que fazer dele, temia-o e odiava-o. Queria viver uma vida simples, no meio de gente simples e natural. Se não soubessem ler nem escrever, tanto melhor. Não precisava mais que um quarto caiado, uma mesa de pinho, duas cadeiras e um piano, e ouvir o trinar dos pássaros pela janela aberta e a voz longínqua do mar. Todas as coisas que desejava verdadeiramente podiam adquirir-se por bem pouco dinheiro, e sentir-me-ia feliz no mais humilde ambiente, contanto que não tivesse à minha roda nada feio.

Os olhos de Norstrom passearam à volta da sala; iam dos quadros primitivos, de fundo de oiro, dependurados nas paredes, à Madona Florentina do século xvi, por cima do genuflexório, das tapeçarias flamengas aos jarrões reluzentes de Cafaggiolo, aos frágeis cristais de Veneza, sobre o aparador, e dali aos tapetes persas estendidos no chão.

- Está a parecer-me que compraste tudo isto no Bon Marché - disse-me Norstrom, olhando com malícia para o precioso tapete de Bukara, debaixo da mesa.

- Dou-to com prazer em troca de uma única noite dum sono natural. Aceita, peço-te, este vaso único de Urbino, firmado por Mestre Giorgio, se consegues fazer-me rir. Não me importa nada; já nada me diz. Deixa-te desse sorriso irritante, que eu bem sei o que digo e vou provar-to. Sabes o que fiz em Londres, na semana passada, quando fui chamado para ver aquela senhora que sofria duma angina pectoris? Pois bem, nesse mesmo dia tive outra consulta para um caso mais grave; desta vez era um homem. Esse homem era eu mesmo ou antes a minha vera efígie, o meu Doppelganger, como diria Heine.

- «Escuta, meu amigo» - disse eu ao meu Doppelganger, quando saímos de braço dado do St. James Clube. - «Vou examinar-te detidamente. Anima-te e passeemos um pouco por New Bond Street, de Piccadilly até Oxford Street. Agora, ouve-me com atenção; põe as tuas lunetas mais fortes e olha bem para todas as montras e examina quanto vês. Má ocasião para ti, que tanto gostas de coisas belas: aqui tens os mais sumptuosos armazéns de Londres. Tudo o que pode adquirir-se com dinheiro aqui está exposto ante os teus olhos, ao alcance da tua mão. Quanto desejes te será oferecido; só te resta dizeres o que queres. Mas, com uma condição única: o que escolheres é para ti, para tua satisfação pessoal, não podes dá-lo a ninguém.

«Dobrámos a esquina de Piccadilly e começou a prova. Eu admirava de soslaio o meu Doppelganger, enquanto caminhávamos por Bond Street, examinando as montras de todas as lojas. Deteve-se um momento diante de Agnew, o antiquário; olhou com atenção para uma Virgem antiga, em fundo de oiro; declarou que era um belíssimo quadro da escola de Siena, talvez do próprio Simone di Martino. Fez um movimento como para tomar nas mãos o velho quadro, mas logo a seguir abanou a cabeça tristemente e continuou o seu caminho, com as mãos nos bolsos. Admirou muito um antigo relógio Cromwell, na casa Hunt & Roskell, mas encolheu os ombros, dizendo que não lhe interessava saber as horas, que, aliás, podia calcular olhando o Sol. Na casa Asprey, diante da montra onde se acumulavam em exposição todos os bibelots imagináveis, em prata, em oiro, em pedras preciosas, disse-me que tudo aquilo lhe fazia mal, e declarou que partiria o cristal da montra e tudo o que estava por detrás, se tivesse de olhar mais tempo para todas essas bugigangas. Quando passávamos diante do alfaiate de Sua Alteza Real o Príncipe de Gales, afiançou-me que, em sua opinião, os fatos velhos eram mais confortáveis do que os novos. À medida que subíamos a rua, cada vez se tornava mais indiferente, parecendo interessar-se mais pelos cães que encontrávamos nos passeios atrás dos donos, e aos quais fazia festas, do que pelas montras. Finalmente, ao chegarmos a Oxford Street, levava numa das mãos uma maçã e um ramito de flores na outra. Declarou que nada do que tinha visto em Bond Street o interessava, a não ser talvez o cãozito Aberden terrier, que esperava pacientemente o dono, sentado em frente de Asprey. Começou a comer a maçã e disse-me que era excelente; e, olhando com ternura o ramito de flores, confiou-me que lhe recordavam a velha casa da sua infância, na Suécia. Perguntou-me se eu terminara enfim o meu exame e se havia descoberto o mal. - Seria na cabeça?

«Respondi-lhe que não, que era no coração.

«Disse-me que eu era um médico muito inteligente: sempre havia suspeitado que sofria do coração. Pediu-me que guardasse o segredo profissional e nada dissesse aos seus amigos; não tinham que saber o que não era da sua conta.

«Entrámos em Paris no dia seguinte pela manhã. Pareceu-me encantado com a travessia de Douvres a Calais e disse-me que adorava o mar. Desde então, quase não tornou a deixar a Avenida de Villiers, errando sem descanso dum quarto para outro, como se não pudesse estar sentado um só instante. Arrastava-se constantemente pelo meu gabinete de consulta, metia-se por entre os ricaços americanos, pedindo-me um tónico: dizia-me que se sentia muito cansado. No resto do dia andava comigo dum lado para outro, esperando por mim no carro, pacientemente, com o cão, enquanto eu fazia as visitas aos doentes. Durante o jantar, sentava-se na minha frente, nessa cadeira onde estás agora, fixando-me com seus olhos sem brilho; declarava-me que não tinha apetite e que só precisava dum profundo narcótico. De noite, vem, inclina a cabeça na minha almofada e suplica-me que, pelo amor de Deus, o leve, que não pode suportar isto mais tempo ou que então....

- Nem eu também! - interrompeu Norstrom, furioso. - Acaba com essas tolices sobre o teu Doppelganger; a vivissecção mental é um jogo perigoso para um homem que não pode dormir.

Se continuas assim, tu e o teu Doppel ides acabar no Asilo de Santa Ana. Não te aturo mais. Se queres renunciar à tua carreira, se não queres nem honras nem dinheiro, se preferes um quarto caiado à tua casa luxuosa da Avenida de Villiers, parte sem hesitar, quanto mais cedo melhor, para a tua ilha bem amada; antes sejas feliz ali do que percas aqui a razão. Quanto ao teu Doppelganger, diz-lhe da minha parte, com todos os meus respeitos, que não passa dum impostor. Aposto contigo o que queiras em que não tardará a descobrir uma nova carpette de Bukara para estender no teu gabinete de trabalho, uma Madona de Siena para as paredes caiadas do teu quarto, um prato de Gubbio do século xvi para comeres os teus macarrões e um velho cálice de Veneza para beberes o teu Capri Bianco!

 

                     O MILAGRE DE SANTO ANTÓNIO

SANTO ANTÓNIO havia feito um novo milagre; eu vivia agora numa casita de camponeses em Anacapri, caiada e limpa, com um grande terraço cheio de Sol diante das janelas abertas, e entre gente boa e simples. A velha Maria Porta-Lettere, a Bela Margherita, Annarella e Gioconda estavam contentíssimas com o meu regresso. O Capri Bianco de Don Dionisio era melhor do que nunca e cada vez me convencia mais de que o Capri Rosso não era inferior.

Do nascer ao pôr do Sol, trabalhava sem descanso no que fora o jardim de Mastro Vincenzo, cavando os alicerces para os arcos da galeria exterior, diante da minha futura casa. Mastro Nicola e os três filhos cavavam ao meu lado, e uma meia-dúzia de raparigas de olhos risonhos e andar cadenciado levava a terra em grandes cestos, em equilíbrio sobre as cabeças. A um metro de profundidade descobrimos muros romanos, opus reticulatum, duros como o granito, com ninfas e bacantes dançando sobre o fundo vermelho pompeano. Por baixo estava o solo de mosaico adornado com pâmpanos e restos de outro pavimento de excelente mármore branco, hoje no centro da grande loggia. Uma fina coluna de mármore cipolino, que suporta agora a pequena loggia no pátio interior, jazia por terra, havia dois mil anos, tendo partido, na queda, um grande vaso de mármore de Paros, cuja asa, formada por uma cabeça de leão, está sobre a minha mesa. Roba di Timberio, dizia Mastro Nicola, apanhando uma cabeça mutilada de Augusto, que pode ver-se agora na galeria.

Quando, na cozinha do pároco Don Antonio, acabavam de preparar os macarrões, dava meio-dia no sino da igreja. Sentávamo-nos todos alegremente à volta dum enorme prato de insalata di pomidoro (salada de tomate), minestroni ou macarrões, para em breve voltar ao trabalho até à hora do crepúsculo. Quando os sinos de Capri tocavam as ave-marias, os meus companheiros de trabalho faziam o sinal da cruz e partiam, dizendo: Buon riposo, Eccellenza, buonna notte, signorino. Santo António ouviu-os e fez um novo milagre: dormi profundamente toda a noite, como havia anos não tinha dormido. Levantei-me ao amanhecer, desci correndo até ao farol para tomar o meu banho matutino, e estava de volta ao jardim quando os outros regressavam da missa das cinco, para retomarem o trabalho.

Nenhum dos meus companheiros sabia ler nem escrever, nenhum havia ainda trabalhado na construção de casas, que não fossem as dos camponeses, todas semelhantes. Mas Mastro Nicola sabia construir um arco tal como o pai e o avô, depois de infinitas gerações; os Romanos tinham sido os seus mestres. Começavam a perceber que esta seria uma casa diferente de todas quantas tinham visto; estavam extremamente interessados, pois ninguém sabia o aspecto que iria ter, nem eu mesmo o sabia. Para nos guiar só tínhamos o esboço que eu fizera com um carvão no muro branco do jardim. Não sei nada de desenho e aquele parecia feito por uma criança.

- Aqui está a minha casa - expliquei-lhes - com as grandes colunas romanas que sustentarão os compartimentos em abóbada e naturalmente com as colunas góticas nas janelas. Aqui é a galeria, com suas poderosas arcadas; mais tarde decidiremos o número de arcos que deve ter. Aqui será o terraço com mais de cem colunas, conduzindo à capela; não se preocupem com o caminho público que o corta agora pelo meio; eu o farei desaparecer. Aqui, olhando para o Castelo Barbarossa, haverá outro terraço; por agora não vejo claramente qual o seu aspecto; mas tenho a certeza de que, chegada a ocasião, a ideia me virá. Aqui, um pequeno pátio interior, todo de mármore branco, uma espécie de átrio, com uma fonte fresca ao centro, e à roda, metidos nas paredes em seus nichos, imperadores romanos. Aqui, por detrás da casa, deitaremos abaixo o muro do jardim e edificaremos um claustro pouco mais ou menos como o de Latrão, em Roma. Aqui haverá um grande terraço onde vocês, raparigas, dançarão a Tarantela, nas noites de Verão. No alto do jardim, faremos ir o monte pelos ares e construiremos um teatro grego, aberto por todos os lados ao Sol e ao vento. Isto é uma avenida de ciprestes que levará à capela, que reconstruiremos como deve ser, com cadeirões de coiro e vitrais de cores; penso fazer dela a minha biblioteca. Aqui, uma colunata gótica, rodeando a capela, e aqui, dominando a baía de Nápoles, ergueremos uma esfinge de granito vermelho, mais antiga do que o próprio Tibério. É o sítio ideal para uma esfinge. Por agora não sei aonde hei-de ir buscá-la, mas estou certo de que, chegada a hora, ela aparecerá.

Todos estavam encantados e desejosos de terminar a casa depressa. Mastro Nicola quis saber donde viria a água para as fontes.

Do Céu, claro, donde vinha toda a água da ilha. De resto contava adquirir a montanha de Barbarossa e construir ali uma enorme cisterna para recolher a água das chuvas e distribuí-la pela aldeia, que tanto necessitava dela; era o menos que podia fazer para agradecer todas as atenções que tinham comigo. Quando risquei na areia os contornos do pequeno claustro, vi-o exactamente como agora é, com seus arcos graciosos, sua roda de ciprestes, e no centro o fauno dançando. Quando encontrámos o vaso romano cheio de moedas romanas, os meus companheiros excitaram-se grandemente. Havia dois mil anos que todos os habitantes da aldeia procuravam o tesouro de Tibério. Só mais tarde, limpando essas moedas, encontrei entre elas uma moeda de oiro, fresca como se fosse cunhada nesse dia, verdadeira preciosidade, com a mais bela efígie do imperador que tenho visto em minha vida. Cerca dali, encontrámos as patas de bronze duma estátua equestre; uma está ainda em meu poder, a outra foi-me roubada, dez anos mais tarde, por um turista.

Todo o jardim estava cheio de milhares e milhares de troços de mármore de cores: africano, pavonazetto, giallo antico, verde antico, cipollino, alabastro, que agora formam o pavimento da galeria principal da capela e de alguns terraços. Uma taça de ágata, partida, de forma elegantíssima, muitos vasos gregos, uns quebrados, outros inteiros, inúmeros fragmentos de escultura romana da primeira época, compreendendo, no dizer de Mastro Nicola, «a gambá de Tibério»; dezenas de inscrições gregas e romanas apareceram durante as escavações. Quando plantávamos os ciprestes, ladeando o caminho que conduz à capela, encontrámos um túmulo com um esqueleto de homem, que tinha na boca uma moeda grega. Os ossos deixámo-los onde os encontrámos, mas o crânio tenho-o sobre a minha mesa de trabalho.

As altas arcadas da grande galeria surgiram rapidamente da terra; uma a uma, as cem colunas brancas ergueram-se para o Céu. O que foi outrora a casa de Mastro Vincenzo e a sua oficina de carpinteiro transformou-se a pouco e pouco no que havia de ser a minha futura casa. Como o conseguimos é coisa que nunca pude compreender; nem eu nem ninguém que conheça a história do actual San Michele. Eu não sabia absolutamente nada de Arquitectura e os meus companheiros de trabalho não estavam mais avançados; nenhum deles sabia ler nem escrever; não se consultou nenhum arquitecto; não se observou nenhuma medida exacta. Tudo se fez all ochio (a olho), como dizia Mastro Nicola.

Muitas vezes, de noite, quando todos tinham partido, sentava-me no parapeito mutilado, junto da capelita, onde devia erguer-se a minha esfinge, e em imaginação contemplava o palácio dos meus sonhos, que surgia no crepúsculo. Quantas vezes, estando sentado, me parecia ver, errando pelas galerias inacabadas, uma figura alta, de manto vermelho, examinando o trabalho do dia, experimentando a solidez das construções, inclinando-se sobre os desenhos rudimentares que eu traçara na areia! Quem era este misterioso contra mestre? Seria o venerável Santo António, que tivesse baixado, às escondidas, do seu altar na igreja, para vir em pessoa fazer aqui outro milagre? Ou seria o tentador da minha mocidade que havia doze anos, neste mesmo lugar, me oferecera o seu auxílio em troca do meu futuro? A obscuridade não me deixava ver-lhe o rosto, mas parecia-me ver brilhar a lâmina duma espada por debaixo do manto vermelho. Na manhã seguinte, quando começávamos de novo o trabalho, no ponto em que o interrompêramos na véspera, perplexo por não saber o que decidir, todas as dificuldades pareciam ter desaparecido para mim, durante a noite. Nem sombra de hesitação; todo o meu sonho me aparecia tão claro como se tudo fora desenhado por um arquitecto até às mais pequenas minúcias.

Maria Porta-Lettere trouxera-me, dois dias antes, uma carta de Roma. Pu-la na gaveta da minha mesa de trabalho, misturada com uma dezena mais, que ainda não tinha lido. Fora de Capri, nada me interessava; no Paraíso não há correio. Sucedeu então uma coisa única. Chegou um telegrama a Anacapri. Laboriosamente transmitido havia dois dias pelo semáforo de Massa Lubrense, com o andar do tempo chegara ao semáforo de Capri, perto do Arco Natural. Don Ciccio, o semaforista, depois de ter tentado em vão decifrá-lo, havia-o dado a ler a vários habitantes de Capri. Ninguém entendia palavra, nem de tal queriam saber. Experimentaram então mandá-lo a Anacapri e puseram-no em cima do cesto de peixe de Maria Porta-Lettere. Maria, que nunca vira um telegrama, deu-o com mil precauções ao pároco. Don Antonio, que só costumava ler o que sabia de cor, disse-lhe que o levasse ao mestre-escola, o reverendo Don Natale, o homem mais instruído da aldeia. Don Natale estava certo de que era escrito em hebreu, mas não podia lê-lo por causa da má ortografia. Entregou-o de novo a Maria Porta-Lettere, para que o levasse ao reverendo Don Dionisio, que tinha estado em Roma e havia beijado a mão ao Papa, e era a pessoa indicada para decifrar a misteriosa mensagem. Don Dionisio, a maior autoridade da aldeia em roba antica, reconheceu imediatamente que estava escrito no código telegráfico secreto de Timberio: não admirava, pois, que ninguém o compreendesse. Esta opinião foi confirmada pelo farmacêutico, mas violentamente combatida pelo barbeiro, que jurou que o telegrama estava escrito em inglês. Aconselhou que o levassem à Bella Margherita, cuja tia casara com um lorde inglês. A Bella Margherita prorrompeu em choro mal viu o telegrama: sonhara naquela noite que a tia estava doente, e tinha a certeza de que o telegrama era para ela, que lho enviava o lorde inglês, para lhe anunciar a morte da tia. Enquanto Maria Porta-Lettere errava de casa em casa, com o telegrama na mão, crescia a excitação na aldeia e não tardou que cessasse todo o trabalho. O rumor de que havia estalado a guerra entre a Itália e a Turquia foi contradito ao meio-dia por um garoto descalço, vindo de Capri, que dizia que o Rei fora assassinado em Roma. Reuniram-se imediatamente as autoridades locais; mas Don Diogo decidiu que não se poria a bandeira a meia haste enquanto não chegasse novo telegrama confirmando a triste nova. Um pouco antes do pôr do Sol, Maria Porta-Lettere, escoltada pelas pessoas mais importantes dos dois sexos, chegou com o telegrama a San Michele. Olhei-o e disse que não era para mim. Para quem seria? Respondi que não sabia, que nunca conhecera ninguém vivo ou morto com tal nome. Nem sequer era um nome, parecia um alfabeto duma língua desconhecida. Perguntou-me se eu não queria ler o telegrama para ver o que ele dizia. Respondi-lhe que odiava os telegramas e que não faria semelhante coisa. Não queria então saber de nada? Seria certo que rebentara a guerra entre a Itália e a Turquia? gritavam os notáveis, debaixo do muro do jardim.

Eu não sabia de nada, e pouco me interessava que houvesse ou não houvesse guerra, contanto que me deixassem em paz com as minhas escavações.

A velha Maria Porta-Lettere deixou-se cair desanimada sobre uma das colunas de cipolino; dizia que desde o amanhecer andava com o telegrama na mão, dum lado para outro, sem ter comido nada e que não podia mais. E ainda tinha de ir mugir a vaca. Não poderia eu guardar o telegrama até ao dia seguinte? Não seria prudente ela conservá-lo em seu poder, com tantos netos que entravam por toda a parte, sem falar nas galinhas e nos porcos. A velha Maria Porta-Lettere era para mim uma grande amiga e tive pena dela e da vaca. Meti o telegrama no bolso; no dia seguinte devia vir buscá-lo para continuar as suas andanças.

O Sol mergulhava no mar, os sinos tocavam ave-marias e entrámos para cear. Quando já estava sentado, diante duma garrafa do melhor vinho de Don Dionisio, um terrível pensamento passou-me de repente pela cabeça: não seria o telegrama para mim? Para me dar ânimo, enchi outro copo de vinho e desdobrei o papel em cima da mesa, tentando traduzir em língua humana o seu misterioso significado. Foi-me necessária toda a garrafa para me convencer de que o telegrama não era para mim, e adormeci com a cabeça em cima da mesa e o telegrama na mão.

Dormi até hora avançada da manhã. Não tinha pressa em levantar-me, pois ninguém trabalharia naquele dia no meu jardim; deviam estar todos na igreja, na missa da manhã, por ser Sexta-Feira Santa. Quando, duas horas depois, subi tranquilamente a San Michele, fiquei muito surpreendido ao encontrar Mastro Nicola com três filhos e todas as raparigas que, como de costume, trabalhavam no jardim. Claro está que todos sabiam o meu desejo de adiantar o trabalho o mais possível, mas nunca teria pensado em pedir-lhes que trabalhassem em Sexta-Feira Santa. Era em verdade uma grande atenção da parte deles, e disse-lhes que lho agradecia muito. Mastro Nicola olhou-me com surpresa evidente, e disse-me que não era nenhum dia santo.

- Não é dia santo hoje? Sexta-Feira Santa, o dia da crucificação do Senhor?

- Va bene - disse Mastro Nicola. - Mas Jesus Cristo não era um santo.

- Claro que era um santo - respondi. - O maior de todos os santos.

- Está bem longe de Santo António, que fez mais de cem milagres. Quantos milagres fez Jesus Cristo? - perguntou-me, com olhar malicioso.

Ninguém sabia melhor do que eu que, em matéria de milagres, não era fácil exceder Santo António. Que maior milagre do que reconduzir-me à sua terra? Iludindo a pergunta de Mastro Nicola, disse-lhe que, com todo o respeito devido a Santo António, este era apenas o homem, e que Jesus Cristo era o filho de Deus, e que, para nos salvar a todos do Inferno, tinha sido crucificado naquele mesmo dia.

- Non é vero - disse Mastro Nicola, pondo-se de novo a cavar com vigor. – L’hanno fatto morire ieri per abbreviare le funzioni nella chiesa. (Não é verdade; fizeram-no morrer ontem para abreviar as cerimónias da igreja).

Ainda não tivera tempo de me repor do espanto desta revelação, quando ouvi uma voz conhecida que me chamava por detrás do muro do jardim. Era o meu amigo, o novo ministro da Suécia em Roma. Estava furioso por não ter recebido resposta das duas cartas que me havia escrito, anunciando-me a sua intenção de vir passar a Páscoa comigo, e ofendido por não ter ido esperá-lo, com um burro, à chegada do barco-correio, como me pedia no seu telegrama. Nunca se lembraria de vir a Anacapri se soubesse que teria de subir sozinho aqueles setecentos e setenta e sete degraus fenícios que levavam à minha miserável aldeia. Teria eu o topete de dizer-lhe que não recebera o seu telegrama?

Claro que o tinha recebido, havíamo-lo recebido todos, e quase me tinha emborrachado por causa dele. Acalmou-se um pouco quando lhe mostrei o telegrama. Disse-me que queria levá-lo a Roma para o mostrar no Ministero delle Poste e Telegrafi. Arrebatei-lho das mãos, advertindo-o de que toda a tentativa para melhorar as comunicações telegráficas entre Capri e a terra firme seria energicamente combatida por mim.

Estava encantado por mostrar aquelas paragens ao meu amigo e por lhe explicar as futuras maravilhas de San Michele; quando era preciso, recorria ao esboço que traçara no muro para o fazer compreender mais claramente, o que ele dizia ser muito necessário. Estava espantado; e mal, da capela, alargou o olhar sobre a bela ilha a seus pés, disse-me que, em seu entender, era a vista mais bela do Mundo. Quando, com o dedo, lhe apontei o sítio onde ficaria a grande esfinge de granito vermelho, olhou-me de soslaio, com inquietação; ao mostrar-lhe o lugar onde era preciso fazer voar a montanha para erigir um teatro grego, disse-me que estava um pouco atontado e que o levasse a minha casa para lhe dar um copo de vinho, pois queria falar-me com tranquilidade.

Olhou o meu quarto caiado e perguntou se aquela era a minha casa; disse-lhe que nunca em minha vida estivera instalado tão comodamente. Pus em cima da mesa de pinho uma garrafa de vinho de Don Dionisio, ofereci-lhe a minha cadeira e atirei-me para cima da cama, para escutar o que tinha a dizer-me. O meu amigo perguntou-me se, nos últimos anos, eu não passara uma grande parte do meu tempo na Salpêtrière, entre pessoas mais ou menos extravagantes, um pouco desarranjadas da cabeça.

Disse-lhe que não estava longe da verdade, mas que havia abandonado por completo a Salpêtrière. Respondeu-me que era bem tempo de o ter feito, e se alegrava com isso, pois era preferível que eu me dedicasse a qualquer outra especialidade. Estimava-me muito; e viera para intentar persuadir-me a voltar imediatamente à minha esplêndida situação de Paris, em vez de perder o tempo entre aqueles aldeões de Anacapri. Agora que me havia visto, mudara de parecer; parecia-lhe que eu estava necessitado dum repouso completo.

Disse-lhe que me alegrava muito por ele aprovar a minha decisão. Realmente, já não podia suportar semelhante agitação; estava exausto.

- Da cabeça? - perguntou-me com simpatia.

Disse-lhe que seria inútil pedir-me que voltasse a Paris, pois queria passar o resto dos meus dias em Anacapri.

- Queres dizer que pretendes passar a vida nesta povoação miserável, completamente só, entre estes aldeões, que não sabem ler nem escrever? Tu, um homem culto, com quem te darás?

- Comigo mesmo, os meus cães e talvez um macaco.

- Sempre te ouvi dizer que não podes passar sem música. Quem cantará e tocará para ti?

- As aves no jardim e o mar à minha volta. Escuta! Não ouves esse maravilhoso soprano ligeiro? É o verdelhão dourado; não é tão bela a sua voz como a da nossa compatriota Cristina Nilson ou a da própria Patti? Escuta o andante solene das vagas! Não é mais belo que o lento movimento da nona sinfonia de Beethoven?

Mudando de repente de conversa, perguntou-me quem era o meu arquitecto e em que estilo seria a casa. Disse-lhe que não tinha nenhum arquitecto e que por agora não sabia o estilo da construção, mas que tudo se decidiria naturalmente, à medida que o trabalho fosse avançando.

De novo me olhou de lado, inquieto, e disse-me que se alegrava, ao menos, em saber que havia deixado Paris rico; com certeza seria precisa uma grande fortuna para construir um palácio como eu lho havia descrito.

Abri a gaveta da minha mesa de pinho e mostrei-lhe um maço de notas, metido numa meia - tudo quanto possuía no Mundo, depois de doze anos de trabalho em Paris. Julgava que seriam umas quinze mil liras, pouco mais ou menos, talvez um pouco menos.

- Escuta o que te diz um amigo, sonhador incorrigível - disse o ministro sueco. E, levando o índice à testa, acrescentou: - Não vês mais claro que os teus antigos doentes da Salpêtrière; pelo visto, o mal é contagioso. Faze um esforço e procura ver as coisas como elas são na realidade e não como tu as vês nos teus sonhos. A continuares como até aqui, dentro de um mês tens a meia vazia; e eu ainda não vi vestígios duma única habitação; tudo são galerias meio terminadas, terraços, claustros e balcões. Como construir a casa?

- Com as minhas mãos.

- E, uma vez instalado nela, de que vais viver?

- De macarrões.

- Pelo menos precisas de meio milhão para edificares San Michele como o vês em tua imaginação; aonde vais buscar o dinheiro?

Calei-me, estupefacto. Nunca havia pensado em tal. Era um ponto de vista novo.

- Que diabo hei-de fazer? - disse, finalmente, olhando o meu amigo.

- Vou-to dizer agora mesmo - respondeu-me com voz decidida. - Vais deixar imediatamente de trabalhar pelo teu louco San Michele, despedes-te do teu quarto caiado e, se te negas a voltar a Paris, virás para Roma retomar a tua profissão de médico. Roma é precisamente o ponto que te convém. Não precisarás senão passar ali o Inverno e terás o Verão para terminar a tua casa. San Michele deu-te volta ao juízo, mas não és um imbecil, pelo menos até agora ninguém deu por isso. Para mais, tens sorte em tudo quanto empreendes. Dizem-me que fazem clínica em Roma nada menos de quarenta médicos estrangeiros; se despertas e começas a trabalhar a sério, podes vencê-los a todos com a tua mão esquerda. Se trabalhares muito e me deres a mim o que ganhas, aposto o que quiseres que em menos de cinco anos terás dinheiro bastante para concluíres o teu San Michele e viver feliz em companhia dos teus cães e dos teus macacos.

O meu amigo partiu e eu passei uma noite terrível a passear dum lado para o outro no meu quarto rústico, como uma fera na jaula. Não ousava sequer subir à capela, dar as boas-noites à esfinge dos meus sonhos, como era meu hábito. Temia que o tentador, com o seu manto vermelho, de novo surgisse a meu lado. Ao nascer do Sol desci, correndo, até ao farol e atirei-me ao mar. Quando saí da água, tinha a cabeça tão desanuviada e fresca como a água do golfo. Quinze dias depois estava instalado como médico na casa de Keats, em Roma.

 

                                 PIAZZA DI SPAGNA

O meu primeiro cliente foi a senhora de P., mulher dum banqueiro inglês, bem conhecido em Roma. Levava três anos de cama, em consequência duma queda de cavalo numa caçada na «Campagna». Todos os médicos estrangeiros a tinham tratado; um mês antes, haviam consultado o próprio Charcot, que lhe falou no meu nome; mas não creio que tivesse conhecimento de que me estabelecera em Roma. Mal a observei, compreendi que se ia cumprir a profecia do ministro sueco. Senti que, uma vez mais, a Fortuna se erguia a meu lado, invisível para todos, excepto para mim. Era realmente um caso afortunado para iniciar a minha clientela romana; a doente era a senhora mais conhecida na colónia estrangeira. Convenci-me de que fora o choque e não qualquer lesão orgânica da coluna vertebral que causara a paralisia dos membros, e que a fé e as maçagens a curariam em poucos meses. Disse-lho, o que nenhum outro médico se atrevera a dizer-lhe, e cumpri a minha palavra. Em menos de três meses, metade da sociedade romana viu-a apear-se da carruagem na Villa Borghese e passear por entre as árvores, apoiada a uma bengala. Aquilo foi considerado como um milagre, quando, na realidade, era um caso fácil, desde que a doente tivesse fé e o médico paciência. Abriram-se-me as portas de todas as casas da numerosa colónia inglesa em Roma, e de muitas casas italianas. No ano seguinte, era médico da embaixada britânica e tive mais doentes ingleses que os onze médicos ingleses reunidos; por isto ajuizareis a conta em que me tinham. Um velho amigo meu da Escola das Belas-Artes, hoje pensionista na Vila Médicis, pôs-me em contacto com a colónia francesa. Um outro, o Comte Giuseppe Primoli, cantou os meus louvores na sociedade romana; um eco ligeiro da Avenida de Villiers fez o resto, e o meu gabinete encheu-se de enfermos. O professor Weir-Meichell, a maior celebridade americana de doenças nervosas naquela época, com quem já tivera relações em Paris, continuou a enviar-me o excedente dos seus milionários esgotados e suas esposas neurasténicas. As filhas exuberantes, que tinham colocado a sua vaidade e os seus dólares no primeiro príncipe romano disponível, começaram a chamar-me aos seus velhos e tétricos palácios, para me consultarem sobre os sintomas variados das suas desilusões. O resto da multidão de americanos seguiu-os como um rebanho de ovelhas. Os doze médicos yankees tiveram em breve a sorte dos seus colegas ingleses. As centenas de modelos, que se sentavam nas escadas de Trinitá dei Monti, debaixo das minhas janelas, com seus pitorescos trajos das Montanhas de Montecassino, eram todas minhas clientes. As vendedoras de flores da Piazza di Spagna atiravam-me um ramo de violetas, quando eu passava de carruagem diante delas, para me agradecerem o xarope contra a tosse que lhes dera para um dos seus numerosos bebés.

A minha clínica para pobres no Transtevere espalhou a minha fama pelos bairros miseráveis de toda a Roma. Estava a pé desde manhã à noite, dormia como um rei desde a noite até à manhã, se não me chamavam, mas com frequência sucedia o contrário, o que de resto não me importava, porque naqueles tempos não sabia o que era a fadiga. Em breve, para ganhar tempo e para satisfação do meu gosto pelos cavalos, comecei a percorrer Roma a grande velocidade, numa elegante vitória com rodas encarnadas, puxada por uma parelha de soberbos cavalos húngaros, com o meu fiel Tappio, o cão lapão, sentado a meu lado.

Hoje dou-me conta de que tudo isto era um pouco teatral, e podia ser tomado como reclamo, se eu não houvesse ultrapassado a sua utilidade. Seja como for, o facto foi visto com bastante mau humor pelos meus quarenta e quatro colegas, o que não é de estranhar. Alguns deles passeavam em velhas e negras carruagens do tempo de Pio IX, com todo o aspecto de poderem ser adaptadas, se fosse necessário, a carros fúnebres para os seus clientes que morriam. Outros faziam a pé as lúgubres visitas, com um comprido frac, o chapéu alto enterrado na cabeça, como se meditassem profundamente sobre qual seria o doente que primeiro tinham que embalsamar. Todos me olhavam ferozmente, ao passar, pois todos me conheciam de vista. Não tardou que tivessem de me conhecer pessoalmente, com vontade ou sem ela; comecei a ser chamado a conferências para os seus enfermos moribundos. Fiz quanto pude para observar a etiqueta da nossa profissão, dizendo aos doentes que eles estavam entregues em boas mãos; mas isto não era sempre fácil. Fazíamos, em verdade, uma triste equipe; náufragos de todos os continentes e de todos os mares, refugiados em Roma com a nossa magra bagagem de ciência; era-nos preciso viver algures, e não havia razão para que não fosse em Roma, contanto que deixássemos viver os outros. Não tardou que se tornasse difícil qualquer estrangeiro morrer em Roma, sem que eu fosse chamado para o ajudar nesse transe. Tornei-me para os estrangeiros moribundos o que o Ilustríssimo Professor Baccelli era para os Romanos - a última esperança - por desgraça tão poucas vezes realizada. Um outro personagem deixava raras vezes de apresentar-se nestas ocasiões: era o Signor Cornacchia, o empresário da casa funerária da colónia estrangeira. Dir-se-ia que não havia nunca necessidade de chamá-lo, pois aparecia sempre no momento devido; e que o seu grande nariz recurvo sentia o odor dos mortos a distância, como um abutre. Correctamente vestido, com um comprido frac e chapéu alto, tal como um colega, errava pelos corredores dos hospitais, esperando que o chamassem. Parecia ter simpatizado muito comigo, e na rua cumprimentava-me, agitando cordialmente o seu chapéu alto, todas as vezes que me encontrava. Exprimia-me sempre o seu pesar quando eu partia de Roma, na Primavera, e dava-me sempre as boas-vindas, estendendo-me as mãos e dizendo-me amavelmente: Ben tomate, signor dottore, quando eu regressava, no Outono. Houvera entre nós um ligeiro mal-entendido, no Natal precedente, quando me enviou doze garrafas de Asti Spumante, com a esperança duma cooperação vantajosa na próxima estação. Mostrou-se profundamente ofendido por eu não ter querido aceitar tal obséquio, e disse-me que nenhum dos meus colegas recusara nunca aquela pequena prova de simpatia. Estes desgraçados equívocos tinham também esfriado por algum tempo as cordiais relações que existiam entre mim e dois farmacêuticos estrangeiros.

Um dia, fiquei extremamente surpreendido ao receber a visita do velho Dr. Pilkington, que tinha razões particulares para me detestar. Disse-me que ele e os seus colegas haviam esperado até àquele dia que eu fossse procurá-lo para me apresentar, conforme as regras tácitas da etiqueta. Já que a montanha não vinha a Maomet, vinha Maomet à montanha. Não tinha nada do profeta, a não ser a sua longa, branca e venerável barba; e de preferência o ar de um falso profeta. Disse-me que vinha como decano dos médicos estrangeiros residentes em Roma para me convidar a entrar como sócio na Sociedade de Protecção Mútua, que acabavam de constituir, para terminar com a guerra que havia muito se desencadeara entre eles. Todos os seus colegas se haviam feito sócios, excepto esse velho canalha do Dr. Campbell, a quem nenhum deles dirigia a palavra. A espinhosa questão dos honorários fora já regulada a contento de todos por um acordo mútuo, fixado num mínimo de vinte liras e num máximo à discrição de cada um dos membros, segundo as circunstâncias. Nenhum embalsamamento de homem, mulher ou criança deveria efectuar-se por menos de cinco mil liras. Sentia muito ter de comunicar-me que ultimamente a Sociedade recebera algumas reclamações sobre a minha grave negligência em reclamar os meus honorários, que muitas vezes nem sequer recebia.

Sem ir mais longe, ontem mesmo o Signor Cornacchia, o empresário da casa funerária, confiara-lhe, com lágrimas nos olhos, que eu embalsamara a mulher do pastor sueco por cem liras, o que era uma falta de lealdade deplorável para com os meus colegas. Estava convencido de que eu compreenderia as vantagens de me tornar membro da Sociedade de Protecção Mútua, e teria muito prazer em me dar as boas-vindas na próxima assembleia, no dia seguinte.

Respondi-lhe que sentia muito, mas que não via nenhuma vantagem, nem para mim nem para eles, em me tornar sócio; que em todo o caso estava disposto a discutir com eles um máximo de honorários, mas não um mínimo. Quanto às injecções de sublimado, a que eles chamavam embalsamamento, o seu custo não passava de cinquenta liras; ajuntando outras cinquenta pelo tempo perdido, a soma que havia pedido por embalsamar o cadáver da mulher do pastor estava certa. Eu queria viver a minha vida com os vivos e não viver dos mortos. Era médico e não uma hiena.

Ergueu-se à palavra «hiena» e advertiu-me de que o não incomodasse, se por acaso me lembrasse dele para alguma conferência; nunca estava disponível.

Disse-lhe que era um rude golpe para mim e para os meus doentes, mas que tentaríamos passar sem ele.

Arrependi-me de ter perdido o sangue-frio e de tê-lo ofendido, e disse-lho no nosso primeiro encontro, dessa vez na sua casa da Via Quattro Fontane. O pobre Dr. Pilkington tivera um ligeiro ataque apoplético, precisamente no dia seguinte ao do nosso colóquio, e mandara-me chamar para o tratar. Contou-me que a Sociedade de Protecção Mútua fora dissolvida, que estavam de novo todos em guerra e que se sentia mais seguro nas minhas mãos do que nas dos colegas. Felizmente não era nada de cuidado; até me pareceu que o velho doutor estava mais bem disposto depois do ataque do que antes. Procurei tranquilizá-lo e disse-lhe que não havia nenhuma razão para se alarmar e que sempre pensei que antes deste já deveria ter tido outros ataques ligeiros. Não tardou em pôr-se a pé, mais activo do que nunca, e quando saí de Roma continuava de excelente saúde.

Algum tempo depois, entabulei conhecimento com o seu mortal inimigo, o Dr. Campbell, a quem havia chamado velho bandido. A avaliar pela minha primeira impressão, parecia-me que desta vez acertara no diagnóstico. Nunca havia visto um velho de aspecto mais selvagem: uns olhos ferozes, injectados de sangue, os lábios cruéis, o rosto, congestionado de bêbedo, era peludo como o dum macaco e tinha uma grande barba por cuidar. Diziam que tinha mais de oitenta anos; o velho farmacêutico inglês assegurara-me que havia trinta anos que chegara a Roma e que já então tinha aquele mesmo aspecto. Ninguém sabia donde viera; corriam rumores de que havia sido cirurgião no exército do Sul, durante a guerra americana. A Cirurgia era a sua especialidade, e ele o único cirurgião entre os médicos estrangeiros; e não tinha relações com nenhum deles. Um dia, encontrei-o junto do meu carro, acariciando Tappio.

- Invejo-lhe este cão - disse-me de repente, com voz rude. - Gosta de macacos?

Respondi-lhe afirmativamente.

Disse-me que era justamente o que ele desejava, e pediu-me que fosse ver o seu macaco, que se havia queimado com uma panela de água a ferver.

Subimos ao seu andar, o último da casa que faz esquina com a Piazza Mignanelli. Pediu-me que o esperasse um momento na sala, e apareceu um minuto depois com um macaco nos braços, todo envolvido em ligaduras.

- Temo que esteja muito mal - disse o velho doutor, com voz mudada e acariciando com ternura a face emaciada do macaco. - Não sei que há-de ser de mim se morre; é o meu único amigo em Roma. Criei-o a biberon desde pequenino, pois a mãe morreu ao dá-lo à luz. Era quase tão grande como um gorila, e o doutor não imagina a jóia que era: parecia um ser humano. Não me importo de retalhar os meus semelhantes, até me agrada; mas falta-me a coragem para tratar este corpito em chaga; sofre tão atrozmente, quando tento desinfectar-lhe as feridas, que me é impossível continuar. Tenho a certeza de que o colega gosta dos animais. Quer encarregar-se de o tratar?

Tirámos-lhe as ligaduras empapadas em sangue e pus; era um espectáculo comovedor, pois todo o corpo estava em chaga terrível.

- Sabe que o doutor é um amigo, de contrário não estaria tão sossegado; a não ser eu, não consente que mais ninguém lhe toque. Compreende tudo; tem mais inteligência que todos os médicos estrangeiros de Roma juntos. Há quatro dias que não come nada - continuou dizendo, com uma expressão carinhosa nos olhos injectados de sangue. - «Billy, meu filho, queres dar ao teu papá o gosto de comeres este figo?».

Disse-lhe que gostaria de ter uma banana para lhe dar. Não há coisa que os macacos apreciem mais. Declarou-me que ia telegrafar imediatamente para Londres, pedindo um cacho de bananas, fosse por que preço fosse. O essencial era dar forças ao doente. Metemos-lhe na boca um pouco de leite morno, mas deitou-o fora.

- Não pode engolir - gemeu o dono. - Sei o que isso significa: está para morrer.

Improvisámos com uma sonda uma espécie de tubo nutritor, e desta vez conservou o leite, com grande alegria do velho médico.

Pouco a pouco, Billy foi melhorando; visitei-o diariamente, durante uns quinze dias, e acabei por lhe tomar amizade, a ele e ao dono. Não tardou que o encontrasse instalado na cadeira de balouço que fora posta para ele, no terraço cheio de Sol, junto do dono, com uma garrafa de whisky entre os dois. O velho doutor tinha grande confiança no whisky para tornar a mão firme antes de uma operação. A julgar pelo número de garrafas vazias a um canto do terraço, devia ter uma numerosa clientela. Ai! Eram ambos alcoólicos, e muitas vezes surpreendi Billy regalando-se com whisky e soda do copo do dono. O doutor disse-me que o whisky era o melhor dos tónicos para os macacos, tinha salvo com isso a vida da mãe de Billy, depois duma pneumonia. Uma noite, encontrei-os ambos no terraço, em completa embriaguez. Billy executava uma espécie de dança negra em cima da mesa, à volta duma garrafa de whisky; o velho doutor, atirado para trás na cadeira, marcava o compasso com as mãos, cantando com voz rouca:

- Billy, meu filho, Billy, meu filho, meu filhinho!

Nenhum dos dois me viu chegar; contemplei consternado aquela família feliz. O rosto do macaco intoxicado tornara-se absolutamente humano, o do velho borracho era em tudo semelhante ao de um gorila gigante. O ar de família era indiscutível.

- Billy, meu Billy, meu filho, meu filhinho!

Seria possível? Não, certamente não era possível, mas tudo aquilo me fez estremecer.

Dois meses mais tarde, encontrei de novo o velho doutor junto do meu carro, falando com Tappio.

Não, felizmente, Billy estava bom; desta vez, era sua mulher que estava doente. Queria eu fazer-lhe o favor de ir visitá-la?

Uma vez mais trepámos ao seu andar; jamais me passara pela ideia que tivesse outra companhia além de Billy. Na cama estava estendida uma jovem, quase uma criança, com os olhos fechados, evidentemente desmaiada.

- Julguei que me havia dito que era sua esposa que estava doente. É sua filha?

Não, era a sua quarta mulher; a primeira havia-se suicidado; a segunda e a terceira tinham morrido de pneumonia, e estava certo de que esta seguiria o mesmo caminho.

A minha primeira impressão foi de que tinha razão. Tratava-se duma pneumonia dupla, mas não havia dúvida de que escapara ao seu exame um enorme derrame na pleura esquerda. Dei-lhe duas injecções hipodérmicas de cânfora e éter, com a sua seringa pouco limpa, e começámos a friccionar-lhe os membros vigorosamente, mas sem resultado aparente.

- Procure o colega reanimá-la. Fale-lhe - disse eu.

Inclinou-se sobre o rosto lívido e gritou-lhe ao ouvido:

- Sally, minha querida: reanima-te, cura-te depressa, ou torno a casar-me!

A mulher respirou profundamente e abriu os olhos, estremecendo.

No dia seguinte, fizemos uma punção da pleura; a mocidade fez o resto e ele restabeleceu-se lentamente, como que com desgosto. A minha suspeita dum mal crónico dos pulmões não tardou a confirmar-se. Estava tuberculosa em avançado grau. Visitei-a todos os dias durante duas semanas, e sentia por ela uma grande piedade. O velho causava-lhe terror, o que não era para estranhar, porque era horrivelmente brutal, ainda que possivelmente sem o querer. Havia-me dito que ela era da Florida e, como o Outono se aproximava, aconselhei-o a que a levasse para lá o mais depressa possível, pois não resistiria a um Inverno em Roma. Pareceu aceitar, e não tardei a compreender que a principal dificuldade era Billy. Ofereci-me para o guardar, durante a sua ausência, no meu pequeno pátio, sob as escadas de Trinitá dei Monti, ocupado já por outros animais. Devia regressar dentro de três meses. Não voltou mais e nunca soube onde foi parar, nem ninguém o soube. Ouvi dizer que tinha sido morto numa desordem, numa casa pública: ignoro se é verdade. Muitas vezes perguntei a mim mesmo quem seria aquele homem, e se era verdadeiramente um médico. Uma vez vi-o amputar um braço com rapidez surpreendente; devia ter algumas noções de Anatomia, mas muito poucas sobre o tratamento antisséptico, e os seus instrumentos eram incrivelmente primitivos. O farmacêutico inglês disse-me que fazia sempre as mesmas receitas, às vezes com erros ortográficos e as doses erradas. A minha opinião pessoal é a de que não tinha nada de médico; que seria um antigo carniceiro ou talvez um enfermeiro de ambulância, com alguma forte razão para deixar o país natal.

Billy permaneceu comigo na Piazza di Spagna até a Primavera, em que o levei para San Michele, onde me deu que fazer até ao fim da sua existência. Curei-o da dipsomania e tornou-se, sob alguns pontos de vista, um macaco respeitável. Mais adiante voltarei a falar dele.

 

                                     ENTRE COLEGAS

UM dia apareceu no meu gabinete uma senhora de luto rigoroso, com uma carta de recomendação do pastor inglês. Era de idade madura, proporções avantajadas, e trajava um vestido amplo, dum corte estranho. Sentou-se no sofá, com grandes precauções, e disse-me que estava há pouco tempo em Roma. A morte do reverendo Jonathan, seu chorado marido, havia-a deixado no Mundo sozinha e sem protecção. O reverendo Jonathan era tudo para ela: marido, pai, amante, amigo...

Considerei com simpatia o seu rosto estúpido e o olhar inexpressivo e disse-lhe que sentia muito.

- O reverendo Jonathan tinha...

Disse-lhe que, infelizmente, estava muito ocupado; o salão de espera estava cheio de gente. Em que podia servi-la? Declarou-me que vinha entregar-se nas minhas mãos, pois ia ter um bebé. Sabia que o reverendo Jonathan velava por ela no Paraíso; mas, apesar disso, sentia-se inquieta: era o seu primeiro filho. Tinha ouvido falar muito de mim e agora, que me havia visto, estava convencida de que estaria tão segura em minhas mãos como nas do reverendo Jonathan. Tivera sempre um grande fraco pelos Suecos; estivera mesmo prometida a um pastor sueco... um coup de foudre, mas que não durou. Admirava-se de que eu fosse tão novo; justamente da mesma idade que o pastor sueco; pensava mesmo que havia uma certa semelhança entre nós. Experimentava uma sensação estranha, como se já nos tivésemos visto, e nos pudéssemos compreender sem falar. Dizendo isto, lançava-me uns olhares que teriam deixado o reverendo Jonathan pouco à vontade, se a estivesse vigiando naquele momento do Paraíso.

Apressei-me a declarar-lhe que não era um parteiro, mas que estava certo de que ficaria bem entregue a qualquer dos meus colegas que, em meu entender, eram todos especialistas neste ramo da nossa profissão. Havia, por exemplo, o meu eminente colega o dr. Pilkington...

Não! Queria que fosse eu em pessoa e ninguém mais. Disse-me que certamente eu não teria coração para a abandonar só e sem protecção entre estranhos, com um filho sem pai. Além disso, não havia tempo a perder, pois a criança era esperada dum momento para o outro. Levantei-me imediatamente e propus-lhe mandar buscar um carro para a conduzir sem demora ao Hotel da Rússia, onde se hospedava.

O que não teria dado o reverendo Jonathan por conhecer o filho, ele que tinha amado tão apaixonadamente a mãe! O amor deles havia sido um amor ardente, como jamais houvera outro; fusão de duas vidas ardentes e de duas almas gémeas. Desatou numa crise de lágrimas, que terminou num acesso convulsivo, que lhe sacudia todo o corpo de forma bastante alarmante. De repente, empalideceu e ficou imóvel, com as mãos no ventre como para o proteger. Os meus receios transformaram-se em pavor. Giovannina e Rosina estavam na Villa Borghese com os cães. Ana também tinha saído; não havia uma mulher em casa, e o salão estava cheio de doentes. Saltei da cadeira e mirei-a com atenção. De repente, reconheci aquela expressão; reconheci-a bem, pois não era em vão que passara quinze anos da minha vida entre mulheres histéricas de todos os países e idades. Disse-lhe com rudeza que enxugasse as lágrimas, que se acalmasse e me ouvisse sem interromper-me. Fiz-lhe algumas perguntas profissionais; as suas respostas evasivas despertaram o meu interesse pelo reverendo Jonathan e a sua morte intempestiva. Intempestiva, na verdade, pois a desaparição do seu chorado consorte remontava a uma época um pouco incómoda, sob o meu ponto de vista médico. Acabei por dizer-lhe, com toda a amabilidade possível, que não era certo estar grávida. Ergueu-se de repente do canapé, com o rosto incendido de raiva, e precipitou-se para fora da sala, gritando com quanta força tinha que eu insultara a memória do reverendo Jonathan.

Dois dias depois encontrei o pastor inglês na Piazza e agradeci-lhe ter-me enviado a senhora Jonathan, dizendo-lhe quanto sentia não ter podido encarregar-me dela. Surpreendeu-me o ar reservado do pastor. Perguntei-lhe o que era feito da senhora Jonathan. Disse-me que estava entregue ao dr. Jones, esperando um bebé de um momento para o outro, e deixou-me bruscamente.

Toda esta história se tornou pública em menos de vinte e quatro horas. Toda a gente a conhecia; os médicos estrangeiros sabiam-na e esfregavam as mãos; os meus doentes conheciam-na; os dois farmacêuticos ingleses conheciam-na; o padeiro inglês da Via Babuino sabia-a; todas as pensões da Via Sistina a sabiam, Cook’s sabia-a, e não se falava noutra coisa em todos os chás ingleses. Não tardou que todos os membros da colónia inglesa em Roma soubessem que eu cometera uma gaffe colossal e ofendera a memória do reverendo Jonathan. Toda a gente soube que o Dr. Jones não deixava o Hotel da Rússia e que à meia-noite fora chamada a parteira. No dia seguinte, a colónia inglesa em Roma dividiu-se em dois campos opostos. Haveria menino ou não haveria? Todos os médicos ingleses e os seus doentes, o clero e os seus fiéis, o farmacêutico inglês da Via Condotti, afiançavam que haveria um bebé. Todos os meus doentes, o farmacêutico da Piazza Mignanelli, todas as vendedoras de flores da Piazza di Spagna, todos os modelos da escada de Trinitá dei Monti, sentadas debaixo das minhas janelas, os comerciantes de antiguidades, todos os scapelini da Via Margutta asseguravam, com ênfase, que não havia nenhum menino. O padeiro inglês estava indeciso. O meu amigo, o cônsul inglês, viu-se obrigado, com pesar seu, a tomar partido contra mim, por questão de patriotismo. A situação do Signor Cornacchia, o empresário da casa funerária, era particularmente delicada, e requeria muito tacto profissional. Dum lado estava a sua confiança em mim, como seu principal colaborador; do outro o facto inegável de que a sua casa prosperaria bem mais se acaso se demonstrasse que eu me havia redondamente enganado. Em breve correu a voz de que o Dr. Pilkington fora chamado para uma conferência ao Hotel da Rússia, e que havia descoberto que, em vez de um, seriam dois bebés. O Signor Cornacchia compreendeu que a única táctica acertada era esperar os acontecimentos. Quando se soube que se havia avisado o pastor inglês para estar preparado a qualquer hora do dia ou da noite para um baptismo in articulo mortis, em vista da duração das dores, já não houve hesitação. O Signor Cornacchia passou-se para o campo inimigo, abandonando-me ao meu destino. Para o Signor Cornacchia, do ponto de vista da sua profissão, um bebé valia um adulto... E porque não haviam de ser dois bebés? E mesmo mais?...

Quando se viu entrar uma ama, com o seu pitoresco trajo das montanhas sabinas, no Hotel da Rússia, entre os meus aliados foram visíveis os sinais de desalento. E quando chegou da Inglaterra um carrinho de criança e o colocaram no hall do hotel, a minha posição tornou-se quase crítica. Todas as senhoras, turistas do hotel, dirigiam ao carrinho um olhar risonho, ao atravessar o hall; os criados faziam apostas, dobrado contra singelo, pelos gémeos; as apostas por «nenhum bebé» haviam cessado. Várias pessoas evitaram cumprimentar-me no garden-party da Embaixada de Inglaterra, onde o Dr. Pilkington e o Dr. Jones formavam o centro dum grupo de gente animada, ansiosa por conhecer as últimas notícias do Hotel da Rússia. O ministro da Suécia chamou-me de lado e disse-me, em tom irritado, que não queria ocupar-se mais de mim, que estava farto das minhas extravagâncias, para não dizer coisa pior. Na semana passada, haviam-lhe dito que eu tratara de «hiena» um velho, um dos médicos ingleses mais respeitáveis; ontem, a mulher do pastor inglês contara à sua que eu havia ofendido a memória dum pastor escocês. Se tinha a intenção de continuar desta maneira, era preferível regressar a Anacapri, antes que toda a colónia estrangeira me voltasse as costas.

Ao cabo de uma nova semana de espera ansiosa, começaram a advertir-se sinais de reacção. As apostas entre os criados do Hotel da Rússia voltaram a fazer-se ao par, com algumas tímidas ofertas de cinco liras sobre a probabilidade de não haver nenhum menino. Quando se espalhou a nova de que os dois médicos haviam disputado e que o Dr. Pilkington partira com o segundo bebé debaixo do frac, cessaram todas as apostas a favor dos gémeos. Com o andar do tempo, o número dos desertores aumentava todos os dias. O pastor inglês e os seus fiéis continuavam ainda valorosamente de sentinela ao carrinho. O Dr. Jones, a parteira e a ama ainda dormiam no hotel, mas o Signor Cornacchia, advertido pelo seu agudíssimo olfacto, havia já abandonado o barco que naufragava.

Chegou por fim o golpe de misericórdia, sob a forma dum velho escocês de cara astuta, que entrou no meu gabinete e se assentou no mesmo sofá onde se sentara a cunhada. Disse-me que tinha a desgraça de ser irmão do reverendo Jonathan. Chegara na véspera à noite directamente de Dundee. Parecia não ter perdido o tempo: regulara a nota do Dr. Pilkington, pagando-lhe a terça parte da factura; despedira o Dr. Jones e vinha pedir-me a direcção dum manicómio barato. Em sua opinião, o médico devia ser encerrado noutro.

Disse-lhe que, infelizmente para ele, o caso da cunhada não era suficiente para justificar um manicómio. Replicou-me que, se assim não era, não sabia que podia ser. O reverendo Jonathan morrera de velhice e de amolecimento cerebral havia mais de um ano, e não havia perigo de que aquela velha louca estivesse exposta a novas tentações. Já tinha feito rir à sua custa toda a Dundee e agora ia fazer rir Roma inteira. Disse-me que estava farto de tudo aquilo e que não queria saber de mais nada. Nem eu, tão-pouco; estava há quinze anos rodeado de mulheres histéricas e queria um pouco de repouso. O melhor que tinha a fazer era levá-la outra vez para Dundee.

Quanto ao médico, estava certo de que tinha agido o melhor que podia. Ouvira dizer que era um médico do exército das Índias, militar retirado e com uma experiência muito limitada em matéria de histeria. Creio que o que nós chamamos «tumor fantasma» se tenha apresentado poucas vezes nas guarnições do exército inglês. O caso não é raro nas mulheres histéricas.

Sabia eu que ela tivera a audácia de encomendar o carrinho ao armazém em nome dele? Teve de o pagar por cinco libras, quando por duas podia ter encontrado outro em segunda mão em muito bom estado. Poderia ajudá-lo a encontrar comprador para o carro? Estava disposto a não ganhar nada na venda, mas queria recuperar o seu dinheiro. Disse-lhe que, se deixava a cunhada em Roma, ela era bem capaz de encomendar outro carro, e este argumento pareceu impressioná-lo. Emprestei-lhe a minha carruagem para conduzir a cunhada à estação, e não tornei mais a vê-los.

Até aqui havia-se realizado a profecia do ministro da Suécia: eu havia triunfado sem dificuldade. Não tardou, no entanto, que tivesse um rival muito mais sério, que acabava de estabelecer-se em Roma. Disseram-me, e creio ser a verdade, que foi o meu rápido êxito que o havia induzido a deixar a sua lucrativa clientela da Costa Azul e a instalar-se na capital. Gozava junto dos seus compatriotas de excelente reputação de médico hábil e homem muito simpático. Depressa se tornou um personagem em evidência na sociedade romana, onde eu aparecia cada vez menos, pois já sabia o que desejava saber. Passava numa carruagem tão elegante como a minha, recebia muito na sua sumptuosa casa do Corso e a sua ascensão foi tão rápida como fora a minha. Viera visitar-me e ambos concordámos que em Roma havia trabalho para os dois. Mostrava-se muito amável sempre que nos encontrávamos.

Era evidente que possuía uma larga clientela, composta principalmente de ricos americanos que, segundo me dizia, acorriam a Roma, em grupos, a buscar os seus cuidados. Tinha o seu corpo de enfermeiras e a sua clínica fora da Porta Pia. A princípio, julguei que era médico de senhoras; mas logo soube que a sua especialidade eram as doenças do coração. Possuía, sem contradita, o inestimável dom de inspirar confiança aos doentes, e sempre ouvia falar dele com grandes elogios e muito agradecimento. Não me surpreendia; ao lado dos outros médicos, era, com efeito, uma personalidade interessante; uma bela fronte, olhos extraordinariamente inteligentes, palavra eloquente e maneiras cativantes. Desconhecia por completo os outros colegas, mas a mim chamara-me duas vezes a conferência sobre acidentes nervosos. Parecia conhecer bem a obra de Charcot e visitara também alguns hospitais alemães. Quase sempre estávamos de acordo nos diagnósticos e tratamentos, e pronto deduzi que ele conhecia a profissão pelo menos tão bem como eu.

Um dia enviou-me um bilhete escrito a correr, pedindo-me que fosse imediatamente ao Hotel Constanzi para uma conferência. Parecia mais excitado que de costume. Disse-me, em poucas e rápidas palavras, que o doente recebia os seus cuidados desde algumas semanas e que a princípio tinha melhorado muito com o seu novo tratamento. Nos últimos dias, o mal agravara-se; o estado do coração era pouco satisfatório, e queria ter a minha opinião. Sobretudo era preciso não alarmar o doente nem a família. Julgai da minha surpresa quando reconheci no doente um homem que eu havia muitos anos amava e admirava, como todos os que o conheciam: o autor de Human Personality and its Survival of Bodily Death (A personalidade humana e a sua sobrevivência depois da morte), Frederico Myers. A respiração era superficial e penosa, o rosto cianótico e cavado; só os olhos admiráveis eram ainda os mesmos. Estendeu-me a mão, e disse-me que se alegrava por eu ter vindo; esperava com impaciência a minha chegada. Recordou-me o nosso último encontro em Londres, quando jantei com ele na Society for Psychical Research (Sociedade de Investigações Psíquicas) e como havíamos passado toda a noite a falar da morte e da eternidade. Sem me dar tempo a responder-lhe, o meu colega, temendo um outro ataque, recomendou-lhe que não falasse e passou-me o estetoscópio. Não havia necessidade dum exame prolongado: o que vira bastava-me. Chamando o meu colega de parte, perguntei-lhe se já havia prevenido a família. Com grande surpresa minha, parecia não se dar conta da situação; propôs repetir as injecções de estricnina, com intervalos mais curtos, experimentar o seu soro na manhã seguinte e mandar buscar ao Grande Hotel uma garrafa dum Borganha especial. Disse-lhe que era contrário a todo o estimulante, que teria por único efeito reforçar a sua capacidade de sofrimento, atenuada já pela Natureza misericordiosa. Não nos restava mais do que ajudá-lo a morrer sem muito sofrimento. Enquanto falávamos, o professor William James, o célebre filósofo americano e um dos seus mais íntimos amigos, entrou no quarto. Repeti-lhe que havia que avisar imediatamente a família: era uma questão de horas. Como todos pareciam ter mais confiança no meu colega do que em mim, insisti para que chamassem outro médico para uma conferência. Duas horas depois, chegou o professor Baccelli, o primeiro médico de Roma. O seu exame foi mais sumário do que o meu e o veredito ainda mais breve.

Morre ainda hoje - disse, com a sua voz profunda.

William James falou-me do pacto que existia entre ele e o seu amigo: o primeiro deles que morresse deveria enviar ao outro uma mensagem, mal deixasse este mundo; ambos acreditavam na possibilidade duma tal comunicação. Estava tão acabrunhado pela dor que não tinha forças para entrar no quarto, e deixou-se cair numa cadeira, junto da porta aberta, com um livro de notas sobre os joelhos e a pena na mão, prestes a escrever a mensagem com a sua habitual e metódica precisão. Pela tarde, começou a respiração Cheyne-Stokes, esse pungente sintoma de morte próxima. O olhar era calmo.

- Sei que vou morrer e que o doutor me ajudará. Será hoje ou amanhã?

- Hoje.

- Sinto-me feliz. Estou preparado, sem nenhum receio. Vou enfim saber. Diga a William James, diga-lhe...

A respiração opressa deteve-se, suspensa durante um angustioso minuto.

- Ouve-me? - perguntei, inclinando-me sobre o moribundo. - Sofre?

- Não - murmurou. - Sinto-me muito abatido e muito feliz.

Foram as suas últimas palavras.

Quando saí, William James continuava na cadeira, com o rosto entre as mãos e o caderno aberto sobre os joelhos. A página estava em branco.

Durante aquele Inverno, vi muitas vezes o meu colega e também alguns dos seus doentes. Falava-me sempre dos maravilhosos resultados do seu soro e de um novo remédio para a angina pectoris, que nos últimos tempos estava aplicando com grande êxito na sua clínica. Quando lhe disse quanto me interessara sempre a angina pectoris, consentiu em levar-me à sua clínica para me mostrar alguns dos seus doentes curados com o novo remédio. Surpreendeu-me vivamente encontrar entre eles uma das minhas antigas clientes, uma rica americana com todos os sinais da histeria, classificada por mim como doente imaginária, e parecendo, como sempre, de perfeita saúde. Estava de cama havia um mês, velada dia e noite por duas enfermeiras; tomada de temperatura de quatro em quatro horas, injecções hipodérmicas de drogas desconhecidas várias vezes por dia, um regime observado escrupulosamente nas mais pequenas minúcias, suporíferos de noite, enfim tudo quanto ela podia desejar. Tinha tanto uma angina pectoris como eu. Por fortuna para ela era forte como um cavalo e muito capaz de resistir a qualquer tratamento. Disse-me que o meu colega lhe havia salvo a vida. Não tardei a perceber que a maioria dos enfermos do hospital eram casos mais ou menos semelhantes, submetidos todos ao mesmo regime severo, mas sem outro mal além de se imaginarem doentes e de serem visitados por um médico. Tudo quanto observava me parecia tão significativo como a angina pectoris. Como procedia? Que método empregava? Tanto quanto pude perceber, consistia em meter os doentes na cama, permitir-lhes um lento restabelecimento, suprimindo gradualmente a sugestão dos seus cérebros perturbados. Fácil era classificar este colega como o médico mais perigoso que tinha encontrado. Não me atrevia a classificá-lo como simples charlatão. O facto de o considerar como um médico hábil era perfeitamente compatível com o charlatanismo; as duas coisas ligam-se bem e nisso está o maior perigo dos charlatães.

Mas o charlatão opera sozinho, como o picpocket, e este homem havia-me conduzido à sua clínica para me mostrar com orgulho os seus casos mais comprometedores. Era evidentemente um charlatão, mas dum tipo raro, bem digno de estudo. Quanto mais o via, mais me feria a rapidez anormal de todo o seu mecanismo mental, os olhos inquietos, a extraordinária precipitação da palavra. Mas o primeiro sinal de alarme proveio da maneira como o vi manejar a digitalis, a nossa mais poderosa, mas também mais perigosa arma para combater as doenças de coração.

Uma noite recebi um bilhete da filha duma das suas doentes, suplicando-me que fosse imediatamente, reclamado com urgência pela enfermeira. Esta chamou-me à parte, e disse-me que me pedira para ir porque temia que qualquer coisa não estivesse bem em regra, e achava-se muito inquieta com o que se passava. E tinha razão. O coração estivera muito tempo sob a acção da digitalis, e a doente achava-se em perigo imediato de perder a vida por efeito da droga. O meu colega preparava-se para lhe dar outra injecção, quando lhe arranquei a seringa das mãos e li a terrível verdade nos seus olhos desvairados. Não era um charlatão, era um louco.

Que fazer? Denunciá-lo como charlatão? Só conseguiria aumentar o número dos seus clientes e talvez das suas vítimas. Denunciá-lo como louco? Teria sido a ruína irreparável de toda a sua carreira. E que provas podia apresentar? Os mortos não podiam falar e os vivos não queriam falar. Os seus doentes, as suas enfermeiras, os seus amigos, todos se ergueriam contra mim, que, mais do que ninguém, devia aproveitar da sua queda. Não fazer nada? Deixá-lo no seu posto, árbitro insensato da vida e da morte?

Depois de muitas hesitações, resolvi falar ao seu embaixador, que eu sabia ter com ele as melhores relações. O embaixador não quis acreditar-me. Conhecia-o há muitos anos; sempre o havia tido por um grande médico, digno de confiança, e ele próprio e sua família haviam obtido os melhores resultados com os seus tratamentos. Sempre o havia julgado um homem excitável e um pouco excêntrico, mas, quanto à lucidez do seu cérebro, estava certo de que era tão equilibrado como o nosso. De repente, o embaixador desatou a rir, com uma daquelas formidáveis gargalhadas que lhe eram habituais. Disse-me que não podia conter-se, que era demasiado cómico e que sabia que eu, que tinha o sentido do humor, não me ofenderia. Acrescentou que o meu colega tinha ido vê-lo naquela mesma manhã, para lhe pedir uma carta de apresentação para o ministro sueco, a quem tinha que falar num assunto grave. Entendia de seu dever prevenir o ministro para que me vigiasse, pois estava convencido de que eu não andava muito bem da cabeça. Fiz notar ao embaixador que essa era uma prova de valor, pois era precisamente o que faria um louco em caso semelhante; que a astúcia dos loucos é surpreendente.

Ao chegar a casa, entregaram-me um bilhete, quase ilegível, do meu colega, que decifrei como um convite para ir cear com ele no dia seguinte. A alteração da letra já havia chamado a minha atenção. Encontrei-o diante do espelho, no seu gabinete de consulta, com os olhos brilhantes fixos num ligeiro inchaço da garganta: hipertrofia da glândula tiroidea, que eu já havia notado. A rapidez extraordinária do pulso tornou o diagnóstico fácil. Disse-lhe que tinha a doença de Basedow e respondeu-me que ele próprio já o suspeitava, pedindo-me que o tomasse a meu cuidado. Na minha opinião, sofria de surmenage e tinha de renunciar à sua profissão durante algum tempo. O melhor seria que voltasse à sua terra natal para fazer um longo repouso. Consegui que permanecesse de cama até à chegada dum dos seus parentes. Deixou Roma uma semana depois, e não voltou mais. Morreu no ano seguinte.

 

                                   GRANDE HOTEL

QUANDO o Dr. Pilkington se me apresentou como decano dos médicos estrangeiros usurpou um título que pertencia a outro, bem superior a nós todos, médicos estrangeiros em Roma. Deixai-me aqui escrever o seu nome com todas as letras, como está escrito na minha memória em letras de oiro - o velho Doutor Erhardt, um dos melhores médicos e um dos melhores homens que tenho conhecido. Último sobrevivente da Roma desaparecida de Pio IX, a sua reputação havia resistido a mais de quarenta anos de clínica na Cidade Eterna. Ainda que passava dos setenta, estava na posse de todo o seu vigor físico e intelectual, de pé dia e noite, sempre pronto a socorrer: ricos e pobres, todos eram iguais para ele. Era o tipo clássico do médico de família dos antigos tempos, quase desaparecido hoje, com grave prejuízo dos que sofrem. Impossível não o estimar e negar-lhe confiança. Estou convencido de que não teve um único inimigo na sua longa vida, a não ser o professor Baccelli. Era alemão pelo nascimento e, se em 1914 tivesse havido muitos como ele na sua pátria, não teria havido guerra. Que tantas pessoas, dos seus antigos doentes, viessem consultar-me, quando um homem como o velho Erhardt habitava na mesma Piazza, ficara sempre para mim um mistério. Era o único dos meus colegas que eu consultava nas minhas dúvidas, e sempre acabava por lhe dar razão; eu não a tinha muitas vezes, mas ele nunca o dizia, defendendo-me quando tinha ocasião, o que sucedia com frequência.

Talvez não estivesse muito ao corrente das últimas artimanhas da nossa profissão e permanecia alheado de várias e milagrosas drogas de todas as origens. Manejava com magistral perícia a sua velha e bem provada farmacopeia; os seus olhos penetrantes descobriam o mal onde quer que se escondesse, e não existiam segredos nem no pulmão nem no coração, quando aplicava o estetoscópio ao seu velho ouvido. Nenhuma descoberta moderna lhe escapava. Interessava-se vivamente pela bacteriologia e pela soroterapia, ciência quase nova naquela época. Conhecia Pasteur pelo menos tão bem como eu. Foi o primeiro médico a ensaiar o soro antidiftérico de Behring e de Roux, que ainda não havia saído do período experimental e não se podia obter no comércio, e que salva agora a vida a centenas de milhares de crianças todos os anos.

Não é fácil esquecer também o que vou narrar. Uma noite, já tarde, fui chamado ao Grande Hotel por uma mensagem urgente dum senhor americano, acompanhada duma carta de recomendação do professor Weir Mitchell. Fui recebido no hall por um homem de aspecto furibundo, que, muito agitado, me disse que acabava de chegar de Paris pelo comboio de luxo. Em vez dos belos aposentos que mandara reservar, haviam-nos metido, a ele e à família, em dois quartos pequenos, sem uma sala, nem sequer um quarto de banho. O telegrama do gerente comunicando-lhe que o hotel estava cheio fora expedido demasiado tarde e não lhe chegara às mãos. Acabava até de telefonar para o Ritz, protestando contra um tal tratamento.

Para complicar o caso, o seu pequeno sofria dum resfriamento e estava com febre; a mãe velara-o toda a noite no comboio. Queria eu ter a amabilidade de ir vê-los? Na mesma cama estavam duas crianças, com as faces unidas, as bocas quase juntas. A mãe olhou-me com angústia e disse-me que o pequenito não tinha podido engolir o leite e ela temia que estivesse mal da garganta. Respirava com dificuldade, com a boca muito aberta e o rosto quase violáceo. Pus a pequena, que continuava dormindo, na cama da mãe, a quem disse que o filho tinha a difteria e que era preciso chamar imediatamente uma enfermeira. Respondeu-me que ela própria queria cuidar do filho. Passei a noite a raspar as membranas da garganta do pequeno, quase asfixiado. Ao amanhecer, mandei chamar o Dr. Erhardt, para me ajudar a fazer a traqueotomia; a criança asfixiava. O estado do coração era já tão inquietante que o meu colega não ousava dar-lhe o clorofórmio e ambos hesitávamos em operá-lo, temendo que nos morresse sob o bisturi. Mandei chamar o pai; ao ouvir falar de difteria, precipitou-se para fora do quarto e prosseguimos a conversa através da porta entreaberta. Não queria ouvir falar de operação e disse que faria vir todas as sumidades médicas de Roma para darem a sua opinião. Respondi-lhe que era inútil e demasiadamente tarde: operar ou não, só dependia da opinião do Dr. Erhardt e da minha. Embrulhei a pequenita num cobertor e disse-lhe que a levasse para o seu quarto. Declarou-me que daria um milhão de dólares para salvar o filho; respondi-lhe que não se tratava ali de dólares e fechei-lhe a porta na cara. A mãe permaneceu junto, da cama, olhando-nos aterrada; disse-lhe que a operação podia impor-se de um momento para o outro, que antes de uma hora não poderíamos ter uma enfermeira, e que ela teria de nos ajudar. Inclinou a cabeça em sinal de assentimento, sem uma palavra, com todo o rosto contraído para reter as lágrimas; era uma corajosa e admirável mulher. Enquanto estendia um lençol levado sobre uma mesa, debaixo duma lâmpada, e preparava os instrumentos, Erhardt contou-me que, por uma coincidência estranha, recebera naquela mesma manhã, por intermédio da Embaixada alemã, uma amostra de novo soro antidiftérico de Behring, que lhe mandava, a pedido seu, o laboratório de Marburg. Eu sabia que o soro fora já ensaiado com verdadeiro êxito em várias clínicas alemãs. Deveríamos experimentá-lo? Não havia tempo para discutir; a criança estava cada vez pior e ambos a julgávamos quase perdida. Com o consentimento da mãe, decidimos injectar-lhe o soro. A reacção foi aterradora e quase instantânea. Todo o corpo se tornou negro, a temperatura subiu a 40 para cair rapidamente abaixo da normal, com um violento estremecimento. Sangrava pelo nariz e pelo intestino; o funcionamento do coração tornara-se muito irregular; os sintomas era de colapso imediato. Nenhum de nós deixou o quarto durante toda a noite; esperávamos a todo o instante ver morrer a criança. Com grande surpresa nossa, para a noite a respiração tornou-se mais fácil, o estado local da garganta parecia um pouco melhor, o pulso mais regular. Supliquei ao velho Dr. Erhardt que fosse a casa descansar umas horas; disse-me que estava por demais interessado pela observação do caso para sentir a fadiga.

Com a chegada de Soeur Filipina, a Irmã azul inglesa, uma das melhores enfermeiras que tive, o ruído de que havia difteria no último andar estendeu-se como pólvora, por todo o hotel, que estava à cunha. O director mandou-me avisar de que a criança tinha de ser transportada imediatamente a um hospital ou sanatório. Respondi-lhe que nem o Dr. Erhardt nem eu tomávamos a responsabilidade, pois o doente morreria pelo caminho. Além disso, não conhecíamos nenhum lugar para onde pudéssemos levá-lo; as instalações para tais casos eram naquela época desesperadoramente inadequadas. Um instante depois, o milionário de Pittsburg disse-me, pela porta entreaberta, que havia dado ordem para desalojarem todos os quartos do último andar, e que este ficava por sua conta; preferia comprar todo o hotel a consentir em que trasladassem o filho com perigo de vida. Pela noite, tornou-se evidente que a mãe se havia contagiado. No dia seguinte, de manhã, toda a ala do último andar fora evacuada. Até os criados e as criadas haviam fugido. Unicamente o Signor Cornacchia, o da casa funerária, rondava pelos corredores desertos, com o chapéu alto na mão. De vez em quando, o pai do pequeno vinha olhar pela porta meio aberta, quase louco de terror. A mãe estava cada vez pior; levámo-la para um quarto ao lado, entregue ao Dr. Erhardt e a outra enfermeira. Eu e Soeur Filipina ficámos com o pequeno. Pelo meio-dia, teve um desmaio e morreu duma paralisia cardíaca. O estado da mãe era nesse momento tão grave que não nos atrevemos a comunicar-lhe, decidindo esperar até ao dia seguinte. Quando disse ao pai que o cadáver da criança tinha de ser levado para o depósito mortuário do cemitério protestante, naquela mesma tarde, e que tinha de ser enterrado dentro das vinte e quatro horas, cambaleou e por pouco não caiu nos braços do Signor Cornacchia, que estava a seu lado, respeitosamente inclinado. Disse-me que a esposa jamais lhe perdoaria que deixasse um filho seu em terra estrangeira; tinha de ser enterrado no jazigo de Pittsburg. Repliquei-lhe que era impossível, pois a lei proibia, naquele caso, o transporte do corpo.

Um momento depois o milionário estendia-me, pela porta entreaberta, um cheque de mil libras para o que eu entendesse; estava disposto a encher outro da soma que eu lhe indicasse, mas era preciso que o corpo fosse enviado à América. Encerrei-me com o Signor Cornacchia noutro quarto, e perguntei-lhe qual seria o custo aproximado dum enterro de primeira classe e duma sepultura perpétua no cemitério protestante. Disse-me que os tempos eram duros e que ultimamente houvera um aumento no preço dos ataúdes, agravado por uma diminuição imprevista dos clientes. Era para ele um ponto de honra que o enterro fosse o mais rico possível; dez mil liras, as gorjetas não incluídas, seria suficiente. Havia ainda a contar com o coveiro que, como eu sabia, tinha oito filhos; naturalmente também as flores seriam aparte. As pupilas oblíquas e felinas do Signor Cornacchia dilataram-se visivelmente, quando eu lhe disse que estava autorizado a oferecer-lhe o dobro, se ele arranjasse as coisas de maneira que o corpo fosse enviado para Nápoles e transportado no próximo navio para a América. Precisava duma resposta dentro de duas horas; sabia que era proibido pelas leis, e ele devia consultar a sua consciência. Eu já consultara a minha. Embalsamaria o corpo naquela mesma noite e faria soldar o caixão de chumbo na minha presença. Quando estivesse seguro de que todo o perigo duma infecção possível desaparecera, assinaria uma certidão de óbito por pneumonia, seguida de paralisia cardíaca, omitindo a palavra difteria. A consulta do Signor Cornacchia com a sua consciência levou menos tempo do que previra; voltou uma hora depois, aceitando a proposta, com a condição de que metade da importância lhe seria paga adiantadamente e sem passar recibo. Estendi-lhe o dinheiro. Uma hora depois Erhardt e eu praticávamos a traqueotomia à mãe; não há dúvida de que a operação lhe salvou a vida.

A lembrança daquela noite persegue-me ainda, quando visito o pequeno e lindo cemitério da Porta San Paola. Giovanni, o coveiro, esperava-me à porta com uma lanterna. Pela maneira como ele me recebeu, percebi que havia bebido um copo a mais, para ter ânimo durante o trabalho daquela noite. Devia ser o meu único ajudante; eu tinha boas razões para não desejar outro. A noite estava escura e tempestuosa; chovia torrencialmente. Uma rajada de vento apagou a luz e tivemos de procurar o caminho às apalpadelas, o melhor que pudemos. Ao cruzar o cemitério, tropecei num montão de terra revolvida e caí ao comprido numa cova meio aberta. Giovanni disse-me que a estivera abrindo aquela tarde, por ordem do Signor Cornacchia; felizmente era pouco profunda, por se tratar de uma criança.

O embalsamamento foi empresa difícil e perigosa. O corpo estava já em avançada decomposição; a luz era insuficiente, e, com grande terror meu, cortei-me ligeiramente num dedo. Um grande mocho piava sem descanso por detrás da Pirâmide de Cestius; recordo-me bem desse facto; foi a primeira vez que me desagradou aquela voz, pois sempre tive um fraco pelos mochos.

Ao amanhecer do dia seguinte, estava de volta ao Grande Hotel. A mãe passara uma boa noite, e, como a temperatura era normal, Erhardt considerava-a livre de perigo. Não era possível continuar a ocultar-lhe a morte do filho. Como nem o pai, nem Erhardt lho queriam dizer, coube-me a mim fazê-lo. A enfermeira pensava que ela já o sabia. Enquanto a velava, havia despertado bruscamente, e, com um grande grito de dor, tentara saltar da cama e caíra desmaiada. A enfermeira julgou que tinha morrido e precipitou-se para me chamar, precisamente no momento em que eu entrara para lhe anunciar a morte da criança. Não se enganava a enfermeira. Antes de eu falar, a mãe olhou-me nos olhos, e disse-me que já sabia que o filho estava morto.

Erhardt ficou abatidíssimo com a morte da criança; arrependia-se de ter aconselhado o soro, e era tal a integridade e honradez daquele ancião que queria escrever uma carta ao pai, acusando-se quase de ter causado a morte do filho. Disse-lhe que a responsabilidade era minha, pois o doente me fora confiado; que uma carta daquelas podia ter tal efeito sobre o pai, desvairado pela dor, que lhe fizesse perder a razão. No dia seguinte, a mãe foi transportada na minha carruagem à clínica das Soeurs Bleues, onde eu conseguira igualmente um quarto para a filhita, e outro para o marido. O terror deste pela difterria era tal que me fez presente de toda a sua roupa: duas grandes malas cheias de fatos, sem contar o sobretudo e o chapéu alto. Fiquei contentíssimo; as roupas usadas são por vezes mais úteis do que os medicamentos. Custou-me convencê-lo a que conservasse o relógio de oiro de repetição; o seu barómetro de algibeira ainda hoje está em meu poder. Antes de sair do hotel o milionário de Pittsburg pagou com indiferença a formidável conta que me fez vacilar. Eu próprio assisti à desinfecção dos quartos; e, recordando o que me havia sucedido no Hotel Vitória, de Heidelberga, passei uma hora de gatas no quarto onde a criança falecera para arrancar a carpette de Bruxelas pregada ao soalho. Que naquela ocasião pudesse haver ainda na minha cabeça lugar para pensar nas Petites Soeurs des Pauvres (Irmãzinhas dos Pobres) é coisa que supera a minha compreensão. Ainda estou vendo a cara do gerente do hotel, quando mandei pôr o tapete na minha carruagem para o mandar ao Estabelecimento Municipal de Desinfecção do Aventino. Disse ao gerente que o milionário de Pittsburg, depois de ter pago a carpette pelo triplo do seu valor, ma oferecera como lembrança.

Voltei por fim à minha casa da Piazza di Spagna. Pus na porta um aviso em francês e inglês, dizendo que o doutor estava doente e pedia aos seus clientes o obséquio de se dirigirem ao Dr. Erhardt, Piazza di Spagna, 28. Dei-me uma injecção duma triple dose de morfina, e caí sem forças sobre o sofá do meu gabinete de consulta, com a garganta inchada e febre a quarenta graus. Ana assustou-se e quis chamar o Dr. Erhardt. Disse-lhe que não era preciso; que só necessitava de vinte e quatro horas de sono e que não me incomodassem para nada, a não ser que a casa ardesse.

A droga bendita começou a espalhar o esquecimento e a paz no meu cérebro exausto, e até a obsessão do meu dedo cortado deixou o pensamento entorpecido.

De repente, a campainha da entrada começou a tocar, obstinadamente, raivosamente. Do vestíbulo chegou-me a voz duma mulher de nacionalidade inconfundível, discutindo com Ana, no seu mau italiano.

- O doutor está doente e pede o obséquio de consultarem o Dr. Erhardt, que vive aqui ao lado.

A outra dizia que não, e que tinha de falar imediatamente com o Dr. Munthe, para um assunto muito importante.

- O doutor está de cama, não pode receber V. Ex.a.

Não! Queria ver-me sem demora.

- Leve-lhe o meu cartão.

- O doutor dorme, minha senhora...

Dormir eu? Com aquela voz a gritar no vestíbulo?

Ana não teve tempo de retê-la; ergueu o reposteiro do meu quarto e apareceu diante de mim, imagem da saúde, forte como um cavalo, Mrs. Charles W. Washington Longfellow Perkins Júnior.

- Que deseja a senhora?

Queria saber se haveria algum risco de contrair a difteria no Grande Hotel; tinham-lhe dado um quarto no último andar. Era verdade que o pequeno morrera no primeiro? Não queria arriscar-se a um contágio.

- Qual é o número do seu quarto?

- Trezentos e trinta e cinco.

- Pois deixe-se lá ficar. É o quarto mais limpo de todo o hotel; eu próprio o desinfectei. Foi aí que o pequeno morreu.

Caí sobre a cama, a morfina começava a agir.

De novo se ouviu a campainha. E de novo ouvi a mesma voz inexorável no vestíbulo, dizendo a Ana que se havia esquecido de perguntar outra coisa muito importante sobre que vinha consultar-me.

- Atire-a da escada abaixo! - gritei à Ana, que lhe chegava apenas à cinta.

Não, não se iria embora, sem me ter feito a outra pergunta.

- Que quer a senhora?

- Parti um dente e receio que seja preciso arrancá-lo. Qual é o melhor dentista de Roma?

- Mistress Washington Perkins Júnior, está-me ouvindo?

Sim, ouvia-me muito bem.

- Mrs. Perkins Júnior, pela primeira vez na minha vida tenho pena de não ser dentista para ter o gosto de lhe arrancar os dentes todos.

 

                                     AS IRMÃZINHAS DOS POBRES

As Irmãzinhas dos Pobres de San Pietro in Vincoli, umas cinquenta, na maioria francesas, eram todas minhas amigas; meus amigos também eram muitos dos trezentos anciãos, de ambos os sexos, asilados no enorme edifício. O médico italiano, que tinha o encargo de velar por todos, nunca mostrou o menor sinal de despeito, nem mesmo quando, com grande alegria, as Irmãzinhas estenderam nos ladrilhos gelados da capela a carpette do milionário de Pittsburg, do Grande Hotel, devidamente desinfectada. Como aquelas monjas conseguiam obter alimento e vestuário para todos os seus pensionistas era para mim um mistério. A sua velha carriola, arrastando-se de hotel em hotel para recolher os menores restos de alimentos, era um espectáculo familiar para todos os que naquela época visitavam Roma. Vinte Irmãzinhas, aos pares, com cestos e bolsas, a pé de manhã à noite, percorriam toda a cidade. Duas delas, em geral, conservavam-se num canto da minha sala de espera, às horas da consulta. Muitos dos meus antigos doentes o recordarão, sem dúvida.

Como todas as monjas, eram alegres e chalreavam com prazer quando se apresentava a ocasião. Ambas eram novas e bastante bonitas; a Madre Superiora confiou-me um dia que as monjas velhas e feias não serviam para o peditório. Confidência por confidência, disse-lhe que uma enfermeira nova e linda tinha mais probabilidade de fazer-se obedecer pelos meus doentes; e que uma mulher aborrecida não era nunca boa enfermeira. Aquelas monjas, que conheciam tão pouco do mundo exterior, sabiam muito da natureza humana. Adivinhavam à primeira vista quem daria esmola e quem o não faria. Diziam-me que os novos davam mais do que os velhos, e as crianças raras vezes, a não ser quando compelidas. Os homens dão mais do que as mulheres, e os que vão a pé mais do que os que andam de carruagem. Os Ingleses eram os mais generosos; depois vinham os Russos. Turistas franceses havia tão poucos! Aos Americanos e aos Alemães custava-lhes separarem-se do dinheiro; os Italianos da boa sociedade ainda eram piores, mas os pobres eram generosos. Os príncipes e o clero de todos os países não eram, em geral, bons clientes. Os cento e cinquenta anciãos que tinham a seu cuidado eram, na maioria, fáceis de manejar, mas não sucedia o mesmo com as cento e cinquenta mulheres, que disputavam umas com as outras continuamente. Terríveis dramas passionais surgiam com frequência nas duas alas do asilo; e as Irmãzinhas esforçavam-se por extinguir aqueles incêndios, que continuavam latentes, tanto quanto a sua limitada compreensão lhes permitia.

O favorito da casa era Monsieur Alphonse, o francês mais pequeno que jamais se viu, que vivia por detrás dumas cortinas azuis, no canto da grande galeria, que comportava sessenta camas. Nenhuma outra cama tinha cortinas; este privilégio fora apenas concedido a Monsieur Alphonse, por ser o mais velho da casa. Dizia ele que tinha 75 anos, mas as monjas pensavam que tivesse mais de 80; e, a julgar pelo estado das suas artérias, dir-se-ia que não estaria longe dos 90. Havia ali chegado alguns anos antes, com uma malita, um frac no fio e um chapéu alto, e ninguém sabia donde tinha saído. Passava o dia por detrás das cortinas, completamente isolado dos outros inquilinos, e só aos domingos se mostrava, a caminho da capela, com o chapéu alto na mão. O que fazia por detrás das cortinas durante o dia inteiro todos o ignoravam. Diziam as monjas que, quando lhe levavam a sopa ou o café, outro privilégio, o encontravam sempre sentado na cama, examinando atentamente os papéis que guardava na velha maleta ou a escovar o chapéu alto. Monsieur Alphonse era todo pontinhos em matéria de visitas. Primeiro era preciso chamarem-no com umas pancadinhas na mesa, que estava junto da cama. Encerrava então cuidadosamente toda a papelada na maleta e dizia com voz trémula: «Faça favor de entrar». Depois, com um gesto digno de desculpa, convidava-nos a sentar junto de si, na cama. Parecia gostar das minhas visitas, e não tardámos em ser bons amigos. Todos os meus esforços para saber algo da sua vida foram inúteis; tudo o que pude saber é que era francês, mas não me atrevo a dizer que fosse parisiense. Não falava uma única palavra de italiano, e parecia não conhecer nada de Roma. Nem sequer havia estado nunca em S. Pedro, mas contava ir ali numa daquelas manhãs, logo que tivesse ocasião. As monjas diziam que não iria nunca ali, nem a nenhures, ainda que pudesse andar um pouco, se quisesse. A verdadeira razão que o obrigava a ficar em casa às quintas-feiras, dias de saída, era a ruína do chapéu alto e do velho frac, à força do escovar sem descanso.

No dia em que lhe fiz experimentar o chapéu alto e o frac novo do milionário de Pittsburg, última moda americana, começou o último capítulo da vida de Monsieur Alphonse, talvez o mais feliz. Todas as monjas, até a Madre Superiora, estavam em baixo, à porta, na quinta-feira seguinte, para o ver partir, quando subiu à minha elegante carruagem, tirando solenemente o chapéu alto para despedir-se das suas admiradoras. - «Como está elegante! diziam elas, rindo. - Parece um lord inglês». Descemos o Corso e fizemos uma curta aparição no Pincio, antes de nos determos na Piazza di Spagna, onde o havia convidado a almoçar comigo.

Quem seria capaz de resistir à tentação de recusar um convite igual todas as quintas-feiras? À uma hora em ponto, cada quinta-feira daquele Inverno, a minha carruagem depunha Monsieur Alphonse no número 26 da Piazza di Spagna. Uma hora depois, quando começava a consulta, Ana acompanhava-o ao carro, que o esperava para o habitual passeio pelo Pincio. Uma nova paragem de meia hora no Café Aragno, onde Monsieur Alphonse se sentava no seu canto reservado, com uma chávena de café e o Figaro, e por fim meia hora mais de vida gloriosa descendo o Corso na minha carruagem, procurando ansiosamente os conhecimentos da Piazza di Spagna, para os cumprimentar com o seu flamante chapéu alto. Depois, novo eclipse por detrás das cortinas azuis até à quinta-feira seguinte, em que, no dizer das monjas, começava a escovar o chapéu desde que amanhecia. Com frequência, um ou dois amigos vinham partilhar o nosso almoço, com grande satisfação sua. Mais de um, com certeza, se lembra dele. Ninguém teve nunca a menor suspeita do lugar donde vinha. De resto, tinha um ar todo correcto, com o seu comprido e elegante frac e o seu. chapéu alto, do qual até à mesa se separava com pesar. Não sabendo eu próprio quem era Monsieur Alphonse, acabei por transformá-lo num diplomata jubilado. Todos os meus amigos lhe chamavam «senhor Ministro» e Ana tratava-o, invariavelmente, por Vostra Eccellenza, e era de ver a cara que fazia. Por fortuna era surdo e a conversa limitava-se geralmente a algumas reflexões polidas sobre o Papa ou o siroco. No entanto, eu tinha que ter os olhos e os ouvidos abertos, sempre pronto a intervir para afastar a garrafa e ajudá-lo nalguma pergunta ou resposta embaraçosa, depois do segundo copo de Frascati. Monsieur Alphonse era um ardente realista, decidido a derribar ”a República Francesa, a todo o custo. Todos os dias esperava notícias muito confidenciais para voltar a Paris de um momento para o outro. Até ali estávamos em terreno firme; ouvira a muitos franceses abolir a República; mas, quando se punha a falar dos assuntos de família, tinha que estar muito atento, no receio de que deixasse escapar o segredo do seu passado, tão zelosamente escondido. Felizmente, era sempre prevenido a tempo por «meu cunhado, o comissário». Entre mim e os meus amigos havia a convenção tácita de que, apenas ele mencionasse aquela misteriosa personagem, tinha que afastar-se a garrafa, e não lhe dar nem mais uma gota de vinho.

Recordo muito bem: Waldo Story, o escultor americano, bem conhecido e amigo particular de Monsieur Alphonse, almoçava connosco naquela quinta-feira. Este estava de excelente humor e muito loquaz, coisa desusada nele. Ainda antes de esvaziar o primeiro copo de Frascati, já discutia acaloradamente com Waldo a probabilidade de poder aprontar um exército de ex-garibaldinos para invadir a França, marchar sobre Paris e derrubar a República. Era, afinal, uma simples questão de dinheiro. Bastariam cinco milhões de francos e ele, pela sua parte, estava disposto a conseguir um milhão, no pior dos casos. Pareceu-me um pouco congestionado e tive a convicção de que o cunhado não estaria longe. Fiz a Waldo o sinal convencionado para não lhe dar mais vinho.

- Meu cunhado, o comissário...

Parou de repente, quando eu afastava a garrafa, e baixou a cabeça sobre o prato, como sempre fazia quando estava um pouco vexado.

- Não faz mal - disse eu - mais um copo à sua saúde; desculpe tê-lo ofendido, e abaixo a República! Já que assim o deseja.

Com grande surpresa minha, não estendeu a mão para o copo. Continuou imóvel, fixando o prato. Estava morto.

Ninguém sabia melhor do que eu o que sgnificaria para ele e para mim próprio ter seguido as vias normais e chamar a polícia, como mandava a lei: reconhecimento do cadáver por um médico legista, talvez autópsia, intervenção do Consulado de França e o último, mas talvez o maior mal, roubaram-lhe o seu único bem, o segredo do seu passaddo. Mandei baixar Ana para dizer ao cocheiro que levantasse a capota do carro porque Monsieur Alphonse havia desmaiado e eu próprio o acompanharia a casa. Cinco minutos depois estava sentado a meu lado, no seu lugar habitual, com o sobretudo do milionário de Pittsburg levantado até às orelhas e o chapéu alto bem enterrado na cabeça, como de costume. Tinha o aspecto de sempre: somente, como todos os mortos, parecia mais pequeno.

- Pelo Corso? - perguntou o cocheiro.

- Pelo Corso, claro, é o passeio favorito de Monsieur Alphonse.

A Madre Superiora, a princípio, mostrou-se inquieta, mas a minha certidão de «morte em consequência duma síncope cardíaca», datada do asilo, pôs tudo em ordem com os regulamentos da polícia. À noite, Monsieur Alphonse foi metido no caixão, com a malita debaixo da cabeça, à maneira de almofada, e a chave dependurada numa fita, ao pescoço. As Irmãzinhas nunca faziam perguntas nem aos vivos nem aos mortos. Dos que ali acodem em busca de protecção nada mais querem saber do que a idade desvalida. O resto é com Deus; não com elas, nem com ninguém. Sabem perfeitamente que muitos dos asilados vivem e morrem ali com um nome suposto. Eu queria que ele pudesse levar consigo para o túmulo o chapéu alto que tanto estimava, mas as monjas disseram que não era possível. Tive pena, pois tinha a certeza de que lhe daria gosto.

Uma noite, despertei com um recado urgente das Irmãzinhas dos Pobres, pedindo-me que fosse imediatamente. Todas as salas do grande edifício estavam às escuras e silenciosas, mas ouvi rezar na capela. Fizeram-me entrar num quarto das habitações das monjas, onde nunca havia estado. Na cama achava-se estendida uma religiosa, nova ainda, com o rosto tão branco como a almofada, os olhos cerrados e o pulso quase imperceptível. Era a Madre Superiora Geral das Irmãzinhas dos Pobres, que havia chegado naquela mesma noite de Nápoles, a caminho de Paris, depois duma viagem de inspecção em todo o Mundo. Estava em iminente perigo de morte, em consequência duma grave doença do coração. Várias vezes me encontrei à cabeceira de reis e rainhas e de homens célebres, à hora em que a sua vida estava em jogo, e talvez entre as minhas mãos. Mas nunca senti tão grande o peso da minha responsabilidade como nessa noite, quando aquela mulher abriu lentamente os olhos maravilhosos e disse, fitando-me:

- Faça o que puder, doutor, porque quarenta mil pobres dependem de mim.

As Irmãzinhas dos Pobres trabalham noite e dia na mais útil e ingrata forma da caridade que eu conheço. Não precisais de vir a Roma para encontrá-las. Pobreza e velhice estão espalhadas por todo o Mundo, assim como as Irmãzinhas, com o seu saco e o seu cabaz vazio. Entregai-lhes, pois, as vossas roupas velhas; que importa o tamanho? Todas as medidas convêm às Irmãzinhas. Os chapéus altos passaram de moda, dai-lhos também. Haverá sempre nas suas salas algum Monsieur Alphonse, escondido por detrás dumas cortinas azuis, ocupado em escovar o seu velho chapéu alto, último vestígio duma passada grandeza. Oferecei-lhe, nos seus dias de saída, a vossa elegante carruagem para dar um passeio pelo Corso. Ao vosso fígado fará bem melhor um passeio pelo campo com o vosso cão. Convidai-o, na próxima quinta-feira, a vir almoçar convosco; não há melhor estimulante para um apetite perdido do que ver um homem faminto comer até não querer mais. Dai-lhe um copo de Frascati para o ajudar a esquecer, mas tirai a garrafa quando começa a recordar.

Metei um pouco das vossas economias no mealheiro das Irmãzinhas, um centavo que seja; acreditai que nunca o colocareis melhor. Lembrai-vos do que vos disse noutro lugar deste livro:

O que guardais para vós está perdido; o que dais conservá-lo-eis sempre.

De resto, não tendes nenhum direito a guardar o dinheiro para vosso proveito; não vos pertence. O dinheiro pertence ao Diabo, que está sentado dia e noite ao balcão, por detrás dos seus sacos de oiro, traficando com as almas humanas. Guardai pouco tempo a moeda imunda que ele vos entrega; desembaraçai-vos dela o mais depressa que puderdes, ou o metal maldito não tardará a queimar-vos os dedos, penetrará no vosso sangue, cegará os vossos olhos, infectará os vossos pensamentos e tornará duro o vosso coração. Metei-o na caixa das esmolas das Irmãzinhas, ou lançai-o ao esgoto mais próximo, que é seu verdadeiro lugar. De que serve acumular dinheiro? A morte tem uma segunda chave do vosso cofre. Os deuses vendem todas as coisas a preço módico, diz um poeta antigo. Poderia acrescentar que vendem as melhores pelo mais baixo preço. Tudo o que nos é verdadeiramente necessário pode adquirir-se por pouco dinheiro; só o supérfluo é posto à venda por um preço elevado. Tudo o que é verdadeiramente belo não está à venda: é-nos oferecido como um dom pelos deuses imortais. É-nos permitido ver o nascer e o pôr do Sol; as nuvens errantes no Céu; as florestas e os campos; o mar maravilhoso, sem despender nada. As aves cantam para nós de graça; temos o direito de colher as flores silvestres, pelos caminhos, quando passeamos. Não há preço de entrada sob a abóbada iluminada das estrelas à noite. O pobre dorme melhor do que o rico. A alimentação simples tem melhor gosto do que a do Ritz. Contentamento e paz interior prosperam melhor numa casita do campo do que num palácio da cidade. Poucos amigos, poucos livros, muito poucos, e um cão, eis tudo o que vos é necessário, enquanto vos possuirdes a vós próprios. Mas tendes que viver no campo. A primeira cidade foi concebida pelo Diabo; por isso Deus quis destruir a torre de Babel.

Viste alguma vez o Diabo? Eu já o vi. Estava de pé, com os braços apoiados no parapeito duma torre de Notre-Dame. As asas estavam fechadas e a cabeça repousava nas palmas das mãos. Tinha as faces cavadas e a língua pendia dos beiços ignóbeis. Pensativo e grave, contemplava Paris, aos seus pés. Imóvel e rígido como se fora de pedra, ali estava de pé, havia quase mil anos, olhando a cidade, como se não pudesse arrancar os olhos do que via. Era então aquele o supremo inimigo, cujo nome bastava para me encher de terror desde a minha infância?! O formidável campeão do mal, na luta eterna entre o Bem e o Mal?!

Olhei-o com espanto. Pareceu-me que tinha um ar bem menos horrível do que havia imaginado; conhecia rostos piores do que o dele. Não havia nenhuma luz de triunfo nos seus olhos de pedra; parecia velho e cansado - cansado das suas fáceis vitórias, fatigado do seu Inferno.

Pobre velho Belzebut! Talvez não seja por tua culpa que as

coisas vão tão mal neste Mundo. Afinal de contas, não foste tu que lhe deste vida, nem tu que desencadeaste a dor e a morte entre os homens. Nasceste com asas e não com garras; foi Deus que te fez Diabo e te precipitou no seu Inferno para custodiar os seus condenados. Com certeza não terias permanecido na cúspide desta torre de Notre-Dame, sob a chuva e as tempestades, durante mil anos, se o teu ofício te agradasse. Seguramente não deve ser fácil ser Diabo quando se nasceu com asas. Príncipe das Trevas, porque não apagas o fogo do teu reino subterrâneo e não vens estabelecer-te numa grande cidade - o teu lugar não é no campo, acredita-me - como um burguês ricaço, sem mais cuidado que o de comer, beber, e acumular dinheiro? Se queres aumentar os teus capitais e praticar qualquer novo ofício, porque não abres um outro inferno de jogo em Monte-Carlo ou não instalas um lupanar, ou te fazes usurário dos pobres, ou proprietário duma ménagerie ambulante com feras sem defesa, morrendo de fome por detrás das grades de ferro? E, se tens necessidade de mudanças de ares, porque não vais até à Alemanha e abres ali uma fábrica para o teu último gás mortal? Quem, a não seres tu, podia ter dirigido esse raid cego sobre Nápoles e deixar cair a bomba incendiária no asilo das Irmãzinhas dos Pobres, no meio dos seus trezentos velhos e velhas?!

Permitir-me-ás, em troca dos conselhos que te dei, que te faça uma pergunta? Porque estás assim com a língua de fora? Não sei o que pensam disso nos Infernos, mas, com todo o respeito que te devo, entre nós é considerado um gesto de provocação e de desprezo. Perdoa-me, Sire, mas a quem deitas tu a língua de fora?

 

                             MISS HALL

COM certeza muitos dos meus enfermos dessa época se lembrarão de Miss Hall. Com efeito, vista uma vez, dificilmente se esquecia. Somente a Grã-Bretanha, e a Grã-Bretanha dos melhores dias, podia ter produzido este tipo único de velha donzela da primeira época vitoriana; mais de seis pés de altura, seca e rígida como um pau, árida nutrix pelo menos de três gerações de escoceses que ainda estão por nascer. Durante os quinze anos em que conheci Miss Hall, nunca vi variação alguma no seu aspecto: sempre o mesmo invariável e indescritível rosto, enquadrado de caracóis de oiro pálido, o mesmo vestido berrante, o mesmo montão de rosas no chapéu. Quantos anos duma vida uniforme havia passado Miss Hall nas pensões de segunda classe em Roma à procura de aventuras? Apenas, sei que, no dia em que viu Tappio comigo, na Villa Borghese, nasceu a sua verdadeira missão na vida: encontrou-se, finalmente, a si própria. Passava as manhãs a escovar e a pentear os meus cães no quarto glacial debaixo das escadas de Trinitá dei Monti e só voltava à pensão para almoçar. Às três horas atravessava a Piazza di Spagna, no meio de Giovannina e de Rosina, que mal lhe chegavam à cinta, calçadas de tamancos e toucadas com seus lenços vermelhos, rodeadas pelos meus cães, que ladravam alegremente, saboreando antecipadamente o passeio na Villa Borghese, espectáculo familiar a toda a Piazza di Spagna nesta época. Giovannina e Rosina pertenciam ao pessoal de San Michele e nunca tive melhores criadas; desembaraçadas e alegres, cantavam e trabalhavam todo o dia. Claro que só a mim lembraria trazer de Anacapri para Roma estas duas rapariguinhas meio selvagens. E as coisas não se teriam passado tão bem, se não tivesse surgido tão a propósito Miss Hall para lhes servir, se assim se pode dizer, de mãe adoptiva com a solicitude duma galinha pelos seus pintainhos. Miss Hall dizia não compreender o motivo por que eu não permitia que as duas raparigas passeassem sozinhas pela Villa Borghese; ela própria havia passeado por toda a Roma completamente só e durante muitos anos, sem que ninguém reparasse nela nem lhe dirigisse a palavra.

Fiel ao seu tipo, Miss Hall jamais conseguira dizer uma palavra inteligível em italiano, mas as raparigas compreendiam-na perfeitamente e tinham-se-lhe afeiçoado. Não creio, no entanto, que a tomassem mais a sério do que eu. Miss Hall via-me poucas vezes e eu ainda menos a ela, pois evitava olhá-la sempre que podia. Nas raras ocasiões em que Miss Hall foi convidada a assistir ao meu almoço, sempre havia entre nós, na mesa, um grande jarrão de flores. Ainda que lhe fosse rigorosamente proibido olhar-me, consegui levantar de quando em quando a cabeça por cima das flores e deitar-me uma olhadela de soslaio. Miss Hall não pareceu nunca dar-se conta do meu baixo egoísmo e ingratidão por tudo quanto lhe devia. Considerando quanto eram precários os seus meios de comunicação - estava-lhe vedado fazer-me perguntas - não sei como conseguiu saber tanto do que se passava em casa e sobre as pessoas que eu recebia. Vigiava atentamente as minhas doentes; e, durante as consultas, rondava pela praça horas inteiras para as ver entrar e sair. Com a sua inauguração, o Grande Hotel Ritz dera o último golpe nos restos de simplicidade dos costumes romanos. Começava uma última invasão de bárbaros; a Cidade Eterna estava na moda. O Grande Hotel abarrotava de elegantes de Londres e de Paris, de americanos milionários, e rastaquouèrs da Riviera. Miss Hall conhecia o nome de todos eles; havia-os seguido durante anos, nos Ecos da Sociedade do Times. Era também uma perfeita enciclopédia da nobreza inglesa. Sabia de memória a data do nascimento dos seus filhos e herdeiros; dos noivados e casamentos das filhas; as toilettes que levavam quando foram apresentadas na corte, os seus bailes e jantares, e viagens ao estrangeiro. Muitas dessas elegâncias acabaram por ser meus clientes, com grande contentamento de Miss Hall. Outros vinham à Piazza di Spagna, para ver o quarto onde morrera Keats. Algumas paravam as carruagens na Villa Borghese, para acariciar os meus cães com palavras de louvor e a Miss Hall pelo bem que os cuidava. Pouco a pouco, Miss Hall e eu surgimos, de mãos dadas, da nossa obscuridade até às altas esferas da sociedade. Assisti a muitas reuniões mundanas naquele Inverno. Tinha ainda muito a aprender sobre esses desocupados e sobre a sua capacidade para não fazerem nada; o seu bom humor e sono fácil intrigavam-me. Miss Hall possuía agora um diário particular sobre os acontecimentos mundanos da minha vida quotidiana. Radiante de orgulho, com os seus mais belos vestidos, trotava dum lado para outro, depondo os meus cartões de visita. O brilho da nossa estrela era cada vez mais vivo, o nosso caminho cada vez mais elevado; nada podia deter-nos. Um dia em que Miss Hall passeava com os cães na Villa Borghese, uma senhora com um cãozito no regaço fez-lhe sinal para se aproximar da sua carruagem. A dama acariciou o cão da Lapónia e declarou que fora ela quem dera Tappio, ainda cachorro, ao doutor. A Miss Hall tremeram-lhe os joelhos, pois aquela senhora era S. A. R. a Princesa herdeira da Suécia. Um belo cavalheiro, sentado ao lado, estendeu-lhe a mão com um sorriso encantador e disse-lhe textualmente: «Viva, Miss Hall, o doutor falou-me muito de si». Era S. A. R. o Príncipe Max de Bade, nada menos que o esposo da sobrinha da sua queridíssima Rainha Alexandra. A datar desse dia memorável, Miss Hall abandonou as elegâncias do Grande Hotel para dedicar todo o tempo disponível às personagens de sangue real; havia pelo menos uma dezena, naquele Inverno, em Roma. Passeava horas inteiras diante dos seus palácios, esperando ocasião para os ver entrar ou sair; de cabeça inclinada, seguia-os durante o passeio no Pincio ou na Villa Borghese, e seguia-os ainda, como um polícia, nas igrejas e nos museus. Aos domingos, ia sentar-se na igreja inglesa da Rua Babuíno, o mais perto que podia do banco do embaixador, com um olho sobre o livro de orações, o outro sobre uma Alteza Real, estendendo o ouvido para discernir o som da real voz, rezando pela família real e todos os seus parentes em todos os países, com o fervor dos primeiros cristãos.

Em breve Miss Hall começou outro diário, exclusivamente dedicado às nossas relações com as Altezas. Na segunda-feira anterior, havia tido a honra de levar um cartão do doutor a S. A. R. a Grã-Duquesa de Weimar, ao Palácio do Quirinal. O porteiro tinha-lhe entregue a resposta, com o sobrescrito adornado da coroa grã-ducal de Saxe Weimar, o qual lhe fora galantemente oferecido pelo doutor como preciosa lembrança. Na quarta-feira, tinham-lhe confiado uma carta para S. A. R. a Infanta Eulália de Espanha, no Grande Hotel. Infelizmente, não lhe haviam dado a resposta. Uma tarde, quando estava com os cães na Villa Borghese, notou Miss Hall uma senhora alta, vestida de negro, que ia e vinha com passo rápido por uma álea afastada. Reconheceu imediatamente a senhora a quem um dia vira no jardim de San Michele, imóvel, junto da esfinge, com seus belos olhos perdidos no mar. Ao passar junto dela, a dama disse qualquer coisa à sua companheira e estendeu a mão para acariciar Gialla, a galga russa do doutor. Figurai-vos a consternação de Miss Hall quando se lhe acercou um polícia, mandando-a prosseguir imediatamente o seu caminho com os cães: era S. M. I. a Imperatriz da Áustria e sua irmã, a condessa de Triani! Como pudera o doutor ter a crueldade de não lho dizer naquele Verão? Só por pura casualidade soube muito mais tarde que, uma semana depois da visita daquela dama a San Michele, o doutor recebera da Embaixada da Áustria em Roma um oferecimento de compra e que o comprador eventual era nada menos do que a Imperatriz da Áustria. Por fortuna, o doutor declinou o oferecimento; teria sido uma verdadeira pena que o doutor tivesse vendido San Michele; haveria perdido a oportunidade de ver tão facilmente pessoas reais. Pois não pudera, no último Verão, durante semanas, observar a distância respeitosa uma neta da sua bem-amada Rainha Vitória pintando no terraço? E uma prima do Czar não havia ali passado um mês? Não tivera a honra de estar atrás da porta da cozinha, para ver passar a Imperatriz Eugénia a menos de um metro de distância, quando da sua primeira visita a San Michele? Não ouvira com os seus próprios ouvidos S. M. I. dizer ao doutor que nunca vira semelhança maior com Napoleão o Grande do que a da cabeça de Augusto que ele acabava de desenterrar no seu jardim? E não ouvira, alguns anos mais tarde, a voz de comando do Kaiser, em pessoa, discorrendo diante da sua comitiva, sobre as diferentes antiguidades e obras de arte, acompanhado do doutor, que quase não abria a boca? Junto dela, ao pé dos ciprestes, S. M. I. havia indicado um torso de mulher meio coberto de hera, dizendo à comitiva que o que viam ali era digno dum museu de Berlim e, em seu entender, devia tratar-se duma obra-prima desconhecida do próprio Fídias? Horrorizada, Miss Hall ouvira o doutor responder que era a única peça em San Michele que não valia nada. Havia-lhe sido oferecida por um doente bem intencionado, que a comprara em Nápoles e tratava-se de um mau Canova. Com grande mágoa de Miss Hall, o grupo partiu quase imediatamente para a Marina e embarcou no Sleipner para Nápoles.

A propósito da Imperatriz da Áustria, devo dizer-vos que Miss Hall era comendador da Ordem Imperial de Santo Estêvão. Esta distinção conferira-lha eu próprio, como recompensa da sua dedicação para comigo e para com os cães, num dia em que a minha consciência devia estar particularmente inquieta. Por que razão ma tinham concedido nunca pude compreendê-lo. Miss Hall recebeu aquela distinção das minhas mãos, com a cabeça inclinada e os olhos cheios de lágrimas. Disse-me que a levaria consigo para o túmulo. Respondi-lhe que não havia inconveniente nisso; ela, de qualquer maneira, iria para o Céu. Mas que ela a pusesse para ir à Embaixada de Inglaterra, não o havia previsto. Conseguira obter da amabilidade de Lorde Dufferin um convite a Miss Hall para a recepção da Embaixada, em honra do aniversário da rainha; toda a colónia inglesa de Roma fora convidada, à excepção da pobre Miss Hall. De antemão embriagada de alegria, Miss Hall conservou-se muitos dias invisível, toda entregue à sua toilette. Julgai da minha consternação quando, apresentando-a ao seu embaixador, vi Lorde Dufferin colocar o monóculo, e contemplar, sem dizer uma palavra, o esterno de Miss Hall. Por fortuna, Lorde Dufferin não era irlandês em vão. Limitou-se a chamar-me de parte e, desatando a rir, fez-me prometer que conservaria Miss Hall longe da vista do seu colega austríaco. Quando regressávamos a casa de carruagem, Miss Hall confiou-me que aquele fora o dia mais belo da sua vida. Lorde Dufferin não podia ter sido mais amável, todos lhe haviam sorrido e estava convencida que a sua toilette fora bastante admirada.

Sim, riam-se quanto quiserem de Miss Hall! Mas gostaria bem de saber o que sucederia a todas as Altezas quando não houver Misses Hall para apontar todos os seus gestos, para as olhar, com os joelhos trémulos e a cabeça inclinada, ao passarem de carruagem pelo Pincio e na Villa Borghese, para rezar por elas na igreja inglesa da via Babuíno? Que será das suas cruzes e fitas, quando os homens tenham passado a idade de se preocupar com íutilidades? Melhor seria dá-las todas duma vez a Miss Hall e não falar mais em tal! Ficará sempre a Victoria Cross. Todos nós rendemos a nossa homenagem à coragem em frente à Morte. Sabeis porque a V. C. é tão rara no Exército inglês? Porque a coragem na sua forma mais elevada, a que Napoleão chamava courage de la nuit, obtém raras vezes a V. C., e a bravura que não é secundada pela sorte perde o sangue até à última gota sem encontrar recompensa.

Depois da V. C., a condecoração inglesa mais invejada é a da Jarreteira, e seria um dia nefasto para a Inglaterra aquele em que se invertesse a ordem de importância dessas duas cruzes.

- Agrada-me a Jarreteira - dizia Lorde Melbourne - por não ter nada que ver com o decantado mérito.

O meu amigo, o ministro da Suécia em Roma, mostrou-me há dias a cópia duma carta que eu lhe enviara há quase vinte anos. Disse-me que mandara o original ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Suécia, para ser lido e meditado. Era uma tardia resposta a uma pergunta oficial da Legação da Suécia, dizendo que, ao menos por delicadeza, eu deveria acusar o recebimento da medalha de Messina, que o Governo italiano me havia conferido pelo que, presumivelmente eu fizera na ocasião do terramoto. A carta era assim concebida:

Excelência:

Em matéria de condecorações, o princípio que sempre me tem guiado até hoje é de só aceitar alguma, quando não tenha feito nada para merecê-la. Uma ligeira vista pelo Livro Vermelho vos permitirá verificar os excelentes resultados obtidos por haver seguido sempre este princípio. O novo método proposto por Vossa Excelência na sua carta, de aspirar a um agradecimento público pelo pouco que tenha podido fazer, parece-me empresa perigosa e de valor prático duvidoso. Traria apenas confusão à minha filosofia e poderia irritar os deuses imortais. Escapei, inadvertido, dos bairros pobres de Nápoles, durante a cólera; outro tanto espero fazer das ruínas de Messina. Para me recordar do que ali vivi, não me é necessário qualquer medalha comemorativa.

 

                         MESSINA

NA verdade, tenho de admitir que aquela carta era uma fanfarronada. O ministro da Suécia nunca devolveu a medalha de Messina ao Governo italiano; devo conservá-la algures nalguma gaveta, com a minha consciência limpa e sem confusão de maior na minha filosofia. Com efeito, não havia nenhuma razão para que não aceitasse a medalha; o que fiz em Messina foi bem pouco, comparado com o que vi fazer a centos de pessoas nunca nomeadas nem recordadas, com risco de vida. Por mim não corri outro risco que o de morrer de fome, ou por minha própria estupidez. Verdade é que chamei à vida um não pequeno número de pessoas meio asfixiadas, praticando-lhes a respiração artificial; mas não foram poucos os médicos, enfermeiros e aduaneiros que fizeram o mesmo, sem nenhuma espécie de recompensa. Sei que, sozinho, retirei uma pobre velha dos destroços do que havia sido a sua cozinha; mas também sei que a deixei abandonada na rua, com as pernas fracturadas, pedindo socorro. Verdadeiramente, não havia mais nada a fazer até à chegada do primeiro navio-hospital, pois era impossível encontrar pensos e remédios. Também me recordo da pequenita que encontrei num pátio, completamente nua; levei-a à minha cave, onde dormiu tranquilamente toda a noite, embrulhada no meu sobretudo, chupando-me um dedo de vez em quando durante o sono. Pela manhã, levei-a às monjas de Santa Teresa; no que restava da sua capela havia já mais de uma dezena de bebés, gritando com fome, porque durante uma semana não foi possível encontrar uma gota de leite em Messina. Sempre me deixou maravilhado o número de crianças salvas e recolhidas nas ruínas ou encontradas nas ruas. Dir-se-ia que Deus Omnipotente lhes havia concedido um pouco mais de misericórdia do que a que tiveram os grandes. Gomo o aqueduto fora destruído, não havia também água, a não ser nalgum poço fétido, envenenado por milhares de corpos putrefactos, espalhados por toda a cidade. Nem pão nem carne, poucos macarrões, nem legumes nem peixe, a maioria dos barcos de peixe tinha-se afundado ou fora destruída pela imensa vaga que havia varrido a costa, arrebatando mais de mil pessoas, cerradas umas contra as outras, que ali se haviam julgado em mais segurança. Centenas de corpos foram arrojados à areia, onde ficaram durante dias a apodrecer ao sol. O maior tubarão que jamais vi - o estreito de Messina está infestado deles - foi igualmente arremessado à areia ainda vivo. Contemplava eu, com olhos esfaimados, o trabalho de o esquartejarem, na esperança de me caber um pedaço - sempre me haviam dito que a carne do tubarão era excelente - quando do seu ventre saiu uma perna de mulher, com uma meia de lã encarnada e um sapato grosseiro, tal como se fora amputada pelo bisturi dum cirurgião. É possível que outros, além dos tubarões, tenham provado a carne humana durante esses dias; mas não falemos de tal. Naturalmente, os milhares de cães e gatos que erravam de noite pelas ruínas assim se alimentaram até ao momento de ser apanhados e devorados pelos vivos, quando era possível. Eu próprio assei um gato numa lâmpada de álcool. Por fortuna, havia muitas laranjas, limões e tangerinas para colher. Também havia muito vinho e a pilhagem dos milhares de adegas e armazéns de vinho começou no primeiro dia; pela tarde, quase toda a gente estava um pouco embriagada, incluindo eu próprio; era uma verdadeira sorte, pois dissipava a sensação da fome e bem poucos teriam podido dormir, se não tivessem bebido. Quase todas as noites havia novos abalos, acompanhados do estrondo das casas derrubadas e gritos de terror nas ruas. Apesar de tudo, dormi sofrivelmente em Messina, não obstante o incómodo de ter de mudar constantemente de alojamento nocturno. As caves eram, sem dúvida, o melhor sítio para dormir, quando se conseguia vencer o terror obsecante de ser apanhado pelo derrubar de alguma parede, como ratos na ratoeira. Mais valia dormir debaixo duma árvore, nalgum laranjal; mas, depois de dois dias de chuva torrencial, as noites tornaram-se demasiado frescas para um homem que só possuía o que tinha na mochila. Tentava consolar-me da perda da minha capa escocesa bem-amada, com o pensamento de que certamente cobriria alguém ainda menos favorecido. E, no entanto, os meus fatos rotos não os trocaria por outros melhores, ainda quando pudesse tê-lo feito. Era preciso coragem para andar bem vestido no meio de toda essa gente em camisa de dormir, como havia escapado, louca de terror, de fome e frio. De resto, não o teria conservado muito tempo. Que os vivos e os mortos fossem roubados; que tivesse havido ataques e mesmo mortes antes da chegada das tropas e da proclamação da lei marcial, não é para espantar. Não conheço país onde tal não tivesse acontecido em circunstâncias semelhantes. Para agravar as coisas, quis a ironia da sorte que, dos oitocentos guardas do Colégio Militar, só catorze pudessem escapar com vida, e que o primeiro abalo abrisse a prisão dos Capuccini a quatrocentos profissionais do roubo e do assassínio, ilesos. Que esses presidiários, depois de terem pilhado os armazéns de vestuário, para se vestir, e os de armas, para se armar, se apoderassem com alegria do que restava da rica cidade, não é surpreendente. Arrombaram até o cofre forte do Banco de Nápoles, assassinando dois guardas nocturnos. E, no entanto, o terror que a todos dominava era tal que muitos deles preferiram entregar-se para ser encerrados no porão dum vapor no porto, a permanecer na cidade condenada, com todas as suas tentações. Quanto a mim, nunca fui incomodado por ninguém; pelo contrário, toda a gente foi para mim duma bondade tocante, ajudando-me como se ajudavam mutuamente. Aqueles que podiam deitar a mão a qualquer peça de vestuário ou a algum alimento sentiam sempre alegria em os partilhar com os que não tinham nada. Um ladrão desconhecido chegou a oferecer-me um abafo de senhora, que foi um dos presentes mais oportunos que recebi na minha vida. Uma noite, ao passar pelas ruínas dum palácio, vi um homem bem vestido que deitava um bocado de pão e um molho de cenouras a dois cavalos e um burro, presos na sua cavalariça subterrânea; mal podia ver os animais através duma fenda da parede. Disse-me que vinha duas vezes por dia trazer-lhes o que conseguia arranjar. A vista destes desgraçados animais, morrendo de fome e de sede, era para ele tão dolorosa que preferiria matá-los a tiros de revólver, se tivesse coragem para isso, mas que nunca pudera matar nem sequer uma codorniz (1). Olhei com surpresa o seu rosto belo, inteligente e simpático e perguntei-lhe se era siciliano. Disse-me que não, mas que havia vivido vários anos na Sicília. Começou a chover a cântaros e fomo-nos embora. Perguntou-me onde vivia; ao responder-lhe que em qualquer sítio, olhou para os meus fatos molhados e ofereceu-se para alojar-me de noite: vivia ali perto com dois amigos. Fomos abrindo caminho por entre imensos blocos de paredes desmoronadas e montões de móveis destroçados, de toda a espécie; descemos uma escada e encontrámo-nos numa grande cozinha subterrânea, fracamente iluminada por um candeeiro de azeite por debaixo de uma gravura colorida da Madona, dependurada na parede. Havia três colchões por terra; o signor Amadeu convidou-me a dormir no dele; estaria fora com os seus dois amigos toda a noite, à procura de objectos nos escombros. Deram-me uma ceia excelente, a segunda refeição agradável depois da minha chegada a Messina. A primeira fora dias antes, quando cheguei de imprevisto ao jardim do consulado americano durante um belo almoço, presidido pelo meu antigo

 

Nota 1: Talvez interesse saber, aos que têm carinho pelos animais, que os dois cavalos e o burro foram tirados dali dezassete dias depois do terremoto e recobraram a saúde.

 

amigo Winthrop Chandler, que havia chegado naquela mesma manhã no seu iate, carregado de provisões para a cidade faminta.

Dormi profundamente toda a noite no colchão do signor Amadeu e despertei de manhã, quando ele e os amigos regressaram da sua perigosa expedição nocturna. Perigosa, na verdade, porque eu sabia que as tropas tinham ordem de fazer fogo contra todo o que intentasse levar alguma coisa, ainda que das ruínas da sua própria casa. Atiraram o que traziam para cima da mesa e estenderam-se por sua vez nos colchões. Quando parti, dormiam profundamente. Ainda que parecesse morto de fadiga, não se esqueceu o meu amável hospedeiro de dizer-me que teria muito gosto em que ali continuasse todo o tempo que quisesse; eu, naturalmente, não desejava outra coisa. Na noite seguinte tornei a cear com o signor Amadeu; os seus dois companheiros já estavam adormecidos nos colchões e os três tinham de partir de novo, para os seus trabalhos nocturnos, depois da meia-noite. Nunca vi homem mais amável do que o meu hospedeiro. Quando soube que eu estava sem um centavo, ofereceu-se imediatamente para me emprestar cinquenta liras, e sinto ter de confessar que ainda lhas devo. Não pude deixar de lhe mostrar a minha surpresa por ele estar disposto a fiar-se dum estrangeiro e a emprestar-lhe dinheiro. Respondeu-me, sorrindo, que eu não estaria sentado junto dele se não lhe tivera merecido confiança.

Na tarde seguinte, já pela noite, como me arrastasse a quatro patas nas ruínas do Hotel Trinacria, à procura do corpo do cônsul da Suécia, encontrei-me bruscamente, cara a cara, com um soldado, que me apontou a espingarda. Fui preso e conduzido ao posto de polícia mais próximo. Vencidas as primeiras dificuldades para identificar o meu obscuro país e depois de examinarem minuciosamente o meu salvo-conduto visado pelo Prefeito, o oficial de serviço deixou-me em liberdade, já que o meu único corpus delicti era um calendário sueco meio carbonizado. Saí dali pouco tranquilo, porque notei uma certa desconfiança no olhar do oficial quando lhe disse que não podia dar-lhe a minha direcção exacta; nem sequer sabia o nome da rua onde vivia o meu amável hospedeiro. Era já noite cerrada e comecei a correr porque me pareceu ouvir passos atrás de mim, como se alguém me seguisse, mas cheguei sem mais contratempos ao meu refúgio nocturno. O signor Amadeu e seus dois amigos estavam já dormindo nos colchões. Esfomeado, como sempre, sentei-me para comer a ceia que o meu amável hospedeiro me deixara na mesa. A minha intenção era ficar acordado até que se dispusessem a partir e oferecer-me ao signor Amadeu para os ajudar nas suas investigações daquela noite. Estava pensando que era o menos que podia fazer em reconhecimento da sua bondade, quando ouvi de repente um assobio estridente e um ruído de passos. Alguém descia as escadas. Num momento, os três homens adormecidos puseram-se a pé. Ouvi um tiro, e do alto da escada caiu a meus pés um carabiniere. Enquanto me inclinava rapidamente sobre ele para ver se estava morto, vi distintamente o signor Amadeu, que me apontava o revólver. No mesmo instante a casa encheu-se de soldados, ouvi outro disparo e, depois duma luta desesperada, os três homens foram dominados. Quando o meu hospedeiro passou por diante de mim, manietado com uma sólida corda à roda dos braços e das pernas, ergueu a cabeça e lançou-me um olhar tão terrível, de ódio e reprovação, que o sangue gelou-se-me nas veias. Meia hora depois, estava de novo no posto da guarda, onde me deixaram encerrado toda a noite. De manhã, voltei a ser interrogado pelo mesmo oficial a cuja bondade e inteligência devo, sem dúvida, a vida. Disse-me que os três indivíduos eram malfeitores condenados à perpetuidade, evadidos da prisão vizinha dos Capuccini, todos pericolosissimi. Amadeu era um bandido famoso, que durante muitos anos aterrorizara as povoações dos arredores de Girgenti e tinha à sua conta oito mortes. Fora ele também, com o seu bando, que penetrara no Banco de Nápoles e assassinara os guardas na noite anterior, enquanto eu dormia profundamente no seu colchão. Os três homens haviam sido fuzilados ao amanhecer. Tinham pedido um sacerdote, confessado os seus pecados e morrido sem medo. O oficial de polícia quis felicitar-me pelo papel importante que desempenhara na captura. Olhei-o bem de frente e disse-lhe que não me orgulhava da minha obra. Havia muito tempo que me convencera de não ter vocação para o papel de acusador e menos de executor. Não me pertencia fazê-lo; talvez pertencesse a ele e nem talvez a ele. Deus sabe castigar quando quer e tirar a vida como a sabe dar.

Por pouca sorte, a minha aventura chegou aos ouvidos de alguns correspondentes de jornais que rondavam à volta da zona militar (nenhum jornalista podia entrar naqueles dias na cidade, com justa razão) em busca de notícias sensacionais, tanto mais apreciadas quanto mais incríveis; e certamente esta história parecerá inverosímil àqueles que não estiveram em Messina durante a semana seguinte ao tremor de terra. Só uma afortunada mutilação do meu nome e da minha nacionalidade me livrou da celebridade. Mas quando fui avisado por aqueles que conheciam o desmesurado braço de Maffia de que nem isso me salvaria de morrer assassinado, se continuasse em Messina, embarquei no dia seguinte, com alguns empregados de alfândega e atravessei o estreito, para Reggio.

Reggio, onde também vinte mil pessoas, no primeiro abalo, encontraram a morte, era indescritível e inolvidável. Mais aterrador ainda o espectáculo das povoações ao longo da costa, disseminadas entre laranjais: Scilla, Canitello, Villa San Giovanni, Gallico, Archi, San Gregorio, ontem talvez o mais lindo sítio de Itália, hoje cemitério imenso de mais de trinta mil mortos e milhares de feridos, que jaziam entre as ruínas, depois de duas noites de chuva torrencial, seguidas de um vento glacial, sem socorro, e milhares de outros seres que corriam pelas ruas meio enlouquecidos, uivando com fome. Mais para o Sul, a intensidade das convulsões sísmicas parecia ter chegado ao máximo. Em Pellaro, por exemplo, onde, dos seus cinquenta mil habitantes, só escaparam talvez duzentos, não pude sequer distinguir onde haviam sido as ruas. A igreja, que abarrotava de gente aterrorizada, desabara ao segundo abalo e sepultara-os a todos. O cemitério estava cheio de caixões rebentados, arremessados fora das covas; o mesmo horrendo espectáculo já tinha visto no cemitério de Messina. Sobre o montão de ruínas do que fora a igreja estavam sentadas umas doze mulheres esfarrapadas, tremendo de terror. Não choravam, nem falavam; estavam sentadas e imóveis, com a cabeça inclinada e os olhos semicerrados. De vez em quando, alguma delas erguia a cabeça e fitava com um olhar vago um velho padre andrajoso que ao lado gesticulava violentamente, no meio dum grupo de homens. Às vezes levantava o punho com uma terrível maldição na direcção de Messina, para além das águas; Messina, a cidade de Satan, Sodoma e Gomorra reunidas, causa de todas as desgraças. Não tinha ele profetizado que a cidade acabaria por... Uma série de gestos trepidantes e ondulatórios, com as mãos no espaço, não deixavam nenhuma dúvida sobre a natureza da profecia. Castigo di Dio! Castigo di Dio!

Tirei da mochila um pão pequeno e duro e dei-o à mulher que estava mais perto de mim, com um pequeno ao colo. Tomou-o sem dizer palavra e estendeu-me uma laranja, que tirou da algibeira, cortou com os dentes um bocado de pão e estendeu-o a outra mulher, por detrás dela, prestes a dar à luz, e pôs-se a devorar o resto vorazmente, como um animal esfaimado. Contou-me, em voz baixa e monótona, como ela, com o seu bebé ao peito, se havia salvo, sem saber como, quando a casa desabou com a primeira staccata. Como trabalhara até ao dia seguinte, intentando tirar das ruínas os outros dois filhos e o marido, ouvindo os seus gemidos até ser dia claro. Depois veio outra staccata e tudo caiu no silêncio. Tinha um grande golpe na testa, mas grazie a Dio o seu menino estava são e salvo.

Enquanto falava, pôs-se a dar o peito ao filho, um bebé magnífico, inteiramente nu, forte como Hércules menino, e que mostrava claramente nada haver sofrido com os acontecimentos. Numa cesta ao lado, sobre palha apodrecida, dormia outra criancinha que recolhera na rua e não sabia de quem era. Quando me levantei para partir, o bebé sem mãe começou a agitar-se e a choramingar; a mulher tirou-o imediatamente da cesta e deu-lhe o outro seio. Olhei a humilde aldeã calabresa, de membros fortes, peito amplo, com as duas soberbas crianças sugando vigorosamente os seus seios e de repente recordei o seu nome. Era a Demeter da Magna Grama onde havia nascido, a Magna Mater dos Romanos Era a Madre Natureza; do seu amplo peito continuava correndo o no da vida sobre as campas de cem mil mortos. Oh! Morte onde tens a tua foice? Tumba, onde está a tua vitória?

 

                             FIM DA ESTAÇÃO ROMANA

VOLTEMOS a Miss Hall. Ocupada com todas aquelas Altezas, cada vez se lhe tornava mais difícil inspeccionar as idas e vindas dos meus clientes. A minha esperança de acabar com todas as histéricas, ao sair de Paris, não se havia realizado, e o meu gabinete da Piazza di Spagna estava cheio delas. Algumas eram velhos e temidos conhecimentos da Avenida de Villiers; outras, o maior número, tinham-nas atirado para mim alguns neurólogos, que já não podiam mais, e em estado de legítima defesa. Somente as damas de todas as idades, desamparadas e desequilibradas, que o professor Weir Mitchell me transmitia às dezenas, bastariam para pôr à prova o cérebro e a paciência de qualquer homem. O professor Kraft Ebing, de Viena, autor bem conhecido da Psychopathia Sexualis, não cessava também de me mandar doentes dos dois sexos e sem sexo, todos mais difíceis de tratar uns que os outros, principalmente as mulheres. Com satisfação minha, havia ultimamente curado alguns casos de transtornos nervosos, enviados, sem dúvida, pelo Mestre da Salpêtrière, ainda que nunca mos mandasse com uma palavra escrita. Muitos desses doentes eram casos mal definidos, mais ou menos irresponsáveis. Outros eram verdadeiros loucos, capazes de tudo. Mas com os loucos é fácil ser paciente, confesso até que me inspiram uma certa simpatia. Com um pouco de bondade, a maior parte das vezes chegamos a entender-nos com eles. Mas com mulheres histéricas não é fácil ter paciência, e, quanto a ser amável com elas, melhor é pensar nisso duas vezes para o não ser demasiadamente, pois não desejam outra coisa. De ordinário pouco se pode fazer por essas enfermas, principalmente fora do hospital. Podem entorpecer-se os seus centros nervosos por meio de calmantes; mas não curá-las. Continuarão sendo o que são: um composto desconcertante de desordens mentais e físicas, uma peste para elas próprias e para as famílias, uma maldição e um perigo para os médicos. O tratamento hipnótico, de tão benéficos resultados em muitas enfermidades mentais até agora incuráveis, é muitas vezes contra-indicado nas mulheres histéricas de qualquer idade, pois não há limite de idade para o histerismo. Em todo o caso, deve ser limitado à sugestão em estado de vigília, de Charcot. Demais há ainda isto de inútil: essas pobres desequilibradas estão por demais desejosas de ser influenciadas pelo médico, confiam nele cegamente, imaginam que é o único ser capaz de compreendê-las e veneram-no como um herói. Cedo ou tarde aparecem as fotografias; não há volta a dar-lhe. Il faut passer par là, como dizia Charcot, com seu grave sorriso. Desde sempre detestei as fotografias; e jamais me prestei a ser retratado depois dos meus dezasseis anos, a não ser para os inevitáveis instantâneos do meu passaporte, quando servi na Cruz Vermelha inglesa durante a guerra. Nem sequer as fotografias dos meus amigos me interessaram nunca; posso, se quero, reproduzir os seus traços na minha retina com muito maior exactidão do que o melhor fotógrafo. Para aqueles a quem a psicologia interessa, um retrato corrente dum rosto humano tem um valor mínimo. Mas a velha Ana interessava-se prodigiosamente pelas fotografias. Desde o memorável dia em que foi promovida, de modesta vendedora de flores da Piazza di Spagna, a encarregada de abrir a porta da casa de Keats, tornou-se uma entusiasta coleccionadora de fotografias. Várias vezes, depois de a ter repreendido severamente por alguma das suas numerosas gaffes, enviava a pomba da paz com uma fotografia no bico à cave que ela habitava, sob as escadas da Trinitá dei Monti. Quando, finalmente, esgotado pela insónia, deixei para sempre a casa de Keats, Ana apossou-se duma gaveta da minha mesa de trabalho, completamente cheia de retratos, de todas as classes e tamanhos. Para dizer a verdade, devo confessar que me sentia contente por me ver livre deles. Ana é completamente inocente. O único culpado sou eu. Durante uma breve estância em Londres e Paris, na Primavera seguinte, chocou-me a reserva, para não dizer a frieza, de muitos dos meus doentes e das famílias. Ao passar em Roma, direito a Capri, tive apenas tempo para ir jantar à Legação da Suécia. Pareceu-me o ministro mal humorado; e até a encantadora esposa me pareceu particularmente silenciosa. Quando me dispunha a tomar o comboio para Nápoles, o meu velho amigo disse-me que era na verdade mais que tempo que eu voltasse para San Michele e que me deixasse ali ficar até ao fim dos meus dias, com os meus cães e macacos. Era indigno de outra companhia, e tinha passado todas as marcas com o que fizera ao deixar a casa de Keats. Com voz furibunda contou-me que, na véspera de Natal, ao atravessar a Piazza di Spagna, repleta de turistas, como é costume naquele dia, havia visto Ana diante duma mesa cheia de retratos, no umbral da casa de Keats, gritando para os transeuntes com a sua voz aguda:

- Venite a vedere questa bellissima signora coi capelli ricci, ultimo prezzo due lire!

- Guardate la Signora americana, guardate che collana di perle, guardate que orecchini con brillanti, ve la do per due cinquenta, una vera combinazione!

- Non vi fate scappare questa nobile marchesa, tutta in pellicia!

- Guardate questa duchesa tuta scollata, in veste di ballo e con la corona in testa, quattro lire, un vero regalo!

- Ecco la Signora Bocca Aperta, prezzo ridotto una lire e mezzo!

- Ecco da Signora Mezza Pazza, rideva sempre, ultimo prezzo una lira!

- Ecco la Signora Capa Rossa che puzzava sempre di liquore, una lira e mezzo!

- Ecco la signorina dell’Albergo di Europa che era impazzita per el Signor Dottore, due lire e mezzo.

- Vedete la Signora francese que portava via il porta cigarette solto il mantello, povera signora, non colpa sua, non aveva la testa apposto, prezzo ristretto una lira.

- Ecco la Signora Russa que voleva ammazzare la civetta, due lire, ne anche un soldo di meno.

- Ecco la Baronessa mezzo uomo mezza donna, mamma mia, non si capisce nientre; il Signor Dottore diceva que era nata cosi, due lire venti cinque, una vera occasione.

- Ecco la Contessina Bionda che il Signor Dottore voleva tanto bene, guardate com’e carina, non meno di tre lire!

- Ecco la...

No meio de todas essas amas estava também o seu próprio retrato, em grande formato, trajo de gala, condecorações, bicórnio e com a dedicatória a um canto: «A A. M. do seu velho amigo C. B.». Ana dizia que queria desfazer-se dele e o cederia por uma lira, pois a sua especialidade eram principalmente fotografias de senhoras. A Legação havia recebido montes de cartas dos pais, dos maridos, dos namorados, protestando indignados contra semelhante escândalo. Um francês, que viera passar a lua de mel a Roma e descobrira uma fotografia da esposa na montra dum cabeleireiro da Via Croce, tinha vindo furioso pedir a minha direcção e queria desafiar-me para um duelo à pistola na fronteira. O ministro desejava que o francês fosse bom atirador; de resto sempre me havia predito que eu não morreria de morte natural.

A velha Ana continua vendendo flores na Piazza di Spagna. Comprai-lhe um ramo de violetas, a menos que acheis preferível oferecer-lhe o vosso retrato. Os tempos estão duros e a velha Ana tem cataratas em ambos os olhos.

Em meu entender, não há maneira de um médico se desembaraçar destas doentes; e bem agradecido ficaria a quem me sugerisse algo sobre este assunto. Escrever à família para que venha e as leve é inútil. Há muito que estão cansados delas e não se poupariam a nenhum sacrifício para que permanecessem longe deles. Recordo-me muito bem dum homenzinho baixo, de aspecto abatido, que entrou um dia no meu gabinete de consulta, depois de terem já saído todos os doentes. Deixou-se cair numa cadeira e estendeu-me o seu cartão de visita. O seu nome era-me odioso:

Mr. Charles W. Washington Longfelow Perkins Júnior. Desculpou-se por não ter respondido às minhas duas cartas e ao meu cabograma; havia preferido vir pessoalmente para me dirigir uma nova súplica. Repeti a minha queixa, dizendo-lhe que não era justo atirar sobre os meus ombros todo o peso de Mistress Perkins Júnior e que já não podia mais. Disse-me que também ele não. Era um homem de negócios e desejava tratar do caso como tal. Estava disposto a sacrificar-me metade das suas rendas anuais, pagas adiantadamente. Respondi-lhe que o menos era o dinheiro, e que o que eu necessitava era de repouso. Saberia ele que havia três meses que ela me bombardeava com cartas numa média de três por dia, e que de noite tinha de desligar o telefone? Sabia que a esposa comprara os melhores cavalos de Roma e me seguia por toda a cidade, de tal modo que me vira obrigado a abandonar os meus passeios de noite pelo Pincio? Sabia que alugara um andar na casa da esquina, Via Condotti, para vigiar, com um potente binóculo, as damas que entravam e saíam de minha casa?

- Sim, é um binóculo magnífico. O dr. Jenkis, de S. Luís, teve de mudar de casa por causa dele.

Era do conhecimento dele que por três vezes me haviam chamado de noite ao Grande Hotel, para lhe praticar a lavagem ao estômago, por haver ingerido uma forte dose de láudano?

Disse-me que a esposa empregara sempre o veronal com o Dr. Lippincott, e aconselhou-me a que, quando voltassem a chamar-me, fosse só na manhã seguinte; acrescentou que a mulher tinha sempre muito cuidado com a dose, e perguntou-me se havia algum rio na cidade.

Sim, chamamos-lhe o Tibre. O mês passado arrojara-se à água, do alto da Ponte Sant’Angelo; um guarda atirara-se também e salvou-a.

Disse-me que não era necessário; que era uma excelente nadadora e que, em Newport, se aguentara mais de meia hora flutuando. Admirou-se quando soube que a mulher ainda estava no Grande Hotel; geralmente não estava mais de uma semana em sítio nenhum.

Respondi-lhe que era o seu único recurso, pois já havia percorrido todos os hotéis de Roma. O gerente acabava também de me prevenir que lhe era impossível tê-la mais tempo ali; passava o dia inteiro a disputar com os criados e as criadas e a noite a mudar os móveis do seu salão.

Não seria possível deixar de lhe mandar dinheiro? A salvação estaria em obrigá-la a ganhar a vida trabalhando duramente.

Possuía dez mil dólares por ano de rendas próprias e outros tantos do primeiro marido, que se livrara dela por um preço razoável.

Não poderia mandá-la encerrar na América?

Já o tentara, mas em vão. ”Não a julgavam suficientemente louca. Bem desejaria que lhe dissessem o que queriam mais ainda. E eu não poderia fazer com que a encerrassem na Itália?

Temia muito que não fosse possível.

Olhámo-nos mutuamente com simpatia crescente.

Disse-me que, segundo as estatísticas do dr. Jenkis, nunca havia estado enamorada dum médico mais de um mês; a média eram uns quinze dias; devia estar já para acabar o meu tempo. Não teria pena dele, conservando-a até à Primavera?

Ai de mim, as estatísticas do dr. Jenkis mostraram ser erróneas, e aquela mulher foi o meu grande tormento durante a minha estância em Roma. No Verão, invadiu Capri e quis afogar-se na Gruta Azul. Escalou o muro do jardim de San Michele. Exasperado, por pouco não a arrojo a um precipício. Parece-me que o teria feito, se o marido, antes de partir, não me advertisse de que uma queda de mil pés de altura não contaria para ela.

Tinha razões para acreditá-lo; dois meses antes, uma rapariga alemã, meio louca, arrojara-se do famoso muro do Pincio e apenas fracturou uma tíbia. Depois de ter consultado, um atrás de outro, todos os médicos alemães, fui eu a sua presa. Era um caso particularmente difícil porque Fräulein Frida tinha uma surpreendente facilidade de escrever poesia e o seu lirismo atingia uma média de dez páginas diárias, que me eram dedicadas. Aguentei um Inverno inteiro. Quando chegou a Primavera - estes casos pioram todos na Primavera - disse à pobre da mãe que, se ela não voltasse com Fräulein Frida para o lugar de origem, não hesitaria diante de coisa alguma para a mandar encerrar. Deviam partir na manhã do dia seguinte para a Alemanha. Nessa noite fui despertado pela chegada dos bombeiros à Piazza di Spagna. O primeiro andar do Hotel da Europa, ao lado da minha casa, estava ardendo. Fräulein Frida, em camisa, passou o resto da noite no meu salão, a escrever poesias, muito exaltada. Havia conseguido o que desejava: ainda tinham de permanecer uma semana em Roma por causa das investigações policiais e para pagar os prejuízos, pois o fogo começara no seu salão. Fräulein Frida havia impregnado uma toalha com petróleo, largara-lhe o fogo e lançara-a sobre o piano.

Um dia, ao sair de casa, esperava-me à porta uma linda rapariga americana, com um rosto florescente, a verdadeira imagem da saúde. Desta vez, nada de destrambelhada, louvores a Deus! Disse-lhe que, a julgar pelo seu aspecto, poderia adiar a consulta para o dia seguinte, porque estava com muita pressa. Respondeu-me que também ela a tinha. Acrescentou que havia vindo a Roma para ver o Papa e o dr. Munthe, que durante um ano inteiro havia conseguido que a tia Sally não fizesse disparates, coisa que nenhum outro médico havia logrado. Ofereci-lhe uma linda reprodução da Primavera, de Botticelli, se ela conseguisse levar a tia consigo para a América; respondeu-me que, por esse preço, nem que eu lhe oferecesse o original. Não havia que fiar da tia. Não sei se a Keats Society, que comprou a casa quando eu a deixei, pôs portas novas no quarto onde morreu Keats e onde eu próprio podia ter morrido, se não fosse tão afortunado. Se a velha porta ainda existe, lá se verá o buraco de uma bala num ângulo do lado esquerdo, pouco mais ou menos à altura da minha cabeça; eu próprio o enchi com estuque e voltei a pintar.

Outra visita habitual na minha sala de consulta era uma senhora de aspecto tímido e muito bem educada, que um dia, com um amável sorriso, cravou um prego de chapéu na perna do pastor inglês que estava a seu lado no sofá. Havia ainda dois cleptómanos que, debaixo dos casacos, levavam quanto podiam apanhar, com grande consternação dos meus criados. A alguns dos meus doentes era impossível metê-los na sala de espera; havia que instalá-los na biblioteca ou na sala de jantar, sob o olhar vigilante de Ana, que tinha com eles infinita paciência, bem mais do que eu. Para ganhar tempo, algumas eram admitidas na sala de jantar, para me contarem as suas desgraças enquanto eu almoçava. Esta sala dava para um pequeno pátio, sob as escadas de Trinitá dei Monti, que eu transformara numa espécie de enfermaria e casa de convalescença para os meus diversos animais. Entre estes havia uma encantadora coruja, que descendia em linha directa da coruja de Minerva. Tinham-na encontrado com uma asa partida na Campagna e meio morta de fome. Curada da asa, por duas vezes a deixei no sítio onde fora encontrada; das duas vezes voltou à minha carruagem, empoleirando-se no meu ombro; não queria separar-se de mim. Desde então, a coruja empoleirava-se no seu lugar, a um canto da sala de jantar, olhando-me amorosamente com os seus olhos doirados. Havia mesmo renunciado a dormir de dia para não me perder de vista. Quando a acariciava, semicerrava os olhos com prazer e mordiscava docemente os meus lábios, com seu bico cortante: um beijo de coruja.

Entre as doentes admitidas à sala de jantar, havia uma jovem dama russa, facilmente excitável e que me deu bastante que fazer. Talvez o não acreditem, mas a dama russa teve ciúmes da coruja e lançava ao animal uns olhares tão ferozes que eu tive de dar ordem a Ana para as não deixar nunca sós. Um dia, quando entrava para almoçar, disse-me Ana que a senhora russa lhe havia trazido um rato morto embrulhado num papel. Tinha-o apanhado no quarto dela e estava persuadida de que a coruja o apreciaria muito. Mas a coruja não se deixou enganar; com uma bicada arrancou-lhe a cabeça e recusou-se a comê-lo. Levei-o ao farmacêutico inglês: continha arsénico suficiente para matar um gato.

Para obsequiar Giovannina e Rosina, convidei o seu velho pai a vir passar connosco as festas da Páscoa em Roma. O velho Pacciale era desde há muitos anos meu amigo íntimo. Na sua mocidade fora pescador de corais, como quase todos os homens de Capri, naquela época. Depois de várias vicissitudes, acabou por ser coveiro oficial de Anacapri, mau negócio num sítio onde só morre quem se aproxima do médico. Até depois de o ter instalado com os filhos em San Michele, nunca quis deixar a sua profissão de coveiro. Sentia um prazer estranho em manejar os mortos; dir-se-ia que lhe dava alegria enterrá-los.

O velho Pacciale chegou em dia de Páscoa, completamente aturdido. Nunca havia viajado em caminho de ferro; nunca tinha visto uma cidade nem se sentara num carro. Levantava-se todas as manhãs às três horas, para ir lavar as mãos e a cara à Piazza, na fonte de Bernini, por debaixo de minhas janelas. Quando Miss Hall e as filhas o levaram a beijar o pé de bronze de S. Pedro, e o seu colega Giovanni, do cemitério protestante, o fez visitar os vários cemitérios de Roma, disse que já não queria ver mais nada. Passou o resto do tempo sentado junto da janela que dá sobre a Piazza, com o seu grande barrete frígio de pescador, que nunca tirava da cabeça. Dizia que era a vista mais linda de Roma; que não havia coisa que excedesse a Piazza di Spagna. Eu era do mesmo parecer, e perguntei-lhe a razão da sua preferência,

- Daqui vêem-se sempre passar enterros - explicou-me o velho Pacciale.

 

                             VERÃO

A Primavera chegara e partira; o Verão romano aproximava-se. Os últimos estrangeiros desapareciam das ruas sufocantes. As deusas de mármore, nos museus vazios, gozavam as suas férias, ao fresco e à vontade, com as suas folhas de parra. S. Pedro dormia a sesta nos jardins do Vaticano. O Fórum e o Coliseu abismavam-se em sonhos de recordações. Giovannina e Rosina pareciam pálidas e fatigadas; as rosas do chapéu de Miss Hall pendiam murchas. Os meus cães sufocavam; os macacos, sob as escadas de Trinitá dei Monti, reclamavam a grandes gritos uma mudança de ar e de cenário. O meu lindo e pequeno cutter balouçava-se no porto de Anzio, esperando o sinal de içar as velas para San Michele, onde Mastro Nicola e seus três filhos perscrutavam o horizonte, do alto do parapeito da capela, esperando o meu regresso.

A minha última visita, antes de deixar Roma, foi para o cemitério protestante da Porta San Paolo. Os rouxinóis cantavam ainda para os mortos, que não pareciam importar-se com que os esquecessem num lugar tão doce, tão perfumado de lilases, de rosas e de mirtos em flor. Os oito filhos de Giovanni tinham todos sezões; naquele tempo havia muitas febres palustres nos arredores de Roma, ainda que o Baedeker dissesse o contrário. A filha mais velha, Maria, estava tão exaurida pelos contínuos acessos de febre, que eu disse ao pai que ela não resistiria ao Verão, se a deixassem em Roma. Ofereci-lhe levá-la para San Michele, com o meu pessoal. Começou por hesitar; os italianos da classe pobre têm grande repugnância em separar-se dos filhos enfermos; preferem vê-los morrer em casa a levá-los ao hospital. Acabou por aceitar quando eu lhe propus que fosse ele próprio acompanhar a filha a Capri para ver, com os seus próprios olhos, como a minha gente a tratava bem. Miss Hall, com Giovannina e Rosina e todos os cães, partiram de comboio para Nápoles, como de costume. Eu, com Billy, o babuíno, a mangusta e a coruja, fizemos no iate uma travessia maravilhosa. Dobrámos o Monte Circeu, ao erguer do Sol, apanhámos a brisa matinal da baía de Terracina, atravessamos com uma velocidade de corrida por debaixo do castelo de Ischia e lançámos âncora na Medina de Capri, quando os sinos davam Mezziogiorno (meio-dia). Duas horas depois trabalhava eu no jardim de San Michele, meio desnudo.

Ao cabo de cinco largos verões de trabalho incessante, do amanhecer ao pôr do Sol, San Michele estava mais ou menos terminado, mas ainda havia muito que fazer no jardim. Era preciso estender um novo terraço por detrás da casa e uma outra arcada por cima dos dois pequenos quartos romanos, que havíamos descoberto no Outono. Quanto ao pequeno pátio do claustro, disse a Mastro Nicola que o melhor era demoli-lo; já não gostava dele. Mastro Nicola suplicou-me que o deixasse como estava; já o havíamos demolido duas vezes e, se continuássemos a desfazer as coisas logo que as acabávamos de construir, San Michele nunca terminaria. Disse a Mastro Nicola que a verdadeira maneira de construir a nossa casa era deitar tudo abaixo quantas vezes fosse necessário, até que o olhar nos dissesse que tudo estava bem. Os olhos sabiam mais de arquitectura do que todos os livros; enquanto nos fiamos nos nossos e não nos dos outros, somos infalíveis. Ao tornar a vê-lo, San Michele parecia-me mais belo do que nunca. A casa era pequena; tinha poucos quartos e salas; a toda a volta, galerias, terraços, arcadas para contemplar o Sol, o mar e as nuvens - a alma tem mais necessidade de espaço do que o corpo. Poucos móveis na casa, mas muito daquilo que o dinheiro só não pode comprar. Nada de supérfluo, nem feio, nem bric-à-brac, nem bibelot. Algum quadro dos primitivos, uma água-forte de Dürer e um baixo-relevo grego nas paredes branqueadas. Dois tapetes antigos no solo de mosaico, alguns livros nas mesas, flores por toda a parte, em jarras luminosas de Faenza e Urbino. Os ciprestes da Villa d’Este que conduziam à capela formavam já uma avenida de árvores esplêndidas, as árvores mais nobres do Mundo. A própria capela, que havia dado o nome à casa, era por fim minha também. Devia instalar ali a biblioteca. A toda a volta das brancas paredes havia formosas cadeiras de coiro; ao centro erguia-se uma grande mesa de refeitório, carregada de livros e fragmentos de terracota. Sobre uma coluna em giallo antico havia um enorme Horus de basalto, o maior que jamais vi, trazido da terra dos Faraós por algum coleccionador romano, talvez pelo próprio Tibério. Por cima da minha mesa de trabalho olhava-me a cabeça de Medusa, do iv século antes de J. C., encontrada por mim no fundo do mar. Sobre a grande chaminé florentina do século xvi erguia-se a Vitória Alada; numa coluna de mármore africano, a cabeça mutilada de Nero olhava o golfo onde, por ordem sua, os remeiros haviam dado morte à sua própria mãe. Por cima da porta de entrada brilhava o magnífico vitral de cores oferecido a Eleonora Duse pela cidade de Florença, e com que ela me havia presenteado, em lembrança da sua última estada em San Michele. Numa cripta, cinco pés abaixo do pavimento romano, de mármores de cores, do corredor, dormiam em paz dois monges que havia encontrado por acaso, quando se praticavam as escavações para os alicerces da chaminé. Repousavam com os braços em cruz, tal como haviam sido sepultados na capela, quinhentos anos atrás. Os hábitos caíam em poeira; e os corpos ressequidos eram leves como pergaminho; mas as feições estavam bem conservadas e ainda tinham as mãos apertadas contra o crucifixo. Um deles tinha umas elegantes fivelas de prata nos sapatos. Lamentava tê-los ido incomodar no sono; e, com infinitas precauções, depositei-os de novo na sua pequena cripta.

A alta abóbada da entrada, com a sua colunata gótica, no exterior da capela, agradou-me completamente. Aonde encontrar hoje colunas semelhantes?

Olhando do parapeito a ilha que se estendia a meus pés, disse a Mastro Nicola que havia que preparar o lugar para a esfinge; não tínhamos tempo a perder. Mastro Nicola estava contentíssimo: porque não íamos naquele mesmo instante buscar a esfinge? Onde estava?

Disse-lhe que jazia sob as ruínas de algum esquecido palácio de imperador romano, algures, não sei onde. Ali estava à minha espera, havia dois mil anos; assim mo havia revelado um homem de manto vermelho a primeira vez que daquele mesmo sítio eu contemplara o mar. Até àquele dia não a vira mais do que em sonhos. O meu olhar desceu até ao pequeno iate branco, diante da Marina, a meus pés, e disse que tinha a certeza de que, no momento oportuno, encontraria a esfinge. A dificuldade estava em fazê-la atravessar o mar; era uma carga muito grande para o meu barco. Toda de granito, pesava muitas toneladas. Mastro Nicola coçou a cabeça e perguntou-me quem a içaria até San Michele. Ele e eu, naturalmente!

As duas salas romanas, por debaixo da capela, estavam obstruídas com os restos do tecto desabado; mas as paredes conservavam-se intactas até a altura de um homem; as grinaldas de flores e as ninfas sobre fundo vermelho pareciam pintadas na véspera. Roba di Timberio? - perguntou Mastro Nicola.

- Não - respondi, olhando atentamente o delicado desenho do pavimento de mosaico, com a sua graciosa banda de folhas de vinha em nero antico. - Este pavimento foi construído anteriormente; data de Augusto. O velho imperador era também um grande adorador de Capri; havia começado a construir aqui um palácio, sabe Deus em que ponto, mas morreu em Nola, ao regressar a Roma, antes de o terminar. Foi um grande homem e um grande imperador; mas acredita-me: Tibério foi o maior de todos. O alpendre estava já coberto de vides tenras; as rosas, as madressilvas e epomeas enredavam-se nas colunas brancas. Entre os ciprestes, no pequeno pátio do claustro, o fauno dançante erguia-se na sua coluna de mármore cipollino; ao centro da grande galeria estava sentado o Hermes de bronze, de Herculano. No pátio de mármore, em frente da casa de jantar, todo resplandecente de sol, Billy, o babuíno, ocupava-se em catar as pulgas de Tappio, rodeado de todos os cães, que esperavam, dormitando, a sua vez para esse complemento habitual da toilette matinal. Billy tinha uma habilidade prodigiosa para apanhar pulgas; nada do que salta ou rasteja podia escapar aos seus olhos vigilantes. Os cães sabiam-no perfeitamente e apreciavam tanto este desporto, como ele próprio. Era o único desporto autorizado pelas leis de San Michele. A morte era fulminante e provavelmente sem dor; Billy engolia a presa, antes que esta adivinhasse o perigo. Billy havia renunciado a beber e tornara-se um macaco respeitável, em plena madurez. Parecia-se duma forma inquietante a um ser humano; era bastante educado, ainda que um pouco turbulento, quando eu voltava as costas, troçando de toda a gente. Muitas vezes perguntava a mim próprio o que pensariam os cães a seu respeito. Não estou seguro de que não tivessem medo; em geral afastavam a vista quando ele os olhava. Billy não temia ninguém, a não ser a mim. Sempre lhe adivinhava no rosto quando a consciência o acusava, o que lhe sucedia amiúde. Creio que temia também a mangusta, que andava pelo jardim, com seus pés infatigáveis, em silêncio e dando fé de tudo. Billy era muito viril; assim o fizera o Criador. Não era de modo algum insensível às atracções do outro sexo. De repente, havia tomado grande simpatia por Elisa, a mulher do meu jardineiro, que ficava horas inteiras a olhá-lo fascinada enquanto ele permanecia na sua figueira particular, fazendo-lhe momices. Elisa, como de costume, esperava um filho; sempre a conheci nesse estado. Não sei porquê, mas esta súbita amizade com Billy não me agradava muito; disse-lhe até que olhasse para outra coisa.

O velho Pacciale havia descido à Marina para receber o seu colega Giovanni, o coveiro de Roma, que devia chegar ao meio-dia, com a filha, no barco de Sorrento. Como tinha de estar de regresso na noite seguinte, devia levá-lo de tarde a visitar os dois cemitérios da ilha. Pela noite, o pessoal de serviço oferecia uma ceia no terraço, com vinho à discrição, aos seus distintos hóspedes de Roma.

Os sinos da capela tocavam ave-marias. Eu havia passado o dia no jardim, trabalhando sob o sol ardente, desde as cinco da manhã. Cansado e com grande apetite, sentei-me diante da ceia frugal, na galeria superior, contente por ter passado mais um dia feliz. No terraço, a meus pés, estavam os meus hóspedes endomingados, sentados à volta duma travessa de macarrões e duma grande garrafa do melhor vinho de San Michele. No lugar de honra, à cabeceira da mesa, estava sentado o coveiro de Roma, entre os dois colegas de Capri. Depois seguia-se Baldassare, o meu jardineiro; Caetano, o marinheiro, e Mastro Nicola, com os três filhos, falando todos ao mesmo tempo. À volta da mesa, as mulheres continuavam de pé a admirá-los, segundo o costume napolitano. O Sol escondia-se lentamente no mar; pela primeira vez na minha vida, experimentava como que um alívio, ao vê-lo desaparecer por detrás de Ischia. Porque desejava eu o crepúsculo e as estrelas, eu, adorador do Sol, que desde criança temia a obscuridade? Porque me queimaria os olhos, quando ergui o meu olhar para o glorioso Deus Sol? Estaria irritado contra mim? Iria desviar de mim o rosto e deixar-me na obscuridade, a mim que trabalhava de joelhos, para lhe construir um novo santuário? Seria verdade o que me dissera o homem do manto vermelho, vinte anos atrás, quando pela primeira vez olhava a ilha maravilhosa do alto da capela de San Michele? Seria verdade que a muita luz era funesta aos olhos mortais?

- Cuidado com a luz! cuidado com a luz! Ainda soava aos meus ouvidos o sinistro aviso.

Aceitara o pacto; pagara o devido e sacrificara o meu futuro para obter San Michele. Que pretendia mais? Que outro preço era aquele que teria de pagar antes da morte?

De repente, uma nuvem negra desceu sobre o mar e o jardim, a meus pés. As minhas pálpebras ardentes cerraram-se com terror.

- Escutai, companheiros - gritava o coveiro de Roma no terraço inferior. - Escutai o que vos digo. Vós, camponeses, que só aqui o vedes passear, nesta miserável aldeia, descalço e tão mal vestido como vós próprios, sabei que nas ruas de Roma passeia numa carruagem de dois cavalos. Dizem também que foi ver o Papa quando ele teve a influenza. Digo-vos, companheiros: não há uma pessoa como ele; é o maior médico de Roma. Venham ao meu cemitério e verão o que vos digo. Sempre ele! Sempre ele! Quanto a mim e aos meus, não sei o que faríamos sem ele; é o nosso benfeitor. A quem julgam que minha mulher vende todas as coroas e flores, senão à sua clientela? E todos estes estrangeiros que chamam á grade e dão dinheiro aos meus pequenos para entrar, por quem julgais que vão ali? Quem pensais que procuram? Claro que os meus pequenos não compreendem o que dizem e muitas vezes têm de percorrer todo o cemitério antes de encontrar o que procuram. Agora, mal tocam a sineta, os meus filhos já sabem o que eles querem e conduzem-nos imediatamente às fiadas de túmulos; mostram-se satisfeitos e dão mais umas moedas aos garotos. Sempre ele! Sempre ele! Raras vezes se passa um mês sem que abra algum dos seus mortos, na capela do cemitério, para descobrir o que tinham. Dá-me de cada vez cinquenta liras para os tornar a pôr no caixão. Digo-vos, companheiros, não há senão ele! Sempre ele! Sempre ele!

A nuvem tinha-se afastado e uma vez mais o mar resplandecia na luz doirada. O meu terror desaparecera. O próprio Diabo não pode nada contra um homem que sabe rir.

O grupo separou-se. Contentes da vida, com a cabeça cheia de vinho, todos foram dormir o sono dos justos.

Mal adormeci, encontrei-me numa planície solitária, juncada de escombros, de enormes blocos e fragmentos de mármore, meio ocultos entre a hera, o rosmaninho, a madressilva, as estevas e o tomilho. Sobre um muro em ruínas de opus reticulatum estava sentado um velho pastor, tocando a flauta de Pan ao seu rebanho de cabras. O rosto, duro e barbudo, era queimado pelo sol e o vento; os olhos ardiam como brasas sob as espessas sobrancelhas; e o corpo magro e emaciado tremia de febre debaixo da longa capa azul de pastor calabrês. Ofereci-lhe tabaco; ele deu-me um pedaço de queijo fresco de cabra e uma cebola. Custava-me a entendê-lo.

Como se chama este lugar estranho?

Não tem nome!

Donde era ele?

De nenhures, sempre ali havia estado, era ali a sua morada.

Onde dormia?

Com o comprido cajado indicou-me uma escada, debaixo duma abóbada desabada. Desci às apalpadelas as escadas talhadas na rocha e encontrei-me numa sala escura e abobadada. Num canto, uma enxerga com duas peles de carneiro servindo de mantas. Dependurados nas paredes e no tecto, cambos de cebolas e réstias de alhos e tomates secos; uma bilha de barro, cheia de água, em cima da mesa grosseira. É esta a sua casa; estes os seus bens. Aqui viveu toda a vida; aqui se deitará um dia para morrer. Na minha frente abria-se uma escura passagem subterrânea, meio obstruída pelas pedras caídas do tecto arruinado. Aonde iria ter?

Ele não sabia, nunca por ali passara. Quando era pequeno haviam-lhe dito que por ali se ia ter a uma caverna habitada por um génio mau, havia milhares de anos, sob a forma de lobisomem, prestes a devorar quem dali se aproximasse.

Acendi uma tocha e baixei-me, tacteando pelas escadas de mármore. A passagem alargava-se pouco a pouco; um sopro de ar frio gelou-me o rosto. Ouvi um gemido estranho que me gelou o sangue nas veias. Bruscamente, encontrei-me numa sala imensa. Duas grandes colunas de mármore de África sustentavam ainda uma parte da abóbada; duas outras estavam deitadas sobre o chão de mosaico, arrancadas dos socos pelo tremor de terra. Centenas de grandes morcegos pendiam das paredes em enormes cachos negros; outros revoluteavam à roda da minha cabeça, fugindo espavoridos, cegos pela luz súbita da tocha. Ao centro da sala estava agachada uma grande esfinge, que me fixava com seus olhos de pedra muito abertos.

Estremeci em sonhos, e o sonho desapareceu. Abri os olhos. Despontava o dia. Ouvi o apelo do mar, imperioso, irresistível, como uma ordem. Saltei dum pulo, enfiei as roupas, corri ao parapeito da capela e icei o sinal para que o iate se preparasse para partir. Duas horas mais tarde, chegava a bordo com provisões para uma semana, dois rolos de calabre, picaretas, pás, um revólver, todo o dinheiro disponível, um feixe de tochas de pau resinoso, das que os pescadores empregam nas pescarias nocturnas. Um instante depois, içávamos a vela para a aventura mais estranha da minha vida. Na noite seguinte, ancorámos numa enseada solitária, conhecida apenas de alguns pescadores e contrabandistas. Gaetano devia esperar-me ali com o iate uma semana inteira e ir abrigar-se no porto mais próximo, em caso de mau tempo. Conhecíamos muito bem aquela perigosa costa, sem um fundeadouro seguro no espaço de umas cem milhas. Conhecia também o maravilhoso país do interior, outrora a Magna Graecia da idade de oiro da arte e da cultura helénicas, hoje a província mais desolada da Itália, abandonada pelos homens à malária e aos tremores de terra.

Três dias depois, encontrava-me na solitária planície do meu sonho, juncada de escombros, de enormes blocos e fragmentos meio ocultos entre a hera, o rosmaninho, a madressilva, a esteva e o tomilho. Sobre um muro em ruínas de opus reticulatum estava sentado um velho pastor, tocando a flauta ao seu rebanho de cabras. Ofereci-lhe tabaco, estendeu-me um pedaço de queijo de cabra e uma cebola. O Sol já se escondera por detrás das montanhas; o nevoeiro mortal do paludismo estendia-se lentamente pela desolada planície. Disse-lhe que havia perdido o meu caminho, e não me aventurava sozinho naquela solidão. Poderia passar a noite com ele?

Conduziu-me ao seu alojamento subterrâneo, que eu conhecia tão bem pelo meu sonho. Estendi-me nas peles de carneiro e adormeci.

Tudo o que sucedeu é demasiado estranho e fantástico para ser traduzido em palavras escritas; de resto nem me acreditaríeis, se intentasse fazê-lo. Eu próprio mal sei onde acaba o sonho e onde começa a realidade. Quem dirigiu o meu barco para esta oculta e solitária enseada? Quem me conduziu através daquele deserto sem trilho para as ruínas ignoradas da casa de Nero?

O pastor era de carne e osso, ou seria o próprio Pan que voltara ao seu lugar favorito, para tocar a flauta ao rebanho de cabras? Não mo pergunteis, que não posso, nem me atrevo a responder-vos. Podeis interrogar a grande esfinge de granito, agachada no parapeito da capela de San Michele. Mas em vão. A esfinge guarda o seu segredo há cinco mil anos. Guardará também o meu.

Voltei da grande aventura emagrecido pela fome e as tribulações de toda a espécie, e tremendo de febre palúdica. Fui roubado uma vez pelos bandidos que infestavam então a Calábria: salvaram-se os meus farrapos. Fui preso duas vezes pelos aduaneiros, como contrabandista; várias vezes mordido pelos escorpiões, e ainda trazia a mão esquerda vendada em consequência da mordedura duma víbora. Ao dobrar a Ponta Licosa, onde Leucosi, a sereia, irmã de Parténope, está sepultada, apanhou-nos um temporal do Sudoeste e teríamos ido para o fundo com a pesada carga, se Santo António não houvesse tomado o timão no momento oportuno. Quando voltei a San Michele ainda ardiam os círios votivos diante do seu altar, em Anacapri. Por toda a ilha havia corrido o boato de que tínhamos naufragado durante a tempestade. Toda a minha gente estava radiante por tornar a ver-me.

Sim, tudo ia bem em San Michele, grazie a Dio. Nada havia ocorrido em Anacapri; e, como de costume, ninguém morrera. O pároco deslocara um tornozelo; uns diziam que havia escorregado ao descer do púlpito, no último domingo, outros que fora o pároco de Capri que lhe havia deitado mal occhio; todos sabiam que o padre de Capri tinha mau olhado. Na véspera, o cónego Don Giacinto fora encontrado morto na cama, em Capri. Estava de excelente saúde, quando se deitou, e morrera durante o sono. Haviam-no deixado aquela noite vestido com seus ricos paramentos diante do altar-mor e deviam enterrá-lo com grande pompa nessa manhã. Os sinos dobravam desde o amanhecer.

No jardim, o trabalho prosseguia como de costume. Mastro Nicola encontrara outra testa di cristiiano, ao derribar o muro do claustro, e Baldassare havia descoberto novo vaso de barro cheio de moedas romanas, ao arrancar as batatas novas. O velho Pacciale, que estava cavando a vinha em Damacuta, chamou-me de lado, com ar de grande mistério e importância. Depois de estar seguro de que ninguém nos ouvia, tirou do bolso um cachimbo de barro, negro do fumo, que deveria ter pertencido a algum soldado do regimento de Malta, que houvesse acampado em Damacuta, em 1808.

- O cachimbo de Timberio! - disse-me o velho.

Os cães tinham tido o seu banho todos os dias e ossos duas vezes por semana, conforme o regulamento. A coruja estava de bom humor. A mangusta não descansava dia e noite, sempre à procura de alguma coisa ou de alguém. As tartarugas pareciam felizes, com seu ar fleumático.

- E Billy tinha-se comportado bem?

Elisa apressou-se a responder afirmativamente: Billy fora muito bom, un vero angelo.

A mim, parecia-me que tinha pouco ar disso, e observava as momices que ele fazia no alto da figueira. Contrariamente ao seu costume, não desceu para me receber. Estava certo de que alguma tinha feito. A sua expressão não me agradava.

É verdadeiramente certo que Billy se portou bem?

Pouco a pouco a verdade transpirou. No próprio dia da minha partida, Billy atirou uma cenoura à cabeça dum forasteiro que passava por diante da grade do jardim e quebrara-lhe as lunetas. O forasteiro zangara-se muito e fora apresentar queixa a Capri. Elisa protestou com energia. A culpa fora toda dele, que

se metera com Billy; toda a gente sabia que se zangava quando troçavam dele. No dia seguinte houve uma terrível batalha entre Billy e o fox-terrier e todos os cães se haviam metido na bulha.

Billy lutara como um demónio e tentara morder até em Baldassare, quando este procurou separar os contendores. A batalha terminou de pronto com a chegada da mangusta. Billy pulou para a árvore e os cães desfilaram, como era costume quando ela aparecia. Desde então os cães e Billy viviam como inimigos e este recusara-se até a catar-lhes as pulgas. Billy havia dado caça ao gato siamês, perseguindo-o por todo o jardim; conseguira por fim apanhá-lo, levara-o para o cimo da figueira e arrancara-lhe todos os pêlos. Billy havia incomodado constantemente as tartarugas.

Amanda, a tartaruga maior, tinha posto sete ovos, tão grandes como os de pomba, que deviam chocar ao Sol, à maneira das tartarugas, e Billy havia-os comido num abrir e fechar de olhos.

Perguntei se, ao menos, haviam tido o cuidado de não deixar garrafas de vinho ao alcance de Billy. Houve um pesado silêncio. pacciale, que era o mais leal dos meus servidores, acabou por confessar que por duas vezes vira sair Billy furtivamente da adega, com garrafas na mão. Dois dias antes havia descoberto duas outras num canto da sua jaula, cuidadosamente escondidas na areia. Segundo o regulamento, Billy fora logo metido na sua casa, a pão E água, esperando o meu regresso. Mas, no dia seguinte, de manhã, a casa estava vazia. Billy tinha-se escapado de noite, não se sabe como, pois as grades estavam intactas e a chave trazia-a Baldassare no bolso. Toda a gente tinha andado à procura dele por toda a aldeia, sem o encontrar. Baldassare descobrira-o por fim nessa mesma manhã no cimo do Monte Barbarrossa, profundamente adormecido, com uma ave morta na mão.

Durante este interrogatório, Billy estava sentado no alto da árvore, olhando-me com desafio; não havia dúvida de que entendia tudo quanto dizíamos. Impunham-se sem demora sanções severas. Os macacos, como as crianças, devem aprender a obedecer antes de aprender a mandar. Billy começou a mostrar-se inquieto. Sabia que eu era o amo, que podia apanhá-lo com o laço, como já fizera, e que o chicote que tinha na mão era para ele. Também os cães o sabiam, sentados em círculo à roda da árvore de Billy, meneando a cauda, com a consciência pura e gozando vivamente da situação - aos cães não lhes desagrada presenciar o castigo dado a outros. De repente, Elisa levou as mãos ao ventre com um grito agudo e Pacciale e eu apenas tivemos tempo para a levar para a cama, enquanto Baldassare corria a chamar a parteira. Quando voltei para junto da árvore, Billy havia desaparecido; foi melhor para ele e para mim, pois detesto castigar os animais.

De resto tinha mais em que pensar. Sempre me havia interessado muito Don Giacinto e possuía grande desejo de conhecer pormenores da sua morte, que da sua vida bastantes sabia. Don Giacinto gozava da fama de ser o homem mais rico da ilha; diziam que possuía uma renda de vinte e cinco liras, cada hora de vida, anche quando dorme (mesmo quando dorme). Havia muitos anos que o via arrancar até ao último cêntimo aos seus pobres arrendatários, expulsá-los das casas quando a má colheita das azeitonas não lhes permitia pagar a renda e deixá-los morrer de fome, quando eram velhos e não tinham forças para trabalhar para ele. Ninguém ouvira jamais dizer que tivesse dado cinco réis a alguém. Sabia que não poderia crer na justiça divina neste Mundo, se o Todo Poderoso concedia a esse velho vampiro o maior benefício que Ele pode conceder a um homem - o de morrer dormindo. Resolvi ir ver o meu velho amigo o pároco de Anacapri, Don Antonionio, que seguramente me poderia dizer quanto desejava saber. Don Giacinto fora o seu mortal inimigo durante meio século.

O pároco estava na cama, com o pé envolto numa quantidade de mantas e o rosto radiante. O quarto estava cheio de padres, e no meio deles Maria Porta-Lettere, com a boca aberta e a língua de fora, pela comoção. Durante a noite rebentara um incêndio na igreja de San Constanzo, quando Don Giacinto estava estendido com suas ricas vestes no catafalco; o caixão fora devorado pelas chamas. Uns diziam que fora o Diabo que havia tombado um candelabro com a vela junto ao catafalco, para queimar Don Giacinto. Afirmavam outros que havia sido uma quadrilha de ladrões, que ia roubar a estátua de prata de San Constanzo. O padre estava seguro de que fora obra do Demónio: sempre afirmara que Don Giacinto acabaria nas chamas.

O relato de Maria Porta-Lettere acerca da morte de Don Giacinto parecia bastante plausível. O Demónio aparecera-lhe na janela, quando ele rezava as orações da noite. Don Giacinto gritara por socorro, haviam-no transportado à cama meio desmaiado e morrera de medo pouco depois.

Muito intrigado, pensei que seria preferível que eu próprio baixasse a Capri, para indagar o que se passara. A piiazza estava cheia de gente, em grande gritaria. No centro encontravam-se as autoridades, esperando ansiosamente a chegada dos carabinieri de Sorrento. Na escada da igreja uma dezena de padres fazia grandes gestos. A igreja estava fechada, à espera das autoridades.

- Sim - disse-me o regedor - era tudo certíssimo. Quando, pela manhã, o sacristão havia ido abrir a igreja, encontrara-a cheia de fumo. O catafalco estava meio consumido pelo fogo e o próprio caixão muito queimado. Do rico pano de veludo bordado que o cobria e da dúzia de coroas oferecidas pelos parentes do cónego e suas desoladas ovelhas só restava um monte de cinzas. Três dos candelabros ardiam ainda junto do catafalco; o quarto decerto fora deitado a terra por mão sacrílega, para pegar fogo ao pano. Por enquanto era impossível saber se teria sido obra do Demónio ou de algum criminoso, mas o alcaide notara maliciosamente que o facto de não ter desaparecido nenhuma das preciosas jóias que San Constanzo tinha ao pescoço o fazia inclinar, parlando con rispetto, para a primeira hipótese. À medida que prosseguia o meu inquérito, o mistério tornava-se cada vez maior.

O pavimento do Café Zum Hiddigeigei, quartel-general da colónia alemã, estava cheio de copos, garrafas e de toda a espécie de vasilhas partidas; numa mesa havia uma garrafa de whisky meio vazia. Na farmácia, dezenas de boiões de porcelana que continham drogas preciosas e secretas misturas tinham sido atiradas ao chão; por toda a parte havia óleo de rícino. O professor Raffaele Permigiano mostrou-me pessoalmente a devastação da sua nova sala de exposições, orgulho da Piazza. O seu Vesúvio em erupção, a sua Procissão de San Constanzo, o seu Salto de Tibério e a sua Bela Carmela estavam amontoados por terra, com as molduras partidas e as telas rasgadas. O seu Tibério nadando na Gruta Azul estava ainda no cavalete, mas todo manchado de azul, numa louca confusão. O alcaide informou-me de que até ao presente as pesquisas efectuadas não haviam dado nenhum resultado. O partido liberal abandonara a hipótese de terem sido bandidos, visto não haverem levado nada de valor. Até os dois perigosos bandidos napolitanos in villigiatura no cárcere de Capri, havia um ano, tinham podido comprovar a sua inocência. Demonstrara-se que, por causa das intensas chuvas, haviam permanecido toda a noite na prisão, em vez de dar o seu costumado passeio pela terra, a partir das doze.

De resto, eram bons católicos, muito populares e incapazes de se incomodarem por ninharias semelhantes.

O partido clerical havia posto de lado a hipótese do demónio, por respeito à memória de Don Giacinto. Quem, pois, o autor de tão vis ultrajes? Às portas de Capri encontrava-se o seu inimigo secular: Anacapri. Naturalmente tudo era obra dos anacaprenses! Isso explicava tudo! O cónego era mortal inimigo dos de Anacapri, que nunca lhe haviam perdoado ter metido a ridículo o último milagre de Santo António no seu célebre sermão do dia de San Constanzo. O feroz ódio entre o Zum Higeigei e o novo Café de Anacapri era notório. No tempo de César Bórgia, Don Petruccio, o boticário de Capri, teria reflectido duas vezes antes de aceitar o convite do seu colega de Anacapri para ir comer dos seus macarrões. A rivalidade entre o Professor Rafael Parmigiano de Capri e o Professor Michelangelo, de Anacapri, pelo monopólio do Tibério nadando na Gruta Azul, transformara-se ultimamente numa guerra furiosa. A abertura da sala de exposição havia sido um rude golpe para o professor Michelangelo; a venda da sua Procissão de Santo António fora interrompida. Claro que a culpa de tudo era Anacapri.

Abasso Anacapri! Abasso Anacapri!

Disse a mim próprio que melhor seria voltar, pois começava a sentir-me inquieto. Não sabia mesmo que pensar. A guerra armada que reinava entre Capri e Anacapri desde o tempo dos vice-reis espanhóis de Nápoles continuava naquela época com igual furor. Os dois alcaides não se cumprimentavam. Os camponeses odiavam-se, os notáveis da terra detestavam-se, os sacerdotes não se podiam ver e até os dois patronos Santo António e San Constanzo estavam de mal. Dois anos antes, vi eu com os meus olhos um bando de caprenses dançar à roda da nossa capela, quando uma enorme rocha, tombando do Monte Barbarrossa, caiu sobre o altar e a estátua de Santo António, danificando-os.

Em San Michele haviam suspendido os trabalhos. Toda a minha gente em vestes domingueiras se encaminhava para a Piazza, onde devia tocar a música para celebrar o acontecimento. Já haviam juntado cem liras para o fogo de artifício. O alcaide mandara-me dizer que esperava que eu assistisse na qualidade de cidadão honorário (cittadino onorario), distinção suprema que me fora concedida no ano precedente. No meio do terraço estava Billy, sentado ao lado da tartaruga e demasiadamente absorvido no seu divertimento favorito para dar pela minha vinda. Consistia o divertimento numa série de palmadas rápidas na porta de serviço da carapaça da tartaruga, no sítio onde saía a cauda. A cada palmada a tartaruga projectava a sonolenta cabeça pela porta principal para ver do que se tratava e recebia no mesmo instante no nariz um terrível soco de Billy, que a deixava atontada. Este jogo era proibido pelas leis de San Michele. Billy sabia-o perfeitamente, e gritou como uma criança quando eu, mais rápido do que ele, desta vez, o agarrei pela correia que lhe rodeava o estômago.

- Billy - disse-lhe severamente - terei contigo uma entrevista particular debaixo da figueira; temos os dois de ajustar várias contas. É inútil olhares-me dessa maneira e fazeres esse beiço; já sabes que mereces uma boa tareia e que não tardarás em recebê-la. De novo te entregaste à bebida, Billy! Encontraram duas garrafas vazias num canto da tua cabana e uma garrafa de whisky de Buchanan desapareceu. A tua conduta durante a minha ausência na Calábria foi deplorável. Partiste com uma cenoura as lunetas dum forasteiro. Desobedeceste aos meus criados. Andaste à bulha com os cães e recusaste-te a catar-lhes as pulgas. Insultaste a mangusta. Faltaste ao respeito à coruja. Bateste várias vezes na tartaruga. Por pouco não estrangulas o gato siamês. E por último, e o pior de tudo, fugiste de San Michele em completo estado de embriaguez. A crueldade para com os animais está na tua natureza, ou não fosses tu candidato à humanidade; mas só os Senhores da Criação têm o direito de se emborrachar. Digo-te que estou farto de ti, e que te vou mandar ao teu velho amo bêbedo, o Dr. Campbell; não és digno de viver em boa sociedade. És uma vergonha para teu pai e tua mãe! Billy: não passas dum homunculus desprezível, um borracho empedernido, um...

Houve um silêncio sinistro.

Pus as lunetas para examinar melhor as unhas de Billy, pintadas de azul e a cauda queimada, e disse-lhe por fim:

- Billy: gostei bastante dos teus retoques no Tibério nadando na Gruta Azul; parece-me que o original ganhou. Fazem-me lembrar um quadro que vi o ano passado no Salon dos Futuristas. O teu antigo amo falou-me muitas vezes de tua chorada mãe; dizia-me que era uma macaca excepcional. Suponho que herdaste dela o talento artístico. A tua elegância e o teu humorismo aposto que vêm do teu pai, cuja identidade ficou plenamente estabelecida nos últimos acontecimentos; é forçosamente o Diabo em pessoa. Dize-me, Billy, simplesmente para satisfazer a minha curiosidade: foste tu ou teu pai quem deitou abaixo o candelabro e largou fogo ao caixão de Don Giacinto?

 

                     O SANTUÁRIO DAS AVES

A brusca partida para o outro Mundo, entre fogo e chamas, do cónego Don Giacinto produziu o mais reconfortante efeito no estado geral, físico e moral do nosso pároco Don Antonio. O pé deslocado melhorou rapidamente, e em breve pôde retomar os seus passeios de manhã a San Michele para assistir ao meu primeiro almoço. Convidava-o sempre, segundo o costume napolitano, a mangiare con me, mas ele recusava invariavelmente a minha chávena de chá, dizendo cortêsmente: No, grazie, sto bene. O único objecto da sua visita era sentar-se à mesa na minha frente e olhar-me enquanto eu comia. Don Antonio nunca vira um forasteiro de perto, e quase tudo o que eu dizia ou fazia era para ele uma contínua fonte de maravilha. Sabia que eu era protestante; mas, depois de algumas tentativas para discutir sobre este assunto, acordámos excluir das nossas conversas a Teologia e deixar em paz os protestantes. Da sua parte foi uma grande concessão, pois tinha por costume, uma vez por semana, do alto do púlpito, enviar ao Inferno, com as mais terríveis invectivas, todos os protestantes vivos e mortos. Os protestantes eram a especialidade de Don Antonio, a âncora de salvação em todos os seus naufrágios oratórios. Não sei o que seria dele sem os protestantes. A memória do velho pároco era um pouco vacilante; o débil fio da sua argumentação quebrava-se nos momentos mais críticos; e no melhor dos seus sermões havia um embaraçoso silêncio. As suas fiéis ovelhas sabiam-no bem, e não se inquietavam por isso. Continuavam meditando tranquilamente sobre as suas próprias coisas: as azeitonas, as vinhas, as vacas e os porcos. Sabiam também o que vinha a seguir. Don Antonio assoava-se muitas vezes com o ruído das trombetas no Juízo Final e retomava alento. Ma questi maladetti protestanti, ma questo camorrista Luthero! Possa o Demónio arrancar-lhes das bocas as línguas malditas! Que lhes quebre os ossos e os toste vivos! In aeternitatem! Uma vez, num Domingo de Páscoa, sucedeu que entrei por acaso na igreja com um amigo, no momento preciso em que o padre perdia o fio do discurso; reinava o costumado silêncio. Murmurei ao ouvido do meu amigo: «Agora toca-nos a vez a nós».

- Ma questo camorrista Luthero, questi maladetti protestanti! Che il Demonio...

De repente, Don Antonio viu-me no umbral. O punho fechado, que havia levantado para atacar os malditos infiéis, abriu-se para me fazer com a mão um sinal amigo de cumprimento e desculpa, ao tempo que dizia: «Sem incluir, evidentemente, il Signor Dottore! Evidentemente, il Signor Dottore non.».

Quase nunca deixava de ir à igreja no dia de Páscoa e tomar o meu lugar perto da porta, ao lado do velho cego Cicatiello, o mendigo oficial de Anacapri. Ambos estendíamos a mão aos que passavam: ele para a esmola, eu para os passaritos que os homens levavam nos bolsos, as mulheres nas pregas das mantilhas e as crianças na palma da mão. Extraordinária prova da popularidade excepcional que eu então desfrutava em Anacapri era que os habitantes aceitassem sem ressentimento a minha intervenção na maneira como celebravam a Ressurreição do Senhor, consagrada por uma tradição de quase dois mil anos e sempre encorajada pelos sacerdotes. Desde o primeiro dia da Semana Santa espalhavam-se as armadilhas por todas as vinhas e em todas as oliveiras. Durante dias inteiros, centenas de avezinhas eram arrastadas pelas ruas, com a asa presa por um cordel, por todos os garotos da aldeia. E hoje, símbolos mutilados do Espírito Santo, deviam soltá-las na igreja, para que participassem do júbilo de todos, comemorando a Ressurreição de Cristo, a Sua volta ao Céu. Mas as avezinhas não volviam mais ao Céu; esvoaçavam um pouco, impotentes e aturdidas, quebrando as asas contra os vidros das janelas antes de cair para morrer nas lajes da igreja. Ao amanhecer, subira eu ao telhado da igreja. Mastro Nicola, bem contra vontade, segurava-me a escada enquanto eu quebrava alguns vidros; mas bem poucas das aves condenadas encontraram o caminho da liberdade.

Ave! Ave! Quanto a minha vida teria sido mais feliz nesta ilha formosa se as não houvera amado tanto! Adorava vê-las chegar cada Primavera aos milhares e milhares; era para mim uma alegria ouvi-las cantar no jardim de San Michele. Mas houve um tempo em que eu quase desejava que não viessem; quereria fazer-lhes sinal, quando ainda voavam no mar, para continuarem para a frente, com os patos selvagens que voavam por cima delas, direitos à minha pátria, a esses longínquos países do Norte, onde estariam ao abrigo do Homem. Porque eu sabia que a ilha bem amada era para mim um paraíso e era para elas um inferno. Chegavam um pouco antes do erguer do Sol; não pediam mais do que um pouco de repouso, depois do largo voo através do Mediterrâneo. O fim da sua viagem, a terra onde tinham nascido e onde criaram os filhos, estava ainda longe! Vinham aos milhares, pombas trocazes, tordos, toutinegras, perdizes, codornizes, verdilhões, rouxinóis, arvéolas, andorinhas, cotovias, guarda-rios e outros muitos pequeninos artistas, a caminho das florestas e dos campos silenciosos do Norte, para os seus concertos da Primavera. Duas horas mais tarde, debatiam-se impotentes nas redes que a astúcia dos homens lhes haviam estendido por toda a ilha, desde os rochedos à beira-mar até aos pontos mais altos dos Montes Solaro e Barbarrossa. Nessa mesma noite eram empilhadas aos milhares em caixas de madeira, sem alimento e sem água, e expedidas por vapor a Marselha, para serem depois comidas com delícia nos restaurantes chics de Paris. Era um comércio lucrativo. Havia muitas centenas de anos que Capri se tornara sede dum bispado, cujas despesas eram cobertas pela venda dos pássaros caçados nas armadilhas. Il vescovo delle quaglie (o bispo das cordonizes) como lhe chamavam em Roma. Sabeis como caçavam esses passarinhos? Escondidas nas moitas, engaioladas, colocam outras avezitas, que repetem incessantemente, automaticamente, o seu apelo monótono. Não podem parar, continuam chamando dia e noite, até morrerem. Muito antes que a ciência aprendesse a conhecer algo sobre a localização dos centros nervosos no cérebro humano, já o Diabo havia revelado ao seu melhor discípulo, o Homem, a horrível descoberta: cegando um pássaro com uma agulha candente, a ave cantará automaticamente. É uma velha história já conhecida dos Gregos e dos Romanos. De cem pássaros, muito poucos sobrevivem à operação, que, apesar de tudo, é um bom negócio: uma codorniz cega vale actualmente vinte e cinco liras em Capri. Durante seis semanas, na Primavera, e outras tantas, no Outono, toda a vertente do Monte Barbarrossa estava coberta de redes, desde as ruínas do castelo, lá no cimo, até ao muro do jardim de San Michele, em baixo, ao pé da montanha. Era reputada como a melhor caccia de toda a ilha e com frequência ficavam nas redes num só dia mil avezinhas. A montanha pertencia a um homem do Continente, antigo carniceiro, famoso especialista em cegar aves e meu único inimigo em Anacapri, além do médico. Desde que começara a construir San Michele, estávamos os dois em guerra sem quartel. Eu apelara para o Comissariado de Nápoles, para o Governo de Roma; tinham-me respondido que não havia nada a fazer, pois a montanha lhe pertencia e tinha a lei a seu favor. Obtive uma audiência da mais alta Dama do país; sorrira-me com o seu encantador sorriso, que lhe havia conquistado o coração de toda a Itália, e dera-me a honra de me convidar para almoçar: as primeiras palavras que li no menu eram: Paté d’allouettes farcies. Recorri ao Papa, e um cardeal obeso disse-me que, casualmente, ao amanhecer daquele dia, Sua Santidade se fizera conduzir em cadeirinha aos jardins do Vaticano para presenciar a caçada dos pássaros, que fora excelente, pois haviam apanhado uns duzentos. Limpei a ferrugem do pequeno canhão abandonado pelos Ingleses no jardim, em 1808, e pus-me a dar tiros de cinco em cinco minutos, da meia-noite ao romper do Sol, na esperança de afastar as aves da fatal montanha. O antigo carniceiro perseguiu-me por haver perturbado o exercício legal da sua indústria, e fui condenado a pagar duzentas liras de multa. Ensinei os meus cães a ladrar toda a noite, renunciando ao pouco sono que me restava. Alguns dias depois o meu grande cão de Maremma morreu subitamente, e encontrei-lhe sinais de arsénico no estômago. Apercebi o assassino, na noite seguinte, escondido por trás do muro do jardim e atirei-me a ele. Processou-me de novo e fui condenado a pagar quinhentas liras por agressão e ferimentos. Vendi o meu magnífico vaso grego e a minha bem amada Madonna, de Desiderio di Settignano, que Anatole France quis sempre comprar-me com enganos, para reunir a importância enorme que ele pedia pela montanha, cem vezes maior que o seu real valor. Quando fui procurá-lo com o dinheiro, renovou a sua velha táctica e disse-me que havia dobrado o preço. Conhecia o seu homem. Chegara a tal ponto a minha exasperação que seria capaz de sacrificar quanto possuía para me tornar proprietário da montanha. O massacre das aves continuou como até ali. Eu havia perdido o sono, não pensava noutra coisa. Desesperado, saí de San Michele e parti no meu iate para Montecristo, com a intenção de regressar só quando tivessem partido as últimas aves.

A primeira coisa que soube quando voltei foi que o carniceiro estava à morte. Diziam-se missas pelas suas melhoras duas vezes por dia, à razão de trinta liras cada uma; era um dos homens mais ricos da ilha. Ao anoitecer chegou o pároco, pedindo-me, em nome de Deus, que visitasse o moribundo. O médico da aldeia suspeitava duma pneumonia; o farmacêutico dizia que era um ataque, o barbeiro que era um colpo di sangre, a parteira insistia em que aquilo era uma paura. O pároco, que sempre pensava no mal’ochio (mal olhado), decidia-se por isso. Recusei. Disse que em Capri só havia sido médico dos pobres e que os meus colegas titulares da ilha tinham perfeita capacidade para tratar qualquer daquelas doenças. Acrescentei que iria com uma única condição: a de que o homem juraria sobre o crucifixo que, se escapasse, não tornaria a cegar nenhum pássaro e me venderia a montanha pelo preço exorbitante de um mês antes. O homem negou-se. À noite administraram-lhe os últimos sacramentos. Ao amanhecer voltou o pároco. Sim, havia aceitado o oferecimento, jurando sobre o crucifixo. Duas horas depois, tirava-lhe da pleura esquerda meio litro de pus, com grande consternação do médico da terra e glória de Santo António. Contrariamente às minhas previsões, o homem curou-se. Miracolo! Miracolo!

A montanha de Barbarrossa é agora um santuário para as aves. Milhares de aves, de passagem, repousam nas suas encostas, na Primavera e no Outono, ao abrigo dos homens e dos animais. Aos cães de San Michele está-lhes proibido ladrar enquanto as aves repousam no monte. Aos gatos não se permite sair da cozinha sem um guizo atado ao pescoço. Billy, o vagabundo, está encerrado na sua cabana. Sabe-se lá o que pode fazer um macaco ou uma criança?

Até hoje não disse ainda uma palavra para desprestigiar o último milagre de Santo António que, sem exagerar, salvou, durante longo tempo, a vida de milhares de aves por ano. Mas, quando tudo acabar para mim, tenho a intenção de murmurar ao ouvido do anjo mais próximo que, com todo o respeito devido a Santo António, fui eu e não ele quem extraiu o pus da pleura esquerda do carniceiro e suplicarei ao bom anjo que me dê uma palavra de recomendação, se mais ninguém ma der. Tenho a certeza de que o Todo Poderoso ama as aves, de contrário não lhes haveria dado asas, como aos anjos.

 

                             O MENINO JESUS

SANTA ANA abanava a cabeça, falava na imprudência de fazer sair uma criança tão pequena com semelhante ventania, e perguntava se era ao menos respeitável aquela casa aonde levavam o seu neto. A Virgem disse que não havia motivo para se inquietar; a criança iria bem agasalhada no seu berço e tinha a certeza de que lhe não faltaria nada; toda a gente sabia que as crianças eram acarinhadas em San Michele. Mais valia deixarem ir o Menino, já que ele assim o queria. Não sabia que, apesar de pequenino, já tinha vontade própria? S. José nem sequer foi consultado; verdade é que pouco contava na Família. Don Salvatore, o padre mais novo de Anacapri, tirou o berço do altar, o sacristão acendeu as velas e puseram-se a caminho (1).

 

Nota 1: Talvez vos seja desconhecido este curioso e antigo costume. Durante a minha estada em San Michele recebia todos os anos a visita do Bambino, a maior honra que me podiam conceder. Geralmente ficava uma semana em San Michele.

 

À frente ia um rapaz tocando uma campainha, depois vinham as Figlie di Maria, vestidas de branco e com véus azuis, o sacristão balouçando o incensório, por fim Don Salvatore com o berço nos braços. À sua passagem pela aldeia, os homens descobriam-se, as mulheres erguiam nos braços os filhos para que pudessem ver o Divino Menino, com a coroa de oiro na cabeça e ao pescoço um guizo com a forma de uma sereia, para o preservar do mau olhado; os pequenos olhavam uns para os outros: Il Bambino! Il Bambino! À porta de San Michele estavam todos os meus criados com as mãos cheias de rosas para dar as boas-vindas ao ilustre hóspede.

O melhor quarto da casa destinava-se ao Menino, cheio de flores e engrinaldado de rosmaninho e hera. Numa mesa, coberta com a nossa mais linda toalha, acendiam-se duas velas, pois as crianças não gostam de estar às escuras. Num canto do quarto erguia-se a minha Madonna florentina, estreitando nos braços o seu Menino, e das paredes contemplavam o berço dois putti de Luca della Robbia e uma Santíssima Virgem, de Mino de Fiesole. Dependurada do tecto, ardia a lâmpada sagrada; e desgraçada a casa em que a luz tremesse ou se apagasse, pois era sinal de que o dono morreria antes de acabar o ano. Junto do berço estavam alguns modestos brinquedos, o que pôde encontrar-se na terra, para distrair o Menino: uma boneca calva, única sobrevivente da infância de Giovannina e Rosina; um burrito de madeira, emprestado pela filha mais velha de Elisa, e um guizo, em forma de chifre, contra o mau olhado. Num cesto debaixo da mesa dormia a gata de Elisa com os seis gatitos recém-nascidos, trazidos expressamente para a circunstância. Numa grande jarra de terracota, poisada no chão, estava um lindo arbusto de rosmaninho em flor. E sabeis porque havia rosmaninho? Porque a Madonna, quando lavou a camisinha do Menino Jesus, a pôs a secar sobre o rosmaninho.

Don Salvatore depositara o berço em seu altar e confiara o Bambino às mulheres da casa, recomendando-lhes mil vezes que velassem bem por ele e lhe dessem quanto necessitasse.

Os filhos de Elisa brincavam todo o dia no chão, para lhe fazer companhia, e às Trindades toda a gente da casa vinha ajoelhar-se diante do berço, rezando as suas orações. Giovannina deitava mais azeite na lâmpada para a noite; esperávamos um pouco que o Bambino adormecesse, e todos se iam embora em bicos de pés. Quando toda a casa estava silenciosa, subia eu ao quarto para deitar um olhar ao Bambino, antes de deitar-me. A luz da lâmpada caía sobre o berço, e eu mal o avistava em seu sono.

Pobre Menino sorridente! Ignorava que havia de chegar um dia em que todos nós, que nos ajoelhávamos diante do seu berço, o abandonaríamos; um dia em que quantos diziam amá-lo o atraiçoariam, em que mãos cruéis lhe arrancariam a coroa de oiro da fronte para a substituir por outra de espinhos, cravá-lo numa cruz, e que seria abandonado até pelo próprio Deus!

Na noite em que ele morreu, um velho sombrio passeava dum lado para o outro, neste mesmo pavimento de mármore onde eu agora estava. Levantara-se da cama, arrancado ao sono por um sonho que o perseguia. O seu rosto era tenebroso como o Céu daquela noite, e o terror brilhava-lhe no olhar. Convocou os seus astrónomos e os seus sábios, vindos do Oriente, e ordenou-lhes que lhe revelassem o significado do seu sonho, mas, antes que eles pudessem decifrar as letras de oiro no Céu, uma após outra, as estrelas vacilaram e extinguiram-se. Que podia ele temer, ele, o Soberano do Mundo? Que lhe importava a vida dum homem a ele, árbitro de milhões de vidas humanas? Quem poderia pedir-lhe contas porque um dos seus pretores, em nome do Imperador de Roma, condenara naquela noite à morte um homem inocente? E esse pretor, cujo execrado nome está ainda em nossos lábios, é mais responsável do que o seu imperial senhor, por haver firmado a sentença de morte dum inocente? Para ele, firme sustentáculo da lei e da tradição romana numa província indisciplinada, era um inocente Aquele que condenara à morte? E o judeu maldito que erra pelo Mundo em busca de perdão saberia porventura o que fazia? E o outro, Judas, o maior traidor de todos os tempos, quando traiu o Mestre com um beijo de paz, poderia fazer outra coisa? Fê-lo por vontade própria? Assim tinha que ser e assim se fez, em obediência a uma vontade maior do que a sua. Não houve nessa noite sobre o Gólgota outros condenados a padecer por um crime que não era o seu?

Inclinei-me longo tempo sobre o Menino adormecido e depois retirei-me em silêncio.

 

                       A FESTA DE SANTO ANTÓNIO

A Festa de Santo António era o mais belo dia do ano para Anacapri. Durante semanas toda a aldeia estava em movimento para preparar a comemoração solene do nosso Santo Patrono. Varriam-se as ruas, caiavam-se as casas nos lugares por onde devia passar a procissão, adornava-se a igreja com colchas de seda encarnada e tapetes; encomendava-se para Nápoles o fogo de artifício; a banda de música, o mais importante da festa, contratava-se em Torre Annunziata.

Na véspera do grande dia iniciavam-se as festas com a chegada da banda. Ainda em meio da baía já os artistas deviam começar a tocar o mais forte possível; estariam demasiadamente longe para serem ouvidos de Anacapri, mas suficientemente perto, se o vento era favorável, para irritar os ouvidos dos habitantes de Capri, em sua detestada terra, mais abaixo. Ao desembarcarem na Marina, a banda e os seus instrumentos gigantescos eram carregados em dois grandes carros e conduzidos tão longe quanto a estrada o permitia. Para o resto do caminho, forçoso era trepar as altas escadas fenícias, sem deixar de tocar um só instante. Junto do muro de San Michele, no alto das escadas, eram recebidos por uma deputação do Município. O magnífico director da banda, com o seu deslumbrante uniforme guarnecido de galões de oiro, à Murat, alçava a batuta, e a fanfarra, precedida por todos os garotos da terra, fazia a entrada solene em Anacapri, a tempo di marcia, soprando furiosamente nas trompas, clarinetes e oboés, batendo nos tambores e nos pratos, fazendo vibrar os triângulos com quanta força podiam. O concerto inaugural na Piazza, toda decorada com bandeiras e repleta de gente, durava, sem descanso, até à meia-noite. Algumas horas de profundo sono no velho quartel onde dormiram em 1808 os soldados ingleses, eram interrompidos pelo estralejar dos primeiros foguetes, anunciando o novo dia. Às quatro horas era a alegre alvorada por toda a aldeia, na fresca brisa matutina. Às cinco, a costumada missa na igreja, rezada pelo pároco, e desta vez com o concurso dos músicos em jejum. Às sete o primeiro almoço, a merenda, uma xícara de café, meio quilo de pão e queijo fresco de cabra. Às oito não cabia já uma alma na igreja, homens de um lado, mulheres do outro, com os filhos no regaço. No centro estava a banda, sobre a tribuna construída expressamente. Os doze sacerdotes de Anacapri, sentados por detrás do altar-mor, entoavam valorosamente a Missa Solemnis, de Pergolesi, confiando na Providência e no acompanhamento da banda para chegarem ao fim. Seguia-se um intermezzo musical, galope furioso executado pela fanfarra com grande entusiasmo, muito apreciado pelo público. Às dez, Missa Cantada no altar-mor, com débeis solos do pobre velho Don Antonio, trémulos de protesto e repentinos gritos de angústia do pequeno órgão, esgotado pelo trabalho de três séculos. Às onze, sermão panegírico de Santo António e de seus milagres, cada um dos quais era ilustrado e evocado por mímica especial apropriada à circunstância. Ora o orador, em êxtase, erguia as mãos para os santos nos céus, ora designava com o dedo o pavimento, para indicar as regiões subterrâneas dos condenados; agora caía de joelhos em muda oração a Santo António; mas logo se erguia de salto, prestes a precipitar-se do púlpito para lançar por terra com o punho fechado um inimigo invisível; umas vezes, em recolhido silêncio, inclinava a cabeça para escutar os divinos cantos dos anjos; outras, pálido de horror, tapava os ouvidos com as mãos para não ouvir o ranger dos dentes do Demónio e os gritos dos pecadores nos caldeirões infernais. Por fim, banhado em suor, aniquilado por duas horas de lágrimas, de soluços e maldições, com uma temperatura de 40° centígrados, caía sobre o pavimento do púlpito, soltando uma maldição terrificante contra os protestantes.

Meio-dia! Grande agitação na Piazza.

Esce la processione! Esce la processione!

Vinha à frente uma dezena de crianças, de mãos dadas, duas a duas. Umas, de curtas túnicas brancas e asas de anjo, como os putti de Rafael. Outras, completamente nuas, adornadas de pâmpanos e rosas, pareciam ter saído dum baixo-relevo grego. Depois as Figlie di Maria, belas e esbeltas raparigas, vestidas de branco e grandes véus azuis, com a medalha de prata da Madonna ao pescoço, numa fita azul. Seguiam-se as bizzocche, vestidas de negro e com véus negros, velhas e secas, que haviam permanecido fiéis ao seu primeiro amor: Jesus! Por fim a Congrega di carità, precedida da sua bandeira; compunham-na anciãos de aspecto grave com uns curiosos hábitos brancos do tempo de Savonarola.

A música! A música!

Então vinham os músicos, com os seus uniformes guarnecidos de galões de oiro do tempo dos Bourbons, em Nápoles, tocando com toda a força de seus pulmões uma polca endiabrada, a peça predilecta do Santo, pelo que percebi. Depois, rodeado de todos os padres, com os seus paramentos de gala, e saudado por mil petardos, aparecia Santo António no seu trono, com a mão estendida num gesto de bênção. O hábito estava coberto de rendas preciosas, de jóias e de ex-votos; o manto, de magnífico brocado antigo, cerrava-se no peito com um broche de safiras e rubis. Dum colar de pedras de vidro multicor que lhe rodeava o pescoço pendia um coral enorme, com a forma de um chifre, para o proteger do mau olhado.

Imediatamente depois de Santo António ia eu, de cabeça descoberta e uma tocha na mão, ao lado do alcaide - honra que me havia sido concedida com autorização especial do arcebispo de Sorrento. Seguiam-se os vereadores, aliviados por um dia de suas graves responsabilidades. Depois as pessoas gradas de Anacapri: o médico, o farmacêutico, o notário, o barbeiro, o merceeiro e o alfaiate. Por fim il popolo: marinheiros, pescadores, camponeses, seguidos pelas mulheres e filhos, a respeitosa distância. Na cauda da procissão caminhavam humildemente meia dúzia de cães, duas cabras com os cabritos e um porco ou dois, à procura dos donos. Mestres de cerimónias, especialmente escolhidos, com varas doiradas na mão, guardas de honra ao serviço do Santo, andavam incessantemente de cima para baixo, ao longo da procissão, para manter a ordem das fileiras e regular o passo. À passagem da procissão pelas ruas, lançavam-lhe das janelas flores de giesta perfumadas e cor de mel, a flor predilecta do Santo. Chamavam até às giestas Fiore di Sant’Antonio. De longe em longe, haviam estendido uma corda de uma a outra janela através da rua; e, no momento em que o Santo passava, um anjo de cartão de vivas cores batia as asas num precipitado voo ao longo da corda, com grande alegria da multidão. Diante de San Michele parava a procissão: e, depois duma reverência, o Santo era depositado com todo o respeito numa tribuna, levantada expressamente, para que descansasse um pouco. Os sacerdotes enxugavam o suor da fronte; a fanfarra continuava a tocar com grande estrondo, como fazia há duas horas, desde a saída da igreja. Santo António, do alto da sua tribuna, olhava com bondade; da minha casa as mulheres atiravam flores; o velho Pacciale tocava o sino da capela e Baldassare saudava com a bandeira que flutuava no telhado. Era para nós todos um grande dia; e sentíamo-nos orgulhosos da honra que nos davam. Os cães seguiam a cena da galeria, bem educados e correctos, como sempre, ainda que um pouco inquietos. No jardim, as tartarugas continuavam com a mesma impassibilidade meditando os seus problemas; a mangusta estava sempre muito ocupada para se ocupar dos outros. A coruja permanecia com os olhos semicerrados no seu poleiro, pensando em qualquer outra coisa. Billy, o pagão, estava encerrado na cabana e fazia um barulho infernal, gritando quanto podia, batendo com a garrafa contra a escudela de estanho, fazendo tinir a corrente, abanando as grades e usando duma linguagem horrível.

De regresso à Piazza, Santo António era saudado por uma formidável detonação de morteiros; de novo o colocavam no seu altar, a procissão desfazia-se e todos entravam em casa para comer. A fanfarra sentava-se à mesa para o banquete oferecido pelas autoridades no terraço do Hotel do Paraíso: meio quilo de macarrões por cabeça e vinho à discrição. Às quatro horas abriam-se as portas de San Michele e meia hora depois, estava no jardim toda a aldeia: ricos e pobres, homens e mulheres, crianças e recém-nascidos, aleijados, cegos e paralíticos, pois os que não podiam ir por seu pé eram levados pelos outros. Só faltavam os padres, mas não por sua vontade. Exaustos pela caminhada, estavam prostrados nas cadeiras do coro, por detrás do altar-mor, em orações ferventes a Santo António, perceptíveis, decerto, pelo Santo no seu altar, mas que não eram ouvidas pelos que deitavam um olhar à igreja deserta e silenciosa.

Uma longa fila de mesas carregadas de enormes piretti do melhor vinho de San Michele estendia-se de um extremo ao outro da galeria. O velho Pacciale, Baldassare e Mastro Nicola afadigavam-se a encher os copos, e Giovannina, Rosita e Elisa andavam em roda, oferecendo charutos aos homens, café às mulheres, bolos e bombons às crianças. A banda que, com consentimento especial das autoridades, me haviam emprestado para a tarde, não parava um momento de tocar na galeria superior. Toda a minha casa estava aberta, nada tinha fechado; todas as minhas coisas preciosas se encontravam no lugar do costume, na sua aparente desordem, por cima das mesas, nas cadeiras, pelo chão. Mais de mil pessoas passeavam livremente por toda a parte e nunca me faltou a menor coisa, nem ninguém tocou em nada. Quando davam as Trindades, terminava a recepção e todos se despediam com muitos apertos de mão, mais contentes do que nunca. Para isso existe o vinho. A banda, cada vez mais inspirada, abria a marcha a caminho da Piazza. Os doze sacerdotes, estimulados e refrescados pelas suas orações, estavam já em formação cerrada à porta da igreja. O alcaide, todas as autoridades, e as pessoas mais gradas da terra instalavam-se no terraço do Município. Os músicos, esfalfados, subiam com seus instrumentos ao coreto que para eles fora erguido especialmente. Todo o povo estava na praça, como sardinha em canastra. O director da banda alçava a batuta, e começava o concerto. Rigoleto, O Trovador, Os Huguenotes, Os Puritanos, Um Baile de Máscaras, uma variada selecção de canções napolitanas, polcas, mazurcas, minuetes e tarantelas sucediam-se sem interrupção até às onze, em que 2000 liras de foguetes, de girândolas, de morteiros, de fogos de Bengala, estalavam no ar, para maior glória de Santo António. Às doze da noite estava esgotado o programa oficial, mas não os anacaprenses, nem os músicos. Nenhum ia deitar-se; cantos, risos e música ressoavam toda a noite. Evviva la gioia! (Viva a alegria!) Evviva il santo! Evviva la musica!

A banda tinha de partir no vapor das sete da manhã. Ao amanhecer, a caminho da Marina, detinham-se por baixo das janelas de San Michele para a costumada Serenata d’Addio em minha honra. Ainda me parece estar a ver Henry James, em pijama, à janela do seu quarto, torcendo-se com riso. A banda, durante a noite, reduzira-se lamentavelmente em número e eficiência. O director delirava. Dois dos melhores oboés haviam cuspido sangue; o trombone estava herniado; o tambor deslocara a omoplata direita e o dos pratos estava surdo. Dois outros membros da banda sofreram tal emoção que tiveram de ir montados em burros para a Marina. Os sobreviventes, estendidos no meio da rua, exalavam o seu último alento na serenata da despedida, no Addio a San Michele. Reanimados com uma tigela de café, levantavam-se penosamente, e saudando amigavelmente com a mão, desciam, cambaleando, as escadas fenícias até à Marina. A festa de Santo António terminara.

 

                               A REGATA

ERA no pino do Verão, num longo e radioso dia de sol. A embaixada britânica saíra de Roma e estabelecera o seu quartel-general em Sorrento. Numa varanda do Hotel Vitória estava sentado o embaixador, com o seu boné de marinheiro, examinando atentamente o horizonte através do monóculo, à espera do mistral, o melhor amigo de quem navega à vela no Estio. A seus pés, no pequeno porto, Lady Hermione, o seu bem amado cutter, balouçava-se preso à âncora, impaciente como ele por largar.

Lorde Dufferin, com engenho e habilidade técnica maravilhosa, havia-o desenhado e equipado como um barco veloz de cruzeiro, de maneira a poder ser manobrado por um só homem. Dizia muitas vezes que atravessaria nele o Atlântico; e mostrava-se mais orgulhoso do barco que de todos os seus brilhantes êxitos diplomáticos. Passava todo o dia na embarcação e tinha o rosto queimado como o dum pescador de Sorrento. Conhecia a costa desde Civita Vecchia até à Punta Licosa tão bem como eu. Um dia desafiou-me para uma regata até Messina e bateu-me vergonhosamente, com vento em popa e mar agitado, o que lhe causou grande alegria.

- Espere para quando eu tiver a minha nova vela latina e o spinaker de seda - disse-lhe eu.

Adorava Capri e achara San Michele o sítio mais lindo que vira em sua vida, e tinha visto muitos. Conhecia pouco da larga história da ilha, mas sentia uma ansiedade infantil de aprender mais.

Eu explorava precisamente nessa época a Gruta Azul. Por duas vezes Mastro Nicola me havia retirado meio desmaiado do famoso subterrâneo que, segundo a lenda, conduzia através das entranhas da terra até ao palácio de Tibério, duzentos metros acima da planície de Damacuta, corrupção, talvez, de Domus Augusta.

Passava dias inteiros na gruta, onde lorde Dufferin vinha às vezes, na sua pequena lancha, ver-me trabalhar. Depois de um banho delicioso nas águas azuis, ficávamos sentados durante horas junto do túnel misterioso, conversando de Tibério e das orgias de Capri. Dizia eu ao embaixador que, como as outras fantasias de Suetónio, era uma fábula a passagem do subterrâneo e pretender que Tibério descia por ele à gruta para, depois de se divertir com moços e moças, os estrangular. O túnel não havia sido escavado pela mão do homem, mas pela lenta infiltração das águas do mar através da rocha. De gatas caminhei por ele até à profundidade de oitenta metros e convenci-me, com risco de vida, de que aquele túnel não levava a nenhures. Que a gruta fosse conhecida dos Romanos provam-no numerosos vestígios de alvenaria romana. Sabido que, desde então, a ilha se submergiu uns cinco metros, para entrar naqueles tempos na gruta passava-se pela enorme abóbada submersa, visível através da água transparente.

A pequena abertura por onde ele entrara com a lancha era, na origem, uma janela para a ventilação da gruta, que, naturalmente, não era azul nessa época, mas semelhante às outras grutas, tão numerosas na ilha. A asserção de Baedeker de que a Gruta Azul foi descoberta em 1826 pelo pintor alemão Kopisch não era exacta. A gruta era já conhecida no século xvii com o nome de Grotta Gradula e foi de novo descoberta em 1822 pelo pescador de Capri, Angel Ferraro, ao qual foi concedida uma pensão vitalícia por esse descobrimento. Quanto à sinistra lenda de Tibério, legada à posteridade pelos Anuais de Tácito, disse a lorde Dufferin que a história nunca cometera erro mais crasso do que o de condenar à infâmia aquele grande Imperador, pelo testemunho do seu principal acusador, «um detractor da humanidade», como lhe chamava Napoleão.

Tácito foi um escritor brilhante, mas os seus Annali são um romance histórico e não história. Deve ter acrescentado as suas vinte linhas sobre as orgias de Capri para completar o quadro do tirano-tipo da escola de retórica a que pertencia. Não é difícil descobrir a fonte, mais que suspeita, onde foi buscar aquelas repugnantes fábulas. De resto, no meu Psychological study of Tiberius demonstrei que aquelas nem sequer se referem à vida do Imperador em Capri. Que o próprio Tácito não dava crédito às orgias de Capri é evidente pela sua própria leitura, pois que não diminuem em nada a sua opinião geral sobre Tibério como grande Imperador e notável homem, «admirável carácter e tido em grande estima», para empregar as suas próprias palavras. O próprio Suetónio conta as histórias mais indecorosas, fazendo porém notar que «pode dificilmente admitir-se que se contem, mas menos ainda que se acreditem». Antes da publicação dos Annali - oitenta anos depois da morte de Tibério - não havia na história de Roma um homem de Estado com reputação mais nobre e sem mancha do que a do velho Imperador. Nenhum dos vários historiógrafos de Tibério, alguns dos quais seus contemporâneos, com a possibilidade de recolher todos os rumores das más-línguas de Roma, faz a menor alusão às orgias de Capri. Filon, o judeu piedoso e erudito, fala claramente da vida pura e simples que Calígula tinha de levar quando vinha a Capri visitar o seu pai adoptivo. Até Suetónio, o chacal, esquecendo o sábio preceito de Quintiliano, de que um mentiroso deve ter boa memória, deixa escapar que Calígula, quando queria entregar-se ao deboche em Capri, se disfarçava com uma cabeleira postiça para se furtar ao olhar severo do velho Imperador. Séneca, o flagelador do vício, e Plínio - ambos seus contemporâneos - falam da austera solidão de Tibério em Capri. É verdade que Dion Cassius faz algumas ligeiras alusões a esses indecentes rumores, mas não pode impedir-se de notar as inexplicáveis contradições em que incorrem. O próprio Juvenal, tão amador do escândalo, fala na tranquila velhice do Imperador, na sua ilha, rodeado de amigos sábios e dos seus astrónomos. Plutarco, o severo defensor da moral, fala da solidão desse digno velho durante os últimos dez anos da sua vida. Já Voltaire havia compreendido que a história das orgias de Capri era absolutamente inadmissível. Tibério tinha sessenta e oito anos quando se retirou para Capri, depois de uma existência de uma moralidade perfeita, no dizer dos seus próprios inimigos. O diagnóstico possível de qualquer sinistra demência senil fica excluído pelo facto de que todos os autores admitiram que o velho esteve na plena posse da sua saúde e do seu vigor mental até à morte, aos setenta e nove anos de idade. Demais, a loucura que corria nas veias do ramo de Juliano não existia no de Cláudio. A sua vida na ilha foi a de um velho solitário, monarca fatigado de um mundo ingrato, idealista taciturno e amargo (um hipocondríaco, diríamos talvez hoje); mas a sua magnífica inteligência e o seu sentido do humor sobreviveram à sua fé na Humanidade. Desconfiava dos seus contemporâneos e desprezava-os, e isto não é motivo para espanto, pois quase todos os homens e mulheres em quem havia confiado o traíram. Tácito cita as palavras com que, um ano antes da sua retirada para Capri, recusou a petição que lhe foi feita para lhe ser elevado um templo onde fosse adorado como um deus, à semelhança do que se fizera com Augusto. Que outro, a não ser o compilador dos Annali, o brilhante mestre do sarcasmo e da insinuação subtil, teria a audácia de citar, com ar de troça, o grave apelo do velho Imperador para um julgamento equitativo da posteridade?

«Quanto a mim, declaro-vos que não sou mais do que um mortal e que apenas cumpro os meus deveres de homem; que me basta ocupar dignamente o primeiro lugar entre vós, e o meu desejo é que tal não seja esquecido pelos que vierem depois de mim. Prestarão justiça, e mais do que justiça à minha memória, se julgarem que fui digno dos meus antepassados, cuidadoso dos vossos interesses, firme no perigo, inabalável diante dos inimigos, que não temi, ao serviço do bem público. São estes os templos que eu desejaria elevar em vossos corações, estas as mais belas estátuas e as que mais duram. Quanto aos monumentos de pedra, se o julgamento da posteridade se muda em ódio, não serão mais do que sepulcros desonrados. Assim, invoco os deuses para que me concedam até ao fim dos meus dias um coração firme e consciente dos meus deveres para com eles e para com os homens; e peço aos meus concidadãos e aliados que, quando eu deixar este Mundo, honrem a minha vida e o meu nome com a sua aprovação e me guardem na sua lembrança».

Subimos até Damacuta. O velho Imperador sabia o que fazia quando ali construiu o seu mais belo palácio; depois de San Michele, Damacuta é a mais linda vista de Capri. Disse ao embaixador que muitos dos fragmentos aqui encontrados se haviam tornado propriedade do seu colega Sir William Hamilton, embaixador da Inglaterra em Nápoles na época de Nelson, e se encontravam hoje no British Museum. Muitos outros estavam escondidos debaixo da vinha; no Verão seguinte, contava fazer escavações sérias, pois a vinha já me pertencia. Lorde Dufferin apanhou um botão ferrugento de farda entre os destroços de mosaico e de mármore de cor. Caçadores corsos! Sim, duzentos soldados corsos acamparam aqui em 1808, mas desgraçadamente o grosso da guarnição inglesa em Anacapri era formado por tropas maltesas, que se retiraram em desordem quando os Franceses atacaram o acampamento. Olhando para baixo, para os rochedos de Orico, mostrei ao embaixador o ponto onde os Franceses haviam desembarcado e escalado o rochedo escarpado, e ambos concordámos em reconhecer que fora uma façanha maravilhosa. Os Ingleses haviam-se batido com a sua habitual bravura, mas tiveram de retirar-se, protegidos pela noite, para o sítio onde é hoje San Michele, local onde o comandante, o major Hamill, irlandês como ele, morrera dos ferimentos recebidos. Repousa num canto do cemitério de Anacapri. O pequeno canhão que tiveram de abandonar, na retirada forçada para Capri, pelas escadas fenícias, ainda está no meu jardim. Ao amanhecer, os Franceses abriram fogo sobre Capri, do alto do monte Solaro, e parece quase incompreensível que pudessem ter ali subido um canhão. O comandante inglês, instalado na Casa Inglese, em Capri, não podia fazer outra coisa mais do que firmar o documento de capitulação. Ainda a tinta não secara bem no papel, quando a frota inglesa, retardada pela calma junto das ilhas Ponza, apareceu ao largo. O acto de rendição era assinado por um homem excepcionalmente pouco afortunado: o futuro carcereiro da Águia captiva numa outra ilha, Sir Hudson Lowe.

Quando, ao regressarmos a San Michele, atravessávamos a aldeia, mostrei ao embaixador uma casita rodeada dum pequeno jardim e disse-lhe que a sua proprietária era uma tia da Bella Margherita, a beldade de Anacapri. A tia havia desposado um milord inglese, que, salvo erro, era seu parente. Com efeito, o embaixador recordava-se de que um primo seu, com grande oposição da família, havia casado com uma aldeã italiana e até a levara para Inglaterra, mas não a tinha visto nunca nem sabia onde havia ido parar depois da morte do marido. Mostrava-se interessadíssimo e quis que eu lhe contasse tudo o que sabia dela, acrescentando que do marido sabia ele de sobra. Tudo o que podia dizer-lhe sabia-o eu pelo velho Don Crisóstomo, que fora seu confessor e tutor. Eu só a conhecera muito tempo depois do seu regresso de Inglaterra, já viúva e velha. Naturalmente, não sabia ler nem escrever; mas, com a vivacidade de espírito das caprenses, depressa aprendeu um pouco de inglês. De a preparar para viver em Inglaterra como esposa dum milord inglês fora encarregado Don Crisóstomo, que era um homem instruído; e deu-lhe algumas lições sobre diversos assuntos, para alargar a sua limitada esfera de conversação. A graça e as boas maneiras possuía-as ela já por direito de nascimento, como todas as raparigas de Capri. Quanto à sua beleza, a fiarmo-nos em Don Crisóstomo, que eu sempre tive por um grande conhecedor, havia sido a mais linda mulher de Capri. Como todos os esforços para a interessar no quer que fosse estranho à sua ilha ficavam sem resultado, resolveu limitar a sua instrução à história de Capri, para lhe dar, ao menos, um assunto de conversação com os seus. Escutava com gravidade as terríveis histórias sobre Tibério; como havia precipitado as suas vítimas no Salto di Timberio, arranhado o rosto dum pescador com as pinças dum caranguejo, estrangulado raparigas e rapazes na Gruta Azul. Contava-lhe como Nero, seu neto, ordenara aos bateleiros que espancassem sua própria mãe até lhe dar a morte; e como seu sobrinho Calígula havia afogado milhares de pessoas em Possuoli. Depois de tudo ouvir, disse ela, no seu dialecto inimitável: «Devia ser bem má toda essa gente! Nada mais que camorristi!».

Claro - respondeu o professor - não me ouviste dizer que Tibério estrangulou vários rapazes e raparigas na Gruta Azul? Que...

- E morreram todos?

- Certamente, há quase dois mil anos.

- Então, para que nos preocupamos agora com eles? Deixemo-los em paz - disse com o seu encantador sorriso.

E assim terminou a sua instrução.

Depois da morte do marido, voltou de novo à ilha, e a pouco e pouco foi deslizando para a vida simples dos seus antepassados, cuja linhagem era dois mil anos mais antiga do que a do seu milord inglês. Encontrámo-la sentada ao Sol, debaixo da sua pequena latada, com um rosário na mão e um gato no regaço, digna matrona romana cheia de dignidade, majestosa como a mãe dos Gracchos. Lorde Dufferin beijou-lhe a mão com a galanteria dum velho cortesão. Ela havia quase esquecido todo o seu inglês, voltara ao dialecto da sua infância, e não entendia melhor do que eu o clássico italiano do embaixador.

- Diga-lhe - disse-me Lorde Dufferin, quando nos levantámos para despedir-nos - diga-lhe da minha parte que ela é pelo menos tão lady como o seu milord inglês era gentleman.

Queria o embaixador conhecer a sobrinha dela, a Bella Margherita? Certamente, não desejava outra coisa.

A Bella Margherita recebeu-nos com seu encantador sorriso e um copo do melhor vinho do pároco, e o velho e galante senhor da melhor vontade reconheceu o seu parentesco com um ruidoso beijo na face rosada daquela.

A regata, tanto tempo esperada, devia realizar-se no domingo seguinte; um percurso triangular: Capri, Pausilipo e Sorrento, onde o vencedor receberia a taça das mãos de lady Dufferin. O meu magnífico cutter, Lady Victoria, todo de madeira de teca e aço, era o mais belo barco que a Escócia podia construir; pronto para todas as provas, seguro por todo o tempo, estando em boas mãos. Ora, se há alguma coisa que eu saiba fazer bem é governar um barco. Os nossos pequenos cutters eram gémeos e baptizados pelas duas filhas de Lorde Dufferin com os seus nomes próprios. As nossas probabilidades mais ou menos equivaliam-se. Com forte brisa e mar agitado, perderia eu, provavelmente, mas confiava na minha vela latina e no spinacker de seda para ganhar a taça, com vento ligeiro e mar calmo. As novas velas haviam chegado de Inglaterra quando eu ainda estava em Roma e foram guardadas em sítio seguro, sob a vigilância do velho Pacciale, que era o homem de mais confiança de toda a casa. Sabia bem a importância da missão que eu lhe dava e dormia com a chave debaixo da almofada, e nunca permitia a ninguém a entrada naquele santuário. Ainda que nos últimos anos se tornasse coveiro apaixonado, o seu coração continuava pertencendo ao mar, onde viveu e sofreu desde a infância como pescatore di coralli. Naqueles tempos, antes de se ter abatido sobre Capri a maldição da América, quase toda a população masculina pescava o coral na Barbaria, entre Tunes e Tripoli. Era uma profissão terrível, cheia de tribulações, de privações e até de perigos, porque muitos dentre eles não volviam mais à ilha. A Pacciale foram necessários vinte anos de labor no mar para juntar as trezentas liras indispensáveis a um homem para casar-se: cem para o barco e as redes; duzentas para a cama, duas cadeiras, um fato para o casamento; a Madonna daria o resto.

A noiva esperara anos fiando e tecendo a roupa da casa que havia de levar. Pacciale, como todos os mais, havia herdado do pai uma leira de terra; rocha desnuda, junto do mar, duzentos metros abaixo de Damacuta. Ano após ano, havia carregado a terra em cestos, às costas, até que o solo foi suficientemente profundo para plantar algumas cepas e cactos. Nunca tinha uma gota de vinho, porque os cachos eram sempre queimados pelo vento do mar. Por vezes, entrava em casa com algumas batatas novas, as primeiras da ilha, que me oferecia com grande orgulho. Todo o tempo que tinha livre o passava na sua masseria, raspando as rochas com a pesada enxada, ou sentado numa pedra, com o cachimbo de barro na boca, contemplando o mar. De quando em quando, descia eu as perigosas rochas, pelas quais uma cabra hesitaria em passar, para lhe fazer, com grande alegria sua, uma visita. A nossos pés havia uma gruta, inacessível ao mar e desconhecida hoje de quase toda a gente, escura e com enormes estalactites. A acreditar em Pacciale, a gruta fora outrora habitada por um lupo-mannaro, misterioso e terrífico animal que ainda hoje vive na imaginação dos insulares, quase tanto como o próprio Tibério. Eu sabia que o dente fóssil que havia encontrado enterrado na areia da caverna pertencia a um grande mamífero que ali se escondera para morrer, quando a ilha estava ainda unida à terra firme; e os pedaços de sílex e de fragmentos de utensílios do homem primitivo. Talvez ali tivesse vivido um deus; a gruta é aberta ao levante e Mirthus, o deus sol, foi adorado com frequência nesta ilha.

Mas não era aquele o momento para explorar a gruta. Todos os meus pensamentos estavam concentrados na próxima regata. Mandei avisar Pacciale de que depois do pequeno almoço iria examinar as minhas velas novas. O depósito das velas estava aberto, mas surpreendeu-me não encontrar ali Pacciale para me receber. Por pouco não desmaiei ao desdobrar uma a uma as velas novas. Na latina havia um enorme rasgão; o spinnacker de seda, que me deveria fazer ganhar a taça, estava quase partido em dois; a mesena estava suja e em tiras. Quando recobrei a palavra gritei: «Pacciale!». Precipitei-me fora do quarto das velas e fui encontrá-lo em pé, encostado ao muro do jardim. Furioso, ergui a mão para lhe bater; não se moveu nem proferiu uma palavra, apenas inclinou a cabeça e estendeu os braços horizontalmente contra o muro. A minha mão caiu. Sabia o que aquilo significava, pois não era a primeira vez que o via: que Pacciale sofreria tudo, mas que estava inocente. O seu gesto reproduzia - com a cabeça inclinada e os braços abertos - a crucificação de Cristo. Falei-lhe o mais amavelmente que pude, mas não respondeu nem se moveu da sua cruz de agonia. Meti a chave do depósito das velas no bolso e chamei toda a minha gente. Ninguém havia entrado no depósito das velas e ninguém podia dizer nada; mas Giovannina escondeu a cara no avental e pôs-se a chorar. Levei-a ao meu quarto e com grande trabalho consegui que falasse. Quisera poder reproduzir, ponto por ponto, a tocante história que me contou, entre soluços, a filha de Pacciale. Pouco faltou para que me pusesse também a chorar, ao recordar que havia estado quase a bater no seu velho pai.

A coisa havia sucedido dois meses antes, quando ainda estávamos em Roma. Porventura vos lembrais do primeiro de Maio de há bastantes anos, quando havia de estalar uma revolução social em todos os países da Europa, durante a qual se assaltariam os ricos e se destruiriam os seus bens malditos. Pelo menos era o que diziam os jornais; e, quanto mais pequenos, maiores calamidades anunciavam. O mais pequeno de todos era a Voce de San Genaro, que Maria Porta-Lettere levava duas vezes por semana ao pároco, na cesta do peixe, e que este fazia circular entre os intelectuais da terra: débil eco dos acontecimentos do Mundo que ressoava na paz arcádica de Anacapri. Mas desta vez não foi um ligeiro eco o que chegou aos ouvidos dos intelectuais através das colunas da Voce de San Gennaro. Era um trovão que sacudiu toda a aldeia; era o cataclismo universal predito havia tanto tempo para o primeiro de Maio. Recrutadas por il demonio, as hordas selvagens de Atila deviam pilhar os palácios dos ricos, queimar e destruir os seus bens. Seria o princípio do fim. Castigo di Dio! Castigo di Dio! A notícia espalhou-se por toda a Anacapri como um tufão de fogo. O pároco escondeu as jóias de Santo António e os vasos sagrados da igreja debaixo da cama; os ricos ocultaram quanto possuíam nas adegas. Il popolo juntou-se na Piazza, gritando para que o Santo Patrono fosse tirado do altar e levado em procissão para o proteger. Na véspera do dia fatal Pacciale foi consultar o pároco. Baldassare já ali havia estado e tinha partido tranquilizado, pois o padre assegurara-lhe que os bandidos não fariam o menor caso dos pedaços de pedra e da velha baixela do signor dottore. Baldassare faria bem deixando onde estava toda aquela roba antica. Quanto a Pacciale, responsável pelas velas, estava em condições bastante piores. Se os bandidos invadiam a ilha, teriam de chegar em barcos, e as velas seriam um despojo precioso para os homens do mar. Escondê-las na adega seria correr igualmente um grande perigo, porque aos homens do mar também agrada muito o vinho. Porque não as descer ao solitário terreno de Pacciale, nos rochedos de Damacuta? Era o sítio mais adequado; de seguro os bandidos não se arriscariam a partir a cabeça para ir buscá-las ao fundo do precipício.

Apenas anoiteceu, Pacciale, um irmão e dois companheiros de confiança, armados com pesadas matracas, arrastaram as minhas velas novas até a masseria. A noite estava tempestuosa; em breve começou a chover a torrentes e apagou-se-lhes a lanterna. Com perigo de vida, às apalpadelas, desceram a empinada rocha e à meia-noite chegaram à masseria e depositaram a carga na gruta do lupo-mannaro.

Durante todo o dia primeiro de Maio ali permaneceram, sentados sobre o fardo das velas alagadas, fazendo a guarda por turnos, cada um por sua vez de pé, à entrada da caverna. Ao anoitecer, Pacciale decidiu-se a enviar o irmão, que não estava muito disposto a isso, para fazer um reconhecimento na aldeia, com as devidas cautelas. Voltou passadas três horas para lhes dizer que não havia sinais alguns de bandidos e que tudo seguia como de costume. A praça estava cheia de gente; na igreja havia velas acesas em todos os altares e Santo António teve de sair à Piazza para receber as acções de graças de Anacapri, por ter, uma vez mais, salvo a todos do extermínio. À meia-noite, o grupo saiu rastejando da gruta e trepou à aldeia com as minhas velas empapadas. Quando Pacciale descobriu o desastre quis afogar-se, e durante muitos dias as filhas não se atreveram a perdê-lo de vista. Não tornou a ser o mesmo que era; quase nunca falava. Eu próprio já o havia notado, e várias vezes lhe perguntara o que tinha. Muito antes de que Giovannina terminasse a sua confissão, toda a minha cólera havia desaparecido, e procurei Pacciale por toda a aldeia para lho dizer. Fui encontrá-lo na sua masseria, sentado na pedra habitual, com os olhos perdidos no mar, como era seu costume. Disse-lhe que me envergonhava de ter levantado a mão para lhe bater. Que a culpa de tudo a tinha o padre, e que não me importava com as velas novas, pois as velhas ainda estavam excelentes. Contava partir no dia seguinte para um longo cruzeiro, e ele ia comigo e esqueceríamos tudo. Bem sabia que nunca me agradara a sua profissão de coveiro; valia mais ceder o lugar ao irmão e voltar ao mar. A partir desse momento, nomeava-o meu primeiro marujo, responsável pelo cutter. Caetano havia-se emborrachado por duas vezes na Calábria e esteve para nos atirar ao fundo; já havia resolvido despedi-lo.

Quando voltámos a casa, fiz-lhe pôr a camisola nova recém-chegada de Inglaterra e que tinha no peito, em grandes letras vermelhas, LADY VICTORIA, R. C. Y. C. Nunca mais a tirou; com ela viveu e com ela morreu. Quando encontrei Pacciale pela primeira vez já ele era velho; não sei a idade que teria, não o sabia ele, nem as filhas, ninguém. Em vão tentei saber a data do seu nascimento no Registo Civil; fora esquecido desde que nasceu; mas eu jamais o esquecerei. Recordá-lo-ei sempre como o homem mais leal, mais honrado, e o melhor coração que encontrei em minha vida, em qualquer país e posição social; doce como uma criança. Contaram-me os filhos que jamais lhe ouviram uma palavra mais alta, ou um nome feio, dirigido a eles ou à mãe. Também era bom para os animais; trazia sempre os bolsos cheios de migalhas de pão, que deitava aos passarinhos na sua vinha, e era o único homem da ilha que nunca havia matado um pássaro nem batido num burro. Um criado velho e dedicado apaga o nome de amo.

Tornara-se meu amigo e a honra, neste caso, pertencia-me; era bem melhor homem que eu. Ainda que pertencente a uma classe social diferente da minha, e que eu quase desconhecia, compreendíamo-nos perfeitamente. Durante os longos dias e noites que estivemos sozinhos no mar ensinou-me muitas coisas que eu nunca havia lido nos livros nem ouvido a outros homens. Era de poucas palavras; havia muito que o mar lhe ensinara o silêncio. Eram limitados os seus pensamentos, e tanto melhor para ele. A sua linguagem estava impregnada de poesia e de comparações duma simplicidade arcaica puramente grega. Gregas também eram muitas das suas palavras; vinham-lhe ainda do tempo em que navegara ao longo desta costa, fazendo parte da equipagem da nave de Ulisses. Quando estávamos em casa, continuava a sua vida solitária e habitual, trabalhando no meu jardim ou em baixo, na sua querida masseria, ao pé do mar. Não me agradavam nada aquelas expedições acima e abaixo, pelas rochas escarpadas; parecia-me que as suas artérias se iam tornando duras e muitas vezes chegava ao fim daquela ascensão esfalfado. Afora isto, tinha sempre o mesmo aspecto, nunca se queixava de nada, comia os macarrões com o seu habitual apetite e estava a pé desde a alva até ao anoitecer. Um dia, de repente, não quis comer. Tentámo-lo com toda a espécie de coisas, mas disse que não. Admitiu que se sentia un poco stanco, um pouco fatigado, e pareceria muito satisfeito por estar sentado dois dias debaixo da latada, olhando o mar ao longe. Depois, quis ir à sua masseria, e só a muito custo consegui que se deixasse estar ao pé de nós. Não creio que ele próprio soubesse porque queria ir lá abaixo, mas eu sabia-o bem. Era o instinto do homem primitivo que o impelia a esconder-se dos seus semelhantes, a estender-se por detrás dum rochedo para morrer, numa moita, numa gruta onde, há muitos milénios, outros homens primitivos se deitaram também para morrer. Pelo meio-dia, disse que lhe apetecia deitar-se um bocado, ele, que não havia ficado na cama um só dia da sua vida. Perguntei-lhe muitas vezes de tarde como se sentia; respondia-me que estava muito bem e agradecia-me. Ao entardecer mandei que lhe pusessem a cama junto da janela, donde pudesse ver o pôr do Sol no mar. Quando voltei, depois das Trindades, todo o pessoal, o irmão e os companheiros estavam sentados à sua volta, no quarto. Ninguém os havia chamado; eu próprio não sabia que o seu fim estava tão próximo. Não falavam nem rezavam; ali permaneceram sentados e imóveis toda a noite. Segundo o costume, ninguém se aproximava do moribundo. Pacciale estava estendido na sua cama, perfeitamente imóvel e tranquilo, com os olhos voltados para o mar. Tudo era simples e solene, como devia ser, sempre que uma vida se está apagando. Chegou o sacerdote com os Últimos Sacramentos. Disseram ao velho Pacciale que confessasse os seus pecados e pedisse deles perdão. Disse que sim com a cabeça e beijou o crucifixo. O padre deu-lhe a absolvição. Deus Omnipotente aprovou com um sorriso e disse que o velho Pacciale era benvindo ao Paraíso. Pensava eu que já para ali partira, quando de repente ergueu a mão e me acariciou o rosto com doçura, quase com timidez:

- Siete buono come il mare - murmurou.

Bom como o mar! - Não escrevo estas palavras com orgulho, mas maravilhado. Donde vinham estas palavras? Certamente de muito longe: eram como o eco duma idade de oiro, esquecida há muito, quando Pan vivia ainda e as árvores da selva podiam falar, e as vagas do mar cantar, e os homens escutar e compreender.

 

                         O PRINCÍPIO DO FIM

ESTIVE um ano inteiro longe de San Michele; quanto tempo inutilizado! Voltei tendo perdido um dos olhos; escusado será dizer mais nada. Foi, certamente, na previsão de tal eventualidade que eu nasci com dois olhos. Sou agora um homem diferente. Parece-me que vejo o Universo, com o único olho que me resta, sob um ângulo diverso. Já não vejo o que é feio e sórdido, mas só o que é belo, doce e puro. Até os homens e as mulheres que me rodeiam não me parecem os mesmos que eram dantes. Por uma curiosa ilusão de óptica, não os vejo tais como são, mas como deveriam ser, tais como teriam querido ser, se houvessem podido. Ainda posso ver, com o meu olho cego, boa quantidade de imbecis pavonearem-se à minha roda; mas já não me irritam os nervos como outrora; o seu palavrório deixa-me indiferente; deixá-los falar. Por agora não posso ir mais longe; temo que, para chegar a amar os meus semelhantes, me seja necessário perder o outro olho também. Não posso perdoar-lhes a sua crueldade com os animais. Penso que se opera no meu cérebro uma espécie de evolução retrospectiva que me afasta cada vez mais dos outros homens e me acerca cada vez mais da Madre Natureza e dos animais.

Todos estes homens e mulheres que me rodeiam me parecem contar muito menos no Mundo do que outrora. Parece-me ter já perdido demasiado tempo com eles, e que podia prescindir deles como eles de mim. Sei muito bem que já não lhes sou necessário. Vale mais despedir-me à francesa, antes que me mandem embora; tenho ainda muitas coisas que fazer e talvez me não sobre o tempo. A minha vagabundagem pelo Mundo em busca da felicidade terminou; já não sou um médico da moda; a minha vida no mar acabou também. Aqui me vou instalar e tratarei de me contentar com o que tenho. Mas ser-me-á ao menos permitido continuar em San Michele? Toda a baía de Nápoles se estende a meus pés, fulgurante como um espelho; as colunas da latada, as galerias e a capela flamejam na luz. Que será de mim, se não posso suportar este deslumbramento? Renunciei a ler e a escrever e pus-me a cantar; quando tudo ia bem, não cantava. Estou aprendendo a escrever à máquina, passatempo útil e agradável, segundo me dizem, para um solitário que só tem um olho. Cada martelito da máquina bate ao mesmo tempo no papel e no meu crânio, esmagando todos os pensamentos à medida que se aventuram a surgir-me no cérebro. Também pensar nunca foi o meu forte, e parece-me que me saem melhor as coisas quando prescindo disso. Havia um largo caminho que levava o meu cérebro à minha caneta. Todos os meus pensamentos o percorriam desde que comecei a entender o alfabeto. Não é de admirar que se percam agora neste labirinto americano de rodas e de engrenagens! Entre parêntesis, convirá advertir o leitor de que só tomo a responsabilidade do que escrevi com a minha própria mão e não o que elaborei com a colaboração da Corona Typewriter Company. Tinha curiosidade de saber qual prefere o leitor.

Mas se algum dia chego a saber cavalgar este turbulento Pégaso, hei-de cantar uma humilde canção ao meu bem amado Schubert, o maior cantor de todos os tempos, para lhe agradecer quanto lhe devo. Devo-lhe tudo. Quando estive deitado, semanas e semanas, na obscuridade, com poucas esperanças de sair dela um dia, trauteava para mim só as suas melodias, uma após outra, como a criança que vai assobiando ao atravessar escura selva, para crer que não tem medo. Schubert tinha dezanove anos quando compôs a música para o Erlkoenig, de Goethe, e enviou-lha com uma humilde dedicatória. Nunca perdoarei ao maior poeta dos tempos modernos o não ter dirigido uma palavra de agradecimento ao homem que imortalizou o seu poema O Rei dos Amieiros, quando tinha o tempo necessário para escrever cartas a Zalter, agradecendo-lhe a sua música medíocre. O gosto musical de Goethe era tão mau como o seu gosto artístico; passou um ano em Itália sem compreender nada de arte gótica; a severa beleza dos primitivos era-lhe inacessível; tinha por ideal Carlo Dolce e Guido Reni. Até as obras-primas da arte grega o deixavam indiferente. A sua predilecção ia para o Apoio de Belvedere. Schubert não viu nunca o mar, mas nenhum compositor, nenhum pintor nem poeta algum, salvo Homero, nos fez compreender como ele o seu calmo esplendor, o seu mistério e as suas cóleras. Nunca viu o Nilo; e, no entanto, a abertura do seu maravilhoso Memnon poderia ressoar no templo de Luxor. A arte e a literatura helénicas eram-lhe desconhecidas, a não ser o pouco que lhe podia ter dito o seu amigo Mayerhofer, e o seu Die Götter Griechenlands, o seu Prometheus, a sua Ganymede e o Fragment aus Aeschylus são obras-primas da idade de oiro da Hélade. Nunca foi amado duma mulher, e, apesar disso, nenhum grito de paixão mais desgarrador do que o seu Gretchen am Spinnrade, nenhuma resignação mais comovente do que a sua Mignon, e jamais se cantou mais doce canção de amor que a sua Standchen. Tinha trinta e dois anos quando morreu na maior miséria, como tinha vivido. Aquele que havia escrito An die Musik nem sequer possuía um piano. Depois da morte todos os seus bens terrestres, os fatos, os poucos livros e a cama, foram vendidos em hasta pública por sessenta e três florins. Numa maleta velha, debaixo da cama, foram encontradas mais umas vinte canções imortais, que valiam bem mais do que todo o oiro dos Rothschild da sua Viena, onde viveu e morreu.

Voltou de novo a Primavera. O ar está impregnado dela. As giestas estão em flor, abrem-se os mirtos, abrolham as vinhas, por toda a parte há flores. As rosas e as madressilvas trepam pelos fustes dos ciprestes e as colunas da galeria. Anémonas, jacintos, violetas e orquídeas surgem da erva perfumada. Tufos de campanula gracilis e de lithospermum, dum azul profundo como o da Gruta Azul, brotam da própria rocha. As lagartixas perseguem-se por entre a hera. As tartarugas correm e cantam. Não sabiam que as tartarugas cantavam? A mangusta está mais agitada do que nunca. A coruja de Minerva bate as asas como para voar à procura dum amigo na Campina Romana. Barbarrossa, o grande cão de Maremma, desapareceu por motivos particulares; e até o meu velho Tappio dá a impressão de que não lhe desgostaria uma aventura na Lapónia. Billy anda acima e abaixo na sua figueira, com os olhos brilhantes e o ar dum Tenório disposto a tudo. Giovannina tem grandes conversas junto do muro do jardim com o seu bronzeado namorado; nenhum mal nisso, pois hão-de casar, passado o Santo António. A montanha sagrada, por cima de San Michele, está cheia de aves, em viagem de regresso aos seus países, para fazerem os ninhos e criarem os filhos. Que alegria para mim ao ver que podem descansar em paz! Ontem apanhei uma pobre cotovia, de tal modo exausta pela viagem sobre o mar, que nem sequer tentou voar; permaneceu tranquila na palma da minha mão, como se compreendera que era a mão dum amigo, talvez até dum compatriota. Perguntei-lhe se queria cantar-me uma canção antes de partir, que nenhum outro canto de ave me alegrava como o seu. Respondeu-me que não tinha tempo a perder, que devia apressar-se a regressar à Suécia para anunciar a Primavera.

Há mais de uma semana que as finas notas de um verdelhão doirado ressoam no meu jardim. Noutro dia apercebi a esposa, que se escondia num loureiro. Hoje vi o ninho, uma maravilha de arquitectura de ave. Há também um grande bater de asas e um doce murmúrio de vozes de aves no frondoso rosmaninho junto da capela. Faço-me desentendido, mas estou certo de que há por ali namoro e pergunto a mim próprio que pássaro poderá ser. Ontem à noite foi-me revelado o segredo; no momento em que ia deitar-me, um rouxinol pôs-se a cantar debaixo da minha janela a Serenata de Schubert:

Leise flehen meine Lieder

Durch die Nacht zu dir

In den stillen Hain hernieder

Liebchen, komm zu mir.

- Que linda rapariga está agora a Peppinella! - pensava ao adormecer. A última vez que a vi ainda era uma criança e está já desabrochada. Pergunto a mim próprio se Peppinella...

 

                                   NA VELHA TORRE

A história de San Michele acaba aqui bruscamente, precisamente no momento em que estava para começar, fragmento informe privado de sentido. Acaba com o bater de asas e o trinar das aves, numa atmosfera perfumada de Primavera. Prouvera a Deus que a história desta minha malograda vida pudesse terminar com o canto dos pássaros debaixo das minhas janelas, num Céu deslumbrante de luz. Penso tanto na Morte nestes últimos tempos! Nem sei por quê. O jardim está ainda cheio de flores; as borboletas e abelhas volteiam ainda à minha roda; as lagartixas ainda gozam o Sol por entre a hera; a terra está ainda fremente da vida de todos os seres. Ontem ainda ouvi cantar uma cotovia atrasada debaixo da minha janela. Porque hei-de pensar na Morte? Deus, em Sua misericórdia, tornou a Morte invisível para o homem. Sabemos que está junto de nós, como a nossa sombra, que nunca nos deixa. E, no entanto, não a vemos, e quase nunca pensamos nela. O mais estranho é que, quanto mais nos aproximamos do túmulo, mais a Morte se afasta do nosso pensamento. Na verdade era preciso um Deus para fazer semelhante milagre! Os velhos falam raras vezes na Morte; os seus olhos sem brilho parecem recusar-se a ver mais do que o passado e o presente. Pouco a pouco, à medida que a memória enfraquece, o passado torna-se cada vez mais impreciso, e vivem quase unicamente do presente. E eis a razão por que, se a sua existência é isenta de sofrimentos físicos, como o quis a Natureza, as pessoas idosas são menos infelizes do que os novos podem pensar.

Sabemos que havemos de morrer; de facto é a única coisa que temos certeza de quanto nos aguarda. Tudo o mais são apenas suposições e muitas vezes erradas. Como crianças perdidas numa floresta, andamos às apalpadelas no caminho da vida, na feliz ignorância do que nos sucederá amanhã, das desgraças que teremos de afrontar, as aventuras mais ou menos terríveis por que temos de passar, até à mais terrífica de todas, a Aventura da Morte. De vez em quando, em nossa perturbação, arriscamo-nos a fazer uma pergunta tímida ao destino, mas ficamos sem resposta, porque as estrelas estão muito longe. Quanto mais cedo reconhecermos que a nossa sorte depende de nós próprios, e não das estrelas, melhor será para nós. A felicidade não podemos encontrá-la senão em nós; tempo perdido será pedi-la aos outros: raros serão os que tenham de sobra para dar. A tristeza devemos suportá-la sozinhos; não é justo tentar descarregá-la sobre os outros, homens ou mulheres. Sozinhos devemos combater e ferir duramente; para combater nascemos. A paz virá um dia para todos; paz sem desonra até para o vencido, se resistiu o mais que pôde até ao fim.

Para mim a batalha está terminada e perdida. Fui expulso de San Michele, a obra de toda a minha vida. Construí-o pedra a pedra, com as minhas próprias mãos, com o suor do meu rosto; construí-o de joelhos, como um santuário ao Sol, e ali queria buscar a sabedoria e a luz daquele glorioso Deus que tenho adorado toda a vida. Muitas vezes o fogo que me queimava os olhos me advertira de que não era digno de ali viver, que o meu lugar era na sombra, mas não fiz caso das suas advertências. Semelhante aos cavalos que voltam à cavalariça em chamas para nela morrer, Verão após Verão, voltei à luz ardente de San Michele.

Cuidado com a luz! Cuidado com a luz!

Enfim, aceitei o meu destino; sou já muito velho para lutar contra um Deus. Bati em retirada para a minha fortaleza na velha torre, onde conto aguentar-me até ao fim. Dante vivia ainda quando os monges começaram a construir a Torre di Materita, conjuntamente mosteiro e fortaleza sólida como a rocha em que assenta. Nessun maggior dolore che reccordarsi del tempo felice nella miseria! Quantas vezes o eco deste seu grito amargo ressoou nestas paredes, depois que aqui estou! Mas estaria na razão o divino Florentino? Será certo não haver maior dor do que a de recordar na desgraça a felicidade perdida? Por minha parte, não penso assim. É com alegria, e não com sofrimento, que os meus pensamentos voltam a San Michele, onde vivi os anos mais felizes da minha vida. Mas é certo que não quero ali voltar. Sinto-me um intruso numa terra sagrada, consagrada a um passado que não pode voltar; então o Mundo era jovem e o Sol meu amigo.

É-me grato errar nesta mórbida luz, sob as oliveiras da Materita. É bom sentar-me a sonhar na velha torre; e é tudo, quase, que posso fazer presentemente. A torre olha ao Ocidente, onde o Sol se põe. Em breve ele desaparecerá no mar, depois vem o crepúsculo e a noite.

Foi um belo dia.

 

O último raio de luz doirada desliza pela janela gótica e põe-se a errar na grande torre, desde os missais iluminados e o crucifixo de prata do século xIII, dependurado na parede, às deliciosas Tanagras e aos vasos venezianos na mesa do refeitório, das ninfas coroadas de flores e das bacantes dançando, até à flauta de Pan do baixo-relevo grego e ao pálido rosto, sobre fundo de oiro, de meu bem amado S. Francisco de Assis, com Santa Clara ao lado, com um lírio na mão. Mas eis que uma auréola de oiro circunda o plácido rosto da Madonna florentina, e Arthémis Laphria, a austera deusa de mármore, com a rápida flecha da morte na sua aljava, sai da penumbra. Agora, um disco solar radioso coroa de novo a cabeça mutilada de Akhanaten, o sonhador real das margens do Nilo, o Filho do Sol. A seu lado está Osiris, o juiz da alma humana, e Horus, com a cabeça de falcão; a misteriosa Isis e Nephtys, sua irmã, com Anubis, o guarda da tumba, aos seus pés.

A luz vai esmorecendo; aproxima-se a noite.

- Deus do dia, doador da luz: não podes ficar comigo um pouco mais? É tão grande a noite para o pensamento que não ousa sonhar com o nascer do Sol! Tão sombria a noite para os olhos que não podem ver as estrelas! Não podes conceder-me uns segundos mais da tua radiosa eternidade para contemplar o teu reino maravilhoso? O mar bem amado, as nuvens errantes, as gloriosas montanhas, os sussurrantes regatos, as amigas árvores, as flores entre a erva, as aves e os animais, meus irmãos e irmãs nos céus, nas florestas e nos campos? Não podes ao menos deixar-me na mão algumas flores silvestres para aquecer o meu coração? Não podes deixar-me algumas estrelas do teu céu para me ensinarem o caminho?

Se não devo ver mais as feições dos homens e das mulheres que me rodeiam, não podes conceder-me ao menos um olhar fugitivo sobre um rosto de criança ou de animal amigo? Perscrutei durante muito tempo o rosto dos homens e mulheres, conheço-os bem, pouco mais podem ensinar-me. É uma leitura monótona, comparada com o que li no rosto misterioso da Natureza, nossa Mãe, Bíblia de Deus. Misericordiosa e velha Mãe, que afastaste tantos pensamentos sombrios da minha fronte abrasada com a doce carícia da tua mão enrugada: não me deixes só nas trevas. Tenho medo da escuridão; fica mais um pouco comigo, conta-me ainda alguns dos teus maravilhosos contos de fadas, enquanto deitas o teu inquieto menino para dormir o sono da longa noite!

- Facho do Mundo, ai de mim! És um Deus, e jamais oração de mortal atingiu o teu Céu. Como posso eu, o verme, esperar piedade de ti, Deus Sol impassível, de ti, que abandonaste o grande Faraó Akhanaten, cujo hino imortal ao Sol ressoou no vale do Nilo quinhentos anos antes que Homero cantasse:

«Quando te ergues, toda a Terra delira de alegria.

E os homens dizem: Ver-Te é a Vida, não Te ver mais é a Morte.

O Ocidente e o Oriente cantam os Teus louvores. Quando apareces, vivem. Quando Te escondes, morrem».

E no entanto, com teus brilhantes olhos, viste sem piedade os deuses da antiguidade precipitarem no Nilo o templo do maior dos teus adoradores, arrancar da sua fronte o Disco Solar, do seu peito o abutre real e apagar o seu nome odiado das folhas de oiro que envolviam o seu frágil corpo, condenando a sua alma a errar nas trevas sem nome e por toda a eternidade...

Muito tempo depois que os deuses do Nilo, os do Olimpo e os do Walhalla desapareceram no pó, um outro dos teus adoradores, S. Francisco de Assis, o doce cantor do Il Canto del Sole, levantou os braços ao teu Céu, Deus imortal, tendo nos lábios a mesma oração que eu hoje te rezo: que não roubasses a tua bendita luz de seus pobres olhos, consumidos pelas vigílias e as lágrimas. Atendendo às súplicas dos Irmãos, o Santo fez a viagem de Rieti para consultar um médico dos olhos famoso e submeteu-se sem medo à operação que ele lhe aconselhou. Quando o cirurgião pôs os ferros a aquecer, S. Francisco falou ao fogo, como a um amigo: «Meu irmão fogo, antes que toda outra coisa, o mais Santo te criou a ti, cheio de graça, de poder, magnífico e eficaz. Sê misericordioso comigo nesta hora! Imploro o Senhor que te criou, para que suavize por mim o teu ardor e eu possa suportar pacientemente que tu me queimes!».

Quando terminou a oração fez o sinal da cruz sobre o ferro aquecido ao rubro e conservou-se firme, enquanto o cirurgião lho mergulhava na carne delicada e o cautério deixava o sinal desde a orelha até à sobrancelha.

«Meu irmão médico - disse S. Francisco ao doutor - se não ficou bem queimado, torna a fazê-lo outra vez». E o cirurgião, admirado de tão prodigiosa força de alma em carne tão débil, exclamou, maravilhado: «Em verdade vos digo, meus irmãos, que vi hoje coisas extraordinárias».

Mas aí! o mais santo dos homens rezou em vão e sofreu em vão. Abandonaste Il Poverello, como havias abandonado o grande Faraó. Quando, no regresso, os seus fiéis irmãos depuseram a maca (la lettiga) com sua frágil carga ao pé da colina, S. Francisco não pôde ver a sua Assis bem amada enquanto levantava os braços e a abençoava uma última vez.

E sendo assim, como posso eu, pecador, o mais humilde dos teus adoradores, esperar de ti piedade, impassível Senhor da Vida? Como me atrevo ainda a suplicar-te, a ti que já me concedeste, com tuas mãos generosas, tantos bens preciosos! Deste-me olhos para brilharem de alegria e se encherem de lágrimas; um coração para palpitar de desejo e sangrar de piedade; deste-me o sono e a esperança. Julguei que tudo me havias dado, na verdade. Enganei-me; era apenas um empréstimo e agora queres que te devolva tudo, para que o entregues a outro que, por sua vez, surgirá desta mesma eternidade, onde eu vou desaparecer. Deus da Luz: seja feita a Tua vontade! Deus o deu, Deus o tirou; que o nome do Senhor seja louvado!

 

No sino do campanário davam as Trindades. Uma ligeira brisa sussurrava entre os ciprestes, diante da minha janela, onde os pássaros gorjeavam antes de adormecer. Calava-se a pouco e pouco a voz do mar e o bendito silêncio da noite descia sobre a velha torre.

Deixei-me ficar sentado na minha cadeira de Savonarola, cansado e aspirando ao repouso. Wolf dormia a meus pés, havia já alguns dias e noites que mal se apartava de mim. De vez em quando abria os olhos e dirigia-me um tal olhar que quase molhava o meu de lágrimas. Por vezes, erguia-se e vinha poisar a enorme cabeça nos meus joelhos. Saberia ele o que eu sabia? Compreenderia, como eu, que a hora da separação se aproximava? Acariciava-lhe em silêncio a cabeça e pela primeira vez não sabia que dizer-lhe. Como explicar-lhe o grande mistério que eu não podia explicar a mim próprio?

- Wolf: vou partir para uma longa viagem, para uma terra longínqua. Desta vez não te posso levar, meu amigo. Tens de ficar aqui, onde vivemos juntos tanto tempo, compartindo penas e alegrias. Não deves chorar-me, deves esquecer-me, como todos os outros me esquecerão, porque é essa a lei da vida. Não te inquietes; eu estarei bem e tu também. Tudo o que podia ser feito pelo teu bem-estar se fez. Continuarás vivendo nos lugares que te são familiares, onde gente amiga cuidará de ti com a ternura com que eu cuidei. Dar-te-ão o teu jantar abundante todos os dias, quando os sinos tocarem mezzogiorno, e os teus ossos suculentos, duas vezes por semana, como dantes. O grande jardim onde te divertias comigo continua sendo teu, e se te esqueceres da lei e te puseres a perseguir um gato por entre as oliveiras, continuarei, donde estiver, a seguir a caçada com o meu olho cego e a fechar o bom, como eu fazia outrora, em nome da nossa amizade. Depois, quando os teus membros se tornarem rígidos e os teus olhos se embaciarem, repousarás para sempre junto da antiga coluna de mármore, no bosque de ciprestes, contra a velha torre, ao pé dos teus camaradas que te precederam. E, afinal de contas, quem sabe se não tornaremos a ver-nos? Grandes ou pequenas, as nossas probabilidades são idênticas.

- Não te vás embora; fica comigo ou leva-me contigo - imploravam os olhos fiéis.

- Vou para um país de que nada conheço. Não sei o que ali me espera e menos o que te aconteceria se me acompanhasses. Tenho lido coisas estranhas sobre essa terra, mas são apenas contos, pois nenhum dos que para ali foram voltou para nos dizer o que lá viu. Um único homem o poderia ter feito, mas era Filho de Deus e voltou para seu Pai com os lábios selados num silêncio impenetrável.

Quando me inclinava para lhe dar o beijo da despedida, um terror súbito assomou aos seus olhos, recuou espantado e arrastou-se para o seu esconderijo, debaixo da mesa do refeitório. Chamei-o, mas em vão. Sabia o que isso significava. Já o havia visto. Pensava que ainda me restariam um ou dois dias de vida. Levantei-me e tentei ir à janela para aspirar um pouco de ar, mas os membros recusaram-se a obedecer-me e caí na cadeira. Percorri com o olhar a velha torre. Tudo estava escuro e silencioso, mas pareceu-me ouvir Artémis, a deusa austera, tirar a rápida flecha da sua aljava, pronta a levantar o arco. Mão invisível tocou-me num ombro. Um estremecimento percorreu-me todo o corpo e pensei desmaiar, mas não senti dor alguma e a cabeça conservava-se lúcida.

- Morte: sê bem-vinda! Ouvi o galope do teu negro corcel na noite; ganhaste a partida e os meus olhos podem ainda ver o teu sombrio rosto inclinado sobre mim. Não és uma desconhecida; quantas vezes nos temos encontrado desde aquela época em que estávamos lado a lado junto das camas da sala Santa Clara! Então tratava-te eu de verdugo cruel que se alegrava com a lenta tortura da vítima. Não conhecia então a Vida, e também hoje a não conheço ainda. Mas sei agora que de vós duas - Morte e Vida - és tu a mais misericordiosa e que o que roubas com uma das mãos voltas a dar com a outra; sei agora que não eras tu, mas a Vida, quem enchia de terror aqueles olhos dilatados, distendia os músculos dos peitos opressos, num último sopro, num último minuto de agonia.

«Quanto a mim, não lutarei hoje contigo. Se tivesses vindo quando o meu sangue era moço, o caso seria diferente. Teria lutado como um bom guerreiro, com todas as minhas forças, ter-te-ia feito frente. Agora estou cansado; os meus olhos perderam o brilho, os meus membros as forças e o meu coração está exausto. Só me resta a mente, e esta diz-me que é inútil lutar. Ficarei, pois, tranquilo, na minha cadeira de Savonarola e deixar-te-ei fazer o que quiseres. Tenho curiosidade de ver como procedes; sempre me interessei pela Fisiologia. Mais vale que te advirta de que sou de rija têmpera; terás de ferir fundo ou arriscar-te-ás, uma vez mais, a falhar o golpe, como aconteceu de outras vezes, se não me engano. Espero que não me guardes rancor pelo passado. Ai de mim! Temo ter-te dado bastante que fazer na época da Avenida de Villiers. Perdoa, não sou tão valente como pretendo ser; se quiseres dar-me algumas gotas do teu suporífero eterno, antes de te pores à obra, ficar-te-ei agradecido.

- Sempre assim procedo, e tu devias sabê-lo, pois bastas vezes me viste no meu ofício. Queres um padre? Tens ainda tempo. Quando me vêem chegar, sempre mandam buscar o padre.

- É inútil; nada poderá fazer por mim agora. É demasiado tarde para me arrepender e cedo para condenar-me; de uma forma ou de outra, suponho que isso pouco te interessa.

- Tanto me dá. Bons ou maus, todos os homens valem para mim o mesmo.

- É inútil chamar um sacerdote. Dir-me-á apenas que nasci mau, que os meus pensamentos e os meus actos estão manchados pelo pecado, que devo arrepender-me de tudo e renegar tudo. De bem poucas coisas me arrependo e não renego nada. Vivi segundo o meu instinto, e creio que o meu instinto era são. Bastantes vezes me perdi, quando tentei seguir a razão. Era a minha razão que se enganava e por isso fui punido. Quisera agradecer aos que foram meus amigos. Inimigos tive poucos, a maior parte eram médicos, que de resto não me fizeram mal, pois apesar de tudo segui o meu caminho. Quisera pedir perdão àqueles a quem fiz sofrer. Nada mais; o resto só a Deus e a mim importa, não ao padre, que não aceito por meu juiz.

- Não me agradam os vossos padres. Foram eles que ensinaram os homens a temer-me com as suas ameaças da eternidade e das chamas do Inferno. Foram eles que arrancaram as asas dos meus ombros, desfiguraram o meu rosto agradável e fizeram de mim um esqueleto horrível, errando de porta em porta, com a foice na mão, como um ladrão nocturno, dançando a dança macabra nos frescos dos seus claustros, de mãos dadas com santos e condenados. É-me indiferente o seu Paraíso e o seu Inferno! Sou uma Lei Natural.

- Ouvi cantar um verdelhão no jardim; e, como o Sol se punha, uma pequena cotovia veio gorjear para mim debaixo da minha janela. Voltarei ainda a ouvi-la? - Sim, onde há anjos há aves. - Quisera que uma voz amiga me relesse uma vez mais o

Phedon.

- A voz era imortal, as palavras são imortais e tornarás a

ouvi-las.

- Ouvirei também ainda o Requiem, de Mozart, o meu Schubert querido e os titânicos acordes de Beethoven?

- O que ouviste era apenas um eco do Céu.

- Estou preparado. Fere, amiga!

- Não, vou adormecer-te.

- Despertarei?

A minha pergunta ficou sem resposta.

- Sonharei?

- Sim, tudo é sonho.

- Quem és, formoso mancebo? És tu Hypnos, o anjo do sono?

Estava em pé, junto de mim, uma coroa de flores nos cabelos encaracolados, a fronte carregada de sonhos, belo como o génio do Amor.

- Sou seu irmão, nascido da mesma mãe, a Noite! Thanatos é o meu nome. Sou o anjo da Morte. A tua vida extingue-se com a chama desta tocha que apago aos pés.

Sonhei que via um velho caminhando penosamente por uma estrada deserta. Por vezes erguia os olhos como para procurar alguém que ensinasse o caminho. Outras, caía de joelhos, como se lhe faltassem as forças para ir mais longe. Já os campos, as florestas, os rios e os mares se estendiam a seus pés, e não tardou que as montanhas toucadas de neve desaparecessem também na neblina da terra, que se esfumava. E o seu caminho subia, subia sempre, cada vez mais alto. Nuvens, carregadas de tempestade, ergueram-no em seus potentes ombros e arrebataram-no com rapidez vertiginosa através do infinito; as estrelas chamavam-no cada vez para mais longe, para um mundo onde não há noite nem morte. Encontrou-se por fim às portas do Céu, seladas à rocha diamantina por gonzos de oiro. As portas estavam fechadas. Foi uma eternidade, um dia, ou um minuto, o tempo que permaneceu ajoelhado no umbral, à espera, contra toda a esperança de poder entrar? De pronto, movidas por mãos invisíveis, as pesadas portas abriram-se completamente, para deixar passar uma forma flutuante, com asas de anjo e o rosto duma criança adormecida. O ancião pôs-se de pé e, com a audácia do desespero, transpôs furtivamente o umbral no momento em que as portas voltavam a fechar-se.

- Quem és, intruso audicioso?

Uma figura alta, envolta num manto branco e com umas chaves de oiro na mão, ergueu-se na minha frente.

- Santíssimo S. Pedro, guarda das portas do Céu: deixa-me ficar!

  1. Pedro deitou um olhar rápido sobre as minhas cartas de recomendação, magras referências da minha vida terrestre.

- O caso parece mau - murmurou S. Pedro - muito mau. Como chegaste até aqui? Estou certo de que deve haver algum engano...

Parou bruscamente, vendo um pequeno anjo mensageiro poisar rapidamente diante de nós. Dobrando as asas purpúreas, compunha a curta túnica de pétalas de rosa, toda brilhante do rocio matinal. As pernas estavam nuas e eram da cor das pétalas das rosas; os pequeninos pés estavam calçados de sandálias de oiro. Pavoneava-se com um boné de fada, de túlipas e muguets, inclinado sobre a cabeça encaracolada. Tinha os olhos impregnados de luz solar e os lábios cheios de alegria. Nas pequenas mãos, trazia um pergaminho iluminado que apresentou a S. Pedro com um sorriso de importância.

- Sempre vêm ter comigo quando se vêem em apuros – resmungou S. Pedro, lendo e franzindo as sobrancelhas. - Quando tudo vai bem, não escutam os meus conselhos. Dize-lhes - acrescentou, voltando-se para o mensageiro - que não respondam a nenhuma pergunta, que esperem por mim.

O anjo mensageiro levou um dedo ao boné de túlipas, abriu as asas purpúreas e voou cantando como uma ave.

  1. Pedro olhou-me perplexo e com olhos perscrutadores. Voltando-se para um velho arcanjo que, apoiado em sua espada desnuda, fazia a guarda diante da cortina de oiro, disse-lhe, designando-me:

- Que espere aqui o meu regresso. É atrevido e astuto, e tem palavras de mel; toma cuidado, não te faça soltar a língua! Todos temos as nossas fraquezas e eu conheço as tuas. Este espírito tem alguma coisa de estranho; não chego até a compreender como aqui veio parar. Pelo pouco que sei, pode bem pertencer a essa mesma tribo que te atraiu fora do Paraíso para seguir Lucífer e causou a tua queda. Desconfia, cala-te e vigia!

Partiu. Olhei o velho arcanjo, e o velho arcanjo olhou para mim. Pensei ser mais prudente não dizer nada, mas pus-me a observá-lo de soslaio. Passado um momento, vi-o desapertar o cinturão e poisar a espada com grande precaução contra uma coluna de lápis-lazúli. Pareceu aliviado. Tinha no velho rosto uma tal expressão de bondade e os olhos eram tão doces, que eu senti que ele era pela paz, como eu.

- Venerável arcanjo - disse-lhe timidamente - terei de esperar muito tempo por S. Pedro?

Ouvi o som das trombetas da Sala do Julgamento - disse o arcanjo. - Vão julgar dois cardeais que chamaram S. Pedro para os ajudar na defesa. Não, não creio que tenhas de esperar muito - acrescentou, com um risinho. - Ordinariamente o próprio Santo Inácio, o mais subtil advogado do Céu, não consegue que os admitam. O Acusador Público é bem mais forte do que ele. É um frade chamado Savonarola, que eles condenaram à fogueira. - Deus é o Supremo Juiz, e não o Homem - disse eu - e Deus é misericordioso.

- Sim, Deus é o Supremo Juiz e é misericordioso - repetiu o anjo. - Mas Deus reina sobre mundos infinitos, cujo esplendor vai muito além do da pequena estrela, quase esquecida, de onde vêm estes dois homens.

O arcanjo tomou-me pela mão e conduziu-me até à entrada, ante a abóbada aberta. Os meus olhos, atónitos, viram milhares de estrelas luminosas e de planetas, todos palpitantes de vida e de claridade, prosseguindo o seu caminho predestinado através do infinito.

- Vês aquele pontinho vacilante, como a luz de uma vela prestes a extinguir-se? Ali tens o mundo donde vieram esses dois homens, formigas que se arrastam num monte de terra.

- Deus criou o Mundo e criou-os a eles - respondi.

- Sim, Deus criou o Mundo. Ordenou ao Sol que fundisse as geladas entranhas da Terra; purificou-a com os rios e os mares; vestiu-a de florestas e de campos; povoou-a de animais amigos. O Mundo era belo e tudo ia bem. Depois, no último dia, Deus criou o Homem. Porventura haveria sido melhor ter descansado na véspera da criação, em vez de ser no dia seguinte. Suponho que sabes o que sucedeu. Um dia, um grande macaco, louco pela fome, começou a forcejar, com suas mãos calosas, por fabricar armas com que matar os outros animais. Que podiam fazer os colmilhos do Machaerodus contra o seu afiado sílex, mais agudo do que as garras dum tigre? Que podiam as garras recurvas do Ursus Spelaeus contra o seu garrote, que era um ramo de árvore eriçado de espinhos e coberto de conchas mais cortantes do que navalhas de barba? E que podia a força bruta contra a astúcia, as armadilhas e os laços? Assim foi crescendo o Protanthropos cruel, assassinando amigos e inimigos, terror de todos os seres vivos, Satã entre os animais. Em pé, sobre as suas vítimas, erguia o seu estandarte sangrento por cima de todos os animais, e a si próprio se coroava Rei da Criação. A selecção natural compôs o seu ângulo facial e desenvolveu-lhe o crânio. Os gritos roucos de cólera e de temor mudaram-se em sons articulados, depois em palavras. Aprendeu a dominar o fogo. A pouco e pouco ia adquirindo forma humana. Os filhos chupavam o sangue da carne ainda palpitante dos animais sacrificados e lutavam entre si, como lobos famintos, pela medula dos ossos que as formidáveis mandíbulas haviam despedaçado e espalhado na caverna. Assim foram crescendo fortes e ferozes como ele, ávidos de presas, impacientes por atacar e devorar todo o ser vivo que passasse ao seu alcance, ainda que fosse seu próprio irmão de leite. A selva tremia à sua aproximação; o terror ao Homem nascera entre os animais. Em breve, enlouquecidos pela sede de sangue, se puseram a matar-se entre si, com suas achas de pedra. Começou uma guerra feroz, que ainda não teve trégua. A ira brilhava nos olhos do Senhor, que se arrependeu de haver criado o Homem.

E o Senhor disse: «Destruirei o homem corrupto e violento, à face do Mundo».

«E ordenou que se rompessem as fontes do grande abismo e que se abrissem as cataratas do Céu para engolirem o Homem e a Terra que este manchara de sangue e crimes. Oxalá os houvesse afogado a todos! Mas, na sua misericórdia nefasta, quis que o Mundo emergisse de novo, limpo e purificado pelas águas do dilúvio. Aqueles a quem Ele havia permitido a salvação na Arca transmitiram a maldição das raças condenadas.

«A morte recomeçou e a eterna guerra desencadeou-se de novo.

«Deus continuava a olhar com uma paciência infinita, negando-se a castigar, disposto a perdoar até ao fim. Por último enviou o seu próprio Filho a esse mundo perverso, para ensinar aos homens a doçura e o amor, e rogar por eles. Sabes o que lhe fizeram. Não tardou que, desafiando o Céu, abrasassem o mundo inteiro com as chamas do Inferno. Com uma astúcia satânica, forjaram novas armas para se assassinarem uns aos outros. Adestraram a Morte a cair sobre as suas casas, do próprio Céu; envenenaram o ar, necessário à vida, com vapores do Inferno. O fragor das suas batalhas fez tremer toda a terra. Quando a noite envolve o Firmamento, aqui do alto vemos a luz da sua estrela vermelha, como tinta de sangue, e ouvimos os gemidos dos feridos. Um dos anjos que rodeiam o trono de Deus contou-me que todas as manhãs a Virgem tem os olhos vermelhos de chorar e que a ferida do flanco do seu Filho tornara a abrir-se».

- Mas Deus, que é Deus de misericórdia, como pode tolerar que estes sofrimentos continuem? - perguntei eu. - Como pode escutar impassível os gritos de angústia?

O velho arcanjo olhou cauteloso à sua roda, com temor de que alguém ouvisse a resposta.

- Deus está velho e cansado - murmurou, como espantado do som das suas próprias palavras - e tem o Coração angustiado. Os que O rodeiam e por Ele velam com infinito amor não têm coragem de perturbar o Seu repouso com essas perpétuas descrições de horrores e de lágrimas. Muitas vezes acorda de um sono de pesadelo e pergunta donde procede esse ruído de trovão que chega aos seus ouvidos e esses relâmpagos que sulcam as trevas. E os que O rodeiam dizem que o trovão é a voz da tempestade empurrando as nuvens e os relâmpagos os seus raios. Então, as pálpebras fatigadas tornam a fechar-se.

- Tanto melhor, venerável arcanjo, tanto melhor! Porque se Seus olhos tivessem visto o que eu vi e Seus ouvidos percebido o que os meus ouviram, o Senhor ter-se-ia arrependido uma vez mais de haver criado o Homem. De novo teria ordenado que se rompessem as fontes do grande abismo para destruir a Humanidade.

Desta vez teria destruído até ao último e só deixaria na arca os animais.

- Teme a cólera de Deus! Teme a cólera de Deus!

- Não tenho medo de Deus, mas daqueles que outrora foram homens: os severos profetas, os Santos Padres e S. Pedro, que me ordenou com voz dura que o esperasse aqui.

- Eu também temo um pouco S. Pedro - confessou o velho arcanjo. - Ouviste como ele me censurou por haver caído nas tentações de Lúcifer? O próprio Deus me perdoou e me autorizou a voltar ao Seu Paraíso. Não saberá S. Pedro que perdoar significa esquecer? Tens razão, os profetas são severos, mas justos. Foram inspirados por Deus e falam com a Sua própria voz. Os Santos Padres não podem ler os pensamentos de um outro homem senão com a débil luz dos seus olhos mortais, as suas vozes são vozes humanas.

- Nenhum homem conhece o seu semelhante. Como podem julgar coisas que não conhecem nem compreendem? Desejaria que S. Francisco fosse um dos meus juízes; amei-o toda a minha vida e ele conhece-me e compreende-me.

- S. Francisco nunca julgou ninguém; perdoa sempre como o próprio Cristo, que põe a sua mão nas dele, como se fora seu irmão. Raras vezes se vê S. Francisco na Sala do Julgamento, onde em breve tu irás; nem ele gosta muito de ir ali. Muitos dos mártires e santos são ciosos dos seus gloriosos estigmas e mais de um, entre os Altos Dignitários do Céu, se sente pouco à vontade com seus sumptuosos mantos bordados de oiro e pedras preciosas quando Il Poverello aparece no meio deles, com o seu humilde e velho hábito. A Madonna não cessa de o pontear e remendar o melhor que pode; e diz que é inútil arranjar-lhe um novo, porque iria dá-lo imediatamente.

- Gostaria bem de o ver e de lhe dirigir uma pergunta que tenho feito a mim próprio toda a vida e a que só ele poderia responder-me! Talvez tu, sábio e velho arcanjo, possas responder-me. Para onde vão as almas dos nossos amigos os animais? Onde é o céu deles? Gostaria muito de sabê-lo porque... porque tenho...

Não me atrevia a dizer mais nada.

- «Na casa de meu Pai há muitas moradas» - disse Nosso Senhor. Deus, que criou os animais, pensará neles. O Paraíso é bastante vasto para os receber. Escuta! - murmurou o velho arcanjo, designando com o dedo a abóbada. - Escuta!

Uma harmonia suave, onde se misturavam acordes de harpa e vozes infantis, subia dos Jardins Elísios, todos embalsamados do perfume das flores.

- Ergue os olhos e vê - disse o arcanjo, inclinando reverentemente a cabeça.

Antes de os meus olhos terem podido distinguir a auréola de pálido oiro que lhe circundava a cabeça, já o meu coração a havia reconhecido. Que incomparável pintor foi Sandro Boticelli! Ei-la que se acerca, como ele a pintou tanta vez, tão jovem, tão pura, com seu olhar de mãe, terno e grave. Virgens coroadas de flores, de lábios sorridentes e olhos de criança, rodeavam-na de eterna primavera; pequeninos anjos com asas de púrpura e oiro seguravam-lhe o manto; outros estendiam-lhe um tapete de rosas aos pés. Santa Clara, a predilecta de S. Francisco, murmurou umas palavras ao ouvido da Virgem e pareceu-me que a Mãe de Cristo se dignou deitar-me um olhar, ao passar.

- Não temas - disse o arcanjo com doçura - a Madonna viu-te e não te esquecerá nas suas orações. - S. Pedro tarda - prosseguiu o arcanjo - está travando uma dura batalha com Savoranola para salvar os seus cardeais.

Ergueu um pouco a cortina de oiro e mergulhou o olhar no longo peristilo.

- Vês este gentil espírito vestido de branco, com uma flor atrás da orelha? Converso muitas vezes com ele e todos aqui o estimamos muito; é tão simples e inocente como uma criança. Observo-o muitas vezes com curiosidade. Passeia sempre sozinho, apanhando as penas das asas dos anjos que caem ao chão; depois reúne-as numa espécie de espanador, e, quando crê que ninguém o vê, inclina-se para varrer o pó das estrelas do pavimento de oiro. Parece que não sabe o que faz, mas não pode impedir-se de o fazer. Pergunto a mim próprio o que faria ele na Terra. Ainda não chegou aqui há muito tempo e talvez te possa dizer tudo o que tu queres saber do Juízo Final.

Olhei o espírito vestido de branco e reconheci o meu amigo Arcangelo Fusco, o varredor das ruas do bairro italiano pobre de Paris. Os mesmos olhos humildes e inocentes, a mesma flor detrás da orelha, a rosa que havia oferecido com galantaria meridional à condessa, no dia em que foi comigo levar as bonecas às filhas de Salvatore.

- Querido Arcangelo Fusco! - disse, estendendo as mãos ao meu amigo. - Nunca duvidei de que aqui virias ter.

Olhou-me com serena indiferença, como se nunca me tivesse visto.

- Não me reconheces, Arcangelo Fusco? Não te lembras de mim? Não te lembras do carinho com que trataste, de dia e de noite, os filhos de Salvatore, quando tiveram a difteria? E de teres vendido o teu fato do domingo para pagar o caixão quando morreu a pequena mais velha, de quem tu gostavas tanto?

Uma sombra de dor passou-lhe pelo rosto.

- Não me lembro de nada!

- Ah! meu amigo! Que tremendo segredo me revelas com as tuas palavras e que peso me tiras de cima! Não te lembras de nada! E eu, por que razão me lembro?

- Talvez não estejas morto, na realidade; talvez sonhes só que estás morto!

- Fui toda a vida um sonhador. Se isto é um sonho, é com certeza o mais maravilhoso de todos.

- Talvez, também, que a tua memória seja melhor do que a minha, sólida bastante para resistir algum tempo à separação do corpo. Eu não sei, não compreendo, tudo isto é demasiadamente profundo para mim. Nunca pergunto nada.

- E por isso estás aqui, meu amigo. Mas dize-me, Arcangelo Fusco: ninguém se recorda aqui da sua vida na Terra?

- Dizem que não, que só se lembram os que vão para o Inferno, e que por isso se chama Inferno.

- Mas ao menos, Arcangelo Fusco, dize-me se o processo é demorado e se os juízes são severos.

- A princípio pareciam-me severos e eu começava a tremer todo, temendo que me fizessem perguntas sobre o sapateiro napolitano que me roubou a mulher, e a quem matei com a sua própria faca. Mas, felizmente, não quiseram saber nada do sapateiro. Só me perguntaram se eu havia manejado oiro, e eu respondi que nunca me passou pela mão mais do que moedas de cobre. Perguntaram-me se eu tinha acumulado alguns bens e eu disse que não possuía mais do que a camisa que levava quando morri no hospital. Não me perguntaram mais nada e deixaram-me entrar. Depois chegou um anjo com um grande embrulho. - «Tira a tua camisa velha e põe o teu fato do domingo» - disse o anjo.

- Queres acreditar? Era o meu fato do domingo, que eu tinha vendido outrora para pagar o funeral, todo bordado de pérolas pelos anjos. Se ainda aqui estiveres no domingo, vais ver-me com ele. Depois veio outro anjo com um grande mealheiro na mão. - «Abre-o - disse-me ele - são todas as tuas economias, todos os cêntimos que deste aos pobres como tu. Tudo o que dais na Terra é guardado no Céu; tudo o que guardais é coisa perdida». - Acreditarás que não havia nenhum cobre no mealheiro? Todos os meus cêntimos se haviam convertido em moedas de oiro.

- Ouve - disse-me ele em voz baixa, com receio de que o arcanjo ouvisse. - Não sei quem és, mas parece-me que estás necessitado. Não leves a mal se te digo que teria muito gosto que tirasses do mealheiro o que te aprouvesse. Eu disse ao anjo que não sabia que fazer de todo esse dinheiro e ele respondeu-me que o desse ao primeiro mendigo que encontrasse.

- Se eu tivesse seguido o teu exemplo, Arcangelo Fusco, não me encontraria no triste estado em que hoje me vejo. Se tivesse dado a minha roupa dos domingos, não estaria agora coberto de andrajos. É para mim um grande alívio saber que eles te não perguntaram nada sobre o sapateiro napolitano que tu expediste para o outro mundo. Deus sabe por quantos sapateiros eu teria de responder, eu que fui médico durante mais de trinta anos!

Mãos invisíveis abriram o cortinado de oiro e um anjo apareceu em pé na nossa frente.

- Chegou a tua hora de comparecer diante dos teus juízes - disse-me o velho arcanjo. - Sê humilde e silencioso, silencioso, principalmente! Recorda-te de que foram as palavras que causaram a minha queda, e causarão também a tua, se soltas a língua.

- Ouve cá - murmurou Arcangelo Fusco, piscando-me o olho maliciosamente. - Creio que o melhor será não correres riscos inúteis. No teu lugar, não diria palavra dos sapateiros em que falaste. Eu não disse nada do meu, já que eles não mo perguntaram. Afinal, pode ser que não o tenham chegado a saber. Chi lo sa?

O anjo pegou-me na mão e conduziu-me ao fundo do peristilo, à Sala dos Julgamentos, vasta como a sala de Osíris, com colunas de jaspe e de opala e capitéis com flores de lótus de oiro e raios de sol em fustes, suportando a imensa abóbada constelada de estrelas do Céu.

Ergui a cabeça e vi miríades de mártires e de santos vestidos de branco, eremitas e anacoretas, estilitas de corpos selvagens queimados pelo sol da Núbia, cenobitas peludos e nus de corpo emaciado, profetas de olhar severo, com as grandes barbas espalhadas no peito, santos apóstolos com a palma na mão, patriarcas e padres de todas as terras e de todas as crenças, alguns papas de tiaras deslumbrantes e dois ou três cardeais com suas vestes purpúreas. Sentados diante de mim, em semicírculo, estavam os meus juízes, severos e impassíveis.

- Este caso parece-me mau, muito mau! - disse S. Pedro, entregando-lhes as minhas cartas de garantia.

Santo Inácio, o Grande Inquisidor, levantou-se e falou:

- A sua existência está manchada por pecados horrendos; a sua alma é negra e o seu coração impuro. Na minha qualidade de cristão e de santo, peço a sua condenação; possam os demónios atormentar o seu corpo e a sua alma por toda a eternidade.

Um murmúrio de aprovação percorreu a sala. Levantei a cabeça e olhei para os meus juízes. Todos me olharam também em severo silêncio. Curvei a cabeça e não disse nada, lembrando-me do conselho que me dera o velho arcanjo, de ficar silencioso. De resto, não sabia o que dizer. De repente vi que, do fundo da sala, um pequeno santo me fazia frenéticos sinais com a cabeça. Depois abriu timidamente caminho por entre os santos de mais importância até onde me encontrava, perto da porta.

- Conheço-te muito bem - segredou-me o santo, com uma expressão amiga nos olhos bondosos. - Vi-te chegar. - E, pondo um dedo nos lábios, acrescentou, em voz baixa: Vi também o teu fiel amigo, que trotava atrás de ti.

- Quem sois vós? - murmurei eu.

- Sou S. Roque, o patrono dos cães - disse-me o santo. - Bem queria ajudar-te, mas aqui sou um santo de pouca importância e não querem ouvir-me - sussurrou, deitando um olhar furtivo aos Profetas e aos Santos Padres.

- Foi um ímpio - seguia dizendo Santo Inácio. - Um blasfemador cínico, um mentiroso, um feiticeiro possuído da magia negra, um libidinoso...

Alguns dos velhos profetas aplicaram o ouvido.

- Era novo e ardente - desculpou S. Paulo. - E mais valera...

- A idade não o melhorou - resmungou um eremita. - Gostava das crianças - disse S. João.

- E das mães também - resmoneou um profeta.

- Foi um médico consciencioso - disse S. Lucas, o médico bem amado.

- O Céu está cheio dos seus antigos doentes e o Inferno também, segundo dizem - replicou S. Domingos.

- Teve a audácia de trazer consigo o cão que está sentado à espera do dono às portas do Céu - anunciou S. Pedro.

- Não terá de esperar muito tempo - disse, mordazmente, Santo Inácio.

- Um cão às portas do Céu! - exclamou, com voz furiosa, um profeta de aspecto feroz.

- Quem é? - murmurei, aterrado, ao patrono dos cães.

- Pelo amor de Deus, não digas nada; lembra-te dos conselhos do arcanjo. Parece-me que é Habakkuk.

- Se Habakkuk está entre os meus juízes, estou perdido, sem remissão. «É capaz de tudo» - dizia Voltaire.

- Um cão às Portas do Céu! - rugia ele! - Um cão, um animal impuro!

Era demais para mim.

- Não é um animal impuro - repliquei violentamente, olhando furioso para Habakkuk. - Foi criado pelo mesmo Deus que nos criou, a vós e a mim. Se há um céu para nós, tem de haver também um céu para os animais; mas vós, profetas ferozes, tão ferozes e porfiados em vossa santidade, esqueceste-o completamente. E vós, Santos Apóstolos, fizestes o mesmo - acrescentei, perdendo cada vez mais a cabeça. - E senão, porque omitistes nas Santas Escrituras uma só das palavras de Nosso Senhor a favor dos nossos mudos irmãos? Porque tenho a certeza de que Ele as pronunciou.

- A Santa Igreja, à qual pertenci na Terra, nunca se interessou pelos animais - interrompeu Santo Anastácio. – E também no Céu não queremos ouvir falar deles. Louco blasfemador, mais te valera pensar na tua alma que na deles, na tua alma negra, que está para voltar às trevas donde surgiu.

- A minha alma vem do Céu e não do Inferno, que vós haveis deixado na Terra. Não creio no vosso Inferno.

- Não tardarás a acreditar - vociferou o Grande Inquisidor, com os olhos desorbitados e chamejantes.

- Que a cólera de Deus caia sobre ele! Está louco! Está louco! - gritou outra voz.

Um grito de terror encheu a Sala do Julgamento: «Lúcifer! Lúcifer! Satã está entre nós!»

Moisés levantou-se do seu assento, gigantesco e terrível, com os Dez Mandamentos nas mãos nodosas e os olhos coruscantes.

- Como está enfurecido! - murmurei eu, aterrorizado, ao Santo patrono dos cães.

- Sempre está assim - confessou, em voz baixa e com ar medroso.

- Que não me falem mais desse espírito! - troou Moisés. - A voz que acabo de ouvir saiu dos lábios chamejantes de Satã. Homem ou demónio: fora daqui! Jeová, Deus de Israel: estende a tua mão e aniquila-o! Queima-lhe a carne e paralisa-lhe o sangue nas veias! Quebra-lhe os ossos, expulsa-o do Céu e da Terra e torna a mandá-lo para os Infernos, donde saiu.

- Aos Infernos! Aos Infernos! - ecoou por toda a Sala do Julgamento.

Tentei falar, mas nenhum som me saía dos lábios. Gelou-se-me o coração e senti-me abandonado de Deus e dos homens.

- Tomarei conta do teu cão, se as coisas se encaminharem mal - murmurou S. Roque a meu lado.

Subitamente, naquele silêncio de terror, pareceu-me ouvir o gorjear das aves. Uma toutinegra veio poisar sem medo no meu ombro e cantou-me ao ouvido:

- Salvaste a vida à minha avó e a minha tia, e a meus três irmãos e irmãs da tortura da morte, às mãos dos homens, naquela ilha rochosa. Sê bem-vindo! Sê bem-vindo!

No mesmo instante uma cotovia pôs-se a picar-me nos dedos e gorjeou:

- Encontrei na Lapónia um papa-moscas que me contou que, quando era pequeno, tu curaste a asa partida dum dos seus avós e aqueceste o seu corpo gelado contra o coração; depois, abrindo a mão para lhe dares a liberdade, beijaste-o, dizendo: «Vai com Deus! pequenino irmão! Vai com Deus! Boa sorte, boa sorte».

- Ajuda-me, irmãzinha! Ajuda-me, irmãzinha!

- Tentarei, tentarei! - cantou a cotovia, e, abrindo as asas, partiu com um gorjeio de alegria: «Tentareeeeeeei!»

Os meus olhos seguiram a cotovia no seu voo pelas colinas celestes, que eu vislumbrava através da arcaria gótica. Como conhecia bem estas colinas dos quadros de Fra Angélico! As mesmas oliveiras cinzento-prata, os mesmos escuros ciprestes contra o doce céu vespertino. Ouvi os sinos de Assis tocarem ave-marias e vi o Santo da Umbria, de pálido rosto, baixando pelo carreiro sinuoso da colina, em companhia de frei Leão e de frei Leonardo. Aves de ligeiras asas volteavam à sua roda, vinham comer-lhe à mão ou escondiam-se nas pregas da túnica. S. Francisco parou ao pé de mim e ergueu para os meus juízes os olhos maravilhosos, aqueles olhos que nem Deus, nem o homem, nem os animais podiam olhar encolerizados.

Moisés deixou-se cair no assento, e tombaram-lhe das mãos os Dez Mandamentos.

- Sempre ele! - murmurou com amargura. - Sempre ele, o delicado sonhador, com os seus bandos de aves e o seu séquito de mendigos e proscritos. Tão débil e, no entanto, tão forte, que detém o teu braço vingador, oh! Senhor! Já não és, pois, Jeová, o Deus terrível que, envolto em fumo e chamas, desceu sobre o Monte Sinai e fez tremer de terror o povo de Israel? Não foi a Tua cólera que armou o meu braço vingador para destruir a erva dos campos e abater as árvores, para que todos, homens e animais, perecessem? Não foi a Tua voz que falou nos meus Dez Mandamentos? Quem temerá o fulgor dos Teus Raios, oh! Senhor! se um gorjeio de ave pode cobrir o troar da Tua cólera?

Apoiei a cabeça no ombro de S. Francisco.

Estava morto e não o sabia.

 

                                                                               Axel Munthe 

 

 

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