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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O LONGO INVERNO / Laura Ingalls Wilder
O LONGO INVERNO / Laura Ingalls Wilder

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O LONGO INVERNO

 

- Vamos ter um Inverno duro - observou, como se a perspectiva lhe não agradasse.

- Porquê? Como sabe? - perguntou Laura, surpreendida.

- Quanto mais frio vier a ser o Inverno, tanto mais grossas constróem os ratos-almiscarados as paredes das suas casas. Nunca vi uma casa de ratos-almiscarados tão maciça como esta.

Laura olhou-a outra vez. Era muito sólida e muito grande. Mas o sol brilhava, queimava-lhe os ombros através do pano puído do vestido, e o vento quente soprava, e mais forte ainda do que o cheiro a lama húmida do pântano era o odor da erva que secava rapidamente ao sol. Naquele ambiente, Laura não conseguia pensar em gelo, neve e frio agreste...

 

                   FENAR ENQUANTO O SOL BRILHA

O zumbido da máquina de ceifar chegava alegremente do antigo chafurdo dos búfalos, a sul da cabana da reserva, onde a erva de haste azul crescia alta e basta e o pai estava a cortá-la para feno.

O céu erguia-se, alto e tremeluzente de calor, sobre a luminosa pradaria. Já a meio caminho do poente, o sol escaldava como ao meio-dia. O vento queimava, de tão quente. Mas o pai ainda tinha de ceifar durante horas, antes de poder dar por findo o dia.

Laura encheu um balde de água no poço à beira do Pântano Grande. Lavou o cântaro castanho, até o sentir frio na mão, encheu-o de água fresca, tapou-o bem tapado e pôs-se a caminho do campo do feno.

Pairavam sobre o carreiro enxames de borboletas brancas. Uma libélula de asas finíssimas caçou velozmente um mosquito. Os geomis andavam às corridinhas no restolho da erva cortada. De repente, fugiram como se a morte os perseguisse e meteram-se nas suas tocas. Laura viu então uma sombra veloz, olhou para cima e depararam--se-lhe os olhos e as garras de um falcão. Mas os pequenos geomis já estavam todos em segurança nas suas tocas.

O pai ficou contente ao ver Laura com o cântaro. Desceu da ceifeira e bebeu um grande golo.

- Ah, isto consola! - exclamou, e levou de novo o cântaro à boca.

Depois rolhou-o, pô-lo no chão e cobriu-o com erva cortada.

- Com este sol um homem quase deseja um punhado de rebentos de árvores, para ter uma sombra - brincou, embora estivesse verdadeiramente satisfeito por não haver ali árvores; fartara-se de desenraizar rebentos na sua clareira da Floresta Grande, todos os Verões, mas ali, nas pradarias do Dacota, não havia uma única árvore, nem um rebento, nem uma pontinha de sombra em lado nenhum. -

De qualquer modo, um homem trabalha melhor quando está quente! - exclamou alegremente e incitou os cavalos.

Sam e David recomeçaram a puxar a ceifeira. A comprida lâmina com dentes de aço encostava-se firmemente à erva alta e deixava-a deitada no chão. O pai, sentado no alto assento de ferro a céu aberto, via-a cair, com a mão na alavanca.

Laura sentou-se na erva, para o ver dar uma volta completa. O calor, ali, cheirava bem, como um forno quando está pão a cozer. Os pequenos geomis às riscas castanhas e amarelas andavam de novo às corridinhas, à volta dela. Pássaros minúsculos davam às asas e voavam, para se agarrarem aos caules inclinados da erva, mal equilibrados. Uma cobra às riscas aproximou-se, a ondular e a curvar, através da erva. Sentada com o queixo nos joelhos, Laura sentiu-se, de súbito, grande como uma montanha, quando a cobra inofensiva arqueou a cabeça e olhou para a muralha alta do seu vestido de pano estampado.

Os olhos redondos do réptil brilhavam como contas e a sua língua vibrava tão depressa que parecia um jactozinho de vapor. Toda a cobra de riscas brilhantes tinha um ar agradável. Laura sabia que aquelas cobras não faziam mal a ninguém e eram úteis nas quintas, porque comiam insectos nocivos às culturas.

Baixou de novo o pescoço e, descrevendo um ângulo perfeitamente recto, por não poder passar por cima de Laura, continuou a ondular à volta dela e desapareceu na erva.

Depois o ruído da máquina de ceifar aumentou e os cavalos aproximaram-se, a acenar lentamente com a cabeça, a compasso com as patas. David assustou-se quando Laura falou, quase debaixo do seu focinho.

- Aí! - gritou o pai, apanhado de surpresa. - Laura! Pensei que te tinhas ido embora. Porque ficaste aí escondida na erva, como uma galinha da pradaria?

- Pá, porque não posso ajudá-lo a fazer o feno? Deixe-me, Pá, por favor!

O pai tirou o chapéu e passou os dedos pelo cabelo húmido de suor, que ficou todo em pé e com o vento a soprar através dele.

- Não és nem muito grande nem muito forte, Meia Canequinha.

- Tenho quase catorze anos - lembrou Laura. - Posso ajudar, Pá, sei que posso.

A máquina de ceifar custara tão caro que não restava ao pai dinheiro para pagar a quem o ajudasse. Também não podia permutar trabalho, pois ainda havia pouca gente naquela região nova e a que havia estava atarefada nas suas próprias reservas. Mas ele precisava de quem o ajudasse a empilhar o feno.

- Bem, talvez possas... Experimentamos. Se fores capaz, faremos este feno todo sozinhos!

Laura compreendeu que a ideia tirava um peso do pensamento do pai e foi a correr à cabana dizer à mãe.

- Bem, acho que podes... - disse a mãe, mas duvidosa.

Não gostava de ver mulheres a trabalhar nos campos. Só as estrangeiras faziam isso. Ela e as suas pequenas eram americanas, estavam acima de fazer o trabalho de homens. Mas a ajuda de Laura, no feno, resolveria o problema. Por isso, decidiu-se:

- Sim, Laura, podes.

Carrie quis logo ajudar também:

- Eu levo-lhes a água para beberem. Já tenho tamanho para levar o cântaro! - Carrie tinha quase dez anos, mas era pequena para a sua idade.

- E eu farei a tua parte da lida da casa, além da minha - ofereceu-se Maria, toda contente, pois orgulhava-se de poder lavar a louça e fazer as camas tão bem como Laura, apesar de ser cega.

O sol e o vento secavam a erva cortada tão depressa que o pai teve de trabalhar com o ancinho no dia seguinte: reuniu-a em compridas enfiadas e depois fez com elas grandes medas. E no outro dia, de manhãzinha cedo, quando a alvorada ainda estava fresca e as cotovias dos prados cantavam, Laura foi para o campo com o pai, na grade do feno atrelada aos cavalos.

O pai caminhava ao lado da carroça e conduzia os animais por entre as medas. Parava junto de cada uma e com a forquilha atirava o feno para a grade. O feno caía, solto, pelo lado alto e Laura pisava-o, para o acamar. Para cima e para baixo, para trás e para a frente, ia acamando o feno solto com toda a força das suas pernas, enquanto a forquilha continuava a lançar mais. Não parava sequer quando a carroça se dirigia, aos solavancos, para a meda seguinte. Então o pai atirava mais feno, do outro lado.

O feno ia subindo debaixo dos seus pés, tão solidamente acamado quanto era possível. Para cima e para baixo, depressa e com força, as suas pernas não paravam, a todo o comprimento e a toda a largura da grade. O sol estava mais quente e o cheiro do feno subia, adocicado e forte. Parecia ressaltar-lhe debaixo dos pés, enquanto continuava a cair pelos lados da grade.

Entretanto, ela ia subindo cada vez mais alto no feno acamado. A cabeça de Laura subiu acima das arestas da grade e ela poderia ter olhado toda a pradaria, se pudesse parar de pisar. Por fim a grade ficou cheia, mas a forquilha do pai continuou a lançar mais.

Laura já estava muito empoleirada e o feno escorregadio descia à volta dela. Continuava a pisar cuidadosamente, para o acamar. Tinha a cara e o pescoço molhados de transpiração e o suor escorria-lhe pelas costas abaixo.

A touca pendia-lhe nas costas, presa pelas fitas, e as tranças tinham-se-lhe desmanchado. O seu comprido cabelo castanho esvoaçava, solto, ao vento.

Depois o pai subiu para os balancins, apoiou um pé no largo quadril de David e amarinhou para a carga de feno.

- Fizeste bom trabalho, Laura - elogiou. - Acamaste tão bem o feno que temos uma grande carga na carroça.

Laura descansou no feno quente, que fazia comichão, enquanto o pai conduzia a carroça para perto do estábulo. Depois deixou-se escorregar por ali abaixo e sentou-se à sombra da carroça. O pai atirou algum feno para o chão, com a forquilha, e depois desceu e espalhou-o regularmente, para formar a grande base redonda de um monte de feno. Subiu outra vez para a carga e atirou mais feno, voltou a descer e alisou-o e pisou-o, para o acamar.

- Eu podia espalhá-lo, Pá - sugeriu Laura. - Assim não andaria a subir e a descer.

O pai empurrou o chapéu para trás e apoiou-se um momento na forquilha.

- Isto é, realmente, trabalho para dois... Deste modo leva muito tempo. A boa vontade ajuda muito, mas tu não és muito grande, Meia Canequinha.

O mais que Laura conseguiu foi que ele dissesse: «Bem, veremos.» Mas quando voltaram com outro carregamento, o pai deu-lhe uma forquilha e deixou-a experimentar. A comprida forquilha era maior do que ela e Laura não sabia utilizá-la; por isso, manejava-a desajeitadamente. Mas enquanto o pai atirava o feno da carroça ela espalhava-o o melhor que podia e andava à roda e à roda em cima da meda, para que ficasse bem acamada. Mas, apesar dos seus esforços, o pai teve de nivelar a meda, para a carga seguinte.

Entretanto, o sol e o vento tornaram-se mais quentes e as pernas de Laura tremiam, enquanto ela as obrigava a pisar o feno. Sabiam-lhe bem os pequenos intervalos de descanso entre o campo e a meda. Começou a ter sede. Depois a sede aumentou e por fim tornou-se tanta que não a deixava pensar em mais nada. Pareceu decorrer uma eternidade até às dez horas, altura em que Carrie apareceu a arrastar o cântaro meio.

O pai disse a Laura que bebesse primeiro, mas não muito. Nunca nada lhe soubera tão bem como aquela humidade fresca a descer-lhe pela garganta. O gosto da água fê-la parar, surpreendida, e Carrie bateu as palmas e gritou, a rir:

- Não digas, Laura, não digas até o Pá provar!

A mãe mandara-lhes água de gengibre. Adoçara a fresca água do poço com açúcar, juntara uma pinguinha de vinagre para dar gosto e deitara gengibre bastante para lhes aquecer o estômago e permitir beber até não terem sede. A água de gengibre não lhes faria mal, como a água fresca, simples, podia fazer, estando eles tão encalorados. Aquele regalo transformou um dia vulgar num dia especial - o primeiro dia em que Laura ajudou a fazer o feno.

Ao meio-dia transportaram o feno todo e completaram a meda, de cuja cobertura o pai se encarregou. É necessária muita habilidade para arredondar o cimo de uma meda de feno, de modo que não deixe entrar a chuva.

O almoço estava pronto quando foram para a cabana. A mãe olhou vivamente para Laura e perguntou:

- O trabalho é duro de mais para ela, Charles?

- Oh, não! Ela é resistente como um cavalinho francês. Tem-me ajudado muito. Precisaria do dia inteiro para emedar o feno sozinho, mas assim tenho a tarde toda para ceifar.

Laura sentiu-se orgulhosa. Doíam-lhe os braços, as costas e as pernas, e nessa noite o corpo todo doeu-lhe tanto que lhe rebentaram lágrimas dos olhos. Mas não disse nada a ninguém.

Assim que o pai cortara e ancinhara feno suficiente para outra meda, ele e Laura fizeram-na. Os braços e as pernas de Laura habituaram-se ao trabalho e já não lhe doeram tanto. Gostava de ver as medas que ajudava a fazer. Ajudou o pai a fazer uma meda de cada lado da porta do estábulo e outra comprida, sobre todo o cimo do estábulo escavado. Além dessas, fizeram mais três grandes medas.

- Agora que todo o nosso feno da terra alta está cortado, quero empilhar uma quantidade de feno do pântano - disse o pai. - Não custa nada e talvez haja quem queira comprá-lo, quando vierem novos colonos na próxima Primavera.

Por isso, o pai cortou a erva alta e áspera do Pântano Grande e Laura ajudou-o a empilhá-lo em medas. Era muito mais pesado do que o outro e Laura não pôde manejá-lo com a forquilha, mas pôde pisá-lo para o acamar.

Um dia, depois de o pai subir para cima da carga, ela disse-lhe:

- Deixou um monte de feno. Pá.

- Deixei?! - admirou-se o pai. - Onde?

- Ali, na erva alta.

O pai olhou para onde ela apontou e depois disse:

- Aquilo não é um monte de feno, Meia Canequinha: é uma casa de ratos-almiscarados. - Olhou-a mais um momento. - Vou vê-la mais de perto. Queres vir comigo? Os cavalos esperam.

Abriu caminho através da erva áspera e alta e Laura seguiu-o, logo atrás dele. O solo era macio e esponjoso e havia poças de água entre as raízes da erva. Laura só via as costas do pai e erva a toda a sua volta, mais alta do que ela. Caminhava com cuidado, pois o solo tornava-se cada vez mais húmido. De súbito, viu uma extensão de água à sua frente, num charco tremeluzente.

A casa dos ratos-almiscarados erguia-se à beira do charco. Era mais alta do que Laura e tão larga que os seus braços não podiam abarcá-la.

Os lados e o cimo arredondados eram cinzentos, irregulares e duros. Os ratos-almiscarados mastigaram erva seca até a fazerem em bocadinhos e depois haviam-na misturado com lama, conseguindo assim uma boa massa para a sua casa. Construíram-na solidamente e alisaram e arredondaram o cimo com cuidado, para que a água da chuva escorresse.

A casa não tinha porta. Nem havia nenhum caminho que a ela conduzisse. No restolho da erva que a cercava e ao longo da margem lamacenta do charco não se via uma única pegada. Nada indicava como os ratos-almiscarados entravam e saíam.

O pai disse que no interior daquelas paredes grossas os ratos-almiscarados estavam a dormir, cada família enroscada no seu próprio quartinho forrado de erva macia. Cada quarto tinha uma espécie de pequeno portal redondo que abria para um corredor em declive. O corredor descia, curvo, através da casa, de alto a baixo, e terminava na água escura. Era essa a porta principal da casa dos ratos-almiscarados.

Depois de o Sol se pôr, os ratos acordavam e desciam o liso chão de lama do seu corredor. Mergulhavam na água preta e atravessavam o charco de onde saíam para a noite vasta e agreste. Durante toda a noite, à luz das estrelas ou ao luar, nadavam e brincavam ao longo das margens, alimentando-se de raízes, caules e folhas de plantas aquáticas e de erva. Quando a alvorada rompia, cinzenta, nadavam para casa. Mergulhavam e entravam pela sua porta de água. A pingar, subiam o corredor, cada um a caminho do seu quarto forrado de erva, onde se enroscavam confortavelmente para dormirem.

Laura pôs a mão na parede da casa. A massa áspera estava quente, do vento escaldante e do sol, mas no interior escuro das grossas paredes de lama o ar devia ser fresco. Agradou-lhe pensar que os ratos-almiscarados estavam a dormir lá dentro.

Mas o pai abanava a cabeça:

- Vamos ter um Inverno duro - observou, como se a perspectiva lhe não agradasse.

- Porquê? Como sabe? - perguntou Laura, surpreendida.

- Quanto mais frio vier a ser o Inverno, tanto mais grossas constróem os ratos-almiscarados as paredes das suas casas. Nunca vi uma casa de ratos-almiscarados tão maciça como esta.

Laura olhou-a outra vez. Era muito sólida e muito grande. Mas o sol brilhava, queimava-lhe os ombros através do pano puído do vestido, e o vento quente soprava, e mais forte ainda do que o cheiro a lama húmida do pântano era o odor da erva que secava rapidamente ao sol. Naquele ambiente, Laura não conseguia pensar em gelo, neve e frio agreste.

- Como podem os ratos-almiscarados saber, Pá?

- Ignoro como sabem, mas o certo é que sabem. Suponho que Deus arranja uma maneira qualquer de lhes dizer.

- Então porque não nos diz a nós também?

- Porque nós não somos animais, Laura. Somos seres humanos e, como diz na Declaração da Independência, Deus criou-nos livres. Isso significa que temos de cuidar de nós.

- Pensava que Deus cuidava de nós - disse Laura, baixinho.

- Cuida, desde que façamos o que está certo. E dá-nos uma consciência e um cérebro para sabermos o que está certo. Mas deixa-nos livres de fazermos o que nos agradar. É essa a diferença entre nós e tudo o mais que existe na Criação.

- Os ratos-almiscarados não podem fazer o que lhes agrada? - perguntou Laura, surpreendida.

- Não. Não sei explicar-te porquê, mas vê-se que não podem. Repara naquela casa deles. Os ratos-almiscarados têm de construir aquele tipo de casa. Tiveram sempre e sempre terão. É evidente que não sabem construir nenhum outro tipo de casa. Mas as pessoas podem construir todos os tipos de casas. Um homem pode construir qualquer tipo de casa que imagine. Por isso, se a sua casa não o resguarda do tempo, a culpa é dele, que é livre e independente.

O pai ficou um minuto parado, a pensar, e depois fez um gesto com a cabeça.

- Vamos, Meia Canequinha. É melhor fazermos o feno enquanto o sol brilha.

Os seus olhos brilharam e Laura riu-se, porque o sol estava a brilhar com toda a força. Mas durante todo o resto da tarde estiveram muito sérios.

Os ratos-almiscarados tinham uma casa quente e de paredes sólidas, para não deixarem entrar o frio e a neve, mas a cabana da reserva era feita de tábuas finas que o calor do Verão secara e fizera encolher de tal maneira que os sarrafos estreitos quase não cobriam as fendas largas das paredes. Tábuas e papel alcatroado não constituíam um abrigo muito aconchegado num Inverno rigoroso.

 

                     UM RECADO NA CIDADE

Numa manhã de Setembro, a erva apareceu toda branca de geada. Mas era uma geada leve, que se derreteu assim que o sol lhe tocou. Já desaparecera, quando Laura olhou para a manhã luminosa. Mas ao pequeno-almoço o pai disse que era surpreendente gear tão cedo.

- Fará mal ao feno? - perguntou-lhe Laura.

- Oh, não! Uma geada tão leve só o fará secar mais depressa, quando for cortado. No entanto, acho melhor apressar-me, pois já não deve faltar muito para não se poder fazer mais feno.

Trabalhou tão depressa, nessa tarde, que mal parou para beber quando Laura lhe levou o cântaro da água. Andava a ceifar no Pântano Grande.

- Tapa o cântaro e cobre-o, Meia Canequinha - disse, ao devolver-lho. - Estou decidido a ter este bocado ceifado antes de o Sol se pôr.

Incitou Sam e David, que recomeçaram a puxar a máquina de ceifar. De súbito, a máquina pareceu dar uma espécie de grito e o pai disse aos cavalos.

- Aí-ó!

Laura foi a correr ver o que acontecera. O pai estava a ver a barra cortadora: havia uma falha na série de brilhantes pontas de aço. A barra perdera um dos seus dentes. O pai apanhou os bocados, mas não tinham conserto possível.

- Não há remédio - disse. - Tenho de comprar outra peça. Não havia nada a fazer. O pai pensou um momento e depois

disse:

- Laura, quero que vás à cidade comprá-la. Não posso perder tempo e enquanto fores sempre irei ceifando alguma coisa. Vai o mais depressa que puderes. A mãe dá-te os cinco cêntimos necessários. Compra-a na Loja de Ferragens Fuller.

- Sim, Pá.

Laura não gostava de ir à cidade, por haver lá muita gente. Não era bem medo o que tinha, mas olhos estranhos a olharem-na constrangiam-na.

Tinha um vestido limpo para vestir e tinha botinas. Enquanto se dirigia apressadamente para casa, pensou que talvez a mãe a deixasse usar a fita do cabelo dos domingos e a touca bem engomada da Maria.

- Tenho de ir à cidade, Ma - anunciou, ao entrar em casa, ofegante.

Carrie e Maria escutaram-na, enquanto explicava o que sucedera, e até Graça fitou nela uns olhos azuis muito grandes e graves.

- Vou contigo, para te fazer companhia - ofereceu-se Carrie.

- Ela pode, Ma? - perguntou Laura.

- Se conseguir arranjar-se tão depressa como tu, pode - respondeu a mãe.

Vestiram rapidamente os vestidos lavados e calçaram as meias e as botinas. Mas a mãe não viu razão nenhuma para usarem fitas no cabelo num dia de semana e disse que Laura levaria a sua própria touca.

- Estaria em melhores condições -acrescentou a mãe- se tivesses cuidado com ela.

A touca de Laura estava tão mole, de a trazer sempre a cair pelas costas, e as fitas não estavam em melhor estado. Mas a culpa era só dela.

A mãe deu-lhe cinco cêntimos que tirou da carteira do pai e, com Carrie, Laura partiu, apressada, para a cidade.

Seguiram o caminho feito pelas rodas do carroção do pai e que passava pelo poço, descia a encosta ervosa e seca que levava ao Pântano Grande e continuava entre a erva grossa do pântano até à encosta que subia do outro lado. Toda a tremeluzente pradaria parecia estranha, dali. Até o vento que soprava entre a erva tinha um som mais agreste. Laura gostava daquilo ali e desejou não ter de ir à cidade, onde as fachadas falsas dos edifícios se erguiam, quadradas, para fingir que as lojas que se encontravam atrás delas eram maiores do que na realidade eram.

Nem Laura nem Carrie disseram uma palavra depois de chegarem à Rua Principal. Estavam alguns homens nos alpendres das lojas e duas parelhas atreladas a carroções amarradas a postes. Do outro lado da Rua Principal erguia-se, solitário, o armazém do pai. Tinha sido alugado e estavam dois homens lá dentro, a conversar.

Laura e Carrie entraram na loja de ferragens, onde se encontravam dois homens sentados em barris de pregos e um num arado.

Pararam de conversar e olharam para as duas. A parede atrás do balcão brilhava, cheia de caçarolas, baldes e candeeiros de folha.

Laura disse:

-O meu pai precisa de uma secção para a máquina de ceifar, por favor.

O homem sentado no arado observou:

- Partiu-a, não?

E Laura respondeu:

- Sim, senhor.

Viu-o embrulhar num papel o dente triangular, aguçado e brilhante. Devia ser o Sr. Fuller. Deu-lhe os cinco cêntimos, recebeu o embrulhinho, disse «Obrigada» e saiu com Carrie.

Já estava. No entanto, só falaram quando saíram da cidade. Nessa altura, Carrie disse:

- Fizeste aquilo muito bem, Laura.

- Oh, foi só comprar uma coisa!

- Bem sei, mas eu sinto-me esquisita quando as pessoas olham para mim. Sinto-me... não é exactamente assustada...

- Não há motivo nenhum para nos sentirmos assustadas - afirmou Laura. - Não devemos ter medo, nunca. - E, de súbito, acrescentou: - Eu sinto o mesmo.

- Sério? Não sabia. Não pareces nada. Sinto-me sempre muito segura quando estou contigo, Laura.

- Quando estás comigo estás em segurança - garantiu Laura. - Eu tomaria conta de ti em qualquer situação. Pelo menos faria o possível.

- Bem sei que farias.

Era agradável caminharem juntas. A fim de pouparem o calçado, não iam pelos trilhos poeirentos das rodas. Caminhavam pela faixa mais dura do meio, onde só os cascos dos cavalos tinham desencorajado a erva de nascer. Não iam de mãos dadas, mas sentiam como se fossem.

Desde que Laura se lembrava, Carrie fora a sua irmãzinha mais nova. Primeiro, fora um bebezinho muito pequenino, depois a Bebé Carrie e a seguir uma menina pequenina que se agarrava a tudo e mexia em tudo, sempre a perguntar: «Porquê?» Mas agora tinha dez anos, idade suficiente para ser realmente uma irmã. E saíram juntas, estavam longe do pai e da mãe. O recado estava feito e já as não preocupava, e o sol brilhava, o vento soprava e a pradaria estendia-se, a perder de vista, a toda a volta delas. Sentiam-se livres, independentes e bem dispostas, uma com a outra.

- É uma distância muito grande dar a volta para irmos ter com o pai - observou Carrie. - Porque não vamos por aqui? - e apontou para a parte do pântano onde viam o pai e os cavalos.

- Esse caminho é através do pântano - respondeu Laura.

- Agora não está molhado, pois não? - insistiu Carrie.

- Está bem, vamos - decidiu Laura. - O pai não disse para irmos pela estrada, mas disse que tinha pressa.

Por isso, em vez de seguirem a estrada que virava para atravessar u pântano, meteram a direito pela erva alta.

Ao princípio foi divertido. Era como se tivessem mergulhado na gravura da selva do grande livro verde do pai. Laura avançava à frente, entre as moitas densas de caules de erva que faziam uma restolhada ao abrir-se para lhes darem passagem e voltavam a fechar-se atrás de Carrie. Os milhões de ásperos caules de erva e as suas folhas estreitas e compridas tinham tons verde-dourados e ouro-esverdeados à sua própria sombra. A terra estava estalada, de seca, mas sob o cheiro quente da erva persistia um leve odor a humidade. Logo acima da cabeça de Laura os topos da erva murmuravam ao vento, mas em baixo, nas raízes, havia um silêncio quebrado apenas pelas passadas de Laura e Carrie.

- Onde está o pai? - perguntou Carrie, de súbito.

Laura olhou para trás, para a irmã. O rostinho pontiagudo de Carrie estava pálido, à sombra da erva, e os seus olhos pareciam quase assustados.

- Não o podemos ver daqui. - Só podiam ver as folhas oscilantes da erva grossa e, em cima, o céu quente. - Ele está mesmo em frente de nós. Encontramo-lo daqui a um instantinho.

Disse-o confiante, mas como podia saber onde o pai estava? Nem sequer sabia ao certo para onde ia, para onde levava Carrie. O calor escaldante fazia-lhe escorrer suor pelo pescoço e pelas costas abaixo, mas por dentro sentia-se fria. Lembrou-se das crianças que se perderam na erva da pradaria, perto de Brookings. O pântano ainda era pior do que a pradaria. A mãe tivera sempre medo de que Graça se perdesse nele.

Apurou o ouvido, à escuta do zumbido da máquina de ceifar, mas o barulho da erva não deixava ouvir mais nada. Nada nas sombras trémulas das folhas estreitas, que oscilavam e badanavam mais alto do que os seus olhos, lhe indicava onde estava o Sol. Nem o dobrar e o badanar da erva lhes dizia qual a direcção do vento. Aqueles maciços de erva não aguentariam nenhum peso. Não havia nada, em lado nenhum, para que pudesse subir, a fim de olhar acima delas e para além delas e saber onde estavam.

- Vamos, Carrie - disse alegremente, pois não queria assustar a irmã.

Carrie seguiu-a confiantemente, mas Laura não sabia para onde ia. Nem sequer tinha a certeza de estar a caminhar a direito. Havia sempre um maciço de erva no caminho, que a obrigava a desviar-se para a esquerda ou para a direita.

Mesmo que se desviasse para a direita de um tufo de erva e para a esquerda do seguinte, isso não lhe garantia que não estivesse a andar num círculo. As pessoas perdidas andam em círculos e muitas nunca encontram o caminho para casa. O pântano prolongava-se por mais de quilómetro e meio de erva que se dobrava e oscilava, mas que era demasiado alta para se ver alguma coisa e demasiado fraca para por ela subir. Nunca sairiam do meio dela, a não ser que caminhassem sempre a direito.

- Já andámos tanto, Laura - queixou-se Carrie, ofegante. - Porque é que não encontramos o pai?

- Ele deve estar por aqui perto - respondeu Laura.

Mesmo que quisesse, não saberia seguir o seu próprio rasto de regresso à segurança da estrada. As suas botinas quase não deixavam marcas na lama endurecida pelo calor e a erva, a erva infindável e oscilante, com as folhas baixas pendentes, secas e partidas, era toda igual.

A boca de Carrie abriu-se um bocadinho e os seus grandes olhos fitaram Laura, a dizer: «Já sei. Perdemo-nos.»

Fechou de novo a boca, sem ter proferido uma palavra. Se estavam perdidas, estavam perdidas. Não havia nada a dizer.

- É melhor continuarmos - disse Laura.

- Também acho. Enquanto pudermos - concordou Carrie.

E continuaram. Já deviam ter passado pelo lugar onde o pai estava a ceifar, mas Laura não podia ter a certeza de coisa nenhuma. Se voltassem para trás, ou julgassem que voltavam, talvez se afastassem ainda mais. Só podiam seguir para a frente. De vez em quando paravam e enxugavam a cara suada. Tinham uma sede terrível, mas não havia água, e estavam muito cansadas de abrir caminho através da erva. Aparentemente, não era difícil afastar a erva, mas com a continuação tornava-se mais cansativo do que acamar feno. A cara pequenina de Carrie estava branco-acinzentada, de fadiga.

Nisto, Laura teve a impressão de que a erva em frente se tornava menos densa. A sombra pareceu-lhe mais fraca e as pontas da erva, contra o céu, mais reduzidas. E, de súbito, viu claridade, luz do Sol amarela para além dos caules escuros da erva. Talvez houvesse ali um charco. Ou talvez... talvez aparecesse o campo de restolho, e a máquina de ceifar e o pai.

Viu o restolho do feno cortado, ao sol, e, aqui e ali, pequenas medas de feno. Mas ouviu uma voz desconhecida.

Era uma voz de homem, alta e bem disposta:

- Vamos lá, Manzo. Levemos esta carga. A noite não tarda aí. E outra voz respondeu, indolentemente:

- Está bem, Roy!

Muito juntas, Laura e Carrie espreitaram pela orla da erva.

O campo de feno não era o do pai. Estava lá um carroção desconhecido, com uma enorme carga de feno na grade. Lá no cimo de tudo, recortado no céu ofuscante, estava um rapaz deitado de bruços, com o queixo nas mãos e os pés no ar.

O homem desconhecido levantou uma grande forquilhada de feno e atirou-a para cima do rapaz. O feno cobriu-o e ele levantou-se, a rir e a sacudir a erva da cabeça e dos ombros. Tinha cabelo preto e olhos azuis e o rosto e os braços tisnados do sol.

Ficou de pé no alto da carga e viu Laura.

- Viva aí! - saudou o rapaz.

Ficaram ambos a olhar, enquanto Laura e Carrie saíam do meio da erva alta - como coelhos, pensou Laura, desejosa de poder voltar a correr para trás e esconder-se.

- Pensei que o meu pai estava aqui - explicou, enquanto Carrie se mantinha pequenina e quieta atrás dela.

- Não vimos ninguém por aqui - respondeu o homem. - Quem é o vosso pai?

- O Sr. Ingalls - respondeu o rapaz. - Não é? - perguntou a Laura, para a qual não deixara de olhar.

- É - respondeu Laura, e olhou para os cavalos atrelados ao carroção.

Já vira antes aqueles bonitos cavalos castanhos, com os quadris a brilhar ao sol e lustrosas crinas pretas nos lustrosos pescoços. Eram os cavalos dos moços Wilder. O homem e o rapaz deviam ser os irmãos Wilder.

- Vejo-o daqui. Ele está ali mesmo - disse o rapaz.

Laura olhou para cima e viu-o apontar, ao mesmo tempo que os seus olhos azuis a fitavam, brilhantes, como se a conhecesse havia muito tempo.

- Obrigada - agradeceu Laura, muito séria, e afastou-se com Carrie pela estrada que a parelha de Morgans e o carroção tinham aberto na erva do pântano.

- Olá! - exclamou o pai, quando as viu. - Ufa! - acrescentou, enquanto tirava o chapéu e limpava o suor da testa.

Laura deu-lhe a peça da máquina e, com Carrie, ficou a vê-lo abrir a caixa da ferramenta, tirar a barra de cortar da máquina e soltar a secção partida. Colocou a nova no seu lugar e martelou os rebites, para a fixar.

- Pronto! Digam à mãe que irei jantar tarde. Quero acabar de cortar este bocado.

A máquina de ceifar vibrava firmemente quando Laura e Carrie se dirigiam para casa.

- Assustaste-te muito, Laura?

- Bem, um bocadinho, Carrie. Mas está tudo bem quando acaba bem.

- A culpa foi minha, que quis ir por aquele caminho.

- Minha é que foi, porque sou mais velha. Mas aprendemos uma lição, Carrie. Creio que, depois do que aconteceu, nunca mais sairemos da estrada.

- Vais dizer à mãe e ao pai? - perguntou Carrie, timidamente.

- Teremos de dizer, se eles nos perguntarem.

 

                   OUTONO

O pai e Laura acamaram a última carga de feno do pântano numa quente tarde de Setembro. O pai tencionava ceifar outro bocado, no dia seguinte, mas de manhã estava a chover. Choveu sem parar durante três dias e três noites, uma chuva lenta, teimosa, que escorria pelas vidraças e tamborilava no telhado.

- Era de esperar - disse a mãe. - É a tempestade do equinócio.

- Pois - concordou o pai, mas preocupado. - Há uma mudança de tempo. Um homem sente-a nos ossos.

Na manhã seguinte a cabana estava fria, os vidros das janelas estavam quase todos cobertos de geada e no interior estava tudo branco.

- Valha-me Deus - disse a mãe, a tremer de frio, enquanto punha aparas no fogão, para acender o lume. - E hoje ainda é apenas o primeiro dia de Outubro!

Laura calçou-se e pôs um xaile quando foi ao poço buscar água.

O ar mordeu-lhe as faces e pareceu queimar-lhe o interior do nariz, de tão frio. O céu estava de um azul gelado e o mundo inteiro apresentava-se branco. Cada folha de erva estava coberta de geada, assim como o carreiro e as tábuas do poço, e a geada amarinhara pelas paredes da cabana, ao longo dos sarrafos estreitos que serviam para segurar o papel alcatroado.

Depois o Sol espreitou pela beira da pradaria e o mundo inteiro cintilou. Todas as coisas, por muito pequeninas que fossem, cintilavam, rosadas, na direcção do Sol azul-pálido na direcção do céu, e pelo caminho fora as pontas de erva apresentavam reflexos de arco-íris.

Laura amou aquele mundo bonito. Sabia que a geada fria matara o feno e a horta. Os pés emaranhados dos tomateiros, com os seus tomates encarnados e verdes, e as hastes trepadeiras das aboboreiras, com as suas folhas largas a cobrir as verdes aboborinhas, tudo cintilava de geada, sobre a terra cultivada pela primeira vez. Os caules e as compridas folhas do milho estavam brancos. A geada matara-os. Tudo quanto era vivo e verde morrera. Mas a geada era bonita. Ao pequeno-almoço, o pai disse:

- Não haverá mais feno, por isso vamos tratar da nossa colheita. Não obteremos grandes resultados num primeiro ano, com um solo destes, mas as raízes das ervas apodrecerão este Inverno e para o ano teremos mais sorte.

O solo arado apresentava-se como fatias de terra ainda unidas entre si pelas raízes da erva. De baixo dessa terra o pai desenterrou pequenas batatas, que Laura e Carrie meteram em baldes de folha. Laura detestava a sensação de terra seca nos dedos. Provocava-lhe calafrios pela espinha acima, mas não havia remédio. Alguém tinha de apanhar as batatas. Ela e Carrie andaram para trás e para diante com os baldes, até encherem cinco sacas de batatas. Era tudo quanto o batatal dera.

- Tanto trabalho para tão poucas batatas - comentou o pai. - Mas cinco alqueires é melhor do que nada e poderemos acrescentá-las com os feijões.

Arrancou as hastes mortas dos feijoeiros e empilhou-as, para secarem. Entretanto, o Sol subira e a geada desaparecera toda, e o vento frio fustigava a pradaria de tons acastanhados, purpúreos e amarelados.

A mãe e Laura apanharam os tomates. As hastes estavam murchas, moles e a enegrecer, de modo que tiveram de apanhar até os tomates verdes mais pequeninos. Havia tomates maduros suficientes para quase um galão de doce.

- Que vai fazer com os verdes? - perguntou Laura, e a mãe respondeu-lhe:

- Espera e verás.

Lavou-os cuidadosamente, sem os pelar, partiu-os em fatias e cozeu-os com sal, pimenta, vinagre e especiarias.

- São quase dois litros de pickles de tomates verdes. Apesar de ter sido a nossa primeira horta neste terreno onde nada pode crescer bem, estes pickles serão uma delícia com feijões cozidos, no Inverno - disse a mãe, toda contente.

- E quase um galão de conservas doces! - acrescentou Maria.

- Cinco alqueires de batatas - disse Laura, e esfregou as mãos no eventual, ao recordar-se da desagradável sensação da terra.

- E nabos, montes de nabos! - gritou Carrie, que adorava comer um nabo cru.

O pai riu-se.

- Quando tiver aqueles feijões debulhados, joeirados e ensacados, haverá quase um alqueire de feijão. Quando tiver aqueles poucos pés de milho cortados, limpos e armazenados na cave numa chávena de chá, teremos uma colheita e tanto!

Laura sabia que era uma colheita muito pequena. Mas o feno e o milho dariam para manter os cavalos e a vaca durante o Inverno, até à Primavera, e com cinco alqueires de batatas e quase um alqueire de feijão, mais o que o pai caçasse, viveriam.

- Amanhã tenho de cortar o milho - disse o pai.

- Não vejo motivo nenhum para tanta pressa, Charles - observou a mãe. - A chuva passou e nunca vi um tempo de Outono tão agradável.

- Isso é verdade - concordou o pai.

As noites estavam frias e o alvorecer fresco, mas os dias estavam soalhentos e quentes.

- Para variar, fazia-nos jeito um pouco de carne fresca - sugeriu a mãe.

- Assim que apanhar o milho, irei caçar - prometeu o pai. No dia seguinte, cortou e amontoou o milho. Os dez montinhos

enfileirados pareciam uma enfiada de pequenas cabanas índias, junto das medas de feno. Quando acabou, o pai levou do campo seis abóboras amarelo-douradas.

- As hastes não puderam vingar muito bem no solo cheio de raízes - desculpou-se- e a geada matou as verdes, mas estas dar-nos-ão uma quantidade de sementes, para o ano.

- Mas para quê tanta pressa em colher as abóboras? - admirou-se a mãe.

- Sinto-me apressado. Como se houvesse necessidade de andar depressa - tentou o pai explicar.

- Precisas de uma boa noite de sono.

Na manhã seguinte caía uma chuva fina como névoa. Depois de tratar dos animais e de tomar o pequeno-almoço, o pai vestiu o casaco grosso e pôs o chapéu de aba larga, que lhe protegia a parte de trás do pescoço.

- Vou caçar um par de gansos - disse. - Ouvi-os voar, de noite. Deve haver alguns no pântano.

Tirou a caçadeira da parede, meteu-a debaixo do casaco para a proteger e saiu.

Depois de ele sair, a mãe disse:

- Filhas, lembrei-me de uma surpresa para o pai.

Laura e Carrie, que estavam a lavar e limpar a louça, voltaram-se e Maria, que fazia uma cama, endireitou-se.

- Qual? - perguntaram todas.

- Despachem o trabalho depressa - respondeu a mãe. - Depois, Laura, vais ao milharal e trazes-me uma abóbora verde. Vou fazer uma tarte!

- Uma tarte! - exclamou Maria. - Mas como...

- Uma tarte de abóbora verde? - admirou-se Laura. - Nunca ouvi falar em tal coisa, Ma.

- Nem eu - concordou a mãe. - Mas pouco faríamos se não fizéssemos coisas de que ninguém ouvira falar antes.

Laura e Carrie lavaram a louça como deve ser, mas depressa. Depois Laura correu através da chuva fina e fria para o milharal e acartou para casa a maior abóbora verde que encontrou.

- Vai para junto da porta do fogão e seca-te - mandou a mãe. - Não és muito grande, Laura, mas já tens idade suficiente para pôr um xaile sem precisares que to digam.

- Fui tão depressa que passei entre os pingos de chuva - redarguiu Laura. - Não estou muito molhada, Ma, palavra. Que faço agora?

- Podes cortar a abóbora em fatias e descascá-la, enquanto eu preparo a massa para a caixa. Depois a ver vamos.

A mãe colocou a massa na forma de tarte e cobriu o fundo com açúcar escuro e especiarias. Depois encheu com fatias finas de abóbora verde, regou-as com meia chávena de vinagre, pôs-lhes em cima um bocadinho de manteiga e tapou com uma camada de massa.

- Pronto! - exclamou, quando acabou de ajustar as arestas.

- Não sabia que era capaz - disse Carrie, baixinho, a olhar, com os olhos muito abertos, para a tarte.

- Bem, eu ainda não sei - respondeu a mãe, enquanto metia a tarte no forno e fechava a porta. - Mas a única maneira de saber é tentar. À hora do almoço já saberemos.

Ficaram todas sentadas à espera, na cabana arrumada. Maria tricotava afanosamente, para acabar umas meias quentes para Carrie antes de chegar o frio. Laura unia duas tiras de pano compridas, para fazer um lençol. Começou por pregar as duas metades uma à outra com alfinetes, cuidadosamente, e por prendê-las com outro alfinete ao vestido, no joelho. Depois, a segurar bem as ourelas do pano, costurou-as com pontos pequeninos e certinhos.

Os pontos tinham de ser bem unidos, pequenos e firmes, mas sem arrepanhar, para que o lençol ficasse liso, sem a mínima ruga ao meio. E todos os pontos tinham de ser exactamente iguais, ao ponto de não se distinguirem uns dos outros, porque era assim que se cosia.

Maria gostara de fazer trabalhos desse género, mas agora, cega, não podia. Coser era uma coisa que enervava Laura ao ponto de lhe dar vontade de gritar. Doía-lhe o pescoço e a linha estava sempre a torcer-se e a fazer nós. Tinha de desmanchar quase tantos pontos quantos dava.

- Os cobertores têm largura suficiente para tapar as camas - queixou-se.

- Porque não farão também os lençóis com largura suficiente?

- Porque os lençóis são de musselina -respondeu Maria-, e a musselina não tem largura que chegue para um lençol.

O fundo da agulha de Laura entrou por um buraquinho do dedal e picou-lhe o dedo, mas ela fechou a boca com força e não disse nem uma palavra.

A tarte estava a cozer lindamente. Quando a mãe largou a camisa que estava a fazer para o pai e abriu o forno, saiu o rico cheirinho de tarte a cozer. Carrie e Graça pararam o olhar, enquanto a mãe virava a tarte, para que tostasse regularmente.

- Está a ficar muito bem - disse a mãe.

- Como o Pá vai ficar surpreendido! - exclamou Carrie. Pouco antes da hora do almoço, a mãe tirou a tarte do forno.

Estava realmente uma linda tarte.

Conservaram o almoço no borralho quase até à uma hora, mas o pai não chegou. Quando andava à caça não prestava atenção às horas das refeições. Por isso, acabaram por almoçar sem ele. A tarte teria de esperar para o jantar, quando o pai chegaria com gansos gordos para assar no dia seguinte.

Toda a tarde choveu sem parar. Quando Laura foi ao poço buscar água, o céu estava baixo e cinzento. Numa grande extensão, a erva castanha da pradaria estava ensopada em chuva e a erva alta do pântano pingava, um bocadinho dobrada sob o peso da água.

Laura voltou depressa para casa. Não gostava de estar cá fora, quando toda a erva chorava.

O pai só voltou à hora do jantar. E de mãos vazias, tirando a caçadeira. Não falou nem sorriu e tinha os olhos muito abertos e parados.

- Que aconteceu, Charles? - perguntou-lhe a mãe, muito depressa.

Ele despiu o casaco molhado e tirou o chapéu que pingava, e pendurou-os, antes de responder.

- Isso gostaria eu de saber. É estranho. Não há no lago nem um ganso, nem um pato para amostra. Nem no pântano. Não se vê nem um. Voam todos alto, acima das nuvens, alto e depressa. Ouvi os seus gritos. Todas as aves estão a seguir para sul o mais depressa e mais alto que podem voar, Carolina. Todas, todas seguem para sul. E não se vê nenhuma outra espécie de caça. Tudo quanto corre ou nada está escondido em qualquer lado. Nunca vi nenhuma região tão vazia e silenciosa.

- Não te preocupes - respondeu a mãe, bem disposta. - O jantar está pronto. Senta-te ao pé do fogão, para te enxugares, que eu chego a mesa para lá. Parece-me que está a arrefecer.

Estava realmente a arrefecer. O frio avançava por baixo da mesa e subia dos pés descalços de Laura para os seus joelhos nus, debaixo das saias. Mas o jantar estava quente e era bom e todos os rostos brilhavam à luz do candeeiro, por causa da surpresa para o pai.

Mas o pai nem reparava. Comia com apetite, mas não via o que comia. Repetiu:

- É estranho... Nem um ganso nem um pato desceram para descansar.

- Naturalmente, os pobres animais têm pressa de chegar ao sol. Ainda bem que nós estamos aconchegados, protegidos da chuva debaixo deste bom telhado.

O pai empurrou o prato vazio para trás e a mãe lançou a Laura um olhar que significava: «Agora!» Brilharam sorrisos em todos os rostos menos no do pai. Carrie não era capaz de estar quieta na cadeira e Graça saltou no colo da mãe quando Laura pôs a tarte na mesa.

Por momentos o pai não a viu. Depois exclamou:

- Tarte!

A sua surpresa ainda foi maior do que esperaram. Graça e Carrie, e até Laura, riram alto.

- Como conseguiste fazer uma tarte, Carolina? - perguntou o pai, admirado. - Que espécie de tarte é esta?

- Prova e verás! - respondeu a mãe, ao mesmo tempo que cortava uma fatia e lha punha no prato.

O pai partiu uma pontinha com o garfo e levou-a à boca.

- Tarte de maçã! Onde foste arranjar maçãs?

Carrie não pôde continuar calada mais tempo. Quase gritou:

- É de abóbora! A mãe fê-la de abóbora verde!

O pai cortou outro bocadinho e mastigou devagar.

- Nunca teria adivinhado! - afirmou. - A mãe foi sempre a melhor cozinheira do país!

A mãe não disse nada, mas corou um bocadinho e os seus olhos continuaram a sorrir enquanto todos saboreavam a deliciosa tarte. Comiam devagar, em dentadinhas pequeninas que demoravam na boca, para durar mais tempo.

Foi um jantar tão feliz que Laura desejou que nunca mais acabasse. Quando se deitou com Maria e Carrie ficou acordada, para continuar a sentir-se feliz. Sentia-se sonolentamente confortável e aconchegada. A chuva que caía no telhado produzia um som agradável.

Uma gota de água na cara surpreendeu-a vagamente. Teve a certeza de que não podia ser chuva, pois o telhado estava por cima. Chegou-se mais para Maria e mergulhou tudo na escuridão e no calor do sono.

 

                     NEVASCA EM OUTUBRO

Laura acordou de repente. Ouviu cantar e um som estranho de pancadas.

Oh, estou feliz como um grande girassol (Slap! Slap!) Que acena e se dobra sobre as brisas. Oh! (Slap! Slap!) E o meu coração (Slap!) está leve (Slap!) como o vento Que arranca as folhas das arvorisas. Oh! (Slap! SLAP!)

O pai estava a cantar a sua canção das complicações e a bater com os braços no peito.

Laura sentiu o nariz frio. O nariz era, aliás, a única coisa que espreitava das mantas sob as quais se encontrava toda encolhida. Pôs a cabeça toda de fora e compreendeu por que motivo o pai batia a si mesmo: era para tentar aquecer as mãos.

Espevitara o lume, que crepitava no fogão, mas mesmo assim o ar estava enregelante. Estalou gelo na manta, onde caíra água da chuva que se infiltrara pelo telhado. Assobiavam ventos à roda da cabana e do telhado e das paredes vinha um som de fustigação.

Carrie perguntou, sonolenta:

- Que é?

- É uma nevasca - respondeu-lhe Laura. - Tu e a Maria deixem-se ficar na cama.

Com cuidado, para que o frio não entrasse nas mantas, saiu da cama quente. Os dentes bateram-lhe enquanto se vestiu. A mãe também se estava a vestir, do outro lado da cortina, mas tinham ambas tanto frio que nem falaram.

Encontraram-se junto do fogão onde o lume ardia furiosamente, mas sem conseguir aquecer o ar. A janela estava transformada numa mancha de neve turbilhonante. Entrara neve por baixo da porta até meio da casa e todos os pregos das paredes estavam cobertos de geada branca.

O pai fora ao estábulo. Laura deu graças por terem tantas medas de feno enfileiradas entre o estábulo e a cabana. Assim, indo de meda para meda o pai não se perderia.

- Uma n-n-n-nevasca! - gaguejou a mãe a tremer. - Em Ou--Outubro! N-n-n-nunca ouvi...

Pôs mais lenha no fogão e quebrou o gelo do balde da água, para encher a chaleira.

O balde estava menos de meio. Teriam de poupar a água, pois ninguém poderia ir ao poço com aquela tempestade. Mas a neve que estava no chão era limpa. Laura apanhou-a com a pá para a bacia e pô-la a derreter no fogão, para se lavar.

Como o ar junto do fogão já estava menos frio, embrulhou Graça em cobertores e levou-a para lá, a fim de a vestir. Maria e Carrie também se vestiram junto do fogão, a bater o queixo. Calçaram todas meias e sapatos.

O pequeno-almoço estava pronto quando o pai voltou. Entrou em casa com um uivo de vento e um remoinho de neve.

- Aqueles ratos-almiscarados sabiam o que vinha aí, hem, Laura? - observou, assim que aqueceu o suficiente para poder falar. - E os gansos também.

- Não admira que não tenham parado no lago - disse a mãe.

- A esta hora o lago deve estar gelado, Carolina. A temperatura está quase em zero e continua a descer.

Olhou para a caixa da lenha, enquanto falava. Laura enchera-a na noite anterior, mas já não havia muita. Por isso, assim que tomou o pequeno-almoço, o pai agasalhou-se bem e trouxe grandes braçados de lenha do monte.

A cabana tornava-se cada vez mais fria. O fogão não conseguia aquecer o ar no interior das delgadas paredes. Não podiam fazer nada além de se enrolarem em casacos e xailes e ficarem perto do fogão.

- Ainda bem que pus feijão de molho ontem à noite - disse a mãe.

- Levantou a tampa da panela a ferver e deitou muito depressa uma colherada de soda. A água subiu, com uma nuvem de fumo, mas não deitou por fora.

- E também há um bocadinho de toucinho salgado, para temperar.

De vez em quando, tirava alguns feijões com a colher e soprava-os. Quando a pele se rachou e enrolou, escorreu a água com a soda e voltou a deitar a água quente e o bocadinho de toucinho salgado.

- Não há nada como uma boa sopa de feijão quente num dia frio - disse o pai, e olhou para Graça, que lhe puxava a mão. - Que queres tu, Olhos Azuis?

- Uma tória - respondeu Graça.

- Conte-nos a do avô e do porco no trenó - pediu Carrie.

O pai sentou Graça e Carrie nos joelhos e começou a contar as histórias que costumava contar a Maria e Laura na Grande Floresta, quando eram pequeninas. A mãe e Maria tricotavam muito depressa, nas cadeiras de balanço cobertas de mantas e chegadas para o fogão, e Laura estava de pé, embrulhada no xaile, entre o fogão e a parede.

O frio avançava dos cantos da cabana e aproximava-se cada vez mais do fogão. Correntes de ar gelado agitavam as cortinas à volta das camas. A pequena cabana estremecia, sacudida pela tempestade. Mas o cheiro do vapor dos feijões a cozer era bom e parecia aquecer o ar.

Ao meio-dia a mãe partiu pão em fatias e encheu tigelas de sopa de feijão e comeram todos onde estavam, junto do fogão. Beberam também um púcaro de chá forte e quente. A mãe até deu à Graça um púcaro de chá branco. Chá branco era água e leite só com um nadinha de chá, mas as meninas pequenas sentiam-se crescidas quando as mães as deixavam beber chá branco.

A sopa e o chá quentes aqueceram todos. A mãe despejou os feijões - sem o caldo, que servira para a sopa- numa caçarola, pôs o bocado de toucinho no meio e deitou por cima fios de melaço. Depois meteu a caçarola no forno e fechou a porta. Teriam feijões no forno para o jantar.

O pai teve de ir buscar mais lenha. Felizmente o monte de lenha ficava perto da porta das traseiras. O pai entrou, cambaleante e sem fôlego, com o primeiro braçado. Quando conseguiu falar, disse:

- O vento tira-nos o fôlego. Se eu adivinhasse que vinha aí uma tempestade destas, ontem teria enchido a cabana de lenha. Agora trago tanta neve como lenha.

Era quase verdade. Todas as vezes que Laura lhe abria a porta, a neve entrava em turbilhões, além de cair de cima do pai e da lenha. Era uma neve dura como gelo e fina como areia, e quando abria a porta a cabana ficava tão fria que a neve nem se derretia.

- Basta por agora - disse o pai. Se deixasse entrar mais frio, a lenha que trazia não chegaria para o expulsar.

- Depois de varreres a neve, Laura, traz-me a rabeca - pediu. - Assim que desenregelar os dedos vamos ter uma música para abafar o uivo do vento.

Pouco depois, conseguiu afinar as cordas da rabeca e passar resina pelo arco. Depois encostou a rabeca ao ombro e cantou com ela:

 

       Oh, se eu fosse outra vez jovem,

       Uma vida diferente levaria,

       Juntaria dinheiro, compraria terras

       E com Diná me casaria.

       Mas estou a ficar velho e grisalho

       E já não posso trabalhar.

       Oh, levai-me,

       Oh, levai-me,

       Para a costa da velha Virgínia!

       E levai-me, e levai-me,

       E levai-me assim até morrer...

 

- Pelo amor de Deus! - interrompeu a mãe. - Preferia ouvir o vento. - Tentava manter Graça quente, mas ela debatia-se e choramingava e a mãe pô-la no chão. - Pronto, corre, se queres correr! Acabarás por querer voltar para junto do fogão.

- Tive uma ideia! - exclamou o pai. - Laura e Carrie, vão para junto da Graça e vamos vê-las marchar! Aquecer-lhes-á o sangue!

Custou-lhes deixar o abrigo dos xailes, mas obedeceram ao pai. Então a sua voz forte vibrou, com a rabeca a cantar:

 

Marchar! Marchar! Ettrick e Teviotdate! Porquê moços, não marchais em ordem? Marchar! Marchar! Eksdale e Linddesdale! Todas as boinas azuis estão para lá da fronteira! Muita bandeira esvoaçava sobre a vossa cabeça, Muita coroa famosa na história!

 

E Laura, Carrie e Graça marchavam à roda, a cantar com todas as forças e a baterem com os pés no chão.

 

Montai e preparai-vos pois,

Filhos do vale da montanha,

Lutai pelos vossos lares e pela antiga glória escocesa.

 

Sentiam as bandeiras esvoaçar por cima delas e tinham a sensação de estar a marchar para a vitória. Nem sequer ouviam a tempestade. E estavam bem quentes, até às pontas dos pés.

Depois a música cessou e o pai guardou a rabeca na caixa.

- Bem, pequenas, agora é a minha vez de marchar contra esta tempestade e tratar dos animais, para passarem confortavelmente a noite. Macacos me mordam se aquela velha música não me deu coragem para lutar até mesmo contra uma nevasca!

A mãe aqueceu-lhe o casaco e o cachecol ao fogão, enquanto ele arrumava a caixa da rabeca. O vento uivava furiosamente.

- Terás feijões no forno, bem quentes, e chá quente à tua espera, quando voltares, Charles - prometeu-lhe a mãe. - E depois vamos todos para a cama, para o quentinho, e de manhã talvez a tempestade tenha passado.

Mas de manhã o pai voltou a cantar a canção do girassol. A janela era a mesma mancha branca e os ventos continuavam a fustigar com neve dura a pequena e trémula cabana.

A nevasca durou mais dois longos dias e duas noites.

 

                   DEPOIS DA TEMPESTADE

Na quarta manhã, Laura apercebeu-se de uma estranha sensação nos ouvidos. Espreitou por cima dos cobertores e viu neve espalhada em cima da cama. Ouviu o bater da tampa do fogão e depois o primeiro crepitar do lume. Só então compreendeu a sensação de vazio dos ouvidos: o barulho da nevasca terminara!

- Acorda, Maria! - chamou, e bateu na irmã com o cotovelo. - A nevasca terminou!

Saltou da cama quente para o ar mais frio do que gelo. O fogão aceso parecia não dar calor nenhum. O balde de água de neve estava quase solidamente congelado. Mas as janelas cobertas de geada brilhavam de sol.

- Lá fora o frio continua - disse o pai, quando voltou de tratar dos animais.

Inclinou-se para o fogão, para derreter o gelo da barba. A água rechinou na chapa do fogão e depois subiu transformada em vapor. O pai limpou a barba e continuou:

- O vento arrancou um grande bocado de papel alcatroado do telhado, apesar de eu ter pregado bem. Não admira que entrassem cá dentro chuva e neve.

- De qualquer maneira, acabou-se - observou Laura, que achava agradável estar a tomar o pequeno-almoço e a ver os vidros das janelas iluminados e luminosos.

- Ainda teremos o Verão de São Martinho - garantiu a mãe. - Esta tempestade chegou tão cedo que não pode ser o princípio do Inverno.

- Nunca vi um Inverno chegar tão cedo - admitiu o pai. - Mas não me agrada o aspecto das coisas.

- De que coisas, Charles? - quis saber a mãe.

Mas o pai não sabia dizer ao certo.

- Há algum gado extraviado junto das medas de feno.

- Está a desmanchar as medas? - perguntou a mãe, muito depressa.

- Não.

- Então que importância tem, se não está a fazer nenhum mal?

- Creio que a tempestade os cansou e se abrigaram junto das medas de feno. Pensei deixá-los descansar e comer um bocado, antes de os mandar embora. Não posso dar-me ao luxo de os deixar deitar as medas abaixo, mas podem comer um bocado sem estragar. No entanto, não comem.

- Que se passa, então?

- Nada. Estão apenas ali parados.

- Isso não é motivo para transtornar uma pessoa - declarou a mãe.

- Pois não - admitiu o pai, enquanto bebia o chá. - Bem, o melhor é ir enxotá-los.

Voltou a vestir o casaco, a pôr o boné e a calçar as luvas e saiu.

Passados momentos, a mãe disse:

-Talvez seja melhor ires também, Laura. O pai pode precisar de ajuda, para enxotar os animais do feno.

Rápida, Laura pôs o xaile da mãe pela cabeça e prendeu-o com um alfinete debaixo do queixo, bem aconchegado. As pregas de lã cobriram-na da cabeça aos pés. Até as mãos ficaram debaixo do xaile. Só a cara ficou de fora.

Quando saiu, o brilho do sol feriu-lhe os olhos. Aspirou uma lufada de ar gelado e semicerrou os olhos, para olhar em redor. O céu estava imensamente azul e a terra toda estava branca e em movimento. O vento forte e a soprar a direito não levantava a neve, mas empurrava-a, rente ao chão, através da pradaria.

O frio mordeu as faces de Laura. Causou-lhe uma sensação de fogo no nariz e um formigamento no peito e saiu sob a forma de vapor. Tapou a boca com uma prega do xaile e a sua respiração transformou-se em geada.

Quando passou pela esquina do estábulo, viu o pai a andar à sua frente e viu o gado. Parou, de olhos muito abertos.

O gado estava de pé, ao sol e à sombra, junto das medas de feno - gado vermelho, castanho e malhado e um animal magro e preto. Estavam perfeitamente imóveis, todos com a cabeça curvada para o chão. Os pescoços felpudos, vermelhos e castanhos, esticavam-se todos para baixo, dos ombros magros e ossudos para as cabeças brancas e grandes, monstruosas.

- Pá! - gritou Laura, e o pai fez-lhe sinal para ficar onde estava.

Ele continuou a andar, através da neve que voava rente ao chão, na direcção dos estranhos animais.

Não pareciam verdadeiro gado, de tal maneira estavam imóveis. A manada toda não fazia o mínimo movimento. Só a sua respiração lhes chupava para dentro os flancos felpudos, entre os ossos das costelas, e lhos dilatava a seguir. Os ossos dos ombros e dos quadris pareciam querer romper a pele. Tinham as pernas esticadas para fora, hirtas e imóveis. E onde deveria ser a cabeça grandes matacões brancos pareciam colados ao chão, sob a neve batida pelo vento.

O cabelo de Laura arrepiou-se e um calafrio de horror percorreu-lhe a espinha. Lágrimas provocadas pelo sol e pelo vento saltaram-lhe dos olhos e correram-lhe, frias pelas faces. O pai continuou a avançar devagar, contra o vento. Chegou junto da manada. Nenhum dos animais se moveu.

O pai ficou um instante parado, a olhar. Depois inclinou-se e, rapidamente, fez qualquer coisa. Laura ouviu um berro e as costas de uma vitela vermelha arquearam-se e saltaram. O animal correu, cambaleante, a mugir. Tinha uma cabeça normal, com olhos, nariz e boca aberta, a lançar vapor para o vento.

Outro animal berrou e deu uma corrida breve e hesitante. E mais outro. O pai estava a fazer o mesmo a todos, um por um. Os mugidos dos animais subiam para o céu frio.

Por fim, partiram todos juntos. Partiram silenciosos, com a neve esvoaçante a chegar-lhes aos joelhos.

O pai fez sinal a Laura para voltar para casa, enquanto ele inspeccionava as medas do feno.

- Porque te demoraste tanto, Laura? - perguntou a mãe. - O gado entrou nas medas do feno?

- Não, Ma. Tinham a cabeça... creio que tinham a cabeça presa ao chão pelo gelo.

- Não pode ser! - exclamou a mãe.

- Deve ser uma das estranhas ideias de Laura - comentou Maria que tricotava afanosamente na sua cadeira, junto do fogão. - Como podia o gelo pegar a cabeça dos animais ao chão, Laura? É realmente preocupante a maneira como às vezes falas.

- Então perguntem ao Pá! - replicou Laura, asperamente. Não conseguia dizer à mãe e a Maria o que sentia. Mas achava

que, de qualquer modo, na noite agreste e tempestuosa, a imobilidade subjacente a todos os sons da pradaria se comunicara ao gado. Quando o pai voltou, a mãe perguntou-lhe:

- Que tinha o gado, Charles?

- As cabeças geladas, com gelo e neve. A respiração congelou-se-lhes por cima dos olhos e do nariz, até lhes ser impossível ver e respirar.

Laura parou de varrer e exclamou, horrorizada.

- A sua própria respiração, Pá! A asfixiá-los. O pai compreendeu o que ela sentia.

- Agora já estão bem, Laura. Quebrei o gelo e tirei-lho da cabeça. Agora respiram e creio que chegarão a um abrigo, em qualquer lado.

Carrie e Maria estavam de olhos muito abertos e até a mãe parecia horrorizada.

- Acaba de varrer, Laura - ordenou, asperamente. - E tu, Charles, porque não tiras os agasalhos e não te aqueces?

- Tenho uma coisa para lhes mostrar - disse o pai, e tirou cuidadosamente a mão da algibeira. - Olhem, filhas, olhem o que encontrei escondido numa meda de feno.

Abriu a mão, devagar. No côncavo da luva estava uma pequena ave, que ele passou com cuidado para as mãos de Maria.

- Oh, está de pé! - exclamou Maria, a tocar-lhe ao de leve com as pontas dos dedos.

Nunca viram uma ave assim. Era pequena, mas parecia exactamente a gravura da grande torda-mergulheira do livro verde do pai, As Maravilhas do Mundo Animal.

Tinha o mesmo peito branco, as mesmas costas e asas pretas, as mesmas pernas curtas e colocadas muito atrás e as mesmas patas grandes e palmadas. Erguia-se, erecta, nas pernas curtas, como um minúsculo homenzinho de casaco e calças pretas e peitilho de camisa branco, e as suas asinhas pretas pareciam braços.

- Que é, Pá? Oh, que é?! - gritou Carrie, encantada ao mesmo tempo que segurava as mãos ávidas de Graça. - Não se mexe, Graça.

- Nunca vi nada parecido - confessou o pai. - Deve-se ter cansado, com os ventos tempestuosos, e caído contra a meda. Encafuou-se no feno, para se abrigar.

- É uma grande torda-mergulheira - declarou Laura. - Com a diferença de que é pequenina.

- Já é adulta, não é uma avezinha a crescer - observou a mãe. - Reparem nas penas.

- Sim, seja lá o que for, é adulta - concordou o pai.

A pequena ave continuava erecta na palma macia da mão de Maria e olhava para todos eles com os seus brilhantes olhos pretos.

- É a primeira vez que vê seres humanos - observou o pai.

- Como sabe, Pá? - perguntou Maria.

- Sei porque não tem medo de nós.

- Podemos ficar com ela, Pá? Podemos, Ma? - rogou Carrie.

- Depende - respondeu o pai.

As pontas dos dedos de Maria percorriam a avezinha toda, enquanto Laura lhe dizia como o seu peito era branco e macio e como eram pretas, retintas, as suas costas, a sua cauda e as suas asas. Depois deixaram Graça tocar-lhe, com cuidado. A pequena torda-mergulheira continuou quieta, a olhá-los.

Puseram-na no chão e caminhou um bocadinho. Depois pôs-se em bicos de pés, nas tábuas do chão, e bateu as pequenas asas.

- Não consegue levantar voo - disse o pai. - É uma ave aquática. Tem de partir da água, onde se serve dos pés palmados para adquirir velocidade.

Por fim, puseram-na numa caixa, ao canto. Lá ficou a olhá-los, com os olhos redondos, pretos e brilhantes, e eles perguntaram a si mesmos de que se alimentaria.

- Foi uma estranha tempestade, em todos os sentidos - declarou o pai. - Não me agrada.

- Oh, Charles, foi apenas uma nevasca! - protestou a mãe. - O mais certo é ainda termos agradável tempo quente. Até já começou a aquecer um pouco.

- Maria pegou de novo na malha e Laura continuou a varrer. O pai ficou junto da janela e, passados momentos, Carrie afastou Graça da pequena ave e foram também olhar para fora.

- Oh, olhem! - exclamou Carrie. - Lebres!

De facto, a toda a volta do estábulo pulavam dúzias de lebres.

- As patifas estiveram a viver no nosso feno durante toda a tempestade - comentou o pai. - Devia pegar na caçadeira e arranjar um guisado de lebre.

Mas já estava na janela a olhar para elas havia um bocado e não pegara na arma.

- Deixe-as ir embora, Pá, só desta vez! - pediu Laura. - Foram obrigadas a vir e tiveram de arranjar abrigo.

O pai olhou para a mãe e a mãe sorriu.

- Não temos fome, Charles, e eu estou grata por termos sobrevivido à tempestade.

- Bem, acho que posso dispensar um pouco de feno às lebres - disse o pai, e depois pegou no balde e foi ao poço.

O ar que entrou, quando ele abriu a porta, era muito frio, mas o sol já tinha começado a derreter a neve do lado sul da cabana.

 

                     VERÃO DE SÃO MARTINHO

Na manhã seguinte havia só lascas de gelo na água do balde e o dia estava soalheiro e quente. O pai foi armar as suas armadilhas para os ratos-almiscarados no Pântano Grande, e Carrie e Graça brincaram fora de casa.

A pequena torda não queria comer. Não emitia um som, sequer, mas Carrie e Laura tinham a impressão de que ela as olhava desesperadamente. Se não comesse acabaria por morrer, mas parecia não saber como havia de comer o que lhe davam.

À hora do almoço o pai disse que o gelo estava a derreter-se no lago da Prata e que, na sua opinião, a estranha ave saberia cuidar de si na água. Por isso, depois do almoço, Laura e Maria vestiram os casacos e puseram os capuzes e foram com o pai soltar a pequena torda.

O lago da Prata era uma extensão enrugada, azul-clara e prateada, sob o céu quente e pálido. Havia gelo à volta das margens e pedaços cinzentos, de gelo liso, flutuavam nas pequenas ondas. O pai tirou a pequena torda da algibeira. Ficou-lhe de pé na palma da mão, no seu bonito casaco preto de peitilho branco. Viu a terra, o céu e a água e, ansiosamente, pôs-se em bicos de pés e abriu as pequenas asas.

Mas não conseguiu levantar voo. As suas asas eram muito pequeninas e não conseguiam levantá-la.

- Não pertence à terra - explicou o pai. - É uma ave aquática. Acocorou-se junto do gelo branco e fino da margem, estendeu o

braço todo e deixou cair a ave da mão para a água azul. Ela ficou parada um instante brevíssimo e depois... desapareceu. Transformou-se num veloz ponto preto, entre os pedaços de gelo.

- Adquire velocidade com os pés palmados -explicou o pai-, para se levantar de... Lá vai ela!

Laura quase que não teve tempo de a ver erguer-se, minúscula, no vasto e cintilante céu azul. Logo a seguir desapareceu em todo aquele fulgor luminoso.

Os seus olhos ofuscados não conseguiram ver mais nada. Mas o pai continuou a olhar, a vê-la dirigir-se para o Sul.

Nunca souberam o que aconteceu à estranha avezinha que veio na escuridão, com a tempestade do longínquo Norte, e partiu para Sul banhada de sol. Nunca mais viram nem ouviram falar de outra ave semelhante. E também nunca souberam que espécie de ave era.

O pai continuava de pé, a olhar para muito longe. Todas as curvas da pradaria se apresentavam suavemente coloridas, numa grande riqueza de castanhos-claros, bronzeados, e cinzentos-fulvos, verdes e púrpuras muito ténues e, muito ao longe, cinzentos-azulados. O sol estava quente e o ar nebuloso. Laura só sentia um pouco de frio à volta dos pés, perto do gelo fino e seco da margem do lago.

Estava tudo parado. Nenhum sopro de vento agitava a erva acinzentada e não se viam aves na água nem no céu. O lago batia levemente na margem desse imenso silêncio.

Laura olhou para o pai e percebeu que ele escutava. O silêncio era tão terrível como o frio. E mais forte do que qualquer som. Podia abafar o mergulhar da água e o leve zumbido dos ouvidos de Laura.

No silêncio não havia nenhum som, nenhum movimento, coisa nenhuma. Era esse o seu terror. O coração de Laura batia com força, saltava, a querer fugir dele.

- Não me agrada - disse o pai, a abanar lentamente a cabeça. - Não me agrada este tempo. Há qualquer coisa... - Incapaz de explicar o que queria dizer, repetiu: - Não me agrada. Não me agrada mesmo nada.

Ninguém poderia dizer, exactamente, que havia algo errado no tempo. Estava um belo Verão de São Martinho. Todas as noites geava e às vezes a água gelava um pouco, mas os dias estavam soalheiros. Todas as tardes Laura e Maria davam longos passeios ao sol quente, enquanto Carrie brincava com Graça perto da casa.

- Encham-se de sol enquanto podem - dizia a mãe. - Em breve será Inverno e terão de ficar dentro de casa.

Cá fora, no tempo ameno, armazenavam dentro delas sol e ar fresco, para compensar os dias de Inverno em que não teriam uma coisa nem outra.

Mas frequentemente, enquanto passeavam, Laura olhava de repente para norte. Não sabia porquê. Não havia lá nada. Às vezes, sob o sol quente, imobilizava-se e ficava à escuta, inquieta. Também não havia razão nenhuma para isso.

- Vai ser um Inverno duro - disse o pai. - O mais duro que já conhecemos.

- Mas, Charles, o tempo agora está bom! - protestou a mãe. - Aquela tempestade que chegou mais cedo do que deveria não significa que todo o Inverno seja mau.

- Há muitos anos que apanho ratos-almiscarados com armadilhas e nunca os vi construir as paredes das suas tocas tão grossas.

- Ora, ratos-almiscarados! - zombou a mãe.

- Os animais selvagens sabem, não sei como - insistiu o pai. - Todas as criaturas selvagens se preparam para um Inverno duro.

- Talvez se tenham preparado apenas para aquela grande tempestade.

Mas o pai não se deixou convencer pelos argumentos da mãe.

Não me agrada o que sinto - afirmou. - Este tempo parece estar a reservar qualquer coisa que pode soltar de um momento para o outro. Se eu fosse um animal selvagem, procuraria um buraco e escavá-lo-ia o mais fundo possível. Se fosse um ganso bravo, abriria as asas e sairia daqui.

A mãe riu-se dele.

- És um tonto, Charles! Não, não me lembro de um Verão de São Martinho tão bonito.

 

                   AVISO DO ÍNDIO

Uma tarde, um pequeno grupo de homens reuniu-se no armazém Harthorn, na cidade. Os comboios, que a nevasca fizera parar, circulavam de novo e os homens foram das suas reservas à cidade, a fim de comprarem alguns géneros e ouvirem as novidades.

Royal e Almanzo Wilder também tinham ido, o segundo a conduzir a sua bela parelha de Morgans que era a melhor de todo aquele território. O Sr. Boast estava igualmente presente, de pé no meio da pequena multidão, a fazer toda a gente rir quando ele se ria. O pai chegara com a caçadeira no braço, mas não vira nem uma lebre, e estava à espera de que o Sr. Harthorn pesasse o bocado de carne de porco salgada que comprara para substituir a lebre.

Ninguém ouviu nem um passo, mas o pai sentiu que estava alguém atrás dele e virou-se para ver quem era. De súbito, o Sr. Boast calou-se e todos os outros olharam, para verem o que ele vira. E levantaram-se logo dos caixotes de biscoitos e do arado. Almanzo deixou-se escorregar do balcão. Ninguém disse nada.

Tratava-se apenas de um índio, mas, sem saberem porquê, o seu aparecimento fê-los calar a todos. Ele parou a olhá-los: a olhar o pai, o Sr. Boast, Royal Wilder, cada um dos outros homens e, por fim, Almanzo.

Era um índio muito velho. Tinha rugas profundas no rosto castanho e magro, mas era alto e direito. Tinha os braços cruzados debaixo do cobertor cinzento que o envolvia e a cabeça rapada apenas com uma madeixa de cabelo, da qual se erguia uma pena de águia. Os seus olhos eram brilhantes e vivos. Atrás dele, o sol brilhava na rua empoeirada, onde esperava um pónei índio.

- Vir muito grande neve - disse o índio.

O cobertor escorregou-lhe de um ombro e pela abertura saiu um braço castanho e nu. Moveu-se num gesto largo para norte, oeste e leste, abrangeu todos no gesto e girou de novo.

- Muito grande neve, grande vento - afirmou.

- Quanto tempo? - perguntou-lhe o pai.

- Muitas luas. - O índio levantou quatro dedos e depois mais três. Sete dedos, sete meses: nevascas durante sete meses.

Ficaram todos a olhá-lo, sem dizer nada. - Vocês homens brancos, eu dizer a vocês. Mostrou outra vez sete dedos.

-- Grande neve - de novo os sete dedos. - Grande neve - mais sete dedos. - Muito grande neve, muitas luas.

Depois bateu no peito com o indicador e disse, orgulhosamente:

- Velho! Velho! Já vi!

Saiu do armazém, montou-se no pónei e seguiu para oeste.

- Macacos me mordam! - exclamou o Sr. Boast.

- Que história foi aquela de sete grandes neves? - perguntou Almanzo.

O pai explicou-lhe: o índio queria dizer que de sete em sete anos havia um Inverno muito duro e que ao fim de três vezes sete Invernos chegava o Inverno mais duro de todos. Viera dizer aos homens brancos que o Inverno que se avizinhava era o vigésimo primeiro e haveria sete meses de nevascas.

- Acha que o velhadas sabia o que estava a dizer? - perguntou Royal, mas ninguém lhe soube responder. - Pelo sim pelo não -continuou Royal-, acho melhor mudarmo-nos para a cidade, durante o Inverno. O meu armazém de rações é muito melhor para passar o Inverno do que a barraca de uma reserva. Podemos lá ficar até à Primavera. Que te parece, Manzo?

- Concordo.

- E você, Boast, que diz de se mudar para a cidade? - perguntou o pai.

O Sr. Boast abanou lentamente a cabeça.

- Não acho que possamos. Temos muitos animais - gado, cavalos e galinhas. Na cidade não há lugar para os ter, mesmo que eu pudesse pagar uma renda, estamos muito bem instalados para o Inverno na reserva. Acho que a Ellie e eu ficamos melhor lá.

Estavam todos sérios. O pai pagou o que comprara e pôs-se a caminho de casa, apressado. De vez em quando, olhava para trás, para

O céu do lado noroeste. Mas estava claro e o sol brilhava.

A mãe estava a tirar pão do forno quando o pai chegou. Carrie e Graça correram ao seu encontro e vinham com ele. Maria continuou

a coser sossegadamente, mas Laura levantou-se de um pulo.

- Aconteceu alguma coisa, Charles? - perguntou a mãe, a despejar os rescendentes pães da forma para um pano branco limpo. - Regressaste cedo.

- Não aconteceu nada - respondeu o pai. - Aqui tens o açúcar i o chá e um pedaço de carne salgada. Não encontrei nem um coelho. Não aconteceu nada - repetiu -, mas vamos mudar-nos para a cidade o mais depressa possível.

Primeiro tenho de transportar para lá feno, para os animais. Se me despachar, poderei transportar uma carga, antes de escurecer.

- Meu Deus, Charles! - exclamou a mãe, inquieta, mas o pai já ia a caminho do estábulo.

Carrie e Graça olharam para a mãe e para Laura e depois de novo para a mãe. Laura olhou para a mãe e a mãe olhou, atarantada, para ela.

- O teu pai nunca fez uma coisa destas!

- O pai disse que não aconteceu nada, Ma - lembrou Laura. - Vou num instante ajudá-lo a carregar o feno.

A mãe também foi ao estábulo e o pai falou com ela enquanto encilhava os cavalos.

- Vai ser um Inverno duro - explicou o pai. - Se queres saber a verdade, estou com medo dele. Esta casa é apenas uma cabana de reserva, não impede a entrada do frio. Lembra-te do que aconteceu ao papel alcatroado na primeira nevasca. O nosso armazém na cidade está colmatado e forrado de papel alcatroado, protegido do lado de fora e tem o tecto forrado no interior. É bom, estanque e quente e o estábulo de lá também è quente.

- Mas qual é a necessidade de tanta pressa?

- Sinto que é melhor apressarmo-nos. Sou como os ratos-almiscarados, qualquer coisa me diz que te ponha e às pequenas ao abrigo de paredes grossas. Há algum tempo que sinto isso e agora aquele índio ...

Calou-se.

- Que índio? - perguntou a mãe.

Sempre que dizia a palavra, a mãe fazia uma cara como se estivesse a cheirar um índio. Desprezava os índios, além de os temer.

- Há alguns índios bons - afirmava sempre o pai, e desta vez acrescentou: - E sabem algumas coisas que nós não sabemos. Contar-te-ei tudo ao jantar, Carolina.

Não podiam falar enquanto o pai atirava forquilhadas de feno da meda para a grade e Laura as pisava, para as acamar. O feno foi subindo cada vez mais alto, sob as pernas apressadas de Laura, até a carga se encontrar muito mais alta do que as costas dos cavalos.

- Eu agora trato do resto - disse o pai. - A cidade não é lugar para uma rapariga fazer o trabalho de um rapaz.

Por isso, Laura deixou-se escorregar do alto da carga para o que restava da meda e o pai partiu. A tarde de Verão de São Martinho estava quente, perfumada e calma. O pequeno ondulado da terra de cores suaves estendia-se a perder de vista, sob um céu sereno. Mas qualquer coisa esperava debaixo daquela suavidade e serenidade. Laura compreendia o que o pai queria dizer.

«Ah, quem me dera as asas de um pássaro!» Laura recordou as palavras da Bíblia. Se tivesse as asas de um pássaro, também ela as abriria e voaria depressa e para muito longe.

Foi para casa, muito séria, para ajudar a mãe. Nenhum deles tinha asas; iam apenas mudar-se para a cidade, a fim de lá passarem o Inverno. A mãe e Maria não se importavam, mas Laura sabia que não gostaria de viver entre tanta gente.

 

                     INSTALADOS NA CIDADE

O edifício do armazém do pai era um dos melhores da cidade. Erguia-se isolado no lado oriental da Rua Principal e a sua falsa fachada era alta, de cantos rectos e tinha uma janela no primeiro andar. Em baixo havia duas janelas, com a porta principal no meio.

O pai não parou desse lado o carroção carregado. Contornou a esquina para a 2.a Rua, que era apenas um caminho, e conduziu o carroção para o alpendre das traseiras. Havia um bom estábulo de madeira já com uma meda de feno ao lado. Mais adiante, na 2.a Rua, Laura viu uma casa de tábuas novas, acabada de construir. O armazém e o estábulo do pai já estavam cinzentos, do tempo como os outros existentes na Rua Principal.

- Pronto, cá estamos! - exclamou o pai. - Não precisaremos de muito tempo para nos instalarmos.

Desamarrou Ellen, a vaca, e a sua vitela grande de trás do carroção, e Laura levou-as para as suas baias no estábulo, enquanto o pai descarregava o carroção. Depois o pai levou-o para o estábulo e começou a desatrelar os cavalos.

A porta interior do alpendre abria debaixo da escada que subia da sala de trás. A estreita sala das traseiras seria a cozinha, claro. tinha na outra extremidade uma janela que dava para a Rua 2 através de terrenos desocupados, para uma pequena loja desabitada. Mais longe, na pradaria, a nordeste, Laura distinguiu um armazém de dois andares.

A mãe estava parada na sala da frente vazia, a olhá-la e a pensar onde poria todas as coisas.

Na grande sala encontravam-se um aquecedor a carvão e uma :. reluzente secretária de compra e uma cadeira igualmente de compra.

- De onde vieram essa secretária e essa cadeira? - perguntou Laura, admirada.

- São do pai - respondeu a mãe. - O novo sócio do juiz Carrol tem uma secretária e, por isso, o juiz deixou a velha secretária e a cadeira, assim como o aquecedor a carvão, como pagamento de parte da renda.

A secretária tinha gavetas e um topo com cacifos e uma maravilhosa tampa flexível, feita de tabuinhas estreitas, que se podia puxar para baixo, caso em que ficava arqueada, ou empurrar para trás, caso em que desaparecia.

- Poremos as cadeiras de balanço junto da outra janela - disse a mãe. - Assim a Maria terá sol toda a tarde e eu terei luz para ler para todos até o Sol se pôr. É a primeira coisa que vamos fazer, Maria, para te poderes sentar e tomar conta da Graça, a fim de que nos não atrapalhe.

A mãe e Laura colocaram as cadeiras de balanço junto da janela. Depois carregaram a mesa através de várias portas e colocaram-na entre o aquecedor a carvão e a porta da cozinha.

- Assim fica num lugar quente para comermos - explicou a mãe.

- Podemos pôr as cortinas agora? - perguntou Laura.

As duas janelas eram como olhos estranhos a espreitar para dentro de casa. Passavam desconhecidos, na rua, e do outro lado erguiam-se outros edifícios, cujas janelas pareciam outros tantos oihos fixos. Um deles era a Loja de Ferragens Fuller, ladeada pela drogaria, pela Alfaiataria Power e pela Mercearia Loftus, Loja de Secos e Mercadorias Diversas.

- Sim, quanto mais depressa melhor - concordou a mãe.

Foi buscar as cortinas de musselina e ela e Laura colocaram-nas. Passou um carroção, enquanto as punham, e de repente desceram a 2.a Rua cinco ou seis rapazes e, a seguir, outras tantas raparigas.

- A escola terminou, por hoje - disse a mãe. - Amanhã tu e a Carrie vão à escola. - A voz da mãe exprimia satisfação.

Laura não disse nada. Ninguém sabia como receava conhecer estranhos. Ninguém sabia da agitação que ia no seu peito nem da estranha sensação do seu estômago quando era inevitável conhecê-los. Não gostava da cidade; não queria ir para a escola.

Era tão injusto que ela tivesse de ir! A Maria queria ser professora, mas não podia porque era cega. Laura não queria ensinar, mas teria de o fazer para agradar à mãe. Provavelmente passaria toda a sua vida entre pessoas estranhas e a ensinar crianças estranhas. Teria sempre medo e nunca o demonstraria.

Não! O pai dissera que não devia ter medo, nunca, e ela não teria. Seria corajosa, nem que isso a matasse. Mas mesmo que conseguisse vencer o medo, não conseguiria gostar de gente estranha. Sabia como os animais reagiam, compreendia o que pensavam, mas a respeito das pessoas nunca se podia ter a certeza.

Enfim, pelo menos as cortinas nas janelas impediriam os estranhos de olhar para dentro de casa.

Carrie colocara as cadeiras simples à roda da mesa. O chão era de limpas e bonitas tábuas de pinho e a grande sala ficou com um aspecto muito agradável quando a mãe e Laura colocaram um tapete feito de tiras de pano entrançadas defronte de cada porta.

O pai estava a instalar o fogão na cozinha. Depois de armar a chaminé, direita e sólida, foi buscar o armário dos géneros e encostou-o à parede, do outro lado da porta.

- Pronto! - exclamou. - O fogão e o armário ficam ambos à mão, relativamente à mesa da outra sala.

- Sim, Charles, bem pensado - elogiou a mãe. - Quando levarmos as camas para cima, depressa ficará tudo arrumado.

O pai levantou as peças das camas, enquanto a mãe e Laura as faziam passar pelo alçapão do cimo da escada. Depois ele passou pelo alçapão os grossos colchões de penas, os cobertores, as mantas e as almofadas. Em seguida foi com Carrie encher os enxergões de palha com o feno da meda. Tinha de ser com feno porque não havia palha naquela nova região onde ainda não fora cultivado cereal.

Sob o telhado do sótão, um tabique de papel de construção dividia o espaço em dois quartos. Um tinha uma janela para oeste e outro para leste. Da janela oriental, no cimo da escada, a mãe e Laura viram a longínqua linha do horizonte e a pradaria, a casa nova e o estábulo e o pai e Carrie todos atarefados a encherem os enxergões de feno.

- O pai e eu ficamos com este quarto ao cimo da escada - decidiu a mãe. - Vocês ficam com o da frente.

Montaram as camas e puseram as travessas. Depois o pai empurrou pela abertura do alçapão os enxergões bem cheios e com o feno a estalar, e Laura e Carrie fizeram as camas enquanto a mãe descia para tratar do jantar.

As cores do poente brilhavam na janela ocidental e inundavam o quarto todo de luz dourada, enquanto elas endireitavam o feno perfumado e crepitante dos enxergões, lhe punham em cima os colchões de penas e os afofavam e alisavam. Depois, uma de cada lado, estenderam os lençóis, os cobertores e as mantas, esticaram-nos bem e dobraram-nos e entalaram-nos, a formar um ângulo muito certinho, aos cantos. Afofou cada uma sua almofada, colocou-a no seu lugar e a cama ficou feita.

Quando as três camas estavam feitas, não havia mais nada que fazer.

Laura e Carrie pararam, envoltas na luz colorida do poente, a olhar pela janela. O pai e a mãe conversavam em baixo, na cozinha, e dois homens desconhecidos falavam na rua. Ao longe, mas não muito, alguém assobiava uma canção e ouviam-se muitos outros sons além desse - os sons que, todos juntos, formavam o som de uma cidade.

Subia fumo da parte de trás das fachadas das lojas. Depois da Loja de Ferragens Fuller, a 2.a Rua seguia para oeste, pela pradaria, até ao edifício solitário, que se erguia no meio da erva morta. Tinha quatro janelas e a luz do poente brilhava através delas, o que significava que devia ter mais janelas do outro lado. Tinham um alpendre entaipado na empena da frente, como um nariz, e o cano de uma chaminé pelo qual não saía fumo. Laura disse:

- Creio que é a escola.

- Quem me dera que não tivéssemos de ir - lamentou-se Carrie, num sussurro.

- Mas temos.

Carrie olhou, curiosa, para a irmã e perguntou-lhe:

- Não tens... medo?

- Não há nada de que ter medo! - respondeu Laura, ousadamente. - E se houvesse, nós não teríamos.

Em baixo estava calor, do lume aceso no fogão da cozinha, e a mãe dizia que a casa estava tão bem construída que pouco lume era necessário para a aquecer. A mãe preparava o jantar e Maria punha a mesa.

- Não preciso de ajuda - disse Maria, toda contente. - O armário está num lugar diferente, mas a mãe pôs os pratos nos mesmos sítios e assim eu encontro-os facilmente como sempre.

A mãe pôs o candeeiro na mesa do jantar e a sala da frente pareceu espaçosa. As cortinas cor de creme, a secretária e a cadeira amarelas e envernizadas, as almofadas das cadeiras de balanço, os tapetes de tiras de pano e a toalha de mesa encarnada, além da cor de pinho no chão, das paredes e do tecto, era tudo alegre. O chão e as paredes eram tão sólidas que não entrava a mínima corrente de ar.

- Gostava que tivéssemos uma casa assim na reserva - disse Laura.

- Ainda bem que a temos na cidade, pois assim vocês podem ir à escola este Inverno - observou a mãe. - Não podiam vir todos os dias a pé da reserva, se o tempo estivesse mau.

- É uma satisfação para mim estarmos onde temos a certeza de arranjar carvão e mantimentos - declarou o pai. - O carvão é muito melhor do que a lenha oca que está por aí, dá um calor certo. Guardaremos no alpendre carvão suficiente para a duração de qualquer nevasca, e poderei sempre arranjar mais na serração. Vivendo na cidade, não corremos o risco de se nos esgotar qualquer espécie de provisões.

- Quantas pessoas estão agora na cidade? - perguntou-lhe a mãe.

O pai fez contas:

- Catorze estabelecimentos e o depósito; e depois as casas do Sherwood, do Garland e do Owen, ou seja, dezoito famílias sem contar com três ou quatro barracas nas ruas de trás. Os irmãos Wilder também estão instalados no armazém de rações e chegou um homem chamado Foster, com uma parelha de bois, o qual ficou em casa do Sherwood. Contando todos, devem estar agora a viver aqui na cidade setenta e cinco a oitenta pessoas.

- E pensar que não havia cá uma alma, por esta altura, no Outono passado! - lembrou a mãe, e depois sorriu ao pai. - Ainda bem que, finalmente, vês alguma vantagemem viver num lugar povoado, Charles.

O pai teve de admitir que via. Mas acrescentou:

- Por outro lado, tudo isto custa dinheiro, que é uma coisa mais rara do que dentes de galinha. O caminho-de-ferro é o único lugar onde um homem pode ganhar um dólar por dia de trabalho, mas neste momento não está a meter gente. E a única caça que resta por aqui são lebres. O Orégão é o lugar para viver, neste tempo. Mas além não tardará a estar povoado.

- Pois sim, mas chegou a altura de as pequenas frequentarem a escola e aprenderem alguma coisa - disse a mãe firmemente.

 

                   CAP GARLAND

Laura não dormiu muito bem. Foi como se passasse a noite toda consciente de que a cidade a envolvia e de que de manhã teria de ir para a escola. Ficou cheia de receio quando acordou e ouviu passos na rua, em baixo, e desconhecidos a falar. A cidade também estava a acordar; os lojistas abriam os seus estabelecimentos.

As paredes da casa não deixavam entrar os desconhecidos. Mas Laura e Carrie sentiam o coração pesado, pois tinham de sair de casa e de travar conhecimento com desconhecidos. E Maria estava triste porque não podia ir para a escola.

- Laura e Carrie, não têm motivo nenhum para se preocupar - afirmou a mãe. - Tenho a certeza de que podem acompanhar a classe a que pertencem.

Olharam para a mãe, surpreendidas. Ela ensinara-as tão bem, em casa, que elas sabiam que podiam acompanhar as classes. Não era isso que as preocupava. Mas limitaram-se a dizer:

- Sim, Ma.

Atarefaram-se a lavar e limpar a louça e a fazer a cama e, apressadamente, Laura varreu o chão do quarto. Depois vestiram com cuidado os vestidos de lã de Inverno e, nervosamente, pentearam e entrançaram o cabelo. Puseram as fitas de domingo e, com o abotoador de aço, abotoaram as botinas.

- Despachem-se, filhas! - avisou a mãe. - Já passa das oito. Nesse momento, por causa do nervoso, Carrie arrancou um botão das botinas, que rolou e desapareceu numa fenda no chão.

- Oh, desapareceu! - exclamou Carrie, desesperada.

Não podia ir para um lugar onde estavam desconhecidos com uma falta na série de botões pretos da botina.

- Temos de tirar um botão das botinas de Maria - sugeriu Laura.

Mas a mãe ouvira o botão cair, no andar de baixo, encontrou-o e pregou-o, e depois abotoou a botina da Carrie. Estavam finalmente prontas.

- Estão muito bonitas - disse a mãe, a sorrir.

Vestiram os casacos, puseram os capuzes e pegaram nos livros escolares. Despediram-se da mãe e de Maria e saíram para a Rua Principal.

Os estabelecimentos estavam todos abertos. O Sr. Fuller e o Sr. Bradley acabaram de varrer os seus e estavam parados, de vassoura na mão, a admirar a manhã. Carrie deu a mão a Laura. Ajudava Laura saber que a irmã ainda estava mais assustada do que ela.

Atravessaram corajosamente a Rua Principal e meteram com firmeza pela 2.a Rua. O sol brilhava vivamente. Um emaranhado de ervas mortas projectava sombras ao lado dos rastos das rodas. As suas próprias sombras compridas caminhavam à frente delas, por cima das muitas pegadas dos carreiros. Parecia muito grande a distância para a escola, que ficava na pradaria, sem outros edifícios próximo.

Defronte da escola, rapazes desconhecidos jogavam à bola e duas raparigas desconhecidas estavam paradas na plataforma que levava à porta do alpendre.

Laura e Carrie foram-se aproximando cada vez mais. Laura tinha a garganta tão seca que mal podia respirar. Uma das raparigas era alta e morena e tinha o cabelo preto e liso torcido num pesado carrapito, na nuca. O seu vestido de fazenda azul-índigo era mais comprido do que o vestido castanho de Laura.

De súbito, Laura viu um dos rapazes saltar no ar e apanhar a bola. Era alto e veloz e tinha movimentos belos como os de um gato. O seu cabelo louro estava quase branco, do sol, e tinha olhos azuis - olhos que viram Laura e se abriram muito. Depois um sorriso espontâneo iluminou-lhe o rosto todo e o rapaz atirou-lhe a bola.

Laura viu a bola curvar no ar, a descer rapidamente, e sem ter tempo de pensar deu uma corrida e um salto e apanhou-a.

Os outros rapazes desataram a gritar:

- Eh, Cap! As raparigas não jogam à bola!

- Não pensei que ela a apanhasse - respondeu Cap.

- Não quero jogar - declarou Laura, e atirou a bola.

- Ela joga tão bem como qualquer de nós! -- gritou Cap. - Anda jogar - disse a Laura, e depois convidou também as outras raparigas: - Venham, Maria Power e Minnie, joguem também connosco!

Mas Laura apanhou os livros que deixara cair e voltou a pegar na mão de Carrie. Foram ter com as outras raparigas, que se encontravam à porta da escola. Estas, claro, não brincavam com rapazes.

Ela própria não sabia porque fizera semelhante coisa e estava envergonhada e receosa do que as outras pensariam dela.

- Sou Maria Power - apresentou-se a rapariga morena - e esta é Minnie Johnson.

Minnie Johnson era magra, loura e pálida e tinha sardas.

- Eu sou Laura Ingalls e esta é a minha irmã mais nova, Carrie - respondeu Laura.

Os olhos de Maria Power sorriram. Eram azul-escuros e tinham pestanas compridas e pretas. Laura sorriu também e decidiu que no dia seguinte torceria o próprio cabelo num carrapito e pediria à mãe que lhe fizesse o próximo vestido tão comprido como o de Maria.

- O que te atirou a bola é o Cap Garland - continuou Maria. Não houve tempo para dizer mais nada, pois a professora veio à porta com a sineta e entraram todos na escola.

Penduraram os casacos e os capuzes numa série de pregos que havia à entrada, onde a vassoura estava a um canto, junto do balde da água, em cima de um banco. Depois entraram na aula.

Era tão nova e limpa que Laura se sentiu de novo tímida e Carrie se deixou ficar parada ao lado dela. Todas as carteiras eram de madeira tão polida e lisa como vidro. Tinham pés de ferro preto, os assentos curvavam um pouco e as costas, que faziam parte das carteiras de trás, também curvavam. A parte de cima das carteiras tinham uns sulcos para os lápis e por baixo havia prateleiras para as ardósias e os livros.

Havia doze carteiras umas atrás das outras, de cada lado da grande sala. No meio da sala estava um grande fogão de aquecimento, com mais quatro carteiras à frente e quatro atrás. Quase todos os lugares estavam vagos. Do lado das raparigas, Maria Power e Minnie Johnson estavam sentadas juntas numa das carteiras de trás. Cap Garland e três outros rapazes crescidos ocupavam carteiras de trás do lado dos rapazes - nos lugares da frente sentavam-se alguns rapazes e raparigas mais pequenos. Frequentavam todos a escola havia já uma semana e sabiam onde se deviam sentar, mas Laura e Carrie não sabiam.

A professora dirigiu-se-lhes:

- São novas, não são?

Era uma senhora nova e sorridente, com uma franja encaracolada. O corpo do seu vestido preto era abotoado à frente com uma enfiada de brilhantes botões pretos. Laura disse-lhe como se chamava e ela respondeu:

- E eu sou Florence Garland. Moramos atrás da casa do teu pai, na rua seguinte.

Cap Garland era, então, irmão da professora e moravam na casa nova da pradaria, que ficava a seguir ao estábulo.

- Conheces o quarto livro de leitura? - perguntou a professora.

- Conheço, sim, minha senhora! - respondeu Laura, que na verdade o conhecia de ponta a ponta.

- Então veremos como te sais com o quinto - decidiu a professora.

Disse a Laura que se sentasse no banco de trás da fila do meio, ao lado da carteira de Maria Power. Mandou sentar Carrie à frente, com as meninas mais pequenas, e depois foi para a secretária e bateu com a régua.

- Silêncio! - Abriu a Bíblia e anunciou: - Esta manhã vamos ler o salmo XXIII.

Laura sabia os salmos de cor, claro, mas gostou de ouvir de novo todas as palavras do XXIII, de «O Senhor é o meu pastor, nada me faltará», até «Certamente a vossa bondade e a vossa misericórdia acompanhar-me-ão todos os dias da minha vida: e habitarei para sempre na morada do Senhor.»

Depois a professora fechou a Bíblia e os alunos abriram os livros nas carteiras.

Cada dia Laura gostava mais da escola. Não tinha companheira de carteira, mas nos intervalos e à hora do almoço ficava com Maria Power e Minnie Johnson. Depois das aulas, seguiam juntas pela Rua Principal e no fim da semana já se encontravam de manhã e iam para a escola juntas. Cap Garland incitou-as duas vezes a jogarem à bola com os rapazes, no intervalo, mas elas ficaram na aula e viram o jogo pela janela.

O rapaz de olhos castanhos e cabelo escuro era Ben Woodworth e vivia no depósito. O seu pai era um homem doente que o Pá mandara com o último carroceiro, no ano anterior. A «cura da pradaria» quase que curara, realmente, a tuberculose dos pulmões e ele voltara ao Oeste, para continuar o tratamento. Agora era o agente do depósito.

O outro rapaz chamava-se Artur Jonhson e era magro e louro como a sua irmã Minnie. Cap Garland era o mais forte e o mais rápido de todos. Do lado de dentro da janela, Laura, Maria e Minnie viam-no atirar a bola e saltar para a apanhar. Não era tão bonito como o Ben de cabelos escuros, mas havia nele qualquer coisa que atraía. Estava sempre bem disposto e o seu sorriso era como um acender de luz: modificava tudo, como o Sol ao nascer na alvorada.

Maria Power e Minnie frequentaram escolas no Leste, mas Laura não teve dificuldade em acompanhá-las nas suas lições. Cap Garland também era do Leste, mas não conseguia vencer Laura, nem em aritmética.

Todas as noites, depois do jantar, Laura punha os livros e a ardósia em cima da toalha aos quadrados encarnados e, à luz do candeeiro, estudava as lições do dia seguinte com Maria. Lia os problemas de aritmética em voz alta, e Maria fazia-os de cabeça, enquanto ela os fazia na ardósia. Lia a lição de História e Geografia a Maria, até as duas serem capazes de responder a todas as perguntas. Se o pai conseguisse, alguma vez, arranjar dinheiro suficiente para enviar Maria para o colégio de cegos, ela teria de estar preparada.

- E mesmo que nunca vá para o colégio -dizia Maria-, estou a aprender o mais que posso.

Maria, Laura e Carrie gostavam tanto da escola que tiveram pena quando chegou o sábado e o domingo e não houve aulas. Aguardaram ansiosamente a segunda-feira. Mas quando a segunda-feira chegou Laura irritou-se porque a roupa interior de flanela encarnada lhe fazia muito calor e comichão.

Fazia-lhe comichão nas costas, no pescoço e nos pulsos, e dobrada à volta dos tornozelos, debaixo das meias e do cano das botinas. Aquela roupa de flanela encarnada quase dava com ela em doida.

Ao meio-dia pediu á mãe que a deixasse mudar para roupa mais fresca:

- Está muito calor para andar com a roupa interior de flanela encarnada, Ma! - protestou.

- Bem sei que o tempo aqueceu - respondeu a mãe, brandamente. - Mas nesta época do ano usa-se roupa interior de flanela e podias constipar-te se a tirasses.

Laura voltou irritada para a escola e passou o tempo a contorcer-se, pois não se devia coçar. Tinha o livro de Geografia aberto à sua frente, mas não estava a estudar: tentava suportar a irritante roupa de flanela e estava desejosa de ir para casa, onde se poderia coçar. O sol que entrava pelas janelas do lado ocidental nunca se arrastara, porém, tão devagar.

De súbito, deixou de haver sol. Desapareceu, como se alguém o tivesse apagado como a uma luz.. Do lado de fora estava tudo cinzento e os vidros também estavam cinzentos. No mesmo momento começou a soprar uma ventania que sacudia as portas e as janelas e fazia estremecer as paredes da escola.

Miss Garland levantou-se, sobressaltada. Uma das pequenitas Beardsley gritou e Carrie ficou branca!

Laura pensou: «Foi assim que aconteceu em Plum Creek, no Natal em que o Pá se perdeu.» Desejou de todo o coração que o pai estivesse agora em casa, em segurança.

A professora e todos os outros estavam a olhar para as janelas, onde tudo era cinzento. Pareciam assustados. Então Miss Garland disse:

- É só uma tempestade, pequenos. Continuem a estudar as lições.

A nevasca fustigava as paredes e o vento assobiava e gemia no cano da chaminé.

Todas as cabeças se inclinaram para os livros, como a professora mandara. Mas Laura pensava na maneira de chegar a casa. A escola ficava muito longe da Rua Principal e não havia nada para os guiar.

Todos os outros alunos vieram do Leste, naquele Verão, e nunca viram uma nevasca na pradaria. Mas Laura e Carrie sabiam o que era. Carrie tinha a cabeça frouxamente inclinada para os livros e a Sua nuca, com o risco branco entre as tranças de cabelo fino e macio, parecia pequena, desamparada e assustada.

Havia pouco combustível na escola. A administração comprara carvão, mas ainda só fora entregue um carregamento. Laura pensou que talvez sobrevivessem à tempestade, na escola, mas para isso teriam de queimar todas as caras carteiras.

Olhou para a professora, sem levantar a cabeça. Miss Garland estava a pensar e mordia o lábio. Não se decidia a terminar a aula, por causa de uma tempestade, mas a verdade é que aquela tempestade a assustava.

«Devia dizer-lhe o que há a fazer», pensou Laura. No entanto, não sabia realmente o que havia a fazer. Não era seguro sair da escola, assim como não era seguro ficar lá. Até mesmo as bonitas carteiras poderiam ser insuficientes, não durar o suficiente para os manter quentes até a nevasca terminar. Lembrou-se dos seus agasalhos e dos de Carrie, na entrada. Acontecesse o que acontecesse, devia arranjar maneira de conservar a irmã quente. O frio já começava a sentir-se.

Bateram com força, à entrada, e todas as cabeças se voltaram e olharam para a porta.

A porta abriu-se e entrou apressadamente um homem: vinha de sobretudo, boné e cachecol e, por cima de tudo isso, trazia uma camada sólida de neve. Só conseguiram ver quem era quando ele puxou para baixo o cachecol que a neve tornara rígido.

- Vim buscá-los - disse à professora.

Era o Sr. Foster, o dono da junta de bois, que viera da sua reserva passar o Inverno em casa dos Sherwoods, que moravam defronte da professora.

Miss Garland agradeceu-lhe. Bateu com a régua na secretária e disse:

- Atenção! A aula terminou. Podem ir buscar os agasalhos à entrada e vesti-los junto do fogão.

Laura disse a Carrie:

- Fica aqui. Eu trago-te as coisas.

A entrada estava gelada e infiltrava-se neve por entre as tábuas toscas das paredes. Laura ficou enregelada antes de ter tempo de tirar o casaco e o capuz do prego.

Depois tirou os de Carrie e levou tudo para a sala de aula.

Comprimidos à volta do fogão, agasalharam-se todos muito bem. Cap Garland não sorria. Ouvia o Sr. Foster falar de olhos semicerrados e boca fechada com firmeza.

Laura enrolou bem o cachecol à volta do rosto pálido de Carrie e agarrou-lhe bem na mão enluvada.

- Não te preocupes - disse à irmã. - Não nos acontecerá nada.

- Agora sigam-me - disse o Sr. Foster, e deu o braço à professora. - E não se afastem uns dos outros.

Abriu a porta e saiu com Miss Garland. Maria Power e Minnie deram cada uma a mão a uma das pequenitas Beardsley. Ben e Artur seguiram-nas de perto e depois Laura e Carrie sairam para a neve que não deixava ver nada. Cap foi o último a sair e fechou a porta.

O vento fustigante e redemoinhante quase os não deixava andar. A escola desaparecera. Só conseguiam ver uma brancura rodopiante, neve e de vez em quando um vislumbre uns dos outros, a desaparecerem como sombras.

Laura sentiu-se sufocar. As partículas geladas de neve picavam-lhe os olhos e tiravam-lhe a respiração. As saias batiam à volta dela, ora tão enroladas ao seu corpo que não a deixavam dar um passo, ora abertas e levantadas até aos joelhos. De súbito, apertaram-se e fizeram-na tropeçar. Agarrou-se com toda a força a Carrie que, a debater-se e a cambalear, foi puxada pelo vento e depois arremessada de novo contra ela.

«Não podemos continuar assim», pensou Laura. Mas tiveram de continuar.

Estava sozinha na confusão de ventos turbilhonantes e neve, só lhe restava a mão de Carrie, que não deveria largar, nunca. O vento fustigava-a por todos os lados. Não conseguia ver nem respirar, tropeçava, quase caía, e de repente parecia ser levantada e Carrie chocava com ela. Tentou pensar. Os outros deviam estar algures, em frente. Tinha de andar mais depressa e acompanhá-los, ou então ela e Carrie perder-se-iam. Se se perdessem morreriam enregeladas.

Mas talvez já estivessem todos perdidos. A Rua Principal só tinha dois quarteirões de comprimento. Se se tivessem desviado um nadinha que fosse para norte ou para sul, não passariam pelo quarteirão de estabelecimentos para lá dos quais havia quilómetros e quilómetros de pradaria deserta.

Laura achava que já andara o suficiente para chegarem à Rua Principal, mas não conseguia ver nada.

A tempestade dissipou-se um pouco e ela viu vultos, à sua frente, vultos que eram apenas manchas de um cinzento mais escuro, na turbilhonante brancura acinzentada em que tudo se transformara.

Andou o mais depressa que pôde, com Carrie, até tocar no casaco da professora.

pararam todos. Enrolados nos seus agasalhos, pareciam trouxas muito juntas umas das outras, na névoa redemoinhante. A professora e o Sr. Foster tentaram falar, mas os ventos apoderavam-se dos seus gritos e ninguém conseguia ouvir o que diziam. Depois Laura começou a ter consciência do frio que tinha.

As suas mãos enluvadas estavam tão dormentes que mal sentia a de Carrie. Tremia toda, e até dentro de si havia um tremor que não conseguia dominar. Sentia no peito um nó sólido, que lhe doía, e a tremura parecia apertá-lo mais, apertá-lo tanto que a dor se tornava cada vez maior.

Estava assustada por causa de Carrie. O frio doía muito e Carrie não o poderia suportar. Carrie era muito pequena e magra, tinha sido sempre frágil, não poderia suportar aquele frio durante muito mais tempo. Tinham de encontrar um abrigo depressa.

O Sr. Foster e a professora estavam a andar de novo, um nadinha para a esquerda. Todos os outros se mexeram e apressaram a segui-los. Laura segurou Carrie com a outra mão, que levara na algibeira e, por isso, não estava tão dormente, e de súbito viu uma sombra passar por elas. Soube que era Cap Garland.

Ela não seguia os outros para a esquerda. Com as mãos nas algibeiras e a cabeça baixa, caminhava a direito contra a tempestade. Uma rajada furiosa tornou o ar ainda mais denso de neve e ele desapareceu.

Laura não se atreveu a segui-lo. Tinha de tomar conta de Carrie e a professora dissera-lhes que a seguissem. Tinha a certeza de que Cap seguira na direcção da Rua Principal, mas talvez estivesse enganada e não podia afastar Carrie dos outros.

Continuou a apertar bem a mão da irmã e apressou-se a seguir o Sr. Foster e a professora, a toda a velocidade possível. O seu peito soluçava, com falta de ar, e os seus olhos esforçavam-se por continuar abertos, apesar das partículas geladas que os feriam como areia. Carrie lutava corajosamente, tropeçava e caía e fazia o possível por se manter de pé e a andar. Só por instantes, quando o vórtice de neve era menos denso, conseguiam vislumbrar as sombras que andavam à sua frente.

Laura tinha a impressão de que seguiam na direcção errada, mas não sabia porquê. Ninguém podia ver nada. Também não havia nada por onde se orientassem - nem Sol, nem céu, nem a direcção dos ventos, que sopravam furiosamente de todas as direcções. Não havia nada além do turbilhonar estonteante e do frio.

Parecia que o frio e os ventos, o ruído dos ventos e a neve cegante e sufocante, o esforço e a dor, iam durar para sempre.

O pai sobrevivera a três dias de nevasca sob o aterro de Plum Creek. Mas ali não havia aterros de regatos. Ali só havia pradaria nua. O pai falara de ovelhas apanhadas numa nevasca, aninhadas umas contra as outras debaixo da neve. Algumas sobreviveram. Talvez as pessoas também pudessem fazer isso. Carrie estava tão cansada que não poderia ir muito mais longe, mas Laura não poderia levá-la ao colo, não suportaria o seu peso. Tinham de caminhar enquanto pudessem e depois...

Nisto, no meio da brancura turbilhonante, qualquer coisa chocou com ela. Foi uma pancada forte no ombro, que a sacudiu toda. Cambaleou e tropeçou contra qualquer coisa sólida. Era alto, era duro... era a esquina de duas paredes. As suas mãos sentiam-na, os seus olhos viram-na. Chocara com uma construção qualquer.

Gritou, com toda a sua força:

- Aqui! Venham cá! Está aqui uma casa!

O vento uivava de tal modo à volta da casa que ao princípio ninguém a ouviu. Mas ela afastou da boca o cachecol endurecido pela neve e gritou de novo para a tempestade cegante. Por fim, viu uma sombra, duas sombras altas e mais delgadas do que a parede sombria a que se agarrava. Eram o Sr. Foster e a professora. A seguir outras sombras aproximaram-se e comprimiram-se à volta dela.

Ninguém tentou dizer nada. Apertaram-se uns contra os outros e estavam todos presentes: Maria Power e Minnie, cada uma com uma pequenita Beardsley, e Artur Jonhson e Ben Woodworth com os pequenos Wilmarth. Só faltava Cap Garland.

Seguiram ao longo do lado desse edifício até chegarem à porta da frente: era o Mead's Hotel, mesmo na extremidade norte da Rua Principal.

Para lá dele só ficava a via férrea coberta de neve, o depósito solitário e a vasta e deserta pradaria. Se Laura se tivesse encontrado uns passos apenas mais perto dos outros, ter-se-iam perdido todos na imensa pradaria do lado norte da cidade.

Ficaram uns momentos parados junto das montras iluminadas do hotel. Lá dentro havia calor e repouso, mas a nevasca estava a piorar e tinham todos de chegar às respectivas casas.

A Rua Principal guiá-los-ia a todos, menos a Ben Woodworth, pois não havia outros edifícios entre o hotel e o depósito onde ele morava. Por isso, Ben entrou no hotel, onde ficaria até a nevasca acabar. Podia fazê-lo porque o pai tinha emprego certo.

Minnie e Artur Jonhson, com os pequenos Wilmarth, tiveram apenas de atravesar a Rua Principal para a Mercearia Wilmarth, ao lado da qual ficavam as suas casas. Os outros continuaram a descer a rua, encostados às casas. Passaram pela taberna, passaram pelo armazém de rações de Royal Wilder e depois pela Mercearia Barker.

O Hotel Beardsley ficava a seguir e as pequenitas Beardsley entraram.

A viagem estava quase terminada. Passaram pela loja de Ferragens Couse e atravessaram a Rua 2 para a Loja de Ferragens Fuller. Maria Power já só tinha de passar pela loja de ferragens, pois a alfaiataria do pai ficava ao lado.

Laura, Carrie, a professora e o Sr. Foster tiveram então de atravessar a Rua Principal. Era uma rua larga. Mas mesmo que não dessem com a casa do pai, ainda haveria entre elas e a pradaria as medas de feno e o estábulo.

Mas deram com a casa. Uma das suas janelas iluminadas projectava uma luz que o Sr. Foster viu antes de chocar com ela. Continuou o seu caminho contornando a esquina da casa, com a professora, para se guiarem pela corda da roupa, pelas medas de feno e pelo estábulo até à casa dos Garlands.

Laura e Carrie estavam em segurança junto da sua porta da frente. As mãos de Laura tactearam o puxador, mas estavam tão dormentes que não conseguiram girá-lo. O pai abriu a porta e ajudou-as a entrar.

Estava de sobretudo, boné e cachecol e pousara a lanterna acesa e um baraço de corda.

- Preparava-me para ir procurá-las - explicou.

Laura e Carrie respiraram fundo, na casa silenciosa. Reinava ali um silêncio tão grande sem o vento a puxá-las e a empurrá-las! Ainda estavam cegas, mas a neve gelada e turbilhonante deixara de lhes magoar os olhos.

Laura sentiu as mãos da mãe a tirar-lhe o cachecol gelado e perguntou.

- A Carrie está bem?

- Está, a Carrie está bem - respondeu o pai.

A mãe tirou o capuz a Laura, desabotoou-lhe o casaco e ajudou-a a despi-lo.

- Esta roupa está cheia de gelo - observou a mãe e, de facto, os agasalhos estalaram, quando ela os sacudiu, e caíram para o chão fragmentos brancos.

Depois a mãe disse:

- Está tudo bem quando acaba bem. Não têm queimaduras do frio, podem chegar-se para o lume e aquecer-se.

Laura mal se podia mexer, mas inclinou-se e, com os dedos, tirou a massa de neve que o vento introduzira entre as suas meias de lã e os canos das botinas. Só depois se aproximou a cambalear do fogão.

- Fica no meu lugar - ofereceu Maria, e levantou-se da cadeira de balanço. - É o mais quente.

Laura sentou-se, hirta. Sentia-se entorpecida e estúpida.

Esfregou os olhos e viu um risco vermelho na mão. As suas pálpebras sangravam, feridas pela neve. Os lados do aquecedor a carvão brilhavam, aquecidos ao rubro, e ela sentiu o calor na pele, mas por dentro continuou gelada. O calor do aquecedor não podia alcançar esse frio interior.

O pai sentou-se perto do aquecedor, com Carrie nos joelhos. Descalçara-lhe as botinas, para se certificar de que os seus pés não estavam gelados, e embrulhara-a num xaile, que tremia com a tremura do corpo de Carrie.

- Não consigo aquecer, Pá - disse ela.

- Vocês estão geladas, mas eu vou preparar num instantinho uma bebida quente - disse a mãe, e correu para a cozinha.

Pouco depois deu a cada uma delas um púcaro fumegante de chá de gengibre.

- Oh, cheira tão bem! - exclamou Maria.

Graça encostou-se aos joelhos de Laura, a olhar gulosamente

para o púcaro, até Laura lhe dar um golinho.

- Não haverá que chegue para todos? - perguntou o pai.

- Talvez haja - respondeu a mãe, e voltou à cozinha.

Era tão maravilhoso estar ali em casa, em segurança, ao abrigo do vento e do frio! Laura pensou que devia parecer-se um bocadinho com o Céu, onde os fatigados repousam. Não podia imaginar que o Céu fosse melhor do que estar onde estava, a aquecer pouco a pouco e a sentir-se bem a beber o chá quente e doce, a ver a mãe, Graça, o pai, Carrie e Maria, todos a saborear o seu púcaro de chá quente e a ouvir a tempestade, que não podia alcançá-los ali.

- Ainda bem que não teve de nos ir procurar, Pá - disse Laura, sonolenta. - Eu só desejava que o Pá estivesse em segurança.

- Também eu - disse Carrie, e aninhou-se contra o pai. - Lembrei-me daquele Natal em Plum Creek, quando o pai não chegou a casa.

- Eu também me lembrei disso - confessou o pai, muito sério. - Quando o Cap Garland entrou na loja do Fuller e disse que iam todos na direcção da pradaria deserta, nem imaginam como corri para vir buscar uma corda e uma lanterna.

- Ainda bem que chegámos sem novidade - disse Laura, a fazer um esforço para não dormir.

- Iria um grupo procurá-los, embora fosse o mesmo que procurar uma agulha no palheiro - observou o pai.

- É melhor esquecer o que lá vai - aconselhou a mãe.

- Ele fez o que pôde - continuou o pai. - Cap Garland é un rapaz esperto.

- E agora, Laura e Carrie, vão para a cama descansar um pouco. Um longo sono é do que estão a precisar - disse a mãe.

 

                     TRÊS DIAS DE NEVASCA

Quando abriu os olhos de manhã, Laura viu que todos os pregos do telhado por cima da sua cabeça estavam revestidos de geada. Geada tensa cobria também os vidros da janela, até acima. A luz do dia era fraca no interior das robustas paredes que não deixavam entrar a uivante nevasca.

Carrie também estava acordada. Espreitou ansiosamente, de baixo das mantas da cama que ficava junto do cano da chaminé e onde ela dormia com Graça. Deixou escapar uma baforada de respiração, para ver o frio que estava. Apesar da proximidade do cano, o hálito ficou branco, gelado, no ar. Mas a casa estava tão bem construída que não entrara nem um bocadinho de neve pelas paredes nem pelo telhado.

Laura sentia-se entorpecida e dorida, e Carrie também. Mas a manhã chegara e tinham de se levantar. Laura saiu da cama para o frio que a deixou sem fôlego, agarrou no vestido e nas botinas e correu para o cimo da escada.

- Podemo-nos vestir aí em baixo. Ma? - perguntou, grata pela quente e comprida roupa interior de flanela encarnada que trazia debaixo da camisa de dormir de flanela.

- Podem. O pai está no estábulo - respondeu a mãe.

O fogão aquecia a cozinha e a luz do candeeiro fazia-a parecer ainda mais quente. Laura vestiu a combinação e o vestido e calçou as botinas. Depois foi buscar a roupa das irmãs e aqueceu-as e trouxe Graça para baixo, embrulhada em mantas. Estavam todas vestidas e lavadas quando o pai chegou com o leite meio congelado no balde.

Depois de recuperar o fôlego e derreter a geada e a neve da barba, observou:

- Bem, o duro Inverno começou.

- Nem parece teu, Charles, preocupares-te com o tempo de Inverno.

- Não estou preocupado, Carolina. Mas vai ser um Inverno duro.

- Bem, se for -replicou a mãe-, estamos aqui na cidade, onde podemos obter o que precisamos nas lojas, mesmo com tempestade

Não haveria mais escola enquanto a nevasca não terminasse. Por isso, depois de despachada a lida da casa, Laura, Carrie e Maria estudaram as lições e a seguir costuraram, enquanto a mãe lhes lia.

A certa altura, ela levantou a cabeça, escutou e disse:

- Parece uma nevasca de três dias.

- Então não teremos mais escola esta semana - observou Laura, a perguntar a si mesma o que estariam Maria e Minnie a fazer.

A sala da frente estava tão quente que a geada das janelas se derretera um pouco e transformara em gelo. Quando respirava para o vidro, a fim de abrir um buraquinho por onde pudesse espreitar para fora, via bater nele a neve branca e turbilhonante. Nem sequer conseguia ver a Loja de Ferragens Fuller, que ficava defronte e onde o pai fora sentar-se junto do fogão, a conversar com os outros homens.

Do lado de cima da rua, depois da Loja de Ferragens Couse, do Hotel Beardsley e da Mercearia Barker, a loja de rações de Royal Wilder estava escura e fria. Ninguém iria comprar rações com aquele tempo e, por isso, Royal não acendera o aquecedor. Mas a sala das traseiras, onde ele e Almanzo viviam, estava quente e aconchegada e Almanzo estava a fritar panquecas.

Royal tinha de admitir que nem a mãe levava a palma a Almanzo a fazer panquecas. No estado de Iorque, onde tinham sido garotos, e mais tarde, na grande quinta do pai no Minesota, nunca pensaram em cozinhar, isso era trabalho de mulher. Mas desde que vieram para o Oeste, a fim de registar reservas, só lhes restava cozinhar ou passar fome. E Almanzo tinha de fazer a comida porque tinha jeito para quase tudo e também porque era mais novo do que Royal, que continuava a julgar que era ele quem mandava.

Quando viera para o Oeste, Almanzo tinha dezanove anos. Mas isso era segredo, pois ele registara uma reserva e, segundo a lei, só com vinte e um anos um homem o podia fazer. Almanzo não achava que estivesse a desrespeitar a lei e sabia que não estava a intrujar o Governo. No entanto, se alguém soubesse que ele tinha dezanove anos poderia tirar-lhe a reserva.

Almanzo via assim o assunto: o Governo queria aquela terra povoada, o Tio Sam daria uma quinta a qualquer homem com a coragem e os músculos necessários para irem para ali, cultivarem o solo composto de terra e raízes e persistirem até o trabalho ficar feito. Mas os políticos, lá longe em Washington, não podiam conhecer os colonos e, por isso, tinham de estabelecer regras que os regessem.

Uma dessas regras estipulava que um reservista deveria ter vinte e um

anos.

Nenhuma das regras funcionava como se pretendera. Almanzo

sabía que havia homens que ganhavam bom dinheiro registando reserVas de acordo com todas as normas legais e vendendo depois a terra a homens ricos, que lhes pagavam. Por toda a parte homens roubavam terra e faziam-no de acordo com todas as regras. Mas de todas as leis respeitantes às reservas a que parecia mais idiota a Almanzo era a que estipulava a idade do colono.

Todos sabiam que não havia dois homens iguais. Podia-se medir pano com um metro de madeira ou distância ao quilómetro, mas não se podia juntar os homens e medi-los por meio de uma regra qualquer. A inteligência e o carácter não dependiam de nada, a não ser do próprio homem. Havia homens que aos sessenta anos não tinham o juízo que alguns demonstravam aos dezasseis. E Almanzo considerava-se tão capaz, fosse no que fosse, como qualquer homem de vinte e um anos.

O pai de Almanzo pensava o mesmo. Um homem tinha o direito de conservar os filhos a trabalhar para ele até aos vinte e um anos. Mas o pai de Almanzo pusera os seus rapazes a trabalhar cedo e treinara-os bem. Almanzo aprendera a juntar dinheiro antes dos dez anos e desde os nove que fazia o trabalho de um homem na quinta. Aos dezassete anos, o pai considerara-o um homem e deixara-o dispor do seu tempo. Almanzo trabalhara por cinquenta cêntimos por dia e juntara dinheiro para comprar sementes e ferramentas. Cultivara trigo de sociedade, no Minesota ocidental, e fizera uma boa colheita.

Considerava-se tão bom colono quanto o Governo poderia desejar e achava que a sua idade não tinha nada a ver com o facto. Por isso, dissera ao agente fundiário: «Pode escrever que tenho vinte e um anos», e o homem piscara-lhe o olho e assim fizera. Agora Almanzo tinha a sua própria reserva e trigo para semear no próximo ano, que trouxera do Minesota, e se conseguisse aguentar-se naquelas pradarias e ter colheitas durante mais de quatro anos, teria a sua própria quinta.

Naquela altura estava a fazer panquecas não porque Royal mandasse nele, mas sim porque o irmão as não sabia fazer bem e ele gostava de leves e fofas panquecas de trigo-mouro com muito melaço.

Royal soltou um assobio e exclamou:

- Ouve aquilo! - Nunca tinha ouvido nada como aquela nevasca.

- O velho índio sabia de que falava - disse Almanzo. - Se temos de suportar sete meses disto...

As três panquecas que estavam na grelha faziam bolhas perto das bordas já a secar.

Almanzo voltou-as com habilidade e ficou a ver o seu lado castanho, marcado pela grelha, subir no meio.

O bom cheiro das panquecas misturava-se com os odores agradáveis do toucinho frito e do café fervente. A sala estava quente e o candeeiro com reflector de folha, suspenso de um prego, iluminava-a brilhantemente. Das toscas paredes de tábuas pendiam selas e correias de arneses. A cama ficava a um canto e a mesa estava chegada para a chaminé, de modo que Almanzo podia pôr as pequenas panquecas nos pratos de louça branca sem precisar de dar um passo.

- Isto não pode durar sete meses. A ideia é ridícula - asseverou Royal. - Há-de haver alguns períodos de bom tempo.

Almanzo respondeu, despreocupado:

- Tudo pode acontecer, e geralmente acontece.

Introduziu a faca sob as extremidades das panquecas.

Como estavam Prontas tirou-as para o prato de Royal e untou de novo a grelha com o courato.

- Há uma coisa que não pode acontecer - disse Royal, enquanto deitava melaço nas panquecas. - Não nos conseguiremos aguentar aqui até à Primavera, a não ser que mantenham os comboios a andar.

Almanzo deitou mais três rodelas de massa do jarro para a grelha rechinante. Encostou-se ao tabique quente, junto do cano da chaminé, à espera que as panquecas subissem.

- Lembrámo-nos de trazer mais feno - observou. - Temos rações secas suficientes para a parelha.

- Oh, os comboios hão-de passar! - afirmou Royal, a comer. - Mas se não passassem estaríamos em apuros. Como nos arranjaríamos no respeitante a carvão, petróleo, farinha e açúcar? E, pela mesma ordem de ideias, quanto tempo duraria a minha reserva de rações, se caísse aí a cidade toda a comprar?

Almanzo endireitou-se e exclamou:

- Ninguém vai levar o meu trigo de semente! Aconteça o que acontecer.

- Não acontecerá nada - garantiu Royal. - Onde já se ouviu falar de tempestades que durassem sete meses? Voltarão a pôr os comboios a funcionar.

- Oxalá - desejou Almanzo, a virar as panquecas.

Pensou no velho índio e olhou para os seus sacos de trigo de semente, que estavam empilhados ao longo do extremo da sala e alguns até debaixo da cama. O trigo de semente não era de Royal, era dele. Cultivara-o no Minesota. Lavrara e sulcara o chão e semeara o trigo. Cortara-o e atara-o, debulhara-o e ensacara-o, e transportara-o no seu carroção numa distância de mais de cento e cinquenta quilómetros.

Se tempestades como aquela demorassem os comboios de tal modo que não chegasse mais trigo de semente do Leste, a não ser depois do tempo de semear, a sua colheita do próximo ano, a sua reserva, dependeriam de ter aquela semente. Não a venderia por dinheiro nenhum. Era com sementes que se faziam searas. Não se podiam semear dólares de prata.

- Não venderei nem um grão do meu trigo de semente - afirmou.

- Está bem, está bem, ninguém está a pensar no teu trigo de semente - redarguiu-lhe Royal. - E se fizesses mais panquecas?

- Com estas faz vinte e uma - disse Almanzo, a deitar as que acabara de fazer no prato do irmão.

- Quantas comeste enquanto eu estive a tratar dos animais, hem?

- Não contei - respondeu Almanzo, a sorrir. - Mas, com a breca, alimentar-te está a abrir-me o apetite.

- Enquanto continuarmos a comer não teremos de lavar os pratos - volveu Royal.

 

                   O PAI VAI A VOLGA

A nevasca terminou ao meio-dia de terça-feira. Depois o vento amainou e o Sol brilhou vivamente no céu limpo.

- Bem, acabou - disse o pai, satisfeito. - Agora talvez tenhamos um período de bom tempo.

A mãe suspirou, também satisfeita.

- É bom ver outra vez o Sol.

- E ouvir o silêncio - acrescentou Maria.

Podiam ouvir de novo os pequenos ruídos da cidade. De vez em quando, a porta de uma loja batia. Ben e Artur passaram, a conversar, e Cap Garland desceu a Rua 2 a assobiar. O único som habitual que não ouviam era o apito do comboio.

Ao jantar, o pai disse que o comboio estava parado perto do grande aterro cheio de neve das imediações de Tracy.

- Mas desimpedirão a via em dois dias - acrescentou. - Quem se rala com comboios, num tempo como este?

No dia seguinte, de manhã cedo, foi à loja de Fuller, do outro lado da rua, e não se demorou nada. Quando voltou disse à mãe que alguns homens iam partir na vagoneta manual do depósito, ao encontro do comboio em Volga. De caminho, desimpediriam a via. O Sr. Foster acedera a tratar dos animais do pai, se ele também fosse.

- Estou há tanto tempo parado no mesmo lugar que gostaria de viajar um pouco - comentou o pai.

- O melhor é ires, Charles - concordou a mãe. - Mas conseguem desimpedir a via num dia?

- Pensamos que sim. Os aterros são pequenos, daqui a Volga, e a distância é de apenas cerca de oitenta quilómetros. O pior troço fica a leste de Volga e as brigadas dos comboios já lá estão a trabalhar. Se desimpedirmos o resto do caminho, poderemos voltar com o comboio regular depois de amanhã.

Enquanto falava, calçava mais um par de peúgas de lã. Enrolou o largo cachecol ao pescoço e cruzou-o no peito e, por cima, abotoou bem o sobretudo.

Desceu e prendeu as orelheiras do boné, calçou as luvas de lã mais quentes e, de pá ao ombro, dirigiu-se para o depósito.

Eram quase horas de a escola começar, mas em vez de se apressarem, Laura e Carrie pararam na Rua 2, a ver o pai partir para a sua viagem.

A vagoneta estava na via, junto do depósito, e homens subiram para ela, quando o pai chegou.

- Tudo pronto, Ingalls! Toda a gente a bordo! - gritaram, e o vento norte, que soprava sobre a neve ofuscante, fez chegar todas as palavras aos ouvidos de Laura e Carrie.

O pai subiu num instante para a vagoneta, agarrou numa alavanca e gritou:

- Vamos, rapazes!

O Sr. Fuller, o Sr. Mead e o Sr. Hinz ocuparam os seus lugares em fila, voltados para o pai e para o Sr. Wilmarth e Royal Wilder. Todas as mãos enluvadas estavam postas nas duas compridas alavancas de madeira que atravessavam a vagoneta, com a bomba no meio.

- Tudo a postos, rapazes! Toca a pô-la a andar! - entoou o Sr. Fuller e, juntamente com o Sr. Mead e o Sr. Hinz, inclinou-se, a empurrar a alavanca para baixo.

Quando as cabeças e a alavanca dos três homens subiram, o pai e os outros dois inclinaram-se e empurraram a sua alavanca para baixo. Abaixo e acima, abaixo e acima, as duas filas de homens curvavam-se e endireitavam-se como se fizessem uma grande vénia uns aos outros, alternadamente, e as rodas da vagoneta começavam a rodar lentamente, e depois depressa, ao longo da via, na direcção de Volga. E enquanto moviam as alavancas, o pai começou a cantar e os outros fizeram coro:

 

         A VELHA V-vagoneta FAZEmos RODAR,

         A VELHA V-vagoneta FAZEmos RODAR,

         A VELHA V-vagoneta FAZEmos RODAR,

         Para TRÁS não nos DEIXAmos FICAR!

 

Para cima e para baixo, para cima e para baixo, todas as costas se moviam a compasso com a canção e as rodas giravam suavemente e cada vez mais depressa.

 

         Se o pecador no caminho se atravessar,

         Paramos para o recolher,

         Para TRÁS não nos DEIXAmos FICAR!

         A VELHA V-vagoneta FAZEmos RODAR,

         A VELHA V-vagoneta FAZE...

 

Bump! A velha vagoneta encravou-se profundamente num aterro de neve.

- Todos para fora! - gritou o Sr. Fuller. - Desta vez não a fazemos rodar!

Todos os homens pegaram nas pás e saltaram da vagoneta. Poalha brilhante de neve voou no vento, dos matacões de neve sólida arrancados pelas atarefadas pás.

- Temos de ir para a escola - disse Laura a Carrie.

- Por favor, fiquemos a ver mais um bocadinho! - pediu Carrie, a olhar, de olhos semicerrados, através da brancura da neve, Para o pai, que trabalhava afanosamente à frente da vagoneta.

Passados momentos, os homens voltaram a subir para a vagoneta, pousaram as pás e inclinaram-se para as alavancas.

 

         Se o Diabo no caminho se atravessar

         Passaremos por cima dele,

         Para TRÁS não nos DEIXAmos FICAR!

 

A escura vagoneta foi-se tornando cada vez mais pequena, assim como as duas filas de homens a inclinarem-se alternadamente uns diante dos outros, e a canção foi-se ouvindo cada vez mais baixo, através dos cintilantes campos de neve:

 

         A velha vagoneta fazemos rodar,

         A velha vagoneta fazemos rodar,

         A velha vagoneta fazemos rodar,

          Para trás não nos deixamos ficar!

 

Cantando e dando à alavanca, fazendo rolar a vagoneta e abrindo caminho através de montes de neve e aterros, o pai lá foi para Volga.

Durante todo o resto do dia e o dia seguinte houve um vazio em casa. De manhã e à noitinha, o Sr. Foster tratava dos animais e, depois de ele sair do estábulo, a mãe mandava Laura verificar se ele fizera tudo como devia ser.

- O pai deve chegar amanhã, com certeza - disse a mãe, na quinta-feira à noite.

Ao meio-dia do dia seguinte, o longo e límpido apito do comboio soou na pradaria coberta de neve e, da janela da cozinha, Laura e Carrie viram o fumo preto enovelar-se no céu e o ruidoso comboio passar por baixo dele. Era o comboio de trabalho, cheio de homens alegres e a cantar.

- Ajuda-me a preparar o almoço, Laura - disse a mãe. - O pai deve vir cheio de fome.

Laura estava a tirar os biscoitos do forno quando a porta da frente se abriu e o pai gritou:

- Olha quem veio comigo, Carolina!

Graça, que corria para o pai, parou e recuou, os olhos muito abertos e dedos na boca. A mãe afastou-a com cuidado, ao dirigir-se para a porta com o prato de puré de batata na mão.

- Oh, Sr. Edwards! - exclamou.

- Eu bem disse que o voltaríamos a ver, depois de ele nos ter salvado a reserva - disse o pai.

A mãe pousou o prato em cima da mesa.

- Tenho desejado tanto agradecer-lhe ter ajudado o meu marido a registar a reserva! - disse ao Sr. Edwards.

Laura tê-lo-ia reconhecido fosse onde fosse. Era o mesmo gato selvagem alto e magro do Tenessi. As rugas de riso do seu rosto castanho como couro estavam mais profundas e tinham na cara uma cicatriz de navalha que não tivera antes, mas os olhos eram os mesmos: risonhos, indolentes e vivos.

- Oh, Sr. Edwards! - exclamou.

- Levou-nos os presentes do pai Natal - recordou Maria.

- Atravessou o regato a nado - continuou Laura. - E partiu pelo rio Verdigris abaixo...

O Sr. Edwards raspou com um pé no chão e inclinou-se profundamente.

- Sr.a Ingalls, meninas, tenho um grande prazer em voltar a vê-las todas.

Fitou os olhos de Maria, que não o viam, e a sua voz tornou-se meiga quando disse:

- Estas duas bonitas jovens são as duas pequeninas que balancei nos meus joelhos, Ingalls, lá em baixo, no Verdigris?

Maria e Laura disseram que sim, que eram, e que Carrie fora a bebé, nessa altura.

- Agora a Graça é a bebé - explicou a mãe, mas Graça não quis aproximar-se do Sr. Edwards, limitava-se a olhá-lo, agarrada às saias da mãe. - Chegou mesmo a tempo, Sr. Edwards - acrescentou a mãe, hospitaleira. - O almoço estará na mesa daqui a um minuto.

- Sente-se Edwards, e nada de cerimónias! - convidou o pai. - O que há chega para todos.

O Sr. Edwards admirou a casa bem construída e agradável e apreciou muito o bom almoço. Mas disse que seguiria para oeste com o comboio, quando ele partisse. O pai não conseguiu convencê-lo a demorar-se mais tempo.

- Tenho intenção de penetrar muito no Oeste, na Primavera - explicou. - Esta região aqui está demasiado povoada para o meu gosto. Os políticos já começam a aparecer e, minha senhora, acredite que pior praga que os gafanhotos, só os políticos. São capazes de levar o forro das algibeiras a um homem, em impostos, para manter estas sedes de condado! E eu, com franqueza, não lhes vejo utilidade nenhuma. Passámos todos muito bem sem elas.

»No Verão passado, apareceu um tipo e colectou-me. Disse que eu teria de declarar tudo quanto tinha, até à coisa mais insignificante. Por isso, declarei o Tom e o Jerry, que são os meus cavalos, por cinquenta dólares cada um, e a minha vaca por trinta e cinco.

»É tudo quanto tem?», perguntou-me ele. Respondi-lhe que podia declarar cinco filhos, cujo preço avaliara num dólar por cabeça.

»Não tem mais nada?», insistiu. E a sua mulher?»

»Por Deus Todo-Poderoso!», repliquei-lhe. «Ela diz que não sou seu dono e eu não tenciono pagar imposto por ela!» E não paguei.

- Não sabíamos que tinha uma família, Sr. Edwards - observou a mãe. - O meu marido não dissera nada.

- Eu também não sabia - declarou o pai. - De qualquer modo, Edwards, não tem de pagar impostos sobre a sua mulher e os seus filhos.

- Ele queria uma grande lista de impostos - explicou o Sr. Edwards. - Os políticos têm prazer em meter o nariz na vida de um homem e eu não me importo de lhes fazer a vontade. Não tem importância nenhuma, pois não tenciono pagar impostos. Vendi o direito da minha reserva e quando o cobrador aparecer, na Primavera, não me encontrará. Também não tenho nem mulher, nem filhos.

Antes de o pai ou a mãe poderem falar, o apito do comboio soou, forte e demorado.

- Já estão a chamar a gente - disse o Sr. Edwards, e levantou-se da mesa.

- Mude de ideias e fique uns tempos, Edwards - insistiu o pai. - Você dá-nos sempre sorte.

Mas o Sr. Edwards apertou a mão a todos, deixando Maria, que estava a seu lado, para o fim.

- Adeus a todos! - despediu-se, saiu rapidamente pela porta fora e correu para a estação.

Graça olhara e escutara durante o tempo todo, de olhos muito abertos, sem tentar dizer uma palavra. Mas depois de o Sr. Edwards desaparecer tão subitamente, respirou fundo e perguntou:

- Maria, foi este homem que viu o Pai Natal?

- Foi - respondeu a irmã, - Foi ele que percorreu sessenta e cinco quilómetros a pé, debaixo de chuva, até Independence, viu lá o Pai Natal-e trouxe os presentes de Natal para a Laura e para mim, quando éramos pequenas.

- Tem um coração de ouro - disse a mãe.

- Trouxe a cada uma de nós um púcaro de folha e uma barra de chupa-chupa - recordou Laura, ao mesmo tempo que se levantara e começara a ajudar a mãe e Carrie a levantar a mesa.

O pai foi sentar-se na sua grande cadeira, junto do aquecedor.

Maria levantou o lenço do colo, para sair da mesa, e caiu qualquer coisa para o chão. A mãe baixou-se, para a apanhar, e ficou imóvel e sem fala. Laura exclamou:

- Maria! Uma nota de vinte dólares! Deixaste cair uma nota de vinte dólares!

- Impossível! - exclamou Maria.

- Aquele Edwards! - murmurou o pai.

- Não podemos ficar com ela - disse a mãe, mas nesse momento ouviu-se, claro e prolongado, o apito de despedida do comboio.

- Que lhe queres fazer, então? - perguntou o pai. - O Edwards foi-se embora e não voltaremos a vê-lo durante anos... se é que alguma vez isso acontecerá. Ele vai para o Orégão na Primavera.

- Mas, Charles... Porque fez ele isto? - indagou a mãe, baixinho, toda preocupada.

- Ele deu-o à Maria. Ela que o guarde. Ajudá-la-á a ir para o colégio.

A mãe pensou um momento, antes de se decidir:

- Pois sim - e deu a nota a Maria.

Maria pegou-lhe cuidadosamente, a tocar-lhe com as pontas dos dedos, e o seu rosto iluminou-se.

- Oh, obrigada, Sr. Edwards!

- Oxalá nunca lhe falte, aonde quer que ele vá - desejou a mãe.

- Está tranquila, que o Edwards sabe cuidar de si - garantiu- lhe o pai.

O rosto de Maria ficou sonhador, com aquela expressão que era sinal de que estava a pensar no colégio para cegos.

- Mãe -murmurou -, com o dinheiro que ganhou com os hóspedes, o Verão passado, faz trinta e cinco dólares e vinte e cinco cêntimos.

 

                     SOZINHOS

No sábado, o sol brilhava e o vento soprava, suavemente, do sul. O pai fora buscar feno à reserva, pois a vaca e os cavalos tinham de comer muito, para se conservarem quentes no tempo frio.

Maria balouçava-se devagarinho, ao sol que entrava pelas janelas do lado ocidental, e Laura fazia renda, com uma linha muito fina, para enfeitar uma combinação. Estava sentada perto da janela e olhava para a rua, pois esperava Maria Power e Minnie Johnson. As amigas ficaram de trazer as suas rendas e vir passar a tarde com elas.

Maria falava do colégio que talvez um dia frequentasse.

- Vou a par contigo nas lições, Laura - disse. - Se um dia for para o colégio, gostaria que também fosses.

- Creio que serei professora. Por isso, de qualquer maneira não poderia ir. E acho que tu tens mais vontade de ir do que eu.

- Oh, se tenho vontade de ir! - exclamou Maria, baixinho. - Desejo-o mais do que tudo. Há tanta coisa que aprender! E eu sempre quis estudar, estudar... E pensar que, se conseguirmos juntar o dinheiro, o poderei fazer, mesmo sendo cega! Não é maravilhoso?

- É, sim - concordou Laura, gravemente, pois não tinha grande esperança de que Maria pudesse ir para o colégio. - Ora esta, contei mal as malhas! - Desmanchou a carreira e começou a apanhar as pequenas laçadas com a agulha fina. - Costuma-se dizer que Deus ajuda quem se ajuda, e tu com certeza irás para o colégio se...

Esqueceu-se do que ia a dizer. As pequenas laçadas de linha desapareciam diante dos seus olhos, como se estivesse a ficar cega. Não as via. O novelo de linha caiu-lhe do colo e rolou no chão, quando se levantou de um pulo.

- Que aconteceu? - perguntou Maria.

- A luz desapareceu!

Realmente, o sol deixara de brilhar. O ar estava cinzento e o barulho do vento aumentava. A mãe veio, apressada, da cozinha.

- É uma tempestade, filhas! - mal teve tempo de dizer, antes de a casa tremer sob a força do temporal. As fachadas das lojas, do outro lado da rua, escureceram e desapareceram num turbilhão de neve. - Oh, quem me dera que o pai já tivesse chegado!

Laura afastou-se da janela e puxou a cadeira de Maria para junto do aquecedor. Depois tirou carvão da caixa e deitou-o no lume. De súbito, o uivo do vento irrompeu pela cozinha, a porta das traseiras bateu com força e o pai entrou, cheio de neve e a rir.

- Venci a nevasca até ao estábulo por menos de uma unha negra! O Sam e o David esticaram as pernas e vieram num instante. Foi por um triz! Mas esta nevasca não levou a melhor.

A mãe pegou-lhe no sobretudo e dobrou-o, para ir sacudir a neve no alpendre.

- O que importa é que estejas cá, Charles - murmurou.

O pai sentou-se e inclinou-se para o aquecedor, com as mãos estendidas para o calor. Mas escutava, preocupado, o vento. Pouco depois, levantou-se.

- Vou tratar dos animais, antes que piore - disse. - Talvez demore um bocado, mas não te preocupes, Carolina. A tua corda da roupa guiar-me-á para casa.

Escureceu sem que ele voltasse. O jantar estava pronto e à espera quando chegou, a bater com os pés e a esfregar as orelhas.

- Com a breca, está a pôr-se um destes frios! A neve bate num homem como chumbo de caçadeira. E ouçam como o vento uiva.

- Isto vai bloquear os comboios, não? - perguntou a mãe.

- Já vivemos sem comboios - respondeu o pai, bem disposto, mas lançou à mãe um olhar que a avisava para não dizer mais nada enquanto as filhas estivessem a ouvir. - Estamos aconchegados e quentes, como estávamos dantes sem termos sequer pessoas à nossa volta e lojas! E agora venha de lá esse jantar quentinho!

- Depois do jantar toca rabeca, não toca, pai? - pediu Laura -, Por favor!

Por isso, depois do jantar o pai pediu a rabeca e Laura foi buscar-lha. Mas quando afinou as cordas e pôs resina no arco, o pai tocou uma estranha melodia. A rabeca emitiu um meio-tom profundo e lamentoso, com notas altas a saltar à toa, a subirem até se extinguirem em nada, para depois voltarem num gemido, as mesmas, mas não inteiramente iguais, como se se tivessem modificado durante o breve espaço de tempo em que deixaram de se ouvir.

Laura sentiu calafrios na espinha e no couro cabeludo, mas a estranha, selvagem e mutável melodia continuou a jorrar da rabeca até ela não poder ouvir mais e gritar:

- Que é, Pá? Que melodia é essa?

- Escuta. - O pai deixou de tocar e imobilizou o arco por cima das cordas. - A melodia está lá fora, eu limitei-me a acompanhá-la.

Ouviram todos o vento tocar aquela melodia até a mãe dizer:

- Provavelmente ouvi-la-emos o suficiente sem ser necessário que a toques, também, Charles.

- Então vamos ouvir qualquer coisa diferente - concordou o pai. - Que há-de ser?

- Qualquer coisa que nos aqueça - pediu Laura, e a rabeca, alegre e viva, começou a aquecê-las.

O pai tocou e cantou A Pequena Annie Rooney É Minha Namorada e A Velha Égua Cinzenta já não É o Que Era, até os pés da própria mãe marcarem o compasso. Tocou também O Puladinho à Terras Altas e jigas irlandesas, e Laura e Carrie dançaram até ficarem sem fôlego.

Quando o pai colocou a rabeca na caixa, isso significou que eram horas de ir para a cama.

Custou-lhes abandonar a sala quente e irem para o andar de cima. Laura sabia que todas as pontas de pregos que trespassavam as tábuas do telhado estariam cobertos de geada.

As janelas do andar de baixo também estavam cobertas de uma espessa camada de geada, mas, não sabia porquê, aqueles pregos esbranquiçados faziam-na sentir muito mais frio.

Embrulhou os dois ferros de engomar nas respectivas flanelas e subiu à frente, seguida por Maria e Carrie. Lá em cima o ar estava tão frio que pareceu enrugar-lhes o interior do nariz, enquanto desabotoavam e descalçavam as botinas e despiam, a tremer, os vestidos.

- Deus ouvir-nos-á se rezarmos as nossas orações debaixo dos cobertores - disse Maria, a bater os dentes, e meteu-se na cama fria. Os ferros não tiveram tempo de aquecer as camas. No silêncio frio, debaixo do telhado de pregos gelados, Laura ouvia o estremecer das camas dentro das quais Maria e Carrie tremiam. A fúria dos gritos selvagens e agudos dos ventos cercava aquele pequeno espaço de silêncio.

- Que estás a fazer, Laura? - perguntou Maria. - Despacha-te, vem ajudar a aquecer a cama!

Para responder, Laura teria de descerrar os dentes, que bateriam descontroladamente. Estava junto da janela, de meias calçadas e camisa de dormir. Raspara a geada de um espaço do vidro e tentava ver através dele. Pôs as mãos em concha aos lados dos olhos, para os proteger da fraca luz do candeeiro que vinha da escada. Mas nem mesmo assim conseguiu ver nada. Na clamorosa noite exterior não havia nem um pontinho de luz.

Por fim deitou-se ao lado de Maria, encolheu-se toda e comprimiu os pés contra o ferro quente.

- Estava a tentar ver uma luz - explicou. - Deve haver uma luz nalguma casa.

- E não viste?

- Não. - Não conseguira ver sequer a luz da janela do rés-do-chão, onde sabia que o candeeiro estava aceso.

Carrie estava sossegada na sua cama junto do cano que subia do fogão quente, em baixo, e que ajudava a aquecer a cama. E também tinha um ferro quente. Dormia profundamente quando a mãe deitou Graça a seu lado.

- Estão quentes, filhas? - perguntou a mãe, baixinho, ao inclinar-se para a cama e aconchegar melhor os cobertores à volta delas.

- Estamos a aquecer. Ma - respondeu Laura.

- Então boa noite e bons sonhos.

Mas mesmo depois de ter aquecido Laura continuou acordada, a ouvir a melodia agreste do vento e a pensar em todas as pequenas casas da cidade, sozinhas no meio da neve turbilhonante e sem uma luz sequer a brilhar através da tempestade, vinda da casa próxima. E a Pequena cidade encontrava-se sozinha na pradaria imensa.

Cidade e pradaria perdiam-se na selvagem tempestade que não era terra nem céu, que era somente ventos furiosos e uma brancura densa.

Sim, porque a tempestade era branca. Na noite, muito depois de o Sol se ter posto e de a última luz do dia ter desaparecido, a nevasca era de um branco turbilhonante e mais nada.

Um candeeiro podia brilhar através da escuridão mais densa e um grito podia ouvir-se muito longe, mas não havia luz nem grito que conseguissem trespassar uma tempestade toda cheia de vozes agrestes e com uma luz própria e não natural.

Os cobertores estavam quentes e Laura já não tinha frio, mas tremia.

 

                   ÀS SUAS RAJADAS RESISTIREMOS

De mistura com as vozes agrestes, Laura ouvia o bater das tampas do fogão e o pai a cantar: «Oh, sou tão feliz como um grande girassol, que acena e se dobra sob as brisas. Oh!...»

- Carolina! - gritou o pai, pela escada acima. - Quando desceres os lumes estarão bem acesos. Eu vou ao estábulo.

Laura ouviu a mãe mexer-se.

- Deixem-se ficar, filhas - disse. - Não há necessidade de se levantarem enquanto a casa não estiver mais quente.

Estava terrivelmente frio fora da cama. Mas o clamor e os uivos da tempestade não deixariam Laura readormecer. Os pregos cobertos de geada, por cima da sua cabeça, pareciam dentes brancos. Deixou-se ficar mais alguns minutos, apenas, mas depois foi também para baixo, como a mãe.

O lume crepitava alegremente no fogão da cozinha e o lado do aquecedor, na sala da frente, estava rubro, mas mesmo assim as casas estavam frias e tão escuras que nem parecia dia.

Laura quebrou o gelo da água do balde, encheu a bacia e pô-la no fogão. Depois ela e a mãe esperaram, a tremer, que a água aquecesse, para poderem lavar a cara. Laura começara a gostar de viver na cidade, mas o Inverno parecia o mesmo em toda a parte.

Quando o pai voltou, trazia a barba cheia de neve e o nariz e as orelhas vermelhos como cerejas.

- Com a breca, esta é das valentes! - exclamou. - Felizmente o estábulo é estanque. Tive de abrir caminho para entrar, pois havia neve da altura da porta. Foi uma sorte ter posto a corda da roupa onde pus, Carolina. Tive de voltar ao alpendre, para levar a pá, mas não havia corda para me agarrar. Panquecas quentes e toucinho frito Parecem-me muito bem. Estou esfomeado como um lobo!

A água da bacia estava quente, para ele se lavar, e enquanto o pai se lavava e penteava, no banco junto da porta, Laura chegou as ca deiras para a mesa e a mãe deitou o chá fragrante.

Os bolos quentes estavam bons, com fatias tostadinhas de toucinho e a gordura castanha da frigideira, além de molho de maçã seca e xarope de açúcar. Não havia manteiga, porque Ellen estava quase seca, e a mãe repartiu o leite da noite passada pelos púcaros de Graça e Carrie.

- Dêmos graças pelo pouco leite que temos -declarou-, pois haverá menos antes de haver mais.

Como se sentiram gelados, à mesa, depois do pequeno-almoço, reuniram-se todos à volta do aquecedor. Escutaram os ventos e o som da neve atirada contra as paredes e as janelas. A mãe levantou-se, com um pequeno estremecimento.

- Vamos, Laura, despachemos o trabalho. Depois poderemos sentar-nos junto do lume com a consciência tranquila.

Era estranho que, naquela casa bem construída, o fogão não aquecesse a cozinha. Enquanto a mãe punha o feijão ao lume, para uma primeira fervura, e Laura lavava a louça, perguntaram a si mesmas que frio estaria naquele momento na cabana da reserva. A mãe pôs mais carvão no lume e pegou na vassoura e Laura tremeu de frio junto da escada. Tinha de subir para fazer as camas, mas o frio descia a escada e trespassava-lhe o vestido de fazenda, a combinação e a roupa interior de flanela vermelha, como se estivesse ali parada em pêlo.

- Deixamos as camas abertas para arejarem, Laura - disse a mãe. - Lá em cima não se vêem e podes fazê-las quando a casa aquecer.

Acabou de varrer e com isso acabou também o trabalho da cozinha. Voltaram para a sala da frente, sentaram-se e puseram os pés no suporte do aquecedor, para aquecerem.

O pai foi à cozinha e voltou de sobretudo e cachecol e com o boné na mão.

- Vou à loja do Fuller, aqui defronte, saber as novidades - disse.

- Tens de ir, Charles? - perguntou a mãe.

- Pode-se ter perdido alguém. - O pai pôs o boné e dirigiu-se para a porta, mas parou para acrescentar: - Não se preocupem comigo! Sei quantos passos são necessários para atravessar a rua e se depois de os dar não encontrar uma construção, não irei mais longe enquanto a não achar. Saiu e fechou a porta.

Laura estava à janela. Limpara um buraquinho para espreitar através da geada, mas só via brancura e mais nada. Não conseguiu ver o pai à porta nem a atravessar a rua. Voltou devagar para o aquecedor.

Maria, silenciosa, embalava Graça, na cadeira de balanço. Laura e Carrie ficaram sentadas, caladas e quietas.

- Então, filhas? - disse a mãe. - Uma tempestade lá fora não é razão para tristeza dentro de casa.

- De que serve estarmos na cidade? - perguntou Laura. - Estamos tão sozinhos como se não houvesse cidade nenhuma.

- Desejo que não pretendas depender de ninguém, Laura - observou a mãe, escandalizada. - Uma pessoa não pode fazer isso.

- Mas se não estivéssemos na cidade o pai não teria de sair, com este temporal, para saber se alguém se perdeu.

- Seja como for -redarguiu a mãe, em tom firme -, é a altura da nossa lição de catequese. Cada uma dirá o versículo que aprendeu esta semana e depois veremos quantas das lições antigas recordamos.

primeiro Graça, depois Carrie e por fim Laura, Maria e a mãe, repetiram os seus versículos.

- Agora, Maria, diz-nos um versículo - pediu a mãe. - Depois Laura e a Carrie fazem o mesmo. Veremos qual de nós é capaz de fazer durante mais tempo.

- Oh, a Maria ganha! - exclamou Carrie, desencorajada antes de começar.

- Vamos! - incitou-a Laura. - Eu ajudo-te.

- Duas contra uma não é justo - protestou Maria.

- É até muito justo - contradisse Laura. - Não é, Ma? Atendendo a que a Maria aprende versículos há muito mais tempo do que Carrie.

- Sim, acho que é justo - concordou a mãe. - Mas a Laura deve apenas dar uma ajudinha à Carrie, para ela se lembrar.

Começaram, pois, e continuaram até Carrie não se lembrar de mais versículos, nem mesmo com a ajuda de Laura. Depois Maria e Laura prosseguiram sozinhas, uma contra a outra, até Laura ter de desistir.

Detestava admitir que estava vencida, mas não teve outro remédio:

- Venceste-me, Maria. Não me lembro de mais nenhum.

- A Maria ganhou, a Maria ganhou! - gritou Graça, a bater as palmas.

- A minha filha inteligente! - disse a mãe, a sorrir, a Maria. Olharam todas para Maria, mas os seus grandes e bonitos olhos

azuis não estavam a olhar para nada, pois não viam nada. Sorriu de alegria quando a mãe a elogiou, mas depois o seu rosto modificou-se, como a luz se modificava quando começava uma nevasca. Por instantes pareceu o que parecia quando ainda via e ela e Laura estavam a discutir. Nunca dava razão a Laura, porque era mais velha e quem mandava.

Depois todo o seu rosto corou e ela disse, em voz baixa:

- Não te venci, Laura. Empatámos. Também não me lembro de outro versículo.

Laura sentiu-se envergonhada. Esforçara-se tanto para vencer Maria num jogo, mas por muito que se esforçasse nunca conseguia ser tão boa como a irmã. Maria era verdadeiramente boa. Então pela primeira vez, Laura quis ser professora, a fim de ganhar dinheiro que permitisse mandar Maria para o colégio. «Maria irá para o colégio», pensou, «por muito duramente que eu tenha de trabalhar para isso.»

Nesse momento o relógio deu onze badaladas.

- Meu Deus, o almoço! - exclamou a mãe, e correu para a cozinha, a fim de espevitar o lume e temperar a sopa de feijão. - É melhor pores mais carvão no aquecedor, Laura. Parece que a casa não aqueceu como deveria.

Era meio-dia quando o pai voltou. Entrou calado e foi para junto do aquecedor tirar o sobretudo e o boné.

- Penduras-me isto, Laura? Estou gelado.

- Lamento, Charles - disse a mãe, da cozinha -, mas parece que não consigo aquecer a casa.

- Não admira - respondeu-lhe o pai. - Estão vinte e dois graus abaixo de zero e este vento faz entrar o frio. Até agora, esta é a pior tempestade, mas por sorte sabemos onde está toda a gente. Não se perdeu ninguém da cidade.

Depois do almoço, o pai tocou melodias de hinos na rabeca e cantaram toda a tarde:

 

         Há uma terra mais clara que o dia

         E com fé podemos vê-la ao longe...

         E:

         Jesus é um rochedo numa terra triste,

         Numa terra triste, numa terra triste,

         Jesus é um rochedo numa terra triste,

         Um abrigo em hora de tempestade.

 

Cantaram o preferido da mãe: «Há uma terra feliz, muito, muito longe», e pouco antes de guardar a rabeca, pois eram horas de ir ao estábulo tratar dos animais, o pai tocou uma música corajosa, um desafio que as fez levantar todas e cantar, com ânimo:

 

         Deixai rugir o tufão!

         Em breve se cansará.

         Às suas rajadas resistiremos

         E por fim desembarcaremos

         Na ditosa costa de Canan!

 

O tufão rugia, a neve gelada, dura como chumbo de caçadeira e fina como areia, rodopiava, turbilhonava e batia na casa.

 

                   UM DIA LUMINOSO

Aquela nevasca durou só dois dias. Na terça-feira de manhã Laura acordou, de repente. Ficou quieta, de olhos muito abertos a tentar ouvir de novo o que a acordara. Não havia o mínimo som. De súbito, compreendeu: fora o silêncio que a assustara e acordara. Não se ouvia nenhum ruído de vento, nenhum suiche! suíche! de neve gelada a fustigar as paredes, o telhado e a janela.

O sol brilhava através da geada da janela do cimo da escada e, no rés-do-chão, o sorriso da mãe era luminoso como o sol.

- Acabou-se a nevasca - anunciou. - Durou só dois dias.

- Nunca se sabe como vai ser uma nevasca - observou o pai.

- Talvez o teu Inverno duro não seja, afinal, assim tão duro - opinou a mãe, toda contente. - Agora que o sol brilha, os comboios devem recomeçar a circular depressa. Laura, tenho a certeza de que hoje haverá escola. É melhor preparares-te, enquanto eu trato do pequeno-almoço.

Laura subiu a escada para avisar Carrie e para vestir o seu vestido de ir à escola. Na cozinha de novo quente lavou bem a cara e o pescoço com sabão e prendeu as tranças. O pai entrou alegremente, vindo de tratar dos animais.

- O velho Sol brilha e reluz esta manhã! - exclamou. - Parece que a neve lhe lavou bem a cara.

Estavam na mesa batatas esmagadas com molho castanho e numa taça de vidro brilhava doce de cereja brava. A mãe encheu uma travessa de torradas tostadas no forno, do qual tirou também um pratinho de manteiga.

- Tive de aquecer a manteiga - disse. - Estava dura como pedra, de tão gelada, e era impossível cortá-la. Oxalá o Sr. Boast nos traga mais alguma, em breve. Foi isto o que o sapateiro atirou à mulher.

Graça e Carrie ficaram intrigadas, enquanto todos os outros se riam. A prova de que a mãe se sentia feliz é que dizia graças.

- O que ele atirou foi a sovela - disse Maria, e Laura protestou:

- Oh!, não! Foi a forma. Ele já não tinha mais nada.

- Meninas, meninas! - ralhou a mãe, brandamente, pois estavam a rir demasiado à mesa.

Então Laura observou:

- Pensava que não tínhamos manteiga, pois ontem não comemos nenhuma.

- As panquecas comiam-se bem com toucinho frito - explicou a mãe. - Poupei a manteiga para as torradas. - Mesmo assim, a manteiga que havia só dava para uma leve passagem em cada torrada.

O pequeno-almoço decorreu tão alegremente, na sala quente, sossegada e luminosa, que o relógio bateu a badalada das oito e meia antes de acabarem de comer.

- Despachem-se, filhas! - disse a mãe. - Desta vez, faço a vossa parte da lida da casa.

No exterior tudo brilhava e refulgia ao sol. Toda a extensão da Rua Principal era um monte de neve mais alto do que Laura. Ela e Carrie tiveram de lhe subir para cima e de descer cautelosamente do outro lado. A neve estava tão comprimida e tão dura que as botinas não deixavam nenhuma marca nem os tacões abriam entalhes, para as impedir de escorregar.

No pátio da escola havia outro montão de neve, quase tão alto como a própria escola. Cap Garland, Ben, Artur e os pequenos Wilmarth patinavam por ali abaixo, com os sapatos, como Laura costumava deslizar no lago da Prata. Maria Power e Minnie estavam de pé junto da porta, ao sol frio, a ver os rapazes divertirem-se.

- Olá, Laura! - exclamou Maria Power, satisfeita, e enfiou a mão enluvada no braço de Laura, que apertou..

Alegrava-as voltarem a ver-se. Passara muito tempo desde sexta-feira, e até mesmo desde a tarde de sábado, que combinaram passar juntas. Mas não puderam conversar, pois a professora veio à porta e rapazes e raparigas tiveram de entrar para dar as suas lições.

Durante o recreio, Maria Power, Laura e Minnie foram para a janela ver os rapazes deslizar pelo monte de neve. Laura desejou ir lá para fora e brincar também.

- Gostava que não fôssemos tão crescidas - confessou. - Não acho nada divertido ser uma senhorinha.

- Paciência, não podemos deixar de crescer - redarguiu Maria Power.

- Que farias se fosses apanhada por uma nevasca, Maria? - perguntou Minnie Johnson.

- Creio que continuaria a andar. Se continuarmos a andar não enregelamos.

- Mas cansar-te-ias. Cansar-te-ias tanto que morrerias - insistiu Minnie.

- Pois sim. E tu, que farias, então?

- Abriria um buraco num aterro de neve e deixaria a neve cobrir-me. Não creio que se morra enregelado num aterro de neve. E tu, Laura?

- Não sei.

- Bem, mas que farias, se fosses apanhada por uma nevasca - teimou Minnie.

- Não seria apanhada - respondeu Laura.

Não gostava de pensar naquilo. Preferia conversar com Maria Power a respeito de outras coisas. Mas Miss Garland tocou a sineta e os rapazes entraram, corados do frio e sorridentes.

Durante todo o dia estiveram todos alegres como o Sol. Ao meio-dia, Laura, Maria Power e Carrie, juntamente com as pequenitas Beardsley, correram com o grupo ruidoso, pelos montes de neve, a fim de irem almoçar a casa. Ao chegarem ao cimo do monte alto em que se transformara a Rua Principal, umas foram para norte, outras para sul e Laura e Carrie deslizaram pelo lado oriental, para a porta da frente da sua casa.

O pai já estava sentado no seu lugar, à mesa, Maria sentava Graça na rima de livros da sua cadeira e a mãe colocava à frente do pai um prato de fumegantes batatas cozidas.

- Gostaria de ter um pouco de manteiga para lhes pôr - lamentava-se a mãe.

- O sal realça-lhes o sabor - respondia o pai, quando bateram com força à porta da cozinha. E Carrie foi abrir a correr e, grande e felpudo como um urso no seu sobretudo de búfalo, entrou o Sr. Boast.

- Entre, Boast, entre! - convidou o pai, e sentiram-se todos felizes com a visita. - Entre e meta os pés debaixo da mesa. Chegou mesmo a tempo!

- Onde está a Sr.a Boast? - perguntou Maria.

- É verdade, ela não veio consigo? - inquiriu a mãe, interessada.

- Não, não veio - respondeu o Sr. Boast, enquanto despia os agasalhos. - A Ellie achou que devia lavar a roupa, para aproveitar o sol. Eu bem lhe disse que teríamos mais dias bonitos, mas ela respondeu-me que viria à cidade num deles. Manda-lhe um pouco de manteiga da última que fizemos. As minhas vacas estão a secar. Com o tempo que tem estado, não pude cuidar delas como deve ser.

O Sr. Boast sentou-se à mesa e começaram todos a comer as boas batatas cozidas - com manteiga, afinal de contas.

- Alegra-me saber que a tempestade não lhes causou mal - disse o pai.

- Sim, tivemos sorte. Eu estava a dar água ao gado, no poço, quando a nuvem apareceu. Levei-os depressa para o estábulo e ia a meio caminho de casa quando a tempestade desabou.

As batatas cozidas e os biscoitos quentes com manteiga estavam deliciosos. Para rematar, comeram mais biscoitos com a rica compota de tomate da mãe.

- Não há mais carne de porco salgada na cidade - disse o pai. - Como recebemos todas as provisões do Leste, há uma certa escassez quando os comboios não podem passar.

- Que notícias ouviu a respeito do comboio? - perguntou o visitante.

- O Woodworth disse que puseram brigadas extra a trabalhar no aterro de Tracy - respondeu o pai. - E vão trazer limpa-neves. Podemos esperar um comboio antes do fim da semana.

- A Ellie está a contar que eu leve chá, açúcar e farinha - disse o Sr. Boast. - Os lojistas estão a aumentar os preços?

- Que eu saiba, não - tranquilizou-o o pai. - A única coisa que escasseia é a carne.

Comido o almoço, o Sr. Boast disse que tinha de ir andando, para chegar a casa antes de anoitecer. Prometeu trazer a Sr.a Boast para os ver num daqueles dias, em breve. Depois ele e o pai subiram a Rua Principal, a fim de irem à Mercearia Harthorn, e Laura e Carrie, de mãos dadas, regressaram à escola, a subir alegremente Os montes de neve e a descê-los a deslizar.

Durante toda aquela bonita tarde gozaram o ar claro e frio e sentiram-se felizes como o sol. Sabiam perfeitamente as lições e gostaram de as recitar. Todos os rostos sorriam, na escola, e o grande sorriso de Cap Garland abrangia-os a todos.

Era bom ver outra vez a cidade viva e saber que todos os dias da semana seriam de novo dias de escola.

Mas à noite Laura sonhou que o pai estava a tocar na rabeca a música da tempestade e que, quando lhe gritou que parasse, a música era uma nevasca cegante, que turbilhonava à sua volta e a deixara petrificada, transformada em gelo sólido.

Depois ficou de olhos fixos no escuro, mas durante muito tempo o pesadelo deixou-a fria e hirta. Não fora a rabeca do pai que ouvira, mas sim o próprio vento da tempestade e o suíche! suiche!, da neve nas paredes e no telhado. Por fim, conseguiu mexer-se. Tão fria que o sonho ainda lhe parecia meio realidade, chegou-se mais para Maria e puxou as mantas para cima da cabeça de ambas.

- Que é? - murmurou Maria, a dormir.

- Uma nevasca - respondeu-lhe Laura.

 

                     SEM COMBOIOS

Nem valia a pena levantarem-se, de manhã. A luz estava fraca, as janelas estavam brancas e os pregos do telhado igualmente. Outra nevasca rugia, gritava e uivava à roda da casa. Não haveria escola.

Laura estava entorpecida e meio adormecida. Preferia dormir a acordar para um dia daqueles. Mas a mãe chamou:

- Bons dias, Filhas! São horas de levantar!

Rapidamente, por causa do frio, Laura enfiou o vestido, calçou as botinas e desceu a escada.

- Que se passa, Laura? - perguntou-lhe a mãe, ao levantar a cabeça do fogão.

Laura respondeu, quase a chorar:

- Oh, Ma! Como poderei alguma vez ensinar e ajudar a mandar a Maria para o colégio? Como poderei ser alguma coisa se só tenho um dia de aulas de cada vez?

- Então, Laura, não deves desencorajar com tanta facilidade - redarguiu a mãe, bondosamente. - Umas nevascas a mais ou a menos não farão grande diferença. Vamos despachar o trabalho depressa para depois puderes estudar. O teu livro de Aritmética tem problemas que chegam para te manteres entretida durante muitos dias e poderás fazer os que quiseres. Nada te impede de aprender.

- Porque está a mesa aqui na cozinha? - perguntou Laura, pois a mesa quase não deixava espaço para se mexerem.

- Esta manhã o pai não acendeu o aquecedor.

Ouviram o pai bater os pés no alpendre e Laura foi-lhe abrir a porta. Vinha sério. O pouco azeite que trazia no balde estava congelado.

- Creio que esta é a pior de todas - disse, enquanto estendia as mãos geladas para o lume. - Não acendi o aquecedor, Carolina. O nosso carvão está a escassear e esta tempestade é capaz de bloquear os comboios durante algum tempo.

- Foi o que pensei quando vi que não acenderas o aquecedor. Por isso, mudei a mesa para aqui. Conservaremos a porta do meio fechada e o fogão aquecerá bem a cozinha.

- Assim que tomar o pequeno-almoço vou ao Fuller - disse o pai.

Comeu depressa e enquanto ele estava a vestir os agasalhos a mãe foi ao quarto e trouxe a sua carteira de marroquim encarnado, com os lados lisos, de madrepérola, e o fecho de aço, na qual guardava o dinheiro para o colégio de Maria.

O pai estendeu a mão, devagar, e pegou-lhe. Depois pigarreou e disse:

- Maria, talvez as provisões estejam a escassear na cidade. Se a serração e as lojas aumentarem muito os preços...

Não completou a frase, mas Maria compreendeu:

- A mãe tem o dinheiro para o meu colégio de parte. Pode gastá-lo.

- Se tiver de ser, podes ficar certa de que depois te pagarei - prometeu o pai.

Quando ele saiu, Laura foi buscar a cadeira de balanço de Maria à sala gelada e colocou-a a aquecer defronte do forno aberto. Assim que Maria se sentou, Graça subiu-lhe para o colo.

- Também fico quente - disse a pequenita.

- Já és uma menina crescida e muito pesada - protestou a mãe, mas Maria disse, muito depressa:

- Oh, não, Graça! Gosto de te pegar, apesar de já seres uma menina crescida de três anos.

A cozinha estava tão cheia que Laura teve dificuldade em lavar a louça sem bater em qualquer esquina aguçada. Enquanto a mãe fazia as camas no frio primeiro andar, Laura deu brilho ao fogão e limpou a chaminé do candeeiro. Depois desenroscou o depósito de latão e encheu-o cuidadosamente de querosene. O bico da lata deixou cair a última gota clara.

- Esquecemo-nos de dizer ao pai que trouxesse querosene! - exclamou Laura, sem pensar.

- Não temos querosene? - perguntou Carrie, ofegante, e voltou-se muito depressa do armário onde estava a guardar os pratos: os seus olhos estavam assustados.

- Temos, sim - respondeu Laura. - Enchi o depósito até cima. - Agora eu varro e tu limpas o pó.

O trabalho estava todo feito quando a mãe desceu.

- O vento sacode a casa, lá em cima - observou, a tremer junto do fogão. - Arrumaram tudo muito bem, Laura e Carrie - acrescentou, a sorrir.

O pai ainda não voltara, mas certamente não se perdera na cidade.

Laura foi buscar os livros e a ardósia e pô-los na mesa, perto da cadeira de balanço de Maria. A luz era fraca, mas a mãe não acendeu o candeeiro. Laura leu os problemas, um por um, e resolveu-os na ardósia, enquanto Maria os fazia de cabeça. Tiraram a prova a todos os problemas, para se certificarem de que estavam certos. Foram avançando lição após lição, devagar, e como a mãe dissera não faltavam problemas.

Por fim, ouviram o pai entrar pela sala da frente. Tinha o sobretudo e o boné brancos e gelados e transportava um embrulho coberto de neve. Foi aquecer-se ao fogão e quando pôde falar, disse:

- Não me servi do dinheiro para o teu colégio, Maria. E continuou:

- Não há carvão no madeireiro. As pessoas queimaram muito, com este tempo frio, e o Ely não tinha grande reserva. Agora está a vender lenha para queimar, mas nós não podemos comprar a cinquenta dólares o éster.

- As pessoas são estúpidas, se pagarem esSe preço - observou a mãe, brandamente. - Os comboios acabarão por circular, não tarda muito.

- Também não há querosene na cidade - acrescentou o pai. - Nem carne. As lojas esgotaram praticamente tudo quanto tinham. Comprei um quilo de chá, antes que também se acabe, Carolina. Por isso, teremos a nossa pinguinha de chá até os comboios circularem de novo.

- Não há nada como uma boa chávena de chá quando está frio - afirmou a mãe. - E o candeeiro está cheio e durará algum tempo, se nos deitarmos cedo para poupar carvão. Ainda bem que pensaste no chá. Sentir-lhe-íamos a falta!

O pai foi aquecendo, devagar, e sem dizer mais nada sentou-se junto da janela, a ler o Chicago Inter-Ocean, que chegara no último correio.

- A propósito -anunciou, passado um bocado-, a escola está fechada até haver carvão.

- Podemos estudar sozinhas - disse Laura, corajosamente. Ela e Maria falaram baixinho, a fazer os problemas de aritmética, e Carrie estudou na cartilha, enquanto a mãe costurava e o pai lia o jornal em silêncio. O tempo piorou. Era, de longe, a pior nevasca de todas, a mais violenta.

A cozinha arrefeceu. Não vinha calor nenhum da sala da frente, para ajudar o fogão. O frio insinuara-se na sala e passava por baixo da porta. Entrava igualmente por baixo da porta do alpendre.

A mãe foi buscar os tapetes de tiras à sala da frente e comprimiu-os, dobrados, contra a base das portas.

Ao meio-dia o pai foi ao estábulo. Os animais não precisavam ser alimentados ao meio-dia, mas ele foi verificar se os cavalos, a vaca e a vitela estavam bem abrigados.

A meio da tarde foi de novo ao estábulo.

- Com um frio destes - explicou -, os animais precisam de comer muito, para se manterem quentes. - A nevasca ainda está pior do que estava e esta manhã vi-me aflito para conseguir levar feno para o estábulo, com esta ventania. Se a meda não estivesse mesmo à porta, não conseguiria. Uma outra coisa boa é que os montões de neve desapareceram. O vento levou-os e só deixou o chão.

A tempestade rugia ainda com mais fúria quando o pai saiu e veio do alpendre uma lufada de frio, apesar de a mãe se ter apressado a comprimir o tapete contra o lado de dentro da porta, assim que o pai a fechou.

Maria estava a entrançar trapos para um novo tapete. Cortara velhos tecidos de lã em tiras e a mãe metera cada cor numa caixa. Maria tinha as caixas por ordem e sabia onde estava cada cor. Unia as tiras numa comprida trança que se ia enrolando ao lado da sua cadeira. Quando chegava ao fim de uma tira, escolhia a cor que lhe interessava e cosia-a à ponta de outra. De vez em quando, apalpava o monte que ia aumentando a seu lado.

- Creio que já tenho quase o suficiente. Amanhã estará pronto para coseres o tapete, Laura.

- Queria acabar primeiro esta renda - discordou Laura. - E está tão escuro, por causa da tempestade, que quase não vejo para contar os pontos.

- A escuridão não me incomoda - replicou Maria, alegremente. - Posso ver com os dedos.

Laura envergonhou-se da sua impaciência.

- Coserei o teu tapete quando o tiveres pronto - prometeu, de boa vontade.

O pai demorou-se muito tempo. A mãe pôs outra vez o jantar junto do fogão, para o conservar quente. Não acendeu a luz e sentaram-se todas a pensar que a corda da roupa guiaria o pai através da neve cegante.

- Vamos, meninas, vamos! - exclamou a mãe, enchendo-se de coragem. - Maria, começa uma canção para cantarmos todas e passarmos o tempo até o pai chegar.

E assim fizeram, às escuras, até o pai voltar.

Para o jantar a mãe acendeu o candeeiro, mas disse a Laura que não lavasse a louça. Tinham de ir para a cama depressa, a fim de pouparem querosene e carvão.

Só o pai e a mãe se levantaram na manhã seguinte à hora de tratar dos animais.

- Vocês podem ficar na cama, quentes, o tempo que quiserem - disse a mãe, e Laura só se levantou às nove horas.

O frio cercava a casa e ia-se infiltrando e subindo cada vez mais alto. A penumbra e o barulho incessante davam a impressão de que o tempo parara.

Laura, Maria e Carrie estudaram as lições. Laura coseu a trança de fita a formar um tapete redondo e colocou-o, pesado, no colo de Maria, para que a irmã o pudesse ver com os dedos. O tapete tornou aquele dia diferente do anterior, mas Laura teve a sensação de que, afinal, o dia se repetia quando voltaram a cantar às escuras até o pai chegar, quando comeram o mesmo jantar de batatas e pão com molho de maçã seca e chá e quando deixaram os pratos por lavar e foram logo para a cama, para pouparem querosene e carvão.

Seguiu-se outro dia igual. A ventania não parou de rugir e uivar, a neve não calou o seu suíche! suíche!, e o barulho, a escuridão e o frio pareceram nunca mais acabar.

Mas acabaram, de súbito. A ventania parou já a terceira tarde ia - no fim. Laura soprou e raspou num vidro até poder espreitar por um buraquinho e ver a neve a correr pela Rua Principal abaixo, rente ao chão, varrida por um vento que soprava só numa direcção. Uma lua avermelhada reflectia-se na neve açoitada: era o Sol a pôr-se. O céu estava limpo e frio. Depois a luz rósea esbateu-se, a neve tornou-se branco-acinzentada e o vento soprou com mais força. O pai voltou a tratar dos animais.

- Amanhã tenho de ir buscar feno - anunciou. - Mas agora vou ali de fronte, ao Fuller, saber se está mais alguém vivo além de nós neste raio desta cidade. Três dias inteiros sem vermos uma luz, nem fumo, nem qualquer sinal de vivalma. Para que serve uma cidade se um homem não pode tirar proveito nenhum dela?

- O jantar está quase pronto, Charles - avisou a mãe.

- Eu volto num instante.

Voltou passados poucos minutos, a perguntar: -O jantar está pronto?

A mãe distribuiu-o pelos pratos, enquanto Laura chegou as cadeiras para a mesa.

- Está tudo bem na cidade - informou o pai. - Na estação dizem que amanhã de manhã começarão a trabalhar no grande aterro deste lado de Tracy.

- Quanto tempo demorará para um comboio poder passar? - perguntou a mãe.

- Não se sabe. Naquele dia bom que tivemos, limparam a via. deixaram-na pronta para o comboio passar no dia seguinte. Mas atiraram a neve para cima, para ambos os lados do aterro, e agora ele está cheio, até ao cimo das margens. Qualquer coisa como nove metros de neve gelada e sólida, é o que têm de retirar agora.

- Isso não demorará muito, com bom tempo - observou a mãe - E com certeza vamos ter bom tempo. Já tivemos mais tempestades, e piores, do que durante todo o Inverno passado.

 

                   TEMPO AMENO

A manhã estava luminosa e limpa, mas não houve escola. Não haveria mais escola enquanto o comboio não passasse com o carvão.

O sol brilhava fora de casa, mas ainda havia geada na janela e a cozinha parecia velha e feia. Carrie olhou para fora, pelo buraquinho aberto na geada, enquanto limpava a louça do pequeno-almoço. tristemente, Laura lavava a louça com a água que arrefecia depressa no alguidar.

- Quero ir a qualquer lado! - disse Carrie, amuada. - Estou cansada de estar nesta velha cozinha!

- Ontem sentimo-nos gratos por esta quente cozinha - recordou-lhe Maria, brandamente. - E agora devemo-nos sentir gratos por a nevasca ter terminado.

- Tu, de qualquer maneira, não ias à escola - comentou Laura, irritada, e arrependeu-se logo assim que proferiu as palavras.

Mas ficou mais irritada ainda quando a mãe disse, em tom de censura:

- Laura!

E acrescentou, enquanto cobria a massa do pão e a colocava junto do fogão, para subir:

- Quando acabarem o trabalho, podem agasalhar-se - e a Maria também - e ir para o pátio, tomar um pouco de ar.

A ideia animou-as. Laura e Carrie começaram a trabalhar mais depressa e pouco depois vestiam apressadamente os casacos, punham os xailes, os capuzes e os cachecóis e calçavam as luvas. Laura conduziu Maria através do alpendre das traseiras e saíram todas para o frio. O clarão do Sol ofuscou-as e o frio deixou-as sem fôlego.

- Atirem os braços para trás e respirem fundo, fundo! - gritou Laura.

Sabia que o frio não era tão frio quando não se tinha medo dele. Atiraram os braços para trás e o ar gelado entrou-lhes pelo nariz, encheu-lhes o peito e aqueceu-as. Até Maria se riu, alto.

- Cheira-me a neve! - exclamou. - É um cheiro muito fresco e limpo!

- O céu está azul-luminoso e todo o mundo cintilantemente branco - disse-lhe Laura. - Só as casas emergem da neve e a maculam. Gostaria de estar onde não houvesse casas.

- Que horrível ideia! - protestou Maria. - Morreríamos geladas.

- Construiria um igloo para nós e viveríamos como esquimós.

- Brrr, a comer peixe cru! - exclamou Maria, com um calafrio - Eu não comia.

A neve rangia e estalava debaixo dos pés delas. Estava tão sólida e dura que Laura não conseguiu escavar um punhado para fazer uma bola. Estava a dizer a Carrie como a neve costumava ser macia na Grande Floresta do Wisconsin quando Maria perguntou:

- Quem vem aí? Parecem os nossos cavalos.

O pai dirigia-se para o estábulo, de pé.num estranho tipo de trenó, uma plataforma baixa, feita de tábuas novas, tão comprida como o carroção e com o dobro da largura. Não tinha varal, mas tinha um laço comprido de corrente preso aos patins afastados e os balancins estavam presos à corrente.

- Onde arranjou esse engraçado trenó, Pá? - perguntou Laura.

- Fi-lo eu, na serração. - Foi ao estábulo buscar a forquilha e admitiu: - Parece, realmente, estranho... mas aguentaria uma meda de feno inteira, se os cavalos conseguissem puxá-la. Quero trazer feno para cá, sem perda de tempo, para alimentar os animais.

Laura desejou perguntar-lhe se sabia algumas notícias do comboio, mas a pergunta recordaria a Carrie que não havia carvão, nem querosene, nem carne, até chegar um comboio, e ela não queria preocupar a irmã. Estavam todas muito bem dispostas, com aquele bom tempo, e se ele durasse um bocado o comboio passaria e não haveria motivo nenhum de preocupação.

Enquanto Laura assim pensava, o pai subiu para o grande e baixo trenó.

- Diz à mãe que trouxeram do Leste um limpa-neves e um combóio de trabalho e os puseram a trabalhar no aterro de Tracy, Laura. Uns diazinhos de bom tempo como este e o comboio circulará.

- Está bem, Pá, eu digo-lhe - respondeu Laura, grata, e o pai afastou-se, contornou a esquina e meteu pela Rua Principal, na direcção da reserva.

Carrie soltou um grande suspiro e sugeriu:

- Vamos dizer-lhe já! - Pela maneira como falou, Laura percebeu que Carrie também desejara interrogar o pai a respeito do comboio.

- Oh, que faces rosadas! - exclamou a mãe, quando entraram

na cozinha penumbrenta e quente.

Um vapor frio e fresco evolou-se dos agasalhos, enquanto os despiam.

O calor que pairava acima do fogão causou-lhes um formigueiro

agradável nos dedos e a mãe ficou contente ao saber do limpa-neves e do comboio de trabalho.

- É provável que este bom tempo dure alguns dias - disse a mãe. - Já tivemos tantas tempestades!

A geada derretia-se na janela e transformava-se em finas folhas de gelo, nos vidros frios. Com pouco trabalho, Laura tirou-as e enxugou os vidros. Instalou-se à claridade e tratou de fazer a sua renda, olhando de vez em quando para o Sol que brilhava na neve. Não havia uma nuvem no céu e nenhuma razão para se preocuparem com o pai, embora ele não tivesse regressado tão cedo como esperavam.

Às dez horas ainda não tinha voltado. Às onze continuava a não haver sinais dele. Eram pouco mais de três quilómetros para ir à reserva e voltar e meia hora chegaria para encher o trenó de feno.

- Que estará a demorar o Pá? - perguntou, por fim, Maria.

- Provavelmente encontrou alguma coisa que fazer na reserva - respondeu a mãe, mas foi à janela e olhou para o céu, do lado de noroeste: não havia nem uma nuvem. - Não há motivo para preocupação - acrescentou. - Talvez as tempestades tenham feito algum estrago na cabana, mas isso conserta-se depressa.

Ao meio-dia, a fornada de pão de sábado estava fora do fogão - três pães quentes, de crosta dourada-, as batatas cozidas fumegavam e o chá estava feito. Mas o pai ainda não voltara.

Tinham todas a certeza de que lhe acontecera alguma coisa, embora nenhuma o dissesse nem fizesse ideia do que poderia ter sido. Os velhos cavalos eram de confiança, por certo não tomaram o freio nos dentes. Laura pensou em usurpadores de reservas. O pai não levara nenhuma arma, para o caso de haver usurpadores na cabana deserta. Mas, com as nevascas, não podiam ter aparecido usurpadores de reservas. Também não havia ursos nem panteras, nem lobos nem índios. Nem nenhum rio para atravessar.

Que poderia ter acontecido capaz de atrasar ou ferir um homem que conduzia cavalos mansos, com bom tempo, numa extensão de apenas quilómetro e meio de trenó sobre a neve, para lá, e outro tanto para cá, com um carregamento de feno?

Nessa altura o pai contornou a esquina da Rua 2 e passou pela janela. Laura viu-o passar, coberto de neve, em cima do monte também coberto de neve do feno que ocultava o trenó e parecia arrastar-se pela neve do chão.

Parou junto do estábulo, desatrelou os cavalos, pô-los nas baias e voltou, a bater com os pés, para o alpendre. Laura e a mãe já tinham posto o almoço na mesa.

- Oh, o almoço tem bom aspecto! - exclamou o pai. - Era capaz de comer um urso cru sem sal!

Laura deitou água quente da chaleira para a bacia, para ele se lavar, e a mãe perguntou, brandamente:

- Que te demorou tanto, Charles?

- Erva.

O pai ocultou a cara nas mãos cheias de água com sabão e elas entreolharam-se, intrigadas. Que queria o pai dizer? Um minuto depois, ele estendeu a mão para a toalha e acrescentou:

- Aquela estuporada erva debaixo da neve. Não se pode seguir a estrada - continuou o pai a explicar, enquanto limpava as mãos. -. Não há nada para nos guiar, nem sebes, nem árvores. Assim que saímos da cidade só há montes de neve em todas as direcções. Até o lago está coberto dela. Os montes estão bem acamados pelo vento, e gelados, de forma que o trenó desliza por eles fora e um homem pensa que pode ir a direito para onde quer ir.

»Pois quando me precatei a parelha estava enterrada até ao queixo na tal neve dura! Tinha ido parar ao pântano, onde a neve pareceu tão dura como em qualquer outro lado. Mas por baixo dela há erva. A erva do pântano aguenta a crosta de neve apoiada em caules de erva e em ar. Mal os cavalos a pisam, vão por ali abaixo.

»Passei a manhã inteira a puxar aquela besta do Sam...

- Charles! - advertiu a mãe.

- É coisa para fazer um santo praguejar, Carolina. Com o David não houve novidade, tem juízo de cavalo, mas o Sam ficou louco de todo. Ali estavam os dois cavalos enterrados em neve até ao lombo, e todas as tentativas que faziam para sair servia apenas para alargar o buraco. Se têm arrastado o trenó lá para dentro, nunca mais o tiraria. Por isso, desatrelei-o. Depois tentei puxar a parelha novamente para o solo duro, e foi então que o Sam endoideceu. Desatou a pular e a relinchar e a afundar-se cada vez mais na maldita neve.

- Deve ter sido um trabalhão - concordou a mãe.

- Ele debatia-se de tal maneira que tive medo de que feriss David. Por isso, desci também e soltei-os um ao outro. Agarrei Sam e pisei a neve o melhor que pude, a tentar arranjar um caminho relativamente duro para ele subir. Mas ele empinava-se, mergulhava e estragava tudo, de uma maneira capaz de fazer perder a paciência a qualquer homem.

- Que fizeste, Charles?

- Oh, acabei por conseguir tirá-lo cá para fora! O David seguiu-me como um cordeirinho, a pisar com todo o cuidado, até chegar cá acima.

Por ISSO, atrelei-o ao trenó e ele contornou o buraco, a puxá-lo. Mas tive de estar sempre a agarrar o Sam, pois não havia nada a prendê-lo. Depois voltei a prender os cavalos um ao outro e lá arranquei. Percorremos cerca de trinta minutos e fomos outra vez por ali abaixo.

- Valha-me Deus! - exclamou a mãe.

- Foi assim mesmo, toda a manhã. Precisei de meio dia inteirinho para Percorrer três quilómetros e trazer uma carga de feno, e estou mais cansado do que depois de um duro dia de trabalho. Esta tarde levo só o David. Ele não poderá puxar uma carga tão grande, mas será mais fácil para nós dois.

Almoçou depressa e apressou-se a ir atrelar o David ao trenó. Agora que sabiam que o pai tinha de fazer não estavam preocupadas. Mas tinham pena do cavalo, que caía na enganosa neve, e do pai, que tinha de o desatrelar, ajudar a sair e atrelá-lo de novo.

No entanto, a tarde toda esteve soalheira, sem uma nuvem no céu, e antes de escurecer o pai trouxera dois pequenos carregamentos de feno.

- O David segue-me como um cão - disse-lhes o pai, ao jantar. - Quando se atola na neve, fica quieto até eu calcar um caminho sólido para sair. Depois segue-me para fora do buraco cuidadosamente, como se compreendesse tudo quanto se passa... e aposto que compreende. Amanhã vou atrelá-lo ao trenó com uma corda comprida, para não ter de o desatrelar quando ele se atola. Terei só de o ajudar a sair e depois, com a corda comprida, ele pode puxar o trenó e contornar o buraco.

Depois do jantar, o pai foi à Loja de Ferragens Fuller comprar a corda. Voltou depressa, com novidades: a brigada de trabalho e o limpa-neves desimpediram metade do aterro de Tracy, naquele dia.

- Desta vez leva mais tempo a desimpedir porque, todas as vezes que limparam a via, atiraram a neve para os dois lados e assim tornaram o aterro muito mais fundo. Mas o Woodworth, do depósito, diz que provavelmente conseguirão fazer passar um comboio depois de amanhã.

- Essas notícias são boas - disse a mãe. - Ficarei grata quando tivermos outra vez alguma carne.

- Mas não é tudo - acrescentou o pai. - Vamos receber o correio, com comboio ou sem comboio. Vão mandá-lo por uma parelha e Gilbert, o homem encarregado do correio, parte para Preston de manhã. Já está a fazer um trenó. Por isso, se queres mandar uma carta, podes mandar.

- Há aquela carta que tenho andado a escrever para a família do Wisconsin - respondeu a mãe. - Não tencionava acabá-la tão depressa, mas talvez consiga.

Por isso, foi buscar a carta e pô-la em cima da toalha da mesa, debaixo do candeeiro. Depois de a mãe descongelar a tinta do tinteiro, sentaram-se todos à volta da mesa a pensar nas últimas coisas que queriam dizer, enquanto a mãe as escrevia com a sua pequena caneta encarnada, que tinha um cabo de madrepérola do feitio de uma pena. Quando a sua letra bonita e certinha encheu o papel, ela voltou-o e escreveu do outro lado, mas no sentido da largura. Assim, cada centímetro de papel levava todas as palavras que era possível.

Carrie era um bebé, quando vivia no Wisconsin, e não se lembrava das tias, dos tios e dos primos: Alice, Ella e Peter. E Graça nem nunca os vira. Mas Laura e Maria lembravam-se perfeitamente deles.

- Diga-lhes que ainda tenho a minha boneca, Carlota - pediu Laura. - E que gostaria de ter um dos gatinhos trinetos da Susana preta.

- «Descendentes» ocupa menos espaço - disse a mãe. - Receio que a carta tenha mais peso do que o permitido.

- Diz-lhes que não há um único gato em toda esta região - pediu o pai.

- Quem me dera que houvesse! - exclamou a mãe. - Precisamos de um, para acabar com os ratos.

- Diga-lhes que gostaríamos que viessem passar o Natal connosco este ano, como faziam na Grande Floresta - pediu Maria.

- Meu Deus! - exclamou Laura. - Quando é o Natal? Tinha-me esquecido e afinal já falta pouco.

Graça começava aos saltos no colo de Maria e gritou:

- Quando é o Natal? Quando vem o Pai Natal?

Maria e Carrie tinham-lhe contado tudo a respeito do Pai Natal, mas naquele momento nem Maria nem Laura souberam que dizer-lhe. Mas Carrie falou:

- Talvez o Pai Natal não consiga chegar cá este Inverno, Graça, por causa das tempestades e da neve. Nem o comboio pode passar!

- O Pai Natal vem num trenó - lembrou Graça, inquieta, a olhá-los com os grandes olhos azuis muito abertos. - Ele pode vir, não pode, Pá? Não pode, Ma?

- Claro que pode, Graça - respondeu a mãe, e Laura acrescentou firmemente:

- O Pai Natal pode ir a toda a parte.

- Talvez ele nos traga o comboio - disse o pai.

De manhã, levou a carta ao posto dos Correios e viu o Sr. Gilbert pôr a mala do correio no trenó e partir, bem enrolado em peles de búfalo. Tinha de percorrer quase vinte quilómetros até Preston.

- Lá encontrará outra parelha com correio do Leste e trá-lo-á,

- explicou o pai à mãe. - Deverá voltar esta noite se não tiver muitos prOblemas a atravessar os pântanos.

- Tem bom tempo para a viagem - disse a mãe.

- Acho melhor eu próprio tirar proveito dele - observou o pai. Saiu, para atrelar David ao trenó, com a corda comprida. Nessa

manhã transportou um carregamento de feno. Ao meio-dia, quando eStavam sentados à mesa, a luz escureceu e o vento começou a soprar.

- Aí vem ela! - exclamou o pai. - Espero que o Gilbert tenha chegado a Preston em segurança.

 

                   TRIGO DE SEMENTE

O frio e a escuridão voltaram. Os pregos do telhado estavam brancos, de geada, e os vidros das janelas cinzentos. Mesmo que se raspasse um buraquinho só se conseguia ver a brancura turbilhonante a bater contra o vidro, do outro lado. A casa, apesar de sólida, estremecia e abanava, o vento rugia e uivava. A mãe comprimia bem os tapetes de trapos contra as gretas das portas, em baixo, mas o frio entrava, sorrateiro.

Era difícil estar bem-disposto. De manhã e à tarde, agarrado à corda da roupa, o pai ia ao estábulo dar de comer aos cavalos, à vaca e à vitela. Tinha de poupar o feno. Regressava tão frio que dificilmente conseguia aquecer. Instalado defronte do forno, sentava Graça no joelho, apertava Carrie contra si e contava-lhes as histórias de ursos e panteras que outrora contara a Maria e a Laura. Depois, ao anoitecer, pegava na rabeca e tocava músicas alegres.

Quando eram horas de deitar e de enfrentar o frio do andar de cima, o pai tocava enquanto elas subiam a escada:

- Preparar, todas juntas! - exclamava. - Esquerda, direita, esquerda, direita... Marchar!

Laura ia à frente, com o ferro de engomar quente, seguia-se Maria, com a mão no ombro de Laura, e Carrie fechava a marcha, com o outro ferro. E a música subia a escada com elas:

 

     Marchar! Marchar! Eksdale e Liddesdale!

     Todas as boinas azuis estão para lá da fronteira!

     Muita bandeira esvoaça sobre a vossa cabeça,

     Muita coroa famosa na história.

     Montai e preparai-vos pois,

     Filhos do vale da montanha,

     Lutai pelos vossos lares e pela antiga glória escocesa!

 

Ajudava um bocadinho. Laura desejava mostrar-se suficientemente animada para encorajar as irmãs. Mas sabia desde o princípio que a nOva tempestade voltara a bloquear o comboio. Sabia que quase não havia carvão no monte do alpendre. E não havia mais nenhum na cidade. O querosene estava a desaparecer do candeeiro, embora a mãe só o acendesse enquanto jantavam. Não haveria carne até aO comboio chegar. Não havia manteiga e só restava um pouco de umto de toucinho para espalhar no pão. Ainda havia batatas, mas a farinha só chegava para mais uma cozedura de pão.

Depois de meditar em tudo isso, Laura pensou que certamente chegará um comboio antes de se gastar o último pão. Em seguida começou a pensar de novo no carvão, no querosene, no pouco unto de toucinho que restava e na farinha no fundo da saca. Mas o comboio havia de chegar, com certeza.

A casa tremia toda a noite e todo o dia, os ventos bramiam e uivavam, a neve fustigava as janelas e o telhado de pregos brancos de geada. Nas outras casas havia gente, haveria luz, mas estavam tão longe que nem pareciam reais.

Na sala das traseiras, atrás da loja de rações, Almanzo estava atarefado. Tirara selas, arneses e roupas da parede do fundo e empilhara tudo na cama. Empurrara a mesa contra o armário e no espaço desocupado colocara uma cadeira, para poder serrar em cima dela.

Montara uma armação de sarrafos de cinco por dez centímetros a trinta centímetros da parede do fundo e estava a serrar tábuas, uma por uma, e a pregá-las na armação. O barulho da serra e das marteladas quase se não ouvia acima do ruído da tempestade.

Quando a nova parede estava a meia altura, pegou no canivete e abriu uma saca do seu trigo de semente. Levantou a saca de sessenta quilos e, cuidadosamente, despejou o trigo no espaço entre a parede nova e a antiga.

- Creio que caberá todo - disse a Royal, que estava sentado junto do fogão a desbastar um pau. - Quando construir a parede até acima, não se notará nada.

- O enterro é teu - comentou Royal. - É o teu trigo.

- Podes apostar a tua vida em como è o meu trigo! - replicou Almanzo. - E será lançado no meu solo, quando chegar a Primavera.

- Que te leva a pensar que venderia o teu trigo? - perguntou Royal.

- Já não tens quase cereal nenhum - respondeu-lhe o irmão. - Esta nevasca há-de terminar, como todas as outras, e assim que isso acontecer a cidade inteira cair-te-á em cima para comprar trigo. O Harthorn e o Loftus só têm três sacas de farinha, ao todo, e esta tempestade vai reter o comboio até depois do Natal, na melhor das hipóteses.

- Mas isso não quer dizer que eu vendesse o teu trigo - insistiu Royal.

- Talvez não, mas eu conheço-te, Roy. Não és um lavrador: és um lojista. Um tipo entrava aqui, olhava em redor e perguntava: «A como é o seu trigo?» Tu respondias: «Já vendi o trigo todo.» E ele: «Que têm aquelas sacas?» E tu: «Esse trigo não é meu, é do Almanzo.» E o tipo: «Por quanto o venderia?» E não tentes dizer-me que lhe responderias: «Não o vendo.» Não, senhor, Roy, tu és um lojista. Perguntar-lhe-ias: «Quanto dá?»

- Talvez, sim, talvez perguntasse - admitiu Roy. - Que mal há nisso?

- O mal é que vão subir os preços sei lá até onde antes de um comboio conseguir passar. Eu estaria ausente, a carregar feno ou em qualquer lado, tu acharias que eu não recusaria semelhante oferta, ou pensarias que sabias melhor do que eu o que me convinha. Nunca acreditarás que digo as coisas a sério quando as digo, Royal Wilder.

- Está bem, está bem, não te exaltes, Manzo. Sou bastante mais velho do que tu e talvez saiba melhor do que tu o que te convém.

- Talvez saibas ou talvez não. Seja como for, vou tratar da minha vida à minha maneira. Para começar, vou meter aqui todo o meu trigo de semente para que ninguém o veja e faça perguntas a seu respeito. Assim, estará aqui quando chegar a altura de semear.

- Está bem, está bem.

Royal continuou a desbastar cuidadosamente o bocado de pinho, para fazer uma corrente, e Almanzo, de pernas abertas e pés bem fixos no chão, levantou as sacas uma por uma e despejou o trigo para o esconderijo. De vez em quando, uma rajada de vento mais forte fazia tremer as paredes ou então o aquecedor, aquecido ao rubro, expelia fumo. Um bramido mais forte da tempestade fê-los a ambos escutar.

- Com a breca, esta é uma beleza! Passado um bocado, pediu ao irmão:

- Roy, faz-me uma rolha para este nó, sim? Quero acabar isto antes de serem horas de tratar dos animais.

Royal aproximou-se, para ver o buraco do nó. Arredondou-o com o canivete e escolheu um bocado de madeira para fazer uma rolha que se ajustasse bem.

- Se os preços subirem como dizes, serás idiota se não venderes o teu trigo - observou. - O comboio há-de circular antes da Primavera e poderás voltar a comprar a semente com lucro, como eu tenciono fazer.

- Já me disseste isso - recordou-lhe Almanzo.

- Mas eu prefiro prevenir a remediar. Não se sabe quando o comboio circulará, assim como não se sabe se mandarão trigo de semente antes de Abril.

- Não há nada certo, a não ser a morte e os impostos – volveu Royal.

- O tempo de semear também é certo. E boa semente dá boa colheita.

- Falas como o pai. - Royal experimentou a rolha no buraco do nó e voltou a desbastá-la. - Se o comboio não passar dentro de duas semanas, mais ou menos, como se aguentará esta cidade? Já resta pouco nas mercearias.

- As pessoas conseguem aguentar-se quando não têm outro remédio - redarguiu Almanzo. - Quase toda a gente comprou provisões o Verão passado, como nós. E nós faremos as nossas durar até voltar o tempo quente, se assim tiver de ser.

 

                   FELIZ NATAL

A nevasca terminou, finalmente. Ao fim de três dias de barulho incessante, o silêncio fez zumbir os ouvidos de Laura.

O pai apressou-se a ir buscar um carregamento de feno e quando voltou levou David para o estábulo. O sol ainda brilhava na neve, não havia nenhuma nuvem a noroeste e Laura admirou-se de ele deixar de carregar feno.

- Que aconteceu, Charles? - perguntou-lhe a mãe, serenamente, quando ele entrou em casa.

- O Gilbert conseguiu ir a Preston e voltar. Trouxe o correio! - respondeu o pai.

Foi como se fosse Natal, inesperadamente. A mãe estava ansiosa pelo jornal da igreja. Laura, Maria e Carrie esperavam que o Rev. Alden lhes tivesse enviado qualquer coisa para lerem, como às vezes fazia. Graça estava agitada porque elas estavam agitadas. Foi custoso esperar que o pai regressasse do correio.

Demorou-se muito tempo, mas como a mãe disse não valia de nada impacientarem-se. Todos os homens da cidade estavam no correio e o pai tinha de esperar pela sua vez.

Quando ele chegou, finalmente, trazia as mãos cheias. A mãe estendeu avidamente as suas para os jornais da igreja e Laura e Carrie tentaram ambas agarrar o maço de Youth's Companions. Também havia jornais.

- Então, então! - exclamou o pai, a rir. - Não linchem um homem! Isto não é tudo. Adivinhem que mais trago!

- Uma carta? Oh, Pá, traz uma carta? - gritou Laura.

- De quem é? - perguntou a mãe.

- Tu tens o Advances, Carolina. A Laura e a Carrie têm o Youth's Companions. Eu tenho o PIoneer-Ocean e o Pioneer Press. A carta é para a Maria.

O rosto de Maria brilhou de contentamento. Tacteou a carta, para lhe avaliar o tamanho e a espessura.

- É uma grande carta! - exclamou. - Leia-a, Ma, por favor A. carta era do Rev. Alden. Lamentava não ter podido voltar na última Primavera, para ajudar a organizar a igreja, mas fora enviado mais para norte. Esperava estar com eles quando a Primavera chegasse. As crianças da catequese do Minesota mandavam um maço de Youth's Companions para as pequenas e mandariam outro no próximo ano. A sua igreja enviara-lhes uma barrica de Natal e ele esperava que a roupa servisse. Como prenda de Natal pessoal, e como pequena retribuição da hospitalidade que ele e o Rev. Stuart receberam no Inverno anterior no lago da Prata, juntara um peru. Desejava a todos um alegre Natal e um feliz Ano Novo.

Seguiu-se um pequeno silêncio quando a mãe acabou de ler. Depois ela disse:

- Pelo menos temos esta boa carta.

- O Gilbert trouxe a notícia de que têm uma brigada de trabalho dupla e dois limpa-neves no aterro de Tracy - disse o pai. - Talvej ainda recebamos a barrica no Natal.

- Faltam poucos dias - lembrou a mãe.

- Pode-se fazer muito em poucos dias - redarguiu o pai. - Se este bom tempo se aguentar, não há razão para não porem o comboio a circular.

- Oh, espero que a barrica de Natal chegue! - exclamou Carrie.

- Os hotéis fecharam - disse o pai à mãe. - Têm estado a queimar lenha e agora Banker Ruth comprou a serração até à última tábua.

- De qualquer maneira, não poderíamos comprar lenha, Charles. Mas estamos quase sem carvão.

- Queimaremos feno - respondeu o pai, alegremente.

- Feno? - perguntaram a mãe e Laura. - Como poderemos queimar feno?

Laura pensou na rapidez com que os fogos alastravam pela erva. na pradaria. As chamas lambiam os caules leves e frágeis e avançavam antes de as cinzas caírem. Como se poderia manter uma casa quente com uma coisa que ardia tão depressa, se até o duro carvão não conseguia expulsar o frio?

- Teremos de nos arranjar - afirmou o pai. - E arranjaremos! A fome e o frio é que metem a lebre ao caminho.

- Provavelmente o comboio conseguirá passar a tempo - disse a mãe.

O pai voltou a pôr o boné e pediu-lhe que fizesse o almoço para um pouco mais tarde. Teria tempo de transportar outra carga de feno, se se apressasse. Quando o pai saiu, a mãe disse:

- Filhas, larguem o maço de Youth's Companions. Temos de despachar a lavagem da roupa, enquanto o tempo ajuda.

Durante todo esse dia, Laura, Carrie e Maria aguardaram o momento de poderem ter os Youth's Companions, dos quais falaram não poucas vezes. Mas o dia luminoso foi curto. Mexeram e bateram a roupa que fervia no fogão, levantaram-na no cabo da vassoura e transferiram-na para a selha onde a mãe a ensaboou e a esfregOu. Laura passou-a por água limpa e Carrie agitou o saquinho de anil na água da segunda passagem, até ficar suficientemente azul. Laura ferveu a goma. E quando a mãe saiu pela última vez para o frio, a fim de estender a roupa gelada na corda, o pai chegou para almoçar.

Depois lavaram a louça, esfregaram o chão, limparam o fogão e lavaram o lado de dentro dos vidros. A mãe trouxe para dentro a roupa seca e gelada e elas escolheram-na, borrifaram-na e enrolaram-na muito bem, para ser passada a ferro. O crepúsculo chegara. Já era muito tarde para começarem a ler e depois do jantar tiveram de apagar o candeeiro, pois havia que poupar o resto do querosene.

«Primeiro o trabalho e depois o lazer», dizia sempre a mãe, Mas naquele dia envolveu Laura e Carrie no seu meigo sorriso e disse:

- As minhas meninas ajudaram-me a fazer um bom dia de trabalho - e elas sentiram-se recompensadas.

- Amanhã leremos uma história - disse Carrie, toda contente.

- Amanhã temos de passar a ferro - lembrou-lhe Laura.

- Sim, e precisamos de aproveitar este bom tempo para arejara roupa das camas e fazer uma limpeza a preceito lá em cima.

O pai, que chegou nesse momento e as ouviu, disse:

- Amanhã vou trabalhar no caminho-de-ferro.

O Sr. Woodworth recebera instruções para pôr a trabalhar na via todos os homens que conseguisse arranjar. O superintendente do aterro de Tracy dirigia lá o trabalho e as brigadas de homens com pás trabalhavam de Huron para leste.

- Se músculos e força de vontade chegarem, teremos um comboio a circular no Natal! - afirmou o pai.

Nessa noite voltou do trabalho com um largo sorriso no rosto avermelhado pelo sol.

- Boas notícias! - anunciou. - O comboio das brigadas de trabalho deverá passar amanhã! O comboio regular virá a seguir, provavelmente depois de amanhã.

- Oh, que bom, que bom! - exclamaram Laura e Carrie ao mesmo tempo.

E a mãe disse:

- São, realmente, boas notícias. Que tens nos olhos, Charles" Os olhos do pai estavam vermelhos e inchados. Ele respondeu

bem disposto:

- Tirar a neve às pazadas, à luz do Sol, não faz bem aos olhos.

Alguns dos homens estão temporariamente cegos, por causa da neve. Arranja-se um Pouco de água salgada fraca, sim, Carolina? Lavarei os olhos depois de tratar dos animais.

Quando o pai foi para o estábulo, a mãe deixou-se cair numa cadeira, perto de Maria, e disse:

- Receio, filhas, que este Natal seja fraco. Com estas terríveis tempestades e os esforços para nos mantermos quentes, não temos tido tempo de fazer planos para o Natal.

- Talvez a barrica... - começou Carrie.

- Não devemos contar com ela - interrompeu-a Maria.

- Podemos esperar que ela chegue para festejarmos o Natal - sugeriu Laura. - Todos menos... - e pegou em Graça, que ouvia a conversa de olhos muito abertos.

- O Pai Natal não pode vir? - perguntou Graça, e o seu lábio inferior começou a tremer.

Laura abraçou-a e olhou para a mãe, por cima da cabeça loura da irmãzinha.

- O Pai Natal vem sempre para as meninas boazinhas - afirmou a mãe, em tom firme. - Mas, filhas, tenho uma ideia: e se guardássemos os meus jornais da igreja e o vosso maço de Youth's Companions para abrirmos no Natal?

Passado um momento, Maria disse:

- Acho que é uma boa ideia. Ajudar-nos-á a aprender a privar-nos das coisas.

- Eu não quero - declarou Laura.

- Ninguém quer - esclareceu Maria. - Mas é bom para nós. Às vezes Laura nem queria sequer ser boa. Mas, passado outro

momento de silêncio, disse:

- Enfim, se a Ma e a Maria querem, eu também quero. Pelo menos teremos qualquer coisa por que esperar, para o Natal.

- E tu que dizes, Carrie? - perguntou a mãe, e Carrie respondeu, numa vozinha fraca:

- Também quero, Ma.

- As minhas lindas meninas, assim é que é - elogiou a mãe, e prosseguiu: - Havemos de arranjar qualquer coisa nas lojas para... - e olhou para Graça. - Mas quanto a vocês, mais velhas... este ano o pai não conseguiu arranjar trabalho nenhum com salário. Não dispomos de dinheiro para presentes, mas podemos passar um Natal feliz do mesmo modo. Eu tentarei arranjar qualquer coisa especial Para o almoço e depois abriremos os nossos jornais e leremos, e Quando for escuro para lermos o pai tocará a rabeca.

- Já não temos muita farinha, Ma - lembrou Laura.

- Os lojistas estão a pedir cinquenta cêntimos por cada quilo e, Por isso, o pai está à espera do comboio - respondeu a mãe.

- De qualquer modo, não há nada para fazer uma tarte, nem manteiga e ovos para um bolo e o açúcar já se acabou na cidade. Mas havemos de nos lembrar de qualquer coisa para o almoço de Natal.

Laura ficou a pensar. Estava a fazer uma pequena moldura em ponto de cruz de lã sobre cartão fino e prateado. Nos lados e na parte de cima fizera um desenho de pequenas flores azuis e folhas verdes. Agora estava a debruar a parte aberta em azul. Enquanto enfiava a pequena agulha pelas perfurações do cartão e puxava a fina lã colorida cautelosamente, pensou no modo ansioso como Carrie olhava para o bonito objecto. Resolveu dá-lo à irmã como presente de Natal. Talvez um dia pudesse fazer outra para si.

Fora uma sorte ter conseguido acabar a renda para a combinação. Dá-lo-ia a Maria. E à mãe daria uma caixa de cartão, para recolher cabelos, que já bordaria a condizer com a moldura. A mãe poderia pendurá-lo ao canto do seu espelho e quando se penteasse metia lá os cabelos que caíssem, para usar depois no postiço que estava a fazer.

- Mas que podemos nós fazer para o Pá? - perguntou em voz alta.

- Confesso que não sei - respondeu a mãe, preocupada. Não me consigo lembrar de nada.

- Temos algumas moedas - disse Carrie.

- Há o meu dinheiro do colégio... - começou Maria, mas a mãe interrompeu-a:

- Não, Maria, não tocaremos nele.

- Eu tenho dez cêntimos - disse Laura, pensativamente. -Quanto tens tu, Carrie?

- Tenho cinco.

- Precisaríamos de vinte e cinco para comprar um par de suspensórios ao pai. Ele está a precisar de uns novos - alvitrou Laura.

- Eu tenho dez cêntimos - disse a mãe. - Está decidido. Laura, acho melhor tu e Carrie tratarem de os comprar amanhã, assim que o pai sair para o trabalho, de manhã.

No dia seguinte, depois de acabarem o trabalho da manhã, Laura e Carrie atravessaram a rua coberta de neve e entraram no armazém do Sr. Harthorn. Este estava sozinho entre as prateleiras vazias. Nas duas paredes compridas só havia alguns pares de botas de homem e botinas de mulher e algumas peças de tecido estampado.

A barrica dos feijões estava vazia. A barrica dos biscoitos estava vazia. No pouco de salmoura do fundo da barrica da carne de porco não havia carne nenhuma. A comprida caixa do bacalhau só tinha um pouco de sal espalhado no fundo. A caixa das maçãs secas e a das amoras secas estavam vazias.

- Esgotaram-se-me todos os géneros de mercearia, não tenho nada até o comboio chegar, - explicou o Sr. Harthorn. - Esperava um carregamento quando o comboio parou.

Na montra estavam alguns lenços bonitos, pentes, ganchos de cabelo e dois pares de suspensórios. Laura e Carrie olharam para os suSpensórios. Eram feios, de um cinzento baço.

- Querem que os embrulhe? - perguntou o Sr. Harthorn. Laura não gostava de dizer que não, mas olhou para Carrie e viu qUe a irmã esperava que recusasse.

- Não, Sr. Harthorn, obrigada. Não os levamos agora. De novo na rua, ao frio, Laura disse a Carrie:

- Vamos à loja do Sr. Loftus ver se encontramos uns mais bonitos.

Inclinaram a cabeça, para se protegerem do vento frio e forte, e caminharam com dificuldade ao longo do caminho gelado dos alpendres das lojas até chegarem à outra loja de mercearia e fanqueiro.

A loja também estava deserta e cheia de ecos. Todas as barricas e caixas estavam vazias e onde estiveram as conservas viam-se apenas duas latas espalmadas de ostras.

- Espero um fornecimento de géneros quando o comboio chegar, amanhã - disse-lhes o Sr. Loftus. - E não será sem tempo!

Na sua montra estava um par de suspensórios azuis com umas pequenas flores encarnadas, muito bem tecidas à máquina a todo o comprimento, e brilhantes fivelas de metal. Laura nunca vira uns suspensórios tão bonitos. Estavam mesmo a calhar para o pai.

- Quanto custam? - perguntou, quase certa de que seriam muito caros.

Mas custavam vinte e cinco cêntimos. Laura entregou ao Sr. Loftus as suas duas moedas de cinco cêntimos, as cinco moedas de cêntimo de Carrie e a moeda de prata de dez cêntimos da mãe. Pegou no pequeno embrulho e o vento empurrou-a e a Carrie, ofegantemente, para casa.

Ao deitarem-se, nessa noite, ninguém falou em pendurar meias. Graça era muito nova, ainda desconhecia o costume de pendurar meias na véspera de Natal e mais ninguém esperava presentes. Mas nunca estiveram tão ansiosas pelo dia de Natal, pois a via estava desimpedida e o comboio chegaria no dia seguinte.

O primeiro pensamento de Laura, de manhã, foi: «O comboio chega hoje!» A janela não estava coberta de geada, o céu estava limpo e a pradaria coberta de neve adquiria tons rosados, sob o sol matinal. O comboio viria, com certeza, e Laura pensou alegremente nas suas surpresas de Natal.

Saiu da cama sem acordar Maria e enfiou o vestido, ao frio. Abriu a caixa onde tinha as suas coisas. Tirou o rolo de renda, já cuidadosamente embrulhado em papel de seda.

Depois procurou o cartão mais bonito que lhe deram na catequese e tirou a pequena moldura bordada e o recolhedor de cabelos, de cartão. Com essas coisas na mão, desceu a escada, em bicos de pés.

A mãe levantou a cabeça, surpreendida. A mesa estava posta, ela estava a pôr em cada prato um embrulhinho de papel às riscas brancas e encarnadas.

- Feliz Natal, Ma! - murmurou. - Oh, que é isso?

- Presentes de Natal - murmurou a mãe, em resposta. - Que trazes tu aí?

Laura limitou-se a sorrir. Pôs os embrulhos no prato da mãe e de Maria e depois meteu o cartão da catequese na moldura bordada.

- Para a Carrie - disse, baixinho.

Olharam as duas para a moldura. Era bonita. Depois a mãe arranjou um bocado de papel de seda para a embrulhar.

Carrie, Graça e Maria já vinham pela escada abaixo a gritar:

- Feliz Natal! Feliz Natal!

- Oh! - exclamou Carrie. - Pensava que íamos esperar pelo Natal até a barrica do Natal chegar no comboio! Oh! Olhem, olhem!

- Que é? - perguntou Maria.

- Há presentes em todos os pratos da mesa! - respondeu-lhe Carrie.

- Não, não, a Graça não mexe - disse a mãe à mais novinha. -Vamos esperar todas pelo pai. - Graça correu à volta da mesa, a olhar, mas sem mexer.

O pai chegou com o leite e a mãe coou-o. Depois o pai foi ao alpendre e voltou todo sorridente. Estendeu à mãe as duas latas de ostras da loja do Sr. Loftus.

- Charles!

- Faz-nos uma sopa de ostras para o almoço de Natal, Carolina - disse-lhe o pai. - Tenho algum leite da Ellen, não muito e é o último, ela está praticamente seca. Mas talvez o faças chegar.

- Acrescento-lhe água. Teremos sopa de ostras para o almoço de Natal!

Foi então que o pai viu a mesa. Laura e Carrie desataram a rir e a gritar:

- Feliz Natal, feliz Natal, Pá! E Laura disse a Maria:

- O Pá está surpreendido!

- Viva o Pai Natal! - exclamou o pai. - O velhote conseguiu chegar, embora o comboio não tenha chegado!

Sentaram-se todos no seu lugar e a mãe empurrou brandamente para trás as mãos de Graça:

- O Pá abre primeiro o dele, Graça - disse-lhe.

- Que poderá ser isto? - perguntou o pai, ao pegar no embrulho - E quem mo deu?

- Desatou o cordel, desdobrou o papel e mostrou os novos suspensórios com flores vermelhas. - Olá! - exclamou. - Mas como é que eu vou agora usar o casaco? Os suspensórios são tão bonitos que será uma pena tapá-los. - Olhou em redor, para todos os rostos. - Foram vocês todas que mos deram e eu terei orgulho em os usar!

- Ainda não, Graça - disse a mãe. - A seguir é a Maria. Maria desembrulhou os metros de renda fina, tocou-lhe levemente e o seu rosto brilhou de contentamento.

- Vou guardá-la para a usar quando for para o colégio. É mais uma coisa para me ajudar a ir. Ficará muito bonita numa combinação branca.

Carrie estava a olhar para o seu presente. O cartão era do Bom pastor com as suas vestes azuis e brancas e a segurar nos braços um cordeiro branco de neve. O cartão prateado com flores azuis bordadas constituía uma moldura perfeita para ele.

- Oh, que encantador! Que encantador! - murmurou Carrie. A mãe disse que o recolhedor de cabelo era exactamente o que precisava.

Finalmente, Graça rasgou o papel do seu presente e riu de contente. Dois pequeninos e espalmados homens de madeira estavam de pé numa plataforma entre dois postes encarnados. As suas mãos seguravam dois cordéis muito torcidos e esticados por cima das suas cabeças. Usavam carapuços encarnados bicudos e casacos azuis com botões dourados, as suas calças eram às riscas encarnadas e verdes e as suas botas eram pretas, com as biqueiras reviradas para cima.

A mãe apertou devagarinho o fundo dos postes para dentro e um dos homens deu uma cambalhota, enquanto o outro se balançava no seu lugar. Depois o primeiro desceu enquanto o segundo subia, e abanavam a cabeça, esticavam os braços e balançavam as pernas, a dançar e às cambalhotas.

- Olhem! Olhem! - gritava Graça, que não se cansava de ver os engraçados homenzinhos a dançar.

Os embrulhinhos de papel às riscas, em cada prato, continham chupas de Natal.

- Onde conseguiu arranjá-lo, Pá? - perguntou Laura, admirada.

- Arranjei-o há já algum tempo. Era o último açúcar que havia na cidade. Algumas pessoas disseram que o utilizariam para adoçar, mas eu guardei-o para o nosso Natal.

- Oh, que Natal encantador! - exclamou Carrie, a suspirar. Laura pensava o mesmo. Acontecesse o que acontecesse, podiam sempre ter um alegre Natal. E o sol brilhava, o céu estava azul, a via férrea estava desimpedida e o comboio viria. O comboio já passara o aterro de Tracy naquela manhã.

Durante o dia, haviam de ouvir o seu apito e de o ver parar na estação.

Ao meio-dia, a mãe estava a fazer a sopa de ostras. Laura punha a mesa e Carrie e Graça brincavam com os bonecos de madeira. A mãe provou a sopa e pôs a cafeteira ao lume.

- As ostras estão prontas - anunciou, ao mesmo tempo que se inclinava para ver as fatias de pão que tostavam no forno. - E o pão está torrado. Que está o pai a fazer?

- Está a trazer feno para dentro - respondeu Laura.

O pai abriu a porta. Atrás dele, o alpendre estava quase cheio de feno do pântano.

- A sopa de ostras está pronta? - perguntou.

- Vou tirá-la - respondeu a mãe. - Ainda bem que o comboio está a chegar, pois este é o último carvão. - Mas depois olhou para o pai e perguntou: - Que aconteceu, Charles?

- Há uma nuvem a noroeste - respondeu o pai, devagar.

- Oh, outra nevasca, não! - exclamou a mãe.

- Receio bem que sim - redarguiu o pai. - Mas não precisa de estragar o nosso almoço. - Puxou a sua cadeira para a mesa. - Meti feno suficiente no estábulo e enchi o alpendre. Agora vamos à nossa sopa de ostras!

O sol continuou a brilhar enquanto comeram. A sopa quente estava boa, apesar de o leite ser mais água do que outra coisa. O pai esfarelou o pão torrado no prato da sopa.

- Este pão torrado é tão bom como biscoitos - disse à mãe. - Talvez até seja melhor.

Laura apreciou a boa sopa, mas não pôde deixar de pensar na nuvem negra que se aproximava. E também não pôde deixar de escutar, à espera de ouvir o vento que sabia não tardar.

E não tardou. Chegou com um uivo que abanou as janelas e sacudiu a casa.

- Esta deve ser das boas! - exclamou o pai.

Foi à janela, mas não conseguiu ver nada no exterior. A neve vinha com o vento, do céu, e levantava-se dos montões endurecidos, à medida que o vento os desfazia. Juntava-se toda no ar turbilhonante e andava loucamente à roda. O céu, o Sol e a cidade desapareceram perdidos naquela cegante dança de neve. A casa estava outra vez sozinha.

«Agora o comboio não pode vir», pensou Laura.

- Vamos, filhas - disse a mãe. - Despachamos a louça e depois abrimos os nossos jornais e passamos uma tarde aconchegada.

- Há carvão suficiente, Ma? - perguntou Laura. O pai olhou para o lume e respondeu:

- Durará até ao jantar. Depois queimaremos feno.

A geada estava a gelar os vidros e a casa estava fria junto das paredes. Perto do fogão, a luz era muito fraca para lerem. Depois de lavada e arrumada a louça, a mãe pôs o candeeiro em cima da toalha aos quadrados e acendeu-o. Só havia um restinho de querosene no depósito, onde a torcida grossa se enroscava, mas dava uma luz quente e alegre. Laura abria o maço de Youth's Companions e ela e Carrie olharam avidamente para a abundância de histórias impressas no PaPel branco e liso.

- Escolham uma história e eu leio-a alto - disse a mãe. - Desse modo apreciá-la-emos todos.

Assim, chegadas umas para as outras entre o fogão e a mesa iluminada, ouviram a mãe ler a história na sua voz doce e límpida. A história fê-las esquecer o frio e a escuridão da tempestade. Quando acabou a primeira, a mãe leu uma segunda e depois uma terceira. Chegava para um dia, deviam guardar algumas para outra ocasião.

- Não estão contentes por termos guardado estas histórias maravilhosas para o dia de Natal? - perguntou Maria, e suspirou, feliz.

E estavam. A tarde passara depressa. Já eram horas de tratar dos animais.

Quando voltou do estábulo, o pai demorou-se algum tempo no alpendre e voltou com os braços cheios de paus.

- Aqui tens o combustível para o pequeno-almoço, Carolina - disse, enquanto depositava a carga junto do fogão. - Bons e duros paus de feno. Acho que arderão bem.

- Paus de feno? - admirou-se Laura.

- Exactamente, Laura. - O pai estendeu as mãos por cima do fogão, para as aquecer. - Ainda bem que pus aquele feno no alpendre. Não poderia transportá-lo com este vento, a não ser que trouxesse uma folha de cada vez, entre os dentes.

O feno estava, realmente, transformado em paus. O pai torcera-o e atara-o tão bem que cada pau era tão duro como madeira.

- Paus de feno! - exclamou a mãe, a rir. - De que te lembrarás a seguir? Arranjas sempre uma solução.

- Tu não me ficas atrás - redarguiu-lhe o pai, a sorrir.

Para o jantar havia batatas cozidas quentes, com sal, e uma fatia de pão para cada um. A mãe gastara a última farinha, mas ainda havia feijão no saco e alguns nabos. Também havia chá quente com açúcar e Graça bebeu o seu púcaro de chá branco feito com água quente, pois o leite acabara-se. Enquanto comiam, a luz do candeeiro começou a falhar. A chama erguia-se com toda a sua força, chupando as últimas gotas de querosene pela torcida acima, depois esmorecia e, desesperadamente, tentava de novo. A mãe inclinou-se e apagou-a. A escuridão instalou-se, sobrecarregada com o rugir e o uivar da tempestade.

- O lume também está a apagar-se e, por isso, o melhor é irem para a cama - disse a mãe, brandamente. - O dia de Natal acabou-se.

Laura ficou deitada, a ouvir o vento soprar cada vez com mais força. Parecia a alcateia de lobos a uivar à volta da casinha na pradaria, havia muito tempo, quando ela era pequena e o pai lhe pegara ao colo. E havia também o uivo mais forte do grande lobo-búfalo que ela e Carrie encontraram na margem do lago da Prata.

Começou a tremer quando ouviu o grito da pantera no leito do regato, no território índio. Mas sabia que era apenas o vento. Depois ouviu os gritos de guerra índios, quando eles dançaram as suas danças de guerra ao longo de todas aquelas noites horríveis, junto do rio Verdigris.

Os gritos de guerra dissiparam-se e ela ouviu multidões de pessoas a murmurar, depois a gritar e a fugir dos gritos ferozes que as perseguiam. Mas sabia que só estava a ouvir as vozes dos ventos da nevasca. Puxou a roupa da cama para cima da cabeça e tapou bem os ouvidos, para não ouvir aqueles sons. Mas mesmo assim continuou a ouvi-los.

 

                     QUERER É PODER

O feno fazia um lume rápido e quente, mas ardia mais depressa do que aparas. A mãe conservava a tiragem fechada e levava o dia inteiro a alimentar o lume. O pai, excluindo os momentos em que, sob a tempestade, ia tratar dos animais, levava o dia inteiro a torcer mais paus de feno no alpendre. A tempestade tornava-se mais violenta e o frio mais cruel.

O pai ia muitas vezes ao fogão aquecer as mãos.

- Os meus dedos ficam tão dormentes que não consigo torcer bem o feno.

- Deixe-me ajudá-lo, Pá - pediu Laura. Mas ele não queria deixá-la.

- Tens as mãos muito pequenas para semelhante trabalho. - Mas depois admitiu: - Alguém terá de ajudar, porém. Manter este fogão aceso e transportar feno para ele, será trabalho para mais de uma pessoa. - Por fim, decidiu-se: - Anda, eu ensino-te.

Laura vestiu o velho casaco do pai, pôs o capuz e o cachecol e foi para o alpendre com ele.

O alpendre não estava forrado do lado de dentro e o vento atirava neve por todas as fendas das paredes de madeira. A neve atravessava o chão e espalhava-se pelo feno.

O pai apanhou um punhado duplo de feno e sacudiu-lhe a neve.

- Sacode a neve toda - recomendou a Laura. - Se a deixares, derrete-se quando levares os paus para dentro e molhados não arderão.

Laura apanhou todo o feno que as suas mãos podiam conter e sacudiu-lhe a neve. Depois, a observar o pai, repetiu os seus movimentos, para torcer o feno. Ele torcia primeiro a todo o comprimento, até onde as suas mãos podiam, e depois metia a extremidade do lado direito debaixo do cotovelo esquerdo e conservava-a aí, bem apertada contra o flanco, para que não se destorcesse.

Em seguida a sua mão direita tirava a outra extremidade da mão esquerda. A sua mão esquerda descia o mais que podia até à extremidade que tinha debaixo do cotovelo esquerdo e agarrava-a. O pai torcia outra vez o feno. Desta vez, metia a sua outra extremidade debaixo do cotovelo es querdo. Repetia esses movimentos diversas vezes, até todo o feno estar bem torcido e apertado e a dobrar-se no meio. De cada vez qUe torcia e metia a extremidade debaixo do cotovelo esquerdo, o feno de tão apertado, dobrava-se à volta de si próprio.

Quando todo o feno não se podia torcer mais, o pai uniu as duas extremidades e meteu-as na última dobra. Deitou para o chão o pau de feno duro e olhou para Laura.

Ela tentava entalar as pontas, como o pai fizera. Mas o feno estava tão torcido, tão apertado, que não conseguia.

- Dobra-o um bocadinho, para afrouxar - aconselhou o pai. - Depois introduz as pontas entre as dobras e deixa-o apertar-se de novo. Isso mesmo!

O pau de feno de Laura estava irregular e não se apresentava liso e duro como o do pai. Mas o pai disse-lhe que estava bom, atendendo a que era o primeiro, e que o seguinte já sairia melhor.

Laura fez seis paus de feno, cada um melhor do que o anterior, até Que o sexto saiu como devia ser. Mas estava com tanto frio que as suas mãos não sentiam o feno.

- Já chega! - disse-lhe o pai. - Apanha-os e vamos aquecer-nos.

Levaram os paus de feno para a cozinha. Os pés de Laura estavam dormentes, de tão frios, pareciam de madeira. As suas mãos estavam vermelhas e quando as estendeu para o ar quente, por cima do fogão, ficaram a formigar, picaram-lhe e arderam onde as folhas cortantes da erva seca a golpearam. Mas ajudara o pai. Os paus de feno que ela fizera davam ao pai tempo para se aquecer bem antes de terem de voltar para o frio, a fim de torcerem mais feno.

Durante todo esse dia e o seguinte, Laura ajudou o pai a torcer feno, enquanto a mãe alimentava o lume e Carrie a ajudava a tomar conta de Graça e a tratar da lida da casa. Almoçaram batatas cozidas e puré de nabos com pimenta e sal, e para o jantar a mãe cortou as batatas e aqueceu-as no forno, porque não havia gordura nenhuma para as fritar. Mas a comida estava quente e era boa e ainda havia bastante chá e algum açúcar.

- Este pão é o último - disse a mãe, na segunda noite, ao jantar. - Precisamos, realmente, de arranjar alguma farinha, Charles.

- Comprá-la-ei, assim que a tempestade amainar - respondeu o pai. - Custe o preço que custar.

- Sirva-se do meu dinheiro para o colégio, Pá - disse Maria. - Trinta e cinco dólares e vinte e cinco cêntimos devem chegar para toda a farinha de que precisamos.

- És uma boa filha, Maria - elogiou a mãe. - Mas espero que não precisemos de gastar o teu dinheiro do colégio. Suponho que os preços dependem da altura em que o comboio conseguir passar, não, Charles?

- Sim, é disso que eles dependem.

A mãe levantou-se e pôs outro pau de feno no lume. Quando levantou a tampa do fogão, subiu uma luz amarelo-avermelhada e fumacenta que expulsou momentaneamente as trevas. Depois a escuridão voltou. O clamor selvagem da tempestade parecia mais alto e mais próximo, às escuras.

- Se tivesse alguma gordura, poderia improvisar uma espécie de luz qualquer - observou a mãe. - Quando eu era rapariga, não nos faltava luz, antes de se ter ouvido falar desta novidade do querosene.

- Lá isso é verdade - concordou o pai. - Neste tempo há demasiado progresso.

Mudou tudo depressa de mais. Caminhos-de-ferro, telégrafo, querosene e fogões a carvão... São coisas boas, é bom tê-las, mas o mal é que as pessoas se tornam dependentes delas.

De manhã a ventania continuava a uivar e do lado de fora das janelas cobertas de grossa camada de geada a neve não parara de turbilhonar. Mas a meio da manhã começou a soprar um vento forte e de uma só direcção, vindo do sul, e o sol brilhou. Estava muito frio, tanto que a neve rangia debaixo dos pés de Laura, no alpendre.

O pai atravessou a rua, para comprar a farinha. Demorou-se algum tempo e quando voltou trazia um saco de grão ao ombro. Deixou-o cair para o chão com um baque.

- Aqui tens a tua farinha, Carolina... ou o que terá de fazer as vezes dela. É trigo, o último das reservas dos moços Wilder. Não há farinha nenhuma nas lojas. Banker Ruth comprou a última saca, esta manhã: pagou cinquenta dólares por ela, um dólar por cada meio quilo.

- Meu Deus, Charles! - exclamou a mãe, cheia de espanto.

- É verdade. Nós não poderíamos comprar muita farinha por esse preço, por isso, não faz diferença que o Ruth a tenha comprado. O melhor, agora, é aprendermos a cozinhar o trigo. Como há-de ser? Cozido?

- Não sei, Charles. Não temos nada para comer com ele...

- É uma pena não haver um moinho de trigo na cidade.

- Nós temos um moinho - lembrou a mãe, ao mesmo tempo que tirava do cimo do armário o moinho do café.

- Pois temos, é verdade - concordou o pai. - Vejamos como funciona.

A mãe colocou a pequena caixa de madeira castanha em cima da mesa. Girou um momento a manivela, para soltar qualquer grão de café que se encontrasse nos dentes trituradores. Depois tirou a pequena gaveta, despejou-a e limpou-a cuidadosamente. O pai abriu a saca do trigo.

O funil de ferro preto, do cimo do moinho, levava meio púcaro de grão. A mãe fechou-o e depois sentou-se, colocou a caixa quadrada entre os joelhos, para a fixar bem, e começou a dar à manivela. O moinho fazia o seu barulho especial de moer.

- O trigo mói-se tal qual como o café - observou a mãe. Abriu a gaveta e viu os bocados partidos de trigo esmagado. - Afinal não é como o café - emendou. - O trigo não foi torrado e tem mais humidade.

- Podes fazer pão disso? - perguntou o pai.

- Claro que posso. Mas não podemos parar de moer, se quero ter quantidade suficiente para fazer um pão para o jantar.

- E eu tenho de ir carregar algum feno, para o cozer.

O pai tirou da algibeira uma caixa redonda e achatada, de madeira, e estendeu-a à mãe.

- Toma uma coisa que talvez te sirva para fazer luz.

- Há alguma notícia do comboio, Charles?

- Estão outra vez a trabalhar no aterro de Tracy, que ficou de noVO obstruído até ao cimo da neve que atiraram para ambos os lados, quando o desimpediram da última vez.

Foi ao estábulo atrelar David ao trenó. A mãe abriu a caixa: estava cheia de gordura amarela, de lubrificar os eixos das rodas. Mas não havia tempo para pensar na luz, naquela altura. O lume estava a morrer e a mãe deitou-lhe o último pau de feno. Laura correu para o alpendre, a fim de fazer mais.

passados minutos, a mãe foi ajudá-la.

- A Maria está a moer o trigo - explicou. - Precisamos de torcer muito feno, para o lume não se apagar e termos um bom calor quando o pai voltar, quase gelado.

A tarde ia adiantada quando o pai voltou. Desatrelou o trenó perto da porta das traseiras e levou David para o estábulo. Depois pegou na forquilha e atirou o feno para o alpendre, até quase não haver espaço para passarem de porta para porta. Só então se aproximou do lume. Tinha tanto frio que só passado um bom bocado aqueceu o suficiente para poder falar.

- Desculpa ter-me demorado tanto, Carolina. A neve está muito mais alta do que estava e tive dificuldade em tirar o feno debaixo dela.

- Acho que o melhor é almoçarmos a esta hora, todos os dias - alvitrou a mãe. - Com a necessidade de poupar lume e luz os dias ficam tão curtos que praticamente não há tempo para três refeições. Um almoço tardio servirá também de jantar.

O pão escuro que a mãe fizera com o trigo moído estava muito bom. Tinha um sabor agradável, a nozes, que quase substituía a manteiga.

- Estou a ver que recorreste outra vez à tua massa azeda - observou o pai.

- É verdade, Charles. Não precisamos de fermento nem de leite para fazer bom pão.

- Querer é poder - disse o pai, enquanto se servia de outra batata e a salpicava de sal. - Batatas e sal também não são coisa de lhe fazer cara. O sal realça todo o sabor de uma batata, que a manteiga e o molho ocultam parcialmente.

- Não ponha açúcar no chá, Pá, e poderá apreciar todo o seu sabor - disse Laura, maliciosamente.

Os olhos do pai brilharam, ao olhá-la.

- Uma boa chávena de chá quente realça o sabor do açúcar, Meia Canequinha - redarguiu, e depois perguntou à mãe: - que tal te saíste com o sebo de eixos para a luz?

- Ainda não tive tempo de experimentar, Charles. Mas assim que acabarmos de comer farei uma lamparina de botão.

- Que é isso, Carolina?

- Espera e verás.

Quando o pai foi tratar dos animais, a mãe disse a Carrie que fosse buscar o saco dos trapos. Tirou algum sebo da caixa e espalhou-o num pires velho. Depois cortou um quadradinho de pano.

- Agora arranja-me um botão no saco dos botões, Carrie.

- Que género de botão, Ma? - perguntou Carrie, quando trouxe o saco dos botões da fria sala da frente.

- Um dos botões do sobretudo velho do pai.

Pôs o botão no meio do quadrado de pano, reuniu as pontas deste muito bem e enrolou-lhes uma linha à volta, bem apertada. Depois torceu as pontas do pano, de modo a ficarem direitas e em bico, Em seguida, esfregou um pouco de sebo no pano e colocou o botão no sebo, no meio do pires.

- Agora esperamos que o pai volte - disse.

Laura e Carrie apressaram-se a despachar a louça, na escuridão que se adensava. Quando o pai voltou, estava escuro.

- Dá-me um fósforo, Charles, por favor.

A mãe acendeu a ponta afunilada da lamparina de botão e uma chamazinha tremeluziu e cresceu. Ardeu firmemente, derretendo o sebo e chupando-o através do pano, para assim se conservar acesa, A pequena chama era como a chama de uma vela na escuridão.

- És uma maravilha, Carolina. É só uma luzinha, mas faz uma diferença enorme.

O pai aqueceu as mãos por cima do fogão e olhou para o montinho de feno torcido.

- Mas eu não preciso de luz para torcer feno e estamos a precisar de mais - observou. - Este não chega para de manhã.

Foi para o alpendre torcer feno e Laura tirou o moinho de café a Maria e substituiu-a. Girar a pequena manivela incessantemente fazia doer tanto o braço e o ombro que tinham de se revezar. O pequeno moinho moía o trigo tão devagar que não podiam parar se queriam ter farinha suficiente para fazer pão para cada refeição.

A mãe descalçou os sapatos a Graça, aqueceu-lhe os pés junto da porta do forno e depois despiu-lhe o vestido, enfiou-lhe a camisa de dormir e embrulhou-a no xaile que estivera a aquecer nas costas de uma cadeira.

- Vem, Carrie, se estás pronta e quente - disse. - Meto a Graça na cama contigo.

Quando Graça e Carrie se deitaram, com o xaile quente e o ferro de engomar aquecido, a mãe voltou para baixo.

- Eu agora trato de moer o trigo, Laura. Tu e a Maria vão para a cama. Assim que o pai voltar para dentro, deitamo-nos também, para poupar este feno que tanto custa a ir buscar e torcer.

 

                   ANTÍLOPES!

Houve um dia de sol em que a neve solta rolava como fiapos de fumo através da branca pradaria gelada.

O pai entrou em casa, apressado, e anunciou, enquanto tirava a caçadeira do suporte e enchia as algibeiras de cartuchos:

- Está uma manada de antílopes a oeste da cidade!

Laura lançou o xaile da mãe pela cabeça e correu para a fria sala da frente. Raspou o buraquinho na geada da janela e viu um grupo de homens a reunir-se na rua. Diversos estavam a cavalo. O Sr. Foster e Almanzo Wilder montavam os belos cavalos Morgans. Cap Garland apareceu a correr e juntou-se aos homens apeados, que escutavam o que o pai dizia. Tinham todos espingardas. Pareciam muito agitados e falavam alto.

- Volta para o calor, Laura - chamou a mãe.

- Pensem só: carne de antílope! - exclamou Laura, enquanto pendurava o xaile. - Oxalá o Pá abata dois antílopes!

- Eu ficarei contente se tivermos alguma carne para comer com o pão escuro - declarou a mãe. - Mas não devemos contar com o ovo antes de a galinha o pôr.

- Se há antílopes, o Pá apanha um com certeza! - afirmou Laura.

Carrie trouxe um prato de trigo para encher o funil do moinho que Maria estava a accionar.

- Antílope assado - disse Carrie. - Com molho, molho com batatas e no pão escuro!

- Espera um bocadinho, Maria! - pediu Laura. - Escutem. Lá vão eles!

O vento constante passava pela casa e assobiava nas telhas, mas mesmo assim ouviram vagamente as vozes dos homens e os seus passos e os dos cavalos pela Rua Principal fora.

Pararam ao fim da rua. Distinguiam, a cerca de quilómetro e meio de distância e através dos montes de neve e de neve esvoaçante, a manada cinzenta de antílopes a dirigir-se para sul.

- Devagar e com cautela - recomendou o pai. - Dêem-nos tempo de os contornar por norte, antes de vocês os encurralarem por sul. Aproximem-se devagar e encaminhem-nos na nossa direcção sem oS assustar, se for possível, até estarem ao alcance de tiro. Não há pressa, dispomos do dia todo, e se fizermos as coisas como deve ser podemos abater um para cada um.

- Talvez fosse melhor nós cavalgarmos para norte e vocês, a pé, contorná-los por sul - sugeriu o Sr. Foster.

- Não, façamos como o Ingalls disse - discordou o Sr. Harthorn. - Vamos, rapazes!

- Em fila! - recomendou o pai. - E devagar e com cautela, não os espantem!

Montados nos Morgans, Almanzo e o Sr. Foster tomaram a dianteira. O vento frio tornava os cavalos ansiosos por partirem. Inclinavam as orelhas para a frente e para trás e sacudiam a cabeça, a chocalhar o freio e a fingir que se assustavam um pouco com a própria sombra. Esticaram o focinho para a frente, a fazer força no freio e a empinarem-se, para irem mais depressa.

- Aguente-a firme! - recomendou Almanzo ao Sr. Foster. - Não use muito o freio, que ela é dorida da boca.

O Sr. Foster não sabia andar a cavalo. Estava tão nervoso como Lady e isso tornava-a ainda mais nervosa. Dava solavancos na sela e não segurava as rédeas com firmeza. Almanzo arrependeu-se de o ter deixado montar Lady.

- Cuidado, Foster - recomendou de novo. - Essa égua ainda lhe salta de baixo.

- Que demónio tem ela? Que demónio tem ela? - perguntou o Sr. Foster, a bater os dentes por causa do vento frio. - Oh, lá estão eles!

No ar límpido, os antílopes pareciam mais perto do que estavam. Para lá da manada, os homens a pé iam avançando para oeste. Almanzo viu o Sr. Ingalls à frente da fila. Mais uns minutos e a manada estaria cercada.

Voltou-se para falar ao Sr. Foster e viu a sela de Lady vazia. Nesse instante, um tiro ensurdeceu-o e ambos os cavalos deram grandes saltos. Almanzo puxou as rédeas ao Príncipe, enquanto Lady passava como uma seta.

O Sr. Foster saltava, agitava a espingarda e gritava. Louco de excitação, saltara de cima de Lady, largara as rédeas e disparara contra os antílopes, que estavam muito longe, fora do alcance de tiro.

De cabeças e caudas erguidas, os antílopes começaram a fugir, como se o vento os empurrasse por cima dos montes de neve. A castanha Lady alcançou a manada cinzenta e meteu-se no meio dela, a correr com os antílopes.

- Não disparem! Não disparem! - gritou Almanzo, embora sOubesse que os seus gritos eram inúteis contra o vento. Os antílopes já estavam a passar pela linha dos homens apeados, mas nenhum disparou com medo de atingir a égua. A reluzente Morgan, de cabeça empinada e crina e cauda pretas ao vento, passou por cima de uma elevação da pradaria, no meio da nuvem cinzenta e baixa dos antílopes, e desapareceu. Passados momentos, a égua e manada apareceram noutra curva branca, tornaram-se mais pequenos, foram aparecendo e desaparecendo até que a pradaria os engoliu.

- Parece que a perdeu, Wilder - disse o Sr. Harthorn. - Que pena!

Os outros cavaleiros tinham-se aproximado. Imóveis nas montadas, olhavam a pradaria distante. A manada de antílopes, com Lady pequena e escura no meio, apareceu mais uma vez, como uma fugaz mancha cinzenta que desapareceu rapidamente.

O Sr. Ingalls voltou, com os outros homens apeados. Cap Garland observou:

- Pouca sorte, Wilder. Acho que devíamos ao menos ter arriscado um tiro.

- Sempre me saiu um grande caçador, palavra de honra, Foster! - exclamou Gerald Fuller.

- Foi o único homem que deu um tiro - comentou Cap Garland. - E que tiro!

- Lamento, devo ter deixado fugir-me a égua - disse o Sr. Foster. - Estava tão excitado que não pensei. Julguei que o cavalo pararia. Nunca vira um antílope na minha vida.

- Para a próxima vez que disparar contra um, Foster, espere até estar ao alcance de tiro - resmungou Gerald Fuller.

Ninguém disse mais nada. Almanzo manteve-se na sela, enquanto Príncipe forçava o freio, a tentar libertar-se para seguir a sua companheira. Assustada como estava, e a correr com a manada, havia o perigo de a égua correr até rebentar. Tentar alcançá-la não serviria de nada, perseguir a manada só a faria andar mais depressa.

A julgar pelos pontos de referência, os antílopes encontravam-se uns oito ou dez quilómetros para oeste quando viraram para norte.

- Vão a caminho do lago Spirit - disse o Sr. Ingalls. - Abrigar-se -ão lá, nos arbustos, e depois retrocederão para as escarpas do rio. Não os voltaremos a ver.

- E a égua do Wilder, Sr. Ingalls? - perguntou Cap Garland. O pai olhou para Almanzo e depois para noroeste. Não se via nenhuma nuvem, mas o vento soprava forte e cortante, de tão frio.

- É o único cavalo desta região capaz de correr com um antílope, a não ser aqui o seu companheiro, e matá-lo-ia se tentasse alcançá-los. É um dia de viagem até ao lago Spirit, pelo menos, e ninguém sabe quando se desencadeará uma nevasca. Eu não me arriscaria, com este Inverno.

- Não tenciono arriscar-me - respondeu Almanzo. - Mas vou dar uma volta e regressar à cidade pelo norte. Talvez veja a égua. Caso contrário, talvez ela consiga descobrir o caminho para casa. Até depois! Voltamos a ver-nos na cidade.

Deixou Príncipe partir a trote largo na direcção norte, enquanto os outros punham as espingardas ao ombro e regressavam direitos à cidade.

Almanzo cavalgava com a cabeça baixa, por causa do vento, mas em cada elevação da pradaria ou monte alto de neve olhava a terra que se estendia à sua frente. Não se via nada além de suaves encostas de neve solta arrancada e soprada pelo vento. A perda de Lady apertava-lhe o coração, mas não tencionava arriscar a vida por causa de um cavalo. A parelha ficava destruída sem ela. Nem na vida inteira encontraria outra companheira perfeita para Príncipe. Que grande idiota fora ao emprestar um cavalo a um desconhecido, pensou.

Príncipe avançava suavemente, de cabeça erguida contra o vento, galopando pelas encostas acima e descendo-as a trote largo. Almanzo não tencionava afastar-se muito da cidade, mas o céu continuava limpo a noroeste e havia sempre outra elevação à sua frente, da qual podia ver mais para norte.

Lady, pensava, podia ter-se cansado e ficado para trás da manada de antílopes. Podia andar por ali a vaguear, perdida e assustada. Talvez a avistasse do cimo da próxima elevação da pradaria...

Quando lá chegou, só viu terra branca à sua frente. Príncipe desceu a encosta e logo surgiu outra, a subir, à sua frente.

Almanzo olhou para trás, para ver a cidade, mas não viu cidade nenhuma. O aglomerado de fachadas altas e falsas e as finas colunas de fumo que subiam dos canos das chaminés desapareceram. Debaixo do céu não havia nada além da terra branca, da neve batida pelo vento e do frio.

Não se assustou. Sabia onde a cidade ficava e enquanto no céu houvesse Sol, Lua ou estrelas, não se perderia. Mas experimentou uma sensação mais fria do que o vento. Sentiu que era o único ser vivo na terra fria, sob o céu frio. Ele e o seu cavalo, sozinhos na enorme terra gelada.

- Vamos Príncipe! - disse, mas o vento levou-lhe as palavras no seu soprar incessante.

Depois teve medo de ter medo. E pensou: «Não há nada de que ter medo. Não vou voltar agora para trás. Mas voltarei quando chegar ao cimo da próxima elevação.» E esticou um bocadinho as rédeas, um nadinha só, para manter o ritmo do galope de Príncipe.

Do cimo da elevação seguinte viu uma orla baixa de nuvens no horizonte do céu, do lado de noroeste. De repente, toda a grande pradaria pareceu uma armadilha consciente de que o apanhara. Mas Almanzo viu, também, Lady.

Muito ao longe e pequena, na crista de ondulados campos de neve, a égua castanha olhava para leste. Almanzo arrancou a luva, levou dois dedos à boca e soltou o assobio penetrante com o qual costumava chamar Lady através das pastagens do pai, no Minesota, quando ela ainda era garrana. Mas o vento da pradaria arrancou-lhe o som agudo dos lábios e levou-o, silenciado. Levou também o longo apelo relinchado pelo pescoço esticado de Príncipe. Lady continuou imóvel, a olhar na direcção oposta à deles.

Depois virou-se, porém, para olhar para sul, e viu-os. O vento trouxe o seu relincho distante e apagado. Arqueou o pescoço, levantou a cauda e veio a galope.

Almanzo esperou até ela chegar ao cimo de uma elevação mais próxima e ouviu-a chamar de novo, ao vento. Voltou-se, então, e cavalgou na direcção da cidade. A nuvem baixa descia no céu, enquanto ele cavalgava, mas Lady foi aparecendo uma vez e outra atrás dele.

No estábulo atrás da loja de rações, meteu Príncipe na sua baia e esfregou-o. Encheu-lhe a manjedoura e chegou-lhe o balde da água, para que bebesse um pouco.

Ouviu barulho à porta do estábulo e abriu-a, para deixar Lady entrar. A égua estava branca de espuma, escorria suor e os seus flancos arfavam.

Almanzo fechou a porta do estábulo, por causa do frio, enquanto Lady se dirigia para a sua baia. Depois, com a almofada, limpou-lhe a espuma dos lados e dos flancos ofegantes e cobriu-a bem com um cobertor. Enfiou-lhe um pano molhado na boca, para lhe humedecer a língua. Esfregou-lhe as pernas delgadas e enxugou-lhas onde o suor ainda escorria.

- Sim, senhor, Lady, és capaz de correr mais do que um antílope! Fizeste papel de parva, não fizeste? - Almanzo ia falando com a égua, enquanto trabalhava. - De qualquer modo, foi a última vez que permiti que um idiota te montasse. Agora descansa, quente e sossegada. Daqui a bocado dou-te água e comida.

 

O pai entrara silenciosamente na cozinha e, sem uma palavra, colocara a caçadeira nos suportes. Ninguém disse nada, não era preciso. Carrie suspirou. Não haveria carne de antílope nem molho no pão escuro.

O pai sentou-se diante do fogão e estendeu as mãos para o calor.

Passados momentos, explicou:

- O Foster perdeu a cabeça, de todo excitado, saltou do cavalo e disparou quando ainda não estava sequer perto do alcance de tiro. Depois disso, nenhum de nós teve qualquer probabilidade. A manada toda fugiu para norte.

A mãe pôs um pau de feno no fogão.

- De qualquer modo, não seriam muito bons para comer, nesta época do ano - comentou.

Laura sabia que os antílopes tinham de escarvar a neve alta para chegarem à erva seca de que se alimentavam. Com uma nevasca não o poderiam fazer e agora a neve era tão funda que deviam estar esfomeados. Era verdade que a sua carne teria sido pouca e dura. Mas teria sido carne. Estavam todos tão cansados de batatas e pão escuro, sem mais nada...

- O cavalo do moço Wilder mais novo também fugiu - disse o pai e contou-lhes como a égua fugira com os antílopes: fez uma história para Carrie e Graça da bonita égua a correr, livre, com a manada selvagem.

- E nunca mais voltou, Pá? - perguntou Graça, de olhos muito abertos.

- Não sei - respondeu-lhe o pai. - Almanzo Wilder partiu a cavalo atrás dela e eu não sei se ele voltou ou não. Enquanto preparas o almoço, Carolina, vou até à loja de rações saber.

A loja de rações estava vazia e deserta, mas Royal espreitou da sala do fundo e convidou, bem humorado:

- Entre, Sr. Ingalls! Vem mesmo a tempo de provar as panquecas e o toucinho fumado!

- Não sabia que almoçavam a esta hora...

O pai olhou para o prato de toucinho fumado que estava ao borralho do fogão, para se conservar quente. Havia três rimas de panquecas num prato e Royal estava a fazer mais. Nem sequer faltava o melaço em cima da mesa e a cafeteira do café a ferver.

- Nós comemos quando temos fome - explicou Royal. - É a vantagem de sermos solteiros. Onde não há mulheres, não há horas certas para as refeições.

- Tiveram sorte em trazer provisões - observou o Sr. Ingalls.

- Bem, eu tinha de trazer, de qualquer maneira, um carregamento de rações e pensei que podia muito bem trazer também as provisões. Agora tenho pena de não ter trazido dois carregamentos, pois creio que poderia vender outro antes de o comboio passar.

- Também acho. - O Sr. Ingalls olhou em redor da sala aconchegada, passou os olhos pelas paredes onde estavam penduradas roupas e arneses e reparou nos espaços vazios na parede do fundo.

- O seu irmão ainda não voltou?

- Acaba de entrar no estábulo - respondeu Royal, e depois exclamou: - Com mil raios, olhe para aquilo! - Viram Lady, a escorrer espuma e com a sela vazia, passar como um relâmpago pela janela, direita ao estábulo.

Enquanto conversavam da caçada e do tiro estúpido do Sr. Foster, Almanzo chegou. Atirou as selas para um canto, a fim de as limpar antes de as pendurar, e aqueceu-se ao fogão. Depois, juntamente com Royal, insistiu com o visitante para se sentar à mesa e comer com eles.

- O Royal não faz panquecas tão bem como eu - disse Almanzo -, mas ninguém cozinha o toucinho fumado melhor do que ele. É curado em casa e fumado com fumo de nogueira e saiu de porcos novos, engordados com milho e alimentados com trevo na quinta, no Minesota.

- Sente-se, Sr. Ingalls, e sirva-se. Há muito mais lá em baixo, na cave. Uma chávena de chá? - convidou, e o visitante obedeceu.

 

                     O DURO INVERNO

O sol brilhou de novo na manhã seguinte e o vento amainou. O dia parecia mais quente do que na realidade estava, em virtude de o sol brilhar tanto.

- Está um bonito dia - disse a mãe, ao pequeno-almoço, mas o pai abanou a cabeça.

- O sol brilha de mais - observou. - Vou buscar um carregamento de feno assim que puder, pois precisamos de ter bastante aqui à mão, se vier outra tempestade. - E saiu apressado.

De vez em quando, inquietas, a mãe, Laura ou Carrie espreitavam pela janela coberta de geada para o céu do lado noroeste. O sol continuava a brilhar quando o pai regressou, em segurança, e depois da segunda refeição do dia, de pão escuro e batatas, ele atravessou a rua para saber notícias.

Pouco depois, entrou a assobiar alegremente pela porta da fremte, e irrompeu pela cozinha, a perguntar:

- Adivinhem o que trago aqui!

Graça e Carrie foram a correr apalpar o embrulho que ele trazia.

- Parece... parece... - disse Carrie, mas não se atreveu a dizer o que parecia, com medo de se enganar.

- É carne de vaca! - disse o pai. - Quase dois quilos de carne de vaca, para acompanhar com pão e as batatas -, entregou o embrulho à mãe.

- Charles! Onde foste arranjar carne de vaca? - perguntou a mãe, como se não pudesse acreditar.

- O Foster abateu os bois - respondeu o pai. - Cheguei mesmo a tempo! Vendeu até ao último bocadinho de osso e músculo a cinquenta cêntimos o quilo. Mas eu arranjei dois quilos, e aqui estão! Agora vamos viver como reis!

A mãe tirou rapidamente o papel que envolvia a carne.

- Vou tostá-la toda bem e depois estufá-la no tacho - declarou.

Só de olhar para a carne Laura ficou com água na boca. Engoliu e perguntou:

- Pode fazer um molho, mãe? Com água e farinha escura?

- Claro que posso - respondeu a mãe, a sorrir. - Podemos fazê- la durar uma semana, pelo menos para temperar, e nessa altura o cOmboio já terá com certeza passado, não achas?

Olhou para o pai, a sorrir, mas depois ficou séria e perguntou:

- Que é, Charles?

- Bem... - respondeu o pai, com relutância. - Custa-me dizer-lhes. - Pigarreou. - O comboio não virá.

Ficaram todas paradas, a olhá-lo.

-Os caminhos-de-ferro interromperam a circulação de comboios até à Primavera.

A mãe ergueu as mãos e deixou-se cair numa cadeira.

- Como é possível, Charles? Não pode ser. Não podem fazer isso. Até à Primavera? Ainda estamos no primeiro de Janeiro!

- Não conseguem fazer os comboios passar - explicou o pai. - Mal desimpedem um aterro e o comboio passa, vem logo outra nevasca e bloqueia-o de novo. Têm dois comboios daqui a Tracy, bloqueados entre aterros. Todas as vezes que desimpediram um aterro, atiraram a neve para ambos os lados e agora todos os aterros estão atestados de neve até acima. E em Tracy o superintendente perdeu a paciência.

- Perdeu a paciência? - repetiu a mãe. - A paciência! Sempre gostaria de saber o que tem a paciência dele a ver com o assunto! Ele sabe que estamos aqui sem provisões. Como julga que vamos viver até à Primavera? A ele não lhe compete ter paciência: compete-lhe fazer circular comboios!

- Então, Carolina - disse o pai, ao mesmo tempo que punha a mão no ombro da mãe, que deixava de torcer as mãos no avental. - Há mais de um mês que não temos um comboio e vamos indo bem.

- Claro.

- Falta só este mês, depois Fevereiro é um mês pequeno e em Março será Primavera - encorajou-a o pai.

Laura olhou para o pedaço de carne. Pensou nas poucas batatas que restavam e viu a saca de trigo parcialmente cheia, a um canto.

- Há mais trigo, Pá? - perguntou, em voz baixa.

- Não sei, Laura - respondeu o pai, estranhamente. - Mas não te preocupes. Comprei um alqueire e ainda não foi gasto nem nada que se pareça.

Laura não pôde deixar de perguntar:

- Pá, não podia caçar um coelho?

O pai sentou-se diante do forno aberto e sentou Graça no seu joelho.

- Vem cá, Meia Canequinha, e tu também, Carrie. Vou contar-lhes uma história.

Não respondeu à pergunta de Laura, mas ela sabia qual era a resposta: não restava um coelho em toda aquela região. Deviam ter ido para sul ao mesmo tempo que as aves. O pai nunca levava a caçadeira quando ia carregar feno, e levá-la-ia se tivesse visto nem que fossem apenas os rastos de um coelho.

Enlaçou-a com o braço, quando ela se sentou, muito chegada a Carrie, no seu joelho. Graça aninhou-se-lhe no outro braço e riu-se quando a barba castanha do pai lhe fez cócegas na cara, como costumava fazer a Laura quando ela era pequena. Estavam todas aconchegadas nos braços do pai, com o calor do forno a aquecê-las agradavelmente.

- Agora escutem, Graça, Carrie e Laura - disse o pai. - E a Maria e a mãe também. Esta história é engraçada.

E contou-lhes a história do superintendente.

- O superintendente era um homem do Leste. Sentava-se no seu escritório, no Leste, e ordenava aos expedidores dos comboios que os mantivessem a circular. Mas os maquinistas informavam que tempestades e neves paravam os comboios.

«Tempestades de neve não impedem de fazer circular os comboios no Leste», dizia o superintendente. «Mantenham os comboios a circular na parte ocidental da divisão. Isto é uma ordem.»

»Mas no Oeste os comboios continuavam a parar. Ele recebia relatórios a informar que os aterros estavam cheios de neve.

«Desobstruam os aterros», ordenava. «Ponham mais homens a trabalhar. Mantenham os comboios a circular. Não interessam os custos!»

»Foram postos mais homens a trabalhar. Os custos foram enor mes. Mas os comboios continuaram sem circular.

»Então o superintendente disse:

»Vou para aí eu próprio e desobstruirei essas vias. Do que esses homens precisam é de alguém que lhes mostre como fazemos as coi sas no Leste.»

»Por isso, partiu para Tracy na sua carruagem especial, da qual desembarcou com as suas roupas citadinas, as suas luvas e o seu sobretudo guarnecido de peles, e disse o seguinte:

»Vim para comandar pessoalmente as operações. Vou mostrar -lhes como se mantêm os comboios a circular.»

«Apesar disso, não era mau tipo, quando se acabava por conhecê-lo. Viajou no comboio de trabalho para o grande aterro a oeste de Tracy, saltou para a neve com a brigada de trabalho e deu as suas ordens como qualquer bom capataz. Retirou a neve do aterro num tempo recorde e ao fim de dois dias a via estava desimpedida.

»Já viram como se faz», disse. «Agora ponham o comboio a andar, amanhã, e mantenham-no a andar.»

»Mas nessa noite houve uma nevasca em Tracy. O seu comboio especial não pôde circular e quando a tempestade acabou o aterro estava outra vez obstruído até ao cimo da neve que ele atirara para ambos os lados da via.

»Voltou logo lá com os homens e mais uma vez desimpediram a via. Desta vez demorou mais tempo, porque tiveram de remover mais neve. Mas ele conseguiu que o comboio de trabalho passasse, mesmo a tempo de ficar bloqueado pela neve de outra nevasca.

»Não se podia deixar de admitir que o superintendente era obstinado e perseverante. Voltou a trabalhar no aterro e a desimpedi-lo, e depois ficou isolado em Tracy durante outra nevasca. Desta vez mandou vir mais duas novas brigadas de trabalho e duas locomotivas com um limpa-neves.

»Seguiu para o aterro de Tracy na primeira locomotiva. O aterro erguia-se, entretanto, como um monte. Entre as paredes de neve que ele mandara atirar para ambos os lados, a nevasca acumulara terra e neve que solidificaram e gelaram, atingiam trinta metros de profundidade e se prolongavam por uma distância de cerca de quatrocentos metros.

»Muito bem, rapazes!», disse o superintendente. «Vamos desimpedi-la com picaretas e pás até podermos utilizar os limpa-neves.»

«Manteve os homens a trabalhar, em ritmo acelerado e com salário a dobrar, durante dois dias. Ainda havia cerca de três metros e meio de neve na via, mas ele aprendera alguma coisa: sabia que teria sorte se houvesse três dias bons entre nevascas. Por isso, na terceira manhã decidiu que ia fazer passar os limpa-neves.

»Deu as suas ordens aos dois maquinistas das locomotivas, os quais as atrelaram com o limpa-neves à frente e conduziram o comboio de trabalho para o aterro. As duas brigadas desembarcaram e ao fim de duas horas de trabalho rápido removeram mais uns sessenta centímetros de neve. Então o superintendente mandou parar o trabalho.

»Agora», ordenou aos maquinistas, «vocês recuam uns bons três quilómetros e depois avançam com toda a pressão de vapor que tiverem. Com três quilómetros para adquirirem velocidade, devem atingir este aterro a sessenta e cinco quilómetros por hora e passá-lo com toda a limpeza.»

»Os maquinistas subiram para as suas locomotivas. Mas depois o da primeira desceu de novo. Os homens das brigadas de trabalho estavam parados por ali, na neve, a bater com os pés e com as mãos para se conservarem quentes. Juntaram-se, para ouvir o que o maquinista ia dizer, mas ele foi direito ao superintendente e foi com ele que falou:

»Desisto. Conduzo uma locomotiva há quinze anos e nenhum homem me pode chamar cobarde. Mas não aceito ordens para me suicidar. Se quer atirar uma locomotiva contra três metros de neve congelada, à velocidade de sessenta e cinco quilómetros por hora, arranje outro homem para a conduzir, Sr. Superintendente. Eu desisto agora mesmo.»

O pai fez uma pausa e Carrie disse:

- Não o censuro.

- Eu censuro - declarou Laura. - Ele não devia desistir. Devia imaginar outra maneira qualquer de passar, se pensava que essa não servia. Acho que teve medo.

- Mesmo que tivesse medo - opinou Maria -, devia fazer o que lhe mandavam. O superintendente deve saber melhor o que convém fazer, ou então não seria superintendente,

- Não sabe melhor - contradisse Laura. - Se soubesse melhor manteria o comboio a circular.

- Continue, Pá, continue! - pediu Graça.

- Pede por favor, Graça - lembrou a mãe.

- Por favor - disse Graça. - Continue, Pá. Que aconteceu depois?

- Sim, Pá, que fez então o superintendente? - perguntou Maria.

- Despediu-o - sugeriu Laura. - Não foi, Pá? O pai continuou:

- O superintendente olhou para o maquinista e depois olhou para os homens que estavam a ouvir, e disse: «Já conduzi uma locomotiva, noutros tempos, e não mando nenhum homem fazer aquilo que eu próprio não sou capaz de fazer. Eu próprio conduzirei.»

«Subiu para a locomotiva, pô-la em marcha atrás e lá foram pela via abaixo.

»O superintendente fê-las recuar uns bons três quilómetros, até parecerem mais pequeninas do que um dedo, lá muito em baixo. Depois fez sinal com o apito ao maquinista de trás e ambos aceleraram.

»Aquelas duas locomotivas avançaram pela via fora ao longo dos três quilómetros a toda a velocidade e a acelerar de segundo para segundo. Plumas de fumo preto pairavam no ar muito atrás delas, os faróis brilhavam mais fortes do que o sol, as rodas giravam cada vez mais depressa e deviam vir a uns oitenta quilómetros por hora quando embateram na neve gelada.

- Que... que aconteceu, Pá? - perguntou Carrie, ofegante.

- Levantou-se um jorro de neve que voou e se espalhou em mil matacões num raio de quarenta metros em redor. Durante um minuto, ou dois, ninguém viu nada claramente, ninguém percebeu o que acontecera. Mas quando os homens correram para ver o que se passava, a segunda locomotiva estava meio enterrada na neve e o seu maquinista saía de rastos pela parte de trás. Estava grandemente abalado, mas não seriamente ferido.

«Onde está o superintendente? Que lhe aconteceu?», perguntaram ao maquinista. Ele limitou-se a responder: «Como diabo hei-de saber? A única coisa que sei é que não estou morto e que não voltaria a fazer o mesmo nem por um milhão de dólares em ouro.»

»Os capatazes estavam a gritar aos homens para correrem com as suas pás e as suas picaretas. Soltaram a neve que envolvia a segunda locomotiva e o maquinista saiu com ela a recuar pela via abaixo, para não atrapalhar, enquanto os homens cavavam furiosamente na neve em frente, para alcançarem a primeira locomotiva e o superintendente. Em pouco tempo encontraram gelo sólido.

»A primeira locomotiva penetrara na neve a toda a velocidade e a todo o seu comprimento. Estava quente da velocidade e do vapor, o que fez com que a neve se derretesse a toda a sua volta e depois a água da neve derretida se transformasse em neve congelada, sólida. O superintendente estava mais furioso do que um abelhão no interior da locomotiva toda envolta em gelo sólido!

Graça, Carrie e Laura riram alto. Até a mãe sorriu.

- Pobre homem - lamentou Maria. - Não acho divertido.

- Eu acho - afirmou Laura. - Creio que, depois disso, já não está convencido de que sabe muito.

- O orgulho é mau conselheiro - comentou a mãe.

- Continue, Pá, por favor! - pediu Carrie. - Desenterraram-no?

- Sim, eles abriram um buraco no gelo até à locomotiva e tiraram-no. Não lhe acontecera nada, nem a ele nem à locomotiva, o limpa-neves é que sofrera o pior embate. O superintendente saiu do aterro, foi ter com o segundo maquinista e perguntou-lhe: «Pode tirá-la dali em marcha atrás?» O maquinista respondeu achar que sim. «Muito bem, então tire-a.» O superintendente ficou a assistir até tirarem a locomotiva e depois disse aos homens: «Subam, pois vamos regressar a Tracy. O trabalho fica interrompido até à Primavera.»

»O mal, filhas, é que ele não teve paciência suficiente.

- Nem perseverança - acrescentou a mãe.

- Nem perseverança - concordou o pai. - Lá porque não conseguiu passar com pás ou limpa-neves, achou que não conseguiria passar de nenhuma outra maneira e deixou de tentar. Enfim, é do Leste. Aqui, no Oeste, é preciso ter paciência e perseverança para fazer face às coisas.

- Quando é que ele desistiu, Pá? - perguntou Laura.

- Esta manhã. A notícia chegou pelo telégrafo eléctrico e o telegrafista de Tracy contou ao Woodworth como as coisas aconteceram. E agora eu tenho de ir tratar depressa dos animais, antes que escureça demasiado.

O seu braço deu um apertãozinho a Laura, antes de descer Carrie e Graça dos joelhos. Laura sabia o que isso significava. Ela agora tinha idade suficiente para o ajudar e à mãe, em momentos difíceis. Não se devia preocupar, devia mostrar-se alegre e ajudar a manter o moral.

Por isso, quando a mãe começou a cantar docemente a Graça enquanto a despia para a deitar, Laura cantou também:

 

         Oh, Canaã, luminosa Canaã,

         Vou a caminho...

 

- Canta, Carrie! - disse Laura, muito depressa.

Carrie começou também a cantar e a seguir juntou-se-lhe o suave soprano de Maria:

 

         Paro nas tempestuosas margens do Jordão

         E lanço um olhar anelante

         À luminosa praia de Canaã

         Onde os meus bens se encontram.

         Oh, Canaã, luminosa Canaã,

         Vou a caminho da feliz terra de Canaã...

 

O Sol punha-se numa mancha tão vermelha que coloria os vidros cobertos de geada da janela. Inundou de uma luz levemente rosada a cozinha onde todas se despiam e cantavam junto do fogão quente, mas Laura apercebeu-se de uma mudança no som do vento, de uma nota selvagem e assustadora.

Depois de a mãe as aconchegar a todas na cama e ir para baixo, ouviram e sentiram a nevasca fustigar a casa. Ficaram a ouvi-la, aninhadas umas contra as outras e a tremer debaixo da roupa. Laura pensou nas casas perdidas e isoladas, cada uma sozinha e cega, encolhida de medo na fúria da tempestade. Havia casas na cidade, mas nem sequer a luz de uma delas podia ser vista por outra. E a cidade estava sozinha na pradaria gelada e infinita, onde a neve se amontoava, os ventos uivavam e a nevasca turbilhonante apagava as estrelas e o Sol.

Laura tentou pensar no bom cheiro e sabor da carne que comeriam ao almoço do dia seguinte, mas não pôde esquecer que as casas e a cidade estariam agora sozinhas, isoladas até à Primavera. Havia meio alqueire de trigo que podiam moer para fazer pão e havia um punhado de batatas, mas não tinham mais nada para comer até o comboio chegar. O trigo e as batatas não chegavam.

 

                   FRIO E ESCURO

Aquela nevasca parecia nunca mais acabar. Amainava de vez em quando, mas depois voltava a rugir mais furiosamente ainda, de noroeste. Três dias e três noites de ventos que pareciam uivos de clamorosa fúria investiam contra a casa fria e escura incessantemente fustigada por areia gelada. Depois o sol brilhava de manhã até ao meio-dia, talvez, e a cólera negra dos ventos e da neve gelada voltavam.

Às vezes, de noite, meio acordada e cheia de frio, Laura tinha vagos sonhos de que o telhado da casa estava fino, de tão fustigado. Medonhamente, a grande nevasca do tamanho do céu inclinava-se sobre ele e esfregava-o com um enorme pano invisível, esfregava com um movimento continuo e rotativo o telhado fino como papel até se abrir um buraco, um buraco que guinchava e soltava uma gargalhada profunda, ah! ah!, na qual a nevasca turbilhonava. Laura acordava sobressaltada, quando parecia já que não se salvaria.

Depois não se atrevia a readormecer. Ficava quieta e pequenina no escuro e a toda a sua volta o negrume da noite, que sempre fora repousante e bom para ela, transformava-se num horror. Nunca tivera medo do escuro. «Não tenho medo do escuro», repetia a si mesma, muitas vezes, mas parecia-lhe que a escuridão a agarraria com unhas e dentes se a ouvisse mexer-se ou respirar. Entre as paredes, sob o telhado cujos pregos eram inalações de geada, até mesmo entre as roupas da cama, sob as quais se encolhia, a escuridão estava à coca, de ouvido atento.

Os dias não eram tão maus como as noites. De dia a escuridão era menos densa e havia nela coisas comuns. Um crepúsculo escuro enchia a cozinha e o alpendre. Maria e Carrie rendiam-se à manivela do moinho, que não podia parar nunca de moer. A mãe fazia o pão. varria, limpava e alimentava o lume. No alpendre, Laura e o pai torciam o feno, até as suas mãos frias não poderem segurá-lo e terem de ir aquecê-las à cozinha.

O lume de feno não expulsava o frio da cozinha, mas junto do fogão o ar estava quente. O lugar de Maria era defronte do fogão, com Graça ao colo. Carrie ficava de pé ao lado do cano da chaminé, a cadeira da mãe ficava do outro lado do fogão. O pai e Laura inclinavam-se para cima do fogão, para o calor que subia.

Tinham as mãos vermelhas e inchadas, a pele fria e coberta de golpes feitos pelas folhas cortantes do feno do pântano. O feno cortava-lhes também o tecido dos casacos do lado esquerdo e ao longo da parte de baixo da manga esquerda. A mãe remendava os bocados puídos, mas o feno dava cabo dos remendos.

Ao pequeno-almoço comiam pão escuro. A mãe torrava-o bem torrado e quente no forno e deixava-as molhá-lo no chá.

- Tiveste uma boa ideia em comprar tanta quantidade de chá, Charles - dizia a mãe, pois ainda havia bastante chá e também ainda havia açúcar para o adoçar.

Para a segunda refeição do dia cozia doze batatas com casca. A pequenina Graça só precisava de uma, as outras comiam duas cada uma e a mãe insistia com o pai para que comesse a que sobrava.

- As batatas não são grandes, Charles -argumentava-, e tu precisas de conservar a tua força. De qualquer modo, come-a para não se estragar. Nós não a queremos, pois não, filhas?

- Não, Ma - respondiam todas. - Não, Pá, obrigada, palavra que não quero.

E era verdade. Elas não tinham realmente fome. Mas o pai tinha. Os seus olhos fitavam avidamente o pão escuro e as batatas fumegantes quando regressava de lutar contra a tempestade agarrado à corda da roupa. Mas elas e a mãe estavam apenas cansadas: cansadas do vento, do frio e do escuro, cansadas de pão escuro e batatas, cansadas, indiferentes e entorpecidas.

Laura arranjava todos os dias um pouco de tempo para estudar. Quando havia feno torcido suficiente para durar uma hora, sentava-se ao lado de Maria, entre o fogão e a mesa, e abria os livros escolares. Mas sentia-se alheada e estúpida. Não se lembrava da História e apoiava a cabeça na mão e olhava para um problema exposto na ardósia sem encontrar, nem querer encontrar, a solução.

- Vamos, vamos, filhas! Não nos devemos abandonar ao desinteresse! - dizia a mãe. - Laura e Carrie, endireitem-se! Estudem depressa as lições para depois nos distrairmos um pouco.

- Como, Ma? - perguntava Carrie.

- Estuda primeiro as lições.

Quando a hora de estudar terminava, a mãe pegava no livro de leitura da quinta classe.

- Vamos lá a ver o que são capazes de repetir de memória - dizia. - Primeiro tu, Maria. Que há-de ser?

- O Discurso de Régulo - respondia Maria, e a mãe virava as folhas até o encontrar e Maria começava:

- «Pensaste sem dúvida -porque julgais a virtude romana pela vossa própria - que eu preferiria quebrar o meu julgamento a, regressando, sofrer a vossa vingança!» - Maria sabia de cor todo aquele esplêndido desafio. - «Aqui, na vossa capital, vos desafio. Não venci os vossos exércitos, não incendiei as vossas cidades, não arrastei os vossos generais pelas rodas do meu carro desde que os meus braços juvenis puderam pela primeira vez empunhar uma lança?»

A cozinha parecia tornar-se maior e mais quente. Os ventos de nevasca não eram tão fortes como aquelas palavras.

- Foste perfeita, Maria - elogiava a mãe. - Agora tu, Laura.

- Velho Tubalcaim - começou Laura, e os versos fizeram-na levantar-se: uma pessoa tinha de se levantar e deixar a voz vibrar com as marteladas do velho Tubalcaim:

 

»O velho Tubalcaim era um homem possante No tempo em que a terra era jovem. À luz violenta da sua forja rutilante As pancadas do seu martelo vibram...

 

O pai voltou antes de Laura chegar ao fim.

- Continua, continua - pediu. - Isso aquece-me tanto como o lume.

Por isso, Laura continuou, enquanto o pai despia o sobretudo, que estava brando e rígido de neve, e se inclinava para o fogão, a fim de derreter a neve que lhe gelara nas sobrancelhas.

 

- E gritaram. «Viva Tubalcaim! Que nosso leal e bom amigo é, E pela relha e pelo arado Louvores lhe sejam rendidos.

Mas se a opressão erguer a cabeça Num tirano futuro senhor, Ainda que gratos sejamos pelo arado Não esqueceremos a espada.»

 

- Lembraste-te correctamente de todas as palavras – disse a mãe, e fechou o livro. - Amanhã será a vez da Carrie e da Graça.

Era outra vez altura de torcer mais feno, mas enquanto Laura tOrcia a tremer de frio, tarde seguinte. O livro de leitura da quinta classe estava cheio de belos discursos e poemas e ela queria recordar perfeitamente tantos quantos Maria recordava.

A nevasca parava, de vez em quando. Os ventos turbilhonantes davam lugar a um vento firme, só de uma direcção, o ar clareava acima da neve varrida pelo vento e o pai ia buscar mais feno.

Então Laura e a mãe trabalhavam depressa, para lavar a roupa e estendê-la fora de casa, onde o frio a secava. Ninguém sabia quando a nevasca recomeçaria. De um momento para o outro, a nuvem podia erguer-se no céu e avançar mais depressa do que quaisquer cavalos podiam correr. O pai não estava em segurança na pradaria, longe da cidade.

Algumas vezes a nevasca parava durante meio dia. Outras, o sol brilhava desde manhã até atingir o poente e a nevasca voltava com a escuridão. Nesses dias, o pai trazia três carregamentos de feno. Enquanto ele não voltava e não punha David no estábulo, Laura e a mãe trabalhavam afanosa e silenciosamente, olhavam muitas vezes para o céu e escutavam o vento, enquanto Carrie, calada, vigiava o céu do lado nordeste, através do buraquinho que abrira na geada da janela.

O pai costumava dizer com frequência que não teria podido passar sem David.

- É um cavalo tão bom! - dizia. - Não imaginava que um cavalo pudesse ser tão bom e paciente.

Quando David se atolava na neve, ficava sempre quieto, à espera que o pai o libertasse. Depois, calma e pacientemente, puxava o trenó à roda do buraco e prosseguia até voltar a atolar-se.

- Gostava de ter um pouco de aveia ou de milho para lhe dar - dizia o pai.

Quando os ventos clamorosos e uivantes voltavam e a neve fustigante turbilhonava de novo, o pai dizia:

- Bem, temos feno para algum tempo, graças ao David.

A corda da roupa lá estava, para o guiar para o estábulo e do estábulo para casa. Havia feno e ainda restava algum trigo e algumas batatas, e enquanto os ventos tempestuosos sopravam o pai estava em segurança, em casa. E à tarde Maria, Laura e Carrie recitavam. Até Graça sabia O Cordeirinho de Maria e O Pastorinho Perdeu o Carneirinho.

Laura gostava de ver os olhos azuis de Graça e os de Carrie brilharem de excitação quando lhes dizia:

 

         Escutai meus filhos e ouvireis falar

         Da cavalgada da meia-noite de Paul Revere.

 

O dezoito de Abril de setenta e cinco! Quase não vive já nenhum homem Que esse dia e esse ano famosos recorde.

Ela e Carrie gostavam de recitar, ao mesmo tempo, O Ninho do Cisne:

 

         A pequenina Ellie está sozinha

         Entre as faias de um prado,

         Na erva da margem de um rio sentada.

         E as árvores projectam

         Cópias das suas folhas, em sombra,

         No seu luzente cabelo e no seu rosto...

 

O ar estava quente e parado, a erva aquecida pelo sol, a água clara cantava a sua canção para consigo e as folhas murmuravam suavemente. Os insectos do prado zumbiam, sonolentamente. Enquanto ali estavam com a pequenina Ellie, Laura e Carrie quase esqueciam o frio. Quase nem ouviam a ventania e a neve dura e turbilhonante a fustigar as paredes.

Numa manhã calma, Laura desceu do quarto e encontrou a mãe com ar surpreendido e o pai a rir.

- Vai espreitar pela porta das traseiras! - disse ele a Laura. Ela correu pelo alpendre e abriu a porta. Havia um túnel baixo e tosco que se prolongava em sombras na neve branco-acinzentada. As suas paredes e o seu chão eram de neve e o seu tecto de neve cobria solidamente o cimo da moldura de prata.

- Esta manhã tive de abrir caminho para o estábulo - explicou o pai.

- Mas que fez à neve? - perguntou Laura.

- Fiz o túnel o mais baixo possível, só o suficiente para poder passar. Arranquei a neve e atirei-a para trás e para cima de mim através de um buraco que depois tapei com a última que arranquei. Não há nada como a neve para resistir ao vento! - O pai estava encantado. - Enquanto essas paredes de neve resistirem, poderei tratar dos animais com todo o conforto.

- Que altura tem a neve? - quis saber a mãe.

- Não faço ideia. Mas está muito mais alta do que o telhado do alpendre.

- Não pretendes dizer que esta casa está enterrada em neve! - exclamou a mãe.

- Bom seria se estivesse - respondeu o pai. - Já notaste que a cozinha está mais quente do que tem estado durante este Inverno?

Laura correu ao andar de cima. Raspou um buraquinho na geada da janela e encostou-lhe os olhos. Custou-lhe a crer no que via. A rua Principal estava ao nível dos seus olhos. Do outro lado da neve refulgente viu o topo quadrado da fachada falsa da loja Harthorn, espetado como um bocado de uma tábua sólida de vedação.

Ouviu um grito alegre e depois viu cascos de cavalos a trotar rapidamente diante dos seus olhos. Oito cascos cinzentos com delgados tornozelos castanhos que se dobravam e endireitavam rapidamente que passaram velozmente. Seguiu-se-lhe um trenó comprido, com dois pares de botas em cima. Encolheu-se, para espreitar para cima através do buraquinho, mas o trenó desaparecera. Só viu o céu cheio de luz viva, que lhe fez doer os olhos. Correu para a cozinha, a fim de dizer o que vira.

- Eram os moços Wilder - disse o pai. - Andam a acartar feno.

- Como sabe, Pá? - perguntou Laura. - Só vi as patas dos cavalos e as botas.

- Só eles dois e eu nos atrevemos a sair da cidade. As pessoas têm medo que comece uma nevasca. Os Wilders andam a acartar todo o seu feno do Pântano Grande e a vendê-lo por três dólares o carregamento, para queimar.

- Três dólares! - exclamou a mãe.

- Sim, e é um preço justo, atendendo ao risco que correm. Estão a fazer bom negócio. Quem me dera poder fazê-lo também! Mas eles têm carvão para queimar... e eu já me darei por contente se tivermos feno que chegue até ao fim. Não contava com ele para nos servir de combustível de Inverno.

- Passaram tão alto como as casas! - exclamou Laura, ainda excitada.

Era estranho ver cascos de cavalos, um trenó e botas defronte dos olhos, como um animalzinho, um ratito, por exemplo, os devia ver.

- O que me admira é que não se atolem nos montes de neve - observou a mãe.

- Oh, não, não correm esse risco! - respondeu o pai, que estava a comer a torrada e a beber rapidamente o chá. - Não se atolam. Estes ventos acamam a neve até ficar sólida como rocha. As ferraduras do David nem deixam rastos nela. O único problema é quando há erva solta por baixo. Vestiu os agasalhos, apressadamente.

- Esta manhã os rapazes foram primeiro do que eu, que perdi tempo a abrir o túnel. E agora tenho de abrir passagem para o David sair do estábulo. Preciso de carregar o feno enquanto o sol brilha! - brincou, ao fechar a porta.

- Sente-se mais animado porque tem aquele túnel - disse a mãe. - Graças a Deus que pode tratar dos animais com algum conforto, Protegido do vento.

Nesse dia não puderam observar o Sol da janela da cozinha. Era tão pouco o frio que passava através da neve que Laura levou Maria para o alpendre e a ensinou a torcer feno. Maria quisera aprender, mas não pudera em virtude de estar tanto frio no alpendre. Levou algum tempo a aprender, porque não podia ver como Laura torcia o feno, segurava as extremidades e as enfiava na última volta, mas por fim conseguiu fazê-lo bem feito. Pararam poucas vezes para se aquecerem e tiveram tempo de fazer toda a provisão de feno torcido necessário para esse dia.

A cozinha estava tão quente que não precisavam de se reunir todas à volta do fogão. A casa estava silenciosa. Os únicos sons que se ouviam eram os pequenos ruídos das cadeiras da mãe e de Maria, da pena da ardósia, o zumbido agradável da chaleira e as suas próprias vozes a falar baixo.

- Que boa coisa esta grande altura de neve - observou a mãe. Mas não podiam ver o céu. Claro que observar o céu não valia de nada, se a baixa nuvem cinzenta resolvia subir rapidamente, não podiam fazer nada para a deter. Não podiam ajudar o pai. Ele veria a nuvem e procuraria abrigo o mais depressa que pudesse. Laura pensou nisto muitas vezes, mas mesmo assim de quando em quando corria ao andar de cima, para espreitar pelo buraquinho da janela.

A mãe e Carrie olhavam muito depressa para ela, quando descia, e ela respondia-lhes sempre alto, para que Maria também ouvisse.

- O céu está limpo e a única coisa que se vê são milhões de cinti lações da neve. Acho que não sopra uma aragem de vento.

Nessa tarde o pai trouxe feno pelo túnel, para encher o alpendre Abrira o túnel a seguir à porta do estábulo, para que David pudesse passar, e a seguir ao estábulo fizera o túnel em ângulo, para conter os ventos que contra ele pudessem soprar.

- Nunca vi um tempo assim - observou. - Devem estar mais de vinte e dois graus negativos e não sopra uma aragem. O mundo todo parece solidamente gelado. Oxalá se mantenha assim. Passar pelo túnel não é trabalho que canse.

No dia seguinte, manteve-se tudo exactamente na mesma, O silêncio, a penumbra e o calor pareciam um sonho imutável que continuaria assim para sempre, como o tiquetaque do relógio. Laura dava um pulo na cadeira quando o relógio pigarreava, antes de bater as horas.

- Não estejas tão nervosa, Laura - murmurava a mãe, como se estivesse meio adormecida.

Nesse dia não recitaram. Não Fizeram nada. Limitaram-se a estar sentadas.

A noite também esteve silenciosa. Mas de manhã acordou-as uma fúria uivante.

Os ventos voltaram e com eles o látego da neve turbilhonante.

- Bem, o túnel está a desaparecer depressa - anunciou o pai, quando voltou do estábulo, ao pequeno-almoço. Tinha outra vez as sobrancelhas cobertas de neve gelada e os agasalhos todos tesos, gelados. O frio empurrava de novo o calor para junto do fogão. - Esperava que o meu túnel resistisse pelo menos a uma destas investidas. Diabos levem a nevasca! Só pára o tempo suficiente para cuspir nas mãos.

- Não praguejes, Charles! - ralhou-lhe a mãe, irritada, e levou a mão à boca, horrorizada. - Oh, Charles, desculpa! Não quis falar como falei. Mas este vento sempre a soprar... - Calou-se e ficou à escuta.

- Eu sei, Carolina - murmurou o pai. - Eu sei exactamente o que nos faz sentir. Deixa-nos exaustos. Olhem, depois do pequeno-almoço vamos passar um bocado a ler acerca da África de Livingstone.

- Já queimei tanto feno esta manhã, Charles... Tive de gastar mais para tentar aquecer a cozinha.

- Não te preocupes, não custa nada torcer mais.

- Eu ajudo, Pá - prontificou-se Laura.

- Temos todo o dia para tratar disso - respondeu o pai. - Está tudo em ordem no estábulo até à noite. Primeiro torceremos o feno e depois leremos.

Graça começou a choramingar:

- Tenho os pés frios...

- Que vergonha, Graça! Uma menina crescida como tu! Vai aquecer os pés, anda - disse-lhe Laura.

- Senta-te no meu colo e aquece-os - convidou Maria, a tactear o caminho para a sua cadeira de balanço, diante do forno.

Depois de Laura e o pai terem torcido um grande monte de paus de feno e os terem empilhado junto do fogão, Carrie levou ao pai o grande livro verde.

- Por favor, leia a respeito dos leões, Pá - pediu-lhe. - Podemos fingir que o vento são leões a rugir.

- Preciso de uma luz, Carolina - disse o pai. - A letra é muito pequena. - A mãe acendeu a lamparina e colocou-a junto dele. - É uma noite na selva, em África. Esta luz trémula é da fogueira do nosso acampamento. Há animais selvagens a toda a nossa volta, a guinchar, a bramir e a rugir: leões, tigres e hienas e creio que também um ou dois hipopótamos. Não se aproximam mais porque têm medo da fogueira. Ouvem-se grandes folhas a roçagar e o barulho de estranhas aves. Está uma noite densa, escura e quente, com grandes estrelas no céu. Agora vou ler o que acontece. - E começou a ler.

Laura tentou escutar, mas sentia-se estúpida e entorpecida. A voz do pai perdia-se nos ruídos incessantes da tempestade. Achava que a nevasca tinha de parar para que ela pudesse fazer fosse o que fosse, para poder, até, escutar ou pensar, mas nunca mais parava. Sopraria eternamente.

Estava cansada. Estava cansada do frio e da escuridão, cansada de pão escuro e batatas, cansada de torcer feno e moer trigo, de en cher o fogão e lavar a louça, de fazer camas e adormecer e acordar. Estava cansada dos ventos das nevascas. Já não havia neles nenhuma melodia, mas sim, apenas, uma confusão de sons que lhe atormentavam os ouvidos.

- Pá - disse, de súbito, interrompendo a leitura -, não quer tocar rabeca?

O pai olhou-a, surpreendido. Depois pousou o livro.

- Sim, Laura - respondeu, por fim. - Se queres ouvir, eu toco.

Abriu e fechou as mãos e esfregou os dedos, enquanto Laura ia buscar a caixa da rabeca ao seu abrigo quente, no chão atrás do fogão.

O pai passou resina pelo arco, aninhou a rabeca debaixo do queixo e tocou nas cordas. Olhou para Laura.

- Toque Bonito Doon - pediu Laura, e o pai tocou e cantou: margens e fragas do bonito Doon.

Como podeis florir tão frescas e lindas?

 

Mas cada nota saída da rabeca tinha um pequeno erro. Os dedos do pai estavam entorpecidos. A música arrastava-se e uma corda partiu-se.

- Tenho os dedos tão hirtos e tão grossos de andarem tanto tempo ao frio que não posso tocar. - O pai falou como se tivesse vergonha e colocou a rabeca na caixa. - Guarda-a, Laura. Fica para outra ocasião.

- De qualquer maneira, precisava de que me ajudasses - disse a mãe. - Tirou o moinho de café das mãos de Maria, despejou o trigo da gavelinha, encheu o funil de grãos e estendeu-o ao pai. - Preciso de mais para fazer pão para o almoço - explicou-lhe.

A mãe tirou o prato coberto de massa azeda do seu lugar quente debaixo do fogão, mexeu-a bem e depois mediu dois púcaros para um alguidar, acrescentou sal e bicarbonato de sódio e a farinha que Maria e Carrie moeram. Em seguida tirou o moinho ao pai e acrescentou a farinha que ele moera.

- Já chega. Obrigada, Charles.

- Acho melhor ir tratar agora dos animais, antes que escureça muito.

- Quando voltares terei uma refeição pronta e quente à tua espera - prometeu-lhe a mãe.

O pai vestiu os agasalhos e saiu para a tempestade.

Laura escutou os ventos, enquanto olhava para a janela sem a ver. Não podia ter acontecido nada pior do que o pai não poder tocar rabeca. Se ela lhe não tivesse pedido, talvez ele escusasse de saber que não podia.

A mãe, com Carrie encolhida a seu lado, sentou-se na cadeira de balanço junto do fogão, defronte de Maria. Pegou em Graça e balançou-se devagarinho, enquanto cantava em voz muito baixa:

 

     Vou cantar-te uma canção daquela terra radiosa

     Da morada longínqua da alma,

     Onde nunca a tempestade assola a praia luminosa

     Enquanto os anos da Eternidade passam.

 

O hino lamentoso misturou-se com o uivo dos ventos enquanto a noite se instalava e adensava a penumbra da neve turbilhonante.

 

                   O TRIGO NA PAREDE

De manhã, o monte de neve desaparecera. Quando Laura abriu um buraquinho na janela do primeiro andar e olhou por ele, viu o chão nu. Voava neve sobre ele, em nuvens baixas, mas a rua era de terra castanha e dura.

- Ma! Ma! - gritou. - Vejo o chão!

- Bem sei - respondeu-lhe a mãe. - O vento levou a neve toda, a noite passada.

- A quantos estamos? Quero dizer, que mês é? - perguntou Laura, estupidamente.

- Estamos em meados de Fevereiro.

A Primavera estava mais perto do que ela imaginara. Fevereiro era um mês curto e a Primavera chegaria em Março. O comboio voltaria e eles teriam pão branco e carne.

- Estou tão farta de pão escuro sem nada!

- Não te queixes, Laura! - admoestou-a a mãe, muito depressa. - Nunca te queixes do que tens. - Lembra-te sempre de que és afortunada por teres o que tens.

Laura não pretendera queixar-se, mas não soube explicar o que quisera dizer.

- Sim, Ma - respondeu timidamente, e depois olhou, assustada, para o saco do trigo, a um canto: era tão pouco o trigo que restava que o saco estava caído no chão, como se estivesse vazio. - Ma! - exclamou. - Quer dizer... - O pai dissera sempre que não devia ter medo, que não devia ter medo de nada. - Quanto trigo há?

- Creio que o suficiente para hoje - respondeu-lhe a mãe.

- O pai não pode comprar mais, pois não?

- Não, Laura. Não há mais na cidade.

A mãe colocou cuidadosamente as fatias de pão na grade do forno, a fim de as torrar para o pequeno-almoço.

Então Laura encheu-se de coragem, dominou-se e perguntou:

- Ma, vamos morrer de fome?

- Não, não morreremos de fome. Se tiver de ser, o pai matará a Elen e a vitela.

- Oh, não! Não! - gritou Laura.

- Está calada, Laura.

Carrie e Maria vinham a descer a escada para se vestirem junto do fogão e a mãe subiu para ir buscar Graça.

O pai transportou feno todo o dia e só foi a casa para dizer que ia um instante à loja do Fuller, antes do jantar. Quando voltou, trazia notícias.

- Corre na cidade o boato de que um colono, a trinta ou trinta e dois quilómetros ao sul ou a sudoeste daqui, cultivou trigo o ano passado. Dizem que ele está a passar o Inverno na sua cabana, na reserva.

- Dizem, quem?

- É um boato - repetiu o pai. - Quase toda a gente o diz. Tanto quanto pude deduzir, partiu do Foster. Ele diz que o ouviu a alguém que trabalhava na via férrea. Um indivíduo que esteve aqui de passagem o Outono passado falou, segundo ele, da seara de trigo que esse tal colono colhera, uns cinco hectares que deveriam ter dado uns sessenta ou oitenta alqueires por hectare. Digamos, trezentos alqueires de trigo a cerca de trinta quilómetros daqui.

- Espero que não estejas a pensar em te meter numa aventura dessas, Charles - observou a mãe, brandamente.

- Um homem tem de pensar nisso - redarguiu o pai. - Com dois dias de bom tempo e uma queda de neve para aguentar o trenó, é possível...

- Não! - interrompeu a mãe.

O pai olhou-a, admirado. Fitaram-na todos. Nunca viram a mãe assim. Falava baixo, mas de um modo assustador. Disse ao pai, calmamente:

- Repito: não. Não correrás semelhante risco.

- Mas... Carolina!

- Já bem basta teres de transportar o feno - insistiu a mãe. - Não irás à caça desse trigo!

- Enquanto assim pensares, está bem, não irei - respondeu o pai, brandamente. - Mas...

- Nem mas, nem meio mas. - A mãe continuava a parecer terrível. - Desta vez finco o pé na parede.

- Está bem, está o assunto resolvido - concordou o pai.

Laura e Carrie entreolharam-se. Tinham a impressão de que houvera subitamente uma trovoada e relâmpagos, que subitamente também pararam. A mãe deitou o chá, com mão trémula.

- Oh, Charles, desculpa, entornei-o!

- Não tem importância - respondeu o pai, e deitou na chávena, o chá que se entornara no pires. - Há muito tempo que não tenho de deitar chá no pires para o arrefecer.

- Tenho a impressão de que o lume se está a ir abaixo - observou a mãe.

- Não é o lume. O tempo é que está a arrefecer.

- De qualquer maneira, não poderias ir - voltou a mãe à carga,

- Não haveria ninguém para tratar dos animais nem para transportar feno.

- Tens razão, Carolina, como sempre. Arranjar-nos-emos com o que temos.

Depois olhou para o canto, onde estivera o saco do trigo. Mas não aludiu ao assunto enquanto não tratou dos animais e não torceu mais algum feno. Colocou o braçado de paus de feno junto do fogão e estendeu as mãos, para as aquecer.

- Acabou-se o trigo, Carolina? - perguntou.

- Sim, Charles. Há pão para o pequeno-almoço.

- As batatas estão a acabar-se?

- Parece que está tudo a acabar-se ao mesmo tempo - respondeu a mãe. - Mas tenho seis batatas para amanhã.

- Onde está o balde do leite?

- O balde do leite? - repetiu a mãe.

- Vou aqui ao cimo da rua num instante e quero o balde do leite.

Laura foi-lho buscar e não pôde deixar de perguntar:

- Há uma vaca com leite na cidade, Pá?

- Não, Laura - respondeu, e saiu pela porta da frente.

Almanzo e Royal estavam a jantar. Almanzo empilhara as panquecas de açúcar amarelo, fizera muitas. Royal já comera metade da sua rima e Almanzo ia a meio da sua. Mas havia mais uma pilha alta de duas dúzias de panquecas, a escorrer açúcar derretido, quando o pai bateu à porta, Royal foi abrir.

- Entre, Sr. Ingalls! Sente-se e coma umas panquecas connosco,

- convidou.

- Agradeço como se aceitasse - respondeu o pai, ao entrar. - Posso convencê-lo a vender-me algum trigo?

- Lamento, mas não temos mais para vender.

- Tudo vendido, hem?

- Tudo vendido!

- Estaria disposto a pagar um preço elevado por algum trigo!

- Estou arrependido de não ter trazido outro carregamento. Mas sente-se e jante connosco. O Manzo gaba-se das suas panquecas.

O pai não respondeu. Foi direito à parede do fundo e levantou uma das selas do seu prego.

- Que está a fazer? - perguntou Almanzo.

O pai encostou firmemente a borda do balde à parede e tirou a rolha do nó da tábua. Um jorro de trigo, grosso como o diâmetro do buraco, caiu no balde.

- Estou a comprar-lhes algum trigo - respondeu o pai a Almanzo.

- Mas esse é o meu trigo de semente e eu não o vendo! - replicou Almanzo.

- Em minha casa acabou-se o trigo e eu estou a comprar algum.

O trigo continuava a cair no balde, escorregava do monte que fazia no meio e tintilava um pouco, contra a lata dos lados. Almanzo observava-o, de pé, mas Royal sentou-se, inclinou a cadeira contra a parede, meteu as mãos nas algibeiras e sorriu a Almanzo.

Quando o balde estava cheio, o pai colocou a rolha no seu lugar, carregou bem com o punho e depois bateu ao de leve ao alto e ao atravessar da parede.

- Têm aqui muito trigo - comentou. - Agora falemos do preÇo. Quanto calculam que este balde vale?

- Como soube que o trigo estava aí? - perguntou Almanzo.

- O interior desta sala não bate certo com o exterior - respondeu o pai. - É uns bons trinta centímetros mais curta, sem contar com os sarrafos de cinco por dez centímetros. Tem aqui um espaço de quarenta centímetros. Qualquer homem com bons olhos o vê.

- Macacos me mordam! - resmungou Almanzo.

- Reparei na rolha no nó da madeira no dia em que as selas não estavam cá, quando foi a caçada ao antílope - acrescentou o pai. -Por isso, calculei que o trigo devia estar aqui. É a única coisa capaz de sair pelo buraco de um nó.

- Mais alguém da cidade sabe? - perguntou Almanzo.

- Que me conste, não.

- Escute - interveio Royal -, nós não sabíamos que estava sem trigo. É do Almanzo e não meu, mas ele não seria capaz de ver alguém morrer de fome e negá-lo.

- É o meu trigo de semente, e por sinal bem bom - explicou Almanzo. - Ninguém sabe se mandarão para cá trigo a tempo da sementeira da Primavera. Claro que não verei ninguém morrer de fome de braços cruzados... mas quem quiser pode ir procurar aquele trigo que foi colhido a sul da cidade.

- A mim disseram-me a sudeste. Pensei ir pessoalmente, mas.

- O senhor não pode ir - interrompeu-o Royal. - Quem tomaria conta da sua família se fosse apanhado numa tempestade e... se se atrasasse, ou qualquer coisa?

- Com esta conversa não decidimos quanto devo pagar por este trigo - lembrou o pai.

Almanzo fez um gesto de indiferença.

- Que é um pouco de trigo entre vizinhos? Está às suas ordens Sr. Ingalls. Puxe uma cadeira e prove estas panquecas antes de arrefecerem .

Mas o pai insistiu em pagar o trigo. Depois de alguma conversa, Almanzo falou num quarto de dólar e o pai pagou-o. Depois sentou -se, obedecendo à insistência dos jovens, levantou a panqueca no cimo da pilha intacta e tirou debaixo dela algumas panquecas quentes e cobertas de açúcar derretido. Royal tirou da frigideira uma fatia tostada de presunto e pô-la no prato do pai, enquanto Almanzo lhe enchia o púcaro de café.

- Não há dúvida de que vocês vivem no luxo, rapazes - comentou o pai.

As panquecas não eram panquecas vulgares de trigo-mouro. Almanzo fazia-as pela receita da mãe e elas ficavam leves como espuma e bem embebidas de açúcar amarelo derretido. O presunto fora curado com açúcar e fumado com nogueira na quinta dos Wilders, no Minesota.

- Há muito tempo que não me lembro de comer uma refeição tão saborosa - elogiou o pai.

Falaram do tempo, de caça e de política, de caminhos-de-ferro e de lavoura, e quando o pai saiu, tanto Royal como Almanzo insistiram para que voltasse com frequência. Como nenhum deles jogava às damas, não passavam muito tempo nas lojas. A sua casa era mais quente.

- Agora que descobriu o caminho, Sr. Ingalls, volte! - disse Royal, sinceramente. - Terei prazer em vê-lo quando quiser. O Almanzo e eu cansamo-nos da companhia um do outro. Apareça, a porta está só no fecho!

- Terei muito gosto!

O pai calou-se e escutou. Almanzo saiu com ele para o vento enregelante. As estrelas brilhavam, no céu, mas a noroeste apagavam-se rapidamente como que engolidas por trevas sólidas.

- Lá vem mais uma! - exclamou o pai. - Acho que durante algum tempo ninguém fará visitas. Mal terei tempo para chegar a casa, se andar depressa.

A nevasca investiu contra a casa precisamente quando ele chegou à porta e, por isso, ninguém o ouviu chegar. Mas tiveram pouco tempo para se preocupar, pois ele apareceu quase imediatamente na cozinha, onde estavam todas sentadas às escuras. Estavam chegadas para o fogão e suficientemente quentes, mas Laura tremia, de ouvir outra vez a nevasca e saber que o pai estava fora de casa.

- Aqui está algum trigo para nos irmos tenteando, Carolina - disse o pai, e pousou o balde ao lado dela.

A mãe estendeu a mão e tocou nos grãos de trigo.

- Oh, Charles! Oh, Charles! - exclamou, a balançar-se na cadeira. - Eu devia saber que tu não nos deixarias sem pão, mas onde o arranjaste? Pensava que já não havia trigo nenhum na cidade.

- Eu também não tinha a certeza de que havia, pois de contrário ter-te-ia dito. Mas não quis dar-te esperanças para depois apanhares uma decepção - explicou o pai. - Prometi não dizer onde o arranjei, mas não te preocupes, Carolina. Há lá mais.

- Anda, Carrie, vou-te meter na cama com a Graça - disse a mãe, com energia.

Quando desceu, acendeu a lamparina e encheu o funil do moinho de café. O som de moer recomeçou e acompanhou Laura e Maria pela escada fria acima, até se perder na fúria da nevasca.

 

                   SEM VERDADEIRA FOME

- É extraordinário como o resto das batatas deu a conta certa - observou o pai.

Comeram devagar as últimas batatas, com casca e tudo. A nevasca fustigava a casa e a ventania rugia e uivava. A janela brilhava palidamente no crepúsculo e o fogão opunha o seu fraco calor ao frio cortante.

- Não tenho fome, Pá, a sério - disse Laura. - Gostaria que acabasse de comer a minha batata.

- Come, Laura - respondeu-lhe o pai, bondosa, mas firmemente.

Laura teve de fazer um esforço para comer a batata que arrefecera no prato frio. Partiu um bocadinho da sua fatia de pão e deixou o resto. Só o chá quente e doce lhe soube bem. Sentia-se entorpecida e meio adormecida.

O pai voltou a vestir o sobretudo e a pôr o boné e foi para o alpendre torcer feno. A mãe arrancou-se à letargia e disse:

- Vamos, filhas! Lavem a louça, limpem o fogão e varram enquanto eu faço as camas. Depois estudem. No fim quero ouvi-las recitar e depois tenho uma surpresa para o jantar!

Ninguém se interessou, realmente, mas Laura tentou responder à mãe:

- Tem, Ma? Isso é agradável.

Lavou a louça e varreu o chão e depois vestiu o casaco remen dado e foi para o alpendre ajudar o pai a torcer feno. Nada parecia real a não ser a nevasca que não parava.

Nessa tarde, começou a recitar:

 

O velho Tubalcaim era um homem poderoso, um homem poderoso ele era,

Pediu o seu cachimbo, pediu a sua taça . E chamou os seus rabequistas três...

 

- Oh, Ma, não sei o que se passa comigo! Não sou capaz de pensar! - queixou-se, quase a choramingar.

- É da tempestade. Creio que estamos todos meio adormecidos - respondeu-lhe a mãe, e pouco depois acrescentou: - Temos de deixar de a ouvir.

Passava-se tudo muito devagar. Decorrido um bocado, Maria perguntou:

- Como podemos deixar de a ouvir?

Lentamente, a mãe fechou o livro e por fim levantou-se.

- Vou buscar a surpresa - disse.

Trouxe-a da sala da frente: era um bocado de um bacalhau salgado, solidamente gelado, que ela tivera de reserva.

- Ao almoço teremos molho de bacalhau para pôr no pão!

- Meu Deus, Carolina, nada consegue vencer os Escoceses! - exclamou o pai.

A mãe pôs o bacalhau no forno aberto, para descongelar, e tirou o moinho das mãos do pai.

- As pequenas e eu acabamos de moer. Desculpa, Charles, mas precisamos de mais feno e tu tens de te aquecer antes de ires tratar dos animais.

Laura foi ajudá-lo. Quando trouxeram para a cozinha os braçados de paus de feno, Carrie moía o trigo, com gestos fatigados, e Maria desfiava o bacalhau.

- Só o cheiro anima um homem - disse o pai. - Carolina, és uma maravilha.

- Acho que será saboroso, para variar - admitiu a mãe. - Mas é pelo pão que temos de nos sentir gratos, Charles. - Viu-o olhar para o trigo do balde do leite e disse-lhe: - Chegará até ao fim desta tempestade, se não for mais longa do que é habitual.

Laura tirou o moinho das mãos de Carrie. Preocupava-a ver a irmã tão magra e branca, e tão exausta de moer o trigo. Mas até a preocupação era uma coisa embotada e distante, mais distante do que o odioso e constante barulho da tempestade. A manivela do moinho girava e girava, não podia parar. Parecia participar no trabalho dos ventos que faziam andar a neve á roda sobre a terra e o ar, redemoinhando e fustigando o pai no seu caminho para o estábulo, redemoinhando e gritando às casas solitárias, fazendo girar a neve entre elas e até ao céu, até muito longe, a turbilhonar eternamente sobre a imensa pradaria.

 

                   LIVRE E INDEPENDENTE

Almanzo passou todos os dias daquela tempestade a pensar. Não gracejou como era seu hábito e às horas do trabalho escovou e almoçafou os seus cavalos maquinalmente. Foi até ao ponto de se sentar a desbastar um pau, pensativamente, e deixar Royal fazer as panquecas do jantar.

- Sabes o que penso, Roy? - perguntou, por fim.

- Deve ser alguma coisa importante, atendendo ao tempo a que estás a pensar.

- Penso que nesta cidade há gente que está a morrer de fome.

- Sim, talvez alguns estejam a ficar com muita fome - admitiu Royal, a virar as panquecas.

- Eu disse morrer de fome - repetiu Almanzo. - O Ingalls, por exemplo. A sua família é de seis pessoas. Reparaste nos seus olhos e na sua magreza? Disse que se acabara o trigo. Levou dez, doze quilos de trigo. Quanto tempo dura isso a uma família de seis pessoas? Podes fazer as contas.

- Deve ter outras provisões - disse Royal.

- Vieram para cá no Verão antes deste último e não foram para oeste com as brigadas de trabalho dos caminhos-de-ferro. Ele registou uma reserva. Sabes muito bem o que um homem pode colher desta terra, no primeiro ano. E não tem havido por aqui trabalho com salário.

- Aonde queres chegar? Vais vender o teu trigo de semente?

- Nem penses nisso! Não o venderei se houver uma maneira de o evitar.

- Então?

Almanzo não prestou atenção à pergunta.

- Calculo que o Ingalls não é o único homem em semelhantes apuros.

Lenta e metodicamente, calculou as provisões que havia na cidade quando os comboios deixaram de circular e indicou as famílias que, na sua opinião, já não deviam ter quase nada. Calculou o tempo que seria necessário para desimpedir os aterros dos caminhos-de-ferro de neve, depois de as nevascas pararem.

- Digamos que acabam em Março - concluiu. - Demonstrei que as pessoas terão de comer o meu trigo de semente ou de morrer de fome antes de poderem chegar provisões, não demonstrei?

- Acho que sim, realmente - admitiu Royal, muito sério.

- Por outro lado, supõe que este tempo se prolonga até Abril. O velho índio previu sete meses de temporal, não te esqueças. Se os comboios não começarem a circular antes de Abril, ou se não chegar trigo de semente antes disso, terei de guardar o meu trigo de semente, ou então perderei a colheita de um ano.

- Assim parece - concordou Royal.

- E ainda por cima, se os comboios não circularem em Abril, as pessoas morrerão de fome de qualquer maneira. Mesmo que tenham comido o meu trigo de semente.

- Está bem, mas diz lá o que tens a dizer.

- O que tenho a dizer é que alguém tem de ir buscar aquele trigo que foi cultivado a sul da cidade.

Royal abanou lentamente a cabeça.

- Ninguém o fará - afirmou. - É o mesmo que arriscar a vida de um homem.

De repente, Almanzo mostrou-se de novo alegre. Chegou-se para a mesa e pôs uma pilha de panquecas no seu prato.

- Porque não arriscar? - perguntou, bem disposto, a deitar melaço sobre o monte fumegante de panquecas. - Nem sempre se pode garantir!

- Sessenta e cinco quilómetros? - perguntou Royal. - Meter por essas pradarias à procura de agulha em palheiro, trinta e tal quilómetros para lá e outros trinta e tal para cá? Homem, sabes perfeitamente que ninguém pode dizer quando vai desencadear-se uma nevasca! Não temos tido mais do que um dia bom de cada vez, desde que esta coisa começou. A maior parte das vezes até tem sido só meio dia. Não pode ser, Manzo. Um tipo teria menos hipóteses do que uma bola de neve no Inferno.

- Alguém tem de o fazer - insistiu Almanzo, logicamente. - Já o provei.

- Pois sim, mas os riscos?!

- Certifica-te de que tens razão e depois segue para a frente - disse Almanzo, a citar o pai.

- Mais vale prevenir do que remediar - replicou-lhe Royal, com um ditado da mãe.

- Ora, tu és lojista - comentou Almanzo. - Um lavrador corre riscos. Tem de correr.

- Almanzo - disse Royal, solenemente-, se consentir que te percas estouvadamente nessas pradarias, que direi ao pai e à mãe?

- Diz-lhes que não foste visto nem achado nisso, Royal, que não pudeste fazer nada. Sou livre, branco e tenho vinte e um anos... ou é como se tivesse. De qualquer modo, estamos num país livre e eu sou livre e independente. Faço o que me apetecer.

- Não te precipites, Manzo - pediu-lhe Royal. - Pensa bem.

- Já pensei e repensei.

Royal ficou calado. Comeram em silêncio, aconchegados pelo calor firme do lume e pela luz forte do candeeiro e do seu luminoso reflector. As paredes tremiam um pouco e as sombras nelas projectadas estremeciam em consequência das rajadas de vento que uivavam ao longo das telhas, se estilhaçavam, aos gritos, nas esquinas e rugiam constantemente como uma catarata. Almanzo serviu-se de mais panquecas.

De súbito, Royal pousou a faca e empurrou o prato para trás.

- Uma coisa é certa - declarou. - Não partirás nessa louca viagem sozinho. Se estás decidido a fazê-la, eu vou contigo.

- Eh, alto lá! - protestou Almanzo. - Não podemos ir os dois!

 

                   UMA ABERTA

Na manhã seguinte havia calma. O sol brilhava, luminoso e frio, e no alpendre onde Laura e Maria trabalhavam só se ouvia o girar da manivela do moinho, o assobio do vento a soprar numa única direcção e a espécie de crepitar do feno, ao ser torcido. Tinham muito frio. Nem uma nem outra conseguiam torcer mais de dois ou três paus de feno sem terem de ir aquecer as mãos sobre o fogão.

Dificilmente conseguiam manter o lume aceso, não podiam fazer uma reserva de paus de feno e arranjar tempo para ajudar na lavagem da roupa.

Por isso, a mãe adiou a lavagem para mais tarde.

- Talvez amanhã esteja mais quente - disse, e ajudou a torcer feno.

Rendeu Maria e Laura, por turnos, para que elas pudessem render Carrie no moinho de café.

O pai só chegou a casa ao fim da tarde. A refeição da tarde, de pão e chá, esperava quando ele finalmente chegou.

- Brrr, que dia tão frio!

Nesse dia só conseguira transportar uma carga de feno. As medas estavam cobertas de neve e ele tinha de desenterrar o feno de baixo de enormes montões. A neve recente cobrira os rastos do trenó e modificara o aspecto do pântano. Por isso, David atolara-se repetidamente em bolsas ocultas de erva.

- O seu nariz gelou, Pá? - perguntou-lhe Graça, preocupada. Claro que, com um tempo daqueles, as orelhas e o nariz do pai

gelavam de tal maneira que ele tinha de os esfregar com neve para restabelecer a circulação. Dizia a Graça, a fingir, que o seu nariz se tornava maior de cada vez que gelava, e Graça fingia acreditar nisso. Aquela era a brincadeira especial dos dois.

- Hoje gelou cinco ou seis vezes - respondeu-lhe o pai, a tocar delicadamente no nariz vermelho e inchado. - Se a Primavera não chega depressa, ficarei com um nariz tão grande como o de um elefante. E também com orelhas de elefante. - Graça riu-se.

Depois de comerem o pão quotidiano, o pai torceu feno suficiente para durar até à hora de se deitarem. Tratara dos animais quando pusera David no estábulo. Ainda restava um pouco de luz e ele disse:

- Vou até à drogaria do Bradley passar um bocado a ver o jogo de damas.

- Vai, sim, Charles. Porque não jogas também um pouco?

- Bem, aqueles rapazes solteiros têm passado este Inverno todo a jogar às damas e às cartas. São bons jogadores de damas, pois não têm mais nada que fazer. Bons de mais para mim. Por isso, limito-me a observar... e não sei se há alguma coisa mais agradável do que ver um bom jogador de damas.

Não se demorou muito. A drogaria estava tão fria, disse, que não havia jogo de damas naquele dia. Mas havia notícias:

- Almanzo Wilder e Cap Garland vão procurar o tal trigo, ao sul da cidade.

O rosto da mãe imobilizou-se e os seus olhos abriram-se muito, como se visse qualquer coisa assustadora.

- A que distância disseste que era?

- Ninguém sabe ao certo. Nem exactamente onde é. Corre apenas o boato de que um colono dessas paragens cultivou trigo o ano passado. Como ninguém vendeu trigo a ninguém da cidade, o cereal deve lá estar - se o homem lá está e se o cultivou, de facto. Foster diz que alguém lhe disse que o colono estava a passar o Inverno - na sua reserva. Os rapazes vão tentar encontrá-lo. O Loftus adiantou o dinheiro para comprarem todo quanto puderem transportar.

Graça, que estava sentada no colo do pai, começou a fazer barulho e a tentar levantar-se para lhe medir o nariz com o dedo. Ele levantou-a, distraidamente. Até Graça, apesar de muito pequena, compreendeu que não era momento para brincadeiras. Olhou, assus tada, para o pai, e depois para a mãe, e ficou sentada quieta no joelho do pai.

- Quando partem? - perguntou a mãe.

- Amanhã de manhãzinha. Hoje construíram um trenó para o Cap Garland. Eram para ir os dois Wilders, mas resolveram que um deles deveria ficar, para o caso do que for ser apanhado por uma nevasca.

Ninguém disse nada, durante um momento.

- Talvez consigam - disse o pai. - Enquanto este bom tempo se aguentar, poderão viajar. Talvez se aguente dois ou três dias. nunca se sabe.

- É esse o mal - comentou a mãe. - Nunca se sabe.

- Se conseguirem -salientou o pai-, teremos trigo suficiente até à Primavera. Isto é, se houver trigo e eles o encontrarem.

De noite Laura ouviu o embate e os uivos dos ventos da nevasca. Houvera apenas um breve dia de repouso. A nevasca não deixaria ninguém partir no dia seguinte, em busca de trigo.

 

                   PARA O PÃO DE CADA DIA

Na terceira noite de tempestade o silêncio acordou Almanzo. A nevasca parara. Estendeu a mão para o colete, que estava pendurado numa cadeira, tirou o relógio e um fósforo e viu que eram quase três horas da manhã.

Nas escuras e frias manhãs de Inverno ainda sentia a falta do pai, a fazê-lo sair da cama. Mas agora tinha de ser ele mesmo, sem esperar que o mandassem, a sair do quente dos cobertores para o frio. Tinha de acender a lanterna, espevitar o lume, quebrar o gelo do balde da água e escolher entre fazer o próprio pequeno-almoço ou ficar com fome. Três da manhã, no Inverno, era a única hora em que não se sentia satisfeito por ser livre e independente.

No entanto, uma vez fora da cama e vestido, gostava mais das horas matinais do que de qualquer outra parte do dia. O ar era mais puro do que em qualquer outra hora. No céu oriental pendia, baixa, a estrela da manhã. A temperatura era de cerca de cinco graus abaixo de zero, o vento soprava firme e o dia prometia ser bom.

Quando desceu a Rua Principal no trenó do feno, o Sol ainda não nascera mas a estrela da manhã já se dissolvera num jorro de luz ascendente. A casa dos Ingalls erguia-se, negra e sólida, contra a interminável pradaria oriental coberta de neve. Na Rua 2, para lá da casa, os dois estábulos com as suas medas de feno pareciam pequenos e, a seguir, na pequena casa dos Garlands havia um ponto de luz na cozinha. Cap Garland apareceu no seu trenó puxado pelo seu cavalo castrado de cor amarelada.

Acenou a Almanzo e este levantou os braços, rígidos sob o volume das mangas de lã. Tinham o rosto envolto nos cachecóis e não precisaram de dizer nada. Três dias atrás, antes de a última nevasca começar, gizaram o seu plano. Almanzo seguiu em frente sem parar e Cap Garland virou o cavalo para a Rua Principal, atrás dele.

Ao fim da curta rua, Almanzo virou para sudeste, a fim de atravessar o istmo do Pântano Grande no seu ponto mais estreito. O Sol nascia. O céu estava de um azul frio e a terra apresentava-se, até ao horizonte mais distante, coberta de montes de neve, banhada de tons róseos e levemente sombreada de azul. A respiração do cavalo formava-lhe uma nuvem branca por cima da cabeça.

Os únicos sons eram o bater dos cascos do Príncipe na neve dura e o raspar do deslizar dos patins do trenó. Não havia um rasto nas ondas da neve, não se via uma única marca de pegada de coelho ou de dedos de ave. Também não havia quaisquer vestígios de estrada, nenhum sinal de que alguma coisa viva tivesse jamais estado nos campos de neve gelada cujas curvas se tinham todas modificado e eram desconhecidas. Só o vento os sulcara com pequenas ondazinhas, cada qual com a sua ténue linha de sombra azul, o mesmo vento que soprava uma poalha de neve de todas as cristas lisas e duras.

Havia algo de irónico na cintilação daquele mar ínvio onde cada sombra se movia um pouco e a poalha de neve soprada pelo vento confundia os olhos que procuravam pontos de referência perdidos. Almanzo calculou direcções e distância o melhor que pôde naquela vastidão onde tudo mudara e era incerto, e pensou: «Teremos de nos guiar por cálculo e com a ajuda de Deus!»

Calculou que chegara ao istmo do sepulcro Pântano Grande algures nas proximidades do lugar onde atravessara para carregar feno. Se estivesse certo, a neve debaixo do trenó estaria compacta e em cinco minutos ou menos estaria de novo em segurança, em terra firme. Olhou para trás. Cap Garland afrouxara a velocidade do cavalo e seguiu-o a cautelosa distância. Sem aviso, Príncipe atolou-se.

- Aí-ô! - gritou Almanzo através do cachecol, mas calma e brandamente.

Só a cabeça relinchante do cavalo emergia da bolsa de ar e de ervas à frente do trenó. Este continuou a deslizar, pois não há maneira de travar um trenó, mas parou a tempo.

- Aí-ô, Príncipe, calma! - disse Almanzo, a puxar firmemente as rédeas. - Calma, calma...

Profundamente enterrado na neve, o cavalo mantinha-se imóvel.

Almanzo saltou do trenó e soltou os balancins da corrente presa aos patins. Cap Garland contornou-o e parou. Almanzo aproximou-se da cabeça de Príncipe e, atolado também em neve e ervas mortas emaranhadas, agarrou as rédeas, debaixo do freio.

- Calma, Príncipe, meu velho, calma aí - foi dizendo, pois o seu próprio atolamento estava a assustar de novo o animal.

Depois caminhou pela neve fora, até persuadir Príncipe de que o piso era suficientemente firme. Agarrou-o de novo pelo freio e puxou-o para a frente, até o cavalo, com um forte impulso, sair do buraco e deixar-se conduzir rapidamente por Almanzo, para a nev, sólida. Levou-o junto do trenó de Cap Garland e entregou as rédeas ao rapaz.

Os olhos claros de Cap revelaram que ele sorria alegremente sob o cachecol.

- É então assim que fazes! - exclamou.

- Não tem grande dificuldade - afirmou Almanzo.

- Está um bonito dia para um passeio.

- Sim, está uma linda e grande manhã! - concordou Almanzo, Almanzo puxou o trenó transversalmente, atrás do grande buraco que o Príncipe e ele fizera na neve. Gostava de Cap Garland. Cap era despreocupado e alegre, mas sabia estar à altura das dificuldades E quando tinha motivos para se zangar, os seus olhos semicerravam se e cintilavam de uma maneira e com uma expressão que nenhum homem gostava de suportar. Almanzo vira-o fazer o mais duro dos homens dos caminhos-de-ferro arrepiar caminho.

Almanzo tirou uma corda enrolada do seu trenó e atou uma ponta à corrente e a outra ao balancim do Príncipe. Com o animal a ajudá-lo a puxar, conduziu o trenó de modo a contornar o buraco. Depois atrelou o Príncipe ao trenó, enrolou a corda e seguiu em frente.

Cap Garland voltou a colocar-se atrás dele. Na realidade, era apenas um mês mais novo do que Almanzo. Tinham ambos dezanove anos. Mas como Almanzo tinha uma reserva, Cap supunha-o com mais de vinte e um anos e, em parte por essa razão, tratava-o com respeito. Almanzo não levantava nenhuma objecção a esse facto.

Conduziu na direcção do Sol, até ter a certeza de que atravessara o Pântano Grande. Depois dirigiu-se para sul, na direcção dos lagos gémeos, Henry e Thompson.

A única cor que se via agora nos intermediários campos de neve era uma pálida reflexão do céu azul. Por toda a parte havia pequenas cintilações vivas. O seu brilho apunhalava os olhos de Almanzo quase fechados de tão franzidos na faixa entre o boné e o cachecol, A cada respiração, a lã gelada era soprada e de novo aspirada contra o nariz e a boca.

As suas mãos tornaram-se demasiado frias para sentirem as rédeas e, por isso, ele mudava-as de uma para outra e batia com o braço livre no peito, para pôr o sangue quente a circular.

Quando os seus pés ficavam dormentes, saltava do trenó e corria a seu lado. O coração, a bater depressa, levava-lhe calor aos pés, au ficar com uma sensação de queimadura, e então saltava de novo para o trenó.

- Não há nada como o exercício para nos aquecer! - gritava para trás, para Cap.

- Deixa-me chegar ao fogão! - gritou Cap, e saltou também do trenó e correu a seu lado.

Assim prosseguiram, a correr, de boleia, a bater no peito e a correr de novo, enquanto os cavalos trotavam, velozes.

- Quanto tempo vamos continuar assim? - gritou Cap, uma vez, de brincadeira.

- Até encontrarmos trigo ou o Inferno gelar! - respondeu-lhe o outro.

- Agora pode-se patinar nele! - gritou Cap. Prosseguiram. O sol-nascente jorrava uma claridade que parecia

ainda mais fria do que o vento. Não se via nenhuma nuvem no céu, mas o frio tornava-se cada vez mais intenso.

O Príncipe voltou a atolar-se em qualquer pequeno pântano desconhecido. Cap aproximou-se e parou. Almanzo desatrelou o cavalo, puxou-o para neve firme, puxou o trenó à volta do buraco e atrelou-o de novo.

- Vês o choupo-do-canadá solitário nalgum lado, em frente? - perguntou a Cap.

- Não. Mas não posso confiar nos meus olhos - respondeu Cap, pois o clarão do Sol fazia-o ver pontos pretos por todo o lado.

Enrolaram os cachecóis de outro modo, para afastar as partes geladas da cara quase em carne viva. Até ao distante horizonte, a toda a sua volta, só havia neve cintilante e o vento cruel a soprar.

- Até agora temos tido sorte - observou Almanzo. - Só nos atolámos duas vezes.

Saltou para o trenó e arrancou, mas no mesmo momento ouviu Cap gritar. Ao virar para o seguir, o cavalo do rapaz atolara-se.

Cap desenterrou-o, puxou o trenó à volta do buraco e atrelou de novo.

- Não há nada como o exercício para conservar um tipo quente! - recordou a Almanzo.

Do cimo da baixa elevação seguinte viram o choupo-do-canadá solitário, nu e esquelético. A neve cobria os lagos gémeos e os arbustos baixos existentes entre eles. Só a copa nua da árvore solitária se erguia da interminável brancura.

Assim que a viu, Almanzo virou rapidamente para oeste, a fim de se afastar dos pântanos existentes à volta dos lagos. Na erva da terra alta a neve estava sólida.

A Árvore Solitária era o último ponto de referência. Não tardou a perder-se de novo nas ondas de neve sem o mínimo rasto. Não havia nenhuma estrada nem nenhum rasto de qualquer espécie, fosse onde fosse. Ninguém sabia onde vivia o colono que cultivara o trigo. Ninguém tinha sequer a certeza de que ele ainda se encontrava naquela região. Era muito possível que tivesse ido passar o Inverno a qualquer lado.

Também era muito possível que nunca tivesse sequer existido tal homem. De concreto, havia apenas o boato de qUe alguém dissera a alguém que um homem que vivia algures naquela região cultivara trigo.

As ondas do interminável mar de neve gelada eram todas igUais, Sob a poalha de neve soprada das suas cristas, as baixas elevações da pradaria pareciam suceder-se infinitamente, sempre iguais. O Sol su biu lentamente e o frio aumentou.

Os únicos sons eram os dos cascos dos cavalos, do raspar dos patins que não deixavam rastos na neve dura como o gelo e do vento que assobiava contra o trenó.

De vez em quando, Almanzo olhava para trás e Cap abanava a cabeça. Nenhum deles via qualquer fiapo de fumo contra o céu gelado. O Sol pequeno e frio parecia suspenso e imóvel, mas ia subindo. As sombras estreitavam-se, as ondas de neve e as curvas da pradaria pareciam achatar-se. O deserto branco nivelava-se, triste e vazio.

- Até onde iremos? - gritou Cap.

- Até encontrarmos o trigo! - respondeu Almanzo, mas também começava a duvidar que houvesse algum trigo naquele vazio interminável.

O Sol já estava no zénite, passara meio dia. Continuava a não haver nenhuma ameaça no céu a noroeste, mas seria invulgar se houvesse mais do que aquele dia de intervalo entre nevascas.

Almanzo sabia que deveriam regressar à cidade. Entorpecido pelo frio, saltou do trenó e correu a seu lado. Não queria regressar à cidade faminta e dizer que voltara para trás com o trenó vazio.

- Que distância calculas que percorremos? - perguntou Cap.

- Trinta, trinta e dois quilómetros. Achas melhor voltarmos para trás?

- Nunca desistas enquanto não estiveres vencido! - replicou-lhe o rapaz, alegremente.

Olharam em redor. Estavam numa elevação. Se o ar inferior não estivesse um pouco turvo, com uma cintilação de neve soprada pelo vento, talvez pudessem ver num raio de trinta quilómetros. Mas as elevações da pradaria, que pareciam planas sob o Sol no zénite, ocultavam a cidade, a noroeste. O céu desse lado continuava limpo.

A baterem com os pés e a darem com os braços no peito, perscrutaram a terra branca de oeste para leste e tão para sul quanto possível. Nem fiapo de fumo em lado nenhum.

- Em que direcção seguimos? - perguntou Cap.

- Numa ou noutra, tanto faz.

Voltaram a enrolar os cachecóis que a sua respiração enchera de gelo. Quase não encontraram um pedaço de tecido para aliviar a dor que o gelo lhes fazia na cara que deixara quase em carne viva.

- Como estão os teus pés? - perguntou Almanzo.

- Não dizem nada - respondeu Cap. - Acho que não haverá novidade. Vou continuar a correr.

- Também eu. Se não aquecerem em breve, será melhor pararas e aquecê-los com neve. Sigamos esta elevação para oeste, um bocado. Se não encontrarmos nada, poderemos contornar para trás, mais para sul.

- Conbinado - concordou Cap.

Os seus bons cavalos meteram de novo a trote, de boa vontade, e eles correram ao lado dos trenós. A elevação terminou mais depressa do que esperaram. O campo de neve continuou em declive e alastrou numa concavidade plana que a terra mais alta ocultara. Parecia um pântano. Almanzo meteu o Príncipe a passo e saltou para o trenó, para examinar o terreno. A concavidade plana prolongava-se para oeste e ele não viu nenhuma maneira de a contornar sem voltar para trás, ao longo da elevação. Nisto, viu, em frente e do outro lado do pântano, uma mancha castanho-acinzentada na neve que soprava de um monte. Parou a montada e gritou:

- Eh, Cap! Aquilo ali à frente parece fumo, não parece? Cap também estava a olhar.

- Parece que vem de um aterro de neve! - gritou. Almanzo conduziu o trenó pela encosta abaixo e passados minutos gritou:

- É, realmente, fumo! Há ali qualquer espécie de casa!

Tiveram de atravessar o pântano para lá chegar. Na sua excitação, Cap conduziu o trenó ao lado de Almanzo e o seu cavalo atolou-se. Foi o buraco mais fundo de que tiveram de tirar um cavalo. A toda a volta a neve foi-se abaixo, em bolsas de ar sob a superfície, até parecer que nunca mais deixariam de se afundar. Antes de conseguirem levar o cavalo amarelo para piso firme, começaram a avançar sombras na direcção do leste.

O fumo fino subia de um comprido aterro de neve, sem que se visse qualquer rasto nela. Mas quando contornaram e se aproximaram pelo lado sul, verificaram que a neve fora retirada da frente de uma porta. Pararam os trenós e chamaram.

A porta abriu-se e apareceu um homem, estupefacto. Tinha o cabelo e a barba compridos.

- Viva! Viva! - gritou. - Entrem! Entrem! De onde vêm? Para onde vão? Entrem! Quanto tempo podem ficar? Mas entrem! - Estava tão agitado que nem esperava pelas respostas às perguntas que fazia.

- Primeiro temos de tratar dos nossos cavalos - disse-lhe Almanzo.

O homem pegou num sobretudo e saiu.

- Venham por aqui, sigam-me. De onde vêm vocês?

- Viemos da cidade - respondeu Cap.

O homem conduziu-os a uma porta noutro aterro de neve. Disseram-lhe como se chamavam, enquanto desatrelavam os cavalos, e ele disse-lhes que se chamava Anderson. Meteram os animais num quente estábulo de terra, aconchegado sob o aterro de neve.

O fundo do estábulo tinha um tabique de tábuas e uma porta tosca e tinham caído grãos de trigo através de uma fenda. Almanzo e Cap olharam para o trigo e depois um para o outro.

Deram água aos cavalos, do poço que havia à porta, deram-lhes uma ração de aveia e deixaram-nos presos a uma manjedoura cheia de feno, ao lado da parelha de cavalos pretos de Anderson. Depois seguiram o indivíduo até casa, sob o aterro de neve.

O tecto baixo da única divisão era feito de traves cobertas de feno que bambeava sob o peso da neve. As paredes eram de terra. Anderson deixou a porta encostada, para entrar um pouco de luz,

- Não desimpedi a janela desde a última tempestade - explicou. - A neve amontoa-se sobre aquela pequena elevação, a noroeste, e cobre-me. Conserva a casa tão quente que não preciso de muito combustível. Aliás, as casas de terra são as mais quentes que há!

A sala estava de facto quente e cheia de vapor de uma cafeteira que fervia no fogão. O almoço de Anderson estava numa mesa tosca, armada contra a parede. Convidou-os a puxarem os bancos e comerem com ele. Não via vivalma desde Outubro, altura em que fora à cidade comprar provisões para o Inverno.

Almanzo e Cap sentaram-se e comeram com apetite os feijões cozidos e os biscoitos de massa azeda com molho de maçã seca. Acomida quente e o café aqueceu-os e os pés começaram a aquecer-lhes tão dolorosamente que tiveram a certeza de que não enregelaram. Almanzo disse ao Sr. Anderson que ele e Cap estavam interessados em comprar algum trigo.

- Não vendo nenhum - respondeu-lhes o homem, redondamente. - Todo quanto colhi está reservado para ser semeado. Para que querem vocês comprar trigo nesta época do ano?

Tiveram de lhe contar que os comboios deixaram de circular e as pessoas da cidade tinham fome.

- Há mulheres e crianças que não comem uma refeição capaz desde antes do Natal - acrescentou Almanzo. - Têm de arranjar alguma coisa para comer, caso contrário morrem de fome antes da Primavera.

- Isso não é da minha conta - respondeu o Sr. Anderson- , Ninguém é responsável por pessoas que não tiveram previsão suficiente para olharem por elas.

- Ninguém o considera responsável de nada - redarguiu-lhe Almanzo.

- E também ninguém lhe pede que lhes dê nada. Pagar-lhe-emos o preço total de silo de oitenta e dois cêntimos por alqueire e poupar-lhe-emos o trabalho de ir à cidade.

- Não tenho trigo nenhum para vender - respondeu o Sr. Anderson, e Almanzo compreendeu que ele falava a sério.

Cap interveio então, com o sorriso a iluminar-lhe o rosto vermelho, esfolado pelo vento gelado.

- Vamos ser absolutamente francos consigo, Sr. Anderson. Pusemos as nossas cartas na mesa: a gente da cidade precisa de algum do seu trigo para não morrer de fome. Muito bem, estão dispostas a pagá-lo. Quanto pede?

- Não pretendo aproveitar-me de vocês, rapazes - afirmou o Sr. Anderson. - Não quero vender. É o meu trigo de semente, a minha colheita do ano que vem. Podia tê-lo vendido no Outono passado, se fosse essa a minha intenção.

Almanzo decidiu-se, rapidamente:

- Pagamos um dólar por alqueire: mais dezoito cêntimos por alqueire do que o preço do mercado. E não se esqueça de que, ainda por cima o transportaremos.

- Não vendo a minha semente - teimou o homem. - Tenho de fazer uma colheita no próximo Verão.

- Um homem pode sempre comprar trigo de semente - observou Almanzo, pensativamente. - Muitos tipos daqui é o que vão fazer. Está a desprezar um lucro líquido de dezoito cêntimos por alqueire acima do preço do mercado, Sr. Anderson.

- Como posso saber que enviarão trigo para semente a tempo da sementeira? - indagou o homem.

E Cap perguntou-lhe, com lógica:

- Por essa ordem de ideias, como pode saber que fará uma colheita? Suponhamos que recusa esta oferta de dinheiro e semeia o seu trigo. Existe a possibilidade de o granizo a destruir. Ou os gafanhotos.

- Lá isso é verdade - admitiu o Sr. Anderson.

- A única coisa que lhe pode dar uma certeza é dinheiro no bolso - disse Almanzo.

O Sr. Anderson abanou, devagar, a cabeça.

- Não, não vendo. Quase me matei a desbravar vinte hectares, o Verão passado. Quero guardar o trigo para semear.

Almanzo e Cap entreolharam-se. O primeiro tirou a carteira.

- Pagar-lhe-emos um dólar e vinte e cinco cêntimos por alqueire, A pronto. - Pôs o maço de notas em cima da mesa.

O Sr. Anderson hesitou. Depois desviou o olhar do dinheiro.

- Um pássaro na mão vale mais do que dois a voar - sentenciou Cap.

Mal-grado seu, o Sr. Anderson olhou outra vez para o dinheiro, depois reclinou-se na cadeira e pensou. Coçou a cabeça.

- Bem, podia semear alguma aveia... - disse, por fim.

Nem Almanzo nem Cap disseram nada. Sabiam que a decisão do homem estava iminente e que se naquele momento ele decidisse não vender, não venderia mesmo. Por fim, resolveu-se:

- Creio que poderei dispensar-lhes uns sessenta alqueires por esse preço.

Almanzo e Cap levantaram-se logo da mesa.

- Vamos carregá-lo! - disse Cap. - Estamos muito longe de casa.

O Sr. Anderson insistiu para que passassem a noite com ele, mas Almanzo concordou com Cap.

- Agradecemos como se aceitássemos -respondeu-, mas ultimamente só temos tido um dia bom entre nevascas e já passa do meio-dia. Já devíamos até ter partido.

- O trigo não está ensacado - observou o Sr. Anderson, mas Almanzo redarguiu-lhe:

- Trouxemos sacas.

Dirigiram-se apressadamente para o estábulo e o Sr. Anderson ajudou-os a passar o trigo para as sacas de dois alqueires, com as quais carregaram os trenós. Enquanto atrelavam os animais, perguntaram ao homem qual era a melhor maneira de atravessarem o pântano, mas ele não o atravessara naquele Inverno e por falta de pontos de referência também não sabia exactamente onde passara, através da erva, no último Verão.

- Seria melhor passarem aqui a noite, rapazes - insistiu de novo, mas eles despediram-se e puseram-se a caminho de casa.

Passaram do abrigo dos aterros de neve para o vento enregelante e, mal começaram a atravessar o vale plano, Príncipe atolou-se numa bolsa de ar. Ao desviar-se para contornar o perigoso local, o cavalo de Cap sentiu a neve ceder tão subitamente debaixo dele que relinchou ao atolar-se também.

O relincho do cavalo foi horrível e durante momentos Almanzo teve dificuldade em manter o Príncipe calmo. Depois viu Cap na neve, a segurar o frenético animal pelo freio. De tanto se empinar, o cavalo amarelado quase arrastou o trenó de Cap para o buraco: o veículo inclinou-se, mesmo à beira, e a carga de trigo escorregou parcialmente para o chão.

- Tudo bem? - perguntou Almanzo, quando o animal pareceu mais calmo.

- Tudo! - respondeu Cap.

Em seguida, durante algum tempo, trabalharam afadigadamente, desatrelando cada qual o seu cavalo, na neve desfeita e na erva rija, e pisando-a e calcando-a a fim de fazer um piso sólido para os animais. Saíram dos buracos gelados até aos ossos e cobertos de neve.

Amarraram ambos os cavalos ao trenó de Almanzo e depois descarregaram o trenó de Cap, afastaram-no do buraco e voltaram a carregar os sacos de quase sessenta quilos. Seguidamente atrelaram os cavalos aos respectivos trenós. Foi trabalho difícil afivelarem as correias frias e duras com os dedos dormentes. E Almanzo pôs-se de novo, cuidadosamente, a caminho, através do traiçoeiro pântano.

O Príncipe voltou a atolar-se, mas felizmente o cavalo amarelo teve melhor sorte. Com a ajuda de Cap, safaram Príncipe mais depressa e, sem novos problemas, chegaram à terra mais alta.

Almanzo parou e gritou a Cap:

- Achas melhor tentarmos procurar os nossos rastos, para regressarmos?

- Não! - respondeu Cap. - Acho melhor irmos direitos à cidade. Não temos tempo a perder.

De qualquer modo, nem os cascos dos cavalos nem os patins dos trenós deixaram qualquer pista na crosta dura da neve. As únicas marcas eram os vários buracos onde se atolaram nos pântanos, e esses ficavam a leste do caminho para casa.

Almanzo avançou para noroeste, através da larga e branca pradaria. A sua sombra era o seu único guia. Uma elevação era igual a outra, um pântano coberto de neve só diferia do seguinte no tamanho. Atravessar a terra baixa significava correr o risco de se atolarem e perderem tempo. Seguirem os espinhaços do terreno mais elevado equivalia a mais quilómetros de viagem. Os cavalos estavam a ficar cansados. Tinham medo de cair em buracos ocultos na neve e esse medo aumentava-lhes a fadiga.

Caíram diversas vezes através de finas crostas de neve. Cap e Almanzo tiveram então de os atrelar, de os safar e de os atrelar de novo.

Iam avançando ronceiramente, fustigados pelo frio cortante do vento. Como estavam demasiado cansados para trotar com o seu pesado carregamento, os cavalos iam a um passo que não permitia aos rapazes correr ao lado dos trenós. Tinham de se limitar a bater com os pés, com força, enquanto caminhavam, para evitar que gelasse, e a bater com os braços contra o peito.

Arrefeceram mais. Os pés de Almanzo já não sentiam o choque, quando batia com eles. A mão que segurava as rédeas estava tão gelada que os dedos não se abriam. Passou as rédeas pelos ombros, para ficar com ambas as mãos livres, e a cada passo batia com elas no peito, para manter a circulação do sangue.

- Eh, Wilder! - gritou Cap. - Não estamos a seguir demasiado a direito para norte?

- Como hei-de saber?

Prosseguiram. Príncipe atolou-se de novo e ficou parado, de cabeça pendente, enquanto Almanzo o desatrelava, calcava a neve, o tirava do buraco e o atrelava de novo. Subiram para uma elevação, ,seguiram-na à volta de um pântano e desceram para atravessar outro. Príncipe atolou-se.

- Queres que eu vá um bocado à frente? - perguntou Cap, depois de Almanzo atrelar de novo o cavalo ao trenó. - Sempre te poupavas um bocado, e ao Príncipe.

- De acordo - aceitou Almanzo. - Iremos à frente por turnos. Depois disso, quando um cavalo se atolava o outro tomava a dianteira até se atolar por sua vez. O Sol estava baixo e uma espécie de névoa adensava-se a noroeste.

- Devemos ver o choupo-do-canadá solitário daquela elevação, ali à frente - disse Almanzo a Cap.

Passado um momento, Cap respondeu:

- Sim, creio que veremos.

Mas quando chegaram ao cimo da elevação só avistaram as mesmas ondas de neve desertas e infinitas e a névoa densa e baixa a noroeste. Almanzo e Cap olharam-na e depois falaram aos cavalos e prosseguiram. Mas conservaram os trenós mais perto um do outro.

O Sol punha-se, vermelho, no céu frio quando viram a copa nua do choupo-do-canadá solitário, a nordeste. E a noroeste a nuvem da nevasca via-se perfeitamente, baixa, ao longo do horizonte.

- Parece que não tem saído do mesmo sítio - observou Almanzo. - Tenho-a vindo a observar há bocado...

- Também eu. Mas acho melhor esquecermos o frio e conduzirmos os cavalos. Subamos um bocado para os trenós.

- Não precisas de o repetir - concordou Almanzo. - Estou precisado de uns minutos de repouso.

Não disseram mais nada, além de palavras de incitamento aos cavalos fatigados, para andarem mais depressa. Cap ia à frente, a direito através dos altos e baixos, nos dentes do vento. Foram avançando de cabeça baixa, para se protegerem da ventania, até o cavalo amarelo se atolar.

Almanzo vinha tão perto que não pôde evitar a bolsa de ar oculta. Desviou-se rapidamente, mas o Príncipe atolou-se ao lado do cavalo amarelo. Toda a crosta de neve acabou por ceder e o trenó de Almanzo caiu, com a carga e tudo, na neve fragmentada e na erva.

A escuridão foi-se instalando lentamente, enquanto Cap ajudava Almanzo a puxar o trenó para trás e a desenterrar e carregar os pesados sacos de trigo. A neve tinha uma luminosidade pálida. O vento amainara e nem um sopro de ar agitava as trevas silenciosas. Brilhavam estrelas por cima deles e a sul e leste, mas a norte e oeste o céu estava preto.

E o negrume foi alastrando e apagando as estrelas, uma por uma.

- Creio que vamos ser apanhados por ela - disse Cap.

- Devemos estar perto.

Almanzo falou a Príncipe e avançou. Cap seguiu-o, a formar com o trenó uma sombra volumosa, que se movia sobre a brancura fosca da neve.

À frente deles, no céu, as estrelas foram-se apagando uma a uma, enquanto a nuvem preta subia.

Calmamente, Almanzo e Cap falavam com os cavalos fatigados, a incitá-los a prosseguir. Ainda faltava atravessar o istmo do Pântano Grande e agora não podiam ver nem as elevações nem as concavidades. Só conseguiam ver uma curta distância à sua frente, graças à palidez da neve e à fraca luz das estrelas.

 

                   QUATRO DIAS DE NEVASCA

Durante todo o dia, enquanto dava à manivela do moinho de café ou torcia feno, Laura pensou em Cap Garland e no mais novo dos irmãos Wilder, a percorrer os ínvios campos de neve em busca de trigo para a cidade.

Nessa tarde, ela e Maria foram para o pátio das traseiras, a fim de tomarem um pouco de ar, e Laura olhou receosamente para noroeste, temendo ver a tira baixa de escuridão que constituía sinal seguro de que se aproximava uma nevasca. Não havia nenhuma nuvem, mas mesmo assim ela não confiou no Sol luminoso. Achou-o luminoso de mais e a pradaria coberta de neve, a cintilar até onde a vista alcançava, pareceu-lhe ameaçadora. Teve um calafrio.

- Vamos para dentro, Laura - pediu Maria. - O sol está muito frio. Viste a nuvem?

- Não há nenhuma nuvem - garantiu à irmã. - Mas não me agrada o tempo. Não sei porquê, o ar parece-me selvagem.

- O ar é só ar - replicou Maria. - O que queres dizer é que está frio.

- Não quero nada dizer que está frio. Quero dizer que está selvagem! - afirmou Laura, brusca.

Voltaram para a cozinha pela entrada do alpendre. A mãe levantou a cabeça da peúga do pai que estava a passajar e observou:

- Não se demoraram muito, filhas. Deviam apanhar todo o ar puro possível, antes da próxima tempestade.

O pai apareceu à entrada. A mãe largou o trabalho e tirou do forno o pão escuro, enquanto Laura deitava numa tigela o ralo molho de bacalhau.

- Outra vez molho. Óptimo! - exclamou o pai, e sentou-se para comer.

O frio e o trabalho duro de carregar feno dera-lhe fome. Os seus olhos brilharam ao ver a comida. Ninguém levava a palma à mãe a fazer bom pão, afirmou, e não havia nada melhor para o pão do que molho de bacalhau. O pão grosseiro e as papas de trigo esmagado fi cavam quase transformados num petisco com um pouco de peixe salgado.

- Os rapazes tiveram um dia excelente para a sua viagem - observou. - Vi o buraco onde um dos cavalos se atolou, no Pântano Grande, mas eles safaram-no sem problemas.

- Acha que eles regressarão bem, Pá? - perguntou Carrie, timidamente, e o pai respondeu-lhe:

- Não há motivo nenhum para não regressarem, se este tempo limpo continuar.

Saiu, para tratar dos animais. O Sol pusera-se e a luz empalidecia quando ele voltou. Como entrou pela porta da frente, souberam que fora ao outro lado da rua saber notícias. E ao vê-lo compreenderam que as notícias não eram boas.

- Vai começar outra vez - disse, enquanto pendurava o sobretudo e o boné no prego atrás da porta. - Aproxima-se rapidamente uma nuvem.

- Eles não voltaram? - perguntou a mãe.

- Não.

A mãe balançou-se silenciosamente na cadeira e ficaram todos sentados e calados enquanto a escuridão se adensava. Graça adormecera no colo de Maria. Os outros puxaram mais as cadeiras para o fogão, mas continuavam silenciosos, à espera, quando a casa foi sacudida e o vento começou a uivar.

O pai respirou fundo e levantou-se.

- Cá está outra vez! - De súbito, cerrou o punho e brandiu-o na direcção de noroeste. - Uiva, maldito, uiva! - gritou. - Estamos aqui todos, em segurança! Não nos podes apanhar! Tentaste durante todo o Inverno, mas ainda te venceremos! Continuaremos aqui quando a Primavera chegar!

- Charles, Charles! - exclamou a mãe, apaziguadoramente. - É só uma nevasca. Estamos habituados a elas.

O pai deixou-se cair na cadeira e passados momentos observou:

- Fui idiota, Carolina. Por instantes pareceu-me que aquele vento era uma coisa viva, a tentar apanhar-nos.

- Às vezes dá essa impressão - concordou a mãe, no mesmo tom apaziguador.

- Não me importaria tanto se ao menos pudesse tocar rabeca - murmurou o pai, a olhar para as mãos rígidas e gretadas, à luz que saía das fendas do fogão.

Anteriormente, em todas as épocas difíceis o pai tocara para todos.

Agora ninguém podia tocar para ele. Laura tentou encorajar-se ao pensar no que o pai dissera: estavam todos ali, em segurança. Mas gostaria de poder fazer qualquer coisa pelo pai. De súbito, lembrou-se. «Estamos todos aqui!» Era o coro da Canção dos Homens Libertados.

- Podemos cantar! - exclamou, e começou a trautear a melodia.

O pai levantou a cabeça, muito depressa.

- Acertaste, Laura, mas está um bocadinho alto. Experimenta em si bemol.

Laura recomeçou. Primeiro o pai e depois as irmãs e a mãe fizeram coro:

 

         Quando Paulo e Silas estavam na cadeia,

         Não faças nenhum mal a ti mesmo,

         Um cantava e o outro rezava,

         Não faças nenhum mal a ti mesmo.

         Estamos todos aqui, estamos todos aqui,

         Não faças nenhum mal a ti mesmo,

         Estamos todos aqui, estamos todos aqui,

         Não faças nenhum mal a ti mesmo.

         Se a religião se comprasse com dinheiro,

         Não faças nenhum mal a ti mesmo,

         Os ricos viveriam e os pobres morreriam,

         Não faças nenhum mal a ti mesmo.

 

Laura levantara-se e Carrie também, e Graça estava acordada e cantava com toda a sua força:

 

         Estamos todos aqui, estamos todos aqui!

         Não faças nenhum mal a ti mesmo.

         Estamos todos aqui, estamos todos aqui!

         Não faças nenhum mal a ti mesmo!

 

- Foi excelente! - exclamou o pai, que entuou uma nota baixa e começou:

 

         Pelo rio Jim abaixo vou

         E encalho o meu barco no fundo.

         O toro flutuante ruidoso vem

         E arromba-me os dois lados do barco.

 

- Agora todos juntos, no coro! - E cantaram todos juntos:

 

         Não bale nunca a pena desistir,

         Não bale nunca a pena desistir,

         Não bale nunca a pena desistir, Sr. Brown!

         Não bale nunca a pena desistir!

 

Quando pararam de cantar, a tempestade parecia mais furiosa do que nunca. Dir-se-ia realmente uma grande fera a investir contra a casa, a sacudi-la, a rosnar, a rugir e a bramar contra as trémulas paredes que se lhe opunham.

Passado um momento, o pai cantou de novo, e os compassos imponentes adequavam-se à gratidão que todos sentiam:

 

         Grande é o Senhor

         E muito louvado seja

        Na cidade do nosso Deus,

         Na montanha da Sua santidade.

 

Então a mãe começou:

 

         Quando puder ver o meu caminho claro

         Para as mansões do Céu,

         Direi adeus a todos os temores

         E enxugarei os meus olhos chorosos.

 

A tempestade rugia no exterior, aos berros e a bater nas paredes e na janela, mas eles estavam em segurança, abrigados e aconchegados no calor do lume de feno, e continuaram a cantar.

Já passava da hora de se deitarem quando o calor esmoreceu no fogão e, como não podiam desperdiçar feno, deixaram a cozinha escura e fria e, pela escuridão mais fria ainda da escada, foram-se deitar.

Debaixo das mantas, Laura e Maria rezaram silenciosamente as suas orações. Depois Maria murmurou:

- Laura...

- Que é?

- Rezaste por eles?

- Rezei - respondeu Laura. - Achas que devíamos?

- Não é o mesmo que pedir qualquer coisa para nós. Não disse nada a respeito do trigo. Pedi apenas por favor que as suas vidas fossem salvas, se fosse essa a vontade de Deus.

- Acho que deve ser, Maria. Eles foram fazer tudo quanto era possível. E o pai sobreviveu três dias naquela nevasca do Natal, quando vivíamos em Plum Creek.

Durante todos os dias daquela nevasca não se voltou a falar de Cap Garland nem do mais novo dos irmãos Wilder. Se encontraram abrigo, poderiam sobreviver através da tempestade. Se não, nada poderia ser feito por eles. Não adiantaria falar.

O flagelar constante do vento contra a casa, o rugido e os uivos da tempestade, tornavam até difícil pensar, sequer. A única coisa possível era esperar que o temporal passasse. Durante todo o tempo em que moíam trigo, torciam feno, mantinham o lume aceso no fogão e estendiam para o calor do fogão as mãos gretadas e dormentes e os pés que as frieiras enchiam de comichão, e enquanto mastigavam e engoliam o grosseiro pão, durante todo esse tempo estavam à espera de que a tempestade passasse.

Mas não passou no terceiro dia nem na terceira noite. Na quarta manhã ainda rugia ferozmente.

- Não dá nenhum sinal de amainar - disse o pai, quando regressou do estábulo. - Esta é a pior de todas.

Passados momentos, quando estavam a comer o pão da manhã, a mãe encontrou energia para dizer:

- Espero que estejam todos bem na cidade.

Não havia nenhuma maneira de o saber. Laura pensou nas outras casas, logo ali do outro lado da rua, mas que nem podia ver. Lembrou-se, sem saber porquê, da Sr.a Boast.

Não a viam desde o Verão passado e ao Sr. Boast desde aquele dia distante em que lhes levara a última manteiga.

- É como se estivéssemos também numa reserva - disse em voz alta, e a mãe olhou-a, sem compreender o que ela queria dizer, mas não perguntou nada, só esperavam, todos, que os sons da nevasca parassem.

Nessa manhã, a mãe despejou cuidadosamente os últimos grãos de trigo no moinho de café.

Havia o suficiente para fazer um último pão pequeno. A mãe raspou a tigela com a colher e depois com o dedo, para passar para a forma até ao último bocadinho de massa.

- Foi o último, Charles - disse.

- Posso arranjar mais - tranquilizou-a o pai. - Almanzo Wilder estava a reservar algum trigo para semear. Posso ir buscá-lo mesmo com a nevasca, se for preciso.

Já tarde, quando o pão estava na mesa, as paredes deixaram de abanar. Os uivos agudos emudeceram e só um vento forte assobiava sob as telhas. O pai levantou-se muito depressa e disse:

- Creio que está a parar!

Vestiu o sobretudo e pôs o boné e o cachecol e disse à mãe que ia ao outro lado da rua, à loja do Sr. Fuller. Olhando através de buraquinhos que abriram na geada, Laura e Carrie viram a neve a voar, soprada por um vento forte e certo.

A mãe sentou-se na cadeira e suspirou, aliviada:

- Abençoado silêncio!

A neve assentava. Passados momentos, Carrie olhou para o céu e chamou Laura para o ver também. Olharam para a fria abóbada azul e para a luz quente do pôr do Sol, reflectida na neve esvoaçante. A nevasca terminara, realmente. E o céu estava limpo, a noroeste.

- Espero que Cap Garland e o Sr. Wilder mais novo estejam em segurança, em qualquer lado - disse Carrie.

Laura também esperava, mas sabia que dizê-lo não faria diferença nenhuma.

 

                   O ULTIMO QUILÓMETRO

Almanzo pensava que talvez tivessem atravessado o istmo do Pântano Grande. Não sabia ao certo onde estavam. Conseguia ver o Príncipe e o vulto a mover-se lentamente do trenó carregado. Em frente, a escuridão era uma neblina que se adensava sobre um mundo plano e branco. Brilhavam estrelas muito ao longe, para lá da orla desse mundo, e à sua frente a negra tempestade subia rapidamente pelo céu e, silenciosa, destruía as estrelas.

- Achas que atravessámos o Pântano Grande? - gritou a Cap. Esquecera-se de que não precisavam de gritar, uma vez que o vento parara. Cap respondeu-lhe:

- Não sei. Que te parece?

- Não nos atolámos.

- Ela aproxima-se depressa - disse Cap, a referir-se à negra tempestade que se avizinhava.

Mas a isso não havia nada a dizer. Almanzo falou de novo encorajadoramente ao Príncipe e prosseguiu. Batia os pés, enquanto andava, mas quase não sentia o choque. As suas pernas pareciam dois cepos de madeira, dos joelhos para baixo. Todos os músculos do seu corpo estavam tensos, a opor-se ao frio. Não era capaz de quebrar essa rigidez que lhe fazia doer o queixo e causava uma sensação dorida no meio do peito. Batia as mãos dormentes uma na outra.

Príncipe puxava com dificuldade. Embora a neve parecesse plana debaixo dos pés, subiam uma encosta. Não viram o buraco onde o Príncipe se atolara, de manhã, no Pântano Grande, mas deviam tê-lo atravessado.

No entanto, nada parecia familiar. A escuridão fundia-se com a ténue luz das estrelas reflectida pela neve e tornava o caminho estranho. Na escuridão, em frente, não havia uma estrela que os guiasse.

- Creio que o atravessámos - disse Almanzo, para trás.

Cap, cujo trenó o seguia, respondeu passados momentos:

- Parece que sim.

Mas o Príncipe continuava a puxar hesitantemente, a tremer não só do frio e do cansaço, mas também de medo que o seu piso cedesse.

- Sim, atravessámos! - gritou Almanzo, agora já certo. - Estamos na parte de cima!

- Onde está a cidade? - perguntou Cap.

- Devemos estar muito perto.

- É preciso conduzir mais depressa.

Almanzo sabia-o. Bateu no flanco do cavalo e gritou-lhe:

- Depressa, Príncipe, depressa!

Mas o cavalo apressou apenas um passo e depois voltou a arrastar-se. Estava extenuado e não queria avançar na direcção da tempestade, que subia cada vez mais depressa. Quase metade do céu estava oculto e o negrume agitava-se.

- Salta para o trenó e conduz, ou nunca chegaremos! - gritou Cap.

A ideia não agradava a Almanzo, mas saltou para o trenó, tirou as rédeas rígidas dos ombros e bateu no cavalo com as pontas atadas.

- Vamos depressa, Príncipe, depressa!

Príncipe surpreendeu-se e assustou-se, Almanzo nunca lhe batera. Fez força contra a canga do pescoço e puxou o trenó com um sacão. Depois, numa encosta a descer, trotou. Cap também estava a bater no seu cavalo. Mas continuavam sem saber ao certo onde a cidade ficava.

Almanzo foi avançando o melhor que podia. A cidade tinha de ficar algures, na densa escuridão que se estendia à sua frente.

- Vês alguma coisa? - perguntou.

- Nada. Acho que não escapamos - respondeu-lhe Cap.

- A cidade não pode estar muito longe.

O canto do seu olho captou um vislumbre de luz. Olhou nessa direcção, mas na escuridão da tempestade não viu nada. Depois voltou a ver - uma luminosidade que brilhou vivamente e se extinguiu de repente. Compreendeu o que era: luz que brilhara numa porta que se abrira e fechara. Próximo do local onde a vira, julgou ver o ténue brilho de uma janela coberta de geada. Gritou a Cap:

- Viste aquela luz? Vamos!

Vieram um bocadinho desviados para oeste. Agora, bem apontados a norte, Almanzo achou que sabia o caminho. Príncipe avançou também com mais vontade e o cavalo amarelo trotou-lhes atrás. Almanzo viu de novo a luminosidade brilhar do outro lado da rua. A mancha vaga da janela tornou-se mais firme. Era a janela da loja do Loftus.

Quando pararam defronte dela, os ventos soltaram-se com um turbilhão de neve.

- Desatrela e corre para casa! - disse Almanzo a Cap. - Eu tomo conta do trigo.

Cap desatrelou o cavalo e saltou-lhe para cima.

- Achas que consegues? - perguntou-lhe Almanzo, através da tempestade desencadeada.

- Se posso? Que remédio tenho eu! - respondeu-lhe Cap, e encaminhou a montada através dos terrenos descampados, na direcção do seu estábulo.

Almanzo entrou na loja quente. O Sr. Loftus levantou-se da cadeira que estava junto do fogão. Não se encontrava ali mais ninguém.

- Afinal vocês conseguiram, rapazes. Estávamos convencidos de que não conseguiam.

- O Cap e eu resolvemos que faríamos aquilo que tínhamos ido fazer.

- Encontraram o tipo que cultivou o trigo? - quis saber o Sr. Loftus.

- Encontrámos e trouxemos sessenta alqueires. Quer ajudar a trazê-lo para dentro?

Carregaram as sacas de trigo e empilharam-nas encostadas à parede. A tempestade rugia furiosamente. Quando a última saca estava empilhada, Almanzo entregou ao Sr. Loftus o recibo que o Sr. Anderson assinara e o resto do dinheiro.

- Deu-me oitenta dólares para comprar trigo e aqui está o que sobrou: cinco dólares certos.

- Um dólar e vinte e cinco cêntimos por alqueire. Foi o melhor que conseguiram? - perguntou o comerciante, a olhar para o recibo.

- Quando quiser, tiro-lho das mãos por esse preço - replicou Almanzo.

- Não volto atrás num negócio - apressou-se a afirmar o lojista. - Quanto devo pelo transporte?

- Nem um cêntimo - respondeu-lhe Almanzo, e saiu.

- Eh, não espera para aquecer? - gritou-lhe o Sr. Loftus.

- E deixava o meu cavalo aqui na tempestade, não? - perguntou Almanzo, e bateu com a porta.

Conduziu Príncipe pela rédea, junto ao freio, pela rua direita e ao longo da série de postes de amarração e esquinas de alpendres, defronte das lojas. Seguiram para o estábulo passando pela parede comprida da loja de rações. Almanzo desatrelou e deixou o Príncipe entrar no sossego do estábulo, onde Lady soltou um relincho de boas-vindas. Trancou a porta, por causa da tempestade, e depois desenluvou a mão direita e aqueceu-a na axila, até os dedos ficarem suficientemente flexíveis para lhe permitirem acender a lanterna.

Meteu o Príncipe na sua baia, deu-lhe água e comida e em seguida almoçafou-o e escovou-o bem. Feito isso, preparou para o animal cansado uma cama alta e fofa de feno limpo.

- Salvaste o trigo de semente, meu velho - disse ao Príncipe, ao mesmo tempo que lhe dava uma palmadinha.

Meteu o balde da água no braço e saiu para o temporal. À entrada da porta da sala do fundo encheu o balde de neve. Quando entrou, Royal vinha da loja de rações deserta, da frente.

- Oh, cá estás! Estive a tentar ver pela rua abaixo, à tua procura, mas não se consegue ver um palmo adiante do nariz, com esta nevasca. Escuta como uiva! Foi uma sorte chegarem a tempo!

- Trouxemos sessenta alqueires de trigo - informou-o Almanzo.

- Não me digas! E eu a pensar que se tratava de uma aventura inútil! - Royal pôs mais carvão no lume. - Quanto pagaste por ele?

- Um dólar e um quarto - respondeu Almanzo, a descalçar as botas.

Royal soltou um assobio.

- Foi o melhor que conseguiste?

- Foi - respondeu Almanzo secamente, enquanto ia descalçando as várias peúgas.

Só então Royal reparou no que ele estava a fazer e viu o balde da neve.

- Para que é essa neve?

- Para que há-de ser? - resmungou Almanzo. - Para desenregelar os pés.

Tinha os pés exangues e insensíveis. Royal ajudou-o a esfregá-los com neve, no canto mais frio da sala, até lhe começarem a doer de tal maneira que o próprio estômago se lhe revoltou. Apesar de cansado, nessa noite não conseguiu dormir com a dor febril dos pés, mas ao mesmo tempo sentiu-se satisfeito porque a dor significava que não gelaram perigosamente.

Durante os dias e as noites da nevasca os seus pés estiveram tão inchados e doridos que teve de pedir as botas do irmão emprestadas quando chegava a sua vez de tratar dos animais. Mas quando a tempestade terminou, ao fim do quarto dia, pôde calçar as próprias botas e descer a rua.

Sabia bem estar cá fora, no ar puro e frio, ver o Sol e ouvir o vento normal, depois de ouvir a tempestade durante tanto tempo. Mas mesmo assim a força do vento extenuava um homem e antes de percorrer um quarteirão Almanzo sentiu-se tão gelado que entrou, grato, na Loja de Ferragens Fuller.

A loja estava cheia. Encontravam-se lá quase todos os homens da cidade e falavam iradamente e numa agitação crescente.

- Que se passa? - perguntou Almanzo.

O Sr. Harthorn voltou-se para ele e inquiriu:

- Cobrou alguma coisa ao Loftus por transportar o trigo? Aqui o Cap Garland diz que não cobrou nada.

O sorriso de Cap iluminou-lhe o rosto.

- Viva, Wilder! Meteste a unha naquele sovina, não meteste? Eu fui suficientemente parvo para lhe dizer que fizemos a viagem para nos divertirmos. Agora estou arrependido de não lhe ter cobrado tudo quanto ele tinha.

- Mas que conversa é essa? - admirou-se Almanzo. - Eu não cobrei nada, nem um cêntimo. Quem disse que fizemos aquela viagem para sermos pagos?

Respondeu-lhe Gerald Fuller:

- O Loftus está a cobrar três dólares por cada alqueire de trigo. Começaram todos a falar ao mesmo tempo, mas o Sr. Ingalls,

alto e magro, levantou-se do caixote onde estivera sentado, junto do fogão. O seu rosto estava chupado e com os zigomas salientes, por cima da barba castanha, e os seus olhos azuis brilhavam muito.

- Não chegamos a lado nenhum com toda esta conversa - declarou. - Vamos todos tentar levar o Loftus a ver a razão.

- Isso é que é falar! - concordou outro homem. - Vamos, rapazes! Sirvamo-nos do trigo.

- Eu disse tentar levá-lo a ver a razão - protestou o Sr. Ingalls. - Estou a falar de razão e justiça.

- Talvez você esteja a falar disso - gritou alguém. - Eu estou a falar de qualquer coisa para comer e, por Deus Todo-Poderoso, não volto para junto dos meus filhos com as mãos a abanar! E os restantes?

- Não! Não! - concordaram alguns. Foi então que Cap falou:

- O Wilder e eu temos uma palavra a dizer. Fomos nós que trouxemos o trigo, e não carregámos com ele para arranjar problemas.

- Isso mesmo - concordou Gerald Fuller. - Nós não queremos aborrecimentos na cidade.

- Não vejo necessidade de perder a cabeça - declarou Almanzo.

Ia dizer mais alguma coisa, mas um dos homens interrompeu-o:

- Claro, tem bastante que comer! Tanto você como o Fuller. Eu não vou para casa sem...

- Que tem para comer em sua casa, Sr. Ingalls? - interveio Cap.

- Nada. Ontem moemos o último trigo que tínhamos e comemo-lo esta manhã.

- Aí têm! - exclamou Almanzo. - Deixem o Sr. Ingalls resolver o assunto.

- Está bem, eu falo - concordou o Sr. Ingalls. - Os restantes venham comigo e veremos o que o Loftus tem a dizer.

Foram todos atrás dele, em fila indiana, por cima dos montes de neve. Entraram na loja e Loftus, ao vê-los, passou para trás do balcão. Não havia trigo nenhum à vista. O merceeiro levara as sacas para a sala das traseiras.

O Sr. Ingalls disse-lhe que pensavam que estava a cobrar demasiado pelo trigo.

- Isso é comigo - respondeu Loftus. - O trigo é meu, não é? Paguei bom dinheiro por ele.

- Um dólar e um quarto por alqueire, segundo sabemos - disse o Sr. Ingalls.

- Isso é comigo - repetiu Loftus.

- Nós mostramos-lhe com quem é! - gritou o homem furioso.

- Se vocês tocam, sequer, no que é minha propriedade, atiro-lhes a lei às canelas! - ameaçou o merceeiro.

Alguns dos homens riram, sarcásticos, mas Loftus estava disposto a não ceder. Deu um murro no balcão e disse-lhes:

- O trigo é meu e tenho o direito de o vender ao preço que quiser.

- É verdade, Loftus, tem - concordou o Sr. Ingalls. - Estamos num país livre e todos os homens têm o direito de fazer o que entenderem com o que é seu. - Voltou-se para a turba e acrescentou: - Vocês sabem que isso é um facto. - De novo para Loftus:

- Mas não se esqueça, Loftus, de que cada um de nós é livre e independente. Este Inverno não durará sempre e talvez você deseje continuar a fazer negócio quando ele acabar.

- Está a ameaçar-me?

- Não precisamos de o ameaçar - respondeu-lhe o Sr. Ingalls.

- É um facto evidente. Se você tem direito de fazer o que lhe apetecer, nós temos o direito de fazermos o que nos apetecer. Funciona para os dois lados. Agora tem-nos na mó de baixo. Isso é consigo, como disse. Mas lembre-se de que o seu negócio depende da nossa boa vontade. Talvez não se aperceba disso agora, mas no próximo Verão é muito natural que lhe não escape.

- É assim mesmo, Loftus - corroborou Gerald Fuller. - Tem de tratar as pessoas com justiça, pois de contrário não irá longe no negócio, neste país.

O homem irado interveio:

- Não viemos aqui para dar à língua. Onde está o trigo?

- Não seja idiota, Loftus - aconselhou o Sr. Harthorn.

- O dinheiro não esteve mais de um dia fora da sua caixa - lembrou o Sr. Ingalls. - E os rapazes não lhe cobraram um cêntimo pelo transporte. Cobre um lucro justo e recuperará o seu dinheiro dentro de uma hora.

- A que chama um lucro justo? - perguntou o Sr. Loftus. - Compro o mais barato que posso e vendo o mais caro que posso: chama-se a isso bom negócio.

- Na minha opinião, não é - discordou Gerald Fuller. - Bom negócio é tratar as pessoas bem, com justiça.

- Não nos oporíamos ao seu preço se o Wilder e o Cap Garland lhe tivessem cobrado o justo preço por irem buscar aquele trigo - disse o Sr. Ingalls ao merceeiro Loftus.

- Porque não cobraram? - perguntou Loftus aos dois rapazes.

- Eu estava disposto a pagar qualquer preço razoável pelo transporte.

Cap Garland falou, mas desta vez não sorriu. A sua expressão era a que fizera o ferroviário recuar.

- Não nos ofereça o seu nojento dinheiro. O Wilder e eu não fizemos a viagem que fizemos para cobrar um lucro de gente que tem fome.

Almanzo também se zangou:

- Meta nessa cabeça, se puder, que não há dinheiro que chegue para pagar a viagem que fizemos. Não a fizemos para você, e você não no-la pode pagar.

O Sr. Loftus olhou de Cap para Almanzo e depois para os rostos dos outros homens. Todos eles o desprezavam. Abriu a boca e fechou-a. Sentiu-se vencido. Depois disse:

- Sabem o que vou fazer, rapazes? Vender-lhes o trigo exactamente pelo preço que me custou: um dólar e vinte e cinco cêntimos o alqueire.

- Não nos opomos a que tenha um lucro justo, Loftus - disse o Sr. Ingalls, mas Loftus abanou a cabeça.

- Não. Vendo-o pelo que me custou.

Foi uma decisão tão inesperada que por momentos ninguém soube ao certo como reagir. Depois o Sr. Ingalls sugeriu:

- Que lhes parece se nos entendermos todos e o racionarmos, na base da quantidade de que as nossas famílias necessitarão até à Primavera?

Assim fizeram. Parecia que havia trigo suficiente para manter todas as famílias durante oito a dez semanas. Alguns ainda tinham um resto de batatas e outros até tinham biscoitos. Um homem tinha melaço. Esses compraram menos trigo. Almanzo não comprou nenhum, Cap Garland comprou meio alqueire e o Sr. Ingalls pagou uma saca de dois alqueires.

Almanzo notou que ele não colocou a saca ao ombro com um só movimento, como era natural os homens fazerem.

- É uma carga que dá pouco jeito a manobrar - disse Almanzo, e ajudou-o a levantar a saca e a equilibrá-la ao ombro.

Ter-lha-ia levado a casa, mas um homem não gosta de admitir que não pode carregar cerca de sessenta quilos.

- Aposto um charuto em como te venço num jogo de damas - disse Almanzo a Cap, e subiram a rua para a drogaria. O Sr. Ingalls estava a entrar em casa quando eles passaram, no meio da neve que o vento fustigava.

Laura ouviu a porta da frente abrir-se e fechar-se. Estavam todas sentadas às escuras e, como num sonho, ouviram os passos do pai atravessar pesadamente a sala da frente e a porta da cozinha abrir-se,

O pai deixou escorregar qualquer coisa pesada para o chão, com um baque que fez estremecer as tábuas. Depois fechou a porta, por causa do frio cortante que entrara com ele.

- Os rapazes voltaram! - anunciou, a respirar com dificuldade. - Está aqui algum do trigo que trouxeram, Carolina!

 

                   NÃO PODE VENCER-NOS

O Inverno durava havia tanto tempo que parecia que nunca mais acabaria. E eles tinham a impressão de que nunca acordariam, realmente.

De manhã Laura saía da cama para o frio. Vestia-se no andar de baixo, junto do lume que o pai acendera antes de ir ao estábulo. Comiam o seu pão escuro e grosseiro. Depois, durante todo o dia, ela, a mãe e Maria moíam trigo e torciam feno o mais depressa que podiam. O lume não se podia apagar, estava muito frio. Comiam mais algum pão escuro e grosseiro e em seguida Laura metia-se na cama fria e tremia de frio até aquecer o suficiente para adormecer.

Na manhã seguinte, levantava-se da cama para o frio. Vestia-se junto do lume, na cozinha gelada. Comia o seu pão escuro e grosseiro. Por turnos, moía trigo e torcia feno. Mas nem sempre se sentia acordada. Sentia-se vencida pelo frio e pelas tempestades. Sabia que estava entorpecida e estúpida, mas não conseguia despertar.

Tinham-se acabado as lições. Não havia mais nada no mundo além do frio e escuridão, trabalho, pão escuro e grosseiro e ventania. A tempestade estava sempre presente, fora das paredes, umas vezes à espera, mas logo investindo, sacudindo a casa, rugindo, rosnando e gritando de raiva.

Fora da cama de manhã, para se vestir apressadamente junto do lume. Depois trabalho durante todo o dia para à noite se meter na cama gelada e adormecer assim que aquecia. O Inverno durara tanto tempo! Nunca acabaria.

O pai já deixara de cantar a sua canção das complicações, de manhã.

Nos dias bons, transportava feno. Às vezes, uma nevasca durava só dois dias. Podiam seguir-se três dias de frio, apenas, ou até quatro, antes de a nevasca voltar.

- Estamos a vencê-lo - dizia o pai. - Já não lhe resta muito mais tempo. Março está quase passado. Conseguimos durar mais tempo do que o Inverno.

- O trigo está a durar - dizia a mãe. - Sinto-me grata por isso. Chegou o fim de Março e começou Abril. A tempestade, porém,

continuava presente. Talvez agora esperasse um pouco mais, mas quando investia fazia-o ainda mais furiosamente. O frio cruel continuava, os escuros dias de tempestade, o trigo para moer e o feno para torcer. Laura parecia ter esquecido o Verão, não acreditava que ele voltasse. Corria o mês de Abril.

- O feno vai chegando, Charles? - perguntou a mãe.

- Sim, graças à Laura - respondeu o pai. - Se não me tivesses ajudado, Meia Canequinha, não colheria tanto e já nos faltaria.

Aqueles dias quentes do corte do feno estavam muito distantes, foram havia muito tempo. O contentamento de Laura pelas palavras do pai também parecia muito distante. Agora só a nevasca, o girar da manivela do moinho de café, o frio e o crepúsculo que levava outra vez à noite, só isso era real. Laura e o pai estendiam as mãos rígidas, inchadas e vermelhas sobre o fogão, a mãe cortava o pão grosseiro para o jantar e a nevasca rugia, furiosa.

- Não pode vencer-nos! - disse o pai.

- Não pode, Pá? - perguntou Laura, estupidamente.

- Não. Tem de parar, em qualquer altura, e nós não. Não nos vencerá. Nós não desistiremos.

Então Laura sentiu um calor dentro dela. Era muito pequeno, mas forte. Era firme como uma luzinha nas trevas, ardia muito baixo, mas nenhum vento poderia fazê-lo tremer, porque não desistiria.

Comeram o pão escuro e grosseiro e, às escuras e ao frio, subiram a escada, para dormirem. A tremer na cama fria, Laura e Maria rezaram silenciosamente e, pouco a pouco, aqueceram e adormeceram.

A certa altura, durante a noite, Laura ouviu o vento. Ainda soprava furiosamente, mas sem vozes, sem uivos nem gritos. E juntamente com o vento havia outro som, um som pequeno, incerto e líquido que ela não compreendeu.

Escutou com toda a atenção. Destapou uma orelha para ouvir melhor e o frio não lhe retalhou a face. A escuridão estava mais quente. Pôs a mão de fora e sentiu apenas uma frescura. O pequeno som que ouvia era o escorrer dos pingos de água. As telhas estavam a pingar. Então compreendeu. ! Sentou-se na cama e disse, em voz alta:

- Pá! Pá! O chinuque está a soprar!

- Estou a ouvir, Laura - respondeu o pai do outro quarto. - Chegou a Primavera. Volta a dormir, anda.

Soprava o chinuque. Chegara a Primavera. A nevasca cedera, fora empurrada para trás, para o norte. Consolada, Laura estendeu-se na cama. Pôs os dois braços em cima das mantas e não os sentiu muito frios. Ficou a escutar o sopro do vento e o pingar das telhas, sabendo que no outro quarto o pai estava igualmente acordado, a escutar, e também satisfeito. O chinuque, o vento da Primavera, estava a soprar. O Inverno terminara.

De manhã a neve quase desaparecera. A geada derretera-se nas janelas e fora de casa o ar estava suave e tépido.

O pai assobiava, quando voltou de tratar dos animais.

- Bem, pequenas - disse, alegremente -, vencemos finalmente o velho Inverno! A Primavera chegou e nenhum de nós se perdeu, morreu de fome ou gelou! Pelo menos não gelou muito! - E apalpou com cuidado o nariz. - Creio que está mais comprido - disse, preocupado, a Graça e, com olhos a brilhar, viu-se ao espelho. - Está mais comprido e, ainda por cima, encarnado.

- Deixa de te preocupar com o teu aspecto. Charles - disse-lhe a mãe. - A beleza só existe à flor da pele. Anda tomar o pequeno-almoço.

A mãe sorria e o pai fez-lhe uma festa debaixo do queixo, ao dirigir-se para a mesa. Graça correu para a sua cadeira e subiu para ela, a rir.

Maria afastou a cadeira do fogão e disse:

- Está quente de mais, tão perto do lume.

Como era maravilhoso que alguém achasse que estava calor de mais!

Carrie quase não se afastava da janela.

- Gosto de ver a água correr - explicou.

Laura não disse nada, de tão feliz. Custava-lhe a crer que o Inverno tivesse acabado e fosse Primavera. Quando o pai lhe perguntou porque estava tão calada, respondeu, muito séria:

- Disse tudo de noite.

- Lá isso disseste! Acordaste-nos a todos de um sono profundo para nos dizer que soprava vento! - brincou o pai, a arreliá-la. - Como se o vento não soprasse havia meses!

- Eu disse que soprava o chinuque - recordou-lhe Laura. - É muito diferente.

 

                   À ESPERA DO COMBOIO

- Temos de esperar pelo comboio - disse o pai. - Não nos podemos mudar para a reserva enquanto ele não chegar.

Apesar de ter pregado bem o papel alcatroado da cabana, e de o haver reforçado com sarrafos, os ventos das nevascas soltaram-no e feito em tiras, de modo que a neve entrara pelos lados e pelo telhado. E agora as chuvas da Primavera infiltravam-se pelas fendas. A cabana tinha de ser consertada antes de lá se poder viver, mas o pai não podia consertá-la enquanto o comboio não chegasse, pois não havia papel alcatroado na serração.

A neve desaparecera toda da pradaria e em seu lugar via-se o verde suave da erva nova. Todos os pântanos estavam cheios da água que para eles escorrera quando a neve alta se derretera. O Pântano Grande alastrara até dar a impressão de que fazia parte do lago da Prata, e o pai tinha de fazer um desvio de quilómetros para chegar à reserva pelo lado sul.

Um dia, o Sr. Boast chegou à cidade, a pé. ExpliCou que não pudera vir no carroção porque grande parte da estrada estava submersa. Viera pela via férrea, pelo troço comprido que atravessava o pântano.

A Sr.a Boast, informou-os, estava bem. Não viera com ele por causa da água que invadia tudo. Quando partira, não sabia se poderia chegar à cidade pela via férrea. Mas prometeu que a mulher viria com ele, em breve.

Uma tarde, Maria Power apareceu e, juntamente com Laura, levaram Maria num passeio à pradaria alta, a oeste da cidade. Havia tanto tempo que Laura não via Maria Power que se sentiram outra vez como estranhas que começavam a tomar conhecimento uma da outra.

Por toda a pradaria suavemente verde, os pântanos eram uma rede ininterrupta de água que reflectia o tépido céu azul.

Gansos e patos selvagens voavam muito alto e os seus gritos ouviam-se, abafados, cá em baixo. Nenhum deles parou no lago da Prata. Dirigiam-se, apressados - e já atrasados - para os seus territórios de nidação, no Norte.

Brandas chuvas primaveris caíam todo o dia do céu inofensivo e engrossavam e alargavam ainda mais os transbordantes pântanos. Depois vinham dias de sol e a seguir novamente de chuva. A loja de rações estava fechada à chave e deserta: os irmãos Wilder levaram o trigo de semente para as suas reservas, contornando o pântano que ficava a norte da cidade. O pai disse que estavam a semear o trigo nos seus grandes campos.

E o comboio continuava sem chegar. E, dia após dia, Laura, Maria e Carrie giravam, por turnos, a manivela do moinho de café, e de manhã e à noite comiam pão escuro e grosseiro. Já não havia muito trigo na saca. E o comboio não chegava.

Os ventos da nevasca arrastaram terra dos campos surribados, terra que se misturara tão compactamente com a neve, nos aterros, que os limpa-neves a não podiam remover. A neve gelada não se derretia por causa da terra com ela misturada e tinha de ser destruída palmo a palmo por homens armados de picaretas. O trabalho era lento, pois em muitos dos aterros grandes èra preciso remover seis metros de neve e terra para chegar aos carris de aço.

Abril ia passando lentamente. Na cidade não havia nada que comer além do pouco trigo que restava dos sessenta alqueires que os jovens Wilder e Cap trouxeram na última semana de Fevereiro. Cada dia a mãe fazia um pão mais pequeno. E o comboio continuava sem chegar.

- Não poderão transportar para lá alguma coisa, Charles? - perguntou a mãe.

- Já falámos disso, Carolina, mas não vemos como - respondeu o pai, cansado de trabalhar todo o dia com uma picareta.

Os homens da cidade andavam a desobstruir o aterro que seguia para oeste, pois o comboio de trabalho imobilizado tinha de seguir para Huron antes de um comboio de mercadorias poder circular pela via única.

- Não há maneira possível de levar um carroção e uma parelha para leste -- explicou o pai. - Todas as estradas estão submersas, os pântanos são lagos, em todas as direcções, e até na parte alta um carroção se atolaria na lama. Se chegarmos ao extremo dos extremos, um homem poderá ir a pé pelas chulipas da via férrea, mas são mais de cento e cinquenta quilómetros para ir a Brookings e voltar. Não transportaria grande coisa e teria de comer parte da carga durante a caminhada.

- Tenho pensado em verduras - disse a mãe.

- Mas não encontro no pátio nada que já seja suficientemente grande para a arrancar.

- Quê, poderíamos comer erva? - perguntou Carrie.

- Não, Nabucodonosor(1) - respondeu o pai, a rir. - Não terás de comer erva! As brigadas de trabalho de Tracy já desimpediram mais de metade do aterro grande. O comboio deve poder passar dentro de uma semana.

- Podemos fazer o trigo chegar até lá - disse a mãe. - Mas gostaria que não trabalhasses tanto, Charles.

As mãos do pai tremiam. Estava muito cansado, de trabalhar todo o dia com a pá e a picareta, mas disse que só precisava de uma noite de sono para ficar bom.

- O principal é desobstruir o aterro - afirmou.

No último dia de Abril o comboio de trabalho pôde partir para Huron. Ouvir de novo o apito do comboio e ver-lhe o fumo no céu pareceu acordar a cidade toda. A resfolegar, a soltar vapor e a tocar a sineta, a composição parou na estação e depois partiu, a apitar novamente com força. Tratou-se apenas de um comboio de passagem, que não trazia nada, mas no dia seguinte chegaria um comboio de mercadorias.

De manhã, Laura acordou a pensar: «O comboio está a chegar!» O sol brilhava vivamente e ela dormira mais do que era costume, mas a mãe não a acordara. Saltou da cama e vestiu-se depressa.

- Espera por mim, Laura! - pediu Maria. - Não tenhas tanta pressa. Não consigo encontrar as meias.

Laura procurou-lhas.

- Aqui as tens. Desculpa, fui eu que as afastei, quando saltei da cama. Agora despacha-te! Anda, Graça!

- Quando chega? - perguntou Carrie, ofegante.

- Em qualquer momento. Ninguém sabe quando - respondeu Laura e correu pela escada abaixo, a cantar:

 

         Se estiver acordada, chame-me cedo,

         Mãezinha querida, chame-me cedo.

 

O pai, que estava sentado à mesa, levantou a cabeça e riu-se. - Olá, Meia Canequinha! Vais ser a Rainha de Maio, não? E chegas atrasada para o pequeno-almoço!

- A Ma não me chamou - desculpou-se Laura.

 

*1. Alusão ao facto de Nabucodonosor II, rei da Caldeia, ter enlouquecido e vivido sete anos nos bosques, entre os animais, antes de recuperar a razão e o trono. (N. da T.)

 

- Não precisei de ajuda para cozinhar o reduzido pequeno-almoço: só um biscoito para cada um, e pequenino. Foi para que chegou o resto do trigo.

- Nem sequer um eu quero - respondeu Laura. - Repartam o meu por vocês. Não terei fome até o comboio chegar.

- Comerás a tua parte - disse-lhe o pai. - Depois esperaremos todos que o comboio traga mais.

Comeram os biscoitos alegremente. A mãe insistiu que o pai comesse o maior. Ele concordou, mas impôs como condição que a mãe comesse o outro a seguir. O seguinte foi, naturalmente, para Maria. Depois houve certa dúvida entre o de Laura e o de Carrie, que eram quase iguais, e o mais pequeno de todos foi para Graça.

- Julgava que os fizera todos do mesmo tamanho - protestou a mãe.

- Não há uma escocesa para estas coisas - brincou o pai. - Não só fizeste com que o trigo chegasse até à última refeição antes de o comboio chegar, como ainda fizeste os biscoitos consoante o tamanho de nós os seis.

- Foi de facto maravilhoso que chegasse assim, na conta certa. - admitiu a mãe.

- A maravilha és tu, Carolina - disse o pai, a sorrir, enquanto se levantava e punha o chapéu. - Sinto-me bem. Agora temos realmente o Inverno vencido! Com o resto das nevascas retirado dos aterros e o comboio a chegar.

Nessa manhã, a mãe deixou as portas abertas, para entrar o ar primaveril, humedecido pelos pântanos. A casa estava fresca e perfumada, o sol brilhava e havia movimento na cidade, com os homens a caminho da estação. O apito do comboio soou, claro e prolongado através da pradaria, e Laura e Carrie correram para a janela da cozinha. A mãe e Graça juntaram-se-lhes.

Viram o fumo da chaminé a subir, preto, contra o céu. Depois, a resfolegar, a locomotiva apareceu, a puxar a composição de vagões de mercadorias, direita à estação. No cais, um pequeno grupo de homens assistiu à chegada. Vapor branco subiu através do fumo e o apito soou, nítido, após cada baforada. Ao longo da composição, guarda-freios saltavam do tejadilho de vagão para vagão e travavam-nos.

O comboio parou. Estava realmente ali, chegara finalmente um comboio.

- Oxalá Harthorn e Wilmarth recebam todas as mercadorias que encomendaram no Outono passado - disse a mãe.

Passados alguns momentos, a locomotiva apitou e os guarda -freios correram pelos tejadilhos dos vagões a soltar os travões. A tocar a sineta, a locomotiva avançou, depois recuou e depois avançou de novo e seguiu para oeste, a arrastar atrás de si o fumo e o seu último e prolongado apito. Deixou ficar, no desvio, três vagões de carga.

A mãe respirou fundo.

- Vai ser tão bom ter o suficiente de tudo, para cozinhar de novo!

- Espero não voltar a ver outro bocado de pão escuro - disse Laura.

- Quando vem o Pá? - perguntou Graça. - Quero que o Pá venha! Quero que o Pá venha agora!

- Graça - ralhou a mãe, branda mas firmemente, e Maria tirou-lhe a irmãzinha do colo, enquanto a mãe acrescentava: - Vamos, filhas, temos de acabar de arejar as camas.

O pai voltou passada quase uma hora. Por fim, até a mãe perguntara em voz alta o que estaria a demorá-lo. Esperavam-no todas impacientemente.

Quando chegou, trazia nos braços um segundo embrulho e dois mais pequenos, que colocou em cima da mesa antes de falar:

- Esquecemos o comboio que esteve coberto de neve todo o Inverno - explicou. - Foi ele que passou. Sabem o que deixou em De Smet? - Respondeu à sua própria pergunta: - Um vagão de postes telegráficos, um vagão de alfaias agrícolas e um vagão em trânsito.

- Nenhuns géneros de mercearia? - perguntou a mãe, quase a chorar.

- Não, nada.

- Então que é isto? - A mãe tocou no embrulho maior.

- São batatas. O outro é farinha e o mais pequeno de todos é toucinho salgado. O Woodworth arrombou o vagão em trânsito e repartiu por todos os comestíveis que conseguiu encontrar.

- Charles! Ele não devia fazer isso! - protestou a mãe, assustada.

- Já não me importa o que ele devia ou não devia fazer! - gritou o pai. - A companhia dos caminhos-de-ferro que tenha alguns prejuízos, também! A nossa não é a única família da cidade que não tem nada de comer. Dissemos ao Woodworth que abrisse o vagão, pois de contrário abri-lo-íamos nós. Ele tentou argumentar que amanhã haveria outro comboio, mas não estivemos dispostos a esperar. Agora se cozeres umas batatas e fritares um bocado de toucinho, poderemos almoçar!

A mãe começou a desfazer os embrulhos.

- Põe feno no fogão, Carrie, para aquecer o forno. Aproveito e faço também uns biscoitos de farinha branca.

 

                   A BARRICA DE NATAL

No dia seguinte chegou o segundo comboio. Depois de o seu apito deixar de se ouvir, o pai e o Sr. Boast vieram pela rua abaixo a transportar uma barrica. Passaram com ela pela porta e colocaram-na no meio da sala da frente.

- Cá está a tal barrica do Natal! - disse o pai à mãe.

Foi buscar o martelo e começou a arrancar os pregos da tampa, enquanto os outros esperavam, à volta, para ver o que continha. O pai levantou, finalmente, a tampa. Depois tirou uma quantidade de papel pardo grosso, que cobria o que vinha por baixo.

A primeira camada era de roupas. Primeiro, o pai tirou um vestido de bonita flanela azul-escura. A saia era ampla e empregueada e o corpo, com barbas de baleia, todo abotoado à frente, com botõezinhos metálicos.

- É mais ou menos o teu tamanho, Carolina - disse o pai, sorridente. - Toma! - e inclinou-se de novo para a barrica.

Tirou uma fofa charpa azul-clara para Maria e alguma roupa de baixo de flanela quente. Tirou um par de botinas de couro preto que serviam perfeitamente a Laura. Tirou cinco pares de meias de lã brancas, feitas à máquina. Eram muito mais finas e mais bonitas do que as feitas à mão.

Depois tirou um quente casaco castanho, que estava um bocadinho grande a Carrie, mas que lhe deveria servir no Inverno seguinte, assim como um capuz encarnado e umas luvas a condizer.

Seguiu-se um xaile de seda!

- Oh, Maria! - exclamou Laura. - Que coisa tão linda! Um xaile feito de seda! É cor de cinza com finas riscas verdes, rosa e pretas e uma franja basta, com todas essas cores misturadas e a brilhar. Vê como a seda é macia e pesada - e pôs uma ponta do xaile na mão da irmã.

- Oh, é encantador! - murmurou Maria.

- Para quem é o xaile? - perguntou o pai, e responderam todas:

- Para a Ma!

Claro que um xaile tão bonito tinha de ser para a mãe. O pai colocou-lho no braço e nada poderia ser mais parecido com ela: macio e, ao mesmo tempo, firme, resistente e bonito, com todas aquelas lindas cores.

- Usá-lo-emos todas por turnos - decidiu a mãe. - E a Maria levá-lo-á quando for para o colégio.

- Que há para si. Pá? - perguntou Laura, inquieta.

Para o pai havia duas bonitas camisas brancas e um boné de pelúcia castanha.

- Mas ainda há mais - anunciou o pai, e tirou da barrica dois vestidinhos, um de flanela azul e outros aos quadrados verdes e cor-de-rosa: eram muito pequenos para Carrie e muito grandes para Graça, mas esta cresceria e acabariam por lhe servir.

Havia um abecedário impresso em pano e um pequeno e reluzente livrinho da Mãe Gansa de papel muito liso e com um desenho colorido na capa.

Havia uma caixa de papelão cheia de linhas de cores vivas e outra cheia de fios de seda para bordar o delgado cartão perfurado, cor de prata e cor de ouro. A mãe deu as duas caixas a Laura e disse-lhe:

- Deste as bonitas coisas que tinhas feito. Agora tens aqui material lindo para trabalhares.

Laura ficou tão contente que não foi capaz de dizer uma palavra. Os delicados fios de seda prendiam-se-lhe na aspereza dos dedos, cheios de cicatrizes de torcerem o feno, mas as bonitas cores pareciam cantar em conjunto como música e os seus dedos ficariam outra vez macios e ela bordaria nos bonitos cartões cor de ouro e prata.

- Que poderá ser isto? - perguntou o pai, ao tirar do fundo da barrica uma coisa volumosa e pesada, toda enrolada em papel pardo. - Com a breca, se não é o nosso peru de Natal, ainda solidamente congelado!

Levantou o grande peru, para todos o poderem ver.

- E gordo! Sete quilos, ou perco a aposta!

Quando deixou cair a grande quantidade de papel pardo, este fez um baque e espalharam-se pelo chão diversas uvas-do-monte.

- Oh, um embrulho de uvas-do-monte para acompanhar! - exclamou o pai.

Carrie soltou um gritinho de contentamento. Maria apertou as mãos uma na outra e exclamou: «Oh, que bom!» Mas a mãe perguntou:

- Chegaram os géneros para as mercearias, Charles?

- Chegaram. Açúcar e farinha, frutos secos e carne... Oh, tudo quanto é preciso!

- Nesse caso, Sr. Boast, traga a Sr.a Boast depois de amanhã - convidou a mãe. - Venha o mais cedo que puderem e festejaremos a Primavera com um almoço de Natal.

- Isso mesmo! - exclamou o pai, enquanto o Sr. Boast inclinava a cabeça para trás e soltava a sua grande gargalhada - a que todos fizeram coro, pois ninguém podia deixar de rir quando o Sr. Boast se ria.

- Viremos, pode ter a certeza de que viremos! - afirmou. - Almoço de Natal em Maio! Será formidável, um banquete depois de um Inverno de quase jejum. Vou a correr para casa, para dizer à Ellie.

 

                   NATAL EM MAIO

O pai comprou géneros de mercearia nessa tarde. Foi maravilhoso vê-lo chegar com braçados de embrulhos, maravilhoso ver uma saca inteira de farinha de trigo, açúcar, maçãs secas, biscoitos de soda e queijo. A lata do querosene estava cheia. Com que felicidade Laura limpou a chaminé de vidro do candeeiro, encheu o depósito e aparou a torcida! À hora do jantar a luz brilhou na toalha aos quadrados encarnados, através do vidro limpo, e iluminou as batatas quentes, os biscoitos brancos e o prato de carne deporco salgada frita.

Com bolos de fermento, a mãe preparou a massa para fazer pão leve, nessa noite, e pôs maçãs secas de molho, para tartes.

Na manhã seguinte, Laura não precisou que a chamassem. Levantou-se ao alvorecer e durante todo o dia ajudou a mãe a cozinhar as coisas boas para o almoço de Natal do dia seguinte.

De manhã cedo, a mãe juntou água e farinha à massa de fermento e deixou levedar de novo. Laura e Carrie tiraram as uvas-do-monte dos engaços e lavaram-nas. A mãe cozeu-as com açúcar, até se transformarem numa massa de geleia carmesim.

Laura e Carrie tiraram cuidadosamente passas de uva dos compridos pés e retiraram-lhes as grainhas. A mãe cozeu as maçãs secas, misturou-lhes as passas e fez tartes.

- Parece estranho ter tudo quanto é necessário para trabalhar - comentou a mãe. - Agora que não me falta cremor de tártaro nem bicarbonato de soda, vou fazer um bolo.

Durante todo o dia a cozinha cheirou a coisas boas e quando a noite chegou o armário continha grandes pães brancos de crosta tostadinha, um bolo coberto de açúcar, três tartes de crosta estaladiça e geleia de uvas-do-monte.

- Quem me dera podermos comer tudo agora - disse Maria. - Até parece que não sou capaz de esperar para amanhã.

- Eu espero primeiro pelo peru - disse Laura. - E pode ser recheado de salva, como tu gostas.

Pareceu generosa, mas Maria riu-se dela e replicou:

- Isso é porque não pode ser de cebolas, visto não as haver!

- Então, meninas, não sejam impacientes! - pediu-lhes a mãe. - Esta noite, ao jantar, comeremos um dos pães leves e um pouco de molho de uva-do-monte.

Assim, o banquete do Natal começou na noite anterior. Parecia uma pena perder, a dormir, parte daquele tempo feliz. No entanto, dormir era a maneira mais rápida de chegar ao dia seguinte. Laura teve a impressão de que acabara de fechar os olhos quando a mãe a chamou e o amanhã já era hoje.

Que azáfama! Tomaram o pequeno-almoço num instante e depois, enquanto Laura e Carrie levantaram a mesa e lavaram e limparam a louça, a mãe preparou o grande peru para assar e misturou o recheio de pão.

A manhã de Maio estava tépida e o vento da pradaria cheirava a Primavera. As portas estavam abertas e ambas as divisões de novo ao serviço. Poder entrar ou sair da grande sala da frente sempre que precisava, dava a Laura uma sensação de espaço e tranquilidade, como se fosse impossível voltar a sentir-se zangada.

A mãe já pusera as cadeiras de balanço defronte das janelas, para a não estorvarem na cozinha. Com o peru no forno, Maria ajudou Laura a levar a mesa para o meio da sala da frente. Maria levantou-lhe as abas e colocou-lhe em cima, com cuidado, a toalha branca que Laura fora buscar. Depois Laura foi buscar os pratos ao armário e Maria colocou-os à roda da mesa.

Carrie descascava batatas e Graça corria ao longo de ambas as divisões.

A mãe foi buscar a taça de vidro cheia de luminosa geleia de uvas-do-monte e colocou-a no meio da toalha branca. Pararam todas a admirar o efeito.

- Faz-nos falta um pouco de manteiga, para o pão branco - lamentou-se a mãe.

- Deixa lá isso, Carolina - respondeu-lhe o pai. - Já há papel alcatroado na serração e eu não perderei tempo a arranjar a cabana. Dentro de poucos dias mudar-nos-emos para a reserva.

O peru a assar enchia a casa de odores que faziam crescer água na boca. As batatas ferviam e a mãe estava a pôr o café a fazer quando o Sr. e a Sr.a Boast chegaram, a pé.

- Durante os últimos quilómetros guiei-me pelo cheiro desse peru! - exclamou o Sr. Boast.

- Pois eu pensei mais em ver as pessoas, Robert, do que em comer - disse-lhe a mulher, em tom de censura.

Estava magra e o rosado encantador das suas faces desaparecera, mas continuava a ser a mesma querida Sr.a Boast, com os mesmos risonhos olhos azuis de pestanas pretas e o mesmo cabelo escuro encaracolado debaixo do mesmo capuz castanho. Apertou calorosamente a mão à mãe, a Maria e a Laura e inclinou-se para abraçar Carrie e Graça, enquanto lhes falava.

- Venha para a sala da frente e tire os agasalhos, Sr.a Boast --convidou a mãe. - É bom voltar a vê-la ao fim de tanto tempo. Agora descanse na cadeira de balanço e converse com a Maria enquanto eu acabo o almoço.

- Deixe-me ajudá-la - pediu a visitante, mas a mãe respondeu-lhe que devia estar cansada, depois da longa caminhada, e que de resto estava tudo quase pronto.

- A Laura e eu não tardamos a pôr o almoço na mesa - disse a mãe, e voltou-se tão depressa para a cozinha que ia chocando com o pai.

- Acho melhor sairmos do caminho, Boast - disse o pai. - Venha cá, para lhe mostrar o Pioneer Press que recebi esta manhã.

- Vou gostar de ver outra vez um jornal - afirmou o Sr. Boast, entusiasmado, e a cozinha ficou, assim, para as cozinheiras.

- Vai buscar a travessa grande para pôr o peru - pediu a mãe, ao tirar o pesado tabuleiro do forno.

Laura virou-se para o armário e viu, na prateleira, um embrulho que não estivera lá antes.

- Que é isto, Ma?

- Não sei. Abre e vê.

Laura desfez o embrulho e encontrou um pratinho com uma bola de manteiga.

- Manteiga! É manteiga! - quase gritou. Ouviram a Sr.a Boast a rir e dizer:

- É apenas um pequeno presente de Natal!

O pai, Maria e Carrie soltaram exclamações de satisfação, e Graça gritou demorada e agudamente, quando Laura levou a manteiga para a mesa. Depois, apressada, Laura foi meter cuidadosamente a grande travessa debaixo do peru, enquanto a mãe o levantava do tabuleiro.

Enquanto a mãe fez o molho, Laura esmagou as batatas. Não havia leite, mas a mãe disse:

- Deixa um bocadinho da água da cozedura e depois de as esmagares bate-as com muita força, com a colher grande.

As batatas ficaram brancas e fofas, embora sem o sabor que leite e manteiga com fartura lhes dariam.

Quando todas as cadeiras estavam chegadas para a mesa bem fornecida, a mãe olhou para o pai e todas as cabeças se inclinaram.

- Senhor, agradecemos-Te toda a Tua generosidade - foi apenas o que o pai disse, mas pareceu dizer tudo.

Enquanto servia o prato da Sr.a Boast com peru e recheio, puré de batata e uma grande colherada de uvas-do-monte, o pai observou:

- A mesa parece diferente de há alguns dias atrás - e acrescentou, enquanto continuava a servir os pratos: - Foi um longo Inverno.

- E difícil - disse o Sr. Boast.

- Até admira como todos nos mantivemos bem e lhe sobrevivemos - acrescentou a Sr.a Boast.

Enquanto os Boasts contavam como trabalharam e lutaram durante aquele longo Inverno, sozinhos na cabana batida pelas nevascas da sua reserva, a mãe deitou o café e o chá do pai. Passou o pão, a manteiga e o molho e recordou ao pai que não se esquecesse de encher de novo os pratos.

Quando todos os pratos foram despejados pela segunda vez, a mãe voltou a encher as chávenas e Laura foi buscar as tartes e o bolo.

Ficaram muito tempo sentados à mesa, a falar do Inverno que passaram e do Verão que aí vinha. A mãe afirmou estar ansiosa por regressar à reserva. A dificuldade, agora, eram as estradas molhadas e enlameadas, mas o pai e o Sr. Boast acharam que não demorariam muito a secar. Os Boasts declararam-se satisfeitos por terem passado o Inverno na sua reserva, o que lhes poupava agora o trabalho de se mudarem para lá.

Por fim, levantaram-se todos da mesa. Laura foi buscar a cobertura debruada de encarnado da mesa e Carrie ajudou-a a estendê-la, para que não ficassem, a ver-se a comida e os pratos vazios. Depois foram juntar-se aos outros à janela ensoalhada.

O pai estendeu os braços por cima da cabeça, abriu e fechou as mãos e esticou os dedos bem abertos, que passou pelos cabelos até os deixar em pé.

- Creio que este tempo quente me tirou a rigidez dos dedos - disse. - Se me fores buscar a rabeca, Laura, verei o que posso fazer.

Laura foi buscar a caixa e deixou-se ficar perto, enquanto o pai tirava a rabeca do seu ninho. Ele experimentou as cordas e afinou-as, de ouvido atento. Depois deu resina no arco e passou-o através das cordas.

Soaram suavemente algumas notas límpidas. Laura tinha um nó na garganta que quase a sufocava.

O pai tocou um bocadinho e depois explicou:

- Esta é uma nova canção que aprendi o Outono passado, quando fui a Volga desobstruir a via. Você trauteia o tenor juntamente com a rabeca, Boast, enquanto eu canto a canção toda uma primeira vez. Ao fim de algumas repetições aprenderão todos a letra.

Reuniram-se todos à sua volta, enquanto ele tocava de novo os primeiros acordes. Depois a voz de tenor do Sr. Boast reuniu-se à voz da rabeca e à do pai, a cantar:

 

     Esta vida é uma charada difícil,

     Pois quantas pessoas vemos

     Com grandes caras de palmo

     Que deviam brilhar de alegria?

     Penso que neste mundo não faltam

     Coisas boas suficientes para todos.

     Contudo, não há um em vinte

     Que não julgue reduzido o seu quinhão.

     De que servem as lamentações

     Se querer é poder

     E amanhã o Sol pode brilhar,

     Ainda que hoje o dia esteja enevoado?

     Pensais que, sentados a suspirar,

     Obtereis jamais quanto quereis?

     Só os cobardes choram

   E dizem tolamente: «Não posso!»

     É teimando e lutando

     E subindo a custo a íngreme encosta

     Que alguma vez se vence,

     O que só se consegue havendo vontade.

 

Já estavam todos a trautear toda a melodia, e, quando o coro voltou, a voz de alto da Sr.a Boast, a de contralto da mãe e o suave soprano de Maria juntaram-se ao tenor do Sr. Boast e ao rico baixo do pai a cantar a letra. E Laura cantou também, soprano:

 

     De que servem as lamentações,

     Se querer é poder

     E amanhã o Sol pode brilhar

     Ainda que hoje o dia esteja enevoado?

 

Enquanto cantavam, o medo e o sofrimento do longo Inverno pareceram erguer-se como uma nuvem escura e serem levados, a flutuar, pela música. A Primavera chegara. O Sol brilhara, quente, o vento soprava com suavidade e a erva verde crescia.

 

                                                                                Laura Ingalls Wilder  

 

                      

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