Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O LOUCO RABEQUISTA
O louco rabequista
Não foi pela Estrada do norte
Nem pelos caminhos do sul
Que na aldeia em dia tal
Começou a ouvir-se a louca melodia.
Apareceu de repente no caminho
Toda a gente saiu para o ouvir
De repente foi e em vão foram
Esperanças de voltar a vê-lo.
Música estranha fazia ferver desejos
De liberdade em cada coração.
Não era ainda melodia exactamente
Mas não-melodia também não.
Algures lá ao longe
Algures mais fora um tanto
Forçados a viver a vida
Sentiam resposta ao próprio canto.
Resposta a essas saudades
Que em seus peitos guardavam
Perdido sentir pertença
Do que há muito buscavam.
A bem casada começou sentindo
Mal maridada afinal estar
E o feliz terno amante reparou
Que se cansara de ainda amar.
O moço e a donzela se alegraram
De tudo afinal ser só sonhado
E o coração triste dos sozinhos
Menos se sentiu algures abandonado.
Em cada alma abriu uma flor
Que ao tacto deixa um pó sem terra,
Parte que nos falta para sermos todo,
Hora primeira d’alma gémea.
Sombra vinda para abençoar
De inexpresso osculado abismo,
O desassossego luminoso
Melhor do que o sossego ainda.
Como veio, assim desapareceu
Acharam-no apenas meio-ser.
Depois, tranquilamente, misturou-se
P’ra memória e silêncio só parecer.
Novamente seu riso deixa o sono
E findou-lhes a esperança extasiada,
Pouco tempo foi depois preciso
P’ra esquecerem a hora passada.
Porém, quando da vida a tristeza
- Já que a vida não é desejada -
Lhes volta nas horas de sombra
Com a sensação de estar gelada.
De repente cada se lembra
- Cintilando como a lua novi-nada
onde arrefecem cinzas da vida de sonho –
Do louco rabequista a música encontrada.
Licantropia
Algures os sonhos são verdade.
Lá existe um lago solitário
Para mim e ti à luz da Lua;
Como nenhum p’ra nós dois só.
Lá se desfralda escura a branca vela
Ao sopro do insentido vago vento
Que levará nossa dormente vida
Para onde as águas se confundem.
Com as margens de negro arvoredo
Onde ignotos bosques satisfazem
O desejo do lago de ser mais
E assim se completa o sonho.
Lá nos esconderemos, nos dissolveremos
Tudo esvaziado no luar
A sentir que o de que somos feitos
É algo por vezes musical.
Sortilégio
Da orla enluarada
Estendo para ti as mãos vencidas,
Oh, cadentes outros rios
Que olhos possam pensar ver;
Oh, raios de espírito coroados!
Ah, velada espiritualidade!
Meu pensar, meus sonhos, a teus pés
Suas bandeiras abatem.
Oh, anjo tardo nascido
Para encontro do homem decaído!
Em que novo estado sensual
Podem achar doçura nossas vidas presas!
Que nova emoção hei-de eu sonhar
Que possa pensar que me pertenceres?
Que pureza de carnal desejo?
Oh, qual vinha sarmentosa
Constrange meu confiar mimado!
Oh, espírito de vinho em sonhos destilado!
Sonho
Eu fora algures secluso
No silêncio e no luar.
Tudo como se laguna fosse.
Cuidados não interrompidos
Excepto do vento os vagos delíquios.
Paisagem de meio-termo
Entre sonhada e terrena.
Dormia o vento em leve abano.
Sargaçosa de algas sempre a água
Em que mergulhavam nossas mãos.
Deixávamo-las correr
Pelas águas invisíveis.
Nossos olhos cheios de cintilação
Do meandro de um raio de luar
Num cenário de floresta.
Do nosso calmo ser
O espírito perdíamos,
Livres como fadas
Nada mais tendo para herdar
Do que o devir.
Lá as fadas e os elfos
Adamascavam seus acesos rastos.
Lá se ganha em algum tempo
Todos os enganos de ser próprios
Que nunca logramos ter.
Sinto calafrios, empalideço.
Qual a força do luar que assim me toma
Tremulando sob o rio
E tão me faz penar deliciado?
Que sortilégio lunar lançado
Abre toda a minha alma, toda?
Oh, fala-me! Desfaleço!
Desfaz-se-me o domínio do viver!
Oh, dor de como que viver!
Oh, indefinida mágoa!
Oh, pena-luar que me sugere
Ser inutilmente rei
Em encantado império mudo
Em lunar solo isolado!
Oh, sofrer de flauta que se cala
Quando a queríamos tocando!
Alhures
Criança, vamos de longada
Até Alhures, de longada.
Lá todo o dia é meigo
Alegres sempre os campos.
Lá, sobre quem vaguei
Livre e feliz, a lua
Sua luz teceu e sombras
De imortalidade.
Lá, ver coisas é ser jovem,
Contos são doces, antigos mas novos,
Lá cantam sonhos e realidade
Lábios que nos podem extasiar.
Lá o tempo é instante de alegria,
Vida, de o ser, sede saciada,
Amor igual, amor de um beijo,
De um beijo como o primeiro.
Não precisamos, criança, de navio,
Só nossa esperança, felizes ainda,
Nem de remos, mas de ilusões virgens.
Ah, vamos descobrir Alhures!
II
O charco resplandecente
(The shinning pool)
O charco resplandecente
Vamos: nada tens a perdoar.
Sonhar é melhor do que viver.
Mas verá o sol-nascente
Quem deixou tudo por fazer,
Se o pensar da missão de se pensar
Se lhe perde como o cair da máscara.
Ele só deverá errar por vales
Inda mais verdes do que estes
Brilhando por trás das vidraças dos contos infantis
Pensando o mundo a renovar-se.
Só para ele que sentado canta
Nos degraus esquecendo a estrada
Abre asas a ave das fadas
E feéricas alastram.
Não encontrará mão que lhe sustente
As fontes caladas do seu desejar.
Ninguém lhe apontará regato oculto
Em que infantil sede possa saciar.
Mas vales mais verdes do que Hoje.
Pensar mais querido do que Longes
Bater-lhe-ão à porta e acordarão
Sua frescura outras sedes para saciar.
Assim como quieta costureira
Sentada à janela ao pôr do Sol
Em jamais atingida aldeia
A nada de mal ele se entregará.
Mas, incorpórea como um desejo,
Sua alma como um arco-íris cruzará
De seu perder-se os prados verde-chuva
E a terra há-de florir falando.
O Poema
Dentro em mim dorme um poema
Capaz de exprimir minha alma toda.
Sinto-o vago como som ou vento
Embora já esculpido inteiro para sempre.
Nem estrofes, versos ou palavras.
Nem com sonhar ainda é.
Mera emoção dele, esfumando apenas
Bruma feliz em volta do pensar.
Dia e noite em meu mistério
Sonho-o, leio-o, de novo o soletro,
E sempre a fímbria das palavras me aborda
Como adejando sua vaga integridade.
Sei que nunca será escrito.
Nem sei, nãos ei sequer que é.
Mas a sonhá-lo sinto-me feliz,
E alegria, mesmo falsa, é alegria.
Olhando o Tejo
Ela apascenta seus rebanhos pelas colinas
E sua voz me torna no soprar do vento
Enquanto a sede de sua mágoa enche
Tudo que em mim se indefine.
No cavado de seu canto dormem lagos
Espirituais bordados por rochedos,
Lá sua nudez inbanhável
Nele se espelha num tardar de charco.
Mas, nisto tudo, de real, apenas
Há minha alma, a tarde, o cais, e
A sombra do meu sonhar de tudo isto,
Dor por nova dor em mim.
Motto
Se de insculpir no lenho meus poemas tivesse o poder
Qualquer criança havia de os entender,
Tão perto do sentido que as coisas em deus têm
Estão quer os meus poemas quer o que pensam as crianças.
Pois a criança sabe que lógica e significado
São nada apenas nada ocultando,
E a criança sabe bem divinamente
Que tudo são brinquedos e amenidades,
Que um dedal, uma pedra ou um novelo
São coisas que podemos sentir divinalmente
E se delas formos fazer homens
São homens realmente e não imagens.
Pudesse, assim, fazer meu verso
De meras ideias e melhorá-lo mal em
Visível desenho, ou escultura, ou então
Qualquer coisa que pudesse parecê-lo.
Seria então o poeta das crianças
E, embora pudesse nunca chagar a sabê-lo,
Com o sentido externo que faz mais triste a vida,
No rosto de inocentes mais alegres tornados
Deus me daria à alma ou devolveria
O perdido sentir do saber, da recompensa –
O senso das crianças ainda mais criança
Quando agindo meus poemas a seu alegre querer,
Elas, em seus brinquedos, pernas entrecruzadas,
Despreocupadas vagueiam sobre o visível mundo.
Perplexidade
Sonho, e estranhos poderes obscuros
Assistem meu dormir resplandecente;
Um som de próximas chuvadas
Para mim rasteja sibilando forte;
Ai! todas as minhas horas esquecidas
Se adensam junto a mim qual neblina.
Fantasmas de meus mortos eus
Tecem-me em volta uma urdidura falsa;
Pálidos elfos, meus sonhos por sonhar,
De minha carne agora fazem parte,
E tudo o que sou, meus eus alheios se arquiva
Em sonhos que alcançar não posso.
Tacteio coisas impalpáveis;
Banho-me em sol de dias idos;
Remotos em sol de asas perto,
Do espírito flanqueiam as linhas cegas,
E do outro lado da grande colina soa
Um sino intimando a orar.
Mas estou enjoado de sonhar,
Cansado de ser sempre igual
Em desertos espaços de parecer,
Forçado parceiro de um jogo
Com a vida, estrela ao longe a brilhar
Sobre inominadas mortas terras.
Feros sonhos de outra qualquer coisa,
Frenéticos pela fuga,
(Ó vaga que em mim ondula!)
Fuga da vida, onde ela há-de ficar –
Vida sempre em dia de hoje!
Qualquer outra, outro lugar!
Não uma vida! Não esta, a minha!
Ah! ser vento, asa, barca
Que para além me leve!
Onde? Se o soubesse
Lá não quereria ir.
III
A escolha errada
(The wrong choice)
Luz nocturna
Ama, eu sei agora
Que é vão amar.
Criança, nessa hora
Costumavas-me cantar
E afagar a testa
Até calma cor parecer.
Relembra essa canção
E fá-la regressar.
Quero sentir-me
Outra vez essa criança
Que tu adormecias
Tão baixo cantando
Tão baixo tão de manso
Que as coisas verdadeiras
Enganavam fazendo-me chorar
Por ver que me fugiam.
Ama, junto á minha cama
Canta outra vez esse cantar,
Que gosto de ter esperança
De novamente o sentir.
Meu coração sangrou
Até alegria dor parecer.
Canta docemente, canta
Sobre a minha afagada testa.
Oh, perdidos espaços
No sonho e no dormir!
Oh, contos de fadas não contados
Por ti, mas que então foram
Apenas lançados
Da profundidade
Das ondas do teu cantar,
Irrompendo encantados!
Canta!
Como se escutasses.
Canta como se eu
Mais mundo não tivesse
Do que inteira toda a noite
Ouvir teu cantar,
Enquanto meu hálito esquivo
Em meu próprio peito ondeia.
Porque vivi eu
Pr’além dessas horas
Quando teus cantos cantavas,
Talvez de rainhas
Em que meu sonho acreditou,
Talvez de flores
Cujo perdido aroma
Rompe os veladores de meus sentidos.
Porque perdi eu
O que nem tive
Mas era em tua voz,
Meu coração e minha noite?
Porque havia eu de escolher
Vida, amor e pensamento,
Escolha errada e
De falso direito?
Embala-me, ama,
Canta de embalar outra vez p’ra mim.
Canta até que eu encontre
Menos ó meu coração,
E a vida, carreta da vida,
A deixar os sonhos livres,
Contraindo-se indefinidos
No Desconhecido.
Já não és agora
A minha ama a cantar
A própria minha infância
De novo em mim feita.
Não, tu és a hora
Do sono que traz
A cena não-cena
E a dor não-dor.
Sombria e sagrada
Noite fraternal
Em que minha alma
Obcecada para além está
Da oca fronteira
De meu deliciar
E o inferior distribuir
De penas e ardor;
Em trevas imerso,
Para além do deleite
Afogado em paz,
A paz de ser nada,
Barca de sombras
Abandonada,
Abstracta emanação
Do ser e do pensar.
Embalo *
Meu coração está cheio de lento preguiçar
E dessa névoa que é meu pensamento
Sai uma velha canção inglesa de embalar.
Meu rei sento em meu colo
Dou-lhe o peito a mamar;
Seu amor me dá a vida
Senti-lo, repousaria.
Canta, meu menino canta,
Só tu és minha alegria!
A minha arte de cantar daria inteira
P’ra ser o remoto inglês menino
Para quem foi feita esta canção.
Quando acabares o teu repasto,
Repousa meu menino sobre mim;
P’ra que tua mãe e ama
Seja teu berço também.
Canta, meu menino canta,
Só tu és minha alegria!
Em volta de quem brancas mãozinhas agarram
O vestido de as mãe, deve ter acontecido
A vera felicidade também.
Receio que p’ra ti este encargo meu
Não dê tudo o que eu queria desse,
Pois só te serviria a ti
No melhor que eu devesse.
Canta, meu menino canta,
Só tu és minha alegria!
Oh, que tristeza cai em mim,
Sabendo a amargura que eu sinto
Quando o menino ouvia esta canção!
Mas como sou e como posso,
Eu devo e quero ser tua,
Pequena embora para teu íntimo ser
Condescendendo em ser meu
Canta, meu menino canta,
Só tu és minha alegria!
Dói-se meu coração por poder chorar.
Oh, pensar nesta canção que foi cantada
Vendo o menino dormindo a sorrir!
Meu rei sento em meu colo
Dou-lhe o peito a mamar;
Seu amor me dá a vida
Senti-lo, repousaria.
Canta, meu menino canta,
Só tu és minha alegria!
Menino eu fui também; fosse eu agora
Esse menino e ele só, ouvindo
Essa canção murmúrio sobre a sua testa.
Quando acabares o teu repasto,
Repousa meu menino sobre mim;
P’ra que tua mãe e ama
Seja teu berço também.
Canta, meu menino canta,
Só tu és minha alegria!
Oh, pudesse eu voltar ao feliz tempo
Que nunca foi meu
E que vivo apenas p’ra pensar!
Receio que p’ra ti este encargo meu
Não dê tudo o que eu queria desse,
Pois só te serviria a ti
No melhor que eu devesse.
Canta, meu menino canta,
Só tu és minha alegria!
Sim, continua cantando em minha alma, velha voz,
Tão só maternal pondo a dormir
O menino mansamente.
Mas como sou e como posso,
Eu devo e quero ser tua,
Pequena embora para teu íntimo ser
Condescendendo em ser meu
Canta, meu menino canta,
Só tu és minha alegria!
Canta e não deixes meu coração chorar
Porque uma criança um dia pôde ter
Esta canção que o embale e adormeça.
Mas como sou e como posso,
Eu devo e quero ser tua,
Pequena embora para teu íntimo ser
Condescendendo em ser meu.
Canta, meu menino canta,
Só tu és minha alegria!
De algum modo algures, ouvi esta canção,
Eu era parte da alegria que vivia
Ao longo de suas vãs linhas ociosas.
Mas como sou e como posso,
Eu devo e quero ser tua,
Pequena embora para teu íntimo ser
Condescendendo em ser meu.
Canta, meu menino canta,
Só tu és minha alegria!
Sim, de algum modo, algures fui esse
Menino, criança, e o meu coração feliz dormia.
Agora – oh, minha desconhecida triste sorte!
* A Canção de Embalar citada é o 134º poema do Golden Treasure de Polgrave, que por sua vez a recolheu de Private Music de Martin Peerson, um livro de canções de 1620.
A “Canção de Embalar” é aqui transcrita duas vezes e a última estância também se repete duas vezes.
Prece
Nossa Senhora do Inútil Pranto
De meu coração o melhor relicário a ti pertence.
Dos anos fartos estou doente,
Do amargo vinho embriagado
E de só ter medos e cuidados
De tudo saber menos findar.
Inútil é rezar-te.
Mas de dor meu coração está cheio.
Seria teu lanço d’olhos caridade
Mesmo que ser desdém parecesse.
Dá-me que possa ser
De novo, como teu filho, criança!
Todo em choro está meu sentir de mim
Em demasia sobre mim apiedado.
Ah, venha um berço para os meus medos
E a fímbria de teu manto para me firmar!
Ah! Que vivas e bem perto de nós
E seja tua mão a que nos toque!
Não sei como rezar.
Meu coração é um rasgado manto
Vê como agrisalham meus cabelos.
Ah! ensina meus lábios a evocar
Teu nome noite e dia
Como se tal nome todos fosse!
A fé de meus pais há-de erguer-se
Em meus lábios nessa dolente hora.
Rezo-te com os meus olhos
Rosários d’angústias. Oh, dota
Minha alma com um mínimo de doces mentiras
Do poder do teu sofredor filho!
Esqueci-me do sabor da fé
E peno em busca da oração.
Meu coração é jardim devastado.
Oh, tua mão no meu cabelo,
Mão de mãe, repousa,
E deixa-me morrer com ela sobre mim.
Instantâneos de Verão
I
Azul é o céu,
Alegre a verde erva.
Meus olhos tristes cortejam
A alheada cena.
Pudesse meu coração
Compartilhá-la
E sem subtilezas
Sentir voar a vida!
Não tenho lar
Nem horas sem dor.
Vinde doces brisas
Dentro a meu pensar!
Oh, grande rio
Tão quieto e verdadeiro
Ensina-me a correr
Como tu por entre a vida!
Não tenho sossego.
Minhas flores murcharam.
Que é desse buscar
Donde fugiu meu querer?
Mesmo o que desejo
Nem sequer me importa.
Rico é meu coração
E pobre o meu amor.
Oh, doirado dia
Vem dentro em mim,
Minh’alma radia
Com o brilhar do sol!
Seja apenas eu
Mera vidraça,
E nítido passarás,
Quente não-sofrer.
Desmaio, tremo de frio
Ouvindo a vida chegar.
Oh, rio que passas
Onde é meu lar?
Oh, felizes horas
Que os campos gastam,
Estivais frescas chuvadas!
Oh, meu desamparo!
Alegres horizontes!
Felizes colinas!
Que dor aprisiona
Meu querer lutador?
O que é que existe
Entre eu e mim?
Que aconteceria
Se isto fosse assim?
Vida minha não mais
Outra coisa hás-de ser
Que uma praia solitária
Com o mar a lhe bater.
Que fado que poder
De negro desespero
Faz de cada hora alegre
O sabor da que o não é?
Oh, para algum repouso
Dai-me um lar,
Um ninho, uma esperança
Para não desgarrar!
Algures na vida
Por certo que deve haver
Algo que não seja luta
Esperando por me ter.
Levai-me até lá,
Oh, dia feliz!
Coração que sirva
Para teu partir!
Acorda-me as esperanças,
‘Inda que falsas, pelo menos,
Meu espírito tacteia em volta
De paredes de cadeia.
Baixa voz das ribeiras,
Doce esposa do Verão –
Porque fiz de sonhos
Minha’ única vida?
II
Brilha o sol,
Passam aves.
A vereda borda
O relvado.
Vou por aí
Pelos pardos,
Longe de males
E desgraças.
Não há esperança
Agora e aqui,
Nada a tactear
Ou recear.
Nada: o céu
E a terra verde;
Uma vaga surpresa
Do haver nascer.
Isto e não mais,
Isto e minh’ alma
E por cima o céu
Este todo de nada.
Sou de novo eu
A criança que era,
Que não sofre dor
Mais do que o relvado.
Vivo essa vida
Livre de amanhã
E assim esqueço
Lutas e tristezas.
Eram as formas
Do medo e esperança?
Mostra a vinha cachos
Nas faldas do carro.
Esta hora real
Não perdurará,
Mas decerto perdura
Por isso que vivo.
Deixemos clareiras
E ao azul do céu
Em vagas sombras de alma
Meu coração transvaza.
Até que eu me torne
Coisa exterior,
Sem casa, sem lar,
Sopro apenas, asas,
Uma imponderável
Parte desta hora,
Fora da pressão
De ser algo mais.
Baixas vozes vindas
Saídas do dia,
Zumbidos, chilreios
De longe ou de perto.
Façam de mim parte
De aquilo que são,
Entornem-me o coração,
E lancem-no para longe.
Que minh’ alma seja
Poeira pelo ar
Na aura do vento
Na taça do mar!
Aí, diviso e perdido,
Feito não mim mesmo,
Não mais fixo
Sem sombra sequer.
Passará est’hora
Como tudo o que sei;
Mas enquanto era
Fresca tinha a testa.
Caíam-me as pálpebras
Em uma paz final,
Não aprisionado
Na doença do pensar.
Deixa-me pois descansar
Neste instante e acreditar
Nessa vida, a melhor,
A mais perto do sonhar.
Esta hora ardente é
Dessa forma assim vaga,
Pois não vejo senão
Com estes olhos turvados.
Só num escuro abandono
Viver escondido
Na orla onde começa
A inclinar meu pensamento.
E este pensar agora
É uma folha de erva
Que nem sequer se apercebe
De que as horas passam.
III
Pelo dia quente adiante
Doce brisa começa a soprar,
Perdoem à minha alma os sonhos
Ah! deixem-me rezar, pedir.
Que essa hora refrescante
Se una à minha memória
E anos depois tenha o poder
De outra vez viver em mim!
É muito pouco, bem sei,
Mas é felicidade,
E poucas são realmente as horas
Que podemos bendizer.
Há horas como esta, livres
De pertencer ao pensar,
Quando de nada temos de cuidar
Excepto da brisa que é nada.
Deixem-me então que essa hora
Respire em minha memória
Agora e que isso possa começar
De novo sempre que veja
Em peso e calor, meu coração crescer,
E meu pensar fechar-se tardo.
Oh, macia brisa areja-me o pensar!
Oh, acalmia, limpa a minha sorte!
Vazio
O dia no algo adoece
A cor que usa a sua palidez.
Um esfumar de contornos torna
A paisagem, e o horizonte traz
Qual bandeira desbotada, a sombra
Inútil de seu bordo morto.
Deixem-me o coração renunciar a tudo.
Mais rico ficarei em todo eu.
Cada alento, cada asa ao passar
De mim me tira. E o céu inteiro
Engole e minora na minha consciência
Minha real aflição.
Pois minha verdadeira pena não é ser
Tão triste o dia como triste eu sou.
É antes nem um instante poder abater
A dor que eu, apenas dor, tive de levar
Vendo-a, sentindo-a
Enquanto a vida, simples roda, ao lado passa.
Não: coisas mais vagas do que céus e planícies
Em sombras se acastelam sobre mim,
Minhas mágoas são mais vazias dores
Do que as que podem simbolizar os prados;
E meu vão peso da vida e mim mesmo
Só a si próprio se assemelha.
Monotonia
Cada brasa quente e sombreada
Humidade exterior em si inclui,
Deixa que lembremos, minha vida,
Até ao remorso nossos pensamentos.
Abatido o vento mais frio sopra
Contra a vidraça molhada.
Mais velhos sentimos nossos corações
Em busca de outra vez viver.
A noite fere. Que toda rubra brasa
Se atice em mais quentes rubores
Ai! Quando me lembro
Gostaria de poder esquecer.
Que incertas frias rajadas entram
Por minha alma qual porta!
Minh’alma é o centro vivo
De sonhos que já não há.
Mais e mais se esperte cada brasa!
Que o fogo mais se aproxime!
Que fácil é o lembrar
Quando memória diz arrepender.
Pica o húmido vento agora
À roda de meu solitário sentir.
Meus olhos não deixam o brasido,
Meus lábios gemem vago nome.
Inutilmente atiça cada brasa!
A alma inteira é penar,
Penar do que lembramos,
Penar pelo que esquecemos.
Oh, mais frio e agreste sopro
Do vento pela húmida luz crepuscular!
Sobre a campa do meu passado cintila
Uma rosa vermelha em plena floração.
Trevas rodeiam cada brasa,
Revolvo-as ainda não de todo consumidas.
Nossa vida quer lembrar,
Nosso desejo esquecer.
Meu mistério começa a tocar-me o ombro
Até me atemorizar.
A rosa vermelha é morta.
Tal como eu morta agora.
Pudesse eu esquecer, pálida brasa,
Sem morte ou remorso!
Ou fosse-me possível lembrar
Sem desejar o esquecer!
Irmã Cecília
Ai da irmã Cecília!
A quem ela rezará
Até os pés lhe adormeceram e feriram-se-lhe os joelhos,
De pálidos lábios apertados, recolhidos,
Olhos erguidos na alvorada em oração,
Semicerrados nas preces da tardinha?
Reza a Maria, Mãe e Rainha,
Que tem sido sempre
Quem do mal defende crianças e donzelas,
No sensível braço de lírio
E virginal auréola.
Pois da virgem se diz
Que sangrara
Nas sete dores que teve de seu magoado filho
E por tal sofreu por todos nós
Cujas almas por mãos celestiais
Da mesma madeixa de lã branca são fiadas.
Assim reza a Irmã Cecília
Para que todos possam ser
Purificados na eterna fonte
Da comunicação dos santos,
E lhes seja dado alcançar o Monte Radioso
Embora de pés dilacerados.
E, embora me ela não conheça nem reze
Por mim - oh! – possa ser sua prece
Pela dor humana
Incluir-me no que ela diz.
Assim caia em meu coração uma vaga calma
Porque ela reza.
IV
Quatro pesares
(Four sorrows)
Rios
Muitos rios correm
Para muitos mares.
O meu cuidar é este apenas:
Em qual de todos
Podia estar em paz meu coração?
Duas margens para cada rio.
Nenhuma onde me perder
Ouvindo o trémulo rumor
Das águas vendo-as passar
Embora ficar pareçam.
Talvez haja outro rio.
Mas longe, longe de Mim.
Lá posso encontrar
O irmão da minha eternidade.
Em que Deus isto será?
Bem longe
Longe, longe,
De aqui bem longe...
Onde não se corre em busca da alegria
Nem do medo se foge,
Longe, longe de aqui.
Os lábios dela não eram muito rubros
Nem o seu cabelo muito loiro.
Suas mãos brincavam com anéis
E ela não mas deixou de tomar,
Suas mãos com oito brincando.
Ela é algo que passou
Bem longe, longe de sofrer.
Alegria não pode tocá-la, nem esperança
Entrar jamais em seu domínio,
Nem o vão amor.
Talvez que um dia
Para além de luz e sombras,
Ela pense em mim e faça
De mim todo um deleite,
Longe, bem longe do que podemos ver.
Episódio
Seja o que for que sonhemos
Todo o sonho é verdadeiro.
Seja o que for que pareça
Deus fá-lo visível
E portanto é
Real como tudo isto.
Seja o que for que queremos
Algures é certo existe.
Agora, agora sempre e ricos
Somos aqui do além.
Dentro de nosso eu sentido
Auto-descobrimos Deus.
Por vezes julgo que a esperança
Pode tornar verdade tudo isto,
Mas paro, tacteio, vacilando,
E vida, e medo e dor
É tudo o que me fica.
Para quê tais penas.
Esta inquietação que se arrepia
Com a possível alegria,
Todo esse penar que enche
Nossa esperança até nos descoroçoar?
Porquê? Porquê tudo isto
Se tudo é incerto?
Oh, concedei-me uma aragem
Sobre pradarias,
E que essa brisa praza,
Nem que a entenda.
Toda a angústia é
Vago desejar de felicidade.
Nada
Anjos vieram a buscá-la.
A meu lado a encontraram
Onde suas asas a trouxeram,
Anjos a levaram.
Deixou a clara luz divina de seu lar
E junto a mim veio habitar.
Amava-me porque o amor
Apenas ama coisas imperfeitas.
Do alto vieram anjos
Para de mim a afastarem.
E para sempre de mim a afastaram levando-a
Enter suas asas luminosas.
Por certo era irmã dos anjos
E de Deus tão perto como eles.
Mas amava-me porque
Meu coração não tinha irmã.
Eles a levaram.
E é tudo e nada mais.
V
Jardim das febres
(Fever-garden)
Jardim das febres
I
De diabólica neve rubros viventes flocos
Venenosamente relacionam ao r pecaminoso
Com as doentias rubras flores desatomizadas
Sem raízes pela Noite e o Além absorvidas
Relação que em si é presa
Feita às palpitantes veias do ver
Como sobrevivente demasia
Não contígua ao ser
Embora auréola-filtro ou lai
Cantado à volta do vício entronizado
As papoilas da via da super-memória
Circulem como em teia de aranha três vezes ansiando
Em torno ao fálico íntimo plantado
A meio caminho entre sentir e entender
Em torno a vazia bruma falante tensa comprimida
Aos lábios cortados dá cônscio sangue
II
Assim deve a humilhada comunhão
Ao vício de contaminar coisas sagradas
E fazer eucaristias de angústias
Quando adensa o desejo com macias-agudas asas
Pois sua rubra boca até à púrpura enegrece
Dá espaço aos perdidos ritos
E interrompe a pista do nosso coração batente
Em direcção a demoníacos infinitos
Até que o momento do espasmo arremeta e se lance
Qual manto sobre o consciente
Rasgando o véu do destruído templo
E as línguas das flores do Espaço à boca voltem.
Janela quebrada
Meu coração é olhar que silencia.
Para além das colinas há um lar.
Meu coração é olhar que silencia.
Meu lar é lá, para além das colinas.
Suporto o coração como velha praga.
Não há razão para lamentos.
Suporto o coração como velha praga.
Para quê lamentos ou razões?
Qual fantasma meu coração em mim habita.
Para além das colinas jaz morta a minha esperança.
Qual fantasma meu coração em mim habita.
Para além da minha esperança jazem mortas as colinas.
Qual sizânia o coração me arrancaram.
Não era verdade que eu tivesse de viver.
Qual sizânia o coração me arrancaram.
Não pude pensá-lo verdadeiramente vida.
Agora o meu coração tem grandes nódoas
Como as de sangue num sobrado.
Agora o meu coração tem grandes nódoas
E jaz no chão meu coração.
A sala agora para sempre se fechou.
Meu coração agora é sepultado vivo.
Meu coração agora para sempre se fechou.
A sala inteira é sepultada viva.
Ísis
No frio átrio de colunas
Branco intróito a seus modos vários
Começa a bela muda fila
Das estátuas de suas pulcritudes.
Doze são as de que a mente associa
Em único sentido suas vistas vidas separadas;
A décima terceira que a todas compreende,
Sua alma e sua confluência significa.
Como representam os cinco sentidos,
Sete são os seus mistérios do pensar.
A décima terceira parece como que vivente
A par de sua vida sem tal conhecer.
Estagna o estio fora de suas sombras,
As brisas se arrastam pelos seus vestíbulos
E de sua perda entre janelas as clareiras
São algo de que se lembra a alma.
No que seu íntimo vê
Ela ergueu sua casa com celestes tipos.
O sol risca os renques de longos pilares
No frio duro chão de o seu ser.
Mas ela está longínqua e em desamparo,
Suas estátuas esperam sua Nova Hora,
E das sombras de o seu ouvir
Que o sussurro dos zangãos floresça.
Isto não foi acaso em modo ou tempo.
Foi tudo frio como frios os sonhos.
Quando brisas em nossas mágoas se insinuam
E nos depõem nas margens de um lago.
E novo maior lago surge
Na imaginação nossa renovada,
E todo o nosso corporal sentir despreza
Nossa inata falta de barbatana ou asa.
Imóvel parei ante seu pórtico.
Lá as sombras eram nítidas e ligeiras.
Mansamente, como um beijo, esperei
E o Ter, qual andorinha, passou.
Ennui
Sob um céu baixo e ameaçador
Carrancudo de ventos solitários a gemerem
Pálido doente à luz que vem do alto
Até fazer a paisagem suspirar para sempre,
Sempiterno suspirar,
Negro calmo rio enfeitiçado
Que de si próprio afasta uma cidade
Corre e em íntimo pavor se arrepia
Como escura sorte e próxima sempre.
Mais perto sempre.
Sim, por essa paisagem do sonho fugida
Para hórrida verdade, há-de fugir
Essa torrente ensimesmada em si esvaziada
Que traz, da emoção dos sonhos, um sonho
Ao sonho da emoção,
E corre de terras onde mover não há
Para um possível distante oceano;
E eles cujos olhos inertes se angustiam
Nele se banham e toma o sonho da emoção
Pela emoção do sonho.
L’inconnue
Que a tua mão o meu cabelo
Alise. Olha-me
Em meus olhos dentro.
Lá um regato corre
Preciso, o calor cortando
De meus calados gritos.
Que a tua mão descanse
Sobre a minha testa.
Que teus olhos sorriam
No desassossego
Agora de meus olhos
Teus por algum tempo.
Ah! Não esqueças
Que esse tocar-me
Seja por mim sentido
Leve como um pensamento
E que tudo isso seja
O que esperança pode ser.
Que tua mão rocegue
Um instante apenas
Meus cabelos.
Julgo dormir mas
Suportar não posso
Sentir-me a sorrir.
Tudo me falhou,
Mortas são as esperanças todas,
Breves, alegrias todas.
Ah! Que tua mão
Abatida de
Triste se sentir
Me alivie!
Não importa se
Ninguém o entender.
Sim, deixa ficar
Por sobre a minha testa tua mão.
O que vale a vida agora
É tão pouco que dor parece frágil
E pântano o pensar.
Tira-me da testa os cabelos
Da dor que ela tem.
Lá onde corre a pista
Da leveza por
Meu denso pensar.
Que quer isto dizer?
Isto são palavras apostas
A preguiçosa melodia.
O que lamento
Jamais existiu.
Para não turbar o meu sossego
Vem depressa, vera paz!
Horizonte (2)
I
Inauditos abismos no profundo mar
De fundas gélidas cavernas
(As presas da batalha não serão para ti)
para sempre dormem.
Nem visão do alto ou monte refulgente
Pagam tua dor.
O secreto anjo nunca teve em conta
Teu perdido ganho.
Na boca da esfinge a história morreu,
A relva no atalho cresceu.
Nossa mágoa seguirá onde a levaste
Através do desconhecido.
Esperas escondido ou em paz fias
Onde silêncio proíbe?
Dá-nos aos menos a busca inobtida
E os floridos prados.
II
Já o mar é simples linha branca
Orlando o meu desejo,
E o vento chega ensombrado e fino
Com seu feérico toque
Alcançando meu vulgar desânimo e dor,
Meu maravilhar e minha noite,
Subtil pressentir da chuva que há-de vir
E de meu deliciar perdido.
A razão perdida de haver amor
Assim sossega,
Visão secreta, campa refulgente
E árvores finais.
Navio que para o mar fazes as velas
Navio que para o mar fazes as velas
Se não podes contido me levar
Leva ao menos com a tua esperança
De outros portos o meu desalento
E o que em mim é no escuro tactear.
Navio que logo velejas
Deixa-me sonhar que tu não podes
Chegar onde alfim eu poderei
Não mais viver em penas
Ou em mágoas descansar.
Navio que navegas para a Morte
Vai longe, longe, vai
Ao correr do sopro do vento
Tendo a escutar-te
A estrela da Sorte.
Navio que não estás em parte alguma
Excepto no que é o meu sonhar
E por tal és belo
Veleja ou não... Parece
Que veleja. É tudo. Onde?
Navio meu sonhado que te esfumas
Na distância do que sonho, vai,
Há mais felizes clareiras
Para além das quais só sei
Que é hoje e penar.
Mãe das coisas impossíveis
Mãe das coisas impossíveis,
Irmã do que nunca há-de ser,
Tu de cujos lábios cerrados jamais sairão
As palavras cuja falta é meu abatimento
Senta-te a meu lado enquanto ignoro.
Sorri a par d minha ignorância de ti
E minha perdida solidão restaura.
Ah, a vida é triste como indesejadas coisas,
Amor o dia que nunca há-de chegar
Aos cegos como a minha alma cheios
Do presságio de tambores vindouros
Quando a cidade cair que me obceca
A íntima visão cuja noite sussurra
Em nós enquanto a morte sobressalta o canto.
Ah, interpela-me, lê-me a minha alma!
Não me dês verdade, estrada ou visão,
Mas liberta-me deste abatimento
De consciência e invisível acicate
Que sempre busca o que aparência é.
Iluminado pelo perto-ser deste meu fardo!
Ah, deixa-me tomar-te a mão, sonhar!
Quando repousaremos?
Quando repousaremos?
As infindáveis vagas
Essas nada buscam.
As árvores todas-paz
Sua vida sem vida
A tristeza as poupa.
Quanto partiremos?
Para onde? Nada
Saber procuramos.
Aqui é tristeza.
Pudéssemos algo aqui
De obscuro, saudar.
Que pode em nós findar
Deixando-nos em paz?
Vida nos escraviza,
Como dor nossa alegria,
Nosso ganhar que a perder iguala,
Nossa entravada libertação.
Não nos pode amor valer
Nem felicidade viver.
A breve carícia da alegria
Como brisa é fugidia
Num instante decaída
Sonhamos doloridos.
De nós bem fora
Outra terra mora
Menos luminosa
Onde repousar podemos
Deixando de procurar
Sem desejo de aportar.
Pronta está a barca
De nosso repousar.
Vamos embarcar.
É sozinho o mar?
Sozinhos nós somos.
E dor apenas dor mostra.
Nada recordar.
Como luz se apagar
Não subitamente.
Imergir qual sonho
No curso da torrente
De sua própria noite.
Acorda com o Sol
Acorda com o Sol, com a manhã,
Acorda ao chegar o dia,
Sê com o orvalho e o rubor recém-nascido
Mas, ao contrário deles, permanece!
Névoas caem do que és:
São o que nós vemos
Chegar e entrar nos nossos corações,
E deixa que a vida seja.
A manhã pertence ao mundo vazio
Onde os homens só entram depois.
Vem e deixa que a vida de ti se desenrole
Lentamente como o medo.
E em ti o ser terrível apenas tu
Sem corpo nem alma
Vazará teu todo bálsamo sobre a minha testa entristecida
E minha esperança perfará!
O Mestre disse
O Mestre disse: Não receies
O que os outros dizem por necessidade.
Sob as felizes árvores sentados
Falam de nada e de argúcias.
Sob as silentes árvores, de pé,
Falam de ilusões e terras de ninguém.
Sob taciturnas árvores jazem
Maravilhando-se de céus e terra.
Esta é a matéria da canção
Que ninguém pôde cantar
Nem bem nem tão extensa.
Esta a substância do conto
Que ninguém pôde contar sem falha.
Este foi o tema do último verso feito
Para que não piore a terra.
Assim o irmão rouxinol
Esqueceu a sua história e a té a música.
Assim subiu a cotovia e encontrou somente
Ar e falso domínio em toda a parte.
Assim a cadente águia a presa largando
Seu ficou apenas o dia vazio.
Assim o segredo disto tudo
Qual é ou será ninguém agora o pode imaginar
Talvez pr’além do que o pensar define.
Como vinho alguma sorte algum dia
Possa de ontem fazer sombra e dormir.
Mas se isto faz sentido ou não,
Fala ou não, foi um pensar cuidado:
Desenrolar tela tão belamente exposta
E todos os críticos se contradizendo,
Foi razão e lar,
O resto justifica o divagar.
Fernando Pessoa
O melhor da literatura para todos os gostos e idades