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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O LOUCO RABEQUISTA / Fernando Pessoa
O LOUCO RABEQUISTA / Fernando Pessoa

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O LOUCO RABEQUISTA

 

O louco rabequista

 

Não foi pela Estrada do norte

Nem pelos caminhos do sul

Que na aldeia em dia tal

Começou a ouvir-se a louca melodia.

 

Apareceu de repente no caminho

Toda a gente saiu para o ouvir

De repente foi e em vão foram

Esperanças de voltar a vê-lo.

 

Música estranha fazia ferver desejos

De liberdade em cada coração.

Não era ainda melodia exactamente

Mas não-melodia também não.

 

Algures lá ao longe

Algures mais fora um tanto

Forçados a viver a vida

Sentiam resposta ao próprio canto.

 

Resposta a essas saudades

Que em seus peitos guardavam

Perdido sentir pertença

Do que há muito buscavam.

 

A bem casada começou sentindo

Mal maridada afinal estar

E o feliz terno amante reparou

Que se cansara de ainda amar.

 

O moço e a donzela se alegraram

De tudo afinal ser só sonhado

E o coração triste dos sozinhos

Menos se sentiu algures abandonado.

 

Em cada alma abriu uma flor

Que ao tacto deixa um pó sem terra,

Parte que nos falta para sermos todo,

Hora primeira d’alma gémea.

 

Sombra vinda para abençoar

De inexpresso osculado abismo,

O desassossego luminoso

Melhor do que o sossego ainda.

 

Como veio, assim desapareceu

Acharam-no apenas meio-ser.

Depois, tranquilamente, misturou-se

P’ra memória e silêncio só parecer.

 

Novamente seu riso deixa o sono

E findou-lhes a esperança extasiada,

Pouco tempo foi depois preciso

P’ra esquecerem a hora passada.

 

Porém, quando da vida a tristeza

- Já que a vida não é desejada -

Lhes volta nas horas de sombra

Com a sensação de estar gelada.

 

De repente cada se lembra

- Cintilando como a lua novi-nada

onde arrefecem cinzas da vida de sonho –

Do louco rabequista a música encontrada.

 

Licantropia

 

Algures os sonhos são verdade.

Lá existe um lago solitário

Para mim e ti à luz da Lua;

Como nenhum p’ra nós dois só.

 

Lá se desfralda escura a branca vela

Ao sopro do insentido vago vento

Que levará nossa dormente vida

Para onde as águas se confundem.

 

Com as margens de negro arvoredo

Onde ignotos bosques satisfazem

O desejo do lago de ser mais

E assim se completa o sonho.

 

Lá nos esconderemos, nos dissolveremos

Tudo esvaziado no luar

A sentir que o de que somos feitos

É algo por vezes musical.

 

Sortilégio

 

Da orla enluarada

Estendo para ti as mãos vencidas,

Oh, cadentes outros rios

Que olhos possam pensar ver;

Oh, raios de espírito coroados!

Ah, velada espiritualidade!

 

Meu pensar, meus sonhos, a teus pés

Suas bandeiras abatem.

Oh, anjo tardo nascido

Para encontro do homem decaído!

Em que novo estado sensual

Podem achar doçura nossas vidas presas!

 

Que nova emoção hei-de eu sonhar

Que possa pensar que me pertenceres?

Que pureza de carnal desejo?

Oh, qual vinha sarmentosa

Constrange meu confiar mimado!

Oh, espírito de vinho em sonhos destilado!

 

Sonho

 

Eu fora algures secluso

No silêncio e no luar.

Tudo como se laguna fosse.

Cuidados não interrompidos

Excepto do vento os vagos delíquios.

 

Paisagem de meio-termo

Entre sonhada e terrena.

Dormia o vento em leve abano.

Sargaçosa de algas sempre a água

Em que mergulhavam nossas mãos.

 

Deixávamo-las correr

Pelas águas invisíveis.

Nossos olhos cheios de cintilação

Do meandro de um raio de luar

Num cenário de floresta.

 

Do nosso calmo ser

O espírito perdíamos,

Livres como fadas

Nada mais tendo para herdar

Do que o devir.

 

Lá as fadas e os elfos

Adamascavam seus acesos rastos.

Lá se ganha em algum tempo

Todos os enganos de ser próprios

Que nunca logramos ter.

 

Sinto calafrios, empalideço.

Qual a força do luar que assim me toma

Tremulando sob o rio

E tão me faz penar deliciado?

 

Que sortilégio lunar lançado

Abre toda a minha alma, toda?

Oh, fala-me! Desfaleço!

Desfaz-se-me o domínio do viver!

 

Oh, dor de como que viver!

Oh, indefinida mágoa!

Oh, pena-luar que me sugere

Ser inutilmente rei

 

Em encantado império mudo

Em lunar solo isolado!

Oh, sofrer de flauta que se cala

Quando a queríamos tocando!

 

Alhures

 

Criança, vamos de longada

Até Alhures, de longada.

Lá todo o dia é meigo

Alegres sempre os campos.

 

Lá, sobre quem vaguei

Livre e feliz, a lua

Sua luz teceu e sombras

De imortalidade.

 

Lá, ver coisas é ser jovem,

Contos são doces, antigos mas novos,

Lá cantam sonhos e realidade

Lábios que nos podem extasiar.

 

Lá o tempo é instante de alegria,

Vida, de o ser, sede saciada,

Amor igual, amor de um beijo,

De um beijo como o primeiro.

 

Não precisamos, criança, de navio,

Só nossa esperança, felizes ainda,

Nem de remos, mas de ilusões virgens.

Ah, vamos descobrir Alhures!

 

II

O charco resplandecente

(The shinning pool)

 

O charco resplandecente

 

Vamos: nada tens a perdoar.

Sonhar é melhor do que viver.

 

Mas verá o sol-nascente

Quem deixou tudo por fazer,

Se o pensar da missão de se pensar

Se lhe perde como o cair da máscara.

 

Ele só deverá errar por vales

Inda mais verdes do que estes

Brilhando por trás das vidraças dos contos infantis

Pensando o mundo a renovar-se.

 

Só para ele que sentado canta

Nos degraus esquecendo a estrada

Abre asas a ave das fadas

E feéricas alastram.

 

Não encontrará mão que lhe sustente

As fontes caladas do seu desejar.

Ninguém lhe apontará regato oculto

Em que infantil sede possa saciar.

 

Mas vales mais verdes do que Hoje.

Pensar mais querido do que Longes

Bater-lhe-ão à porta e acordarão

Sua frescura outras sedes para saciar.

 

Assim como quieta costureira

Sentada à janela ao pôr do Sol

Em jamais atingida aldeia

A nada de mal ele se entregará.

 

Mas, incorpórea como um desejo,

Sua alma como um arco-íris cruzará

De seu perder-se os prados verde-chuva

E a terra há-de florir falando.

 

O Poema

 

Dentro em mim dorme um poema

Capaz de exprimir minha alma toda.

Sinto-o vago como som ou vento

Embora já esculpido inteiro para sempre.

 

Nem estrofes, versos ou palavras.

Nem com sonhar ainda é.

Mera emoção dele, esfumando apenas

Bruma feliz em volta do pensar.

 

Dia e noite em meu mistério

Sonho-o, leio-o, de novo o soletro,

E sempre a fímbria das palavras me aborda

Como adejando sua vaga integridade.

 

Sei que nunca será escrito.

Nem sei, nãos ei sequer que é.

Mas a sonhá-lo sinto-me feliz,

E alegria, mesmo falsa, é alegria.

 

Olhando o Tejo

 

Ela apascenta seus rebanhos pelas colinas

E sua voz me torna no soprar do vento

Enquanto a sede de sua mágoa enche

Tudo que em mim se indefine.

 

No cavado de seu canto dormem lagos

Espirituais bordados por rochedos,

Lá sua nudez inbanhável

Nele se espelha num tardar de charco.

 

Mas, nisto tudo, de real, apenas

Há minha alma, a tarde, o cais, e

A sombra do meu sonhar de tudo isto,

Dor por nova dor em mim.

 

Motto

 

Se de insculpir no lenho meus poemas tivesse o poder

Qualquer criança havia de os entender,

 

Tão perto do sentido que as coisas em deus têm

Estão quer os meus poemas quer o que pensam as crianças.

 

Pois a criança sabe que lógica e significado

São nada apenas nada ocultando,

 

E a criança sabe bem divinamente

Que tudo são brinquedos e amenidades,

 

Que um dedal, uma pedra ou um novelo

São coisas que podemos sentir divinalmente

 

E se delas formos fazer homens

São homens realmente e não imagens.

 

Pudesse, assim, fazer meu verso

De meras ideias e melhorá-lo mal em

 

Visível desenho, ou escultura, ou então

Qualquer coisa que pudesse parecê-lo.

 

Seria então o poeta das crianças

E, embora pudesse nunca chagar a sabê-lo,

 

Com o sentido externo que faz mais triste a vida,

No rosto de inocentes mais alegres tornados

 

Deus me daria à alma ou devolveria

O perdido sentir do saber, da recompensa –

 

O senso das crianças ainda mais criança

Quando agindo meus poemas a seu alegre querer,

 

Elas, em seus brinquedos, pernas entrecruzadas,

Despreocupadas vagueiam sobre o visível mundo.

 

Perplexidade

 

Sonho, e estranhos poderes obscuros

Assistem meu dormir resplandecente;

Um som de próximas chuvadas

Para mim rasteja sibilando forte;

Ai! todas as minhas horas esquecidas

Se adensam junto a mim qual neblina.

 

Fantasmas de meus mortos eus

Tecem-me em volta uma urdidura falsa;

Pálidos elfos, meus sonhos por sonhar,

De minha carne agora fazem parte,

E tudo o que sou, meus eus alheios se arquiva

Em sonhos que alcançar não posso.

 

Tacteio coisas impalpáveis;

Banho-me em sol de dias idos;

Remotos em sol de asas perto,

Do espírito flanqueiam as linhas cegas,

E do outro lado da grande colina soa

Um sino intimando a orar.

 

Mas estou enjoado de sonhar,

Cansado de ser sempre igual

Em desertos espaços de parecer,

Forçado parceiro de um jogo

Com a vida, estrela ao longe a brilhar

Sobre inominadas mortas terras.

 

Feros sonhos de outra qualquer coisa,

Frenéticos pela fuga,

(Ó vaga que em mim ondula!)

Fuga da vida, onde ela há-de ficar –

Vida sempre em dia de hoje!

 

Qualquer outra, outro lugar!

Não uma vida! Não esta, a minha!

Ah! ser vento, asa, barca

Que para além me leve!

 

Onde? Se o soubesse

Lá não quereria ir.

 

III

A escolha errada

(The wrong choice)

 

Luz nocturna

 

Ama, eu sei agora

Que é vão amar.

Criança, nessa hora

Costumavas-me cantar

E afagar a testa

Até calma cor parecer.

Relembra essa canção

E fá-la regressar.

 

Quero sentir-me

Outra vez essa criança

Que tu adormecias

Tão baixo cantando

Tão baixo tão de manso

Que as coisas verdadeiras

Enganavam fazendo-me chorar

Por ver que me fugiam.

 

Ama, junto á minha cama

Canta outra vez esse cantar,

Que gosto de ter esperança

De novamente o sentir.

Meu coração sangrou

Até alegria dor parecer.

Canta docemente, canta

Sobre a minha afagada testa.

 

Oh, perdidos espaços

No sonho e no dormir!

Oh, contos de fadas não contados

Por ti, mas que então foram

Apenas lançados

Da profundidade

Das ondas do teu cantar,

Irrompendo encantados!

 

Canta!

Como se escutasses.

Canta como se eu

Mais mundo não tivesse

Do que inteira toda a noite

Ouvir teu cantar,

Enquanto meu hálito esquivo

Em meu próprio peito ondeia.

 

Porque vivi eu

Pr’além dessas horas

Quando teus cantos cantavas,

Talvez de rainhas

Em que meu sonho acreditou,

Talvez de flores

Cujo perdido aroma

Rompe os veladores de meus sentidos.

 

Porque perdi eu

O que nem tive

Mas era em tua voz,

Meu coração e minha noite?

Porque havia eu de escolher

Vida, amor e pensamento,

Escolha errada e

De falso direito?

 

Embala-me, ama,

Canta de embalar outra vez p’ra mim.

Canta até que eu encontre

Menos ó meu coração,

E a vida, carreta da vida,

A deixar os sonhos livres,

Contraindo-se indefinidos

No Desconhecido.

 

Já não és agora

A minha ama a cantar

A própria minha infância

De novo em mim feita.

Não, tu és a hora

Do sono que traz

A cena não-cena

E a dor não-dor.

 

Sombria e sagrada

Noite fraternal

Em que minha alma

Obcecada para além está

Da oca fronteira

De meu deliciar

E o inferior distribuir

De penas e ardor;

 

Em trevas imerso,

Para além do deleite

Afogado em paz,

A paz de ser nada,

Barca de sombras

Abandonada,

Abstracta emanação

Do ser e do pensar.

 

Embalo *

 

Meu coração está cheio de lento preguiçar

E dessa névoa que é meu pensamento

Sai uma velha canção inglesa de embalar.

 

Meu rei sento em meu colo

Dou-lhe o peito a mamar;

Seu amor me dá a vida

Senti-lo, repousaria.

Canta, meu menino canta,

Só tu és minha alegria!

 

A minha arte de cantar daria inteira

P’ra ser o remoto inglês menino

Para quem foi feita esta canção.

 

Quando acabares o teu repasto,

Repousa meu menino sobre mim;

P’ra que tua mãe e ama

Seja teu berço também.

Canta, meu menino canta,

Só tu és minha alegria!

 

Em volta de quem brancas mãozinhas agarram

O vestido de as mãe, deve ter acontecido

A vera felicidade também.

 

Receio que p’ra ti este encargo meu

Não dê tudo o que eu queria desse,

Pois só te serviria a ti

No melhor que eu devesse.

Canta, meu menino canta,

Só tu és minha alegria!

 

Oh, que tristeza cai em mim,

Sabendo a amargura que eu sinto

Quando o menino ouvia esta canção!

 

Mas como sou e como posso,

Eu devo e quero ser tua,

Pequena embora para teu íntimo ser

Condescendendo em ser meu

Canta, meu menino canta,

Só tu és minha alegria!

 

Dói-se meu coração por poder chorar.

Oh, pensar nesta canção que foi cantada

Vendo o menino dormindo a sorrir!

 

Meu rei sento em meu colo

Dou-lhe o peito a mamar;

Seu amor me dá a vida

Senti-lo, repousaria.

Canta, meu menino canta,

Só tu és minha alegria!

 

Menino eu fui também; fosse eu agora

Esse menino e ele só, ouvindo

Essa canção murmúrio sobre a sua testa.

 

Quando acabares o teu repasto,

Repousa meu menino sobre mim;

P’ra que tua mãe e ama

Seja teu berço também.

Canta, meu menino canta,

Só tu és minha alegria!

 

Oh, pudesse eu voltar ao feliz tempo

Que nunca foi meu

E que vivo apenas p’ra pensar!

 

Receio que p’ra ti este encargo meu

Não dê tudo o que eu queria desse,

Pois só te serviria a ti

No melhor que eu devesse.

Canta, meu menino canta,

Só tu és minha alegria!

 

Sim, continua cantando em minha alma, velha voz,

Tão só maternal pondo a dormir

O menino mansamente.

 

Mas como sou e como posso,

Eu devo e quero ser tua,

Pequena embora para teu íntimo ser

Condescendendo em ser meu

Canta, meu menino canta,

Só tu és minha alegria!

 

Canta e não deixes meu coração chorar

Porque uma criança um dia pôde ter

Esta canção que o embale e adormeça.

 

Mas como sou e como posso,

Eu devo e quero ser tua,

Pequena embora para teu íntimo ser

Condescendendo em ser meu.

Canta, meu menino canta,

Só tu és minha alegria!

 

De algum modo algures, ouvi esta canção,

Eu era parte da alegria que vivia

Ao longo de suas vãs linhas ociosas.

 

Mas como sou e como posso,

Eu devo e quero ser tua,

Pequena embora para teu íntimo ser

Condescendendo em ser meu.

Canta, meu menino canta,

Só tu és minha alegria!

 

Sim, de algum modo, algures fui esse

Menino, criança, e o meu coração feliz dormia.

Agora – oh, minha desconhecida triste sorte!

 

* A Canção de Embalar citada é o 134º poema do Golden Treasure de Polgrave, que por sua vez a recolheu de Private Music de Martin Peerson, um livro de canções de 1620.

A “Canção de Embalar” é aqui transcrita duas vezes e a última estância também se repete duas vezes.

 

Prece

 

Nossa Senhora do Inútil Pranto

De meu coração o melhor relicário a ti pertence.

Dos anos fartos estou doente,

Do amargo vinho embriagado

E de só ter medos e cuidados

De tudo saber menos findar.

 

Inútil é rezar-te.

Mas de dor meu coração está cheio.

Seria teu lanço d’olhos caridade

Mesmo que ser desdém parecesse.

Dá-me que possa ser

De novo, como teu filho, criança!

 

Todo em choro está meu sentir de mim

Em demasia sobre mim apiedado.

Ah, venha um berço para os meus medos

E a fímbria de teu manto para me firmar!

Ah! Que vivas e bem perto de nós

E seja tua mão a que nos toque!

 

Não sei como rezar.

Meu coração é um rasgado manto

Vê como agrisalham meus cabelos.

Ah! ensina meus lábios a evocar

Teu nome noite e dia

Como se tal nome todos fosse!

 

A fé de meus pais há-de erguer-se

Em meus lábios nessa dolente hora.

Rezo-te com os meus olhos

Rosários d’angústias. Oh, dota

Minha alma com um mínimo de doces mentiras

Do poder do teu sofredor filho!

 

Esqueci-me do sabor da fé

E peno em busca da oração.

Meu coração é jardim devastado.

Oh, tua mão no meu cabelo,

Mão de mãe, repousa,

E deixa-me morrer com ela sobre mim.

 

Instantâneos de Verão

 

I

 

Azul é o céu,

Alegre a verde erva.

Meus olhos tristes cortejam

A alheada cena.

 

Pudesse meu coração

Compartilhá-la

E sem subtilezas

Sentir voar a vida!

 

Não tenho lar

Nem horas sem dor.

Vinde doces brisas

Dentro a meu pensar!

 

Oh, grande rio

Tão quieto e verdadeiro

Ensina-me a correr

Como tu por entre a vida!

 

Não tenho sossego.

Minhas flores murcharam.

Que é desse buscar

Donde fugiu meu querer?

 

Mesmo o que desejo

Nem sequer me importa.

Rico é meu coração

E pobre o meu amor.

 

Oh, doirado dia

Vem dentro em mim,

Minh’alma radia

Com o brilhar do sol!

 

Seja apenas eu

Mera vidraça,

E nítido passarás,

Quente não-sofrer.

 

Desmaio, tremo de frio

Ouvindo a vida chegar.

Oh, rio que passas

Onde é meu lar?

 

Oh, felizes horas

Que os campos gastam,

Estivais frescas chuvadas!

Oh, meu desamparo!

 

Alegres horizontes!

Felizes colinas!

Que dor aprisiona

Meu querer lutador?

 

O que é que existe

Entre eu e mim?

Que aconteceria

Se isto fosse assim?

 

Vida minha não mais

Outra coisa hás-de ser

Que uma praia solitária

Com o mar a lhe bater.

 

Que fado que poder

De negro desespero

Faz de cada hora alegre

O sabor da que o não é?

 

Oh, para algum repouso

Dai-me um lar,

Um ninho, uma esperança

Para não desgarrar!

 

Algures na vida

Por certo que deve haver

Algo que não seja luta

Esperando por me ter.

 

Levai-me até lá,

Oh, dia feliz!

Coração que sirva

Para teu partir!

 

Acorda-me as esperanças,

‘Inda que falsas, pelo menos,

Meu espírito tacteia em volta

De paredes de cadeia.

 

Baixa voz das ribeiras,

Doce esposa do Verão –

Porque fiz de sonhos

Minha’ única vida?

 

II

 

Brilha o sol,

Passam aves.

A vereda borda

O relvado.

 

Vou por aí

Pelos pardos,

Longe de males

E desgraças.

 

Não há esperança

Agora e aqui,

Nada a tactear

Ou recear.

 

Nada: o céu

E a terra verde;

Uma vaga surpresa

Do haver nascer.

 

Isto e não mais,

Isto e minh’ alma

E por cima o céu

Este todo de nada.

 

Sou de novo eu

A criança que era,

Que não sofre dor

Mais do que o relvado.

 

Vivo essa vida

Livre de amanhã

E assim esqueço

Lutas e tristezas.

 

Eram as formas

Do medo e esperança?

Mostra a vinha cachos

Nas faldas do carro.

 

Esta hora real

Não perdurará,

Mas decerto perdura

Por isso que vivo.

 

Deixemos clareiras

E ao azul do céu

Em vagas sombras de alma

Meu coração transvaza.

 

Até que eu me torne

Coisa exterior,

Sem casa, sem lar,

Sopro apenas, asas,

 

Uma imponderável

Parte desta hora,

Fora da pressão

De ser algo mais.

 

Baixas vozes vindas

Saídas do dia,

Zumbidos, chilreios

De longe ou de perto.

 

Façam de mim parte

De aquilo que são,

Entornem-me o coração,

E lancem-no para longe.

 

Que minh’ alma seja

Poeira pelo ar

Na aura do vento

Na taça do mar!

 

Aí, diviso e perdido,

Feito não mim mesmo,

Não mais fixo

Sem sombra sequer.

 

Passará est’hora

Como tudo o que sei;

Mas enquanto era

Fresca tinha a testa.

 

Caíam-me as pálpebras

Em uma paz final,

Não aprisionado

Na doença do pensar.

 

Deixa-me pois descansar

Neste instante e acreditar

Nessa vida, a melhor,

A mais perto do sonhar.

 

Esta hora ardente é

Dessa forma assim vaga,

Pois não vejo senão

Com estes olhos turvados.

 

Só num escuro abandono

Viver escondido

Na orla onde começa

A inclinar meu pensamento.

 

E este pensar agora

É uma folha de erva

Que nem sequer se apercebe

De que as horas passam.

 

III

 

Pelo dia quente adiante

Doce brisa começa a soprar,

Perdoem à minha alma os sonhos

Ah! deixem-me rezar, pedir.

 

Que essa hora refrescante

Se una à minha memória

E anos depois tenha o poder

De outra vez viver em mim!

 

É muito pouco, bem sei,

Mas é felicidade,

E poucas são realmente as horas

Que podemos bendizer.

 

Há horas como esta, livres

De pertencer ao pensar,

Quando de nada temos de cuidar

Excepto da brisa que é nada.

 

Deixem-me então que essa hora

Respire em minha memória

Agora e que isso possa começar

De novo sempre que veja

 

Em peso e calor, meu coração crescer,

E meu pensar fechar-se tardo.

Oh, macia brisa areja-me o pensar!

Oh, acalmia, limpa a minha sorte!

 

Vazio

 

O dia no algo adoece

A cor que usa a sua palidez.

Um esfumar de contornos torna

A paisagem, e o horizonte traz

Qual bandeira desbotada, a sombra

Inútil de seu bordo morto.

 

Deixem-me o coração renunciar a tudo.

Mais rico ficarei em todo eu.

Cada alento, cada asa ao passar

De mim me tira. E o céu inteiro

Engole e minora na minha consciência

Minha real aflição.

 

Pois minha verdadeira pena não é ser

Tão triste o dia como triste eu sou.

É antes nem um instante poder abater

A dor que eu, apenas dor, tive de levar

Vendo-a, sentindo-a

Enquanto a vida, simples roda, ao lado passa.

 

Não: coisas mais vagas do que céus e planícies

Em sombras se acastelam sobre mim,

Minhas mágoas são mais vazias dores

Do que as que podem simbolizar os prados;

E meu vão peso da vida e mim mesmo

Só a si próprio se assemelha.

 

Monotonia

 

Cada brasa quente e sombreada

Humidade exterior em si inclui,

Deixa que lembremos, minha vida,

Até ao remorso nossos pensamentos.

 

Abatido o vento mais frio sopra

Contra a vidraça molhada.

Mais velhos sentimos nossos corações

Em busca de outra vez viver.

 

A noite fere. Que toda rubra brasa

Se atice em mais quentes rubores

Ai! Quando me lembro

Gostaria de poder esquecer.

 

Que incertas frias rajadas entram

Por minha alma qual porta!

Minh’alma é o centro vivo

De sonhos que já não há.

 

Mais e mais se esperte cada brasa!

Que o fogo mais se aproxime!

Que fácil é o lembrar

Quando memória diz arrepender.

 

Pica o húmido vento agora

À roda de meu solitário sentir.

Meus olhos não deixam o brasido,

Meus lábios gemem vago nome.

 

Inutilmente atiça cada brasa!

A alma inteira é penar,

Penar do que lembramos,

Penar pelo que esquecemos.

 

Oh, mais frio e agreste sopro

Do vento pela húmida luz crepuscular!

Sobre a campa do meu passado cintila

Uma rosa vermelha em plena floração.

 

Trevas rodeiam cada brasa,

Revolvo-as ainda não de todo consumidas.

Nossa vida quer lembrar,

Nosso desejo esquecer.

 

Meu mistério começa a tocar-me o ombro

Até me atemorizar.

A rosa vermelha é morta.

Tal como eu morta agora.

 

Pudesse eu esquecer, pálida brasa,

Sem morte ou remorso!

Ou fosse-me possível lembrar

Sem desejar o esquecer!

 

Irmã Cecília

 

Ai da irmã Cecília!

A quem ela rezará

Até os pés lhe adormeceram e feriram-se-lhe os joelhos,

De pálidos lábios apertados, recolhidos,

Olhos erguidos na alvorada em oração,

Semicerrados nas preces da tardinha?

 

Reza a Maria, Mãe e Rainha,

Que tem sido sempre

Quem do mal defende crianças e donzelas,

No sensível braço de lírio

E virginal auréola.

 

Pois da virgem se diz

Que sangrara

Nas sete dores que teve de seu magoado filho

E por tal sofreu por todos nós

Cujas almas por mãos celestiais

Da mesma madeixa de lã branca são fiadas.

 

Assim reza a Irmã Cecília

Para que todos possam ser

Purificados na eterna fonte

Da comunicação dos santos,

E lhes seja dado alcançar o Monte Radioso

Embora de pés dilacerados.

 

E, embora me ela não conheça nem reze

Por mim - oh! – possa ser sua prece

Pela dor humana

Incluir-me no que ela diz.

Assim caia em meu coração uma vaga calma

Porque ela reza.

 

IV

Quatro pesares

(Four sorrows)

 

Rios

 

Muitos rios correm

Para muitos mares.

O meu cuidar é este apenas:

Em qual de todos

Podia estar em paz meu coração?

 

Duas margens para cada rio.

Nenhuma onde me perder

Ouvindo o trémulo rumor

Das águas vendo-as passar

Embora ficar pareçam.

 

Talvez haja outro rio.

Mas longe, longe de Mim.

Lá posso encontrar

O irmão da minha eternidade.

Em que Deus isto será?

 

Bem longe

 

Longe, longe,

De aqui bem longe...

Onde não se corre em busca da alegria

Nem do medo se foge,

Longe, longe de aqui.

 

Os lábios dela não eram muito rubros

Nem o seu cabelo muito loiro.

Suas mãos brincavam com anéis

E ela não mas deixou de tomar,

Suas mãos com oito brincando.

 

Ela é algo que passou

Bem longe, longe de sofrer.

Alegria não pode tocá-la, nem esperança

Entrar jamais em seu domínio,

Nem o vão amor.

 

Talvez que um dia

Para além de luz e sombras,

Ela pense em mim e faça

De mim todo um deleite,

Longe, bem longe do que podemos ver.

 

Episódio

 

Seja o que for que sonhemos

Todo o sonho é verdadeiro.

Seja o que for que pareça

Deus fá-lo visível

E portanto é

Real como tudo isto.

 

Seja o que for que queremos

Algures é certo existe.

Agora, agora sempre e ricos

Somos aqui do além.

Dentro de nosso eu sentido

Auto-descobrimos Deus.

 

Por vezes julgo que a esperança

Pode tornar verdade tudo isto,

Mas paro, tacteio, vacilando,

E vida, e medo e dor

É tudo o que me fica.

Para quê tais penas.

 

Esta inquietação que se arrepia

Com a possível alegria,

Todo esse penar que enche

Nossa esperança até nos descoroçoar?

Porquê? Porquê tudo isto

Se tudo é incerto?

 

Oh, concedei-me uma aragem

Sobre pradarias,

E que essa brisa praza,

Nem que a entenda.

Toda a angústia é

Vago desejar de felicidade.

 

Nada

 

Anjos vieram a buscá-la.

A meu lado a encontraram

Onde suas asas a trouxeram,

Anjos a levaram.

Deixou a clara luz divina de seu lar

E junto a mim veio habitar.

 

Amava-me porque o amor

Apenas ama coisas imperfeitas.

Do alto vieram anjos

Para de mim a afastarem.

E para sempre de mim a afastaram levando-a

Enter suas asas luminosas.

 

Por certo era irmã dos anjos

E de Deus tão perto como eles.

Mas amava-me porque

Meu coração não tinha irmã.

Eles a levaram.

E é tudo e nada mais.

 

V

Jardim das febres

(Fever-garden)

 

Jardim das febres

 

I

 

De diabólica neve rubros viventes flocos

Venenosamente relacionam ao r pecaminoso

Com as doentias rubras flores desatomizadas

Sem raízes pela Noite e o Além absorvidas

 

Relação que em si é presa

Feita às palpitantes veias do ver

Como sobrevivente demasia

Não contígua ao ser

 

Embora auréola-filtro ou lai

Cantado à volta do vício entronizado

As papoilas da via da super-memória

Circulem como em teia de aranha três vezes ansiando

 

Em torno ao fálico íntimo plantado

A meio caminho entre sentir e entender

Em torno a vazia bruma falante tensa comprimida

Aos lábios cortados dá cônscio sangue

 

II

 

Assim deve a humilhada comunhão

Ao vício de contaminar coisas sagradas

E fazer eucaristias de angústias

Quando adensa o desejo com macias-agudas asas

 

Pois sua rubra boca até à púrpura enegrece

Dá espaço aos perdidos ritos

E interrompe a pista do nosso coração batente

Em direcção a demoníacos infinitos

 

Até que o momento do espasmo arremeta e se lance

Qual manto sobre o consciente

Rasgando o véu do destruído templo

E as línguas das flores do Espaço à boca voltem.

 

Janela quebrada

 

Meu coração é olhar que silencia.

Para além das colinas há um lar.

Meu coração é olhar que silencia.

Meu lar é lá, para além das colinas.

 

Suporto o coração como velha praga.

Não há razão para lamentos.

Suporto o coração como velha praga.

Para quê lamentos ou razões?

 

Qual fantasma meu coração em mim habita.

Para além das colinas jaz morta a minha esperança.

Qual fantasma meu coração em mim habita.

Para além da minha esperança jazem mortas as colinas.

 

Qual sizânia o coração me arrancaram.

Não era verdade que eu tivesse de viver.

Qual sizânia o coração me arrancaram.

Não pude pensá-lo verdadeiramente vida.

 

Agora o meu coração tem grandes nódoas

Como as de sangue num sobrado.

Agora o meu coração tem grandes nódoas

E jaz no chão meu coração.

 

A sala agora para sempre se fechou.

Meu coração agora é sepultado vivo.

Meu coração agora para sempre se fechou.

A sala inteira é sepultada viva.

 

Ísis

 

No frio átrio de colunas

Branco intróito a seus modos vários

Começa a bela muda fila

Das estátuas de suas pulcritudes.

 

Doze são as de que a mente associa

Em único sentido suas vistas vidas separadas;

A décima terceira que a todas compreende,

Sua alma e sua confluência significa.

 

Como representam os cinco sentidos,

Sete são os seus mistérios do pensar.

A décima terceira parece como que vivente

A par de sua vida sem tal conhecer.

 

Estagna o estio fora de suas sombras,

As brisas se arrastam pelos seus vestíbulos

E de sua perda entre janelas as clareiras

São algo de que se lembra a alma.

 

No que seu íntimo vê

Ela ergueu sua casa com celestes tipos.

O sol risca os renques de longos pilares

No frio duro chão de o seu ser.

 

Mas ela está longínqua e em desamparo,

Suas estátuas esperam sua Nova Hora,

E das sombras de o seu ouvir

Que o sussurro dos zangãos floresça.

 

Isto não foi acaso em modo ou tempo.

Foi tudo frio como frios os sonhos.

Quando brisas em nossas mágoas se insinuam

E nos depõem nas margens de um lago.

 

E novo maior lago surge

Na imaginação nossa renovada,

E todo o nosso corporal sentir despreza

Nossa inata falta de barbatana ou asa.

 

Imóvel parei ante seu pórtico.

Lá as sombras eram nítidas e ligeiras.

Mansamente, como um beijo, esperei

E o Ter, qual andorinha, passou.

 

Ennui

 

Sob um céu baixo e ameaçador

Carrancudo de ventos solitários a gemerem

Pálido doente à luz que vem do alto

Até fazer a paisagem suspirar para sempre,

Sempiterno suspirar,

Negro calmo rio enfeitiçado

Que de si próprio afasta uma cidade

Corre e em íntimo pavor se arrepia

Como escura sorte e próxima sempre.

Mais perto sempre.

 

Sim, por essa paisagem do sonho fugida

Para hórrida verdade, há-de fugir

Essa torrente ensimesmada em si esvaziada

Que traz, da emoção dos sonhos, um sonho

Ao sonho da emoção,

E corre de terras onde mover não há

Para um possível distante oceano;

E eles cujos olhos inertes se angustiam

Nele se banham e toma o sonho da emoção

Pela emoção do sonho.

 

L’inconnue

 

Que a tua mão o meu cabelo

Alise. Olha-me

Em meus olhos dentro.

Lá um regato corre

Preciso, o calor cortando

De meus calados gritos.

 

Que a tua mão descanse

Sobre a minha testa.

Que teus olhos sorriam

No desassossego

Agora de meus olhos

Teus por algum tempo.

 

Ah! Não esqueças

Que esse tocar-me

Seja por mim sentido

Leve como um pensamento

E que tudo isso seja

O que esperança pode ser.

 

Que tua mão rocegue

Um instante apenas

Meus cabelos.

Julgo dormir mas

Suportar não posso

Sentir-me a sorrir.

 

Tudo me falhou,

Mortas são as esperanças todas,

Breves, alegrias todas.

Ah! Que tua mão

Abatida de

Triste se sentir

Me alivie!

Não importa se

Ninguém o entender.

 

Sim, deixa ficar

Por sobre a minha testa tua mão.

O que vale a vida agora

É tão pouco que dor parece frágil

E pântano o pensar.

 

Tira-me da testa os cabelos

Da dor que ela tem.

Lá onde corre a pista

Da leveza por

Meu denso pensar.

 

Que quer isto dizer?

Isto são palavras apostas

A preguiçosa melodia.

O que lamento

Jamais existiu.

Para não turbar o meu sossego

Vem depressa, vera paz!

 

Horizonte (2)

 

I

 

Inauditos abismos no profundo mar

De fundas gélidas cavernas

(As presas da batalha não serão para ti)

para sempre dormem.

 

Nem visão do alto ou monte refulgente

Pagam tua dor.

O secreto anjo nunca teve em conta

Teu perdido ganho.

 

Na boca da esfinge a história morreu,

A relva no atalho cresceu.

Nossa mágoa seguirá onde a levaste

Através do desconhecido.

 

Esperas escondido ou em paz fias

Onde silêncio proíbe?

Dá-nos aos menos a busca inobtida

E os floridos prados.

 

II

 

Já o mar é simples linha branca

Orlando o meu desejo,

E o vento chega ensombrado e fino

Com seu feérico toque

 

Alcançando meu vulgar desânimo e dor,

Meu maravilhar e minha noite,

Subtil pressentir da chuva que há-de vir

E de meu deliciar perdido.

 

A razão perdida de haver amor

Assim sossega,

Visão secreta, campa refulgente

E árvores finais.

 

Navio que para o mar fazes as velas

 

Navio que para o mar fazes as velas

Se não podes contido me levar

Leva ao menos com a tua esperança

De outros portos o meu desalento

E o que em mim é no escuro tactear.

 

Navio que logo velejas

Deixa-me sonhar que tu não podes

Chegar onde alfim eu poderei

Não mais viver em penas

Ou em mágoas descansar.

 

Navio que navegas para a Morte

Vai longe, longe, vai

Ao correr do sopro do vento

Tendo a escutar-te

A estrela da Sorte.

 

Navio que não estás em parte alguma

Excepto no que é o meu sonhar

E por tal és belo

Veleja ou não... Parece

Que veleja. É tudo. Onde?

 

Navio meu sonhado que te esfumas

Na distância do que sonho, vai,

Há mais felizes clareiras

Para além das quais só sei

Que é hoje e penar.

 

Mãe das coisas impossíveis

 

Mãe das coisas impossíveis,

Irmã do que nunca há-de ser,

Tu de cujos lábios cerrados jamais sairão

As palavras cuja falta é meu abatimento

Senta-te a meu lado enquanto ignoro.

Sorri a par d minha ignorância de ti

E minha perdida solidão restaura.

 

Ah, a vida é triste como indesejadas coisas,

Amor o dia que nunca há-de chegar

Aos cegos como a minha alma cheios

Do presságio de tambores vindouros

Quando a cidade cair que me obceca

A íntima visão cuja noite sussurra

Em nós enquanto a morte sobressalta o canto.

 

Ah, interpela-me, lê-me a minha alma!

Não me dês verdade, estrada ou visão,

Mas liberta-me deste abatimento

De consciência e invisível acicate

Que sempre busca o que aparência é.

Iluminado pelo perto-ser deste meu fardo!

Ah, deixa-me tomar-te a mão, sonhar!

 

Quando repousaremos?

 

Quando repousaremos?

As infindáveis vagas

Essas nada buscam.

As árvores todas-paz

Sua vida sem vida

A tristeza as poupa.

 

Quanto partiremos?

Para onde? Nada

Saber procuramos.

Aqui é tristeza.

Pudéssemos algo aqui

De obscuro, saudar.

 

Que pode em nós findar

Deixando-nos em paz?

Vida nos escraviza,

Como dor nossa alegria,

Nosso ganhar que a perder iguala,

Nossa entravada libertação.

 

Não nos pode amor valer

Nem felicidade viver.

A breve carícia da alegria

Como brisa é fugidia

Num instante decaída

Sonhamos doloridos.

 

De nós bem fora

Outra terra mora

Menos luminosa

Onde repousar podemos

Deixando de procurar

Sem desejo de aportar.

 

Pronta está a barca

De nosso repousar.

Vamos embarcar.

É sozinho o mar?

Sozinhos nós somos.

E dor apenas dor mostra.

 

Nada recordar.

Como luz se apagar

Não subitamente.

Imergir qual sonho

No curso da torrente

De sua própria noite.

 

Acorda com o Sol

 

Acorda com o Sol, com a manhã,

Acorda ao chegar o dia,

Sê com o orvalho e o rubor recém-nascido

Mas, ao contrário deles, permanece!

 

Névoas caem do que és:

São o que nós vemos

Chegar e entrar nos nossos corações,

E deixa que a vida seja.

 

A manhã pertence ao mundo vazio

Onde os homens só entram depois.

Vem e deixa que a vida de ti se desenrole

Lentamente como o medo.

 

E em ti o ser terrível apenas tu

Sem corpo nem alma

Vazará teu todo bálsamo sobre a minha testa entristecida

E minha esperança perfará!

 

O Mestre disse

 

O Mestre disse: Não receies

O que os outros dizem por necessidade.

 

Sob as felizes árvores sentados

Falam de nada e de argúcias.

Sob as silentes árvores, de pé,

Falam de ilusões e terras de ninguém.

Sob taciturnas árvores jazem

Maravilhando-se de céus e terra.

 

Esta é a matéria da canção

Que ninguém pôde cantar

Nem bem nem tão extensa.

Esta a substância do conto

Que ninguém pôde contar sem falha.

Este foi o tema do último verso feito

Para que não piore a terra.

 

Assim o irmão rouxinol

Esqueceu a sua história e a té a música.

Assim subiu a cotovia e encontrou somente

Ar e falso domínio em toda a parte.

Assim a cadente águia a presa largando

Seu ficou apenas o dia vazio.

 

Assim o segredo disto tudo

Qual é ou será ninguém agora o pode imaginar

Talvez pr’além do que o pensar define.

Como vinho alguma sorte algum dia

Possa de ontem fazer sombra e dormir.

 

Mas se isto faz sentido ou não,

Fala ou não, foi um pensar cuidado:

Desenrolar tela tão belamente exposta

E todos os críticos se contradizendo,

Foi razão e lar,

O resto justifica o divagar.

 

                                                                                            Fernando Pessoa  

 

                      

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