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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O LUAR FICA-TE BEM / Mary Higgins Clark
O LUAR FICA-TE BEM / Mary Higgins Clark

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O LUAR FICA-TE BEM

 

Maggie tentou abrir os olhos, mas o esforço revelou-se demasiado penoso. A cabeça doía-lhe intensamente. Onde estava? Que acontecera? Levantou a mão, mas esta estacou a escassos centímetros acima do seu corpo, incapaz de se mover mais.

 

Instintivamente, empurrou a barreira por cima da cabeça, mas esta não se moveu. Que era aquilo? Tinha um toque suave, acetinado, e estava frio.

 

Deslizou os dedos lateralmente e para baixo; a superfície alterou-se. Agora parecia enrugado. Uma colcha? Estaria numa espécie de cama?

 

Movimentou a outra mão para o lado e recolheu-a quando essa palma deparou imediatamente com o mesmo enrugamento gelado. Estavam de ambos os lados desta estreita clausura.

 

Que teria roçado no anel quando deslocou a mão esquerda? Passou o polegar por cima do dedo anelar e sentiu-o tocar num fio ou corda. Mas porquê?

 

Foi então que a sua memória se avivou.

 

Abriu os olhos e fitou, estarrecida, uma escuridão absoluta.

 

A sua mente correu freneticamente ao tentar recordar-se do que acontecera. Escutara-o a tempo de se virar no preciso instante em que algo se esmagou sobre a sua cabeça.

 

Lembrava-se de ele se ter inclinado sobre ela, murmurando: «Maggie, pensa nos sineiros». Depois disso, não se recordava de mais nada.

 

Ainda desorientada e aterrorizada, esforçou-se por entender. Então, subitamente, tudo se tornou claro. Os sineiros! Os vitorianos tinham tanto receio de serem enterrados vivos que se tornou tradição atar um fio aos dedos dos mortos antes do enterro. Um fio enfiado através de uma saída de ar na urna, esticado até à superfície da campa. Um fio ligado a um sino.

 

Durante sete dias, um guarda patrulhava a sepultura, atento ao possível toque do sino, sinal de que o defunto afinal não estava morto...

 

Mas Maggie sabia que não havia nenhum guarda à sua escuta. Estava efectivamente só. Tentou gritar, mas não se ouviu nenhum som. Freneticamente, puxou o fio, esforçando-se, escutando, na esperança de ouvir acima de si qualquer ténue e repicado som. Mas havia apenas silêncio. Trevas e silêncio.

 

Tinha de manter a calma. Tinha de se concentrar. Como chegara ali? Não podia deixar-se levar pelo pânico. Mas como?... Como?...

 

Lembrou-se então. O museu dos artigos funerários. Regressara ali sozinha. Retomara então a busca, a busca que Nuala iniciara. Ele chegara depois, e...

 

Oh, meu Deus! Fora enterrada viva! Deu murros sobre a tampa do caixão, mas, mesmo no interior, o espesso cetim abafava o som. Por fim, gritou. Gritou até ficar rouca, até já não conseguir gritar mais. E continuava só.

 

O sino. Puxou o fio... de novo...e de novo. Seguramente, estava a emitir sons. Não os podia ouvir, mas alguém haveria de escutar. Tinham de ouvir!

 

Por cima, uma camada de terra fresca e agreste reluziu ao brilho da Lua cheia. O único movimento provinha do sino de bronze preso a um tubo emergindo da camada de terra: O sino movia-se para a frente e para trás numa dança de morte arrítmica. À sua volta, o silêncio. O badalo tinha sido retirado.

 

                   Sexta-feira, 20 de Setembro

 

«Detesto festas», pensou Maggie pervertidamente, interrogando-se por que se sentiria como uma estranha sempre que frequentava uma. «Honestamente, estou a ser demasiado rígida», pensou. «A verdade é que detesto festas em que a única pessoa que conheço é o meu suposto acompanhante e ele me abandona mal atravessamos a porta.»

 

Olhou em redor da enorme sala e suspirou. Quando Liam Moore Payne a convidou para esta reunião do clã Moore, deveria ter adivinhado que ele estaria mais interessado em conviver com as suas dezenas de primos do que em preocupar-se com ela. Liam, um companheiro ocasional mas normalmente atencioso quando chegava à cidade vindo de Boston, demonstrava nessa noite uma fé ilimitada na capacidade dela para cuidar de si mesma. Bom, reflectiu, o número de convivas era razoável; seguramente, conseguiria encontrar alguém com quem conversar.

 

Foi o que Liam lhe contara sobre os Moore que constituiu o factor que a levara a decidir-se acompanhá-lo a este encontro, recordou-se ao bebericar da taça de vinho branco e movimentando-se pela apinhada grill room do restaurante Four Seasons, na Fifty Second Street, em Manhattan oriental. O pai fundador da família ou, pelo menos, o fundador da riqueza original da famíliafora o falecido Squire Desmond Moore, no seu tempo um destacado elemento da sociedade de Newport. O motivo para a festa daquela noite era a celebração do aniversário dos 115 anos do grande homem. Por uma questão de conveniência, fora decidido efectuar o encontro em Nova Iorque e não em Newport.

 

Entrando em pormenores divertidos sobre muitos dos membros do clã, Liam explicara que mais de uma centena de descendentes, directos e colaterais, bem como alguns ex-cunhados favorecidos, estariam presentes. Presenteou-a com anedotas sobre o imigrante de 15 anos originário de Dingle, o qual se considerara não um elemento das massas desordeiras desejoso de ser livre, mas, pelo contrário, um elemento das massas depauperadas desejoso de ser rico. Contava a lenda que, quando o navio em que viajava passou pela Estátua da Liberdade, Squire anunciou aos seus companheiros da classe económica: «Dentro em breve, serei suficientemente rico para a comprar, isto é, se o Governo alguma vez decidir vendê-la, é claro». Liam transmitira a declaração do seu antepassado com um encantador sotaque irlandês.

 

Havia seguramente Moore de todos os tamanhos e feitios, reflectiu Maggie olhando em redor do salão. Observou dois octogenários em animada conversação e estreitou os olhos, emoldurando-os mentalmente através da lente da câmara que desejava agora ter trazido consigo. O cabelo alvo como a neve do homem, o sorriso galante no rosto da mulher, o prazer que obviamente sentiam na companhia uns dos outros teria constituído uma maravilhosa película.

 

O Four Seasons nunca mais será o mesmo depois de os Moore terem partido disse Liam, surgindo subitamente ao lado dela. Estás a divertir-te? perguntou.

 

Mas, sem esperar por uma resposta, apresentou-a a mais outro primo, Earl Bateman, o qual, tal como Maggie notou divertida, a estudou com interesse óbvio e calmo.

 

Calculou que o recém-chegado estaria, tal como Liam, perto dos 40. Era um pouco mais baixo do que o primo, pelo que deveria ter à volta de um metro e oitenta e três. Maggie decidiu que havia qualquer coisa de inclinação estudiosa reflectida no rosto magro e na expressão pensativa, embora os seus olhos, de um azul-pálido, apresentassem um matiz vagamente desconcertante. De cabelos louros e uma tez pálida, não possuía os traços bonitos de Liam. Os olhos de Liam eram mais verdes que azuis e o seu cabelo escuro apresentava-se atractivamente sarapintado de cãs.

 

Esperou enquanto ele continuava a mirá-la de cima a baixo. Depois, após um longo momento, de sobrolho erguido, inquiriu:

 

Será que passo na inspecção? Earl ficou embaraçado.

 

Peço desculpa. Não sou bom a recordar nomes e estava a tentar localizá-la. Você faz parte do clã, não faz?

 

Não. Tenho raízes irlandesas que remontam a três ou quatro gerações, mas receio não ter qualquer relação com este clã. De qualquer modo, não me parece que você necessite de mais primos.

 

Quanto a isso, não pode estar mais certa. No entanto, lamento, a maioria deles não são tão atraentes como você. Os seus lindos olhos azuis, pele de marfim e ossos pequenos fazem de si uma celta. O cabelo praticamente negro coloca-a entre o segmento da família dos «irlandeses negros», aqueles membros que devem os seus traços genéticos à visita breve, mas significativa, dos sobreviventes da derrota da Armada espanhola.

 

Liam! Earl! Oh, pelo amor de Deus, afinal acho que estou satisfeito por ter vindo.

 

Esquecendo-se de Maggie, ambos se voltaram para cumprimentar entusiasticamente o homem de rosto corado que apareceu atrás deles.

 

Maggie estremeceu. Lá terminara a conversa, pensou, retirando-se mentalmente para um canto. Lembrou-se então de um artigo que lera recentemente, o qual recomendava às pessoas que se sentiam isoladas em situações sociais que procurassem alguém que parecesse ainda mais desesperado e que iniciassem uma conversa.

 

Decidiu, pois, tentar essa táctica. Se, mesmo assim, acabasse a falar consigo própria, iria para casa. Naquele momento, a expectativa do seu agradável apartamento na Fifty Sixth Street, próximo de East River, era muito atraente. Sabia que não deveria ter saído naquela noite. Regressara há escassos dias de uma sessão fotográfica em Milão e estava ansiosa por uma noite tranquila com os pés levantados.

 

Olhou em seu redor. Não parecia existir um único só descendente ou cunhado do Squire Moore que não se esforçasse por ser ouvido.

 

«Está na hora da retirada», decidiu. Escutou então uma voz perto uma voz melódica e familiar, uma voz que impelia súbitas e agradáveis recordações. Voltou-se. A voz pertencia a uma mulher que subia o pequeno lance de escadas conducente à área superior do restaurante e que parara para chamar alguém mais abaixo. Maggie olhou e ficou sem fala. Estaria louca? Será que podia ser Nuala? Tanto tempo passara, mas parecia mesmo a mulher que fora outrora sua madrasta, desde os seus 5 aos 10 anos. Após o divórcio, o pai proibira Maggie de pronunciar sequer o nome de Nuala.

 

Maggie reparou que Liam passava perto dela, a caminho de cumprimentar outro parente, e agarrou-lhe o braço.

 

Liam, aquela mulher nas escadas. Conhece-la?

 

Ele piscou os olhos.

 

Oh, é Nuala. Esteve casada com o meu tio. Acho que é minha tia, mas foi a segunda esposa dele, por isso nunca a encarei como tal. É uma pessoa um pouco especial, mas muito divertida. Porquê?

 

Maggie não esperou para responder e começou a abrir caminho por entre a multidão de Moores. Quando alcançou a escada, a mulher que procurava conversava com um grupo de pessoas no piso superior. Maggie começou a subir as escadas mas, quase no cimo, parou para a estudar.

 

Quando Nuala partiu, tão abruptamente, Maggie rezou para que ela escrevesse. Contudo, tal nunca aconteceu e, para Maggie, o silêncio dela foi especialmente penoso. Começara a sentir-se tão ligada a ela durante os cinco anos de duração do casamento... A sua própria mãe falecera num acidente de viação quando ela era ainda bebé. Só após a morte do pai, Maggie se inteirou, através de um amigo da família, que o pai destruíra todas as cartas e devolvera os presentes que Nuala lhe enviara.

 

Maggie fitava agora a pequena figura de vivos olhos azuis e suave cabelo louro como o mel. Podia avistar o fino entrelaçado de rugas que não depreciava nem um pouco a sua encantadora fisionomia. E, enquanto a mirava, as recordações inundaram-lhe o coração. Memórias da infância, talvez as melhores que possuía.

 

Nuala, que tomava sempre o partido dela nas discussões, protestando com o pai de Maggie, «Owen, pelo amor de Deus, ela não passa de uma criança. Pára de a corrigir a cada instante.» Nuala, que sempre dizia: «Owen, todos os miúdos da idade dela usam jeans e t-shirts»... «Owen, qual é o problema de ela ter usado três rolos de filme? Adora tirar fotografias, e é boa nisso»... «Owen, ela não está apenas a brincar na lama. Não vês que está a tentar criar alguma coisa com o barro? Por favor, reconhece a criatividade da tua filha mesmo que não aprecies os meus quadros.»

 

Nuala sempre tão bonita, sempre tão divertida, sempre tão paciente com as perguntas de Maggie. Fora com Nuala que Maggie aprendera a amar e a compreender a arte.

 

Tal como era típico em si, Nuala vestira-se naquela noite com um fato de cetim azul-pálido e os condizentes sapatos de salto alto. As recordações que Maggie retinha dela estavam sempre tingidas de tons pastel.

 

Nuala estaria perto dos 50 quando casou com o pai, pensou Maggie, tentando calcular a idade dela agora. Vivera cinco anos com ele. Partira há vinte e dois anos atrás.

 

Sentiu um choque ao aperceber-se de que Nuala teria cerca de 75 anos. Seguramente, não parecia.

 

Os seus olhos encontraram-se. Nuala franziu o sobrolho e depois pareceu ficar intrigada.

 

Nuala contara-lhe que o seu verdadeiro nome era Finnuala, em honra do lendário celta Finn MacCool, responsável pela queda de um gigante. Maggie lembrava-se de como se deliciara, em criança, ao tentar pronunciar Finn-u-ala.

 

Finn-u-ala? afirmou agora, hesitantemente.

 

Um ar de total perplexidade instalou-se no rosto da velha mulher. Saltou então um grito de alegria que fez parar o burburinho de conversas à sua volta, e Maggie viu-se de novo envolta num abraço de amor. Nuala usava o leve aroma que, no decorrer de todos estes anos, perdurava na memória de Maggie. Quando tinha 18 anos, descobriu que esse aroma se chamava JÚBILO. Como estava apropriado àquela noite, pensou Maggie.

 

Deixa-me olhar bem para ti exclamou Nuala, soltando-a e retrocedendo, embora ainda segurando os braços de Maggie com ambas as mãos, como receando que ela escapasse.

 

Os seus olhos procuraram o rosto de Maggie.

 

Nunca pensei voltar a ver-te! Oh, Maggie! Como está aquele homem horroroso, o teu pai?

 

Faleceu há três anos.

 

. Oh, lamento, minha querida. Mas, tenho a certeza, foi perfeitamente intragável até ao fim.

 

Nunca foi de fácil trato admitiu Maggie.

 

Querida, eu estive casada com ele. Lembras-te? Sei como ele era! Sempre severo, amargo, petulante, rabugento. Bom, não vale a pena falarmos disso. O pobre homem morreu, que a sua alma descanse em paz. Mas era tão antiquado e rígido que bem poderia ter posado para um vitral medieval...

 

Apercebendo-se subitamente de que os outros escutavam a conversa, Nuala colocou o braço em redor da cintura de Maggie e anunciou:

 

Esta é a minha filha! Não a dei à luz, obviamente, mas isso é absolutamente insignificante.

 

Maggie notou que também Nuala tentava conter as lágrimas.

 

Ambas ansiosas por falar e escapar à multidão do restaurante apinhado, saíram juntas. Maggie não conseguiu encontrar Liam para se despedir, mas tinha quase a certeza de que este não daria pela sua falta.

 

De braço dado, Maggie e Nuala subiram Park Avenue no entardecer crescente de Setembro, viraram para oeste na Fifty Sixth e instalaram-se no II Tinello. À mesa com Chianti e finas fatias de zucchini frito, contaram as suas vidas uma à outra.

 

Para Maggie, era simples.

 

Colégio interno; fui enviada para lá depois de teres partido. Depois Carnegie-Mellon e, finalmente, um mestrado em Artes Visuais na Universidade de Nova Iorque. Estou a viver bem agora, como fotógrafa.

 

Que maravilha. Sempre soube que optarias por isso ou escultura.

 

Maggie sorriu.

 

Tens boa memória. Adoro esculpir, mas dedico-me a isso apenas como passatempo. Ser fotógrafa é muito mais prático e, com toda a honestidade, penso que sou bastante boa. Tenho alguns clientes excelentes. E quanto a ti, Nuala?

 

Não. Vamos terminar o teu caso interrompeu a mulher mais velha. Vives em Nova Iorque. Tens um trabalho de que gostas. Empenhaste-te em desenvolver um talento natural. És tão bonita como eu calculei que serias. Fizeste trinta e dois anos no teu último aniversário. E, no que respeita a um interesse de amor, ou outro significativo, ou o que quer que seja que vocês, os jovens, chamam hoje em dia?

 

Maggie sentiu a tristeza familiar ao responder sem emoção:

 

Estive casada três anos. Chamava-se Paul e tirou o curso da Academia da Força Aérea. Tinha acabado de ser seleccionado para o programa da NASA quando morreu num voo de treino. Isto passou-se há cinco anos. Penso que é um choque que nunca superarei. De qualquer modo, ainda me é doloroso falar sobre ele.

 

Oh, Maggie.

 

Havia um mundo de entendimento na voz de Nuala. Maggie lembrava-se de que a madrasta era viúva quando casou com o pai. Abanando a cabeça, Nuala murmurou:

 

Por que será que coisas como essas têm de acontecer? Depois, o seu tom animou-se: Vamos pedir?

 

Durante o jantar, contaram as suas vidas de vinte e dois anos. Depois de se divorciar do pai de Maggie, Nuala mudara-se para Nova Iorque, visitando de seguida Newport onde conheceu Timothy Moore com quem na verdade namorara quando ainda adolescente e casara com ele.

 

O meu terceiro e último marido disse, e absolutamente maravilhoso. Tim faleceu o ano passado... e como sinto a falta dele! Não era um dos Moores abastados, mas possuo uma casa adorável num bairro maravilhoso de Newport, um rendimento adequado e, obviamente, continuo a dedicar-me à pintura. Por isso, estou bem.

 

Mas Maggie detectou uma leve sombra de incerteza no rosto de Nuala e apercebeu-se naquele instante de que, sem a expressão viva e alegre, Nuala aparentava cada dia da sua idade.

 

Mesmo bem, Nuala? perguntou tranquilamente. Pareces... preocupada.

 

Oh, sim, estou bem. É que... sabes, fiz setenta e cinco anos o mês passado. Há alguns anos, alguém me disse que, quando entramos nos sessenta, começamos a despedir-nos dos nossos amigos, ou eles despedem-se de nós, mas, quando chegamos aos setenta, está sempre a acontecer. Acredita, é verdade. Ultimamente, tenho perdido uma série de bons amigos, e cada perda dói um pouco mais do que a anterior. Newport está a tornar-se um pouco solitária, mas há uma residência maravilhosa... detesto a palavra e estou a pensar ir para lá viver. O tipo de apartamento que desejo acaba de ficar disponível lá.

 

Depois, enquanto o empregado servia os cafés, rogou insistentemente:

 

. Maggie, vem visitar-me, por favor. De carro, a viagem de Nova Iorque não leva mais de três horas.

 

Com muito prazer respondeu Maggie.

 

Estás a falar a sério?

 

Claro que sim. Agora, que te encontrei, não vou deixar-te escapar de novo. Além do mais, sempre tive a ideia de ir a Newport. Tanto quanto sei, é um verdadeiro paraíso para qualquer fotógrafo. Na verdade...

 

Estava prestes a contar a Nuala que, a partir da próxima semana, reservara alguns dias na sua agenda para umas férias bem merecidas quando ouviu alguém dizer:

 

Vi logo que te encontraria aqui.

 

Surpreendida, Maggie olhou para cima. Junto delas estavam Liam e o primo Earl Bateman.

 

Fugiste de mim disse Liam em tom de reprovação. Earl inclinou-se para beijar Nuala.

 

Está metida em sarilhos por lhe ter roubado a namorada. Como é que as duas se conhecem?

 

É uma longa história sorriu Nuala. Earl também vive em Newport explicou a Maggie. É professor de Antropologia na Faculdade Hutchinson, em Providence.

 

Estava certa quanto ao tipo estudioso dele», pensou Maggie. Liam puxou uma cadeira de uma mesa próxima e sentou-se.

 

Têm de permitir que tomemos uma bebida convosco. Sorriu para Earl.E não se preocupem com Earl. É estranho, mas inofensivo. Alinha da família dele está ligada ao negócio funerário há mais de cem anos. Eles enterram pessoas. Ele desenterra-as! É um devastador de túmulos. Ainda por cima, ganha dinheiro para falar nisso.

 

Maggie ergueu o sobrolho enquanto os outros se riram.

 

Dou aulas sobre os rituais fúnebres ao longo dos tempos explicou Earl Bateman com um leve sorriso. Alguns podem achar o assunto macabro, mas eu adoro.

 

                       Sexta-feira, 27 de Setembro

 

Ele caminhava rápido ao longo de CliffWalk, o cabelo esvoaçando com a forte brisa do oceano que se levantara durante o fim da tarde. O sol estivera maravilhosamente quente no pino do dia mas, agora, os seus raios mostravam-se ineficazes contra o vento frio. Para ele, a mudança do ar reflectia a qualidade de mudança do seu próprio humor.

 

Até agora, fora bem sucedido no seu plano de acção, mas, com o jantar de Nuala dali a apenas duas horas, sentia-se invadido por uma premonição. Nuala começara a desconfiar e iria desabafar com a enteada. Tudo poderia começar a deslindar-se.

 

Os turistas não tinham ainda abandonado Newport. Na verdade, havia uma abundância deles, visitantes fora de época, ansiosos por espreitarem as mansões geridas pela Sociedade de Preservação, por abrirem as bocas de assombro perante as relíquias de tempos passados antes que a maioria encerrasse até à próxima Primavera.

 

Mergulhado em pensamentos, parou quando chegou ao The Breakers, aquela soberba jóia de ostentação, aquele palácio americano, aquele exemplo, de tirar a respiração, do que o dinheiro, a imaginação e a ambição desmesurada conseguiam alcançar. Erigido no início dos anos 1890 para Cornelius Vanderbilt II e sua esposa, Alice, foi gozado pelo próprio Vanderbilt apenas por um breve período. Paralisado devido a uma apoplexia em 1895, faleceu em 1899.

 

Demorando-se um pouco mais em frente do The Breakers, sorriu. Fora a história de Vanderbilt que lhe dera a ideia.

 

Mas, agora, tinha de agir com rapidez. Acelerando o ritmo da caminhada, passou pela Universidade Salve Regina, outrora conhecida por Ochre Court, uma extravagância de cem aposentos que se erguia esplêndida contra o horizonte, as suas paredes em calcário e telhado de mansarda impecavelmente preservados. Cinco minutos mais tarde, chegou a Latham Manor, o edifício magnífico que constituíra um digno e o mais estético concorrente à vulgaridade do The Breakers. Outrora, a propriedade, orgulho da excêntrica família Latham, caíra no abandono durante a vivência do último Latham. Salvo da ruína e restaurado de molde a reflectir grande parte da sua anterior grandeza, era agora a

residência de abastados reformados, esgotando os seus últimos anos em opulência.

 

Estacou, deleitando os olhos com o majestoso exterior em mármore branco de Latham Manor. Enfiou a mão na algibeira mais funda do seu corta-vento e retirou um telefone celular. Ligou com rapidez e sorriu levemente quando a voz que ele esperava respondeu. Significava uma coisa menos com que tinha de se preocupar mais tarde.

 

Disse quatro palavras:

 

Logo à noite não.

 

Então, quando? inquiriu uma voz calma e reservada após uma breve pausa.

 

Ainda não sei bem. Tenho de tratar de outra coisa. A sua voz era dura. Não permitia perguntas sobre as decisões que tomava.

 

Com certeza. Desculpa.

 

Interrompendo a ligação sem mais comentários, voltou-se e começou a caminhar rapidamente.

 

Estava na hora de se preparar para o jantar de Nuala.

 

Nuala Moore cantarolava em voz baixa enquanto cortava tomates sobre a tábua na sua cozinha alegremente desordenada, os movimentos rápidos e confiantes. O sol do fim de tarde estava prestes a pôr-se e uma brisa forte fazia bater a janela por cima do lava-louças. Podia já sentir algum frio infiltrando-se através da parede traseira, deficientemente isolada.

 

Mesmo assim, sabia que a cozinha era acolhedora e convidativa, com o seu papel colonial vermelho e branco, linóleo cor de tijolo gasto e prateleiras e armários em pinho. Quando terminou de cortar os tomates, pegou nas cebolas. Uma salada de tomate e cebola marinada em óleo e vinagre, generosamente salpicada com orégãos, constituía o acompanhamento perfeito para uma perna de carneiro assada. Mantinha os dedos cruzados para que Maggie ainda adorasse carneiro. Quando pequena, era um dos seus pratos predilectos. «Talvez tivesse sido melhor ter-lhe perguntado», pensou Nuala, «mas quero surpreendê-la.» Pelo menos sabia que Maggie não era vegetariana; pedira vitela na noite em que estiveram juntas em Manhattan.

 

As batatas agitavam-se já no tacho grande. Depois de cozidas, escorreria a água, mas só as passaria no último instante. Um tabuleiro com biscoitos prontos a estalar no forno. As ervilhas e cenouras estavam todas preparadas, prontas a serem cozinhadas a vapor antes de sentar os seus convidados.

 

Nuala espreitou para a sala de jantar, verificando mais uma vez. A mesa estava posta. Ocupara-se dessa tarefa logo pela manhã. Maggie ficaria sentada na sua frente, na outra cadeira de convidados. Um gesto simbólico, como sabia. Co-anfitriãs esta noite, qual mãe e filha.

 

Encostou-se à ombreira da porta por momentos, reflectindo. Seria maravilhoso ter, por fim, alguém com quem partilhar a sua terrível preocupação. Esperaria um dia ou dois, e depois diria: «Maggie, preciso de falar contigo sobre algo importante. Tinhas razão, estou preocupada com uma coisa. Talvez esteja doida ou não passe de uma velha patética e desconfiada, mas...»

 

Seria tão bom poder falar com Maggie sobre as suas suspeitas. Já em criança ela possuía uma mente prática e analítica. «Finn-u-ala, era assim que começava quando desejava partilhar uma confidência, a sua forma de me indicar que se tratava de uma discussão séria», recordou Nuala.

 

«Deveria ter esperado por amanhã à noite para esta festa», pensou. «Deveria ter dado oportunidade a Maggie para, ao menos, recuperar o fôlego. Oh, enfim, é mesmo característico da minha pessoa... ajo sempre primeiro e só depois penso.»

 

Mas queria mostrar Maggie aos seus amigos, depois de tanto ter falado nela. Além do mais, quando os convidou para jantar, pensava que Maggie chegaria um dia antes.

 

Mas Maggie telefonara ontem dizendo que tinha um problema com um dos seus trabalhos, o qual iria levar um dia mais a terminar do que antecipado. «O director artístico é um tipo nervoso e ficou em agonia durante a sessão», explicara, «por isso só posso recomeçar por volta do meio-dia de amanhã. Mesmo assim, deverei estar aí por volta das quatro, quatro e meia.

 

Às quatro, Maggie telefonara.

 

Nuala, tentei ligar algumas vezes mais cedo, mas a tua linha manteve-se ocupada por algum tempo. Estou mesmo a terminar e vou já seguir para o carro.

 

Não faz mal, desde que venhas a caminho.

 

Só espero conseguir chegar antes dos convidados, para que possa ter tempo de trocar de roupa.

 

Oh não tem importância. Conduz com prudência que eu entretenho--os com cocktails até chegares. Negócio fechado. Vou partir.

 

Pensando na conversa, Nuala sorriu. Teria sido horrível se Maggie tivesse ficado retida mais um dia. «A esta altura, deve encontrar-se próximo de Bridgeport», pensou. É provável que depare com algum trânsito da hora de ponta, mas, pelo menos, está a caminho. Santo Deus, Maggie está a caminho de minha casa.»

 

Uma vez que não havia mais nada que pudesse fazer por agora, Nuala decidiu sentar-se e assistir ao noticiário da noite. Ficaria ainda com tempo para tomar um banho quente e relaxante antes de as pessoas começarem a chegar.

 

Preparava-se para sair da cozinha quando ouviu uma pancada na porta das traseiras. Antes de poder olhar pela janela para ver quem era, a maçaneta girou. Por instantes, ficou surpreendida, mas, quando a porta se abriu e o visitante entrou, Nuala sorriu calorosamente.

 

Olá disse. Estou satisfeita por o ver, mas só deveria chegar daqui a duas horas, pelo que não pode ficar muito tempo.

 

Não tenciono ficar por muito tempo respondeu o visitante calmamente.

 

Depois de a mãe se ter mudado para a Florida, vendendo a casa que fora o presente de casamento do velho Squire à avó de Liam, Liam Moore Payne adquiriu um condomínio na Willow Street. Usava-o regularmente durante o Verão mas, mesmo depois de o seu veleiro ficar armazenado no final da época, vinha frequentemente de Boston aos fins-de-semana a fim de escapar ao mundo da finança internacional.

 

O condomínio, uma espaçosa habitação de quatro divisões com tectos altos e um terraço sobranceiro à baía de Narragansett, estava mobilado com as peças escolhidas da casa familiar. Quando ela se mudou, a mãe dissera: «Estas coisas não funcionam na Florida e, de qualquer forma, nunca gostei particularmente delas. Fica tu com isto. És como o teu pai. Adoras esta mobília velha e pesada.»

 

Quando Liam saiu do duche e pegou na toalha, pensou no pai. Seria assim tão parecido com ele?, interrogou-se. Depois de chegar a casa após um dia de negociações no mercado sempre mercurial, o pai dirigia-se directamente ao bar no escritório e preparava um martini muito seco e muito gelado. Bebericava-o pausadamente e depois, visivelmente descontraído, subia as escadas para tomar banho e vestir-se para a noite.

 

Liam limpou-se vigorosamente, sorrindo perante o pensamento de que ele e o pai pudessem ser muito parecidos, embora diferissem nos pormenores. Os banhos quase rituais do pai teriam levado Liam à loucura; preferia um acolhedor duche. De igual forma, preferia o martini depois de tomar banho, não antes.

 

Dez minutos mais tarde, Liam encontrava-se no bar do escritório, despejando cuidadosamente uma vodca Finlândia para uma taça de prata arrefecida e cheia de gelo, agitando de seguida. Depois, deitando a bebida para um delicado copo de pé alto, borrifou com uma ou duas gotas de sumo de azeitona, hesitou, e, com um suspiro apreciador, deu o primeiro trago.

 

Ámen exclamou em voz alta.

 

Eram oito e dez. Devia estar em casa de Nuala dentro de dez minutos, mas, como levaria pelo menos nove minutos a chegar lá de carro, não estava preocupado em não chegar precisamente a horas. Qualquer um que conhecesse Nuala sabia que a hora marcada para a festa se poderia prolongar até às nove, ou mesmo mais tarde.

 

Liam decidiu permitir-se a si próprio um pouco de repouso. Afundou-se no bonito sofá coberto com couro marroquino castanhoescuro e pousou cuidadosamente os pés sobre uma antiga mesa de café, a qual estava talhada de forma a assemelhar-se a uma pilha de velhos livros de contabilidade.

 

Cerrou os olhos. Fora uma semana longa e exaustiva, mas o fim-de--semana prometia ser interessante.

 

O rosto de Maggie flutuou na sua mente. Era uma notável coincidência o facto de ela ter uma ligação com Newport, uma ligação muito forte, ao que parecia. Ficou perplexo quando se inteirou da relação que ela tinha com Nuala.

 

Lembrou-se de como ficara aborrecido quando se apercebera de que Maggie deixara a festa no Four Seasons sem o avisar. Irritado consigo próprio por a ter negligenciado tão sistematicamente, ficara ansioso por a encontrar e esclarecer a situação. Ao ser informado de que Maggie fora vista a sair com Nuala antes do jantar, tivera um palpite de que pudessem estar no II Tinello. Para uma mulher jovem, Maggie era muito conservadora nos seus hábitos.

 

Maggie. Relembrou a sua imagem por momentos, o lindo rosto, a inteligência e energia que irradiava.

 

Liam terminou o martini e, com um suspiro, içou-se do confortável lugar. Estava na hora de ir, pensou. Verificou a sua aparência no espelho do átrio, notando que a gravata Hermes vermelha e azul que a mãe lhe enviara pelo aniversário condizia muito bem com o blazer azul, embora talvez tivesse ficado melhor uma tradicional às riscas. Encolhendo os ombros, decidiu não se preocupar com isso; eram realmente horas de sair.

 

Pegou nas chaves e, trancando a porta, partiu para o jantar em casa de Nuala.

 

Earl Bateman encontrava-se estendido sobre o sofá, um copo de vinho na mão e o livro que terminara de ler na mesa ao lado. Sabia que estava na altura de trocar de roupa para a festa de Nuala, mas o descanso sabia-lhe bem. Além do que aproveitou a pausa para reflectir sobre os acontecimentos da passada semana.

 

Antes de ter vindo de Providence, terminara de corrigir os testes feitos pela sua turma de Antropologia 101 e foi com agrado que verificou que todos os alunos, com excepção de uns poucos, tinham alcançado notas entre os 17 e os 20. O que revelava que o semestre iria ser interessante e talvez mesmo um desafio, decidiu.

 

Podia agora antever com expectativa os fins-de-semana em Newport, misericordiosamente libertos dos restaurantes apinhados de gente e dos engarrafamentos monstruosos, tão típicos da estação do Verão.

 

Earl habitava na ala dos hóspedes da casa de família, Squire Hall, a casa que Squire Moore edificara para a filha mais nova por altura do casamento dela com Gordon Bateman, «o cangalheiro», como Squire lhe chamava, pelo facto de os Bateman dirigirem agências funerárias há quatro gerações.

 

De todas as residências com que presenteou os seus sete filhos, esta era de longe a mais exígua, prova evidente de que se opunha ao casamento. Não era uma questão pessoal, mas Squire tinha um terror à morte e chegou mesmo a proibir que essa palavra fosse pronunciada na sua presença. Trazer para o seio da família o homem que, inquestionavelmente, se ocuparia dos rituais inerentes ao seu próprio enterro, seria a contínua lembrança da palavra proibida.

 

A reação de Gordon Bateman fora convencer a esposa a atribuir O nome de Squire Hall à sua casa, um tributo escarnecedor ao sogro.

 

É uma subtil chamada de atenção para o facto de nenhum dos seus outros filhos ter pensado em homenageá-lo daquela forma.

 

Earl sempre acreditara que o seu próprio nome fora mais uma piada para com Squire, dado que o velho homem sempre tentara dar a impressão de que o seu nome provinha de várias gerações de Moores que, no condado de Dingle, possuíam o título honorário de squire. Um squire, em Dingle, tirava o chapéu em homenagem e na presença de um earl.

 

Depois de Earl ter finalmente convencido o pai de que não tencionava tornar-se o próximo gerente dos funerais Bateman, os pais venderam a agência funerária a uma companhia privada, a qual manteve o nome da família e contratou um gerente para a administrar.

 

Os seus pais passavam agora nove meses por ano na Carolina do Sul, próximo das suas irmãs casadas, e tinham solicitado a Earl que ficasse a viver na casa durante esses meses, oferta que declinou. Aquela ala foi remodelada a seu gosto, com os seus livros e artefactos protegidos em armários de portas de vidro, ficando assim a salvo de qualquer descuido ao serem limpos do pó. Tinha também uma vista geral do Atlântico; Earl considerava o mar como algo infinitamente repousante.

 

Repousante. Esse era provavelmente o mundo que mais valorizava.

 

Na medida do possível, permanecera distanciado na turbulenta reunião em Nova Iorque dos descendentes de Squire Moore, limitando-se a observar as pessoas. Tentou não ser demasiado crítico, mas não alinhou nas histórias «consegues superar isto?» deles. Parecia que o objectivo dos seus primos se concentrava em gabarem-se de como estavam a sair-se bem na vida e, tal como Liam, todos eles adoravam regalarem-se uns aos outros com histórias artificiais sobre o seu excêntrico e ocasionalmente cruel antepassado.

 

Earl sabia também como alguns dos seus primos adoravam troçar do passado do seu pai, gerente funerário de quarta-geração. Na reunião, escutara indirectamente a conversa de dois deles, depreciando-o e escarnecendo sobre cangalheiros e a sua profissão.

 

Que se lixassem todos, pensou naquele momento, colocando os pés no chão e sentando-se. Faltavam dez minutos para as oito, eram mais do que horas de se pôr em movimento. Não estava

 

Em inglês, «nobre rural». (N. da T.)

Em inglês, «conde». (N. da T.)

 

ancioso pela festa de Nuala naquela noite, mas, por outro lado, Maeeie Holloway estaria lá. Era extremamente atraente...

 

Sim, a presença dela seria a garantia de que a noite não se tornaria enfadonha.

 

O Dr. William Lane, director da Residência Latham Manor, olhou para o relógio pela terceira vez em cinco minutos. Ele e a mulher eram esperados na casa de Nuala Moore às oito horas; faltavam agora dez minutos para as oito. Homem corpulento e calvo, com cerca de 50 anos, o Dr. Lane tinha um trato apaziguador com os seus doentes uma atitude de indulgência que não aplicava à esposa de 39 anos.

 

Odile chamou, pelo amor de Deus, despacha-te.

 

Vou já. A voz dela, sussurrada e musical, flutuou pelas escadas abaixo da sua casa, uma estrutura que fora outrora a cavalariça de Latham Manor. Momentos depois, apareceu a correr na sala de estar, colocando ainda um brinco.

 

Estive a ler para Mrs. Patterson disse. Sabes como é, William. Ainda não está habituada à residência e sente-se ofendida pelo facto de o filho ter vendido a casa dela sem o seu consentimento.

 

Há-de acabar por adaptar-se afirmou Lane, em forma de repúdio. No fim, toda a gente parece ter conseguido ser feliz aqui.

 

Eu sei, mas, por vezes, leva algum tempo. Odile dirigiu-se ao espelho por cima da lareira de mármore esculpida. Que tal estou? Sorriu para o seu reflexo de olhos largos e cabelos louros.

 

Encantadora. Como sempre disse Lane sucintamente. Que sabes sobre esta enteada de Nuala?

 

Nuala falou-me dela quando visitou Greta Shipley, na segunda-feira passada. Chama-se Maggie, e Nuala esteve casada com o pai dela há alguns anos. Vai ficar durante duas semanas. Nuala parece muito feliz com isso. Não achas uma ternura o facto de se terem encontrado de novo?

 

Sem responder, o Dr. Lane abriu a porta e ficou na entrada. Estás muito bem-disposto», pensou Odile, passando por ele e descendo as escadas para o carro. Parou por momentos e fitou Latham Manor, a sua fachada em mármore reluzindo ao luar.

 

Com alguma hesitação, sugeriu:

 

Queria informar-te de que, quando estive com Mrs. Hammond, esta revelava uma certa dificuldade em respirar e alguma palidez. Não será melhor ires vê-la antes de sairmos?

 

Já estamos atrasados respondeu o Dr. Lane impaciente, abrindo a porta do carro. Se for necessário, estarei em condições de regressar no espaço de dez minutos, mas posso assegurar-te que Mrs. Hammond estará bem esta noite.

 

Malcolm Norton não estava muito ansioso por aquela noite. Sendo um homem de cabelo prateado e postura erecta e militar, revelava uma aparência imponente. No entanto, essa aparência ocultava uma mente perturbada.

 

O telefonema de Nuala, há três dias atrás, convidando-o para o jantar para que conhecesse a enteada, fora um choque não propriamente o convite para o jantar, mas a notícia inesperada de que Nuala tinha uma enteada.

 

Sendo advogado e trabalhando sozinho, Norton vira a sua lista de clientes reduzida drasticamente nos últimos anos, em parte devido ao desgaste. Tornara-se quase perito em causas envolvendo bens imobiliários de falecidos mas também, tinha a certeza, à chegada de diversos advogados, jovens e agressivos, àquela zona.

 

Nuala Moore era um dos seus poucos clientes remanescentes, e Norton pensava conhecer integralmente os negócios dela. Nunca antes mencionara a existência de uma enteada.

 

Há já algum tempo que Malcolm Norton vinha convencendo Nuala a vender a casa e a mudar-se para a residência de Latham Manor. Até recentemente, ela tinha mostrado sinais de concordar que essa seria uma boa alternativa. Admitira que, desde o falecimento do marido, Tim, a casa estava vazia e os custos de manutenção eram cada vez mais onerosos.

 

Sei que precisa de um telhado novo, que o sistema de aquecimento é antiquado e que qualquer pessoa que a comprasse desejaria instalar um ar-condicionado central dissera-lhe. Acha que conseguiria duzentos mil por ela?

 

Norton reagira cautelosamente, respondendo:

 

Nuala, o mercado imobiliário nesta zona regista uma quebra depois do Dia do Trabalho1. Talvez no próximo Verão seja possível

 

Feriado nos E. U. A., na primeira segunda-feira de Setembro. (N. da T.)

 

conseguir esse valor. Mas quero vê-la bem instalada. Se estiver disposta a mudar-se para Latham agora, tiro-lhe a casa das mãos a esse preço e faço alguns arranjos. Acabarei por recuperar o meu dinheiro e você deixa de ter preocupações nesse campo. Com o dinheiro do seguro de Tim e a venda da casa, poderá usufruir das melhores acomodações em Latham, talvez até transformar um aposento num estúdio para si.

 

Isso agradar-me-ia. Vou entregar a minha candidatura dissera Nuala na altura. Beijara-o então no rosto. Tem sido um bom amigo, Malcolm.

 

Vou tratar dos papéis. Tomou a decisão correcta.

 

O que Malcolm não contara a Nuala fora uma informação recebida de um amigo de Washington. Uma proposta de alteração à legislação sobre protecção ambiental estaria prestes a ser aprovada, o que significava que algumas propriedades protegidas agora pela Lei de Preservação das Zonas Marítimas ficariam isentas de restrições de desenvolvimento. Toda a extremidade direita da propriedade de Nuala estaria incluída nessa alteração. Com a drenagem do lago e o abate de algumas árvores, a vista para o oceano seria espectacular, raciocinou Malcolm. Pessoas endinheiradas desejavam aquela vista. Pagariam muito pela propriedade. Provavelmente, derrubariam até a velha casa e construiriam uma três vezes maior, voltada para o oceano. Pelos seus cálculos, só a propriedade valeria à volta de um milhão de dólares. Se tudo corresse conforme planeado, obteria um lucro de oitocentos mil dólares no espaço de um ou dois anos.

 

Poderia então prosseguir com a sua vida. Com o lucro obtido com a venda da propriedade, disporia do rendimento necessário para fazer as contas com a mulher, Janice, reformar-se e mudar-se para a Florida com Barbara.

 

Como a sua vida mudara desde que Barbara começara a trabalhar para ele como secretária legítima! Sete anos mais nova, era uma bela viúva de 56. Os filhos estavam criados e espalhados pelo país, pelo que aceitara o emprego no escritório de Norton apenas para se manter ocupada. Contudo, não demorou muito tempo até que a atracção mútua entre eles se tornasse palpável. Tratava-o com todo o carinho que Janice nunca lhe concedera.

 

Mas não era o tipo de mulher que se envolvesse num caso amoroso passageiro isso, deixara-o bem claro. Se a queria, teria de se apresentar como solteiro. E tudo o que era necessário para que isso acontecesse era dinheiro, disse a si mesmo. Depois...

 

Então, estás pronto?

 

Malcolm olhou para cima. A mulher, de 35 anos, estava na sua frente, de braços cruzados.

 

Se tu estás disse.

 

Chegara a casa tarde e fora directamente para o quarto. Era a primeira vez que via Janice desde a manhã.

 

Como foi o teu dia? perguntou, em tom de cortesia.

 

Como são sempre os meus dias?retorquiu ela rispidamente. A lidar com livros num lar? Mas, ao menos, um de nós traz regularmente para casa um ordenado.

Às 7:50 da noite, Neil Stephens, director-geral da Companhia de Investimentos Carson & Parker, levantou-se e espreguiçou-se. Era o único que ainda se encontrava no escritório no World Trade Center 2, com excepção da equipa de limpeza, que ouvia aspirar algures no fundo do corredor.

 

Na sua qualidade de executivo sénior da firma, possuía um espaçoso gabinete de canto que lhe oferecia uma vista geral de Manhattan, vista essa que, infelizmente, tinha pouco tempo para apreciar. Tal fora o caso hoje, especialmente.

 

O mercado apresentara-se extremamente volátil nos últimos dias e algumas das acções na lista C&P «altamente recomendável» registara ganhos frustrantes. Todas as acções eram sólidas e uma variação negativa de preço naquele momento não constituía realmente um problema. O que representava um problema era que muitos pequenos investidores ficavam então ansiosos por vender, pelo que lhe competia a ele, e ao seu pessoal, convencê-los a serem pacientes.

 

«Bom, por hoje chega», pensou Neil. «Está na hora de sair daqui.» Olhou em volta, em busca do casaco, e localizou-o numa das cadeiras na «área de conversação», um agrupamento de mobiliário confortável que concedia à sala o que o decorador de interiores chamara «uma atmosfera amiga do cliente».

 

Sorrindo ao ver como o casaco ficara amarrotado, sacudiu-o e enfiou os braços nas mangas. Neil era um homem grande, que, aos

37, conseguia manter o corpo musculado e liberto de gorduras através de um programa de disciplinado exercício, incluindo sessões de raquetebol duas noites por semana. Os resultados dos seus esforços eram visíveis, e era um homem constrangedoramente atraente, com penetrantes olhos castanhos que traduziam inteligência e um sorriso fácil que inspirava confiança. Na verdade, era merecedor dessa confiança, pois, tal como os seus sócios e amigos sabiam, Neil Stephens raramente falhava.

 

Alisou as mangas do casaco recordando-se de que a sua assistente, Trish, o pendurara naquela manhã, mas que, propositadamente, o ignorara quando ele o voltara a atirar para cima da cadeira depois do almoço.

 

- As outras assistentes ficam zangadas comigo quando cuido demasiado desses pormenores-dissera-lhe ela. -Além do mais, cansada estou eu de apanhar as coisas do meu marido. Até que ponto uma mulher consegue aguentar?

 

Neil sorriu perante a lembrança, mas o sorriso desvaneceu-se quando se apercebeu de que se esquecera de ligar a Maggie para ficar com o número de telefone de Newport. Precisamente naquela manhã, decidira ir a Portsmouth no fim-de-semana seguinte, para o aniversário da mãe; desta forma, ficaria a escassos minutos de Newport. Maggie dissera-lhe que ficaria por lá umas duas semanas, com a madrasta. Tinha pensado em reunir-se a ela em Newport.

 

Ele e Maggie conheciam-se desde o início da Primavera, quando se encontraram num estabelecimento comercial na Second Avenue, na esquina dos seus edifícios de apartamentos, na East Fifty-sixth Street. Tinham começado a conversar aí sempre que os seus caminhos se cruzavam; depois encontraram-se uma noite no cinema. Sentaram-se juntos e foram jantar ao Near’s Pub.

 

Inicialmente, o que agradou a Neil foi o facto de Maggie encarar, tal como ele, os encontros de forma tão casual. Não havia qualquer indicação da parte dela de que os via aos dois como algo mais que meros amigos partilhando os mesmos interesses cinematográficos. Parecia tão envolvida no seu trabalho quanto ele.

 

Contudo, após seis meses destes encontros ocasionais, o facto de Maggie continuar a agir desinteressadamente em relação a ele, vendo-o apenas como um mero acompanhante para um agradável filme e jantar, começou a aborrecer Neil. Sem se aperceber de que tal acontecia, viu-se cada vez mais ansioso por estar com ela, por aprender tudo o que fosse possível sobre ela. Sabia que ficara viúva há cinco anos, algo que ela mencionara sem grande ênfase, num tom sugerindo que, emocionalmente, pusera esse facto para detrás das costas. No entanto, agora, começava a interrogar-se se ela não teria um namorado. A interrogar-se e a preocupar-se.

 

Depois de pensar por instantes, Neil decidiu verificar se Maggie teria deixado o número de Newport no atendedor automático. De volta à secretária, escutou a mensagem gravada: «Olá, é da casa de Maggie Holloway. Obrigada por ter ligado. Estarei fora da cidade até 13 de Outubro.» A máquina desligou. Obviamente, não estava interessada em receber mensagens.

 

«Óptimo», pensou, mal-humorado, pousando o auscultador e dirigindo-se para a janela. Manhattan estendia-se a seus pés, chamejante de luzes. Olhou para as pontes de East River e lembrou-se de que, quando dissera a Maggie que o seu escritório ficava no quadragésimo-segundo andar do World Trade Center, ela lhe contara sobre a primeira vez que fora a um cocktail no Windows, nesse edifício.

 

Estava a anoitecer. As luzes nas pontes acenderam-se e, então, todos os edifícios e luzes das ruas começaram a luzir. Era como presenciar o momento em que uma dama vitoriana colocava as jóias... colar, braceletes, anéis, até uma tiara.

 

A imagem viva permanecera com Neil.

 

Tinha uma outra imagem de Maggie, mas esta perturbava-o. Há três semanas atrás, num sábado, fora ao Cinema I para ver o clássico com cerca de 30 anos do cinema francês Um Homem e Uma Mulher. A sala não estava cheia e, mais ou menos a meio do filme, reparou que Maggie se encontrava sozinha algumas filas mais à frente. Preparava-se para se juntar a ela quando se apercebeu de que Maggie chorava. Lágrimas silenciosas rolavam-lhe pelo rosto, e mantinha as mãos na boca para evitar os soluços, ao assistir à história de uma jovem viúva que não conseguia aceitar a morte do marido.

 

Apressara-se a sair no final do filme, não querendo que ela o visse, pensando que ficaria embaraçada por se encontrar tão emocionalmente vulnerável.

 

Mais tarde nessa noite, jantava com amigos no Neary’s quando Maggie entrou. Passara pela mesa dele para o cumprimentar e juntara-se a um grupo na mesa grande do canto. Nada deixava transparecer no seu rosto ou comportamento que, algumas horas antes, assistira a um filme e se identificara com uma jovem viúva de coração desfeito. «Raios!», pensou Neil, «agora vai estar fora pelo menos durante duas semanas e não tenho forma de a contactar. Não faço sequer ideia de como se chama a madrasta.»

 

Tirando aquele nervoso director artístico, fora uma boa semana, reflectiu Maggie ao virar na Estrada 138, em Newport. Ambas as sessões fotográficas da semana tinham corrido excepcionalmente bem, sobretudo aquela para a Vogue.

 

Mas, depois da meticulosa atenção que tivera de prestar ao modo como a câmara captava cada prega dos astronomicamente caros vestidos que fotografava, era uma óptima sensação vestir uns jeans e uma camisa axadrezada. Na verdade, com excepção de uma blusa em seda azul e uma saia comprida a condizer, que planeava usar naquela noite para o jantar de Nuala, tudo o que trouxera para vestir nestas férias era bastante casual.

 

«Vamos divertir-nos imenso», pensou. «Duas semanas ininterruptas em Newport. Nuala e eu vamos realmente ter oportunidade de conversar sobre as nossas vidas!» Sorriu ao pensar nisto.

 

Fora uma surpresa quando Liam telefonara dizendo que também ele estaria na casa de Nuala naquela noite, embora Maggie devesse ter percebido já que Liam passava bastante tempo em Newport.

 

A viagem desde Boston é bastante fácil salientara ele.

 

Passo lá os fins-de-semana com frequência, sobretudo fora da época.

 

Não sabia respondera ela.

 

Há muita coisa que não sabes a meu respeito, Maggie. Se não estivesses tantas vezes fora... E talvez se não vivesses em Boston e usasses tão pouco o teu apartamento de Nova Iorque...

 

Maggie sorriu de novo. «Liam é divertido», pensou, «embora esteja sério durante a maior parte do tempo.» Parando num sinal vermelho, olhou para baixo e verificou de novo o caminho. Nuala vivia mesmo à saída do lendário Ocean Drive, na Garrison Avenue.

 

Do terceiro andar, até consigo ver o oceano explicara Nuala. Espera só até veres a casa e o meu estúdio.

 

Telefonara três vezes durante a semana a fim de se assegurar de que não houvera alteração de planos.

 

Vens, não vens, Maggie? Não me vais desapontar?

 

Claro que não assegurara-lhe. No entanto, Maggie interrogara-se se seria apenas sua imaginação ou haveria algo na voz de Nuala, uma inquietação que detectara talvez no seu rosto na noite em que jantaram em Manhattan. Na ocasião, pensara que o marido de Nuala falecera apenas no ano passado e que ela começava também a perder os amigos, um dos preços que se pagavam por se viver o suficiente até envelhecer. Naturalmente, deveria igualmente estar a ter uma sensação de mortalidade, reflectiu.

 

Detectara a mesma expressão nos rostos de residentes de lares que fotografara para a revista Life no ano anterior. Uma mulher afirmara melancolicamente: «Por vezes, preocupa-me muito que não reste ninguém que se recorde de mim quando era nova.»

 

Maggie estremeceu, apercebendo-se então de que a temperatura no carro descera rapidamente. Desligando o ar-condicionado, abriu um pouco o vidro e respirou o penetrante cheiro do oceano que pairava no ar. «Quando uma pessoa é criada no Midwest», pensou, «nunca consegue fartar-se do oceano.»

 

Consultando o relógio, apercebeu-se de que faltavam dez minutos para as oito. Mal iria ter tempo para se refrescar e trocar de roupa antes de os outros convidados começarem a chegar. Pelo menos, telefonara a Nuala para a informar de que já saíra tarde. Dissera-lhe que chegaria mais ou menos àquela hora.

 

Virou na Garrison Avenue e viu o oceano na sua frente. Abrandou o automóvel e estacou diante de uma encantadora vivenda revestida a madeira, com um telhado também em madeira já batida pelo tempo e um alpendre em redor. Esta tinha de ser a casa de Nuala, pensou, mas parecia tão às escuras. Não havia nenhuma luz acesa no exterior, e conseguia detectar apenas uma leve luminosidade através das janelas da frente.

 

Apeou-se e, sem se preocupar em abrir o porta-bagagens para tirar a mala, correu pelas escadas acima. Expectante, tocou à campainha. Do interior, chegou até ela o som abafado de carrilhões.

 

Enquanto aguardava, cheirou o ar. As janelas voltadas para a frente estavam abertas, e pensou detectar um cheiro intenso a queimado, vindo de dentro. Premiu de novo a campainha e, de novo, os carrilhões ecoaram através da casa.

 

Ainda nenhuma resposta, nenhum som de passos. Algo estava errado, pensou, ansiosamente. Onde estava Nuala? Maggie dirigiu-se à janela mais próxima e agachou-se, esforçando-se por ver para lá das franjas rendilhadas da cortina parcialmente corrida, por entre a escuridão interior.

 

Repentinamente, a sua boca ficou seca. O pouco que conseguia ver da sala obscura sugeria que se encontrava numa desordem total. O conteúdo de uma gaveta estava espalhado na carpete feita à mão e a própria gaveta estava casualmente encostada à otomana. A lareira ficava oposta às janelas e era flanqueada por armários. Todos se encontravam abertos.

 

A única luz fraca que existia provinha de um par de candeeiros por cima da cornija da lareira. Quando os seus olhos se ajustaram à penumbra, Maggie conseguiu distinguir um único sapato de saltos altos, voltado de lado em frente da lareira.

 

Que era aquilo? Pestanejou e inclinou-se para a frente, apercebendo-se então de que estava a ver um pé calçado com meias, estendendo-se por detrás de um assento de dois lugares próximo do local onde o sapato caíra. Regressou à porta e experimentou a maçaneta, mas estava trancada.

 

Cegamente, correu para o automóvel, pegou no telefone do carro e ligou o 911. Parou então, recordando-se: o seu telefone estava adstrito a um código da área de Nova Iorque. Encontrava-se em Rhode Island; o número de telefone de Nuala iniciava-se por um código de área 401. Com os dedos a tremer, ligou 401911. Quando a chamada foi atendida, conseguiu dizer:

- Estou na Garrison Avenue, 1, em Newport. Não consigo entrar. Vejo alguém estendido no chão. Penso que é Nuala.

 

«Estou a balbuciar», disse a si mesma. «Pára com isso.» Mas, enquanto lhe eram feitas perguntas calmas e sem pressas, a mente de Maggie gritava com absoluta certeza três palavras: «Nuala está morta.»

 

O chefe da Polícia de Newport, Chet Brower, afastou-se para que o fotógrafo da Polícia pudesse registar a cena do crime. Para além do facto arrebatador de alguém na sua jurisdição ter sido brutalmente assassinado-Nuala Moore sofrera múltiplos golpes na cabeça -, havia algo em todo aquele cenário que o perturbava.

 

Há meses que não se registavam participações de assaltos a casas naquela área. Esse tipo de coisas começava quando muitas casas eram encerradas para o Inverno, tornando-se alvo predilecto de ladrões que procuravam televisores e aparelhos semelhantes. Era surpreendente como tantas pessoas ainda não possuíam um sistema de alarme, pensou Brower. Surpreendente era também o facto de tantas pessoas serem descuidadas em trancarem as portas.

 

O chefe viera no primeiro carro-patrulha a responder à chamada do 911. Quando chegaram à casa, e a jovem que se identificara como enteada de Mrs. Moore apontou para a janela da frente, espreitara para dentro e vira precisamente o que ela relatara. Antes de forçar a porta da frente, ele e o detective Jim Haggerty tinham ido às traseiras da casa. Tocando na maçaneta da porta com extrema cautela, por forma a evitar danificar possíveis impressões digitais, verificara que a porta estava destrancada e, sendo assim, entrou.

 

Uma chama continuava acesa por debaixo de um tacho, agora totalmente preto. O cheiro acre de batatas carbonizadas sobrepunha-se a um outro aroma mais agradável. Carneiro assado, registara a sua mente. Automaticamente, desligara o forno antes de passar pela sala de jantar em direcção à zona de estar.

 

Não se apercebera de que a enteada os seguira até chegarem junto do corpo e terem ouvido o gemido dela.

 

Oh, Nuala, Finn-u-ala dissera ela, caindo de joelhos. Estendeu a mão na direcção do corpo, mas ele impedira-a.

 

Não toque nela!

 

Naquele instante a campainha da porta soou, e recordou-se de ter visto a mesa da sala de jantar posta para um grupo. O som de sirenes indicou que chegavam mais carros-patrulha ao local e, em alguns minutos, os agentes tinham levado a enteada e os convidados que chegavam para a casa de um vizinho. Foi solicitado a todas as pessoas que não partissem sem que o chefe tivesse conversado com elas.

 

Chefe.

 

Brower olhou para cima. Eddie Sousa, um recruta, estava ao seu lado.

 

Algumas das pessoas que esperam para falar consigo estão a ficar impacientes.

 

O velho hábito de Brower de franzir o sobrolho, quer devido a pensamentos profundos ou a aborrecimento, vincava-lhe a pele da fronte. Desta vez, a causa era aborrecimento.

 

Diga-lhes que estarei lá dentro de dez minutos respondeu, com impaciência.

 

Antes de partir, percorreu de novo a casa. Estava tudo em estado de sítio. Até o estúdio no terceiro andar fora remexido. Artigos de pintura arremessados para o chão, como se tivessem sido apressadamente examinados e rejeitados; gavetas e armários esvaziados. Não haveria muitos intrusos que, após cometerem um homicídio, se dessem ao trabalho de efectuar uma busca tão minuciosa, pensou. De igual forma, a aparência global da casa indicava que há muito não era gasto dinheiro nela. Então, que haveria para roubar?, interrogou-se.

 

Os três quartos no segundo andar tinham sido submetidos à mesma busca. Um deles estava arrumado, à excepção da porta do roupeiro aberta e gavetas da cómoda tiradas para fora. A colcha fora puxada para trás e era evidente que os lençóis estavam limpos. Brower calculou que aquele quarto estaria preparado para a enteada.

 

Todos os artigos do quarto principal estavam espalhados por todo o lado. Uma caixa de jóias em couro cor-de-rosa, do mesmo género do que oferecera à sua esposa pelo Natal, estava aberta. Aquilo que eram notoriamente jóias de pechisbeque encontravam-se dispersas na superfície da cómoda baixa.

 

Brower tomou mentalmente nota de perguntar aos amigos de Nuala Moore sobre quaisquer jóias valiosas que ela pudesse ter.

 

Passou algum tempo estudando o quarto da falecida no seu desalinho. O autor de toda aquela confusão não era um vulgar e depravado larápio, nem um assaltante viciado na droga, decidiu. Ele andava à procura de algo. Ou ela andava à procura de algo, emendou. Aparentemente, Nuala Moore apercebera-se de que a sua vida corria perigo. Pelo aspecto das coisas, calculou que ela correra numa tentativa de escapar quando fora atingida pelas costas. Qualquer pessoa o poderia ter feito - homem ou mulher. Não requeria uma força por aí além.

 

Brower reparou também noutra coisa. Era óbvio que Moore estava a preparar o jantar, o que sugeria que se encontrava na cozinha quando o intruso chegou. Tentara escapar ao atacante correndo pela sala de jantar, o que significava que o intruso estaria a bloquear a porta da cozinha. Provavelmente, ele ou ela entrara por aí e, dado que não havia sinais de arrombamento, a porta estaria destrancada. Amenos que, obviamente, Mrs. Moore tivesse, ela própria, franqueado a entrada ao intruso. Brower tomou nota para verificar mais tarde se a fechadura era do tipo de permanecer aberta depois de solta.

 

Mas, agora, estava pronto para conversar com os convidados do jantar. Deixou o detective Haggerty à espera do médico-legista.

 

- Não, obrigada - disse Maggie, pressionando os indicadores nas têmporas. Apercebeu-se vagamente de que não comia desde o meio-dia, há dez horas, mas só de pensar em comida sentia um nó na garganta.

 

- Nem sequer uma chávena de chá, Maggie?

 

Olhou para cima. Avistou o rosto gentil e solícito de Irma Woods, a vizinha do lado de Nuala. Era mais fácil anuir afirmativamente do que recusar a oferta. E, para sua surpresa, a caneca aqueceu os seus dedos gelados, e o chá quase escaldante soube-lhe bem.

 

Encontravam-se na sala da casa dos Wood, um edifício muito maior que o de Nuala. Havia fotografias familiares espalhadas em cima de mesas e sobre a cornija da lareira - filhos e netos, supôs. Os Wood pareciam contemporâneos de Nuala.

 

Apesar de toda a agitação e confusão, Maggie pensou ter identificado correctamente os outros, aqueles que iriam ser os convidados para o jantar. O Dr. William Lane, director de Latham Manor, que percebeu tratar-se de um lar para idosos. Homem corpulento e calvo com cerca de 50 anos, o Dr, Lane tinha um ar suave ao expressar as suas condolências. Tentara administrar-lhe um sedativo fraco, mas Maggie recusara. Descobrira que o mais fraco dos sedativos podia deixá-la sonolenta durante dias.

 

Maggie observou que, sempre que a bonita mulher do Dr. Lane, Odile, dizia alguma coisa, as mãos dela começavam a mexer.

 

Nuala ia visitar a amiga dela, Greta Shipley, à residência praticamente todos os diasexplicara, os seus dedos gesticulando de tal forma que pareciam convidar alguém a aproximar-se. Abanou depois a cabeça e uniu os dedos como se orasse: Greta vai ficar destroçada. Destroçada repetiu, decididamente.

 

Odile fizera já essa mesma observação por diversas vezes, e Maggie desejou que ela não a voltasse a repetir. Mas, desta vez, Odile rectificou-a com uma observação adicional:

 

Todas as pessoas que assistiam às suas aulas de arte vão sentir a falta dela. Os participantes estavam a divertir-se tanto. Oh, francamente, só agora pensei nisso.

 

Era mesmo do estilo de Nuala, pensou Maggie, partilhar o talento com os outros. Uma recordação viva de Nuala oferecendo-lhe a própria paleta no seu sexto aniversário veio-lhe à memória. «Vou ensinar-te a pintar lindos quadros», dissera Nuala. «Mas tal nunca sucedeu, porque eu nunca fui boa», reflectiu Maggie. «Só quando ela colocou barro nas minhas mãos é que a arte se tornou real para mim.»

 

Malcolm Norton, que se apresentara a Maggie como o advogado de Nuala, encontrava-se de pé junto da lareira. Era um homem elegante, mas Maggie ficou com a impressão de que estaria a armar uma pose. Havia algo superficial quase artificial nele, pensou. De alguma forma, a sua expressão de mágoa e a declaração «Era seu amigo e confidente, para além de seu advogado» sugeriam que sentia que era ele o merecedor de todas as apresentações de condolências.

 

«Mas, também, por que deveria alguém pensar que sou eu a merecedora das condolências?», perguntou a si mesma. «Todos sabem que acabei de reencontrar Nuala, ao fim de mais de vinte anos.»

 

A esposa de Norton, Janice, passou a maior parte do tempo a conversar tranquilamente com o médico. Do tipo atlético, poderia ser atraente, não fossem as rugas descendentes nos cantos da boca, que lhe conferiam uma expressão dura, mesmo amarga.

 

Pensando nisso, Maggie interrogou-se sobre a forma como a sua mente estava a encarar o choque da morte de Nuala. Por um lado, sofria imenso; por outro, observava estas pessoas como por uma objectiva.

 

Liam e o seu primo Earl estavam sentados próximo um do outro, em cadeiras condizentes, junto da lareira. Quando Liam entrou, colocara um braço sobre ela e dissera:

 

Maggie, que coisa horrível te foi acontecer.

 

Mas depois pareceu compreender que ela necessitava de espaço físico e mental para absorver isto por si própria e não se sentou ao lado dela no banco de dois lugares.

 

«Banco de dois lugares», pensou Maggie. Fora por detrás do banco de dois lugares que tinham encontrado o corpo de Nuala.

 

Earl Bateman inclinou-se para a frente, as mãos unidas na frente, como se tivesse mergulhado em pensamentos. Maggie só estivera com ele na noite da reunião dos Moore, mas recordou-se de que era um antropólogo que leccionava sobre rituais fúnebres.

 

Teria Nuala deixado a indicação a alguém sobre que tipo de funeral desejava?, interrogou-se Maggie. Talvez Malcolm Norton, o advogado, soubesse.

 

O som da campainha fez toda a gente olhar para cima. O chefe da Polícia que Maggie seguira na casa de Nuala entrou na sala.

 

Lamento tê-los feito esperar disse. Alguns dos meus homens irão tomar o vosso depoimento individual, pelo que não tardarão a ir embora. Primeiro, contudo, tenho algumas perguntas que gostaria de vos fazer em grupo. Mr. e Mrs. Wood, também vos peço que fiquem.

 

As perguntas do chefe eram gerais, do tipo, «Mrs. Moore tinha o hábito de deixar a porta das traseiras destrancada?»

 

Os Wood informaram que Nuala a deixava sempre destrancada, que ela chegava a brincar com o facto de andar sempre a perder a chave da porta da frente, mas que sabia que podia sempre entrar pelas traseiras.

 

Perguntou se ela parecia perturbada nos últimos tempos. Unanimemente, contaram que Nuala estava feliz, excitada e expectante perante a visita de Maggie.

 

Maggie sentiu as lágrimas nos olhos. Foi então que tomou consciência: estava perturbada.

 

Apenas quando o chefe Brower disse: «Se não se importam, permaneçam connosco mais alguns minutos enquanto os meus homens fazem algumas perguntas a cada um. Prometo que não tardarão a ir para casa», é que Irma Woods, timidamente, interrompeu:

 

Há apenas uma coisa que talvez fosse melhor explicarmos. Ontem, Nuala veio cá a casa. Escrevera à mão um novo testamento e queria que servíssemos de testemunhas perante a sua assinatura. Pediu-nos também que chamássemos Mr. Martin, um notário, para que ele o tornasse oficial. Parecia um pouco aborrecida porque disse que sabia que Mr. Norton poderia ficar desapontado por ela ter cancelado a venda da sua casa a ele.

 

Irma Woods olhou para Maggie.

 

O testamento de Nuala pede que visite ou telefone, o mais possível dentro das suas possibilidades, à amiga dela, Greta Shipley, em Latham Manor. Com excepção de algumas obras de caridade, deixou a casa e tudo o que possuía a si.

 

                   Segunda-feira, 30 de Setembro

 

Era óbvio que Maggie Holloway não estava satisfeita com a teoria de que um intruso assassinara Nuala. Ele percebera isso durante o velório. Agora, na missa por intenção da alma, observou com olhos meio cerrados quando ela abanou a cabeça em descrença ao ouvir o padre falar sobre a violência gratuita que, hoje em dia, tantas vidas inocentes atingia.

 

Maggie era demasiado esperta, demasiado observadora. Podia facilmente tornar-se uma ameaça.

 

Contudo, ao saírem em cortejo da Igreja de Santa Maria, reconfortou-se com o pensamento de que, seguramente, ela regressaria a Nova Iorque e colocaria a casa de Nuala à venda. «E nós sabemos quem vai aparecer com uma oferta antes de ela partir», pensou.

 

Ficou satisfeito ao reparar que Greta Shipley viera acompanhada por uma enfermeira à missa e que, quase de imediato, se vira obrigada a sair. Era provável que Maggie a fosse visitar à residência antes de seguir viagem.

 

Mexeu-se, inquieto. Pelo menos a missa estava prestes a terminar. O solista cantava Aqui Estou, Senhor e a urna era conduzida lentamente para o exterior.

 

Não lhe apetecia ir agora ao cemitério, embora soubesse que não tinha outra alternativa. Mais tarde. Iria lá mais tarde... e sozinho. A sua oferta especial seria uma cerimónia privada em honra dela.

 

Saiu da igreja ao mesmo tempo que as outras trinta e tal pessoas que acompanhavam Nuala à sua última morada. Tratava-se do cemitério onde muitos dos mais proeminentes residentes católicos de Newport se encontravam enterrados. O túmulo de Nuala ficava lado a lado com o do seu último marido. A inscrição no mármore não tardaria a ficar completa. Junto do nome e datas de nascimento e falecimento de Timothy James Moore, o nome e data de nascimento dela tinham já sido inscritos. Muito em breve, a data de sexta-feira seria acrescentada. «Descanse em paz» já fazia parte dos dizeres.

 

Esforçou-se por deixar transparecer um ar solene ao serem proferidas as últimas preces... um pouco rápidas, pensou. Por outro lado, era evidente que as nuvens escuras no céu estavam prestes a libertar uma forte chuvada.

 

Quando o serviço terminou, Irma Woods convidou todos os presentes para tomarem uma bebida na sua casa.

 

Tomou consciência de que seria estranho recusar e, além do mais, constituiria uma boa oportunidade para se inteirar de quando, exactamente, Maggie Holloway tencionava partir. «Vai-te embora, Maggie», pensou. «Aqui, só vais arranjar sarilhos.»

 

Uma hora mais tarde, enquanto os convidados conviviam e conversavam, de bebidas e sanduíches nas mãos, ficou pasmado ao ouvir Irma Woods contar a Maggie que o serviço de limpeza acabara de colocar a casa em ordem e de ajeitar a confusão criada pela Polícia com o pó próprio para a detecção de impressões digitais.

 

A casa está assim pronta para a receber, Maggiedisse-lhe Mrs. Woods. Mas tem a certeza de que não se sentirá nervosa lá? Sabe que teria todo o prazer em que ficasse connosco.

 

Disfarçando, ele aproximou-se, esforçando-se por ouvir. Estava de costas voltadas para elas quando Maggie respondeu: Â

 

Não, não ficarei nervosa em casa de Nuala. Tencionava» permanecer duas semanas, e é o que farei. Utilizarei o tempo para reflectir e, é claro, para visitar Greta Shipley em Latham Manor tal como Nuala pediu. Ele ficou como paralisado quando Maggie acrescentou: Mrs. Woods, tem sido tão gentil que nunca lhe poderei agradecer o suficiente. Só há uma coisa que gostaria de saber. Quando Nuala veio a sua casa na sexta-feira de manhã, com o testamento manuscrito, não lhe fez nenhuma pergunta? Quero dizer, não ficou surpreendida pelo facto de Nuala estar tão ansiosa por formalizar e autenticar o documento, por ser uma coisa assim tão repentina?

 

Ele ficou com a sensação de que Mrs. Woods levou uma eternidade a responder e que as suas palavras foram ponderadas.

 

Bom, para ser franca, sim. Primeiro, pensei que fosse o resultado de um impulso. Nuala sentia-se muito só desde o falecimento de Tim e ficou completamente extasiada ao encontrá-la. No entanto, depois da morte dela, comecei a pensar que haveria mais qualquer coisa. Como se Nuala soubesse que algo terrível lhe pudesse acontecer.

 

Ele encaminhou-se para a lareira, juntando-se a um grupo aí reunido. Respondeu às observações deles, mas a sua mente trabalhava arduamente. Maggie haveria de ir visitar Greta Shipley.

 

Que saberia Greta concretamente? De que suspeitaria ela? Alguma medida tinha de ser tomada. Não podia correr riscos.

 

Greta. Era óbvio que não se encontrava bem. Todos tinham assistido ao seu desfalecimento na igreja. Toda a gente acreditaria

 

e O choque sofrido com a morte da amiga contribuíra para um ataque de coração fatal. Inesperado, é certo, mas não propriamente uma surpresa.

 

«Lamento, Greta», pensou.

 

Quando tinha ainda a relativamente jovem idade de 68 anos, Greta Shipley fora convidada para uma recepção em Latham House, recentemente remodelada e reapelidada de Residência Latham Manor. As novas instalações para reformados estavam abertas e aceitavam candidaturas.

 

Gostou de tudo o que viu. O magnífico primeiro andar do edifício incluía o grande salão e a sala de jantar em mármore e cristal, onde a enorme mesa de banquete que recordava da sua juventude fora substituída por mesas mais pequenas. A encantadora biblioteca, com os seus cadeirões em couro e bonita lareira, era convidativa e o salão mais pequeno, destinado à sala da televisão, sugeria noites compartilhadas em boa companhia.

 

Greta aprovou igualmente os regulamentos: a hora social iniciar-se-ia às cinco da tarde no grande salão, seguida do jantar às seis. Ficou satisfeita por os residentes terem de se vestir adequadamente para o serão, como se estivessem a jantar num clube. Greta fora criada por uma avó austera, habituada a lançar um olhar reprovador a um qualquer indivíduo vestido de forma inapropriada. Todos os residentes sem condições de se vestirem a rigor seriam servidos nas suas próprias instalações.

 

Existia também uma secção separada e destinada a cuidados médicos de longo prazo, para o caso de se revelar necessário.

 

A taxa de admissão era elevada, evidentemente. Começava em duzentos mil dólares para um quarto individual grande com banho e aumentava para quinhentos mil para uma suite de duas camas, das quais existiam quatro na mansão. E, enquanto o residente usufruía da utilização total e exclusiva do apartamento durante a vida, por altura da sua morte, a propriedade revertia para o lar, o que tornaria os aposentos disponíveis para venda a outros candidatos. Os hóspedes pagariam igualmente uma taxa de manutenção mensal de dois mil dólares, o que, obviamente, era parcialmente coberto pelos pagamentos da Segurança Social.

 

Era solicitado aos hóspedes que mobiliassem os seus próprios aposentos, mas todo o equipamento escolhido estava sujeito a aprovação por parte da direcção da residência. Os estúdios e apartamentos modelo eram requintadamente confortáveis e de um gosto a toda a prova.

 

Tendo recentemente enviuvado e sentindo-se nervosa perante a expectativa de viver só, Greta vendeu de bom grado a sua casa em Ochre Point, mudou-se para Latham Manor e sentiu que tomara a decisão correcta. Como uma das primeiras ocupantes, possuía um estúdio seleccionado. Espaçoso, com uma área para convívio, acomodava todo o seu mobiliário mais querido. E, o melhor de tudo, quando fechava a porta, era com a sensação segura de não estar sozinha durante a noite. Havia sempre um guarda nas instalações, uma enfermeira de serviço e uma campainha para solicitar auxílio, se necessário.

 

Greta apreciava a companhia da maioria dos outros residentes e evitava facilmente aqueles que a deixavam nervosa. Manteve também a sua longa amizade com Nuala Moore; saíam com frequência juntas para almoçar e, satisfazendo o pedido de Greta, Nuala concordou em dar aulas de arte duas vezes por semana na residência.

 

Depois da morte de Timothy Moore, Greta iniciara uma campanha destinada a convencer Nuala a mudar-se para o lar. Quando Nuala objectou, contrapondo que estava bem sozinha e insistindo que não conseguiria passar sem o seu estúdio artístico, Greta rogara-lhe que, ao menos, entregasse a sua candidatura de molde a que, quando uma das suites de duas camas ficasse disponível, pudesse ter condições para mudar de ideias. Nuala acabara por ceder, admitindo que o seu advogado a encorajava a fazer o mesmo.

 

Mas, agora, tal nunca viria a acontecer, pensou Greta pesarosamente, sentada na sua cadeira de repouso, o tabuleiro do jantar intacto na sua frente.

 

Sentia-se ainda aborrecida por ter sentido aquela indisposição durante o funeral de Nuala, nessa manhã. Até então, tinha vindo a sentir-se perfeitamente bem. Talvez se tivesse parado para tomar um pequeno-almoço em condições tal não tivesse acontecido, reflectiu.

 

Muito simplesmente, não se podia permitir ficar doente. Sobretudo agora, que queria manter-se o mais activa possível. A ocupação era a única forma para combater a mágoa; a vida ensinara-lhe isso. Também sabia que não ia ser fácil, pois sentiria muitas saudades da presença alegre de Nuala.

 

Sentia alguma confiança pelo facto de a enteada de Nuala, Maggie Holloway, a ir visitar. No dia anterior, no velório, antes do serviço, Maggie apresentara-se e dissera:

 

Mrs. Shipley, espero que permita que passe algum tempo consigo. Sei que era a amiga mais chegada de Nuala. Também quero ser sua amiga.

 

Bateram à porta.

 

Greta apreciava o facto de, a menos que tivesse razões para suspeitar de um problema, o pessoal estar instruído para apenas entrar no quarto de um hóspede após ser convidado. A enfermeira Markey, no entanto, parecia não compreender. Apenas pelo facto de uma porta não estar trancada, não significava que se podia entrar assim, sem mais nem menos. Alguns pareciam gostar deste tipo de enfermeiras. Greta não.

 

Como era de prever, antes que Greta pudesse responder, a enfermeira Markey entrou, um sorriso profissional rasgando-lhe as feições fortes.

 

Como nos sentimos esta noite, Mrs. Shipley? perguntou em voz alta ao aproximar-se, o rosto desconfortavelmente próximo do de Greta.

 

Estou muito bem, Miss Markey. Espero que você também esteja.

 

O «nós» solícito sempre irritara Greta. Referira esse facto por diversas vezes, mas tornava-se claro que aquela mulher não tencionava mudar nada, por isso, para quê incomodar-se?, perguntou Greta a si mesma. Subitamente, apercebeu-se de que as batidas do seu coração começavam a acelerar.

 

Ouvi dizer que nos sentimos mal na igreja...

 

Greta levou a mão ao peito como se, por meio desse acto, pudesse impedir o forte batimento.

 

Mrs. Shipley, que se passa? Sente-se bem? Greta sentiu tomarem-lhe o pulso.

 

De forma tão súbita como começara, o batimento abrandou. Conseguiu dizer:

 

Dê-me só um instante. Já fico bem. Senti apenas um pouco de falta de ar, é tudo.

 

Quero que se encoste e feche os olhos. Vou chamar o Dr. Lane. O rosto da enfermeira Markey encontrava-se agora a escassos centímetros do dela. Instintivamente, Greta virou a cara.

 

Dez minutos mais tarde, apoiada por almofadas na cama, Greta tentava tranquilizar o médico, dizendo que o mal-estar que sentira passara por completo. No entanto, mais tarde, ao adormecer com a ajuda de um sedativo suave, não conseguiu evitar recordar, com algum temor, como, há apenas duas semanas, Constance Rhinelander, que estivera ali por um tão curto espaço de tempo, morrera de um ataque cardíaco, de forma tão inesperada.

 

Primeiro Constance, pensou, depois Nuala. A governanta da avó costumava dizer que as mortes vinham sempre em três. «Por favor, que não seja eu a terceira», pensou ao adormecer.

 

Não, não fora um pesadelo; acontecera realmente. A realidade integral dos acontecimentos dos últimos dias instalou-se firmemente na mente de Maggie. Encontrava-se na cozinha de Nuala, na casa que, incrivelmente, era agora sua.

 

Às três horas, Liam ajudara-a a trazer as malas do quarto de visitas dos Woods. Ele deixara-as no cimo das escadas.

 

Sabes qual o quarto que vais ocupar? perguntara Liam.

 

Não.

 

Maggie, não me pareces bem. Tens a certeza de que queres ficar aqui? Na minha opinião, não é boa ideia.

 

Sim respondera, depois de uma pensativa pausa, quero ficar aqui.

 

Agora, colocando a chaleira ao lume, Maggie reflectiu com gratidão que uma das melhores qualidades de Liam era não entrar em discussões.

 

Em vez de insistir, dissera simplesmente:

 

Nesse caso, deixo-te só. Espero bem que aproveites para descansar um pouco. Não comeces a desfazer as malas nem a vasculhar as coisas de Nuala.

 

Esta noite não, seguramente.

 

Telefono-te amanhã.

 

Na porta, envolvera-a com um braço e abraçara-a amigavelmente. Depois, partiu.

 

Sentindo-se subitamente exausta, movendo-se como se constituísse um enorme esforço colocar um pé na frente do outro, Maggie trancou ambas as portas da frente e das traseiras e depois subiu as escadas. Verificando os quartos, percebeu de imediato que o que Nuala lhe destinara era o segundo maior. Estava sobriamente mobilado uma cama de casal, uma cómoda com espelho, uma mesinha-de-cabeceira e uma cadeira-de-baloiço, sem quaisquer artigos pessoais. Em cima da cómoda encontrava-se apenas um conjunto de toilette laqueado: pente, escova, espelho, abotoador e lima.

 

Depois de arrastar as malas para o quarto, Maggie despiu a saia e a camisola, vestiu o seu roupão predilecto e deitou-se por debaixo das cobertas.

 

Agora, depois de um sono de quase três horas e auxiliada por uma chávena de chá, começava finalmente a sentir a cabeça leve. Sentiu, inclusivamente, que ultrapassara já o choque pela morte de Nuala.

 

A tristeza, contudo, era outra história, pensou. Isso nunca passava.

 

Apercebeu-se subitamente de que, pela primeira vez em quatro dias, sentia fome. Abriu o frigorífico e verificou que estava cheio: ovos, leite, sumo, um pequeno frango assado, pão e um recipiente com canja caseira. Só podia ser obra de Mrs. Woods, pensou.

 

Preparou então uma sanduíche de frango, cortando e desossando o frango, servindo-se apenas de uma pequena porção de maionese.

 

Acabara de se instalar confortavelmente à mesa quando foi surpreendida por um ruí do* na porta das traseiras. Deu meia volta e pôs-se de pé, ao mesmo tempo que a maçaneta girava, o corpo tenso, pronta a reagir.

 

Suspirou de alívio quando o rosto de Earl Bateman apareceu na janela oval que abrangia grande parte da metade superior da porta.

 

O chefe Brower defendia a teoria de que Nuala fora surpreendida por um intruso nesta cozinha, intruso esse que entrara pela porta das traseiras. Esse pensamento e a imagem que concebeu vieram-lhe à mente ao atravessar rapidamente o aposento.

 

Em parte, não sabia bem se estaria a tomar a atitude certa em abrir a porta, mas depois, mais aborrecida do que preocupada com a sua própria segurança, destrancou a porta e deixou-o entrar.

 

O ar absorto de professor que ela associava a Bateman evidenciava-se mais naquele momento do que em qualquer outra altura nos últimos três dias.

 

Maggie, perdoe-me disse. Vou regressar a Providence até sexta-feira e, quando entrei no carro, ocorreu-me que poderia não ter trancado esta porta. Sei que Nuala tinha o hábito de a deixar destrancada. Falei com Liam e ele mencionou que a tinha deixado aqui e que pensava que se tinha ido deitar. Não queria incomodar; pensei simplesmente em passar por cá e verificar, trancando eu próprio a porta se fosse necessário. Peço desculpa, mas, pela parte da frente da casa, não havia sinais de que estava ainda a pé.

 

Podia ter telefonado.

 

Sou uma dessas raras pessoas que não possuem telefone no carro. Lamento. Nunca fui muito bom nessa coisa de prestar boas acções. Ainda por cima, interrompi o seu jantar.

 

Não tem importância. Era apenas um sanduíche. Quer comer alguma coisa?

 

Não, obrigado. Vou-me embora. Maggie, sabendo o que Nuala sentia por si, penso que o vosso relacionamento era muito especial.

 

Sim, era especial.

 

Se me permite, gostaria de lhe dar um conselho. Vou citar as palavras do grande investigador Durkheim sobre o tema da morte. Ele escreveu: «A tristeza, tal como a alegria, fica elevada e ampliada quando transita de mente para mente.»

 

Que está a tentar dizer-me? inquiriu Maggie tranquilamente.

 

Estou a perturbá-la, e isso é a última coisa que desejo. O que quero dizer é que você tem o hábito de calar a mágoa. Seria mais fácil se se abrisse num momento destes. O que estou a tentar dizer-lhe é que gostaria de ser seu amigo.

 

Earl abriu a porta.

 

Regresso sexta-feira à tarde. Tranque bem a porta, por favor. Partiu. Maggie trancou a fechadura e atirou-se para uma cadeira. A cozinha ficou súbita e assustadoramente calma, e ela apercebeu-se de que tremia. Como poderia Earl Bateman pensar que ela lhe ficaria grata por aparecer assim inesperadamente e experimentar, sub-repticiamente, a fechadura?

 

Levantou-se e, com passos rápidos e silenciosos, atravessou a sala de jantar a correr até à sala da frente, às escuras. Ajoelhou-se junto da janela para olhar para fora, por debaixo do cortinado.

 

Avistou Bateman descendo o caminho até à rua.

 

Junto do carro, abriu a porta, voltando-se então para trás. Ficou imóvel por longos instantes, fitando a casa. Maggie ficou com a sensação de que, embora oculta pelo interior sombrio da casa, Earl Bateman sabia, ou pelo menos sentia, que o observava.

 

O candeeiro na entrada da casa derramava um banho de luz perto dele e, enquanto Maggie olhava, Bateman aproximou-se da luz e fez um aceno largo com a mão, um gesto de despedida claramente destinado a ela. «Earl não me consegue ver», pensou, «mas sabe que estou aqui.»

 

                   Terça-feira, 1 de Outubro

 

Quando o telefone tocou, às oito da manhã, Robert Stephens estendeu a mão esquerda para o atender enquanto com a direita segurava firmemente a chávena de café.

 

O seu «bom dia» foi seco, reparou divertida a sua esposa de

43 anos. Dolores Stephens sabia que o marido não apreciava telefonemas tão cedo pela manhã.

 

«Qualquer coisa que pode ser dito às oito pode aguardar até às nove», era o seu axioma.

 

Habitualmente, estas chamadas eram de clientes idosos, de cujos impostos Robert tratava. Ele e Dolores tinham vindo para Portsmouth há três anos, na esperança de se reformarem, mas Robert decidira manter-se ocupado, aceitando apenas alguns clientes seleccionados. No espaço de seis meses, ficou atulhado de trabalho.

 

O vestígio de aborrecimento desapareceu rapidamente da sua voz ao proferir:

 

Neil, como estás?

 

Neil!exclamou Dolores, em tom imediatamente apreensivo. Oh, espero que não seja para dizer que não pode vir este fim-de-semana murmurou.

 

O marido fez sinal para que se calasse.

 

O tempo? Óptimo. Não podia estar melhor. Ainda não vou tirar o barco da água. Podes vir na quinta-feira? Ainda bem. A tua mãe vai ficar encantada. Está a agarrar no auscultador. Sabes como é impaciente. Fica descansado. Vou telefonar para o clube e marcar a partida de golfe para as duas horas.

 

Dolores entrou em linha e ouviu a voz divertida do seu único filho.

 

Está impaciente esta manhã disse.

 

É verdade. É que estou tão ansiosa por te ver. Ainda bem que consegues vir. Vais ficar até domingo, não vais, Neil?

 

Claro. Mal posso esperar. Okay, tenho de desligar. Diga ao pai que o «bom dia» dele mais parecia um «vá para o Inferno». Ainda não terminou a primeira chávena de café, pois não?

 

Acertaste. Adeus, querido.

 

Os pais de Neil Stephens olharam um para o outro. Dolores suspirou.

 

Se há alguma coisa de que tenho saudades de Nova Iorque, é de Neil aparecer em qualquer altura afirmou.

 

O marido ergueu-se, dirigiu-se ao fogão e voltou a encher a chávena.

 

Neil mencionou alguma coisa sobre eu parecer rabugento ao atender?

 

Qualquer coisa assim.

 

Robert Stephens sorriu relutantemente.

 

Bom, sei que não estou propriamente radiante pela manhã, mas receava que a chamada fosse de Laura Arlington. Está muito perturbada. Não pára de me telefonar.

 

Dolores esperou.

 

Fez uns sérios investimentos que não resultaram bem, e agora está com medo dos resultados.

 

E está certa?

 

Receio que sim. Tratou-se de uma daquelas pistas supostamente «quentes». O corretor persuadiu-a a investir numa pequena companhia de alta-tecnologia, que se pensava ir ser adquirida pela Microsoft. Comprou cem mil acções a cinco dólares por acção, convencida de que obteria, no final, um avultado lucro.

 

Quinhentos mil dólares! Quanto valem agora?

 

As acções acabam de ficar suspensas para negociação. Desde ontem, se as conseguisses vender, receberias oitenta cêntimos por acção. Laura não se pode dar ao luxo de perder tanto dinheiro. Quem me dera que ela tivesse falado comigo antes de se ter aventurado num negócio destes.

 

Ela não está a pensar mudar-se para a residência Latham Manor?

 

Está, e era com esse dinheiro que ia pagar. Era praticamente tudo o que tinha. Os filhos queriam que ela se instalasse lá, mas o corretor convenceu-a de que, com este investimento, não só poderia viver em Latham como, também, ter dinheiro para deixar aos miúdos.

 

O que ele fez foi ilegal?

 

Infelizmente, parece-me que não. Talvez não tivesse sido uma atitude ética, mas, provavelmente, não tem nada de ilegal. De qualquer forma, vou conversar com Neil a esse respeito. Por isso estou especialmente satisfeito por ele vir.

 

Robert Stephens dirigiu-se à enorme janela sobranceira à baía Narragansett. Tal como o filho, era um homem de ombros largos e constituição atlética. Aos 68 anos, o cabelo outrora louro revelava-se agora branco.

 

A água na baía estava tranquila, quase tão imóvel como um lago. O relvado por detrás da casa, inclinando-se na direcção da água, começava a perder o tom verde-aveludado. Os bordos ostentavam já ramos com folhagem laranja e cobre.

 

Belo, sereno disse, abanando a cabeça. É difícil acreditar que, a seis milhas daqui, uma mulher foi assassinada na sua própria casa.

 

Virou-se e olhou para a mulher, o cabelo prateado apanhado em cima da cabeça, os traços ainda delicados e suaves.

 

Dolores disse, a voz subitamente austera, quando eu estiver fora, quero que mantenhas o sistema de alarme sempre activado.

 

Está bem concordou ela afavelmente. Na verdade, não quisera que o marido se apercebesse de como aquele homicídio a abalara tão profundamente, nem que ele soubesse que, ao ler a contagem estatística no jornal, fora verificar ambas as portas da frente e das traseiras e constatara que, como habitualmente, estavam destrancadas.

 

O Dr. William Lane não ficou particularmente satisfeito com o pedido de Maggie Holloway para que a recebesse. Já irritado com a conversa sem desígnio e ininterrupta da sua mulher na mesa do almoço, e já atrasado no preenchimento dos formulários governamentais que lhe eram exigidos cada vez em maior número na sua qualidade de director de Latham Manor, achava que não tinha tempo a perder com outra meia hora de conversa fiada. Arrependia-se agora de ter concordado. Não podia imaginar o motivo por que ela necessitava de falar com ele.

 

Sobretudo porque Nuala Moore nunca chegara a assinar os documentos de compromisso de se mudar para a residência. Preenchera todos os formulários para a entrada, efectuara os exames médicos e, quando parecera hesitante, Lane comprometera-se consigo mesmo a esvaziar por completo, desde as carpetes à mobília, o segundo quarto da suite disponível para que ela pudesse verificar como seria fácil acomodar os seus cavaletes, utensílios artísticos e armários. Mais tarde, ela telefonara, informando simplesmente que decidira manter a sua casa.

 

Na altura, questionara-se por que motivo teria ela mudado de ideias de forma tão repentina. Parecera a candidata perfeita. Teria criado a fantasia de que a enteada viria morar com ela e por isso desejava ter um local para a receber?

 

Ridículo! murmurou Lane para consigo.

 

Que possibilidades poderia haver de uma jovem atraente, com uma carreira de sucesso, vir a correr para Newport para brincar às casinhas com uma mulher que não via há anos? Lane calculava que, agora que lhe tinham deixado a casa, Maggie Holloway ponderasse bem todo o trabalho e despesas envolvidos na recuperação e acabasse por decidir vendê-la. Mas, entretanto, vinha aqui para ocupar o tempo dele, tempo de que ele necessitava para voltar a colocar em ordem aquela suite, por forma a estar em condições para apresentação a possíveis interessados. A direcção do Grupo de Residências Prestige deixara bem claro que não permitia espaços de habitação vazios.

 

Mesmo assim, um pensamento inquietante não o largava: «Será que existia qualquer outro motivo para que Nuala tivesse voltado atrás na sua decisão?» E, se existia, teria ela participado à enteada? «Que seria?», interrogou-se. Afinal, seria uma boa ideia ela vir falar com ele.

 

Levantou os olhos do trabalho quando a porta do seu escritório se abriu. Odile entrou, como habitualmente sem bater, hábito que o deixava nervoso. Costume que ela infelizmente partilhava com a enfermeira Zelda Markey. Na verdade, ele tinha de fazer algo quanto a isso. Mrs. Shipley queixara-se sobre o hábito da enfermeira Markey de abrir portas sem pedir autorização.

 

Tal como esperava, Odile ignorou a sua expressão de aborrecimento e começou a falar.

 

William, não me parece que Mrs. Shipley esteja muito bem. Tal como tiveste oportunidade de ver, sentiu-se mal ontem durante a missa do funeral e queixou-se de tonturas à noite. Será que não devia passar para a enfermaria por alguns dias, para observação?

 

É minha intenção observar de perto Mrs. Shipley respondeu Lane bruscamente. Tenta recordar-te, minha querida, de que, na nossa família, sou eu quem possui formação médica. Tu nunca terminaste a escola de enfermagem.

 

Sabia que fora uma afirmação estúpida e arrependeu-se de imediato, prevendo o que se seguiria.

 

Oh, William, isso é tão injusto gritou ela. A enfermagem é uma vocação, e tomei consciência de que não era para mim.I Talvez tivesse sido melhor para ti... e para os outros... se tivesses tomado a mesma decisão. O seu lábio estremeceu. Além do mais, penso que não te deves esquecer que foi apenas por atenção a mim que o Grupo de Residências Prestige te chamou para este lugar.

 

Fitaram-se em silêncio por momentos; depois, como habitualmente, Odile cedeu.

 

Oh, William, fui indelicada para contigo. Sei como és dedicado a todos os nossos residentes. Só que... quero ajudar-te e receio que outro episódio te possa arruinar.

 

Aproximou-se da secretária e inclinou-se sobre ele. Pegou-lhe na mão e levou-a ao rosto dela, movendo-a de forma a acariciar a sua face e queixo.

 

Lane suspirou. Odile era um «peso leve» uma «tontinha», como lhe teria chamado a avó dele mas era bonita. Sentira-se muito afortunado há dezoito anos, por ter convencido uma mulher atraente e mais jovem a casar com ele. Além do mais, ela gostava dele e sabia como os residentes apreciavam as visitas frequentes e calorosas dela. Por vezes podia ser enfadonha, mas era sempre sincera, e isso contava muito. Alguns residentes, como Greta Shipley, achavam-na tola e irritante, o que, para Lane, só comprovava a inteligência de Mrs. Shipley, mas não havia qualquer dúvida de que, ali em Latham Manor, Odile representava um bem para ele.

 

Lane sabia o que esperavam dele. Sem revelar virtualmente nenhuma da resignação que sentia, ergueu-se, abraçou a mulher e murmurou:

 

Que faria eu sem ti?

 

Foi um alívio quando a voz da secretária soou no intercomunicador.

 

Está aqui Miss Holloway anunciou.

 

É melhor saíres, Odile sussurrou Lane, prevendo a inevitável sugestão dela para ficar e participar no encontro.

 

Desta vez, Odile não discutiu. Saiu pela segunda porta do aposento que conduzia ao corredor principal.

 

Na noite anterior, atribuindo as culpas à sesta de três horas que fizera antes, Maggie continuava completamente acordada por volta da meia-noite. Desistindo de conseguir adormecer, voltara ao PISO de baixo e, no pequeno estúdio, encontrou livros, alguns deles integralmente ilustrados, sobre as «vivendas» de Newport.

 

Levando-os consigo para a cama, colocou umas almofadas nas costas e leu durante cerca de duas horas. Consequentemente, quando foi recebida em Latham Manor por uma empregada de uniforme que depois telefonou ao Dr. Lane anunciando a sua chegada, estava em condições de entender o que a rodeava com algum grau de conhecimento.

 

A mansão fora construída por Ernest Latham em 1900, numa exprobração deliberada ao que ele considerava ser a ostentação vulgar da mansão dos Vanderbilt, The Breakers. A planta das duas casas era praticamente igual, mas a construção de Latham possuía maiores proporções. O hall de entrada continuava a ser esmagadoramente amplo, mas tinha, na verdade, apenas um terço das dimensões do «Grande Hall de Entrada» do The Breakers. As paredes eram revestidas a madeira seleccionada, e não em pedra calcária de Caen, e a escadaria, em mogno ricamente esculpido, coberta em vermelho escarlate, erguia-se no lugar da escadaria em mármore que o edifício The Breakers alardeava.

 

As portas à esquerda estavam cerradas, mas Maggie sabia que ali ficava a sala de jantar.

 

A divisão à direita, outrora a sala de música, revelava-se bastante acolhedora, com cadeiras confortáveis e genuflexórios condizentes, tudo ricamente estofado em verde-musgo e padrões florais. A magnífica cornija Luís XV era ainda mais arrebatadora ao vivo do que aparecia nas imagens que vira. O espaço com adornos esculpidos cinzelados por cima da lareira estendia-se até ao tecto, repleto de figuras gregas, pequenos anjos e ananases e uvas. Só o centro era diferente, e aí fora pendurada uma pintura a óleo da escola Rembrandt.

 

É realmente lindo, pensou, comparando-o mentalmente com as condições esquálidas e indescritíveis do interior de um lar que subrepticiamente fotografara para a revista Newsmaker.

 

Apercebeu-se subitamente de que a empregada falava com ela.

 

Oh, peço desculpa afirmou, estava a admirar as instalações.

 

A empregada era uma jovem de olhos negros e pele de azeitona.

 

São encantadoras, não são? disse. Até trabalhar aqui é um prazer. Vou conduzi-la agora ao Dr. Lane.

 

O escritório dele era o maior de um grupo de escritórios nas traseiras da casa. Uma porta em mogno separava a área do resto do primeiro-andar. Enquanto Maggie seguia a empregada ao longo do corredor revestido a carpete, espreitou por entre uma porta de um escritório aberta e reparou num rosto familiar Janice Norton, a esposa do advogado de Nuala, sentada a uma secretária.

 

«Não sabia que ela trabalhava aqui», pensou Maggie. «Mas, verdade seja dita, não sei grande coisa sobre nenhuma destas pessoas, pois não?»

 

Os seus olhos encontraram-se e Maggie não conseguiu evitar sentir-se pouco à vontade. Não lhe escapara o amargo desapontamento no rosto de Malcolm Norton quando Mrs. Woods revelou que Nuala cancelara a venda da sua casa. Mas fora cordial no dia anterior, no velório, e no funeral e sugerira que gostaria de conversar com ela sobre os seus planos em relação à casa.

 

Parou apenas o suficiente para cumprimentar Mrs. Norton e depois seguiu a empregada ao longo do corredor, até um escritório no canto.

 

A empregada bateu à porta, aguardou e, perante o convite para entrar, abriu a porta a Maggie e retrocedeu, fechando-a assim que Maggie se encontrou no interior.

 

O Dr. Lane ergueu-se e saiu de detrás da secretária para a cumprimentar. O sorriso era cordial, mas Maggie ficou com a sensação de que os olhos dele a apreciavam de forma profissional. O cumprimento que expressou confirmou essa impressão.

 

Mrs. Holloway, ou Maggie, se me permite, estou satisfeito por verificar que apresenta um ar mais descansado. Sei que ontem foi um dia muito difícil para si.

 

Tenho a certeza de que foi difícil para todos aqueles que amavam Nuala respondeu Maggie calmamente. Mas estou francamente preocupada com Mrs. Shipley. Como está ela?

 

Ontem à noite sentiu-se levemente indisposta, mas estive com ela ainda há pouco, e parece-me bem. Está ansiosa pela sua visita.

 

Quando falei com ela, esta manhã, pediu-me especialmente que a levasse ao cemitério. Será boa ideia, na sua opinião?

 

Lane indicou a cadeira em couro em frente da secretária.

 

Sente-se, por favor. Regressou à sua própria cadeira. Preferia que ela esperasse mais alguns dias, mas quando Mrs. Shipley mete uma ideia na cabeça... bom, não há nada que a faça mudar. Honestamente, penso que as indisposições dela de ontem foram provocadas pela grande emoção devido à morte de Nuala. As duas eram muito amigas. Tinham adquirido o hábito de subirem para o estúdio de Mrs. Shipley depois da aula de Arte de Nuala, onde passavam o tempo a conversar e a beber um copo ou dois de vinho. Disse-lhes, a uma dada altura, que mais pareciam um par de adolescentes. No entanto, e muito francamente, esses encontros faziam bem a ambas, e sei que Mrs. Shipley vai sentir saudades dessas visitas.

 

Lane sorriu, recordando.

 

Nuala disse-me uma vez que, se sofresse uma pancada na cabeça e depois lhe perguntassem a idade quando recuperasse os sentidos, responderia convictamente vinte e dois. No seu íntimo, afirmava, sentia-se realmente com vinte e dois anos.

 

Depois, apercebendo-se do que acabara de dizer, pareceu chocado.

 

Lamento imenso. Foi um descuido da minha parte. Sofresse uma pancada na cabeça», pensou Maggie. Mas, sentindo pena do visível embaraço do homem, afirmou:

 

Por favor, não se desculpe. Tem razão. Espiritualmente, Nuala nunca teve mais de vinte e dois anos. Hesitou e decidiu então ir directa ao assunto. Doutor, há uma coisa que preciso de lhe perguntar. Nuala alguma vez lhe confidenciou que algo a apoquentava? Quero dizer, qualquer problema físico que possa ter referido?

 

Ele abanou a cabeça.

 

Não, físico não. Penso que Nuala estava a sentir sérias dificuldades com aquilo que considerava ser a perda da sua independência. Penso honestamente que, se fosse viva, teria acabado por vir viver para cá. Estava sempre preocupada com os custos relativamente elevados do apartamento grande com o quarto extra, mas, tal como ela afirmou, necessitava de um estúdio onde pudesse simultaneamente trabalhar e fechar a porta quando terminasse. Fez uma pausa. Nuala contou-me que era um pouco desleixada por natureza, mas que o seu estúdio era sempre o cenário do caos organizado.

 

Nesse caso, acredita que o cancelamento da venda da casa e o testamento apressado que deixou foram apenas o resultado de um ataque de pânico, à última da hora?

 

Sim, acredito. Levantou-se. Vou pedir a Angela que a conduza aos aposentos de Mrs. Shipley. E, se acabarem por ir ao cemitério, observe-a cuidadosamente, por favor. Se ela parecer de qualquer forma perturbada, regresse de imediato. Afinal, os familiares dos nossos residentes confiaram as vidas deles nas nossas mãos, e nós levamos as nossas responsabilidades muito a sério.

 

Malcolm Norton encontrava-se sentado no seu escritório em Thames Street, analisando a agenda para o resto do dia. Estava agora totalmente liberta, devido ao cancelamento da reunião das 2 horas. O caso não era nada de especial apenas uma jovem dona de casa processando o vizinho porque o cão dele a mordera. Mas o cão tinha já um processo instaurado contra ele um outro vizinho escapara a um ataque recorrendo a uma vassoura pelo que a conclusão óbvia era que a companhia de seguros estaria ansiosa por resolver o conflito, tanto mais que o portão fora descuidadamente deixado aberto e o cão escapara.

 

O problema residia no facto de se tratar de um caso demasiado fácil. A mulher telefonara dizendo que a companhia de seguros resolvera a situação a seu contento. «O que quer dizer que tenho menos trezentos ou quatrocentos dólares», pensou Norton, carrancudo.

 

Continuava a não conseguir superar a tomada de consciência doentia de que, menos de vinte e quatro horas antes de morrer, Nuala Moore lhe cancelara secretamente a venda da casa. Estava agora agarrado a uma hipoteca de duzentos mil dólares que fizera da sua própria casa.

 

Fora um verdadeiro inferno conseguir convencer Janice a assinar com ele a hipoteca. Vira-se obrigado a informá-la da alteração iminente à Lei das Zonas Marítimas e dos lucros que esperava alcançar com a revenda da propriedade de Nuala Moore.

 

Escuta dissera, tentando convencê-la, estás cansada de trabalhar na residência. Deus sabe como ouço isso todos os dias. Trata-se de um negócio perfeitamente legítimo. A casa precisa de avultadas reparações. O pior cenário possível que pode acontecer é a nova legislação sobre as zonas marítimas não ser aprovada. Nesse caso, fazemos uma hipoteca para a casa de Nuala, efectuamos obras e vendemo-la por trezentos e cinquenta.

 

Uma segunda hipoteca respondera ela, sarcasticamente. Nem acredito como te transformaste num homem tão empreendedor. Portanto, depois despeço-me. E que farás com a tua recém-adquirida riqueza, depois de aprovada a alteração à Lei das Zonas Marítimas?

 

Tratava-se, obviamente, de uma pergunta para a qual não estava preparado para responder. Pelo menos, até as vendas estarem concluídas. E, agora, tal não ia acontecer. A menos que as coisas mudassem. Podia ainda ouvir as palavras furiosas de Janice quando regressaram a casa na sexta-feira.

 

Então, agora, temos uma hipoteca de duzentos mil dólares, para além das despesas em que incorremos para a obter. Vais direitinho ao Banco para a pagar. Não tenciono perder a minha casa.

 

Não a vais perder dissera, solicitando algum tempo para resolver a questão. Já disse a Maggie Holloway que me queria encontrar com ela. Sabe que é sobre a casa. Achas que ela quer ficar num local onde a madrasta foi assassinada? Mrs. Holloway deve partir de Newport o mais depressa possível, e vou deixar bem patente que, ao longo dos anos, tenho prestado os meus auxílios a Nuala e Tim Moore sem cobrar quaisquer honorários. Na próxima semana, terá já concordado em vender a casa.

 

Tinha de concordar em vender a casa, disse a si mesmo, sombriamente. Era a sua única saída para toda aquela confusão.

 

O intercomunicador soou. Atendeu.

 

Sim, Barbara disse, com voz formal. Tinha o cuidado de nunca permitir que qualquer intimidade transparecesse nas suas conversas quando ela se encontrava no gabinete exterior. Nunca podia ter a certeza de quem se encontrava do outro lado.

 

Pelo tom de voz dela, tornou-se óbvio para ele que Barbara estava só.

 

Malcolm, posso falar contigo por momentos?foi tudo o que disse, mas ele sentiu de imediato que algo estava errado.

 

Minutos depois, Barbara estava sentada na sua frente, as mãos dobradas sobre o regaço, os lindos olhos de avelã desviados.

 

Malcolm, não sei como dizer isto, por isso, é melhor ir directa à questão. Não posso ficar aqui. Ultimamente, tenho-me sentido mal comigo mesma. Hesitou e, de seguida, acrescentou: Mesmo amando-te tanto como te amo, não consigo esquecer o facto de que estás casado com outra pessoa.

 

Já me viste com Janice. Estás ao corrente do nosso relacionamento.

 

Mesmo assim, continua a ser tua mulher. É melhor assim, acredita. Vou visitar a minha filha em Vail por uns dois meses. Depois, quando regressar, vou procurar outro emprego.

 

Barbara, não podes afastar-te assim desta forma suplicou, subitamente em pânico. Ela sorriu tristemente.

 

Não será neste preciso minuto. Não farei isso. Estou a dar-te um pré-aviso de uma semana.

 

Nessa altura, eu e Janice já estaremos separados, prometo-te. Por favor fica! Não posso permitir que vás.

 

«Sobretudo depois de tudo o que fiz para te manter!», pensou, desesperado.

 

Depois de Maggie ter ido buscar Greta Shipley, pararam numa loja para comprar flores. Durante o percurso para o cemitério, Greta contou a Maggie pormenores sobre a sua amizade com Nuala.

 

Os pais dela arrendaram uma casa aqui durante vários anos, quando ambas tínhamos por volta dos dezasseis anos. Era uma rapariga tão bonita e tão divertida. Fomos inseparáveis durante esse tempo e ela tinha muitos admiradores. Até Tim Moore andava já atrás dela. Depois, o pai dela foi transferido para Londres e ela mudou-se para lá, onde frequentou a escola. Mais tarde, ouvi dizer que tinha casado. Pouco a pouco deixámos de ter notícias uma da outra, algo que sempre lamentei.

 

Maggie avançava com o carro pelas tranquilas ruas que conduziam ao cemitério de Santa Maria, em Newport.

 

Como se reencontraram? perguntou.

 

Foi exactamente há vinte e um anos. Um dia, o meu telefone tocou. Alguém pediu para falar com Greta Carlyle, o meu nome de solteira. A voz pareceu-me familiar, mas, na altura, não consegui identificá-la. Respondi que eu era Greta Carlyle Shipley e Nuala brincou:

 

Ainda bem, Gret. Acabaste numa Shipley!

 

Maggie ficou com a sensação de que escutava a voz de Nuala vinda da boca de toda a gente. Escutou-a quando Mrs. Woods falou sobre o testamento, quando o Dr. Lane recordou a forma como Nuala sentia ter vinte e dois anos, e, agora, nas lembranças de Mrs. Shipley sobre o mesmo tipo de caloroso reencontro, que Maggie sentira também há menos de duas semanas atrás.

 

Apesar da temperatura elevada dentro do carro, Maggie estremeceu. Sempre que pensava em Nuala, regressava à mesma pergunta: estaria a porta da cozinha destrancada, permitindo a entrada do intruso, ou teria Nuala aberto, ela própria, a porta a alguém que conhecia alguém em quem ela confiava para que entrasse na sua casa?

 

«Santuário», pensou Maggie. «As nossas casas deveriam ser os nossos santuários. Terá Nuala suplicado pela sua vida? Durante quanto tempo terá sentido os golpes que lhe martelaram a cabeça?» O chefe Brower afirmara que, quem quer que fosse que tivesse matado Nuala, andava à procura de algo e, pelo aspecto das coisas, poderia não ter encontrado.

 

... pelo que reatámos desde logo a nossa amizade e nos tornámos inseparáveis prosseguiu Greta. Nuala contou-me que ficara viúva muito nova e que voltara a casar e que o segundo casamento fora um terrível engano, com excepção de si. Estava tão traumatizada com o casamento que disse que o inferno haveria de congelar primeiro antes de voltar a tentar, mas, nessa altura, Tim estava viúvo e começaram a sair juntos. Uma manhã, telefonou-me e disse: «Gret, queres ir patinar no gelo? O inferno acabou de congelar.» Ela e Tim estavam noivos. Acho que nunca a vi tão feliz. Chegaram ao portão do cemitério. Um anjo esculpido em calcário, com os braços estendidos, deu-lhes as boas-vindas.

 

A sepultura fica à esquerda, no cimo da colina disse Mrs. Shipley, mas é claro que sabe isso. Esteve aqui ontem.

 

Ontem, pensou Maggie. Teria sido apenas ontem?

 

Estacionaram no topo da colina e, com a mão de Maggie segurando firmemente o braço de Greta Shipley, seguiram ao longo do caminho que conduzia à campa de Nuala. O terreno tinha já sido alisado e arranjado. A densa relva verde conferia ao local um ar de suave eternidade. O único som que se ouvia era o assobiar do vento por entre as folhas coloridas pelo Outono de um bordo próximo.

 

Mrs. Shipley esboçou um sorriso ao colocar as flores sobre a campa.

 

Nuala adorava aquela grande árvore. Dizia que, quando chegasse a sua altura, queria muita sombra para que as suas feições não ficassem arruinadas devido ao excesso de sol.

 

Riram-se baixo, voltando-se para partirem. Depois, Greta hesitou.

 

Seria abusar da minha parte se lhe pedisse que passássemos por momentos pelas campas de algumas outras amigas? Guardei umas flores para elas. Duas estão aqui em Santa Maria. As outras, no Cemitério da Trindade. Esta estrada passa directamente por lá. Os cemitérios ficam lado a lado e o portão norte entre eles está sempre aberto durante o dia.

 

Não gastaram muito tempo a efectuar as outras cinco paragens. A lápide na última sepultura tinha inscrito «Constance van Sickle Rhinelander». Maggie reparou que a data do falecimento era de há duas semanas apenas.

 

Era uma amiga íntima? inquiriu Maggie.

 

Não tanto quanto Nuala, mas vivia em Latham Manor, e fiquei a conhecê-la muito bem.Fez uma pausa.Foi repentino, tão repentino disse, voltando-se depois para Maggie e sorrindo. É melhor regressarmos. Estou a sentir-me um pouco cansada. Custa muito perder tantas pessoas que amamos.

 

Eu sei. Maggie colocou um braço em redor da velha senhora e apercebeu-se de como ela parecia frágil.

 

Durante o caminho de vinte minutos de regresso à residência, Greta Shipley dormitou. Quando chegaram a Latham Manor, abriu os olhos e disse, em tom de desculpas:

 

Antigamente, tinha tanta energia. Toda a minha família era assim. A minha avó era ainda forte aos noventa. Começo a pensar que estou a acabar.

 

Quando Maggie a encaminhou para dentro, Greta disse, hesitante:

 

Maggie, espero que volte a visitar-me antes de partir.

 

Quando regressa a Nova Iorque?

 

Maggie surpreendeu-se a si mesma ao responder firmemente:

 

Contava ficar por duas semanas e é precisamente o que vou fazer. Telefono-lhe antes do fim-de-semana e combinamos uma data.

 

Só quando regressou a casa de Nuala e colocou a chaleira ao lume se apercebeu de que algo a perturbava. Havia uma espécie de inquietude em relação a Greta Shipley e à visita aos cemitérios. Algo não estava bem. Mas, que era?

 

Do escritório de Liam Moore Payne avistava-se a cidade de Boston. Desde que deixara a anterior empresa de corretagem e abrira a sua própria firma de investimentos, andava extremamente ocupado. Os clientes de prestígio que trouxera consigo exigiam e recebiam a sua meticulosa atenção pessoal, o que lhe fizera ganhar a total confiança deles.

 

Não quisera telefonar a Maggie demasiado cedo, mas, quando acabou por o fazer, às onze da manhã, ficou desapontado por não a conseguir contactar. Depois disso, pediu à secretária que fosse tentando de hora a hora, mas apenas às quatro acabou por ouvir as boas notícias de que Mrs. Holloway estava em linha., Maggie, finalmente começou, parando logo de seguida. É uma chaleira que estou a ouvir?

 

Sim, espera um pouco, Liam. Estava precisamente a preparar uma chávena de chá.

 

Quando Maggie voltou a pegar no auscultador, ele disse: Estava com medo de que tivesses decidido regressar a casa. Não te censuro por ficares nervosa nessa casa.

 

Tenho sido cuidadosa a trancar as portas disse-lhe Maggie, acrescentando depois sem uma pausa: Liam, ainda bem que telefonaste. Preciso de te perguntar uma coisa. Ontem, depois de trazeres as minhas malas, falaste com Earl a meu respeito?

 

As sobrancelhas de Liam ergueram-se. Para ser sincero, não. Que te leva a pensar isso? Contou-lhe sobre o súbito aparecimento de Earl na porta da cozinha.

 

Queres dizer que ele ia apenas verificar a fechadura sem que tu soubesses? Estás a brincar.

 

Não, não estou. E não me importo de dizer que ele realmente me assustou. Já me sentia perturbada com o facto de estar aqui sozinha e depois ele a aparecer daquela maneira... Além disso, começou a citar qualquer coisa sobre como a tristeza tanto quanto a alegria poderem transitar de mente para mente. Foi estranho.

 

Essa é uma das suas citações preferidas. Creio que nunca o ouvi dar uma aula sem a incluir. Também a mim me causa calafrios.Liam fez uma pausa e depois suspirou. Maggie, Earl é meu primo e gosto dele, mas é de certa forma bizarro e não há dúvida de que está obcecado com o tema da morte. Queres que fale com ele sobre essa visita que te fez? Não, não creio. Mas vou pedir a um serralheiro que venha pôr ferrolhos nas portas. Sou suficientemente egoísta para ter a esperança de que isso signifique que vais ficar em Newport por uns tempos. Pelo menos as duas semanas inicialmente planeadas.

 

Vou para baixo na sexta-feira. Jantas comigo? Gostaria muito. Maggie, chama hoje o serralheiro, está bem? Será a primeira coisa, amanhã logo pela manhã. Está bem. Telefono-te amanhã.

 

Liam pousou o auscultador lentamente. Que deveria contar a Maggie a respeito de Earl? interrogou-se. Não desejava alertá-la com exageros, mas, mesmo assim... Claramente, era algo sobre que necessitava de ponderar.

 

Às cinco e um quarto, Janice Norton trancou a secretária no seu escritório na Residência Latham Manor. Como força do hábito, puxou todas as gavetas e confirmou que estavam efectivamente bem fechadas. Salvaguarda essa que William Lane deveria ter sensatamente adoptado, pensou com sarcasmo.

 

A assistente de Lane, Eileen Burns, trabalhava apenas diariamente até às duas e, depois disso, Janice desempenhava a dupla tarefa de contabilista e assistente. Sorriu para consigo mesma, reflectindo que o acesso incondicional ao escritório de Lane se revelara extremamente útil ao longo dos anos. Ainda agora procedera à cópia de informações que pretendia de mais dois processos, informações essas que sentia dever ser detentora. Chamem-lhe uma premonição.

 

Encolheu os ombros. Bom, estava feito. As cópias encontravam-se na sua pasta e os originais no seu devido lugar, na secretária de Lane. Era ridículo sentir-se agora nervosa com isso.

 

Os seus olhos estreitaram-se com secreta satisfação ao pensar no choque indisfarçável no rosto do marido quando Irma Woods lhes contou sobre o novo testamento de Nuala Moore. O prazer que ela sentia desde então, forçando-o para que pagasse a hipoteca da sua própria casa.

 

Janice sabia, obviamente, que ele não faria tal coisa. Malcolm estava destinado a vaguear eternamente num campo de sonhos frustrados. Levara-lhe algum tempo a perceber isso, mas o facto de trabalhar em Latham abrira-lhe os olhos. Alguns dos residentes podiam não ter tido os melhores dos antecedentes, mas nasceram no proverbial berço de ouro; nunca conheceram um dia de preocupação a respeito de dinheiro. Outros eram como Malcolm, sangue azul com linhagem remontando desde Mayflower à aristocracia, passando pelas cabeças coroadas da Europa, apaixonadamente orgulhosos por serem os tetra-sobrinhos ou qualquer coisa do género, afastados em nove graus, do príncipe regente de um qualquer patético ducado.

 

No entanto, o sangue azul de Latham diferia do de Malcolm de uma forma muito importante. Não tinham descansado à sombra das suas árvores genealógicas. Tinham lançado mãos à obra e feito as suas próprias fortunas. Ou casado com elas.

 

«Mas Malcolm não», pensou. «Oh, não, não o elegante, afável, cortês, tão bem nascido Malcolm!» No dia do seu casamento, Janice fora alvo da invej a das suas amigas todas, com excepção de Arme Everett. Nesse dia, no toilette do clube de iates, escutara inadvertidamente Anne referir-se injuriosamente a Malcolm como o «último boneco Ken».

 

Fora uma observação que ficara gravada na mente dela, porque, mesmo então, naquele que era suposto ser o dia mais feliz da sua vida, vestida como estava, como uma princesa, envolta em metros e metros de cetim, se apercebeu de que era verdade. Colocando as coisas de outro modo, casara com o sapo. E depois passara mais de trinta anos tentando dar realidade à mentira. Que desperdício!

 

Anos a oferecer jantares íntimos a clientes e potenciais clientes, unicamente para os ver transferirem os seus lucrativos processos para outros advogados, deixando a Malcolm apenas algumas migalhas. Agora, até a maioria desses tinha desaparecido.

 

Depois, o pior dos insultos. Apesar da forma como ela se mantivera ao seu lado todos aqueles anos, sabendo que teria alcançado maiores êxitos pelos seus próprios meios, mas, pelo contrário, agarrando-se teimosamente à pouca dignidade que lhe restava, Janice apercebera-se de que ele andava metido com a secretária e que planeava livrar-se dela!

 

«Se, ao menos, fosse o homem com quem pensei estar a casar», cismou Janice empurrando a cadeira para trás e erguendo-se, movendo os ombros doridos. «Melhor ainda, se, ao menos, fosse o homem que ele pensava ser! Nesse caso, teria tido realmente um príncipe.»

 

Alisou os lados da saia, sentindo um leve prazer com a sensação da cintura estreita e coxas magras. No início do casamento, Malcolm comparava-a a um animal de sangue puro, esguia, com pescoço longo, pernas magras e tornozelos torneados. «Um lindo animal de sangue puro», acrescentara ele.

 

Ela fora linda quando nova. Ora, vejam só o que isso lhe serviu, pensou, pesarosamente.

 

Pelo menos o seu corpo encontrava-se em excelente forma. E isso não era devido a visitas regulares a ginásios e agradáveis dias passados no campo de golfe, com os seus amigos da classe alta. Não, passara a vida de adulta a trabalhar, e a trabalhar a sério primeiro como agente de uma imobiliária e depois, nos últimos cinco anos, como contabilista naquele lugar.

 

Recordava-se de, quando era agente imobiliária, costumar salivar com propriedades vendidas ao desbarato por as pessoas necessitarem rapidamente de dinheiro. Quantas vezes pensara para consigo «Se, ao menos, eu tivesse o dinheiro...»

 

Bem, agora tinha-o. Agora podia ser ela a ditar as regras do jogo. E Malcolm nem sequer suspeitava.

 

Para que nunca mais tivesse de pisar aquele local!, pensou, exultante. Pouco se importava com a carpete Stark e as cortinas brocadas, mesmo na área dos escritórios. Podia ser bonito, mas não passava de um lar a sala de espera de Deus e, aos 54, caminhava a passos largos para a idade em que se tornava, ela própria, uma candidata para admissão. Bom, sairia dali muito antes de isso vir a acontecer.

 

O telefone tocou. Antes de atender, Janice olhou em redor do aposento, verificando se alguém teria entrado sub-repticiamente nas suas costas.

 

Janice Nortondisse firmemente, mantendo o auscultador próximo da boca.

 

Era a chamada de que estava à espera. Ele nem se incomodou a cumprimentá-la.

 

Bom, pelo menos uma vez na vida o querido Malcolm entendeu alguma coisa certa disse ele. A tal alteração à Lei das Zonas Marítimas vai mesmo ser aprovada. Aquela propriedade vai valer uma fortuna.

 

Ela riu-se.

 

Nesse caso, não está na altura de apresentar uma contraproposta a Maggie Holloway?

 

Depois do telefonema de Liam, Maggie sentou-se à mesa da cozinha, bebendo chá e mordiscando alguns biscoitos que encontrou no armário.

 

A caixa estava praticamente cheia e parecia ter sido aberta recentemente. Imaginou se, há apenas algumas noites, Nuala teria estado ali a beber chá, a comer biscoitos, planeando o menu para a festa. Encontrara uma lista de compras junto do telefone: perna de carneiro, ervilhas, cenouras, maçãs, uvas, batatas novas, biscoitos sortidos. Havia também escrevinhada uma nota típica de Nuala para si mesma: «Estou a esquecer-me de alguma coisa. Tentar recordar na loja.» Era visível que Nuala se esquecera de levar a lista.

 

«É engraçado», pensou Maggie, «mas, numa estranha e seguramente inesperada forma, o facto de me encontrar aqui na casa de Nuala está a devolvê-la a mim. Quase sinto que vivi aqui com ela todos estes anos.»

 

Nesse dia, estivera a folhear um álbum fotográfico que encontrara na sala de estar e apercebeu-se que as fotos de Nuala com Timothy Moore começavam no ano seguinte a Nuala e o seu pai se terem divorciado.

 

Deparou igualmente com um álbum mais pequeno repleto de fotografias dela própria, tiradas durante os cinco anos em que Nuala fizera parte da sua vida. Nas contra-páginas estavam colados todos os bilhetes que ela escrevera a Nuala nesses anos.

 

A fotografia solta mesmo no fim era de Nuala, do seu pai e dela própria, no dia do casamento deles. Sentira-se radiante por ter uma mãe. A expressão no rosto de Nuala era igualmente feliz. O sorriso nos lábios do pai era, contudo, reservado, interrogativo, tal como ele próprio.

 

«Não permitiu que ela entrasse no seu coração», pensou Maggie. «Sempre ouvi dizer que ele era louco pela minha mãe, mas ela morrera, e Nuala estava ali. Foi ele o perdedor quando Nuala acabou por se ir embora, incapaz de suportar a crítica dele. Também eu saí perdedora», reflectiu, colocando a chávena e o pires no lava-loiças. O simples acto fez regressar uma outra lembrança, a da voz aborrecida do pai: «Nuala, por que razão é tão impossível transferir os pratos directamente da mesa para a máquina de lavar loiça, sem primeiro os empilhar no lava-loiças?»

 

Durante algum tempo, Nuala rira-se com prazer por ser geneticamente desarrumada, mas, depois, acabava por responder: «Santo Deus, Owen, esta é a primeira vez que faço isto no espaço de três dias.»

 

«E, por vezes, rompia a chorar e eu corria atrás dela, abraçando-a», pensou Maggie com pesar.

 

Eram quatro e meia. Ajanela por cima do lava-louças emoldurava o bonito carvalho que se erguia ao lado da casa. «Devia ser podado», pensou Maggie. Durante uma tempestade severa, aqueles ramos mortos podiam quebrar-se e cair sobre a casa. Secou as mãos e virou-se. Mas para quê preocupar-se com isso? Não ia ficar ali. Teria de vasculhar tudo e separar roupas e mobílias passíveis de serem doadas a instituições de caridade. Se começasse agora, poderia ter terminado quando fosse altura de partir. Claro que poderia guardar algumas recordações para si, mas ia dar a maioria das coisas. Supunha que, depois de o testamento ter sido legitimado, venderia a casa «tal como estava», mas preferia que se encontrasse o mais vazia possível. Não queria que estranhos andassem a remexer na casa de Nuala e, talvez mesmo, tecendo comentários sarcásticos.

 

Começou no estúdio de Nuala.

 

Três horas mais tarde, encardida devido à poeira de armários e balcões, repletos de pincéis ressequidos, tubos de óleos secos, trapos e pequenos cavaletes, Maggie tinha um impressionante número de sacos de lixo etiquetados e alinhados num canto do aposento.

 

E, embora tivesse apenas começado, só aquela limpeza alterara a aparência do estúdio, para melhor. Fielmente, lembrou-se de o chefe da Polícia Brower ter afirmado que aquele espaço fora minuciosamente revistado. Tornava-se óbvio que o serviço de limpeza não se incomodara em fazer mais do que enfiar o maior número possível de artigos de novo nos armários, deixando o restante sobre os balcões. O resultado foi uma sensação de caos, que Maggie encarou como desconcertante.

 

Mas o aposento em si era bastante impressionante. As janelas, rasgadas do chão ao tecto, e que pareciam a única grande alteração efectuada na casa, deviam permitir a entrada de uma luz maravilhosa vinda do norte, pensou Maggie. Quando Nuala lhe pedira que trouxesse com ela o material de esculpir, prometera que Maggie haveria de considerar a longa mesa de apoio existente como uma perfeita área de trabalho. Embora tivesse a certeza de que não se iria servir deles, para agradar a Nuala trouxera consigo um tubo de barro fresco com vinte quilos, diversas armaduras, as armações sobre as quais as figuras seriam construídas e as suas ferramentas de moldagem.

 

Maggie fez uma breve pausa, pensando. Sobre aquela mesa, poderia criar o busto de Nuala. Dispunha de muitas fotografias recentes que lhe poderiam servir de modelo. «Como se eu necessitasse delas», pensou Maggie. Parecia-lhe que o rosto de Nuala estaria para sempre gravado na sua mente. Com excepção de visitar Greta e de limpar a casa, não tinha verdadeiros planos. «Já que sei que vou ficar mais uma semana, a contar desde domingo, pelo que seria bom ter um projecto», disse a si mesma, «que melhor tema que Nuala?»

 

A visita a Latham Manor e o tempo que passou com Greta Shipley servira para a convencer de que a inquietação que pensou perceber em Nuala era simplesmente o resultado da sua preocupação quanto aos efeitos de mudar radicalmente de vida, vendendo a casa e mudando-se para a residência. «Não creio que houvesse mais do que isso», pensou. «Pelo menos, nada que consiga ver.»

 

Suspirou. «Acho que não há forma de ter a certeza absoluta. Mas, se foi um assalto vulgar, não teria sido arriscado matar Nuala e depois perder tempo a revistar a casa?» Quem quer que ali tivesse estado, podia sentir o cheiro da comida a ser preparada e ver que a mesa estava posta para diversas pessoas. Faria sentido que o homicida receasse que alguém pudesse chegar enquanto remexia a casa, disse para consigo própria. «A menos que esse alguém soubesse que o jantar estava marcado para as oito e que eu não chegaria até muito próximo dessa hora.»

 

«Uma janela de oportunidade», raciocinou. Existira seguramente uma para uma pessoa, que estava ao corrente dos planos para aquela noite talvez, até, que fizesse parte desses planos.

 

Nuala não foi morta por um ladrão qualquer afirmou Maggie em voz alta. Mentalmente, reviu as pessoas que iriam participar no jantar. Que sabia sobre cada uma delas? Nada, muito honestamente.

 

Excepto Liam; era o único que realmente conhecia. Fora apenas devido a ele que voltara a encontrar Nuala e, por isso, ficar-lhe-ia eternamente grata. «Estou também feliz por ele sentir o mesmo que eu em relação ao primo Earl», pensou. «O aparecimento dele aqui provocou-me mesmo calafrios.»

 

Quando ela e Liam voltassem a conversar, gostaria de lhe perguntar sobre Malcolm e Janice Norton. Mesmo naquele momento rápido nessa manhã, quando cumprimentou Janice em Latham Manor, conseguiu detectar algo errado na expressão da mulher. Parecia ira. «Por causa da venda cancelada?», interrogou-se Maggie. Mas, seguramente, existiam muitas casas como aquela disponíveis em Newport. Não podia ser isso.

 

Maggie dirigiu-se à mesa de apoio e sentou-se. Olhou para as mãos e apercebeu-se de que sentia comichão ao tocar no barro. Descobriu que, sempre que tentava reflectir sobre uma determinada questão, trabalhar o barro a ajudava a encontrar a resposta ou, pelo menos, chegar a uma conclusão.

 

Algo a perturbara hoje, algo que notara subconscientemente. Esse facto registara-se mentalmente, mas não se concretizara na altura própria. Que poderia ter sido?, perguntou a si mesma. Instante a instante, recordou o dia desde que se levantou, a inspecção superficial do piso inferior de Latham Manor e o seu encontro com o Dr. Lane, a ida aos cemitérios com Greta Shipley.

 

Os cemitérios! Maggie endireitou-se. Era isso! Aquela última campa onde tinham ido, da tal Sr.a Rhinelander, que falecera há duas semanas «reparei nalguma coisa».

 

Mas em quê? Por muito que tentasse, não conseguiu imaginar o que a perturbara.

 

«Amanhã de manhã, irei aos cemitérios para pesquisar», decidiu. «Vou levar a máquina fotográfica e, se não vir exactamente o que é, tiro fotografias. Talvez aquilo que me está a inquietar se mostre quando as revelar.»

 

Fora um dia longo. Decidiu tomar banho, mexer um ovo, ir para a cama e ler mais um pouco os livros sobre Newport.

 

Ao descer as escadas, apercebeu-se de que o telefone no quarto de Nuala estava a tocar. Correu para atender, mas foi recompensada com um desligar do outro lado.

 

«Provavelmente não me ouviram», pensou, «mas pouco importa.» Não havia ninguém com quem quisesse conversar naquele momento.

 

A porta do roupeiro no quarto estava aberta e as luzes do corredor revelaram o fato azul que Nuala vestira na festa de reunião no Four Seasons. Estava atabalhoadamente pendurado num cabide, como se tivesse sido guardado descuidadamente.

 

O fato era caro. Pensar que se podia estragar se fosse deixado daquele modo levou Maggie a aproximar-se e a pendurá-lo adequadamente.

 

Quando endireitava o tecido, pensou escutar um ruído suave, como se algo tivesse caído para o chão. Olhou para baixo, para a fila de botas e sapatos no fundo do roupeiro, e decidiu que, se algo tivesse realmente caído, teria de esperar.

 

Fechou a porta do roupeiro e deixou o quarto, preparando-se para o banho. A solidão de que desfrutara tantas noites no seu apartamento em Nova Iorque não tinha qualquer atractivo nesta casa de fechaduras frágeis e cantos escuros, nesta casa onde um homicídio ocorrera talvez perpetrado por alguém que Nuala tinha em conta de amigo.

 

Earl Bateman não tencionava viajar para Newport na terça-feira à noite. Contudo, ao preparar a palestra que ia apresentar na sexta-feira seguinte, apercebeu-se de que, a fim de poder ilustrar o tema, necessitava de alguns dos slides que guardava no museu instalado nos terrenos da Casa Funerária Bateman. O lar do seu trisavô, a reduzida casa vitoriana e o acre onde se erguia, tinha sido separado da casa e propriedade principais há dez anos atrás.

 

Tecnicamente, o museu era privado e não se encontrava aberto ao público. Apenas podia ser visitado através de um pedido escrito, e Earl acompanhava pessoalmente os poucos visitantes. Em resposta ao humor irónico dos seus primos sempre que falavam do «Vale da Morte»como apelidavam este pequeno museu, a sua resposta gelada e propositadamente sem humor era que, segundo rezava a história, pessoas de todas as culturas e educações sempre tinham conferido grande importância aos rituais ligados à morte.

 

Ao longo dos anos, reunira um impressionante conjunto de artigos, todos relacionados com a morte: slides e filmes; hinos fúnebres registados; poemas épicos gregos; pinturas e gravuras, tais como a pintura apoteótica de Lincoln sendo recebido no céu; reproduções à escala do Taj Mahal e das pirâmides; mausoléus nativos em madeira rij a com ornamentos metálicos; piras funerárias dos índios; urnas actuais; réplicas de tambores; conchas, chapéus de chuva e espadas; estátuas de cavalos sem cavaleiros com estribos virados em sentido contrário; e exemplares de trajes de luto ao longo das épocas.

 

«Trajes de Luto» era precisamente o tema da palestra que ia apresentar aos membros de um grupo de leitura, o qual efectuara recentemente um debate sobre uma série de livros relativos a rituais da morte. Para a ocasião, pretendia apresentar-lhes slides dos trajes existentes no museu.

 

As apresentações visuais contribuíam sempre para a dinamização de uma palestra, decidiu ao conduzir ao longo da Estrada 138, por cima da ponte de Newport. Até ao ano passado, o último slide utilizado quando efectuou uma palestra sobre trajes foi um excerto do Guia de Etiqueta de Amy Vanderbilt, datado de 1952, no qual a autora instruía que sapatos de couro envernizado não eram apropriados para um funeral. Acompanhando o texto, a autora colocara gravuras de sapatos de couro envernizado, desde Mary Janes de crianças a escarpins de senhoras, passando por chinelos de noite curvos de homens, todas elas, na opinião dele, destinadas a criar um efeito extravagante.

 

No entanto, pensara agora numa nova forma de terminar a palestra. «Que dirão de nós as gerações futuras quando virem ilustrações de viúvas com minissaias vermelhas e familiares de jeans e casacos de cabedal? Será que vão abstrair dos hábitos sociais e culturais o significado profundo desses mesmos hábitos, tal como nós tentamos abstrair, ao analisarmos a roupa do passado? E, se tal acontecer, não gostariam de ter a oportunidade de escutar, às escondidas, o debate que se seguiria?»

 

Agradou-lhe. Desta forma, iria reduzir as reacções de inquietação que sempre provocava quando debatia o facto de a comunidade Beerawan vestir a viúva ou viúvo com andrajos, por acreditarem que a alma da pessoa falecida começa a vaguear imediatamente após cessar a respiração e pode assim infligir hostilidade aos vivos, mesmo aqueles amados pelo falecido. Supostamente, os andrajos reflectem pesar e, adequadamente, luto profundo.

 

No museu, esse pensamento permaneceu com ele enquanto reunia os slides que pretendia. Sentia uma tensão entre a Nuala falecida e a Maggie viva. Havia hostilidade para com Maggie. Tinha de ser avisada.

 

Sabia o número de telefone de Nuala de cor e, sob a luz ténue do escritório do seu museu, ligou-o. Preparava-se para desligar quando escutou a voz ofegante de Maggie. Mesmo assim, pousou o auscultador.

 

Ela podia considerar o alerta estranho, e não queria que Maggie pensasse que ele era doido.

 

Não sou doido disse em voz alta. Depois, soltou uma gargalhada. Não sou sequer estranho.

 

                       Quarta-feira, 2 de Outubro

 

Neil Stephens era normalmente capaz de prestar a sua total e ininterrupta atenção às mutáveis marés da Bolsa de Valores. Os seus clientes, quer colectivos quer individuais, apreciavam-no pela precisão das suas previsões e olho clínico para o discernimento de tendências. Contudo, nos cinco dias em que não conseguiu contactar com Maggie, dava por si distraído quando necessitava de estar atento e, em consequência, desnecessariamente severo para com a sua assistente, Trish.

 

Permitindo finalmente que a sua irritação se revelasse, Trish colocara-o no seu devido lugar, erguendo a mão num gesto que claramente significava basta, e dissera:

 

Só existe uma razão para que um tipo como você esteja tão rabugento. Está finalmente interessado por alguém, e ela não está pelos ajustes. Bom, acho que deveria dizer «bem-vindo ao mundo real», mas o facto é que lamento e tentarei ter paciência para a sua má-disposição.

 

Após um débil e sem resposta «afinal, quem manda aqui?», Neil regressou ao seu gabinete e rebuscou de novo a memória, tentando recordar-se do nome da madrasta de Maggie.

 

A frustração ocasionada por uma sensação importuna de que algo estava errado fê-lo ficar impaciente, o que era verdadeiramente invulgar nele, com dois dos seus clientes de longa data, Lawrence e Frances van Hilleary, os quais o tinham visitado naquela manhã.

 

Usando um fato Chanel que Neil reconheceu como um dos favoritos dela, Francês sentou-se elegantemente aprumada na beira de uma cadeira de couro na «área de conversação amiga do cliente» e contou-lhe sobre uma informação «quente», que tinham recebido no decorrer de um jantar, sobre acções de um poço petrolífero. Os olhos dela cintilavam ao dar-lhe os pormenores.

 

A companhia está sediada no Texas explicou, entusiasmada. No entanto, desde que a China abriu as portas ao Ocidente, estão a enviar os melhores engenheiros para lá.

 

«China!», pensou Neil, angustiado, mas reclinou-se na cadeira, tentando mostrar uma aparência de quem escutava atentamente enquanto, primeiro Frances e depois Lawrence, falavam com excitação sobre a estabilidade política prestes a instalar-se na China, sobre preocupações em termos de poluição naquele país, sobre poços de petróleo à espera de serem abertos e, obviamente, sobre fortunas a serem feitas.

 

Efectuando rápidos cálculos mentais, Neil apercebeu-se com desalento de que eles falavam em investir à volta de três quartos dos seus activos disponíveis.

 

Aqui está o prospecto concluiu Lawrence van Hilleary, entregando-lho.

 

Neil pegou no dossier lustroso e viu que o seu conteúdo era exactamente o que ele esperava. No fundo da página, em letras quase demasiado pequenas para serem lidas, estavam palavras de alerta de que apenas investidores com activos de meio milhão de dólares, excluindo as suas residências, poderiam participar.

 

Pigarreou.

 

Okay, Frances e Lawrence, pagam-me para vos aconselhar. São duas das pessoas mais generosas com quem lido. Já cederam uma tremenda quantia de dinheiro aos vossos filhos, netos e instituições de caridade na parceria limitada da família, fundos de bens imobiliários, fundos de omissão de geração e IRAs caridosos. Acredito piamente que o que lhes resta não deverá ser desperdiçado neste tipo de investimento obscuro. O risco é demasiado elevado e atrevo-me a dizer que há mais óleo a pingar do carro na vossa garagem do que aquele que jamais verão nesses supostos poços. Em toda a consciência, nunca poderia lidar com uma transacção deste tipo e peço-lhes que não desperdicem o vosso dinheiro nisto.

 

Registrou-se um momento de silêncio, quebrado por Francês, que se virou para o marido e disse:

 

Querido, lembra-me para mandar verificar o carro. Lawrence van Hilleary abanou a cabeça e depois suspirou, resignado.

 

Obrigado, Neil. Penso que nós, os velhotes, somos realmente patéticos.

 

Bateram levemente à porta e Trish entrou com uma bandeja com café.

 

Ele ainda está a tentar vender-lhe aquelas acções da Edsel, Mr. Van Hilleary?

 

Não, ele tirou-me isso da ideia quando eu estava prestes a comprá-las, Trish. Esse café cheira mesmo bem.

 

Após discutirem outras questões do portfolio de investimentos deles, o assunto mudou para uma decisão que os Van Hilleary estavam a ponderar.

 

Ambos temos setenta e oito disse Lawrence, fitando carinhosamente a mulher. Sei que estamos com óptimo aspecto, mas é inquestionável que não podemos fazer as coisas que fazíamos há alguns anos atrás... Nenhum dos nossos filhos vive nesta zona. A casa de Greenwich é de manutenção cara e, para ajudar, a nossa velha governanta acabou de se reformar. Estamos seriamente a pensar procurar uma comunidade para reformados, algures na Nova Inglaterra. Continuaríamos a ir à Florida no Inverno, mas seria agradável desfazermo-nos de todas as responsabilidades inerentes a uma casa e terrenos.

 

Onde, em Nova Inglaterra? inquiriu Neil.

 

Talvez no Cabo. Ou talvez Newport. Gostaríamos de ficar perto da água.

 

Nesse caso, poderei fazer algumas indagações durante o fim-de-semana. Pô-los brevemente ao corrente de como diversas senhoras a quem o seu pai tratava dos impostos se tinham mudado para a Residência Latham Manor, em Newport, e se sentiam muito felizes lá.

 

Quando se levantaram para sair, Frances van Hilleary beijou o rosto de Neil.

 

Nada de petróleo para os candeeiros da China, prometo. E informe-nos sobre o que descobrir acerca desse sítio em Newport.

 

Claro que sim. «Amanhã», pensou Neil, «amanhã estarei em Newport e talvez encontre Maggie por acaso.»

 

«Hás-de ter muita sorte!», disse uma voz incomodativa dentro da sua cabeça.

 

Foi então que foi atingido por uma tempestade cerebral. Uma noite, quando jantavam no NearyX Jimmy Neary e Maggie conversavam sobre a viagem que ela ia fazer a Newport. Disse a Jimmy o nome da madrasta e ele respondera que era um dos mais importantes dos velhos nomes célticos. Seguramente, Jimmy devia recordar-se, disse para consigo próprio.

 

Um Neil muito mais feliz deitou mãos ao trabalho para terminar os afazeres do dia. À noite ia jantar ao Near’s, decidiu, seguindo depois para casa para fazer as malas. No dia seguinte, viajaria para norte.

 

Às oito horas daquela noite, enquanto Neil terminava com satisfação uns escalopes salteados com puré de batata, Jimmy Neary sentou-se com ele. Mantendo mentalmente os dedos cruzados, Neil perguntou se Jimmy se recordava do nome da madrasta de Maggie.

 

Ah-hah disse Jimmy. Dê-me um minuto. É um nome grandioso. Deixe-me ver. O rosto querúbico de Jimmy franziu-se em concentração. Nieve... Siobhan... Maeve... Cloissa... não, nenhum destes. É... é... por Deus, achei! Finnuala! Significa «a de tez clara» em gaélico. E Maggie disse que ela era conhecida por Nuala.

 

Pelo menos, é um começo. Estava capaz de o beijar, Jimmy exclamou Neil, fervorosamente.

 

Uma expressão de alarme instalou-se no rosto de Jimmy.

 

Não se atreva! disse.

 

Maggie não estava à espera de dormir bem, mas, envolta como estava no macio edredão, a cabeça escondida nas almofadas de penas de ganso, só despertou quando o telefone tocou, às nove e meia, no quarto principal.

 

Sentindo-se de cabeça leve e fresca, pela primeira vez desde há alguns dias, correu a atender, tomando nota dos brilhantes raios de sol que jorravam no quarto através dos intervalos laterais das venezianas

 

Era Greta Shipley. Quase a desculpar-se, começou:

 

Maggie, queria agradecer-lhe o dia de ontem. Significou tanto para mim. E, por favor, não concorde com o que vou dizer a menos que seja algo que deseje realmente fazer, mas mencionou que queria recolher os materiais de pintura que Nuala aqui deixou e, bom... Estamos autorizados a convidar uma pessoa parajantar, numa base rotativa. Pensei que, se não tivesse planos, pudesse considerar a hipótese de jantar aqui comigo.

 

Não tenho nenhuns planos e teria muito prazer respondeu Maggie com sinceridade. Subitamente, um pensamento ocorreu-lhe, uma espécie de imagem mental. O cemitério. A campa de Mrs. Rhinelander. Que seria? Algo lhe despertara a atenção ontem lá. Mas o quê? Tinha de lá voltar. Pensou que tivesse sido na sepultura de Mrs. Rhinelander, mas, se estivesse errada, teria de regressar a todas as outras campas por onde tinham passado.

 

Mrs. Shipley afirmou. Enquanto aqui estou, vou tirar algumas fotografias por Newport para um projecto em que estou a trabalhar. Pode parecer macabro, mas Santa Maria e Trindade possuem uma atmosfera tão tranquila e são tão ao estilo do velho mundo que se tornam perfeitos para os meus propósitos. Sei que algumas das campas onde deixámos flores ontem têm lindas vistas por detrás. Gostaria de lá voltar. Pode dizer-me quais as que visitámos?

 

Desejou que a desculpa apressada que arranjou não parecesse demasiado improvisada. «Mas estou efectivamente a trabalhar num projecto», pensou.

 

Greta Shipley, contudo, não pareceu achar o pedido de Maggie peculiar.

 

Oh, estão localizados numa zona linda, não estão? concordou. Certamente, posso dizer-lhe onde fomos. Tem um papel e lápis à mão?

 

Aqui mesmo. Nuala deixara um pequeno bloco e uma caneta junto do telefone.

 

Três minutos mais tarde, Maggie anotara não apenas os nomes mas também direcções específicas de cada local. Sabia que poderia localizar as sepulturas; se ao menos soubesse o que esperava encontrar.

 

Depois de desligar, Maggie levantou-se da cama, espreguiçou-se e decidiu tomar um duche rápido, a fim de completar o processo de despertar. «Um banho quente à noite para nos fazer adormecer», pensou, «um duche frio para acordar. Ainda bem que não nasci há quatrocentos anos.» Pensou num trecho que lera num livro sobre a rainha Isabel I: «A rainha toma banho uma vez por mês, sempre que dele necessite ou não.»

 

O chuveiro, obviamente uma adição à bonita banheira de pés, fornecia um jacto afiado como agulhas e completamente satisfatório. Vestida com um robe, o cabelo ainda molhado envolto com uma toalha em forma de turbante, Maggie desceu as escadas e preparou um pequeno-almoço leve, que transportou para o quarto, a fim de comer enquanto se vestia.

 

Apercebeu-se de que a roupa casual que emalara para as férias com Nuala não seria suficiente para a sua estada de duas semanas. Esta tarde, teria de encontrar uma loja e adquirir mais uma saia ou duas, e o mesmo número de blusas ou camisolas. Sabia que os trajes em Latham Manor eram algo formais, além de que concordara em jantar com Liam na sexta-feira à noite, o que significava ter de se arranjar. Sempre que ela e Liam saíam para jantar em Nova Iorque, ele invariavelmente escolhia restaurantes bastante caros.

 

Erguendo a veneziana, abriu a janela da frente e sentiu a brisa quente e suave, confirmando que, após a humidade fria do dia anterior, Newport desfrutava de um tempo próprio do início do Outono, perfeito para a fotografia. Não havia necessidade para um casaco quente, decidiu. Uma T-shirt branca, jeans, uma camisola azul e ténis foi o que escolheu para usar.

 

Depois de vestida, Maggie permaneceu por momentos em frente do espelho pendurado em cima da cómoda, contemplando-se. Os olhos já não mostravam indícios das lágrimas que derramara por Nuala. Estavam límpidos de novo. Azuis. Azul-safíra. Fora assim que Paul descrevera os seus olhos na noite em que se conheceram. Parecia ter sido há uma vida atrás. Ela fora dama-de-honor da noiva, no casamento de Kay Koehler; ele, padrinho do noivo.

 

O jantar de ensaio teve lugar no Chevy Chase Country Club, em Maryland, perto de Washington. Ele sentara-se ao lado dela. «Conversámos toda a noite», pensou Maggie, recordando. «Depois, após o casamento, dançámos praticamente todas as danças. Quando ele me abraçou, senti-me como se tivesse subitamente regressado a casa.»

 

Nessa época, ambos tinham 23 anos. Ele frequentava a Academia da Força Aérea e ela estava a acabar a Universidade de Nova Iorque.

 

«Toda a gente afirmava que fazíamos um belo par», lembrou Maggie. «Um estudo em contrastes. Paul tinha cabelos louros lisos e olhos azuis de gelo, o aspecto nórdico que ele disse ter herdado da avó finlandesa. Eu, a céltica de cabelos escuros.»

 

Durante cinco anos após a morte dele, Maggie mantivera o cabelo como ele gostava. Por fim, o ano passado, cortara uns oito centímetros; agora mal roçava a linha do colarinho, mas, como bónus, o comprimento mais curto realçava os caracóis naturais. Exigia também menos cuidados e, para Maggie, isso era fundamental.

 

Paul também gostara do facto de ela usar apenas rímel e baton quase natural. Agora, pelo menos para ocasiões festivas, Maggie possuía material de maquilhagem mais sofisticado.

 

«Por que estou a pensar em tudo isto agora?», perguntou Maggie a si mesma, preparando-se para sair. Era quase como se estivesse a contar tudo aquilo a Nuala, imaginou. Era tudo o que tinha acontecido nos anos em que se deixaram de ver, coisas que queria ter conversado com ela. Nuala ficou viúva jovem, teria compreendido.

 

De seguida, após uma silenciosa oração final para que Nuala usasse a sua influência junto dos seus santos favoritos para que Maggie pudesse entender a razão por que estava a ser compelida a ir aos cemitérios, pegou no tabuleiro do pequeno-almoço e levou o para a cozinha.

 

Três minutos mais tarde, depois de verificar o conteúdo do seu saco a tiracolo, de trancar duplamente as portas e de tirar a sua Nikon e equipamento fotográfico da mala do carro, pôs-se a caminho dos cemitérios.

 

Mrs. Eleanor Robinson Chandler chegou à Residência Latham Manor exactamente às dez e meia, a hora marcada para o seu encontro com o Dr. William Lane.

 

Lane recebeu a sua convidada aristocrata com o charme e cortesia que tinham feito dele o director e médico assistente perfeito da residência. Sabia de cor a história de Mrs. Chandler. O nome de família era bastante conhecido em toda a Rhode Island. A avó de Mrs. Chandler fora uma das grandes damas da sociedade de Newport durante o zénite social da cidade, na década de 1890. Iria constituir uma excelente referência para a residência e, muito possivelmente, atrair futuros residentes de entre os seus amigos.

 

Os registos financeiros dela, embora impressionantes, eram algo desapontantes. Era evidente que dera grande parte do seu dinheiro à sua enorme família. Com 75 anos de idade, contribuíra claramente para ajudar a popular a Terra: quatro filhos, catorze netos, sete bisnetos e, sem dúvida, mais a contar futuramente.

 

No entanto, dado o seu nome e historial, poderia muito bem ser convencida a ficar com o excelente apartamento antes destinado a Nuala Moore, decidiu ele. Era claro que ela estava habituada ao melhor.

 

Mrs. Chandler estava vestida com um fato de malha bege e sapatos de salto raso. Um colar de pérolas de uma só volta, pequenos brincos de pérolas, uma aliança de ouro e um fino relógio de ouro eram as suas únicas jóias, mas cada item era soberbo. A sua fisionomia clássica, emoldurada por puros cabelos brancos, revelava uma expressão graciosa e reservada. Lane entendia perfeitamente que era ele quem estava a ser entrevistado.

 

Compreende seguramente que se trata de um mero encontro preliminar dizia Mrs. Chandler. Não estou nada segura de estar preparada para entrar em qualquer lar, por muito atraente que seja. Digo isto pelo que vi até agora, a restauração deste velho lugar é de um excelente gosto.

 

«A aprovação de Sir Hubert é realmente um elogio», pensou Lane sarcasticamente. Contudo, sorriu em tom apreciador.

 

Muito obrigado disse. Se Odile estivesse presente, estaria a dizer que, vinda de Mrs. Chandler, tal apreciação significava tanto para eles, e coisas do género.

 

A minha filha mais velha vive em Santa Fé e deseja ardentemente que eu estabeleça lá a minha residência prosseguiu Mrs. Chandler.

 

«Mas não quer ir para lá, pois não?», pensou Lane e, subitamente, sentiu-se muito melhor.

 

É claro, depois de ter vivido nesta zona durante tantos anos, é um pouco difícil fazer uma mudança tão radical, creio disse, cordialmente. Muitos dos nossos residentes visitam as suas famílias por uma ou duas semanas, mas depois sentem-se muito felizes por regressarem à tranquilidade e conforto de Latham Manor.

 

Sim, acredito que sim. O tom de Mrs. Chandler não revelava qualquer compromisso.Depreendo que possui diversas unidades disponíveis?

 

Na verdade, uma das nossas unidades mais desejadas acabou de ficar disponível.

 

Quem a ocupava anteriormente?

 

Mrs. Constance van Sickle Rhinelander.

 

Oh, claro. Connie estava bastante doente, tanto quanto sei.

 

Com efeito. Lane não mencionou Nuala Moore. Iria explicar que o aposento que desocupara para o estúdio de arte de Mrs. Moore estava a ser totalmente remodelado.

 

Subiram no elevador até ao terceiro piso. Mrs. Chandler permaneceu por longos minutos no terraço sobranceiro ao oceano.

 

Isto é encantador reconheceu. No entanto, penso que esta unidade custa quinhentos mil dólares!?

 

Correcto.

 

Bom, não tenciono gastar tanto. Agora que já vi esta, gostaria de observar as outras unidades disponíveis.

 

«Ela vai tentar negociar comigo para baixar o preço», pensou o Dr. Lane, e teve de resistir à vontade de lhe dizer que esse artifício era perfeitamente desnecessário. A regra básica de todas as Residências Prestige era a não concessão de qualquer desconto. De outra forma, seria de prever problemas, sobretudo se fossem divulgados negócios especiais junto de pessoas que a eles não tinham tido acesso.

 

Mrs. Chandler rejeitou praticamente de imediato o mais pequeno, o de dimensões médias e depois o apartamento maior de uma só cama.

 

Nenhum destes serve. Receio que estejamos a fazer perder« o nosso tempo.

 

Encontravam-se no segundo andar. O Dr. Lane voltou-se e viu Odile caminhar na direcção deles, de braço dado com Mrs. Pritchard, que recuperava de uma cirurgia ao pé. Sorriu para eles, mas, para alívio de Lane, não parou. Até Odile sabia ocasionalmente quando não se intrometer, pensou.

 

A enfermeira Markey encontrava-se sentada à secretária do segundo andar. Olhou para eles com um sorriso caloroso e profissional. Lane estava ansioso por falar com ela. Naquela manhã, Mrs. Shipley informara-o de que tencionava colocar um ferrolho na porta, por forma a assegurar alguma privacidade. «Aquela mulher encara uma porta fechada como um desafio», afirmara.

 

Passaram pelo apartamento-estúdio de Mrs. Shipley. Uma empregada acabara de o limpar, e a porta larga estava aberta. Mrs. Chandler espreitou e parou.

 

Oh, é encantador disse com sinceridade, observando a espaçosa área comum com a lareira renascentista.

 

Entre solicitou o Dr. Lane. Sei que Mrs. Shipley não se importará. Está no cabeleireiro.

 

Não passarei daqui. Sinto-me como uma intrusa. Mrs. Chandler observou a área do quarto e as magníficas vistas do oceano, de três dos lados da unidade.Acho que esta é preferível à suite maior disse-lhe. Quanto custa uma unidade destas?

 

Trezentos e cinquenta mil dólares.

 

Ora aí está um valor que eu pagaria. Há mais alguma como esta disponível? Por esse preço, é claro?

 

De momento, não respondeu Lane, acrescentando de seguida:Mas, por que não preenche uma candidatura?Sorriu para ela. Gostaríamos muito de a ter como nossa hóspede um dia.

 

Douglas Hansen sorriu graciosamente do outro lado da mesa para Cora Gebhart, uma picante septuagenária que claramente apreciava os escalopes com endívias guisadas que pedira para o almoço.

 

Era uma faladora, pensou ele, não como as outras que tivera de cobrir de atenções antes de conseguir obter qualquer informação por parte delas. Mrs. Gebhart abria-se para ele como uma flor para o sol, e sabia que, na altura em que o café fosse servido, teria já conquistado a confiança dela.

 

«O sobrinho predilecto de toda a gente», chamara-lhe uma das mulheres, e era exactamente assim que ele desejava ser encarado: o solícito de 30 anos de idade que facultava todas as pequenas cortesias de que elas não desfrutavam há anos.

 

Almoços íntimos e de conversa fácil, num restaurante de primeira categoria como este, Bouchard’s, ou um local como a Chart House, de onde se podiam apreciar belas vistas, acompanhado por uma excelente lagosta. Os almoços eram seguidos por uma caixa de bombons para aquelas que pediam sobremesas doces, flores para aquelas que confidenciavam histórias dos seus muito distantes namoros, e mesmo um passeio de braço dado em Ocean Drive para uma viúva mais recente que saudosamente confidenciasse como ela e o falecido marido costumavam dar longos passeios todos os dias. Sabia exactamente como fazer as coisas.

 

Hansen tinha grande respeito pelo facto de todas estas mulheres serem inteligentes e algumas delas serem mesmo astutas. As ofertas de acções que lhes propunha eram do tipo que até um moderado investidor admitiria terem possibilidades. Na verdade, uma dessas ofertas resultara efectivamente, o que, de certa forma, fora desastroso para ele. No final, contudo, revelou-se lucrativa. Porque agora, por forma a deitar as garras à sua presa, sugeria sempre a uma potencial cliente que telefonasse a Mrs. Alberta Downing, em Providence, para que ela confirmasse a aptidão de Hansen.

 

«Mrs. Downing investiu cem mil dólares e alcançou um lucro de trezentos mil dólares numa semana», podia afirmar a possíveis clientes. Era uma afirmação honesta. O facto de as acções terem sido artificialmente inflaccionadas no último minuto e de Mrs. Downing lhe ter ordenado que vendesse, ainda que contrariamente ao seu próprio conselho, parecera um desastre na altura. Viram-se obrigados a arranjar o dinheiro para pagar os lucros dela, mas, ao menos agora, dispunham de uma genuína referência de sangue-azul.

 

Cora Gebhart terminou afectadamente a sua refeição.

 

Excelente anunciou, bebericando o chardonnay do copo. Hansen quisera pedir uma garrafa cheia, mas ela informara-o de que o seu limite era um copo por refeição.

 

Douglas pousou a faca no prato e colocou cuidadosamente o garfo ao lado, com os dentes voltados para baixo, ao estilo europeu. Cora Gebhart suspirou.

 

Era desse modo que o meu marido sempre pousava as pratas no prato. Também foi educado na Europa?

 

Estudei na Sorbonne respondeu Hansen com estudada indiferença.

 

Que maravilha! exclamou Mrs. Gebhart, e mudou de imediato para um francês impecável, que Douglas tentou desesperadamente seguir.

 

Após alguns instantes, ergueu a mão, sorrindo:

 

Sei ler e escrever francês fluentemente, mas já passaram onze anos desde que lá estive e receio estar um pouco enferrujado. En anglais, s’il vous plait.

 

Riram-se em conjunto, mas a antena de Hansen ergueu-se. Estaria Mrs. Gebhart a testá-lo?, interrogou-se. Ela emitira um comentário sobre o bonito casaco de tweed que ele usava e sobre a sua aparência geral distinta, afirmando que era pouco habitual numa época em que tantos jovens, incluindo o seu neto, mais pareciam ter acabado de regressar de um acampamento. Estaria ela a dizer-lhe, de uma forma subtil, que podia vê-lo à transparência? Que ela sentia que ele não era verdadeiramente um graduado da Williams e da Escola de Comércio Wharton, como afirmava?

 

Sabia que a sua aparência magra, loura e aristocrática era impressionante.

 

Permitira-lhe arranjar empregos no Merrill Lynch e no Salomon Brothers, mas não ficara mais de seis meses em cada um desses postos.

 

As palavras seguintes de Mrs. Gebhart tranquilizaram-no, contudo.

 

Acho que tenho sido muito conservadora lamentou-se. O meu dinheiro tem estado muito parado em fundos para que os meus netos possam comprar mais jeans debotados. Por causa disso, não disponho de muito dinheiro para mim mesma. Tenho pensado em ir viver para uma residência de reformados... com esse fim, visitei até recentemente Latham Manor... mas teria de me mudar para uma das unidades mais pequenas, e estou simplesmente habituada a muito espaço. Fez uma pausa e fitou Hansen. Estou a pensar favoravelmente em empregar trezentos mil dólares nas acções que acabou de recomendar.

 

Ele esforçou-se para que as emoções não transparecessem no seu rosto, o que constituiu um verdadeiro esforço. O montante que ela mencionara era consideravelmente mais elevado do que ele esperava.

 

O meu contabilista irá opor-se, obviamente, mas penso que ele está ultrapassado. Conhece-lo? Chama-se Robert Stephens. Vive em Portsmouth.

 

Hansen conhecia efectivamente o nome. Robert Stephens tratava dos impostos de Mrs. Arlington, e ela perdera uma enorme maquina investindo numa companhia de alta-tecnologia que ele recomendara.

 

Mas pago-lhe para me tratar dos impostos, não para governar a minha vida prosseguiu Mrs. Gebhart, por isso, sem discutir o assunto com ele, vou transaccionar os meus títulos e deixar que você me faça ganhar dinheiro. Agora, que a decisão está tomada, talvez aceite esse segundo copo de vinho.

 

Enquanto o sol do meio da tarde banhava o restaurante com os seus raios dourados, fizeram um brinde aos dois.

 

Maggie passou quase duas horas nos cemitérios de Santa Maria e Trindade. Estavam a ter lugar funerais nalgumas das áreas que desejava fotografar, pelo que aguardou sempre que os presentes partissem antes de puxar pela câmara.

 

O dia não se revelou afinal tão quente quanto ela antecipara, mas Maggie manteve-se firme, voltando a visitar todas as campas onde estivera com Greta Shipley e tirando fotos de todos os ângulos.

 

O seu palpite inicial era que detectara algo peculiar na sepultura de Mrs. Rhinelander, a última que tinham visitado. Por essa razão, inverteu a ordem que ela e Mrs. Shipley tinham seguido no dia anterior, começando pela campa de Rhinelander e terminando na de Nuala.

 

Foi neste último lugar que uma rapariguinha com cerca de 8 ou 9 anos apareceu, ficando a observá-la intensamente.

 

Quando Maggie terminou um rolo de filme, voltou-se para a menina.

 

Olá, chamo-me Maggie disse. Qual é o teu nome?

 

Marianne. Por que quer tirar fotografias aqui?

 

Bem, sou fotógrafa e tenho uns projectos especiais e é neste que estou a trabalhar no momento.

 

Quer tirar uma foto da campa do meu avô? Fica logo ali. Apontou para a esquerda, onde Maggie viu uma série de mulheres junto de uma lápide alta.

 

Não, não me parece. Na verdade, já terminei por hoje. Mas, obrigada. Lamento sobre o teu avô.

 

Faz hoje três anos. Voltou a casar aos oitenta e dois. A mamã diz que essa mulher o esgotou.

 

Maggie tentou não sorrir.

 

Por vezes, isso acontece.

 

O papá disse que, depois de cinquenta anos com a avó, ao menos divertiu-se durante dois anos. A senhora com quem ele casou tem agora outro namorado. O papá diz que ele não deve ter mais de dois anos de vida.

 

Maggie riu-se.

 

Acho que o teu pai deve ser divertido.

 

É. Bom, tenho de ir. A mamã está a fazer-me sinal. Adeus. Aqui estava uma conversa que Nuala teria apreciado, reflectiu Maggie. «De que ando eu à procura?», perguntou a si mesma, fitando a campa. As flores que Greta Shipley deixara começavam a murchar, mas, tirando isso, o local era exactamente igual aos outros. Mesmo assim, utilizou mais um rolo de filme, por uma questão de segurança.

 

A tarde passou rapidamente. Consultando o mapa no banco do passageiro, Maggie seguiu para o centro de Newport. Como fotógrafa profissional, preferia ser sempre ela a revelar as fotografias; foi desta forma que deixou, com relutância, os filmes numa casa da especialidade. Contudo, em termos reais, não havia outro processo. Não trouxera nenhum do seu equipamento da câmara escura; teria sido demasiado complicado para uma viagem tão pequena. Depois de obter a promessa de que as fotografias estariam prontas no dia seguinte, comeu umhamburguer e uma Cola no Brick Alley Pub e depois encontrou uma boutique em Thames Street, onde adquiriu duas camisolas de gola alta uma branca, outra preta, duas saias compridas e um casaco de cor creme, com calças condizentes. Utilizadas em combinação com o que tinha, estas adições ao seu guarda-roupa estariam à medida de qualquer acontecimento que ocorresse em Newport durante os próximos dez dias. Além do mais, gostou bastante do que comprou.

 

«Newport é especial», pensou ao conduzir por Ocean Drive de regresso a casa de Nuala.

 

«Minha casa», emendou, ainda surpreendida com esse facto. Malcolm Norton tinha acordado com Nuala comprar-lhe a casa, isso Maggie sabia. «Disse que queria conversar comigo», reflectiu. Claro que tinha de ser sobre a casa. «Será que quero vendê-la?», perguntou a si própria. Na noite anterior teria respondido: «Provavelmente.» «Mas agora, neste momento, com aquele oceano glorioso e esta encantadora cidade nesta ilha especial, não tenho tanta certeza.»

 

«Não. Se tivesse de decidir neste preciso momento», pensou, «não a venderia.»

 

Às três e meia, a enfermeira Zelda Markey saiu de serviço e foi ao escritório do Dr. William Lane, tal como lhe fora solicitado. Sabia que ia ser repreendida, e sabia porquê: Greta Shipley fizera queixas dela. Bom, a enfermeira Markey estava pronta para o Dr. Lane.

 

«Olhem só para ele», pensou Zelda com desprezo enquanto o médico franzia o sobrolho para ela, do outro lado da secretária. «Aposto como não sabe distinguir o sarampo da varicela. Ou palpitações de falha cardíaca.»

 

O Dr. Lane franzia o sobrolho, mas as gotas de transpiração na testa revelaram à enfermeira Markey exactamente como ele se sentia desconfortável em relação àquele encontro. Zelda decidiu facilitar-lhe as coisas, porque tinha perfeita consciência de que a melhor defensiva era sempre uma boa ofensiva.

 

Doutor começou, sei exactamente o que vai dizer: Mrs. Shipley queixou-se de que entro nos aposentos dela sem bater à porta. O facto é que Mrs. Shipley está a fazer bastantes horas de sono, muito mais do que fazia ainda há apenas algumas semanas, e sinto-me algo preocupada. Muito provavelmente, trata-se apenas de uma resposta emocional à morte das suas amigas, mas asseguro-lhe que abro aquela porta sem permissão apenas quando não há resposta ao meu bater repetido.

 

Zelda detectou o lampejo de incerteza nos olhos de Lane antes de ele falar.

 

Nesse caso, Miss Markey, sugiro que, se Mrs. Shipley não responder após um período razoável, abra ligeiramente a porta e a chame. O facto é que ela está a ficar algo agitada com este assunto e quero erradicá-lo antes que se transforme num problema real.

 

Mas, Dr. Lane, se eu não tivesse ido ao quarto dela há duas noites atrás, quando teve aquela indisposição, poderia ter acontecido algo terrível.

 

A indisposição passou rapidamente e revelou não ser nada de grave. Aprecio francamente a sua preocupação, mas não posso ter este tipo de queixas. Entendido, Miss Markey?

 

Claro, doutor.

 

Mrs. Shipley tenciona participar do jantar esta noite?

 

Oh, sim, não só participará como vai ter uma convidada, Miss Holloway, a enteada de Mrs. Moore. Mrs. Lanejáfoi informada. Disse que Miss Holloway vem recolher os materiais de pintura de Mrs. Moore.

 

Compreendo. Obrigada, Miss Markey.

 

Mal ela partiu, Lane pegou no telefone para ligar para casa, para a mulher. Quando ela atendeu, afirmou, rispidamente:

 

Por que não me disseste que Maggie Holloway vinha cá jantar logo à noite?

 

Que importância pode isso ter? inquiriu Odile num tom de perplexidade.

 

A importância é que... Lane cerrou os lábios e respirou fundo. Há coisas que era melhor não serem ditas. Quero saber sobre todos os convidados para o jantar afirmou. Por exemplo, quero estar presente para os receber.

 

Eu sei, querido. Preparei tudo para jantarmos no lar esta noite. Mrs. Shipley declinou, de forma pouco graciosa, quando sugeri que ela e a sua convidada se sentassem na nossa mesa. Mas sempre poderemos conversar com Maggie Holloway durante a hora social.

 

Está bem. Fez uma pausa, como se pretendesse dizer mais qualquer coisa mas tivesse mudado de ideias. Estarei em casa dentro de dez minutos.

 

Bom, é melhor que estejas se te quiseres refrescar. O risinho de Odile fez Lane cerrar os dentes.

 

Afinal de contas, querido continuou ela, se as regras insistem em que os residentes se vistam a rigor para o jantar, penso que o director e a sua esposa devem dar o exemplo. Não te parece?

 

Earl Bateman tinha um pequeno apartamento nos terrenos de Hutchinson. Na sua opinião, a pequena e liberal Faculdade de Artes, situada numa zona tranquila de Providence, era um local ideal para efectuar as pesquisas para as suas palestras. Embora ofuscada pelas outras instituições de aprendizagem mais avançada existentes na região, Hutchinson mantinha, mesmo assim, excelentes padrões, e a aula de Earl sobre antropologia era considerada como uma das maiores atracções.

 

«Antropologia: a ciência que trata das origens, desenvolvimentos físico e cultural, características raciais, costumes sociais e crenças da Humanidade.» Earl começava todos os períodos exigindo que os seus alunos memorizassem estas palavras. Tal como ele gostava de repetir, a diferença entre muitos dos colegas e ele próprio era que ele sentia que o verdadeiro conhecimento de qualquer povo ou cultura começava pelo estudo dos seus rituais da morte.

 

Era um tema que nunca deixava de o fascinar. Ou os seus ouvintes, o que demonstrava o facto de ser cada vez mais requisitado como orador. De facto, diversas instituições nacionais de oradores tinham-lhe escrito, oferecendo-lhe honorários substanciais para ser o orador em almoços e jantares, em acontecimentos previstos para dali a um ano e meio.

 

Acorrespondência recebida destes era muito gratificante: «Tanto quanto sabemos, professor, o senhor transforma até o tema da morte num assunto muito interessante», era típico das cartas que recebia regularmente. Também a resposta por parte deles era recompensadora. Os seus honorários para este tipo de compromisso eram agora de três mil dólares, acrescido de despesas, e tinha mais ofertas do que aquelas que podia aceitar.

 

Às quartas-feiras, a última aula de Earl realizava-se às duas da tarde, o que hoje lhe disponibilizava o resto da tarde para aperfeiçoar o discurso que ia apresentar num clube feminino e para pôr o correio em dia. Uma das cartas que recebera recentemente intrigava-o ao ponto de não a conseguir tirar da cabeça.

 

Uma estação de televisão por cabo escrevera a perguntar se ele dispunha de material suficiente para fazer séries de meia hora, programas televisivos ilustrados sobre os aspectos culturais da morte. Era possível que a remuneração não fosse significativa, mas salientavam que uma exposição similar se revelara benéfica para um determinado número dos seus convidados.

 

«Material suficiente?», pensou Earl sarcasticamente, colocando os pés em cima da mesa do café. «Claro que tenho material suficiente. Máscaras de morte, por exemplo», pensou. «Nunca falei sobre esse tópico. Os egípcios e os romanos utilizavam-nas. Os florentinos começaram a fabricá-las nos finais do século catorze. Poucas pessoas estão ao corrente da existência de uma máscara de morte de George Washington, o seu calmo e até nobre rosto em permanente repouso, sem qualquer indício dos imperfeitos dentes que, em vida, lhe desfiguraram a aparência.»

 

O truque residia em injectar sempre um elemento de interesse humano para que as pessoas em debate não fossem encaradas como objectos de interesse macabro mas como seres humanos merecedores de simpatia.

 

O tema da palestra de logo à noite levara Earl a pensar em muitas outras possibilidades para palestras. Esta noite, obviamente, iria falar sobre trajes de luto ao longo das épocas. Mas a sua pesquisa fê-lo tomar consciência de que livros de etiqueta constituíam uma fonte rica de outro material.

 

Algumas citações de uma tal Amy Vanderbilt, que ele incluía, eram conselhos que datavam de há meio século: amortecer o som do badalo da campainha da porta a fim de proteger o ente próximo da pessoa que partiu para o outro mundo e evitar o recurso a palavras tais como «falecido», «morte» ou «morto» em mensagens de pêsames.

 

O badalo! Os vitorianos tinham verdadeiro horror de serem enterrados vivos e queriam um sino pendurado por cima da sepultura, com um fio ou arame esticado através de uma saída de ar na urna, para que a pessoa no interior pudesse tocar o sino no caso de, ele ou ela, não estarem realmente mortos. Mas ele não iria, não podia, tocar nesse assunto de novo.

 

Earl sabia que conseguiria arranjar material suficiente para qualquer número de programas. Estava prestes a tornar-se famoso, troçou. Ele, Earl, o tema de troça da família, haveria de lhes mostrar a todos àqueles primos desajeitados e roucos, àqueles bastardos descendentes de um ladrão demente e mesquinho que falsificara e enganara o seu caminho para a riqueza.

 

Sentiu o coração começar a bater desordenado. «Não penses neles!», avisou-se a si mesmo. «Concentra-te na palestra e em temas de desenvolvimento para o programa da televisão por cabo.» Tinha vindo a ponderar num outro tópico, que sabia seria muito bem recebido.

 

Mas, primeiro... tomaria uma bebida. Apenas uma, prometeu a si próprio, preparando um martini muito seco na sua kitchenette. Ao beber o primeiro trago, reflectiu no facto de ser frequente, antes da morte, alguém próximo daquele prestes a falecer experimentar uma premonição, uma espécie de inquietação ou alerta do que estava para suceder.

 

Quando se sentou de novo, tirou os óculos, esfregou os olhos e encostou a cabeça no sofá convertível que também lhe servia de cama.

 

«Alguém próximo...»

 

Como eu disse em voz alta. Não sou assim tão próximo de Maggie Holloway, mas sinto que ela não tem ninguém próximo dela. Talvez seja por isso que recebi a premonição. Sei que Maggie vai morrer muito em breve, tal como tinha a certeza, a semana passada, de que Nuala só tinha mais algumas horas de vida.

 

Três horas mais tarde, no meio de aplausos entusiásticos da audiência, iniciou a sua palestra com um sorriso radiante e algo incongruente.

 

Não queremos falar sobre isso, mas todos acabamos por morrer. Ocasionalmente, a data é adiada. Todos ouvimos já falar de pessoas clinicamente mortas que regressaram à vida. Contudo, noutras ocasiões, os deuses decidiram e a profecia bíblica, «das cinzas às cinzas, do pó ao pó», concretiza-se.

 

Fez uma pausa, o público suspenso nas suas palavras. O rosto de Maggie invadia-lhe a mente aquela nuvem de cabelo negro contornando as feições pequenas e primorosas, dominadas por aqueles olhos azuis lindos e cheios de mágoa...

 

Pelo menos, consolou-se a si mesmo, em breve ela deixaria de sofrer mais.

 

Angela, a empregada de fala suave que a recebera no dia anterior, mostrou a Maggie o armário onde estavam guardados os materiais de pintura de Nuala. Típico de Nuala, pensou, com ternura. Encontravam-se amontoados nas prateleiras desordenadamente, mas, com o auxílio de Angela, não levaram muito tempo a encaixotá-los e, com a assistência de uma auxiliar de cozinha, a acondicioná-los no carro de Maggie.

 

Mrs. Shipley está à sua espera no apartamento dela disse-lhe a empregada. Levo-a até lá.

 

Obrigada.

 

A jovem mulher hesitou por momentos, olhando em redor da enorme sala de actividades.

 

Quando Mrs. Moore dava aqui as suas aulas, toda a gente se divertia muito. Pouco importava que a maioria não conseguisse sequer desenhar uma linha direita. Ainda há duas semanas, ela começou por pedir a todas as pessoas que se recordassem de um slogan da segunda guerra mundial, do tipo que se liam em cartazes afixados por todo o lado. Até Mrs. Shipley participou, apesar de se ter aborrecido tanto naquela manhã.

 

Por que estava aborrecida?

 

Mrs. Rhinelander tinha morrido naquela segunda-feira. Eram muito amigas. De qualquer forma, eu estava a ajudar a distribuir o material,enquanto eles se recordavam de diferentes slogans, como: «Elas que Continuem a Voar», que Mrs. Moore desenhou... uma bandeira a esvoaçar por detrás de um avião... e todos o copiaram. Então, alguém sugeriu: «Não Fales, Companheiro. Mastiga Pastilhas Topps.»

 

Isso era um slogan? exclamou Maggie.

 

Sim. Toda a gente se riu, mas, tal como Mrs. Moore explicou, o seu objectivo era um sério aviso para as pessoas que trabalhavam nas indústrias da Defesa para que não dissessem nada que pudesse ser escutado por um espião. Foi uma sessão tão animada.

 

Angela sorriu, recordando-se. Foi a última aula que Mrs. Moore deu. Todos vamos sentir saudades dela. Bom, é melhor levá-la a Mrs. Shipley disse.

 

O sorriso caloroso de Greta Shipley quando viu Maggie não disfarçou o facto de haver uma palidez macilenta sob os seus olhos e em redor dos lábios. Maggie reparou igualmente que, ao levantar-se, se viu forçada a apoiar-se ao braço da cadeira. Parecia cansada e visivelmente mais fraca do que no dia anterior.

 

Maggie, como está encantadora. Fico-lhe grata por ter acedido ao meu convite, tão em cima da hora disse Mrs. Shipley.

 

Mas temos um grupo muito agradável à mesa, e penso que vai gostar deles. Pensei em tomarmos um aperitivo aqui, antes de descermos.

 

Seria simpático concordou Maggie.

 

Espero que goste de xerez, pois é tudo o que tenho.

 

Gosto de xerez, sim.

 

Sem que lho pedissem, Angela dirigiu-se a um armário de canto, despejou o líquido âmbar através de um decantador para copos de cristal antigos e serviu-os. Deixou depois tranquilamente o aposento.

 

Aquela rapariga é um tesouro afirmou Mrs. Shipley. Tantas pequenas cortesias que nunca ocorreriam à maioria das outras. Isso não significa que não estejam bem treinadas acrescentou rapidamente, mas Angela é especial. Já guardou o material de pintura de Nuala?

 

Sim disse-lhe Maggie. Angela ajudou-me e contou-me sobre uma das aulas de Nuala em que ela participou, na qual todos vós desenharam cartazes.

 

Greta Shipley sorriu.

 

Nuala era mesmo brincalhona! Quando eu e ela viemos para aqui depois da aula, pegou no meu desenho... que, obviamente, estava horrível... e adicionou os seus próprios toques. Tem de over. Está naquela segunda gaveta afirmou, apontando para a mesa próxima do sofá.

 

Maggie abriu a gaveta indicada e retirou a pesada folha de papel de desenho. Observando-o, sentiu um arrepio súbito. O esboço inicial de Mrs. Shipley assemelhava-se vagamente a um trabalhador da Defesa com um chapéu duro, conversando com outro num comboio ou autocarro. Atrás deles, uma figura de rosto longa, capa e chapéu negros, estava obviamente à escuta.

 

Os trabalhadores da Defesa tinham claramente o rosto de Nuala e de Greta Shipley. A imagem de uma enfermeira com olhos estreitos e uma orelha desmedida flutuava acima do espião.

 

Isto representa alguém daqui? inquiriu Maggie. Mrs. Shipley largou uma gargalhada.

 

Oh, sim. Aquela cascavel hedionda, a enfermeira Markey. Embora naqueles dias pensasse que era apenas uma brincadeira, quero dizer, o facto de andar sempre a bisbilhotar. Agora, não tenho tanta certeza.

 

Porquê? perguntou Maggie rapidamente.

 

Não sei respondeu. Talvez esteja apenas a imaginar coisas. Sabe que, por vezes, isso é próprio das senhoras de idade. Bom, acho que está na hora de descermos.

 

Maggie achou o salão nobre um aposento maravilhosamente atraente, rico quer em termos de decoração quer de mobiliário. O ar estava cheio das vozes bem-educadas que emanavam de idosos de bom porte, sentados pela sala. Pelo que Maggie via, as suas idades oscilavam entre os 60 e os quase 90, embora Greta tenha sussurrado que uma atraente senhora num fato de veludo preto, de costas direitas e olhos vivos, acabara de fazer 94.

 

Chama-se Letitia Bainbridge murmurou. As pessoas disseram-lhe que era doida por pagar quatrocentos mil dólares por um apartamento quando veio para cá, há seis anos, mas ela disse que, com os genes da família, o dinheiro seria bem gasto. E, é claro, o tempo tem provado que tinha razão. Ficará na nossa mesa. Vai gostar dela, prometo.

 

»Há-de reparar que os empregados servem as pessoas sem perguntarem o que desejam continuou Mrs. Shipley. A maioria dos residentes tem permissão para beber um copo de vinho ou um cocktail. Os que não têm bebem água Perrier ou uma bebida suave.

 

Este lugar tinha um evidente planeamento cuidadoso, pensou Maggie. «Consigo compreender por que Nuala pensou seriamente em vir viver para cá.» Recordava-se de o Dr. Lane ter afirmado que tinha a certeza de que Nuala teria concretizado amudança, se fosse viva.

 

Olhando à sua volta, Maggie reparou que o Dr. Lane e a sua esposa se aproximavam. Odile Lane vestia um camiseiro de seda em tons de água e uma saia comprida a condizer, peças que Maggie vira na boutique onde ela própria fora às compras. Nas outras ocasiões em que vira Mrs. Lane na noite em que Nuala falecera e no funeral não lhe prestara a devida atenção. Apercebia-se agora de que Odile era, efectivamente, uma mulher muito bonita.

 

Apercebeu-se de igual forma de que, embora calvo e algo corpulento, o marido era também atraente. A sua conduta era simultaneamente hospitaleira e cortês. Quando Lane chegou junto dela, tomou a mão de Maggie e levou-a aos lábios, parando exactamente antes de a tocar, como era hábito na Europa.

 

Que grande prazer disse, o tom ressonante de sinceridade. E permita-me que lhe diga que, em apenas um dia, se apresenta muito mais descansada. É, seguramente, uma jovem muito forte.

 

Oh, querido, tens de ser sempre tão clínico? interrompeu Odile Lane. Maggie, é um prazer. Que pensa de tudo isto? Acenou com a mão num gesto abrangente, obviamente indicando a elegante sala.

 

Penso que, em comparação com alguns dos lares que fotografei, é o céu.

 

Por que escolheu fotografar lares? inquiriu o Dr. Lane.

 

Foi uma reportagem encomendada por uma revista.

 

Se alguma vez quiser fazer uma sessão aqui... é essa a expressão, não é?... tenho a certeza de que poderia ser concedida ofereceu-se ele.

 

Vou certamente ficar com isso na ideia respondeu Maggie.

 

Quando soubemos que vinha, ficámos com a esperança de que se sentasse na nossa mesa disse Odile Lane, suspirando depois, mas Mrs. Shipley nem quis ouvir tal sugestão. Disse que a queria juntamente com os amigos dela, na sua mesa habitual, Levantou o dedo para Greta Shipley.Sua mazinha exclamou.

 

Maggie viu os lábios de Mrs. Shipley comprimirem-se.

 

Maggie disse ela abruptamente, quero que conheça outros amigos meus.

 

Alguns minutos depois, um toque suave anunciava que ojantar estava a ser servido.

 

Greta Shipley deu o braço a Maggie enquanto percorriam o corredor até à sala de jantar e Maggie reparou num leve tremor no seu movimento.

 

Mrs. Shipley, tem a certeza de que não se sente doente? perguntou Maggie.

 

Não, nada mesmo. É que sinto um enorme prazer por a ter cá. Posso entender por que razão Nuala estava tão feliz e excitada quando você regressou de novo à vida dela.

 

Existiam dez mesas na sala de jantar, cada uma posta para oito pessoas.

 

Oh, esta noite estão a usar a porcelana de Limoges e as toalhas brancasafirmou Mrs. Shipley com satisfação.Alguns dos outros serviços são demasiado elaborados para o meu gosto.

 

«Outra linda sala», pensou Maggie. Por aquilo que lera daquela mansão, a mesa de banquete original desta sala tinha lugar para sessenta pessoas.

 

Após a remodelação e renovação da casa, os reposteiros foram copiados dos existentes na sala de jantar da Casa Branca disse-lhe Mrs. Shipley enquanto se sentavam. Agora, Maggie, tem de conhecer os seus companheiros de jantar.

 

Maggie ficou sentada à direita de Greta Shipley. A mulher ao seu lado era Letitia Bainbridge, que iniciou a conversa dizendo:

 

É tão bonita. Percebi Greta dizer que não era casada. Existe alguém especial na sua vida?

 

Não respondeu Maggie com um sorriso, sentindo a dor familiar apunhalá-la.

 

Excelente afirmou Mrs. Bainbridge com determinação. Tenho um neto que gostaria de lhe apresentar. Quando era adolescente, eu costumava pensar que ele era um pouco estranho. Cabelos compridos e uma guitarra, sabe como é. Santo Deus! Mas agora, aos trinta e nove, é tudo aquilo que se pode desejar. É presidente da sua própria companhia, fazendo algo de importante com computadores.

 

Letitia, a casamenteira disse um dos outros, rindo-se. Já conheci o neto. Esqueça-o sussurrou Greta Shipley para Maggie. Depois, num tom normal, apresentou-a aos restantes, três mulheres e dois homens. Consegui deslocar os Buckley e os Crenshaw para a nossa mesaafirmou. Um problema comum a sítios destes é que tendem a tornar-se pavilhões de mulheres, pelo que se torna difícil arranjar conversa de homens.

 

O grupo à mesa revelou-se interessante e animado e Maggie perguntou-se repetidamente por que motivo Nuala mudara tão repentinamente de ideias sobre viver ali. «Seguramente, não o fizera por ter pensado que eu precisava da casa», raciocinou. «Sabia que o pai me deixou algum dinheiro, e sei cuidar de mim mesma. Então, porquê?»

 

Letitia Bainbridge foi particularmente divertida ao contar histórias de Newport, de quando era nova.

 

Havia tanta anglomania nessa épocadisse, suspirando. Todas as mães estavam ansiosas por casarem as filhas com nobres ingleses. Pobre Consuelo Vanderbilt... a mãe ameaçou suicidar-se se ela não se casasse com o duque de Marlborough. Ela acabou por o fazer e aguentou-o durante vinte anos. Divorciou-se depois dele e casou com um intelectual francês, Jacques Balsan, acabando finalmente por ser feliz.

 

»E havia aquele horrível Squire Moore. Toda a gente sabia que vinha do nada, mas, quem o ouvisse falar!, descendia directamente de Brian Boru. Mas possuía realmente algum charme e pelo menos a pretensão a um título, pelo que, obviamente, casou bem. Penso que não existe muita diferença entre a nobreza pobre casar com uma herdeira americana e um descendente pobre de Mayflower casar com alguém que se tornou milionário. A diferença era que o deus de Squire era o dinheiro e ele faria qualquer coisa para o acumular. E, infelizmente, essa característica revelou-se em muitos dos seus descendentes.

 

Foi durante a sobremesa que Anna Pritchard, que recuperava de uma operação à anca, afirmou:

 

Greta, sabe quem vi esta manhã quando caminhava com Mrs. Lane? Eleanor Chandler. Estava acompanhada do Dr. Lane. Sei que ela não me reconheceu, por isso não lhe disse nada. Esteve a admirar o seu apartamento. A empregada acabara de o limpar e a porta encontrava-se aberta.

 

Eleanor Chandler brincou Letitia Bainbridge. Andou na escola com a minha filha. Uma pessoa bastante poderosa, se não estou enganada. Estará a pensar vir para cá?

 

Não sei respondeu Mrs. Pritchard, mas não posso imaginar nenhum outro motivo para que andasse a ver as instalações. Greta, é melhor mudar as fechaduras. Se Eleanor quer o seu apartamento, não olhará a meios para a tirar de lá.

 

Ela que tente disse Greta Shipley com uma gargalhada.

 

Quando Maggie se preparava para sair, Mrs. Shipley insistiu em acompanhá-la à porta.

 

É melhor não rogou Maggie. Sei que está cansada.

 

Não se preocupe. Amanhã peço que as refeições me sejam servidas nos meus aposentos e concederei a mim mesma um dia de descanso.

 

Nesse caso, telefono-lhe amanhã a fim de me certificar de que é isso mesmo que faz.

 

Maggie beijou a face suave e quase translúcida da velha mulher.

 

Até amanhã disse.

 

                     Quinta-feira, 3 de Outubro

 

Seis dias após Nuala Moore ter sido encontrada assassinada em sua casa, o instinto inicial do chefe da Polícia Chet Brower tornara-se uma certeza, pelo menos na sua mente. Aquele crime não fora cometido por um vulgar ladrão, disso estava agora certo. Tinha de ser alguém que conhecia Mrs. Moore, provavelmente alguém em quem ela confiava. Mas quem? E qual fora o motivo?, perguntava a si mesmo.

 

Brower tinha o hábito de ponderar tais perguntas em voz alta com o detective Jim Haggerty. Na quinta-feira de manhã, telefonou para o gabinete de Haggerty, a fim de rever a situação.

 

Mrs. Moore pode ter deixado a porta destrancada e, nesse caso, qualquer pessoa podia ter entrado. Por outro lado, ela podia muito bem ter aberto a porta a alguém que conhecia. Sej a como for, não havia indícios de entrada forçada.

 

Jim Haggerty trabalhava há quinze anos com Brower. Sabia que estava a ser usado apenas como elo de comunicação e, portanto, embora tivesse as suas próprias ideias, aguardaria para as expor. Nunca se esqueceu de, um certo dia, ter ouvido um vizinho descrevê-lo da seguinte forma: «Jim pode ter mais o aspecto de um vendedor de legumes do que de um polícia, mas pensa como um polícia.»

 

Sabia que a observação continha um elogio. Sabia igualmente que não era totalmente injustificado o seu ar meigo e os óculos que usava não lhe conferiam exactamente a imagem que um director de actores de Hollywood atribuiria a um superpolícia. Mas essa disparidade resultava, por vezes, a seu favor. O seu comportamento benigno levava as pessoas a sentirem-se mais confortáveis à sua volta, pelo que se descontraíam e falavam livremente.

 

Vamos prosseguir com a premissa de que era alguém que ela conheciacontinuou Brower, a testa enrugada com o pensamento. Isso abre a lista de suspeitos a praticamente toda a gente em Newport. Mrs. Moore era muito apreciada e activa na comunidade. O seu último projecto foi dar aulas de Arte nesse tal Latham Manor. Haggerty sabia que o chefe não aprovava Latham Manor nem outros locais do género. Incomodava-o a ideia de cidadãos de idade investirem tanto dinheiro a fundo perdido numa espécie de jogo, dado que, se vivessem o suficiente, tornavam o investimento proveitoso. A sua opinião pessoal era que, já que a sogra de Brower vivia com eles há quase vinte anos, o chefe sentia pura inveja de qualquer pessoa cujos pais pudessem dar-se ao luxo de esgotar os seus anos de declínio numa residência luxuosa em vez de o fazerem no quarto de hóspedes dos filhos.

 

Mas penso que podemos eliminar a maioria de Newport se considerarmos o facto de que, quem quer que tenha matado Mrs. Moore, e depois revistado a casa, não podia deixar de ver os preparativos para uma festa brincou Brower.

 

A mesa estava posta... começou Haggerty, mas rapidamente se calou. Interrompera o chefe.

 

Brower franziu mais o sobrolho.

 

Já lá ia chegar. Isso significa que a pessoa que entrou na casa não estava preocupada com o facto de alguém poder chegar a qualquer instante. Isso quer dizer que há boas hipóteses de o assassino ser um dos convidados para jantar com quem conversámos, na casa dos vizinhos, na noite de sexta-feira. Ou, menos provável ainda, alguém que sabia a que horas os convidados eram esperados.

 

Fez uma pausa.

 

Está na altura de estudarmos pormenorizadamente todos eles. Começarmos desde o início. Esquecer o que sabemos sobre eles. Reclinou-se na cadeira. Que te parece, Jim?

 

Haggerty avançou com cautela.

 

Chefe, tive um palpite de que iria seguir esse raciocínio, e sabe como gosto de passar o dia com as pessoas, pelo que procedi já a algumas investigações nesse sentido. E penso que consegui algumas coisas que podem revelar-se interessantes.

 

Conta.

 

Bom, tenho a certeza de que se apercebeu da expressão na cara daquele gabarolas pomposo, Malcolm Norton, quando Mrs. Woods nos contou sobre a alteração ao testamento e sobre a venda cancelada.

 

Apercebi-me, sim. Aquilo a que chamaria choque e descrença, fortemente tingido de fúria.

 

Sabe que é do conhecimento público que a actividade de Norton como advogado se resume a mordidelas de cães e aos tipos de divórcio que envolvam a divisão da carrinha e do carro em segunda-mão. Interessou-me por isso descobrir onde ele iria buscar o dinheiro de que necessitava para comprar a casa de Mrs. Moore.

 

Descortinei igualmente algum falatório sobre ele e a secretária, uma mulher chamada Barbara Hoffman.

 

Interessante. Nesse caso, onde foi ele arranjar o dinheiro? perguntou Brower.

 

Efectuando uma hipoteca à sua própria casa, que é provavelmente o seu maior bem. Conseguiu mesmo convencer a mulher a assinar com ele.

 

Ela sabe que o marido tem uma namorada?

 

Pelo que percebi, não escapa nada à mulher.

 

Nesse caso, por que haveria ela de pôr em perigo o seu único bem comum?

 

Isso era o que eugostaria de saber. Conversei com alguém da Agência de Imóveis Hopkins... e obtive a opinião deles sobre a transacção. Francamente, ficaram surpreendidos com o facto de Norton estar disposto a pagar duzentos mil pela casa de Mrs. Moore. Segundo eles, a casa necessita de obras generalizadas e urgentes.

 

A namorada de Norton tem dinheiro?

 

Não. Tudo o que descobri dá a indicação de que Barbara Hoffman é uma simpática senhora, uma viúva que criou e educou os filhos sozinha e que possui uma modesta conta bancária. Haggerty previu a pergunta seguinte. O primo da minha mulher é caixa no Banco. Hoffman deposita cinquenta dólares na sua conta de poupanças duas vezes por mês.

 

Nesse caso, a pergunta reside no motivo que leva Norton a desejar aquela casa. Existe petróleo na propriedade?

 

Se existir, não lhe pode tocar. A zona da propriedade na água é designada como zona marítima. A parte edificante do lote é pequeno, o que restringe até o alargamento da casa e, a menos que se esteja no último piso, não há nenhuma vista.

 

Parece-me que o melhor é conversarmos com Nortondisse Brower. Sugiro que falemos também com a mulher dele, chefe. Tudo o que descobri aponta para que seja demasiado astuta para ser convencida a hipotecar a casa sem um forte motivo, e esse teria de ser de forma a beneficiá-la também. Okay, é uma forma como qualquer outra de começarmos. Brower ergueu-se. A propósito, não sei se viste a investigação que efectuámos ao passado de Maggie Holloway. Parece que está limpa. Aparentemente, o pai deixou-lhe algum dinheiro e parece ter bastante sucesso como fotógrafa, ganhando honestamente muitas notas, pelo que, tanto quanto me é dado ver, não existe um motivo monetário da parte dela. Parece também que fala verdade quanto à hora em que partiu de Nova Iorque. O porteiro do edifício de apartamentos onde ela mora confirmou tudo.

 

Gostaria de conversar com ela ofereceu-se Haggerty. A conta telefónica de Mrs. Moore revela que conversou com Maggie Holloway uma dezena de vezes na semana que antecedeu o homicídio. Talvez venha a lume qualquer coisa que Moore lhe possa ter dito sobre as pessoas que convidou para o jantar, algo que possa constituir uma pista.

 

Fez uma pausa e acrescentou:

 

Mas, chefe, sabe o que realmente me está a dar cabo da cabeça? É não saber o que o assassino, ou assassina, de Nuala Moore andava à procura quando revolveu aquela casa. Aposto até ao meu último dólar em como aí reside a chave deste crime.

 

Maggie acordou cedo mas esperou até às onze para telefonar a Greta Shipley. Ficara sinceramente preocupada com o frágil estado de saúde que Greta revelara na noite anterior e esperava que tivesse passado uma boa noite. Ninguém atendeu no quarto. Talvez Mrs. Shipley se sentisse muito melhor e tivesse descido, disse a si mesma.

 

O telefone tocou quinze minutos depois. Era o Dr. Lane.

 

Maggie, tenho notícias muito tristes disse.Mrs. Shipley pedira para não ser incomodada esta manhã, mas, há cerca de uma hora, a enfermeira Markey pensou ser melhor ir vê-la. A uma hora indeterminada da noite passada, morreu tranquilamente durante o sono.

 

Maggie ficou sentada por largos instantes depois do telefonema, entorpecida pela tristeza mas também irritada consigo própria por não ter insistido em que Mrs. Shipley fosse vista por um médico um médico exterior à instituição por forma a determinar o que estava errado. O Dr. Lane afirmou que todos os indícios apontavam para ataque cardíaco. Claramente, não se sentira bem toda a noite.

 

Primeiro Nuala; agora Greta Shipley. Duas mulheres, amigas íntimas, agora ambas falecidas no espaço de uma semana, pensou Maggie. Sentira-se tão excitada, tão feliz por ter Nuala de novo na sua vida. E, agora, isto...

 

Maggie pensou na altura em que Nuala lhe ofereceu, pela primeira vez, um frasco de barro húmido. Embora tivesse apenas 6 anos, Nuala reconheceu que, se Maggie possuía um particular talento artístico, não era como pintora. «Não és nenhum Rembrandt», dissera Nuala, rindo-se. «Mas, só de ver-te a brincar com essa plasticina, tenho um palpite...»

 

Colocara uma foto do pequeno cão-de-água de Maggie, Porgie, na frente dela. «Tenta copiá-lo», instruíra Nuala. Esse fora o início. Desde então, Maggie mantinha um caso amoroso com a escultura. Contudo, desde cedo compreendeu que, por muito gratificante que pudesse ser em termos artísticos, para ela nunca podia ser outra coisa que não um passatempo. Felizmente, também se interessava por fotografia na qual revelou ser genuinamente dotada, pelo que fez disso a sua carreira. Mas a sua paixão pela escultura nunca a abandonou.

 

«Ainda recordo como sabia bem meter as mãos naquele barro», pensou Maggie ao subir as escadas para o terceiro andar, de olhos secos. «Era um pouco desastrada, mas reconheci que algo estava a acontecer, que, com barro, existia uma ligação do meu cérebro aos dedos.»

 

Agora, com as notícias sobre a morte de Greta Shipley, algo que ainda não interiorizara, Maggie sabia que tinha de enfiar as mãos no barro húmido. Seria terapêutico e dar-lhe-ia também uma oportunidade para pensar, tentar reflectir no que faria a seguir.

 

Começou a trabalhar num busto de Nuala, mas depressa se apercebeu de que era o rosto de Greta Shipley que lhe enchia agora a mente.

 

«Estava tão pálida a noite passada», recordou-se Maggie. «Apoiou-se na cadeira quando se levantou e depois deu-me o braço quando passámos do salão nobre para a sala de jantar; senti como estava fraca. Hoje planeara ficar na cama. Não queria admitir, mas sentia-se doente. E, quando fomos aos cemitérios, falou que se sentia na sua hora, como se não possuísse energia. Foi o que aconteceu ao pai», lembrou-se Maggie. «Os amigos dele contaram-lhe que, invocando fadiga, não participara com eles num jantar marcado e que fora para a cama cedo. Nunca chegou a despertar. Ataque de coração. Exactamente o que o Dr. Lane disse ter acontecido com Greta.»

 

«Vazia», pensou. «Sinto-me tão vazia.» De nada servia trabalhar agora. Não sentia inspiração. Até o barro a atraiçoava.

 

«Santo Deus», pensou, «outro funeral.» Greta Shipley nunca tivera filhos, pelo que, provavelmente, o cortejo seria constituído essencialmente por amigos.

 

Funeral. A palavra avivou-lhe a memória. Pensou nas fotografias que tirara nos cemitérios. Certamente, já estariam reveladas.

 

Podia ir buscá-las e estudá-las. Mas estudá-las para quê? Abanou a cabeça. Não possuía ainda a resposta, mas tinha a certeza de que havia uma.

 

Deixara os rolos de filme numa loja em Thames Street. Ao estacionar o veículo, reflectiu como, apenas no dia anterior, precisamente no fim daquela rua, comprara roupa para usar no jantar com Greta. Como, há menos de uma semana, viajara até Newport, tão excitada ante a visita a Nuala. Agora, ambas as mulheres estavam mortas. Será que existia alguma ligação?, perguntou a si própria.

 

O gordo envelope com as revelações aguardava-a no balcão de fotografia.

 

O empregado ergueu os olhos quando viu a conta.

 

Queria realmente todas ampliadas, Mrs. Holloway?

 

Sim, está correcto.

 

Resistiu à tentação de abrir o envelope logo ali. Quando chegasse acasa, seguiria de imediato para o estúdio e analisaria as fotografias cuidadosamente.

 

No entanto, quando chegou a casa, viu que se encontrava um BMW último modelo parado na entrada. O condutor, um homem que aparentava uns 30 anos, retrocedeu apressadamente para que ela pudesse entrar. Estacionou então na rua, saiu do carro e caminhou na direcção de Maggie, precisamente quando esta abriu a porta do seu veículo.

 

«Que quer ele?», interrogou-se Maggie. Estava bem vestido, tinha um aspecto atraente, pelo que não sentiu insegurança. No entanto, a presença agressiva dele incomodava-a.

 

Miss Holloway disse. Espero não a ter assustado. Chamo-me Douglas Hansen. Quis contactá-la, mas o seu número de telefone não vem na lista. Por isso, e uma vez que tinha uma reunião em Newport hoje, pensei vir até cá para lhe deixar um bilhete. Está na porta.

 

Levou a mão à algibeira e entregou-lhe o seu cartão: DOUGLAS HANSEN, Consultor de Investimentos. O endereço era de Providence.

 

Um dos meus clientes informou-me sobre o falecimento de Mrs. Moore. Não a conhecia propriamente, mas encontrei-a em diversas ocasiões. Queria dizer-lhe como lamento profundamente e também perguntar-lhe se tenciona vender esta casa.

 

Obrigada, Mr. Hansen, mas ainda não tomei uma decisão disse Maggie tranquilamente.

 

A razão por que queria falar consigo directamente é que, antes de entregar o local a uma agência imobiliária, se efectivamente decidir vender, tenho uma cliente que estaria interessada em adquiri-la através de mim. A filha está a planear divorciar-se e quer ter um sítio para mudar quando der a notícia ao marido. Sei que há muito trabalho a ser feito aqui, mas a mãe tem dinheiro para isso. A senhora reconheceria seguramente o nome.

 

Provavelmente não. Não conheço muitas pessoas em Newport afirmou Maggie.

 

Digamos então que muitas pessoas reconheceriam o nome. Por isso me pediram que actuasse como intermediário. A discrição é muito importante.

 

Como sabe que a casa é minha? inquiriu Maggie. Hansen sorriu.

 

Miss Holloway, Newport é uma cidade pequena. Mrs. Moore tinha muitos amigos. Alguns deles são meus clientes.

 

«Está à espera de que o convide para entrar para discutirmos este assunto», pensou Maggie, «mas não o vou fazer.» Assim, limitou-se a dizer:

 

Tal como lhe disse, ainda não tomei uma decisão. Mas obrigada pelo seu interesse. Guardarei o seu cartão. Virou-se e começou a caminhar para a casa.

 

Deixe-me acrescentar que a minha cliente está disposta a pagar duzentos e cinquenta mil dólares. Penso que a oferta é significativamente mais alta que a oferta que Mrs. Moore estava preparada para aceitar.

 

Parece saber muitas coisas, Mr. Hansen disse Maggie. Newport deve ser uma cidade realmente pequena. Obrigada, mais uma vez. Telefonarei se decidir vender. De novo, voltou-se na direcção da casa.

 

Só mais uma coisa, Miss Holloway. Tenho de lhe pedir que não mencione esta oferta a ninguém. Demasiadas pessoas adivinhariam a identidade da minha cliente, e isso tornar-se-ia um problema significativo para a filha dela.

 

Não precisa de se preocupar. Não possuo o hábito de discutir os meus negócios com ninguém. Adeus, Mr. Hansen. Desta vez, caminhou com rapidez. Mas, obviamente, ele tencionava retê-la.

 

Leva aí uma grande pilha de fotografias disse ele indicando o embrulho por debaixo do braço dela quando Maggie olhou de novo para trás. Sei que é uma fotógrafa comercial. Deve apreciar bastante esta zona.

 

Desta vez, Maggie não respondeu. Anuindo, virou-se e atravessou o alpendre até à porta.

 

O bilhete a que Hansen se referira fora entalado junto da maçaneta da porta. Maggie pegou nele sem o ler e enfiou a chave na fechadura. Quando espreitou pela janela da sala, viu Douglas Hansen afastar-se no seu carro. Subitamente, sentiu-se terrivelmente patética.

 

«Será que comecei a saltar com medo da minha própria sombra?», perguntou a si mesma. «Aquele homem deve ter pensado que eu era uma perfeita idiota, pela forma como corri para casa. E certamente não posso ignorar a oferta dele. Se decidir vender, são mais cinquenta mil dólares do que Malcolm Norton ofereceu a Nuala. Por isso ficou tão perturbado quando Mrs. Woods nos contou sobre o testamento... sabia que era um negócio da China.»

 

Maggie seguiu directamente para o estúdio a fim de abrir o envelope que continha as fotografias. Não ajudou nada o seu estado de espírito quando viu que a primeira em que os seus olhos se debruçaram era precisamente a campa de Nuala e, sobre ela, as flores agora murchas que Greta Shipley deixara na base da lápide.

 

Quando Neil Stephens virou o carro para a entrada que conduzia à casa dos pais, observou as árvores que alinhavam a propriedade, as folhas agora flamejantes com ouro e âmbar, os tons vermelhos do Outono.

 

Estacando, admirou igualmente as plantações outonais em redor da casa. O novo passatempo do pai era a jardinagem e, em cada estação, exibia um novo canteiro de flores.

 

Antes que Neil pudesse sair do carro, a mãe abrira a porta lateral da casa e correra para o exterior. Quando se apeou, ela abraçou-o e depois levantou a mão para lhe alisar o cabelo, um gesto familiar que ele recordava da infância.

 

Oh, Neil, como estou contente por te ver! exclamou.

 

O pai apareceu atrás dela, o sorriso uma indicação do prazer por ver o filho, embora o seu cumprimento fosse algo menos efusivo.

 

Estamos a ficar atrasados, companheiro. A partida começa daqui a meia hora. A tua mãe preparou-te uma sanduíche.

 

Esqueci-me dos meus tacos disse Neil, mas rectificou quando viu a expressão horrorizada do pai. Desculpe, pai, era uma partida.

 

Mas sem graça nenhuma. Tive de convencer Harry Scott a trocar os tempos de partida connosco. Se queremos jogar dezoito buracos, temos de lá estar às duas. Vamos jantar no clube.

 

Pousou a mão no ombro de Neil. Estou contente por estares cá, filho. Só depois de estarem a jogar golfe há algum tempo, o pai decidiu aflorar o assunto que mencionara ao telefone.

 

Uma das velhas senhoras a quem trato dos impostos está à beira de um ataque de nervos disse. Um tipo novo qualquer de Providence convenceu-a a investir numas acções-fantasma e, agora, perdeu o dinheiro destinado a cobrir-lhe a velhice. Estava a contar mudar-se para aquela residência elegante de reformados de que já te falei.

 

Neil avaliou a tocada e seleccionou um taco do saco que o rapaz segurava. Tocou cuidadosamente na bola, bateu e anuiu com satisfação quando esta se ergueu no ar, voando sobre o lado e aterrando no relvado do buraco seguinte.

 

Melhoraste bastante disse o pai em tom de aprovação. Mas hás-de reparar que avancei mais no relvado utilizando um de ferro.

 

Conversaram ao mesmo tempo que caminharam para o buraco seguinte.

 

Pai, o que acabou de me contar sobre essa mulher é algo de que ouço falar todos os dias afirmou Neil. Ainda um dia destes, um casal, de cujos investimentos trato há dez anos, veio ter comigo, perfeitamente extasiado, querendo enterrar os rendimentos da reforma no esquema mais patético com que jamais deparei. Felizmente, consegui dissuadi-los. Aparentemente, esta mulher não pediu conselhos a ninguém, pois não?

 

A mim não pediu, seguramente.

 

E as acções eram transaccionadas numa das bolsas ou ao balcão?

 

Estavam listadas.

 

E tiveram uma ascensão breve e rápida e depois caíram que nem uma pedra. Agora, não valem o papel em que estão escritas.

 

Mais ou menos isso.

 

Já conhece a expressão «nasce um trouxa em cada minuto». Por alguma razão, isso acontece a dobrar no mercado; existem muitas pessoas razoavelmente inteligentes que acusam morte cerebral quando alguém lhes fornece uma pista «quente».

 

Neste caso, penso que deve ter existido um tipo qualquer de pressão extraordinária aplicada. De qualquer forma, gostaria que falasses com ela. Chama-se Laura Arlington. Talvez possas analisar o portfolio dela e ver o que pode fazer para incrementar o que lhe resta dos seus rendimentos. Falei-lhe de ti e disse-me que gostaria de conversar contigo.

 

Com todo o prazer, pai. Só espero que não seja tarde de mais.

 

Às seis e meia, vestidos para o jantar, sentaram-se no alpendre das traseiras, bebendo cocktails e mirando a baía de Narragansett.

 

Está encantadora, mãe disse Neil, com afecto.

 

A tua mãe sempre foi uma mulher bonita e todo o carinho e amor que recebeu da minha parte nos últimos quarenta e três anos só lhe realçou a beleza replicou o pai. Reparando nas expressões divertidas nos rostos deles, acrescentou: Por que estão a sorrir?

 

Também sabes que sempre estive ao teu inteiro dispor, querido respondeu Dolores Stephens.

 

Neil, ainda te encontras com aquela rapariga que trouxeste aqui em Agosto? perguntou o pai.

 

Quem era?reflectiu Neil momentaneamente.Oh, Gina. Não, na verdade não. Pareceu-lhe a ocasião perfeita para perguntar sobre Maggie. Há uma pessoa em quem estou interessado e que está de visita à madrasta, em Newport, durante umas duas semanas. Chama-se Maggie Holloway; infelizmente, partiu de Nova Iorque antes de me deixar o número de telefone daqui.

 

Qual é o nome da madrasta? perguntou a mãe.

 

Não sei o último nome, mas o primeiro é invulgar. Finnuala. Tanto quanto sei, é céltico.

 

Parece-me familiar disse Dolores Stephens lentamente, buscando na memória. E a ti, Robert?

 

Não creio. Não, não conheço respondeu-lhe ele.

 

Engraçado. Sinto que ouvi esse nome recentemente brincou Dolores. Bom, pode ser que me ocorra.

 

O telefone tocou. Dolores levantou-se para atender.

 

Nada de conversas longas avisou Robert Stephens à mulher. Temos de sair dentro de dez minutos.

 

A chamada, no entanto, era para ele.

 

É Laura Arlington disse Dolores Stephens, entregando o telefone portátil ao marido. Parece muito perturbada.

 

Robert Stephens escutou por um minuto antes de falar, a voz num tom de consolo.

 

Laura, ainda acaba por adoecer à conta disto. O meu filho, Neil, está na cidade. Já falei com ele sobre si e ele vai tratar dos seus assuntos amanhã de manhã. Agora, prometa-me que se vai acalmar.

 

A última aula de Earl Bateman antes do fim-de-semana fora à uma hora da tarde. Permanecera no apartamento junto da Faculdade por diversas horas, corrigindo testes. Depois, quando se preparava para partir para Newport, o telefone tocou.

 

Era o primo Liam, ligando de Boston. Ficou surpreendido ao ouvir a voz de Liam. Nunca tinham tido muito em comum. De que se tratava, afinal?, perguntou a si mesmo.

 

Respondeu às cordiais tentativas de Liam para uma conversação geral com respostas monossilábicas. Desejava ardentemente contar-lhe sobre a série para a televisão por cabo, mas sabia que iria servir apenas para a troça da família. Talvez devesse convidar Liam para tomar uma bebida e deixar o último cheque de três mil dólares, que recebeu da instituição de oradores, num local onde ele não o pudesse deixar de ver. Boa ideia, decidiu.

 

Mas depois sentiu a ira crescer dentro de si quando Liam chegou realmente ao objectivo da chamada: no caso de Earl ir passar o fim-de-semana a Newport, não devia aparecer inesperadamente na casa de Maggie Holloway. A visita que lhe fizera há dias tinha-a perturbado.

 

Porquê? Earl cuspiu a palavra, a irritação crescendo.

 

Escuta, Earl, pensas que consegues analisar as pessoas. Bom, conheço Maggie há um ano. É uma miúda estupenda... na verdade, espero em breve vir a fazê-la compreender como é especial para mim. Mas prometo-te que não é do tipo de chorar no ombro de ninguém. É contida. Não é um dos teus cretinos pré-históricos, mutilando-se a si própria só porque está infeliz.

 

Ensino sobre hábitos tribais, não cretinos pré-históricos respondeu Earl azedamente. E passei por casa dela porque estava genuinamente preocupado com o facto de ela, tal como Nuala, poder deixar a porta destrancada.

 

A voz de Liam tornou-se apaziguadora.

 

Earl, não me estou a fazer compreender. O que estou a tentar dizer é que Maggie não é uma pessoa fadada a morrer, da mesma forma que foi a pobre Nuala. Não é necessário alertá-la, sobretudo quando soa mais a uma ameaça. Ouve, e se nos encontrássemos no fim-de-semana para tomarmos uma bebida juntos?

 

Óptimo. Esfregaria o cheque no nariz de Liam. Vai a minha casa amanhã, por volta das seis da tarde disse Earl.

 

A hora não me serve. Vou jantar com Maggie. E no sábado?

 

Acho que sim. Até lá, então.

 

«Afinal, sempre está interessado em Maggie Holloway», pensou Earl ao desligar o telefone. «Nunca ninguém diria, pela forma como a abandonou na festa no Four Seasons. Mas isso é típico de Liam», reflectiu. Contudo, uma coisa sabia seguramente: se andava com Maggie há um ano, deveria ter-lhe prestado mais atenção.

 

De novo se sentiu invadido por uma estranha sensação, uma premonição de que algo ia correr mal, de que Maggie Holloway se encontrava em perigo, a mesma sensação que sentira na semana anterior em relação a Nuala.

 

A primeira vez que teve tal premonição, Earl tinha 16 anos. Encontrava-se na altura no hospital, recuperando de uma operação ao apêndice. O seu melhor amigo, Ted, foi visitá-lo antes de partir para uma tarde a velejar.

 

Algo fizera que Earl sentisse vontade de pedir a Ted para que não entrasse no barco, mas teria parecido absurdo. Recordava-se de ter passado toda a tarde como se estivesse à espera de que um machado lhe caísse em cima.

 

Localizaram o barco de Ted dois dias mais tarde, à deriva. Havia uma série de teorias sobre o que podia ter corrido mal, mas nunca houve respostas.

 

Earl, obviamente, nunca falou sobre o incidente, nem de não ter avisado o amigo. Agora, Earl nunca se permitia pensar sobre os outros pressentimentos.

 

Cinco minutos mais tarde, partiu para a sua viagem de trinta e cinco milhas até Newport. Às quatro e meia, parou junto de uma pequena loja, a fim de adquirir alguns mantimentos, e foi aí que ficou ao corrente da morte de Greta Shipley.

 

Antes de ir morar para Latham Manor, ela fazia aqui as suas comprasdisse com pesar o idoso proprietário do estabelecimento, Ernest Winter.

 

A minha mãe e o meu pai eram amigos dos pais dela disse Earl. Estava doente?

 

Pelo que ouvi dizer, não vinha a sentir-se bem nas duas últimas semanas. Duas das suas melhores amigas faleceram recentemente, uma em Latham Manor, e Mrs. Moore assassinada. Penso que isso a deitou abaixo. Pode acontecer, sabe? Engraçado estar a falar nisso, mas lembro-me de, há alguns anos, Mrs. Shipley me dizer que existia um ditado assim: «Amorte chega sempre em três.» Parece que tinha razão. No entanto, não deixa de causar calafrios.

 

Earl pegou nas suas compras. «Outro tópico interessante para uma palestra», pensou. «Será possível existir uma base psicológica para essa expressão, tal como existe para tantas outras? As suas melhores amigas morreram. Algo no espírito de Greta Shipley terá gritado: Esperem! Também vou!»

 

Com este, eram dois novos tópicos de que se lembrara para a sua série de palestras. Antes, vira um artigo num jornal sobre um novo supermercado prestes a abrir em Inglaterra onde os interessados podiam seleccionar todos os artigos necessários para um funeral urna, guarnições, roupa para o falecido, flores, livro de registo de pessoas presentes, até o local da sepultura, se necessário desta forma eliminando o intermediário, o dono da agência funerária.

 

«Foi uma boa ideia a família ter-se desfeito do negócio quando o fizeram», decidiu Earl ao despedir-se de Mr. Winter. Por outro lado, os novos proprietários da Agência Funerária Bateman tinham tratado do funeral de Mrs. Rhinelander, do funeral de Nuala e sem dúvida iriam tratar também do funeral de Greta Shipley. Era mais do que apropriado, já que o seu pai cuidara dos preparativos finais do marido dela.

 

«O negócio está em expansão», pensou tristemente.

 

Quando seguiam John, o maítre, até à sala de jantar do clube naval, Robert Stephens parou e voltou-se para a mulher.

 

Olha, Dolores, está ali Cora Gebhart. Vamos até à mesa dela para a cumprimentar. Receio ter sido um pouco ríspido da última vez que conversámos. Estava preparada para transaccionar alguns títulos num daqueles esquemas aventureiros, e fiquei tão irritado que nem sequer lhe perguntei o que era, limitei-me a dizer-lhe que esquecesse o negócio.

 

«Sempre diplomata», pensou Neil, seguindo respeitosamente os passos dos pais ao atravessarem o restaurante, embora tenha também reparado que o pai não alertou o maitre dodesvio que iam efectuar; este dirigia-se, pois, alegremente para uma mesa junto da janela, sem se aperceber de que perdera a família Stephens.

 

Cora, devo apresentar-lhe as minhas desculpas começou Robert Stephens expansivamente, mas, primeiro, penso que não conhece o meu filho, Neil.

 

Olá, Robert. Dolores, como está? Cora Gebhart ergueu o rosto para cima, para Neil, os olhos vivos calorosos e interessados. O seu pai está constantemente a gabá-lo. Soube que é o gerente da dependência de Nova Iorque da Carson & Parker. Bom, é um prazer conhecê-lo.

 

Sim, sou, e obrigado, o prazer é todo meu. Fico satisfeito por saber que o meu pai me gaba. Durante toda a minha vida, tem estado sempre presente quando preciso dele.

 

Compreendo perfeitamente. Também está sempre presente quando preciso dele. Mas, Robert, não me deve desculpas. Pedi a sua opinião e deu-ma.

 

Bom, ainda bem. Não gostaria de tomar conhecimento de que outra cliente minha tinha perdido a camisa investindo em negócios de alto-risco.

 

Não se preocupe com este respondeu Cora Gebhart.

 

Robert, o pobre John está à nossa espera junto da mesa com os menus disse a mãe de Neil.

 

Ao atravessarem a sala, Neil interrogou-se se o pai teria percebido o tom que Mrs. Gebhart utilizara ao pedir-lhe que não se preocupasse-com ela. Não tinha aceitado o conselho dele, pensou Neil.

 

Tinham terminado a refeição e tomavam café quando os Scott pararam na mesa deles para os cumprimentar.

 

Neil, tens de agradecer a Harrydisse Robert Stephens em jeito de apresentação. Foi ele que trocou a hora da partida de golfe connosco.

 

Não teve importância respondeu Harry Scott. Lynn foi passar o dia a Boston, pelo que planeávamos jantar tarde, de qualquer forma.

 

A mulher, anafada e de rosto agradável, perguntou:

 

Dolores, lembras-te de teres conhecido Greta Shipley num almoço aqui, organizado pela Sociedade de Preservação? Foi há três ou quatro anos, creio. Sentou-se na nossa mesa.

 

Sim, gostei muito dela. Porquê?

 

Faleceu a noite passada, aparentemente ao dormir.

 

Lamento imenso.

 

O que me incomoda continuou Lynn Scott penitentemente é que ouvi dizer que perdera recentemente duas amigas íntimas, e eu tinha tenção de lhe telefonar. Uma das amigas foi a pobre mulher assassinada na sua casa, na última sexta-feira. Deves ter lido sobre isso. Foi a enteada de Nova Iorque que descobriu o corpo.

 

Enteada de Nova Iorque! exclamou Neil. Excitada, a mãe interrompeu-o.

 

Foi aí que li o nome. No jornal. Finnuala. Neil, foi a mulher assassinada!

 

Quando regressaram a casa, Robert Stephens mostrou os jornais cuidadosamente guardados na garagem, aguardando serem reciclados.

 

Veio no jornal de sábado, dia vinte e oito disse-lhe o pai. Tenho a certeza de que está nessa pilha.

 

A razão pela qual não me lembrei logo do nome foi porque, no artigo, lhe chamavam Nuala Moore afirmou a mãe. Só algures para o final do artigo foi mencionado o seu primeiro nome completo.

 

Dois minutos mais tarde, com desânimo crescente, Neil lia as notícias sobre a morte de Nuala Moore. Simultaneamente, a sua mente recordava a felicidade nos olhos de Maggie quando lhe contou ter encontrado de novo a madrasta, e os planos que fizera para a visitar.

 

«Deu-me os cinco anos mais felizes da minha infância», dissera. «Maggie, Maggie», pensou Neil. Onde estaria ela agora? Teria regressado a Nova Iorque? Telefonou rapidamente para o apartamento dela, mas a mensagem telefónica permanecia inalterada estaria ausente até ao dia

 

O endereço da casa de Nuala Moore estava indicado no artigo do jornal, mas, quando pediu o número às informações, disseram-lhe que não constava das listas.

 

Raios! exclamou, desligando.

 

Neil disse a mãe suavemente. São onze e um quarto. Se essa jovem estiver ainda em Newport, quer nessa casa quer noutro sítio qualquer, não são horas de ir à procura dela. Vais até lá amanhã de manhã e, se não a encontrares, tentas na esquadra da Polícia. Está a decorrer uma investigação criminal e, uma vez que foi ela quem descobriu o corpo, a Polícia saberá seguramente como a contactar.

 

Escuta a tua mãe, filhodisse o pai.Tiveste um dia longo. Sugiro que te vás deitar.

 

Têm razão. Obrigado aos dois. Neil beijou a mãe, tocou no braço do pai e dirigiu-se abatido para o corredor que conduzia aos quartos.

 

Dolores Stephens esperou que o filho se afastasse e depois disse tranquilamente ao marido:

 

Tenho a sensação de que Neil encontrou finalmente uma rapariga de quem realmente gosta.

 

Nem o exame rigoroso de cada uma das fotografias ampliadas revelou a Maggie alguma coisa sobre aquelas campas que justificasse o que a perturbara subconcientemente.

 

Todas pareciam iguais, todas revelavam as mesmas coisas: lápides com diversos graus de vegetação em redor; relva ainda verde acetinada no início desta estação outonal, excepto a de Nuala, com um relvado ainda algo irregular.

 

Relvado. Por alguma razão, essa palavra dizia-lhe algo. Também a campa de Mrs. Rhinelander devia ter sido recentemente coberta de relva. Falecera há apenas duas semanas.

 

Mais uma vez, Maggie estudou todas as fotografias da sepultura de Constance Rhinelander, utilizando uma lupa para analisar cada centímetro. A única coisa que lhe atraiu a atenção foi um pequeno buraco que aparecia por entre a vegetação em redor da lápide. Parecia que uma pedra, ou algo assim, fora retirada dali. «Quem a tirou não se incomodou a alisar a terra.»

 

Observou de novo as fotos melhores da lápide na campa de Nuala, tiradas de perto. Aí, o relvado era regular até ao ponto onde a vegetação se iniciava, mas, numa das fotografias, pareceu-lhe ter detectado qualquer coisa uma pedra? mesmo por detrás das flores que Greta Shipley deixara no dia anterior. Estaria ali aquilo simplesmente porque a terra fora alisada ao acaso depois do enterro ou seria uma marca de cemitério de qualquer tipo? Havia um reluzir estranho...

 

Estudou as fotografias das outras quatro sepulturas, mas não viu nada em nenhuma delas que lhe atraísse a atenção.

 

Pousou por fim as fotos sobre a mesa de apoio e pegou numa armadura e no barro.

 

Servindo-se de fotografias recentes de Nuala que encontrara pela casa, Maggie começou a esculpir. Nas horas seguintes, os seus dedos ficaram unidos ao barro e cinzel, moldando o rosto pequeno e encantador de Nuala, sugerindo os olhos largos e redondos e longas pestanas. Insinuou os sinais da velhice nas rugas em redor dos olhos, contornando a boca e pescoço, e nos ombros que se curvavam para a frente.

 

Sabia que, quando terminasse, teria sido bem sucedida a captar aqueles traços que tanto amara no rosto de Nuala o espírito indomável e feliz por detrás de um rosto que, noutra qualquer pessoa, teria sido meramente bonito.

 

Tal como Odile Lane, pensou, e depois estremeceu ao recordar-se de como a mulher acenara o dedo para Greta Shipley, há escassas vinte e quatro horas. «Sua mazinha», dissera.

 

Enquanto limpava, Maggie pensou nas pessoas com quem jantara na noite anterior. Como deveriam estar abatidos, pensou. Era óbvio que gostavam de Greta e, agora, estava morta. Tão repentinamente.

 

Maggie consultou o relógio ao descer as escadas. Nove horas: ainda não era tarde para telefonar a Mrs. Bainbridge, decidiu.

 

Letitia Bainbridge respondeu ao primeiro toque.

 

Oh, Maggie, estamos todos destroçados. Greta não se sentia bem há algumas semanas, mas, até então, esteve óptima. Sabia que ela tomava remédios para a tensão arterial e para o coração, mas há anos que os tomava e nunca teve problemas.

 

Embora a conhecesse há pouco tempo, fiquei a gostar muito dela afirmou Maggie com sinceridade. Posso imaginar como todos vós se sentem. Sabe que preparativos estão a ser efectuados?

 

Sim. A Agência Funerária Bateman está a cuidar de tudo. Penso que todos vamos acabar lá. A missa é no sábado de manhã, às onze, na Igreja Episcopal da Trindade, e o enterro no Cemitério da Trindade. Greta deixou instruções para que a única visita se efectuasse na Agência Bateman, entre as nove e as dez e meia.

 

Lá estarei prometeu Maggie. Ela tinha família?

 

Alguns primos. Penso que virão. Sei que ela lhes deixou as apólices e o recheio do apartamento, pelo que, ao menos, hão-de mostrar o mínimo de respeito por ela. Letitia Bainbridge fez uma pausa e, de seguida, acrescentou: Maggie, sabe o que me tem incomodado? Praticamente a última coisa que disse a Greta a noite passada foi que, se Eleanor Chandler deitou o olho ao apartamento dela, o melhor seria mudar as fechaduras.

 

Mas ela achou graça à observação protestou Maggie. Por favor, não se deixe impressionar com isso.

 

Oh, não é isso que me impressiona. É o facto de, aposto seja o que for, e independentemente de quem esteja na lista, Eleanor Chandler ficar agora com o apartamento.

 

«Estou a ficar especialista em jantares tardios», pensou Maggie, colocando a chaleira ao lume, mexendo alguns ovos e pondo pão na torradeira, «e ainda por cima pouco excitantes», acrescentou. «Pelo menos amanhã à noite conto que Liam me ofereça uma boa refeição. Será bom estar com ele», reflectiu. Era sempre divertido. Interrogou-se se ele teria falado com Earl Bateman sobre a sua inesperada visita, na segunda-feira à noite. Esperava bem que sim.

 

110

 


Não querendo ficar mais tempo na cozinha, preparou um tabuleiro e levou-o para a sala de estar. Embora Nuala tivesse encontrado a morte naquele aposento, há menos de uma semana, Maggie tinha chegado à conclusão de que fora um dos lugares predilectos de Nuala.

 

A parte de trás e os lados da lareira estavam enegrecidos de fuligem. Os foles e tenazes revelavam sinais de uso frequente. Maggie podia imaginar, naquela lareira, crepitantes fogos nas noites geladas de New England.

 

As estantes abarrotavam de livros, todos títulos interessantes, muitos familiares, outros que adoraria explorar. Vira já os álbuns de fotografias as dezenas de retratos de Nuala com Tim Moore revelavam duas pessoas que apreciavam, obviamente, a companhia uma da outra.

 

Espalhadas pelas paredes, fotografias maiores e emolduradas de Tini e Nuala passeando de barco com amigos, em piqueniques, em jantares formais, em férias.

 

A velha cadeira funda com o genuflexório devia ser dele, decidiu Maggie. Lembrava-se de que Nuala, quer estivesse embrenhada num livro, a conversar ou a ver televisão, sempre gostara de se enroscar, como um gatinho, no sofá, apoiada num canto entre as costas e o repouso do braço.

 

Não admirava que a expectativa de se mudar para Latham Manor se tenha revelado difícil, pensou Maggie. Seria um esforço enorme para Nuala deixar esta casa onde, notoriamente, fora feliz durante tantos anos.

 

Mas considerara claramente mudar-se para lá. Naquela primeira noite, quando jantaram após a reunião dos Moore, Nuala mencionara que o tipo de apartamento que desejava na residência acabara de ficar disponível.

 

«Qual seria o apartamento?», interrogou-se Maggie. Nunca tinham discutido isso.

 

Maggie apercebeu-se subitamente de que as suas mãos tremiam. Pousou com cuidado a chávena no pires. «Será que o apartamento que ficou disponível era o que pertencera à amiga de Greta Shipley, Constance Rhinelander?»

 

Tudo o que desejava era um pouco de sossego, mas o Dr. William Lane sabia que esse pedido não lhe ia ser concedido. Odile estava excitadíssima. Estava deitado de olhos fechados, pedindo a Deus que, pelo menos, ela desligasse aquela maldita luz. Mas continuava sentada ao toucador, escovando os cabelos enquanto uma torrente de palavras lhe saía dos lábios.

 

Estamos a atravessar dias realmente difíceis, não estamos? Toda a gente adorava Greta Shipley, e era um dos nossos membros privilegiados. Sabes, já perfaz duas das nossas senhoras mais queridas, no espaço de duas semanas. Claro, Mrs. Rhinelander tinha oitenta e três, mas encontrava-se tão bem... e depois, repentinamente, começou a desfalecer a olhos vistos. É o que acontece a partir de uma certa idade, não é? Decadência? O corpo limita-se a decair.

 

Odile não parecia notar que o marido não respondia. Pouco importava; prosseguiu de qualquer forma.

 

É claro, a enfermeira Markey ficou preocupada com a ligeira indisposição que Mrs. Shipley sentiu na segunda-feira à noite. Contou-me esta manhã que tinha falado contigo sobre isso outra vez ontem.

 

Examinei Mrs. Shipley logo que se sentiu indisposta afirmou o Dr. Lane, exausto. Não havia razão para alarme. A enfermeira Markey relembrou esse episódio apenas porque tentava justificar o facto de entrar no apartamento de Mrs. Shipley sem bater.

 

Bom, claro, o médico és tu, querido.

 

O Dr. Lane abriu os olhos, compreendendo repentinamente.

 

Odile, não quero que andes a discutir os meus doentes com a enfermeira Markey disse asperamente.

 

Ignorando o tom da voz dele, Odile continuou:

 

Aquela médica legista nova é bastante jovem, não é? Como se chamava? Lara Horgan? Não sabia que o Dr. Johnson se tinha reformado.

 

Está reformado desde o primeiro dia do mês. Isso foi na terça-feira.

 

Que será que leva uma pessoa a escolher a profissão de médico legista, sobretudo uma jovem tão atraente? Mas parece conhecedora do seu ofício.

 

Duvido de que tivesse sido escolhida se não soubesse do ofício respondeu ele. Passou pela residência com a Polícia apenas porque se encontrava nas proximidades e queria ver as nossas instalações. Fez perguntas muito competentes sobre o historial clínico de Mrs. Shipley. Agora, Odile, se não te importas, necessito realmente de dormir.

 

Oh, querido, peço desculpa. Sei que estás cansado e que este foi um dia atribulado. Odile pousou a escova e despiu o robe.

 

«Sempre a estrela», pensou William Lane ao observar os preparativos da mulher para se deitar. Em dezoito anos de casamento, nunca a vira usar uma camisa de noite que não fosse aos folhos. Antigamente, encantava-o. Agora, já não e há anos que isso acontecia.

 

Odile deitou-se e, por fim, a luz desligou-se. Contudo, William Lane já não estava com sono. Como habitualmente, Odile conseguira dizer qualquer coisa para o aborrecer.

 

Aquela jovem médica legista era efectivamente diferente do velho Dr. Johnson. Ele sempre aprovara as certidões de óbito com um mero aceno da caneta. «Tem cuidado», avisou-se a si próprio. «No futuro, tens de ser mais cuidadoso.»

 

               Sexta-feira, 4 de Outubro

 

Quando Maggie acordou pela primeira vez na sexta-feira de manhã, olhou para o relógio e viu que eram apenas seis horas. Sabia que, provavelmente, já dormira o suficiente, mas não lhe apetecia ainda levantar-se, pelo que fechou os olhos de novo. Cerca de meia hora mais tarde, caiu num sono agitado, no qual apareciam e desapareciam sonhos vagos e inquietos, que se desvaneceram por completo quando voltou a despertar, às sete e meia.

 

Levantou-se, sentindo-se grogue e com dores de cabeça. Decidiu que um passeio por Ocean Drive, após o pequeno-almoço, a ajudaria a aclarar a cabeça. «Preciso disso», pensou, «sobretudo porque tenho de voltar aos cemitérios esta manhã.»

 

«E, amanhã, estarás no Cemitério da Trindade para o funeral de Mrs. Shipley», recordou-lhe uma voz interior. Pela primeira vez, Maggie tomou consciência de que Mrs. Bainbridge dissera que Greta Shipley ia ser aí enterrada. Não que fizesse diferença. De qualquer forma, teria ido aos dois cemitérios hoje. Depois de ter passado tanto tempo com aquelas fotografias na noite anterior, estava ansiosa por descobrir o que provocava aquele estranho brilho que detectou na sepultura de Nuala.

 

Tomou um duche, vestiu uns jeans e uma camisola e bebeu um sumo e café rápidos antes de sair. Maggie congratulou-se imediatamente por ter decidido dar aquele passeio. Estava um magnífico dia de início de Outono. O sol reluzia ao ascender no céu, embora se fizesse sentir uma brisa oceânica fria; ainda bem que trouxera um casaco. Pairava no ar o glorioso som das ondas esmagando-se e o aroma, único e maravilhoso, do sal e vida marítima.

 

Podia apaixonar-me por este local, pensou. «Nuala passava aqui os Verões quando era adolescente. Como deve ter sentido saudades quando partiu para longe.»

 

Depois de andar uma milha, Maggie retrocedeu pelo mesmo caminho. Olhando para cima, apercebeu-se de que, da estrada, era apenas visível um pouco do terceiro andar da casa de Nuala«da minha casa», pensou. «Tem muitas árvores em redor», disse a si própria. Deviam ser derrubadas ou, pelo menos, podadas. Por que seria que a extremidade da propriedade, da qual se obteria uma visão espectacular do oceano, nunca teria sido edificada? Será que existiam ali restrições à construção?

 

A pergunta perturbou-a ao terminar o passeio. «Tenho de ver bem essa questão», pensou. «Por aquilo que Nuala me contou, Tim Moore adquiriu esta propriedade pelo menos há cinquenta anos atrás.» Não teriam ocorrido alterações às restrições de construção desde então?, interrogou-se.

 

De volta à casa, parou apenas o suficiente para tomar outra chávena de café antes de sair, exactamente às nove. Queria terminar com as visitas aos cemitérios.

 

Às nove e um quarto, Neil Stephens parou o carro junto da caixa de correio com o nome de MOORE pintado. Apeou-se, caminhou para o alpendre e tocou à campainha. Não obteve resposta. Sentindo-se um intruso, dirigiu-se à janela. A veneziana estava apenas meio levantada e viu com clareza o que parecia ser a sala de estar.

 

Sem saber bem o que procurava, a não ser um sinal tangível da presença de Maggie Holloway, contornou a casa e espreitou pela janela da porta da cozinha. Avistou uma cafeteira no fogão e, junto do lava-loiças, uma chávena, um pires e um copo de sumo estavam voltados para cima, sugerindo que tinham sido lavados e deixados a secar. Mas, estariam ali há dias ou apenas há alguns minutos?

 

Por fim, decidiu que não tinha nada a perder tocando à campainha de um vizinho, inquirindo se alguém vira Maggie. Não obteve resposta nas duas primeiras casas que tentou. Na terceira casa, a campainha foi respondida por um casal atraente, por volta dos

60 anos. Ao pô-los ao corrente do motivo da sua presença, apercebeu-se de que chegara o seu momento de sorte.

 

O casal, que se apresentou como Irma e John Woods, contou-lhe sobre a morte e funeral de Nuala e da presença de Maggie na casa.

 

No passado sábado, tencionávamos ir visitar a nossa filha, mas só fomos depois do funeral de Nuala explicou Mrs. Woods. Regressámos ontem à noite. Sei que Maggie está lá. Não falei com ela desde que voltámos, mas vi-a dar um passeio esta manhã.

 

E eu vi-a passar de carro há cerca de quinze minutos informou John Woods.

 

Convidaram Neil para tomar um café e contaram-lhe sobre a noite do crime.

 

Maggie é uma moça encantadora suspirou Irma Woods. Percebi como ficou destroçada com a perda de Nuala, mas não é pessoa para se deixar afundar. A dor era bem visível nos seus olhos.

 

«Maggie», pensou Neil. «Gostaria de ter estado contigo nesses momentos.»

 

Os Woods não faziam ideia de onde Maggie pudesse ter ido, nem quanto tempo se iria demorar.

 

«Vou deixar-lhe um bilhete para me telefonar», decidiu Neil. «Não há nada mais que possa fazer.» Mas, de repente, teve uma inspiração. Quando se afastou no carro, cinco minutos depois, tinha deixado um bilhete para Maggie na porta e guardava preciosamente o número de telefone dela na algibeira.

 

Recordando as perguntas curiosas da criança que queria saber por que ela andava a tirar fotografias à campa de Nuala, Maggie parou numa loja e comprou um ramo variado de flores para colocar nas sepulturas que tencionava inspeccionar.

 

Tal como anteriormente, assim que passou a entrada do Santa Maria, a estátua do anjo dando as boas-vindas e as campas meticulosamente conservadas pareceram transmitir uma sensação de paz e imortalidade. Virando à esquerda, subiu a encosta que conduzia à campa de Nuala.

 

Quando se apeou do carro, sentiu que um trabalhador do cemitério, que retirava as ervas do caminho de cascalho próximo, a observava. Conhecia histórias de pessoas assaltadas em cemitérios, mas o pensamento depressa desapareceu. Havia mais trabalhadores no local.

 

No entanto, considerando o facto de haver pessoas por perto, ficou satisfeita por ter trazido as flores; seria preferível não parecer que examinava a campa. Baixando-se junto da sepultura, seleccionou uma meia dezena de flores e pousou-as junto à base da lápide.

 

As flores que Greta Shipley deixara na terça-feira tinham sido removidas, e Maggie consultou rapidamente a foto que segurava a fim de verificar onde, exactamente, detectara o brilho de um suposto objecto metálico.

 

Felizmente trouxera a fotografia, apercebeu-se, porque o objecto que procurava afundara-se mais na terra húmida e facilmente teria passado despercebido. Contudo, estava ali.

 

Olhou de soslaio para o lado e verificou que era o centro da atenção do trabalhador. Ajoelhando-se para a frente, baixou a cabeça e cruzou as mãos, muito próximo do solo. Ainda na postura de oração, os dedos tocando o relvado, escavou em redor do objecto e libertou-o.

 

Aguardou alguns instantes. Quando olhou de novo, o trabalhador estava de costas para ela. Num só movimento, puxou o objecto para cima e ocultou-o rapidamente entre as palmas das mãos unidas. Ao fazê-lo, escutou um toque abafado.

 

«Um sino?», pensou. «Por que razão, em nome de Deus, haveria alguém de enterrar um sino na campa de Nuala?» Segura de que o trabalhador escutara também o som, ergueu-se e dirigiu-se expedita para o carro.

 

Pousou o sino em cima das restantes flores. Não querendo permanecer nem mais um minuto sob o olhar vigilante do trabalhador de manutenção, conduziu lentamente na direcção da segunda sepultura que desejava visitar. Parou perto do local e olhou em volta. Não havia ninguém por perto.

 

Abrindo a janela do carro, pegou cuidadosamente no sino e pô-lo de fora. Depois de sacudir a terra ainda agarrada, virou-o na mão, examinando-o, os dedos segurando o badalo para que não tocasse.

 

O sino tinha cerca de oito centímetros de altura e era surpreendentemente pesado, nada parecido com uma miniatura antiquada de um sino de escola, com excepção da grinalda de flores que decorava a borda da base. Também o badalo era pesado, reparou. Quando solto, provocaria seguramente um som forte.

 

Maggie fechou a janela do carro, segurou direito o sino próximo do chão do veículo e agitou-o. Um som melancólico, mas, mesmo assim, distinto, ressoou no carro.

 

«Uma Pedra para Danny Fisher», pensou. Esse era o título de um dos livros existentes na biblioteca do seu pai. Recordava-se de, em criança, ter perguntado ao pai o que significava aquele título e de ele ter explicado que era tradição na fé judaica colocar uma pedra na campa de um amigo ou parente sempre que por lá se passava, em sinal da visita.

 

Teria aquele sino um significado semelhante?, interrogou-se Maggie. Sentindo vagamente que fizera algo errado ao tirar o sino, escondeu-o sob o banco do carro. Escolheu depois outra meia dúzia de flores e, com a fotografia apropriada na mão, foi revisitar a campa de uma outra amiga de Greta Shipley.

 

A última paragem foi na sepultura de Mrs. Rhinelander; fora a fotografia daquela campa que parecia revelar mais claramente uma falha no relvado, junto à base da lápide. Enquanto Maggie arranjava as flores sobre a relva húmida, os seus dedos buscaram e encontraram a área recortada.

 

Maggie precisava de pensar, e não queria regressar a casa, onde poderia haver interrupções. Seguiu pois para o centro da cidade, onde localizou uma cafetaria. Entrou e pediu um bolo e um café.

 

Estava com fome, admitiu para si própria, ao mesmo tempo que o bolo e o café forte a aj udavam a dissipar a perturbação que sentira nos cemitérios.

 

Veio-lhe à memória outra lembrança de Nuala. Quando Maggie tinha 10 anos, Porgie, o seu cão-de-água miniatura, saltara para cima de Nuala quando esta dormitava no sofá. Soltara um grito e, quando Maggie veio a correr, Nuala rira-se e dissera: «Desculpa, querida. Não sei por que estou tão nervosa. Alguém deve estar a andar sobre a minha sepultura.»

 

Uma vez que Maggie estava na idade de querer saber tudo, Nuala vira-se obrigada a explicar que a expressão era um velho ditado irlandês que significava que alguém caminhava sobre o local onde um dia haveríamos de ser enterrados.

 

Tinha de haver uma explicação simples para o que encontrara hoje, raciocinou Maggie. Das seis campas que visitara, quatro, incluindo a de Nuala, tinham sinos na base da lápide, todos iguais em termos de peso e dimensão. Parecia também que um fora removido do solo próximo da lápide de Mrs. Rhinelander. Tal significava que apenas uma das amigas de Greta Shipley não recebera este estranho tributo se era efectivamente disso que se tratava.

 

Ao beber o resto do café e ao abanar a cabeça, recusando a oferta da empregada para voltar a encher a chávena, um nome saltou na mente de Maggie: Mrs. Bainbridge!

 

Tal como Greta Shipley, vivia em Latham Manor desde que o estabelecimento abrira. «Deve ter também conhecido todas aquelas mulheres», reflectiu Maggie.

 

De regresso ao carro, Maggie ligou para Letitia Bainbridge pelo telemóvel. Estava no seu apartamento.

 

Venha ter comigo disse a Maggie. Gostaria imenso de a ver. Tenho-me sentido muito triste esta manhã.

 

Vou a caminho respondeu Maggie.

 

Depois de guardar o telemóvel, enfiou a mão por debaixo do banco para pegar no sino que tirara da campa de Nuala. Guardou-o depois na mala.

 

Estremeceu involuntariamente ao afastar-se. O metal tinha um toque frio e húmido na sua mão.

 

Fora uma das semanas mais compridas da vida de Malcolm Norton. O choque que sentiu quando Nuala Moore cancelou a venda da casa, seguido pelo anúncio de Barbara de que ia visitar a filha em Vail por um longo período de tempo, deixara-o fragilizado e amedrontado.

 

Tinha de deitar as mãos àquela casa! Contar a Janice sobre a iminente alteração à Lei das Zonas Marítimas fora um erro terrível. Deveria ter arriscado e esquecer-se do nome dela nos documentos da hipoteca. Estava assim desesperado.

 

Foi por esse motivo que, quando Barbara lhe passou a chamada do chefe Brower, naquela sexta-feira de manhã, Malcolm sentiu o suor escorrer-lhe pela fronte. Foram necessários alguns instantes para se recompor o suficiente para que o seu tom de voz lhe soasse a uma radiante boa disposição.

 

Bom dia, chefe. Como está?disse, tentando transmitir um sorriso na voz.

 

Chet Brower não estava visivelmente com disposição para conversa fiada.

 

Estou bem. Gostaria de passar por aí hoje para conversarmos por alguns minutos.

 

«Sobre quê?», pensou Malcolm, momentaneamente em pânico. No entanto, respondeu casualmente:

 

Por mim está bem, mas devo alertá-lo de que já comprei os bilhetes para o Baile da Polícia.Mesmo aos seus ouvidos, a piada soou-lhe a falso.

 

Quando está livre? afirmou Brower.

 

Norton não tencionava dizer a Brower exactamente como estava livre.

 

Tinha uma entrevista às onze que foi adiada para a uma, por isso estarei livre nesse período.

 

Estarei aí às onze.

 

Muito depois de ter ouvido o clique do desligar, Malcolm fitava nervosamente o auscultador que ainda segurava. Por fim, pousou-o.

 

Bateram levemente à porta, e Barbara espreitou.

 

Malcolm, há algum problema?

 

Que problema poderia haver? Só quer falar comigo. A única coisa que posso imaginar tem de estar relacionada com a noite da passada sexta-feira.

 

Oh, claro. O homicídio. O procedimento habitual é a Polícia interrogar os amigos próximos, para o caso de se lembrarem de alguma coisa que não parecesse importante na altura. E, é claro, tu e Janice foram à festa de Mrs. Moore.

 

«Tu e Janice.» Malcolm franziu o sobrolho. Será que aquela observação tinha por intuito recordar-lhe que ainda não tomara nenhuma acção para se separar legalmente de Janice? Não, ao contrário da sua mulher, Barbara não brincava com jogos de palavras cheios de segundos sentidos. O genro dela era um promotor de justiça assistente em Nova Iorque; era provável que o tivesse ouvido falar dos seus casos, raciocinou Malcolm. E, obviamente, a televisão e os filmes eram ricos em pormenores sobre procedimentos policiais.

 

Ela preparava-se para fechar de novo a porta.

 

Barbara disse, a voz suplicante, dá-me apenas um pouco mais de tempo. Não me deixes agora.

 

A única resposta dela foi fechar a porta com um clique firme.

 

Brower chegou pontualmente às onze. Sentou-se erecto na cadeira-de-braços oposta à secretária de Malcolm e foi directo ao assunto:

 

Mr. Norton, devia chegar à casa de Nuala Moore às oito horas na noite do assassinato?

 

Sim, eu e a minha mulher chegámos por volta das oito e dez. Tanto quanto percebi, você acabara de chegar ao local. Como sabe, recebemos instruções para aguardar na casa dos vizinhos de Nuala, os Woods.

 

A que horas deixou o seu escritório naquela noite? perguntou Brower.

 

As sobrancelhas de Norton ergueram-se. Pensou por momentos.

 

À hora habitual... não, na verdade, um pouco mais tarde. Por volta de um quarto para as seis. Tive assuntos a tratar no exterior e regressei para guardar o processo e ver se havia mensagens.

 

Daqui seguiu directamente para casa?

 

Não precisamente. Barbara... Mrs. Hoffman, a minha secretária, não veio trabalhar nesse dia porque estava constipada. No dia anterior, levara para casa um processo que eu precisava de estudar no fim-de-semana, pelo que passei por casa dela para o ir buscar.

 

Quanto tempo levou isso? Norton pensou por instantes.

 

Ela mora em Middletown. Havia trânsito, pelo que diria cerca de vinte minutos em cada sentido.

 

Então, chegou a casa por volta das seis e meia.

 

Na verdade, um pouco mais tarde do que isso. Perto das sete, diria.

 

Efectivamente, chegara a casa às sete e quinze. Lembrava-se perfeitamente das horas. Em silêncio, Malcolm amaldiçoou-se. Janice dissera-lhe que o rosto dele podia ser lido como um livro aberto quando Irma Woods dera a informação sobre o testamento de Nuala. «Parecia que querias matar alguém», afirmara ela, um sorriso trocista na cara. «Não tens sequer habilidade para planear enganar alguém sem que algo corra mal.»

 

Pelo que, nessa manhã, preparara respostas para perguntas que previra que Brower faria sobre a sua reacção à venda cancelada. Não iria permitir que as suas emoções voltassem a transparecer. E estava satisfeito por ter ponderado cuidadosamente na situação porque, de facto, o agente fez um número de perguntas, buscando pormenores quanto à venda proposta.

 

Deve ter ficado decepcionado afirmou Brower.Mas, por outro lado, todas as agências imobiliárias na cidade possuem uma casa como a de Nuala Moore, e devem estar ansiosas por vendê-las.

 

Como quem diz: «Para que queria eu aquela?», pensou Norton.

 

Por vezes, as pessoas querem realmente uma casa só porque lhes agrada. A casa diz «compra-me, sou tua» continuou o chefe.

 

Norton aguardou.

 

Você e Mrs. Norton devem realmente ter-se apaixonado por ela conjecturou Brower. Correm notícias de que hipotecaram a vossa própria casa para a pagar.

 

Agora Brower estava inclinado para trás, os olhos meio cerrados, os dedos unidos.

 

Qualquer pessoa que desejasse tanto uma casa detestaria saber que um parente estava prestes a chegar e poderia estragar o arranjinho. Só há um modo de evitar isso. Afastar o parente ou, pelo menos, encontrar um processo de evitar que o parente influencie o dono da casa.

 

Brower ergueu-se.

 

Foi um prazer conversar consigo, Mr. Norton disse. Agora, antes de sair, importa-se que dê uma palavrinha à sua secretária, Mrs. Hoffman?

 

Barbara Hoffman não gostava de dissimular. Ficara em casa na sexta-feira passada, alegando uma constipação, mas, na verdade, o que realmente desejara fora um dia tranquilo para reflectir. Para apaziguar a sua consciência, trouxera para casa um conjunto de processos do escritório, que tencionava preparar; queria que estivessem em perfeita ordem se decidisse contar a Malcolm que o deixava.

 

Estranhamente, ele ajudara-a inadvertidamente a tomar a decisão. Norton raramente vinha a casa dela, mas, na sexta-feira, aparecera para ver como ela se sentia. Obviamente, não sabia que a vizinha Dora Holt tinha entrado. Quando Barbara abriu a porta, ele inclinou-se para a beijar, mas, perante o olhar negativo dela, retrocedeu.

 

Oh, Mr. Norton dissera ela rapidamente. Tenho aqui o processo Moore de que precisa.

 

Barbara apresentara-o a Dora Holt e depois fingira procurar, por entre os processos, um determinado para lhe entregar. Mas não lhe escapara o sorriso e a curiosidade nos olhos da outra mulher. Foi nesse momento que soube que a situação era intolerável.

 

Agora, sentada em frente do chefe Brower, Barbara Hoffman sentia-se muito desconfortável ao contar-lhe a fraca história sobre o motivo que levara o patrão a sua casa.

 

Quer dizer então que Mr. Norton ficou apenas por instantes? Barbara descontraiu-se um pouco; pelo menos nesse aspecto podia falar inteiramente verdade.

 

Sim, pegou no processo e saiu de imediato.

 

Qual era o processo, Mrs. Hoffman? Outra mentira que tinha de dizer.

 

Era... era... bom, era o processo relativo à escritura da casa de Mrs. Moore. Recriminou-se intimamente por ter vacilado.

 

Só mais uma coisa. A que horas chegou Mr. Norton à sua casa?

 

Um pouco depois das seis, creio respondeu, honestamente. Brower levantou-se e fez sinal com a cabeça para o intercomunicador na secretária.

 

Se não se importa, informe Mr. Norton de que gostaria de falar de novo com ele, por favor.

 

Quando o chefe Brower regressou ao escritório do advogado, não desperdiçou palavras:

 

Mr. Norton, sei que o processo que foi buscar a casa de Mrs. Hoffman, na sexta-feira passada, se relacionava com a escritura da casa de Mrs. Moore. Para quando estava marcada a escritura?

 

Para a segunda-feira de manhã, às onze disse-lhe Norton. Queria assegurar-me de que estava tudo em ordem.

 

O senhor era o comprador, mas Mrs. Moore não tinha um outro advogado a representá-la? Isso não é um pouco invulgar?

 

Nem por isso. Para ser franco, foi ideia dela. Na opinião de Nuala, era absolutamente desnecessário envolver outro advogado. Eu estava a pagar um preço justo e ia entregar-lhe o dinheiro sob a forma de um cheque cruzado. Para além disso, ela tinha o direito de ficar na casa até ao primeiro dia do ano, se desejasse.

 

O chefe Brower fitou Malcolm Norton em silêncio por alguns momentos. Por fim, levantou-se para se ir embora.

 

Só mais uma coisa, Mr. Norton disse. A viagem desde a casa de Mrs. Hoffman não lhe deve ter levado mais de vinte minutos. Assim, deveria ter chegado a sua casa pouco depois das seis e meia. No entanto, alegou que eram quase sete. Foi a mais” algum lado?

 

Não. Talvez estivesse enganado quanto à hora a que cheguei. «Por que faz ele estas perguntas?», interrogou-se Norton. «De que suspeita ele?»

 

Quando Neil Stephens regressou a Portsmouth, a mãe percebeu logo, pela expressão dele, que não fora bem sucedido a localizar a jovem de Nova Iorque.

 

Só comeste uma torrada de manhã lembrou-o. Deixa-me preparar-te o pequeno-almoço. Afinal de contas acrescentou, já não tenho muitas oportunidades para te mimar.

 

Neil afundou-se numa cadeira da mesa da cozinha.

 

Mimar o pai já lhe dá trabalho a tempo inteiro.

 

É verdade. Mas eu gosto.

 

Onde está o pai?

 

No escritório. Cora Gebhart, a senhora que fomos cumprimentar à mesa na noite passada, telefonou a perguntar se podia vir falar com ele.

 

Compreendo disse Neil distraidamente, mexendo nos talheres que a mãe colocara na sua frente.

 

Dolores parou os preparativos e virou-se para olhar para ele.

 

Quando começas com esses gestos, significa que estás preocupado disse.

 

E estou. Se tivesse telefonado a Maggie, como tencionava fazer na sexta-feira passada, teria o número de telefone dela, teria telefonado e teria sabido o que se passava. E teria estado aqui para a ajudar. Fez uma pausa. Mãe, não sabe como ela estava esfomeada por passar este tempo com a madrasta. Nunca o diria se a conhecesse, mas a vida tem sido dura para com Maggie.

 

Comendo waffles e bacon, contou-lhe tudo o que sabia sobre Maggie. O que não lhe disse foi como estava irritado consigo próprio por não saber mais.

 

Parece-me realmente uma moça encantadora disse Dolores Stephens. Estou ansiosa por a conhecer. Mas tens de parar de te atormentar. Ela está em Newport, deixaste-lhe um bilhete e tens o número de telefone dela. Seguramente, terás notícias dela hoje. Por isso, descontrai-te.

 

Eu sei. Só que me sinto mal pelo facto de ter havido momentos em que ela precisou de mim e eu não estava lá.

 

Estás com medo de te envolver, não é? Neil pousou o garfo.

 

Isso não é justo.

 

Não é? Sabes, Neil, muitos dos jovens inteligentes e bem sucedidos da tua geração que não se casaram aos vinte decidiram que podiam permanecer nessa situação indefínitivamente. É o que acontecerá a alguns... eles realmente não querem envolver-se. No entanto, também alguns deles parecem nunca saber quando crescer. Só pergunto a mim mesma se esta preocupação da tua parte não reflectirá uma súbita compreensão de que gostas muito de Maggie Holloway, algo que não admitirias a ti próprio há algum tempo atrás, simplesmente porque não te querias envolver.

 

Neil fitou a mãe por um longo momento.

 

E eu que pensava que o pai era duro. Dolores Stephens cruzou os braços e sorriu.

 

A minha avó costumava dizer: «O marido é a cabeça da família; a esposa, o pescoço».Fez uma pausa. «E o pescoço faz girar a cabeça.»

 

Vendo a expressão perplexa de Neil, riu-se.

 

Confia em mim, não concordo particularmente com essa sabedoria caseira. Considero o marido e a mulher como seres iguais, não como intervenientes numjogo. Mas, por vezes, como no nosso caso, o que parece ser não é necessariamente o que é. Os lamentos do teu pai são o seu modo de mostrar preocupação. Sei isso desde o nosso primeiro encontro.

 

Por falar no mal disse Neil ao ver, através da janela, o pai a sair do escritório.

 

A mãe olhou para fora.

 

Uh-oh, e traz Cora para cá. Ela parece perturbada.

 

No espaço de poucos minutos depois de o pai e Cora Gebhart se terem juntado a eles na mesa da cozinha, Neil compreendeu por que razão ela estava perturbada. Na quarta-feira, vendera os seus títulos por intermédio do corretor que tão insistente fora a persuadi-la a investir em acções por ele recomendadas, e ela dera luz-verde à transacção.

 

Não consegui dormir ontem à noite afirmou ela. Quero dizer, depois do que Robert disse no clube de não querer ver outra das suas senhoras a perder a camisa... Tive a sensação horrível de que ele estava a falar de mim e compreendi, subitamente, que tinha cometido um erro horrível.

 

Telefonou a esse corretor a cancelar a compra? Inquiriu Neil.

 

Sim. Isso pode ter sido a única atitude inteligente da minha parte. Ou, melhor, poderia ter sido... ele disse que já era tarde. A sua voz apagou-se e os lábios tremeram-lhe. E, desde então, não o tenho encontrado no escritório dele.

 

Que acções são essas? perguntou Neil.

 

Eu tenho as informações disse o pai.

 

Neil leu o prospecto e a folha de dados. Era ainda pior do que esperava. Telefonou para o seu escritório e instruiu Trish para que o pusesse em contacto com um dos seus corretores seniores.

 

Ontem, comprou cinquenta mil acções a nove disse a Mrs. Gebhart. Vamos saber a posição delas hoje.

 

Concisamente, pôs o seu associado ao corrente da situação. Voltou-se depois de novo para Mrs. Gebhart.

 

Agora estão a sete. Vou pedir que sejam dadas instruções de venda.

 

Ela anuiu o seu consentimento.

 

Neil ficou em linha.

 

Mantém-me informado ordenou. Quando desligou, disse: Houve, há alguns dias, o rumor de que a companhia cujas acções a senhora adquiriu ia ser comprada pela Johnson & Johnson. Mas, infelizmente, tenho a certeza de que era exactamente isso... um rumor destinado a inflaccionar artificialmente o valor das acções. Lamento imenso, Mrs. Gebhart, pelo menos vamos conseguir salvara maior parte do seu capital. O meu associado telefona-nos assim que tiver efectuado a transacção.

 

O que me enfurece disse Robert Stephens é que este é o mesmo corretor que levou Laura Arlington a investir numa companhia-fantasma e a fez perder todas as poupanças.

 

Ele pareceu-me simpático afirmou Cora Gebhart. E revelou tantos conhecimentos sobre os meus títulos, explicando que, embora isento de imposto, o rendimento não justificava ter todo esse dinheiro empatado. E que alguns estavam mesmo a perder poder de compra devido à inflação.

 

As palavras captaram a atenção de Neil.

 

A senhora deve ter-lhe falado sobre os seus títulos para que ele soubesse tanto disse agudamente.

 

Não falei, não. Quando me telefonou a convidar para almoçar, expliquei que não estava interessada em discutir investimentos, mas depois falou do tipo de clientes que tinha... como Mrs. Downing. Disse-me que, antes, ela tinha títulos semelhantes ao que a maioria das pessoas de idade possuem e que ele lhe arranjara uma fortuna. Depois falou exactamente dos títulos que eu tenho.

 

Quem é essa Mrs. Downing? inquiriu Neil.

 

Oh, toda a gente a conhece. É um pilar da velha guarda de Providence. Falei efectivamente com ela, e não podia gabar mais Douglas Hansen.

 

Compreendo. Mesmo assim, gostaria de proceder a uma investigação sobre ele afirmou Neil.Parece-me precisamente o tipo de pessoa de que o nosso negócio não necessita.

 

O telefone tocou.

 

«Maggie», pensou Neil. «Permite que seja Maggie.» Pelo contrário, era o seu associado da firma de investimento. Neil escutou e depois virou-se para Cora Gebhart.

 

Conseguiu tirá-la aos sete. Considere-se com sorte. Há um rumor que começou a circular de que a Johnson & Johnson vai emitir um depoimento afirmando que não tem qualquer interesse em adquirir a companhia. Independentemente de o rumor ser verdadeiro ou falso, é o suficiente para fazer baixar totalmente as acções da companhia.

 

Quando Cora Gebhart saiu, Robert Stephens olhou com afecto para o filho.

 

Ainda bem que estavas cá, Neil. Cora tem uma boa cabeça e um coração grande, mas confia demasiado. Teria sido uma pena ter ficado arruinada devido a um único erro. No actual estado das coisas, terá de desistir da ideia de se mudar para Latham Manor. Já tinha os olhos postos num determinado apartamento, mas talvez possa ainda ficar com um mais pequeno.

 

Latham Manor disse Neil. Ainda bem que mencionou isso. Gostaria que me falasse desse local.

 

Por que diabo queres saber algo sobre Latham Manor? perguntou a mãe.

 

Neil contou-lhes sobre os Van Hilleary, os seus clientes que andavam à procura de uma base para a reforma.

 

Disse-lhes que investigaria esse local por eles. Quase me esquecia. Devia ter marcado uma hora para ir visitá-lo.

 

Só vamos jogar à umadisse Robert Stephens, e Latham não fica longe do clube. Por que não telefonas a saber se podes marcar uma hora ou, pelo menos, se podes trazer alguma literatura para os teus clientes?

 

Nunca deixes para amanhã o que podes fazer hoje disse Neil com um sorriso. Amenos, é claro, que consiga contactar com Maggie primeiro. Já deve estar em casa.

 

Após o telefone tocar por seis vezes sem ser respondido, pousou o auscultador.

 

Ainda está fora disse, pesarosamente.Muito bem, onde está a lista telefónica? Vou ligar para Latham Manor. Vamos acabar com este serviço.

 

O Dr. William Lane não podia ter ficado mais satisfeito.

 

Está a ligar no momento ideal disse. Temos uma das nossas melhores suites disponível... uma unidade de duas camas com um terraço. É um dos quatro apartamentos iguais, e os outros três estão ocupados por encantadores casais. Venha de imediato.

 

A Dr.a Lara Horgan, a nova médica legista para o Estado de Rhode Island, não conseguia determinar o que a incomodava. Mas, pensando bem, fora uma semana atarefada no seu departamento: entre as mortes extraordinárias ocorridas, contavam-se dois suicídios, três afogamentos e um homicídio.

 

A morte da mulher residente em Latham Manor, por outro lado, não passava, à primeira vista, de pura rotina. Mesmo assim, algo nessa morte a perturbava. O historial clínico da mulher falecida, Greta Shipley, era perfeitamente vulgar. O médico que a acompanhou toda a vida estava reformado, mas o seu associado verificou que Mrs. Shipley possuía uma história de hipertensão com dez anos e sofrera, pelo menos, um ataque cardíaco silencioso.

 

O Dr. William Lane, director e médico assistente de Latham Manor, pareceu competente. O pessoal tinha experiência e as instalações eram de primeira qualidade.

 

O facto de Mrs. Shipley ter tido uma ligeira indisposição na missa fúnebre da amiga, a vítima de homicídio, Nuala Moore, e uma segunda indisposição, apenas comprovava a tensão a que devia estar sujeita.

 

A Dr.a Horgan assistira a uma série de casos em que um cônj uge idoso falecia horas, ou mesmo minutos, após a morte do marido ou esposa. Alguém horrorizado com as circunstâncias da morte de uma amiga querida podia facilmente sentir esse mesmo stress fatal.

 

Na sua qualidade de médica legista estatal, a Dr.a Morgan estava igualmente familiarizada com as circunstâncias relacionadas com a morte de Nuala Moore, e tinha perfeita consciência de como podiam ser perturbantes para alguém tão próximo da vítima, como era o caso de Mrs. Shipley. Golpes múltiplos na nuca de Mrs. Moore revelaram-se fatais. Grãos de areia misturados com sangue e cabelo sugeriam que o criminoso encontrara a arma, provavelmente uma rocha, algures na praia e que entrara na casa com essa arma. Indicava também que o criminoso sabia que a dona da casa era baixa e frágil, talvez até que conhecia Mrs. Moore. É exactamente isso, disse a si mesma. Era a sensação incomodativa de que a morte de Nuala Moore estava, de alguma forma, ligada à ocorrida em Latham Manor que lhe enviava sinais de alarme. Decidiu telefonar à Polícia de Newport a fim de saber se já tinham descoberto alguma pista.

 

Os jornais do princípio da semana encontravam-se empilhados na sua secretária. Descobriu uma notícia breve, na página da necrologia, detalhando o passado de Mrs. Shipley, as suas actividades comunitárias, o seu papel como membro da DAR, a posição do falecido marido como membro do conselho de gerência de uma companhia de sucesso. Indicava igualmente que, de família, só tinha três primos, residentes nas cidades de Nova Iorque, Washington D.C. e Denver.

 

Não havia ninguém por perto para cuidar dela, pensou a Dr.a Horgan, pousando o jornal e voltando-se para a montanha de trabalho sobre a secretária.

 

Perturbou-a então um pensamento final: a enfermeira Markey. Fora ela quem encontrara o corpo de Mrs. Shipley em Latham Manor. Havia algo naquela mulher de que não gostava, uma espécie de atitude maliciosa e convencida. Talvez fosse melhor o chefe Brower falar com ela de novo.

 

Como parte das suas pesquisas para a série de palestras, Earl Bateman começara a fazer transcrições de velhas lápides. Estas tornaram-se um tópico para uma das suas apresentações.

 

Hoje em dia, grava-se nas lápides o mínimo de informações explicava. Com efeito, apenas as datas de nascimento e
falecimento. Mas, noutros séculos, podiam ser lidas nessas lápides histórias maravilhosas. Algumas pungentes, outras verdadeiramente notáveis, como é o caso do capitão-de-mar enterrado com as suas cinco esposas... nenhuma das quais, devo acrescentar, viveu mais de sete anos depois de casada.

 

Nessa altura, era habitualmente recompensado com algumas risadas.

 

. Outros marcadores explicava são espantosos pela majestade e história que transmitem.

 

Citava então a capela da Abadia de Westminster, onde foi sepultada a rainha Isabel I, a escassos centímetros da prima a quem mandara decapitar, Maria, rainha dos Escoceses.

 

Uma nota interessante acrescentava habitualmente. Em Ketchakan, Alasca, no século dezanove, existia uma zona especial de reserva, no Cemitério das Lápides, para as «Pombas Maculadas», nome atribuído às jovens mulheres que residiam em bordéis.

 

Nesta sexta-feira de manhã, Earl preparava uma sinopse das palestras que se propunha entregar para a potencial série da televisão por cabo. Quando chegou ao tema das transcrições das lápides, lembrou-se de que tinha planeado procurar outras interessantes; apercebendo-se então de que estava um dia lindo, perfeito para tal actividade, decidiu visitar os sectores mais antigos dos cemitérios de Santa Maria e Trindade.

 

Conduzia pela estrada que dava acesso aos cemitérios quando avistou uma carrinha Volvo preta a sair dos portões abertos e a virar no sentido oposto. Maggie Holloway possuía um carro da mesma marca e cor, pensou. Teria vindo visitar a campa de Nuala?

 

Em vez de se dirigir ao sector antigo, virou para a esquerda e subiu a colina. Pete Brown, um trabalhador do cemitério, o qual ficou a conhecer das várias vezes que viera para estudar as velhas lápides, cortava as ervas no caminho de cascalho, nas proximidades da sepultura de Nuala.

 

Earl parou o carro e abriu a janela.

 

Está tudo bastante calmo por aqui, Pete disse. Era uma velha piada que partilhavam.

 

Está mesmo, professor.

 

Pareceu-me ter visto o carro da enteada de Mrs. Moore. Veio visitar a campa? Tinha a certeza de que toda a gente estava ao corrente dos pormenores da morte de Nuala. Não havia assim tantos assassinatos em Newport.

 

Uma senhora com bom aspecto, magra, cabelo escuro e jovem?

 

É com certeza ela.

 

Sim. E deve conhecer metade dos nossos hóspedes disse Pete, rindo-se depois. Um dos colegas estava a dizer que a viu ir de campa para campa, deixando flores. Todos os tipos repararam nela. É uma boneca.

 

«Que interessante!», pensou Earl.

 

Cuide-se, Pete disse, acenando e arrancando devagar. Sabendo que os olhos curiosos de Pete Brown estavam pousados nele, seguiu para a secção antiga de Trindade e começou a vaguear por entre as lápides do século xvii aí existentes.

 

O apartamento de Letitia Bainbridge em Latham Manor era um espaçoso quarto de canto com uma magnífica vista para o oceano. Com orgulho, destacava a grande sala de vestir e a casa de banho.

 

Ser um dos membros mais antigos tem os seus privilégios disse.Lembro-me de Greta e eu nos termos inscrito de imediato, durante a recepção de apresentação. Trudy Nichols estrebuchou e refilou e, depois, nunca me perdoou por ter escolhido esta unidade. Acabou por pagar mais cento e cinquenta mil por um dos apartamentos maiores, e a pobre querida só viveu dois anos. Quem lá habita agora são os Crenshaws. Estavam na nossa mesa, na outra noite.

 

Recordo-me deles. Bastante simpáticos.

 

«Nichols», pensou Maggie. «Gertrude Nichols. A sepultura dela era uma das que tinham um sino.» Mrs. Bainbridge suspirou.

 

É sempre difícil quando um de nós parte, mas especialmente difícil quando é alguém da nossa mesa. E sei que Eleanor Chandler ficará com o apartamento de Greta. Quando a minha filha Sarah me levou ontem ao meu médico de família, contou-me que ouviu dizer que Eleanor se vai mudar para cá.

 

Não se está a sentir bem? inquiriu Maggie.

 

Oh, estou óptima. Mas, com a minha idade, tudo pode acontecer. Disse a Sarah que o Dr. Lane podia muito bem controlar a minha pressão arterial, mas Sarah insistiu para que fosse consultada pelo Dr. Evans.

 

Estavam sentadas na frente uma da outra, em cadeiras colocadas junto das janelas. Mrs. Bainbridge estendeu o braço e pegou numa moldura de entre muitas outras em cima de uma mesa próxima. Mostrou-a a Maggie.

 

A minha multidão disse orgulhosamente. Três filhos, três filhas, dezassete netos, quatro bisnetos e três a caminho. Sorriu com grande satisfação. E a parte melhor é que a grande maioria deles está ainda na Nova Inglaterra. Nunca passa uma semana sem que apareça alguém da família.

 

Maggie armazenou conscientemente essa informação específica; algo a considerar mais tarde, pensou. Reparou então numa fotografia tirada no salão nobre de Latham Manor. Mrs. Bainbridge encontrava-se no centro de um grupo de oito pessoas. Pegou nela.

 

Alguma ocasião especial? perguntou.

 

O meu nonagésimo aniversário, há quatro anos. Letitia Bainbridge inclinou-se para a frente e indicou as mulheres de ambos os lados do grupo. Esta é Constance Rhinelander à esquerda. Faleceu há duas semanas e, é claro, conheceu Greta. Está à direita.

 

Mrs. Shipley não tinha familiares próximos, pois não? inquiriu Maggie.

 

Não. Tal como Constance, mas todos nós éramos como uma família.

 

Estava na altura de falar sobre os sinos, decidiu Maggie. Olhou em volta em busca de inspiração para mencionar o assunto. Era evidente que o aposento fora mobilado com artigos pessoais de Mrs. Bainbridge. Acama de quatro colunas em madeira esculpida, a antiga mesa inglesa, a cómoda de Bombaim, a carpete persa em tons delicados, tudo representava a história de uma descendência.

 

Foi então que o viu: um sino de prata, na cornija da lareira. Levantou-se e foi até lá.

 

Oh, que coisa bonita. Pegou no sino. Letitia Bainbridge sorriu.

 

A minha mãe costumava usá-lo para chamar a criada. A mãe gostava de dormir até tarde, e Hattie ficava pacientemente à espera, sentada do outro lado da porta, todas as manhãs até o sino a chamar. As minhas netas acham esse sino o máximo, segundo as palavras delas, mas tenho calorosas recordações associadas a esse objecto. Muitas de nós, velhotas, crescemos num meio assim.

 

Era o ponto de partida que Maggie desejava. Sentou-se de novo e levou a mão à carteira.

 

Mrs. Bainbridge, encontrei este sino na campa de Nuala. Fiquei curiosa em saber quem o teria lá deixado. Existe aqui o costume de colocar um sino na campa de um amigo?

 

Letitia Bainbridge ficou perplexa.

 

Nunca ouvi tal coisa. Quer dizer que alguém, deliberadamente, deixou isso lá?

 

Aparentemente, sim.

 

Mas que bizarro. Voltou a cara.

 

Com apreensão, Maggie apercebeu-se de que, por algum motivo, o sino perturbara Mrs. Bainbridge. Decidiu não dizer nada sobre o facto de ter encontrado também sinos noutras sepulturas. Era evidente que isto não representava um tributo que velhos amigos prestavam uns aos outros.

 

Voltou a enfiar o sino na carteira.

 

Aposto que sei o que aconteceu improvisou.Estava uma menina no cemitério no outro dia. Veio conversar comigo enquanto eu arranjava umas flores na campa de Nuala. Foi depois de ela se ter ido embora que encontrei o sino.

 

Felizmente, Letitia Bainbridge chegou à conclusão que Maggie pretendia.

 

Oh, só pode ter sido isso afirmou. Seguramente, nenhum adulto pensaria em deixar um sino numa campa. Depois, franziu o sobrolho. De que será que me tento recordar? Oh, lembrei-me de qualquer coisa e agora esqueci-me. Bom, um sinal da velhice, creio.

 

Bateram à porta e Mrs. Bainbridge comentou:

 

Deve ser o tabuleiro com o almoço. Levantou a voz: Entre, por favor.

 

Era Angela, a jovem empregada que Maggie conhecera nas visitas anteriores. Cumprimentou-a e depois levantou-se.

 

Tenho realmente de me ir embora disse Maggie. Mrs. Bainbridge ergueu-se.

 

Estou tão contente por ter vindo, Maggie. Vejo-a amanhã? Maggie sabia ao que ela se referia.

 

Sim, claro. Vou assistir à missa do funeral de Mrs. Shipley. Quando desceu, ficou satisfeita por ver que o átrio estava vazio.

 

Devem estar todos na sala de jantar, pensou ao abrir a porta da frente. Enfiou a mão na sacola para retirar as chaves do carro e, inadvertidamente, tocou no sino. Um som abafado obrigou-a a segurar o badalo para o silenciar.

 

«Não perguntes por quem o sino dobra», pensou Maggie ao descer as escadas de Latham Manor.

 

O Dr. Lane, Neil Stephens e o pai concluíram a visita a Latham Manor junto da entrada da sala de jantar. Neil observou o ruído das conversas, os rostos animados dos idosos bem vestidos, o ambiente geral da bonita sala. Empregados de luvas brancas serviam e o aroma de pão acabado de cozer era tentador.

 

Lane pegou num menu e entregou-o a Neil.

 

Hoje, o prato principal é uma escolha entre Solha Dover com Espargos Brancos ou Salada de Frango explicou. As alternativas para sobremesa são iogurte gelado ou sorvete, com biscoitos caseiros. Sorriu. Devo acrescentar que se trata de um menu típico. O nosso chefe não é só cordon bleu mas também um especialista em dietética.

 

Muito impressionante disse Neil, anuindo em apreciação.

 

Neil, começamos o jogo dentro de trinta minutos lembrou Robert Stephens ao filho.Não te parece que já vimos o suficiente?

 

Mais importante ainda afirmou o Dr. Lane gentilmente, sente que está em condições de recomendar a suite disponível aos seus clientes? Sem intenção de os pressionar, posso dizer-lhe que não ficará livre por muito tempo. Os casais gostam sobretudo das unidades maiores.

 

Falarei com os meus clientes na segunda-feira, quando regressar a Nova Iorque disse Neil. Este local é fabuloso. Vou enviar-lhe os prospectos e recomendar que venham até cá para verem com os próprios olhos.

 

Excelente disse o Dr. Lane com entusiasmo enquanto Robert Stephens mostrava o relógio. Virou-se e começou a andar pelo corredor, em direcção à porta principal. Neil e o Dr. Lane seguiram.

 

Gostamos de ter aqui casais continuou o Dr. Lane. A maioria dos residentes são viúvas, mas isso não significa que não apreciem ter homens em redor. Na verdade, registaram-se já aqui diversos romances entre pessoas disponíveis.

 

Robert Stephens abrandou o passo e ficou ao lado deles.

 

Se não te resolves depressa, Neil, o melhor é entregares a tua candidatura. Este lugar pode ser a tua melhor oportunidade.

 

Neil sorriu.

 

Nunca permita que o meu pai se mude para cá disse ao médico.

 

Não te preocupes comigo. Este sítio é demasiado rico para o meu sangue declarou Robert Stephens. Mas isso faz-me lembrar uma coisa. Doutor, recorda-se de ter recebido a candidatura de uma tal Mrs. Cora Gebhart? O Dr. Lane franziu o sobrolho.

 

Esse nome é-me familiar. Oh, sim, está no que chamamos o «ficheiro de pendentes». Veio visitar-nos há cerca de um ano, preencheu um processo de candidatura mas não o quis activado. É nossa prática corrente telefonar a uma pessoa nessas condições uma ou duas vezes por ano, a fim de verificarmos se já tomou alguma decisão. A última vez que falei com Mrs. Gebhart, fiquei com a impressão de que considerava seriamente juntar-se a nós.

 

É verdade disse o Stephens mais velho. Muito bem, Neil, vamos à nossa vida.

 

Neil tentou ligar mais uma vez a Maggie pelo telefone do carro, mas ela ainda não respondia.

 

Embora estivesse um dia esplêndido e tivesse jogado um excelente golfe, Neil achou a tarde imensamente longa. Não conseguia afastar a sensação premente de que algo estava errado.

 

De regresso a casa, Maggie decidiu ir comprar algo para comer. Seguiu para um pequeno mercado que notara junto do cais. Aí, adquiriu os ingredientes para uma salada e uma pasta pomodoro. «Já tive a minha dose de ovos mexidos e canja de galinha», pensou. Reparou então num letreiro indicando sopa de marisco de Nova Inglaterra, acabada de preparar.

 

O empregado era um homem com cerca de 60 anos.

 

É nova por cá? perguntou afavelmente quando lhe fez o pedido.

 

Maggie sorriu.

 

Como sabe?

 

É fácil. Sempre que a minha mulher faz a sua sopa de marisco, toda a gente compra pelo menos uma medida grande.

 

Nesse caso, é melhor dar-me o dobro do que pedi.

 

Tem uma cabeça sobre os ombros. Agrada-me isso em gente nova disse ele.

 

Ao conduzir, Maggie sorriu para si mesma. Outro motivo para ficar com a casa em Newport, pensou, era que havia tantas pessoas de idade naquela localidade que ela seria considerada jovem durante bastante tempo.

 

«Além do mais, não posso escolher as coisas de Nuala, aceitar a melhor oferta pela casa e afastar-me», disse a si própria. «Mesmo que Nuala tenha sido morta por um estranho, há muitas perguntas que carecem de resposta. Os sinos, por exemplo. Quem os teria posto naquelas sepulturas? Talvez uma das amigas da velha guarda o tenha feito por iniciativa própria e nunca sonhasse que alguém reparasse neles», raciocinou. «Tanto quanto sei», pensou, «pode haver sinos em metade das campas de Newport. Por outro lado, falta um. Teria o responsável, ou a responsável, mudado de ideias quanto a deixar lá o sino?»

 

Estacionando o carro na entrada da casa de Nuala, levou as compras e entrou pela porta da cozinha. Pousando os sacos em cima da mesa, voltou-se e trancou rapidamente a porta. Isso era outra coisa, pensou. Tinha tenções de mandar chamar um serralheiro. Liam iria perguntar sobre isso logo à noite. Ficara bastante preocupado por Earl ter aparecido tão inesperadamente.

 

Uma das expressões favoritas de Nuala surgiu na mente de Maggie ao procurar uma lista telefónica: «Mais vale tarde do que nunca.» Lembrava-se de Nuala o ter afirmado num domingo de manhã quando veio a correr para o carro onde Maggie e o pai estavam já à espera.

 

Maggie detestava pensar na resposta do pai, tão típica nele: «Melhor ainda, nunca tarde, sobretudo quando o resto da congregação consegue chegar a horas.»

 

Encontrou a lista telefónica numa gaveta da cozinha e sorriu ao ver o que estava por debaixo: receitas fotocopiadas, velas meio ardidas, tesouras ferrugentas, clips de papel, trocados.

 

«Detestaria tentar procurar qualquer coisa nesta casa», pensou Maggie. que grande desarrumação.» Sentiu então a garganta seca. «Quem revistou esta casa andava à procura de alguma coisa, e tudo indica que não a encontrou», murmurou uma voz dentro de si.

 

Depois de deixar uma mensagem na máquina do primeiro serralheiro a quem telefonou, acabou de arrumar as compras e preparou uma tigela de sopa de marisco. Assim que a provou, ficou satisfeita por ter comprado mais do que pretendia. Subiu depois Para o estúdio. Irrequietos, os seus dedos estenderam-se para o recipiente de barro fresco. Queria voltar ao busto de Nuala que iniciara, mas sabia que não podia. Era o rosto de Greta Shipley que exigia ser reproduzido não tanto o rosto mas mais os olhos, conhecedores, cândidos e vigilantes. Ainda bem que trouxera diversas armaduras com ela.

 

Maggie permaneceu na mesa de apoio durante uma hora até o barro ter assumido uma parecença próxima da mulher que conhecera tão brevemente. Por fim, a inquietação impulsiva desvaneceu-se, pelo que pôde lavar as mãos e começar a tarefa que sabia lhe ia ser difícil: escolher as pinturas de Nuala. Tinha de decidir quais deveria manter e quais oferecer a um comerciante, sabendo que a grande maioria delas acabaria num monte, retiradas das respectivas molduras molduras essas que algumas pessoas valorizavam mais do que a arte que outrora contiveram.

 

Às três horas, começou a analisar os trabalhos que não tinham ainda sido emoldurados. Num armário fora do estúdio, encontrou dezenas de esboços de Nuala, aquarelas e óleos, uma colectânea estonteante que Maggie depressa percebeu não poderem ser analisadas sem assistência profissional.

 

A maioria dos esboços era apenas agradáveis, e apenas algumas das pinturas a óleo eram interessantes mas algumas das aquarelas eram extraordinárias. Tal como Nuala, pensou, eram apaixonadas e alegres, cheias de profundezas inesperadas. Agradou-lhe especialmente uma cena de Inverno, na qual uma árvore, os ramos dobrados e curvados pela neve, abrigava um incongruente anel de flores, incluindo bocas-de-leão e rosas, violetas e lírios, orquídeas e crisântemos.

 

Maggie ficou tão envolvida na tarefa que eram já cinco e meia quando correu escadas abaixo para atender, mesmo a tempo, o telefone que lhe pareceu ter ouvido tocar.

 

Era Liam.

 

Olá, é a terceira vez que tento apanhar-te. Pensei que ia ficar sem companhiadisse, aliviado.Sabes que a única alternativa que tinha para esta noite era o meu primo Earl?

 

Maggie riu-se.

 

Desculpa. Não ouvi o telefone. Estava no estúdio. Penso que Nuala não era apologista de extensões telefónicas.

 

Ofereço-te uma no Natal. Vou buscar-te dentro de uma hora?

 

Óptimo.

 

«Dar-me-á tempo suficiente para tomar um banho de imersão», pensou Maggie ao desligar. Era evidente que o ar da noite estava a arrefecer. Parecia haver correntes de ar na casa e, de certa forma estranha e desconfortável, parecia-lhe que podia ainda sentir o frio da terra húmida que tocara nas campas.

 

Quando a água enchia a banheira, pensou ouvir de novo o telefone e fechou rapidamente as torneiras. Contudo, não vinha nenhum som do quarto de Nuala. «Ou não ouvi nada ou perdi outra chamada», decidiu.

 

Sentindo-se descontraída depois do banho, vestiu-se cuidadamente com a camisola branca e saia preta comprida, à altura do tornozelo, que comprara no início da semana. Decidiu depois que se impunha um pouco de maquilhagem.

 

«É engraçado arranjar-me para Liam», pensou. «Faz-me sentir bem comigo própria.»

 

Às seis e quarenta e cinco, esperava na sala de estar quando a campainha tocou. Liam encontrava-se na entrada, com uma dezena de rosas vermelhas de pé alto numa mão, uma folha de papel dobrada na outra. O carinho nos seus olhos e o breve beijo que perdurou por momentos nos lábios de Maggie fizeram-na sentir-se de coração mais leve.

 

Estás deslumbrante disse-lhe ele. Vou ter de alterar os planos para a noite. O McDonald’s não vai servir.

 

Maggie riu-se.

 

Oh, não me digas! E eu que estava tão ansiosa por um Big Mac. Leu rapidamente o bilhete que ele trouxe para dentro. Onde estava isto? perguntou.

 

Na sua porta da frente, madame.

 

Claro. Entrei pela porta da cozinha. Voltou a dobrar a folha de papel. «Então, Neil está em Portsmouth», pensou, «e quer encontrar-se comigo. Não é simpático da parte dele?» Detestava ter de admitir a si mesma como se sentira desapontada pelo facto de Neil não ter telefonado na semana passada, antes de partir. Recordou-se então de que, para si, tal facto era mais um indício da indiferença dele para com ela.

 

Alguma coisa importante? perguntou Liam.

 

Não. Um amigo que veio passar o fim-de-semana aqui perto quer que lhe telefone. Talvez o faça amanhã. «E talvez não», pensou. «Como me terá descoberto?»

 

Subiu de novo as escadas para ir buscar a carteira e, ao pegar nela, sentiu o peso extra do sino. «Será que o devia mostrar a Liam?», interrogou-se. «Não, esta noite não», decidiu. «Não quero falar de morte e campas, agora não.» Tirou o sino de dentro da carteira. Embora estivesse ali guardado há horas, tinha um toque frio e viscoso, o que lhe provocou arrepios.

 

«Não quero que isto seja a primeira coisa que verei quando chegar mais tarde», pensou, abrindo a porta do roupeiro e colocando-o na prateleira: empurrou-o para trás, até ficar totalmente fora de vista.

 

Liam reservara uma mesa na Sala do Comodoro do The Black Pearl, um restaurante que possuía uma vista global sobre a baía de Narragansett.

 

O meu apartamento não fica longe daquiexplicou Liam, mas sinto saudades da casa enorme onde cresci. Um destes dias, dá-me na cabeça e compro uma destas casas antigas e mando-a restaurar. A sua voz tornou-se séria. Nessa altura, já terei assentado e, com um pouco de sorte, terei por esposa uma linda fotógrafa premiada.

 

Pára com isso, Liamprotestou Maggie. Tal como Nuala teria dito, pareces um tolo a falar.

 

Mas não é o caso disse, calmamente. Maggie, por favor, começa a olhar para mim com olhos diferentes. Desde a semana passada, não me sais da cabeça nem por um instante. Tudo o que tenho conseguido pensar é que, se tens entrado na altura em que atacavam Nuala, o mesmo poderia ter-te acontecido. Sou um tipo grande e forte e quero cuidar de ti. Sei que estes sentimentos estão antiquados, mas são superiores a mim. É assim que sou, e é assim que sinto. Fez uma pausa. Agora chega. O vinho é bom?

 

Maggie fitou-o e sorriu, contente por ele não ter exigido uma resposta.

 

É óptimo. Liam, preciso de te perguntar uma coisa. Acreditas realmente que um estranho drogado atacou Nuala?

 

Liam pareceu surpreendido com a pergunta.

 

Se não foi um drogado, quem poderia ter sido? inquiriu. Mas o responsável deve ter visto que ela esperava convidados

 

e, mesmo assim, perdeu tempo a revistar a casa.

 

Maggie, quem quer que fez aquilo estava provavelmente desesperado por uma dose e procurou por dinheiro ou jóias pela casa. A notícia do jornal dizia que a aliança de Nuala lhe tinha sido tirada do dedo, por isso, o móbil deve ter sido o roubo.

 

Sim, a aliança foi tirada concordou Maggie.

 

Por acaso sei que ela tinha muito poucas jóias afirmou Liam. Não permitiu sequer que o tio Tim lhe oferecesse um anel de noivado. Disse que dois numa vida eram suficientes e, além do mais, ambos lhe tinham sido roubados quando vivia em Nova Iorque. Lembro-me de ela contar à minha mãe, depois de isso acontecer, que não queria ter nada a não ser jóias falsas.

 

Sabes mais do que eu disse Maggie.

 

Por isso, com excepção de algum dinheiro que houvesse pela casa, o assassino não levou muito, pois não? Ao menos isso dá-me algum consolo disse Liam, a voz austera. Sorriu, quebrando o momento de tristeza que se instalara. Bom, conta-me sobre a tua semana. Espero que te estejas a afeiçoar a Newport. Ou, melhor ainda, permite que continue a contar-te a história da minha vida.

 

Contou-lhe como, em criança, contava as semanas no colégio interno até chegar a hora de ir passar o Verão a Newport, sobre a sua decisão de ser corretor como o pai, sobre deixar o cargo que tinha na Randolph & Marshall e arrancar com a sua própria companhia de investimentos.

 

Foi um verdadeiro elogio alguns dos melhores clientes terem decidido acompanhar-me disse. É sempre assustador uma pessoa lançar-se por sua conta, mas o voto de confiança deles levou-me a acreditar que tinha tomado a decisão certa. E tomei.

 

Na altura em que o creme brulée chegou, Maggie estava totalmente descontraída.

 

Soube mais sobre ti esta noite do que numa dezena de outros jantares disse-lhe Maggie.

 

Talvez eu seja um pouco diferente no meu próprio território respondeu Liam. E talvez apenas deseje que verifiques como sou um tipo impecável. Ergueu um sobrolho. Estou também a permitir que saibas que sou um tipo substancial. Para tua informação, nestas partes, sou considerado um bom partido.

 

Pára já com essa conversa disse Maggie, tentando parecer firme, mas incapaz de esboçar um leve sorriso.

 

Muito bem. É a tua vez. Fala-me agora sobre a tua semana. Maggie sentia relutância em falar nas coisas. Não queria destruir o ambiente quase festivo da noite. Era impossível falar sobre a semana e não mencionar Greta Shipley, mas sublinhou sobretudo como apreciara a companhia dela no pouco tempo em que conviveram, e depois contou-lhe sobre a amizade crescente com Letitia Bainbridge.

 

Conheci Mrs. Shipley, e era uma senhora muito especial disse Liam. Quanto a Mrs. Bainbridge, bom, é excepcional referiu ele. Uma verdadeira lenda por estas bandas. Contou-te sobre o apogeu da vida social de Newport?

 

Um pouco.

 

Ela que te conte um dia sobre as histórias da mãe dela em relação a Mamie Fish. Ela sabia realmente como agitar as massas. Há uma história deliciosa sobre uma festa que ela deu, em que um dos seus convidados lhe pediu para trazer com ele o Príncipe dei Drago, da Córsega. Claro que Mamie ficou encantada e deu a sua Permissão, pelo que podes imaginar o horror dela quando o «príncipe» revelou tratar-se de um macaco vestido a rigor.

 

Riram-se juntos.

 

Mrs. Bainbridge é provavelmente uma das poucas pessoas vivas cujos pais assistiram às famosas festas dos anos de 1890 disse Liam.

 

O que é bom saber é que Mrs. Bainbridge tem tantos parentes fisicamente perto para cuidarem dela disse Maggie. Ainda ontem, depois de ter tomado conhecimento da morte de Mrs. Shipley, a filha levou-a ao médico para fazer um exame, porque sabia que ela deveria estar perturbada.

 

Essafilha deve ser Sarahafirmou Liam. Depois, sorriu. Por acaso Mrs. Bainbridge mencionou uma determinada cena provocada pelo idiota do meu primo Earl e que fez Sarah entrar em órbita?

 

Não.

 

É de bradar aos céus. Earl dá aulas sobre hábitos fúnebres. Sabias isso, não sabias? Juro que o tipo é louco. Enquanto a maioria das pessoas gosta de jogar golfe ou de velejar, a ideia dele de um tempo bem passado é gastar horas em cemitérios, fazendo transcrições de lápides.

 

Em cemitérios! exclamou Maggie.

 

Sim, mas isso é apenas parte da história. Onde quero chegar é a uma determinada ocasião em que ele deu uma palestra sobre práticas fúnebres para um grupo de Latham Manor, imagina só. Mrs. Bainbridge não se sentia bem, mas Sarah estava de visita à mãe e assistiu à palestra.

 

»Earl incluiu na sua pequena conversa a história dos sineiros vitorianos. Parece que os vitorianos abastados tinham tanto medo de serem enterrados vivos que mandavam fazer um orifício em cima do caixão, com um canal até à superfície. Era atado um fio ao dedo do presumido falecido, esticado através desse canal e, na extremidade, estava ligado um sino, posicionado em cima da sepultura. Depois, era pago a alguém para ficar de vigia durante uma semana, para o caso de a pessoa no caixão ter, de facto, recuperado a consciência e tentar tocar o sino.

 

Santo Deus exclamou Maggie.

 

Espera, agora vem a melhor parte, a parte que diz respeito a Earl. Quer acredites ou não, ele possui em Newport uma espécie de museu, próximo da casa funerária, repleto de todos os tipos de símbolos funerários e parafernália, e deu-lhe na cabeça levar uma dezena de réplicas de sinos de cemitérios vitorianos para ilustrar a palestra. Sem lhes dizer o que pretendia, o parvo entregou-os a dez dessas senhoras, todas por volta dos sessenta, setenta e oitenta anos, e atou-lhes o fio dos sinos aos dedos anelares. Pediu-lhes depois que segurassem o sino na outra mão, que movessem os dedos e fingissem que se encontravam num caixão e tentavam comunicar com o vigilante das campas.

 

Que bela imagem! disse Maggie.

 

Uma das velhotas chegou mesmo a desmaiar. A filha de Mrs. Bainbridge recolheu os sinos de Earl e ficou tão irritada que praticamente expulsou Earl e os sinos para fora das instalações.

 

Liam fez uma pausa e, num tom de voz mais sóbrio, acrescentou:

 

O que mais me preocupa é que acho que Earl sente prazer em ser ele próprio a contar essa história.

 

Neil tentara telefonar a Maggie por diversas vezes, primeiro do vestiário do clube e, depois, mal chegou a casa. «Ou esteve fora todo o dia ou entrou e saiu ou não atende o telefone», pensou. «Mas, mesmo que tivesse entrado e saído, teria seguramente visto o bilhete.»

 

Neil acompanhou os pais à casa de um vizinho para um cocktail, onde tentou apanhar Maggie de novo às sete. Decidiu depois levar o seu próprio carro para o jantar para que, se a conseguisse contactar, pudesse passar por casa dela para tomar uma bebida.

 

Estavam seis pessoas à mesa, no jantar de festa na Canfield House. No entanto, mesmo embora a Lagosta Newburg estivesse soberba, e de a sua companhia no jantar, Vicky, a filha dos amigos dos pais, ser uma atraente executiva bancária de Boston, Neil sentia-se terrivelmente inquieto.

 

Sabendo que seria má-educação da sua parte não estar presente para tomar o digestivo no bar, após o jantar, agonizou durante a conversação rotineira. Quando, finalmente, todos se levantaram para sair, às dez e meia, Neil conseguiu recusar graciosamente o convite de Vicky para se juntar a ela e aos amigos numa partida de ténis, no domingo de manhã. Por fim, com um suspiro de alívio, encontrou-se no seu próprio carro.

 

Consultou o relógio; era um quarto para as onze. Se Maggie já estava em casa e fora para a cama cedo, não a queria perturbar. Justificou a sua decisão de passar pela casa dela dizendo a si próprio que queria apenas ver se o carro dela estava parado à porta apenas para ter a certeza de que se encontrava ainda em Newport.

 

A sua excitação inicial, ao verificar que o automóvel de Maggie estava efectivamente diante da casa, acalmou ao aperceber-se de que se encontrava outro carro estacionado, um Jaguar com matrícula de Massachusetts. Neil conduziu o carro a uma velocidade reduzida e foi recompensado por ver a porta da frente aberta. Viu de relance um homem alto junto de Maggie; depois, sentindo-se um voyeur, acelerou e virou na esquina de Ocean Drive, de regresso a Portsmouth, o estômago ardendo-lhe de remorsos e ciúmes.

 

                  Sábado, 5 de Outubro

 

A missa em memória de Greta Shipley, na Igreja da Trindade, teve bastante assistência. Sentada, escutando as orações familiares, Maggie apercebeu-se de que todas as pessoas que tinham sido convidadas para o jantar de Nuala estavam presentes.

 

O Dr. Lane e a esposa, Odile, juntamente com um determinado número de hóspedes da residência, incluindo todos os que se encontravam na mesa de Mrs. Shipley na quarta-feira à noite, com excepção de Mrs. Bainbridge.

 

Malcolm Norton e a mulher, Janice. «Ele estava com mau aspecto», pensou Maggie. Quando passou por ela à entrada, parou para lhe dizer que tinha tentado contactá-la e que gostaria de se encontrar com ela depois do funeral.

 

Earl Bateman aproximara-se para lhe falar, antes de o serviço se iniciar.

 

Depois de tudo isto, receio que, sempre que pensar em Newport, as suas recordações não passarão de funerais e cemitérios disse, os olhos de coruja por detrás de óculos de sol de armação redonda e levemente coloridos.

 

Não esperou por uma resposta, limitando-se a seguir em frente e a ocupar um lugar vazio na primeira fila.

 

Liam chegou a meio do serviço e sentou-se ao lado dela.

 

Peço desculpa murmurou-lhe ao ouvido. O maldito alarme não desligava. Pegou-lhe na mão, mas, pouco depois, Maggie retirou-a. Sabia que estava a ser o centro de muitas atenções e não queria rumores a circular sobre ela e Liam. No entanto, admitiu a si mesma, a sua sensação de isolamento aliviou quando o ombro firme de Liam roçou no dela.

 

Quando foi visitar a urna na agência funerária, Maggie estudara por instantes o rosto tranquilo e encantador da mulher que conhecera tão brevemente mas de quem tanto gostara. Ocorreu-lhe o pensamento de que Greta Shipley, Nuala e todos os seus bons amigos estariam provavelmente numa agradável reunião.

 

Esse pensamento fizera regressar a pergunta inquietante sobre os sinos vitorianos.

 

Quando passou pelas três pessoas que lhe foram apresentadas como primos de Mrs. Shipley, os seus rostos espelhavam as expressões sérias adequadas, mas não detectou neles a dor honesta e pura que vislumbrou nos olhos e atitudes dos amigos próximos de Mrs. Shipley, todos de Latham Manor.

 

«Tenho de descobrir quando e de que forma faleceram cada uma das mulheres cujas sepulturas visitei e quantas delas tinham parentes próximos», pensou Maggie, informação que reconhecera como pertinente durante a visita a Mrs. Bainbridge.

 

Nas duas horas seguintes, sentiu-se como se operasse por via de um controlo remoto observando, registando, mas não sentindo. «Sou uma câmara», foi a única reacção que sentiu ao afastar-se, com Liam ao seu lado, da sepultura de Greta Shipley, após o funeral.

 

Sentiu uma mão no braço. Uma bonita mulher com cabelo de prata e uma admirável postura erecta fê-la parar.

 

Mrs. Holloway disse. Chamo-me Sarah Bainbridge Gushing. Queria agradecer-lhe por ter visitado a minha mãe ontem. Ela ficou encantada.

 

«Sarah.» Esta era a filha que se irritara com Earl por causa da palestra sobre sinos vitorianos, reflectiu Maggie. «Gostaria de ter uma oportunidade para conversar em particular com ela.»

 

No instante seguinte, Sarah forneceu essa oportunidade:

 

Não sei quanto tempo vai ficar em Newport, mas amanhã de manhã vou levar a minha mãe a comer qualquer coisa fora e seria um prazer se nos fizesse companhia.

 

Maggie concordou prontamente.

 

Está na casa de Nuala, não está? Vou buscá-la às onze horas, se estiver bem para si. Anuindo, Sarah Gushing virou-se e foi juntar-se de novo ao grupo que a acompanhava.

 

Convido-te para um almoço calmo sugeriu Liam. Tenho a certeza de que não estás com disposição para mais reuniões pós-funerais.

 

Não, não estou. Mas quero voltar para casa. Tenho de ir tratar das roupas de Nuala e escolhê-las.

 

Nesse caso, jantamos logo? Maggie abanou a cabeça.

 

Obrigada, mas só vou parar quando tiver tudo tratado.

 

Bem, tenho de te ver antes de regressar a Boston amanhã à noite protestou Liam.

 

Maggie sabia que ele não ia aceitar uma recusa.

 

Está bem, telefona-me disse. Depois combinamos alguma coisa.

 

Deixou-a junto ao carro. Girava a chave na ignição quando um bater no vidro a assustou. Era Malcolm Norton.

 

Precisamos de conversar solicitou ele.

 

Maggie decidiu que o melhor era não fazer perder o tempo dele nem o seu.

 

Mr. Norton, se é sobre a compra de casa de Nuala, só lhe posso dizer isto: não tenho a mínima intenção de a vender neste momento e lamento informá-lo de que, sem que eu tenha pedido nada, já recebi uma oferta substancialmente mais alta que a sua.

 

Murmurando um «lamento», ligou o carro. Foi-lhe quase doloroso ver o choque horrorizado na expressão do homem.

 

Neil Stephens e o pai começaram a jogar golfe às sete horas e, ao meio-dia, estavam já de regresso às instalações do clube. Desta vez, Neil ouviu o telefone ser atendido após o segundo toque. Quando reconheceu a voz de Maggie, libertou um suspiro de alívio.

 

Sem grande convicção, até para si próprio, contou a Maggie como lhe telefonara depois de ela partir na sexta-feira, como fora falar com Jimmy Neary para tentar obter o nome de Nuala para que a pudesse contactar ali, como soubera da morte de Nuala e como lamentava tanto...

 

Maggie, preciso de te ver hoje terminou.

 

Sentiu a hesitação dela e depois ouviu-a dizer que precisava de ficar em casa para acabar de arrumar os artigos pessoais da madrasta.

 

Por muito ocupada que estejas, sempre tens de jantar rogou ele. Maggie, se não permitires que te leve a jantar fora, apareço na tua porta com a comida.Pensou depois no homem do Jaguar. A menos que outra pessoa já te tenha convidado acrescentou.

 

Perante a resposta dela, um sorriso rasgou-lhe o rosto.

 

Sete horas? Óptimo. Encontrei um local excepcional para comermos lagosta.

 

Pelo que vejo, já conseguiste falar com essa tal Maggie disse Robert Stephens secamente quando Neil se juntou a ele na porta do clube.

 

Sim, é verdade. Vamos jantar logo à noite.

 

Bom, nesse caso, teremos muito prazer em que ela nos acompanhe. Sabes que hoje é o jantar do aniversário da tua mãe, no clube.

 

O aniversário dela é só amanhã protestou Neil.

 

Obrigado por me informares! Foste tu quem pediu que celebrássemos esta noite. Disseste que querias regressar a casa amanhã a meio da tarde.

 

Neil ficou imóvel, de mão na boca, como se estivesse mergulhado em profundos pensamentos. Depois, abanou a cabeça em silêncio. Robert Stephens sorriu.

 

Muitas pessoas consideram que a tua mãe e eu somos boa companhia.

 

São boa companhia protestou Neil. Tenho a certeza de que Maggie gostará de estar convosco.

 

Claro que sim. Agora, vamos para casa. Laura Arlington, outra cliente minha, estará lá por volta das duas. Quero que vejas o que lhe resta das acções e que recomendes uma forma de lhe incrementar o rendimento. Graças àquele corretor imoral, ela está muito em baixo.

 

«Não me arrisco a telefonar a Maggie para lhe contar a mudança de planos», pensou Neil. «É muito provável que recuse. Apareço-lhe à porta e defendo o caso.»

 

Duas horas mais tarde, Neil estava sentado com Mrs. Arlington no escritório do pai. «Ela está realmente em baixo», pensou Neil. Antes era detentora de valiosas acções que lhe proporcionavam bons dividendos, mas vendera-as todas para se lançar numa verdadeira aventura. Há dez dias atrás, Mrs. Arlington fora convencida a comprar cem mil acções de uma qualquer porcaria a cinco dólares por acção. Na manhã seguinte, as acções subiram para cinco e um quarto, mas, nessa mesma tarde, começaram a afundar-se. Agora, estavam valorizadas em menos de um dólar.

 

«Desta forma, quinhentos mil dólares em acções reduziram-se a cerca de oitenta mil, partindo do princípio de que existe sequer um comprador», pensou Neil, fitando com pesar a mulher de rosto pálido cujas mãos entrelaçadas e ombros descaídos atraiçoavam a sua agitação. «Tem apenas a idade da minha mãe», pensou, «sessenta e seis; contudo, neste momento, parece vinte anos mais velha.»

 

Um verdadeiro sarilho, não é verdade? perguntou Mrs. Arlington.

 

Receio bem que sim respondeu Neil.

 

Sabe?, esse era o dinheiro que ia utilizar quando um dos apartamentos maiores ficasse disponível em Latham Manor. Mas sempre senti remorsos em usar tanto dinheiro de uma forma egoísta. Tenho três filhos e, depois de Douglas Hansen ter sido tão persuasivo e Mrs. Downing me ter informado do dinheiro que ganhara em menos de uma semana com a ajuda dele, pensei, bom, se duplicar esse dinheiro, poderei deixar uma herança aos meus filhos e, simultaneamente, viver em Latham Manor. Tentou conter as lágrimas.

 

Afinal, não só perdi o dinheiro na semana passada como recebi, precisamente no dia a seguir, um telefonema informando-me de que um dos apartamentos grandes se encontrava disponível, aquele que estava programado para Nuala Moore.

 

Nuala Moore? disse Neil rapidamente.

 

Sim, a mulher que foi assassinada a semana passada. Mrs. Arlington limpou com um lenço as lágrimas que já não conseguia conter. Agora, já não tenho o apartamento e os meus filhos, para além de não terem direito a uma herança, um deles ainda terá de me albergar na sua casa.

 

Ela abanou a cabeça.

 

Há uma semana que estou ao corrente da situação, mas ver a confirmação da compra de acções por escrito esta manhã foi a gota de água. Esfregou os olhos. Bom, é assim.

 

Laura Arlington levantou-se e esforçou um sorriso. Você é tão simpático como o seu pai nos diz constantemente. Então, na sua opinião, não devo mexer nas restantes acções?

 

Absolutamente disse Neil. Lamento o que aconteceu, Mrs. Arlington.

 

Bom, pense em todas as pessoas no mundo que não dispõem de meio milhão para «mijar fora», como o meu neto diria.Os seus olhos arregalaram-se. Não acredito que disse isto! Desculpe. Depois, o esboço de um sorriso surgiu-lhe nos lábios. Mas sabe uma coisa? Sinto-me muito melhor depois de o ter dito. Os seus pais queriam que entrasse para visitá-los, mas penso ser melhor ir-me embora. Por favor, agradeça-lhes por mim.

 

Quando ela partiu, Neil regressou a casa. Os pais encontravam-se na estufa.

 

Onde está Laura? perguntou a mãe ansiosamente.

 

Eu sabia que ela não queria fazer visitas agora comentou Robert Stephens. Começou a aperceber-se da volta que a sua vida deu.

 

É uma senhora com classe afirmou Neil com fervor. Gostaria de estrangular aquele idiota do Douglas Hansen. Mas juro que, a primeira coisa que farei na segunda-feira de manhã é indagar tudo o que for possível para o enterrar e, se houver alguma forma de apresentar queixa no SEC, acreditem, fá-lo-ei.

 

Óptimo! afirmou Robert Stephens com entusiasmo.

 

Cada dia que passa, pareces-te mais com o teu pai disse Dolores Stephens secamente.

 

Mais tarde, quando Neil assistia ao resto do jogo entre os Yankees e os Red Sox, sentia-se incomodado pela sensação de que algo lhe escapara quanto ao portfolio de Laura Arlington. Havia algo errado, para além de um investimento mal orientado. «Mas o quê?», questionou-se.

 

O detective Jim Haggerty conhecera e gostara de Greta Shipley praticamente toda a sua vida. Desde a altura em que, em rapazinho, entregava os jornais na sua porta, não se recordava de uma só ocasião em que ela não fosse graciosa e cordial para com ele. Pagava também prontamente e dava gorjetas generosas quando Haggerty ia receber, aos domingos de manhã.

 

Não era como algumas das convencidas nas outras casas pretensiosas, pensou, que coleccionavam as contas, pagando os jornais de seis semanas e adicionando apenas uma gorjeta de dez centimos. Recordava-se particularmente de um dia de um forte nevão em que Mrs. Shipley insistira para que ele entrasse, se aquecesse e secasse as luvas e gorro no radiador enquanto bebia o cacau que ela lhe preparara.

 

Nessa manhã, quando assistiu ao serviço na Igreja da Trindade, tinha a certeza de que muitos dos presentes partilhavam o pensamento que não lhe saía da cabeça: a morte de Greta Shipley fora acelerada pelo assassinato chocante da sua amiga íntima, Nuala Moore.

 

«Se alguém tem um ataque cardíaco no momento em que ocorre um crime, o delinquente pode, porvezes, ser julgado por homicídio», pensou Haggerty, «e quando uma pessoa amiga morre a dormir, alguns dias mais tarde?»

 

No serviço religioso por Mrs. Shipley, ficou surpreendido por ver a enteada de Nuala Moore, Maggie Holloway, sentada ao lado de Liam Payne. «Liam sempre teve olho para mulheres bonitas», brincou Haggerty, «e Deus sabe quantas tiveram o olho nele ao longo dos anos. Era um dos solteirões «mais elegíveis» de Newport.»

 

Detectara igualmente Earl Bateman na igreja. Ora ali estava um fulano que podia ter muito conhecimento para ser professor mas que, mesmo assim, não jogava com o baralho todo, pensara Haggerty. «Aquele museu dele parece saído da Família Addams.» Causava-lhe arrepios. «Earl devia ter permanecido no negócio da família», pensou.

 

Haggerty saíra antes do hino, mas não antes de deduzir que Maggie Holloway devia ter ficado muito íntima de Mrs. Shipley para ter perdido tempo a vir assistir à missa. Ocorreu-lhe a ideia de que, se ela tivesse visitado Mrs. Shipley em Latham Manor, pudesse saber algo que ajudasse a descobrir o motivo que levara Nuala Moore a cancelar a venda da casa a Malcolm Norton.

 

Jim Haggerty acreditava que Norton sabia de alguma coisa que não queria dizer. E foi esse o motivo que o levou sem aviso a Garrisson Avenue, 1, às três horas dessa tarde.

 

Quando a campainha tocou, Maggie estava no quarto de Nuala, onde separava cuidadosamente roupa dobrada por montes; roupas em bom estado para obras de caridade; trajes mais velhos e usados para um saco de trapos e roupa algo dispendiosa e formal para a loja do hospital.

 

Guardou para si o fato azul que Nuala usara naquela noite no Four Seasons, bem como um de pintura.

 

Nos armários superlotados, deparara com diversas jaquetas de malha e casacos de tweed roupa de Tim Moore, tinha a certeza, sentimentalmente guardados por Nuala.

 

«Nuala e eu estávamos sempre no mesmo comprimento de onda», brincou, pensando na caixa num armário do seu apartamento. Continha o vestido que usara na noite em que conheceu Paul, bem como um dos seus fatos de voo e respectivos acessórios.

 

Enquanto escolhia, a mente de Maggie trabalhava ininterruptamente numa explicação para a presença dos sinos nas sepulturas. Tinha de ter sido Earl a colocá-los lá, reflectiu. Poderia ser uma forma de piada para com as mulheres da residência, devido ao escândalo que provocou com a entrega de sinos durante a conferência em Latham Manor?

 

Era uma explicação que fazia sentido. Provavelmente, conhecia todas aquelas mulheres. Afinal de contas, a maioria dos residentes de Latham Manor eram de Newport, ou, pelo menos, passavam aí os meses da Primavera e Verão.

 

Maggie abriu um robe, decidiu que vira já melhores dias e colocou-o no saco dos trapos. Mas Nuala não vivia em Latham, lembrou-se a si mesma. Teria ele posto o sino como um tributo de amizade? Parecia realmente gostar dela.

 

«No entanto, uma das campas não tinha sino. Porquê?», questionou-se. «Tenho o nome de todas aquelas mulheres», pensou Maggie. «Amanhã, vou regressar ao cemitério e copiar das lápides as datas em que faleceram. Deve ter havido um obituário no jornal para cada uma delas. Quero ver o que dizem.»

 

O som da campainha foi uma interrupção mal recebida. Quem seria?, interrogou-se ao descer. Rezou para que não fosse outra visita inesperada de Earl Bateman; não sabia se poderia suportar isso esta tarde.

 

Levou-lhe um momento a compreender que o homem na porta era um dos oficiais da Polícia de Newport que respondera inicialmente à chamada para o 911, na noite do assassinato de Nuala. Apresentou-se como detective Jim Haggerty. Uma vez no interior da casa, sentou-se com o ar de um homem que nada tinha para fazer a não ser galantear durante o resto do dia.

 

Maggie sentou-se na frente dele, equilibrada na beira do sofá. Se ele tinha algum apreço pela linguagem gestual, compreenderia que Maggie esperava que aquela conversa fosse breve.

 

Começou por responder a uma pergunta que Maggie não fizera.

 

Receio não ter ainda nada de concreto quanto a um suspeito. Mas este crime não ficará impune. Isso prometo-lhe disse.

 

Maggie aguardou.

 

Haggerty foi mexendo nos óculos até estes se encontrarem na ponta do nariz. Cruzou as pernas e esfregou o tornozelo.

 

Um velho ferimento ao esquiar explicou. Agora avisa-me sempre que o vento vai mudar. Amanhã à noite estará a chover.

 

«Não veio para falar do tempo», pensou Maggie.

 

Ms. Holloway, encontra-se nesta cidade há pouco mais de uma semana, e ainda bem que a maioria dos nossos visitantes não sente o tipo de choque com que foi recebida. Depois, hoje, vi-a na igreja, no funeral de Mrs. Shipley. Penso que terá ficado amiga dela desde que chegou.

 

Sim, é verdade. De facto, tratou-se de um pedido que Nuala fez no seu testamento, mas foi algo que fiz com prazer.

 

Uma senhora maravilhosa, Mrs. Shipley. Conheci-a toda a minha vida. É uma pena ela não ter família. Gostava de crianças. Acha que era feliz em Latham Manor?

 

Sim, acho. Jantei lá com ela na noite em que faleceu, e era evidente que gostava dos seus amigos.

 

Alguma vez lhe disse por que razão a amiga dela, a sua madrasta, mudou de ideias à última da hora quanto a mudar-se para a residência?

 

Penso que ninguém sabe porquê disse Maggie. O Dr. Lane estava confiante de que Nuala haveria de mudar outra vez de ideias e decidir ficar com o apartamento. Ninguém pode ter a certeza sobre o que lhe ia na mente.

 

Estava com esperanças de que Mrs. Moore pudesse ter contado a Mrs. Shipley o motivo para o cancelamento da reserva. Tanto quanto sei, Mrs. Shipley estava realmente satisfeita por a sua velha amiga ir partilhar o mesmo tecto.

 

Maggie pensou na caricatura que Nuala desenhara no cartaz, mostrando a enfermeira Markey à escuta. Estaria ainda no apartamento de Greta Shipley?, interrogou-se.

 

Não sei se isto será relevante disse cautelosamente, mas creio que quer Nuala quer Mrs. Shipley tinham muito cuidado com o que diziam quando uma das enfermeiras estava por perto. Tinha o hábito de entrar nos aposentos sem autorização.

 

Haggerty parou de esfregar o tornozelo.

 

Qual enfermeira? perguntou, traduzindo uma leve ansiedade no tom de voz.

 

A enfermeira Markey. Haggerty levantou-se para sair.

 

Já tomou alguma decisão quanto à casa, Mrs. Holloway? Bom, claro que o testamento ainda tem de ser legalizado, mas seguramente que não a vou pôr à venda nesta altura. Na verdade, é muito provável que nunca venha a vendê-la. Newport é encantador, e seria um bom local para fugir a Manhattan.

 

Malcolm Norton sabe disso?

 

Sabe, desde esta manhã. De facto, não só o informei de que não quero vender como também que recebi uma oferta substancialmente mais alta pela propriedade.

 

As sobrancelhas de Haggerty ergueram-se.

 

Esta é uma casa antiga e encantadora, por isso espero que não interprete mal quando lhe digo que este lugar deve ter um tesouro enterrado. Espero que o encontre.

 

Se houver alguma coisa a ser encontrada aqui, tenciono fazê-lo disse Maggie. Não terei paz até alguém pagar pelo que sucedeu a uma mulher que eu tanto amava.

 

Quando Haggerty se preparava para sair, Maggie perguntou, impulsivamente:

 

Sabe se é possível procurar esta tarde algumas informações nos escritórios do jornal, ou estão fechados ao sábado?

 

Penso que terá de aguardar por segunda-feira. Sei isso por mero acaso, pois temos sempre turistas que desejam consultar as velhas páginas da sociedade. Divertem-se imenso a ler sobre as extravagantes festas.

 

Maggie sorriu sem comentar.

 

Quando Haggerty se afastou no seu carro, tomou mentalmente nota para conversar segunda-feira com o empregado dos escritórios dojornal, a fim de descobrir exactamente de que tipo de informações Mrs. Holloway andava à procura na secção de necrologia.

 

Maggie regressou ao quarto de Nuala. Estava determinada em acabar com o conteúdo dos armários e cómodas antes de dar o dia por encerrado. «É este o quarto que devo usar para guardar as coisas», pensou, arrastando caixas de cartão cheias para o quarto mais pequeno.

 

Nuala sempre gostou de ter as coisas que a recordavam de momentos especiais espalhadas por todo o lado. Depois de Maggie ter retirado conchas de cima das cómodas, animais embalsamados dos bancos de janela, uma pilha de menus de restaurantes da mesinha-de-cabeceira e recordações baratas de todo o lado, a beleza inerente da mobília de boa madeira tornou-se aparente. «Eu mudaria a cama para aquela parede. Seria o lugar ideal para ela», decidiu, «e desfazia-me daquela velha espreguiçadeira... E guardaria todas as pinturas de Nuala que ela tinha emolduradas e penduradas. São a parte dela que eu nunca perderia e de que não me^desfazeria.»

 

Às seis horas, tinha entre mãos o último artigo de roupa guardado no armário maior, uma gabardina dourado-pálida que caíra para o chão. Lembrava-se de, ao voltar a pendurar o fato de cocktail azul no outro dia, a gabardina estar precariamente pendurada atrás.

 

Tal como procedeu com as outras peças de roupa, enfiou as mãos nas algibeiras para ter a certeza de que não havia nada dentro.

 

A algibeira esquerda da gabardina estava vazia. Mas, quando as suas pontas dos dedos exploraram a direita, tocaram em grãos.

 

Maggie fechou os dedos sobre a substância e retirou a mão. Longas sombras enchiam o quarto ao caminhar para a cómoda para acender a luz. Um punhado de terra seca desintegrou-se por entre os seus dedos. «Certamente, Nuala não poria terra na algibeira», pensou Maggie. «Seguramente, nãojardinava com esta gabardina. Está praticamente nova. Na verdade», disse Maggie a si própria, «parece-me que tinham esta mesma gabardina na loja onde comprei roupa no outro dia.»

 

Insegura, esticou a gabardina sobre a cama. O instinto levou-a a decidir que não devia retirar agora o resto da terra da algibeira.

 

Só tinha mais uma tarefa a executar antes de aquele quarto ficar completamente arrumado. Os sapatos, botas e chinelos que cobriam o fundo do roupeiro maior tinham de ser escolhidos e catalogados. A maioria seria certamente para deitar fora, mas alguns estariam em condições de ser oferecidos.

 

«No entanto, por hoje chega», decidiu. «Isso ficará para amanhã.»

 

Estava na altura do banho de imersão quente que começava a desejar àquela altura do dia. Vestir-se-ia depois para o jantar com Neil, algo em que não pensara muito durante o dia mas por que agora ansiava.

 

Janice e Malcolm Norton tinham seguido juntos de carro para a missa e funeral de Greta Shipley. Ambos conheceram Shipley toda a vida, embora não tivessem passado de meros conhecidos. Quando Janice olhara em volta da congregação durante o elogio fúnebre, tomou amarga consciência do fosso financeiro que existia entre ela e muitas das pessoas presentes.

 

Avistou a mãe de Regina Carr, afastada num dos lados. Regina era agora Regina Carr Wayne. Fora colega de quarto de Janice em Dana Hall, e ambas tinham frequentado Vassar. Agora, Wes Wayne era o corretor-chefe da Cratus Pharmaceuticals, e era certo que Regina não era contabilista num lar de velhos.

 

A mãe de Arlene Randel Greene chorava suavemente. Arlene fora outra aluna de Dana Hall, também de Newport. Rob Greene, um desconhecido escritor de argumentos quando Arlene casou com ele, era agora um poderoso produtor de Hollywood. Naquele preciso momento, devia estar num cruzeiro a qualquer lado, pensou Janice, um toque de inveja enrugando-lhe o rosto.

 

E havia outras: mães das suas amigas e conhecidas. Todas vieram para se despedir da querida amiga Greta Shipley. Mais tarde, quando Janice as acompanhou ao saírem do cemitério, escutou com pura inveja quando elas se gabaram, publicitando as vidas sociais das «miúdas» e dos netos.

 

Sentiu uma emoção muito próxima da repugnância ao ver Malcolm a correr ao encontro de Maggie Holloway. «O meu lindo marido», pensou, com azedume. «Se ao menos não tivesse perdido tanto tempo a tentar transformá-lo numa coisa que nunca poderia ser.»

 

E ele que parecia ter tudo o que era necessário: a beleza, os antecedentes impecáveis, as excelentes escolas... Roxbury Latin, Williams, Columbia Law... ser inclusive membro do Mensa, onde um QI de génio constituía o requisito de admissão. Mas, ao fim e ao cabo, nada daquilo interessava; apesar de todas as suas credenciais, Malcolm Norton era um falhado.

 

«Para além de tudo isto, pensou ela, estava a planear trocar-me por outra mulher, e não tinha nenhuma intenção de partilhar comigo o lucro que contava ganhar com a venda daquela casa.» As suas ruminações iradas foram interrompidas quando se apercebeu de que a mãe de Regina falava sobre a morte de Nuala Moore.

 

Newport já não é o que era disse. E pensar que a casa foi revistada. De que será que andavam à procura?

 

A mãe de Arlene Greene afirmou:

 

Ouvi dizer que Nuala Moore alterou o testamento no dia anterior ao de morrer. Talvez alguém que tivesse sido excluído do velho testamento andasse à procura do novo.

 

Janice Norton levou a mão à boca para abafar uma exclamação. «Será que alguém suspeitou de que Nuala estava a planear escrever um novo testamento e a tivesse matado para o evitar? Se Nuala tivesse morrido antes de escrever o novo testamento, avenda da casa a Malcolm ter-se-ia efectivado», pensou. «Existia um acordo assinado, e Malcolm, como executor dos bens dela, teria conseguido levar a cabo a compra. Além do mais», raciocinou Janice, «só quem estivesse ao corrente da alteração pendente à Lei das Zonas Marítimas estaria interessado na propriedade. Estaria Malcolm desesperado ao ponto de matar Nuala, apenas para deitar as mãos àquela casa?», perguntou a si própria, interrogando-se subitamente se o marido estaria a esconder mais segredos dela.

 

Na entrada do cemitério, foram trocadas despedidas e as pessoas dispersaram. Mais à frente, Janice viu Malcolm caminhar lentamente para o carro deles. Quando se aproximou, Janice viu a angústia no rosto do marido e percebeu que Maggie Holloway lhe devia ter dito que não vendia a casa.

 

Não falaram quando entraram no carro. Malcolm olhou em frente por alguns momentos e depois virou-se para ela.

 

Vou pagar a hipoteca da nossa casa afirmou tranquilamente, a voz num tom monocórdico. Holloway não quer vender agora e diz que, de qualquer forma, tem uma oferta substancialmente maior, o que significa que, mesmo que mude de ideias, de nada me servirá.

 

De nada nos servirá corrigiu Janice automaticamente, mas depois mordeu o lábio. Não queria entrar em discussões com ele, sobretudo naquele momento.

 

Se ele alguma vez descobrisse que ela estava de alguma forma ligada à contra-oferta apresentada à casa de Nuala, poderia muito bem ficar suficientemente irado para a matar, pensou com inquietude crescente. O seu sobrinho Doug fizera a oferta, é claro, mas, se Malcolm descobrisse, saberia seguramente que fora ela a convencê-lo. Será que Maggie Holloway lhe disse alguma coisa que a pudesse implicar?, questionou-se.

 

Como se lhe lesse a mente, o marido voltou-se para ela.

 

Não falaste com ninguém, pois não, Janice? perguntou calmamente.

 

Um pouco de dor de cabeça dissera ele quando chegaram a casa, o tom remoto mas cordial. Subira depois para o quarto dele. Há anos que não partilhavam o mesmo quarto.

 

Só voltou a descer perto das sete horas. Janice estivera a assistir às notícias da noite e olhou para cima quando Norton parou à entrada da sala de estar.

 

Vou sair disse. Boa noite, Janice.

 

Fitou sem ver o ecrã de televisão, escutando cuidadosamente a porta da frente a fechar-se. «Ele está a preparar alguma coisa», pensou Janice, «mas o quê?» Deu algum tempo para que ele se afastasse, desligou a televisão e pegou na mala e nas chaves do carro. Informara já Malcolm de que ia jantar fora. Tinham-se distanciado de tal forma que nem ele lhe perguntou com quem ia jantar nem ela se incomodou a perguntar quais eram os planos dele.

 

Isso não significava que o teria informado, mesmo que ele tivesse perguntado, pensou Janice ao dirigir-se a Providence. Aí, num pequeno restaurante retirado, tinha o seu sobrinho à espera. E aí, acompanhados por uns bifes e uísque, ele entregar-lhe-ia um envelope contendo dinheiro, a sua quota-parte por lhe ter fornecido detalhadamente a situação financeira de Cora Gebhart. Tal como Doug lhe dissera alegremente:

 

Esta foi canja, tia Janice. Elas que venham!

 

Quando Maggie se vestia para o encontro com Neil Stephens, apercebeu-se de que havia um cheiro a humidade mais intenso do que era habitual na brisa marinha que penetrava através da janela do quarto. «Caracóis e ondas», pensou com resignação.

 

Limitar-se-ia a escovar o cabelo, decidiu. Numa noite assim, era inevitável que a ondulação natural se intensificasse.

 

Pensou em Neil enquanto continuava a preparar-se. Nos últimos meses, sentira-se cada vez mais ansiosa pelos telefonemas dele e demasiado desapontada quando não ocorriam.

 

Mas era demasiado óbvio que, para Neil, ela não passava de uma companhia ocasional e nada mais. Ele tornara isso bem claro. Mesmo assim, estivera efectivamente à espera de que ele ligasse antes de ter partido para Newport, e agora estava determinada em não atribuir nenhum significado especial àquela noite. Sabia que as crianças crescidas e sobretudo as solteiras procuravam frequentemente desculpas para saírem quando visitavam os pais.

 

E havia também Liam, ponderou Maggie por breves instantes. Não sabia exactamente que pensar quanto à sua súbita demonstração de interesse. Limitou-se a encolher os ombros.

 

Colocou sombra nos olhos, rímel e blush; de seguida, aplicou baton de um suave tom coral.

 

Olhando para a roupa que tinha para escolher, seleccionou aquela que tencionara usar na festa de Nuala, uma blusa estampada de seda de azul-vivo e uma saia comprida a condizer. Um colar em ouro, curto, e brincos eram as suas únicas jóias, com excepção do anel de safira de forma oval que pertencera à sua mãe.

 

Quando passou pelo quarto de Nuala a caminho das escadas, Maggie entrou por momentos e acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira. Olhando em volta, decidiu que aquele seria o seu quarto. Mudar-se-ia para lá amanhã, depois de regressar do encontro com Mrs. Bainbridge e a filha. «Posso deslocar sozinha a mobília», decidiu, «e as únicas coisas que não limpei foram os sapatos e o que resta no fundo do armário, o que não me levará muito tempo.»

 

Passando pela sala de estar, reparou que as rosas que Liam trouxera necessitavam de água fresca. Voltou a encher a jarra no lava-louças, tirou uma tesoura da gaveta, cortou os caules e rearranjou as rosas antes de as levar de novo para a sala de estar. Andou depois pela sala, «mexendo» nas coisas: endireitando a otomana em frente da cadeira, removendo algumas da profusão de pequenas molduras sobre a cornija e mesas, deixando apenas aquelas que continham as fotos mais favorecedoras de Nuala com o marido, sacudindo as almofadas sobre o sofá.

 

No espaço de alguns minutos, a sala ficou com um ambiente mais tranquilo e menos cheio. Maggie estudou o local e dispôs mentalmente o mobiliário de outra forma, sabendo que o assento de dois lugares, atrás do qual fora encontrado o corpo de Nuala, teria de ir embora. Só de olhar para ele estremecia.

 

«Estou a construir um ninho», disse a si mesma, «como nunca fiz desde aquele patético pequeno apartamento que Paul e eu tivemos no Texas.» Ficou de imediato surpreendida e satisfeita consigo própria.

 

A campainha da porta tocou às dez para as sete. Neil chegou cedo. Apercebendo-se de como se sentia ambivalente em relação à noite que tinha na frente, aguardou um longo minuto antes de ir à porta. Quando a abriu, teve o cuidado de manter a voz e sorriso amigáveis, mas impessoais.

 

Neil, estou contente por te ver.

 

Neil não respondeu mas ficou a mirá-la, estudando-lhe o rosto, sem sorrir, os olhos perturbados. Maggie abriu mais a porta.

 

Como o meu pai costumava perguntar, «o gato comeu-te a língua?». Entra, pelo amor de Deus.

 

Neil entrou e esperou que ela fechasse a porta. Seguiu-a depois para a sala de estar.

 

Estás encantadora, Maggie disse por fim, quando se encontravam frente a frente.

 

Ela ergueu o sobrolho.

 

Surpreendido?

 

Não, claro que não. Mas fiquei doente quando ouvi contar o que tinha sucedido à tua madrasta. Sabia como estavas ansiosa por estar com ela.

 

Sim, estava concordou Maggie. Diz-me então, onde vamos jantar?

 

Atrapalhando-se com as palavras, perguntou-lhe se se importaria de jantar com os pais dele, afim de celebrar o aniversário da mãe.

 

E se adiássemos para outra ocasião? perguntou Maggie bruscamente. Tenho a certeza de que os teus pais não precisam de uma desconhecida numa reunião de família.

 

Estão ansiosos por te conhecer, Maggie. Não me decepciones suplicou Neil. Saberão que foi por causa deles que não foste. Maggie suspirou.

 

Acho que tenho de comer.

 

Deixou que fosse Neil a falar durante o percurso para o restaurante, respondendo às suas perguntas o mais directa e sucintamente possível. No entanto, reparou com alguma diversão que ele estava a ser especialmente atencioso e encantador, o que exigiu toda a sua determinação para se manter indiferente.

 

Tencionara continuar a tratar Neil com distinta reserva durante a noite, mas a simpatia do cumprimento dos pais e o pesar sincero em relação ao que acontecera a Nuala tornou impossível não se descontrair.

 

Minha querida, não conhece ninguém por estas partes disse Dolores Stephens. Deve ter sido difícil passar por tudo isso sozinha.

 

Na verdade, conheço uma pessoa bastante bem... o homem que me levou à festa no Four Seasons, onde voltei a encontrar Nuala.Maggie olhou para Neil. Talvez o conheças, Neil. Liam Payne. Também está no negócio do investimento. Tem uma firma própria em Boston, mas vai regularmente a Nova Iorque.

 

Liam Payne disse Neil pensativamente. Sim, conheço-o vagamente. É bom em investimentos. Demasiado bom para os seus antigos patrões da Randolph & Marshall, se me lembro correctamente. Levou com ele alguns dos melhores clientes deles quando se lançou por conta própria.

 

Maggie não conseguiu resistir a um sentimento de satisfação ao ver o rosto de Neil franzir-se. «Ele que se interrogue se Liam é importante para mim», pensou. «Já deixou perfeitamente claro como sou insignificante para ele.»

 

No decorrer de uma refeição tranquila que incluía lagosta e chardonnay, apreciou plenamente os pais de Neil e ficou lisonjeada ao descobrir que Dolores Stephens conhecia as suas fotografias da moda.

 

Quando li no jornal sobre a morte da sua madrasta disse, Mrs. Stephens e, depois, quando Neil falou sobre a Maggie, não a relacionei com o seu trabalho. Contudo, esta tarde, quando lia a Vogue, li o seu nome no artigo sobre Armani. Há um milhar de anos atrás... antes de eu casar... trabalhei numa pequena agência de publicidade, e Givenchy era nosso exclusivo. Isso foi antes de Givenchy se tornar famoso. Eu tinha de ir assistir a todas as sessões.

 

Nesse caso, sabe tudo sobre... começou Maggie, e não tardou a ver-se a contar histórias da guerra sobre estilistas temperamentais e modelos difíceis, terminando com o último trabalho que fizera antes de vir para Newport. Concordaram que não havia nada pior para um fotógrafo que um director de arte nervoso e indeciso.

 

Quando se abriu mais, Maggie contou-lhes sobre a sua inclinação para ficar com a casa.

 

É muito cedo para ter a certeza, pelo que acho que o melhor por agora é não fazer nada. Mas, de certa forma, viver na casa esta semana fez-me compreender por que razão Nuala sentia tanta relutância em prescindir dela.

 

Perante a pergunta de Neil, contou-lhes que Nuala cancelara a reserva que tinha em Latham Manor.

 

Essa reserva era mesmo para a unidade maior que ela desejava particularmente explicou.

 

Neil e eu fomos lá hoje disse Robert Stephens. Foi conhecer a residência, a pedido de uns clientes seus.

 

Parece-me que o apartamento que a tua madrasta não aceitou é aquele que está a ser oferecido agora comentou Neil.

 

E é o mesmo que a Laura Arlington desejava observou o pai. Parece-me que há grande procura para esses sítios.

 

Havia mais alguém a querê-lo? perguntou Maggie rapidamente. Ela mudou de ideias?

 

Não. Foi convencida a investir a maioria do seu dinheiro em más acções e, infelizmente, perdeu tudo disse Neil.

 

A conversa desviou-se para muitos outros assuntos, com a mãe de Neil pedindo-lhe gradualmente que falasse sobre a sua infância. Enquanto Neil e o pai entravam numa discussão sobre como Neil devia investigar o mau investimento que Mrs. Arlington fizera, Maggie viu-se a contar a Dolores Stephens que a sua mãe falecera num acidente quando era criança e como fora feliz nos cinco anos em que ela e Nuala viveram juntas.

 

Por fim, apercebendo-se de que as lágrimas estavam iminentes, disse:

 

Acabou-se a nostalgia e o vinho. Estou a virar para o sentimento.

 

Quando Neil levou Maggie a casa, acompanhou-a à porta e tirou-lhe a chave da mão.

 

Ficarei apenas um minuto disse, abrindo a porta.Quero apenas ver uma coisa. Para que lado fica a cozinha?

 

Passando pela sala de jantar. Intrigada, Maggie seguiu-o. Neil dirigiu-se imediatamente à porta e examinou-a.

 

Por aquilo que li, o intruso ou encontrou esta porta destrancada ou a tua madrasta a abriu a alguém que conhecia.

 

É verdade.

 

Sugiro uma terceira possibilidade. A fechadura está tão frouxa que qualquer pessoa a podia ter aberto com um cartão de crédito disse, e depois demonstrou o facto.

 

Telefonei para um serralheiro afirmou Maggie. Penso que segunda-feira virá cá.

 

Não basta. O meu pai sabe fazer tudo em casa e eu cresci como seu ajudante involuntário. Eu, ou talvez nós os dois, voltamos amanhã para instalar um ferrolho e verificar todas as janelas.

 

Sem um «se quiseres» ou «está bem», pensou Maggie, sentindo uma onda de irritação. Apenas «é assim que quero».

 

Amanhã de manhã vou sair disse-lhe Maggie.

 

Mas estarás cá depois de almoço respondeu Neil. Vamos combinar para essa altura ou, se quiseres, podes deixar a chave num determinado lugar.

 

Não, estarei cá.

 

Neil pegou numa das cadeiras da cozinha e colocou-a por debaixo da maçaneta da porta.

 

Pelo menos isto fará barulho, se alguém tentar entrar afirmou. Depois olhou em redor da cozinha antes de se voltar para ela. Maggie, não quero alarmar-te, mas, de tudo o que ouvi, a opinião consensual é que o assassino da tua madrasta andava à procura de algo, e ninguém sabe o que era ou se o conseguiu encontrar.

 

Partindo do princípio de que era «ele»disse Maggie.Mas tens razão. É exactamente o que a Polícia pensa.

 

Não me agrada a ideia de ficares aqui sozinha disse ao dirigirem-se para a porta da frente.

 

Sinceramente, não estou nervosa, Neil. Há muito tempo que cuido de mim.

 

E, se estivesses nervosa, nunca o admitirias a mim. Certo? Maggie fitou o rosto grave e inquisidor dele.

 

Certo respondeu, simplesmente. Neil suspirou ao voltar-se e abrir a porta.

 

Gostei muito desta noite, Maggie. Até amanhã.

 

Mais tarde, deitada na cama, Maggie reflectiu que não sentia nenhuma satisfação particular pelo facto de ter magoado Neil, como era óbvio que magoara. «Amor com amor se paga», disse a si própria, mas tal não a fez sentir-se melhor. Brincar com um relacionamento não era um dos seus passatempos predilectos.

 

Os seus últimos pensamentos, quando começou finalmente a adormecer, foram incoerentes, aparentemente irrelevantes, emergindo totalmente do seu subconsciente.

 

Nuala inscrevera-se para um apartamento em Latham Manor e morrera pouco depois de anular essa inscrição.

 

A amiga dos Stephens, Laura Arlington, candidatara-se ao mesmo apartamento, e perdeu todo o seu dinheiro.

 

Estaria o apartamento ligado ao azar e, se era esse o caso, porquê?

 

                 Domingo, 6 de Outubro

 

A pedido da esposa, o Dr. Lane iniciou em Latham Manor o hábito de reunir, aos domingos, os residentes e os seus convidados numa refeição entre o pequeno-almoço e o almoço.

 

Tal como Odile tinha frisado, a residência funcionava como uma espécie de família e os visitantes que participavam nessa refeição poderiam ser potenciais futuros residentes que, desta forma, poderiam encarar Latham sob um prisma favorável.

 

Isto não quer dizer que tenhamos de passar horas lá, querido afirmou, mas és uma pessoa tão carinhosa, e, se as pessoas souberem que as mães, tias ou seja o que for estão em boas mãos, então, quando chegar a vez de eles mudarem, podem também querer juntar-se a nós.

 

Lane pensara milhares de vezes que, se Odile não fosse tão ingénua, seria levado a suspeitar de que estava a ser sarcástica. Mas a verdade é que, desde que tinham iniciado aquela prática formal aos domingos, também sugestão dela, e começado a relacionar-se com as pessoas, incrementara substancialmente o número de candidatos que preenchiam formulários com a indicação de «possível interesse futuro».

 

No entanto, quando ele e Odile entraram no salão nobre nesse domingo de manhã, o Dr. Lane ficou tudo menos satisfeito ao ver Maggie Holloway com a filha de Mrs. Bainbridge, Sarah Gushing.

 

Odile também reparou.

 

Parece que Maggie Holloway faz amigos rapidamente murmurou para ele.

 

Juntos, atravessaram a sala, parando para conversar com alguns residentes, para cumprimentar visitantes familiares e para serem apresentados a outros.

 

Maggie não os vira aproximar-se. Quando falaram para ela, sorriu em tom de desculpa.

 

Devem pensar que sou como «O Homem Que Veio Para Jantar» disse. Mrs. Gushing pediu-me para lhe fazer companhia, e a Mrs. Bainbridge, mas esta sentia-se um pouco cansada esta manhã, pelo que pensou ser melhor não sairmos.

 

É sempre bem-vinda afirmou o Dr. Lane galantemente e depois voltou-se para Sarah. Quer que vá ver a sua mãe?

 

Não respondeu Sarah com determinação. Ela vem já. Doutor, é verdade que Eleanor Chandler decidiu vir morar para cá?

 

É verdade respondeu. Quando ouviu falar sobre o falecimento de Mrs. Shipley, telefonou solicitando esse apartamento. Quer que o seu decorador particular o modifique; por isso, o mais provável é que só mude daqui a alguns meses.

 

E penso que é o melhor interrompeu Odile Lane com entusiasmo.Desta forma, os amigos de Mrs. Shipley poderão ter um período de ajustamento, não lhes parece?

 

Sarah Gushing ignorou a observação.

 

A única razão por que perguntei sobre Mrs. Chandler é que desejo deixar perfeitamente claro que não a quero na mesa da minha mãe. É uma mulher impossível. Sugiro que lhe arranjem um lugar à mesa de quaisquer residentes surdos que possam ter. Esses, graças a Deus, não terão de escutar as opiniões impensáveis dela.

 

O Dr. Lane sorriu, nervoso.

 

Tomarei uma nota especial quanto à disposição das mesas, Mrs. Gushingdisse. Na verdade, ainda ontem fui contactado por um senhor que me pediu informações sobre o apartamento grande de duas camas, a pedido dos Van Hilleary, de Connecticut. O cavalheiro vai recomendar que eles o venham ver. Talvez, se as coisas resultarem, a sua mãe considere a possibilidade de os ter à mesa dela.

 

«O cavalheiro... Está a falar de Neil», pensou Maggie. Mrs. Gushing ergueu o sobrolho.

 

Claro que quero conhecê-los primeiro, mas a mãe gosta de ter homens à sua volta.

 

É verdade que a mãe gosta disse Mrs. Bainbridge secamente. Todos se viraram quando ela se juntou a eles. Lamento chegar atrasada, Maggie. Parece que, em cada dia que passa, demoro cada vez mais a fazer cada vez menos. Será que ouvi bem? O apartamento de Greta Shipley já está vendido?

 

Sim, está disse o Dr. Lane suavemente. Os parentes de Mrs. Shipley estarão cá esta tarde para retirar os seus pertences pessoais e preparar a mobília para ser levada. Agora, com a vossa licença, eu e Odile devemos conversar com os outros convidados.

 

Quando se encontravam já distantes, Letitia Bainbridge disse: Sarah, quandoeu fechar os olhos, assegura-te de que ninguém se aproxima do meu apartamento até ao dia um do mês seguinte.

 

A taxa de manutenção garante pelo menos isso. Parece que, por aqui, uma pessoa não pode arrefecer o suficiente sem ser logo substituída.

 

O som suave de campainhas assinalou que a refeição ia ser servida. Mal se sentaram, Maggie reparou que todas as pessoas à mesa tinham mudado de lugar, e questionou-se se tal seria habitual após uma morte.

 

Sarah Gushing era a pessoa certa para aquele grupo hoje, pensou. Tal como a mãe, era uma boa contadora de histórias. Enquanto Maggie comia Ovos Benedict e bebia café, escutou com apreço a gestão hábil da conversa por parte de Sarah Gushing, dirigindo-a por forma a que todas as pessoas estivessem envolvidas e alegres.

 

No entanto, durante a segunda rodada de café, a conversa centrou-se em Greta Shipley. Rachel Crenshaw, que, juntamente com o marido, estava sentada em frente de Maggie, disse:

 

Ainda não me consegui habituar. Sabemos que todos acabamos por morrer e, quando alguém é mudado para a área de cuidados a longo prazo, sabemos que é normalmente uma questão de tempo. Mas Greta e Constance... foi tudo tão repentino!

 

E, no ano passado, Alice e Jeanette faleceram da mesma forma disse Mrs. Bainbridge, suspirando de seguida.

 

«Alice e Jeanette», pensou Maggie. «Esses nomes estavam em duas das campas que visitei com Mrs. Shipley. Ambas tinham sinos junto das lápides. A mulher cuja campa não tinha sino chamava-se Winifred Pierson.» Tentando não revelar grande interesse, Maggie perguntou:

 

Mrs. Shipley tinha uma amiga íntima, Winifred Pierson. Ela também morou cá?

 

Não, Winifred vivia na sua própria casa. Greta costumava visitá-la com frequência respondeu Mrs. Crenshaw.

 

Maggie sentiu a boca secar. Soube imediatamente o que tinha de fazer, e essa compreensão surgiu com tal ímpeto que quase se levantou da mesa com o choque. Tinha de visitar a campa de Greta Shipley e ver se lá tinha sido colocado um sino.

 

Depois das despedidas, a maioria dos residentes de Latham começaram a dirigir-se para a biblioteca, onde um violinista iria tocar nessa tarde de domingo.

 

Sarah Gushing permaneceu com a mãe e Maggie encaminhou -se para a porta. Depois, respondendo a um súbito impulso, virou-se e subiu as escadas para o apartamento de Greta Shipley. «Só espero que estejam lá os primos», orou com fervor.

 

A porta do apartamento estava aberta e ela reconheceu os sinais familiares de quem andava a embalar e a escolher, o que estava a ser feito pelos três parentes que vira no funeral.

 

Sabendo que não havia uma forma simples de fazer o pedido, apresentou breves condolências e foi directa ao que pretendia.

 

Quando visitei Mrs. Shipley na quarta-feira, mostrou-me um esboço que a minha madrasta e ela tinham feito. Está naquela gaveta. Maggie apontou para a mesa junto do sofá. Foi uma das últimas coisas que Nuala fez e, se por acaso o iam deitar fora, gostaria muito de ficar com ele.

 

Certamente.

 

Vá buscar.

 

Fique com ele responderam em coro, de forma amigável. Ainda não passámos deste armárioacrescentou um deles. Maggie abriu a gaveta, ansiosa. Estava vazia. O esboço ao qual Nuala adicionara o seu próprio rosto, o rosto de Greta Shipley e a imagem da enfermeira Markey à escuta tinha desaparecido.

 

Não está aqui disse.

 

Nesse caso, ou Greta o mudou para outro lado ou o deitou fora disse uma prima, extremamente parecida com Mrs. Shipley. O Dr. Lane informou-nos de que, quando alguém morre, o apartamento é imediatamente fechado até a família chegar e retirar os bens pessoais. Mas diga-nos como é esse esboço, para o caso de o encontrarmos.

 

Maggie descreveu-o, deu-lhes o seu número de telefone, agradeceu-lhes e saiu. «Alguém tirou aquele esboço», pensou ao sair do quarto. «Mas porquê?»

 

Entrando no corredor, quase embateu na enfermeira Markey.

 

Oh, desculpe disse a enfermeira. Só queria ver se os parentes de Mrs. Shipley precisam de ajuda. Tenha um bom dia, Miss Holloway.

 

Era meio-dia quando Earl Bateman chegou ao cemitério de Santa Maria. Contornou lentamente as ruas sinuosas, ansioso por ver que tipo de pessoas passavam parte do seu dia de domingo visitando entes queridos.

 

«Até agora, não anda muita gente por aqui», observou: alguns idosos, um casal de meia-idade, uma família numerosa, talvez reunindo-se por causa de um aniversário, a que se seguiria um almoço num restaurante próximo. O típico pessoal domingueiro.

 

Seguiu depois para o sector antigo do cemitério da Trindade, onde estacionou e se apeou. Após olhar rapidamente em volta, começou a escrutinar as lápides em busca de inscrições interessantes. Há anos que não copiava dizeres naquele local e sabia que o mais provável era terem-lhe escapado alguns.

 

Orgulhava-se do facto de a sua percepção para subtilezas se ter intensificado desde então. Sim, pensou, «as lápides seriam definitivamente um tema a salientar nas séries para a TV por cabo. Começaria com uma referência aE Tudo O Vento Levou, afirmando que três rapazes, todos chamados Gerald O’Hara, Jr., se encontravam enterrados no cemitério familiar em Tara. «Oh, as esperanças, e sonhos, que vemos esculpidos na pedra, extinguindo-se, ignorados já não lidos, mas ainda transmitindo uma mensagem de amor perpétuo. Pensem nisso... três pequenos filhos!» Assim iniciaria a palestra.

 

Era óbvio que passaria rapidamente da tragédia ao insólito, falando sobre uma das lápides que vira num cemitério de Cape Cod, publicitando o facto de que o negócio gerido pelo falecido estava agora a ser continuado pelo filho. Indicava até o novo endereço.

 

Earl franziu o sobrolho ao olhar à sua volta. Embora estivesse um agradável dia de Outubro e apreciasse intensamente este seu vantajoso passatempo, sentia-se aborrecido e irritado.

 

Tal como combinado, a noite passada Liam aparecera na sua casa para tomar uma bebida e depois tinham saído para jantar juntos. Apesar de ter deixado o cheque de três mil dólares mesmo ao lado da garrafa de vodca no bar, onde seria forçosamente notado, Liam, muito simplesmente, ignorara-o. Limitara-se a salientar, mais uma vez, que Earl devia ir jogar golfe em vez de assombrar cemitérios.

 

«Assombrar, vejam só», pensou Earl, o rosto obscurecendo-se. «Podia mostrar-lhe o que é assombrar», disse a si próprio.

 

Raios o partam se ia permitir que Liam o avisasse de novo para se manter afastado de Maggie Holloway. Não tinha nada a ver com isso. Liam perguntara se ele a tinha visto e, quando disse a Liam que, desde segunda-feira à noite, só voltara a ver Maggie no cemitério e, é claro, no funeral de Mrs. Shipley, Liam dissera:

 

Earl, tu e os teus cemitérios. Começo a ficar preocupado contigo. Estás a tornar-te obcecado.

 

Não acreditou em mim quando lhe tentei explicar as minhas premonições murmurou Earl em voz alta. Nunca me leva a sério.Parou subitamente e olhou em redor. Não havia ninguém. «Não penses mais nisso», avisou-se, «pelo menos por agora.»

 

Seguiu pelos caminhos do sector antigo do cemitério, onde algumas das inscrições nas pequenas lápides continham datas do Século xvii. Baixou-se junto de uma quase derrubada, esforçando-se por ler os dizeres esbatidos. Os seus olhos reluziram ao ler a inscrição: «Noiva de Roger Samuels mas chamada ao Senhor...» e as datas.

 

Earl abriu o seu estojo para fazer um decalque da lápide. Um outro ângulo de discussão para as suas palestras seria dissertar sobre a tenra idade em que muitos jovens faleciam antigamente. «Não existia a penicilina para tratar a pneumonia que aparecia quando o frio do Inverno penetrava insidiosamente nos peitos e pulmões...»

 

Ajoelhou-se, desfrutando da sensação da terra macia, cuja humidade fria penetrava através das suas calças velhas até à pele. Quando iniciou o trabalho cuidadoso de transferir o sentimento pungente da lápide para o pergaminho fino e quase translúcido, deu por si a pensar na jovem estendida por debaixo dele, o corpo abrigado pelo terreno imutável.

 

«Tinha acabado de fazer dezasseis anos», calculou.

 

Teria sido bonita? Sim, muito bonita, decidiu. Tinha uma nuvem de caracóis escuros e olhos azul-safira. E uma estatura pequena.

 

O rosto de Maggie Holloway flutuou diante dele.

 

À uma e meia, quando conduzia de novo para a entrada do cemitério, Earl passou por um veículo com matrícula de Nova Iorque estacionado junto do passeio. «Parece-me familiar», pensou, e depois apercebeu-se de que se tratava da carrinha Volvo de Maggie Holloway. Que fazia ela ali de novo hoje?, questionou-se. A campa de Greta Shipley ficava perto, mas, seguramente, Maggie não era assim tão íntima de Greta para sentir a necessidade de visitar a sepultura dela outra vez, logo um dia apenas após o funeral.

 

Abrandando o carro, olhou em volta. Quando avistou Maggie ao longe, caminhando na direcção dele, premiu o pé sobre o acelerador. Não queria que ela o visse. Claramente, alguma coisa se passava. Tinha de reflectir sobre isto.

 

Tomou uma decisão. Uma vez que não tinha aulas no dia seguinte, ficaria mais um dia em Newport. E, quer agradasse a Liam ou não, amanhã iria visitar Maggie Holloway.

 

Maggie afastou-se rapidamente da campa de Greta Shipley, as mãos enfiadas nas algibeiras do casaco, os olhos não vendo o caminho que percorria.

 

Em cada fibra do seu ser, sentia-se gelada e abalada. Encontrara-o, enterrado tão fundo que, se não tivesse percorrido com a mão cada centímetro da área junto à base da lápide, não o teria localizado.

 

Um sino! Exactamente como o que retirara da campa de Nuala. Igual aos sinos nas sepulturas das outras mulheres. Igual aos sinos que os vitorianos colocavam nas campas para o caso de serem enterrados ainda vivos.

 

Quem teria voltado ali depois do funeral e colocado aquele objecto na campa de Mrs. Shipley?, interrogou-se. E porquê?

 

Liam contara-lhe que o primo Earl tivera doze daqueles sinos, destinados a ilustrar as suas conferências. Dissera igualmente que Earl sentira prazer em assustar as mulheres de Latham Manor, entregando os sinos quando apresentara uma palestra na residência.

 

«Será uma brincadeira bizarra por parte de Earl», perguntou-se Maggie, «colocar estes sinos nas campas das residentes de Latham Manor? É possível», decidiu, alcançando o seu carro. Podia representar a forma aberrante e demente que Earl encontrara para se vingar, por ter sido publicamente criticado pela filha de Mrs. Bainbridge. Segundo Liam, Sarah reunira os sinos, atirara-os a Earl e depois praticamente lhe ordenara que saísse da residência.

 

A vingança era uma explicação lógica, mesmo apavorante. «Ainda bem que tirei o que estava na campa de Nuala», pensou Maggie. «Apetece-me voltar atrás e recolher também os outros... sobretudo o da campa de Mrs. Shipley.»

 

Mas decidiu em contrário, pelo menos de momento. Queria ter a certeza de que não passavam, efectivamente, de um acto de vingança infantil e doentia por parte de Earl. «Voltarei depois», decidiu. «Além do mais, tenho de regressar a casa. Neil disse que estaria lá às duas.»

 

Ao seguir pela rua onde morava, reparou que havia dois carros Parados em frente da sua casa. Estacionando, viu que Neil e o pai estavam sentados nos degraus do alpendre, uma caixa de ferramentas entre eles.

 

Mr. Stephens não quis ouvir as desculpas dela.

 

Não está atrasada. Passa apenas um minuto das duas. A menos que o meu filho esteja enganado, o que é uma distinta possibilidade, ele disse que estaríamos aqui às duas.

 

Aparentemente, cometo muitos erros disse Neil, olhando directamente para Maggie.

 

Ela ignorou a observação, recusando-se a entrar no jogo dele.

 

Foi muito simpático da vossa parte terem vindo disse Maggie com sinceridade. Destrancando a porta, entraram.

 

Robert Stephens examinou a porta da frente ao fechá-la.

 

Precisa de ser calafetada observou. Não tarda que o ar marítimo se torne extremamente frio, acompanhado por um vento forte. Gostaria de começar pela porta das traseiras de que Neil me falou e, de seguida, verificamos todos os ferrolhos das janelas para ver quais necessitam de ser substituídos. Trouxe alguns comigo e voltarei se precisar de mais.

 

Neil permanecia ao lado de Maggie. Consciente da proximidade dele, Maggie afastou-se enquanto ele dizia:

 

Anima-o, Maggie. O meu avô construiu um abrigo contra a bomba atómica depois da segunda guerra mundial. Durante a minha infância, eu e os meus amigos utilizámos esse abrigo como local de encontro. Nessa altura, já as pessoas se tinham apercebido de que esses abrigos seriam tão inúteis quanto um guarda-sol num tornado. O meu pai possui algo da mentalidade «antecipar o pior» do pai dele. Antecipa sempre o que é impensável.

 

Absolutamente correcto concordou Robert Stephens. E, nesta casa, diria que o impensável ocorreu há dez dias. Maggie viu Neil estremecer e disse apressadamente:

 

Estou muito grata por estar cá.

 

Se quiser fazer alguma coisa, não a empatamos disse-lhe Robert Stephens ao dirigirem-se para a cozinha. Abriu a caixa das ferramentas e espalhou-as sobre a mesa.

 

Penso que deves ficar connosco pediu Neil. Podemos necessitar de te perguntar alguma coisa. Acrescentou: Não desapareças, Maggie.

 

Olhando para ele, vestido com uma camisa castanha, calções e ténis, Maggie desejou ter consigo a sua câmara. Apercebeu-se de que havia um aspecto em relação a Neil que nunca vira na cidade. Não tinha hoje aquele ar «não invadas o meu território», pensou. Tinha o aspecto de quem se poderia preocupar com os sentimentos das outras pessoas. «Até com os meus sentimentos.»

 

Afronte dele estava enrugada com uma expressão de inquietação, e os seus olhos castanho-escuros revelavam o mesmo aspecto inquisidor que Maggie observara na noite anterior.

 

Depois, quando o pai começou a trabalhar na velha fechadura da porta, Neil disse em voz baixa:

 

Maggie, sinto que há algo que te preocupa. Gostaria que partilhasses isso comigo.

 

Neil, passa-me a chave-de-parafusos grande ordenou o pai.

 

Maggie instalou-se numa velha cadeira.

 

Fico a ver. Talvez possa aprender algo útil.

 

Pai e filho trabalharam durante cerca de uma hora, passando de aposento em aposento, examinandojanelas, ajustando algumas fechaduras, anotando outras para substituição. No estúdio, Robert Stephens pediu para ver as esculturas de barro sobre a mesa de apoio. Quando Maggie lhe mostrou a que iniciara de Greta Shipley, ele afirmou:

 

Ouvi dizer que, para o fim, ela não se sentia bem. A última vez que a vi, estava bastante vivaz, mesmo alegre. Esta é Nuala? perguntou Neil, apontando para o outro busto.

 

Ainda há muito trabalho a fazer nele mas, sim, era Nuala. Penso que os meus dedos viram algo de que não me apercebi. Tinha sempre um ar tão alegre, mas não consigo agora captá-lo.

 

Quando vinham a descer, Robert Stephens apontou para o quarto de Nuala.

 

Espero que esteja a planear mudar-se para ali disse. Tem o dobro das dimensões dos quartos dos hóspedes.

 

Na verdade, estou admitiu. Mr. Stephens parou junto à porta.

 

Aquela cama devia estar oposta à janela, não onde se encontra agora.

 

Maggie sentiu-se desamparada.

 

Estou a pensar colocá-la lá.

 

Quem a vai ajudar?

 

Pensei arrastá-la. Sou mais forte do que pareço.

 

Está a brincar! Não me diga que ia tentar deslocar aquela cama de madeira maciça sozinha!? Vem daí, Neil, começamos pela cama. Para onde quer mudar o roupeiro, Maggie?

 

Neil parou apenas para dizer:

 

Não leves isto como algo pessoal. Ele é assim com toda a gente.

 

Toda a gente de quem eu gosto corrigiu o pai.

 

Em menos de dez minutos, a mobília estava mudada. Enquanto observava, Maggie planeou a forma como ia redecorar o quarto. O velho papel de parede necessitava de ser substituído, decidiu. O soalho tinha de levar um acabamento, e compraria tapetes para Ocupar o lugar da carpete verde gasta.

 

«Criando de novo um ninho», pensou.

 

Ora aqui está anunciou Robert Stephens.

 

Maggie e Neil seguiram-no escadas abaixo enquanto ele dizia: Vou-me embora. Estou à espera, mais logo, de uns convidados para uma bebida. Neil, vens no próximo fim-de-semana?

 

Claro disse Neil. Vou tirar de novo a sexta-feira.

 

Maggie, depois regresso com as outras fechaduras, mas, primeiro, telefono-lhe afirmou Robert Stephens, dirigindo-se para a porta. Entrou para o carro antes de Maggie ter oportunidade de lhe agradecer.

 

Ele é maravilhoso disse Maggie, ficando a ver o carro a afastar-se.

 

Por incrível que pareça, concordo respondeu Neil, sorrindo. No entanto, há pessoas que o consideram opressivo. Fez uma pausa por momentos. Foste à campa da tua madrasta esta manhã, Maggie?

 

Não, não fui. Que te leva a dizer isso?

 

Os joelhos das tuas calças estão manchados de terra. Tenho a certeza de que não andaste ajardinar com essa roupa.

 

Maggie apercebeu-se de que, com a presença de Neil e do pai, esquecera ou, pelo menos suspendera, a profunda inquietude provocada pelo facto de ter encontrado o sino na sepultura de Mrs. Shipley. A pergunta de Neil fez regressar tudo rapidamente.

 

Mas não podia falar sobre isso agora, muito menos com Neil, nem com ninguém, muito sinceramente, decidiu. Pelo menos até ter encontrado uma forma de determinar se Earl Bateman era responsável pela colocação dos sinos.

 

Apercebendo-se da alteração no seu rosto, Neil confrontou-a.

 

Maggie, que diabo se passa? perguntou, a voz baixa e intensa.Estás zangada comigo e não sei porquê, excepto que não te liguei a tempo de ficar com este número, antes de partires. Hei-de culpabilizar-me por isso para o resto da minha vida. Se tivesse sabido o que aconteceu, teria vindo para o teu lado.

 

Terias? Maggie abanou a cabeça, desviando o olhar. Neil, estou a tentar reflectir sobre muitas coisas, coisas que não fazem sentido e que podem ser o produto da minha hiperactiva imaginação. Mas são coisas que tenho de resolver por mim própria. Podes aceitar isso, por agora?

 

Deduzo que não me resta alternativa afirmou Neil. Bom, tenho de me ir embora. Preciso de me preparar para uma reunião da direcção, amanhã de manhã. Mas telefono-te amanhã e estarei cá quinta-feira à tarde. Ficas até ao próximo domingo?

 

Sim respondeu Maggie, acrescentando para si mesma:

 

«Talvez então já tenha algumas respostas sobre Earl Bateman, aqueles sinos e...»

 

Os seus pensamentos foram interrompidos quando, inesperadamente, a Residência Latham Manor lhe veio à lembrança.

 

Neil, ontem à noite disseste que tu e o teu pai estiveram em Latham Manor. Andavas à procura de uma suite de dois quartos para os teus clientes, não foi?

 

Sim. Porquê?

 

Nuala quase ficou com essa suite. E não referiste que uma outra mulher teria ficado com o apartamento se não tivesse perdido o dinheiro num mau investimento?

 

É verdade. E esse indivíduo ludibriou outra cliente do meu pai, que também se encontrava na lista de espera de Latham Manor... Cora Gebhart. Esse é outro assunto que tenciono tirar a limpo no decorrer desta semana. Vou investigar o filho-da-mãe que as encorajou a fazer esses investimentos e, se encontrar seja o que for que permita incriminar Doug Hansen, entrego-o ao SEC. Maggie, onde queres chegar?

 

Doug Hansen! exclamou Maggie.

 

Sim. Porquê? Conhece-lo?

 

Não propriamente, mas informa-me do que descobrires sobre ele respondeu, lembrando-se de que dissera a Hansen que não discutiria a oferta dele. Ouvi falar nele.

 

Bom, não invistas dinheiro com ele disse Neil. Okay, tenho de ir. Inclinou-se e beijou-lhe o rosto. Tranca a porta quando eu sair.

 

Maggie não ouviu os passos dele nas escadas do alpendre até o clique do ferrolho assinalar que a casa estava segura.

 

Ficou a vê-lo afastar-se no carro. A janela da frente estava voltada para leste e as sombras do final da tarde filtravam-se já através dos ramos cheios de folhas das árvores.

 

A casa ficou subitamente calma e vazia. Maggie olhou para as calças beges e observou as manchas de terra que Neil questionara.

 

«Vou trocar de roupa e subo para o estúdio por algum tempo», decidiu. «Amanhã de manhã, limpo o fundo do roupeiro e mudo as minhas coisas para o quarto de Nuala.» Havia tantas perguntas que Maggie gostaria de poder fazer a Nuala. Refinar os seus traços no barro seria uma forma de comunicar com ela. «E talvez consiga pensar através dos dedos o que não podemos conversar as duas», pensou.

 

E poderia fazer perguntas que necessitavam de ser respondidas, como:

 

Nuala, existia algum motivo pelo qual receavas viver em Latham Manor?

 

                   Segunda-feira, 7 de Outubro

 

Malcolm Norton abriu o escritório na segunda-feira de manhã à hora habitual, nove e meia. Passou pela área da recepção, onde a secretária de Barbara Hoffman estava voltada para a porta. No entanto, a secretária estava agora vazia de todos os artigos pessoais de Barbara. As fotografias emolduradas dos seus três filhos e das suas famílias, a jarra estreita na qual tivera flores da estação ou verdura, o monte ordenado de trabalho corrente tudo desaparecera.

 

Norton estremeceu levemente. Mais uma vez, a área da recepção estava clínica e fria. «O gosto de Janice para a decoração de interiores», pensou, com tristeza. «Frio. Estéril. Tal como ela. E como eu», acrescentou amargamente ao seguir para o seu gabinete. Clientes, nenhuns. Entrevistas marcadas, nada o dia previa-se longo e tranquilo. Ocorreu-lhe o pensamento de que tinha duzentos mil dólares no Banco. E se o levantasse e desaparecesse?, interrogou-se.

 

Se Barbara se juntasse a ele, era o que faria, num abrir e fechar de olhos. Janice que ficasse com a casa hipotecada. Num bom mercado, valeria praticamente o dobro do valor da hipoteca. «Uma distribuição equitativa», pensou, recordando-se do extracto de conta que descobrira na pasta da mulher.

 

Mas Barbara fora-se embora. Essa realidade começava apenas agora a tornar-se perceptível. Soubera, no preciso instante em que o chefe Brower partira no outro dia, que ela iria embora. As perguntas que Brower fizera a ambos tinham-na aterrorizado. Ela percebera a hostilidade dele, e fora a gota de água sentira que tinha de partir.

 

Que saberia Brower concretamente?, questionou-se Norton. Estava sentado na sua secretária, os dedos entrelaçados. Fora tudo tão bem planeado. Se o acordo de compra com Nuala se tivesse concretizado, ter-lhe-ia dado os vinte mil que ele conseguira por ter posto de parte o dinheiro da reforma dele. Não teriam fechado a venda por um período de noventa dias, o que lhe teria conferido tempo para assinar um acordo com Janice, e depois faria um pedido de empréstimo para cobrir a compra.

 

Se, ao menos, Maggie Holloway não tivesse aparecido no caminho, pensou, amargamente.

 

Se, ao menos, Nuala não tivesse feito um novo testamento.

 

Se, ao menos, não tivesse posto Janice ao corrente da alteração na lei de preservação das zonas marítimas.

 

Se, ao menos,...

 

Malcolm passara pela casa de Barbara naquela manhã. Apresentava o ar fechado característico das casas quando os residentes do Verão trancavam tudo durante o Inverno. Os estores estavam corridos em todas as janelas; um manto de folhas caídas cobria o alpendre e entrada. Barbara deve ter partido para o Colorado no sábado. Não lhe telefonara. Limitara-se a partir.

 

Malcolm Norton permanecia sentado no seu gabinete sombrio e silencioso, contemplando a sua próxima acção. Sabia o que ia fazer, a única questão agora era quando o ia fazer.

 

Na segunda-feira de manhã, Lara Morgan pediu a um assistente do gabinete do médico legista que efectuasse uma investigação a Zelda Markey, a enfermeira empregada na Residência Latham Manor, em Newport, que encontrara o corpo de Mrs. Greta Shipley.

 

O relatório inicial chegou ao fim da manhã. Revelava que ela possuía um bom registo de trabalho. Nunca tinham sido apresentadas queixas contra ela. Habitava há muitos anos em Rhode Island. Durante os seus vinte anos de prática, esteve empregada em três hospitais e quatro lares, todos naquele Estado. Trabalhava em Latham Manor desde a sua abertura.

 

«Com excepção de Latham, ela movimentou-se bastante», pensou a Dr.a Horgan.

 

Fale com o pessoal dos locais onde ela trabalhou pediu ao assistente. Há algo naquela senhora que me perturba.

 

Telefonou de seguida para a Polícia de Newport e pediu para falar com o chefe Brower. No breve período desde que fora nomeada médica legista, tinham começado a gostar um do outro e a respeitar-se mutuamente.

 

Perguntou a Brower sobre a investigação do assassinato de Nuala Moore. Ele informou-a de que não dispunham de pistas específicas mas que seguiam uns determinados indícios e que tentavam analisar o crime sob todos os ângulos lógicos. Enquanto conversavam, o detective Jim Haggerty enfiou a cabeça no gabinete do chefe.

 

Espere um pouco, Laradisse Brower.Haggerty andava a investigar a enteada de Nuala Moore. Tem uma expressão no rosto que me diz ter algo na manga.

 

Talvez sim afirmou Haggerty. Talvez não. Puxou do bloco. Às dez e quarenta e cinco desta manhã, a enteada de Nuala Moore, Maggie Holloway, foi à secção de necrologia do Newport Sentinel e pediu para ver os obituários de cinco mulheres. Dado que todas elas viviam há muitos anos em Newport, as notícias escritas eram extensas. Mrs. Holloway pegou nas folhas impressas do computador e saiu. Tenho aqui uma cópia.

 

Brower repetiu o relatório de Haggerty a Lara Horgan e depois acrescentou:

 

Mrs. Holloway chegou aqui há dez dias pela primeira vez. Tenho quase a certeza de que não podia ter conhecido nenhuma destas mulheres, excepto Greta Shipley. Vamos estudar estes obituários a fim de conseguirmos entender por que são tão interessantes para ela. Voltarei a falar-lhe.

 

Chefe, faça-me um favor pediu a Dr.a Horgan. Mande-me uma cópia dessas folhas por fax, está bem?

 

Janice Norton observou com algum cinismo que a vida em Latham Manor conseguia realmente sobreviver à agitação momentânea provocada por uma morte recente. Estimulada pelo pródigo elogio do sobrinho em relação à ajuda que fornecera para aliviar Cora Gebhart dos seus bens financeiros, Janice estava ansiosa por voltar a mergulhar no ficheiro de candidaturas do Dr. Lane, que este guardava na sua secretária.

 

Tinha de ter o máximo cuidado para que nunca fosse apanhada a mexer na secretária dele. Por forma a evitar ser descoberta, programava as suas visitas furtivas para as ocasiões em que tinha a certeza que ele estaria ausente da residência.

 

O fim da tarde de segunda-feira seria uma dessas ocasiões. Os Lane iam de carro para Boston a fim de assistirem a um qualquer acontecimento médico, com cocktail e jantar. Janice sabia que o restante pessoal iria tirar partido da ausência dele e sairia às cinco horas em ponto.

 

Essa seria a altura ideal para levar todo o ficheiro para o seu próprio gabinete e estudá-lo cuidadosamente.

 

«Lane está muito bem-disposto», pensou quando ele enfiou a cabeça no gabinete dela, às três e meia, para anunciar que ia embora. Não tardou a saber o motivo. O Dr. Lane contou-lhe que alguém passara lá no fim-de-semana para ver o apartamento grande para uns clientes, e ia recomendá-lo. Os Van Hilleary tinham telefonado, informando que viriam no próximo domingo.

 

Tanto quanto sei, são pessoas muito abastadas, que utilizariam a residência como base no nordeste disse o Dr. Lane com óbvia satisfação. Bem gostaria de ter mais hóspedes assim.

 

«Isso quer dizer muito menos serviço por todo esse dinheiro», pensou Janice. «Não me parece que tenham utilidade para mim e Doug. Se gostarem deste sítio, já terão um apartamento disponível para eles.» Mas, mesmo que fossem apenas para a lista de espera, seria demasiado arriscado enganar um casal com uma grande fortuna, raciocinou. Era inevitável que estivessem rodeados de conselheiros financeiros que pesquisavam, a pente fino, todos os investimentos. Até o seu encantador sobrinho teria dificuldades em pregar-lhes uma rasteira.

 

Espero que o senhor e Odile se divirtam, doutor disse Janice, voltando-se rapidamente para o computador. Ele teria suspeitado se ela agisse contra o que era habitual e começasse a conversar.

 

Para ela, o resto da tarde arrastou-se lentamente. Sabia que não era apenas devido à expectativa de deitar as mãos àquele ficheiro. Era também a leve e insistente suspeita de que alguém mexera na sua pasta.

 

«Ridículo», disse a si mesma. «Quem o poderia ter feito? Malcolm não se aproxima do meu quarto.» Ocorreu-lhe então um pensamento que fez um sorriso aflorar-lhe ao rosto. «Estou a ficar paranóica, porque isso é exactamente o que estou a fazer ao Dr. Lane», pensou. «Além do mais, Malcolm não é suficientemente esperto para me espiar.»

 

Por outro lado, tinha realmente um pressentimento de que ele andava a tramar algo. «A partir de agora, decidiu, vou manter os meus extractos de conta pessoais e cópias do ficheiro muito bem guardados, num local onde ele não possa ter acesso.»

 

As duas reuniões muito cedo, na segunda-feira de manhã, mantiveram-no afastado do seu escritório até às onze horas. Quando por fim chegou, telefonou de imediato a Maggie, mas não obteve resposta.

 

Ligou então para os Van Hilleary e deu-lhes, em breves palavras, a sua impressão de Latham Manor, concluindo com uma recomendação para que visitassem a residência, para que a pudessem julgar por si próprios.

 

O seu telefonema seguinte foi para um investigador privado que trabalhava com carácter de confidencialidade para a Carson & Parker, solicitando um dossier sobre Douglas Hansen.

 

Vá ao fundo da questão instruiu. Sei que tem de haver alguma coisa. Este tipo é um vigarista de primeira.

 

Ligou de novo para Maggie e ficou aliviado quando ela atendeu. Pareceu-lhe ofegante ao telefone.

 

Acabei de chegar disse-lhe ela.

 

Neil estava seguro de que ouvia agitação e ansiedade na voz dela.

 

Maggie, há algum problema? perguntou.

 

Não, nada.

 

A sua afirmação era quase um sussurro, como se receasse ser ouvida.

 

Está alguém contigo? inquiriu, a sua preocupação crescendo.

 

Não, estou sozinha. Acabei de chegar.

 

Não era habitual em Maggie repetir-se, mas Neil compreendeu que, mais uma vez, ela não ia partilhar com ele o que a incomodava. Queria bombardeá-la com perguntas, tais como «Onde foste?» e «Já obtiveste respostas para as coisas que disseste estarem a perturbar-te?» e «Posso ajudar-te?», mas não o fez. Sabia que de nada serviria.

 

Limitou-se a dizer:

 

Maggie, estou aqui. Lembra-te disso se quiseres falar com alguém.

 

Lembrar-me-ei.

 

«E nada farás quanto a isso», pensou Neil.

 

Muito bem. Telefono-te amanhã.

 

Pousou o auscultador e ficou imóvel por longos minutos antes de marcar o número da casa dos pais. O pai atendeu. Neil foi directo ao assunto.

 

Pai, já tem os ferrolhos para as janelas de Maggie?

 

Fui mesmo agora buscá-los.

 

Óptimo. Faça-me um favor. Telefone para lá e diga-lhe que os quer colocar esta tarde. Penso que aconteceu alguma coisa que a pôs nervosa.

 

Vou tratar disso.

 

Era um conforto misto, pensou Neil, saber que Maggie estaria mais disposta a confiar no seu pai do que nele. Mas, pelo menos, o pai estaria alerta para detectar qualquer sinal de problemas.

 

Trish entrou no gabinete no momento em que desligou. Trazia na mão uma pilha de recados. Pousando-os sobre a secretária, Trish apontou para o de cima.

 

. Vejo que a sua nova cliente lhe pediu para vender acções que não possui disse, severamente.

 

De que está a falar? perguntou Neil.

 

Nada de especial. Só que a câmara de compensação nos notificou de que não possuem nenhum registo de que Cora Gebhart é detentora das cinquenta mil acções que vendeu, em nome dela, na sexta-feira.

 

Maggie desligou depois de falar com Neil e foi para o fogão. Automaticamente, encheu a chaleira. Desejava ter a sensação do chá fervente a aquecê-la. Necessitava de algo que a auxiliasse a separar a chocante realidade dos obituários dos pensamentos perturbantes, mesmo loucos, que disparavam na sua cabeça.

 

Fez uma revisão mental do que descobrira até àquele momento.

 

A semana passada, quando levou Greta Shipley ao cemitério, tinham deixado flores na campa de Nuala e nas campas de outras cinco mulheres.

 

Alguém deixara um sino em três dessas sepulturas, bem como na de Nuala. Ela própria os descobrira.

 

Havia vestígios, como se um sino tivesse sido enterrado na terra, junto da lápide de Mrs. Rhinelander, mas, por algum motivo, esse sino faltava.

 

Greta Shipley morrera durante o sono dois dias mais tarde e, escassas vinte e quatro horas após ter sido enterrada, um sino fora igualmente colocado na sua campa.

 

Maggie pousou as cópias dos obituários sobre a mesa e voltou a lê-los rapidamente. Confirmavam o que lhe ocorrera ontem: Winifred Pierson, a única mulher naquele grupo cuj a campa não revelava indícios de um sino, tinha uma família grande e dedicada. Falecera sob os cuidados do seu médico assistente.

 

Com excepção de Nuala, que fora assassinada na sua própria casa, as outras mulheres tinham morrido durante o sono.

 

O que significava, pensou Maggie, que não tinham ninguém a prestar-lhes assistência na altura da morte.

 

Todas se encontravam sob os cuidados do Dr. William Lane, director de Latham Manor.

 

Dr. Lane. Maggie pensou em como Sarah Gushing se apressara a levar a mãe a um médico exterior. Seria porque sabia, ou talvez inconscientemente suspeitasse, que o Dr. Lane não era um bom técnico de saúde?

 

Ou, talvez, um técnico de saúde demasiado bom?, questionou uma insistente voz interior. «Lembra-te, Nuala foi assassinada. Não penses assim», alertou-se. Contudo, independentemente do ângulo sob o qual encarasse a questão, pensou, Latham Manor revelara-se um local amaldiçoado para muitas pessoas. Duas das clientes de Mr. Stephens perderam todo o dinheiro enquanto esperavam vaga para entrar naquele lugar, e cinco mulheres, todas residentes em Latham que não eram assim tão idosas, nem tão doentes tinham lá morrido durante o sono.

 

«Que teria levado Nuala a mudar de ideias quanto a vender a casa e ir viver para Latham?», interrogou-se de novo. «E que teria levado Douglas Hansen, que vendeu as acções às mulheres que perderam o dinheiro, a aparecer ali para comprar esta casa?» Maggie abanou a cabeça. Tinha de existir uma ligação, disse a si mesma, mas qual seria?

 

A chaleira apitou. Quando Maggie se levantou para fazer o chá, o telefone tocou. Era o pai de Neil. Disse:

 

Maggie, já tenho os ferrolhos. Vou para aí. Se tiver de sair, diga-me onde deixará a chave.

 

Não, estarei cá.

 

Vinte minutos mais tarde, estava à porta. Depois de um «Prazer em vê-la, Maggie», afirmou:

 

Vou começar lá por cima.

 

Enquanto ele mudava as fechaduras, Maggie ocupou-se na cozinha, arrumando gavetas, deitando muitas coisas fora. O som dos passos dele no piso superior era tranquilizador; utilizou o tempo enquanto trabalhava para, mais uma vez, rever tudo o que sabia. Juntando todas as peças dopuzzle que já possuía, chegou a uma decisão: por enquanto, não tinha absolutamente nenhum direito de levantar suspeitas sobre o Dr. Lane, mas não havia nenhum motivo para não falar sobre Douglas Hansen, decidiu.

 

Robert Stephens regressou à cozinha.

 

Okay, tudo pronto. Não tem nada a pagar, mas oferece-me uma chávena de café? Pode ser instantâneo. Sou fácil de satisfazer.

 

Instalou-se numa cadeira, e Maggie sabia que ele a estudava. «Foi Neil quem o enviou», pensou. «Percebeu que eu estava inquieta.»

 

Mr. Stephens começou ela, não sabe muito sobre Douglas Hansen, pois não?

 

O suficiente para saber que destruiu as vidas de algumas boas mulheres, Maggie. Mas... se alguma vez o conheci? Não. Por que pergunta?

 

Porque ambas as senhoras que você conhece que perderam o dinheiro graças a ele planeavam ir para Latham Manor, o que significava que podiam dispor de um montante razoável de dinheiro. Também a minha madrasta planeara ir viver para lá, mas mudou de ideias no último instante. A semana passada, Hansen apareceu aqui e ofereceu-me cinquenta mil dólares mais por esta casa do que a oferta que Nuala tinha para a vender, e, pelo que soube, é muito mais do que realmente vale.

 

»Onde quero chegar é ao seguinte: como será que contactou as mulheres que você conhece e que investiram de acordo com as instruções dele? Mais, como é que ele apareceu na minha porta? Não pode ser uma simples coincidência.

 

Earl Bateman passou duas vezes de carro pela casa de Maggie. Na terceira vez, viu que o veículo com a matrícula de Rhode Island tinha partido; a carrinha de Maggie, contudo, continuava parada à porta. Estacionou e pegou no retrato emoldurado que trouxera com ele.

 

Tinha quase a certeza de que, se tivesse telefonado dizendo que gostaria de a ver, Maggie lhe teria recusado a visita. Mas, agora, ela não tinha alternativa. Teria de o convidar a entrar.

 

Foi necessário tocar duas vezes à campainha para que ela abrisse a porta. Foi evidente que ficou surpreendida ao vê-lo. «Surpreendida e nervosa», pensou Earl.

 

Ele estendeu de imediato o embrulho.

 

Um presente para si disse, com entusiasmo. Uma Maravilhosa fotografia de Nuala, tirada na festa no Four Seasons. Pu-la numa moldura.

 

Foi muito simpático da sua parte afirmou Maggie, tentando sorrir, uma expressão de dúvida no rosto. Depois, estendeu a mão.

 

Earl puxou o embrulho para ele.

 

Não me vai convidar para entrar? perguntou, o tom suave e jocoso.

 

Claro.

 

Desviou-se e permitiu que ele passasse, mas, para aborrecimento dele, Maggie abriu totalmente a porta e assim a deixou.

 

Se fosse a si, fechava a porta afirmou Earl. Não sei se saiu hoje, mas está um vento gelado. Reparou de novo na incerteza dela e sorriu. E, independentemente do que o meu querido primo lhe possa ter dito, não mordo afirmou, entregando-lhe finalmente o embrulho.

 

Seguiu à frente dela para a sala de estar e sentou-se na cadeira grande.

 

Parece que estou a ver Tim aqui instalado com os seus livros e jornais e Nuala à volta dele. Que par de pombinhos formavam! Por vezes, convidavam-me para jantar, e era sempre com prazer que vinha. Nuala não era uma grande dona de casa, mas era uma excelente cozinheira. Tim contou-me que, muitas vezes, quando estavam sós vendo televisão até tarde, ela se sentava nesta cadeira com ele. Era uma senhora encantadora.

 

Olhou em volta.

 

Vejo que já começou a pôr o seu cunho neste lugar disse. Aprovo. Imprimiu-lhe uma sensação mais calma. O banco de dois lugares assusta-a?

 

Vou fazer algumas alterações na mobília disse Maggie, o tom ainda prudente.

 

Bateman observou-a enquanto ela abria o embrulho e congratulou-se por ter pensado na fotografia. Ao ver o modo como o rosto dela se iluminou, confirmou que fora astucioso ao ocorrer-lhe tal ideia.

 

Oh, é uma fotografia maravilhosa de Nuala! disse Maggie entusiasticamente. Estava tão bonita naquela noite. Obrigada. Fiquei realmente feliz. O sorriso dela era agora genuíno.

 

Lamento que eu e Liam também estejamos nela disse Bateman. Talvez nos consiga retirar.

 

Não faria isso respondeu Maggie rapidamente.Obrigada por ter perdido o seu tempo trazendo-a pessoalmente.

 

Não tem de quê disse ele, recostando-se ainda mais na cadeira.

 

«Ele não se vai embora», pensou Maggie surpreendida. O olhar dele causava-lhe desconforto. Parecia que tinha um holofote a incidir sobre ela. Os olhos de Bateman, demasiado grandes por detrás dos óculos de armação redonda, fixavam-se nela de uma forma inabalável. Apesar do esforço aparente dele para revelar indiferença, Earl parecia quase em sentido, o corpo rígido. «Não consigo imaginá-lo a adaptar-se a qualquer lugar ou sequer a sentir-se confortável na sua própria pele», reflectiu Maggie. «É como se fosse um arame, demasiado esticado, pronto a estalar», pensou.

 

«Nuala era uma senhora encantadora... Não era uma grande dona de casa... excelente cozinheira...»

 

Quantas vezes estivera Earl Bateman ali?, questionou-se Maggie. Conheceria bem aquela casa? Talvez soubesse o motivo por que Nuala decidira não ir morar em Latham Manor, pensou, pronta a formular a pergunta quando outro pensamento lhe ocorreu.

 

«Ou talvez tenha suspeitado do motivo... e a tivesse assassinado!»

 

Saltou involuntariamente quando o telefone tocou. Pedindo licença, foi à cozinha atender. Era o chefe da Polícia, Brower.

 

Mrs. Holloway, será que posso passar por aí ao fim da tarde?

 

Claro. Há alguma novidade? Sobre Nuala?

 

Oh, nada de especial. Apenas gostaria de conversar consigo. É possível que leve alguém comigo. Não se importa? Telefono antes de aparecer.

 

Claro respondeu. Depois, suspeitando de que Earl Bateman podia estar a escutar o que ela dizia, levantou um pouco o tom de voz. Chefe, Earl Bateman está aqui comigo. Trouxe-me uma fotografia maravilhosa de Nuala. Até já, então.

 

Quando regressou à sala de estar, reparou que a otomana em frente da cadeira de Earl fora empurrada para o lado, indicando que ele se levantara. «Esteve mesmo à escuta», pensou. «Óptimo.» Com um sorriso, disse:

 

Era o chefe Brower. «Como já sabes», acrescentou em silêncio. Vai passar por cá esta tarde. Disse-lhe que você estava comigo.

 

Bateman anuiu solenemente.

 

Um bom chefe de Polícia. Respeita as pessoas. Não é como a Polícia de Segurança de algumas culturas. Sabe o que acontece quando um rei morre? Durante o período de luto, a Polícia assume o controlo do Governo. Por vezes, chegam a assassinar a família do rei. Na verdade, em algumas sociedades, essa era uma ocorrência regular. Poderia dar-lhe tantos exemplos. Sabe que dou aulas sobre costumes fúnebres?

 

Maggie sentou-se, estranhamente fascinada pelo homem. Sentia algo diferente na expressão de Earl Bateman, a qual se tornou de uma quase absorção religiosa. Passando de um exemplo vivo do Professor estranho e absorto, transformou-se inteiramente numa outra pessoa, de voz prateada e messiânica. Até o modo de se sentar se modificou. A rígida postura de menino de escola foi substituída pela posição confortável de um homem seguro e à vontade. Estava ligeiramente inclinado na direcção dela, o cotovelo esquerdo no braço da cadeira, a cabeça levemente inclinada. Já não a fitava; os seus olhos fixavam um determinado ponto à esquerda de Maggie. Maggie sentiu a boca secar. Inconscientemente, sentara-se no assento de dois lugares e agora percebia que ele olhava para detrás dela, focando o local onde o corpo de Nuala fora encontrado.

 

Sabe que dou aulas sobre costumes fúnebres? perguntou ele de novo, e Maggie apercebeu-se de que não respondera à sua pergunta.

 

Oh, sim afirmou rapidamente. Não se recorda? Disse-me na noite em que nos conhecemos.

 

Gostaria muito de falar consigo sobre isso disse Bateman gravemente. Sabe?, há uma companhia de televisão por cabo que está muito interessada em que eu faça uma série, desde que esteja em condições de oferecer um leque de assuntos para programas com um mínimo de trinta minutos. Isso não é problema. Possuo material mais do que suficiente para os programas, mas gostaria de incluir alguns visuais.

 

Maggie aguardou.

 

Earl uniu as mãos. Agora, a sua voz tornou-se lisonjeira.

 

A resposta a este tipo de oferta não deve ser demorada. Preciso de agir com celeridade. Você é uma fotógrafa credenciada. É precisamente de visuais que melhor entende. Seria um grande favor permitir-me que a levasse a ver o meu museu hoje. Fica na Baixa da cidade, muito próximo da agência de funerais que a minha família possuía. Sabe onde fica, obviamente. Não se importa de despender de uma hora comigo? Mostro-lhe os artigos em exibição, explico-os, e talvez me possa ajudar a decidir quais os que devo sugerir aos produtores.

 

Fez uma pausa.

 

Por favor, Maggie.

 

«Tenho a certeza de que me ouviu ao telefone», pensou Maggie. «Sabe que o chefe Brower está para vir e sabe que lhe disse quem estava comigo.» Liam contara-lhe sobre as réplicas dos sinos vitorianos que Earl possuía. Supostamente, tinha doze. Era possível que se encontrassem expostos, pensou. E se estivessem apenas seis? Seria razoável acreditar que ele colocara os outros nas campas.

 

Vou, com todo o gosto respondeu ela, após um momento, mas o chefe Brower vem a minha casa esta tarde. Só para o caso de ele chegar mais cedo, vou deixar um bilhete na porta dizendo que estou consigo no museu e que regressarei por volta das quatro.

 

Earl sorriu.

 

É muito sensato da sua parte, Maggie. Teremos bastante tempo.

 

Às duas horas, o chefe Brower chamou o detective Jim Haggerty ao seu gabinete, mas informaram-no de que este saíra alguns minutos antes dizendo que não demorava. Quando chegou, trazia papéis idênticos aos que Brower tinha sobre a secretária cópias dos obituários que Maggie Holloway analisara noNewport Sentinel. Haggerty sabia que, tal como solicitado, um outro conjunto fora enviado por fax a Lara Horgan, para o gabinete do médico legista, em Providence.

 

Que viste, Jim? inquiriu Brower. Haggerty deixou-se cair numa cadeira.

 

Provavelmente, o mesmo que você, chefe. Cinco das seis falecidas moraram na luxuosa residência.

 

Certo.

 

Nenhuma das cinco tinha parentes próximos. Brower fitou-o benignamente.

 

Muito bem.

 

Todas faleceram durante o sono.

 

Hum-hum.

 

E o Dr. William Lane, o director de Latham Manor, era o médico assistente em cada um dos casos. Isto é, assinou as certidões de óbito.

 

Brower sorriu em aprovação.

 

Aprendes depressa.

 

Tambémcontinuou Haggertyo que os artigos não dizem é que, quando uma pessoa morre em Latham Manor, o estúdio ou apartamento por ela adquirido para viver reverte para a gerência, O que significa que pode ser vendido de novo, logo de imediato.

 

Brower franziu o sobrolho.

 

Não vi as coisas por esse prismaadmitiu. Acabei de falar com a médica legista. Lara também detectou tudo isto. Está a Proceder a uma investigação ao Dr. William Lane. Andava já a investigar uma enfermeira que trabalha em Latham Manor, Zelda Markey. Quer vir comigo falar com Maggie Holloway esta tarde.

 

Haggerty pareceu pensativo.

 

Conheci Mrs. Shipley, a senhora que faleceu em Latham a semana passada. Gostava muito dela. Ocorreu-me que os parentes dela ainda se encontravam na cidade. Fiz umas perguntas e soube que se hospedaram na Estalagem Harborside, pelo que fui até lá.

 

Brower aguardou. Haggerty revelava a sua expressão mais reservada, que Brower sabia significar que ele descobrira alguma coisa.

 

Apresentei as minhas condolências e conversei um pouco com eles. Parece que, ontem, Maggie Holloway esteve em Latham Manor.

 

Por que foi até lá? perguntou Brower.

 

Foi convidada para o almoço pela velha Mrs. Bainbridge e a filha. Mas, mais tarde, subiu para falar com os parentes de Mrs. Shipley, que estavam a encaixotar os artigos pessoais dela. Suspirou. Mrs. Holloway fez um pedido estranho. Disse que a madrasta, Nuala Moore, que dava aulas de Arte em Latham Manor, ajudara Mrs. Shipley a fazer um esboço e perguntou se eles se importavam de que ela ficasse com esse esboço. O engraçado, contudo, é que não foi encontrado.

 

Talvez Mrs. Shipley o tenha deitado fora.

 

Não creio. De qualquer forma, mais tarde, duas residentes passaram pelo apartamento e falaram com os parentes de Mrs. Shipley, que lhes perguntaram sobre o esboço. Uma das senhoras disse que o tinha visto. Devia ser um cartaz da segunda guerra mundial mostrando um espião a escutar a conversa de dois trabalhadores da Defesa.

 

Por que haveria Mrs. Holloway de querer isso?

 

Porque Nuala Moore colocara o seu próprio rosto e o de Greta Shipley personificando os dois trabalhadores e, como espião, adivinhe quem desenharam?

 

Brower olhou para Haggerty, os olhos meio cerrados.

 

A enfermeira Markey disse o detective com satisfação. Mais uma coisa, chefe. A regra em Latham Manor é que, quando ocorre uma morte, mal o corpo é removido, o quarto ou apartamento é trancado até a família vir recolher os pertences. Por outras palavras, ninguém tinha o direito de entrar lá e tirar o esboço. Fez uma pausa. Faz pensar, não faz?

 

Neil cancelou um encontro para o almoço e limitou-se a comer uma sanduíche e café, na secretária. Pedira a Trish para só lhe passar as chamadas urgentes enquanto trabalhava arduamente, a fim de desimpedir os próximos dias da sua agenda.

 

Às três horas, precisamente quando Trish entrava com uma nova remessa de documentos, telefonou ao pai.

 

Pai, vou para aí esta noite disse.Tenho tentado apanhar esse tal Hansen ao telefone, mas dizem-me sempre que não está. Por isso, vou procurá-lo pessoalmente. Esse tipo está envolvido em muito mais coisas para além de fornecer maus conselhos a velhas mulheres.

 

Foi isso o que Maggie disse, e tenho a certeza de que está a tramar alguma coisa.

 

Maggie!

 

Parece acreditar que há qualquer relação entre Hansen e as mulheres que se candidataram a Latham Manor. Estive a falar com Laura Arlington e Cora Gebhart. Descobri que ele lhes telefonou sem as conhecer de lado nenhum.

 

E por que não desligaram? A maioria das pessoas não se envolvem ao telefone com investidores que não conhecem.

 

Aparentemente, o facto de ter usado o nome de Alberta Downing conferiu-lhe credibilidade. Pediu-lhes que falassem com ela para referências. Mas depois... e é aqui que se torna interessante... falou no facto de algumas pessoas que tinham investimentos estarem a perder poder de compra devido à inflação e, por acaso, deu como exemplos as próprias acções e títulos que Cora Gebhart e Laura Arlington possuíam.

 

Sim disse Neil, recordo-me de Mrs. Gebhart ter mencionado algo assim. Preciso de falar com essa tal Mrs. Downing. Definitivamente, há algo que não está correcto nisto tudo. E, a propósito, estava à espera de que me ligasse mal estivesse com Maggieacrescentou, sabendo que, agora, se mostrava aborrecido. Tenho estado preocupado com ela. Encontrava-se bem?

 

Tenciona telefonar-te mal soubesse alguma coisa sobre Hansenrespondeu Robert Stephens.Pensei que isso fosse mais importante que fazer-te um relatórioacrescentou severamente.

 

Neil rolou os olhos.

 

Desculpe afirmou. E obrigado por ter ido vê-la.

 

Deves saber que fui imediatamente. Acontece que gosto bastante daquela jovem. Mais uma coisa: Hansen apareceu a Maggie a semana passada e fez-lhe uma oferta pela casa. Tenho estado a falar com agentes imobiliários a fim de obter a opinião deles quanto ao seu valor. Maggie especulara que a oferta dele era demasiado elevada, dadas as condições da casa, e estava certa. Por isso, vê se entendes qual é a jogada dele em relação a Maggie.

 

Neil lembrou-se da reacção de surpresa de Maggie quando ele mencionou o nome de Hansen e como, quando lhe perguntou se o conhecia, a sua resposta foi evasiva.

 

«Mas eu estava certo em relação a uma coisa: ela abriu-se mesmo com o meu pai», pensou. «Quando for para Newport, irei directo a casa dela e não partirei sem que me diga o que fiz de errado.»

 

Quando desligou, olhou para Trish e para os documentos na mão dela.

 

Terá de ser você a tratar disso. Vou-me embora.

 

Oh, por todos os santinhosafirmou Trish, o tom brincalhão mas afectuoso. Com que então, o nome da senhora é Maggie e está muito preocupado com ela. Essa é uma experiência nova para si. Depois, franziu o sobrolho. Espere um pouco, Neil. Está mesmo preocupado, não está?

 

Pode apostar que sim.

 

Então de que está à espera? Vá-se embora.

 

Tenho muito orgulho no meu museuexplicou Earl ao abrir a porta a Maggie para que se apeasse do carro dela. Declinara a oferta para que fossem no veículo dele e tinha a consciência de que Earl ficara aborrecido com a recusa.

 

Ao seguir o velho Oldsmobile pela cidade e ao passar pela Agência Funerária Bateman, percebeu por que não reparara no museu. A sua frente estava voltada, numa rua lateral, para as traseiras da enorme propriedade, e possuía o seu próprio parque de estacionamento por detrás. Esse parque estava vazio, com excepção de um outro veículo, estacionado no canto um carro funerário preto-reluzente.

 

Earl apontou para ele ao caminharem para o museu.

 

Tem trinta anosdisse, com orgulho.O meu pai ia vendê-lo quando comecei a Faculdade, mas convenci-o a deixar-me ficar com ele. Guardo-o aqui na garagem e só o trago para o exterior no Verão. É quando convido visitantes para o museu, embora só por umas duas horas e aos fins-de-semana. Confere um tom apropriado ao local, não lhe parece?

 

Acho que sim disse Maggie com alguma incerteza. «Nos últimos dez dias, já vi carros funerários suficientes para o resto da vida», pensou. Virou-se para observar a casa vitoriana de três pisos com o alpendre largo e ornamentos cor de gengibre. Tal como a Agência Funerária Bateman, estava pintada de um branco-reluzente, com venezianas pretas. Fitas de crepe negro dispostas em volta da porta principal flutuavam ao vento.

 

A casa foi construída em 1850 pelo meu tretavô explicou Earl. Foi a nossa primeira agência funerária e, nessa altura, a família habitava no último piso. O meu avô construiu o actual estabelecimento, e o meu pai expandiu-o. Esta casa foi usada por um coveiro por alguns tempos. Quando vendemos o negócio, há dez anos atrás, separámos a casa e um acre da propriedade e fiquei com tudo. Abri o museu pouco depois, embora o venha a apetrechar ao longo dos anos.

 

Earl colocou a mão no cotovelo de Maggie.

 

Vai ver que vai gostar. Lembre-se, quero que olhe para tudo de molde a poder sugerir-me o que devo utilizar como meio visual. Não me refiro apenas às palestras individuais mas também como abertura e encerramento da série.

 

Encontravam-se no alpendre. Colocados no gradeamento largo e destinados a suavizar, de alguma forma, o aspecto fúnebre, havia diversos vasos compridos cheios de violetas e cravos-de-montanha. Bateman levantou a ponta de um dos vasos mais próximos e retirou uma chave.

 

Vê como confio em si, Maggie? Estou a revelar-lhe o meu esconderijo secreto. Esta chave é muito antiquada e demasiado pesada para andar com ela.

 

Parando junto da porta, apontou para o crepe.

 

Na nossa sociedade, existia o costume de contornar a porta desta forma, indicando que era uma casa de luto.

 

«Meu Deus, como ele adora isto!», pensou Maggie, estremecendo ligeiramente. Apercebeu-se de que tinha as mãos húmidas e enfiou-as nas algibeiras dos jeans. Atravessou-lhe a mente o pensamento irracional de que não devia entrar numa casa de dor vestindo uma camisa simples e jeans.

 

A chave girou com um som rangente. Earl Bateman empurrou a porta e afastou-se para trás.

 

Diga-me, então o que pensa disto?perguntou com orgulho quando Maggie passou lentamente por ele.

 

A figura de um homem em tamanho natural de libré preta permanecia em sentido no átrio, como se estivesse a postos para receber convidados.

 

No primeiro livro de etiqueta de Emily Post, publicado em 1922, ela escreveu que, quando ocorria uma morte, o mordomo, vestido com as roupas habituais, deveria permanecer de serviço à porta até que um criado de libré preta o pudesse substituir.

 

Earl sacudiu algo que Maggie não conseguiu ver da manga do manequim.

 

As salas do piso inferior mostram a cultura do luto neste século afirmou ele em tom grave.Pensei que esta figura seria interessante para as pessoas quando entrassem. Quantas pessoas hoje em dia, mesmo as pessoas abastadas, teriam um criado de libré preto colocado à porta quando alguém da família morre?

 

Os pensamentos de Maggie saltaram abruptamente para aquele penoso dia, quando tinha 10 anos de idade e Nuala lhe contou que ia partir. «Sabes, Maggie», explicara, «durante muito tempo depois de o meu primeiro marido morrer, andei de óculos escuros. Chorava tão facilmente que ficava envergonhada. Quando sentia que estava prestes a chorar, enfiava a mão na algibeira e pegava nos óculos e pensava: Está na hora de colocar de novo o equipamento da dor. Tinha esperanças de que eu e o teu pai nos pudéssemos amar dessa forma. Esforcei-me bastante, mas não resultou. E, pelo resto da minha vida, sempre que pensar nos anos que vou perder contigo, terei de pegar no meu equipamento de dor».

 

A lembrança daquele dia quase trouxe lágrimas aos olhos de Maggie. Gostaria de possuir agora equipamento de dor, pensou ao limpar a humidade da face.

 

Oh, Maggie, está emocionada disse Earl, o tom reverente. Vejo que é compreensiva. Neste piso, como lhe estava a dizer, temos então salas que mostram rituais de morte do século vinte.

 

Puxou para o lado uma cortina pesada.

 

Nesta sala, encenei a versão de Emily Post de um muito pequeno funeral. Vê?

 

Maggie espreitou. A figura de uma jovem mulher, vestida com um robe de seda verde-pálida, estava estendida num sofá de brocado. Longos cachos de cabelo ruivo espalhavam-se sobre uma almofada estreita de cetim. As mãos estavam dobradas sobre réplicas de lírios em seda.

 

Não é encantador? Não parece mesmo que está a dormir? murmurou Earl. E veja. Apontou para um discreto pedestal de prata, junto da entrada. Hoje, este seria o local onde os visitantes assinam o livro de presenças. O que fiz foi copiar uma página do livro original de Emily Post sobre os cuidados a ter com o falecido. Permita-me que lhe leia. É realmente fascinante.

 

A sua voz ecoou pela sala demasiado tranquila:

 

«As pessoas que choram a perda de um ente querido deverão ser instaladas, se possível, numa sala soalheira e onde exista uma lareira. Se se sentirem incapazes de ir à mesa, um pouco de comida deverá ser-lhes levado num tabuleiro. Uma chávena de chá, café ou caldo de carne, uma tosta fina, um ovo escaldado ou leite se gostarem dele quente. Leite frio é desaconselhável para alguém que já se sente arrefecido. A cozinheira pode sugerir algo que apele geralmente ao seu gosto...» Fez uma pausa.

 

Não é fantástico? Quantas pessoas hoje em dia, por muito dinheiro que possuam, têm uma cozinheira preocupada com o que lhes possa apelar ao gosto? Certo? Mas penso que isto forneceria um maravilhoso visual individual, não lhe parece? No entanto, para a abertura e encerramento, os itens terão de possuir um âmbito mais alargado.

 

Pegou-lhe no braço.

 

Sei que não dispõe de muito tempo, mas, por favor, venha lá acima comigo. Tenho réplicas espantosas de ritos de separação arcaicos de tempos antigos. Mesas de banquete, por exemplo. Parece que diversas pessoas entenderam inerentemente que a morte deve incluir um banquete ou festim no final da cerimónia, dado que a dor debilita o indivíduo e a comunidade. Tenho exemplos típicos encenados.

 

Depois, há a minha secção de enterros continuou, com entusiasmo, ao subirem as escadas. Já alguma vez mencionei um costume do povo do Sudão em que sufocavam o líder quando este ficava velho ou fraco? Compreende, o princípio é que o líder incorpora a vitalidade da nação e nunca deverá morrer, ou a nação morreria com ele. Assim, quando o líder estava claramente a perder o poder, era secretamente morto e depois emparedado numa cabana de lama. O costume nessa altura era que ele não morrera, mas, sim, que desaparecera. Soltou uma gargalhada.

 

Encontravam-se no segundo andar.

 

Nesta primeira sala, criei uma réplica de uma cabana de lama. Aqui entre nós, já comecei um museu exterior onde a área de enterro pode ser ainda mais realista. Fica a umas dez milhas daqui. Até agora, já procedi a umas escavações, basicamente apenas com a maquinaria apropriada. O projecto é totalmente da minha autoria. Mas, uma vez concluído, ficará uma maravilha. Numa das áreas, terei uma réplica em miniatura de uma pirâmide, com uma parte transparente para que as pessoas possam ver como

os egípcios antigos sepultavam os faraós com o seu ouro e jóias de preço incalculável para que os acompanhassem até ao Além...

 

«Está a delirar», pensou Maggie, uma sensação pesada de inquietação invadindo-a. «Ele é doido!» A mente dela não parava enquanto Earl a conduzia de sala em sala, cada uma delas contendo o que se assemelhava a um cenário teatral elaboradamente estruturado. Earl segurava-lhe agora na mão, puxando por ela para lhe mostrar tudo, explicar tudo.

 

Encontravam-se quase no fim do extenso corredor e Maggie apercebeu-se de que ainda não vira nada que se assemelhasse aos sinos que encontrara nas campas.

 

Que tem no terceiro andar? perguntou.

 

Ainda não está pronto para ser exibido respondeu ele absorto. Utilizo-o para armazenagem.

 

Earl parou então abruptamente e voltou-se para ela, o olhar intenso. Estavam no final do corredor, diante de uma porta pesada.

 

Oh, Maggie, esta é uma das minhas melhores exposições! Earl girou a maçaneta e, com um gesto dramático, abriu a porta.

 

Combinei duas salas com o objectivo de obter o efeito que pretendia. Isto retrata um funeral aristocrático na Roma antiga. Empurrou-a para dentro. Deixe-me explicar. Primeiro, eles constróem um ataúde, depois colocam o leito sobre ele. Por cima, punham dois colchões. Talvez isto fosse uma boa abertura para a série. Claro que, neste momento, as tochas têm apenas lâmpadas vermelhas, mas é possível pô-las a arder. O velhote que me fez este ataúde era um verdadeiro artesão. Copiou-o exactamente da gravura que lhe forneci. Veja as frutas e flores que esculpiu na madeira. Sinta.

 

Pegou-lhe na mão e percorreu-a ao longo do ataúde.

 

E este manequim é um tesouro. Está vestido exactamente como um aristocrata falecido estaria vestido. Encontrei aquela fatiota numa loj a de fantasias. Como estes funerais devem ter sido um verdadeiro espectáculo! Pense só. Heraldos, músicos, tochas a arder...

 

Abruptamente, parou e franziu o sobrolho.

 

É verdade que me deixo empolgar por este tema, Maggie. Desculpe.

 

Não, estou fascinada disse, tentando parecer calma, desejando que não reparasse na mão húmida que ele por fim largava.

 

Oh, óptimo. Bom, só há mais uma sala. Aqui mesmo. A minha sala de urnas. Abriu a última porta. Algo realmente invulgar, não diria?

 

Maggie retrocedeu. Não queria entrar naquela sala. Apenas há dez dias atrás tivera de ser ela a seleccionar uma urna para Nuala.

 

Na verdade, Earl, é melhor ir andando disse.

 

Oh, gostaria de lhe poder explicar estas urnas. Talvez possa regressar. No final da semana, já cá terei outra. Tem a forma de um cacete. Foi projectada para o cadáver de um padeiro. O costume nalgumas culturas africanas é enterrar o falecido numa urna que simbolize a forma como essa pessoa passou a vida. Incluí essa história numa das palestras que dei a um clube de mulheres aqui mesmo, em Newport.

 

Maggie apercebeu-se de que ele lhe estava a fornecer uma boa oportunidade para referir o assunto que lhe interessava.

 

Dá palestras com muita frequência em Newport?

 

Agora já não. Earl fechou lentamente a porta da sala das urnas, como se estivesse relutante em sair de lá. Seguramente, já ouviu dizer que um profeta não é digno de honra no seu próprio país. Primeiro, querem a presença dele sem lhe pagar sequer um honorário e, depois, insultam-no.

 

Estaria a falar da reacção à sua palestra em Latham Manor?, questionou-se Maggie. As portas fechadas das salas impediam em grande medida a entrada da luz, e a parede estava cheia de sombras, mas, mesmo assim, conseguiu ver que o rosto dele ficara corado.

 

Certamente, ninguém o insultou!? perguntou ela, a voz controlada, interessada.

 

Uma vez respondeu ele sombriamente. Fiquei deveras perturbado.

 

Maggie não se atreveu a dizer-lhe que fora Liam quem lhe contara sobre o incidente com os sinos.

 

Oh, espere um pouco disse ela lentamente. Quando visitei Mrs. Shipley em Latham Manor, ouvi dizer que algo desagradável lhe aconteceu quando teve a amabilidade de lá ir fazer uma palestra. Qualquer coisa envolvendo a filha de Mrs. Bainbridge.

 

É exactamente a isso que me refiro respondeu Earl com dureza. Ela perturbou-me tanto que deixei de fazer uma das minhas palestras de maior efeito.

 

Desceram as escadas para o primeiro andar e passaram pelo manequim do criado de libré, saindo para o alpendre. Aí, Maggie sentiu a luz do dia inesperadamente forte em relação ao interior sombrio do museu. Bateman contou-lhe então essa noite em Latham Manor e descreveu a distribuição das réplicas dos sinos vitorianos.

 

Mandei-os fundir propositadamente para aquela ocasião afirmou, a voz repleta de ira. Doze. Talvez não tivesse sido uma atitude inteligente da minha parte pedir àquela gente que os segurasse, mas não havia motivo para aquela mulher me tratar da forma como me tratou.

 

Maggie falou cuidadosamente.

 

Tenho a certeza de que outras pessoas não reagiriam do mesmo modo.

 

Foi muito aborrecido para todos nós. Zelda ficou furiosa.

 

Zelda? perguntou Maggie.

 

A enfermeira Markey. Ela está ao corrente da minha pesquisa e ouviu-me falar em diversas ocasiões. Fui lá por causa dela. Tinha falado com o responsável pelas actividades de Latham sobre a qualidade das minhas palestras.

 

«Enfermeira Markey», pensou Maggie. Os olhos dele semicerraram-se, e manteve-se cauteloso. Maggie percebeu que ele a estudava.

 

Não gosto de falar nesse assunto. Perturba-me.

 

Mas penso que essa seria uma palestra fascinante insistiu Maggie. E talvez esses sinos fossem um bom visual em termos de abertura ou de encerramento.

 

Não. Esqueça. Estão todos numa caixa no armazém, e é lá que vão ficar.

 

Voltou a colocar a chave por debaixo do vaso comprido.

 

Não conte a ninguém que a chave está aqui, Maggie.

 

Não, claro que não.

 

Mas, se quiser voltar e tirar algumas fotografias das exibições a que pense que devo submeter as pessoas da televisão por cabo, por mim não há problema. Sabe onde encontrar a chave.

 

Acompanhou-a ao carro.

 

Tenho de regressar a Providence disse. Não se importa de pensar sobre os visuais e ver se lhe ocorre alguma sugestão? Posso telefonar-lhe dentro de um dia ou dois?

 

Claro respondeu Maggie, sentando-se, aliviada, ao volante. E obrigada acrescentou, sabendo que não tinha nenhuma intenção de usar a chave ou mesmo de voltar àquele lugar.

 

Então, até breve. Mande cumprimentos meus ao chefe Brower.

 

Maggie ligou a ignição.

 

Adeus, Earl. Foi muito interessante.

 

A minha exposição do cemitério também será interessante. Oh, a propósito. É melhor voltar a guardar o carro funerário na garagem. Cemitério. Carro funerário. É engraçado como a mente funciona, não é? disse, ao afastar-se.

 

Depois de arrancar, Maggie viu, pelo espelho retrovisor, Earl sentado no carro funerário com um telefone na mão. A cabeça dele estava virada na direcção dela.

 

Podia sentir os olhos dele, grandes e luminosos, observando-a intensamente até ela desaparecer de vista.

 

Um pouco antes das 5:00, o Dr. William Lane chegou ao Ritz-Carlton Hotel em Boston, onde ia decorrer um cocktail e jantar em homenagem a um cirurgião à beira da reforma. A sua mulher, Odile, viera mais cedo para fazer algumas compras e ir ao seu cabeleireiro favorito. Como era habitual quando tinham este tipo de compromisso, ela reservara um quarto para a tarde no hotel.

 

Quando passou por Providence, a anterior boa disposição de Lane foi-se dissipando gradualmente. A satisfação que sentira depois de falar com os Van Hilleary dissolvera-se e, em vez dela, ressoava na sua mente um aviso, algo semelhante ao apito provocado pela falha de bateria num detector de fumos. Algo estava errado, mas não sabia exactamente o quê.

 

O alarme mental começara quando se preparava para sair da residência, no momento em que Sarah Bainbridge Gushing telefonou para dizer que ia de novo a caminho para visitar a mãe. Ela informou-o de que Letitia Bainbridge ligara logo após o almoço dizendo que não se sentia bem e que ficara terrivelmente nervosa porque a enfermeira Markey entrava e saía do seu quarto sem bater.

 

Ele avisara Markey sobre essa questão depois da queixa de Greta Shipley na semana anterior. Qual seria a jogada dela? Bom, não voltaria a avisá-la; não, telefonaria para a Prestige e dir-lhes-ia que se livrassem dela.

 

Quando chegou ao Ritz, Lane estava bastante nervoso. Ao entrar no quarto da mulher, a visão de Odile num robe fino, começando a maquilhar-se, aborreceu-o intensamente. «Não acredito que esteve este tempo todo às compras», pensou com irritação crescente.

 

Olá, querido disse Odile com um sorriso, olhando para ele alegremente enquanto Lane fechava a porta e se dirigia para ela. Gostas do meu cabelo? Deixei que Magda tentasse algo um pouco diferente. Abanou a cabeça jocosamente.

 

Era verdade, Odile tinha um lindo cabelo louro-esbranquiçado, mas Lane estava cansado de cair na armadilha de o admirar.

 

Parece-me bem disse, a irritação patente na voz.

 

Apenas bem? perguntou, os olhos muito abertos, as pálpebras tremendo.

 

Ouve, Odile, estou com dores de cabeça. Não será seguramente necessário lembrar-te que tive umas semanas más na residência.

 

Sei que tiveste, querido. Por que não te deitas um pouco enquanto acabo de pintar a tez?

 

Ali estava outra manifestação de Odile que o deixava louco, a utilização da expressão «pintar a tez», quando a maioria das pessoas dizia apenas «pôr base». Ela adorava que as pessoas a corrigissem. Quando o faziam, ela sentia um enorme prazer em salientar que aquela deixa era frequentemente mal citada, que o que Shakespeare escrevera fora «dourar o ouro refinado, pintar a tez».

 

«A pseudo-intelectual», pensou Lane, rangendo os dentes. Consultou o relógio.

 

Odile, a festa começa dentro de dez minutos. Não achas que é melhor despachares-te?

 

Oh, William, ninguém chega a um cocktail à hora marcada disse, de novo utilizando a voz de menina. Por que estás zangado comigo? Sei que te sentes muito preocupado com alguma coisa, mas, por favor, conta-me o que é. Tentarei ajudar. Já te ajudei noutras ocasiões, não ajudei?

 

Odile parecia estar à beira de romper a chorar.

 

Claro que sim disse o Dr. Lane, acalmando-se, a voz mais suave. Fez-lhe então o cumprimento que sabia lhe ia agradar. És uma linda mulher, Odile. Tentou demonstrar carinho. Mesmo antes de pintar a tez, és linda. Podias entrar neste momento naquela festa que destoarias favoravelmente em relação a todas as mulheres presentes.

 

Depois, quando ela começou a sorrir, acrescentou:

 

Mas tens razão. Estou preocupado. Mrs. Bainbridge não se estava a sentir bem esta tarde, e ficaria mais sossegado se estivesse lá, para o caso de haver alguma emergência. Por isso...

 

Oh! Odile suspirou, sabendo o que vinha a seguir. Que decepção! Estava ansiosa por ver toda a gente esta noite e por estar algum tempo com eles. Adoro os nossos residentes, mas parece realmente que a nossa vida gira em torno deles.

 

Era a reacção que Lane esperava receber.

 

Não te vou desapontar disse, com firmeza. Tu ficas e divertes-te. Melhor ainda, reserva o quarto para a noite e regressa amanhã. Não quero que conduzas durante a noite.

 

Tens a certeza?

 

Tenho. Apareço apenas na festa e ponho-me a caminho logo de seguida. Podes representar-me. O apito de alerta na sua cabeça transformara-se numa sirena estridente. Queria sair disparado, mas parou para lhe dar um beijo de despedida.

 

Ela pegou no rosto dele por entre as mãos.

 

Oh, querido, espero que nada aconteça a Mrs. Bainbridge, pelo menos durante muito tempo. É muito idosa, claro, e não se espera que viva para sempre, mas é tão querida. Se suspeitares de que há alguma coisa séria, por favor telefona logo ao médico dela. Não quero que tenhas de assinar outra certidão de óbito para outra das nossas residentes, tão pouco tempo depois da última. Lembra-te da confusão no último lar.

Lane retirou as mãos dela do seu rosto e segurou-as. Queria estrangulá-la.

Quando Maggie regressou a casa, permaneceu por longos instantes no alpendre, respirando fundo, inalando o aroma fresco, limpo e salgado do oceano. Tinha a sensação de que, depois da visita ao museu, o cheiro da morte impregnava as suas narinas.

 

Earl Bateman adorava a morte, pensou, sentindo um tremor de repulsa percorrer-lhe a espinha. Adorava falar sobre ela, adorava recriá-la.

 

Liam contara-lhe que Earl revelara extremo prazer ao descrever como as residentes de Latham tinham ficado assustadas quando as fez segurar nos sinos. Conseguia perfeitamente entender o medo delas, embora a versão de Earl sobre o incidente era que ele ficara tão perturbado que guardara os sinos no armazém do terceiro andar.

 

«Talvez tenha sido um pouco das duas coisas», pensou. «Earl podia ter gostado de as aterrorizar, mas seguramente ficara furioso quando o puseram na rua», pensou.

 

Parecia tão ansioso por lhe mostrar tudo o que existia naquele estranho museu. Então, por que motivo não se ofereceu para lhe mostrar também os sinos?, interrogou-se. Seguramente, não fora apenas devido a dolorosas recordações sobre o que lhe acontecera em Latham Manor.

 

Seria então por que ele os escondera nas campas de mulheres da residência mulheres que poderiam encontrar-se por entre a assistência na noite da palestra? Ocorreu-lhe outro pensamento. Teria Nuala assistido a essa palestra?

 

Maggie apercebeu-se de que se abraçava e que praticamente estremecia. Virando-se para entrar em casa, tirou o bilhete que deixara na porta para o chefe Brower. Uma vez no interior, a Primeira coisa que viu foi o retrato emoldurado que Earl lhe oferecera.

 

Pegou nele.

 

Oh, Nuala disse em voz alta. Finn-u-ala. Estudou a foto por um minuto. Seria possível recortá-la para mostrar apenas Nuala, e poderia ampliá-la.

 

Quando iniciou a escultura de Nuala, reunira as fotografias mais recentes que encontrara pela casa. No entanto, nenhuma era tão recente quanto aquela; seria uma ajuda maravilhosa na parte final da criação do busto. Iria levá-la agora lá para cima, decidiu.

 

O chefe Brower disse que passaria por lá esta tarde, mas já passava um pouco das 5:00. Decidiu trabalhar um pouco na escultura. Mas, quando se encontrava a caminho do estúdio, lembrou-se de que o chefe Brower dissera que telefonaria antes de vir. Não conseguia ouvir o telefone no estúdio.

 

«Já sei», pensou Maggie ao passar pelo quarto. «Esta será uma boa altura para limpar o resto das coisas de Nuala do fundo do roupeiro. Vou só deixar a fotografia no estúdio e volto logo.»

 

No estúdio, retirou a foto da moldura e pregou-a num painel junto da mesa de apoio. Ligou depois o foco de luz e examinou cuidadosamente a fotografia.

 

«O fotógrafo deve ter-lhes pedido que sorrissem», pensou. Sorrir tornara-se algo natural para Nuala. «Se há alguma coisa de errado com esta foto, é não estar suficientemente próxima para mostrar o que detectei nos olhos dela naquela noite ao jantar.»

 

Junto de Nuala, Earl Bateman parecia desconfortável, pouco à vontade, o sorriso definitivamente forçado. No entanto, pensou, não havia nada nele que sugerisse a obsessão assustadora que ela testemunhara nessa tarde.

 

Recordava-se de Liam ter dito que havia alguma loucura na família. Na altura, encarara aquela observação como uma piada, mas, agora, não estava assim tão certa.

 

«Provavelmente, Liam nunca tirou uma má fotografia na vida», pensou, continuando a observar a foto. Havia uma forte parecença entre os primos, sobretudo a estrutura facial. Contudo, o que parecia peculiar em Earl ficava bem em Liam.

 

 

«Tive tanta sorte por Liam me ter levado àquela festa, e tanta sorte por ter avistado Nuala», pensou, ao começar a descer as escadas. Lembrou-se de como o encontro quase não tinha acontecido, como decidira ir para casa por Liam estar tão preocupado, correndo de um grupo de primos para outro. Sentira-se realmente negligenciada naquela noite.

 

«No entanto, ele mudou seguramente desde que eu cheguei aqui», pensou. «Que devo contar ao chefe Brower quando ele chegar?», interrogou-se. «Mesmo que Earl Bateman tivesse posto aqueles sinos nas sepulturas, não há nada de inerentemente ilegal nisso. Mas por que haveria de mentir sobre os sinos estarem no armazém?»

 

Dirigiu-se ao quarto e abriu a porta do roupeiro. Os únicos artigos que ainda permaneciam pendurados eram o fato azul de cocktail que Nuala usara naquela noite no Four Seasons e a gabardina dourada que voltara a pendurar no roupeiro quando Neil e o pai deslocaram a cama.

 

O fundo do roupeiro, contudo, estava cheio de sapatos, chinelos e botas, todos desordenados.

 

Maggie sentou-se no chão e começou a escolhê-los. Alguns dos sapatos estavam bastante usados e, esses, atirou para trás para deitar fora. Mas outros, como o par que julgava recordar que Nuala usara na festa, eram novos e bastante caros.

 

«É verdade que Nuala não era muito arrumada, mas certamente não atirava assim com os sapatos», decidiu Maggie. Depois, ficou sem respiração. Sabia que as gavetas da cómoda tinham sido revistadas pelo intruso que matara Nuala, mas teria inclusive perdido tempo a remexer nos sapatos dela?

 

O telefone tocou e Maggie deu um salto. «O chefe Brower», pensou, e apercebeu-se de que não ficaria nada arrependida por o ver.

 

Não era Brower mas sim o detective Jim Haggerty, dizendo que o chefe gostaria de adiar o encontro para o dia seguinte de manhã.

 

Lara Horgan, a médica legista estatal, quer ir com ele, e ambos saíram para atender assuntos de emergência.

 

Não tem importância disse Maggie. Estarei cá de manhã. Depois, lembrando-se de que se sentira confortável com o detective Haggerty quando fora a sua casa, decidiu perguntar-lhe sobre Earl Bateman.

 

Detective Haggerty disse. Esta tarde, Earl Bateman convidou-me para ver o museu dele.Seleccionou cuidadosamente as palavras. Trata-se de um passatempo muito invulgar.

 

Já lá estive disse Haggerty. É um lugar estranho. Contudo, penso que não é propriamente um passatempo invulgar para Earl, atendendo a que a família dele está ligada aos funerais há quatro gerações. O pai ficou muito desapontado por ele não ter seguido o negócio. Mas pode dizer-se que, ao seu modo, seguiu. Riu-se.

 

Creio que sim.De novo, Maggie falou lentamente, medindo o que estava prestes a dizer. Sei que as palestras dele são muito famosas, mas soube que houve um infeliz incidente em Latham Manor. Está ao corrente?

 

Não, mas, se tivesse a idade daquelas pessoas, não haveria de querer ouvir falar sobre funerais, não concorda?

 

Concordo.

 

Pessoalmente, nunca assisti a nenhuma palestra dele continuou Haggerty, baixando de seguida o tom de voz.Não sou dado a falatórios, mas as pessoas da terra acharam que a ideia do museu foi de louco. Mas a verdade é que os Bateman podiam comprar e vender a maioria dos Moore. Earl pode não ter aspecto disso, mas é bastante rico. Herdou da parte do pai.

 

Compreendo.

 

O clã Moore trata-o por Primo Esquisito, mas creio que é sobretudo devido ao facto de terem ciúmes.

 

Maggie pensou em Earl tal como o vira hoje: fitando o local onde o corpo de Nuala fora encontrado; frenético ao arrastá-la de exposição para exposição; sentado no carro funerário, os olhos fitando-a intensamente.

 

Ou talvez o conheçam demasiado bem disse ela. Obrigada por ter telefonado, detective Haggerty.

 

Maggie desligou, satisfeita por ter decidido não mencionar os sinos. Haggerty teria seguramente troçado e atribuído o seu aparecimento fantasmagórico nas campas a uma outra excentricidade de um homem rico.

 

Maggie regressou à tarefa de escolher os sapatos. Desta vez, decidiu que o mais simples a fazer era colocá-los em sacos para lixo. Sapatos usados de tamanho pequeno e estreitos não serviriam seguramente a ninguém.

 

No entanto, valia a pena guardar as botas forradas a pêlo. A do pé esquerdo estava deitada de lado, a outra, direita. Pegou na bota esquerda e colocou-a ao seu lado, estendendo depois a mão para a outra.

 

Quando Maggie a ergueu, ouviu um som abafado vindo do interior da bota.

 

Oh, Deus, não!

 

Mesmo antes de se esforçar por enfiar a mão pelo interior de pêlo, sabia o que ia encontrar. Os seus dedos fecharam-se sobre metal frio e, quando retirou o objecto, tinha a certeza de que encontrara o que o assassino de Nuala andava à procura o sino em falta.

 

«Nuala tirou-o da campa de Mrs. Rhinelander», pensou, a mente trabalhando com firmeza, apesar das mãos trementes. Fitou-o; era exactamente como o sino que tirara da sepultura de Nuala.

 

Havia terra seca agarrada ao aro. Outras pequenas partículas de terra macia esfarelaram-se nos seus dedos.

 

Maggie recordava-se de ter encontrado terra nas algibeiras da gabardina dourada e lembrou-se de que, quando voltou a pendurar o fato de cocktail no outro dia, teve a impressão de que algo caíra.

 

«Nuala usava a gabardina quando tirou o sino da campa de Mrs.

 

Rhinelander», pensou. «Deve ter ficado assustada. Deixou-o na algibeira por um motivo. Teria encontrado o sino no dia em que alterou o testamento», questionou-se Maggie, «no dia antes de morrer?»

 

Será que, de alguma forma, validava as suspeitas que Nuala começava a ter quanto à residência?

 

«Earl afirmou que os sinos tinham sido guardados no armazém do museu. Se os doze que possuía ainda lá estavam, então foi outra pessoa que os colocou nas campas», raciocinou.

 

Maggie sabia que Earl regressara a Providence. E que a chave do museu se encontrava debaixo do vaso no alpendre. Mesmo que contasse à Polícia sobre os sinos, não teriam legalmente direito para entrar no museu e procurar os doze que Earl afirmava lá guardar, isto partindo do princípio de que a levariam a sério, o que provavelmente não aconteceria.

 

«Mas o facto é que ele me convidou a ir ao museu em qualquer altura, para tentar decidir que visuais ele deveria usar para os programas de cabo», pensou Maggie. «Levarei a câmara comigo. Isso fornecer-me-á uma desculpa para o caso de alguém me ver. Contudo, não quero que ninguém me veja», disse a si mesma. «Espero que anoiteça e vou até lá. Só há uma forma de ter a certeza. Vou procurar no armazém a caixa com os sinos. Estou segura de que não encontrarei mais de seis. E, se realmente só encontrar seis, saberei que ele está a mentir. Tirarei fotografias para que os possa comparar com os sinos nas campas e os dois que tenho. Depois, amanhã, quando o chefe Brower vier, dar-lhe-ei o rolo do filme», decidiu, «e dir-lhe-ei que penso que Earl Bateman descobriu um modo de se vingar dos residentes de Latham Manor. E que o está a fazer com a ajuda da enfermeira Zelda Markey.»

 

Vingança? Maggie ficou gelada ao aperceber-se dos seus próprios considerandos. Sim, colocar os sinos nas sepulturas das mulheres que tinham participado na sua humilhação seria uma forma de vingança. Mas teria isso sido suficiente para Earl? Ou, de alguma forma, poderia ele estar envolvido também nas suas mortes? E aquela enfermeira, Zelda Markey era óbvio que tinha qualquer relação com Earl. Poderia ela ser sua cúmplice?

 

Embora tivesse passado bastante da sua hora normal para jantar, o chefe Brower permanecia ainda na esquadra. Fora uma tarde irracional, envolvendo dois acidentes terríveis. Um carro cheio de adolescentes, que efectuavam um passeio, tinha embatido num casal de idosos e estes encontravam-se agora em estado crítico. Depois, um marido furioso violara uma ordem do tribunal que proibia a sua aproximação e dera um tiro na mulher, da qual estava separado.

 

Pelo menos sabemos que a mulher se safará disse Brower a Haggerty. Graças a Deus. Ela tem três filhos.

 

Haggerty anuiu.

 

Onde estiveste? perguntou Brower carrancudamente. Lara Morgan está à espera de saber a que horas Maggie Holloway nos pode receber amanhã de manhã.

 

Disse-me que estaria em casa toda a manhã disse Haggerty. Mas espere um pouco antes de ligar para a Dr.a Horgan. Primeiro quero contar-lhe sobre uma pequena visita que fiz a Sarah Gushing. A mãe dela, Mrs. Bainbridge, vive em Latham Manor. Quando era miúdo, pertenci a um grupo de escuteiros, tal como o filho de Sarah Gushing. Conheci-a muito bem. Uma senhora simpática. Muito impressionante. Muito esperta.

 

Brower sabia que de nada servia apressar Haggerty quando ele começava a contar qualquer coisa. Além do mais, parecia particularmente satisfeito consigo próprio. Por forma a acelerar as coisas, o chefe fez a pergunta esperada:

 

Então que te levou a falar com ela?

 

Algo que Maggie Holloway referiu quando lhe telefonei a seu pedido. Ela referiu-se a Earl Bateman. Digo-lhe, chefe, aquela jovem tem faro para sarilhos. Bom, de qualquer forma, conversámos um pouco.

 

«Tal como estás a fazer agora», pensou Brower.

 

E fiquei com a impressão de que Mrs. Holloway está muito nervosa em relação a Bateman, talvez até com medo dele.

 

De Bateman? Ele é inofensivo respondeu Brower.

 

Isso é exactamente o que eu teria pensado, mas talvez Maggie Holloway tenha olho clínico para detectar o modo de ser das pessoas. É fotógrafa, como sabe. De qualquer modo, ela mencionou um pequeno problema que Bateman teve em Latham Manor, um pequeno «incidente» que ocorreu não há muito tempo. Telefonei a um dos meus amigos cuja prima é lá empregada, e uma coisa conduziu à outra, tendo ela acabado por me contar sobre uma palestra que Bateman efectuou uma tarde, a qual chegou a provocar o desmaio de uma das velhotas; contou-me também que, por acaso, Sarah Gushing lá estava e que fez a vida negra a Bateman.

 

Haggerty viu o chefe comprimir os lábios, sinal de que estava na altura de ir directo ao assunto.

 

Foi por essa razão que fui falar com Mrs. Gushing. Disse-me que a razão por que tinha posto Bateman na rua foi por ele ter perturbado os residentes com uma palestra cujo tema era a preocupação das pessoas de serem enterradas vivas e depois lhes ter entregue réplicas de sinos que era hábito serem colocados nas campas, em épocas vitorianas. Parece que havia um fio ou arame preso ao sino e a outra extremidade era atada ao dedo do falecido. O fio saía de um orifício na urna até à superfície do terreno. Dessa forma, quando acordasse no caixão, a pessoa movia o dedo, o sino tocava no cimo da campa, e o tipo pago para vigiar começava a escavar.

 

»Bateman disse às senhoras que enfiassem o dedo anelar na laçada existente na extremidade do fio, fingissem que tinham sido enterradas vivas e depois começassem a tocar os sinos.

 

Estás a brincar!

 

Não, não estou, chefe. Aparentemente, foi então que se iniciou o tumulto. Uma senhora de oitenta anos, que sofria de claustrofobia, começou a gritar e desmaiou. Mrs. Gushing diz que pegou nos sinos, acabou com a palestra e quase atirou com Bateman porta fora. Tomou então a decisão de descobrir quem sugeriu a realização da palestra.

 

Haggerty parou apenas um instante para criar efeito.

 

Essa pessoa foi a enfermeira Zelda Markey, a senhora que, aparentemente, tem o hábito de entrar e sair dos quartos sem permissão. Sarah Gushing descobriu que Markey cuidou da tia de Bateman num lar, há alguns anos, e ficou muito ligada à família. Soube também que os Bateman foram bastante generosos a recompensá-la pelos extremosos cuidados prestados à velha tiazinha.

 

Abanou a cabeça.

 

As mulheres possuem uma forma especial de descobrir coisas, não é verdade, chefe? Sabe que agora está no ar uma pergunta? Será que existe algum problema no facto de todas aquelas senhoras terem morrido durante o sono no lar? Mrs. Gushing lembra-se de que, pelo menos algumas delas, estavam Presentes nessa palestra e, não tem a certeza, mas pensa que todas as que morreram recentemente estavam lá.

 

Antes de Haggerty ter terminado, Brower estava ao telefone com a Dr.a Lara Horgan. Ao concluir a conversa com ela, voltou-se para o detective:

 

Lara vai iniciar os trâmites necessários para a exumação dos corpos de Mrs. Shipley e de Mrs. Rhinelander, as duas pessoas que morreram mais recentemente em Latham Manor. E isto é só para começar.

 

Neil consultou o relógio às oito horas. Passava pela saída de Mystic Seaport, na Estrada 95. Mais uma hora e estaria em Newport, pensou. Considerara telefonar de novo a Maggie, mas decidiu em contrário, não desejando dar-lhe oportunidade para que dissesse que não o queria ver à noite. «Se não estiver lá, estaciono o carro em frente da casa até ela regressar», disse a si próprio.

 

Sentia-se irritado por não ter conseguido sair mais cedo. Como se não bastasse fazer a viagem na hora de ponta, ainda tinha de ter apanhado aquele semiatrelado avariado na Estrada do Norte 95, que fez parar o trânsito por mais de uma hora.

 

No entanto, o tempo não fora totalmente desperdiçado. Dispusera finalmente de uma oportunidade para ponderar no que o perturbara na conversa que tivera com Mrs. Arlington, a cliente do pai que acabara de perder todo o dinheiro investindo segundo os conselhos de Hansen. A confirmação da compra. Algo não lhe parecera correcto.

 

Por fim entendera, quando se lembrou de que Laura Arlington dissera que acabara de receber a confirmação sobre a sua compra de acções. «Esses documentos são remetidos por correio logo após a transacção, por isso deveria tê-los recebido há já alguns dias», disse Neil para si mesmo.

 

Depois, nessa manhã, fora informado de que não havia nenhum registo de que Mrs. Gebhart tivesse sido detentora das acções que Hansen supostamente comprou para ela, a nove dólares a acção. Hoje, aquelas acções tinham baixado para dois dólares. Será que o jogo de Hansen era levar as pessoas a pensar que tinham adquirido acções a um determinado preço acções que ele sabia estarem em declínio e depois aguardar, efectivando a transacção assim que se encontrassem num ponto muito baixo? Dessa forma, Hansen podia colocar a diferença no bolso.

 

Para que isso fosse possível, era necessário falsear uma confirmação da ordem emitida pela câmara de compensação. Não era simples, mas não era impossível, reflectiu Neil.

 

«Parece que percebi o jogo de Hansen», pensou ao passar pelo letreiro BEM-VINDO A RHODE ISLAND. «Mas que diabo levou aquele vigarista a fazer uma oferta pela casa de Maggie? De que forma está isso relacionado com o roubo de dinheiro a velhotas?» Tinha de existir qualquer outra coisa.

 

«Está em casa quando eu chegar, Maggie», implorou Neil em silêncio. «Estás a envolver-te demasiado, e não permitirei que continues a fazê-lo sozinha.»

 

Às 8:30, Maggie seguiu de carro para o museu de funerais de Earl Bateman. Antes de sair, pegara no sino que encontrara no roupeiro de Nuala e comparara-o com o sino que tirara da campa de Nuala. Ambos estavam agora posicionados lado a lado, na mesa de apoio no estúdio, com um foco de luz incidindo sobre eles.

 

Pegara na câmara Polaroid que usava quando preparava uma sessão e tirara uma fotografia aos dois sinos juntos. Não esperou para ver a foto. Tirara a cópia da câmara e atirara-a para cima da mesa, a fim de a estudar depois de regressar.

 

De seguida, com o saco do equipamento na mão, pesado devido às duas câmaras, filmes e lentes, saíra. Detestava só pensar em voltar àquele lugar, mas parecia não haver outra forma de obter as respostas de que necessitava.

 

«Vamos acabar com isto», disse a si mesma, trancando a porta da frente e entrando na sua carrinha.

 

Quinze minutos mais tarde, passava pela Agência Funerária Bateman. Era evidente que o estabelecimento tivera uma noite agitada. Uma fila de carros partia da sua entrada.

 

«Outro funeral amanhã... Bom, pelo menos não é ninguém relacionado com Latham Manor», pensou Maggie severamente. Pelo menos desde o dia anterior, todos os residentes estavam bem e vivos.

 

Virou à direita para a rua tranquila onde se localizava o museu. Entrou para o parque de estacionamento, feliz por verificar que o carro funerário já lá não se encontrava, lembrando-se de que Earl afirmara que o ia guardar na garagem.

 

Ao aproximar-se da velha casa, ficou surpreendida por ver uma luz fraca emergindo por detrás da cortina de uma janela do rés-do-chão.

 

«Deve estar programada para se desligar mais tarde» pensou, «mas, ao menos, servirá para me ajudar a movimentar.» Contudo, trouxera uma lanterna para utilizar no interior. Embora Earl Bateman tivesse sugerido que voltasse quando quisesse, não queria anunciar a sua presença acendendo mais luzes.

 

A chave encontrava-se por debaixo do vaso, onde Earl a deixara. Como antes, provocou um som forte e rangente ao girar na fechadura antiga. Tal como na anterior visita, a primeira coisa em que os seus olhos poisaram foi no manequim do criado de libré, embora agora os seus olhos parecessem menos atentos que hostis.

 

«Realmente, não quero estar aqui», pensou Maggie ao correr para as escadas, evitando lançar sequer uma mirada à sala onde o manequim de uma jovem mulher estava deitado num sofá.

 

De igual forma, tentou não pensar nas exposições no segundo andar ao incidir a lanterna para o cimo do primeiro lance de escadas. Mantendo o feixe de luz apontado para baixo, prosseguiu pelo lance seguinte. Contudo, a lembrança do que vira ali naquele dia assombrava-a aquelas duas enormes salas das pontas, uma representando um antigo funeral romano aristocrata, a outra a sala das urnas. Ambas eram terríveis, mas achava que a mais perturbadora era a visão de todos aqueles caixões numa só sala.

 

Tinha esperanças de que o terceiro andar fosse como o terceiro piso de Nuala um estúdio, rodeado de grandes armários e prateleiras. Infelizmente, o que encontrou foi claramente outro andar de salas. Constrangida, Maggie recordou-se de Earl ter afirmado que, nos seus primeiros tempos, a casa fora a habitação dos seus trisavôs.

 

Tentando não ficar nervosa, Maggie abriu a primeira porta. À luz cautelosamente baixa da lanterna, pôde ver que se tratava de uma exposição em preparação; uma estrutura de madeira, com o formato de uma cabana, em cima de dois pilares, encontrava-se num dos cantos. «Deus sabe o que aquilo significa», pensou, estremecendo, «ou para que serve», mas, pelo menos, a sala estava suficientemente vazia para que se tivesse a certeza de que nada mais existia para além do que estava à vista.

 

As duas salas seguintes eram semelhantes; ambas pareciam conter cenas de rituais de morte parcialmente concluídas.

 

A última porta revelou ser aquela que procurava. Tratava-se de um grande espaço de armazenagem, as paredes cobertas de prateleiras repletas de caixas. Duas prateleiras de roupa, desde robes ornamentados a autênticos farrapos, bloqueavam as janelas. Pesados caixotes de madeira, todos aparentemente selados, estavam empilhados uns sobre os outros.

 

«Por onde posso começar?», pensou Maggie, sentindo-se invadir por uma sensação de impotência. Levaria horas a vasculhar tudo e embora ali se encontrasse há escassos minutos, estava já ansiosa por partir.

 

Suspirando fundo, resistiu à tentação de se ir embora e tirou o saco do equipamento do ombro, pousando-o no chão. Com alguma relutância, fechou a porta da sala de armazenagem, para que a luz não escapasse para o corredor e não passasse através da janela sem cortina, no fim da passagem.

 

«Todas aquelas roupas são o suficiente para ter a certeza de que nada passará através das janelas da sala», disse a si própria. Mesmo assim, sentia-se tremer ao mover-se pelo enorme espaço. Tinha a boca seca. Cada nervo do seu corpo parecia doer, rogando-lhe que saísse dali.

 

Havia um pequeno escadote à sua esquerda. Era evidente que era utilizado para alcançar as prateleiras superiores, raciocinou. Parecia velho e pesado, o que significava que ia levar ainda mais tempo se tivesse de o arrastar de um lado para o outro. Decidiu iniciar as buscas nas prateleiras logo atrás do escadote. Quando subiu e olhou para baixo, descobriu que existiam etiquetas apropriadas em cima de todas as caixas. Pelo menos Earl identificara tudo, apercebeu-se, e, pela primeira vez, sentiu um lampejo de esperança de que o trabalho poderia revelar-se menos difícil do que receara.

 

De qualquer forma, as caixas pareciam estar arrumadas sem nenhuma ordem especial. Algumas, etiquetadas como MÁSCARAS DE MORTE, enchiam toda uma área de prateleiras; outras estavam marcadas TRAJES DE LUTO, LIBRÉS DE CRIADOS, RÉPLICAS DE TORCHERE, TAMBORES, PRATOS MUSICAIS DE LATÃO, PINTURAS RITUAIS, e por aí adiante mas nada de sinos.

 

«É impossível», pensou Maggie. «Nunca os vou encontrar.» Apenas deslocara o escadote duas vezes, e o relógio indicava-lhe que já se encontrava ali há mais de meia hora.

 

Moveu de novo o escadote, detestando o som irritante que provocava no chão. Começou de novo a subir, mas, quando colocou o pé no terceiro degrau, os seus olhos incidiram numa caixa de cartão posicionada entre outras duas, quase oculta por detrás delas.

 

Tinha a etiqueta SINOS ENTERRADOS vivos!

 

Deitou mãos à caixa, puxando-a com algum esforço. Quase Perdendo o equilíbrio quando a caixa se libertou, desceu do escadote e colocou a caixa no chão. Numa ânsia frenética, inclinou-se sobre ela e tirou-lhe a tampa.

 

Afastando o material de protecção de embalagem, retirou o Primeiro dos sinos metálicos, envolto e selado em plástico, cuja cobertura lhe conferia uma aparência ilusoriamente brilhante. Ansiosamente, os seus dedos procuraram até estar certa de ter encontrado tudo o que existia no interior da caixa.

 

Tudo eram seis sinos, idênticos aos outros que encontrara.

 

O talão de embalagem estava ainda dentro da caixa: «12 sinos vitorianos, fundidos de acordo com a encomenda de Mr. Earl Bateman», dizia.

 

Doze e não apenas seis.

 

«Vou tirar fotografias aos sinos e ao talão de embalagem e depois posso ir-me embora daqui», pensou Maggie. Subitamente, sentiu um forte desespero para ficar longe daquele lugar e em segurança, juntamente com a prova de que Earl Bateman era certamente um mentiroso, possivelmente até um assassino.

 

Não soube bem o que a fez suspeitar de que já não se encontrava só.

 

Teria efectivamente escutado o leve som da porta a abrir-se ou teria sido o estreito feixe de luz de uma outra lanterna que a alertou?

 

Voltou-se e ergueu a sua lanterna, ouviu-o falar e sentiu uma pancada na cabeça.

 

Depois, nada a não ser impressões de vozes e movimento e, por fim, o oblívio sem sonhos, até despertar nas trevas silenciosas da sepultura.

 

Neil chegou a casa de Maggie já passavam das nove horas, muito mais tarde do que pretendia. Fortemente desapontado por ver que a carrinha dela não se encontrava à porta, sentiu um momento de esperança quando reparou que uma das fortes luzes do estúdio estava acesa.

 

«Talvez o carro dela esteja numa estação de serviço», disse a si mesmo. Mas, quando não obteve resposta ao seu toque insistente da campainha, regressou ao carro a fim de esperar. À meia-noite, acabou por desistir e seguiu para a casa dos pais, em Portsmouth.

 

Neil encontrou a mãe na cozinha, preparando um cacau.

 

Por alguma razão, não conseguia dormir disse ela. Neil sabia que a mãe estava à espera de que ele chegasse há algumas horas, e sentiu-se culpado por a ter preocupado.

 

Devia ter telefonado afirmou. Mas por que não ligou para o telefone do meu carro?

 

Dolores Stephens sorriu.

 

Porque não há nenhum homem de trinta e sete anos de idade que queira ver a sua mãe a controlá-lo só porque está atrasado. Ocorreu-me que, provavelmente, passarias pela casa de Maggie, por isso não estava assim tão preocupada.

 

Neil abanou a cabeça tristemente.

 

Passei efectivamente pela casa de Maggie. Não estava. Estive à espera até agora.

 

Dolores Stephens estudou o filho.

 

Jantaste? perguntou, gentilmente.

 

Não, mas não se incomode. Ignorando-o, levantou-se e abriu o frigorífico.

 

Ela pode ter tido um encontro com alguém disse ela, o tom reflectido.

 

Saiu com o carro dela. Estamos numa segunda-feira à noite respondeu Neil, parando depois. Mãe, estou preocupado com ela. Vou telefonar de meia em meia hora até saber que está em casa.

 

Apesar de protestar que não tinha fome, comeu a enorme sanduíche que a mãe lhe preparou. À uma hora, tentou o número de Maggie.

 

A mãe fazia-lhe ainda companhia quando ele tentou de novo à uma e meia, depois às duas, duas e meia e, mais uma vez, às três.

 

Às três e meia, o pai juntou-se a eles.

 

Que se passa aqui? inquiriu, os olhos pesados do sono. Quando o informaram, exclamou: Pelo amor de Deus, telefona à Polícia e pergunta se foi registado algum acidente.

 

O polícia que atendeu assegurou a Neil que fora uma noite calma.

 

Não houve acidentes, caro senhor.

 

Dá-lhe a descrição de Maggie. Diz-lhe qual o tipo de carro que ela conduz. Deixa o teu nome e este número de telefone disse Robert Stephens. Dolores, tens estado a pé até esta hora. Vai dormir. Fico com Neil.

 

Bom... começou.

 

Pode haver uma explicação perfeitamente simples disse o marido gentilmente. Quando a mulher se afastou, disse: A tua mãe gosta muito de Maggie. Olhou para o filho. Sei que não conheces Maggie há muito tempo, mas por que te trata com indiferença, por vezes mesmo com frieza? Porquê?

 

Não seiconfessou Neil.Sempre se manteve na defensiva e creio que eu também, mas tenho a certeza de que existe algo especial entre nós. Abanou a cabeça. Tenho pensado muito nisso. Seguramente, não é apenas pelo facto de não ter telefonado a tempo de ficar com o número dela antes de vir para cá. Maggie não é assim tão banal. Mas reflecti muito na viagem para cá e há uma coisa que talvez possa ter influenciado.

 

Contou ao pai sobre a ocasião em que viu Maggie a chorar no cinema, durante um filme.

 

Pensei que o melhor era não me intrometer disse. Na altura, achei que lhe devia dar algum espaço. Mas agora interrogo-me se talvez não me terá visto e se tenha ressentido com o facto de eu nada ter dito. Que teria feito o pai?

 

Eu digo-te o que teria feito afirmou o pai de imediato. Se tivesse visto a tua mãe nessas circunstâncias, teria ficado logo do lado dela e tê-la-ia abraçado. Talvez não tivesse dito nada, mas deixá-la-ia saber que estava lá.

 

Olhou para Neil severamente.

 

Tê-lo-ia feito, independentemente de a amar ou não. Por outro lado, se estivesse a negar a mim próprio que a amava, ou se estivesse com medo de me envolver, então talvez tivesse fugido. Há um famoso episódio bíblico sobre o lavar de mãos.

 

Então, pai murmurou Neil.

 

E se eu fosse Maggie e soubesse que estavas lá, e eu quisesse voltar-me para ti, ter-te-ia esquecido se me virasses as costas concluiu Robert Stephens.

 

O telefone tocou. Neil foi mais rápido que o pai a levantar o auscultador.

 

Era um polícia.

 

Encontrámos o veículo que descreveu, estacionado em Marley Road. Trata-se de uma área isolada e não existem casas por perto, pelo que não temos testemunhas que nos indiquem quando foi lá deixado, ou por quem, se por Mrs. Holloway ou outra pessoa.

 

                 Terça-feira, 8 de Outubro

 

Às oito horas da manhã de terça-feira, Malcolm Norton desceu as escadas vindo do quarto e olhou para a cozinha. Janice já lá se encontrava, sentada à mesa, lendo o jornal e bebendo café.

 

Teve a cortesia sem precedentes de lhe servir uma chávena e depois perguntou:

 

Uma torrada?

 

Ele hesitou e depois disse:

 

Por que não? E sentou-se na frente dela.

 

Vais sair muito cedo, não vais? perguntou Janice. Malcolm reparou que ela estava nervosa. Sem dúvida sabia que ele estava a preparar alguma coisa.

 

Deves ter tido um jantar tardio a noite passada prosseguiu ela, colocando a chávena fumegante na frente dele.

 

Hummm respondeu Malcolm, gozando o mal-estar dela. Percebera que Janice estava acordada quando entrou, à meia-noite.

 

Malcolm bebeu um pouco de café e depois empurrou a cadeira para trás.

 

Pensando melhor, não vou querer a torrada. Adeus, Janice.

 

Quando chegou ao escritório, Malcolm Norton sentou-se por alguns minutos à secretária de Barbara. Desejou poder escrever-lhe algumas linhas, algo que a recordasse do que ela representara para ele, mas seria injusto. Não queria arrastar o nome dela para isto.

 

Foi para o seu gabinete e olhou de novo para as cópias que fizera dos documentos que encontrara na pasta de Janice, bem como para a cópia do seu extracto de conta.

 

Calculava no que ela estaria envolvida. Adivinhara-o na outra noite, quando viu aquele vigarista do sobrinho dela entregar-lhe um envelope no restaurante até onde a seguira. Ao ver os seus registos financeiros, confirmou as suas suspeitas.

 

Janice estava a ceder a Doug Hansen informações financeiras confidenciais em relação a candidatos a Latham Manor, para que ele pudesse tentar enganar as velhas e ricas mulheres. Talvez acusações de «tentativa de fraude» não se aplicassem a ela, mas seguramente não a ajudariam nesta cidade. E, claro, perderia o emprego.

 

«Óptimo», pensou.

 

«Foi Hansen quem apresentou a oferta mais alta a Maggie Holloway.» Tinha a certeza. E Janice informara-o sobre a pendente alteração à lei. Provavelmente, planearam subir a parada até Holloway vender.

 

«Se, ao menos, Maggie Holloway não tivesse surgido em cena e estragado tudo», pensou amargamente. Sabendo que teria obtido um bom lucro com a casa, teria encontrado um modo de ficar com Barbara.

 

Bom, de qualquer forma, nada disso interessava agora. Nunca compraria a casa. Nunca teria Barbara na sua vida. Na verdade, já não tinha uma vida. Terminara. Mas, ao menos, vingara-se. Iriam saber que ele não era o idiota de quem Janice escarnecera toda a vida.

 

Empurrou o envelope endereçado ao chefe Brower para o canto afastado da secretária. Não queria que ficasse manchado.

 

Pegou na pistola que guardava na última gaveta. Segurou-a por instantes, estudando-a pensativamente. Ligou de seguida o número da esquadra da Polícia e pediu para falar com o chefe Brower.

 

Daqui fala Malcolm Norton disse em tom agradável, pegando na pistola com a mão direita e apontando-a à cabeça. Penso que é melhor vir até cá. Estou prestes a suicidar-me.

 

Ao premir o gatilho, escutou a palavra final e única:

 

Não!

 

Maggie podia sentir o sangue que lhe manchava o cabelo de lado na cabeça, sensível ao toque e ainda dorida. «Acalma-te», murmurava vezes sem conta para si mesma. «Tenho de me manter calma. Onde estarei enterrada?», interrogou-se. «Provavelmente nalgum lugar isolado nos bosques, onde ninguém poderá localizar-me.» Quando puxava o fio preso ao seu dedo anelar, podia sentir uma certa pressão na outra extremidade.

 

«Ele deve ter ligado o fio a um dos sinos vitorianos», raciocinou. Correu o indicador no interior do tubo por onde passava o fio. Tinha um toque a metal sólido e parecia ter cerca de uns três centímetros de diâmetro. Conseguiria retirar por ali o ar suficiente para respirar, decidiu, a menos que ficasse obstruído.

 

Contudo, para que se dera ele a todo este incómodo?, questionou-se. Tinha a certeza de que não havia badalo no sino, se não conseguiria escutar nem que fosse um leve som. Isso significava que ninguém a podia ouvir.

 

Estaria num verdadeiro cemitério? Se era o caso, existiria a possibilidade de que alguém viesse visitar ou assistir a um funeral? Conseguiria ela escutar, mesmo que levemente, o som de carros?

 

«Planeia!», disse Maggie a si mesma. «Tens de planear.» Continuaria a puxar o fio até que o dedo lhe doesse, até esgotar as forças. Se estivesse enterrada num local onde passassem pessoas, então existia a esperança de que o sino em movimento atraísse atenção.

 

Tentaria igualmente gritar por socorro durante o que ela calcularia serem intervalos de dez minutos. Não tinha possibilidades de saber, contudo, se a sua voz subia pelo tubo, mas tinha de tentar. No entanto, não devia esgotar a voz demasiado cedo, para que tivesse condições de atrair a atenção se ouvisse sons de alguém nas proximidades.

 

«Mas será que ele vai regressar?», questionou-se. Era louco, tinha a certeza disso. Se a ouvisse a gritar, poderia cobrir o orifício e ela morreria sufocada. Tinha de ser cautelosa.

 

Obviamente, apercebeu-se de que tudo poderia ser em vão. Havia grandes probabilidades de ela estar enterrada num local ermo e ele à espreita, observando as pancadas dela na tampa do caixão e o puxar do fio, da mesma forma que alguns vitorianos fizeram ao aperceberem-se de que estavam enterrados vivos. No entanto, essas pessoas tinham alguém de guarda para ouvirem o sinal delas. Onde quer que estivesse, tinha a certeza de que estava completamente só.

 

Às dez horas, Neil e o pai encontravam-se tensamente sentados no gabinete do chefe Brower, escutando enquanto este revelava o conteúdo do bilhete de suicídio de Malcolm Norton.

 

Norton era um homem amargo e desapontado disse.De acordo com o que escreveu, devido a uma alteração nas leis do ambiente, a propriedade de Mrs. Holloway vai valer muito dinheiro. Quando fez a oferta a Nuala Moore para comprar a casa, era óbvio que estava pronto a enganá-la não lhe dizendo o seu verdadeiro valor, pelo que é muito possível que tenha ficado irado por ela ter mudado de ideias quanto ao vender-lhe a casa e a tenha matado. É provável que tenha revistado a casa, tentando encontrar o testamento revisto.

 

Parou para reler um parágrafo do extenso bilhete.

 

É evidente que culpabilizava Maggie Holloway por tudo ter corrido mal e, embora não o afirme, é possível que se tenha vingado dela. Conseguiu meter a mulher em sérios sarilhos.

 

«Isto não pode estar a acontecer», pensou Neil. Sentia a mão do pai sobre o seu ombro e quis sacudi-la. Receava que a compaixão pudesse limitar a sua determinação, e não ia permitir que isso acontecesse. Não ia desistir. Maggie não estava morta. Tinha a certeza. Não podia estar morta.

 

Falei com Mrs. Norton continuou Brower. O marido chegou a casa à hora habitual ontem e depois saiu, só regressando por volta da meia-noite. Esta manhã, quando tentou saber onde ele esteve, Norton não quis responder.

 

Maggie conhecia bem esse tal Norton? perguntou Robert Stephens. Que poderia levá-la a concordar encontrar-se com ele? Pensa que ele a forçou a entrar para o próprio carro dela e depois tenham seguido para o lugar onde foi localizado? Mas, então, que fez com Maggie e, uma vez que deixou o carro dela lá, como foi para casa?

 

Brower abanava a cabeça enquanto Stephens falava.

 

É um cenário muito pouco provável, concordo, mas trata-se de uma hipótese que temos de encarar. Mandámos vir cães para seguirem o rasto de Mrs. Holloway, por isso, se estiver naquela área, havemos de a encontrar. No entanto, fica bastante longe da casa de Norton. Teria de ter actuado em parceria com outra pessoa ou pedido boleia a alguém que passasse e, francamente, ambas estas versões não me parecem prováveis. A mulher por quem ele estava apaixonado, Barbara Hoffman, está no Colorado, de visita à filha. Já verificámos isso. Encontra-se lá desde o fim-de-semana.

 

O intercomunicador soou e Brower pegou no telefone.

 

Passe-o disse, após alguns instantes.

 

Neil enterrou o rosto nas mãos. «Deus permita que não tenham encontrado o corpo de Maggie», suplicou em silêncio.

 

A conversa de Brower durou apenas um minuto. Quando desligou, afirmou:

 

De certa forma, penso que temos boas notícias. Malcolm Norton jantou a noite passada no Log Cabin, um pequeno restaurante próximo do local onde Barbara Hoffman vivia. Aparentemente, ela e Norton comiam lá com frequência. O dono informou-nos que Norton esteve lá até muito depois das onze, por isso deve ter ido directo para casa.

 

«O que significa», pensou Neil, «que ele não teve nada a ver com o desaparecimento de Maggie.»

 

Que vão fazer agora? perguntou Robert Stephens.

 

Interrogar as pessoas sobre as quais Mrs. Holloway nos despertou a atenção disse Brower. Earl Bateman e a enfermeira Zelda Markey.

 

O intercomunicador soou de novo. Após ouvir sem comentários, Brower desligou e ergueu-se.

 

Não sei qual é o jogo de Bateman, mas acabou de telefonar reportando que, a noite passada, lhe roubaram um caixão do seu museu.

 

O Dr. William Lane apercebeu-se de que havia muito pouco que pudesse dizer à sua esposa naquela terça-feira de manhã. O silêncio profundo dela indicava-lhe que até ela tinha um certo limite.

 

Se ao menos Odile não tivesse regressado a casa a noite passada e o tivesse encontrado assim, pensou. Não tomava uma bebida há séculos, desde que tivera aquele incidente no último lugar em que trabalhou. Lane sabia que devia aquele emprego a Odile. Conhecera os proprietários da Empresa de Residências Prestige num cocktail e propusera-o para o cargo de director em Latham, o qual vinha sendo renovado.

 

Latham Manor estava destinada a ser uma das residências Prestige em regime de franchise e não operada com capital e gestão próprios; mas tinham concordado em reunir-se com ele e, mais tarde, submetera o seu currículo ao franchiser. Surpreendentemente, conseguira o lugar.

 

Tudo graças a Odile, tal como ela constantemente o recordava, pensou amargamente.

 

Sabia que o deslize da noite passada fora um sinal de que se estava a deixar abater pela pressão. As ordens para manter aqueles apartamentos ocupados; para não deixar passar um mês sem estarem vendidos. Sempre a ameaça implícita de que seria Apensado se não executasse em bom trabalho.

 

Depois do último incidente, Odile dissera-lhe que, se alguma Vez o voltasse a ver embriagado, nem que fosse uma só vez, ir-se-ia embora.

 

Por muito agradável que fosse esse pensamento, não podia permitir que tal acontecesse. A verdade é que necessitava dela.

 

Por que não ficara em Boston a noite passada?, pensou ele.

 

Porque Odile suspeitou de que ele estava a entrar em pânico, raciocinou.

 

Estava certa, obviamente. Ficara em verdadeiro estado de terror desde que soubera que Maggie Holloway andara à procura de um esboço que Nuala Moore fizera e que revelava a enfermeira Markey à escuta.

 

Devia ter encontrado um processo de se ver livre daquela mulher há muito tempo, mas fora a própria Prestige quem a enviara e, na maioria dos aspectos, era uma boa enfermeira. Era certo que muitos dos residentes lhe conferiam valor. De facto, por vezes interrogava-se se ela não seria uma enfermeira demasiado boa. Parecia saber mais do que ele sobre determinadas coisas.

 

Bom, independentemente do que se passava entre ele e Odile, o Dr. Lane sabia que tinha de seguir para a residência, a fim de efectuar a sua ronda matinal.

 

Encontrou a mulher a beber café na cozinha. Prática pouco habitual nela, não se incomodara a pôr o mínimo de maquilhagem naquela manhã. Tinha um ar esgotado e cansado.

 

Zelda Markey acabou de telefonar disse-lhe, um brilho de irritação nos olhos. A Polícia pediu-lhe que se colocasse à disposição para um interrogatório. Não sabe porquê.

 

Para um interrogatório? Lane sentiu a tensão percorrer-lhe o corpo, comprimindo-lhe cada músculo. «Está tudo acabado», pensou.

 

Disse-me também que Sarah Gushing deu ordens estritas de que nem ela nem tu podiam entrar no quarto da mãe. Parece que Mrs. Bainbridge não está bem e Mrs. Gushing está a efectuar os preparativos para a transferir imediatamente para o hospital.

 

Odile fitou-o de forma acusadora.

 

Ontem à noite, vieste a correr para cá para ir consultar Mrs. Bainbridge. Não quer dizer que pudesses ter chegado ao pé dela, mas ouvi dizer que só apareceste na residência por volta das onze. Que estiveste afazer até essa hora?

 

Neil e Robert Stephens seguiram para a rua onde ainda se encontrava estacionada a carrinha de Maggie. Estava agora rodeada com fita da Polícia e, ao apearem-se do carro, escutaram o ladrar dos cães no bosque das redondezas.

 

Nenhum deles tinha falado desde que abandonaram a esquadra da Polícia. Neil utilizou o tempo para repensar em tudo o que sabia. Representava muito pouco, apercebeu-se, e quanto menos sabia mais frustrado se sentia.

 

Era bom, mesmo essencial, poder dispor da presença compreensiva do pai, apercebeu-se. «Algo que não dei a Maggie», disse a si mesmo, amargamente.

 

Por entre as árvores e espessa folhagem, podia vislumbrar as figuras de, pelo menos, uma dúzia de pessoas. Agentes da Polícia ou voluntários?, questionou-se. Sabia que não tinham ainda encontrado nada, por isso a busca difundira-se por uma área mais ampla. Desesperado, apercebeu-se de que esperavam encontrar o corpo de Maggie.

 

Enfiou as mãos nas algibeiras e baixou a cabeça. Por fim, rompeu o silêncio.

 

Ela não pode estar morta disse. Saberia se ela estivesse morta.

 

Neil, vamosdisse o pai tranquilamente.Nem sei por que viemos até cá. Ficar por aqui não ajudará Maggie.

 

Que sugere que eu faça? inquiriu Neil, a ira e frustração revelando-se na voz.

 

Pelo que o chefe Brower disse, a Polícia ainda não falou com esse tal Hansen, mas descobriram que ele é aguardado no seu escritório em Providence, por volta do meio-dia. Nesta altura, consideram-no de fraca importância. Vão entregar a informação de fraude, que Norton deixou no bilhete, ao promotor de justiça. Mas não nos fará mal se estivermos no escritório de Hansen quando ele chegar.

 

Pai, não está à espera de que me preocupe, neste momento, com negócios de acções afirmou Neil, irritado.

 

Não, e também não é com isso que estou preocupado. Mas autorizaste efectivamente a venda de cinquenta mil acções que Cora Gebhart não possuía. Tens seguramente o direito de ir ao escritório de Hansen exigir algumas respostas respondeu Robert Stephens.

 

Fitou o rosto do filho.

 

Não percebes onde quero chegar? Algo acerca de Hansen perturbou bastante Maggie. Não creio que seja apenas uma coincidência ter sido ele a pessoa a apresentar a oferta mais alta pela casa dela. Podes deixá-lo na defensiva quanto às acções. Contudo, a verdadeira razão por que o quero ver sem delonga é para tentar descobrir se sabe alguma coisa sobre o desaparecimento de Maggie.

 

Quando Neil continuou a abanar a cabeça, Robert Stephens apontou para o bosque.

 

Se acreditas que o corpo de Maggie está ali algures, então vai juntar-te à equipa de busca. Acontece que tenho esperanças... acredito mesmo... que ela ainda está viva e, se for esse o caso, aposto que o raptor não a deixou nas vizinhanças do carro. Virou-se para se ir embora. Pede boleia a alguém. Vou a Providence para me encontrar com Hansen.

 

Entrou para o carro e bateu com a porta. Quando ligava a ignição, Neil sentou-se ao seu lado.

 

Tem razão admitiu. Não sei onde a vamos encontrar, mas não será aqui.

 

Às 11:30, Earl Bateman aguardava o chefe Brower e o detective Haggerty no alpendre do seu museu de funerais.

 

O caixão estava aqui ontem à tarde disse Bateman vigorosamente. Sei porque estive a mostrar o museu, e recordo-me de o realçar em particular. Não posso acreditar que alguém tivesse a insolência de profanar uma colecção importante como esta apenas por mera brincadeira. Cada objecto do meu museu foi comprado após meticulosa pesquisa.

 

»Vem aí o Dia das Bruxas continuou, batendo nervosamente com a mão direita na palma esquerda. Tenho a certeza de que isto foi obra de um bando de garotos. E digo-vos, desde já, que, se foi isso que aconteceu, apresentarei queixa. Não venham com desculpas de que eram apenas crianças, compreendido?

 

Professor Bateman, e se entrássemos e conversássemos sobre o assunto? disse Brower.

 

Claro. Na verdade, tenho uma fotografia do caixão no meu escritório. Trata-se de um artigo de especial interesse e, de facto, planeava transformá-lo no ponto principal de uma nova exposição quando expandir o museu. Venham por aqui.

 

Os dois polícias seguiram-no pelo átrio, passaram pela figura em tamanho natural vestida de preto até uma divisão que fora obviamente outrora a cozinha. Um lava-loiças, frigorífico e fogão encontravam-se ainda alinhados na parede do fundo. Haviaficheiros por debaixo das janelas traseiras. No centro da sala, uma secretária extremamente antiquada, a superfície coberta com esquemas e esboços.

 

Estou a planear uma exposição ao ar livre disse-lhes Bateman. Possuo uma propriedade aqui perto que será o local apropriado. Por favor, sentem-se. Vou tentar encontrar essa fotografia.

 

«Ele está muito nervoso», pensou Jim Haggerty. «Será que estava assim tão agitado quando o expulsaram de Latham Manor daquela vez? Talvez não seja o esquisito inofensivo por quem o tomei.»

 

E se lhe fizéssemos algumas perguntas antes de procurar a fotografia? sugeriu Brower.

 

Oh, está bem. Bateman puxou a cadeira da secretária e sentou-se.

 

Haggerty puxou do seu bloco de apontamentos.

 

Falta mais alguma coisa, professor Bateman? inquiriu Brower.

 

Não. Nada mais parece ter sido mexido. Graças a Deus que o museu não sofreu actos de vandalismo. Os senhores devem tomar em consideração que isto pode ter sido obra de alguém agindo por conta própria, porque também falta o cadafalço, pelo que não teria sido difícil fazer rodar o caixão para fora.

 

Onde estava localizado o caixão?

 

No segundo andar, mas tenho um elevador para movimentar os objectos pesados para cima e para baixo. O telefone tocou. Oh, desculpem. Deve ser o meu primo Liam. Estava numa reunião quando lhe telefonei para lhe contar o que sucedeu. Pensei que teria interesse em saber.

 

Bateman pegou no auscultador.

 

Está? disse. Escutou e depois anuiu, indicando que era a chamada que esperava.

 

Brower e Haggerty escutaram a conversa de só um dos lados, enquanto Bateman informava o primo sobre o roubo.

 

Uma antiguidade muito valiosa disse, excitado. Uma urna vitoriana. Paguei dez mil dólares por ela, e foi uma verdadeira pechincha. Esta tinha o tubo de respiração original e era...

 

Parou subitamente, como se tivesse sido interrompido. Depois, numa voz chocada, gritou:

 

Que queres dizer... que Maggie Holloway desapareceu? É impossível!

 

Quando desligou, parecia estonteado.

 

Isto é terrível! Como pode ter acontecido alguma coisa a Maggie? Oh, eu sabia, sabia que não estava em segurança. Tive uma premonição. Liam está muito preocupado. São muito amigos, sabem? Ligou do telefone do carro. Disse que acabou de ouvir sobre Maggie no noticiário, e vem a caminho de Boston. Depois, Bateman franziu o sobrolho. Sabiam que Maggie estava desaparecida? perguntou a Brower, em tom acusador.

 

Sim respondeu Brower brevemente.E sabemos também que esteve consigo aqui ontem à tarde.

 

Bem, sim. Levei-lhe uma fotografia de Nuala Moore, tirada numa recente reunião de família, e ela ficou muito agradecida. Como é uma fotógrafa de sucesso, pedi-lhe que me ajudasse a seleccionar visuais para a série de televisão que vou fazer sobre costumes fúnebres. Foi por isso que veio ver as exposições explicou.

 

Ela viu praticamente tudo prosseguiu ele. Fiquei desapontado por ela não ter trazido a câmara, por isso, quando se foi embora, disse-lhe que voltasse quando quisesse. Mostrei-lhe onde escondo a chave.

 

Isso foi ontem à tarde disse Brower. Ela voltou ontem à noite?

 

Não creio. Por que haveria de vir à noite? A maioria das mulheres não o faria. Mostrou-se preocupado. Espero que nada de mau tenha acontecido a Maggie. É uma mulher simpática e muito atraente. Na verdade, senti-me realmente atraído por ela.

 

Abanou a cabeça e acrescentou:

 

Não, poderia apostar que não foi ela quem roubou o caixão. Isto porque, quando lhe mostrei a sala ontem, nem sequer quis entrar.

 

Seria aquilo uma piada?, interrogou-se Haggerty. Este tipo já tinha a explicação pronta, notou. «Aposto dez para um que já sabia do desaparecimento de Maggie Holloway.»

 

Bateman levantou-se.

 

Vou procurar a fotografia.

 

Ainda nãodisse Brower.Primeiro gostaria de conversar consigo sobre um pequeno problema que teve quando efectuou uma palestra em Latham Manor. Ouvi qualquer coisa sobre sinos de cemitério vitorianos e de lhe terem pedido para sair.

 

Bateman, irado, deu um murro sobre a secretária.

 

Não quero conversar sobre isso! Que se passa com vocês todos? Ainda ontem tive de dizer o mesmo a Maggie Holloway. Esses sinos estão guardados no meu armazém e aí permanecerão. Não falarei sobre isso. Entende? O rosto estava lívido de raiva.

 

O tempo estava a mudar, tornando-se intensamente frio. O sol da manhã tinha dado lugar a nuvens e, por volta das onze, o céu estava negro.

 

Neil e o pai estavam sentados em cadeiras de costas altas, que, para além da mesa da secretária e da cadeira, eram o único mobiliário da zona de recepção no escritório de Douglas Hansen.

 

A única empregada era uma lacónica jovem com cerca de 20 anos que, desinteressadamente, os informou de que Mr. Hansen estava ausente do escritório desde quinta-feira à tarde e que tudo o que sabia era que ele dissera que chegaria por volta das dez de hoje.

 

A porta que conduzia ao gabinete interior estava aberta e puderam constatar que o aposento estava tão parcamente mobilado quanto a zona da recepção. Uma secretária, cadeira, armário e um pequeno computador era tudo o que avistavam.

 

Não tem exactamente o aspecto de uma agitada firma de corretagem afirmou Robert Stephens. Na verdade, diria que tem mais o aspecto de um antro de vigarice... criado de forma a poder sair-se da cidade rapidamente, no caso de alguém dar com a língua nos dentes.

 

Neil sentia-se agonizar por se limitar a ficar ali sentado, sem nada fazer. «Onde está Maggie?», não parava de se interrogar. «Ela está viva, ela está viva», repetiu com determinação. «E vou encontrá-la.» Tentou concentrar-se no que o pai dizia.

 

Duvido que mostre este sítio aos seus potenciais clientes.

 

Não mostra respondeu Robert Stephens. Leva-os para almoços e jantares de luxo. Por aquilo que Cora Gebhart e Laura Arlington me contaram, é todo charmoso, embora ambas tenham afirmado que se mostrou muito conhecedor sobre investimentos.

 

Nesse caso, tirou um curso rápido em qualquer lado. O nosso tipo da segurança, que efectuou uma investigação sobre ele, disse-me que Hansen tinha sido despedido de duas firmas de corretagem apenas por pura incompetência.

 

Os dois homens giraram a cabeça quando a porta do exterior se abriu. Mesmo a tempo de detectar a expressão de perplexidade no rosto de Douglas Hansen quando os viu.

 

«Pensa que somos polícias», percebeu Neil. «Já deve ter conhecimento do suicídio do tio.»

 

Levantaram-se. Robert Stephens foi o primeiro a falar.

 

Represento Mrs. Cora Gebhart e Mrs. Laura Arlington disse, formalmente. Como contabilista delas, estou aqui para discutir os recentes investimentos que o senhor supostamente fez em nome delas.

 

E eu estou aqui em representação de Maggie Holloway disse Neil, irritado. Onde esteve ontem à noite e que sabe sobre o desaparecimento dela?

 

Maggie começou a tremer de forma incontrolável. Há quanto tempo estaria ali?, questionou-se. Teria passado pelo sono ou perdido a consciência? Doía-lhe tanto a cabeça. A boca estava seca de sede.

 

Quanto tempo decorrera desde a última vez que gritara por auxílio? Andaria alguém à procura dela? Será que alguém sabia sequer que ela estava desaparecida?

 

Neil. Tinha dito que telefonaria à noite. Não, a noite passada, reflectiu, tentando situar-se no tempo. «Cheguei ao museu às nove horas», recordou-se. «Sei que estou aqui há horas. Agora é de manhã ou será mais tarde?»

 

Neil telefonar-lhe-ia?

 

Ou não?

 

Rejeitara as expressões de preocupação por parte dele. Talvez não telefonasse. Fora fria com ele. Talvez tivesse lavado as mãos em relação a ela.

 

«Não, não», rogou. Neil não faria isso. Neil iria procurá-la. «Encontra-me, Neil,porfavor, encontra-me», murmurou, contendo as lágrimas.

 

O rosto dele surgiu-lhe na mente. Transtornado. Inquieto. Preocupado com ela. Se, ao menos, lhe tivesse contado sobre os sinos nas campas. Se, ao menos, lhe tivesse pedido que a acompanhasse ao museu.

 

O museu, pensou, subitamente. A voz atrás dela.

 

Mentalmente, recordou o que sucedera no ataque. Tinha-se virado e viu a expressão no rosto dele, antes de ele esmagar a lanterna na cabeça dela. Malvado. Sanguinário.

 

A mesma expressão que deveria ter exibido quando assassinou Nuala.

 

Rodas. Não se encontrava totalmente inconsciente quando se sentiu transportada sobre algo com rodas.

 

Uma voz de mulher. Escutara uma voz feminina familiar falando com ele. Maggie gemeu quando se recordou a quem pertencia a voz.

 

«Tenho de sair daqui», pensou. «Não posso morrer; sabendo isto, não deverei morrer. Ela há-de fazê-lo de novo por ele. Sei que fará.»

 

Socorro gritou. Ajudem-me.

 

Chamou vezes sem conta até que, por fim, conseguiu forçar-se a parar. «Não entres em pânico», avisou-se. «Acima de tudo, não entres em pânico. Vou contar até quinhentos muito lentamente e depois grito três vezes. Continuarei a fazer isso.»

 

Escutou um som frequente e abafado vindo de cima e sentiu depois um gotejar frio na mão. Chovia, percebeu, e a chuva penetrava através do orifício.

 

Às onze e meia, o chefe Brower e o detective Haggerty entraram em Latham Manor. Era óbvio que os residentes sabiam que algo estava errado. Encontravam-se reunidos em pequenos grupos no hall de entrada e na biblioteca.

 

Os agentes tinham perfeita consciência dos olhares curiosos que os seguiam quando a empregada os conduziu à zona dos escritórios.

 

O Dr. Lane cumprimentou-os com cortesia.

 

Entrem, por favor. Estou ao vosso dispor.Indicou para que se sentassem.

 

«Está com muito mau aspecto», pensou Haggerty, apercebendo-se dos olhos raiados de sangue, das rugas em redor da boca do médico e das gotas de transpiração na fronte.

 

Dr. Lane, nesta fase, estamos simplesmente a fazer algumas perguntas, nada mais começou Brower.

 

Nada mais do que quê? inquiriu Lane, esforçando um sorriso.

 

Doutor, antes de assumir este cargo, esteve desempregado durante alguns anos. Por que motivo?

 

Lane ficou em silêncio por momentos e depois afirmou, tranquilamente:

 

Suspeito de que já estão ao corrente do motivo.

 

Preferíamos ouvir a sua versão disse-lhe Haggerty.

 

A minha versão, tal como os senhores dizem, é que tivemos um surto de gripe no Lar da Colónia, que eu geria. Quatro das mulheres tiveram de ser transferidas para o hospital. Portanto, quando surgiram outras doentes com a mesma sintomatologia da gripe, parti naturalmente do princípio de que tinham apanhado o mesmo vírus.

 

Mas não tinham disse Brower tranquilamente. Na verdade, na zona do lar em que elas se encontravam, existia um aquecedor avariado. Estavam a sofrer os efeitos de envenenamento por monóxido de carbono. Três delas faleceram. Não é verdade?

 

Lane manteve os olhos desviados e não respondeu.

 

E não é verdade que o filho de uma dessas mulheres lhe disse que a desorientação da mãe não parecia consistente com os sintomas da gripe e que chegou mesmo a pedir que o senhor verificasse a possível presença de monóxido de carbono?

 

De novo, Lane não respondeu.

 

A sua licença foi suspensa por negligência grave, mas, mesmo assim, conseguiu obter esta posição. Como foi isso possível? inquiriu Brower.

 

A boca de Lane transformou-se numa reta.

 

Porque o pessoal da Empresa de Residências Prestige foi suficientemente justo para reconhecer que eu estive como director num estabelecimento superlotado e com orçamentos baixos, que eu trabalhava quinze horas por dia, que um número de residentes sofriam de gripe e que, portanto, era compreensível o erro no diagnóstico, e que o homem que apresentou queixa estava constantemente a encontrar defeitos para tudo, desde a temperatura da água quente, a portas que chiavam, a janelas mal calafetadas.

 

Ergueu-se.

 

Considero estas perguntas como insultuosas. Sugiro que saiam imediatamente. Já perturbaram os nossos residentes. Aparentemente, alguém sentiu necessidade de informar toda a gente de que os senhores vinham.

 

Só pode ter sido a enfermeira Markeydisse Brower.Por favor, indique-me onde a posso encontrar.

 

Zelda Markey mostrava-se nitidamente desafiadora, sentada diante de Brower e Haggerty, na pequena sala do segundo-andar que servia de gabinete dela. O seu rosto de feições agudas estava de um vermelho-irritado, os olhos frios de raiva.

 

Os meus doentes necessitam de mim disse, rudemente. Sabem que o marido de Janice Norton se suicidou e ouviram um rumor de que ela fazia algo ilegal aqui. Estão ainda mais incomodados por terem sabido que Miss Holloway desapareceu. Toda a gente que a conhecia gostava muito dela.

 

E a senhora, Mrs. Markey, gostava dela? perguntou Brower.

 

Não a conhecia o suficiente para gostar dela. As escassas vezes que conversei com a jovem, achei-a simpática.

 

Mrs. Markey, é amiga de Earl Bateman, não é?perguntou Brower.

 

Para mim, a amizade implica familiaridade. Conheço e admiro o professor Bateman. Ele, tal como a família, estiveram muito dependentes da tia, Alicia Bateman, que residia no Lar Seaside, onde estive empregada.

 

De facto, os Bateman foram muito generosos para consigo, não foram?

 

Sentiram que eu cuidava excepcionalmente de Alicia e foram suficientemente simpáticos insistindo em recompensar-me.

 

Compreendo. Gostaria de saber por que considerou que uma palestra sobre o tema da morte teria interesse para os residentes de Latham Manor. Não lhe parece que, num curto espaço de tempo, é o que lhes espera?

 

Chefe Brower, tenho consciência de que esta sociedade tem horror à palavra «morte». Mas a geração mais antiga possui uma maior sensação da realidade. Pelo menos metade dos nossos residentes deixaram instruções quanto aos funerais que pretendiam e, na verdade, era com frequência que brincavam sobre isso.

 

Hesitou.

 

No entanto, gostaria de afirmar que pensava que o professor Bateman tencionava falar sobre funerais reais ao longo dos tempos, o que, evidentemente, é um tema bastante interessante. Se tivesse sido esse o seu tema... Fez uma breve pausa e depois continuou: Admito que a utilização dos sinos incomodou algumas pessoas, mas a forma como Mrs. Sarah Gushing tratou o professor Bateman foi imperdoável. Ele não pretendia causar nenhum embaraço, mas ela tratou-o de modo desumano.

 

Pensa que ele ficou muito zangado? perguntou Brower brandamente.

 

Penso que ficou humilhado, depois talvez zangado, sim. Quando não está em palestras, é um homem muito tímido.

 

Haggerty levantou os olhos dos apontamentos. Uma suavidade inequívoca surgira no tom e expressão da enfermeira, Interessante», pensou. Tinha a certeza que também Brower reparara. A amizade implica familiaridade. Parece-me que a senhora protesta realmente demasiado», decidiu.

 

Enfermeira Markey, que sabe sobre um esboço que Mrs. Nuala Moore fez com a falecida Mrs. Greta Shipley?

 

Absolutamente nada respondeu.

 

Encontrava-se no apartamento de Mrs. Shipley. Parece ter desaparecido depois da morte dela.

 

Isso é absolutamente impossível. O quarto ou apartamento é de imediato trancado. Toda a gente sabe isso.

 

Hum-hum. O tom de Brower tornou-se confidencial. Enfermeira Markey, só entre nós, que pensa do Dr. Lane?

 

Ela fitou-o agudamente e só depois falou:

 

Encontro-me num ponto em que, mesmo que signifique magoar alguém de quem gosto muito, estou disposta a perder outro emprego dizendo o que sinto. Não permitiria que o Dr. Lane tratasse o meu gato. É provavelmente o médico mais estúpido com quem trabalhei e, acreditem, já trabalhei com muitos.

 

Levantou-se.

 

Tive igualmente a honra de trabalhar com médicos magníficos. É por esse motivo que não consigo compreender como o pessoal da Prestige escolheu o Dr. Lane para gerir este estabelecimento. Antes que pergunte, é por essa razão que controlo tão frequentemente os residentes com os quais me preocupo. Não creio que ele seja capaz de lhes prestar os cuidados de que necessitam. Sei que, por vezes, esse facto pode não lhes agradar, mas só o faço para bem deles.

 

Neil e Robert Stephens seguiram directamente de carro para a esquadra da Polícia de Newport.

 

Ainda bem que conseguiste aquela ordem de retenção ontem disse Robert ao filho.Aquele tipo estava pronto para escapar. Pelo menos assim, com a conta do Banco congelada, ainda temos possibilidades de recuperar o dinheiro de Cora, nem que seja apenas uma parte.

 

Mas ele não sabe o que aconteceu a Maggie disse Neil amargamente.

 

Não, acho que não. Não é possível estares num casamento às cinco horas em Nova Iorque, dares o nome de dezenas de pessoas que confirmarão que permaneceste durante toda a cerimónia e estares aqui ao mesmo tempo.

 

Tinha muito mais para dizer sobre o seu álibi do que sobre os negócios de corretagem disse Neil.Pai, aquele fulano não tem nada no escritório que indique que lida com títulos. Viu alguma declaração financeira, um prospecto ou qualquer das coisas que vê no meu escritório?

 

Não, não vi.

 

Acredite, aquele não é o centro de operações. Aquelas transacções são efectuadas em outro lugar qualquer. E, provavelmente, nesse lugar ocorre o mesmo tipo de vigarice.Neil fez uma pausa, olhando tristemente pela janela do carro. Santo Deus, que tempo horrível.

 

«Está a arrefecer e chove a cântaros. Onde está Maggie?», pensou. «Estará sujeita àquele temporal algures? Estará assustada? Estará morta?»

 

De novo, Neil rejeitou o pensamento. Não podia estar morta. Era como se a pudesse ouvir pedindo-lhe ajuda.

 

Chegaram à esquadra da Polícia e verificaram que o chefe Brower estava ausente, mas o detective Haggerty recebeu-os.

 

Não há ainda notíciasdisse candidamente, em resposta às interrogações urgentes sobre Maggie. Ninguém se lembra de ver aquela carrinha Volvo na cidade, a noite passada. Entrámos em contacto com os vizinhos de Mrs. Holloway. Quando passaram pela casa dela a caminho do jantar, às sete horas, o carro estava parado à porta. Já lá não se encontrava quando regressaram às nove e meia, pelo que temos de assumir que ela saiu nesse intervalo de duas horas e meia.

 

É tudo o que tem para nos dizer? perguntou Neil, incrédulo. Meu Deus, tem de haver mais do que isso.

 

Quem me dera que houvesse. Sabemos que foi àquele museu de funerais na segunda-feira à tarde. Falámos com ela antes de ir e depois de voltar.

 

Museu de funerais? disse Neil. Não me parece coisas de Maggie. Que foi lá fazer?

 

De acordo com o professor Bateman, estava a ajudá-lo a seleccionar visuais para uma série qualquer de televisão que ele vai fazer respondeu Haggerty.

 

Disse «de acordo com o professor Bateman» afirmou Robert Stephens rispidamente.

 

Disse? Bom, quero dizer, não temos motivos para duvidar do professor. Pode ser um pouco excêntrico, mas cresceu aqui, as pessoas conhecem-no, e nunca se envolveu em sarilhos.Hesitou. Vou ser totalmente honesto convosco. Mrs. Holloway pareceu indicar que existia algo nele que a incomodava. E, quando verificámos, descobrimos que, embora não houvesse nenhum caso envolvendo a Polícia na sua história, foi responsável uma tarde por uma forte agitação entre um número de residentes em Latham Manor. Parece que acabaram por o expulsar de lá.

 

«Latham Manor, de novo!», pensou Neil.

 

Bateman informou também que Maggie sabia onde estava escondida a chave do museu e que a convidou a regressar com a câmara quando quisesse.

 

Acredita que ela foi realmente lá a noite passada? Sozinha? perguntou Neil, incrédulo.

 

Não. O facto é que parece ter havido um roubo no museu a noite passada... acreditem se quiserem, mas falta um caixão. O que estamos a fazer é interrogar alguns adolescentes das vizinhanças que já nos deram problemas anteriormente. Pensamos que poderão ser os responsáveis. Pensamos também que nos poderão fornecer algumas informações acerca de Mrs. Holloway. Supondo que ela entrou no museu e eles viram o carro dela lá estacionado, é de admitir que, primeiro, se tenham certificado de que ela saiu antes de eles próprios entrarem.

 

Neil levantou-se para partir. Necessitava de sair dali; necessitava de fazer alguma coisa. Sobretudo, sabia que, ali, não descobriria mais nada. Maspodia ir a Latham Manor e, talvez, descobrir algo. A sua desculpa seria que queria falar com o director sobre a possível candidatura dos Van Hilleary.

 

Mais tarde, entrarei em contacto consigo disse a Haggerty.

 

Vou até Latham Manor para tentar falar com as pessoas de lá. Nunca se sabe se alguém não terá uma informação que possa ajudar. E tenho uma boa desculpa para a visita. Estive lá na sexta-feira para conhecer as instalações, a pedido de um casal, meus clientes na área dos investimentos. Acontece que necessito de fazer mais algumas perguntas.

 

Haggerty ergueu o sobrolho.

 

É provável que descubra que estivemos lá ainda há pouco.

 

Porquê? perguntou Robert Stephens rapidamente.

 

Falámos com o director e com uma das enfermeiras, Zelda Markey, que parece ser amiga íntima do professor Bateman. Não posso dizer mais do que isso.

 

Pai, qual é o número do telefone do seu carro? perguntou Neil.

 

Robert Stephens pegou num cartão de visita e escrevinhou o número nas costas.

 

Toma.

 

Neil entregou o cartão a Haggerty.

 

Se houver qualquer desenvolvimento, tente contactar-nos neste número. Ligaremos mais ou menos de hora a hora.

 

Certo. Mrs. Holloway é vossa amiga íntima, não é?

 

Mais do que isso disse Robert Stephens bruscamente. Considere-nos a família dela.

 

Como quiser disse Haggerty simplesmente. Compreendo.

- Olhou para Neil. Se a minha esposa estivesse desaparecida, estaria a passar pelo mesmo inferno. Conheci Mrs. Holloway. É francamente esperta e, acredito, muito expedita. Se houver qualquer forma de ela se ajudar a si própria, confiem que o fará.

 

O ar de genuína simpatia no rosto de Haggerty levou Neil a tomar consciência de como poderia estar próximo de perder uma pessoa sem a qual, surpreendentemente, não se conseguia imaginar a viver. Engoliu em seco, sentindo um nó na garganta. Não confiando em si mesmo para falar, anuiu e saiu.

 

No carro, disse:

 

Pai, por que será que sinto que Latham Manor é o centro de tudo isto?

 

Maggie, não estás a gritar por socorro, pois não? Não é sensato da tua parte.

 

Oh, Deus, não! Ele estava de volta! A voz dele, profunda e ecoante, era quase indistinta através da chuva que batia na terra acima dela.

 

Deves estar a ficar ensopada aí em baixo gritou ele. Ainda bem. Quero que fiques fria, molhada e aterrorizada. Aposto que também tens fome. Ou apenas sede?

 

«Não respondas», disse a si própria. «Não lhe supliques. É o que ele pretende.»

 

Arruinaste todos os meus planos, Maggie, tu e Nuala. Ela começou a suspeitar de alguma coisa, por isso teve de morrer. E tudo estava a correr tão bem. Latham Manor... sou o proprietário, sabes? Só que o idiota que o gere não sabe quem eu sou. Possuo uma holding. E estavas certa quanto aos sinos. Aquelas mulheres não foram enterradas vivas, apenas talvez um pouco mais cedo do que Deus pretendia. Deviam ter tido mais tempo. Foi por essa razão que coloquei os sinos nas campas. Uma brincadeira da minha parte. Tu és a única que está realmente enterrada viva.

 

«Quando exumarem aquelas mulheres, vão culpar o Dr. Lane pela morte delas. Pensarão que foi por negligência dele que os remédios foram trocados. De qualquer forma, é um péssimo médico, com um historial horrível. E com problemas de alcoolismo. Por isso lhes pedi que o contratassem. Mas a tua estúpida interferência significa que não poderei chamar o meu pequeno anjo da morte para ajudar as senhoras a descerem à terra mais cedo do que previsto. E é uma pena; quero o dinheiro. Sabes qual é o montante envolvido na venda daqueles quartos? Muito. Muito.

 

Maggie cerrou os olhos, esforçando-se por apagar o rosto dele da sua mente. Era como se o pudesse ver. Era um louco.

 

Penso que já percebeste que o sino na tua campa não possui badalo, não é verdade? Agora, tenta calcular isto: Quanto tempo levará até a saída de ar ficar obstruída?

 

Sentiu terra a cair-lhe sobre a mão. Freneticamente, tentou libertar o orifício com o dedo. Entrou ainda mais terra.

 

Oh, mais uma coisa, Maggie disse, a voz subitamente mais abafada. Tirei os sinos das outras campas. Pensei que era uma boa ideia. Voltarei a colocá-los quando enterrarem os corpos de novo. Bons sonhos.

 

Ouviu algo bater no orifício; depois, nada mais. Ele fora-se embora. Tinha a certeza. O orifício estava tapado. Fez a única coisa que lhe veio à mente que pudesse auxiliar. Movimentou a mão esquerda por forma a que o fio no seu dedo anelar impedisse que a lama endurecesse à sua volta. «Por favor, Senhor», rezou, «permite que alguém veja o sino a mover-se.»

 

Quanto tempo levaria a consumir todo o oxigénio? Horas? Um dia?

 

Neil, ajuda-me, ajuda-me murmurou. Preciso de ti. Amo-te. Não quero morrer.

 

Letitia Bainbridge recusara-se a ir para o hospital.

 

Podes cancelar a ambulância, ou vai tu própria nela disse à filha, mas não irei a lado nenhum.

 

Mas a mãe não está bem protestou Sarah Gushing, sabendo que era perfeitamente inútil discutir com ela. Quando a mãe punha aquele ar, de nada servia insistir.

 

Quem pode estar bem aos noventa e quatro anos?inquiriu Mrs. Bainbridge. Sarah, agradeço a tua preocupação, mas há muita agitação aqui e não tenciono perder nada.

 

Ao menos, toma as suas refeições num tabuleiro?

 

O jantar não. Sabes que o Dr. Evans me consultou apenas há alguns dias. Não se passa nada comigo que ter cinquenta anos não ajudasse.

 

Foi com relutância que Sarah Gushing cedeu.

 

Muito bem, mas terá de me prometer uma coisa. Se não se sentir bem, deixar-me levá-la de novo ao Dr. Evans. Não quero o Dr. Lane a tratá-la.

 

Nem eu. Por muita razão de queixa que possa existir em relação a ela, a enfermeira Markey detectou uma alteração no estado de saúde de Greta Shipley a semana passada e tentou que o Dr. Lane fizesse alguma coisa. Ele, é claro, nada detectou; ele estava errado, ela certa. Alguém sabe por que a Polícia esteve a falar com ela?

 

Não sei bem.

 

Bom, então descobre! afirmou veementemente. Depois, num tom mais calmo, acrescentou: Estou tão preocupada com aquela rapariga maravilhosa, Maggie Holloway. Os jovens hoje em dia são tão indiferentes ou impacientes com velhos fósseis como eu. Ela não. Estamos todos a rezar para que seja localizada.

 

Eu sei, e também eu concordou Sarah Gushing.

 

Muito bem, vai lá abaixo e informa-te das últimas novidades. Começa por Angela. A ela não escapa nada.

 

Neil ligara do telefone do carro para informar o Dr. Lane de que gostaria de passar pelo lar a fim de discutir o interesse dos Van Hilleary em residirem em Latham Manor. Achou a voz de Lane curiosamente indiferente ao concordar com a reunião.

 

Foram recebidos em Latham Manor pela mesma atraente e jovem empregada que viram antes. Neil recordava-se de que ela se chamava Angela. Quando chegaram, ela conversava com uma atraente mulher aparentando ter uns 60 anos.

 

Vou informar o Dr. Lane da presença dos senhores disse Angela suavemente. Enquanto ela se afastava, a mulher de idade aproximou-se deles.

 

Não quero parecer intrometida, mas os senhores são da Polícia? perguntou.

 

Não, não somos disse Robert Stephens rapidamente. Por que pergunta? Há algum problema?

 

Não. Ou, pelo menos, espero bem que não. Permita-me que explique. Chamo-me Sarah Gushing. A minha mãe, Letitia Bainbridge, reside cá. Ficou muito amiga de uma jovem chamada Maggie Holloway, que parece ter desaparecido, e está extremamente ansiosa por receber notícias dela.

 

Também gostamos muito de Maggie disse Neil, experimentando de novo o nó na garganta que ameaçava agora debilitar a sua compostura. Seria possível falarmos com a sua mãe depois de vermos o Dr. Lane?

 

Reparando numa expressão de incerteza nos olhos de Sarah Gushing, sentiu-se na obrigação de explicar. Andamos em busca de qualquer elemento, de algo que ela possa ter dito a alguém, mesmo que casualmente, que nos possa ajudar a encontrá-la.

 

Mordeu o lábio, incapaz de prosseguir. Sarah Gushing observou-o, sentindo a angústia dele. Os seus olhos azuis gelados suavizaram-se. Com certeza. Podem falar com a mãedisse.Espero pelos senhores na biblioteca e conduzir-vos-ei lá acima. A empregada regressara. O Dr. Lane vai recebê-los disse. Pela segunda vez, Neil e Robert Stephens seguiram-na até ao escritório de Lane. Neil recordou-se de que, no que dizia respeito ao médico, estava ali para discutir os Van Hilleary. Esforçou-se por recordar as perguntas que tencionava fazer, a pedido deles. A residência era da propriedade da Prestige, por ela gerida, ou era um sistema de franchise, por parte deles? Iria necessitar da comprovação da existência de capital de reserva suficiente. Os Van Hilleary tinham direito a qualquer compensação se optassem por decorar e mobilar, eles próprios, a suite? Ambos ficaram chocados quando chegaram ao escritório do Dr. Lane. O homem sentado à secretária estava tão radicalmente] mudado que era como ver e conversar com um ser humano diferente. O director calmo, sorridente e cortês que tinham conhecido a semana passada era agora outro. Lane parecia doente e derrotado. A pele estava macilenta, os olhos encovados. Pediu-lhes que se sentassem e depois disse: Parece ter algumas perguntas a fazer. Terei o maior prazer em responder às suas questões. Contudo, será um novo director a receber os seus clientes quando vierem no fim-de-semana. «Foi despedido», pensou Neil. «Porquê?», questionou-se. Decidiu ir directo ao assunto. Não sei o que se passa aqui, obviamente, e não lhe peço que explique os motivos para a sua partida. Fez uma pausa. Mas sei que a sua contabilista andava a divulgar informações financeiras confidenciais. Essa era uma das minhas preocupações. Sim, já fui informado desse facto. Tenho a certeza de que não voltará a acontecer neste estabelecimento disse Lane. Entendo o seu problemaprosseguiu Neil. Infelizmente, no negócio dos investimentos, temos sempre de contar com a possibilidade de fuga de informações. Sabia que o pai olhava para ele com curiosidade, mas tinha de tentar saber se fora por aquela razão que Lane fora despedido. Intimamente, duvidava e suspeitava que tinha algo a ver com a morte súbita de alguns residentes.

 

Tenho consciência do problema disse Lane. A minha mulher trabalhou numa firma de títulos em Boston... Randolph & Marshall... antes de eu assumir este cargo. Parece que existe gente desonesta por todo o lado. Ah, bom, deixe-me então tentar responder às suas perguntas. Latham Manor é uma maravilhosa residência, e posso assegurar-lhe que os nossos hóspedes são muito felizes cá.

 

Quando saíram, quinze minutos mais tarde, Robert Stephens disse:

 

Neil, aquele tipo está cheio de medo.

 

Eu sei. E não é apenas devido ao emprego.

 

«Estou a perder tempo», pensou. Mencionara o nome de Maggie e a única resposta por parte de Lane fora uma educada manifestação de preocupação pelo seu bem-estar.

 

Pai, talvez fosse melhor não nos encontrarmos com ninguém deste lugar afirmou quando chegaram ao hall de entrada. Vou arrombar a porta da casa de Maggie para a revistar. Talvez haja lá alguma coisa que nos dê uma ideia para onde foi a noite passada.

 

No entanto, Sarah Gushing aguardava-os.

 

Já telefonei à minha mãe. Deseja muito conversar consigo. Neil preparava-se para protestar mas reparou no olhar de aviso do pai. Robert Stephens afirmou:

 

Neil, vai visitar a senhora por alguns minutos. Vou fazer uns telefonemas no carro. Estava para te dizer que, por sinal, tenho uma chave extra da fechadura nova da porta de Maggie, para o caso de ela alguma vez se esquecer dela. Informei-a disso. Vou ligar à tua mãe para que nos leve lá a chave. E telefonarei também ao detective Haggerty.

 

A mãe levaria cerca de meia hora para chegar à casa de Maggie, calculou Neil. Anuiu.

 

Gostaria de conhecer a sua mãe, Mrs. Gushing. Enquanto subiam para o quarto de Letitia Bainbridge, decidiu perguntar-lhe sobre a palestra que Earl Bateman efectuou em Latham Manor, aquela que originou a expulsão da residência. Bateman foi a última pessoa que admitiu ter estado com Maggie ontem», reflectiu. «Ela falou com o detective Haggerty mais tarde, mas ninguém a viu.»

 

Teria alguém pensado nisso?, questionou-se Neil. Alguém confirmara a história de Earl Bateman de que seguira directamente para Providence, depois de ter deixado o museu, ontem à tarde?

 

Eis o apartamento da minha mãeafirmou Sarah Gushing.

 

Bateu, aguardou pela permissão para entrar e depois abriu a porta.

 

Totalmente arranjada, Mrs. Letitia Bainbridge encontrava-se sentada numa poltrona. Fez sinal a Neil para que entrasse e apontou para a cadeira mais próxima dela.

 

Por aquilo que Sarah me contou, você deve ser o namorado de Maggie. Deve estar tão preocupado. Todos estamos. Em que podemos ajudar?

 

Deduzindo que Sarah Gushing teria por volta dos 70 anos, Neil apercebeu-se de que aquela senhora de olhos brilhantes e voz límpida deveria rondar os 90, ou mais. Tinha aspecto de alguém a quem nada escapava. «Senhor, permite que ela me conte algo que possa ajudar», orou.

 

Mrs. Bainbridge, espero não a incomodar ao ser absolutamente franco consigo. Por razões que não entendo ainda, Maggie começou a suspeitar de algumas das recentes mortes que ocorreram nesta residência. Sabemos que, ainda ontem, analisou os obituários de seis mulheres diferentes, cinco das quais residiram aqui e que faleceram há pouco tempo. Essas cinco mulheres morreram durante o sono, sem auxílio médico, e nenhuma tinha parentes próximos.

 

Santo Deus! A voz de Sarah Gushing estava chocada. Letitia Bainbridge nem pestanejou.

 

Refere-se a negligência ou assassinato? inquiriu.

 

Não sei respondeu Neil.Apenas sei que Maggie iniciou uma investigação que conduziu já à exumação de, pelo menos, duas das mulheres falecidas e, agora, desapareceu. Por outro lado, acabámos de saber que o Dr. Lane foi despedido.

 

Também acabei de saber isso, mãe disse Sarah Gushing. Mas toda a gente pensa que é por causa da contabilista.

 

E a enfermeira Markey? perguntou Mrs. Bainbridge à filha. Foi por isso que a Polícia a interrogou? Quero dizer, por causa das mortes?

 

Ninguém sabe ao certo, mas está muito perturbada. Tal como, obviamente, Mrs. Lane. Ouvi dizer que as duas estão fechadas no gabinete de Markey.

 

Oh, essas duas estão sempre aos segredinhosdisse Letitia Bainbridge, sem atribuir grande importância ao facto. Não posso imaginar o que têm para dizer uma à outra. Markey pode ser extremamente irritante, mas, pelo menos, tem cabeça. A outra nem cérebro tem.

 

«Isto não me vai levar a lado nenhum», pensou Neil.

 

Mrs. Bainbridge disse, só posso ficar mais um minuto. Há outra coisa que gostaria de lhe perguntar. Assistiu à palestra

 

O Luar Fica-Te Bem

 

que o professor Bateman aqui efectuou? Uma que, aparentemente, causou grande reboliço?

 

Não. Mrs. Bainbridge disparou um olhar à filha. Foi mais um dia em que Sarah insistiu para que eu descansasse, por isso perdi toda a excitação. Mas Sarah estava presente.

 

Posso assegurar-lhe, mãe, que não gostaria de ter recebido um daqueles sinos e de lhe ter sido pedido que fingisse estar enterrada viva contestou Sarah Gushing. Permita-me que lhe conte exactamente como tudo se passou.

 

Bateman tinha de ser louco, pensou Neil ao escutar a versão dela dos acontecimentos.

 

Fiquei tão irritada que não lhe poupei palavras adequadas e quase atirei contra ele a caixa que continha os sinoscontinuou Sarah Gushing. No início, ele pareceu envergonhado e contrito, mas depois ficou com uma expressão que quase me assustou. Penso que ele deve ter um temperamento tímido. Ainda por cima, a enfermeira Markey teve o descaramento de o defender! Falei sobre isso com ela mais tarde, e ela foi bastante impudente. Contou-me que o professor Bateman ficou tão incomodado que lhe confidenciou recear agora não conseguir suportar a visão dos sinos, os quais, aparentemente, lhe custaram bastante dinheiro.

 

Continuo a lamentar não ter estado presente disse Mrs. Bainbridge. No que diz respeito à enfermeira Markey continuou, reflectidamente, e com toda a franqueza, muitos dos residentes consideram-na uma excelente enfermeira. Acho-a bisbilhoteira, importuna e intrometida, e quero-a o mais longe de mim possível. Fez uma pausa e depois disse: Mr. Stephens, isto pode parecer ridículo, mas creio que, apesar dos seus erros e deficiências, o Dr. Lane é um homem gentil, e, acredite, sou bastante boa a julgar caracteres.

 

Meia hora mais tarde, Neil e o pai seguiram para a casa de Maggie. Dolores Stephens já lá se encontrava. Olhou para o filho e, estendendo as mãos, tocou-lhe no rosto.

 

Vamos encontrá-la disse com firmeza. Incapaz de falar, Neil anuiu.

 

Onde está a chave, Dolores? perguntou Robert Stephens.

 

Aqui.

 

A chave entrou na fechadura nova da porta das traseiras e, quando entraram para a cozinha, Neil pensou que fora ali que tudo começara, quando a madrasta de Maggie foi assassinada.

 

A cozinha estava arrumada. Não havia pratos no lava-louças.

 

Abriu a máquina de lavar louça; estavam algumas chávenas e pires, para além de três ou quatro pratos de sobremesa.

 

Será que ela jantou fora ontem à noite? disse.

 

Ou fez uma sanduíche sugeriu a mãe. Tinha aberto o frigorífico e vira algumas carnes frias. Apontou para diversas facas no cesto de utensílios da máquina da loiça.

 

Não há nenhum bloco junto do telefone disse Robert Stephens. Sabíamos que ela estava preocupada com alguma coisa afirmou. Estou furioso comigo próprio. Ontem, quando aqui estive, devia ter insistido para que viesse para nossa casa.

 

As salas de jantar e de estar estavam em perfeita ordem. Neil observou a jarra de rosas sobre a mesa do café, interrogando-se sobre quem as teria enviado. Talvez Liam Payne, pensou. Maggie referira-se a ele durante o jantar. Neil encontrara-se com Liam apenas algumas vezes, mas podia ser o tipo que Neil avistara despedindo-se de Maggie na sexta-feira à noite.

 

No piso de cima, o quarto mais pequeno continha os indícios de que Maggie andava a arrumar os artigos pessoais da madrasta: sacos, devidamente etiquetados, com roupa, malas, lingerie e sapatos. O quarto que ela usara inicialmente permanecia inalterável em relação ao dia em que tinham vindo reparar os fechos das janelas.

 

Seguiram para o quarto principal.

 

Parece-me que Maggie tencionava ficar aqui a noite passada observou Robert Stephens, apontando para a cama acabada de fazer.

 

Sem responder, Neil subiu as escadas para o estúdio. A luz que ele notara a noite passada, quando estacionou lá fora esperando que Maggie chegasse a casa, estava ainda acesa, apontada para uma fotografia pregada a um painel. Neil lembrava-se de que a fotografia não estava lá no domingo à tarde.

 

Preparava-se para atravessar o aposento quando parou. Um arrepio percorreu-lhe o corpo.

 

Sobre a mesa de trabalho, à luz do foco, avistou dois sinos de metal.

 

Tão seguramente como sabia que a noite se seguia ao dia, soube que aqueles eram dois dos sinos que Earl Bateman utilizara na infame palestra em Latham Manor os sinos que tinham sido guardados, para não mais serem vistos.

 

A mão doía-lhe e estava coberta de terra. Continuara a mover incessantemente o fio para trás e para a frente, na esperança de manter o tubo liberto, mas, agora, parecia já não cair terra através da saída de ar. Também a água deixara de penetrar.

 

De igual forma, já não ouvia o bater da chuva. Estaria a ficar mais frio ou seria apenas a humidade dentro do caixão que era tão gelada?, questionou-se.

 

Mas, na verdade, começava a sentir-se quente, até demasiado quente.

 

«Estou a ficar com febre», pensou Maggie, sonolenta.

 

Sentia a cabeça tão leve. «A saída de ar está bloqueada», pensou. «Já não deve existir muito oxigénio. Um... dois... três... quatro...»

 

Murmurava agora os números em voz alta, esforçando-se por se manter desperta, para começar a gritar de novo quando alcançasse os quinhentos.

 

Que diferença podia fazer se ele regressasse e a ouvisse? Que mais poderia ele fazer para além do que já fizera?

 

A mão continuava a mover-se para a frente e para trás.

 

Fecha a mão disse em voz alta. Muito bem, descontrai-te.Foi o que as enfermeiras lhe disseram para fazer quando, em criança, lhe tiraram uma amostra de sangue. «Assim ficarás melhor, Maggie», tinham afirmado.

 

Depois de Nuala ter ido viver com eles, deixara de ter medo das agulhas. Nuala transformara aquilo num jogo. «Primeiro vamos tirar isso e depois vamos ao cinema», dizia.

 

Maggie pensou no seu saco do equipamento. Que teria ele feito com o saco? As suas câmaras. Eram as suas amigas. Tantas fotos que planeara tirar com elas. Tinha tantos projectos que queria concretizar, tantas coisas que queria fotografar.

 

«Cento e cinquenta... cento e cinquenta e um...»

 

Sabia que Neil estava sentado atrás dela, naquele dia no cinema. Tossira algumas vezes, uma voz seca que ela reconhecera. Sabia seguramente que ele a vira, que vira a sua infelicidade.

 

«Foi um teste da minha parte», pensou. «Se me amas, compreenderás que necessito de ti», foi o que tinha esperado dele.

 

Contudo, quando o filme terminou e as luzes se acenderam, ele tinha partido.

 

Vou dar-te uma segunda oportunidade, Neil disse em voz alta agora. Se me amas, saberás que preciso de ti, e hás-de encontrar-me.

 

«Quatrocentos e noventa e nove, quinhentos!»

 

Começou de novo a gritar por socorro. Desta vez, gritou até lhe doer a garganta. De nada lhe servia poupar a voz, decidiu. O tempo escasseava.

 

Mais uma vez, começou a contar:

 

«Um... dois... três...»

 

A sua mão movia-se à cadência da contagem: «Puxar... largar...»

 

Com todas as forças do seu ser, combateu a sonolência. Sabia que, se adormecesse, não voltaria a acordar.

 

Enquanto o pai descia para telefonar para a esquadra da Polícia, Neil hesitou por momentos, observando a fotografia que vira afixada no painel.

 

A inscrição nas costas dizia: «Aniversário de Nascimento de Squire Moore. 20 de Setembro. Earl Moore Bateman Nuala Moore Liam Moore Payne.»

 

Neil estudou o rosto de Bateman. O rosto de um mentiroso, pensou amargamente. O último homem a ver Maggie com vida.

 

Consternado com o que o seu subconsciente lhe sugeria, deixou a fotografia junto dos sinos e correu para juntar-se ao pai.

 

Tenho o chefe Brower em linha disse Robert Stephens. Quer falar contigo. Contei-lhe sobre os sinos.

 

Brower foi directo à questão.

 

Se esses forem dois dos mesmos sinos que Bateman proclama estarem guardados no armazém do museu dele, podemos trazê-lo para a esquadra para ser interrogado. O problema é que ele saberá o suficiente para se recusar a responder a perguntas, e chamará um advogado, pelo que tudo se atrasará. A nossa melhor jogada será confrontá-lo com os sinos e esperar que ele afirme algo que o denuncie. Quando falámos com ele sobre os sinos esta manhã, ficou furioso.

 

Tenciono estar presente quando o confrontarem disse Neil.

 

Tenho um carro-patrulha de vigia ao museu, estacionado no parque de estacionamento da agência funerária. Se Bateman deixar o edifício, será seguido.

 

Vamos a caminho afirmou Neil, acrescentando de seguida: Espere um pouco, chefe. Sei que anda a interrogar alguns adolescentes. Descobriu alguma coisa?

 

Ouviu a hesitação na voz do chefe Brower antes de responder.

 

Algo em que não sei bem se devo acreditar. Falaremos sobre isso quando nos encontrarmos.

 

Quero saber agora respondeu Neil com urgência.

 

Então, por favor, compreenda que não damos necessariamente crédito à história. Mas um dos miúdos admitiu encontrar-se nas vizinhanças do museu ontem à noite ou, mais precisamente, que estava do outro lado da rua. Por volta das dez horas, esse miúdo afirma ter visto dois veículos... um carro funerário, seguido por uma carrinha... a saírem do parque de estacionamento do museu.

 

Que tipo de carrinha? perguntou Neil.

 

O miúdo não está certo da marca, mas jura que era preta.

 

Tem calma, Earldisse Liam Moore Payne pela décima vez, no espaço de uma hora.

 

Não, não tenho calma. Sei como esta família tem ridicularizado os Bateman, sobretudo a mim.

 

Ninguém te ridiculariza, Earl disse Liam suavemente. Estavam sentados no escritório do museu. Eram praticamente cinco horas, e o lustre antiquado difundia um brilho obscwo no aposento.

 

Precisas de uma bebida disse Liam.

 

Queres dizer que tu precisas de uma bebida.

 

Sem responder, Liam levantou-se, dirigiu-se ao armáriojunto do lava-louças, tirou para fora a garrafa de uísque e copos, depois gelo e limão do frigorífico.

 

Sai um uísque duplo com gelo e limão, para nós os dois. Earl aguardou que a bebida estivesse na sua frente e depois disse:

 

Ainda bem que passaste por cá, Liam.

 

Quando telefonaste, percebi que estavas muito perturbado. E, é claro, eu estou mais que preocupado com o desaparecimento de Maggie. Fez uma pausa. Earl, tenho saído algumas vezes com ela neste último ano. Sabes como é, eu telefonava e íamos jantar quando me encontrava em Nova Iorque. Mas, aquela noite no Four Seasons, quando me apercebi de que ela saíra sem me dar uma palavra, algo aconteceu.

 

O que aconteceu foi que tu a ignoraste porque andavas numa roda viva com as pessoas presentes na festa.

 

Não, o que aconteceu foi que me apercebi de como tinha sido idiota, e que, se ela me mandasse para o inferno, eu rastejava até lá, só para satisfazer o seu pedido. Mas, para além de me fazer tomar consciência de quão importante Maggie se tornou para mim, essa noite traz-me esperanças de que provavelmente está bem.

 

Que quer isso dizer?

 

O facto de se ter ido embora sem dizer nada, quando se aborreceu. Deus sabe como teve motivos mais que suficientes desde o minuto em que chegou a Newport. Talvez apenas necessitasse de se afastar.

 

Pareces ter esquecido que o carro dela foi encontrado abandonado.

 

Tanto quanto sabemos, pode ter apanhado um avião ou comboio e deixado o carro estacionado algures, e alguém o roubou. Pode até ter sido obra de adolescentes.

 

Não me fales sobre obras de adolescentes disse Earl. A minha teoria é que foi esse mesmo tipo de delinquentes juvenis quem cometeu o roubo aqui a noite passada.

 

O som penetrante da campainha da porta sobressaltou os dois. Earl Bateman respondeu à pergunta não formulada do primo:

 

Não estou à espera de ninguém disse, e depois sorriu abertamente. Mas pode ser a Polícia para informar que encontraram o caixão.

 

Neil e o pai encontraram-se com o chefe Brower no parque de estacionamento do museu, e o chefe solicitou a Neil que se controlasse e deixasse as perguntas para a Polícia. Os sinos na casa de Maggie tinham sido colocados numa caixa de sapatos, que o detective Haggerty transportava agora debaixo do braço.

 

Quando Earl os encaminhou para o escritório do museu, Neil ficou surpreendido por ver Liam Payne. Subitamente desconfortável na presença do rival, cumprimentou-o com o mínimo de cortesia, embora sentisse algum alívio pelo facto de nem Earl nem Liam estarem ao corrente da sua relação com Maggie. Ele e o pai foram meramente apresentados como dois amigos preocupados de Nova Iorque.

 

Bateman e Payne foram buscar cadeiras para os homens, tirando-as da cena do funeral, na sala da frente. A irritação era clara no rosto de Bateman quando regressaram. Disse para o primo:

 

Liam, os teus sapatos estão enlameados e esta carpete é bastante cara. Agora tenho de aspirar toda a sala da exposição antes de sair.

 

Depois, numa mudança abrupta, voltou-se para os detectives.

 

Têm alguma novidade sobre o caixão? perguntou.

 

Não, não temos, professor Bateman disse Brower, mas temos notícias sobre outros artefactos que pensamos que o senhor possui.

 

Isso é ridículo. Não falta mais nada, a não ser o cadafalço afirmou. Verifiquei. É no caixão que estou interessado. Não fazem ideia dos planos que tinha para ele. A exposição ao ar livre de que vos falei. O caixão ia fazer parte da exibição mais importante. Tinha já encomendado manequins de cavalos com plumas negras, e mandei construir uma réplica do tipo de carreta funerária que os vitorianos usavam. Será uma exposição surpreendente.

 

Earl, tem calma disse Liam Payne suavemente. Virou-se para Brower. Chefe, há alguma informação sobre Maggie Holloway?

 

Não, infelizmente não respondeu Brower.

 

Considerou a minha sugestão de que Maggie possa simplesmente ter querido escapar às terríveis pressões da última semana e meia?

 

Neil olhou para Liam com desprezo:

 

Realmente, não conhece Maggie afirmou.Ela não tenta escapar aos problemas. Enfrenta-os directamente.

 

Brower ignorou os dois homens e falou para Bateman.

 

Professor, nesta altura, estamos apenas a tentar esclarecer algumas questões. Não lhe é exigido que responda às nossas perguntas. Compreende isso?

 

Por que não haveria de responder às vossas perguntas? Não tenho nada a esconder.

 

Muito bem. Tanto quanto sabemos, os sinos que mandou fundir para a sua palestra relativa ao tema dos vitorianos que receavam serem enterrados vivos estão todos armazenados. Não é assim?

 

A irritação era evidente no rosto de Earl Bateman.

 

Não voltarei a falar sobre esse incidente em Latham Manor disse, rudemente. Já vos tinha dito isso.

 

Compreendo. Mas não se importa de responder à pergunta, por favor?

 

Sim. Guardei esses sinos. Sim.

 

Brower fez sinal a Haggerty, que abriu a caixa dos sapatos.

 

Professor, Mr. Stephens encontrou estes sinos na casa de Maggie Holloway. São parecidos com os que possui?

 

Bateman empalideceu. Pegou num dos sinos e examinou-o minuciosamente.

 

Aquela mulher é uma ladra! explodiu. Deve ter regressado aqui ontem à noite e roubou-os.

 

Levantou-se de um salto, correu pelo hall e escadas acima, os outros seguindo-o. No terceiro andar, abriu a porta da sala de armazenagem e correu para uma prateleira na parede à direita. Estendendo a mão, puxou uma caixa localizada entre duas outras.

 

Posso já dizer que está demasiado leve murmurou

 

faltam alguns. Remexeu no material plástico de protecção até se satisfazer quanto ao conteúdo da caixa.

 

Voltando-se para os cinco homens de pé atrás dele, o rosto vermelho, os olhos reluzindo, disse:

 

Estão aqui apenas cinco. Faltam sete! Essa mulher deve têlos roubado. Por isso falou tanto sobre eles ontem.

 

Neil abanou a cabeça em descrença. «Este fulano é doido», disse para si mesmo. «Acredita realmente no que diz.»

 

Professor Bateman, tenho de lhe pedir que me acompanhe à esquadra disse Brower, o tom formal. Devo informá-lo de que é agora um suspeito no desaparecimento de Maggie Holloway. Tem o direito de permanecer em silêncio...

 

Pode esquecer esse maldito aviso de Merda gritou Earl. Maggie Holloway entrou aqui às escondidas, roubou os meus sinos... e talvez até o meu caixão... e atribuem as culpas a mim? Ridículo! Acho que devem procurar a pessoa que a ajudou. Não fez isto sozinha.

 

Neil agarrou nas lapelas do casaco de Bateman.

 

Cale-se gritou. Sabe muito bem que não foi Maggie quem tirou essas coisas. Ela encontrou esses dois sinos nalgum lado, e tinham um significado importante para ela. E responda-me a uma coisa. Uns miúdos viram um carro funerário e uma carrinha saírem daqui, por volta das dez horas de ontem à noite. Em qual dos dois seguia?

 

Cale-se você, Neil ordenou Brower.

 

Neil avistou a irritação no rosto do chefe da Polícia quando Robert Stephens o afastou de Earl Bateman.

 

«Pouco me importo», pensou. «Este aldrabão não é merecedor de respeito.»

 

Refere-se ao meu carro funerário?perguntou Bateman. Isso é impossível. Está na garagem.

 

Com maior rapidez do que subira as escadas, Bateman desceu-as e seguiu directamente para a garagem. Levantou a porta e correu para dentro, seguido de perto pelos outros homens.

 

Alguém o usou efectivamente exclamou, espreitando através da janela do veículo. Olhem. Há terra no interior!

 

Neil queria espancar o homem até lhe extorquir a verdade. Como conseguira que Maggie o acompanhasse até àquele carro funerário? Ou estaria outra pessoa a conduzir o veículo?

 

Liam Payne pegou no braço do primo.

 

Earl, vai correr tudo bem. Vou contigo à esquadra. Telefono a um advogado.

 

Neil e o pai recusaram-se a ir para casa. Aguardaram numa sala de espera na esquadra. De vez em quando, o detective Haggerty aparecia junto deles.

 

O tipo recusou um advogado; está a responder a tudo. Insiste que estava em Providence a noite passada e pode prová-lo com chamadas telefónicas que fez do apartamento durante a noite. Assim, não o podemos deter.

 

Mas sabemos que fez alguma coisa a Maggie protestou Neil. Tem de nos ajudar a encontrá-la!

 

Haggerty abanou a cabeça.

 

Está mais preocupado com o caixão e com a terra naquele velho carro funerário do que com Ms. Holloway. Na opinião dele, Maggie levou alguém com ela para roubar o caixão e os sinos, alguém que terá levado o caixão no carro funerário. A chave da ignição encontrava-se num local bem visível no escritório. Dentro de alguns minutos, o primo vai levá-lo de volta ao museu para ir buscar o carro.

 

Não podem deixá-lo sair protestou Neil.

 

Temos de o deixar sair disse Haggerty. O detective hesitou e depois disse:

 

Isto acabará por se tornar público e é algo que terão interesse em saber. Sabem que estamos também a investigar acusações de impropriedades em Latham Manor, graças ao bilhete que o advogado deixou ao suicidar-se. Enquanto estivemos fora, o chefe recebeu uma mensagem. Tornou-se prioritário para ele descobrir quem é realmente o dono de Latham Manor. Sabem quem é? Nada menos que o primo de Bateman, Mr. Liam Moore Payne.

 

Haggerty olhou cuidadosamente em redor, como se receasse que Payne aparecesse atrás dele.

 

Acho que ainda está lá dentro. Insistiu em permanecer junto do primo durante o interrogatório. Perguntámos-lhe se era o dono de Latham. Admitiu-o prontamente. Diz que é um investimento seguro. Mas, aparentemente, não quer que se saiba que é o proprietário. Diz que, se as pessoas soubessem, os residentes não paravam de lhe telefonar com queixas ou pedidos de favores. Faz sentido, não faz?

 

Eram quase oito horas quando Robert Stephens se voltou para o filho.

 

Anda, Neil, é melhor irmos para casa pediu.

 

Tinham o carro estacionado do outro lado da rua, em frente da esquadra. Mal Stephens ligou a ignição, o telefone tocou. Neil atendeu.

 

Era Dolores Stephens. Tinha regressado a casa quando eles seguiram para o museu.

 

Alguma notícia sobre Maggie? perguntou, ansiosa.

 

Não, mãe. Vamos já para casa.

 

Neil, acabei de receber uma chamada de uma Mrs. Sarah Gushing. Disse que a mãe, Mrs. Bainbridge, é uma residente de Latham Manor e que falaste com ela hoje.

 

É verdade. Neil sentiu o seu interesse crescer.

 

A mãe de Mrs. Gushing lembrou-se de algo que pensou poder ser importante e telefonou à filha, que procurou o nosso número para te contactar. Mrs. Bainbridge disse que Maggie mencionou qualquer coisa sobre um sino que encontrou na campa da madrasta. Perguntou se a colocação de um sino daquele tipo era alguma forma de costume. Mrs. Bainbridge disse que lhe ocorreu que Maggie podia estar a falar sobre um dos sinos vitorianos do professor Bateman. Não sei bem o que isto quer dizer, mas quis informar-te logo afirmou. Até já.

 

Neil contou ao pai a mensagem que Dolores Stephens acabara de transmitir.

 

Que te parece? perguntou Robert Stephens ao filho, ao arrancar.

 

Espere um pouco, pai. Não avancedisse Neil urgentemente. Que me parece? Muita coisa. Os sinos que encontrámos no estúdio de Maggie tinham sido tirados da campa da madrasta e da campa de outra pessoa, provavelmente uma das mulheres da residência. De outro modo, por que haveria de fazer tal pergunta? Se realmente regressou ao museu a noite passada, o que ainda me custa a acreditar, foi para ver se faltavam alguns dos sinos que Bateman afirmava estarem guardados.

 

Lá vêm eles murmurou Robert Stephens quando Bateman e Payne emergiram da esquadra da Polícia. Observaram os homens a entrarem para o Jaguar de Payne e a conversar animadamente durante alguns minutos.

 

Deixara de chover e uma lua cheia aclarava a área em redor da esquadra já bem iluminada.

 

Payne deve ter seguido por estradas de terra quando veio de Boston hoje observou Robert Stephens. Olha para aquelas rodas e pneus. Também os sapatos estavam bastante sujos.

 

Ouvimos Bateman gritar com ele por causa disso. Não deixa igualmente de constituir uma surpresa ser ele o proprietário daquela residência. Há qualquer coisa naquele tipo que não me agrada. Maggie namorava mesmo com ele?

 

Não creio disse Neil sem ênfase. Também não gosto dele, mas não há dúvida de que é um homem de sucesso. Aquela residência custou uma fortuna. E verifiquei as operações de investimento dele. Possui agora a sua própria firma e foi suficientemente esperto para levar com ele alguns dos melhores clientes da Randolph & Marshall.

 

Randolph & Marshall repetiu o pai. Não foi aí que o Dr. Lane disse que a mulher trabalhou?

 

Que disse? perguntou Neil.

 

Ouviste bem. Disse que a mulher de Lane já trabalhou na Randolph & Marshall.

 

Era isso que me estava a perturbar! exclamou Neil.

 

Não entende? Liam Payne está ligado a tudo. É dono da residência. Deve ter sido ele quem deu o aval para a contratação do Dr. Lane. Também Doug Hansen trabalhou para a Randolph & Marshall, embora por um curto espaço de tempo. Tem tudo montado para que as suas transacções passem pela câmara de compensação deles. Afirmei hoje que Hansen tinha de estar a operar a partir de outro escritório, tal como disse que ele era demasiado estúpido para ter engendrado o esquema para defraudar aquelas mulheres. Ele apenas dava a cara. Alguém o programava. Bom, talvez esse alguém fosse Liam Moore Payne.

 

Mas há qualquer coisa que não bate certo protestou Robert Stephens. Se Payne é dono da residência, podia ter obtido as informações financeiras de que necessitava sem envolver Hansen nem a tia de Hansen, Janice Norton.

 

Mas era muito mais seguro permanecer na sombra salientou Neil. Dessa forma, Hansen transformava-se no bode expiatório se algo corresse mal. Não entende, pai? Laura Arlington e Cora Gebhart tinham aplicações pendentes. Não estava apenas a obter lucro com os apartamentos dos residentes. Vigarizava os candidatos quando não existiam apartamentos.

 

É evidente que Bateman usa Payne como uma tábua de salvação para os seus problemascontinuou Neil. Se Bateman ficou aborrecido por Maggie lhe ter feito perguntas sobre o incidente em Latham Manor, não seria provável que ele contasse a Payne?

 

Talvez. Mas onde queres chegar?

 

Onde quero chegar é que esse tal Payne é a chave de tudo isto. Ele é o proprietário secreto de Latham Manor. Mulheres estão a morrer na residência devido a circunstâncias aparentemente vulgares; no entanto, quando se considera o número das que faleceram recentemente, e as similaridades comuns... todas elas muito sós, sem família directa que as vigiasse... tudo começa a parecer suspeito. E quem lucra com as mortes delas? Latham Manor, através da revenda dos apartamentos que vão ficando vagos ao próximo nome na lista.

 

Queres dizer que Liam Payne matou todas aquelas mulheres?

 

perguntou Robert Stephens, incrédulo.

 

Isso ainda não sei respondeu o filho. A Polícia suspeita de que o Dr. Lane e ou a enfermeira Markey possam ser responsáveis pelas mortes, mas, quando falei com Mrs. Bainbridge, fez questão de salientar que o Dr. Lane era «gentil» e que Markey era uma boa enfermeira. Na minha opinião, ela sabe o que está a dizer. É astuta. Não, não sei quem matou aquelas mulheres, mas penso que Maggie chegou à mesma conclusão quanto às mortes, e deve ter chegado demasiado perto para o agrado do verdadeiro assassino.

 

Então, onde entram os sinos? E Bateman? Não compreendo protestou Robert Stephens.

 

Os sinos? Quem sabe? Talvez seja a forma de o assassino deixar a sua marca. No entanto, se Maggie encontrou aqueles sinos em campas e andou a investigar os obituários daquelas mulheres, é porque começou a perceber o que realmente se passava. Os sinos podem significar que aquelas mulheres foram assassinadas. Neil fez uma pausa. Quanto a Bateman, parece-me demasiado esquisito para participar em algo tão elaborado como isto. Não, creio que Mr. Liam Morre Payne é a nossa ligação. Ouviu a sugestão idiota que deu para explicar o desaparecimento de Maggie. Neil assumiu um tom de ironia. Aposto que ele sabe o que aconteceu a Maggie e quer apenas que as buscas abrandem.

 

Reparando que Payne arrancava, Robert Stephens voltou-se para o filho.

 

Presumo que vamos segui-lo disse.

 

Claro. Quero ver para onde Payne vai afirmou Neil, acrescentando uma prece silenciosa: «Por favor, por favor, permite que ele me conduza a Maggie.»

 

O Dr. William Lane jantou em Latham Manor com alguns dos residentes mais antigos. Explicou a ausência de Odile dizendo que estava destroçada por ter de deixar os seus queridos amigos.

 

Quanto a ele, embora lamentasse ter de abandonar algo que se revelara uma experiência tão agradável, sempre defendera que tudo tinha um tempo na vida.

 

Gostaria de deixar bem claro que esta violação de confidencialidade não se voltará a repetir prometeu, referindo-se aos actos de Janice Norton.

 

Letitia Bainbridge aceitara o convite para jantar na mesa do médico.

 

É verdade que a enfermeira Markey apresentou uma queixa por falta de ética contra si, afirmando que o senhor nada fez para evitar a morte de pessoas? inquiriu.

 

Parece que sim. Não é verdade, é claro.

 

Que pensa a sua mulher a esse respeito? persistiu Mrs. Bainbridge.

 

Tal como já referi, está deveras entristecida. Considerava a enfermeira Markey como uma boa amiga.

 

«O que só revela que és realmente idiota, Odile», acrescentou para si mesmo.

 

A sua despedida foi graciosa e directa.

 

Por vezes, há toda a vantagem em permitir que outras mãos tomem as rédeas. Sempre tentei fazer o meu melhor. Se sou culpado de alguma coisa, é de confiar numa ladra, mas nunca de negligência.

 

No curto caminho que separava a residência da sua casa, o Dr. Lane pensou: «Não sei o que acontecerá agora. Tudo o que sei é que o emprego que conseguir agora será pelos meus próprios meios.»

 

Independentemente do que acontecesse, decidira que não ia passar nem mais um dia com Odile.

 

Quando subiu as escadas para o segundo andar, a porta do quarto estava aberta e Odile ao telefone, aparentemente gritando para um atendedor automático.

 

Não me podes fazer isto! Não me podes deixar assim! Telefona-me! Tens de cuidar de mim. Prometeste!Desligou, batendo com o auscultador.

 

Com quem estavas a falar, minha querida? perguntou Lane da entrada. Talvez com o misterioso benfeitor que, contra todas as expectativas, me contratou para este lugar? Não o incomodes mais a ele, ou a ela, ou quem quer que seja. Pouco me importa. De agora em diante, não vou necessitar da tua ajuda.

 

Odile ergueu para ele olhos inchados de chorar.

 

William, não podes estar a ser sincero.

 

Oh, podes crer que sim. Observou o rosto dela. Estás realmente assustada, não estás? Por que será? Sempre suspeitei de que, nessa cabecinha oca, haveria mais qualquer coisa.

 

Não que me interesse continuou, abrindo o armário e tirando uma mala. Estou apenas um pouco curioso. Depois da minha recaída ontem à noite, fiquei um pouco atordoado. Mas, quando as minhas ideias aclararam, comecei a pensar e fiz algumas chamadas.

 

Virou-se para a mulher.

 

Não assististe ao jantar de ontem à noite, Odile. E não sei que caminhos percorreste, mas esses sapatos ficaram bastante enlameados, não ficaram?

 

Já não conseguia contar. Era inútil.

 

«Não desistas», incentivou-se Maggie, esforçando-se por manter a mente alerta, por continuar consciente. Seria tão fácil adormecer, tão fácil fechar os olhos e abstrair-se do que lhe estava a acontecer.

 

A fotografia que Earl lhe dera havia algo na expressão de Liam: o sorriso superficial, a sinceridade calculada, a cordialidade praticada.

 

«Deveria ter adivinhado que havia algo desonesto na sua súbita atenção para comigo.» Revelara mais carácter quando a abandonou na festa.

 

Regressou à noite anterior, à voz. Odile Lane estivera a discutir com Liam. Ouvira-os.

 

Odile estava assustada.

 

Já não consigo fazê-lo lamentara-se. Estás louco! Prometeste que vendias a residência e que nos íamos embora. Bem te avisei de que Maggie Holloway andava a fazer demasiadas perguntas.

 

Tão claro. Agora era tudo tão claro.

 

Mal conseguia agora mover a mão. Estava na altura de gritar de novo por socorro.

 

Mas a voz dela não passou de um sussurro. Ninguém a ouviria.

 

«Puxar... largar... respirar devagar», recordou-se.

 

Mas a mente dela continuava a regressar a apenas uma coisa, a primeira e única oração de infância que aprendera: «Agora deito-me para dormir...»

 

Podias ao menos ter-me dito que eras o dono de Latham Manor disse Earl Bateman em tom acusador ao primo. Eu conto-te tudo. Para quê tanto segredo?

 

Não passa de um investimento, Earl respondeu Liam. Nada mais. Estou completamente afastado da gestão diária da residência.

 

Entrou para o parque de estacionamento do museu de funerais e estacou ao lado do carro de Earl.

 

Vai para casa e dorme. Bem precisas.

 

Onde vais?

 

Vou regressar a Boston. Porquê?

 

Vieste só para estar comigo? perguntou Earl, ainda aborrecido.

 

Vim porque estavas aborrecido e vim porque estava preocupado com Maggie Holloway. Agora, como já expliquei, já não estou tão preocupado com ela. Acredito que não tardará a aparecer.

 

Earl preparava-se para sair do carro, mas parou. Liam, tu sabias onde eu guardava a chave do museu e a chave da ignição do carro funerário, não sabias? inquiriu.

 

Que queres dizer?

 

Nada, só te quero perguntar se contaste a alguém onde eu as guardava.

 

Não, não contei. Vai, Earl. Estás exausto. Vai para casa para que eu possa seguir viagem.

 

Earl saiu e bateu com a porta.

 

Liam Moore Payne saiu imediatamente do parque de estacionamento para o fim da rua lateral. Não reparou num veículo que arrancou e o seguiu a uma distância discreta quando voltou à direita.

 

Estava tudo a complicar-se, pensou, carrancudo. Sabiam que ele era o proprietário da residência. Earl começava já a suspeitar de que ele estivera no museu a noite passada. Os corpos iam ser exumados e descobririam que tinham sido administrados medicamentos inadequados às mulheres. Com alguma sorte, o Dr. Lane seria culpabilizado, mas Odile podia vacilar. Arrancariam dela uma confissão num abrir e fechar de olhos. E Hansen? Ele faria qualquer coisa para salvar a própria pele.

 

«Pelo que só resto eu», pensou Liam. «Tanto trabalho para nada! O sonho de ser o segundo Squire Moore, rico e poderoso, foi por água abaixo.» Depois de todos os riscos que correra utilizar as acções dos clientes, a título de empréstimo; comprar a residência com pouco capital e enterrar lá dinheiro; pensar em processos à moda de Squire para conseguir o dinheiro das outras pessoas não passava, afinal de contas, de mais um Moore falhado. Tudo escorria através dos seus dedos.

 

E Earl, aquele pateta obcecado, era rico, verdadeiramente rico.

 

Contudo, por muito pateta que fosse, Earl não era estúpido. Não tardaria ajuntar dois mais dois e então saberia onde procurar o seu caixão.

 

Bem, mesmo que percebesse tudo, pensou Liam, não encontraria Maggie Holloway com vida.

 

O tempo dela acabara-se, disso estava certo.

 

O chefe Brower e o detective Haggerty preparavam-se para dar o dia de trabalho como terminado quando chegou uma chamada de Earl Bateman.

 

Todos me odeiam começou ele. Gostam de ridicularizar o negócio da família Bateman, de me ridicularizar pelas minhas palestras... mas, no fundo, têm é ciúmes por sermos ricos. Há gerações que somos ricos, muito antes de Squire Moore ganhar o seu primeiro dólar desonesto!

 

Não se importa de ir directo à questão? solicitou Brower. Que deseja?

 

Quero que venham ter comigo ao local onde tenciono levar a cabo a minha exposição ao ar livre. Tenho a sensação de que o meu primo Liam e Maggie Holloway planearam em conjunto pregar-me uma partida. Aposto que levaram o caixão para uma das sepulturas abertas e o atiraram para lá. Quero que esteja presente quando o encontrar. Vou sair agora.

 

O chefe pegou numa caneta.

 

Onde fica exactamente esse lugar, professor? Quando desligou, Brower disse para Haggerty:

 

Penso que está a ficar louco, mas acredito também que estamos a um passo de encontrar o corpo de Maggie Holloway.

 

Neil, olha para ali!

 

Seguiam por uma estreita estrada de terra, na peugada do Jaguar. Quando abandonaram a estrada principal, Neil desligou os faróis para que Liam Payne não se apercebesse da presença deles. Agora, o Jaguar virava à esquerda, os faróis iluminando brevemente um letreiro que Robert Stephens se esforçou por ler.

 

«Futura localização do Museu de Funerais ao Ar Livre de Bateman» leu. Devia ser isto a que Bateman se referia quando disse que o caixão roubado se destinava a uma importante exposição. Achas que é aqui?

 

Neil não respondeu. Um medo tão terrível que a mente não conseguia tolerar explodia dentro de si. «Caixão. Carro Funerário. Cemitério.»

 

Se Liam Payne ordenara que fossem assassinados residentes de Latham Manor e depois colocara sinos simbólicos nas suas campas, que poderia ele fazer a alguém que o colocara em perigo?

 

E se ele estava no museu ontem à noite e encontrou Maggie lá?

 

Ele e mais alguém, pensou Neil. Seriam necessárias duas pessoas para conduzir a carrinha de Maggie e o carro funerário.

 

«Será que mataram Maggie e a trouxeram para cá, naquele caixão? Oh, Deus, não, não, por favor!»

 

Neil, é capaz de nos ter visto. Está a dar meia volta e a regressar.

 

Neil tomou uma decisão rápida.

 

Pai, você vai segui-lo. Telefone à Polícia. Fico aqui. Antes que o pai pudesse protestar, Neil saltara para fora do carro.

 

O Jaguar passou a alta velocidade por eles.

 

Vá gritou Neil. Vá!

 

Robert Stephens efectuou uma inversão de marcha perigosa e esmagou o acelerador.

 

Neil começou a correr. Uma sensação de urgência tão profunda que penetrava em cada extremidade nervosa do seu corpo fê-lo correr para o local da construção.

 

O luar iluminava a área lamacenta e escavada. Podia ver que árvores tinham sido derrubadas, arbustos arrancados, caminhos demarcados. E sepulturas escavadas. Dispersas, cavidades abertas por toda a área, aparentemente ao acaso, e, junto de algumas, grandes montes de barro.

 

A área desbravada parecia enorme, estendendo-se para lá da sua visão. Estaria Maggie ali algures? Teria Payne chegado ao ponto de loucura de atirar o caixão, com ela dentro, para uma daquelas sepulturas abertas e depois a ter coberto com terra?

 

Sim, não havia dúvida de que ele estava louco a esse ponto.

 

Neil começou a percorrer o local, gritando o nome de Maggie. Junto de uma das campas abertas, escorregou, caiu para dentro dela e desperdiçou minutos preciosos a escalar dali para fora. Mas, mesmo assim, não parou de gritar:

 

Maggie... Maggie... Maggie...

 

Estaria a sonhar? Maggie esforçou-se por abrir os olhos. Estava tão cansada. Era um esforço demasiado intenso. Queria apenas dormir.

 

Já não conseguia mover a mão. Estava tão hirta e inchada. Já não conseguia gritar, mas isso pouco importava. Não havia ninguém que a ouvisse.

 

Maggie... Maggie... Maggie...

 

Pensou ouvir o seu nome. Parecia-lhe a voz de Neil. Mas era demasiado tarde.

 

Tentou falar, mas nenhum som saía da sua garganta. Só lhe restava tentar uma coisa. Num esforço doloroso, agarrou a mão esquerda com os dedos da mão direita e deslocou-a para cima e para baixo, para cima e para baixo...

 

Sentiu vagamente, pela resistência do fio, que o sino se movia.

 

Maggie... Maggie... Maggie...

 

De novo pensou ouvir chamar pelo seu nome, só que parecia cada vez mais indistinto, e tão distante...

 

Neil soluçava agora. Ela estava ali. Maggie estava ali! Tinha a certeza! Podia sentir a presença dela. Mas onde? Onde estava ela? Seria demasiado tarde? Percorrera já praticamente toda a área. Podia estar enterrada por debaixo de um daqueles montes de terra. Seriam necessárias máquinas para escavá-los, para os deslocar. Existiam tantos.

 

O seu tempo escasseava. Tal como o dela. Podia senti-lo.

 

Maggie... Maggie...

 

Parou e olhou em redor, desesperado. Subitamente, reparou em algo.

 

A noite estava tranquila. Não havia sequer a brisa necessária para agitar uma folha. Mas, num dos cantos afastados, quase oculto por um dos gigantescos montes de solo, algo reluzia ao luar. E movia-se.

 

Um sino. Movendo-se para a frente e para trás. Alguém tentava fazer sinal de dentro da campa. Maggie!

 

Lançando-se a correr, contornando cavidades, Neil alcançou o sino e viu que estava ligado a um cano cuja abertura se encontrava praticamente obstruída com lama.

 

Com as mãos, começou a escavar à volta, soluçando.

 

Viu então o sino parar de se mover.

 

O chefe Brower e o detective Haggerty encontravam-se no carro-patrulha quando o telefonema de Robert Stephens lhes foi transmitido.

 

Dois dos nossos homens estão já na perseguição do Jaguar disse o polícia.Mas Stephens acredita que a mulher desaparecida possa ter sido enterrada no tal terreno de Bateman.

 

Estamos quase a chegar disse Brower. Mande de imediato uma ambulância e equipamento de emergência para lá. Com alguma sorte, iremos precisar de tudo isso. Inclinou-se para a frente. Liga a sirena ordenou.

 

Quando chegaram, encontraram Neil utilizando as mãos como pás, escavando a terra húmida. Um instante depois, Brower e Haggerty estavam ao lado dele, as suas mãos poderosas unindo-se ao esforço, escavando, escavando, escavando.

 

Abaixo da superfície, o solo ficou mais solto, menos compacto. Por fim, alcançaram a madeira acetinada. Neil saltou para dentro do buraco, retirando a terra de cima do caixão. Por fim, arrancou a saída de ar obstruída e esfregou o orifício, a fim de permitir a ventilação.

 

Deslizando para a zona lateral da enorme sepultura, colocou os dedos por debaixo da tampa do caixão e, com um esforço sobre-humano, abriu-a parcialmente. Manteve-a assim com o ombro esquerdo, agarrou no corpo inerte de Maggie e ergueu-o para as mãos ansiosas que se estendiam de cima.

 

Quando o rosto de Maggie roçou o seu, Neil viu que os lábios dela se moviam e ouviu o leve sussurro:

 

Neil... Neil...

 

Estou aqui, amor disse, e nunca mais te vou deixar.

 

                 Domingo, 13 de Outubro

 

Cinco dias mais tarde, Maggie e Neil foram a Latham Manor para se despedirem de Mrs. Bainbridge.

 

Vamos passar o fim-de-semana do Dia de Acção de Graças com os pais de Neil disse Maggie, mas não podia partir sem a ver antes.

 

Os olhos de Letitia Bainbridge reluziam.

 

Oh, Maggie, não imagina como todos rezámos para que estivesse bem.

 

Acredito que sim assegurou-lhe Maggie. E o cuidado que teve em informar Neil sobre o sino que encontrei na campa de Nuala pode ter-me salvo a vida.

 

Foi o fio da meada concordou Neil. Depois disso, tive a certeza de que Liam Payne estava envolvido. Se não o tivesse seguido, teria sido demasiado tarde.

 

Ele e Maggie estavam sentados lado a lado no apartamento de Mrs. Bainbridge. Neil pousou a mão sobre a dela, incapaz ainda de a sentir fora do seu alcance, vivendo ainda o pesadelo de a procurar.

 

Está tudo a correr bem por cá? inquiriu Maggie.

 

Oh, creio que sim. Somos mais resistentes do que possa pensar. Soube que o pessoal da Prestige vai comprar a residência.

 

Liam Payne vai necessitar muito do dinheiro pelo qual matou para pagar aos advogados, e só espero que seja bem castigado afirmou Neil vigorosamente. O mesmo se aplica à namorada dele, embora vá acabar com um advogado de defesa público. Muito honestamente, não acredito que algum deles possa escapar a uma condenação por múltiplos assassinatos. Tanto quanto sei, Odile confessou ter deliberadamente trocado os medicamentos, a pedido de Liam.

 

Maggie pensou em Nuala e Greta Shipley e nas mulheres que não conhecera, cujas vidas Liam e Odile tinham ceifado. «Pelo menos, contribuí para evitar que matassem de novo», consolou-se.

 

Espero bem que recebam o castigo merecido disse Mrs. Bainbridge severamente. Janice Norton e o sobrinho Douglas estavam envolvidos nestas mortes?

 

Não respondeu Neil. O chefe Brower contou-nos que pensa que Hansen e Mrs. Norton estavam apenas envolvidos no esquema de Liam para vigarizar os candidatos à residência. Nem Odile estava a par das acções deles. E Janice Norton não fazia ideia de que o sobrinho operava através de Liam Payne. Estão sujeitos a condenações por fraude, não por homicídio.

 

Segundo o chefe Brower, Odile não consegue calar-se, tentando obter alguma clemência disse Maggie sobriamente. Ela e Liam envolveram-se quando ela trabalhou na empresa de corretagem onde ele também estava empregado, precisamente na altura em que comprou este lugar. Ela contou a Liam o que acontecera ao Dr. Lane no último lar e, quando Liam lhe propôs este esquema, ela agarrou-o com ambas as mãos. O Dr. Lane não é um bom médico, por isso era a pessoa ideal para o cargo de gerência. Zelda Markey é uma pessoa bastante solitária. Odile tornou-se amiga dela, tentando assim não aparentar qualquer relação com as mortes.

 

Andava sempre a conversar com a enfermeira Markey disse Letitia Bainbridge, anuindo.

 

E a tirar-lhe informações. Odile desistiu da escola de enfermagem, mas não por mau aproveitamento. Sabia exactamente quais as drogas a combinar para provocar um ataque de coração. Aparentemente, diversas mulheres seleccionadas por Liam escaparam apenas pelo facto de a enfermeira Markey ser tão eficiente. Odile afirma que rogou a Liam que não alterasse a medicamentação de Mrs. Rhinelander, mas ele foi demasiado ganancioso. Nessa altura, Nuala decidira que apenas viria morar para a residência desde que pudesse ter um quarto com duas camas.

 

Foi a morte de Connie Rhinelander que fez Nuala suspeitar? perguntou Mrs. Bainbridge tristemente.

 

Sim, e depois, quando encontrou aquele sino na campa de Mrs. Rhinelander, parece que ficou com a certeza de que algo terrível se passava na residência. Deve ter feito algumas perguntas muito pertinentes à enfermeira Markey, que, inocentemente, as transmitiu a Odile.

 

E Odile avisou Liam disse Maggie. «Oh, Finnuala», pensou.

 

Os lábios de Mrs. Bainbridge cerraram-se.

 

O deus de Squire Moore era o dinheiro. Lembro-me de o meu pai contar que Moore se gabava de ser muito mais interessante vigarizar alguém do que ganhar dinheiro honestamente. Como não podia deixar de ser, Liam Payne herdou todos esses maus instintos.

 

Diria que sim concordou Neil. Liam era um excelente corretor para os clientes que não vigarizava. Felizmente, quer Mrs. Gebhart quer Mrs. Arlington poderão reclamar o dinheiro que lhe confiaram, através dos bens pessoais de Payne.

 

Só mais uma coisa disse Maggie. Odile tirou aquele esboço que Nuala e Mrs. Shipley fizeram. Uma das empregadas vira-o e brincara a propósito dele. Odile sabia que podia levar as pessoas a pensar.

 

Estou satisfeita por o Dr. Lane não estar envolvido em tudo isto. Letitia Bainbridge suspirou. Oh, a propósito, o nosso novo director chegou ontem. Parece muito simpático e traz as melhores das recomendações. Não possui o charme do Dr. Lane, mas não podemos ter tudo, pois não? A esposa dele é bastante diferente de Odile, embora tenha um riso algo forçado.

 

Estava na hora de partir. Iam seguir de carro para Nova Iorque.

 

Viremos visitá-la quando regressarmos em Novembro prometeu Maggie, inclinando-se para beijar a face de Mrs. Bainbridge.

 

Fico ansiosa por voltar a vê-los disse Mrs. Bainbridge vivamente e depois suspirou. É tão bonita, Maggie, e tão simpática e inteligente. É tudo o que uma avó podia desejar para um neto. Olhou para Neil. Tome bem conta dela.

 

Ele salvou-me realmente a vida.Maggie sorriu.Merece alguns pontos por isso.

 

Quinze minutos mais tarde, estavam prontos para partir para Nova Iorque. As coisas de Maggie estavam já na sua carrinha. A casa foi fechada. Por momentos, Maggie ficou a mirá-la, recordando-se da noite de há apenas duas semanas, quando chegou.

 

Será divertido vir para cá nas férias e nos fins-de-semana, não vai? disse.

 

Neil envolveu-a com um braço.

 

Tens a certeza de que não trará más recordações?

 

Não. Inalou profundamente. Pelo menos, desde que estejas por perto para me desenterrares, quando eu precisar.

 

Depois riu-se.

 

Não fiques com esse ar chocado. O humor negro acompanhou-me em momentos realmente difíceis.

 

A partir de agora, essa será a minha função disse Neil, abrindo-lhe a porta da carrinha. Não te esqueças, nada de altas velocidades alertou. Sigo atrás de ti.

 

Pareces o teu pai a falar disse Maggie. Depois acrescentou: O que me agrada bastante.

 

                                                                                Mary Higgins Clark  

 

                      

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