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Na abertura deste ensaio sobre o clássico infantil do final dos anos 30 Salman Rushdie confessa: "O mágico de Oz (o filme, não o livro, que não li quando menino) foi minha primeira influência literária." E conta que aos dez anos escreveu uma história situada num mundo de pura fantasia, a que deu o mesmo título da canção mais lembrada do filme: "Over the Rainbow".
Mas para o Rushdie adulto O mágico de Oz é mais do que um filme para crianças, é mais do que uma fantasia. É uma história "cuja força motriz é a insuficiência dos adultos", uma história em que a "debilidade dos adultos induz as crianças a assumir o controle de seu próprio destino". E Rushdie rejeita o ponto de vista convencional que considera que a fantasia do filme - a fuga da realidade- se encerra com uma reconfortante volta ao lar, doce lar. Pelo contrário, diz Rushdie, o filme fala ao exilado, mostrando que a imaginação pode se tornar realidade, que um lugar chamado lar não existe, ou melhor, que o único lar possível é aquele que nós mesmos construímos.
UM TEXTO BREVE SOBRE MÁGICA
Escrevi minha primeira história em Bombaim aos dez anos; o título era Over the Rainbow. Somava uma dúzia, ou pouco mais, de páginas zelosamente datilografadas em
papel fino pela secretária de meu pai e finalmente perdidas durante as complicadas viagens de minha família entre a índia, a Inglaterra e o Paquistão. Pouco antes
de sua morte em 1987 meu pai sustentou ter achado uma cópia mofando num velho arquivo mas, apesar de meus pleitos, jamais a apresentou e ninguém mais viu a coisa.
Freqüentemente conjecturei sobre este incidente. Talvez ele na verdade nunca tenha encontrado a história, caso em que sucumbira à tentação da fantasia, e este foi
o último dos muitos contos de fadas que me contou; ou então realmente a encontrou, e a ela abraçou-se como a um talismã que evocasse tempos menos complicados, pensando
nela como um tesouro seu, não meu - sua panela de ouro nostálgica, paternal.
Não me recordo muito bem da história. Era sobre um menino de dez anos, natural de Bombaim, que um dia se vê no início de um arco-íris, um lugar tão indefinível quanto
aquele onde se espera achar uma panela de ouro, e igualmente cheio de promessas. O arco-íris é largo, tão largo quanto a calçada, e construído como imponente escadaria.
O menino, naturalmente, começa a subir. Esqueci-me de quase todas as
suas aventuras, exceto de um encontro com uma pianola falante cuja personalidade é um improvável híbrido de Judy Garland, Elvis Presley e os "playback singers"
dos filmes hindis, muitos dos quais faziam O mágico de Oz parecer realista e banal. Minha fraca memória - o que minha mãe chamaria "esquecedória" - é provavelmente
justa também. Eu me lembro do que importa. Eu me lembro que O mágico de Oz (o filme, não o livro, que não li em criança) foi minha primeiríssima influência literária.
Mais do que isso: lembro o que senti quando foi aventada a possibilidade de freqüentar escola na Inglaterra, algo tão excitante quanto qualquer viagem para além
do arco-íris. Talvez seja difícil acreditar, mas a Inglaterra parecia-me uma expectativa tão maravilhosa quanto Oz.
O Mágico, todavia, estava ali mesmo em Bombaim. Meu pai, Anis Ahmed Rushdie, era um mágico pai de crianças, mas também era inclinado a explosões, fúrias trovejantes,
relâmpagos emocionais fulminantes, baforadas de fumaça de dragão, e outras ameaças do mesmo tipo das praticadas por Oz, o grande e terrível, o primeiro Mágico de
luxo. E quando o pano caiu e seus crescidos rebentos descobriram, como Dorothy, a verdade sobre a impostura dos adultos, foi fácil pensar, como ela o fez, que nosso
Mágico deveria ser indubitavelmente um homem muito mau. Levei metade da minha vida para descobrir que a apologia pro vita sua do Grande Oz ajustava-se perfeitamente
a meu pai - ele, também, era um bom homem, mas um péssimo Mágico.
Comecei com essas lembranças de cunho pessoal porque O mágico de Oz é um filme cuja força motriz é a inadequabilidade dos adultos, até dos bons adultos, e como a
fraqueza deles força as crianças a tomarem as rédeas de seus próprios destinos e assim, ironicamente, transformarem-se também em adultos. A viagem de Kansas para
Oz é um rito de passagem de um mundo em que os pais substitutos de Dorothy, Tia Em e Tio Henry, não são capazes de ajudá-la a salvar seu cachorro Totó das ávidas
garras de Miss Gulch, para um outro mundo
onde as pessoas são de seu tamanho e no qual ela não é nunca, jamais, tratada como uma criança, mas como uma heroína. Ela adquire acidentalmente esta condição,
é verdade, não tendo nenhuma ingerência na decisão de sua casa de esborrachar a Feiticeira Má do Leste; mas no final de sua aventura ela cresceu o bastante para
encher aqueles sapatos, ou, melhor dito, aqueles sapatinhos de rubi. "Quem diria que uma garota como você pudesse destruir minha linda maldade", lamenta-se a Feiticeira
Má do Oeste enquanto se derrete - um adulto tornando-se menor do que, e dando lugar a uma criança. Enquanto a Feiticeira Má do Oeste cresce para baixo, vê-se Dorothy
crescer para cima. Isto, em minha opinião, é uma explicação muito mais satisfatória para seu recémdescoberto poder sobre os sapatos de rubi do que as razões sentimentais
oferecidas pela inefavelmente piegas Boa Feiticeira Glinda, e depois pela própria Dorothy, num final pegajoso que acho infiel ao espírito anárquico do filme. (Adiante
direi mais sobre isso).
A fraqueza de Tia Em e Tio Henry diante do desejo de Miss Gulch de aniquilar o cachorro Totó leva Dorothy a pensar, infantilmente, em fugir de casa - escapar. Esta
é a razão por que, quando chega o tornado, ela não está no abrigo com os outros, e por isso é sugada no redemoinho para uma fuga que ultrapassa seus sonhos mais
mirabolantes. Mais tarde, todavia, quando confrontada com a fraqueza do Mágico de Oz, ela não foge, mas dá combate, primeiro à Feiticeira, e em seguida ao próprio
Mágico. A ineficácia do Mágico é uma das muitas simetrias do filme, fazendo par com a debilidade da gente da casa de Dorothy; mas a diferença da reação de Dorothy
é o que importa.
O menino de dez anos que assistiu a O mágico de Oz no cine Metro de Bombaim sabia muito pouco de localidades estrangeiras e menos ainda de crescimento. Mas sabia
muito mais do cinema do fantástico que qualquer outra criança do ocidente da mesma idade. No ocidente o filme era uma
extravagância, uma tentativa de fazer uma espécie de versão ao vivo de um desenho de Disney, apesar da sabedoria reinante na indústria que reza que filmes de fantasia
são, em geral, fadados ao fracasso. Parece não haver dúvida de que a excitação produzida por Branca de Neve e os sete anões explica a decisão da MGM de dar tratamento
preferencial a um livro de 39 anos. Esta não foi, porém, a primeira versão cinematográfica. Não vi o filme silencioso de 1925, mas sua fama não é das melhores. Todavia serviu para apresentar
Oliver Hardy como o Homem de Lata.
O filme na verdade só deu dinheiro quando se tornou corrente na televisão anos depois de lançado nos cinemas, embora se deva dizer que o lançamento poucos dias antes
do início da Segunda Guerra Mundial não ajudou. Na índia, contudo ajustou-se ao que era então, e ainda hoje continua sendo, um dos principais caudais da produção
de filmes de BHollywood".
É fácil satirizar os filmes hindis. No filme de James Ivory, Bombay Talkie, uma jornalista (a saudosa e comovente Jennifer Kendal) visita um palco de som de um estúdio
e assiste a um espantoso número de dança que mostra dançarinas de nautch escassamente vestidas saracoteando-se sobre as teclas de uma máquina de escrever gigante.
O diretor explica que a máquina de escrever é, na verdade, "A máquina de escrever da vida", e que "Estamos todos dançando nossas histórias" sobre aquela enorme máquina.
"É muito, hum, simbólico", comenta a jornalista. O diretor, bem afetadamente, responde: "Obrigado".
Máquinas de Escrever da Vida, deusas do sexo metidas em saris molhados (o equivalente indiano de camisetas molhadas), deuses baixando dos céus para interferir nos
assuntos humanos, super-homens, poções mágicas, super-heróis, vilões demoníacos e assim por diante sempre foram a dieta principal da platéia indiana. A loura Glinda
chegando à Terra dos Munchkins em sua bolha mágica podia levar Dorothy a comentar
a singularidade e alta velocidade do transporte local em operação em Oz, mas para uma platéia indiana ela estava chegando exatamente como um deus deveria chegar:
ex machina, saindo de sua própria máquina. A nuvem de fumaça alaranjada da Feiticeira Má do Oeste era igualmente condizente com sua condição de supermá.
Torna-se claro, no entanto, que apesar de todas as semelhanças havia diferenças importantes entre o cinema de Bombaim e um filme como O mágico de Oz. Boas fadas
e feiticeiras más podiam, superficialmente, se parecer com as divindades e demônios do panteão hindu, mas na verdade um dos aspectos mais impressionantes da visão
de mundo de O mágico de Oz é seu alegre e quase total secularismo. A religião só é mencionada uma vez no filme. Tia Em, gaguejando de raiva diante da medonha Miss
Gulch, diz-lhe que esperou anos para
As bailarinas de nautch no filme Bombay Talhe
lhe dizer o que pensa dela "e agora, porque sou uma boa cristã, não posso fazê-lo". Fora este momento em que a caridade cristã impede uma boa e antiquada descompostura,
o filme é despreocupadamente ímpio. Não há nenhum vestígio de religião na própria Oz; as feiticeiras más são temidas, as boas estimadas, mas nenhuma delas é santificada;
e embora o Mágico de Oz seja tido como algo muito próximo ao todopoderoso, ninguém pensa em adorá-lo. Esta ausência de valores mais elevados aumenta muito o charme
do filme, e é um aspecto importante da sua capacidade de criar um mundo em que nada é considerado mais importante do que os amores, cuidados e necessidades de seres
humanos (e, naturalmente, seres de lata, seres de palha, leões e cachorros).
A outra grande diferença é mais difícil de definir, porque é afinal uma questão de qualidade. A maioria dos filmes hindis eram então, e ainda são, o que se pode
chamar de lixo. O prazer obtido de tais filmes (e alguns deles são extremamente agradáveis) é algo que lembra o prazer de comer hambúrgueres e batatas fritas. O
filme falado clássico de Bombaim utiliza roteiros de uma banalidade estarrecedora, parece alternadamente espalhafatoso e vulgar e freqüentemente as duas coisas,
e se apoia no carisma e na capacidade de seus astros para atrair as massas, e em seus números musicais para transmitir um pouco de vida. O mágico de Oz tem astros
e números musicais, mas é também decididamente um Bom Filme. Ele pega a fantasia de Bombaim e adiciona valores elevados de produção e algo mais; algo que não se
encontra com freqüência em nenhum cinema. Dê-se o nome de verdade imaginativa. Ou (saquem seus revólveres) arte.
Se o mágico de Oz é uma obra de arte - e, suponho, sua inclusão nesta série indica que não estou sozinho nesta apreciação - é extremamente difícil dizer quem foi
o artista. A criação de Oz, propriamente, já passou a ser lendária: o autor, L. Frank Baum, batizou seu mundo mágico com as letras O-Z da última gaveta de seu arquivo.
Baura teve uma vida estranha, cheia de altos e baixos. Nasceu rico, herdou de seu pai uma cadeia de pequenos cineteatros, e os perdeu por má administração. Escreveu
uma peça de sucesso e vários fracassos. Os livros sobre Oz fizeram dele um dos principais escritores de histórias infantis da época mas todos os seus outros romances
de fantasia naufragaram. The Wonderful Wizard of Oz e uma adaptação musical deste livro para a ribalta restauraram as finanças de Baum; mas uma tentativa financeiramente
desastrosa de fazer uma turnê pelos Estados Unidos promovendo seus livros com um fairylogue de eslaides e filmes levou-o a pedir falência em 1911. Depois disso,
vivendo à custa do dinheiro da mulher em "Ozcot", Hollywood, ele criou galinhas e ganhou prêmios em exposições de flores. Suas finanças melhoraram após o pequeno
sucesso de um musical da série Oz, The Tik-Tok Man of Oz, mas em seguida ele as arruinou novamente ao montar sua própria companhia cinematográfica, a Oz Film Company,
e tentar infrutiferamente filmar e distribuir os livros da série Oz. Após dois anos preso ao leito e, conta-se, ainda otimista, morreu em maio de 1919. Sua sobrecasaca,
todavia, atingiu uma curiosa imortalidade (ver página 51).
The Wonderful Wizard of Oz, publicado em 1900, contém muitos dos ingredientes da poção mágica - todos os acontecimentos e personagens principais estão presentes,
assim como as mais importantes locações, a Estrada dos Tijolos Amarelos, o Campo das Papoulas Mortíferas, a Cidade Esmeralda. Mas a filmagem de O mágico de Oz é
uma das raras ocasiões em que o cinema melhorou um bom livro. As mudanças incluem: a ampliação da parte de Kansas, que no romance ocupa precisamente duas páginas
no início, antes da chegada do tornado, e apenas nove linhas no fim; uma certa simplificação do fio da história na parte de Oz - todas as tramas secundárias foram
suprimidas, entre elas as visitas às Árvores Combatentes, ao País da Louça Fina, e aos Quadlings que no romance seguem-se ao momento dramático
culminante, o da destruição da feiticeira, e desperdiçam o impulso narrativo do livro; e duas alterações ainda mais importantes. A Cidade Esmeralda de Frank Baum só era
verde porque lá todos eram obrigados a usar óculos cor de esmeralda, ao passo que no filme a cidade é verdadeiramente de um futurístico verde clorofila, a não ser
o Cavalo de Uma Cor Diferente Daquela de Que Você Ouviu Falar. O Cavalo de Uma Cor Diferente muda de cor em cada tomada sucessiva, mudança obtida recobrindo-se o
cavalo com variedades de tons de gelatina em pó. (Por esta e muitas outras histórias da produção do filme sou grato ao livro definitivo de Aljean Harmetz, The Making
ofThe Wizard ofOz, publicado por Pavilion Books em 1989).
Por último, e da maior importância, os sapatinhos de rubi: Frank Baum não inventou os sapatinhos de rubi: ele os chamou de Sapatos Prateados. Noel Langley, o primeiro
dos três escritores mencionados nos créditos, inicialmente acompanhou a idéia de Baum. Mas em seu quarto roteiro, o roteiro de 14 de maio de 1938, conhecido como
o roteiro do NÃO FAÇAM MODIFICAÇÕES, o pesadão, metálico e não mítico sapato de prata foi alijado, e os imortais sapatos-jóia aparecem pela primeira vez, como Harmetz
nos conta, na tomada
114: "Os sapatos de rubi aparecem nos pés de Dorothy, rutilantes e reluzentes ao sol."
Outros escritores contribuíram com detalhes importantes para o roteiro acabado. Florence Ryerson e Edgar Allan Woolf foram provavelmente responsáveis pela frase
"There's no place like home" [Não há lugar como o nosso lar] que, como sustentarei, é a idéia menos convincente do filme (uma coisa é Dorothy querer voltar para
casa, e outra bem diferente é que só possa fazê-lo louvando o estado ideal que Kansas obviamente não é). Mas há divergências sobre isso também; um memorando do estúdio
insinua que poderia ter sido Arthur Freed, o produtor associado, quem cunhou o pegajoso bordão. E após muita discussão entre Langley e Ryerson-Woolf, coube ao letrista
do filme, Yip Harburg, costurar o roteiro final e
acrescentar a cena decisiva em que o Mágico, incapaz de dar aos companheiros o que eles pedem, fornece-lhes emblemas em troca, e para nossa "satírica e cínica"
satisfação, eles fazem o serviço. O nome da rosa vem a ser afinal a rosa.
Quem, então, é o auteur de O mágico de Oz? Nenhum escritor pode isoladamente reivindicar esta honra, nem mesmo o autor do livro original. Mervyn LeRoy e Arthur Freed,
os produtores, têm seus paladinos. Pelo menos quatro diretores trabalharam no filme, mais notadamente Victor Fleming, que dele se afastou antes do fim das filmagens
para que pudesse dirigir ...E o vento levou, curiosamente o filme que dominou os Oscars enquanto O mágico de Oz só ganhou três: Melhor Canção (Over the Rainbow),
Melhor Partitura Musical e um Prêmio Especial para Judy Garland. A verdade é que este grande filme, em que as brigas, demissões e a quase irresponsabilidade de todos
os envolvidos produziram o que se imagina ser pura, fácil e de certo modo inevitável felicidade, está bem perto daquele fogo-fátuo da moderna teoria crítica: o texto
sem autor.
O Kansas descrito por L. Frank Baum é um lugar depressivo no qual, até onde a vista alcança, tudo é cinzento: a planície é cinzenta e assim é também a casa em que
Dorothy mora. Quanto à Tia Em, "O sol e o vento... tinham apagado o brilho dos olhos dela deixando-os de um cinza severo; tinham apagado o vermelho de suas faces
e lábios, que eram cinza também. Ela era magra e macilenta, e agora nunca sorria." Por sua vez, o "Tio Henry nunca ria. Ele era cinzento também, da barba comprida
até as toscas botas." O céu? Era "ainda mais cinzento do que de costume". Totó, felizmente, foi poupado do cinza. Ele "salvou Dorothy de se tornar tão cinzenta quanto
o que a cercava". Totó não era exatamente colorido, embora seus olhos cintilassem e seu pêlo fosse sedoso. Totó era preto.
É desse cinza - do cinza concentrador, cumulativo, daquele mundo triste - que provém a calamidade. O tornado
O cavalo de uma cor diferente
é o cinza concentrado e revolvido e, por assim dizer, desencadeado contra si mesmo. E a tudo isso o filme é surpreendentemente fiel, gravando as cenas de Kansas
no que chamamos de preto-e-branco mas que é, na verdade, uma multiplicidade de tons de cinza, e escurecendo suas imagens até que o redemoinho as suga e rasga em
pedaços.
Mas existe um outro meio de compreender o tornado. Dorothy tem um sobrenome: Gale [ventania]. E de muitas maneiras Dorothy é a ventania que sopra neste cantinho
de fim de mundo, exigindo justiça para seu cachorrinho enquanto os adultos sucumbem dóceis à poderosa Miss Gulch; Dorothy que está disposta a fugir para romper com
a inevitabilidade cinzenta de sua vida e que é tão terna que volta para casa quando sabe pelo Professor Marvel que Tia Em ficará triste quando souber que ela fugiu.
Dorothy é a força da vida de Kansas, assim como Miss Gulch é a força da morte; e talvez sejam os sentimentos de Dorothy, ou o ciclone de emoções desencadeadas entre
Dorothy e Miss Gulch, que se corporificam na grande cobra de nuvem escura, que se contorce pela planície engolindo o mundo.
O Kansas do filme é um pouco menos monotonamente triste do que o Kansas do livro, quando mais não seja pela inclusão dos três peões da fazenda e do Professor Marvel,
quatro personagens que vão encontrar suas "rimas", suas contrapartes, nos Três Companheiros de Oz e no próprio Mágico. Por outro lado é também mais apavorante, porque
acrescenta uma presença da verdadeira maldade: a angulosa Miss Gulch, com um perfil capaz de trinchar um assado, pedalando ereta em sua bicicleta com um chapéu que
parece um pudim de passas, ou uma bomba, a reivindicar a proteção da Lei para sua cruzada contra Totó. Graças a Miss Gulch, o Kansas do filme é um produto não só
da tristeza da miséria, mas também da maldade de supostos matadores de cachorros.
E este é o lar com que nenhum lugar se compara? Este é
o paraíso perdido que somos instados a preferir (como Dorothy o faz) a Oz?
Eu me lembro, ou imagino que me lembro, que ao assistir pela primeira vez a este filme, numa época em que vivíamos muito bem, a casa de Dorothy me deu a impressão
de ser um barraco. Claro, se eu tivesse sido levado para Oz, raciocinei, quereria obviamente voltar para casa, mas aí eu tinha bons motivos para voltar para casa,
Mas Dorothy? Talvez a convidássemos a ficar conosco; qualquer lugar parece melhor do que aquilo.
Também tive outro pensamento, que prefiro confessar agora, já que me induziu a uma secreta admiração pela Feiticeira Má e, alguns poderiam dizer, a uma secreta simpatia
por todas as pessoas com igual disposição para a feitiçaria, sentimento que me acompanha desde então.
Eu não suportava Totó. Ainda não suporto. Como Gollum disse do hobbit Bilbo Baggins em outra grande fantasia: Baggins, nós odeia ele até a última migalha."
Totó: aquela peruquinha que late, aquele capachinho intrometido! (Devo salientar que já alimentava estes sentimentos por Totó mesmo quando eu ainda tinha cabelo
na cabeça.) L. Frank Baum, excelente sujeito, deu ao cachorro um papel nitidamente secundário: ele mantinha Dorothy feliz, e quando ela não o era, ele tinha a tendência
a "ganir lugubremente": uma característica pouco cativante. Sua única contribuição realmente importante à narrativa de Baum aconteceu quando ele acidentalmente derrubou
o biombo atrás do qual se ocultava o Mágico. O Totó do filme puxa intencionalmente uma cortina para revelar o Grande Embusteiro, e, apesar de tudo, achei isso uma
maldade irritante. Não me surpreendeu saber que o ator canino que representou Totó era temperamental como um astro e que até, a certa altura das filmagens, paralisou
tudo ao fingir um colapso nervoso. Que Totó fosse no filme o único verdadeiro objeto de amor sempre me exasperou. Não adianta (embora seja gratificante) protestar:
ninguém, agora, pode me livrar desta turbulenta peruca.
Quando vi O mágico de Oz pela primeira vez, o filme fez de mim um escritor. Muitos anos depois comecei a conceber a história que acabou se tornando Haroun and the
Sea of Stories havia em mim um forte sentimento que dizia ser possível escrever o conto de forma a despertar o interesse tanto dos adultos quanto das crianças desde
que encontrasse o tom certo: ou, para usar uma frase tão do agrado dos que escrevem as orelhas dos livros, das "crianças dos sete aos setenta". O mundo dos livros
tornou-se um assunto rigorosamente demarcado e categorizado, em que a ficção para crianças é não só uma espécie de gueto mas um gueto subdividido em escritos para
um número variado de faixas de idade. O cinema, no entanto, tem, com freqüência, se situado acima de tais categorias. De Spielberg a Schwarzenegger, de Disney a
Gilliam, tem produzido filmes a que assistem sentados, lado a lado, crianças e adultos unidos por aquilo que estão vendo. Eu assisti a Uma cilada para Roger Rabbit
numa sessão da tarde de um cinema cheio de crianças barulhentas e voltei a vê-lo na noite seguinte, num horário adiantado demais para as crianças, de forma que pudesse
ouvir todas as piadas, apreciar as alusões e maravilhar-me novamente com o brilho do conceito de Toontown. Mas de todos os filmes o que mais me ajudou a achar a
voz certa para Haroun foi O mágico de Oz. Os traços do filme estão lá no texto, bem visíveis; nos companheiros de Haroun encontram-se ecos evidentes dos amigos que
dançaram com Dorothy na Estrada dos Tijolos Amarelos. E agora estou fazendo algo estranho, algo que deveria destruir meu amor pelo cinema, mas não destrói. Agora
estou assistindo a um videoteipe, assistindo com um caderno de notas no colo, uma caneta numa das mãos e um controle remoto na outra. Estou sujeitando O mágico de
Oz às indignidades da câmera lenta, do avanço rápido e do congelamento de imagem. Tento aprender o segredo do truque mágico. E, sim, vejo coisas que jamais notara
antes...
...Mas eu também mudei, naturalmente. Meu próprio relacionamento com o "lar" tornou-se, digamos, mais problemático ultimamente, por razões que tenho pouco interesse
em recapitular aqui. Não nego - e ampliarei esta declaração no devido tempo - que refleti bastante, nestes três últimos anos, sobre a vantagem de ter um bom par
de sapatos de rubi...
O filme começa. Estamos no mundo monocromático, "real", de Kansas. Uma garota e seu cachorro correm por uma estrada de terra. Ela ainda não vem, Totó. Ela o machucou?
Ela tentou, não foi? Uma garota de verdade, um cachorro de verdade, e, com a primeira fala, o começo de um drama verdadeiro. Kansas, no entanto, não é verdadeiro,
não mais verdadeiro que Oz. Kansas é um quadro a óleo. Dorothy e Totó estão correndo num pequeno trecho de "estrada" dos estúdios da MGM, e esta tomada é propositalmente
embaçada para compor um retrato do vazio. Provavelmente o vazio "real" não seria suficientemente vazio. É quase tão vazio que não faz
diferença para o cinza universal da história de Frank Baum, o vazio quebrado apenas por algumas cercas e as Unhas verticais dos postes do telégrafo. Se Oz é lugar
nenhum, então o cenário de estúdio das cenas de Kansas sugere que Kansas é assim. Isto é necessário. Uma pintura realista da extrema pobreza que cerca Dorothy Gale
teria criado um fardo, um peso, que teria impossibilitado o salto imaginativo para o mundo dos contos da carochinha, o vôo arrebatador para Oz. É verdade que os
contos dos Grimm eram, com freqüência, brutalmente realistas. Em O pescador e sua mulher, o casal epônimo vive, até encontrar o linguado mágico, no que é secamente
descrito como um "urinol". Mas em muitas versões dos contos dos Grimm para crianças o urinol é expurgado, dando lugar a uma "choupana" ou mesmo outra palavra mais
amena. Hollywood sempre optou pela ótica mais amena. Dorothy parece extremamente bem alimentada, e é, não realmente, mas irrealmente, pobre. Ela chega à fazenda
e aqui (congelando a imagem) vemos o princípio do que será um recorrente motivo visual. Na cena que congelamos, Dorothy e Totó estão ao fundo, dirigindo-se para uma porteira. À esquerda da tela
encontra-se um tronco de árvore, uma linha vertical evocativa dos postes do telégrafo da cena precedente. Pendurados de um galho aproximadamente horizontal estão
um triângulo e um círculo (na verdade um pneu de borracha). No centro da tomada estão outros elementos geométricos: as linhas paralelas da cerca de madeira, o travessão
em diagonal que divide a porteira. Mais tarde, quando vemos a casa, o tema de geometria simples está outra vez presente; tudo se compõe de ângulos retos e triângulos.
O mundo de Kansas, aquele grande vazio, é convertido em "lar" pela utilização de formas simples e descomplicadas; nada aqui da complexidade urbana. Durante todo
o desenrolar de O mágico de Oz, lar e segurança são representados por esta simplicidade geométrica, ao passo que perigo e maldade são invariavelmente retorcidos,
irregulares e deformados.
A espiral da Estrada dos Tijolos Amarelos
O tomado é justamente uma forma assim: sinuoso, indigno de confiança, mutável. Errático, móvel, demole as formas modestas daquela vida sem afetação.
O curioso é que a seqüência de Kansas invoca não somente geometria mas também aritmética: pois quando Dorothy, como a força caótica que é, irrompe diante de Tia
Em e Tio Henry relacionados com Totó, o que é que os dois estão fazendo? Por que eles a enxotam? "Estamos tentando contar", dizem em tom de repreensão enquanto fazem
o recenseamento dos ovos, contando suas galinhas metafóricas, suas pequenas esperanças de receita que em breve o tornado irá destruir. Assim, com formas e números
simples, a família de Dorothy ergue suas defesas contra o vazio imenso e enlouquecedor; e essas defesas são inúteis, naturalmente.
Pulando para Oz, torna-se óbvio que esta oposição entre o geométrico e o tortuoso não é fortuita. Observe o início da Estrada de Tijolos Amarelos: é uma espiral
perfeita Observe
A feiticeira parte numa nuvem de fumaça sem forma definida
de novo o veículo de Glinda, aquela esfera perfeita e luminosa. Observe as bem ensaiadas seqüências dos Munchkins ao cumprimentarem Dorothy e lhe agradecerem pela
morte da Feiticeira Má do Leste. Avance até a Cidade Esmeralda: veja de longe, suas linhas retas elevando-se no céu! E agora, contrastando, observe a Feiticeira
Má do Oeste: sua figura encurvada, seu chapéu deformado. Como ela vai embora? Numa nuvem de fumaça sem forma definida... "Só as feiticeiras más são feias", Glinda
informa Dorothy, uma observação de elevada incorreção política que salienta a animosidade do filme contra tudo o que é emaranhado, torto e misterioso. As florestas
são invariavelmente assustadoras; os galhos nodosos das árvores são capazes de criar vida; e o único momento em que a própria Estrada dos Tijolos Amarelos confunde
Dorothy é aquele em que deixa de ser geométrica (primeiro espiral, depois retilínea) e se divide e bifurca em todas as direções.
Outra vez em Kansas, Tia Em está passando a descompostura que é o prelúdio de um dos momentos imortais do cinema, Você sempre fica aflita à toa...vê se acha um lugar
onde não arranje problemas!
Algum lugar onde não existam problemas. Você acha que existe um lugar assim, Totó? Deve haver. Quem quer que tenha aceito a teoria do roteirista de que este é um
filme a respeito da superioridade do "lar" sobre "lá longe", de que a "moral" de O mágico de Oz é tão enjoativamente piegas quanto um pano bordado - "East, West,
home's best" (Leste, Oeste, o lar é melhor) - faria bem se prestasse atenção ao anseio contido na voz de Judy Garland quando ela levanta o rosto para o céu. O que
ela expressa aqui, o que corporifica com a pureza de um arquétipo, é o sonho humano de partir, um sonho pelo menos tão poderoso quanto sua parte contrária, o sonho
de raízes. No cerne de O mágico de Oz há uma forte tensão entre esses dois sonhos; mas quando, no crescer da
música, aquela voz límpida e grandiosa penetra nos angustiantes anseios da canção, pode alguém ter dúvidas sobre qual das mensagens é a mais forte? Em seu momento
emocional mais intenso, este é, indiscutivelmente, um filme sobre as alegrias de ir embora, de deixar o cinza e ingressar na cor, de levar uma nova vida no "lugar
onde não existem problemas". Over the Rainbow" (Além do arco-íris) é, ou deveria ser, o hino de todos os migrantes do mundo, todos aqueles que vão em busca do lugar
onde "os sonhos que você ousa sonhar realmente se realizam". É uma celebração da Fuga, um canto grandioso ao Eu Desenraizado, um hino - o hino - ao Outro Lugar.
E.Y. Harburg, o letrista de "Brother, Can You Spare a Dime?" (Irmão, pode me arranjar um trocado?), e Harold Arlen, que tinha composto "It's Only a Paper Moon" (É
só uma lua de papel), com Harburg, fizeram as canções para O mágico de Oz, e Arlen na verdade concebeu a linha melódica do lado de fora da Schwab's Drugstore em
Hollywood. Aljean Harmetz registra a decepção de Harburg com a música: complexa demais para uma adolescente de dezesseis anos cantar, avançada demais se comparada
a sucessos de Disney, como "Heigh Ho, Heigh Ho, It's Off to Work We Go" (Ai ô, ai ô, para o trabalho eu vou). Harmetz acrescenta: "Para agradar a Harburg, Arlen
compôs a melodia para a tilintante secção central da canção." Where troubles melt like lemon drqps, Away above the chimney tops, That's where you'll find me... (Onde
os problemas se dissolvem como dropes de limão, lá no alto, acima das chaminés, lá é onde você me encontrará). Um pouco mais alto, em suma, do que aquela outra grande
ode à fuga: "Up On the Roof' (Em cima do telhado).
Como é sabido, "Over the Rainbow" quase foi cortada do filme e isto comprova que Hollywood faz suas obras-primas por acaso, porque simplesmente não sabe o que está
fazendo. Outras canções foram descartadas: "The Jitter Bug" (O percevejo assustado), depois de cinco semanas de filma-
No verso: Além do arco-íris
Ha :.. WmM
gens; e a quase totalidade de Lions and Tigers and Bears", (Leões, tigres e ursos), que sobrevive apenas como a cantilena dos Companheiros ao atravessarem a floresta
pela Estrada dos Tijolos Amarelos:
Lions and tigers and bears -oh, my! Lions and tigers and bears -oh, my!
É impossível dizer se essas canções teriam melhorado ou prejudicado o filme; teria Catch-22 sido Catch-22 se o tivessem publicado sob o título original de Catch-181
O que é certo, todavia, é que Yip Harburg errou no que se refere à voz de Judy Garland.
Os atores principais do elenco queixaram-se de que "não havia atuação" no filme, e no sentido convencional tinham razão. Mas Garland ao cantar "Over the Rainbow"
fez algo extraordinário: naquele momento deu ao filme um coração, e o impacto de sua interpretação é forte e doce e suficientemente profundo para nos fazer passar
por toda a bobagem que se segue; até empresta ao filme uma qualidade comovente, um charme vulnerável, que só é ampliado pela criação igualmente extraordinária de
Bert Lahr no papel do Leão Covarde.
O que sobra para dizer da Dorothy de Garland? O juízo convencional diz que o papel ganha em força irônica porque sua inocência contrasta tão duramente com o que
sabemos das dificuldades pelas quais a atriz passou mais tarde em sua vida. Não tenho certeza de que isto está certo, embora seja o tipo de observação que os aficionados
do cinema tendem a fazer. Parece-me que o desempenho de Garland é um sucesso em si mesmo e no plano do filme. Querem que ela realize o que parece ser um truque impossível.
Por um lado ela deve ser a tabula rasa do filme, a lousa limpa sobre a qual a ação da história vai pouco a pouco se desenhando - ou, porque é de um filme que estou
falando, a tela na qual a ação se passa. Armada apenas com um ar de inocência embasbacada, ela deve ser o objeto tanto quanto o sujeito do filme, deve se deixar
ser o recipiente
vazio que o filme enche pouco a pouco. E no entanto ao mesmo tempo deve (com uma pequena ajuda do Leão Covarde) sustentar todo o peso emocional, toda a força ciclônica
do filme. O fato de consegui-lo se deve não somente à maturidade profunda de sua voz de cantora, mas também à curiosa figura atarracada, ao modo desajeitado que
nos conquista precisamente porque é meio-bonita, jolie-laide, em vez da beleza bemposta que uma Shirley Temple teria conferido ao papel - e Temple foi certamente
considerada para a personagem. A notória, e até ligeiramente inepta, insexualidade da atuação de Garland é o que faz com que o filme funcione. Podemos imaginar a
desastrosa brejeirice que a jovem Shirley teria insistido em empregar, e sejamos gratos, mais uma vez, à boa estrela que persuadiu os executivos da MGM a optarem
por Judy.
O tornado que sugeri ser o produto da Gale no nome e na natureza de Dorothy foi na verdade feito de musselina enrijecida com arame. Um aderecista teve de se enfiar
no funil de musselina para ajudar a puxar as agulhas para dentro e empurrá-las para fora novamente. "Foi bastante incômodo quando chegamos à parte estreita", confessou
ele. O tornado, ao precipitar-se sobre a casa de Dorothy, cria a segunda imagem genuinamente mítica de O mágico de Oz o mito arquetípico, por assim dizer, da casa
móvel.
Nesta, que é a seqüência de transição do filme, quando a realidade irreal de Kansas dá lugar à surrealidade realística do mundo da magia, há, condizente com este
momento liminar, muita ação envolvendo portas e janelas. Primeiro, os peões abrem as portas do abrigo e Tio Henry, heróico como sempre, convence Tia Em de que eles
não podem se dar ao luxo de esperar por Dorothy. Segundo, Dorothy, voltando com Totó de sua tentativa de fuga, luta contra o vento para abrir a porta de tela da
casa grande; esta porta externa é subitamente arrancada de suas dobradiças e sai voando. Terceiro, vemos os outros fechando as portas do abrigo. Quarto, Dorothy,
dentro da casa, abre e fecha as portas de diversos quartos, chamando freneticamente por Tia Em. Quinto, Dorothy dirige-se ao abrigo, mas
Muita ação envolvendo portas e janelas Os peões abrem as portas
As portas do abrigo se fecham
Dorothy chama Tia Em
As portas do abrigo estão trancadas para Dorothy
Uma janela põe Dorothy a nocaute
Ela cai em cima da cama
suas portas não se abrem para ela. Sexto, Dorothy retorna ao interior da casa grande, seus chamados pela Tia Em agora fracos e amedrontados; nisso, uma janela,
imitando a porta de tela, solta-se de suas dobradiças e bate em Dorothy, pondo-a a nocaute. Ela cai sobre a cama, e de agora em diante reina a mágica. Acabamos de
passar pelo portão mais importante do filme.
Mas este artifício - o nocaute de Dorothy - é o mais radical e, sob certos aspectos, a pior de todas as modificações feitas na concepção original de Frank Baum.
Porque no livro não há dúvida de que Oz é real, que é um lugar da mesma ordem, embora não do mesmo tipo, de Kansas. O filme, como no seriado Dallas da TV, insere
um elemento de má-fé ao admitir a possibilidade de que tudo que se segue é um sonho. Esse tipo de má-fé custou a Dallas seu público e acabou por liquidar com o seriado.
Que O mágico de Oz evitou a sina do seriado é uma prova da integridade geral do filme, o que lhe permitiu superar esse chavão venerável e carcomido.
Enquanto a casa passa voando pelo ar, parecendo, por efeito do plano geral, um brinquedinho, Dorothy "acorda". O que ela vê do outro lado da janela é uma espécie
de filme - a janela fazendo as vezes de uma tela de cinema, um quadro dentro do quadro - que a prepara para o novo tipo de filme em que ela está prestes a entrar.
Os efeitos especiais, sofisticados para a época, incluem uma senhora tricotando em sua cadeira de balanço levada pelo tornado, uma vaca placidamente parada no centro
do vendaval, dois homens remando um bote no ar turbulento, e, o mais importante de tudo, a figura de Miss Gulch montada na sua bicicleta, que se transforma, diante
de nossos olhos, na personagem da Feiticeira Má do Oeste montada na sua vassoura, a capa esvoaçando, e sua tremenda gargalhada cacarejante se sobrepondo à tormenta.
A casa aterrissa; Dorothy sai de seu quarto com Totó nos braços. Chegamos ao momento da cor.
A primeira tomada a cores, na qual Dorothy se afasta da
A janela faz as vezes de tela de cinema. Uma senhora fazendo tricô
Uma vaca no centro da tormenta
Dois homens num bote
Miss Gulch
A Feiticeira Má do Oeste
câmera em direção à porta da rua, é propositalmente baça, uma tentativa de combinar com o precedente monocromo. Mas uma
vez aberta a porta, a cor inunda a tela. Nestes dias de empanzinamento de cores fica difícil nos imaginarmos numa época em
que a cor era ainda relativamente nova nos filmes. Voltando mais uma vez à minha infância em Bombaim nos anos
cinqüenta, uma época em que os filmes hindis eram todos em preto-e-branco, posso lembrar o alvoroço que cercou o advento
da cor. Foi num épico sobre o Grão Mogol, o Imperador Akbar, intitulado Miighal-e-Azam, e havia só uma bobina filmada em
cores, apresentando uma dança na corte executada pela lenda- ria Anarkali. Esta bobina sozinha, no entanto, garantiu o
sucesso do filme, atraindo as massas que se contavam aos milhões.
É óbvio que os realizadores de O mágico de Oz decidiram fazer de seu filme o mais colorido possível, como o fez
Michelangelo Antonioni (um tipo bem diferente de cineasta) anos depois, em seu primeiro filme colorido, O dilema de
uma vida. No filme de Antonioni a cor é usada para criar efeitos exagerados e freqüentemente surrealistas. O mágico de Oz
vai igualmente em busca de ousados salpicos expressionistas do o amarelo da Estrada de Tijolos, o vermelho do Campo de
Papoulas, o verde da Cidade Esmeralda e da pele da feiticeira. Tão marcantes eram esses efeitos coloridos que, pouco
depois de ver o filme quando menino, comecei a sonhar com feiticeiras de pele esverdeada; anos depois atribuí estes
sonhos ao narrador de meu romance Midnighfs Children, tendo esquecido completamente suas origens. "Sem cores exceto verde
e preto as paredes são verdes o céu é preto... as estrelas são verdes a Viúva é verde mas seu
cabelo é preto retinto", começa o fluxo de consciência da seqüência do sonho, em que o pesadelo de Indira Gandhi se funde com a figura igualmente pesadelesca de
Margaret Hamilton: uma reunião das Feiticeiras Más do Leste e do Oeste.
Dorothy, adquirindo cores, emoldurada por exótica folhagem com um punhado de casinhas rústicas ao fundo e parecendo uma Branca de Neve de avental azul, nenhuma
princesa, mas uma boa garota americana do povo, está visivelmente espantada com a ausência de seu cinza habitual. Totó, tenho a impressão de que não estamos mais no
Kansas, ela diz, e esta clássica tirada simplória destacou-se do filme para se tornar um grande bordão americano, infinitamente reciclado, aparecendo até como uma
das epígrafes da gigantesca fantasia paranóide da Segunda Guerra Mundial, Gravity's Rainbow de Thomas Pynchon, em que o destino dos personagens não está "Atrás da
lua, além da chuva", mas "além do zero" da consciência, onde há um lugar no mínimo tão bizarro quanto Oz.
Mas Dorothy fez mais do que deixar o cinza e entrar no Technicolor. Seu desabrigo, seu desalojamento, é realçado pelo fato de que, depois de toda a movimentação
das portas, na seqüência de transição, e tendo agora passado para o lado de fora das portas, ela não terá permissão de entrar em nenhum interior até chegar à Cidade
Esmeralda. Do Tornado ao Mágico, Dorothy não tem
nunca um teto sobre sua cabeça.
Lá fora no meio das gigantescas malvas-rosas, cujas florações parecem pavilhões de gramofone, lá na vulnerabilidade do espaço aberto (embora um espaço aberto que
não é em nada igual à pradaria), Dorothy está prestes a superar Branca de Neve por um fator de aproximadamente cinqüenta. Pode-se quase ouvir os chefões dos estúdios
da MGM tramando eclipsar o sucesso de Disney; não só por fornecer na ação de gente de carne e osso quase tantos efeitos milagrosos quanto os dos desenhistas de Disney,
mas também no que diz respeito aos anões. Se Branca de Neve tinha sete anões, decidiram os chefões, Dorothy Gale, da estrela chamada Kansas, teria trezentos e cinqüenta.
Há um pouco de divergência quanto a como tantos Munchkins foram localizados, contratados e trazidos para Hollywood. O livro de Aljean Harmetz dá a versão
oficial que eles foram fornecidos por um empresário de nomeLeo Singer; mas a biografia de Bert Lahr, por seu filho John, conta uma história diferente, que eu prefiro reproduzir
aqui por
razões que Roger Rabbit compreenderia: isto é, só porque é engraçada. Lahr cita o diretor do elenco, Bill Grady:
Leo (Singer) só me arranjaria 150. Procurei um monologador anão chamado Major Doyle... Eu disse que tinha 150 de Singer.
"Eu não lhe fornecerei nenhum se você fizer negócio com aquele filho da puta." Aí eu disse: "O que é que eu vou fazer?" "Eu lhe arranjarei os 350"... Então telefonei
para Leo e expliquei a situação... Quando eu disse ao Major que havia cancelado o contrato com Singer, ele dançou uma jiga na rua, bem em frente ao Dinty Moore.
O Major me consegue os anões... eu os levo para o oeste de ônibus... Major Doyle pegou os (três primeiros) ônibus e chegou à casa de Singer.
O Major foi direto ao porteiro. "Telefone lá pra cima e diga a Leo Singer que apareça na janela."
Passaram-se mais ou menos dez minutos. Aí Singer olhou de sua janela no quinto andar. E lá estavam todos aqueles anões naqueles ônibus em frente à sua casa com os
traseiros nus à mostra nas janelas.
Este incidente tornou-se conhecido como "A vingança do Major Doyle".
O que começou como uma história em quadrinhos prosseguiu no estilo de desenho animado. Os Munchkins foram maquiados e fantasiados exatamente como personagens de
desenho animado em três dimensões. O prefeito da Terra dos Munchkins é implausivelmente rotundo; o magistrado (e ela não está só meramente morta / Ela está realmente
muito sinceramente morta) lê o necrológio da Feiticeira do Leste num rolo de pergaminho tendo na cabeça um chapéu com uma aba absurdamente parecida com um rolo de
pergaminho; os topetes dos garotos do Clube do Pirulito, que parecem ter chegado a Oz via Bãsh Street e Dead End, apresentam-se mais armados do que o de Tintin.
Mas o que poderia ter sido uma grotesca e insossa seqüência transforma-se no momento no qual O mágico de Oz
cativa, de vez, a platéia, por combinar o charme natural da história à brilhante coreografia da MGM (que alterna grandiosos números de dança com pequenos quadros
de cenários arrumadinhos, como a dança da Liga do Acalanto e os Dorminhocos despertando, de barretes e camisolas, nas cascas azuis de ovos postos em um ninho gigante),
e acima de tudo, pela canção excepcionalmente espirituosa de Arlen e Harburg: "Ding, Dong, the Witch is Dead" (Blim, Blão, a Feiticeira morreu).
Arlen desdenhou um pouco esta canção e a igualmente inesquecível "We're Off to See the Wizard", chamando-as de suas "canções de dropes de limão", e talvez isso seja
porque o verdadeiro espírito inventivo em ambas as melodias está na letra de Harburg. Na introdução de Dorothy a "Ding, Dong", Harburg embarcou numa demonstração
pirotécnica de rimas emparelhadas (The wind began to switch I the house to pitch I até que finalmente encontramos a witch I a thumbinjor a hitch e what happened
then was rich...), uma série em que, como acontece nas aliterações de um apregoador de espetáculo de variedades, saudamos a cada nova rima como uma espécie de feito
de ginasta. Esse tipo de jogo verbal continua a caracterizar ambas as canções. Em "Ding, Dong", Harburg começa por fazer trocadilhos, com palavras sanfonadas:
Ding, Dong, the witch is dead!
Whicholwitch?
- The wicked witch!
Esta técnica encontrou plena expressão em "We're Off to See the Wizard", tornando-se o verdadeiro "gancho" da canção:
We're off to see the Wizard l
The wonderful Wizzerdevoz
We hear he is
A Wizzavawizz
If ever a Wizztherwozz (
If everoever a Wizztherwozz The Wizzerdevoz is one because...
E assim por diante. Será fantasioso demais sugerir que o emprego, por parte de Harburg, em todo o filme, de um esquema rímico enamorado por rimas internas e assonâncias
é um eco consciente do "rimário" da própria trama, o paralelismo dos personagens de Kansas com os de Oz, os ecos de temas saltando para frente e para trás entre
o mundo monocromático e o Technicolor?
Apenas uns poucos Munchkins sabiam efetivamente cantar a letra, pois a maioria não falava inglês (as canções tiveram de ser pós-sincronizadas). No filme tinham pouco
a fazer. Eles compensaram isso com atividades extracâmera, e embora atualmente alguns historiadores do cinema tentem reduzir as proporções das farras, dos escândalos
sexuais e das cenas de pancadaria, a lenda da passagem das hordas Munchkin por Hollywood não será facilmente esquecida. No romance de Angela Cárter, Wise Children,
há um desvairado relato cômico de uma fictícia versão hollywoodiana de Sonhos de uma noite de verão, que se inspira bastante nos Munchkins:
A idéia foi adequar o tamanho da floresta à escala do povo encantado, de forma que tudo aparentasse ser duas vezes maior do que a realidade. Maior ainda. Margaridas
imponentes do tamanho de uma cabeça humana e tão brancas quanto fantasmas, dedaleiras tão altas como a Torre de Pisa, que, se sacudidas, repicavam como sinos...
Até o povo miúdo era real; o estúdio varrera o país à cata de anões. Verdadeiras ou não, logo começaram a circular histórias extravagantes - como a do pobre coitado
que caiu no vaso sanitário e passou meia hora chapinhado antes que alguém, que entrara para dar uma mijada, o acudisse; a outro, quando saiu para comer um hambúrguer
no Brown Derby, ofereceram uma cadeira de bebê...
e, pode-se acrescentar, incidentes ocorreram em que figuraram facas, e paixões foram alimentadas por este ou aquele Munchkin por empregados mais altos do estúdio.
No meio de todo esse Munchkinório deparamos com dois retratos, bem diferentes, de adultos. Glinda, a Feiticeira Boa, é bonita de cor-de-rosa (vá lá, bonitinha,
mesmo que Dorothy a chame de "linda"). Ela possui uma voz fina com uma elocução de arrulho e um sorriso que parece ter emperrado. Deram-lhe uma excelente fala cômica,
logo após Dorothy negar ser uma feiticeira: apontando Totó, Glinda pergunta: Então isso é a feiticeira? Com exceção desta piada, ela passa toda a cena empoada demais,
sorrindo afetadamente, procurando transmitir um ar benevolente e carinhoso. Curiosamente, a bondade do povo de Oz não lhe é inerente, embora ela seja a Feiticeira
Boa. O povo de Oz é bom de natureza, salvo quando sob o domínio da Feiticeira Má (como é demonstrado, após ela se dissolver, pelo comportamento de seus soldados).
Então, no universo moral do filme, só o mal é externo, residindo apenas na dupla figura demoníaca de Miss GulchFeiticeira Má.
(Uma preocupação que registro entre parênteses a respeito da apresentação da Terra dos Munchkins: não é um pouco bonito demais, arrumado demais, adocicado demais
para um lugar que estava, até momentos antes da chegada de Dorothy, sob o domínio absoluto da má e ditatorial Feiticeira do Leste? Como é que esta esborrachada Feiticeira
não possuía um castelo? Por que são os Munchkins tão relativamente destemidos, escondendo-se apenas por pouco tempo antes de aparecerem, e rindo sorrateiros enquanto
se escondem? Acode o pensamento herético: talvez a Feiticeira do Leste não fosse tão má como dizem: ela certamente mantinha as ruas limpas, as casas pintadas e em
boa forma e, se trens houvesse estariam rodando no horário, sem dúvida. De mais a maisye ainda diferentemente de sua irmã, ela parece ter reinado sem ajuda de soldados,
policiais ou outras hostes de repressão/Por que, então, ela era odiada? Apenas faço a pergunta.) i
Glinda e a Feiticeira do Oeste são os dois únicos símbò los de poder em um filme que se ocupa predominantemente com aqueles que não têm poder, e é instrutivo analisar
esses
símbolos. Ambos são mulheres, e um aspecto marcante de O mágico de Oz é a ausência de um herói - porque com toda a sua inteligência, coração e coragem, é impossível
conceber o Espantalho, o Homem de Lata e o Leão Covarde como protagonistas clássicos de Hollywood. O centro do poder do filme é um triângulo em cujas pontas estão
Glinda, Dorothy e a Feiticeira; a quarta ponta, onde se acreditava estar o Mágico, revela-se uma ilusão. O poder dos homens, sugere-se, é ilusório; o poder das mulheres
é real.
Entre as duas Feiticeiras, a boa e a má, haveria alguém que optasse por ficar na companhia de Glinda por mais de cinco minutos? A atriz que a interpretou, Billie
Burke, exmulher de Fio Ziegfeld, parece ser tão choramingas quanto seu papel; ela era propensa a reagir à crítica com um tremor nos lábios e uma débil exclamação:
"Ah, você está me humilhando!" Contrastando com ela, a Feiticeira Má do Oeste, interpretada por Margaret Hamilton, toma conta do filme desde que solta, com sua cara
verde, o primeiro rosnado.
Naturalmente Glinda é "boa" e a Feiticeira Má "perversa"; mas Glinda é uma chata de galochas, e a Feiticeira Má é magra e mesquinha. Confira as roupas de ambas:
cor-de-rosa pregueado versus preto de linha esguia. Impossível a disputa. Considere as atitudes delas em relação às suas companheiras de sexo: Glinda sorri dengosa
ao ser chamada de linda, e denigre suas irmãs não lindas; a Feiticeira Má, no entanto, tem um acesso de raiva em virtude da morte da irmã, revelando assim, diga-se,
um louvável senso de solidariedade. Podemos vaiá-la, e ela pode nos aterrorizar enquanto somos crianças, mas ao menos não nos constrange da maneira como Glinda o
faz. É verdade que Glinda transpira uma espécie de pegajosa segurança materna, ao passo que a Feiticeira do Oeste
apresenta-se, nesta cena ao menos, curiosamente frágil e impotente,
forçada a formular vãs ameaças. Aguardarei a minha vez. Mas você que não tente cruzar o meu caminho; mas assim como o feminismo procurou reabilitar
velhas palavras pejorativas
como megera, coroca, bruxa, assim também pode-se dizer que a Feiticeira Má do Oeste representa a mais positiva das duas imagens de poderosa feminilidade oferecidas
no filme.
Glinda e a Feiticeira Má confrontam-se ferozmente pelos sapatinhos de rubi, que Glinda retira, num passe de mágica, dos pés da falecida Feiticeira do Oeste e transfere
para os pés de Dorothy, o que aparentemente a Feiticeira Má não tem poder de impedir. Mas as instruções de Glinda a Dorothy são singularmente enigmáticas, até contraditórias.
Ela diz a Dorothy: (1) "A magia deles deve ser muito poderosa, senão ela não os quereria tanto", e, mais tarde: (2) "Nunca deixe os sapatinhos de rubi fora de seus
pés, senão você ficará à mercê da Feiticeira Má do Oeste." Ora, a declaração (1) sugere que Glinda não tem certeza das propriedades dos sapatinhos de rubi, ao passo
que a declaração (2) sugere que ela tudo sabe sobre a proteção dada pelos poderes dos sapatinhos. Nenhuma das duas declarações sequer insinua o futuro papel dos
sapatinhos de rubi na ajuda a Dorothy para voltar para o Kansas. Parece provável que estas confusões sejam ressacas advindas do longo processo de roteirização, cheio
de divergências, no qual a função dos sapatinhos foi foco de consideráveis disputas. Mas as obliqüidades de Glinda também podem ser vistas como provas de que uma
boa fada, ou uma boa feiticeira, quando resolve ajudar, nunca o faz completamente. Glinda, afinal, não difere de sua própria descrição do Mágico de Oz: Oh, ele é
muito bom, mas muito misterioso.
É só seguir a Estrada dos Tijolos Amarelos, diz Glinda, e some numa bolha em direção às montanhas azuis ao longe, e Dorothy, geometricamente influenciada - afinal
quem não estaria após uma infância passada entre triângulos, círculos e quadrados? - inicia sua viagem no ponto exato em que a Estrada se abre em espiral. E quando
Dorothy parte, e enquanto
ela e os Munchkins repetem as instruções de Glinda em tons ao mesmo tempo roufenhamente altos e guturalmente baixos, algo começa a acontecer com os pés de Dorothy;
seu deslocamento adquire um ritmo sincopado, que por etapas graciosamente lentas se torna cada vez mais evidente; até que, por fim, quando o conjunto entoa pela
primeira vez a canção-tema do filme - You're OfftoSee the Wizard, eles cantam - vemos, plenamente desenvolvido, o leve arrastar de pés seguido de um pulinho que
será o motivo condutor de toda a viagem:
You 're offto see the Wizard
(chchch-pulo)
The wonderful Wizzerdevoz
(chchch-pulo) We hear he is a Wizzavawizz Ifever a Wizztherwoz....
Desta forma, chchch-pulando, Dorothy Gale, que já é uma Heroína Nacional na Terra dos Munchkins, que já é (como os Munchkins lhe asseguram) História, que será um
Busto na Galeria da Fama, palmilha a estrada do destino, e ruma, como devem fazê-lo os americanos, para o Oeste: para o pôrdo-sol, a Cidade Esmeralda, e a Feiticeira.
Eu sempre achei as histórias de bastidores acerca da produção de um filme simultaneamente deliciosas e decepcionantes, especialmente quando o filme se alojou tão
profundamente em nós como O mágico de Oz. Por um lado existe uma inegável fome de Descoberta de Ninharias que precisa ser aplacada: você sabia que Buddy Ebsen (mais
tarde o patriarca dos Beverly Hillbillies) foi o Espantalho original, depois trocou de papel com Ray Bolger, que não queria fazer o Homem de Lata? E você sabia que
Ebsen teve de abandonar as filmagens por envenenamento de amianto causado pela indumentária? E você sabia que Margaret Hamilton queimou seriamente a mão durante
a filmagem da cena em que a Feiticeira escreve RENDA-SE
DOROTHY nos céus da Cidade Esmeralda, e que Betty Danko, sua dublê, queimou-se ainda mais seriamente na refilmagem desta cena? E você sabia que Jack Haley
(a terceira e última escolha para o Homem de Lata) não podia se sentar com seu traje e só podia descansar recostado numa tábua especialmente projetada para isso?
Que não permitiram a nenhum dos três protagonistas masculinos comer no refeitório da MGM porque a maquiagem deles era tida como demasiadamente repugnante? Que deram
a Margaret Hamilton uma tosca barraca, e não um camarim adequado, como se ela fosse uma bruxa de verdade? Que Bert Lahr suava, dentro de seu traje, mais como um
porco do que como um leão? Que Totó era uma cadela e seu nome verdadeiro era Terry? Sobretudo, você sabia que a sobrecasaca usada por Frank Morgan nos papéis do
Professor Marvel e do Mágico de Oz foi comprada numa loja de roupas usadas e trazia no forro o nome de - depois ficou comprovado que tinha sido feita para o próprio
autor do livro - L. Frank Baum?
O triste de muitas dessas histórias é descobrir-se que a experiência de fazer um filme não tem nenhuma relação com a experiência de assisti-lo. É quase certamente
inverídico que Haley, Bolger e Lahr fossem grosseiros com Judy Garland, como é contado em algumas histórias, mas Margaret Hamilton se sentiu decididamente excluída
pelos rapazes. Ela ficava isolada no set, seus dias no estúdio mal coincidiam com os do único ator que já conhecia, Frank Morgan, e dependia de ajuda até pára fazer
xixi. O fato é que quase ninguém - principalmente Lahr, Haley e Bolger com suas maquiagens complicadas que eram aplicadas diariamente e das quais tinham horror -
pareceu divertir-se ao fazer um dos mais deliciosos filmes da história do cinema. Nós não queremos realmente tomar Conhecimento disso; contudo, somos tão fatalmente
propensos a fazer aquilo que pode destruir nossas ilusões que acabamos também por querer saber, queremos sim, queremos sim. E assim, à medida que mergulhava nos
segredos do problema
da bebida do Mágico de Oz e apurava que Morgan era só a terceira opção, depois de W.C. Fields e Ed Wynn, e imaginava a desdenhosa ferocidade que Fields teria
comunicado ao papel, e como teria sido se o seu mais-do-que-oposto par feminino, a Feiticeira, tivesse sido interpretada pela primeira escolha, Gale Sondergaard,
não apenas uma beldade notável mas também uma outra Gale para ser posta ao lado de Dorothy e do tornado, vi-me contemplando uma velha fotografia a cores do Espantalho,
do Homem de Lata e Dorothy, posando num cenário de floresta, cercados de folhas de outono; e compreendi que não estava vendo os astros, mas seus substitutos, seus
dublês. Era uma fotografia de estúdio, nada especial, mas tirou-me o fôlego; porque a foto também era simultaneamente hipnótica e melancólica. Na minha cabeça, a
foto tornou-se a própria síntese da ambivalência de minhas respostas.
Lá estão eles, os gafanhotos de Nathanael West, os supremos querentes. Sombra de Garland, Bobbie Koshay, com as mãos entrelaçadas às costas e um laço branco no cabelo,
esforça-se corajosamente para sorrir, mas sabe que não passa de uma contrafação; não tem sapatinhos de rubi nos pés. O falso Espantalho parece lúgubre, também, apesar
de não vestir o saco de aniagem que fazia parte da maquiagem completa, sina diária de Bolger. Se não fosse pelo amontoado de palha que brota de sua manga direita,
seríamos levados a crer que se tratava de uma espécie de vagabundo. No meio deles, com toda a armadura metálica, está o eco mais tênue do Homem de Lata, parecendo
infeliz como diabo. Os substitutos conhecem seu destino: sabem que não queremos admitir sua existência. Mesmo quando a razão nos diz que nesta ou naquela tomada
difícil - quando a Feiticeira voa, quando o Leão Covarde mergulha numa janela de vidro - não estamos vendo os astros, ainda assim a parte de nós que suspendeu a
descrença insiste em ver os astros e não seus dublês. Desta forma os dublês tornam-se invisíveis mesmo quando estão inteiramente visíveis. Permanecem à margem da
câmera mesmo quando estão projetados na tela.
Esta não é, no entanto, a razão da curiosa fascinação
pela foto, que decorre mais, no caso de um filme querido, do fato de que todos nós somos dublês dos astros. Nossa imaginação nos coloca na pele do Leão, coloca
os faiscantes sapatinhos nos nossos pés, e nos manda sair tagarelando pelo céu montados numa vassoura. Olhar para esta foto é olhar para um espelho; nos vemos nela.
O mundo de O mágico de Oz nos domina. Agora os dublês somos nós.
Em maio de 1970, um par de sapatos de rubi, achado numa lixeira no porão da MGM, foi arrematado em leilão pela surpreendente soma de 15.000 dólares americanos. O
comprador foi, e assim permaneceu, um anônimo. Quem foi que desejou tão ardentemente possuir, talvez até usar, os sapatos mágicos de Dorothy? Foi você, prezado(a)
leitor(a)? Fui eu?
No mesmo leilão, o segundo maior preço foi alcançado pela indumentária do Leão Covarde (US$2.400). Isto foi duas vezes mais alto do que o lance seguinte, US$1.200
pela capa de Clark Gable, um impermeável de corte militar. Os preços elevados atingidos pelos adereços de O mágico de Oz atestam o poder que ele exerceu sobre seus
admiradores, e o nosso desejo, absolutamente literal, de vestir as roupas do filme. A história do leilão dos sapatos de rubi foi transformada em ficção e recontada
na Parte II deste livro, mas há uma ironia que é inteiramente não-ficcional. Passado o leilão, disseram que os sapatos de US$15.000 eram grandes demais para os pés
de Judy Garland. Provavelmente tinham sido feitos para a dublê dela, Bobbie Koshay, que calçava dois números a mais. Não é conveniente que os sapatos confeccionados
para uso da dublê passem a ser fruídos por outro tipo de substituto: o (a) fã?
Se nos pedissem para escolher uma única imagem que definisse O mágico de Oz, creio que a maioria preferiria aquela em que o Espantalho, o Homem de Lata, o Leão Covarde
e Dorothy vão chchch-pulando pela Estrada de Tijolos Amarelos (na verdade os pulos vão aumentando durante a viagem até
chegarem a desenvoltos saltos). É estranho que o trecho mais marcante deste filme muito fílmico, um filme cheio de magia e efeitos técnicos, seja de longe a parte
menos cinematográfica, mais "teatral" do todo! Ou talvez não seja tão estranho, pois esta é basicamente uma passagem de comédia surreal, e nos lembramos de que o
igualmente inspirado histrionismo dos Irmãos Marx era filmado de maneira não menos teatral; a devastadora birutice da representação impossibilitava o emprego de
qualquer técnica de câmera salvo a mais simples.
"Onde é o teatro de variedades?" Aparentemente em algum lugar no caminho que leva ao Mágico. O Espantalho e o Homem de Lata são produtos puros do teatro burlesco,
especializados em exageros pantomímicos de voz e movimentos corporais, quedas (como a do Espantalho despencando da estaca que o sustenta), improváveis inclinações
para além do centro de gravidade (como o Homem de Lata durante sua curta dança) e, naturalmente, em diálogos disparatados:
Saltitando pela Estrada dos Tijolos Amarelos
Homem de Lata, todo enferrujado: (Range) Dorothy: Ele disse "lubrificante"! Espantalho: E ele tem lombriga?
No auge dessa cena figura aquela obra-prima plenamente realizada de criação cômica: o Leão Covarde de Bert Lahr, todo sons vocálicos alongados {Put'em uuuuuuuup),
rimas ridículas rhinoceros/imposserous), bravata transparente e terror imenso, operístico, choramingueiro. Todos os três, o Espantalho, o Homem de Lata e o Leão
são, no dizer de Eliot, homens ocos. O Espantalho, é claro, tem realmente "uma cachola cheia de palha, infelizmente!"; mas o Homem de Lata, o ancestral de See Threepio
[C3PO] de Guerra nas estrelas, não é menos vazio - ele até bate no peito para provar que lhe faltam entranhas, porque "o Funileiro", seu obscuro Criador, esqueceu
de lhe dar um coração; e ao Leão falta a mais leonina das qualidades, o que o leva a lamentar-se:
What makes the Hottentot so hot, What puts the ape in apricot, What have they got that I ain't got? Courage!
(O que faz o hotentote tão quente/O que põe o macaco no damasco/O que é que eles têm que eu não tenho?/Coragem!)
Talvez por serem todos ocos é que nossa imaginação encontra facilidade para os invadir e preencher. Vale dizer que é o anti-heroísmo, a aparente falta de Grandes
Qualidades, que faz com que fiquem de nosso tamanho, ou talvez até de tamanho menor, de modo que podemos estar entre eles como iguais, como Dorothy entre os Munchkins.
Aos poucos, contudo, descobrimos que junto com a "escada" deles, que é Dorothy (nesta seqüência ela faz o papel do Irmão Marx insosso, aquele que sabia cantar e
parecia boa-pinta e mais nada), eles
encarnam uma das mensagens" do filme, ou seja, que já possuímos o que mais fervorosamente procuramos. O Espantalho a toda hora se sai com idéias brilhantes que
apresenta com desmentidos de auto-reprovação. O Homem de Lata pode chorar com sentimento muito antes do Mágico lhe dar um coração. E o aprisionamento de Dorothy
pela Feiticeira faz ressaltar a coragem do Leão, embora ele suplique aos amigos para que "me desconvençam" de agir.
Para que esta mensagem tenha o máximo de impacto, porém, é necessário aprendermos a inutilidade de buscar soluções externas. O aprendizado inclui mais um homem oco:
o Mágico de Oz, o próprio. Assim como o Funileiro era um imperfeito Criador de Homens de Lata - da mesma forma que, neste filme secular, o deus do Homem de Lata
está morto - assim também deve morrer nossa crença em mágicos, para que possamos acreditar em nós mesmos. Devemos sobreviver ao Campo das Papoulas Mortíferas, ajudados
por uma misteriosa
nevada (por que a neve vence o veneno das papoulas?), e assim chegar, acompanhados por coros celestiais, aos portões da cidade.
Aqui o filme troca novamente de convenção, passando a ser um retrato de caipiras das brenhas chegando à metrópole, um dos temas clássicos do cinema americano, refletido
em O galante Mr. Deeds ou até na chegada de Clark Kent ao Planeta Diário em Superman. Dorothy é uma roceira, a pequena e meiga Dorothy; seus companheiros são bufões
do interior. No entanto - e isto, também, é um tropo habitual de Hollywood - são os estranhos à cidade, os ratos-do-mato, que vão se constituir na salvação da lavoura.
No entanto, nunca houve, absolutamente, uma metrópole como a Cidade Esmeralda. Pelo lado de fora parece Nova York numa versão de conto de fadas, um bosque de arranhacéus
verdes. Do lado de dentro, contudo, é a própria essência da singularidade. Ainda mais surpreendente é a descoberta de que os cidadãos - muitos deles interpretados
por Frank Morgan, que soma os papéis de porteiro, cocheiro da carruagem e guarda do palácio aos do Professor Marvel e do Mágico - falam com o que os atores de Hollywood
gostam de chamar de sotaque britânico. Tyke yer any place in the city, we does [Levo vocês a qualquer parte da cidade, sim] diz o cocheiro, acrescentando Vil tyke
yer to a little place where you can tidy up a bit, what? [Levo vocês a um lugarzinho onde podem arrumar-se um pouco, que tal?]. Outros citadinos estão vestidos como
mensageiros de Grande Hotel e freiras espalhafatosas, e dizem, ou melhor, cantam, coisas
como A jolly good fun! [Um bom e alegre divertimento]. Dorothy aprende depressa.
No Wash and Brush Up [Lavar e Escovar], um tributo ao gênio tecnológico urbano sem rjenhuma das) sombrias dúvidas de um Tempos modernos ou Luzes dá cidade, nossa
heroína se angliciza um pouco:
Dorothy (canta): Can you even dye my eyes
to match my gown? Assistentes (em uníssono): Uh-huh! Dorothy: Jolly old town!
(Dorothy: Vocês podem até tingir meus olhos/para combinar com meu vestido?/Assistentes: hum, hum!/Dorothy: Velha cidade bacaninha!)
A maioria dos cidadãos são jovialmente amistosos, e aqueles que parecem não ser - o porteiro, o guarda do palácio - logo são conquistados. (Neste aspecto, mais uma
vez, eles são citadinos atípicos.) Nossos quatro amigos são finalmente admitidos no palácio do Mágico porque as lágrimas de frustração de Dorothy desrepresam um
alarmante reservatório de líquido no guarda, cujo rosto fica logo todo encharcado de lágrimas, e assistindo a essa incrível performance, nos damos conta do numero
de vezes em que, neste filme, as pessoas choram. Tirando Dorothy e o guarda, há o Leão Covarde, que abre o berreiro quando Dorothy lhe acerta o nariz; o já mencionado
Homem de Lata, que quase enferruja de novo de tanto chorar; e também Dorothy quando nas garras da Feiticeira. Ocorre-nos pensar que se a feiticeira estivesse mais
à mão em qualquer uma dessas ocasiões, talvez o filme tivesse ficado muito mais curto. Ingressamos no palácio, seguindo por um corredor abobadado que lembra uma
versão esticada do logotipo das Looney Tunes, e finalmente nos defrontamos com um Mágico cujas ilusões de cabeças gigantescas e clarões de fogo escondem (mas só
por pouco tempo) seu parentesco comDorothy. Ele, também, é um imigrante; de fato, como revelará mais adiante, ele também é de Kansas. (No romance ele
vem de Omaha). Estes dois imigrantes adotaram, numa nova e estranha terra, estratégias opostas de sobrevivência. Dorothy persistiu em ser gentil, cuidadosa, cortesmente
"pequena e meiga", ao passo que o Mágico tem sido
fumaça e fogo, empolado e fanfarrão, abrindo caminho à força para chegar ao topo, e lá ficou flutuando, por assim dizer, numa nuvem feita de sua própria bazófia.
Mas Dorothy percebe que a meiguice não basta, e o Mágico descobre (quando, pela segunda vez, seu balão deixa-o sem graça) que seu controle da bazófia não é lá essas
coisas. É difícil para um migrante como eu mesmo não ver nesses destinos deslocados uma parábola da condição de migrante.
A exigência do Mágico, que não atenderá a nenhum pedido até que os quatro amigos lhe levem a vassoura da Feiticeira, anuncia o penúltimo e menos instigante (embora
o mais recheado de ação, e "excitante") movimento do filme, que nesta fase é, simultaneamente, um filme de camaradas, um simples conto de aventuras e, após o aprisionamento
de Dorothy, uma história mais ou menos convencional de Resgate de Princesa. O filme, tendo chegado ao grande clímax dramático da confrontação com o Mágico de Oz,
bambeia um pouco e só
vem a recuperar o ímpeto anterior na também culminante luta final com a Feiticeira Má do Oeste, que termina com seu derretimento, seu "crescimento para baixo" até
o nada. A relativa monotonia desta seqüência tem muito a ver com a incapacidade do roteiro de aproveitar os Macacos Alados, que permanecem apagados o tempo todo,
quando poderiam ter sido usados (por exemplo) para nos mostrar como eram os Munchkins antes de serem liberados pela casa cadente de Dorothy.
Um detalhe interessante. A Feiticeira, ao despachar os Macacos Alados para capturar Dorothy, diz uma coisa que não faz sentido algum. Garantindo ao Macaco Chefe
que sua presa não lhe dará trabalho, a Feiticeira acrescenta: Mandei um pequeno inseto à frente para minar a combatividade deles. Mas, quando passamos para a floresta,
não ficamos sabendo de nada a respeito do tal inseto. Não há inseto algum no filme. Mas tinha havido; essa fala é remanescente de uma versão anterior do filme e
refere-se ao fantasma da suprimida seqüência musical que eu mencionei antes. O "pequeno inseto" foi um dia uma canção acabada e perfeita, que levou mais de um mês
para ser filmada. O "Jitter Bug".
Adianto a fita. A Feiticeira foi-se. O Mágico foi desmascarado, e nesse mesmo momento foi bem-sucedido num ponto de verdadeira magia, presenteando os companheiros
de Dorothy com dons que eles até então não acreditavam possuir. O Mágico foi embora também, e sem Dorothy, por terem sido seus planos atrapalhados por (quem mais
senão) Totó. E aqui está Glinda, dizendo a Dorothy que ela tinha de aprender sozinha o significado dos sapatinhos de rubi...
Glinda: O que você aprendeu?
Dorothy: Se alguma vez sair novamente à procura de meus desejos, não os procurarei além do meu próprio quintal. E caso lá não se encontrem, então é porque eu, para
começar, nunca os perdi. Isto está certo? Glinda: Isto é tudo. E agora esses sapatinhos mágicos vão levá-la de volta ao lar em dois segundos. Feche os olhos... bata
os calcanhares três vezes... e compenetre-se de que... não há lugar como...
Congele isto. Congele isto.
Como se dá no fim deste filme radical e convincente, que nos ensina pelo meio menos didático possível a construir sobre o qie já temos, a fazer o melhor de nós
mesmos, que nos brinde com esta pequena homilia conservadora? Devemos acreditar
que Dorothy nada mais aprendeu em sua viagem do que ser esta, em primeiro lugar, desnecessária? Devemos aceitar que ela agora se conforme com as limitações de sua
vida doméstica, e concorde que as coisas que ela não tem ali também não representam nenhuma perda para ela? "Isto está certo?" Desculpe-me, Glinda, mas isto é o
inferno.
Novamente em casa, em preto-e-branco, com Tia Em e Tio Henry e os rudes peões ao redor da cama, Dorothy inicia sua segunda rebelião, lutando não só contra as condescendentes
expressões de pouco-caso de sua própria gente mas também contra os roteiristas e a moralização sentimental de todo o sistema de estúdio de Hollywood. Não foi um
sonho, era um lugar! exclama ela lastimosa. Um lugar real, vivo e
verdadeiro. Ninguém acredita em mim?
Muitas, muitas pessoas acreditaram nela. Os leitores de Frank Baum acreditaram nela, e o interesse deles por Oz levou-o a escrever mais treze livros sobre o lugar,
reconhecidamente de qualidade decrescente; a série foi continuada, mais debilmente ainda, por outras mãos após sua morte. Dorothy, desprezando os "ensinamentos"
dos sapatinhos de rubi, retornou a Oz, a despeito dos esforços da gente de Kansas, inclusive Tia Em e Tio Henry, só para se ver despojada de seus sonhos (ver a aterradora
seqüência de terapia eletroconvulsiva no filme de Disney, O mundo fantástico de Oz); e, no sexto livro da série, Dorothy levou Tia Em e Tio Henry consigo, e eles
todos se estabeleceram em Oz, onde Dorothy virou princesa.
Então Oz finalmente tornou-se o lar; o mundo imaginado tornou-se o mundo real, como se torna para todos nós, porque a verdade é que tão logo deixamos para trás os
lugares de nossa infância e começamos a construir nossas vidas, armados apenas com o que temos e somos, compreendemos que o verdadeiro segredo dos sapatinhos de
rubi não é que "não há lugar como nosso lar", mas, antes, que não existe mais tal lugar como o lar: salvo, é claro, o lar que criamos, ou os lares que são criados
para nós, em Oz: que é em qualquer parte, e em toda parte, mas não no lugar de onde começamos.
NO LEILÃO DOS SAPATINHOS DE RUBI
Os licitantes que se reuniram para o leilão dos sapatinhos mágicos têm pouca semelhança com os costumeiros freqüentadores de leilões. Os Leiloeiros divulgaram amplamente
o acontecimento e estão preparados para todos os que vierem. As pessoas pouco saem hoje em dia; não obstante, e corretamente os Leiloeiros acreditaram que este prêmio
nos levaria a deixar nossos bunkers. Fortes emoções estão previstas e, por conseguinte, para o conforto e a segurança das maiores notabilidades, foram acrescentadas,
às facilidades de praxe, enormes escarradeiras de bronze, providencialmente colocadas nos banheiros para uso dos fisicamente doentes, e, para aconselhar os doentes
da alma, foram espalhados estrategicamente, em confessionários neogóticos, psiquiatras de orientações discordantes.
Quase todos nós atualmente estamos doentes. Não há sacerdotes; os Leiloeiros optaram por uma separação. Os sacerdotes estão em outros prédios da vizinhança, prédios
com os quais estão familiarizados, esperando lidar com qualquer precipitação psíquica, qualquer transbordamento de insanidade.
Unidades de obstetras e esquadrões da SWAT com capacetes aguardam ocultos nas vielas caso o rebuliço conduza a nascimentos ou mortes inesperadas. Foram confeccionadas
listas de parentes próximos, e seus telefones de contato anotados. Foi feita uma provisão de camisas-de-força.
Veja: por detrás dos vidros à prova de bala, os sapatinhos de rubi rutilam. Astros do cinema encontram-se entre os licitantes, trazendo para o salão suas auras cintilantes
e acetinadas. Quando um de nós esbarra na aura de preço incalculável (e frágil) de um astro ou estrela, ele ou ela é instantaneamente derrubado(a) por uma equipe
de segurança e arrastado) para fora onde os camburões os aguardam. Tais incidentes desafogam um pouco o acotovelamento no Grande Salão.
Estão presentes, em números previsíveis, os viciados em fatos memoráveis, e agora, com um abaixamento da cabeça, um deles aplica seus desatinados lábios à gaiola
transparente dos sapatinhos, disparando o moderníssimo sistema de alarme ao qual seus programadores esqueceram de instruir a respeito da relativa inocuidade de tal
ósculo. O sistema de alarme bombeia cem mil volts de eletricidade nos lábios siliconados da beijoqueira, acabando de vez com seu interesse por cerimônias solenes.
É um momento desagradavelmente malcheiroso mas não basta para impedir um segundo entusiasta de praticar o mesmo beijo suicida. Quando somos inteirados de que esse
ensandecido imbecil eia o amante da primeira vítima fatal, somos levados a conjecturar sobre os mistérios do amor, enquanto levamos mais uma vez a mão ao bolso em
busca de nossos lenços perfumados.
Uma festa à fantasia está em pleno andamento. Mágicos, Leões, Espantalhos em penca, Na raivosa disputa por um lugar pisam uns nos pés dos outros. Poucos são os Homens
de Lata em virtude do desconforto específico da indumentária. Feiticeiras aguardam o momento propício nos balcons e gallerias do Grande Salão, gárgulas vivas com,
em muitos casos, altas cotações de crédito. Um canto está completamente tomado por Totós, muitos dos quais estão copulando entusiasticamente A obrigando um zelador
com luvas de borracha a apartá-los para que não incorram em afronta pública. Ele se
desincumbe da tarefa com muita delicadeza e bom gosto.
Nós, o público, ficamos fácil e mortalmente ofendidos.
Em redor do - digamos - santuário dos sapatinhos lantejoulados de rubi formaram-se poças de saliva. Há entre nós aqueles que, não sabendo se conter, babam. O zelador
latino, de macacão, circula entre nós com um balde numa mão e um esfregão na outra. Nós lhe somos gratos e o admiramos por seu talento para não se fazer notar. Ele
limpa nossas águas bucais sem nos provocar qualquer constrangimento.
São limitadas as oportunidades de encontrar o miraculoso em nosso universo relativista e nietzschiano. Filósofos behavioristas e cientistas quânticos formam uma
roda em torno dos sapatos mágicos.
Exilados, deslocados de todas as espécies, até andarilhos sem pouso certo vêm dar uma espiada no incrível, deixando suas tocas subterrâneas e desafiando as bazucas,
as gangues armadas de Uzis e piradas pelo crack ou a cocaína, os contrabandistas, os assaltantes de residências. Os andarilhos vestem fedorentos ponchos de juta
e escarram ruidosamente nos vasos das gigantescas iúcas. Arrebatam punhados de canapés das travessas soberbamente transportadas pelas mãos dos fornecedores classe
A. Comem sushi com impressionantes quantidades de molho wasabi, a cujos poderes inflamatórios as entranhas dos vagabundos parecem estar imunes. Equipes da SWAT são
chamadas e após breve escaramuça em que se usam balas de borracha e dardos sedativos, os andarilhos, desacordados por porretes, são retirados do recinto. Serão despejados
um pouco além da periferia da cidade, naquela fumacenta terra-de-ninguém onde não nos aventuramos mais. Serão cercados por cães selvagens à procura de uma refeição.
Estes são tempos intransigentes.
Refugiados políticos estão no leilão: conspiradores, monarcas depostos, facções derrotadas, poetas, chefes de bandidos. Tais personagens não usam mais boinas pretas,
óculos com lentes de cristal de rocha e envolventes sobretudos de anos passados, mas adotam posturas resplandecentes em
paletós de seda quadrados e calças de cintura alta dos estilistas japoneses. As mulheres usam bolerinhos que ostentam, bordadas em paetês, reproduções de grandes obras
de arte. Uma beldade desfila com Guernica nas costas, enquanto várias outras vestem cenas cintilantes da série dos Desastres da Guerra de Francisco Goya. Incandescentes
em seus trajes de luzes, as refugiadas políticas não conseguem eclipsar os sapatinhos de rubi e se amontoam com seus companheiros em pequenos grupos sibilantes,
volta e meia atirando imprecações, bolinhas e dardos de papel nos imigrantes rivais amontoados do outro lado do salão. Os seguranças que defendem as saídas estalam
distraidamente seus látegos e os políticos se contêm.
Críticas que reprovam a fetichização dos sapatinhos partem de fundamentalistas religiosos, cuja admissão foi facultada pelo extremo liberalismo de alguns dos Leiloeiros,
que argumentaram que um Leilão civilizado deve ser uma igreja ampla, aberta, tolerante. Os fundamentalistas manifestaram o desejo de adquirir o calçado mágico a
fim de queimá-lo, e isso não é, na visão dos Leiloeiros liberais, um pedido desarrazoado. Qual o preço da tolerância se os intolerantes não forem também tolerados?
O dinheiro insiste na democracia; o dinheiro de qualquer um é tão bom quanto o de qualquer outro. De cima de seus caixotes os fundamentalistas fulminam, e ninguém
liga; mas, dos presentes, algumas personalidades mais destacadas falam agourentamente da ponta afiada da cunha.
Órfãos chegam esperançosos de que os sapatinhos de rubi possam, através do espaço e do tempo, reuni-los com seus falecidos pais. Há até um bebê num carrinho; sua
ama-de-leite informa aos Leiloeiros do desejo do bebê de regressar a seu estado preferido, o pré-natal, da imensa fortuna pessoal dele, da procuração dela para representá-lo,
registrada, autenticada e reconhecida. Na eventualidade do não nascimento do bebê, ela será
sua única herdeira. Presentes também estão homens e mulheres de passado
duvidoso - os fora-da-lei, intocáveis, párias. As forças de segurança lidam bruscamente com muitos destes.
"Casa" tornou-se um conceito danificado, disperso, variado como a Hidra em nossas atuais angústias. Há tanta coisa a desejar. Sobram tão poucos arco-íris. Até que
ponto podemos esperar que mesmo um par de sapatos mágicos funcione? São as metáforas compreensíveis para eles, as abstrações permissíveis, as redefinições aceitáveis?
Estamos pedindo demais? A medida que nossas necessidades despontam de seus redutos e pressionam o vidro eletrificado, será que os sapatos, como o velho linguado
dos Grimm, perderão a paciência com nossas exigências e nos devolverão aos urinóis de onde viemos?
A presença de seres imaginários no Salão de Leilões pode ser a gota-d'água. Aqui estão crianças dos quadros realistas australianos do século dezenove que, dentro
de suas rebuscadas molduras douradas, se queixam de sua condição de perdidas na imensidão das brenhas. De batas azuis e meias soquete contemplam florestas tropicais
úmidas e desertos. Um personagem literário, condenado a ler por toda a eternidade as obras de Dickens para um louco armado numa selva, enviou um lance por escrito.
Vejo, numa televisão, a figura frágil de uma criatura extraterrestre com uma ponta de dedo iluminada. Essa impregnação do mundo real pelo mundo ficcional é um sintoma
da decadência moral da cultura do milênio. Mocinhos saem das telas dos cinemas e casam-se com mulheres da platéia. Será que não se dá um fim a isso? estará o Estado
empregando insuficiente violência? Serão necessários controles mais rigorosos? Nós discutimos essas questões com freqüência. Resta pouca dúvida de que a maioria
de nós se opõe à livre e irrestrita migração de seres imaginários para uma realidade já arruinada. Dentre nós poucos escolheriam viajar no sentido oposto (embora
haja notícias de um aumento dessas migrações ultimamente). Suspendo, pelo momento, esses debates. O Leilão vai começar.
É preciso que eu fale de minha prima Gail, e de seu hábito de gemer em voz alta ao fazer amor. Minha prima Gail - falando francamente - é o amor de minha vida,
e mesmo agora que nos separamos não consigo esquecer o prazer que me davam seus gemidos. Apresso-me a acrescentar que, não fosse essa loquacidade, não havia nada
de anormal no nosso modo de fazer amor, nada, se posso colocar o assunto desta maneira, ficcional. No entanto dava-me profunda satisfação, especialmente quando ela
gritava, no momento da penetração: "Em casa, garoto! Em casa, neném... você entrou em casa!" Um dia, contudo, cheguei em casa e encontrei-a nos braços de um cabeludo
fugido de algum filme troglô. Me mandei no mesmo dia. Saí chorando pela rua com meu enorme retrato de Gail, por conta de um tornado aninhada nos meus braços, e minha
coleção de discos de Pat Boone em 78 rpm dentro de uma mochila pendurada nas costas. Isto aconteceu há muitos anos. Depois que Gail me dispensou, fiquei ressentido
durante algum tempo e espalhei, em nosso círculo social, que ela perdera a virgindade aos quatorze anos num acidente que se relacionava com um defeito num banquinho
de prado, desses dobráveis de uma perna só. Mas a satisfação da vingança não durou muito. Desde então passei a cultuar sua memória. Fiz de mim uma vela em seu templo.
Estou cônscio de que a Gail que eu adoro, após todos esses anos, não é uma pessoa integralmente real. A verdadeira Gail confundiu-se com a minha reinvenção dela,
de nossa vida em comum num universo alternativo destituído de homens-macaco. A verdadeira Gail, inefável, pode agora estar além de nossa compreensão.
Eu a vi recentemente num bar subterrâneo, comprido e escuro, protegido por comandos equipados com armas nucleares portáteis. Havia no balcão refeições ligeiras de
origem polinésia e chope vindo da bacia do Pacífico: Kirin, Tsingtao, Swan. À época vários canais de televisão dedicaram-se ao
triste caso do astronauta extraviado em Marte, sem esperança de ser resgatado e com declinantes reservas de ar e comida. Do interior de sua espaçonave abandonada
as câmeras continuavam a nos enviar as pungentes imagens de sua lenta queda no desespero, de sua morte por baixa gravidade e peso reduzido. Eu observava minha prima
contemplando a tela da TV, e quando, em outro planeta, este homem condenado começou a cantar um esganiçado pot-pourri de canções lembrei-me do computador moribundo
em 2001: Uma odisséia no espaço, que cantava Daisy, Daisy" enquanto ia sendo desligado; mas a minha prima Gail, ao ouvir essas execuções espaçadas de "Swanee", "Show
me the way to go home" e diversas canções de O mágico de Oz, começou a chorar. A primeira vez que ouvi falar do iminente leilão dos sapatinhos de rubi foi na manhã
seguinte, e resolvi de pronto que os compraria, fosse qual fosse o preço. Meu plano era simples. Eu os ofereceria com toda humildade a Gail. Talvez até batesse os
calcanhares três vezes; e reconquistaria seu coração ao murmurar suavemente: Não há lugar como o lar.
Você ri de meu desespero. Ah! Vá dizer a um homem que está se afogando que não tente agarrar as palhas que passam flutuando. Ou a um astronauta moribundo que não
cante. Venha cá e ponha-se no meu lugar. Cruze esta linha. Defenda-se. Defeeeeenda-se. Lutarei com uma mão amarrada nas costas. Lutarei com você com os olhos fechados.
Com medo, é? Medrou?
O Grande Salão dos Leiloeiros é o coração pulsante do mundo. Se você ficar por aqui algum tempo, todas as maravilhas do mundo passarão diante de
seus olhos. Nestes últimos anos testemunhamos, no Grande Salão, o leilão do Taj Mahal, da
Estátua da Liberdade, da Esfinge. Assistimos à venda de esposas e à compra de maridos. Segredos de estado foram aqui vendidos, abertamente, pelo maior lance. Em
uma ocasião muito especial, os Leiloeiros presidiram a uma venda, para um grupo superaquecido de demônios vermelhos que ardiam em fogo lento, de uma grande variedade
de almas humanas de todas as classes, qualidades, idades, raças e credos. Vende-se de tudo aqui, e sob a firme e essencial, mas benevolente, supervisão dos Leiloeiros,
de seus cães de segurança e das equipes da SWAT, nos empenhamos numa batalha de ditos espirituosos e carteiras de cédulas, uma guerra de nervos. Aqui nossas ações
são cercadas de uma certa pureza, e também de uma tensão esteticamente agradável entre a vasta complexidade da vida que acontece, arrumada em lotes, sucumbir ao
martelo, e a simplicidade igualmente imensa de nossa maneira de lidar com isso. Fazemos os lances, os Leiloeiros vendem um lote, passamos ao próximo. Todos são iguais
perante a justiça dos martelos: o artista da calçada e Michelangelo, a escrava e a rainha. Esta é a sala do tribunal das demandas.
Agora os lances são para os sapatinhos. A medida que o preço sobe, aumenta a minha náusea. O pânico me invade, me empurra para baixo, me afoga. Eu penso em Gail
- doce prima! - e enfrento o medo, e faço meus lances.
Certa vez o viúvo de uma muito estimada e mundialmente famosa cantora de música popular pediu-me que comparecesse em seu nome a um leilão de coleções de coisas de
rock. Ele era o único depositário do espólio da falecida, que valia algumas dezenas de milhões; tratei-o com respeito. "Só há um lote que me interessa", disse ele
"Compre-o a qualquer preço." Era um artigo de vestuário, uma calcinha de papel de arfoz comestível com sabor de hortelã, adquirida muito tempo
antes numa loja na (eu acho que era este o nome) Rodeo Dlive. O número que a falecida esposa de meu empregador fazia no palco incluía a remoção e consumo de várias dessas perinhas
em público. Mais calcinhas, numa variedade
de sabores - lascas de chocolate, creme de baunilha, cassata - eram atiradas à platéia. Estas também eram sofregamente devoradas, os felizes contemplados estando
arrebatados demais para atentar para o futuro valor daquilo que haviam agarrado. Roupas de baixo que tinham pertencido realmente àquela dama estavam, portanto, em
falta e havia agora uma grande procura por elas. No decorrer do leilão foram recebidos, por conexões de vídeo, lances de Tóquio, Los Angeles, Paris e Milão, e eram
tão rápidos e de tal monta que me acovardei. Contudo, quando telefonei para o meu patrão para confessar meu fracasso, ele nem se abalou, interessando-se apenas pelo
preço que o lote havia alcançado. Mencionei uma quantia de cinco dígitos, e ele riu. Foi o primeiro riso verdadeiramente alegre que dele ouvi desde o dia em que
sua mulher morreu. "Então está tudo bem", disse ele. "Eu tenho trezentas mil dessas calcinhas."
É aos Leiloeiros que recorremos para estabelecer o valor de nossos passados, de nossos futuros, de nossas vidas.
O preço dos sapatinhos de rubi sobe cada vez mais. Muitos dos licitantes parecem ser procuradores, como eu fui no dia das calcinhas, como tantas vezes sou, de tantas
maneiras. Hoje, contudo, faço lances - talvez literalmente - por minha conta.
Lá fora na rua há uma explosão. Ouvem-se correrias, sirenes, gritos. Essas coisas se tornaram
corriqueiras. Conntinuamos absorvidos num drama superior.
As escarradeiras estão em pleno funcionamento. Feiticeiras entoam cantos fúnebres, astros do cinema agitam-se indignados com auras embaciadas. Em frente às cabines
dos psiquiatras formam-se as filas dos desconsolados. Há trabalho para os guardas que empunham porretes, mas ainda não para os obstetras. A ordem é mantida. Sou
a única pessoa no Grande Salão que ainda faz lances. Meus rivais são cabeças sem corpos nas telas de TV, e vozes inaudíveis nas conexões telefônicas especiais. Estou
combatendo um mundo
invisível de demônios e fantasmas, e o prêmio é a mão de minha dama.
No momento culminante de um leilão, quando o dinheiro nada mais é do que um meio de marcar pontos, há uma coisa que acontece e que eu reluto em admitir- a gente
se desprende da terra. Há uma perda de gravidade, um decréscimo de peso, um flutuar na cápsula da contenda. O último gol cruza uma delirante fronteira. Sua conquista
e a nossa própria sobrevivência tornam-se - sim! - ficções.
E ficções, como anteriormente quase cheguei a sugerir, são perigosas.
Nas garras da ficção, podemos hipotecar nossas casas, vender nossos filhos, para obter o que almejamos, seja o que for. Alternativamente, naquele oceano miasmático,
podemos simplesmente flutuar para longe dos desejos de nossos corações e observá-los, novamente de certa distância, de modo que pareçam sem peso, triviais. Deixamos
que partam. Como homens morrendo numa nevasca, deitamo-nos na neve para dormir. Assim é que minha prima Gail, na dura prova do leilão, perde seu domínio sobre mim.
Assim desisto de fazer lances e durmo.
Quando acordo sinto-me retemperado, e livre. Semana que vem há outro leilão. Árvores genealógicas, brasões, linhagens monárquicas estarão à venda, e em qualquer
um deles pode-se inserir o nome que se queira, o próprio, ou o do ser amado. Pedigrees caninos também serão oferecidos: alsaciano, saluki, cairn terrier.
Cheguei a falar de minha afeição por meu primo Totó?
Salman Rushdie
O melhor da literatura para todos os gostos e idades