Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O MANDARIM NEGRO
Segunda Parte
O humor negro de Min fez com que Rathenow se arrepiasse. ”O que se passa com um homem assim?”, pensou. ”Consciência não pode ter, os escrúpulos são-lhe desconhecidos, a moral é uma palavra que não existe no seu vocabulário, tirar uma vida humana é como desligar um interruptor. Além de tudo isto, tem orgulho em ser da tríade. Como todos os outros. Têm mulheres e filhos, são esposos e pais dedicados, ajudam as vítimas do terramoto no México, sentam-se na ópera de smoking e vêem o Lohengrin, vão ao Festival de Salzburgo, sendo amados em toda a parte por causa da sua amabilidade. Dançam em bailes, conhecem toda a gente fina de Munique, jogam golfe em Tegernsee e descansam nas ilhas Barbados. Todos homens honrados, a quem se aperta a mão, pois ninguém conhece o sangue que está colado a elas. Até os ministros convivem com eles, conversando sobre um intercâmbio entre a China e a Alemanha no âmbito da economia e cultura. É precisamente o contrário do que estes respeitados senhores têm em mente. Odeiam a República Popular da China; aos seus olhos, o comunismo é um erro da história da humanidade, que para um chinês começa em Huang-Ho, no rio Amarelo, e nas duas culturas ancestrais de Yang-Shao e Lung-Shan. Com a vitória de Mao a sua China deixou de existir, e Mao e os seus seguidores eram e são pi-hus, geckos, um dos cinco Wu-Tu. Mesmo assim, os respeitados senhores sorriem, riem e beijam as mãos das esposas dos diplomatas, se bem que isso constitua um aviltamento para um chinês, pois uma mulher é um ser inferior. Mas estão ao serviço de uma missão superior. Trabalha-se em segredo, a irmandade cresce cada vez mais e um dia abrangerá todo o mundo.”
Rathenow piscou os olhos para afastar aquela visão. Min Ju olhava para ele com um ar crítico.
- Em que pensas, Bai Juan Fa? - perguntou.
- Na minha vida de sandália de erva...
- Tens medo?
- Não. Estou triste.
- Porquê?
- Levei o doutor Hans Rathenow para a sepultura. Ainda me é dado o direito de estar triste?
- Isso não é verdade. Continuas a ser o doutor Hans Rathenow. Ser sandália de erva é apenas um part-time.
- Uma questão de honra! - Rathenow respirou fundo, pois tinha a sensação de estar a sufocar. - E ainda por cima sem salário.
- Podes jantar aqui todas as noites. Faz as contas ao que poupas. Em dinheiro dá uma bela soma. Os teus colegas não têm tantos privilégios.
- E porquê eu? Eu? Um alemão?
- Já te expliquei. Ainda não percebeste?
- Sou um sandália de erva ideal, porque não sou asiático. Percebi muito bem! - Voltou a respirar fundo. Quando serei instruído para tomar o lugar de assassino do Aisin Ninglin?
- Não estou a considerar essa situação. Não és o homem adequado para essa missão. Falta-te a frieza que tornou célebre a Catorze K. És um homem de espírito fraco, aPenas utilizável em trabalhos que consideramos mecânicos. É a esse tipo de pessoas que atribuímos as cobranças. Ninglin é outra coisa: para ele, limpar orelhas também é mecânico. O homem é uma máquina que se pode desligar. Ninglin é assim. - Min Ju olhou para o relógio. - Já é tarde. Queres voltar para casa do doutor Freiburg?
A cabeça de Rathenow levantou-se. O seu batimento cardíaco parou durante alguns segundos.
- Também... também sabem isso?
- Enquanto não prestares juramento e te tornares nosso irmão, estarás sempre sob vigilância. -- Min Ju riu-se tanto que os olhos ficaram mais estreitos. - Tu já sabes, Bai Juan Fa: estamos em todo o lado!
Depois desta primeira hora de aula, Rathenow não regressou directamente para Griinwald. Vagueou pelas ruas de Munique. De Schwabing até Ramersdorf, de Laim até Gauting, de Neu-Perlach até Waldfriedhof. Queria ver pelo retrovisor se algum carro das tríades o seguia. No entanto, não viu nada de suspeito, a não ser o habitual trânsito nocturno. Nenhum veículo o seguia nas suas voltas pela cidade. Mesmo assim, mesmo que não visse ninguém a segui-lo, conseguia adivinhar que estavam a observá-lo. Onde estiveres, irmão, nós estamos atrás de ti. Temos como missão proteger-te.
Rathenow viu a última possibilidade de reconhecer o seu observador à chegada a Griinwald. Não entrou na garagem, deixou o BMW na rua em cima do passeio e escondeu-se atrás de um grande rododendro no jardim. Agachado, esperou pelo seu observador.
Todavia, os irmãos das tríades desiludiram-no. Nenhum automóvel passou lentamente à frente da vivenda. A essa hora, Griinwald parecia morta. Os habitantes prezavam aquela tranquilidade. Rathenow ficou aproximadamente dez minutos no seu esconderijo, até ter a certeza de que não fora seguido por ninguém. Deixou ficar o carro na rua e foi a pé até à porta de casa.
Quando lá chegou, teve um choque. Na porta da frente estava uma folha de papel escrita à máquina e colada com fita cola com a seguinte mensagem:
Não é bom veranear pela cidade para ver se te seguimos.
Queremos o melhor para ti e protegemos-te. Porquê a desconfiança? Nota: estamos em toda a parte.
Rathenow arrancou a folha, amarrotou-a e meteu-a no bolso das calças. ”Estás metido na rede de uma teia de aranha, da qual não há saída. Saberão de tudo o que fizeres.”
Abriu a porta e convenceu-se de que iria encontrar outro bilhete dentro de casa, mas não havia nada. Ligou o atendedor de chamadas e ouviu: ”Daqui o serviço de clientes faxe. Iremos a sua casa amanhã por volta das nove da manhã. Por favor esteja em casa.”
Portanto, de manhã cedo. A gritaria servira de alguma coisa. Fora uma experiência que Rathenow fizera naquele dia: só com a brutalidade é que se demonstra força. ”Para onde vais, humanidade? Será que a civilização equivale ao embrutecimento? Será que no ano dois mil e dez ainda serão os músculos a reagir e não o espírito? Alegra-te, porque não vais lá chegar.”
O telefone tocou. Rathenow colocou a mão sobre o auscultador. ”Atendo ou não atendo?” Depois, levantou-o. ”Não sou um cobarde”, disse para si próprio. ”Não. Não sou cobarde.”
Ao telefone estava o Dr. Freiburg. Rathenow respirou fundo.
- Finalmente! - afirmou Freiburg. - Finalmente!
- O que queres dizer com finalmente? - perguntou Rathenow.
- Há três horas que estou a tentar contactar-te. Onde estiveste?
- Nunca me fizeste uma pergunta dessas.
- Não eram necessárias. Mas agora... estás doente, Hans. Estive a pensar na nossa conversa. Resultado: essa Liyun está a preparar-te alguma! Estás dependente dela, mesmo sem a teres levado para a cama. E que dependência! Ela trata de ti dia e noite.
- Sim. Já to tinha dito.
- Esquece-a, Hans. Estou a dizer-te isto como teu melhor amigo. Essa rapariga vai matar-te.
- Ambos podemos morrer.
- Sabes disso e, no entanto, não vês as consequências? Tornaste-te subitamente masoquista? A destruição proporciona-te algum tipo de alegria interior? Hans...
- Estás a telefonar-me por causa disso?
- Sim! - A voz de Freiburg tornou-se penetrante. - Estou preocupado contigo. Tenho medo por ti. Estiveste toda a noite fora de casa. Não te reconheço.
- Supõe que não atendia o telefone porque não queria ser incomodado.
- Se fosses outra pessoa, acreditaria. Em ti, não acredito! Diz a verdade, Hans! Foste jantar, mas, se te conheço bem, devias ter regressado imediatamente para casa. Desde a morte da tua mulher que é assim. Porque é que hoje isso não aconteceu?
- Fome de cultura. - Rathenow franziu a testa. Como Freiburg estava perto da verdade! Mas nunca a saberia. Não podia saber.
- O que é isso? Fome de cultura? - gritou Freiburg, indignado. - Andaste a investigar a origem da peça de caça que comeste?
- Tive aulas... - disse Rathenow, contrariado.
- O que é que tiveste!? Vem imediatamente para cá! Estás com alucinações. Febre nervosa. Não. Eu vou a tua casa. Não toques no carro! Aulas...
- Uma espécie de faculdade popular, mas especial.
- Frequentaste um curso? Tu? Queres aprender agora?
- A relacionar-me com o meu vácuo interior, mas isso não entendes.
- Ninguém pode exigir-me isso. Diz simplesmente que estás bêbedo.
- Podes dar-lhe esse nome.
- Porque não consegues suportar o facto de a Liyun não estar contigo. Hans, vais ficar arruinado! Esquece essa boneca de porcelana de olhos amendoados! Tenta ser racional. Regressa finalmente a Munique e traz o coração contigo! Liberta-te interiormente dessa maldita China! Nunca mais verás a Liyun e essa história do convite é disparate-
- Rathenow ouviu o Dr. Freiburg a ofegar. - Deita-te, toma Baldrian e dorme. Amanhã já deves estar mais lúcido. Além disso, se tomares Baldrian não deixes a janela do quarto aberta. Atrai os gatos.
Rathenow desligou. De certo modo, estava agradecido a preiburg por ter telefonado ao fim da noite - não, já era de madrugada. Os conselhos de Freiburg eram tão refrescantes!
Quando o despertador tocou às sete e meia, Rathenow assustou-se como se alguém o tivesse picado. Foram precisos alguns segundos para se orientar e entender que estava mesmo na sua cama. Sonhara que se encontrava nu, deitado numa lixeira com Liyun morta nos braços. O sangue ainda escorria do corpo dela e banhava o seu. Naquele momento, fora acordado.
Enquanto tomava o pequeno-almoço, depois de um duche frio - estava um dia quente de Verão com o céu limpo e de um azul prateado -, chegou o técnico do faxe. Um mecânico simpático de fato-macaco azul e um boné de basebol empurrado para a nuca.
- Escolhi o emprego errado, senhor doutor - disse ele, alegremente. - Com este tempo de sonho tenho de reparar aparelhos de faxe, fotocopiadoras e telefones. Se fosse canalizador, poder-me-ia meter debaixo do duche fosse onde fosse. O que se passa então com o nosso doente?
- Tudo! - Rathenow foi com o técnico para o escritório. A secretária estava cheia de papéis e recortes de jornal. No chão, havia muitos livros sobre o Extremo Oriente. Era normal. Não só porque Rathenow recolhia sempre muitas informações antes de empreender grandes viagens, mas porque precisava simplesmente dessa desorganização. Era, como ele dizia, um ”caos calculado”, no qual só ele sabia mexer. Mau de quem arrumasse tudo aquilo! A empregada, que vinha duas vezes por semana durante cinco horas, tentara uma vez e arrumara a secretária. Uma vez e nunca mais! A empregada nunca vira Rathenow tão furioso. Desde então, olhava sempre para o lado quando aspirava o tapete do escritório.
- O monte de esterco só manda folhas em branco.
O técnico olhou para Rathenow com uma expressão inquiridora.
- Colocou bem as folhas no recipiente? Neste aparelho a parte escrita entra virada para baixo.
- Não comece como o seu colega ao telefone! Uso o aparelho há quase um ano.
- Acontece a todos, senhor doutor. Inacreditável! Mas pode ser apenas uma insignificância. Vamos já ver...
A ”insignificância” demorou duas horas. O técnico desmontou o aparelho, limpou-o, programou-o de novo segundo as instruções que Rathenow lhe deu e mandou uma folha de teste para a sua firma. Chegou e o papel já não ia em branco.
- Tínhamos de conseguir - disse o técnico muito contente.
- E o que se passava?
- Não sei. Desmontei-o e voltei a montar. Agora funciona!
Depois de o técnico sair, Rathenow regressou ao escritório. Onze horas da manhã. Em Kunming seriam cinco horas da tarde. Seis horas de diferença. Se Liyun não estivesse de viagem com um novo grupo, talvez se encontrasse no escritório do CITS. Agarrou no cartão-de-visita de Liyun, que andava sempre com ele, com o número de telefone e faxe. Todos os guias de viagem do CITS possuíam cartões-de-visita impressos. Sentou-se à máquina de escrever e usou uma folha de papel de carta. Releu o texto e colocou a folha no aparelho de faxe. Digitou os números, deu ordem para iniciar e apareceu a informação no display: número em marcação. Depois o papel foi puxado. O faxe para Kunming chegou à China via satélite. Lia-se o seguinte:
Munique, 18 de Agosto de 1991
Por favor remeter imediatamente para a residência da Sra. Wang Liyun.
Querida pequena Liyun,
Deve estar admirada por ainda não ter recebido nenhum faxe e deve ter pensado: ”É assim! Todos prometem, mas esquecem-se de tudo.” Mas não é verdade, Liyun. O meu aparelho de faxe tem estado avariado e só hoje veio o técnico. O primeiro faxe que enviei após a reparação foi o seu.
Irei agora tratar de tudo para o convite e documentação para que possa vir o mais depressa possível. Juntamente com o convite, enviarei material suficiente para que em Pequim verifiquem que o convite é meu. Em Pequim e na Embaixada alemã conhecem o meu nome.
Só quando cheguei a Munique é que consegui observar bem o batique que me ofereceu no Templo Dourado. Agora sei o que queria dizer com isso. Vou pendurar o batique para poder olhar sempre para ele e pensar em si.
Obrigado, pequena Liyun. Ver-nos-emos em breve!
Se puder responder-me já, o meu número de faxe vai no topo da carta.
Esperarei por um sinal seu e abraço-a em pensamento.
Hans
Quando a folha de informação dizendo ”tudo o.k.” foi impressa, Rathenow retirou a carta do depósito e meteu-a na gaveta da secretária.
- Eu amo-te - disse, baixinho. - Por favor, ama-me também...
”Mas será sensato trazer a Liyun para a Alemanha?”, Perguntou simultaneamente a si próprio. ”Na minha situaÇão? Não será uma irresponsabilidade? Não estarei a ser terrivelmente egoísta?”
Continuou a questionar-se sobre o assunto. ”Preciso dela”, decidiu finalmente, sentindo-se aliviado. ”Liyun, tu mudaste-me. Sinto-me vinte anos mais novo e mais forte e terei de o ser para aguentar a vida como sandália de erva das tríades. Aqui poderei proteger-te melhor. Liyun! Dá-me forças para isso.”
Nessa noite, noite de sexta para sábado, o proprietário de um restaurante chinês, Zhong Yushan, fora agredido e morto num vale do Parque Olympia. Encontrado de manhã por um jardineiro que limpava folhas e papéis, o morto exibia um aspecto tão repugnante que o jardineiro não conseguiu aguentar.
Pouco depois, apareceram três carros da secção de homicídios. A polícia vedou o terreno. O carro com o caixão de zinco estava um pouco afastado do local do crime para não destruir qualquer tipo de pistas. A erva secara devido à longa exposição ao calor e nem um elefante teria conseguido deixar marcas.
O fotógrafo da secção de homicídios estava a fotografar o morto de todos os ângulos quando outro carro parou do lado de fora das barreiras. Dele saíram três homens em mangas de camisa por causa do calor. O chefe da secção de homicídios, comissário Lutz Benicke, foi ao encontro dos três.
- Achei que era melhor informar-te, Peter - disse, estendendo a mão a Peter Probst. - Como te disse ao telefone, o morto é um chinês, o que cai na tua área de interesse.
- Conhece-se o nome do morto?
- Não. Nem vestígios de documentos.
Foram para junto do cadáver. PP olhou rapidamente para ele. Os longos anos na polícia tinham-no endurecido, mas ficava sempre perturbado quando deparava com um cadáver tão maltratado. Nem os nervos mais resistentes aguentavam.
- Sim - disse Lutz Benicke. - Primeiro, agrediram-no com uma faca, retalharam-lhe o rosto ao ponto de ficar irreconhecível, cortaram-lhe as orelhas e mataram-no com um tiro na têmpora. Um tiro bem direccionado. Como uma execução. Por isso, pensei... que é assim que se comportam os teus rapazes das tríades. Reconheces o morto?
- O que é que há para reconhecer? Mas é a assinatura da Catorze K.
- Dono de restaurante?
- Nunca o saberemos
- Mas no Décimo Terceiro Comissariado há uma lista de todos os restaurantes.
- E de que serve? Se fizermos uma ronda a todos os restaurantes e perguntarmos pelo dono só obtemos silêncio. Não podemos obrigar ninguém a falar. Fazemos figura de palhaços. Podemos poupar-nos a isso. Ninguém viu o assassino, ninguém sabe o seu nome, onde mora, não desapareceu ninguém. O morto deve ter caído do céu. E a viúva, se ele for casado? Prefere arrancar a língua a dizer seja o que for, e o mesmo acontecerá com os filhos e empregados do morto. Quem falar é o próximo. Com uma tríade ninguém se mete! No Décimo Terceiro Comissariado temos um ditado: ”Quando morre um mafioso, cheira mal e sabe-se onde está; mata-se um das tríades e não cheira a nada.” - Peter Probst virou-se. - Embrulha-o e manda-o para o Instituto de Medicina Legal.
- Na realidade, não interessa muito o tipo de ferimentos que ele tem. Não adianta nada. Vou mandá-lo já para o departamento de patologia. São rápidos com os cadáveres, se o Julius liberar o morto.
O procurador em questão era Julius Waremba. Apesar do seu nome - Waremba é um nome tipicamente africano não era negro mas sim um louro do tipo nórdico. Os colegas chamavam-lhe o ”chefe proibido”.
A furgoneta entrou, dois homens retiraram o caixão de zinco e meteram o corpo lá dentro.
- Que sujeira! - disse um deles. - E não se consegue apanhar o culpado. Matam como se estivessem a cortar salsichas. - Olhou para Peter Probst. - Senhor comissário, continuam a dançar à volta do nosso nariz...
- Temos de viver com isso até conseguirmos desferir o grande golpe.
- E quando será?
- Nós não estamos sentados a fazer palavras-cruzadas. O Décimo Terceiro Comissariado já lançou algumas redes. E se só aparecer um peixe, apanhamo-lo. É tudo uma questão de tempo... e sorte. Nós não somos menos espertos do que as tríades. Não faça mais perguntas. Não lhe posso dizer mais nada. A nossa polícia não é propriamente uma associação de patetas. Iremos apanhar este dragão amarelo.
PP despediu-se do seu colega Benicke e meteu-se no carro.
- Manda-me o inquérito, Peter - pediu Benicke. Trabalhamos como se procurássemos grãos de areia. Talvez o morto seja um desses grãos...
No decorrer do inquérito verificou-se a veracidade da suposição de PP. Não se soube quem era o chinês morto, como se chamava e de onde vinha. Até a viúva de Zhong Yushan se calou e os filhos foram suficientemente espertos para perceber que homens maus tinham assassinado o pai, mas ninguém deveria falar sobre o assunto. Tinham cinco, sete e treze anos, e o mais velho, um rapaz magro e alto, de óculos, disse à mãe:
- Não digas nada aos pequenos, mas a mim podes dizer a verdade. Mataram o papá?
- Sim.
- E onde está agora?
- A polícia levou-o. Nunca mais o veremos.
- Nem o enterramos?
- Nem o enterramos!
- Foram as tríades?
- Sim.
- O que é que o papá lhes fez?
- Não queria continuar a pagar-lhes.
- E mataram-no por causa disso?
- Ameaçou-os de ir à polícia.
- Porque é que o pai foi tão parvo?
- Estava muito zangado com os homens. ”Nós trabalhamos”, gritou ele ”e vocês metem no bolso! São como as varejeiras, seus caras de cu! Ponho a polícia atrás de vocês!” Nem sequer pensou nas consequências daquilo que estava a gritar, senão nunca o teria feito! E os homens disseram: ”Estás muito perturbado, caro Yushan. Nós entendemos. Não percebemos é a razão da ameaça com a polícia, e muito menos o facto de estares a pensar nela! Podemos ficar prejudicados apenas com pensamentos.” Depois agarraram-no e levaram-no.
- E o papá não se defendeu?
- Eram três homens, meu filho. Foi imediatamente com eles. De cabeça erguida. Era um homem orgulhoso, e um Zhong, dizia ele, nunca baixa a cabeça.
- Estavas lá, mamã? Porque é que não gritaste? Porque não correste a pedir auxílio?
A viúva Zhong arregaçou as mangas do vestido e mostrou os braços ao filho. Ambos ostentavam vergões ensanguentados, que tinham sido desinfectados com iodo. Não trazia ligaduras, pois o ar cura todas as feridas, dizem os velhos sábios chineses.
- Por causa disto...
O rapaz ficou estarrecido a olhar para os braços cortados da mãe. Cerrou os lábios.
- Também te queriam matar?
- Não. Só avisar.
- Vingar-te-ei a ti e ao papá! - afirmou o rapaz com a voz firme de um lutador. - Não tenho medo das tríades. Quando reconhecer um, mato-o. Um atrás do outro. Nunca saberão quem foi. Não vai haver testemunhas.
- Tu vais com os teus irmãos para a América, para Los Angeles, para casa da tua tia Juzhen. Aí não conseguem atingir-vos.
- E tu, mamã?
- Eu fico a dirigir o restaurante do papá.
- Vão obrigar-te a dar a morada da tia Juzhen.
- Não podem. Calar-me-ei e morrerei.
O rapaz olhou em frente, pensando e sentindo como um Zhong, que nunca baixa a cabeça, nem perante a espada do imperador. Tinha de manter a cabeça erguida.
- Voltarei de Los Angeles para Munique - prometeu ele depois de um longo silêncio. - Daqui a dois anos, Quando me tornar um homem. Gravarei a fogo no meu coração o dia em que mataram o papá. O meu coração só voltará a bater normalmente quando conseguir vingá-lo. Até aí será uma chama que queimará os meus inimigos.
Su Kun, a viúva Zhong, apertou a cabeça do filho contra o peito.
- Estou orgulhosa de ti, Lihong - proferiu em voz muito baixa. - Em ti vive o espírito dos nossos antepassados.
Tudo isto não chegou, obviamente, ao conhecimento do
Décimo Terceiro Comissariado. O comissário Peter Probst enviou os investigadores, mas fossem onde fossem, restaurante ou loja os chineses olhavam para eles como se falassem uma língua desconhecida. Apenas um chinês falou, representando praticamente todos os chineses de Munique, com um sorriso cortês.
- Não sabemos nada!
- Como sempre! - contrapôs o agente criminal.
- De facto. Como sempre.
- Quando é que vocês adquirem um pouco de sensatez?
- Nós somos sensatos porque não sabemos nada.
- Sempre o mesmo! - gritou PP na reunião da manhã seguinte no Décimo Terceiro Comissariado, erguendo o punho contra o jornal que estava à sua frente. Os cabeçalhos saltavam aos olhos: Chinês desconhecido assassinado no Parque Olympia. Terrivelmente desfigurado! Terá sido a mafia chinesa? As tríades voltam a atacar: chinês mutilado encontrado no Parque Olympia. Quando é que a nossa polícia acorda?
- Estes jornalistas! Quando é que a polícia acorda... À secretária, atrás de um computador, é fácil fazer de nós uns idiotas chapados! Sabem lá, estes imbecis, quem são as tríades? Se conseguem fazer melhor do que nós, então ponham-se a caminho. O colega Benicke da secção de homicídios teria então muito trabalho. Só nos resta vigiar. Talvez encontremos algum fio e consigamos desenrolar o novelo! Seria quase um milagre, que poderíamos participar ao Papa.
As investigações foram canceladas. O cadáver de Zhong Yushan seria levado para o Departamento de Patologia da universidade para ser usado nas aulas dos estudantes de Medicina.
No sábado de manhã, Aisin Ninglin apareceu em casa da viúva Zhong, exprimiu-lhe os seus sentimentos e exibiu dez mil marcos. Deu-lhe o dinheiro sem hesitações.
Mas não era tudo. Ninglin ainda lhe deu um papel com uma conta:
Viagem ao Parque Olympia
Inquérito
Três horas de interrogatório
Um cartucho, 9 mm
Regresso
Soma
+ aditamentos
12 marcos
200 marcos
600 marcos
900 marcos
20 marcos
1732 marcos
5000 marcos
6732 marcos
Su Kun também pagou aquela conta, mas quando estava a colocar o dinheiro sobre a mão aberta de Ninglin perguntou sem qualquer emoção:
- E as minhas facadas? Não entram na conta?
- Não serão pagas. São de graça. - Ninglin fez um largo sorriso como se tivesse acabado de contar uma anedota. - Fazem parte do nosso serviço a clientes...
- Então não tenho mais dívidas? - perguntou Su Kun.
- Não. Isto deverá pôr-te mais bem-disposta. Para a semana, trago um novo colaborador para te apresentar. Tenho outras tarefas a desempenhar. Trata o novo sandália de erva como me tratas a mim e encara-o com respeito. A conta favorece-te. Espero que reconheças isso. A polícia levou Zhong Yushan. Caso contrário, terias de pagar o enterro.
- Apresenta os meus agradecimentos ao daih-loh. Aisin Ninglin abandonou o restaurante, subiu para um pequeno automóvel japonês e partiu. O agente que estava a observar hesitou. Deveria segui-lo? O que teria ele ido fazer a um restaurante num sábado de manhã? Àquela hora não há nada para comer.
Avançou e seguiu Ninglin. Na Herzog Strasse, num cruzamento, o semáforo ficou vermelho. O agente colocou-se ao lado de Ninglin, baixou o vidro e disse:
- Pare depois do cruzamento à direita. Homicídios. Ninglin assentiu com a cabeça, sorriu para o agente e parou vinte metros depois do cruzamento em fila dupla. O agente travou atrás dele e saltou do carro. Ninglin, como sempre muito amável, saiu do carro.
- Que infracção cometi? - perguntou. - Ia muito depressa?
- Esteve agora mesmo no Restaurante Sala de Xangai.
- Sim. É proibido?
- O que queria a esta hora?
- Levei especiarias ao dono, Zhong Yushan. Tinham acabado. Açafrão. Precisa dele para os pratos de frango. Uma especiaria rara e dispendiosa. Sou comerciante de especiarias. - Ninglin abriu a porta de trás do carro e mostrou dois caixotes cheios de especiarias de toda a espécie. Uma nuvem de cheiro envolveu o agente.
”Merda”, pensou. Um tiro na água, como sempre. Mesmo assim, continuou rispidamente.
- A sua identificação!
Ninglin mostrou-lhe um passaporte chinês e uma carta de condução alemã. Ambos os documentos estavam em nome de Ping Lianzheng. Ninglin possuía seis identificações diferentes com seis nomes diferentes. Uma oficina de falsificações em Ottobrunn fazia passaportes e cartas de condução. Não se conseguiam distinguir das verdadeiras.
- Onde mora? - O agente devolveu os documentos a Ninglin.
- Em Schwabing. Tengstrasse setenta e um. - Dizia tudo sem hesitar e sempre com um sorriso cortês. - Mais alguma coisa? Posso ir-me embora? Tenho ainda que distribuir muitas especiarias.
- Vá-se embora! - O agente voltou para o seu carro e partiu. Ninglin ficou a olhar. Riu-se sarcasticamente. ”Pobre polícia alemã”, pensou ao sentar-se atrás do volante. ”Não têm telefone em todos os carros. Seria fácil perguntar se um tal Ping Lianzheng vive realmente na Tengstrasse. Mas não têm telefone no carro porque o Estado poupa no dinheiro atribuído à polícia. Como é que dizia Min Ju? A Alemanha é o país ideal para as tríades. Até tecnicamente somos superiores à polícia...”
O mesmo dizia PP quando o agente regressou ao Décimo Terceiro Comissariado.
- Merda! - exclamou do fundo do coração. - Há qualquer coisa que não está bem. O tipo tem outro nome, não mora na Tengstrasse e, se é comerciante de especiarias, eu sou vendedor de ovos. Isso já nós sabemos.
Fez alguns telefonemas e pousou o auscultador. Percebia-se o azedume na sua voz.
- Não existe nenhum Ping Lianzheng. Na Tengstrasse vivem honrados cidadãos. Teríamos apanhado um desses olhos oblíquos, mas o Estado não tem dinheiro para instalar um telefone em todos os carros! Em cada uma das nossas investidas contra as tríades, ficamos a mijar nos próprios sapatos. Quando é que os grandes senhores do ministério percebem que a polícia está a tornar-se cada vez mais ridícula e que os membros do crime organizado andam a dançar debaixo dos nossos narizes? Já nem somos competitivos!
Aisin Ninglin dirigiu-se ao Restaurante Mandarim Negro, mas só à hora de almoço, onde, naquele dia, sábado, havia muito movimento. Mesmo que o restaurante estivesse a ser vigiado, não seria detectado. Entre os muitos clientes, havia um que comia à colher o seu arroz com galinha com molho de Sichuan. Um prato tremendamente picante.
No caminho para as casas de banho, abriu uma pequena porta onde se via um cartaz que dizia ARRECADAÇÃO e premiu um botão que estava escondido entre as prateleiras dos sacos de arroz e massa. Sem ruído, uma das prateleiras moveu-se para o lado. Um lanço de escadas conduzia à cave.
Num escritório sem pompa, bastante sóbrio e moderno, Sem reminiscências chinesas, Min Ju estava sentado atrás de uma secretária praticamente vazia. Viam-se alguns jornais e mais nada... Não havia documentação, no caso de haver uma rusga e a sala da cave ser descoberta. Todos os Papéis importantes estavam fechados num cofre de um Conhecido banco, registado em nome de Siegmar Vonneerg, arquitecto. Um nome completamente insuspeito e sério.
Só havia um erro: não existia nenhum arquitecto SiW mar Vonneberg. O passaporte, cuja apresentação era necessária para o aluguer de um cofre, era obviamente falsificado.
- Correu tudo bem - disse Aisin Ninglin, contando o dinheiro sobre o tampo da secretária. - A Su Kun nem hesitou.
- Não chorou? - perguntou Min, espantado.
- Não, daih-loh.
- A Su Kun estava tranquila? Isso não me agrada, Ninglin. Todas as viúvas choram.
- É uma mulher muito forte.
- É muito forte porque está a arquitectar um plano. Temos de a ”proteger” bastante. - Min Ju olhou para o relógio de pulso. Um dos modelos mais caros do mercado. Estás livre até às nove e meia da noite. Depois vem o Bai Juan Fa.
- Vou repetir, daih-loh: não confio nele. Não é um de nós. Tem outro carácter. Não nos compreende. Se a Wang Liyun estivesse em segurança, ele trair-nos-ia.
- A Liyun não está em segurança em lado nenhum. Só connosco.
- Vamos partir desse pressuposto, daih-loh.
- Nessa altura, tratarás dele.
- Seria um grande prazer e um belo presente para mim. - Ninglin fez uma vénia a Min Ju. - Poderei fazer com ele o que quiser?
- Tens carta branca e a minha autorização. Deixou o sóbrio gabinete, recuando, como se estivesse a sair da presença do imperador. Min Ju olhou para ele com a testa franzida.
”Um homem perigoso”, pensou. ”Um verdadeiro diabo em forma de gente. Não se pode perder a cautela. E eu também não!
Infelizmente, é um diabo necessário. Não podemos prescindir dele se quisermos que a Catorze K continue a ser a irmandade mais temida das tríades.”
Sábado à noite. Vinte e duas horas.
O afável criado do Mandarim Negro cumprimentou Rathenow como se fosse um bom amigo e fez sinal com a cabeça para a porta das traseiras. ”Já conheces o caminho”, queria aquilo dizer. ”Já não precisas que te conduzam.”
- Não comes, Bai Juan Fa? - perguntou, apenas.
- Não. Já jantei.
- Mas não tão bem como aqui.
- É verdade.
- Vou pôr de lado uma boa sobremesa para ti. Estará à tua espera antes de ires para casa.
Rathenow atravessou o templo, que o deixava sempre mudo de admiração, bateu à porta e ouviu: ”Jin lail Entre.”
Min e Ninglin estavam sentados na sala de aulas. No ponto do mapa de Munique correspondente ao Restaurante Sala de Xangai encontrava-se uma nova bandeirinha vermelha. Atenção! Grande perigo.
- Verifico com agrado que continuas a ser pontual cumprimentou Min Ju quando Rathenow entrou. Aisin Ninglin ficou calado e sentado na penumbra.
- Nunca fui pouco pontual. A pontualidade é a cortesia dos reis, dizemos nós. Sempre segui essa máxima. - Entrou na longa sala e sentou-se à mesa. - Estou preparado para a lição número dois... - disse.
- Hoje de manhã, o Ninglin esteve quase a cair nas garras da polícia - contou Min Ju. - Mas o homem dos homicídios não podia prendê-lo, pois ele não passa de um inocente comerciante chinês de especiarias. Teve de o deixar partir. Min riu-se. - A polícia alemã devia usar fatos de palhaços em vez de uniformes. - Levantou o queixo e sentou-se no canto da mesa. - Lição número dois. Terás de a exercitar até à perfeição.
Ninglin dirigira-se à parede e estava a desenrolar um cartaz ao lado do mapa de Munique. Mostrava uma mão
que executava diversos sinais gestuais: dois dedos estavam sobre a palma da mão, três levantados, o polegar esticado Para cima, três dedos dobrados, o anelar esticado para a frente e um punho fechado só com o anelar e dedo do meio Bicados. Min aproximou-se do cartaz.
- Há séculos que as associações secretas conversam Ou se apresentam em silêncio com o auxílio de sinais gestuais Conservámos e apurámos essa tradição. Temos agora para todos os acontecimentos e factos, segundo a categoria das tríades, um código gestual exacto. Deverás exercitar e aprender até à exaustão estes códigos, pois, quando um restaurante está cheio de clientes, deverás apresentar-te ao dono através destes códigos. Ele reconhecer-te-á imediatamente. Olha, Bai Juan Fa! - Min mostrou-lhe a mão com o indicador e anelar encolhidos e o dedo do meio esticado. O polegar e o dedo mínimo estavam mais abertos. - Este é o símbolo do chefe das tríades. Em Munique sou eu. Se vierem visitas de Amesterdão, Londres, Hong Kong ou Nova Iorque e se sentarem no Mandarim Negro, serão imediatamente reconhecidas através destes sinais gestuais. Imagem número dois: é o gesto de um oficial bem-sucedido, a quem se deve obedecer. Imagem número três: sinaliza ao acompanhante de um cobrador que o dinheiro já foi pago. Imagem número cinco: este é o teu código, Bai Juan Fa. O dedo de um cho hai, um mensageiro, um sandália de erva.
Explicou ainda mais oito códigos manuais diferentes, e Rathenow reconheceu que a linguagem gestual chinesa era, para ele, uma ciência e uma arte.
Durante uma hora exercitou as diversas posições de dedos. Min Ju mandava-o fazer depressa, e depois cada vez mais depressa, as posições isoladas.
- Chefe! - gritou Min. - Cho hai... oficial... dinheiro pago... membro de tríade amigo... Tríade Catorze K... resistência... penalização necessária... cho hai... só paga na próxima semana... oficial... em viagem... Tríade Catorze K... ja pagou...
Rathenow sentia o suor a correr-lhe pelo rosto. Min Ju mostrava-se inflexível, pois as suas directrizes estavam também a ser executadas por Aisin Ninglin, que as efectuava primeiro do que Rathenow. Sorria sarcasticamente para o seu seguidor. ”Nunca os aprenderás! Nunca! Não és chinês. És um cara de cu branco!”
Depois Min teve uma certa pena de Rathenow e interrompeu o exercício. Rathenow deixou cair as mãos no colo. Doíam-lhe todas as falanges dos dedos como se os tivessem torcido.
- Ainda é preciso fazer mais exercícios, Bai Juan Fa
afirmou Min. - Não podes pensar... Terão de ser tão automáticos como pestanejar.
- Os meus dedos não são de borracha. - Rathenow mexeu os dedos. Mal os sentia e pareciam inchados. Mas eu farei os exercícios...
- Ainda tens forças para conhecer a lição número três? Também terás de a aprender e dominar perfeitamente.
- Também é com os dedos? - perguntou Rathenow, esgotado.
- Só em parte. - Min Ju alargou a boca num sorriso de escárnio. - Os sinais com os dedos são uma imagem imperfeita, mas existem situações, nomeadamente quando um restaurante está cheio e há muitos chineses sentados. Como pensas saber que o homem que está sentado à tua frente faz parte do nosso grupo ou pertence a uma tríade inimiga, se o homem pertence ao grupo dos Tung ou é um espião dos Shi Hai? Sabemos que o grupo de Chão Zhou quer passar de Hong Kong para a Europa. Com seis grupos e dezasseis mil membros. Como irás reconhecê-lo? Se não for um dos nossos que te responde aos sinais, deverás lutar com ele ou medir forças. Como poderás fazê-lo sem palavras, sem olhar e sem ruído? É a arte do entendimento através da linguagem de sinais. Deverás dominá-la perfeitamente, pois a tua vida poderá depender disso. Mesmo um sandália de erva, que é a posição mais baixa entre nós, vive em perigo permanente. A polícia não é o nosso maior inimigo, mas sim...
-... a mafia russa. Já sei.
--Os russos também incluíram asiáticos nas suas fileiras para nos enganar, os quais provêm das suas zonas asiáticas do Ussuri e do Cazaquistão. Muitos falam chinês. De que forma os poderás reconhecer como inimigos se estiverem sentados à tua frente tal qual clientes? Tens de os testar. É preciso que aprendas isso nos próximos dias e que Comines essa técnica tão bem como respirar e andar.
Min Ju retirou uma grande folha de papel de uma pasta de documentos que se encontrava sobre a mesa e empurrou-a para Rathenow. Estava totalmente impressa, à esquerda em chinês e à direita em inglês. Min encolheu os ombros.
- Não temos em alemão. És o primeiro alemão a pertencer às tríades, Bai Juan Fa. Sabes inglês?
Rathenow olhou para o texto e anuiu com a cabeça.
- Sim. Percebo. - Fez menção de dobrar o papel e guardá-lo, mas Min agarrou-lhe de imediato na mão, apertando-a firmemente.
- Nada sai daqui!
- Tenho de decorar tudo aqui? - Rathenow olhou de novo para a imensa quantidade de folhas. - Será difícil, Min Ju. Não sou como os actores que estão habituados a decorar tudo.
- Tens tempo. Todas as noites decoras dois ou três símbolos de reconhecimento: ”a maneira de agarrar uma chávena de chá”, ”a maneira de utilizar os pauzinhos”, ”a maneira de agarrar uma taça de arroz”. Para um membro da tríade que quer reconhecer o seu opositor tudo tem um significado. Quem não te responder, não é um dos nossos e deverás estar atento e em guarda.
- E se for um russo asiático? - perguntou Rathenow. Sentiu-se desconfortável com a ideia de se envolver numa luta.
- Nesse caso, pedes ajuda aos teus irmãos. Como o farás? Também terás de aprender. Se os nossos antepassados conseguiam, tu também conseguirás. A nossa sinalética e imortal.
- Eu não sou chinês, Min Ju!
- Tu és Bai Juan Fa - respondeu Min quase festivamente. - É o suficiente e, além disso, a Wang Liyun é chinesa.
Rathenow compreendeu. A ameaça do costume. Com Liyun tinham-no na mão.
Puxou novamente o papel e traduziu em silêncio o texto inglês.
Indicações para entendimento e comportamento em caso de problemas pessoais
Isto é um segredo que deve ficar fechado no coração
Como se oferece um cachimbo dentro da irmandade:
O cachimbo deve ser oferecido de maneira especial: seguras o cachimbo entre os dois polegares e indicadores; os polegares deverão estar virados para cima. Agarras no cachimbo da mesma maneira, mas’pressionas os teus polegares contra os meus. Se pertenceres à irmandade, ao jardim florido, deverás colocar o cachimbo entre os dentes antes de o acenderes.
Como se oferece chá:
Colocas chá fumegante sobre a mesa e, quando o ofereceres, seguras a taça pela borda superior entre o polegar e o indicador. O dedo do meio suporta a base da chávena.
Como se reconhece um companheiro num banquete:
Oferece-se aguardente da mesma maneira que o chá. Se o convidado pertencer à nossa irmandade, sustentará o copo com os mesmos três dedos.
Como se oferece arroz:
Esticas o dedo e colocas os pauzinhos atravessados sobre a taça. Oferece-a ao estranho que deverá afastar a tigela se for um membro.
Símbolos feitos durante uma luta ou querela:
Quando duas pessoas se encontram e é proferida uma Palavra, um membro deverá cerrar o punho e levantar o braço. O polegar deverá estar virado para cima. Se for membro, o outro deverá alegrar-se e desculpar-se imediatamente.
Como se dá a entender a outro que quer continuar a lutar;
Quando numa luta os membros não ficam satisfeitos e querem continuar a lutar, deve-se bater palmas duas ou três vezes. Os membros acorrerão e continuarão a lutar Sem pausas.
Como se exige vingança face a ofensas:
Quando um membro é ofendido e exige vingança, vira-se para o seu irmão com o dedo sobre o nariz. Todos virão ter com o ofendido e perguntarão o que se passa. Abandonas os teus próprios assuntos.
Como se pede reforços:
Quando encontrares um irmão, coloca as mãos sobre a cabeça e bate palmas. Se te perguntarem o motivo da tua vinda, diz: ”Seong e Pek precisam de ajuda.”
Como se entra numa luta e como se sai dela:
Não precisamos de sinais quando nos encontramos com os nossos adversários. Basta amarrar qualquer coisa à cabeça. Se quiseres abandonar a luta, dizes: soo laíng (pronto). Se quiseres encorajar o adversário, dizes: tan koh (em frente).
Quando se encontram à noite e se querem confortar:
Quando se encontram durante a noite e um puxa o outro para si, falas em dois registos vocais diferentes. Quando o puxas para ti, usas um, quando o queres soltar, outro. Atenção às vozes.
Como se foge depois de cometer um homicídio:
Se alguém cometer um homicídio, deverá esconder-se, cortar um pouco de cabelo e colá-lo ao braço direito. Quando procurar um irmão durante a fuga, esfregará o olho esquerdo e a irmandade dar-lhe-á dinheiro para lhe possibilitar a fuga.
Como se reconhece alguém através dos movimentos das mãos:
Colocas os dedos da mão direita sobre as sobrancelhas, como se estivesses a fazer continência. Isso provocará alegria. Tong (Verão), Quing (verde), Xiong (casuarina) e Pek (arum) são gente nossa. Colocas o indicador entre os lábios e fecha-os levemente.
Rathenow empurrou o papel que tinha à sua frente e inclinou-se para trás. Apesar de toda a sua repugnância pelas tríades, admirava aquele código requintadamente pensadoNum restaurante chinês, quem é que está atento à maneira como se oferece chá, se coloca os pauzinhos ou se termina Com uma querela que está para começar? Até um assassínio é assinalado de uma maneira perfeitamente inofensiva... Quantas pessoas esfregam o olho esquerdo? Esta linguagem gestual chinesa é simultaneamente grandiosa e aterrorizante por parecer tão simples e quotidiana.
Min Ju observava Rathenow com atenção. Por fim, perguntou:
- Consegues decorar tudo, Bai Juan Fa?
- É mais fácil do que a linguagem dos dedos. Não é preciso ter mãos de artista.
Min riu-se alto e bateu na mão de Rathenow.
- Mãos artísticas. Essa é boa! Uma bela expressão. Vou tomar nota. Artista das mãos. Poderá tornar-se um novo nome das tríades. - Puxou o papel para si e meteu-o novamente na pasta. Rathenow tinha a certeza de que Min Ju defenderia até ao fim estas indicações secretas, se fossem descobertas na sua posse. - Com isto acabamos por hoje
- afirmou Min. - Voltas na terça-feira para os exercícios com os dedos e para fixar os gestos de entendimento. Deverás ser capaz de fazer tudo isto com a mesma naturalidade com que mijas.
- Há pessoas que têm dificuldade em mijar.
Min voltou a rir. Sentia cada vez mais simpatia pessoal Por Rathenow, mas como daih-loh das tríades não podia ter manifestações sentimentais.
- Não pertences a esse grupo - disse ele.
- E se eu não conseguir decorar tudo?
- Qualquer um consegue! Temos sandálias de erva que não sabem ler nem escrever, mas que dominam perfeitamente a linguagem secreta. Vou trabalhar tanto contigo que vais conseguir dizer tudo enquanto dormes. És um homem esperto e sábio. Ficaria zangado, muito zangado, se te fingisses estúpido. - Min voltou à sua expressão séria. Achas que a Wang Liyun poderia amar um homem tão estúpido? Temos de lhe contar isso...
Rathenow levantou-se. Quando o nome de Liyun era mencionado, sentia-se completamente desamparado e até desprovido de vontade própria. Cada vez que o seu nome era pronunciado, sabia que era uma ameaça velada. Isso conseguia desfazer qualquer tentativa de resistência passiva
- Posso ir-me embora? - perguntou.
- Era o que eu ia dizer. Boa noite, Bai Juan Fa. Rathenow abandonou o Mandarim Negro. Era o único cliente. O criado simpático trouxe-lhe a sobremesa que lhe prometera: uma enorme taça com gelado e natas. No alto estava um pequeno chapéu-de-sol de papel.
- Quando voltas? - perguntou o criado, que estava sentado à sua frente.
- Terça-feira.
Voltou a sentar-se e bebeu ainda uma chávena de chá verde, segurando-a da maneira que lhe fora ensinada: colocou o polegar e o indicador em torno da borda superior e o dedo do meio na base da chávena. O criado riu-se alto, retirou-lhe a chávena da mão e bebeu um gole de chá. Depois, voltou a entregar-lha.
- Também conheces isto? - perguntou Rathenow.
- Todos os membros da Catorze K têm de saber o código, mas tu ainda dás bastante nas vistas.
- Tive hoje a primeira aula. Conseguirei...
Min Ju e Aisin Ninglin continuavam sentados na cave.
- Não gosto dele - disse Ninglin pela milionésima vez. - É um erro usar brancos como cho hai.
- A ideia veio da central em Hong Kong. Quem se atreve a duvidar da sabedoria do Alto Conselho de Grandes Irmãos?
- Até Hong Kong pode enganar-se.
- O Bai Juan Fa é uma experiência. Se tiver sucesso, todos serão visitados por brancos insuspeitos. Se a experiência falhar, já te disse, Ninglin, que o Bai Juan Fa é teu. Não deverá restar qualquer vestígio da sua existência. AS coisas devem ficar como se ele nunca tivesse existido.
- E a Wang Liyun?
Min encolheu os ombros e abanou a cabeça.
- Completamente desinteressante. Continuará a servir de guia de viagem aos ”narizes compridos” e esquecerá o seu amor secreto, Rathenow. Casará com um chinês e terá um filho. Que mais nos pode preocupar?
- Ela sabe de mais!
- Que sabe ela? Nada!
- Ela não desaparecerá como o Bai Juan Fa?
- Não! Porquê?
- Deverá ser castigada por cada erro do Rathenow...
- Foi o que eu lhe disse e ele acredita porque está cego de paixão. O Kewei em Kunming terá de se proteger. O pai, o professor Wang Biao, é amigo de infância do secretário do Partido de Yunnan! Sabes o que isso significa?
- O Kewei seria um animal a caçar.
- Mas isso não é necessário. Enquanto o Bai Juan Fa acreditar que temos a Wang Liyun sob a nossa protecção, obedecerá como um búfalo num arado. Acredita em tudo o que dizemos.
Rathenow voltou imediatamente para Griinwald. Ao chegar, sentou-se à máquina de escrever e dactilografou o que decorara sobre os modos de comportamento e sinais de reconhecimento. Guardou a folha no seu cofre de parede. Era mais valiosa do que um milhão de marcos.
Nessa noite, dormiu melhor e não sonhou. Tinha aceitado, perante si próprio, ser um membro das tríades e, simultaneamente, uma toupeira que escavava nos segredos da irmandade. Segredos que nenhum branco conhecia nem poderia desvendar. Era o primeiro e único que as tríades admitiam no seu seio porque conseguiam transformá-lo num escravo assim que proferiam uma palavra: Liyun.
À uma da manhã, o telefone tocou. Rathenow, que acabara de adormecer, endireitou-se na cama. Podia adivinhar quem estava a telefonar-lhe àquela hora.
- Deixa-me em paz! - exclamou, irritado, antes de saber quem era. - Quero dormir!
- Mais uma vez não estiveste em casa. - O Dr. Freiburg tossiu. Estava com a sua habitual constipação de Verão.
- De facto. Uma pergunta: tu agora não dormes? Não admira que os doentes digam que quem não consegue dormir, deve consultar o doutor Freiburg. Basta olhar para ele e adormece-se.
- Que engraçado... as tuas anedotas datam da dinastia Ming! Como posso dormir se tu andas por aí como um vagabundo? Estás sozinho na cama?
- Claro.
- Ainda por cima!
- Quero dormir! - gritou Rathenow ao telefone. Leva as tuas porcarias para outro lado! Não vês que estou em casa? Estou bem, estou calmo, não ando a vagabundear por aí e já lamento ter-te pedido ajuda.
- Sou teu médico e amigo...
- Mas não à uma hora da manhã quando estou de boa saúde. Fim!
Rathenow desligou, virou-se de lado e adormeceu rapidamente. Quando acordou, eram dez horas da manhã. Manhã de domingo. Uma maravilhosa manhã de Agosto.
”O que vou fazer com este domingo?”, perguntou a si próprio enquanto tomava duche e se barbeava. Fazer jogging por Griinwald? Mandriar na esplanada de uma cervejaria? Depois de tanto tempo sem jogar, voltar ao ténis ou ao golfe? Nem pensar em sentar-se à máquina e trabalhar! ”Não tenho vontade. Sei que o editor está à espera do meu novo livro sobre a China. Tem um prazo, mas agora não consigo respeitar prazos rigorosos. Estou a aprender a linguagem secreta das tríades. Nunca vou poder escrever sobre isso e, como tal, um livro sobre a minha última viagem à China deixa de ter temporariamente assunto. O que significa temporariamente? Até estar livre das garras do dragão. Poderá levar alguns anos. Neste momento ainda não sei! Só sei que um dia acontecerá.”
O que se pode fazer então a um domingo de manhã? Rathenow decidiu ir primeiro a uma esplanada e depois fazer um jogo de golfe no maravilhoso Campo de Strasslach. Esperava não encontrar aí o Dr. Freiburg, que tinha um handicap onze e o batia sempre com elegância. Não estava com disposição para tais brincadeiras.
A cervejaria Griinwalder Eiche estava cheia naquele lindo jia de Verão. Na esplanada, quase todas as mesas se encontravam ocupadas sobretudo por ciclistas e pessoas que andavam a passear e que procuravam a tranquilidade das zonas montanhosas. Rathenow encontrou lugar numa longa mesa da esplanada, trepou para um banco oscilante e pediu uma cerveja. À sua mesa estavam sentadas outras pessoas que aparentemente tinham vindo juntas. Quatro senhoras de meia-idade tagarelavam e os homens conversavam sobre o FC Bayern de Munique.
Subitamente, todos se calaram quando um jovem entrou na esplanada e olhou à sua volta, procurando dois lugares. A seu lado estava uma lindíssima asiática que usava um vestido de Verão curto e bastante decotado. Tinha os cabelos curtos cortados à moda.
- Olhem para aquilo! - afirmou de súbito uma das mulheres. - Se se inclinar, saltam-lhe as mamas do vestido.
- E um rapaz com tão bom aspecto - cochichou a segunda. - Era preciso andar com uma amarela? Em Munique não há raparigas bonitas que cheguem?
- As olhos oblíquos seduzem-nos e sabe-se lá que mais!
- Sim, é sempre melhor com as estrangeiras. Recentemente vi uma negra pendurada num homem como uma lapa. Sem qualquer inibição! Fiquei logo envergonhada.
- Estou sempre a dizer ao Theo que todos se deviam ir embora! Todos os estrangeiros para a rua! Não precisamos deles. As nossas raparigas andam para aí e essas amarelas roubam-lhes os homens. Deveriam existir leis contra isso.
- Se as coisas continuarem assim, daqui a trinta anos só haverá mestiços. Erna, olha para aquilo! Ele está a fazer-lhe festas na mão. Repugnante! Ninguém deveria permitir
que se sentassem nas suas mesas...
Rathenow cerrou os dentes e depois ouviu os homens. Tinham terminado a conversa sobre futebol e olhavam estarrecidos para a linda asiática.
- Seria uma excelente sobremesa - disse um em voz baixa.
Risos. As canecas bateram umas nas outras. Rathenow pagou e deixou a cervejaria. Era a voz do povo. Estrangeiros, fora! Mantenham os Germânicos puros! Mas os clubes de bólingue e os grupos corais iam à Tailândia e contratavam imediatamente uma ”amiga” durante uma semana. A vinte e cinco marcos por dia. É muito por uma rapariga proveniente das zonas mais pobres do interior. Cento e cinquenta marcos por uma semana de regabofe! Rathenow ficou furioso consigo próprio por se ter calado na sua ida a Hasslach. Todavia, se tivesse protestado, o que teria acontecido? Apenas uma discussão em voz alta em que ele perderia. Oito contra um... não, cem contra um, pois toda a cervejaria estaria contra ele. Fora com os estrangeiros! Somos Alemães, somos Bávaros! Os dos Balcãs para os Balcãs, os negros para África, os chineses para a Ásia. Todos os homens serão irmãos... Aquele Schiller tinha merda no cérebro. Erni, mais uma caneca.
No clube de golfe de Hasslach, Rathenow bebeu primeiro uma chávena de café, foi para o relvado, colocou-se no local de partida para o primeiro buraco e viu o modo como o Dr. Bloch, médico-chefe de cirurgia, agarrou o taco, se concentrou e bateu. A bola de golfe caiu a cerca de quatro metros da bandeira. O Dr. Bloch olhou para Rathenow, exigindo reconhecimento.
- Que diz desta pancada?
- Bravo! - respondeu.
- Hoje não joga? - Bloch fez oscilar o taco como se fosse uma arma. O seu caddie levantou o saco de golfe. Afastou-se para junto do buraco número um e para a bola que ficara muito bem colocada. Bloch metê-la-ia tranquilamente no buraco. - Há muito tempo que não aparecia, senhor Rathenow.
- Estive na China.
- Oh! Que maravilha! Um país fabuloso. Estive lá ha um ano. Pequim, Xangai, Cantão, Guilin com o rio Li e as montanhas. Depois, fui a Xi’an, a cidade perdida do Imperador. Não, não consegui decorar o nome. Uma nova maravilha do mundo! Uma pessoa fica completamente estupefacta.
Aquela extraordinária civilização dos amarelos, enquanto nós, Germânicos, ainda dormíamos sobre peles de urso. É uma coisa que se deve ter em conta quando se quer falar da China.
O Dr. Bloch, médico-chefe, seguiu o seu caddie para terminar o buraco número um. Rathenow ficou parado a olhá-lo com um sorriso a bailar nos cantos da boca. ”Meu parvalhão! Falar sobre a China! O que conheces tu? Os postais ilustrados da China! Vai às aldeias perto de Lijiang, vai ao lago Lugu e dirás a toda gente que nunca mais irás à China! O Império do Centro? Fica no cu do mundo! É uma vida que vocês nunca entenderão. Querem ver o Templo Dourado, mas não estão dispostos a olhar para os olhos das pessoas. Sentam-se nas casas de jantar de hotéis de cinco estrelas a beber vinho do Loire e champanhe e as raparigas que vos servem vestem os seus longos vestidos justos, abertos dos lados, usam flores no cabelo e sapatos de saltos muito altos. Isso é a China? Sabem qual o aspecto de uma camponesa do Miao, um caieiro dos fornos de cal rurais, um britador de pedra nos rochedos vermelhos, um cultivador de arroz atrás do seu arado puxado por um búfalo, um pescador no seu bote sobre os lagos? Já viram como se transforma pedra em farinha para fazer tofu? Estiveram junto dos Bai quando festejam o lançamento dos alicerces de uma nova casa, em que os mais idosos, vestidos de negro, se sentam à frente e são os primeiros a ser servidos porque é preciso respeitar os mais velhos, as raparigas cantam e se distribui mão tai em garrafas de água, bolos de arroz doces, taças cheias de vegetais e carnes diversas? E, como sinal de respeito, os mais velhos recebem ainda cabeças de peixe e vêem-se bandeiras coloridas ao vento, pintadas com felicitações e votos de longa vida.”
”Isto é a China e apenas uma parte dela. Para conhecer realmente a China, é preciso uma vida inteira. Mas tu foste à Cidade Proibida, ao Templo do Céu, ao Jardim do Verão, estiveste na rua mais luxuosa de Xangai, visitaste os armazéns mais chiques, em Cantão estiveste no Hotel Cisne Branco, e andaste de barco a remos em Huilin no rio
Li... e agora estás aqui a dizer: ”quando se quer falar da China...”
Meu Deus! Como vocês são idiotas!”
Voltou para o restaurante do clube, sentou-se no terraço, sob um chapéu-de-sol e pediu uma cerveja. Tinha acabado de a beber quando alguém lhe bateu no ombro. Rathenow voltou-se.
O Dr. Freiburg. Camisa amarela, calças e boné de xadrez. Parecia um jogador de golfe saído de uma revista de moda.
- Sentiste a minha falta! - disse Rathenow.
- Tenho de voltar já. Ainda quero jogar dezoito buracos, mas pensei que a boa educação manda que se cumprimente um velho amigo.
- Bom dia... e adeus.
- Ainda ficas muito tempo?
- Eu não sou masoquista! Primeiro o doutor Bloch e agora tu... Já me chega! Vou fugir.
- Já não te reconhecemos. Antigamente, gostavas de jogar golfe...
- Desaparece!
- Está bem. - O Dr. Freiburg afastou-se. Rathenow levantou-se e dirigiu-se lentamente ao seu carro. ”Ele tem razão”, pensou. ”Eu mudei. Mudei completamente. Vejo vazio à minha volta e de repente assusto-me. No entanto, ele esteve sempre aí e eu estava inserido neste jet set, para quem uma nova criação de um joalheiro é mais importante do que dez mil crianças a passar fome no Sudão. Uma vez conversei sobre isso com o fabricante Hellermayer. A sua resposta: ”Não tenho pena nenhuma. Se trabalhassem como nós, não passariam fome. Os preguiçosos ficam a chuchar no polegar!.” Tal encontro dera-se numa noite em que Hellermayer oferecera um bufete de champanhe na sua vivenda em Tegersee.
”Não. Já não faço parte disto! E também não posso explicar-lhes. Nunca me compreenderiam. Iriam dizer: Rathenow está a ficar precocemente senil. Que pena! Na realidade, sempre foi um homem espantoso, cujos livros significavam mais do que um cocktail. Livros...”
Regressou a Griinwald, sentou-se no jardim até ao crepúsculo, altura em que a temperatura desceu um pouco, e decidiu fazer qualquer coisa para comer. Dava-lhe prazer cozinhar. De repente, perguntou a si próprio se Liyun também saberia cozinhar? ”É certo que sabe fazer chá e arroz, mas para além disso? Nunca precisou de o fazer.”
Por volta das vinte e duas horas, o Dr. Freiburg voltou a telefonar. Rathenow rosnou para o telefone.
- O que queres agora?
- Convidei as irmãs Gregorius. Sabes, aquelas louras do clube de golfe. O pai, que é um tubarão dos meios imobiliários, vai comprar terrenos baldios em Fúrstenfeldbruck para construir bombas de gasolina. O velho conseguiu saber através da Câmara Municipal que aquelas terras iriam ser atribuídas à indústria. Nesse caso, valem milhões.
- O que é que eu tenho a ver com isso?
- Arrastei as filhinhas, Renate e Sylvia, cá para casa. Queres cá vir?
- Não! Deixa-me em paz. - Rathenow sentiu-se subitamente enojado com os arranjos sexuais de Freiburg. Não volto a sentar-me no carro.
Rathenow desligou. Até às últimas notícias, esteve sentado à frente da televisão, mas sem ver nada do que se passava no ecrã. Estava novamente a pensar em Min Ju, nos sinais com as mãos e nas palavras de Min: ”É possível que te vejas em apuros e tenhas de pedir a ajuda de alguém. Os russos também têm colaboradores asiáticos. Não consegues distingui-los de nós.”
”Rathenow, vai-te embora! Vai para a América, para as Baamas, Caraíbas, Brasil, para qualquer lado onde não te encontrem e amanhã mandas um segundo faxe à Liyun a avisar. Deverá pedir protecção policial ou fugir da China, e encontraremos, em qualquer lado, um lugar onde possamos ser felizes. Desconhecidos, sozinhos, apenas os dois... Se ela quiser!” E era a pergunta para a qual não tinha resposta: quereria ela? Um batique com uma rapariga Bai também pode significar: ”De vez em quando, pense em mim! Não esqueça a China!” Mais do que isso, não é. Fazem-se demasiadas interpretações sobre um presente que, provavelmente, não foi oferecido com essa intenção. E em Dali existe um jornalista, Shen Zhi, aquele jovem desportista com corpo de modelo. Que rapariga troca um rapaz daqueles por um homem que daqui a dez anos terá os cabelos todos brancos?
”Deveria falar com o Min Ju sobre o assunto. Devia dizer-lhe: Está a cometer um erro enorme! Não pode ameaçar-me com a Liyun! Está noiva, eu era apenas um convidado VIP por quem era responsável. Min Ju, você não tem nada na mão para me pressionar.”
No entanto, Rathenow sabia que tais palavras significariam a sua morte. Já sabia muitas coisas sobre as tríades. Min não teria outra opção senão matá-lo. De uma coisa tinha a certeza: a polícia não poderia protegê-lo. Contra as tríades era completamente impotente.
Na segunda-feira seguinte chegou um faxe para Rathenow: escrito à mão, remetente CITS, Kunming VR China. Eram duas horas da tarde em Munique e em Kunming oito da noite:
Para
Dr. Hans Rathenow
Akazienweg, 19,
Munique - Griinwald
Alemanha.
Querido Hans,
Fiquei muito contente por ter recebido o seu faxe tão depressa.
Foi muito simpático da sua parte.
Depois da nossa despedida, fiquei convencida de que iria cumprir a sua promessa, pois é um homem famoso e muito considerado. Não digo isso só por dizer. Acompanhei recentemente um grupo de austríacos. Os turistas eram muito simpáticos e quando falámos sobre si quase todos o conheciam. Como tal, sinto-me muito feliz por o ter conhecido. Qual será a melhor data para si? Na China, espera-se até se receber a confirmação. Se me mandar os documentos no próximo mês, talvez consiga obter o visto em Novembro. Assim, o melhor período deverá ser entre Novembro e Janeiro. Já haverá neve na Alemanha? Se assim for, ficarei muito contente. Nunca andei a brincar na neve. Na proposta de viagem, devo pôr Munique como cidade de destino. Daqui para a frente talvez não possa enviar faxes com tanta frequência, pois tudo passa pela sede da agência, mas poderei escrever. Fico à espera... à espera...
Sinceros cumprimentos
A sua pequena Liyun.
Rathenow leu o faxe três vezes e apercebeu-se de que a sua saudade era cada vez maior. ”Ela vem. Não diz que não. Está contente com a ideia. Fico à espera... A sua pequena Liyun. A minha pequena Liyun.”
Todas as dúvidas que tivera até então desapareceram face àquela carta. Não poderia ver nem evitar o que aconteceria com Liyun em Kunming, mas, quando estivesse consigo em Munique, poderia protegê-la e, sobretudo, poderia planear com ela a maneira de se libertarem das garras das tríades. Naquele momento, Liyun era uma presa da mafía chinesa. Se estivesse com ele, poderiam começar uma vida nova e secreta. O mundo era suficientemente grande para esconder duas pessoas, mesmo que Min Ju afirmasse que a Catorze K estava em toda a parte e que não se podia escapar à irmandade. Era uma enorme ameaça verbal - pelo menos era assim que Rathenow encarava a questão -, pois a tríade Catorze K não poderia controlar o mundo inteiro.
Tríades! Min Ju! A euforia de Rathenow desvaneceu-se rapidamente e foi dominada pela realidade. Fora formado como sandália de erva para cobrar as tarifas de protecção em Munique. Decidiu escrever uma carta pormenorizada Para a Embaixada alemã em Pequim, enviando fotocópias dos seus livros traduzidos em chinês e mencionando que alguns deles eram leitura obrigatória nos institutos germanísticos das universidades chinesas, para assim conseguir que Liyun obtivesse o visto o mais depressa possível.
À noite, Rathenow sentou-se à secretária e redigiu a proposta e os fundamentos. Escreveu também ao Ministério da Cultura em Pequim e incluiu fotocópias das capas dos seus livros traduzidos em chinês e alguns artigos sobre si próprio que tinham sido publicados em jornais chineses. Deveria chegar, pensou. Como os correios tinham acabado de fechar, dirigiu-se à estação ferroviária e enviou as cartas registadas por correio expresso. O guiché especial da estação fechava mais tarde.
Quando regressou a Griinwald, telefonou ao Dr. Freiburg.
- Uma novidade! - exclamou, com aquela alegria que uma pessoa sente quando pensa que acabou de praticar uma boa acção.
- Pelo teu tom de júbilo, alguma mulher bonita te levantou as saias...
- Errado, seu porcalhão! Vou mandar vir a Liyun.
- Mas ainda não veio? Fizeste mesmo as propostas?
- Sim, e mandei-as antecipadamente.
- E é por isso que estás tão orgulhoso?
- Não! Estou é cheio de vontade de viver. A Liyun enviou um faxe... Está muito feliz com a viagem.
- E isso espanta-te? Uma rapariga do Mao que, subitamente, à custa de outros, consegue vir para o maravilhoso império dos capitalistas! Quem é que não ficava contente?
- Primeiro, a Liyun não é uma rapariga do Mao. O Mao já morreu há muito. Segundo, ela não vem para casa de um capitalista. Vem para minha casa!
- Há alguma diferença? De camponesa a modelo da Dior!
- A Liyun nunca usou farda de camponesa. E isso seria vergonha? Não fales assim do comunismo chinês porque para os nossos políticos em Bona, a China é o mercado do futuro. O actual milagre económico da China promete negócios milionários à nossa indústria. As grandes potências mundiais ainda disputarão a China! E... para usar as tuas palavras, muito em breve haverá vestidos da Dior na China.
- Com certeza! Para as pessoas importantes e não para os camponeses das margens do rio Amarelo.
- Então, os nossos camponeses da Baixa Baviera usam modelos da Dior?
- Porque é que estamos a discutir as violações dos Direitos do Homem, as manifestações, os massacres da Praça da Paz Celestial, a mafía chinesa e outras tragédias? E logo tu que és o cúmulo do conservadorismo! Assim é que se vê o que uma mulher consegue fazer de um homem!
- És e serás sempre um grande cara de cu! - gritou Rathenow ao telefone.
- Isso é mesmo o que se apelida de conservadorismo! Mais alguma coisa?
- Não. Só queria expressar-te a minha alegria pelo faxe da Liyun.
- Eu ouvi, mas não partilho da mesma alegria. Estás a cair numa armadilha. Estás a deixar que te espetem a faca na barriga. Quando essa Liyun cá estiver, nunca mais te livras dela.
- Mesmo na sua ausência já não consigo, pois estou sempre a pensar nela.
Rathenow desligou. Não valia a pena falar com Freiburg sobre aqueles assuntos.
”O que é que eu faço com o Min Ju?”, pensou Rathenow. ”Como lhe vou dizer que a Liyun vem a Munique? Reagirá imediatamente e, através de Hong Kong, sugerirá às tríades de Kunming que impeçam essa viagem. Se necessário com violência. O Kewei Tuo fará tudo para impedir a viagem da Liyun à Europa. Mas como conseguirá ele fazê-lo sem alertar a polícia secreta de Kunming? A Liyun e os pais iriam imediatamente à polícia ao primeiro sinal de ameaça. Mas... como é que o Kewei conseguiu impedir a Liyun de ir ao aeroporto despedir-se de mim? Até disso ele foi capaz. Por que razão não haverá de impedir que a Liyun viaJe até cá?”
Rathenow decidiu calar-se até que Liyun chegasse a Monique. Nessa altura, ainda teria tempo de entrar em luta aberta com Min Ju. Teria a possibilidade de proteger Liyun de todas as garras. ”Ainda terás de aprender com os Chineses a calar e a sorrir! Só que não tens o mesmo olhar eternamente misterioso. Os teus olhos traem-te e o Min Ju aquele dragão negro, consegue ler neles todos os teus pensamentos. Terás de aprender a controlar o olhar. Terás de ter os olhos gelados de um urso polar. Sem emoção. Mas será que um branco é capaz de aprender isso? Amanhã tens outra vez aulas na cave do Mandarim Negro. Nessa altura, já terás de saber de cor alguns sinais de mãos e de reconhecimento. Como é que se sinaliza: dinheiro de protecção pago? Como se reconhece um irmão de tríade na mesa ao lado?”
Rathenow começou a treinar. Sempre o mesmo exercício e sempre a mesma coisa. ”Está errado! O dedo mínimo não está suficientemente dobrado. O polegar não está bem direito. As articulações do dedo médio não mexem como devem. As tuas mãos são muito rígidas. Falta-lhes flexibilidade. Podem de facto segurar uma raqueta de ténis ou um taco de golfe, mas não se conseguem articular de modo a formar um sinal das tríades.”
Recordou-se das férias que passara no mar do Norte, na ilha Norderney. Na praia, vira um asiático - nessa altura ainda não conseguia distinguir se era chinês ou japonês a fazer exercícios: meia hora de pé no mesmo sítio sempre a fazer contorções, um jogo de músculos que dava a sensação de não haver ossos, mas sim faixas de borracha, como se se pudesse enrolar como uma cobra ou crescer mais um terço. Quando terminou os exercícios, continuando, mesmo assim, aos saltos - Rathenow tinha desistido de os contar não se via naquele corpo acastanhado a mais pequena gota de suor. Depois, começou a correr à beira-mar, para cá e para lá, levantando, de quando em vez, os braços e interrompendo a corrida com grandes saltos. Quando terminou a corrida, também não havia qualquer vestígio de suor.
Nessa altura, Rathenow ficara sem palavras. Depois ”a primeira viagem ao continente asiático, descobrira o segredo. Era o autodomínio através da vontade, a ordem interior ao corpo, a submissão total à força interior. Tinha permanecido até hoje o segredo dos monges Shaolin, cuja força inexcedível se manifestava no kung-fu. Para um lutador de kung-fu dos Shaolin já não existe espada.
Rathenow continuou com os exercícios dos dedos. ”Min ju deverá ficar contente com o que lhe mostro, mas tenho de o convencer de que não se trata de uma resistência passiva, antes, sim, de uma real impossibilidade.”
”Amanhã às vinte e duas horas no Mandarim Negro. O Aisin Ninglin olhará novamente para mim com sarcasmo e pensará: ”Ele nunca será um chão hai, um sandália de erva.’” Mas havia outra coisa que era tão certa como os pensamentos de Ninglin: se cometesse um erro, Liyun seria castigada por isso. Subitamente, e apesar das temperaturas de Verão, Rathenow gelou.
Em Kunming, tanto a polícia como o Partido estavam atónitos.
O professor Wang Biao comunicara imediatamente à polícia o rapto da sua filha Liyun pelo motorista de táxi e acompanhara a filha até ao seu antigo colega, o secretário do Partido de Yunnan, cargo que o tornava chefe supremo de toda a província. Liyun mostrara-lhe as escoriações na pele e as nódoas negras em todo o corpo, relatara com exactidão o processo do rapto e a vergonha que recaíra sobre ela e o CITS, até mesmo sobre toda a China, pois o Dr. Rathenow era um VIP convidado especial do Ministério da Cultura.
O secretário do Partido ouviu-a com uma expressão muito séria. O que Liyun estava a contar era verdadeiramente desagradável. Será que na sua província aconteciam aquelas coisas de pôr os cabelos em pé? Quando o incidente Cegasse a Pequim, o ministério pedir-lhe-ia explicações e Cada incidente que ficasse por esclarecer enegreceria a sua imagem junto do governo.
- É uma vergonha! - exclamou, quando Liyun terminou o relato. - Faremos os impossíveis para esclarecer tudo isto e penalizaremos com toda a dureza esse tipo e quem lhe entregou a missão. Uma coisa está clara: o motorista de táxi foi apenas um instrumento. Há mais qualquer coisa por trás disto.
- Mas o quê? - perguntou Wang Biao. - A quen, poderia interessar o facto de a minha filha não se despedir do convidado? Nunca aconteceu uma coisa assim.
- É uma chicotada na nossa reputação! - O secretário do Partido brincava com um corta-papel em jade que estava sobre a secretária. - Para mim é claro. Prejudica-se um VIP para prejudicar a reputação de Yunnan como hospedeira É obra dos jovens intelectuais, dos movimentos democráticos, dos que se desviam do nosso curso! São aqueles que querem entregar a China ao Ocidente! Mas não aqui em Yunnan! Wang Biao, prometo-te que mandarei fazer averiguações exaustivas.
Todavia, a polícia, a polícia secreta e os espiões chocaram com o nada. Interrogaram todos os taxistas registados e... nada. Interrogaram líderes académicos dissidentes das universidades... Nada. Fez-se uma grande rusga para proceder a averiguações a todos os proprietários de automóveis, até os motoristas do CITS, entre os quais Wen Ying, que tinha um álibi de ferro. Também foram ouvidos Kewei Tuo, Shen Jiafu e Fu Huang, o director da agência de viagens.
- São todos suspeitos - dissera o secretário do Partido. Todos sem olhar a estatuto e nome. Cada proprietário de automóvel podia ser responsável e até os que apenas possuíam carta de condução. Ding Zhitong, o chefe da polícia de Kunming, dormiu apenas quatro horas em três dias. sentindo-se desesperado cada vez que era obrigado a informar que nada tinham descoberto.
- Andamos a caçar fantasmas! - declarou o secretário do Partido na noite do terceiro dia ao professor Wang Biao.
- Há estes tipos, mas será que posso mandar interrogar os três milhões e meio de habitantes de Kunming? E todos mentem, todos! Até o meu próprio motorista pode ser responsável. Quem sabe? Estamos rodeados de patifes! Todos os suspeitos, até os mais renitentes, nada adiantaram, mas isso já não é novo: um dia o acaso ajudar-nos-á.
- Eu estou a pensar noutras coisas bem piores -- sugeriu o professor Wang.
- Quais? Fala!
- Além dos movimentos estudantis, existe uma organização que nos quer prejudicar: as tríades.
O secretário do Partido assentiu com a cabeça.
- Nisso já eu pensei, mas em Kunming não há vestígios de tríades.
- Tens tanta certeza disso?
- Sim. Os meus espiões já o teriam sabido há muito. Kunming está limpa. Esses criminosos estão em Hong Kong e em Taipé. Pode ser que tenham observadores em Beijing, Xangai, Guangzhou e Shenzhen, mas não em Kunming! Não iriam ao encontro dos meus informadores! Tenho orgulho disso.
Se Kewei Tuo tivesse ouvido aquela conversa, teria tido um ataque de riso, que apenas desapareceria com dois copos de mão Tal. No entanto, não a ouviu e, após as rusgas, enviou o motorista de táxi para casa do seu vizinho na longínqua Changde com a informação de que aquele irmão sabia de mais. Assim, aconteceu que um dia surgiu um cadáver desconhecido nas águas dos lagos de Dongtin Hu. Também ninguém fora dado como desaparecido. As tríades dispunham de métodos seguros para não deixar vestígios.
O chefe de Wang Liyun libertara-a do acompanhamento de excursões mais longas durante um mês, ocupando-se apenas de turistas que desejavam conhecer Kunming, entre os quais o grupo de austríacos de quem falara a Rathenow no faxe.
Ela pensava muito nele e quando enviara por faxe as Palavras ”fico à espera... à espera...”, estava a ser honesta. Todavia, ponderara durante bastante tempo a frase de desPedida. Acabara por escrever ”a sua pequena Liyun”, porque Rathenow começara o seu faxe com ”Querida pequena Liyun”. Ela levava todas as noites o papel para a cama, beijava-o e abraçava-o. Quando conduzia um grupo através de punming, metia sempre o faxe dentro da sua mala a tiracolo. Já sabia a carta de cor, palavra por palavra: ”Pequena Liyun, ver-nos-emos em breve...” E depois pensava enquanto o grupo passeava pelas bancas dos templos: ”Eu vou, eu vou, eu vou. Tenho de ir. Sinto-te como se estivesse perto de ti...”
O professor Wang tinha a mente ocupada com outras coisas. Estava sempre a falar com a filha sobre aquele incidente que ficara por esclarecer.
- Pensa, Liyun - dizia ele, firmemente -, pensa bem: esse doutor Rathenow tinha alguma coisa de especial? Consegues recordar-te de comentários especiais?
- Não. Ele não disse nada de suspeito.
- Mas alguém devia estar interessado no facto de não o acompanhares ao aeroporto quando partiu. Só me parece haver uma explicação para esse rapto: não queriam que o visses mais! Mas porquê? O que estarão a esconder-nos? Filha - olhou fixamente para Liyun -, aconteceu alguma coisa entre vocês dois?
Liyun não corou e mostrou um ar altivo.
- O que quer isso dizer, papá? Tu já me conheces!
- Nunca se conhece bem uma pessoa, mesmo que seja
a nossa própria filha.
- Juro-te. Ele era um cavalheiro! Além disso, é mais velho do que tu.
- A idade não dá só sapiência. Também dá tolos.
- Tentou beijar-te? - perguntou a mãe de Liyun.
- Não! Nunca! E o que teria isso a ver com o meu rapto?
- Tudo isto é muito misterioso. - O professor Wang bebeu o pequeno copo de mão tal que ingeria todas as noites. - Não se empreende uma coisa destas sem um motivo. Além disso, o motorista sabia exactamente que tu irias de táxi para o aeroporto. Como é que ele sabia? Quem poderia saber isso?
- Na agência de viagens, o meu chefe da secção alemã, o senhor Cai Qiang.
- Ah! Também foi interrogado pela polícia?
- Sim. Eu estava com ele. Por que motivo o senhor Cai provocaria uma coisa dessas?
- Se te amar secretamente... - opinou a mãe.
- Que disparate, mamã! Tem um casamento muito feliz e um filho.
- Isso ainda não impediu os homens de se apaixonarem por uma jovem.
- O senhor Cai, não! É um homem respeitável. Tu conhece-lo, mamã.
- Nós, a polícia e o Partido não conseguimos avançar mais, porque não descobrimos os motivos. Só resta a opinião do secretário do Partido: foi um grupo de dissidentes que querem prejudicar a imagem da China perante o resto do mundo! O senhor Rathenow foi a primeira vítima dessa acção. Esperemos para ver o que se segue. Se isso acontecer, farão outra investida às universidades e a nós também e não poderei impedir. - Wang Biao olhou para a filha com uma expressão inquiridora. - Também é verdade que esse senhor Rathenow te convidou para ires à Alemanha?
- Sim, papá. Ele disse-o. - Não fez qualquer menção ao faxe. - Vai tentar.
- E tu irias?
- Sim, papá.
- A um país completamente estranho? Onde as pessoas são totalmente diferentes de nós? Que vivem, pensam e comem de outra maneira?
- São apenas três meses, papá. Depois regresso.
- Tudo pode acontecer em três meses.
- Para isso não preciso de ir até à Alemanha afirmou Liyun, altiva. - Na China acontece o que baste!
- Tu mudaste, filha. - O professor Wang olhou para a mulher. - Esta última grande viagem mudou-te muito. Todos o sentimos. Até o teu irmão Chuan e a tua irmã Min.
- Eles que tratem de si. Têm problemas que cheguem.
- É isso mesmo. - A mãe de Liyun assentiu várias vezes com a cabeça. - Antigamente, não terias falado assim.
- Aprendi com os Mosuo que a vida tem um sentido Próprio. Quem se deixar humilhar, será sempre um zero à esquerda.
Uma teoria errada que Confucio já reconheceu: só obediència abre o valor da vida.
- Um sábio também pode ter falta de conhecimento quando só pensa e não sente.
Liyun interrompera a conversa naquele ponto e regressara de bicicleta para o seu pequeno apartamento. Naqueie dia estava sozinha. A sua colega e companheira de apartamento tinha ido com um grupo de ingleses para Dali. Liyun despiu-se, tomou duche e deitou-se nua sobre a cama. Voltou a agarrar no faxe de Rathenow e releu-o.
”Têm de me deixar em paz”, pensou ela, fechando os olhos. ”Todos, todos devem deixar-me em paz! Até a mamã, o papá e os outros. Eu sei o que quero e o que faço! Já tenho idade para isso! Com a minha idade, as raparigas já estão casadas há muito e já têm um filho. Sempre me assustei com isso. Não, devido ao facto de não gostar de homens ou de não ter encontrado um amor. Não. Amei verdadeiramente Shen Zhi, mas esperei sempre, sempre por um grande amor, um amor que seja tão perfeito que possa colocar a minha vida nas mãos desse homem. Até agora esse homem não tinha surgido. Depois, aparece um estrangeiro em Kunming, um ”nariz comprido”, um homem famoso, um homem que veio de um mundo longínquo e estranho, e, subitamente, tudo mudou, a vida mudou, já não me reconheço, sonho, sonho, ouço a sua voz e sei que ele é o homem por quem esperei toda a vida. O destino trouxe-o até mim e um poder mais alto abriu o botão e transformou-o numa flor maravilhosa.”
Foi com tudo isto que Liyun sonhou enquanto dormia.
Terça-feira à noite.
Rathenow entrou no Mandarim Negro e foi novamente recebido pelo criado simpático. A sua mesa já estava reservada. O chefe, o excelente cozinheiro Zou Shukong, acenou-lhe por entre as portas da cozinha e fez um sinal com a mão: hoje vais comer uma delícia muito especial: uma carpa assada recheada com cogumelos pretos à moda de Yunnan. Come com prazer e elogia-me...
Rathenow ainda não estava sentado há dez minutos, quando Min Ju se sentou junto dele. Cumprimentou Rathenow como se fosse um importante homem de negócios piscou-lhe o olho no momento em que se sentou à mesa.
- Hoje não há aula! - disse com uma voz abafada. - Hoje vais fazer uma visita com o Ninglin. Como te sentes, Bai Juan Fa?
- Não posso queixar-me. Estive a exercitar os sinais de mãos. Devo mostrar-lhe alguns?
- Agora não e aqui muito menos. Somos dois clientes inofensivos do Zou Shukong. - Min Ju riu-se. O seu rosto redondo iluminou-se. - Daqui a uma hora, visitarás o Restaurante Lotus e falarás com o dono. Entretanto, o Ninglin mostrar-te-á como é importante a protecção dos nossos conterrâneos. Além disso, já mandei informações a teu respeito para o gao Ião de Hong Kong. Vai ficar muito contente. Vêm aí as entradas. Peixe marinado em molho de caril com rebentos de soja. Não me canso de dizer que o Shukong é um artista!
Ficaram sentados em silêncio, olhando de vez em quando um para o outro, e Rathenow pressentiu algo de mau. Min Ju estava demasiado bem-disposto, e a perspectiva de fazer uma visita com Aisin Ninglin parecia inofensiva, mas não era verdade. O que estava Min Ju a preparar? Que coisa diabólica estaria por trás de toda aquela amabilidade?
De facto, o peixe estava estupendo. ”Há muitos cozinheiros de três estrelas que poderiam voltar para a escola comparados com o Zou Shukong”, pensou Rathenow.
Estavam a comer a sobremesa, a obrigatória sopa, quando Ninglin se aproximou da mesa. Usava um fato preto muito bem cortado, camisa branca, uma gravata discreta às riscas Pretas e douradas e, como era habitual, não estendeu a mão Para cumprimentar Rathenow. Não comeu. Em vez disso, fumou um cigarro.
- O meu carro está estacionado no parque! - informou ele em alemão, não olhando para Rathenow, mas sim Para Min Ju.
Min olhou para o seu cintilante relógio de ouro.
- Daqui a quinze minutos podem sair. Até chegarem
ao Lotus, o restaurante estará fechado. Conheces o Lotus, Bai Juan Fa?
”-Não.
- Fica em Harlaching. Uma bela zona. Lá as pessoas vivem do extracto de conta e o Lotus é uma mina de ouro. Há três meses que mudou de arrendatário. Chama-se Yan Xiang. Ninguém sabe se é o seu verdadeiro nome. De qualquer modo, é o nome que consta do passaporte.
- Mas isso não significa muito - disse Rathenow
- És bom aluno. É mais fácil adquirir um passaporte do que uma truta em terra. Como Yan consta da base de dados do computador por ter feito alguns disparates e ser procurado pela polícia, vai mudando assim de nome e agora chama-se Xiang Yan. Nenhum computador do mundo conseguirá encontrá-lo. É tão simples como isso. Conheces o conto de fadas alemão sobre a lebre e o ouriço? É assim que se comporta a polícia. Estamos sempre à frente dela! Agora já podemos ir. - Min Ju levantou-se. - Muito sucesso. Se ainda estiverem clientes no restaurante, esperem até que o Yan feche.
- Ele é casado? - perguntou Ninglin com uma voz indiferente.
- Sim.
- Uma chinesa?
- Não. Uma suíça.
- Isso não me agrada. - Ninglin avançou o lábio inferior. - Não nos compreenderá.
- É por isso que te envio a ti. Convence-a! Ninglin anuiu com a cabeça.
- Não posso ir sozinho ao restaurante do Yan? - Perguntou ele então. - O Bai Juan Fa só irá estorvar.
Naquele momento, estavam a falar em chinês e era bom que Rathenow não os entendesse.
- Tem de aprender qual vai ser a sua tarefa, Ninglim. Tem de se habituar aos nossos métodos.
- Nunca o conseguirá, daih-loh, mas vejamos como é que ele se comporta depois.
- Suportará tudo desde que pense na Liyun. Agora, vai! Ninglin e Rathenow abandonaram o restaurante e entraram no pequeno automóvel de Ninglin.
Durante a viagem até Harlaching, Ninglin não proferiu uma única palavra e Rathenow também não esperara que ele o fizesse. No entanto, quando Ninglin parou em frente à entrada do Lotus - uma entrada luxuosa com grandes candeeiros de bronze -, quebrou o silêncio.
- Muito distinto... - observou, como se falasse consigo próprio. - Um homem rico! E tão estúpido...
- Como? Ele não paga? - perguntou Rathenow. Teve um pressentimento alarmante. ”Não, não”, pensou. ”Não quero ser testemunha de um castigo! Nem o Min Ju poderá exigir isso de mim. É simplesmente horrível! Não serei um cúmplice! Fazer cobrança, muito bem. Ainda consigo suportar. Mas não quero ter nada a ver com os outros assuntos.” Pensou de novo nas fotografias. De repente, teve a sensação de sentir as pernas dormentes, não conseguindo sequer sair do carro.
Virou-se para Ninglin e agarrou-lhe o braço.
- Ele não paga? - voltou a perguntar.
- Veremos.
- Queres castigá-lo?
- Conta com isso.
- Sem mim! Não, não entrarei contigo no restaurante!
- Tu vais...
- Recuso-me!
- Entre nós a palavra recusa não existe!
- Ninguém pode obrigar-me... -- O Min Ju mandará castigar a Liyun. Rathenow fechou os punhos. Sentiu vontade de bater tanto em Ninglin que o deixasse inactivo durante muito tempo. Sim. Percebeu naquele momento que se podia matar uma pessoa sem a mais pequena inibição. Mas de que serviria? Ninglin não se deixaria matar, não por ele, pelo menos, Pois era mais rápido e um bom lutador de kung-fu, livrando-se do inimigo com um só golpe. E com que é que o mataria, se não possuía uma arma, apenas as mãos? Rathenow acalmou-se e ficou sentado enquanto Ninglin saía do carro.
- Vem! - ordenou ele com uma voz rouca, acenando. Rathenow abanou a cabeça.
- Não!
- Pensa na Liyun, Bai Juan Fa!
- Vocês estão todos enganados! Eu não a amo. É-me completamente indiferente! - gritou Rathenow do carro
Ninglin abanou a cabeça, o que significava: ”Não nos tomes por idiotas.” Estendeu os braços, meteu os dedos nas bandas do casaco de Rathenow e puxou-o do carro com uma força que não aparentava possuir. Rathenow agarrou nos antebraços do chinês, libertou-se das suas garras e recuou, embatendo no carro.
- Não é assim que se fala com um irmão! - declarou Ninglin, monocordicamente. - Ainda tens mais a aprender do que o Min Ju pensa. - Com a velocidade de um raio, atingiu a tíbia de Rathenow.
Uma dor insuportável subiu-lhe ao cérebro e assustou-o. ”Partiu-me a perna. Com um golpe. Desfez-me a tíbia, apenas com um golpe. Aleijou-me para o resto da vida!” Rathenow cambaleou, a sua visão ficou turva, apoiou-se no capô e encolheu-se. A sua perna esquerda parecia estar a arder. ”Deve ser o que se sente dentro de uma fogueira”, pensou, completamente destroçado. ”As primeiras chamas atingem as pernas dos condenados.”
- Vem! - ordenou a voz odiada de Ninglin.
- Agora é que não posso mesmo! - queixou-se Rathenow.
- Entra dentro de ti e vence a dor.
- Não sou chinês!
- És tu que o dizes. Não vales a sujidade que está debaixo das minhas unhas!
Ninglin arrancou Rathenow de cima do capô do carro e largou-o. Rathenow cambaleou como um bêbedo. ”Não caias!”, ordenou ele a si próprio. ”Não lhe dês esse prazer. Fica de pé!”
- Vem! - repetiu Ninglin.
Rathenow tentou dar o primeiro passo. Era como dar um passo sobre carvão em brasa. Vieram-lhe lágrimas aos olhos. Logo a seguir, aconteceu a coisa mais estranha: Ninglin agarrou-o, apoiou-o e assim foram lentamente até à entrada do Lotus. Quando abriram as portas duplas, o gordo gao-Dai, o deus do prazer e da alegria, em tamanho natural, sorriu-lhes. No fundo do restaurante, via-se um grande aquário iluminado. Lá dentro nadavam diversos peixes, Ninglin riu-se, mas era um riso diabólico.
- Tal como deve ser - murmurou em voz baixa a Rathenow. - Mas o deus e os peixes errados. Yan Xiang está a zombar de nós! E é apenas um homem estúpido.
Entraram na enorme sala e olharam à sua volta. Apenas dois clientes estavam sentados a uma mesa de canto e bebiam cerveja. Dois alemães, que não tinham dado por nada e continuavam a conversar com entusiasmo. Ninglin dirigiu-se a uma mesa perto do aquário e Rathenow seguiu-o a coxear e a arrastar a perna esquerda.
Iam sentar-se quando surgiu um criado de calças pretas e casaco vermelho.
- Lamento, meus senhores - disse, num fraco alemão -, mas a cozinha já está fechada.
- Nós não queremos comer! - respondeu Ninglin em chinês.
O criado abanou a cabeça.
- Já fechámos! - Agora falava na sua língua materna.
- E aqueles dois ali? - A voz de Ninglin mudou de tom: ficou mais clara e dura.
O criado fez um aceno com a mão.
- Vão-se já embora. São clientes habituais.
- Também nos tornaremos clientes habituais. - Ninglin riu-se. - De certo...
- Até para os clientes habituais as horas de fechar são
as vigentes na Alemanha. - O criado estava irritado. Se não estivesse acompanhado de um alemão distinto, teria tratado Ninglin de outra maneira, mas era preciso continuar afável, mesmo que aquele chinês estivesse a provocá-lo. Não queremos problemas com as autoridades alemãs.
- Mas parece que queres ter problemas comigo e isso é muito mais desconfortável.
--Abandone imediatamente o restaurante! - ordenou o criado com firmeza.
Rathenow olhou, espantado, para Ninglin. Pelo tom de voz percebia que havia alguma coisa que não estava bem
- Que diz ele? - perguntou.
- Quer pôr-nos na rua! - Ninglin abanou a cabeça. - Será que não sabe que muitos homens morrem por causa da sua estupidez? Temos de o ensinar, Bai Juan Fa. Não está a cumprir as regras. - E em chinês disse ao criado. - Chama o Yan Xiang.
- Não está! - foi a resposta pronta do criado.
- Como é possível mentir assim? E a mim?
Ambos os clientes habituais, que já tinham pago, abandonaram o restaurante e acenaram ao criado. Este retribuiu-lhes o cumprimento e avançou um passo na direcção de Ninglin. Agora estavam sozinhos. Até o pessoal da cozinha já se fora embora.
- Meu caro senhor - disse o criado para Rathenow -, poderá fazer-me um favor? Vamos fechar. Depois de um dia tão longo, já merecemos descanso.
- E é o que terás! - O corpo de Ninglin entesou-se e, antes que Rathenow percebesse o que estava a acontecer à sua frente, a mão de Ninglin já voava e desferia um golpe mortal no pescoço do criado. Como que atingido por um raio, caiu no chão e rolou contra uma mesa. Estupefacto, Rathenow reparou que o homem deitava sangue pelo nariz e pela boca.
- Era preciso isso? - gritou Rathenow, dando três passos atrás.
- Morreu devido à sua própria estupidez.
- Está... está mesmo morto?
- Foi um golpe fatal! - exclamou Ninglin. - Quando se consegue partir tijolos, um pescoço é apenas uma pequena placa de tofu. Vamos!
- Para onde?
- Ter com o Yan Xiang. É claro que está cá. - Ninglin dirigiu-se à porta principal, fechou-a, regressou e deu uma palmada no braço direito de Rathenow. - Vem...
Rathenow ficou parado a olhar para a figura do morto. Agora era claro que se tornara testemunha de um crime e que, apesar de ser obrigado ao silêncio, era cúmplice.
- Isto foi homicídio! - exclamou, ofegante.
- Foi necessidade.
-- Ele não te fez mal.
- Queria expulsar-me do restaurante. Tive de me proteger, senão, teria perdido a dignidade. Ninguém ameaça um membro das tríades de expulsão. - Ninglin apontou para a porta onde estava escrito PRIVADO. - Vamos cumprimentar o Yan Xiang!
Avançou à frente de Rathenow, que continuava a coxear. A sua tíbia ainda ardia como fogo. Cada passo era uma tortura.
Sem bater, Ninglin abriu a porta e entrou na sala. Era um escritório e sobre uma mesa de metal estava um computador. De uma cadeira de couro instalada por trás de uma secretária, saltou um homem de estatura média e de boa aparência. Apesar de estar uma noite muito quente, usava uma gravata florida sobre a camisa branca. Correcto. Nem um botão da camisa estava aberto. O seu cabelo negro começava a ficar grisalho nas têmporas. Tinha um tronco musculado e um rosto sem rugas, castanho-claro, os olhos não muito oblíquos. As mãos eram finas e bem tratadas, o que demonstrava que Yan nunca se ocupara de tarefas físicas pesadas. Tinha o tipo de um intelectual, que ganhava a simpatia de todos à primeira vista.
Embora já com uma repreensão na ponta da língua ao ver Ninglin entrar daquela maneira na sala, quando viu Rathenow atrás dele, um alemão distinto de cabelos brancos, tentou sorrir.
- O que desejam, meus senhores? - perguntou em alemão.
Para permitir que Rathenow participasse na conversa, Ninglin não falou em chinês.
- Yan Xiang - disse -, chamaste criminoso a um irmão meu e disseste-lhe: ”Se eu vos vejo, fico com o estômago às voltas e tudo parece andar à volta!” Depois, expulSaste o nosso irmão como se ele fosse peixe podre. Na Suíça, tratam assim clientes tão amáveis?
- Amáveis? - Yan conseguia agora adivinhar quem entrara no seu escritório.
Baixou a mão esquerda e abriu uma gaveta; antes, porém, de conseguir agarrar e levantar a pistola, surgiu uma faca na mão de Ninglin, que a lançou na direcção de Yan indo a lâmina cravar-se-lhe no braço. Yan recuou até à parede com os olhos muito abertos. O sangue manchava-lhe a camisa branca.
- Ele era um homem amável - insistiu Ninglin, impassível.
- Um extorsionário! - Yan arrancou a faca do braço. Um rio de sangue esguichou-lhe do golpe. - Queria extorquir-me dinheiro de protecção! Dinheiro de protecção para quê?
- Para que não aconteça o que se acabou de passar. Protegemos o teu restaurante, a tua vida e a vida da tua família. Será que isso não vale uma pequena parte dos teus rendimentos? - Ninglin inclinou-se sobre a secretária e recolheu a faca ensanguentada. O cabo de ferro saltava nos seus dedos. - Ofendeste-nos, Xiang. Comportaste-te como um carregador bêbedo. Tudo anda às voltas, disseste tu, e também o disseste a outros chineses teus amigos. Como pode um homem ser tão estúpido? Isso significa que os mais sábios são os cegos, pois olham para dentro e encontram a alma. Torna-te um sábio, Yan Xiang.
Ninglin deu lentamente a volta à secretária. Dali olhou rapidamente para Rathenow. Era um olhar assassino que quase retirou a respiração a Rathenow. Um olhar que nada tinha de humano.
Com a mão esquerda, Ninglin apertou a garganta de Yan, mas não ao ponto de o matar. Queria que ele ouvisse e sentisse tudo. As pernas tremiam e davam pontapés, mas Ninglin pressionou-o com a mão esquerda contra a parede. Depois, levantou a mão direita, em que sustentava a faca, e o primeiro golpe feriu o olho esquerdo de Yan. Virou a faca e arrancou-lhe o olho da órbita. O olho saltou e caiu sobre a mesa. Uma corrente de sangue esguichou do buraco.
- Ninglin! - berrou Rathenow, avançando. - Não! Deixa-o! Monstro! - Quis afastá-lo de Yan Xiang, maS Ninglin apertou ainda mais a garganta a este, e atingiu Rathenow na coxa direita. Meu Deus! Como ele se mexia! O seu corpo era uma máquina de combate que não se conseguia surpreender, capaz de se virar para todos os lados, ninguem surpreende um lutador de kung-fu.
Rathenow gritou alto, agarrou-se à tampa da secretária e foi novamente obrigado a ver Ninglin manobrar a longa lâmina e retirar o olho direito de Yan. De novo uma pequena torção e a órbita ficou vazia. Corria sangue de ambos os olhos. Parecia que Yan chorava lágrimas de sangue.
Durante a carnificina, Yan Xiang não emitira um único som, mas, quando Ninglin lhe largou a garganta, caiu no chão, escorregando pela parede abaixo. Ninglin limpou a faca a uma folha de papel que estava sobre a mesa. Via-se um documento do serviço de sanidade pública a confirmar que o Restaurante Lotus estava em perfeitas condições higiénicas.
- Agora estás cego e tornar-te-ás um sábio - afirmou Ninglin com uma voz muito calma, que espantou Rathenow. - E vê se impedes que te limpem as orelhas. Sobretudo a tua mulher não deve ter as orelhas sujas. Seriam as primeiras a ser limpas.
A ameaça de morte das tríades.
Rathenow sentiu a repugnância a invadir-lhe o corpo, uma aversão que mal conseguia dominar. Virou-se, pois não conseguia suportar a visão de Yan Xiang sem olhos e a escorrer sangue.
- Ele não ouve o que estás a dizer! - gaguejou.
- Está a ouvir tudo! Cada palavra! E compreende!
- Está meio morto!
- Isso é que não está. - Ninglin deu novamente a volta a secretária. Já não tinha o mesmo olhar assassino. Os olhos esgazeados tinham voltado ao seu aspecto normal. - Um chinês consegue suportar mais do que tu pensas. Não morrerá devido à perda dos olhos. Pelo contrário: conseguirá ouvir melhor o canto dos pássaros e cheirar melhor do que qualquer outra pessoa o aroma das flores.
- Que raio de pessoas são vocês? - exclamou Rathenow, engolindo a sua repugnância. - Será que ainda são gente? Ah, sim! São gente! Chamar-vos animais seria uma ofensa para estes.
- E tu, Bai Juan Fa, não passas de um cagarolas! Ninglin olhou-o com muita atenção. - Direi ao Min Ju que quiseste impedir-me de levar a cabo o meu trabalho! Depois não te queixes se ele quiser castigar a Liyun...
A cabeça de Rathenow caiu-lhe sobre o peito. Liyun! Que iriam fazer com ela? ”Então o que sou eu? Um bocado de carne sem vontade própria, um autómato que obedece mediante a pressão de botões. Assisti a um homicídio e a uma mutilação horrenda e ficarei calado para salvar a vida da Liyun?”
Coxeou para fora do escritório. Yan Xiang ainda estava encostado à parede ensanguentada e não se mexia. Da sua boca não se ouvira um som nem um queixume, se bem que as dores tivessem sido decerto dilacerantes. Um chinês suporta mais do que se pensa... ”Ninglin! Desejo com todas as minhas forças que, um dia, alguém te trate assim e depois veremos o que consegues suportar.” Foi um pensamento que ficou na cabeça de Rathenow: ”Ninglin, vou aniquilar-te! Serás mutilado e morto pelos teus próprios irmãos. Contarei às tríades tantas mentiras sobre ti que eles acabarão por acreditar e castigar-te!”
Simultaneamente pensou: ”Oh, meu Deus! O que me aconteceu? Já consigo mentalmente assassinar sem que uma ponta de remorso toque a minha alma! É como se conseguisse dividir-me em dois sem dor: aqui o doutor Hans Rathenow, ali Bai Juan Fa, membro de uma tríade. Um dia, um eu matará o outro eu. Mas qual deles sairá vencedor...?” Rathenow e Ninglin abandonaram o restaurante através de uma porta das traseiras que dava para um pátio. Correram para o carro pelo meio da escuridão, conduziram algum tempo de faróis apagados, só os ligando ao chegar à rua principal.
- Para onde? - perguntou Rathenow. A sua tíbia e coxa ainda doíam muitíssimo.
- Para o teu automóvel.
- Não sei se conseguirei conduzir.
- Então, deita-te na rua e dorme. - Ninglin riu-se. Vocês, europeus, têm os ossos mais fracos que conheço. Até com um traque se partem. Nunca conseguirão vencer os chineses...
”Espera”, pensou Rathenow. ”Aisin Ninglin, espera só. Querem transformar-me num membro de uma tríade. Um dia funcionarei como um de vocês, - mas... contra vocês!
Isto é uma jura, Ninglin. Um juramento divino, mas a Liyun deverá, primeiro, estar em segurança...”
Na manhã do dia seguinte, às sete horas, encontravam-se quatro carros da polícia e uma ambulância à frente do Restaurante Lotus. A rua fora vedada. Diante das barreiras, esperavam alguns jornalistas e uma equipa de uma cadeia de televisão. Tinham sido alertados ao ouvir a frequência de rádio da polícia e saído de imediato. Contudo, o polícia que estava junto da barreira não deixava passar ninguém.
- Primeiro, é preciso detectar todos os vestígios - informou. - Vocês já sabem como é, rapaziada! Passam por cima de tudo e depois dizem: a polícia não tem pistas. Poderão filmar e fotografar com a antecedência necessária. Além disso, vocês conhecem o PP. Considera-vos uns abutres!
Para Peter Probst a situação era clara. Só não percebia a razão por que apenas o tinham avisado de manhã. A Sra Yan só telefonara à polícia às seis e meia da manhã. À secção de homicídios. O agente que estava de serviço tirou o chefe, Lutz Benicke, da cama, o qual por sua vez, assim que ouviu falar em homicídio que envolvia chineses, avisou Peter Probst.
- Os teus homenzinhos amarelos voltaram à actividade. Restaurante Lotus em Harlaching. Até já.
A Polícia Judiciária de Munique estava agora a levantar todas as pistas, o fotógrafo da polícia retratava o cadáver do Criado e do mutilado Yan Xiang.
O proprietário estava sentado num sofá da sala de estar, um médico do hospital de Harlaching tratara e ligara a ferida do braço e as órbitas oculares vazias, mas mostrava-se furioso porque Yan se recusava a ir para o hospital.
- Declino qualquer responsabilidade neste caso! gritava ele, indignado. - Não quer ir para a clínica com ferimentos de tanta gravidade? Posso obrigá-lo a ir judicialmente!
- No hospital voltam a dar-me os meus olhos? - perguntou Yan com uma voz estranhamente tranquila.
- Não.
- Então, o que vou fazer ao hospital?
- Se surgir uma infecção nas cavidades oculares...
- O que acontece, doutor? Poderei morrer! Isso tem agora alguma importância?
Ficou sentado no sofá; agarrara a mão direita da mulher e fazia-lhe festas como se esta precisasse de consolo mais do que ele.
Os funcionários da polícia, como seria de esperar, não encontraram na sala nem no escritório vestígios úteis. A única pessoa que podia dizer algo de concreto era o médico da polícia.
- É provável... e teremos de o esclarecer no Instituto de Medicina Legal... que o criado tenha sido assassinado com um único golpe de mão. Um golpe de karaté ou até kung-fu.
- Esse é o teu distrito, PP - disse Benicke a Probst.
- Os meus homicídios incluem armas de fogo, armas brancas ou estrangulamentos. Kung-fu relaciona-se com os teus olhos oblíquos!
O chefe Probst não esteve muito tempo junto do morto, foi, antes, para a sala. Yan Xiang ouviu-o chegar e virou o rosto para a porta. As cavidades vazias e ensanguentadas chocaram Probst. Uma visão terrível, mas Yan proibira o médico de lhe ligar os olhos.
- Mais tarde... - dissera. - Primeiro, a polícia... Durante toda a sua vida na Judiciária já vira muita coisa repugnante, mas as órbitas vazias abalaram-no até ao coração. Aproximou-se do chinês e colocou-lhe a mão no ombro.
- Sou o chefe da secção de homicídios da Polícia Judiciária de Munique, Peter Probst - apresentou-se ele.
Ouvindo-se a si próprio, percebeu que a voz tinha enrouquecido. - Como está, senhor Yan?
- Suporta-se. - Yan levantou a cabeça. As órbitas vazias ficaram de frente para Probst. - Tem perguntas a fazer-me?
- Uma quantidade. Sente-se em condições de responder?
- Não responderei a nenhuma pergunta...
”Vai começar”, pensou PP cheio de azedume. ”Vai acontecer o mesmo de sempre! Ninguém sabe de nada! Ninguém viu nada ou ouviu qualquer ruído. A morte e a tortura caíram do céu sem fazer barulho. Comecemos então pela mulher. Está desfeita em lágrimas. Não tem a vontade de ferro de um chinês. Neste caso, ela é o elo fraco de uma cadeia que é preciso romper.”
Virou-se para a jovem loura que estava sentada ao lado de Yan, usando um longo roupão florido.
- É a senhora Yan? - perguntou Probst.
- Sim. - Soluçou várias vezes antes de conseguir começar a falar. - Angela Yan, de nascimento Hãtterli. Nasci em Lucerna.
- Onde estava quando tudo isto aconteceu?
- Aqui em cima no apartamento. Estava a dormir.
- Não ouviu nada?
- Não. Nada.
- Nenhum grito, nenhum som mais forte?
”-Nada...
- Quando encontrou o seu marido e o morto?
- O meu marido ligou-me do telefone do escritório.
Era verdade. O pessoal da secção de homicídios fotografara o telefone manchado de sangue e quisera levá-lo para ”ivestigações. Yan Xiang ter-se-ia arrastado, sem olhos, até ao telefone e ligado para a mulher que estava no apartamento. A energia daquele homem!
- A que horas foi isso? - perguntou PP, tirando notas. Na realidade, aquilo não era necessário, pois um agente estava a registar tudo num gravador. Mas PP adorava anotar as palavras num bloco, tal como fazia o lendário inspector americano Columbo.
- Cerca das três horas...
PP voltou a colocar a mão sobre o ombro de Yan.
- Foi mais ou menos a hora do incidente.
- Não sei. - Yan baixou a cabeça. - Não olhei para o relógio.
- Fica sempre até tão tarde no escritório?
- Não. Ontem comecei a imaginar como poderia embelezar o restaurante. Além disso, tinha chegado uma carta dos serviços de sanidade...
”Isto também é verdade”, pensou PP. ”A folha da carta foi encontrada amachucada e cheia de sangue.” Lutz Benicke tinha-a mostrado a Probst e comentado: ”Olha! É como se alguém tivesse limpo uma faca, mas não há impressões digitais.”
- E depois? - perguntou PP. Yan Xiang encolheu os ombros.
- Não sei nada. Não me recordo de nada.
”Lá vamos nós outra vez: as falhas de memória dos chineses, o medo da morte face às tríades. As vítimas calam-se mesmo quando lhes arrancam os olhos. O que será preciso acontecer para que comecem a falar? A própria vida não vale um tostão. A maior parte são casados e têm filhos e é por eles que se calam. É claro que o Yan também vai proteger a mulher.”
- Quantos eram? - continuou ele o interrogatório.
- Não os vi.
- Senhor Yan... Está sentado no escritório, a porta abre-se de repente, o assassino entra... ou os assassinos... e a porta é mesmo em frente da sua secretária. Tem de os ter visto! Não eram invisíveis!
- Eram, sim.
PP respirou fundo. ”Cala-te”, ordenou a si próprio. ”Cala-te, rapaz! Não ganhas nada em discutir. Continua a ser amável e paciente. Pensa que és chinês.”
- A porta abre-se de súbito e ninguém entra?
- Só vi um braço e uma mão que me espetou uma faca no braço. Desmaiei. - As órbitas vazias fixavam novamente PP. - Acredite, comissário...
- E depois?
- Não sei mais nada, estava sem sentidos. Quando acordei, já não tinha olhos.
”É fabuloso como ele conjecturou tudo isto”, pensou pP, espantado. ”Uma pessoa sem sentidos não constitui testemunha- Quem nada vê, nada pode dizer. A porta abre-se, a faca voa e... fim! É muito simples e ninguém pode provar o contrário, pois a facada no braço é uma realidade.
- Eram chineses? - continuou Probst.
- Como posso saber?
- O braço! Devia estar alguém pendurado no braço disse PP, ironicamente. - Um braço não pode ir passear sozinho!
- Tudo aconteceu tão depressa... - Yan Xiang voltou a baixar a cabeça e apertou a mão da esposa chorosa.
PP percebeu. ”Aquilo não é um gesto de ternura. É um aviso. Cala a boca! Será que a Angela Yan, nascida Hátterli, em Lucerna, sabe mais do que se supõe? Será que às três horas da manhã estava realmente na cama? Não terá ouvido mesmo nada?”
- E o homicídio do seu criado?
- Não sabia que tinha sido morto. A minha mulher foi a primeira a dizer-mo. ”Mataram o Jing Xing”, gritou ela.
- Mataram? Por que razão ”eles”? Porque não ”ele”? - PP olhou duramente para a Sra. Yan. - Como é que sabia que havia mais do que uma pessoa?
- Não sei. É assim que se costuma dizer: mataram-no. PP apertou novamente o ombro de Yan.
- Tem inimigos?
- Toda a gente tem inimigos. Invejosos.
- Nomeie alguns.
- Como posso nomeá-los? Não os conheço. Apenas SuPonho! Quem alcança o sucesso... como eu... tem a inveja da concorrência. Para isso não são precisos nomes. Sabe-se.
- O Jing Xing não gritou, não pediu socorro nem tentou defender-se? O cadáver estava apenas a quatro metros da Porta do escritório. Deve ter ouvido alguma coisa!
- Tinha o rádio ligado.
- Em que posto?
- Não sei. Estavam a transmitir árias de operetas.
- E quem é que desligou o rádio?
- Devem ter sido os criminosos. Quando recuperei os sentidos estava tudo calado.
PP folheou o seu bloco de apontamentos.
- As horas não estão a bater certo, senhor Yan. Disse que eram aproximadamente duas e meia da manhã...
- A minha mulher é que o disse. Eu não sei nada.
- Às duas e meia da manhã, a cozinha já está fechada há muito. Às duas e meia, o seu restaurante também não está aberto. O Lotus não tem concessão para abrir à noite. A porta principal estava fechada por dentro e nada indica que tenha sido arrombada. Nem portas nem janelas. Apenas a porta das traseiras que dá para o pátio se encontrava aberta. Foi através dela que os assassinos... ou o assassino... deixaram o local. Assim, parece que foi o seu criado que deixou entrar os homicidas. Porque é que o Jing Xing ainda estava no restaurante a essa hora?
- Só ele o sabe. Infelizmente, já não lhe pode fazer a pergunta, senhor comissário.
- Era frequente o Jing ir tão tarde para casa?
- Não. Nunca.
- Porquê ontem?
- Não sei...
PP desistiu de interrogar Yan. Virou-se novamente para Angela Yan.
- A senhora encontrou o seu marido depois das duas e meia no escritório e em seguida o criado. Todavia, a polícia só foi avisada perto das seis e meia da manhã. No meio, estão quatro horas. O que fez durante essas quatro horas?
- Tratei do meu marido. Levei-o para cima, lavei-o. Estava cheio de sangue.
Angela Yan parou de chorar. Soluçava de vez em quando. Tremia.
- Porque não chamou imediatamente um médico? É a primeira coisa que uma pessoa faz...
- O meu marido não quis.
- Não entendo. Senhor Yan, está um criado assassinado dentro do seu restaurante, alguém lhe arrancou os olhos e ordena à sua mulher que não faça nada! Isso é... - Exprimiu-se com cautela. - Isso é, no mínimo, estranho!
- Um morto não ressuscita quando se chama a polícia, e o comissariado não me pode devolver os olhos. Precisava primeiro de tratar de mim. Queria saber se sobreviveria. Depois, é que disse à minha mulher que telefonasse!
- Isso é uma desculpa muito mal engendrada, senhor Yan! - PP virou-se novamente para a Sra Yan. Disparou a pergunta seguinte como se fosse um tiro. Esperava desarmá-los.
- Foram as tríades, não é verdade?
- O que são as tríades? - retorquiu ela sem se impressionar.
- Não conhece sequer a palavra?
- Não. O que significa?
- O seu marido poderá esclarecê-la melhor. - Voltou a apertar o ombro de Yan. - Há quanto tempo pagam dinheiro de protecção à Catorze K?
Yan levantou novamente as suas órbitas vazias e olhou para Peter Probst. O seu rosto não manifestava qualquer perturbação.
- De que está a falar, senhor comissário? - perguntou.
- Recusou-se a pagar?
- Mas o que deveria pagar? Não tenho dívidas.
- Senhor Yan, não faz sentido comportar-se à minha frente como um idiota! Eu sou o chefe da Polícia Judiciária Da luta contra o crime organizado. Não consegue enganar-me, mas pode ajudar-se a si e a muitos dos seus colegas se falar...
- Não sei de que está a falar, senhor comissário.
--E ainda fala como se os Chineses não soubessem o que são as tríades!
- É claro que sei, mas nada tenho a ver com eles. Não conheço membros das tríades. - Yan inclinou a cabeça para o lado para o colo da mulher. - Estou cansado. Os meus olhos vazios estão a arder. Gostaria de me deitar.
- É compreensível. Vamos levá-lo para o hospital.
- Não.
- Sim. Por motivos de segurança. Temo que as tríades continuem a persegui-lo. Vão ficar, a partir de agora, sob protecção policial.
- Não fui vítima das tríades! - A voz de Yan aumentou de volume e ficou mais forte, facto que não seria de prever depois de tais ferimentos. A esposa apertou-lhe a cabeça contra o peito. Continuava a chorar, de dúvida, de desamparo e medo. - Fico na minha casa!
- Vejo as coisas de outra maneira, senhor Yan. - PP apontou para a porta. Dois enfermeiros de maca entravam pela sala. - E neste caso é obrigatório. A polícia protegê-lo-á.
- Não preciso da polícia!
- E prometo-lhe que apanharemos os malfeitores ou o malfeitor!
- Não acredito. - Yan deixou que os enfermeiros o colocassem sobre a maca sem opor resistência. - Não os apanhará!
- Ah, sim! E porque não?
”Agora apanhei-o”, rejubilou PP. ”Finalmente apanhei-o.” Porém, a resposta de Yan voltou a deixá-lo resignado.
- Porquê? Porque são invisíveis. Tão invisíveis como em minha casa.
Os enfermeiros transportaram a maca de Yan para a rua. A esposa seguiu-o, continuando a segurar-lhe na mão.
Quando ficou sozinho na sala, Peter Probst proferiu em voz alta e do fundo do coração:
- Merda!
No Décimo Terceiro Comissariado ordenavam-se os resultados dos vestígios encontrados durante as investigações da secção de homicídios. Era, como afirmava PP, vergonhoso e rebai” xante.
O ”elo mais fraco da cadeia”, Angela Yan, demonstrou-se muito mais forte do que previsto. Não quebrou. Estava a obedecer ao marido. Não conhecia as tríades. Só há seis semanas viera da Suíça para a Alemanha juntar-se ao marido e na Suíça, isso parecia perfeitamente credível, nunca ouvira a palavra. Também teriam acreditado nela se Yan Xiang não fosse proprietário, há seis anos, do Restaurante Jardim de Jade em Rappertswil, que trespassara para abrir outro em Munique.
- Em Zurique existe um grupo de tríades muito activo, mas discreto, sobre o qual quase ninguém fala - disse Peter Probst durante o interrogatório. - Recebe ordens directamente de Amesterdão. Não pertence à perigosa Catorze K, mas sim à tríade denominada Big Gang Circle, que tem sede, algures, na República Popular da China e que constituiu uma grande organização, com um número de colaboradores até agora desconhecido, no Canadá, Estados Unidos, Arábia Saudita, Tailândia, Filipinas, Japão, Austrália e Holanda. É uma grande concorrente da Catorze K. Pode-se dar o caso de a Catorze K se ter querido vingar do Yan Xiang por ele ter pago dinheiro de protecção na Suíça e se ter negado a fazê-lo aqui. Até se pode dar o caso de ele continuar a pagar à tríade suíça e não querer pagar à de Munique. Nas tríades não existe um imposto duplo. Todos devem pagar à tríade do respectivo país. O Yan teve o azar de ficar com dois protectores. Foi muito pouco esperto da parte dele não perceber que a Catorze K era a mais poderosa. Agora já sabia, e a senhora Yan também. Calar-se-á como qualquer dos interrogados, pois conhece os métodos das tríades. Por outras palavras... - PP bateu com o punho na mesa. - Como no homicídio do Parque Olympia, estamos a olhar para um buraco negro! Mas uma coisa podemos determinar: a CatorZe K está a agir mais depressa e com maior brutalidade do que até aqui.
No dia seguinte, as notícias nos jornais e na televisão esPantaram a população durante muito pouco tempo: primeiro, as vítimas eram estrangeiras, chinesas; a seguir... Boris Becker perdera um jogo de ténis. Isso excitava muito mais o povo alemão. O herói de um campo de ténis era a notícia predilecta da nação. Um chinês morto não tinha grande peso. Havia mil e trezentos milhões de chineses e se se quisessem matar uns aos outros, era problema deles No entanto, a notícia do homicídio em Harlaching teye um efeito: apresentaram-se dois clientes do Lotus. Lutz Benicke telefonou imediatamente a PP e juntos fizeram a acta dos depoimentos.
Depoimento do Sr. Eberhard Drãngler:
Chamo-me Eberhard Dràngler. Sou arquitecto e tenho trinta e nove anos. Residência em Harlaching. Sou cliente do Lotus desde que abriu, pois tem uma comida deliciosa e um ambiente perfeito. Nessa noite, estava com o senhor Fritz Schmeltzer, o outro cliente. Queríamos apenas terminar de beber as nossas cervejas e sair. A maior parte das vezes, o restaurante fecha por volta das onze horas. Pouco antes de nos irmos embora, entraram dois homens no restaurante: um asiático de estatura média, decerto um chinês, e um alemão. Era alto, usava um fato preto e aparentava um aspecto muito elegante. Tinha cabelos brancos ondulados e uma expressão muito séria. Falaram com o criado, mas não conseguimos ouvir o teor da conversa. Levantámo-nos e saímos. Os outros cavalheiros continuaram a falar com o criado.
PP: Notaram alguma coisa de especial nesses senhores?
Dràngler: Nada de especial. E daí... O homem de cabelos brancos coxeava bastante. Poderia ter uma prótese. O chinês nada tinha de especial.
PP: Então esses dois senhores ficaram no restaurante?
Dràngler: Sim, mas como o restaurante fecha às onze horas, devem ter-se ido embora. Não pareciam de todo assassinos. Talvez mais homens de negócios.
PP: Como se comportou o criado Jing Xing?
prãngler: Como sempre. Muito amável. Todos gostávamos do Jing Xing. Era um bom empregado de mesa. A sua morte deixou-nos muito consternados. Quem poderia ter o menor interesse em matá-lo? Para quê? Desapareceu alguma coisa do restaurante? O conteúdo das caixas registadoras?
PP: Nada! O dinheiro estava todo lá. Não se tratou de roubo.
Drángler: Então é verdade o que vem nos jornais? Tem a ver com a mafia chinesa? As tríades?
PP: Ainda não sabemos. Estamos-lhe muito gratos, senhor Drángler.
Depoimento do senhor Fritz Schmeltzer:
Chamo-me Fritz Schmeltzer, tenho quarenta e um anos, sou comerciante, casado e dois filhos. Residência Harlaching. Posso confirmar tudo o que o senhor Drángler afirmou. Foi exactamente assim. Um chinês e um alemão de cabelos brancos entraram e nós saímos cinco minutos mais tarde. Sim, o alemão coxeava. De resto, não sei mais nada.
PP: Poderia tratar-se de clientes atrasados?
Schmeltzer: Na minha opinião, é possível. Não pareciam assassinos.
PP: E qual é o aspecto dos assassinos?
Schmeltzer (reflectindo): Não sei, senhor comissário. A primeira impressão é essa.
PP: E o chinês?
Schmeltzer: Tão elegante como o alemão.
PP: Tem a certeza que eram vinte e três horas quando saíram?
Schmeltzer: Sim, precisamente! Eu ainda disse ao senhor Drãngler: ”Vamos embora! Já são onze horas. O Jing Xing deve querer ir para a cama depois de um dia tão quente.”
PP: Quente! Não ficou admirado por ambos os cavalheiros usarem fatos pretos?
Schmeltzer: Não. Porquê? Podiam vir do teatro ou da ópera e terem decidido ir beber uma cerveja. Temos muitos amigos que fazem isso.
PP: Muito obrigado, senhor Schmeltzer.
Fim do depoimento.
Peter Probst voltou a colocar os depoimentos sobre a mesa depois de os ter lido aos seus colaboradores. Quando olhou para cima, viu rostos perplexos. Abanou a cabeça.
- Vocês lembram uma rapariga a quem se tirou as calcinhas. Não temos o menor vestígio, nenhum depoimento útil e os Yan não falam. Como sempre. Apenas uma pista... se é que se pode chamar pista... poderá ser interessante: o empregado de mesa Jíng Xing devia ter fechado o restaurante às vinte e três horas. Partamos do pressuposto de que os dois respeitáveis cavalheiros são os assassinos: o que é que esse senhor Jing Xing esteve a fazer com eles até às duas e meia da manhã? A essa hora ele já estava morto, se acreditarmos nas balizas temporais que Yan Xiang e a mulher nos forneceram, mas isso será esclarecido pelo laboratório do Instituto de Medicina Legal. Sobre o que é que eles falaram?
- E se o homicídio e a mutilação do senhor Yan tivessem acontecido mais cedo? - Propôs, como hipótese, o jovem agente da secção criminal. - Logo após o Jing Xing ter querido fechar o restaurante.
- Boa ideia. - Peter Probst anotou o facto. - Esclarecerei isso com os Yan e com o Instituto de Medicina Legal. Se assim foi, o Yan esperou até às duas e meia da manhã para telefonar à mulher e esperou até às seis e meia da manhã para telefonar à polícia. Está complicado! Nesse caso, o Yan teria ficado no escritório três horas e meia até dar sinal de vida! Nenhum desmaio dura tanto tempo! Nesse caso, os dois respeitáveis senhores seriam os autores do crime! - PP esfregou os olhos. Apesar do ar condicionado estava a suar. - Muito bem! E o que faz um alemão no meio disto tudo? Uma tríade nunca, mas nunca, trabalharia com uma pessoa que não fosse chinesa ou asiática! É completamente impossível e contraria todas as regras básicas da sua mentalidade! Nunca aconteceu e nunca acontecerá! Nenhum branco entrou nos segredos das tríades. Esse muro é tão inabalável como a Grande Muralha da China! Um homicídio cometido pelas tríades com a ajuda de um branco? Impensável!
- E se as tríades mudaram de táctica? - continuou o jovem agente. - Se se modernizaram? Se contrataram auxiliares insuspeitos?
- Isso seria quase um suicídio, não podes esquecer-te disso, Franz. Antes que tal acontecesse, eu começaria a odiar cerveja! Isso também é impensável com a mafia italiana. A única organização que utiliza estrangeiros é a mafia russa, com quem também temos problemas em Munique.
O jovem agente calou-se; mas ao afastar tão absurda hiPótese ninguém poderia supor que ele estava tão próximo da verdade.
A noite, Peter Probst visitou novamente Yan Xiang no hospital de Harlaching. Havia um polícia de guarda à porta do quarto.
Yan não estava sozinho. A esposa encontrava-se sentada a beira da cama. Agarrou de imediato a mão do marido quando PP entrou. Probst sorriu com compreensão: o código morse do costume. O que devo dizer? O que devo omitir? Um aperto na mão resolvia o problema.
- O autor do crime cegou-o pouco depois das vinte e três horas! - declarou PP sem introdução. - Já o sabemos: quanto ao Jing Xing também foi assassinado por volta das vinte e três horas.
Silêncio. Yan Xiang continuava calmamente deitado na almofada. Agora já tinha as cavidades oculares ligadas
- Os clientes viram o assassino!
Silêncio. Nesse momento, aconteceu uma coisa incompreensível: a boca de Yan estendeu-se num sorriso, como se Probst tivesse contado uma anedota.
- Está a fazer bluff, senhor comissário! - disse ele,
- Temos provas. Os depoimentos dos últimos dois clientes que ainda viram o Jing Xing vivo. Era um chinês e um alemão. O alemão coxeava bastante.
- Acha que eu fui vítima das tríades? - perguntou Yan, divertido.
- Sim. Tenho a certeza.
- E como explica a presença de um alemão? Creio que o senhor é um grande especialista do crime organizado.
”É isso mesmo”, pensou PP. ”Ele tem razão! Nenhuma tríade trabalha com não-asiáticos. Foi o que eu sempre disse e, ainda por cima, a coxear bastante. Estás a tornar-te ridículo, meu rapaz. Esquece!”
Do hospital foi para casa, fez um desvio por uma cervejaria e bebeu uma caneca de cerveja fresca. Para ele era claro que tudo aquilo não passaria de mais um caso por esclarecer.
Foi a noite mais horrenda da vida de Rathenow.
Depois de ter chegado a Griinwald, arrancou a roupa do corpo, meteu-se debaixo do duche, ensaboou-se e deixou a água correr-lhe pelo corpo. Parecia ter o corpo cheio de sangue, como se cheirasse mal dos poros, como se tivesse esfregado a pele com aroma de cadáver.
No entanto, o duche não serviu de muito. Fora testemunha de um homicídio, vira arrancar os dois olhos a uma pessoa e ficara a ver, nada fazendo. Esboçara apenas a tentativa de afastar Ninglin e levara um pontapé na coxa que juntamente com a perna inchada, o incapacitara completa mente.
Sabia que nunca esqueceria aquela imagem. O restaurante onde o empregado de mesa fora morto com um único golpe de mão, o silencioso Yan Xiang com o braço a escorrer sangue, a quem Ninglin espetara uma faca nos olhos, que depois rolaram pela mesa como dois berlindes, e a tranquilidade com que Ninglin limpara a faca e a voltara a esconder no casaco preto. Tudo isso era tão inconcebível que Rathenow perguntava a si próprio se, por engano, não teria assistido a um filme de terror. Além do mais, Yan Xiang não parecia ser uma pessoa real. Como é que um homem consegue deixar perfurar os olhos sem emitir um único som? Sem se defender, sem se afastar ou queixar quando lhe fora apertada a garganta?
De madrugada, levantou-se, sentou-se à máquina de escrever e descreveu aquelas horas odiosas até ao pormenor. Se lhe acontecesse alguma coisa, alguém a leria. Também referiu nomes: Min Ju e Aisin Ninglin, o Restaurante Mandarim Negro, descrevendo ainda o templo subterrâneo, a sua formação na sala de aula das tríades e a ideia ”brilhante” que viera de Hong Kong, pela qual se transformavam europeus, através de ameaças e manipulações, em cho hai mensageiros -, a fim de enganar a polícia. Escreveu tudo o que vivera até então, referindo também os seus receios em relação a Liyun, que o tinham transformado num membro das tríades.
Quando terminou, fechou as folhas no cofre, saltou para
o carro e dirigiu-se a casa do Dr. Freiburg.
Freiburg ainda estava a tomar o pequeno-almoço quando a governanta o informou da visita do Dr. Rathenow. (<A esta hora?” Freiburg não pressentiu nada de bom e veio até ao vestíbulo. Ali, Rathenow estava encostado à parede, tinha um aspecto horrível. Rugas profundas cobriam-lhe o rosto. Naquele momento parecia um ancião que mal conseguia ter-se nas pernas. Freiburg olhou para ele, completamente estupefacto.
- Hans! O que se passa? - perguntou. - De onde vens? Não dormiste nada? E de fato preto! Andaste por aí a noite toda? Estás a tremer.
- Vim cá porque és médico - afirmou Rathenow com uma voz rouca. - Tens de me tratar.
- Vem comigo. - O Dr. Freiburg apontou para a porta que conduzia ao consultório.
- Mal consigo andar...
- Meu Deus! O que se passou?
- Fui... fui assaltado.
- Assaltado? Como assim? - Reparou na dificuldade com que Rathenow deu dois passos, ficando dolorídamente em pé. Parecia não aguentar com o peso dos pés.
O Dr. Freiburg apressou-se a apoiá-lo, levando-o para o consultório. Aí, deitou Rathenow na marquesa e sentou-se na beira. Rathenow estava com a respiração pesada. Os dois passos tinham-no deitado completamente abaixo. ”Como é possível?”, pensou ele, assustado. ”Durante a noite, enquanto estava a escrever à máquina, não senti nada, e durante a viagem de carro também não, mas agora?” Freiburg colocou-lhe a mão na testa. Não tinha febre. Verificou o pulso: acelerado como se tivesse corrido. Quando quis desabotoar a camisa de Rathenow para auscultar o coração, este abanou a cabeça.
- Aí está tudo bem! - disse, com voz fraca. - Tira-me as calças.
Freiburg hesitou.
- As calças? - perguntou então. - Estás a despertar-me a curiosidade.
- As pernas! - gritou Rathenow no fim das forças. Tíbia esquerda e coxa direita.
Freiburg desapertou-lhe as calças e puxou-as. Então viu. a coxa estava completamente azul-escura, a perna muito inchada parecendo um pepino, verde e deformada.
O Dr. Freiburg esqueceu as suas sentenças. O que estava a ver eram verdadeiros ferimentos. Quando apalpou ao de leve a canela, Rathenow rangeu os dentes.
- Com os diabos, Hans! O que se passou? Onde arranjaste tudo isto? Ficaste debaixo de algum carro? Caíste pelas escadas abaixo?
- Já te disse: fui assaltado. Dois rapazes muito fortes giraram-me para a estrada, deram-me uma tareia e roubaram-me. - Rathenow mentia de forma convincente. Preparara todo o discurso antes de chegar. - Não me defendi. Apenas protegi o rosto enquanto me pisavam.
- Temos de tirar radiografias. Está com muito mau aspecto. A coxa não, mas a tíbia. Quando foi o assalto?
- Ontem à noite.
- E só agora vieste? - gritou o Dr. Freiburg. - Também te atingiram o cérebro? Porque não telefonaste imediatamente? Não se te pode deixar sozinho. Quanto mais velho, mais descuidado! Consegues caminhar os quatro metros até à sala de raios X?
- Vou tentar.
O Dr. Freiburg voltou a apoiar Rathenow até à sala de raios X, onde Rathenow se deitou sobre a mesa. Tinha lágrimas nos olhos devido às dores que sentia na perna. Freiburg preparou o aparelho de raios X, instalando-o sobre a perna de Rathenow. Depois, colocou-lhe uma protecção de chumbo sobre o baixo-ventre.
- Que mais aconteceu?
- Não há mais nada para contar. Depois de me roubarem, fugiram. Estava escuro e, por isso, nem consigo descrevê-los. Só sei que eram jovens. Um trazia vestido um casaco de couro e o outro, calça de ganga e botas de cobói.
- Já é alguma coisa! Talvez a polícia consiga partir daí.
- Polícia? Não há polícia nenhuma. Não vou participar.
- Estás louco? É claro que participamos o assalto.
- Não! Para quê? Não encontrarão os rapazes. Posso Poupar-me a isso.
- Andas cada vez mais estranho. - O Dr. Freiburg ligou o aparelho de raios X e colocou a placa sob Rathenow. Não demora um segundo. Por favor, não te mexas.
Freiburg desapareceu por trás da parede protectora, ouviu-se um ruído durante um segundo e fez-se novamente silêncio.
- Já está! - Freiburg foi para junto da máquina de revelação. - É tudo. Daqui a pouco veremos os teus ossos.
A máquina cuspiu a radiografia e o Dr. Freiburg colocou-a na caixa de luz.
- Tiveste muita sorte, meu rapaz! - disse então. - Não está partido. Apenas uma violenta contusão que, no entanto, pode trazer atrás de si uma inflamação articular. Aí ouvirás cantar os anjos. Teremos de impedir a inflamação. Ficarás na cama e porás compressas de álcool frias... sobre a canela e não na garganta. Compras anti-inflamatório e ficas em repouso até eu dizer: levanta-te, ó amado dos deuses! Para o hematoma da coxa, dar-te-ei uma pomada de heparina. Dissolve o azul pisado que está sob a pele.
- E quanto tempo deverei estar em repouso?
- Pelo menos uma semana. Até termos a certeza de que a tua perna não irá fazer parvoíces.
- Não posso. Não posso estar uma semana na cama.
- Terás de o fazer, Hans. Desiste de tudo o que tinhas planeado.
- Não pode ser.
- És antropólogo e escritor. Não um industrial que precisa de cumprir contratos de milhões. Não perdes nada se estiveres uma semana na cama.
- Não podes fazer esse tipo de avaliação!
- Mas, como médico, posso avaliar o que acontecerá se não tratares da perna. Vieste a conduzir? Estás louco? Vou mandar que te levem a casa e amanhã meto o teu carro na garagem.
O Dr. Freiburg aplicou a Rathenow a primeira compressa de álcool. Era maravilhosamente refrescante e sobrepôs-se durante algum tempo ao ardor que sentia na perna. Rathenow olhou agradecido para o amigo.
- Sabe bem - disse ele. A voz já estava mais clara.
- Quem é que realmente se preocupa contigo? - Freburg agarrou no telefone. - Sei que estás sozinho. A mulher a dias só vai duas vezes por semana. Quem cozinhará para ti? Até agora eras tu, mas agora não pode ser! Terás que ficar deitado. Hans, vou mandar-te uma enfermeira ainda hoje. Loura, vinte e seis anos, figura de modelo e pernas até ao pescoço. Só trata de idosos. Estará bem para ti.
- És um porco!
- Estás a ser injusto. Deixa-me que te conte. Chama-se Irene. Os idosos que trata são mais atiradiços do que rapazes jovens, mas ela parece um tanque. Por isso, nem penses. Além disso, o noivo é soldador e sabe judo.
- Estou-me completamente nas tintas para tudo isso. preciso de voltar a mexer-me o mais depressa possível.
Rathenow regressou a Griinwald de ambulância, dois auxiliares levaram-no para o quarto e até o queriam despir. Disse-lhes que o faria sozinho, deu vinte marcos de gorjeta a cada um - caso nunca visto - e depois despiu-se. Vestiu um pijama para não provocar a enfermeira Irene.
A compressa de álcool continuava o seu efeito, mas teve a sensação de que todos os dedos do pé esquerdo estavam dormentes e insensíveis. Voltou a pôr-se de pé, foi buscar as revistas novas e um livro que lera com muito prazer e que, de vez em quando, relia: O Don Tranquilo, de Cholokhov.
Cerca de uma hora mais tarde, ouviu a porta da rua a fechar-se e passos na escadaria. A enfermeira Irene! O Dr. Freiburg dera-lhe a chave da casa que estava junto às chaves do carro. Ouviu-se uma voz bastante profunda, que não se adequava ao ser tão maravilhoso que Freiburg descrevera.
- Onde está, doutor Rathenow?
- Cá em cima. Terceira porta à esquerda. Enfermeira Irene?
- Sim! - A palavra parecia um tiro.
”Uma pessoa muito enérgica”, pensou Rathenow.
A porta do quarto, que estava só encostada, abriu-se Como se lhe tivessem dado um pontapé e a enfermeira Irene entrou. Inconscientemente, Rathenow susteve a respiração.
Na direcção da cama, caminhava uma montanha de carne com uns bons cem quilogramas. As pernas pareciam colunas, os braços assemelhavam-se a mortadelas, os seios eram duas Abóboras maduras e o rosto, um melão. Todavia, possuía dois alegres olhos azuis e um sorriso na boca. Os cabelos compridos estavam escondidos por baixo de uma touca, e aquela profunda voz de dragão...
- O doutor Freiburg mandou-me! - rugiu ela. -- Está sozinho e cabe-me tratar de si.
- É demasiado amável da sua parte! - retorquiu Rathenow cortês. Ao susto inicial, seguiu-se um certo contentamento. ”Mando-lhe a conta a casa”, pensou Rathenow e ficou a ver a enfermeira Irene a desfazer a sua mala de enfermagem. ”Freiburg, vais arrepender-te!” - Vai ficar uma semana?
- Ficarei o tempo que for preciso. - A enfermeira Irene virou-se para ele. - Levo trinta marcos limpos à hora. Ao dia... oito horas... serão duzentos e quarenta marcos. Não pode apresentar aos Serviços Sociais, mas isso não lhe faz diferença. Ganha o suficiente com os seus livros. - Dirigiu-se à cama e puxou os lençóis para trás. - Lavou-se?
- Claro.
- Com os homens nunca é assim tão claro. As mulheres são mais limpas! Calças para baixo, por favor.
- Devo... - gaguejou Rathenow, espantado.
- O doutor diz que é preciso friccionar a sua coxa e ancas. Com as calças vestidas não o poderei fazer. Meu Deus! Deixe-se de cerimónias. Já vi milhares de pessoas nuas na minha vida.
Rathenow baixou as calças até aos tornozelos.
- Que idade tem, enfermeira Irene? - perguntou.
- Trinta e seis. Virar para o lado! Ena! Que grande nódoa negra! E ainda irá crescer e espalhar-se! Como é que fez isto?
- Fui assaltado por dois rapazes. Ontem à noite.
- Ah, sim. Actualmente, é um perigo andar nas ruas à noite. Eu já me deixei disso. Antigamente, podíamos passear sozinhos pelo parque à noite. Agora seria um suicídio. Foi aqui que a Alemanha chegou. E porquê? Porque neste país os ladrões são perdoados. O assaltado é que tem a culpa. A esses dizem: porque é que foi passear à noite para o Parque? Nem na cama se está seguro se se deixar a janela aberta, e agora também a fecho. Penso que é melhor morrer sufocado do que ser assassinado. Depois, há tantas violações...
Falou sempre enquanto friccionava a coxa e ancas com a pomada de heparina, mas Rathenow já não a ouvia. Estava com dores tremendas, e as mãos da enfermeira Irene não eram exactamente ternas. Só quando ela terminou é que Rathenow voltou a abrir os olhos.
- Terminou? - perguntou.
- Sim. Agora a perna. Que quer que lhe faça para o almoço? Quais as suas comidas preferidas?
- Não tenho fome nenhuma, senhora enfermeira.
- Ela vem. Vou deixá-lo sozinho por uma hora e vou às compras. Também conta como trabalho pago.
- Tomo conhecimento sem discussão.
Depois de lhe aplicar outro emplastro de álcool na perna, sobre a qual a enfermeira Irene comentou que parecia ter sido pisada por um sapato com cardas, pois sola de borracha nunca poderia ter sido, deixou Rathenow sozinho.
- Enquanto estiver em casa, terá de se alimentar convenientemente! - declarou ela. - Os homens solteiros enriquecem os donos dos restaurantes e dão cabo do estômago.
Rathenow respirou fundo quando ela saiu de casa. Agarrou no telefone que estava ao lado da cama e telefonou para o Restaurante Mandarim Negro. Apesar de ainda não serem horas de abrir, o chefe Zou Shukong atendeu.
- Mandarim Negro.
- Fala Rathenow.
Zou Shukong percebeu imediatamente, dizendo com grande amabilidade:
--Meu Deus, senhor doutor. Estou ao seu dispor.
Se a polícia tivesse o telefone sobre escuta, o gravador apenas registaria conversas inocentes. Os chineses nunca telefonavam a Min Ju, fazendo-o apenas quando era urgente, e usavam o dialecto do povo de Nenjiang, desconhecido de qualquer tradutor da polícia.
- Sou forçado a recusar a minha visita de amanhã à noite. Estou incapacitado. Poderá contactar o meu convidado, senhor Min?
- Tentarei.
- Por favor, informe o senhor Min. Só poderemos voltar a ver-nos daqui a, pelo menos, oito dias. Lamento.
- Informarei o senhor Min. Bom dia, senhor doutor Zou Shukong desligou e fez uma ligação interna. Min
Ju estava no templo a rezar. Pertencer às tríades não exclui a fé nos deuses.
Os membros da mafia italiana também iam à missa de domingo, sentavam-se nas primeiras filas, comungavam e também era consabido que os carrascos, assassinos sem escrúpulos, faziam parte dos mais fervorosos que, nas procissões de Corpo de Deus, pegavam no pálio de brocado que ia por cima do andor. Também faziam parte do coro da igreja, cantando em louvor a Deus. Não era, portanto, absurdo que Min Ju estivesse a orar no seu templo subterrâneo privativo.
Min ouviu a participação do cozinheiro-chefe e continuou a orar. Estava de joelhos, o tronco inclinado para a frente, colocando a testa sobre os valiosíssimos tapetes, e repetiu o gesto três vezes antes de se levantar. Depois, acendeu três paus de incenso de aroma forte, juntou as mãos e fez mais uma vénia perante a figura de Buda.
No escritório, voltou a ser o frio homem de negócios, o daih-loh do grupo da Catorze K de Munique. Antes das orações, lera o jornal da manhã e tomara conhecimento do sucesso da acção de Ninglin e Bai Juan Fa no Restaurante Lotus. Como os jornais falavam do assunto, descrevendo os terríveis actos perpetrados pelas tríades, ficara muito bem-disposto. Não havia melhor aviso para os comerciantes de Munique. A partir de agora, quando os sandálias de erva aparecessem, pagariam voluntariamente. Não haveria discussão nem recusas. Quando o cho hai se desse a conhecer através dos sinais de mãos, o dinheiro saltaria das caixas registadoras. O relatório de Ninglin ainda não chegara, mas Min Ju não precisava dele para ficar contente.
No entanto, Zou Shukong dizia-lhe que Bai Juan Fa não estaria disponível durante oito dias. O que teria acontecido? O que queria dizer ”Estou incapacitado?” Isso estava a enervar Min. Teria havido dificuldades naquela noite?
Tê-lo-iam observado? Haveria testemunhas? Se assim fosse, por que razão ainda estavam vivos? Perguntas que deixavam Min Ju desassossegado.
Decidiu não esperar a visita de Ninglin, que estava marcada para a hora do almoço, quando havia muito movimento no restaurante; sentou-se no carro - desta vez um Jaguar de doze cilindros - e dirigiu-se a Griinwald. Foi exactamente na altura em que a enfermeira Irene saíra para ir às compras e Rathenow ia pegar no auscultador para telefonar ao Dr. Freiburg. Nesse momento, soou a campainha da porta. ”Não saia da cama!”, ordenara-lhe a enfermeira Irene.
Voltaram a tocar, mas desta vez o toque foi mais longo.
”Não estou em casa”, pensou Rathenow. E se fosse uma carta expresso ou uma encomenda? Uma informação urgente do seu editor: ”Quando é que podemos contar com o seu novo livro sobre as minorias desconhecidas da China?” Não! Numa situação dessas telefona-se; não se pergunta nada por escrito.
A campainha continuava a tocar. Desta vez, o visitante deixou o dedo no botão.
”Seja quem for, não posso! Vai-te embora! Telefona! Não pode ser assim tão importante.”
Parou de tocar. Rathenow respirou de alívio. ”Finalmente, percebeste.” No entanto, levantou a cabeça quando começaram a ouvir-se passos nas escadas. ”Irene está de volta. Graças a Deus!” Rathenow esticou-se na cama, tal como esperava a enfermeira Irene, e fechou os olhos, fingindo dormir.
Ouviu a porta do quarto a abrir. Passos aproximavam-se da cama, mas nessa altura chegou-lhe o aroma de perfume, cheirava a rosas. Não podia ser a enfermeira Irene! Antes de abrir os olhos, ouviu uma voz profunda.
- O que se passa, Bai Juan Fa?
- Min Ju! - Rathenow soergueu-se na cama. Min Ju agarrou-lhe no ombro e empurrou-o para trás.
- Como entrou?
- Conheço os pontos fracos das casas alemãs. A porta da cozinha que dá para o jardim não estava fechada. Normalmente, esquecem-se. - O olhar de Min Ju recaiu sobre o corpo de Rathenow. - Zou Shukong deu-me a notícia e vim imediatamente para aqui. Ainda encontraram dificuldades ontem no Lotus?
- Não. O Ninglin trabalhou bem. - O tom de voz era amargo.
- Então porque estás de cama?
- Estou ferido! A tíbia está quase desfeita e tenho a coxa tão azul que parece que lhe deitaram tinta.
- Deixa ver! - Min Ju puxou os lençóis, observou os ferimentos com ar de especialista e voltou a cobrir Rathenow. - O que aconteceu?
- O Ninglin quase me mutilou.
- Sem motivo?
- Recusei-me a ver um assassínio, mas ele obrigou-me. Ao pontapé.
- Bai Juan Fa, um membro das tríades nunca se recusa a cumprir uma missão, mesmo que seja só como observador. Eu avisei-te... recordas-te?
- Min Ju, nunca terei o desprezo chinês pela vida humana, para quem matar nada tem de especial.
- Porque te falta acreditar na reencarnação - respondeu Min Ju, calmamente. - Morremos sabendo que voltaremos à Terra. Quando somos mortos, o círculo não se rompe. A morte não é um mistério para nós. Sabemos que a vida é apenas uma ínfima parte de uma verdadeira existência e que a reencarnação é apenas um pequeno passeio pela Terra, pois somos filhos do céu. - Min Ju sentou-se na beira da cama. Vou ter de te castigar, Bai Juan Fa.
- Não posso impedir que o faça.
- Reconheço que com esses ferimentos não nos poderás servir durante uma semana. Estás de férias. E o teu castigo? Sabes que recairá sobre a Liyun.
- Não! - Rathenow voltou a endireitar-se na cama. Deixe a Liyun em paz! Cortem-me um dedo ou outra coisa qualquer, mas não toquem na Liyun!
- Ainda iremos ponderar o assunto. Preciso de falar com o gao Ião de Amesterdão. Portanto, espera.
Ouviram-se passos nas escadas. A enfermeira Irene estava de regresso. Min Ju saltou imediatamente.
- Quem é? - perguntou.
- A enfermeira Irene. Está a tomar conta de mim até eu voltar a andar.
- Ver-me-á. Terá de morrer.
- Ela é inofensiva, Min Ju.
- Posso desaparecer do quarto?
- Não. Só há uma porta.
A enfermeira Irene entrou com estrondo. Min Ju olhou para aquela montanha de carne como se uma avalancha estivesse a cair sobre ele. Trazia dois grandes sacos nas mãos e deixou-os cair no chão.
- Posso apresentar-lhe o escritor chinês Dai Fucai? proferiu Rathenow rapidamente. - Trouxe-me a notícia de que mais um dos meus artigos foi traduzido para chinês.
Min Ju fez rapidamente uma vénia à enfermeira Irene.
- Respeitamos muito o doutor Rathenow na China disse ele, afavelmente. - Ouvi dizer que está a tomar conta do doutor Rathenow. Que escoriações horríveis! Contudo, não duvido que, com os seus cuidados, recuperará depressa.
- Eu também espero. - A enfermeira Irene estava a ser adulada e esqueceu-se de perguntar como é que ”Dai Fucai” entrara em casa. Nem pensou nisso. Apanhou os sacos do chão e meteu-os debaixo dos braços vigorosos. Hoje para o almoço haverá salada mista fresca e fígado. Entendido?
- A senhora é um anjo disfarçado. - Rathenow riu-se, algo atormentado, mas a situação crítica fora ultrapassada.
Já me está a escorrer água da boca.
- Também lhe trouxe uma garrafa de cerveja sem álcool. Comigo não se bebe álcool. Só como tratamento.
Acenou com a cabeça a Min Ju, ao ”escritor” chinês, com um grande sorriso, e saiu do quarto. Min Ju passou a mão nos olhos e riu-se baixinho.
- Quem é que mandou este dragão, Bai Juan Fa? Perguntou ele.
- Um médico que se intitula meu amigo. Não pude opor-me.
- Se me tivesses telefonado, a Flor de Pessegueiro teria vindo ter contigo. Curar-te-ia rapidamente. Ter-te-ia tratado com o corpo. Bai Juan Fa, vê se percebes finalmentetu és nosso irmão e fazemos tudo por um irmão. Vocês podem ter bons médicos, mas são uns idiotas em comparação com a nossa medicina natural. A entrega também faz parte. Um corpo quente cura mais depressa do que unguentos ou ervas. Os nossos imperadores sabiam isso e mantinham cem concubinas que cuidavam da sua saúde. Queres que mande a Flor de Pessegueiro?
- A enfermeira Irene apunhala-a ou envenena-a.
- Fica então para a próxima. - Min Ju deu uma palmada no ombro de Rathenow. - Confia em nós. Quando voltares a estar doente, o calor curar-te-á bem depressa.
Saiu do quarto, encontrou a enfermeira Irene no vestíbulo de entrada, fez-lhe uma vénia e saiu de casa. A montanha de carne valsou até ao primeiro andar.
- Um homem realmente amável, esse escritor - disse ela quando regressou para junto de Rathenow, a fim de lhe substituir o emplastro de álcool. - Um verdadeiro gentleman! É um escritor muito conhecido?
- Muito - respondeu Rathenow, pensando na noite anterior no Restaurante Lotus. - Com os seus escritos intervém na vida...
- É seu amigo?
- Não de forma directa. Conhecemo-nos profissionalmente.
- Fala um excelente alemão.
- Sim. Se assim não fosse, não poderia preocupar-se comigo.
À noite, o Dr. Freiburg trouxe o carro de Rathenow e subiu até ao quarto. Rathenow estava sentado na cama a ler o seu livro preferido: O Don Tranquilo.
- Desaparece! - gritou Rathenow, imediatamente. -” Desaparece já! Fora!
- Quero ver como estás.
- És o sujeito mais traiçoeiro que conheço.
- Eu sei que terias preferido uma loura bem torneada, mas pensei na pobre Liyun. Não se engana ninguém com uma enfermeira.
- Só de pronunciar o seu nome a ofendes!
- A enfermeira Irene é uma excelente cozinheira!
- Já reparei nisso hoje à hora do almoço. Estava divinal.
- Que queres mais? E presumo que tratou de ti cuidadosamente.
- Não posso queixar-me. É verdade que ela só trata de velhos?
- Sim. É formada em geriatria. Um ás, digo-te eu.
- Os velhos devem sentir-se enterrados sob um rochedo maciço quando ela se inclina sobre eles.
- Tens cada ideia! - Freiburg riu-se com gosto. A Irene já me contou tudo.
Rathenow apontou para a perna ligada.
- Quanto tempo poderá isto durar?
- Só Deus sabe. Cada organismo reage à sua maneira.
- Só estou à espera do jantar e depois quero dormir.
- Já vou, já vou. - O Dr. Freiburg passou a mão pelos cabelos brancos de Rathenow. - Os homens doentes são uma praga de Deus. Quanto mais espertos são, mais insuportáveis se tornam. É uma sorte tu seres tão parvo.
Abandonou o quarto a correr, pois Rathenow atirou-lhe com o livro.
Aisin Ninglin estava sentado no escritório, na cave do Mandarim Negro, à frente de Min Ju. Tinha acabado de terminar o seu relatório. Revelara tudo: o golpe de mão que fora fatal, a mutilação de Yan Xiang, mas esquecera-se de referir o que acontecera a Rathenow. Parecia-lhe uma coisa sem importância. Min Ju olhou para ele com a testa franzida.
- O que aconteceu com o Bai Juan Fa? - perguntou.
- Como ordenaste, observou tudo, mas é um fraco.
Nunca será um bom elemento das tríades.
- Mais nada?
- Não, daih-loh.
- Não tiveste de o obrigar a ver tudo?
- Foi bastante teimoso, mas eu convenci-o.
- Convenceste-o ao ponto de quase o deixares aleijado.
- Não foi assim tão grave. - Ninglin riu-se. - Foi fácil de convencer.
- A que chamas fácil? Vai faltar durante uma semana inteira por tua causa.
- Daih-loh, ele está a fingir. Quando quis impedir-me de arrancar o olho direito do Yan, eu afastei-o. É tudo.
- Estive hoje à tarde em casa do Bai Juan Fa, Ninglin! Vi os ferimentos. É assim que se trata um irmão?
- Ainda não é meu irmão! É um estrangeiro que não merece tornar-se um membro das tríades. Um fraco! Tu próprio viste isso esta tarde. Um chinês já teria esquecido há muito os pontapés e nunca ficaria doente. O Bai Juan Fa não é de ferro; é de tofu fraco!
- Desobedeceu e por essa razão será castigado, mas isso é comigo.
Min Ju colocou a mão sobre os jornais e olhou duramente para Ninglin.
- Alguém vos viu? - perguntou.
- Estavam dois clientes no restaurante, mas saíram pouco depois.
- Mas viram-vos?
- Sim... - Hesitou na resposta. - Mas nunca me reconhecerão. Virei-lhes as costas.
- Não estou a pensar nisso. Para um europeu, os chineses são todos iguais, mas o Bai Juan Fa... Os seus cabelos brancos dão nas vistas. As pessoas reparam. Quando os dois clientes forem à polícia depor, o homem de cabelos brancos que estava no local ficará em evidência. Ficarão a observar se ele entra noutros restaurantes chineses. Isso pode ser perigoso.
- Devo limpar-lhe as orelhas? - A expressão de Ninglin brilhou com a ideia de expulsar Bai Juan Fa deste mundo, mas Min Ju abanou firmemente a cabeça.
- Terá de pintar os cabelos.
-- E o que vai dizer aos amigos do clube de ténis e de Golfe? Cabelo prateado que escurece de súbito. Todos lhe chamarão louco.
- Falarei sobre isso com ele. - Min Ju fez um sinal Com a cabeça a Ninglin. - Podes ir.
Ninglin abandonou rapidamente o escritório subterrâneo. Quanto mais longe estivesse de Min Ju, mais tranquila seria a vida. Também não almoçou no Mandarim Negro, indo a uma cervejaria em Giesing que ficava bem afastada do olhar frio de Min.
À noite - a enfermeira Irene já terminara o seu serviço e só voltaria no dia seguinte às oito da manhã - Min Ju tornou a visitar Rathenow. Usou de novo o caminho pela porta das traseiras e surgiu repentinamente no quarto. Rathenow, que estava sentado na cama e ligara a televisão, estremeceu quando o viu. A presença de Min nunca significava nada de bom.
- Como estás? - perguntou Min, com um ar inofensivo.
- Na mesma. Vinte e quatro horas depois ainda não se consegue dizer nada. Veio para me castigar?
- Há tempo para isso. Sabes que vocês foram vistos no Lotus? Os dois últimos clientes. Todos os comissariados da polícia andarão à procura de um homem de cabelo grisalho que aparece em restaurantes chineses. Depressa te encontrarão. Temos de o impedir.
Rathenow abanou a cabeça.
- Muito simples! Não me tornarei sandália de erva...
- Ainda mais simples: pintas o cabelo.
- Impossível!
- Tu sabes que para Min Ju não existe a palavra ”impossível”. Tudo é possível quando se quer. Antes de regresSares às ruas, pintarás o cabelo. Proponho que seja louro.
- Os meus amigos irão dar-me cabo da cabeça, pois todos sabem que me orgulho muito do meu cabelo branco. De repente, pinto-o. Não é possível. - Rathenow desligou a televisão. - Faço-te uma proposta: poderia usar uma peruca.
- Demasiado inseguro, Bai Juan Fa. Um dia esqueces-te e vai tudo por água abaixo. Neste momento, os teus cabelos brancos constituem um perigo para a Catorze K. - Min passeou-se pelo quarto com as mãos atrás das costas parecendo ponderar intensamente o problema. - Poderia entregar-te ao Ninglin - disse ele, de pé junto à janela olhando para o jardim. - Mas para isso preciso da autorização do gao Ião de Hong Kong e ele não ma dará. Isso eu sei. Precisamos unir-nos, ou seja, pintas o cabelo.
- Não.
- Sim! Ou queres receber um dedo da Liyun?
- Vocês não ousariam! - gritou Rathenow para Min Ju.
- Porque não? A Liyun não vale mais do que qualquer outra pessoa. Só para ti é que a vida dela tem valor. É a tua felicidade e infelicidade. Decide-te!
Como sempre, Rathenow parou de resistir assim que o ameaçaram com Liyun. ”Eles fá-lo-ão”, pensou. ”Eles fá-lo-ão mesmo. Cortam-lhe um dedo e ninguém encontrará estas bestas! Liyun, eles podem fazer de mim o que quiserem.”
- Pintarei os cabelos - afirmou Rathenow com uma voz rouca.
- Sábia decisão, Bai Juan Fa. Um tom médio de louro?
- O que quiserem.
- Parecerás mais novo. Ficarás com menos vinte anos. O espelho provar-te-á que conseguiste sobrepor-te à idade.
- Min Ju riu-se para Rathenow. - E os teus amigos e conhecidos? Primeiro, rir-se-ão de ti, mas depois cederão. Boa noite!
Rathenow não respondeu. Min Ju encolheu os ombros, saiu do quarto e voltou para a cidade. Ia ainda a pensar como poderia dar uma lição especial a Bai Juan Fa e depressa, descobriu uma solução simples, mas eficaz.
A semana de repouso de Rathenow passou depressa. A enfermeira Irene demonstrou ser uma pérola no que se referia aos cuidados e bem-estar. Quando Min Ju telefonava para saber notícias, ouvia sempre: ”Estou melhor. Já comecei a dar os primeiros passos.”
Dez dias depois, terminou a missão da enfermeira Irene.
-- Diverti-me muito - garantiu ela à despedida, apertando firmemente a mão de Rathenow, o que o fez ter vontade de dizer: ”Fique! Acabou de me esmagar a mão”, mas não o fez. - Foi um doente muito disciplinado, senhor doutor. Gostei muito de estar aqui. Se acontecer mais alguma coisa, virei de boa vontade. Tenho a receber dois mil e quatrocentos marcos. Em dinheiro, por favor. Não em cheque.
- Com que então trabalho ilegal? - Rathenow riu-se. É claro que lho dou em dinheiro. Por acaso ainda tenho uma grande soma de dinheiro em casa.
Rathenow foi buscar o dinheiro ao cofre do escritório e entregou-o à enfermeira Irene, que contou as notas três vezes.
- Sabe que posso ser multado por isto? - perguntou Rathenow.
- Mas, senhor doutor - interpôs Irene com um sorriso largo -, trata-se de um acordo particular...
Depois, Rathenow voltou a ficar sozinho na sua vivenda gigantesca. O súbito silêncio foi esmagador. Sentia-se como se estivesse num enorme caixão e pensou no que a enfermeira Irene lhe dissera no decorrer dos últimos dias:
- Esta casa precisa de uma mulher, senhor doutor. Porque não se casa?
Ao que ele respondera:
- Porque ainda não encontrei a mulher certa, mas talVez as coisas mudem em breve.
Liyun? Seria a mulher que ele sempre procurara? Seria Liyun a mulher que o acompanharia até ao fim da vida? Era trinta e três anos mais nova do que ele e voltava a velha Pergunta: ”Será que tenho o direito de ligar a mim uma rapariga qUe poderia ser minha filha? Não será puro egoísmo? ”Usca de uma segunda juventude? Será mesmo amor ou ilusão? Será uma tentativa de fugir à velhice? E o mais importante: a Liyun fará uma visita de três meses, regressando depois a Kunming. Cairia das nuvens se eu lhe dissesse:
liyun! Fica comigO para sempre. Como minha mulher.”
Ficaria assustada e talvez até ofendida. Mesmo que me destrua a alma, o facto é que ela pertence a Shen Zhi, o jovem jornalista. É uma chinesa que só casará com um chinês, que nunca deixará a sua pátria para viver na Alemanha num país que nunca poderia ser a sua segunda pátria. Um país que tem uma cultura diferente e que trata os estrangeiros como pessoas de segunda. Terei o direito de sujeitar a Liyun a tudo isto? Como seríamos considerados pela imprensa e pelos meus colegas? Rathenow ama uma chinesa trinta e três anos mais nova do que ele! - Os últimos cartuchos antes da velhice. - Amor ou idiotia? - Haverá possibilidade de rejuvenescer? - A síndroma da China! Aviso a todas as mulheres alemãs: vêm aí as chinesas!” E depois os comentários de toda a população: é preciso que seja chinesa? Será que não há mulheres alemãs bonitas? Trinta e três anos de diferença de idade... Rathenow não tem vergonha? Será que não se pode envelhecer com dignidade? Estas mulheres mais novas: se Rathenow não fosse um homem rico e famoso, nunca o levariam a sério! Amor ao dinheiro e posição...
”A Liyun nem sequer supõe o que lhe aconteceria se dissesse que sim. Mas não anuirá. O batique com a rapariga bai, o faxe: a sua pequena Liyun - uma amabilidade para um visitante VIP que ela guiou pela China. Rathenow, meu grande idiota!”
Rathenow vagueou pelo seu ”luxuoso caixão”, refugiou-se na música, colocando um CD com o concerto nº1 para piano de Tchaikovsky, mas nem a música, que normalmente o levava até às profundezas do seu ser, conseguiu afastar aqueles pensamentos fúnebres.
Na sua perturbação interior, telefonou ao Dr. Freiburg, o único amigo, cuja irreverência conseguia arrancá-lo à depressão. Freiburg estava em casa.
- O que se passa? - perguntou ele.
- Vou já para aí. ”
- Não pode ser. Tenho compromissos para esta noite. Planeei para hoje um voo erótico.
- Quem quer que seja, deixa. Preciso falar contigo.
- Novamente depressões? Toma um comprimido.
- Não se resolve com comprimidos.
- Então bebe uma vodca com laranja! Normalmente ajuda.
- Sinto-me só...
- Tens números suficientes na tua agenda-telefone, roeu rapaz.
Por muito que abominasse as sentenças sexuais de Freiburg, naquele momento foram reconfortantes. ”É um homem sem problemas que eu invejo! O que sou eu então? Um sandália de erva indefeso. Bai Juan Fa, um membro das tríades.”
- Então, é não! - disse ele, desiludido. - Boa noite!
- E desligou.
Refugiou-se novamente na música, enrolou-se no sofá de couro do escritório, ouviu o fim do primeiro acto de A Valquíria, de Wagner, e fechou os olhos quando Siegmund soltou o seu grito de amor: ”Agora floresce!”
”Não sou um herói”, pensou, cheio de amargura. ”Só há heróis nos contos de fadas. Na vida real é uma merda...”
O cabeleireiro ficou estupefacto. Olhou fixamente para Rathenow quando este lhe disse:
- Quero pintar o cabelo, por favor. Um tom claro de louro...
Silêncio. O cabeleireiro não saiu do mesmo sítio, mas passava a mão pelo cabelo prateado de Rathenow. Depois Perguntou como se tivesse acordado de repente:
- Pintar?
- Sim.
- Este branco maravilhoso?
- Não agrada à minha nova namorada. Prefere louro.
- Posso dar-lhe um conselho? - O cabeleireiro pigarreou. - De homem para homem?
- Faça favor.
- Fique com os cabelos brancos e mude de namorada.
É mais fácil de substituir.
- O senhor não a conhece! - criticou Rathenow. O cabeleireiro abanou a cabeça.
- Também não preciso. Uma mulher que não goste deste cabelo não sabe apreciar a beleza masculina. Presumo que seja muito atraente.
Rathenow começou a divertir-se com a conversa. Anuiu com a cabeça.
- Muito atraente. Cabelos ruivos, caracóis até aos ombros...
- Eis a razão. É aí que reside a base do desejo. É vaidosa e a sua vaidade não consegue suportar que um homem tenha tão belos cabelos. É o medo de lhe roubar a audiência. Os seus cabelos têm de agradar a toda a gente.
- É psicólogo ou cabeleireiro? - perguntou Rathenow.
- Ambos, meu caro senhor. Um bom cabeleireiro também deve ser um bom psicólogo. Caso contrário, nunca descobrirá qual o penteado que melhor fica ao cliente. Os cabelos brancos estão para si como o sorriso está para a Mona Lisa. Não deve mudar.
- Não sou a Mona Lisa. Sou um velho idiota! Por isso, mestre, pinte-os. Um louro claro.
- Só se mo ordenar.
- Pinte-os. É uma ordem.
- O cliente é rei e a sua palavra lei. - O cabeleireiro colocou uma protecção de plástico em Rathenow. - Gostaria de poder dizer como o rei David: Daí lavo as minhas mãos.
- Foi Pilatos quem o disse. Procure em Mateus vinte e sete, vinte e quatro...
- O senhor é padre? - O cabeleireiro riu-se como se fosse um cúmplice. - E tem uma namorada ruiva? Deus abençoe os pecadores.
- Pintar! - gritou Rathenow com energia, tentando simultaneamente controlar o riso.
Ofendido, o cabeleireiro desapareceu numa sala das traseiras e voltou com os utensílios para a pintura.
Em silêncio, Rathenow passou por todo o processo. Depois, o cabeleireiro falou com uma clara expressão de desgosto na voz.
- Olhe para o espelho, senhor padre. Agora está assim! Completamente diferente. Os seus paroquianos não o reconhecerão quando subir ao altar. Era mesmo necessário? Só de olhar, tremo. Os seus lindos cabelos brancos.
Rathenow olhou para o espelho. Era ele e não era ele. ”Com que simplicidade e rapidez se pode mudar uma pessoa”, pensou. ”Aquele que está no espelho parece estar na casa dos quarenta e só tem uma ligeira semelhança com o doutor Rathenow de Gríinwald. Se puser uns óculos, ninguém o reconhecerá. O Min Ju tinha razão: ali está outra pessoa. Nenhuma testemunha poderia afirmar: aquele é o homem que entrou com um chinês no Lotus por volta das vinte e três horas.”
- Estou muito contente - disse Rathenow, levantando-se. - Um lindo tom de louro. Nem muito claro nem muito escuro. O senhor é um verdadeiro mestre.
- Envergonho-me de o ter feito, senhor padre. Mas o cliente...
-... é rei.
Rathenow pagou a horrenda conta. A partir daquele momento, teria de pintar o cabelo de seis em seis semanas para que não se vissem as raízes brancas. Depois, dirigiu-se a casa do Dr. Freiburg. Pelo caminho, comprou uns óculos de sol. Quando se olhou ao espelho, não se reconheceu.
O Dr. Freiburg estava a fechar o consultório quando um último doente se sentou na sala de espera. Na recepção dissera: Ludwig Mitterwurzer, publicitário, doente particular. Freiburg lera a nova ficha e mandara entrar Mitterwurzer Para o consultório.
Rathenow entrou, ansioso. Será que Freiburg o reconhecia? Não. Olhou rapidamente para o novo doente, indicou a Cadeira e perguntou:
- Em que posso ser-lhe útil, senhor Mitterwurzer? Antes de mais, permita-me que lhe faça uma pergunta: é parente do famoso actor Mitterwurzer do século passado?
-- Não. Os meus antepassados são austríacos, da aldeia Witter. Eram coleccionadores de plantas e daí o nome Wurzer.
O Dr. Freiburg olhou fixamente para Rathenow. O novo doente não lhe pareceu muito suspeito. Além disso, a voz fazia-lhe lembrar a do seu amigo Hans.
- Quais os males que o trazem até mim? - perguntou
- Sofro de uma doença muito rara e estranha. - Rathenow riu-se. ”Ele não me reconhece. É o disfarce perfeito.”
- Já consultou outros colegas meus?
- Sim, mas não conseguiram ajudar-me. Aconselharam-me a consultá-lo, senhor doutor, pois é especialista em casos perdidos.
- Isso é um exagero. O que dizia o diagnóstico dos meus colegas?
”Meu grande macaco. Agora, aguenta, Freiburg!”
- Sofro da doença de Semipalatinsk... O Dr. Freiburg estremeceu.
- De quê? - perguntou ele, inseguro.
- Semipalatinsk...
- Ouviu mal? Semipalatinsk é uma cidade na Rússia, no Cazaquistão.
- Talvez a doença tenha aparecido lá pela primeira vez e retido o nome. Não sei. Conhece a doença, senhor doutor?
Freiburg não deu o braço a torcer. Mostrou-se muito interessado. Decidiu procurar depois na obra, em quatro volumes, Medicina Interna. Meu Deus! Não se pode saber tudo!
- Como é que a doença se manifesta? - perguntou. Rathenow fez um grande sorriso.
- É muito desconfortável. Dar um traque contínuo e quando nos peidamos é em lá bemol. Às vezes em mi sustenido. Mas nessa altura é sempre crítico.
O Dr. Freiburg acenou com a cabeça. Olhou para o novo doente, empurrando o lábio inferior para a frente e ordenou-lhe:
- Tira os óculos, meu filho da mãe. Rathenow fê-lo.
- E a peruca.
- Não é uma peruca. É mesmo o meu cabelo.
- Tretas! Acabou o jogo. Estive quase a cair na esparrela, Hans! Semipalatinsk... foi genial! Por alguns momentos fez-me duvidar. Tira a peruca, rapaz.
- Este é realmente o meu cabelo. Pintei-o. És o primeiro a ver.
O Dr. Freiburg não respondeu. Agarrou no telefone. Rathenow levantou a mão.
- A quem vais telefonar?
- Estás pronto para ir para o manicómio!
- Não gostas?
- Não faças perguntas parvas! Perdeste líquido encefálico? A tua almofada ficou molhada esta noite?
- Apenas quis ficar com outro aspecto. Mais novo. Não me reconheceste. Consegui. O teste foi positivo.
- Queres realmente passar a andar por aí nessa figura?
- Quero.
- Toda a gente vai pensar que estás doido. O clube de ténis, o clube de golfe...
- Por mim podem todos...
- Porque é que fizeste isso, Hans? É assim que a Liyun quer?
- Espero que sim.
- Uma chinesa e um louro herói germânico! És um parvo! Não tens a menor queda para herói. Estás ridículo! Vai pintar o cabelo de branco. Os teus lindos cabelos brancos...
- Quero ficar assim durante algum tempo. Vim cá para que avises com antecedência os nossos amigos dos clubes. Não quero que gozem comigo.
-- E que devo dizer-lhes? Ouve: o Hans descobriu uma colmeia no cérebro? E agora vai deixá-las zunir durante algum tempo? Acreditem, não o gozem, achem bonito... Está a entrar na idade em que um homem se torna peculiar.
„- Diz o que quiseres. - Rathenow levantou-se. - Sinto-me muito mais seguro, mas isso tu não entendes.
- E para onde devo enviar a conta do senhor MitterZer? Não estás à espera que eu alinhe neste disparate.
Manda-a para a aldeia Mitter, Hinterwalden.
Onde foste arranjar o nome de Mitterwurzer?
- Estás a esquecer-te de que também estudei literatura mas o que mais me espanta é que conheças o nome Mitter. wurzer. Adeus, receitador de pílulas.
À hora do almoço, Rathenow dirigiu-se ao Mandarim Negro no centro da cidade. Escolheu um fato de Verão cor de pau-rosa, colocou os óculos de sol e entrou no restaurante com um ar muito jovial. O empregado de mesa apressou-se a ir ter com ele. Rathenow susteve a respiração. ”Não ele não me reconhece.” O criado indicou-lhe uma mesa de dois lugares a um canto.
- A mesa agrada-lhe, caro senhor?
- Muito. Consegue-se ver todo o restaurante e fíca-se de costas para a parede. Isso é muito bom. Há uma velha regra da mafía que diz: ”Num restaurante cheio de gente, senta-te de costas para a parede. Assim não terás surpresas.” - Riu-se para o perplexo empregado.
Este trouxe-lhe uma ementa e desapareceu na cozinha pela porta do lado. O chefe Zou Shukong estava a preparar molho de cogumelos.
- Chama Min Ju - disse o criado, apressadamente. Está no restaurante um tipo muito estranho. Disse qualquer coisa sobre a mafia.
- Isso pode ser engraçado. Um mafioso como cliente, ou então quer outra coisa. Pode provocar aborrecimentos e o Ninglin não está. Vou chamá-lo imediatamente. - Inclinou-se e olhou para o cliente suspeito pela abertura da cozinha. - Lá coragem tem ele.
- Decerto que não está sozinho. Quem sabe se há mais clientes que pertencem à mafia? - O criado abriu uma gaveta, tirou uma pistola e meteu-a no cinto. - Esperemos que não seja preciso.
Voltou para a sala e olhou para o cliente. Ainda estava de óculos escuros, se bem que a mesa estivesse iluminada por uma luz suave. ”Um mafioso típico”, pensou, ”tal como aparecem nos filmes.”
Ainda nem tinham passado cinco minutos quando Min Ju surgiu na sala. Ficou à distância a olhar para o suspeito, dirigiu-se depois até à mesa e fez uma ligeira vénia.
- Os meus cumprimentos. Sou o proprietário do Mandarim Negro. Espero que se sinta bem entre nós.
Rathenow fez um largo sorriso. ”Nem tu me reconheces. Como o cabelo pode transformar uma pessoa. É inacreditável.”
- Um cego não deveria ser daih-loh! - afirmou Rathenow. Depois estendeu a mão e fez o sinal de cho hai. Min Ju deixou-se cair na outra cadeira, olhando-o com ar incrédulo.
- Bai Juan Fa... - disse finalmente. - Seu dragão maldito! Ninguém está a reconhecer-te.
- Foi isso que tu ordenaste.
- Assustaste-nos com essa história do mafioso. O Ninglin e mais cinco guarda-costas estão a caminho. - Subitamente riu-se, deu uma palmada no braço de Rathenow e fez sinal ao criado. - É o Bai Juan Fa! - disse em voz baixa, quando o criado se inclinou à sua frente. - E então o que dizes? Ninguém o reconheceu! Agora a polícia já pode andar à procura de um homem de cabelos brancos e que coxeia! Esse já não existe! Bai Juan Fa, não te aplicarei qualquer castigo. Fizeste-nos bem.
Depois de jantar, Min Ju inclinou-se para trás e bebeu o seu vinho de ameixa quente em pequenos goles.
- Na próxima semana, terás um dia muito especial disse a Rathenow. - Prepara-te.
- Seja mais claro, Min Ju!
- Serás aceite na irmandade das tríades. Um acto festivo. Só nessa altura serás um verdadeiro membro das tríades.
- Não dou importância a isso.
- Não sejas altivo, Bai Juan Fa! Serás membro da força secreta mais forte da Terra. Não se consegue comprar nem com todo o ouro do mundo. É uma honra que só se experimenta uma vez na vida e tu és o primeiro branco a usufruir dessa honra. Desde há quatro mil anos que só os Chineses Pertencem às ligas secretas; até membros de outras raças mestiças não passavam de ajudantes sem importância. Sabes o que isso significa para ti?
- Serei um escravo dos vossos crimes.
- Serás um irmão tal como se tivesses nascido no rio Amarelo.
- Mas porquê eu? Não posso dizer que seja uma honra Cumpro as vossas ordens apenas porque sou obrigado. Vocês têm-me na mão, sou apenas um instrumento, mas até os melhores instrumentos perdem a utilidade!
- É verdade, nessa altura deitamo-los fora. Tu és o início de uma grande experiência. Todos os que vierem depois de ti serão apenas uma sombra tua. Por isso, segundo diz o gao Ião em Hong Kong, pertencer-nos-ás para sempre Através de nós, terás outra vida; como se tivesses renascido. - Pôs a mão sobre o braço de Rathenow. - Casarias com a Wang Liyun?
- Se ela quiser...
- Ela quer.
- Como sabem?
- Estava nos seus olhos. Não o soubeste ler, mas nós reconhecemos uma alma num instante. Os olhos são o espelho da alma... o exterior pode mentir e esconder-se, os olhos, nunca! Serás feliz com a Wang Liyun e como nosso irmão. Até lá, ainda há um longo caminho a percorrer na estrada da obediência e da submissão. Conseguirás ultrapassá-lo, porque o amor da Liyun te dá forças. A felicidade não cai do céu. Deve ser conquistada.
- O seu discurso poético é uma pura ameaça. Compreendo-o perfeitamente.
- Esquece que já foste o doutor Hans Rathenow. Esse já não existe! Empreendeu a viagem eterna e não volta mais...
Min Ju levantou a mão e passou-a pelo cabelo pintado de louro de Rathenow.
- Começaste por aqui - afirmou, retirando a mão quando reparou que Rathenow estava constrangido. - Nmguém te reconhece. Tornaste-te outra pessoa e assim permanecerás para sempre. Prepara-te para o grande dia. Veste um fato preto, uma gravata prateada e camisa branca como se fosses a um casamento ou baptizado. E não comas nada antes! Sentar-nos-emos todos à volta de uma grande mesa redonda para apreciar uma ”refeição familiar”. Também mudarás o nome, mas só entre nós. Ao ingressar na irmandade, passarás a pertencer à família da Sociedade do Punhal e assumirás o apelido Hong. Depois, farás trinta e seis juramentos de sangue, que serão lidos por mim, e jurarás obedecer a todas as regras das tríades. Há cento e cinquenta anos que os trinta e seis juramentos de sangue são a base da nossa sociedade, da nossa família, sendo eu o daih-loh aqui em Munique. Depois de te tornares um Hong, a família esperará uma obediência incondicional e fraternidade absoluta.
- E o Ninglin continuará a magoar-me com pontapés...
- Não! Se o fizer, eu tratarei do assunto. Será castigado. A partir da semana que vem, serás seu irmão e nunca deverá tocar-te. Em caso de zanga, o reconciliador é o daih-loh. Portanto, eu! - Min Ju pediu uma caneca de chá de jasmim e acendeu uma cigarrilha. - Há séculos que a tradição manda que a aceitação na família Hong se realize num templo. Desde que a Catorze K existe que temos baptizado os nossos novos irmãos no Templo Wong Tai Siung, em Hong Kong. Agora, cada família tem o seu templo secreto, até aqui em Munique. Sinto-me orgulhoso disso. Um dia também te orgulharás de ser um membro das tríades, um três-em-um, um san-he-hui. Tin-Tai-Wui, o ser céu-terra, será o teu novo mundo, no qual viverás feliz. Não sentirás ou pensarás em mais nada. Apenas: sou um filho dos Hong, um membro da Guilda Vermelha, o Hong Bang. Orgulha-te disso: a Catorze K é a mais poderosa e temida tríade do mundo!
- Eu sei... - disse Rathenow com azedume. - Estão em todo o lado.
- E não existe um único negócio em que não estejais integrados. Do contrabando de drogas à indústria hoteleira, das sociedades imobiliárias às cadeias comerciais, da indústria ao comércio de retalho. Estamos por todo o lado
Com nomes falsos, moradas falsas, com intermediários voluntários e gerentes subornados. A Catorze K é uma potência mundial. As pessoas não o sabem nem sentem, até ao momento em que desobedecem e têm de ser castigadas. Baj Juan Fa, a partir da próxima semana pertences aos eleitos Serás até um verdadeiro irmão porque partilhas a tua vida com uma chinesa.
- Isso ainda não é uma certeza - insistiu Rathenow
- Ainda pode acontecer muita coisa.
- Se fores nosso irmão, nada pode acontecer. Terás... como te expliquei... toda a nossa protecção.
- Isso significa que estarei permanentemente sob o vosso controlo. Protecção parece ser a vossa palavra preferida. Também devo pagar a protecção?
- Como irmão, não.
- Eu ganho dinheiro com as minhas investigações e livros. No que diz respeito ao Ministério das Finanças sou rico. - A voz de Rathenow estava cheia de ironia. - Para as tríades, isso será um motivo para me obrigar a pagar a taxa de protecção?
- Bai Juan Fa, nós não obrigamos; oferecemos um serviço pago. - Min Ju abanou a cabeça. - Como Hong, estarás livre de tudo.
- Muito beneméritos! Também devo agradecer? Min deixou passar a ironia. Bebeu o seu chá de jasmim em pequenos goles e olhou, por cima de Rathenow, para dois clientes que tinham acabado de entrar. Sentaram-se perto da porta e olharam para a sala do restaurante de uma maneira casual. Min ergueu as sobrancelhas e fez um sinal com o dedo ao criado, que agora Rathenow também percebia. ”Atenção!” queria ele dizer. ”Entrou um inimigo.” O empregado de mesa assentiu com a cabeça.
Min Ju voltou a virar-se para Rathenow. Não era necessário lançar o alarme. Ninglin e cinco guarda-costas já estavam a caminho.
- Onde está um inimigo? - perguntou Rathenow em voz baixa.
- Parabéns. - Min Ju acenou aprovadoramente com a cabeça. - Aprendeste bem os nossos sinais. Estás a ver os dois senhores que estão sentados junto à porta?
- Sim.
- Devem ser russos. Vês como examinam tudo? Um cliente normal preocupa-se com a ementa e não com os pormenores do restaurante. - Min Ju olhou novamente para os clientes. - A mafia russa dá-nos sempre mais preocupações. Interfere no nosso negócio de drogas. Uma das suas secções especializou-se em furto de automóveis de grande cilindragem. Outra secção faz passar uma enorme quantidade de raparigas pela fronteira polaco-alemã e com elas funda novos bordéis. Já mataram dois dos nossos irmãos... a tiro e estrangulados... mas não podemos provar. Olha como observam tudo.
- E se forem da brigada de homicídios? - perguntou Rathenow.
- Não são polícias. Reconhecemo-los imediatamente. Temos olho para eles. Há comportamentos especiais através dos quais os reconhecemos.
- Quais?
- Ainda irás aprender isso, Bai Juan Fa. Os agentes da polícia subestimam-nos. Pensam à alemã e nós somos chineses. Vemos com outros olhos. Há alguns meses, surpreenderam um dos nossos cho hai quando cobrava a taxa de protecção a um proprietário. Prenderam-no e acharam que isso fora um grande sucesso. Que erro! O nosso irmão não respondeu a qualquer pergunta durante dois dias. Depois, encontraram-no enforcado nas grades da prisão. O nosso irwão foi suficientemente parvo para se deixar prender e tivemos de o castigar.
- Vocês até na prisão têm assassinos? - perguntou Rathenow, espantado.
Min Ju deitou a cinza da cigarrilha num cinzeiro de porcelana.
- Sim. O cretino do proprietário fez as coisas com tão Pouca discrição que permitiu observar a entrega do dinheiro, depois um pequeno, mas intenso interrogatório...
-... ou seja, tortura!
--... confessou que tinha feito de propósito para que a Polícia, que fora chamada ao restaurante, percebesse que era o nosso irmão. Que homem tacanho! Que coração aberto! Foi encontrado três dias depois num bosque perto de Rottach. Foi cortado ao meio com um machado.
- Porque está a contar-me isso? Já assisti a um homicídio e a uma mutilação. Já não me assusta.
- Foram apenas pequenos castigos. - Min Ju acabou de beber o seu chá de jasmim e voltou a olhar para os dois estranhos que achava serem russos. - Os nossos métodos de separação têm directamente a ver com o grau de culpa. O que tu viste, foi um caso quotidiano. Aqueles dois senhores de Moscovo estão vários níveis acima.
- E se forem apenas clientes inofensivos?
- Saberemos isso depressa. Muitos olhos os vigiarão. Naquele momento, seis chineses entraram no Mandarim Negro. Entre eles estava Ninglin, que se dirigiu à mesa de Rathenow e o observou com uma expressão sombria. Também não o reconheceu à primeira vista, mas, quando olhou para o rosto admirado de Min, aliviou a expressão e começou a rir.
- Óptimo! - observou em voz baixa. - Muito bem. Agora é preciso conhecer-te muito bem para saber quem tu és, mas a mim não me enganas.
Os cinco chineses sentaram-se em duas mesas à esquerda e à direita dos dois suspeitos e pediram uma sopa Wan Tan. Min apontou para a cadeira a seu lado e Ninglin sentou-se.
- Não tires os olhos deles! - disse. - Se forem russos, pensa no nosso irmão morto. As suas almas anseiam por libertação.
- Nós trataremos deles, daih-loh.
- É isso que esperamos de ti, Ninglin.
- Isso significa - disse Rathenow, oprimido - que já estão mortos?
- Se forem realmente russos, o destino assim o quis. Não podemos fugir ao que nos está destinado. - Min olhou para o relógio. Eram quase 14 horas e os clientes ainda não tinham encomendado. O criado esperava pacientemente’
- A cozinha fecha daqui a dez minutos - informou, enquanto os dois ainda folheavam a ementa. - Voltamos a abrir às seis horas.
Chegaram claramente a uma decisão e encomendaram carne de porco com cogumelos chineses, rebentos de bambu e massa à moda de Sichuan.
- É muito picante - esclareceu o empregado.
- Nós gostamos assim! - Um dos senhores fechou a ementa. - E duas cervejas. Antes disso, para abrir o apetite, um copo de mão tai.
O empregado de mesa dirigiu-se à caixa, inseriu o pedido e entregou-o na cozinha. Depois, pegou numa bandeja e foi com ela até à mesa de Min Ju, fazendo de conta que o ia servir. Inclinou-se um pouco para a frente, dizendo em voz baixa:
- Não são alemães. O seu alemão tem uma pronúncia dura.
- Russos! - Min cruzou as mãos sobre o ventre. Devem ser russos. O que é que eu disse? Os meus pressentimentos! Ninglin...
- Sei o que devo fazer, dalh-loh.
Ninglin levantou-se e foi para a mesa dos cinco chineses, onde voltou a sentar-se.
A comida veio rapidamente. Zou Shukong tinha os pratos do dia sempre preparados e quentes em grandes panelas: os pedaços de carne, os vegetais, os cogumelos, a massa, os rebentos de bambu, soja e os molhos. Só era preciso misturar da maneira descrita na ementa.
Às 14 e 43, os russos - se é que eram russos - abandonaram o Mandarim Negro e foram a pé até à cidade. Ninglin seguiu-os discretamente, foi substituído por outro membro das tríades algumas centenas de metros depois e toda a perseguição funcionou assim.
No Verão, caminhar por uma cidade à torreira do sol Provoca sede. Os observados entraram num grande edifício. Os chineses, que os tinham seguido, sentaram-se longe deles, mas de maneira a terem-nos sempre sob observação. Quando um deles se levantou, indo em direcção à casa de banho, o observador seguiu-o imediatamente e entrou no WC, mas não estava lá russo nenhum. O chinês procurou tudo, saiu logo da casa de banho e perguntou:
- Onde há um telefone?
- Ali atrás! As cabinas estão ali.
- Obrigado.
A sua suspeita confirmou-se. O russo estava numa das cabinas a telefonar com as costas viradas para a porta de vidro. Acentuava o que dizia com gestos largos. O chinês ocupou a cabina do lado e telefonou para o Mandarim Negro. Min Ju veio logo ao telefone, como se estivesse à espera da chamada.
- Um está ao telefone! - disse o homem. - Está muito excitado.
- Viu-te?
- Não. Deve estar a dizer algo muito importante.
- Continua perto dele! Não te deixes ver, mas vai sempre atrás dele. Confio na vossa competência.
- Voltaremos a telefonar, daih-loh.
Os membros das tríades mantiveram-se colados aos russos até à noite, como sombras. Viram-nos entrar no metropolitano e seguiram-nos até Wessling. Aí, detectaram-nos a entrar num edifício de residências familiares recentemente construído. Alguns instantes depois, acenderam-se as luzes do segundo andar. Os chineses, que agora eram apenas quatro, sentaram-se num restaurante em Wessling See, beberam uma cerveja e esperaram até escurecer.
- Assim está bem - disse um deles. - Irmãos, ao trabalho!
Pagaram, abandonaram o restaurante e voltaram para junto do edifício. Encostaram-se à porta de entrada. Não estava fechada e abriu sem ruído.
Os quatro chineses subiram às escuras até ao segundo andar tão silenciosos como gatos...
Pela terceira vez, o comissário Peter Probst interrogou a viúva de Yan Xiang, a suíça Angela, nascida em Hàtterli. Estava sentada à sua frente no gabinete do Décimo Terceiro Comissariado, trazia um vestido negro e estava discretamente maquilhada.
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pp não tinha a menor esperança de conseguir tirar dela algo de novo, mas valia sempre a pena tentar. Por vezes, as pessoas quebravam o silêncio devido à dor. Tinha experiência disso. O velho ditado ”Água mole em pedra dura tanto dá até que fura” já conduzira ao êxito uma quantidade surpreendente de vezes.
Contudo, Angela Yan era um osso duro de roer. Cada pergunta de PP tinha como resposta uma frase estereotipada.
- Não sei. Estava na cama a dormir. Não, não ouvi nada. Sim, o meu marido só gritou por volta das duas e meia.
- Senhora Yan, assim não vamos a lado nenhum. Conte-me o que realmente se passou.
- Já lhe contei três vezes.
- Então conte outra vez.
- Chorei, estava completamente desfeita e incapaz de pensar. Isso não é natural?
- E o seu marido?
- Depois de o ter levado para cima, deitou-se na cama e coloquei-lhe um lenço húmido sobre os olhos.
- E não lhe disse quem foram os malfeitores?
- Não. Acho que não...
- O que significa: acho que não?
- Estava tão nervosa que deixei de ouvir. Se o Xiang disse alguma coisa, nem sequer ouvi.
- E por que razão só telefonou ao médico e à brigada de homicídios por volta das seis e meia da manhã?
- Também já lhe expliquei isso três vezes: foi o meu marido que assim quis.
- E numa situação dessas, sem se opor, ouviu o seu Marido? Qualquer outra mulher teria...
- Outra mulher qualquer não é casada com o Xiang! Durante o meu casamento, aprendi a respeitar os seus desejos.
- Mesmo no que diz respeito a um caso de vida ou de morte? O seu marido poderia ter morrido devido aos ferimentos.
- Faz alguma ideia do que é a ”mentalidade chinesa”, Senhor Probst?
- Acho que conheço bem os Chineses. Há muito tempo que lido com eles.
- Como agente da polícia e não como esposa. Antes de nos casarmos, o Xiang explicou-me a sua concepção de vida e morte. Só depois me perguntou se, mesmo assim, eu ainda queria ser sua mulher.
- Como, mesmo assim?
- Ele ama a vida, mas não teme a morte. É uma noção completamente diferente da nossa. A morte não é uma infelicidade. Até a perda dos olhos foi semelhante à simples perda de um anel. ”Telefona ao médico e à polícia quando eu mandar.” Foi uma ordem e eu obedeci. Sou suíça, mas por dentro o Xiang transformou-me numa chinesa. Consegue compreender isso?
- É difícil. - PP folheou as declarações anteriores da Sra Yan. - Deixou de ter vontade própria?
- Sim.
- Porquê?
- Talvez porque sou uma pessoa à moda antiga: amo-o. Entreguei-lhe a minha vida. Ele é o meu senhor.
- Oh, Deus! E isto na era da emancipação.
- Estou de acordo. Sou irremediavelmente à moda antiga. Ultrapassada! Ou melhor: por dentro tornei-me uma mulher chinesa.
- Não estamos aqui para discutir psicologia. O que acontece é que as horas não condizem! O seu marido não foi assaltado às duas e meia da manhã e o criado não foi morto pouco antes. Tudo aconteceu pouco depois das onze horas da noite! Duas testemunhas declararam que dois homens entraram no restaurante mesmo à hora de encerramento: um chinês e um alemão de cabelos brancos que coxeava acentuadamente. Há um mandado de captura. O seu marido contou-lhe...
- O meu marido não contou nada. - Angela Yan entrelaçou os dedos. - Perguntas sobre os criminosos faça-a5 ao meu marido.
- Ele diz que não viu nenhum.
- Então é verdade. Por que razão o meu marido mentiria?
- Por favor, não faça essa pergunta a ninguém que conheça as tríades tão bem como eu. O que pretende fazer futuramente?
- Esperarei que o meu marido saia do hospital.
- Continuará a gerir o restaurante?
- Não.
- E mais tarde?
- Venderemos o Lotus.
- A um chinês?
- A quem estiver interessado e fizer a melhor oferta.
- E depois da venda?
- Sairemos de Munique.
- Regressam à Suíça?
- Não. Estamos a pensar ir até às Baamas ou à Florida. O Xiang decidirá.
- Estão com medo, não é?
- Queremos viver o resto das nossas vidas em paz. O que pode um homem sem olhos desejar?
- Vingança!
- De quem? Encontrar os assassinos é uma missão sua. Encontre-os para que o Estado alemão os castigue. Nós agora só queremos paz, paz, paz!
O interrogatório não trouxera nada de novo. Peter Probst terminou a conversa e deixou Angela Yan sair. ”Não faz sentido”, disse para si próprio. ”Ela sabe mais; de certeza que sabe, mas não dirá nem mais uma palavra. É o costume no que concerne às tríades: o medo prende as línguas. Estamos a correr de cabeça contra um espesso muro chinês. Nem uma pedra se move e as nossas cabeças desfazem-se. Para onde vamos? Até à data, vivem na Alemanha mais de trinta mil chineses e, em mil novecentos e noventa e sete, quando Hong Kong for entregue à República Popular da China, haverá uma invasão de imigrantes, dos quais Pelo menos dez por cento estão ligados ao crime organizado. Nessa altura, que Deus nos proteja. Mesmo que fechem as fronteiras, parecerão formigas. Seremos varridos por uma avalancha. O que podemos fazer contra isso? Nada!”
PP suspirou. Pensava nas palavras de Josef GeissdÕrfer o chefe da secção para o crime organizado junto da Repartição Criminal Estadual da Baviera, em Munique, durante uma entrevista.
”Pensamos que na República Federal Alemã cada proprietário de restaurante tem de pagar uma taxa de protecção às tríades. O problema reside apenas no facto de nada sabermos sobre o assunto. A mafia chinesa está em todos os cantos da Alemanha! Nos Estados Unidos, Grã-Bretanha e Holanda, os chineses concentraram-se em Chinatowns. Na RFA, espalharam-se por todo o país. São discretos, omnipresentes e não é possível apanhá-los. Enquanto a mafía italiana foi abalada nas suas estruturas, as actividades dos bandos chineses, nomeadamente das tríades, aumentaram avassaladoramente.
Só em Munique há setenta e oito restaurantes chineses e cada vez abrem mais. A Catorze K - invisível para a polícia - domina tudo desde o tráfego de drogas ao jogo e à prostituição e mata aqueles que não vergam. Isto não acontece apenas em Munique. Em Hamburgo, Frankíurt e Berlim os chefes da secção para o crime organizado também estão encostados à parede. O comissário Karl-Heinz Huber, da Polícia de Segurança Pública de Munique, disse-o claramente:
”Conhecemos o verdadeiro significado do silêncio através dos comerciantes chineses. Sorriem, mas não falam. Como suspeitos só estavam em questão os dois homens que tinham entrado no Lotus antes das 23 horas. Peter Probst estava convencido disso. O chinês e o alemão de cabelos brancos. Ambos usavam fatos pretos. Fora afirmado pelas testemunhas que pareciam muito distintos. E o de cabelos brancos coxeava bastante. Havia a possibilidade de ter uma prótese na perna. Era uma pista importante e concreta; agora só o acaso ou a sorte poderiam ajudar a encontrar aquele homem num restaurante chinês.
Mas isso não agradava a PP: como poderia um branco trabalhar para as tríades? Isso ia contra todas as regras da sociedade secreta que tinham sido estabelecidas há mais de três mil anos. Sabia-se que os membros da tríade Catorze K usavam fatos pretos sempre que entravam em acção. Assim sendo, os suspeitos eram da Catorze K. No entanto, essa temida tríade nunca incluiria nas suas fileiras um alemão. Impensável!
A partir daí, decidiu reforçar a observação dos restaurantes chineses, sobretudo para apanhar o homem de cabelo branco.
Permanecia uma questão:
Estariam as tríades a mudar? Teriam começado a utilizar colaboradores internacionais? Estariam a desviar-se das regras que prescreviam que só chineses ou asiáticos poderiam ser utilizados? Estaria a Catorze K a fazer alguma experiência? Se os europeus também pudessem fazer parte das tríades, o crime organizado tornar-se-ia inultrapassável. Por outro lado, abria-se a possibilidade de colocar ”toupeiras” no seio das tríades, contactos policiais que informariam sobre todos os actos. Até à altura, poucos chineses se tinham prestado a ser denunciantes e esse processo tornara-se um fracasso. Quatro denunciantes tinham sido horrivelmente torturados e três haviam desaparecido sem deixar rasto, surgindo mais tarde com nomes falsos. De momento, o Décimo Terceiro Comissariado estava de novo sem contactos no seio das Wades. Esperava-se apenas que a observação trouxesse alguma novidade.
Peter Probst previa um futuro muito difícil e tremia só te pensar em 1997, altura em que a República Popular da China marcharia sobre Hong Kong. Não se poderia impedir uma fuga em massa. Segundo informações da Interpol, nos anos anteriores, trinta e cinco milhões de chineses tinham-se espalhado pelo resto do mundo, passando por Hong Kong. Trinta e cinco milhões de chineses em fuga. Quase tanto como a população espanhola!
”Se continuarmos tão fracos como até agora, daqui a alguns anos o Ocidente será obrigado a capitular. Não temos meios para suster o crime organizado.” Peter Probst bateu com o punho na secretária.
- É tudo uma merda! - vociferou em voz alta.
Uma merda!
O inspector Lauffen meteu a cabeça na porta.
- O que disseste, Peter?
- Nada! - PP levantou-se da cadeira. - Vou beber uma cerveja... Tenho a garganta seca.
No dia seguinte, os jornais assustavam os leitores com grandes cabeçalhos:
Homicídio duplo em Wessling. Dois russos enforcados.
Vingança ou guerra de gangs? A polícia tacteia às escuras.
Irá Munique tornar-se outra Palermo?
A polícia de Stamberg pedira meios auxiliares ao departamento de homicídios de Munique e informara também o comissariado para o crime organizado.
Rathenow estava também a ler o jornal, como todas as manhãs, e deixou-o cair, como se tivesse queimado um dedo. Os dois clientes do Mandarim Negro. Ninglin e os cinco assassinos chineses. A ordem de Min Ju: ”Tratem dos homens. Se forem russos, já sabem o que têm a fazer.”
Rathenow hesitou, mas encheu-se de coragem e telefonou para a polícia.
- A secção de homicídios, por favor. Uma voz muito oficial respondeu.
- De que se trata?
- Só desejo falar com o comissário.
- O seu nome?
- Isso não é importante. Faça a ligação...
- De onde está a telefonar?
- Vá para o diabo! Quero falar com o chefe da secção de homicídios e não fazer uma biografia!
Ouviram-se três toques e outra voz respondeu.
- Benicke. Quer falar comigo?
- É da secção de homicídios?
- Sou o chefe do departamento.
- Dois russos foram mortos ontem. Conheço os assassinos...
A voz de Benicke manteve-se tranquila.
- O senhor é a décima quarta pessoa que telefona a dizer que conhece os assassinos. Tudo pistas falsas! Então, quem foram?
- A tríade Catorze K! - Rathenow respirava pesadamente. Ouviu um ligeiro ruído na linha. ”Agora ligou o altifalante. Todos os agentes estão a ouvir.” - Um oficial da tríade e cinco assassinos. Estava junto deles quando os russos foram condenados à morte.
- Quem é o senhor? - A pergunta surgiu calmamente. Benicke não se deixava abalar com facilidade. Uma pessoa que dirige os homicídios há quinze anos não se excita com qualquer coisa.
- Qual a importância de um nome? Estou a dizer a verdade. Isso chega.
Rathenow desligou. Sentia-se, de certo modo, mais liberto, mas também teve medo. Quando Min Ju descobrisse que fora traído, lembrar-se-ia imediatamente dele. Um irmão das tríades nunca informaria a polícia. O pensamento de Min iria desencadear uma cadeia de horrores: tortura, enforcamento e em Kunming a morte de Liyun.
”Meu Deus, faz com que o Min Ju não perceba!” No Décimo Terceiro Comissariado, PP lia o primeiro relatório que o Próprio Benicke lhe trouxera:
Os dois russos mortos foram identificados como sendo Bons Likanovitch Smolzev, de trinta e cinco anos e Fedor Antonovitch Jorganov, de trinta anos, ambos sem profissão. Segundo informações das autoridades de emigração, estavam ilegalmente em Munique. Desconhecem-se as suas actividades aqui no país. Os nomes foram retirados dos passaportes que, no entanto, podem ser falsos. Os passaportes estão a ser investigados pelos técnicos criminais.
Primeiro relatório do médico da polícia, Dr. Franz Krummeisen:
Ambas as vítimas morreram por volta das vinte e duas horas. Causa de morte: vários ferimentos e mutilações graves. As armas do crime foram provavelmente machados, facas e armas de tiro. Primeiro resultado; a ambas as vítimas foram cortadas as orelhas, as línguas arrancadas, o baixo-ventre trucidado e os órgãos genitais cortados. Os crânios foram esmagados. Nas costas de Jorganov foi encontrada uma bala de 9 mm. O tiro não foi mortal. A morte adveio da mutilação total da calote craniana. É de supor que todas as mutilações do corpo tiveram lugar antes da morte.
O Instituto de Medicina Legal fará um relatório mais exacto. Supõe-se que sejam vários os autores do crime. Primeiras conclusões: Suspeita-se que os dois mortos tenham sido vítimas de uma guerra de gangs. Apesar de desempregados, foi encontrada no apartamento a quantia de mais de quinze mil marcos alemães. Isso aponta para uma colaboração com a mafia russa ou com uma actividade ilegal e lucrativa.
- Voltamos a trabalhar juntos - disse Benicke cheio de azedume. - Os teus malditos organizados! PP, tens conhecimento se entre os mafiosos domina a predisposição para a guerra?
- Estão todos sempre em guerra: contra a concorrência, contra novas fundações e contra nós! Interessante é o teu relatório sobre o telefonema anónimo.
- Ele afirma que a tua bem-amada Catorze K está por trás disto.
- O tipo de mortes leva a essa conclusão, mas eu não acho! O mais importante é a frase: ”Estava junto deles quando os russos foram condenados à morte.” Foi isso que me fez disparar o alarme.
- Diz lá! Conheces a pessoa que telefonou?
- Sim, conheço.
- Meu Deus, PP! - Benicke levantou-se como se trespassado por corrente eléctrica. - Então, há uma fenda no muro!
- Não. - Peter Probst voltou a entregar a Benicke o primeiro depoimento.
- Confessa que não estás a dar nomes porque ainda queres continuar a observá-lo! - Benicke inclinou-se à frente de PP - Não podes fazer-me isso, Peter! Tenho aqui dois homicídios. Os assassinos podem pertencer às tuas tríades e tu encobres! Não é justo. Pouco académico! Tu sabes o nome da pessoa que telefonou...
- Era bom! - PP levantou a mão para acalmar o irritado Benicke. - Conheces o caso Yan Xiang.
- Que pergunta idiota! - Benicke estava zangado. Todas as averiguações falharam! O que tem o caso Yan a ver com a morte dos russos?
- Suspeitamos que um europeu tomou parte do homicídio no Lotus, que foi indubitavelmente perpetrado pelas tríades. Um alemão. Alto, cabelos brancos, coxo. Estás a perceber?
- Tu achas... - Benicke olhava incrédulo para PP. É uma suposição muito aventureira...
- Nunca houve um branco a trabalhar para as tríades. E muito menos um assassino. É um privilégio dos chineses. Não digo que o homem de cabelos brancos tivesse operado no caso dos russos, mas sabia disso. Depois telefona-te porque não se sente um membro das tríades de corpo e alma. Lutz, eu bebia agora três conhaques: temos uma ”toupeira” na Catorze K. E trabalha por conta própria! A razão por que o faz, não sei. Motivos pessoais? Desejo de aventura? Quando as tríades o descobrirem, que Deus o proteja! Terás um morto na mesa que ninguém conseguirá identificar.
- E é tudo? - perguntou Benicke, desiludido. --Que queres mais?
- Nome e morada.
- Então vai à Madame Azuna e pede que te deite as cartas. Estamos na caça ao homem dos cabelos brancos e, seja quando for, apanhá-lo-emos! Mas as suas informações... se houver mais... são de fiar. Tenho a certeza de que o duplo homicídio de Wessling pode ser posto na conta da Catorze K.
- E isso é o fim do pau da bandeira...
- Por agora, sim! - PP encolheu os ombros, resignado. - Não temos factos para desencadear uma grande rusga! E onde devemos começar a rusga? Não sabemos onde é o quartel-general da Catorze K... Se soubéssemos, já não existiria. Além disso, se formos fazer perguntas só ouviremos risos e silêncio. Podemos poupar-nos a essa vergonha. Deposito todas as minhas esperanças na possibilidade de apanharmos o homem de cabelos brancos. O facto de coxear e eventualmente usar uma prótese traí-lo-á.
- Isso para mim significa: o duplo homicídio de Wessling vai para os casos não solucionados.
Benicke levantou-se e foi para junto da janela. Na rua via-se o movimento habitual e na estação ferroviária em frente entravam e saíam grandes quantidades de pessoas. Estava de novo um quente dia de Verão, os homens andavam de manga curta e as mulheres de saias curtas e decotes pronunciados. O céu estava muito azul. ”Vocês andam por aí despreocupados, sem saber o que se passa nos bastidores de Munique”, pensou Benicke. ”Leram o jornal e ficaram receosos durante uns instantes. Não mais do que isso. Dois russos... e depois? Talvez membros da mafia... Que se matem uns aos outros! Quantos menos, melhor. A polícia não consegue fazer nada... Já estamos habituados! Multas de estacionamento já sabem passar. Mas em relação ao crime organizado, andam de calças na mão e devem ter sido os chineses outra vez! Que disparate! Comemos tantas vezes em restaurantes chineses... São sempre tão amáveis e corteses, sempre a sorrir... Não são tão antipáticos como muitos empregados alemães que se sentem ofendidos quando os chamamos. Sempre os chineses... A polícia esconde a sua incompetência atrás deles. Como explicariam as coisas se não existissem chineses? Assim podem empurrar as culpas todas para eles...”
Benicke regressou da janela. PP sabia o que perturbava Benicke, pois tinha o mesmo sentimento.
- Somos os palhaços de Munique - observou ele. já estou habituado a isso. Mas os colegas de Hamburgo, gstugarda, Frankfurt, Berlim e Dusseldorf estão na mesma. Nos locais onde as tríades constróem as suas ”cidades-dragão”, os polícias parecem cães cegos que apanham o cheiro, mas não encontram os que fedem.
- Devíamos sacudir um pouco mais o público, Peter. AS informações que obtêm são vergonhosas. Todos deviam saber que...
- Pára! - Peter Probst abanou a cabeça. - O tiro sairia logo pela culatra. Os meios de comunicação gritariam imediatamente: ódio aos estrangeiros, racismo, difamação de povos estrangeiros e caça às pessoas com outra cor de pele. Será que o espírito nazi ainda existe na polícia: ”Estrangeiros, fora!”? Façamos o que fizermos, levamos sempre um pontapé no rabo. Se nos calamos e fazemos tranquilamente o nosso trabalho, está errado. Se abrirmos a boca e dissermos apenas uma parte da verdade, é ódio aos estrangeiros. A humanidade tornou-se esquizofrénica. Já não a podemos travar. As criações mais amadas de Deus transformaram-se em perseguidores do erro. Um dia seremos aniquilados como dinossauros. Pereceremos perante o nosso próprio esplendor.
- Por que razão vieste para a polícia criminal e não te tornaste filósofo? - perguntou Benicke, mas não havia ironia na sua voz.
PP riu-se e levantou os braços.
- Experimenta ter um pai que era comissário da polícia e, como tal, patriarca absoluto.
- Como os Chineses. - Benicke riu-se alto. - E agora tens os Chineses atravessados na garganta! Vem! Guarda os papéis e vamos embora! Ofereço-te uma bebida. Vamos tomar uma cerveja.
Quatro dias mais tarde, Rathenow vestiu o seu fato preto e camisa branca, colocou uma gravata prateada, bebeu uma vodca com laranja para lhe dar força, meteu-se no carro e Seguiu para a cidade, dirigindo-se ao Restaurante Mandarim Negro.
Na véspera Min Ju telefonara-lhe.
- Bai Juan Fa - dissera -, amanhã é o teu grande dia! Será uma ocasião festiva. Prepara-te para te tornares um Hong! Semeia essa grande honra no coração!
- Às tuas ordens, Min Ju! - respondera Rathenow. Uma luta desencadeara-se dentro da sua cabeça. ”Amanhã! Amanhã deixas de ser Hans Rathenow. Amanhã estarás morto. Liyun, não há fuga possível. Não podem fazer-te mal, não podem matar-te por minha causa. Só por isso me tornarei um Hong. Porque te amo.”
- Eu não ordeno nada - dissera a voz de Min Ju e Rathenow só teve vontade de esmagar o telefone contra a parede. - Não precisas de vir. Ninguém te obriga a isso.
- E se eu não fizer os trinta e seis juramentos de sangue?
- Nesse caso, não te tornarás um irmão. - Min Ju estava com uma voz estranhamente triste. Fazia-lhe lembrar a cantilena invariável que era habitual no enterro de um chefe da tribo dos lanomami na floresta virgem de Roraima, no Norte do Brasil. - Voará um faxe para Hong Kong dirigido ao gao Ião e seu Alto Conselho. O gao Ião falará com Kunming e mandará ”limpar as orelhas” a Liyun também. Min respirara fundo. - Eu também sofrerei com isso. O gao Ião afirmará que a experiência falhou por minha causa e, mesmo que não tenha razão, não podemos contrariá-lo.
- Significa que a Liyun e eu morreremos.
- Tu já sabes de mais, Bai Juan Fa.
- Então o que quer dizer: ”Ninguém te obriga a isso?”
- Claro, a decisão é tua. - Min Ju calou-se durante uns instantes. - A vida é a parte mais bela da eternidade. Pensa nas palavras do poeta Wang Wei que viveu nos primeiros anos da dinastia Tang:
Desceu do cavalo e entregou-te o vinho e perguntou-te porque te ias.
Tu disseste: Não tenho sorte no mundo,
quero descansar nos longínquos abismos do Nan-chan.
Então vai, meu amigo! Não te perguntarei mais;
lá as nuvens são brancas e não têm fim.
Escreveu isto no ano de setencentos e quarenta e nove e é intemporal! Bai Juan Fa, sê um homem sábio! Não devemos deitar fora a vida, já de si tão curta.
Rathenow calou-se durante algum tempo enquanto ponderava as palavras de Wang Wei.
- Eu vou, Min Ju. A que horas?
- Deverás estar aqui às vinte e três horas, novo irmão. Agora já era noite. Rathenow olhou-se ao espelho antes de entrar no carro. Um rosto estranho, um homem desconhecido olhava para ele. Cabelo louro, óculos, um fato preto de bom corte, feito por um dos melhores alfaiates de Munique.
- Adieu, Hans Rathenow - disse dirigindo-se ao desconhecido do espelho. - E bem-vindo Hong Bai Juan Fa. Sandália de erva. Escravo das tríades. Odeio-te, mas salvas a vida à Liyun.
No Mandarim Negro o empregado recebeu-o com imenso respeito e grandes atenções.
- Ainda tens meia hora - disse ele a Rathenow em voz baixa. - Antes ainda comerás qualquer coisa.
- Obrigado, mas não consigo engolir nada.
- Tens de comer alguma coisa. - O criado acompanhou-o, como sempre, até à mesa no nicho. - Ali atrás estão dois agentes da polícia a observar tudo. Se não encomendares nada, tornar-te-ás suspeito. Come uma sopa com galinha e massa. Consegue-se comer mesmo quando temos a garganta apertada. E, para acompanhar, cerveja.
Estavam perto de catorze clientes no restaurante, sendo todos alemães, à excepção de dois asiáticos que vinham, aparentemente, da Coreia do Sul. Rathenow acenou com a cabeça e olhou para os dois polícias. Estavam ali sentados como clientes normais, já tinham comido e bebiam agora vinho de ameixa quente que Zou Shukong lhes mandara Servir como agradecimento. Também já tinham pago uma das ementas mais baratas - o departamento de despesas da Polícia não permitia refeições de luxo. Deitaram apenas um breve olhar a Rathenow e continuaram a conversar.
Não tem cabelos brancos, nem coxeia... Desinteressante.
”Agora seria muito simples”, pensava Rathenow. ”ir ter com eles, dizer quem és e depois trair: na cave existe um templo chinês. Estão lá todos os oficiais da tríade Catorze K à espera do novo membro da família. Por trás do templo existe um gabinete e uma grande sala de reuniões: homens este é o quartel-general das tríades de Munique. O seu chefe chama-se Min Ju. Peçam reforços e cerquem o restaurante De um golpe, acabarão com a Catorze K de Munique. Será o maior triunfo da história da Polícia Judiciária de Munique: a aniquilação de uma cidade-dragão. E eu mostrar-vos-ei o maior Satanás da Catorze K: Aisin Ninglin, o dragão sem coração. O monstro que despedaça pessoas e lhes arranca, membro a membro, todas as partes do corpo ainda em vida. Munique ficará livre das tríades até chegar outro Min Ju e fundar outra cidade-dragão.
Seria assim tão simples? Tão diábolicamente simples?
Mas calar-me-ei. Fazer da Liyun uma vítima? Um amor que nunca mais voltará? O pai, Wang Biao, a mãe, Jiang Sha, a irmã Min e o irmão Chuan. E não seria só a Liyun a morrer. A vingança das tríades chegará a todos os membros da família da Liyun. Que eu seja amaldiçoado para toda a eternidade, mas não sou capaz! Haverá outro caminho. Procurá-lo-ei e acabarei por encontrá-lo. Isso vos prometo. Vou passar a ser um Hong, mas com isso irão meter uma cobra venenosa dentro de casa. Esperem...”
Rathenow ficou sentado, comeu a sopa, bebeu a cerveja, mas estava confuso com o que poderia acontecer a seguir. Será que Min Ju se deixaria ver? Como é que iria para a cave sem ser notado? Ir à casa de banho, claro, contudo, depois de algum tempo, teria de regressar à sala para não dar nas vistas.
O problema resolveu-se por si. Como não estava ninguém suspeito no restaurante, os dois polícias levantaram-se e abandonaram o Mandarim Negro. Rathenow olhou para eles e acabou de beber a cerveja. ”Seus idiotas! Debaixo dos vossos cus está a mais procurada organização criminosa de Munique. Como a vitória e a derrota se tocam!”
O empregado aproximou-se da mesa.
- Podes descer. - Deu uma palmada no ombro de Rathenow. - Bem-vindo, irmão. Estou muito contente. Que tenhas uma longa vida!
Min Ju recebeu-o e agarrou na mão de Rathenow.
No templo todas as velas e lamparinas estavam acesas e as suas chamas reluzentes iluminavam a dourada figura de Buda, que parecia estar vivo. À esquerda e direita do Buda, viam-se duas filas de oficiais das tríades, ombro a ombro, que olhavam em silêncio para Rathenow, enquanto Min Ju o conduzia pelo santuário. Pauzinhos aromáticos enchiam a enorme sala de um cheiro doce a ervas e o fumo espesso subia em nuvens brancas para o tecto de madeira artisticamente esculpido, com quadros onde se viam dragões e fénix, flores de lótus e letras douradas. Uma longa passadeira vermelha ligava a porta ao altar, sobre o qual se viam baixelas douradas com fruta e flores e pequenas folhas coloridas onde eram escritos os desejos que se pediam ao deus. Nas paredes forradas a seda amarela movimentavam-se, devido ao fraco vento que vinha do ar condicionado, longas bandeiras brancas em paus de bambu, pintadas com máximas e sentenças de velhos poetas e sábios: Li Taibo, Shijing, Lao-Tseu, Confucio, Han Yu, Tang Yin e Wang An-Shi.
Não se sabendo de onde, começaram-se a ouvir os sons de uma harpa e de duas flautas. Uma espécie de sons que abriam e fechavam, como faziam os pastores há milénios, ias rotas da seda. Uma melodia que, contudo, provavelmente devido à sua tonalidade monocórdica, chegava à alma. Rathenow ficou parado a três passos, olhou para o Buda dourado que parecia vivo e depois para os oficiais das tríades, todos de fato preto e com expressões sérias e tensas. Olhavam para ele como se fossem bonecos, imóveis, inexpressivos, quase sem vida.
Min Ju, que continuava agarrado à mão de Rathenow, aPertou-a.
- Continua! - sussurrou. - Continua. Ajoelha-te perante o Deus.
- Só me ajoelho perante o meu Deus! - murmurou Rathenow. - E há vinte anos que não o faço.
- Ouve! Será entoada uma canção em tua honra! Na tua língua materna. Foi escrita por Liu Chang-Tjing no ano oitocentos e um... Ouve!
Na vastidão do templo começou a ouvir-se uma voz clara. Rathenow não conseguia ver de onde vinha. Era como se saísse das mãos estendidas do Buda. Uma voz, clara como a de uma rapariga, clara e pura, e, no entanto, era um homem que cantava:
Ao som suave das tuas sete harpas
ouço o vento assobiar por entre os pinheiros.
Ouço com prazer a canção de tempos idos,
que as pessoas do nosso tempo mal compreendem...
Min Ju voltou a apertar a mão de Rathenow.
- Entendes o que o sábio quer dizer com aquilo?
- Creio que sim. É um hino à imortalidade. Uma canção que nunca se dissipa: o vento assobia pelos bosques.
As flautas e harpas silenciaram-se subitamente. Min Ju e Rathenow continuaram a andar devagar, passando pela fila de membros das tríades de fatos pretos, até chegarem ao altar onde estavam as oferendas, os castiçais de porcelana e os apoios de pauzinhos de incenso. Com a cabeça baixa, Rathenow olhava para o rosto sorridente e para os olhos fechados do Buda dourado. A resistência interior que até então reinara dentro dele, o desejo de não se deixar enredar pela mística, todos os pensamentos sarcásticos: ”Que peça de teatro barata, uma peça de teatro que encenaram para ti para que adiras à alma oriental...”, toda a sua resistência se quebrou perante aquele divino rosto dourado. Não se ajoelhou, mas cruzou os braços sobre o peito, não conseguindo libertar-se do sorriso de Buda.
Voltou a acordar e retomou a consciência quando ouviu a voz de Min a seu lado, falando em alemão.
- Irmão! Reunimo-nos para te incluir na nossa família como um Hong. Pensei muito se seria o melhor caminho”! Pedia a Buda que me iluminasse e conselho ao gao Ião de Hong Kong. O Alto Conselho determinou-o, e é assim que será. Bai Juan Fa, vira-te para mim e para os teus futuros irmãos. Pergunto-te perante a tua família: Queres entregar a tua vida nas nossas mãos tal como os teus irmãos entregaram as suas e das respectivas famílias? Queres jurar fidelidade à sociedade dos três-em-um, céu-terra-homem, Tin Tei Wui, a nós, as tríades, e ser acolhido na comunidade dos imortais? Pensa bem!
- Não há mais nada para ponderar! - afirmou Rathenow. A expressão da sua voz parecia ferro em brasa.
- Então, dá-me o teu dedo de juramento.
Do fundo da sala apareceu um chinês que usava roupagem de sacerdote, mas não era amarela ou cor de laranja. Era negra. Trazia consigo uma pequena taça de porcelana, uma faca fina e afiada e um tampão de algodão.
- Agarra na faca - ordenou Min Ju, segurando a taça por baixo do dedo de Rathenow. - Espeta-a no membro e bebe o sangue que jorrar. Com ele afianças a validade do teu juramento de fidelidade e se o quebrares só o poderás pagar com sangue. Agarra na faca!
Rathenow cerrou os dentes. Voltou a sentir a resistência interior. O rosto do Buda já não reluzia em frente aos seus olhos. ”Tudo isto não passa de uma encenação”, voltou a dizer a si próprio. ”Tal como no Winnetou do Karl May. Irmandade de sangue. É ridículo.”
Rathenow cortou o dedo, meteu-o na boca e sugou o sangue. Depois, deixou cair algumas gotas na taça de porcelana e colocou o pedaço de algodão sobre o dedo. O sacerdote afastou-se com a taça. Contudo, a faca afiada foi colocada em frente ao Buda ao lado da fruta e flores. Deus... e nós seremos os teus juizes!
Da fileira de membros das tríades saiu um segundo homem e abriu uma pasta. Entregou-a a Min Ju e voltou a ingressar na fileira.
Min Ju olhou para Rathenow durante algum tempo e continuou.
- Há mais de cento e cinquenta anos que todos os Membros das tríades prestam o juramento de sangue, que também pagam com o seu próprio sangue. Hoje, pela primeira vez, esse juramento sagrado está a soar numa língua estrangeira. É uma honra para ti, pois mais ninguém a obteve. Ouve os trinta e seis juramentos e repete-os um a um. Levanta o dedo do juramento e, a cada frase, pergunta a ti próprio se o irás honrar e manter.
Min Ju aproximou o documento dos olhos. Como música de fundo soava novamente uma harpa. Deveria ser uma ocasião festiva, mas Rathenow voltou a pensar: ”Que piroso. Um melodrama de mau gosto. Era assim que se rodavam em Hollywood os filmes chineses, e os espectadores ficavam colados às cadeiras. Jurarei tudo, como desejas, Min Ju. Para mim é uma peça de teatro barata em que entro como figurante.
Mesmo que o vosso juramento tenha cento e cinquenta anos, não me ligarei a ele. Foi escrito para vocês, chineses, para a vossa própria mentalidade. Não tenho nada a ver com isso. Aquilo que vou prometer é como o vento, palavras que se dissipam.”
No entanto, Rathenow enganava-se. Quando mais repetia o que Min Ju dizia, mais sentia um aperto no coração. No final do juramento de sangue, Rathenow estava de tal maneira perturbado que desfaleceu e foi apoiado por Min Ju. ”O que é que eu acabei de jurar?”, perguntou a si próprio. ”Meu Deus, o que fiz? Agora sou um membro das tríades, um Hong, mas como pessoa sou um nada.”
Min Ju começou a ler e Rathenow repetiu tudo frase por frase com o dedo de juramento levantado. Algumas gotas de sangue caíram ainda da pequena ferida e desceram-lhe pela mão até ao punho da camisa.
Eu, Bai Juan Fa, ajoelho-me perante o Deus e faço o juramento de sangue à minha insolúvel irmandade.
Um silêncio gelado seguiu-se ao final do juramento. Os membros das tríades, aqueles bonecos de pau vestidos de negro e sem vida, confirmavam com o seu ameaçador silêncio que, após o juramento, o novo irmão lhes pertencia. Rathenow percebeu-o com a mesma intensidade com que se defendera até então. Quando baixou o dedo do juramento, quando Min Ju o abraçou, o puxou para si e o beijou nas faces, sentiu-se como se estivesse deitado num caixão aberto; ao iniciar o caminho para a maldição eterna, por entre as fileiras de mandarins negros, centenas de olhares caíram sobre ele. Todos lhe gritavam para dentro do caixão: ”Mentiste! Traíste-nos com cada palavra do teu juramento! Enganaste-nos! Não fizeste um juramento: enganaste-nos!”
Rathenow levantou a cabeça e encostou-se a Min Ju como se ele fosse uma coluna de pedra.
- Preciso de beber alguma coisa - gaguejou. Parecia o estertor de um moribundo. - Tragam-me algo para beber!
Um dos membros das tríades saiu a correr da fileira. ”Ajudarei sempre os meus irmãos... está a ser praticado neste momento.” Alguns segundos depois, o homem regressou com um grande copo de água que entregou a Min, que, Por sua vez, o meteu na mão de Rathenow. Como se estivesse a arder por dentro, Rathenow lançou a água para denfro de si. Isso, libertou-o das tonturas e permitiu-lhe ver Com clareza quem o rodeava. ”Agora só falta a minha querida vodca, só um copo, e a fraqueza será vencida. É uma experiência nova para mim. Antigamente, teria deixado pasSar esta cerimónia teatral com um riso interior e alinhado
no jogo, com seriedade e dignidade, como se o juramento e suas consequências fossem verdade. Hoje tudo mudou. Estás perante este Buda dourado e sentes que entraste num outro mundo e que o teu eu começa a mudar. Por que razão não te defendes contra isso? Onde está a tua força’’ Aquela vontade de viver que sempre te acompanhou e te auxiliou? O que sobra de ti? Porque estás a levar tão a sério este juramento? O que é que mudou? És o doutor Hans Rathenow e assim continuarás, mesmo que te ponham um casaco pelas costas bordado com Tin Tei Wui... céu-terra-homem... Estás a participar num jogo, mesmo que possa terminar com a morte. Para tal, precisas de manter a tua força! Assume o juramento como uma máscara e coloca-a sobre o rosto. O rosto que fica por baixo da máscara é o teu verdadeiro rosto. Não és o que mostras, mas sim o que na realidade és.”
Rathenow devolveu o copo e virou-se para Min Ju. Este ria-se de contentamento.
- Já passou - disse Rathenow, procurando dar firmeza à voz. - Perdoa, irmão Ju.
- Sentes-te melhor?
- Muito melhor.
- Compreendo. - Min Ju colocou o braço sobre os ombros de Rathenow. - Já ajuramentei novos irmãos Hong que desmaiaram depois do juramento ou que caíram para o chão a tremer como se fossem epilépticos. Mais água, Hong Bai Juan Fa?
- Obrigado. Neste momento bebia uma vodca.
- Nós não temos vodca. - Min largou-o. - A vodca vem da Rússia e a Rússia é comunista. Odiamos o comunismo e lutamos contra ele desde que Mao o fez entrar na nossa pátria. Nenhum membro da Catorze K jamais bebera vodca. Se fosse a única bebida que nos matasse a sede, nunca lhe tocaríamos. Seria preferível beber o nosso próprio sangue. Eu sei que gostas muito de vodca. Desiste pois agora és um Hong e passaste o portão de entrada para a tua família. Podemos continuar?
- Ainda não acabou? - perguntou Rathenow. O que há mais?
Min Ju acenou com a cabeça. Vindo do fundo do templo, surgiu o sacerdote. Nas mãos trazia um galo branco que elevou perante o Buda dourado. Um homem saiu da fila do lado esquerdo. Transportava nas duas mãos uma espada embutida com ouro e pedras preciosas como se fosse depositar uma oferenda. Ficou de pé ao lado do sacerdote e olhou para Rathenow com um rosto de pedra. A harpa calou-se e uma flauta começou a tocar uma melodia triste e dolorosa. Os sons ecoavam pelo templo como se viessem de outras esferas. Rathenow percebeu que através daquela melodia se poderia entrar em transe e defendeu-se interiormente contra o efeito. ”Resistirei até as fraquezas desaparecerem. Nessa altura, poderei pensar com mais clareza.” Depois, estremeceu quando ouviu a voz de Min.
- Irás separar a cabeça do corpo do galo - afirmou ele com uma voz bastante festiva. - Tomarás a espada do imperador Ming e cortarás o pescoço do galo de um só golpe. É a tua maneira de jurares que o mesmo te acontecerá se fores expulso da família devido a infidelidade ou traição. A cabeça do galo pode ser a tua cabeça. Estás pronto?
Rathenow anuiu em silêncio. O homem entregou-lhe a espada. Ele pegou-lhe, agarrou o punho cravejado de pedras preciosas e baixou-a. Fora mais fácil do que supusera, mas também sabia que a aresta estava mais afiada do que uma lâmina de barbear e que era possível cortar com ela papel de arroz no ar.
Min Ju foi ao seu encontro.
- Já alguma vez cortaste a cabeça a um galo? - perguntou Min em voz baixa.
- Não! Nunca precisei.
- Então, vou explicar-te. Agarras o galo pelas asas, baixas-lhe a cabeça e cortas-lhe a cabeça com um só golpe. Os camponeses usam um bloco de madeira, mas nós cortados-lha no ar. Segura-o bem! Senão, ele foge de ti, mesmo sem cabeça.
- Isso eu sei.
Rathenow respirou fundo. ”Será este o final da cerimónia ou ainda há mais rituais? Exigirão que eu mate também um homem? Que devo fazer se quiserem obrigar-me a isso?” Não encontrou respostas para aquelas perguntas. Subitamente, começou a tremer.
- Precisas de ter a mão firme - ouviu Min Ju dizer. - Um lutador só vê o inimigo e não as suas próprias feridas
- Não sou nenhum combatente. Apenas um sandália de erva.
- Até um cho hai deve saber defender-se. Nele também vivem as tradições dos mandarins que impunham respeito devido ao seu poder e força. - A voz de Min assumiu um tom de comando. - Agarra na espada do imperador e corta-lhe a cabeça.
O sacerdote entregou-lhe o galo que se debatia, gritando para que o agarrasse com a mão esquerda, apertando ambas as asas. Obrigou o animal a baixar a cabeça e cerrou os dentes quando olhou para os olhos esgazeados. Olhos que lançavam o medo da morte.
A flauta invisível continuava a entoar o cântico triste, Os olhos dos irmãos fixavam-no e o sacerdote deu três passos atrás. O sangue, que começou imediatamente a jorrar do pescoço cortado, não o deveria atingir. Já não precisava. Há cinquenta e dois anos, já cortara a cabeça a um galo branco, como Hong Bai Juan Fa, num templo junto a Keung Shan. em Lantau, a maior ilha pertencente a Hong Kong, situada no mar da China Meridional. Nessa altura, o sangue do animal borrifara-lhe todo o corpo porque encostara o animal muito a si. Aconteceria o mesmo com Hong Bai Juan Fa? Rathenow superou a repugnância que sentia e levantou a espada. Na lâmina que parecia prata, reflectiam-se as luzes das velas e lamparinas. Tirou as medidas com os olhos semicerrados, baixou a espada, cortando primeiro as pontas dos finos pauzinhos aromáticos e atingiu o pescoço do galo. A cabeça decepada caiu a seus pés, mas ele manteve a ave bem segura, o sangue jorrou para cima da passadeira vermelha e nem reparou que o sacerdote lhe retirara a espada das mãos, recuara e a pousara no chão à sua frente.
Não demorou muito tempo até o galo se imobilizar defininitivamente e os seus nervos aceitarem a morte. O sangue parou de jorrar. Min Ju tirou o corpo sem vida das mãos de Rathenow e levou-o até ao Buda dourado. Colocou-o no altar perto das outras oferendas ao deus e regressou para junto de Rathenow.
- Irmãos - disse ele a seu lado -, a nossa família tem mais um filho. Recebam-no de maneira adequada à sua dignidade.
Nessa altura, as figuras negras dirigiram-se a ele, homem atrás de homem, numa longa fila. Abraçaram-no, deram-lhe o beijo fraterno na face e disseram-lhe em chinês: Chang shou, xing fu! Vida longa e muita sorte!
O último a chegar até ele foi Aisin Ninglin. Abraçou-o, mas não o beijou e, enquanto se abraçavam, Ninglin falou ao ouvido de Rathenow.
- Tenho de te chamar irmão, mas tu és um embuste. Nada mudou entre nós.
- Isso tranquiliza-me. Não gosto de ser irmão do Diabo - sussurrou Rathenow.
Com isto, terminara a sua entrada na tríade Catorze K. Zou Shukong mandara fechar o Mandarim Negro às onze horas e pusera as mesas de lavado. Por todo o lado viam-se agora as grandes mesas redondas rotativas com as entradas e molhos. Na cozinha estavam quatro cozinheiros a trabalhar nas especialidades que Zou preparara para o jantar festivo. Quando Rathenow subiu as escadas da cave, Zou estava à sua espera e abraçou-o como todos os outros membros das tríades. Não lhe emitiu nenhum desejo de felicidades, elogiando o novo irmão à sua maneira.
- És um dos poucos de toda a sociedade que sabe apreciar o que cozinho. Sabes gozar uma refeição. Nota bem que Deus deu aos homens uma língua que não serve apenas para falar, mas sim para apreciar o mel do prazer. Gosto muito de ti, Hong Bai Juan Fa, mesmo não sendo chinês. Toma conta de ti!
- Disso podes ter a certeza.
Rathenow entendeu Zou Shukong. O aviso velado surPreendeu-o. Como é que Zou falava com ele daquela maneira? O Mandarim Negro era o quartel-general das tríades de Munique e Zou era a sua fachada pura e polida. No entanto, avisava-o. Porquê? Que saberia Zou? Quais eram as intenções da Catorze K? Que planos dormiam no cérebro de Min JU?
Rathenow olhou para Zou Shukong com os olhos brilhantes. ”Obrigado, irmão. A partir de agora estarei duplamente atento. Falaremos mais vezes sem que Min Ju suspeite. Está a ocorrer-me um bom truque: explicar-lhe-ei que tenho como hobby a culinária e que gostaria de aprender um pouco da mestria culinária de Zou. Zou Shukong, porque é que te manifestaste um membro vacilante das tríades? Tu estás a ferir o ponto treze do teu juramento de sangue: a tua cabeça será cortada como a do galo. Jurei não trair os irmãos e expiar cada hesitação. Como é que confias no meu silêncio?”
Rathenow dirigiu-se à mesa de honra enfeitada com grandes arranjos florais e junto à qual já estava Min Ju. Enquanto atravessava a grande sala, veio-lhe à ideia que já pensava como um chinês e que a sua linguagem mudara. Na sua vida quotidiana, alemã, normal, e até no seu pensamento, apareciam cada vez mais imagens floridas. Não diria mais: ”Vou à porta e abro-a.” Mas sim: ”Quero ver quem gostaria de entrar.”
”Isto é uma loucura. É uma loucura total! Hans, meu velho, seria realmente uma maravilha deixar de ter a vida
- contrariado - a que te habituaste até agora. Investigar, escrever, ténis, golfe, festas, discussões no clube sobre assuntos científicos, políticos corruptos... O futuro está a Oriente. O que é que se vai comer quando estivermos fartos de caviar? Já ouviram o Solti dirigir Mozart? Também são de opinião que os especialistas em genética nos podem cortar as mãos e aniquilar a humanidade? O que acham da nova Bayreuth? Ainda bem que não se pode matar a encenação da música de Wagner. Sabem o que exigem os sindicatos? Têm de ir imediatamente para Bali. Estiveram na China? País maravilhoso... aí os milhões rolam nas ruas, o mercado do futuro! Já souberam que o presidente da estação radiofónica se quer divorciar por causa de uma rapariga de vinte e cinco anos que conheceu nas ilhas Barbados. Vai-lhe custar uma pipa de dinheiro...
Terei realmente de regressar a esse mundo?
Não! Não! Não!
Liyun, tu mostraste-me como se pode ser feliz numa cabana de pedra junto ao lago Lugu. Ensinaste-me que a Lua sobre as montanhas nevadas está no olho do céu. Nunca mais voltarei a entrar no jet-set, no chiqueiro da sociedade de Munique. Vem para mim, Liyun. Juntos, só juntos, conseguiremos libertar-nos das garras das tríades; se não for assim, nunca será possível.”
- Em que pensas? - perguntou Min Ju. Reparara no estado absorto de Rathenow. Olhava fixamente para a frente e nem sequer provara as deliciosas entradas.
- Estou a pensar na Liyun, Min Ju.
- Ah, sim... Liyun. Prometi que te faria uma surpresa após a tua entrada para a nossa família. - Min pousou os pauzinhos numa pequena taça de arroz que estava a seu lado. - Mas não te alegrará. O gao Ião enviou-me uma carta de Hong Kong, pedindo que te mostrasse o conteúdo.
- O que se passa com a Liyun? Presumo que tenha alguma coisa a ver com a Liyun, Min.
- A tua suposição não te engana. - Meteu a mão no bolso do casaco e retirou um comprido sobrescrito. - Era de esperar.
- O que era de esperar? O que se passou com a Liyun? Min, fala! Dá-me o sobrescrito.
Min Ju suspirou e o seu rosto exprimia um grande desgosto. Empurrou o sobrescrito para Rathenow e baixou os olhos.
Rathenow rasgou o sobrescrito. Os seus dedos tremeram ao fazê-lo e, depois, caíram, sem ruído, dois objectos sobre a mesa.
Um caracol de sedoso cabelo negro e uma unha acinzentada e transparente. Uma pequena unha quase infantil. A unha do dedo mínimo.
Rathenow fixou os objectos em silêncio. Sentia-se incapaz de proferir uma palavra. Só sabia uma coisa: ”Cortaram um caracol de cabelo à Liyun e arrancaram-lhe a unha do dedo mínimo. Torturaram-na, trataram-na mal e ela deve ter gritado de dor. Liyun! Liyun!”
- Seus diabos! - vociferou Rathenow. - Malditos monstros.
- Fui obrigado a participar a tua desobediência, Hong Bai Juan Fa. Era um dever a que não podia fugir. Provavelmente, não acreditaste e pensaste que não passava de uma ameaça... Como vês... é verdade. As penalizações que te forem devidas recairão sobre a Lyun. Até devias estar agradecido ao gao Ião.
- Agradecido por ele ter tratado mal a Liyun?
- Foi muito benevolente com uma desobediência. Só lhe cortou uma madeixa de cabelo e arrancou uma unha. Ambos voltarão a crescer. Se fosse outro qualquer, mandar-lhe-ia arrancar a primeira falange do dedo. Isto foi apenas um aviso. O primeiro e o último. É realmente de ficar grato!
Rathenow empurrou a madeixa de cabelo e a unha para dentro do sobrescrito e escondeu-o. Empurrou a cadeira para trás e levantou-se.
- Gostaria de me ir embora! - afirmou.
- Mas o festejo é em tua honra.
- Prescindo dele.
- Estás a ofender a tua família e a quebrar os teus trinta e seis juramentos. Será que é mesmo necessário cortar o dedo da Liyun?
Rathenow cerrou os olhos e voltou a sentar-se. ”Não tens vontade própria, pareces uma marioneta, e as bestas que puxam os fios podem fazer-te dançar, saltar ou girar à vontade delas. Também podem matar-me e à Liyun, e ninguém encontrará os assassinos para nos vingar. Liyun, perdoa-me. Foi a primeira e a última vez que foste castigada por minha causa. É uma promessa, Liyun, uma promessa que vale cem vezes mais do que os trinta e seis juramentos de sangue da Catorze K.”
Finalmente, por volta das três horas da manhã, terminaram os festejos. Os membros das tríades espalharam-se em todas as direcções e sempre um a um, para não dar nas vistas. Tinham os carros estacionados em ruas secundárias que distavam quase dez minutos a pé do Mandarim Negro. Assim, foram precisos quase vinte minutos para que Min e Rathenow ficassem sozinhos no restaurante. Zou Shukong tinha ido para um apartamento que ficava por cima do restaurante. Apenas permanecera o empregado de mesa à espera que Min e Hong Bai Juan Fa saíssem para a cálida noite de Verão.
- Para a semana começa o teu giro, durante o qual deverás apresentar-te - disse Min. - O Ninglin servir-te-á de guia. É o seu último trabalho como sandália de erva. Depois, serás tu próprio a recolher o dinheiro de protecção e não tentes armar-te em cristão. Tenho uma lista e sei qual a quantia que deverás transportar depois de cada giro. Se alguém não pagar e causar dificuldades, informa-me imediatamente através do telefone mais próximo. Nessa altura, o Ninglin tratará do assunto. Não há desculpas. Não acredites neles! Não acredites em ninguém! Todos ganham o suficiente para pagar a taxa de protecção. Não sejas fraco se te atirarem com súplicas! Não discutas com eles. Isso apenas revelará a tua fraqueza! Sai calmamente, do resto tratamos nós. Não te esqueças: és sempre o mais forte mesmo quando te calas. Quando lá voltares, far-te-ão uma profunda vénia. Um chinês precisa de uma mão forte no pescoço. É assim há cinco mil anos e não mudará. Estes ocidentais idiotas que acreditam na democracia! Um povo constituído por mil e trezentos milhões, a quem é dada a liberdade da democracia segundo o vosso modelo, é mais perigoso do que cem bombas atómicas. Afunda-se no caos e ninguém conseguirá organizá-lo nem governá-lo. Pensa sempre nisso. Se pensas que te deves mostrar suave, deverás ser ainda mais duro. Nunca percas a tua expressão! É a situação mais grave, e o teu inimigo não só irá combater-te como desprezar-te-á. Aprende a pensar como nós!
Abandonaram juntos o Mandarim Negro e caminharam em direcções opostas.
Já em casa, em Griinwald, Rathenow atirou-se para cima da cama, libertando, naquele momento, a tremenda tensão interior que sentia. Só lhe apetecia uivar. Retirou o sobrescrito do bolso, colocou a madeixa de cabelo e a unha de Liyun a seu lado, levantou a madeixa até aos lábios, beijou-a e quis gritar: ”Perdoa-me, Liyun!”, mas da sua boca apenas saiu um grunhido.
Os jornais matinais traziam novos cabeçalhos: Yan Xiang, o proprietário de Harlaching que perdeu os olhos, desapareceu. Abandonou secretamente o hospital. Terá sido a esposa? Também está desaparecida. Será que andam a ser caçados pelas tríades?
No Décimo Terceiro Comissariado da Polícia Judiciária de Munique já havia mais informações. Peter Probst tinha a informação à sua frente:
O casal Liu Goufeng abandonara Munique numjumbo da Lufthansa em direcção a Nova Iorque. Os passageiros tinham utilizado um passaporte válido. O senhor Liu usava uns grandes óculos de sol e parecia adoentado. A senhora Liu ajudava-o a caminhar.
- Fechar o processo - disse PP. - Mais um candidato ao pó do arquivo. É claro que o Yan tinha um passaporte falso e, obviamente, nunca mais o veremos. O Lotus será vendido ou trespassado a partir das Baamas. Também é claro que o novo proprietário será chinês e também pagará a taxa de protecção às tríades... em silêncio. - Empurrou o relatório para a frente. - Voltámos a olhar para o buraco! Vão todos levar no cu! - Mas depois de um minuto de silêncio, olhou para os colaboradores. - Só gostava de saber
- afirmou - quem foi o anónimo que telefonou! O tipo que diz saber tudo. A análise de voz demonstrou que não era chinês. Era um alemão! O secreto homem dos cabelos brancos? - Juntou as mãos e começou a representar: - Meu Deus, envia-nos um anjo!
Os seus funcionários sorriram. Um desejo piedoso. Deus não era responsável pelo crime organizado. Tudo estava sobre os ombros do comissário PP.
Ninglin encontrou-se com Rathenow em Isartorplatz e entrou no carro dele. Olhou para o seu novo irmão, desconfiado.
- Ninguém te disse que deves usar um fato preto? perguntou.
- Com trinta e quatro graus?
- Não deves preocupar-te com o sol e sim com o teu trabalho! Um cho hai anda sempre de preto.
- E tu trazes calças brancas e uma pólo amarela!
- Não sou um sandália de erva. Aqui tens a lista para hoje. - Entregou a Rathenow uma folha de papel com os nomes dos restaurantes chineses e à frente a quantia que deveriam pagar. - Se alguém te denunciar, come imediatamente a lista. Se cair nas mãos da polícia, terei de te cortar a cabeça.
- Fá-lo-ás com prazer.
- Rir-me-ia tanto como se me fizessem cócegas nas solas dos pés. Quem é o primeiro da lista? Jardim em Flor. Vamos!
Não disseram uma única palavra até pararem a alguma distância do Restaurante Jardim em Flor. Eram aproximadamente 15 horas. O restaurante acabara de fechar. Desceram do carro e percorreram a rua qual veraneantes. Pararam à porta do restaurante e Ninglin bateu à porta: três pancadas longas e três curtas.
Nada aconteceu. Ninglin esticou o lábio inferior.
- Estão a brincar aos surdos - disse ele. - Vês como as pessoas são estúpidas? Têm os ouvidos entupidos. Corto-lhe as orelhas e ficam desentupidos.
Bateu novamente, mas desta vez com força e determinação.
- Não está - disse Rathenow.
- Está, está! Ele sabe que hoje é dia de pagamento. Querias ir-te embora, não é? Estás a deixar que ele te engane. Isso é um erro que tem uma penalização ligeira. O idiota está atrás da porta. Consigo ouvir a sua respiração.
- Abre! - gritou Ninglin. - Se tiver de voltar esta noite, tiro uma flor do teu jardim florido! - Depois falou mais baixo com Rathenow. - Ele tem três filhas. Decerto não quer perder uma.
Ouviu-se virar uma chave na fechadura. Antes de a porta se abrir, Ninglin empurrou-a. Não se via da rua, pois havia altos arbustos a esconder a entrada.
No átrio, um pequeno e anafado chinês recuou com o medo estampado no olhar. Rathenow e Ninglin entraram e este fechou a porta atrás de si.
- Onde deixaste o teu cérebro? - perguntou Ninglin ao proprietário. - Assaste-o juntamente com os teus cozinhados? Queres que te liberte de coisas inúteis, Jiasong?
- Entra!
O proprietário, a quem Ninglin chamava de Jiasong, foi à frente. Ninglin segurou firmemente Rathenow pelos braços.
- Acima de tudo, deves saber isto: estás a ver o Buda com o rosto rosado que está à entrada?
- Sim.
- E ali atrás o grande aquário com muitos peixes?
- Sim.
- Os peixes mais bonitos são apenas decorativos. Os mais importantes são os peixes dourados chineses. Estás a vê-los?
- Sim.
- Tudo junto tem um significado: aqui paga-se taxa de protecção sem muitas perguntas. Em todos os restaurantes chineses sob protecção verás os deuses sorridentes e os aquários com os peixes dourados. Os que ainda não estão sob a nossa protecção não têm deuses de boas-vindas nem aquários.
- E se eles os colocarem nos restaurantes sem pagar a taxa de protecção? Como disfarce?
- Pensa no disparate que estás a dizer! Quem cuida dos peixes dourados, paga! Não há maneira de o esconder. Se no desempenho das tuas funções de sandália de erva entrares num restaurante que não esteja na lista e vires o aquário e o deus à porta, o dono terá de pagar.
- E se não pagar?
- Então o irmão Min chamar-me-á.
- E se não houver peixes dourados dentro do aquário.
- Nesse caso, terá de os ir buscar. Cada peixe representa uma soma determinada. Através deles consegues saber a quantia certa que deverão pagar. Está tudo muito bem controlado. Cada protegido tem o dever não só de pagar a taxa-base, mas também de aumentar o número de peixes dourados consoante o aumento dos seus rendimentos.
- É preciso sempre contar os peixes?
- Só como teste. De vez em quando, para que não percam o medo. Na sua maioria, são patifes e querem enganar-nos, mas não conseguem. Todos os anos verificamos os livros, tal como os cobradores de impostos. A taxa de protecção é proporcional aos impostos: um imposto de sobrevivência. Todos os chineses que abrem um negócio o sabem.
Continuaram a atravessar o lindo restaurante, com grandes quadros decorativos, e viram Jiasong atrás do balcão. Olhava para Rathenow com uma expressão desconfiada. Ainda não sabia o que fazia um alemão ao lado de Ninglin. Foi imediatamente esclarecido, mas mesmo assim não compreendeu o que ouviu.
- Jiasong - disse Ninglin, empurrando Rathenow para a frente. - Apresento-te o Hong Bai Juan Fa, um amado irmão, que tratará da tua protecção. Tomei conta de outra tarefa, mas não fiques demasiado contente. Voltarás a ver-me se não prestares o devido respeito ao novo cho hai. - Virou-se para Rathenow e fez-lhe um sinal com a cabeça. - Quanto deves pagar? Na lista está...
- Três mil marcos do mês passado - informou Rathenow quase com compaixão.
O rosto de Jiasong inundou-se de preocupação. Tinha os olhos inundados de lágrimas. ”Não chores!”, pensava Rathenow. ”Nem uma lágrima! Quando um homem não chora de tristeza, deixa de ver saídas. Estás a chorar de medo.”
- Não... não posso - articulou Jiasong com a voz a tremer. - É muito. É demasiado.
- É preciso que o meu irmão conte os peixes?
- Não correspondem à verdade. Acredita. O Verão passado eram muitos porque tivemos um Verão chuvoso. Mas este ano com o sol! Deus é testemunha: as pessoas preferem sentar-se nas esplanadas das cervejarias do que vir ao meu restaurante.
”Isso é lógico”, pensava Rathenow. ”Até o Ninglin consegue perceber. Eu também preferiria sentar-me à sombra de castanheiros do que numa sala fechada. Mesmo com ar condicionado!”
Mas Ninglin via as coisas de outra maneira.
- Jiasong - começou, com uma voz sombria -, és um porco anafado e um porco gordo tem tanta gordura à sua volta que não nota quando lhe cortam meio quilo. Queres que eu tire meio quilo para mim? Três mil marcos não passam de uma chávena de chá. O que achas?
- Juro... este mês foi uma catástrofe!
- Agora estás a dizer a verdade, seu pote de banhas!
- Ninglin colocou subitamente as mãos em torno do pescoço de Jiasong e apertou. Com um grito abafado, o proprietário foi empurrado contra a parede, os olhos quase saíram das órbitas e o seu corpo foi trespassado por uma convulsão. Bateu com as pernas no chão e começou a esbracejar. Quando o rosto começou a ficar azul, Ninglin largou-o. Jiasong cambaleou contra o balcão e agarrou-se a este firmemente. Estava a arfar.
- Tu és um homem honrado - disse Ninglin, insistente.
- Confessa que podes pagar quatro mil marcos.
- Eu pago. - O seu discurso foi interrompido por um ataque de tosse. - Eu pago quatro mil marcos.
- Assim está bem, Jiasong, e não te esqueças da quantia quando o meu irmão vier cá e te pedir respeitosamente. Bateu na lista. - Hong Bai Juan Fa... corrige os números. Não são três mil, mas sim quatro mil. E tu, Jiasong, aumenta os peixes dourados.
Jiasong acenou com a cabeça. Ainda não estava capaz de falar. O punho de Ninglin era mortal e tinha estado prestes a perder os sentidos. Foi à cozinha, abriu uma gaveta e trouxe os quatro mil marcos. Atirou-os para cima do balcão, mas Ninglin abanou compassivamente a cabeça.
- São quatro mil! - gaguejou Jiasong.
- É assim que se estende a um cho hai a tua sobrevivência? Atirar com o dinheiro para cima do balcão? Perdeste a boa educação? Deixa ver como são as notas. Três notas de mil... tinhas o dinheiro pronto... e dez notas de cem. Isso perfaz treze notas. Agora vou agarrar nota a nota e lembra-te de que a cortesia chinesa é admirada por todo o mundo.
Ninglin agarrou nos primeiros mil com a mão esquerda, mas ao mesmo tempo enfiou o punho direito no meio do rosto gordo e redondo de Jiasong. O proprietário tentou novamente amparar-se contra a parede, mas calou-se.
Ninglin desferiu-lhe treze golpes. Nos olhos, no nariz e na boca. Jiasong não se mexeu, tinha os olhos fechados e a cada golpe a cabeça batia na parede. Ninglin contava calmamente enquanto entregava as notas a Rathenow. Cada nota um golpe, cada nota uma advertência: aprende a ser cortês, Jiasong.
Ao quinto golpe, o nariz começou a sangrar, ao sétimo, fechou o olho esquerdo, o nono soco abriu-lhe os lábios, o décimo fez inchar a maçã do rosto e a décima terceira e última pancada arrancou a sobrancelha esquerda. O sangue corria pelo rosto de Jiasong, que continuava ali, sem emitir um som de dor e sem levantar os braços para se proteger. Sabia que qualquer tipo de defesa não faria sentido. Ninglin era uma pessoa que se deleitava com as dores das suas vítimas. Quanto mais se defendiam, mais terrível se tornava o seu desejo de aniquilamento. Jiasong virou o rosto desfeito para Rathenow. Era um sacrifício olhar para ele. Rathenow tinha os nervos em franja.
- Quando voltas? - perguntou Jiasong. Soava como se não tivesse dentes.
- No próximo mês - respondeu Rathenow e pensou: ”Será que não há ninguém que mate esta besta do Ninglin?”
- Receber-te-ei com cortesia - disse Jiasong como se Proferisse uma frase feita. - Desejo-te um bom dia.
Ninglin fez sinal com a cabeça a Rathenow. Abandonaram o Jardim Florido e regressaram para o local onde tinham estacionado o carro. Quando se sentaram lado a lado, Ninglin deu uma cotovelada a Rathenow.
-- Reparaste como se lida com gente estúpida? Também acontecerá contigo.
- Nunca conseguirei bater numa pessoa.
- Eu sei. És um fraco que só sabe escrever, comer, beber e passear. E ainda pensas que és um homem! Terás sempre uma vida de merda.
- Até agora ainda não reparei em nada.
- Porque és rico. Porque nunca tiveste de lutar por uma côdea de pão e muito menos pela vida. Gostas das pessoas, mas elas não valem nada.
- E é devido a essa filosofia barata que matas pessoas, ou as torturas até à morte?
- Não sei filosofia. Eu mato porque fui incumbido dessa tarefa e honro-me de a desempenhar bem.
- Um assassino de profissão! Tenho de escrever um livro sobre isso.
- Fá-lo, Hong Bai Juan Fa! Posso contar-te o suficiente para encher mil páginas
- Quantas pessoas é que já mataste?
- Não as conto. O meu primeiro contrato foi em Hong Kong aos treze anos. Pagaram-me cinquenta dólares de Hong Kong. Sabes o que significa para um miúdo que está sempre com fome receber cinquenta dólares? E apenas por espetar um estilete nas costas de um homem? Nasci em Hong Kong. Nunca vi o meu pai e a minha mãe. Contaram-me, mais tarde, que me tinham colocado em cima de uma pilha de cartões que iam queimar. Um homem que se chamava Ye Yimou tornou-se o meu novo pai. Nunca o amei; batia-me e pisava-me e mandava-me para as ruas mendigar e roubar. Quando não trazia nada para casa, não me davam nada para comer. Passava sempre fome. Um dia, Yimou disse: ”Minha ratazana malcheirosa, lava-te e vem comigo. Tenho um trabalho bom para ti é muito simples. Num hotel em Kowloon, está um inglês que anda à procura de rapazinhos bonitos. Para brincar, entendes? Paga bem se realizares os seus desejos. Será o teu novo emprego. Há tantos homens que gostam de rapazes jovens! São uma mina de ouroNinglin, o teu traseiro, as tuas mãos ternas e a tua língua enriquecer-nos-ão! Rápido! Lava-te, meu malcheiroso.” E eU lavei-me, pois, caso contrário, seria novamente açoitado com uma grossa cana de bambu.
Ninglin calou-se e olhou para a estrada. As imagens da sua juventude saltavam-lhe perante os olhos como se fossem um filme. Imagens que nunca conseguira esquecer. Um rapaz jovem e magro que usava umas calças de ganga maiores do que ele e uma camisa vermelha enorme. De mão dada com Ye Yimou foi da ilha de Hong Kong até Kowloon. Um grande hotel internacional, um elevador, uma suíte com móveis e um luxo que o jovem jamais vira. Um homem gordo, de faces muito vermelhas e cabelo ralo, aproximou-se dele e observou-o como se estivesse a comprar um cão. Depois de o senhor gordo lhe colocar umas notas na mão, Ye Yimou foi-se embora e o gordo regressou para junto do rapaz e baixou as calças...
- E depois? - perguntou Rathenow quando Ninglin se calou.
- No dia seguinte, a polícia encontrou o inglês na cama. Apunhalado. Tinha levado a minha faca escondida. Desde essa altura, fico muito contente cada vez que mato uma pessoa. Consegues compreender isto?
- Não.
- Já sabia. Nunca viveste como um chinês nos bairros de lata de Hong Kong. Sobre a terra, debaixo da terra, um labirinto de passagens que ligava as casas entre si, uma verdadeira cidade onde as pessoas pareciam formigas, onde dormiam no primeiro sítio que encontravam, um ninho de ratos, no qual se matavam, roubavam e estropiavam uns aos outros, uma vida a que apenas os mais fortes resistiam. Nem as patrulhas da polícia entravam naquele bairro da cidade... nunca teriam saído. Sim! Era uma cidade completa com todo o tipo imaginável de estabelecimentos comerciais. Ourives, charcutarias, talhos, lavandarias, padarias, alfaiates, sapateiros, lojas de vegetais, tabernas e até dois bordéis. Não era preciso ir à cidade. Podia-se ali viver como num reino próprio. É claro que também existiam salas para fumadores de ópio, refinarias de heroína, de cocaína e pederastas, mas apenas para estrangeiros. Se alguém fosse ao cu de um camarada, levaria uma tareia tão grande que nunca mais lhe passaria pela cabeça incomodar-nos. Se o tornasse a fazer, cortávamos-lhe os tomates. A maior parte das vezes sangravam até à morte, pois ninguém queria cuidar deles. Deitávamos os mortos para os esgotos e dali eram empurrados para o mar. Esta era a nossa vida, Hong Bai Juan Fa. mas é óbvio que nenhum turista vê isso. A maravilhosa Hong Kong é só uma fachada, um logro e, quando os turistas visitam os mercados nocturnos em Yau Ma Tai e pensam que estão a viver a verdadeira China, é uma ilusão. é assim que querem ver a China, mas a China é outra coisa.
- Isso eu sei. E como é que surgiu o teu nome Aisin Ninglin?
- Ninglin achei divertido. Aisin é o nome que dão aos descendentes do último imperador. Chamei-me Aisin e Ninglin aos catorze anos quando Ye Yimou morreu. Uma noite, estrangulei-o com um arame de aço que tinha roubado. Ninglin meteu a mão no bolso e tirou um maço de cigarros. Ofereceu um a Rathenow. - Queres?
- Não, obrigado. Só fumo charutos. À noite, depois do jantar.
- Muito fino! - Ninglin acendeu um cigarro e inspirou profundamente o fumo. - Aos quinze anos, já era membro da Catorze K - disse de súbito, soprando o fumo contra o pára-brisas. - Nessa altura, já levara a cabo, com sucesso, nove contratos para a ”família”. Foi o que os fez entender que eu seria um bom membro das tríades. Tinham observado a maneira como eu trancara num dos armazéns do porto um daqueles comerciantes, que também era um porco, depois de lhe ter mostrado a braguilha. No armazém, quando estava a tirar as calças, dei-lhe uma facada na barriga. Guinchou como um porco. Tinha dois mil dólares americanos, não de Hong Kong, na pasta. Até ao momento, fora o meu melhor ”cliente”. Quando quis sair do armazém, estavam dois chineses à porta e só disseram: ”Vem connosco!” Que podia eu fazer? Tinham pistolas no cinto e eu apenas uma faca. Levaram-me até Kowloon e, numa conhecida casa comercial, fui recebido pelo gao Ião das tríades de Hong Kong. Todos o conheciam. Era um homem muito rico e respeitado, regularmente convidado pelo governador britânico quando havia festas. O que é que ele me disse? ”Ouvi dizer que és um rapaz muito dotado. Precisamos de gente assim. Nós cuidaremos de ti.” Fiquei mudo de tanta honra e agradecimento... nunca mais passaria fome, nunca mais viveria na cidade das ratazanas, seria uma pessoa a sério e teria um emprego fosse ele qual fosse. Consegues imaginar a minha felicidade? Corri para um templo e agradeci a Deus aquela bênção. - Ninglin continuava a fumar em baforadas rápidas. - Seis meses depois, já realizara muitas tarefas sem ruído, utilizando uma faca de aço de lâmina dupla ou uma pistola com silenciador. Aprendera rapidamente a usar uma arma de fogo. Nesse mesmo ano, fiz os meus trinta e seis juramentos de sangue e tornei-me um Hong, um irmão da grande família. Um dia, o gao Ião disse-me: ”Vais para a Europa, irmão. Para a Alemanha. És preciso lá. Passarás a fronteira durante a noite, receberás um bilhete para Munique e apresentar-te-ás ao Min Ju no Restaurante Mandarim Negro. Ali, aprenderás alemão. És um rapaz dotado e aprenderás depressa.” Assim, vim para Munique, aprendi alemão, tornei-me um sandália de erva e o melhor irmão do Min. Isso foi há onze anos e nunca desiludi o meu daih-loh. Apagou a ponta do cigarro no cinzeiro do automóvel e meteu a beata no bolso da camisa.
- Hábitos antigos - disse, com um grande sorriso. Não deitar nada fora que possa ser útil mais tarde. Com dez beatas consegue-se enrolar um novo cigarro. Aprendi isso; são coisas que não se esquecem. Também encontrei a minha primeira faca. Ainda tinha sangue no cabo. Alguém
a tinha deitado fora, talvez quando fugia da polícia. Estava Perto do buraco das ratazanas num monte de legumes podres. Era uma boa faca. Entrava num corpo como se tivesse sido feita para tal.
- E por que razão estás a contar-me tudo isso? - inquiriu Rathenow. Esforçava-se por manter uma voz calma.
- Pensei que pudesses querer escrever um livro sobre isto.
- Poderia fazê-lo, mas ninguém acreditaria em mim.
- Mas é verdade!
- Claro, mas ultrapassa a nossa capacidade imaginativa. Uma coisa assim não existe, dirá o leitor.
- Existe sim! Estou sentado a teu lado! E ainda posso contar-te mais coisas. Já te disse: mil páginas! - Ninglin olhava para Rathenow. Parecia metamorfoseado. Aquele frio assassino parecia, naquele momento, um bom amigo.
- Divides os teus honorários comigo?
- Gostas muito de dinheiro? Pensa no teu juramento de sangue... Número cinco. Acabaste de o quebrar.
- Tens testemunhas? - Ninglin riu-se, mas agora o seu riso já parecia perigoso. Mostrava os dentes como um predador. - Em quem irão acreditar? Em mim, o chinês, ou em ti, o estrangeiro? Sei sempre o que digo e a quem! Posso contar-te tudo, pois tenho-te na mão. Tenho sempre um motivo para dizer ao Min Ju: ”Tive de o castigar, pois era um perigo para nós!” Depois, tratarão também da Liyun. Pensa no presente que veio de Hong Kong.
- Porém, se eu escrever o livro, perguntar-me-ão como sabia tudo aquilo e isso é traição!
- É por isso que estou a contar-te esta história toda! O rosto de Ninglin expandiu-se num enorme sorriso. - És um homem muito estúpido, Hong Bai Juan Fa. Não sabes distinguir entre verdade e brincadeira. Escreve o teu livro e esconde-o no cofre até morreres. Depois pode ser publicado. Os leitores não esperarão muito tempo, pois a tua vida será curta. Ninguém irá supor que fui eu que te contei tudo. pois sou um membro fiel das tríades, o mais fiel que o Min Ju tem em Munique.
- Devo aplaudir?
- Não é preciso. - Ninglin reclinou-se no assento. Dirige-te para o próximo protegido. O número quatro da lista. É aqui perto. O Restaurante Floresta de Bambu. Tong Penghang deve estar impacientemente à espera. É um homem muito sério. Paga com pontualidade e sem discussões. Como seria fácil a vida se todos fossem assim espertos...
Naquele dia, Ninglin apresentou o novo cho hai aos proprietários de catorze restaurantes. Alguns ficaram muito espantados, outros mostraram-se claramente contentes e os restantes receberam a inovação sem qualquer reacção visível. Estiveram na rua até à meia-noite. Naquele primeiro dia. Rathenow cobrou:
Entregas: 32 000 marcos Aumentos para o próximo mês, na totalidade: 51 000 marcos
Penalizações: quatro
Feridos: sete
Graves: dois
Ameaças de morte: três.
Um balanço muito triste para um único dia!
No final do giro, Rathenow regressou a Isartorplatz, onde Ninglin deixara o carro estacionado. Antes de sair, Ninglin virou-se para ele.
- Agora já conheces catorze protegidos. Cinco deles são perigosos. São aqueles junto de cujos nomes te mandei fazer uma cruz.
- Mas pagaram!
- Sim. Com um sorriso. Foi o erro deles. Olhei-lhes para os olhos enquanto te os apresentava e aquele olhar dizia: ”Este será crucificado! Um alemão como cho hai. A este podes mentir e enganar.” Se tiveres dificuldades, deves mostrar-te duro. Diz-lhes que as orelhas serão limpas... Isso eles percebem. Se não acreditarem em ti, telefona-me!
- E tu cortas-lhes o ventre ou os músculos das costas?
- Ainda utilizo a mesma faca que usava em Hong Kong. Trouxe-a comigo. - Ninglin saiu do carro de Rathenow. - Amanhã, continua. És bom a estender a mão, mas a outra continua vazia. Ainda tens muito que aprender, meu irmão...
Rathenow ficou a olhar para Ninglin enquanto este se dirigia ao seu automóvel, entrava e arrancava.
Sentiu-se miserável com os 32 000 marcos de dinheiro ensanguentado no bolso.
O primeiro dia como sandália de erva. O Dr. Hans Rathenow... membro da Tríade Catorze K.
”Liyun, estou envergonhado. Cuspo em mim próprio. Odeio-me, mas com tudo isto estou a salvar a tua vida. Será que isto é desculpa para a minha decadência? A justificação para um crime?
Deveria perguntar a Deus, mas não me dará resposta Ele nunca responde se é um povo que deve ser aniquilado ou apenas uma pessoa.
Será que existes, Deus?”
Liyun perguntou três vezes aos escritórios centrais da agência de viagens do CITS se chegara um novo faxe da Alemanha. A colega abanou a cabeça.
- Nada, Liyun. Estás à espera de algum? Do teu Hans que te mandou o primeiro faxe?
- Não sabes estar calada?
- Queres mesmo ir à Alemanha?
- Ele prometeu. Tu leste o faxe.
- E tu acreditas? Pode-se escrever muito quando se está a dez mil quilómetros de distância.
- Acredito nele. - Liyun sentou-se numa das cadeiras em cabedal trabalhadas que estavam ao lado da secretária. Cada palavra que escreveu é verdadeira.
- Então, por que razão não disse mais nada?
- Não sei, Yunyu.
Wei Yunyu, casada há um ano e grávida de cinco meses, empurrou uma folha para Liyun.
- Quero abrir uma excepção porque somos amigas. Não direi nada. Manda-lhe um faxe.
- Isso não está bem, Yunyu. Uma rapariga não corre atrás de um homem. Era como se estivesse a oferecer-me.
- E isso é assim tão grave? Liyun empurrou-lhe a folha de volta.
- Fá-lo-ias?
- Se amasse tanto um homem como tu amas esse Hans... fá-lo-ia e nunca pensaria que ia perder o respeito. O verdadeiro amor desculpa tudo. As vezes, os homens são misteriosos e estranhos. Precisam de um soco nas costelas ou no coração para acordar e reconhecer a verdade. A maior parte não a vê. - Wei Yunyu colocou a mão sobre os dedos de Liyun. Apesar do calor que se fazia sentir lá fora, as suas mãos estavam geladas. - Conheço os homens. Por vezes, é preciso pegar-lhes na mão como a uma criança. Senão, perdem-se.
- Não sei... Não tenho tanta experiência como tu. Até agora só tive um namorado: o Shen Zhi. Separei-me dele.
- Por causa do alemão?
- Também. Não o posso enganar e cada beijo seria uma mentira.
- E se esse Hans nunca mais der sinal de vida? O que farás?
- Não sei. - Liyun inclinou a cabeça para trás. Talvez case com um homem chinês que não ame. Talvez tenha um filho porque não o poderei impedir. Levarei a vida de qualquer mulher chinesa. Como milhões das nossas mulheres. Porém, não quero pensar nisso. Sei que o Hans irá escrever!
- Tu não sabes nada, Liyun.
- Sinto-o. Ele já enviou o convite e os papéis para a viagem.
- Para onde?
- Para a Embaixada alemã em Beijing.
- Então telefona e informa-te se o convite já chegou.
- Não gostaria de o fazer. Não quero sobrecarregar a Embaixada alemã. Os Alemães são muito rígidos. Se eu telefonar, poderão zangar-se.
- E vais viajar para um país assim?
- Vou ter com o Hans. O país é-me indiferente. Esteja onde estiver, irei ter com ele.
- Se ele te amar tanto como tu a ele. - Wei Yunyu voltou a empurrar a folha de papel. - Manda um faxe! Só Uma frase chega: ”Amo-te. Liyun.”
-- Impossível. - Liyun abanou a cabeça. Os seus longos cabelos voaram à sua volta. - Isso não se faz! Envergonhar-me-ia e ele pensaria que sou como todas as outras que procuram um homem rico e se oferecem. Tu fá-lo-ias, não é, Yunyu?
- Sim, fá-lo-ia. É preciso agarrar a felicidade antes que fuja. És muito inteligente, mas nestas coisas pareces muito parva.
- Não fui educada da mesma maneira que tu, Yunyu, e não consigo esquecer-me disso. Já foi suficientemente difícil convencer o meu pai de que o facto de visitar um homem alemão não é uma desonra. Só me deu autorização porque o doutor Rathenow é um homem muito famoso, mas fê-lo contrariado. Foi o que a minha mãe me confidenciou e nem ela ficou surpreendida com o convite. ”É um mundo que não compreendes”, disse-me. ”Não pertences a esse mundo.” Como posso enviar um faxe a dizer ”Amo-te”? Impossível.
- Talvez ele volte a entrar em contacto. Se assim acontecer, dir-te-ei imediatamente. - Wei Yunyu não insistiu mais contra a hesitação de Liyun. - Senão, esquece-o, Liyun! Há muitos homens na terra.
- Nunca o esquecerei. Até ao fim da minha vida.
- É assim tão bom amante?
- Nós nem sequer nos beijámos - afirmou Liyun com alguma dureza, levantando-se.
- Como? Isso seria um acontecimento! - Wei Yunyu riu-se com alguma vulgaridade. - No entanto, eu nunca saio do escritório. Tu tens mais sorte. Passas muito tempo com homens. E nunca se beijaram? Será que és uma avezinha sem voz, Liyun? Ah, se estivesse no teu lugar...
Liyun abandonou o escritório do CITS com pensamentos de raiva e dirigiu-se de bicicleta para o seu pequeno apartamento. A colega com que partilhava a casa tinha ido à Floresta de Pedra com um grupo francês e regressaria bastante tarde. Estava sozinha. Liyun foi para o duche, deixou a água correr sobre si até começar a arrefecer, secou-se e deitou-se nua sobre a cama. Como já fizera muitas vezes, agarrou no faxe de Rathenow e apertou-o contra si. Ficou assim durante bastante tempo, sonhando de olhos abertos que ele estava ali e a apertava nos braços.
Min Ju ficou muito alegre quando, no dia seguinte, Rathenow lhe entregou os 32 000 marcos das taxas de protecção.
Ninglin telefonara-lhe imediatamente e fizera-lhe o relatório do dia em dialecto de Zhangye. Se o telefone estivesse sob escuta, nem a melhor intérprete compreenderia o chinês de Zhangye. Min Ju instruíra a sua família. Era o mais seguro, quando era necessário qualquer telefonema. Se houvesse gravadores, seriam inúteis para o Décimo Terceiro Comissariado.
- Que grande sucesso, Hong Bai Juan Fa! - gritou Min enquanto folheava as notas que estavam em cima da mesa. - Viste como se faz. Sem dificuldades.
- Houve sete feridos, dois dos quais graves.
- É preciso ensinar os ignorantes e conduzi-los à sabedoria - contrapôs Min, impassível. - Faz parte da tarefa de um cho hai. Antigamente, iam sempre aos pares, mas isso alertava a polícia. Agora estás sozinho e, além do mais, és alemão. Não dá nas vistas. Se a experiência resultar, arranjaremos mais alemães. Poderás transformar-te num pequeno daih-loh.
- Não tenho a menor ambição.
Min Ju ofereceu um copo de mão tai a Rathenow e guardou o dinheiro num grande cofre, que resistiria a qualquer arrombador. Ficara de bom humor depois de ter visto Rathenow olhar para a madeixa de cabelo e para a unha de Liyun cheio de terror. Nunca poderia saber que ambas as peças não eram de Liyun. O pedaço de cabelo fora cortado a uma rapariga que trabalhava nas redondezas e a quem Min pagara um salário por hora de dois marcos. O restante salário fora depositado na conta das tríades. Uma conta que estava em nome de ”Escritório de Exportação e Importação de Sedas, SARL”, uma morada de respeito da qual ninguém suspeitava. A unha provinha da filha do proprietário Su Ying em Rosenheim, que fora castigado por ter no aquário muito poucos peixes dourados. Não estavam de acordo com os seus rendimentos, tal como fora determinado por Um controlador da Catorze K. Durante dez dias, enviara ao restaurante alguém que contava os clientes. Três irmãos que faziam a visita rotativamente e determinavam o que ele recebia. Naqueles dez dias, Su Ying recebera mais dinheiro do que pagara por todo o mês.
A unha da sua jovem filha fora o pagamento, e Su Ying colocara o verdadeiro número de peixes dourados no aquário. Tem de haver ordem. Quem não a conhece, tem de aprender...
Min Ju já recebera a informação de Hong Kong há várias semanas, dizendo que ele próprio deveria tratar do material das penalizações. Wang Liyun era intocável. O daih loh de Kunming, Kewei Tuo, informara:
”Não podemos, de forma alguma, castigar a Liyun. É filha do Wang Biao, colega de escola do secretário do Partido em Yunnan. Se lhe acontecer alguma coisa, será um inferno! Até o facto de a termos impedido de se despedir no aeroporto foi um erro. Admito os meus erros. Só com grandes cuidados conseguiremos não ser descobertos pela polícia secreta. Infelizmente, fomos obrigados a dizer à mulher do motorista de táxi que ele desaparecera. Era o único caminho que nos restava. Nunca mais devemos aproximar-nos da Wang Liyun. É preciso encontrar outros caminhos.”
Min Ju não se preocupara com isso. Havia muitas possibilidades em Munique de provocar o pânico em Rathenow e de consolidar a sua obediência. Uma falange de um dedo, um pedaço de pele do ventre ou uma orelha eram fáceis de arranjar, e Rathenow acreditaria sempre que faziam parte do corpo de Wang Liyun.
Esse truque alegrava Min Ju. Tinha a certeza de que Rathenow faria tudo o que exigissem dele. Talvez fosse melhor aparecer uma segunda advertência: um pedaço de pele do ventre. Sucumbiria e deixaria de ter vontade própria. Min só precisava de esperar por um erro e tinha a certeza de que Rathenow o cometeria brevemente.
- Hoje à tarde começa o teu segundo giro - ordenou Min Ju amigavelmente. Entregou-lhe a nova lista. - Há aqui dois casos difíceis. Já foram advertidos, mas não levaram a sério a advertência. Pensam que, como vivem perto da polícia, estão seguros. Sempre o mesmo velho erro. Ninglin e tu convencê-los-ão da sua estupidez. Não olhes para mim com um ar tão zangado, irmão! Ninguém irá ser morto. Apenas uma advertência clara. Um dos proprietários tem uma linda mulher e o outro duas filhas e um filho. Quando olharem para eles, recordar-se-ão. O Ninglin já olhou com algum interesse para a jovem esposa. O que farás nos próximos dias?
- Vou iniciar um livro.
- Muito bem. Sobre que irás escrever?
- O meu primeiro romance. Amor no Lago Lugu.
Min Ju sorriu.
- O teu amor pela Liyun?
- Não. Uma história livre, mas mesmo assim um romance.
- Um romance também pode ser muito pessoal.
- Não tive a Liyun nos meus braços no lago Lugu. Apenas a admirei.
- Eu sei. Moras na tua vivenda e só de vez em quando pões a cabeça de fora. Ocasionalmente, partes em viagens, mas, quando regressas, enterras-te de novo. Estás à espera da morte?
- Esperar? Não de imediato, mas pode surgir a qualquer momento.
- Estás com um ar cansado. Estás bem de saúde?
- É só aparência. Os médicos também se enganam. Num parque de Kunming, um médico chinês testou a minha orelha com um sensor eléctrico e depois tive de segurar firmemente uma pequena haste. Disse-me o que se passava com o meu organismo. Era uma longa lista de doenças. Acredito nele.
- E o que dizem os teus médicos? - perguntou Min Ju, muito sério.
- Um diz uma coisa, outro diz outra e os diagnósticos contradizem-se. Só um médico disse a verdade: falta-me todos os dias um pontapé no rabo!
- Um médico maravilhoso! - Min Ju riu-se sonoramente. - Acho que também vou consultá-lo.
- Ele descobriria que estás cheio de veneno.
- Se o reconhecer, é um génio da medicina! Como se chama esse curandeiro maravilhoso?
- Doutor Freiburg.
- Ah, esse.
”Não haverá problema se ele consultar o Freiburg”, pensou Rathenow, ”e será bom que o Freiburg lhe conheça o rosto. Mais tarde, quando conseguir fugir das garras das tríades, poderá servir de testemunha e identificar o Min Ju. Terá de ser assim, pois quando a Liyun e eu conseguirmos fugir, o gao Ião em Hong Kong ordenará a morte do Min. Nessa altura, o Freiburg só poderá dizer: ”Sim, esse é o Min Ju, um doente meu. Nunca soube que ele era o chefe das tríades de Munique.””
- Queres que te marque uma consulta? - perguntou Rathenow.
- Não! Ainda vou pensar no assunto. Temos bons médicos chineses em Munique, mas também trabalham em segredo. Estão cá ilegalmente, como a maioria dos chineses. Um até foi professor em Chengdu. Tem uma famosa universidade. Teve de fugir em Junho de mil novecentos e oitenta e nove porque os seus estudantes gritavam democracia. Foi aquela famosa, mas insensata situação... alguns milhares que acreditavam na democracia e atrás deles mil e trezentos milhões de chineses incultos. Poderia dar resultado? O que interessa a um camponês do rio Amarelo quem governa em Pequim? Só quer ter comida suficiente. Mais nada. O comerciante de Urumtsi, na velha rota da seda, quer vender as suas mercadorias no mercado, seja qual for o governo em Pequim. Aqui na Europa podem fazer uma revolução. Têm menos habitantes do que nós temos minorias. Se vocês fossem mil e trezentos milhões, o vosso mundo teria outro aspecto. Vocês, europeus, esquecem-se disso ou então não entendem: a China é diferente.
Min Ju entregou a Rathenow a lista para aquele dia.
- Mas o que nos interessa a política? Chamam-nos gangsters... O que devemos chamar aos políticos? Só castigamos os que desobedecem, enquanto eles enviam povos inteiros para guerras e sobram milhões de mortos, sem arrotar ou ficar com azia. Depois falam da China e dos direitos humanos. Que hipocrisia! À vossa porta morrem milhares todos os dias. Não é verdade que a Segunda Guerra Mundial custou cinquenta e cinco milhões de mortos?
- Sim. Talvez até mais. É apenas uma avaliação por alto.
- Cinquenta e cinco milhões. - Min Ju abanou a cabeça. - Na China não morreram tantos... no meio de mil e trezentos milhões! Quantos mortos houve na Praça Tianamen?
- Mais de mil.
- E quantos mortos é que os Americanos deixaram na guerra do Vietname? Na guerra da Coreia? Quantos negros foram executados na África do Sul? Quantos em Angola e Moçambique? Nestes casos, o Ocidente calou-se e virou as costas! E a Guerra do Golfo que não foi há muito tempo. Estiveram lá verdadeiros heróis que tentavam libertar um país, não para deitar abaixo um ditador, mas sim porque os biliões do petróleo estavam em perigo. O que disseram os políticos ocidentais? Uma guerra lícita. Denunciaram os responsáveis nos seus palácios de governo? Pelo contrário. E os mortos? Esquecidos nas areias do deserto. Sobre isso não se fala. Porque é que se fala sempre da China? Porque é que a China é o miúdo traquina da família mundial? Quando a China voltou a incluir o Tibete na sua sociedade, foi uma gritaria! Quem é que gritou quando os Alemães ocuparam os países a sul e invadiram a Áustria? Ninguém! Isso foi justo. Isso significava: ”Em casa, no império!” Até a Inglaterra e a França abençoaram a anexação. Hong Bai Juan Fa, deixemos a política. É mais suja do que aquilo que as tríades fazem. Mais um mão tal?
- Sim. Agora, sim. - Rathenow olhava, espantado, para Min Ju. Seria aquele o daih-loh de Munique que conhecera até à altura? Estariam todos os chineses interiormente divididos? Meio gangsters sem piedade, meio fervorosos patriotas? Algo que o impressionava profundamente.
Onde vou ter com o Ninglin? - perguntou.
- Na Isartorplatz, como sempre. É um local que dá Pouco nas vistas. - Min Ju levantou-se; parecia esgotado. - Tal como ontem, às onze horas. Hoje são dezanove restaurantes. Desejo-te muito sucesso!
Nessa noite, à uma hora da manhã, Rathenow fez a seguinte entrada no seu diário:
Hoje, dezanove restaurantes. Receitas: sessenta e cinco mil e oitocentos e noventa e dois marcos. Ninglin castigou dois proprietários. Um, através da violação da esposa. Tive de agarrar o marido e obrigá-lo a ver. Ninglin é um animal selvagem. Quase rasgou a mulher quando lhe abriu as pernas. A seguir, fê-la sangrar com várias dentadas no peito e no baixo-ventre. O proprietário pagou oito mil marcos, incluindo a penalização. O outro proprietário da lista pagou imediatamente, mas Ninglin levou a cabo a sua missão: golpeou o nariz da filha mais nova. Fractura do nariz. Se isto continuar assim, estou preparado para matar Ninglin. Que Satanás... e fica muito contente com o que faz às vítimas. Na viagem de regresso disse-me: ”Um bom dia! Viste, vim-me três vezes seguidas. É uma linda mulher. Infelizmente já não é para ti. O velho fará, doravante, os pagamentos.” Estive quase a cuspir-lhe na cara, mas para quê? Continuariam a torturar Liyun e arrancar-lhe-iam um dedo! Sinto-me vazio... vazio, vazio, vazio...
Fora o último giro daquela semana. As próximas vítimas da taxa de protecção só seriam abordadas daí a dez dias. Os arredores de Munique: de Tegernsee a Chiemsee.
- Nessa altura as notinhas serão muitas! - dissera Ninglin, feliz. - É ali que comem os ricos que não olham aos preços.
Rathenow fechou o diário no cofre depois de outras anotações sobre as tríades. Ponderou se deveria fornecer ao Dr. Freiburg a combinação do cofre no caso de lhe acontecer alguma coisa. Se isso acontecesse, ele daria tudo à polícia. Já tinha material suficiente para arrasar a Catorze K e provar a culpabilidade de Ninglin nos homicídios em massa.
Nos oito dias seguintes, Rathenow não deu sinal de vida a Min. O telefone tocou algumas vezes, mas Rathenow não levantou o auscultador.
Começou a delinear o seu primeiro romance: a rapariga Liping que estava sentada na margem do lago Lugu, olhando, a chorar, as águas prateadas e sonhando com um amor que nunca se concretizaria. Não se chamava Liyun, mas sim Liping e a intriga era semelhante a um conto de fadas de tempos idos, em que uma rapariga era obrigada a casar com o homem que o pai escolhera como noivo e a quem a prometera desde o nascimento. O romance de amor agridoce. Porém, deparou-se com grandes dificuldades. Afinal de contas, apenas escrevera artigos, trabalhos científicos e diários de viagens.
Também lhe bateram algumas vezes à campainha, mas Rathenow não abriu. Até pôs de lado três faxes do seu editor sem lhes dar resposta.
”Deixem-me em paz! Deixem-me em paz no meu mundo!”
No nono dia, Rathenow foi até casa do Dr. Freiburg. Eram aproximadamente dez horas da noite, Freiburg usava um fato preto quando lhe abriu a porta. ”Mais esta”, pensou Rathenow. ”Este diabólico negro não me larga.”
- Parece que afinal os fantasmas existem! - gritou Freiburg, puxando Rathenow para dentro de casa. - Onde estiveste? Amanhã ia telefonar à polícia e dar-te como desaparecido. Não deste notícias, telefonei quatro vezes... nada. Estive à tua porta três vezes e toquei à campainha como um louco. Nada! Onde estiveste?
- Em casa.
- E estás a brincar aos mortos? Estás louco?
- Estou a preparar o novo livro sobre a China.
- Já sabemos que tu és assim! A loucura é quase aceitável, mas a maneira como te comportaste nos últimos nove dias é de uma irresponsabilidade total em relação aos teus amigos. Não tornes a fazer isso!
- Preciso de tranquilidade. E de liberdade...
- Nas quais te escondes! És um caso patológico, Hans!
- Só agora descobriste? És um médico e tanto!
- Até hoje, os sintomas não eram muito patentes, mas agora está a tornar-se perigoso.
Rathenow sentou-se no salão barroco e esperou que Freiburg lhe trouxesse um grande copo de vodca com ameixa.
- Que queres então, meu mimoso? Chorar um bocadinho sobre a tua solidão? Ou queres que te dê uns pozinhos para os nervos? Como vão as digestões? Dar-te-ei um clister com muito prazer. Abre a boca, homem. Cospe os teus problemas.
- Só te queria ver. Nada mais.
- Então, olha para mim. Quero ir ao baile de Verão do clube de golfe. Consegui arranjar uma nova parceira de golfe, filha de um grande arquitecto. Ganhou rios de dinheiro quando foi permitida a urbanização de terras rurais e ele as apanhou. A menina tem vinte e quatro anos. Loura, seios que parecem pequenas meloas e pernas de corça. E ainda tenho de ouvir as tuas cantilenas tristes? Nem toda a amizade...
- Não tive mais notícias da Liyun - declarou Rathenow.
- Telefona-lhe.
- Já o fiz. Quatro vezes! A ligação vai até Kunming e depois aparece o sinal de linha ocupada.
- Não desistas, meu velho! - Freiburg esperou que Rathenow acabasse de beber a vodca. - A propósito. Já preparei o clube de golfe e o de ténis para o facto de estares louro.
- E como aceitaram o facto?
- Como toda a gente que se ri de um louco que quer parecer mais novo do que é.
- Podem ir todos...
- Não irão perder o apetite, mas ainda há mais uma coisa. Há quatro dias apareceu um chinês no consultório. Um tal senhor Min Ju. Disse que vinha recomendado por ti.
- É verdade.
- Estás a imiscuir-te em assuntos alheios? Desde quando diagnosticas doenças?
- O Min Ju está doente? Realmente? Isso não sabia, perguntou-me como é que eu conseguia estar tão saudável com a minha idade. Respondi que tinha de agradecer ao meu médico que é um chato, mas cujos diagnósticos são claros como água. O que lhe falta?
- A saúde.
- Brincalhão! Está demasiado gordo, não é?
- Em breve deixará de estar.
- Vais fazê-lo emagrecer?
- Eu não... os outros ”emagrecedores”.
- Não fales assim! O que tem ele?
- Tu sabes que eu não te devia dizer, mas como és o meu melhor amigo... o teu chinês tem um cancro fulminante no pâncreas.
- Meu Deus! Disseste-lhe?
- Não! Não sei como é que um chinês reage a uma notícia dessas! Talvez me arrancasse os testículos!
- Se assim fosse, faria um bom trabalho! - Rathenow esfregou os olhos. Sem saber porquê, ficou um pouco abalado. - Quanto tempo lhe resta?
- Segundo a radiografia, seis meses ou menos.
- Acho que deves informar o Min Ju. Uma vez contou-me que existem bons médicos chineses em Munique.
- Achas que conseguem fazer melhor do que eu? Freiburg olhou para o amigo com uma expressão algo ofendida e quando este levantou o copo, respondeu: - Não! Não bebes mais vodca! Diz-lhe tu!
- Não posso. Ao fazeres-me a revelação, quebraste o voto de silêncio dos médicos. Ele podia denunciar-te.
- Raios! Deverá sentir-se feliz por ainda viver seis meses!
- E que terapia vais usar?
- A habitual. Não posso fazer mais nada. Quimioterapia, radioterapia e, quando chegar à fase terminal, morfina.
- O método clássico.
- Exacto. O cancro não é operável. Já há metástases nos pulmões e fígado. Proibi-o de fumar, mas disse-lhe que era por causa do coração. Prosaicamente, ele poderia até fumar cem cigarros por dia, mas isso iria reduzir o tempo que lhe resta até à tortura que está para vir. Um carcinoma pancreático é um horror...
- Eu dir-lhe-ia a verdade. Talvez os médicos chineses tenham outros meios.
- Por exemplo? - O Dr. Freiburg ficou realmente ofendido. - Extracto de serpente? Soro? Chás de ervas várias? Rinoceronte em pó? Xarope de raízes? Pénis de tigre seco?
- Os Chineses consideram-no um poderoso indutor de potência sexual.
- O senhor Min Ju já não precisa de potência.
- A medicina natural chinesa tem milhares de remédios. A nossa sabedoria nesse campo é bastante exígua.
- Hans! Contra o cancro do pâncreas não há acupunctura ou acupressão, chazinhos ou sumos, pólen ou merda de cobra... nem a oração ajuda. Carcinomas e metástases não se conseguem limpar com orações. A única possibilidade é arranjar tranquilidade interior e pedir a Deus que tudo acabe depressa. Nunca ouvi dizer que se tenha vencido um cancro no pâncreas com sumo de raízes. i
- Tu não...
- Não continues a ofender-me. Digo-te uma coisa: noventa por cento dessa medicina chinesa não tem nada de científico. Não existem investigações, ensaios clínicos ou experiências...
- Errado! Existe uma experiência de quatro mil anos.
- Já alguém conseguiu provar o empírico?
- És o protótipo do médico académico! Os estranhos são basicamente charlatães. Quanto tempo... e mortos... vos custou até admitirem que o cancro não é uma manifestação tópica, mas sim uma doença orgânica? E agora dizem: juntos contra o inimigo da humanidade. Quando, no passado, um médico, como o doutor Issels, dizia: ”Primeiro, arrancar todos os dentes podres e depois beber extracto de visco e sumo de beterraba”, vocês denunciaram-no e retiraram-lhe a licença, a medicina académica tornou-se um lobo carniceiro que caçava tudo o que era contra a operação e a medicina nuclear. Por que razão não pode haver uma terapia chinesa contra o cancro do pâncreas?
O Dr. Freiburg olhava para Rathenow com os olhos semicerrados. Foi até ao armário do bar, deitou vodca pura num copo e entregou-a ao amigo.
- És o típico semiconhecedor de medicina que espalha conceitos à sua volta sem saber o que significam! Bebe a tua vodca e acalma-te. - Quando Rathenow lhe retirou o copo da mão, acrescentou. - Meu Deus! Como a China te estragou...
Rathenow esperou que o Dr. Freiburg se vestisse para o baile de Verão do clube de golfe e regressou a Griinwald. Gostaria de lhe ter dito muito mais, mas percebeu que não era um dia propício para falar sensatamente com Freiburg sobre os seus problemas. Contudo, havia uma questão que o preocupava mais.
Não teria sido um perfeito disparate ir em defesa do doente Min Ju? Esse pequeno rei do submundo, aquele insensível membro das tríades, o temível chefe da família da Catorze K... não seria melhor deixá-lo morrer o mais depressa possível? Por que motivo deveria continuar a viver, se a vida dos outros seres humanos nada significava para ele? A sua morte não seria uma libertação para todos os que estavam sob o seu domínio? Para quê salvá-lo? Porquê encontrar uma possibilidade de diminuir o seu sofrimento? Não seria justo que o seu corpo apodrecesse em vida? Não se poderia dizer: assim resolve o soberano Deus os problemas perante os quais os homens falham? Não seria uma sentença divina? Deixar Min Ju continuar a viver poderia significar ainda mais mortes, mais inválidos, mais torturados... Não deveria seguir para o Inferno, onde era esperado?
”Tudo isto está certo”, disse Rathenow a si próprio. No entanto, existia um grande senão: quem sucederia ao Min Ju? Aisin Ninglin, o assassino sem compaixão? O assassino de profissão? Ou outro daih-loh, enviado para Munique Pelo Alto Conselho em Hong Kong... de Amesterdão, Londres, Manchester ou Hamburgo? Ou directamente de Hong Kong, onde estavam os melhores e menos escrupulosos membros das tríades à espera da distribuição das filiais. Os fundadores de novas cidades-dragão, a partir das quais queriam dominar todo o mundo? Apenas uma troca... Min Ju fora, o novo chega... poderia ser ainda pior, pois os novos donos da cidade rebentariam de orgulho para mostrar ao gao Ião em Hong Kong como eram bons. ”O Min Ju já conheço. Tenho a sua confiança. Talvez possa evitar algumas coisas... com a sua morte, ficarei completamente isolado. O novo daih-loh de Munique será, à partida, meu inimigo. E o Aisin Ninglin como daih-lohl Seria a coisa mais horrenda que se pode imaginar... Munique, a capital do assassino.” Assim seria! Era preciso fazer tudo para adiar a morte de Min Ju. Todos os meses contavam - por muito horrível e irracional que pudesse parecer!
O toque do telefone assustou-o e afastou-o dos seus pensamentos. Era o Dr. Freiburg. À distância ouvia-se música e ruído de vozes. O baile decorria em força.
- Tenho ainda uma pergunta para te fazer, Hans! disse Freiburg. - Não me deixa em paz.
- Agora? A meio do baile? - Rathenow sorriu.
- De onde conheces esse Min Ju, Hans?
Há muito que Rathenow esperava aquela pergunta e já arranjara uma explicação credível.
- É o intermediário de um dos meus editores chineses.
- Mas o senhor Min tem uma casa comercial.
- Também. Lida com centenas de coisas, além de livros e direitos de autor. Os Chineses fazem tudo o que lhes possa trazer dinheiro.
- É ele que vai pôr o teu livro no mercado? Quer abrir falência? Pensava que era mais esperto.
- Obrigado, meu idiota da medicina.
- Com muito gosto. Sempre ao seu serviço. Freiburg desligou. Contente, Rathenow reclinou-se na cadeira. Estava resolvido... ele acreditara. ”Nunca mais perguntará nada. Para ele, o Min Ju é apenas um doente com cancro e está óptimo assim.”
Rathenow acertou o despertador para as três horas.
Aclara noite de Verão estava tão quente que se deitou nu sobre a cama e considerou a hipótese de se informar sobre o preço de um ar condicionado para o quarto. Quando o despertador tocou, despertou de um sono profundo.
Três horas. Em Kunming seriam nove da manhã. Liyun deveria estar no escritório do CITS. Procurou o seu cartão-de-visita na mesa-de-cabeceira e leu-o mais uma vez: Wang Liyun. China International Travei Service. Ramo de Kunming. Departamento de Francês e Alemão 8 He Ping Xincun. Huan Cheng nan Lu, Kunming. 650 011 Tel.: (08 871) 3 25 12 e 3 25 47. República Popular da China.
Rathenow discou o número. Aconteceu o mesmo: ruídos infindáveis na ligação e depois do segundo dígito o sinal de ocupado.
Rathenow bebeu um grande copo de água mineral gelada que fora buscar à cozinha e voltou a marcar. Sempre os dois números e sempre o sinal de ocupado. Era de desconfiar. Finalmente, cerca das quatro horas da madrugada, uma voz chinesa respondeu. Rathenow respirou fundo. Falou em inglês.
- Aqui Hans Rathenow. Posso falar com a senhora Wang Liyun?
- Não! - foi a resposta rápida.
- Porque não?
- Ela não está. Foi com um grupo para Dali.
- Quando regressa? B - Daqui a seis dias. B - Tanto tempo?
- O grupo continua a viagem até Lijiang.
- Lijiang. Claro. Quando Liyun regressar, importa-se de lhe dizer que eu telefonei?
- Como se chama?
- Hans Rathenow.
- Por favor, soletre.
Rathenow soletrou o nome e a senhora que estava ao telefone repetiu as letras.
- Já foi nosso cliente? - perguntou ela a seguir.
- Que pergunta! Como acha que conheci a Wang Liyun?
Foi um erro grave. A rapariga disse okay e desligou. Não se descompõe uma rapariga chinesa sem motivo. A cortesia é a flor do respeito e o mínimo que se pode exigir de uma pessoa. É preciso desprezar uma pessoa descortês.
A rapariga que atendera o telefone em Kunming estava furiosa. Aquele estrangeiro presumido! ”Será que nos consideram capachos? Será que a presunção lhes vem do dinheiro?”
Agarrou na folha onde anotara o nome, rasgou-a e atirou-a para o cesto dos papéis.
Assim, Liyun nunca veio a saber que Rathenow telefonara.
Como nunca o soube e não teve quaisquer notícias da Embaixada alemã, na semana seguinte começou a pensar: ”Ele esqueceu-me. Eram realmente palavras ocas. Na verdade, não me quer na Alemanha. Ama mais outras mulheres. É claro que as ama. São mais bonitas do que eu, mais altas, têm uma figura mais bela e seios grandes e não se importam de ir com ele para a cama. Eu sou apenas uma rapariga baixa e insignificante, uma chinesa vermelha, sem qualquer valor para um homem tão famoso! Liyun, enterra o teu sonho no lago Lugu, onde foste tão feliz, quando ele te abraçou e te limpou as lágrimas.”
O orgulho impedia-a de enviar um faxe ou uma carta a Rathenow. ”Sou uma rapariga pobre, mas digna.”
Liyun riscou o capítulo Rathenow, mas não o esqueceu e também não rasgou o faxe que ele lhe mandara. Antes de o guardar no seu pequeno cofre, escreveu nas costas da folha alguns versos do poeta Li Taibo:
Luz outonal sobre o lago.
Alguém tenta quebrar as penas do cisne.
As flores de lótus sorriem, gostariam de falar com ele -
com aquele por quem o coração se parte de dor...
Foi a última vez que Liyun teve a folha na mão.
Quando Rathenow apareceu no Mandarim Negro sem ser chamado e perguntou por Min Ju, todos ficaram muito espantados. Era costume informar primeiro por telefone. Querer simplesmente falar com o daih-loh, como se se tratasse de uma mera visita, contrariava a dignidade dos venerados. O empregado só ligou para a cave porque Rathenow era estrangeiro e ainda não conhecia bem os costumes. Depois, fez um sinal com a cabeça a Rathenow.
- Podes ir - disse-lhe. - Considera isto como um sinal de benevolência.
- Cairei de tantos salamaleques - respondeu Rathenow com uma expressão sarcástica, descendo as escadas secretas. Atravessou a sala do templo e encontrou a porta do escritório de Min aberta. Min estava sentado a uma longa secretária e fumava um charuto. Não teceu qualquer comentário irónico e mandou entrar Rathenow.
- O que te trouxe a mim, Hong Bai Juan Fa?
- O médico proibiu-te de fumar!
- Ele não está a ver-me. - Min riu-se com prazer. E disse para eu acabar com os cigarros. Não falou de charutos. - Apontou para uma cadeira e Rathenow sentou-se.
- Estás a escrever um novo livro?
- O rascunho já está pronto.
- Em todo o caso, é um sucesso parcial. Só os laboriosos conseguem colher frutos; os preguiçosos comem erva. Estás com problemas?
- Sim e não. - Rathenow reuniu toda a sua coragem. Como dissera o Dr. Freiburg, nunca se sabe como um chinês reage quando lhe anunciam a morte. - Tu sabes que o doutor Freiburg é o meu médico.
- Sim.
- E meu amigo há mais de vinte e cinco anos.
- Um bom amigo...
- Disse-me que estiveste no consultório e que fora eu a recomendá-lo.
- Fiz mal?
- Que pergunta, daih-loh. Fizeste bem. Como fui eu que te recomendei, o doutor Freiburg pôde falar-me sobre ti- Além do mais, disse-lhe que eras o meu agente literário chinês.
- Uma boa ideia.
- Quando se trata de amigo de tantos anos, fala-se por vezes de coisas que se deveriam manter em sigilo. - Rathenow andava à procura da melhor maneira de dizer o que queria para não desencadear a ira de Min Ju. - Também falámos sobre ti.
- O teu amigo disse-te que eu sofro do coração? Isso eu já sabia. Não é novidade. O que me disse depois do exame de raios X é que foi novo: ”Tem o fígado muito afectado. Bebe muito?” Pronunciou a palavra beber como se eu fosse um búfalo-d’água, mas a sua frontalidade agradou-me.
- Vim falar-te precisamente para sublinhar essa frontalidade. - ”É uma boa entrada”, pensou Rathenow. ”O Min Ju acabou de me fornecer a palavra de que estava à procura.” - O teu fígado está afectado, são exactamente essas as palavras, mas os teus pulmões também estão. Imagina o seguinte: há um general que envia os seus soldados para diferentes frentes de batalha. Esta táctica tem por objectivo fatigar o inimigo e ganhar a guerra. Este deixa de ter forças para lutar em todas as frentes. Está cercado e já não consegue furar o cerco. Tem de capitular. É impossível obter ajuda de fora, pois ninguém consegue romper o cerco.
Rathenow calou-se. Olhou para Min Ju, que o fixava. Fez-se silêncio durante alguns instantes. Depois Min Ju falou com uma voz firme:
- Formulaste muito bem a questão. Tenho cancro, não é verdade?
Rathenow respirou fundo. Por um instante, ficou cheio de admiração por Min. ”Como aceitaria eu a minha sentença de morte? Também com tanta tranquilidade?”
- Sim! - afirmou.
- Onde está esse poderoso general?
- Nas glândulas pancreáticas.
- E já me fez o cerco?
- Sim. Há metástases nos pulmões e fígado, e o general é o mais poderoso de todos... invencível.
Min Ju inclinou a cabeça e olhou para as mãos. A tranquilidade que manifestava atingiu os nervos de Rathenow. ”Se não fosses um homicida, diria: És um herói passivo.”
- Não tenho hipóteses? - perguntou Min, finalmente.
- Através da medicina ocidental, não.
- Os médicos chineses poder-me-ão ajudar?
- Deverás saber isso melhor do que eu. Para os nossos, o teu caso já não tem terapia. O doutor Freiburg dá-te uma esperança de vida de, no máximo, seis meses.
- É assim tão grave?
- Sim. Estou a ser honesto contigo.
- Mas eu não sinto nada na barriga.
- É a parte diabólica do cancro do pâncreas: quando sentires alguma coisa, será tarde. Na maior parte dos casos, chega-se rapidamente ao fim.
Min Ju assentiu com a cabeça. A expressão do seu rosto não sofreu alterações, não se enrugou, não pestanejou e os lábios não tremeram. ”Aí está ela! A autodisciplina chinesa”, pensou Rathenow. ”A minha alma pertence-me e está fechada a todos os outros. Qual de nós consegue compreender isso? Trazemos todos os problemas, dores e alegrias na língua. Um chinês não abre a boca. ”A língua é a coisa mais perigosa do homem”, disse um dia um filósofo, ”pode mentir, destruir e matar”. E deitar fora a dor quando se sabe que a vida é um círculo eterno.
Min Ju levantou os olhos. Estavam claros como sempre e a voz firme e determinada.
- Vou telefonar ao professor Sun Quanfu - disse. Sun é um grande especialista. Desenvolveu a sua própria medicina, que não desvenda a ninguém e continua a investigar. Vive ilegalmente em Amesterdão, mas trata de toda a cidade-dragão da Catorze K. Virá a Munique para me salVar.- Naquele momento, Min Ju quase se ria como se tivesse recebido uma boa notícia. - Eu enfrento a guerra contra o general! Todos os cercos podem ser penetrados. A guerra ensina-nos isso. E o inimigo tem sempre um ponto fraco! Hong Bai Juan Fa, agradeço a tua honestidade. És um Verdadeiro irmão que ajuda os outros irmãos.
No dia seguinte, Rathenow voltou com Ninglin aos restaurantes. Desta vez, era o Restaurante China, na zona da Alta Baviera. Foi um giro manso, como Ninglin lhe chamou. Os donos deixaram entrar o alemão louro, pagaram obedientemente a taxa de protecção e ouviram, imperturbáveis, as advertências de Ninglin: ”Não ponha a corrente de ar em movimento!”, o que significava: quem chamar a polícia, é um homem morto! E fizeram a si próprios a pergunta do costume: como é possível que a família envie um cho hai não chinês? Apenas uma vez, numa pequena aldeia no Chiemsee, foi precisa a ajuda de Ninglin: o proprietário do Pato de Pequim partira em viagem e deixara tudo a cargo do chefe dos criados.
Ninglin deixou o mensageiro especado. Entrou na cozinha, onde o cozinheiro-chefe estava a grelhar pequenos pedaços de peixe.
- O Peng Welfan partiu em viagem? - indagou. - Que homem teimoso! Sabes onde se esconde o Peng Welfan? Não? Estás a abanar a cabeça? O cérebro congelou? É preciso descongelá-lo!
Com a rapidez de um raio, agarrou a cabeça do cozinheiro e enterrou-a no grelhador, no meio dos pedaços de peixe já alourados. O cozinheiro gritou, esperneou, conseguiu libertar-se das garras de Ninglin e levantou-se. O seu rosto estava quase assado e ficaria naquele estado para sempre.
- O Peng Welfan viajou para Prien! - gritou, colocando um pano húmido sobre o rosto queimado. - Não sei mais nada. Levou a mulher e os filhos.
- Onde é que ele guarda o dinheiro? - inquiriu Ninglin com uma voz suave. Rathenow pressentiu imediatamente que algo de terrível iria acontecer.
- No apartamento. Lá em cima.
Ninglin olhou rapidamente para Rathenow. Um único olhar.
- Vamos lá acima.
O apartamento estava muito bem mobilado. Não ao estilo chinês, mas sim alemão, com uma estante, um divã, uma mesa, um armário para televisão e rádio e um candelabro prateado. Certo do seu objectivo, Ninglin entrou no quarto, puxou os colchões das camas e retirou dois sobrescritos. Triunfante, mostrou-os a Rathenow.
- Sempre o mesmo truque! Pensam que todos são idiotas e que só eles são espertos! Se há alguma coisa imortal, é a estupidez! - Atirou os sobrescritos a Rathenow. - Conta! Quanto?
Rathenow folheou as notas que estavam dentro dos sobrescritos.
- São exactamente dezassete mil marcos.
- Uma boa quantia.
- Ninglin, não pode ser. São quatro vezes a soma que ele deveria pagar.
- O Peng Welfan não devia ter viajado no dia do pagamento, pois sabia que eu vinha. Nunca mais o fará. Aprendeu isso hoje, e os professores também são pagos. Nota bem: quando encontramos dinheiro, levamo-lo connosco.
Nessa noite, Rathenow escreveu laconicamente no seu diário:
Visita. 17 restaurantes
Receitas: 81 000 marcos dos quais 17 000 pagamento especial do Pato de Pequim.
Um ferido grave.
Nada mais a assinalar.
Depois de ter lido novamente, cuspiu sobre a página e Pensou: ”Onde eu já cheguei!” ”Nada mais a assinalar!” Não houve mortos! Só um rosto que ficará defeituoso para o resto da vida.”
Atirou com o diário contra a parede. Era a crónica de Um cobarde.
Cinco dias mais tarde, um tal professor Sun Quanfu pediu para ser recebido pelo Dr. Freiburg. A enfermeira não usou o intercomunicador, indo directamente ao gabinete de consulta. Estava muito excitada.
- Senhor doutor! - gritou ela. - Está novamente um chinês no consultório. Quer falar consigo. - Entregou o cartão-de-visita a Freiburg. - Até é professor!
- Habitue-se a isto, Lott. - Freiburg colocou o cartão sobre a secretária. - É assim que começa. Em breve, teremos toda a colónia chinesa de Munique na sala de espera. Mande entrar o senhor professor... como é que ele se chama? Sun Quanfu! Pode entrar.
Sun entrou no consultório e fez uma pequena vénia. O Dr. Freiburg ficou à espera.
- É uma honra poder cumprimentar um colega tão famoso - disse Sun em voz baixa. Falava num alemão com pronúncia holandesa que fazia lembrar Rudi Carell.
- Também é médico, senhor professor? - Freiburg deixou passar o ”famoso”, se bem lhe tivesse enchido o ego.
- Sim. Estudei em Pequim e Chengdu e fui decano da Faculdade de Medicina da Universidade de Wuhan. Agora vivo em Amesterdão. Sou refugiado ou, como somos chamados, contra-revolucionário.
- Interessante. É de clínica geral?
- Era professor do Instituto de Medicina Natural. Freiburg convidou o professor a sentar-se. Sun sentou-se. ”Médico naturista”, pensou Freiburg com a ironia que lhe era característica. ”Professor do sumo de serpente e aranhas secas. Foi isto que o Rathenow me mandou! Espera, caro amigo, que o retorno está para breve.”
- Vim de Amesterdão para assumir o tratamento do seu doente Min Ju. - Sun inclinou um pouco a cabeça. Peço desculpa, por me estar a imiscuir, mas são os desejos do senhor Min.
- Cada doente tem a liberdade de escolher o médico em que confia. Gostaria de ser informado sobre as conclusões a que cheguei até agora? Para resumir, direi que o senhor Min tem um cancro pancreático inoperável. Posso mostrar-lhe os raios X. O senhor Min já não tem tratamento possível. Só nos resta a terapia convencional: quimioterapia e morfina quando começarem as dores.
- O senhor Min está portanto na fase terminal.
- Absolutamente.
- Posso levar comigo as radiografias? Observá-las-ei em casa.
- É claro, caro colega. Posso retirar o senhor Min do meu ficheiro.
- Gostaria de lhe pedir que o fizesse.
Puseram-se de imediato de acordo, mas Freiburg não interrompeu a conversa. Ficou subitamente interessado no que aquele Sun Quanfu considerava medicina natural. Para um cancro pancreático tão adiantado, só havia uma esperança: Deus, que isto acabe depressa.
- Ainda vai tratar o senhor Min?
- Os progressos da medicina foram alcançados através da investigação e ensaios - respondeu o professor Sun. Nós investigamos há quatro mil anos, baseados nos conhecimentos de Huang Di, o Imperador Amarelo. Escreveu um livro que é, ainda hoje, o fundamento dos nossos conhecimentos médicos. Chama-se Hung di nei jing, ”A Arte de Tratamento do Imperador Amarelo”, e o académico Li Zhuguo compilou uma obra, padrão da arte curativa tradicional, que ainda consultamos. Temos um velho ditado que descreve o nosso grande conhecimento e colecção de conhecimentos: ”Protege do antigo e incluiu-lhe o novo.” E nós investigamos há milhares de anos. Por que razão é que um caso de cancro no pâncreas não poderá capitular?
- Porque não existem medicamentos contra ele!
- Caro colega, apenas um exemplo: depois de trezentas mil análises e ensaios químicos ainda não foi possível isolar o vírus da malária vulgar. Há medicamentos suficientes contra a malária, mas o que acontece? A partir de uma certa altura, o micróbio torna-se resistente. Não sei porque ninguém lê o que o médico Ge Hong escreveu no ano trezentos e quarenta no seu Livro de Receitas para Tratamento de Urgência e que tinha acabado de descobrir: a erva qinghaosu, em latim Artemísia opiácea, a cura da malária cerebral! Qual a terapia que propõe para enfrentar um princípio de Depressão nervosa, caro colega?
- Para isso existe uma enorme quantidade de medicamentos! - respondeu Freiburg.
- Na verdade: uma quantidade de porcarias químicas! Quando faço o diagnóstico de insuficiência renal em estado inicial, receito o medicamento Wenpi Tang, um destilado de gengibre, ruibarbo, alcaçuz e ginseng. Está a olhar para mim com um ar sarcástico? Caro colega: o Wenpi Tang ajuda! E dores, um doente com reumatismo ou gota. Vocês enchem-no de químicos. Administramos a esses doentes Hugu Jiu, uma aguardente muito forte, destilada a partir de ossos de tigre.
O Dr. Freiburg fez uma careta. ”Isto é inacreditável! Tratar insuficiência renal com alcaçuz, reumatismo e gota com ossos de tigre - isto é de mais! E Hans, aquele idiota, acredita neste charlatão!”
Freiburg esteve prestes a negar ao professor Sun a entrega das chapas radiográficas. Era preciso denunciar aquele decano de Wuhan - devido ao homicídio por negligência de um canceroso. ”É revoltante a maneira como a medicina é praticada hoje em dia! É um perigo de morte!”
- E irá tratar o cancro no pâncreas com veneno de cobra? - perguntou ironicamente, mas as palavras denunciavam a sua revolta.
- Precisarei de investigar - repetiu o professor Sun.
- Para isso já não há tempo. Pelo menos para o senhor Min Ju.
- Há acasos, acasos felizes. Quem teria pensado que comprimidos de corno de antílope iriam tratar as constipações? O corno de antílope aumenta a temperatura interna e essa é uma das terapias básicas da medicina natural chinesa. É tão simples como isso, caro colega.
- Não conseguirá convencer-me de que um carcinoma inoperável se pode tratar com seivas ou pele de cobra cozida. Não sou chinês, mas sim membro da medicina tradicional. Também não conseguem convencer-me de que haja fundamentos científicos para a medicina chinesa tradicional. Não sou dessa opinião.
- É uma pena, caro colega. - O professor Sun Quanfu levantou-se da cadeira de couro. Não mostrava sinais de melindre, se bem que as palavras do Dr. Freiburg tivessem sido injuriosas. - Posso pedir-lhe as radiografias do senhor Min Ju?
Pouco depois, Sun abandonou o consultório do Dr. Freiburg com os grandes sobrescritos das chapas radiográficas debaixo do braço. Freiburg ficou a olhar para ele da janela, vendo-o sair para a rua com passos ligeiros e entrar para o Mercedes negro.
”Já sei por que razão rugiste da China”, pensou Freiburg, irritado. ”Como camarada em Wuhan não podias servir-te de um Mercedes. Aqui consegues muito dinheiro à custa de doentes crédulos a quem prometes potência sexual se tomarem pénis de tigre em pó!”
”Tratar um cancro com ervas... é criminoso!”
E Freiburg decidiu seguir o destino do pobre Min Ju através de Rathenow.
De Liyun não havia notícias.
Nem faxe, nem carta, nem telefonema.
Silêncio.
Rathenow tentou resistir à ideia de o faxe de Liyun ter sido apenas uma maneira de evitar, apesar de todas as promessas, a sua vinda a Munique. ”Eu estou à espera... à espera... que ela escreva, e esta espera poderá significar: deixa passar o tempo. O tempo resolverá tudo. O tempo encobre tudo. Ela sabe que eu telefonei.” Mas mesmo que não quisesse vir, o seu destino estaria para sempre ligado ao de Rathenow. Nada lhe podia acontecer. As tríades não podiam fazer-lhe mal. Amava Liyun, mesmo que entretanto estivesse convencido de que o amor dela não tinha a mesma dimensão. ”Decerto recebeu uma carta da Embaixada alemã em Pequim para se pronunciar sobre o convite e preencher os questionários... e não reagiu. Será que isto não é indicaÇão suficiente de que não quer vir?”
E assim se foram passando as semanas. Em finais de Novembro, Freiburg perguntou hesitantemente ao amigo:
- Tens notícias da Liyun? Vem agora no Inverno?
- Não.
- Não lhe dão o visto?
- Não sei. Não tive mais notícias dela. De Kunming só silêncio.
- E tu, meu burro, estás para aí sentado sem fazer nada? Mexe-te!
- Eu telefonei-lhe. Com certeza recebeu os formulários da embaixada e nada aconteceu. Ela já não quer vir.
- De que estás à espera? Telefona outra vez, rapaz, continua a telefonar. Escreve-lhe cartas: Liyun, vem para mim! Eu amo-te e sei que me amas também. Porque é que não tenho notícias tuas? Sonho contigo todas as noites e sinto a tua presença junto de mim. Porque não vens?
- Só se riria de mim. Já me esqueceu.
- Porque és um cão teimoso. As mulheres querem ser cortejadas. Ficam à espera que nos ajoelhemos para depois nos levantarem amorosamente. As mulheres são como os gatos, Hans, mas adoram arranhar. Implora-lhe que venha ter contigo.
- Não. - Rathenow batera com a palma da mão na mesa. - Não tenho necessidade disso. Se não quer, não quer! Não vou de rastos para Kunming!
- Não queres fazer nada?
- Não.
- Muito bem. A propósito, como vai o teu agente literário chinês.
- Estás a falar do Min Ju?
- Sim. Nunca mais tive notícias dele. Quando é que morreu?
- O Min Ju está vivo e até fuma. O Dr. Freiburg ficou muito sério.
- Não tem dores? - perguntou ele no seu tom profissional.
- Nem as mais ligeiras.
- Perda de peso?
- Continua redondo como sempre.
- Isso é impossível. Já se passaram três meses desde que o ominoso professor Sun me quis convencer de que se podia tratar a insuficiência renal com alcaçuz. Esse senhor Min já há muito que devia ter esvaziado como um balão.
- -Pelo contrário. Está ainda mais gordo.
-O professor das ervas ainda está a tratá-lo?
- Não, já voltou para Amesterdão, mas todas as semanas envia os medicamentos que ele próprio produz. Pelos vistos, são eficazes.
- Não existem medicamentos contra um carcinoma pancreático inoperável! - gritou Freiburg, excitado. - Será que somos todos patetas?
- Fico contente com a tua auto-avaliação. Ainda não se curou nenhum doente através da ignorância. Pelos vistos, existem coisas sobre a terra que a vossa sabedoria não apreende.
- Gostaria de voltar a falar com o senhor Min.
- Receio que isso seja um desejo irrealizável. O Min Ju está farto de ti. Agora só confia no professor Sun Quanfu.
- Então, é uma coisa psíquica. Conhecemos casos na medicina em que se conseguem melhorias substanciais através de influências psíquicas, desde que o doente acredite que está curado. No entanto, a doença continua a progredir. É apenas encoberta.
- Vocês, médicos, têm resposta para tudo. - Rathenow acenou quando Freiburg quis protestar. - Feliz Natal e bom Ano Novo. Passa bem.
- Ainda estamos em finais de Novembro, Hans.
- Só voltaremos a ver-nos para o ano.
- Estás a falar a sério?
- Estou a escrever o meu livro sobre a China. O meu editor adverte-me todos os dias por causa da entrega do manuscrito. Tenho mesmo de trabalhar.
- Vais enterrar-te no teu caixão de luxo, como lhe chamas? Isso é autoflagelação! Eu visitar-te-ei de vez em guando.
- Por favor, não o faças! Não te deixarei entrar.
- E a Liyun?
- Tenho de a esquecer.
- E chamas a isso o amor da tua vida?
- Continuará a sê-lo na minha memória, mas para amar são precisos dois. Quando uma parte não quer, é preciso ter forças para desistir.
- E se ela te escrever no Natal?
- Duvido. Porque não escreve agora? Já devia estar em Munique há muito tempo, se tivesse preenchido os formulários da embaixada, mas não o fez. É com isso que devo conformar-me.
- Tenho uma boa distracção para ti. Apareceu no clube de ténis uma jovem farmacêutica. Com trinta e cinco anos e já viúva. Uma mulher radiante.
Rathenow terminou abruptamente a conversa. Como sempre, Rathenow lutava consigo próprio. ”Manda-lhe mais um faxe!”, dizia uma voz. Mas depois: ”Não! Não corras atrás dela! Para ela, tu foste apenas um VIP, que deve ser especialmente respeitado. Nem sequer se foi despedir de ti ao aeroporto. Meu idiota!, já devias ter percebido tudo. Não penses mais nisso.”
Rathenow não mandou mais nenhum faxe e também não telefonou. Enterrou-se no trabalho. De dia tinha a empregada doméstica que tratava dele. À noite, ia comer aos restaurantes ou às cervejarias das redondezas ou fazia uma sanduíche.
Já realizava sozinho os giros de recolha de taxas de protecção. Não tinha dificuldades. Todos pagavam pontualmente, sem que fosse necessária qualquer chantagem. Ninglin tinha feito com que o medo entrasse com Rathenow nos restaurantes que visitava.
Min Ju estava muito contente. A experiência parecia estar a dar resultado. Informou o gao Ião em Hong Kong, que o louvou muito, e Min Ju sentiu-se muito honrado. j
Ninglin, porém, não ficou sem trabalho. Visitava as outras famílias em Ratisbona, Passau, Bamberga, Nuremberga e Wiirzburg e levava rigorosamente a cabo as suas tarefas. Em Nuremberga, foi encontrado um proprietário chinês com os braços arrancados. Morrera da hemorragia. Em Ratisbona, um passador de droga, que vendera por conta própria duzentos gramas de heroína, fora três vezes atropelado por um carro e depois morto a tiro. Na floresta de uma pequena aldeia em Oberfranken, a polícia encontrara um chinês a quem tinham cortado a cabeça, metendo-a depois entre as pernas. O morto tinha alugado uma vivenda muito romântica nos arredores da pequena aldeia, perto da auto-estrada, e fundado um clube de tempos livres que não passava de um bordel feudal, onde apenas trabalhavam raparigas exóticas. O chinês ganhava rios de dinheiro. Devia ter abanado a cabeça quando algum cho hai lhe recomendara que pagasse a taxa de protecção à Catorze K. Agora já não abanava mais a cabeça... tinha-a entre as pernas.
A polícia judiciária das respectivas cidades estava, como sempre, perante um muro de silêncio. Era claro que se tratava de crimes cometidos pelas tríades. Prenderam suspeitos, mas todos os inquéritos eram arquivados por falta de provas.
Peter Probst, do Décimo Terceiro Comissariado, não sabia quase nada acerca da extorsão da taxa de protecção. Como tal, cresciam os crimes com cartões de crédito falsos, um novo ramo das tríades, que era muito falado. Os cartões de crédito eram tão bem falsificados e copiados a partir de cartões roubados, que o engano só era detectado quando as contas dos verdadeiros donos eram desfalcadas. Para as tríades, era um trabalho fácil. Através do pagamento nos restaurantes chineses tinham encontrado uma maneira de fotocopiar os cartões de crédito. O nome e o número do cartão eram impressos numa oficina e inseridos em plástico com uma laminadora. Um trabalho de primeira!
- O que se passa? - perguntava PP numa reunião com os seus agentes. - Na frente da taxa de protecção não se está a fazer quase nada. Todas as observações têm resultado negativas. Não aparece nenhum cobrador suspeito em lado nenhum, mas, no que diz respeito aos cartões de crédito, estamos a ser esmagados. Os proprietários já não sofrem penalizações e todos vivem cordatamente com as tríades. Que diabo! Quem é que recolhe então as receitas de protecção?
Será que agora são transferidas para uma conta postal? Será que a Catorze K sofreu alterações na sua organização? Os russos estarão a fazer pressão sobre eles? A mafia russa está a ganhar cada vez mais terreno, sobretudo no negócio de drogas e prostituição, e todos os dias roubam automóveis que enviam para os países do Leste. Todavia, não se sabe nada sobre as taxas de protecção. Quais serão agora os truques dos olhos em bico? Será que as medidas de penalização passaram para os arredores? Creio que estamos a enfrentar tempos fabulosos e os nossos homens andam para aí feitos parvos, sem fazer a menor ideia do que se passa! Aí anda coisa da grossa.
A experiência Bai Juan Fa fora bem sucedida... Nas outras cidades-dragão de Hamburgo, Estugarda, Berlim e Colónia, os daih-loh estavam a preparar os seus próprios protótipos seguindo o modelo de Munique. Min Ju, mais feliz e saudável do que anteriormente, abraçava Rathenow e apertava-o contra o peito quando ele colectava as receitas e as colocava sobre a mesa.
- Soube que te tornaste um grande homem, como previ da primeira vez que te vi. Ainda dizes que não és nosso irmão?
- Sim!
- E porquê?
- Perdi a liberdade e auto-respeito.
- Em contrapartida, ganhaste o amor de uma grande família. Na China, a família é a coisa mais importante. Uma pessoa sem família é como um caracol sem casca, como um barco sem remos.
- Como está a Liyun? - perguntou Rathenow, subitamente.
Min Ju olhou para ele, espantado.
- Bem. Tu sabes.
- Há meses que nada sei da Liyun. Nem cartas nem telefonemas...
- Posso assegurar-te que está bem. Continua a realizar o seu trabalho, conduz grupos de turistas por Yunnan e é uma excelente rapariga. - Depois, não conseguiu evitar acrescentar. - Há muito que os cabelos e a unha voltaram a crescer.
- Também nunca mais vos dei oportunidade de voltar a torturá-la.
- Tornaste-te mais sábio. Agora estás imbuído da sabedoria chinesa. Comportas-te com naturalidade, segundo as trinta e seis estratégias que há trezentos anos os nossos antepassados, a Sociedade Secreta Porta Vermelha, estabeleceram na luta contra a odiada dinastia manchu de Qing. ”Turva a água; assim poderás apanhar tranquilamente os peixes que te roubaram.” É a máxima número vinte. Continua a turvar a água, apanha os peixes e trá-los até mim.
Em Kunming, Liyun desistira da espera, mas não voltara para Shen Zhi, o jornalista de Dali, e defendia-se sempre que tinha a tentação de o fazer.
Sentiu ainda algumas vezes vontade, um impulso irresistível, de escrever ou telefonar novamente, pela última vez, a Rathenow, mas o orgulho acabava por ganhar: ”Que queres? É um estrangeiro, mas também se sabe que quando o Sol brilha há miragens.”
”Só fica a recordação, sendo, no entanto, como uma folha de papel, na qual a tinta vai desaparecendo quando os raios de sol caem sobre ela...”
Rathenow passou o Natal sozinho em casa. Sentou-se em frente a um pequeno pinheiro que a empregada enfeitara e apercebeu-se de que aquela solidão iria, mais cedo ou mais tarde, trucidar-lhe a alma.
”Não! Não quero perecer por causa da Liyun”, gritava para si. ”Já perdi a minha personalidade, mas a vida, o bocadinho de vida que tenho e que ainda me resta, pertence-me! Só a mim. Não quero morrer e só ser descoberto por acaso. Quero gozar os anos que ainda me restam, como se ’fosse um vinho velho...”
Festejou a passagem do ano no clube de ténis. Lá conheceu finalmente a farmacêutica, viúva. Alta, esbelta, cabelo ruivo e olhos verdes de tigre, cativantes e esfomeados. Chamava-se Franziska Wellenbruch e rolou para os seus braços como uma onda. Numa visita que fez a Rathenow, o Dr. Freiburg abriu, com um estoiro, uma garrafa de champanhe.
- Finalmente voltámos a ter-te! - gritou, deveras feliz. - Regressaste tal como Tannhàuser da montanha de Vénus. Brindemos! Pára! Não me atires champanhe para a cara! Não é esse o lugar correcto! Já tentaste deitar champanhe no umbigo de uma mulher? Faz cá um efeito! Parece um choque eléctrico. Tenta com a Franziska!
Rathenow não disse mais nada e embriagou-se como tinha feito bastantes vezes no passado. Tentava convencer-se a ser feliz com Franziska Wellenbruch. Era uma amante terna, por vezes selvagem, uma mulher com muita imaginação na cama e com uma resistência que cada vez cansava mais Rathenow. Por vezes pensava: ”Vou casar com ela. Sim. Quero tê-la para sempre ao meu lado. É a mulher que me agradou. É atraente, esperta e interessa-se por tudo, facto que me espantou: ópera, viagens, música, arte impressionista e ícones... Demorou muito, mas agora tenho uma mulher que está bem para mim.”
Passou a Páscoa com Franziska em Salzburgo, foram ao festival, sentou-se junto a ela na décima quarta fila e deu-lhe a mão. Quando regressava dos seus giros como sandália de erva, sobre os quais nada lhe contara, deitava a cabeça no seu colo, recuperava da sua vida dupla e recebia os seus beijos como se fossem medicamentos.
- Sempre precisei de ti - disse-lhe uma vez. - Nunca me deixes! Fica sempre comigo!
Ela beijou-o sobre os olhos.
- Estarei sempre aqui para ti. Que bela é a vida...
Num dos últimos dias de Julho, o telefone tocou. Rathenow estava sozinho, encontrando-se Franziska na farmácia. Uma áspera voz de mulher perguntou:
- É de casa do doutor Rathenow?
- Sim. É o próprio.
- Chamo-me Susanne Frantzen.
- De que se trata?
- Desejo realizar o pedido de uma visita amorosa, mas ouça...
Rathenow ouviu uma respiração ofegante ao telefone e depois uma voz clara e cristalina chegou-lhe ao ouvido. Uma voz cheia de alegria e um riso reprimido.
- Como está, senhor Rathenow?
Durante alguns instantes, Rathenow susteve a respiração. A sua cabeça, aliás, todo o corpo parecia explodir. Depois, levantou-se rapidamente da cadeira e gritou:
- Liyun!
- Sim, é a Wang Liyun.
- Deus do céu! Onde estás?
Tratou-a sem querer por tu. Nos últimos meses falara tanto com ela em pensamento - em frente às fotografias, ao faxe, em sonhos, constantemente: ”Liyun, onde estás?” Até Franziska entrar na sua vida.
- Estou em Sarrebruck.
- Sarrebruck. O que fazes em Sarrebruck, Liyun? Meu Deus... estás na Alemanha? Como vieste para Sarrebruck?
- Sou hóspede da família Frantzen. Convidaram-me.
- Eles... Desde quando estás na Alemanha?
- Há oito dias.
- E só telefonaste agora? Liyun! Vou imediatamente para Sarrebruck.
- Telefonei, porque a senhora Frantzen me obrigou. Contei-lhe que o tinha conhecido em Kunming e a senhora Frantzen disse: ”Telefona ao senhor Rathenow porque ele vai decerto ficar contente.”
- Contente? Já furei o tecto de alegria. Liyun...
- Mas eu não queria telefonar.
- E porque não? Liyun...
- Pensei que já não se lembrava da Wang Liyun. Já se esqueceu de mim há muito tempo.
- Esqueci? Que estás para aí a dizer? Estive sempre à espera de notícias tuas. Semana após semana. Depois pensei: ”Ela já não quer saber de mim. Foste apenas uma experiência fugaz na vida dela...”
- Eu pensei o mesmo de si. Um homem tão famoso e uma pequena chinesa. Eu também estive sempre à espera...
- Mas... como assim? Eu telefonei para o teu escritório e pedi que te dissessem que gostava de falar contigo.
- Ninguém me disse nada.
- E a Embaixada alemã não te mandou os vistos de visita?
- Não recebi nada.
- Isto não está nada bem. Pensei sempre: ”Ela não preencheu os formulários; não quer vir.”
- E eu pensei: ”O homem famoso não mandou a proposta! Não me quer em Munique.”
- Louca! Louca! A minha carta para a embaixada deve ter-se extraviado. E a proposta dos senhores Frantzen chegou?
- Sim. Foi tudo muito rápido e não houve dificuldades. Ficou tudo pronto em duas semanas.
- Liyun! É tão maravilhoso teres telefonado. Já não tinha esperança de voltar a ver-te.
- Eu também não.
- Foi tudo um mal-entendido e uma terrível teimosia! Do teu lado também.
- Uma rapariga chinesa não corre atrás de homens.
- Connosco as coisas não eram assim...
- Sim... O senhor, o homem famoso, e eu, a pequena rapariga chinesa.
- Liyun, não voltes a dizer isso! És a coisa mais valiosa do meu mundo. Tu és... como diriam vocês?... um mar de diamantes. Estás sozinha ao telefone?
- Sim. - A sua voz soava agora mais baixo e hesitante. - A senhora Frantzen deixou-me sozinha.
- De onde conheces os Frantzen?
- Fui indicada para os acompanhar, pois eram viajantes sem grupo. Ele é advogado. Mostrei-lhes Kunming e a Floresta de Pedra. Também me convidaram e eu pensei: ”É o que todos dizem. Também não dirão mais nada quando voltarem para a Alemanha.” Subitamente, recebi a notícia da Embaixada alemã em Pequim. Convidaram-me mesmo! Pagaram o voo e assinaram o atestado de residência. Corri para o gabinete do meu chefe e contei-lhe tudo. Disse-me que podia vir à Alemanha, pois aumentaria os meus conhecimentos linguísticos. Deram-me autorização para ficar três meses.
Depois tenho de voltar porque precisam de mim. Voei de Kunming para Banguecoque e depois para Frankfurt. O senhor Frantzen foi esperar-me. Têm uma casa lindíssima aqui em Sarrebruck. Nunca tinha visto nada tão lindo.
- Liyun, vou buscar-te imediatamente.
- Não! Eu vou de comboio ter consigo...
- É demasiado complicado. Terás com certeza de mudar de comboio e procurar as gares.
E Liyun respondeu alegremente como se estivesse a divertir-se com as ideias de Rathenow.
- Eu sei falar alemão...
- Quando vens?
- Tenho de perguntar à senhora Frantzen. Um momento. - Ouviu-a chamar a sua anfitriã, ouviu a senhora Frantzen aproximar-se e depois ruído de vozes. A própria senhora atendeu o telefone.
- Fala a senhora Frantzen.
- Cara senhora! A Liyun já a informou do assunto?
- Sim. Claro. Ficámos muito contentes por ter convidado a Liyun a ir a Munique. Irá de comboio. Acho mais sensato.
- É claro que suportarei as despesas.
- Senhor Rathenow, peço-lhe que isso não seja tema de discussão! Proponho que coloquemos a Liyun no comboio no domingo. Nestes últimos oito dias, ficámos a gostar ainda mais dela. A Liyun é uma rapariga encantadora.
- Concordo consigo inteiramente, cara senhora.
- O meu marido e eu também lemos alguns dos seus relatos de viagens.
- Sinto-me muito honrado.
- Sobretudo O Segredo dos Curandeiros Filipinos. Esteve realmente com eles?
- Sim. As fotos da capa e contracapa foram tiradas por mim.
- Também gostamos muito de viajar... mas por regiões civilizadas. Kunming foi uma incursão num mundo ainda desconhecido.
- E compensou: conheceram a Liyun e trouxeram-na para a Alemanha. Se não fossem vocês nunca mais teria tido notícias da Liyun. Agradeço-vos.
- Então, até domingo, senhor Rathenow. Mandar-lhe-ei um faxe a informá-lo da hora da chegada. A Liyun tem o seu número de faxe.
- Ficar-lhe-ei a dever este favor eternamente, minha estimada senhora.
- Nem pense nisso! É com muito prazer que o fazemos.
Depois daquela conversa telefónica, Rathenow já não conseguiu fazer mais nada de racional. Passou o resto do dia nas nuvens: ”Ela vem. A Liyun vem. A Liyun vem.”
Bebeu duas das suas amadas vodcas com laranja, pôs um CD com a abertura Egmont de Beethoven dirigida por Karajan, mas não conseguia estar sentado mais do que um minuto.
”A Liyun vem...”
No meio de toda aquela felicidade, telefonou ao Dr. Freiburg. A enfermeira passou de imediato a chamada, mas Freiburg não estava particularmente bem-disposto.
- Que queres? - baliu ele. - Estou a dar consultas! Quando estás a escrever também não gostas de ser incomodado!
- Eu sou doente. Estou a rebentar...
- A tua ligação com a Franziska devia ter-te resolvido os problemas.
- Estou a rebentar de felicidade! A Liyun vem! - exclamou Rathenow. Parecia quase um grito. - Imagina... Ela vem.
- Tens a certeza ou só sonhaste?
--Já está na Alemanha. Em Sarrebruck.
- Que merda!
- é só isso que tens para dizer?
- Não. Procura um buraco na floresta onde possas esconder-te. A Franziska vai matar-te! Está a contar com um casamento e tu queres voltar a mordiscar essa maçãzinha chinesa? Não podes fazer isso, Hans.
- Agora dás lições de moral? Vê se percebes, rapaz: eu julgava que tinha perdido a Liyun e agora ela está aqui.
- E o que é que isso altera? Tu amas a Franziska.
- Julguei que a amava.
- E agora queres terminar a relação sem hesitar?
- Sem hesitar? Não. Tenho um monte de hesitações e sentimentos de culpa em relação a Franziska, mas ela deverá entender...
- Ela não pode entender nada! Nunca podes exigir que uma mulher apaixonada mostre alguma compreensão quando lhe dizes: ”Temos de nos separar. O passado apanhou-me novamente.” Qualquer mulher lutará contra isso e tu conheces a Franziska suficientemente bem para saber como vai reagir. No mínimo, arrancará os cabelos a essa chinesa e arranhar-lhe-á o rosto! Tu não passarás do patife que deu um pontapé no rabo de uma mulher que o ama de verdade. Hans, acorda! O que queres de uma chinesa? A Liyun pode ser muito bela. Não é nada para desprezar, mas não é para casar!
- Isso está plenamente de acordo com a tua maneira de viver! Para mim a Liyun não é um brinquedo. É a realização da minha vida.
- Disseste uma coisa muito parecida à Franziska.
- Uma pessoa pode enganar-se. Sou apenas um ser humano. Além disso, só estou a telefonar-te para partilhar a minha felicidade e não para ouvir conselhos. A Liyun chegará no domingo.
- E até lá... ainda faltam quatro dias... queres explicar à Franziska que ela foi um erro? Por favor, vou mandar reservar uma cama para ti na Clínica Grosshadern: acidente ou cirurgia ao rosto. - Freiburg ficou naquele momento muito mais sério. - E que farás se a Franziska se matar? Conseguirás viver com esse peso na consciência?
- Ela nunca o fará. Gosta demasiado da vida. Acabará por lhe passar.
- E o clube de ténis em peso deixará de te falar.
- Deixo de ser sócio do clube.
- E do clube de golfe também?
- Também.
- Estás completamente louco!
Rathenow desligou. Falar com Freiburg não fazia qualquer sentido. Para ele, Liyun era apenas um brinquedo. ”Sim, desistirei de tudo por amor a Liyun. E de ti também, doutor Freiburg, se não aceitares a Liyun. Não vivo pelas ideias da sociedade de Munique. Quero viver para a Liyun e estou-me nas tintas para os mexericos. Meu querido Rathenow, onde é que encomenda agora o seu caviar? É de enlouquecer!”
Nos dois dias que se seguiram voltou a estar ao serviço das tríades e recebeu o dinheiro dos proprietários sem dificuldades. A maior parte deles já o cumprimentava como se tratasse de um amigo. Estavam todos contentes com o facto de Ninglin já não lhes aparecer à frente e poderem enganar Bai Juan Fa, colocando menos peixes dourados no aquário. Quando, a partir da Páscoa, Rathenow aumentou as taxas em 500 marcos, aceitaram sem queixas, pois qualquer tipo de discussão provocaria, com certeza, a intervenção de Ninglin. O significado disto já fora visto e ouvido vezes suficientes. Esse tipo de avisos ninguém esquecia. No entanto, Min Ju mostrava-se feliz com os resultados. Ainda estava vivo, sem dores, sem emagrecer e sem qualquer sensação desconfortável no ventre. Os seis meses de vida que o Dr. Freiburg previra já tinham passado há muito. O professor Sun Quanfu enviava-lhe regularmente de Amesterdão os comprimidos e extractos que ele próprio fabricava e cuja composição não divulgava a ninguém. Se a tivesse divulgado, a todo-poderosa medicina tradicional teria reagido muito mal: não tinha bases científicas! Não havia indicações claras através de ensaios clínicos feitos em animais. Não se procedera a testes com doentes. Não havia confirmação das autoridades de saúde. Não existiam estatísticas da experiência. Bruxaria...
Mas Min Ju ainda estava vivo e mais saudável do que anteriormente.
Na quinta-feira à noite, Franziska cozinhara para Rathenow um dos seus pratos favoritos: almôndegas com molho de alcaparras e batatas novas. Ele foi buscar uma garrafa de bom vinho tinto à adega, um Châíeau Margaux de 1983, serviu-o e entregou um copo a Franziska. Esta, que usava um lindo fato de calça e casaco, reclinou-se no sofá. Estavam no salão.
- O que estamos a festejar, meu amor? - perguntou ela. - Já acabaste o teu trabalho?
- Não...
- Uma nova encomenda?
- Também não. Nós... nós estamos a festejar a despedida, Franziska.
- Vais novamente viajar? Para onde? Por que razão não me disseste nada, querido? Uma surpresa? Para onde vamos? Estou ansiosa por saber.
- Não é uma viagem, Franziska. - Rathenow reuniu toda a sua coragem, mas sentia o coração a lutar. - Eu... eu já te falei uma vez da Wang Liyun!
- A pequena chinesa que tu... onde é que a conheceste?
- Em Kunming.
-... que conheceste em Kunming. A tua guia. Olhou-o com um sorriso; os seus lábios pintados de vermelho brilhavam à luz do candeeiro de pé em mogno, de fabrico inglês. - O que se passa com ela?
- Está na Alemanha.
- Ah! Que bom para ela...
- Está em Sarrebruck em casa de um advogado, o doutor Frantzen. Depois de amanhã vem para Munique. Para minha casa.
- É absolutamente necessário?
- Sim. Eu convidei-a.
- Uma chinesa que tu conheceste vagamente há quase um ano? Era necessário?
- Sim. Eu quero ser honesto, Franziska! - Rathenow respirou fundo. - Para mim, ela foi mais do que uma guia de viagem e intérprete.
Silêncio.
Franziska colocou o copo de vinho sobre a mesa e olhou, calada, para Rathenow, durante alguns instantes. Foram segundos terríveis para Rathenow.
- Devia ter compreendido - disse finalmente. - Tu não és homem para deixar passar esse tipo de oportunidade. Estou apenas um pouco desiludida por nada me teres contado, mas isso já passou...
- Não tive nenhuma relação amorosa com a Liyun. Mesmo que não acredites, juro.
- Então, qual o motivo do convite para nossa casa? Ela dissera ”nossa casa”. Para ela, não havia dúvida de que pertencia a Rathenow e que era sua mulher mesmo sem certidão. Aquele ”nós” tornou ainda mais difícil a conversa. Rathenow segurava o copo com as duas mãos.
- Por favor, aceita as coisas com calma - pediu. Somos pessoas adultas e sensatas...
- Tu amas essa chinesa... - proferiu Franziska com uma calma perigosa e gelada.
- Sim. Amo-a. Disseste-o.
- E pensas que vou aceitar isso?
- Não.
- O que devo fazer? Uma cena? Que esperas de mim? Que parta uma peça de porcelana? Queime o teu manuscrito? Me atire para cima da alcatifa aos gritos? Enforque essa Liyun?
- Podes fazer tudo isso, mas não metas a Liyun nisto.
- Ama-la assim tanto?
- Para mim tem mais valor do que todos os bens materiais da terra. Meu Deus, porque não o fazes? Porque é que ficas aí sentada como uma estátua?
- Um acesso de raiva mudaria alguma coisa?
- Não.
- Então para quê desperdiçar energia?
Ela levantou-se do fundo do sofá de cabedal e endireitou a parte superior do fato. Naquele momento, vieram-lhe lágrimas aos olhos e Rathenow baixou a cabeça.
- Vou-me embora, Hans.
- Lamento muito... - disse ele em voz baixa e com um grande sentimento de culpa.
- Amanhã mando buscar as minhas coisas. - Quando chegou à porta, virou-se e olhou para Rathenow com uma expressão assustadora e estranha. - Sê feliz, Hans - disse ela, mas não lhe estendeu a mão. - Nunca mais voltarei a ver-te! Estás a ouvir? Sê feliz com a tua chinesa e, quando estiverem fartos um do outro, não estarei disponível para ti.
Pressionou o puxador da porta e abandonou a casa sem olhar à sua volta.
Acompanhou-a até ao final do alpendre sustentado por colunas e esperou até o carro desaparecer. Nem quando passou por ele no carro lhe dirigiu um olhar.
Rathenow respirou fundo, mas estava muito inquieto. Sentia-se mesquinho e sujo. Destruíra o amor de uma mulher e ferira-lhe a alma. Não era algo que se pusesse facilmente de lado. Além do mais, preocupava-se com Franziska. Aquela calma aparente não era normal.
Com medo, telefonou ao Dr. Freiburg.
- Estás a tornar-te inoportuno! - afirmou Freiburg, irritado. - Telefonas sempre que estou em acção! Estou de cuecas e a Liliane espera-me na cama. Despacha-te. Que queres?
- A Franziska acabou de sair.
- E ainda estás vivo? Estás ferido? Queres que te vá buscar?
- Não houve cenas. Foi-se calmamente embora.
- Impossível! Disseste-lhe toda a verdade?
- Sim.
- Não andaste com rodeios, como é costume?
- Disse-o com bastante clareza: eu amo a Liyun.
- Não está a agradar-me o facto de ela ter aceite isso com tanta calma, Hans. - A voz de Freiburg tornou-se mais séria. - Garanto-te que tem alguma coisa em mente. Meu Deus! Que andaste para aí a fazer?
- Também pensei nisso. Por favor, telefona-lhe daqui a um quarto de hora. Nessa altura já deve estar em casa.
- Sempre eu!
- Neste momento sou a última pessoa que pode telefonar-lhe.
- Então, prepara-te para identificar um cadáver.
- Tens a delicadeza de um sáurio!
- Nada mais resulta contigo! Voltarei a telefonar.
Meia hora mais tarde, Rathenow ainda estava à espera do telefonema de Freiburg. A meia hora mais infernal que Rathenow experimentara. A ideia de Franziska ter feito alguma coisa a si própria deixava-o quase louco. O telefone finalmente tocou. Freiburg estava muito sério.
- Sim? - perguntou Rathenow, ansioso.
- Não.
- O que quer dizer não?
- A Franziska está em casa.
- Deus seja louvado!
- Tens mais sorte do que mereces! Mas contigo é sempre assim: numa situação crítica, a sorte sempre te ajudou. Agora, com Liyun, estás completamente apanhado na rede. Deixa-me sozinho com a Liliane, minha vítima da China!
Rathenow desligou. ”Ela está em casa... Graças a Deus. Perdoa-me, Franziska! Não posso fazer mais nada.”
Domingo à tarde. Um dia de Verão chuvoso, as primeiras chuvas no espaço de três semanas. Estava um calor húmido. Muitas pessoas andavam sem chapéu de chuva, como se a chuva fosse uma forma de duche refrescante sobre os corpos demasiado aquecidos.
Rathenow encontrava-se na plataforma onde, dentro de alguns minutos, entraria o comboio que transportava Liyun. Impaciente, caminhava de um lado para o outro; bebera rapidamente uma cerveja sem álcool num quiosque de bebidas e continuava a imaginar como iria receber Liyun.
”Abraço-a? Dou-lhe um beijo na mão ou estendo-lhe apenas a mão? Como estará ela? Será que mudou nestes nove meses? Como se comportará quando me vir? Deus do céu, ela não me reconhecerá. Agora estou louro. Ficará surpreendida ou rir-se-á?”
O comboio entrou na estação. Rathenow esperou e depois avançou mais um pouco na plataforma. Os viajantes passavam por ele, apressados, os carros de transporte de bagagens guinchavam, as pessoas cumprimentavam-se amorosamente, abraços, beijos, alegria... mas não via Liyun. ”Enganou-se a mudar de comboio”, pensou. ”Devia ter ido buscála a Sarrebruck. A culpa é minha.”
Depois, viu-a. Descera da antepenúltima carruagem do longo comboio e arrastava com algum esforço uma pesada mala de viagem.
Rathenow correu para ela. Usava calças de ganga, uma blusa amarela e sobre esta um casaco de malha. O cabelo preso em rabo-de-cavalo com uma fita amarela. Estava linda.
- Liyun! - gritou, abrindo os braços quando se aproximou dela. - Liyun! Liyun!
Ela deixou cair a mala, olhou para ele com os seus olhos grandes e brilhantes, com os quais ele sonhara durante meses, e, quando ficaram frente a frente, não houve mais perguntas: abraçou-a e beijou-a como se nunca mais quisesse largá-la.
Liyun corou até à raiz dos cabelos. Beijara-a publicamente, à frente de toda a gente, e, na realidade, ela devia envergonhar-se, pois o beijo em público não era hábito. Todavia, retribuiu o beijo, colocou os braços à volta do pescoço dele e beijou-o de olhos fechados.
- Liyun. Liyun, estás aqui. Estás mesmo aqui! Como esperei por este momento! Liyun!
E voltou a beijá-la. Agora estavam sós na plataforma vazia, abraçavam-se e olhavam-se nos olhos. O mundo deixara de existir. Só ela existia.
Quando a largou, a jovem estava completamente sem fôlego. Olhou de novo para ele com os seus olhos grandes e disse quase num sussurro:
- Onde estão os seus cabelos brancos, senhor Rathenow?
- Explicarei isso mais tarde. É uma longa história. A outra cor agradava-te?
- Não. Os seus cabelos eram como a neve dos montes. Porque fez isso?
- Mais tarde, Liyun. Vamos para Griinwald. Estou tão feliz por teres vindo.
- Também estou feliz, senhor Rathenow - respondeu ela com precaução e algum retraimento. - A Alemanha é um país lindo. Elegante e muito limpo.
Rathenow agarrou a mala pesada e abanou a cabeça.
- Transportaste isto sozinha?
- Nas zonas rurais da China, as mulheres transportam cargas muito pesadas.
Atravessaram o grande átrio da estação e foram até ao estacionamento onde Rathenow encontrara, por sorte, um lugar para estacionar.
Liyun ficou parada.
- Oh! - exclamou ela. - Tem um BMW?
- Há dois meses, novo. Com tracção às quatro rodas.
- Como o nosso Toyota em Kunming?
- Como o ”nosso Toyota”. - Rathenow meteu a mala no porta-bagagens. - O que faz o Wen Ying?
- Bebe e conduz como sempre. Comprou outra ave de combate. Preta com a cabeça vermelha. Ganhou todos os combates em que entrou. O Ying sente-se como se tivesse ganho a dragões.
Ela riu-se e Rathenow fechou os olhos durante um momento.
”Meu Deus! Como a amo!”, pensou.
Conduziu devagar até Griinwald para mostrar a Liyun parte de Munique. Quando passaram o grande portão de ferro que conduzia à casa, desceram e penetraram no amplo vestíbulo de entrada, Liyun ficou parada a olhar à sua volta.
- Esta é a sua casa? - perguntou em voz baixa.
- Sim... e tua enquanto cá estiveres.
- Isto não é uma casa. É um palácio. Deve ser muito rico.
- Mais ou menos. A casa foi construída pela minha tia e eu herdei-a.
- Mesmo assim, continua a ser um palácio. E vive aqui sozinho?
- Completamente.
- O que faz com tantos quartos?
- Vagueio por eles e sinto falta de vida.
-Por que razão não casou após a morte da sua mulher?
”Porque estava à tua espera, Liyun”, pensou ele.
- Foi assim que aconteceu. Talvez seja um homem estranho, o solteirão louco, um fanático da liberdade...
- Não quer voltar a casar?
- Não foi isso que quis dizer.
- Amou muito a sua mulher...
- Sim, amei-a e honrei-a muito. Mas isso já foi há muito tempo e a vida continua.
Pegou na mala de Liyun e dirigiu-se às escadas que conduziam ao andar de cima.
- Vem... vou mostrar-te o teu quarto.
Liyun seguiu-o de olhos muito abertos e cheia de espanto. Tectos trabalhados, paredes cobertas a madeira, candeeiros de prata antigos, espessos tapetes persas, móveis com embutidos, quadros valiosos, ícones russos. Para Liyun, era um luxo inacreditável.
Rathenow abriu uma porta. Um grande quarto com uma larga cama com dossel. Até os armários tinham embutidos artísticos. A mesa estava forrada de couro verde, como os dois sofás. No chão havia uma carpete rica.
- O teu quarto... - disse Rathenow.
- Um imperador nunca viveu assim... - murmurou a jovem, como se a voz pudesse causar algum prejuízo a todo aquele luxo.
- Tu és mais do que uma imperatriz. És a Wang Liyun e estás em minha casa.
Com passos hesitantes, Liyun entrou no quarto. Ficou parada perante aquela cama gigantesca e depois olhou para Rathenow.
- Onde dorme? - perguntou.
- Aqui ao lado.
- Isso é bom...
- Porque é que é bom?
- Temo a riqueza. Nunca tinha visto nada assim e agora tenho de habitar aqui! Terei de me habituar primeiro.
- Amanhã verás as coisas de outra maneira, Liyun.
- Também dorme num quarto tão luxuoso?
- Talvez ainda mais... A minha tia não sabia o que fazer ao dinheiro e, por isso, comprou tudo o que gostava. E tinha gostos muito caros. - Abriu uma porta lateral... uma casa de banho toda em mármore. As aplicações eram de um dourado brilhante. A entrada da banheira era um cisne dourado
Liyun ficou parada à porta em silêncio. Depois perguntou:
- Posso dizer uma coisa, senhor Rathenow?
- Tudo.
- E não fica ofendido?
- Nenhuma palavra tua poderia ofender-me.
- O nosso mármore de Dali é melhor e mais bonito...
- E tem de ser... é tão belo como tu, que nasceste em Dali.
Liyun não respondeu e voltou para o quarto.
- Gostaria de desfazer a mala e tomar banho - afirmou. - Posso?
- Podes fazer o que quiseres, Liyun. Esta é também a tua casa.
- Sinto-me tão suja depois da viagem de comboio.
- Espero por ti lá em baixo no vestíbulo. Rathenow saiu do quarto e ouviu Liyun dar a volta à chave. Sorriu dos seus cuidados e desceu as escadas a assobiar.
O jantar foi fulminante, teria dito o Dr. Freiburg.
Rathenow encomendara-o a um serviço de festas, e o chefe, Gerd Kàfer, confeccionara pessoalmente a refeição de boas-vindas. Consistia de caviar, que estava num frape juntamente com o champanhe, Taittinger cave do ano, creme de lavagante, pombos assados em salva, rosbife assado em sal com cogumelos e espargos franceses e para acompanhar um Montrachet de 1989 e um Château Haute Brion de 1979. Para a sobremesa, três tipos de sorvete rodeados de fruta fresca.
No entanto, Rathenow recusara a presença de um criado.
- Eu próprio o servirei - dissera. - Sei que é pouco elegante, mas sou bom na cozinha. Não se preocupe, mestre. Não mancharei a sua imagem.
Enquanto Liyun se encontrava lá em cima mergulhada na banheira de mármore, gozando de um banho de sais com um aroma semelhante ao das rosas dos jardins de Lijiang, Rathenow estava na cozinha a preparar a refeição. A mesa da casa de jantar já estava posta. Porcelana de Nymphenburg, talheres ingleses, toalha de damasco, candelabros de prata da antiga Rússia com velas prateadas e copos em cristal da Boémia, de fabrico artesanal.
Dos altifalantes escondidos vinha música de Vivaldi. Depois das entradas, mudaria para Mozart. Pequena Serenata.
”És um louco”, dissera Freiburg.
Finalmente, Liyun desceu a larga escadaria até ao vestíbulo. Rathenow tinha estado à sua espera e olhou para ela enquanto descia as escadas. Usava uma saia curta em amarelo-pálido, que terminava um palmo acima do joelho, deixando livres as suas longas e belas pernas, e uma blusa de seda branca bordada com motivos florais. Os cabelos caíam-lhe sobre os ombros. Brilhavam à luz dos candeeiros como ébano polido.
Aos pés da escadaria, Liyun ficou parada e deu uma volta sobre si própria.
- Agora sinto-me bem melhor - disse ela, rindo-se. Rathenow ficou sem respiração perante a imagem de Liyun. Fazia-lhe lembrar os quadros antigos de famosos pintores chineses que vira no museu de Kunming, aquela figura de mulher etérea, leve, semelhante a uma sílfide, cujo rosto terno era iluminado por um sorriso como aquele que se via agora na boca de Liyun: a eterna beleza tomara vida, saindo dos quadros de seda ou papel de arroz.
- Estás maravilhosa - comentou ele com uma voz comovida.
Deu outra volta sobre si própria, tal qual um modelo que apresenta novas colecções.
- Comprei isto na China - explicou. - Na véspera da minha viagem. A minha mãe disse que dava demasiado nas vistas, não sendo suficientemente sóbrio, mas agrada-me. Já vi que as mulheres alemãs usam saias bem mais curtas e vê-se muito mais as pernas. Na China ficariam a olhar para elas.
- Na Alemanha ficariam a olhar para ti.
Liyun imobilizou-se, ficou parada e olhou-o, espantada.
- É assim tão grave? Vou mudar de roupa...
- Olhariam para ti porque és muito bonita.
- Não sou bonita. Apenas diferente delas.
Liyun aproximou-se dele. Rathenow obrigou-se a não a abraçar. ”Pode assustar-se”, pensou. ”Há pouco, na estação, a situação era diferente. Pode-se explicar com a alegria de voltar a vê-la. Contudo, ela retribuiu o beijo, mas continua a tratar-me formalmente. Que pensará na realidade?”
- Mostra-me agora o seu palácio? - inquiriu ela.
- Depois, Liyun. Agora convido-te para jantar. Deves ter fome...
- E como! Vamos a qualquer lado?
- Ficamos aqui.
- Cozinhou? - Liyun olhou para ele, desconfiada. Sabe cozinhar?
- Gosto de cozinhar como hobby. Os meus convidados ainda não morreram.
- Um homem tão famoso é capaz de ficar à frente de um fogão a cozinhar? Quando imagino o nosso presidente Li Peng a mexer uma panela de sopa... Impensável!
- Tens assim tanta certeza? Talvez o faça. Há muitos homens famosos que foram bons cozinheiros. Rossini, o grande compositor, o príncipe Stroganov, um dos homens mais ricos da Rússia czarista, o conselheiro Holstein, a eminência parda do império alemão, e até o grande cirurgião Sauerbruch gostava de andar na cozinha e, quando estava bem-disposto, tocava trompete nos hotéis em que ficava quando viajava.
- Mas o senhor vive como um rei...
- É apenas aparência. É tudo exterior. Sem a herança da minha tia contaria com um imposto de cinquenta e três por cento.
- Pagam assim tantos impostos? - Liyun abanou a cabeça. - Na China, os milionários pagam apenas vinte por cento de imposto de rendimento.
- Feliz China!
- E quando os estrangeiros fundam uma empresa na China, ficam livres de impostos durante dois anos.
- Vamos para a China!
- O senhor, como famoso etnólogo e escritor, teria ainda direitos especiais. Nós amamos os nossos grandes artistas.
- Ao contrário da Alemanha. Quem ganhar muito dinheiro como escritor torna-se imediatamente suspeito. A inveja é a segunda alma do homem. Um funcionário senta-se, lê a declaração de imposto e pensa: ”Este tipo... ganha muito. Será honesto?” O verdadeiro beneficiário de uma obra não sou eu, mas sim a repartição de finanças, pois leva mais dos meus honorários... sem ter escrito uma linha.
- Mas vocês são uma democracia. Porque não se defende?
- Como? Fomos nós que escolhemos o governo que temos. Assim, podes ver o abismo que há entre nós: vocês não nos percebem e nós não vos entendemos... mas somos demasiado divinos para nos metermos nas estruturas chinesas.
Rathenow colocou o braço sobre o ombro de Liyun.
- Vem! Vamos jantar, senão, as tostas ficam frias e sem graça e pensarás: ”Céus! Os Alemães comem comida para animais!” Pode fazer-me o favor, senhora Wang Liyun?
- Com todo o prazer.
E os seus olhos ficaram ainda mais escuros.
Entraram na sala de jantar, mobilada em estilo Luís XIV. Liyun voltou a ficar parada à porta. A visão da mesa posta com aquela valiosa porcelana deixou-a sem fala. No meio da mesa estava uma grande taça de prata com um enorme ramo de flores. Podia-se confiar no gosto exclusivo de Gerd Kafer.
- Tudo parece um sonho... - observou novamente em voz baixa. - Tenho medo de acordar.
- Estás acordada, Liyun.
- Se o diz, imperador, tenho de acreditar.
Liyun sentou-se cuidadosamente e Rathenow foi à cozinha buscar as entradas e as tostas. Liyun olhava para todos os lados. O seu olhar parou num quadro que estava pendurado numa parede lateral. Uma linda senhora com os cabelos louros puxados para cima e um vestido que deixava ver os ombros. Um vestido vermelho com folhos no decote e uma rosa branca entre os seios.
Rathenow regressou com as tostas e pratos e serviu como um verdadeiro mordomo. Liyun indicou o quadro.
- Quem é aquela mulher? - perguntou.
- A minha mãe. Quando o quadro foi pintado, tinha vinte e três anos e acabara de conhecer o meu pai. Era o quadro favorito do meu pai.
- Era uma mulher lindíssima...
- Sim. Mas morreu muito nova. Eu só tinha seis anos.
- Tem muitos traços da sua mãe.
- Não sei...
- Tem, sim! Os olhos azuis, o nariz, os lábios, o olhar e os cabelos.
- Quando era criança, tinha longos cabelos louros e, por vezes, parecia uma rapariga. Isso sempre me irritou. A minha mãe queria ter uma rapariga. Quando nasci, parece que disseram desiludidos: ”Ah! Um rapaz!”
Subitamente, antes de Liyun poder reagir, agarrou-lhe na mão e beijou-lhe os dedos um a um. Ela não retirou a mão, mas voltou a corar.
- Qual foi a unha que te arrancaram? - perguntou, observando também a outra mão. As unhas não tinham mácula e estavam pintadas de um rosa muito discreto.
- O que é que está arrancado? - perguntou ela, olhando para as unhas. - Pintei-as mal?
- A unha era pequena. Deve ter vindo do teu dedo mínimo.
Liyun olhou para ele na mais total incompreensão.
- De que está a falar? - perguntou, visivelmente perturbada.
- Mas eles arrancaram-te uma unha em Kunming...
- Quem?
- As tríades!
- Não sei de que está a falar. Não há tríades em Kunming. Que tenho eu a ver com elas?
- Não te arrancaram nenhuma unha? E não te cortaram uma madeixa de cabelo?
Liyun fixava-o como se Rathenow estivesse a falar uma língua diferente.
- Não sei realmente de que está a falar... - insistiu.
Rathenow teve de se sentar. Tudo aquilo atingira-o como
um raio. ”Enganaram-me! Mentiram-me! Ninguém fez nada à Liyun, ninguém a castigou por minha causa! E eu acreditei neles. A contínua ameaça: se cometeres um erro, mandamos-te o dedo! E eu deixei que fizessem bluff, entreguei-me nas suas mãos, sou um membro das tríades, tornei-me um Hong e sandália de erva e deixei de ter vontade própria com medo que torturassem a Liyun. Perdi a minha personalidade e assisti às atrocidades, pensando sempre: Isto não pode acontecer à Liyun! Faço tudo o que quiserem, mas deixem Liyun em paz. A mim quebraram-me, mas, na verdade, não tocaram na Liyun. Ela não sabe de nada.”
- Tenho muito para te contar - disse Rathenow, fazendo-lhe uma festa na mão. - Espera um momento.
Subiu as escadas a correr até ao quarto e voltou com um sobrescrito. Liyun recuou quando viu o conteúdo. Uma madeixa de cabelo tão brilhante como o seu e uma pequena unha, incolor, mas que já estava amarela nas bordas.
- O que... o que é isso? - gaguejou, virando-se enojada.
- Deram-me isto e disseram que eram os teus cabelos e a tua unha.
Liyun estava incapaz de proferir uma palavra. Os seus olhos pareciam cinzentos. Rathenow pegou-lhe na mão e pressionou-a contra o rosto. Depois beijou-a repetidamente, não reparando que Liyun começara a tremer de medo.
- Liyun. Não olhes! Não quero chorar, mas não sou capaz... Raios, estou envergonhado. Mas estou pronto... totalmente pronto... Salvaste-me a vida e nem sequer o sabes. Não olhes para mim!
As deliciosas iguarias de Gerf Kafer não foram sequer tocadas.
Nessa noite, Rathenow contou-lhe algumas partes da história da sua ligação com as tríades. Apenas confessou a Liyun que a Catorze K o tinha obrigado a fazer contrabando de heroína, disfarçada de café em pó.
- Fizeram mesmo isso? - gritou ela. - Como pôde deixar-se convencer?
- Ameaçaram-me contigo...
- Comigo? Como assim?
- Aquele membro das tríades de Kunming foi muito claro: ”Nós conhecemos a Wang Liyun e seguimo-los durante toda a viagem. Se se recusar a fazer este pequeno favor, castigaremos a Liyun.” O que isto significa foi-me mostrado em fotografias horríveis.
- Se a polícia o tivesse apanhado com a heroína, já estaria morto há muito. Fuzilado publicamente num estádio de futebol.
- Fi-lo para te proteger.
A jovem baixou a cabeça. Entrelaçou os dedos.
- Já o tinha feito uma vez - disse. - Na Estrada da Birmânia, aquando do acidente com os soldados. Nessa altura, atirou-se para cima de mim e poderia ter sido morto a tiro. Pensei nisso muitas vezes. Outro homem não faria tal.
- Para mim era normal. Acreditei nas tríades e nas ameaças a partir do momento em que disseram que a Liyun não iria ao aeroporto. E realmente não foste.
Liyun saltou da cadeira e ergueu os punhos contra o peito.
- Finalmente percebi! - gritou, abanando a cabeça. Nós procurámos, a polícia ouviu todos os suspeitos, o secretário do Partido dirigiu pessoalmente a investigação e não encontraram nada...
- O que é que não encontraram?
- O táxi! O motorista!
- Que táxi?
- Eu queria ir ter consigo para o levar ao aeroporto. Pedi um táxi. Estava à espera à minha porta, mas o motorista não me levou ao aeroporto. Saiu de Kunming, as portas do carro estavam trancadas, eu não podia pedir ajuda e na estrada para Xingyi atirou-me para fora do carro. Mandei parar um camião que me levou ao aeroporto. Cheguei tarde. Ainda vi o seu avião a levantar voo e chorei.
- Liyun! - Rathenow apertou-a contra si. - Foi o primeiro aviso da Catorze K! Já o adivinhara. Nunca me terias deixado partir sozinho.
- Nunca. Era um dever conduzi-lo até ao aeroporto. Ninguém conseguiu esclarecer o meu rapto. Não havia motivo e não fazia sentido. Não me aconteceu nada. Só alguns arranhões quando o motorista me atirou para a estrada.
-Meu Deus! O que podiam ter feito contigo. - Pressionou-lhe a cabeça contra o peito e beijou-lhe os cabelos. - Agora vou apresentar a conta ao Min Ju.
- Quem é o Min Ju?
- O chefe das tríades de Munique. O daih-loh.
- Conhece-o? - perguntou ela, estupefacta. Havia uma expressão de medo nos olhos. Inconscientemente, abraçou-o. - Continua a ser seguido?
- Tive de lhes entregar o café e o leite em pó. - RatheInow não ousou contar-lhe toda a verdade. Tinha medo que Liyun voltasse imediatamente para Sarrebruck. ”Ela tem de ficar aqui comigo. Só aqui estará segura. Só aqui posso protegê-la. Vamos tentar arranjar uma possibilidade de fugir às tríades. Nunca mais te largarei, Liyun.” - Depois telefonou-me algumas vezes e, como eu não fazia o que ele queria, mandou-me o cabelo e a unha e disse: ”Uma prenda da Liyun.” Foi o primeiro aviso e eu acreditei. - Voltou a beijar-lhe os cabelos e ela encostou a face ao seu peito. Foi horrível, Liyun. Estava desesperado. Eu... eu teria feito tudo para que eles não tornassem a fazer-te mal.
Mais tarde, sentaram-se no salão, levando com eles alguma coisa para comer, e Rathenow mostrou-lhe as fotografias que tinha tirado na China. Mas cada vez que Liyun via uma fotografia sua apertava os lábios e dizia:
- Estou muito mal. Deite fora a fotografia! Rasgue-a.
- São as minhas melhores fotografias. Nunca esquecerei a tarde em que te sentaste à beira do lago Lugu e choraste durante o pôr do Sol.
Beberam o Montrachet, e Rathenow verificou, com um sorriso, que soubera bem a Liyun. Ela bebeu um segundo copo, sentou-se no sofá com as pernas cruzadas e ouviu a música, que vinha suavemente dos altifalantes. A Sinfonia Clássica de Sergei Prokofiev.
- Que lindo - disse uma vez, inclinando a cabeça para trás.
- O quê? - Rathenow olhava-a fixamente. Estava a reprimir o desejo de a tomar nos braços.
- A música. Gosto desta música. A maior parte dos chineses não a compreendem. É preciso senti-la...
Mais à noite, o telefone tocou.
O Dr. Freiburg. Apresentava uma voz que demonstrava que, mais uma vez, bebera demasiado uísque no clube de golfe.
- Ela está aí? - perguntou.
- Sim.
- E como é ela? Mudou, estás desiludido?
- Não.
- As tuas respostas curtas agradam-me. São sinal de pouca alegria. O que se passa nos bastidores?
- O concerto para violino de Max Bruch.
- Meu merdoso! Não têm nada de melhor para fazer? Um concerto de travessuras!
- Vai para a cama - disse Rathenow com aspereza.
- Estás completamente bêbedo.
- E sozinho! Invejo-te...
Rathenow desligou sem dizer uma palavra. Liyun bebeu um pequeno gole do seu vinho.
- Quem é que lhe telefona tão tarde? - perguntou.
A curiosidade feminina estava patente naquela pergunta.
”Era uma mulher”, pensou ela. ”Era com certeza uma mulher... a esta hora.”
- Era um grande amigo meu.
- Um amigo? Mas foi muito descortês com ele. - Colocou a mão à frente da boca e bocejou. - Estou cansada. O vinho... eu nunca bebo vinho. E foi um dia muito longo. Posso ir para a cama?
- Liyun, tu podes fazer tudo! Se quiseres, podes dornir até amanhã ao meio-dia.
- Gosto de dormir. - Levantou-se do sofá, endireitoua saia e atirou o cabelo para trás. - Não vai para a cama?
”’ -Ainda vou arrumar algumas coisas.
- Posso ajudá-lo?
- De maneira nenhuma. Agora vais para o teu quarto... e amanhã voltamos a ver-nos.
- Como o imperador quiser.
- Foram para o vestíbulo. Junto da escadaria, Rathenow beijou-a na testa. - Boa noite, Liyun.
- Boa noite, senhor Rathenow. - Estendeu-lhe a mão de porcelana e subitamente retirou-a. - Meu Deus!
- O que foi, Liyun?
- Esqueci-me de telefonar à senhora Frantzen. Fiquei de telefonar assim que chegasse. Deve estar zangada comigo.
- Amanhã cedo eu trato disso. Assumirei todas as culpas.
- Obrigada. - Os seus olhos escuros brilhavam. Sempre a proteger-me.
Virou-se, correu pela escada acima com tanta leveza que pareciam não existir degraus, abriu a porta do quarto, fechou-a atrás de si e Rathenow ouviu distintamente a chave a girar. Parecia que estava a fugir.
No quarto tirou a roupa e atirou-se para cima da cama nua e de barriga para baixo.
- Por que razão sou tão estúpida? - gritou ela com a cabeça enterrada na almofada. ”Porque é que não sou como as outras mulheres. Eu amo-o... amo-o... mas tenho medo de lho mostrar.”
”Estou bêbeda. O vinho! Liyun, domina-te! Estou bêbeda. Controla-te... Mas eu amo-o...”
Rathenow estava sentado à máquina de escrever a trabalhar.
Liyun ainda se encontrava a dormir. Rathenow pusera-lhe a mesa na casa de jantar e preparara café. Tudo o que fazia parte de um bom pequeno-almoço estava sobre a mesa: diversos tipos de carnes frias, açúcar, um copo de sumo de laranja e pão fresco dentro de um cesto que trouxera de Bornéu. Há mais de doze anos que o padeiro lhe trazia pão todas as manhãs, o qual era colocado num saco de linho que ficava pendurado na maçaneta da porta.
Junto do prato, Rathenow pusera uma folha de papel que dizia: ”Bom dia, pequena Liyun. Bom apetite. Estou no escritório.”
Já passava das dez horas quando bateram à porta de Rathenow. Antes que tivesse tempo de responder, a porta abriu-se e Liyun entrou. Trazia um grande tabuleiro onde se viam todos os alimentos que Rathenow colocara na mesa. Até trouxera o café num termo. Usava umas calças de ganga brancas, justas, e uma blusa sem mangas e caminhava descalça sobre a carpete. Ficou parada à porta.
- Posso entrar? Sinto-me muito só naquela sala gigantesca sob o olhar da sua mãe. Ah! É verdade! Bom dia. Incomodo se tomar o pequeno-almoço aqui?
- Não. Tu nunca incomodas, mas qualquer outra pessoa voaria daqui para fora. Quando escrevo, transformo-me num dragão que afasta toda a gente do seu buraco.
- Perdão! Então vou-me embora. ’”
- Tu ficas. Podes fazer tudo o que quiseres. Rathenow levantou-se da cadeira da secretária e retirou-lhe o tabuleiro das mãos. Nessa altura, reparou que sobre este estavam duas chávenas, dois pratos, dois conjuntos de talheres e um termo.
- Também trouxeste talheres para mim?
- Sim. Não tomou o pequeno-almoço muito cedo?
- Um pouco...
- Um pouco é muito pouco para um homem que trabalha.
- Estiveste na cozinha?
- Sim.
- E encontraste tudo?
-Eu não sou parva. - Riu-se e ajudou Rathenow a pôr a mesa redonda que ficava em frente a um sofá de canto. - Tenho de voltar imediatamente à cozinha.
-Porquê? Está tudo aqui. - Rathenow olhou para a mesa. - Não falta nada.
- Tenho massa a cozer. Já deve estar pronta.
- Tu... tu fizeste massa? Agora?
- Encontrei tudo na cozinha. Massa, cubos de caldo e carne de ontem à noite que cortei em pequenos pedaços. Além disso, tinha óptimos legumes no frigorífico. Estou a fazer sopa de aletria. Só falta o molho de soja.
- Liyun, que significa tudo isto? - Ele abanou a cabeça, espantado. - Vamos almoçar à cidade.
- Eu como a sopa agora. Já se esqueceu do que viu na China? Um chinês tem de comer de manhã uma sopa quente, caso contrário, o dia corre mal. Além do mais, disse-me que posso fazer tudo...
- Que burro! - Rathenow bateu com a palma da mão na testa. - Tens razão, Liyun. A vossa sopa matinal. Desculpa ter pensado à europeu.
- É a sua pátria, mas eu hoje preciso de uma sopa de massa...
- Sem molho de soja. Será comprado imediatamente. Senta-te, Liyun... eu vou ver a sopa.
- Não. Isso é comigo. - Apontou para o sofá. - Sente-se.
Rathenow sentou-se obedientemente.
- És maravilhosa, Liyun.
- Tenho fome. Dormi muito tempo?
- Sim...
Ficou com um ar embaraçado.
- Perdão! Isso incomoda-o?
- Sim, porque o meu dia só começa quando te vejo... Ela virou-se e saiu. ”Como ficou segura de si”, pensou. ”A timidez desapareceu durante a noite. Utilizou a minha cozinha como se sempre tivesse sido assim. Sente-se em casa logo no primeiro dia.”
Olhou para a máquina de escrever. Naquele dia não faria mais nada. Nem uma linha! O dia pertencia a Liyun e só a ela! ”Passearemos pelos bosques, sentar-nos-emos na margem do Isar, comeremos torta numa esplanada e, à noite, quando o calor abrandar, iremos dar uma volta pelo centro da cidade. Vai ficar muito admirada com tudo o que há para comprar.”
Liyun regressou com uma terrina de porcelana cheia de sopa fumegante. Sentou-se à mesa em frente a Rathenow e começou a comer a sopa. Ele ficou alguns instantes a olhá-la.
- Os pratos estão todos sujos?
- Porquê?
- Porque estás a comer da terrina.
- A sopa de massa deve ser comida da terrina. Já alguma vez viu um chinês a comer sopa de um prato?
- Em casa do doutor Frantzen também comias sopa todas as manhãs?
- Só no primeiro dia. Tenho de me habituar à cozinha alemã.
- E em minha casa não precisas de o fazer?
- Não. - Os seus olhos brilhantes admiravam-no com coqueteria. - Consigo é diferente. Compreende a nossa vida e a nossa gente. O doutor Frantzen nunca teria ido ao lago Lugu e vivido numa cabana de camponeses chineses. Ele só usava hotéis de luxo e apenas consumia comida europeia.
- Nunca comeu numa barraca de rua?
- Impossível! Mas o senhor fê-lo. Em Lijiang até comeu guisado de cão...
- Isso ninguém me disse! Vou ter de me queixar da guia de viagens do CITS, Liyun...
- Não o teria comido?
- Provavelmente... para saber a que sabia.
- Não o teria notado, pois a carne estava temperada
com ma Ia jiang.
- O que é isso?
- Ma Ia jiang é um molho muito condimentado originário de Sichuan.
- Já me lembro... algumas vezes a comida estava terrivelmente picante. Queimou-me a garganta e tive de tossir.
- Eu sei.
Liyun riu-se e continuou a comer a sopa.
- Uma vez comeu carne de boi com hei dou jiang que é um molho escuro picante. Mas Ia jiao jiang comeu sempre...
- Isso é aquela coisa diabólica com as sementes vermelhas? Aqui chama-se sambal oelek.
Liyun comeu mais duas colheres de sopa.
- É o que falta aqui. Soja e Ia jiao jiang.
- Assim que sairmos, iremos a uma loja de produtos chineses e compraremos tudo o que precisas.
- Massa de vidro e cogumelos chineses secos também? Há muitas variedades na China. As melhores são mu er e Ixiang fu.
- Podemos comprar tudo, mas depois terás de confeccionar comida chinesa para nós.
- Com prazer! A que horas saímos?
- Logo a seguir ao pequeno-almoço. - Rathenow serviu-se de uma chávena de café, mas não comeu nada.
Liyun olhou para a comida. - Também quer uma sopa?
-Sim... com prazer...
Empurrou a terrina de sopa para ele que pegou na colher dela e comeu um pouco. Teve a sensação de que Liyun estava na sua vida há muito tempo. Para si era tão natural como se a sua vida fosse sempre assim. Só o seu segredo - o facto de ser membro das tríades, um irmão e um Hong - ainda estava entre ambos. Queria dizer-lhe tudo naquela noite, mas tinha medo. Será que ela entenderia? E depois pensou: ”Será que me ama? Ficará comigo? Daqui a três meses o visto acaba. E depois?”
Rathenow empurrou a sopa para Liyun.
- Não comeu quase nada! - comentou ela com ar de censura.
- Eu já tinha tomado o pequeno-almoço.
- A correr, mas agora tem tempo. Vai comer um pãozinho com fiambre. A partir de amanhã faço-lhe pão húmido. Vamos comprar tudo o que é necessário.
- Liyun, daqui a quatro semanas vou pesar cem quilos!
- Não faz mal. Na China, um homem gordo é um homem abastado. Pense só no deus Bao-Dai, o deus da alegria e felicidade.
- Por amor de Deus! Queres que eu fique assim tão gordo?
- Não, mas a boa comida chinesa não engorda. É saudável. Muito mais saudável do que a vossa cozinha cheia de gorduras, molhos grossos, batatas fritas, pudins e cremes.
- Olhou para ele e Rathenow reparou que Liyun estava a fixar os cabelos louros. - Não consegue ficar novamente com os cabelos brancos?
- Vai provocar complicações...
- Quando olho para si... parece-me tão estranho. Nos meus pensamentos vejo-o sempre de cabelos prateados.
- Pensaste muito em mim, Liyun?
Não respondeu, cortou o pãozinho, barrou-o de manteiga e colocou lá dentro uma fatia de fiambre. Estendeu a sanduíche a Rathenow na palma da mão.
- Por favor, coma...
Obedientemente, ele mordeu o pão. Liyun ergueu-se, levantou a mesa e levou tudo no grande tabuleiro de volta para a cozinha. Como se fosse a dona da casa, embrulhou o fiambre em folha de alumínio e colocou-o numa prateleira do frigorífico, arrumou a louça suja na máquina de lavar louça e as carcaças restantes na caixa do pão. Depois passou um pano húmido pela banca da cozinha e lavou as canecas de café à mão.
Rathenow ficou parado à porta da cozinha a observá-la. Agarrou-a firmemente pelos ombros quando ela se dirigia ao armário das vassouras para retirar uma.
- Não! - ordenou. - A mulher a dias faz isso amanhã.
- Amanhã é demasiado tarde. Tudo deve estar sempre limpo.
- É tarefa que não te compete.
- Que devo fazer então? Gosto de trabalhar.
- És uma convidada aqui em casa e não uma empregada.
Convidada. Assim que pronunciou a palavra, pensou em dar uma bofetada a si próprio. A palavra ”convidado” implicava algo de estranho, impessoal e passageiro. Um convidado vem e vai e por vezes ficamos contentes quando ele diz ”Adeus!”. ”Isso não! Liyun não é uma convidada. Ela pertence-me. Pertence à minha vida.”
- Gostaria de me mostrar agradecida. É tão bom para mim... e estou muito feliz por estar em sua casa. O senhor é uma pessoa muito boa.
- Se o sou, ver-se-á. Talvez um dia digas: ”Estou contente por ele se ter ido embora.”
- Decerto que não o farei! - Ele não viu o seu olhar espantado, inquiridor e inseguro e algum medo. - Se eu o estiver a importunar, se o perturbar na elaboração do seu livro, diga simplesmente: ”Volta para Sarrebruck.”
- Achas que eu te diria uma coisa dessas?
- O senhor tem o seu mundo próprio e eu penetrei nele. Ir-me-ei embora imediatamente se quiser.
- Liyun! Trouxe-te para junto de mim porque... porque sempre tive o desejo de te ver outra vez. Não sabia que o meu pedido se perdera. Esperei sempre notícias tuas.
- E eu suas.
- Depois telefonaste, estás na Alemanha... Quase bati com a cabeça no tecto de tanta alegria!
- Por favor, não... isso magoa.
Naquele momento, Rathenow esqueceu todas as incertezas. Puxou Liyun para si e, quando esta levantou a cabeça, beijou-a e ela não recuou. Correspondeu ao beijo e as suas mãos acariciavam-lhe o pescoço, as costas e os cabelos. Ele sentia-lhe o corpo, o aroma da sua pele, enquanto lhe beijava o pescoço e os ombros nus, e a ponta da língua de Liyun acariciava-lhe as orelhas, passava-lhe pelos lábios, testa e pescoço. Também não se retraiu quando ele afagou os seios e deixou ficar a mão.
- Amo-te... - dizia ele. - Liyun, eu amo-te!
- E eu a ti, meu imperador...
Também não o impediu quando a tomou nos braços e subiu a larga escadaria, abriu a porta do quarto com o pé e a pousou na cama com o cuidado com que se toca em fina porcelana chinesa. Não lhe agarrou a mão quando ele lhe puxou a blusa pela cabeça e retirou as calças de ganga. De olhos fechados, esperou-o, abraçou-o, colou-se a ele, cruzou as pernas sobre as suas coxas e afundou-se em ruídos de felicidade.
- Eu morro... eu morro... meu Deus, eu morro... sussurrava ela ao seu ouvido.
Ficaram deitados ao lado um do outro a olhar-se. Rathenow fazia-lhe festas nos seios, beijava-lhe os mamilos, enquanto ela encostava a cabeça no ombro de Rathenow, fazendo-lhe festas no peito coberto de cabelos brancos.
- Sinto-me infinitamente feliz - disse ele. - Não há palavras.
- Eu também, meu imperador.
- Como se diz imperador em chinês?
- Bi xia...
- E imperatriz?
- Bi xia niang niang...
Ele voltou para cima dela e os seus corpos misturaram-se mais uma vez.
- És a minha niang niang - afirmou. - Para sempre e eternamente.
- Para a eternidade, meu imperador. Também estaremos juntos noutras vidas. Ninguém pode separar-nos.
- Nem a morte.
- Nem essa. Estarei sempre contigo. Quando morreres, estarei junto a ti e irei contigo. A vida não vale nada sem ti.
Rathenow voltou a beijá-la. Pensava em Min Ju e Ninglin e, consequentemente, que a morte estava mais perto do que a vida quando se afastasse das tríades. Liyun queria ficar junto dele, até na morte. Percebeu o que aquelas palavras queriam dizer.
”Deus, não permitas que me matem.
Ajuda-nos a encontrar uma nova vida neste mundo. Não interessa onde. Só a Liyun e eu. Não te peço mais. A Liyun e eu. Para nós isso é o mundo.”
Rathenow teve uma longa conversa com o Dr. Frantzen. Pediu desculpas por Liyun não ter telefonado, mas o Dr. Frantzen compreendeu perfeitamente.
- A Liyun estava tão excitada - disse ele, rindo. Quase sem cabeça. Hesitou três dias até lhe telefonar. Tivemos uma longa conversa com ela e, finalmente, agarrou no telefone. Depois de falar consigo, mudou por completo.
- Devo-lhe um grande favor, senhor Frantzen.
- A Liyun falou tanto de si!
- Falou?
- A mim e à minha mulher, sobretudo à minha mulher, porque nessas coisas as mulheres têm uma ligação especial. Tivemos a impressão de que a Liyun estava na ilusão de que você via algo mais nela além da guia de viagem que o acompanhou em Yunnan. Isso fez-me pensar um pouco.
- Não há ilusão, senhor Frantzen.
- Quer com isso dizer que...
- Sim, exactamente.
O Dr. Frantzen pigarreou.
- Nós só o conhecemos de nome. Não sabemos nada da sua vida pessoal, da sua esfera privada, mas somos responsáveis pela Liyun. É nossa hóspede, subscrevemos o visto de residência, sendo responsáveis por tudo o que aconteça. Agora está a dizer-me que sente pela Liyun...
- Por favor. Antes de continuar a falar, senhor Frantzen, ouça-me até ao fim - interrompeu Rathenow. O meu convite, que foi enviado antes do vosso, extraviou-se. Caso contrário, há muito que ela estaria comigo. Estou pronto a assumir toda e qualquer responsabilidade relativa a Liyun e libertá-los desse encargo.
- Mas isso não constitui um fardo para nós! - A voz do Dr. Frantzen elevou-se. - Gostámos da Liyun desde o primeiro dia. A minha mulher tem por ela um afecto muito especial.
- Eu também.
- Como devo entender essa frase?
- Tal como está a pensar. Não esperei nove meses pela Liyun, mas sim toda a minha vida, por muito estranho que possa parecer. Agora sei isso.
- Perdoe uma pergunta, senhor Rathenow. O que quer dizer com isso?
- A Liyun ficará comigo.
- O visto dela termina daqui a cerca de três meses.
- Tentarei obter na administração do círculo de Munique uma autorização de residência.
- Vai ser difícil de obter. As leis referentes aos estrangeiros são muito rígidas.
- Trata-se de um caso muito especial.
- No que diz respeito à lei, não há casos especiais. Seria outra coisa se a Liyun pedisse asilo político. Mesmo assim, seria aberto um processo de prova, pois não vem de uma zona de guerra, não é politicamente perseguida, e o seu regresso à China não constitui perigo de vida. Estou a falar-lhe como advogado.
- Mesmo assim, tentarei. Ainda há tempo.
- Esperamos a Liyun daqui a dez dias. Foi o que combinámos com ela.
- As coisas mudaram um pouco, senhor Frantzen. É claro que a Liyun voltará aí daqui a dez dias, mas apenas para terminar de empacotar as suas coisas e regressar a Munique.
- Não gostaria de insistir mais consigo. - A voz do Dr. Frantzen tornou-se fria. - Como é que está a imaginar tudo isso?
- Não tenho obrigação de lhe dar explicações, pois a Liyun não é sua filha - respondeu Rathenow também com frieza. - Mas de homem para homem: eu amo a Liyun.
- Uma linda palavra. Mas como... sejamos um pouco indelicados... como amante, a Liyun é um desperdício. Se tivéssemos sabido, não a teríamos pressionado a telefonar e impediríamos a viagem a Munique. Conheço isso. Quando a sedução pela novidade se afastar dos estrangeiros e o fastio se instalar, as mulheres voltarão a sentir um terrível vazio. Poderão ficar loucas. Quer fazer isso à Liyun? O senhor não pode fazer isso a uma criatura tão encantadora. É de uma irresponsabilidade atroz!
- Senhor Frantzen, a sua perspectiva está totalmente errada. A Liyun ficará para sempre comigo.
- Quer casar com ela?
- Claro que sim!
- Posso perguntar que idade tem?
- Cinquenta e nove.
- E a Liyun fez vinte e seis em Maio. São trinta e três anos de diferença. Considera isso normal?
- O que é a normalidade? Um homem de cinquenta e nove anos deixa de viver? Porque é que a diferença de idade é tão importante? É inveja, ciúme? Nós amamo-nos. É tudo! Que papel desempenha a diferença de idades?
- Onde está a sua experiência de vida? Quando tiver setenta anos, a Liyun terá trinta e sete. A melhor idade de uma mulher! E se chegar aos oitenta anos...
-... a Liyun terá quarenta e sete!
- Uma mulher cheia de vida com um velho...
- É melhor não falarmos mais da minha evolução biológica.
- E o que acontece quando o senhor morrer?
- A Liyun será minha herdeira universal e poderá ter uma boa vida. Acho, senhor Frantzen, que o facto de estar a discutir ao telefone não irá resolver nada. Daqui a dez dias levo a Liyun a Sarrebruck.
A conversa aconteceu à tarde. Liyun estava no jardim deitada numa cadeira à sombra de um alto sabugueiro e sentia-se mais leve e feliz do que nunca. A felicidade era apenas ensombrada quando pensava em Kunming. Imaginava os pais e a maneira como iriam reagir quando confessasse que amava um homem mais velho do que o próprio pai e, ainda por cima, europeu. Sobretudo como é que o pai, de mentalidade tradicional, veria o facto de ela abandonar a China e ir viver para Munique, um mundo estranho que ele via como inimigo? A ideia de não ver a sua filha preferida durante anos ou, até, nunca mais, ser-lhe-ia insuportável e ficaria vergado de dor. E a mãe? Sofreria em silêncio, choraria muito e expressaria a sua dor em poemas. Já escrevera muitos poemas e até aforismos na tradição dos velhos filósofos. Tinha colado esses aforismos pelas paredes do apartamento. O que escreveria se Liyun ficasse para sempre na Europa? ”A dor é a porta para a libertação”? Ou: ”Olhar para a distância, ilumina o que está perto”?
Eram pensamentos que perturbavam Liyun. Tentou afastá-los: ”É a minha vida! Já tenho idade para saber o que quero! Abro os braços ao amor e deixo-me cair. Ninguém pode impedir-me. Nem uma cabeça curvada, nem lágrimas. Tenho o direito de viver feliz.”
Respirou fundo quando Rathenow saiu de casa e veio ter consigo. Estendeu-lhe os braços, abraçou-se ao seu pescoço e encostou a cabeça.
- Beija-me! - pediu. - Beija-me já. E puxou-o para cima dela.
Depois de muitas carícias, Rathenow sentou-se ao seu lado na espreguiçadeira, agarrou-lhe a mão e beijou-lhe a palma.
- Falei com o doutor Frantzen - acabou por dizer. Liyun levantou a cabeça. Havia muitas questões no seu olhar.
- O que é que ele disse?
- Entende que te tenhas esquecido de lhe telefonar.
- Que mais?
- Que tinhas prometido voltar para Sarrebruck daqui a dez dias.
- É verdade, mas agora tudo mudou. Eu não sabia que me amavas tanto como eu a ti.
- Foi o que eu disse ao doutor Frantzen...
Ela endireitou-se rapidamente e olhou para Rathenow, espantada.
- Disseste-lhe isso? O que disseste?
- Que te amo. A verdade.
- E o que é que respondeu?
- Advertiu-me que trinta e três anos de diferença eram um disparate.
- Que tem isso a ver com o nosso amor?
- Tentei explicar, mas não consegui convencê-lo. Ele crê que, para mim, és apenas uma amante exótica.
Liyun voltou a deitar-se e olhou para o céu. Um céu de Verão sem nuvens que já deixava adivinhar o entardecer. Tinha algo de avermelhado.
- Sabes o que niang niang também pode querer dizer? - perguntou ela.
- A mais bela entre as belas.
- Não. A concubina.
- És a minha imperatriz!
- Na história chinesa, existem muitas concubinas que se tornaram famosas. Um imperador perdeu o seu império por causa do amor que sentia por uma concubina e, como os seus generais o queriam, teve de a mandar estrangular com um fio de seda. Nunca superou isso e ficou louco... Dia e noite pensava apenas nela e na sua morte. Na China, toda a gente conhece a história do imperador Tang Min feuang e da sua concubina Yang Gui Fei.
- O nosso amor será sempre jovem e alegre. Quando alguma vez nos sentirmos tristes, abraçamo-nos e sabemos que tudo o resto é pequeno, sem importância, e que o nosso amor supera toda a tristeza. - Deu-lhe uma palmada no rabo e arrancou-a da cadeira. - Agora veste-te, põe-te especialmente bonita e vamos a um restaurante muito exclusivo. Todos têm de saber que tenho uma niang niang maravilhosa.
- Uma concubina.
- Que ninguém se atreva a chamar-te isso. Eu mato-o.
- Então, em breve, te tornarás um assassino em série, pois todos os teus amigos e conhecidos irão recusar-me. Uma chinesa! Ela só quer o dinheiro dele! Vestidos bonitos e jóias valiosas. De Mao para Guy Laroche...
- De onde conheces o Laroche? - perguntou ele, admirado.
- No terceiro dia, dei uma volta pela cidade com a senhora Frantzen. Estava um vestido lindo na montra e a senhora Frantzen disse: ”Liyun, isto é caríssimo. É do Guy Laroche.” Já tinha reparado.
- Levanta-te e veste-te.
- Às suas ordens, bi xia.
Correu para casa, mas parou à porta e virou-se para Rathenow.
- E tu que vais vestir? - gritou.
- Um fato cinzento-claro de seda fina.
- De qualquer modo nunca ficarás bonito... com esses cabelos horrendos...
Entrou em casa e ele voltou a ouvir o seu riso claro.
”Estou louco”, pensou, enquanto ia atrás dela. ”Completamente louco. Uma árvore velha da qual cresce de súbito um novo ramo.”
No dia seguinte fizeram compras em Munique.
E como compraram!
Dez tipos diferentes de massa chinesa, molho de soja, rebentos de bambu, especiarias, das quais Rathenow nunca ouvira falar, cogumelos secos, ervas e vegetais, sumo de ananás de Yunnan - Liyun deu um beijo a Rathenow de tanto entusiasmo -, leite de coco em lata, a típica pastelaria doce, três tipos de arroz, farinha para os pães húmidos, um wok para cozinhar, cinco tipos de chá... Liyun percorrera, uma a uma, as prateleiras da loja de artigos chineses e encheu o carrinho de compras. Parou junto dos frascos de molhos muito picantes e olhou para Rathenow.
- Aquele também? - perguntou.
- Tudo o que precisares.
- Mas tu não o comes.
- Talvez uma pequeníssima quantidade... mas tu gostas.
- Então um frasco vai durar dois anos. Vou só levar Ia jian jiang e hei dou jiang. - Olhou para o carrinho de compras e apenas nesse momento reparou como estava cheio. - Isto é de mais! Vou pôr algumas coisas nas prateleiras. É muito caro.
- O dinheiro é teu ou meu?
- Teu! Precisamente por isso!
- Tudo o que escolheste fica no carrinho! - Levantou ameaçadoramente o indicador. - Niang niang, não me contraries.
Ela acenou com a cabeça e fez uma pequena vénia.
- Niang niang obedece...
Rathenow comprou a Liyun um fato de Guy Laroche. Um fato justo, vermelho, com fios dourados entrelaçados. Fazia realçar a sua figura, tal como se tivesse sido mandado fazer para Liyun em Paris. Ficava tão bela que as vendedoras se juntaram a admirá-la. Que figurinha! Que boneca chinesa!
- Está com sorte - disse a vendedora que estava a auxiliá-la. - É a única peça de tamanho trinta e quatro. O fato parece ter sido feito para si.
Enquanto Liyun estava a mudar de roupa, Rathenow pagou o fato na caixa. Três mil novecentos e noventa e nove marcos. Nunca pensara que um tal pedaço de tecido custasse mais do que o salário de um funcionário público. Meteu rapidamente a factura no bolso e pensou no que as pessoas iriam dizer: ”Meu grande gabarola! Sabes, por acaso, quantos desempregados existem na Alemanha? Com quantos míseros marcos uma família tem de se sustentar? E tu...?”
Mais tarde, quando regressavam a Griinwald, Liyun perguntou-lhe:
- Foi caro?
- O quê?
- O fato do Guy Laroche.
- Assim-assim...
- O que quer dizer isso, bi xia?
- É o preço normal do Laroche.
- Portanto, caro! Estou envergonhada de ter mencionado o nome de Laroche. Não queria isto. Vamos imediatamente devolver o fato...
- Não pode ser. Está comprado, está comprado.
- Não te devolvem o dinheiro?
- Não. A entrada de dinheiro fica registada na caixa.
- Dir-lhes-ei que me enganaram porque me deviam ter dito o preço antes!
- É para isso que serve a etiqueta. Estava pendurada no vestido.
- Na China, os preços são expostos em letras grandes.
- Já não estás na China. Estás em Munique, amor. Além disso, quem compra Laroche, Chanel ou Yves San Laurent não pergunta o preço. Seria considerado indecoroso. Compramos o que nos agrada. O resto é tratado pelo marido e pela sua conta bancária.
Deu-lhe um beijo na face e voltou a virar-se para a frente.
- Toma atenção à estrada! Agradeço-te... Posso vesti-lo amanhã?
- Sim. Amanhã vamos ao teatro... ao Teatro Gàrtnerplatz. Está em cena Uma Noite em Veneza, de Johann Strauss.
Ela voltou a beijá-lo e pôs-lhe o braço em torno do pescoço.
- Fico muito contente... Já estiveste em Veneza?
- Várias vezes.
- Sozinho?
- Com a minha mulher. A última vez foi um ano antes de ela morrer.
- Veneza é tão bonita como nos quadros?
- Umas vezes, sim, outras vezes, não. É uma cidade que está a morrer. Uma cidade que jaz sobre milhões de colunas de madeira. Mantiveram-se de pé durante séculos. Agora, com as alterações do meio ambiente estão a cair.
- Nós também iremos a Veneza?
- Claro... é a cidade dos noivos em lua-de-mel. Liyun ficou a olhar para ele em silêncio durante algum tempo, voltou a beijar-lhe o pescoço e os seus pensamentos permaneceram presos a uma frase, na qual nunca pensara: viagem de lua-de-mel. Uma frase que irritava os seus sentimentos. Será que ele estava mesmo a pensar em casamento? Uma pequena chinesa, ainda por cima originária da China Vermelha, como senhora Rathenow? Não desencadearia um escândalo? Será que a sociedade não o poria de parte? Não o cumprimentariam por todo o lado com um riso de escárnio? O avozinho com a netinha? O velho à caça de borboletas? Como é que ele suportaria tudo isso? Seria capaz? Não se cansaria, mais cedo ou mais tarde, de toda aquela ridicularização e veria aquele casamento impossível, como o seu fim? Não seria melhor continuar a ser realmente uma niang niang, a sua concubina, até que a morte os separasse? tToda uma vida a seu lado, cuidar e tratar dele, ser feliz com o seu amor não seria a coisa mais maravilhosa que se podia [esperar da vida?
Sra. Liyun Wang-Rathenow... Seria esse o nome do fim da felicidade?
Colocou-lhe a mão sobre o braço e disse completamente surpreendida:
- Esqueci-me de uma coisa.
- O que te falta? - perguntou ele, reduzindo a marcha [do carro.
- Um machado.
Rathenow riu-se e olhou para ela.
- Queres cortar-me a cabeça se eu alguma vez te for infiel? Não terás oportunidade para isso. Esquece o que os invejosos te contarem depois! A minha niang niang será a última mulher até à eternidade. Juro-te.
- Não tenho a menor intenção de te matar. Para tal, não precisaria de um machado. Preciso dele para a cozinha.
- Queres desfazer os móveis para que compre outros novos e modernos?
- Preciso do machado para cortar legumes e carne, ervas e outras coisas, que devem ser cortadas em pequenos pedaços. Um machado de cozinha. Não há cozinha chinesa em que se consiga trabalhar sem machado. Todos os cozinheiros ficariam desamparados sem o seu machado. É mais importante do que facas ou outros aparelhos. Consegue-se fazer tudo com um machado.
Rathenow lembrou-se das cozinhas chinesas que vira, onde se espantara com a habilidade artística e rapidez com que os cozinheiros cortavam a carne, os frangos, gansos e patos em pequenos pedaços para que pudessem ser comidos com os pauzinhos. Nesse campo, até as maiores e mais afiadas facas eram inúteis, pois na China cortam-se as aves com ossos e depois de cortadas fíca só a carne. Roem-se e atiram-se para uma terrina... ou simplesmente para o chão. Frequentara restaurantes onde, após a refeição, os chineses se levantavam e à volta das cadeiras só se viam pequenos ossos e outros restos de comida que depois eram varridos.
- Amanhã compramos o teu machado de cozinha prometeu. - Vem! Dá-me mais um beijo.
- Porquê?
- Porque és linda.
Nessa noite, Liyun confeccionou um frango com folhas de salva e vegetais diversos, rebentos de bambu e feijões. Estreou assim o wok novo. O arroz chinês ficou a abrir numa grande panela, um arroz branco e de grão miúdo que não se transformava em papa, mas sim solto, grão a grão, nas terrinas que Liyun comprara... Terrinas de porcelana com pontos transparentes e pintadas com flores e um dragão vermelho. Made in R. P. da China.
Enquanto ela fazia o jantar, Rathenow leu o jornal. Os cabeçalhos afectaram-no imediatamente:
Guerra de gangs em Munique.
Três membros da mafia russa e dois chineses encontrados mortos em Chiemsee.
Banho de sangue em Chiemsee. Guerra das tríades contra a mafia russa. A Alemanha ter-se-á tornado um novo centro do crime organizado?
A nossa polícia - impotente!
A polícia teme mais homicídios.
Trata-se de taxas de protecção, comércio de droga e prostituição.
A guerra sem tréguas pelo mercado do submundo.
Rathenow leu o artigo com uma inquietação crescente. Aisin Ninglin tinha aparentemente entrado em acção. Devia estar rejubilante de alegria... Sem faca, machado ou pistola! Agora já podia cortar as pessoas aos pedaços como se faz aos porcos e vitelos no matadouro.
Mas a palavra ”taxa de protecção” também lá estava...
e Rathenow incluiu-a no motivo dos crimes. Quando deitou o jornal para cima do tapete, entendeu que a Catorze K também iria avisá-lo. Exigir que tomasse parte dos crimes.
Aniquilar quem quisesse penetrar no seu distrito. Uma ideia [que quase o levava à loucura.
Matar - ou ser morto por desobediência - era a única alternativa. E morte para Liyun também! Ninglin iria ficar muito feliz por poder trucidar-lhe o ventre. Rathenow pressionou os punhos um contra o outro. Não havia saída possível.
O telefone tocou e, antes de Rathenow atender, já sabia quem estava do outro lado da linha.
- Sim? - disse ele, rapidamente.
- Hong Bai Juan Fa... estamos à tua procura...
Min Ju! A dança infernal ia começar.
- Tentámos contactar-te várias vezes, irmão. - A voz de Min tinha uma expressão de repreensão. - Onde estiveste?
- Na cidade.
- Às compras com a Wang Liyun?
Rathenow ficou sem fôlego. Ainda bem que estava sentado, senão, teria caído.
- Tu sabes que a Liyun...
- Sabemos tudo - interrompeu Min Ju. - Chegou no domingo a tua casa.
- Mandas-me vigiar? Mandas vigiar um irmão e um cho hai? Não tens confiança em mim?
- Não és chinês, irmão, e por isso devemos ter cuidado. Nós conhecemos o vosso carácter. Acreditamos que sejas um bom Hong e que leves a sério os teus juramentos de sangue... mas já Lenine dizia: ”A confiança é boa, mas o controlo é melhor.” Vem cá ter. Precisamos de ti! Os russos começaram a atacar.
- Os russos ou vocês?
- É uma questão pouco importante. Houve mortes e haverá ainda mais.
- Acabei de ler a notícia no jornal. O Ninglin deve estar aos pulos de alegria. Ou foi um dos chineses mortos?
- Terei de te desiludir, sandália de erva. Está vivo. Vem já!
- Esta noite?
- Pensa que a Liyun está agora em tua casa. Não podes protegê-la ou esconder. Não te esqueças: estamos em toda a parte! Quantas vezes já te disse isto?
- Vou amanhã de manhã.
- Quando?
- Às oito horas estarei no Mandarim Negro.
- Sabes lidar com uma pistola?
Rathenow meteu a cabeça entre os ombros. ”Não!”, gritava ele interiormente. ”Não! Não podem exigir isso de mim! Não!”
- Aprendi... nos últimos dias da guerra... quando tinha doze anos.
- Reaprende-se rapidamente. Espero-te aqui às oito da manhã.
Min Ju desligou. Rathenow atirou o auscultador para cima do descanso e reclinou-se no sofá. À frente dos seus olhos estavam os valiosos painéis de madeira esculpida do tecto.
”Eles vigiam-me. A desconfiança acentuou-se... Sei de mais. Agora a Liyun está comigo e não hesitarão em a torturar à minha frente e não poderei fazer nada. Informar a polícia? Resultaria durante pouco tempo. Caçar-nos-iam, encontrar-nos-iam e castigar-nos-iam. As tríades são mais poderosas do que a polícia.”
De manhã cedo. Oito horas. Será o fim?”
Liyun meteu a cabeça pela porta. ”Que alegre que ela está... que feliz... que bela... E amanhã tudo poderá terminar...”
- O jantar está pronto! - gritou a jovem, acenando. Bi xia, a mesa está posta.
- Já vou, niang niang.
Levantou-se com esforço e sentiu o pânico subir por si acima.
Na mesa estava o novo wok, cheirava extremamente bem a ervas exóticas e via-se a tensão no rosto de Liyun: ”Será que ele vai gostar? Cozinhei tudo à moda de Yunnan. Meu amor, lembras-te do pequeno restaurante familiar em Dali? E da casa de Xing Datong no lago Erhai? Tentei cozinhar como eles... e é a primeira vez que preparo uma refeição. Nunca estive à frente de um fogão nem mexi em panelas, nunca cortei carne ou cozi arroz ou fiz molhos. Bi xia, não sejas muito rigoroso comigo.”
Meteu a colher dentro do wok, onde se preparavam vegetais e carne, retirou os pedaços de frango e colocou-os dentro da tigela. Seguiram-se os legumes e o arroz. Para cada prato, preparara uma tigela suplementar. Liyun comeu com pauzinhos - simples pauzinhos de madeira que se podiam separar, pois vinham unidos aos pares. Os pauzinhos de madeira são melhores do que os lisos, de luxo, feitos de marfim ou plástico, pintados com símbolos chineses e flores. Os pauzinhos de madeira prendem melhor a comida.
Rathenow quase não conseguia engolir um só pedaço, mas sabia que seria uma ofensa dizer a Liyun: ”Não consigo!” Tinha de comer alguma coisa. ”E, depois do jantar, confessar-lhe-ás tudo. Irás contar-lhe tudo sobre a tua vida destroçada.”
- Não tenho direito a pauzinhos? - perguntou, empurrando os talheres para o lado.
Liyun riu-se e abanou a cabeça.
- Não consegues comer com eles.
- Quero experimentar.
- Foi o que sempre disseste e em quatro semanas não conseguiste aprender. Ainda te lembras de que, durante toda a viagem por Yunnan, andaste com talheres no bolso? Como eu me ri! E disseste sempre: ”Se tiver de comer com pauzinhos, amanhã de manhã ainda aqui estamos.”
- Eu sei que fui ridículo. Fiz-me de estúpido, mas treinei a utilização dos dedos. - Os exercícios da linguagem das tríades. ”Aprendi que posso fazer tudo com os dedos. Até comer com pauzinhos. O Min Ju teve a paciência de me educar nesse sentido. Um cho hai, um irmão da Catorze K a comer com faca e garfo... impossível.” E fizera os exercícios suficientes até dominar completamente a utilização dos dedos. Min Ju só terminara as lições quando vira que ele conseguia prender um único grão de arroz com os pauzinhos. - Tentemos, Liyun. Dá-me os pauzinhos!
Quando Liyun viu que Rathenow conseguia, de facto, prender os legumes, o arroz e até mergulhar os pedaços de carne no molho, bateu palmas entusiasticamente.
- Bravo! - gritou. - Bravo! - Depois, saltou da cadeira, deu a volta à mesa e beijou-o. - Amo-te...
Rathenow comeu pouco. A refeição fora uma tortura. Após algumas dentadas, atravessou os paus sobre a tigela. Liyun olhou para ele com os olhos muito abertos e amedrontados.
- Não está bom? - perguntou.
- Está...
- Está assim tão mau?
- Está óptimo. Muito saboroso.
- Estás a mentir...
- Nunca te enganaria, Liyun.
- Só não me queres magoar. Eu sei que cozinhei muito mal, mas vou praticar, tal como fizeste com os pauzinhos. Ou preferes continuar a comer comida europeia? Assados, bifes, salsichas? Também poderei aprender.
- Tu cozinhas muito bem.
Ela não respondeu e acendeu a lamparina que estava sob o wok.
- Queres sopa? - perguntou, desiludida.
- Com prazer.
- Sirvo-ta já. Quem é que telefonou há bocado?
- O meu editor. - ”Agora estou a mentir, Liyun. Só desta vez. Hoje à noite... ou amanhã, talvez seja melhor amanhã, digo-te toda a verdade. Deixa-me falar primeiro com o Min Ju. Só depois saberei o que nos espera. A partir de agora, tudo acontecerá muito depressa. Ou termina em catástrofe ou ficaremos livres.”
- Tenho de ir ter com ele amanhã. Às oito da manhã.
- Tão cedo?
- É um homem muito ocupado, Liyun.
- E tu és um homem famoso! Ninguém te pode dar ordens!
- Não é uma ordem. É um pedido. Além do mais, somos amigos.
Não perguntou mais nada, acreditando nele. Comeram a sopa. Como sobremesa, trouxe ananás com natas.
- Uma refeição principesca! - comentou Rathenow.
- Vou engordar.
- Não comeste quase nada! - Apoiou a cabeça nas mãos e fez beicinho. - Tenho de te confessar uma coisa.
- Estás a olhar para mim como se tivesses feito algo terrível.
- Talvez o tenha feito. O que tu comeste, foram os primeiros alimentos que confeccionei na minha vida.
- Não é verdade!
- Acredita. Tive muito trabalho.
- Liyun, tu és um génio!
- Mas tu não gostaste.
- Estava uma obra-prima! Mas hoje não estou com grande apetite. Tenho uma pressão no estômago. Uma sensação de enfartamento. Como se tivesse estado todo o dia a comer.
- Atingiu-te o estômago...
- O que é que... - ”Atenção! Terá ouvido alguma coisa, escutado à porta enquanto eu falava com o Min Ju?” Qual o motivo...
- Gastei demasiado dinheiro, não é? Comprei muitas coisas e depois o fato. Fez-te mal! Perdoa-me! Vou devolver o fato. Não penses que sou uma grande gastadora.
- Minha pequena rapariguinha bai!
Levantou-se da cadeira, puxou-a para si e a tensão interior libertou-se. Beijou-o com uma grande intensidade, como se estivesse a despedir-se dele e fosse regressar à China.
À noite estiveram a ver televisão. Rathenow observara a programação e encontrara um filme que parecia apropriado para preparar Liyun para a verdade, a qual iria determinar as suas vidas a partir do dia seguinte.
Era um filme sobre a Chinatown de São Francisco. Um thriller sobre o poderio de um gang das tríades e, quanto mais tempo o filme durava, mais ridículo se tornava para Rathenow. Que filme de pôr os cabelos em pé! A realidade era completamente diferente. Aquilo que surgia no filme sobre as tríades parecia um conto de fadas sobre gangs, de acordo com a preferência dos espectadores. Apenas não existia um Aisin Ninglin nem um Min Ju, nem havia corpos mutilados, rostos desfigurados, mulheres com os seios cortados, dedos arrancados, nem execuções com a espada imperial... Depois, os excessos infantis com os combates de kung-fu, onde se davam saltos e desferiam golpes, ficando sempre de pé... Ninglin teria cuspido sobre tudo aquilo e dito: ”Que cena barata! Irmão, agarra num machado e abre-lhe o crânio! Porque é que andas aos saltos à volta dele? É uma perda de tempo! E todo esse barulho! Um membro das tríades mata sem ruído e com rapidez.”
Liyun sentou-se, de pernas cruzadas, novamente no sofá, e admirava o espectáculo. De quando em vez, encolhia-se quando um dos membros das tríades atirava um seu opositor por uma janela ou porta de vidro. Ficava muito contente e de olhos a brilhar quando a diabólica polícia e os seus detectives, os heróis do filme, faziam uma rusga ao bairro dos bandos chineses.
Quando o filme terminou, Liyun, ainda impressionada, disse:
- Isto existe na realidade? Estão sempre a espezinhar os Chineses. É tudo uma grande mentira.
- Sim. É mentira. As tríades são outra coisa...
- As tríades existem mesmo?
- Sim, Liyun. Também existem em Kunming. Pensa no teu rapto e no contrabando de heroína a que me obrigaram, ameaçando-me com uma punição que recaía sobre ti. De outro modo, teria trazido esse café para Munique?
- Pensas que foram as tríades? Não consigo acreditar que existam tais bandos como no filme.
- Não. Esses bandos não existem.
- Vês como tenho razão? É tudo fruto do ódio que os Ocidentais sentem em relação aos Chineses! Quando um homem é especialmente brutal... no filme... são sempre os chineses. Por que razão nos odeiam tanto? Quando vocês começam a falar de chineses, chamam-nos olhos em bico, coolies, amarelos, trapaceiros, ladrões, perigo amarelo, ou idiotas comunistas! O que é que nós vos fizemos?
- Aclamaram o Mao.
- E o vosso Hitler?
- Também pagámos caro por isso.
- Também somos seres humanos. Mil e trezentos milhões de pessoas, das quais seiscentos milhões nunca se sentiram satisfeitos na vida. O meu povo desconhece a palavra ”satisfeito”. É por isso que somos coolies que podem ser espancados? Agora que a China está em vias de se tornar uma potência económica, querem fazer negócios com ela, mas continuamos a ser os macacos amarelos! Será que dizemos: ”Vocês são capitalistas mentirosos, exploram os trabalhadores e são imorais quando se trata de dinheiro”?
- O Mao disse exactamente isso. - Rathenow desligou o televisor. - O que aconteceu à manifestação democrática em Julho de mil novecentos e oitenta e nove? Na Praça da Paz Celestial?
- E como foi a matança dos vossos judeus? Os milhões que foram mortos nas câmaras de gás, e por aí fora?
- Deus do céu! Isto é um ajuste de contas? Querem justificar mortes com outras mortes? As tríades podem dizer: A mafia russa mata, portanto também matamos?
- Não quero desculpar nada. Para essas coisas não há perdão, mas não posso admitir que mil e trezentos milhões de Chineses sejam todos culpados.
- Escolheram o vosso líder.
- Foi nomeado pelo Congresso do Povo. Perguntaram aos camponeses de Hoangho ou aos nómadas da rota da seda? Mas vocês, os europeus espertos, sabiam exactamente quem estavam a escolher!
Cada frase que proferia espelhava a sua raiva. Ficara muito corada, os olhos cuspiam fogo. Extremamente bonita mesmo com aquela expressão de raiva... uma gata selvagem que se atira contra as grades.
- Vou para a cama! Quero dormir. - Deu um salto do sofá e passou por Rathenow sem sequer o olhar. - Boa noite.
- Eu vou já - afirmou este.
- Como queiras. Não tenhas pressa. Também consigo dormir sem ti... como até agora, e também não quero ficar com o fato.
- A nossa primeira discussão e logo no terceiro dia... No futuro, isto é capaz de se tornar divertido.
Olhou para ela. O seu andar, a posição da cabeça e ombros faziam-no lembrar a representação de um conto de fadas que vira quando era criança. Recuou aos seus tempos de rapaz, à noite em que estava sentado no balcão do teatro e, cá em baixo, sobre o palco, uma linda rapariga passeava por um bosque à procura do anão que roubara as melhores bagas. Já não se lembrava do nome da peça, mas recordava-se exactamente das palavras que sussurrara à mãe: ”Não há ninguém que a ajude? Quero ajudá-la!” A mãe murmurara: ”Meu filho, isto é só uma peça de teatro. Fica sossegado. A rapariga encontrará, de certo, o anão.”
- Niang niang! - gritou a Liyun. Esta abanou a cabeça e não se voltou.
- Não!
- Não faz sentido discutir sobre política.
- Tu começaste!
Ficou parada à porta, mas não a abriu. Uma pequena vitória para Rathenow.
- Peço desculpa! - gritou-lhe ele. - É melhor deixarmos em aberto quem é que começou. Queria ainda beber uma garrafa de vinho contigo.
- Obrigada! Não quero embebedar-me. Gata!
- Temos uma coisa para festejar.
- Não sabia que havia alguma coisa para festejar.
- A nossa primeira discussão!
A jovem virou-se e olhou para ele. Tinha a cabeça ligeiramente inclinada para a frente.
- Estás habituado a ter razão em tudo! Mas a razão só pertence àqueles que a apoiam! Hoje fui eu! Diz que estou certa.
- Estás certa.
Ela regressou e inclinou-se à sua frente como um pugilista antes do primeiro assalto.
- Estás a falar a sério?
- Muito a sério, niang niang.
- Então, levanta-te!
Rathenow obedeceu. ”O que irá acontecer agora?”, pensou. ”Aquele brilho nos olhos não é bom prenúncio. Uma deusa da ira não teria um efeito tão ameaçador.” Subitamente, ela saltou para cima dele, pendurou-se no pescoço, encheu-lhe o rosto de beijos e murmurou:
- Sou estúpida... estúpida... estúpida... Amo-te... Vamos para cima.
E mais uma vez a levou ao colo para cima, para o céu.
Como sempre, Min Ju estava sentado à secretária a ler o jornal. As notícias divertiam-no, sobretudo as mentiras sobre o facto de a polícia ter boas pistas, o que acalmava os leitores. Tinham agora a certeza de que os homicídios de Chiemsee estavam ligados a uma guerra de bandos.
Era a única verdade... tudo o resto era fruto da imaginação do redactor. A polícia não sabia nada. O departamento criminal pedira ajuda aos especialistas de Munique na luta contra o crime organizado - denominado de CO como abreviatura. Tinham uma experiência muito mais vasta. Fora formada uma comissão especial ”Chiemsee” com dezasseis agentes, mas podiam ter poupado a despesa. Peter Probst e Lutz Benicke tinham, há muito, chegado à conclusão de que só podiam participar um facto com êxito: a patologia iria obter cinco cadáveres frescos, pois ninguém reclamaria os mortos. O médico legal elaborara uma longa lista das horas e causas de morte, mas PP não estava minimamente interessado se os russos e chineses se tinham morto a tiro ou à machadada. Era a assinatura das tríades e, sabendo isso, continuavam sem saída.
Não havia testemunhas, ninguém ouvira nada, se bem que o relatório da autópsia referisse que tinham sido encontradas sete balas de calibre 357 de uma Magnum nos corpos das vítimas, mas podiam ter sido disparadas com silenciadores. Ninguém reclamou os cadáveres, não tinham parentes e estavam em Munique ilegalmente. Nada mais perfeito. Começara a velha e desgastante espera... a espera do relatório do comissário. PP leu-o cheio de azedume.
”Isto é o início. Os russos de Wessling constituíam uma espécie de ensaio geral... Neste momento decorre o primeiro acto. Temo que ainda viveremos o final sem conseguir saber mais nada. Os jornais podem gritar o que quiserem: Têm de fazer melhor! Nenhum deles conseguiu ainda entrevistar um membro das tríades. Só se quisesse suicidar-se. A súbita tranquilidade no que concerne ao palco das taxas de protecção é mais do que suspeita. Continuam a ser colectadas, mas os proprietários pagam sem problemas! Já não há casos de punição. A paz completa. A parede de borracha tornou-se mais espessa. Para que servem as rusgas? Em cada local só encontramos risos, silêncio, umas garrafítas de vinho de ameixa como oferta... Esta cortesia dá-me cabo dos nervos. Eu sei que aqueles tipos sabem muito, o que nos permitiria avançar um pouco... mas calam-se como uma ostra. É claro que as ostras também se abrem... mas não com as leis que temos. Protegem os direitos humanos dos gangsters e põem-nos para trás. Direitos humanos para desmascarar homicídios e bandos de criminosos! Quando um polícia usa a arma, mesmo em autodefesa, é mandada realizar uma investigação urgente. Tem de declarar a razão por que não se deixou matar. A imprensa cai sobre ele, o enterro do gangster torna-se um acontecimento mediático e o polícia, que apenas protegeu a sua vida, é catalogado como homicida uniformizado. O que aconteceu com os homicídios da RAF em Schleyer e Herrhausen? Todos falavam das mortes, mas ninguém referia o polícia morto. Era apenas um polícia! De preferência, gostaria de me estar nas tintas para tudo isto, reformar-me e deitar-me ao sol em Maiorca.”
Fora apenas a erupção de uma amarga desilusão. Todos na esquadra sabiam que o comissário Peter Probst nunca desistiria. Nunca! A luta contra o crime organizado era a tarefa da sua vida e não a depositaria noutras mãos.
Min Ju olhou por cima do jornal quando Rathenow entrou. Deixou-o cair no chão e reclinou-se na cadeira.
- Leste o jornal? - perguntou Min.
- Sim, daih-loh.
- Eles mentem! A polícia não tem pistas nenhumas. Mais uma vez, não têm qualquer pista. Não te preocupes, Bai Juan Fa.
- Preocupo-me com as tuas palavras, irmão: ”Precisamos de ti!” Eu não sirvo para uma guerra. Não consigo matar pessoas! Gostaria de nada ter a ver com a mafia russa.
- Eu sei. Escreves livros sobre viagens cheias de aventuras, mas, na realidade, és um fraco. Um aventureiro cerebral. Um cuspidor de tinta. Estás bem na posição de sandália de erva e daí não passarás. Quero apenas que controles os teus protegidos. Se pensam que a guerra que temos com os russos vai enfraquecer-nos, terás de lhes mostrar a nossa força. Nos próximos meses vai haver muitos confrontos e nós iremos vencer, pois somos mais rápidos do que os russos. Eles são os ursos, nós as serpentes, que matam com uma dentada. O que farás se eles entrarem na tua região?
- Informo-te.
- E tu próprio? O que farás?
- Avisarei os proprietários. O Ninglin fez com que eles percebessem os avisos.
- E se os russos lhes pedirem taxas de protecção contra as nossas? Isso já aconteceu em Nuremberga. Foges como um cão acossado?
- Não posso maltratar mulheres e crianças. Não podem exigir isso de mim.
- Fizeste os juramentos de sangue. Cortaste a cabeça ao galo branco... e pensa na Liyun.
- A Liyun! - Rathenow aproximou-se da secretária. Min Ju olhava para ele com os ombros elevados. – Tu mentiste-me, Min Ju. Tiraste-me a vontade própria e tornaste-me um escravo quando me deste a madeixa de cabelo e a unha da Liyun. Nenhum lhe pertencia!
- Tinha a certeza de que a minha pequena mentira seria desfeita quando a Liyun viesse à Alemanha. Só pretendia ser uma advertência: ”Olha! Isto também pode acontecer à Wang Liyun.” E tu percebeste. O pequeno engano teve sucesso. Agora a Liyun está em tua casa e acessível a qualquer um de nós. Tornou-se mais fácil convencer-te dos teus deveres em relação à irmandade. - Min Ju fez um amplo sorriso. - Mas por que razão estamos a falar disso? Até agora, tens sido um bom cho hai e continuarás a sê-lo. A tua nova tarefa é fácil. Deves observar; nada mais. Nenhum russo sabe que não é um chinês que faz as colectas, mas sim um alemão. Sabem tão pouco a teu respeito como a polícia. Senta-te nos restaurantes como um cliente normal e não como sandália de erva e observa se algum russo desaparece pelas traseiras. Quando ele voltar, só tens de o fotografar. Vou dar-te uma máquina fotográfica muito pequena.
- Uma Minox.
- Melhor ainda. Os nossos serviços secretos utilizam-na. Um segredo de Estado! Mas nós temos...
- Já sei! Têm ajudantes por todo o lado.
- Até no governo do Estado em que trabalhamos. Somos como os cogumelos: crescemos por todo o lado. E quando alguém corta um cogumelo, ele continua a crescer subterraneamente. - Min Ju abriu uma gaveta e mostrou a Rathenow um pequeno estojo preto. - Eis a câmara. É muito fácil de utilizar. Como vês, não precisas de matar ninguém... os teus irmãos são muito bons para ti.
- Os homens que fotografar serão mortos.
- Não às tuas mãos.
- Mato-os indirectamente, pois trago-te os seus rostos.
- No final da Segunda Guerra Mundial, tu tinhas doze anos. Viveste e entendeste o que significa a morte na guerra, que as pessoas se matam umas às outras até haver um vencedor que se afirme no mundo. O mais forte é o eleito. O sobrevivente governa. - Min Ju agarrou no jornal e bateu com o punho sobre os cabeçalhos. - Neste momento, estamos em guerra contra a mafia dos russos e precisamos de ganhar. Com que meios, é melhor não perguntar. A guerra não traz sempre o desumano atrás de si? Na Primeira Guerra Mundial, foi o gás que matava silenciosamente. Depois deixou de ser utilizado. Na Segunda Guerra Mundial foi a bomba atómica... Não foi banida. Pelo contrário! Todos os países andam atrás de uma bomba atómica e ninguém sabe quantas armas atómicas existem em cada país. Toda a gente sabe que a China tem bombas atómicas. Não estão preparadas para ataques em búnqueres subterrâneos; só servem de defesa. As tríades também têm de se defender contra o atacante russo. Podem levar-nos a mal?
- Não podes comparar uma guerra normal com uma guerra de gangs.
- O que é uma guerra normal? Guerra para conquistar o poderio económico? Guerra do petróleo, o sangue das máquinas de dinheiro? Guerra por orgulho nacional? Também estamos a lutar por uma posição de poder na sociedade, defendemos as nossas regiões, como qualquer país faria, se as suas fronteiras fossem invadidas.
-Vocês não são um país.
- Nós somos um país! - gritou Min Ju, dando um salto da cadeira. - Não somos uma nação... Somos o estado dos estados! Deve ser defendido com todos os meios disponíveis, e tu, tu és uma roda pequena, muito pequenina, de toda esta engrenagem que põe em movimento a grande máquina da guerra.
- Meu irmão Hong Bai Juan Fa! Nos teus livros, és um homem muito esperto, mas na vida quotidiana és um cego. Nunca lutaste, tudo te caiu do céu, a sorte abraçou-te, viveste num palácio por trás de muros bem altos e não viste chapéus de pobres à tua volta. Só agora estás a aprender que a vida não passa de uma luta. Um combate até à morte pelos primeiros lugares do circo da vida. Luta por um pedaço de pão ou um pedaço de carne gordurenta. Luta pela segurança e poder pessoal. Tu ou eu... é a única coisa que conta.
Todas as outras máximas são falsidades filosóficas. O que diz a velha estratégia número vinte e oito? ”Fechar o opositor no telhado e afastar o chefe.” Só assim serás o mais forte.
- Nos últimos dias, ocupei-me das vossas trinta e seis estratégias. - Rathenow perdera o medo. Nem ele conseguia explicar aquela reviravolta interior. - A mais sensata é a trigésima sexta: fugir... é a melhor das trinta e seis estratégias.
- Um membro das tríades nunca foge do seu opositor! Tu também não, irmão. Tu queres sobreviver e amar a tua Liyun. Deves fazer a tua própria sorte. És um Hong! Tens de lutar. Nada aparece por si sozinho. Só a morte. A vida é apenas um empréstimo. Ouve o que o poeta Yuan-Ming cantou há mil e quinhentos anos ao imperador da dinastia Djin:
Onde há vida
Também há morte.
É certo que o fim chega cedo.
Ontem à noite
um homem entre nós;
hoje cedo
espírito entre os espíritos.
O aroma da alma
para onde fugiu?
O corpo transforma-se
em madeira oca.
Portanto, leva a máquina fotográfica e traz-nos as fotografias dos nossos opositores. Mostrar piedade para com um inimigo significa oferecer o próprio corpo. - Min Ju levantou-se e deu a volta à secretária. - A máquina já está carregada. O criado, Tong Fangchu, dar-te-á mais três rolos.
- Ele também está a lutar contra os russos? - Rathenow meteu a máquina no bolso.
- Todos lutam. Temos de defender a nossa nação de uma invasão. - A voz de Min endureceu. - Vai e faz o teu dever! Entretanto, protegeremos a Wang Liyun.
A ameaça não poderia ser mais clara. A esperança de poder proteger melhor Liyun da ira das tríades, se ela estivesse na Alemanha, desfez-se como uma bola de sabão.
Sem se despedir, Rathenow abandonou o Mandarim Negro. Na zona superior do restaurante era esperado pelo empregado de mesa que lhe entregou três pequenos pacotes. Os rolos de filme. Rathenow escondeu-os junto à câmara e olhou interrogativamente para Tong que sempre fora muito simpático para com ele e se mostrara muito cuidadoso em relação a Ninglin e aos castigos. Tong desviou o olhar e fixou um dos candeeiros chineses que estavam pendurados no tecto.
- O Min Ju diz que vais lutar?
- É o meu dever.
- E que irás fazer?
- Matar...
- A mim também?
- Se nos traíres. Fiz um juramento de sangue. Terei de o fazer.
- Apesar de eu ser teu amigo?
- Não existe amizade em relação aos desobedientes. -
Tong olhava agora para Rathenow e no seu olhar lia-se um pedido. - Faz o que te mandarem! Tenta não fugir. Não há lugar onde possas esconder-te. Os nossos irmãos encontrarte-ão. Hoje, amanhã ou daqui a cinco anos... O tempo não importa. O importante é a tua morte. Dessa não podes fugir. Fizeste os trinta e seis juramentos de sangue e cortaste a cabeça ao galo branco. A espada estará sempre sobre ti.
Rathenow não regressou imediatamente a Griinwald. Deu algumas voltas e parou à porta do seu barbeiro que, sempre que era visitado, levantava os olhos para o céu e juntava as mãos. Desta vez, também manifestou a sua desilusão.
- Vamos voltar a pintar?
- Sim. Já começaram a aparecer madeixas brancas.
- Seja feliz! Deixe-as crescer.
Rathenow sentou-se e acenou energicamente.
- Ponha-me louro, mestre! Sem discussões! Tem de ser! Sou um homem muito vaidoso.
- Continuo a dizer que é um escândalo!
- Pode ser, mas eu gosto do louro! Vá! Toca a trabalhar!
Suspirando, o barbeiro começou a lavar o cabelo de Rathenow.
Cerca de duas horas depois, Rathenow estava a arrumar o carro à frente da sua garagem.
Liyun encontrava-se no jardim, deitada ao sol, e usava um biquini tão exíguo que mais valia ter poupado o tecido. No tempo de Mao, tê-la-iam preso imediatamente se estivesse deitada, naquele estado, à beira de um lago ou do mar. Comprara o biquini em Sarrebruck e perguntara à Senhora Frantzen:
- Isto não é demasiado sexy?
- É a moda mais recente - dissera a Senhora Frantzen a rir. - Compra-o.
- Não vou envergonhar-me?
- Com a tua figurinha, não. Os homens vão ficar de boca aberta.
- Na China, é proibido.
- Agora estás na Alemanha.
- As mulheres são assim tão... tão desinibidas?
- São livres. Vivem como gostam. Ninguém lhes proíbe nada. Quando vão à praia sem sutiã ou nuas, ninguém se importa ou se sente escandalizado.
- Na China iriam imediatamente para um campo de trabalho. Até é proibido beijar na rua. Acha que não vou sentir vergonha se usar este biquini?
- Decerto que não. - A Senhora Frantzen voltara a rir-se e colocara-lhe o braço em volta dos ombros. - Mas, quando estiveres deitada numa praia, toma atenção aos homens! São todos iguais. Não te deixes levar pela conversa deles... Desde tempos imemoriais que os homens são caçadores, e uma gata selvagem incha-lhes o ego. Por isso, toma atenção! Tu sabes como és bonita.
- Não sou bonita, Sou apenas diferente. Uma chinesa.
- É isso mesmo que excita os homens.
E Liyun comprara o exíguo biquini.
Rathenow aproximou-se em bicos de pés, inclinou-se sobre ela e beijou-a no peito nu. Deu um salto e soltou um grito, desferindo um soco no vazio.
- Ah, és tu! - exclamou ela quando reconheceu Rathenow.
Liyun abraçou-se aos seus joelhos e ficou subitamente muito séria, afastando a mão de Rathenow quando este lhe ia fazer festas na coxa. Só naquele momento Rathenow reparou que ela tinha os olhos vermelhos e as pálpebras inchadas.
- Estiveste a chorar, Liyun? Meu Deus! O que se passou? Esteve aqui alguém... um chinês? - ”As tríades”, pensou cheio de pavor. ”Um daqueles que me vigiam... falou com ela. Nunca mais a posso deixar sozinha. Nunca mais!” - O que é que te contou?
- Um chinês? O que poderia querer de mim? O que iria contar-me? Não esteve aqui ninguém.
Rathenow respirou fundo, mas o medo ficou.
- Mas estiveste a chorar...
- Não.
- Tens os olhos inchados.
- O sol... Estive muito tempo deitada ao sol.
- Niang niang, diz-me a verdade!
Virou a cabeça para o lado e olhou para os arbustos floridos.
- Eu estive a arrumar... o nosso... quarto, antes que a mulher a dias viesse e pensasse coisas que não devia. Respirou fundo e perguntou em voz alta. - No teu armário estão vestidos de mulher, numa gaveta estão sutiãs e cuecas, meias e ligas. A quem pertencem?
- À Franziska Wellenbruch.
- Quem é?
- Pergunta antes: quem era. Uma boa amiga.
- Tua amante? A tua última amante? Viveu contigo?
- De vez em quando...
- De vez em quando. Nesse caso, não haveria armários cheios de roupa, blusas, sutiãs e cuecas.
- Já há alguns dias que ela disse que mandaria buscar tudo. Acabou...
- O que é que acabou? - Liyun levantou o tom de voz. - Quando esteve pela última vez na tua cama?
- Separámo-nos na quinta-feira.
- Dois dias antes de eu vir para Munique! Até lá, dormiste com ela.
- Assim que me telefonaste, separei-me imediatamente. Quis fazer-lhe festas nas costas, mas a jovem encolheu-se.
- Pára com isso! - Pela voz, percebeu que estava quase a chorar. - Durante todo este tempo, dormiste com ela!
- O que significa todo este tempo?
- Desde o teu regresso de Kunming ou até antes. Disseste-me: amei-te desde o primeiro dia... Tudo mentira. Voltaste para a cama da tua amante.
- Só conheci a Franziska muito depois. Como nunca mais tive notícias tuas, convenci-me de que não virias. Que não querias vir. Não poderia supor que as minhas petições se tinham extraviado. Parti do pressuposto de que tu não querias.
- E, como tal, apaixonaste-te simplesmente por outra mulher? Como podes afirmar que sempre me amaste e ir com outra mulher para a cama? É possível amar duas mulheres ao mesmo tempo?
- Estava só, Liyun, terrivelmente só.
- Eu também, mas não amei mais nenhum homem... e tive centenas de oportunidades.
- Acredito.
- Afastei todos... mas tu arranjaste uma amante. E com uns grande seios!
- Como sabes?
- Os sutiãs são bastante grandes! Não tenho nada contra isso. Os meus são pequenos.
- São lindos.
Ela virou-se para Rathenow, cobriu os seios com as mãos e as lágrimas vieram-lhe aos olhos.
- Enganaste-me!
- Tu estavas a mais de dez mil quilómetros de distância e entre ti e mim só havia silêncio.
- Isso não é desculpa. Eu amo-te...
- Como poderia eu sabê-lo? Nunca o mostraste. Sempre te contiveste. A simpática guia turística e nada mais.
- Podias ter perguntado.
- Para me tornar ridículo aos teus olhos?
- Eu ofereci-te a rapariga Bai com as três pombas. Não fui clara?
- Só o reconheci quando já estava em Munique.
- E mesmo assim arranjaste uma amante! - Atirou acabeça para trás. - Vou deixar-te! - proferiu ela com um tom de voz que nunca lhe ouvira. - Odeio-te, a ti e a essa Franziska. Amanhã volto para Sarrebruck. Não digas nada. Vou-me embora! Vou já telefonar ao doutor Frantzen.
- Niang niang, estás a ser injusta.
- Não me tornes a chamar niang niang. Não sou tua concubina!
- És minha mulher...
- Mentira! Sou apenas uma aventura! Daqui a três meses acaba tudo. Quando eu voltar para Hong Kong, essa Franziska volta a mudar-se cá para casa! Nem precisa de vir buscar as roupas. Voltarás a ter aqueles grandes seios...
- Tu não irás partir daqui a três meses - disse RathePnow com firmeza.
- Parto, sim! O visto expira.
- Vou ao departamento de emigração requerer uma autorização de residência.
Liyun olhou para o chão e calou-se. Continuava a proteger o peito com as mãos. O seu longo cabelo caía-lhe para o rosto, cobrindo-o completamente.
- Não sei se isso será bom - retorquiu, já com outra voz.
- Porque dizes isso, Liyun? - Rathenow colocou-lhe a mão sobre o ombro e daquela vez ela não o afastou. Amo-te imensamente.
- Se ficar, não quero dormir mais na cama onde fizeste amor com aquele peito grande. Não o suportaria.
- Dormiremos no quarto de hóspedes. - Rathenow envolveu-lhe os ombros e quis abraçá-la, mas Liyun voltou a empurrar-lhe o peito com o braço. - Ou trocamos de camas... Como quiseres! O principal é que fiques comigo!
- Eu durmo no meu quarto. Do armário vem o cheiro daquela mulher. Não consigo suportar!
- De acordo. Amanhã, a Franziska vai, com certeza, mandar buscar as roupas, eu compro outro colchão, arejamos os armários e ponho-lhe perfume... Satisfeita?
- Esperemos.
- Liyun, não temos mais tempo para esperar. Nos dois últimos dias muita coisa mudou. Tudo mudou.
Percorreu-lhe o corpo com o olhar, depois mirou o jardim e a casa. A porta da frente estava aberta. A mulher a dias varria o alpendre com as colunas e olhava para eles. Trabalhava há doze anos em casa de Rathenow e durante todo esse tempo vira e ouvira muita coisa. Até à semana anterior, aceitara Franziska Wellenbruch como dona da casa, pois isso traria paz à vida de Rathenow. Gostava de Franziska. Andava sempre muito bem-arranjada e não deixava atrás de si um rasto caótico, como as outras mulheres que conhecia. Quando pendurara os vestidos no armário, tivera a certeza de que o patrão encontrara finalmente a mulher certa. Uma bela mulher.
Mas agora estava sentado na cadeira de jardim e beijava outra mulher. Uma chinesa... ainda por cima. Que vergonha! Enquanto limpava a entrada, ponderou se deveria despedir-se, depois de doze anos, para não ter de assistir àquela escandalosa mudança de vida.
Varreu o alpendre com um ar indignado, olhou mais uma vez para o patrão e a sua inconcebível conquista chinesa, entrou em casa e fechou a porta. ”Já que não se pode dizer nada”, pensou, furiosa... ”ele vai ter de as ouvir!”
- Tudo mudou porque estou aqui? - perguntou Liyun.
- Porque sou chinesa? Já tiveste problemas por minha causa?
- Sim e não.
- Então, tiveste! Ninguém gosta de mim!
- Ninguém te conhece.
- Chega o facto de ser chinesa. Uma chinesa vermelha.
Nascida e criada em pleno comunismo. Isso chega-lhes. E agora estás com medo...
- Sim, tenho medo. - Como ela dera um salto ao ouvir a última frase, Rathenow agarrou-lhe as mãos e sentou-a novamente na cadeira de jardim. - Mas não é de juízos disparatados... O que os meus amigos ou outras pessoas possam pensar é-me completamemnte indiferente. Não. Tenho medo por nossa causa.
- Desde anteontem?
- Desde que vim da China. As tríades...
- Não há tríades na Alemanha! Não há mesmo. É tudo agitação e mentiras propagandísticas. Tu próprio o disseste depois do filme de ontem...
- Disse que o filme era uma mentira. Mentira porque a realidade é bem diferente. Brutal, perigosa e mortal. Liyun, agora ouve-me. - Apertou-lhe as mãos que tinha entre as suas. - Não te levantes, não fujas, não grites e sê forte, muito forte! O que vais ouvir, vai determinar a nossa vida e o nosso futuro. - Respirou fundo, apertou-lhe as mãos e começou. - As tríades existem. Aqui em Munique e por todo o mundo. Sou um dos seus mensageiros, um cho hai, um sandália de erva, como eles lhe chamam... e fi-lo para te proteger. Só o fiz por ti... porque te amo.
Levou muito tempo a contar a Liyun o que acontecera no último ano. A mulher a dias fora-se embora sem se despedir, o sol estava muito quente, o céu coloria-se de um vermelho-pálido e, quando Liyun encolheu os ombros com frio, ele vestiu-lhe o casaco e abotoou-o. Não omitiu nada. Nem o homicídio perpetrado por Ninglin a que ele fora obrigado a assistir, nem as bestiais e tenebrosas penalizações, nem a sua entrada na família Hong e na irmandade da Catorze K, nem a tarefa que Min Ju lhe atribuíra naquela manhã e que não significava outra coisa do que condenar pessoas à morte.
Depois calou-se, baixou a cabeça e não teve coragem de olhar para Liyun... Esta parecia não ter vida, semelhante a uma boneca de jade, e com um vazio horrendo no olhar. Perdera a fala, não havia mais palavras. A sua alma parecia um vazio.
- Niang niang - disse Rathenow suavemente com uma voz trémula. Colocou a cabeça sobre as suas mãos frias e beijou-as. ”Por que razão não consigo chorar?”, perguntou a si próprio. ”Porque já nem isso consigo fazer? Será que sou apenas uma árvore podre que a próxima rajada de vento arrancará pela raiz?” Estremeceu quando ouviu a voz de Liyun, monótona e assustadoramente débil.
- Tornaste-te um criminoso!
- Obrigaram-me a isso... Senão, ter-te-iam matado.
- E tu acreditaste nisso?
- Não deixaram dúvidas. Com o contrabando da heroína no café em pó, tinham-me na mão.
- Devias ter ido à polícia.
- Sabendo que te fariam mal? Já em Kunming me tinham mostrado as fotografias das vítimas e depois foste raptada para que não pudéssemos voltar a falar. Tive medo, Liyun.
- É a tua vida; não a minha.
- É a nossa vida!
- Já em Kunming?
- Sim. Para mim só tu existias!
- Amas-me assim tanto?
- Por ti, teria feito tudo o que me exigissem. Talvez tivesse até morto pessoas para que não te matassem a ti, mas agora tudo mudou. Estás comigo e ninguém irá separar-nos.
- Meu bi xia... - Inclinou-se sobre ele, beijou-lhe o pescoço e encostou o rosto aos seus cabelos. - Os terrores que suportaste por minha causa! Eu não valho tanto...
- Não queria mais nada da vida senão a ti. Não tinha vontade para nada. Era um homem velho, um homem cansado, à espera nesta casa gigantesca que o ano passasse. Depois, tu chegaste, o gelo que estava dentro de mim quebrou-se e percebi subitamente que a vida estava sob um telhado de neve... Ouço de novo o canto dos pássaros e vejo o vento a bater nos ramos e está tudo tão branco e limpo como se uma chuvada tivesse arrastado todo o pó. - Olhou para ela e manteve-se agarrado ao seu corpo, como se Liyun o tivesse salvo de afogamento.
A jovem afagava o seu cabelo pintado de louro e sorria-lhe.
- Tu és então o membro das tríades, Hong Bai Juan Fa! Um homem procurado por todo o lado. O cobrador das taxas de protecção. O sandália de erva. Bi xia, temos de fugir!
- Para onde? Eu posso desaparecer para sempre, mas tu precisas de um visto para cada país! Não o obterás porque só estás aqui de visita durante três meses. Temos de ver se podemos entrar ilegalmente noutro país onde ninguém nos procure e encontre.
- Então seremos aquilo a que vocês chamam livres como um pássaro.
- Poderá ser assim.
- E eu nunca mais posso voltar à China...
- Não conseguirias suportar, não é verdade?
- Consigo suportar tudo porque te amo.
Aninhou-se no casaco dele. O céu brilhava à luz do pôr do Sol.
- Nunca mais te deixarei, Liyun. Nunca mais. Sem ti a vida não é nada.
- A vida, meu querido, será conquistada. Tu próprio o disseste. Só isso é importante. Como continuamos a viver? Como iremos suportar as próximas semanas? - Liyun falava agora sem emoção, como se se referisse a números. Onde tens a máquina fotográfica do Min Ju?
- No bolso do casaco.
Ela agarrou no estojo e nos três rolos e atirou-os para cima da cadeira de jardim.
- Irás tirar as fotografias que o Min ordenou - afirmou ela, peremptória.
- Isso significa enviar pessoas para a morte.
- Não entregas as fotografias.
- Impossível. O Min reclamá-las-á.
- Vou contigo. Sentar-me-ei contigo nos restaurantes chineses e, se os russos aparecerem e os fotografares, faremos cópias dos negativos e entregá-los-emos anonimamente à polícia. ”Estes homens vão ser abatidos pelas tríades!”, escreveremos no sobrescrito. ”Não podem publicar as fotografias, caso contrário, serão as primeiras e últimas. Guardem-nas e talvez recebam mais.”
- A polícia não vai acreditar
- Os polícias não são estúpidos.
- Como iremos avisar os russos, se eles não sabem quem são os homens?
- Isso é problema deles, meu amor.
- É impossível. - Rathenow abriu o estojo. Lá dentro estava uma pequena e estreita máquina fotográfica. Nunca vira nenhuma assim. Tinha um botão redondo e prateado que se podia esconder facilmente. Rathenow tirou-a da caixa e colocou-a na casa do botão do casaco que Liyun tinha vestido.
- Uma câmara de botão - disse. - Um utensílio típico de espionagem... há muito conhecido, mas sempre eficaz.
- Por que razão é impossível? - perguntou Liyun.
- O Min Ju irá exigir os negativos.
- Ele disse isso?
- Não.
- Então como sabes? Lês pensamentos? Realizaste a tua tarefa da melhor maneira possível.
Ele beijou-a na ponta do nariz.
- És uma pequena e refinada aldrabona! Tais ideias nunca me teriam ocorrido. No entanto, tens razão. Podemos fazer isso.
- Tenho quase sempre razão. E também a tenho quando te digo que continues. Continua a ser cho hai até encontrarmos uma possibilidade de fuga. Engana-os tal como te enganaram a ti! Enquanto, para eles, fores um membro das tríades, estamos seguros. Gostaria de conhecer o Min Ju.
- Ele nunca o permitirá. São uma irmandade em que não se aceitam mulheres. As mulheres cospem os segredos como uma cotovia que sobe no céu da manhã. Durante o juramento de sangue prometi que nem pai nem mãe, nem filho nem irmão, esposa ou avós saberiam uma única palavra sobre as tríades. Quereres falar com o Min Ju significaria que soubeste o seu nome pela minha boca e que falei contigo a seu respeito. Isso é traição!
- Eu vê-lo-ei! - Parecia uma ordem. - Ele come frequentemente no Mandarim Negro?
- Quase todas as noites.
- Então serei um cliente inocente e fotografá-lo-ei.
- És louca! Queres que o Ninglin te trucide?
- Sou uma cliente chinesa desconhecida como muitos outros. Tem fotografias minhas?
- Presumo que sim.
- Então ainda é melhor. Ninguém conhece o Min Ju?
- Sim. O meu amigo, o doutor Freiburg. É médico e o Min Ju foi consultá-lo. Tem fotografias do Min.
- Maravilhoso!
- Mas a polícia não pode fazer nada com elas. - Rathenow riu-se. - São radiografias do pâncreas, pulmões e fígado do Min com uma quantidade de metástases.
- Como podes ainda falar com tanta ironia? Quando começamos as visitas aos restaurantes chineses, bi xia?
- Tu ficas em casa e trancas a porta.
- Vou contigo! E que fazes amanhã?
- Vou à administração do círculo de Munique. Às autoridades de emigração. Se não estiverem completamente enterrados em artigos legais, deverão compreender a nossa situação. A questão é apenas uma: se conseguem pensar abstraindo-se das leis.
Uma boa questão que deve sempre ser colocada.
O funcionário que recebeu Rathenow na tarde do dia seguinte era um homem ainda jovem com cabelo alourado que precisava urgentemente de um corte. Cumprimentou Rathenow de forma educada, mas com uma clara reserva. Quem lida sempre com os pouco amados estrangeiros de todas as raças, distancia-se do parceiro de conversa.
- De que se trata? - perguntou.
- Da troca de um visto de visita por um pedido de residência.
O funcionário olhou para Rathenow como se estivesse a dizer: ”Ele parece racional, mas o que está a dizer é um perfeito disparate.”
- Não pode ser - foi a resposta curta. Rathenow entregou-lhe alguns papéis e traçou as pernas. ”Calma”, disse a si próprio. ”Muita calma.”
- Peço-lhe que leia isso - disse ele, cortês.
O funcionário do serviço de estrangeiros de Munique folheou os papéis e leu-os rapidamente. Depois, voltou a olhar para cima e abanou a cabeça.
- Como já disse, não pode ser. A senhora Wang Liyun recebeu um visto de três meses da Embaixada alemã em Pequim. Quando o prazo terminar, terá de regressar à China.
- Porquê?
- Porque deixa de ter um visto.
- É por isso que estou aqui. Pretendo requerer que o visto de viagem se transforme num...
-... é impossível! - interrompeu o funcionário.
- Mas porquê?
- Senhor Rathenow, o senhor é etnólogo e escritor e não jurista. Trata-se aqui de duas coisas completamente diferentes. O visto de viagem permite uma visita e o visto de residência uma estada mais longa, tal como o nome indica. Para conseguir essa autorização, é necessária a indicação de que a estada é do interesse da República Federal. Para isso é necessário um parecer do departamento laboral para saber se a sua ocupação é autorizada na Alemanha e se são precisas, com urgência, pessoas para esse posto. Isso quer dizer que um pedido de entrada para trabalhar na República Federal Alemã deve ser novamente posto à consideração da embaixada em Pequim, que nos deve remeter as seguintes informações: fotografia, pedido da entidade laboral, esclarecimento sobre o motivo da imigração, residência, comprovação de cidadania, segurança social, etc.
- Isso não está em questão para a senhora Wang Rathenow sentiu que o funcionário tinha ficado furioso. Não tirará o emprego a nenhum alemão, não será uma sobrecarga para ninguém, tem residência fixa em minha casa, eu assumo toda a responsabilidade e está financeiramente segura. Que querem mais?
- Não está previsto na lei que os aposentados estrangeiros se estabeleçam aqui.
- Perdão! A senhora Wang tem vinte e seis anos. Quer viver comigo.
- Viver consigo? Isto também não está previsto na lei. As coisas poderiam mudar, se o senhor casasse com a senhora Wang, mas existem, mesmo assim, algumas limitações que podem impedir os chamados matrimónios fictícios: casamentos para obtenção de vistos de residência. Se a senhora Wang não tiver razões profissionalmente relevantes, não vejo possibilidade.
- Empregá-la-ei como minha secretária.
- O Ministério do Trabalho não o reconhecerá. Existem muitas secretárias alemãs.
- Que falam chinês?
- Para que precisa de uma secretária que fale chinês?
- Os meus trabalhos sobre etnologia e também os meus relatos de viagem são traduzidos para chinês. Correspondo-me com editoras e académicos.
- Se até hoje isso aconteceu sem uma secretária chinesa, não vejo porque deverá mudar.
- A senhora Wang é licenciada em Literatura Alemã. O diploma está à sua frente.
- Pode ser, mas o que tem isso a ver com o visto de residência?
- Irá traduzir o meu novo trabalho para chinês!
- Também o pode fazer na China.
- Não pode. Só pode ser feito em conjunto comigo.
- Não compreendo. Os seus trabalhos têm sido traduzidos sem ela.
- Foram quase sempre traduções muito más.
- Quem afirma isso?
- A senhora Wang...
- Estamos a andar em círculos, senhor Rathenow.
- O funcionário mostrou-se muito impaciente. - Não é do interesse da República Federal sancionar relações paramatrimoniais com estrangeiros, sejam quais forem as providências pessoais que estejam por detrás. Não pode ser. As nossas leis são muito precisas. Precisamente as leis sobre estrangeiros, em relação às centenas de milhares de pessoas a pedir asilo que vêm para o nosso país.
- A senhora Wang não está a pedir asilo! Inúmeros pedidos de asilo estão à espera de aprovação... alguns há três ou quatro anos, porque lhes exigem sempre prova de emprego. - Rathenow começou a elevar a voz. - É consabido que milhares de africanos, com cinco nomes diferentes, recebem segurança social em cinco lugares diferentes onde se inscreveram! Isso é do interesse da República Federal?
- Quando os apanhamos, são castigados e exilados. E os processos arquivados? As repartições estão cheias.
- Sim! E querem mandar embora uma mulher como a Wang Liyun.
- A Alemanha não é um país de imigração. A senhora Wang é livre de apresentar novo pedido em Pequim. A única coisa que posso fazer é prolongar o visto por mais catorze dias.
Rathenow levantou-se e reuniu os papéis. Já não fazia sentido discutir mais. Não havia qualquer lógica.
- Gostaria de falar com o chefe da repartição de estrangeiros - disse ele, áspero.
- O senhor doutor Põllner viajou.
- Então anuncie-me ao director de serviço da administração.
- O senhor doutor Klee está numa reunião. Dirija-se ao secretariado do doutor Klee. Marcar-lhe-ão uma audiência. Mas aviso-o já: o senhor doutor Klee vai para férias depois de amanhã. A audiência só lhe será marcada daqui a quatro semanas.
Sem se despedir, Rathenow abandonou a repartição.
No dia seguinte, Rathenow iniciou uma ronda de vigilância aos restaurantes chineses. Liyun acompanhou-o.
Quando Rathenow lhe contou a sua conversa com a repartição de estrangeiros de Munique, ela mostrou-se inicialmente furiosa.
- Os Alemães querem mandar-me embora? - gritara.
- Porque quero viver contigo e não tenho um emprego que seja de interesse ao Estado alemão? O que é que vocês, Alemães, querem dizer com isso? Vivem cá milhares de empregados chineses. São de interesse para o país? Perguntaste-lhes isso? Sei exactamente o que pensam: esta Wang Liyun é a amante do famoso Rathenow e, quando ele se fartar dela, manda-a embora e nós temos de a sustentar! Os contribuintes alemães. Não é garantia o facto de Rathenow assegurar que ele e Liyun ficarão juntos toda a vida. O que significa toda uma vida? Ele é trinta e três anos mais velho do que ela, vai morrer, tem de morrer antes dela, e a viúva será sustentada pelo Estado alemão! Não quero dinheiro nenhum do Estado! Só quero viver contigo... Será que não têm coração?
- Na lei não se prevê o coração, e os nossos funcionários ficaram alérgicos aos estrangeiros. A lei do asilo é frequentemente mal utilizada.
- Eu não quero asilo, quero estar contigo. Em todas as leis há possibilidades.
- Sim. A chamada tolerância de opiniões. Fica ao critério dos funcionários se há proposta ou não. Neste caso, a simpatia pessoal desempenha um papel importante. Tenho a sensação de que, no nosso caso, não funciona a lógica, mas sim a recusa pessoal. Porém, não desisto.
- Não temos tempo. Nós queremos sair da Alemanha.
- Com um visto de viagem expirado, não consegues um visto de entrada noutro país qualquer e muito menos autorização de residência. Daqui a três meses todas as fronteiras se fecharão para ti! Só podes ir para a China.
- Eu pertenço-te. Ninguém pode separar-nos.
- Como vês, um pequeno funcionário alemão pode.
- Não gostaria de ficar na Alemanha, se não me querem cá - declarou Liyun com lágrimas nos olhos. - Podemos ser felizes em qualquer lado. Não quero viver neste suposto Estado democrático. Tinha imaginado a Alemanha de outra maneira. Estão sempre a falar de liberdade... mas vocês não são livres. Gritam ao mundo: ”Nós defendemos os direitos humanos.” Onde estão os direitos humanos se Munique quer mandar-me embora? Vocês mentem. Todos mentem! Vamos embora da Alemanha, bi xia...
- Encontrarei uma saída.
”Temos de sair da Alemanha antes de o visto da Liyun expirar”, pensou. ”Na verdade, não temos muito tempo. Tem de acontecer alguma coisa... imediatamente... Mas o quê?”
Era uma pergunta para a qual não tinha resposta.
Durante dois dias, sentaram-se à hora do almoço e do jantar em restaurantes chineses, comeram e observaram os clientes. Os proprietários, espantados, vinham à sua mesa, mas Rathenow acalmava-os.
- Hoje não é dinheiro - afirmava sempre. - Estou aqui como cliente e não como cho hai.
É claro que não era nada disso. Ninguém lhe trazia uma conta e, em vez dela, ofereciam-lhe pequenos presentes que surgiam durante a refeição. Rosas para Liyun, pequenos frascos de perfume chinês, tigelas de porcelana casca de ovo, os melhores vinhos e os mais suaves mão tai.
- Quem devo fotografar? - perguntou Rathenow a Liyun. - Todos os que vão às traseiras? Isso é um disparate... só vão à casa de banho.
- Tens de tomar atenção, meu amor - sussurrou Liyun. - Todos os que estiverem mais que dez minutos na casa de banho devem ser fotografados. Ninguém precisa de dez minutos. Quando volta, aproxima-se do proprietário...
- Ou sofre de prisão de ventre! Ficará na lista do Min e nem sequer conseguiu evacuar. Um pensamento terrível: vai-se para uma lista de morte porque o intestino é preguiçoso!
Todavia, no quarto e último restaurante, o Jardim de Lótus pareceu terem êxito. Dois homens foram juntos à casa de banho e ficaram lá meia hora. Rathenow fotografou-os em segredo por trás do copo de vinho. Não pareciam russos, mas... qual é o aspecto de um russo? Se não vier da parte asiática, é igual a qualquer outra pessoa.
- Até aqui podemos enganar-nos. - Rathenow voltou a esconder a máquina. - Podem ser homossexuais. Encontro de casa de banho. É muito usual.
- Vou tirar isso a limpo.
Liyun levantou-se, dirigiu-se sem hesitações e com um ar muito coquete à mesa dos dois homens e disse com um sorriso irresistível:
- Posso-vos pedir o sal? Não temos sal na mesa.
- Faça favor - disse um.
- Devolvê-lo-ei imediatamente.
- Não é preciso - acrescentou o outro. - Não precisamos.
- Gostam da comida do restaurante?
- Muito boa!
Liyun pensou se não seria melhor ouvi-los falar mais e, como tal, continuou.
- Vêm cá comer com frequência?
- Não. - O homem que estava à esquerda de Liyun sorriu-lhe. - É a primeira vez, mas voltaremos mais vezes. Talvez voltemos a encontrar-nos.
- É possível!
Liyun riu-se, virou-se e regressou à mesa com passos rápidos. Rathenow reparou na maneira como os dois homens ficaram a olhar para ela e como um deu um toque nas costelas do outro. Não eram decerto homossexuais.
- São russos - disse Liyun quando voltou a sentar-se ao lado de Rathenow. - Usam um alemão bastante áspero. Só os russos falam assim.
Pouco depois, abandonaram o Jardim de Lotus e quando Rathenow passou pela mesa onde tinham estado sentados os russos, pensou: ”Pobres tipos! Para a semana, o Ninglin terá a vossa fotografia, mas de pouco lhe servirá... Tremi bastante a fotografia. Sou fotógrafo, Min Ju? Preciso de mais experiência...”
No domingo, depois do jogo de golfe, o Dr. Freiburg apareceu em Grunwald atiçado pela curiosidade. Ainda ninguém vira Liyun. Rathenow ainda não a apresentara à ”sociedade”.
- O que queres? - indagou ele, cumprimentando o Dr. Freiburg com pouca cortesia. - Aos domingos a esta hora costumas estar ainda no décimo primeiro buraco.
- Apressei-me.
- Não era preciso. Não tínhamos nenhum compromisso.
- Mas posso entrar?
- Já que estás à porta, faz favor.
O Dr. Freiburg olhou à sua volta no vestíbulo de entrada e também para o salão.
- Procuras alguma coisa? - perguntou Rathenow.
- Não cheira a paus de incenso ou a rosas. Onde é que ela está?
- No jardim.
- Seria possível mostrares-me essa pérola que manténs em cativeiro?
- Estás a babar-te de curiosidade, não é?
- Não. Sou o teu médico. Tenho de ver se a maravilha chinesa é boa para a tua circulação.
- Sinto-me muito bem.
- Não tens tremores matinais nas pernas? Nenhum vácuo na medula espinal?
- Não seria melhor ires-te embora? E bem depressa, antes que te dê um pontapé no traseiro.
- Só um olhar à distância. A minha curiosidade é enorme! A Franziska está a suportar a separação com dignidade...
- Ela tem de mandar buscar as suas coisas. Estão a enervar a Liyun.
- Ah, a grande cabra! Estou a ver que te tem completamente na mão. Quando disser: ”Urso, dança!”, tu danças à volta dela e rosnas de felicidade. Até agora, as coisas estão assim? O que fizeram de ti, meu velho?
- Voltei finalmente a saber o que quer dizer viver, o que significa felicidade, e sempre que ela me disser: ”Bi xia, tudo é lindo entre nós”, eu desejarei viver eternamente.
- O que é bi xia! - perguntou Freiburg.
- Bi xia quer dizer imperador.
- Ela chama-te imperador?
- Sim.
- Que mentirosa refinada! Que veneno de cobra tão brilhante! Meu imperador, meu bi xia. Com isso ela embrulha-te em papel dourado e tu nem reparas que estás a morrer sufocado. É tão perigosa como pensei! Deixa-me olhá-la num instante!
- De longe. Não lhe diriges palavra! Pelo menos até estares pronto a ter uma conversa cortês com ela. Se disseres as tuas porcarias à sua frente, a nossa amizade termina para sempre. Fui claro?
- Muito claro.
- Vem comigo! - Foram para o jardim de Inverno de onde se conseguia observar todo o jardim. Liyun estava sentada à beira da piscina no seu exíguo biquini. Acabara de sair da água. As gotas brilhavam sobre a sua pele. - Ei-la! - disse Rathenow, comovido, como sempre, quando olhava para a sua beleza.
O Dr. Freiburg fixou-a durante algum tempo e virou-se.
- Parabéns! - cumprimentou. - Foi a melhor que arranjaste até agora. Aquele corpo é como o de uma cobra. Faz-me lembrar as raparigas do Circo Nacional Chinês. Conseguem mexer-se de uma maneira que uma pessoa fica logo quente.
- Por favor, sai!
- Ainda é permitido pensar! - O Dr. Freiburg voltou para o vestíbulo e para junto da porta. Rathenow abriu-a violentamente. - Estás a expulsar-me?
- Podes voltar sempre que quiseres, a partir do momento em que aceites a Liyun como minha mulher.
- Estás completamente louco! Uma coisinha daquelas só ficará contigo até te esvaziar a conta bancária. Depois, o velho ficará a um canto com os olhos revirados e ela junta-se a um amante mais novo, que tu pagaste.
Sem uma palavra, Rathenow empurrou o Dr. Freiburg para a rua e fechou a porta. Ouviu Freiburg partir e ficou contente. Sabia que o amigo voltaria, mas dessa vez com um ramo de flores para Liyun, e seria um cavalheiro. Só junto de Rathenow é que se comportava como um patife. Ou na mesa de observações.
Tirando isso, era um bom médico.
Durante dez dias, Rathenow e Liyun comeram nos restaurantes chineses de Munique sem conseguir fotografar pessoas especialmente suspeitas. Quando mandou revelar o primeiro rolo disse a Min Ju:
- Não estão muito boas, daih-loh. Tenho de me habituar a essa máquina tão pequena e, além disso, é preciso ter uma mão muito firme. O mais pequeno tremor e a imagem fica desfocada. Mas quem é que tem uma mão tão firme?
Min Ju viu as fotografias sem se aperceber de que Rathenow mandara revelar o rolo. Atirou as fotografias para cima da mesa e abanou a cabeça.
- Por aqui não vamos a lado nenhum, Hong Bai Juan Fa - declarou.
- Foi o que eu temi.
- Quando primes o obturador, tens de suster a respiração.
- Isso não sabia. Ninguém me disse nada.
- Quem é que fotografaste?
- Todos os homens que estavam na casa de banho mais de seis minutos. Como poderia saber se eram mafiosos russos que iam urinar? Isso não se consegue ver.
- Mas vê-se se são cumprimentados pelo proprietário ou se um criado os serve com especial deferência.
- Nesse caso, também pode tratar-se de clientes muito antigos. Acho que isto não vai levar a lado nenhum. Nunca iremos reconhecer os russos. Teremos de interrogar os proprietários um a um.
- Eles mentem! Todos mentem! Têm de mentir para não ficarem sem cabeça. Iremos mais longe com a vigilância. Ou traição...
- Um membro das tríades não trai um irmão. Por que razão um russo o faria?
- Não têm a nossa mentalidade. A nova Rússia tornou-os mais ávidos. Cada um procura uma mina de ouro para si próprio e não para a organização. As tríades são uma sociedade de irmãos... Os russos são pessoas independentes que se uniram numa fechada comunidade de interesses. Não irá resultar. Não têm a nossa disciplina. Eles vendem a mulher ou a irmã se lhes oferecerem dinheiro suficiente. Falta-lhes a honra. - Parecia absurdo a Rathenow ouvir a palavra ”honra” da boca de Min num contexto de crimes e mortes, mas respondeu:
- Não sei, irmão, se vocês não estão a menosprezar os russos e a vê-los como ingénuos. Tu próprio contaste que eles progridem. Do inofensivo contrabando de tabaco e roubo de automóveis abriram uma frente mais ampla, entrando no contrabando de heroína, na prostituição e nas taxas de protecção. Creio que o seu ponto fraco são os bordéis. Podem arranjar informadores que fazem tudo por dólares, marcos ou francos suíços.
- Vejo que estás com boas ideias, irmão. - Min Ju riu-se de contentamento. - Já temos um grupo próprio que está a tratar das prostitutas. Clientes bem-vistos. Pagam bem, não têm grandes desejos e contentam-se facilmente. As prostitutas gostam dos nossos rapazes. São uma espécie de compensação. Ao sentirem-se recuperadas e simpatizando com eles, também falam da vida privada. - Min Ju esfregou as mãos como se tivesse feito uma grande aposta e ganho. - Já temos vinte e sete nomes de mafiosos russos. Não vai durar muito tempo até podermos ceifá-los.
- Queres mandar matar a todos?
- Um trovão assusta mais do que um murmúrio. Seremos raios e trovões e limparemos o ar poluído. Nenhum russo voltará a ousar perturbar o nosso círculo. Munique voltará a pertencer às tríades. - Min Ju fez um largo sorriso, enrugando o seu rosto gordo. Ao contrário do prognóstico do Dr. Freiburg, não emagrecera um grama, ganhando algum peso. - Uma visita às putas também te faria bem, irmão. As mulheres gostam de homens maduros.
- Agora fizeste-me lembrar o doutor Freiburg.
- Um bom médico, mas os seus conhecimentos são mais pobres do que os dos nossos médicos descalços.
- Dir-lhe-ei isso com muito prazer. - Rathenow afastou-se do canto da secretária. - Então agora também devo passar a cliente dos bordéis?
- Não, não... tu ficas no teu distrito. - Min acenou-lhe, sorrindo. - Liyun não merece um castigo tão grande. E para quê!? Ainda a amas?
- Até ao fim da minha vida.
- Isso honra-te, Hong Bai Juan Fa. Amas uma chinesa e não a abandonas pelo prazer! Ficaria muito desiludido se isso acontecesse. Quando voltas?
- Quando o próximo rolo terminar. Min Ju levantou-se e ofereceu-lhe a mão.
- Não te esqueças: suspender a respiração e depois premir o obturador. Espero que o próximo filme saia melhor.
Mas não havia próximo rolo.
Dois dias mais tarde, veraneantes encontraram dois chineses mortos no bosque perto de Rosenheim. Estavam algemados um ao outro e tinham sido mortos com um tiro. Uma verdadeira execução à moda russa.
Era também a perspectiva de Peter Probst e Lutz Benicke. E foi mais um caso que surgiu nos mapas como ”insolúvel”. O chefe da patologia da universidade telefonou ao comissário Benicke e disse em tom sarcástico:
- Mais dois. Obrigado! Ainda vêm mais? A anatomia está muito bem-disposta. Nunca tivemos tantos ”peixes”. Novamente as tríades?
- Provavelmente. Estamos à espera de uma guerra de bandos entre chineses e russos. É o que supomos. Não sabemos o que fazer, mas mantenha alguns frigoríficos disponíveis, senhor professor.
Dois dias mais tarde, encontraram dois russos... Na zona pantanosa junto a Erding, caçadores descobriram dois montes de carne, que já tinham sido homens. Os mortos estavam completamente desfeitos. Os rostos, irreconhecíveis, os dedos tinham sido cortados e haviam desaparecido. Não havia maneira de identificar os cadáveres.
A assinatura de Ninglin.
Rathenow ficou cinzento quando leu a notícia no jornal. Até Liyun empalideceu, semelhante a um actor maquilhado da Ópera de Pequim, sentindo-se completamente destroçada.
- Teu... irmão? - perguntou, com uma voz que mal se ouvia. - Esse... esse Ninglin?
- Sim. Só ele pode ser tão terrível. Deve ter cantado de alegria quando trucidou os russos. Quando mata, a loucura invade-o. Um ser desses só existe uma vez.
- Tens de dizer isso à polícia.
- Só quando tivermos a certeza. As suspeitas cairiam imediatamente sobre mim. Todos sabem que eu não gosto do Aisin Ninglin.
- Os homicídios vão continuar?
- É horrível, mas antes eles do que nós. Quando os gangsters começam a matar-se uns aos outros, deve-se... Meu Deus! Que estou para aqui a pensar...?
Correu para o escritório e atirou-se para cima do sofá. Liyun não o seguiu. Sabia que ele queria estar sozinho com o seu medo, ódio e impotência. Estava a passar pelo inferno. Encontraria uma saída?
No dia seguinte, Liyun foi sozinha a Sarrebruck buscar a mala a casa do Dr. Frantzen. Tinha querido assim e Rathenow concordara. A Senhora Frantzen abraçou-a e beijou-a quando Liyun saiu do comboio.
Durante a viagem até à vivenda dos Frantzen, perguntou:
- Queres realmente ficar em casa do doutor Rathenow? Pondera bem o assunto.
- Já pensei o suficiente - respondeu Liyun sem hesitar.
- Um homem famoso, trinta e três anos mais velho do que tu! Temos medo que esteja a brincar contigo.
- Vocês não conhecem o Hans. É o homem mais maravilhoso que se pode imaginar. Amo-o.
E pensou nele, já sentindo saudades. Faltava-lhe a sua respiração, a sua pele quente, as mãos e a voz terna quando dizia: ”Boa noite, niang niang.” Até já se habituara ao seu ressonar. Acontecera algumas vezes não o ouvir durante a noite... Assustara-se, inclinara-se sobre ele e ficara feliz por o ouvir respirar. ”Não há vida sem ti”, pensara ela, novamente.
Na noite que Liyun passou em Sarrebruck, bateram à porta de Rathenow. Este olhou para o grande relógio de pé que estava no vestíbulo. Eram 21 horas e 17 minutos, hora a que ninguém o visitava sem telefonar primeiro; voltou para o escritório e tirou da gaveta a pistola que Min Ju lhe dera. Quando regressou para junto da porta, tocaram pela segunda vez.
Rathenow abriu, com a pistola na mão direita escondida no bolso das calças. À porta estavam dois cavalheiros que usavam elegantes fatos de Verão e lhe fizeram uma pequena vénia.
- Boa noite! - disse um. - Incomodamos...?
- Está espantado? Viemos na melhor ocasião - afirmou o outro.
Rathenow respirou fundo, continuando com o dedo no gatilho da pistola.
Russos! Os russos tinham vindo a casa dele! A guerra da aniquilação estava à porta. A vingança dos crimes de Ninglin. Quando Rathenow recuou, deixando a entrada livre e permitindo o avanço dos dois russos, pensou: ”Ainda bem que a Liyun está em Sarrebruck. Sobreviverá... e isso torna tudo mais fácil para mim.”
”Mas porquê eu?”, perguntou a si próprio. ”Ninguém me conhece e ninguém sabe que trabalho para as tríades... Será que há traidores entre nós? Quem terá interesse em mandar-me liquidar? O Ninglin?” Uma ideia infernal, mas boa: foram os russos! A suspeita nunca recairia sobre ele.
- Entrem, cavalheiros. Permitem-me que vá à frente?
Conduziu-os ao salão. Os homens pareciam estar impressionados com o luxo da casa, mas não se sentaram quando Rathenow lhes indicou o sofá.
- Gostaríamos de nos apresentar - disse o mais alto. Chamo-me Gregor Antonovitch Burjev.
- E eu, Boris Nikolaievitch Sarantov.
- São russos?
- O Boris é de Moscovo e eu de Kiev - afirmou Sarantov -, mas agora vivemos em Munique.
Naquele momento sentaram-se e olharam amavelmente para Rathenow. Este não se deixou enganar por toda aquela jovialidade. Ninglin também sorria antes de espetar a faca.
- Posso oferecer-vos uma bebida? Tenho vodca genuína. Sibirskaya.
- Ah! A minha vodca da Rússia! - O rosto de Burjev iluminou-se. - Teríamos muito prazer.
Rathenow foi buscar a vodca, três copos e colocou a garrafa sobre a mesa. Depois, sentou-se e pôs a pistola sobre os joelhos com o dedo no gatilho. Os russos olharam para ele, admirados.
- Porquê a pistola? - Sarantov abanou a cabeça. O senhor não é um membro das tríades...
- Mas vocês pertencem à mafia russa.
- Que palavra tão feia! - Burjev serviu vodca a Sarantov e a Rathenow, como se fosse ele o anfitrião. Somos homens de negócios e temos um negócio a propor-lhe.
- O que é que a vossa organização pode propôr-me? Estou estupefacto.
- Não faça teatro. - Burjev sorriu e levantou o copo. Nasdrovne!
Bebeu a vodca de um só gole e Sarantov fez o mesmo. Rathenow bebeu apenas um pequeno trago. Os russos ficaram muito bem-dispostos. Burjev voltou a encher o copo.
- Há muito que não bebia Sibirskaya. Só vodca normal. Obrigado. - Reclinou-se novamente no sofá e voltou a olhar para a pistola.
- Só a largarei quando souber o motivo da vossa visita.
- Não foi para o matar. Não. Ao contrário! Para viver! - Burjev, que parecia ser o porta-voz, olhou para Sarantov. Este fez um sinal com a cabeça. - Comecemos.
- Boa ideia! - exclamou Rathenow. Estava muito tranquilo, o coração a bater a ritmo normal e o pulso também.
”É espantoso”, pensou. ”Nos momentos de grande perigo, as pessoas tornam-se heróis. Espantoso?”
- Nós sabemos que o senhor colabora com as tríades... Rathenow puxou a pistola para si.
- Estão enganados! Fui obrigado a colaborar com eles.
- Como assim...? Faz a colecta das taxas de protecção aos chineses. É sandália de erva... um nome divertido. Temos estado a observá-lo... há seis meses. Conhece a organização, o chefe da organização, os seus segredos. Sabe muito e ama uma chinesa... - Agora era Sarantov quem falava. Burjev anuía com a cabeça ocasionalmente. A chinesa tem de se ir embora daqui a algumas semanas.
- Como sabem? - Rathenow olhava admirado para Sarantov.
- Temos boas informações. O nosso segredo. Vamos fazer-lhe uma proposta. Agora tu, Gregor.
Burjev inclinou-se um pouco para a frente, deu mais um gole na vodca e estalou a língua.
- Proposta número um: Tu és um escravo das tríades. Não és criminoso, mas sim um académico famoso. Vê-se que és rico... Dizes-nos onde podemos encontrar os membros das tríades. Dizes-nos os nomes dos assassinos chineses. Nós arranjamos passaporte para a amiga chinesa. Tu e ela desaparecem. A proposta é boa?
Rathenow sentiu um formigueiro sob a pele da cabeça.
- Que tipo de passaporte? - perguntou, mostrando-se muito desinteressado.
- O que quiseres. Conseguimos arranjar tudo... todos os países. Com boa fotografia e bom carimbo.
- Devo então entregar as tríades às vossas facas?
- Facas, não. - Sarantov acenou como que revoltado. - Apenas informações. Depois, ficas livre para partir com a chinesa e nós protegemos-te. Em segurança. Onde quiseres.
- Por exemplo, na Suíça?
- Suíça? Muito fácil. - Burjev serviu-se de mais vodca. Tão cedo não teria à mão Sibirskaya. - Isso quer dizer que nos contarás tudo? - gritou Burjev. - Eu sabia que lidaríamos com um homem inteligente, que gosta de bons argumentos.
- Alto! - Rathenow apontou a pistola. Os russos levantaram as sobrancelhas. - Não é assim tão simples. Tenho ainda de pôr algumas coisas em ordem que são importantes para mim. Tenho de alugar um alojamento, tratar dos bilhetes de avião, apagar todos os meus vestígios, fechar as contas bancárias... Uma pessoa não pode pura e simplesmente partir, como se fosse tomar uma cerveja a uma esplanada. Afinal de contas, nunca mais voltarei a Munique. Terei de regularizar a administração desta casa e abrir uma conta para a mulher a dias.
- Queres então tratar de tudo? - Burjev e Sarantov tinham começado a tratá-lo amigavelmente por tu. Para um russo é mais fácil pensar em tu do que em senhor. - Para quê? Não voltas a Munique! Mesmo que as tríades de Munique desapareçam, continuam a existir tríades que te procurarão. Tu e a chinesa desaparecem. Para sempre.
”Ele tem razão”, pensou Rathenow. ”Não há retorno. Muitos irão sobreviver e não hesitarão em cumprir o juramento de sangue. Os russos nunca conseguirão expulsar as tríades, pois os chineses são muito poderosos e internacionais. A polícia também nunca conseguirá introduzir-se na estrutura desta sociedade. Agora já o reconheço. Temos de desaparecer sem deixar rasto, diluirmo-nos no ar. Que destino! Que futuro! A Liyun e eu ficaremos realmente sozinhos neste mundo.”
- Quando?
Burjev percebeu imediatamente a pergunta.
- Está tudo pronto. Só precisamos de uma fotografia da chinesa. Já temos os bilhetes de avião e a casa. Em Adelboden. Pensámos em tudo. Trouxemos outras opções: França... Espanha... Portugal... Suécia... em todo o lado há guarida para amigos. Portanto, Adelboden. - Burjev levantou-se e bebeu mais uma Sibirskaya. - Voltaremos dentro de três dias. Nessa altura, estará tudo claro.
Rathenow conduziu os russos à porta. Apertaram as mãos. No entanto, antes de saírem o pequeno Sarantov ainda tinha algo a dizer.
- Nós somos pessoas honradas. Se nos enganas... então... - Com a mão direita, fez o sinal de corte de pescoço. - Fui claro? A pistola não serve para nada. Boa noite.
Rathenow fechou a porta.
Liyun iria obter um passaporte válido. Era preciso ter a certeza de que a falsificação seria perfeita. Os bilhetes de avião para Zurique estavam prontos e já tinham uma casa alugada em Adelboden, perto de Berna. Ali realmente ninguém procuraria. Conhecia Adelboden. Tinha lá estado há cerca de dez anos a fazer esqui. Uma zona termal muito bonita, com reputação internacional, e uma igreja muito antiga, que merecia ser visitada, onde também se podia assistir a concertos. No entanto, só poderia ser uma estada intermédia. Adelboden era demasiado perto para alguém desaparecer e até poderia estar sob as garras das tríades de Zurique. Era preciso escolher um país que ficasse muito longe de Munique e das outras cidades-dragão, como Amesterdão, Roterdão, Londres, Manchester ou Paris, Nova Iorque e São Francisco, Sydney ou Rio de Janeiro, Lisboa ou Chicago. Onde poderia estar em segurança? Em que lugar da terra não existiam tríades? Min Ju dizia: ”Estamos em toda a parte.” Também no Dubai ou nas Baamas? Em Barbados ou no México? Em Taiti ou Madagáscar?
Onde haveria um pedacinho de terra onde ele e Liyun pudessem viver sem medo?
”Meu Deus! Onde se pode estar em segurança neste mundo?”
E poderia ele confiar nos russos?
À noite, Rathenow esteve a trabalhar no plano de informações que seria trocado pelo passaporte de Liyun e outros documentos. Reuniu as indicações mais importantes. Quando os russos decidissem utilizá-las, começaria na República Federal da Alemanha uma das guerras mais sangrentas entre gangs rivais. Rathenow referiu os nomes de Min Ju e Ninglin, o restaurante chinês Mandarim Negro e mais alguns membros que conhecera. Fez uma lista dos restaurantes que pagavam taxa de protecção às tríades e onde ele trabalhara e referiu também o nome secreto e conhecido por poucos do grande daih-loh de Amesterdão, a central europeia da irmandade das tríades. Na cidade-dragão de Amesterdão convergiam todas as linhas do continente.
Rathenow fez três fotocópias de toda a documentação e trancou-as no cofre, onde também estavam os seus diários. ”Porventura, tudo correrá bem”, pensou. ”Não caias em nenhum truque dos russos! Primeiro, os papéis e depois o material. E, a partir de Adelboden, procuraremos um local onde ninguém nos encontre.”
No dia seguinte, Liyun regressou a Munique. Trazia consigo duas malas de viagem que Rathenow colocou num carrinho de bagagem e depois meteu no carro. Liyun seguia-o, silenciosa e abstracta.
- Foi assim tão mau? - perguntou, quando se sentaram no carro. Liyun fez um sinal com a cabeça e olhou para a praça da estação com as habituais complicações de trânsito.
- Foi horrível - disse ela alguns instantes depois, engolindo em seco várias vezes. - A senhora Frantzen chorou e o senhor Frantzen ralhou comigo. Chamou-te tarado. Um louco que perdeu a noção da realidade. - Cruzou as mãos e só nesse momento Rathenow percebeu que ela estava a tremer. - Daqui a algumas semanas, voltará tudo ao normal, bi xia. Tenho de regressar à China... Ninguém me quer.
- Isso já não é importante, pequena niang niang, Pôs-lhe o braço à volta dos ombros e puxou-a para si. - Tenho um passaporte para ti...
- Tens? - Virou-se no assento e atirou-se ao pescoço dele. Nos seus olhos tristes voltaram a brilhar a alegria e a esperança. - Conseguiste prolongar o meu visto? Mas como? Tenho o passaporte comigo.
- É outro passaporte, Liyun. Um falso...
- Isso... isso não pode ser.
- Um passaporte alemão para ti. Agora és alemã.
- Impossível. Toda a gente vê que sou chinesa!
- Tudo tem uma lógica. - Rathenow colocou o seu BMW em andamento e dirigiu-se a Griinwald. Durante a viagem contou-lhe tudo sobre a visita dos russos e a proposta que lhe tinham feito. No meio da narrativa, Liyun gritou algumas vezes: ”Não pode ser! É impossível!” Depois daquele pequeno momento inicial de alegria, foi atingida por um medo novo.
- De uns gangsters para outros! - observou, quando Rathenow terminou a história. - Será que vamos estar toda a vida dependentes de criminosos?
- Liyun, eu preciso de fugir às garras das tríades!
- E ficas nas garras dos russos. Qual é a diferença?
- Os russos só querem informações... depois deixam-nos em paz.
- E tu acreditas? És realmente um palerma, como diz o doutor Frantzen.
- Obrigada! - Rathenow reagiu com muito azedume. - Fiz tudo isto por ti, Liyun! Nunca teria chegado a esta situação se não te amasse e tivesse medo de te perder.
- Eu sei. - Ela baixou a cabeça e escondeu o rosto sob os seus cabelos negros. - Trouxe-te azar. Manda-me para a China...
- Que disparate é esse? Sem ti, a minha vida não tem sentido!
- A minha também não... mas quem está a pôr isso em questão? Não quero que desistas de tudo por minha causa!
- Liyun! - Travou com tanta brusquidão que o carro derrapou e só parou na faixa de bicicletas. - Vendo tudo, deixo a Alemanha e vou contigo para Kunming.
- Novamente nas mãos das tríades? Então também podes ficar em Munique. - Agarrara-se ao painel de instrumentos e firmara os pés no chão. - Queres matar-nos?
- Liyun! Só temos este caminho! Tenho de confiar nos russos para me libertar das tríades. Arranjaram-nos uma casa em Adelboden, perto de Berna. Antes que as tríades suíças nos descubram a partir da cidade-dragão de Lucerna, já teremos desaparecido há muito da Suíça. Sem deixar rasto. Para sempre.
- Mas os russos conhecem o nosso esconderijo.
- Nem eles. Adelboden é apenas uma paragem intermédia... e depois desaparecemos em silêncio.
- E de que vamos viver?
- Vou liquidar a minha conta bancária e trocar tudo em dólares. Deverá chegar para alguns anos.
- E depois? Quando tiveres cem anos?
- Não chegarei aos cem.
- Mas eu quero que chegues aos cem anos. Não poderás publicar mais trabalhos, pois deixarás de existir. Também não poderás trabalhar na nossa universidade.
- Também pensei nisso - afirmou Rathenow, voltando a pôr o carro em marcha. - Enviarei o Min Ju e o Ninglin à polícia de Munique antes de os russos entrarem em acção. A polícia tem de fazer alguma coisa.
- És um palerma, bi xia! O que estás a pensar é impossível.
- Vamos esperar. Delineei tudo na minha cabeça ontem à noite. É o único caminho para a nossa liberdade.
À noite, Liyun esteve novamente nos braços de Rathenow e gozou o calor da sua pele, mas não dormiu. Continuavam a utilizar o quarto de hóspedes. Franziska ainda não mandara buscar as roupas. Estaria à espera que a aventura chinesa acabasse em breve? Liyun nunca mais voltara a entrar no quarto de Rathenow.
- Cheira mal! - dissera, teimosa. - O ar está empestado!
”Para onde poderemos fugir?”, interrogara-se durante a noite. ”Onde poderemos viver juntos? Onde poderei ser sua mulher? Onde poderei ter um filho dele? Gostaria de ter um filho dele... assim, estará sempre junto a mim mesmo quando for para a eternidade. Continuará a viver no filho e no filho do filho... é a eternidade da vida. Bi xia... nós nunca morremos! Mas preciso de um sítio onde o nosso filho possa sobreviver...”
Quando despertou, já era dia. Rathenow encontrava-se na cozinha a fazer ovos, pondo toda a louça para o pequeno-almoço num grande tabuleiro, a fim de o levar depois para o jardim de Inverno.
E fez uma sopa para Liyun. Uma sopa de massa com xiang gu, os cogumelos chineses.
Nessa tarde, Gregor Antonovitch Burjev bateu à porta de Rathenow. Desta vez vinha sozinho, como se fosse um bom amigo, e abraçou Rathenow à russa. Vinha buscar a fotografia para o passaporte de Liyun. O documento já estava pronto e encontrava-se na central, de localização desconhecida, da mafia russa em Munique. O seu chefe alemão, Leonid Ivanovitch Streletkin - o quartel-general era em Moscovo - estava muito contente com Burjev.
- Se o material for bom - afirmara -, manteremos a nossa promessa. Se nos enganar, queridos camaradas... uma Kalachnikov é mais rápida do que as pernas dele. Temos de verificar muito bem todas as informações.
Burjev agarrou na fotografia. Durante alguns segundos, viu a própria Liyun enquanto esta atravessava o vestíbulo. Olhou para ela e guardou a fotografia.
- Uma linda rapariga - comentou. - Parabéns. Volto amanhã com o passaporte. Tens todas as informações?
- Até ao pormenor, mas só as forneço quando tiver o passaporte. Um passaporte irrepreensível!
- O passaporte é tão verdadeiro como o meu cu! Burjev sorriu, divertido. - Serve de prova?
- Vou esperar para ver. Não o teu cu; o passaporte.
- Brincalhão. - Burjev voltou a abraçar Rathenow. Uma pessoa sem cu... não vale nada... uma pessoa sem passaporte, não vale mesmo nada... Até amanhã!
Rathenow ficou a vê-lo entrar no VW Golf e desaparecer pelo portão a toda a velocidade. O dia seguinte seria decisivo para a sua vida e para a vida de Liyun.
O que deveria levar? O que seria importante para uma fuga para o nada? Fatos, roupa interior, camisas, sapatos, meias... tudo aquilo se poderia comprar no estrangeiro. Objectos valiosos como os seus ícones, a colecção de moedas, as gravuras originais de Chagall, Picasso e Dali? A sua colecção de budas? Os tapetes e tapeçarias de parede insubstituíveis?
”Podes levar trinta quilos”, pensou. ”Uma mala grande para cada um. Tudo o resto fica para trás; não há tempo para vender nada e faltam os compradores. É preciso procurá-los, mas quem é que os quer procurar? O doutor Freiburg: as tríades conseguiriam extrair-lhe a minha morada. Um comerciante de arte? Também o apanhariam e vigiariam a conta bancária em que fosse feito o pagamento. Nunca receberia o dinheiro. E o preço a pagar pela nossa liberdade! As nossas vidas devem depender de um Chagall? Tudo o que possuo tem de ficar para trás. O doutor Hans Rathenow já não existe.”
Ele e Liyun fizeram uma lista do que iriam levar: as notas de trabalho, os mapas de temas, os relatórios de pesquisas, alguns livros importantes, um dicionário de bolso, fotocópias dos diários e as últimas cartas que ele ainda queria escrever.
E tinha de levar a sua velha máquina de escrever, a sua boa e antiga Olympia Monica, na qual escrevera todos os trabalhos científicos dos últimos vinte anos e ainda os seus livros.
- Sem ela não serei gente! - exclamou, quando Liyun alegou que existiam máquinas de escrever em todo o mundo.
- Não me separo dela. É a coisa mais fiel que possuí até agora, niang niang. Nunca poderás compreender. Não tens alma de escritora.
Rathenow também queria levar o equipamento fotográfico que o acompanhara em todas as viagens. No Amazonas ou junto dos aborígenes australianos, no Alasca ou na Terra do Fogo, fora sempre o seu terceiro olho e, por vezes, vira muito mais do que a memória conseguira reter. Quando todos os objectos já estavam espalhados sobre a cama e Rathenow fora buscar duas grandes malas ao sótão, Liyun disse:
- Bi xia, esqueceste-te de uma coisa muito importante: uma folha de papel de arroz.
- Que papel de arroz?
Estava à procura de um significado nas palavras de Liyun. Papel de arroz? escreveu-te um desejo de felicidade num pedaço de papel de arroz. Sorte, vida longa, riqueza, a misericórdia divina... Escreveu-a com um pincel, só para ti...
- Sim, agora já me lembro. É uma obra de arte de caligrafia.
- Ainda a tens?
- Claro. Está junto dos meus gráficos.
- Leva-a contigo... - A sua voz ficou com um tom sério. - São os desejos de sorte de um santo. Podemos precisar deles...
E Rathenow levou mais qualquer coisa com ele que tirou da moldura e enrolou: o batique da rapariga Bai a dançar com as três pombas, que Liyun lhe oferecera. Para ele, aquele batique era mais valioso do que um quadro. Fora a declaração de amor secreta e silenciosa de Liyun.
Depois, fizeram as malas, sentaram-se de mão dada na beira da cama e ficaram a olhar para o que os rodeava.
- Foi isto que sobrou do grande Rathenow - afirmou Liyun com a voz trémula. - Duas malas...
- É o suficiente. Tenho-te a ti, niang niang.
- Toda uma vida que se pode transportar em duas malas, e a culpa é toda minha...
- Não. O amor é todo nosso! A vida tornou-se mais sensata: precisamos apenas um do outro. Estamos libertos de todas as futilidades e vivemos só um para o outro. Já não há obrigações, prazos, pressões, necessidade de reconhecimento ou demonstração de status. Tudo isto acabou. Sempre o detestei. Agora só tu e eu existimos e assim o mundo está perfeito para nós. - Deu um pontapé numa mala, mas esta estava tão pesada que nem se mexeu. Agora vou escrever as cartas de despedida, Liyun. Quando se foge da vida, escreve-se sempre uma carta.
Esteve a escrever cartas até muito tarde.
Para a editora que publicava os seus trabalhos e relatos de viagem. Dava-lhes instruções para entregarem às finanças cinquenta e cinco por cento dos seus honorários e ainda sete por cento de imposto sobre transacções. Encarregava o seu contabilista do desempenho de todas as outras tarefas.
A todas as editoras de onde recebia jornais ou assinaturas de jornais ou revistas, para cancelar as assinaturas.
Ao Dr. Freiburg, terminando com as seguintes palavras: ”Assim, despeço-me de ti e da vida que levei até agora. Foste um amigo bom e fiel, muitas vezes um apoio e por vezes irritante, mas sempre uma pessoa em cujo coração e compreensão podia confiar. Fomos como irmãos, vivemos um com o outro durante um quarto de século e existiram situações que eu não consigo descrever. És e continuarás um porco, mas fica assim, mesmo que não esteja aqui para te ralhar. Despede-te, por mim, de todos os nossos conhecidos e diz-lhes que me podem lamber o rabo. Tu não, é claro. Para ti, tinha de ser algo mais grave. Bem hajas, não me procures, pois não me encontrarás. Um pontapé amigável no traseiro... Teu Hans.”
A última carta era endereçada à polícia de Munique. Um sobrescrito normal, sem remetente, papel barato e apenas algumas linhas:
”Ao comissariado para o crime organizado.
Daqui a quatro dias telefonar-vos-ei, exactamente às dez horas da manhã. Por favor, estejam junto do telefone a essa hora. Tenho algo para vos contar.”
Rathenow releu todas as cartas antes de as dar a Liyun, que as leu lenta e atentamente.
- O que queres da polícia alemã?
- Espera. Deixa-nos chegar a Adelboden.
- Queres fazer jogo duplo? Russos contra as tríades e a polícia contra todos?
- És uma rapariga muito inteligente, niang niang. É assim que se faz um bom seguro de vida.
Ela fechou os sobrescritos. Rathenow tirou-lhos das mãos, dizendo:
- E agora vamos jantar muito bem na Alemanha. Vamos ao Gourmet do meu amigo Otto Koch.
Mas Liyun ficou calada, sentada à mesa, e comeu muito pouco.
Durante a viagem para Griinwald continuou calada, proferindo apenas algumas palavras.
- Estás com medo? - perguntou ele, uma vez.
- Sim. Sabes que não estaremos seguros em Adelboden... mas dizes que lá ninguém nos encontra!
- Em poucos dias sairemos de Adelboden. Seja lá para onde for...
- Seja lá para onde for... é um bom nome para um lugar onde podemos viver.
Sabia que Liyun tinha razão, mas continuava a ser o primeiro passo para a liberdade, o primeiro passo para uma vida nova.
Burjev e Sarantov apareceram de manhã cedo, voltaram a abraçar Rathenow, entraram para o salão como se estivessem em casa e colocaram o passaporte de Liyun sobre a mesa. À primeira vista, era um verdadeiro passaporte alemão, já um pouco usado, com o aspecto de um passaporte já antigo e dele constava o nome: Wang Liyun, nascida a 3 de Junho de 1966 em Bremen. Olhos negros, altura 1,62 m. Características especiais: nenhumas. Emitido em Bremen a 1 de Maio de 1989. Válido até 1999. Assinatura, carimbo... tudo correcto.
- Está bem assim? - perguntou Burjev. - Bom trabalho.
- Aqui estão os bilhetes de avião e a morada em Adelboden. - Burjev fez abanar os bilhetes no ar. - Onde está a documentação? Mantivemos a nossa palavra como homens honrados...
- Um momento. - Rathenow foi ao escritório buscar os documentos ao cofre e colocou-os sobre a mesa à frente de Burjev. Os russos olharam rapidamente um para o outro. Rathenow reagiu com a mesma rapidez. Puxou os papéis para si e estendeu rapidamente a mão para a frente. - Primeiro, o passaporte, bilhetes e morada.
- Primeiro controlo. - Burjev projectou o lábio inferior para a frente. - Controlo é sempre bom.
- Deviam confiar em mim, Burjev. Em última análise, trata-se da minha vida.
- A lógica está do lado dele. Está aqui tudo o que é necessário...
Entregou o passaporte, bilhetes de avião e a morada em Adelboden, e Rathenow deu-lhe os papéis. Só um folhear rápido bastou para satisfazer Burjev. Era precisamente aquilo que o camarada Natchalnik esperara. Dobrou os papéis e meteu-os no bolso interior do casaco.
- Muito agradecido! - disse. - Estamos muito contentes. O voo é amanhã às dezoito horas. Bom voo.
- Muito obrigado, mas aviso-os. O búnquer de Min Ju que fica por baixo do Mandarim Negro não é muito fácil de penetrar. Já o escrevi... existem portas blindadas e o quartel-general tem três saídas subterrâneas que terminam nas caves de casas com um ar perfeitamente inofensivo. A proprietária das casas é uma firma chamada Heimbau und Garten... e pertence às tríades. Nessas casas, residem atiradores de elite.
Sarantov fez um sorriso de quase compaixão.
- Nós não somos estúpidos! Faremos planos como numa guerra. Temos membros que são antigos oficiais. Podemos esperar. Temos tempo. Não temos pressa. Assalto como na guerra. De surpresa. Estaremos lá quando ninguém esperar. Também ganhámos aos Alemães...
Burjev e Sarantov deixaram a casa muito contentes. Abraçaram Rathenow e beijaram-no três vezes nas faces... direita, esquerda, direita...
- És um bom camarada.
Rathenow atirou com a porta atrás deles e subiu as escadas a correr para se juntar a Liyun. Esta estava deitada na cama e fixava o tecto. Deitou-se a seu lado e abanou os documentos no ar.
- O teu passaporte! - exclamou Rathenow, atirando-o para cima do peito dela. - És alemã, nascida em Bremen e aqui estão os bilhetes para Zurique. A morada em Adelboden é Aussenschwandt, casa número setenta e nove! Temos tudo, tudo! Amanhã à tarde abandonamos a Alemanha... para sempre! - Inclinou-se sobre Liyun e beijou-a. - E mais uma boa notícia: os russos não querem fazer o assalto para já. Pretendem desenvolver um plano de ataque. Até lá, a polícia já deve ter feito alguma coisa.
- E depois vingar-se-ão com a nossa morte...
- Como? Já não estaremos em Adelboden! Tornámo-nos espíritos. Niang niang, conseguimos...
Ao princípio da tarde, Rathenow pediu para falar com o director do seu banco e manifestou-lhe os seus desejos. Claro que ouviu a mesma queixa.
- Quer liquidar a sua conta e depósitos a prazo? Senhor Rathenow, isso é... E um levantamento em dinheiro?
- Vou fazer uma grande transacção - respondeu Rathenow. - Por favor, tenha o dinheiro disponível até amanhã às onze horas. Virei buscá-lo a essa hora. Deixarei cinco mil marcos para contas que ainda não foram pagas. A minha editora enviar-lhe-á os honorários devidos.
Nas três visitas que fez, deixou três directores bancários de joelhos. Tinha no bolso os últimos levantamentos bancários, o que totalizava aproximadamente trezentos e oitenta mil dólares americanos. Não era uma grande fortuna, mas chegava perfeitamente para um início de vida. Bem aplicado e com juros, ainda duraria mais tempo. Até lá, teria tempo para procurar uma nova actividade. Liyun não iria passar fome.
À noite, escreveu, à mão, o seu testamento e transformou a Senhora Wang Liyun na sua herdeira universal. Esse facto era também uma segurança para Liyun.
Na manhã seguinte, Rathenow foi registar o testamento ao notário, antes de limpar as contas bancárias. Voltou para casa com uma grande pasta de couro cheia de dólares e deixou Liyun olhar lá para dentro.
- Que loucura! - afirmou ela, deixando escorregar entre os dedos algumas notas. - Uma loucura total! E pretendes passar com isto pela polícia do aeroporto? Vão pensar que fazes contrabando de drogas!
- Poderei esclarecer isso. Tenho comigo os documentos de encerramento de conta.
- Vai haver problemas. Não é melhor irmos no teu BMW até à Suíça? As probabilidades de te mandarem parar na fronteira são muito pequenas.
- Tenho realmente uma mulher muito esperta! - Rathenow deu uma palmada na testa. - Sou um idiota! Porque não pensei nisso? Avião para quê? De carro é muito menos problemático e chegaremos rapidamente a Adelboden. Às vezes parece que temos uma tábua na cabeça. Bateu palmas. - Niang niang, estás pronta? Partimos daqui a uma hora.
- Estou pronta, bi xia. - Saltaram da cama. - E o meu visto para a Suíça?
- Tens um passaporte alemão e és alemã. Não precisas de visto.
A bagagem estava no carro, os dólares enfiados na roda sobressalente, Liyun vestira calças de ganga e um pulôver fino e Rathenow um fato desportivo.
Rathenow deu mais uma volta pelas salas do seu caixão de luxo e despediu-se. A sua vida passava qual um filme à frente dos seus olhos e admitiu que, até à morte da esposa, tinha tido uma vida bela, ideal e bem-sucedida.
Despediu-se dos seus amados tapetes, dos quadros e esculturas, da secretária, do impecável bar, com uma bateria de garrafas de vodca, e da biblioteca.
Voltou a ligar o seu leitor de discos compactos, colocando no volume máximo. O concerto nº 1, para piano, de Tchaikovski, tocado por Richter e dirigido por Karajan. Quantas vezes este concerto conseguira tranquilizá-lo interiormente e renovar-lhe as forças quando se sentia infeliz!
Rathenow desligou o leitor de CDs e abandonou de cabeça baixa a casa que a tia lhe deixara em testamento. Liyun estava sentada no carro à sua espera.
- Como estás? - perguntou ela em voz baixa, puxando-lhe a mão para junto do peito.
- Destroçado...
- Eu também. E sou culpada de tudo.
- Não tornes a dizer isso, ouviste? Nunca mais! Sentou-se ao volante e pôs em marcha o motor do BMW,
- Olha para a frente... e não para trás! - Esticou o braço. - O futuro está ali e não atrás de nós.
- Vamos! - Ela acenou com a cabeça e pôs-lhe um braço em cima dos ombros. - Vamos, bi xia.
Acelerou, saiu para a estrada e não olhou à sua volta. Também não olhou para o espelho retrovisor... O passo que acabava de dar não tinha retorno.
A alfândega suíça só olhou para os passaportes e mandou-os seguir.
Ao fim da tarde, chegaram a Thun e desceram as curvas sinuosas em direcção a Adelboden. Até descobriram rapidamente a casa em Aussenschwandt. O número 79 era uma antiga casa rural com vigas grossas e varandas trabalhadas. Quando Rathenow tocou à campainha, esta foi aberta por uma camponesa.
- Cumprimentos! - saudou com uma verdadeira alegria. - O senhor é o doutor Rathenow. Já me tinham informado pelo telefone. Entre. Preparei-lhe um prato de carne de porco.
- Que bom... estou cheio de fome.
Dois quartos, mobilados em estilo rural, mas completos. Uma enorme cama pintada. Liyun atirou-se para cima das almofadas.
- Também é muito bonito! - disse, esticando os braços para Rathenow. - Não é preciso que seja sempre luxuoso e grande! Esteja onde estiver, um bi xia está sempre num palácio...
A casa estava mobilada com grande simplicidade, mas tinha telefone. Rathenow levantou o auscultador e ouviu o sinal de ligação. Era uma maneira de comunicar com o mundo exterior.
Às dez horas em ponto, telefonou para a polícia de Munique. A telefonista transferiu imediatamente a chamada. Pareciam ter recebido uma ordem. Ouviu-se uma voz forte.
- Décimo Terceiro Comissariado. Fala Probst.
- Recebeu a minha carta?
- Ah, é você que está a falar? - PP começou a gravar a conversa. Tinha ligado também o altifalante. Junto dele, encontravam-se três agentes.
- Mas eu escrevi-lhe.
- Recebemos muitas vezes cartas estranhas. - PP pigarreou. - Presumo que seja o homem que já há algum tempo tentou dar-nos uma pista.
- Gostaria de falar com o chefe.
- É com ele que está a falar. Aqui é o departamento para o crime organizado. Deixe-me adivinhar: tem alguma coisa sobre as tríades no saco?
Rathenow riu-se.
- Gosto da sua maneira de falar, senhor Probst. Não é daqueles académicos irritantes.
- Não gosta de académicos?
- Meu Deus, eu próprio pertenço à classe, mas isso não tem a menor importância. Adivinhou correctamente, senhor Probst. Estou em posição de lhe fornecer todos os nomes importantes das tríades de Munique, a localização do quartel-general, os pagamentos de protecção, o nome dos bordéis sob o seu controlo, as estratégias do contrabando de drogas e, sobretudo, os homicídios que nos últimos tempos fizeram aparecer aqueles cadáveres completamente mutilados.
PP olhou desconcertado para os seus colaboradores. Os agentes bateram com o dedo na testa. ”É um louco que está ao telefone. Isso não pode ser verdade.” Peter Probst fez um sinal com a mão.
- O senhor é chinês?
- Não. Sou alemão.
- Ah! - PP fez um sinal com a cabeça aos agentes. ”Têm razão. É um louco.”
- O que significa ”Ah!” - perguntou Rathenow, indignado. - Não acredita em mim? O templo dourado das tríades jaz sob um bairro habitacional de Munique.
Os agentes acenaram novamente com a cabeça a PP. ”Completamente louco! Mas ouçamos mais. Vai ser um número muito divertido.”
- Interessante - continuou PP, sentando-se na esquina da secretária. - Muito interessante! E quando começam os serviços religiosos?
- Estou a oferecer-lhe a possibilidade de aniquilar as tríades e o senhor está a brincar comigo! Mais uma informação: dentro de pouco tempo haverá, em Munique, uma guerra entre as tríades e a mafia russa.
Aquela foi a frase que convenceu PP de que não estava a falar com um pobre idiota. Mesmo os agentes que, até então, tinham estado com um sorriso na boca ficaram sérios. Ninguém sabia da possível guerra de bandos, pois todas as informações eram absolutamente confidenciais. Apenas a polícia estava informada e esperava pelo desfecho. Agora, encontrava-se ali ao telefone um estranho, um alemão, que tinha conhecimento dos preparativos dos russos. Estaria infiltrado? Uma descoberta ocasional? De qualquer modo, não era bluff.
- Como se chama? - perguntou PP por hábito, mas reconhecendo o disparate que a pergunta constituía.
- Mais tarde...
- Claro.
- E estou a telefonar do estrangeiro. Não fará sentido tentar detectar a chamada.
- É um especialista?
- Assim-assim. Mais um amador.
- O que tem a oferecer?
- Dir-lhe-ei quando me visitar. Antecipadamente, posso dizer-lhe que possuo documentação conclusiva que lhe permitirá eliminar toda a organização ou a irmandade, como é chamada. Eliminar completamente as tríades é impossível. Virá uma nova família de Amesterdão, mas irá ter sossego em Munique durante bastante tempo.
PP olhava estarrecido para os seus agentes. ”Está muito bem informado. Amesterdão, a central europeia.” Quem mais poderia saber isso além de um elemento interno?
- Onde está neste momento?
- Na Suíça. Podemos encontrar-nos aqui. Por favor, venha só. Quero falar a sós consigo sem agentes a vigiar. Creio que a minha oferta é tão generosa que deve confiar em mim. Asseguro-lhe que não é nenhuma armadilha! Sou um cidadão idóneo e cientista.
- Como tomou conhecimento de todos estes pormenores?
- Mais tarde...
- Por que razão nos quer entregar toda essa documentação?
- Também o direi mais tarde. Todas as perguntas serão feitas e respondidas frente a frente. Gostaria de lhe propor que venha a Thun, na Suíça. Poderemos encontrar-nos no Hotel See.
- De acordo. - PP tomou nota. - Como poderei contactá-lo para acertarmos a data do encontro?
- Pensa que sou um idiota? Senhor Probst, preciso de uma data o mais próxima possível. Estou com muita pressa. Os russos estão decerto com as armas prontas! É preciso que ataque antes deles. Se deixarem que esta guerra rebente, a polícia alemã voltará a chegar tarde. É muito urgente, senhor Probst.
PP puxou o calendário de mesa para si e olhou para a folha daquela semana.
- Poderei estar aí depois de amanhã! É demasiado tarde?
- A responsabilidade é sua! Então, até depois de amanhã em Thun. Hotel See. Como o reconhecerei?
- Levarei o jornal da tarde na mão. Só mais uma pergunta! - Peter Probst gostava de clareza. - O senhor é o informador anónimo que há algum tempo...
- Acho que já respondi a essa pergunta: sim. Rathenow desligou. PP deixou cair o auscultador no descanso.
- É agora, minha gente. Deve ser o homem dos cabelos brancos que testemunhou o homicídio em Harlaching. Não! Não quero objecções! - Levantou os braços defensivamente. - E vou mesmo sozinho à Suíça! - Parou, interrompendo-se a si próprio. - Maldição! Esqueci-me de uma coisa! Ele referiu a hora em que estaria no hotel? Acho que não.
Rebobinaram a fita do gravador e ouviram a conversa novamente. PP abanou a cabeça.
- Não disse a hora! Não temos número de telefone e não lhe poderei perguntar.
- Devemos chegar a Thun o mais cedo possível - disse o lugar-tenente de PP.
- Eu... Nós, não.
- Ficamos preocupados consigo... Tais acções não devem ser empreendidas solitariamente.
PP ficou bastante comovido.
- Rapazes - argumentou -, prometo-vos não abandonar o Hotel See e só falar com ele na sala de jantar ou noutro local onde haja mais gente. Nunca sozinho! Não irá abater-me à frente de toda a gente. Isso seria muito mais fácil para as tríades aqui em Munique e não precisaria de ir até à Suíça. Bornemann, procura saber qual é o primeiro voo Munique-Zurique. Faz a reserva imediatamente. Em Zurique alugarei um carro e irei até Thun. Segundo sei, é uma cidade muito bonita. - Afastou-se da esquina da secretária e voltou a pôr a gravata. - Agora vou informar o chefe e fazê-lo aprovar todas as despesas do voo para a Suíça.
Em Adelboden, Rathenow estava pensativo. Revia, em pensamento, todas as situações possíveis. Ficou claro que um encontro com o chefe do Décimo Terceiro Comissariado era um jogo arriscado. Não precisava de companhia, vinha realmente sozinho, mas nos bastidores, misturados com os clientes do hotel, estariam três ou quatro agentes da polícia suíça, cuja ajuda fora pedida por Munique. ”Por outro lado”, disse a si próprio, ”a conversa com este Peter Probst é a única hipótese de fugir para sempre à vingança das tríades.”
Liyun estava à janela do quarto e olhava para o vale de Adelboden e para o cimo daquelas estranhas montanhas. As malas ainda estavam no chão por desfazer.
- É bonito - observou ela, quando Rathenow entrou.
- Tão sossegado, tão pacífico.
- Devias ver como é no Inverno com as corridas de esqui.
- Então, tudo isto fica cheio de neve?
- Completamente coberto de neve.
- Será que um dia verei neve sem ser em quadros e postais? Fazer uma bola de neve e atirar-ta, dançar na neve... deve ser divinal.
- Receio não poder proporcionar-te essa felicidade. No sítio onde iremos viver não haverá neve. Por exemplo, nas Caraíbas. Nunca nevou lá. - Sentou-se na beira da larga cama e apontou para as malas. - Ainda não desfizeste as malas?
- Não! É necessário? Não vamos partir em breve?
- Ficaremos aqui pelo menos dez dias. Depende da rapidez com que as autoridades trabalharem.
- Já falaste com a polícia de Munique?
- Sim. O chefe do Décimo Terceiro Comissariado vem a Thun. Depois de amanhã.
- Tenho medo, bi xia... - disse Liyun em voz baixa. Vão prender-te.
- Se assim for, não lhes direi uma palavra.
- Eles obrigam-te!
- Não podem. Não há tortura na Alemanha. Se me prenderem em Thun, queimas imediatamente todos os papéis sobre as tríades. Assim, voltarão a ficar face ao muro impenetrável e aos sorrisos silenciosos. O senhor Probst sabe perfeitamente isso! O único caminho que tem é cooperar.
- Mesmo assim, tenho medo. - Sentou-se ao lado dele e pôs-lhe a cabeça no ombro. - Para ele, tu também és um membro das tríades e os criminosos não têm palavra de honra.
PP voou para Zurique no primeiro avião e dirigiu-se a Thun num carro alugado. Como planeado. Todavia, não levara em consideração o conselho urgente do comandante-chefe da polícia: não pedira ajuda à polícia suíça. Sentiu uma tensão interior que se manifestava na forma de uma pontada no peito quando avistou o lago de Thun sob o brilhante sol da manhã. Nele viam-se pequenos pontos brancos: veleiros. Ainda era muito cedo para a grande invasão dos desportistas aquáticos... e decerto ainda mais cedo para o encontro com o informador secreto.
Peter Probst estacionou à frente do hotel, atravessou um átrio decorado com muito gosto e entrou no comprido terraço envidraçado que dava para o lago, onde alguns clientes tomavam o pequeno-almoço. Probst tinha na mão o jornal da tarde e olhava à sua volta. Um empregado de mesa dirigiu-se a ele e perguntou-lhe o que desejava tomar.
- Para já, o pequeno-almoço. Depois veremos.
Foi conduzido a uma mesa que ficava à janela, sentou-se e tornou a olhar à sua volta.
”É claro que é demasiado cedo! Que disparate não ter perguntado as horas. Se depois do pequeno-almoço não tiver aparecido ninguém”, pensou PP, ”vou passear para o lago e venho de vez em quando ao hotel.”
Desdobrou o jornal, mas não começou, como a maioria dos leitores, pela política ou pelo desporto. Começou pela página cultural. Estava interessado na crítica à ópera Carmen, que estreara há dois dias em Munique.
Mal tinha lido as primeiras linhas quando um cavalheiro, que estava sentado numa poltrona do átrio, se levantou e se dirigiu a ele.
- Senhor Probst? - perguntou Rathenow.
- Exacto. - PP levantou-se e apertou-lhe a mão. Um aperto de mão firme e uma confiança súbita e clara. - Não me enganou. O senhor é o informador anónimo. Apenas pintou o cabelo.
- Nota-se?
- Sim, quando se olha bem para si. A raiz já está branca.
- Sentemo-nos.
Sentaram-se e o empregado trouxe do bar um copo de vodca com laranja meio cheio.
- Como soube que eu vinha tão cedo? - perguntou Peter Probst.
- A lógica inegável: para um empreendimento destes o senhor só poderia chegar muito cedo. Sabia que iria apanhar o primeiro avião.
- Falemos, sem grandes rodeios, da sua proposta. PP bebeu um gole de café. - Já está sentado no átrio há muito tempo?
- Sim. Queria ver se vinha realmente sozinho.
- Poderiam estar agentes entre os clientes.
- Não. São realmente clientes do hotel.
- Está a morar aqui no hotel?
- Claro que não. - Rathenow riu-se. - Pareço-lhe assim tão estúpido? Vivo algures nas redondezas. É importante?
- Não. - PP abriu um pãozinho, barrou-o com manteiga e meteu-lhe presunto. Agradou a Rathenow a maneira descontraída como Probst abordava um problema tão grave e isso tornou-o ainda mais simpático. - O que tem para oferecer?
- Todos os membros das tríades de Munique.
- É uma grande palavra e para mim pessoalmente uma palavra-chave.
- É compreensível. A polícia anda a tactear às cegas.
- Por favor, não falemos disso. Excita a minha vesícula. - Probst deu uma dentada na sua sanduíche. - Então o senhor afirma estar em poder de todas as indicações sobre as tríades: nome do chefe, os comandos assassinos, o quartel-general, os planos... Foi o que me disse ao telefone.
- Sim, mas apenas com uma diferença: eu não afirmo. Tenho essas informações.
- Como pode comprovar isso? Como é que um não-chinês conseguiu tomar conhecimento de factos até agora obscuros?
- Apenas uma pequena prova, senhor Probst: pense no morto do Parque Olympia. O ano passado. Ficou por esclarecer.
- Estava de tal maneira mutilado que nunca conseguimos identificá-lo. Só conseguimos determinar que era chinês. No entanto, percebi de imediato que era uma vítima das tríades. Como sempre, investigámos aprofundadamente, mas chocámos sempre com muros de silêncio.
- O morto chamava-se Zhong Yushan, proprietário de um restaurante chinês de Munique.
PP colocou a sanduíche no prato. Perdera o apetite.
- Que restaurante?
-- Mais tarde saberá. Também conheço o assassino.
- Senhor... Como devo tratá-lo?
- Trate-me apenas por Hans.
- Senhor Hans, está a cometer um delito. Tem a obrigação...
- Meu Deus, não! Não me venha com leis. Eu sei tudo isso. Só queria dar-lhe uma pequena prova de que estou bem informado.
- Isso não foi uma prova! Um nome! Pode-me dar o nome de muitos chineses e nada bater certo.
- Tudo o que eu lhe disser poderá ser comprovado mais tarde. Melhor: vai poder aniquilar as tríades de Munique com uma rusga em grande escala.
- Muito bem! Onde está o material? E por que razão está a entregar-mo? Decerto não é por ser um cidadão que respeita a lei...
- Sim e não. - Rathenow olhou para a tranquilidade do lago, voltando depois a encarar Peter Probst. - Eu gostaria de lhe contar a história de um homem... até parece um conto de fadas... que por amor a uma mulher foi obrigado a desistir da vida que levava até então. Note bem: foi obrigado! Não havia outra saída senão a morte dele e da mulher... mas ele queria viver. Viver com ela. Essa é a situação de partida e também a fase final. Vou começar...
E então Rathenow revelou o seu inacreditável destino... a sua viagem à China até à fuga com a ajuda da mafia russa, dos trinta e seis juramentos de sangue até aos homicídios e torturas perpetrados por Ninglin, das colectas das taxas de protecção aos preparativos para uma guerra sem tréguas contra os russos. Não deixou nada por dizer... Apenas não mencionou um único nome. Também deu indicações sobre o Mandarim Negro.
Quando terminou a história, acrescentou:
- Consegue compreender tudo isto, senhor Probst?
PP ficou calado durante bastante tempo a olhar para o lago de Thun. O que ouvira na última meia hora era tão inimaginável, tão estranho, que se tornava muito difícil acreditar. Um alemão como membro das tríades por amor. A experiência, a colecta de taxas de protecção feita por alemães, para desviar a atenção da polícia. Os métodos do submundo chinês. O templo dourado subterrâneo... PP estava convencido de que o homem estava a dizer a verdade.
- Compreender? - repetiu. - Como ser humano, talvez. Acentuo: talvez. Como agente da polícia criminal, penso de outra maneira.
- Teria deixado morrer a rapariga e depois permitido que lhe cortassem a cabeça? Teria mesmo acabado com a vida da rapariga? Isso não seria igualmente um crime? Durante o meu papel de membro das tríades, nunca toquei em ninguém.
- Mas assistiu a homicídios e não prestou qualquer declaração. Recolheu taxas de protecção, cometendo assim mais ilegalidades. Devo enumerar, sem levantar qualquer questão de integridade, a sua lista de crimes? Primeiro, desvio e falsificação de passaportes. Segundo, membro de uma organização criminosa. Terceiro, cúmplice de crimes de homicídio e graves danos corporais. Quarto, encobrimento de actos criminosos. Quinto, culpa em ligação com danos corporais ligeiros, pois a colecta de taxas de protecção não constitui apenas chantagem, mas também inclui danos corporais. E sexto, fuga às penalizações com fuga para o estrangeiro. São bem uns quinze anos de prisão. Fui claro?
- Fui obrigado a tudo isso, senhor Probst!
- Isso não constitui argumento. A decisão era sempre sua.
- Então, devia ter deixado matar a rapariga?
- Foi uma ameaça. Se o fariam ou não...
- Devia então ter deixado as coisas chegarem até aí? Eu vi as fotografias! - gritou Rathenow.
- Nós próprios já vimos inúmeras fotografias de vítimas das tríades. Horrorosas. No seu caso... são apenas hipóteses.
Rathenow levantou-se abruptamente.
- Então, não está interessado na documentação e nos nomes?
- Claro que sim. Sente-se, senhor Hans. - Peter Probst fixou Rathenow como se quisesse dizer: ”Não gostaria de estar no teu lugar. E foram os russos que te trouxeram aqui para a Suíça! Meu rapaz, meu rapaz...” - Poderia tornar as coisas mais fáceis para mim - continuou. - Poderia pedir ajuda à polícia suíça e mandá-lo prender. Os Suíços são muito prestáveis.
- Também tomei precauções nesse sentido. - Rathenow voltou a sentar-se. - Antes de vir ter consigo, telefonei à minha mulher... dêmos esse nome à rapariga... e disse-lhe que, se não estivesse de volta daí a três horas, queimasse todo o material. Assim, passará a não ter nada na mão, nem uma confissão, pois só estamos os dois, e o senhor não tem testemunhas da conversa.
- O senhor possui uma inteligência criminal notável. Então, como devemos continuar?
- Gostaria de lhe vender a documentação.
- Isso é uma loucura!
- Está a pensar em dinheiro? Não, senhor Probst. Não preciso de dinheiro. Proponho uma troca: tudo sobre as tríades de Munique com nomes, moradas e referência a lugares contra uma nova identidade para mim e para a minha mulher e um lugar seguro para sobreviver. Isto significa um novo passaporte para ambos com nomes que as suas autoridades irão escolher. - Levou a mão ao bolso do seu casaco e pôs duas fotografias à frente de PP. - Aqui estão as fotografias.
Peter Probst levantou as fotografias da mesa e colocou-as lado a lado.
- O homem de cabelos brancos mencionado pelas testemunhas. Ei-lo! E a rapariga chinesa... encantadora. Mas não é um pouco jovem para si? Quase uma criança...
- Tem vinte e seis anos.
- O quê? Não parece.
PP atirou as fotografias para cima da mesa e colocou as mãos sobre elas como se quisesse apanhá-las.
- Em que nomes estão os vossos passaportes actuais?
- Não é importante para uma nova identidade. Os novos nomes devem ser abalizados.
- Eu poderia identificá-lo a partir desta fotografia, senhor... Hans!
- E o que conseguiria com isso? Apenas o meu verdadeiro nome sem a documentação sobre as tríades.
- Sabe que isso é chantagem?
- Não! É uma necessidade. Uma protecção necessária para poder sobreviver.
- A decisão sobre esta proposta única cabe ao departamento criminal do Estado, ao Ministério do Interior. Neste assunto, estou completamente ultrapassado e não tenho qualquer influência sobre a decisão. O que está a propor é caso único na história criminal alemã. Presumo que o assunto irá parar a Bona aos ministérios do Interior e Negócios Estrangeiros.
- E quanto tempo poderá levar?
- Céus, quem sabe! É um complicado caminho de instâncias...
- Mas nós não temos tempo, senhor Probst. Em primeiro lugar, os russos atacarão e começará a guerra de gangs; segundo, temos de abandonar a Suíça o mais depressa possível, pois as tríades avisarão a irmandade de Lucerna. Estão por todo o lado, disse o daih-loh de Munique.
- Cos diabos, então proteja-se a si e à sua... mulher desde que me dê a documentação ainda hoje.
- Só por troca. Novos passaportes contra as informações com as quais poderá aniquilar as tríades. Esse também é um processo único que o tornará famoso, senhor Probst. Nunca se conseguiu limpar uma cidade-dragão e prender uma família das tríades. Munique será o exemplo e o senhor tornar-se-á provavelmente chefe da polícia.
- Não dou valor a isso. - PP meteu as fotografias no bolso. - Vou propor essa troca disparatada, mas como poderei informá-lo?
- Eu telefono-lhe. Todos os dias. Quando o senhor me disser que está tudo bem, voltaremos a encontrar-nos aqui no hotel. Entendido?
- Muito bem. E se eu não conseguir convencer os outros senhores? Não arrisco qualquer previsão. A burocracia é uma maquinaria pesada, mas isso já toda a gente sabe.
- O senhor e os outros cavalheiros devem ter sempre isto em mente: resta pouco tempo. As tríades e os russos estão preparados para começar.
PP e Rathenow separaram-se como dois amigos.
A partir daí, os acontecimentos desenrolaram-se como se alguém tivesse soltado um pedregulho de um rochedo que, por sua vez, arrastava cada vez mais pedras, acabando por cair no vale.
Enquanto Rathenow telefonava todos os dias para o Décimo Terceiro Comissariado e ouvia sempre que ainda não havia decisões, corria na família Catorze K das tríades uma onda de raiva e acusações.
Começou com o facto de Hong Bai Juan Fa não ter aparecido a Min Ju com o dinheiro das taxas de protecção, que deveria ter recebido na segunda-feira, depois do bom negócio que os restaurantes faziam ao domingo. Min esperou mais um dia, mas depois, bastante irado, telefonou a Rathenow. Ninguém levantou o auscultador, apesar de já serem onze horas da noite.
Min Ju ficou muito inquieto. Primeiro, pensou que o seu melhor cho hai tivesse sido descoberto pela polícia, o que na realidade era impossível, pois não havia traidores. Mas Min Ju não pensou noutra coisa. Confiava completamente em Hong Bai Juan Fa, como se confia num irmão, e por isso suspendera a vigilância nos últimos tempos. Além disso, Hong Bai Juan Fa prestara o juramento de sangue e cortara a simbólica cabeça do galo branco. Min Ju tinha ainda muitas ideias para ele, promovê-lo a oficial de departamento e a chefe dos sandálias de erva do círculo bávaro. Já conseguira a autorização do gao Ião de Hong Kong e queria fazer-lhe uma surpresa no dia do seu aniversário. Devia, portanto, ter acontecido algo de invulgar.
Min Ju foi no seu Jaguar negro até Griinwald. Encontrou a mulher a dias que estava a limpar a parte de fora das janelas. Min cumprimentou-a amavelmente e apontou para a porta aberta.
- Pode-se falar com o senhor Rathenow? - perguntou.
- Não! - A mulher a dias mediu de alto a baixo o gordo chinês e abanou a cabeça. - O senhor doutor viajou.
- Viajou? - Min Ju começou a sentir um sinal de alarme. - E a convidada chinesa?
- A menina também viajou.
- Com ele?
- Presumo que sim. Foram-se ambos embora.
- Durante quanto tempo?
- Porque deseja saber? Bom, não podem demorar muito, porque não levaram quase roupa...
- Obrigado.
Min Ju voltou para o carro, sentou-se e pousou a cabeça no tabliê. O reconhecimento da verdade estava a destroçá-lo completamente, arrancando-lhe o coração; deixou-se ficar inerte durante alguns minutos. Depois de recuperar a razão, pôs o motor em marcha e voltou para a cidade.
”O Hong Bai Juan Fa fugiu”, pensou, sentindo um intenso frio interior. ”Traiu a família, quebrou os trinta e seis juramentos e transformou-se no inimigo mais procurado pelas tríades. Deu cabo de tudo e traiu-me. Ele, o meu aluno preferido, que eu trazia no coração e a quem ia proporcionar um belo futuro. Agora vai ser procurado, imediatamente, seja onde for que esteja escondido. Procurá-lo-emos, de continente em continente, até lhe pormos a cabeça entre as pernas. Que homem tão estúpido e infiel. Nunca se deveria ter esquecido que era europeu e não-chinês. Uma pessoa que não tem rosto...
Min Ju usou todas as suas ligações. No aeroporto de Munique contactou os membros da companhia aérea estatal chinesa CAAC para que lhe fornecessem a lista de passageiros dos voos dos últimos três dias. Isso não era permitido, mas entre camaradas de voo... que fazer? Foi um êxito total. Numa lista da Suiss-Air constava o nome Hans Rathenow. Wang Liyun não constava, mas havia muitos outros nomes chineses que pouco interessavam. Só que o Sr. Hans Rathenow não aparecera e o avião fora sem ele para Zurique.
Para Min foi a primeira indicação. A Suíça. Claro! A Suíça! Ali sentiam-se seguros e estavam perto da Alemanha.
Min telefonou ao seu amigo, o daih-loh da Suíça, em Lucerna. Por faxe, enviou-lhe as fotografias de Rathenow e Liyun e disse ao telefone:
- São traidores.
- Entendido, irmão. Nós tratamos dos dois.
As tríades suíças foram postas em alerta total. As fotografias de Rathenow e Liyun foram copiadas e distribuídas às centenas. Começara a grande caçada. A caça a um homem sem honra, como dissera Min. Não lhe restava muito tempo de vida. Os olhos das tríades estavam por todo o lado.
Como era seu dever, enviou a informação para Hong Kong por faxe ao grande gao Ião. Escreveu: ”A culpa é minha. Confesso-o. Enganei-me a respeito do Hong Bai Juan Fa ou, melhor dizendo, ele enganou-me. A grande experiência falhou. Com isso aprendemos a nunca confiar num branco. Só um chinês pode ser verdadeiramente irmão...”
A resposta de Hong Kong surgiu dois dias mais tarde e também por faxe. Dizia o seguinte:
”Honorável irmão Min Ju. O Alto Conselho analisou com grande cuidado a tua confissão. Estamos muito tristes, mas para ti há uma grande alegria: seguirás os espíritos dos teus antepassados e renascerás como homem inteligente. A pureza do eterno limpar-te-á da sujidade da terra. Cumprimentamos-te, Min Ju.”
Por baixo do texto, uma obra-prima de caligrafia - até as sentenças de morte eram, segundo a tradição chinesa, pequenas obras de arte -, o pintor retratara uma bela orelha.
Para um membro das tríades era o símbolo da morte.
Quando o faxe entrou no escritório de Min, que ficava sob o Mandarim Negro, Ninglin estava sentado a seu lado, conseguindo ver o texto do gao Ião de Hong Kong. Não foi Min, mas sim Ninglin que colocou a folha em cima da mesa e olhou Min Ju com uma expressão muito dura. O olhar do carrasco.
- Enganei-me - disse Min Ju com a voz firme. - Já me enganei várias vezes. Fui demasiado benevolente com este mundo. Vamos, Ninglin...
Como sempre, usava o seu fato preto, como Ninglin. Era o uniforme dos membros da Catorze K de Munique, apelidados pelos outros chineses como os mandarins negros e profundamente respeitados. Os passos de Min eram firmes e seguros, não mostrando que era o seu último passeio.
Ficou parado no templo em frente ao Buda dourado, colocou as mãos cruzadas sobre o peito e fez uma vénia profunda. Depois, acendeu sete grandes paus aromáticos e meteu-os no vaso dourado.
Esteve durante um minuto em oração. Quando se virou, Ninglin encontrava-se atrás dele, agarrando a espada do imperador com ambas as mãos.
- Sê certeiro, Ninglin! - ordenou Min Ju, que já não era exactamente desta terra. - Foste um bom irmão. Faz o teu dever.
Min Ju voltou a ajoelhar-se perante o Buda, inclinou a cabeça e ofereceu o pescoço grosso e brilhante de suor. Fechou os olhos e apoiou-se com ambas as mãos no tapete.
Ninglin levantou a espada, elevou-a ainda mais e fixou com olhos semicerrados o pescoço de Min; o tremeluzir das chamas das lamparinas reluzia no aço puro e no punho de pedras preciosas. Ninglin susteve a respiração e baixou a espada com uma força enorme, separando a cabeça de Min do corpo. Um rio de sangue correu em direcção ao altar. O corpo de Min caiu para a frente. O fato preto ficou rapidamente encharcado de sangue.
Com o rosto imóvel, Ninglin aproximou-se de Min Ju, agarrou-lhe na cabeça pelos cabelos e colocou-a entre os pés do santo dos santos.
Levando à sua frente a espada ensanguentada, Ninglin abandonou o templo. Os seus passos eram firmes e determinados, como se marchasse em parada. Só quando chegou ao escritório de Min é que a inflexibilidade o deixou. Atirou a espada para um canto, escreveu um pequeno texto e enviou-o por faxe para Hong Kong:
O grande Min Ju já está junto dos seus antepassados. Os deuses perdoar-lhe-ão. Amei-o como a um pai, mas cumpri o meu juramento. Aisin Ninglin, o solitário...
Durante a noite, a casa de Rathenow em Griinwald foi consumida pelas chamas.
Sete corporações de bombeiros lutaram contra aquele inferno, mas sem sucesso. Cinco recipientes de gasolina tinham sido despejados sobre toda a casa e quando, na manhã seguinte, os bombeiros abandonaram o local, só existiam as enegrecidas paredes exteriores.
Um bombeiro olhou à volta antes da partida e fez um sinal com a cabeça aos seus camaradas.
O incêndio de Griinwald, sem dúvida obra das tríades, fora aparentemente o último golpe. As autoridades começaram a trabalhar mais depressa do que era habitual. Peter Probst falou com o comandante da polícia de Munique: fogo posto. Tinham sido encontrados vestígios de gasolina. O autor deveria ser conhecido. Impossível a acusação, pois tratava-se de um crime perpetrado por um gang. Depois, PP disse ao comandante:
- Ainda quer mais provas? O senhor Hans... ou seja, o doutor Hans Rathenow, era o proprietário da vivenda. A história que me contou confere com exactidão. Senhor comandante, se continuarmos a hesitar, perderemos a guerra contra as tríades. Todavia, para podermos atacar, precisamos da documentação, senão, continuamos a fazer de palhaços...
- Vou de imediato falar com os ministérios - declarou o comandante da polícia. - Mas lembre-se de que tal coisa nunca aconteceu na Alemanha.
Catorze dias depois, Rathenow ouviu finalmente em Adelboden a voz de Peter Probst afirmar:
- Tudo bem, doutor Rathenow. Podemos fazer a troca.
- Conseguiu saber o meu nome? Parabéns!
- Não foi difícil. Quando uma vivenda em Griinwald arde, numa vivenda que pertence a um tal doutor Hans Rathenow, e os autores são as tríades e na Suíça vive um homem que se chama Hans que foi um membro das tríades...
- Incendiaram a minha casa? Que pena! Eu tinha alguns quadros do Chagall e do Picasso e um retrato da minha mãe.
- As coisas materiais podem-se esquecer... O importante é ter salvo a sua vida. Estarei em Thun amanhã por volta do meio-dia. Este caso foi levado às mais altas instâncias. Um processo único que está no mais absoluto sigilo. Só um punhado de agentes sabe do assunto.
- E como me chamo agora?
- Curiosidade?
- Estou a rebentar.
PP riu-se e abriu os passaportes.
- Puseram-lhe um nome muito bonito. Mais bonito do que Rathenow. A partir de agora chama-se doutor Holger Fresius... E a jovem senhora chinesa Yang Chunli. Não parece um nome de uma flor exótica? Até amanhã, doutor Fresius...
Rathenow desligou, entrou de rompante na pequena sala, abriu os braços e gritou:
- Já temos passaportes. Já os temos! Amanhã começa a nossa nova vida... Minha pequena Chunli...
- Quem é a Chunli? - perguntou Liyun, irritada.
- A Yang Chunli chamou-se há muito, muito tempo Wang Liyun...
- O meu novo nome? E como te chamas tu?
- Eu sou o doutor Holger Fresius...
- Que horror! - Liyun juntou as mãos. - Nenhum chinês consegue dizer isso. Para mim continuarás a ser o meu bi xia...
- E tu a minha niang niang.
Atirou-se para os seus braços e pendurou-se no pescoço dele.
- Para sempre? - perguntou.
- Para sempre.
Beijaram-se, mas depois Liyun fez a pergunta decisiva:
- E onde vamos esconder-nos?
- O senhor Probst dir-me-á isso amanhã.
- Bem longe da Alemanha... Não quero ouvir falar mais na Alemanha nem vê-la mais. Ninguém entende que o amor é mais poderoso do que as leis.
- Nesse aspecto, a Alemanha nunca mudará.
- É por isso mesmo, bi xia... longe da Alemanha...
No dia seguinte, deu-se a troca, que PP apelidara de histórica, porque nunca acontecera uma coisa assim.
Sentaram-se novamente no terraço do Hotel See, num dia um pouco fresco e com chuviscos, não se avistando velas no lago e estando as praias vazias.
- Um verdadeiro espírito de despedida ou o céu estará a chorar por causa deste negócio sem precedentes?
- Os passaportes, por favor. - Rathenow esticou o braço com a palma da mão virada para cima.
- A documentação, por favor.
Rathenow colocou a grossa pasta sobre a mesa. As fotocópias dos diários também estavam incluídas. Peter Probst, por seu turno, colocou os passaportes à sua frente.
- Posso dar-lhes uma olhadela? - perguntou Probst.
- Continua desconfiado?
- Um agente alemão só reconhece as realidades, senhor doutor Fresius.
- Faça favor. - Rathenow empurrou a pasta, mas agarrou imediatamente nos passaportes. ”Sem truques, meu caro.”
Peter Probst tirou uma página à sorte e leu durante alguns segundos. Depois, deu uma palmada no tampo da mesa.
- Inacreditável! - A sua voz perdera o tom de investigador. - Se for verdade...
- Tem a minha palavra de honra e tornar-se-á o herói de Munique. Continuo a dizer que não perca tempo...
- Regresso no próximo voo. A grande investida já está programada. Só faltava o material.
Levantaram-se e apertaram as mãos.
- Saudação de escuteiro! - disse Rathenow. Tinha a voz a tremer.
- Agradecimento de escuteiro! - PP reprimiu o impulso de abraçar Rathenow.
- E... não tem uma morada para nós?
- Também temos. Pedimos auxílio às autoridades espanholas que irão alugar-vos uma pequena moradia. Num sítio chamado Agulo, perto da Playa de Agulo. Junto a Gomera. Ilhas Canárias. É garantido que ali não haverá tríades! - Apontou para o passaporte que estava na mão de Rathenow. - A folha está dentro do passaporte. A casa está livre a partir deste momento. Disseram-me que pertence a um vinicultor.
- Para mim, é o proprietário ideal! - Rathenow riu-se e voltou a apertar a mão a PP. - Agradeço-lhe de todo o coração.
Dali dirigiram-se para os seus destinos. PP com o carro de aluguer para a auto-estrada em direcção a Zurique e Rathenow por Frutingen para a estrada para Adelboden.
Nunca mais se viram...
Nessa mesma noite, quando PP já se encontrava em Munique deitado na cama, Ninglin regressava a casa depois de uma curta hora de amor num dos bordéis controlados pelas tríades. Após a execução de Min, a família estava à espera da chegada do novo daih-loh, que deveria encarregar-se da chefia do círculo de Munique. Já estava anunciado, um irmão da tríade de Amesterdão que fora indigitado pelo gao Ião de Hong Kong. Chamava-se Shao Houli, tinha trinta anos, demasiado jovem para daih-loh, e constava que era perito em estrangulamentos com fios de seda. Ninglin estava ansioso.
Depois de ter trancado o carro e entrado no jardim do seu pequeno bangaló, um rapazinho apareceu à sua frente, usando calças e casaco azuis, como se usara no tempo de Mao. Ninglin ficou parado com um ar divertido.
- Meu gafanhoto! O que fazes a estas horas na rua? perguntou, bem-disposto. - Vai para casa! Que queres de mim? Por que motivo estás no meu jardim? És mendigo? Só quem trabalha tem direito ao dinheiro. De uma casca de noz nunca sai nada.
- Queria olhar para ti...
- Já me viste.
- Sim...
- E agora, corre para casa antes que os espíritos da noite te comam.
O rapaz manteve-se no mesmo sítio e abriu as pernas, como os cobóis nos filmes do velho Oeste.
- Sou Zhong Lihong, o filho de Zhong Yushan e sua mulher Su Kun.
- Isso é algo de especial?
- É. Mataste o meu pai.
Antes de o espantado Ninglin poder sacar da faca, o rapaz já empunhava um revólver na mão e disparou. A bala alojou-se na coxa direita de Ninglin e atirou-o contra um tronco de árvore.
- Estás maluco? - gritou. - Deita imediatamente o revólver fora! Eu não o matei, o teu pai Yushan...
- Su Kun, minha mãe, disse-mo. Foste buscá-lo, mataste-o e atiraste-o para o Parque Olympia! Ninguém conseguiu reconhecê-lo depois das tuas torturas.
O rapaz levantou friamente a arma, apontou e atingiu Ninglin na outra perna. Ninglin urrou e caiu de joelhos. Sentiu subitamente um medo louco, o mesmo medo do qual se rira quando enfrentava as suas vítimas.
- Eu não quis matá-lo! - berrou. - Sempre gostei do teu pai... mas ordenaram-me que o fizesse. Tinha de obedecer. Tinha de o matar, senão, seria desobediência. Lihong, juro-te...
- Yushan, meu pai, morreu às tuas mãos. O seu filho matará o assassino com as próprias mãos.
O rapaz disse-o impiedosa e tranquilamente, como um adulto que está a falar de coisas boas. Ninglin tentou tirar a faca do bolso. Também era mestre a atirar facas. O rapaz reconheceu o movimento e disparou pela terceira vez. Desta vez atingiu-o no braço.
O assassino voltou a gritar. Pareciam os gritos das suas vítimas quando ele lhes abria o peito com um pequeno machado e lhes cortava um braço.
O rapaz avançou três passos e fixou os olhos raiados de sangue de Ninglin.
- Éramos tão felizes em Munique! Todos gostavam da nossa Sala de Xangai, mas tu mataste o meu pai por causa de alguns marcos, cujo pagamento recusou. Torturaste-o e mataste-o. Ouve-me: eu também sei rir!
O rapaz soltou dois gritos que mais pareciam soluços reprimidos. Depois, contornou Ninglin, levantou o revólver e atingiu-o na nuca. Ninglin caiu para a frente, manteve-se vivo durante dois segundos e depois sobreveio o estertor da morte.
Zhong Lihong olhou para o revólver. Disparara quatro tiros e ainda estavam duas balas na câmara. Olhou para o corpo morto, levantou novamente a arma e disparou as últimas balas nas costas de Ninglin. Atirou o revólver contra a árvore que estava ao lado e abandonou o jardim sem ruído. Subiu para a bicicleta, que se encontrava encostada a um canto da casa, e pedalou pela noite clara. Sua mãe, Su Kun, esperava-o e apoiou-se nele a chorar.
- Lihong, Lihong, onde estiveste? - gritou ela. Pensei que também te tinham tirado de mim! Onde estiveste? Não deves andar por aí de noite. Lihong, meu querido...
Apertou-o contra si e continuou a chorar. Lihong deixou-a chorar durante uns momentos, mas depois libertou-se dos braços da mãe, deu dois passos atrás e endireitou-se.
- Vinguei o meu pai, mamã. O Ninglin está morto. Agora já podemos ir para a América para casa da tia Hua...
Numa sexta-feira de manhã, um tal Dr. Fresius e a sua acompanhante, uma linda chinesa que atraía os olhares de muitos homens, subiram para bordo de um avião da Ibéria em direcção a Madrid.
Em Madrid, saíram do aeroporto, tomaram um táxi e partiram.
Tinham deixado o passado para trás.
O Dr. Rathenow e Wang Liyun tinham deixado de existir.
Rathenow só tinha que fazer um último telefonema. Não podia deixar de o fazer. Ligou para o Dr. Freiburg.
- Hans! - foi o grito do Dr. Freiburg. - Meu Deus, onde estás? Diz-me onde estás?
- Noutro mundo.
- Na América?
- Não...
- A tua casa ardeu!
- Eu sei. Não é importante.
- Suplico-te que me digas onde estás.
- Meu velho! Voltarás a ter notícias minhas. Só não sei quando. Pode demorar bastante tempo. Tudo de bom para ti!
Desligou e olhou para Liyun, que estava a seu lado.
- Foi o último cumprimento ao passado - disse. A partir deste momento, só tu e eu existimos num mundo que unicamente nos pertence e onde ninguém nos procurará. Pode-se chamar a isto felicidade?
- Sim. - Liyun fez-lhe uma festa na mão. - É realmente felicidade, meu bi xia.
A Casa dei Vino ficava já fora da aldeia de Agulo, num pequeno planalto, e o acesso fazia-se por uma estrada de cascalho.
A varanda coberta tinha uma vista esplêndida sobre a aldeia com as suas casas, praia e o Atlântico azul e prata que brilhava ao sol. No porto viam-se barcos de pesca e de vez em quando um paquete branco que vinha de Tenerife ou Lãs Palmas, as ilhas vizinhas. A casa era rodeada por um jardim com flores e cactos. Junto às escadas que iam da casa à rua cresciam bananeiras e laranjeiras. Havia um grande reservatório de água redondo, que irrigava regularmente a propriedade com água fresca. A casa estava pintada de amarelo, cor de ocre, com um telhado de telha vermelha e janelas verdes. Uma curiosa mistura de cores em contraste com os rochedos vulcânicos.
Os habitantes daquela pequena jóia eram conhecidos por todos em Agulo. O senor dos cabelos prateados e barba branca estava muitas vezes nas bodegas com a sua maravilhosa esposa chinesa, a comer pão de milho e a beber, com grande conhecimento, os melhores vinhos. Frequentavam também as festas da aldeia e dançavam juntamente com os habitantes de Gomera. Uma vez, a chinesa ”lançara fogo” a toda a Gomera, provocando uma grande excitação e espanto, quando num Carnaval, que era festejado em Gomera com desfiles e danças de ruas, surgira na praça principal vestida de espanhola e dançara um fandango com o senor, uma dança andaluza em que a mulher toca castanholas, sendo acompanhados à guitarra por três trabalhadores dos bananais que viviam na fazenda que ficava junto à casa. O presidente do município estava tão pasmado que colocou em torno da cintura esbelta da senora um lenço bordado. Uma chinesa espanhola. Onde já se vira isso?
Os amados estrangeiros de Agulo já viviam há dois anos na Casa dei Vino. Ele tinha feito algumas transformações na casa e há mais de um ano que estava a negociar a sua compra com o proprietário, Senor António Gomez Trajillo, mas o comerciante de vinhos, que dirigia agora uma firma em San Sebastián de Ia Gomera, declinava todas as ofertas do Dr. Fresius incluindo um pagamento em dólares.
- Nasci nesta casa - contava. - A minha mãe viveu nela durante quarenta anos, o meu pai morreu nela e trouxe ao mundo seis filhos. Como se pode vender uma casa assim? Creia-me, senor. Se a vendesse, só seria a si. Todavia, enquanto eu viver, não o farei.
Como é que o Senor Fresius ganhava o seu dinheiro, era discutido há muito nas bodegas. Muitos diziam que ele era pura e simplesmente rico e outros que tinha fábricas na Alemanha. Finalmente, o presidente do município pôs fim às especulações.
- Na declaração de chegada diz que ele é etnólogo e que está a escrever um livro. Vive disso. Por vezes também pinta, mas mal.
- O que é que ele pinta? - O proprietário da bodega mostrou-se muito interessado. Alguns quadros de um estrangeiro nas paredes eram sempre um chamariz e podia-se sempre dizer aos clientes: ”Vejam. Aquele quadro é de um pintor muito conhecido. Há dois anos que vive em Agulo. Sente-se tão bem aqui que não quer deixar-nos. Este quadro foi pintado assim. Uma obra-prima... Vejam!” Aquelas palavras espalhar-se-iam e atrairiam mais clientes.
- Pinta sobretudo flores, a nossa cidade, as praias e a vista do Mirador da Carbonera que fica entre a colina e o mar...
- Isso pode ser-me útil!
- Todos os quadros têm um defeito - disse o presidente ao proprietário da bodega. - Têm todos um ar de chinês!
A desilusão do proprietário ensombrou o seu desejo de compra, mas, como se tratava do Senor Fresius, perdoou-lhe até a adulteração da paisagem espanhola que, na realidade, era uma ofensa a toda a Gomera.
- O nosso Senor Fresius é um homem muito especial afirmou ele. - Nem todos podem ter a mesma visão da beleza da nossa ilha.
Mas era um erro.
Dois anos antes, quando Rathenow e Liyun haviam desembarcado no porto de San Sebastián de Ia Gomera, depois de esperarem dois dias em Los Christianos, em Tenerife, para obter lugar no barco, e descerem de táxi os montes de Enchereda por uma estrada muito sinuosa até à costa de Agulo, Liyun ficara silenciosa e admirara, reclinada no assento do carro, a paisagem romântica e selvagem da ilha. Rathenow não lhe dissera nada. Sabia no que ela estava a pensar, reparando que reprimia as lágrimas e mordia os lábios para não mostrar a sua excitação.
Depois tinham ficado parados em frente da casa do Senor Trajillo, do jardim, das bananeiras e laranjeiras e de toda a amplitude da varanda que rodeava a casa com as suas colunas brancas. Aos pés da escada, sobre um murete, um gato tigrado de branco e vermelho apanhava banhos de sol e apenas levantou a cabeça quando o táxi travou. O motorista virou-se para Rathenow e Liyun e esticou o braço.
- Da! - Além de guts Bier, ”boa cerveja”, era a única palavra alemã que conhecia. - A sua Casa dei Vino, senor
- disse depois em espanhol.
Liyun saiu do carro com alguma hesitação e encolheu-se quando sentiu o braço de Rathenow na sua cintura.
- Chegámos ao nosso destino - ouviu-o dizer. - Esta é a nossa casa...
Ela olhou à sua volta e abrangeu toda a paisagem com um longo olhar: as paredes amarelas, cor de ocre, o telhado vermelho, as portadas verdes nas janelas, a varanda, os canteiros de flores que circundavam a casa e a emolduravam como um quadro vibrante e cheio de sol, as escadas escavadas na pedra de um monte vulcânico, as palmeiras e os grandes fetos, os cactos e o gato tigrado. Sobretudo, um infindo céu azul e a seus pés as casas iluminadas da cidade e o mar, sobre o qual se destacava o risco escuro da costa de Tenerife.
- Agrada-te? - perguntou Rathenow também esmagado pela beleza daquele pedaço de terra. - Niang niang, é a nossa última estação...
- É como um sonho, bi xia. - Virou-se para ele e enterrou o rosto no seu peito. - Nunca, nunca mais quero sair daqui. Encontrámos o nosso pequeno mundo.
Tudo aquilo acontecera dois anos antes.
Passado esse tempo, o Senor Dr. Fresius e a Senora Yang Chunli já tinham aprendido espanhol, tendo Liyun aprendido melhor e mais depressa do que Rathenow. Mais uma vez era patente que os asiáticos eram verdadeiros génios linguísticos, conseguindo adaptar-se a cada língua. Rathenow tinha muita dificuldade em fazê-lo. Tal como na escola, aprendera alguma gramática e frases soltas, enquanto Liyun falava fluentemente e sem preocupações, como era típico nela. Nos primeiros tempos, quando o seu espanhol rompia com todas as regras linguísticas - na aldeia, na bodega, na mercearia e junto dos camponeses -, todos a entendiam, mas riam-se e comentavam uns com os outros: ”A senora é uma boa pessoa.”
Enquanto Liyun ia às compras, cozinhava e tratava do soberbo jardim, Rathenow voltou a trabalhar no seu primeiro romance. Até essa altura, apenas se dedicara a trabalhos científicos e relatos de viagens apreciados por todos. Mas um romance era outra coisa, e Rathenow sentiu grandes dificuldades. Estava sempre a rasgar as páginas que escrevera na véspera. Tal como afirmou, um dia, um conhecido escritor lido em todo o mundo: ”Escrever um livro, um romance, é o trabalho mais vampiresco que conheço.”
Todos os dias, Rathenow escrevia durante algumas horas. Depois, deitava-se na varanda a descansar, ajudava Liyun no jardim e entretinha-se aqui e ali até ela dizer: ”Deixa, bi xia... estás a estragar mais do que é preciso!” Ou então ia até Agulo, sentava-se sob um chapéu-de-sol de uma taberna do porto e, num bloco, desenhava pessoas, rostos e situações. Era a coisa mais recente: começara a pintar. Liyun aceitou silenciosamente aquela nova paixão. Só uma vez lhe perguntou, com um esboço na mão:
- O que é isto?
- Um velho pescador - respondera ele.
- Ah, sim. - Devolveu-lhe a folha. - Pensei que era uma gaivota morta.
Durante dois dias, Rathenow sentiu-se muito ofendido e pouco falou. Na terceira noite, já estava pronto para fazer as pazes.
Um ano mais tarde, Liyun teve um filho. Uma menina. Chamaram-lhe Ying Regina. Nascera em casa, o que agradara muito ao Senor Trajillo, colocando-se à disposição para ser o padrinho.
- É tradição! - exclamou, abraçando Rathenow. Quem mora nesta casa, também deve ter filhos nela! Entende agora, Senor Fresius, por que motivo não quero vender a casa?
Uma noite, Liyun e Rathenow estavam sentados no terraço a olhar para o mar vermelho e dourado à luz do céu do entardecer. Ying Regina já dormia há muito no berço construído para ela. Era uma bela menina, chorava pouco e dormia muito.
- Puxou a ti - dissera Rathenow uma vez.
- E a ti... o ”nariz comprido”. Que horror! - retorquira Liyun.
- Temos de conversar, Liyun - disse Rathenow naquele momento.
- Alguma coisa séria? A tua voz está tão diferente... Olhou para ele interrogativamente. - O que é? Alguma coisa má?
- Diz-nos respeito, niang niang...
- A nós? Então não pode ser nada de mau. Somos felizes.
- Começámos uma vida nova, temos uma casa e uma filha. Nunca te ocorreu que poderíamos casar-nos?
Ela calou-se e olhou para o pôr do Sol.
- Às vezes - respondeu, hesitante.
- Gostaria que nos casássemos. Sempre o desejei, mas nunca será possível.
Virou imediatamente a cabeça.
- Porquê? Já não me amas?
- Como podes fazer uma pergunta dessas, Liyun? Tomou-lhe as mãos e sentiu-a a tremer. - Só poderemos casar-nos sob o meu nome Rathenow... mas esse já não existe. Também já não existe nenhuma Wang Líyun, mas sim uma Yang Chunli. Tínhamos de nos casar como doutor Fresius e senhora Yang, mas não temos certidões de nascimento. Sem papéis ninguém nos casará. Somos um nada, Liyun... Não há nenhum Rathenow nem Wang Liyun. Não existimos a nível oficial.
- Nunca poderemos casar?
- Enquanto eu não puder voltar a ser Rathenow, não. Se isso alguma vez for possível...
- Então, somos fantasmas?
- Uma coisa assim...
- Até os fantasmas podem amar e permanecer juntos para a eternidade. Mostraremos isso a quem não quiser acreditar. Um papel com um carimbo? É assim tão importante?
Com esta conversa, o tema ficou resolvido para sempre entre eles. Ninguém falou mais no assunto. No seu pequeno mundo próprio, não precisavam de documentos oficiais e, além disso, quem lhos iria pedir? Em Agulo eram o Senhor e a Senhora Fresius e ninguém se esquecia que o presidente do município amarrara um lenço à cintura da senhora.
Ying Regina já tinha oito meses quando o presidente telefonou para a Casa dei Vino.
- Veio um homem no navio - disse ele. - Um alemão. Perguntou por si e vai a caminho de sua casa, senor. Achei-me no dever de lho comunicar.
- Foi muito simpático da sua parte.
Rathenow desligou e correu para o jardim. Liyun estava sentada a brincar com Ying Regina à sombra de uma esplendorosa mimosa. A pequenina guinchava de prazer. Tornara-se uma criança extraordinariamente bela. Muito ternurenta como a mãe e com os mesmos olhos amendoados, mas o nariz e o queixo eram de Rathenow e as maçãs do rosto não eram tão salientes como as de Liyun.
- Temos visitas, niang niang! - gritou Rathenow. Da Alemanha!
- Meu Deus! - Liyun apertou a filha contra o peito. Mas ninguém sabe onde estamos! Quem é? De onde vem? Tenho medo.
- Eu também não percebo, mas seremos esclarecidos muito em breve. Liyun, fica com a Ying no jardim! Não deixes que te vejam. Esconde-te!
- E se ele vem para te matar?
- Terei a minha pistola na mão e falarei através da porta.
Rathenow correu para dentro de casa e trancou a porta. Liyun desapareceu com Ying por entre as bananeiras.
Cinco minutos depois, um táxi parou junto à porta. Um homem de meia-idade, usando um fato de Verão cinzento-claro, subiu as escadas. Trazia um chapéu de palha branco e parecia um turista.
Rathenow tirou a segurança da pistola quando o homem bateu à porta.
- Estou aqui! - gritou Rathenow através da espessa porta de pinho. - Que quer?
- Senhor Rathenow...
- Aqui não mora nenhum Rathenow! Sou o doutor Fresius!
- Eu sei. Perdoe-me por ter usado o seu antigo nome. Entre nós o senhor é conhecido pelo seu nome antigo.
- Quem é entre nós?
- Venho de Munique. Sou o inspector Willy Hensch do Décimo Terceiro Comissariado.
Rathenow ficou a olhar para a porta. Polícia alemã.
Décimo Terceiro Comissariado. Nunca mais esperara ouvir falar deles.
E agora? Um oficial voara de Munique para Tenerife, atravessando até Gomera de barco. Algo de estranho se devia ter passado. Por que razão Peter Probst lhe enviava um dos seus homens? Dois anos depois?
- Pode identificar-se? Dê dois passos atrás e mostre-me as suas credenciais! - gritou Rathenow através da porta.
Willy Hensch recuou e retirou a identificação do bolso. Rathenow viu-o pela janela junto à porta. Não era truque. Era mesmo um agente da polícia. Abriu a porta, mas continuou de pistola na mão. Queria ver claramente o homem que dava pelo nome de Hensch.
Hensch entrou em casa e apontou para a arma com um sorriso.
- Não é precisa. Sou a sério. Venho trazer um cumprimento do meu chefe, o comissário Probst.
- Obrigado. E é por isso que veio de propósito a Gomera?
- Claro que não.
Sentaram-se na varanda e Willy Hensch foi direito ao assunto sem rodeios.
- Quando há dois anos lhe alugámos esta casa, senhor... como lhe devo chamar?
- Fresius. Agora é o meu nome.
- Pois bem, senhor Fresius. Há dois anos estávamos convencidos de que esta ilha era o local de fuga ideal, sobretudo com a nova identidade. Dois dias após o seu desaparecimento de Adelboden, houve uma rusga sem precedentes em Munique. Mais de quinhentos agentes, sete delegados da Procuradoria da República e uma unidade com atiradores especiais passaram a pente fino os seus planos de Munique e Alta Baviera. As suas informações estavam certas.
- O senhor Probst tinha dúvidas?
- Conseguimos prender quase todos os membros das tríades e apenas alguns escaparam.
- Agora é que começa o perigo.
- Aqueles que conseguiram fugir não são significativos.
A Catorze K de Munique está praticamente aniquilada e, já que estávamos com a mão na massa, também fomos atrás da mafia russa. Até onde foi possível, pois ainda existem algumas lacunas, mas tratou-se de um grande sucesso, louvado por todos os meios de comunicação. - Hensch tamborilou com os dedos no apoio para o braço do banco branco onde estavam sentados. - Contudo, há exactamente duas semanas, descobrimos que alguns membros das tríades de Munique tinham surgido na Grande Canária. Nos centros turísticos da Grande Canária, existe apenas um punhado de restaurantes chineses. Desaparecer na clandestinidade não é problema, e um proprietário chinês confessou à polícia espanhola que as tríades das Canárias procuravam intensivamente um tal doutor Holger Fresius.
- Eles... eles têm o meu novo nome? Meu Deus! Como? - O pânico começou a invadir Rathenow. - Ninguém sabe o nome.
- Apenas um pequeno círculo na polícia, no Departamento Criminal Federal e no Ministério do Interior. Deve haver uma fuga em qualquer lado. Estamos a partir do pressuposto de que a toupeira esteja na polícia ou no ministério, mas não temos indicações concretas. A única coisa certa é que existe uma toupeira.
- Como dizia o Min Ju: ”Estamos e temos amigos em todo o lado. O dinheiro é mais importante do que a moral.”
- É a coisa mais certa que ouvi! Tememos que se saiba rapidamente que o procurado doutor Fresius, aliás Rathenow, está escondido em Gomera. Quem souber o nome também sabe onde procurar.
- E isso significa? - perguntou Rathenow com aspereza.
- Exactamente o que está a pensar: É preciso abandonar Gomera.
- Quando?
- Imediatamente. Vou consigo no navio até Tenerife. Nestas circunstâncias, os comandos assassinos das tríades poderão chegar de Los Christianos numa questão de horas.
Temos de partir no barco que está lá em baixo - apontou para o porto onde se via um paquete branco - imediatamente. Depois vamos de avião até Tenerife e continuamos. Só em Madrid saberemos o destino final. - Hensch olhou suplicante para Rathenow. - Poderá estar pronto daqui a duas horas?
- Terei de estar. - Rathenow levantou-se do banco de jardim. - Por favor, espere um momento. Vá para dentro de casa. Será fácil encontrar o bar. Sirva-se.
Deixou Hensch sozinho e correu para o jardim. Liyun não se via em lado nenhum e também não ouvia Ying Regina.
- Liyun! - gritou ele, ficando sob o grande arbusto de mimosas. - Liyun! Onde estás?
Ela saiu do seu esconderijo, as bananeiras. Tinha a mão sobre a boca de Ying. A criança esperneava vigorosamente e gritou para dentro da mão de Liyun.
- Quem é o homem? - perguntou Liyun.
- Vem de Munique. Da polícia.
Os seus olhos mostraram subitamente cólera e resistência. Retirou a mão da boca de Ying e a pequenina barafustou à vontade.
- Não temos mais nada a ver com eles! - gritou ela, sobrepondo a sua voz aos gritos da criança. - Que quer ele daqui?
- Vem-nos buscar. - Rathenow respirou fundo. Não fazia sentido procurar palavras tranquilizadoras. Não podia usar um discurso bonito para revelar uma verdade dolorosa. - Temos de abandonar Gomera daqui a duas horas.
- Abandonar? - Liyun sentou a criança no chão. Esta gatinhou sobre a erva e calou-se. - Temos... temos de abandonar o nosso paraíso?
- Já não existem paraísos neste mundo! E para nós muito menos. Liyun, temos de emalar o essencial.
- O que aconteceu?
- As tríades descobriram os nossos novos nomes e andam à nossa procura nas ilhas espanholas. Descobrirem a nossa é apenas uma questão de horas. A polícia espera um comando assassino!
- Nunca virão a esta ilha. A polícia controlará tudo.
- Liyun, pensa nas palavras do Min Ju... ”Estamos em toda a parte. Não há lugar onde alguém possa esconder-se!” As tríades têm uma irmandade na Grande Canária. Não precisam de barco. Possuem certamente barcos próprios, iates rápidos, e poderão atracar em qualquer ponto isolado da ilha e chegar até nós. Para eles é um passeio. Se a polícia nos vigiasse e protegesse, já conheces os chineses. Têm tempo. Muito tempo. Um dia, a polícia deixará a vigilância, pois não pode ficar um ano ou mais à volta da nossa casa. Nessa altura, eles vingar-se-ão. Um membro das tríades nunca esquece! Liyun, temos de deixar a ilha ainda hoje.
Liyun tomou Ying nos braços e juntos correram para casa.
Willy Hensch servira-se de um uísque com muito gelo e água e já mostrava sinais de impaciência. Olhava para o relógio.
- Já só temos uma hora e meia. Temos de apanhar o barco. Posso ajudá-los a fazer as malas?
- Obrigado. É rápido. Já temos treino.
Naquela frase estava toda a amargura de uma vida perdida.
Liyun apertou Ying Regina contra si. A criança olhava para o desconhecido com os olhos muito abertos.
- Têm uma filha muito bonita - disse Hensch. É tão bonita como a senhora...
- Quem nos traiu? - perguntou Liyun. A sua expressão obrigou Hensch a desviar o olhar. Parecia desamparado.
- Não sabemos, senhora Yang. Só sabemos que alguém no meio de nós passa informações secretas. Neste momento, são vocês as vítimas desta malandragem!
Novamente, como havia dois anos, Rathenow e Liyun fizeram duas malas e uma mais pequena para Ying Regina.
Como naquela altura em Griinwald, só emalaram o essencial: os manuscritos, pastas, o CD com o concerto n° 1, de Tchaikovski, O Velho e o Mar, de Hemingway, e O Don Tranquilo, de Cholokhov, a velha máquina de escrever, alguma roupa interior, três vestidos, dois fatos, sapatos, camisas, tudo o que era necessário para a transição para uma vida normal... e o batique com a rapariga Bai a dançar mais as três pombas brancas.
- Tudo pronto! - disse Rathenow quando voltou do quarto. Willy Hensch já andava impacientemente de um lado para o outro. - Já podemos ir.
- Já não era sem tempo. Já telefonei à capitania do porto. Esperam por nós e só dão sinal de partida quando estivermos a bordo. Está um táxi à porta.
- E quem resolve os assuntos relativos à casa?
- Os nossos colegas da Guardia Civil. Vamos?
- Sim.
Liyun com Ying nos braços, Rathenow e finalmente Willy Hensch desceram a escadaria de pedra, passaram pelos arbustos floridos e palmeiras e pelo gato tigrado branco-avermelhado, ao qual tinham posto o nome de Tigris. Subiram para o carro. O motorista e Hensch meteram a bagagem na mala do carro. Liyun depôs Ying no colo de Rathenow e quis abrir a porta. Rathenow agarrou-lhe firmemente a mão.
- Onde vais? Que queres?
- Quero despedir-me de Tigris.
- Não! Fica sentada! Por favor! Quando partirmos não olhes à tua volta nem para trás, como da última vez em Griinwald! Despede-te com o coração e não com os olhos! Não devemos lamentar o que perdemos. A nova vida está à espera. Há sempre um recomeço.
- O nosso lindo paraíso, Bi xia... - Enfiou a cabeça no seu ombro e começou a chorar. - Fomos tão felizes. O que acontecerá agora?
- Não sei, niang niang. - Rathenow apertou a filha contra si e colocou o outro braço sobre os ombros de Liyun. - O mundo é suficientemente grande para três pessoas que só querem viver. Mas tenho um pressentimento terrível.
- Nunca encontraremos paz - disse Liyun baixinho, com as lágrimas a correr pelo pescoço de Rathenow.
- Sim. Será essa a nossa vida. Procurados pelas tríades, sempre com medo e sempre em fuga...
- Mas, estejamos onde estivermos, há sempre o nosso amor, bi xia, e em qualquer parte será bonito, porque estamos juntos. Aconteça o que acontecer. Fico tão feliz quando me chamas niang niang...
Continuaram a descer a estrada da montanha até Agulo e ao porto, onde o navio esperava por eles. Não olharam para trás e mantiveram-se juntos com Ying Regina entre os dois.
Uma pequena família feliz que fugia à morte.
Em Tenerife, subiram para o avião com destino a Madrid, olharam para baixo para o Atlântico azul, as casas brancas, as plantações de bananas, os barrancos e o sempre nevado pico do Teide, que se elevava nos céus com uma majestade de cortar a respiração, brilhando ao sol como pó de diamante. Ying brincava com pequenos bonecos de madeira que a hospedeira lhe dera.
- Bi xia - disse Liyun, pondo a mão sobre a dele. Ele levou-a aos lábios e beijou-a. Lá em baixo, desaparecia a costa de Tenerife. - A vida é bela, estejamos onde estivermos, porque é nossa.
O avião subia no azul do céu. Liyun, Rathenow e Ying Regina estavam de mãos dadas e nos altifalantes de bordo ouvia-se música popular espanhola.
- Já trazem alguma coisa para comer! - afirmou Rathenow, beijando Liyun na orelha esquerda. - Tens fome?
- E como! - Riu-se. - E tu?
- Estou a pontos de te devorar, niang niang...
Nunca mais se ouviu falar deles. Onde vivem agora, ninguém sabe. Na Alemanha apareceu um romance de Holger Fresius. Não foi um sucesso. Quem conhecia Holger Fresius? Um escritor desconhecido que ninguém sabia onde morava...
Heinz Konsalik
O melhor da literatura para todos os gostos e idades